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ANA FLÁVIA NOGUEIRA NASCIMENTO
FESTIVAIS PSICODÉLICOS
NA
ERA PLANETÁRIA
MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
PUCSP
SÃO PAULO
2006
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Ana Flávia Nogueira Nascimento
Festivais Psicodélicos
na
Era Planetária
Mestrado em Ciências Sociais
PUCSP
São Paulo
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2006
Ana Flávia Nogueira Nascimento
Festivais Psicodélicos
na
Era Planetária
Dissertação apresentada como exigência parcial para
a obtenção do título de mestre em Ciências Sociais à
Comissão Julgadora da Pontifícia Universidade Católica,
Núcleo de Estudos da Complexidade – Antropologia
, sob a orientação da
Profa. Dra. Lucia Helena Vitalli Rangel.
PUCSP
São Paulo
2006
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Banca Examinadora
_________________________________
_________________________________
_________________________________
_________________________________
Profa. Dra. Lucia Helena Vitalli Rangel
Orientadora
- 5 -
Com amor infinito para
Geraldo Eduardo da Silva Caixeta Júnior (Takeshe)
e Julia Gularte Caixeta.
que me ensinaram o amor incondicional.
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Agradecimentos
A Adriana e Marcos, que me trouxeram à vida e sempre me apoiaram.
Às musas inspiradoras que amo tanto: Fernanda, Juliana, Joana, Júlia e Savitha.
A todos os “tranceiros” que, juntos, dançam como um.
Com carinho especial para:
Charlie, Ganesh, Marcelão e Poty.
que ajudaram a tecer os fios
complexos de idéias, sons e imagens.
Aos companheiros neipianos, que impulsionaram as reflexões mais “psicodélicas”.
À querida Lucia Helena Vitalli Rangel,
por ter permitido nascer uma criação sincera e espontânea.
E ao CNPQ, pela concessão da bolsa,
suporte fundamental para a realização desta pesquisa.
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Resumo
Esta dissertação apresenta a tentativa de compreender um fenômeno social
conhecido como movimento global do transe psicodélico, que vem ganhando cada vez mais
adeptos em todo o país por meio de festividades ritualísticas centradas em um estilo musical
eletrônico – psychedelic trance – que estimula a dança e os estados alterados de consciência.
A discussão teórica implica penetrar nas brechas do cânone científico e expressar,
por meio da articulação complexa, a manifestação dos festivais de transe psicodélico, os
quais criam e recriam um universo lúdico que envolve arte e estética psicodélica em meio à
natureza, como cenários para experiências extáticas coletivas.
A pesquisa teve como guia algumas questões, tais como: Será que nesse ambiente de
desordem existe uma nova ordem sendo construída? O que esse movimento reflete nos
tempos atuais? Quais são os símbolos e mitos relacionados ao movimento? Quais são as
crenças e os valores que norteiam o imaginário do grupo? Que necessidades estão implícitas
nessa nova manifestação festiva? O que expressa esse complexo ritual na era planetária?
Foram pesquisados os festivais de transe psicodélico que aconteceram no Brasil entre
2003 e 2006. Participei, como observadora, de oito festivais, nos quais realizei entrevistas e
colhi material. A pesquisa também abrangeu a rede eletrônica – Internet –, principal meio de
comunicação utilizado pelos participantes desses festivais.
PALAVRAS-CHAVES:
Festivais de Transe – Rituais – Música – Dança – Psicodélicos – Pensamento Complexo.
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Abstract
This essay presents an attempt to a further understanding of a social phenomenon
known as psychedelic trance global movement which has been gaining more and more
incomers in the whole country through ritualistic festivities focused on an electronic music
style “psychedelic trance” which stimulates dancing and the altered states of consciousness.
This theorical discussion implicates in penetrating the gaps within empirical
scientific knowledge and expresses itself through complex articulation, the manifestations of
psychedelic trance festivals, which create and recreate an altered universe that involves art
and psychedelic esthetics, within nature, as the backdrop for ecstatic collective experiences.
The research had guidelines such as: Is there an order in such a virtually caotic
atmosphere being constructed? What does this movement reflect upon current time? Which
are the symbols and myths involved in this movement? Which are the beliefs and the values
that guide psychedelic imagery? What needs are implicit in this new festive manifestation?
What does this complex ritual express in the planetary era?
The camp research was performed in a series of psychedelic trance festivals that took
place in Brazil, between year 2003 and 2006. I took part as an observer in eight festivals, in
which I gathered interviews and collected material. The research also encompassed the
electronic net – Internet – the main means of communication used by the participants of
such festivities.
KEY-WORDS:
Trance Festival – Rituals – Music – Dance – Psychedelics – Complex Thoughts.
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“Se a minha virtude é virtude de dançarino e, muitas vezes, saltei
a pés juntos para êxtases de ouro e esmeralda;
Se a minha maldade é uma maldade risonha, afeita aos roseirais e às sebes de
lírios;
– porque, no riso tudo que é mal acha-se reunido, mas santificado e absolvido
pela sua própria bem-aventurança –
E se é o meu alfa e ômega que tudo o que é pesado se torne leve, todo o corpo,
dançarino, todo o espírito, ave; e, na verdade, é esse o meu alfa e ômega! –
Oh, como não deveria eu almejar a eternidade e o nupcial anel dos anéis –
O anel do retorno?
Nunca encontrei, ainda, a mulher da qual desejaria ter filhos, a não ser esta
mulher que amo: pois eu te amo,
Ó eternidade!
Pois eu te amo, ó eternidade
!”
Friedrich W. Nietzsche
O outro canto de dança
Assim falou Zaratustra
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Índice
JORNADA PSICODÉLICA .......................................................................12
I
PRELIMINARES .........................................................................................19
RITUAIS PSICODÉLICOS NA ERA PLANETÁRIA.................................24
II
AS PORTAS DA PERCEPÇÃO..................................................................33
PARAÍSO PSICODÉLICO ..........................................................................46
III. OS ELEMENTOS......................................61
O ÉTER VIBRACIONAL............................................................................62
AR: O BAILADO CÓSMICO ....................................................................83
O FOGO PSICODÉLICO............................................................................107
A TERRA: ARTE QUE PULSA....... .......................................................131
ÁGUA: O FLUIR DA VIDA ......................................................................160
BIBLIOGRAFIA:
1. LIVROS ......................................................................................................175
2. TESES..........................................................................................................180
3. ARTIGOS DE REVISTAS E SEMINÁRIOS.............................................181
4. Internet.........................................................................................................182
ANEXOS:
I: HISTÓRICO – O DNA DO TRANSE PSICODÉLICO....................................186
_ BRASIL....................................................................................188
_ O MOVIMENTO PSICODÉLICO...........................................189
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_ NEOPSICODELISMO.........................................................194
II: MATERIAL COLETADO NOS FESTIVAIS E Internet
A) TEXTOS DE REVISTAS DISPONÍVEIS NO AMBIENTE DOS FESTIVAIS
1. Uso e Abuso............................................................................................195
2. O Xamanismo e as Festas Psicodélicas...................................................196
B) Material Retirado da Internet
1. Transe, Dança e Êxtase: um rito de passagem planetário........................197
2. Santa Catarina e Rio de Janeiro proíbem raves........................................202
3. Importância da noite em uma festa trance................................................203
4. Ecstasy......................................................................................................204
5. Projeto de Redução de Danos – BaladaBoa..............................................208
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A JORNADA
Imagine que você está se preparando para uma jornada desconhecida. Não há como
prever o que irá acontecer. Em casa você arruma sua bagagem, sem saber muito bem o que
precisa levar. Acaba separando muito mais do que o necessário para sentir um mínimo de
controle sobre o desconhecido. Alguém deve ter avisado que é preciso levar barraca,
lanterna, um pouco de comida e algumas roupas de verão e de inverno. Ao preparar-se para
deixar de lado a vida cotidiana por alguns dias, você começa a observar sua dependência em
relação a tudo que oferece segurança e estabilidade na vida: trabalho, família,
relacionamentos, atividades rotineiras, tudo que deixará para trás temporariamente.
A maneira como você foi chamado para essa iniciação pode variar muito. Quando
chega a hora, acontece. Alguém especial o convida, ou você ouve comentários e se interessa,
ou recebe um e-mail com um mapa indicando como chegar ao local. O instigante é que o
momento chega e você é chamado para viver algo inteiramente novo em sua vida. A primeira
reação é de medo, ansiedade e até mesmo de insegurança frente ao desconhecido. Dá um frio
na barriga quando você começa a se preparar e percebe que está indo realmente em direção
ao desconhecido, que pode ser você mesmo.
A única coisa que você sabe é que está indo para um lugar isolado, em meio à
natureza e que lá acontecerá uma celebração. Pode ir de carona, a pé, de bicicleta, de barco,
de ônibus ou de avião, que o levarão até determinado ponto do caminho. Mas para chegar ao
local com certeza será necessário caminhar com sua bagagem nas costas. Provavelmente
passará por alguns momentos difíceis que o farão duvidar que algo bom irá acontecer depois
e pensará até em desistir quando já estiver bem próximo.
Independente do meio escolhido, você passará por locais diferentes da sua morada e
entrará em contato com paisagens inusitadas. Essa primeira relação com o desconhecido já
lhe provocará internamente, dando talvez uma sensação de insegurança, ou mesmo de
fascínio inexplicável pela vida. Muitas serão as impressões, que poderão ser boas ou ruins.
Provavelmente, quando já não estiver agüentando mais a curiosidade, começará a visualizar
alguns sinais que indicam uma proximidade do local. Esses sinais podem ser panos coloridos
amarrados às árvores ou placas indicando a direção a seguir. Os sinais o conduzirão até o
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portal de entrada, onde você irá entregar o ingresso, sua contribuição para fazer parte do
encontro.
Adentrando no portal você inicia uma caminhada, ao mesmo tempo bela e sombria,
que o levará ao centro da experiência coletiva. Nesse caminhar você poderá entrar em
contato com a força inerente da natureza, o verde da mata, o cantar dos pássaros, a beleza
das flores, o borbulhar das águas, a dificuldade das montanhas, o molhar da chuva e até
mesmo com a sua própria luz e escuridão internas. O peso da sua mochila reflete aquele que
você ainda necessita carregar para se sentir seguro. Com certeza precisará parar para
descansar, beber água, talvez chorar, ou pedir ajuda a alguém, que lhe atenderá se for
necessário.
Nesse processo você encontrará um segundo portal, que mostrará uma área
finalmente habitada. Inicia-se então um momento importante, em que você escolherá onde
montar sua barraca, que a partir de então será sua morada nessa zona autônoma temporária.
Pode ser que você escolha um lugar e depois perceba que não está bom, que existem outros
melhores, e sentirá vontade de mudar. O que importa é que você se sinta bem onde estiver.
Quando já tiver encontrado um espaço que o agrade, então será o momento de desmontar sua
bagagem, tirar o peso das costas, relaxar e começar a explorar esse local. Permita-se
conhecer o ambiente. Perceba o vento, o verde da mata, observe cada detalhe deste novo
universo no qual acabou de chegar. Sinta as emoções que este local desperta em seu ser mais
profundo e permita aos seus olhos enxergar toda a beleza e a feiúra que estará diante de
você. Nessa experiência não existe apenas o lado bom e prazeroso, mas também o lado mau e
sombrio, e o maior desafio será conseguir integrar essas duas esferas da vida e escolher de
que forma irá conviver com elas diariamente.
Pode ser que você tenha a sorte de chegar em um momento em que o espaço ainda esteja
sendo preparado para receber os que chegarão para celebrar. Que ótimo! Aproveite,
caminhe pelo espaço, observe o que está sendo criado. Sinta os elementos naturais que estão
presentes no local e a maneira como as pessoas estão envolvidas. E perceba que muitos estão
concentrados, desenvolvendo alguma atividade que se transformará em arte para que você
admire e contemple.
Nesse lugar, no meio da natureza exuberante, especialmente encontrado para essa
celebração, a arte psicodélica será a principal forma de transformação de sua percepção.
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Serão muitos os artistas envolvidos com a realização desse encontro. Observe ao seu redor e
você verá algumas formas geométricas com cores fluorescentes, mandalas trançadas com
linhas coloridas, pinturas de símbolos sagrados misturando-se com elementos tecnológicos.
Deixe-se contagiar por essas criações artísticas que unem o antigo ao novo, refletindo um
espectro da arte psicodélica.
Ao longo do dia ou da noite, são milhares as pessoas que chegam a todo momento,
vindas de várias partes do Brasil e de outros países distantes. Permita-se entrar em contato
com esses indivíduos. Observe as diferenças, entre em contato com elas, e aos poucos
perceberá as semelhanças. Deixe-se sorrir ao ver algo engraçado, um cabelo diferente, uma
roupa muito louca, um chapéu extravagante. Mas também interaja com os sentimentos de
estranhamento causados pelo diferente. Talvez alguém que tenha muitos piercings em seu
corpo poderá causar certo arrepio, ou pode ser que você sinta admiração por alguma pessoa
que chegue de muletas ou cadeira de rodas. Deixe aflorar as emoções que emergem nesse
ambiente.
Aos poucos o local vai sendo habitado, e tudo parece fluir de maneira interligada. Se
você sentir que existe certo mistério no ar é porque algo muito forte irá acontecer. Se ainda
não chegou ao local onde será o centro da celebração, aproxime-se e observe; talvez ainda
consiga acompanhar a montagem do som e observar que são muitas as pessoas envolvidas
para transportar, carregar e montar uma imensa aparelhagem. Você ainda não sabe como,
mas a música unirá as pessoas que se encontram dispersas nesse local.
Quando o sol estiver se pondo, prepare-se, pois o momento está chegando. Você ouvirá ou
sentirá as vibrações de um novo som. Pode ser que os tambores entrem primeiro, dando
abertura ao som rítmico, tribal e orgânico que invadirá o corpo, a mente e o espírito dos
participantes. Provavelmente você será estimulado pelas novas sonoridades e freqüências, as
quais poderão causar sentimentos a princípio indiscerníveis.
As pessoas que antes estavam espalhadas aos poucos irão se juntar na pista de dança.
As vibrações da música invadirão os corpos, que começarão a vibrar nessa outra freqüência
transmitida pelos ares. Permita-se sentir e experienciar essas vibrações e perceba como elas
atuam em seu corpo. Pode ser que num primeiro momento você esteja com o corpo retraído e
não consiga se entregar ao movimento. Esse medo reflete a insegurança diante do movimento
constante da vida e faz com que muitas pessoas busquem estímulos extras para se entregar.
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Nesses encontros, grande parte das pessoas envolvidas faz uso de substâncias psicoativas, as
quais atuam diretamente nos processos físico-químicos do corpo humano e atingem
principalmente a esfera psíquica. Porém há também os participantes que se recusam a usá-
las.
A música que você ouvirá emitirá ondas sonoras que estimularão seu corpo a dançar
e sua mente a viajar. O estilo psychedelic trance ou transe psicodélico contém inúmeras
freqüências anteriormente preparadas para despertar emoções, sentimentos, visões e
experiências, que poderão guiá-lo para o transe – estado alterado de consciência – no qual
você deixará de utilizar o pensamento racional e se dissolverá no coletivo, que dança junto,
na mesma freqüência.
As batidas repetitivas do trance têm um poder imenso que você só poderá conhecer
quando estiver inteiramente entregue, livre de suas próprias barreiras e limitações.
Existem muitos subgêneros desse estilo musical, mas me aterei apenas aos dois
principais.
O primeiro deles é o full on, que se caracteriza pela psicodelía forte, ou seja, por
estímulos sonoros que, como um caleidoscópio de sons intensos, vão sendo lançados de forma
a gerar uma jornada mental. Esses sons são sintetizados para despertar momentos de euforia
total por meio de melodias belamente arquitetadas. Têm forte apelo dançante., e seus
elementos vão entrando cada um em seu tempo, até que a música fica “cheia” e “explode”,
levando a pista a um estado de “êxtase coletivo”.
A segunda vertente mais importante é o estilo progressivo. Aqui a oscilação é deixada
de lado, o som é mais constante e retilíneo. Os sintetizadores são mais sutis, sendo a batida e
a linha do baixo o que prevalece. Essa é uma música mais introspectiva, pois busca
eqüalizar as ondas do cérebro e estimular um estado meditativo durante a dança. O
interessante é observar que essas duas linhas musicais se completam, e durante a celebração
psicodélica precisam coexistir tanto os momentos de euforia, os quais despertam a energia
vital do corpo, quanto os de insights meditativos, que transformam a energia trabalhada
anteriormente.
Entre em contato com a música e com a pessoa que está tocando, sinta se este som lhe
agrada e perceba se quem está tocando lhe causa empatia. Quando as respostas forem
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positivas, sentirá confiança para se entregar aos sons, e as repetições que se intercalam com
estímulos despertarão uma vontade incrível de se movimentar.
Sinta a dança. A cada movimento será possível explorar seu corpo de maneira
inteiramente nova, despertando a energia vital que existe adormecida na base de sua coluna
vertebral. Deixe emergir as emoções reprimidas e descubra que você pode transformá-las por
meio da dança ou de um ato criativo que surgirá de forma espontânea.
Quando sentir seu corpo desperto é sinal de que a energia está fluindo livremente.
Essa nova condição corpórea poderá causar muitas reações, razão pela qual você deve ficar
atento à maneira como estará lidando com essa nova carga energética despertada em seu
corpo. Quanto mais você se permitir, mais informações internas virão à tona. Aos poucos,
conseguirá acessar não apenas o seu inconsciente, mas também o inconsciente coletivo, que
está escondido no seu psiquismo e contém informações de toda a humanidade.
Tente resistir durante toda a noite para acompanhar o processo de transformação da
arte psicodélica quando a escuridão chega. À noite as luzes fluorescentes dão um novo ar às
decorações, que ficam mais espaciais. Na pista de dança, pode ser que você se sinta dentro
de uma nave espacial, a qual o estará guiando através de conexões desconhecidas na sua
mente. Enfrente o escuro, pois coisas inusitadas podem ocorrer. Procure, por exemplo,
observar pessoas fazendo malabarismos com o fogo, estimulando a visão a focar esse
elemento forte e purificador da natureza, que ganha formas circulares e gera um ar todo
misterioso na noite festiva.
Pode ser que durante a noite os sons despertem, intencionalmente, sensações de medo
ou angústia para mexer com esses sentimentos difíceis. Em determinado momento você
poderá até sentir que o mundo está acabando, tal a forma caótica com que a música se
apresenta. Mas esse caos é visto como uma forma de destruir as referências egóicas
individuais e inseri-lo na experiência coletiva. Quando o sol começar a brilhar, uma
experiência inteiramente nova nascerá entre os participantes. A chegada da luz do sol traz
uma mudança na atmosfera. Os dançarinos que passaram a noite enfrentando a própria
escuridão sentem uma alegria diferente quando clareia o dia, pois então podem compartilhar
novamente os olhares e essa troca substitui o sentimento de solidão por felicidade, amor,
solidariedade e completude.
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Os olhares e a alegria de compartilhar o amanhecer, depois da longa noite dançando
em transe, expressam o sentimento de “nós conseguimos juntos”, o qual faz cada
participante tomar consciência da importância de compor o movimento sincrônico da pista
de dança para atingir a experiência do êxtase coletivo. Deixe-se levar pela explosão de
energia que tomará conta do ambiente e como uma mágica você terá a sensação de estar
voando.
Pode ser que em algum momento você sinta que seu corpo já não agüenta mais.
Então, se respeite e busque algum lugar tranqüilo. Poderá encontrar o chill out, um local que
foi preparado para momentos de descanso. Nesse ambiente é prioritário que tudo flua de
maneira que possa receber as pessoas para relaxarem. Lá encontrará almofadas ou até
mesmo redes para descansar.
Se estiver experimentado alguma substância psicodélica, perceberá que as decorações
se tornaram imensamente mais atrativas e lhe proporcionam uma viagem colorida de
dimensões antes inalcançáveis, de fusão total com os elementos. As luzes também darão
novas formas às decorações que parecem mesmo estar vivas. Você perceberá que a música
também proporciona uma experiência fascinante, por meio de sons de culturas exóticas que
podem lhe causar um imenso prazer.
A jornada é longa. Não tenha pressa. Você está apenas começando. Esse ambiente lhe
dispõe múltiplos estímulos que às vezes podem também deixá-lo um pouco cansado. E para
que consiga aproveitar os outros dias será preciso também que reponha suas energias. Por
isso será importante recolher-se na sua barraca e dormir o tempo que achar necessário.
Assim, quando acordar, de alguma forma estará se sentindo diferente, talvez mais leve, mais
pleno, ou mesmo mais confuso diante de tantas experiências novas.
Como esse ritual não dura apenas um dia ou dois, mas sim quatro, cinco, ou até sete,
ainda terá tempo para entrar em contato com suas emoções e, se sentir vontade, também
poderá compartilhar suas experiências com outras pessoas. A pista de dança estará sempre
em movimento e o receberá novamente quando quiser voltar para a dança do transe. Agora
você já sabe que basta apenas entregar-se de coração aberto ao som das batidas rítmicas e
viajantes e deixar que seu corpo, sua alma e seu espírito dancem em comunhão extática,
atingindo um estado de arrebatamento e prazer compartilhado.
- 18 -
Quando a música parar na pista de dança é sinal de que o encontro está acabando.
Será então o momento de desmontar a barraca, juntar os pertences, despedir-se das pessoas
que conheceu, trocar contatos e arrumar um jeito de voltar para sua cidade de origem. Aos
poucos, os integrantes dessa comunidade nômade começam a seguir caminho para ingressar
novamente na vida urbana e cotidiana. As barracas são desmontadas, o lixo é recolhido e
levado ao local de reciclagem, a estrutura começa a ser desmontada e em pouco tempo, no
máximo dois ou três dias, o lugar estará novamente vazio e inabitado.
Na estrada de volta para casa pode ser que você perceba o mundo com outros olhos,
como se a vida realmente tivesse ganhado uma nova perspectiva. Talvez mais bonita, intensa
e colorida, talvez mais chocante e horripilante. Depois dessa jornada psicodélica,
provavelmente a experiência de perceber novas formas de manifestação do corpo e da mente
terá impulsionado a dissolução das barreiras, as quais impediam a percepção de que tudo o
que existe está interligado, em um mar de energia que forma o todo. A composição desse todo
é feita por milhares de pessoas, as quais podem entender a vida de maneira diferente, mas
talvez o estado de transe tenha mostrado que não é isso o que importa. Afinal, é a
multiplicidade que enriquece a composição do corpo social. Leve para casa essa nova
percepção da realidade.
- 19 -
PRELIMINARES
A mais bela coisa que podemos sentir é o Mistério.
Ele é a fonte de toda verdadeira arte e ciência.
Albert Einstein
A “Jornada psicodélica
1
foi uma apresentação breve a respeito do tema desta
pesquisa, que pretende guiar você por meio do universo simbólico
2
dos “festivais de transe
psicodélico”
3
que aconteceram no Brasil entre os anos 2003 e 2006. As festividades, as quais
proponho nos aproximarmos, envolve um fenômeno bastante peculiar conhecido atualmente
como rave
4
. Entretanto, torna-se importante diferenciar que o fenômeno das raves
psicodélicas que acontecem no Brasil envolve tanto as festas quanto os festivais.
Durante a pesquisa freqüentei ambos os tipos de eventos para especificar suas
diferenças, porém destaco que a dissertação teve como foco os festivais dispostos ao longo do
ano com intervalos que variaram de dois a quatro meses, formando um calendário que
percorreu diferentes partes do país. Esses lugares tinham em comum a característica de serem
verdadeiros paraísos naturais, afastados de tudo que lembre a noção de cidade, em ambientes
de montanhas, cachoeiras, praias paradisíacas, florestas etc. Esses encontros coletivos duram
de três a sete dias e são freqüentados principalmente por jovens entre dezoito e trinta anos,
1
A “Jornada psicodélica” foi escrita com base nas entrevistas realizadas para a pesquisa, as quais tinham como
objetivo ouvir as pessoas a respeito da primeira vez que participaram de um festival de transe psicodélico, e
também teve como base minha experiência enquanto observadora participante dos festivais.
2
De acordo com Jung, aquilo que denominamos símbolo ou simbolismos implica qualquer coisa de vago, de
desconhecido, de oculto para nós. No momento em que o espírito empreende a exploração de um símbolo, é
levado a idéias situadas para além do que nossa razão é capaz de captar. Inúmeras coisas se situam para além
dos limites do conhecimento humano, e constantemente utilizamos os símbolos para representar o que não
podemos definir nem compreender por completo. O uso consciente que fazemos dos símbolos é apenas um dos
aspectos de um fato psicológico, pois o homem também cria símbolos de modo inconsciente e
espontaneamente para tentar exprimir o invisível e o inefável. (Jung, 2000).
3
Ao longo da dissertação, optarei pelo termo transe psicodélico, na língua portuguesa, para fazer referência
aos “festivais de transe psicodélico”. Porém empregarei psychedelic trance quando me referir à música, pelo
fato de esta não ser traduzida pelos seus ouvintes.
4
Rave é um estilo de festa que surgiu na Inglaterra no final dos anos 1980, após a política repressiva do
governo Thatcher, que implementou uma nova lei obrigando o fechamento dos clubes noturnos à meia-noite.
Os jovens ingleses que desejavam festejar começaram então a organizar eventos fora do circuito tradicional do
mundo da noite. Esses encontros passaram a acontecer geralmente em lugares mais afastados da cidade, em
meio à natureza. Foi o período do surgimento e da disseminação da música eletrônica (acid house, techno),
bem como da oferta de novas drogas, como o ecstasy. “Uma nova música, uma nova droga e enfim uma nova
maneira de fazer festas: rapidamente as raves se multiplicaram” (Chambon,, 2001: 15). Atualmente, já
existem vários estilos de rave – gótica, funk, techno, trance etc. –, que são realizados ao ar livre, mas que
apresentam características completamente diferentes em seus fundamentos.
- 20 -
com alto poder aquisitivo e educacional. Entretanto, não se pode generalizar ou padronizar tal
público, visto que uma característica diferencial desses encontros é a participação de crianças
de colo e até de pessoas com mais de sessenta anos, assim como pessoas das mais diversas
esferas sociais.
Durante três anos me dediquei de múltiplas formas à realização desta pesquisa. Minha
intenção não era apenas criar uma hipótese em torno do tema para confirmar ou negar
posteriormente. Desde o início queria expressar que trataria de um fenômeno que está em
constante transformação.
Para desenvolver a arte desta ciência, precisei guiar-me metodologicamente e
participei como observadora nos oito festivais listados no cronograma. Realizei, ao todo, 35
entrevistas abertas, gravadas em campo e também fora do contexto dos festivais. Essas
entrevistas visaram abranger diversos envolvidos nesse contexto: participantes, organizadores,
produtores, artistas (DJs, VJs, artistas multimídia, fotógrafos e cenaristas), bem como
trabalhadores ocasionais (limpeza, construção, estrutura, enfermaria de primeiros socorros e
policiais). Também foi feita pesquisa pela Internet – principal meio de comunicação utilizado
pelo grupo – e coleta do material psy
5
(poesias, fotos, músicas, imagens, textos, jornais e
revistas), que foram requisitados e enviados via e-mail ou encontravam-se dispostos na
Internet ou nos festivais que freqüentei.
O “material psy” diz respeito ao mundo de informações que norteiam o fenômeno
estudado e também ao mundo imaginário que dá base ao mesmo. O material selecionado na
Internet, inclui textos escritos por pessoas envolvidas com o tema, fotos, vídeos e
documentários sobre os festivais psicodélicos ocorridos no Brasil e no mundo (Europa,
África, Índia, Japão), os quais serviram como material para análise reflexiva sobre o
fenômeno em termos mundiais e também como recurso de imagem na produção do CD-ROM.
No decorrer do texto serão utilizadas fotos de minha autoria e advindas de outras
fontes que serão referenciadas. Também acompanha o texto um CD-ROM editado por Charlie
Oliveira (artista multimídia), que criou grande parte das imagens simbólicas que compõem o
5
Ao longo da pesquisa de campo, entrei em contato com criações artísticas espontâneas, como poemas,
poesias, textos, jornais, revistas, entre outras informações que foram expostas nos festivais (que são entregues
de mão em mão, ou fixadas em algum
lugar específico). Esses recursos são importantes, pois são frutos da
criação do grupo em questão. Sendo
assim, ao longo da dissertação estarei utilizando esses materiais coletados
durante a pesquisa de campo e outros serão anexados no final do trabalho.
- 21 -
material e que já foram projetadas em muitos festivais brasileiros. O dispositivo eletrônico
também é composto pelo material fotográfico doado por Murilo Ganesh, que fotografa para
um site
6
de música eletrônica, o qual possui um arquivo riquíssimo de fotos que expressam
esse universo.
Dado que os símbolos
7
expressam o imaginário do grupo em questão, a pesquisa de
campo teve como foco observar quais símbolos aparecem nos festivais e compreender o que
eles expressam. Nesse sentido, emprego imagens para expressar ou pelo menos ilustrar
aspectos do imaginário que constitui essa expressão cultural e também para mostrar a magia
que envolve esse fenômeno.
CRONOGRAMA DOS FESTIVAIS PESQUISADOS:
- Solaris Dance Festival, realizado de 1 a 5 de março de 2003, na fazenda Boa
Vista, Amparo (SP). Foi organizada pelo grupo Tribe
8
(São Paulo) e teve a participação de
aproximadamente 4 mil pessoas de diferentes países.
- Trancendence, realizado de 9 a 14 de julho de 2003, na fazenda Vale da
Esperança, na Chapada dos Veadeiros (Alto Paraíso de Goiás). Foi organizado pelo grupo
Solar Flares
9
e teve a participação de aproximadamente 5 mil pessoas de diferentes países.
“Um festival de cinco dias de música, arte e cultura na Chapada dos Veadeiros, no coração do
Brasil. A região é famosa pela exuberante natureza que esconde cenas mágicas, as belas
paisagens, as formações rochosas, as cachoeiras, as minas de cristal, as flores do cerrado e a
energia que emana do solo” (flyer de divulgação da Trancendence, 2003)
6
Disponível em: <www.emusicbrasil.com.br>.
7
O símbolo é muito mais do que um simples signo ou sinal; transcende o significado e depende da
interpretação individual, a qual está inserida na herança biofisiopsicológica da humanidade influenciada por
diferenciações culturais e sociais próprias do meio imediato de desenvolvimento. O símbolo afeta estruturas
mentais, razão pela qual é comparado a esquemas afetivos que mobilizam a totalidade do psiquismo. Segundo
Chevalier (1997: XVIII), o símbolo pode ser considerado eidolo-motor – o termo eidolon mantém-no no nível
da imagem e do imaginário, em vez de situá-lo no nível intelectual da idéia (eidos), o que não quer dizer que a
imagem simbólica não provoque nenhuma atividade intelectual. Contudo, a imagem simbólica é um centro ao
redor do qual gravita todo o psiquismo que ela põe em movimento.
8
Disponível em: <www.triberave.com>.
9
Disponível em: <www.solarflares.com.br>.
- 22 -
- Earthdance, realizado em Cachoeira Alta (Minas Gerais), de 19 a 21 de setembro
de 2003. A organização foi feita pelo grupo Zuvuya
10
(São Paulo). “O Earthdance é um
evento global que busca a paz no planeta e une festas do mundo todo, no mesmo dia, para
gerar a conscientização e fundos para causas humanitárias. A união mundial de pistas de
dança que ocorre quando uma música para a paz é tocada ao mesmo tempo, unindo pessoas de
todo o mundo. Esse momento profundo e poderoso cria um sentimento de que somos os
mesmos seres humanos, dividindo o mesmo planeta. Venha celebrar com a família
Earthdance, em um evento de música eletrônica que conecta milhões de pessoas em um ritual
de dança e cura planetária, com a intenção de gerar conscientização e fundos para causas
humanitárias” (flyer de divulgação da Earthdance, 2003).
- Universo Paralello
11
(Réveillon, 2003/04), realizado em Pratigi (Bahia) pelo
grupo Vagalume Records (Brasília). Pratigi é uma praia deserta. Um mar selvagem, porém
propício para banhos. A praia é cercada por coqueiros e bananeiras e por uma densa mata
cortada por córregos nativos, sendo um tesouro natural, pois é uma das poucas reservas de
mata de restinga do Brasil” (informações retiradas do site do evento)
- Cachoeira Alta Dance Festival
12
(março, Semana Santa, 2004), realizado na
fazenda Cachoeira Alta, Itabira (Minas Gerais). Esse festival foi chamado de “lama alta”, pois
foi realizado debaixo de uma chuva torrencial que durou três dias e mesmo assim em torno de
3.500 pessoas dançaram na lama ao som do trance.
- TranceFormation
13
, realizado de 15 a 19 de julho de 2004, em Pirinópolis (Goiás),
pelo grupo TranceFormation (Goiânia). “Tranceformation. Não é só festa, mas também ritual.
Não só música, mas também uma história bem contada. Não só pessoas, mas também energias
em conexão. Sendo um verdadeiro tesouro natural, tal ambiente exige de todos uma atitude
permanente de cuidado e respeito pela
natureza local. Durante estes dias, num local privado, discreto e acolhedor, um camping
completamente arborizado e sombreado estará disponível para ser povoado pela tribo trancera
do Brasil e mundo. Uma festa roots, para pessoas que fazem questão de boa música e boa
10
Disponível em: <www.zuvuya.net>.
11
Disponível em: <www.universoparalello.art.br>.
12
Disponível em: <www.cachoeiraaltafestival.com.br>.
13
Disponível em: <www.tranceformation.com.br>.
- 23 -
vibe, e principalmente boa companhia, tudo isso em meio à natureza pura, em local aberto
especialmente para o evento” (informações contidas no flyer de divulgação do evento).
- Universo Paralello (Réveillon, 2004/05), realizado em Pratigi (Bahia). Depois
da fantástica acolhida por parte do maravilhoso povo de Ituberá, que recebeu nossa
comunidade alternativa de forma tão carinhosa e calorosa, Universo Paralello convida a todos
para celebrarem o réveillon 2004/2005. Serão sete dias de alegria e celebração em meio às
águas mornas e os coqueiros de Pratigi” (informações retiradas do site do evento).
- Waves of Peace, realizada em Angra dos Reis (RJ), 26 a 29 de maio 2005. “O
portal está aberto e basta ativarmos nossa dança e ascendermos o fogo sagrado, que teremos
a força e combustível para atravessarmos as dimensões do tempo e espaço! A pista de dança
será nosso veículo de luz e vamos ancorar um quantum energético de luz, cura e amor
incondicional. Respeitar o todo e a magia de todos sermos um só corpo junto a fonte.”
(informações retiradas de um folheto distribuído durante o evento).
Depois de alguns anos participando e observando esses festivais que criam e recriam
realidades paralelas, esta dissertação apresenta a tentativa de compreender um fenômeno
social global que vem ganhando cada vez mais adeptos em todo o país por meio de
festividades ritualísticas centradas em um estilo musical eletrônico que estimula a dança e os
estados alterados de consciência.
A pesquisa teve como guia algumas questões tais como: Será que nesse ambiente de
desordem existe uma nova ordem sendo construída? O que esse movimento reflete nos
tempos atuais? Quais são os símbolos e mitos relacionados ao movimento? Quais são as
crenças e os valores que norteiam o imaginário do grupo? Que necessidades estão implícitas
nessa nova manifestação festiva? O que expressa esse complexo ritual na era planetária?
Mais do que uma redação sobre um tema novo, o que apresento aqui é fruto de muito
amor e respeito pela cultura planetária e por uma nova humanidade que está despertando.
Neste trabalho, tentei penetrar nas brechas do cânone científico e busquei expressar, por meio
da articulação complexa, a manifestação dos festivais de transe psicodélico, os quais criam e
recriam os quais criam e recriam um universo lúdico que envolve arte e estética psicodélica,
em meio à natureza, como cenários para experiências extáticas coletivas.
- 24 -
RITUAIS PSICODÉLICOS NA ERA PLANETÁRIA
O espírito de um homem é capaz de tudo – porque tudo está
nele, todo o passado e todo o futuro.
Joseph Conrad (Heart of Darkness)
Nas últimas décadas do século XX um novo movimento musical, conhecido como
“cultura global do transe psicodélico
14
, espalhou-se pelo mundo por meio de uma união entre
música eletrônica, dança, natureza e utilização de substâncias que agem nas esferas física,
psíquica e espiritual. Para compreendermos a complexidade que envolve os festivais
psicodélicos que acontecem atualmente no Brasil, torna-se fundamental voltarmos às raízes
desses encontros no sentido descobrir o contexto em que surgiram. Os dados encontrados a
respeito desse estilo musical associam suas raízes a Goa (Índia) e limita-se a uma fonte
ideológica que relacionou essa música à espiritualidade que naquele momento era buscada no
misticismo oriental.
Se por um lado parece tentador atribuir o nascimento desse estilo musical e festivo a
um local específico, por outro, torna-se importante considerar essa emergência como uma
mistura de fenômenos que aconteceram simultaneamente em alguns países e que tiveram
como ponto de encontro as praias de Goa em determinado momento, mas que foram
disseminados por todo o planeta por intermédio dos músicos e demais viajantes.
De acordo com as referências a respeito do movimento, foi em meados de 1990 que o
estilo musical eletrônico conhecido como psychedelic trance
15
se misturou ao cenário de Goa,
14
Trance Global Psychedelic Culture (Shangri-la-la: TranceGlobal Psy-Culture Magazine; n. 5/ winter
2003/2004). Disponível em: <www.shangri-la-la.go.uk
>. Acesso em: 5 março 2005. (Anexo II)
15
Trance significa transe. Leach definiu otranse” (de acordo com o Peguin Dictionary of Psychology: 1971:
41) como um “estado de dissociação, caracterizado pela falta de movimento voluntário e freqüentemente por
automatismo no ato e pensamento, representados pelos estado hipnótico e mediúnico”. Assim entendido, transe
pode compreender dissociação mental completa ou apenas parcial e é com freqüência acompanhado de visões
excitantes ou “alucinações”, cujo conteúdo nem sempre é lembrado subseqüentemente de maneira tão clara. O
autor destaca que os estados de transe podem ser imediatamente induzidos na maioria das pessoas normais
por uma série de estímulos, aplicados separadamente ou combinados. Técnicas consagradas incluem a ingestão
de bebidas alcoólicas, sugestão hipnótica, música e dança, ingestão de drogas, como a mescalina ou ácido
lisérgico, e outros alcalóides psicotrópicos. O mesmo tipo de efeito pode ser produzido, mais lentamente, por
meio de privações, tais como o jejum e a contemplação ascética (meditação transcendental). E psychedelic
significa psicodélico, termo
que foi criado pelo psiquiatra Humphry Osmond em 1953, para designar “algo
com a capacidade de ampliar ou manifestar a mente”. (Cashman 1966: 17-18)
- 25 -
na Índia, que desde os anos 1960 é a Meca de hippies
16
, viajantes e freaks
17
. Com sua natureza
paradisíaca, misticismo hindu e tradição hippie-psicodélica, o local tornou-se um grande
atrativo para a cultura das raves.
O estilo eletrônico trance que foi tocado nas festas de Goa já vinha sendo produzido e
executado na Alemanha, onde a cena se expandia consideravelmente; assim como na
Inglaterra, onde a dominância dos breakbeats hardcore ganhava a cena das raves que
aconteciam durante o dia em locais afastados das cidades. Tanto os hippies quanto os punks
tornaram-se parte da cena rave eletrônica, assim como outros viajantes que passavam pela
Alemanha, Inglaterra, Austrália, Japão e levavam em suas bagagens não só a música, mas
também as idéias relacionadas a esse novo cenário, que proporcionou uma fusão de
tecnologias musicais do Ocidente com as riquezas milenares do Oriente relacionadas às suas
sonoridades e à espiritualidade.
Outro importante fato foi o estímulo dado por alguns jornais ingleses ao citarem Goa
como um balneário alternativo destinado aos turistas que buscavam locais como Ibiza para
passar o verão dançando ao som eletrônico. Não por acaso, tanto Ibiza quanto Goa se
tornaram lugares mitológicos para a história das raves (Sebastian Chan, 1998).
Dessa mistura característica da era planetária surgiu um novo tipo de encontro social
baseado no estilo musical psychedelic trance – transe psicodélico –, que desde então vem
ultrapassando todas as fronteiras continentais até se tornar, no século XXI, um fenômeno
global que acontece simultaneamente em alguns pontos do planeta.
No Brasil, foi por volta de 1998 que esse estilo musical e festivo chegou por
intermédio dos estrangeiros e também dos brasileiros que viviam fora do país. Trouxeram a
16
Hippies: este foi o nome atribuído aos jovens ocidentais que nos anos 1960 participaram de movimentos
culturais ou contraculturais que reivindicavam a extensão dos direitos de livre disposição do corpo e de
autonomia sobre si próprio. “Como parte destes movimentos destacavam-se os que discutiam questões de
política sexual, de gênero (o movimento feminista), e de opção sexual (o movimento homossexual). O uso
voluntário do corpo para fins de prazer sexual se coligava à reivindicação da autonomia crítica da consciência,
da recusa em se permitir ao Estado uma jurisdição química sobre a mente que busca controlar o que se ingere
ou se introduz voluntariamente no interior do corpo. O movimento psicodélico representou uma defesa política
da autonomia sobre a intervenção psicoquímica voluntária contra a política oficial do proibicionismo estatal”
(Carneiro, 2005 : 8)
17
Freak é um termo genérico utilizado pela contracultura ocidental de 1990 para designar uma mistura de
elementos das subculturas hippies, psicodélicas e punks, rejeitando as formas dominantes do capitalismo,
consumismo, conformismo e intelectualismo. Os freaks apresentam uma admiração pelo modo de vida rústico,
pelas viagens exóticas, psicodelía e vida comunitária. No entanto, aderem às novas tecnologias (música
eletrônica e Internet) e relativamente não participam de forma direta na transformação da sociedade (Anthony
D’Andrea, 2005).
- 26 -
nova música juntamente com as novas substâncias envolvidas na realização das primeiras
festas que aconteceram em Arraial D’Ajuda e Trancoso (Bahia) e depois em locais próximos
da grande metrópole São Paulo (ver Anexo I: Histórico). Desde então, tanto a música trance
quanto as festas e festivais psicodélicos começaram a ser produzidos internamente no país, e
pela divulgação e da conseqüente comercialização do estilo, os festivais, que antes atraíam
duzentas pessoas, hoje envolvem um público de até 7 mil.
Como foi mostrado na “jornada psicodélica”, a primeira vez que a pessoa participa de
um festival esse ato torna-se um marco, uma passagem de um estado a outro, uma iniciação,
que tem sentido específico para quem se permite vivenciar uma abertura, pois estimula certa
entrega para experiências que poderão ter tanto resultados positivos quanto negativos na vida
das pessoas.
Considerando a etimologia da palavra “iniciação”, pode-se dizer que é simplesmente o
começo de algo. Ao iniciar um caminho abre-se a possibilidade de conhecer novos espaços e
descobrir algo diferente; trata-se, enfim, da possibilidade de ampliar as fronteiras conhecidas.
Se o que se inicia envolve uma experiência energética tanto individual quanto coletiva, o
corpo passará por transformações, assim como o estado de consciência será alterado.
Neste caso estamos iniciando aqui nossa jornada por um universo novo, que até então
vem sendo mal compreendido e sofre constantes agressões e repressões por parte das
instituições que regem nossa sociedade. Essas instâncias apresentam uma imensa dificuldade
em aceitar as novas formas de interação social que se manifestam por meio dos festivais de
música eletrônica que acontecem no Brasil, associando-os apenas ao uso de drogas ilegais.
Diante dos marcos das grandes transformações que geram e regeneram o século XXI, a
globalização está associada a um momento planetário em que se tornou possível o
deslocamento à velocidade do som. A Internet já absorveu a televisão, o que nos permite
saber com razoável exatidão como são os lugares mais distantes de nossa realidade e o que
acontece neles. Nesse contexto fluido e virtual alcançado pelas mais recentes descobertas
tecnológicas inscreve-se a música eletrônica, que hoje é apropriada principalmente por
determinado setor juvenil “informatizado”, o qual utiliza signos e símbolos que o diferencia
na paisagem contemporânea.
A velocidade da informação, hoje acessível pelos meios de comunicação e suas
tecnologias digitais, dinamiza espaços sociais globais relacionados a novos processos
- 27 -
informacionais, criando novas maneiras de divertimento e relações interpessoais. É nesse
contexto que a pesquisa é realizada.
Ao olharmos para esse novo movimento social abrimos a possibilidade de conhecer
uma nova expressão ritual da sociedade contemporânea, que pouco tem a ver com as
instituições do “deve ser” ditadas pela mídia televisiva e pela moral cristã, mas que considera
com seriedade os valores e conhecimentos ancestrais a respeito do transe e do êxtase e os
adotam como excitantes para experiências que rompem barreiras culturais e raciais.
Diversos estudos na área antropológica e histórica abordaram a música em seus usos
tradicionais e apontam para o poder que essa expressão tem de mover os indivíduos e
estimular uma experiência coletiva comum. Esta pesquisa propõe-se a demonstrar o poder da
música trance e sua relação com a dança e com o uso de substâncias psicoativas,
considerando suas funções rituais, que envolvem principalmente a união coletiva, o estado de
transe e a experiência extática.
O poder da música e sua eficácia simbólica são aprendidos e incorporados por meio
dos assíduos participantes, que encontram na dança uma possibilidade de expressão criativa.
Sendo assim, os membros da celebração buscam de diferentes maneiras sintonizar-se com as
freqüências do transe psicodélico e com os instantes eternos de “êxtases coletivos”, nos quais
espaço e tempo desaparecem em um misterioso fluir de energias.
O que tenho constatado frente a comparações é que a mais importante, profunda e
transcendente característica do ritual é a expansão energética, ou seja, a transformação que
ocorre a partir daquela experiência específica. Os participantes dos festivais psicodélicos
chamam essa energia de vibe – vibração –, que corresponde à energia produzida por
intermédio da vibração da música, do ambiente, da dança, das pessoas e dos elementos que
compõem o cenário. A observação de campo mostrou que a vibe pode ser boa ou ruim,
dependendo da harmonia entre os fatores que compõem a experiência e vão além das
fronteiras da vida cotidiana, mobilizando o fluxo de energia e consciência dos indivíduos,
enquanto parte de um coletivo anteriormente disperso.
Em todas as entrevistas realizadas, quando eu questionava o entrevistado sobre sua
primeira vez em um festival psicodélico, ou seja, quando e como havia sido sua iniciação,
percebi respostas semelhantes. Era freqüente ouvir longas respirações misturadas com
- 28 -
gargalhadas de alegria, seguidas da seguinte colocação: “Nossa [suspiros], a primeira vez foi
muito forte, mudou a minha vida!
18
.
É possível, portanto, admitir que quando uma pessoa é iniciada em um festival de
transe psicodélico, estará conseqüentemente iniciando-se em um ritual energético, em geral
sagrado para quem o efetua. Podemos dizer que se o ritual for corretamente realizado, a
transformação energética ocorrerá. Um ritual está relacionado a determinados modos de ação,
que servem como técnicas para mudar o status moral da pessoa de profano para sagrado ou
vice-versa. A seqüência, como propõe Leach (1974: 207), engloba quatro fases distintas.
Primeiro acontece a separação da vida cotidiana, na qual a pessoa é transferida do mundo
secular profano para o sagrado e experiência, conseqüentemente, a “morte simbólica” para a
inserção em um período de reclusão ritual. Na segunda fase, denominada “estado marginal”, a
pessoa moral está numa condição comportamental distinta, vivenciando uma espécie de
animação em suspensão, em que o tempo social ordinário pára. Na terceira fase ocorre o rito
de dessacralização, ou agregação, na qual a pessoa é trazida de volta do mundo sagrado para o
profano e vivencia o renascimento simbólico no tempo secular que começa novamente. E,
por fim, a vida cotidiana regular volta ao normal, representando o intervalo entre os festivais
sucessivos.
Os ritos de passagem estão relacionados à demarcação dos estágios do ciclo vital
humano e devem estar ligados com alguma espécie de representação do tempo pendular
alternado. Os festivais acontecem em intervalos sucessivos e em geral se repetem nas mesmas
datas todos os anos. Como uma substituição ritual, a maioria dos festivais é marcada nos
feriados do calendário gregoriano que segue o tempo cristão, representando a necessidade dos
que não participam mais dos rituais católicos de continuarem ordenando o tempo social.
Os rituais revelam os valores no nível mais profundo. Os homens expressam no
ritual aquilo que os toca mais intensamente, e sendo a forma de expressão convencional, os
valores do grupo é que são revelados. O estudo do ritual de transe psicodélico é uma chave
para compreendermos as vias tecnológicas e globalizadas que compõem o cenário
contemporâneo.
18
Esse exemplo foi retirado da entrevista com Rogério Lamart (musicoterapeuta e ativista planetário).
- 29 -
No livro O processo ritual: estrutura e antiestrutura, Turner (1974: 25) considera o
comportamento ritual como sendo de fundamental importância para a manutenção e a
transformação radical das estruturas psíquicas e sociais. O autor especifica que o
comportamento ritual estereotipado envolve gestos, palavras, objetos que limitam o espaço da
performance, implicando a necessidade de um ambiente especial para a realização do mesmo.
Em sua pesquisa realizada entre o povo ndembo, ele delimitou como sendo seu principal
objetivo explorar a semântica dos símbolos rituais e construir, a partir da observação, um
modelo de estrutura desse simbolismo, visando atingir “a visão interior ndembo” – o modo
como os ndembos sentem seu próprio ritual e o que pensam a respeito dele.
Para a maioria dos participantes entrevistados durante a pesquisa, a iniciação ritual e a
conseqüente transformação energética impulsionada pela vibe coletiva apresentaram-se como
um mistério que os tocaram profundamente. O mistério em questão não é um território
inexplorado que desaparecerá depois de conhecido. Trata-se de algo menos terreno, menos
concreto, que existe em dimensões às quais nunca teremos acesso a partir do plano em que
nos encontramos na vida cotidiana.
MacAteer
(2002) investigou o fenômeno das festas que aconteceram em Goa (Índia) e
eram organizadas em torno do DJ Goa Gil, freqüentemente aclamado como o “pai do Goa
trance”. Para ele, a criação dessas festas pode ser compreendida como uma redefinição dos
antigos rituais tribais para o século XXI. A idéia de festa como ritual está associada ao ato de
dançar durante toda a noite aos sons rítmicos que guiam os estados de transe, comparável aos
rituais tribais do passado. No entanto, ao aproximar-se da narrativa dos criadores e
participantes, ele percebeu que o conceito de festa como ritual está ligado a uma comparação
com as proporções religiosas desses eventos como uma variação de formas de espiritualidade
ou êxtase religioso.
O autor concluiu que os participantes se tornam convencidos de que existe algo além
do que é tipicamente entendido por uma “festa”. Nesses encontros, temos a experiência
mística associada tanto ao transe quanto ao êxtase coletivo. Sendo assim, o termo “festa” ou
mesmo “festival” se torna inadequado para descrever a percepção dos participantes nesse tipo
de encontro coletivo. Assim, os antigos integrantes do movimento utilizam o termo “ritual”
para vislumbrar as extraordinárias qualidades que os participantes percebem em suas
celebrações.
- 30 -
D’Andrea (2005) escreveu sobre a “economia espiritual das raves em Goa” e chegou
à conclusão que existe uma afinidade entre a cultura rave psicodélica e a espiritualidade da
contracultura. Para o autor, as psychedelic trance parties (festas de transe psicodélico) de
Goa são raves orientalistas que misturam a tecnologia psicodélica com a iconografia
hinduísta, como estímulos a uma subcultura que deve ser considerada em seu momento
histórico e político, visto que está envolvida com a globalização e o uso das novas tecnologias
– de som digital – e também tecnologias químicas-psicofarmacológicas – como o MDMA
(ecstasy) e o LSD (ácido lisérgico), substâncias mais utilizadas nesses encontros, como
estímulos para as experiências transpessoais que envolvem hoje um movimento global.
O autor identificou nesse grupo uma “espiritualidade nômade” envolvendo o centro do
movimento de música e dança psicodélica que se espalhou pelo mundo e identificou a
emergência de novas formas de vida, devido ao fato de estas pessoas estarem envolvidas com
experiências em diversas culturas e estarem vivenciando intensamente a complexidade da
globalização em suas formas de criação artística e sustento diário (trabalho). No entanto, é
questionável se a espiritualidade está a serviço da busca de experimentações hedonistas, de
um grupo cosmopolita que se mantém como uma comunidade móvel que dissolve, por meio
da alta tecnologia, as barreiras de espaço e tempo possibilitadas pelo processo de
globalização.
Larkin (2003) também desenvolveu uma exploração entre a relação do uso de
substâncias “enteógenas”
19
com a emergência global dos rituais “techno-xamânicos” – nome
atribuído pelo autor às festas e festivais de trance psicodélico–, pois defende que esse
fenômeno representa uma redefinição dos antigos rituais (que empregavam as técnicas de
produção do êxtase) por meio das novas tecnologias. Sua tese mostra que foi por intermédio
da revolução psicodélica e da reinserção das substâncias “expansoras da consciência” no
contexto do paradigma ocidental que foi impulsionado o desenvolvimento da cultura
psicodélica global, a qual utiliza os recursos tecnológicos para redefinir as práticas extáticas
na sociedade contemporânea.
19
Enteógenos: o termo foi proposto em 1978 pelo investigador Gordon Wasson e outros para referir-se às
plantas que têm sido usadas como instrumentos sagrados de êxtase (Ott, 1995).
- 31 -
O autor afirma que tais manifestações representam o “retorno do arcaico” sugerido por
Terence McKenna; um meio moderno para explorações a respeito das curas xamânicas e dos
poderes terapêuticos de substâncias amplamente utilizadas pelas culturas arcaicas,
possibilitando, conseqüentemente, novas formas de experienciar os antigos conhecimentos
envolvidos nos rituais que foram por muito tempo banidos de nossos “olhos” e “sentido,” por
constituírem expressões do “paganismo” radicalmente proibido pelo catolicismo ocidental.
Fontanari (2004b), em sua pesquisa “Sensibilidade eletrônica: música e ritualidade
jovem contemporânea”, considerou o fenômeno rave como uma expressão da religiosidade
contemporânea que adota práticas místico-alternativas relacionadas à música eletrônica, as
quais adquirem sentido em um contexto cosmológico e social que remete à condição presente
da cultura nos mundos ocidentais urbanos que viabilizam elementos “transculturais”. O autor
também se refere ao consumo de substâncias psicoativas como prática cultural jovem nas
festas de música eletrônica. Partindo do pressuposto de que este consumo tem um sentido
definido nessas práticas e de que este sentido é dado com base em três dimensões
interconectadas – rituais, distinção ideológica e agenciamento jovem –, o pesquisador
constatou que o sentido atribuído pelo grupo ao uso ritual dos psicoativos com a finalidade de
facilitar o “descontrole” do corpo “egocêntrico” choca-se diretamente com a legitimidade
reivindicada pelo Estado sobre o controle do uso e comércio de substâncias consideradas
perigosas.
Em “Usos do corpo nos festivais de música eletrônica”, Coutinho (2006) desenvolveu
uma pesquisa antropológica que encontrou no corpo o principal veículo de construção do
ethos rave, ao constatar que existe uma preocupação com a apresentação do “eu” para os
“outros”, o que poderia significar algum tipo de controle num ambiente aparentemente sem
regras. Formulou essa explicação a partir da reflexão sobre a razão do uso de dois adereços
usados pela maioria dos participantes – os óculos escuros e o chiclete –, que estão
relacionados à aparência dos estados alterados do metabolismo (dilatação da pupila e
bruximo), causados pelo uso de determinadas substâncias. O autor constatou que o estado
ideal buscado pelo grupo seria o de “êxtase”, e não o abuso de drogas, que pode ser evitado a
partir do controle do grupo sobre os excessos cometidos pelos indivíduos.
- 32 -
Nos festivais são definidas regras formais e informais de comportamento relacionado
ao “uso de substâncias psicodélicas”
20
, que nesse contexto abarca uma grande variedade,
desde as mais naturais até as mais novas substâncias sintetizadas em laboratório. Nesses
ambientes, a maioria dos participantes faz uso dessas substâncias sintéticas, as quais são
principalmente empregadas para alterar o estado de consciência (físico, psíquico e espiritual).
Os estados alterados de consciência são um fenômeno universal, e o uso de uma grande
variedade de substâncias para alcançá-los é reconhecido através da história.
Abertura do festival Trancendence 2005 pelos índios
Fulni-ô - Foto: Carol Guerra
“No início da humanidade era assim, as tribos se reuniam em rituais, para
dançar, para curar, para se comunicar com o mundo espiritual, para celebrar a
natureza; e utilizavam também a música e as substâncias psicoativas como portais
para tais experiências
.” Charles Oliveira, VJ – artista multimídia. (Entrevista
realizada no dia 3/6/2004)
20
Optei aqui pelo termo “substâncias psicodélicas” pelo fato de que essa é a terminologia adotada pelos adeptos
do movimento, mesmo compreendendo que muitas das substâncias utilizadas nesse contexto não são de caráter
psicodélico, que diz respeito à capacidade de ampliar ou manifestar a mente. E ressalto que o “uso de
substâncias psicodélicas ” é uma escolha individual de cada participante. Das 35 entrevistas que realizei, oito
pessoas afirmaram não utilizar nenhum tipo de substância nesse contexto (nem mesmo álcool ou tabaco).
- 33 -
Considerando o fato de que a maioria dos antropólogos
21
se devotou a registros
detalhados e minuciosos das crenças e ritos de inúmeros povos tribais espalhados sobre a face
da Terra, muitas riquezas de informações sobre as variedades de experiências espirituais
podem ser hoje utilizadas como material para comparações. A espiritualidade
22
e o êxtase se
tornaram o centro da análise comparativa realizada por Lewis (1971: 20) que descreveu o
público psicodélico “engajado na busca de novas formas de iluminação religiosa e excitação”
como um grupo social que confirma a primazia da experiência mística e proclama a posição
amplamente aceita de que todo encontro transcendental é único e só pode ser apreendido por
meio da experiência pessoal e direta.
A nível individual isso é evidentemente verdadeiro. Mas não altera o fato de que a
experiência mística, como qualquer outra, está baseada e se relaciona com o ambiente social
em que é experimentada, representando assim a cultura e a sociedade da qual faz parte. Desse
modo, é interessante considerar a diversidade das diferentes formas como as culturas
conceituam e tratam experiências como o transe e o êxtase, as quais envolvem a alteração do
estado de consciência . Esta pesquisa buscou compreender como tais experiências estão sendo
usadas na sociedade contemporânea, regida pela tecnologia, pela velocidade, pela
globalização da informação e pela permeabilidade das culturas.
21
Ao propor uma sociologia do êxtase, Lewis destaca que: “A tarefa do antropólogo é descobrir em que
acreditam as pessoas, e relacionar operacionalmente suas crenças e outros aspectos de sua cultura e sociedade.
Ele não tem nem a capacidade nem a autoridade de se pronunciar sobre a ‘verdade’ absoluta das manifestações
extáticas em diferentes culturas” (Lewis, 1971: 23). Portanto, os julgamentos, referentes ao significado das
experiências relacionadas aos festivais de transe psicodélico, só serão relevantes à nossa análise antropológica na
medida em que são feitos pelos participantes em cujo meio essas experiências ocorrem.
