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MARA REGINA TRIPPO KIMURA
AS TÉCNICAS BIOMÉDICAS A VIDA
EMBRIONÁRIA E O PATRIMÔNIO GENÉTICO
HUMANO À LUZ DA
REGRA DA PROPORCIONALIDADE PENAL
DOUTORADO EM DIREITO
PUC/SP
SÃO PAULO
2006
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12
MARA REGINA TRIPPO KIMURA
AS TÉCNICAS BIOMÉDICAS A VIDA
EMBRIONÁRIA E O PATRIMÕNIO GENÉTICO
HUMANO - À LUZ DA
REGRA DA PROPORCIONALIDADE PENAL
Tese apresentada à Banca Examinadora da
Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, como exigência parcial para
a obtenção do título de Doutor em Direito (área de
Direito das Relações Sociais, sub-área de Direito
Penal), sob a orientação do Professor Doutor Dirceu
de Mello.
PUC/SP
SÃO PAULO
2006
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13
Banca Examinadora
______________________________
Professor Doutor Dirceu de Mello (orientador)
______________________________
______________________________
______________________________
______________________________
14
DEDICATÓRIA
Dedico este trabalho a meu filho, muito esperado
e muito amado.
15
AGRADECIMENTOS
Agradeço a Deus, sempre.
Agradeço ao meu Mestre, Professor Doutor Dirceu de Mello,
pelo incentivo, pela confiança e pelos ensinamentos.
Com carinho, agradeço ao parceiro de todas as horas, meu
marido, Alexandre. Minha gratidão à minha família,
especialmente à minha mãe.
16
RESUMO
A genética evolui rápido, com ênfase na manipulação de genes e
de células, facilitada pela reprodução assistida. Ao lado de benefícios (ou
expectativas), agrega novos riscos, porque as técnicas são experimentais. Para
controle das atividades, o Direito Penal é reclamado e, a fim de coibir excesso,
apresenta-se a regra da proporcionalidade, mediante seus elementos:
necessidade, adequação e proporcionalidade estrita.
Na aplicabilidade desta regra, a noção central é o bem jurídico.
Entre eles, destaca-se a vida, cuja tutela a partir da fecundação se afigura mais
razoável em face da atualidade científica. Atrelados à dignidade humana,
emergem novos bens, como a integridade genética.
Iniciado pelo conceito de bem, o juízo da necessidade penal é
complementado pelas exigências da subsidiariedade e da fragmentariedade. Na
adequação, perquire-se a idoneidade da norma para evitar infrações e suas
vantagens e desvantagens perante a impunidade. Nas conexões com a pesquisa
científica, estes juízos aceitam a atuação preventiva da lei penal, imposta pela
importância dos bens, irreversibilidade e dimensão imensurável do dano e
dificuldade probatória do nexo causal. A proporcionalidade estrita preocupa-se
com a justiça da pena para o delito, valendo-se, na comparação entre as
categorias, de subsídios de ordem prática.
Palavras-chave: Bioética Biodireito Manipulação Genética - Proporcionalidade Bem jurídico
Vida - Patrimônio Genético
17
ABSTRACT
Genetics develops rapidly, with emphasis on
genes and cells manipulation, facilitated by assisted
reproduction. Besides its benefits (or expectations), new risks
are added, because it deals with experimental techniques. In
order to control such activities, an appeal is made to Criminal
Law, which in order to control abuse or excess, makes use of
the proportionality theory, through its basic elements, such as
need, adequacy and strict proportionality.
While applying this rule, the main point is the tutelage of legally
protected rights, among which, human life should be pointed out, whose
protection, starting from fecundation, seems to be more reasonable in view of the
current scientific trends. From the human dignity concept, new approaches
emerge, such as genetic integrity.
Starting from life protection concept, the judgement of Criminal
Law requirement is complemented by subsidiary and fragmentary demands. While
adjusting the situation to the norm, an analysis is made on the suitability of the
norm to avoid infringements, as well as its advantages and disadvantages before
impunity. While connecting such judgements with scientific research, they admit
the Criminal Law preventive action, imposed by the importance of such rights, as
well as by the irreversibility and immeasurable extent of damage therefrom, as well
as the difficulty of proving the causality link. Strict proportionality concerns with
justice of the penalty to be imposed to the tort or delict, taking advantage of
comparisons among the various categories, of subsidies taken from practise.
Key words: Bioethics Biolaw Genetic Manipulation Proportionality Legal right Life
Genetic heritage.
18
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO..................................................................................................................11
1. A REVOLUÇÃO DA CIÊNCIA, A BIOÉTICA E O DIREITO.....14
1.1 A ciência da vida e a ética................................................................................................14
1.1.1 A revolução científica e a “sociedade de risco”......................................................14
1.1.2 Conceitos científicos básicos..................................................................................20
1.1.3 A ciência e a ética da responsabilidade..................................................................23
1.2 A bióetica...........................................................................................................................26
1.2.1 A origem da bioética................................................................................................26
1.2.2 A sua conceituação e seus princípios básicos.......................................................30
1.2.3 As relações da bioética com o Direito.....................................................................32
1.3 Formas de controle das ciências biomédicas ..................................................................34
1.3.1 O autocontrole pessoal ou profissional...................................................................34
1.3.2 A tutela administrativa das atividades.....................................................................36
1.3.3 Tutela civil no âmbito da biomedicina.....................................................................40
1.3.4 Tutela penal na seara da biomedicina....................................................................40
2. AS MODERNAS TÉCNICAS DA GENÉTICA E SUAS
APLICAÇÕES NA REPRODUÇÃO HUMANA ASSISTIDA......43
2.1 A experimentação no homem...........................................................................................43
2.1.1 Experimentação terapêutica....................................................................................44
2.1.2 Experimentação não-terapêutica............................................................................46
2.1.3 Experimentação pura ..............................................................................................46
2.2 A terapia gênica................................................................................................................47
2.2.1 Terapia genética em células somáticas..................................................................49
2.2.2 Terapia gênica nas células da linha germinal.........................................................50
2.3 A reprodução humana assistida.......................................................................................51
2.3.1 O indivíduo e as distintas fases do seu desenvolvimento......................................51
2.3.1 Noções gerais..........................................................................................................55
2.3.2.1 Inseminação artificial (IA) ..........................................................................56
2.3.2.2 Fecundação in vitro (FIV) ..........................................................................57
19
2.3.2.3 Variantes comuns da fecundação in vitro .................................................58
2.3.2.4 Pontos controvertidos ................................................................................59
2.4 A manipulação genética aplicada às técnicas de reprodução humana...........................61
2.4.1 A seleção genética: eugenia ...................................................................................61
2.4.2 A clonagem..............................................................................................................63
2.4.2.1 Clonagem reprodutiva................................................................................65
2.4.2.2 Clonagem terapêutica e as células-tronco................................................66
2.4.3 Hibridação, quimeras e partenogênese..................................................................74
3. A PROPORCIONALIDADE...............................................................................76
3.1 Os princípios e as regras como normas jurídicas............................................................76
3.2 A proporcionalidade como regra.......................................................................................79
3.3 A nomenclatura.................................................................................................................81
3.4 A origem e a evolução histórica da proporcionalidade ....................................................83
3.5 A consagração constitucional...........................................................................................87
3.6 A proporcionalidade e os direitos fundamentais ..............................................................90
3.7 Conteúdo da regra da proporcionalidade no direito penal...............................................94
4. A SUB-REGRA DA NECESSIDADE..........................................................98
4.1 Linhas gerais .....................................................................................................................98
4.2 A exclusiva proteção dos bens jurídicos ..........................................................................98
4.2.1 Considerações preliminares....................................................................................98
4.2.2 Breve evolução histórica .......................................................................................101
4.2.3 O enfoque sociológico: a fragilização do conceito ...............................................104
4.2.4 O enfoque constitucional: a recuperação do conceito..........................................110
4.2.5 Nossa posição.......................................................................................................114
4.3 A intervenção mínima.....................................................................................................116
4.3.1 Os postulados: a fragmentariedade e a subsidiariedade .....................................116
4.3.2 A concretização: os conceitos de dignidade e carência de tutela penal..............122
4.3.3 As funções do direito penal...................................................................................124
4.3.3.1 A função promocional ..............................................................................125
4.3.3.2 A função simbólica...................................................................................127
4.3.3.3 A função de satisfação de expectativas sociais......................................128
4.3.3.4 Relações com a genotecnologia: nossa posição....................................129
4.4 O bem jurídico supra-individual......................................................................................132
20
5. A SUB-REGRA DA ADEQUAÇÃO...........................................................138
5.1 Seus traços comuns........................................................................................................138
5.2 Os obstáculos no exame da idoneidade penal ..............................................................141
5.3 O delito de perigo............................................................................................................144
5.4 As normas penais em branco.........................................................................................148
6. OS BENS JURÍDICOS (1): CONSIDERAÇÕES SOBRE A
DIGNIDADE HUMANA E A VIDA..............................................................152
6.1 A dignidade humana .......................................................................................................152
6.1.1 Ponderações preambulares ..................................................................................152
6.1.2 O plano do direito positivo.....................................................................................156
6.1.3 A relação com os direitos individuais e a impossibilidade da sua identificação
como bem jurídico................................................................................................160
6.2 A vida...............................................................................................................................162
6.2.1 As teorias sobre o começo da vida.......................................................................163
6.2.1.1 As posições clássicas: gregos e romanos ..............................................163
6.2.1.2 A doutrina da Igreja Católica: a teoria da animação...............................164
6.2.1.3 A teoria da fecundação ou formação do genótipo ..................................168
6.2.1.4 A teoria da nidação..................................................................................172
6.2.1.5 A teoria da formação dos rudimentos do sistema nervoso central.........179
6.2.1.6 Nossa posição..........................................................................................181
6.2.2 Perfil internacional .................................................................................................184
6.2.3 Perfil constitucional................................................................................................186
6.2.4 Parâmetros para a intervenção penal...................................................................192
6.2.4.1 A vida humana in vivo: algumas considerações sobre o aborto..........194
6.2.4.2 A vida humana in vitro...........................................................................199
7. AS TÉCNICAS BIOMÉDICAS E O DIREITO À VIDA..................203
7.1 A seleção pré-implantatória ............................................................................................203
7.2 A fecundação de óvulos com fins distintos da procriação.............................................212
21
7.3 A criopreservação de embriões ......................................................................................217
8. OS BENS JURÍDICOS (2): CONSIDERAÇÕES SOBRE O
PATRIMÔNIO GENÉTICO...............................................................................230
8.1 A dupla faceta: a individual e a coletiva .........................................................................230
8.2 Perfil internacional...........................................................................................................235
8.3 Perfil constitucional .........................................................................................................237
8.4 Parâmetros para a intervenção penal ............................................................................239
9. AS TÉCNICAS BIOMÉDICAS E O PATRIMÔNIO
GENÉTICO.........................................................................................................................242
9.1 A manipulação genética..................................................................................................242
9.2 A clonagem humana.......................................................................................................251
9.2.1 Clonagem reprodutiva: aspecto individual............................................................251
9.2.2 Clonagem reprodutiva: aspecto supra-individual..................................................256
9.2.3 Clonagem terapêutica...........................................................................................260
9.3 A seleção de gametas e de embriões: a escolha do sexo.............................................264
9.4 Os híbridos e as quimeras....................................................................................................267
10. A SUB-REGRA DA PROPORCIONALIDADE ESTRITA.......271
10.1 Considerações gerais ...................................................................................................271
10.2 Proporcionalidade das penas e os delitos referentes à genotecnologia .....................274
10.3 Relação entre os ilícitos disciplinar, administrativo e penal.........................................280
CONSIDERAÇÕES CONCLUSIVAS ........................................288
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...............................................................294
22
INTRODUÇÃO
A busca pelo conhecimento motiva continuamente a humanidade
para mudanças, que nem sempre representam formas de progresso. A ciência da
vida ou biomedicina, em virtude da interferência da tecnologia em incessante
evolução, amplia, com celeridade, seus horizontes. Nessas circunstâncias,
atormenta conceitos pouco questionados, como o começo da vida humana e o
padrão genético da espécie.
Os riscos relacionados às práticas científicas são, em certas
ocasiões, obscurecidos, em razão de interesses escusos movidos pelo egoísmo,
pelo interesse no lucro ou pela vaidade. Em outras ocasiões, são dramatizados,
graças ao sentimento social de insegurança, não constantemente calcado na
realidade. O medo, porém, não pode inibir a criação científica, porquanto, do
contrário, muitas melhoras à saúde nunca teriam sido conquistadas, como se
notou no passado com as vacinas.
No esforço pelo equilíbrio, o Direito é chamado para disciplinar os
comportamentos. Partindo de dados científicos, o jurista, sob lente cultural,
formula normas que, no âmbito penal, objetivam proteger subsidiariamente bens
jurídicos, sem prejuízo de promoverem valores.
Posta assim a questão, o presente estudo se propõe à análise da
tutela jurídico-penal sob o prisma da proporcionalidade, noção que remotamente
adentrou neste ramo jurídico. Assentados na Constituição Federal brasileira, os
seus elementos serão introjetados nas práticas biomédicas, a fim de que se apure
a legitimidade da intervenção penal.
23
O ponto de partida se resume à discussão do formato atual da
sociedade abalada por novas modalidades de risco, da responsabilidade no
exercício da atividade científica, do papel da bioética e das formas de controle,
institucionalizadas ou não. A seguir, para ampliar a esfera de conhecimento e,
portanto, de compreensão sobre as novas técnicas da biomedicina, serão
traçadas suas linhas gerais, sem a pretensão de esgotar o tema.
A fim de estabelecer nosso entendimento acerca da idéia de
proporcionalidade, será explicitada a correlata categoria normativa que ocupa,
qual seja a de regra, bem como serão expostos seus elementos: a necessidade, a
adequação e a proporcionalidade estrita.
Decodificando o juízo da necessidade, ingressaremos no conceito
de bem jurídico e, aspirando a alcançar seu sentido material, será percorrido o
caminho de sua evolução histórica e das teorias atuais. Na complementação do
raciocínio, serão examinados os postulados da intervenção mínima
(subsidiariedade e fragmentariamente) e de suas noções concretizadoras
(dignidade penal e carência de tutela). Fixada a proteção de bens jurídicos como
função primária do direito penal, serão explanadas as paralelas, dotadas de
crucial importância na seara da biotecnologia.
Dada a insuficiência da positividade da necessidade penal para a
tipificação legítima do comportamento, será ponderado o juízo de adequação,
quando se esquadrinharão as bases para a suscetibilidade da conduta à tutela
penal, sob o ângulo das condições reais do sistema jurídico e da sociedade.
Delineados tais parâmetros, a etapa seguinte compreenderá a
identificação dos bens jurídicos afetados pela engenharia genética em si mesma,
bem como em suas relações com a reprodução assistida. Seriam infindáveis as
24
discussões se todos os bens fossem abordados neste trabalho. Por isso, com
base no quadro vivenciado atualmente, marcado pela preocupação em torno do
estatuto do embrião e das conseqüências provenientes da alteração do genoma
humano para a espécie, o debate restará restrito aos bens que os afligem
diretamente.
Ato contínuo, mister se faz embrenhar no estudo da dignidade
humana à vista do conceito de bem jurídico e, após, da vida, suporte ontológico
de todos os demais bens, com destaque para as teorias explicativas de seu início.
Para não perder de vista as ponderações, será, após, demarcada a relação entre
a vida e as técnicas biomédicas, sempre sob o enfoque das sub-regras da
proporcionalidade.
A seguir, a análise adentra na integridade genética humana, um
novo bem jurídico. Como procedido com a vida, também será abordada a relação
entre o genoma humano e a biomedicina. Ainda na investigação da vida e do
patrimônio genético, serão descritos os perfis internacional e constitucional dos
respectivos bens, como também os parâmetros para ius puniendi.
Finalizando, não podemos olvidar do juízo da proporcionalidade
estrita, em que se almeja a justa resposta ao crime para combatê-lo, e cuja
análise consigna sua relação com os delitos referentes à tecnologia genética.
A importância de um estudo mais acurado sobre a presente
temática salta aos olhos face ao estágio da ciência atrelado à postura da
sociedade perante ele, ora entusiasmada, ora temerosa. Ao aceitar os avanços ou
ao pugnar por medidas restritivas, o indivíduo, o Estado e a humanidade, num
plano mais abrangente, exteriorizam a postura diante de fatores essenciais para a
existência e a dignidade humana.
25
1. A REVOLUÇÃO DA CIÊNCIA, A BIOÉTICA E O DIREITO
1.1 A ciência da vida e a ética
1.1.1 A revolução científica e a “sociedade de risco”
O impulso pelo conhecimento, a ânsia pela cura de enfermidades
ou por uma melhor qualidade de vida, a imposição de interesses financeiros e
políticos ou até mesmo a vaidade humana conduziram o homem a inovações
científicas que, paulatinamente, dissiparam a distinção entre o natural e o
artificial.
1
Nesse contexto, está situada a biomedicina ou ciência da vida,
que se ocupa do estudo científico da vida e de sua qualidade, com destaque para
a medicina e a biologia, sobretudo na área da genética.
2
Trata-se de campo do
conhecimento radicalmente marcado por duas transformações, a saber: I) a
revolução terapêutica que, deflagrada com a descoberta das sulfamidas,
3
em
1936, e da penicilina, em 1946, decorreu da aplicação de novos medicamentos na
prevenção, no tratamento de doenças e na pesquisa clínica; II) a revolução
biológica que, processada por meio de descobertas sobre os genes, tem
propiciado alternativas para a reprodução humana, além de, em paralelo à
1
Cf. CANABARRO, Nelson Souza. Prefácio. In: BELLINO, Francesco. Fundamentos da bioética:
aspectos antropológicos, ontológicos e morais. Trad. e pref. por Nelson Souza Canabarro.
Bauru/SP: EDUSC, 1997. p. 11.
2
Cf. ROMEO CASABONA, Carlos María. Do gene ao direito: sobre as implicações jurídicas do
conhecimento e intervenção. São Paulo: IBCCrim, 1999. p. 4.
3
As sulfamidas são medicamentos eficazes contra infecções e foram descobertas por Domagk, na
Alemanha, e por Tréfouel, em França (1936-1937).
26
prevenção e à cura, almejar a eliminação de propensões a enfermidades
agregadas à composição genética.
4
A última das revoluções foi impulsionada em 1944, quando
Oswald Avery, Mc Lead e Mac Carty descobriram o DNA (ácido
desoxirribonucléico), que é o mensageiro molecular responsável por toda a
informação genética do indivíduo. A estrutura do DNA, em dupla hélice de quatro
bases nitrogenadas, foi descrita por James Watson e Francis Crick, em 1953,
quando se revelou que cada espécie carrega patrimônio genético próprio e que
cada ser vivo é formado por um patrimônio único, salvo no caso de gêmeos
monozigóticos.
Na atualidade, sobressai o Projeto Genoma Humano que,
iniciado em meados de 1980, nos Estados Unidos, tinha como primeiro objetivo o
estudo do efeito da exposição dos genes humanos a baixas intensidades de
radiação. Mais adiante, em razão das visíveis vantagens das pesquisas,
especialmente para a medicina preditiva, que está centralizada em investigações
sobre a predisposição genética a doenças, seguiram propostas de outros estudos,
voltados para a cartografia dos genes, os quais impulsionaram, mais e mais, o
projeto, quando países desenvolvidos decidiram se incorporarem a ele. Entre eles
estão Canadá, Japão, vários países da União Européia e, recentemente, o Brasil.
Na Europa, simultaneamente, foram lançados os projetos Biomed e Biomed 2.
Graças aos estudos empenhados, vários “mapas” foram
elaborados com diferentes qualidades de resolução, trazendo a localização de
genes responsáveis por enfermidades, bem como a seqüência de fragmentos de
DNA medicamente relevantes. Em 14 de abril de 2003, os pesquisadores do
4
Cf. BERNARD, Jean. Da biologia à ética. Trad. por Reina Castilho. Campinas/SP: Psy II, 1994. p.
29.
27
Projeto Genoma Humano anunciaram oficialmente o seqüenciamento de
3.000.000.000 de bases do DNA da espécie humana. Atualmente, grandes
esforços são despendidos na aquisição de técnicas e instrumentos para o traçado
de mapas, com o fim de reduzir o custo e aumentar a eficácia da investigação,
quando a contribuição da informática desponta como decisiva.
5
O contexto científico contemporâneo acena para a concretização
de antigas idéias de ficção científica de Aldous Huxley, reveladas na obra
Admirável mundo novo, cuja primeira edição remonta ao ano de 1932. Mais
importante, demonstra que o progresso da genética deriva da aproximação entre
a ciência e a técnica, e desnuda o fenômeno cultural intitulado tecnociência,
caracterizado pela tendente homologia entre o conhecer - pesquisa ou
investigação pura (ciência) - e o fazer - emprego dos resultados das descobertas,
consumado mediante a aplicação técnica do conhecimento.
6
Nesta seara, situa-se
a biotecnologia que significa o conjunto de técnicas em que são usadas as
propriedades do material biológico para múltiplos fins, como segurança ambiental,
alimentar, agronegócio, terapia gênica, alimentos geneticamente modificados,
vacinas e clonagem.
Sem embargo dos benefícios que apresenta para a sociedade
presente e das inúmeras expectativas para o porvir, a biotecnologia agrega novos
riscos, porque as descobertas, além de idealizarem um contexto até então apenas
cogitado, não poucas vezes estão calcadas em procedimentos que trafegam pela
fase experimental, com projeção de efeitos não dominados ou inimagináveis.
5
Cf. ROMEO CASABONA, Carlos María. Genética e direito. In: ROMEO CASABONA, Carlos
María (Org.). Biotecnologia, biodireito e bioética: perspectivas em direito comparado. Trad. por
José Carlos Sampaio Rodarte. Belo Horizonte: Del Rey; PUC-MG, 2002. p. 24-25.
6
A palavra técnica provém do grego teknicas, que significa fazer bem algo.
28
Preocupado com o tema, Ulrich Beck debruçou-se sobre o
modelo macrosociológico da era pós-industrial, desenhando seus caracteres,
entre os quais, por ora, são pontuados os mais enfáticos. O primeiro reside na
diferenciação entre a causa e o potencial dos grandes perigos atuais e os de
épocas pretéritas. Enquanto outrora os perigos decorriam de desastres naturais
ou pragas, no presente são marcados pelo artificialismo, pois fabricados pelo
homem, dependentes de sua decisão e atuação. A par disso, porque ligados à
exploração da energia nuclear, de produtos químicos, de recursos alimentícios,
ecológicos ou, frise-se, genéticos, os novos riscos afetam a humanidade como um
todo e, sendo assim, tendem a uma difusão avassaladora, incluindo
possibilidades de autodestruição coletiva, acentuadas pelo fenômeno da
globalização.
7
A segunda peculiaridade, também apontada por Beck, está nas
conseqüências dos riscos da modernização, posto que, além das primárias, se
verificam outras, secundárias (Nebenfolgen), que correspondem a efeitos
indesejados, não previstos ou imprevisíveis, desencadeados nas esferas social,
econômica e política, os quais, na opinião do sociólogo, correspondem ao
potencial político das catástrofes. Na sua ótica, os perigos anteriores à
industrialização eram passíveis de imputação ao destino, às forças da natureza,
aos deuses, enfim ao fatalismo, e por isso nenhuma resposta se esperava do
Direito, ao passo que, nos perigos artificiais, onde as respectivas decisões partem
do ambiente industrial ou técnico-econômico, abre-se margem para a
responsabilidade pela conseqüência indesejada, campo onde, ao lado das
7
Ulrich Beck, Risikogesellschaft Auf dem Weg in eine andere Moderne, Frankfurt am Main 1986, p.
31, 48, 52 e 103, e Revista de Occidente, n. 150, nov./93, p. 25-33, apud MENDONZA BUERGO,
Blanca. El derecho penal en la sociedad del riesgo. Madrid: Civitas, 2001. p. 24-28.
29
pessoas individualizadas, figuram, como possíveis alvos, as autoridades
administrativas e as empresas implicadas.
8
Não são poucas as dificuldades a serem trabalhadas no universo
jurídico, porque, como ainda adverte Beck, são insuficientes as regras tradicionais
de causalidade e de responsabilização, o que se denota na maioria das atividades
que exigem a inter-relação de tecnologias, em funcionamento dentro de contextos
coletivos intricados, quando, muitas vezes, a multiplicidade das ações confere azo
à irresponsabilidade.
9
Baseado em tais ponderações, Beck distingue três sociedades: I)
a tradicional, em que a origem e os efeitos dos riscos são individualizados e
facilmente constatáveis; II) a industrial, em que a ordem dos riscos segue
individualizada, mas os efeitos são coletivos; III) a de risco, referente à etapa atual
(pós-industrial), em que, além dos perigos tradicionais e industriais, se instalam
outros, cuja origem é, desde logo, generalizada e os efeitos são coletivos,
residindo, nesses atributos, os seus principais entraves.
10
Em decorrência da nova ordem, a sociedade atual, para Jesús
María Silva Sánchez, padece de sensação de insegurança subjetiva (sociedade
do medo), que pode advir independentemente de riscos reais, seja em razão da
velocidade das mudanças, seja em função do acesso quase que instantâneo de
sua ocorrência, em virtude da evolução dos meios de comunicação, o que se
traduz numa demanda pública ascendente por normas de controle.
11
8
MENDONZA BUERGO, Blanca. op. cit.
9
Id. Ibid.
10
Ulrich Beck, Die Erfindung des Politische, Frankfurt am Main 1993, p. 39-41, apud LÓPEZ
BARJA DE QUIROGA, Jacob. El moderno derecho penal para una sociedad de riesgos. Poder
Judicial, Madrid, n. 48, 3. época, p. 293, 1997.
11
Cf. SILVA SÁNCHEZ, Jesús María. La expansión de derecho penal: aspectos de la política
criminal en las sociedades postindustriales. Madrid: Civitas, 1999. p. 21-28.
30
Essas reflexões revelam, na precisa lição de Figueiredo Dias, a
superação de uma era em que os riscos provinham de forças da natureza ou de
ações individualizadas, próximas e definidas, para a contenção das quais era
bastante a tutela dispensada aos bens clássicos (vida, corpo, saúde, patrimônio).
É anunciada uma nova sociedade, exasperadamente tecnológica, massificada e
global, onde os riscos, globais ou tendentes a tanto, podem ser produzidos em
tempo e lugar largamente distanciados da ação que os originou ou para eles
contribuiu e podem gerar, como conseqüência, pura e simplesmente, a extinção
da vida.
12
A mudança instiga reformas nas estruturas política e jurídica que,
se efetivadas, provocariam a passagem do Estado Liberal Clássico para o Estado
de Prevenção, que é mais permeável à expansão desmedida do direito penal,
como admoesta Alessandro Baratta.
13
A grande missão do penalista está na
busca do equilíbrio, para, de um lado, evitar a exclusão do direito penal em
questões fundamentais, como a preservação do Planeta e das espécies, e, de
outro, para banir ingerências meramente simbólicas, inócuas na prática, e que
conferem às normas penais o papel equivocado de compensar o déficit estatal e
social de controle da tecnologia. A noção de proporcionalidade apresenta-se
como aparato valioso na tarefa, auxiliando no balanceamento de bens.
12
Cf. DIAS, Jorge de Figueiredo. Temas básicos da doutrina penal: sobre os fundamentos da
doutrina penal. Sobre a doutrina geral do crime. Coimbra: Coimbra Ed., 2001. p. 158.
13
BARATTA, Alessandro. Funciones instrumentales y simbólicas del derecho penal: una discusión
en la perspectiva de la criminología crítica. Trad. por Mauricio Martínez Sánchez. Pena y Estado:
función simbólica de la pena, Barcelona, n. 1, p. 44-45, sept./dic. 1991.
31
1.1.2 Conceitos científicos básicos
O controle jurídico das atividades científicas depende do manejo
de certos conceitos inerentes à biologia, porque são com freqüência importados
pelo legislador diretamente do campo fenomênico para o mundo normativo.
Desde logo, são expostos os mais usuais.
O cromossomo consiste em estruturas cuneiformes situadas no
núcleo de uma célula que armazenam e transmitem informação genética: é a
estrutura física portadora dos genes. Está composto essencialmente de DNA ou
ADN.
14
Cada espécie tem um número próprio de cromossomos. O gene é a
unidade de informação hereditária, situada no cromossomo, e que determina as
características de um indivíduo.
15
O genoma é o conjunto de genes, ou seja, o
conjunto da informação genética do cromossomo. O genótipo significa a
constituição genética do indivíduo, isto é, a classe de genes que pessoalmente
herdou, formando uma espécie em particular. Da interação do genótipo com as
condições ambientais, resulta o fenótipo, que configura o aspecto ou aparência do
indivíduo em relação à espécie.
16
14
O DNA é um filamento alongado, formado por dois filamentos paralelos, enrolados em eixo
imaginário, em forma helicoidal de escada. Cada filamento é composto por uma cadeia de
moléculas ou bases nitrogenadas seqüenciais, quais sejam A, T, C e G (adenina, tinina, citosina
e guanina). Cada base de filamento se emparelha de forma precisa e determinada com a base
de outro filamento ou cadeia, ou seja, A-T, T-A, C-G e G-C. Não é possível a combinação, por
exemplo, A-G, quando se está diante de erro ou mutação. No DNA humano, há cerca de três
milhões de pares de bases. A linguagem (estrutura química) é a mesma, pois, como ensina
Dussaut, Prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina de 1980: “É apenas a ordem com que estas
quatro letras se sucedem o que diferencia a roseira ou o milho de uma bactéria, de um elefante
ou de um homem”.
15
Recorrendo à representação gráfica de agrado dos biólogos, pode-se dizer que o código
genético seria um dicionário; as bases nitrogenadas do DNA seriam as letras; os aminoácidos,
compostos por três bases agrupadas que, combinadas, formam as proteínas, corresponderiam
às palavras.
16
Cf. MARTÍNEZ, Stella Maris. Manipulação genética e direito penal. São Paulo: IBCCrim, 1998.
p. 23-24.
32
O certo grau de maleabilidade que caracteriza o genoma permite
nova combinação de genes mediante dois mecanismos naturais: a recombinação
genética e a mutação. A recombinação genética constitui o intercâmbio de
informação hereditária entre 2 dois organismos independentes, o que acarreta
combinação diferenciada de genes e facilita o aparecimento de organismos
variantes dentro de uma espécie. Opera nos ciclos de reprodução humana, de
modo que o novo ser possuirá 50% (cinqüenta por cento) da informação genética
de cada um dos seus progenitores. A mutação genética é o mecanismo pelo qual
um gene sofre uma transformação repentina, que resulta em nova forma.
17
A recombinação e a mutação podem ocorrer artificialmente
graças aos avanços tecnológicos da genética, entre os quais avulta a
manipulação genética que assume dupla acepção.
Em sentido estrito, corresponde à engenharia genética ou à
manipulação genética molecular, cujo material de trabalho está nas seqüências
de DNA onde se encontram os genes. A engenharia genética engloba o conjunto
de técnicas do DNA recombinante, conforme o art. 3º, V, da Lei Federal n. 8.974,
de 5 de janeiro de 1995
18
e o art. 3º, IV, da atual Lei Federal n. 11.105, de 24 de
março de 2005.
19
17
MARTÍNEZ, Stella Maris. op. cit., p. 23-25.
18
Cf. FIORILLO, Celso Antonio Pacheco; RODRIGUES, Marcelo. Direito ambiental e patrimônio
genético. Belo Horizonte: Del Rey, 1996. p. 151.
19
Em 31 de outubro de 2003, foi apresentado Projeto de Lei de autoria do Executivo à Câmara dos
Deputados, estabelecendo novas regras sobre a segurança e a fiscalização de organismos
geneticamente modificados. O projeto foi aprovado na Câmara dos Deputados em fevereiro de
2004. Enviado ao Senado, a Casa aprovou o projeto substitutivo do senador Ney Suassuna, em
6 de outubro daquele mesmo ano, por 53 (cinqüenta e três) votos a favor, 2 (dois) contra e 3
(três) abstenções. Retornando a Câmara, em 3 de março de 2005, foi aprovado o substitutivo do
deputado Darcísio Perondi, por 352 (trezentos e cinqüenta e dois) votos a favor, 60 (sessenta)
contrários e 1 (uma) abstenção. Finalmente, foi sancionado em 24 de março daquele ano, e
consubstancia a Lei n. 11.105/05, que atualmente regula a matéria.
33
Descobertas em 1972 por Paul Berg, as técnicas do DNA
recombinante são operacionalizadas pela modificação, inserção, substituição ou
supressão de genes (fragmentos de DNA). A inserção ou adição consiste na
introdução na célula de um gene ausente no genoma. A modificação transforma o
gene defeituoso. Na substituição, extrai-se o gene anômalo e coloca-se o normal
em seu lugar. Na supressão, o gene é retirado ou neutralizado.
20
Em sentido amplo, a manipulação genética inclui, ao lado da
manipulação molecular, a análise dos genes e as intervenções não-moleculares,
que se consumam sobre as células, os tecidos e os órgãos, especialmente na
fase embrionária, com destaque para a hibridação e clonagem.
21
Em outro posto, estão as técnicas de reprodução assistida que,
em si mesmas, não alteram o patrimônio genético humano nem o recombinam
fora dos padrões naturais da espécie. Promovem, exclusivamente, o manuseio de
gametas e embriões, para a concepção de um ser humano por meios não-
naturais, pelo que são chamadas, em seu todo, de manipulação ginecológica.
22
Entretanto, é patente a proximidade entre as técnicas em apreço e a manipulação
genética, porquanto aquelas colocam, em laboratório, à disposição dos cientistas,
os gametas, as células e os embriões, facilitando, à saciedade, a manipulação de
suas propriedades biológicas.
20
Cf. HOMS SANZ DE LA GARZA, Joaquin. Avances en medicina legal ingeniería genética,
alteraciones psíquicas y drogas. Barcelona: Bosch, 1999. p. 22.
21
Cf. BENÍTEZ ORTUZAR, Ignácio Francisco. Aspectos jurídico-penales de la reproducción
asistida y la manipulación genética humana. Madrid: Edersa, 1997. p. 31-32.
22
Cf. MARTÍNEZ, Stella Maris. op. cit., p. 23.
34
1.1.3 A ciência e a ética da responsabilidade
Nos últimos 500 (quinhentos) anos, graças ao processo de
secularização e modernidade, o homem paulatinamente passou a ser
considerado como o sujeito, o senhor e o proprietário do mundo. Na percepção de
Anselmo Borges, o giro consagrou a razão técnico-instrumental que, centrada no
manejo de meios para o controle do universo, exclui considerações teleológicas,
resumindo-se na lógica do domínio da ação.
23
Sob tal ótica, as ciências da natureza, entre as quais a
biomedicina, podem ser imaginadas de forma desapegada do meio social, como
se estivessem numa redoma envolvida pelo manto da neutralidade. O
pensamento estimula aventuras técnicas ilimitadas, como aquelas dirigidas à
substituição da casualidade, em que as aleatórias combinações naturais cedem
enorme espaço para a seleção intervencionista (escolha arbitrária de gametas ou
embriões para a fecundação assistida, clonagem reprodutiva para cópia de uma
determinada pessoa).
Embora o determinismo mecanicista deposite nas mãos dos
homens poderes antes impensáveis, o desprezo científico pelo fim é apenas
provisoriamente sustentável. Conquanto a investigação pura (técnicas para as
descobertas) seja, em princípio, imparcial porque voltada para o conhecimento,
sempre está condicionada por certas finalidades, as quais integram um processo
impregnado de escolhas. De fato, a seleção do objeto investigativo e a eleição de
um entre múltiplos meios englobam uma opção valorativa entre os benefícios e os
custos de dada pesquisa.
23
BORGES, Anselmo. O crime económico na perspectiva filosófico-teleológica. Revista
Portuguesa de Ciências Criminais, Coimbra, ano 10, fasc. 1, p. 13-15, jan./mar. 2000.
35
Em meio às preferências, a lógica do conhecimento interage com
fatores históricos, culturais, financeiros e políticos, ou seja, com os caracteres do
meio social. Destarte, não há ciência totalmente neutra e, ante a conscientização
dessa realidade, a razão instrumental, porque em extrema penúria de fins e
deserto de sentido, entra, nos dizeres de Anselmo Borges, em colapso.
24
O
embaraço nos dias de hoje é flagrante no âmbito das novidades genéticas,
porque muitos dos riscos que provocam nunca foram pensados.
Para superar a crise, o autor português propõe, com acerto, a
conscientização de que as novidades científicas, se ameaçam, fazem-no a todos,
cabendo à humanidade presente, se quiser ter futuro, portar-se como sujeito
comum da responsabilidade pela vida.
25
Via de conseqüência, no exercício de
atividade científica, cada um dos seres humanos deve fiscalizar e ser fiscalizado,
de maneira que delimite seu comportamento pelo binômio liberdade-
responsabilidade, salientado por Maria Garcia.
26
O binômio não se impõe para cercear o desenvolvimento
científico, o que seria negativo para todos, senão para destacar critérios
humanitários que orientem as pesquisas e a técnica e, nesse propósito, a ética
ganha espaço. A palavra, dotada de forte carga emotiva, é empregada nos mais
variados contextos, o que lhe confere aparente confusão de sentido
27
que pode
ser diluída pela diferenciação entre ética e moral.
Segundo Marco Segre e Cláudio Cohen, a moral assume as
seguintes características: “1. seus valores não são questionados; 2. eles são
24
BORGES, Anselmo. op. cit., p. 23-24.
25
Id. Ibid., p. 31.
26
Cf. GARCIA, Maria. Limites da ciência: a dignidade da pessoa humana: a ética da
responsabilidade. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2004. p. 260.
27
Cf. NALINI, Renato. Ética geral e profissional. 3. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2001.
p. 5.
36
impostos; 3. a desobediência às regras pressupõe um castigo”.
28
Já a ética é
recoberta por outros atributos: “1. percepção dos conflitos (consciência); 2.
autonomia (condição de posicionar-se entre a emoção e a razão, sendo que essa
escolha de posição é ativa e autônoma); 3. coerência”.
29
Guy Durand apresenta a moral como termo que, associado à
prática (ao comportamento), forma um sistema fechado de normas, de ordem
religiosa ou confessional. A ética aparece como ciência da conduta, que tem por
objeto a moral e opera em questionamento secular, pluralista, prospectivo e
aberto.
30
Pode-se afirmar que a norma moral é um imperativo de conduta,
consagrado como tal, cuja violação redunda em sanção. A ética, por sua vez, é o
estudo sobre as normas morais, que permite preencher vazios normativos ou
questionar o motivo pelo qual uma conduta é considerada boa para dada
concepção axiológica de partida e não para outra, a fim de que, expostos os
fundamentos, seja possível externar objetivamente a preferência.
31
Em meio à tensão valorativa despertada pela biotecnologia, toma
assento a ética, ou melhor, a bioética, não a bio-moral, porque os
comportamentos, conquanto envolvam opções valorativas, são social ou
religiosamente controvertidos, bem como dificilmente reguláveis por ditames
precisos e fechados.
28
COHEN, Cláudio; SEGRE, Marco. Definição de valores, moral, eticidade e ética. In: SEGRE,
Marco (Org.). Bioética. São Paulo: Edusp, 1998, p. 15-16.
29
Id. Ibid., p. 17.
30
DURAND, Guy. Introdução geral à bioética: história, conceitos e instrumento. Trad. por Nicolás
Nyimi Campanário. São Paulo: Loyola, 2003. p. 74-75.
31
Segundo Nicola Abbagnano, a palavra ética permite as seguintes acepções: 1ª) a ciência do fim
para o qual a conduta dos homens deve ser orientada e dos meios para atingir tal fim, deduzido
tanto o fim quanto os meios da natureza do homem (ética teleológica); 2ª) ciência do móvel da
conduta humana, com vistas a dirigir ou disciplinar essa conduta (ética deontológica), cf.
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 380 e 682.
37
O raciocínio é complementado por Peter Singer ao explicar que o
desafio ético não está no oferecimento de ditames comportamentais para
diferenciar o bem e o mal, mas em “preparar homens e mulheres para tomar a
decisão”.
32
O debate ético alimenta a esperança de que a sociedade não
compreenda a genética “unicamente por su valor cognoscitivo (...) sino por lo que
significa para el hombre y desde el hombre”.
33
Enfim, as ponderações éticas atuam como suporte da ciência,
com o intento de conscientizar pesquisadores, clínicos e pacientes sobre a
essência humana, ao avultarem que a liberdade, retrato mais fiel da imagem
humana, não se realiza no plano individual, mas na convivência entre as pessoas,
no mundo naturalmente social, o que obriga cada um à atitude de respeito
perante o outro e de solidariedade perante o todo, implicando atribuição de
responsabilidade, postura essa que consubstancia a denominada ética da
responsabilidade, defendida por Maria Garcia.
34
1.2 A bióetica
1.2.1 A origem da bioética
O termo Bioética deriva da fusão de vocábulos de origem grega
bio (vida) e ethos (ética). As raízes semânticas remetem às preocupações
daquela civilização: a relação entre a natureza, criadora da força física, e a
32
SINGER, Peter. Perito em dilemas de vida e morte. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 23 jan.
2005. p. J-3.
33
GONZÁLEZ, Juliana. Valores éticos de la ciencia. In: VÀZQUEZ, Rodolfo (Comp.). Bioética e
bioderecho: fundamentos y problemas actuales. México: Itam - Instituto Tecnológico Autónomo
de México; Fondo de Cultura Económica, 1999. p. 28.
34
Cf. GARCIA, Maria. op. cit., p. 213 e ss.
38
sociedade, artífice de regras de conduta. O vocábulo foi introduzido, no léxico
contemporâneo, pelo oncologista Van Renssealer Potter, de Wisconin, ao
escrever um artigo intitulado The science of survival, publicado em 1970 e, no ano
seguinte, na obra Bioethics: bridge to the future, quando empregou o termo com
sentido ecológico (“ciência da sobrevivência”). O pesquisador holandês André
Hellegers, fundador do Kennedy Institute of Ethics, na Universidade de Georgetown,
e o teólogo protestante Paul Ramsey contribuíram para o neologismo, introduzindo o
significado atribuído na atualidade: ética da ciência da vida.
O movimento bioético é recente, pois deflagrado há cerca de um
século, embora suas bases sejam bem mais longínquas, sediadas na ética
médica, na ética deontológica e na ética teleológica.
35
Na ética médica, Hipócrates (460-370 a.C.), grego pertencente a
uma das corporações médicas mais antigas, elaborou o primeiro código de
comportamento médico. Em seu famoso juramento, com tom paternalista,
concebeu o médico como “guardião inapelável, acima da lei e de qualquer
suspeita”.
36
Em maior consonância com o mundo contemporâneo, em 1901, na
Prússia, foi editada a Instrução sobre intervenções médicas com objetivos outros
que não diagnóstico, terapêutico ou de imunização, quando foi exteriorizada, de
modo singelo, a preocupação com o respeito à autonomia da vontade do
paciente, garantida pelo consentimento.
37
Seguiram-se as Diretrizes para novas
terapêuticas e pesquisas em seres humanos, publicadas na Alemanha, em 1931,
35
Cf. DURAND, Guy. op. cit., p. 22.
36
Cf. SGRECCIA, Elio. Manual de bioética: fundamentos e ética biomédica. Trad. por Orlando
Soares Moreira. 2. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2002. v. 1, p. 37.
37
Proibia as intervenções médicas com objetivos outros que não diagnóstico, terapêutico ou de
imunização quando: a) pessoa fosse menor e não estivesse completamente em sua capacidade;
b) a pessoa não tivesse declarado de forma inequívoca que consentia com a intervenção; c) a
declaração não tivesse sido dada com base em explicações apropriadas das conseqüências
adversas que pudessem resultar das intervenções propostas (cf. DIAFÉRIA, Adriana. Clonagem:
aspectos jurídicos e bioéticos. Bauru/SP: Edipro, 1999. p. 221).
39
responsáveis pela pontuação da necessidade de balanceamento entre riscos e
benefícios.
38
Finda a Segunda Guerra Mundial, o holocausto estimulou a
aprovação de vários códigos de ética médica. Entre eles, o Código de Nuremberg,
de 1946, e o Código de Ética Médica, de 1948, publicado em Genebra pela
Associação Médica Mundial. É celebre o Código ou Declaração de Helsinque,
sobre a experimentação e as pesquisas biomédicas, igualmente emanado da
Associação Médica Mundial em 1964, com as subseqüentes alterações ocorridas
na 29ª Assembléia Médica Mundial, sediada em Tóquio, em 1975, na 35ª, sediada
em Veneza, em 1983, na 41ª, sediada em Hong-Kong, em 1989 e na 48ª, sediada
na África do Sul, em 1996.
39
Associam-se as Diretrizes éticas internacionais para
a pesquisa envolvendo seres humanos, publicadas em 1993, pelo Conselho
Internacional da Organização Mundial de Ciências Médicas, em colaboração com
a Organização Mundial de Saúde.
40
Na ética filosófica, os pilares mais remotos da bioética são
evidenciados sob três expressões. A primeira, ligada a Aristóteles e à sua obra
Ética a Nicômacos, aproxima a ética da política, ao preconizar o atuar contínuo
das virtudes no âmbito cívico.
41
A segunda, de tradição anglo-saxônica
38
Para as novas terapêuticas, exige-se: a) balanceamento entre risco e benefício; b) realização de
testes prévios em animais; c) consentimento informado; d) emprego não consentido apenas para
salvar vidas ou prevenir danos severos em circunstâncias especiais; e) especial consideração em
casos que envolvam menores; f) rejeição à exploração de necessitados; g) cuidados especiais no
uso de microorganismos vivo; h) aceitação da responsabilidade total do médico da instituição; i)
documentação por escrito; j) publicação com respeito à dignidade dos pacientes. Para as
pesquisas, acrescem-se aos anteriores, os seguintes pressupostos: a) prévia disponibilidade de
dados em animais e de laboratório; b) não usar menores; c) não usar pessoas mortas (cf.
DIAFÉRIA, Adriana. op. cit., p. 222).
39
Cf. SGRECCIA, Elio. op. cit., p. 41-42; DIAFÉRIA, Adriana. op. cit., p. 222-250.
40
Cf. DIAFÉRIA, Adriana. op. cit., p. 251.
41
Para Aristóteles, as virtudes são uma excelência moral. Discorre que a excelência moral, quanto
ao gênero, cuida de disposição, a qual significa “os estados da alma em virtude dos quais
estamos bem ou mal em relação às emoções por exemplo, em relação à cólera estamos mal
se a sentimos moderadamente, e de maneira idêntica em relação às outras emoções”. Quanto à
40
(utilitarista), confere o valor à ação em proporção direta ao número de pessoas
beneficiadas. A terceira, de índole kantiana, amarra-se à oposição entre coisa e
pessoa: aquela com preço e esta com dignidade, de modo que impõe que a
atuação de cada indivíduo seja produto de suas próprias leis, racionalizadas pela
moral universal, isto é, pela possibilidade de se tornarem leis adotadas por
todos.
42
Ingressa, novamente, a codificação que adveio em resposta aos
horrores chefiados por Hitler, a começar pela Declaração Universal dos Direitos
do Homem e pela Convenção sobre o genocídio, ambas da Organização das
Nações Unidas, datadas de 1948. Não obstante, o mundo continuou assistindo,
nos anos seguintes, a experimentos desvairados em seres humanos, ocorridos,
em especial, nos Estados Unidos da América,
43
e que, em razão do escândalo,
impulsionaram a retomada de reflexão filosófica na biomedicina, que fez do país o
berço do movimento intelectual em apreço.
44
Na reconstrução retrospectiva da bioética, estão ainda as
religiões, sobretudo a judaica, a cristã e a mulçumana, que trazem à colação a
ampla valorização da pessoa humana e do amor ao próximo.
natureza específica, decorre do “meio termo”, um equilíbrio entre dois vícios extremos, duas
formas de deficiência moral (ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução do grego, introdução e
notas de Maria da Gama Kury. 3. ed. Brasília: Ed. da UnB, 1999. p. 40-41).
42
O imperativo universal do dever, imperativo categórico, foi enunciado por Kant nos seguintes
termos: “Age apenas segundo a máxima tal que possas querer ao mesmo tempo em que ela se
transforme em lei universal” KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes.
Textos sel. por Marilena de Souza Chauí e trad. por Tânia Maria Bernkopf, Paulo Quintela e
Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural, 1980. p. 129-130. (Os Pensadores).
43
Em 1963, no Hospital Israelita de Doenças Crônicas (Jewish Chronic Disease Hospital) do
Brooklin, nos Estados Unidos, foram realizadas experiências com pacientes idosos, com injeção
de células tumorais vivas em seus organismos, sem que houvesse o correspondente
consentimento. Entre 1950 e 1970, o Hospital Estatal Willowbrook (Willowbrook State Hospital),
de Nova York, promoveu uma série de estudos sobre hepatite, através da inoculação do vírus
vivo em crianças com retardo mental que se encontravam internadas (cf. BARCHIFONTAINE,
Christin de Paul de; PESSINI, Léo. Problemas atuais de bioétieca. São Paulo: Loyola, 2000.
p. 22-23 e 44).
44
Cf. FROSINI, Vittorio. Derechos humanos y bioética. Santa Fé de Bogotá: Temis, 1997. p. 75.
41
1.2.2 A sua conceituação e seus princípios básicos
Na Encyclopedia of Bioethics, resultado da colaboração de 285
especialistas e 330 supervisores, a Bioética foi conceituada como “estudo
sistemático da conduta humana na área das ciências da vida e dos cuidados da
saúde, enquanto examinada à luz dos valores e princípios morais”.
45
Transita
entre a ética geral (filosófica) e a ética aplicada, configurando ferramenta de
reflexão e de elaboração de critérios de orientação para a tomada de decisões
oponíveis aos excessos estatais e aos poderes fáticos e difusos de pressão
(financeiros, econômicos, industriais).
46
A bioética principialista nasceu nos Estados Unidos, quando o
governo, visando estatuir parâmetros pragmáticos destinados à prática clínica,
criou a Comissão Nacional para proteção dos seres humanos em pesquisa
biomédica e comportamental, a qual elaborou o Belmont Report, publicado em
1978, no qual estão os princípios mais difundidos: I) a beneficência, dirigida ao
médico e destinada a garantir as máximas vantagens e os mínimos riscos, além
de não causar dano (não-maleficência); II) a autonomia, que determina o respeito
à vontade do paciente, à opção terapêutica mais adequada a seus valores
culturais e aos custos e benefícios, bem como a tutela daqueles cuja liberdade de
vontade é reduzida (vulnerabilidade); III) a justiça, que implica eqüidade na
distribuição dos riscos, benefícios e enganos, decorrentes dos serviços de saúde
em geral, o que encontra relevância nas sociedades do terceiro mundo, onde
milhares de pessoas morrem de doenças com forma de cura consagrada, como a
45
Reich, W.T. (Ed.). Encyclopedia of bioethics. New York- London: The Free Press-Collier
Macmillan Publishers, 1978, apud CLOTET, Joaquim. Por que bioética? Bioética, Brasília, v. 1, n.
1, p. 15-16, 1993.
46
Cf. LEGA, Carlo. Manuale di bioetica e deontologia medica. Milano: Giuffrè, 1991. p. 103.
42
diarréia. O Brasil acolheu expressamente e sem descriminação prévia de ordem
de preferência os princípios em tela na Resolução n. 196, de 10 de outubro de
1996, do Conselho Nacional da Saúde, e, conforme seu art. 1º, eles refletem a
eticidade na pesquisa.
47
Em outubro de 2005, foi aprovada pela Organização das Nações
Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco) a Declaração Universal
sobre Bioética e Direito Humanos, texto que demandou 2 (dois) anos e 6 (seis)
meses de intensos debates diplomáticos. Os países ricos (Estados Unidos,
Alemanha, Canadá, Reino Unido, Japão e China) queriam reduzir o documento a
temas médicos e biotecnológicos, em razão do interesse no livre comércio de
patentes de medicamentos e de tecnologia. O Brasil defendeu a ampliação do
escopo além desse campo, para atingir o social e o ambiental, costurando acordo
com os países latino-americanos e africanos, a Índia e a Síria, a fim de atingir
uma posição mais larga que, finalmente, foi aprovada.
Para a Unesco, havia a necessidade de que a comunidade
internacional contasse pelo menos com "princípios universalmente aceitáveis" na
vasta e mutável zona da bioética. Por isso, os temas mais delicados, que
mobilizam imensos interesses políticos, econômicos, científicos, jurídicos,
religiosos e sociais, como a clonagem, a eutanásia, os transplantes de órgãos e a
pesquisa com embriões, foram excluídos da minuta da declaração já em janeiro
de 2005.
47
Diz o inciso III, do art. 1º: “A eticidade da pesquisa implica em: a) consentimento livre e
esclarecido dos indivíduos-alvo e proteção a grupos vulneráveis e aos legalmente incapazes
(autonomia); b) ponderação entre riscos e benefícios, tanto atuais como potenciais, individuais ou
coletivos (beneficência), comprometendo-se ao máximo de benefícios e o mínimo de danos ou
riscos; c) garantia de que danos previsíveis serão evitados (não maleficência); IV) relevância
social da pesquisa com vantagens significativas para os sujeitos da pesquisa e minimização dos
ônus para os sujeitos vulneráveis”.
43
O documento aborda "questões éticas colocadas pela medicina,
as ciências da vida e as tecnologias associadas aplicadas aos seres humanos,
tendo em conta suas dimensões sociais, jurídicas e ambientais", segundo a
Unesco. O primeiro preceito enunciado é o "respeito à dignidade humana e aos
direitos humanos", complementado pela prevalência dos "interesses e o bem-
estar do indivíduo" sobre "o interesse da ciência ou da sociedade". Está previsto
que se a aplicação dos princípios enunciados e aclamados pela comunidade
internacional tiver que ser limitada, sê-lo-á por lei. Estabelece ainda que a
declaração deve ser compatível com as legislações nacionais. Outros direitos
clássicos, tais como o respeito à privacidade, a confidencialidade ou à não-
discriminação, e conceitos inovadores, como a "responsabilidade social”, prevista
no art. 14, lembram que o progresso das ciências e das tecnologias tem como
objetivo promover o bem-estar do indivíduo e da espécie humana.
1.2.3 As relações da bioética com o Direito
A bioética e o Direito ostentam, como nota comum, o fato de
estarem no plano deontológico do dever ser, pois servem para a formulação de
programas destinados a cumprir certas finalidades a partir de dadas condutas.
Contudo, não se confundem. A distinção está na forma de abordagem e na força.
A bioética é a reflexão ética sobre o impacto da revolução tecnológica na vivência
humana. Envolve meditação ontológica: o que é a vida? Qual o valor do homem?
Qual o destino da humanidade? Suas considerações, abertas, servem, ao lado de
outros fatores, como base de sentido (fonte material) para a elaboração ou a
44
aplicação de normas de comportamento, entre as quais estão as normas
jurídicas, emparelhadas às morais e às sociais.
A norma moral, segundo Norberto Bobbio, é “cumprida por
nenhuma outra razão além da satisfação íntima que nos leva à sua adesão, ou da
repugnância à insatisfação também íntima que nos causa a sua transgressão”.
48
A sanção é interna, porque se desenvolve no âmbito da consciência pessoal. A
norma social, com possível fundo moral, é dotada de sanção externa,
representada pela reprovação, eliminação do grupo, expulsão ou linchamento. É
falha na proporção entre a violação e a resposta, uma vez que não é
institucionalizada, ou seja, não é regulada por regras fixas nem executada por
membros do grupo expressamente designados. Em contrapartida, a norma
jurídica, além de externa, é institucionalizada, porque emanada do seio da
organização estatal, e é dotada de caráter coercitivo.
49
Nem todas as considerações sobre preceitos morais relacionadas
à biomedicina necessitam ou têm dignidade jurídica. Não são todos os
comportamentos que precisam ser resguardados por instrumento de controle
social formal, como o Direito. “Uma coisa é a formação do pensamento ético
comum que trace as pautas dentro das quais terão de caminhar a investigação e
a experimentação nesse campo, e outra, totalmente diversa, é estabelecer a
necessidade de atuação do direito, em seus diversos ramos, para assegurar a
adequação da conduta dos cientistas a essas pautas aceitas por toda a
sociedade”, escreve Stella Maris Martínez.
50
Os comportamentos de menor
48
BOBBIO, Norberto. Teoria da norma jurídica. Trad. por Fernando Pavan Baptista e Ariani Bueno
Sudatti. Bauru/SP: Edipro, 2001. p. 156.
49
Ib. Ibid., p. 157-161.
50
MARTÍNEZ, Stella Maris. op. cit., p. 62.
45
importância para o convívio social são relegados à esfera em que se processam
as normas morais.
1.3 Formas de controle das ciências biomédicas
O controle das ciências biomédicas não advém para impedir ou
dificultar o progresso, mas para estabelecer o que significa progresso, afinal
conhecer algo novo não significa necessariamente avançar se o avanço não
trouxer proveito para a humanidade. O aludido controle opera sob quatro
vertentes: a) o autocontrole pessoal ou profissional; b) o controle da
administração; c) as reparações civis; d) a criminalização.
1.3.1 O autocontrole pessoal ou profissional
O autocontrole pode ser, em primeiro plano, realizado pelo próprio
cientista, em sua intimidade, conforme os ditames de sua consciência. A
transgressão à moral pessoal, no exercício do poder trazido pelo conhecimento
especializado, restrito a alguns, acarreta remorso ou arrependimento, cuja
ocultação social é fácil e, daí, sua fragilidade: “Siendo la natureza humana como
es, no cabe esperar que el detentador o los detentadores del poder sean capaces,
por autolimitación voluntaria, de liberar a los destinatarios del poder y a si mismos
del trágico abuso del poder”, diz Karl Loewenstein.
51
51
LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la constitución. Trad. por Alfredo Gallego Anabitarte. Barcelona:
Ariel, 1964. p. 149.
46
Em segundo plano, o autocontrole agrega-se a normas aplicadas
pelo órgão de classe, ditas deontológicas, sob a forma estatuída no art. 22, da Lei
Federal n. 3.268, de 30 de setembro de 1957, e no art. 17, do Regulamento do
Conselho Federal de Medicina, aprovado pelo Decreto n. 44.045, de 19 de julho
de 1958.
52
Conforme esses dispositivos, o médico infrator fica sujeito às sanções
disciplinares previstas em lei, quais sejam: a) advertência confidencial; b) censura
confidencial; c) censura pública, com publicação oficial; d) suspensão do exercício
profissional, por até 30 (trinta) dias; e) cassação do exercício profissional.
As decisões do colegiado de classe são baseadas na Resolução
n. 1.358, de 19 de novembro de 1992, também do Conselho Federal de Medicina,
a qual funciona como Código de Ética Médica.
O procedimento administrativo está regulado pelo Código de
Processo Ético-Profissional (Resolução n. 1.464, de 6 de março de 1996, do
Conselho Federal de Medicina), com direito a contraditório (apresentar razões,
arrolar testemunhas, perguntar) perante a autoridade competente (Câmara do
Conselho Regional de Medicina) e direito de recorrer para o Pleno do Conselho,
caso a decisão não seja unânime.
53
A decisão é vinculante, de maneira que, se o médico for cassado,
o posterior exercício da profissão será ilegal. A obrigatoriedade da observância
das regras do Código de Ética no julgamento, bem como da decisão para o
condenado, confere ao controle o cunho jurídico, embora não jurisdicional, de
modo que eventual vício da decisão poderá ser apreciado pelo Poder Judiciário,
no exercício do amplo acesso à justiça.
52
O Conselho Federal de Medicina constitui autarquia, isto é, pessoa jurídica de direito público,
criada por lei, para desempenhar serviços públicos.
53
Cf. SEBASTIÃO, Jurandir. Responsabilidade médica: civil, criminal e ética. Belo Horizonte: Del
Rey, 2003. p. 291-293.
47
A sanção disciplinar pretende a tutela de interesses da categoria,
com o intento de manter o decoro, o prestígio e a independência da profissão. A
preocupação com o ressarcimento dos pacientes e com o impacto da atividade
sobre os direitos do indivíduo e da coletividade, neste campo, é secundária. Por
essa razão, precisa ser complementada por outros meios formais de controle,
exercidos pelo Estado, para o resguardo cabal dos direitos fundamentais
envolvidos.
1.3.2 A tutela administrativa das atividades
A tutela administrativa de atividades sanitárias e investigativas
consiste em exigências que disciplinam o exercício das profissões envolvidas,
para que se mantenham harmônicas com os demais setores sociais, além de
úteis.
É concretizada, num primeiro plano, pelas garantias
administrativo-processuais, de tonalidade manifestamente preventiva: I) a
autorização para o funcionamento de clínicas e de centros de pesquisa
(concessão, renovação ou cassação de licenças); II) a autorização e
acompanhamento de pesquisas (protocolos e relatórios periódicos); III) a
regulação da divulgação ou do sigilo de dados (disciplina dos seus registros); IV)
o controle da capacitação técnica do pessoal biomédico.
54
Em segundo plano, a tutela em epígrafe é efetivada pela
disciplina da atividade em si mesma, com cunho preventivo ou repressivo. A
aplicação de sanções administrativas, dotadas de coercibilidade, representa das
54
Cf. GARCÍA GONZÁLEZ, Javier. Límites penales a los últimos avances de la ingeniería genética
aplicada al ser humano. Prólogo de Jaime Peris Riera. Madrid: Edersa, 2001. p. 139.
48
mais importantes expressões do poder de polícia conferido à Administração
Pública.
A modalidade em epígrafe está consagrada na Constituição
brasileira, onde é conferida competência ao poder público para regulamentar,
fiscalizar e controlar as ações e serviços de saúde (art. 196), bem como as
entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético (art. 225,
§1º, II e V).
55
A matéria foi originalmente regulamentada pela Lei n. 8.974/95
que, inspirada nas Diretivas 90/219 e 90/220, ambas da Comunidade Européia,
autorizou a criação da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio),
regulamentada pelo Decreto n. 1.752, de 20 de dezembro de 1995. Após, o
aludido diploma legal foi revogado pela Lei n. 11.105/05 que, reestruturando a
mencionada Comissão, inseriu-a no âmbito do Ministério da Ciência e da
Tecnologia, resguardando sua competência consultiva e deliberativa, inclusive
para propor a Política Nacional de Biossegurança.
56
A nova lei também criou o
Conselho Nacional de Biossegurança (CNBio), órgão de assessoramento
vinculado à Presidência da República.
Repetindo o equívoco da Lei de Biossegurança de 1995, a Lei n.
11.105/05 mescla as intrincadas questões éticas relativas aos embriões humanos
às técnicas sobre plantas transgênicas. Os temas nem sequer são equiparáveis
em sua operatividade. A transgenia envolve, principalmente, a manipulação do
DNA de plantas para torná-las mais resistentes a herbicidas e a pragas, enquanto
55
Na mesma linha, a Constituição espanhola incumbe aos poderes públicos a proteção da saúde
(art. 43). A Constituição italiana reza, na mesma esteira, que à República cabe a tutela à saúde.
56
Biossegurança é o conjunto de normas legais e regulamentares que estabelecem critérios e
técnicas para a manipulação genética, no sentido de se evitarem danos ao meio ambiente e à
saúde humana. O conjunto de normas é estabelecido pela CTNBio (cf. SIRVINSKAS, Luís Paulo.
Tutela penal do patrimônio genético. Revista dos Tribunais, São Paulo, ano 90, v. 790, p. 475-
494, ago. 2001).
49
as pesquisas com células-tronco abarcam o cultivo de células para pesquisas de
doenças e possíveis tratamentos em seres humanos, sem desenvolvimento de
engenharia genética.
A junção dos assuntos num único texto obscureceu as
implicações filosóficas, científicas e religiosas que permeiam biotecnologia
relacionada à genética humana, como também as celeumas científica,
ambientalista, de mercado e de saúde que rodeiam os transgênicos. Em
contrapartida, atendeu aos interessados na liberação da soja transgênica, eis que
poderiam contar com a dor das mães que têm crianças com deficiência e dos
próprios enfermos que compareceram nas Casas Legislativas e que foram aos
meios de comunicação propalar suas esperanças de cura. É inegável ainda que
se colocou o interesse dos pesquisadores na aprovação do projeto da forma com
que se encontrava, que, separadas as matérias, quiçá fosse retardada a
esperada autorização para pesquisas com células-tronco embrionárias
congeladas.
Nos incisos do art. 6º, da Lei n. 11.105/05, estão relacionados os
ilícitos administrativos. A maioria refere-se aos organismos geneticamente
modificados: I) implementação de projeto para sua obtenção sem manutenção de
registro de seu acompanhamento individual (inciso I); II) sua destruição e seu
descarte no meio ambiente, incluindo seus derivados, em desacordo com as
normas estabelecidas pela CTNBio, pelos órgãos e entidades de registro e
fiscalização, ou sua liberação no meio ambiente ou no mundo comercial, sem
aprovação da CTNBio (incisos V e VI); III) utilização e comercialização, registro,
patenteamento e licenciamento de tecnologias genéticas de restrição do uso, que
se reportem a vegetais (inciso VII). O inciso II alude à engenharia genética de
50
organismo vivo que, segundo a lei, pode ser um vírus, e ao manejo in vitro de
ADN/ARN natural ou recombinante, punindo os casos que se façam em
desacordo com a lei. No ramo específico da genética humana, a engenharia
genética, em célula germinal humana, zigoto humano e embrião humano (inciso
III); e a clonagem humana (inciso IV) restam punidas administrativamente.
Entre todas as modalidades, apenas as previstas nos incisos I e II
não estão tipificadas como ilícitos penais, o que implica reincidência do que se
verificou com a Lei n. 8.974/95, que praticamente estabelecia equivalência entre os
ilícitos administrativos e penais, previstos, respectivamente, em seus arts. 8º e 13.
As sanções seguem a disciplina imposta pelo art. 21, da Lei n.
11.105/05, própria para pessoas jurídicas (salvo a advertência), variando entre a
multa, a interdição ou intervenção no estabelecimento e a perda de possibilidade
de contratação com a Administração Pública ou de incentivos fiscais. Nesse
ponto, o diploma atual supera em muito o regime instituído pela Lei n. 8.475/95,
que se restringia à multa.
A par disso, a Resolução n. 196, do Conselho Nacional de Saúde,
ligado ao Ministério da Saúde, ao disciplinar as pesquisas com seres humanos,
regula a atuação dos Comitês de Ética em Pesquisa (CEP) e a Comissão
Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP/MS). A pesquisa relativa à genética ou à
reprodução assistida está condicionada a parecer favorável do Comitê e à
posterior aprovação pela referida Comissão (capítulos VII.13 e VIII. 4.c.1).
