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Vanessa Alvarenga Caldeira
CAXIXÓ: UM POVO INDÍGENA FEITO DE MISTURA
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, como exigência
parcial para obtenção do título de MESTRE
EM CIÊNCIAS SOCIAIS (Antropologia), sob
orientação do Profº. Doutor Rinaldo Sérgio
Vieira Arruda.
PUC-SP
2006
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2
CAXIXÓ:
UM POVO INDÍGENA FEITO DE MISTURA
Vanessa Alvarenga Caldeira
BANCA EXAMINADORA:
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AGRADECIMENTOS
Como muitos colegas dizem, concluir um trabalho nos provoca uma sensação de
alívio, mas também de ausência. Após dois anos de estudo, muito empenho e dedicação, a
finalização de um texto como esse inevitavelmente nos convida a olhar para trás. Nesse
período, muitos se juntaram a nós no percurso de construção, elaboração e superação.
Lembrar de pessoas que estiveram conosco nesse período, que nos ajudaram a superar
dificuldades e que dividiram conosco a alegria de pequenas e paulatinas conquistas faz
parte do processo. Lembrar e agradecer a elas é um desejo.
Agradeço ao professor Rinaldo Arruda pela orientação e confiança.
À comunidade caxixó do Capão do Zezinho pela confiança, carinho e convivência.
Ao Seu Djalma, cacique caxixó, pessoa por quem tenho grande carinho e
admiração, a paciência e zelo ao me confiar riquíssimos depoimentos.
Ao meu marido e companheiro, Antonio da Silva Barros, pelo acompanhamento
diário desse trabalho, pelo apoio, leitura e comentários atentos a cada página nascida ao
longo do processo de construção dessa dissertação.
Ao meu pai pelo incentivo para iniciar o mestrado e pela revisão ortográfica que
destinou ao texto final.
À minha mãe e meu irmão por acompanharem essa minha trajetória.
Às pessoas que compõem o Cedefes pela oportunidade e aprendizado.
À Geralda Soares, que sempre acreditou nos caxixós e nos povos indígenas
resistentes.
À equipe do projeto “Kaxixó: quem é esse povo?” (Cedefes/Anaí) pelos
ensinamentos, confiança e desprendimento em aceitar o desafio do trabalho e suas
condições. À Alenice Baeta, Izabel Mattos e José Augusto Sampaio, meu carinhoso
agradecimento.
À Opan pela oportunidade da continuidade do trabalho indigenista e do contato com
povos indígenas da região amazônica.
4
À Larissa pelo incentivo e apoio.
À Aline e Taciana pela acolhedora recepção na faculdade.
Ao professor Edmilson Felipe pelo curso preparatório para o exame de seleção do
mestrado.
À Ana Flávia Santos pelo diálogo.
À Mercia Batista pelo apoio, leitura e sugestões sempre inteligentes.
À Patrícia que me acalmou nos momentos de aflição e preocupação com os prazos a
serem cumpridos.
Aos professores João Pacheco de Oliveira e Carmen Junqueira pela presença no
exame de qualificação e pelas preciosas contribuições.
Ao pesquisador Alexandre Cunha pelo envio da versão digital do Mapa da
Capitania de MG.
Por fim, agradeço ao CNPq pela bolsa concedida de setembro de 2004 a setembro
de 2006, que tornou possível a dedicação a este estudo e a oportunidade de conhecer a
PUC-SP.
5
RESUMO
Este trabalho apresenta uma reflexão sobre os processos socioculturais de
construção da etnicidade indígena dos caxixós do Capão do Zezinho. Habitantes das
margens do rio Pará, região centro-oeste de Minas Gerais, eles possuem uma imagem que
em nada se assemelha à imagem estereotipada de “índio” (corpos nus, língua exótica,
cabelos negros e lisos, habitantes das florestas, etc). Moradores de casas de alvenaria,
falantes da língua portuguesa, católicos, trabalhadores rurais, os caxixós possuem um modo
de vida que não contrasta, à primeira vista, com o modo de vida regional.
Para que o Estado brasileiro reconhecesse a condição indígena caxixó
foi necessária a produção de três laudos antropológicos. De forma ímpar, o caso
intensificou o já acalorado e amplo debate (político e acadêmico) sobre quem são os povos
indígenas no Brasil contemporâneo e, sobretudo, quem tem o poder de “identificá-los”.