22
Para evitar equívoco, é importante fazer uma distinção entre espiritualidade e religião. A espiritualidade
baseia-se em experiências diretas com aspectos e dimensões não-comuns da realidade e não requer um lugar
especial ou uma pessoa oficialmente apontada pra mediar o contato com o divino. Os místicos não precisam de
igrejas ou templos. O contexto em que experienciam as dimensões sagradas da realidade, incluindo sua própria
divindade, são seus corpos e a natureza. E, em vez de ordenar padres, eles precisam do apoio de um grupo de
companheiros de busca ou da orientação de um mestre que esteja mais avançado na jornada interna (Grof, 2000:
204).
- 34 -
AS PORTAS DA PERCEPÇÃO
Entregue-se ao som, o portal está aberto. A mente é o que
trabalha, e o corpo balança na leveza da música. Feche os olhos e dance como
se ninguém estivesse olhando. Arraste os pés de um lado para o outro na batida
contrária à da música e sinta a incomparável sensação de estar deitado na rede
de prazer da vida.”
23
Há diversas formas de abordar o universo simbólico dos festivais psicodélicos.
Podemos começar pelos nomes: Universo Paralello, Transformation, Transcendence,
Cachoeira Alta, Earth Dance, Waves of Peace. Estes nomes revelam respectivamente o
imaginário do grupo, que busca experiências de: um Universo paralelo, transformação,
transcendência, natureza, o planeta Terra dançando, ondas de paz .
Os festivais têm em comum uma mensagem de transição de um modo de viver para
outro; de um modelo mecânico e artificial para outro mais integrado, desperto para as
sincronicidades da vida. Esses ambientes festivos, ao estimularem experiências estéticas e
extáticas que despertam sensações de unidade e de ligação intrínseca entre tudo o que existe,
colocam em prova a causalidade que fundamenta a descrição do mundo ocidental, a qual
tende a isolar todos os processos e fragmentar a relação entre os acontecimentos.
Os cenários estimulantes dispunham dos seguintes elementos: música eletrônica
(psychedelic trance), dança (expressão corporal), artes circenses (performances), áreas de
acampamento, fogueiras, chai shops (lanchonete com chás e guloseimas), atividades com
vivências (ioga, tai chi, meditação grupal, ambulatório de reiki, massagem, oficinas de artes
plásticas e de música), espaço para as crianças brincarem (arte e descanso), conferências para
a troca de idéias, feiras de troca, educação ambiental
24
, Calendário da Paz
25
, Feira Mix
(pontos-de-vendas de roupas psicodélicas, indianas, cristais, colares etc.); praça de
alimentação variada (de churrasco a comida natural, lembrando que é um espaço que agrega
diferentes grupos) e muita arte psicodélica para a contemplação de todos.
Segundo relatos, as primeiras festas desse estilo que aconteceram no Brasil foram
divulgadas no “boca a boca”, e apenas no dia os participantes ficavam sabendo o local onde
aconteceria o encontro. Atualmente, o principal veículo de informação utilizado pelo
23
Texto retirado do Flyer, de divulgação do Brasilian Trance Festival.
24
Photossíntese (Gestão Ambiental: [email protected])
25
Disponível em: <www.calendariodapaz.com.br>.
- 35 -
movimento global do psychedelic trance é a Internet, mas os festivais também são divulgados
por meio dos flyers, que podem ser encontrados em algumas lojas específicas, como por
exemplo na Glow Trance Wear
26
. Os flyers costumam ser entregues durante as festas e
festivais, colocando os participantes a par do que estará acontecendo na cena durante o ano.
Vale dizer que os grandes festivais são divulgados com até um ano de antecedência, tempo
também de preparação pelos organizadores e produtores.
Os meios de divulgação refletem o universo simbólico do grupo em questão, envolve a
arte psicodélica, exalta a qualidade do som, da decoração e da natureza. Pelo fato de
acontecerem em locais de difícil acesso, os mapas são encontrados nos flyers ou nos sites dos
eventos, os quais contêm também os pontos-de-vendas e o preço dos ingressos disponíveis
em todo Brasil; assim como o line-up, que é uma lista dos principais DJs que irão tocar
durante o evento.
FLYERS DE DIVULGAÇÃO:
26
Glow Trance Wear: a primeira loja de roupas e acessórios trance do Brasil, situada na Galeria Ouro Fino –
Rua Augusta (SP).
- 36 -
- 37 -
- 38 -
Atualmente, como os festivais brasileiros se tornaram um atrativo mundial, o valor dos
ingressos está em alta. Se antes os preços variavam entre 30, 50 e 100 reais, em 2006 custam
de 150 reais a 250 reais quando é comprado na entrada. Os organizadores alegam que o alto
custo para estruturar esse tipo de evento faz com que o valor dos ingressos também seja
elevado.
A organização dos festivais exige uma série de operações: começa pela escolha do
local, que deve ser naturalmente belo; depois inicia-se o processo de criar nesse local isolado
da cidade uma estrutura que possa suportar muitas pessoas nesse ambiente por alguns dias, o
que inclui desde a limpeza do lugar até a construção de banheiros (fossas, chuveiros
coletivos), área de alimentação (cozinha, pia, etc.), instalação elétrica, preparação da área de
acampamento, montagem de palcos e outras áreas alternativas. Além disso, para que um
festival psicodélico aconteça é necessário que muita arte esteja envolvida, razão pela qual
existe todo um processo que implica não apenas a escolha desses artistas (DJ’s, músicos,
VJ’s, cenógrafos, malabaristas, profissionais da área de saúde, etc.), mas também o transporte
dos mesmos até o local do evento (muitos artistas chegam de fora do país, o que envolve
passagens aéreas, hospedagem) e outras tantas questões que são esquematizadas pelos
- 39 -
organizadores. E ainda há o custo dos equipamentos de som, os quais devem ser muito
potentes.
Os festivais que acontecem no país contam com múltiplas equipes voltadas para
diferentes funções dentro da estruturação dos mesmos. Por exemplo, os organizadores da
Trancendence e do Universo Paralello (ambos na terceira edição) passaram um ano
preparando os espetáculos que duraram quase uma semana e cada um envolveu mais de 5 mil
pessoas. Essas características explicitam a rápida expansão desse segmento musical no país,
assim como o envolvimento e a profissionalização de um grande número de pessoas que têm
nessa nova arte e nesses eventos festivos um meio de sustento econômico.
Pouco tempo atrás (1998) as festas eram montadas pelos próprios participantes, como
mostra o relato de um personagem da cena:
“Antigamente não existia uma estrutura, igual hoje, que você chega em uma
festa e já está tudo montado. Antes nós nos juntávamos para fazer uma festa
acontecer. Cada um sempre tava fazendo alguma coisa ou a decoração, limpando o
lugar, montando o som. Foi assim no começo, a turma se juntava e construía a festa
para depois dançar, era meio um teste de resistência. E era legal porque a decoração ia
mudando, a cada noite uma decoração diferente era colocada e a festa só ficava pronta
no último dia. Era mais interessante porque não tinha o lado comercial dentro da
festa.” (Mickey, entrevista realizada em Alto Paraíso, ago. 2005)
Atualmente, as festas de um dia têm um caráter mais comercial, pelo fato de atingir
um público que em sua maioria está em busca de lazer no final de semana. Elas geralmente
começam durante a noite e terminam no final do dia seguinte, e os lugares onde ocorrem são
de fácil acesso, o que permite que as pessoas cheguem de carro e até utilizem seus celulares
durante o evento, o que é quase impossível em um festival. Em de São Paulo, por exemplo,
acontecem duas grandes festas chamadas: Exxxperience e Tribe., ambas realizadas próximas
à cidade, e a cada ano aumenta o número de participantes envolvidos. Em 2005 a festa Tribe
custou em torno de 30 reais e recebeu quase 20 mil pessoas durante um final de semana
chuvoso na região. Megaeventos como este mostram que o trance já se tornou mais um
atrativo da cultura pop mundial, atraindo cada vez mais adeptos pelo fato de estar diretamente
associado a experiências muito prazerosas.
Em sete anos a cena psychedelic trance cresceu rapidamente no Brasil e também
ganhou novos adeptos em todo o mundo. Hoje os festivais agregam um número muito grande
de pessoas envolvidas, tanto na produção como na participação. Essa característica faz com
- 40 -
que exista a necessidade de grandes estruturas para atender o público que aumenta a cada
evento. Conseqüentemente, esses movimentos se tornaram um foco comercial em muitos
aspectos, característica que para muitos dos seus integrantes representa a perda da essência do
mesmo. Exemplos disso podem ser vistos por meio do surgimento das gravadoras específicas
de trance, das lojas voltadas para artigos psicodélicos (roupas, malabares e demais acessórios)
e outras inúmeras formas de ganhar a vida por intermédio de um movimento artístico em
expansão.
O que esta acontecendo no Brasil é que esse movimento está chamando muito a
atenção do pessoal que faz eventos. Os promoters estão encontrando nas festas uma
maneira tranqüila de ganhar dinheiro. Está acontecendo uma explosão de festas desse
tipo no país. Mas na minha opinião o trance é um estilo musical que traz em si um
conceito, uma cultura, e esses organizadores não estão voltados para a cultura
psicodélica que envolve o trance, o que é bem complicado. O que estamos tentando
fazer aqui, por meio desse festival, é mostrar como é essa cultura. Estamos arcando
com uma série de custos que uma festa comercial não teria e que estão destinados à
arte, à cultura e à espiritualidade.” (Organizador do festival Universo Paralello,
entrevista realizada na Bahia, dez. 2004)
Os festivais se tornaram mais um atrativo disponível no mercado mundial, que associa
experiências estéticas à espiritualidade. Característica bem peculiar que está ligada às origens
do grupo relacionadas ao movimento hippie dos anos 1970, quando muitos ocidentais
partiram para o Oriente e ficaram espantados ao encontrar culturas espiritualizadas que
serviram como cenário para a expansão da cultura psicodélica.
Segundo Metha (1999: 15-93), quando os hippies descobriram as praias de areia alva
de Goa (Índia), ficaram deslumbrados com a natureza em sua aparência mais primitiva e
romântica: “E que chegada! Milhares e milhares deles, batendo címbalos, tocando sinos,
soprando flautas, usando cores vivas e roupas esquisitas, cantando e dançando e falando
línguas. Uma caravana de celebrantes libertinos, que na confusão mental do barato, jogava
pela janela todas as convenções de casta, raça e sexo”. Para a autora, a maneira como os
hippies se jogaram à deriva no redemoinho de visões diferentes sobre a validade da simples
atividade mental parece um preço muito alto a pagar por tarifas aéreas baratas. A velocidade
das viagens a jato parece ter eliminado as distinções entre geografia e filosofia. Ou entre
alucinação e salvação.
Eu acredito que nossos tios e o grupo envolvido na criação do festival têm
isso como ideologia mesmo. Investiram muito para fazer uma festa bonita, para fazer
isso aqui acontecer de forma que as pessoas fiquem felizes. Eles são dessa geração da
contracultura dos anos 70, foram hippies. E acho que isso aqui é uma continuação
disso através da transformação que foi acontecendo. Veio a tecnologia, mas a
- 41 -
ideologia continuou. Eu acho que é o remanescente dessa cultura. E eles fazem isso
acreditando que assim vão estar contribuindo para um mundo melhor. E nesse
festival eles se centraram em trazer informações que possam despertar os
participantes para ouros aspectos. Trouxeram pessoal de fora para dar palestras sobre
o meio ambiente, pessoas para promover debates sobre o uso de drogas, artistas para
fazer performances e profissionais para oferecer atividades como ioga, meditação
etc.”
27
Enquanto grande parte da sociedade contemporânea julga que o movimento hippie
psicodélico morreu ainda nos anos 1970, outra acredita que a cultura psicodélica apenas
ganhou novas formas de expressão. É o caso de Regina (44 anos), moradora de Alto Paraíso
(Goiás), região onde aconteceu em julho de 2005 a quarta edição da Trancendence:
Eu acredito que não só a Trancendence, mas as raves que acontecem no Brasil
estão refletindo um período de mudanças muito grande. Porque nos anos 60 e 70 foi o
Woodstok, que para a nossa geração representou um rompimento e uma quebra de
paradigmas. Agora as raves são na verdade o Woodstok eletrônico com uma nova
cara, mas espelhando uma situação semelhante de mudanças planetárias. Elas chegam
como uma coisa agressiva, mas expressam um movimento natural do que é a vida.
Vêm mesmo para fazer um rompimento grande, uma catarse coletiva. A nossa
geração rompeu com a cultura, a educação e os valores da época, e agora os nossos
filhos estão rompendo de novo e fazendo suas próprias descobertas. Assim, nós
rompemos e ficamos sem referência, e agora vem a nova geração fazendo um
rompimento, mas também eles estão meio perdidos. Na verdade, eu sinto que a nova
geração é mais determinada e mais preparada, e o que virá por aí, só o tempo vai dizer
para a gente. Que movimento foi esse? Daqui a vinte anos nós vamos estar
comentando: ‘Você lembra do Woodstok eletrônico?’. Aí daqui a dez, vinte anos já
vai haver outras coisas. Eu acho que isso faz parte da própria evolução do planeta,
enquanto parte da natureza e ao mesmo tempo como grande predador da natureza.”
28
Como “filhos” do mundo contemporâneo, os “neo-hippies” ou “viajantes da tribo do
arco-íris” – como são chamados os integrantes do movimento psicodélico no século XXI –
incorporam em seus rituais toda uma gama de conhecimentos que vão desde “técnicas
arcaicas do êxtase”
29
às mais recentes descobertas tecnológicas. Nesses contextos, a
integração do ancestral com as tecnologias modernas voltadas para as experiências estéticas
culminantes estão associadas a um discurso em prol da paz, sintetizado na sigla P.L.U.R., que
27
(Rayssa, arquiteta e fotógrafa, entrevista realizada no Festival Universo Paralello, 2004)
28
Entrevista realizada em Alto Paraíso, em julho de 2005. Regina é moradora da cidade há dez anos, onde
administra uma pousada que recebe muitos turistas na época do Festival Trancendence.
29
Segundo Grof, as “técnicas arcaicas do êxtase” descritas por Eliade (2002) como sendo as características mais
importantes do xamanismo, sistema espiritual de cura mais antigo da humanidade, envolvem vários
procedimentos de alteração da consciência capazes de induzir a estados holotrópicos (experiências totalizadoras)
com propósitos rituais e espirituais. Esses métodos combinam, de várias maneiras, tambores e outros tipos de
percussão, música, cantos, danças rítmicas, controle da respiração e mesmo substâncias que alteram a
consciência. (Grof 2000: 22)
- 42 -
atende por Paz, Amor, União e Respeito. Veja a seguir o material que foi entregue em muitos
festivais nos quais realizei pesquisa de campo:
Musica é vida * trance é cultura
Plurall.org
30
: Paz + Amor + União + Respeito para todos
Num festival de Psy Trance estamos todos conectados
E você sabe o que nos conecta? Chama-se P.L.U.R., e não é um sabão em pó. Trata-se de uma sigla
que atende por Peace, Love, Unity e Respect – Paz, Amor, União e Respeito. São palavras poderosas e podem
ser difíceis de conceituar, mas aqui vão algumas sugestões:
PAZ: a serenidade que você encontra dentro de si mesmo e com outras pessoas ao redor. Não é de
simples alcance, é preciso se esforçar, mas quando você está em paz consigo mesmo, com os outros e com o
Planeta, apenas coisas boas serão geradas por você.
AMOR: o profundo carinho que você sente pelos seus amigos, por estranhos, por aqueles que
necessitam de carinho e por você mesmo. É simbiótico, pois toda boa vibe que você pode depositar em alguma
coisa voltará espontaneamente para você.
UNIDADE: significa que todos nós compartilhamos coisas em comum, a despeito de idade, sexo,
raça, religião. Somos todos seres humanos que precisam de outras pessoas, que buscam alegria e felicidade.
Podemos ter diferenças, mas nossos sentimentos pertencem à mesma fonte. Logo, somos uma Unidade.
RESPEITO: ter respeito pelos outros, suas idéias, suas culturas, suas vidas. Significa respeitar as
necessidades básicas do outro, desde seu corpo físico (alimentação e descanso) até seu corpo espiritual e sua
plena liberdade para fazer o que quiser.
Passar adiante uma sabedoria que melhora a qualidade da existência do outro também é uma profunda
manifestação de respeito e amor. Isto é P.L.U.R em sua forma mais primária; a maneira como um indivíduo
escolhe praticar em seu cotidiano varia de um para outro. A forma com que você fará isso é somente sua. Brad
No contexto dos festivais todos são bem-vindos: negros, brancos, amarelos; ricos e
pobres; heterossexuais, homossexuais ou bissexuais; estrangeiros, deficientes. O que importa
é que, unidos pelo transe que a música proporciona, todas as diferenças são celebradas a ponto
de se dissolverem, originando o místico sentimento de unidade.
“Paz, Amor, União e Respeito. Em algum momento da história da humanidade
esta experiência deve ter acontecido. Senão, não estaríamos buscando tão preciosa
utopia. Senão, não teríamos qualquer referência do que isto poderia ser ou significar.
Universo Paralello convida a todos para viver esta maravilhosa experiência, este
verdadeiro tesouro, que por algum motivo sabemos existir, mas que apenas às vezes,
de relance, podemos vivenciar. Neste generoso espaço que agora se abre e nos recebe,
de forma tão acolhedora, saibamos retribuir à altura e buscar dentro de nós mesmos a
matéria-prima que transforma estas palavras mágicas em realidade, e que faz de nós
humanos, criaturas tão especiais. Está aberto o ritual. E o convite. Culturas do mundo
inteiro estão aqui presentes, para que cada uma possa, de forma delicada, e criativa,
nos conduzir a esta dimensão onde todos os sonhos são possíveis, onde a
30
Disponível em: <www.plurall.org>
- 43 -
responsabilidade é total, onde aquela semente, guardada dentro de cada um, possa
florescer e revelar o real significado de ser humanos.” (Encarte de abertura do
editorial do Festival Universo Paralello 2006, entregue aos participantes na entrada)
A disseminação de uma ideologia pacifista associada à prática festiva, considerada
“mística
31
-alternativa” (Fontanari b 2004), reflete o imaginário de um grupo que acredita na
qualidade de esses encontros possibilitar a seus participantes um contato com o real
significado de serem humanos, mesmo que esses possam encontrar também um caminho
para se perder completamente. Como em qualquer manifestação social, os festivais também
envolvem tanto aspectos sombrios quanto iluminados. Mas nesses encontros ambos os
aspectos podem ser integrados através de uma canalização dos elementos negativos por
meio da arte, em um contexto em que cada um é respeitado como “obra de arte”, pois todos
são tidos como capazes de existir enquanto tal.
O termo “alternativo”, utilizado para designar o movimento musical em questão como
dissociado dos interesses ou tendências dominantes, talvez seja inadequado, visto que nos dias
atuais esses eventos fazem parte da cultura de massa, mesmo que pareça em alguns momentos
estar fugindo dela. Afinal, a cena trance envolve um mercado segmentado de consumo que
alimenta uma parte da economia que está voltada para uma população específica, globalizada.
Para os mais antigos integrantes do movimento, a justificativa de que existe hoje uma
divisão dentro da cena brasileira é comum. Alegam que de um lado estão as festas mais
comerciais e de outro as mais “alternativas”. No entanto, mesmo dentro desse segundo
segmento existe o comércio e o consumo capitalistas, que na sociedade globalizada captura
todas as manifestações, tendendo a massificá-las. Portanto, como poderia ser diferente com os
festivais? Para muitos envolvidos a diferença diz respeito à maneira como esse movimento
utiliza-se dos meios capitalistas para criar arte e sobreviver por intermédio dela.
Além de um simples produto de consumo, os festivais psicodélicos criam em seu
interior uma “economia autopoética” (Thompson, 2001: 175-88), pois por meio dessas novas
manifestações da cultura eletrônica está sendo criado um estilo de vida que faz girar sua
31
Místico: Aquele que mediante a contemplação espiritual, procura atingir o estado estático de união direta
com a divindade. Sendo o misticismo, a crença religiosa dos místicos, ou seja, a disposição para crer no
sobrenatural. (Aurélio : Novo Dicionário da Língua Portuguesa)
- 44 -
própria economia. Este modo de vida, como manifestação de arte, move as indústrias musical
e da moda, as quais, por sua vez, movem a indústria de vídeo musical e toda uma série de
revistas e jornais a ela associados. Uma nova classe média informatizada começa a se
desenvolver e a se servir da energia criativa e das inovações globais para criar outras formas
de socialização.
Como destaca Thompson (2001: 176), milhares de pessoas são afetadas pela indústria
musical, e os governantes não conseguem vê-los como outra coisa senão ruído. Quando
aceitarmos o fato de que uma economia também se baseia na cultura, iremos compreender
que a música – da mesma forma que a economia – é um ecossistema intelectual global. “Na
realidade, a música poderá muito bem vir a ser a comunidade do futuro”, pois ela opera a
transição de uma economia industrial para uma autopoética; ou melhor, antecipa o
desenvolvimento social que mais tarde se tornará consolidado nas economias.
O autor diferencia quatro redes musicais. A primeira é a do ritual do sacrifício para
todo tipo de ordem, mito e relações religiosas, sociais ou econômicas das sociedades
simbólicas. É centralizada no nível da ideologia e descentralizada no econômico. A segunda é
a do espetáculo assistido por meio da cobrança de ingressos, caracterizando a economia do
capitalismo competitivo. A terceira rede é a da repetição, que surgiu no final do século XIX
com o advento da gravação. Nela, o consumo da música é individualizado, voltado para a
armazenagem individualizada da música em larga escala, perdendo assim a forma de
sociabilidade. Por fim, a quarta rede – autopoética – volta-se para o prazer pessoal, como
uma autotranscendência, um ato egoísta e solitário. Acredito que tais características são
limitantes pela própria análise que Thompson realizou a seguir, as quais não condizem com o
que ele chamou de “algo fundamentalmente isolado de toda comunicação”.
A quarta rede envolve um tipo de produção musical por meio de microcomputadores,
os quais substituem um estúdio inteiro de gravação e televisão. Ou seja, os jovens de hoje
podem produzir música que pode ser propagada pela Internet e por danceterias que não
precisam ter uma “localização comum” no espaço e no tempo. Assim sendo, podem reunir
pessoas do mundo inteiro para “dançarem juntas” ao som da música eletrônica, gerando uma
comunidade global referente à cultura planetária.
Uma economia autopoética é policêntrica e cria seus próprios valores de transações,
visto que estas não têm precedentes, e assume a qualidade de uma profecia auto-suficiente.
- 45 -
Desta forma, a música voltada para a danceteria planetária reúne habitantes da aldeia global
em festivais eletrônicos que envolvem a participação direta das pessoas, por meio de
experiências que utilizam simultaneamente as propriedades do individual e do coletivo.
No início do século XXI, as contradições e paradoxos que constituem esse novo
movimento musical expressam a multiplicidade de fatores que se impregnam na sociedade
exposta à globalização e às novas tecnologias digitais, gerando, conseqüentemente, em seu
interior, a emergência de novas formas de sociabilidade que transformam a coesão do laço
social ainda baseado na experiência coletiva.
- 46 -
PARAÍSO PSICODÉLICO
A questão de todas as questões para a humanidade, o problema
que se acha por trás de todos os outros e é mais interessante do que
qualquer um deles é o da determinação do lugar do homem na natureza e
sua relação com o cosmo. T. H. Huxley, 1863
Cachoeira Alta Dance Festival – Serra do Cipó (MG) – Foto: Murilo Ganesh
A ida a um festival de transe psicodélico envolve uma longa jornada que para muitas
pessoas se torna heróica, digna de ser celebrada com alegria. O processo inicia-se com uma
preparação anterior, na qual a pessoa precisará deixar o conforto de casa, com todos os
recursos disponíveis e que parecem gerar segurança, para passar alguns dias em contato com o
meio ambiente que lhe deveria ser natural, mas que pode parecer extremamente ameaçador.
No Universo Paralello 2004 participei de uma palestra sobre mitos, na qual a jovem
Thalita Gazola comparou a ida a um festival à “jornada do herói”
32
, justificando que os
participantes passam por um processo de transição que envolve a saída da vida cotidiana, a
inserção em um espaço desconhecido no meio da natureza, experiências emocionais
profundas (tanto individual quanto coletivamente), o retorno à vida habitual e a integração
dessas experiências à mesma. Tais considerações envolvem etapas semelhantes aos antigos
32
“Os heróis são pessoas que se afastaram da sociedade que poderia protegê-lo e ingressaram na floresta densa,
no mundo do fogo e da experiência original. A experiência original é aquela que ainda não foi interpretada para
você; assim, você tem que construir sua vida por você mesmo. Você pode encará-lo, ou não, e não precisa
afastar-se demais do caminho conhecido para se ver em situações muito difíceis. A coragem de enfrentar
julgamentos e trazer todo um novo conjunto de possibilidades para o campo da experiência interpretável, para
serem experimentadas por outras pessoas – essa é a façanha do herói” (Campbell, 1990: 44).
- 47 -
“rituais de passagem”
33
, que demarcavam fases da vida. No entanto, essas celebrações
contemporâneas envolvem pessoas de várias culturas, assim como de todas as idades (de
crianças a indivíduos com mais de sessenta anos), e o significado atribuído à experiência
varia de acordo com a consciência de cada um.
O caminho pode apresentar dificuldades até mesmo para os participantes que já têm
anos de estrada. Já ouvi relatos de pessoas que perderam a carteira com todo o dinheiro, foram
roubadas na estrada, bateram o carro, foram presas, mas que mesmo assim conseguiram
chegar até o festival.
“Eu acho que o trance é como uma universidade numa festa. Acontece
tanta coisa, que parece que você aprende para cinco anos da tua vida. É muita
informação, é um curso intensivo de três dias de tudo o que é psicodélico, seja no
plano físico, mental ou astral. Tudo é diferente; são tribos distintas juntas em um
mesmo lugar. É uma oportunidade para você conhecer e sentir a energia de uma
pessoa que vem do outro lado do Brasil ou do planeta. Minha primeira trance foi
há seis anos em uma exxxperience em São Paulo, mas a surpresa aconteceu quando
fui ao primeiro festival – Celebra. Foi a primeira vez que acampei. Nossa! . Eu fui
criada na cidade, em Curitiba, não tive essa experiência, e foi ali a primeira
fogueira, o primeiro chapati, o primeiro chai, primeiro tudo de bom. Foi isso de
estar todo mundo junto. Você nunca viu a pessoa na vida e de repente já olha assim
e começa a conversar e um vai ajudando o outro. Um traz a panela, o outro o arroz
e aí fazemos a fogueira e nos alimentamos juntos. Se hoje penso em trabalhar
como terapeuta, foi por causa do trance. Quero estar dentro das festas de uma outra
maneira. Talvez retribuindo tudo o que o trance fez por mim. Retribuir e
potencializar o que esse movimento causa nas pessoas.”
(Ariadna, estudante de
naturologia entrevistada no festival Universo Paralello 2004/05)
O dia marcado para a abertura da área de acampamento dá início à festividade. Alguns
participantes costumam chegar dias antes da abertura oficial e se instalam no local mesmo
sem a estrutura montada. Em geral ajudam na montagem final do evento. Em alguns casos, as
pessoas que não têm ingresso trocam trabalho pela entrada. Constatei que são muitos aqueles
que trocam trabalho durante o acontecimento – no bar, na portaria, no escritório, fazendo
performances etc. – para poder participar.
33
De acordo com Arnold Van Gennep (1960), os ritos de passagem ou de “transição” caracterizam-se por
três fases: separação, margem e agregação. A primeira fase, de separação, abrange o comportamento de
afastamento do indivíduo ou de um grupo, quer de um ponto fixo anterior na estrutura social, quer de um
conjunto de condições culturais, ou de ambos. Na segunda fase, o período limiar, as características do sujeito
transitante são ambíguas, pois a limiaridade é comparada à morte, ao estar no útero, a invisibilidade, à
escuridão, à selvageria. E na terceira fase – reincorporação – consuma-se a passagem. O sujeito, individual ou
coletivo, permanece num estado relativamente estável, mas em virtude disto tem direitos e obrigações para
com o grupo – “estrutural”, que direciona o comportamento de acordo com normas costumeiras e padrões
éticos vinculados à posição social”. (Grof, 2000:35).
- 48 -
Atualmente, existem muitas excursões sendo organizadas em todo o Brasil para levar
os tranceiros” até os lugares distantes onde acontecem os festivais. Os ônibus chegam até a
entrada principal, onde há um estacionamento para que os meios de locomoção fiquem
estacionados. Na entrada do evento geralmente ocorre uma revista, feita pelos seguranças da
própria festa, os quais costumam barrar o ingresso de bebidas alcoólicas e de objetos
perigosos. Em alguns casos, como na Trancendence 2005, a polícia federal estava na porta do
evento, revistando carros, mochilas e o corpo das pessoas com o objetivo de apreender
substâncias ilegais.
Um elemento que diferencia os festivais de outros estilos de festas é o local onde
acontecem. No início, quando começaram as festas de psychedelic trance no país, o acesso
era difícil e demandava longas caminhadas. Isso mudou. Hoje, mesmo tendo que passar por
estradas de terra para atingir a portaria do local, com uma caminhada de no máximo vinte
minutos carregando a própria bagagem, a pessoa chega na área de camping. Alguns festivais
oferecem transporte (caminhão ou vã) para fazer esse trajeto.
A chegada costuma ser um momento de tensão porque são muitas pessoas
adentrando no espaço ao mesmo tempo, carregando mochilas pesadas e querendo logo
encontrar um lugar à sombra para montar sua barraca. Nesses anos de pesquisa observei nas
áreas de acampamento um espaço de extrema sociabilidade, no qual as pessoas vão se
agrupando e se organizando de forma harmônica. As pessoas delimitam suas áreas, enfeitam-
na com panos, bambus, decorações psicodélicas, folhas e outros materiais. Ao caminhar por
esses locais sempre encontrei grupos reunidos, fazendo comida, conversando, tocando
instrumentos, fumando maconha, preparando chás etc.
Em 2003, quando a pesquisa estava no início, constatei que o principal assunto
abordado entre os jovens na área de camping dizia respeito ao uso das substâncias
psicoativas. As conversas eram livres e envolviam tanto o antes (preliminares anteriores ao
uso) quanto o depois (relato das experiências). Mas com o passar dos anos esse contexto foi
mudando. Atualmente, pelo fato de a polícia estar entrando à paisana para prender tanto os
usuários como os traficantes de drogas que freqüentam os festivais, as pessoas já não se
sentem mais livres para falar abertamente sobre este assunto e precisam mesmo tomar
cuidado, pois podem estar sendo vigiadas.
- 49 -
“Acho que a maior diferença dos festivais de trance é isso do camping, que
proporciona um contato maior entre as pessoas. Ali agente é uma comunidade
34
,
todo mundo se ajuda, está todo mundo na mesma, cagando no buraco, tomando
banho gelado, em contato direto com a natureza.” (Arthur, 20 anos, estudante;
Entrevista realizada em 5/5/2004)
Área de Camping Trancendence 2003 – Chapada dos Veadeiros (Goiás)
Foto: Ana Flávia Nogueira Nascimento
Os acampamentos são espaços que têm vida própria dentro de um festival. São locais
de passagem, descanso, trocas, conversas, descobertas. Afinal, são lugares que dependerão
principalmente das pessoas que ali irão habitar por alguns dias. Isso envolve desde o tom de
voz, o compartilhar de alimentações, o respeito ou não pelo vizinho, até o cuidado com a
limpeza do local ao redor. Observei que quando determinado grupo mostra-se
demasiadamente “perturbador”, os próprios vizinhos reclamam e demonstram claramente que
não estão gostando, na tentativa de entrarem em acordo de forma a conviverem pacificamente
no espaço.
34
De acordo com Turner, os fenômenos limiares oferecem um “momento situado dentro e fora do tempo”, ao
mesmo tempo em que “dentro e fora da estrutura social profana” ao qual denominou-se “communitas”, uma
comunidade que revela certo reconhecimento de um vínculo social generalizado, uma comunhão de indivíduos
iguais que se submetem em conjunto à autoridade geral dos anciãos rituais. Para o autor, esse sentimento deixou
de existir e simultaneamente tem de ser fragmentado em uma multiplicidade de laços sociais. (1974: 119)
- 50 -
Festival Trancendence 2005 – Foto: Ana Flávia Nogueira Nascimento
Pelo fato de esses encontros acontecerem em locais de reserva ambiental – Chapada
dos Veadeiros (Goiás), Cerra do Cipó (Minas Gerais), Praia de Pratigi (Bahia) –, todo cuidado
é pouco para não agredir o meio natural. A maneira como cada participante realiza o contato
com esses ambientes de beleza exuberante varia muito. São poucas as pessoas que realmente
têm “consciência ambiental”, que não jogam nada no chão, que andam pela festa carregando o
próprio saquinho de lixo e não usam produtos químicos na hora de tomar banho no rio. Em
geral, a grande maioria causa grande dano ao meio ambiente, pois não tem consciência dos
efeitos de suas ações.
Os festivais que freqüentei aconteceram em áreas tão extensas que, dependendo do
lugar, não dava para escutar a música, sendo possível então ouvir os sons da natureza, como o
cantar dos pássaros, a corredeira das águas.
“Nesse lugar poderoso, posso contemplar a beleza natural, caminhar pela
montanha, nadar na cachoeira, sentir a força do sol e a leveza do brilho da lua.
Quando a noite chega, gosto de ficar perto da fogueira e me esquentar admirando a
beleza do céu, e das estrelas.” (Bruno Baiano, entrevista realizada no Festival
Trancendence, 2003).
O fato de esses eventos ocorrerem em locais geralmente inabitados fez com que
surgissem equipes que trabalham apenas para cuidar da gestão ambiental dos mesmos. O
Ecosystem e Photossíntese são exemplos desse trabalho, que envolve toda a estruturação de
- 51 -
alguns festivais, acompanhando desde a escolha do material empregado nas estruturas, os
locais apropriados para instalação dos chuveiros e fossas, até o destino do lixo separado
durante o encontro com o intuito de ser posteriormente reciclado.
“O simples fato de manter um grande número de
pessoas em uma área rural já mostra a necessidade de se fazer
uma análise ambiental nas raves, somada à importância social
que tais eventos representam. Temos clareza que um trabalho
de minimização de impactos e direcionamento social devem
ser feitos para dar rumos evolutivos ao fenômeno e não
deixar que seu propósito se desvirtue na tendência
egocêntrica do capitalismo consumista da sociedade atual.”
(Daniel Calderazzo
35
, 2001) Festival EarthDance 2003 –
Foto: Murilo Ganesh
Na portaria dos festivais, geralmente são entregues aos participantes caixinhas de
filme para depósito de “pontas” de cigarros e folhetos explicativos contendo informações
sobre a área e sobre cuidado com o meio ambiente. Quanto mais preocupados com o meio
ambiente forem os organizadores, maior o cuidado e o preparo para diminuir o impacto
ambiental.
Placa encontrada no “Cachoeira Alta Dance Festival 2004” – Serra do Cipó (MG) -Foto: Murilo
Ganesh
35
Daniel Calderazzo, técnico em Unidades de Conservação, graduado em Gestão Ambiental pelo Senac São
Paulo, recreador e ativador galáctico do Sincronário 13luas e Bandeira da Paz.
- 52 -
Por meio das entrevistas constatei que muitas pessoas são atraídas pela primeira vez a
um festival justamente pelo fato de eles serem realizados em meio à natureza. Uma jovem
paulistana que estava no Universo Paralello 2004 fez a seguinte colocação: “Eu vim porque
era na praia. Acredito que o festival é uma coisa única, uma experiência coletiva que te traz
prazer e coisas jamais imaginadas. É minha primeira vez, estou aqui para sentir o espírito do
festival, conhecer as pessoas e ter novas experiências. Foram essas idéias que me fizeram
querer vir até aqui”
36
.
“Eu acho que o trance fora da natureza não combina. Não pode ser em lugar
fechado, pois a natureza, a mata, a terra são componentes do transe. Porque a
natureza está relacionada à liberdade, à nossa alma selvagem. E nesse lugar
podemos criar uma simbiose com a natureza, sentir a terra e nossas raízes. Nesse
contexto percebemos que precisamos agir, produzir, pois na situação em que
estamos não dá para ficar parado só olhando não. A Terra está sofrendo e nós
precisamos fazer alguma coisa. E tenho certeza que o trance proporciona
conscientização ambiental. Por mais que aqui se encontrem pessoas que não
despertaram para isso, tem muita gente que antes não dava muita importância e que
agora está levando como um objetivo mesmo fazer a sua parte e cuidar do meio
ambiente. E começa pela nossa própria casa. O mundo é a nossa casa. Então a
conscientização ambiental é parte fundamental do processo de transformação
planetária.”
37
Artista pintando placa para compor o cenário do Festival Universo Paralello 2004/2005 –
Foto: Ana Flávia Nogueira Nascimento
Das entrevistas realizadas nos festivais, apenas duas pessoas referiram-se aos aspectos
negativos do impacto desses eventos na natureza, ao passo que 33 focalizaram apenas os
aspectos positivos, alegando que o ambiente marca profundamente a experiência e pode
gerar uma posterior necessidade de melhorar as atitudes em relação ao ambiente na vida
cotidiana. Uma entrevista marcante foi a do Sr. João, morador da Chapada dos Veadeiros
36
Estudante Universitária de São Paulo, entrevistada em grupo – com idades de 23 a 26 anos – no Festival
Universo Paralello 2004/2005.
37
(Priscila, professora de ioga, entrevista realizada no Festival Universo Paralello, 2004/2005)
- 53 -
(Goiás), local onde têm uma pousada e trabalha como guia turístico. Desde 2001 ele atua na
equipe de primeiros socorros dos festivais que acontecem na região.
“Veja bem, cada pessoa gosta de uma coisa não é? Eu acho que todo
mundo tem o direito que participar do que gosta, não é? Essa festa
acaba trazendo alguns benefícios para a região, alguns lucros. Claro,
porque a gente não tem grandes eventos na Chapada, e um evento
como esse que atrai aí 4 mil, 5 mil pessoas acabam trazendo lucro
para a região. Na verdade, vejo alguns pontos negativos, por
exemplo, por causa do barulho e do impacto que acaba ocorrendo no
ambiente. Eu acho que essas pessoas estão aqui mais pelo fato de
gostarem desse tipo de festa do que pela natureza. A natureza vem
antes da festa, e depois surgiu a idéia dessa festa nesses locais não
sei nem por que. Talvez porque é um ambiente mais liberal. Aqui as
pessoas têm mais liberdade, se sentem mais à vontade, o que não
acontece em outros lugares. Acho que a principal causa dessa festa
acontecer assim é por causa da liberdade.” (João, equipe de
Primeiros Socorros, entrevista realizada no Festival Trancendence
2003)
O “mal-estar na civilização” mostra que a “cultura” reprimiu nos seres humanos seus
traços instintivos. O processo que envolveu o desenvolvimento da civilização industrial
implicou o direcionamento do comportamento humano especialmente para o trabalho e para
as atividades racionais, característica que levou à conseqüente repressão de atividades
relacionadas à animalidade, as quais geram as maiores sensações de liberdade. Considerando
que o ser humano é uma integração indissociável – 100% natureza e 100% cultura
38
– e que
por muito tempo a sociedade tentou negar o lado animal constituinte do humano, não é por
acaso que são inúmeras as manifestações que fazem retornar ao plano social o que foi
recalcado. Os festivais de transe psicodélico mostram que mesmo com as mais modernas
tecnologias desenvolvidas pelos seres humanos, eles ainda enfrentam inúmeras dificuldades
para chegar até o meio ambiente natural e celebrar a vida, longe dos olhares repressores da
sociedade.
“O trance é tribal; ele é contemporâneo mas é ancestral. Você batendo o pé no chão
faz uma conexão com a Terra, com gaia, Patcha Mama, com o planeta. Nós estamos
voltando para a nossa freqüência natural e já não estamos mais nos conformando com
38
“As regras e normas culturais geram processos sociais e regeneram globalmente a complexidade social
adquirida por essa mesma cultura. Assim, a cultura não é nem ‘superestrutura’ nem ‘infra-estrutura’, termos
impróprios em uma organização recursiva, onde o que é produzido e gerado torna-se produtor e gerador daquilo
que o produziu ou gerou. Cultura e sociedade estão em relação geradora mútua; nessa relação, não podemos
esquecer as interações entre indivíduos, eles próprios portadores/transmissores de cultura, que regeneram a
sociedade, a qual regenera a cultura” (Morin, 2002a: 19)
- 54 -
a vibração artificial, com o tempo mecânico que é imposto pelo sistema. Nós
queremos mais que isso; as pessoas querem fazer o seu próprio tempo. E num festival
como esse as pessoas fazem seu próprio tempo. Cada um vive no seu ritmo, dorme na
hora que quer, levanta na hora que quer, come se e quando quiser. Usam o que
quiser. Então cada um experiencia o seu tempo através da sua criação. E isso é
psicodélico, é a liberdade de ser da maneira que quiser!”
39
Ao refletir sobre o espírito do mundo, podemos observar que de tanto querer
manipular a vida o ser humano encontrou meios também infalíveis de destruí-la. Este é o
risco maior desta virada de século, ou seja, as criações humanas destruírem não apenas o
humano, mas também o meio que o sustenta. Esse olhar trágico e vital a respeito do mundo
mostra, por outro lado, a importância de reconsiderarmos a “conexão com a Terra”, essa
entidade misteriosa que é, ao mesmo tempo, causa e efeito da vida mundana.
Apenas a vida parece nos permitir compreender como na maioria das vezes nos
associamos ao redor de algo que causa sentimentos subjetivos e abstratos. Pois associamos
para sentir, experimentar, vibrar, mover, para existir junto. Que liga é essa que no mundo faz
coisas e pessoas bastante díspares estarem juntas? Podemos anunciar aqui o querer viver,
constituinte do próprio fundamento do prazer e do desejo de sermos seres sociáveis.
“Reencontrou-se a unidade humana. Mas ainda não sabemos disso. Foi na
segunda parte do século XX que a humanidade se viu ligada, em quase todos os
lugares, por mil redes, ao mesmo tempo em que se viu ameaçada no seu conjunto
pela arma nuclear e pelo perigo ecológico. A planetarização significa doravante
comunidade de destino para toda a humanidade. As nações consolidavam a
consciência dessa comunidade de destino em função da ameaça incessante do
inimigo externo. Ora o inimigo da humanidade não é externo. Esconde-se dentro
dela; é o sapiens-demens.
” (Morin 2002b: 239)
O ritmo do sensível certamente não é o mesmo da consciência racional. Digamos que
essas manifestações expressam as modalidades do humano que não podem ser encerradas no
racionalismo instrumental buscado pelo sistema capitalista. Trata-se, antes, de um não-
racional que inclui os afetos, os sentimentos, as emoções que envolvem o homem. Cada ser é
o que é em função de uma “força interior” que o constitui como tal e o faz buscar momentos
39
(Rogério Lamart, 25 anos, cursa musicoterapia na UFG – Goiânia, trabalha com terapia holística e com
causas artivistas em prol do reequilíbrio de Gaia, do reequilíbrio do planeta. Entrevista realizada em Alto
Paraíso ,ago. 2005)
- 55 -
em que possa compartilhar o gozo no aqui e agora. De fato, só há vontade coletiva, força
interior, mito vivido em comum se houver o afeto compartilhado.
Nesse ambiente o indivíduo poderá encontrar tanto pessoas conhecidas que não vê há
muito tempo, como outras ainda estranhas e viver dias prazerosos junto delas. Esses espaços
são considerados “zonas autônomas temporárias”
40
, que envolvem uma comunidade global, a
qual vê nesses encontros a possibilidade de reencontrar amigos dispersos pelo planeta. Os
festivais refletem uma tendência inevitável de as pessoas se juntarem em grupos para
buscarem livremente a intensificação do prazer por intermédio do próprio corpo, por meios
que não são reconhecidos como legais pela sociedade que inconscientemente impulsiona a
existência desses acontecimentos.
Esses espaços nômades possibilitam a troca de experiências profundas entre as
pessoas, as quais criam ali laços de amizade impulsionados pela abertura proporcionada pela
música, pela dança e também pelo uso de substâncias psicoativas, como, por exemplo, o
ecstasy
41
(MDMA), que desperta um sentimento forte de amor e empatia entre as pessoas, e o
álcool (ex.: catuaba e cerveja), que aumenta a sociabilidade.
Segundo Carolina Borges
42
, a grande maioria dos participantes das festas e festivais
psicodélicos pode ser caracterizada como “uma massa consumidora de drogas” em busca de
alienação e diversão a qualquer custo. Para ela, o festival de Carnaval Tranceformation 2004
deixou a desejar no aspecto ambiental, apresentando pouca preocupação com o impacto do
evento, que mostrou a ausência de reciclagem e da disseminação de movimentos
sustentáveis.
“Se a idéia é evolução, tornam-se incoerente intervenções dessas naturezas
sem a preocupação com o ambiente. A educação ambiental é necessária e urgente em
festivais de trance, uma vez que estamos diante de uma fractalização social, onde os
alienados consumidores massificados refletem a urgência e a demanda de uma
formação ambiental. Estamos diante do ritual pós-moderno refletindo a sociedade
massificada que habita Gaia, mas também de novos movimentos e relações
40
Uma zona autônoma temporária pode ser vista por intermédio de um festival, por representar o encontro
temporário de um grupo, uma coagulação voluntária de pessoas afins, não-hierarquizadas, buscando
maximizar a liberdade por eles mesmos na sociedade atual. Isso por meio de uma organização que possa
maximizar atividades prazerosas sem o controle de hierarquias opressivas.(Bey, 2001)
41
Anexo II. B) 4 e 5
42
Carolina Borges, educadora multimídia, DJ, estudante da filosofia de Nietzsche e Deleuze com o prof. Luiz
Fuganti (disponível em: www.linhadefuga.com.br
), pesquisa cultura digital junto com Ricardo Barreto
(disponível em: www.file.org.br
>), colabora com o Projeto Metáfora. Escreve roteiros para documentários,
performances e curtas-metragens. Edita o blog Ciberutopias, disponível em:
<http://www.ciberutopias.blogger.com.br
>.
- 56 -
interpessoais baseados na paz, na harmonia e na transcendência. A tecnologia
impactando as culturas locais e originando uma cultura global. Um dos aspectos
interessantes dos festivais de trance é a semelhança entre eles, que, independentemente
do país onde esteja sendo realizado, possui as mesmas características nômades e
festivas. A cultura digital é global e com ela nasce uma nova sociedade , interconectada
e não institucionalizada.” (Carolina Borges)
A vida, no que tem de impalpável, pode ser considerada irreal para muitos, enquanto
para outros permite compreender que o real não pode existir senão por possuir em si o
surreal. Assim, o querer-viver não se contabiliza. Tem o preço das coisas sem preço, que, em
épocas como a nossa, ganham destaque. Para além do econômico, estamos vivendo também
um período de gastos, excessos, consumo, massificação, e com certeza tais características são
encontradas nos festivais, que refletem o mundo em que vivemos. Os jovens inseridos na
pós-modernidade estão buscando a qualquer preço uma experiência que preencha o vazio
existencial expandido diante das infinitas possibilidades disponibilizadas no mercado. Nesse
contexto globalizado e simultaneamente individualizado, novas práticas sociais, como os
festivais, acentuam a afirmação da vida, sobretudo no que pode ter de animal, de bárbara e de
coletivamente arcaica.
“Nosso encontro nesses festivais é como estarmos dizendo: dane-se a sociedade
capitalista. Tudo o que nós queremos fazer é dançar. Não queremos trabalhar em um
McDonalds ou ver a violência na televisão. Acreditamos na vida, acreditamos no
nosso potencial, não queremos ser manipulados pelo sistema. Nos festivais está
incorporada a noção de que você tem
que ir com respeito, porque lá sua
experiência está relacionada à
experiência das outras pessoas, e a
energia que você traz e o respeito que
você coloca é o que gera a qualidade e
a energia do encontro. Nesse sentido,
se todos vierem sem dar a importância
e o respeito, se as pessoas forem
rudes umas com as outras e não se
preocuparem com os demais presentes
ou com o ambiente em que estão, a
festa não terá sentido, não terá energia
boa circulando, será um encontro vazio, porque cada um faz a sua contribuição para
que o festival aconteça de forma sagrada.”
43
Placa centralizada na pista de dança do Festival Earthdance 2004 Foto: Ana
Flávia Nogueira Nascimento.
43
Nikos (Grécia/Produção multimídia) está produzindo um documentário – Entheogen - sobre os usos de
substâncias enteógenas pela espécie humana. Entrevista realizada na Bahia, 2005. Disponível em:
<www.zeroequalsone.net
>.
- 57 -
Mesmo para o ser humano mais francamente não-religioso, os lugares que guardam
uma qualidade excepcionalmente única são os “lugares sagrados” (Eliade, 2001: 27) do seu
universo privado, onde acontece a revelação de uma percepção diferente daquela de que
participa em seu cotidiano. Não é por acaso que a pista de dança do ritual psicodélico é
considerada um local sagrado. A pista é o palco da experiência coletiva que envolve a
conexão de pessoas das mais longínquas cidades do planeta. Na pista, a música eletrônica
pulsa como a batida rítmica de qualquer coração humano, estimulando os participantes a
dançarem em transe, alçando vôos extáticos, lançando sorrisos profundos e olhares
hipnóticos que refletem a magia e o mistério do acesso a uma outra realidade.
Por mais modernas e tecnológicas que possam parecer, essas manifestações
envolvem uma busca humana por estados alterados de consciência, que é recorrente em todas
as culturas. Os registros antropológicos nos mostram a relação desses estados com a
natureza, a música rítmica, a dança e o uso de substâncias psicoativas que atuam no corpo
físico, mental e espiritual. A diferença é que na sociedade contemporânea as buscas humanas
ganham novas vias de expressão. No contexto “psicodélico”, cada ser humano é respeitado
pelo que quiser viver. Todas as experiências são validadas pelo grupo, que engloba todos,
desde os que vão até lá apenas com o intuito de usar substâncias que não são admitidas em
outros contextos, até os que vão com a consciência de participar de um ritual de comunhão
coletiva.
A falência das crenças em paraísos distantes a serem encontrados depois da morte
gera a necessidade de vivenciar o prazer no aqui e agora. Essa vontade de viver
intensamente a vida com toda leveza e prazer que esta possa proporcionar implica também a
busca de experiências que despertem um sentimento cósmico, o qual cria uma conexão entre
os seres humanos que na pista de dança estão vibrando em uma mesma freqüência.
“O primeiro festival foi como se eu tivesse reencontrado uma família, encontrado
uma coisa que eu havia perdido, um sentimento tribal muito forte entre as pessoas.
Dancei muito. Quando estava em estado de transe psicodélico, me vi como um ser
físico e fui me experienciando cada vez mais para dentro como um ser microscópico.
Olhei para o meu braço, vi as células, depois vi as moléculas e fui compreendendo
tudo até chegar no átomo e depois eu só era luz. Essa experiência foi muito forte para
mim. Um sentimento de unidade total entre as pessoas. Não havia separação,
- 58 -
estávamos todos na mesma batida, na mesma pulsação, cada um na sua
individualidade formando o todo.”
44
,
Pista de dança do festival Trancendence 2003: veja ao fundo os Totens de Máscaras de Animais bem
na entrada da pista – Foto: Ana Flávia Nogueira Nascimento.
Há na noção de ser humano e de natureza humana algo que nos liga
incondicionalmente à natureza. Afinal, de onde veio nossa raça? Que espécie de limites
existe no tocante a nosso poder sobre a natureza e o poder dela sobre nós? Para qual direção
nos encaminhamos? Tais são os problemas que se apresentam renovados sem jamais perder o
interesse. E este parece ser um registro simbólico presente nos rituais de dança cósmica, seja
a dos povos africanos, a indígena, a indiana, a psicodélica. O corpo parece alcançar algo além
ao se movimentar livremente e entrar em sintonia com as forças que lhe são intrínsecas,
independentes da crença religiosa de quem dança. Ao participar na pista de dança, cada um
está sendo convidado a levar a sério o que é dado a viver, para atuar de maneira mágica no
jogo da vida, que em constante transformação cria e recria novas artes que fazem o animal
humano entrar em transe.
44
(Rogério Lamart, 25 anos, cursa musicoterapia na UFG – Goiânia, trabalha com terapia holística e com
causas artivistas em prol do reequilíbrio de Gaia, do reequilíbrio do planeta. Entrevista realizada em Alto
Paraíso ,ago. 2005)
- 59 -
Esse tipo de manifestação sempre existiu e parece que sempre existirá. O que muda
sempre são os meios empregados para atingir tais estados, assim como as conseqüências dos
mesmos na vida cotidiana de cada participante. Atualmente, as sociedades plurais e desiguais
estimulam o indivíduo a se distanciar das instituições e buscar grupos de identificação que
viabilizem as “experiências culminantes”
45
que envolvem momentos de felicidade e
realização plena. Os seres humanos, em seus momentos supremos, podem então observar
mais facilmente a natureza em sua existência e não apenas projetar no mundo os propósitos
humanos.
Por meio das tecnologias, instrumentos racionais, os tranceiros procuram subverter a
consciência, fazendo uso dessa racionalidade para atingir o êxtase coletivo alcançado por
intermédio da composição dos elementos – música, dança, substâncias psicoativas, natureza e
estética psicodélica. Sendo assim, a experiência extática encontrada na base do misticismo
religioso, ganha novos simbolismos na contemporaneidade.
45
Essas experiências são descritas como intrinsecamente valiosas, tão valiosas que tornam a vida digna de ser
vivida, apenas pela ocorrência de tais momentos, os quais têm uma finalidade em si mesmos, diferente das
normas sociais que criam objetivos e regras como meios para atingir determinadas finalidades. Na experiência
culminante, seja por exemplo, a experiência estética ou amorosa, a totalidade é percebida em sua unidade.
Maslow (1964) desstaca ainda que essas experiências consideradas também como “transcendentais”
representam o ponto máximo da vida religiosa. Como no mundo contemporâneo grande parte dos jovens não
busca mais nos dogmas ou sermões religiosos os valores que atribuem às suas vidas, voltam-se neste caso para
experiências que demonstram que a máxima realização de identidade está simultaneamente na transcendência
do “eu” quando o indivíduo vai além do seu próprio “ego” e parece sentir-se no auge dos seus poderes.
- 60 -
ORAÇÃO DA PRESENÇA
46
Que jamais, em tempo algum, o teu coração acalente o ódio.
Que o canto da maturidade jamais asfixie a tua criança interior.
Que o teu sorriso seja sempre verdadeiro.
Que as perdas do teu caminho sejam sempre encaradas como lições de vida.
Que a música seja tua companheira de momentos secretos contigo mesmo.
Que os teus momentos de amor contenham a magia de tua alma eterna em cada beijo.
Que os teus olhos sejam dois sóis olhando a luz da vida em cada amanhecer.
Que cada dia seja um novo recomeço onde tua alma dance na luz.
Que em cada passo teu fiquem marcas luminosas de tua passagem em cada coração.
Que em cada amigo o teu coração faça festa e celebre o encanto da amizade profunda que
liga as almas boas.
Que em teus momentos de solidão e cansaço esteja sempre presente em teu coração a
lembrança de que tudo passa e se transforma, quando a alma é grande e generosa.
Que o teu coração voe contente nas asas da espiritualidade consciente, para que você
perceba a ternura invisível tocando o centro do teu ser eterno.
Que um suave acalanto te acompanhe, na Terra ou no Espaço e por onde quer que o seu
espírito lindo leve o teu viver.
Que o teu coração sinta a presença secreta de tudo aquilo que é impossível exprimir por
palavras.
Que os teus pensamentos, os teus amores, o teu viver e a tua passagem pela vida sejam
sempre abençoados por aquele amor que ama sem nome, aquele amor que não se explica, só
se sente.
Que esse amor transforme os teus dramas em luz, as tuas tristezas em celebrações e os teus
passos cansados em alegres passos de dança renovadora.
Que jamais, em tempo algum, você esqueça da presença que está em voe e em todos os
seres.
46
A “Oração da Presença” estava dentro da tenda de cura e espiritualidade, no espaço CircuLou do festival
Universo Paralello 2005.
- 61 -
OS ELEMENTOS
Mas eu sou feito da Terra, do Fogo, da Água e do Ar...” Raul Seixas
Essa gente que viaja tanto para chegar num pedaço esquecido de terra;
que, mesmo sem conhecer mais ninguém, coexiste pacífica e intimamente
com todos os demais em dias seguidos de transe; que doa a própria
existência para as adversidades da natureza e a ela se submete. Essas
mesmas pessoas, quando alvos de um minucioso olhar, passam da condição
de simples foliões psicodélicos para a de fascinantes células de um
movimento muito mais concreto do que se pensa: o da Sociedade
Alternativa do Brasil. Ravers realizam espontaneamente o que Raul Seixas,
Paulo Coelho, Adalgisa Halada e Salomé Nadine fundaram com manifesto,
rituais iniciáticos e reconhecimento formal nos idos de 1973 – e terminou
em prisão, tortura e exílio nos sangrentos tempos de ditadura militar.”
Coccareli
47
Esta geração tem sido
desiludida pelas próprias religiões e pela política e economia que imperavam na
época de seus pais. Crescer com ameaça nuclear, o assassinato de líderes sociais,
imunodeficiência, um sistema industrial em colapso, dívida externa,
fundamentalismo religioso (cristão, judaico e islâmico) com fanáticos que exaltam
a intolerância, negligência ecológica – tudo isso desenvolveu um saudável
ceticismo. Essa geração não tem como voltar para o antigo lar, porque mamãe e
papai se separaram. Não é de admirar que eles criaram uma psicologia de
navegação individual..” Timothy Leary
Nos tempos atuais, os festivais mostram uma necessidade das novas gerações, de
inserirem a “navegação individual” em um contexto de efervescência coletiva que recupera a
força vital. Esta efervescência é uma celebração, um ritual iniciático. Claro que o rito já não é
mais o que foi nas sociedades tradicionais, mas nem por isso tem deixado de vigorar sob
outras formas. Para os participantes desse movimento, “viajar” na música psicodélica e
dançar junto com o coletivo gerando energia positiva, pode provocar um salto dimensional
que permite acessar informações de campos de consciência anteriormente desconhecidos. As
“chaves”
48
que possibilitam a abertura dos campos de consciência são compostas por uma
47
Holismo e o novo homem” (Coccareli: set. 2002): seminário realizado na Universidade Estácio de Sá a
respeito do “novo homem” – perfil encontrado em festivais de trance. Joana Coccareli é jornalista e escreve
sobre as cenas de música eletrônica há quatro anos para os principais websites do país com grande ênfase nos
festivais de trance: “Há muito a ser dito a respeito deles; mais do que qualquer outra vertente eletrônica, o
trance abarca uma série de filosofias que muitas vezes se assemelham aos movimentos new age e hippie, com
todas as implicações ecológicas, orientalistas e anarquistas inerentes. Em contrapartida, há sua face comercial,
que muitas vezes faz tudo parecer uma grande farsa”; relato enviado por meio de correio eletrônico.
48
Ao caminhar pelos festivais psicodélicos, encontrei tanto brasileiros quanto estrangeiros com a Cruz Ansata
– um hieróglifo egípcio que simboliza a Cruz da Vida – tatuada no corpo. Raul Seixas e Paulo Coelho viam
neste símbolo o laço da sandália do peregrino, do buscador, daquele que quer evoluir, aprender, crescer. Além
- 62 -
inter-relação dos seguintes elementos: meio ambiente natural, música psicodélica, dança,
substâncias psicoativas e arte psicodélica.