Ao Comitê cabe o acompanhamento dos projetos aprovados, o
recebimento de denúncia de abuso ou notificação sobre fato adverso que possa
alterar o curso do estudo, decidindo sobre a continuidade, modificação ou
suspensão da pesquisa. Deve ainda requerer a instauração de sindicância à
51
direção da instituição em caso de denúncia de irregularidades de natureza ética
nas pesquisas (capítulo VII.13).
1.3.3 Tutela civil no âmbito da biomedicina
A tutela civil é exercida principalmente pela reparação do dano.
Dentro de seus contornos, está o erro médico ou científico que, sob a ótica
jurídica, corresponde ao mau resultado involuntário, oriundo de imprudência,
imperícia ou negligência (Código de Ética Médica, art. 29).
O direito brasileiro é expresso em relação aos organismos
geneticamente modificados (OGMs), sobre os quais o art. 20, da Lei 11.105/05,
na esteira do art. 14, da Lei n. 8.975/95, estabelece responsabilidade
independente da existência de culpa para indenizar ou reparar danos causados
ao meio ambiente e a terceiros afetados.
1.3.4 Tutela penal na seara da biomedicina
Na seara da biotecnologia, é tendência mundial aquela segunda a
qual o legislador opta pelo recurso ao direito penal, na medida em que os
sistemas extrapenais revelam-se insuficientes ou inadequados na tutela dos bens
jurídicos da mais alta hierarquia constitucional ameaçados, como lembra Silva
Franco.
57
57
Cf. FRANCO, Alberto Silva. Genética humana e direito. Bioética, Brasília, n. 4, p. 3, 1996.
52
No ordenamento jurídico brasileiro, a Lei n. 11.105/05 regula os
crimes relativos à manipulação genética humana lato sensu, fazendo-o em 3
(três) artigos.
O art. 25 tipifica a conduta de praticar engenharia genética em
célula germinal humana, zigoto ou embrião. A figura guarda relação com o art. 13,
I, da Lei n. 8.974/95, onde se vedava a manipulação genética de células
germinais humanas, embora o supere tecnicamente ao trazer o verbo praticar em
substituição ao substantivo manipulação, além de contar com definição, em seu
próprio texto, das expressões engenharia genética e, ainda, de célula germinal
humana, melhor respeitando o princípio da taxatividade.
No art. 24, a Lei n. 11.105/05 veda o uso de embrião em
desacordo com seus preceitos e, em virtude de alteração promovida pelo Senado
Federal, inova de modo bastante polêmico ao permitir a utilização, em pesquisas,
do embrião inviável e do embrião congelado por mais de 3 (três) anos. As
primeiras pesquisas com as células-tronco embrionárias foram autorizadas em
setembro de 2005, estreando porém de modo tímido, porquanto entre os 41
(quarenta e um) projetos aprovados, apenas 3 (três) trabalharão exclusivamente
com células-tronco de embriões humanos.
58
Finalmente, no art. 26, é vedada a realização de clonagem
humana e, não obstante as várias definições do termo trazidas no art. 3º
(clonagem, clonagem para fins reprodutivos, clonagem terapêutica), nenhuma
delas abrange indubitavelmente a presente. A polêmica técnica, em seu todo, na
58
Os 3 (três) projetos sobre células-tronco embrionárias versam sobre: I) mecanismos de
diferenciação e uso terapêutico; II) uso de nanopartículas magnéticas na expansão in vitro de
células-tronco embrionárias humanas; III) controle de aneuploidia e diferenciação neural em
células-tronco embrionárias humanas. Para a totalidade dos projetos, foram despendidos R$ 11
milhões, advindos da pasta e do Fundo Setorial de Biotecnologia (O ESTADO de S. Paulo, São
Paulo, 07 set. 2005. p. A-25).
53
Lei n. 8.974/95, era proibida, na medida em que o art. 13, II, ao tipificar a
intervenção não-terapêutica em material genético humano in vivo, englobava, na
sua inadequada amplitude, quaisquer manejos na linhagem germinal que não
alterassem a estrutura genética da célula (seqüência do DNA).
Outrossim, foram extirpadas do espectro legal as formas
qualificadas previstas na Lei n. 8.974/95, que remetiam ao art. 129, do Código
Penal, o que consistia, na linguagem de Silva Franco, em pervertido “transplante
jurídico”.
59
Além disso, o antigo texto não definia como se comprovaria a
causalidade entre os procedimentos laboratoriais em células e as lesões físicas
futuras, de modo que se inclinava para a figuração meramente retórica, em face
da dificuldade de aplicação.
59
FRANCO, Alberto Silva. op. cit., p. 24.
54
2. AS MODERNAS TÉCNICAS DA GENÉTICA E SUAS
APLICAÇÕES NA REPRODUÇÃO HUMANA ASSISTIDA
O presente estudo não pretende esgotar o tema, o que se justifica
até mesmo por razões de ordem técnico-profissional, mas tão-somente ampliar o
conhecimento sobre as perspectivas atuais da ciência, na esperança de contribuir
para que o operador do direito, ao manejar a matéria, dispa-se de certos temores
infundados, permitindo que a razão aflore na mais elevada forma.
2.1 A experimentação no homem
O termo experimentação, oriundo do latim experimentum
(comprovação por experiência), significa a observação provocada de um fato ou
de um fenômeno para a investigação de suas propriedades. A experimentação é
dita humana quando seu objeto for o corpo humano, os órgãos, tecidos, as
células ou suas propriedades. A essência da técnica está assentada no risco do
procedimento, que a diferencia de tratamentos comuns cujo desenrolar e efeitos
são dominados pela ciência, salvo desvios casuais. Por isso, sua licitude não se
vincula ao sucesso do procedimento, mas depende do correto emprego da lex
artis (elemento objetivo) e do intento curativo (elemento subjetivo).
60
Sob o prisma da finalidade perseguida, a Declaração de
Helsinque, de 1964, diferencia a pesquisa clínica com propósito essencialmente
60
Cf. ESER, Albin. Genética humana: aspectos jurídicos e sócio-políticos. Trad. por Pedro Caeiro.
Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 2, fasc. 1, p. 64, e n.r. 39, jan./mar. 1992.
55
terapêutico para o paciente da pesquisa clínica cujo objetivo principal é
puramente científico e sem valor terapêutico para a pessoa submetida. Deste
modo, a experimentação pode ser terapêutica, não-terapêutica ou pura.
2.1.1 Experimentação terapêutica
O gérmen da experimentação terapêutica vem a lume em 1980
quando se consegue, com a ajuda da enzima da restrição, parcelar o DNA. Em
1982, Palmiter introduziu um gene do hormônio do crescimento de um rato numa
fêmea de camundongo, que duplicou o volume normal deste animal. A partir daí,
as mais diversas técnicas são utilizadas na busca de que células de mamíferos
incorporem novos genes.
61
A experimentação terapêutica está marcada pelo caráter
metodológico-experimental, porque ensaia novas substâncias farmacológicas ou
novos procedimentos cirúrgicos, com eficácia não demonstrada. Pretende,
primeiramente, a cura do paciente ou o diagnóstico de enfermidade e,
secundariamente, as descobertas científicas.
62
Suas balizas éticas estão traçadas na Declaração de Helsinque e
constituem um guia para os médicos de todo o mundo, ficando a responsabilidade
jurídica jungida às leis internas, conforme expressa a introdução do documento.
Consoante o capítulo II, da Declaração, o médico deve estar livre para usar novo
método de diagnóstico ou terapia no tratamento de doentes, se houver esperança
de salvar a vida, restabelecer a saúde ou aliviar o sofrimento. Os possíveis
61
Cf. COHEN, Jean; LEPOUTRE, Raymond. Todos mutantes. Trad. da 1. ed. francesa publ. em
1987. Rio de Janeiro: Zahar, 1988. p. 61.
62
Cf. ESER, Albin. Derecho penal, medicina y genética. Lima: Idemsa, 1998. p. 30.
56
benefícios, riscos e desconfortos do novo método devem ser contrabalançados
com as vantagens dos melhores métodos correntes de diagnóstico e de terapia.
Caso o médico entenda que o consentimento não é essencial, deve justificar as
razões no protocolo do experimento para conhecimento da comissão responsável
pela pesquisa.
No Brasil, a Resolução n. 196/96, do Conselho Nacional de
Saúde, traça as diretrizes sobre as pesquisas envolvendo seres humanos.
Admite-as sob as seguintes condições: I) ofereçam elevada possibilidade de
conhecimento para entender, prevenir ou aliviar um problema que afete o bem-
estar dos sujeitos da pesquisa e de outros indivíduos, II) o risco se justifique pela
importância do benefício esperado, III) o benefício seja maior ou no mínimo igual
ao de meios alternativos convencionais estabelecidos para a prevenção, o
diagnóstico e o tratamento (capítulo V.1).
Autoriza a experimentação sem consentimento se acolhidas as
explicações pelo Comitê de Ética em Pesquisa (capítulo VI.2.c). As propostas de
intervenção ou manipulação em seres humanos devem ser aprovadas pelos
Comitês de Ética em Pesquisa, além de avaliadas pela Comissão Técnica
Nacional de Biossegurança, respondendo aos quesitos regulados em instruções
normativas.
Em qualquer dos documentos, os preceitos são bastante
genéricos, não se referindo a hipóteses particulares que são despertadas pela
revolução genética. A própria Resolução ressalva que cada área temática de
investigação e cada modalidade de pesquisa “deve cumprir com exigências
setoriais e regulamentações específicas” (preâmbulo).
57
2.1.2 Experimentação não-terapêutica
A modalidade, conhecida como no-therapeutic research, mantém
o caráter metodológico experimental mas, divergindo da anterior, prioriza o
conhecimento científico para o desenvolvimento de novas medidas terapêuticas,
de maneira que o eventual benefício para a saúde do indivíduo submetido será
acidental.
63
A Declaração de Helsinque, no seu capítulo III, exige que os
indivíduos sejam sadios ou voluntários, ou seja, pressupõe que gozem de plena
capacidade psíquica e jurídico-civil. Além disso, o médico deve atuar como
protetor da vida e da saúde da pessoa submetida à pesquisa. Por fim, as
considerações sobre o bem-estar dos participantes da pesquisa devem prevalecer
sobre os interesses da ciência e da sociedade.
No Brasil, a Resolução n. 196/96 estatui que as pesquisas sem
benefício direto ao indivíduo devem prever condições de serem bem suportadas
pelos sujeitos da pesquisa, considerando sua situação física, psicológica, social e
educacional (capítulo V.2). Novamente, não é feita remissão à manipulação
genética humana em especial.
2.1.3 Experimentação pura
A experimentação exclusivamente científica ou experimentação
pura não se destina à cura do sujeito (distinguindo-se da experimentação
terapêutica) nem se dirige à busca de tratamentos alternativos (como a
63
Cf. ESER, Albin. Derecho penal, medicina y genética, cit., p. 31.
58
experimentação não-terapêutica). Os resultados dirigem-se meramente ao
aumento de conhecimento científico, sem preocupação com eventual utilidade
imediata para o bem da humanidade.
64
As finalidades podem ser múltiplas: industrial (cosméticos em
geral), militar (armas biológicas), farmacológica (reserva biológica para a
supressão de lacunas em caso de guerra biológica) ou cirúrgica (fonte para
futuros transplantes de seus órgãos, tecidos ou células). Não há como ponderar
riscos e benefícios aos pacientes, pois estes são casuais, uma vez que a meta é
o conhecimento ou o progresso na investigação a serviço de terceiros
pertencentes a um futuro não palpável. Se o indivíduo for o alvo, poderá figurar
como mero instrumento da atividade cientifica.
2.2 A terapia gênica
A terapia gênica ou geneterapia consiste na deliberada
transferência, por intermédio de vetores, de material genético para as células de
um paciente, com a intenção de curar ou até mesmo de prevenir uma
enfermidade de ordem genética. A técnica opera mediante a: I) correção de parte
de gene anômalo para que volte a funcionar (modificação genética), II) troca de
gene anômalo por outro normal (substituição genética), ou III) introdução de gene
normal, para obtenção do produto genético desejado, mantendo o gene anômalo
em seu lugar (inserção genética).
65
Em decorrência, a terapia em questão é
caracteristicamente uma modalidade técnica de engenharia genética.
64
BENÍTEZ ORTUZAR, Ignácio Francisco. op. cit., p. 47.
65
Cf. Herman Nys (Catedrático de Direito Médico da Universidade de Louvain, na Bélgica), - NYS,
Herman. Terapia gênica humana. In: ROMEO CASABONA, Carlos María (Org.). op. cit., p. 66.
59
Os defeitos genéticos têm origem múltipla: I) hereditária, quando
transmitidos pelos genes dos pais aos filhos; II) não-hereditária, se produzidas
anomalias por erros imprevistos na formação das células sexuais; III) congênita,
quando ocorrem durante o desenvolvimento embrionário por diversas mutações.
Por ora, a terapia gênica alcança tão-somente as doenças monogenéticas,
devidas à disfunção de um único gene, que pode ser atacado em sua
especificidade.
66
Os defeitos genéticos atingem 3% (três por cento) da população
brasileira e causam enfermidades como a fibrose cística e doenças
neuromusculares, além de mais de 30 (trinta) outras.
67
A técnica permanece no estágio experimental porque é parcial o
conhecimento sobre o funcionamento dos genes que dirigem o corpo humano, de
maneira que não são totalmente controlados os efeitos das alterações artificiais.
As tentativas clínicas trouxeram mais problemas do que soluções. Quem trabalha
com a técnica, patina em sua complexidade.
68
A repercussão biológica, o dilema ético e o tratamento jurídico
conferidos à técnica em questão dependem do nível de intervenção: germinal ou
somática.
66
Cf. Amelia Martín Uranga (Bolsista de Pesquisa da Cátedra Interuniversitária de Direito e
Genoma Humana, Fundação BBV, Universidade de Deusto, em Bilbao, na Espanha), MARTÍN
URANGA, Amélia. O quadro legal da terapia gênica na Espanha. In: ROMEO CASABONA,
Carlos María (Org.). op. cit., p. 86.
67
Os dados foram expostos por Mayana Zatz, coordenadora do Centro de Estudos do Genoma
Humano da Universidade de São Paulo (ZATZ, Mayana. Quando a ciência múltipla a vida. O
Estado de S. Paulo, São Paulo, 06 fev. 2005. p. J-4).
68
O ESTADO de S. Paulo, São Paulo, 19 fev. 2006. A-21.
60
2.2.1 Terapia genética em células somáticas
As células somáticas humanas são formadas por 23 (vinte e três)
pares de cromossomos haplóides (46 [quarenta e seis] cromossomos diplóides).
São diferenciadas para uma função, por exemplo, cardíaca, hepática, muscular ou
nervosa, mas não têm potencialidade natural para gerarem outro ser.
Se estas células forem objeto de terapia gênica, a meta será a cura de
enfermidades, a prevenção de doenças relacionadas à propensão genética ou, num
futuro próximo, a administração, de modo mais prático, de produtos para tratamento.
69
Portanto, a técnica pretende eliminar a malformação genética do
paciente (adulto ou embrião com células diferenciadas). Se eficaz, a doença
genética ou a tendência a ela seria extirpada definitivamente. Não havendo
interferência nas células reprodutivas, os efeitos resumem-se ao sujeito-alvo e,
bons ou maus, são irreversíveis.
Cuida-se de procedimento que permanece em estágio
experimental, sobretudo no que diz respeito aos vetores, eis que é incerta sua
incorporação ao DNA das células visadas e sua ativação para o desempenho
exclusivo da função corretiva desejada, sem a reversão a estágio patogênico.
70
Dada a falta de domínio sobre o destino do construído genético, a técnica
69
Cf. ARCHER, Luís. Terapia génica e engenharia genética de melhoramento. In: ARCHER, Luís;
BISCAIA, Jorge; OSSWALD, Walter (Coord.). Bioética. São Paulo: Editorial Verbo, 1996. p. 237.
70
Cf. Eliane Azevêdo (Ph. D em Genética e Pesquisadora do CNPq, “Terapia gênica”), in
AZEVÊDO, Eliane. Terapia gênica. Bioética: revista de bioética e ética médica, v. 5, n. 2, p. 158-
159, ano 1997. A estudiosa explica que o retrovírus, preferido em 80% das experiências
genéticas, apresenta vantagens, como a eficiente integração ao genoma da célula e expressão
duradoura. Contudo, a técnica se limita às células que se dividem, excluindo as cerebrais, e
contém riscos de infecções viróticas ou de câncer. De fato, embora a parte patogênica seja
eliminada, não se exclui o perigo de reversão do retrovírus ao estado selvagem patogênico,
seguido de multiplicação viral. Demais disso, a integração do retrovírus ao genoma é casual,
criando o risco de transformação neoplásica (tumoral) de células do paciente. Em contrapartida,
se associado um adenovírus ao gene, a alteração será transitória e, se reiterada a terapia, os
efeitos são quase inócuos. Finalmente, os vetores não vitais, como os complexos lipídicos-DNA,
podem causar intoxicação lipídica da célula tratada.
61
comporta riscos, a saber, mutações genéticas espontâneas imprevisíveis,
provocadas pela ativação de genes desencadeadores de tumores ou pela rejeição
orgânica ao material.
71
A primeira autorização para a terapia gênica nas células
somáticas foi dada nos Estados Unidos da América, pela Food and Drug
Administration, em 14 de setembro de 1990, a fim de que se tentasse o
tratamento de uma menina com sistema imunológico comprometido, mediante
implante de células produtoras da enzima adenosine-deaminase.
72
2.2.2 Terapia gênica nas células da linha germinal
A terapia gênica nas células da linha germinal consiste na
manipulação das células de reprodução (o espermatozóide, o óvulo e suas
células precursoras)
73
ou das células das primeiras fases do desenvolvimento
embrionário, desde que antes de qualquer diferenciação. Em face da natureza
das células atingidas, a técnica é caracterizada pela aptidão de alterar todas as
outras que advirão das sucessivas divisões do resultado da fecundação entre o
óvulo e o espermatozóide, de maneira que a mutação se incorpora
definitivamente ao genoma da nova vida e de sua progênie, caminhando para um
número indeterminado de pessoas, em virtude dos cruzamentos procriativos.
71
Cf. MANTOVANI, Ferrando. Manipulaciones genéticas, bienes jurídicos amenazados, sistemas
de control y técnicas de tutela. Trad. por Jaime Peris Riera. Revista de Derecho y Genoma
Humano, Bilbao, n. 1, p. 101, jul./dic. 1994.
72
Cf. SGRECCIA, Elio. op. cit., p. 247.
73
O espermatozóide e o óvulo são formados por 23 (vinte e três) cromossomos haplóides. São
responsáveis pelos processos de reprodução e de transferência do patrimônio genético dos
progenitores. Da união entre os gametas masculino e feminino, origina-se o ovo.
62
A transmissibilidade da alteração para as futuras gerações torna a
terapia gênica nas células germinais muito mais problemática do que a alteração
de células somáticas. Entretanto, a técnica configura a única esperança para o
tratamento de certas anomalias, como as do cérebro, às quais o acesso é restrito
a etapas prematuras,
74
ou para o impedimento de tantas outras patologias
genéticas (cerca de 3.000 são conhecidas),
75
bem como para o fortalecimento da
genética humana, a fim de torná-la mais resistente a certas doenças, como o
câncer, a diabetes e outras moléstias produzidas por vírus. Em decorrência, não
merece ser descartada de plano, convindo prosseguir na discussão de suas
implicações éticas e jurídicas.
2.3 A reprodução humana assistida
A reprodução assistida consiste na obtenção de novos indivíduos
prescindindo ou substituindo o processo natural de fecundação da espécie por
técnicas desenvolvidas pelo homem.
76
O tema demanda o estudo das etapas do
desenvolvimento embrionário humano.
2.3.1 O indivíduo e as distintas fases do seu desenvolvimento
O desenvolvimento embrionário, embora seja um contínuo,
percorre fases que foram diferenciadas pela ciência. O processo é iniciado pela
74
Cf. MARTÍNEZ, Stella Maris. op. cit., p. 235.
75
Cf. MANTOVANI, Ferrando. op. cit., p. 98.
76
Cf. CUESTA AGUADO, Paz M. de la. La reproducción asistida humana sin consentimento:
aspectos penales. Valencia: Tirant to Blanch, 1999. p. 22.
63
fecundação, que parte dos gametas masculino e feminino, os quais são formados
por um pronúcleo haplóide. Nas trompas de Falópio, a cabeça do espermatozóide
penetra no citoplasma do óvulo, donde surge a célula-ovo. Num primeiro
momento, os pronúcleos de cada gameta comportam-se de modo independente,
porém sincronizado. Nas 24 (vinte e quatro) horas subseqüentes, os pronúcleos
fundem-se (singamia), formando a primeira e grande célula diplóide.
77
A partir daí,
principia a etapa pré-implantatória, que perdura até por volta do 14º (décimo
quarto dia). Nela ocorrem as primeiras divisões celulares (mitose),
correspondendo cada uma das novas células ao blastômero.
Atingindo uma massa celular constituída por 12 (doze) a 16
(dezesseis) células, o conjunto é chamado mórula que, enquanto se divide em
novas células, caminha livre pela trompa e desce para o útero, num percurso com
duração aproximada de 4 (quatro) dias. As células, indiferenciadas, originarão
todos os tecidos e órgãos, por mecanismo desconhecido. É ainda possível que a
mórula se divida ao meio, originando conjuntos independentes, quando nasceriam
gêmeos idênticos. No útero, o líquido destrói paulatinamente a zona pelúcida que
rodeia a mórula, até que, provavelmente no 6º (sexto) dia após a fecundação,
está formado o blastócito.
78
O blastócito, composto por 32 (trinta e duas) a 64 (sessenta e
quatro) células, é integrado por uma capa externa de células, (trofoblasto ou
trofoeactordermo) com uma cavidade interior (blastocele), onde se situam outras
células, que constituem o embrioblasto ou massa celular interna (MCI) e se
mantêm indiferenciadas. Enquanto o trofoblasto converte-se no córion, que é a
77
Cf. MASSAGLIA DE BACIGALUPO, María Valeria. Nuevas formas de procreación y el derecho
penal. Buenos Aires: Ad-Hoc SRL, 2001. p. 30-31.
78
Id. Ibid., p. 32.
64
porção embrionária da placenta, a massa celular interna evoluirá até a futura
criança.
Minúsculo, o blastócito tem aspecto de um pacote menor do que a
ponta de uma agulha. Ele, no útero, implanta-se na mucosa, em processo
denominado nidação - considerada, por muitos, o marco inicial da gravidez - que
perdura aproximadamente entre o 7º (sétimo) e o 14º (décimo quarto) dia depois
da fecundação, quando o embrião se apresenta como um disco com 0,5 mm
(meio milímetro) de diâmetro e 2000 (duas mil) células.
79
Aparece, por volta do
15º (décimo quinto) dia, a linha ou estria primitiva que permite identificar o eixo
craniocaudal, as extremidades, as superfícies dorsal e ventral, a simetria direita-
esquerda, em outras palavras, o plano construtivo do embrião.
80
Entre o 14º
(décimo quarto) e o 16º (décimo sexto), surge também a crista neural, que
corresponde ao esboço do sistema nervoso,
81
não obstante o início da atividade
cerebral só ocorra após a formação das primeiras sinapses nervosas, o que pode
ser reconhecido a partir da 6ª (sexta) semana da gestação. Em face desses
acontecimentos, o 14º (décimo quarto) dia é considerado a cifra de ouro da
embriologia.
A fase seguinte, pós-implantatória, envolve o período entre o 14º
(décimo quarto) dia de evolução e a 11ª (décima primeira) ou 14ª (décima quarta)
semana. Entre a 3ª (terceira) e 4ª (quarta) semana, o disco embrionário bilaminar
transforma-se em trilaminar, com o crescimento para 2,3 mm (dois vírgula três
79
Cf. Juan R. Lacadena (Catedrático da Cadeira de Genética na Universidade Complutense, em
Madrid, na Espanha), RAMÓN LACADENA, Juan. Embriones humanos y cultivos de tejidos:
reflexiones científicas, éticas y jurídicas. Revista de Derecho y Genoma Humano, Bilbao, n. 12, p.
193, n. 5 e p. 194, ene./jul. 2000.
80
Cf. MEIRELLES, Jussara Maria Leal de. A vida humana embrionária e sua proteção jurídica. Rio
de Janeiro: Renovar, 2000. p. 115.
81
Cf. MASSAGLIA DE BACIGALUPO, María Valeria. op. cit., p. 31. Não obstante, Jussara Maria
Leal de Meirelles aponta o 18º (décimo oitavo) dia.
65
milímetros) de longitude. Começa a organogênese (esboço da formação dos
órgãos) e a formogênese (consolidação da forma).
A etapa final fetal abrange o desenvolvimento humano desde
aproximadamente o (terceiro) mês (11ª a 14ª semana) até o parto. É
caracterizada pela maturação progressiva dos órgãos, sistema e funções, com a
diferenciação histológica de esboços e o crescimento corporal.
Na fecundação in vitro, partindo do óvulo, que se funde ao
espermatozóide, obtém-se o zigoto em 20 (vinte) horas. Em 26 (vinte e seis)
horas, formam-se 2 (duas) células, em 38 (trinta e oito), 4 (quatro), e em 46
(quarenta e seis), 6 (seis) a 8 (oito). Com 100 (cem) horas, constitui-se a mórula.
Com 120 (cento e vinte) horas, está composto o blastócito, formado por células
totipotentes, traço que, segundo estudos clínicos, se preserva até o 14º (décimo
quarto) dia. Aguarda-se a formação de mais 200 (duzentas) a 300 (trezentas)
células, conjunto esse que será implantado na mulher.
82
É comum que as legislações atribuam epígrafes distintas a cada
uma das etapas, quando são usuais os termos zigoto e embrião. Este, sobretudo,
representa mais do que palavra de cunho meramente científico, porquanto, na
praxe, revela-se carregada de densidade axiológica e, por isso, não é
conceituável de modo universalmente aceito. Dentro da diversidade, a Resolução
n. 1.358/92, do Conselho Federal de Medicina brasileiro, alude ao pré-embrião em
capítulo que cuida de sua doação ao lado dos gametas. Na atual Lei de
Biossegurança (Lei n. 11.105/05), as referências são exclusivas ao zigoto e ao
embrião. Contudo, nos projetos de lei sobre a Reprodução Assistida é freqüente o
82
MASSAGLIA DE BACIGALUPO, María Valeria. op. cit., p. 31.
66
emprego da expressão pré-embrião (PL ns. 3.638/93, 2.855/97 e 1.135/03) para
indicar a fase pré-implantatória.
2.3.1 Noções gerais
Uma percentagem mundial de casais - entre 10 (dez) a 15%
(quinze por cento) - deseja ter filhos, mas não pode ver satisfeita naturalmente tal
aspiração.
83
Os fatores de infertilidade são absolutos ou relativos, causando
subfertilidade ou esterilidade.
84
As novas técnicas de reprodução assistida
tendem, fundamentalmente, a transpor essa barreira física.
No Brasil, estão reguladas unicamente pela Resolução n.
1.358/92, do Conselho Federal de Medicina. Seu capítulo 1º, item I, prevê, in
verbis: “As técnicas de reprodução assistida (RA) têm o papel de auxiliar na
resolução dos problemas de infertilidade humana, facilitando o processo de
procriação quando outras terapêuticas tenham sido ineficazes ou ineficientes para
a solução da situação atual de infertilidade”. No capítulo VI, estatui-se que, in
verbis: “As técnicas de RA também podem ser utilizadas na prevenção e
tratamento de doenças genéticas e hereditárias, quando perfeitamente indicadas
e com suficientes garantias de diagnóstico e terapêutica”. A dupla vertente foi
mantida nos referidos projetos de lei sobre o tema.
A reprodução será homóloga quando os gametas provierem do
casal, heteróloga quando originários de pelo menos um doador ou mista quando
83
A estatística foi trazida por Javier Gafo Fernández (GAFO FERNÁNDEZ, Javier. 10 palavras-
chaves em bioética. São Paulo: Edições Paulinas, 2000. p. 147).
84
Segundo a OMS, Organização Mundial de Saúde, infertilidade é a ausência de concepção por
pelo menos 2 (dois) anos de relações sexuais não-protegidas.
67
advierem de um coquetel de gametas. As técnicas comportam outras
classificações. Vejamos, de modo sucinto, as mais difundidas.
2.3.2.1 Inseminação artificial (IA)
A inseminação artificial exprime a introdução, por meios
mecânicos e com auxílio médico do sêmen do homem na vagina ou no útero da
mulher, após o que a fecundação prossegue seu curso natural. A percentagem
das chances de êxito é de cerca de 80% (oitenta por cento).
85
É indicada em
certos casos de esterilidade
86
ou perante enfermidades transmissíveis pelo
material genético masculino, quando contará com um doador de esperma.
Longínquas são as tentativas de inseminação artificial na espécie
humana. No século XV, Henrique IV de Castela, impotente generandi,
pretendendo um sucessor para a coroa, consentiu na inseminação artificial da
esposa, tentativa que resultou fracassada, por se constatar, posteriormente, que a
rainha era estéril também. Em 1791, Jonh Hunter, Diretor do Hospital de Saint
George, em Londres, inseminou uma mulher com sêmen do marido, do que
resultou um filho. Em França, em 1804, Thouret fez as primeiras inseminações,
após o que a técnica se desenvolveu com entusiasmo. A seguir, a posição da
Igreja Católica impôs freio aos avanços.
87
A técnica reassumiu grande importância com a criação dos
bancos de sêmen, formados para o congelamento ou a criopreservação dos
85
Cf. Dr. Pinotti, deputado e médico, em análise feita no projeto de lei n. 1.135/2003, de sua
autoria.
86
Vaginismo, malformações e patologias inflamatórias na vagina ou no colo do útero (esterilidade
feminina) ou retroejaculação e hipospadia (esterilidade masculina).
87
Cf. GUIMARÃES, Ana Paula. Alguns problemas jurídico-criminais da procriação medicamente
assistida. Coimbra: Coimbra Ed., 1999. p. 24, n.r. 19.
68
espermatozóides a - 196ºC (cento e noventa e seis graus Celsius negativos) em
nitrogênio líquido. O sêmen pode ser descongelado posteriormente, mantendo,
pelo menos relativamente, a capacidade fecundante. O óvulo, em contrapartida,
se congelado, perde a capacidade reprodutiva, embora seja possível a
criopreservação do óvulo fecundado enquanto não se fundiram os 2 (dois)
pronúcleos distintos.
2.3.2.2 Fecundação in vitro (FIV)
As primeiras fecundações in vitro foram efetuadas em 1944, pelos
americanos John Rock e Myriam Menkin, prosseguindo as investigações nos 10
(dez) anos seguintes por L.B. Shettler, mas, em todos os casos, os embriões
sucumbiram. Em 1978, o nascimento de Louise Brown, ocorrido em Oldham
General Hospital, correspondeu ao primeiro êxito completo anunciado da técnica,
por obra de Robert Edwards e Patrick Steptoe. Quando Louise completou 18
(dezoito) anos, haviam nascido no mundo mais ou menos 300.000 (trezentos mil)
bebês com concepção semelhante. No Brasil, o primeiro episódio data de 1984,
com o nascimento de Ana Paula.
88
A fecundação in vitro tradicional, denominada fecundação in vitro
por transferência embrionária (FIVTE), percorre as seguintes fases: I) tratamento
hormonal da mulher para que produza simultaneamente um maior número de
ovócitos (óvulos não maduros); II) coleta dos ovócitos, feita por laparoscopia,
mediante introdução de aparelho na cavidade abdominal feminina e aspiração, ou
88
O sucesso global da técnica encontra estatísticas oscilantes entre 10 (dez) e 25% (vinte e cinco
por cento), de acordo com Marilena Cordeiro Dias Villela Corrêa, médica e doutora em Saúde
Coletiva (CORRÊA, Marilena Cordeiro Dias Villela. Ética e reprodução assistida: a medicalização
do desejo de ter filhos. Bioética: revista de bioética e ética médica, v. 9, n. 2,p. 76, 2001).
69
por ultra-sonografia, ou pela coleta de óvulos via vaginal; III) fecundação in vitro,
quando os ovócitos são colocados em cultura com dezenas de milhares
espermatozóides, com a fecundação na placa de Petri, depois da qual o zigoto
começa a se dividir; IV) transferência embrionária (TE) mediante cânula ou cateter
para o útero, onde se realiza, naturalmente, a implantação e continua o
desenvolvimento embrionário.
89
No Brasil, segundo anunciado em fevereiro de 2005, o Ministério
da Saúde passou a oferecer, na rede do Sistema Único de Saúde (SUS), a
técnica para casais com problemas de fertilidade e para portadores de HIV que
desejam ter filhos.
90
Como são implantados nas clínicas, em média, 2,5 (dois e
meio) embriões por ciclo,
91
coloca-se o drama da gravidez múltipla sobretudo para
pessoas de baixa renda, cuja estimação gira em torno de 20% (vinte por cento).
92
2.3.2.3 Variantes comuns da fecundação in vitro
Quando não ocorre a penetração do espermatozóide no ovócito,
porque o primeiro não consegue se mover ou não alcança a fusão com o
segundo, pode-se recorrer à injeção intracitoplasmática do espermatozóide (ICSI),
que consiste na inoculação do gameta masculino no citoplasma do ovócito. Além
de determinar uma taxa de fertilização maior do que a FIVTE, pode auxiliar a
89
A técnica é indicada quando a inseminação artificial for infrutífera, em virtude de esterilidade
feminina devido a problemas fisiológicos para gestação (desvios insolúveis nas trompas de
Falópio). Outras hipóteses são as anomalias cromossômicas, concretamente a síndrome de
Klynefelter (XXY), o transtorno de ovulação, as lesões no colo do útero ou as alterações no muco
cervical (Cf. GUIMARÃES, Ana Paula. op. cit., p. 24; SGRECCIA, Elio. op. cit., p.432).
90
O ESTADO de S. Paulo, São Paulo, 02 fev. 2005. p. A-6.
91
Cf. Agnaldo Cedenho, chefe do Setor de Reprodução Humana da Universidade Federal de São
Paulo, in: O ESTADO de S. Paulo, São Paulo, 18 ago. 2004. p. A-14.
92
Dado extraído do site: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO. Escola Paulista de
Medicina. Disponível em: <http://www.unifesp.br.grupos/rhumana/reprass2.htm>. Acesso em: 15
nov. 2005.
70
implantação através de técnicas que reduzem a resistência da zona pelúcida da
mórula.
93
A modalidade tornou superada a transferência intratubária de
gametas (TIG ou GIFT), que corresponde à obtenção, pelo mesmo procedimento
da FIVTE, de ovócitos e de espermatozóides. Contudo, ao invés da fecundação
na placa de Petri, eles são introduzidos nas trompas, onde o processo de
fecundação ocorre naturalmente. É indicada para a esterilidade sem causa
aparente, por fator imunológico ou por aderências externas que prejudiquem a
capacitação do ovócito.
94
A transferência de zigotos nas trompas de falópio (ZIFT) combina
a fertilização in vitro com a transferência de gametas e admite diversidades
conforme o momento de introdução do material. A eficácia do método é de 45
(quarenta e cinco) a 50% (cinqüenta por cento) de gestações por ciclo, sendo
recomendada nas mesmas condições que a TIG.
95
2.3.2.4 Pontos controvertidos
A gestação extra-uterina ou ectogênese representa o
desenvolvimento embrionário e fetal humano fora do útero de uma mulher.
Contemporaneamente, é possível por certo período, desde que nos últimos
meses da evolução fetal (a partir do 5º [quinto] em incubadora).
93
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO. Escola Paulista de Medicina. Disponível em:
<http://www.unifesp.br.grupos/rhumana/reprass2.htm>. Acesso em: 15 nov. 2005.
94
Cf. SCARPARO, Mônica Sartori. Fertilização assistida: questão aberta, aspectos científicos e
legais. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991. p. 13.
95
Id. Ibid., p. 14.
71
Agregada à realidade, a polêmica figura da mãe substituta,
também chamada maternidade por sub-rogação de útero, não se insere na seara
da biotecnologia, porque não exige manejo de material genético. Resume-se ao
uso de útero de mulheres que se dispõem a carregar, para outrem, ou seja, a mãe
de desejo, o embrião em seu ventre durante a gestação, podendo ela ser ou não
a fornecedora do gameta feminino. Os problemas residem na onerosidade do
acordo e nos laços afetivos que podem emergir da gestação, com a subseqüente
recusa da gestante em entregar a criança à mãe de desejo.
Não pouco comum no Brasil, a seleção induzida de sexo é
executada mediante duas técnicas: I) seleção de sêmen, que requer inseminação
artificial e tem quase 70% (setenta por cento) de chance de acerto; II) diagnóstico
genético pré-implantacional que, demandando fecundação in vitro, é método mais
agressivo, embora com índice absoluto de acerto. Na seleção de sêmen, a mulher
faz tratamento hormonal para estimular a ovulação. Quando entra em período
fértil, recolhe-se o sêmen do homem. O sêmen é centrifugado para separar os
espermas que carregam o cromossomo Y, masculino (mais leves), dos que levam
o cromossomo X, femininos (mais pesados). Somente os espermas do sexo
escolhido são depositados no útero, por meio de um cateter. No diagnóstico
genético pré-implantacional, após um tratamento de estimulação hormonal,
retiram-se os óvulos da mulher num centro cirúrgico e recolhe-se o sêmen do
homem. O sêmen também é centrifugado. Cada óvulo recebe a injeção de um
único espermatozóide selecionado no processo de centrifugação e os embriões
são cultivados em laboratório. No 3º (terceiro) dia, retira-se uma célula de cada
embrião via biópsia. A análise desta célula indica o sexo do embrião do qual foi
72
retirada (bem como possíveis problemas cromossômicos). Apenas os embriões
saudáveis do sexo escolhido são implantados no útero materno.
96
Por fim, em razão da submissão da mulher à estimulação
hormonal ovariana para aumentar o êxito das técnicas, são produzidos vários
óvulos maduros no mesmo ciclo e, se fecundados, serão obtidos vários embriões.
Segundo a experiência clínica, não é recomendável a implantação de mais de 4
(quatro), pois a gravidez múltipla reduz a chance de sobrevivência dos mesmos e
eleva o risco de afronta à integridade física e à saúde da gestante. Daí que
comumente, nas clínicas, sobram embriões e seu destino configura uma das
maiores celeumas ético-jurídicas da atualidade.
2.4 A manipulação genética aplicada às técnicas de reprodução humana
A manipulação genética é, como outrora mencionado, facilitada
pela exposição do material reprodutivo humano em laboratório, propiciada pelas
técnicas de reprodução assistida. Faz-se expressar sob múltiplas facetas.
Vejamos.
2.4.1 A seleção genética: eugenia
A expressão eugenia foi cunhada no Reino Unido, por Francis
Galton (1822-1911), matemático que a conceituou como a ciência dos fatores
socialmente controláveis que podem elevar ou reduzir, física ou mentalmente, a
qualidade racial das gerações futuras.
96
VEJA, São Paulo, ano 37, n. 38, ed. 1.872, 22 set. 2004.
73
Nos primeiros trinta anos do século XX, idéias eugênicas
sustentaram políticas estatais, justificando medidas sociais e coletivas em prol da
“pureza racial”.
97
As experiências vivenciadas durante a Segunda Guerra
Mundial, que aproximaram a eugenia do genocídio, impregnaram de carga
negativa o termo em epígrafe. As novas tecnologias biomédicas voltaram a trazer
a eugenia à ordem do dia, quando passou a ser denominada neo-eugenia, que se
biparte em eugenia positiva e negativa. Na primeira são escolhidos certos traços
genéticos considerados perfeitos e na segunda são eliminados os indesejados.
Ambas as formas podem ser viabilizadas pela seleção de embriões, de gametas
ou de seus doadores, bem como pela engenharia genética, quando se transfere
um gene para as células de um organismo sadio, com intento de melhorar
características, como sua estatura ou sua memória, ou de reduzi-los a homens-
robôs ou a seres inferiores.
As provocações éticas são constantes neste campo, sobretudo
após a fecundação. Preocupado com os abusos, Jacques Testart propõe as
seguintes condições: I) a decisão eugênica deve ser conferida às pessoas mais
interessadas, ou seja, aos pais, de modo que não caberia ao médico propiciar
seleções por si próprio; II) imposição de freios à ambição eugênica, centrada na
austeridade médica e na ponderação entre os custos e os benefícios; III)
propagação de valores não genéticos para a qualificação dos indivíduos
(afetividade, gostos, peculiaridades).
98
97
Nos Estados Unidos, foram criadas leis de esterilização obrigatória dirigidas aos débeis mentais
e aos portadores de tendência criminal. Na Alemanha nazista, a “superioridade ariana” legitimou
socialmente leis de higiene racial (prevenção de doenças hereditárias na descendência),
acompanhadas de milhares de esterilizações impostas pela força, como o programa eutanásico
de 1939. Inclusive, em 1943, houve a permissão de aborto de mulheres não arianas.
98
Cf. TESTART, Jacques. La eugenesia médica: una cuestión de actualidad. Revista de Derecho y
Genoma Humano, n. 8, p. 26-27, ene./jun. 1998. O autor é Diretor da Investigación INSERM
Clamart (França).
74
2.4.2 A clonagem
A clonagem denota todo o processo que induz à duplicação de
uma célula ou de um organismo, sem recombinação genética. Permite a criação,
a partir de um único indivíduo, de outro geneticamente idêntico, mediante
multiplicação assexuada. Não é uma novidade na natureza entre os seres
inferiores, em que a reprodução ocorre por bipartição, como em bactérias e
plantas que evoluem por meio de brotos. Em contrapartida, o fenômeno não é
comum entre os seres mais evoluídos, como os vertebrados, eis que originados
de reprodução sexuada, onde há mescla de genes masculinos e femininos. No
último caso, é possível desde que ocorra o raro desdobramento de embriões em
períodos precoces de segmentação, quando nascem os gêmeos monozigóticos.
Ser um clone de outro significa unicamente que a herança
genética entre eles é igual, ou seja, o genótipo, mas não implica que o fenótipo ou
características exteriores, embora influídas pelo genótipo, também devam ser
mantidas idênticas por muito tempo.
O processo de clonagem opera sob duas formas: transferência
nuclear e gemelação artificial. A transferência nuclear, também denominada
clonagem verdadeira, opera mediante o deslocamento do núcleo de célula somática
(diferenciada) de embrião, feto ou adulto a um óvulo, cujo núcleo foi previamente
extraído (enucleação). O novo ser será geneticamente idêntico ao doador,
ressalvado o DNA mitocondrial que se encontra no citoplasma do óvulo- receptor.
99
99
Cf. Id. La clonación humana: presupuestos para una intervención jurídico-penal. In: GENÉTICA y
derecho penal: previsiones en el Código Penal Español de 1995. Bilbao-Granada: Publicaciones
da Cátedra Interuniversitaria; Fundación BBVA, Diputación Foral de Bizkaia, de Derecho y
Genoma Humano; Editorial Colmares, 2001. p. 128.
75
A gemelação artificial expressa a partição (divisão) de embriões
recém-formados. Os indivíduos assim nascidos serão completamente idênticos
entre si, porém serão distintos de seus progenitores e de qualquer outro indivíduo
já nascido, salvo se distanciada a transferência dos embriões ao útero da mulher,
pois, nesta hipótese, os gêmeos proviriam de gestações e nascimentos
sucessivos.
Diversamente da transferência nuclear, a gemelação artificial é
aplicada há décadas de forma experimental sobre vegetais e animais superiores,
pelo que, sob o ponto de vista científico, não aporta novidade biológica. Com
relação ao material biológico humano, foi executada pelos professores norte-
americanos Jerry Hall e Robert Stillman, em 1993, na Universidade de Georges
Washingont, de Baltimore, Estados Unidos, quando empregados embriões
gerados para a fertilização in vitro que não foram implantados porque padeciam
de malformação genética: divididos 17 (dezessete) embriões, 48 (quarenta e oito)
novos resultaram, todos destruídos no final do experimento, com estágio máximo
de desenvolvimento de 32 (trinta e duas) células.
100
A transferência do núcleo ou das mitocôndrias de um ovócito
(célula precursora do óvulo) ou de um óvulo a outro enucleado ou do qual se
extraíram as mitocôndrias, para ser fecundado depois por um espermatozóide,
não constitui clonagem. Embora nas etapas iniciais do procedimento recorra-se à
técnica de clonagem, nas finais participa o gameta masculino, de modo que o
procedimento perfaz uma modalidade de reprodução com dupla carga genética. A
100
Cf. DIAFÉRIA, Adriana. op. cit., p. 146.
76
técnica pretende evitar a transmissão de uma enfermidade derivada do núcleo
original ou das mitocôndrias.
101
A clonagem pode ter duas aplicações possíveis, com diferentes
valorações éticas, pelo que recebe distintas epígrafes: reprodutiva e terapêutica.
2.4.2.1 Clonagem reprodutiva
A clonagem reprodutiva traduz a aplicação da técnica sob
qualquer uma de suas formas, para o desenvolvimento completo de um novo ser,
qual seja o clone, geneticamente idêntico ao clonado. Na criação da ovelha Dolly,
primeiro mamífero a ser clonado, nascido em julho de 1996, na Escócia, a técnica
foi empregada sob o método da transferência nuclear.
102
O procedimento, de
simples feitura e de custo financeiro relativamente baixo, foi desenvolvido pelos
cientistas britânicos Ian Wilmut e Keith Campbell do Instituto Roslin, que
necessitaram de 277 (duzentas e setenta e sete) tentativas e produziram 29 (vinte
e nove) embriões.
103
101
Cf. ROMEO CASABONA, Carlos María. La clonación humana: presupuestos para una
intervención jurídico-penal, cit., p. 128.
102
Foram percorridos os seguintes passos: I) da ovelha A, tiraram uma célula da glândula mamária
que, dotada de função específica, continha parte dos genes em funcionamento e outra parte
desativada; II) em laboratório, todas as informações do núcleo celular foram apagadas; após, foi
reativado integralmente o código genético e o núcleo foi extraído; III) da ovelha B, óvulos não
fecundados foram extraídos e seus núcleos foram retirados (informação genética); IV) foram
fundidos o óvulo vazio de B e o núcleo da célula de A e, através de uma descarga elétrica, o
processo de divisão celular foi iniciado; V) a ovelha C recebeu o embrião desenvolvido e, após o
período normal de gestação, ela deu à luz a uma ovelha geneticamente idêntica à ovelha A, ou
seja, o clone (Cf. Silvio Valle [médico veterinário e pesquisador titular da Fundação Oswaldo
Cruz] - VALLE, Silvio. Clonagem ainda bem longe dos seres-humanos. Diálogo Médico, p. 6-9,
maio/jun. 1997).
103
Feita a descoberta, a equipe de Ian Wilmut apressou-se em pedir a patente e, imediatamente
após, a bolsa de Londres registrou uma alta de 56,7% na cotação das ações da PPL
Therapeutics (Cf. Pe. LEPARGNEUR, Hubert. Bioética e clonagem humana. In: MARCÍLIO,
Maria Luiza; RAMOS, Ernesto Lopes (Orgs.). Ética na virada do século: busca do sentido da
vida. São Paulo, LTr, 1997. p. 165-169).
77
O evento representa importante inovação posto que, realizado
com sucesso, pela primeira vez, em animais superiores, o regresso biológico de
uma célula somática (especializada) à fase da indiferenciação, reservada aos
embriões mais precoces. O efeito alarmante decorre da possibilidade de repeti-lo,
futuramente, com a espécie humana, caso em que o embrião progrediria até o
estágio do blastócito e, então, seria transferido para a mulher receptora (doadora
do útero), onde cresceria até o nascimento.
104
2.4.2.2 Clonagem terapêutica e as células-tronco
As células-tronco são um tipo de célula “curinga”, porque
comumente podem se diferenciar e constituir diferentes tecidos no organismo, o
que é uma capacidade especial, porque as demais células só podem originar
parte de um tecido específico, por exemplo, as células epiteliais só fazem a pele.
Outra aptidão especial das células-tronco está na auto-replicação, porque elas
podem gerar cópias de si próprias.
Tais traços tornam-nas objeto de intensas pesquisas, pois há
expectativa de que, no futuro, possam funcionar como células substitutas em
tecidos lesionados ou doentes (Alzheimer, Parkinson e doenças
neuromusculares) ou na permuta de células que o organismo paralisa a produção
por deficiência (diabetes).
105
Segundo Jeffrey Macklis, pesquisador da Escola
Médica de Harvard, certas terapias são esperadas em 5 (cinco) anos, para
104
Cf. Lygia V. Pereira (especialista em engenharia molecular e professora da USP) - PEREIRA,
Lygia. Parecer sobre clonagem humana reprodutiva e terapêutica. Revista Parcerias
Estratégicas. São Paulo, n. 16, p. 125, out. 2002.
105
Cf. ZATZ, Mayana. Disponível em:
<http://www.estadao.com.br/educando/noticias/2004/mai/25/219.htm>. Acesso em: 13 out. 2005.
78
problemas como a esclerose lateral amiotrófica, doença de neurônio motor e
lesão de medula, ao passo que, em enfermidades mais complexas, como o mal
de Parkinson, o tratamento pode levar até décadas.
106
A colocação acentua o
evidente caráter experimental que permeia os trabalhos com células-tronco.
O procedimento demanda o mergulho das células-tronco em
banho nutritivo para multiplicação, com a subseqüente inserção de substância
química eleita conforme o tecido ou o órgão que se queira formar e, ao final, a
massa celular é enxertada no ser humano doente.
107
Assemelha-se ao
transplante de órgãos, como de medula óssea em pacientes com leucemia, mas
no caso das células-tronco, além da pretensão de obter, a partir delas, em
laboratório, novos tecidos, os cientistas propõe injetá-las diretamente no órgão do
paciente, para que se especializem dentro do organismo.
As células-tronco são classificadas como: I) totipotentes, quando
conseguem se diferenciar em qualquer tecido humano, inclusive placenta e
embrionários; II) pluripotentes ou multipotentes, que conseguem se diferenciar em
quase todos os tecidos humanos, menos placenta e anexos embrionários,
havendo trabalhos que as distinguem, para catalogar as multipotentes com
aptidão para formação de menor número de tecidos do que as pluripotentes; III)
oligopotentes, que se diferenciam em poucos tecidos; IV) unipotentes, quando se
diferenciam num só tecido.
108
As totipotentes estão presentes nas primeiras fases do
desenvolvimento embrionário, entre o (terceiro) e o (quarto) dia, quando
106
FOLHA de S. Paulo, São Paulo, 05 mar. 2005. p. A-18.
107
Cf. PEREIRA, Lygia. op. cit., p. 125-126 e 128; Época, São Paulo, n. 212, 10 jun. 2002.
Disponível em: <http: //www.escolavesper. com.br/clonagem-terapeutica.htm>. Acesso em: 13
out. 2005.
108
Cf. ZATZ, Mayana. Disponível em:
<http://www.estadao.com.br/educando/noticias/2004/mai/25/219.htm>. Acesso em: 13 out. 2005.
79
existem 16 (dezesseis) a 32 (trinta e duas) células. As pluripotentes
(multipotentes) surgem quando o embrião atinge a fase do blastócito, a partir de
32 (trinta e duas) a 64 (sessenta e quatro) células, ou seja, 5º (quinto) dia da
evolução embrionária aproximadamente.
109
É necessário, segundo Mayana Zats,
que se atinja esta etapa para a extração das células-tronco embrionárias, que se
encontram na massa interna celular do blastócito. Conforme a geneticista, as
pesquisas indicam que, em até 14 (quatorze) dias após a fecundação, as células
embrionárias são capazes de transformação em quase todos os tecidos humanos,
perdendo, a seguir, a aptidão.
110
As oligopotentes são ainda objeto de estudo,
sendo encontradas em tecidos restritos e, finalmente, as unipotentes estão
presentes no tecido cerebral e na próstata, por exemplo.
111
Os adultos conservam pequena quantidade de células-tronco em
vários tecidos ou órgãos (cérebro, sangue, córnea, retina, coração, gordura, pele,
polpa dentária, medula óssea, vasos sanguíneos, músculo esquelético e
intestinos), onde ficam latentes até que ativadas por uma enfermidade ou um
ferimento. Elas estão presentes, também, no sangue do cordão umbilical.
Sem embargo das pesquisas prosseguirem tanto em relação às
lulas-tronco adultas quanto em relação às embrionárias, por ora somente as
primeiras foram ministradas na espécie humana. Para estas, entre os avanços,
destacam-se os estudos com pacientes de leucemia que, tratados com células-
tronco da medula óssea e do sangue do cordão umbilical, demonstraram
regressão da doença. Foram ainda empregadas em pessoas com cartilagem
109
Cf. ZATZ, Mayana. Disponível em:
<http://www.estadao.com.br/educando/noticias/2004/mai/25/219.htm>. Acesso em: 13 out. 2005.
110
Cf. Mayana Zatz em entrevista ao oncologista Drauzio Varella. Disponível em:
<http://www.drauziovarella.com.br/entrevistas/celulastronco6.asp>. Acesso em: 17 out. 2005.
111
Cf. ZATZ, Mayana. Disponível em:
<http://www.estadao.com.br/educando/noticias/2004/mai/25/219.htm>. Acesso em: 17 out. 2005.
80
erodida, quando mostraram alívio nas juntas.
112
Desde os idos de 2005, o maior
estudo com células-tronco adultas extraídas da medula óssea para a injeção em
artérias coronárias realiza-se no Brasil, no Instituto Nacional de Cardiologia de
Laranjeiras, seguindo paralelos em São Paulo e em Salvador.
113
Ao contrário do que ocorre com as embrionárias, não há
consenso científico sobre futuro êxito na conversão de células-tronco adultas em
todos os tipos de tecidos.
114
Na atualidade, as pesquisas demonstram que as
embrionárias são bem mais versáteis. De fato, as células do sangue do cordão
umbilical mostram-se capazes para a produção de células sanguíneas e, segundo
descoberta recente, para a geração de ossos e de cartilagem. Todavia, não se
estendem a outros casos.
115
O estudo norte-americano efetivado em 2004, no
Instituto Médico Howard Hughes, da Universidade de Harvard, mostrou que
células-tronco adultas não podem produzir as unidades fabricantes de insulina no
corpo, como antes se pensava. Foi verificado, em camundongos, que as células-
beta, responsáveis pela fabricação de insulina, não surgem de células-tronco
adultas, pois se duplicam em mecanismo mais simples: dividem-se elas mesmas.
Basta saber se pâncreas de camundongos e dos homens são iguais, mas a
tendência é de que sejam.
116
Entretanto, muitos grupos de cientistas não se contentam em
reclamar por células-tronco embrionárias, prosseguindo com estudos para ampliar
o potencial das adultas. Nesta linha, foi publicado, na revista especializada Cell,
112
Cf. ZATZ, Mayana. Disponível em:
<http://www.estadao.com.br/educando/noticias/2004/mai/25/219.htm>. Acesso em: 17 out. 2005.
113
OESTADO de S. Paulo, São Paulo, 11 jun. 2005. p. A-24.
114
O PODER de dividir. In: NATIONAL Geographic, ano 6, n. 64, jul. 2005. p. 55; HOMENS em
série. Super Interessante, ano 15, n.7, jul. 2001. p. 67.
115
Idem, loc. cit.
116
FOLHA de S. Paulo, São Paulo, 06 maio 2004. p. A-18.
81
que o geneticista Rudolf Jaenisch, do prestigiado Instituto Whitehead, nos
Estados Unidos, desvendou, em 2005, o mecanismo que permite a certas células-
tronco adultas se comportarem como embrionárias, com a capacidade de se
multiplicarem em laboratório ao mesmo tempo em que se mantêm
indiferenciadas. O segredo, segundo o cientista, estava guardado numa chave-
molecular, o gene OCT-4 que, trabalhando no estágio inicial do embrião, “segura”
as células para que não se diferenciem antes da hora. No tempo certo, o gene
desliga-se e, então, são formados os tecidos. Com o controle do gene, seria
hipoteticamente possível fazer com que certas células-tronco adultas fossem
mantidas neste estágio sem diferenciação, o que poderia expandir seu campo de
atuação nas pesquisas voltadas para a terapia celular. Se, no futuro, a pesquisa
consolidar-se em mecanismo comprovado, seriam, no mínimo, menos cobiçadas
as células-tronco embrionárias, o que, nas palavras de Lygia Veiga Pereira, é “o
melhor dos dois mundos”, pois superaria todo o entrave ético em torno do tema,
que envolve a proteção da vida.
117
Houve ainda uma pesquisa efetivada pela
Advanced Cell Technology, em Worcester, Massachusetts, onde os cientistas
descobriram que células únicas de embriões bastante jovens (blastômero), que
nem sequer tinham células-tronco, se retiradas e posteriormente cultivadas em
discos com células-tronco embrionárias, poderiam tornar-se o que parece ser
lulas-tronco embrionárias.
118
Ressalve-se, porém, que quaisquer pesquisas não autorizam
conclusões ou expectativas acabadas para definitivamente excluir o potencial das
células-tronco, sejam embrionárias ou adultas. Cuida-se de tema recentíssimo (a
117
O ESTADO de S. Paulo, São Paulo, 07 maio 2005. p. A-18.
118
O ESTADO de S. Paulo, São Paulo, 08 jun. 2005. p. A-22.
82
capacidade de transformação das embrionárias foi descoberto em 1998)
119
e que
evolui a cada dia.
Diante do exposto, na fase atual da ciência, infere-se que as
fontes de células-tronco são as seguintes: I) sangue do cordão umbilical; II) certos
tecidos adultos; III) blastócito (embrião com cerca de 5 [cinco] dias). Nos dois
primeiros casos, as células menos versáteis, conquanto compatíveis com o
paciente, não servem para o tratamento de doenças genéticas, porque terão a
mesma carga genética que a do o enfermo, eis que dele foram extraídas. Quanto
ao terceiro grupo, as células-tronco são obtidas de: I) embriões excedentes para a
fecundação assistida, criopreservados em clínicas de fertilização assistida; II) de
embriões clonados. Ambas as hipóteses deflagram o grande dilema ético que
envolve, pelo menos contemporaneamente, a necessidade da destruição do
embrião para extração do material.
Dois novos estudos divulgados em outubro de 2005 apontaram
para a possibilidade de extrair células-tronco totipotentes sem destruir o embrião
que as cede. Uma equipe de uma empresa americana conseguiu derivar uma
cultura de células-tronco embrionárias de camundongos a partir de uma célula da
mórula, ou seja, do blastômero. A mórula pôde ceder uma ou duas células e
continuar a desenvolver-se normalmente. A técnica estava sendo utilizada em
clínicas de fertilidade para averiguar a saúde do embrião antes dele ser
implantado ao útero. Paralelamente, outro grupo, sob o comando do Conselho
Consultor de Bioética do presidente Bush, desenvolveu um protótipo de pseudo-
embrião, ou seja, uma entidade geneticamente modificada para permitir tão-
somente a derivação de células-tronco por clonagem, ficando excluído seu
119
O PRIMEIRO instante. Super Interessante, n. 219, nov. 2005. p. 63.
83
desenvolvimento como embrião normal. Como a alteração ocorre antes da
clonagem, o pseudo-embrião resultante, por não ter chance de converter-se num
feto, não poderia ser considerado um ser humano em potência.
120
No caso da extração de células-tronco de embriões clonados,
porque feitos sob “encomenda”, suplantam o entrave da incompatibilidade
genética. Nesse âmbito, entra, finalmente, em cena a clonagem dita terapêutica.
A técnica configura modalidade de clonagem destinada à produção de células
para a pesquisa em futuras terapias celulares. O procedimento é idêntico à
clonagem reprodutiva, salvo quanto à implantação embrionária, que não ocorre,
pois está consumado com a obtenção do embrião clonado. Como ocorre com o
embrião decorrente de fecundação, do embrião clonado são extraídas as células-
tronco, com as quais são formadas, in vitro, as almejadas linhagens celulares, isto
é, colônias de milhões de células que continuam a se proliferar, permitindo sua
experimentação para aplicações terapêuticas.
Em fevereiro de 2004, a inexistência de obstáculos legais para
pesquisas com embriões permitiu que o cientista sul-coreano Woo-Suk Hwang e
seus colegas da Universidade Nacional de Seul fossem os primeiros a anunciar a
clonagem de embriões humanos, conforme publicado pela revista Science. Em
2005, foi anunciada a primeira cópia britânica: 3 (três) clones que também
sobreviveram por, no máximo, 5 (cinco) dias. Ainda em 2005, os mesmos
cientistas noticiaram que, com a técnica em questão, criaram 11 (onze) linhagens
de células-tronco, a partir de 11 (onze) embriões clonados, criados com o uso de
185 (cento e oitenta e cinco) óvulos e o DNA de doentes, de onde teriam extraído
120
FOLHA de S. Paulo, São Paulo, 17 out. 2005. p. A-18.
84
células-tronco que poderiam ser usadas no tratamento dos mesmos pacientes,
sem perigo de rejeição.
Contudo, em dezembro, uma equipe de investigação da
Universidade Nacional de Seul concluiu que o cientista Woo-Suk Hwang falsificou
pelo menos 9 (nove) linhagens das 11 (onze) linhagens. “Os dados foram
intencionalmente fabricados, não foi um erro acidental e isso constitui uma grave
falha de conduta”, afirmou a chefe dos investigadores, Jung-Hye Roe. Os
investigadores descobriram que a equipe não produziu 11 (onze) linhagens, mas
somente 2 (duas): 4 (quatro) delas foram contaminadas, 3 (três) não se
desenvolveram a tempo e 2 (duas) podem nem ter existido, pois não há registro
delas. O exame feito por Hwang para comprovar a autenticidade do material foi
forjado, porque, após separar as células do paciente em dois tubos de ensaio
para análise, comparou as mesmas amostras. Além disso, segundo Roe, muito
mais do que 185 (cento e oitenta e cinco) óvulos foram usados.
121
Enfim, em
relação às 2 (duas) linhagens pendentes, foi averiguado que não haviam sido
produzidas por clonagem, mas por simples fertilização in vitro.
122
Na terapia com células-tronco, o grande risco está em sua
degeneração em células cancerígenas,
123
o que é bastante provável para Alice
Teixeira Ferreira, Lilian Eça e Dalton Ramos,
124
posto que não se conquistou
controle sobre o caminho que esse tipo celular percorre no organismo e o tipo de
121
O ESTADO de S. Paulo, São Paulo, 24 dez. 2005. p. A-17.
122
O ESTADO de S. Paulo, São Paulo, 02 jan. 2006. p. A-9.
123
Cf. Elisete Antoniuk (mestre em Direito Comparado pela Universidade de Bonn) - ANTONIUK,
Elisete. Clonagem humana. Ciência jurídica, ano 16, v. 104, p. 288, mar./abr. 2002.
124
Alice Teixeira Ferreira (livre-docente do Dep. de Biofísica, membro do Comitê de Ética em
Pesquisa da UNIFESP e membro do Núcleo de Fé e Cultura da PUC), Lilian Piñero Marcolin Eça
(membro do grupo de pesquisa do Departamento de Biofísica da UNIFES), Dalton Luiz de Paula
Ramos (professor de Bioética da Faculdade de Odontologia da USP e membro do Núcleo de Fé
e Cultura da PUC) - EÇA, Lilian Piñero Marcolin; FERREIRA, Alice Teixeira; RAMOS, Dalton Luiz
de Paula. Clonagem terapêutica. Revista de Cultura IMAE/UniFMU, São Paulo, ano 4, n. 10,
p. 84, jul./dez. 2003.
85
tecido em que irá se transformar. Em verdade - reconhece Mayana Zatz -, é um
mistério a ordem que determina, durante o desenvolvimento embrionário, que
uma célula-tronco pluripotente se diferencie em tecido específico.
125
2.4.3 Hibridação, quimeras e partenogênese
A hibridação consiste na fecundação transespecífica, ou seja, de
óvulos e espermatozóides de espécies distintas, com fins diagnósticos ou
procriativos. O novo ser, o híbrido, é incapaz de procriar.
126
A quimera, em grego
khimaira (monstro mitológico que cuspia fogo com cabeça de leão, corpo de cabra
e cabeça de serpente), resulta da fusão de células presentes nas divisões
celulares após a fecundação entre 2 (dois) ou mais embriões da mesma espécie
ou de espécies diferentes. Pode-se produzir de modo natural.
127
O caso mais antigo documentado, datado de 1736, trata do
nascimento de Maria Sabina, de cor negra, com grandes manchas brancas
espalhadas pelo corpo.
128
Há risco de nascimento de hermafrodita se os embriões
fundidos tiverem sexos opostos, o que pode ocorrer, sobretudo, nas primeiras
fases de desenvolvimento embrionário, onde não se diagnostica o sexo.
Considera-se também quimera o nascimento de irmãos siameses, fruto de
gestação de embriões fusionados.
125
Cf. ZATZ, Mayana. Disponível em:
<http://www.estadao.com.br/educando/noticias/2004/mai/25/219.htm>. Acesso em: 18 out. 2005.
126
MANTOVANI, Ferrando. op. cit., p. 100.
127
Para Beatrice Mintz, responsável pelo primeiro êxito de laboratório com essa técnica em ratos,
as vantagens são: analisar a evolução dos mais longínquos animais, detectar a zona do tecido
onde se produz a lesão inicial no caso de síndromes complexas, mitigar doenças através da
coexistência de células normais com as geneticamente defeituosas (apud MARTÍNEZ, Stella
Maris. op. cit., p. 231).
128
Cf. BENÍTEZ ORTUZAR, Ignácio Francisco. op. cit., p. 89.
86
A partenogênese (parthenos - virgem; gênesis - produção) é a
reprodução mediante o desenvolvimento do gameta feminino, sem a intervenção
do macho da espécie. Este método é comum na natureza, salvo entre mamíferos.
Nestes, as cópias paterna e materna do genoma competem, de modo que o
vencedor fornece seus genes para uso no organismo, enquanto os
correspondentes do perdedor são “desligados” sem conflito (imprinting ou
processo de estampagem). Se efetivada a partenogênese, o genoma materno
briga com um igual e o resultado é a superativação de alguns genes e o
silenciamento de outros, fazendo com que o embrião tenha sobrevida limitada a
alguns poucos dias, o que foi constatado em experiências com camundongos. No
Japão, o entrave foi superado também em pesquisas com camundongos,
mediante a modificação genética da roedora: foi apagado, numa das cópias, um
gene que, em tese, não seria ativado no DNA paterno e o pacote foi combinado
com o de outra roedora, que tinha o genoma inalterado. O óvulo resultante foi
então induzido a se dividir e formar um embrião.