O ÉTER VIBRACIONAL
Não há espaço sem música, porque não há expansão sem
espaço. A música é uma matéria vibrante.” Gaston Bachelard
A partir desta íntima relação que a música tem com a essência
verdadeira de todas as coisas, pode-se também explicar por que, quando soa
uma música adequada a alguma cena, ação, evento, circunstância, esta nos
parece abrir seu sentido mais secreto e se introduz como o mais correto e mais
claro dos comentários: do mesmo modo que, para aquele que se abandona
inteiramente ao impacto de uma sinfonia, é como se ele visse passarem diante
de si todos os possíveis eventos da vida e do mundo: contudo, quando presta
atenção, não pode indicar nenhuma semelhança entre aquele jogo sonoro e as
coisas que pairavam diante dele. Pois a música difere de todas as outras artes
por não ser cópia do fenômeno ou, mais corretamente, da objetividade
adequada da vontade, mas cópia imediata da própria vontade e, portanto,
apresenta para tudo o que é físico no mundo, o correlato metafísico, para todo
fenômeno a coisa em si.” Schopenhauer
Como será possível explicar de onde provém a capacidade e a sensibilidade humana
para a música? Considerando que a música não tem nenhuma função ligada à
sobrevivência,qual será então seu papel enquanto elemento constituinte das criações e
manifestações humanas?
Nos festivais de transe psicodélico encontram-se em “jogo” elementos sonoros
poderosos que fazem surgir uma ordem diferenciada daquela em que habitualmente vivem
seus participantes. Algo de invisível e inefável adquire forma no interior de um espaço
circunscrito sob a forma de festa, isto é, dentro de um espírito de alegria e liberdade. E sua
intensidade depende da combinação de alguns elementos essenciais, que se resumem na
música, no lugar, nas pessoas que irão compartilhar e dançar, bem como nas substâncias
utilizadas ou não por elas. Mas seus efeitos não cessam depois de acabado o jogo; seu
esplendor continua sendo projetado sobre o mundo todos os dias, garantindo a segurança, a
ordem e a prosperidade do grupo até o próximo período ritual. Em toda parte do mundo
podemos encontrar exemplos disso. Segundo uma velha crença chinesa, a música e a dança
disso, eles viam nos dois pequenos degraus presentes em sua base tanto os degraus da iniciação quanto o
formato de uma chave – aquela que abre as portas da percepção.
- 63 -
têm a finalidade de manter o mundo em seu devido curso, obrigando a natureza a proteger o
homem.
“Tudo começou, em 1988, quando um amigo me chamou para passar a virada do
ano em Goa. A festa começava às três horas da manhã, no meio da floresta. No
caminho, quando nos aproximamos, começamos a ouvir um pulsar sonoro que
confirmou que estávamos perto de um cenário que me surpreendeu. Eram muitas
luzes negras, panos lindos pintados, tudo novo, estranho e diferente. Todos
estavam em estados psicodélicos com suas consciências alteradas, e o DJ era o
capitão da nave espacial, levando os passageiros a uma viagem celestial por
intermédio de nossas próprias consciências. Comecei então a ter muitas dúvidas a
respeito daquele novo universo. Quem fazia essa música? Como ela era feita?
Onde poderia encontrar e ouvi-la novamente? Tudo era para mim um mistério.”
Raja Ram (2000 – entrevista gravada na Bahia – material cedido para pesquisa)
O público heterogêneo que freqüenta hoje os festivais psicodélicos tem na música o
elemento principal que os une. O psychedelic trance é um som característico da
cibercultura
49
, pois seu desenvolvimento e expansão são frutos da revolução tecnológica,
que possibilitou novas formas de se criar música, de manipulá-la e também de ouvi-la.
Atualmente, a música eletrônica engloba um movimento social, com seu grupo líder – a
juventude metropolitana escolarizada principalmente de classe média e alta – e com os
temas: interconexão, criação de comunidades virtuais e inteligência coletiva como suas
aspirações correntes ligadas à emergência do ciberespaço. Esse estilo musical alternativo,
disponibilizado na rede, está simultaneamente relacionado com outros tipos de
conhecimento – arte multimídia
50
, arte psicodélica e visionária, substâncias psicodélicas
51
,
49
O movimento global do transe psicodélico está diretamente associado ao desenvolvimento do “ciberespaço”
e da “cibercultura”. O primeiro neologismo refere-se à rede, que, segundo Levy, é o novo meio de
comunicação que surge da interconexão mundial dos computadores, incluindo não apenas a infra-estrutura
material da comunicação digital, mas também o universo oceânico de informações que ela abriga, assim como
os seres humanos que navegam e alimentam esse universo. Quanto à “cibercultura”, especifica aqui o conjunto
de técnicas (materiais e intelectuais), práticas, atitudes, modos de pensamentos e de valores que se
desenvolvem juntamente com o crescimento do ciberespaço (Levy, 1999: 17).
50
Através da eletrônica e da engenharia genética os seres humanos serão capazes de aumentar em centenas
de vezes o seu potencial de compreensão do universo. Com o auxílio de computadores cada vez mais rápidos
em fornecer cálculos e arquivar dados e humanos mais adaptados geneticamente, um novo tipo de inteligência
surgirá desta simbiose, e uma nova aventura pode ter início: viagens espaciais mais longas e até a colonização
de outros mundos. Sem dúvida o Homo sapiens sapiens esta prestes a transcender da forma atual e dar talvez o
maior salto em sua evolução nos últimos quarenta mil anos, desde que o primeiro Sapiens sapiens ingeriu um
psilocibo e começou sua jornada sintética” (Jaz, Marcelo.
Disponível em: www.syntheticsapiens.com.br.
Acesso em 04 abril 2005).
51
Mais informações sobre o assunto estão disponíveis em: http://www.neip.info. - Núcleo de Estudos
Interdisciplinares sobre psicoativos - Acesso em 03 set 2005.
- 64 -
xamanismo
52
, terapias corporais, calendário maia etc. –, os quais interligam arte, ciência,
cultura e espiritualidade.
Em menos de dez anos o fenômeno dos festivais psicodélicos expandiu-se por todo o
país, criando, conseqüentemente, um mercado do “divertimento” baseado em experiências
que envolvem a capacidade de alterar a mente consciente que “trabalha” de forma racional
no dia-a-dia. A característica peculiar desses encontros é a qualidade da música que pode ser
ouvida nessas ocasiões. Trata-se de um estilo musical que não é estático como os outros que
conhecemos, mas que está em constante transformação. É uma música que está sempre
mudando, gerando novas sensações de estranhamento nos ouvintes.
Nos festivais de transe psicodélico que acontecem no Brasil existe sempre dois
espaços destinados a estilos musicais com freqüências distintas.
“O trance feito para pista, por exemplo, tem toda uma composição de batidas e
notas que visam despertar os chakras e dar movimentação. Por isso começa lento,
com uma introdução mais intelectual, mais elaborada em termos melódicos e
harmônicos. E depois entra a batida xamânica para ativar o chakra básico (a
energia de base); então a pessoa tem a possibilidade de se soltar e ativar a energia
vital adormecida em seu corpo. Enquanto a pista integra mais o corpo, a música
feita para o chill out é mais acolhedora, propicia mais mentalização, que muitas
vezes induz um processo de interiorização que ativa o lado meditativo, chegando
até a ser down (para baixo), porque muitas vezes tem pessoas dormindo, outras
descansando... Então o intuito da musica ambient é ser relaxante e acolhedora.”
53
Na maioria dos festivais a música começa primeiro no chill out, um espaço
basicamente voltado para o descanso do corpo e da mente, onde os participantes podem
relaxar, ouvir música, interagir, dançar e até mesmo entrar em contato com variados tipos de
manifestações artísticas. O chill out costuma ser um ambiente que envolve muita decoração,
visando criar uma atmosfera aconchegante e também sugestiva. Os elementos psicodélicos e
orientais constantemente encontram-se presentes por intermédio das pinturas, das luminárias
fluorescentes com formatos caleidoscópicos etc. Em geral são encontrados nesses espaços:
redes, esteiras, pufs, almofadas, chai-shop
54
(lanchonete com deliciosas guloseimas, sucos,
52
“O xamanismo é, por excelência, um fenômeno religioso siberiano e centro-asiático. Uma primeira definição
desse fenômeno complexo, e possivelmente menos arriscada, será: xamanismo = técnica do êxtase, e em toda a
região que envolve o Centro e o Norte da Ásia, a experiência religiosa por excelência é baseada na experiência
extática, e o xamã é considerado o grande mestre do êxtase” (Eliade, 2002: 18-20). Ver também anexo II. A) 2
53
Edson Valêncio, cinqüenta anos, constrói casas e instrumentos musicais. É integrante do grupo Divina
Metamorfose, conjunto instrumental que toca nos chill outs dos festivais, e é pai de três músicos que compõe o
Hyperception. Entrevista realizada em São José do Rio Preto – junho, 2005.
54
“O chai-shop é um cantinho indiano. Têm o ‘chai’, que é um chá típico indiano, feito com vários temperos,
têm tortinhas, chapati, sucos. E fica localizado no chill-out, que tem mais a ver, porque as pessoas descansam
- 65 -
chás etc.). E enquanto os incensos perfumam o ar, os malabaristas praticam, alguns
desenham, outros massageiam, conversam, tocam, pintam, se alimentam, descansam
enquanto ouvem um bom som. Nesses ambientes acontecem uma grande variedade de
coisas.
Chill out do festival Universo Paralello 2004 – Foto: Carol Guerra
No chill out, o estilo musical tocado é o ambient. De acordo com o DJ Smurf, o
ambient music envolve todo um leque de diversidades, que vai desde world music, dos
estilos tribais, indígenas, até todos os tipos de música eletrônica, que podem alcançar
versões mais lentas e tranqüilas.
“Geralmente o que caracteriza esse estilo musical são os instrumentos mais
fortes, tribais. Como o d
idgeridoo, dos índios aborígenes da Austrália, que é um
dos instrumentos musicais mais antigos criados pelo homem, e o som dele é
extremamente futurista, como um som de outro planeta. Para você tocar ele, tem
que fazer uma respiração circular sem interrupção, e tocando durante um tempo
você sente uma alteração de consciência, porque está oxigenando o cérebro. Então
as músicas que saem desse instrumento saem com uma supervibração, e o efeito
delas nas pessoas é forte, pois a freqüência através de uma nota muito grave vibra
no seu corpo de um jeito intenso. E também os instrumentos indianos são muito
e podem fazer um lanche mais natural, integral. Nós também fazemos umas comidinhas que dão um pouco de
energia” (Ariadna, que estava trabalhando no chai-shop do festival Universo Paralello, 2004/05).
- 66 -
fortes, incluindo principalmente as cítaras, alguns de sopro e muitos instrumentos
antigos que tocam profundamente as pessoas.” (Smurf, entrevista realizada no dia
6/10/2004/)
Chill out do festival Waves of Peace 2005 – Foto: Murilo Ganesh
Durante a pesquisa de campo, observei que mesmo existindo em todos os festivais,
cada chill out possui sua especificidade. Apresentarei alguns que se diferenciaram
simbolicamente. Por exemplo, o chill out do Festival de Cachoeira Alta (MG) aconteceu
numa tenda de circo, espaço que envolveu muitas apresentações circense, remetendo os
participantes ao universo lúdico.
Chill out Cachoeira Alta Dance Festival – Foto: Ganesh
A grande inovação aconteceu no cenário da Earthdance (2003). A estrutura do chill
out foi uma redoma vazada de aço galvanizado, de 15 metros de diâmetro e 46 de
circunferência. Denominado Dome Tech, o plano desse espaço envolveu um ano de
pesquisa, duas semanas de montagem e dois dias para os retoques finais da decoração. Além
dos redondos pufes, havia mesinhas de design mod dos anos 1960 e concorridas redes
nordestinas. À noite, um globo kitsch, tipo disco-music, refletia feixes de luz no tecido
branco que cobria a estrutura. Compunha o ambiente também um sistema de som de 6 mil
watts.
- 67 -
Para adentrar nesse espaço era obrigatório deixar os sapatos na entrada. No centro,
um tecido verde-turquesa ia do topo dos sete metros de altura da estrutura até o chão. Nele,
homens e mulheres faziam seus malabarismos no ar. Como deuses do firmamento,
enrolavam-se e desenrolavam-se ao pulsar da música. Na noite de sábado o Synthetic
Sapiens executou sua performance de pintura com aerógrafo sobre projeções de computador.
Enquanto Charlie alternava imagens hiperpsicodélicas, que se aproveitavam até das sombras
ocasionais que surgiam dos passantes, Marcelo Jaz, com um spray, desenhava ora uma
ancestral carranca de totem, ora o interior do corpo humano.
No chill out da Trancendence 2005 os artistas também criaram uma pintura que
combinava imagens de um homem macaco sentado em cima de uma televisão, pensando.
Havia ainda robôs e outros símbolos que remetiam ao desenvolvimento da racionalidade
humana, interligando o desenvolvimento técnico com a manipulação de massa realizada
pelos meios midiáticos.
Apresentação Sintetic Sapiens no chill out do festival Trancendence 2005 – Foto: Carol
Guerra.
O festival Trancendence construiu o chill out com base em uma oca indígena,
porém em um tamanho bem maior do que as tradicionalmente feitas. Em seu interior, a oca
foi decorada com pinturas e elementos que mesclavam o ancestral com o moderno. Com
vista para o céu, tinha uma fogueira bem no centro, onde à noite as pessoas se esquentavam
- 68 -
do frio e contemplavam a fumaça subindo. Nesse espaço se apresentaram muitos grupos que
estavam participando de um festival como esse pela primeira vez e que não tinham nenhuma
relação com a música eletrônica.
Dia no chill out do Festival Trancendence 2005 – Foto: Ana Flávia Nogueira Nascimento
Noite no chill out da Trancendence com a apresentação da Índia Mãe da Lua e Índios Fulni-ô
(Índios na beira do rio/ Pernambuco) – Foto: Ana Flávia Nogueira Nascimento
- 69 -
Pintura: Marcelo Jaz – A novidade é primitiva. O moderno é primitivo
Chill out,Trancendence 2005 – Foto: Ana Flávia Nogueira Nascimento
As manifestações artísticas encontradas nos festivais de transe psicodélico refletem o
tempo que estamos vivendo, um permear de elementos ancestrais com as mais recentes
descobertas tecnológicas, que no entanto não deixam de ser primitivas, por fazerem parte da
condição humana. Conseqüentemente, a música também combina percussões tribais com
sons sintetizados, uma mistura do passado com o futuro, gerando o presente.
O mundo está se tornando cada vez mais técnico, mas o espírito humano parece
voltar-se sempre para algumas formas de expressão que se manifestam por meio das
criações artísticas. O trance mostra o desenvolvimento de nossa própria evolução enquanto
seres humanos, uma mudança constante que, no entanto, apresenta-se com uma base que
parece constante.
Em um festival, a pista de dança é o palco no qual as pessoas se entregam às
vibrações do som e dançam por horas a fio. Esse espaço será amplamente descrito no
próximo capítulo. Por enquanto, vamos nos ater às características da música produzida
especialmente para a pista – psychedelic trance. O próprio nome diz muito – transe
- 70 -
psicodélico –, uma mistura e composição de sons que podem transportar as pessoas a
estados de consciência e percepção, os quais não são alcançados de forma lógica e racional,
mas dependem de uma abertura a estados alterados da mente.
O estilo musical psychedelic trance é uma vertente da música eletrônica, que, na sua
forma básica, tem a batida 4/4 como base, e uma velocidade média de 125 a 150 bpm
(batidas por minuto). A batida é constante, e a música evolui por meio de estímulos sonoros
que são combinados e sobrepostos pela técnica de “mixagem”, que transformam a melodia
em um poderoso caleidoscópio de sons. Permeada até as entranhas pelas tecnologias
digitais, esse tipo de música combina um alto caráter repetitivo com batidas bem marcadas
e progressão de acordes que levam o ouvinte a estados hipnóticos de transe.
Por intermédio de modernos computadores tornou-se possível utilizar um curioso
recurso de som, o subgrave. Estes sons estariam fora da capacidade humana de captar sons
graves se não fossem executados num volume bastante elevado. Com o volume
extremamente elevado, o corpo humano não reconhece o som pela audição, mas pelo tato.
Desta forma, o som não é mais ouvido, e sim sentido. O alto volume provoca um
deslocamento de ar que, em contato com o ar da caixa torácica do participante, transmite a
sensação de que o som grave está preenchendo o seu corpo.
Com os novos recursos digitais tornou-se viável mesclar sonoridades advindas de
fontes muito distintas – como, por exemplo, sons do corpo humano, de filmes, da natureza,
do espaço etc. –, combinando-os de diversas formas, em mixagens inesperadas de sons
fortes e estimulantes que têm como intuito induzir a mente humana a uma jornada
psicodélica. Mas o que é a psicodelía? De acordo com o músico Raja Ram, é a capacidade
de alterar a consciência.
Como ressalta Cole e Hanan
55
, também participantes da cena de Goa (Índia), a
estrutura da música transe reflete a idéia de uma jornada em ambos os sentidos, mitológico e
reflexivo. Existe no transe uma experiência de transformação que se desenrola ao longo da
música e que dura aproximadamente de oito a dez minutos. A música começa com
ondulações lentas do som, as quais vão se intensificando, com constantes timbres que
evoluem e carregam o ouvinte a um túnel psicodélico definido como experiência do transe.
E o herói encontra os desafios, por meio das paradas periódicas da música, desenvolvidos
55
Disponível em: http://www.ocf.berkeley.edu/~easwaran/papers/psytrance.html. Acesso em: 2 jun.2004.
- 71 -
pelos misteriosos sons dos samples, que envolvem a mente em um nível diferente que pulsa
com a música. É por volta dos cinco a seis minutos da execução da música que ela atinge o
seu clímax: o êxtase da música e dos dançarinos. E a partir desse ponto ela começa a
decrescer em movimentos que a levam até a interligação com o início da próxima.
Os recentes interesses científicos por estados alterados de consciência têm
conduzido pesquisas e teorias acerca do efeito neurofisiológico da música, especialmente
dos sons dos tambores. Estudos experimentais sugerem que o som do tambor harmoniza a
atividade neurológica do cérebro com a freqüência vibratória dos sons, que podem induzir
ao transe rapidamente, dependendo da quantidade de batidas por minuto.
A questão do tempo – batidas por minutos – também é variável, dependendo da
escolha do DJ e do agrado de cada um. Mas o tempo remete a interessantes considerações
sobre a possível relação entre o tempo musical e a fisiologia humana do cérebro. A
freqüência das ondas alfa, emitidas pelo cérebro, as quais são liberadas nos estados de
transe, estão aproximadamente entre oito e doze ciclos por segundo, variando de uma
pessoa para outra. Muitas das tradições encontradas mundo afora, que envolvem estados
de transe, contam com elementos rítmicos que levam a essas escalas de ondas cerebrais.
Tipicamente, essas performances de transe começam em um nível mais baixo e vão
aumentando durante um período de horas, até atingir um nível muito elevado. O
crescimento gradual da música influencia na liberação crescente das freqüências de ondas
alfa. No psychedelic trance existe uma constante de dezesseis notas, as quais são tocadas
em ciclos de 9.6; condição paralela à das tradições de transe musical encontradas pelo
mundo nas culturas indígenas, aborígines, africanas, indianas etc.
Os sons geralmente são produzidos por intermédio dos sintetizadores e samples,
que servem para fazer o contraste com o pulso das dezesseis notas rítmicas. Para os que
dançam em transe, os sons têm a intenção de estimular a imaginação (mente), antes de
serem tomados pelos fortes mergulhos das batidas rítmicas. A amostra de fragmentos de
instrumentos tradicionais ou vozes vocais, assim como vozes retiradas de filmes, é uma
técnica usada para fazer referência à cultura da música mundial, a qual é bastante
valorizada pela cultura psicodélica. Algumas das referências muito utilizadas tanto no
- 72 -
ambient quanto no psychedelic trance são os instrumentos da Austrália aborígine
(didgeridoo), do Japão (koto, biwa), da Índia (sitar, tabla, vozes) e da África (tambores,
etc.)
Chill out do festival Trancendence 2005 – Pedra Branca – Foto: Carol Guerra
Vivemos num período de rápida mudança na tecnologia musical. Os sintetizadores
controlados por computadores oferecem novas perspectivas, sendo que uma possibilidade
é a de inventar timbres torturantemente prazerosos. Os recursos hoje disponíveis
possibilitam a criação de combinações rítmicas, melódicas e harmônicas que despertam
uma avalanche de sensações corpóreas e mentais capazes de levar os ouvintes a estados
alterados do ser. Para se criar trance de qualidade é preciso muito conhecimento e
sensibilidade musical, além de mente lógica. Com a massificação e a acessibilidade de
recursos sonoros, muitos DJs apenas reproduzem e remixam músicas já prontas, dando
assim expressividade à criação e à imaginação de alguns produtores, o que não diminui o
trabalho deles, que é qualificado como bom ou ruim de acordo com as experiências
guiadas na pista de dança.
“Executar um instrumento é também desenvolver uma linguagem que vá além das
palavras. Os instrumentos se expressam através de sons e ruídos que levam o ser
humano a outras esferas. O trance traz uma evolução da música ao fundir sons
instrumentais através da digitalização. A eletrônica e o processo de digitalização está
em todos os cantos, e é claro que estaria também na música. Atualmente é impossível
pensar em elaboração e gravação de música sem os recursos digitais. Porque existe
- 73 -
uma diferença entre a digital e a eletrônica. A música eletrônica é uma evolução da
eletroacústica, que usa os geradores de ondas com instrumentos analógicos. Mas a era
digital abriu uma fonte de possibilidades infinitas. Hoje os programas de música
oferecem mesas de som incríveis, com milhares de recursos para criação. Tem jeito de
trabalhar com trinta canais de som, ou talvez até mais, de uma só vez. Então, não tem
como fugir: o que a tecnologia digital oferece aos músicos é uma fonte preciosa de
recursos.” (Edson Valêncio
, junho 2005)
Pista de Dança, Cachoeira Alta Dance Festival 2004 – Foto: Murilo Ganesh
Os primeiros computadores surgiram na Inglaterra e nos Estados Unidos em 1945
para servirem a cálculos científicos voltados para o uso civil e militar. A virada fundamental
data, talvez, dos anos 1970, quando o desenvolvimento e a comercialização do
microprocessador dispararam diversos processos econômicos e sociais de grande amplitude.
De acordo com Lévy (1999), foi o movimento social nascido na Califórnia na efervescência
da “contracultura” que se apossou das novas possibilidades técnicas e inventou o
computador pessoal. Desde então, o computador escaparia progressivamente dos serviços de
processamento de dados para tornar-se um instrumento de criação (de textos, imagens,
músicas), de organização, de simulação e de diversão nas mãos de uma proporção crescente
da população global.
Mas qual a relação entre os psicodélicos, os computadores e o mundo virtual? A
questão é a seguinte: nos anos 1960, o movimento de contracultura estava se manifestando
contra uma sociedade materialista e patriarcal voltada para a guerra e para o poder
controlador da vida social. Sendo assim, muitos estavam em busca de novos valores e
- 74 -
descobertas, que culminaram nas experiências psicodélicas. Fazendo tais experiências, com
a intenção de explorar livremente o corpo e a mente, foram muitos os que começaram a
questionar também a natureza da realidade. O que é real? Que nível de consciência é esse
que vivemos cotidianamente? Existem outros níveis de consciência? O que constitui a
matéria?. Claro que foram muitos os que se perderam nessas experiências, como ainda
acontece, mas também foi alto o número de criações e descobertas que surgiram desde
então.
Dentre as milhares de pessoas que experimentaram os transes psicodélicos,
envolvendo desde estudantes, artistas, religiosos, líderes políticos e cientistas, foram muitos
os que atingiram novas percepções acerca da realidade e que a partir de tais experiências
criaram novas teorias e realidades. De acordo com Jaron Lanier (Hayes, 2000), um pioneiro
da indústria da realidade virtual, “os fundadores da indústria de computadores eram ‘hippies
psicodélicos’”, e a comunidade virtual mantém uma forte conexão com a tradição
psicodélica dos anos 1960. Para ele não há dúvida nesse sentido, tanto que a expressão
“estamos todos conectados”, difundida entre os adeptos do transe psicodélico, foi utilizada
desde o início para falar da web – world wide web –, a rede de conexão global que se
estende através do ciberespaço. Este que é em muitos aspectos, um espelho eletrônico da
hiperespacial rede de sinapses que correm rapidamente pela mente universal – zuvuya
56
–,
um tipo invisível de contato entre nenhum e todos os pontos fractais que possuem as ordens
paralelas do caos do universo.
Muitas vezes ao ouvir o trance me deparei com palavras de fundo que se repetiam ,
as quais induzem a um imaginário que mantém relação com a mudança do paradigma
cartesiano para o holográfico, como: Hologram, We are Holographic Memory – open your
eyes to the other realities – let your consciousness be your guide – I can only show you the
door, but you are the one who has to walk true it”
57
. Esse é apenas um exemplo de como a
própria música inclui mensagens a respeito da natureza da realidade e sugere a existência de
“outra realidade” que deve ser buscada por meio das “portas” abertas na própria
consciência.
56
O site www.zuvuya.net mantém periodicamente matérias sobre temas diversos relacionados à arte
psicodélica e à cultura planetária.
57
Holograma, somos memórias holográficas – abra seus olhos para as outras realidades – deixe que sua
consciência seja sua guia – posso mostrar as portas, mas você é que terá que encontrar seu próprio caminho.
- 75 -
A queda do modelo newtoniano-cartesiano ocorreu justamente pelo fato de que este
rejeitou os passos dados pela própria ciência do século XX, a qual por meio das pesquisas
relacionadas à parapsicologia, às experiências de quase morte, ao uso de psicodélicos, às
práticas xamânicas, às religiões antigas, aos estudos da física quântica, à teoria da
informação e dos sistemas, à cibernética e às descobertas recentes da neurofisiologia e
biologia, ampliaram o prisma da condição humana e planetária.
Nesse contexto de novas descobertas, a mudança paradigmática implica uma visão
de mundo mais integrada, que considera cada ser humano como possuidor de informações
sobre todo o Universo. Sendo assim, o ser humano tem potencial para acessar
experimentalmente todas as suas partes, passando a ser visto como componente
indissociável da rede cósmica.
O mundo está se tornando cada vez mais técnico. A música eletrônica reflete nossa
realidade. Mas enquanto a tecnologia é científica e pode ser fácil desenvolver máquinas, por
outro lado pode ser uma tarefa difícil produzir música para tocar profundamente as pessoas,
de forma que elas se tornem mais conscientes de si mesmas enquanto parte da totalidade
cósmica. Raja Ram acredita que a música psicodélica é uma expressão da alma e que,
quando feita com amor no coração, pode envolver as pessoas de uma forma que as tocará
profundamente, fazendo com que se tornem mais sinceras consigo próprias.
Grof (2000) utilizou a música sistematicamente no programa de terapias resultantes
de milhares de experiências incomuns de vários tipos. Muitas das sessões holotrópicas
conduziam os pacientes a estados não comuns de consciência por meio de psicoterapia
experimental, sessões psicodélicas (com uso do ácido lisérgico: LSD
58
), rituais xamânicos e
meditação. As experiências positivas de cura, as quais emergiram desses processos,
testemunhavam para ele as manifestações normais e naturais das profundezas da psique
58
LSD: nome dado à substância tartarato de destro-dietilamida do ácido lisérgico-25, criada em 1938 pelo
suíço Albert Hofmann enquanto trabalhava com vários alcalóides de ergotina em um laboratório da Sandoz.
Como contém notáveis propriedades psicoquímicas, a substância (descoberta em 1943) foi objeto de diversos
experimentos no campo da sanidade mental nas duas décadas seguintes. Seu uso disseminou-se no final dos
anos 1960 por meio do movimento hippie psicodélico e continua sendo hoje amplamente empregado pelos
adeptos do trance psicodélico. Além disso, tornou-se objeto de um dos mais acalorados debates da moderna
história das drogas. Uma dose mínima de LSD pode projetar um homem por meio dos percursos de sua própria
mente. Com uma dose média de 100 micrograms, o início da experiência se dará entre trinta e quarenta
minutos durará em média cinco horas, com vários graus de intensidade durante esse período. Por volta de
1966, o governo federal proibiu a venda e a distribuição não-médica do LSD, e a Sandoz Pharmaceutical de
Hanover retirou a substância do mercado experimental, em virtude das “imprevistas reações”, cortando assim a
única fonte legal do LSD e dificultando qualquer tipo de pesquisa (Cashman, 1966: 10, 12, 15).
- 76 -
humana. Quando o processo ultrapassava o material biográfico da primeira infância e da
adolescência, e os pacientes experienciavam morte ou renascimento psicológicos, sensação
de unidade cósmica, visões arquetípicas e seqüências que descreviam como memórias de
vida anterior; os resultados terapêuticos excediam as barreiras egóicas, eliminando sintomas
que haviam resistido a outros tratamentos e que desapareciam completamente a partir de
então.
Com a proibição do ácido lisérgico foi desenvolvida a técnica alternativa conhecida
como “respiração holotrópica”
59
, que combina respiração, música, trabalho corporal e
expressão artística como fonte potencial para abrir o caminho de exploração do mundo
interior. Para Grof, a música mobiliza emoções associadas a memórias reprimidas, leva-as à
superfície e facilita sua expressão. Ajuda a abrir a porta do inconsciente, intensifica e
aprofunda o processo terapêutico e fornece um contexto significativo para a experiência
direta. O contínuo fluxo da música cria uma onda de freqüências que ajudam o indivíduo a
passar por experiências e impasses difíceis, levando à superação das próprias defesas
psicológicas.
A música tem a função de despertar. A vida é ritmo. A arte é uma organização dos
ritmos, e a música é a arte elementar que mobiliza nosso sistema da vontade. O ritmo da
música desperta certos ritmos da vida, aqueles internos, que fazem parte do ser humano.
Partimos do ponto de vista de que tudo neste Universo é vibração. Até a matéria é vibração
que tem uma freqüência bem densa.
As vibrações da música levam a estados alterados de consciência quando a pessoa
deixa de vibrar na freqüência habitual da consciência cotidiana para vibrar em outra
freqüência. Ao envolver o corpo por meio da experiência da dança, muitas vezes a música
ajuda o ego da consciência habitual a ser transcendido, e a pessoa consegue acessar níveis de
59
Os estados holotrópicos caracterizam-se por dramáticas mudanças de percepção em todas as áreas sensoriais.
Quando fechamos nossos olhos, nosso campo de visão pode ser inundado por imagens provenientes de nossa
história pessoal do inconsciente individual e coletivo. A percepção do ambiente pode sofrer transformação por
meio de projeções vivas desse material inconsciente, e pode ser acompanhado por uma variedade de
experiências envolvendo outros sentidos – sons variados, sensações físicas, cheiros e sabores. Os estados
holotrópicos têm um efeito interessante sobre os processos de pensamento. O intelecto não fica debilitado, mas
opera de forma significativamente diferente do seu modo de funcionamento diário. Podemos ter profundos
insights psicológicos relativos à nossa história pessoal, dinâmicas inconscientes, dificuldades emocionais etc.
Também podemos experimentar extraordinárias revelações sobre vários aspectos da natureza e do cosmo, que
em muito transcendem nossa formação educacional e intelectual, envolvendo questões filosóficas, metafísicas
e espirituais (Grof, 2000: 18).
- 77 -
percepção e consciência expandidos. Para complementar, o uso de substâncias psicodélicas
potencializa a sensibilidade musical, expandindo os processos que levam os participantes a
atingir esferas psíquicas que envolvem emoções, sentimentos, afetos, ou seja, esferas do ser
humano que muitas vezes são esquecidas e banalizadas em uma sociedade que valoriza
demasiadamente os lados racional e mecânico da mente.
Somos todos instrumentos musicais de um tipo ou de outro, mas somos também
sinfonias completas. Nosso corpo armazena nossas memórias e está constantemente
irradiando cores e tons correspondentes, dependendo de cada momento, do estado de saúde
e da nossa consciência emocional e espiritual. Desta forma, considerando-nos como
instrumentos, de que maneira estamos tocando a nós mesmos? Estamos conscientes da
profundidade de nossos sentimentos? Enquanto estamos colocando em jogo nossas melodias
e harmonias, as nossas emoções, percepções e energias físicas, não estamos criando uma
sinfonia de sons? Não somente sons, mas também ritmos entram nas composições que já
criamos e que estamos criando no aqui e agora. Assim como estamos tocando as nossas
melodias e as nossas harmonias, ocorre o mesmo com toda a vida.
O som leva à sinestesia, que é a capacidade pela qual uma mensagem veiculada
num determinado código incorpora sensações pertencentes a um outro. É isso o
que acontece com o som: o som é uma mensagem que tem cor (visão), tem textura
(tato), tem cheiro (olfato). Através da vibração, de um timbre, sabemos se a música
é áspera, macia, calma, branca, azul, multicolor e assim vai.
Som é vibração, e
cada vibração tem uma cor. Portanto, cada música tem sua própria ‘aura’. São
vibrações que irão emanar e produzir feixes de cores determinados. Uma música
agitada, por exemplo, apresenta um fundo constante de vermelho ou laranja. O
Colortronic é o primeiro grupo musical a desenhar a música com suas cores
respectivas. Para a platéia poder ver e sentir as cores que correspondem às suas
músicas, é uma experiência fascinante. A mente é estimulada quando as
freqüências de cores combinam com as músicas que estão sendo executadas
naquele momento, gerando indescritíveis sensações novas.
Em épocas passadas, era muito comum os povos antigos como os egípcios usarem
a música conjugada à cor, como terapêutica musical, a fim de restabelecer a
harmonia entre as energias do corpo e a emotividade do sistema nervoso.”
(Mahadeva, 2004)
Todas as formas, sejam elas humanas, vegetais ou animais, emitem seu próprio som
especial, da mesma forma que foi comprovado que cada som irradia determinada cor. Os
dois estão inextricavelmente entrelaçados. O som é a cor audível e a cor é o som visível.
“Cada órgão do corpo-templo do homem foi moldado pelos ritmos criadores das hierarquias
- 78 -
das estrelas. O bater do coração, o fluir do sangue, o movimento dos músculos, as pulsações
da respiração constituem, todos eles, parte desse grande corpo-sinfonia.”
Para compreendermos melhor como atua a música trance, vejamos o interessante
relato de um musicoterapeuta:
“Primeiro o trance é basicamente formado de um quique , um bass line (linha de
baixo), e os strings (viagens psicodélicas). O quique, ou tum tum tum, vai vibrando
no nosso corpo e no nosso organismo, dissolvendo energias bloqueadas, rompendo
nódulos energéticos. E esse processo é facilitado se a pessoa tiver compreensão disso,
se ela puder relaxar, se soltar e usar a música para uma experiência profunda. Porque
não adianta saber disso e chegar lá na pista e ficar tenso, sem relaxar e não se deixar
levar pela música e pelo som. Então tem que ter também uma atitude interior. Tem
que relaxar e deixar a música conduzir. O quique é muito ligado à Terra, é uma batida
rítmica que faz você bater o pé no chão. Pode ver que as pessoas batem os pés no
chão, e isso desperta algo bem tribal mesmo. Porque o trance é tribal; é
contemporâneo, mas é tribal, ancestral. E batendo o pé no chão você faz uma conexão
com a Terra, com Gaia, Patcha Mama, com o planeta. Os strings são como portais
nos quais a viagem psicodélica acontece. Pelo quique a gente bate o pé, entra no
transe e faz conexão com a Terra. E o bass line trabalha essa região do rebolado, do
quadril, que faz a energia subir para os chakras superiores. É o swing da música que
possibilita que a energia suba para a mente, proporcionando a ampliação de
consciência.
Tem várias culturas no planeta nas quais a dança é utilizada para entrar em transe,
para trabalhar a Kundalini, e o trance eu digo que é uma música perfeita para a
transcendência, é muito forte. É importante haver a intenção, mas muitas vezes
acontece também sem a intenção, espontaneamente. Se a pessoa está no momento
dela e está aberta, então acontece espontaneamente um despertar.”
60
A fala acima mostra que o estilo musical trance é articulado de maneira complexa
para estimular tanto o corpo físico como o mental (psíquico e espiritual). Por exemplo, sons
de percussão estimulam a liberação da energia sexual. Esse é um dos motivos que faz com
que as pessoas dêem saltos na pista de dança. Não é por acaso que nosso país é regido pelo
samba. Outro fator interessante é que, muitas vezes, o número de batidas por minuto de
determinado ritmo conecta ao pulsar dos batimentos cardíacos, transportando a memória a
uma época em que a comunicação com o mundo externo era realizada somente por meio das
vibrações do útero materno. Já as flautas e instrumentos de corda acalmam e tocam o
coração; a música clássica indiana com sons de cítara estimula os centros de energia mais
altos, voltados para a espiritualidade. Os sons de água também levam a pessoa a relembrar o
útero materno e podem provocar sensações de conforto e relaxamento, bem como despertar
a sensualidade, pois a água está relacionada a todo o fluir da vida. Porém os efeitos dos sons
60
Rogério/ Lamart, 25 anos, cursa musicoterapia na UFG – Goiânia, trabalha com terapia holística e com
causas ativistas em prol do reequilíbrio de Gaia, do rerquilíbrio do planeta. Entrevista realizada em Alto
Paraíso, agosto 2005.
- 79 -
também dependem do estado do ouvinte. Basicamente, qualquer som tem a capacidade de
liberar uma energia bloqueada. A melhor maneira de permitir que isso aconteça é aceitar
quaisquer sentimentos que estejam conectados com aquele som. É claro que existem sons,
como por exemplo o de uma explosão, que simplesmente são muito agressivos e o corpo se
fecha para se proteger deles.
Os ensinamentos indianos postulam uma conexão específica entre sons de
freqüências específicas e os diferentes chakras (centros de energia do corpo). Com o uso
sistemático desse conhecimento, é possível influenciar o estado de consciência de forma
previsível e desejável. Hoje, com toda a tecnologia disponível, alguns produtores de trance
utilizam-se de freqüências elevadíssimas que influenciam o estado de consciência e podem
ativar todos os centros energéticos do corpo humano, elevando, conseqüentemente, a
energia dos que estão entregues ao som. A decoração psicodélica também faz referências a
tais conhecimentos, sendo composta muitas vezes por símbolos dos chakras, pinturas de
iogues com a coluna vertebral subindo em espiral, e os centros de energia destacados com
suas respectivas cores – vermelho, laranja, amarelo, verde, azul, violeta, dourado.
“A sica trance é feita para muitos níveis. É feita para o corpo, pois tem elementos
pulsantes que colocam o corpo em movimento; para a mente, pois tem muita tecnologia de
composição que estimula o transe; e para a alma, porque herdou das filosofias orientais não
apenas os mantras e as sonoridades meditativas, mas também a espiritualidade”, relatou
Poty
61
, músico e psicólogo que vêm se debruçando há algum tempo sobre os estudos a
respeito da composição de música eletrônica e relacionando-a aos conhecimentos da
psicologia. Para ele, o mais impressionante é criar tudo isso com a eletricidade bruta, pois o
que o computador faz é simplesmente reorganizar a eletricidade, que depois chega
novamente ao cérebro e ativa conexões elétricas, as quais provocam descarga de
hormônios, desencadeando reações físicas reais no corpo dos ouvintes.
A música com a qual nos relacionamos reflete nós mesmos. Podemos dizer que a
música evolui à medida que evoluímos. As culturas se refletem em suas músicas. Na Índia, o
som é associado ao éter, o primeiro dos cinco elementos. O éter é a manifestação primordial
e mais sutilmente penetrante da substância divina. Dele emanaram, durante a evolução do
61
Poty, músico e DJ. Entrevista realizada no Festival Universo Paralello, 2005.
- 80 -
Universo, todos os outros elementos: terra, fogo, água e ar. Som e éter, unidos, significam o
primeiro e genuinamente verdadeiro momento da criação; são as energias produtivas do
absoluto, com sua força cósmica.
A música trance reflete a era planetária, que interliga, por meio de tecnologias
modernas, elementos pertencentes a várias culturas e cria manifestações globais que
envolvem práticas e conhecimentos ancestrais por intermédio de uma linguagem comum, a
vibração. A música do transe, com sua intensidade, seu ritmo e envolvimento melódico,
encanta cada vez mais pessoas que ficam atraídas pela magia que esses sons podem
despertar. Um bom DJ é aquele que leva os ouvintes a escalar lentamente os declives de
uma ondulação energética que se propaga em meio aos que dançam em comunhão com as
forças do Universo.
Cada um tem sua própria freqüência de vibração. Cada um na sua
freqüência! Nosso corpo vibra, nossas células vibram, somos constituídos por
átomos, que por sua natureza estão sempre vibrando, dançando, circulando, assim
como a dança dos elétrons, a dança cósmica do Universo, a dança na roda de fogo
de Shiva Nataraja. Tudo flui, tudo muda, tudo está em constante movimento.” (Gil
Mahadeva 2004)
As formas musicais são determinadas por valores que vão além das idéias lógicas, as
quais transcendem até nossas idéias sobre o visível e o tangível. Existe uma ligação
indissociável entre o jogo e a música. Em diversas línguas se chama “jogo” a manipulação
dos instrumentos musicais, como na árabe, nas germânicas e eslavas, tanto que se supõe
uma profunda razão psicológica para explicar esse símbolo tão claro de afinidade. O jogo
situa-se fora da sensatez da vida prática, nada tem a ver com a necessidade ou a utilidade,
com o dever ou com a verdade. Ora, tudo isto pode aplicar-se também à música.
Todo ritual autêntico é obra de canto, dança e jogo. Atualmente perdeu-se o sentido
do jogo ritual e sagrado. Nossa civilização exaltou-se com a racionalidade, tornando-se
excessivamente sofisticada e moralista. Mas observo que nada contribui mais para nos fazer
recuperar a sensibilidade do que as obras de arte. Quando se ouve música, quer ela se
destine a exprimir idéias ou não, há uma fusão entre a percepção do belo e o sentimento do
sagrado, na qual é inteiramente dissolvida a distinção entre o jogo e a seriedade. Se for certo
que tudo o que se relaciona com a música está situado no interior da esfera lúdica e estética,
o mesmo se pode afirmar da irmã gêmea da música, a dança. Nos festivais, o ambiente
- 81 -
principal onde se toca os variados estilos de trance psicodélico é a pista de dança; nela as
pessoas se reúnem para celebrar e ocorre a maior troca de energia coletiva.
A palavra celebrar quase diz tudo: o ato é celebrado, isto é, serve de pretexto para
uma festa, uma manifestação de alegria coletiva. As consagrações, as danças, as
competições, as representações, os mistérios, tudo isto vai constituir parte integrante de uma
festividade, implicando a interrupção da vida cotidiana. Entre as realidades psíquicas, a festa
é uma entidade autônoma impossível de se assimilar a qualquer outra coisa.
De acordo com os antropólogos, a música evoluiu, de início, para fortalecer os laços
da comunidade e resolver conflitos. Muitos animais empregam seu aparato vocal para
transmitir delicadas gradações de emoção e intenção. Da mesma forma como os seres
humanos desenvolveram a linguagem, com a modulação inerente a cada palavra, parece
inevitável que as expressões formais de emoção fossem aos poucos se fundindo em algo
semelhante à melodia. Como coloca Jourdain (1998), as exibições ritualizadas de emoção
aparecem freqüentemente nas culturas tradicionais, sob a forma de movimentos físicos
estereotipados – como danças realizadas para exigir, ameaçar, aplacar, tranqüilizar etc.
Se a música surgiu para fortalecer laços sociais e resolver conflitos, ela deve sua
existência às emoções. Porque é exercitando ou aplacando emoções que estabelecemos
relação com outros seres humanos. De alguma forma, a música corporifica a emoção, pois
por meio de previsões que são posteriormente satisfeitas, esta gera prazer e pode levar o ser
humano ao ápice existencial, ao êxtase. Quando o prazer chega a extremos, nós o
descrevemos algumas vezes como “êxtase”, sentimento de dissolução das fronteiras do
nosso ser, que liberta os laços com o mundo externo e mergulha o ser humano na totalidade
“oceânica”.
A música é uma pluralidade que pretende atingir a unidade. É ao mesmo tempo
tensão e equilíbrio. Por meio das tensões pode-se pôr em destaque o que existe entre a
dissonância e a consonância, a tensão que existe entre o ritmo e a melodia etc. Os diversos
elementos da música se separam e se reúnem constantemente. São elementos que se
enfrentam e se aquietam na união que leva à integração cósmica, à integração de todas as
diferenças. A música e a exacerbação das paixões estão em constante relação; as danças
- 82 -
evidenciam esse fato. A dança e a música fazem parte das práticas orgíacas que guiam o
êxtase dionisíaco.
Apresento aos leitores um manifesto bem expressivo que encontrei colado no mural
do Festival Tranceformation, em 2004, e que também foi amplamente divulgado pela
Internet.
Manifesto World Wide Raver : O estado emocional que escolhemos é o êxtase. O alimento que escolhemos é
o amor. O vício que escolhemos é a tecnologia. A religião que escolhemos é a música. A moeda que
escolhemos é o conhecimento. A política que escolhemos é nenhuma. A sociedade que escolhemos é utópica,
apesar de sabermos que nunca será. Vocês podem nos odiar. Vocês podem nos rejeitar. Vocês podem não nos
estender. Vocês podem não estar cientes da nossa existência. Nós só esperamos que vocês não tentem nos
julgar, porque nós nunca os julgaríamos. Nós não somos criminosos. Nós não somos desiludidos. Nós não
somos drogados. Nós não somos crianças ingênuas. Nós somos uma tribo enorme e global que transcende a lei
do homem, a geografia física, e o próprio tempo. Nós somos A Multidão. Uma Multidão.
Nós fomos primeiramente atraídos pelo som. A batida distante, tempestuosa, abafada e ecoante se comparava
ao coração da mãe pulsando em seu útero de concreto, aço e fios elétricos. Nós fomos atraídos de volta a esse
útero, e lá, no seu calor, umidade e escuridão, entendemos que somos todos iguais. Não somente na escuridão e
para nós mesmos, mas para a mesma música que nos atinge e atravessa nossas almas: nós somos todos iguais.
E em algum lugar por perto de 35Hz nós podíamos sentir a mão de Deus nas nossas costas, nos impulsionando
para a frente, nos impulsionando para fortalecermos nossas mentes, nossos corpos e nossos espíritos. Nos
impulsionando para nos unirmos com a pessoa ao nosso lado, compartilhando a alegria que sentimos ao
criarmos essa bolha mágica que pode, por uma noite, nos proteger dos horrores, atrocidades e da poluição do
resto do mundo. É nesse instante que nós nascemos.
Nós continuamos nos encontrando nos clubes, ou galpões, ou construções que vocês abandonaram, e lá nós
levamos vida por uma noite. Vida intensa, palpitante, vibrante em sua forma mais pura. Nesses espaços
improvisados, nós procuramos nos desprender do peso da incerteza de um futuro que vocês não foram capazes
de estabilizar e assegurar para nós. Nós procuramos renunciar a nossas inibições, e nos libertar das algemas e
restrições que vocês nos impuseram para seu próprio bem. Nós procuramos reescrever a programação com que
você tentou nos doutrinar desde que nascemos. Programação que nos manda odiar, que nos manda julgar, que
nos manda rechearmo-nos no mais próximo escaninho. Programação que até nos manda subir escadas para
vocês, pular por arcos, e correr em labirintos e em rodinhas de ratos. Programação que nos manda comer com a
mais brilhante colher de prata que vocês usam para nos alimentar, ao invés de nos alimentarmos com nossas
mãos capazes. Programação que nos manda fechar nossas mentes, ao invés de abri-las.
Até que o sol se levante ofuscando nossos olhos e revelando a realidade de um mundo que vocês criaram para
nós, nós dançamos intensamente com nossos irmãos e irmãs em celebração a nossa vida, a nossa cultura e aos
valores em que acreditamos: Paz, Amor, Liberdade, Tolerância, Unidade, Harmonia, Expressão,
Responsabilidade e Respeito.
O inimigo que escolhemos é a ignorância. A arma que escolhemos é a informação. O crime que escolhemos é
quebrar e desafiar quaisquer leis que vocês achem que precisem criar para nos deter. Mas saibam que vocês
podem estragar qualquer festa, em qualquer noite, em qualquer cidade, em qualquer país ou continente desse
maravilhoso planeta, mas vocês nunca poderão estragar a festa toda. Vocês não têm acesso a esse botão, não
importa o que façam. A música nunca silenciará. A batida nunca vai enfraquecer. A festa nunca terminará.
Eu sou um raver, e este é meu manifesto.
- 83 -
AR: O BAILADO SMICO
Para esses espíritos, cantar é agir, é agir materialmente. Eles vivem no ar, vivem do ar.
Pelo ar, toda a vida e todos os movimentos são possíveis. É o sopro do ar que faz girar a
Terra. Como toda esfera, o enorme globo da Terra tem para a imaginação dinâmica a
delicada mobilidade da rotação. Gaston Bachelard
Dizem que o que todos procuramos é um sentido para a vida. Não penso que seja
assim. Penso que o que estamos procurando é uma experiência de estarmos vivos, de
modo que nossas experiências de vida, no plano puramente físico, tenham ressonância
no interior do nosso ser e da nossa realidade mais íntima, de modo que realmente
sintamos o enlevo de estarmos vivos. Joseph Campbel (1990)
No século XXI as novas tecnologias aceleram as comunicações entre os seres humanos,
provocando a compressão espaço temporal, a qual muitas vezes não condiz com a capacidade
emocional do indivíduo ou seu “tempo” interno. As rápidas transformações instauram o
conflito da modernidade: o corpo como limite. No corpo está centrada a capacidade de
adaptação; sente-se por meio dele a relação com o infinito, de onde emerge tanto o prazer
quanto o sofrimento humano.
Em um festival de transe psicodélico, quando a música começa a tocar na pista de
dança, os olhos brilham, as pernas e os braços se movem e até gritos de alegria e delírio são
ouvidos. Tamanha euforia, ligada às reações físicas que podem ser observadas nos corpos
dos participantes, nos remete ao fato de que a música e a dança são os principais veículos que
guiam os participantes aos estados de transe atingidos nesses encontros. O cenário da pista
de dança sempre envolve algum tipo de decoração “psicodélica” – formas geométricas (feitas
com papel holográfico), panos com desenhos tridimensionais, pinturas multicoloridas,
animais feitos de linhas fluorescentes, luz negra, e outros tantos estímulos, os quais, aliados à
música jogam com os sentidos dos que são atraídos para o canto da dança desde os dedos
dos pés.
A constante busca dos seres humanos por uma espécie de comunhão forte,
estabelecida desde o momento em que pisam juntos num mesmo solo e dançam ao som de
um só ritmo, que os guiam a estados energéticos elevados, gera e regenera certa ética
coletiva, ou seja, um cimento constituído pelas emoções compartilhadas. Na pista de dança,
as pessoas se entregam às vibrações da música movimentando o corpo intensamente, dando
indício da arte no corpo, ao mostrar que ele é capaz de se fazer, enquanto corpo e
- 84 -
movimento, encarnação artística. Afinal, deixar o corpo dançar é permitir-se arrebatar pelo
movimento.
Ao dançar, um corpo entrega-se ao ímpeto do movimento, deixando-se deslocar e
transformar. Ele atravessa o espaço, joga com o tempo, brinca com as forças e leis físicas,
diverte-se com seu peso, provoca dinâmicas inusitadas. Mas para que haja esse movimento é
preciso também haver o não-movimento, a quietude, o silêncio do corpo dançante.
Quer se trate das danças sagradas ou mágicas dos selvagens, ou das danças rituais
gregas, ou da dança simplesmente como um dos aspectos de uma festa, ela é sempre, em
todos os povos e em todas as épocas, a mais pura e perfeita forma do jogo lúdico. Isto
acontece em todos os casos em que a dança é uma exibição de movimento rítmico, uma
criação plástica que mantém relação de participação direta e ativa por parte de quem a
realiza.
Os dançarinos, por meio da mudança das sensações corpóreas e mentais, alcançam
estados chamados de “transe”, “êxtase”, “transcendência” e outras tantas denominações que
podem ser atribuídas a tais experiências. A seguir, um relato feito por uma participante do
Cachoeira Alta Dance Festival 2004:
A Terra estava em Transe!
A lama havia tomado conta de todos os corpos que habitavam o Vale Encantado de Cachoeira Alta. No meio
das montanhas, o sol já se punha quando começaram a chegar, para a noite, cavalheiros do arco-íris com suas
roupas limpas que se destacavam ao trazer um novo colorido à pista de dança. Nessa noite a chuva parou, e
todos os integrantes da tribo do transe resolveram sair da toca. Quando já estava bem escuro, tivemos novas
surpresas, luzes foram acesas no palco iluminando o DJ e depois os dançarinos e dançarinas que despertavam
seus corpos em cada ponto e em cada célula também ganharam luzes que rodopiavam pelos ares. A música era
orgânica – pulsava com energia própria dentro do animal humano, que lá, no meio das montanhas, dançava
com os pés enraizados na terra que com a água havia se transformado em lama. A batida do trance nos fazia
sentir o coração da própria Mãe Terra pulsando. E para completar a beleza: do escuro fez-se a luz no alto da
montanha e da pista de dança tornou-se possível ver novamente as árvores, as rochas e até a queda da
cachoeira. Que noite maravilhosa! A psicodelia estava em alta! Era a tribo do transe vivendo seu momento
máximo de prazer, de harmonia e paz. Do topo da montanha, onde estava localizada a pista de dança, víamos o
movimento constante das pessoas deslizando na lama através do vale encantado. Do alto, parecia um
formigueiro humano em constante movimento, como a vida: em seu transcender eterno!
- 85 -
PISTA DE DANÇA DO ‘CACHOEIRA ALTA DANCE FESTIVAL’– Foto: Ana Flávia
N. Nascimento.
Alguns precursores do movimento global do transe psicodélico, assim como
muitos dos seguidores que estão atualmente organizando os festivais pelo mundo,
acreditam que ao criarem espaços onde as pessoas vão poder ter experiências fortes por
meio da dança coletiva do transe, do contato com natureza e da contemplação da arte
psicodélica, estão, conseqüentemente, recriando um ritual ancestral de comunhão e de
unidade com o divino que permite aos participantes acessarem uma outra percepção da
realidade. Goa Gil
62
, músico californiano que participou do início da cena em Goa (Índia)
e desempenhou importante papel na associação da música eletrônica com a
espiritualidade, defende que desde o início dos tempos o ser humano tem usado a música e
a dança para entrar em comunhão com o espírito da natureza e do universo e que por meio
das festas de transe psicodélico estão fazendo o mesmo com os recursos disponíveis em
nosso tempo.
Incontáveis dançarinos afirmaram que após terem tido experiências de transe, na
pista de dança, perceberam a vida com novos significados e então começaram a tomar
novas atitudes comportamentais. Muitos relatam que a experiência profunda do transe
62
Disponível em: www.goagil.com. Acesso em: 6 mar. 2005.
- 86 -
pode levar a uma fusão do indivíduo com o coletivo e com a totalidade do Universo.
Dançar em transe induz, obviamente, a estados alterados de consciência, mas isso requer
que o dançarino perca o controle da mente lógica e racional e passe para o campo das
experiências emocionais e sensíveis.
A dança do transe é considerada por seus adeptos uma forma de “meditação
transcendental” da “nova Era”, a qual mistura técnicas ancestrais de diversas culturas com
as mais recentes tecnologias, para atingir estados em que a mente cotidiana é
transcendida. Dentre as técnicas antigas utilizadas e reconhecidas pelo grupo, o mais
aclamado por seus integrantes é o xamanismo
63
– técnica arcaica do êxtase que envolve a
música rítmica, a dança, vestimentas específicas e em alguns casos substâncias visionárias.
As técnicas orientais, relacionadas à respiração – ioga, tai chi chuan, meditação
transcendental – também são amplamente difundidas nesse contexto.
“Nós do Divina Metamorfose (conjunto instrumental) fomos chamados para tocar no
chill-out da Trancendence. A primeira reação foi de resistência. Nós já fazíamos música
para rituais, na linha do xamanismo, mas tínhamos certo desdenho pela música
eletrônica. Fomos no primeiro festival para tocar e também para fazer pão integral. Ao
chegarmos à pista de dança, ficamos admirados em ver apenas um xamã comandando
aquelas caixas enormes, um som muito mais elaborado que uma banda de quatro ou
cinco elementos. É difícil encontrar uma banda harmônica que consegue isso, todos os
elementos em harmonia. Na pista, eu sentia um trabalho xamânico de despertar do eu
interno, da liberação das limitações do corpo por meio da dança e da liberação das
limitações da mente por intermédio da psicodelia da música, dos lups que a música têm.
Essa contagem matemática do ambient e do trance de pista é hipnótica. O trance nada
mais é do que a batida xamânica, tribal, de milhões de anos talvez, mas por meio das
mais novas tecnologias. Os pesquisadores falam que a espécie neanderhal já fazia
música porque os lóbulos da região musical já estavam desenvolvidos; também pelo
ambiente de cavernas ser muito sonoro, acústico, provavelmente a música já estava
presente nas cavernas.” Edson Valêncio
64
, Entrevista realizada em São José do Rio
Preto – Junho 2005.
Tais considerações fazem sentido se considerarmos que desde tempos imemoriais o
monótono som de tambores, cânticos e outras técnicas de produção de êxtase têm sido as
principais ferramentas de xamãs em diferentes partes do mundo. Entretanto, os xamãs têm o
poder de curar, característica que não pode ser comprovada nesses eventos, mas que é
destacada por alguns terapeutas que consideram os festivais “sob o prisma de ser agente de
alto poder no despertar global e na catalisação de transformações renovadoras na vida das
63
Ver Anexo II. A)2. O xamanismo e as festas psicodélicas.
64
Valêncio, 50 anos, Arquiteto de casas e instrumentos musicais, também músico integrante do grupo ‘Divina
Metamorfose’.
- 87 -
pessoas que passam pela experiência de participar desse tipo de evento, o que ainda se
desdobra como uma manifestação universal de cura”.
65
Muitas culturas pré-industriais desenvolveram, de maneira bastante independente,
ritmos de tambores que em experimentos laboratoriais têm notáveis efeitos sobre a atividade
elétrica do cérebro. Ainda que as raízes da dança do transe estejam na base das mais antigas
práticas espirituais, nesse contexto não tem uma orientação religiosa e não se oferece
enquanto método prático de cura. No entanto, muitos relatam suas experiências como tendo
significados metafísicos.
Existe uma teoria científica que explica que o transe induzido causa a liberação de
endorfinas no corpo humano. As endorfinas são os hormônios neuronais ou substâncias
muito similares aos opiáceos em estrutura e função. São gerados no corpo e liberados sob
várias condições, como dor, cansaço, acupuntura sexo, corridas a longa distância e por meio
da dança em transe. As pesquisas comprovaram a liberação de endorfinas em estados
espirituais alcançados por meio da meditação e outras técnicas. Em 1980, na conferência
“Xamãs e endorfinas”, foi relatado que a hipnose resultante do som dos tambores e da dança
leva ao aumento de liberação de endorfinas, e que os poderes visuais e os estados de sonho
ativam tanto o estados hipnótico como a elevação das endorfinas. Sendo assim, podemos
considerar que dançar em transe altera a capacidade respiratória, bem como libera
substancias que, conseqüentemente, despertam os sentimentos do êxtase no corpo humano
(Natale, 1998: 49).
Portanto, o que há em comum entre os djembes das tribos africanas, os druidas
europeus, os xamãs do mundo inteiro, os índios americanos ou amazônicos e os terreiros da
cultura afro-brasileira – como o candomblé – e os festivais de transe psicodélico é o ritmo
que estimula a dança e os estados espirituais alcançados por meio desses elementos que
estimulam o corpo e a mente. Por exemplo, nos rituais religiosos de possessão do Haiti, na
cerimônia vodu, o indivíduo é levado a um estado de transe enquanto dança ao som das
batidas rítmicas contínuas e prolongadas dos tambores, chegando até a engolir fogo. Na
65
Luiz Antonio Berto (2/5/2006). Disponível em:
http://pages.apis.com.br/terapiaenergetica/Arquivos%20Selecionados/O%20Poder%20do%20Festival%20Tran
ce.htm. Acesso em: 13 jun. 2006.
- 88 -
religião Sufi
66
– dos dervixes do Oriente Médio (Islã) –, a principal prática é uma espécie de
dança em rodopio, que leva ao estado de transe. Rumi, um poeta místico famoso que deu
início a este culto, teve uma experiência na qual, por meio da dança, chegou a um estado de
puro transe e atingiu um espaço onde seu ego se dissolveu e ele pôde entrar em sintonia com
o divino, recebendo assim a iluminação. Daí por que os dervixes são assim chamados,
significando “portal”.
Nos festivais psicodélicos a comunhão extática acontece principalmente na pista de
dança, onde os participantes passam muitas horas dançando hipnotizados pelas freqüências
elevadas da música e pelo ritmo repetitivo. O ponto alto desses encontros acontece
geralmente por volta do terceiro dia, quando as pessoas já se desligaram da vida na cidade,
das responsabilidades mundanas e se entregaram totalmente ao movimento.
PISTA DE DANÇA DO FESTIVAL TRANCENDENCE 2005 – Foto: Carol Guerra
“Tem vários motivos para você ir num festival de trance psicodélico. Tem pessoas
que focalizam o uso de drogas, mas não é só isso. Você vai numa festa para encontrar amigos,
para se divertir, para passear, ver coisas novas. As drogas existem em qualquer lugar. O trance
é uma música que só de ouvi-la, você já entra em transe. A própria música já altera o estado de
consciência, porque é baseado na batida cardíaca, bpm – batida por minuto. E é interessante
66
Disponível em :
http://www.zuvuya.net/cad_galeria_materia_ver_R.asp?cod_capa=800&site=R&pasta=sufitrance&tipo_mat=
mc. Acesso em: 12 mar. 2006.
- 89 -
que tem diferentes batidas e freqüências para todos os gostos. Tem pessoas que gostam de um
som mais tranqüilo, com o bpm mais lento. Tem outros que gostam de progressivo, uma batida
mais ou menos lenta. Tem outros que gostam de batidas mais aceleradas, 148 bpm. Acho que
153 bpm é o máximo que já ouvi, o mais heavy (pesado). Eu também curto um dark no meio da
noite, tipo duas ou três horas da manhã. O dark é uma coisa mais cheia, tipo um filme de terror,
em que você sente um arrepio. Porque você sente a energia da música e a vibração
despertando muitas coisas dentro de você.
Tem momento em que você se identifica com a música e se dissolve nela. Eu já entrei em
transe várias vezes enquanto dançava, mas depois, quando eu entrava novamente no estado da
mente, eu saía do transe. Eu entrava em transe sem querer, estava na pista dançando por várias
horas, e de repente entrava em transe. Mas, se alguma coisa me distraíia, eu voltava de novo
para a mente racional. Então, para eu entrar em transe tinha que esquecer minha mente e
meus pensamentos. Porque para entrar em transe tem que haver uma entrega, vai além da
mente racional. Quando você se entrega para a música e dança por muito tempo, chega um
momento em que acontece, você entra em transe.
O estado de transe é quando você esquece o seu nome, a sua identidade, esquece
que é um corpo e você só existe, você é energia. E você se desintegra no Cosmos, no todo. Você
é energia, então, você só está existindo e vivendo aquele momento. Só sente! Aí quando você
lembra que você é matéria, é corpo, é mente, é alma (risos), aí a casa cai e você entra nos
pensamentos mentais e não consegue acessar essa outra dimensão.” Vinit
67
, Entrevista
realizada em Alto Paraíso/ Setembro 2006.
Em encontros onde se busca o transe coletivo, o ritmo é considerado o principal
estímulo. Rouget (1985) cita inúmeros exemplos encontrados em todo o mundo, de
estados de transe e possessão estimulados por meios sonoros. Segundo o autor, a música
rítmica não produz o transe, mas pode ser considerada “o principal meio de manipular o
transe”, visto que as ondas sonoras têm efeitos nervosos e orgânicos sobre os seres
humanos, independente das formações culturais destes. No entanto, a mesma música fora
de determinado ritual não tem a mesma capacidade de produzir o transe. São necessárias
inúmeras condições para que o efeito da música ou do ritmo leve a tais estados.
Estados de transe parecem estar sempre associados a estímulos sensoriais, como:
música, barulho, cheiros, agitação, imagens, símbolos, uso de substâncias etc. O transe é
definido como um estado temporário da consciência, ou, como a própria palavra indica,
um estado transitório. A pessoa deixa o estado usual de consciência por certo período de
tempo e depois retorna a ele, representando a transcendência do self (si-mesmo)
67
Vinit - Wisdon Homble, trabalha há cinco anos com o Trance pela Solar Flares, organização que produz o
festival Trancendence – foto acima
- 90 -
individual, como uma respectiva liberação
68
resultante da intensificação causada pela
estimulação física e mental.
Por meio de múltiplos exemplos retirados de variadas culturas espalhadas pelo
mundo pode-se constatar que o transe é um resultado da relação entre a música e a dança.
Nos variados tipos de cultos religiosos – candomblé (Brasil), culto bori (Nigéria), culto
zãr (Etiópia) culto rab (Senegal) – existem diferentes sistemas lógicos que governam a
articulação dos elementos que constituem a experiência do transe. No entanto, a música
aparece como um componente essencial, até porque representa em si mesma um sistema.
Sylvan
69
(2003) realizou uma pesquisa comparativa entre as culturas e constatou que
a combinação da música rítmica com a dança em transe sempre foi utilizada como um
poderoso artifício das experiências religiosas. Para o autor, o segredo a respeito dos estados
de transe alcançado nas tradições ancestrais foi escondido da cultura ocidental e agora es
sendo revelado por meio das novas buscas por espiritualidade, que se manifestam também
pelo fenômeno do transe contemporâneo, quando milhares de pessoas dançam juntas em
transe. Para ele, os festivais de transe psicodélico estão contribuindo para a renovação
desses antigos conhecimentos, pois os novos tipos de sons e as complexas composições
produzidas pelos artistas contemporâneos por meio da junção de instrumentos ancestrais
com os sons eletrônicos e digitais, juntamente com a multimídia das artes visuais e os
sofisticados conhecimentos e usos de substâncias psicodélicas, podem nos levar a um novo
capítulo na longa história da experiência de transe.
Quantos rituais de dança já devem ter sido realizados pelos povos do passado?
Impossível saber tal dado. No entanto, sabemos que a dança, a música e as substâncias
psicoativas sempre estiveram presentes na história humana como meios utilizados para
mediar a comunicação com o sobrenatural. A dança e a música continuam sendo
7 A palavra “liberação” significa, para Rouget, a liberação do “movimento potencial humano”, ou “liberação
do corpo”, termo cunhado pelo movimento bioenergético para designar a meta dos “novos grupos de transe”.
(Rouget, 1985: 14).
69
The secret life of trance (A vida secreta do transe) Investigating the Cross-Cultural Connection Between
Music and Religious Experience. Disponível em: www.be-in.com (07/05/2004) www.fusionanomaly.net
Acesso em: 7 maio 2004. Ver também Anexo II. B)1.
- 91 -
instrumentos dos xamãs para alcançarem a cura de pessoas doentes. A dança dos xamãs
siberianos imita os movimentos de pássaros e outros animais. Os xamãs coreanos realizam
seus rituais de cura por meio da dança e acreditam que cada um tem um deus que governa
seu corpo pessoal e dança por intermédio dele. Para o paciente, a dança é parte da cura, e os
demais participantes dançam para trazer boa sorte.
No século XV, uma mania de dança chamada tarantismo disseminou-se pela Itália no
despertar da Peste Negra, doença que ficou conhecida por meio dos nomes de São Vito e
São João Batista, pois era nos altares dedicados a esses santos que os dançarinos buscavam
alívio para suas aflições. Nas épocas de privação e miséria, os membros mais abusados da
sociedade sentiam-se tomados de uma irresistível vontade de dançar selvagemente até
atingir o estado de transe e tombar exaustos e, em geral, curados, pelo menos
temporariamente. Relatos da época contam como os camponeses abandonavam seus arados;
os mecânicos, suas oficinas; as donas-de-casa, os seus afazeres domésticos; as crianças, os
seus pais; os criados, seus patrões, e todos mergulhavam de cabeça na dança frenética que se
estendia por horas seguidas, com os dançarinos berrando e gritando, quase sempre com a
boca espumando.
Tarantismo foi o nome atribuído à picada venenosa da tarântula. Como nos outros
lugares, os que sofriam da doença apresentavam extrema sensibilidade à música e
dançavam até atingir o transe. Uma vez descoberta a canção apropriada à estimulação do
paciente, uma única aplicação dessa terapia da dança e da música bastava para anular a
aflição. Na Itália, de fato, até o século XVII grupos de músicos costumavam percorrer o país
nos meses de verão, quando a doença atingia seu ponto mais alto, tratando os taranti das
diversas vilas e cidades em enormes reuniões dançantes.
Música e dança são técnicas consagradas para induzir a estados de transe. Sejam
quais forem os métodos empregados, torna-se importante destacar que cada cultura
interpreta os estados de transe de maneira distinta. O cristianismo, assim como outras
religiões estabelecidas no mundo ocidental, têm em geral procurado diminuir as
interpretações místicas do transe, pois os que o experienciam reivindicam seu
reconhecimento como revelação divina. Fora da Igreja Católica, para a maioria dos
psiquiatras e psicanalistas tanto a possessão por espírito como outros estados de transe são
explicados sem recorrer à crença na existência do diabo ou de Deus. A maioria dos
- 92 -
profissionais da área da saúde continua considerando-os estados patológicos da mente
dissociada. No entanto, a própria psiquiatria utiliza hoje uma ampla gama de técnicas que
são especificamente destinadas a provocar estados semelhantes ao transe, nos quais o
paciente, induzido por substâncias ou hipnose, podem vomitar experiências traumáticas
reprimidas através da catarse. Para os psiquiatras não há nenhuma implicação de que essas
técnicas sejam místicas. Pelo contrário, sustenta-se que elas atuam no sistema nervoso
central por meio de processos ainda desconhecidos.
Em várias culturas do Oriente a dança é tida como um ato criador, que suscita uma
situação nova e desperta no dançarino uma personalidade nova e superior. A dança possui
uma função cosmogônica, desperta a energia latente para que seja conferida forma ao
universo. Numa escala mundial existem múltiplas manifestações rituais encontradas em
diversas culturas e civilizações que empregam a dança como meio de comunicação com o
divino. No hinduísmo por exemplo, Shiva é o dançarino cósmico; em sua manifestação
dançante incorpora em si mesmo a energia eterna que, simultaneamente, torna manifesta. As
forças reunidas e projetadas no seu girar frenético e incessante são os poderes de evolução,
preservação e dissolução do universo. A natureza e todas as suas criaturas são efeito dessa
dança eterna.
A via shivaísta é a via tântrica, que utiliza as funções físicas e os aspectos
aparentemente negativos, destruidores, sensuais do animal humano como ponto de partida
para os estados elevados do ser. Por meio da evocação e reativação orgiástica do caos
primordial são favorecidas as formas de êxtase, um retorno à origem da vida, ao princípio
criador, ao divino. O tantrismo é baseado na experiência, nos ritos, técnicas que permitem
ligar a experiência da ioga com os princípios universais expressos na cosmologia do
Sânkhya. O tantrismo desenvolve e utiliza as possibilidades físicas, sutis, espirituais do ser
humano, tendo em conta a interdependência de todos os aspectos do ser cósmico. O corpo é
a base, o instrumento de toda realização. Não há vida, pensamento ou mesmo espiritualidade
que sejam independentes de um corpo físico. Nesse sentido, não há “ser humano” que não
reflita, em todas as suas funções, um aspecto da natureza divina.
No mundo dionisíaco dá-se o nome de orgiasmo às práticas correspondentes ao
tantrismo. Como Shiva, na Índia, Dioniso apresenta-se na Grécia sob o duplo aspecto de
- 93 -
deus da natureza e de deus das práticas orgíacas, que são, em geral, cerimônias de grupo, em
que são praticados sacrifícios sangrentos, danças extáticas e proféticas, bem como ritos
eróticos. Dioniso é o inspirador da mania que se manifesta no estado de transe dos fiéis do
deus, o qual ele próprio participa do orgiasmo, pois ele mesmo é essencialmente o bacante, o
participante que se lança impetuosamente à selvageria, buscando a possessão, o contato com
o sobrenatural.
A dança, como meio para entrar em contato com o sobrenatural, é um recurso
bastante antigo. No período medieval as danças foram tidas como possessão, loucura e,
assim, foram banidas pela moral proibicionista, que considerava esse tipo de manifestação
pecaminosa e, portanto, deveria ser evitada. Mas a dança do transe não desapareceu. Suas
raízes são muito profundas, e devem ser tão antigas quanto a humanidade, pois são
encontradas também no comportamento dos animais.
“Dançar em transe é um ritual sagrado. Manifesta a força da natureza,
cura doenças e guia os mortos a seus descendentes. Além disso, ela mostra nossa
imortalidade, dando-nos direção e auto-estima. Antigamente a dança abençoava as
tribos e guiavam suas populações ao mundo espiritual.” (Natale, 1998: 25)
Para Natale, pesquisador das artes do movimento, “a dança do transe”
70
desperta nos
seres humanos os três aspectos essenciais da espiritualidade: amor, respeito e paixão pela
vida. Ao dançar em transe, o ser humano move-se com uma paixão orgânica, natural, que
flui por meio da respiração e dos batimentos cardíacos. Ele acredita que se pretendemos
salvar nós mesmos e o planeta Terra, temos que habitar nossos corpos. E para isso a dança
do transe serviu e ainda serve como um meio para nos incorporarmos e celebrarmos em
comunhão com a Grande Mãe Natureza.
A exclusão dos rituais em nossa cultura nos custou muito caro, e os danos maiores
aparecem agora, no psiquismo dos jovens, que em sua maioria não sabem como direcionar
70
Frank Natale (1998) realizou um trabalho exaustivo sobre a dança do transe em diferentes culturas. O autor
ressalta que por meio da dança do transe alteramos nossa consciência e entramos em uma realidade não-
ordinária ou adentramos no “mundo do espírito”, aquele mundo além do tempo e do espaço, no qual tudo é
possível. O dançarino tem sua consciência expandida. “Enquanto o corpo dança, sua alma (espírito) viaja livre
dos limites da razão, uma energia tremenda é despertada e através de um aquecimento espontâneo do corpo
que se torna repleto de energia. Você se torna completamente presente, preenchido com amor, energia e um
súbito respeito por estar vivo. Você está finalmente satisfeito por ser um ser humano” (Natale, 1998: XI).
- 94 -
toda a animalidade que preenche as entranhas de seus corpos. A sociedade moderna, ao
voltar-se demasiadamente para a esfera material, removeu os ritos de passagem e nos privou
das sabedorias contidas nas tradições ancestrais. Em conseqüência disso, nossa sociedade foi
esvaziada de sentido, e os jovens, principalmente, estão cada vez mais perdidos,
desencantados e separados da esfera espiritual e da espontaneidade que rege o mundo da
natureza, tornando-se muitas vezes incapazes de reconhecer a interdependência entre o ser
humano e a natureza.
Após anos de pesquisas experimentais com dança, Natale (1998) concluiu que
dançar em transe é um ótimo exercício natural, um meio para curar o corpo, a mente e as
emoções. Ao dançar em transe você tem permissão para ser você mesmo por inteiro, o seu
ser se expressa livremente no espaço, conectando-o profundamente com todos e com tudo.
Uma autêntica experiência de dança em estado de transe pode levar ao questionamento da
“natureza da realidade”, induzindo a perceber que não apenas os humanos, mas também os
animais, plantas e minerais, contêm vida e consciência. Assim, torna-se possível surgir uma
nova maneira de olhar a vida, passando a respeitar e honrar essas outras formas de
consciência que coabitam a Terra.
Aqui temos a liberdade de poder dançar
como se ninguém tivesse nos olhando. A
dança é a forma mais mágica da
transcendência. A dança é mágica porque
ela é o movimento, e não podemos
fotografar o movimento. Então a dança não
é daqui, é de uma outra freqüência. Você
não pode parar o movimento, é a dança do
universo, não tem como parar. Eu não
acredito num Deus que não saiba dançar.”
(Ariadna. Entrevista e foto realizadas no
Festival Universo Paralello, 2004)
Foto:
Ana Flávia N. Nascimento
Uma das conseqüências da execução de uma dança é a de provocar o êxtase em
quem a realiza. O êxtase começa com uma energia elevada, sintonizada com o corpo
emocional, a qual é gerada quando a atenção se curva diante de “vibrações” que inspiram a
fusão com determinadas freqüências elétricas que podem, conseqüentemente, gerar
descargas elétricas no corpo físico, as quais, enquanto sinapses que chegam até os chakras e
meridianos do corpo, podem despertar, de uma só vez, todos os 72 mil centros de energia
- 95 -
do corpo humano. Esse pico da experiência muitas vezes foi chamado de “despertar”. Tal
concepção está diretamente relacionada às manifestações de danças rituais, ligadas a cultos e
celebrações de conexão com o divino.
Tanto nas antigas sociedades como nas religiões atuais que utilizam a música e a
dança como meios para busca do estado de êxtase, o propósito de tais experiências parece
estar associado à identificação com as forças da natureza, a comunicação com os deuses e a
obtenção de poderes sobre-humanos. Entretanto, na sociedade contemporânea, as novas
“tecnologias” possibilitam que as pessoas alcancem tais estados “instantaneamente”. E isso
se tornou possível não apenas por meio da aliança entre uma música poderosa com a dança,
mas também do uso de uma substância que está diretamente associada às pistas de dança e
que não por acaso tem o nome de Ecstasy
71
. Este fato nos remete a seguinte questão: As
“drogas” têm importância mística e religiosa? As implicações disso serão abordadas no
próximo capítulo.
“E o que eu tenho a dizer sobre o trance. É que o trance, ele mexe com uma parte
do nosso corpo, que nenhum outro tipo de música ainda nos tocou. Mas que
também poderia tocar, depende do nosso estado de espírito. A música libera
alguma coisa dentro do nosso ser que age como uma droga. O trance tem o poder
de tocar na sua alma sem dizer uma palavra sequer. Entendeu? É por meio do
corpo que ele transmite para alma, e não da alma para o corpo. É do corpo para a
alma. Por isso que é diferente de tudo. É o agito do corpo agitando as moléculas da
alma tocando profundamente o espírito.” (Saulo, designer de jóias em resina.
Entrevista realizada em Cachoeira Alta Dance Festival, 2004)
Nos festivais, a pista de dança é o palco do êxtase, onde são vivenciados os
momentos de maior intensidade e prazer. No ritmo das mesmas vibrações e freqüências, os
dançarinos que compõem a cena do transe parecem mesmo levitar como deuses que flutuam
em outra esfera dimensional. A etimologia da palavra extático indica: extático vem do grego
ekstatikós, que faz mudar de lugar. Extático é um adjetivo, portanto expressa qualidade ou
propriedade ou estado do ser; significa posto em êxtase e tem como sinônimos: absorto e
enlevado. Êxtase – o substantivo do qual se origina o adjetivo extático – significa
arrebatamento íntimo, enlevo, arroubo, encanto.
O êxtase provoca uma rápida transformação na percepção da temporalidade. Isto
porque o som se desdobra através do tempo, em movimento. E o movimento é a razão de ser
71
Ver Anexo II.B) 4 e 5.
- 96 -
de qualquer sistema vivo. Mas quando a música leva ao êxtase, faz mais do que apenas
mover-nos de um lado para o outro. Por alguns segundos, ela nos tira do tempo,
proporcionando uma experiência dificilmente vislumbrada na vida diária, pois conduz a
mente a uma experiência de sincronicidade. É por esse motivo que a música e a dança
podem ser transcendentes, pois durante alguns momentos elas tornam os seres humanos
maiores do que realmente são, e o mundo, mais ordenado do que ele realmente é.
Por meio dos movimentos livres, a hierarquia corpo-mente-espírito é transcendida a
ponto de instalar-se uma nova relação de unidade e totalidade. Sair de seu próprio mundo ou
de seu próprio ser constitui uma experiência transcendental que proporciona o sentimento de
soltura, a sensação de liberdade e a descoberta interior de um ser inteiramente vivo, dotado
de respostas espontâneas. Dizer que a dança é extática significa que esta pode transformar o
indivíduo que dela participa, provocando-lhe, por meio dos movimentos da dança, sensações
de encantamento, de gozo, de entusiasmo, de graciosidade pela beleza da vida.
Em uma sociedade identificada com o corpo enquanto matéria, e não como ser
espiritual, a busca pela transcendência estará voltada para “fora do corpo”. No entanto, a
dança do transe não funciona assim. A dança convida o espírito a voltar para “casa” com
sua grande alma, e o corpo torna-se preenchido com o espírito, deixando de ser o foco
primário de identificação. Então pode-se sentir sendo um só em total fusão com o Universo,
adentrando nas profundezas do inconsciente coletivo. Estar espiritualizado ou presente
significa tornar-se completo por meio da energia vital, sentindo-se conectado com o
incompreensível, que leva ao sentimento de se estar fora do corpo. Porque quando isso
acontece, a identificação é com o espírito ou energia, e não com o corpo.
Conseqüentemente, por meio da dança do transe pode emergir um orgasmo ou êxtase
coletivo. A elevação da energia vital toma conta. Quanto mais dança, mais espírito, mais
respiração, mais energia, mais intenso o prazer.
Se aceitarmos que os seres humanos são criaturas espirituais, compostos de energia
em constante movimento, também teremos de admitir que a saúde está relacionada com a
espiritualidade. Nossos esforços para nos mantermos saudáveis só podem ser eficazes se
adotarmos um conceito positivo de saúde. A definição de saúde como ausência de doença é
insatisfatória porque encara o corpo como uma máquina. No entanto, temos sentimentos,
nos movemos espontaneamente, coisa que nenhuma máquina faz, e além disso estamos
- 97 -
ligados profundamente aos outros organismos e à natureza. Nossa espiritualidade deriva
desse senso de união com uma força ou ordem que vai além de nós enquanto indivíduos.
Pouco importa o nome que lhe atribuímos ou deixamos de atribuir.
A saúde mental se reflete objetivamente na vitalidade do corpo, a qual se manifesta
no brilho dos olhos, na coloração e no calor da pele, na espontaneidade da expressão, na
vibração do corpo e na graciosidade dos movimentos. Os olhos têm especial importância,
porque são o espelho da alma. Neles pode se ver a vida do espírito. Na depressão os olhos
são tristes e manifestam o desespero da pessoa. A vibração do corpo e a graciosidade dos
movimentos são, da mesma forma, manifestações desse espírito.
Quando a mente e o corpo estão separados, a espiritualidade torna-se um fenômeno
intelectual – mais uma crença do que uma força vital. Assim, o corpo se transforma em um
laboratório de bioquímica, como na medicina moderna. O corpo sem energia caracteriza-se
por relativa falta de graça e vitalidade. Seus movimentos tendem a um caráter mecânico,
determinado pela mente. Quando a energia vital impulsiona o corpo, este treme de excitação
ou salta de entusiasmo, como uma torrente d’água descendo montanha abaixo, ou então flui
de forma tranqüila, como um rio largo e profundo correndo numa planície. Embora a vida
nem sempre transcorra mansamente, quando alguém é obrigado a empurrar-se ou arrastar-se
pela vida, dia após dia, seguindo regras e tentando se adequar ao inadequável, isso significa
que há algo de muito errado afetando a dinâmica do seu corpo, o que o predispõe à doença.
Em uma sociedade que nega a animalidade, tentando de todas as maneiras excluí-la
da cena social, e tende a supervalorizar o pensamento racional e o autocontrole, os
resultados podem ser devastadores. Afinal, de alguma maneira é preciso canalizar as
emoções, os impulsos violentos e a enorme energia latente contida nos corpos humanos. E
não importa como, tudo isso voltará para o plano social de alguma maneira. É possível
observarmos que uma importante conseqüência disso encontra-se hoje na violência
banalizada ou na perda da graciosidade – movimento, sentimento e pensamento integrados
–, uma das qualidades naturais do homem enquanto ser natural. Uma vez perdida, ela só
pode ser recuperada restabelecendo-se a espiritualidade do corpo. Para isso precisamos
entender o corpo como um sistema energético complexo, delimitado e auto-sustentado, que,
para sobreviver, depende e está em constante interação com o seu meio ambiente. Isto nos
levará a explorar o papel dos sentimentos e emoções que constituem o ser humano. Na
- 98 -
ausência dos sentimentos, os movimentos tornam-se mecânicos e as idéias transformam-se
em meras abstrações.
Portanto, numa sociedade que banalizou e menosprezou os poderes do corpo –
enquanto sistema energético que canaliza tudo o que está a sua volta – a busca por
experiências de reincorporação desses conhecimentos que interligam os corpos físico,
mental e espiritual aparece hoje de múltiplas formas. Uma delas pode ser vista nos festivais
de transe psicodélico, em que os participantes dançam em transe por muitas horas seguidas
sem interrupção e, conseqüentemente, os canais de energia que até então estavam
adormecidos são ativados, permitindo que a energia vital circule por todo o corpo.
O interessante é observarmos essa busca extática como uma necessidade de explosão
da couraça identitária, valorizando novamente os sentidos e o sensível. Dessa forma,
podemos observar que em uma sociedade em que o corpo se tornou objeto de luxo, de
prazer, assim como fonte inesgotável de dinheiro, de poder e também de novas doenças, o
jogo das aparências conduz grande parte dos grupos sociais, induzindo assim a uma
teatralidade sem fim. Nos festivais, até certo ponto essa teatralidade às vezes pode fazer tudo
parecer uma farsa, mas depois de alguns dias dançando em transe todas as diferenciações
estéticas se dissolvem quando o êxtase coletivo é vivenciado.
“Tudo no Universo é uma dança. Se a gente parar para pensar, o mundo dança o
tempo inteiro a nossa volta. A vida é uma dança. Você tem aí o Universo o tempo
inteiro, a Terra circulando e dançando. O Sol circulando em volta da Terra, tudo é
uma dança maravilhosa, um grande sentido de existir. A magia, ela está aí, a
qualquer momento, para todos, só esperando os nossos sentidos ficarem afiados
para ela se manifestar.
Quando eu danço, me volto para a respiração. Eu vou passar esse exercício
para vocês sentirem. Nós temos uma maneira de levar o ar ao nosso cérebro e
liberar substâncias que nos levam ao êxtase, de forma que não precisamos
necessariamente fazer uso de nenhuma substância para atingir tal estado, é só
respirar – Pranayama.
Quando você entra em conexão com a música e se entrega, até mesmo os
menores músculos do seu corpo se divertem em movimentar. E você se sente
dentro da brincadeira, da alegria, dentro do prazer de estar colocando sua energia
para fazer parte do jogo. E você respira, e você agradece a Deus. E você respira e
agradece. Libera uma química maravilhosa que queremos é voar, não é dançar.”
(Inuká, palestra Xamanismo e as plantas de poder, realizada durante o Festival
Universo Paralello, 2004-05)
Voltemo-nos agora para a respiração que mencionada no discurso acima. Para os
iogues, a respiração é a forma física do espírito. Por intermédio da ioga, quando você
- 99 -
altera sua respiração, altera sua consciência. Quando a consciência está alterada, a
respiração se transforma. Existe uma inter-relação que também acontece por intermédio da
dança. A vida depende da respiração ativa. Respirar é estar conscientemente vivo. Sendo
assim, respirar é a função mais importante, tanto que os seres humanos e outros animais
podem resistir por um tempo sem comer, sem beber, mas sem respirar duram apenas
poucos minutos.
As práticas respiratórias são vitais para induzir o transe e a alteração de consciência,
além de servir também para gerar incrível vitalidade. Tanto que um dos resultados
conscientes de se dançar em transe está relacionado a um novo senso de vitalidade e de
bem-estar, bem como ao aumento dos poderes mentais e do desenvolvimento espiritual. A
respiração rítmica ou ritmada coloca o dançarino em harmoniosa vibração com a natureza e
leva ao encantamento, ao poder e à visão de outras realidades.
Muitos mestres espirituais e esotéricos ensinaram que encontramos no ar a
substância da qual deriva toda atividade, vitalidade e vida. Entretanto, eles diferenciaram os
nomes atribuídos a essa força. O mais conhecido deles é a palavra em sâncristo prana, que
significa energia absoluta ou “o princípio universal de energia e força”. Por meio da
respiração experimenta-se uma elevação da energia. A energia é o poder que dá vida a todas
as formas de criação; é o elemento do qual toda atividade, vitalidade e vida são derivadas, a
força universal. A vida está em tudo, em cada átomo e molécula. A desvitalização de
algumas coisas e pessoas representa uma baixa de energia. Entretanto, a energia está em
tudo e em todos os lugares.
Por meio da dança é possível acessar essa energia, a qual denomino espírito da vida.
A energia é responsável pela manifestação e pela criação da vida. Quando dançamos em
transe, liberamos grandes quantidades de energia no corpo, o qual manifesta vitalidade,
saúde, humor, risadas, entusiasmo, excitação e outras emoções. Assim como o oxigênio no
sangue é usado pelo corpo todo, a energia é utilizada pelo sistema nervoso. Essa energia
precisa ser constantemente renovada. Todo pensamento, ato, emoção usam energia, e uma
vez compreendida a relação entre o ar e a energia armazenada no sistema nervoso para dar
vitalidade à vida, a importância da respiração é compreendida. Em decorrência disso está o
valor da dança do transe, que causa uma saudável respiração que ocorre naturalmente. Ao
- 100 -
respirar de forma consciente estamos inalando oxigênio e energia que vai direto para o
cérebro, criando um senso de euforia ou transe que estimula a secreção de endorfinas.
Na terapia reichiana
72
, o primeiro passo do procedimento terapêutico era conseguir
com que o paciente respirasse mais fácil e profundamente. O objetivo do tratamento era o
desenvolvimento, no paciente, de sua capacidade de se entregar totalmente aos movimentos
espontâneos e involuntários do corpo, os quais fazem parte do processo respiratório. A
ênfase recaía em deixar a respiração plena, de forma que as ondas respiratórias produzissem
um movimento de ondulação do corpo chamado por ele de o reflexo do orgasmo. O orgasmo
representa uma reação involuntária como um todo, manifestada em movimentos rítmicos e
convulsivos. O mesmo tipo de movimento pode ocorrer quando a respiração é inteiramente
livre e o indivíduo se entrega ao seu corpo. Reich acreditava que o movimento livre da pelve
e da respiração é indicativo de um ser emocionalmente saudável.
Podemos traçar um paralelo também com a terapia bioenergética
73
, que tem como
objetivo ajudar o indivíduo a retomar sua natureza primária, que constitui sua condição de
ser livre, seu estado de ser gracioso, pleno e belo. A liberdade, a graça e a beleza são
atributos naturais a qualquer organismo natural, animal. A liberdade é a ausência de
qualquer restrição ao fluxo de sentimentos e emoções. Sendo assim, a graça é a expressão de
fluir dos movimentos, enquanto a beleza é a manifestação da harmonia interna provocada
pelo simples deixar fluir. Esses fatores denotam uma conjunção de corpo e mente saudável,
uma vez que a natureza primária do ser humano é estar aberto à vida e ao amor.
Observar os movimentos rápidos e ágeis dos animais pode ser uma experiência
estimulante. Poucos seres humanos podem ter a esperança de se aproximar da graciosidade
e da segurança de seus movimentos. O rápido vôo das andorinhas, a corrida de um
leopardo, os saltos de veado, os saltos dos golfinhos etc. denotam as qualidades naturais do
corpo animal, as quais também estão presentes no corpo humano, que nasce num estado de
graça animal, ainda que seus primeiros movimentos sejam um tanto desajeitados.
Entretanto, ao longo do desenvolvimento, os seres humanos vão enrijecendo tanto seus
72
Wilhelm Reich demonstrou, a partir da descoberta do orgônio (resultado da firme aplicação do conceito de
energia psíquica inicialmente no campo da psiquiatria), que o conhecimento das funções emocionais da energia
biológica é indispensável para a compreensão das suas funções físicas e fisiológicas. As emoções biológicas
que governam os processos psíquicos são, em si, a expressão direta de uma energia rigorosamente física, o
orgônio cósmico (Reich, 1982: 11).
73
A bioenergética é o estudo da personalidade humana em termos energéticos do corpo (Lowen, 1990).
- 101 -
corpos e limitando de tal forma a respiração, que o estado de graça natural é perdido. A
referência aos animais é feita também pelo fato de que eles fazem parte do “simbolismo
psicodélico”, pois sempre estiveram presentes nas decorações dos festivais nos quais
realizei pesquisa de campo – pássaros, libélulas, borboletas, golfinhos, peixes e outros
tantos animais têm estimulado o imaginário dançante.
Ainda nos primeiros meses, o bebê já efetua alguns movimentos verdadeiramente
graciosos e engatinha como um animal sobre suas quatro patas seguindo seu instinto. No
entanto, mais cedo ou mais tarde, no decorrer do processo de crescimento, a criança vai
perdendo a graça, na medida em que é forçada a deixar de lado seus impulsos interiores
para se adequar às expectativas externas. Quando os seus próprios impulsos contrariam as
injunções dos pais, a criança rapidamente é ensinada a considerar ruim esse
comportamento, e se insistir nele, é punida. Por exemplo, ao chorar, a criança, por
intermédio das ondas de choro que percorrem seu corpo, libera a tensão e a rigidez do
mesmo. Todavia, chega um momento em que ela é repreendida por chorar e precisa
reprimir os seus soluços e engolir suas lágrimas. É aí que a criança é forçada a afastar-se de
seu estado de graça e se transforma em um indivíduo que não é mais livre para buscar a sua
satisfação. Embora essa “boa” criança cresça e se torne produtiva, ela dificilmente será
graciosa e cheia de vida, a menos que haja uma radical transformação em sua
personalidade.
Tais considerações a respeito do desenvolvimento humano são relevantes pelo fato
de que mesmo tratando-se de um fenômeno social voltado para o coletivo, é preciso
considerar que, muito mais do que um simples estilo musical, o trance de qualidade está
relacionado à dança do transe, que proporciona experiências que tocam profundamente os
participantes. Entretanto, o efeito de tais experiências pode ser tanto positivo quanto
negativo, dependendo da disposição complexa de cada um. Enquanto muitos podem
encontrar nas experiências transcendentais um meio de descarregar energias desnecessárias,
bem como de recarregar as energias para o futuro, outros podem perder totalmente a
conexão com qualquer sentido positivo dessas experiências para sua vida diária por se
perderem nesse “mar” de energia sem limites, nem separações.
- 102 -
“O trance tem uma outra coisa que é interessante: quando você se entrega à
música e dança, você pode atingir realmente o êxtase, indo além do mundo físico,
do mental, do emocional e atingindo o espiritual. Você vai atravessando
internamente a sua experiência. Passa por dentro da sua experiência de estar
vivendo, de estar vivo! Às vezes a música pára e muda completamente o som,
entrando em uma direção completamente diferente. Isto é importante, pois nos traz
para o momento presente, traz de volta. É importante você lembrar que o transe
pode ser uma experiência profunda que acorda muitas sensações da nossa
infância, do nosso passado, às vezes experiências dolorosas que tentamos
esquecer. Então, o trance nos lembra que podemos usar isso a nosso favor para
nossa própria autocura, mas ao mesmo tempo pode ser extremamente perigoso.
Chama
74
Entrevista realizada em Alto Paraíso, set. 2005)
Meu intuito aqui é mostrar que o corpo físico, que é desde o início fonte de
controle social, é simultaneamente fonte de poder, de expressão, de arte, de movimento, de
transformação, de emoção, de dor, de destruição, de prazer extremo, de metamorfoses e de
limitações. É no corpo que se inscreve a complexidade humana.
-
Waves of Peace 2005 Sathya dançando Fotos: Murilo Ganesh “A dança mostra que o corpo é capaz da
arte infinita, pois o corpo que dança contém em si as infinitas possibilidades da vida.” Marina Faé, artista
plástica e baixista do Mad in Chaos, tem o símbolo do infinito tatuado no pulso.
“A dança? Não é movimento,
súbito gesto musical
É concentração, num momento,
da humana graça natural.
No solo não, no éter pairamos,
nele amaríamos ficar.
74
Chama – Jardim Abençoado, 43 anos, músico e terapeuta. Realizou uma oficina chamada PenduloM no
Espaço Zendo – Festival Trancendence 2005.
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A dança – não vento nos ramos:
Seiva, força, perene estar.
Um estar entre céu e chão,
novo domínio conquistado,
onde busque nossa paixão
libertar-se por todo lado...
Onde a alma possa descrever
Suas mais divinas parábolas
sem fugir à forma o ser,
por sobre o mistério das fábulas.”
(“A dança e a alma”, Carlos Drummond de Andrade citado por Dantas, 1999)
Quando o ser se entrega plenamente a uma ação ou movimento, esta se torna
espiritual, devido à transcendência do eu. Essa transcendência pode ser experimentada de
forma extremamente intensa no ato sexual, por exemplo, quando este produz a fusão entre
duas pessoas na dança da vida. Quando essa fusão ocorre realmente, os amantes
transcendem as fronteiras do eu para se tornarem um com as forças superiores do universo e
atingem um estado de arrebatamento que varia de intensidade de acordo com a situação. A
mesma espécie de arrebatamento ocorre na união mística, seja na fusão com o coletivo, seja
com o parceiro sexual.
A dança rítmica dos corpos pode levar ao orgasmo. O processo acontece
espontaneamente quando duas pessoas estão apaixonadas. Embora tenham consciência do
que estão fazendo, elas são impelidas para a relação sexual quase como se estivessem em
transe. No clima do orgasmo total, porém, talvez cheguem a perder a consciência. A
descarga energética é tão intensa que o ego é esmagado pelo sentimento de alívio. O sentido
de fusão entre os dois corpos pode ser tão completo que os indivíduos sentem como se
fossem um. Ao mesmo tempo, é possível que se sintam também como se já não mais
ocupassem seus corpos. Depois de uma forte descarga orgástica, a pessoa experimenta uma
paz profunda. O sono pode sobrevir antes que a consciência do eu retorne.
No curso das danças realizadas nas festas africanas, o coito fictício é simulado por
homens e mulheres, cada qual no seu turno. De maneira repetitiva e ritual, a dança orgíaca
reedita a fusão cósmica. Depois, chegada a noite, os casais seguem em direção à floresta,
onde vão fazer amor. Religião da natureza – é neste contexto que se pode compreender o
êxtase dionisíaco.
O erotismo religioso corresponde a uma copulação cósmica, um ritual de
união entre a natureza e o homem. O contato íntimo dos corpos, nas práticas orgíacas, possui
uma função social: permite a coabitação daqueles que, em sua alteridade, seriam conduzidos
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a negar um ao outro. A diferença não é negada, mas incluída num jogo dos sentidos que a
torna acessível, garantindo assim a perenidade do mundo (Maffesoli, 1985: 51- 75).
A dança coletiva, com todo o seu substrato erótico – seja ela dança de possuídos, seja
desrecalque pontual de jovens das grandes cidades ou de pequenos municípios – permanece
sempre como dança nupcial, que, no ritmo do tempo, parece ecoar profundas pulsões
cósmicas, ao mesmo tempo em que condiciona a estruturação social (Maffesoli, 1985: 125).
Tanto no orgasmo como na experiência mística há um senso de comunhão com as
forças superiores do universo. Ao mesmo tempo, em alguns casos, a dissolução do ego
experienciada nessas ocasiões pode levar pessoas muito sensíveis psiquicamente a
desconexões com a realidade. Para outras pode transformar-se em puro espírito, em
experiência transcendente.
Existem muitos meios para se alcançar a transcendência. Ela é experimentada
quando somos tocados profundamente por um acontecimento, quando o ser fica tão
carregado energeticamente que transborda as fronteiras do eu. “Quando dançamos em
comunidade, geramos uma quantidade de energia incrível”, afirma os integrantes da
comunidade Earthdance, que tem o objetivo de direcionar essa energia para o bem da
humanidade e do planeta, pois acredita que o poder de criar mudanças positivas se
intensifica com a união e a sincronicidade das intenções mentalizadas no corpo coletivo.
Posso dizer, como resultado da pesquisa de campo, que os festivais atraem cada vez
mais adeptos, pois são espaços potenciais para despertar o que antes estava adormecido nas
pessoas. Por meio da efervescência coletiva ritualizada pela dança do transe, o homem une o
que foi desunido e abre espaço para a emergência daquilo que estava recalcado. Assim,
práticas coletivas como essa, considerada marginal, torna-se referência para a compreensão
da vida social contemporânea.
Ao dançar coletivamente, libertando o erotismo interno, é possível ultrapassar as
barreiras que separam a mente, o corpo e o espírito, atingindo, assim, uma integração que
leva a experiências cósmicas de unidade com o todo. Esse sentimento de totalidade, assim
como a experiência estética e o orgasmo sexual, parecem ser essencialmente respostas do
funcionamento psíquico, quando ocorrem as estimulações físicas, as quais,
conseqüentemente, impulsionam as reações químicas no organismo. Isso sugere que a
essência das experiências humanas mais fortes dependem de um sistema bioenergético tão
- 105 -
complexo, que não há incoerência em pensarmos que tais sentimentos estão diretamente
relacionados às transformações físicas e mentais que arrebatam o espírito humano.
O encontro dos homens pode gerar a fusão cósmica que, conseqüentemente,
estabelece a fusão social. Como parte integrante de um conjunto, cada indivíduo torna-se
parte integrante de um conjunto maior do que ele, que o compreende e o tranqüiliza. Assim
se define a organicidade de base, que faz os seres e as coisas vibrarem num mesmo
diapasão. Essa intimidade cósmica se infiltra na vida contemporânea por meio de buscas que
levam à iniciação pessoal, a qual faz de cada indivíduo um elemento integrante de um
grande conjunto coletivo. A sinestesia social, que é ao mesmo tempo sensação de
movimento e sensação do todo, constitui-se neste equilíbrio quase intencional proveniente
de forças antagônicas e que, justamente por isso, é tão flexível quanto sólido. É porque há
um “todo” que há movimento. Tal perspectiva aponta para uma dimensão impessoal do
homem, aquém ou além do individual, o que introduz a organicidade social e natural à
transcendência imanente que estrutura a sociabilidade.
Trata-se de uma transcendência que confere ao indivíduo seu pertencimento
cósmico. Essa nova relação com o mundo, isto é, com os outros, com a alteridade, a
sensualidade, o erotismo, dá sentido à experiência de estar vivo e permite o compartilhar dos
afetos, fundamento de toda ordem simbólica. Esta ordem orgânica, plural, forma um “corpo
místico”, uma estruturação de estados, no qual cada um tem seu lugar e desempenha uma
função. Trata-se de uma metáfora biológica que reflete, no plano social, a ordenação do
cosmos.
Neste ritual
75
da era planetária, a força de uma agregação humana, que se concretiza
por meio da dança e do movimento, assenta-se afinal na aceitação da diferença, da
alteridade, isto é, da morte de si mesmo pela dissolução no êxtase coletivo. A transcendência
não possui outro sentido: ela estrutura o coletivo, a comunidade, partindo da variedade de
valores particulares, os quais são mantidos e preservados a cada ritual, por meio de uma
tensão dinâmica. É esta a busca contida no erotismo orgíaco ritualizado por intermédio da
dança coletiva.
75
Anexo II.B). 1. Steve Harkeless, “Transe, dança e êxtase: um rito de passagem planetário” .
- 106 -
Dançar é viajar
Dança é o movimento do tempo & espaço & evolução!!!
Esta é a viagem multidimensional, ser a dança.
Totalidade dirigindo para onde quiser
O querer está envolvido, sua dança envolve energias de LUZ,
Que tornam você único no DNA do fluido.
Este foi um acontecimento inconsciente. Deixar ir....Este é o fluir....
Nós todos vamos onde nós todos estamos!
Sua evolução funcional para o melhor de tudo.
Dançar é viajar no tempo, condução direta para a luz levando o seu corpo Gaia,
expressando a unidade da manifestação planetária, onde palavras não são mais necessárias!
Um nível maior de manifestação planetária: onde movimentos refletem a beleza, sua função
de ajudar a tudo!
A perfeita harmonia encontra os propósitos da luz!
Trance para dançar... Dançar para viajar... Viajar e viajar para a função
da função, para o envolver... Envolvendo, nós tudo fazemos!!
Quando você dança, cada movimento que você pensa, muda alguma coisa....
Requestionar (pensando) é pedir por isso, dançar é amar isso, dando poder,
sendo, fazendo. Até mesmo os menores músculos do seu corpo se divertem
em contribuir. Você é o bailarino cósmico!
Dançando direções nas melhores intenções, deixando o caminho mais claro para tudo!
Juntos vamos dançar mudanças, reevolução conjunta, DANÇAR PARA A PAZ!
Dance você gosta, se abra, deixe ir e pule no tempo
Passe a ponte do arco-íris do círculo polar!
Inicie-se corpo Gaia, nessa telepatia. Nesse re-mota, clara-vidência, nessa alquimia toda.
É uma bênção dançar evolução... Como você gosta disso!
Mas esteja sempre ciente do que você está envolvendo. Dançar é mágica conexão, e sua dança será
UMA limpeza completa enchendo-se de poder, para si, e para TUDO no caminho!
Seja sempre a intuição do instinto, que reflete flores infinitas! Baba D
76
76
A poesia foi escrita por Baba D (Bélgica) e pode ser encontrada na Internet em oito idiomas
diferentes: “Eu ouvi o trance na Bélgica nos anos 90, e foi quando um amigo me disse que aquela música era
minha mente, minhas experiências me enviaram uma mensagem de que eu deveria seguir esse caminho. Então
fui para Índia em 92, depois para América do Sul. Participei das primeiras festas realizadas em Trancoso
(Bahia) em 94, e dez anos depois retornei ao país para divulgar o calendário maia aqui nos festivais, para
passar a sabedoria do fluir da multidimensionalidade, uma educação de luz, de um tempo multidimensional de
energia” (Entrevista realizada no festival Universo Paralello, 2004, quando a poesia foi entregue para compor
este texto).
- 107 -
O FOGO PSICODÉLICO
“Se algum dia, na divina mesa da Terra, joguei dados com
deuses, a tal ponto que a Terra tremeu e fendeu-se e expeliu
torrentes de fogo (...); Se algum dia bebi, a largos sorvos, do
espumante jarro, rico de especiarias, em que todas as coisas
estão bem misturadas; Se minha mão, algum dia, deitou o mais
distante no mais próximo e fogo no espírito e prazer na dor e o
que há de mais malvado no que há de mais bondoso; Se sou eu
mesmo um grão daquele sal redentor que faz as coisas, no jarro
misturarem-se bem;- pois há um sal que liga o bem com o mal; e
também o pior dos males é especiaria digna de aromatizar e, por
fim, fazer transbordar a espuma. Oh, como não deveria eu
almejar a eternidade e o nupcial anel dos anéis – O anel do
retorno? Nunca encontrei, ainda, a mulher da qual desejaria ter
filhos, a não ser esta mulher que amo: pois eu te amo,ó
eternidade! Pois eu te amo, ó eternidade!
Nietzsche
Foto
77
Como dizia Willian James (1991), nossa consciência despertada – a qual chamamos
consciência racional e auto-reflexiva – constitui apenas um tipo especial de consciência, ao
passo que em torno dela encontram-se formas potenciais de consciência inteiramente
diferentes, separadas apenas pelo mais tênue dos véus. A compreensão dos festivais e do
imaginário psicodélico não pode ser válida se não levar em conta estas outras formas de
consciência, sejam quais forem os meios utilizados para atingi-las.
Sendo assim, voltemo-nos agora para o caráter “psicodélico”
78
dos festivais de
transe
79
. Nesses encontros característicos do século XXI, uma composição de elementos e
As substâncias psicoativas mencionadas neste texto podem ser prejudiciais à saúde, e em quase todo o
mundo a posse e o uso delas são ilegais.
77
Malabarismo com fogo, Larissa. Foto: T. Toneli
78
O termo “psicodélico” foi criado pelo psiquiatra canadense Humphry Osmond, em 1953, para designar algo
com a capacidade de ampliar ou manifestar a mente. “Tentei achar nome apropriado para os agentes
(psicomiméticos) em discussão: um nome que incluísse os conceitos de enriquecimento da mente e
alargamento da visão. Algumas das possibilidades são: psicofórico, transformador da mente; psico-hórmico,
excitante da mente; e psicoplástico, moldador da mente. Psicozínico, fermentador da mente, com efeito é
apropriado. Psico-réxico, explosor do espírito, apesar de difícil, é memorável. Psicolítico, libertador da mente é
satisfatório. Minha escolha recai sobre psicodélico, manifestador da mente, pois o termo é claro, eufônico e
não contaminado por outras associações.” (Cashman 1966: 17-8)
- 108 -
técnicas é utilizada para despertar a mente e estimular o acesso às varias formas de
consciência acessíveis ao ser humano. Já passamos especificamente pela música, pela dança,
e no próximo capítulo veremos a estética e os símbolos psicodélicos. Agora proponho que
nos embriaguemos das substâncias utilizadas nesse contexto.
Os festivais refletem a expansão do movimento psicodélico no mundo globalizado.
Na era planetária, os rituais de comunhão social voltados para os estados alterados de
consciência, os quais envolvem a música rítmica, a dança do transe, os elementos da
natureza e a embriaguez, não se restringem mais a um espaço delimitado e nem mesmo ao
uso restrito de determinada substância psicoativa. Nesses espaços nômades, de celebração e
efervescência, as substâncias utilizadas pelos participantes para alterar os corpos físico e
psíquico (mental e espiritual) envolvem desde plantas naturais, consideradas sagradas para
muitos povos e religiões há milhares de anos, até as mais novas tecnologias químicas
sintetizadas em laboratórios.
Entre as substâncias mais utilizadas nesse contexto estão: álcool, tabaco,
Cannabis
80
(maconha) e seu derivado – haxixe e charas –; um conjunto amplo de
“psicodélicos” – LSD
81
, peiote
82
e mescalina
83
, cogumelos
84
e psilocibin
85
, DMT
86
, bem
79
O transe é um estado alterado de consciência passível de ser induzido na maioria das pessoas por uma série
de estímulos, aplicados separadamente ou combinados. Técnicas consagradas pelo uso incluem a ingestão de
bebidas alcoólicas, sugestão hipnótica, rápido aumento do ritmo respiratório, inalação de fumaças e vapores,
música rítmica e dança; e a ingestão de substâncias que atuam no psiquismo humano. Mesmo sem contar com
esses recursos, idêntico tipo de efeito pode ser produzido, mais lentamente, devido à natureza dos meios
empregados, através de privações, tais como jejum e meditação transcendental e também de técnicas que
causam a dor (Lewis, 1971: 41).
80
A Cannabis (cânhamo, bhang, marijuana, maconha etc.) era conhecida dos antigos chineses, indianos e
persas. É mencionada na literatura religiosa grega e assíria de 1000 a. C. Na religião hindu, a Cannabis,
considerada uma planta sagrada trazida do oceano pelo deus Shiva, foi e ainda é bastante utilizada como
adjunto à meditação religiosa, assim como seu derivado, o haxixe (Cashman, 1966: 22).
81
LSD: a substância é o tartarato de d-dietilamida do ácido lisérgico, criada acidentalmente num laboratório
suíço em 1943 por Albert Hofmann. Foi descoberta como possuidora de profundas propriedades
psicoquímicas, tendo sido bastante utilizada em sérios experimentos no campo de sanidade mental. O LSD
começou sua carreira, no mercado, pelas mãos dos intelectuais e depois tornou-se acessível aos jovens. Por
volta de 1966, o governo federal dos EUA proibiu a venda e distribuição do LSD, advertindo os colégios e
universidades sobre o uso “perigoso” da substância (Cashman, 1966: 8, 13).
82
O peiote é um cacto encontrado no México e no Sudoeste dos Estados Unidos. Era usado pelos astecas e
outros índios mexicanos, bem como por várias tribos de índios americanos, entre as quais estão os apaches, os
kiowas e os comanches. O peiote era parte integrante da vida religiosa e espiritual de várias culturas e tribos.
Hoje, a Igreja Nativa Americana, predominantemente de índios, ainda usa o peiote como parte importante de
seus ritos, embora o credo tenha incorporado o cristianismo como forma de sobrevivência. Os botânicos
descobriram o peiote em 1892; depois disso, amostras da planta foram levadas a laboratório e sintetizadas na
substância conhecida como mescalina (Cashman, 1966: 24).
- 109 -
como as anfetaminas psicodélicas, como MDMA
87
(Ecstasy), das quais existem ao menos
algumas centenas de análogas. Outras substâncias com características peculiares são
utilizadas nesse contexto, como, por exemplo, a cocaína
88
e o lança-perfume
89
, que têm seu
uso “desvalorizado” por parte do grupo, pelo fato de não gerar expansão de consciência.
Constatei ainda em alguns festivais o uso do chá ayahuasca
90
, uma combinação de plantas
83
A mescalina, alcalóide alucinógeno da planta peiote, foi isolada em 1896. Sigmund Freud, William James,
Havelok Ellis e outros se interessaram pelos aspectos alucinógenos da mescalina. Nas primeiras décadas do
século XX as experiências com a nova substância geraram muitas idéias e discussões (Cashman, 1966: 25).
84
O cogumelo sagrado do México (Psilocybe) é uma substância pré-colombiana que era usada como
sacramento nas cerimônias religiosas, ao qual atribuía-se poderes divinatórios e proféticos. Para os astecas, os
cogumelos sagrados eram Teonanacatl, corpo de Deus, e havia penalidades graves para aqueles que gozassem
de suas maravilhas sem razões religiosas ou rituais. As várias propriedades do cogumelo sagrado foram
descobertas em 1953 pelo botânico Gordon Wasson
84
, em viagem ao México, na busca de novas espécies de
cogumelos (Cashman, 1966: 29).
85
Em meados de 1950 foi isolado um dos alcalóides ativos do cogumelo sagrado, que foi chamado psilocibin.
A substância foi amplamente difundida nos anos 60 e 70 (Cashman, 1966: 30).
86
DMT (N, N – dimethyltryptamine) é da família das triptaminas, causa intensas visões e fortes efeitos mentais
psicodélicos quando fumado, injetado ou inalado. O DMT é um alucinógeno endógeno, presente em pequenas
doses no cérebro humano. A psilocibina é 4-fosforaloxe-N, N-dimetiltriptamina, e a serotonina, o principal
neurotrasmissor do cérebro humano, encontrado em todas as formas de vida e em maior concentração nos seres
humanos, é 5-hidroxitriptamina. O próprio fato de o DMT agir tão rapidamente, em 45 segundos, e gerar uma
experiência que dura apenas cinco minutos, mostra que o cérebro tem meios eficazes de controlar o composto
(Mckenna, 1995: 67)
87
Ecstasy (MDMA) é denominado farmacologicamente como 3,4-metilenodioximetanfetamina e abreviado por
MDMA. O Ecstasy é uma substância fortemente psicoativa. Foi sintetizado pela Merck em 1914 com a
finalidade de ser administrado como um supressor do apetite, mas nunca foi usado com essa finalidade.
Somente em 1960 foi redescoberto, sendo indicado como elevador do estado de ânimo e complemento nas
psicoterapias. O uso recreativo surgiu em 1970, nos EUA. Em 1977 foi proibido no Reino Unido e em 1985
nos EUA. Produz um aumento do estado de alerta, maior interesse sexual, sensação de estar com grande
capacidade física e mental, atrasando as sensações de sono e fadiga. Muitos usuários sentem também euforia,
bem-estar, expansão sensório-perceptiva, aumento da sociabilidade, extroversão e aumento da empatia pelas
pessoas que se encontram próximas. Disponível em: http://www.fcf.usp.br/LAT/i_ecstasy.php /
.Ver também
Anexo II. B) 4 e 5
88
Cocaína. “Isso não cheira bem. Essa é pesada e cheira muito mal.” A cocaína é extraída da folha de coca,
comum em países da América do Sul. Tem forte poder estimulante e é encontrada em pó, pedra ou pasta.
Efeitos: sensação de prazer, poder, euforia, insônia, falta de apetite e perda da sensação de cansaço. O prazer
intenso provoca o desejo de querer sempre mais. Riscos: o prazer intenso pode ser substituído rapidamente
pela irritabilidade, agressividade, sensação de medo, aumento da pressão arterial, convulsões que podem levar
à morte repentina etc. Além disso, os usuários ficam mais expostos a situações de risco, como transar sem
camisinha e compartilhar seringas, podendo assim contrair o vírus da Aids e hepatite” (texto retirado da
Programação do Festival Trancendence, 2005, que tinha uma sessão chamada “Preserve a vida”, contendo uma
campanha chamada “Ligue-se na música. Desligue-se das drogas”). Ver também Anexo II. A) I
89
O lança-perfume é um tipo de inalante que gera euforia momentânea, seguida depois por depressão, tontura,
aceleração dos batimentos cardíacos, perda de consciência, destruição de neurônios e lesões irreversíveis no
cérebro (texto retirado da Programação do Festival Trancendence, 2005, da sessão chamada “Preserve a vida”).
90
Ayahuasca é um chá feito do cozimento de plantas trepadeiras da região amazônica – composta pelo cipó
Banisteriopsis caapi e pela folha Psychotria viridis. Era utilizado principalmente pelos índios, os quais
ensinaram seus conhecimentos aos seringueiros, que fundaram as religiões que hoje utilizam o chá como
sacramento. Hoje o chá é utilizado principalmente em rituais religiosos do Santo Daime, União do Vegetal e
Barquinha, no Brasil e em outros países (Labate, 2000: 1-29)
- 110 -
originárias da região amazônica que atualmente é empregada em muitos países e nos mais
variados contextos, sendo o seu uso religioso o mais conhecido e aceito. Cada um desses
compostos psicoativos constitui um universo próprio, sendo que nesta pesquisa irei focar
principalmente o uso das substâncias psicodélicas – as quais têm como principal
característica uma ação impactante no psiquismo humano – devido a sua relação intrínseca
com o imaginário do grupo.
O surgimento do estilo musical psychedelic trance
91
está diretamente relacionado ao
uso de substâncias psicodélicas. Como foi descrito por McArteer
92
, o fenômeno do Goa
trance é resultado direto da cultura hippie
93
dos anos 70 e representa uma continuação do
movimento psicodélico nos tempos atuais. Por volta de 1988, nas festas que ocorriam nas
praias de Goa (Índia), onde estrangeiros de várias partes do mundo se reuniam, o uso de
substâncias psicodélicas era disseminado, influenciando, assim, a imediata participação das
pessoas, a criação da nova música, o formato da celebração, a decoração e sua relação
intrínseca com os símbolos da cultura milenar indiana, os quais estão sempre presentes nos
festivais.
Para o autor, existe uma “ética psicodélica” relacionada ao movimento trance, a qual
diz respeito à percepção da realidade. Pois a experiência psicodélica, ao introduzir o ser
humano em um campo de energia integrado, provoca dúvidas e questionamentos a respeito
da realidade dual e material. O que implica, conseqüentemente, uma lógica estética e
filosófica associada a outras dimensões de consciência. Tais características influenciaram a
busca pelos conhecimentos milenares das filosofias orientais espiritualizadas, as quais
viabilizam uma visão integral do ser humano e de sua relação com o cosmo.