129
129
FOLHA de S. Paulo, São Paulo, 22 abr. 2004. p. A-13.
87
3. A PROPORCIONALIDADE
3.1 Os princípios e as regras como normas jurídicas
Ao estudar os direitos fundamentais com fulcro em bases
normativas, Robert Alexy compreende tanto os princípios quanto as regras como
normas, uma vez que ambos dizem o que deve ser, podendo ser formulados com
o auxílio de expressões deônticas fundamentais, tais como o mandamento, a
permissão e a proibição. De conseguinte, a diferença entre regras e princípios
reside em peculiaridades entre duas espécies igualmente normativas.
130
São numerosos os critérios propostos para a distinção. Alexy
expõe que o mais freqüente é o critério da generalidade, consoante o qual os
princípios são normas com elevado grau de generalidade, enquanto as regras têm
baixo grau. Exemplifica: a norma que diz que cada um tem liberdade de crença
seria um princípio, ao passo que a norma segundo a qual todo o preso tem direito
de converter outros em suas crenças seria uma regra. O professor alemão aponta
outros critérios: a) a “determinabilidade dos casos de aplicação” (Esser, Larenz e
Klami); b) a origem, que abrange a diferença entre normas “criadas” e “crescidas”
(Shuman, Eckhoff); c) a explicitação do conteúdo valorativo (Canaris); d) a
proximidade com a idéia de direito e a importância para o ordenamento jurídico
(Larenz); e) a característica dos princípios fundamentarem as regras (Esser).
131
130
Cf. ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Trad. por Ernesto Garzón Valdés.
Madrid: Centro de Estudios Políticos e Constitucionales, 2002. p. 83.
131
Id. Ibid., p. 84-85.
88
Examinando tais critérios, Alexy extrai três teses. A primeira refuta
todos eles, pois, em função da heterogeneidade, não se prestam a fundamentar
uma diferenciação; funcionam, exclusivamente, para captar as similitudes e
diferenças, analogias e dessemelhanças que existem entre as normas, mas não
servem para justificar a divisão entre elas. A segunda tese situa a divergência
entre princípios e normas na generalidade, apondo a diferença exclusivamente no
grau. A terceira, que é a correta para Alexy, defende que, entre regras e
princípios, não existe apenas diferença de grau, mas também de qualidade. O
último critério assinala o doutrinador - não se encontra na listagem apresentada,
porém fundamenta a maioria dos que nela estão contidos, que, outrora, eram
considerados tradicionais e definitivos.
132
Explicando a eleição do critério qualitativo, Alexy compreende que
os princípios são mandamentos de otimização, quer dizer, normas que ordenam
que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades
fáticas, senão também jurídicas, cujo âmbito é determinado pelos princípios e
regras opostos. Em contrapartida, as regras são cumpridas ou não. Se uma regra
é válida, deve ser atendido exatamente o seu comando. Se inválida, deve ser
totalmente afastada. Portanto, as regras trazem, em si mesmas, o ajuste ou o
desajuste fático ou jurídico, nada havendo a ponderar.
133
A diferença entre regra e princípio, prossegue Alexy, mostra-se
ainda mais explícita na colisão de princípios e no conflito de regras. Na colisão
entre regras, a solução é encontrada mediante a inserção de uma cláusula de
exceção ou a declaração de invalidez de uma delas, o que se obtém com o
emprego de outras regras, tais como lex posterior derogat legi priori e lex
132
ALEXY, Robert. op. cit., p. 85-86.
133
Id. Ibid., p. 86-87.
89
specialis derogat legi generali”. Na colisão de princípios, o quadro é outro.
Quando entram em conflito para um princípio, algo está proibido e para outro,
está permitido um deles cede perante o outro, o que não significa que este seja
declarado inválido ou que haja a introdução de cláusula de exceção. Quer dizer
que um princípio, sob certas circunstâncias, precede em face de outros, embora
sob diversas condições, a precedência seja resolvida de maneira inversa. Por
outras palavras, à luz dos casos concretos, os princípios apresentam diferente
peso e prevalece o que dispor de maior peso num dado quadro. Em suma, o
conflito de princípios desenrola-se na dimensão de peso, ao passo que o conflito
de regras, na dimensão da validade.
134
Nessa égide, Alexy explica que, entre os
princípios, existe uma relação de precedência condicionada, isto é, considerando-
se as circunstâncias do caso concreto, são indicadas as condições sob as quais
um princípio precede a outro.
135
Na visão de Paulo Bonavides, a teoria de Alexy converge para a
jurisprudência dos valores e, neste ponto, reside sua inteira contemporaneidade,
bem como a importância vanguardeira do seu pensamento jurídico quanto ao
valor normativo dos princípios.
136
Contra a argumentação sustentada por Alexy, ele próprio levanta
três objeções, as quais, seqüencialmente, contesta. A primeira traz à baila a
resolução de colisão entre certos princípios mediante a declaração de invalidade
de um deles. Alexy esclarece que, na hipótese, o princípio é sempre afastado na
colisão com outros, porque, extremamente fraco, está fora do ordenamento
jurídico, como o princípio da discriminação racial. A segunda objeção centra-se na
134
ALEXY, Robert. op. cit., p. 88-89.
135
Id. Ibid., p. 92.
136
Cf. BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros Ed., 2001. p. 252.
90
existência de princípios absolutos, o que, para o doutrinador, não se verifica,
porquanto os princípios, além de limites fáticos, conhecem, sem exceção, de
limitações jurídicas, sob pena de restar derrubada sua construção. Finalmente, a
terceira crítica concentra-se na amplitude do conceito de princípio, o que é
refutado com simplicidade pelo professor alemão.
137
A diferenciação entre regras e princípios foi também trabalhada
por Ronald Dworkin. Sob sua ótica, a lógica das regras corresponde ao “tudo ou
nada”, sendo necessário, em seu enunciado, prescrever todas as exceções à sua
aplicação.
138
Em contrapartida, os princípios ostentam dimensão particular, a
dimensão do peso, valor ou importância.
139
Nessa linha, Canotilho enfatiza que os princípios permitem o
balanceamento de valores e interesses, na medida em que expressam standards
que, prima facie, devem ser realizados, mas, em sua concreção, respeitam seu
próprio peso e a eventual prioridade de outro princípio conflitante.
140
3.2 A proporcionalidade como regra
Acolhendo a teoria de Alexy, o chamado princípio da
proporcionalidade não configura um princípio, pois, como defende Luís Virgílio
137
ALEXY, Robert. op. cit., p. 104-111.
138
Cf. DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. por Nelson Boeira. São Paulo: Martins
Fontes, 2002. p. 39.
139
Id. Ibid., p. 42.
140
Cf. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 3. ed. Coimbra:
Almedina, 1999. p. 1087-1088.
91
Afonso da Silva, “não tem como produzir efeitos em várias medidas, já que é
aplicado de forma constante, sem variações”.
141
O próprio Alexy, após mencionar os elementos parciais da
proporcionalidade, assevera: “La máxima de proporcionalidad suele ser llamada
‘principio de proporcionalidad’. Sin embargo, no se trata de un principio en el
sentido aquí expuesto. La adecuación, necesidad y proporcionalidad en sentido
estricto no son ponderadas frente a algo diferente. No es que unas veces tengan
precedencia y otras no. Lo que se pregunta más bien es si las máximas parciales
son satisfechas o no, y su no satisfacción tiene como consecuencia la ilegalidad.
Por lo tanto, las tres máximas parciales tienen que ser catalogadas como
reglas”.
142
Destarte, dentro do rigor técnico, é reconhecida a regra (não o
princípio) da proporcionalidade. Entretanto, novamente na esteira de Luís Virgílio
Afonso da Silva, não é possível fechar os olhos à prática jurídica brasileira. No
uso comum, fala-se, com freqüência, no princípio da proporcionalidade, mas a
epígrafe não se preocupa com a preciosa argumentação de Alexy, senão busca
realçar a importância que é devida ao conceito, como ocorre com as expressões
princípio da anterioridade e princípio da legalidade.
143
O objetivo desta linguagem
está em destacar que a norma (verdadeiramente uma regra) refere-se a um
“mandamento nuclear de um sistema”.
144
Sob tal enfoque simbólico, a regra da
141
SILVA, Luís Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais, São Paulo,
ano 91, v. 798, p. 25, abr. 2002.
142
ALEXY, Robert. op. cit., p. 112, n.r. 84.
143
SILVA, Luís Virgílio Afonso da. op. cit., p. 26.
144
Nesse sentido: SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 16. ed. rev. e
ampl. São Paulo: Malheiros Ed., 1999. p. 95.
92
proporcionalidade é tratada como “princípio dos princípios”, como principium
ordenador do Direito.
145
3.3 A nomenclatura
Aproximam-se a proporcionalidade e a igualdade. Para André
Franco Montoro, a igualdade simples ou absoluta implica equivalência entre dois
objetos e a igualdade proporcional ou relativa concretiza-se na distribuição de
benefícios e encargos entre os membros de uma comunidade.
146
A lição remete à noção limitada (literal) da proporcionalidade, a
qual, na linguagem de Suzana de Toledo Barros, consubstancia a representação
mental do conceito de equilíbrio. Há, nela, a idéia implícita de relação harmônica
entre duas grandezas“. Porém, complementa a autora, “a proporcionalidade em
sentido amplo é mais do que isso, pois envolve considerações sobre a adequação
entre meios e fins e a utilidade de um ato para a proteção de um determinado
direito”.
147
A idéia de proporcionalidade não se cinge a um ramo jurídico,
pois representa idéia de justiça imanente a todo o ordenamento. Atua como
diretriz inderrogável para a produção e a interpretação da ordem jurídica
contemporânea, obrigando o operador a alcançar o justo equilíbrio entre os
145
Cf. GUERRA Filho, Willis Santiago. Sobre o princípio da proporcionalidade. In: LEITE, George
Salomão (Org.). Dos princípios constitucionais: considerações em torno das normas
principiológicas da Constituição. São Paulo: Malheiros Ed., 2003. p. 242.
146
Cf. MONTORO, André Franco. Introdução à ciência do direito. 4. ed. São Paulo: Malheiros Ed.,
2003. v. 1, p. 172.
147
BARROS, Suzana de Toledo. O princípio da proporcionalidade e o controle da
constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 1996.
p. 70.
93
interesses em conflito, ficando o centro da balança no respeito à dignidade da
pessoa humana, razão última do Direito.
A regra da proporcionalidade carece de uniformidade
terminológica. A doutrina alemã utiliza indistintamente a nomenclatura
proporcionalidade (VerhältnismässigggkeitI) e proibição de excesso
(Übermassverbot), para aludir ao conjunto de conceitos parciais e elementos
constitutivos formados pela adequação, necessidade e proporcionalidade em
sentido estrito. Os americanos são mais afetos à expressão razoabilidade. No
caso brasileiro, o Supremo Tribunal Federal tende à expressão razoabilidade.
148
Todavia, não se identificam proporcionalidade e proibição de
excesso. Não obstante a proporcionalidade “ainda seja predominantemente
entendida como instrumento de controle contra excesso de poderes estatais, cada
vez mais vem ganhando importância a discussão sobre sua utilização para a
finalidade oposta, isto é, como instrumento de omissão ou contra a ação
insuficiente de órgãos estatais”, como explica Luís Virgílio Afonso da Silva.
Também a proporcionalidade não se confunde com a
razoabilidade, uma vez que esta se restringe à compatibilidade entre o meio
empregado pelo legislador e os fins visados, bem como a aferição de legitimidade
dos fins, ou seja, a um dos elementos da proporcionalidade: a exigência da
adequação.
149
De qualquer modo, o importante não é a nomenclatura, mas o
conteúdo atribuído à regra em epígrafe.
148
Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 489-1/6000 DF, Medida Cautelar, Rel. Min. Sepúlveda
Pertence, DJU 22.11.91; Agravo de Instrumento n. 141.916-4 SP, Rel. Min. Marco Aurélio, DJU
22.03.94.
149
Cf. SILVA, Luís Virgílio Afonso da. op. cit., p. 32-33. Diversamente, Willis Santiago Guerra Filho
equipara a proporcionalidade à razoabilidade, em razão da sinonímia e origem comum na
Matemática dos termos razão (latim ratio) e proporção (latim proportio) (GUERRA Filho, Willis
Santiago. op. cit., p. 329).
94
3.4 A origem e a evolução histórica da proporcionalidade
A preocupação com a idéia da proporcionalidade no âmbito
jurídico perdeu-se no tempo. Sua referência mais longínqua remonta à Grécia
Antiga. Platão, em As Leis (capítulo IX, 857b), indaga: "Não temos que distinguir
entre o ladrão que rouba muito ou pouco, ou que rouba os lugares sagrados ou
profanos, nem atenderemos a tantas outras circunstâncias inteiramente
dessemelhantes entre si, como se dão nos roubos que, sendo variados, exigem
que o legislador se atenha a elas impondo castigos totalmente diferentes?".
150
Os
romanos relacionaram a proporcionalidade com a utilidade e, nesse diapasão,
Ulpiano definiu o ius privatum como ius quod ad singularum utilitatem spectat (D
1, 1, §2º).
151
Nos primórdios do direito penal, o homem fazia justiça pelas
próprias mãos, de maneira particular, violenta, desordenada e excessiva. O
ataque a um indivíduo era extensivo ao grupo a que ele pertencia, o que
desencadeava lutas entre os clãs, com dimensões de violência bem maiores do
que a ofensa originária. O esboço da idéia da proporcionalidade surgiu durante a
transição da vingança privada para a pública, graças à disciplina imposta pela Lei
de Talião - “olho por olho, dente por dente” - a qual buscava certa
correspondência entre o mal praticado e a repressão.
152
O intento, em muito, era
150
Apud FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Trad. por Ana Paula
Zomer, Juarez Tavares, Fauzi Hassan Choukr, Luiz Flávio Gomes. São Paulo: Ed. Revista dos
Tribunais, 2002. p. 361, n.r. 150.
151
Cf. GUERRA Filho, Willis Santiago. op. cit., p. 239.
152
O talião, proveniente do vocábulo latino “talis”, que significa “tal”, serviu de base para a acepção
retributiva da pena, como compensação, de mesma natureza e intensidade ao mal do crime,
manejada por Aristóteles e perdurou na Idade Moderna até Kant e Hegel. A disciplina do talião foi
empregada no Código de Hamurabi (séc. XXIII a.C.), na Bíblia (Pentateuco, que apresenta os
cinco primeiros livros do Antigo Testamento) e no Código de Manu, da Índia (Cf. GARCIA,
Basileu. Instituições de direito penal. 4. ed. São Paulo: Max Limonad, 1959. v. 1, t. 1, p 12-13).
95
dissolvido na prática, pois se, em certas hipóteses, havia relação direta entre
crime e pena (morte ao homicida), em outras, a referência era meramente indireta
ou simbólica (amputação da mão do réu falsário), caso em que os critérios de
justiça perdiam a consistência. Além disso, as medidas ignoravam as diferentes
sensibilidades das pessoas submetidas a punições aflitivas.
153
De qualquer modo,
a disciplina reduziu a dizimação das tribos, permitindo a preservação de homens
em número suficiente para enfrentar as novas e contínuas batalhas tribais.
154
Novo impulso à proporcionalidade penal, sobretudo sob o enfoque
da adequação dos meios aos fins (razoabilidade), foi conferido pela Magna Charta
Libertatum, de 1215, elaborada para proteger os barões, detentores de fortunas e
propriedades, contra os desmedidos privilégios do Poder Público à época
exercido pelo rei João "Sem Terra". O documento, ao estatuir que o homem livre
(os barões) deveria ser punido na medida da gravidade do delito, colacionava a
idéia de proporção entre a pena e a transgressão.
155
Desta trilha limitativa, o direito penal foi desviado no curso da
Idade Média, época em que o monarca era uma figura sagrada, um representante
de Deus. A punição, com vistas à exemplaridade e à intimidação geral, destinava-
se a reafirmar o poder real e era legitimada em nome do resguardo a Deus. A
dignidade humana, a liberdade individual e a própria vida foram sacrificadas pelo
sistema punitivo, assentado no terror, em virtude da difusão de penas nefastas,
difamantes e excessivas. Esse estilo de repressão penal, que marcou toda uma
era, tinha respaldo popular. Grande parte das punições era considerada justa,
153
Cf. FERRAJOLI, Luigi. op. cit., p. 312-313.
154
Cf. MARQUES, Oswald Henrique Duek. Fundamentos da pena. São Paulo: Juarez de Oliveira,
2000. p. 6.
155
Cf. CORREA, Teresa Aguado. El principio de proporcionalidad en derecho penal. Madrid:
Edersa, 1999. p. 55, n 1.
96
porque enraizada em pregações religiosas, cujo corpo formava legítimo guia
diretivo de comportamento.
156
Com a Idade Moderna, separaram-se religião e Estado que,
secularizado, passou de absolutista para Estado de Direito. Reflexamente, no
direito penal, a equação “crime = pecado” foi sucedida pela equação “crime = fato
danoso para a sociedade”.
157
As bases para a transformação estavam no
Iluminismo, com reclamos por limite do poder real, e na teoria jusnaturalista, que
propugnava que o homem tinha direitos imanentes, anteriores ao Estado, a serem
respeitados por ele.
Entre os teóricos, Montesquieu, na obra O Espírito das Leis
(1721), enveredando pelo caminho da proporcionalidade, realça a valia da
liberdade, ao atribuir ao legislador o dever de estar “menos atento em punir os
crimes do que em preveni-los”.
158
Inquieto com os excessos punitivos, ensina que
uma pena desmedida agride mais a sociedade do que a própria impunidade:
“Logo, a atrocidade das leis impede sua execução. Quando a pena não tem
medida, somos muitas vezes obrigados a preferir a impunidade”.
159
E profetiza: “E
se virem outros países onde os homens só se retêm com suplícios cruéis, estejam
certos mais uma vez de que isto provém em grande parte da violência do
governo, que usou esses suplícios contra faltas leves”.
160
156
Tamanha a confusão entre religião e Direito que os crimes mais abjetos eram cometidos pelo
traidor da Coroa (lesa-majestade), pelo herege (sustenta posição contrária à Igreja), o apóstata
(abandono da religião católica para ingressar em outra) e pelo blasfemador (descrença em Deus
e nos dogmas da Igreja Católica).
157
Cf. DOLCINI, Emilio; MARINUCCI, Giorgio. Corso di diritto penale. Milano: Giuffrè, 2001. v. 1,
p. 429.
158
MONTESQUIEU. O Espírito das Leis. Trad. por Cristina Murachco. São Paulo: Martins Fontes,
2000. p. 93.
159
Id. Ibid., p. 98.
160
Id. Ibid., p. 95.
97
O Marquês de Beccaria, Cesare Bonesana, em Dos delitos e das
penas (1764), remete à proporcionalidade em diversas passagens
161
e, no último
parágrafo do seu trabalho, professa, como teorema geral, a primeira formulação
teórica da regra em estudo: “para que a pena não seja a violência de um ou de
muitos contra um cidadão privado, deve ser essencialmente pública, rápida,
necessária, a mínima possível nas circunstâncias dadas, proporcional ao delito e
ditada pelas leis”.
162
Na Declaração dos Direitos e Deveres do Homem e do Cidadão,
de 22 de agosto de 1795, e na 8ª (oitava) emenda à Constituição dos Estados
Unidos (1791), foi proclamada expressamente a proporcionalidade: “a lei não
deve estabelecer senão penas estritamente necessárias e proporcionais ao
delito”.
No mesmo século XVIIII, a proporcionalidade migrou do direito
penal para o administrativo, como norma geral do direito de polícia, ou seja, como
medida para as restrições administrativas aos direitos fundamentais.
Posteriormente, ampliou-se para todos os âmbitos do Direito Público e, enfim,
tornou-se topos hermenêutico de todo o ordenamento jurídico.
163
Presente em textos constitucionais bem anteriores à Segunda
Guerra Mundial,
164
a atual feição da máxima da proporcionalidade foi bem melhor
delineada após o término do conflito bélico, quando a humanidade, embebida
161
Entre as quais assevera: “para que uma pena seja justa, só deve ter aqueles graus de
intensidade que bastem para dissuadir os homens dos delitos” (BECCARIA, Cesare. Dos delitos
e das penas. Trad. por Lucia Guidicini e Alessandro Berti Contessa. São Paulo: Martins Fontes,
2000. p. 97).
162
Id. Ibid., p. 139.
163
CORREA, Teresa Aguado. op. cit., p. 56-57.
164
As Constituições do Rei da Sardenha de 1723 e de 1729 estabeleciam que "na fixação" das
penas "se observará uma justa e adequada proporção à quantidade dos delitos". O mesmo se
verificou no art. 16 da Constituição francesa de 1793 e no art. 12 da de 1795, que requerem que
as penas sejam "proporcionais ao delito" (Cf. FERRAJOLI, Luigi. op. cit., p. 361, n. 152).
98
pelos horrores do holocausto, assistiu à transição do Estado de Direito, vinculado
tão-somente ao princípio da legalidade (com o apogeu positivo na Constituição de
Weimar), para o Estado de Direito, atado ao princípio da constitucionalidade.
Graças à transformação, os direitos humanos, outrora relegados a declarações
político-filosóficas, tornaram-se o centro de gravidade da ordem jurídica,
figurando, com cunho obrigatório, em textos constitucionais.
165
Agregada à tutela
de tais direitos, a máxima da proporcionalidade passou a ser invocada para a
elaboração e aplicação de um ordenamento jurídico materialmente justo.
3.5 A consagração constitucional
A regra da proporcionalidade não está expressa na Constituição
brasileira, o que se repete em outros Estados, quando a doutrina e a
jurisprudência entendem que deflui da Carta Política, sobretudo dos artigos em
que se consagram direitos fundamentais.
O Tribunal Constitucional Federal da Alemanha inclina-se a
deduzir a proporcionalidade da norma que consagra o Estado de Direito: “en la
República Federal de Alemania, el principio da proporcionalidad tiene rango
constitucional. Se deriva del Estado de Derecho, en razón de la esencia misma de
los derechos fundamentales que, como expresión de la pretensión de liberdad
general de los cuidadanos frente al Estado, no pueden ser limitados por el Poder
Público más allá de los que sea imprescindible para la protección de los intereses
165
Nessa linha: BONAVIDES, Paulo. op. cit., p. 362-363.
99
públicos”.
166
A tendência é seguida pelo Tribunal Constitucional espanhol: “(...) el
problema de la proporcionalidad entre pena y delito es competencia del legislador
en el ámbito de su política penal, lo que no excluye la posibilidad de que en una
norma penal exista una desproporción de tal entidad que vulnere el principio del
Estado de Derecho, el valor de la justicia y la dignidad de la persona humana”.
167
A Constituição brasileira também consagra o modelo do Estado
de Direito, mais especificamente, o Estado Democrático de Direito (art. 1º), cuja
essência determina que sejam asseguradas a liberdade individual e a tolerância,
para que se viabilizem os direitos fundamentais. O Estado há de garantir a
libertação de formas de opressão, materializada numa convivência pacífica em
sociedade justa, livre e solidária (art. 3º, I).
Entre as bases do Estado Democrático de Direito, está a
proporcionalidade, que opera como manivela política para a acomodação de
contrapostos interesses que se colocam no jogo da democracia. Dada a intensa
ligação entre o Estado Democrático de Direito e o resguardo dos direitos
humanos, a proporcionalidade decorre também da consagração da dignidade da
pessoa humana (art. 3º, III) e dos demais preceitos inseridos no art. 5º,
168
entre os
quais sobressai o devido processo legal, para o qual não basta que o respeito às
restrições de caráter procedimental (procedural due processo of law), mas é
exigível que os direitos e as liberdades estejam protegidos contra qualquer
legislação despida do coeficiente da razoabilidade (substantive due process of
166
BverGe 19, 342 (348 et seq.) apud STEINMETZ, Wilson Antônio. Colisão de direitos
fundamentais e princípio da proporcionalidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.
p. 159-160.
167
Sentença do Tribunal Constitucional n. 160/1987, FJ 7 apud CORREA, Teresa Aguado. op. cit.,
p. 127-128.
168
Nesse sentido: REALE JÚNIOR, Miguel. A inconstitucionalidade da Lei dos Remédios. Revista
dos Tribunais, São Paulo, ano 88, v. 763, p. 415-431, maio 1999.
100
law).
169
Por isso, não é dado aos poderes públicos, sob o manto da lei,
restringirem com excesso os direitos, convertendo o Estado Democrático de
Direito em Estado Legalista, que atenta exclusivamente para a forma da lei, sem
perquirir seus efeitos intra (para o direito) e extra-sistêmicos (para a sociedade).
A regra da proporcionalidade não corrói a norma igualmente
constitucional que institui a separação de poderes. Diz Canotilho: “Quando se
solicita a um tribunal que aprecie a legitimidade da busca e apreensão de um
jornal difusor de notícias desfavoráveis ao Governo, não se exige ao juiz que se
arvore em ‘censor’ e ‘administrador negativo’ mas que, através da utilização de
‘standards’ de controlo verifique se a administração se pauta por critérios de
necessidade, proporcionalidade e razoabilidade”.
170
No controle da proporcionalidade (controle constitucional), a
atividade jurisdicional não invade esfera dos demais poderes na medida em que
está jungida a certos critérios, como a universalidade (a decisão poderá ser
aplicada em casos semelhantes, em respeito à isonomia),
171
a comparação com
leis inseridas no sistema normativo e aceitas como razoáveis, ou os precedentes
jurisprudenciais. Servem, ainda, como base para nortear as decisões, os
parâmetros traçados pelo Tribunal Constitucional alemão: I) quanto mais sensível
se revelar a intromissão da norma na posição jurídica do indivíduo, mais
relevantes hão de ser os interesses da comunidade que com ele colidam; II) o
maior peso e preeminência dos interesses gerais justificam uma interferência
169
Esse o sentido da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, desencadeada por voto do
Ministro Moreira Alves, no julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade ns. 966-4 e
958-3, em 11.05.94. A tendência foi coroada em voto do Ministro Celso de Mello, no julgamento
da Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.158-8, de 19.12.94.
170
CANOTILHO, J. J. Gomes. op. cit., p. 263.
171
Cf. BARROSO, Luís Roberto; BARCELLOS, Ana Paula. A nova interpretação constitucional:
ponderação, argumentação e papel dos princípios. In: LEITE, George Salomão (Org.). op. cit.,
p. 122-124.
101
mais grave; III) o diverso peso dos direitos fundamentais pode ensejar uma escala
de valores.
172
O exposto conjunto de diretrizes - que, no âmbito penal, são
somadas à reserva legal - enfraquece as críticas fundadas na insegurança que a
regra da proporcionalidade traria. Ademais, como arremata Flórez-Valdés, “ni la
seguridad, con ser importante, es la única meta del Derecho, ni siquiera há de
estimarse como la primeira. Indudablemente tiene por encima a la Justicia”.
173
A consagração constitucional da proporcionalidade é relevante na
relação entre direito penal e a política. Como explica Palazzo, o direito penal é
“instrumento privilegiado de política e controle social”,
174
pois regula as relações
entre o Estado, titular do poder punitivo, e o indivíduo, acusado ou condenado por
agredir os valores sociais. Nesse emaranhado, as normas constitucionais atuam
para impor uma constante e insuperável “exigência de eticidade” ao sistema
punitivo.
175
A proporcionalidade, como critério da justa medida, fornece substrato
material para a compreensão humanitária do direito penal.
3.6 A proporcionalidade e os direitos fundamentais
A manipulação genética em sentido amplo ostenta inúmeros
procedimentos dotados de caráter experimental e, por isso, consubstancia
atividade de pesquisa científica, cujo livre exercício foi alçado à categoria de
172
Cf. BARROS, Suzana de Toledo. op. cit., p. 86.
173
ARCES Y FLÓREZ-VALDÉS, Joaquim. Los principios generales del Derecho y su formulación
constitucional. Madrid: Civitas, 1990. p. 87.
174
PALAZZO, Francesco. Valores constitucionais e direito penal. Trad. por Gérson dos Santos.
Porto Alegre: Fabris, 1989. p. 16.
175
Id. Ibid., p. 17.
102
direito fundamental pela Constituição Federal de 1988, nos incisos IX e XIII, do
art. 5º.
Além de interferir na atuação dos cientistas, a evolução genética
repercute na seara dos direitos fundamentais individuais ou coletivos,
consagrados nos arts. 5º e 6º da Constituição. As pesquisas incidem sobre formas
iniciais de vida resultantes da fecundação ou de clonagem, sobre a integridade
física e moral do embrião, do feto ou da pessoa nascida e, finalmente, refletem
sobre a saúde da humanidade presente ou futura.
Esses bens estão plasmados no texto constitucional, espelhando
nossa sociedade multifária, cujos anseios ou valores apontam, muitas vezes, para
pólos antagônicos. Uma análise apressada ou apaixonada dos conflitos pode,
equivocadamente, conduzir à solução errônea: o intérprete seria levado a optar
por um dos direitos, respeitando-o na íntegra, como se, na prática, fosse absoluto.
A resposta estaria calcada na lógica do tudo ou nada”, que é própria das regras.
Porém, a lógica disjuntiva não se aplica aos direitos fundamentais, eis que, ao
merecerem ótima eficácia e mínima redução, são dotados de natureza
principiológica. Nenhuma conclusão radical, como quer parcela de religiosos ou,
em outra via, como quer parte dos cientistas, mereceria respaldo jurídico-
constitucional.
O exame imparcial e mais delongado do conflito leva a outras
ponderações. Os direitos fundamentais em voga (vida, saúde, liberdade científica)
não contêm limites explícitos, quer por cláusula restritiva direta (imposta
textualmente na própria Constituição),
176
quer por cláusula restritiva indireta
176
Exemplo dessa ocorrência está no art. 5º, XVI: “todos podem reunir-se pacificamente, sem
armas, em locais abertos ao público”, de modo que o direito de reunião está, desde logo, limitado
pela pacificidade e desarmamento do movimento.
103
(delegada, pela Constituição, à lei infraconstitucional).
177
Contudo, ao ser aplicado
no caso concreto, o direito fundamental pode entrar em rota de colisão com outro.
O critério hierárquico não se presta para solucionar o conflito, pois
entre as normas constitucionais não há hierarquia material.
178
A ruptura do
sistema pelo conflito é evitada pela regra da proporcionalidade, que impulsiona o
balanceamento dos direitos fundamentais, segundo o peso que manifestam um
perante o outro, em face das circunstâncias colocadas no caso. Prevalecerá o
interesse que demonstrar maior valia para a sociedade, sempre sem perder de
vista a preservação do valor da pessoa, de sua dignidade. O outro interesse em
conflito não será minimizado em definitivo, pois, mudando as circunstâncias, o
peso pode ser alterado, com diferente conclusão.
Assim, o direito de liberdade científica inclui, a priori, no âmbito de
sua proteção, a livre atuação. Porém, na sua realização material, tal direito será
submetido à ponderação com outros assentados na Constituição, com os quais
pode colidir: direito à saúde, por exemplo. Se, em dada pesquisa, for
desconsiderado o bem-estar do sujeito-alvo, a saúde prevalecerá sobre a
liberdade científica, uma vez que, num Estado radicado na dignidade humana, a
sociedade prefere o respeito ao indivíduo a novas descobertas. Destarte, se for o
caso de tutela penal, a lei não protegerá a atuação do cientista, mas a integridade
física do paciente.
Na solução do conflito, o intérprete promove a coordenação dos
direitos fundamentais, mais especificamente, a coordenação proporcional, para,
conforme Hesse, gozarem de “eficácia ótima”, de modo que não se “prive uma
177
Exemplo dessa hipótese está no direito ao sigilo de comunicação telegráfica ou telefônica que
pode, segundo a Constituição (art. 5º, XII), ser limitado pelos meios eleitos em lei
infraconstitucional, respeitado o fim de persecução criminal (Lei n. 9.296, de 1996).
178
Nesse sentido: CANOTILHO, J. J. Gomes. op. cit., p. 1201.
104
garantia jurídico-fundamental mais do que o necessário, ou até completamente,
de sua eficácia na vida da coletividade”.
179
Destarte, na hipótese supra, a tutela
da saúde corresponde à medida necessária para banir dispensáveis agressões.
De conseguinte, o limite máximo para restrição a direito
fundamental, quando em conflito com outro, é estabelecido in concreto pela
máxima da proporcionalidade que, figurando como limite dos limites, evita os
abusos ao pautar solução da refrega pela adequação, necessidade e equilíbrio
entre o peso e o significado do direito fundamental para dadas circunstâncias.
180
O diálogo entre a regra da proporcionalidade e os direitos
fundamentais é uma constante na esfera penal, onde a pena, ao cercear a
liberdade de trânsito individual, não pode ultrapassar o limite do exigível e idôneo
para a defesa da segurança coletiva. Do contrário, a sanção infiltrar-se-ia
abusivamente no âmbito da dignidade humana.
O equacionamento do conflito punitivo na inusitada esfera da
genética humana é complexo, pois os valores e interesses são múltiplos, pouco
conhecidos e comumente não-consensuais, passo em que a regra da
proporcionalidade, embora não traduza a solução cabal, permite um norte
precioso para o legislador ou para o juiz.
179
HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha. Porto
Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998. p. 255-256.
180
Esse posicionamento autoriza a conclusão de que o conteúdo essencial do direito fundamental
núcleo inviolável e essencial para não dissolver o direito não é auferido abstratamente.
Manifesta-se, com contornos palpáveis, tão-somente mediante a aplicação da regra da
proporcionalidade. Desse modo, a idéia de proteção ao núcleo essencial tem, como explica
Suzana de Toledo Barros, importância meramente retórica, na medida em que, sua concreção,
depende de referência a outra norma (BARROS, Suzana de Toledo. op. cit., p. 98-102).
105
3.7 Conteúdo da regra da proporcionalidade no direito penal
A doutrina e sobretudo a jurisprudência alemã, no exame de
casos alheios ao direito penal, foram pioneiras no estudo do conteúdo da máxima
da proporcionalidade, identificando três sub-regras: I) a adequação; II) a
necessidade ou exigibilidade; III) a proporcionalidade em sentido estrito.
181
Em
sentença sobre armazenamento de petróleo, datada de 16 de março de 1971,
pela primeira vez, o Tribunal Constitucional Federal alemão ofereceu uma
conceituação breve, mas precisa, do conteúdo do princípio: “el medio previsto
por el legislador tiene que ser adecuado y necesario para alcanzar el objetivo
propuesto. Um médio es adecuado cuado mediante él puede lograrse el resultado
deseado; es necesario cuado el legislador habría podido optar por un medio
distinto, igualmente eficaz que no limitara, o que lo hiciera en menor medida, el
derecho fundamental”. Sobre a proporcionalidade estrita: “en la comparación
entre la gravedad del ataque/injerencia y la importancia de los motivos que lo
justifican ha de aparecer (el ataque) como razonable para el afectado”.
182
Sob este prisma, o conteúdo dos juízos da adequação e da
necessidade foi manejado nos mais variados países, na seara do direito
constitucional e do direito administrativo. Em linhas gerais, foi fixado: I) a
181
Grande parte da doutrina, ao enunciar o princípio da proporcionalidade, alude exclusivamente
ao subprincípio da proporcionalidade estrita, mas, neste trabalho, sustentamos a existência de
proporcionalidade em sentido amplo, seguindo a doutrina majoritária alemã (cf. CORREA, Teresa
Aguado. op. cit., p. 138). Entre os autores pátrios que aceitam a proporcionalidade em sentido
amplo, tripartida em subprincípios: FERRARI, Eduardo Reale. Medida de segurança e direito
penal no Estado democrático de direito. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2001. p. 101-102;
GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. O princípio da proporcionalidade no direito penal. São
Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2003. passim. Entre os que concebem a proporcionalidade em
sentido estrito, está NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado. 3. rev. atual. e ampl.
São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2003. p. 43. O espanhol Jesús María Silva Sánchez, por
sua vez, advoga que a proporcionalidade se concretiza mediante os princípios da proteção de
bens jurídicos e da fragmentariedade (SILVA SÁNCHEZ, Jesús María. Aproximación al derecho
penal contemporáneo. Barcelona: Bosch, 1992. p. 260).
182
BverfGE 30, 292, apud CORREA, Teresa Aguado. op. cit., p. 66.
106
adequação, idoneidade ou aptidão (Geergnetheit) remete à exigência de que,
dentro do faticamente possível, o meio seja hábil para a promoção da finalidade
perseguida;
183
II) a necessidade (Erforderlichkeit) ou menor ingerência possível
reclama que a medida restritiva seja indispensável para a conservação do próprio
direito ou de outro direito fundamental, porque não pode ser substituída por outra
menos gravosa e igualmente eficaz para a consecução do objetivo.
184
No direito penal, porém, são imperiosas considerações
peculiares. Tendo em mente que sua meta essencial está na proteção subsidiária
dos bens mais importantes perante os ataques mais graves, a noção de bem
ocupa espaço central, em torno da qual as demais são desenvolvidas. Dito isto,
ao serem concretizadas pelo penalista, as sub-regras em tela ganham tonalidade
própria: I) a necessidade penal está presente desde que a medida se preste à
proteção exclusiva de bem jurídico, perante os ataques mais gravosos, e não
sejam suficientes outras formas de tutela menos lesivas à vista dos bens
envolvidos; II) a adequação requer que o direito penal seja apto para a tutela do
bem jurídico (produza a esperada proteção) e para atingir a finalidade última que
persegue (paz social).
185
Perfilhando essa lógica, o condicionamento, exposto pelos
cultores de direito público em geral, entre o juízo da adequação e da necessidade
não se estende ao direito penal. A doutrina constitucionalista e a administrativista
advogam que sendo único o meio idôneo, será incondicionalmente necessário e,
183
Cf. BARROS, Suzana de Toledo. op. cit., p. 78. Na lição de Gilmar Ferreira Mendes, “o
subprincípio da adequação (Geeignetheit) exige que medidas interventivas adotadas mostrem-se
aptas a atingir os objetivos pretendidos” (g.n.) (MENDES, Gilmar Ferreira. O princípio da
proporcionalidade na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: novas leituras. Repertório IOB
de Jurisprudência, n. 14, cader. 1, 2. quinz. p. 361-372, jul. 2000). Na linguagem de Luís Virgílio
Afonso da Silva, basta que o meio funcione, pelo menos, para fomentar o fim (SILVA, Luís
Virgílio Afonso da. op. cit., p. 36).
184
Cf. BARROS, Suzana de Toledo. op. cit., p. 81.
185
Nesse sentido: CORREA, Teresa Aguado. op. cit., p. 147.
107
sendo necessário, será inexoravelmente idôneo.
186
Em contrapartida, no direito
penal, conquanto haja somente um meio apto a oferecer tutela ao bem, é
imperioso o exame da necessidade, porquanto a proteção será ilegítima se, por
exemplo, o bem não apresentar dignidade penal. Em via oposta, mesmo que a lei
penal corresponda melhor à valia do bem jurídico e à situação de perigo ou de
lesão em que se encontra, não se descarta o exame da idoneidade, posto que a
tutela será, no mínimo, questionável se a massa da sociedade optar pela
impunidade, não aderindo à incriminação legal em respeito a valores
concorrentes, ou se a impunidade implicar impacto social menos negativo do que
o respeito ao ditame legal, em virtude de seus efeitos criminógenos.
187
Percebe-se, pois, que, na esfera penal, a máxima da
proporcionalidade assume raios mais amplos, abarcando todo o contexto social
em que a pena incide, o que se explica na exata medida em que o direito em jogo
é dos mais elevados (a liberdade) e a projeção social da pena ou medida de
segurança é, pelo menos em tese, mais drástica do que outra sanção.
A adequação e a necessidade orientam, sobremaneira, a política
criminal, na medida em que permitem que sejam manobradas, com maior
objetividade, a conveniência e a oportunidade da pena ou da medida de
segurança. Na seara jurisdicional, a atuação das sub-regras, embora relevante, é
bem mais restrita, posto que exige a evidência da desproporcionalidade, sob pena
de invasão de competência constitucional atribuída ao administrador ou ao
legislador, com exclusividade.
186
O condicionamento foi sintética e precisamente expressado por Gilmar Ferreira Mendes, quem,
citando Pieroth e Schlink, afirma: “apenas o que é adequado pode ser necessário, mas o que é
necessário não pode ser inadequado” (MENDES, Gilmar Ferreira. op. cit., p. 371).
187
Nessa linha: GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. op. cit., p. 79-80.
108
Diversamente dos juízos da necessidade e da adequação, que
estão atrelados à otimização com relação às possibilidades fáticas, a
proporcionalidade em sentido estrito (Angemessenheitsprüfung) está relacionada
às possibilidades jurídicas. “O princípio da proporcionalidade em sentido estrito
determina que se estabeleça uma correspondência entre o fim a ser alcançado
por uma disposição normativa e o meio empregado que seja juridicamente o
melhor possível”, como preleciona Willis Santiago Guerra Filho,
188
ou, na
linguagem de Luís Virgílio Afonso da Silva, “consiste em sopesamento entre a
intensidade da restrição ao direito fundamental atingido e a importância da
realização do direito fundamental que com ele colide e que fundamenta a adoção
da medida restritiva”.
189
Destaque-se que, diferentemente do juízo da idoneidade penal,
onde a capacidade da pena é avaliada com vistas à prevenção de delitos, a
proporcionalidade estrita reclama a justeza da medida da pena em face da
infração, tanto em termos abstratos (cominação legal) quanto em termos
concretos (sentença condenatória).
188
GUERRA Filho, Willis Santiago. op. cit., p. 245.
189
SILVA, Luís Virgílio Afonso da. op. cit., p. 40.
109
4. A SUB-REGRA DA NECESSIDADE
4.1 Linhas gerais
Na sociedade contemporânea laica, pluralista e preocupada com a
dignidade humana , seria um contra-senso que a mais drástica modalidade de
tutela jurídica almejasse meta transcendental ou, tão-somente, a observância de
certos padrões morais. A delimitação do âmbito da necessidade penal é
impulsionada pela noção de bem jurídico, na medida em que impõe à lei punitiva que
apenas proteja os mais eminentes e em face dos ataques mais gravosos.
Neste passo, quer no plano da política legislativa, quer no da
interpretação das leis penais, a necessidade ou economia das proibições penais
190
serve de critério diretivo para o ius puniendi, concretizando-o sob dois aspectos,
quais sejam a exclusiva proteção de bens jurídicos e a intervenção mínima.
4.2 A exclusiva proteção dos bens jurídicos
4.2.1 Considerações preliminares
A noção de bem foi delineada na filosofia sob dois prismas
fundamentais: a) a teoria metafísica, lapidada por Platão, defende que o bem é “a
realidade, mais precisamente a realidade perfeita e suprema, e é desejado como
190
Expressão empregada por FERRAJOLI, Luigi. op. cit., p. 372.
110
tal”; b) a teoria subjetivista que é o inverso simétrico da anterior, porque o bem
“não é desejado por ser perfeição e realidade, mas é perfeição e realidade por ser
desejado”, conforme Aristóteles. Kant, enveredando para a última corrente,
compreende que o bem só o é em relação ao homem, ou, mais detalhadamente,
em face do interesse determinado pela razão. O filósofo não identifica o bem
puramente com o prazer (aquilo que agrada em si mesmo), na medida em que
vincula seu reconhecimento à valorização conceitual de sua eficiência em relação
a certos fins.
191
A teoria do bem jurídico harmoniza-se com a visão aristotélica,
porquanto os bens, efetivamente, não estão prontos e acabados na realidade.
Assumem tal categoria com a projeção da consciência humana sobre o mundo
em que se vive, de modo que representam produto do homem, esboçados a partir
da razão e das necessidades humanas, como preconiza o pensamento kantiano.
A conclusão é evidenciada quando reparada a constante
modificação no conjunto de bens jurídicos: outrora, não eram valiosos, por
exemplo, a seguridade social e o patrimônio ecológico, mas, em função da
revolução industrial e, mais adiante, da revolução científica, ambos adquiriram
importância essencial para a coexistência e o desenvolvimento do homem
contemporâneo em sociedade. Os bens jurídicos flutuam com o perpassar do
tempo ou mesmo entre as comunidades contemporâneas porque, ao lado das
mudanças da natureza, altera-se o sistema de preferências, que parte de
variantes sociais e históricas.
A visão aristotélica, com tonalidade kantiana, foi observada pelos
cultores das ciências humanas, inclusive os penalistas. Para Francisco de Assis
191
Cf. ABBAGNANO, Nicola. op. cit., p. 107-109.
111
Toledo, bem é “tudo aquilo que se nos apresenta como digno, útil, necessário e
valioso (...) Os bens são, pois, coisas reais ou objetos ideais dotados de ‘valor’,
isto é, coisas materiais e objetos imateriais que, além de serem o que são,
‘valem’. Por isso, são, em geral, apetecidos, procurados, disputados, defendidos
e, pela mesma razão, expostos a certos perigos de ataques e sujeitos a
determinadas lesões”.
192
A seguir, o doutrinador pátrio propõe sua conceituação
dos bens jurídicos: “são valores ético-sociais que o direito seleciona, como o
objetivo de assegurar a paz social, e coloca sob sua proteção para que não sejam
expostos a perigo de ataque ou a lesões efetivas”.
193
Em suma, o bem jurídico é um interesse tutelado pelo Direito, que
assenta sua relevância no juízo positivo que a comunidade faz incidir sobre um
elemento do mundo em que se vive, onde se travam as relações humanas. Diz-se
a comunidade, não a autoridade, em respeito ao princípio do Estado Democrático
de Direito, que refuta imposições unilaterais. Esta conclusão, bastante aberta,
evidencia que o conceito não está adstrito ao direito penal, pois outros ramos
jurídicos também tutelam interesses e, por isso, é possível afirmar que o bem
jurídico é o gênero do qual o bem jurídico-penal é uma espécie.
O significado material do bem jurídico é o primeiro ponto a ser
estudado para o traçado de limites ao ius puniendi. Para apreciá-lo nas tensas
relações entre a política criminal e a revolução biológica, será procedida breve
referência à evolução histórica do instituto na seara do direito penal.
192
TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 4. ed. São Paulo: Saraiva,
1991. p. 15.
193
Id. Ibid., p. 16.
112
4.2.2 Breve evolução histórica
Atribui-se a Birnbaum a noção originária de bem jurídico-penal,
assinalada no artigo Über das Erfordernis einer Rechtsverletzung zum Begriff des
Verbrechens, publicado em 1834, embora a expressão não tenha sido empregada
por ele. Refutando a doutrina iluminista, marcada pelo cunho intersubjetivo, eis
que centrada nos direitos subjetivos, no homem e em suas relações, Birnbaum
transfere a discussão para o mundo exterior e objetivo, onde as “coisas”
destacam-se.
194
Para o autor, o bem jurídico transcenderia o Direito, porque “es
dado por la natureza y por el desarollo social”, de sorte que “el derecho y el
Estado solo puede reconocerlos”,
195
quando lhes conferem tutela normativa. A
concepção, típica das fases de transição, não abandona o jusnaturalistalismo
anterior (ao remeter a dados da natureza), mas abre-se para o positivismo (ao
consignar a importância decisiva do reconhecimento do bem pelo legislador).
Para Binding, adepto ao discurso positivista-legalista, o bem
jurídico é “tutto ció che agli occhi del legislatore è di valore”.
196
Diversamente de
Birnbaum, o bem não seria reconhecido, mas estabelecido dentro do conteúdo da
norma jurídica, de modo imanente a ela. Não era questão de lege ferenda, mas
194
O título completo do artigo, aparecido em Archiv des Criminalrechtes, 1834, p. 149 e ss.: Über
das Erfordernis einer Rechtsverletzung zum Begriff der Verbrechens mit besonder Rücksicht auf
den Begriff der Ehrenkrännkung, apud. ANDRADE, Manuel da Costa. Consentimento e acordo
em direito penal. Coimbra: Coimbra, 1991. p. 51-52.
195
Cf. BUSTOS RAMÍREZ, Juan. Manual de derecho penal español: parte general. Barcelona:
Ariel, 1984. p. 51.
196
Die Normen um ihre Übertretung. Eine Untersuchung über die rechtmässige Handlung um die
Arten des Delikts, Bd.1: Normen und Strafgesetze, 4, Aufl., 1922, (Neudruck, 1965), p. 353, apud
ANGIONI, Francesco. Contenuto e funzioni del concetto di bene giuridico. Milano: Giuffrè, 1983.
p. 79, n. 20.
113
de lege lata.
197
A norma constituiria a única e definitiva fonte de revelação do bem
jurídico, o que se assenta na crença da plasticidade das coisas do mundo e da
vida pelo Direito.
198
A idéia, com sensíveis nuances, está presente em política
criminal de tendência autoritária, pois infirma o potencial garantista do bem
jurídico, uma vez que seu conteúdo ficaria submetido, completamente, ao Estado-
legislador.
Em outro passo, Franz Von Liszt, partidário da doutrina
naturalista-sociológica, preleciona: “el bien jurídico es el interés jurídicamente
protegido. Todos los bienes jurídicos son intereses vitales del individuo o de la
comunidad. El orden jurídico no crea el interes (...) los intereses vitales resultan
de las relaciones de la vida”.
199
Aparta-se de Birnbaum ao despojar-se do
jusnaturalismo, posto que situa a raiz do bem jurídico exclusivamente na realidade
social (relações entre os indivíduos ou entre eles e a sociedade organizada). Não
exclui a construção de Binding ao manter a normatização como última medida
para a elevação do bem da vida à categoria de bem jurídico, com o que
remanesce o juízo de valor do Estado.
200
A adesão ao pensamento de Binding, porém, não é integral, eis
que Liszt, mesmo depois da intervenção da lei penal, não espera a “total redução
da heterogeneidade das expressões da realidade”, confiando “mais na
plasticidade reflexiva do direito para responder às exigências de uma realidade
197
Cf. BUSTOS RAMÍREZ, Juan. op. cit., p. 53.
198
Cf. ANDRADE, Manuel da Costa. op. cit., p. 67-69.
199
LISZT, Franz von. Tratado de derecho penal. 2. ed. trad. da 20. ed. alemã por Luis Jiménez de
Asúa. Madrid: Reus, 1927. t. 2, p. 2.
200
Cf. GOMES, Luiz Flávio. Normas e bem jurídico no direito penal: normas penais primárias e
secundárias, normas valorativas e imperativas, introdução ao princípio da ofensividade,
lineamentos da teoria constitucional do fato punível, teoria do bem jurídico-penal, o bem jurídico
penal protegido nas falsidades documentais. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2002. p. 78.
114
múltipla e diferente”.
201
Dada a prioridade que confere à realidade da vida sobre a
atividade legiferante, Liszt desperta a importância de fundamento social
(extrajurídico) para a legitimação da lei penal.
Para os neokantianos, que surgiram por volta dos anos 20 do
século passado, o bem jurídico é um valor da cultura e o delito é uma infração dos
valores culturais. Entre os partidários, destaca-se Honig (1919), para quem o bem
jurídico é síntese categorial empregada, pelo pensamento jurídico, para captar o
sentido e o fim dos preceitos penais.
202
Do exposto, infere-se que o neokantista
transforma o conceito em espécie puramente interpretativa, sem conteúdo
próprio, de maneira que o legislador ficaria livre para a sua seleção.
A erosão da capacidade crítica do conceito de bem jurídico atingiu
o ápice nos anos 30 e 40 do século XX, com o advento do nazismo. O centro do
direito penal foi ocupado por conceitos morais - fidelidade, traição, atitude interior
-, provocando confusão entre ambos, pelo que as penas se reduziram a meio de
tutela da moral estatal. A essência do crime era a violação de dever de obediência
ao Estado, que se amoldava aos interesses do grupo comandante e era
legitimado sob a máscara do “sentimento do povo”.
203
A nova ideologia política
(nacional-socialismo) carregou de subjetivismo o ordenamento jurídico alemão,
bem como o italiano, redundando na perda de identidade da noção de bem
jurídico que, mergulhada na fluidez, tornou-se suscetível à conformação com o
direito penal totalitário, como lembra Silva Sánchez.
204
Finda a Segunda Guerra, a partir dos anos 50, foram
deflagrados movimentos de reforma penal, em meio aos quais foi reacendida a
201
Cf. ANDRADE, Manuel da Costa. op. cit., p. 69.
202
Cf. ANGIONI, Francesco. op. cit., p. 24-32.
203
Cf. DOLCINI, Emilio; MARINUCCI, Giorgio. op. cit., v. 1, p. 439.
204
Cf. SILVA SÁNCHEZ, Jesús María. Aproximación al derecho penal contemporáneo, cit., p. 268.
115
necessidade de racionalização da incriminação ou descriminação de certos
comportamentos. Na busca de critérios para legitimar o poder do legislador
responsável pela lei penal, a noção de bem jurídico foi retomada sob as vestes
das concepções sociológica e constitucionalista, edificadas com o intento de
delinear, decisivamente, as fronteiras materiais do direito-dever estatal de punir.
4.2.3 O enfoque sociológico: a fragilização do conceito
São diversas as concepções sociológicas e, em síntese bastante
simplificada, o ponto comum entre elas, por óbvio, reside na aproximação da
ciência jurídico-penal à sociologia, passo em que o Direito é concebido como
redutor da complexidade e garante da funcionalidade dos sistemas sociais. As
propostas, baseadas na teoria sistêmica de Niklas Luhmann,
205
não se atêm ao
conceito de bem jurídico, substituindo-o por outros, que são coroados como idéia
central para a justificativa da intervenção penal.
Entre os partidários do enfoque, está Kunt Amelung, quem
rechaça o conceito de bem jurídico, porque, sob sua ótica, estaria enraizado em
parâmetros arbitrariamente eleitos pelo legislador, o que significaria “abrir porta a
um direito penal irracional e restauracionista, à margem de todo o controle
social”.
206
Por isso, procura padrão alternativo para legitimar a intervenção penal,
205
Luhmann foi responsável por importar, para as ciências humanas, a teoria autopoiética
desenvolvida pelos biólogos chilenos Maturana e Varela. A teoria sustenta, em apertada síntese,
que a sociedade é um complexo sistema, formado por vários sistemas parciais, entre os quais o
político e o jurídico. A ordem de cada um dos sistemas, fundamental para a sua preservação,
exige clausura operativa (auto-reprodução) e abertura cognitiva (irritações externas interferem no
sistema). Sobre o tema: CAMPILONGO, Celso Fernandes. Política, sistema jurídico e decisão.
São Paulo: Max Limonad, 2002; GUERRA FILHO, Willis Santiago. A autopoiese do direito na
sociedade pós-moderna. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997.
206
Amelung, Rechtsgüterschutz und Schutz der Gesellschaft, Frankfurt, 1972, p. 5-6, apud
ANDRADE, Manuel da Costa. op. cit., p. 96.
116
passo em que advoga que os contornos materiais do ius puniendi são habilmente
determinados pelo critério da danosidade social: ”Enquanto a doutrina iluminista
da danosidade social se orienta para uma reflexão, em última instância
sociológica, sobre as condições da convivência humana, a doutrina da proteção
de bens jurídicos rompe de forma decisionística com tal reflexão. O decisivo para
a constituição do bem jurídico é um momento volitivo. Os bens jurídicos nascem
de um ato de valoração cujo objeto é estabelecido pelo legislador”.
207
Parte de uma representação sistêmica da sociedade, a qual, para
sobreviver, cria estruturas cujos elementos têm função social definida, qual seja a
manutenção do sistema, pelo que são ditos funcionais. “Disfucionalidad es, por el
contrario, un fenómeno que amenaza a la subsistencia del sistema”.
208
Associa a
funcionalidade sistêmica à danosidade social: “socialmente danoso é (...) uma
manifestação de disfuncionalidade, um fenónemo social que impede ou dificulta a
superação pelo sistema social dos problemas de sobrevivência e manutenção.
Tais fenónemos sociais podem revestir as formas mais diversificadas (...). O crime
é apenas uma forma especial dos fenômenos disfuncionais e, em geral, o mais
perigoso. O crime é disfuncional enquanto violação de uma norma
institucionalizada (déviance), indispensável para a solução dos problemas do
sistema, já que põe em questão a vigência de normas que podem contribuir de
alguma forma para esta tarefa. A função do Direito Penal, como mecanismo de
controlo social é, assim, a de contrariar o crime”.
209
207
Amelung, Rechtsgüterschutz und Schutz der Gesellschaft, Frankfurt, 1972, p. 5-6, apud
ANDRADE, Manuel da Costa. op. cit., p. 96
208
Amelung, op. cit., p. 358, apud CUNHA, Maria da Conceição Ferreira. Constituição e crime: uma
perspectiva da criminalização e da descriminalização. Porto: Universidade Católica Portuguesa,
1995. p. 92.
209
Amelung, op. cit., p. 361, apud ANDRADE, Manuel da Costa. op. cit., p. 97.
117
De um lado, a construção de Amelung tem o mérito de enfatizar o
diálogo travado entre o direito penal e o intrincado sistema pelo qual a sociedade
pretende organizar-se e manter-se. De outra banda, contém argumentos bastante
censuráveis. Com efeito, a construção acentua o risco de subalternização da
pessoa, na medida em que prefere o social ao individual.
210
Diz Amelung: “Uma
vez que toda a solução de problemas tem os seus custos, é pensável a solução
de um problema do sistema à custa da tutela da pessoa e, se necessário,
mediante o sacrifício da existência dos cidadãos individuais”.
211
Esse raciocínio
não exclui práticas eugênicas negativas, como a dizimação de embriões que
escapem do padrão cultural de normalidade, para a “melhoria” da espécie.
Outrossim, a neutralidade política do enfoque - nada diz sobre a
forma pela qual a sociedade deva organizar-se e muito mesmo sobre os valores
que a regem - reduz o crime a uma conceituação formal: fato disfuncional. Não
edifica uma barreira que impeça a proteção de valores puramente morais ou, mais
comum nos dias atuais, de estratégia política, permitindo que estes sejam
estimados como funcionais para dada sociedade,
212
caso em que seria retomada
a tônica repressiva que impregnava o sistema penal no Estado absolutista ou o
subjetivismo do nacional-socialismo. A incerteza axiológica, ao tornar a teoria apta
a amoldar-se a qualquer regime político-social, nulifica o original intento crítico-
limitativo.
O vazio substancial em que é posto o delito conduz Amelung,
contrariamente ao que esperava, a admitir que sua doutrina não exclui, mas
210
Nesse sentido: SILVA SÁNCHEZ, Jesús María. Aproximación al derecho penal contemporáneo,
cit., p. 269.
211
Amelung, op. cit., p. 363, apud CUNHA, Maria da Conceição Ferreira. op. cit., p. 93.
212
Nessa linha: SILVA SÁNCHEZ, Jesús María. Aproximación al derecho penal contemporáneo,
cit., p. 269; CORREA, Teresa Aguado. op. cit., p. 175.
118
complementa o conceito de bem jurídico. Segundo o autor, cabe à danosidade
social fornecer subsídios para a meditação acerca das condições funcionais da
ordenação social, enquanto a decisão fundamental sobre os objetos de tutela
penal remanesce nas mãos do legislador. Novamente de maneira inusitada, para
coibir excessos que sufoquem o individual em nome do coletivo, Amelung admite
a incidência de limites jurídicos que advêm, frise-se, da Constituição de Bonn
(arts. 1 e 2), sobretudo do respeito à dignidade humana.
213
Também Jakobs substitui o conceito de bem jurídico pelo preceito
da danosidade social, mas, de modo inovador, defende a “renormativização dos
conceitos”, quando coloca, cuidadosamente, a realidade sociológica entre
parênteses. Após sustentar que não é possível determinar com rigor os contornos
do socialmente danoso, compreende a danosidade social como referência de
intencionalidade última, não assumindo relevância dogmática autônoma. “Pelo
contrário são as normas consideradas apenas em sua vigência e validade,
abstraindo o conteúdo que aparecem no primeiro plano. São, aliás, as normas
que significativamente o autor concebe como bens jurídico-penais”, como explica
Costa Andrade.
214
Nas palavras do funcionalista, “la tarea del derecho penal no puede
ser vista en impedir la lesión de bienes jurídicos. Su función es, en cambio, la
confirmación de la validez de la norma, en lo que lo validez es equiparable a
reconocimiento (...). Función de la pena es el mantenimiento de la norma como modelo
213
Nesse sentido: CUNHA, Maria da Conceição Ferreira. op. cit., p. 93; FIANDACA, Giovanni. O
‘bem jurídico’ como problema teórico e como critério de política criminal. Trad. por Heloisa
Estellita Salomão. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 776,p. 424, jun. 2000.
214
ANDRADE, Manuel da Costa. op. cit., p. 114.
119
de orientación para la relación social. El contenido de la pena es una contradicción de
la negación de la autoridad de la norma, a costa del infractor de la misma”.
215
A disfuncionalidade do delito não reside na lesão ao bem jurídico,
senão na expressão simbólica de infidelidade às normas (quaisquer que sejam).
Puramente normativista, o pensamento compreende o crime como conduta
qualitativamente idêntica a outro comportamento que vulnere a validade e
vigência das normas. A pena seria mais uma instituição para reforçar o
mandamento legal, na medida em que estabiliza as expectativas normativas e
reforça a confiança no Direito.
Infere-se que, embora Jakobs explique a razão imediata da pena,
não esclarece o motivo essencial pelo qual recorre a ela, não a outros meios de
controle concorrentes. Assim, como em Amelung, a presente construção mantém
aberta a possibilidade de sua adaptação a qualquer política criminal, mesmo
àquelas que promovam a expansão desmedida do direito penal. Diz
Schünemann: “la aportación del pensamiento penal de Jakobs consiste en cierto
modo en la apertura de todas las compuertas a las meras decisiones” que, sem
preocupação valorativa, são tomadas sob o pressuposto de modernização do
direito penal.
216
Os abusos tendem à acentuação nos tempos modernos, onde a
violência e a insegurança rodam a sociedade, o que impulsiona o legislador, nem
215
Günther Jakobs, Strafretch Allgemeiner Teil, Berlim, 1983, p. 7, apud BARATTA, Alessandro.
Integracion-prevencion: una ‘nueva’ fundamentación de la pena dentro de la teoría sistemica.
Trad. por Emilio Garcia-Mendez e Emirio Sandoval Huertas. Cuadernos de Política Criminal,
Madrid, n. 24, p. 541, 1984.
216
SCHÜNEMANN, Bernd. Consideraciones críticas sobre la situación espiritual de la ciencia
jurídico-penal alemana. Trad. por Manuel Cancio Meliá. Anuario de Derecho Penal y Ciencias
Penales, t. 49, fasc. 1, p. 209, ene./abr. 1996.
120
sempre bem preparado para representar o povo,
217
a acolher os reclamos
maciços pela incriminação provenientes da vulnerável opinião pública, pendendo
para a intensificação desmensurada da legislação penal. Estimula-se a dissolução
ao respeito da dignidade da pessoa humana, pois os direitos individuais poderão
ser arranhados pelos excessos da lei penal, não obstante a irrelevância do
comportamento ou da suficiência de outros meios de tutela.
A tese de Jacoks, por exemplo, permitiria que fosse
obstacularizado o progresso científico, mediante a proliferação de tipos penais
incriminadores de atividades de pesquisa, inclusive em ações terapêuticas, os
quais, sem preocupação com a tutela de bens jurídicos essenciais, procurariam
convalidar padrões de funcionamento sistêmico aceitos pelos grupos dominantes.
É o que ocorre na Itália, onde o uso de gametas de terceiros é equiparado ao
adultério.
Ponderadas tais colocações, tem-se que a substituição do bem
jurídico pela danosidade social ou pela validade das normas, conquanto relacione
a tutela jurídica à ordem social, suscita grandes reservas e conduz a mau uso do
direito penal, incluindo seu retrocesso à proteção da moral dos grupos detentores
do poder. As falhas do enfoque reanimam a importância da noção de bem
jurídico, restando, para eliminar as investidas subjetivas, a eleição de um
elemento externo ao sistema punitivo que lhe direcione, servindo-lhe de
fundamento, donde surge a postura constitucionalista.
217
O povo sinaliza para contexto humano mais abrangente do que a massa popular, pois remete
às tradições dos antepassados, aos presentes e aos seres vindouros.
121
4.2.4 O enfoque constitucional: a recuperação do conceito
Na investigação do limite material do ius puniendi, a doutrina
alemã e a italiana, desde o início dos anos 70, evidenciam a necessidade de
operar com um instrumento idôneo, externo e superior, para servir de
mediatizador na captação dos bens jurídicos, com vistas a banir escolhas
substancialmente arbitrárias. Nesta busca, muitos juristas elegeram a
Constituição.
218
O acerto é manifesto, pois as normas constitucionais, firmando
raízes na vivência social, consagram positivamente valores essenciais e modelam
programas fundamentais de determinada comunidade num dado tempo, brilhando
como “esfera de justiça”.
219
Aliás, a observância dos ditames constitucionais em qualquer
ramo jurídico é natural, pois, elaborada pelo povo (poder constituinte), a Carta
Política, pelo menos teoricamente, incorpora consenso social praticamente
ilimitado, pelo que, se não concordam, os destinatários conformam-se com seu
sentido, amoldando a ele os comportamentos.
Os constitucionalistas distinguem-se em estritos e amplos.
Segundo a corrente estrita, a Constituição delimita, na íntegra, o
direito penal. O objeto da tutela penal é deduzido diretamente da Constituição que
atua como um pré-dado ao legislador ordinário. Para Bricola, um dos partidários,
a Constituição é o instrumento capaz de ofertar um catálogo de bens
merecedores de tutela e também de estabelecer uma hierarquia de valores. Em
sua construção, o elemento central está sediado no art. 13, da Constituição
italiana, que declara a inviolabilidade da liberdade, donde o jurista deduz que a
218
Cf. ANGIONI, Francesco. op. cit., p. 148, n. 113.
219
A expressão é de CANOTILHO, J. J. Gomes. op. cit., p. 1080.
122
sanção penal pode ser adotada somente em presença da violação de um bem,
senão de igual grau relativamente ao valor sacrificado, ao menos dotado de
relevância constitucional, âmbito em que se compreendem os valores explícitos,
implícitos e, até mesmo, os instrumentais (privados em si de relevância
constitucional, mas ligados a um valor constitucional por relação de
pressuposição necessária).
220
A tese foi rebatida pela doutrina. Objeta-se que a natural
mutabilidade dos bens jurídicos não seria acompanhada pelo catálogo de bens
constitucionais que, envelhecido, restaria abandonado pela disparidade com a
realidade. Contudo, a mudança de bens jurídicos não é rápida. Além disso, a
possibilidade interpretativa de serem reconhecidos bens implícitos ou conexos
minimiza eventuais falhas na esperada cobertura recíproca.