91
Ver Anexo I: Histórico.
92
Redefinindo os antigos rituais tribais para o século XXI: Goa Gil e a experiência da dança do transe.
Disponível em:
http://www.goagil.com
93
“Nos anos 60, despontaram movimentos culturais ou contraculturais que reivindicavam a extensão dos
direitos de livre-disposição do corpo e de autonomia sobre si próprio. Como parte destes movimentos
destacavam-se os que discutiam questões de política sexual, de gênero (o movimento feminista) e de opção
sexual (o movimento homossexual). O uso voluntário do corpo para fins de prazer sexual se coligava à
reivindicação da autonomia crítica da consciência, da recusa em se permitir ao Estado uma jurisdição química
sobre a mente buscando controlar o que se ingere ou se introduz voluntariamente no interior do corpo. O
movimento psicodélico representou uma defesa política da autonomia sobre a intervenção psicoquímica
voluntária contra a política oficial do proibicionismo estatal, caracterizado como inquisição farmacrática contra
o direito de escolha na estimulação química do espírito” (Henrique Carneiro 2005)
- 111 -
Antigamente essas substâncias que hoje são conhecidas também como
“alucinógenos
94
ou “enteógenos”
95
eram utilizadas em contextos sociais e estavam
relacionadas às práticas de consumo com aprendizados culturais próprios, os quais em
alguns casos sobreviveram ao “imperialismo católico”, que estabeleceu uma moral de
contenção que condenou todo tipo de uso das “árvores do saber e seus frutos proibidos”. O
proibicionismo iniciado sob a égide da Igreja Católica e mais tarde passado ao poder da
medicina, em associação com as leis do Estado, reina até hoje como uma resposta política
do Ocidente à demanda pelas chaves vegetais e químicas da consciência.
Por meio da história descobriu-se que a maioria das cerimônias religiosas de várias
sociedades passadas envolvia o uso de substâncias psicoativas extraídas de plantas
consideradas sagradas, pois serviam como portais para o mundo espiritual. Nos rituais
antigos, o uso das plantas alucinógenas não revelava um desvio da realidade, mas uma
autêntica realidade que em um estado de consciência normal permanecia oculta. A maioria
das religiões em que o misticismo e os contatos diretos com o sobrenatural representam um
papel importante, atribui um caráter sagrado a uma bebida embriagante ou a outra substância
intoxicante. A embriaguez do vinho e das bebidas alucinógenas fazem parte das técnicas do
êxtase, as quais são utilizadas desde sempre pelo ser humano. Elas ajudam o homem a
libertar-se de suas preocupações materiais, sendo uma preparação para a percepção de outras
realidades.
A moral cristã condenou o prazer carnal, o conhecimento e o poder alcançado por
meio de substâncias embriagadoras, porque tais experiências retiram o domínio do corpo e
da mente da soberania divina institucionalizada. A cura por meio das plantas foi condenada,
levando quase ao desaparecimento dos conhecimentos naturais acerca da cura das
enfermidades. A conseqüência apresenta-se hoje, por meio de uma farmacêutica que
impulsiona a necessidade de cada vez mais substâncias químicas serem utilizadas na cura
das doenças.
A sociedade ocidental tentou banir o uso das “plantas de poder”(Labate et al., 2005)
e por outro lado instituiu o uso de excitantes – cafeínas, tabaco, cacau, guaraná – que
94
O vocábulo “alucinógeno” corresponde à pesquisa científica oficial dos anos 30 a 50, e é considerado
científico para descrever, em termos farmacológicos, os efeitos de uma gama de substâncias que causam
alucinações, o que não é correto para todas as substâncias para as quais é empregado.
95
O termo “enteógeno” foi proposto em 1978 pelo investigador Gordon Wasson e outros para referir-se às
substâncias que fazem ter Deus dentro de si (Carneiro, 1994: 15).
- 112 -
correspondiam à demanda de vigília, atenção e produtividade que o capitalismo nascente
necessitava. O fato de as substâncias ilegais possuírem alto valor comercial e movimentar
um dos maiores mercados da economia mundial torna-se ofuscado por meio da mídia
televisiva, que tende a supervalorizar apenas as questões relacionadas à violência – retorno
do recalcado – gerada em torno do “tráfico de drogas”
96
.
Carneiro (1994: 159) aponta que a maneira como a sociedade contemporânea
conceitua a “droga”
97
que significa, por um lado, um quadro de substâncias ilícitas de
consumo semiclandestino e, por outro, o das substâncias terapêuticas legais fabricadas pelas
grandes industrias, deve ser compreendida em sua gênese histórica, que corresponde aos
interesses do novo sistema, em que o poder religioso se une ao poder médico para guardar
um conjunto de normas reguladoras da via pessoal. Essa nova micropolítica inclui a
regulamentação do corpo, da mente e do espírito – dos prazeres, da sexualidade, da
subjetividade e mesmo da espiritualidade humana.
“Para evitar equívoco é importante fazer uma distinção entre espiritualidade e
religião. A espiritualidade baseia-se em experiências diretas com aspectos e
dimensões não-comuns da realidade e não requer um lugar especial ou uma pessoa
oficialmente apontada pra mediar o contato com o divino. Os místicos não precisam
de igrejas ou templos. O contexto em que experienciam as dimensões sagradas da
realidade, incluindo sua própria divindade, são seus corpos e a natureza. E, ao invés
de ordenar padres, eles precisam do apoio de um grupo de companheiros de busca ou
da orientação de um mestre que esteja mais avançado na jornada interna.” (Grof,
2000: 204)
Ao longo do tempo, os pesquisadores que ousaram ter a mente aberta perceberam
que para compreender as culturas é essencial participar de seus rituais. Pois a atividade ritual
remete para realidades ocultas, muitas vezes revelada em estados alterados de consciência.
Enquanto a visão de mundo da ciência acadêmica limita-se a observações externas da
realidade material, a perspectiva ritual inclui informações provenientes da experiência das
realidades internas. Sendo assim, ambas as perspectivas são complementares.
96
Segundo dados da revista Veja, desde o início da década de 90, quando os países começaram a abrir sua
economia e o mundo se tornou mais globalizado, o tráfico de drogas dobrou de 400 bilhões para 800 bilhões de
dólares ao ano ( “O crime global”–, Veja, 30 nov. 2005).
97
“Droga”, este sempre foi um conceito antes de tudo moral. Os costumes e os hábitos é que determinam o que
é e o que foi essa noção, cujo sentimento contemporâneo é carregado de um conteúdo criminal, mas que há
alguns séculos possuía um conteúdo muito mais amplo e generalizante (Carneiro, 1994: 157).
- 113 -
A existência de dimensões invisíveis e ocultas da realidade é uma idéia estranha à
ciência materialista, a não ser que elas sejam de natureza material e possam se tornar
acessíveis por meio de aparelhos que aumentam o alcance dos sentidos, como microscópios
ou sensores que detectam faixas de radiação eletromagnética. McKenna (1995: 26) afirma
que os alucinógenos são para a psicologia o que os telescópios foram para a astronomia do
século XVI, pois revelam a estrutura e o potencial da mente humana. De acordo com o
autor, se fôssemos parar com atenção para analisar a definição de “droga”, com certeza
proibiríamos a televisão e legalizaríamos os psicodélicos. Isso se justifica pelo fato de que a
“viagem” programada pela televisão não é voltada para o interior, mas trata-se de uma
viagem resultante do sistema de valores de uma sociedade cujo deus maior é o dólar todo-
poderoso. “A televisão é o ópio do povo. Acho que a tremenda resistência do governo à
questão psicodélica não se deve ao fato de que as substâncias psicodélicas são vendidas por
empresas criminosas e multimilionárias, elas são triviais nesse nível. Mas levam as pessoas
a examinar os valores e isso é o que de mais corrosivo pode acontecer” (McKenna, 1995:
309)
Como as substâncias psicodélicas podem influenciar profundamente o
funcionamento da psique humana, dependendo da personalidade do indivíduo que delas faz
uso, assim como do ambiente e do cenário, seus efeitos podem ser profundamente benéficos
ou danosos. Tais experiências despertam a percepção para outras realidades ou novas
perspectivas sobre a realidade, tão convincentes e propulsoras que quem as vivenciaram
tende a incorporá-las a sua visão de mundo. Hoje, o conhecimento a respeito das plantas que
induzem estados visionários, assim como o desenvolvimento da tecnologia química,
possibilita que os seres humanos atinjam a experiência mística induzida por artifícios de
efeitos quase instantâneos. Qual o impacto disso? Com certeza, não pode ser medido ou
controlado, mas podemos imaginar que a esfera social irá enfrentar mudanças em relação às
transformações de consciência viabilizadas pelo uso das substâncias psicoativas disponíveis
no mercado clandestino.
Com a expansão e a globalização do movimento psicodélico, milhares de pessoas
em todo o mundo estão experienciando estados alterados de consciência em um contexto
lúdico e estético atualizado por meio dos festivais de transe psicodélico. Trata-se de
- 114 -
acontecimentos coletivos que refletem a era planetária, pois são rituais de comunhão
extática que não estão mais limitados a um espaço único ou a um grupo cultural específico,
e os meios empregados pelos participantes para estimularem os estados alterados de
consciência integram desde os conhecimentos ancestrais às modernas tecnologias químicas.
Segundo o músico e DJ Haja Ham (Inglaterra), “
trance is a journey of the discovery of
consciousness” – o transe é uma jornada de descoberta de consciência (entrevista gravada na Bahia,
2000).
Como expressão local de um movimento global os festivais atraem cada vez mais
pessoas, as quais estão tendo experiências fortes relacionadas aos estados alterados de
consciência. A entrevista realizada com um músico e terapeuta corporal de 43 anos, que
desenvolveu uma oficina de música instrumental na Trancendence 2005, apontou reflexões
interessantes em relação ao tema:
Vou falar um pouco da minha experiência com o trance. O contato com os
festivais trouxe muitas experiências novas para minha vida. Eu danço, e o êxtase da
dança é sagrado para mim. Então eu aprendi a ter a experiência da entrega com a dança
nesse ambiente. Minha vida começou com a meditação do Buda. A prática da meditação
faz você dar um salto de quilômetros no sentido contrário ao estado negativo em que o
mundo vive. Hoje, com vinte anos de meditação, tenho clareza que através do trance eu
comecei a perceber outras coisas neste planeta. O ambiente trance é muito colorido, é
como estar num jardim florido; tem passarinho, tem rio, tem montanhas, tem cachoeira,
tem gente dançando, tem arte, tem música, é bonito e fascinante. É como quando a
criança fala que quer ir ao parque de diversão, é como um chamado mágico.
Na verdade não é um convite do trance. É um convite das pessoas do mundo
que sabem que as linhas do mapa não separam o planeta em várias partes. Porque é
justamente essa sensação que existe. Você tem pessoas do mundo inteiro juntas,
dançando felizes, trocando idéias e querendo que o planeta se torne a coisa mais linda
do mundo. Pessoas fortes que sabem o que estão dizendo. São em sua maioria pessoas
que estudam, que trabalham, que criam, têm artistas, têm também xamãs e terapeutas
envolvidos. O fenômeno trance é um fenômeno da energia do amor, o que está
disponível é uma celebração da vida.
E nessa celebração, a música trance traz algo muito interessante: quando você
se entrega à música e dança, você entra realmente no êxtase, naquilo que vai além do
mundo físico, do mental, do emocional e atinge o espiritual. Você vai atravessando
internamente a sua experiência. Passa por dentro da sua experiência de estar vivendo, de
estar vivo! E às vezes o DJ quebra e muda completamente o som., pára e a música entra
em uma direção completamente diferente, e isso traz a gente para o momento presente,
traz de volta. O transe é uma experiência que acorda muitas sensações da nossa infância,
do nosso passado, às vezes experiências dolorosas que tentamos esquecer. Então o
trance nos lembra que podemos usar isso a nosso favor para nossa própria autocura. E é
aí que pode estar também o perigo. Você pode ficar muito aberto, expor as feridas para
fora e não saber como lidar com elas. Por isso a união grupal é tão importante, pois
serve como um suporte para as experiências.
- 115 -
Mas, dentro dos festivais estão abrindo espaço para a meditação, porque o
movimento precisa de um descanso. É fundamental o espaço de relaxamento, porque
se você move a energia do seu corpo e não senta em silêncio para integrar essas
experiências, fica tudo misturado, sem clareza. É como a água do rio estar suja porque
você atravessou o rio; daí a pouco a água assenta de novo no fundo e a água fica clara
de novo. E é a mesma coisa com nosso sistema de bioenergia, você cria uma carga de
energia, move, faz circular e depois é necessário o não-movimento para que assente
tudo no fundo e a clareza venha. Então, no caso das pessoas que usam as drogas, pode
despertar questões psíquicas de uma maneira muito profunda, pode ser uma experiência
boa e também pode ser uma experiência difícil.
Seria muito bom se fosse livre a escolha de estar usando as substâncias
psicodélicas e fazendo experiências de autoconhecimento em um ritual de trance.
Porque nesse espaço você tem a oportunidade de fazer a sua experiência, entrar na sua
dança e silenciar depois; pois nesse ambiente existe um campo de energia e também
existe o inconsciente coletivo muito forte e simbólico. Enquanto em nossa sociedade
geralmente o coletivo inconsciente tende a massificar um pouco nossa vida e a maneira
de viver.
No último festival ganhei um Ecstasy e fui iniciado por uma amiga. Foi uma
experiência maravilhosa que, no entanto, já conhecia através da meditação. Acredito que
por um lado é bom o uso dessas substâncias associado à música e à dança porque é
possível entrar direto em uma experiência sem precisar esperar anos para conseguir
acessá-las. E considerando-se que as pessoas que estão vindo às festas geralmente estão
aprendendo a bater as suas asas na espiritualidade, cria-se um campo de energia muito
positivo que poderá transformar até mesmo as pessoas que chegam nesse ambiente sem
nenhuma consciência a respeito de si mesmas.
Essas substâncias fazem abrir uma janela enorme para que você veja o céu, mas
você pode atingi-lo sem elas, pois possuímos nossos próprios recursos internos para
isso, como, por exemplo, a meditação dinâmica que possibilita à pessoa limpar-se,
entrar em uma experiência de êxtase com a respiração e o movimento, sem usar nenhum
artifício químico. Nesse ambiente, as pessoas podem descobrir que têm em mãos uma
ferramenta incrível, a própria consciência, que oferece infinitas possibilidades de como
expandi-la com ou sem substâncias.
O trance ajuda a romper barreiras da própria consciência. Mas nos festivais
também existem pessoas que estão interessadas em investir na velha maneira de viver. É
aquela polícia que estava colocando a arma na cabeça das pessoas porque elas estavam
fumando um baseado ou os traficantes que levam um monte de drogas para vender ou
mesmo os jovens inconscientes que estão lá apenas repetindo padrões de consumo
associados à busca de prazer. Mas existem também as outras pessoas que já têm a
transparência com essa experiência de êxtase e estão conectadas internamente com o
amor de Deus dentro delas. Essas pessoas já têm a abertura de reconhecer esse
fenômeno como uma coisa em que não existe alguém que tenha que autorizar ou não
autorizar para que aconteça. Mas no mundo as coisas estão ficando de uma forma
diferente. As pessoas buscam cada vez mais o controle e o poder. Então, assim como
existe essa força que vai crescendo para massificar mais uma vez alguma coisa, existem
as pessoas que vão tirando esse fenômeno da escuridão, pois à medida que falam
abertamente sobre isso, o fenômeno vai ganhando luz, torna-se iluminado. É
impressionante, porque somos nós mesmos, o próprio inconsciente coletivo, que
criamos a escuridão e a sombra. Se observarmos, cada dia é completamente novo
quando você pede licença a sua mente repetitiva e habituada aos padrões e se permite
então renascer com o sol. E é essa a experiência que o êxtase traz, nos dissolve em um
Universo enorme que está completamente disponível a todo momento.”
A fala do entrevistado pode ser longa, mas é importante, pois remete a questões
interessantes a respeito deste tema polêmico. Primeiro, mostra que os festivais inserem os
- 116 -
participantes em um contexto de “ritual social”
98
aberto às experiências com substâncias que
alteram o estado físico, psíquico e espiritual dos mesmos. Ao longo da pesquisa de campo,
constatei que o ambiente é preparado com elementos estéticos e lúdicos que direcionam as
experiências, assim como acontece a difusão de “conhecimentos” práticos e teóricos acerca do
uso de substâncias psicoativas e dos estados alterados de consciência. Portanto, os festivais
psicodélicos são espaços coletivos
99
que delimitam as experiências de estados alterados de
consciência por meio do uso de drogas.
Em segundo lugar, é preciso considerar o fato de que neste contexto também existem
participantes que não fazem uso de nenhum tipo de substância psicoativa. E para alcançar as
experiências extáticas utilizam a música, a dança, a respiração, a meditação contemplativa e
outros recursos disponíveis que levam à expansão de consciência. Ao longo da pesquisa
observei uma diferença considerável em relação à programação das atividades oferecidas
para além da pista de dança, as quais possibilitam uma integração maior das experiências
vivenciadas nesses ambientes. Como foi pontuado na entrevista citada acima, o fato de que
um festival mobiliza muita energia e ativa os processos psíquicos torna necessária a existência
de espaços destinados ao descanso e às atividades que oferecem outros recursos aos
participantes.
Em 2003 a Earthdance propôs a Tenda Galáctica; em 2004-05, no Universo Paralello
nasceu o CircuLou, que era uma proposta maior e com mais atividades. Em 2005, na
Trancendence, aconteceu o espaço Zendo. O que esses espaços têm em comum é que
envolvem atividades variadas, como meditação, ioga, tai-chi-chuan, massagem, reiki, oficinas
de arte com reciclados, exercícios de bioenergética, educação ambiental, workshop de
malabares e também palestras e debates sobre temas como: mitologia, permacultura,
98
Segundo o médico Norman Zinberg, um dos primeiros a estudar o “uso controlado” de psicoativos, os
“rituais sociais” são padrões estilizados de comportamento recomendado em relação ao uso de drogas. Eles
seriam aplicados aos métodos de aquisição e administração da substância, a seleção do meio físico e social
para usá-la, as atividades empreendidas após o uso, e as maneiras de evitar efeitos indesejados. Dessa forma,
esses rituais reforçariam e simbolizariam as sanções sociais, que definem se e como determinada droga deve
ser usada, incluindo tanto os valores e regras de conduta compartilhadas informalmente por grupos quanto as
leis e políticas formais que regulamentam o uso de drogas (Macrae, 2004).
99
De acordo com Becker, as idéias que o usuário tem sobre a droga influenciam na forma como ele a usa,
interpreta e responde a seus efeitos. Nesse sentido, a natureza da experiência depende do grau de conhecimento
disponível ao usuário. E já que esse saber é função da organização social dos grupos nos quais as drogas são
usadas, os efeitos dos usos irão, portanto, se relacionar a mudanças na organização social e cultural. O autor
denomina esse “conhecimento” como gerador da “cultura” ou “subcultura” da droga (Becker, 1976).
- 117 -
agrofloresta, astrologia, expansão de consciência, xamanismo, plantas de poder, alimentação
natural etc.
Tenda Galáctica – Earthdance 2003 Espaço Zendo – Trancendence 2005 –
Fotos: Ana Flávia Nogueira Nascimento
Na Zona de Preservação das Culturas – CircuLou – aconteceram duas conferências
sobre o uso de substâncias psicoativas, sendo uma sobre o “xamanismo e as plantas de poder”,
que reuniu muitas pessoas sentadas em círculo para ouvir relatos da experiência de uma
mulher com os índios Kamaiurá, no Alto Xingu, incluindo todo um caminho penoso e
transformador pelo qual passou desde que conheceu a planta de poder ayahuasca. Abaixo
alguns relatos gravados durante esse acontecimento:
“A questão é que você abre portais com as plantas de poder e depois precisa
fechar. Mas muitos usam indiscriminadamente e não sabem fechar o portal, daí a
importância dos rituais quando o processo é de autoconhecimento.” (Inuká, aldeia da
Terra).
“O uso de psicoativos é um meio para nós explorarmos nossa mente e nossa
imaginação. Aqui no Brasil vocês possuem um conhecimento sobre isso, afinal vocês
têm a ayahuasca e a jurema. Na Europa, a Igreja fez com que o conhecimento ancestral
desaparecesse. Vocês têm muita sorte que esse país é imenso e muitos conhecimentos
antigos continuaram vivos. Existem muitos europeus que vêm para os festivais de
trance e que possuem muito interesse por esses conhecimentos. Afinal, nós temos todo
esse cérebro e seria uma vergonha usar apenas uma pequena parte dele.” (Píer, Holanda)
“Os índios experimentam substâncias muito mais fortes do que um LSD. E eles têm um
controle a respeito dessas substâncias e dessas viagens que é muito maior do que a
indústria farmacológica. Nossa indústria farmacológica é muito recente, vem de cem
anos para cá. enquanto a maioria dessas substâncias poderosas vem sendo usada pelos
índios há milhares e milhares de anos de forma controlada através de seus rituais.”
(Kruntí)
- 118 -
A pesquisa de campo trouxe a constatação de que nas atividades programadas o tema
privilegiado para debate é o do uso ancestral de substâncias psicoativas em contexto ritual.
Entretanto, ainda não estão sendo exploradas com clareza as questões relacionadas ao uso de
substâncias químicas produzidas em laboratório, as quais são mais utilizadas nesse contexto
e podem causar sérias dependências, como é o caso do Ecstasy ou mesmo da cocna.
Assim, o programa de redução de danos na prática ainda é bastante precário. Em alguns
festivais encontrei folhetos do baladaboa
100
, um projeto de redução de danos relacionado ao
Ecstasy, o qual chamava a atenção das pessoas para se informarem sobre o que irão usar, de
modo que os riscos de conseqüências negativas sejam minimizados.
Outro aspecto importante a ser considerado é o fato de que o Ecstasy (MDMA),
conhecido também como “bala”, que é a substância mais utilizada nesses contextos, permite
o acesso a experiências muito prazerosas que podem ser alcançadas rapidamente. Após meia
hora de sua ingestão esse composto aumenta o prazer em todos os níveis perceptíveis,
gerando uma conseqüente experiência extática de arrebatamento e um sentimento de
comunhão com todos os participantes, assim como uma integração com tudo o que está ao
redor. Essa substância aumenta de forma considerável a quantidade de energia disponível no
corpo e permite que a pessoa experiencie a si mesma e ao ambiente a sua volta de maneira
muito mais intensa e prazerosa, assim como aumenta a capacidade para apreciar a música,
os sons, as cores, os elementos da natureza etc.
O perigo é que muitas vezes tais experiências tornam-se mais um consumo
disponível na sociedade ocidental, que estimula a busca do prazer a qualquer custo. Sendo
assim, nesse contexto é possível observar um fenômeno que reflete também o lado obscuro
da sociedade, visto que muitas pessoas se perdem na ilusão dos prazeres instantâneos e do
lucro fácil alcançado por intermédio dos mesmos e assim mergulham em um ciclo vicioso
que pode levar à destruição da própria vida.
Os aspectos psicológicos dessa questão dizem respeito à diferença entre os que
encontram nessas experiências meios para se transformar positivamente e os que depois de
100
Disponível em: http://www.psicofarmacousp.psc.br. este site contém um questionário anônimo sobre drogas
para pessoas que usam ou já usaram Ecstasy, e visa conhecer suas atitudes para planejar uma campanha que
traga informações interessantes, científicas e úteis para quem usa, já usou ou vai experimentar. Ver também
anexo II. B) 5
- 119 -
tais experiências entram em colapso psíquico. Ou seja, as pessoas dispensam o fato de que
precisam se preparar para tais experiências, que aparentemente podem ser muito atrativas,
mas que no entanto podem oferecer grande risco aos que menosprezam seus poderes.
Afinal, quando se submete a uma transformação de consciência, o indivíduo, não tendo
meios para filtrar o que lhe acontece, pode enfrentar posteriormente resultados terríveis.
A tecnologia voltada para a produção das drogas gera experiências com diferentes
características sensoriais e por orquestrá-las de forma sistemática e coerente cria realidades
virtuais. Nas experiências alcançadas no contexto dos festivais psicodélicos é possível
transcender as limitações usuais do ego corpóreo, do espaço tridimensional e do tempo
linear. O desaparecimento das barreiras espaciais pode levar a identificações autênticas com
outras pessoas, animais, vida vegetal e até mesmo possibilitar o acesso a memórias do
inconsciente individual e coletivo, assim como as experiências podem levar aos domínios
arquetípicos do inconsciente coletivo e mediar encontros com divindades extasiantes e
coléricas.
As experiências transcendentes criam sentimentos de unidade que parecem aumentar
a cada dia do festival, gerando muitas vezes uma consciência coletiva absoluta extasiante.
Mas embora essa seja a experiência mais passível de acontecer nesses contextos de alta
carga emocional positiva, eles também podem envolver circunstâncias altamente
desfavoráveis para alguns participantes que parecem mergulhar em um caos desordenado e
infernal que pode ser gerado por múltiplos fatores. Um deles é a mistura excessiva de
substâncias que atuam de maneira distinta no organismo; outro é a própria estrutura psíquica
do indivíduo, que muitas vezes não suporta o fato de ter seu ego despedaçado. E também
pessoas que não respeitam o próprio limite. Isto acontece porque muitas vezes os mais
inexperientes querem aproveitar ao máximo e acham que para isso precisam fazer uso de
mais e mais substâncias até chegarem ao colapso do sistema físico, psíquico e espiritual.
Todas as situações que oferecem oportunidades de experiência direta costumam estar
associada a forças opostas. Ao longo da pesquisa de campo nos festivais entrei em contato
com muitas pessoas que já experimentaram estados alterados de consciência por meio de
substâncias psicodélicas e constatei que é extremamente difícil prever o impacto de tais
substâncias, visto que a atuação das mesmas acontece no nível intrapsíquico. Sendo assim,
- 120 -
os principais obstáculos que tornam as experiências difíceis e perigosas são dessa mesma
natureza e diferem enormemente de um indivíduo para outro.
No contexto lúdico dos festivais, os psicodélicos são amplamente utilizados e é
reconhecida sua capacidade de promover uma grande abertura dos “portões para dimensão
transcendental” (Grof, 2000: 274), que se apresenta por meio de experiências prazerosas,
assim como de experiências aterrorizantes, capazes de gerar medo nos exploradores mais
experientes. Por exemplo, quando acontecem encontros com forças arquetípicas que
envolvem visões de seres benéficos ou maléficos ou quando a pessoa pensa que vai morrer
ou ficar louca para sempre. Uma nova proposta relacionada a esta questão aconteceu no
CircuLou, que ofereceu, além do pronto-socorro regular, um espaço com terapeutas
destinados ao auxílio a crises psicodélicas, voltando-se assim para a característica
multidimensional das experiências que estão circunscritas nesses espaços.
“Conhecer-se melhor é
naturalmente investigar
muitas possibilidades
novas com seu corpo e
mente.”
CircuLou
Festival Universo
Paralello 2005 – Foto:
Ana Flávia N.
Nascimento
No Festival Universo Paralello, as terapeutas responsáveis pela tenda de cura
alternavam-se no plantão chamado “S.O.S Energético”, destinado ao auxílio a crises
psicodélicas. O espaço funcionou como um tipo de ajuda às pessoas que passam por bad trips,
experiências de extrema confusão mental ocasionada pelo uso de substâncias psicoativas.
Contatei que o resultado foi positivo, no sentido de ter acompanhado a passagem das pessoas
pelas experiências difíceis, proporcionando, conseqüentemente, um sentimento de segurança e
acolhimento à medida que os terapeutas estavam ali para ouvir e acompanhar as “viagens”
mais confusas.
O fantasma da insanidade é uma problemática real que está relacionada ao abuso
desses compostos e que é utilizado pelas forças do poder que legislam as sanções ao
- 121 -
comportamento das pessoas julgando ser para o próprio bem delas. Assim, chegamos ao
próximo ponto, a repressão social a esse tipo de eventos devido ao uso de substâncias
ilegais por seus participantes. Esse fato gera sentimentos ambíguos e contraditórios, visto
que ao mesmo tempo que impulsiona atos transgressivos relacionados ao uso do que é
proibido, gera também sensações de poder e prazer. Os participantes desse grupo enfrentam
ainda momentos de medo e tensão para escapar da polícia e ainda passam por “marginais”
ou “loucos” socialmente excluídos por escolherem fazer uso de determinadas substâncias
psicoativas.
Na Trancendence de 2005 a polícia federal praticamente participou do acontecimento
e deve ter arrecadado bastante dinheiro porque levou quase duzentas pessoas presas, dentre
as quais a grande maioria retornou para o evento depois de pagar fiança. À paisana, os
policiais se fingiam de amigos até o momento em que alguém mostrasse que usava algum
tipo de substância ilegal, que na maioria dos casos envolvia a maconha. Também obrigaram
muitas pessoas a abrirem suas barracas para que fossem revistadas e ainda colocavam arma
na cabeça de quem estivesse fumando maconha. Ou seja, o clima festivo passou a ser
aterrorizante por algum tempo, mesmo para os que ali não almejavam fazer uso de nenhum
tipo de substância proibida por lei. No último dia, quando a pista de dança estava lotada,
tocaram uma música com o remix do Bob Marley que dizia “legalize it”, e em média 6 mil
pessoas cantaram juntas o refrão que aclamava a legalização, gerando assim um momento de
auto-expressão e euforia que dificilmente poderia ser contido.
Os festivais psicodélicos não oferecem mais tóxicos que as boates ou bares
noturnos, não geram violência e fazem menos mortos que as saídas das festas populares de
sábado à noite, nas quais o principal veículo embriagador é o álcool, substância legalizada
que é comerciacializada por preços mínimos em qualquer bar de esquina. E uma
característica marcante desse tipo de encontro coletivo é justamente o caráter pacífico que
existe entre os participantes.
E agora imaginemos como nesse mundo construído sobre a aparência e o
comedimento, e artificialmente represado, irrompeu o tom extático do festejo
dionisíaco em sonâncias mágicas cada vez mais fascinantes, como nestas todo o
desmesurado da natureza em prazer, dor e conhecimento, até o grito estridente, devia
tornar-se sonoro; imaginemos o que podia significar esse demoníaco? (...) O indivíduo,
com todos os seus limites e medidas, afundava aqui no auto-esquecimento do estado
dionisíaco e esquecia os preceitos apolíneos. O desmedido revelava-se como verdade, a
contradição, o deleite nascido das dores, falava por si desde o coração da natureza. E
- 122 -
foi assim que, em toda parte onde o dionisíaco penetrou, o apolíneo foi suspenso e
aniquilado.”
(Nietzsche, 1992: 41)
A via extática de religiões pré-urbanas, orgiásticas e consumidoras rituais de
alucinógenos em cultos estão na base da religião pré-ariana que teria se desenvolvido como
shivaísmo
101
, na Índia, e dionisismo, na Europa. A embriaguez mística seria a característica
central da ritualística dessas religiões, que também cultuam os órgãos sexuais. O clima da
vida shivaísta e dionisíaca é uma procura da alegria, do prazer, da realização do indivíduo. O
vinho e outros licores intoxicantes fazem parte dessa alegria de viver, que é um dos
objetivos fundamentais de toda existência, pois a felicidade (ananda) é a própria natureza do
estado divino. Sendo assim, o prazer e a alegria aproximariam de Deus. As festas
dionisíacas ou shivaístas são explosões de felicidade. A embriaguez física, como o erotismo,
é uma imagem e muitas vezes uma preparação para a embriaguez mística.
Como já dizia Nietzsche, o dionisíaco expressa uma necessidade dos seres humanos
de experimentar o entusiasmo delirante. Com todo seu potencial orgíaco, o festival
psicodélico repousa, a um só tempo, na luz e na sombra, pois permite que a parte de sombras
que ronda o corpo individual e social seja simbolicamente integrada para então dar força à
solidez da trama social cotidiana. Esse agrupamento é por si só a causa e o efeito de tais
encontros. É ele que pode explicar, no âmago do conformismo mais aparente, a continuidade
do espírito de aventura, do libertarismo e da libertinagem. Estabelece os sobressaltos de
revolta que pontuam as histórias humanas e atesta a existência do enraizamento terreno,
impelindo para que se colham os frutos de nossa terra. Convencida da precariedade e da
finidade momentânea de todas as coisas, a sabedoria de todos os dias é profundamente
hedonista, isto é, integra o trágico e enfatiza sua especificidade cósmica.
Maffesoli (2003) associou esses encontros coletivos à “sabedoria demoníaca”, uma
sabedoria incorporada, mais vivida que pensada, que de forma paroxística encontra uma
postura de resistência por derrubar a ordem aparentemente divina, com objetivos diabólicos,
101
Segundo fontes indianas, o shivaísmo é a religião mais antiga e data do quarto milênio a. C. Considerada a
primeira religião, surge como resultado dos esforços do homem, desde suas origens mais distantes para
compreender a natureza da criação, sua beleza, sua crueldade, seu equilíbrio e a maneira como pode se integrar
na obra do criador e cooperar com ele. O princípio do shivaísmo é o de que nada existe no universo que não
faça parte do corpo divino, que não possa ser um caminho para alcançar o divino. Todos os objetos, todos os
fenômenos naturais, as plantas, os animais, assim como todos os aspectos do homem podem ser pontos de
partida para nos aproximarmos do divino (Daniélou, 1989:. 1, 6, 24).
- 123 -
e estabelecer em seu lugar uma desordem infernal. Sendo assim, uma manifestação que traz
de volta à nossa sociedade a essência contemplativa, que por mais absurdo que possa
parecer traz de volta o espírito natural.
“(...)
queremos ouvir e desejamos ao mesmo tempo ir muito além do ouvir. Esse
aspirar ao infinito, o bater de asas do anelo, no máximo prazer ante a realidade
claramente percebida, lembram que em ambos os estados nos cumprem reconhecer
um fenômeno dionisíaco que torna a nos revelar sempre de novo o lúdico construir e
desconstruir do mundo individual como eflúvio de um arquiprazer (...)” (Nietzsche,
(1992: 142)
“A eternidade é uma criança, um elfo
que brinca com balões coloridos.
Heráclito
Trancendence 2005 – ao fundo pode
ser avistada a pista de dança. Foto:
André Ismael - Zuvuya.net
De onde advém o terror que se apodera do ser humano quando de repente perde o
princípio da razão e é acometido pela ruptura de seu princípio individual e se a esse terror
acrescentarmos o delicioso êxtase que ascende do fundo mais íntimo do homem? Sim, da
natureza intimamente relacionada à essência do dionisíaco e do shivaísmo, que é
manifestado pela analogia da embriaguez. Seja por influência da beberagem narcótica, da
qual todos os povos e homens primitivos falam em seus hinos, ou com a poderosa
aproximação da primavera a impregnar toda a natureza de alegria, desperta o vôo, por cuja
intensificação o subjetivo se dissolve em completo auto-esquecimento.
Desta maneira, por meio do lúdico o dionisíaco é revivido numa nova roupagem, em
que a embriaguez torna-se apenas mais um recurso para soltar a criança interna das garras da
caduquice moral limitante. Nos festivais, a nova geração experimenta momentos estáticos
de plenitude infantil. O mito da “criança eterna”, que atualmente retorna com força e vigor,
- 124 -
contamina o conjunto das faixas etárias, dando ênfase à intensidade do vivenciado, ao
qualitativo da existência.
O fenômeno dos festivais psicodélicos como expressão do retorno das vias
dionisíacas e shivaístas está refletindo a necessidade de mudança, de transgressão do que
está sendo imposto socialmente e que já não funciona mais. No século XXI, essas
celebrações representam um caos transformador, uma “sede de infinito” que no vigor do
êxtase coletivo exprimem a saturação dos valores modernos e a busca por novos
significados. Em suas diversas manifestações, o excesso remete à afirmação da existência,
ao que Nietzsche denominava “dizer sim à vida”. Na realidade, que poderia haver de “mais
mortal” do que se embriagar completamente, extenuar-se em vigílias, entregar-se ao
dispêndio e ao prazer extremo? Todos esses fatos, que chocam as limitações impostas pela
moral social, indicam a pulsão vital irreprimível. Desrespeitar e infringir instituições e
regras estabelecidas para viver acima de suas possibilidades significa quebrar a rigidez da
imposição normativa e dizer sim a toda a existência, integrando a morte e a violência erótica
e poética como parte do desenvolvimento vital e infinito (Maffesoli, 1985: 97).
No contexto planetário, manipulado pela economia capitalista, assistimos ao
crescimento de uma “indústria” de indução de transe, que a cada dia torna-se mais potente e
acessível a todos os grupos sociais. Grande parte da população voltada para o
desenvolvimento individualista e extremamente materialista tende a buscar “tecnologias
espirituais naturais ou artificiais”
102
a qualquer custo, como meio de apaziguar o vazio
existencial. Para Mckenna (1995: 305), defensor do uso das tecnologias naturais, as
experiências psicodélicas fizeram parte da cadeia alimentar humana desde o começo,
constituindo fonte de maior “visibilidade” para os animais durante a caça. Em sua maneira de
ver, as substâncias psicodélicas constituem o único item suficientemente autêntico para ser
102
De acordo com Ott, as religiões que utilizam enteógenos são consideradas como “naturais”, pois recuperam
o mistério tremendo da união mística, que religa o ser humano com a natureza e com todo o cosmos,
promovendo assim “paraísos naturais”. No século XXI, o saber científico, ao resgatar o valor dessas “religiões
naturais” e também o valor das experiências extáticas, conseqüentemente desvincula o misticismo que envolve
o contato direto com o divino, e essa qualidade passa a constituir muitas esferas da vida coletiva, representando
assim uma das crises dos valores ideológicos atuais. O autor refere-se às “tecnologias espirituais artificiais”,
produzidas em laboratórios, como substâncias capazes de conduzir a experiências religiosas autênticas (Ott,
1999: 108)
- 125 -
proibido e eliminado por lei, pelo fato de que mostram a natureza transcendental da
realidade e fazem os que as experimentam questionar a crença materialista amplamente
difundida tanto pela ciência cartesiana como pelo sistema capitalista.
A ciência tradicional descreve os seres humanos como máquinas biológicas pensantes
com consciência racional. Porém as modernas pesquisas relacionadas aos estados alterados de
consciência indicam a existência de campos de consciência que transcendem espaço, tempo e
causalidade linear. A visão completamente nova advinda do paradoxo onda-partícula da física
quântica descreve os seres humanos como sendo paradoxais por conter aspectos
complementares. Pois dependendo das circunstâncias podem utilizar a consciência racional
para analisar as propriedades dos objetos limitados ou recorrer aos campos de consciência
subjetivamente infinitos.
Na sociedade contemporânea, a busca de estados que possibilitem a “descoberta” de
outros níveis de consciência, assim como de conhecimentos a respeito das substâncias
psicodélicas, não se restringe à valorização dada pela cultura das raves de música eletrônica;
expressa-se também numa intensa atividade editorial e na articulação por meio da Internet,
que dá espaço a círculos de investigação e ao debate sobre tais substâncias. Além disso, as
diversas formas de uso dessas substâncias têm se constituído como um campo original de
conhecimento e produção cultural, onde a psicologia, a farmácia, a medicina, a história, a
literatura e a antropologia se uniram para buscar compreender o papel das plantas e dos
sintéticos produtores de estados de êxtase, que tiveram e ainda têm um papel determinante
como produtores de valor cultural, principalmente no aspecto comercial, místico e religioso.
Nos dias de hoje, as substâncias psicodélicas são notáveis em razão do súbito
aparecimento, nos anos 60 e 70, quando uma onda de alterar a consciência alcançou grande
número de adeptos. Com a descoberta da capacidade de essas substâncias expandirem a
mente humana, muitos estudantes, cientistas, artistas e outros tantos mergulharam através
das “portas da percepção”, termo emprestado de Willian Blake para Aldous Huxley para
descrever em 1954, no livro de mesmo título, as capacidades expansivas de substâncias
como a mescalina e o LSD de abrirem a mente humana ao infinito. Timoth Leary chamou
tais experiências de tune in psicodelicamente – “ligar a mente”.
- 126 -
Após a proibição do LSD, muitas outras substâncias psicodélicas também foram
proibidas. Conseqüentemente, hoje a descrição científica do potencial desses compostos
tende a restringir-se a um tipo de psicanálise instantânea, que remete ao fato de que ao
ingerir essas substâncias o indivíduo mergulha por meio de suas próprias experiências
psíquicas, sendo possível recriar seus traumas infantis, compreender melhor a situação em
que se encontra e mesmo abandonar atitudes neuróticas. Como uma alusão ao tema, uma
matéria da Internet afirmava que no terceiro dia do festival, quando todos estavam entregues
ao transe psicodélico, “as jaulas das selvas psicológicas foram abertas e então se estabeleceu
a nulidade das convenções sociais e um latente instinto tribal tomou conta, deixando
desabrochar o que existia em cada um”.
103
Como cada contexto histórico e cultural lida de maneira diferente com a questão da
alteração de consciência, as pesquisas relacionadas ao uso de substâncias psicodélicas
tiveram suas asas quebradas quando estavam levantando vôo. Contudo, havia uma vasta
comunidade clandestina que continuou as pesquisas nessa área, e desses trabalhos surgiu
uma imagem a respeito da consciência humana que vai muito além dos modelos de Freud e
Jung.
A moderna pesquisa de consciência e a “psicologia transpessoal”
104
demonstraram
que as experiências que envolvem estados visionários profundos revelam a existência de
dimensões da realidade normalmente escondidas e que não podem ser descartadas como
distorções patológicas, como vinha sendo feito pela religião, pela psiquiatria e pela
psicologia. Nos anos 60, quando Stanislav Grof era residente de psiquiatria, foi voluntário
em uma experiência com LSD, e o impacto causado em sua visão de mundo fez com que,
desde então ele passasse a dedicar sua vida à exploração sistemática de estados não comuns
de consciência. No início dos anos 70 ele participou, durante vários anos, de um programa
de pesquisas em psicoterapia psicodélica para pacientes com câncer terminal que faziam uso
do LSD e do MDA (methylene-dioxy-amphetamine).
103
Disponível em: http://www.zuvuya.net/sites/raveon/ypypoty/brasil/people/ypypoty-041.htm. Acesso em: 14
abr. 2006.
104
A psicologia transpessoal estuda e respeita com seriedade todo o espectro da experiência humana, inclusive
os estados holotrópicos e os domínios da psique – biográfico, perinatal e transpessoal. Como resultado, tem
maior sensibilidade cultural e oferece uma forma universal de compreensão da psique, aplicável a qualquer
grupo humano e período histórico. Também honra as dimensões espirituais da existência e reconhece a
profunda necessidade humana de ter experiências transcendentais (Grof, 2000: 211).
- 127 -
Após anos de pesquisas relacionadas aos estados alterados de consciência, Grof
constatou que os insights referentes à natureza da mente e da realidade não se limitavam aos
estados psicodélicos, mas eram característicos dos estados holotrópicos
105
em geral. Nesses
estados ocorre uma mudança qualitativa de consciência, de forma profunda, e não gera
danos como ocorre nas condições de causa orgânica. Tais estados caracterizam-se por
dramáticas mudanças de percepção em todas as áreas sensoriais. Quando, de olhos fechados,
o campo de visão pode ser inundado por imagens provenientes da história pessoal e do
inconsciente individual e coletivo, pode-se ter visões e experiências retratando vários
aspectos dos reinos animal e botânico, da natureza em geral ou do cosmo. As experiências
podem levar aos domínios de seres arquetípicos e a regiões mitológicas. Tipicamente não se
perde por completo o contato com a realidade, presenciando-se de forma simultânea duas
realidades muito diferentes (Grof, 2000: 18).
No livro LSD and the cosmic game: outline of psychodelic ontology and
cosmology
106
, Grof resumiu uma concordância enorme entre seus pacientes que tiveram
insights sobre questões metafísicas quando sob o efeito de LSD, e concluiu que a visão da
realidade que emergiu a partir do estudo desses estados retrata o universo não como uma
supermáquina mecânica, mas sim como uma complexa realidade virtual criada e permeada
por uma inteligência cósmica superior, chamada consciência absoluta ou mente universal.
Esses insights conflitavam diretamente com a visão de mundo e a filosofia da ciência
materialista. Contudo, mostraram grandes paralelos com as grandes tradições místicas do
mundo e também com os avanços da ciência moderna comumente associadas à física
quântica e ao novo paradigma (Grof, 2000: 260).
“A experiência psicodélica é acompanhada por muitos insights sobre a natureza da
existência humana. Através da riqueza de minha experiência, descobri que as
dimensões do meu ser eram muito maiores do que jamais imaginei. Com isso entrei
em contato com o puro ser, e me dei conta de que ele não podia ser compreendido e
não precisava de nenhuma justificativa. Com isso, veio a consciência de que minha
única tarefa era a de manter a energia fluindo e não sentar nela, como costumava
105
O termo holotrópico significa literalmente “orientado para a totalidade/inteireza” (do grego holos =
totalidade/inteireza, e trepein = indo em direção a algo). O termo sugere que no estado de consciência
cotidiana identificamos-nos com apenas uma pequena fração de quem realmente somos., enquanto nos estados
holotrópicos podemos transcender as fronteiras restritas do ego corporal e experienciar nossa identidade total
(Grof, 2000: 18).
106
(Grof 1972, apud Grof 2000) LSD e o jogo cósmico: um sumário da cosmologia e ontologia psicodélica.
- 128 -
fazer. O fluxo da vida estava simbolizado por muitas imagens lindas de água em
movimento, peixes e plantas aquáticas e cenas de danças encantadoras.”
107
O trabalho com estados holotrópicos de consciência reuniu um grande corpo de
evidências que representa um sério desafio à visão de mundo materialista criada pela ciência
ocidental, principalmente à crença na primazia da matéria sobre a consciência. Os dados
emergiram do estudo de experiências relacionadas a estados alterados de consciência, assim
como dados relacionados com a morte e o morrer. Esse material sugere uma urgente
necessidade de se fazer uma radical revisão dos atuais conceitos da natureza da consciência
e de sua relação com a matéria e o cérebro (Grof, 2000: 225).
Como o universo começou? O mundo em que vivemos é apenas um produto de
processos mecânicos envolvendo a matéria inanimada? Qual é a fonte da ordem, da forma e
do significado do universo? Se há um princípio criativo supremo, qual é a nossa relação com
ele? Como podemos nos entender com dilemas como a finitude do tempo e do espaço versus a
eternidade e o infinito? Qual a relação entre a vida e a matéria e entre a consciência e o
cérebro? Como podemos explicar a coexistência do mal e sua presença opressora na trama
universal das coisas? Nossa existência é limitada a apenas uma vida ou sobrevive à morte
física? E quais as implicações práticas, para a vida diária, de acordo com a forma como
respondemos as perguntas acima?
A importância dos estados holotrópicos para as culturas antigas e aborígines reflete-
se na quantidade de tempo e energia dedicados ao desenvolvimento de “técnicas do
sagrado” – vários procedimentos de alteração da consciência capazes de induzir estados
alterados de consciência com propósitos rituais e espirituais. Esses métodos combinam, de
várias maneiras, tambores e outros tipos de percussão, música, cantos, danças rítmicas,
controle da respiração e formas especiais de percepção. Um longo período de isolamento, a
permanência em uma caverna, no deserto, no gelo ártico ou em montanhas altas também
desempenha um importante papel na indução desses estados. Intervenções fisiológicas
extremas utilizadas com esse propósito incluem jejum, privação de sono, desidratação e a
mesmo grandes sangrias, utilização de purgativos e laxantes poderosos e a imposição de
107
Relato de uma paciente com câncer terminal, que no fim dos anos 60 e início dos 70 participou de um
programa de pesquisas em psicoterapia psicodélica que fazia uso do LSD e do MDA (methylene-dioxy-
amphetamine) (Grof, 2000: 240).
- 129 -
dores severas. Outro recurso constantemente utilizado na indução desses estados tem sido o
emprego ritual de plantas e substâncias psicodélicas (Grof, 2000: 20).
Nas sociedades pré-industriais, a oportunidade de ter experiências transcendentais
existia na forma de rituais xamanísticos, ritos de passagem, cerimônias de cura, antigos
mistérios, escolas místicas e práticas de meditação. Nas décadas recentes o mundo ocidental
tem visto um significativo ressurgimento das práticas espirituais antigas e das técnicas do
êxtase como uma busca por reconciliar e integrar os aspectos materiais e espirituais da
existência ou as dimensões da consciência disponíveis à vida. De acordo com as tradições
místicas, a vida é uma oportunidade de preparação para a morte. Muitas pessoas que
relataram a experiência que sofreram perto da morte têm uma curiosa afinidade com a
viagem xamânica e a experiência psicodélica. Do ponto de vista do mapa xamânico da
consciência, o mundo tem um “centro”, e quando se vai ao centro, que fica no interior de
cada pessoa, há um eixo vertical que permite subir ou descer aos mundos celestiais,
infernais, paradisíacos, iluminados e sombrios.
Esses são os mundos que se abrem nas experiências transcendentais voltadas para as
dimensões escondidas de nós mesmos e da realidade. Os festivais de transe psicodélico são
como portais que abrem para a exploração da consciência e libertam o fogo interno. Mas
para encontrar o centro interno é preciso uma dedicação que abranja não só os aspectos
lúdicos e prazerosos da realidade, pois esse caminho pode trazer sérias queimaduras aos que
não têm medo do poder da chama de luz e escuridão que irradiam da própria consciência.
Para que uma transformação positiva realmente aconteça é preciso que a experiência vivida
no meio coletivo seja também elaborada por meio da interiorização conduzida por uma
busca interna sistemática e individual, a qual poderá viabilizar, na vida cotidiana, uma
identificação mais experimental e lúdica com a própria consciência.
Malabares de Fogo –
Foto: psyte.com
- 130 -
No século XXI, a crise global explicita o desequilíbrio civilizacional e a ameaça
gerada pelas próprias criações técnicas do ser humano. Nesse momento de grandes perigos,
os festivais ganham força como manifestações de transgressão e expiação sacrificial,
marcada pela perturbação, que propicia a restauração da virtude da sociabilidade
estabelecida para além dos limites impostos. Considerando os riscos das múltiplas
implicações psicológicas, estes fenômenos constituem índices de uma comoção existencial
no seio de determinada sociedade e podem ser vistos como paradigmas da efervescência
lúdica.
Como manifestação da chamada “nova era”, que emerge em um momento de crise
dos valores impostos, os participantes dos festivais incluem pessoas que perderam a fé nas
religiões, no Estado e na ciência materialista. Sendo assim, a busca desse “novo homem”
108
está voltada para experiências diretas que consigam ir além do que está imposto
racionalmente, transcendendo as dualidades e as categorias de pensamento presas à esfera
de tempo e espaço. Baseada na precariedade e na finidade momentânea de todas as coisas, a
busca atual é profundamente hedonista, isto é, estabelece momentos de sobressaltos intensos
e de revolta que pontuam a história humana e atestam a existência do trágico que
acompanha o elemento contraditório, contido no prazer e na dor, na luz e na escuridão, na
vida e na morte, despertado por intermédio do excesso embriagador complementar de Eros
e Tânatos.
A embriaguez favorece a fusão. É sob esta perspectiva que convém apreciar os
cultos orgíacos que pontuam as histórias humanas. A embriaguez é, a um só tempo, uma
iniciação cósmica (a perda de si) e uma iniciação erótica (a agregação coletiva). Nunca se
demais refletirmos sobre tal ligação, não obstante o puritanismo prometéico e o
mercantilismo dominante: ela está e sempre estará subjacente ao consumo de substâncias
intoxicantes. Esquecer o próprio corpo e se entregar ao corpo coletivo – corpo místico – é
uma maneira de reproduzir o ciclo infindável da criação e da destruição.
108
Joana Cocarelli: “Holismo e o novo homem” (set. 2002): seminário realizado na Universidade Estácio de
Sá a respeito do “novo homem” – perfil encontrado em festivais de trance.
- 131 -
TERRA: ARTE QUE PULSA
A terra bebe lentamente a cor como uma esponja absorve a água, ela arredonda-se,
espessa-se, encontra seu equilíbrio e oscila sob os nossos pés no espaço.”
Virginia Woolf
109
Imagem: Macrossomos – por Charlie Oliveira
A arte mantém um espelho diante da natureza, pode-se dizer que a arte segura
um espelho holográfico diante da natureza para que se possa ver que nesse objeto
refletido está a totalidade. Joseph Campbell
“Esse é um movimento estético e artístico que possui um código. O código é
baseado nesse ambiente de arte e beleza que criamos na festa; de sermos todos amigos,
querermos o bem do planeta, estarmos prestando atenção no nosso corpo, na nossa mente
e na espiritualidade. Basicamente é isso. Não existe uma linguagem. As pessoas têm um
nível de comunicação mais sensível. Por mais que elas não falem a outra língua, querem
entender a outra língua, são pessoas mais predispostas ao diferente”, relatou o artista
Marcelo Jaz, que está envolvido com a criação do universo psicodélico desde 1997.
109
(in Bachelard 2001b)
- 132 -
O estado estético é um transe de felicidade, de graça, de emoção e de gozo. A
estética é concebida aqui não somente como uma característica própria das obras de arte,
mas a partir do sentido original do termo, aisthètikos
110
– de aisthanesthai – “sentir”. Trata-
se de uma emoção, uma sensação de beleza, de admiração e de sublime. A estética aparece
não apenas nos espetáculos ou nas artes, entre os quais está a música, o canto, a dança, mas
também nos odores, perfumes, gostos de alimentos ou bebidas, no espetáculo da natureza,
no encantamento diante do oceano, das montanhas, do nascer e pôr-do-sol.
Os festivais psicodélicos são desenvolvidos especialmente para ser o meio ambiente
de experimentações do corpo, da mente e do espírito. Para isso, o primeiro ponto a ser
considerado é o lugar, que, como já foi exposto, deve ser em meio à natureza, possibilitando
o contato direto com a terra e seus elementos. O espaço passa por uma impactante
transformação, por meio de uma mistura de cores, símbolos, formas geométricas, luzes,
decorações, panos, pinturas, cheiros, performances e tudo o que possa servir de estímulo
para a experiência estética. Ou seja, o ambiente é preparado com prazer por aqueles que
criam a atmosfera para receber os participantes, visando proporcionar-lhes vivências em um
universo que dificilmente poderá ser encontrado em outro espaço, pois, diferente das outras
esferas da realidade, essa envolve a exploração das fantasias humanas relacionadas ao lúdico
e ao criativo.
Ao observar a sociedade urbana e tentar captar em qual esfera vive-se
simbolicamente, é provável que a resposta seja: principalmente na TV, nos filmes,
propagandas etc. Afinal, em nossa sociedade, a publicidade e a mídia souberam utilizar
muito bem o símbolo para despertar o medo ou o desejo do consumo. De “penso, logo
existo”, nossa sociedade passou para “compro, logo existo”, e agora novas ideologias estão
propondo a síntese “respiro, logo existo” ou “sinto, logo existo”.
A palavra símbolo vem do grego sym-bolos, que significa reunir ou juntar. Essa
palavra tem um antônimo muito interessante, dia-bolos, que significa afastar ou separar. A
maioria das pessoas não tem a mínima noção de que a vida simbólica pode exprimir as
necessidades mais profundas da alma humana, e como desvalorizam o que é da esfera do
“sentir” e supervalorizam o pensamento racional, acabam não percebendo que estão
sofrendo as conseqüências desse desequilíbrio. Sendo assim, torna-se compreensível o fato
110
Morin (2002b: 132).
- 133 -
de a cultura psicodélica ser reprimida no seio social, pois como expressão artística e estética
tenta reunir e juntar os símbolos da cultura humana para vislumbrar uma transfiguração
sensível do racionalismo.
O aparecimento da cultura opera uma órbita na evolução humana. A cultura acumula
o que é conservado, transmitido, aprendido e ainda o que é vivido a partir da experiência.
Como um aspecto da cultura planetária, o movimento psicodélico opera por meio de um
conjunto de hábitos, costumes, práticas, saberes, interditos, idéias, valores, mitos, que se
perpetuam e se reproduzem em cada indivíduo que o integra, gerando e regenerando assim
sua complexidade social a nível global.
Com a abertura ao mundo, o espírito humano também é estimulado a se abrir. No
festival Universo Paralello 2004 havia uma centena de pessoas aguardando nas areias da
praia quando a lua cheia nasceu sobre o mar.Ao longe foi possível ouvir os aplausos e os
gritos de prazer e alegria diante de tamanha luminosidade. Na astrologia, a lua é tida como
centro do mundo espiritual e da consciência matriarcal; representa o self feminino, assim
como Sophia, sabedoria. Trata-se de uma sabedoria associada com a unidade indissolúvel e
paradoxal da vida e da morte, da natureza e do espírito, das leis do tempo e do destino. Essa
imagem da sabedoria feminina envolve a Terra, o crescimento orgânico e a experiência
ancestral. Junto às águas do mar, a lua representa uma sabedoria do inconsciente, dos
instintos e da vida. Deve ser por isso que a força da lua cheia sempre marcou os períodos
escolhidos para as celebrações tribais.
Artista Marcelo Jaz
111
pintando mural para decoração do Festival
Universo Paralello 2004 – Foto: Ana Flávia Nogueira Nascimento
111
Marcelo Jaz desenvolve, em parceria com o artista multimídia Charles Oliveira, o projeto Synthetic
Sapiens, que pode ser conhecido no site: www.syntheticsapiens.com
.
- 134 -
“As minhas referências são retiradas principalmente do eletrônico, do
cibernético e da natureza. Isso baseia o meu foco de criação: o que o meio urbano traz,
misturado aos elementos da natureza. Só que tudo isso tem que virar uma linguagem;
então nessa hora ou você pega um molde pronto, ou deixa fluir. E para fluir é sempre
caótico. Então é preciso delinear um pouco o caos, formulando alguns símbolos. As
bolinhas para mim são partículas de egos, condensações de realidade. Seja um átomo,
uma consciência ou uma dimensão nela mesma. Tento conversar através da pintura. E a
conversa tem movimento, está ali para dizer uma coisa só, interligada. Mas o que falta:
a ideologia. E a ideologia é basicamente a liberdade de falar desses assuntos. Liberdade
para falar de espiritualidade, de física, de psicologia, de drogas; e poder colocar isso
para uma posterior dialética. Colocar isso em evidência. Para que quando as pessoas
estão abertas no transe da música, e da droga, e do ambiente em si da festa, elas
perguntem mais sobre aquilo que estão vendo, sobre o que está acontecendo dentro e
fora da realidade em que vivem. E pensem coisas aleatórias sobre o que vier à mente,
de forma espontânea, sem as limitações do pensamento linear e causal.” (Marcelo Jaz ,
entrevista realizada em 20/12/2004 – Bahia)
A fala do entrevistado remete à ideologia do grupo, que está voltada para a busca da
liberdade que esses espaços proporcionam. Devido à atmosfera criada esteticamente, as
pessoas sentem que estão entrando mesmo em um mundo de “fantasia”, sem barreiras, onde
tudo pode, desde que a experiência individual não violente a experiência alheia. Essa
sensação de poder falar sobre o que quiser e experimentar o que quiser faz com que as
pessoas sintam a sensação de ser livres, espontâneas e ao mesmo tempo respeitadas em suas
escolhas mais íntimas.
A percepção estética é essencialmente intuição acompanhada do prazer. Esse prazer
deriva da percepção que a pessoa tem da forma pura de um objeto, independente de seu
propósito. Um objeto representado em sua forma pura é belo e é também livre, pois é obra
da intuição e da imaginação. Essas faculdades mentais libertam o ser humano da sua
escravidão em relação às dominações e constitui uma ordem voltada para as leis da beleza.
Marcuse (1969) chegou a considerar, mesmo que como utopia, que quando o impulso
lúdico ganhasse ascendência como um princípio da civilização, esse transformaria a
realidade. E essa é uma característica marcante entre alguns participantes desse movimento,
pois muitos acreditam que por intermédio desses festivais podem transformar também a
realidade.
“Eu não acho que por fazer esses festivais nós possamos parar a guerra no Irã. Mas se
você cria uma boa atmosfera e divide bons momentos com outras pessoas tendo
- 135 -
liberdade de expressão, talvez possa fazê-los pensar e torne-os um pouco mais
conscientes. Olhe, têm mais de 4 mil pessoas aqui, em um ambiente onde elas podem
conversar e compartilhar livremente; assim quem sabe elas possam passar isso para
outras pessoas. É ação e reação. Quanto mais pessoas conscientes de suas ações e de
que em cada ação você muda um pouco, então toda ação passa a ter importância
nesse planeta. Mas é claro que como tudo na vida aqui também existem dois
caminhos extremos, depende apenas de a pessoa escolher qual seguir.” (Píer,
engenheiro de som. Entrevista realizada na Bahia, dez. 2004)
No decorrer da pesquisa, constatei que o prazer despertado pela contemplação
estética está diretamente relacionado àquele que os próprios artistas vivenciam durante o
processo de criação. Os artistas, os quais têm o dom de transformar a realidade, chegam ao
local do festival com até um mês de antecedência, e a maior parte das criações é realizada in
loco. Sendo assim, acontece um processo complexo que envolve uma ampla variedade de
materiais, os quais vão ganhando formas e dimensões, cores e brilhos, que irão despertar a
admiração dos participantes; agindo, conseqüentemente, como focos que de forma simbólica
canalizam a pluralidade das experiências contidas nesses espaços.
Pista de Dança do Festival Universo Paralello 2004 – Foto: Ana Flávia N Nascimento “As
estrelas foram feitas a partir de duas formas poderosas, o círculo e o triângulo. O círculo é a
forma geométrica mais perfeita, não acumula energia, então a energia circula, tem movimento.
E o triângulo, por possuir três lados, representa o equilíbrio. Porque com dois lados você
sempre tem um conflito, mas com três tem um ponto neutro e alcança o equilíbrio. Para mim
isso é geometria sagrada, você consegue explicar algo através dela. Os fractais, por exemplo,
nada mais são do que repetição da mesma forma.” (Anderson Miti Yuri Tanaka, entrevista
realizada na Bahia, dez. 2004)
- 136 -
A decoração do festival da foto acima contava com quinze estrelas
112
, algumas delas
com 5,5 metros. O processo de construção dessas estrelas durou mais de uma semana.
Primeiro foram feitas as pontas, as quais foram soldadas em ferro vazado. Depois foram
cortados os panos, os quais foram costurados, e então um grupo de pessoas forrou as
estruturas das pontas, que ainda estavam todas separadas. Aos poucos as pontas foram
ganhando cores, algumas foram pintadas e outras encapadas com papel holográfico, o qual
refletia as cores do arco-íris. Para complementar a arte psicodélica, um lado das pontas foi
feito com uma técnica de entrelaçamento de lã. Só depois que cada ponta estava pronta é
que chegou o momento de uni-las, dando forma às estrelas, que tinham um design que
possibilitava que elas girassem constantemente com o vento, dando a sensação de
movimento.
Esse processo de criação envolve muito prazer, mas também muita tensão por parte
dos artistas, que sentem o peso relativo à obrigação de manifestar criações que irão causar
impacto nos participantes, os quais, por meio da contemplação, irão sentir a complexidade
ou mesmo a sensibilidade que fez parte do processo de transformação da matéria para gerar
uma bela obra de arte. Afinal, a materialização artística faz parte de um processo de
sublimação, que acontece durante o ato de criar de um objeto poético, que deverá absorver
posteriormente todo sujeito que o contemplará. Sendo assim, pode-se pensar que o artista
vive um processo de canalização do imaginário psicodélico.
Barracão de arte do festival Universo
Paralello – Fotos: Ana Flávia N. Nascimento.
112
A estrela possui a qualidade de luminar, de ser fonte de luz. Ela tem significado celeste, que faz com que
seja símbolo do espírito e, particularmente, do conflito entre as forças espirituais e materiais. As estrelas
transpassam a obscuridade: são faróis projetados na noite do inconsciente (Chevalier, 1997: .536)
- 137 -
As criações voltadas para a estética psicodélica muitas vezes envolvem seres da
natureza, como, por exemplo, uma libélula
113
de 5 metros de corpo por 11 metros de asa,
que ganhou vida e voou sobre a pista de dança do festival Universo Paralello. A libélula foi
projetada por Joe Nishimura, em uma estrutura de arame, e depois foi coberta com plástico,
o qual foi pintado por Marcelo Jaz, com um aspecto orgânico baseado no corpo de uma
libélula que se encontrava morta dentro de um vidro com álcool. Em seu interior foi
colocada uma luz fluorescente que à noite ficava piscando. E as asas foram trançadas com
lã, dando um aspecto de leveza ao ambiente.
Ao observar os festivais como manifestações coletivas que acontecem em torno de
criações estéticas, podemos considerá-los como propostas de um universo lúdico, no qual a
natureza e o mundo objetivo não são mais experimentados como um domínio sobre o
homem (tal como na sociedade ancestral), nem como dominados pelo homem (como na
civilização atual), mas são experimentados como objetos de “contemplação” que libertam o
ser humano da escravidão e o transformam em livre manifestação de potencialidades. A
analogia com as colocações de Marcuse (1969: 165, 166) faz-se pertinente, visto que ele
acreditava que a libertação do homem “passa através da estética, visto ser a beleza natural o
caminho que conduz à liberdade”. Assim sendo, o impulso lúdico é o veículo desse
sentimento de libertação, a qual acontece quando o homem está livre para jogar tanto com
suas próprias faculdades e potencialidades como com as da natureza e só jogando com elas
pode se sentir livre.
“Antes eu ia aos festivais e via tantos jovens juntos, com muitas idéias parecidas, e
isso me fazia pensar: e aí, o que agente faz agora? Percebi que tinha muita gente perdida no
tempo. E foi assim que começamos a buscar a criação de frutos desses momentos coletivos.
Então nós nos unimos para gerar esse espaço, onde estamos buscando circular arte, cultura e
espiritualidade. A intenção vai além do que temos a oferecer, pois objetiva que as pessoas
utilizem esse espaço para trazer suas artes, seus conhecimento, e para participar, trocar. Para
mim isso é a expressão da liberdade. De mostrar quem você é. Aqui você pode ser um
113
A libélula é um símbolo admirado por sua elegância e leveza, característica que evocam a dança, a
flutuação, a música e tudo o que é aéreo, vaporoso, ascensional. Sendo assim, um símbolo que remete à
elevação, a uma aspiração a uma vida superior. A libélula é, além disso, um símbolo do Japão, que se designa
às vezes com o nome de ilha da libélula (Akitsu-shima) (Chevalier, 1997: 536)
- 138 -
personagem, seja numa roupa, seja em uma performance, você pode ser como você quiser,
você pode jogar com a sua imaginação”, relatou Priscila, uma das integrantes do espaço
CircuLou, que aconteceu pela primeira vez no festival Universo Paralello de 2004.
“O CircuLou (Zona de Preservação das Culturas) é um
manifesto da grande tribo trance contra a normalização do homem.
A acomodação às estruturas parasitosas da sociedade. Contra a
aceitação da violência e o estupro dos meios de comunicação de
massa. Uma zona independente, para quem não é chegado a
conformismos na música nem na sociedade, para quem acredita na
necessidade e possibilidade de uma mudança global. CircuLou tem
o objetivo de resgatar o caráter multicultural e transdisciplinar da
cultura trance, criando uma zona de positividade nesse Universo
Paralello, baseada em valores que privilegiem o HUMANO, a
VIDA e o AMOR INCONDICIONAL. Você está sendo convidado
a circular com a gente. Contamos com sua presença. Seja também
um circulante!!!” (Retirado do encarte de programação entregue na
entrada do Festival Universo Paralello/ Festival de Arte e Cultura
Alternativa) – Foto: Ana Flávia N. Nascimento.
O CircuLou – Zona de Preservação das Culturas – foi uma proposta lúdica inserida
no Universo Paralello desde 2004-05 para despertar nos participantes a arte de brincar com
o próprio corpo e com a própria imaginação. Em sua segunda edição, a Aldeia CircuLou
contou com sete zonas temáticas que funcionavam 24 horas. Nesse espaço foram oferecidas
atividades múltiplas que podem ser resumidas em: 1) Circo Multicultural – oficinas de arte
(malabarismo, equilíbrio na corda bamba, teatro, música, dança, mandalas etc.; 2) Terapias
Alternativas – reiki, massagens, meditações etc.; 3) Cantinho Maia – espaço dedicado à
Rede de Arte Planetária – Calendário da Paz”
114
; 4) S.O.S Energético – assistência e guia
em viagens interespaciais e Programa de Redução de Danos no Uso de Psicotrópicos; 5)
Circulinho – zona infantil (brincadeiras, oficinas de arte, ecologia e reciclagem, educação
holística); 6) Zona Multimídia – tela paralella (mostra psicodélica de vídeos, curtas, longas,
documentários e animações, a partir das 22 horas); 7) Zona de Convivência – Cozinha
Circular – espaço de utilização comunitário e solidário (oficinas de culinária e nutrição); 8)
114
A Rede de Arte Planetária é uma aliança global composta por pessoas e instituições em nome da paz, da
unificação dos povos e da ética biosférica (uso moral, consciente e criativo dos recursos naturais). Atua em
prol de caminhos alternativos para as soluções dos problemas planetários, como a mudança para o calendário
da paz (Sincronário 13 luas) e o resgate da cultura como fator de integração entre artes, ciências e
espiritualidade (Bandeira da Paz), principais bases da campanha para o novo tempo – o desenvolvimento de
uma humanidade sustentável. Disponível em: www.calendariodapaz.com.br
; www.tortuga.com;
www.13luas.art.br
.
- 139 -
Zona Espetacular – Multiárea – todas as zonas do festival tornam-se um palco para shows e
performances.
Na oficina de Mandalas (1), foi
entregue um prato de papelão para
cada participante e
disponibilizadas tintas, purpurinas,
pincéis, galhos, folhas secas,
flores etc; de forma que cada um
criasse espontaneamente a sua
mandala.
Fotos: Ana Flávia Nogueira Nascimento.
A produção das atividades
envolveu em média 120 pessoas. Até
mesmo os figurinos de todas as
apresentações e performances foram
feitos especialmente para o evento pelos
próprios integrantes do espaço
circulante. Comparando com os outros
festivais citados na pesquisa, o Universo
Paralello fez emergir por alguns dias
um palco nômade de arte.
Barracão de figurinos e programação das performances
- 140 -
Performances na pista de dança – Festival Universo Paralello 2004-05. Fotos: Ana Flávia N. Nascimento
Grupo de Maracatu
“Nós apresentamos dia 27 em Ituberá. E hoje vamos
fazer uma oficina gratuita lá para cem crianças, que foi
organizada pelo CircuLou. Amanhã nós vamos puxar a
abertura da pista de dança com o intuito de mostrar um
som diferente para as pessoas e trazer um pouco de
raiz. E essa é a idéia do CircuLou, de estar trazendo
uma diversidade cultural para o festival.” (Entrevista
realizada com o grupo Maracatu de Brasília que estava
participando do CircuLou/Universo Paralello 2004)
Meditação Grupal – Foto: Ana Flávia N. Nascimento
- 141 -
“Eu penso que os festivais abrem as portas para a espiritualidade. Como o CircuLou,
que está voltado para despertar nas pessoas essa potencialidade, para que elas façam tudo
isso sempre, o ano inteiro. Faça junto com o outro, plante, colha, dance, entre em transe,
faça da vida um ritual mágico, uma obra de arte. Talvez até inconscientemente uma pessoa é
atraída para esse tipo de ritual. Eu acho que o maior atrativo é a liberdade. Muitos jovens
estão procurando os festivais em busca da liberdade, em busca de poder fazer tudo de forma
espontânea. E os organizadores estão chamando a atenção para o cuidado interior, aqui
presente através de muitas atividades interessantes, como meditações, ioga, tai chi etc. E
tudo isso gera uma maior interação entre as pessoas, fazendo acontecer mais
sincronicidades, porque todo mundo entra na mesma freqüência. É muita gente diferente
junto, e depois de um tempo acontece de todo mundo entrar em sintonia. Então você vê
que não tem mais diferença. Fica todo mundo em harmonia. A comunicação é feita através
do olhar, da intuição. Vai acontecendo naturalmente: uma expansão da consciência coletiva.
E isso pode ser muito positivo se pensarmos grupal e globalmente!” (Juliana, estudante de
naturologia. Entrevista realizada na Bahia, dez. 2004)
Quais são os valores planetários difundidos nesse contexto lúdico e estético? De
fato, são os valores humanitários, transcendentais, afetivos, holísticos, multiculturais e
ecologicamente sensíveis. Por exemplo, foi em um dos festivais em que eu realizava
pesquisa de campo que ouvi pela primeira vez sobre a teoria Gaia (Harding, 2001: 21-7)_,
de James Lovelock, que considera o planeta Terra como organismo vivo que tem a
capacidade de “auto-regulação”. Sendo assim, cada organismo “gaiano” influencia
enormemente os demais organismos do planeta.
Quando uma cultura perde o rumo, a reação costumeira é votar atrás na história em
busca do antigo modelo orientador. Assim, a Nova Era é a restauração do ritual, a
redescoberta do xamanismo, a recognição das substâncias psicodélicas e da
importância da deusa Terra. As substâncias psicodélicas nos põem em contato com
algo que é, ao mesmo tempo, real e imediato – a mente do planeta –; a hipótese gaia é
de que todo o planeta é um sistema auto-regulador; vivo, que possui um espírito.
Existe uma alma global que habita o bioma do planeta, e o equilíbrio depende do
contato direto com ela. Fazemos parte de um drama cósmico.” (Mckenna ,1995: 312)
Os festivais psicodélicos introduzem os participantes no mundo passional, um
mundo que supera a ordem rígida da razão, inserindo-os em situações mais “sentidas” do
que analisadas. Ser e estar “com” envolve uma forma englobante que é primordial ao animal
humano. Na era da velocidade, o paradoxo da dinâmica cultural segue o próprio ritmo do
instante e promove o corpo enquanto instrumento de produção de sentido, voltando-o para o
valor da fruição do presente, ou seja, uma exaltação dos valores orgiásticos, na qual se
exprimem as sensações, as paixões, as imagens e as situações de um momento que se voltam
para uma ética do instante aflorada. Trata-se de um arquétipo lúdico e estético que estrutura
- 142 -
as relações sociais. Contrapondo ao utilitarismo, o lúdico é o mais claro índice do querer
viver e da perduração da sociabilidade.
A arte psicodélica está diretamente relacionada à cibercultura e à emergência do
ciberespaço. As novas tecnologias emergem simultaneamente com um devir coletivo
complexo. O ciberespaço
115
, como suporte da inteligência coletiva, é uma das principais
condições de seu próprio desenvolvimento, pois fornece a esta inteligência um ambiente
propício. Um dos seus principais efeitos é o de acelerar cada vez mais o ritmo da alteração
tecno-social, o que torna ainda mais necessária a participação ativa na cibercultura. A
inteligência coletiva apresenta aspectos participativos que implicam a sociabilidade
emancipadora como um dos remédios para o ritmo desestabilizante, por vezes excludente,
da mutação técnica.
A era digital, a qual viabiliza um estilo de criação que está em constante mutação,
pois se utiliza da velocidade como uma constante, implica sobretudo novos significados
produzidos pelos e para os seres humanos. As novas técnicas cibernéticas disponibilizam o
acesso a uma multiplicidade de informações a respeito de todo o Universo e desvelam a
condição ordinária de uma humanidade que convive diariamente com a angústia crônica de
estar à beira de uma catástrofe nuclear e ecológica, enquanto possui, ao mesmo tempo, uma
tecnologia fabulosa semelhante ao mundo da ficção científica.
Nesse contexto contemporâneo, também mais fluído e virtual, mistura-se toda uma
ordem de artifícios e de pessoas que antes poderiam ser considerados incompatíveis, mas
que agora se apresentam interligados por meio da busca por experiências que implicam a
busca da superação dos dualismos – eu/outro, mente/corpo, natureza/cultura,
homem/máquina –, os quais tendem à separação e à exclusão, explicitando assim a
percepção do mundo e do corpo construída de forma híbrida e interligada.
Os festivais psicodélicos são palcos de arte e estética, assim como o corpo dos
participantes é o centro dessas experiências. O corpo é o lugar, por excelência, da
explicitação pessoal e grupal da experiência, pois é por meio dele que os participantes
representam a imagem que fazem do universo. O modelo ciborgue
(Couto, 2000: 85-99) – a
coexistência dos elementos que combinam no organismo suas próprias fabricações –
115
O ciberespaço, como dispositivo de comunicação interativo e comunitário, apresenta-se justamente como
um dos instrumentos privilegiados da inteligência coletiva (Lévy, 1999: 28).
- 143 -
inaugura a estética do além dos limites. Acima de tudo, essa estética se situa no contexto de
uma crítica na razão centrada no sujeito. Ela assinala que o homem autônomo e racional não
passa de uma construção moderna já desmoronada. Os “ciborgues” são pessoas que
perceberam que a nossa humanidade prolonga-se para além de nós e só existe realmente
graças à interligação de todos os seres, objetos, saberes, instituições e conhecimentos que
herdamos e que continuamos a produzir, graças à plasticidade de nossa consciência. Sendo
assim, muitos tranceiros podem ser vistos como a própria encarnação da utopia tecnológica
contemporânea do Homo ciberneticus.
Os símbolos utilizados pelo grupo, os quais expressam tais transformações, também
estão impressos no corpo e nas vestimentas utilizadas durante o ritual. Sendo assim, os
participantes dos festivais de transe psicodélico têm no corpo o principal meio de
experimentação e também de apresentação. Além dos elementos decorativos, as roupas
constituem também um exemplo dessa relação baseada em uma “ética estética”. Estas são
produzidas por integrantes do movimento e vendidas principalmente nos encontros. São em
geral coloridas, com motivos e estampas que variam, mas prevalecem os desenhos
psicodélicos de cores fluorescentes: círculos, espirais, geometrias que levam a um infinito,
arco-íris, divindades das mais diferentes crenças espirituais, como Shiva, Ganesha, o
símbolo do Kin do calendário maia, letras e símbolos religiosos diversos etc.
Feira Mix – Trancendence 2005 – Foto: Carol Guerra
- 144 -
Loja: Gente do Mundo
– Feira Mix do
Festival
Trancendence 2005
Foto: Ana Flávia
N Nascimento
Outra característica marcante são os acessórios empregados, os quais geram certo ar
espacial, vislumbrado também no filme Guerra nas estrelas. As cartucheiras produzidas em
couro ou panos (de cores e desenhos variados) são cintos compostos com bolsos de
diferentes tamanhos e modelos, que são usados para guardar os utensílios, tais como
dinheiro, documentos, chave de barraca etc. A maior parte dos participantes usa colares,
pulseiras, cordões e outros acessórios que são produzidos de maneira artesanal com
sementes, penas, plantas, conchas, cristais. A venda desses acessórios é feita em grande parte
por artesãos, entre eles os índios, que se instalam nesses encontros para vender seus produtos
e lucrar principalmente com as pinturas tribais feita nos corpos dos participantes que as
exibem com grande orgulho.
A grande maioria dos participantes tem tatuagens no corpo, assim como piercings
localizados na língua, na orelha, na sobrancelha, na barriga, no nariz, no seio e outras partes
do corpo. Muitos possuem mais de uma tatuagem ou mesmo tem o corpo coberto com
grandes desenhos artisticamente gravados que expressam uma nova forma de identificação,
visto que cada um diferencia-se pela da maneira com que utiliza o próprio corpo como obra
de arte.
- 145 -
A borboleta, símbolo da metamorfose,
da transformação e da leveza. E
Ganesh, deus hindu que remove os
obstáculos. Abaixo, na mesma
tatuagem, está o símbolo da bandeira
da paz, com os três círculos
representando o resgate da cultura
como fator de integração entre artes,
ciências e espiritualidade, principais
bases da campanha do novo tempo – o
desenvolvimento de uma humanidade
sustentável.
O organismo humano detém uma plasticidade que permite as mais diversas
adaptações. Nenhum outro animal é capaz de transformar de forma tão pronta seu próprio
corpo como o faz voluntariamente o homem. Em todas as culturas encontramos exemplos das
transformações que envolvem circuncisões, escarificações, tatuagens, mutilações, entre
outros artifícios que mostram como as sociedades são capazes de condensar no corpo
codificações de sua organização.
Nos festivais, outro exemplo disso são os alargadores de orelhas, feitos com
materiais variados – osso, massinha de modelar, chifres de animais etc. –, que são utilizados
para aumentar o tamanho do glóbulo. Tal artifício é utilizado por múltiplas tribos deste
planeta, sejam os aborígines da Nova Zelândia, os índios brasileiros ou mesmo os
contemporâneos tranceiros; todos transformam seus corpos como meio de comunicação
entre o grupo ao qual faz parte. Nesses ambientes, o corte de cabelo também é diferenciado.
Entretanto, alguns modelos estão cada vez mais comuns: o dread lock
116
, visto tanto em
participantes masculinos quanto femininos, e o moicano, um jeito de raspar as laterais do
cabelo deixando uma grande listra no centro. É comum também o uso, por parte de ambos
os sexos, de lenços coloridos no cabelo, faixas, cordões, chapéus, cristais, penas etc.
As vestimentas rituais sempre foram empregadas quando uma tribo se reunia para
dançar. Atualmente, as vestimentas, os acessórios e outros símbolos utilizados na pista de
dança constituem uma mistura entre o ancestral e o tecnológico, apresentando uma estética
116
Tipo de cabelo utilizado por Bob Marley e pelos rastafaris da região da Jamaica, que cultuam o rei Rasta,
personificado na forma de um leão. Para lembrar o animal, os seguidores esfregam os cabelos na palma da mão
até quebrar e juntar uma grande massa que lembra uma juba. (Coutinho 2006)
- 146 -
que envolve desde as roupas com cores de terra, feitas apenas de couro – com penas e ossos
dando um aspecto tribal associado aos alargadores, penas e chocalhos –, até aquelas feitas de
tecidos mais modernos, com formas espaciais e cores fluorescentes, com hologramas,
fractais e uma variedade de símbolos tridimensionais que remetem à profundidade
desconhecida da realidade.
Cada festival é único por incorporar também novas manifestações imaginárias. Por
exemplo, pessoas que dançam na pista com brinquedos infantis, com máscaras, chocalhos,
cocar indígena, chapéus de modelos variados... São tantos os adereços que acompanham os
corpos dos participantes que não seria possível listar aqui tamanha variedade.
Trancendence 2005- Fotos: André Ismael
117
É por intermédio do corpo que os participantes expressam a totalidade do universo,
pelos movimentos, gestos e adornos, sentidos e significados que despertam sentimentos,
sensações e emoções. O corpo é em si uma totalidade que permite experiências místicas. É
um meio de comunicação capaz de expressar memórias, transmitir tradições, saberes e
experiências. O corpo é a mais grandiosa forma de expressão simbólica do homem.
O universo lúdico pode comportar manifestações inesperadas que geram medo,
prazer e volúpia. O jogo leva ao transe, razão pela qual também existem intoxicados de jogo
como de uma droga fatal. Nos festivais torna-se explícito que o grande jogo é o da vida, no
qual arrisca-se tudo para se viver intensamente.
Nesse sentido, a estética como lúdica retira o ser humano do estado racional e
utilitário para colocá-lo em transe, em estado de graça, de contemplação, em que o ser e o
mundo são mutuamente transfigurados. Morin chama esse estado de “poético”, um estado de
117
Fotos de André Ismael, disponíveis em: http://www.zuvuya.net. Acesso em: 15 set 2006.
- 147 -
emoção, de afetividade, realmente um estado de espírito, que pode ser alcançado na relação
com o outro, na relação comunitária, na relação imaginária ou estética, sendo o seu ápice
atingido no êxtase. “O êxtase pode ser alcançado por todas as vias indicadas, o ritual, a
possessão, o transe, a dança, a música, a fusão amorosa, os alucinógenos – era mesmo
preciso que um dia uma droga se chamasse ecstasy . O êxtase é o máximo de realização de
si e de superação de si, da fusão bem-sucedida de si com o outro ou com o mundo, da
felicidade e da comunhão. É o paroxismo existencial, a realização extrema e a verdade
suprema do estado poético” (Morin,2002b:138).
Partindo de tais considerações, nos festivais a busca da contemplação estética como
meio para atingir a comunhão extática pode ser vista como o “retorno de Dioniso”
118
, uma
forma de resistência poética à civilização atual, uma maneira de dizer não aos padrões, ao
tempo, às leis, à Igreja, aos antigos paradigmas materialistas, e entregar-se à magia, ao
imaginário, ao mito, ao jogo, ao rito e a tudo o que está enraizado nas profundezas da
condição humana.
Morin acredita que com o advento da “cultura de massa”, após a Segunda Guerra
Mundial, as sociedades modernas e policulturais ficaram diante da primeira cultura universal
da história. Mas qual é o homem universal? É o homem imaginário
119
. A “cultura de massa”
destina-se ao consumo psíquico, buscando atingir o público planetário por meio de
conteúdos voltados para as necessidades privadas, afetivas (felicidade, amor), imaginárias
(aventuras, liberdades) ou materiais (bem-estar). E para atingir o “antropos comum” –
tronco mental universal –, a cultura tende a buscar recursos no homem arcaico que cada um
traz em si mesmo, para responder à grande necessidade de evasão pela qual passa o homem
moderno, o qual se encontra na maior parte do tempo dedicando-se ao trabalho e à técnica.
Torna-se interessante observarmos que o contexto dos festivais está diretamente sob
o impacto e a influência da cultura de massa, a qual impulsiona o divertimento, a evasão, a
compensação e a purificação (catarse), e por meio dessas experiências dá forma às
118
Segundo Maffesoli, o “retorno de Dioniso” pode ser observado atualmente em várias manifestações
transgressivas das novas gerações. Dioniso, deus “ctônico”, arraigado, terreno, é o deus da animação, das
festas e da embriaguez. O seu retorno significa, para o autor, a integração da sombra e da animalidade humana
por meio de uma sociabilidade que não se esgota no útil, mas que necessita sempre do elemento excessivo para
sobreviver: viver em excesso. “Eis a lição do trágico: dar lugar à alegria demoníaca de viver” (Maffesoli, 2003:
88).
119
O imaginário é um sistema projetivo que se constitui em universo espectral e permite a projeção e
identificação mágico-religiosa ou estética. (Morin, 1997: 81)
- 148 -
necessidades contemporâneas. O imaginário criado nos festivais psicodélicos está associado
a uma “mitologia planetária shivaista-dionisíaca”, que se baseia no prazer e no erotismo
como antídotos para a angústia caótica dos novos tempos.
“Você acha que existe um mito no trance?
L: Eu acho que é o mito de Shiva. É o que vem para mudar, é o caos que vem para
gerar uma nova ordem. O Movimento Trance gera uma desordem, que gera uma
nova ordem, que quebra com o sistema, destrói as regras e quebra a lei. Onde cada
um faz seu próprio tempo e tudo é da lei. Então o deus Shiva é a personificação do
caos, mas o caos não quer dizer maldade. Shiva é muito bondoso também. Mas é
também o pai disciplinado, e se você não tem disciplina irá sofrer as conseqüências,
pois a disciplina é necessária dentro do que você entende como real, como
verdadeiro.
Nós necessitamos de certa força para quebrar tudo isso que nos foi imposto, para a
gente romper essas barreiras. Então temos que ser guerreiros mesmo. Não dá para
vacilar diante da situação em que o planeta se encontra. E Shiva vem mostrar isso.
No caos não podemos vacilar. No caos temos que estar atentos, com atenção plena.”
(Entrevista realizada em 30/10/2005)
O princípio shivaísta reconhece todos os fenômenos como representações dos
aspectos que podem aproximar os homens do divino. Não existe nem alto nem baixo,
funções inferiores ou superiores, domínio profano ou sagrado. Pois o shivaísmo reconhece a
ordem divina em todas as tendências, em todas as funções psíquicas, em todas as ações e
potencialidades, uma vez que considera o homem o senhor de si. Por outro lado, se o
homem ignora ou recusa a ver a ordem universal em tudo o que constitui o seu ser físico ou
mental e os laços que os unem em todos os níveis ao mundo natural e cósmico, atrairá a
loucura destruidora.
- 149 -
Chill out do Festival Trancendence 2003 – Imagem de Shiva Nataraj – Deus
da Dança. Foto: Ana Flávia Nogueira Nascimento
Shiva é uma imagem simbólica que estava presente em todos os festivais nos quais
realizei pesquisa de campo. De acordo com Zimmer (1989:122-5), Shiva Natarãja é o rei
dos dançarinos, o senhor da dança, uma ancestral forma de magia. O dançarino ganha
maiores dimensões, torna-se um ser dotado de poderes sobrenaturais. Sua personalidade se
transforma. Como a ioga, a dança leva ao transe, ao êxtase, à vivência do divino, à
compreensão da própria e secreta natureza individual e, por fim, à fusão com a essência
divina. Por isso, na Índia, a dança conviveu lado a lado com as severas práticas ascéticas dos
eremitas – jejum, exercícios respiratórios, introversão absoluta. Para exercer a magia, para
lançar encantamento sobre outrem, é preciso que o indivíduo primeiro encante a si mesmo, o
que pode ser feito tanto por meio da dança como da prece, do jejum e da meditação. Isto
explica por que Shiva é não só o arquiiogue dos deuses, mas também o senhor da dança.
O dançarino cósmico está representado na pintura da foto acima com os detalhes que
revelam seus elementos simbólicos. Na mão direita superior porta, para a marcação do
ritmo, um pequeno tambor cuja forma sugere uma ampulheta do tempo que marca o som,
veículo da fala e, portanto, da revelação, da magia e da verdade divina. No lado oposto, a
mão esquerda superior, cujos dedos formam uma meia-lua (ardhacandra-mudrã), mostra na
- 150 -
palma uma língua de fogo. O fogo é o elemento da destruição do mundo. No término do
Kali-Yuga o fogo aniquilará o corpo da criação, sendo ele próprio então apagado pelo
oceano do vazio. O equilíbrio das mãos ilustra o equilíbrio criação-destruição no bailado
cósmico. Como exercício da crueldade dos opostos, o transcendental mostra-se por meio da
máscara do mestre enigmático: criação incessante versus um insaciável apetite de
destruição. O campo da terrível interação é o sítio onde ocorre a dança do universo.
O gesto “não temas” (abhaya-mudrã), que confere proteção e paz, é feito pela
segunda mão direita, enquanto a outra mão esquerda, na extremidade do braço transversal ao
peito, aponta para baixo, para o pé esquerdo erguido. Este pé significa a libertação; nele o
devoto encontra refúgio e salvação. Deve ser venerado para que seja alcançada a união com
o absoluto. O gesto da mão que o aponta imita a tromba distendida do elefante (gaja-hasta-
mudrã) lembrando o filho Ganesh, o removedor de obstáculos.
A divindade é representada dançando sobre o corpo prostrado de um anão-demônio
(Apasmãra Purusa), chamado esquecimento ou prudência, que simboliza a cegueira da vida
e a ignorância humana. Subjuga-o a obtenção da verdadeira sabedoria. Nesta está a
libertação da servidão do mundo. E, por final, o anel de chamas e luz (prabhã-mandala) que
o circunda significa os processos vitais do universo e de suas criaturas e a natureza em sua
dança, a mover-se como se a impulsionasse um deus a dançar dentro dela. Ao mesmo
tempo, diz-se que significa a energia da sabedoria, a luz transcendental do conhecimento da
verdade cuja dança emana da personificação do todo.
O shivaísmo e o dionisismo são essencialmente religiões da natureza e do eros.
Shiva, assim como Dioniso, representa apenas um dos aspectos da hierarquia divina no
plano terrestre. Sua forma ocidental, o dionisismo, representa do mesmo modo uma fase em
que o homem está em comunhão com a vida selvagem. Dioniso, tal qual Shiva, é um deus
da vegetação e da embriaguez. Seu culto, que desencadeia as potências da alma e do corpo,
encontrou uma viva resistência por parte das religiões urbanas que o consideraram anti-
social. Shiva, como Dioniso, é representado por elas como o protetor daqueles que se
mantêm afastados da sociedade convencional. Simboliza tudo o que é caótico, perigoso,
inesperado e que escapa à razão humana e só pode ser atribuído à ação imprevisível dos
deuses.
- 151 -
No shivaísmo, a transcendência em relação às normas da vida ordinária é traduzida
no plano popular pelo fato de que Shiva é representado como o deus protetor daqueles que
não levam uma vida normal e até mesmo dos “fora-da-lei”. O contato com as forças que
animam o infra-humano e o supra-humano, que os fiéis de Shiva ou Dioniso buscam, leva-
os a uma recusa do político, das ambições e dos limites da vida socializada. Trata-se de uma
participação ativa numa experiência que ultrapassa e perturba a ordenação da vida material.
Eram os impulsos frenéticos que precediam e preparavam a união íntima com o deus, rumo
à prostração da razão diante do êxtase compartilhado que levava os fiéis, chamados de
bacantes na Grécia e de bhaktas (participantes) na Índia.
Para eles, na embriaguez do amor e do êxtase reside a verdadeira sabedoria, que
torna possível a comunhão com a natureza e os deuses, enquanto os cálculos e as frustrações
limitantes impostas pelas religiões da cidade isolam o mundo dos homens do resto da
criação. A mensagem de Shiva e Dioniso é um chamado à alegria na comunhão com a
natureza e a simplicidade do coração. Aqueles que pretendem afirmar a superioridade da
razão e se recusam a escutar esse chamado serão por eles confundidos, e o deus inspira-lhes
a loucura pela qual eles próprios se destroem.
Nos festivais, a suposta ordem da vida cotidiana é aniquilada, suspensa e, em meio a
uma desordem nada habitual, as pessoas dão espaço em suas vidas para a expressão intensa
da animação, da animalidade, da alegria, da fantasia, da beleza e do prazer em viver o
instante, rompendo as usuais barreiras e os limites de tempo e espaço. Em um festival cada
segundo é vivido intensamente. Depois que a música começa, sua pulsação e vibração fazem
com que os batimentos cardíacos ganhem um novo ritmo que estimula o transe. Aos poucos
a pista de dança torna-se o centro da experiência coletiva.
Na virada do ano de 2004, no Universo Paralello, quando a pista de dança estava toda
se movendo sincronicamente, o telão – que ocupava o centro da pista, logo acima do DJ –
ganhou vida por meio da projeção de imagens que expressavam o universo simbólico que
envolve a cultura psicodélica no século XXI. Os estímulos visuais desenvolvidos e projetados
pelo artista multimídia Charlie Oliveira
120
, expressaram por meio de imagens arquetípicas
121
,
120
Chalie Oliveira fez a criação artística do CD-ROM que acompanha esta tese. Muitas das imagens que foram
utilizadas no mesmo estão aqui descritas e foram criadas e empregadas por ele em suas apresentações como VJ
nas festas e festivais de transe psicodélico.
- 152 -
o “inconsciente coletivo”
122
não apenas do grupo em questão, mas também de toda a
humanidade.
As projeções mostraram o processo de transformação do Homo sapiens demens, desde
os primatas descobrindo o fogo, até o homem moderno novamente emborcado diante do
computador. Ao longo do tempo o ser humano desenvolveu técnicas para sobreviver em meio
à natureza e aos poucos foi se separando dela até chegar num ponto em que já desconhece
suas raízes, pois quase não tem contato com o meio natural. Por outro lado, chegamos em
uma fase da evolução técnica na qual o mundo todo está interligado virtualmente. Da mesma
forma, os conhecimentos das diversas culturas que antes estavam isoladas estão agora vivendo
uma relação de permeabilidade.
No telão, naquela noite de passagem de ano foram sobrepostas imagens exóticas dos
povos indígenas brasileiros, mostrando as raízes ancestrais e também reconhecendo a
importância e a riqueza da cultura indígena, que detém uma sabedoria que envolve o viver em
harmonia com a natureza. Em seqüência foram lançadas imagens de outras culturas,
ilustrando como cada povo tem sua especificidade, sua beleza, seu conhecimento próprio
sobre o viver e o morrer. As imagens conduziram a uma viagem pelas mais variadas crenças e
religiões. E, para completar, o artista apresentou imagens rápidas de símbolos que ao mesmo
tempo complementavam o espaço mental. Os símbolos iam se alternando instantaneamente,
gerando a sensação de interligação e complementaridade. De repente uma mensagem
sobressaiu: estamos vivendo a integração entre os povos pertencentes a uma só Terra, a
humanidade planetária.
Esse trabalho é uma seqüência de ícones que representam quase tudo que
existe de crença na terra hoje em dia. Então, tem o Buda, tem um indiano, tem a cruz
121
Os arquétipos indicam a existência de determinadas formas na psique que estão presentes em todo tempo e
em todo lugar. A pesquisa mitológica denomina-os “motivos” ou “temas”, e na psicologia dos primitivos elas
correspondem ao conceito das représentations colectives de Levy-Bruhl. Já no campo das religiões
comparadas, foram definidas como “categorias da imaginação” por Hubert e Mauss. Adolf Bastian designou-as
bem antes como “pensamentos elementares” ou “primordiais”. A partir dessas referências torna-se claro que a
minha representação do arquétipo – literalmente uma forma preexistente – não é exclusivamente um conceito
meu, mas também é reconhecido em outros campos da ciência (Jung, 2000: 53).
122
O inconsciente coletivo é uma parte da psique que pode distinguir-se de um inconsciente pessoal pelo fato
de que não deve sua existência à experiência pessoal, não sendo, portanto, uma aquisição pessoal. Enquanto o
inconsicente pessoal é constituído essencialmente de conteúdos que já foram conscientes e, no entanto,
desapareceram da consciência por terem sido esquecidos ou reprimidos, os conteúdos do inconsciente coletivo
nunca estiveram na consciência e, portanto, não foram adquiridos individualmente, mas devem sua existência
apenas à hereditariedade. Enquanto o inconsciente pessoal consiste em sua maior parte de complexos, o
conteúdo do inconsciente coletivo é constituído essencialmente de arquétipos (Jung, 2000: 53)
- 153 -
de Davi, tem a cruz católica; tem vários elementos, os bichos, as plantas, a
tecnologia, os elementos orgânicos. E no final das contas passa esse conceito de tudo
ao mesmo tempo, de que cada um com suas crenças e cabe a nós o respeito pela
multiplicidade planetária.” (Charlie Oliveira, entrevista realizada em 3/6/2004)
Como disse Campbell, a Terra não pertence ao homem, o homem pertence à Terra. O
homem não teceu a rede da vida, é apenas um dos fios dela. O que quer que ele faça à rede,
fará a si mesmo. O autor sugere que o único mito de que valerá a pena cogitar no futuro
imediato é o que fala do planeta, não da cidade, não deste ou daquele povo, mas de todas as
pessoas que estão nele; ou seja, falará da sociedade planetária, de “um mundo sem
fronteiras”
123
, como dizia uma música que tocou na mesma noite quando as imagens
projetadas no telão transportavam os “viajantes” através do imaginário simbólico da mente
planetária.
É claro que a maioria das pessoas que participa dos festivais não realizou
conscientemente essas associações, mas é importante destacar que as imagens e os símbolos
transmitidos aos participantes são assimilados e de alguma forma registrados no
inconsciente, sendo assim, uma maneira de direcionar a experiência psicodélica para uma
“viagem interna”, voltada para o psiquismo e para os registros ancestrais contidos na mente
humana, os quais dizem respeito à herança cultural de toda a humanidade. As modernas
pesquisas da consciência nos mostram que por meio dos estados não comuns de consciência
é possível acessar esse profundo território da psique humana (Grof, 2000: 76).
Um símbolo religioso transmite sua mensagem mesmo quando deixa de ser
compreendido conscientemente em sua totalidade, pois um símbolo dirige-se ao ser humano
integral, e não apenas à sua inteligência racional. Para Eliade (2002:109), historiador das
religiões, os símbolos despertam a experiência individual e transmutam-na em ato espiritual,
em compreensão metafísica do mundo. Pois é graças aos símbolos que o homem sai de sua
situação particular e se abre para o geral e o universal.
As imagens lançadas ao imaginário coletivo foram aos poucos direcionando para um
espaço mais interno psiquicamente. À medida a música marcava o ritmo, as imagens eram
lançadas simultaneamente mostrando uma pessoa sentada na posição de meditação, enquanto
123
“A world with no boundaries” (a música era em inglês).
- 154 -
todos os seus chakras – centros de energia – ganhavam seus respectivos símbolos e cores
124
.
As cores pareciam vibrar em torno do corpo humano mostrando, conseqüentemente, a ligação
de cada cor com o respectivo centro de energia, assim como a elevação da energia até uma
explosão de cores que refletiam o êxtase referente à subida da energia pelos canais do
kundalini
125
.
Dentre as imagens apresentadas pelo VJ na noite em que todos estavam em transe,
um símbolo importante relacionado à interiorização apareceu constantemente: a mandala, o
círculo mágico que representa o “átomo nuclear” da psique humana. A mandala nos remete
ao nosso próprio centro, aumentando assim a introspecção, e ainda é um símbolo do
movimento e da constante transição de tudo o que existe. A palavra sânscrita mandala
significa “círculo” no sentido habitual da palavra. No âmbito dos costumes religiosos e na
psicologia, designa imagens circulares que são desenhadas, pintadas, configuradas
plasticamente ou dançadas. Configurações deste tipo são encontradas, por exemplo, no
budismo tibetano, que as utiliza nas práticas meditativas. A meta da contemplação da
mandala é voltada para que a pessoa perceba o deus que existe em seu interior. Desta forma,
pela contemplação a pessoa volta-se para o centro e reconhece a si mesmo como divindade,
retornando assim da ilusão da existência individual para reconhecer o divino em tudo que
existe.
A mandala denota uma tentativa de expressar a totalidade do indivíduo em sua
mundividência interior ou exterior por meio de um ponto de referência essencial interno do
mesmo. Seu objeto é o si-mesmo (self) em oposição ao eu (ego). Enquanto o si-mesmo inclui
124
A arte ou ciência por meio das cores e da música é muito antiga. Era conhecida dos sábios da Antiguidade e
agora está sendo reutilizada. Em eras passadas, a cor e a música foram empregadas para a cura na Grécia e no
Egito; as antigas civilizações da Índia e da China também estavam cientes do valor terapêutico da cor e da
música. As cores e a música serviam para remover bloqueios de dentro do indivíduo, de modo que as energias
naturais pudessem realizar o processo de cura. Isso é possível de acontecer, pois como seres sensitivos, os
humanos são altamente susceptíveis aos efeitos vibratórios tanto positivos quanto negativos, sendo assim
afetado pelas diferentes vibrações. As cores, as imagens e a música podem ser consideradas formas não-
verbais de comunicação. Pois em sinergia, elas despertam para a unicidade de todas as coisas. De acordo com a
teoria pitagórica das cores e da música existem freqüências vibratórias comparáveis entre as sete cores do
espectro e a escala musical de sete notas, tanto dentro dos intervalos e segunda maior, como dentro dos
intervalos mínimos. O vermelho vibra com o dó médio, o laranja com o ré, o amarelo com o mi, o verde com o
fá (semitom), o azul com o sol, o índigo com o lá e o violeta com o si. As sete cores puras do espectro estão
relacionadas com a oitava média do teclado. No entanto, as relações prosseguem entre as oitavas agudas e
graves e várias gradações de cores do espectro. As cores que se relacionam com a oitava abaixo da oitava
média seriam mais profundas e mais escuras. Enquanto os tons acima da oitava média seriam representados
por cores mais claras e mais luminosas. (Bassano, 1997)
125
O potencial de cura da respiração é fortemente enfatizado no kundalini ioga, que combina prática
meditativa com respiração acelerada para alcançarem a elevação extática (Grof, 2000: 194).
- 155 -
a totalidade da psique de um modo geral, ou seja, o consciente e o inconsciente, o eu é apenas
um ponto de referência da consciência. A mandala com sua ordem rigorosa contida em uma
imagem circular compensa a desordem e a perturbação do estado psíquico por meio de um
ponto central em relação ao qual tudo é ordenado ou então é construída uma ordenação
concêntrica da multiplicidade desordenada dos elementos contraditórios e irreconciliáveis
(Jung, 2000: 385).
A partir do imaginário psicodélico podemos observar que os símbolos
contextualizados remetem simultaneamente à busca dos participantes por uma identificação
grupal advinda da vivência da transformação coletiva e à necessidade da busca pela
transformação individual, a qual foi representada por intermédio dos símbolos voltados para a
interiorização. Tais características explicitam que a alma humana é tanto individual quanto
coletiva e que o seu crescimento só é possível se estes dois lados aparentemente contraditórios
chegarem a uma cooperação mútua.
Para Jung (2000: 130-2) é um fato que quando muitas pessoas se reúnem para partilhar
de uma emoção comum, emerge uma alma conjunta que fica abaixo do nível de consciência
de cada um. Quando o grupo é muito grande, cria-se um tipo de alma animal coletiva. Por
esse motivo a vivência grupal é muito mais freqüente do que a transformação individual, pois
é mais fácil de ser alcançada, visto que a energia coletiva tem uma força incomparável. O
indivíduo na multidão torna-se facilmente uma vítima de sua sugestionabilidade.
A identificação com o grupo é, pois, um caminho simples, mas a vivência grupal não
vai mais fundo do que o nível em que cada um está. Algo se modifica em cada um, mas se não
existir um processo individual de transformação, essas mudanças não perduram e a pessoa irá
depender continuamente da embriaguez da massa a fim de poder acreditar nas mudanças. Na
massa predomina a participation mystique – participação mística – que envolve o inconsciente
coletivo.
Por exemplo, quando na pista de dança os olhares se encontram imediatamente ligando
uns aos outros, todos ficam presos à rede invisível da relação recíproca inconsciente. Se esta
condição se intensifica, cada um sente-se arrastado pela onda coletiva de identificação com os
outros, gerando uma sensação maravilhosamente agradável e arrebatadora de unidade. Nesse
momento, os dançarinos tornam-se heróis exaltados pelo grupo. Mas depois, quando tudo
termina, cada um volta para si mesmo, redescobre seu nome, sua moradia, sua família, seu
- 156 -
trabalho e percebe que terá que esperar novamente que amanhã aquele intenso prazer se
repita, a fim de que possa sentir-se de novo como um povo inteiro.
O ser humano sempre formou grupos que possibilitassem vivências de transformação
coletiva, freqüentemente sob a forma de estados extáticos, onde o efeito vivificante das
identificações regressivas com os ancestrais gera um maior sentido à vida. Como pode, a
atual consciência, que se julga mais “desenvolvida” por utilizar tecnologias mais avançadas,
continuar buscando os conhecimentos mais antigos referentes aos estados holotrópicos
126
de
consciência e ao inconsciente coletivo?
A multidão em transe, admirando as imagens simbólicas, mostrou na prática que o
ser humano é um arquetípico, que para além da sua vida puramente exteriorizada e prática
(seja individual ou social) coexistem determinadas formas psíquicas que compõem o
inconsciente coletivo de toda a humanidade, assim como registros dos reinos animal e
botânico, da natureza em geral ou do cosmo, bem como aos domínios de seres arquetípicos.
Num universo onde a física e a metafísica são dois aspectos de uma mesma
realidade, onde a vida é regida por leis, todo ser vivo é necessariamente a encarnação dos
arquétipos que constituem a base da manifestação. Separá-lo de seu arquétipo é impedir de
compreendê-lo como um canal entre o céu e a terra. Conhecer a si mesmo é
fundamentalmente saber que necessitamos simultaneamente dos dois conhecimentos, o do
cérebro e o do coração ou o da consciência racional e das outras formas de consciência, para
compreender que o mundo e todos os homens testemunham inelutavelmente a infinidade das
possibilidades.
Tempo virá que se saberá de novo que a tradição é uma ciência. Reaprenderemos a
ler os livros tradicionais, as línguas sagradas, os símbolos, os ritos e os mitos e
perceberemos então que muito já estava dito. Bastava apenas querer ver, sem preconceitos,
126
Grof, depois de mais de quarenta anos de pesquisa e observação sobre estados não-comuns de consciência,
focando como eles podem contribuir para nossa compreensão da natureza da consciência e da psique humana,
escolheu o termo holotrópico que siginifica literalmente “orientado para a totalidade/inteireza” ou “indo em
direção à totalidade/inteireza” (do grego holos = totalidade/inteireza e trepein = indo em direção a algo). Este
termo sugere que, no estado de consciência cotidiana, identificamo-nos com apenas uma pequena fração de
quem realmente somos. Nos estados holotrópicos, podemos transcender as fronteiras restritas do ego corporal e
reivindicar nossa identidade total (Grof, 2000: 18).
- 157 -
sem parcialidade e, sobretudo, sem o orgulho do homem do século XX que pensa que, desde
que a ciência existe, só ele compreendeu.
Alguém pode, de boa-fé, convencer-se de que não tem idéias religiosas. Mas
ninguém pode colocar-se à margem da humanidade, de forma a não ter nenhuma
representação coletiva dominante, impulsionada pela força sugestiva e emocional extrema.
Os “ismos” – sejam: materialismo, ateísmo, comunismo, naturalismo, liberalismo,
intelectualismo, existencialismo, anarquismo, humanismo, psicodelismo etc. – testemunham
contra sua inocência. De alguma forma, em alguma parte, aberta ou dissimuladamente, ainda
é possuído por uma idéia supra-ordenada (Jung, 2000: 74).
Os estados alterados de consciência alcançados nos festivais psicodélicos mostram
que carregamos, em nossas diversas formas de consciência, não apenas toda a humanidade,
mas também todo o cosmo, inclusive seus mistérios. Somos portadores da cultura na sua
universalidade e nas suas características singulares, somos os criadores e as criaturas da
esfera do espírito e da consciência. Somos os criadores dos reinos do mito, da razão, da
técnica, da magia e da estética. Estamos enraizados em nosso universo e em nossa vida, mas
nos desenvolvemos para além disso.
Pintura realizada por Marcelo Jaz em homenagem ao centenário de Albert Einstein para o Festival
Trancendence 2005. Foto: Ana Flávia Nogueira Nascimento
- 158 -
É, portanto, por conter o todo, mesmo sendo parte desse todo, comportando os seus
antagonismos e contradições, que cada ser humano carrega a forma inteira da condição
humana. Carrega-a como um microponto singular do holograma, que reflete o macrocosmo.
O ser humano contém a multiplicidade interior, as personalidades virtuais, uma infinidade
de personagens reais e imaginárias, o sono e a vigília, a obediência e a transgressão, a
efervescência e sua solidão, a consciência racional e uma multiplicidade de dimensões de
consciências inimagináveis, as quais encontram espaço nos festivais psicodélicos, para se
tornarem expressão artística e estética, espelhando, conseqüentemente, a complexidade
extraordinária desse misterioso Universo.
“A arte de ser trancer
127
Os trancers reconhecem-se pelo olhar porque a luz que brilha nos seus olhos é a mesma que brilha nas estrelas,
não resistem a mostrar aos outros as constelações dos céus e... dançam
juntos quando chega a luz da madrugada. Um trancer olha nos olhos de um
desconhecido, fala de amor à primeira vista, de almas gêmeas, defende idéias
que parecem ridículas, chora mágoas e decepções antigas, alegra-se com novas descobertas, diverte-se, brinca,
é irreverente, faz perguntas inconvenientes, diz tolices, disfarça-se de louco quando
sofre de lucidez e... dança com seus companheiros. Já agiu muitas vezes incorretamente, já traiu e mentiu
muitas vezes, já trilhou caminhos que não eram os seus e perde-se, vezes sem conta, em labirintos
até recuperar novamente seu caminho Já disse sim quando queria dizer
não, já feriu os que mais ama, já foi a muitas festas e procurou a paz, a
esperança e o amor na música, nos lugares, nos espaços, nos outros, nas
drogas... Um trancer cai nestes abismos muitas vezes, mas quando
reúne toda a sua força para sair, descobre que é dentro de si que
encontra o amor, a paz, a luz... então vive a esperança de ser melhor do que é...
e dança enquanto caminha. Senta-se num lugar tranqüilo da floresta e
procura não pensar em nada: descansa, contempla, presta atenção à sua
respiração, ao vôo do pássaro, ao aroma da flor e, conectando-se com a alma do
universo, anda suavemente, sente que participa na dança universal e...
flutua enquanto dança. No caminho que livremente escolheu, um trancer
sabe também que tem que lidar com gente que não presta atenção às
pequenas coisas, que não sabe que tudo é uma coisa só, que cada ação nossa
afeta todo o planeta, que cada pensamento nosso se estende muito para
além da nossa vida, que cada minuto pode ser uma oportunidade para nos
transformarmos, que estamos no mundo não para combater
o mal ou condenar e julgar o outro e... dança enquanto ama. Mas
porque é um peregrino, um caminhante em busca espiritual, um
mendigo do amor, um trancer senta-se à roda da fogueira e dá as boas-vindas
aos estranhos. Usa a sua intuição e não se desespera quando o acham um louco
a viver num mundo de fantasia. Não tem certezas, mas sabe que nem todos os
caminhos são para todos os caminhantes e... ensaia novos compassos de
dança. E segue em frente e faz pontes entre o céu e a terra, entre a
vida profana e a espiritualidade a que se aspira, entre o visível e o
invisível, entre o compreensível e o indizível, e então, pouco a pouco,
127
“A arte de ser trancer” é obra de algum trancer que não quis se identificar. O texto foi coletado como
material de pesquisa de campo em alguns festivais pesquisados.
- 159 -
outros se aproximam, reúnem-se e iniciam os seus caminhos à volta dos
seus ritos, símbolos e mistérios... e dançam a roda da fogueira. Um
trancer conhece o silêncio como a linguagem do indizível, do que
não se explica, apenas se sente. Conhece também o poder das palavras e
não é tagarela. Não quer parecer ser, ele simplesmente é. Não sabe de onde
veio nem para onde vai, mas sabe que está cá para amar. O afeto e o
carinho fazem parte da sua natureza – tanto quanto respirar – e porque busca o
amor, um trancer arrisca mais que os outros. Arrisca a se sentir derrotado
e rejeitado no corpo e na alma, a intimidar-se com o silêncio ou com a
indiferença, a decepcionar-se e a magoar-se, mas não desiste porque
sabe que sem amor, ele simplesmente não é... então mergulha com paixão na
vida, olha com doçura e serenidade o mais velho ou a criança, reconhece
no seu olhar toda a história da sobrevivência da humanidade e...ri e dança
com seus companheiros. Um trancer sabe que é livre para escolher: passa noites de insônia, interroga-se pelo
sentido da vida, sobre o que é definitivo e o que é passageiro, questiona as
aparências, as fórmulas, as opiniões dos outros, se vale a pena tanto esforço... é, então, capaz de largar tudo e
correr para a aventura porque resiste a viver um papel que os outros escolheram para si. As suas decisões são
sempre tomadas com coragem e loucura, inventando novas coreografias, ao sabor dos
ritmos cósmicos, de noite ou de dia, à luz ou nas trevas, no inverno ou no verão... dança, dança e
dança...
Muita paz...
- 160 -
ÁGUA: FLUIDEZ DA VIDA
Uma gota de agua poderosa basta para criar um mundo e para dissolver a noite. Para
sonhar o poder, necessita-se apenas de uma gota imaginada em profundidade. A água assim
dinamizada é um embrião; dá à vida um impulso inesgotável.
Poderíamos realmente descrever um passado sem imagens da profundidade? E jamais teremos
uma imagem da profundidade plena se não tivermos meditado à margem de uma água
profunda? O passado de nossa alma é uma água profunda.
“A morte é uma viagem e a viagem é uma morte. Partir é morrer um pouco. Morrer é
verdadeiramente partir. E só se parte bem, corajosamente, nitidamente, quando se segue o
fluir da água. A corrente do largo rio. Todos os rios desembocam no rio dos mortos. Apenas
essa morte é fabulosa, apenas essa partida é uma aventura!
A vida deve flutuar como um sonho. A água também é uma vasta unidade (...). Pelo menos um
ouvido poetizado leva à unidade vozes discordantes quando se submete ao canto da água
como a um som fundamental. O riacho, o rio, a cascata têm, pois, um falar que os homens
compreendem naturalmente. Como diz Wordsworth é uma música de humanidade.”
Gaston Bachelard
(1989)
E de seus lábios, como de um jacinto cheio de orvalho de mel, tomba gota a gota um
murmúrio líquido que faz morrer de paixões os sentidos, tão doce como pausas da música
planetária ouvida no êxtase.” Shelley (in Bachelard, 2001a)
Na era planetária, aquilo que parece novo possui sólidas raízes ancestrais. Esta
dissertação possibilitou uma reflexão sobre os festivais de transe psicodélico, considerando
essas manifestações como um espelho que reflete a situação complexa da
contemporaneidade. Pretendi, aqui, ir além da mera identificação social de tais fenômenos
como “bodes expiatórios” sobre os quais incidem toda a culpabilidade vitimizadora
explicitada pela mídia. Tive como meta romper também as fronteiras impostas ao
conhecimento, na busca pela unidade complexa de um fenômeno global que explicita a força
da consciência coletiva retomando o sentimento de humanismo capaz de despertar a
solidariedade e direcioná-la para todo o planeta.
No que tange à nossa história, o processo civilizatório encontra seus fundamentos no
que se convencionou chamar “princípio de individuação”. Uma ênfase desmedida dada ao
indivíduo levou ao esquecimento ou anulação do “ser-conjunto”. A sociedade
contemporânea encontra-se mergulhada em uma solidariedade moral, mecânica, mascarada
e intencional. Por outro lado, existe também a solidariedade orgânica em que se
correspondem, num movimento interminável, a relação com o cosmos e a relação com o
- 161 -
outro. O mistério contido nos festivais psicodélicos se mostra então como uma manifestação
típica de tal sentido realizado no coletivo.
O comportamento dos animais, principalmente dos primatas, mostra de onde advém
nossa necessidade de estar em bando e de pertencer a um coletivo que apresenta formas de
generosidade, de cuidado e de associação para o bem do todo. Entretanto, nenhum outro
animal apresenta emoções tão profundas como os seres humanos, pensamentos tão grandiosos
ou mesmo destruidores e nem mesmo atos de fé que transcendem a realidade visível e
manifesta o desejo oculto de discernir entre o bem e o mal. O animal humano dispõe da
consciência da morte e da certeza da finitude do corpo. E, diante deste fato, cria e recria um
fabuloso imaginário que cultua a transcendência e a imortalidade.
“Como dupla face de uma mesma moeda, essas duas experiências cognoscentes que se
opõe e se complementam gestaram um corpo capaz de se perceber ao mesmo tempo finito e
infinito, real e imaginário, perecível e transcendente, natural e cultural. É no interior do
paradoxo entre a certeza da morte e sua negação que os humanos construirão sobre-sentidos
que os distinguirão de outros animais. Isso porque, segundo Morin, a espécie humana é a
única para a qual a idéia da morte está presente durante toda a vida; a única que crê na
sobrevivência ou renascimento dos mortos; a única que faz de tudo para retardar a morte. E
se esse sentimento de horror à morte emerge de forma diversa de cultura para cultura, não
deixa de ser verdade que a idéia de morte paralisa a construção da vida social, desde as
tecnicidades até os ideários míticos, científicos ou religiosos.” (Almeida, 2002: 41-56)
Os animais vivem o instante por si mesmo, diferente dos seres humanos que carregam,
em sua consciência presente, os fardos do passado, assim como as expectativas para o futuro
que, ainda que incerto, virá. Nossa espécie diferencia-se principalmente dos animais por
possuir emoções, sentimentos, pensamentos, consciência auto-reflexiva, sabedoria e
demência, e ainda cria e recria crenças que se estendem para além da vida. Para nós que
carregamos tantas marcas em nosso corpo, mente e espírito, o esquecimento absoluto deveria
vir apenas com a morte, mas muitos acreditam que a vida é mesmo uma preparação para a
morte.