Outras críticas são colocadas e, desta feita, mais difíceis de
serem refutadas. A textura aberta do sistema constitucional, que é própria do
Estado Democrático de Direito, impede a pretendida relação de identidade total
entre a Constituição e o direito penal. Explica Konrad Hesse que a Constituição é
obra incompleta e inacabada, porquanto não regula todas as matérias, nem
mesmo as penais, e permanece, por meio da interpretação, em constante
adaptação para acompanhar dinamicidade da vida, permeável ao decurso do
tempo.
221
“Il testo costituzionale non è né uma tavola logaritimica che consenta
sveltamente di trovare soluzioni e risutalti, né um deus ex machina che conduca
per mano all’epilogo desiderato”, complementa Francesco Angioni.
222
“Significa
220
Franco Bricola, Teoria generale del reato, in: Novissimo Digesto Italiano, XIX, Ed. Torinese, p.
14 e seguinte, apud CUNHA, Maria da Conceição Ferreira. op. cit., p. 169-174; apud PALAZZO,
Francesco. op. cit., p. 85-86.
221
Cf. HESSE, Konrad. op. cit., p. 19.
222
ANGIONI, Francesco. op. cit., p. 157.
123
che non tutto é deciso e vincolato in rigide tavole di valori, ma che vi sono
questioni lasciate consapevolmente aperte, e spazi per um processo político
libero”, como assevera Domenico Pulitanò.
223
Posto isto, foi edificada a postura constitucionalista ampla que
compreende a Constituição não como estatuto que vincula a escolha dos bens
jurídico-penais, mas como marco de referência. Ela divide-se em dois grupos.
Para a primeira parcela, a Constituição funciona como quadro
normativo onde estão os princípios sintetizadores de uma unidade mínima de
sentido, como o princípio do Estado de Direito Democrático. O legislador está
proibido de ferir esse espírito estatal, base da liberdade e igualdade, mas, além
desta área, lhe é resguardo vasto espaço livre.
224
Nas palavras de Toledo Y
Ubieto: “la condición de limite del bien jurídico... procede de la condición
democrática del Estado”,
225
o que é arrematado pelos dizeres de Dolcini e
Marinucci: “a Constituição, se, por um lado, vincula o legislador ordinário a
adoptar um modelo formalmente liberal de direito penal (...) por outro lado, tem
pouco a dizer no plano dos conteúdos das normas incriminadoras”.
226
Para o segundo grupo, a referência à Constituição concretiza-se
pela conformidade entre os bens tutelados pelo direito penal e o sistema completo
de valores constitucionais. Nesta égide, Jorge de Figueiredo Dias entende que,
“entre a ordem axiológica jurídico-constitucional e a ordem legal jurídico-penal
223
PULITANÒ, Domenico. Obblighi Costituzionali di Tutela Penale? Rivista Italiana di Diritto e
Proceduta Penale, Milano, ano 26, p. 498-499, 1983.
224
Cf. CUNHA, Maria da Conceição Ferreira. op. cit., p. 129. São partidários do pensamento Roxin,
Sax, Rudolphi, Michael Marx.
225
TOLEDO Y UBIETO, Octavio de. Función y límites del principio de exclusiva protección de
bienes jurídicos. Anuario de Derecho Penal y Ciencias Penales, t. 43, fasc. 1, p. 9, jan./abr.
1990.
226
DOLCINI, Emilio; MARINUCCI, Giorgio. Constituição e escolha dos bens jurídicos. Trad. por
José de Faria Costa. Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 4, fasc.1, p. 191, jan./mar.
1994.
124
dos bens jurídicos tem por força de verificar-se uma qualquer relação de mútua
referência. Relação que não será de ‘identidade’, ou mesmo só de ‘recíproca
cobertura’, mas de analogia material, fundada numa essencial correspondência
de sentido e do ponto de vista da sua tutela de fins. Correspondência que
deriva, ainda ela, de a ordem jurídico-constitucional constituir o quadro obrigatório
de referência e, ao mesmo tempo, o critério regulativo da actividade punitiva do
Estado. É nesta acepção, e só nela, que os bens jurídicos protegidos pelo direito
penal devem considerar-se concretização dos valores constitucionais expressa ou
implicitamente ligados aos direitos e deveres fundamentais. É por esta via e só
por ela, em definitivo que os bens jurídicos se ‘transformam’ em bens jurídicos
dignos de tutela penal ou com dignidade jurídico-penal”.
227
A teoria estrita não exclui a ampla. Ajustam-se ao primeiro modelo
as disposições constitucionais que expressam bens jurídicos e, explícita ou
implicitamente, reclamam tutela penal. A Constituição de 1988, por exemplo,
exige expressamente proteção penal para a tutela ambiental e, de forma implícita,
para a integridade física e moral quando bane os tratamentos desumanos ou
cruéis. Contudo, a teoria estrita não responde a todos os casos de intervenção
penal. Na Constituição italiana, por exemplo, não há menção ao meio ambiente, o
qual, porém, não carece de dignidade penal no ordenamento respectivo,
porquanto encontra seu fundamento analógico na proteção atribuída à vida em
geral, na medida em que configura o substrato necessário para boa qualidade de
existência das espécies em geral e do planeta ou, em situações mais drásticas,
para a própria sobrevivência dos seres vivos o que, instintivamente, interessa a
cada um e a todos. De igual modo, nos delitos contra a fé pública, é protegida a
227
DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões do direito penal revisitadas. São Paulo: Ed. Revista dos
Tribunais, 1999. p. 67.
125
confiança dos cidadãos na autenticidade ou veracidade de dado meio de prova,
bem despido de relevância expressa ou implícita na Constituição pátria, mas
dotado de correspondência de sentido e de fim com a fração do sistema
constitucional que, versando sobre segurança jurídica, impõe que as relações
sejam razoavelmente disciplinadas e que permitam expectativas sociais quanto à
sua certeza, calcada, inclusive, em instrumentos probatórios públicos. Para estes
casos, a teoria constitucional ampla confere o respaldo necessário para legitimar
a tutela penal, eis que, em ambos, há harmonia entre o valor protegido e o
sistema axiológico-constitucional.
Desde logo, impende salientar que a influência constitucional no
direito penal não é fator que encerra a fixação de limites ao direito de punir.
Explicam Dolcini e Marinucci que as normas citadas [constitucionais] vinculam o
legislador ordinário, e os outros poderes públicos, a garantir, tutela, proteger o
bem, ou então a proibir, vetar ou reprimir ofensas, mas nenhuma prescreve o
modo como deverá realizar-se a tutela ou a repressão: cabe ao legislador
ordinário, e aos outros poderes públicos, no exercício da discricionariedade, a
escolha dos meios mais adequados aos deveres de tutela e repressão”.
228
4.2.5 Nossa posição
O bem jurídico não é, a priori, puro de valor, como adverte Aníbal
Bruno,
229
nem está pronto no mundo naturalista como um dado. Decorre de
experiências concretas em que é aferida a utilidade de elementos corpóreos e
228
DOLCINI, Emilio; MARINUCCI, Giorgio. Constituição e escolha dos bens jurídicos, cit.,
p. 179-180.
229
BRUNO, Aníbal. Direito penal: parte geral. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1967. t. 1, p. 17, n. 6.
126
incorpóreos que integram as relações humanas. Representa, pois, o interesse da
vida, de modo que não é criado pelo Direito, mas reconhecido. A sedimentação
das raízes do conceito no mundo social foi acentuada pela teoria sociológica,
sendo essa sua contribuição.
Porém, nem todos os interesses da vida são protegidos pelo
direito penal, porque este ramo está adstrito aos essenciais. É reclamada uma
filtragem, que é operada pela Constituição, instrumento hábil na medida em que
sintetiza objetivamente os anseios do povo e seus valores mais eminentes. A
Constituição presta-se a excluir do âmbito do direito penal os bens que não
condicionam a organização política e social nem a legítima realização de cada um
de seus membros. Feita a eliminação, restam os bens dignos de tutela penal. Eis
a contribuição decisiva do enfoque constitucionalista.
A Carta Política racionaliza a seleção dos ditos bens de maneira
expressa, implícita ou, até mesmo, mediante simples correspondência de sentido
e de fim, eis que não rege categoricamente todas as relações humanas nem
poderia, sob pena de perder a abertura que mantém com o sistema social e,
assim, a dinamicidade de seu quadro normativo. Esta perda redundaria em
reclamos constantes por ajustes normativos para adequação às inevitáveis
mudanças e, se atendidos, implicariam amargo enfraquecimento da credibilidade
do documento como retrato mais fiel do povo de um Estado.
No mecanismo de filtragem, as normas constitucionais atuam sob
três formas: I) obrigam a punição por meio de disposições expressas de
criminalização, como ocorre com os crimes de tortura, tráfico ilícito de
entorpecentes, terrorismo (art. 5º, XLIII) e contra o meio ambiente (art. 225,
127
§3º);
230
II) proíbem a proteção criminal de certas posturas, tais como daquelas
que encarnam a negativa de liberdade de consciência e de crença; III) sujeitam à
oportunidade e à conveniência do legislador ordinário a tutela criminal de bens
constitucionais expressos (vida, liberdade, propriedade), de bens implícitos
(integridade física) e, graças à sua abertura normativa, de outros que nela
encontrem referencial analógico (fé pública).
No juízo de conveniência e oportunidade, o legislador pode
compreender suficiente a tutela administrativa ou o resguardo por meios não-
jurídicos. Portanto, a obtenção do bem digno de tutela penal não encerra os
limites para a intervenção penal. É indispensável prosseguir no exame de outros
parâmetros, quando se depara com a idéia da intervenção mínima.
4.3 A intervenção mínima
4.3.1 Os postulados: a fragmentariedade e a subsidiariedade
A intervenção mínima estabelece que o “Direito Penal só deve
atuar na defesa dos bens jurídicos imprescindíveis à coexistência pacífica dos
homens e que não podem ser eficazmente protegidos de forma menos
gravosa”.
231
Impulsionado pelo movimento Iluminista, que marca a passagem do
Estado absolutista para o Estado de Direito, a idéia foi consagrada textualmente
no século XVIII, pelo art. , da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão
230
Trata-se da denominada obrigação constitucional de tutela.
231
LOPES, Maurício Antonio Ribeiro. Princípios políticos do direito penal. 2. ed. São Paulo: Ed.
Revista dos Tribunais, 1999. p. 92.
128
de 1789: “A lei apenas deve estabelecer penas estrita e evidentemente
necessárias”.
Segundo Luiz Luigi, a noção de intervenção mínima está implícita
na Constituição brasileira de 1988, sobretudo em face da consagração da
dignidade humana como fundamento do Estado,
232
e cujos postulados são a
fragmentariedade e a subsidiariedade.
233
A fragmentariedade restringe a tutela penal às ofensas
intoleráveis aos bens jurídicos, ou seja, efetivamente lesivas à vida social, em
especial à segurança coletiva e à liberdade individual, entre as quais estão vários
comportamentos externados pela tecnologia genética. O conceito refuta a postura
exclusivamente retributiva das penas, posto que esta consideraria uma falha a
falta de castigo a todas as condutas ofensivas a bens jurídicos.
A subsidiariedade significa que o direito penal é a ultima ratio,
remédio extremo, que atua ante a insuficiência de todas as demais modalidades
de controle social: “o Direito Penal não deve ser um ‘remendo’ de desajustes
sociais incipientes, mas sim o último recurso da comunidade”.
234
Preconiza que o
direito penal não é o único meio de proteção social, havendo, simultaneamente,
mecanismos distintos, menos lesivos ao cidadão e, por vezes, mais eficazes.
Rechaça, portanto, toda política social que escolha um meio mais grave, quando
os mesmos ou melhores resultados são esperáveis de meios mais suaves.
235
232
Cf. LUIGI, Luis. Os princípios constitucionais penais. Porto Alegre: Fabris, 1991. p. 26.
233
Nesse sentido: CORREA, Teresa Aguado. op. cit., p. 223; FERRARI, Eduardo Reale. op. cit., p.
107-108. De modo mais restrito, outros autores limitam o princípio à subsidiariedade, ou ao
caráter de ultima ratio do Direito Penal, tais como: BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de
direito penal: parte geral. 6. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2000. v. 1, p. 11; NUCCI,
Guilherme de Souza. op. cit., p. 41.
234
CERVINI, Raúl. Os processos de descriminalização. 2. ed. rev. São Paulo: Ed. Revista dos
Tribunais, 2002. p. 216.
235
Cf. MIR PUIG, Santiago. Introducción a las bases del derecho penal: concepto y método. 2. ed.
Montevideo-Buenos Aires: Julio César Faira Editor, 2003. p. 109.
129
A subsidiariedade e a fragmentariedade delimitam a função
primária do direito penal, que não corresponde à exclusiva tutela de bens jurídico-
penais, mas à exclusiva tutela subsidiária de bens jurídicos. Além disso, em
respeito à mínima intervenção penal e à máxima liberdade, associadas à
segurança jurídica que reclama a taxatividade penal, o bem jurídico-penal
demanda contornos precisos.
Diante das condições atuais da sociedade em que transitam
novos e inusitados riscos, deflagrados inclusive pelos avanços tecnológicos, que
são comuns no campo da biomedicina, a capacidade preventiva do Direito penal é
questionada, quando a noção da intervenção mínima é analisada sob prismas
diametralmente diferentes.
Sob o enfoque tradicionalista, partilhado nomeadamente pelos
adeptos da Escola alemã de Frankfurt, a preservação da mínima intervenção
demanda a retirada do direito penal da zona de medidas destinadas à
salvaguarda das gerações futuras perante os riscos advindos da revolução
tecnológica ou do modo difuso de produção da sociedade pós-industrial. Herzog,
um dos representantes do movimento, defende que a equiparação do direito
penal a um programa regulador de situação de perigo enseja problemas que,
sintetizados por Gunter Teubner, consistem no “trilema regulador”
(Regulatorisches Trilemma): I) mútua indiferença entre o Direito e a sociedade,
dada a banalização das leis pelo excessivo volume; II) desintegração social pelo
Direito, com a perda da consciência sobre a necessidade de modelos extrapenais
ou até mesmo extrajurídicos para a solução do problema; III) desintegração do
130
Direito pela sociedade, mediante maciças demandas oportunistas pela regulação
penal da matéria.
236
Hassemer, também partidário da Escola de Frankfurt, após
acentuar o déficit crônico de realização prática do direito penal perante os riscos
contemporâneos que, difusos e universais, seriam impermeáveis aos postulados
individualistas, propõe a bipartição do controle jurídico em: I) direito penal básico
que seria destinado à proteção dos bens jurídicos individuais e de situações
evidentes de grave perigo (incêndio, condução de veículo sob o efeito de bebida
alcoólica), com normas erigidas sob as garantias liberais clássicas
(individualistas); II) direito de intervenção que se voltaria às respostas para as
modernas demandas da sociedade de risco, a ser postado entre o direito penal e
o direito sancionatório administrativo, entre o direito civil e o direito público, com
normas dotadas de garantias e formalidades de menor intensidade do que as
pertinentes ao Direito Penal.
237
Em que pese o respeito a essa proposta da doutrina alemã, ela
legitima um contra-senso, porque, em última análise, autoriza, por exemplo, que o
direito penal proteja a propriedade contra o furto e, ao mesmo tempo, não
participe das garantias de condições de vida das gerações futuras, nos casos em
que presentes perigos intoleráveis para o planeta e para as espécies, como na
seara ecológica.
Neste passo, é precisa a reflexão de Schünemann: “pues ¿ en
qué ámbito podriá ser más imprescindible e acto de legítima defensa de la
236
Cf. HERZOG, Felix. Límites al control penal de los riesgos sociales. Trad. de Elena Larrauri
Ijoan y Fernando Pérez Alvarez, trad. por Elena Larrauri Pijoan e Fernando Pérez Alvarez.
Anuario de Derecho Penal y Ciencias Penales, t. 46, fasc. 1, p. 319-320, ene./abr. 1993.
237
HASSEMER, Winfried. Persona, mundo y responsabilidad: bases para una teoría de la
imputación en derecho penal. Trad. por Francisco Muñoz Conde y Maria del Mar Días Pita.
Valencia: Tirant to Blanch, 1999. p. 67-72.
131
sociedad que en última instancia es el Derecho penal que para el aseguramiento
de las bases de la supervivencia de la Humanidad?
238
E complementa: “Pues, ¿
como va a justificarse la ulterior persecusión intensa de la criminalidad aventurera
y de miseria, si se cierran los ojos frente a las necesidades de la persecución
efectiva de la criminalidad organizada moderna, generando de este modo una
presión desigual en la persecución, en perjuicio de aquellas formas de
criminalidad que en el fondo son menos graves?”.
239
Proteger penalmente interesses individuais e recusar a mesma
tutela a interesses que colocam em xeque a humanidade significa “nada menos
que pôr o princípio jurídico-penal da subsidiariedade ou de ultima ratio de pernas
para o ar”, adverte Jorge de Figueiredo Dias.
240
A dimensão global e irreversível
de certos riscos que a moderna tecnologia impõe não pode ser ignorada. “É hora
do Direito Penal sair do plano das abstrações para atender as necessidades reais
dos homens”.
241
Imperiosa, portanto, a releitura do conteúdo da intervenção
mínima, mas desta feita efetivada mediante lente realista, consoante o contexto
vivenciado pela sociedade atual, que demanda a acentuação da tônica penal
preventiva. Não é possível que o direito penal permaneça apegado à dogmática
repressiva, vigente nos séculos passados, onde o embrião, o genoma, a espécie
humana ou mesmo as condições mínimas de preservação da vida na Terra não
eram ameaçados, em função do atraso científico, ou, pelo menos, quando as
238
SCHÜNEMANN, Bernd. op. cit., p. 197.
239
SCHÜNEMANN, Bernd. op. cit., p. 203.
240
DIAS, Jorge de Figueiredo. Temas básicos da doutrina penal: sobre os fundamentos da doutrina
penal, cit., p. 167.
241
CERVINI, Raúl. op. cit., p. 224.
132
ameaças eram ignoradas pela consciência comum, em razão da abundância de
recursos ou da falta de conhecimento técnico.
O novo enfoque não coloca em crise o postulado da intervenção
mínima desde que haja equilíbrio no campo da incriminação e da
descriminalização. Caberá, lembra Mantovani, “a redescoberta, por parte do
legislador, da irredutível diferença entre o ‘agir’ e o ‘agitar-se’, cuja ignorância
originou, nestes decênios, e continua a originar, tantos descaminhos, intelectuais
e operativos, no plano político-criminal”.
242
Devem, pois, ser reduzidas as investidas em certas áreas, não
obstante seja necessário destemor para o enfretamento de fundamentalismos
religiosos ou de interesses eleitoreiros. Em outros campos, exige-se a
antecipação das barreiras do direito penal, pois transitam interesses fundamentais
para o desenvolvimento natural e digno da pessoa e da espécie humana, quando
a legislação penal desempenha papel único, em virtude de seu especial potencial
de intimidação e dissuasão.
De qualquer modo, em searas multidisciplinares, como o meio
ambiente e a biotecnologia, a legitimidade da tutela penal restringe-se à
operatividade em segunda linha, quer dizer, de maneira acessória às regras
extrapenais, nas quais é regulada, com especificidade, a configuração dos
pressupostos fáticos das condutas.
242
MANTOVANI, Ferrando. Sobre a exigência perene da codificação. Trad. por Cristina Líbano
Monteiro. Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 5, n. 2, p. 145, jan./mar. 1995.
133
4.3.2 A concretização: os conceitos de dignidade e carência de tutela penal
Ao optar pela tutela penal ante outros meios de controle social, a
atividade legislativa é operacionalizada concretamente por intermédio dos
conceitos de dignidade e carência de tutela penal, como percebeu Franz Von
Lizst: “si el Derecho tiene como misión principal el amparo de los intereses de la
vida humana, el derecho penal tiene como misión peculiar la defesa más enérgica
de los intereses especialmente dignos y necesitados de proteción por médio de la
amenaza y ejecución de la pena, considerada como un mal contra el
delincuente”.
243
A dignidade penal, noção essencialmente valorativa, está
presente quando a conduta vulnera valores essenciais à preservação da
convivência humana pacífica e à realização individual e causa reprovabilidade
social suficiente para justificar a mais grave intervenção. Ao considerar a
importância do bem jurídico e o grau do ataque, a dignidade penal acolhe a idéia
retratada pela fragmentariedade penal.
Nas palavras de Manuel da Costa Andrade, “o juízo de dignidade
penal implica um limiar qualificado de danosidade ou de perturbação e abalo
sociais”.
244
Prossegue o autor, explicando que, no plano trans-sistemático, a
dignidade penal assegura a eficácia do mandamento constitucional de que
somente os bens eminentes devem gozar de proteção penal. No plano axiológico-
teleológico, o juízo privilegia dois referentes materiais, que são a dignidade do
243
LISZT, Franz von. op. cit., t. 2, p. 5.
244
ANDRADE, Manuel da Costa. A ‘dignidade penal’ e a ‘carência de tutela penal’ como
referências de uma doutrina teleológico-racional do crime. Revista Portuguesa de Ciência
Criminal, ano 2, fasc. 1, p. 185, jan./mar. 1992.
134
bem jurídico e a danosidade social da conduta, enquanto lesão ou perigo para o
bem jurídico. No plano jurídico-sistemático, distingue o ilícito penal dos demais.
245
A dignidade penal de um bem jurídico não é, por vezes,
demonstrada em função do quantum da pena, mas do qualificativo social que ela
assume. Uma multa administrativa pode atingir valor mais elevado do que uma
multa penal, mas a reprovação desta será, ou pelo menos se espera que seja,
mais intensa em função da representação social criada em torno do direito penal
e de seu ritual.
O conceito não é decisivo. Mesmo que o bem esteja protegido
pela Constituição, ressalvadas suas cláusulas de criminalização obrigatória, a via
civil ou a administrativa podem ser suficientes para a tutela, como outrora
exposto. Servindo para excluir do âmbito penal os bens de pouca valia ou as
lesões insignificantes, a legitimação negativa, mediatizada pela dignidade, é
complementada pela legitimação positiva, que se consubstancia no conceito de
carência de tutela penal, nomeadamente pragmático e expresso em duplo juízo:
juízo de necessidade, quer dizer, ausência de alternativa mais eficaz de tutela
(juízo prognóstico sobre as possibilidades de controle social), e, após, juízo de
idoneidade do direito penal para assegurar a tutela do bem, com comparação
entre os custos da pena (sacrifício imposto a outros bens) e os benefícios.
246
247
No primeiro (necessidade), está consubstanciada a noção de subsidiariedade e,
no segundo (adequação), a respectiva sub-regra da proporcionalidade que será
estudada.
245
Id. Ibid., p. 184-185.
246
ANDRADE, Manuel da Costa. op. cit., p. 186.
247
Jesús María Silva Sánchez vincula o merecimento a considerações de justiça (valorativa) e a
necessidade penal à satisfação em termos de utilidade social (Aproximación al derecho penal
contemporáneo, cit., p. 288-290).
135
Embora os juízos da dignidade e carência penal sejam
complementares, os mesmos não são estanques. Por exemplo, no homicídio, não
é questionada a carência de tutela penal, compreendendo-se tacitamente que, em
razão da importância do valor protegido e da gravidade da lesão, são irrisórias as
sanções civis. Em contrapartida, a reduzida danosidade social de uma conduta
indica a desnecessidade de tutela penal, como no adultério.
Diante disto, é possível reconhecer tendencial confluência entre o
elevado valor de um bem jurídico e o grau significativo do ataque, de um lado, e a
carência de tutela penal, de outro, o mesmo ocorrendo na hipótese inversa. São
casos em que, como assevera Maria da Conceição Ferreira da Cunha, se revela
uma “intensa interpenetração das duas categorias fundamentais da
criminalidade”,
248
prestando-se a pena a reforçar a consciência da relevância dos
bens jurídicos, atuando como coadjuvante na luta contra a criminalidade futura.
Não há, porém, correspondência absoluta, eis que outra orientação pode provir de
circunstâncias específicas.
4.3.3 As funções do direito penal
A função social primária da norma penal está, repise-se, na
proteção subsidiária de bens jurídicos para possibilitar a vida em comum. Sem
prejuízo, a tipificação penal permite a concretização de outras funções que se
tripartem em promocional, simbólica e de satisfação das necessidades da
psicologia social.
249
248
CUNHA, Maria da Conceição Ferreira. op. cit., p. 347 e 226-229.
249
Cf. SILVA SÁNCHEZ, Jesús María. Aproximación al derecho penal contemporáneo, cit.,
p. 298-299.
136
4.3.3.1 A função promocional
A função promocional da norma penal é concebida sob duas
perspectivas. Para a primeira, ao direito penal compete a consagração de
princípios éticos básicos (“mínimo ético”), propagando a “força configuradora dos
costumes” (expressão de Welzel), quando assume missão moralizadora ao lado
de tantas outras instâncias sociais.
Separando direito e moral, a segunda corrente abstém-se de
conotações moralizantes, para destacar o amplo efeito da norma penal sobre a
psicologia social, na medida em que a qualificação de um comportamento como
criminal estabeleceria ou confirmaria o símbolo da mais grave reprovação
jurídica.
250
Mir Puig alude a integração do superego pelas normas e, entre elas,
destaca a penal, que atua em dois níveis. Em primeiro lugar, ao cominar a pena, a
norma dirige ameaça à coletividade, o que tende a motivar a adequação dos
cidadãos ao Direito. Em segundo e principal plano, as normas penais motivam
porque, em regra, clarificam a desvalia do comportamento e, assim, permitem
internalização do conteúdo normativo, operando menos pelo medo e mais pela
aceitação.
251
Ambas as perspectivas conduzem a um ponto comum: a função
ético-social contribui para conscientizar ou reforçar a conscientização a respeito
da máxima importância de certos valores suscetíveis à violação pela conduta
humana. A postura, afeiçoada à dignidade penal, deita raízes em uma das teorias
250
Cf. LUZÓN PENA, Diego-Manuel. Función simbólica del derecho penal y delitos relativos a la
manipulación genética. In: GENÉTICA y derecho penal: previsiones en el Código Penal Español
de 1995. Bilbao-Granada: Publicaciones da Cátedra Interuniversitaria; Fundación BBVA;
Diputación Foral de Bizkaia, de Derecho y Genoma Humano y Editorial Colmares, 2001. p. 50.
251
Cf. MIR PUIG, Santiago. Función de la pena y teoría del delito en el estado social y democrático
de derecho. Barcelona: Bosch, 1969. p. 28-29.
137
da pena, qual seja a prevenção geral positiva que expressa o potencial diretivo
das normas jurídico-penais em relação ao comportamento social, contribuindo
para a integração axiológica da coletividade relativamente aos valores
fundamentais.
252
A prática legislativa penal de signo educativo é bastante usual na
atualidade, embora alvo de uma corrente muito crítica. Entre os doutrinadores que
a contestam, está Jesús María Silva Sanchéz, que considera que a atitude
desborda os limites tradicionais do direito penal, jungidos à proteção de bem
jurídico, para transformá-lo em instrumento de sagração de uma dada ordem
moral.
253
Em seus dizeres: “si se estima legítimo que alguna instancia estatal
cumpla en un Estado pluralista una función ético-social, tal función debería
cumplirse, en todo caso, en un ámbito diferente al de la intervención punitiva, no
condicionado por la vertiente aflictiva que define al mismo”.
254
Em contrapartida, outros são favoráveis. Maria da Conceição
Ferreira da Cunha pondera que, não obstante uma norma manifeste reduzida
aplicação prática perante os delinqüentes, poderá “ter algum efeito preventivo em
sentido positivo, na medida em que continua a contribuir, embora de forma mais
frágil, para se manter e reforçar a consciência da comunidade quanto ao caráter
de dignidade penal da matéria incriminada”.
255
Albin Eser assevera que o significado de uma norma não é
medido exclusivamente pelos números de processos penais pendentes nem de
condenações, pois neles não se computam os cidadãos que não delinqüiram
porque temem a pena e, mais ainda, porque foram sensibilizados pela disposição
252
MIR PUIG, Santiago. op. cit., p. 31.
253
Cf. SILVA SÁNCHEZ, Jesús María. Aproximación al derecho penal contemporáneo, cit., p. 302.
254
Id. Ibid., p. 303.
255
CUNHA, Maria da Conceição Ferreira. op. cit., p. 258.
138
penal que os despertou para a fundamentalidade do bem protegido ao conferir-lhe
um estatuto especial. Transpondo a idéia para a seara da biomedicina,esta
função de reforço estabilizadora da protecção do direito penal logo dada, na
verdade, pela sua mera existência não deve ser minimizada precisamente
perante uma profissão como a do médico, que já pela sua imagem pública se
deve esforçar por ter uma conduta bastante fiel ao direito”.
256
4.3.3.2 A função simbólica
A função simbólica, diversamente da promocional, não pretende a
mudança da realidade pelo Direito, mas somente a mudança da imagem da
realidade.
257
Para Hassemer, a tranqüilidade social oferecida pela lei simbólica
contribui, na seqüência imediata, para o restabelecimento da confiança do
cidadão no ordenamento jurídico, que transparece a imagem de legislador pronto
e atento. Contudo, ultrapassada distância maior de tempo, a tendência será a
insuficiência da lei penal para solucionar ou, pelo menos, minimizar o problema
social, quando a credibilidade no Direito é fragilizada.
258
Em contrapartida, Silva Sanchéz reconhece que, numa sociedade
de signos, não é de se estranhar que, com assiduidade, o direito penal cumpra
função simbólica ou retórica, de maneira que o entrave somente se manifesta
quando a lei penal é utilizada desmedidamente para produzir impacto social e
256
ESER, Albin. Perspectivas do direito (penal) da medicina. Trad. a cargo da CPL LDA, rev. por
Jorge de Figueiredo Dias. Revista Portuguesa da Ciência Criminal, ano 14, n.. 1/2, p. 39-40,
jan./jun. 2004.
257
Cf. BARATTA, Alessandro. Funciones instrumentales y simbólicas del derecho penal, cit., p. 53.
258
Cf. HASSEMER, Winfried. op. cit., p. 35 e 59.
139
tranqüilizar o cidadão: “Lo problemático no es, pues, el elemento simbólico, sino
su absolutización”.
259
Os exageros são freqüentes em épocas de crises ou de
convulsão social, quando o medo e a insegurança, que predominam entre os
sentimentos coletivos, permitem atitudes impensadas de detentores do poder em
troca da sensação de domínio do caos pelo Estado. A tendência confere bases
para o Movimento da Lei e da Ordem, cujos partidários criticam o tratamento mais
brando aos delinqüentes, sob o argumento de que configuraria o real fenômeno
aterrador e gerador de insegurança.
260
4.3.3.3 A função de satisfação de expectativas sociais
A satisfação do instinto humano de vingança mediante a
incidência da pena foi comprovada pela psicanálise em estudos que concluíram
que “la impunidad incita a nuestro ello a rebelarse contra el control del super-
yo”.
261
O castigo constitui idéia intrínseca à sanção penal, porque se o mal não lhe
fosse inerente, se apresentaria como benefício ou prêmio ao delinqüente,
estimulando a criminalidade, passo em que o direito penal se transformaria em
direito de assistência social.
262
259
SILVA SÁNCHEZ, Jesús María. Aproximación al derecho penal contemporáneo, cit., p. 305.
260
Cf. FRANCO, Alberto Silva. Crimes hediondos: notas sobre a Lei n. 8.072/90. 3. ed. rev. e ampl.
São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1995. p. 34, n. 3.
261
JIMENEZ DE ASÚA, Luis. La ley e el delicto: principios de derecho penal. 2. ed. Buenos Aires:
Hermes, 1954. p. 45.
262
Quando colocamos o termo castigo, o leitor pode ser conduzido a penas infamantes,
humilhantes ou abusivas, mas ressalvamos que conferimos à palavra antiga uma leitura
atualizada, de maneira que, para nós, equivale ao cerceamento institucionalizado e coercitivo de
direitos (direito de ir, vir ou ficar, nas penas privativas de liberdade; dispor do patrimônio, nas
penas pecuniárias; exercer livremente a profissão, nas restritivas de direito), em conformidade
com a proporcionalidade e ao princípio do Estado de Direito.
140
O problema não está na satisfação psicológica da pessoa por
meio da pena, mas em sua instituição com tal fim. A punição de comportamentos
não pode se apartar do intento preventivo de futuros delitos, para que seja útil à
paz e ao convívio social. Do contrário, a humanidade regressaria a tempos
remotos, a abusivas e humilhantes punições, comuns na era sombria da Idade
Média.
263
4.3.3.4 Relações com a genotecnologia: nossa posição
A criação de normas penais limitadas às funções promocionais ou
simbólicas constitui prática rechaçável. Se a norma corresponder à salvaguarda
de valores secundários ou não-consensuais, ou à punição de ataques
insignificantes, em que bastariam sanções extrapenais, execução de políticas
públicas ou até mesmo nenhuma intervenção estatal, a penalização do
comportamento banalizará o direito penal, pois reduzirá sua força, que se assenta
na qualidade de ultima ratio. Se a norma não for suscetível de aplicação, com o
perpassar do tempo, perderá o potencial educativo ou tranqüilizador, fazendo com
que seja desprezada pelo cidadão e, nos casos excepcionais em que incidir, que
faça do condenado uma verdadeira vítima do sistema.
Paralelamente, a edificação de normas, em que a função
simbólica ou promocional da lei penal estiver associada à primária (proteção de
bens jurídicos), é aceitável desde que se refira à lesão ou à exposição a perigo de
elevados valores, fundamentais para o digno desenvolvimento da pessoa e da
263
Cf. nosso Imprescritibilidade penal. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004. p. 18, em que
explicamos que, não obstante a pena seja castigo, não é aplicada pelo simples intento de
castigar, na linha “pune-se porque pecou”. É castigo dirigido a um fim útil e específico à
sociedade, qual seja a prevenção de futuros delitos.
141
humanidade, quando a dignidade e a carência de tutela penal inclinam-se para
um ponto convergente.
Essa idéia é de suma importância na seara da genotecnologia,
onde o aspecto promocional é quase inevitável em razão da importância dos bens
envolvidos, que nem sempre é captada pela sociedade em estímulos promovidos
por instâncias educativas menos incisivas do que o direito penal, em razão do
pluralismo cultural, que muitas vezes estonteia quem se propõe a formular uma
escala de valores, e da degradação axiológica que sombreia o mundo.
O rebaixamento axiológico facilita a assunção irrefletida de
comportamentos padronizados, com vistas à exibição da maior capacidade e
sucesso pessoal, acentuada pela inerente competitividade do capitalismo. O
quadro propende para tendências eugênicas, onde está situado o desejo pelo
“filho perfeito”. É reforçado pelo arraigado individualismo, incentivado pelo sistema
de produção, pela violência das ruas e pela sensação constante de insegurança
social e desconfiança do outro, fatores que afastam as pessoas e ocultam a
responsabilidade de cada um pelo todo (humanidade). A mídia também contribui
para a desintegração ética pois projeta sobre a massa estereótipos superficiais
que concretizam, de modo sonhador, a imediata mas leviana felicidade.
Ante o questionamento de padrões éticos, outrora impensável e
hoje provocado pelas recentes descobertas científicas, o direito penal, com
inegável poder evocativo, pode reafirmar, na consciência coletiva, a importância
de bens que atualmente são vulnerados por novas condutas, as quais muitas
vezes são aceitas com naturalidade devido a grande ignorância da população
sobre os reflexos éticos de muitos procedimentos inseridos nas técnicas de
reprodução assistida. Daí que, se protegerem bens jurídicos de suma relevância
142
contra significativos ataques, para o que não bastariam outras modalidades de
tutela, as normas promocionais ou simbólicas serão legítimas. Pelo menos como
sinal de alerta, o direito penal ainda tem impacto sobre a opinião pública, da qual
alguns cientistas, políticos e indústrias escondem as nuances negativas da
tecnologia genética ou, em outra mão, à qual os “moralistas” negam a
possibilidade de abertas discussões que evitariam reclamos por legislação penal
sacra.
Esta também é a linha de pensamento de Manuel da Costa
Andrade, quando aborda as modernas técnicas da biomedicina. Para ele,bens
jurídicos que podem dar origem a um autônomo dever de tutela por parte do
Estado. Mesmo que esta tutela se esgote na função simbólica e promocional do
Direito Penal. E sem a qual estes bens jurídicos afinal correspondentes às
novas dimensões dos valores da dignidade humana dificilmente lograriam
impor-se no contexto das modernas sociedades plurais e secularizadas”.
264
Cumpre, porém, salientar que a capacidade motivadora do direito
penal não se confunde com a imposição de particular moral ou da moral
dominante, pois, do contrário, conformaria um quadro normativo manifestamente
incompatível com a secularização do Estado e a pluralidade social. Com efeito, o
pervertido sistema penal, ao atuar na fronteira do output (orientar
comportamentos na sociedade), seria carente de sentido, porque sua gravidade
não se conformaria com a justiça, a igualdade, a liberdade e a máxima tolerância,
situadas na fronteira do input, onde as normas estão legitimadas socialmente.
Em suma, a aceitabilidade da intervenção penal permanece
restrita à proteção subsidiária de bem jurídico, enquanto a função simbólica e,
264
ANDRADE, Manuel da Costa. Direito penal e modernas técnicas biomédicas. Revista de Direito
e Economia, Coimbra, p. 102-103, 1986.
143
sobretudo, a promocional interferem temperando os juízos de necessidade e
adequação penal na medida em que a elevada dignidade penal (destacada
importância do valor e grande reprovação das condutas) inclina a carência de
tutela penal para a positividade, havendo a esperada correspondência plena se
respeitados os outros critérios inerentes à proporcionalidade penal, como a
adequação.
4.4 O bem jurídico supra-individual
O bem jurídico pode ser classificado em individual ou supra-
individual, conforme o sujeito que o porte. A bipartição, porém, não é unanimidade
na doutrina, que assume três posições. A concepção monista-estatal ou monista-
coletiva defende que todos bens jurídicos projetam interesses do Estado ou da
coletividade (supra-individuais), porque não-individualizáveis e passíveis de gozo
por todos e por cada um, sem exclusão de quaisquer pessoas. Portanto, os bens
jurídicos são coletivos. A monista-pessoal sustenta que os bens, em sua
totalidade, são individuais ou, no máximo, reflexo de interesse de indivíduos
concretos. Finalmente, a corrente dualista reconhece a existência de bens
individuais e supra-individuais, não redutíveis uns aos outros.
Interessa, por ora, perquirir se existem bens jurídicos individuais
e, ainda, supra-individuais, ficando a classificação de cada um deles relegada
para os capítulos específicos. Historicamente, é longínqua a referência a bens
jurídicos supra-individuais. Birnbaum procurou distinguir os individuais dos
coletivos, entre os quais, sob sua ótica, avultavam os valores relacionados à
religião e à moral, alinhando-se à posição dualista. Diversamente, Binding, ao
144
propender para o tratamento homogêneo de todos os bens, restringiu a tutela
jurídica aos coletivos. Em sua formulação, “os bens assumem todos um valor
social (sozial-Wert)”, porque o Direito “só considera as pessoas, coisas e objectos
enquanto partes da vida da comunidade jurídica. Tudo aquilo a que adscreve um
valor jurídico só o tem para o todo. O bem jurídico é sempre bem jurídico da
totalidade, por mais individual que ele possa parecer ser”.
265
Em linha similar,
Honig, in verbis: “Mesmo nas hipóteses em que a tutela jurídica aproveita, em
primeira linha, o indivíduo, não é a sua vontade que é determinante para a
afirmação da carência da tutela jurídica, mas tão-só e fundamentalmente, a
vontade da comunidade expressa na lei penal”.
266
Atualmente, a corrente coletiva
está quase que superada, porque legitima regimes políticos autoritários.
Retomando a postura dualista esboçada por Birnbaum, Franz Von
Liszt, ao observar a complexidade da vida, reconheceu sem recurso a
artificialismos a heterogeneidade das expressões da realidade (como visto), que
desencadeia diversas formas de bens jurídicos, de modo que aceita bens
individuais, correspondentes a interesses de dimensão pessoal, e bens jurídicos
supra-individuais, correspondentes a outros da respectiva índole.
267
Contemporaneamente, a discussão das categorias de bens
jurídicos volta à cena em razão dos riscos exporem, de maneira renovada, as
gerações futuras, ou seja, conformarem risco global à humanidade, presente e do
porvir. A tecnologia genética se arvora como exemplo paradigmático. A doutrina,
265
Die Normen um ihre Übertretunger, I Band, 4ª ed., Leipzig, 1922, p. 358, apud ANDRADE,
Manuel da Costa. Consentimento e acordo em direito penal, cit., p. 68.
266
Die Einwilligung, p. 74-75, apud ANDRADE, Manuel da Costa. Consentimento e acordo em
direito penal, cit., p. 42.
267
Cf. ANDRADE, Manuel da Costa. Consentimento e acordo em direito penal, cit., p. 69.
145
estimulada a repensar o direito penal, não é uniforme quanto ao caminho a ser
tomado.
Stratenwerth defende que, nos terrenos direcionados ao
asseguramento do futuro, a noção de bem jurídico não tem significação, eis que
os novos objetos de proteção são caracterizados pela falta de contornos precisos.
Não obstante imputar vagueza aos novos interesses, o autor sustenta que
merecem proteção pelo direito penal. No entanto, para ele, a tutela não se amolda
aos contornos da teoria do bem jurídico, a qual deve ser renunciada em favor de
normas de comportamento geral responsáveis pela orientação do desvalor da
conduta e que punem as “relações de vida como tais”.
268
Para Jorge de Figueiredo Dias, a postura é inaceitável, pois
implica regresso ao Direito Penal moralista, “protector de uma moral ou de uma
certa moral e, assim, a um pequeno passo de se tornar propulsor de fins
puramente ideológicos”.
269
Com efeito, a imprecisão do conceito relações de vida
como tais autoriza expansão desmedida do direito penal, para abarcar qualquer
orientação de comportamento.
Em mão oposta, a Escola de Frankfurt, como visto, defende a
exclusão da tutela dos riscos futuros do âmbito do direito penal. O pensamento
conduz Hassemer a condicionar a proteção de bens coletivos à sua recondução a
interesses concretos, tangíveis e, portanto, atuais dos indivíduos e, assim, a
subordiná-la aos bens individuais. Eis seu discurso, in verbis: “cabe aclarar, en
primer lugar, que un concepto personal del bien jurídico no rechaza la posibilidad
de bienes jurídicos generales o estatales, pero funcionaliza estos bienes desde la
268
Zukunftssicherung mit der Mitteln des Strafrechts?, ZStW (105), 1993, p. 682 e 692, apud
MENDONZA BUERGO, Blanca. op. cit., p. 74.
269
DIAS, Jorge de Figueiredo. Temas básicos da doutrina penal: sobre os fundamentos da doutrina
penal, cit., p. 177-178.
146
persona: solamente puede aceptarlos con la condición de que brinden la
posiblidad de servir a intereses del hombre”.
270
A corrente de Frankfurt é, com acerto, contestada por Schünemann,
quem traz à baila a teoria do contrato social, para rememorar que o vínculo não se
restringe aos homens do presente, concretos e atuais, pois, do contrário, a cada morte
ou nascimento, novo pacto deveria ser estabelecido; abrange, sim, toda a
humanidade, incluindo as gerações futuras, com o que vislumbra a dinamicidade, a
continuidade e a agregação de cada vida humana às subseqüentes. Sob tal
perspectiva, assumem relevância tanto o indivíduo, transitório, quanto a espécie
humana, permanente. Consagra que as gerações, sem distinção valorativa entre si,
têm direito igual aos recursos naturais, cada vez mais escassos,
271
e também à natural
pluralidade e variedade genética, cada vez mais suscetível a artificiais manobras.
Em última instância, diz Schünemann que “la teoría del bien
jurídico personal há caído en la trampa de esta sociedad postmoderna, ha tomado
sus mundos ficticios y sus técnicas de encubrimiento por su núcleo esencial y ha
elevado a la categoría de objeto de protección de mayor rango del Derecho penal
al despilfarro de los recursos de generaciones venideras por parte del hedonismo
sin sentido de un pseudoindividualismo”.
272
A ameaça de degradação da vida para os homens presentes e
futuros exige que o ordenamento geral “proceda a uma inteligente revisão do
sistema de bens jurídicos, que reflita as mutações econômicas e sociais em
270
HASSEMER, Winfried. Lineamientos de una teoría personal del bien jurídico. Trad. por Patricia
S. Ziffer. Doctrina penal, Buenos Aires, v. 12, fasc. 45-48, p. 282, 1989.
271
SCHÜNEMANN, Bernd. op. cit., p. 192-193.
272
Id. Ibid., p. 195.
147
processamento e as evoluções espirituais marcantes que as determinam”
273
e,
desta feita, que acolha a categoria dos bens supra-individuais ou metaindividuais
e, entre eles, os interesses da humanidade.
274
A mudança proposta não é fácil pois os bens jurídicos supra-
individuais, diversamente dos individuais, não são facilmente captáveis. Mas,
contrariamente ao pensamento da Escola de Frankfurt, esta peculiaridade não
impõe a respectiva exclusão do direito penal sob a precipitada alegação de sua
vagueza. Na lúcida de lição de Figueiredo Dias, “a relação difusa com os
usuários”, revelada nos bens supra-individuais, ”não significa o caráter difuso do
bem universal como tal”,
275
cabendo ao legislador desenhá-los com clareza
suficiente para que sejam compreendidos pelo destinatário e pelo aplicador da
norma, com observância do princípio da taxatividade.
De se salientar que a força dos bens supra-individuais não se
extrai dos individuais. Aqueles também não se restringem à mera soma de
mesma ou de diferentes espécies destes. Os bens supra-individuais desfrutam,
em face dos individuais, de autonomia,
276
o que significa dizer que são protegidos
em razão de conteúdo material próprio, sem necessário liame com indivíduo
273
COSTA Jr., Paulo José da. Comentários ao Código Penal: parte especial. 2. ed. São Paulo:
Saraiva, 1990. v. 3, p. 651.
274
Os bens supra-individuais dividem-se em difusos e coletivos: nos difusos, os titulares do bem
são pessoas determinadas e ligadas por circunstâncias fáticas, envolvendo conflituosidade de
massa, em que contrastam grupos sociais na realização (interesses econômicos e o interesse na
proteção ambiental); nos segundos, a titularidade é atribuída ao Estado, ou a uma classe ou
categoria de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base, de
modo que o conflito ocorre entre o grupo e o indivíduo que pratica o delito (paz pública).
275
DIAS, Jorge de Figueiredo. Na era da tecnologia genética: que caminhos para o Direito Penal
médico? Revista Portuguesa de Ciências Criminais, Coimbra, ano 14, fasc. 1/2, p. 255, jan./jun.
2004.
276
Nesse sentido: DIAS, Jorge de Figueiredo. Temas básicos da doutrina penal: sobre os
fundamentos da doutrina penal, cit., p. 174-175; SOUZA, Paulo Vinicius Spoleder de. Bem
jurídico-penal e engenharia genética humana: contributo para a compreensão dos bens jurídicos
supra-individuais. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2004. p. 295-309.
148
concreto. Esta, aliás, sua principal característica, qual seja a “descoincidência
com o interesse de determinada pessoa”.
277
A autonomia libera os bens supra-individuais de subordinação
abstrata aos individuais e o conflito entre eles é solucionado pela ponderação
entre os “gli scopi e gli obiettivi della scelta política, la loro intrínseca legittimità e
quella del mezzo prescelto”, como leciona Francesco Palazzo.
278
Estes
parâmetros refletem as sub-regras da proporcionalidade.
Sem prejuízo de proteção autônoma, os bens supra-individuais
não encontram, neles mesmos, a razão mais remota para a tutela, pois só podem
ser aceitos se e na medida em que existam por “causa do Homem (...) como
sucede com tudo que é fruto do espírito e do labor humanos”.
279
Nem poderia ser
diferente, porque o Direito, como diz Franz Von Liszt, “existe para el hombre”
280
e,
com maior intensidade o direito penal, pois seu objeto de trabalho é a pessoa
humana, como toda sua complexidade assustadora e maravilhosa.
Explicam Dolcini e Marinucci que, nos bens jurídicos supra-
individuais, o interesse pessoal aparece ao fundo (sullo sfondo) e “loro lesione o
messa in pericolo è irrilevante”, pois o fato típico se resume na lesão ou exposição
a perigo do bem supra-individual; a lesão ao bem individual “reta al di fuori della
fattispecie”.
281
277
PRADO, Luiz Regis. Crimes contra o meio ambiente: anotações à Lei 9.605, de 12 de fevereiro
de 1988: doutrina, jurisprudência, legislação. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Ed. Revista dos
Tribunais, 2001. p. 25-26.
278
PALAZZO, Francesco. Introduzione ai princìpi del diritto penale. Torino: G. Giappichelli, 1999.
p. 182.
279
DIAS, Jorge de Figueiredo. Temas básicos da doutrina penal: sobre os fundamentos da doutrina
penal, cit., p. 174-175.
280
LISZT, Franz von. op. cit., p. 2.
281
DOLCINI, Emilio; MARINUCCI, Giorgio. Corso di diritto penale, cit., p. 541 e 543.
149
5. A SUB-REGRA DA ADEQUAÇÃO
5.1 Seus traços comuns
A adequação ou a idoneidade refere-se à aptidão da medida
adotada para alcançar o fim proposto. No âmbito penal, o conceito foi mencionado
por Franz Von Liszt os seguintes termos: “La exigencia de la política criminal se
dirige a utilizar, en lo posible, la aptitud de la pena como medio adecuado al
fin”.
282
No Estado Democrático, o fim do direito penal reside na proteção de bens
jurídicos mediante a prevenção de delitos e, por isso, as leis incriminadoras e as
respectivas sanções são adequadas desde que se apresentem como “instrumento
activo de lucha eficaz” contra a criminalidade, como destaca Santiago Mir Puig.
283
Para o efetivo combate à criminalidade, o direito penal tem como
pressuposto uma regra de experiência, segundo a qual a previsão de um fato
como delito comporta, de per si, uma automática diminuição numérica de sua
ocorrência no contexto social.
284
No cálculo, não devem ser considerados apenas
os delinqüentes, mas também “los que no han delinqüido o han dejado de
delinqüir por existir uma amenaza penal”, como preleciona Teresa Aguado
Correa.
285
Demais disso, a utilidade social da norma não está condicionada à total
282
LISZT, Franz von. op. cit., p. 6.
283
MIR PUIG, Santiago. Introducción a las bases del derecho penal: concepto y método, cit.,
p. 291.
284
Cf. ANGIONI, Francesco. op. cit., p. 225.
285
CORREA, Teresa Aguado. op. cit., p. 153.
150
erradicação dos crimes, pois, numa sociedade de seres imperfeitos, tal situação
deflagraria a absoluta inutilidade do preceito.
286
A sub-regra da adequação constitui uma das vertentes do juízo de
carência de tutela penal, correspondendo ao juízo da idoneidade, que será
positivo quando o direito penal tiver préstimo para evitar infrações criminais e não
for contraproducente, pois o proveito da pena é enfraquecido ou fulminado se os
custos sociais decorrentes de sua concreta aplicação forem maiores do que os
benefícios.
Na relação entre custos e vantagens, é balanceado o risco de
lesão ao próprio bem jurídico portado por outro sujeito, ou de agressão a outros
bens envolvidos na situação, como também a possibilidade de que a norma
incriminadora de uma conduta suscite efeitos criminógenos, arrastando consigo
outros comportamentos ilegais. Exemplo padrão é o aborto, em que a vida ou a
integridade física da gestante pode ser colocada em risco em razão da gestação,
concorrendo com a vida do feto e, ainda, porque o procedimento clínico para sua
prática estimula a atuação infratora e clandestina de terceiros (médicos,
enfermeiras, outros assistentes), campo próprio para a exigência de elevadas
contraprestações monetárias das gestantes, com oferta de baixo ou nenhum
cuidado clínico.
Associadas as sub-regras da necessidade e da adequação,
desenha-se o corpo de critérios legitimadores do exercício do ius puniendi
reunidos em torno do bem jurídico-penal, quais sejam: I) merecer a tutela, quando
se examina a dignidade penal do bem jurídico; II) necessitar da intervenção, que
se relaciona à indispensabilidade da lei penal para a proteção (primeira vertente
286
Cf. SILVA SÁNCHEZ, Jesús María. Aproximación al derecho penal contemporáneo, cit., p. 217.
151
da carência); III) ser capaz (suscetível) de proteção penal, quando se cogita da
adequação do direito penal para o combate à criminalidade, com atenção às
condições reais do sistema penal e da sociedade (segunda vertente da carência
de tutela penal).
287
Centrada na utilidade social do sistema penal, a sub-regra da
adequação é incompatível com a teoria retribucionista pura da pena, que concebe
a sanção exclusivamente como mal justo que compensa o mal injusto do crime,
com vistas à realização da idéia de justiça, formulada com base no equilíbrio das
restrições em jogo, sem preocupação com eventual ausência de proveito para o
condenado ou para a sociedade. O juízo de adequação centraliza-se na aptidão
da proteção penal para a prevenção especial e a geral, parâmetro que embasa as
outras teorias da pena.
A tutela é apreciada, em primeiro plano, pela prevenção geral, a
qual não se concretiza em sentido retrospectivo (crime já consumado), mas com
significado prospectivo (em face de futuros delitos). É traduzida pelo temor da
pena e, sobremaneira, pela confiança dos cidadãos no Direito, em sua
capacidade de estabilizar expectativas comunitárias. Num segundo momento, a
proteção penal é desempenhada pela prevenção especial, quando o Direito volta-
se para a ressocialização do agente ou, se este não aceitar o respectivo
programa, para adverti-lo acerca da ilicitude máxima de seu comportamento, a fim
de que não reincida ou, em último caso, e se necessário para a segurança
coletiva, o sistema autoriza a retirada do delinqüente do ciclo social, pelo menos
enquanto não desenhadas esperanças de êxito na reintegração na sociedade. Em
287
Cf. CORREA, Teresa Aguado. op. cit., p. 151.
152
estreita relação com a capacidade preventiva da pena, o juízo da adequação tem
grande destaque na esfera dos novos riscos, como o genético.
A par disso, a adequação da tutela penal está vinculada à
celeridade. Penas tardias deparam com réus reintegrados ao sistema social ou
estimulam a consciência coletiva a procurar, fora do Direito, remédios para
restabelecer seu equilíbrio, abalado pelo crime. Em ambos os casos, o
ordenamento tem sua eficácia desprestigiada perante o corpo social.
5.2 Os obstáculos no exame da idoneidade penal
Rigorosa avaliação do grau de idoneidade da tutela penal para o
controle social demanda a possibilidade de confronto entre o cotidiano de duas
sociedades, situadas em territórios distintos, porém numa mesma época e com
culturas similares, em que somente numa delas o fato fosse punido como delito. A
hipótese é inviável na sociedade contemporânea, pois o pluralismo cultural
impede, até mesmo dentro de único Estado, a unanimidade moral, especialmente
perante atividades modernas, como a tecnologia genética que, propiciando novas
descobertas científicas, questiona “verdades” outrora intocáveis e provoca as
mais variadas reações.
A falta de consenso estimula a confusão de parâmetros,
tendência favorável aos detentores de grandes recursos financeiros que buscam
a exclusão da engenharia genética, em seu todo, da esfera da criminalidade, em
defesa de suas conveniências e em benefício de poucos.
288
O assíduo interesse
288
Daí que, em relação à criminalidade associada a grandes recursos financeiros e intelectuais, em
que manifesto o poder de pressão política de seus interessados, Raúl Cervini substitui a
expressão cifra negra por cifra dourada (cf. CERVINI, Raúl. op. cit., p. 220-223).
153
pelo lucro, tão cobiçado nos dias de hoje, permite que, por obscuridade ética,
ocupem o mesmo patamar interesses manifestamente desproporcionais, como os
ganhos da indústria farmacológica e a preservação da biodiversidade genética da
espécie humana.
A par disso, estão os problemas concernentes às estatísticas. Os
respectivos dados esboçam, nos dizeres de Angioni, a “cattiva salute” de uma
norma, revelada pela freqüente violação de seus ditames ou pela “cifra negra”,
que se caracteriza pelo disparate entre o número de delitos efetivamente
cometidos e o número de delitos conhecidos e perseguidos pelos órgãos
estatais.
289
À vista de estatísticas que concluam pela contínua infração de
uma norma ou pela não punição dos infratores, o legislador é impulsionado,
diante dos fatos mais graves, a elevar as penas ou intensificar a persecução
criminal, porque insuficiente o sistema vigente e, perante os menos graves, a
atenuar a pena ou a eliminá-los da esfera penal, eis que, em tese, a sociedade
teria transformado sua valoração sobre ele.
Numa análise superficial, o sentido apontado nestas duas
hipóteses seria inequívoco, porque aparentemente conforme a ordem social.
Entretanto, não são poucos os meandros que permeiam as estatísticas. Forjar os
respectivos resultados não é tarefa difícil na seara da engenharia genética e da
reprodução assistida. Em primeiro lugar, porque as consultas de opinião pública
sobre a incriminação ou descriminalização atingem, maciçamente, pessoas mal
informadas sobre o difícil e inusitado tema. Em segundo lugar, porque as práticas,
além de envolverem material pouco conhecido, são executadas em laboratório,
289
Cf. ANGIONI, Francesco. op. cit., p. 233.
154
ambiente recluso, fechado a ciclo restrito. É certo que os registros de pesquisas
ou a fiscalização pública contínua das clínicas poderiam dificultar manobras
ocultas, tal como se assiste com as pesquisas sobre células-tronco embrionárias
divulgadas pelo grupo de cientistas sul-coreano.
290
Não se pode olvidar ainda a “cifra negra” ofusca um dos ângulos
da eficácia, pois ignora as pessoas que não cometeram a infração penal
exatamente porque o comportamento estava incriminado.
291
Do contrário, não
será conferida atenção para a capacidade orientadora do direito penal, tão
relevante nos setores de novas atividades, onde estão pouco resolvidas as
celeumas éticas, difundidas pela costumeira e atual prevalência do “eu” sobre o
outro ou sobre o “todo”.
Tendo em mente tais entraves, as estatísticas, conquanto
auxiliem, não autorizam conclusões definitivas na apuração da idoneidade da
tutela penal. A legitimidade da lei penal reclama análise cautelosa da conduta e
de suas circunstâncias, em meio à qual não pode ser esquecida a importância
dos bens envolvidos vida, liberdade, integridade genética , que inclina o juízo
de adequação para a positividade.
Em razão de todas essas dificuldades e para evitar
arbitrariedades, a sub-regra da idoneidade é exigência propriamente endereçada
ao legislador para que, na elaboração do tipo legal, atente sobre sua aptidão para
a tutela do bem à luz do contexto social a que se dirige. Na seara da jurisdição, o
juízo em epígrafe opera dentro de âmbito restrito, para excluir a intervenção penal
quando tiver eficácia nula ou provocar evidentes efeitos colaterais graves,
290
Vide capítulo II, supra.
291
Cf. GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. op. cit., p. 153.
155
superiores aos benefícios, o que minimiza o impacto das incertezas ora
assinaladas.
292
5.3 O delito de perigo
O perigo, segundo Nélson Hungria, é a “turbação no estado de
segurança” de bem jurídico, que “é colocado, embora transitòriamente, numa a
situação de precariedade, de incerteza de estabilidade”.
293
Prosseguindo, explica
a dupla perspectiva do conceito: “como possibilidade de dano, é uma situação
objetiva; mas a possibilidade, embora tenha uma existência objetiva, não se
revela por si mesma: tem de ser reconhecida, isto é, julgada”.
294
O perigo penalmente relevante não se resume a uma
eventualidade anormal e incomum (improbabilidade) ou a uma mera
possibilidade, sob pena de cessar toda a liberdade de atuação social, que é
própria da democracia; corresponde à “possibilidade com certa relevância, quer
dizer, à probabilidade”.
295
O juízo que demanda não é incondicionado, posto que
assentado em regras de experiência cotidiana em que se repetem situações
fáticas, as quais, na seara da tecnologia genética, ocorrem, comumente, em
pesquisas científicas em que surge dúvida irrefutável sobre uma substância ou
um procedimento ser fonte concreta de risco a um bem jurídico.
Os delitos de perigo são classificados em delitos de perigo
concreto e de perigo abstrato. Nos primeiros, a existência do perigo deve ser
292
GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. op. cit., p. 244.
293
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1949. v. 1, p. 192
(grafia original).
294
Ib. Ibid., p. 194.
295
Id. Ibid., p. 195.
156
averiguada caso a caso, quer dizer, é exigida, pela lei, a constatação positiva ex
post (posterior ao fato) do perigo. Nos segundos, não há essa verificação, porque
o perigo é deduzido dos termos da lei, que o define ex ante, ou seja, o tipo
descreve “uma conduta que pode ser considerada perigosa em si mesma, ficando
implícita a valoração do injusto”, conforme explica Ivete Senise Ferreira.
296
No
delito de perigo concreto, o legislador “parte de que una determinada situación
puede ser peligrosa y conmina penalmente su realización en el supuesto de que
lo sea”. No delito de perigo abstrato, o legislador “parte de que una determinada
situación comúmente es perigosa y conmina, sin más, com pena su
realización”.
297
Na atualidade, é usual o emprego da técnica do delito de perigo
abstrato, conquanto sua legitimidade seja controvertida na doutrina. Como
esperável, a técnica é repudiada pela Escola de Frankfurt, pois, segundo Herzog,
implicaria reduzir o direito penal a um instrumento de política interna, suscetível a
ingerências da mutante opinião pública, de compromissos de coalizões partidárias
e de interesses eleitorais.
298
Assiste-lhe parcial razão, pois a técnica de perigo abstrato não
deve ser maximizada até se transformar em mecanismo para a imposição de um
padrão moral, combatendo simples violação de dever, com prejuízo da
democracia e multiplicidade cultural do Estado. Entretanto, o direito penal não
pode apartar-se da sociedade que se coloca à sua frente e que reclama, ao lado
296
FERREIRA, Ivete Senise. Tutela penal do patrimônio cultural. São Paulo: Ed. Revista dos
Tribunais, 1995. p. 99.
297
BARBERO SANTOS, Marino. Contribución al estudio de los delitos de perigo abstrato. Anuario
de Derecho Penal y Ciencias Penales, t. 26, fasc. 1, p. 489, ene./abr. 1973.
298
HERZOG, Felix. op. cit., p. 321-322.
157
de providências corretivas, medidas preventivas, para que sejam assegurados
bens essenciais à vida em comunidade e às gerações do porvir.
Considerando os caracteres da vida moderna - ações distantes do
momento em que os respectivos danos se tornam materialmente perceptíveis,
múltiplas cadeias causais em interconexões, ausência de conhecimentos precisos
sobre os efeitos da aplicação prática de revolucionárias descobertas científicas,
em que se inclui a manipulação genética -, não é possível descartar a técnica do
delito de perigo abstrato.
A técnica, ao que parece, tem abusos contidos quando adotada
em respeito à “natureza de las cosas”.
299
Entre elas, destaca-se a dificuldade de
ser estabelecido o nexo causal entre a conduta e o dano, circunstância freqüente
na genotecnologia. Sobressai também a imensa dimensão dos possíveis
resultados que, se vierem a se concretizar, tendem, segundo as pesquisas, à
projeção universal e irreversível sobre a pluralidade e diversidade da espécie
humana (pelos menos se mantido o conhecimento atual da ciência).
O alarmante e diferenciado contexto é bem desenhado por
Ferrando Mantovani, in verbis: “También aqui el tradicional Derecho penal
represivo revela las propias insuficiencias, bien sea por la escasa utilidad práctica
de castigar, existiendo los delitos de epidemia (em aquellos códigos que, como el
italiano, prevên tal delito) o, de otro lado, de homicidio o lesiones culposas
múltiples; o incluso por la probatio diabolica del nexo causal y de la culpa. De
299
Nesse sentido, Ivete Senise Ferreira, quem, ao estudar o delito de perigo abstrato, afirma: “Tal
modalidade justifica-se em matéria de ofensas ao meio ambiente, pela natureza das mesmas, em
que pesem as opiniões em contrário” (op. cit., p. 99). Igualmente: SCHÜNEMANN, Bernd. op. cit.,
p. 199.
158
modo que se vuelve necesaria la introducción de figuras preventivas, dirigidas a
evitar la aparición de situaciones de peligro”.
300
Em muitas hipóteses relacionadas à genética humana, o direito
penal repressivo teria pequena ou nenhuma utilidade prática, eis que o castigo
pouco adiantaria diante do caos instalado. A técnica do perigo abstrato aparece
como alternativa de política criminal mais condizente com a tutela de bens
expostos aos avanços científicos que, dotados de elevada importância social e
jurídica, requerem, mais intensamente, a antecipação da barreira penal.
Não se ignoram as cifras negras em torno dos delitos que
atinjam a humanidade global, porquanto as vítimas, que muito contribuem para a
aplicação da lei penal, estão difusas no meio social. Não obstante, como já
referido, se a exaltação do bem pela norma penal desestimular sua violação, não
se afasta a legitimidade da intervenção penal.
De todo modo, a aceitação pragmática da técnica do perigo
abstrato depende do respeito ao princípio da determinação, o qual, como lembra
Schünemann, tem menos problemas no modelo em questão do que no delito
imprudente de resultado, em que a norma de comportamento concreta é
determinada por regra geral não escrita e formulada posteriormente pelo julgador
ou pela jurisprudência.
301
Por fim, depara-se com a problemática relação entre a técnica em
estudo e o princípio da lesividade. É inquestionável que o presente modelo de
incriminação não se amolda à noção de lesividade ou ofensividade compreendida
nos moldes clássicos do direito penal repressivo, ou seja, como “lesão concreta
300
MANTOVANI, Ferrando. Manipulaciones genéticas, bienes jurídicos amenazados, sistemas de
control y técnicas de tutela, cit., p. 104.
301
SCHÜNEMANN, Bernd. op. cit., p. 201.
159
de bem jurídico”.
302
Numa visão mais condizente com os bens jurídicos
emergentes, a noção merece leitura mais abrangente, como a proposta por
Palazzo, segundo quem “o fato não pode constituir ilícito se não for ofensivo
(lesivo ou simplesmente perigoso) do bem jurídico tutelado”.
303
Aprofundando-se
neste raciocínio, Dolcini e Marinucci ensinam que o direito penal dirige-se não
somente para a garantia de integridade do bem, mas também preserva a
segurança necessária para o seu desfrute.