Os animais, como as crianças, que vivem em um estado de ser instintivo, entregam-
se intensamente ao presente, de forma espontânea e simples. No entanto, os seres humanos
- 162 -
tendem a “civilizar” tanto os animais quanto as crianças e impor inúmeras regras e condutas
sociais que passam a restringir sua naturalidade.
A humanidade não se reduz, de modo algum, à animalidade, mas sem a animalidade
não há humanidade. O humano só se torna plenamente humano quando o conceito de
homem comporta uma dupla entrada: uma biofísica e uma psico-sócio-cultural, uma
remetendo a outra.” (Morin, 2002b: 34)
A cultura e a sociedade proíbem as pulsões da animalidade humana, introduzindo
desde a infância, no espírito dos indivíduos, normas e interdições. Assim, o ser humano é
submetido a um confronto ininterrupto entre o princípio do desejo e o princípio da realidade,
entre a sua necessidade de respeitar as regras sociais e a sua tendência a negá-la.
Em todas as sociedades há simultaneamente a presença do pensamento racional
(empírico, técnico) e do pensamento simbólico (analógico, mágico). Por mais diversas que
sejam, as culturas têm um mesmo fundamento. Em todas as sociedades há música, canto,
dança, poesia, linguagem, racionalidade e religião, técnica e magia, rito, culto, e até
sacrifício (humano e animal), que foi um aspecto fortemente presente nas culturas do
passado e que continua vivo em certos rituais. Simultaneamente à cultura, os seres humanos
desenvolvem um universo psíquico e imaginário que nos transporta para além da razão e da
individualidade.
A racionalidade é uma disposição mental que suscita um conhecimento objetivo do
mundo exterior. Por um lado, os avanços da ciência, da técnica e da economia confirmam a
eficácia da racionalidade humana; por outro, evidenciam suas conseqüências desastrosas e
ineficazes no âmbito global. Contudo, essa qualidade não é única e soberana. O ser humano
é dotado também de um psiquismo que contém afetos, impulsividades, valores que
envolvem os mais diversos ideais, assim como crenças espirituais e religiosas.
A afetividade invade as manifestações humanas. A procura do gozo dissemina-se
fora da volúpia física, na busca do poder ou do dinheiro, quando se torna ambição. Invade o
mundo do saber e do pensamento e torna-se adesão às certezas, apego às idéias. Ligada ao
jogo, torna-se paixão. Ligada à droga ou ao fervor místico, tende ao êxtase. Ligada ao
imaginário, dá substância e realidade aos espíritos, deuses, mitos e idéias. As erupções
psicoafetivas constituem a humanidade. Delirante, a afetividade leva ao crime ou à
transgressão do socialmente permitido.
- 163 -
Somos seres complexos, pois reunimos em nós traços contraditórios. E não adianta
negar ou tentar esconder o lado demens do sapiens, pois quando menos esperamos este
tende a tomar a cena. Sendo assim, razão e loucura não se excluem, são complementares. É
preciso considerar que a loucura é um problema central do homem e que os momentos
despendidos em ritos, magias, jogos, teatros e outras atividades lúdicas são constituintes da
espécie humana.
O progresso da complexidade fez-se também por meio das loucuras, que explicitam a
esfera irracional do ser humano, assim como o caráter dual de sua personalidade. A
dualidade entre bem e mal, guerra e paz, cultura e natureza impulsionaram a construção e a
destruição da história mundial. O lado sombrio do espírito humano ainda não conduziu a
espécie humana à extinção. Contudo, já destruiu muitas culturas, sabedorias, e agora está
colocando em risco a vida no planeta Terra. Justamente em virtude do progresso técnico e
científico, a razão humana é mais mortífera do que nunca, com possibilidades de destruição
e mesmo de aniquilamento das espécies desconhecidas até o século XX. Apenas as energias
nucleares liberadas pelo desenvolvimento da racionalidade técnica poderiam,
paradoxalmente, levar a humanidade a desaparecer em milésimos de segundos.
Atualmente vivemos uma crise planetária eminente. O caos das guerras é exibido
dia-a-dia nos noticiários, os quais não faz muito tempo começaram a mostrar os desastres
ambientais que dizimam milhares de pessoas de uma só vez. Os seres humanos, distanciados
de sua raiz originária, a natureza, são perseguidos pelos temores da vida e da morte. A cada
dia que passa o homem agride o meio ambiente de forma mais impiedosa, e embora esse
mesmo meio ambiente venha dando seus alertas, muitos ainda não estão aptos a perceber e a
mudar. E assim caminha o planeta, nas mãos de muitos homens poderosos que pensam
apenas no progresso, no dinheiro, no poder e na dominação, os quais se colocam como
superiores à natureza, considerando a si próprios donos da razão. Esquecem-se de que em
um piscar de olhos essa mesma natureza pode destruir todos.
Em uma sociedade regida pelo sistema capitalista, em que o tempo é igual a
dinheiro, tudo está centrado na economia. Deixamos de ser seres naturais e nos tornamos
seres econômicos, e desta forma passamos a destruir nosso próprio meio ambiente. Embora
antes acreditássemos que a manipulação da natureza seria em nosso benefício, agora se torna
cada vez mais claro que estamos destruindo a nós mesmos quando não cuidamos de nossa
- 164 -
Terra Mãe. Não há dúvida de que nós, modernos, fomos despidos das revelações naturais da
própria natureza. Porém já é possível refletir sobre o que acontece quando destruímos nosso
ambiente, nossas raízes.
O mundo se tornou tão absolutamente mecanicista que não passamos de um padrão
previsível de esquemas que reage a estímulos. Essa postura baniu da vida moderna todo o
livre-arbítrio de viver o instante de maneira espontânea. Percebe-se que ser moderno é
extremamente árduo. O esforço é tremendo e o trabalho para se manter dentro das regras do
sistema capitalista tornou-se uma tarefa que exaure e consome a maioria dos nossos
momentos. Viver para sobreviver mata na origem a liberdade. E atualmente a grande
maioria da humanidade não pode viver senão para sobreviver.
Ao longo da história, as sociedades urbanas e industriais, exploradoras e destruidoras
do mundo natural, opôs-se a qualquer aproximação ecológica ou mística, à liberação do
homem, para a experiência direta de sua espiritualidade inerente. Uma das armas sociais de
controle têm sido as religiões urbanas, as quais, por meio da moral, baseadas em dogmas,
conseguiram até certo ponto disciplinar a animalidade humana, bem como sua
espiritualidade intrínseca.
Os rituais antigos eram organizados de maneira que ajudavam os participantes a
experienciar eles mesmos, o mundo e a ordem social da qual faziam parte, de forma
diferente da qual estamos habituados. Atuando de maneira mística, ultrapassavam os
campos de separação entre o homem e a natureza para buscar uma vivência de integração e
completude, que talvez representasse a vivência corporal e energética do arquétipo da
totalidade. A sociedade capitalista cultivou valores individualistas que afastaram as pessoas
da experiência coletiva, fazendo com que o indivíduo ficasse à mercê de sua própria dor e de
suas limitações. Por outro lado, nas sociedades ancestrais, os rituais de passagem marcavam
as mudanças nas fases da vida, que eram compartilhadas com o grupo. Muitas cerimônias
envolviam a dor, que era sentida por meio de dentes arrancados, escarificações, circuncisões
e toda sorte de artifícios para que o homem abdicasse de seu corpo infantil e passasse a
integrar o mundo adulto. Esses rituais envolviam um processo de morte e renascimento para
uma nova posição social. No mundo atual, os jovens que crescem nas cidades não têm a
- 165 -
oportunidade de efetuar essas transições simbólicas. Sendo assim, onde eles vivenciam seus
ritos e mitos?
128
Ao longo do tempo, toda uma tradição de informação mitológica do Ocidente se
esvaiu. Com isso, perdemos efetivamente algo essencial. Essas informações, provenientes
dos tempos antigos, têm a ver com os profundos problemas interiores, com os mistérios e
sinais ao longo do caminho. Os mitos são histórias de nossa busca da verdade, de sentido, de
significação da vida. Todos precisamos compreender a nossa história. Todos precisamos
compreender a morte e enfrentá-la, e necessitamos de ajuda em nossa passagem para a vida
e depois para a morte. Necessitamos que a vida tenha significação, tocando o eterno,
compreendendo o misterioso, para por fim descobrirmos quem somos.
Assistimos hoje a um mundo carente de mitos, mas que busca incessantemente novos
significados. Em nosso país existe uma riqueza incrível de mitos indígenas sobre a origem
do Universo, as relações humanas, a vida e a morte. Porém a colonização católica nos
separou de nossas origens ancestrais e perdemos o contato com a sabedoria desses povos. O
lema da nossa bandeira – “Ordem e Progresso” – nos remete ao espírito controlador, sendo
que o progresso traz uma conotação de ascensão e evolução, pensamento que classifica as
sociedades ancestrais como inferiores, descartando todo o conhecimento e a tradição desses
povos em detrimento do conhecimento ocidental e europeu baseado na ordem.
O século XXI reflete um momento de desordem, em que os pilares institucionais
estão caindo e a mídia manipula a sociedade, gerando, por um lado, medo e tensão, e, por
outro, o desejo insaciável de consumo.
Diante da insegurança e do desânimo que marca o “mal-estar da cultura” (Freud) ou
o “mal-estar na pós-modernidade” (Bauman, 1998), o signo por excelência da
contemporaneidade é o nomadismo amplificado que nunca consegue fixar-se em nada,
porque extasiado pelo imediatismo do tempo real e fascinado pela imagem do “turista
vagabundo” (Idem: 118) não consegue transpor o lado demens do sapiens. Característica
128
De acordo com Campbell (1990), a mitologia é a organização de narrativas simbólicas e imagens que são
metafóras das possibilidades da experiência humana e das realizações em determinada cultura em certa época.
A mitologia é uma metáfora. Para o autor, o mito fala das energias que movem a consciência. O mito tem a ver
com a harmonização da consciência, em relação à base do ser na natureza, no corpo, que é em si uma
manifestação do mistério. A mitologia ajuda a harmonizar a vida individual com a vida social e demonstra isto
por meio de metáforas que levam à transcendência. O primeiro campo a ser transcendido é o meio ambiente
em que estamos, o mundo em que vivemos.
- 166 -
que explicita o fato de que “os indivíduos não são somente assujeitados pela sociedade e sua
cultura, também o são por seus deuses e suas idéias”(Morin, 1999: 21 ).
A prosa em nossa civilização, o primado do econômico, a invasão do tempo
cronometrado em detrimento do tempo natural, o aumento da pressão das cadeias
burocráticas sobre um mundo fragmentado, monetarizado e a explosão do liberalismo
econômico triunfante leva muitas vezes ao desabamento das grandes esperanças de mudar a
vida; tudo isso, por efeito contrário, estimula as resistências poéticas na sociedade, que se
explicitam cada vez mais, por meio da necessidade de aventuras, de música, de encontros
coletivos, festas e muita intensidade vivida no instante. “É, segundo a expressão de Michel
Maffesoli, o retorno de Dioniso. Quanto mais a prosa invade a vida, mais a poesia reage”
(Morin, 2002b: 139).
Como coloca Maffesoli, o paradoxo atual implica o sentimento trágico-lúdico,
enquanto inconsciente coletivo, retornando com força total na vida cotidiana. O que
expressa a busca pelo prazer do instante, porque o trágico implica o desejo de aproveitar o
que é naturalmente efêmero. E é no estado poético que o ser humano sente a “verdadeira
vida”, pois está contido em seu próprio fim, diferente do estado prosaico que tem sempre
finalidades exteriores a curto, médio e longo prazos. A finalidade da poesia é ela mesma:
fazer com que o transe proporcionado se torne realidade.
A esfera lúdica situa-se fora da sensatez da vida prática, nada tem a ver com a
necessidade ou a utilidade, com o dever ou com a verdade. Isto pode aplicar-se também à
música. Além disso, as formas musicais são determinadas por valores que transcendem as
idéias lógicas e até mesmo nossas idéias sobre o visível e o tangível. Esses valores musicais
só podem ser compreendidos por intermédio da sensibilidade dos próprios ouvintes.
Huizinga (2004) mostrou a presença extremamente ativa do lúdico em todos os
processos culturais, como fator criador de muitas formas fundamentais da vida social. O
ritual teve origem no jogo sagrado. Daí sua conclusão de que a cultura é um jogo. Ela surge
no jogo e enquanto tal contém simultaneamente momentos de sensatez e loucura.
Jogar e se divertir, amar, expor-se ao sol, aproveitar-se do tempo que passa, enfim,
tudo o que constitui a aventura existencial inscreve-se por um efeito na ordem da medida.
Mas será possível economizar-se o efervescente querer viver social? É impossível e
desinteressante mensurar a felicidade, pois não há critérios que possam conferir pertinência
- 167 -
a tal mensuração. Quem poderá dizer que o homem antigo desfrutou melhor a vida ou viveu
com maior plenitude que o contemporâneo?
Esta pesquisa dedicou-se à esfera do humano, que busca dançar para atingir o êxtase
coletivamente. Os participantes dos festivais psicodélicos, entregues à contemplação estética
e em sua maioria impulsionados pelo uso de substâncias embriagantes, atingem o êxtase,
onde o prazer primordial é vivido de maneira intensa. Quando as barreiras e os limites são
aniquilados, um elemento letárgico parece apagar toda a vivência pessoal do passado. E
assim separam-se, por meio de um abismo de esquecimento, o mundo da realidade cotidiana
e o da vida ritual.
“Sob a magia do dionisíaco torna a selar-se não apenas o laço de pessoa a pessoa,
mas também a natureza alheada, inamistosa ou subjugada volta a celebrar a festa de
reconciliação com seu filho perdido, o homem. Espontaneamente oferece à terra as suas
dádivas e pacificamente se achegam às feras da montanha e do deserto. O carro de Dioniso
está coberto de flores e grinaldas: sob o seu jugo avançam o tigre e a pantera. Se se
transmuta em pintura o jubiloso hino beethoveniano à ‘Alegria’ e se não se refreia a força
da imaginação, quando milhões de seres frementes se espojam no pó, então é possível
acercar-se do dionisíaco. Agora o escravo é homem livre, agora se rompem todas as
rígidas e hostis delimitações que a necessidade, a arbitrariedade ou a moda impudente
estabelecera entre os homens. Agora, graças ao evangelho da harmonia universal, cada
qual se sente não só unificado, conciliado, fundido com o seu próximo, mas um só, como
se o véu de Maia tivesse sido rasgado e, reduzido a tiras, esvoaçassem diante do
misterioso Uno-primordial. Cantando e dançando, manifesta-se o homem como membro
de uma comunidade superior: ele desaprendeu a andar e a falar, e está a ponto de,
dançando, sair voando pelos ares. De seus gestos fala o encantamento. Assim como agora
os animais falam e a terra dá leite e mel, do interior do homem também soa algo de
sobrenatural: ele se sente como um deus, ele próprio caminha agora tão extasiado e
enlevado, como vira em sonho os deuses caminharem. O homem não é mais artista,
tornou-se a obra de arte: a força artística de toda a natureza, para a deliciosa satisfação do
Uno-primordial, revela-se aqui sob o frêmito da embriaguez.” (Nietzsche, 1992: 31)
O ser humano mortal (como todo ser vivo) é um hipermamífero que desenvolveu as
potencialidades da vida, as quais exprimem ao extremo as qualidades egocêntricas e
altruístas do indivíduo, atinge os paroxismos da vida nos êxtases e na embriaguez, ferve de
amores e ardores orgiásticos e orgásticos. Os seres humanos são oriundos de uma aventura
cósmica, a qual se torna acessível e perceptível por meio das experiências obtidas em
estados alterados de consciência que os arrebatam da personalidade egóica e os inserem em
uma misteriosa sensação e percepção de unidade primordial e fusão com a totalidade
cósmica do Universo. O cosmo criou-nos à sua imagem, há uma auto-organização do cosmo
- 168 -
a partir de uma desordem extraordinária e de alguns princípios de ordem: o cosmo se faz
destruindo-se e se desfaz construindo.
“O indivíduo humano não pode, certamente, escapar de sua sorte paradoxal: ele é uma
pequena partícula de vida, um momento efêmero, uma insignificância, que contém em si a
plenitude da realidade viva: a existência, o ser, as atividades, e assim ele contém em si a
totalidade da vida, sem deixar de ser uma unidade elementar da vida. Ao mesmo tempo
contém a plenitude da realidade humana, com a consciência, o pensamento, o amor, a
amizade e a própria totalidade da humanidade, sem deixar de ser a unidade elementar da
humanidade.” (Morin, 1999: 17)
Desde que o individual cede ao coletivo, os grandes valores da atividade, da energia,
da economia de si próprio no mundo são relativizados. O eu se dilui numa entidade mais
ampla, na qual as fronteiras tendem a dissolver-se. Os símbolos referentes à estética
psicodélica permitem a continuidade do sentimento que o grupo nutre por si próprio. A
participação no festival psicodélico implica a teatralidade social e, assim, cada cena vivida
coletivamente é importante. Na teatralidade, o que preside o ordenamento da cena é o
sentimento de participar de uma representação geral que corresponde à captura da
totalidade.
É nessa perspectiva simbolista que os festivais de transe psicodélicos podem ser
apreciados. Neles, a sociabilidade opera por meio do movimento, que permite a cada um
atualizar suas potencialidades. É no e pelo coletivo que cada um se expande, e esta expansão
dá alento e bem-estar comum. Esse sentimento de “estar aí”, jogado no mundo, dissolve-se
na comunhão mais intensa, que serve à irrigação da totalidade da existência, do sentido de
pertencimento coletivo. Desta maneira, nutre-se um acordo com o universo, com a natureza,
com o ambiente necessário ao acordo grupal. A efervescência dionisíaca-shivaísta,
característica desses acontecimentos, instaura um sentido de “correspondência” profunda
entre os participantes, chamada de “união cósmica”, a qual permite a cada elemento
encontrar organicamente seu lugar e finalidade, voltando-se para o esgotamento no próprio
ato que assegura a permanência do todo.
Os festivais como meios de sociabilidade representam uma iniciação para todos,
incitando a vivência de um estilhaçar-se no grande todo cósmico. A existência é uma
criação comum. A comunhão coletiva serve para rememorar a criação comum. Ao fazer a
- 169 -
mímica da desordem e do caos por meio da confusão dos corpos, o mistério dionisíaco-
shivaísta funda periodicamente uma nova ordem.
O êxtase e a transcendência, estados buscados nesses encontros festivos, remetem à
superação de si mesmo. Assim, numa perspectiva não-linear, que remete ao cíclico retorno
do mesmo, podemos pensar que a ultrapassagem do individualismo, o retorno do mito ou do
simbólico não são patológicos, mas traduzem uma outra maneira de um grupo humano se
expressar e se sentir enquanto tal. Portanto, a efervescência e a preeminência dos sentidos
não são consideradas um sintoma, mas sim manifestação do que é parte integrante do corpo
social.
Frente a um tempo histórico dominado pela produção racionalista e material
encontra-se um tempo poético e erótico, um tempo do corpo amoroso, do oculto, do qual se
organiza a perduração da sociabilidade. É ainda à volta deste tempo que se organiza a
manutenção do politeísmo, frente ao processo reducionista e ao totalitarismo monoteísta
religioso e político. Apreciar o social como divino é compreender, em toda sua dimensão, o
que se chama politeísmo: os deuses são como umas tantas manifestações dos diversos
atributos do corpo social. Acaba então o princípio da individuação, o sujeito definido pela
ideologia burguesa não mais existe e apenas adquire sentido no e pelo coletivo. Em O lobo
da estepe, Hermann Hesse (1972) declara: “só se vive intensamente à custa do próprio eu”.
É esta a melhor característica dos festivais, a perda do “próprio eu” no coletivo que dança.
Os cultos shivaístas e dionisíacos remetem ao movimento constante. Shiva é ao
mesmo tempo deus criador e destruidor. Suas mulheres – Durga, Kali, Parvati – são ao
mesmo tempo amorosas e sanguinárias. A pluralidade de figuras que representam atesta a
essência mesma do orgiasmo, que consiste na conjugação dos caracteres e na multiplicação
das paixões como formas de superação de toda individuação mortífera. O deus enlaçado por
serpentes ou enfeitado com colares de crânios pendurados brinca com a morte, ritualiza e
exorciza a angústia da finitude. Em resumo, eis o mistério dionisíaco-shivaísta: enfrentar
coletivamente, pela pluralidade dos afetos e dos corpos, o problema intransponível do limite
e da morte.
O êxtase, a embriaguez e a efervescência, tudo isto tem por função essencial conjurar
o perigo ameaçador do inferno da morte. Shiva, o ambivalente, a própria síntese dos afetos
angustiantes, formula em seu culto uma técnica simbólica para o desenrolar existencial,
- 170 -
como um exorcismo que permite que a expressão cruel e obscura possa diluir-se no corpo
social. A eficácia é catártica e se inscreve num espaço estético cuja grandeza é inegável.
A união mística volta-se para entidades divinas, tais quais o casal primordial, o sol e
a lua como um modelo desta união representada também no simbolismo do yin e yang –
princípio feminino e masculino –, ou seus substitutos, a música e a dança, que aparecem
como constantes antropológicas. Se o misticismo é orgiástico é porque ultrapassa a pura
experiência individual; trata-se de uma expressão coletiva. Assim como o artista, o místico
faz-se porta-voz da divindade que, tendo se apoderado de seu espírito, coloca-o a seu
serviço. Por não poder contentar-se com um objeto de amor afetado pela finitude, o místico
pretende copular com o conjunto por intermédio daquele que o simboliza: deus. O êxtase
orgiástico leva à união com o outro, que também é a divindade. É um complexo que conduz
as pessoas a se unir, a se fundir para lutar contra a angústia do tempo que passa. (Maffesoli,
1985: 56-62).
A música é uma pluralidade que pretende atingir a unidade. Ela é ao mesmo tempo
tensão e equilíbrio. Por meio das tensões, pode-se pôr em destaque o que existe entre a
dissonância e a consonância, a tensão que existe entre o ritmo e a melodia etc. Os diversos
elementos da música se separam e se reúnem constantemente. São elementos que se
enfrentam e se aquietam na união que leva à integração cósmica, à integração de todas as
diferenças.
Nas religiões em que o misticismo e os contatos com o sobrenatural representam um
papel importante, evidencia-se a fusão com o grande todo ou a comunhão com a natureza
como constantes da experiência extática. É, portanto, uma característica que convém
conhecer de perto, por levantar questões importantes da sociabilidade de base. A comunhão
coletiva é uma das modalidades de relação com a alteridade. A liberação extática remete a
alguma coisa que a alma deseja e aspira, à qual possa atingir pela descoberta de um valor
intenso e irresistível dos sentidos e de sua deliciosa fruição.
O encontro dos homens pode gerar a fusão social que conseqüentemente estabelece o
sentimento correspondente à união cósmica. Como parte integrante de um conjunto, cada
indivíduo torna-se parte de um todo maior do que ele, e isso o tranqüiliza. Assim se define a
organicidade de base que faz os seres e as coisas vibrarem num mesmo diapasão. Tal
- 171 -
perspectiva aponta para uma dimensão impessoal, além do individual, que introduz a
transcendência como experiência que estrutura a sociabilidade.
Ao transcender a si próprio, o indivíduo se agrega a elementos contraditórios para
formar um todo, que valoriza sua existência. Os festivais de transe psicodélico são
vivenciados como comunhão coletiva que permite o reconhecimento por parte dos outros,
que aceitam a transgressão dos limites, e isto é o essencial compartilhado. Só podemos
existir na medida em que fizermos parte de uma ordem na qual integramos nossa diferença
assumida num todo, a qual vai além de nós.
A unidade alcançada por meio do êxtase coletivo harmoniza a pluralidade das
diferenças, das tensões e contradições que compõem o cenário dos festivais psicodélicos.
Em oposição à solidão da vida urbana, individualista, encontra-se aqui um elemento de
solidariedade comum. Assim, em vez de recusar a realidade do contraditório e da violência
inerente ao humano, este grupo integra a animalidade e a pluralidade, numa dinâmica social
criada por espíritos livres. É neste sentido que o erotismo coletivo vivenciado nos festivais
remete ao trágico, porque o equilíbrio é buscado por meio do “querer viver” permanente,
que diz sim à vida e à repetição de momentos de extrema alegria coletiva.
Portanto, enfrentando a sociedade progressista, que funciona com base no projeto de
futuro, os festivais expressam a força do querer viver no presente, fazendo da vida uma obra
de arte em constante transformação. A organicidade e a harmonia contraditória acham-se na
base dessa expressão ritual que alimenta a crueldade e a ternura por meio de encenações
poéticas, estéticas e imaginárias que vão além do que pode ser observado.
Nos festivais forma-se um campo de simpatia mística que une cada indivíduo ao
ambiente natural e todas as pessoas ali presentes, assim como todos os seres, vivos ou não,
que a ele se acham associados. Essa globalidade cósmica concebe o universo em sua
totalidade. E, assim, não é mais possível rejeitar nenhum aspecto da totalidade; trata-se de
reconhecer a inter-relação entre tudo o que existe. A metáfora psicodélica é a expressão
deste ritmo poético, o qual, indo além do bem e do mal, pretende unir ou promover a fusão
dos elementos da totalidade multidimensional.
O prazer tanto quanto a fruição não significam apenas repouso e desperdício. O
transe psicodélico permite que a parte de sombras que ronda o corpo individual e social, seja
simbolicamente integrada para então dar força à trama social cotidiana. Esse agrupamento é
- 172 -
por si só a causa e o efeito de tais encontros. É ele que pode explicar, no âmago do
conformismo mais aparente, a continuidade do espírito de aventura, do libertarismo e da
libertinagem. Estabelece um dos sobressaltos de revolta que pontuam as histórias humanas.
Convencida da precariedade e da finidade momentânea de todas as coisas, a sabedoria
contemporânea de todos os dias é profundamente hedonista, isto é, integra o trágico e
enfatiza o lúdico como especificidade do humano.
O lúdico é constantemente habitado pela idéia de morte. Nas manifestações festivas
paira a sombra carregada da finitude. Estas manifestações cristalizam a angústia do tempo
que passa e a integram em um ritual, que a torna aceitável. Na ritualização festiva, a morte e
a vida se apresentam em sua ambivalência e em sua complementaridade. O indivíduo pode
até perder a vida, mas o todo, o conjunto, sobrevive. A existência coletiva perdura. É isto o
que os festivais simbolizam, a ordem cósmica tranqüilizadora, o vaivém constante que se
estabelece entre esta ordem e o caos original.
Quando o ser humano experiencia o êxtase coletivo, sua energia interna é amplificada
proporcionalmente àquela gerada pelo grupo, permitindo assim reconhecer a força que
existe além de si. Portanto, a experiência do transe psicodélico em um festival, que envolve
pessoas de diferentes partes do planeta, abre um campo de energia e um campo de
consciência voltado para a totalidade. Essas experiências no plano de integração entre o
físico, o mental e o espiritual podem agir como fonte de satisfação às necessidades
arquetípicas
129
e ancestrais, enraizadas nas profundezas da natureza humana.
Ao dançar coletivamente, os participantes dos festivais psicodélicos são arrebatados
pelo êxtase que invade o espírito humano. É nesse corpo-espírito que se encontra um ponto
de bifurcação, uma mudança de direção rumo a uma maior complexidade. O homem
contemporâneo continua ritualizando a vida e a morte por meio de celebrações iniciáticas
que potencializam sua energia. Entretanto, no século XXI, as novas tecnologias
desempenham um papel incisivo no elo estabelecido entre o indivíduo e a humanidade
planetária.
Mas em algum momento o festival acaba e os participantes do Universo paralelo
precisam voltar para a realidade da vida cotidiana. E depois? O que será que mudou? O que
129
“Gestado e tecido numa metamorfose dolorosa que abriga mutilação e perda, luta e sacrifício, repetição e
desregramentos, o nosso corpo é um coágulo de sentidos que retém, mas ultrapassa, as lembranças arquetípicas
acumuladas pela experiência corporal de outras espécies animais” (Almeida, 2002: 55)
- 173 -
foi incorporado da experiência do transe psicodélico vivido coletivamente? Como se
vivida a vida rotineira até as preparações para o próximo ritual psicodélico?
Para os participantes dos festivais psicodélicos, que são os habitantes da “aldeia global
cibernetizada” (Carvalho, 1999:33), após o festival a comunicação continua pelo
ciberespaço; acontecem fóruns de discussões sobre os encontros, as fotos dos festivais são
lançadas em vários sites, e listas de contatos são adicionadas aos correios eletrônicos, dando
origem a novas amizades que se expandem por todo o mundo.
Após terem sido tocados profundamente pela força arquetípica da totalidade, a vida
cotidiana passa a ser olhada com novos olhos por muitos dos participantes dos festivais.
Afinal, a experiência psicodélica pode representar a abertura para novas percepções acerca
da realidade; as quais envolvem a descoberta de que existem diferentes formas de
consciência no Universo e todas estão interligadas. A partir desta concepção, torna-se
possível admirar o Planeta todo como um organismo vivo e reconhecer nosso papel como
filhos da Terra.
Nossa vida deveria ser uma meditação constante. Mas isso varia, de acordo com o
que as pessoas estão dispostas a meditar. Algumas pessoas querem criar certas ideologias,
outras querem lutar por elas e outras querem dançar pelo simples fato de existirem. Todo
caminho é um caminho. Alguns aderem ao princípio de responsabilidade para consigo
mesmo, para com os outros, com os ecossistemas e com o planeta como um todo.
Simultaneamente, existem os que se perdem por completo buscando apenas fora de si o que
também deveria ser buscado no interior da alma. O risco de sermos arrebatados pelo
fantasma do medo, pelos vícios e pela ilusão, coexiste em qualquer caminho. Enfim, o
imaginário psicodélico nos permite vislumbrar tanto a criação quanto a destruição, tanto a
luz como a escuridão complementando a face da mesma circunferência.
- 174 -
POEMA E IMAGEM DE: MICHEL. INSPIRADO – DIVULGADO NOS FESTIVAIS
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ANEXO I - HISTÓRICO
O DNA
130
DO TRANSE PSICODÉLICO
Festival Tranceformation 2004
Foto: Ana Flávia Nogueira
Nascimento
A música psicodélica teve sua primeira aparição em 1963, quando o cantor Peter
Stampfel criou o tema “Hesitation Blues”, que continha a primeira referência à palavra
“psicodélico”. Em 1967, o rock psicodélico tornou-se um fenômeno pop. Bandas como The
Pink Floyd, The Doors, Jefferson Airplaine, The Greatful Dead, Jimmmi Hendrix, Hawkind
ou Traffic fizeram nascer uma perspectiva maior de exploração sônica.
Em 1970, Goa (Índia) começou a ser um destino para os jovens de todo o mundo
que, desencantados com a sociedade ocidental, buscavam novas perspectivas no Oriente.
“Todas essas pessoas se encontraram... eram muitas pessoas viajando
para fora de seus continentes. Muitas pessoas foram estudar a música indiana,
outros foram viver com os yoguis no Himalaia...Muitas viagens e buscas
diferentes, cada um ia para um lado, para as montanhas do Afeganistão, para
Bali, (...), mas no final do ano todos se reuniam em Goa. Todos chegavam dos
mais variados lugares, viajando, e se encontravam em Goa, aonde trocávamos
nossas experiências, nossas estórias, o que estávamos fazendo, aprendendo, e
aí fazíamos festa juntos.” Goa Gil (MacArteer 2002)
As festas realizadas em Goa nos anos 1970 desenvolveram novos caminhos para a
cultura psicodélica, fundindo valores ocidentais e orientais. Nesse período, o rock, o reggae
e o dub eram os gêneros musicais mais ouvidos nas festas. Em 1972 houve uma conexão
entre a cultura psicodélica e o funk, devido à presença dos afro-americanos, que resultou no
“The Mothership Connection”, de P-Funk. Ainda em 1972 aconteceu a ligação com o jazz
por intermédio do músico Sun Ra e da edição Space is the place. Em 1976 a música
130
No jornal diário do “Boom Festival”, que aconteceu em 2004 em Portugal, havia o ADN of Psychedelic
Music, de onde retirei grande parte das informações a seguir, assim como a inspiração para mostrar aqui o
DNA do trance psicodélico (Daily Dragon, Live Vibrating News, p. 10 – Agosto 2004).
- 187 -
psicodélica sofreu influência das discotecas e ganhou forma para ser tocada nelas. Em 1985
a cena acid house começou a emanar de Chicago.
E em 1987, o DJ francês Laurent começou a fazer experiências em festas em Goa
misturando EBM, new wave, post wave, Detroit techno e acid house. Nesse período, os
jovens da era pós-hippie atribuíram novos significados à cultura psicodélica com a
tecnologia em mente, formando as raízes do Goa trance e do psy-trance.
Na Europa, a Alemanha do começo dos anos 1990 foi palco do cenário do
nascimento do trance. Após a queda do Muro de Berlim, Paul van Dyk (fundador da Love
Parade), Mar Reeder e Torsten Stenzel, influenciados pelo momento histórico, criaram um
novo tipo de música eletrônica que refletia a atmosfera da época: eufórica, energética e
elevatória. Em 1992 o estilo dominou a cena underground, trazendo musicalidade e melodia
elaborada para os que já estavam cansados da agressividade do hardcore e da diluição do
acid house da época. Algumas referências internacionais preferem acreditar que foi em
meados de 1993 que o estilo musical alternativo conhecido como trance encontrou a
psicodelia no balneário alternativo de Goa, que desde os anos 1960 é a meca de hippies,
viajantes e freaks
131
. Com sua natureza paradisíaca, fartura de LSD e haxixe, misticismo
hindu e tradição hippie-psicodélica, o local tornou-se um grande atrativo para a cultura das
raves
132
que surgiam principalmente na Alemanha e na Inglaterra, em um período histórico
de transições
Nessa época, Goa Gil direcionou todo o conceito do estilo transe psicodélico para a
espiritualidade. Ele chegou da Califórnia e se tornou o maior protagonista da música
eletrônica em Goa, mantendo esse título até hoje. Criou a conexão entre batidas eletrônicas,
espiritualidade, ioga e música com o seu conceito de “redefinir o antigo ritual tribal para o
século XXI”, guiando o público, por meio do transe, a um estado de consciência mais
elevado.
Em 1992/93 o Goa trance entrou na indústria musical com a emergência de nomes
como Youth, Tip, Blac Sun, Hallucinogen, Dragonfly etc. A partir desse ponto, editoras,
artistas, festas e festivais passaram a fluir incessantemente em todo o mundo durante os anos
1990. Em 1997, a compilação “Let it R.I.P”, da Matsuri, é para muitos o fim oficial do Goa
trance, que já havia começado a sua metamorfose como trance psicodélico.
Na Alemanha, as pessoas que se conheceram nas festas da Índia passaram a se
encontrar regularmente, entre 1989 e 1990, a trinta quilômetros ao sul de Hamburgo, num
local desconhecido chamado Waldheim. Era normal pessoas da Bavária irem a essas festas
também. O lugar começou a ficar cheio demais, a ponto de as pessoas que não conseguiam
entrar passarem a dançar no meio da rua mesmo. Por fim, o local teve que ser fechado. Nos
pubs as pessoas começaram a planejar uma mega rave. Então em 1991 foi feita a primeira
Voov-Experience, que em sua edição de 2003 teve a participação de mais de 10 mil pessoas.
A partir de 2004 o estilo musical do transe passou a ser global e a apresentar grande
variedade de subgêneros, como: full-on, psy-trance, progressive-psy-trance, rock-psy-
131
Freaks: termo genérico utilizado por segmentos da contracultura ocidental dos anos 1990 que mistura
elementos das subculturas hippie e punk que rejeitaram as formas dominantes de capitalismo, consumismo,
conformismo e intelectualismo. Os “loucos” apresentam preferência por um estilo de vida rústico, viagens
exóticas, psicodélicas e vida em comunidades. Também abraçaram as novas tecnologias, a música eletrônica e
apresentam certas características de comportamento transgressivo (D’Andrea, 2005).
- 188 -
trance, break-trance, minimal psy-trance, psy-tech-trance, dark-psy-trance, neo full-on,
classic, melodic etc. Em cada país o trance ganhou novas abordagens e conceitos, que
apesar de encontrar forças de pressão para a sua comercialização, tinha em si a vocação de
música independente e alternativa.
A cena trance atualmente está presente em todos os continentes do planeta Terra.
Seja na África, na América do Sul, América do Norte, América Central, Ásia, Oceania ou
Europa, o trance psicodélico reúne desde um grupo pequeno de pessoas até multidões. O
Boom Festival
133
, por exemplo, que acontece a cada dois anos em Portugal, reuniu 15 mil
viajantes do mundo inteiro em 2004. Na divulgação do festival constava: Venha viver a
contínua metamorfose existencial, uma múltipla exploratória plataforma para a arte, um
grande encontro da cultura e da cena psicodélica” (Flyer Boom Festival. 2004).
BRASIL
Atualmente, o Brasil é considerado como um país com cena trance expressiva.
Algumas das primeiras raves daqui foram feitas pela WTF (World Trance Family), uma
organização que tem feito raves em locais afastados de São Paulo. Rica Amaral é o DJ de
psy-trance mais conhecido do Brasil, produtor de uma das maiores raves de psy do país, a
XXX-Experience, que já reuniu até 20 mil pessoas.
No Brasil, a cena psicodélica teve sua explosão no final dos anos 1990 e início do
novo século, quando então se espalhou por todo o país. A música e o estilo de festa
chegaram aqui por intermédio dos viajantes que vinham principalmente da Europa e da
Ásia para passar o verão nas praias quentes da Bahia. Foi em Arraial D’ajuda e Trancoso os
locais em que esse estilo musical aportou e começou a ganhar adeptos no país.
“Na década de noventa, em 94, o Max Lafanconi, italiano que se mudou
para Trancoso, para Arrail D’Ajuda, começou a fazer umas festinhas lá.
Então começaram a acontecer festas na Bahia, depois chegou em São Paulo
e no interior veio depois.”
134
Em entrevista realizada com Dina, a “madrinha do trance”, ela relatou que estava em
Arraial D’Ajuda quando Alba, “rainha do trance brasileiro”, recebeu os gringos na
“Amsterdã” brasileira. Dina relatou que no início as pessoas juntavam o dinheiro para pagar
o gerador e fazer as festas.
JP, que hoje tem dezoito anos e iniciou muito jovem sua carreira como DJ, relatou:
“Passei minha infância em Arraial D’Ajuda, e minha mãe fazia festas junto com Dj’s
nacionais e internacionais. Assim, desde pequeno eu ficava na mesa de som, aonde o DJs
tocavam e aos poucos eles foram me ensinando.”. Atualmente JP toca pela TIP (Inglaterra) e
é um dos DJs mais queridos do Brasil, devido à empatia e à energia que ele desperta no
público.
133
Disponível em: www.boomfestival.org . Acesso em: 05 jun 2004.
134
Dario, organizador do festival Universo Paralello. Entrevista realizada na Trance Formation, julho 2004.
- 189 -
Da Bahia a música e o estilo de festa chegou a São Paulo. Como relatou Joe
Nishimura, DJ e cenografista, em São Paulo o trance teve maior expansão por intermédio da
Daime Tribe, que inicialmente era formada por Milton Fukui, André Meyer e Gerome, os
quais organizavam festas para trezentas pessoas em locais próximos de São Paulo e já
estavam envolvidos artistas internacionais como Shiva Space Tecnology (Alemanha), Space
Tribe (Austrália), Domino (Goa-Índia). Em agosto de 1999 foi criada a Klatu, como um
projeto semanal às quintas-feiras, realizado em um espaço underground, no subsolo de uma
galeria em plena rua Augusta, região central de São Paulo. A Klatu surgiu como um meio
para que as pessoas que se encontravam nas festas no meio do mato, pudessem se encontrar
semanalmente na cidade.
Atualmente acontecem festas do estilo trance quase todos os finais de semana, em
áreas próximas às grandes cidades, como São Paulo, Belo Horizonte, Rio de Janeiro,
Goiânia e Brasília. Já os festivais de trance psicodélico que acontecem no Brasil em geral
são marcados nas mesmas datas todos os anos, constituindo um calendário que envolve
principalmente feriados e férias prolongadas.
“Quando achamos a cena trance, começamos a fotografar assim, como
uma outra cultura. A cultura trance é uma cultura sem fronteiras.
Porque fora do Brasil, no começo dos anos 90, eram muitas pessoas
viajando no mundo, encontrando lugares, conhecendo outras culturas e
fazendo festas. Então o trance é uma música sem palavras, e todo
mundo entra na celebração, dançando juntos. É... tinha um espírito
também, com roupas, com idéias, com crenças, um pouco fora da
sociedade normal. E foi daí que começou. Foi através dos viajantes que
começou o trance. Mas aqui no Brasil não é muito fácil de entender,
porque a maioria das pessoas que estão nas festas hoje em dia nunca
viajaram, são muito jovens. Então a cena aqui no Brasil é muito
diferente do que no resto do mundo. Mas eu posso falar que na Nova
Zelândia, meu país de origem, também a cena é muito nova, demorou a
chegar, é longe e tem uma população muito pequena. Mas tem os
viajantes, uma galera mais velha, enquanto aqui as pessoas envolvidas
são muito jovens.” (Lisa, entrevista realizada em 20/8/2004).
De acordo com Píer, engenheiro musical de origem holandesa, que esteve em Goa,
onde participou de muitas festas, e que há algum tempo vem participando de festivais
brasileiros, sendo responsável pela parte de divulgação no exterior: “A cena trance brasileira
é muito nova e tem muitas pessoas jovens envolvidas. Mas nos últimos quatro anos os
organizadores mostraram que aprenderam muito, as festas estão cada vez melhores. Mas ao
mesmo tempo é essa energia jovem e criativa que cativa os estrangeiros” (30/12/2004).
“Meu nome é Camila, tenho 23 anos. Eu estou aqui porque isso é minha vida.
Venho de uma família hippie, mais solta. Desde de nova a música fez muita
parte da minha vida. Meu primeiro contato com o trance foi há uns seis anos
- 190 -
mais ou menos, quando o Juarez voltou da Europa com essa música. Ele era
roqueiro e voltou escutando música eletrônica. Agente se conheceu e logo
depois ele virou DJ de trance, começou a gravar discos e foi quando
começou. Tem uns seis anos. A gente fazia umas festinhas pequenas, para
pouca gente em Brasília. Mas aí foi juntando uma ‘tribo’ lá. E há cinco anos
a gente resolveu fazer um ano novo em Alto Paraíso. Foi onde tudo começou.
Plantamos a nossa sementinha. Mas lá tinha sempre muita chuva. Agora tem
dois anos que nós encontramos esse lugar mágico, e nesta segunda vez aqui
estamos aqui mostrando que não estamos preocupados apenas com a
música, mas estamos trazendo arte, cultura e espiritualidade para os
participantes desse festival.” (Camila, integrante da equipe de organização do
festival Universo Paralello. Entrevista realizada em 2/1/2005, Pratigi-Bahia)
O Movimento Psicodélico - A era dos Hippies: Paz, Amor, Respeito e Liberdade
“Ontem eu e uns amigos estávamos lembrando dos anos 70. O que a gente
tinha era esse movimento aqui, só que a gente namorava mais, trepava mais
e gozava mais. Como dizia Darci Ribeiro, gozar é fundamental para a gente
ser feliz. E é verdade. Hoje é uma proibição de tudo. Houve todo um
processo de repressão. Houve todo um processo. Mas nós na nossa época
fomos muito corajosos. Nós abrimos as portas para possibilitar isso que
está acontecendo agora. E eu me sinto muito feliz por estar vivendo isso de
novo, por estar pintando minha cara. É fantástico. Era muita margarida,
muito coração, muito amor, muita transcendência. E muita ‘liberdade’,
entre aspas porque essa nós alcançamos e hoje vocês têm realmente
liberdade. Então é maravilhosa essa possibilidade de trocar experiências, de
estar aqui falando para vocês, de poder olhar no fundo dos olhos das
pessoas e ver que você está tranqüilo, que você está em paz, você está puro.
Está todo mundo na ‘vibe’ de paz, de amor, de respeito, sem nem precisar
levantar o dedo. Antes tínhamos que levantar o dedo para se identificar.
Mas hoje as coisas se diluíram dentro de uma relação de olhar, de conexão.
As coisas estão mais harmoniosas. Mas é a mesma grande família...”
(Inuká, relato feito na palestra “Xamanismo e as plantas de poder”, no
festival Universo Paralello, 2004/05)
De 1960 a 1969, em cada um dos cinco continentes, em quase todos os 145 países de
vários sistemas políticos o mundo conheceu a rebeldia dos jovens. Ao lado das guerras, as
manchetes dos jornais falavam da odisséia de milhões de inconformados. “Mutantes da nova
era oral e tribal em dimensões planetárias, produzidas pelas comunicações de massa”, coloca
Marshall Mcluhan, ao se referir aos jovens que se rebelaram contra os valores, as
instituições, as idéias e os tabus, e passaram a agir contra tudo o que estava estabelecido.
Com a coragem da idade e a indignação, eles afrontaram a moral vigente por meio da ação.
Essa juventude era considerada advinda dos beatniks dos anos anteriores. Mas aos poucos
foram captados alguns indícios de seu desenvolvimento.
- 191 -
Em 1960 foi descoberto, por uma pesquisa, que os alunos da Universidade de
Harvard consideravam as religiões tradicionais vazias de conteúdo metafísico. Um ano
depois, o professor de psicologia da mesma universidade, Timothy Leary, começou seus
estudos aplicando doses de mescalina em estudantes voluntários que procuravam
experiências místicas. Da mescalina, Leary e seu assistente Richard Alpert passaram a usar
outra substância ainda mais poderosa, o LSD
135
(ácido lisérgico). Esta sigla iria acompanhar
grande parte da juventude daquela década. Em pouco tempo, o número de “iniciados”
cresceu, e já se percebia uma diferença entre os que a experimentavam: esses jovens
detestavam a violência que era bastante difundida por meio das guerras travadas pela
sociedade da qual pretendiam se afastar cada vez mais.
Negando a religião, mas buscando Deus no misticismo oriental, o número desses
jovens aumentou rapidamente, e em 1962 o símbolo LSD já era conhecido nas grandes
faculdades americanas, por parte dos alunos, mas não dos responsáveis e do público. O
escândalo explodiu quando Timothy Leary foi expulso de Harvard e apelou para a justiça,
em nome da ciência e da democracia, o direito de prosseguir suas experiências. Em menos
de uma semana a América e o mundo tomaram conhecimento do fenômeno “psicodélico”.
Leary foi preso e confessou já ter aplicado LSD em mais de mil pessoas, sendo metade dos
quais de formação religiosa, entre elas 69 ministros protestantes ou padres católicos. Dessas
pessoas, 75% reconheciam ter atingido um estado místico religioso intenso, e mais da
metade afirmou ter realizado a experiência mais profunda e real de suas vidas.
Em 23 de novembro de 1963 morreu Aldous Huxley, no mesmo dia em que Kennedy
era assassinado. Huxley, prestes a falecer, praticou o ensinamento do Bardo Todol, o Livro
Tibetano dos Mortos, que ele havia interpretado como um manual para o êxtase, e pediu a
sua mulher Laura que lhe injetasse uma dose de LSD.
Muitos foram os “apóstolos do ácido” que começaram a fazer a sua distribuição
como sagrada hóstia espiritual. Ken Kesey e o grupo de rock Merry Pranksters saíram num
ônibus promovendo os eletric-cool-aid-acid-test. O próprio Leary fundou a IFIF
(International Federation for Internal Freedom) e instalou-se em Cuernavaca, no México
onde fez sessões com LSD. Na esteira da radicalização do movimento estudantil surgiram as
seitas psicodélicas, como os diggers, os yippies e a Fraternidade do Amor Eterno. No
entanto, em 1965, a fabricação e venda do LSD se tornaram ilegais. Em 1966, a Sandoz
parou a fabricação. No debate aberto no Congresso norte-americano, o senador Robert
Kennedy argumentou contra a proibição, alegando que sua esposa usava LSD com êxito
num tratamento psicoterapêutico. Mas, no final de 68, Nixon foi eleito e lançou a war on
drugs, tornando a posse de LSD um crime. (Carneiro, 2005 11)
No entanto, a “revolução psicodélica” era o caminho que grande parte da juventude
estava escolhendo e ainda viria a escolher. A partir de meados da década de 60 ocorreu a
explosão dos hippies floridos. Mas, paralelamente, um problema assumiu proporções
internacionais entre 1965 e 1966. A cada dia, em vários países – do Brasil ao Japão, dos
Estados Unidos a Checoslováquia –, os estudantes substituíram a rotina das aulas pela das
greves, manifestações, protestos e ocupações das faculdades. Suas organizações
multiplicavam-se, e o choque com a polícia tornou-se freqüente. As demonstrações eram
135
Dados recentes disponíveis em: http://www.lsd.info/E_start.html.
- 192 -
principalmente contra a guerra do Vietnam, contra o racismo, pela paz, pelo direito de
manipular o corpo e o espírito.
Por intermédio da imensa variedade de formas, a juventude procurava romper com
tudo: com a universidade, com a família, com a arte, com os partidos, com a violência. O
que era novo passou a ter um valor em si: a tradição tinha que ser destruída. Mais do que os
jovens, o mundo havia mudado. A sociedade industrial avançava rompendo princípios,
modificando as relações e as condições de vida; os meios de comunicação quebravam os
valores regionais e introduziam uma cultura uniforme sem fronteiras. Em face de valores
como o amor, a liberdade, a justiça e a fraternidade, surgia uma nova realidade – o consumo
–, estabelecendo seus próprios valores: a eficácia, o sucesso e a competição. Mais
eficazmente, as grandes organizações comerciais descobriram nos jovens todo o potencial
do consumidor e transformaram a contestação também em produto de consumo.
Uma dinâmica nova surgia. Os jovens contestavam a sociedade, e esta consumia a
contestação. Uma busca desesperada de afirmação passou a ser realizada em todos os
campos – na moda, na pintura, no cinema e, sobretudo, na música. As boates românticas
cederam lugar às discotecas onde tudo se agitava, sobretudo a luz e os corpos. A essas
extroversões ritmadas opunham-se o recolhimento às drogas. A busca pelo “conhecimento
de si próprio”, bem como as “viagens” acentuaram-se de maneira vertiginosa.
Apontava-se sociologicamente que a juventude, por ser essencialmente transitória,
não se constituía uma categoria social. “Mas os jovens estavam cada vez mais se agrupando.
As grandes concentrações, como a de Woodstock, onde centenas de milhares de pessoas se
reuniram para falar de paz, de música e para viver dias de completa liberdade, demonstraram
o sentido profundo da comunidade que estava se formando entre os jovens que carregavam
uma compreensão mística de si mesmos como um grupo à parte: um “nós” em franca
oposição a “eles”. O “eles” é o mundo dos valores, do sistema social incapaz de preencher o
vazio entre ideal e realidade. E o “nós”, a constatação do fracasso da civilização criada pelas
gerações anteriores – de guerras, injustiças sociais, violência, opressão
136
.
Em um contexto de guerra, os jovens dos anos 1960 passaram a negar todas as
manifestações visíveis dessa civilização. Evadir-se ou participar da destruição da sociedade,
eis a opção a que eles se colocavam. Evadir-se foi a resposta hippie. Mais de 400 mil jovens,
só nos EUA, deram as costas à sociedade de consumo e saíram à procura de outras verdades.
Como destacou Metha (1999) é paradoxal que os americanos desiludidos com as
guerras tenham adotado a lei cármica.
“Espera-se que o progresso nos liberte dos constrangimentos de ser perpetuamente
vesgos, tendo de ver o finito e o infinito em tudo. Somente o forasteiro acha o
estrabismo espiritual atraente porque esta envesgando. É improvável que tanto o
ocidental quanto o oriental tenham a energia para sobreviver à troca de percepções,
contudo ambos insistem em tentar e ambos usam linguagem irrelevante para
camuflar as contradições. É improvável que o oriental seja bom o suficiente para
olhar de perto as partes e não perder sua capacidade de ver o todo, então chama o que
136
O texto “Anos 60: perfil dos jovens na década da contestação” foi publicado originalmente na edição
especial da revista Veja: “Os anos 60: a década que mudou tudo”, e está disponível em:
http://tranzine.democlub.com/13/anos60.html
. Acesso em: 12 maio 2005.
- 193 -
o fascina no Ocidente de necessidade econômica, tecnologia, imperativo histórico. É
improvável que o ocidental possa ver o todo e não perca sua capacidade e compulsão
altamente desenvolvidas de questionar, então ele chama o que fascina o Oriente de
transcendência da economia e da tecnologia, o antídoto da história. Ambos recobrem
os inimigos de suas forças com nova terminologia e esperam torná-los inofensivos.
O ocidental está achando a dialética da história menos fascinante do que as
infindáveis oportunidades para o narcisismo oferecidas pela sabedoria do Oriente.
Exceto que a preocupação principal da sabedoria do oriente é a aniquilação do
narcisismo.” (Metha, 1999: 105)
“O momento em que o pudor perdeu para a pornografia pode ser
provavelmente datado de quando os hippies descobriram as praias de areia alva de
Goa. Naquela época, os hippies estavam enlouquecidos com a Natureza em sua
aparência mais primitiva e romântica. Goa não só tinha praias e selvas, como tinha
até um macaco como uma de suas principais divindades, o deus Hanumam. Os
hippies não sabiam que Hanumam é cultuado como o Guardião da Honra. O que
viram foram templos entregues aos macacos, balançando, roubando comida das mãos
dos devotos. Os goanos não sabiam que os hippies tinham vindo para um carnaval. O
que viram foram músicos, com flatuas e violões, cantando ao luar. Todos foram à
praia para um happening, que conseqüentemente aconteceu.” (Metha,1999: 93)
A autora ainda questionou:
“Como podiam os quardiões da liberdade debandar daquele jeito? A América era
um continente que fizera da rebelião um fetiche. Seu povo preferira abandonar a
cidade a sucumbir aos ditames injustos do Estado. E no entanto aqui estavam seus
filhos, na própria terra da liberdade, tornando-se presas fáceis de homens que
exigiam não somente obediência completa e inquestionável a suas ordens, como
também pagamento por esse privilégio.” (Metha, 1999: 51)
Um guru que tem um ashram na Índia ocidental, com um grande número de
seguidores estrangeiros, confidenciou a um correspondente da revista Time: “Meus
seguidores não têm tempo. Então lhes dou salvação instantânea. Transformo-os em neo-
sanyasis”. Um sanyasi na Índia está a meio caminho de ser um santo, um homem que
renunciou ao mundo para buscar a verdade, uma renúncia que é tanto social quanto física.
Seus votos – dedicação à pobreza, castidade, e se o sanyasi tem um mestre, obediência. Mas
o hinduísta simplório, quando encontra dois estrangeiros de pele clara no bazar,
compartilhando um cachimbo de haxixe enquanto se acariciam, está pronto para pensar que
os estrangeiros estão usando os trajes cor de laranja do sadhu como um ato de zombaria
agressiva. O hinduísta simples, ao contrário do guru sofisticado, não incorporou ao seu
vocabulário, tanto diário quando religioso, conceitos como “neo” ou “instantâneo” ao seu
vocabulário.
“Parece que quando o Oriente encontra o Ocidente, tudo o que você consegue é o
neo-sanyasi, o nirvana instantâneo. Chegando ao problema vindo de diferentes direções,
ambos os lados acabaram na mesma conclusão, a saber, que a arma mais eficaz contra a
- 194 -
ironia é reduzir tudo ao banal. Você fica com o carma, nós levamos a Coca-cola, um
refrigerante metafísico por um físico” (Metha 1999: 106)
Introduzi aqui tais colocações para destacar também que em Alto Paraíso, a cidade
brasileira que é famosa por ser onde acontece o maior festival de trance psicodélico do
Brasil – Trancendence -, estão concentrados muitos “neo-sanyasis” e inclusive são eles
mesmos que organizam o festival. E, não por acaso, os principais organizadores “neo-
sanyasis” que são os donos da fazenda onde acontece o evento, na região da Chapada dos
Veadeiros, são também norte-americanos e filhos de uma importante ex-acionista da rede
de refrigerantes Coca-cola. Esse fato mostra o caráter ambíguo desse evento que parece
defender uma ideologia contrária à realidade vivida pelos próprios organizadores.
NEOPSICODELISMO
Nas últimas décadas do século XX ocorreu uma retomada internacional dos temas do
psicodelismo dos anos 1960. O xamanismo, a etnobotânica, as religiões enteógenas e a onda
das raves trouxeram um renovado interesse pelas formas de alteração da consciência. Nos
anos 1980, com o uso do MDMA, conhecido como Ecstasy, refloresceram diversas
experiências terapêuticas psicodélicas, até a decretação da sua proibição legal a partir de
1986.
O criador dessa substância, o químico e farmacologista Alexander Shulgin, em
parceria com sua esposa Ann escreveu os livros PIHKAL (Phenethylamines I Have Known
and Loved), A chemical love story (1991) e TIHKAL (Tryptamins I Have Known and Loved),
The continuation (1997), que constituem uma síntese das repercussões da pesquisa científica
com drogas psicoquímicas e resumem o que há de mais avançado na pesquisa
psicofarmacológica dos psicodélicos, além de possuir relatos autobiográficos entristecidos
em relação à guerra contra as drogas. Ambos os livros contêm, na parte final, fórmulas,
receitas e descrições dos efeitos de mais de quatrocentas novas drogas (Carneiro, 2005 14).
A obra de Shulgin representa uma verdadeira “história natural da química da mente”,
uma taxonomia das fenetilaminas que correspondem cada uma a um estímulo específico de
uma atividade psíquica, de um “caminho cerebral”, que são descritas em seus efeitos
subjetivos. Sua obra contribui para os campos da psicofarmacologia e da neurologia, visto
que ajuda a compreender o funcionamento dos neurotransmissores. Por exemplo, a analogia
molecular entre o LSD e a serotonina (cristalizada e nomeada em 1948) foi o que levou à
identificação da segunda como neurotransmissor. Assim, a farmácia e a psicologia se unem
na psicofarmacologia atual.
No século XXI, as novas substâncias sintetizadas por Shulgin ganharam difusão por
meio da cultura das raves, dentre as quais o Ecstasy, considerada a “droga do amor”, por sua
qualidade de intensificar a empatia humana e, conseqüentemente, a dimensão afetiva das
interações humanas. Assim, ganhou maior destaque em uma civilização que há muito tempo
vem disseminando o medo, a guerra e a violência.
O renascimento psicodélico atual, com a busca de estados alterados de consciência,
não se restringe à revalorização dada pela cultura das raves, mas também se expressa numa
intensa atividade editorial e na articulação por meio da Internet, que dá espaço a círculos de
investigação e debate sobre tais substâncias. Atualmente, as diversas formas de uso dos
psicodélicos têm se constituído como um campo original de conhecimento e de produção
- 195 -
cultural, onde a psicologia, a farmácia, a medicina, a história, a literatura e a antropologia se
uniram para buscar compreender o papel das plantas e dos sintéticos produtores de estados
de êxtase e que tiveram uma função histórica determinante como produtos de grande valor
comercial, religioso e cultural (Carneiro, 2005: 4).