304
5.4 As normas penais em branco
A única fonte do direito penal é a norma legal, como reza o art. 5º,
XXXIX, da Constituição pátria: “não há crime sem lei anterior que o defina, não há
pena sem prévia cominação legal”. Antes de ser um critério jurídico-penal, o
nullum crimen, nulla poena sine lege, consagrado no século XIX por Anselmo
Feuerbach, é “um princípio político (liberal), pois representa um anteparo da
liberdade individual em face da expansiva autoridade do Estado”, como inclusive
explica Nélson Hungria.
305
Sobre tal princípio descansa a segurança jurídica na medida em
que, descrevendo com exatidão o comportamento incriminado e a correlata
sanção, confere a possibilidade de cálculo de suas conseqüências ao cidadão,
minimizando as divergências nos julgamentos.
302
Adotam esse posicionamento: TAVARES, Juarez. Critérios de seleção de crimes e cominação
de penas. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. esp., p. 79, dez. 1992;
GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. op. cit., p. 135.
303
PALAZZO, Francesco. Valores constitucionais e direito penal, cit., p. 79, grifo nosso.
304
Nas palavras de Giorgio Marinucci e Emilio Dolcini: “in ossequio al principio di offensività, il
diritto penale deve infatti garantire non soltanto l’integrità dei beni, individuali e collettivi, ma
anche la sicurezza del loro godimento” (Corso di diritto penale, cit., p. 560).
305
HUNGRIA, Nélson. op. cit., v. 1, p. 10.
160
Não basta, porém, a reserva de lei para a matéria penal. A função
garantista do princípio seria severamente comprometida se, na elaboração do
texto legal, houvesse a “utilização de expressões ambíguas, equívocas e vagas
de modo a ensejar diferentes e mesmo contrastantes entendimentos”.
306
Daí que,
em seus desdobramentos, o princípio da legalidade remete à proibição de leis
indeterminadas, isto é, de formulações legais compostas por vocábulos
imprecisos ou vaporosos, dissolvidos em elevada tonalidade valorativa. Esse
enfoque confere forma ao princípio da taxatividade ou da determinação, referido à
técnica de elaboração legislativa.
Todavia, como ressalta Francesco Palazzo, em postura
sumamente realista, uma tutela não pode eficazmente estender-se “às novas
fronteiras do Estado Social, sem renunciar ao ideal iluminístico de leis
rigorosamente determinadas”.
307
Sendo assim, os novos tipos, no mínimo, devem
ser formulados de maneira a serem compreendidos facilmente pelo destinatário e
ainda de modo a que tutelem bem jurídico definido.
Ao lado das leis indeterminadas estão as leis penais em branco,
cada vez mais em voga. Estas resultam de técnica legislativa em que a
cominação penal está disposta integralmente (preceito secundário), mas o
conteúdo proibido (preceito primário) é incompleto. “O dispositivo que
complementa a lei em branco pode estar contido na mesma lei penal, ou provir do
mesmo órgão legislativo ou de ato de autoridade diferente. Pode ser outra lei da
mesma fonte donde emanou a lei penal, ou leis ou regulamentos originários de
outros poderes”, como ensina Aníbal Bruno.
308
306
LUIGI, Luis. op. cit., p. 18.
307
PALAZZO, Francesco. Valores constitucionais e direito penal, cit., p. 51.
308
BRUNO, Aníbal. op. cit., p. 191.
161
As leis penais em branco não ofendem a legalidade desde que o
complemento esteja em outra fonte “previamente determinada e conhecida”,
como destaca Guilherme de Souza Nucci.
309
Na sociedade contemporânea, a
realidade e a prudência exigem, de modo crescente, o emprego da técnica em
apreço em setores tecnicamente complexos e multidisciplinares.
Neles, as matérias estão condicionadas por circunstâncias
histórico-sociais, como a ordem econômica, ou pelo seu tecnicismo, como o meio
ambiente e a genética, cujo tratamento preciso é viabilizado somente pela
remissão ao quadro normativo diverso do penal, onde os conflitos são regulados
originalmente.
310
Não fosse a complementação por preceitos extrapenais, a
intervenção penal, embora necessária e adequada para a tutela do bem jurídico,
estaria jungida a subseqüentes modificações ou ficaria obsoleta, petrificada.
Nesta égide, a norma penal em branco atua como garantia de
eficácia para o direito penal, mantendo-o alinhado às modificações que
impregnam certas atividades, como a tecnologia genética e reprodutiva, em que,
como reiteradamente visto, são sucessivas as descobertas e constantes as
projeções sobre conceitos que, em tempo de ignorância, eram aceitos sem
questionamentos.
Para a lei penal em branco não descambar para o terreno da
inconstitucionalidade, os ditames de competência traçados pela Carta Política
desempenham papel essencial. De acordo com Ivete Senise Ferreira, é a própria
Constituição que fornece “os parâmetros da legalidade do complemento da norma
309
NUCCI, Guilherme de Souza. op. cit., p. 58.
310
Nesse sentido: GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. Derecho penal: introducción. Madrid:
Universidad Complutense Madrid, 2000. p. 257.
162
penal em branco (...) através de indicação que faz ao definir as competências
ratione materiae”.
311
De acordo com o art. 22, I, da Constituição brasileira, compete
privativamente à União legislar sobre direito penal, mas, consoante o parágrafo
único, a lei complementar poderá autorizar os Estados a legislar sobre questões
específicas sobre a matéria. Fica, pois, a União com competência principal,
enquanto aos Estados é outorgada competência suplementar, particularizada.
Especificamente para a atividade sobre a genética humana, em
que se mesclam os procedimentos de reprodução assistida, sobremaneira em sua
relação com a saúde e a pesquisa, a Constituição estatui competência legislativa
concorrente para a proteção e defesa da saúde, cabendo à União baixar as
normas gerais (§1º) e aos Estados o exercício de competência suplementar (§§2º
e 3º), reservando aos Municípios a normatividade sobre interesses locais (art. 30,
I). No exercício de competência administrativa, disciplinada no art. 23, cabe a
União, aos Estados e Municípios cuidar, conjuntamente, da saúde pública (inciso
II) e proporcionar os meios de acesso à ciência (inciso V).
312
Deste modo, as normas, legislativas ou administrativas, nos três
níveis que configuram a estrutura federativa do Estado brasileiro, de acordo com
as respectivas atribuições constitucionais, servem de complementação às normas
penais em branco relacionadas com a genética humana.
311
FERREIRA, Ivete Senise. op. cit., p. 87-88.
312
Nessa linha, Ivete Senise Ferreira quando aborda o tema sob o prisma da disciplina normativa
referente ao meio ambiente (Id. Ibid., p. 88-89).
163
6. OS BENS JURÍDICOS (1): CONSIDERAÇÕES SOBRE A
DIGNIDADE HUMANA E A VIDA
Estabelecidos os meandros da necessidade e da adequação da
tutela penal, a próxima etapa reclama a identificação dos bens jurídicos afetados
pela biotecnologia. Seriam infindáveis as discussões se todos os bens fossem
abordados no presente estudo, pois, além de serem inúmeros, estão sujeitos a
ataques com contornos específicos, pesando também a complexidade ética. Por
isso, à vista do quadro atual, marcado pela preocupação em torno do estatuto do
embrião e das conseqüências provenientes da alteração do genoma humano para
a espécie, o debate restará restrito aos bens que os afetam diretamente.
Vejamos, portanto.
6.1 A dignidade humana
6.1.1 Ponderações preambulares
A ingerência da biomedicina em elementos basilares do ser
humano, como a carga genética da espécie, causa impacto na comunidade, o que
é revertido muitas vezes em clamores punitivos. Para justificar a intervenção
penal, a dignidade humana é facilmente invocada, porque, além da abertura
semântica, integra a cultura desde tempos imemoráveis.
164
Para o pensamento grego antigo, a dignidade reporta à idéia de
alma espiritual e moral. A tradição cristã explica a dignidade da pessoa humana
pela teoria da semelhança entre o homem e a imagem de Deus, o Criador. Para o
marxismo, que considera o homem como produto das relações sociais, suscetível
à contínua transformação, a dignidade humana está relacionada à “intenção do
passo erguido”, isto é, à tendência para superar situações de humilhação, vividas
pela classe dominada. Para o pensamento estóico, ela deriva da aptidão de toda
a pessoa para participar da razão universal.
313
A concepção liberal está representada pelo pensamento kantiano,
segundo o qual a dignidade humana reflete-se no seguinte imperativo categórico:
Age de tal forma que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa
de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente
como um meio”.
314-315
Kant exclui a avaliação da pessoa humana de qualquer
critério de quantificação ou de relativização em função de outros indivíduos ou de
outros critérios (eficácia econômica ou laboral, beleza corporal, plenitude psíquica
ou física).
Não tendo preço nem sendo substituível por equivalente, a
pessoa, para o filósofo de Koenigsberg, não é coisa nem é meio, senão um fim
em si mesma, pelo que encerra uma dignidade. Em suas palavras,o que se
313
Cf. BLOCH, Ernst. Derecho natural y dignidad humana. Madrid: Aguilar, 1980. p. 156 e ss. O
estoicismo consiste em designação comum às doutrinas dos filósofos gregos Zenão de Cício
(340-264) e seus seguidores Cleanto (séc. III a.C.), Crisipo (280-208) e os romanos Epicteto
(c.55-c.135) e Marco Aurélio (121-180), caracterizadas sobretudo pela consideração do problema
moral, situando o ideal do sábio na ataraxia, que é o estado em que a alma, pelo equilíbrio e
moderação na escolha dos prazeres sensíveis e espirituais, atinge o ideal supremo da felicidade:
a imperturbabilidade, a tranqüilidade.
314
KANT, Immanuel. op. cit., p. 135.
315
O imperativo categórico é um princípio prático supremo. Kant diferencia o imperativo categórico
do hipotético: o primeiro “seria aquele que nos representasse uma ação como objetivamente
necessária por si mesma, sem relação com qualquer outra finalidade”, ou seja, “boa em si”; o
segundo representa “a necessidade prática de uma ação possível como meio de alcançar
qualquer outra coisa que se quer”, ou seja, “boa como meio para qualquer outra coisa” (Id. Ibid.,
p. 124-125).
165
relaciona com as inclinações e necessidades gerais do homem têm um preço
venal; aquilo que, mesmo sem pressupor uma necessidade, é conforme a um
certo gosto, isto é, a uma satisfação no jogo livre e sem finalidade das nossas
faculdades anímicas, tem um preço de afeição ou de sentimento (Affektionspreis);
aquilo porém que constitui a condição só graças à qual qualquer coisa pode ser
um fim em si mesma, não tem somente um valor relativo, isto é, um preço, mas
um valor íntimo, isto é, dignidade”.
316
A proposta kantiana tem a vantagem de ser suscetível a
compartilhamento entre religiosos ou não. A construção exerce acentuada
influência sobre as convicções éticas atuais, embora tenha que competir com
poderosos adversários, como a moral utilitarista, com forte receptividade na
contemporânea sociedade consumista e de massa.
317
Caminhando adiante, muitos buscam as bases da norma que
impõe o respeito à dignidade humana. Alguns concluem pela indefinição,
restringindo o consenso, tão-somente, em torno das ações que vulneram a
dignidade humana, como a clonagem. Outros consideram que, na realidade, cada
pessoa em concreto impõe seu próprio fundamento sobre o que suponha
significar a dignidade. A maioria, porém, julga que o conceito desenvolve-se sobre
pano de fundo objetivo, quando são postas à tona as qualidades de que
comungam as pessoas e que as fazem merecedoras de dignidade perante os
demais seres vivos.
316
KANT, Immanuel. op. cit., p. 140.
317
Cf. PUIGPELAT MARTÍ, Francesca. Clonación, dignidad humana y constitución. Revista
Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, ano 11, n. 42, p. 44, jan./mar. 2003.
166
Perfilhando o último enfoque, percebe-se que o status especial do
homem frente aos demais seres está na racionalidade.
318
É inconteste que
empiricamente nem todos os homens têm o mesmo grau de racionalidade.
Porém, esse fato é irrelevante. Conquanto os indivíduos desfrutem de níveis
distintos de autonomia, a dignidade, porque intrínseca aos integrantes da espécie,
desconsidera as diferenças, na medida em que se satisfaz com a potencialidade
de determinação (virtualidade), não exigindo a concreção destas.
319
Portanto, o deficiente mental, o homem adulto em coma e o
intelectual equiparam-se em dignidade, uma vez que ela não depende de como a
pessoa se comporte. Supõe seu reconhecimento enquanto tal, pelo simples fato
de ser atributo dos seres humanos, iguais entre si e superior aos demais.
Quanto ao embrião, a questão sobre seu amparo pela norma que
resguarda a dignidade humana é pouco mais complexa. O ponto central, no modo
nosso de ver, está na lembrança de que se hoje ele é um grupamento amorfo de
células, amanhã será um ser adulto. É certo que ele não mantém relação
interpessoal, porque está fora no meio social. Todavia, pela sua carga genética e
capacidade de divisão, é fonte de toda a pessoa humana. Ademais, transporta o
substrato responsável pela formação do sistema nervoso e, assim, da potencial
racionalidade, pelo que partilha da essência humana em sua profundidade. Posto
isto, concluímos que sobre ele projeta-se o princípio da dignidade humana.
318
PUIGPELAT MARTÍ, Francesca. op. cit., p. 44-45.
319
Cf. MONTANO, Pedro J. La dignidad humana como bien juridico tutelado por el derecho penal.
Actualidad Penal, Madrid, fasc. 1, p. 419-430, maio 1997.
167
6.1.2 O plano do direito positivo
A noção de respeito à dignidade humana foi introduzida pela
Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) da Assembléia Geral das
Nações Unidas, cujo art. 1º reza: “Todos os homens nascem livres e iguais em
dignidade e direitos”.
Reflexo dos recentes avanços científicos da biomedicina, a
Declaração Universal do Genoma Humano e dos Direitos do Homem, aprovada
na 29ª Sessão de Conferência Geral da UNESCO (1997), alude, repetidas vezes,
à dignidade.
Com tonalidade universal, dispõe o art. 1º: ”O genoma humano
subjaz à unidade fundamental de todos os membros da família humana e também
ao reconhecimento de sua dignidade e diversidade inerentes. Num sentido
simbólico, é herança da humanidade”. A herança genética é aceita com elemento
que pertence a todos os seres humanos, que os une numa família e, dele
partilhando, a humanidade goza de inerente dignidade. Como o embrião desfruta
da carga genética dos homens, é reforçada a tese de que a dignidade também o
abrange.
O art. 2º remete aos indivíduos nos seguintes termos: “Cada
indivíduo tem direito ao respeito de sua dignidade e de seus direitos, sejam quais
forem suas características genéticas”. É proclamado o dever de tratamento
igualitário ao semelhante, em função exclusiva de pertencer ao gênero humano,
manifestando repúdio ao reducionismo genético que as novas descobertas, ou
melhor, o conhecimento incontrolado acerca de seu teor pode importar,
168
implicando, por exemplo, estabelecimento de cláusulas discriminatórias em
contratos de seguro de vida ou de saúde.
Por fim, a Declaração, ao adentrar propriamente no conteúdo da
“dignidade humana”, opta pela exclusão, pois simplesmente alude a duas técnicas
da engenharia genética para qualificá-las como “práticas contrárias à dignidade”:
clonagem com fins de reprodução de seres humanos (art. 11) e as intervenções
na linha germinal (art. 24).
320
De conseguinte, o documento não define, com
precisão, os contornos da dignidade humana.
No direito interno, a Constituição pátria, em seu art. 1º, III, considera
a dignidade da pessoa humana como princípio fundamental do Estado Democrático
de Direito. Em razão da categoria juspositiva que ocupa e da importância que lhe é
inata, a dignidade humana, como escreve Flávia Piovesan, “impõe-se como núcleo
básico e informador de todo ordenamento jurídico, como critério e parâmetro de
valoração a orientar a interpretação e compreensão do sistema constitucional”.
321
O preceito determina que o Estado seja estruturado sobre base
antropológica, onde o homem seja reconhecido como eixo do sistema estatal,
social, econômico e cultural, representando o “limite e fundamento do domínio
político”, edificado democraticamente sobre os pilares do “multiculturalismo
mundividencial, religioso ou filosófico”, nos dizeres de Canotilho.
322
320
Cf. ANDORNO, Roberto. La dignidad humana como noción clave en la Declaración de la UNESCO
sobre el genoma humano. Revista de Derecho y Genoma Humano, Bilbao, n. 14, p. 49-52, ene./jun.
2001. Explica o autor, membro do Comitê Internacional de Bioética, que os princípios da Declaração
em apreço servem de fonte inspiradora para políticas governamentais, mas carecem de força
vinculante, pois se aguarda complementação por Convenções ou Tratados.
321
PIOVESAN, Flávia. Direito humanos e o princípio da dignidade humana. In: LEITE, George
Salomão (Org.). op. cit., p. 192.
322
CANOTILHO, J. J. Gomes. op. cit., p. 221 e 244. O autor explana sua posição ao examinar a
Constituição Portuguesa. Em seu art. 1º prescreve: “Portugal é uma República soberana
baseada na dignidade da pessoa humana”; no art. 2º: “A República Portuguesa é um Estado de
direito democrático baseado no respeito e na garantia da efectivação dos direitos e liberdades
fundamentais”.
169
Em análise apressada, pode-se afirmar que a Constituição pátria,
quando reconhece a dignidade da pessoa humana, prioriza o interesse individual
em face do coletivo. Entretanto, se interpretada sistematicamente, sobretudo sob
influxos dos direitos fundamentais, a Carta não traduz tal idéia. A falta de
hierarquia entre as normas de direitos fundamentais individuais e os coletivos
indica, em verdade, que a solução perante o conflito deve ser buscada em cada
caso, de acordo com as circunstâncias, quando entra em cena a máxima da
proporcionalidade.
Entretanto, como sustenta Fernando Ferreira dos Santos, mesmo
que a ponderação resulte na primazia pelo coletivo, nunca pode ser sacrificado o
valor da pessoa e, por isso, ela é o mínimo que não pode ser ultrapassado pelo
Estado. Daí que a dignidade da pessoa humana tem prevalência contínua.
323
Seguindo tal esteira, não é totalmente acertada a tese defendida
por Robert Alexy de que o art. 1º, § 1º, frase 1ª, da Lei Fundamental da Alemanha
- “a dignidade da pessoa humana é inviolável” - enuncia norma, em parte, tratada
como regra, quando será absoluta, e, em parte, como princípio, quando será
relativa, embora assentada em amplo grupo de condições de precedência com
elevado grau de segurança.
Para tornar melhor compreensível seu raciocínio, refere-se à
decisão do Tribunal Constitucional alemão, segundo o qual “a dignidade da
pessoa (...) tampouco é lesionada quando a execução da pena é necessária
devido à permanente periculosidade do detido e, por esta razão, não está
permitido o indulto”. Esta formulação, defende o professor germânico, permite
constatar que a proteção da comunidade estatal, sob as condições indicadas,
323
Cf. SANTOS, Fernando Ferreira dos. Princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.
São Paulo: Celso Bastos Editor, 1999. p. 32.
170
precede o princípio da dignidade humana. Alteradas as condições, outra será a
conclusão.
324
Seu pensamento, porém, pressupõe que a prevalência da
dignidade humana esteja vinculada à liberdade do condenado, direito individual,
ignorando a possibilidade ora advogada de que prossiga respeitada quando
priorizado o interesse coletivo voltado, por exemplo, para a paz social, base para
a coexistência digna. Na última hipótese, o resguardo ao respeito à dignidade
humana determina, exclusivamente, a mantença do mínimo ao condenado, como
o direito à liberdade de crença, à saúde, à preservação da integridade física, ao
trabalho interno com direito à remissão, o que lhe pode ser conferido dentro de
estabelecimentos penais prisionais.
Sendo assim, a dignidade humana deve ser compreendida, tão-
somente, como regra, ou melhor, como uma “super-regra” que, dentro do âmbito
do ordenamento jurídico constitucional, sempre precede às outras. Sem embargo,
dada sua relevância constitucional, a dignidade, como a proporcionalidade, é
simbolicamente tratada como princípio e, sob este prisma, afigura como
“verdadeiro superprincípio constitucional, a norma maior a orientar o
Constitucionalismo contemporâneo, nas esferas local e global, dotando-o de
especial racionalidade, unidade e sentido”, novamente na lição de Flávia
Piovesan.
325
Destarte, neste trabalho, sempre que referido o princípio da
dignidade humana, o sentido será retórico, não dogmático.
324
ALEXY, Robert. op. cit., . 106-108.
325
PIOVESAN, Flávia. op. cit., p. 195.
171
6.1.3 A relação com os direitos individuais e a impossibilidade da sua
identificação como bem jurídico
Na lição de Sérgio Ferraz, “o princípio constitucional do respeito à
dignidade da pessoa humana implica um compromisso do Estado e das pessoas
para com a vida e a liberdade de cada um, integrado no contexto social”.
326
A
menção à vida e à liberdade da pessoa conduz à irretorquível aproximação,
comum entre os constitucionalistas, entre a dignidade humana e os direitos
fundamentais, como explana José Afonso. Para ele, a dignidade da pessoa
humana é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos
fundamentais do homem, desde o direito à vida”.
327
O liame é enfatizado por Jorge Miranda, quando considera a
dignidade humana como “fonte ética” dos direitos, liberdades e garantias pessoais
e dos direitos econômicos, sociais e culturais comuns.
328
Karl Loewenstein, na
mesma esteira, concebe a dignidade como a encarnação das liberdades
fundamentais.
329
Em suma, a consagração constitucional da dignidade humana
alicerça o conjunto de direitos fundamentais no ordenamento jurídico, funcionando
como valor-guia para que o Direito gravite em torno da pessoa, que é tratada
como valor primário e superior. Avizinhado do sentido de equilíbrio e de justiça, o
conceito assume importância inigualável, tanto que é fundamento e fim do Estado.
Em contrapartida, seu conteúdo ganha amplitude demasiadamente vasta, o que
326
FERRAZ, Sérgio. Manipulações biológicas e princípios constitucionais: uma introdução. Porto
Alegre: Fabris, 1991. p. 20.
327
SILVA, José Afonso da. op. cit., p. 109.
328
MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. 4. ed. Coimbra: Coimbra Ed., 2000. t. 4,
p. 167.
329
LOEWENSTEIN, Karl. op. cit., p. 115.
172
lhe impede, por si só, de explicar, detalhar ou concretizar o verdadeiro objeto de
proteção das figuras penais. A noção, com abertura desejável no âmbito da
Constituição, se transportada diretamente para o direito penal como bem jurídico,
enfraqueceria a precisão dogmática desejada pela categoria, autorizando
antecipações excessivas na barreira punitiva.
A assertiva, porém, não implica desconsideração da idéia de
dignidade no plano jurídico-penal. Considerando que os direitos fundamentais
“são explicitações do princípio da dignidade da pessoa humana”,
330
porque neles
se faz presente “um conteúdo, ou pelo menos, alguma projeção da dignidade”,
331
quando um delito abala um direito fundamental, reflexamente desrespeita a
dignidade humana, como ocorre com a prática de racismo ou com a tortura.
Portanto, no âmbito do direito penal, não é identificado com independência o
conteúdo da dignidade humana, mas ele assume destacada importância,
porquanto se manifesta em vários tipos penais.
Enfim, a dignidade humana, com tendência à vagueza, não se
amolda a limites precisos, para que, em si mesma, seja um bem jurídico-penal.
332
Sem embargo, a idoneidade projetiva e informadora da noção permite que se
330
ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de
1976. 2. ed. Coimbra: Almedina, 2001. p. 106.
331
SARLET, Ingo Wolfang. Algumas notas em torno da relação entre o princípio da dignidade da
pessoa humana e direitos fundamentais na ordem constitucional brasileira. In: LEITE, George
Salomão (Org.). op. cit., p. 222.
332
Nesse sentido: ROMEO CASABONA, Carlos María. Los delitos contra la vida y la integridad
personal y los relativos a la manipulación genética. Granada: Editorial Colmares, 2004. p. 277;
GARCÍA GONZÁLEZ, Javier. op. cit., p. 214; GONZÀLEZ CUSSAC, José Luis. Manipulación
genética y reproducción asistida en la reforma penal española. Revista de Derecho y Genoma
Humano, Bilbao, n. 3, p. 72-73, jul./dic. 1995; PERIS RIERA, J. M. La regulación penal de la
manipulación genética en España (princípios penales fundamentales y tipificación de las
genotecnologias). Madrid: Civitas, 1995. p. 97-100; CUESTA AGUADO, Paz M. de la. op. cit., p.
138-139. Em sentido contrário, Ferrando Mantovani considera a dignidade humana como novo
bem emergente das intervenções genéticas (Manipulaciones genéticas, bienes jurídicos
amenazados, sistemas de control y técnicas de tutela, cit., p. 105). Na última linha, está também
HIGUERA GUIMERÁ, Juan-Felipe. Consideraciones jurídico-penales sobre las conductas de
clonación en los embriones humanos (II). Revista de Derecho y Genoma Humano, n. 2, p. 61 e
66, ene./jun. 1995.
173
obtenha, com recurso a ela, a identificação de novos bens jurídicos-
constitucionais. Sob tal ótica, a noção é ferramenta para o dinamismo da
Constituição
333
e autoriza o reconhecimento de novos direitos, que emergem da
evolução humana, onde a biotecnologia inclui-se.
6.2 A vida
O direito à vida é um direito humano, na medida em que não é
adquirido nem concedido pelo Estado; é inerente à pessoa. Sua importância é
facilmente compreendida, porque sustenta todos os demais direitos individuais,
eis que é o suporte para cada pessoa exercitar e desenvolver suas próprias
faculdades. Ao apreciar a vida humana, o Tribunal Constitucional espanhol, na
sentença n. 53, de 11 de abril de 1985, aclamou que: “constituye el derecho
fundamental esencial y troncal en cuanto es el supuesto ontológico sin el que los
restantes derechos no tendrían existencia posible”.
As novidades da engenharia genética, aplicadas pelas técnicas
de reprodução assistida, irritam, de maneira inusitada, as formas de vida relativas
às fases embrionárias. Estando, em laboratório, os óvulos, os espermatozóides
ou os embriões, é aberta a possibilidade de serem manobrados com fins diversos
do natural (a procriação), pelo que se reacende questão particularmente delicada,
dolorosa mesmo, concernente aos limites mínimos do direito à vida. A resposta
não é uníssona, desenvolvendo-se sob ângulos diversos.
333
Nesta linha: ROMEO CASABONA, Carlos María. El derecho y la bioética ante los límites de la
vida humana. Madrid: Editorial Centro de Estudios Ramón Areces, 1994. p. 69.
174
6.2.1 As teorias sobre o começo da vida
6.2.1.1 As posições clássicas: gregos e romanos
O questionamento sobre a origem da vida é tão remoto quanto a
arte de perguntar. Na Grécia, era corrente a proibição do aborto. O médico
Hipócrates declarava que “a nenhuma mulher daria substância abortiva”. Para
Platão, um dos pais da filosofia, em sua obra A República, era preconizado o
aborto para todas as mulheres que engravidassem com mais de 40 (quarenta)
anos. Por trás desta afirmação, pretendia que os casais gerassem filhos para o
Estado durante o período em que a mulher fosse mais nova. O filósofo não
compreendia haver problema ético no ato, pois, segundo ele, a alma entrava no
corpo apenas no momento do nascimento.
Em Roma, não cuidavam do aborto a Lei das XII Tábuas e as Leis
da República. A interrupção da gravidez era considerada legal e moralmente
aceita. Sêneca, um dos filósofos mais importantes da época, contou que
comumente as mulheres induziam o aborto com o objetivo de preservar a beleza
do corpo.
334
Contudo, as sociedades clássicas não estiveram livres das
polêmicas atuais. Na Grécia, Aristóteles construiu a doutrina epigenética, que
distingue formas sucessivas da alma: nutritiva, sensitiva e intelectiva a qual
alcançaria o embrião na data do início do primeiro movimento no útero materno, o
que conduziu o filósofo a defender que a conversão em pessoa ocorre
paulatinamente. No feto do sexo masculino, essa manifestação ocorria no 40º
334
Cf. HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1942. v. 5,
p. 233-234; O PRIMEIRO instante, cit., p. 58-59.
175
(quadragésimo) dia. No feminino, no 90º (nonagésimo), pois Aristóteles acreditava
que as mulheres eram física e intelectualmente inferiores aos homens e, por isso,
se desenvolviam mais lentamente. Como na época era impossível definir o sexo,
o grego preconizava que o aborto era cabível até o 40º (quadragésimo) dia e,
segundo as atuais comprovações biológicas, o prazo coincide com a finalização
da estrutura básica do córtex cerebral.
335
6.2.1.2 A doutrina da Igreja Católica: a teoria da animação
A problemática sempre preocupou os católicos. A postura
aristotélica sobreviveu durante os primeiros tempos do cristianismo. Foi abraçada
por teólogos eminentes, como São Tomás de Aquino e Santo Agostinho e,
finalmente, alçada à tese oficial da Igreja para o surgimento da vida. Nesta fase, o
desenvolvimento humano era diferenciado em dois momentos: a concepção,
resultante da união entre gametas masculino e feminino, e a animação, quando o
Criador infundia a alma no produto da fecundação, o que ocorria 40 (quarenta) ou
80 (oitenta) dias após a fecundação, conforme fosse varão ou mulher.
Embora não fosse aprovado o aborto praticado antes do decurso
desse período, era isento de pena ou, no mínimo, diminuída sua magnitude, além
de despojado da seara dos pecados mortais, pois, para incidirem, era necessário
que a criatura-alvo tivesse alma, a qual representava condição para que ela fosse
considerada pessoa
Em 29 de outubro de 1588, com a promulgação da Bula
Effraenatam, de Sixto V, a Igreja passou a condenar como homicida aquele que
335
Cf. MARTÍNEZ, Stella Maris. op. cit., p. 73.
176
buscasse a expulsão de um feto imaturo, seja animado ou inanimado, formado ou
informe. A sanção religiosa era a excomunhão. Três anos mais tarde, a postura
foi abandonada pelo Papa Gregório XIV, quem retomou a doutrina anterior
mediante a Bula Sedis Apostolicae e, portanto, abortar voltou a ser valorado
diferentemente.
Transcorreu quase um século até que, em 2 de março de 1679,
com Inocêncio XI, mediante Decreto do Santo Ofício, a Igreja regressou à posição
mais abrangente sustentada por Sixto V, que remanesceu assentada no Código
de Direito Canônico de 1917 (cânone 2350, §1).
O Papa Pio XI, em 12 de outubro de 1869, na Constituição
Apostolicae Sedis, eliminou a referência a feto “animado” e “inanimado”, com a
aplicação da excomunhão para o indivíduo que cometesse a interrupção da
gravidez em qualquer fase, quando, na Igreja, assistiu-se à consolidação da teoria
da animação imediata e generalizou-se a convicção de que a alma humana era
infundida pelo Criador no momento da fecundação.
336
Contemporaneamente, a Congregação para Doutrina da Fé do
Vaticano, datada de 22 de novembro de 1987, sacralizou a vida desde a
fecundação, difundindo a idéia de que a mesma configura valor absoluto, de
modo que é contrária ao aborto e à atividade investigativa embrionária, sob o
argumento de que, na via oposta, o homem usurparia o lugar de Deus, embora
não se conscientize disso ao se fazer senhor do destino alheio.
O atual Papa Bento XVI alinha-se a esta postura. Segundo
Joseph Ratzinger, “a vida começa no momento da concepção”, e os embriões são
“sagrados e invioláveis”. A posição está incluída na encíclica Evangelium Vitae,
336
Cf. GUIMARÃES, Ana Paula. op. cit., p. 147-149.
177
de 1995, embora o documento não aborde especificamente a condição do
embrião antes da implantação no útero materno. No entanto, Bento XVI deixou
claro que não deve haver distinção entre um embrião antes ou depois da
implantação. “Deus não faz distinção pois em cada um deles vê sua própria
imagem e semelhança”.
337
Em síntese, a Igreja Católica rejeita o aborto e inclina-se para o
repúdio à experimentação com embriões, a seu congelamento e até mesmo às
técnicas de reprodução assistida, desde que impliquem emprego de gametas
alheios ao marido ou à mulher.
Todavia, os dogmas católicos, também seguidos pelos
Evangélicos, não são observados por todas as outras religiões. Para o Judaísmo,
a vida “começa apenas no 40º dia, quando acreditamos que o feto começa a
adquirir forma humana”, diz o rabino Shamal, de São Paulo. Destarte, permite a
pesquisa com células-tronco e o aborto quando há risco de vida para a mãe. O
Islamismo compreende que o início da vida acontece quando a alma é soprada
por Allah, cerca de 120 (cento e vinte) dias depois da fecundação. Mas há
estudiosos da crença que aceitam que a vida começa com a fecundação.
Condena o aborto, salvo quando há risco de vida para a mãe, e tendem a apoiar
as pesquisas com células-tronco. Para o Budismo, a vida é um processo contínuo
e ininterrupto. Não começa na união de óvulo e espermatozóide, mas está
presente em tudo o que existe nossos pais e avós, as plantas, os animais até a
água. Os seres humanos são apenas uma forma de vida que depende de outros,
não havendo consenso sobre o aborto ou pesquisas com embriões. Para o
Hinduísmo, a alma e a matéria encontram-se na fecundação e, como o embrião
337
As declarações foram feitas durante audiência com os membros da Academia Pontifícia para a
Vida (O ESTADO de S. Paulo, São Paulo, 28 fev. 2006. p. A-9).
178
tem alma, deve ser tratado como humano. Assim, em geral, os adeptos são
contrários ao aborto e às pesquisas com células-tronco.
338
Sendo o Brasil um Estado de Direito laico, porque não adota, no
corpo textual da Constituição, religião oficial, e Democrático, já que respeita todas
as crenças, a legislação não pode priorizar uma religião com prejuízo de outra. A
assertiva é corroborada pela tutela conferida, entre os direitos fundamentais, à
liberdade de consciência e de crença (art. 5º, VI). De conseguinte, o ordenamento
jurídico deve tolerância à Igreja Católica, à Evangélica e a todas as outras
crenças em forças sobrenaturais, como também ao direito de ser pagão. Por isso,
a lei não assenta sua legitimidade em convicções sobre a existência da alma e,
conseqüentemente, sobre o dogma de sua presença desde a fecundação,
pregado por diversas religiões.
No Estado Democrático de Direito, o problema jurídico sobre o
começo da vida, como preconiza Giovanni Sartori, alude à razão, pelo que
depende de argumentos racionais.
339
Do contrário, o direito penal voltaria a se
confundir com a religião, como nos tempos do absolutismo. Na argumentação
racional, os subsídios advêm, de um lado, de descobertas promovidas pela
ciência biomédica, onde é estudado o processo vital da espécie humana, e, de
outro, das ciências humanas, sobretudo dos estudos que são promovidos sobre a
cultura social em sua totalidade.
338
Cf. O PRIMEIRO instante, cit., p. 57.
339
SARTORI, Giovani. A vida humana segundo a razão. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 03 mar.
2005. p. A-8.
179
6.2.1.3 A teoria da fecundação ou formação do genótipo
Quando o espermatozóide penetra no óvulo, seus sistemas,
formados por 23 (vinte e três) cromossomos haplóides, interagem, mesclando um
ao outro (singamia), para originar um novo sistema, o zigoto, com número
cromossômico diplóide (23 pares). Sem alteração do padrão genético
(continuamente humano), mediante contínuas e conectadas divisões celulares
(mitose), o zigoto é o ponto de partida para todas as células do organismo.
Preleciona Elio Sgreccia, in verbis: “Uma vez que o
desenvolvimento biológico é ininterrupto e se realiza sem intrínseca mutação
qualitativa, sem que seja necessária uma ulterior intervenção causal, deve-se
dizer que a nova entidade constitui um novo indivíduo humano, o qual desde o
instante da concepção continua o seu ciclo, ou melhor, a sua curval vital. A
autogênese do embrião acontece de tal modo que a fase sucessiva não elimina a
precedente, mas a absorve e a desenvolve, segundo uma lei biológica
individualizada e controlada”.
340
Dispondo de programa genético único e irrepetível, que não se
confunde com os dos progenitores, o zigoto reúne, com simplicidade assustadora,
toda a informação genética necessária para a formação do ser vivo,
necessariamente humano. A autonomia genética, da qual é dotado, é confirmada
por eventuais reações imunológicas desencadeadas pelo aparelho orgânico
materno. Exemplo é o abortamento espontâneo por incompatibilidade materno-
fetal para grupos sangüíneos ABO.
341
340
SGRECCIA, Elio. op. cit., p. 346.
341
Cf. SILVA, Reinaldo Pereira e. Os direitos humanos do embrião: análise bioética das técnicas
de reprodução assistida. Revista dos Tribunais, São Paulo, ano 88, n. 768, p. 90, out. 1999.
180
Demais disso, o primeiro grupamento de células embrionárias
(blastócito), resultado de poucas divisões celulares, desempenha, desde logo,
duas tarefas de suma importância: o desenvolvimento embrionário e o
desenvolvimento do sistema placentário e da bolsa amniótica, soltando uma corda
com a qual o embrião se manterá unido à corrente sanguínea da mãe.
342
Daí ser
possível afirmar que as células desse sistema não são maternas, mas fetais, o
que rompe com a idéia romana de que o produto da concepção era parte do
corpo da gestante, pelo que partus antequam edatur mulieris pars est vel
viscerum (a mulher que aborta nada mais faz do que dispor de seu próprio corpo).
Assentada na fabulosa potencialidade que impregna o zigoto, a
teoria em epígrafe defende que, a partir do momento da fecundação do óvulo pelo
espermatozóide, começa uma nova forma de vida especificamente humana. A
postura é também chamada “genética” e, como visto, é abraçada pelos católicos,
evangélicos e hinduístas. Quando analisada sob a lente do Direito, a tese conduz
uma parcela significativa da doutrina a concluir que o direito à vida acoberta o
embrião desde a fecundação.
Nesse passo, Maria Garcia preleciona que: “O ser humano é
único e indivisível, da concepção à morte”.
343
Também Neves Barbas: ”Há pessoa
humana, há vida desde a concepção (e, também, alma para os católicos) e não
apenas com o nascimento”.
344
Seguiu a mesma linha o Conselho Nacional
português de Ética para as Ciências da Vida, no Relatório-Parecer sobre
342
Cf. MASSAGLIA DE BACIGALUPO, María Valeria. op. cit., p. 24-25.
343
GARCIA, Maria. op. cit., p. 167. Garcia Na doutrina brasileira, adotam a mesma postura, entre
outros, Maria Auxiliadora Minahim (Direito penal e biotecnologia. São Paulo: Ed. Revista dos
Tribunais, 2005), Jussara Maria Leal de Meirelles (op. cit.), Pietro de Jesús Lora Alarcón
(Patrimônio genético humano e sua proteção na Constituição Federal de 1988. São Paulo:
Método, 2004).
344
BARBAS, Stela Marcos de Almeida Neves. Direito ao patrimônio genético. Coimbra: Almedina,
1988. p. 67.
181
Experimentação no Embrião Humano (15/CNECV/95): “O embrião é, em qualquer
fase e desde o início, os suportes físico e biológico indispensáveis ao
desenvolvimento da pessoa e nele antecipamos aquilo que há de vir a ser: não
há, pois, razões que nos levem a estabelecer uma escala de respeito”.
345
Ana Paula Guimarães também partilha deste pensamento: “Na
verdade, embora condicionado ao organismo materno, o ser humano em
formação possui um dinamismo próprio, uma vida própria e actual que vai se
desenvolvendo e aperfeiçoando. Não vive por si, mas vive para si. É já um ser e
não parte da mãe que o gera. Um dia, este ser, encontrando-se capaz de se
autonomizar do corpo da mãe, nascerá, crescerá, envelhecerá e, um outro dia,
morrerá”.
346
Para o jurista italiano Ferrando Mantovani, o critério da
fecundação é entre todos os outros que considera meramente convencionais,
utilitaristas, perigosos e divergentes entre si o único com base ontológica,
porque não olvida que o zigoto é ser humano, não coisa ou propriedade dos
progenitores.
347
Entre os alemães, Albin Eser defende que o zigoto não é “algo
meramente vegetativo”, mas “una vida humana que no se puede equiparar a la
vida vegetal o animal ni mucho menos a una simples cosa”.
348
Sob essa ótica, a
Lei alemã de Proteção ao Embrião, de 13 de dezembro de 1990, em seu §8º,
define o embrião como o resultado da fusão das células masculina e feminina
345
BARBAS, Stela Marcos de Almeida Neves. op. cit., p. 71-72.
346
GUIMARÃES, Ana Paula. op. cit., p. 153-154.
347
Cf. MANTOVANI, Ferrando. Uso de gametas, embriões e fetos na pesquisa genética sobre
cosméticos e produtos industriais. In: ROMEO CASABONA, Carlos María (Org.). op. cit.,
p. 186-189.
348
ESER, Albin. Derecho penal, medicina y genética, cit., p. 125.
182
apto a desenvolver-se para dar origem a um indivíduo, assim como qualquer
célula totipotente extraída do embrião.
A presente corrente também foi adotada em Resolução pelo
Congresso da Associação Internacional de Direito Penal, realizado em Viena, em
outubro de 1989: “Embora sejam divergentes as opiniões a este propósito e
sendo certo que o problema suscita ainda vivos debates no mundo inteiro, todos
concordam, pelo menos ressalvadas eventuais limitações em reconhecer que
a vida humana, desde a fecundação, merece ser protegida, independentemente
do facto de o embrião, desde o início, ser qualificado como pessoa ou de possuir
ou não direitos próprios fundamentais”.
349
A teoria, entretanto, não é incólume a objeções.
Muitas delas advêm de profissionais especializados na seara da
biomedicina. Marco Segre, Conselheiro do Conselho Regional de Medicina, emitiu
o seguinte parecer: “A demarcação do momento do início da vida no átimo da
fecundação, levando a considerar desprezível um gameta (ou muitos) isolado e
‘sagrado’, logo em seguida, o blastócito, é condição absolutamente aleatória (uma
vez que o processo vital é um ‘continuum’, cabendo à sociedade definir quando é
seu início, o seu fim), vinculada basicamente às religiões”.
350
Porém, o óvulo e o espermatozóide, enquanto permanecem
isolados, não têm potencialidade de gerar um adulto, o que é disparado pela
fusão. Os gametas são, na realidade, produtos individualizados, que não passam
349
Cf. ROCHA, Manuel António Lopes. Bioética e nascimento. O diagnóstico pré-natal. Perspectiva
jurídico-penal. Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Coimbra, fasc. 2, p. 180, abr./jun. 1991.
350
Parecer emitido na consulta ao CREMESP n. 25.784/01, aprovado na 2.652ª reunião plenária,
realizada em 10 de agosto de 2001 e homologado na 2.655ª reunião plenária, realizada no dia 14
daquele mês. No mesmo sentido, o parecer emitido na consulta n. 15.100/99, aprovado na
2.739ª reunião plenária, realizada em 8 de março de 2002 e homologado na 2.742ª reunião
plenária, realizada no dia 12 daquele mês.
183
de células agonizantes, com expectativa de vida muito reduzida, além de
incapazes de multiplicação, o que não ocorre com o embrião.
351
Além disso, entre os críticos, é lembrado que a fecundação não
se atém a momento isolado, porquanto configura processo complexo e largo.
Quando in vitro, perdura entre 10 (dez) e 25 (vinte e cinco) horas; se in vivo,
percorre por volta de 8 (oito) horas. Ademais, entre os cientistas, não há
consenso sobre o término da fecundação, como explica Lacadena. Para alguns
“ocurre cuando los complementos cromosómicos de origen paterno y materno
quedan incluidos en una membrana nuclear común al término de la primeira
división celular”, enquanto, para outros, “deveria situarse, com mucho, más allá de
cuando los dos pronúcleos han replicado ya su ADN y están preparados para
iniciar a mitosis”.
352
De qualquer modo, não há como negar que o grupamento das
primeiras células embrionárias tem carga genética do homo sapiens e,
diversamente de órgãos em laboratório aguardando transplante, tem peculiar
potencialidade para desenvolver-se e fazer nascer um indivíduo.
6.2.1.4 A teoria da nidação
A ciência biomédica identifica, no curso do desenvolvimento
embrionário, propriedades biológicas, fisiológicas e genéticas, que apresentam a
particularidade de coincidir no tempo. Sobre elas, a teoria da nidação
(implantação do embrião no útero materno) deita raízes.
351
Nessa linha, MINAHIM, Maria Auxiliadora. op. cit., p. 87.
352
RAMÓN LACADENA, Juan. op. cit., p. 193-195.
184
A primeira das singularidades biológicas parte da comprovação
de que, antes da nidação, graças ao estado de totipotencialidade em que se
encontram as células, é possível a segmentação, consistente na cisão do grupo
de células embrionárias em mais de um sistema vital, prosseguindo cada qual
com desenvolvimento independente (gêmeos) ou, em sentido inverso, unindo-se
num só sistema (mosaicos ou gêmeos siameses). O resultado será o nascimento
de pessoas em duplicidade, decorrentes de único zigoto, com o mesmo genótipo.
Os gêmeos monozigóticos apresentam-se na proporção de 2
(dois) casos para 1.000 (mil) concepções. São formados até o 4º (quarto) ou
(quinto) dia, cada qual com seu respectivo córion e âmnios (futura cavidade
amniótica). Quando divisão processa-se na segunda semana, os gêmeos
partilham do mesmo córion e da mesma bolsa amniótica e, neste caso, com
ínfima ocorrência, é possível haver uma divisão incompleta entre os embriões,
quando advirão os gêmeos siameses.
353
Baseada na possibilidade da segmentação, uma parcela dos
cientistas considera que, antes da implantação do blastócito no útero, estão
aparentemente ausentes duas características fundamentais para o
reconhecimento da vida humana: a unidade (qualidade de ser único) e a
unicidade (propriedade de ser um só). Esse fato, para os adeptos da presente
teoria, coloca pelo menos em dúvida a individualidade humana antes da nidação,
o que os leva a concluir que, nesse período, conquanto se tenha iniciado a vida,
não é reconhecível uma vida humana, quer dizer, vida com potencial de formação
de uma pessoa.
353
Cf. MARTÍNEZ, Stella Maris. op. cit., p. 80-81.
185
Em segundo lugar, argumenta-se que o blastócito não está
composto exclusivamente pelo material biológico responsável pelo
desenvolvimento do embrião (embrioblasto), eis que se lhe integra o trofoblasto,
do qual as membranas extra-embriônicas, a placenta e o cordão umbilical
originar-se-ão.
354
Considerando que os derivados trofoblásticos estão vivos, têm a
mesma composição genética do que o feto e são expulsos no momento do
nascimento, é deflagrada, pelos partidários da teoria, a seguinte pergunta: eles
são uma pessoa?
355
Esquecem-se, porém, de que o trofoblasto, diversamente do
embrioblasto, não tem potencialidade para desenvolver-se em ser adulto.
Lança-se, como terceiro fundamento, a descoberta da
biomedicina sobre o zigoto não deter toda a informação necessária para o
processo embriogenético.
356
A respeito, Afonso Bedate e Cefalo, doutrinadores
especializados, explicam que a capacidade genética do zigoto não é
imediatamente autosuficiente, mas adquirida, com o tempo, mediante relação
mútua com outras moléculas, no caso as da mãe, quando os sistemas biológicos
interagem.
357
É, entretanto, obscurecido que o zigoto incorpora informação
exclusivamente humana e bastante para iniciar o processo de diferenciação.
O quarto argumento recorda que, geneticamente, o conjunto de
células embrionárias (blastócito) que antecede a nidação é bastante frágil,
porque, no período, opera acentuada seleção natural, em virtude da qual apenas
metade dos óvulos fecundados tem potencialidade para implantar-se no útero,
perdendo-se o restante e, consumada a implantação, a percentagem de perda
354
Capítulo 2, item 2.3.1, supra.
355
Cf. MARTÍNEZ, Stella Maris. op. cit., p. 83.
356
Cf. ROMEO CASABONA, Carlos María. El derecho y la bioética ante los límites de la vida
humana, cit., p. 149.
357
Afonso Bedate e Carlos Cefalo, “El zigoto: ser ou no ser persona”, in: Labor Hospitalaria, n. 217,
1990, p. 232, apud ROMEO CASABONA, Carlos María. El derecho y la bioética ante los límites
de la vida humana, cit., p. 149.
186
reduz-se para 20% (vinte por cento). Entre os óvulos abortados no período, cerca
de 80% (oitenta por cento) são portadores de graves patologias cromossômicas
ou de malformação congênita.
358
Em quinto lugar, é lembrado que o zigoto recém-formado pode,
excepcionalmente, fugir do destino natural e originar um tumor trofoblástico,
espécie de câncer em que crescem células malignas nos tecidos formados logo
após a união do óvulo e espermatozóide. Outra possibilidade de evolução
anômala está na formação da mola vesicular ou hidática, consubstanciada em
vilosidades do córion fortemente hipertrofiadas e dilatadas em vesículas,
dispostas em numerosos prolongamentos, formando cachos. Nos caracteres
anátomo-histológicos das vilosidades, existe a prova de uma produção gestativa,
gorada ou abortada, com destruição consecutiva do embrião ou feto, cujos restos
mortais o útero guarda como sepulcro.
359
Em sexto e último lugar, porém com salientada importância, é
apontado que antes dos 14 (quatorze) dias iniciais, além de não ter se
completado a nidação, não houve a formação do plano construtivo do embrião
(linha primitiva) nem foi esboçada a rudimentar organização do sistema nervoso
(crista neural), de modo que nenhuma sensação é percebida.
Todos esses fenômenos, praticamente simultâneos, traduzem
dados significativos sobre a indiferenciação, instabilidade e autoseleção biológica
dos primeiros grupamentos de células embrionárias. A eles se soma a dificuldade
do diagnóstico da gravidez nas primeiras etapas. O conjunto funciona - dizem os
partidários da corrente - como base para afirmar que não existe objeto material
358
Cf. GAFO FERNÁNDEZ, Javier. op. cit., p. 244.
359
Cf. Souza Lima, Medicina Legal, 1924, apud HUNGRIA, Nélson. op. cit., v. 5, p. 259-260.
187
que expresse com toda a nitidez a vida, o que inviabiliza sua subsunção à
categoria do bem jurídico.
A postura foi abonada pelo Relatório da Comissão de Pesquisa
sobre Fertilização Humana e Embriologia, criada em 1982, na Inglaterra, sob a
liderança de Mary Warnock, pelo que é denominado Relatório Warnock ou
Informe Warnock. Segundo o documento, não devem ser mantidos vivos
(congelados ou não) embriões humanos in vitro, se não transferidos para uma
mulher no período de 14 dias após a fertilização. Igualmente, não se devem
realizar pesquisas (investigações experimentais) com esses embriões além do 14º
(décimo quarto) dia.
Nesta égide, o Comitê Warnock, partindo do tempo necessário
para a formação da linha primitiva e, simultaneamente, do início do
desenvolvimento individual embrionário, permitiu que fosse diferenciado o pré-
embrião, equiparado a aglomerado amorfo de células com menos de 14
(quatorze) dias após a fecundação, dotado de remota possibilidade de constituir
um ser humano, do embrião, estrutura seguinte, com caráter humano e que se
transformará no feto. Portanto, a visão única da estrutura embrionária sustentada
pela teoria da fecundação - só existe embrião e, a seguir, o feto - foi substituída
pela sua distinção em duas categorias, com valorações diversas.
360
A Comissão
Warnock foi marcadamente pragmática, porquanto, ao eleger o 14º (décimo
quarto) dia como termo inicial da tutela da vida humana, viabilizou as pesquisas
envolvendo as células-tronco embrionárias, inclusive mediante a clonagem.
Na mesma direção, pronunciou-se a Comissão Waller, na
Austrália, em 1984, afirmando que até o 14º (décimo quarto) dia seria possível a
360
Cf. SGRECCIA, Elio. op. cit., p. 347.
188
experimentação, pois, somente após, estaria formada a linha primitiva e a
diferenciação embrionária seria flagrante. A Corte Constitucional francesa
(decisão 94.343.344), em 27 de julho de 1994, decidiu que o princípio do respeito
à vida não era devido ao pré-embrião e permitiu que, sob certas condições, fosse
possível a destruição de embriões in vitro.
361
Na Espanha, desde a Recomendação Palácios, aprovada em 10
de abril de 1986, oriunda da Comissão Especial de Estudo de Fecundação in vitro
e de Inseminação Artificial Humana, sob a presidência do deputado Marcelo
Palácios, entende-se que o embrião é merecedor de diferenciada e especial
proteção a partir dos 14 (quatorze) dias subseqüentes à fecundação.
A orientação foi respeitada nas leis subseqüentes - Lei n. 35, de
22 de novembro de 1988, sobre reprodução assistida, e Lei n. 42, de 28 de
dezembro de 1988, sobre doação e utilização de embriões e fetos humanos ou de
suas células, tecidos ou órgãos -, ambas de caráter administrativo.
362
A Lei n. 35
autoriza a transmissão de embriões para o útero em número limitado ao
cientificamente correto, permitido, implicitamente, o surgimento de excedente (art.
4º); determina que os pré-embriões congelados por 2 (dois) anos, não doados,
fiquem à disposição dos bancos de gametas (art. 11, n. 4), promovendo o
nivelamento entre as duas figuras. A par disso, capitula, como infração muito
grave, manter in vitro óvulos fecundados e vivos além do 14º (décimo quarto) dia
361
Cf. MINAHIM, Maria Auxiliadora. op. cit., p. 99.
362
São da Exposição de Motivos da Lei n. 35/88 os seguintes dizeres: “Generalmente se viene
aceptando el término ‘preembrión’ también denominado ‘embrión preimplantatorio’, por
corresponderse con la fase de preorganogénesis para designar al grupo de células resultantes
de la división progresiva del óvulo desde que es fecundado hasta aproximadamente catorce días
más tarde, cuando ainda establemente en el interior del útero acabado el proceso de
implantación que se inició dias antes y aparece en él la línea primitiva”. E, ainda: “Por ‘embrión’
propiamente dicho se entiende tradicionalmente a la fase del desarollo embrionário que,
continuando la anterior si se há completado, señala el origen e incremento de la organogénesis o
formación de los órganos humanos, y cuya duración es de unos dos meses y médio más; se
corresponde esta fase con la conocida como de ‘embrión posimplantatorio”.
189
subseqüente à fecundação (art. 20, n. 2-B); a fecundação de óvulos humanos
com fins distintos da procriação; a utilização de pré-embriões com fim industrial ou
comercial; bem como, a seleção de sexo ou a manipulação genética com fins não
terapêuticos ou terapêuticos não autorizados.
Em outros termos, a licitude a priori da destinação de “pré-
embriões” para fins diversos da procriação, limitada pela proibição de específicas
condutas de manejo, indica que a ratio legis não se encontra na tutela deles, mas
em outros bens que extrapolam a esfera do dito “pré-embrião” e que aludem mais
propriamente à natureza humana do material.
No Brasil, a Resolução n. 1.358/92, do Conselho Federal de
Medicina, estipula que o tempo máximo de desenvolvimento de pré-embriões in
vitro será de 14 (quatorze) dias. Outrossim, o diploma recomenda que no máximo
4 (quatro) pré-embriões sejam transferidos, o que tem em mira evitar os riscos da
multiparidade, sem preocupação com a valia da vida do “pré-embrião”, porquanto
restou absolutamente relegada aos pacientes a decisão sobre o destino dos não-
implantados no caso de dissolução da sociedade conjugal.
Envereda para as bases desta construção a professora Lygia da
Veiga Pereira, geneticista brasileira que julga suportável utilizar células de
embriões com até 5 (cinco) dias.
363
Partindo dessas premissas, ao estudarem o status jurídico do pré-
embrião, os professores da Universidade de Barcelona, Vale Muñiz e González
Gonzáles afirmam que: “Su falta de individualidad y la incertidumbre en torno a su
posible desarrollo embrionario lo alejan considerablemente del paraguas protector
363
FOLHA de S. Paulo, São Paulo, 13 mar. 2005. p. C-9.
190
del artículo 15 CE”.
364
A posição é repisada em território latino pela argentina
María Valeria Massaglia de Bacigalupo: “el derecho a al vida que tiene el ‘por
nascer’, pero ségun mi critério dicho derecho debe ser reconocido a partir de que
el embrión se implantó en el útero del seno materno y no antes”.
365
Não faltam críticas à presente corrente. Coloca-se a dificuldade
de edificar uma teoria sobre o começo da vida com base em fatos bastante
esporádicos: gêmeos monozigóticos ou siameses, degeneração patológica do
embrião em tumor. Rememorando que o desenvolvimento da vida humana é um
contínuo, alega-se que não há a pretendida ruptura entre a fase iniciada como
zigoto e a etapa subseqüente à nidação, posto que uma sucede a outra.
Enfocando o aparecimento da linha primitiva, Jussara Maria Leal de Meirelles
articula que “não é mais do que uma fase inserida no desenvolvimento
embrionário”.
366
6.2.1.5 A teoria da formação dos rudimentos do sistema nervoso central
Tal corrente defende que para saber-se o que é vida, basta
entender-se o que é a morte. Em países como o Brasil e os Estados Unidos, a
morte é concebida como a ausência de ondas cerebrais. De conseguinte, a vida
começaria com o aparecimento dos primeiros sinais de atividade cerebral. Exige-
se, portanto, que se estabeleça quando estes surgem, onde reside forte polêmica.
364
GONZÁLEZ GONZÁLEZ, Marisé; VALLE MUÑIZ, José Manuel. Utilización abusiva de técnicas
genéticas y derecho penal. Poder Judicial, n. 26, p. 124, jun. 1992. O art. 15, da Constituição
espanhola, protege o direito à vida.
365
MASSAGLIA DE BACIGALUPO, María Valeria. op. cit., p. 39.
366
MEIRELLES, Jussara Maria Leal de. op. cit., p. 126.
191
A primeira corrente invoca a 8ª (oitava) semana de gravidez,
quando o embrião, do tamanho de uma jabuticaba, contém as versões primitivas
de todos os sistemas de órgãos básicos do corpo humano, incluindo o sistema
nervoso. Na 5ª (quinta) semana, os primeiros neurônios começam a aparecer; na
(sexta) semana, as primeiras sinapses podem ser percebidas; e com 7 (sete)
semanas e meia, o embrião apresenta os primeiros reflexos em resposta a
estímulos. Assim, na 8ª (oitava) semana, o feto, com feições faciais mais ou
menos definidas, com mãos e pés, tem um circuito básico de três neurônios, base
de um sistema nervoso responsável pelo funcionamento de um pensamento
racional.
367
A segunda hipótese aponta para a 20ª (vigésima) semana,
quando a mulher sente os primeiros movimentos do feto, capaz de sentar de
pernas cruzadas, chutar e dar cotoveladas. É nessa fase que o tálamo, a central
de distribuição de sinais sensoriais dentro do cérebro, está pronto.
368
Infere-se, pois, que os sectários da teoria concordam sobre o
termo inicial da humanidade - formação dos rudimentos do sistema nervoso - e,
assim, sobre o momento exato do começo da vida, embora discordem sobre o
período embriológico em que o fenômeno ocorre. Uma das adeptas da posição é
a bióloga Mayana Zatz, coordenadora do Centro de Estudos do Genoma Humano
da Universidade de São Paulo, responsável pela impulsão da nova Lei pátria de
Biossegurança.
369
O critério é juridicamente atraente porque traça paralelo entre o
começo e o fim da proteção jurídica da vida. Todavia, a eleição da morte cerebral
367
Cf. O PRIMEIRO instante, cit., p. 61.
368
Id., loc. cit.
369
Cf. ZATZ, Mayana. Quando a ciência múltipla a vida, cit., p. J-4.
192
como termo final para a tutela da vida observa parâmetro específico, qual seja
possibilitar a extração de órgãos para o transplante em outra pessoa.
370
Não há
situação correspondente nas primeiras fases embrionárias, porquanto a
organogênese não foi iniciada (aparece por volta do - segundo - mês), não
havendo órgãos a serem transplantados. Ademais, a ausência de atividade
elétrica no embrião significa fenômeno biológico não manifestado, mas em
iminência de ser deflagrado, enquanto no adulto importa processo de extinção
irreversível da vida.
371
Soma-se, por fim, que a compreensão científica de morte não é
pacífica, pois, como argumenta o médico neurologista Cícero Galli Coimbra,
pacientes com lesões cerebrais graves acompanhadas de hipertensão craniana,
que se encontram em estado de iminente destruição do encéfalo, são
erroneamente diagnosticados em estado de morte encefálica, quando poderiam
ser recuperados pela imediata indução a níveis leves de hipotermia.
372
6.2.1.6 Nossa posição
Na seara da bioética, o operador do direito é levado a interagir
com outras ciências especializadas. Em sua obra, depara-se com conhecimentos
científicos pacíficos e com outros que não levam a conclusões unânimes entre os
próprios cientistas. A seara onde as divergências residem não autoriza o jurista à
370
Anteriormente, o fim da vida era considerado a morte clínica, isto é, a cessação da atividade
cardiorrespiratória. A noção foi alterada para a morte cerebral com o avanço da ciência,
tecnologia e medicina ligada a transplantes (cf. SILVA, Maurício de Castro Govêa da. A morte
encefálica e sua repercussão no direito. In: BARBOSA, Heloísa Helena; BARRETO, Vicente de
Paulo (Orgs.). Temas de biodireito e bioética. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 161-163).
371
Nesse sentido: GUIMARÃES, Ana Paula. op. cit., p. 158-159; MARTÍNEZ, Stella Maris. op. cit.,
p. 87-88.
372
MORTE encefálica. Universidade Federal de São Paulo. Escola Paulista de Medicina.
Disponível em: <http://www.unifesp.br/dneuro/me2.htm>. Acesso em: 05 dez. 2005.
193
inação pela perplexidade, senão demanda que rememore que são distintos a
forma de operar e o fim do Direito e das ciências da vida. O Direito desenrola-se
no mundo do dever ser, destinado a orientar o comportamento humano, com
respeito à liberdade de escolha, enquanto as Ciências Biomédicas estão no
mundo fenomênico (mundo do ser), preocupadas com a investigação dos
processos biológicos e sua descrição em relação rígida de causalidade. Cumpre,
pois, ao operador do direito instituir sua própria realidade, a normativa, para
adequá-la ao fim que lhe é próprio: busca da paz social.
Entretanto, não lhe é dado inventar um mundo apartado do
concreto. Cabe-lhe observar os dados fornecidos pela biomedicina, fazendo-o sob
filtro valorativo e, após, edificar seus conceitos, sem inverter os fenômenos
naturais, a fim de que se mantenham a aplicabilidade e a utilidade social da
norma jurídica.
Sendo assim, a análise dos elementos das teorias mencionadas
conduz ao reconhecimento de que o zigoto é célula com carga genética humana e
potencialidade única para desenvolver o adulto, mediante o fenômeno da divisão
celular. Não se nivela a um órgão para transplante nem aos gametas, porquanto
sua vida não é fugaz e retém especial capacidade de multiplicar-se e diferenciar-
se. A partir dele, a vida, embora não autônoma, evolui até o nascimento, de forma
contínua, coordenada e gradual, sem impulso externo e sem ultrapassar etapa,
mantendo, no adulto, idêntica carga genética formada desde a singamia entre os
gametas.
De conseguinte, no estágio atual da medicina, é razoável que as
ciências humanas, valorando os fenômenos biomédicos, aceitem que o zigoto
encarna vida humana em formação, com o fantástico traço de ser fonte primária
194
de toda a humanidade. Não se olvida que a postura ora defendida é passível de
alteração em virtude de hipotética descoberta científica futura que, interferindo no
sistema jurídico, imponha revisão do conceito normativo de vida, como ocorrera
com o conceito normativo de morte, que fora transportado do instante em que
expirada a atividade cardiorespiratória para o encerramento da atividade
encefálica, graças à evolução no campo dos transplantes.
Contudo, não é a legítima modificação do posicionamento com
fundamento em projetos pessoais incondicionados de procriação, postulando a
criação incontida de embriões, ou lastreados na avidez de pesquisas com células-
tronco embrionárias, ainda com inexata valia. Em verdade, ambos os propósitos
manifestam interesses de grupos em posição confortável que, por isso,
menosprezam, sem pudores, os mais frágeis, como outrora ocorrido com os
escravos, os judeus, as mulheres e, agora, com o embrião in vitro.
A segmentação e a transformação do zigoto em material
patológico, como dito, são exceções e, conseqüentemente, não prestam para
alicerçar uma teoria sobre o começo da tutela da vida. A fragilidade do blastócito,
bem como a ausência de linha primitiva ou crista neural, ou mesmo a falta inicial
de atividade cerebral não excluem do zigoto, ab initio, a potencialidade de
desenvolver um ser vivo com forma humana e racional. Do contrário, o Direito,
ignorando a realidade biomédica, priorizaria os critérios morfológicos (formação
da linha primitiva e organogênese), determinados por esses rudimentos, com
prejuízo dos modernos parâmetros genéticos, o que seria inconcebível do mundo
moderno.
Em suma, apartados os simbolismos simplistas, os jogos políticos
calcados no conhecimento ou na felicidade individual a qualquer custo, tem-se
195
que, desde a fecundação, está presente o direito à vida. Vejamos, pois, suas
expressões, para, após, esquadrinharmos os limites da atuação do direito penal.
6.2.2 Perfil internacional
A intervenção da comunidade internacional no resguardo do
direito à vida foi impulsionada pela Segunda Guerra Mundial, em face da
conscientização de que as transgressões poderiam ser cometidas, em grande
escala, sob o manto da autoridade estatal. Atualmente, a importância de
documentos internacionais é acentuada pela globalização e pelo disposto no art.
5º, §2º, da Carta Política brasileira.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu art. 3º, ao
se referir à vida, prevê: “Todo indivíduo (everyone) tem direito à vida, à liberdade
e à segurança de sua pessoa”. A falta de remissão expressa ao nascituro ou à
vida intrauterina é justificável, pois as Nações Unidas estavam concentradas
noutro assunto, qual seja conjugar esforços para evitar repetição de abusos
cometidos recentemente pelos comandos estatais nacional-socialistas.
O Pacto Internacional de Direito Públicos e Civis, adotado pela
Assembléia Geral das Nações Unidas em 16 de dezembro de 1966, assinala em
seu art. 6.1: “O direito à vida é inerente à pessoa humana (every human being).
Este direito estará protegido pela lei. Nada pode ser privado arbitrariamente da
vida”. No texto, foi omitida a condicional “desde o momento da concepção, este
196
direito deve ser protegido pela lei”, para superar as diversidades entre os Estados
sobre a legalidade do aborto, evitando polêmica na adesão ao documento.
373
Em nível regional, a Convenção Americana sobre os Direitos
Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), aprovada pela Organização dos
Estados Americanos, em 22 de novembro de 1969, dispõe, em seu art. 4.1: “Toda
pessoa (every person) tem o direito a que respeite sua vida. Este direito será
protegido por lei e, em geral, desde o momento da concepção. Nada pode ser
privado da vida arbitrariamente (...)”. O pacto foi incorporado ao direito pátrio pelo
Decreto n. 678/92
Diferenciando-se dos demais, a Convenção estabelece,
textualmente, que a concepção é o marco para o começo da proteção jurídica da
vida. A par disso, o texto emprega, sem estatuir condições, o aposto em geral,
pelo qual confere espaço a exceções que, como nos documentos anteriores,
foram margeadas pela busca de sua compatibilidade com as legislações dos
países americanos que previam a descriminalização do aborto.
A possibilidade de desvio da regra geral e, sobremaneira, a falta
de precisão sobre o status jurídico atribuído ao embrião in vitro são explicadas
pelo contexto histórico e científico em que editado o documento. Há quase 40
(quarenta) anos, a presença de embrião em laboratório não era uma realidade e
as descobertas da engenharia genética eram bem primitivas.
Não atualizado nem taxativo, o Pacto não encerra o debate em
torno do limite mínimo do direito à vida, notadamente em temas mais específicos
como a biotecnologia. Reconhecendo a complexidade técnica e ética que permeia
a tutela da vida relativamente às primeiras fases embrionárias, a moderna
373
A respeito, ROMEO CASABONA, Carlos María. El derecho y la bioética ante los límites de la
vida humana, cit., p. 52-53, n.r. 13.
197
Declaração Universal do Genoma Humano, direcionada às ciências biomédicas,
deixa em aberto a questão, tanto que remete tão-somente à pessoa e ao
indivíduo, não aludindo a nascituro.
6.2.3 Perfil constitucional
No Título II (Dos Direitos e Garantias Fundamentais), Capítulo I
(Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos), o art. 5º, caput, da Constituição
Federal, reza: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida (...)”.
Fundamento biológico do indivíduo e da espécie, o direito à vida
implica direito a nascer, a existir e a não ser privado da vida. É captado sob duas
acepções opostas: a santidade e a qualidade. A primeira delas considera a vida
um valor absoluto e intangível, a ser protegido como tal, sem matizes. A segunda
confere à vida valor graduado. As duas noções, se isoladas, podem conduzir a
extremos.
O ideal é a aproximação entre elas, pois, como preleciona Albin
Eser, de “una parte, el respeto por la ‘santidad’ de la vida no debe fosilizarse en
un pretexto formal para reprimir las exigências del hombre concreto por dar un
sentido a aquélla. Por la outra parte, la ambición de una vida ‘cualitativamente’
valiosa, no debe socavar su preeminente derecho a la existência”.
374
O equilíbrio
entre a santidade e a sacralidade é realizável pela máxima da proporcionalidade,
374
ESER, Albin. Derecho penal, medicina y genética, cit., p. 111.
198
temperada pelo princípio da dignidade humana, que harmoniza as concepções,
especialmente em face de situações limites.
Posto isto, é possível, sem exageros utilitaristas, sustentar que o
direito constitucional à vida tem cunho relativo no ordenamento jurídico, como
qualquer outro direito fundamental.
375
Nem a expressão inviolabilidade autoriza
entendimento diverso, porquanto em seu contexto rechaça tão-somente ataques
arbitrários ou violentos e não quaisquer ataques.
376
Fosse intocável o direito à
vida, a Constituição não teria instituído limitações expressas (art. 5º, XLVII, a,
parte final) ou recepcionado cerceamentos tácitos, presentes, por exemplo, nas
justificativas de homicídio (legítima defesa, estado de necessidade e exercício
regular de direito).
Dada a categoria de direito fundamental e diante do exposto no
art. 4.1, do Pacto de San José da Costa Rica, os limites ao direito à vida hão de
ser mínimos e bem arrazoados. Como nos demais direitos fundamentais, os
limites são internos e externos, explica Vieira de Andrade.
377
Os internos derivam
do subsistema jusfundamental, emergindo de situações de conflito com outro
direito fundamental.
378
Os limites externos decorrem da integração dos direitos no
conjunto de valores comunitários e permitem que se conciliem as naturais
exigências de cada direito com as imposições próprias do cotidiano comunitário: a
ordem pública, a ética, a segurança, o bem-estar geral.
375
Na mesma linha, MINAHIM, Maria Auxiliadora. op. cit., p. 70.
376
No Dicionário Aurélio, a palavra inviolável significa, juridicamente, estar legalmente protegido
contra qualquer violência e acima da ação da justiça.
377
ANDRADE, José Carlos Vieira de. op. cit., p. 275-276.
378
Daí a precisão das palavras de Albin Eser: “Este relativismo de la protección de la vida no
significa una diminución de su valor, sino de lo que se trata es de construir un bastión no solo
sostenible desde el punto de vista ético-jurídico, sino también realizable fácticamente” (ESER,
Albin. Derecho penal, medicina y genética, cit., p. 128).
199
Na busca dos limites temporais do direito à vida, os documentos
internacionais, não direcionados às novidades da biomedicina ou imprecisos, não
fornecem resposta definitiva.
Examinando o disposto no art. 5º, caput, da Constituição, os
doutrinadores pátrios e estrangeiros, bem como os tribunais, fornecem precioso
material para que seja adotada uma posição.
José Afonso da Silva pondera que a vida é “mais um processo
(processo vital), que se instaura com a concepção (ou germinação vegetal),
transforma-se, progride, mantendo sua identidade, até que muda de qualidade,
deixando, então, de ser vida para ser morte”.
379
Opta, portanto, pela teoria da
fecundação. A seguir, analisa as tendências havidas durante a redação do texto
constitucional, quando observa que foram três: I) assegurar o direito à vida desde
a concepção, o que redundaria em proibir o aborto; II) subordinar a condição de
sujeito de direito ao nascimento com vida, de modo que a responsabilidade
intrauterina seria da mulher, o que possibilitaria o aborto; III) entender que a
Constituição não deveria tomar partido na questão do aborto. Refuta a última
tendência, advertindo que “não saiu inteiramente vencedora, porque a
Constituição parece inadmitir o abortamento”. Mas ressalva que,no fundo, a
questão será decidida pela legislação ordinária, especialmente a penal. E, por
certo, há casos em que a interrupção da gravidez tem inteira justificativa, como a
necessidade de salvamento da vida da mãe, o da gravidez decorrente da cópula
forçada e outros que a ciência médica aconselhar”.
380
André Ramos Tavares, em análise direcionada para as primeiras
fases embrionárias, deixa claro que “nada impede que o Direito confira aos pré-
379
SILVA, José Afonso da. op. cit., p. 200.
380
Id. Ibid., p. 206.
200
embriões a mesma proteção conferida à vida humana. (...) Trata-se muito mais de
uma opção política, mas opção esta que não pode ser puramente arbitrária,
devendo encontrar justificativa que legitime a norma a ser editada, segundo os
interesses da sociedade”.
381
Vidal Serrano Nunes Júnior considera que a Constituição proibiu
o aborto, exceto nas duas hipóteses legais permitidas.
382
Adentrando na seara
científica, Pietro de Jesús Lora Alarcón afirma que “o zigoto, o ovócito fertilizado,
deve ser o destinatário da proteção constitucional”.
383
Na mesma linha, Maria
Garcia sustenta que a proteção constitucional começa com a fecundação, quando
há vida.
384
No âmbito do direito comparado, Paulo Otero, ao examinar a
Constituição Portuguesa,
385
conclui, in verbis: “Precisamente por não fazer
qualquer distinção, uma única interpretação se mostra legítima: entender que a
garantia da inviolabilidade da vida humana compreende todas as formas de
manifestação dessa mesma vida, desde que a mesma surge”.
386
Na esfera jurisprudencial, o Tribunal Constitucional Federal da
Alemanha, em 25 de fevereiro de 1975, ao examinar a Quinta Lei da Reforma
Penal, de junho de 1974 - que autorizava o aborto praticado por médico, com
consentimento da gestante, durante as primeiras 12 (doze) semanas após a
concepção -, declarou sua inconstitucionalidade, pois reconheceu o direito à vida
381
TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 388-389.
382
ARAÚJO, Luiz Alberto David; NUNES Júnior, Vidal Serrano. Curso de direito constitucional. 9.
ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 98.
383
LORA ALARCÓN, Pietro de Jesús. op. cit., p. 207.
384
Cf. GARCIA, Maria. A inviolabilidade constitucional do direito à vida. A questão do aborto.
Necessidade de sua descriminalização. Medidas de Consenso. Revista dos Tribunais, São
Paulo, ano 6, n. 24, p. 73-83, jul./set. 1998.
385
Art. 24, n. 1: “A vida humana é inviolável”.
386
OTERO, Paulo. Personalidade e identidade pessoal e genética do ser humano: um perfil
constitucional da bioética. Coimbra: Almedina, 1999. p. 37-38.
201
do não-nascido. Em 27 de julho de 1992, foi publicada a Lei de Auxílio às
Mulheres Grávidas e às Famílias, havendo permissão para a interrupção
voluntária da gravidez nas 12 (doze) primeiras semanas, a pedido da mulher. O
Tribunal Constitucional alemão, em 28 de maio de 1993, declarou a
inconstitucionalidade do diploma, argumentando que o direito à vida não pode
depender da vontade exclusiva da genitora, nos termos dos arts. 1º e 2º, da Lei
Fundamental
387
e, atendendo ao critério da não-exigibilidade, determinou que o
legislador deveria fixar as circunstâncias em que cessa o dever da mulher dar à
luz.
388
O Tribunal Constitucional espanhol, na sentença n. 75, de 27 de
junho de 1984, declara: “(...) que, según este precepto [el art. 15 de la CE], la vida
humana en formación es un bien que constitucionalmente merece protección”. Na
sentença 53/85, delibera: “ (...) si la Constitución protege la vida con la relevância
a que antes se ha hecho mención, no puede desprotegerla en aquella etapa de su
proceso que no solo es condición para la vida indepiendente del claustro materno,
sino que es también un momento del desarrollo de la vida misma; por lo que ha
de concluir-se que la vida del ‘nasciturus’, en cuanto éste encarna un valor
fundamental la vida humana garantizado en el artículo 15 de la Constitución,
constituye un bien jurídico cuya protección encuentra en dicho precepto
fundamento constitucional”.
389
387
Art. 1º, n. 1: “A dignidade humana é inviolável. É obrigação do Estado protegê-la e defendê-la”.
Art. 2º, n. 2: “Todos têm direito à vida e à integridade física”.
388
Cf. GUIMARÃES, Ana Paula. op. cit., p. 125-128. Paradoxalmente, o mesmo Tribunal admitiu
que o Estado renunciasse, nos 3 (três) primeiros meses de gravidez, à proteção penal da vida do
nascituro e centrasse sua atenção no assessoramento obrigatório da mulher grávida para que ela
se interessasse pela gestação (cf. Christian Starck, [Catedrático de Direito Público da
Universidade de Göttingen, na Alemanha] - STARCK, Christian. El estatuto moral del embrión.
Trad. por Sergio Romeu Malanda. Revista de Derecho y Genoma Humano, Bilbao, n. 15, p. 145,
jul./dic. 2001).
389
Cf. ROMEO CASABONA, Carlos María. El derecho y la bioética ante los límites de la vida
humana, cit., p. 82-83.
202
A tese esposada aceita a vida do nascituro como bem jurídico
constitucionalmente protegido, sem que, ao mesmo tempo, suponha a existência
do respectivo direito subjetivo fundamental (para o nascituro). O pensamento
encontra assento na dupla dimensão dos direitos fundamentais, quais sejam a
objetiva, relacionada a valores positivados (bem jurídico), e a subjetiva, referente
à titularidade dos direitos, às suas situações e atuações individuais. No caso, o
Tribunal admite a proteção constitucional da vida do nascituro, porque nela
manifesta-se a faceta objetiva do direito fundamental.
Iluminado o raciocínio pela doutrina e pela jurisprudência
assinaladas, bem como pelos subsídios científicos, tem-se que a Constituição
pátria, ao consagrar o direito à vida, sem distinguir a vida extra da intra-uterina
nem estatuir diferenças entre as sucessivas etapas embrionárias, compreende, na
esfera do art. 5º, caput, todas as formas de manifestação de existência humana
com potencial para a formação, desenvolvimento e posterior nascimento, cujo
conjunto comporá “todos”, quer dizer, os brasileiros e estrangeiros residentes no
país.
Outra postura afrontaria o princípio hermenêutico da eficiência,
máxima efetividade ou interpretação efetiva das normas constitucionais, segundo
o qual “a uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia
lhe dê”, para a maior aplicação concreta do direito fundamental.
390
É irrelevante,
para a tutela, quem exerça o direito no jogo das relações sociais, porquanto basta
a presença de uma realidade que encarne, com contornos objetivos, a vida
humana, o que, conforme o estágio atual da ciência, está presente desde o
instante da fecundação.
390
CANOTILHO, J. J. Gomes. op. cit., p. 1149. Na mesma linha, MIRANDA, Jorge. op. cit., t. 2,
p. 263.
203
Não se olvida que a fecundação não se compacte num átimo: é
um processo que perdura horas. Principiando pela penetração do espermatozóide
no óvulo, segue para a fusão dos núcleos dos gametas. Fundidos, surge a célula
diplóide, onde está o programa genético do novo ser humano.
391
Portanto, à luz
dos fenômenos científicos, tem-se que a vida humana - potencial para
desenvolver um indivíduo manifesta-se desde o instante em que, no óvulo
fecundado, houve a mistura dos dois núcleos. Esta posição foi perfilhada pela Lei
alemã de Proteção ao Embrião, na qual é definido o que se entende por embrião:
ya el óvulo fecundado, susceptible de desarollo a partir de la fusión de los
núcleos”.
6.2.4 Parâmetros para a intervenção penal
A inclusão ampla do embrião na tutela constitucional à vida
significa que, desde a fecundação, o zigoto transporta bem jurídico eminente, o
que indica para a positividade da dignidade penal, embora esta dependa também
da repulsa social que se expressa em face das mais diversas formas de ataque.
Ademais, a concessão de proteção penal está condicionada à positividade do
juízo de carência, quando analisado se a via administrativa ou civil é suficiente,
bem como se os custos são inferiores aos benefícios esperados da intervenção
punitiva.
Portanto, os valores constitucionais, mesmo quando relacionados
a direitos fundamentais, como a vida, não amarram o legislador ordinário. A Carta
Política lhe reserva espaço para o próprio juízo valorativo que, no direito penal,
391
Vide capítulo 2, item 2.3.1, supra.
204
observa a fragmentariedade, a subsidiariedade e a adequação da norma ao caso.
Por outras palavras, a Constituição, ao proteger a vida, presta-se a reclamar
compatibilidade entre o sistema axiológico que entranha de suas normas e o
sistema jurídico-penal, resguardando campo necessário para o legislador
infraconstitucional captar as peculiaridades em que se desenrola o bem em
questão. Sendo assim, a vida não está, em toda sua vastidão e meandros, sujeita
à tutela penal.
Na valoração da vida, o legislador infraconstitucional deve
aproximar-se da realidade fenomênica e do universo cultural em que o bem está
mergulhado, os quais revelam a sua natureza particular: cuida-se de fenômeno
dinâmico, contínuo, sujeito a uma série de transformações biológicas comuns a
todos os seres da espécie, que impulsionam valorações distintas na sua
manifestação.
Este panorama reflete-se nas diferentes intensidades de
reprovabilidade social perante os ataques a um embrião recém-fecundado, a um
embrião com dias, a um feto com 6 (seis) meses e a um ser nascido há pouco
tempo. Assim porque a vida não é somente um processo individual, mas também
familiar e social. A sensibilidade popular foi consolidada nos códigos penais, os
quais, tradicionalmente, graduam as penas conforme o estágio de evolução em
que se encontra o ser humano, de modo que são menores para o aborto,
intermediárias para o infanticídio e maiores para o homicídio. A variada graduação
punitiva concretiza a idéia da fragmentariedade.
Entre as mudanças físicas do processo vital, o nascimento
constitui salto qualitativo, com a socialização do ser vivo. Antes dele, porém, são
numerosos os processos biológicos constatados. Embora não tenham o condão
205
de demarcar o princípio da proteção jurídica à vida, eles podem auxiliar na
justificativa de cortes axiológicos passíveis de serem instituídos pelas normas
infraconstitucionais, na medida em que permitem a identificação de novas
propriedades qualitativamente distintas das existentes em momento
anterior.
392
Cabe ressalvar que o reconhecimento do variável valor da vida
humana não se confunde com inaceitáveis discriminações qualitativas entre os
seres humanos, pois não se equiparam os fenômenos biológicos ora
considerados, próprios do desenvolvimento de todo ser humano, com abusivas
diferenças individualizadas, pautadas em peculiares características físicas e
psíquicas de indivíduos especiais, que os fazem julgados, sob critérios refutáveis,
como “inferiores”.
6.2.4.1 A vida humana “in vivo”: algumas considerações sobre o aborto
O presente trabalho está centrado no estudo da vida in vitro e, por
isso, escapa do seu âmbito a ampla problemática que envolve o aborto. A
referência a ela será invocada tão-somente como parâmetro comparativo e, sob
este prisma, despertam interesse os elementos basilares relacionados ao termo
inicial da criminalização do abortamento.
No estudo do Código Penal pátrio de 1940, Nélson Hungria
assinala que, ao incriminar o aborto, a lei “não distingue entre óvulo fecundado,
embrião ou feto”. Sendo assim, qualquer “que seja a fase da gravidez (desde a
concepção até o início do parto, isto é, até o rompimento da membrana
392
Cf. RAMÓN LACADENA, Juan. op. cit., p. 193.
206
amniótica), provocar sua interrupção é cometer o crime de aborto”.
393
Após,
completa: “A gravidez se estende desde a fecundação até o início do parto”.
394
Também partindo da lei posta, Aníbal Bruno disserta: “Não
interessa a fase da evolução fetal em que se promove o aborto. A proteção penal
que o Direito concede ao ser em formação, nessa figura punível, estende-se
desde o instante em que as duas células germinais se fundem, com a constituição
resultante do ovo, até aquele em que se inicia o processo de parto”.
395
Igualmente, José Frederico Marques ao delimitar o objeto de proteção do crime
de aborto: “é o nascituro, o produto da concepção (infans conceptu pro nato
habetur)”.
396
Em outra via, Heleno Cláudio Fragoso diz que: “O aborto consiste
na interrupção da gravidez com a morte do feto. Pressupõe, portanto, a gravidez,
isto é, o estado de gestação, que, para os efeitos legais, inicia-se com a
implantação do ovo na cavidade uterina”.
397
A seguir, o jurista ressalta que a lei
penal não especifica o alcance do aborto, pelo que “deve ser definido com
critérios normativos, tendo-se presente a valoração social que recai sobre o fato e
que conduz a restringir o crime ao período de gravidez que se segue à
nidação”.
398
Na doutrina estrangeira, Francesco Antolisei perfilha este ponto
de vista: “Presupposto dell’aborto vero e próprio è la gravidanza (gestazione) della
393
HUNGRIA, Nélson. op. cit., v. 5, p. 252.
394
Id. Ibid., p. 253.
395
BRUNO, Aníbal. Crimes contra a pessoa. 4. ed. rev. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976. p. 161-
162. Na mesma linha, a posição de FERREIRA, Ivete Senise. op. cit., p. 74-75.
396
MARQUES, José Frederico. Tratado de direito penal: parte especial. Ed. rev., atual e ampl. por
Antônio Cláudio Mariz de Oliveira, Guilherme de Souza Nucci e Sérgio Eduardo Mendonça de
Alvarenga. Campinas: Millennium, 2002. v. 4, p. 173.
397
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: parte especial. 11. ed. rev. e atual. por
Fernando Fragoso. Rio de Janeiro: Forense, 1995. v. 1, p. 80.
398
Id. Ibid., p. 81.
207
donna. Questo fenomeno ha inizio con l’annidamento dell’ovulo, fecondato
mediante l’incontro con lo sperma maschile, nella mucosa uterina, vale a dire,
quando il germe ha raggiuinto la sua sede naturale e comincia a svilupparsi”.
399
Romeo Casabona, ao buscar a resposta pretendida, retoma as
constatações científicas referentes ao período entre a fecundação e o 14º (décimo
quarto) dia seguinte: não há individualização pela possibilidade de segmentação e
é acentuada a instabilidade do zigoto em face da intensa autoseleção biológica.
Não sabendo se o óvulo fecundado continuará seu desenvolvimento ou se
evoluirá para um ou vários seres, conclui que, no caso do embrião in vivo, antes
da nidação, “se hace difícil la puesta en acción de los mecanismos jurídicos de
protección y muestra que todavía no existe un interés claramente delimitado digno
de la máxima protección jurídica: la que confiere el Derecho Penal”.
400
401
Às essas considerações, embasadas em parâmetros científicos, a
doutrina emparelha motivos de oportunidade penal. Patricia Laurenzo Copello traz à
baila que se fixado “el comienzo de la protección penal en la fecundación, la
utilización de dispositivos intrauterinos (DIU) como medios de control de la natalidad
quedaría comprendida dentro de las conductas prohibidas por la norma (...)”.
402
Não
se poderia igualmente fazer uso da denominada “pílula do dia seguinte”.
403
399
ANTOLISEI, Francesco. Manuale di diritto penale: parte speciale. Milano: Giuffrè, 1954. v. 1,
p. 83.
400
ROMEO CASABONA, Carlos María. El derecho y la bioética ante los límites de la vida humana,
cit., p. 150-151.
401
Daí que Casabona defenda que o Tribunal Constitucional espanhol, na sentença n. 53 de 1985,
ao apontar que a vida é “un proceso que comienza con la gestación”, compreendeu que a tutela
do referido bem foi vinculada à nidação (Id. Ibid., p. 152-153).
402
LAURENZO COPELLO, Patricia. El aborto no punible (El art. 417 bis del Código Penal).
Barcelona: Bosch, 1990. p. 80-81.
403
O mecanismo deste tipo de metodologia depende da altura do ciclo em que a mulher toma o
produto: I) se o método for utilizado após a ovulação, dando-se a concepção, a pílula vai atuar
impedindo o novo ser em formação de nidar no útero materno; II) se a pílula for tomada antes da
ovulação, existe a probabilidade de a impedir (cf. Victor Neto, medico, Disponível em:
<http://paginasvida.no.sapo.pt/piluladiaseguinte.htm>. Acesso em: 05 maio 2005).
208
Além disso - prossegue a jurista -, as condutas “no podrían
castigarse sino como tentativa imposible, pues los medios científicos actualmente
disponibles no permiten proba rel embarazo en dicha etapa inicial”.
404
De fato, a
nidação marca o início da produção do hormônio gonadotrofina coriónica, a partir
do qual os maciços testes de gestação são contemporaneamente viáveis.
405
Similar a postura de Ana Paula Guimarães, que sintetiza: “o limite
da nidação é antes de mais imposto por razões de ordem prática, é necessário e
conveniente”.
406
No direito positivo, o Código Penal alemão, nos §§ 218 e 219,
estabelece que a interrupção da gravidez só é relevante quando realizada após a
nidação do óvulo fecundado no útero materno. Defendendo o acerto legislativo,
Arthur Kaufmann escreve que a antecipação de preceitos penais para abarcar o
embrião in vivo desde o momento da fecundação conduziria “la consecuencia no
deseable de que toda la zona gris entre la anticoncepción y el impedir la anidación
se haría de nuevo accesible a la persecución penal”.
407
Sopesados esses dados, no nosso modo de ver, não é possível,
no exame do estatuto do embrião in vivo, ignorar a proximidade dos meios
impeditivos da nidação com os meios impeditivos da concepção e, por isso, é
inviável desconsiderar a mínima ou nenhuma diversidade entre o julgamento
racional dos primeiros e o dos segundos, o que fragiliza a legitimidade de
tratamento jurídico-penal diferenciado.
404
LAURENZO COPELLO, Patricia. op. cit., p. 81.
405
Id. Ibid.
406
GUIMARÃES, Ana Paula. op. cit., p. 164.
407
KAUFMANN, Arthur. Relativización de la protección jurídica de la vida? Trad. por Jesús María
Silva Sánchez. Avances de la Medicina y Derecho Penal, Barcelona, p. 47, 1988.
209
A assertiva é corroborada pela importância e aceitação social que
assumem certos métodos de controle de natalidade por exemplo, o DIU e a
“pílula do dia seguinte” -, evidenciadas pela venda em farmácias e distribuição na
rede pública.
408
O correspondente uso encontra amparo no direito constitucional
de livre planejamento familiar pelo casal (art. 226, §7º, CF), além de reduzir os
futuros abortos clandestinos em fases mais avançadas, sob péssimas condições,
aos quais a classe baixa está fadada.
Não fossem assim, sobremaneira para as adolescentes e
mulheres mais pobres, com pouco conhecimento dos riscos de engravidar ou falta
de acesso a rotineiro uso de anticoncepcionais, seria cerceado, pelo menos na
discrepante realidade social atual, o direito de autodeterminação sexual e de
liberdade de escolha quanto ao desejo de procriação e seu momento oportuno, o
que emperraria a ampla adesão do cidadão, de todos os cidadãos, à norma
proibitiva que abarcar todo o processo, desde a fecundação.
409
Tais questões, relativas à oportunidade da intervenção penal, são
importantes, mas se isoladas, poderiam enveredar para o exagero e a
arbitrariedade legislativa, o que não ocorre porque vêm à colação os referidos
acontecimentos biológicos que antecipam a nidação, sobretudo a duvidosa
408
A aceitação social da pílula do dia seguinte ou de emergência transparece na Política Nacional
de Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos, lançada pelo Ministério da Saúde em 22 de março
de 2005, que amplia a sua distribuição.
409
Ivete Senise Ferreira, após detalhado estudo sobre nossas peculiaridades e o espírito da
legislação penal em relação ao aborto, sugere a referência legal à possibilidade de concessão,
pelo juiz, de perdão judicial sempre que ocorrerem motivos sérios que possam impelir a mulher à
prática, a serem avaliados de acordo com as circunstâncias casuais, não incluídos na indicação
terapêutica (perigo de vida e saúde para a mulher, além de sério risco de que a criança ao
nascer apresente malformação congênita, debilidade ou doença mental) (FERREIRA, Ivete
Senise. op. cit., p. 209). Maria Garcia, também em preciso exame do aborto, aceita hipóteses de
exclusão de antijuridicidade com base em argumentos de ordem social, para evitar excessiva e
ineficaz penalização (GARCIA, Maria. A inviolabilidade constitucional do direito à vida, cit.,
passim.
210
diferenciação e a realçada instabilidade vital do zigoto. Esse assento científico
acomoda o corte axiológico a ser observado pelo legislador penal. .
Concluindo, é possível afirmar que o exercício do ius puniendi
nessa fase incipiente não se compatibiliza com a regra da proporcionalidade, sob
os prismas da necessidade (ofensa é tolerável) e da adequação (menos grave é a
impunidade do que a pena), com o que a nidação deve ser considerada como o
termo inicial para a relevância penal do aborto. Contudo, a proposta serve como
instrumento para reflexões de lege ferenda, porquanto, como escreveu Nélson
Hungria, o atual art. 124 do Código não distingue entre a concepção e a nidação,
não cabendo ao intérprete fazê-lo.
É certo, porém, que, havendo avanço científico para antecipar a
constatação da gravidez, acompanhado de maior difusão de políticas de controle
de natalidade, com implementação de debates sobre a saúde sexual e
reprodutiva, a posição pode ser alterada, porque alterados estariam seus
fundamentos, que são sumamente de ordem prática.
6.2.4.2 A vida humana “in vitro”
Os parâmetros empregados para excluir a tutela penal durante os
primeiros dias do embrião in vivo não se estendem de plano à vida humana in
vitro, ou seja, ao zigoto resultante de fecundação processada em laboratório.
Desde logo não cabem dúvidas sobre sua existência, qualquer que seja a etapa
de seu desenvolvimento, pois sua presença é perceptível mediante o uso de
técnicas microscópicas. Alinha-se outro dado diferencial dotado de decisiva
211
importância: o embrião in vitro é especialmente frágil, uma vez que sua
continuidade biológica não é assegurada de maneira natural.
Com efeito, seu processo vital depende de ato de vontade, qual
seja sua implantação por terceiro no útero da mulher. Se for implantado, o
embrião mantém seu potencial evolutivo. Em caso negativo, morrerá, porquanto
não é tecnicamente possível, por ora, a gestação extra-uterina. Além disso, o
recente embrião, quando em laboratório, em virtude da totipotencialidade de suas
células, é alvo fácil e bastante desejado para as pesquisas que podem resultar
em sua destruição ou alteração de sua carga genética.
Em face desse panorama peculiar, a vida encarnada no embrião
in vitro merece proteção jurídica independente da vida in vivo, de tal modo que
não são extensíveis àquela os tipos penais direcionados para esta, ou seja, para
o aborto.
No particular estatuto jurídico a ser conferido ao embrião in vitro,
em muitos casos, é reclamada a intervenção penal, pois são positivos os juízos
da necessidade e da adequação penais, temperados pelas forças simbólica e
promocional da norma punitiva, que assumem dimensão relevante, sobretudo em
face da insuficiência das vias civis e administrativas perante descobertas
inesperadas e eticamente desvirtuadas, com repercussões sobre as gerações
futuras. São, igualmente, para tantos outros, negativos os referidos juízos, quando
a ilegitimidade poderá encontrar amparo analógico em critérios político-criminais
empregados para o trato penal do aborto.
Além de não se amoldar ao tipo do aborto, a destruição do
embrião in vitro não tipifica o delito de dano, posto que o embrião não é coisa.
Não se trata do tipo de homicídio, cujo sujeito passivo tem forma humana definida
212
e está integrado na sociedade graças ao nascimento, sendo bastante diferente do
conglomerado de células, não estruturado, sem concreta capacidade de
sensações e de inteligência, como o zigoto ou, mais adiante, o blastócito.
410
Em
suma, cabe ao legislador penal a edificação de tipos especiais.
A temática remete à compreensão do sujeito passivo dos crimes
contra a vida embrionária in vitro que, segundo nosso entendimento, não difere da
mesma vida in vivo. Por sujeito passivo, entendemos o portador do bem jurídico
lesionado ou posto em perigo e, assim, se concluímos que o bem jurídico
protegido é a vida encarnada no embrião, de forma conseqüente, ele será o
sujeito passivo dos crimes. Eventuais contra-argumentos - o embrião não é titular
de direito (direito subjetivo à vida) ou não o pode exercitar,
411
falta-lhe a qualidade
de pessoa ou outras objeções semelhantes - não se opõem à nossa conclusão,
porquanto, de maneira similar, sucede com os delitos em que se mantém, como
sujeito passivo, a comunidade, que também carece de personalidade jurídica e
dos demais atributos que derivam desta condição.
Em suma, não se confundem titular de direito categoria própria
do direito civil com o sujeito passivo do delito peculiar do direito penal, embora
410
Nessa linha: ROMEO CASABONA, Carlos María. El derecho y la bioética ante los límites de la
vida humana, cit., p. 154-155; GUIMARÃES, Ana Paula. op. cit., p. 183-184.
411
Sobre a titularidade do direito subjetivo à vida embrionária, formaram-se três correntes. A
concepcionista defende que, desde o zigoto, está presente um sujeito de direito, com
reconhecido caráter de pessoa, compreendido o termo como titular de direitos na esfera jurídica
(BARBAS, Stela Marcos de Almeida Neves. op. cit., p. 67 e ss; SILVA, Reinaldo Pereira e. op.
cit., p. 87-88; GARCIA, Maria. A inviolabilidade constitucional do direito à vida, cit., p. 184-188). O
valor atribuído ao embrião é quase que absoluto, com impedimento pleno de sua destruição,
mesmo que não tenha viabilidade, ou de criopreservação, porque, do contrário, conforme seus
partidários, se estaria destruindo ou congelando uma pessoa viva. A desenvolvimentista não
reconhece ao embrião a titularidade de direitos, nem mesmo que transporte o bem jurídico vida,
o que faz depender de uma seqüência crucial de etapas complementares. Destarte, o embrião
humano é coisificado. Nesse passo, a Comissão Warnock admitiu que um embrião possa ser
utilizado como material de pesquisa até o 14º dia após a fecundação. A corrente eclética
compreende o embrião humano como integrante da espécie humana, mas não lhe atribui a
titularidade de direitos em decorrência da divergência sobre sua viabilidade e a individualidade
(MEIRELLES, Jussara Maria Leal de. op. cit., p. 172; LEITE, Eduardo de Oliveira. O direito do
embrião humano: mito ou realidade? Revista de Direito Civil, Imobiliário, Agrário e Empresarial,
São Paulo, ano 20, n. 78, p. 22-40, out./dez. 1996).
213
corresponder ao mesmo ente. Considerado o embrião como o sujeito passivo de
delitos contra a vida nele encarnada, este bem jurídico, inclusive na fase
embrionária, mantém dimensão individual.
214
7. AS TÉCNICAS BIOMÉDICAS E O DIREITO À VIDA
7.1 A seleção pré-implantatória
Se considerado que o óvulo fecundado com poucos dias é uma
pessoa, como defendem certos doutrinadores e a Igreja Católica, todos deveriam
ser implantados, sem a efetivação de prévio diagnóstico sobre sua viabilidade ou
normalidade, sob pena de incorrer em crime contra a vida. Essa postura, porque
inflexível, encerra profunda distorção jurídica em vários casos.
Se o embrião for inviável, mesmo que evolua para um feto ou até
mais que nasça, o mesmo está fadado à morte extremamente prematura e
inevitável, sobretudo se ingressar na fase extrauterina. Faltando-lhe a
potencialidade de desenvolvimento, o embrião inviável não transporta o bem
jurídico vida. Carecendo, absolutamente, da virtualidade de vir a ser pessoa,
também não se projeta sobre ele, de modo excepcional, o princípio da dignidade
da pessoa humana.
Sem esperança de vida, eventual norma jurídica, ainda que
administrativa, impondo a implantação, empurraria para os pretensos pais pesado
ônus, redundando em flagrante e indevida intromissão na intimidade e liberdade
do casal e até mesmo na integridade física e psíquica da mulher receptora do
óvulo fecundado (embrião in vitro). A confusão entre direito e moral, ou mais
especificamente, entre direito e religião seria evidente, com manifesto retrocesso
no campo jurídico.
215
Para a hipótese, é extensível, por analogia, o pensamento de
Nélson Hungria, exposto no estudo da gravidez extrauterina: “Não está em jogo a
vida de outro ser, não podendo o produto da concepção atingir normalmente vida
própria, de modo que as conseqüências dos atos praticados se resolvem
unicamente contra a mulher”.
412
Para evitar arbitrariedade, o critério para avaliar a inviabilidade
deve ser exclusivamente científico. A viabilidade consiste em “haber nacido vivo,
haber vivido con una vida diferente de la fetal y presentar un desarrollo y una
conformación no incompatible en absoluto con la continuación de la vida”,
consoante explica Massaglia Bacigalupo.
413
Trazendo à colação termos biomédicos, a jurista Maris Martínez
anota que são viáveis os embriões em que “mais de metade dos blastômeros
parecem morfologicamente normais”.
414
Para Herman Nys, a inviabilidade envolve
“normalmente, a incapacidade de dividir-se ou o excesso de pronúcleos”.
415
Não
obstante ambas as orientações aportem certo grau de incerteza, ainda pensamos
que a competência para a palavra final permanece com os cientistas, porque a
matéria é extremamente específica.
A par disso, vem à baila outra hipótese: embriões viáveis, mas
portadores de anomalias genéticas graves, deletérias e sem comprovada
possibilidade de superação clínica no curso da vida, embora passíveis de
diagnóstico antes da implantação. Na hipótese, confrontam-se, de um lado, a vida
412
HUNGRIA, Nélson. op. cit., v. 5, p. 260.
413
MASSAGLIA DE BACIGALUPO, María Valeria. op. cit., p. 119.
414
MARTÍNEZ, Stella Maris. op. cit., p. 179.
415
NYS, Herman. Experimentação com embriões. In: ROMEO CASABONA, Carlos María (Org.).
op. cit., p. 182.
216
encarnada no embrião e, de outro, o bem-estar físico da mulher e psíquico do
casal, como também a qualidade de vida do novo ser.
Não autorizados, pelo Estado, o diagnóstico pré-implantatório e a
subseqüente recusa à implantação do blastócito patológico, o feto poderá nascer
quiçá por opção dos pais, mas necessariamente em razão do mandamento legal,
não obstante o munus da criação e da educação recairá sobre os genitores, com
todas as implicações emocionais envolvidas, além das econômicas.
Por óbvio, as doenças incontornáveis e graves reclamarão
cuidados durante todo o período em que o enfermo viver, majorando a exigência
de atenção e paciência dos responsáveis, tornando, assim, mais tormentosa a
decisão sobre o nascimento.
Mesmo que para o embrião patológico o Estado chame para si a
responsabilidade pela criação, para muitas mulheres ou famílias será dolorosa a
aceitação da gestação, eis que cientes, desde o princípio, de que a futura criança
estará predisposta à dificuldade de sobrevivência. A dor provavelmente se
acentuará diante da notoriedade de que a exclusão do embrião in vitro anômalo é
usual e recebida com baixo grau de reprovabilidade social, mormente porque a
vida incipiente não se encontra integrada ao corpo da futura mãe, não lhe
provocando alteração física ou hormonal, ficando menos sujeita a laços afetivos
com ela e com a família, o que é comum durante a gravidez.
Paralelamente, não se pode negar a realidade de países de
terceiro mundo, onde é costumeiro o descaso estatal com seus cidadãos mais
necessitados, pelo que muitas políticas públicas de apóio são implantadas no
papel, mas nunca executadas, o que redunda em descrença popular e
217
intranqüilidade da mulher ou do casal para a tomada da decisão, mesmo se os
órgãos públicos prometerem auxílio.
Provavelmente em várias situações a prorrogação do sentimento
de rejeição ou desespero, provocada pela obrigatória implantação, conduzirá à
futura procura pelo aborto clandestino, sabidamente mantido sob acobertamento
generalizado, como solução rápida para o problema não resolvido quando o
embrião estava in vitro. Estará plantado o efeito criminógeno de eventual
incriminação.
Este delicado contexto onde estaria casal que procurou as
clínicas de reprodução assistida não é imaginário e, por isso, não pode ser
esquivado quando da disciplina dos comportamentos sociais, para que não se
criem normas apartadas da expectativa mediana da comunidade e, destarte, com
vocação para violação impune. Mas não é só.
Pendem, simultaneamente, fenômenos científicos que, em virtude
da constância, requerem consideração. Como exposto, na fecundação in vivo,
existe elevada perda natural de embriões, o que lhes infunde a marca da
instabilidade, destacando-se, no processo autoseletivo, o descarte dos
patológicos. Sob esse ângulo, a seleção in vitro do embrião, quando efetivada nos
moldes analisados, tão-somente imita a natureza. Soma-se que, com poucos
dias, o embrião não tem sensação nem inteligência, não sentindo dor ao ser
manipulado. Além disso, a transferência de embrião anômalo, quando simultânea
a outros tantos saudáveis, gera o risco inerente à gravidez múltipla.
Refletindo, parece-nos que a vida do embrião patológico, fadado
a doenças graves e incuráveis, não merece proteção penal, pois a experiência
demonstra que sua não-transferência acarreta baixa perturbação social. A
218
conclusão é reforçada pela superioridade das vantagens da impunidade quando
confrontadas com a punição. Esta vida embrionária, sem projeção de qualidade,
deve ceder espaço para o bem-estar da família, propiciando a livre escolha de
planejamento familiar perante uma situação diferenciada, onde não se debatem
valores supérfluos, mas de suma importância para todos os envolvidos com o
problema, como também para a sociedade.
A proposta não nega o princípio da dignidade humana. A
anomalia imporia ao embrião extremas dificuldades de vida sob a ótica da
qualidade. Lembre-se, ainda, de que, como defendido, a vida não é sagrada,
sobremaneira quando em choque com a dignidade do casal em pauta, como
também de outros que seriam prejudicados caso o Estado se visse responsável
pela criação, entre os quais crianças, amadas e integradas em núcleo familiar,
que morrem por conta da desnutrição e da falta de saneamento básico, em
função da falta de recursos públicos.
416
Sobre o tema, Ana Paula Guimarães sustenta que “a selecção
pré-implantatória quando orientada por fins terapêuticos é tão legítima quanto as
comuns intervenções terapêuticas. Especifiquemos que essa legitimidade diz
respeito à intervenção no sentido de reduzir a probabilidade de transmissão de
doenças pela via hereditária em relação a indivíduos considerados isoladamente,
quando são os próprios pais que, caso a caso, optam por ter filhos saudáveis
quando estes, de forma responsável, decidem sobre a sua descendência não
416
A postura adotada transfere muitos argumentos utilizados para a descriminalização ou, pelo
menos, a concessão de perdão judicial no caso de aborto. Sob essa ótica, a professora Ivete
Senise Ferreira propõe a inclusão de um dispositivo que abrigue a licitude do aborto praticado
quando houver sério risco de que a criança ao nascer apresente malformação congênita,
debilidade ou doença mental (FERREIRA, Ivete Senise. op. cit., p. 206).
219
em relação à população em geral ou a grupos sociais determinados, quando se
trate de adoptar uma política eugênica generalizada”.
417
De qualquer modo, a vontade dos futuros pais sempre deve ser
respeitada, como forma de expressão da liberdade. Caso consagre essa idéia, o
Estado necessitará oferecer mínimas condições de convívio menos traumático
com a doença, promovendo uma filosofia social que aceite a postura paterna com
compaixão.
Não se ignora que inexiste método objetivo para delimitar se a
vida de pessoa portadora de doença grave merece ser vivida. A preocupação que
contorna o tema foi expressa na Resolução do Parlamento Europeu, de 16 de
março de 1989, que adverte para a necessidade de que “se reconsideren los
conceptos de enfermedad y tara genética para evitar el peligro de que se definan
en términos médicos como enfermedades o taras hereditarias lo que no son sino
simples desviaciones de la normalidad genética”.
418
Apreensivo, Jacques Testart afirma que “no es posible definir el
límite entre una enfermedad grave y un leve defecto físico, ni elaborar una lista
limitada de dolencias que justifiquen el diagnóstico prenatal o el diagnóstico
preimplantatorio, el diagnóstico preimplantatorio es una práctica potencialmente
ilimitada. Sus indicaciones sólo pueden verse limitadas por la intransigencia
médica o el coste económico, conceptos bastante subjetivos y evolutivos para
constituir fronteras precisas y definitivas”.
419
Não obstante o peso dessas palavras, na contextualização
invocada, a eliminação do embrião com patrimônio genético deficiente eugenia
417
GUIMARÃES, Ana Paula. op. cit., p. 176.
418
Cf. MASSAGLIA DE BACIGALUPO, María Valeria. op. cit., p. 146.
419
TESTART, Jacques. op. cit., p. 26.
220
negativa revela, ao que nos afigura, utilidade individual e social. A simples
vedação ao diagnóstico e à seleção pré-implantatórios despreza as famílias que
se encontram em situação inelutavelmente aflitiva, não permitindo o
balanceamento de valores. Para coibir os excessos em ambas as técnicas, sem
as proibir, cabe ao Estado elaborar formas de controle adequadas, a fim de que
se minimize a pseudo-equiparação entre o mal grave e incurável e o desejo de
filhos perfeitos.
Nessa atividade estatal, é válida a sugestão de John M. Optiz,
segundo quema probabilidade de abusos, mesmo da mais bem intencionada
institucionalização eugênica de uma perspectiva de vida, torna imperativo que
todas as ações regulamentares, legislativas ou legais estejam sujeitas ao mais
intenso e minucioso exame ético, preferencialmente por um painel internacional
de especialistas no caso de legislações nacionais que potencialmente afetam
milhões de indivíduos”.
420
Sendo assim, menos do que listagem de doenças suscetíveis à
seleção embrionária, mostra-se mais oportuno que se faça reflexão dos casos por
comitês éticos multidisciplinares, em que o debate amplo, como um desafio,
poderá levar à melhor solução, dentre as possíveis, para os limites tanto
científicos quanto culturais do ser humano, em que se mesclam o
desconhecimento científico e o preconceito social. De conseguinte, a resposta
não será formulada como as leis físicas, mas resultará de equilíbrio de valores
contrapostos, ou seja, da máxima da proporcionalidade.
420
OPITZ, John M. O que é normal considerado no contexto da genetização da civilização
ocidental. Bioética, v. 5, n. 2, p. 136, 1997. O autor é professor de Pediatria e Genética Humana,
Universidade de Utah Escola de Medicina, Salt Lake City, em Utah, nos EUA, bem como
professor universitário de Humanidades Médicas, da Universidade do Estado de Montana
Bozeman, em Montana, também nos EUA.
221
Observadas essas cautelas, sugerimos que a legislação futura
consagre a licitude da seleção terapêutica de embriões, inclusive mediante
eleição de sexo, para evitar a implantação de óvulos fecundados dotados de
anomalia genética grave e incurável, cabendo às normas deontológicas e
administrativas disciplinarem a prática, incluindo participação dos comitês éticos,
somada à rigorosa fiscalização estatal e à restrição do procedimento a clínicas
especializadas.
O diagnóstico pré-implantatório e a seleção são admitidos,
expressamente, em alguns países. Na legislação espanhola, o diagnóstico pré-
implantatório é autorizado para avaliar a viabilidade ou inviabilidade, detectar
doenças hereditárias para tratá-las, se existir tratamento e for indicado, bem como
desaconselhar sua transferência a uma mulher para procriar, respeitada a opinião
da receptora ou do casal do qual provém o material genético.
421
Em França, a Lei n. 654, de julho de 1994, estatui que uma das
finalidades da procriação assistida é evitar a transmissão à criança de uma
enfermidade particularmente grave (art. 152-2). A disposição autoriza, segundo
Roberto Andorno, a detecção de anomalia nas primeiras etapas embrionárias,
para que se promova o tratamento e, não havendo cura, a alternativa será o
descarte do embrião.
422
A Noruega regulamentou esta moderna técnica de
421
A Lei n. 35/88, em seu art. 12.1, estatui: “Toda intervenção sobre o pré-embrião, vivo, in vitro,
com fins diagnósticos, não poderá ter outra finalidade que a avaliação de sua viabilidade ou não,
ou detecção de doenças hereditárias, a fim de tratá-las, se isso é possível, ou de desaconselhar
sua transferência para a procriação”. A Lei n. 42/88, em seu art. 8.2, estabelece: “A aplicação de
tecnologia genética poderá ser autorizada para a consecução dos fins e em casos que a seguir
se expressam: a) com fins diagnósticos, que terão caráter de diagnóstico pré-natal, in vitro ou in
vivo, de enfermidades genéticas ou hereditárias, para evitar sua transmissão ou para tratá-las e
curá-las”.
422
Cf. ANDORNO, Roberto. El derecho frente a la nueva eugenesia: a selección de embriones in
Vitro. Cuadernos de Bioética, Buenos Aires, ano 1, p. 30-32, 1996.
222
diagnóstico, exigindo que se trate de uma doença hereditária, sem possibilidade
de tratamento.
423
Em contrapartida, na Alemanha, a Lei de 13 de dezembro de
1990 proíbe a fecundação extracorporal de mais óvulos do que aqueles
transferíveis no espaço de um ciclo. Destarte, falece a possibilidade de seleção
pré-implantatória ou mesmo de congelamento de embriões.
No Brasil, segundo a Resolução n. 1.358/92, do Conselho Federal
de Medicina, não se pode descartar embriões. Na prática, são selecionados os
embriões com anomalia genética e, a seguir, criopreservados. Nas esferas
administrativa, civil e penal, a matéria não está regulamentada. O Projeto n.
2.855, de 1997, elaborado pelo Deputado Confúcio Moura, autoriza o descarte
dos “pré-embriões” quando detectadas alterações genéticas que
comprovadamente possam comprometer a vida saudável da descendência, desde
que haja o consentimento do casal. O Projeto de Lei n. 90, de 1999, apresentado
pelo Senador Lucio Alcântara, que se encontra em tramitação no Senado Federal,
autoriza a seleção antes do implante quando os usuários da técnica de
reprodução assistida apresentarem hereditariedade para gerar crianças
portadoras de doenças ligadas ao sexo.
424
O Projeto n. 1.135, de 2003, do Dr.
Pinotti, condiciona a licitude da seleção quando se trate de evitar doenças ligadas
ao sexo ou determinada geneticamente à criança que venha a nascer.
423
A Lei n. 56, de 5 de agosto de 1994, sobre a aplicação médica da biotecnologia, em seu art. 4.2,
reza: “Utilização de diagnóstico pré-implantatório. Unicamente poderá ser realizado o exame
genético num embrião em casos especiais nos quais existe uma doença hereditária incurável
sem possibilidade de tratamento, conforme o previsto no art. 2.10. A Coroa poderá estabelecer
requisitos pormenorizados em relação à realização de diagnósticos pré-implantatórios”.
424
“Art. 10. Ressalvados os casos de material doado para pesquisa, a intervenção sobre gametas
ou embriões in vitro só será permitida com a finalidade de avaliar sua viabilidade ou detectar
doenças hereditárias, no caso de ser feita com fins diagnósticos, ou de tratar uma doença ou
impedir sua transmissão, no caso de ser feita com fins terapêuticos. § 1º A pré-seleção sexual de
gametas ou embriões só poderá ocorrer nos casos em que os usuários recorram à RA em virtude
de apresentarem hereditariedade para gerar crianças portadoras de doenças ligadas ao sexo”.
223
7.2 A fecundação de óvulos com fins distintos da procriação
Nos dias atuais, é cientificamente possível a fecundação de óvulo
por espermatozóides para gerar embriões com finalidade diferente da procriativa,
porquanto as clínicas de reprodução assistida dispõem de bancos de gametas
masculino e feminino congelados.
425
A Lei alemã de 1990, taxativamente, proíbe a fecundação de
óvulo ou a introdução de espermatozóide em óvulo com fim distinto da procriação,
sob pena de incorrer em pena de prisão de liberdade ou multa (§1, 1.2). O Código
Penal espanhol (1995), em seu art. 160.2 (antigo art. 161.1), submete a conduta à
pena de prisão e à periódica inabilitação especial para emprego ou cargo público,
profissão ou ofício.
426
A ação também está capitulada como infração
administrativa gravíssima na Lei n. 35/88. Em França, a Lei n. 94/653 igualmente
penaliza a conduta, com pena de prisão e multa de $700.000 (setecentos mil
francos - moeda vigente à época).
427
No Brasil, a revogada Lei n. 8.974/95 incriminava a conduta na
dilatada tipicidade inscrita em seu art. 13, III, quando punia a produção,
armazenamento ou manipulação de embriões humanos destinados a servirem
como material biológico disponível. A nova Lei n. 11.105/05 não repete
425
A técnica do congelamento de espermatozóides é bem mais antiga que a de óvulos, a qual
passou a ser dominada em 2003, segundo explica Edson Borges, especialista em reprodução
humana, da Clínica Fertility (O ESTADO de S. Paulo, São Paulo, 24 nov. 2005. p. A-25).
426
Art. 161. 1. “Será castigados con la pena de prisión de uno a cinco años e inhabilitación especial
para empleo o cargo público, profesión u oficio de seis a diez años quienes fecundem óvulos
humanos con cualquier fin distinto a la procreación humana”. Administrativamente, a Lei
espanhola n. 42/1988 qualifica como infração muito grave criar e manter embriões ou fetos vivos,
no útero ou fora dele, com qualquer fim distinto da procriação (art. 9.2).
427
“Art. 511-17. Castigar-se-á com pena de prisão e 700.000 francos de multa a concepção in vitro
de embriões humanos com fins industriais ou comerciais. Art. 511-18 Castigar-se-á com pena
de 7 (sete) anos de prisão e 700.000 francos de multa a concepção in vitro de embriões humanos
com fins de investigação ou experimentação”.
224
textualmente o tipo da anterior nem refere à fecundação de óvulos com fins
distintos da procriação. Contudo, na descrição exposta no art. 24 - utilizar
embriões humanos em desacordo com os preceitos do novo diploma -, é possível
reconhecer a ilicitude penal do comportamento. Assim porque a mencionada lei
apenas autoriza a extração de células-tronco embrionárias de embriões inviáveis
ou congelados, desde que gerados para o procedimento de fertilização in vitro e
inutilizados porque excedentes. Portanto, priva da esfera da legalidade a
obtenção do referido material de embriões fecundados com fins diferentes da
reprodução humana.
428
De qualquer modo, a redação ampla do art. 24, descambando
para a falta de taxatividade, reclama, de lege ferenda, que haja um tipo específico
para a questão em apreço.
O comportamento é proibido, embora não punido no Projeto de
Lei n. 3.638, de 1993, de autoria do Deputado Luiz Moreira.
429
Recebe punição no
Projeto de Lei n. 2.855/97.
430
Da mesma forma, é reprimido pelo Projeto de Lei n.
90/99, embora não diretamente.
431
O Projeto n. 1.135/03, novamente, estabelece
pena.
432
O Projeto n. 2.061, também de 2003, da Deputada Maninha, também
proíbe a conduta, mas não a incrimina.
428
Nesse sentido: MINAHIM, Maria Auxiliadora. op. cit., p. 173.
429
“Art. 5º. É proibida a fecundação de ovócitos humanos, com qualquer outra finalidade que não
seja a procriação humana”.
430
“Art. 38. Fecundar óvulos com finalidade distinta da procriação humana. Pena reclusão, de 1
(um) a 3 (três) anos, e multa”.
431
“Art. 13. É crime: IV) intervir sobre gametas e embriões com finalidade diferentes das permitidas
nesta Lei; Pena: detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa”. O projeto permite a
intervenção apenas para avaliar a viabilidade ou detectar doenças hereditárias (art. 10) e, ainda,
adstringe a utilização da RA para resolução de casos de infertilidade e prevenção ou tratamento
de doenças genéticas ou hereditárias.
432
“Art. 22. Constitui crime fecundar ovócito humano, com finalidade distinta da procriação
humana. Pena- reclusão de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa”.
225
Não há consenso sobre o bem jurídico-penal que os preceitos
concernentes ao tema tutelam. Para Regis Prado, o art. 24, da Lei n. 11.105/05,
protege, como bem jurídico, o ser humano em formação (embrião humano), que é
apontado igualmente como sujeito passivo, pelo que o autor parece não ter
distinguido as duas categorias.
433
Com maior precisão, em análise do art. 13, III,
da Lei 8.974/95, o doutrinador defende que os pré-embriões e os embriões são
“merecedores de tutela penal, uma vez que através deles se buscará não a
proteção da vida ou da integridade física individuais, mas a preservação de bens
jurídicos de titularidade coletiva (v.g., a identidade, a integridade, a
inalterabilidade do patrimônio genético da espécie humana). Esse, portanto, o
bem jurídico protegido nessa hipótese de incriminação”.
434
A mesma tendência é
seguida por Luís Paulo Sirvinskas, que considera que o mencionado art. 13, III,
tutelava a “preservação do meio ambiente, da diversidade biológica e da
integridade do patrimônio genético”.
435
Entretanto, a fecundação de óvulos para fins diferentes da
procriação não abala o genoma da espécie humana nem o genótipo de um
indivíduo, porquanto, se respeitado o intento inicial que é elementar do tipo, o
embrião não será implantado na mulher para desenvolvimento, o que obstrui a
criação de novo ser vivo, de modo que não se atinge ou se expõe a perigo uma
pessoa e, bem menos, a espécie.
Esforçando-se para superar essa objeção, sem embargo de
permanecer na seara dos bens supra-individuais, Benítez Ortuzar sustenta que o
433
PRADO, Luiz Regis. Direito penal do meio ambiente: meio ambiente, patrimônio cultural,
ordenação do território e biossegurança. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2005. p. 576.
434
Id. Manipulação genética e direito penal: um estudo aproximativo. In: LEITE, Eduardo de
Oliveira (Coord.). Grandes temas da atualidade: DNA como meio de prova de filiação. Rio de
Janeiro: Forense, 2005. p. 195-196.
435
SIRVINSKAS, Luís Paulo. op. cit., p. 491.
226
art. 161.1, do Código Penal espanhol, protege bem jurídico de índole coletiva,
cifrado como dignidade humana comunitária, “vertebrada desde el mismo origen
de la espécie humana”.
436
Não se olvida que o material celular embrionário carrega o padrão
genético humano e, nesse sentido, as atividades que o envolvem devem alinhar-
se ao princípio da dignidade. Entretanto, como defendido, a dignidade humana
não pode ser acolhida como bem jurídico, porque, repise-se, seu contexto,
imenso e impreciso, abriria margem para desmedidas intervenções repressivas.
Seria, por exemplo, contraditório incriminar a conduta em estudo e, ao mesmo
tempo, afastar da esfera punitiva a destruição de óvulos fecundados excedentes,
como o fazem as Leis n. 8.974/95 e n. 11.105/05, remetendo a atividade
exclusivamente ao campo deontológico (Resolução n. 1.358/92).
Para Gracia Martín, o bem jurídico tutelado pelo Código espanhol
é o interesse do Estado no controle e na limitação do uso e aplicação das
técnicas de reprodução assistidas às finalidades de reprodução humana.
437
O
objetivo seria manter a ordem de preferência entre os fins da reprodução assistida
estatuídos nas Leis n. 35 e n. 42, de 1988, situando, em primeiro plano, a
procriação, em segundo, o tratamento e a prevenção de enfermidades de origem
genética ou hereditária e, em terceiro, a investigação ou a experimentação.
Refutando a proposta, Romeo Casabona afirma que o Estado, ao
exercer exclusivamente o ius puniendi, tem sempre interesse de proteger todos os
bens jurídicos em relação a determinadas atividades (vida, liberdade pessoal,
tráfego de veículos), mas apenas quando são implicados aspectos diretamente
436
BENÍTEZ ORTUZAR, Ignácio Francisco. op. cit., p. 467.
437
Luis Gracia Martín, Comentarios al Código Penal. Parte Especial-I, p. 685, apud ROMEO
CASABONA, Carlos María. La clonación humana: presupuestos para una intervención jurídico-
penal, cit., p. 152.
227
referidos a seus fundamentos, estrutura e organização (poderes públicos) é
possível reconhecer, em sentido estrito, um interesse, um bem jurídico estatal, o
que não se verifica na hipótese.
438
O enfoque coletivista alinha-se à teoria da nidação, relegando a
tutela da vida ao momento posterior à implantação do embrião no útero materno.
Antes desse período, são reconhecidos bens supra-individuais, relacionados à
espécie humana. Opostos a essa visão, Fernando Galvão da Rocha, Marcelo
Dias Varella e Edison Maluf, partilhando da teoria da fecundação, advogam que o
preceito da revogada Lei n. 8.974/95 protegia a vida do embrião, não
reconhecendo, qualquer um deles, a juridicidade da figura do pré-embrião.
439
A última postura é a mais condizente com a tese que abraçamos
sobre o começo da tutela da vida. Se a vida humana constitui direito
constitucional desde a fecundação, quando se fecunda óvulo com fim distinto da
procriação provoca-se, com predeterminação, a destruição do potencial que a
substância carrega para a formação de novo ser. A vida embrionária, ponto de
partida de toda a humanidade, é afetada drasticamente, porquanto, ao mesmo
tempo em que é idealizada sua concepção, é planificada sua eliminação.
Não justifica a atividade eventual benefício em prol de terceiros,
passíveis de serem favorecidos futura e eventualmente pelos resultados de
pesquisas feitas com o material embrionário. Do contrário, estar-se-ia
438
ROMEO CASABONA, Carlos María. La clonación humana: presupuestos para una intervención
jurídico-penal, cit., p. 165-166.
439
ROCHA, Fernando A. N. Galvão da; VARELLA, Marcelo Dias. Tutela penal do patrimônio
genético. Revista dos Tribunais, ano 86, v. 741, p. 479-480, jul. 1997; MALUF, Edison.
Manipulação genética e direito penal. 2001. p. 67-68. Dissertação (Mestrado) - Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2001.
228
concordando com que seres humanos vivessem para fins de outras pessoas. Em
suma, a prática representa, como diz Albin Eser, experimentação humana.
440
No caso, porque submetida à total instrumentalização, a vida
embrionária, fonte de todo ser humano e, portanto, dos mais nobres elementos da
realidade e da cultura, necessita de tutela pela forma mais drástica. A desvalia da
destruição da vida embrionária, tanto pela sua dignidade quanto pela repercussão
axiológica e evolutiva, torna insuficiente a proteção extrapenal. Modo mais ameno
de tutela não provocaria na sociedade a imprescindível conscientização sobre a
importância do bem em jogo e não lhe resguardaria de ataques.
Preocupado, Albin Eser adverte: “Será muy difícil compensar
tamaño desprecio de la dignidad del hombre con la justificación de la
trascendencia de los objetivos de la investigación; más aún: cuando se piensa
producir y consumir embriones para aplicaciones industriales”.
441
7.3 A criopreservação de embriões
Na atualidade, em muitas clínicas de reprodução assistida, a
ovulação é, por vezes, estimulada com o objetivo de que se recolha do ovário
maior número de óvulos, os quais são inseminados pelo gameta masculino e
podem ser fecundados, quando se torna possível transferir mais de um embrião
para o útero. Entretanto, a transferência de muitos embriões eleva a possibilidade
de gestação múltipla, o que acarreta risco para a gestante e para os embriões
440
Cf. ESER, Albin. Derecho penal, medicina y genética, cit., p. 266-267.
441
Id. Ibid., p. 267.
229
(aborto, morte fetal no útero, parto prematuro), além de elevar a chance de
mortalidade neonatal.
Para evitar excesso na transferência de embriões, a
criopreservação, em baixíssimas temperaturas, confere resposta de emergência.
Mas a técnica enseja polêmica nas áreas ética, médica e jurídica, formando um
emaranhando em que mergulhados os embriões excedentes ou supranumerários.
O entrave médico não está no congelamento em si mesmo, pois
não provoca danos no embrião, uma vez que constitui uma parada no tempo
biológico. As células mantêm o estado fisiológico, a fase de desenvolvimento e a
idade inicial.
442
O primeiro problema está no processo que envolve a técnica,
posto que a máxima alteração na temperatura ambiental provoca estresse em
intensidade hábil para ensejar o risco de malformações, não havendo, nos dias
atuais, segurança para a avaliação dos efeitos que mais tarde poderão repercutir
no adulto.
443
A segunda dificuldade está na redução das chances de
desenvolvimento do embrião, que se acentua na medida em que o tempo de
congelamento é elevado. Tem-se conhecimento de que a variação do prazo
recebe interferência da fase do desenvolvimento embrionário em que efetivado o
processo. Em zigotos (unicelular), a taxa de sobrevida está entre 40% (quarenta
por cento) e 100% (cem por cento), não obstante haja o empecilho da ausência
de padrão para os parâmetros morfológicos que ajudam na distinção entre viáveis
e inviáveis. Se congelado na fase do blastócito, o que comumente ocorre, a taxa
442
Cf. Relatório e Programa do Grupo de Trabalho para o Estudo da Medicina Familiar, Fertilidade
e Reprodução Humana, Ministério da Saúde de Portugal, 1993, p. 222, apud BARBAS, Stela
Marcos de Almeida Neves. op. cit., p. 100.
443
Cf. LÓPEZ BARAHONA, Mónica; ANTUÑANO ALEA, Salvador. La clonación humana.
Barcelona: Ariel, 2002. p. 428.
230
de sobrevida assume cerca de 100% (cem por cento), mas a taxa de gravidez cai
para 16% (dezesseis) por transferência.
444
O obstáculo de ordem ética está no destino a ser conferido ao
embrião congelado. Se não transferido para o útero da progenitora nos ciclos
genitais seguintes, o embrião poderia ser doado a terceiros, inclusive após um
século de congelamento, quando seriam invertidos os princípios que regem as
leis naturais sobre o nascimento. Poderia ser mantido vivo indefinidamente até
que morresse no freezer ou, após o decurso de certo prazo, poderia ser utilizado
para investigação ou destruído. Em qualquer das hipóteses, a sorte do embrião in
vitro seria decidida por terceiro, o que evidencia sua vulnerabilidade, o estado
máximo de indefesa em que está submerso e, em outra via, a responsabilidade
do manipulador.
Não são poucos os Estados que buscam disciplinar a questão. O
ponto de partida está no Relatório da Comissão Warnock, em que o prazo de
congelamento foi estipulado em 5 (cinco) anos, o que foi repetido no Informe
Waller da Austrália, embora o National Health and Medical Research Council
sugerira 10 (dez) anos. O período eleito foi arbitrário porque sem prévia
elaboração de estudos sobre a viabilidade em outros mais longos.
445
A despeito
deste vício, inúmeras legislações adotaram-no internamente. A solução pouco
refletida gerou dilema quando os primeiros prazos venceram em agosto de 1996,
na Inglaterra. Houve um debate mundial sobre a obrigatoriedade de que todos os
embriões ingleses congelados fossem destruídos, o que efetivamente foi feito.
444
DR. ABDEL Massih. Disponível em: <http://www.abdelmassih.com.br/pesquisa/p_criop1.htm>.
Acesso em: 10 set. 2005.
445
Cf. GOLDIM, José Roberto. Congelamento de embriões. Universidade Federal do Rio Grande
do Sul UFRGS. Disponível em: <www.bioetica.ufrgs.br/congela.htm>. Acesso em: 10 nov.
2005.
231
A Lei de Fertilização Assistida do Reino Unido (1990), assentada
na distinção entre embrião e pré-embrião, obsta o armazenamento e a utilização
exclusivamente nas hipóteses em que tenha aparecido a linha primitiva. Portanto,
remanescem, no campo da licitude, a criopreservação e, de plano, as
experimentações no período precedente, quando, em regra, é descontado o
tempo do congelamento.
Em França, a Lei n. 94/654 estabelece que os dois membros do
casal podem concordar por escrito em fecundar certo número de óvulos,
prevendo o armazenamento de alguns, a fim de que se tornem pais nos próximos
5 (cinco) anos. É autorizada a doação se o casal, por unanimidade, decidir que
outro receba seus embriões. Outrossim, recebendo influência do modelo inglês, a
pesquisa embrionária é permitida até o 14º (décimo quarto) dia após a
fecundação, donde infere-se que, se criopreservados antes do período, quando
descongelados também poderão ser alvo de estudo clínico. O único
condicionamento está no assentimento dos pais.