Atualmente os festivais de transe psicodélico fazem parte do chamado
neopsicodelismo, que retoma questões antigas, referentes aos estados alterados de
consciência, interligando-as com os temas contemporâneos, relacionados à era planetária e
ao desenvolvimento global da espécie humana.
ANEXO II
Material coletado nos festivais e por meio da Internet:
A) TEXTOS DE REVISTAS DISPONÍVEIS NO AMBIENTE DOS FESTIVAIS
- Shangri-la-la Trance Global Psy-Culture Magazine n. 5 (winter 2003/2004)
1. Use and Abuse – Greg Sams (pp. 14 e 15) – Uso e Abuso
Resumo: A matéria começa contando um fato real de uma pessoa que foi presa junto com a namorada ao
se dirigir para uma festa na Inglaterra. Quando o polícia perguntou: Você quer dizer algo sobre isso?
(drogas encontradas), Gregory respondeu: Sim, quero dizer que eu uso essas drogas sim, mas eu não abuso
delas. Elas são parte da minha vida e do meu trabalho. Eu sou um escritor e escrevo sobre coisas novas.
Tenho cinqüenta anos e minha saúde é muito melhor do que muitas pessoas de 32 anos. E grande parte
dessa saúde diz respeito ao meu entendimento da alegria, do prazer e dos insights que tenho
ocasionalmente ao utilizar essas substâncias. E também eu estudo sobre os perigos das substâncias, e a
droga mais perigosa que eu já usei foi o tabaco. Eu não bebo, não uso cocaína e nem heroína. Na verdade,
considero essas as piores drogas, e tento sempre avisar as pessoas sobe os riscos de usá-las. E desaprovo o
abuso de qualquer tipo de substância. O texto continua assim: Uma nova droga foi incluída no circuito das
festas. Como o álcool, ela sempre esteve por aí e sempre é usada nos banheiros públicos, mas seus efeitos
não combinam nada com a busca psicodélica de uma consciência cósmica. Você sabe do que estou
falando, não é sobre a cannabis, nem dos cogumelos mágicos, ou do mdma, LSD, mescalina ou de
nenhuma substância inventada por Alexander Shulgin. O que surpreende é que as pessoas que freqüentam
as festas, com tantas drogas interessantes disponíveis, estejam arriscando suas vidas sob influência da
cocaína. Nós temos drogas que ajudam as pessoas a se sentir melhores. Drogas que nos trazem
entendimentos, empatia, esclarecimento, sentimentos de amor. Temos drogas que ajudam a dançar durante
toda a noite em um estado de graça. Essas não possuem descrições de efeitos colaterais, tais como
aumento de agressividade, irritabilidade, medo, paranóia, alucinação, anti-sociabilidade etc. A cocaína não
é uma parceira positiva dos psicodélicos, e seu uso está dissociado dos efeitos positivos que esses podem
causar. As drogas, talvez mais do que quaisquer outros produtos, são suscetíveis às vibrações de quem as
produz. Por exemplo, quem planta e colhe a cannabis, prensa o haxixe, são pessoas reais, que fazem isso
para sobreviver. Assim como quem sintetiza o LSD e o Ecstasy provavelmente também usam tais
substâncias em suas vidas. No entanto, a cocaína vem das mãos de criminosos que criam vítimas, que
matam, e essa energia negativa está impregnada nessa substância. O que você acha de substâncias que
causam vício e que quando essas pessoas conseguem parar elas juram que nunca mais vão usar?? Essas
drogas incluem principalmente o tabaco, o álcool, cocaína, crack, heroína e alguns remédios para
emagrecer. [...] Uma das coisas boas sobre as festas é que os pais podem levar as crianças, mas você acha
que os pais vão querer levar crianças em festas que as pessoas estão cheirando fileiras de pó? Não é por
acaso que está droga está destinada ao banheiro. Basta de denúncias e críticas sobre a cocaína. Mas ainda
- 196 -
preciso dizer que a folha de coca é sagrada para o povo do Sul da América, que a utiliza para aumentar a
claridade mental e a energia corpórea para sobreviver nos Andes. No entanto, quando a cocaína foi
refinada em 1884 pela Merk,foi lançada a um novo mercado. De 1886 a 1901, por exemplo, essa
substância foi utilizada na bebida mais vendida no mundo – Coca-cola. E assim continua... A história é
longa, mas o importante é que o autor levanta questões interessantes a respeito do uso e abuso de drogas, e
considera que a cocaína pode vir junto com um preço muito maior a ser pago do que outras drogas. Ele
termina alertando: tome cuidado e respeite a sua liberdade!
2. O Xamanismo e as Festas Psicodélicas – Thom Dez (pp. 33 a 36)
Resumo: O autor escreveu realmente uma tese sobre a relação entre a cena psychedelic trance e o
xamanismo. O artigo levanta os elementos que ocorrem em uma rave psicodélica que provam a ocorrência
do xamanismo, e propõe que as festas de psychedelic trance são xamânicas em seu espírito. Para basear
sua explicação, o autor inicia o texto com citações de Mircea Eliade (1951) – “As técnicas arcaicas do
êxtase” – e explica que o xamanismo foi encontrado em todo o mundo, sendo assim um fenômeno
universal que varia em suas práticas. O xamã em geral é escolhido espiritualmente e passa por um
processo que iniciático que o torna capaz de se comunicar com os espíritos. Dentre os trabalhos que se
torna apto a realizar, a cura parece ser o mais importante. E uma das maneiras utilizadas pelo xamã para
curar é por meio do transe. Rouget defende que o estado de transe geralmente depende do movimento e de
estimulações sensoriais, tais como a música. Em transe, o xamã viaja para o mundo espiritual para buscar
ajuda dos bons espíritos e negociar com os maus espíritos. Para entrar em transe, o xamã utiliza a música
no formato de percussões rítmicas (tambor) ou cantoria, e geralmente dança usando roupas especiais para
esse momento. Alguns xamãs também empregam substâncias psicoativas em seus rituais – ou journeys.
Michal Harner (1973) escreveu o livro Hallucinogens and shamanism e relatou o uso de cogumelos
mágicos e cactus peiote em rituais xamânicos no México, assim como o uso de ayahuasca (DMT) e do
tabaco nos rituais do Sul da América. No entanto, não são todos os xamãs que utilizam tais substâncias.
Introduzido o tema – xamanismo –, o autor passa para rave. Segundo o dicionário Oxford, o termo rave
significa: uma grande festa ou evento que envolve música eletrônica rápida e dança. Esse é um termo
recente, mas descreve algo que já ocorre há muito tempo, envolvendo música e pessoas dançando. Mas o
que na verdade faz uma rave psicodélica ser diferente são outros elementos. Primeiro, existe um mercado
que engloba um número gigantesco de substâncias neuroquímicas disponíveis, que são consumidas tanto
em clubes noturnos quanto em outros contextos sociais, mas existe uma diferença muito grande em utilizar
tais substâncias no contexto da rave psicodélica. Segundo, esse é um espaço muito informal de encontro
entre pessoas de diferentes subculturas. Terceiro, a rave acontece fora da cidade e envolve DJs que
executam música alta em equipamentos de sons gigantes para uma multidão de pessoas dançando. O autor
questiona: quais são as correlações entre a rave psicodélica e o xamanismo? Primeiro tem a música
eletrônica que tem uma base de tambor e percussão, que é repetitiva e estimula o transe (estado alterado de
consciência), assim como a música produzida pelo xamã. Estudos mostram que a batida rítmica do tambor
estimula efeitos corporais e mentais que ganham ainda mais força por meio da qualidade de som e das
novas tecnologias. Ao mesmo tempo, a música estimula a dança que invoca o espírito. E como o xamã,
quem controla a batida guia o transe. Assim, na pista de dança psicodélica o DJ age algumas vezes como
um xamã, pois ele controla o foco de atenção dos participantes que dançam. O autor acredita que quando o
DJ está realmente empenhado em guiar o transe, este possibilita que naquele espaço a cura xamânica
aconteça. Ele cria os estímulos sonoros. Afinal, existem diferentes estilos de psychedelic trance, os quais
influenciam nas batidas, nas melodias, nos tons e nas vibrações da música, que despertam sentimentos e
emoções. Ou seja, cada música produz certos tipos de vibrações. A música afeta o estado psíquico da
pessoa, o que pode ser ainda mais forte em um coletivo dançando junto ao mesmo som. Sendo assim, o DJ
controla o “espírito” da pista de dança, por meio das vibrações e dos sons que escolhe para tocar. Em
relação à dança, sabemos que ela também leva ao transe, e que muitos xamãs a utilizam em seus rituais,
- 197 -
pois acreditam que a dança mobiliza a energia corpórea para que o processo de cura ocorra. Suzanne
Copeland fala de “cura profunda” por intermédio da dança espiritual. É quando a pessoa centra-se na
respiração e o corpo abre o circuito energético, liberando, assim, o prana (energia vital), que possibilita a
limpeza dos chakras.O autor sugere que se a dança mobiliza o poder de cura xamânico, os participantes
que dançam em transe em uma rave psicodélica podem estar, conseqüentemente, vulneráveis a curas e a
fenômenos espirituais. O autor cita exemplos de rituais voodoo (Haiti), rituais chineses, africanos etc. E
também destaca a diferença entre transe e possessão (Lewis), afirmando que nas festas, se os participantes
alcançassem o estado de possessão, eles não poderiam parar de dançar quando estivessem cansados. Isto
ocorre a apenas uma minoria, devido ao uso excessivo de drogas. É importante salientar que muitas das
substâncias empregadas nesses contextos são as mesmas utilizadas por xamãs – cogumelos, peiote etc. –,
as quais alteram o estado mental dos participantes, inserindo-os em outra dimensão da realidade. Sugere-
se ainda que quando as pessoas utilizam essas substâncias que induzem a estados visionários, podem
atingir estados muito similares aos alcançados pelos xamãs. Então ele questiona: por que então a cena
trance psychedelic? Conclui-se, assim, que entre todos os estilos musicais encontrados atualmente, o
trance faz alusões ao xamanismo, mesmo nas letras musicais (por intermédio dos samples) – que dizem
respeito ao “mundo espiritual” (Alien Projec, 2002), “poderes xamânicos” (1200 mix, 2002) e outras
tantas referências são usadas, como as tribais, retiradas de rituais que acontecem pelo mundo. As
mixagens modernas conduzem os participantes a um cenário imaginário que existe mentalmente e que
ocorre por intermédios da pura sugestão dos sons. Esse lugar imaginário é espiritual. Dependendo do que
o ouvinte sente e de que emoções os sons lançados no espaço (em um alto volume) iram despertar em seu
interior, serão estimulados movimentos que o levarão a lidar internamente com esses sentimentos. Além
da música e da dança existe ainda a decoração psicodélica, que mostra um outro tipo de consciência, pois
essa arte sugere novas percepções mentais acerca da realidade. Por exemplo, imagens da kundalini, dos
chakras, da ioga, que são símbolos da energia vital contida no corpo de cada indivíduo. Também existem
as luzes fluorescentes, as cores etc. E, para finalizar, as referências aos nomes empregados pelos DJs, que
também fazem referência ao mundo espiritual – enlightenment, astral phoenix, mindscapes, psy gate,
liguid connectiv, natural order” –, os quais sugerem que muitas das pessoas envolvidas na cena
psicodélica são conhecedores das práticas xamânicas. Afinal, os xamãs encontram um estado de
iluminação, utilizam energia para curar, viajam através de suas mentes, encontram seres espirituais.
B) MATERIAL RETIRADO DA INTERNET
1. Transe, Dança e Êxtase: Um Rito de Passagem Planetário – Steve Harkeless
Por todo o mundo a cena trance se manifestou, e toda uma cultura emergiu do tema central
relacionado à mixagem da música eletrônica conhecida como trance psicodélico, que faz milhares de pessoas
dançarem ao som das mesmas batidas. Esse movimento de expressão radical do si mesmo, liberdade e
experimentação da consciência tem crescido enormemente e envolvido todos os cantos do globo terrestre.
Alguns aspectos da rave têm se tornado clichê para a mídia e para o julgamento dos que estão do “lado de
fora” (outsiders). Entretanto, por trás do uso abusivo de drogas, documentado pela mídia e pela polícia,
existem propostas profundas e significativas que envolvem seus participantes.
Por muitos milênios os seres humanos têm dançado no meio selvagem em rituais de passagem. Em
muitas culturas, como por exemplo entre os Bushmen do Kalahari (África), podemos encontrar técnicas que
envolvem a dança e o transe que levam os participantes ao êxtase, estado alterado de consciência. Os relatos
descrevem que quando os Bushmen entram nesse estado, uma energia incrível toma conta de seus corpos de
forma que não conseguem controlar e caem no chão. Tais experiências têm sido comparadas à elevação da
Kundalini – energia que está adormecida na base da coluna vertebral e que pode ser acordada por meio de
certas técnicas de ioga.
A palavra êxtase tem suas raízes no grego, ecstasis – estar fora do self (si mesmo). Na Grécia antiga existiam
templos nos quais eram realizados ritos para atingir o ecstasy, com a ajuda de bebidas inebriantes (soma). O
termo soma (nome dado à bebida dos deuses) foi encontrado em escrituras de povos antigos da Índia (ritos
shivaístas) e da Grécia (mistérios de Eleusis). Os ingredientes do soma são misteriosos. No entanto, acredita-se
que se trata de um chá psicoativo feito à base de cogumelos (psilocibine).
- 198 -
Atualmente, a substância mais popular na cena rave psicodélica é o Ecstasy (MDMA). Seus efeitos são de
elevação das sensações corpóreas e clareza mental, mobilizando muita energia corporal e estimulando, assim, o
movimento e a dança, assim como faz aflorar uma empatia pelo mundo que se manifesta na busca por
interação, conversa e afeto com pessoas antes desconhecidas. Nesse caso, o indivíduo não deixa seu corpo
como em outros ritos de passagem, nos quais os participantes deixam o estado corpóreo, mas o corpo torna-se
o “local” mais prazeroso para se estar, repleto de serotonina. O interessante é que o Ecstasy pode estimular as
pessoas a se conectar por meio do diálogo ou mesmo do toque ou troca sutil de energia, que possibilita que
por intermédio do olhar a troca seja tão intensa que, mesmo sem encostar-se no outro, a sensação pareça a de
que você conhece profundamente seu interior. O Ecstasy permite que as pessoas se tornem parte de outras
pessoas, mesmo que elas sejam completamente estranhas, pois as usuais barreiras egóicas que separam os
indivíduos são dissolvidas. Uma sensação de amor e aceitação toma conta e pode disseminar-se por todo o
grupo. O perigo de usar muito Ecstasy está no fato real de que a substância pode alterar as funções cerebrais
associadas à serotonina (correspondente ao prazer), e em alguns casos o uso excessivo pode levar mesmo a
uma perda da função normal, criando, conseqüentemente, um vício (necessidade excessiva da substância),
visto que sem ela o corpo não mais a produz de forma natural. Portanto, no início os usuários podem encontrar
imenso prazer associado ao uso do Ecstasy, mas se o uso se estender indefinidamente, poderá trazer
conseqüências desastrosas, visto que se em um momento o cérebro libera muita serotonina, quando acabar o
efeito virá o momento de queda da substância e, conseqüentemente, de depressão do sistema nervoso, podendo
gerar tristezas e sentimentos depressivos também bastante elevados.
A necessidade de dançar em transe e entrar em estados alterados de consciência é parte natural do
processo. Os ritos de passagem existem desde os primórdios da cultura humana. Esses ritos estão registrados
no psiquismo humano e estão certamente associados à energia psíquica ancestral. Para utilizar os termos
junguianos, estão contidos nos arquétipos do inconsciente coletivo. Esses ritos arquetípicos de passagem
representam um importante momento na vida dos participantes, que atribuem um caráter sagrado a tal
passagem momentânea da vida, uma transformação de experiência corpórea que envolve também uma
experiência de um “novo” estado de consciência, que possibilita a passagem da vida infantil para a adulta.
O primeiro rito é o de separação da mãe e das associações da infância. Representa a morte simbólica do self
infantil. Em alguns casos, a criança é isolada em uma caverna por um período de tempo, ou então é enviada
para andar solitária pelo deserto ou pela floresta. Em outros casos, todos os garotos ou garotas são levados em
grupo para lugares sagrados, acompanhados dos mais velhos. Nesses locais especiais, onde já foi realizada a
ruptura com a vida cotidiana e o indivíduo foi inserido em um novo espaço, é que o ritual acontece.
O segundo rito envolve a expansão de consciência para a percepção da energia do cosmos. Nesse momento,
pinturas especiais são feitas no corpo, ou mesmo no espaço, mostrando a importância dos conhecimentos
ancestrais que serão revelados na iniciação. Os ritos, em sua maioria, envolvem os participantes em danças que
duram a noite toda. Em algumas culturas, o uso de substâncias psicoativas é tido como uma chave funcional
para abrir o psiquismo humano para os segredos do cosmos e servem como portais que permitem a entrada no
mundo espiritual. Outros métodos empregados nesses rituais incluem a mutilação do corpo, as tatuagens,
escarificações e circuncisões. Essencialmente, as experiências corpóreas, psíquicas e espirituais ficam
registradas no psiquismo humano. Para o jovem adulto, tal experiência nunca mais será esquecida.
O terceiro e último rito é o retorno e a reintegração na sociedade, um simbólico renascimento. Em uma tribo
africana, a morte ritual é tida com tanta seriedade que se pretende ter esquecido mesmo como andar, tanto que
os mais velhos devem ensiná-los novamente a dar os primeiros passos. Em todos os casos, os novos iniciados
devem retornar a suas vilas, ou tribos, para compartilhar os conhecimentos especiais e as experiências que
acabaram de ter em suas vidas. Suas novas identidades agora incluem o grande cosmos, os conhecimentos do
grande Universo. Depois de iniciado, torna-se necessariamente torna-se um adulto diante da sociedade da qual
faz parte, pois não está mais voltado para o próprio umbigo, mas tem visões mais amplas acerca da dimensão
do Universo e reconhece que é parte integrante do todo.
Ao longo do tempo, e do advento da civilização urbana, esses poderosos ritos de passagem que envolvem
separação/expanção/renascimento foram perdidos. Foi realmente uma minoria de povos e culturas que
mantiveram tais rituais como parte integrante de sua cultura. No entanto, percebemos na Igreja Católica como
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o casamento é uma cerimônia ritual de grande efeito para a família e para o grupo, visto que marca a inclusão
em uma nova vida adulta.
Em nossa cultura, a idade de dezoito anos é um marco, pois os jovens estão “livres” para sair
sozinhos, dirigir um carro e ingerir bebidas alcoólicas. Esta é em nossa sociedade a idade de transição tão
esperada pelos jovens, que acreditam então estar saindo do controle dos pais, pois então podem beber e dirigir.
Esta é também a idade em que são registrados mais acidentes no trânsito, pois são muitos os jovens que logo
aos dezoito sentem-se donos da verdade e saem com os amigos para beber, acabam bebendo muito e na volta
para casa sofrem acidentes sérios, que muitas vezes envolvem a morte de outras pessoas, quando não a do
próprio embriagado. Que marco este, não?! E os conhecimentos acerca do corpo, do psiquismo e do mundo
espiritual relacionado ao Universo? Quando vão chegar tais experiências transformadoras? Talvez nunca.
Afinal, em uma cultura na qual o grupo social urbano está desvinculado da experiência coletiva em meio à
natureza, visto que ocorreu uma cisão entre natureza e cultura, tais experiências há muito tempo foram
consideradas como vindas do demônio, símbolos do paganismo, visto que possibilitam uma experiência direta
com o divino.
Esses ritos associados à Igreja e às universidades não preenchem as necessidades mais profundas dos
seres humanos, as quais estão enraizadas no inconsciente coletivo. A conseqüência é o desenvolvimento de
formas de neurose e uma mentalidade autocentrada que pode ser observada nos adolescentes de nosso tempo.
É uma força egóica tão gigantesca que resulta dessa perda das raízes identitárias humana, associada ao mesmo
tempo a um senso de desconexão dos outros e do planeta como um ecossistema totalizante. Infelizmente, isso
resulta em neurose, doenças psíquicas e físicas que, combinadas com as necessidades institucionais que
competem às religiões e ao racismo, tomam conta das crises humanas atuais e controlam cada vez mais os
grupos sociais, os quais, destituídos do conhecimento natural, se encontram, conseqüentemente, nas garras
cada vez mais cruéis das instituições do Estado, da saúde, da mídia e da ciência.
A esperança está certamente nos jovens de nosso tempo. Os ritos de passagem já foram reiniciados e
estão vindo como uma força inconsciente que mostra a necessidade de preencher o vazio deixado pelas marcas
civilizacionais. A maioria dos ravers ou trancers compõe um grupo de faixa etária que vai dos catorze aos
vinte anos de idade. Essa consideração é importante, visto que é em geral a idade associada à passagem da
infância para a idade adulta. Esses estados de separação e expansão ligados ao renascimento emergem à
superfície quando os participantes deixam a vida cotidiana e rumam ao desconhecido, em que o corpo e a
mente, assim como o ambiente e o grupo social, participarão de novas experiências e percepções. Nesse
contexto, o DJ ocupa o lugar do guia, ou xamã, até mesmo porque não existem tradições ou mesmo guardiões
ancestrais do conhecimento para guiar os jovens através das experiências de passagem, o primeiro estágio pode
apresentar-se como um obstáculo.
Na maioria das raves existe uma real necessidade de expressar a criança contida dentro de cada um,
tanto que muitas vezes encontramos pessoas fisicamente adultas na pista de dança com ursinhos de pelúcia,
com bicos de plástico na boca, pirulitos coloridos e outras tantas aparições que para um leigo podem parecer
bizarras. Essa parece ser mesmo uma fase de passagem para os mais jovens, que finda quando estes se
encontram prontos para deixar de se identificar com esses clichês. Nesse momento deve ocorrer um tipo de
morte egóica, que talvez irrompa durante uma experiência com substâncias psicodélicas. Claro que tal período
é relativamente perigoso, porque na maioria dos casos não existem os mais velhos para guiar os iniciados por
meio do renascimento. (É importante ressaltar que atualmente o grupo da cultura psicodélica envolve também
pessoas da geração passada que têm mais conhecimentos acerca de tais experiências e parecem mesmo estar
presentes e dispostos a guiar e auxiliar os que precisam de ajuda. Mesmo assim, a experiência, na maioria dos
casos, toma um percurso único para cada um.) Por esse motivo, os mais antigos da cena psicodélica que
permanecem presentes ajudam os que necessitam, e mesmo os iniciados ajudam-se simultaneamente a passar
pela experiência. Em certos casos, a separação e a morte envolvidas no ritual podem levar a uma perda da
identidade, que é seguida por uma busca espiral sem fim pelo uso de drogas. Por outro lado, para os que
dançam sob as estrelas e encontram-se nessa experiência conectados com todo o Universo, parece acontecer
naturalmente um processo de expansão que os faz retornar engrandecidos para a vida social.
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Para ilustrar rapidamente essa teoria do inconsciente vindo à tona, o autor relata uma incrível cura que
ele mesmo observou em uma rave que ocorreu em Denver, no Colorado. Enquanto ele andava pelas escadarias
para alcançar a pista de dança, experienciou um tipo de entrada em uma consciência coletiva que estava sendo
criada pelos dançarinos. Sem dúvida, essa energia coletiva estava sendo proporcionada pelo uso coletivo do
Ecstasy e de outras substâncias psicodélicas. Senti como que acessando um outro plano de consciência. Eu
queria simplesmente observar o que esse grupo da cultura urbana estava apto a fazer. A multidão incluía
jovens com idade variando principalmente entre catorze e vinte anos de idade. Logo diante de mim observei
um grupo de seis jovens se juntar em torno de uma garota que estava deitada no chão. Em união e sintonia,
eles juntos colocaram suas mãos na sua barriga e começaram a massagear. Eles se movimentavam todos
juntos, como um único corpo, realizando movimentos circulares em sua barriga. Então todos pararam
simultanemante, levantaram a garota e a seguraram por um momento, e de forma lenta começaram a deitá-la
de novo, movendo-a de um lado para o outro. Esse movimento lento permitiu que a garota sentisse o ar fresco
em sua face, na sua pele, e balançando seu cabelo. O incrível é que durante essa sessão grupal ninguém disse
uma só palavra, e eles se moviam em perfeita união e harmonia, sincronicamente. Era como se fossem uma
única mente, uma mente que estava resgatando um tipo de cura ritual ancestral, algo que você só poderia talvez
ver antes na África ou entre os índios da América do Sul. Quando perguntei para uma das garotas o que eles
estavam fazendo, ela respondeu: “Eu não sei”. Dessa expressão subjetiva que não envolveu nenhum tipo de
fala ou de acordo verbal, concluí que o que estava se manifestando ali era uma inspiração momentânea, sem
nenhum planejamento anterior. A garota que foi o centro da experiência grupal saiu apresentando-se em um
estado estático elevado.
A mensagem que aparece por meio do uso do Ecstasy, tal como aprendemos em muitas filosofias
orientais, é a de que não estamos separados uns dos outros e que somos um único ser com o Universo
(cosmos). A verdade é que não precisamos necessariamente de uma pílula que nos leve ao êxtase de forma
instantânea. Pois é possível que por intermédio da música e da dança as portas da percepção sejam abertas para
que o corpo, o psiquismo e o espírito humano recebam as energias dos outros seres humanos, da natureza e do
cosmos. O amor que é sentido nessa experiência de abertura não vem da pílula (substância química), mas sim
da energia que podemos acessar coletivamente por intermédio dessa experiência de nos conectar com o todo,
pela dissolução das barreiras do ego, da mente racional, do controle social. Nessa experiência podemos
descobrir que todos somos seres maravilhosamente belos que representam individualmente expressões
multidimensionais de um todo indissociável. A dança não faz parte da competição do mundo moderno, mas é
um fenômeno reflexivo do self superior, divino, que nos faz ter uma experiência por intermédio dos
movimentos, que leva à percepção intuitiva do movimento superior do cosmos.
Como expressões individuais da consciência superior, quando conseguimos na pista de dança
dissolver as barreiras impostas pelo ego, deixamos de ser um corpo individual e nos tornamos um corpo
coletivo, um único organismo vivo irradiando energia para todo o planeta. Uma massa de corpos em
movimento cria um mente coletiva em ação. Em locais especiais, essa atmosfera pode guiar a experiências
muito fortes de união telepática, na qual os participantes comunicam-se facilmente por telepatia, um dom há
bastante tempo esquecido pelos humanos. Nesse nível encontra-se clareza mental e identificação com o todo, o
que não é possível quando se está preso no drama e na confusão da realidade ilusória na qual vivemos
diariamente na vida cotidiana por meio da separação entre a mente e o corpo, um dualismo insistentemente
mantido pela civilização científica ocidental. Além disso, vários participantes se tornam interessados por
técnicas ancestrais de integração da mente e do corpo e reconhecem que têm muito a ser descoberto por meio
de práticas como a ioga e a meditação.
Para ir além do uso das substâncias psicodélicas é preciso aprender como integrar a experiência na
vida diária. Essa terceira parte do ritual com certeza é a mais difícil, quando depois de muito amor, sintonia,
harmonia, comunhão cósmica, os participantes precisam se separar e retornar à vida mundana, cheia de
problemas, de medo, de separações, de conflitos... Com certeza não é fácil integrar tais experiências à vida
diária. Sendo assim, muitos dos que não conseguem e se encontram demasiadamente perdidos nesse retorno,
usam como escape o uso abusivo de substâncias psicoativas, como um recurso para escapar da realidade árdua
da vida cotidiana. No entanto, os que conseguem realizar a passagem de forma satisfatória, retornam mais
fortes e alegres para as atividades diárias, vibrando na sintonia do amor e da luz para todos que encontram no
caminho.
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A rave, como parte da cena underground, é provavelmente o mais importante movimento psicodélico,
pois suas implicações proporcionam transformações muito mais profundas, que atingem as raízes sociais de
forma mais incisiva do que o psicodelismo dos anos 1960 e 1970. Em todo o mundo esses encontros de dança,
transe e êxtase envolvem milhares de pessoas, causando um profundo entrelaçamento de diferentes culturas,
nacionalidades e subculturas ao som de batidas eletrônicas tribais que misturam o ancestral com as mais
recentes tecnologias. Em 2000, a Earthdance, um encontro de música eletrônica voltada para a paz e a união
entre os povos, aconteceu simultaneamente em setenta cidades diferentes ao redor do mundo. Em determinada
hora, todas as pessoas se encontraram na pista de dança e cantaram a mesma oração pela paz global, enquanto
enviavam suas preces para cada localidade. Já em 2001 o mesmo evento – Earthdance – aconteceu
simultaneamente em 150 locais diferentes que celebraram a união pacífica entre os povos. A maioria dessas
celebrações foi gravada digitalmente e lançada na web para que todos pudessem ver a dança coletiva em suas
várias manifestações. Esse evento marca a mudança global para uma consciência planetária a partir do
momento em que estamos fortemente ligados por meio de um senso de expansão e propósito de união quando
dançamos ao som de uma música que pode levar ao transe membros de qualquer cultura.
No entanto, é claro que existe muito trabalho a ser feito. Mesmo assim, é essencial que nesse
momento percebamos o desejo de comunhão entre as pessoas, o desejo de paz e união entre os povos, que não
está limitado a uma “ilusão hippie de paz e amor”, mas que se estende planetariamente entre as pessoas que
estão cansadas das condições desumanas da guerra manipuladas pelo poder armamentista gerador de conflitos,
que manipula as massas humanas por meio de uma mídia vulgar. Por isso torna-se esclarecedor que cada vez
mais pessoas prefiram dançar coletivamente em êxtase a participar de uma sociedade machista voltada para a
máquina de guerra.
Essa manifestação ritual coletiva de dança, transe e êxtase é uma parte integral do processo de
transformação e mudança planetária, sendo assim a expressão social global de um rito de passagem planetário.
Entretanto, ainda existe certamente muitas pessoas que estão fechadas a esse tipo de experiências porque
julgam a música eletrônica não tem qualidade, visto que às vezes não são executadas ao vivo ou não envolvem
bandas. Mas a cena rave tem sim os seus heróis, porém não se trata mais daqueles que podem tocar melhor a
guitarra ou mesmo fazer um solo de percussão. Essa música não se limita a atingir determinado grupo, mas é
voltada para as massas, é uma música voltada para todos, é a música para as novas tribos globais, nos quais as
estrelas brilham em cada um que pode desenvolver seu potencial criativo ao máximo e expressá-lo como
quiser, seja por meio de uma arte explícita (música, pintura, artesanato, imagens...) ou mesmo da dança, do
movimento, do compartilhar, da arte de simplesmente existir!
Atualmente, a música digitalizada integra batidas e sonoridades harmônicas e orgânicas com as
batidas ritmadas do passado ancestral que remetem, por intermédio dos tambores, aos sons das batidas do
coração, que guiam a experiências rítmicas ou mesmo espaciais estimuladas pelos mais modernos sons
sintetizados. Os sons orgânicos são em geral integrados de forma a manter o balanço e a harmonia da música.
É interessante que com essa nova tecnologia podemos expressar sons de regiões do cosmos que antes não
podiam ser expressas pelos instrumentos manuais. Agora podemos fazer nossa própria música das esferas,
como os místicos da escola de Pitágoras.
As técnicas xamânicas do êxtase também ocupam papel importante na cena do transe psicodélico. As
repetições de certos tons que aumentam as batidas por minutos podem induzir a estados de transe – estados
alterados de consciência. As várias freqüências, juntamente com os poderosos e modernos recursos sonoros –
sound system – advindos do desenvolvimento científico e tecnológico (não por acaso, “filhos” do mesmo
desenvolvimento técnico voltado para os recursos militares e para a guerra*) criam ressonância nos corpos
presentes e abrem os centros de energia dos corpos que se movem juntamente ao som alto e estimulante. A
batida do coração acelera, e as batidas dos pés ao som rítmico fazem com que a energia também se volte para a
terra, para o chão, para o enraizar, enquanto as freqüências mais elevadas, sutis e harmônicas, abrem o centro
de energia que faz comunicação com o mundo espiritual, com o céu.
Assim, dançando em transe o véu da separação cai e faz com que nossos corações se abram uns para
os outros, despertando profundamente a sensação da indivisível e brilhante unidade que compartilhamos
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enquanto seres humanos que fazem parte de um único Universo. Assim eu me torno um outro você! (Texto
original em inglês disponível em:www.trancedanceandecstasy.htm
. Acesso em: 5 abr.2004.)
2. Santa Catarina e Rio de Janeiro proíbem raves
Antes, os piores inimigos dos "ravers" eram a lama e as estradas esburacadas. Agora, quando as festas são
populares, e marcas de cerveja e de desodorante lucram com eventos eletrônicos, alguns Estados resolveram
que as raves são perigosas e não podem mais acontecer.
Enquanto em São Paulo a prefeitura banca uma superfesta na rua, em Santa Catarina, a galera não pode nem
pensar em fazer um evento do tipo. Principalmente, se ele se caracterizar como uma "festa rave", proibida em
Florianópolis e em Balneário Camboriú.
A onda também atingiu o Rio de Janeiro, onde não acontecem raves desde junho. O motivo foi uma apreensão
de drogas, como ecstasy e maconha, durante uma operação da polícia em uma festa em Niterói.
Tanto no Rio quanto em Santa Catarina, as autoridades evitam falar em proibição. O argumento para não
permitir as raves está inserido dentro de uma série de ações para inibir a violência, o consumo e o tráfico de
drogas.
No entanto, em março, a Secretaria de Estado da Segurança Pública e Defesa do Cidadão de Santa Catarina
redigiu uma comunicação interna para conter a "escalada da violência", cujo quinto item proíbe a "realização
de festas raves (sic) [com música eletrônica]". O texto não fala sobre grandes shows de forró, de rock ou de
MPB, apesar de o delegado-chefe da Polícia Civil, Dirceu Augusto Silveira Júnior, negar qualquer tipo de
preconceito. "Várias ocorrências levaram ao veto das festas, independentemente do tipo de música", explica.
Segundo Silveira Júnior, a proibição é para os eventos com longas horas de duração, em local inadequado e
que apresentem riscos aos freqüentadores.
Por conta disso, o EletroHeart Festival, marcado para o último dia 4, e que reuniria 29 DJs em um complexo
turístico de Camboriú, foi cancelado na véspera. "Pedi um alvará para que a festa acontecesse até as 4h, mas
eles negaram", afirma o organizador, Herlon Hamm.
Para dar munição à secretaria, em setembro, durante a Magic Lagoon, festa que reuniu 3.000 pessoas em
Florianópolis, aconteceram roubos, tiros e cenas de violência que foram parar nas manchetes de jornais e de
TVs locais.
O mineiro Anderson Noise, um dos DJs do line-up, conta que jamais sentiu tanto medo. "Nunca vi uma
confusão tão grande. Estava tocando e só parei quando a polícia invadiu o lugar", lembra.
Nesta noite, mais de dez pessoas acabaram presas e um estudante de Curitiba foi baleado na perna. A festa
havia sido interditada pela Polícia Civil e só aconteceu porque um juiz concedeu uma liminar permitindo sua
realização. "Cumprimos todas as determinações para poder fazer o evento e, quando fomos à Polícia Civil, eles
disseram: "Rave não pode'", explica Gustavo Conti, um dos responsáveis pela Magic Lagoon.
O advogado Márcio Cristiano Dornelles Dias afirma que o problema foi a falta de disposição da polícia em
cooperar com a segurança nas imediações do hotel. "Havia 120 seguranças contratados e foram protocolados
três ofícios solicitando policiamento à PM, mas eles mandaram duas viaturas", afirma Dias.
O coronel Marlon Jorge Tezza, comandante do 4º Batalhão da PM, garante que a polícia estava lá a noite toda.
"Os organizadores estão dizendo meias-verdades", argumenta Tezza.
No Rio
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No Rio de Janeiro, a proibição não está no papel, mas as autoridades de lá também não têm permitido a
realização das festas. Parte da luta dos organizadores foi registrada por três estudantes de jornalismo da Uerj
(Universidade do Estado do Rio de Janeiro), e o resultado é o curta-metragem Bad Trip, que documenta o
cancelamento da Bunker Rave, uma megafesta que aconteceria em agosto.
"As pessoas têm uma imagem estereotipada e distorcida das raves, por isso resolvemos mostrar o outro lado",
conta Izabela Cardoso, 21, que divide a autoria do filme com os colegas Paulo Henrique Grillo, 22, e Felipe
Choll, 21.
Nenhum deles se considera um "raver". "Gosto de rock, mas já fui a algumas", conta Cardoso. "É uma festa
diferente, a que as pessoas vão pela música, ao contrário das boates, onde os mauricinhos só querem jogar você
contra a parede."
Se ela viu gente usando drogas? "É óbvio que vi. Mas não vejo mais frascos de lança-perfume em raves do que
em uma micareta", diz a estudante.
Além da polícia, a igreja também está de olho nos "raveiros". Em Alto Paraíso, município goiano na região da
Chapada dos Veadeiros, por pouco a Câmara de Vereadores local não aprova uma lei proibindo as raves. "A
igreja evangélica se mobilizou e fez a maior pressão pela criação da lei, mas o prefeito a vetou por ser
inconstitucional", explica Devon Chook, produtor da Trancendence, que reuniu 4.200 pessoas em julho.
Se a coisa continuar assim, o jeito é se aventurar, como as amigas e ravers gaúchas de carteirinha Herika
Nickel Vicz, 23, e Raquel Moraes, 21, que estavam na edição de setembro da festa Circuito, que aconteceu em
Arujá (SP). "Venho no sábado, curto a balada e volto para Porto Alegre no dia seguinte", diz Herika, que troca
os clubes pelas raves.
A promotora de eventos Priscila Akemi, 20, que também estava na Circuito, é outra que prefere as raves.
"Acho mais seguro do que os clubes. É mais organizado", explica. (Adriana Ferreira, Folha de S. Paulo.
Disponível em:http://folhadesaopaulo.proibição-rio-sc_arquivos\ult90u38015.htm
. Acesso em: 12 out 1005)
3. IMPORTÂNCIA DA NOITE
EM UMA FESTA TRANCE
O ritual de uma noite inteira dançando é uma memória
que corre profundamente dentro de nós todos. Uma
memória que nos traz de volta a um tempo em que
respeitávamos a grande Mãe Natureza e todos os demais.
Fazíamos nossos rituais ao redor de fogueiras, dançando com o intuito de canalizar as energias cósmicas até
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nós, de ficarmos mais próximos de nossos deuses ou
apenas celebrar uma boa caçada. Nesses tempos, o
Xamã era nosso guia através de outras realidades. Ele
induzia as pessoas ao transe através de poções mágicas à
base de ervas em ação conjunta com a música tocada por
tambores, flautas, didjeridoos ou vozes, de acordo com a
cultura de cada povo.
Mas com o surgimento de decretos durante a Idade
Média, esses rituais pagãos foram reprimidos em
diversas localidades do planeta pela mão da Igreja
Católica, ressurgindo muitos séculos depois em nossa
cultura ocidental através de diversas vertentes, entre elas
a das festas TECNO-TRIBAIS em Goa, na Índia, nascendo então o GOA TRANCE e as FESTAS TRANCE.
A festa TRANCE é como uma jornada XAMÂNICA em que o DJ (Xamã) conduz o público até o ÊXTASE
DO TRANSE PSICODÉLICO, guiando todos através de atmosferas e realidades criadas por sua música.
Um guia que te leva através da noite, através da escuridão e do infinito, atingindo as áreas mais obscuras do
subconsciente humano, escolhendo músicas que têm como objetivo ir além.
Existem momentos em que expor a agressividade através da música e da dança faz parte de todo o processo
e após a agressividade, momentos de contemplação surgem com o nascer de um novo dia, momento de
realmente celebrar. Sem esse processo completo, de uma jornada interior através da noite, o amanhecer e a
festa perdem seu sentido de existência.
A noite começa lentamente nos CHAISHOPS, encontrando amigos, preparando-se para mais uma jornada
através da música. É quando os DJs começam a construir a longa história de uma festa, tocando músicas
mais lentas e crescendo lentamente até as 3 ou 4 da manhã, o momento de pico, a preparação para a
explosão do amanhecer.
Durante a noite o que se vê são as roupas fluorescentes das pessoas e uma decoração flúor feita para criar
efeitos especiais à noite, sob luz negra. Assim que a escuridão da lugar à luz do dia, começamos a focar
nossa atenção nas faces, reconhecendo pessoas no qual estivemos dançando a noite toda ao lado. É quando
os sorrisos começam a ser trocados, espalhando-se pelo DANCEFLOOR até o momento em que o Sol se
levanta e todos estão contagiados pela mesma energia.
Mas para sentir todo esse processo do amanhecer é preciso vivenciar a jornada através da noite, conhecer
ambos os lados, vivenciar o processo desde o início. Como um filme, você deve assistir desde o começo.
O filósofo taoísta Lao Tse, que viveu na China há mais de 2500 anos, descreve em um de seus versos do
livro Tao Te Ching o processo de vivenciar a dualidade para compreender o todo. (Disponível em:
http://www.zuvuya.net/raveon/mat_noite.asp
. Acesso em: 01 março 2006)
SÍNTESE DAS ANTÍTESES
Só temos consciência do belo,
Quando conhecemos o feio.
Só temos consciência do bom,
Quando conhecemos o mau.
Porquanto o Ser e o Existir,
Se engendram mutuamente.
O fácil e o difícil se completam.
O grande e o pequeno são complementares.
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O alto e o baixo formam um todo.
O som e o silêncio formam a harmonia.
O passado e o futuro geram o tempo.
Eis por que o sábio age.
Pelo não-agir.
E ensina sem falar.
Aceita tudo o que lhe acontece.
Produz tudo e não fica com nada.
O sábio tudo realiza – e não se apega a sua obra.
Não se prende aos frutos de sua atividade.
Termina a sua obra,
E está sempre no princípio.
E por isto a sua obra prospera.
Portanto, para vivenciarmos completamente a
grandiosa experiência de uma boa festa TRANCE é estritamente necessário
conhecer ambas as partes (a noite e o dia) que trarão a compreensão
do todo (a festa TRANCE) e assim voltarmos para casa completamente satisfeitos e renovados, prontos para
a próxima!
Resumindo em poucas palavras... de noite é quando você pode dançar como louco sem parar, surtar e fazer
caretas na pista ou simplesmente fechar os olhos e delirar em suas visões. É o momento de libertar seus
monstros através da dança, pirar na decoração, sair da realidade... enfim, dançar como se ninguém mais
existisse no mundo para ficar te olhando e fazendo comentários idiotas.
Quem é das antigas sabe do que estou falando, o início de Trancoso... pista bombamdo às 2 da manhã,
malabares, fogueira, lua cheia, chillum e muito mais...como as boas festas de Goa; na praia esperando o sol
nascer!!!
As primeiras festas de São Paulo tinham essa cara tribal! Era somente party for fun e nada mais. Hoje as
festas viraram mais uma balada como qualquer outra. Já tem (des)organizador querendo fazer festa sem
decoração e embaixo de uma tenda aglomerada de gente! EU PERGUNTO: Por que vocês não vão fazer sua
festa em um clube como qualquer outro em vez de sugerir coisas tão idiotas??
Convido as pessoas que leram esse texto (principalmente os organizadores de primeira viagem) a refletir
mais sobre o trance e o futuro dele no Brasil, pois se não fizermos algo concreto, teremos em pouco tempo o
TRANCE DO TIGRÃO e o fim trágico de algo maravilhoso... as festas de PSYCHEDELIC TRANCE.
Texto por DJ Thomas (Daime Tribe)
Fotos por Andre e Lisa Ismael
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4.
Ecstasy (MDMA)
A 3,4-metilenodioximetanfetamina (MDMA) foi patenteada pela empresa farmacêutica alemã Merck® em
1914, com o intuito de ser um novo moderador de apetite, embora nunca tenha sido comercializada.
Em função de sua baixa utilidade clínica e com o advento da Primeira Guerra Mundial, a MDMA permaneceu
praticamente ignorada pela comunidade científica até 1973, quando foram publicados os primeiros resultados
da investigação conduzida pelo exército norte-americano no início dos anos 50. Na década de 70, foi sugerido
o seu uso como um coadjuvante na psicoterapia, em função de relatos que a MDMA provocava um estado
controlável de alteração da consciência com harmonia sensual e emocional, auxiliando na diminuição de
barreiras psicológicas e no estabelecimento de um vínculo terapeuta-paciente.
O consumo de MDMA como substância de uso recreacional se popularizou no início dos anos 80, ganhando
fama devido seu uso em psicoterapia ter sido divulgado com sensacionalismo por alguns autores.
O termo ecstasy é a denominação mundialmente mais conhecida da MDMA, entretanto, outros nomes
referenciados são: E, XTC, Adam, MDM, M-&-M e love drug. No Brasil, de maneira geral, o ecstasy é
bastante conhecido pelos nomes de "pastilha" e "bala".
Em 1985, a Drug Enforcement Administration (DEA), órgão de combate às
drogas dos Estados Unidos, enquadrou a MDMA na Lista I do Convênio de
Substâncias Psicotrópicas, a qual inclui substâncias com elevado potencial de
abuso, sem benefício terapêutico e de uso inseguro mesmo com supervisão
médica.
Seguindo a orientação da Organização Mundial da Saúde, órgãos
governamentais de diversos países também classificaram a MDMA como
substância proibida e sem uso clínico.
Nos Estados Unidos, até o ano de 1985, a MDMA era legalmente disponível.
Por outro lado, na Europa, a MDMA sempre foi considerada substância ilegal,
sendo o seu consumo introduzido, em meados da década de 80, por discípulos
de Bhagwan Rajneesh para "fins espirituais". A sua popularização, entretanto, ocorreu a partir do movimento
clubber ou dance que surgiu na ilha de Ibiza (Espanha), em 1987.
No Brasil, a MDMA é considerada substância de uso proscrito e definida pela Portaria da Secretaria de
Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde de nº 344, de 12 de maio de 1998.
Aspectos químicos do ecstasy
A MDMA (3,4-metilenodioximetanfetamina) é uma base sintética derivada da feniletilamina, relacionada
estruturalmente com a substância estimulante psicomotora anfetamina e a substância alucinogênica mescalina,
compartilhando propriedades de ambos os compostos.
A estrutura química da MDMA está representada na Figura 2.
FIGURA 2: Estrutura química da MDMA (3,4-metilenodioximetanfetamina).
Toxicologia do ecstasy
A MDMA é considerada uma substância alucinogênica pela American Psychiatric Association (1995),
entretanto não apresenta relação estrutura-atividade com os alucinogênicos e tampouco efeitos subjetivos, em
humanos, semelhantes ao LSD (dietilamida do ácido lisérgico), a não ser quando consumido em doses
extremamente altas.
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Em função da semelhança dos efeitos adversos agudos com a cocaína e as anfetaminas, o ecstasy também
poderia ser classificado como um psicoestimulante.
No entanto, a MDMA e substâncias que possuem efeitos psicofarmacológicos semelhantes à MDMA são
diferentes dos estimulantes centrais e dos alucinogênicos, conforme observado em estudos de
radioeletroencefalopatia, de relação estrutura-atividade e parâmetros bioquímicos.
A indução de um estado emocional agradável, com aumento da empatia e da capacidade de se relacionar com
outras pessoas, além de uma maior facilidade para comunicação e sociabilidade, sugerem que a MDMA seja
representante de uma nova classe farmacológica, chamada, segundo Nichols (1986) de entactógena, com as
raízes gregas (en e gen) e a latina (tactus), significando literalmente "produzir um contato com o interior".
Tem sido alardeado um suposto efeito afrodisíaco por alguns círculos sociais de consumidores de ecstasy;
entretanto este efeito não foi comprovado. Provavelmente, a MDMA não aumenta a excitação nem o desejo
sexual na maioria dos usuários, proporcionando apenas uma maior receptividade aos aspectos sensuais.
Alguns autores definem a MDMA como designer drug, ou seja, novas substâncias sintetizadas
clandestinamente e desenhadas para uso recreacional, além de tentar escapar das restrições legais. No entanto,
esta classificação ainda é discutível pelo fato de ter sido patenteada em 1914 pela Merck® , portanto, muito
antes de ser considerada uma substância ilegal.
Até o momento, portanto, não existe um consenso para a classificação da MDMA, pois não tem sido
considerada uma substância somente psicoestimulante ou alucinogênica, e o termo entactógena também não
foi amplamente aceito.
Em virtude dessa dificuldade de classificação farmacológica para a MDMA, provavelmente esse fármaco
deverá ser ainda melhor caracterizado.
Os efeitos farmacológicos induzidos pela MDMA em humanos podem variar em função da idade, dose
administrada, freqüência e duração do uso.
Os efeitos individuais provocados pela MDMA, em longo prazo, podem apresentar diferenças substanciais,
quer seja por fatores genéticos, hormonais, ambientais, sociais ou culturais, e merecem ser profundamente
estudados e avaliados.
De forma geral, a maioria dos usuários relata que os efeitos desejados são conseguidos com doses baixas e em
episódios isolados de uso. Descrevem uma sensação de proximidade e intimidade com outras pessoas ao redor,
melhorando o relacionamento e a comunicação entre elas, uma sensação de euforia com aumento da energia
emocional e física, além de uma elevação da auto-estima.
Após a administração de uma dose por via oral, que normalmente varia de 75 a 100mg de MDMA, os efeitos
estimulantes se iniciam entre 20 e 60 minutos e persistem por 2 ou até 4 horas. Alguns usuários, entretanto,
relatam que os efeitos podem apresentar uma duração de até 8 horas (Almeida e Silva, 2003).
A MDMA, quando utilizada em doses recreacionais, não manifesta efeitos alucinogênicos. Por outro lado, em
doses elevadas, isto é, a partir de 300 mg, podem ocorrer efeitos alucinogênicos com alteração da percepção
sensorial.
As alucinações, quando observadas, são bastante parecidas com as provocadas pela molécula da mescalina,
iniciando-se com alucinações visuais em preto e branco e logo mais se tornando coloridas, com alteração da
percepção, confusão, despersonalização e sensação de flutuação e leveza.
Estudos em animais demonstram que a MDMA desencadeia uma resposta bifásica, podendo ser dividida em
dois grupos: efeitos de curto prazo (observados até 24 horas) e efeitos de longo prazo (observados após 24
horas, chegando a durar meses). Os efeitos de curto prazo estão mais relacionados com a esfera psíquica e
comportamental devido à estimulação serotonérgica, enquanto os de longo prazo parecem estar envolvidos
com a neurotoxicidade serotonérgica.
Alguns autores caracterizam os efeitos psicopatológicos manifestados em relação à MDMA em agudos (até 24
horas após administração), subagudos (de 24 horas até um mês após administração) e crônicos (a partir de um
mês).
As psicopatologias agudas ocorridas e freqüentemente citadas na literatura são: insônia, ansiedade, psicoses e
ataque de pânico. Em um estudo realizado por Greer & Strassman (1985) também é citada a ocorrência de
flashbacks nesta fase.
Com relação às complicações subagudas, destacam-se: ansiedade, irritabilidade, tonturas e depressão.
Alguns distúrbios neuropsiquiátricos crônicos citados na literatura incluem: distúrbios de memória, ataques de
pânico, psicoses, flashbacks e depressão profunda.
Freqüentes observações de que apenas alguns indivíduos desenvolvem distúrbios neuropsiquiátricos devido ao
abuso da MDMA sugerem que possam existir certos fatores psiquiátricos que predisponham tais indivíduos a
se tornarem mais vulneráveis a esses distúrbios indesejáveis.
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Apesar de parecerem raros os casos comprovados de morte, como conseqüência do abuso da MDMA, podem
ocorrer preferencialmente em pessoas que sofram de arritmias cardíacas e hipertensão. Segundo Green et al.
(2003), os casos fatais devido à ingestão de ecstasy, no Reino Unido, são estimados em aproximadamente 12
por ano.
Diversas razões podem levar à morte por superdosagem, dentre elas são relatadas: hipertermia fulminante,
arritmias cardíacas graves, desidratação, convulsões, reações alérgicas sistêmicas, asma aguda, coagulação
intravascular disseminada, rabdomiólise, hepatotoxicidade, além da susceptibilidade individual às
metilenodioxifenilalquilaminas.
Alguns autores estimam que o tempo decorrido entre a superdosagem e a morte pode variar entre 2 e 60 horas,
levando em consideração a susceptibilidade individual de cada pessoa.
A hipertermia causada pela MDMA é dose-dependente e representa um dos principais efeitos da toxicidade
aguda, com temperaturas corporais de 43 ºC já relatadas, levando em geral a óbito. A ação vasoconstrictora
cutânea provocada pela MDMA converge para dificultar a perda de calor, agravando o quadro clínico.
Em razão da possibilidade de originar danos psiquiátricos irreversíveis, as complicações mais preocupantes
devido ao abuso da MDMA são referentes aos seus efeitos crônicos. A atividade da enzima triptofano
hidroxilase (TPH) permanece significativamente reduzida por uma semana, indicando que a MDMA inativa a
TPH de maneira irreversível, o que exige nova síntese de TPH para o restabelecimento de sua atividade
enzimática.
A neurotoxicidade serotonérgica da MDMA ainda permanece com o seu mecanismo de ação desconhecido.
Porém uma explicação sugerida por Steele, McCann & Ricaurte (1994) refere-se à formação de um metabólito
mais potente (MDA), inibição da monoaminoxidase (MAO) e a liberação de vários neurotransmissores
endógenos, resultando em suas concentrações sinápticas bastante elevadas. Dessa forma, através de processos
de auto-oxidação, neurotransmissores e seus intermediários poderiam reagir covalentemente com enzimas e
membranas celulares. O aumento na produção de radicais livres também parece estar associado com a
neurotoxicidade da MDMA.
Embora, segundo McKenna & Peroutka (1990), a MDMA possa atuar como uma neurotoxina em neurônios
serotonérgicos, por enquanto não há evidências conclusivas que doses recreacionais produzam danos
permanentes no cérebro humano.
Uma dificuldade adicional deve-se ao fato de muitos usuários de ecstasy atendidos por hospitais e serviços
para o dependente serem também usuários de outras drogas de abuso, além da possibilidade da presença de
substâncias análogas e adulterantes com potencial tóxico na composição ativa dos comprimidos.
Trecho retirado da Dissertação de mestrado Quantificação de MDMA em amostras de ecstasy apreendidos em
São Paulo por cromatografia em fase gasosa , de Silvio Lapachinske.
Disponível em: http://www.fcf.usp.br/LAT/i_ecstasy.php
Acesso: 05 de março de 2006.
5. Projeto de Redução de Danos - BaladaBoa
Pesquisadora da USP cria projeto de redução de danos- BaladaBoa voltado para a droga
Ecstasy
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O nome do projeto é "Baladaboa". O duplo sentido da palavra (pode ser
entendida como "balada boa" ou "bala da boa" – fazendo referência ao
apelido "bala", dado à droga ecstasy) revela o principal objetivo da
iniciativa: atrair a atenção do usuário da droga para que ele se informe
sobre uso e seus riscos, de forma realista.
O "Baladaboa" é resultado de uma pesquisa desenvolvida no Instituto de
Psicologia da USP (Universidade de São Paulo) que faz parte do
doutorado da psicóloga Stella Pereira de Almeida. "É uma intervenção
mais abrangente que pretende atingir, inclusive, pessoas que não querem
parar de usar a droga", aponta.
Para conhecer melhor o público a que se destina esse projeto e
estabelecer conteúdo e formato mais eficazes, Stella realizou um
levantamento de dados sobre o usuário de ecstasy por meio da internet.
Na página foi disponibilizado um questionário, também divulgado em
diversas mídias e por meio de folhetos. Um computador configurado
como servidor recebia diariamente os dados, sem armazenar informações
que permitissem a identificação do emissor, garantindo o anonimato. No
total, 1.140 pessoas responderam o questionário, entre agosto de 2004 e
fevereiro de 2005.
Perfil
Os dados revelaram que os usuários de ecstasy são predominantemente
jovens (até 25 anos); 54,3% têm nível superior incompleto; 52,6%
possuem emprego fixo; 65,4% provêm da classe A; e, de uma maneira
geral, estão satisfeitos com a sua vida. "É interessante constatar que,
apesar desses dados, os aspectos que indicaram menor satisfação foram o
financeiro, o profissional e o de formação educacional", comenta Stella.
O questionário indicou ainda que 43,6% dos entrevistados foram
considerados dependentes segundo o critério utilizado na pesquisa; para
64,5%, os efeitos positivos da droga interferem na freqüência do uso e
apenas 2,8% declararam que não usam nenhuma outra droga junto com o
ecstasy. Esses números revelam a importância de medidas que
intervenham preventivamente sobre o uso da droga, pois estão associados
a comportamentos de risco.
Redução de Danos
"O objetivo desse estudo não é um tipo de prevenção "tolerância zero". Isso é utópico", revela a psicóloga. "A idéia é sugeri
r
um projeto de Redução de Danos que diga a verdade sobre a droga e conscientize sobre os riscos", explica. Além da
divulgação de informações consistentes e comprovadas, são propostas modificações no ambiente onde o consumo da droga
costuma ser freqüente, bem como a implantação de uma política pública que não objetive unicamente a erradicação, mas que
comporte ações que garantam meios de uso mais seguros. "Casas noturnas e festas só teriam licença de funcionamento se
disponibilizassem água e área de descanso ventiladas. Essas são medidas importantes para diminuir os riscos de hipertermia
um aumento da temperatura corporal que pode levar à morte", exemplifica Stella.
Para atrair o público a que se destina, o material informativo teria o formato de folhetos com estética atrativa – conhecidos
como flyers – a serem distribuídos em locais onde o consumo geralmente acontece, como casas noturnas, festas e
universidades. "A idéia é que esses flyers possam ser colecionados, apresentando uma alternativa à tradicional e pouco eficaz
cartilha", explica a pesquisadora.
Apesar dos esforços para implementação de um projeto desse tipo e da sua importância, Stella vem enfrentando dificuldades.
"A Redução de Danos ainda é muito polêmica. Ainda é difícil conseguir o aval político necessário para avançar para a fase
dois do meu projeto, que é a intervenção. Não quero que achem que eu faço apologia ao uso da droga. Estou sendo apenas
realista".
"A droga do amor"
O ecstasy, popularmente conhecido como a
"droga do amor", é fortemente psicoativo.
Embora tenha sido sintetizado pela Merck em
1914 com a finalidade de supressor do apetite,
nunca foi usado com essa finalidade.
O uso recreativo surgiu em 1970 nos Estados
Unidos por produzir, entre outros fatores,
maior interesse sexual dos usuários, sensações
de grande capacidade física e mental, além de
extroversão e euforia.
Em 1988, três anos após a proibição da
comercialização da droga, um estudo feito nos
EUA mostrou que 39% dos universitários
tinham feito uso do ecstasy, apontando que seu
uso ilegal já estava disseminado.
As seqüelas
Em longo prazo, o uso do ecstasy pode causar
seqüelas graves, como a degeneração
irreversível dos neurônios. Há uma
propriedade neurotóxica do ecstasy que leva
seus usuários a perturbações mentais ou
comportamentais. Os problemas resultantes
mais comuns são: dificuldade de memória,
tanto verbal como visual; dificuldade de tomar
decisões; impulsividade e perda do
autocontrole; ataques de pânico; recorrências
de paranóia, alucinações, despersonalização; e
depressão profunda.
Fonte: Psicosite
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* Com informações da Agência de Notícias da USP
Disponível em: http://www.universia.com.br/materia/materia.jsp?materia=10558
. Acesso em: 05 março 2006.
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