446
A Lei n. 35/88, da Espanha, prevê o prazo de 5 (cinco) anos para
o congelamento, não se referindo ao destino posterior. Dentro desse interregno, o
art.11, n. 3, estatui: “Pasados dos años de criopreservación de gametos o
preembriones que no procedan de donates, quedarán a disposición de los Bancos
correspondientes”. Transcorrido o biênio, a partir de 29 de outubro de 2004, foram
liberadas, pelo Governo espanhol, as investigações, desde que haja autorização
expressa dos pais biológicos.
447
Em Portugal, o Projeto 512/IX, de 13 de outubro de 2004, o
parâmetro qüinqüenal para criopreservação foi reduzido para três anos, período
446
Cf. LÓPEZ BARAHONA, Mónica; ANTUÑANO ALEA, Salvador. op. cit., p. 126.
447
O ESTADO de S. Paulo, São Paulo, 30 out. 2004. p. A-22.
232
em que o casal poderá doar o embrião. Encerrado o lapso temporal, apresenta-se
a possibilidade de sua submissão à pesquisa.
Na Noruega, a Lei de 5 de agosto de 1994 repete o prazo de
armazenamento de 3 (três) anos (art. 2.12), mas estatui que, após, não poderão
ser empregados em pesquisas (art. 3.1). Na Áustria, a Lei Federal de 1992, sobre
Reprodução Assistida, estabelece que as células viáveis (ovócitos fecundados e
células que se desenvolveram a partir dos ovócitos) podem ser congeladas por 1
(um) ano; findo, serão destruídas. Proíbe a doação de embriões.
448
De modo mais restritivo, a Lei alemã de 1990, ao proibir a
fecundação de mais óvulos do que o número que será transferido num ciclo de
tratamento, elimina a aparição de embriões excedentes, pelo menos dentro do
país. De certo que, para os pesquisadores, restava a válvula de escape da
importação de células-tronco embrionárias. Regulando a prática, a Lei de Células-
Tronco, de 28 de junho de 2002, proíbe, como princípio geral, a importação e a
utilização de células tronco-embrionárias, embora excepcionalmente a autorize
nas seguintes hipóteses: I) quando empregue células-tronco obtidas antes de 1º
de janeiro de 2002, sendo elas provenientes de embriões criados para fins de
reprodução; II) inexistência de contraprestação no negócio; III) não-violação da
Lei de Proteção aos Embriões. O diploma prevê que os trabalhos com células-
tronco devem restringir-se a fins científicos de primeira magnitude, relativos à
aquisição de conhecimentos científicos ou à aplicação de conhecimento em
procedimentos diagnósticos, preventivos ou terapêuticos em seres humanos.
449
Albin Eser, ao analisar a lei em tela e ressaltando sua rijeza,
destaca a contradição valorativa no ordenamento germânico, em virtude do
448
Cf. NYS, Herman. op. cit., p. 177-180.
449
REVISTA de Derecho y Genoma Humano, n. 17, p. 241-247, 2002.
233
choque entre a proibição da experimentação com embriões fora do útero materno
e a massiva admissibilidade de aborto do feto antes de finalizado o terceiro mês
de gestação.
450
Perfilhando o rigor dos alemães e sob forte influência do
catolicismo, a Lei italiana de 2003 determina que só podem ser gerados 3 (três)
embriões por casal e que todos devem ser implantados simultaneamente.
451
A doutrina não é menos oscilante. Entre os autores que adotam a
teoria da nidação e, assim, sustentam que o embrião com menos de 14 (quatorze)
dias é mera massa amorfa de células sem vida tutelável, o congelamento não
gera conflitos éticos. Quando do descongelamento, respeitado o referido período,
a destruição e a investigação pura são aceitáveis, desde que, na última hipótese,
não sejam implantados posteriormente no útero da mulher, nem relegados a uso
que menospreze a espécie (cosmético ou para armamento, por exemplo). Eis as
palavras de Antonio Cuerda Riezu: “el desvalor de la destrucción de un embrión
no implantado es tan mínimo, que no merece un castigo penal”.
452
Para os partidários da teoria da fecundação, a situação dos
embriões congelados é bem mais embaraçosa. Entre eles, Mónica López
Barahona e Salvador Antuñano Alea propõem, para o embrião excedente, a
fixação de formas escalonadas de destino: 1º) os pais, em função de dever moral,
deveriam assumi-los em novo implante, porque os geraram; 2º) observando que
quando os pais abandonam seus filhos estes ficam sob a responsabilidade de um
tutor, a legislação deveria estabelecer, por analogia, a adoção pré-natal para
casais heróicos que voluntariamente quisessem salvar a vida dos embriões
450
Cf. ESER, Albin. Derecho penal, medicina y genética, cit., p. 126.
451
Cf. MINAHIM, Maria Auxiliadora. op. cit., p. 106.
452
CUERDA RIEZU, Antonio. Límites juridicopenales de las nuevas técnicas genéticas. Anuario de
Derecho Penal y Ciencias Penales, t. 41, fasc. 1, p. 427, ene./abr. 1998.
234
criopreservados; 3º) não verificadas as situações anteriores, os embriões
deveriam ser deixados no congelador até que morressem. Reconhecem que a
última opção seria pouco prática, mas a defendem como meio de banir a
instrumentalização dos embriões, eis que “matar a alguien para usarlo es violar
sua dignidad”.
453
Barbas Neves concorda que o destino preferencial dos embriões
é a implantação no útero da progenitora nos ciclos reprodutivos futuros, quando a
criopreservação é eticamente positiva. Todavia, a técnica, em seu entendimento,
não é solução natural, porque maneja um ser com personalidade e alma, nem é
solução definitiva, posto que tudo na vida dos homens tem um fim. Se a mulher
morrer ou rejeitar a procriação médica assistida, surgirá conflito absoluto de
valores e, entre liquidar a vida embrionária e a transferi-la para útero alheio, a
estudiosa aceita a última opção. Não tolera a investigação embrionária em
qualquer hipótese.
454
No nosso modo de ver, os embriões gerados pelas técnicas de
reprodução assistida carregam, como visto, o bem jurídico em epígrafe. Se
obtidos em excesso, não deveriam ser implantados obrigatoriamente no mesmo
ciclo genital, para evitar os riscos inerentes à gestação múltipla, referentes à vida
e à saúde da gestante e dos embriões. A alternativa inevitável seria o
congelamento, porque mantém esperança no desenvolvimento da vida. Não
aceitamos a destruição imediata, porque implica a negação da vida em formação.
Congelados, seria ideal que os progenitores, uma vez conscientes
de que está paralisada no freezer uma vida humana que geraram, procurassem
por nova implantação. Não se olvida, porém, que, em relação à vida embrionária,
453
LÓPEZ BARAHONA, Mónica; ANTUÑANO ALEA, Salvador. op. cit., p. 144-145 e 128-130.
454
BARBAS, Stela Marcos de Almeida Neves. op. cit., p. 93-94, 105 e 123-124.
235
é possível que se coloquem em confronto outros bens jurídicos, tais como a
integridade física e psíquica da mulher, quando exposta a uma gestação
indesejada, como também a integridade psíquica do seu parceiro, abalada que
seria pela repulsa a uma nova gravidez, em face de possível disparidade com o
plano de vida.
Seria também afetada a liberdade de procriação do casal, não
condicionada apenas pela vontade dos pais, mas por fatores imprevisíveis, tais
como redução do ganho financeiro, doenças, falecimento e divórcio.
455
Caso
obrigados a implantar os embriões excedentes em novo ciclo genital, os
progenitores seriam postos numa cilada, porquanto o não-pretendido crescimento
familiar seria, paradoxalmente, reflexo da utilização de procedimento autorizado
pelo Poder Público e sem controle rígido sobre o número de embriões
fecundados. Não seriam poucos os casais a procurar a clandestinidade para
evitar uma nova gravidez, como ocorre com o aborto.
Havendo rejeição de nova implantação por motivo íntimo ou por
mudança objetiva da condição de vida, ou advindo impossibilidade clínica de novo
implante (falecimento, doença grave), competiria ao Estado, como alternativa,
instituir políticas para promover a adoção pré-natal dos embriões
supranumerários, mediante a instituição de mecanismos que a estimulasse,
455
O direito à procriação representa uma das formas de autodeterminação física e de autonomia
do sujeito, que são manifestações do direito fundamental de liberdade. Associa-se também ao
direito à intimidade, do qual decorre o impedimento a intromissões ilegítimas na vida privada, em
meio à qual está a organização da família. A Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948)
estabelece que: “Os homens e mulheres de maior idade, sem qualquer restrição de raça,
nacionalidade ou religião, têm o direito de contrair matrimônio e fundar família”. No Brasil, a
Constituição consagra a liberdade de planejamento familiar, competindo ao Estado propiciar os
recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito (art. 226, §7º). À luz desses
dispositivos, conclui Flávia Piovesan que “todas as pessoas têm assim o direto fundamental à
saúde sexual e reprodutiva. Os direitos reprodutivos incluem os direitos das mulheres e dos
homens de assumir decisões no campo da reprodução, livres de discriminação, coerção e
violência, assim como o direito de dispor dos níveis mais altos de saúde sexual e reprodutiva,
tendo direito à autodeterminação” (PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. São Paulo:
Max Limonad, 1998. p. 201).
236
incluindo uma legislação adequada, em que se regulasse especialmente a
questão do conhecimento ou anonimato dos progenitores. Pensamos que a futura
legislação deveria estabelecer prazo razoável para efetivamente tornar exeqüível
a adoção, a fim de que se buscasse preservar a vida, o que não se satisfaz em 3
(três) ou 5 (cinco) anos diante do elevado número de embriões congelados na
atualidade (cerca de 20 mil nas clínicas brasileiras, sem projeto parental).
A questão dos embriões excedentes, porém, não se encerra com
a adoção. Sem embargo de configurar a resposta ideal em termos abstratos,
porque, repise-se, garante chance de que a vida embrionária congelada volte a
evoluir, a realidade é, ao que se nos afigura, um pouco mais severa. A maioria
dos casais que procura pelas clínicas busca filiação com seu patrimônio genético
e, assim, por tendência, prefere criar um novo ser ao invés de adotar um embrião.
Demais disso, como visto, os embriões congelados padecem de redução da
viabilidade e embrenham-se no risco de malformações, o que lhes minora a
chance de se manterem vivos, bem como de qualidade de vida digna. Esses
fatores reduzem o interesse na adoção pré-natal, sobressaindo o último, porque,
de ordem biológica, não pode ser modificado pelo Direito.
À vista da dureza das circunstâncias mundanas, Stella Maris
Martínez adverte com contundência no seguinte sentido: “afirmar que los
embriones criopreservados están vivos, es una falácia; ignorar que su destino
más seguro es la destrucción, una hipocresia; privilegiarlos sobre la posibilidad de
garantizar a tantos seres humanos su derecho a una mejor calidad de vida, una
arbitrariedad”.
456
Atento a esse particular, Roca i Trías admite “a destruição de
embriões criados in vitro e conservados, uma vez que não se tem em nenhum
456
MARTÍNEZ, Stella Maris. Derecho a la vida vs. derecho a una determinada calidad de vida:
reflexiones sobre la clonación humana, cit., p. 109.
237
caso a segurança de que a prolongação do congelamento permita assegurar a
dignidade humana, princípio que, como já se viu, rege todo o sistema de proteção
dos embriões e o que poderíamos denominar seu estatuto jurídico”.
457
Nesse
passo, Christian Starck, na 56ª Jornada de Juristas Alemães, de 1986, defendeu
que, em relação aos embriões sobrantes, caso não adotados, teria de “ser
autorizado su empleo con fines de investigación ya que carecen de cualquier
posibilidad de desarrollo y están abocados a la destrucción”.
458
Tendo em vista a dificuldade inerente à adoção pré-natal,
consideramos que, decorrido tempo razoável para sua consumação, os embriões
congelados estarão predestinados ao abandono até que sobrevenha a sua
destruição no congelador. Inserido nesse contexto, o potencial de vida dos
embriões está eliminado, equiparando-se à coisa. Não vemos diferença axiológica
entre a opção pela morte natural, quiçá séculos depois de sua criação, e sua
destruição mais breve, em prol de investigação científica séria, com possibilidade
de benefícios para toda a humanidade. É certo que na primeira hipótese a morte,
em si mesma, não adviria de ação de terceiro, mas a responsabilidade não se
altera, posto que o embrião depende da conduta de outrem para viver, o que
nivela o agir ao omitir.
Não escondemos que esta posição é qualificada, pelos
opositores, como verdadeiro embrionicídio. Preconizamos, porém, prudência, de
modo que a liberação para a investigação deveria ser precedida por precisa
regulamentação, com a fixação de prazos de moratória, tanto para incentivar nova
implantação na mulher progenitora ou adoção quanto para o aprimoramento de
457
ROCA I TRÍAS, Encarca. Direitos de reprodução e eugenia. In: ROMEO CASABONA, Carlos
María (Org.). op. cit., p. 119.
458
STARCK, Christian. op. cit., p. 148.
238
pesquisas com células-tronco adultas ou de células-tronco embrionárias que
dispensassem a destruição do embrião.
459
Os prazos haveriam de resultar de
amplo debate, sediado nos comitês de bioética com formação multidisciplinar.
Não obstante a necessidade de reflexão e cuidado, a Lei n.
11.105/05, objetivando saciar de imediato o desejo de certos grupos de cientistas
e de enfermos pela manipulação de células-tronco embrionárias, em seu art. 5º,
autoriza pesquisas com embriões produzidos por fertilização in vitro, não
utilizados no respectivo procedimento, congelados há 3 (três) anos ou mais, na
data da publicação desta Lei, ou que, já congelados na data da publicação da
mesma, depois de completarem 3 (três) anos, contados a partir da data de
congelamento, com prévio consentimento do casal.
O diploma, além de não prestigiar expressamente a adoção pré-
natal, acaba por dificultá-la pela pequenez do prazo para o congelamento. A
postura evidencia a falta de conhecimento da sociedade sobre a valia do embrião
e a importância de forma alternativa de ação em relação a ele. A ignorância foi
retratada em levantamento feito por uma clínica de reprodução assistida de São
Paulo, com 720 (setecentos e vinte) casais que fazem ou já fizeram tratamento
para engravidar, entre os quais 20% (vinte por cento) deles gostariam de levar
seus embriões para casa porque consideram que são seus filhos; 28% (vinte e
oito por cento) descartá-los-iam após 3 (três) anos; 19% (dezenove por cento)
permitiriam sua destruição; 33% (trinta e três por cento) doá-los-iam para
pesquisa ou para outros casais.
460
A meditação sobre o tema conduz à análise da
constitucionalidade do referido art. 5º. O ex-Procurador-geral da República
459
Capítulo 2, item 2.4.2.1, supra.
460
FOLHA de S. Paulo, São Paulo, 05 mar. 2005. p. A-18.
239
Cláudio Fonteles ajuizou ação de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal
Federal contra o referido dispositivo, argumentando que a vida começa com a
fecundação e, por isso, a destruição dos embriões para pesquisas viola dois
princípios constitucionais: o direito à vida e a dignidade da pessoa humana.
O preceito em tela desvaloriza a vida embrionária, na medida em
que condiciona somente ao decurso de exíguos 3 (três) anos e à vontade do
casal o desaparecimento da potencialidade do embrião evoluir para uma pessoa.
O prazo, como sustentamos, é insuficiente para conscientizar o casal sobre a
valia do embrião congelado, para estimular a adoção pré-natal e até mesmo para
permitir o desenvolvimento de pesquisas que não exijam sua destruição. Posto
isto, ele afronta o direito à vida. Porém, compreendemos que, paralelamente, sob
os pressupostos acima aventados, havendo o abandono por tempo razoável, a
nivelação do embrião congelado com o inviável é imposta pelos fatos, o que
legitima que o operador do direito iguale um ao outros.
A par disso, a lei pátria não abrangeu os embriões excedentes de
procedimentos subseqüentes à Lei n. 11.105/05. Relativamente a eles, é aplicável a
Resolução n. 1.358/92: “No momento da criopreservação, os cônjuges ou companheiros
devem expressar sua vontade, por escrito, quanto ao destino a ser dado aos pré-
embriões criopreservados, em caso de divórcio, doenças graves ou de falecimento de
um deles ou de ambos, e quando desejam doá-los” (item V, 3). A Resolução, como
visto, proíbe o descarte e a destruição embrionária (item V, 2), mas, às vezes, na prática,
o destino é o lixo. Em suma, a vida do embrião é colocada nas mãos dos progenitores,
como se existisse um direito sobre a vida, não um direito à vida.
Para suplantar a celeuma dos embriões congelados e concretizar
a inviolabilidade prevista no caput do art., da Constituição Federal, seria
240
sensato que as futuras normas restringissem a fecundação de óvulos ao mínimo
indispensável para a procriação num ciclo reprodutivo, a fim de desestimular as
sobras, estabelecendo mecanismo de austera fiscalização.
Na Áustria, a Lei de 1992 estabelece que somente serão
fecundados os óvulos necessários dentro de um ciclo menstrual, para lograr a
reprodução assistida, levando em conta o estado atual da medicina e a
experiência. Cuida-se de excelente parâmetro. Evita a geração abusiva de
embriões, promovida com intento claro de que sobrem e sejam congelados. Vale
dizer que a restrição não reduziria a eficácia da técnica de reprodução assistida,
pois, de acordo com o Registro Latino-Americano de Reprodução Assistida, não
há considerável diferença na taxa de gravidez quando transferidos 3 (31,8% -
trinta e um vírgula oito por cento), 4 (34,5%- trinta e quatro vírgula cinco por
cento), 5 (36,1% - trinta e seis vírgula um por cento) ou mais de 6 (35,8% - trinta e
cinco vírgula oito por cento) embriões.
461
Também não obsta a seleção pré-
implantatória, porque estrito o âmbito em que admitida. Porém, a norma apenas
terá considerável eficácia se for estabelecida em nível internacional, dada a
possibilidade de turismo pró-fertilidade.
Frise-se, enfim, que os argumentos traçados têm o intento de
fomentar a discussão em torno da matéria, nunca de fornecer elementos prontos
e acabados, o que, pensamos, é impossível nesta fase da ciência, onde contínuas
as descobertas, e da sociedade, imatura para uma discussão derradeira do
assunto.
461
Cf. ALVARENGA, Raquel de Lima Leite Soares. Considerações sobre o congelamento de
embriões. In: ROMEO CASABONA, Carlos Maria; QUEIROZ, Juliane Fernandes (Coords.).
Biotecnologia e suas implicações ético-jurídicas. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. p. 239.
241
8. OS BENS JURÍDICOS (2): CONSIDERAÇÕES SOBRE O
PATRIMÔNIO GENÉTICO
8.1 A dupla faceta: a individual e a coletiva
O patrimônio genético não é expressão cunhada em sentido
econômico, como algo que está no mercado de troca ou de compra e venda,
senão como herança transmitida de geração para geração. Não é invenção,
suscetível ao privilégio legal de patenteamento, mas descoberta, como explica
Volnei Garrafa, da Universidade de Brasília.
462
Em sentido amplo, o patrimônio genético é conceituado como o
universo dos componentes físicos, psíquicos e culturais que começaram em
passado remoto e permanecem constantes, embora com naturais mutações ao
longo das gerações.
463
Em sentido estrito, na lição do bioquímico Albert
Lehninger, representa o conjunto de elementos que formam o ácido
desoxirribonucléico, possuidor da informação genética (genoma) que caracteriza
um organismo.
464
A última, mais condizente com o legado genético, será a
adotada neste trabalho.
Devido à revolução da biomedicina, o patrimônio genético
humano, sobretudo quando referente aos embriões in vitro, tornou-se facilmente
manejável pelas técnicas genéticas, que se desenvolvem sob formas bastante
controvertidas do ponto de vista ético. Surgem, em conseqüência, clamores pela
462
O ESTADO de S. Paulo, São Paulo, 19 fev. 2006. p. A-21.
463
Cf. BARBAS, Stela Marcos de Almeida Neves. op. cit., p. 17, n. 2.
464
Cf. LEHNINGER, Albert L. Fundamentos da Bioquímica. São Paulo: Sarvier, 1977. p. 375.
242
limitação do direito à livre criação (investigação) científica, a fim de que se
protejam interesses a ele contrapostos, relacionados à intangibilidade do genoma.
No juízo valorativo destinado a apurar se tais interesses merecem ocupar a
categoria de bem jurídico, a Constituição exerce papel essencial.
O reconhecimento, na Constituição, de um catálogo de direitos
fundamentais e liberdades públicas, sua consagração e organização normativa
sob o norte da dignidade humana configuram um quadro harmônico de valores
que deve estruturar a totalidade do ordenamento jurídico. A pessoa, mediante a
repersonalização das relações jurídicas, é colocada no centro do sistema
constitucional, aceita como um ser livre, com identidade e individualidade própria,
não passível de manipulação em qualquer de seus aspectos.
Interferir sobre o genoma, para alterar sua estrutura natural ou
para produzir patrimônios iguais em duas ou mais pessoas, pode sufocar os
mencionados atributos que a Constituição assegura para a plena realização de
cada um. Sendo assim e a partir da dignidade humana, ou melhor, de sua
idoneidade projetiva, é possível não só admitir que os interesses que envolvem o
patrimônio genético demandam tutela jurídica, como também observar as linhas
mestras para a aferição do novo bem jurídico.
Na visão de Higuera Guimerá, não se trata de único bem, mas de
uma gama, vertida em dupla dimensão. Em primeiro lugar, surgem aqueles de
dimensão individual: I) a unicidade do ser humano, o direito de ser único, possuir
genótipo próprio, conjunto que se amolda à identidade genética; II) a
irrepetibilidade do ser humano, que corresponde à individualidade. Em segundo,
estão outros, de caráter coletivo: I) a evolução da espécie humana e sua
243
variabilidade; II) a reprodução diferencial.
465
Respeitada a dimensão de cada um,
estes bens, ao que se nos afigura, resumem-se no direito de herdar patrimônio
genético intacto ou, mais sinteticamente, na integridade ou inalterabilidade do
patrimônio genético.
466
Numa análise apressada, a tese esposada poderia conduzir à
conclusão de que a individualidade genética é consubstancial à dignidade
humana. Um errôneo raciocínio simplista, por exemplo, estigmatizaria os gêmeos
monozigóticos, pois, como nos clones, os mesmos partilham de igual identidade
genética, embora nada autorize sustentar que esta característica redunde em
causa de indignidade. Pelo contrário, não sofrem preconceito social, além de
contarem com a compatibilidade genética do irmão para o caso de doação de
órgão.
467
A clareza do raciocínio advém da apreciação do sentido do
princípio em tela. A dignidade humana é caracterizada pela virtual racionalidade,
que qualifica especialmente a pessoa pelo potencial de autodeterminação, com o
poder de decidir sobre si própria, de possuir concepções singulares sobre o
mundo e de manter o respeito das demais a este emblema distintivo.
468
Esse
potencial está condicionado por fatores ambientais de espaço (culturais,
familiares, sociais, econômicos) e de tempo (sucessão temporal de gerações
entre os seres vivos).
469
Não são, porém, os únicos.
465
HIGUERA GUIMERÁ, Juan-Felipe. El derecho penal y la genética. Madrid: Trivium, 1995.
p. 247.
466
Nessa égide, GARCÍA GONZÁLEZ, Javier. op. cit., p. 287.
467
Nessa linha, PUIGPELAT MARTÍ, Francesca. op. cit., p. 58.
468
Vide capítulo 6, item 6.1.1, supra.
469
Nesse sentido: ROMEO CASABONA, Carlos María. Límites jurídicos a la investigación y a sus
consecuencias? El paradigma de la clonación. Revista de Derecho y Genoma Humano, n. 6, p.
30-31, ene./jun. 1997; PUIGPELAT MARTÍ, Francesca. op. cit., p. 58-59.
244
É inevel a influência da carga genética,
470
menos em termos
biológicos, que ainda permanecem misteriosos, e mais em virtude da infiltração
de valores sócio-culturais nas atividades científicas quando o acaso biológico é
substituído pela vontade do interventor, de acordo com seus gostos e sua época.
A conversão da dignidade humana em moeda sem valia decorre, na hipótese, não
da humilhação verbal do indivíduo, mas de sua produção (oposto de geração),
quando é “degradado a un objeto involuntario de fines que aprovechan
exclusivamente a otros o cuando se le roba su individualidad, esencial para su
condición de persona”.
471
Neste contexto de artificialismos, surge a necessidade de
resguardar juridicamente a inalterabilidade do genoma de cada pessoa (genótipo),
razão pela qual se assiste à integridade genética exibir sua faceta individual
enquanto bem jurídico. A correlata tutela não encontra justificativa no intento de
assegurar a integridade genética por si só, senão em acautelá-la em virtude de
suas conexões com os influxos culturais, quando formam um conjunto precioso
para a pessoa compor a si mesma diferentemente de todas as outras. Sob esta
lente, preservado o casuísmo genético, o ser humano é mantido como fruto
biológico de complexas e variáveis combinações de genes, executadas pela
natureza durante a formação do genótipo (padrão genético individual), o que lhe
assegura a livre edificação da personalidade e do destino de forma ímpar e
pessoal.
A par disso, tendo em conta que cada ser humano não está
ilhado, mas que se sujeita a envolvimento com o sexo oposto e, então, à
470
ROMEO CASABONA, Carlos María. Límites jurídicos a la investigación y a sus consecuencias?,
cit., p. 30-31; PUIGPELAT MARTÍ, Francesca. op. cit., p. 58-59; BELLVER CAPELLA, Vicente.
Consideraciones filosófico jurídicas en torno a la clonación para la reproducción humana. Revista
de Derecho y Genoma Humano, n. 10, p. 54-57, ene./jun. 1999.
471
ESER, Albin. Derecho penal, medicina y genética, cit., p. 232.
245
reprodução, processa-se, natural e continuamente no ciclo da vida, a transmissão
dos caracteres genéticos entre as gerações, com as recombinações advindas da
mescla entre o patrimônio materno e o paterno. Em decorrência, o patrimônio
genético mostra sua faceta coletiva e, também, o interesse que o contorna, qual
seja a integridade genética, desta feita referente à espécie.
Diante da falta de domínio científico sobre o mecanismo natural
das combinações e das mutações genéticas e sobre o impacto de correlatas
alterações artificiais, as investidas da biomedicina despertam apreensão, em face
de sua repercussão sobre as gerações do porvir. As tormentas invadem o terreno
dos caracteres específicos da espécie humana que, mantidos imutáveis, sempre
a fizeram superior às demais. Elas estendem-se para a conservação e a evolução
da humanidade, porque não fosse a fantástica especificidade dos genótipos
individuais, os seres humanos seriam mais frágeis frente às epidemias viróticas,
enfermidades infecciosas ou a outros agentes externos agressivos aptos a
vulnerar certa configuração genética.
Este quadro autoriza o controle jurídico das atividades científicas
para firmar uma proteção cujo destinatário, desta vez, não será o indivíduo, um
grupo ou o Estado, mas a coletividade humana ou mais pontualmente “o gênero
humano mesmo, num momento expressivo de sua afirmação como valor supremo
da existencialidade concreta”.
472
472
BONAVIDES, Paulo. op. cit., p. 523.
246
8.2 Perfil internacional
No âmbito internacional, o patrimônio genético da humanidade
apareceu associado à noção de patrimônio comum da humanidade.
473
A
Declaração Universal sobre o Genoma e dos Direitos do Homem (Unesco 1997)
emprega o conceito em seu art. 1º: ”O genoma humano subjaz à unidade
fundamental de todos os membros da família humana e também ao
reconhecimento de sua dignidade e diversidade inerentes. Num sentido simbólico,
é herança da humanidade”.
474
O texto evidencia a relação recíproca de beneficência e
responsabilidade entre a humanidade e o indivíduo. Destaca, assim, a
fraternidade, mediante a valorização do laço genético que prende os seres
humanos numa irmandade. É atribuída a cada um a incumbência de salvaguardar
o genótipo em respeito à sua pessoa, mas, sobretudo, em homenagem aos
demais, inclusive futuros, em atenção à barreira do desconhecido que recobre as
combinações naturais de genes. Além disso, o preceito acautela a diversidade,
considerada inerente à família humana. É garantida a variedade da espécie a qual
transcende o indivíduo, configurando interesse supra-individual.
475
O documento também tutela a igualdade, a despeito das
características genéticas peculiares de cada ser humano (art. 2º, a), especificando
que a personalidade não se reduz a caracteres genéticos (art. 2º, b). Afirma que o
genoma, em seu estado natural, não pode ser explorado economicamente, ou
473
A noção foi assentada em 1979, no Acordo sobre as Atividades dos Estados na Lua e em
outros Corpos Celestes, bem como na Convenção das Nações Unidas sobre o direito do mar
(1982).
474
Embora transcrito no capítulo 6, item 6.1.2, o texto é novamente exposto para facilitar a
evolução do tema.
475
Nessa linha: GONZÁLEZ GONZÁLEZ, Marisé; VALLE MUÑIZ, José Manuel. op. cit., p. 114.
247
seja, que não é possível sua comercialização ou alienação (art. 4º). Não obstante,
quase 20% (vinte por cento) dos genes humanos estão patenteados, dos quais
63% (sessenta e três por cento) estão nas mãos de empresas e 28% (vinte e oito
por cento) de universidades. Entre eles, estão genes ligados a importantes
processos celulares, o que coíbe a pesquisa por outros grupos.
476
São feitas alusões, em outros documentos internacionais, ao bem
jurídico em testilha. A Recomendação n. 934/1982, do Conselho da Europa,
pronunciou-se pela inclusão da intangibilidade da herança genética perante as
intervenções artificiais no catálogo de direitos fundamentais do homem. A
Recomendação n. 1.100/1989, do Conselho da Europa, sobre a utilização de
embriões e fetos humanos na investigação científica, considera que o embrião
“não só manifesta uma diferenciação progressiva como organismo senão também
mantém uma continuidade de sua identidade biológica e genética”. Na Resolução
sobre os Problemas Éticos e Jurídicos da Manipulação Genética, o Parlamento
Europeu, em 16 de março de 1989, exarou “seu desejo de que se defina o
estatuto jurídico do embrião humano com o objetivo de garantir uma proteção
clara da identidade genética do ser humano”. A Declaração de Bilbao, na reunião
internacional sobre o Direito perante o Projeto Genoma Humano (26.05.93),
recomenda, mais amplamente, “a fixação de limites precisos para certas formas
de engenharia genética que atacam a individualidade, a identidade e a
variabilidade do ser humano”.
476
O ESTADO de S. Paulo, São Paulo, 19 fev. 2006. p. A-21.
248
8.3 Perfil constitucional
A integridade genética está resguardada pela projeção da
dignidade humana sobre todo o ordenamento jurídico, sobretudo sob a
perspectiva individual do bem, direcionada para a livre escolha do modo de vida.
Sobre a dimensão coletiva, a Constituição pátria, ao disciplinar a Ordem Social,
no seu art. 225, prescreve ao Poder Público a incumbência de: “II preservar a
diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as
entidades destinadas à pesquisa e manipulação do patrimônio genético”.
Para Lora Alarcón, é possível extrair do artigo a proteção do
patrimônio genético da humanidade, embora considere necessária uma norma
específica para sua segura salvaguarda, em respeito à sua enorme dimensão.
477
Segundo Adriana Diaféria, a disposição é suficiente para a tutela do patrimônio
genético dos vegetais, dos animais e dos seres humanos, inseridos
adequadamente em contexto constitucional comum, uma vez que a estrutura
biológica de todos os seres vivos é a mesma.
478
Sem embargo de reconhecermos
que a clareza da letra da lei tornaria seu comando mais acessível e elevaria a
segurança jurídica, a última interpretação, no nosso modo de sentir, é mais
ajustada à vista do princípio hermenêutico da máxima efetividade das normas
constitucionais.
Paralelamente, há outros direitos, consagrados na Carta de 1988,
que revigoram, como pano de fundo, a proteção da integridade genética. Entre
eles, está o direito à vida que, compreendido em conjugação com o direito ao
477
LORA ALARCÓN, Pietro de Jesús. op. cit., p. 228-229.
478
DIAFÉRIA, Adriana. op. cit., p. 52.
249
meio ambiente equilibrado, implica direito à sadia qualidade de vida, para o qual a
biodiversidade ecológica funciona como um dos assentos.
Aliás, segundo Adriana Diaféria, o próprio art. 225 consiste em
tutela mediata da vida
479
porque, como diz José Afonso, assegura “a saúde, o
bem-estar do homem e as condições de seu desenvolvimento”.
480
Sob o plano
coletivo, o desenvolvimento da vida humana recebe afluência dos avanços
científicos quando interferirem na essência do gênero humano, passo em que o
respectivo direito assume projeção universal (direito à vida da humanidade), em
defesa da sobrevivência da espécie.
A integridade genética associa-se, ainda, ao direito à igualdade,
quando reclama a multiplicidade genética para a preservação do todo, refutando,
em contrapartida, uma diferenciação arbitrária fundada em dados dos
cromossomos. Finalmente, relaciona-se com o direito coletivo à saúde,
consagrado nos arts. 6º e 196, da Constituição, porque o genoma é a raiz
biológica para a formação corpórea e intelectual do ser humano e, em suas
manipulações, a ciência avança na possibilidade de, futuramente, oferecer
tratamento condigno mediante terapia genética. Incumbe ao Poder Público
analisar seus benefícios e custos à vista de outras enfermidades e, transformados
os experimentos em tratamentos, estendê-los a todos.
Havendo nexo entre a integridade genética e os nominados
direitos fundamentais, conquanto não integre o Título II (Dos Direitos e Garantias
Fundamentais), a proteção ao patrimônio genético pode ser considerada direito
479
DIAFÉRIA, Adriana. op. cit., p. 53.
480
SILVA, José Afonso da. op. cit., p. 818.
250
fundamental decorrente do sistema constitucional (art. 5º, §2º, CF).
481
Ocupando
este nível hierárquico, o direito à inalterabilidade do patrimônio genético pode
prevalecer sobre a liberdade de expressão científica, reconhecida pelo art. 5º, IX,
da Constituição, quando houver conflito entre eles (colisão de direitos
fundamentais).
8.4 Parâmetros para a intervenção penal
A dignidade penal da integridade genética deriva, em primeiro
plano, da consagração constitucional de sua tutela. A elevada categoria jurídica
está em harmonia com a desvalia do dirigismo biológico no processo de formação
do ser humano, que impossibilita ou pelo menos tende a impossibilitar a priori as
condições básicas para o livre desenvolvimento da personalidade.
Simultaneamente, é colocada em pauta a importância da variabilidade genética
para o equilíbrio e a sobrevivência da humanidade.
Em segundo lugar, a dignidade penal assenta-se na perturbação
social provocada por investidas científicas sobre o patrimônio genético não-
patológico, casos em que se revela a assustadora sobreposição de pretensões
eugênicas à liberdade individual e à preservação digna da espécie.
Infelizmente, muitas vezes a falta de informação e de ponderação
leva a sociedade a enganos, pois induzida a julgar como inofensivo o que, em
481
Maria Garcia, em reflexão sobre quais seriam os direitos fundamentais, reconhece como tais
todos “diretamente vinculados a um dos cinco direitos fundamentais básicos constantes do art.
5º, caput” (GARCIA, Maria. Mas, quais são os direitos fundamentais? Revista de Direito
Constitucional e Internacional, São Paulo, v. 10, n. 39, p. 115-131, 2002). A Constituição
Portuguesa, ao ser revisada em 1997, no art. 26, n. 3, introduziu referência expressa à identidade
genética do ser humano, relacionando-a com a dignidade pessoal e a limitação da tecnologia e
experimentação científica.
251
análise mais profunda, pouco ou nada se diferenciaria da banalização do ser
humano, perpetrada em campos nazistas. Estando em jogo a essência do ser
humano e, provavelmente, o futuro da humanidade, não nos parece que a
intervenção penal diante do uso abusivo das técnicas genéticas afronte o princípio
da ultima ratio.
A carência de tutela penal, por sua vez, está presente em virtude
da insuficiência de outros meios para a proteção do genoma humano contra
agressões ou perigos advindos da manipulação biológica. Como explica Javier
García González, as elevadas multas administrativas são passíveis de previsão
antecipada pelos interventores e, assim, podem ser computadas no assento
contábil dos gastos estimados, o que, em tese, seria neutralizado pelo repasse no
preço do produto final.
482
A redução ou mesmo a aniquilação da eficácia intimidatória de
sanções administrativas é reforçada pelo volume de recursos financeiros
movimentado pela indústria farmacêutica, bem como pelas clínicas de reprodução
assistida, nas quais é manifesto o alto custeio das intervenções, arcado pelos
pacientes.
A adequação penal (aptidão da pena para evitar ou reduzir as
lesões ou riscos de lesão) exige o exame, diante de cada técnica, dos custos e
dos benefícios da incriminação da conduta, passo em que é enfática a
importância da finalidade do procedimento: terapêutica, meramente investigativa,
de melhoramento, comercial ou bélica.
Além disso, não se pode perder de vista a natureza das coisas,
em que adquirem relevância a dificuldade do nexo causal entre as manipulações
482
GARCÍA GONZÁLEZ, Javier. op. cit., p. 282.
252
atuais na linha germinal e os efeitos sobre a futura descendência, a
irreversibilidade das conseqüências, visto que plasmadas no código genético, e a
falta de consentimento do futuro ser e de sua estirpe, já que a investida é
efetivada, em regra, na fase embrionária.
Soma-se a falta de utilidade prática de intervenções tardias
quando em questão bem jurídico delicado e tão magnânimo, como a integridade
genética da espécie. Sob esta ótica, são profundamente tocantes as palavras de
Hans Jonas, que elaborou uma ética de responsabilidade humana à vista do
poder tecnológico conquistado no século passado e presente.
Para ele, “El dilema moral de toda manipulación biológico-humano
que vaya más allá de lo puramente negativo de la prevención de defectos
hereditarios es precisamente ése: que la posible acusación de la descendencia
contra su creador ya no encuentra a nadie que pueda responder y purgar por ella,
nin ningún instrumento de indemnización. Aquí hay un campo para el crimen no
total impunidad, de la que las personas actuales que serán pasadas están
seguras frente a sus futuras víctimas. Sólo esto (nos) obliga a la más extrema e
temerosa cautela en cualquier aplicación del cresciente poder del arte biológico
sobre los hombres. Lo único permitido aquí es la prevención de la desgracia, no la
prueba de una felicidad de nuevo cuño”.
483
Em razão de todos estes fatores, defendemos, nesta seara, a
intervenção penal preventiva.
483
Técnica, medicina y ética. Sobre la prática del principio de responsabilidad, Barcelona: Paidós,
1997, p. 127, apud BELLVER CAPELLA, Vicente. op. cit., p. 63.
253
9. AS TÉCNICAS BIOMÉDICAS E O PATRIMÔNIO GENÉTICO
9.1 A manipulação genética
A manipulação genética pode ser terapêutica ou não-terapêutica.
A terapia gênica desencadeia efeitos diferentes conforme realizada em células
somáticas ou da linha germinal e, por isso, deve ser distinta a valoração jurídica
de cada uma.
484
Nas células somáticas, a intervenção implica ação específica
nestas, sem afetar o padrão genético-hereditário do embrião, feto ou adulto
submetido e, portanto, sem transmissão à descendência. Por isso, a técnica é
equiparável ao transplante de órgãos,
485
salvo quanto a específicas condições
decorrentes do peculiar cunho experimental. De fato, para a prática, ao lado do
consentimento informado e da ponderação de riscos e benefícios para o paciente,
colocam-se a igualdade de oportunidade de acesso aos enfermos, a falta de
meios convencionais de tratamento, a letalidade ou a gravidade manifesta da
doença e a submissão a protocolos rigorosos, que controlem os custos e
benefícios em confronto com os tratamentos para doenças comuns.
486
Esta modalidade de intervenção deve ser lícita e, tão-somente
quando cause dano que afete a integridade física do paciente, subsumir-se-á ao
484
Vide capítulo 2, supra.
485
Nessa linha: ESER, Albin. Derecho penal, medicina y genética, cit., p. 238; ROMEO
CASABONA, Carlos María. El derecho y la bioética ante los límites de la vida humana, cit.,
p. 367; HIGUERA GUIMERÁ, Juan-Felipe. El derecho penal y la genética, cit., p. 333.
486
Cf. Lydia Feito Grande (Professora de Bioética da Universidade de Comillas, em Madrid, na
Espanha) - FEITO GRANDE, Lydia. El sueño de lo posible: bioética y terapia génica. Madrid:
Comillas, 1999. p. 344; ROMEO CASABONA, Carlos María. Do gene ao direito: sobre as
implicações jurídicas do conhecimento e intervenção, cit., p. 152.
254
crime de lesões corporais.
487
No Brasil, a terapia gênica somática está autorizada
e regulada pela Instrução Normativa n. 9/97, da CTNBio, onde se disciplinam os
requisitos a serem preenchidos pelos requerimentos para os experimentos, com a
avaliação submetida a Comitês Internos de Ética em pesquisa e, a seguir, à
própria CTNBio.
Para a terapia gênica germinal, Luís Archer pondera que, se
realizada com sucesso nas primeiras fases do período embrionário, é valiosa,
porque contribui para a eliminação da anomalia cromossômica, de modo que a
futura criança e sua descendência nasceriam livres do defeito e, portanto, da
possível enfermidade.
488
Contudo, o procedimento é complexo, porquanto exige a
fecundação in vitro, o diagnóstico pré-implantatório, a modificação genética do
material embrionário e sua transferência. Seria bem mais simples e barata a
seleção pré-implantatória dos embriões.
A par disso, se a técnica fosse efetivada com êxito no adulto,
embora evitasse a transmissão hereditária, não lhe curaria da anomalia e, por
isso, caso ele também padecesse ou viesse a padecer da enfermidade, seria
necessária sua submissão à terapia genética somática.
Esse quadro reclama o questionamento da relação custo-
benefício da técnica, sobretudo se assinalado seu cunho experimental e se
executada mediante recursos retirados de investidas sanitárias mais prementes.
Outrossim, se a modificação causasse distúrbio, as conseqüências seriam
incontroláveis, porquanto fatalmente transmitidas aos descendentes. Enfim, como
487
Cf. ROMEO CASABONA, Carlos María. El derecho y la bioética ante los límites de la vida
humana, cit., p. 367.
488
Cf. ARCHER, Luís. op. cit., p. 242-243.
255
diz Lydia Feito Grande, não há prioridade para o imediato desenvolvimento do
procedimento.
489
Afigura-se-nos razoável a posição de Romeo Casabona, que
propõe a submissão à moratória da terapia germinal
490
até que se comprove, de
modo mais fidedigno, sua segurança e desenvolva-se melhor a terapia gênica
somática.
491
Caso houvesse violação da moratória, o infrator seria passível de
contenção mediante uma sanção profissional, a qual poderia ser elidida se
configurada uma causa de justificação, como o estado de necessidade. Não há
razão para uma sanção criminal, posto que, conquanto a técnica altere o
patrimônio genético, a finalidade almejada reside, se realizada no estágio
embrionário, no benefício do paciente (embrião) e da descendência, ou somente
desta se realizada no adulto. Destarte, mesmo em face dos riscos, a técnica não
assume repulsa suficiente para ser banida pela penalidade mais grave.
Ao lado de manipulações terapêuticas, os gametas, o zigoto ou o
embrião podem ser submetidos a manejos alheios à cura de enfermidades
graves. Ignorando a relação entre as bases genéticas e o potencial humano de
autodeterminação (a dignidade humana), estes procedimentos procuram traços
genéticos perfectivos (engenharia de melhoramento), fixados segundo os critérios
da sociedade contemporânea, pouco humanitária e muito competitiva, ou,
diversamente, são buscados intentos meramente investigativos, comerciais e
bélicos.
489
FEITO GRANDE, Lydia. op. cit., p. 354-356.
490
A moratória da terapia gênica na linha germinal foi também sugerida pela Associação
Internacional de Direito Penal, no Congresso realizado em Viena, em 1989 (cf. ROMEO
CASABONA, Carlos María. El derecho y la bioética ante los límites de la vida humana, cit.,
p. 368, n. 6).
491
Em linha similar, HIGUERA GUIMERÁ, Juan-Felipe. El derecho penal y la genética, cit.,
p. 359-361.
256
Caso executada sobre gametas a serem utilizados em
reprodução, a manipulação genética não-terapêutica afeta negativamente a
integridade do patrimônio genético da espécie (pessoa a advir da fecundação e
sua descendência), não havendo bem individual envolvido porque ainda não há
vida para sustentá-lo. Se efetivada sobre o zigoto ou embrião, a técnica apresenta
dupla perspectiva: uma individual, ao violar a inalterabilidade do patrimônio
genético da incipiente vida (integridade genética do genótipo) e outra coletiva,
relacionada à intangibilidade do patrimônio genético da espécie, colocada em
risco pela transmissão hereditária da alteração.
492
A manipulação não-terapêutica redunda em coisificação do ser
humano, na medida em que modifica, de antemão, sem consentimento, o padrão
genético sob parâmetros estranhos ao futuro ser afetado, fazendo com que a
pessoa do porvir funcione como meio para fins outros que não ela própria, tais
como desejos egoístas dos pais, de seus criadores, ou meramente lucrativos.
Representa a retomada da ideologia nazista. Além disso, estes procedimentos
abalam as bases genéticas referentes à origem e ao normal desenvolvimento da
espécie, na medida em que rompem o processo das naturais combinações
genéticas.
493
Portanto, afetam valores fundamentais e causam reprovabilidade
social suficiente para justificar a intervenção penal.
Pode-se cogitar que a projeção supra-individual da técnica seria
remota, porque uma isolada aplicação não afetaria a integridade genética da
espécie humana, cujo abalo dependeria de cumuladas repetições. De
492
Nesse sentido, C. M. ROMEO Casabona ao analisar o art. 159, do Código Penal espanhol (Los
delitos contra la vida y la integridad personal y los relativos a la manipulación genética, cit.,
p. 277). Na mesma linha, PRADO, Luiz Regis. Biossegurança e direito penal. Revista dos
Tribunais, São Paulo, ano 94, v. 835, p. 422, maio 2005.
493
Nessa linha: BENÍTEZ ORTUZAR, Ignácio Francisco. op. cit., p. 443-444; GARCÍA GONZÁLEZ,
Javier. op. cit., p. 285-291.
257
conseguinte, em face da prática de uma manipulação, seria ilegítima a resposta
penal que mirasse a tutela da intangibilidade genética sob a dimensão coletiva.
494
Todavia, ao que aferimos, uma só manipulação germinal executada com sucesso
teria reflexo considerável sobre a humanidade, pois promoveria o nascimento de
pessoa com o genótipo alterado irreversivelmente, acarretando, numa seqüência
incontrolável, a transferência da mudança aos descendentes e assim
sucessivamente.
Portanto, cada ação, em si, é potencialmente danosa para o
genoma da humanidade e, quando agregada a outras, deflagra, com
peculiaridade, significativo dano, sem controle conhecido. Se aguardada esta
situação, a intervenção jurídica seria pouco útil à sociedade, quiçá pela morte do
cientista interventor, além de cravada em dificuldades probatórias, dada a
multiplicidade de ações e sua distância do resultado. Assim, a antecipação da
barreira penal na tutela da integridade genética sob o prisma supra-individual,
antes de ser meramente simbólica, é instrumental, porque afasta uma lesão com
proporções imensuráveis e sem reversão. Demais disso, reafirma o valor deste
bem em época de considerável confusão ética, servindo tanto para a
conscientização do leigo quanto para o controle dos impulsos dos cientistas, eis
que exposta sua imagem a maiores críticas. Destarte, a prevenção geral
provocada pela norma penal apresenta-se no mínimo pela advertência sobre a
ilicitude máxima do comportamento.
Devido ao mandamento de taxatividade da lei penal, é
imprescindível o estabelecimento de critério para estabelecer zona divisória entre
494
Nesse passo, pondera SUÁREZ GONZÁLEZ, Carlos J. La función de derecho penal y sus
consecuencias para el genoma humano. In: GENÉTICA y derecho penal: previsiones en el
Código Penal Español de 1995, cit., p. 379. O autor questiona a legitimidade da técnica delito
de cumulação , sustentando que vulnera o princípio da culpabilidade.
258
a patologia genética e o mero desvio de normalidade (gene raro ou diferente),
valendo as mesmas ponderações feitas quando da análise da seleção
embrionária.
495
Não procedida a distinção (pertinente em norma não-penal, dada
a velocidade de alteração da matéria), a lei estará fadada à inaplicabilidade,
reduzindo-se à função retórica, qual seja a aclamação da importância da
intangibilidade do patrimônio genético, despida, porém, de aplicabilidade, em
razão de carente delimitação do campo de ilicitude.
No direito posto, não são constantes as posturas. A Lei alemã de
Proteção ao Embrião tipificou o delito de manipulação genética de célula humana
da via germinal (gametas e o óvulo em que penetrou o espermatozóide, sem que
tenha se findado a mescla dos núcleos - §8º), castigando o responsável pela
manipulação e o usuário do material (§5º).
496
O mesmo rumo foi seguido pela
Noruega, onde a Lei n. 56/94 proíbe o tratamento dirigido à modificação do
genoma de embriões humanos (artigo 7.1 e artigo 8.5).
No Brasil, a Lei n. 8.974/95 vedava qualquer intervenção ou
manipulação genética em células germinativas humanas (art.combinado com a
Instrução Normativa 8/98, da CTNBio). A atual Lei n. 11.105/05, em seu art. 25,
pune a prática de engenharia genética em célula germinal humana, zigoto
humano ou embrião humano, salvo se executada sobre as células-tronco de
embriões passíveis de uso, nos termos do art. 5º: Em confronto com o anterior, o
novo diploma é superior, ao elucidar que a atividade abarca também o zigoto e o
embrião e, ainda, ao restringir o campo da penalidade à alteração de genes
(engenharia ou manipulação molecular), excluindo o simples manejo.
495
Capítulo 7, item 7.1, supra.
496
A Resolução do Parlamento Europeu, de 16 de março de 1989, exigiu a penalização de toda a
transferência de genes para células germinais humanas (cf. HIGUERA GUIMERÁ, Juan-Felipe.
El derecho penal y la genética, cit., p. 354).
259
Sem embargo, não diferenciou as investidas terapêuticas das
não-terapêuticas, nem em termos de quantidade de pena. Além disso, não
especificou que os gametas deveriam ser empregados em futura reprodução
assistida, pois, do contrário, não haveria alteração do patrimônio genético e, não
havendo vida no espermatozóide ou no óvulo isolado, inexistiria bem jurídico
atingido. Essas falhas devem ser corrigidas em futura reforma penal. Por ora,
cumpre ao intérprete promover o ajuste ao excluir do tipo a intervenção
terapêutica e o experimento sobre gameta sem fim de fecundação, em ambos os
casos com base na falta de ofensa a um bem jurídico, caso em que este, segundo
interpretação teleológica, desempenha função exegética.
497
Não é essa a situação em que se encontra a manipulação sem
fim reprodutivo de embrião humano in vitro. Não havendo implantação do material
embrionário, o procedimento não viola o patrimônio genético do indivíduo futuro
ou da espécie, mas aniquila uma vida humana, eis que toma o embrião como
objeto de investigação para posterior destruição. Por isso, de lege ferenda,
pensamos que, para tal procedimento, em respeito à especificidade do bem
jurídico afetado, há necessidade de um tipo apartado das manipulações,
exclusivamente voltado para a tutela da vida.
Na Espanha, a Lei n. 35/88, em seu art. 20.2.B, referente ao “pré-
embrião”, veda, administrativamente, a manipulação genética com fins não-
terapêuticos ou terapêuticos não-autorizados. O Código Penal, em seu art. 159,
§1º, pune quem manipular genes humanos de modo a alterar o genótipo, com
finalidade distinta da eliminação ou diminuição de taras ou enfermidades. No §2º
497
Cf. GOMES, Luiz Flávio. op. cit., p. 138.
260
(parágrafo segundo), sanciona a alteração do genótipo realizada com imprudência
grave, sem referir à finalidade da investida.
O §1º (parágrafo primeiro) exige, para a configuração do tipo, a
alteração permanente do genótipo. Preconiza Romeo Casabona que o preceito,
em virtude da dupla perspectiva (individual e supra-individual), apresenta
estrutura de delito de resultado (alteração definitiva do genótipo, patrimônio
individual, com prova do nexo causal) e, na seqüência, de perigo abstrato
(colocação em risco do genoma da humanidade, patrimônio da espécie, a
despeito de prova do nexo).
498
Paralelamente, no §2º (parágrafo segundo), o
delito é de mera atividade, porquanto penaliza o perigo inerente à prática
perpetrada com material celular humano de forma temerária.
499
A modelagem empregada no §1º (parágrafo primeiro) consagra
noções bastante ajustadas à realidade das coisas. Com efeito, nem todas as
manipulações genéticas provocam alteração definitiva no genótipo, única que,
inexoravelmente, é transmitida aos descendentes. Entre os vetores virais,
distinguem-se os retrovírus que integram a informação genética da célula e,
portanto, transferem-se às células-filhas, dos adenovírus, cuja informação não
integra o código da célula ou mantém-se independente dentro do núcleo celular.
As conseqüências penais da utilização de um e outro vetor são evidentes: a
técnica utilizada será capaz de alterar o DNA da célula somente se usado
retrovírus.
500
Diante do exposto, de lege ferenda, propomos a criação de um
tipo para a manipulação não-terapêutica de embriões, sem fins procriativos, em
498
Cf. ROMEO CASABONA, Carlos María. Los delitos contra la vida y la integridad personal y los
relativos a la manipulación genética, cit., p. 278.
499
Cf. BENÍTEZ ORTUZAR, Ignácio Francisco. op. cit., p. 453-454.
500
Cf. GARCÍA GONZÁLEZ, Javier. op. cit., p. 295. Vide também capítulo 2, n.r. 66.
261
homenagem à vida, num paralelo à figura da fecundação de óvulos também sem
intento procriativo. Ficaria fora da esfera penal a mesma atividade com gametas.
A par disso, sugerimos que o tipo concernente à manipulação
não-terapêutica de gametas e embriões, com intento de procriação, tenha
estrutura de delito de resultado no que tange ao aspecto individual da integridade
genética, a fim de evitar a punição de tentativa inidônea. Deverá, pois, constar,
como elementar da figura penal, a prova do nexo causal entre o emprego da
técnica e a efetiva alteração do genótipo individual. A indiscutível dificuldade
probatória poderá ser minimizada mediante rigorosa fiscalização em cada um dos
procedimentos, nomeadamente quanto ao tipo de vetor empregado.
Exigida e executada a referida prova, o perigo ao genoma da
humanidade será reflexo, dispensando demonstração de seu vínculo com a
prática científica. Nesta linha, basta que o aspecto coletivo do indigitado bem
jurídico seja considerado na interpretação da lei e na dosagem da pena, figurando
a respectiva tutela como um mecanismo para conferir a segurança necessária ao
desfrute, pelas gerações futuras, do padrão genético naturalmente humano.
Por fim, é pertinente, também de lege ferenda, a inclusão do tipo
culposo (imprudência, negligência ou imperícia) com estrutura paralela ao crime
doloso. A necessidade e adequação da sanção penal apresentam-se porque a
técnica em apreço somente é realizada por profissionais especializadíssimos,
conhecedores da indefinida transmissão hereditária da alteração e da falta de
controle técnico sobre ela. Medida sob esse parâmetro, a sanção penal
representa meio para prevenir abusivas mudanças, com repercussão sem
dimensão passível de atual conhecimento e, em regra, acobertadas por contratos
de seguro.
262
9.2 A clonagem humana
9.2.1 Clonagem reprodutiva: aspecto individual
A obtenção de embriões clonados foi anunciada pelos sul-
coreanos e, após, pelos britânicos. Aceita a viabilidade da técnica, ainda que a
longo prazo, são muitas as utilidades sugeridas. Entre elas, o aperfeiçoamento ou
o auxílio em técnicas de reprodução assistida, na medida em que a clonagem
possibilitaria a criação de embriões múltiplos voltados para mulheres com baixa
produção de óvulos, permitindo o implante de número mais adequado ao sucesso
da empreitada reprodutiva, ou produção de embriões excedentes para análises
genéticas, como o diagnóstico pré-implantatório, a fim de que se implantassem
somente os sadios. Além disso, a técnica propiciaria a concretização do sonho de
réplica de um ser humano falecido ou considerado excelente, bem como a
produção em série de super-homens ou homúnculos.
Por ora, não há certeza científica sobre a veracidade dos
resultados das pesquisas sul-coreanas e bem menos prova indicativa da
viabilidade de desenvolvimento do embrião clonado.
501
Somam-se, ainda,
inconvenientes atrelados ao processo: I) para cada clone aparentemente normal,
são geradas dezenas de outros abortados ou malformados;
502
II) envelhecimento
precoce e doenças genéticas do clone.
503
501
Capítulo 2, supra.
502
Cf. PEREIRA, Lygia. op. cit., p. 128.
503
CONTRA-ataque dos clones. Super Interessante, n. 151, ago. 2003 (entrevista com Keith
Campbell, professor de fisiologia animal da Universidade de Nottingham, Reino Unido). A Dolly,
ao completar 3 (três) anos em 1999, tinha células de uma ovelha de oito anos de idade, pois
suas características biomoleculares eram as mesmas do tecido que a originou, retirado de uma
ovelha mais velha. Em decorrência e em tese, o clone sofreria, na infância, doenças
degenerativas mais comuns, como reumatismo, artrite, diabetes e até câncer (VEJA, São Paulo,
ano 34, n. 1.686, 07 fev. 2001).
263
Diante da perplexidade em torno do procedimento, não são
poucos os temores. Na linguagem de Ferrando Mantovani, resumem-se nos
seguintes: risco de destruição do direito à identidade genética e à inviolabilidade
da individualidade humana; risco de destruição do indivíduo por ato de vontade ou
capricho de terceiro; risco de programação e reprodução totalitária de seres
humanos iguais; risco de implicações hereditárias imprevisíveis, inclusive sobre a
conservação da espécie, calcada na variedade de seus componentes.
504
O problemático quadro conduz a discussões acerca dos princípios
éticos e jurídicos que colocam à prova a clonagem. O ponto de partida é a
invulnerabilidade da dignidade da pessoa humana. Em face da abertura da
correlata norma, para perquirir sua relação com o tema, novamente acode-se da
perspicaz análise de Hans Jonas, que percebe que a essência da questão está na
importância do direito à ignorância para o livre desenvolvimento da personalidade.
Diz o estudioso, in verbis: “El hecho sencillo y sin precedentes es
que el hipotético clon sabe (o cree saber) demasiado de sí mesmo, y outros
saber (o creen saber) demasiado de él. Ambos hechos, el propio y supuesto ya-
saber y el de otros, son paralizantes para el espontaneidad de su llegar a ser ‘el
mismo’ y el segundo hecho también para la autenticidad del trato de otros con él”.
Mais adiante: “Da igual que el supuesto saber sea verdadero o falso (y hay
buenas razones para suponer que es esencialmente falso per se): es pernicioso
para la obtención de la propia identidad. Porque lo existencialmente significativo
es que la persona clonada piensa tiene que pensar que no es lo que ‘es’
objetivamente en el sentido substancial del ser. En resumen: al producto de la
clonación se le ha robado de antemano la liberdad, que sólo puede prosperar bajo
504
Cf. MANTOVANI, Ferrando. Manipulaciones genéticas, bienes jurídicos amenazados, sistemas
de control y técnicas de tutela, cit., p. 99.
264
la protección de la ignorancia. Robar premeditadamente esta liberdad a un futuro
ser humano es un crimen inexpiable, que no puede ser cometido ni una sola
vez”.
505
Rememore-se que o componente ambiental (tempo e espaço) na
formação da personalidade tem extrema relevância, mas não atua isoladamente.
de ser reconhecido o acerto de Hans Jonas ao expressar a compulsão do ser
repetido a um determinismo genético, em função do artificialismo de seu genótipo,
o que não é menos perturbador e, por isso, deve ser evitado. Não se ignora que
uma criança clonada pode ser bem acolhida e gozar de condições para fluir
livremente. Não obstante, o mais comum é que seja querida em razão direta de
sua dotação genética.
Partindo dessas premissas, a clonagem reprodutiva, ao copiar o
genótipo do ser clonado no clone, vulnera a unicidade e a individualidade do ser
humano e, assim, lesa o bem em voga - a inalterabilidade do patrimônio genético
do ser humano - em sua dimensão individual.
506
Além disso, viola o acesso à
dupla progênie, importante para o sentimento de normalidade, vinculado à origem
materna e paterna, como manda a natureza de nossa espécie.
A relevância do bem em questão, a exposição a ataque
significativo e a irreversibilidade do efeito genético, posto que o patrimônio
genético do clone sempre será uma cópia, evidenciam a insuficiência de sanções
financeiras e legitimam a intervenção penal.
505
Hans Jonas, op. cit., p. 127, apud PUIGPELAT MARTÍ, Francesca. op. cit., p. 59.
506
Entre os autores que afirmam que a clonagem lesa o direito à unicidade e irrepetibilidade do
ser-humano, estão: C. M. ROMEO Casabona (El derecho y la bioética ante los límites de la vida
humana, cit., p. 371-372); J.U. Hernández Plasencia (La protección penal del embrión
preimplantatorio. In: GENÉTICA y derecho penal: previsiones en el Código Penal Español de
1995, cit., 122); Ferrando Mantovani, (Manipulaciones genéticas, bienes jurídicos amenazados,
sistemas de control y técnicas de tutela, cit., p. 99) e J. F. Higuera Guimerá (El derecho penal y la
genética, cit., p. 247). Os 2 (dois) últimos referem-se a eles como decorrência do direito à
dignidade humana, reconhecido como tal.
265
Inquieta, a Associação Internacional de Direito Penal, em seu XIV
Congresso Internacional de Direito Penal, celebrado em Viena, em 1988, propôs a
tipificação penal da clonagem de seres humanos, na Resolução n. 6.9. Seguiram
a mesma trilha vários documentos internacionais. A Declaração Universal sobre o
Genoma Humano não permite a clonagem com fins reprodutivos em seres
humanos, sem estatuir outras referências (art. 11). O Conselho da Europa,
mediante o Protocolo específico de 1998, incorporado ao Convênio sobre Direitos
Humanos e Biomedicina, proíbe a clonagem com propósito de criar um ser
humano geneticamente idêntico a outro, vivo ou morto. A União Européia, na
Carta de Direitos Fundamentais, estabelece a proibição da clonagem reprodutiva
em seres humanos.
A incriminação da clonagem reprodutiva, em princípio, demanda
ressalva quando executada mediante gemelação artificial: se duplicados os
embriões e transferidos simultaneamente para o útero feminino, os indivíduos
nasceriam juntos, de modo que não haveria cerceamento do direito à ignorância,
simplesmente porque não existiria parâmetro preexistente. Tal como ocorre com
os gêmeos monozigóticos, o clone e o clonado viveriam sob a mesma situação.
Portanto, mesmo repetindo-se o patrimônio genético, não se desrespeitaria a
dupla progênie nem haveria ofensa à dignidade humana, à autodeterminação e,
assim, não se justificaria, em tese, a intervenção penal.
O procedimento, porém, reclama outras ponderações, pois a
gemelação artificial pode ser empregada para obter embriões excedentes, para
implantações sucessivas ou para uso em diagnóstico pré-implantatório. Para
Higuera Guimerá, o método associado a estes fins conforma-se com a dignidade,
pois “no se estaria persiguiendo la finalidad innoble y deplorable eticamente de
266
crear mediante programación y reproducción de una forma ‘totalitaria’ seres
humanos idénticos y en serie, y por outra parte, en mi opinión, no se daria en
absoluto en estos casos la finalidad de hacer una selección de la raza, o de
producir seres humanos inteligentes, estúpidos o bellos”.
507
Nessa égide, Romeo
Casabona não rechaça a técnica em si mesma, porquanto não envolve
manipulação genética nem réplica de ser preexistente.
508
No Reino Unido, a Lei
de Fertilização de 1990 não exclui a concessão de permissão para gemelação
artificial.
509
Entretanto, é muito rara a escassez de óvulos para a reprodução
assistida e, via de conseqüência, o uso da gemelação artificial para suprir a falta.
Além disso, está presente a possibilidade de dissolução do interesse em outra
procriação, quando seria retomada a celeuma dos embriões excedentes. Se,
desde logo, for criado sem fim reprodutivo, inclusive diagnóstico, o embrião
clonado funciona como instrumento, em visível desprezo da vida humana que
incorpora e do princípio constitucional da dignidade. Outra objeção, desta feita
relacionada a nascimentos sucessivos, está no possível conflito entre os
interesses do filho já nascido, em sua individualidade e unicidade, e o dos pais,
em reproduzirem-se por mais uma vez, servindo-se dos embriões clonados e
estocados. Esses motivos são satisfatórios para que a gemelação artificial, em
análise mais aprofundada, seja recusada.
Rigorosa, a Lei alemã de Proteção ao Embrião, sem distinção
entre os métodos de clonagem, penaliza quem produzir artificialmente embrião
507
Cf. HIGUERA GUIMERÁ, Juan-Felipe. Consideraciones jurídico-penales sobre las conductas de
clonación en los embriones humanos (II), cit., p. 104.
508
Cf. ROMEO CASABONA, Carlos María. Límites jurídicos a la investigación y a sus
consecuencias?, cit., p. 34.
509
O art. 41 considera delito “realizar algo que, em virtude do art. 3.3 desta lei, não possa ser
autorizado por uma permissão será culpável de delito e poderá ser processado e condenado com
pena de prisão por tempo que não exceda a dez anos, ou multa ou ambos”.
267
com informação genética idêntica a de outro ou a de feto, ser humano ou pessoa
morta, bem como quem o transfere a uma mulher (§6º). A Lei pátria, no art. 26,
também não faz diferenciação entre os métodos de clonagem.
Esses diplomas não exigem o nascimento do ser clonado e,
nesse ponto, divergem do Código Penal espanhol.
510
Para nós, o acerto está com
o último, posto que, antes do nascimento, não há relevante confronto entre o
clone e o ser clonado, não danificando ou expondo à lesão, pelo menos de forma
significativa, o direito à ignorância. Enquanto não nascido o novo ser humano, não
se vulnera o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, condição para que
a inalterabilidade do genoma seja alçada a bem jurídico-penal. Sem prejuízo, a
mera transferência de embrião clonado ao útero feminino deve ser punível a título
de tentativa, ainda que por fato alheio à vontade do interventor o novo ser não
nasça. De lege ferenda, propomos, pois, que, sob o aspecto individual, a estrutura
de delito seja de resultado, que melhor resguarda a fragmentariedade penal.
9.2.2 Clonagem reprodutiva: aspecto supra-individual
A projeção coletiva da clonagem reprodutiva - inalterabilidade do
patrimônio genético da espécie - é bastante discutida na doutrina espanhola.
Muñoz Conde, após defender que a atividade deve ser punida no âmbito penal,
ressalta: “por lo menos en la medida en que se utilicen para fabricar seres
humanos, no ya sólo por la lesión del derecho a la individualidad, identidad y a la
propia autenticidad del ser humano, sino por el riesgo que todo ello representa
510
Reza o art. 160.3 (antigo 161.2) do Código Penal: “Con la misma pena [prisión de uno a cinco
años e inhabilitación especial para empleo o cargo público, profesión u oficio de seis a diez años]
se castigará la creación de seres idénticos por clonación u otros procedimentos dirigidos a la
selección de la raza”.
268
para la propia humanidad”.
511
Benítez Ortuzar sustenta que a técnica afronta o
natural desenvolvimento evolutivo da espécie humana, situando o centro do
problema, especificamente, na própria identidade genética de cada um dos
indivíduos que formam ou formarão a comunidade constituída pela espécie
humana.
512
Em esteira similar, Higuera Guimerá.
513
Diversamente, Puigpelat Martí advoga que a vedação da
clonagem, sob o argumento de que a mesma colocaria em risco a variabilidade
genética da espécie caso todo o mundo se clonasse, não lhe parece aceitável, em
função da restrita possibilidade da ocorrência.
514
Nesta égide manifesta-se
Romeo Casabona, para quem as indicações sobre a interferência da clonagem na
diversidade da espécie são meras advertências, pois os riscos de que a variedade
se empobreça são muito remotos.
515
No nosso modo de ver, o raciocínio depende da bipartição do
procedimento segundo sua finalidade: I) a clonagem com fins de seleção
eugênica de pessoas; II) a clonagem com qualquer outra finalidade, como a
meramente reprodutiva (resgatar um filho morto) e suas diversas variantes (maior
número de embriões para implantação ou diagnóstico).
No segundo caso, a técnica, em si mesma, não afeta o patrimônio
genético da espécie, ou seja, o genoma da humanidade. A repetição do genótipo
(genoma individual) finda-se no clone, não se transmitindo aos descendentes,
posto que, em regra, aquele se reproduzirá sexualmente, quando a singamia
511
MUÑOZ CONDE, Francisco. Derecho penal: parte especial. 11. ed. Valencia: Tirant to Blanch,
1996. p. 130.
512
Cf. BENÍTEZ ORTUZAR, Ignácio Francisco. op. cit., p. 477.
513
Cf. HIGUERA GUIMERÁ, Juan-Felipe. El derecho penal y la genética, cit., p. 247.
514
PUIGPELAT MARTÍ, Francesca. op. cit., p. 58-59.
515
Cf. ROMEO CASABONA, Carlos María. Límites jurídicos a la investigación y a sus
consecuencias?, cit., p. 35-36.
269
entre seu material e o do parceiro ou da parceira, conforme o caso, promoverá
nova combinação genética, com a retomada da variedade.
516
Portanto, a
clonagem voltada meramente para a reprodução esgota-se, pelo menos em
padrões prováveis de procriação, no bem jurídico individual, observados os
moldes supramencionados.
Diverso o impacto da primeira hipótese, que envolve duas etapas.
Num primeiro passo, seria obtido o ser humano com características desejadas, o
que poderá, futuramente, ocorrer mediante clonagem (homens superdotados
intelectual ou fisicamente, ou meramente braçais) ou por meio da manipulação
genética. Uma vez conseguido o “exemplar” desejado, a clonagem reprodutiva
seria o método viável para a repetição de outros indivíduos geneticamente
idênticos, fabricando-se, assim, o grupo de pessoas almejado.
A extensão desta prática sobre a variedade da espécie é
indiscutível, pois interfere arbitrariamente no delicadíssimo equilíbrio de
transmissão hereditária que, por gerações, a natureza conservou e reproduziu.
Consubstancia risco para a humanidade, criando, sem justificativa plausível,
perigo para sua integridade e diversidade, com afetação à intangibilidade genética
sob a dimensão coletiva.
Dada a grande valia do bem em testilha e, nomeadamente, a
irreversibilidade e a amplitude do futuro dano, a utilidade social da norma reclama
a estrutura do perigo abstrato, sendo bastante a clonagem de embrião com o
intento seletivo de grupo (por exemplo, de raça) para que incida o direito penal.
Não é necessário que se espere o nascimento do clone, em
virtude da facilidade de duplicação do “exemplar” em laboratório. Esperar o
516
Diverso o reflexo da manipulação genética germinal, em que a modificação no código genético
fica no genótipo, sendo irremediavelmente transferida pelo gameta à descendência.
270
nascimento, quando pode ser de número impensável de pessoas, é aceitar perigo
imensurável. Por isso, no caso, o direito penal preventivo atua não apenas com
tom simbólico, mas como forma efetivamente eficaz para garantir o interesse da
humanidade, realizando sua missão de tutela de bem jurídico.
Enfim, de lege ferenda, haveria um tipo para punir a criação,
mediante clonagem, de ser humano nascido, restrito a interesse individual,
referente ao direito à ignorância, e outro tipo para a clonagem direcionada à
seleção de pessoas, que miraria o patrimônio genético sob o cunho individual e,
em especial, sob a ótica coletiva. Na última especial penal, caso houvesse
nascimento, ocorreria concurso de infrações com o delito anterior.
O segundo delito sugerido, ao prevenir práticas discriminatórias,
funcionaria como complemento ao art. 20, da Lei n. 7.716, de 5 de janeiro de
1989 (com a redação dada pela Lei n. 9.459, de 13.05.97), cuja objetividade
jurídica orienta-se contra a lesão concreta ao princípio da igualdade e, mais
acentuadamente, pelo cunho coletivo que revela, o tipo prestar-se-ia como
anteparo para o crime de genocídio (Lei n. 2.889, de 1º.10.56).
No direito comparado, França e Espanha disciplinaram o tema.
517
No que tange à lei espanhola, a aposição da expressão “seleção de raça” peca ao
excluir outras formas de seleção de caracteres biológicos e ao restringir a
exteriorização do preconceito ao critério de cor, quando outros são bem mais
comuns no respectivo Estado, como, por exemplo, contra imigrantes.
518
517
Em França, a Lei n. 94/653 prescreve que nada poderá vulnerar a integridade física da espécie
humana. Proíbe toda a prática de eugenia dirigida à organização de seleção de pessoas (art. 16-
4). Mais adiante, no art. 511.1 reza: “Castigar-se-á com pena de vinte anos de reclusão a
aplicação de uma prática eugênica dirigida à seleção de pessoas”. Na Espanha, o art. 161.2,
parte final (art. 160.3 atual), castiga os procedimentos dirigidos à seleção de raça, com pena
equivalente à clonagem.
518
Sobre a adequação do art. 160.3 à realidade espanhola, conferir LANDA GOROSTIZA, Jon-
Mirena. Discriminación y prácticas eugenésicas: una aproximación al problema desde la
271
9.2.3 Clonagem terapêutica
O tema está longe de harmonia ético-jurídica. A Assembléia Geral
das Nações Unidas aprovou, em 8 de março de 2005, a Declaração contra a
Clonagem Humana, em que, com caráter de recomendação, sugere aos países
que proíbam “todas as formas de clonagem de seres humanos por serem
incompatíveis com a dignidade humana e a proteção da vida humana”. A
aprovação decorreu de 84 (oitenta e quatro) votos a favor, 34 (trinta e quatro)
contra e 37 (trinta e sete) abstenções, o que representa uma vitória para os
Estados Unidos e a Costa Rica, que lideram na ONU uma campanha contra todo
tipo de clonagem humana.
519
A divergência de votação deve-se à técnica em epígrafe, sendo
que os países favoráveis a ela, encabeçados por Bélgica, Reino Unido e China,
lembram que o texto não é vinculativo e, por isso, continuarão a fazer pesquisas
em células clonadas com fins terapêuticos. O grupo propõe que cada país regule,
por meio de suas legislações, a clonagem de células humanas para a pesquisa de
cura para doenças como Alzheimer, câncer e diabete.
No âmbito do direito interno, o procedimento remete à fecundação
de óvulos com fins distintos da procriação humana, largamente proibida nos mais
perspectiva jurídico-penal con especial referencia al artículo 161-2ª in fine del Código Penal de
1995. In: LA EUGENESIA hoy. Bilbao-Granada: Publicaciones da Cátedra Interuniversitaria;
Fundación BBVA; Diputación Foral de Bizkaia, de Derecho y Genoma Humano y Editorial
Colmares, 1999. p. 303-348.
519
Nos Estados Unidos, a legislação federal do presidente americano George W. Bush limita
radicalmente a aplicação de verbas federais em estudos nessa área. Mas, no Estado da
Califórnia, sob o governo de Arnold Schwazenegger, foi feito contraponto, eis que editada uma lei
que criou o Instituto de Medicina Regenerativa, com autorização para investir
US$300.000.000,00 (trezentos milhões de dólares) por ano (ao longo de uma década) em
pesquisas com células-tronco embrionárias. Porém, a iniciativa bilionária não saiu do papel, pois
em março foi iniciado o julgamento de 3 (três) ações procuram invalidar a lei (O ESTADO de S.
Paulo, São Paulo, 28 fev. 2006. p. A-9).
272
variados Estados. É discutida se a referência legal à palavra “fecundar”, comum
nas legislações, inclui a criação de embriões mediante clonagem, pois nesta, mais
do que fecundação, há uma transferência do núcleo de uma célula somática a um
óvulo não fecundado, cuja fusão realiza-se mediante descarga elétrica. A solução
da questão está na percepção de que, mediante a clonagem, é possível fertilizar
um óvulo humano, como na fecundação. Surge, pois, uma vida humana, o que
permite que se interprete “fecundar” como criar embriões. Portanto, a produção de
embrião, mediante a clonagem, para obtenção de células-tronco é delito na
Espanha, França, Alemanha e Brasil, pelo menos.
520
Está fora do âmbito criminal
na Inglaterra e na Coréia do Sul.
A doutrina não é uniforme acerca da legitimidade dessas normas.
Para Puigpelat Martí, devem ser modificadas, porque as investigações sobre o
uso de células-tronco embrionárias representam das mais firmes promessas da
medicina do futuro e porque a proteção da saúde e a promoção da investigação
científica, além de interesse geral, estão tuteladas constitucionalmente. A autora
ressalta que o embrião, embora seja bem jurídico protegido, tem menos entidade
de direitos do que a pessoa.
521
Na ótica de Maris Martínez, o embrião fecundado
para fins reprodutivos e o produzido para clonagem terapêutica são
ontologicamente diferentes: somente o primeiro é formado por dupla dotação
genética e está direcionado à reprodução; o segundo não imita a natureza e
jamais originará um ser humano, pelo que não contesta a técnica apreço.
522
No
Brasil, Lora Alarcón defende que a clonagem terapêutica não está eivada de
520
Capítulo 7, supra.
521
Cf. PUIGPELAT MARTÍ, Francesca. op. cit., p. 62-63.
522
Cf. MARTÍNEZ, Stella Maris. Derecho a la vida vs. derecho a una determinada calidad de vida:
reflexiones sobre la clonación humana, cit., p. 106.
273
inconstitucionalidade, porquanto não se trata de duplicar pessoas, mas de
combater doenças.
523
Em contrapartida, Minahim, ao analisar a Lei n. 11.105/05, critica
a intenção do legislador em autorizar a clonagem terapêutica e sustenta sua
refutação pelo intérprete, posto que ofende os valores tutelados pelo diploma,
sobretudo a dignidade humana e o próprio direito.
524
Em linha similar, Jussara M.
Leal de Meirelles.
525
Em suma apertada, como prelecionam os alemães, a postura
adotada depende claramente do estatuto moral e jurídico que se reconheça aos
embriões:
526
acolhem a técnica os juristas que diferenciam o pré-embrião do
embrião, concebendo o primeiro como desprovido de vida tutelável juridicamente;
tendem a rechaçá-la os juristas que respeitam a vida embrionária em sua
totalidade. Passemos à nossa posição.
A epígrafe adotada para a técnica - terapêutica - é ambígua e
confusa, o que é particularmente útil para manipular a opinião pública, revestindo
a expressão de certa dignidade científica, humanitária e médica. Obscurece que,
pelo menos no estágio atual da ciência, o embrião, do qual são extraídas as
células-tronco, é destruído, de modo que nenhum benefício (“terapia”) ele recebe.
Segundo López Barahona e Antuñano Alea, “el simples hecho de
que la intención última de todo este proceso sea honesta y buena no convierte
523
Cf. LORA ALARCÓN, Pietro de Jesús. op. cit., p. 310.
524
Cf. MINAHIM, Maria Auxiliadora. op. cit., p. 142 e173.
525
Cf. MEIRELLES, Jussara Maria Leal de. op. cit., p. 185. Tal doutrinadora, à vista da Lei n.
8.974/95, rechaça a produção e manipulação de embriões humanos como material biológico,
pela incompatibilidade com a vida e a dignidade humana.
526
Cf. ESER, Albin; FRÜWALD, Wolfang; HONNEFELDER, Luger; MARKL, Hubert; REITER,
Johannes; TANNER, Widmar; WINNACKER, Ernst-Ludwig. La clonación humana: fundamentos
biológicos y valoración ético-jurídica. Trad. por Leire Escajedo San Epifanio. Revista de Derecho
y Genoma, n. 9, p. 102, jul./dic. 1998.
274
este acto moralmente malo en un acto de virtude”.
527
Explicam que, a despeito do
fim, o ato é moralmente bom se em si mesmo favorecer o desenvolvimento da
pessoa, o que patentemente não ocorre com o embrião quando é produzido com
a intenção explícita de matá-lo para uso em pesquisas científicas.
528
Desse modo, a aceitação da clonagem terapêutica envolve
cobertura moral meramente utilitarista: o embrião, em atitude planejada, é criado
para ser fulminado em favor de terceiros, retomando o criticado risco de
subalternização da pessoa perante a sociedade, para o qual enveredou Amelung,
em sua construção sociológica sobre a tutela penal.
É evidente a lesão à vida humana, além da interferência negativa
na dignidade que recai sobre o embrião, que é relegado à categoria de coisa. O
repúdio é reforçado pela presença de meios alternativos para obtenção de
células-tronco, como as presentes no sangue do cordão umbilical, em tecido
adulto e, em última instância, em embriões criados para reprodução, mas
abandonados, há muito, no congelador das clínicas. Além disso, coloca-se a
possibilidade de pesquisas com xenotransplante, sugerida por Romeo
Casabona.
529
No Brasil, a Lei n. 11.105/05, ao vedar a clonagem humana
irrestritamente no art. 26, parece abranger a clonagem terapêutica. A vagueza,
porém, permite que o artigo se transforme num dos mais firmes exemplos de
direito penal simbólico, porque dificilmente aplicável em face da imprecisão. Além
disso, não autoriza a cominação diferenciada da pena para cada modalidade da
técnica.
527
LÓPEZ BARAHONA, Mónica; ANTUÑANO ALEA, Salvador. op. cit., p. 139.
528
Id. Ibid., p. 136-137.
529
ROMEO CASABONA, Carlos María. Límites jurídicos a la investigación y a sus consecuencias?,
cit., p. 36.
275
Diante do exposto, de lege ferenda, propomos a tipificação
específica da criação (não de fecundação, para evitar confusão interpretativa) de
óvulos com fins distintos da procriação, observando o exposto no capítulo VII,
item 7.1, deste trabalho. O tipo, tutelando a vida, englobaria a clonagem
terapêutica. Separadamente, seria tipificada a clonagem reprodutiva como acima
assinalado.
9.3 A seleção de gametas e de embriões: a escolha do sexo
A prática pode estar ligada a anomalias, quando adentra na seara
da eugenia negativa. Neste prisma, no que se refere ao embrião, a matéria foi
abordada quando do estudo da seleção pré-implantatória. Quanto aos gametas,
no Brasil, a técnica é autorizada pela Resolução n. 1.358/92, do Conselho Federal
de Medicina, em caso de enfermidades graves ligadas ao sexo (capítulo I, item 4).
Também a Lei alemã de Proteção ao Embrião permite a seleção de
espermatozóide, desde que realizada por médico, em caso de distrofia muscular
de Duchenne ou enfermidade vinculada ao sexo de igual gravidade, reconhecida
por órgão competente conforme o Estado Federado (§3º). Em França, a prática é
obrigatória e sua falta foi elevada a crime pela Lei n. 94/653.
530
Em que pese a trama que envolve a delimitação entre a
enfermidade grave e o desvio de normalidade, é de se admitir a seleção de
gametas para excluir patologia hereditária, pois não redunda em lesão ao direito à
vida, porquanto, insista-se, não houve fecundação. A atividade garante a
530
“Art. 511.11. Castigar-se-á com pena de dois anos de prisão e 200.000 francos de multa o
recolhimento ou extração de gametas de uma pessoa viva pra aplicação de uma técnica de
reprodução assistida sem proceder às provas de detecção de enfermidades transmissíveis
exigidas na aplicação da L. 665-15 do Código de Sanidade Pública”.
276
qualidade de vida do futuro filho, cuja saúde será beneficiada pelo uso de
gametas sadios, o que trará alívio aos pais, responsáveis pelo seu bem-estar, e
ao Estado, que se desonerará de gastos futuros em tratamentos que poderiam
ser evitados. Além disso, as enfermidades em foco são raras, o que reduz a
repercussão da técnica sobre o equilíbrio demográfico entre os sexos.
Se a atividade seletiva visar a obtenção de caracteres ótimos,
envereda para a eugenia positiva. Um dos intentos buscado é a seleção de sexo
simplesmente para a satisfação de desejos egoístas dos pais ou adequação a
critérios sociais mais favoráveis a um deles. A prática reduz a criatura humana a
mecanismo de prazer para terceiros e estimula preconceitos fundados em
diferenças sexuais, depois de anos de luta pela igualdade. Afronta a paternidade
responsável, eis que enraizada na preocupação com o bem-estar do filho, que
merece o gozo do direito natural de ser produto da alquimia da natureza.
Despreza, ainda, o misterioso balanceamento natural entre o número de homens
e mulheres na face da Terra, diante do qual é patente o egoísmo da intervenção,
justificada para atender a desequilíbrio do microcosmo familiar. Também provoca
sobra de embriões e, assim, representa mais uma forma de avolumar a vastidão
dos excedentes.
Diante desse quadro, ao que nos parece, a seleção de gametas
ou embriões para escolha de sexo, se não for terapêutica, é merecedora de
sanção penal, uma vez que os valores que afronta diretamente (intangibilidade do
patrimônio genético individual) ou, por via reflexa (igualdade axiológica entre
homens e mulheres e o equilíbrio quantitativo entre os sexos da espécie humana,
277
que contribui para sua preservação), têm assento constitucional, figurando como
suportes da estabilidade e evolução social.
531
A assertiva é reforçada pela alarmante difusão do uso
indiscriminado da técnica pelas clínicas de reprodução assistida. Para o combate
da prática, a imposição de multas administrativas aos estabelecimentos talvez
não fosse suficientemente eficaz, em face do preço que cobram pelo
procedimento e da sua simplicidade técnica, e, ainda, não indicariam a contento
perversão ética que contamina a prática, mantendo-lhe a aparência inocente.
532
Na Espanha, a seleção de sexo não-terapêutica ou terapêutica
não-autorizada é considerada infração muito grave pela Lei n. 35/88 (art. 20, n. 2,
alínea n). Está abarcada pelo tipo penal descrito no art. 160-3 (antigo art. 161-2),
parte final, consoante a lição de Casabona,
533
que recusamos pela expressa
referência legal à seleção de raça, palavra que, calcada em traços físicos
similares, não engloba o sexo. Na Alemanha, a Lei de Proteção do Embrião
castiga quem fecunda artificialmente um óvulo humano com célula seminal
escolhida em função do cromossomo sexual (ressalvando o intento terapêutico),
com pena privativa de liberdade de até 3 (três) anos ou multa (§3º). Na Noruega,
a Lei n. 56/94 proíbe a seleção de sexo não-terapêutica, castigando o crime com
pena de multa ou privação de liberdade de até 3 (três) meses.
531
Nesse sentido, MARTÍNEZ, Stella Maris. Manipulação genética e direito penal, cit., p. 235.
532
Pugnam pela criminalização da escolha arbitrária do sexo: MARTÍNEZ, Stella Maris.
Manipulação genética e direito penal, cit., p. 234-235; GUIMARÃES, Ana Paula. op. cit., p. 170.
533
Cf. ROMEO CASABONA, Carlos María. La clonación humana: presupuestos para una
intervención jurídico-penal, cit., p. 156. Igualmente, J. F. Higuera Guimerá, que também defende,
de lege ferenda¸ que o tipo remeta expressamente à intervenção não-terapêutica sobre gameta e
pré-embrião para evitar divergências (HIGUERA GUIMERÁ, Juan-Felipe. El derecho penal y la
genética, cit., p. 481). De fato, a disparidade interpretativa é revelada pela posição de Benítez
Ortuzar, para quem a permanência do art. 20.2.B da Lei 35/88 restringe o art. 160-3 (antigo art.
161.2), de modo que o primeiro abrange a seleção de sexo quando efetivada com gametas ou
“pré-embrião”, enquanto o segundo se refere a outras seleções perpetradas após a implantação
do óvulo no útero (BENÍTEZ ORTUZAR, Ignácio Francisco. op. cit., p. 481).
278
No Brasil, a técnica seletiva com intento não-terapêutico é vedada
exclusivamente pela Resolução n. 1.352/92, mas as clínicas de reprodução
assistida prosseguem com sua execução, sob o argumento de que se trata de
norma obsoleta.
534
O Projeto de Lei n. 3.638/93 veda a seleção de sexo (art. 4º),
como também os Projetos ns. 1.135/03 e 2.061/03. O Projeto de Lei n. 2.855/97
criminaliza a utilização de “técnica de reprodução assistida com fins eugênicos,
seleção racial ou seleção de sexo”, punindo com reclusão de 1 (um) a 3 (três)
anos. Igualmente, o Projeto n. 90/99 penaliza, ressalvado o intento terapêutico, a
pré-seleção sexual de gametas e embriões com detenção de 2 (dois) a 6 (seis)
meses, ou multa (art. 13, IX ou art. 31 do substitutivo).
De lege ferenda, para maior clareza, seria adequado um tipo
específico para o combate à técnica, como existe na Alemanha e na Noruega. O
tipo deveria exigir a finalidade procriativa dos gametas ou embriões selecionados,
para que, assim, se colocasse em risco a integridade genética do futuro ser vivo.
Se a técnica fosse massificada, expondo a integridade genética da espécie, a
conduta amoldar-se-ia ao tipo sugerido para a clonagem para seleção de
pessoas.
9.4 Os híbridos e as quimeras
A hibridação e a criação de quimeras configuram outra
modalidade de eugenia positiva. Se limitada a testes diagnósticos destinados a
averiguar a capacidade de penetração do espermatozóide, quando estes
mesclam-se a gametas de animais, desde que o produto não tenha capacidade
534
VEJA, São Paulo, ano 37, n. 38, ed. 1872, 22 set. 2004.p. 100.
279
de desenvolvimento desde o início, não há significativa diferença das provas
convencionais com testes que utilizam culturas de células.
535
A assertiva estende-
se a outras fusões de gameta humano a animal, com fim de experimentação
autorizada.
Outra situação delineia-se quando intenta-se a produção de
unidades vitais que contenham genes humanos, em que a humanidade e a
animalidade terminarão indistintamente combinadas, com vista à criação de
contingente para trabalhos repetitivos e desagradáveis ou para funcionar como
armazém de órgãos para transplante. Graças à incorporação de material genético
de outras espécies, possibilitando o nascimento de indivíduos com desigual
capacidade para desenvolverem livremente sua personalidade, é desprezado o
valor do padrão genético humano, mínimo que iguala todos os seres humanos.
Presente tais condições, a lesão à integridade genética do futuro
ser abala sua dignidade e, na medida em que altera o genoma da espécie
humana, que a faz superior às demais, também coloca em perigo a integridade
genética da humanidade. A dimensão dos valores contra os quais a prática atenta
e o estigma que recairá sobre o futuro ser podem ser compensados tão-somente
pela sanção penal, que é exigível como mecanismo para o justo controle social.
536
No que toca às quimeras, os riscos que encerram - nascimento de
ser humano hermafrodita, corpo listrado (união de negro e branco) - e a ausência
total do benefício também conduzem à máxima agressão a valores humanos, no
caso a inalterabilidade e intangibilidade do patrimônio genético individual e supra-
individual, já que ofendido o padrão genético do indivíduo e da espécie. A
535
A conduta é permitida na Espanha, onde um óvulo de hamster é fecundado pelo
espermatozóide, para teste do potencial de fertilidade deste (Lei n. 42/88, art. 14.4).
536
Nessa linha, ESER, Albin. Derecho penal, medicina y genética, cit., p. 279.
280
carência de respaldo ético e o despropositado tratamento que confere à futura
pessoa e à sua possível descendência (se for fértil) indicam a dignidade penal do
bem jurídico em jogo. A necessidade da tutela criminal, por sua vez, decorre da
insuficiência de outras formas de sanção para protegê-lo e ressaltar sua valia.
Não se olvida que ambas as técnicas não são desejadas pela
maioria dos cientistas. Contudo, a relevância dos interesses que ameaça torna
manifesta a ineficácia do Direito caso aguardasse o nascimento da criatura para
intervir. Demais disso, a falta absoluta de benefício para a humanidade com os
procedimentos, fruto que seriam da vaidade ensandecida de certos cientistas ou
de ideologia totalitária, legitima a antecipação da barreira penal para abranger a
criação do embrião-quimera ou do embrião-híbrido em laboratório, desde que com
fim reprodutivo, a despeito de futuramente nascerem.
A Associação Internacional de Direito Penal, no XIV Congresso
Internacional de Direito Penal (1989), pronunciou-se pela criminalização de
experimentos dirigidos à geração de híbridos ou quimeras, bem como a criação
de seres humanos idênticos por clonagem.
537
Nessa linha, a ampla Lei alemã de Proteção do Embrião
sanciona, com pena de prisão de até 5 (cinco) anos ou multa, a união de
embriões em uma conjunção celular com informações genéticas distintas
utilizando ao menos um embrião, bem como a geração de embrião mediante a
fecundação de gameta humano e animal. No âmbito brasileiro, o Projeto de Lei n.
537
Cf. ROMEO CASABONA, Carlos María. El derecho y la bioética ante los límites de la vida
humana, cit., p. 371, ns. 16 e 17.
281
2.855/97 pune o intercâmbio de material genético com objetivo de produção de
híbrido.
538
A produção de quimeras pode ser inserida no âmbito amplo do
art. 24 da Lei n. 11.105/05, eis que envolve embriões. A produção de híbridos, por
sua vez, foge ao âmbito da ilicitude penal positivada, na medida em que manipula,
tão-somente, gametas.
538
“Art. 48. Intercambiar material genético com objetivo de produção de híbridos. Pena reclusão,
de 4 (quatro) a 12 (doze) anos, e multa”.
282
10. A SUB-REGRA DA PROPORCIONALIDADE ESTRITA
10.1 Considerações gerais
A proporcionalidade em sentido estrito assenta-se no equilíbrio
entre a causa e a conseqüência, isto é, no juízo lógico onde são comparados o
delito e a pena. Não se amolda a esquemas exclusivamente retributivos, em que
são mais ajustadas penas mais graves pela maior força de intimidação geral. Com
ênfase preventiva, preocupa-se com a justiça da sanção como elemento de
cooperação no eficaz combate à criminalidade.
Na cominação da pena, os agentes estatais não gozam de
liberdade plena, eis que adstritos à Constituição, em meio à qual sobressaem os
valores da justiça, da segurança, da vedação da arbitrariedade e da dignidade da
pessoa humana. É certo, porém, que os mesmos compreendem noções pouco
precisas. Destarte, ao se atuarem, os indigitados valores demandam a
intervenção de critérios que os concretizem. Em função da heterogeneidade entre
a infração e a sanção, é impossível a utilização de critério direto para o
cotejamento, pelo que, na formulação do preceito legal, são aplicados subsídios
pragmáticos assentados em considerações de oportunidade.
Entre eles, o primeiro estriba-se na importância do bem jurídico
que orienta as penas mais graves para os bens mais importantes. A quantidade
de pena abstratamente cominada funciona como fundamento à hierarquia
material dos valores penalmente protegidos, como preconiza Gama de Magalhães
283
Gomes.
539
Seguindo tal rumo, a vida, eliminada pelo homicídio, recebeu das
maiores valorações da parte especial de Código Penal pátrio. Desviando-se do
acerto inicial, a vida, mais adiante, foi sutilmente inferiorizada perante o
patrimônio, posto que cominada pena de 6 (seis) a 20 (vinte) anos de reclusão
para o homicídio simples e de 8 (oito) a 15 (quinze) anos para a extorsão
mediante seqüestro.
Entre as bases para a apuração da importância dos bens
jurídicos, são interessantes as colocações de Francesco Angioni. Para o
doutrinador italiano, os bens, segundo a Constituição, dividem-se em três
categorias: fundamentais, primários e secundários. Os primeiros são aqueles sem
os quais o Estado perde sua identidade de Estado Social de Direito. Os segundos
estão nivelados com a liberdade, isto é, como esta, são essenciais para a
realização mínima do homem (vida, saúde, honra). Os demais são os terceiros.
Entretanto, como a Constituição ao menos explicitamente não dispõe sobre
eventual hierarquia entre eles, o próprio autor reconhece que a tarefa exige
delicado discernimento, fator complicador, acentuado pelo extenso rol que
comporia a categoria dos bens primários, descambando para a indeterminação.
540
De toda forma, o confronto entre a liberdade ameaçada pela
reprimenda e o bem jurídico penalmente protegido constitui um dos pilares para
delimitar a sub-regra em epígrafe. Trabalhando com estes dois interesses
jurídicos, o juízo da proporcionalidade estrita não maneja possibilidades fáticas,
como ocorre com os da necessidade e da adequação penal. Ao analisar a
quantidade de pena privativa de liberdade, cerceando este direito constitucional
individual para a proteção de outro que também encontra correspondência
539
GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. op. cit., p. 156.
540
ANGIONI, Francesco. op. cit., p. 167, 203-204.
284
constitucional, a presente sub-regra promove a relativização de direitos e, por
isso, refere-se às possibilidades jurídicas.
Embora a importância do bem jurídico seja elemento essencial na
definição da pena, outros são colocados à disposição do legislador. Entre eles,
está o grau de ofensa ao bem jurídico, ou seja, a gravidade do ataque, podendo
associar-se ao número de bens atingidos, à intensidade da lesão (como no delito
de lesão corporal, cuja pena é aumentada na medida em que se acentua a ofensa
ao bem) ou à modalidade da conduta, permitindo diferente valoração (por
exemplo, a pena varia nos crimes contra o patrimônio, conforme sejam cometidos
com ou sem violência à pessoa, ou mediante fraude).
541
O parâmetro mantém
estreita relação com a fragmentariedade do Direito Penal e realça a diversidade
entre as formas de tutela de um mesmo bem, relacionada às múltiplas
modalidades de agressão.
De certo que a gravidade da ofensa não tem importância decisiva
e, por tal razão, é possível que um delito de perigo abstrato tenha pena maior do
que a referente a um delito de resultado, quando pode, por exemplo, pesar em
favor do primeiro a peculiar e imensa extensão do provável dano associado à
conduta tipificada. No caso, pode-se afirmar, em companhia de parcela da
doutrina, que o juízo valorativo é influenciado pela nocividade social dos
comportamentos incriminados, a qual advém do probabilidade da freqüência do
cometimento do delito e sua projeção social.
542
Outrossim, também funcionam, como diretivas, o elemento
subjetivo (dolo ou culpa, que remete ao desvalor da intenção do autor), a forma
541
Cf. GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. op. cit., p. 174-176.
542
Nessa linha, GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. op. cit., p. 400-401. Similarmente, Jesús
M. Silva Sánchez quando menciona a necessária relação entre o merecimento da pena e o dano
social causado (Aproximación al derecho penal contemporáneo, cit., p. 260).
285
de atuação (autoria ou participação) e o grau de execução (crime consumado ou
tentado).
543
10.2 Proporcionalidade das penas e os delitos referentes à genotecnologia
O princípio da legalidade consolida a segurança jurídica,
representando garantia individual. Demanda, ao lado da precisa delimitação da
conduta típica, a pontual fixação abstrata dos limites mínimo e máximo da pena.
O mínimo da pena indica a colocação hierárquica do interesse protegido, tendo
em vista as possíveis modalidades de ofensa, ao passo que o máximo responde à
exigência de eficácia da tutela, marcando o limite extremo da intervenção
penal.
544
Também é necessário que a relação entre o mínimo e o máximo nos
diversos tipos se mantenha harmônica.
545
Expostos esses paradigmas, passemos
ao exame das condutas relacionadas à tecnologia genética.
A clonagem quando tenciona a seleção eugênica de pessoas,
além de violar o direito individual à ignorância em face do artificialismo genético
que promove, abala o desenvolvimento evolutivo da espécie e a sua
sobrevivência, interferindo sobre a intangibilidade do patrimônio genético da
humanidade. Alude, pois, às duas dimensões da integridade genética. De
conseguinte, exige penalidade severa. Tanto é assim que, no modelo legal
francês, a eugenia seletiva recebe sanção de 20 (vinte) anos de reclusão (art.
511.11, Lei n. 94/653).
543
Todos os critérios expostos observam a lição de CORREA, Teresa Aguado. op. cit., p. 286-292.
544
Cf. GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. op. cit., p. 166.
545
Id. Ibid., p. 168.
286
O comportamento, como assevera Higuera Guimerá, é digno de
repulsa jurídica maior e mais grave do que a clonagem sem intento seletivo.
546
A
respectiva criminalização, ao prevenir idéias contrárias à pluralidade humana,
representa barreira a atividades genocidas e, bem por isso, deve guardar relação
com as penas dos tipos penais previstos na Lei n. 2.889/56.
A comparação, porém, é complexa, pois nem sempre existe
correspondência de sentido entre a conduta tipificada nas alíneas do art., da
Lei n. 2.889/56, e o tipo penal posteriormente referido para a definição da pena.
De fato, o preceito estipula que a destruição parcial de membros de grupo (étnico,
religioso, nacional ou racial) seja punida nos mesmos moldes que o
envenenamento de água potável, o qual, diversamente do genocídio, é praticado
contra a saúde pública e nem sempre revela intenção destrutiva. Da mesma
forma, não há paralelo entre a transferência forçada de crianças de um grupo
para outro e o crime de seqüestro ou cárcere privado, não se justificando a
equiparação punitiva.
O Projeto do Conselho Nacional de Política Criminal e
Penitenciária desdobra as condutas genocidas em dois artigos: I) “Art. 370. Matar
membros de um mesmo grupo nacional, étnico, racial, político ou religioso, com o
fim de exterminá-lo, total ou parcialmente: Pena Reclusão, de 20 (vinte) a 30
(trinta) anos”; II) “Art. 371. Ofender a integridade corporal ou a saúde de membros
de um mesmo grupo nacional, étnico, racial, político ou religioso, com o fim de
exterminá-lo, total ou parcialmente: Pena Reclusão, de 3 (três) a 12 (doze)
anos”. Estabelece, ainda, que: “Nas mesmas penas incorre quem, com o mesmo
fim: I) submete o grupo a localização forçada ou a condições de existência
546
Cf. HIGUERA GUIMERÁ, Juan-Felipe. El derecho penal y la genética, cit., p. 252.
287
capazes de ocasionar seu extermínio, total ou parcial; II) adota medidas
destinadas a impedir nascimento no seio do grupo; III) efetua a transferência
forçada de membros do grupo para qualquer outro”.
547
As ações destinadas a selecionar pessoas pela biotecnologia não
conduzem à morte física e, assim, não se equiparam ao proposto art. 370. Não
obstante, aproximam-se do art. 371, porquanto afetam a integridade genética e a
higidez mental que se avizinham da saúde. É certo que as figuras não se igualam,
pois a seleção genética substitui a intenção de destruir o grupo pela busca de
manipulação do comportamento de seus membros em prol de terceiros. De todo
modo, tanto a ofensa à integridade humana com capacidade destrutiva quanto a
seleção genética revelam patente banalização da pessoa em prol da consolidação
de conjunto de idéias, crenças ou valores estranhos a ela.
Na seara da genética, porém, a injunção na liberdade de
pensamento mostra-se mais profunda, eis que, tendencialmente, a ação dos
seres humanos “copiados” será pautada pelo modelo de comportamento do
“original”. Além disso, ao agir sobre zigotos ou embriões, a clonagem afeta formas
de vida humana sem qualquer chance de defesa. Sendo assim, pensamos que
para a clonagem direcionada à seleção de pessoas, a pena mínima deveria
eliminar a possibilidade de regime aberto e a máxima deveria incluir o regime
fechado, variando, como sugestão, entre 5 (cinco) a 14 (quatorze) anos de
reclusão.
A clonagem sem intento seletivo - restrita ao âmbito de casais
inférteis ou desejosos por uma “cópia” - também não é mais grave do que a
manipulação genética. Naquela, a lesão restringe-se ao plano individual,
547
Cf. CANÊDO, Carlos. O genocídio como crime internacional. Belo Horizonte: Del Rey, 1998.
p. 171-172 e 197.
288
arranhando o direito à ignorância. Nesta, o ataque contém dimensão individual e
coletiva, na medida em que, além de manejar o genótipo do indivíduo, ele debilita
as bases genéticas sustentadoras do surgimento e do desenvolvimento da
espécie, intervindo sobre a valiosa intangibilidade do genoma da humanidade.
O peso negativo da engenharia genética molecular humana
evidencia o disparate cometido pelo legislador ao prever penas menores para o
delito tipificado no art. 25 do que para o tipo do art. 28, ambos da Lei n.
11.105/05, o qual refere-se à proteção da tecnologia genética de restrição do uso,
quer dizer, a plantas geneticamente modificadas, a vegetais.
548
No caso da manipulação genética, a Alemanha impõe pena de
até 5 (cinco) anos ou multa (§5º, Lei de 1990). Na Noruega, varia entre privação
de liberdade de até 3 (três) meses e multa (art. 8.5, Lei n. 56/94). Na Espanha, a
sanção está entre 2 (dois) a 6 (seis) anos de prisão e inabilitação para a profissão
entre 7 (sete) a 10 (dez) anos (art. 159 do Código Penal). Entre os modelos
oferecidos, parece-nos que a resposta penal espanhola é mais próxima do ideal
de justiça, até porque cumula a pena privativa de liberdade com a restritiva de
privativa de direitos específica para a conduta adotada.
Considerando que a parte geral do Código Penal pátrio confere às
penas restritivas de direito o caráter substitutivo (art. 44), não será possível, no
atual sistema, a aludida cumulação. Em decorrência, de lege ferenda, é sugerido
o aumento das penas privativas de liberdade mínima e máxima, ficando entre 3
(três) e 7 (sete) anos de reclusão e multa para a manipulação genética não-
terapêutica e, para a manipulação culposa, em patamares menores, a fim de
sejam incluídos os benefícios da Lei n. 9.099/95.
548
Nessa linha: MINAHIM, Maria Auxiliadora. op. cit., p. 129.
289
Outra opção seria a mudança da parte geral, tornando a pena
restritiva de direitos independente da privativa, quando seriam cumuláveis, sendo
assim de se reduzir o intervalo da segunda para não violar a proporcionalidade
estrita. A postura teria, provavelmente, maior eficácia preventiva, pois, associado
ao receio das penas privativas de liberdade, que é atenuado pela benevolência do
sistema pátrio quanto à progressão de regime, o temor de durante anos
encontrar-se interditado para o exercício da profissão influiria com intensa
pressão sobre a decisão de profissionais de elevado gabarito, como aqueles que
atuam na seara da genética, onde os contínuos avanços não perdoam o atraso de
conhecimento e, bem menos, a falta de prática.
A clonagem sem fim seletivo, por sua vez, pode ser reprovada
com sanção inferior, não nos aparentando desajustado o intervalo fixado no art.
26, da Lei n. 11.105/05: 2 (dois) a 5 (cinco) anos e multa. O limite máximo de 5
(cinco) anos foi observado pela legislação penal espanhola (art. 160.3, do CP) e
pela alemã (§6º, da Lei de 1990).
Quanto à fecundação de óvulos com fim diverso da procriação, é
evidente sua proximidade do aborto, eis que afeta a vida antes do nascimento.
Consoante o art. 125, do Código Penal, provocar aborto sem o consentimento da
gestante acarreta pena de reclusão de 3 (três) a 10 (dez) anos e, com o
consentimento, reclusão de 1 (um) a 4 (quatro) anos. No entanto, a similitude
entre as condutas enfocadas não é plena.
No aborto, a vida em relação ao zigoto ou ao embrião in vivo está,
em regra, em estágio evolutivo mais avançado, além de implantada no útero da
gestante, o que lhe confere maior capacidade para o desenvolvimento. Portanto,
o grau de ataque à vida, quando do abortamento, é maior. Em contrapartida, o
290
aborto envolve uma série de fraquezas humanas que não estão presentes na
tecnologia genética: a falta de apoio para a gestante pelo pai ou pela família, a
discriminação social à “mãe solteira”, a carência de recursos financeiros para a
criação de uma criança, o diagnóstico de enfermidades graves ou a origem
violenta da gravidez, por exemplo.
Em homenagem à complexidade emocional que, por tendência,
contorna o aborto, sua reprovação social pode ser, ao que se nos afigura, inferior
à da fecundação de óvulos, pelo menos na maioria dos casos. De conseguinte, a
pena de 1 (um) a 3 (três) anos de reclusão e multa, estatuída no art. 24, da Lei n.
11.105/05, parece merecer um pequeno acréscimo no patamar superior, para que
confira maior eficácia do tipo, sobretudo pela mostra da evidente desvalia do
procedimento científico em análise. A mesma sanção seria aplicável, de lege
ferenda, à manipulação genética de embriões sem finalidade de reprodução,
porquanto, como outrora analisado, também afeta a vida humana.
A reprimenda da seleção não-terapêutica de sexo, por sua vez,
deve ser diferenciada quando maneja embriões e quando direcionada a gametas.
Em relação aos primeiros, destrói vida como na fecundação de óvulos com fim
distinto da procriação, sendo razoável a reprimenda supra-sugerida. Para os
segundos, a pena poderia ser até mesmo de detenção, porque não está em jogo
a vida humana, alcançado o limite máximo de 2 (dois) anos, para que caiba a
transação penal, instituto aplicável aos delitos de menor potencial ofensivo
definidos pelo art., da Lei n. 10.259/01, que derrogou o art. 61, da Lei n.
9.099/95, por força do princípio da igualdade.
549
549
Do contrário, haveria de ser atendida tarefa hercúlea: ser encontrado motivo racional evidente
para autorizar a transação penal para o desacato cometido por funcionário público federal e não
estender o benefício perante o mesmo delito quando imputado a funcionário público estadual. Em
291
Por fim, a produção de híbridos e quimeras afeta as perspectivas
coletiva e individual da integridade genética, como na manipulação molecular
genética. Todavia, não se olvida que a hibridação não é uma das técnicas que se
encontra no desejo de concreção da ciência, de modo que a finalidade preventiva
da norma penal não é tão significativa quanto na manipulação ou na clonagem.
Deste modo, a suficiência da futura pena, ao que nos apresenta, estará em
patamares inferiores aos da manipulação genética, sobretudo quando ao patamar
máximo. Não foi este, porém, o entendimento acolhido no Projeto de Lei n.
2.855/97, cujo art. 48 reprime o intercâmbio de material genético para a produção
de híbridos com pena de 4 (quatro) a 12 (doze) anos de reclusão.
10.3 Relação entre os ilícitos disciplinar, administrativo e penal
Trata-se de tema complexo em razão da falta de unanimidade
doutrinária. Num dos estudos mais completos sobre o tema, Nélson Hungria, após
expor e refutar a posição de Goldschmidt, defende que: “A ilicitude jurídica é uma
só, do mesmo modo que um só, na sua essência, o dever jurídico... A única
diferença entre eles está na maior gravidade do delito penal, que, por isso
mesmo, provoca mais extensa e difusa perturbação social”.
550
Sustentando que tem sido em vão a tentativa de uma distinção
ontológica entre os ilícitos penal e administrativo, afirma categoricamente que “a
separação entre um e outro atende apenas a critérios de conveniência ou
ambos, o bem jurídico tutelado e a pena são idênticos, pelo que é razoável igual resposta penal.
De conseguinte, a expressão “para efeitos desta Lei” constante no art. 2º da Lei 10.259/01 é
inconstitucional, e a nova definição de crime de menor potencial ofensivo aplica-se na Justiça
Estadual e, também, nas Especiais, como a Eleitoral, a despeito do procedimento.
550
HUNGRIA, Nélson. op. cit., v. 1, p. 206.
292
oportunidade, variáveis no tempo e no espaço” e, ainda, “a única diferença que
pode ser reconhecida entre as duas espécies de ilicitude é de quantidade ou de
grau: está na maior ou menor intensidade lesiva de uma em cotejo com outra”,
complementa o doutrinador.
551
E conclui: “o ilícito administrativo, à semelhança do ilícito penal, é
lesão efetiva ou potencial a um bem jurídico”,
552
razão pela qual a opção por um
deles é determinada tão-somente por razões de “conveniência política”.
553
Partindo desta premissa, o penalista pátrio entende que, não obstante as vias
processuais sejam diversas, em se tratando do mesmo agente, a aplicação
cumulativa de duas penas, a penal e a administrativa, redunda em infração ao no
bis in idem.
554
Miguel Reale Júnior, similarmente, preconiza que a escolha da via
penal ou administrativa “nada tem a ver com a importância do bem jurídico,
tratando-se antes de uma escolha com base na conveniência política deste ou
daquele caminho, com vista a melhor alcançar os fins preventivos e retributivos do
direito punitivo que cada vez mais se faz único”. O penalista conclui que a eleição
por uma das vias é “problema de eficácia social, e não de uma questão de
diversidade axiológica”.
555
A partir daí, adverte que, diante de condutas punidas
igualmente na lei penal e na administrativa, de duas uma: “ou levam a um bis in
eadem, ou encontram eficácia apenas em um dos campos”.
556
551
HUNGRIA, Nélson. op. cit., v. 1, p. 211.
552
Id. Ibid., p. 213.
553
Id. Ibid., p. 214.
554
Cf. Id. Ilícito administrativo e ilícito penal. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 1,
p. 18, 1991.
555
REALE JÚNIOR, Miguel. Despenalização no direito penal econômico: uma terceira via entre o
crime e a infração administrativa? Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, ano. 7,
n. 28, p. 122, out./dez. 1999.
556
Id. Ibid., p. 123.
293
Em contrapartida, Hely Lopes Meirelles escreve: “Com o Direito
Penal a intimidade do Direito Administrativo persiste em muitos aspectos, a
despeito de atuarem em campos bem diferentes. Certo é que o ilícito
administrativo não se confunde com o ilícito penal, assentado cada qual em
fundamentos e normas diversas”.
557
Para Luiz Renato Topan, a legitimidade da cumulação de sanções
penal e administrativa está fundamentada no art. 225, §3º, da Constituição
Federal, que preceitua: “As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio
ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e
administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados”.
A soma de penalidades, sob sua acepção, está autorizada pelo aditivo e.
558
Porém, o argumento é controvertido, não faltando doutrinadores que defendam
que o preceito destina às pessoas físicas as sanções penais e às jurídicas, as
administrativas.
A jurisprudência pátria inclina-se para o entendimento de que as
esferas administrativa e penal são independentes, porque o fundamento da
sanção, o procedimento e a autoridade que decide em cada uma delas lhes são
próprios, de modo que não há empecilho a que as responsabilidades se
cumulem.
559
Em linha análoga, Manuel da Costa Andrade, com base no
anteriormente referido conceito de dignidade penal (importância do bem e
557
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 24. ed. São Paulo: Malheiros Ed.,
1999. p. 36.
558
TOPAN, Luiz Renato. Da legitimação executória ativa do Ministério Público em razão dos efeitos
civis panprocessuais da sentença pena condenatória nos delitos ambientais. Revista dos
Tribunais, São Paulo, ano 80, v. 667, p. 62-63, maio 1991.
559
Precedentes no STF: MS 21183-DF, mandado de segurança, rel. Min. Moreira Alves, DJ
14.06.1994; no STJ, RHC 9610-SP, rel. Min. Fernando Gonçalves, DJ 21.08.2000, RO em MS
9859, recurso ordinário em mandado de segurança, rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, DJ
17.04.2000.
294
danosidade social da conduta), pondera que, no plano trans-sistemático, a noção
assegura a eficácia do mandamento constitucional de que somente os bens
eminentes devem gozar de proteção penal e, frise-se, que no plano jurídico-
sistemático, distingue o ilícito penal dos demais.
560
Sob nossa ótica, é irrefutável que os ilícitos administrativo e penal
buscam proteger bens jurídicos, como destaca a lição de Nélson Hungria. Mais
ainda, em regra, ambos punem o infrator e, ao mesmo tempo, previnem
transgressões futuras, pela exemplaridade e, pela certeza da aplicação do Direito.
Aparentemente, portanto, não há diferença ontológica.
Contudo, na via administrativa, é possível que, sem prejuízo de
punir ou prevenir, o administrador conceda prazos e estabeleça condições,
visando conferir oportunidade ao infrator para corrigir a irregularidade, o que não
é próprio do meio penal. Além dessa diferença, outra, agregada à ontologia dos
ilícitos, apresenta-se. De um lado, o direito penal resume-se a bens vitais para a
convivência social harmônica e a legítima realização individual, contando com
correspondência constitucional, quando brilha a noção de dignidade penal. De
outro, no direito administrativo, com exclusividade, encontra-se a possibilidade de
que o bem protegido, sem afrontar a Constituição, não encontre referencial
axiológico na Carta Política, que não abraça, em si, a totalidade das situações da
vida. É o que ocorre, por exemplo, com a vedação de estacionamento em certos
locais, sob penal de multa: está em seu bojo a tutela à regularidade do tráfego e
do trânsito (bem ou interesse administrativo) que não encontra analogia
constitucional e, de fato, embora considerável, não representa interesse vital para
a sociedade.
560
Capítulo 4, item 4.2.1, supra.
295
Destarte, o ilícito administrativo, conquanto também tenha
capacidade para a tutela de bens dotados de dignidade penal, protege outros
tantos despidos desta valia, como resultado de política estatal intervencionista. O
ilícito penal, por sua vez, somente é legítimo quando resguarda bens jurídicos da
primeira categoria, precisamente delimitados no tipo. Eis uma diferença de ordem
qualitativa.
Essa peculiaridade, entretanto, é excepcional, porque não é muito
simples encontrar um bem desnudo de relevância constitucional dentro da
Constituição pátria, em virtude da acentuada tonalidade analítica do seu corpo
normativo, que abarca vasto campo de atuação do homem, das coletividades
jurídicas e do Estado.
561
Portanto, aceitamos que, na atividade legislativa de
escolha da via jurídica adequada, é decisiva, na prática, a conveniência política,
que se expressa nas noções de subsidiariedade e na adequação penal.
Em suma, a maioria das infrações penais e administrativas
equipara-se na essência. A diferenciação está posta a cargo da política criminal.
Nessa égide, haverá bis in idem quando, em face de fato único, o ilícito penal e o
ilícito administrativo forem previstos com o fito de proteger o mesmo bem jurídico,
recaindo sobre idêntico sujeito. A dupla punição por exemplo, duas multas
patrocina camuflada violação à proporcionalidade entre o delito e a pena, ou seja,
à sub-regra da proporcionalidade estrita.
562
Esse posicionamento é compartilhado pelo Tribunal
Constitucional da Espanha. Na sentença de 30 de outubro de 1983, a fim de se
evitar duplicidade de sanções administrativas e penais respeitantes a um mesmo
561
Daí que, rememore-se, a dignidade penal confere legitimação negativa, havendo de ser
complementada por outros juízos.
562
Cf. REALE Júnior, Miguel. op. cit., p. 123.
296
fato, foi determinado que caberia à Administração suspender a sua atividade
sancionadora se, posteriormente, fosse instaurado um processo penal. A decisão
situa a proibição do ne bis in idem no bojo dos princípios da legalidade e da
tipicidade plasmados no art. 25, da Constituição, que reza: “Ninguém pode ser
condenado ou sancionado por ações ou omissões que no momento de sua
produção não constituam delito, contravenção ou infração administrativa, segundo
a legislação vigente naquele momento”.
563
Se diversos os bens tutelados, a cumulação é cabível. Por
exemplo, aplicam-se ambas as sanções quando a infração penal proteja a vida
embrionária e a administrativa tutele meramente a normalidade da realização das
pesquisas, referindo, com distância acentuadamente prolongada, ao primeiro
bem, e diretamente ao conjunto de outros interesses: ganho e funcionamento da
indústria farmacêutica, mercado de trabalho, publicidade dos resultados,
anonimato dos sujeitos que contribuem com a atividade científica,
desenvolvimento tecnológico do país. O conjunto dos últimos, aliás, configura
típico interesse administrativo.
A dupla incidência é novamente autorizada quando, não obstante
a coincidência do fato e do fundamento, o sujeito penalizado for distinto. É o que
se verificará na maioria das hipóteses de sanções veiculadas pelo art. 21, da Lei
n. 11.101/05, posto que elas aludem, comumente, à pessoa jurídica: embargo da
atividade, interdição parcial ou total do estabelecimento ou atividade, suspensão
de registro, licença ou autorização; cancelamento de registro, licença ou
563
Cf. GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. op. cit., p. 44-47. J. F. Higuera Guimerá pugna pelo
acerto da decisão do Tribunal (El derecho penal y la genética, cit., p. 112-113). I. F. Benítez
Ortuzar também, insistindo que, no campo penal, fiquem apenas os casos mais intoleráveis
(BENÍTEZ ORTUZAR, Ignácio Francisco. op. cit., p. 248-251). A postura parece ser
acompanhada por C. M. ROMEO Casabona, quando entende que os caminhos de
regulamentação estão em forma escalonada, intensiva e extensivamente complementar (Do
gene ao direito: sobre as implicações jurídicas do conhecimento e intervenção, cit., p. 291).
297
autorização, perda ou restrição de incentivo e benefício fiscal concedidos pelo
governo; perda ou suspensão da participação em linha de financiamento em
estabelecimento oficial de crédito, intervenção no estabelecimento, proibição de
contratar com a administração pública, por período de até 5 (cinco) anos.
No caso, não haverá violação à proporcionalidade estrita mesmo
que a multa administrativa e a multa penal recaiam faticamente sobre a mesma
pessoa (administrador da clínica e médico atuante na pesquisa), porquanto, na
primeira, está em pauta o patrimônio da empresa, conquistado com seu aparato
técnico e de pessoal; na segunda, o indivíduo e sua pessoa, com as capacidades
particulares, de conhecimento e domínio técnico.
Em patamar pouco distinto, coloca-se o ilícito disciplinar. É
irrefutável que a sanção disciplinar mantém relação com a gravidade do fato e
almeja a punição do infrator. Todavia, como ressalta José Cerezo Mir, em estudo
sobre a sanção administrativa disciplinar, esta penalidade revela-se independente
da sanção penal, porque considera, com peculiaridade exclusiva, as exigências
de prestígio e de bom funcionamento da Administração.
564
Transportando essa consideração para o campo da biomedicina,
onde as punições disciplinares são aplicadas pelo órgão de classe, os objetivos
buscados com a reprimenda são o decoro, a superioridade e a independência da
profissão. O ressarcimento do paciente, enfocado pelo direito civil, e o impacto da
atividade sobre os direitos do indivíduo e da coletividade, objeto do direito penal,
são pouco relevantes. De certo que, empenhadas para fins distintos, a
intensidade das penas disciplinar e penal também não será idêntica, pesando
bem mais a prevenção na segunda espécie.
564
Cf. CEREZO MIR, José. Sanções penais e administrativas no direito espanhol. Revista
Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, ano 1, n. 2, p. 33, abr./jun. 1993.
298
A desigualdade não se limita ao fim almejado. De acordo com o
direito posto, as modalidades de penas disciplinares e penais são diferentes.
565
Não se igualam nem mesmo quando consistirem em interdição temporária de
direitos, posto que, na via disciplinar, a suspensão resume-se a 30 (trinta) dias, ao
passo que, na penal, o prazo corresponde ao da pena privativa de liberdade
substituída.
Dito isto, concluímos que a pendência de processo criminal,
provavelmente mais moroso, não impede o julgamento e condenação do infrator
perante os órgãos éticos de classe, restando, ao final, incidentes as duas
sanções.
565
Capítulo I, item 1.3.1, supra.
299
CONSIDERAÇÕES CONCLUSIVAS
Ao longo deste trabalho, foram feitas muitas proposições e uma
gama de posições foi tomada, entre as quais incluem-se sugestões de lege
ferenda. Por ora, às margens da finalização, são expostas considerações
conclusivas, que expressam os entendimentos mais amplos colhidos durante no
curso da pesquisa.
A biomedicina evolui rapidamente e, entre suas novidades mais
importantes, encontra-se o manejo de seqüências de DNA e de células, ambas
sujeitas a acesso facilitado pelos procedimentos afetos à reprodução assistida. As
inovações trazem vantagens imediatas e expectativas que, mesmo às vezes
longínquas, proporcionam melhores condições de vida. Porém, simultaneamente,
estendem, de forma inusitada, ameaças aos seres humanos, decorrentes,
sobretudo da retomada de projetos eugênicos, à moda do nazismo, ou da corrida
desenfreada por pesquisas com células-tronco embrionárias.
De conseguinte, a ciência da vida está inserida entre os
identificadores que caracterizam a sociedade contemporânea como “sociedade de
risco”, marcada, entre outros fatores, pelo imenso potencial de propagação dos
danos, pela artificialidade dos perigos, eis que derivados de ação humana, e pela
complexidade da comprovação do nexo causal, pois o resultado se origina de
decisões distantes, normalmente concebidas e executadas em intrincado
contexto. Para superar os riscos e o medo a eles associado, o reclamo por um
controle constitucionalizado é maciço, redundando em clamores pela passagem
300
do Estado Liberal para o Estado de Prevenção, no qual é muito acentuada a
inclinação para excessos na intervenção penal.
Refletindo sobre tal realidade, é sustentada, antes da exclusão, a
atuação equilibrada do Direito Penal e, para tanto, apresentada a noção de
proporcionalidade, que se exprime como norma, com categoria de regra e dotada
de hierarquia constitucional, eis que uma das bases do Estado Democrático de
Direito em suas relações com os direitos humanos. Com o fito de harmonizar a
atividade estatal à máxima tolerância e à máxima liberdade, próprias da
democracia, a proporcionalidade exige que a legislação e a jurisdição penais
ajustem-se ao quadro axiológico constitucional e que considerem as condições
reais do sistema jus-positivo e da sociedade, para que ambas não recaiam na
inaplicabilidade e no descrédito. Nestes moldes, a proporcionalidade legitima a
incidência do Direito Penal tão-somente quando necessário, idôneo e, ainda,
quando a pena seja justa em face da infração.
No âmbito do ius puniendi, a proporcionalidade defronta-se com a
noção de bem jurídico. Depois de evoluções e involuções desta categoria,
atualmente a doutrina busca seu sentido material. A corrente sociológica propõe
sua substituição por outros conceitos, enquanto a constitucional, sua
permanência. A segunda é mais adequada, porque, para evitar arbitrariedades na
seleção de bens, elege a Constituição - retrato dos valores e anseios primordiais
do povo como filtro na captação dos interesses essenciais da sociedade, únicos
hábeis a integrarem a esfera dos bens dignos de tutela penal.
Sem fornecer um catálogo de bens jurídico-penais, a
Constituição, impregnada por textura aberta, estabelece um conjunto ordenado de
valores em relação ao qual cabe ao direito penal manter correspondência de
301
sentido e de fim. Muitos dos valores constitucionais são expostos a perigo ou a
dano pela biotecnologia e, entre eles, destacam-se os referentes ao embrião e ao
genoma humano, já que transitam pelo cotidiano da comunidade por intermédio
dos meios de comunicação.
O estudo do status jurídico do embrião remete aos limites do
direito à vida, que é aclamado no art. 5º, da Carta Política de 1988, que não
distingue a vida intra e a extra-uterina, nem mesmo as fases embrionárias.
Considerando a abrangência da mensagem legal e que, no atual estágio da
ciência, é consenso que o zigoto constitui uma célula especialíssima, porque
carrega a carga genética humana que perdurará no adulto e tem potencialidade
assustadora de se dividir de forma contínua e desenvolver o feto, tem-se que a
tutela constitucional à vida principia com a fecundação.
Ao lado da vida humana, a livre criação científica pode afetar o
patrimônio genético (genoma), donde surge novo bem jurídico, qual seja a
integridade genética que, em face de crenças sobre sua projeção na formação da
personalidade, mantém apertada conexão com o respeito à dignidade da pessoa
humana. Sua habilitação como bem constitucional tem fundamento no art. 225, II,
da Constituição, como também em todo o sistema jus-fundamental, graças às
relações que trava com a vida, a saúde e a igualdade.
Portanto, a vida e a integridade genética, estando expressamente
anunciadas na Carta de 1988, revelam evidente correspondência constitucional.
Este traço, contudo, não é bastante para justificar uma medida com cunho de
ultima ratio, como a pena. Por isso, a idéia de bem jurídico é complementada
pelas noções de fragmentariedade e subsidiariedade.
302
Ambas não impelem o Direito Penal a se retirar da zona
normativa destinada ao controle das novidades científicas. Diante da importância
dos mencionados bens em jogo e das repugnantes modalidades de ataque a que
se sujeitam, as quais envolvem perigos de dimensão incontrolável para as
gerações presentes e mais ainda para as do porvir, afastar a tutela penal seria
inverter o princípio da intervenção mínima. A assertiva é reforçada pela
insuficiência de multas administrativas, pois o respectivo montante é passível de
integrar o gastos estimados ou de ser anulado pelo volume de dinheiro com que
trabalham os centros de pesquisas.
Sendo assim, ao lado da função primária de proteção de bens
jurídicos, é acertado que o Direito Penal, pela sua ímpar simbologia, desenvolve
função promocional, na crença de que a qualificação de um comportamento como
crime tem o condão de estabelecer ou reforçar sua grave reprovação social,
assegurando o interesse jurídico em apreço, dentro da magnitude de que este
desfruta.
Sem o amparo de leis criminais, dificilmente, a sociedade
contemporânea - laica, pluralista e, muitas vezes, eticamente confusa
conscientizar-se-á da relevância dos bens em jogo, porquanto os ataques
assumem formas nunca pensadas ou são executados diante de bens pouco
conhecidos. O corpo social, sem uma drástica advertência, tende a prosseguir
absorvido por informações rápidas e fáceis, calcadas no consumismo, no
egoísmo ou na vaidade de certos profissionais especializados. Aliás, havendo a
incriminação de certos comportamentos, a vaidade levaria personalidades do
mundo científico a mudarem de posicionamento para ajustarem-se às normas
penais, a fim de preservarem incólume sua imagem pública.
303
Todavia, nem sempre a afronta à vida ou à integridade genética
está apta a ser tutelada penalmente. A regra da proporcionalidade também impõe
que o direito penal incida apenas quando tenha capacidade para combater
infrações à vista da realidade a que se volta. Desse modo, a norma punitiva será
proporcional se, em juízo prognóstico, ela contribuir efetivamente para coibir os
desvios de conduta, sem que, simultaneamente, seja contraproducente.
Sob o primeiro ângulo, é repisada a capacidade educativa do
Direito na seara da biomedicina, porque as normas são dirigidas a profissionais
de renome, não suscetíveis à amargurada inclinação ao crime. Além disso, em
obediência à natureza das coisas, muitas vezes na luta contra a criminalidade, é
imperiosa a antecipação da barreira penal com a tipificação sob a modelagem de
perigo abstrato, para superar a dificuldade probatória do nexo causal, em função
da distância entre ação e resultado, o que se manifesta, nomeadamente quando
em voga bem jurídico atinente às gerações futuras.
Sob o segundo ângulo, em contrapartida, há casos em que é mais
razoável a impunidade do que a punição, em face de delicadas situações em que
mergulha o casal que procurou a reprodução assistida, seja em razão de
vicissitudes da suas vidas ou de patologia embrionária. O penalista, com
esperada sensibilidade, não pode ignorar a dureza da realidade, sob pena de criar
leis contrárias às necessidades sociais.
Trabalhando com os parâmetros assinalados, que conformam a
necessidade e a adequação penal, o legislador, sempre respeitando os ditames
da Constituição, tem subsídio para formular, sem ofender a norma da
proporcionalidade, os juízos de conveniência e oportunidade sobre a tipificação
de um comportamento e, em caso positivo, sobre suas elementares. Mais adiante,
304
na cominação da pena, é devida sua correspondência com o peso da infração,
quando prestam, como diretivos, a importância do bem, o número de bens
ofendidos e o grau de ataque, entre outros. É preciosa a comparação com tipos
similares, para que não se perca a harmonia do sistema legislativo, o que, à
evidência, desintegra a confiança do cidadão no Direito.
O mesmo conjunto de parâmetros dirige-se aos juízes, porém,
para que estes não violem o princípio da separação de poderes, devem ter em
mente que o reconhecimento do vício de inconstitucionalidade pela violação à
regra da proporcionalidade há de ser flagrante.
As considerações ora traçadas não têm intento de serem
percebidas como verdades irrefutáveis, senão como fruto de reflexão sobre
intrincado e por vezes doloroso tema. Objetivam instigar a discussão acerca da
relação entre o direito penal e as atividades científicas, sob a premissa de que,
em íntima ligação com a sociedade, estas não são neutras, mas interagem com
os caracteres humanos e, assim, são parciais e falíveis.
Mais do que encerrar o debate, nossa pretensão é veicular que
seu ponto central está no justo equilíbrio entre os valores tocados pelas ciências
da vida, sempre à luz do respeito que merecem cada pessoa e o todo, crendo,
como crê Norberto Bobbio (Constituição pastoral Gaudium et Spes (alegria e
esperança), in: Elogio da serenidade e outros escritos morais, p. 198), que “com
quanto mais humanidade e amor entrarmos em seu modo de sentir, tão mais
facilmente poderemos iniciar com eles um diálogo”. Quiçá assim atingiremos a
conscientização de que o homem não existe isolado, mas coexiste junto aos
demais, e agiremos sob guiados por tal máxima.
305
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Trad. por Ernesto Garzón
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