Nesse sentido, a partir de uma pesquisa de campo, combinada a uma pesquisa
histórico-documental, a dissertação analisa o modo como os caxixós do Capão do Zezinho
elaboram sua identificação indígena e estabelecem suas fronteiras sociais, uma vez que não
possuem “cara de índio”. O estudo realizado também possibilitou problematizar o modo
como o senso comum constrói a condição indígena. Para a realização das análises, o
trabalho valorizou a experiência histórica e a memória social caxixó, bem como os estudos
sobre etnicidade. Dessa forma, a dissertação apresenta uma reflexão sobre o processo, em
andamento, do projeto étnico caxixó e também uma contextualização sobre o que é ser
índio no Brasil no limiar do século XXI.
6
ABSTRACT
This dissertation study aims to analysis the caxixós from Capão do Zezinho
sociocultural processes of aboriginal ethnicity construction. Inhabitants of the banks of the
Pará river, in the center-west region of Minas Gerais, the caxixós have an image that in
nothing resembles the stereotypical image of “indian” (naked bodies, exotic language,
black and smooth hair, inhabitants of the forests, etc). Inhabitants of masonry houses,
Portuguese language speakers, catholics, agricultural rural workers, the caxixós have a way
of life is not contrasted, at first sight, to the regional way of life.
In order to have the Brazilian Government approval of the caxixós aboriginal ethnic
identity, it had to be done three anthropologic appraisals. In a singular way, this case
intensified the already passionate and spreading debate (political and academic) about who
are the aboriginal peoples in contemporary Brazil and about who has the power “to identify
them”.
Based on data from ethnographic fieldwork and historical-documental research, this
dissertation analyze how the caxixós from Capão do Zezinho elaborate its aboriginal
identification and establishes its boundaires, as they do not show an “indian look”. This
research also made possible to discuss how the common sense ideas build the aboriginal
condition. For accomplishment of the analysis, this study relied on the caxixó historical
experience and social memory, as well as on anthropological thinking about ethnicity. In
short, this dissertation reflects about the developing construction process of the caxixó
ethnic project and also allows a view on the context of being “Indian” in the threshold of
XXI century in Brazil.
7
LISTA DE ABREVIATURAS
ABA – Associação Brasileira de Antropologia
ANAÍ – Associação Nacional de Ação Indigenista
Apoinme – Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito
Santo
Cedefes – Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva
Cimi – Conselho Indigenista Missionário
CLT – Consolidação das Leis Trabalhistas
CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
DNPM – Departamento Nacional de Produção Mineral
DSEI – Distrito Sanitário Especial Indígena
Funai – Fundação Nacional do Índio
Funasa – Fundação Nacional de Saúde
GT – Grupo de Trabalho responsável pela identificação e delimitação de terras
indígenas coordenado pela Funai
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IEF – Instituto Estadual de Florestas
INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
Opan – Operação Amazônia Nativa
PRMG – Procuradoria da República em Minas Gerais
SEE/MG – Secretaria de Estado da Educação de Minas Gerais
TI – Terra Indígena
8
ÍNDICE
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................... 10
CAPÍTULO I – ASPECTOS DA HISTORIOGRAFIA .................................................................. 24
I.1) A PRESENÇA INDÍGENA NA CONFLUÊNCIA DO RIO SÃO FRANCISCO COM O RIO PARÁ ............. 24
I.2) O ETNÔNIMO .............................................................................................................................. 41
I.3) A HISTÓRIA PARA ALÉM DOS DOCUMENTOS .............................................................................. 45
CAPÍTULO II - CAXIXÓ: UM POVO ASSUMIDAMENTE “MISTURADO”........................... 50
II.1) A MEMÓRIA SOCIAL CAXIXÓ.................................................................................................... 50
II.2) A MEMÓRIA INDÍGENA SOBRE A TERRA ................................................................................... 60
II.3) LUGARES DA HISTÓRIA.............................................................................................................. 98
II.4) A ESPECIFICIDADE COMO CONSTRUÇÃO................................................................................. 104
CAPÍTULO III – A DIMENSÃO DAS ESCOLHAS .................................................................... 107
III.1) OS CAXIXÓS DO CAPÃO DO ZEZINHO .................................................................................... 107
III.2) OS PROJETOS DE FUTURO ...................................................................................................... 133
III.3) AS FRONTEIRAS...................................................................................................................... 146
CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................................................... 154
A IDENTIFICAÇÃO INDÍGENA: UM PROCESSO HISTÓRICO............................................................... 154
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................................ 164
ANEXOS......................................................................................................................................... 170
I - CAPITANIA DAS MINAS GERAIS .................................................................................................. 171
II - ZONAS GEOGRÁFICAS DO ESTADO DE MINAS GERAIS............................................................... 172
III - MAPA DE LOCALIZAÇÃO DA ZONA GEOGRÁFICA ALTO DO SÃO FRANCISCO ........................... 173
IV - ESBOÇO DA LOCALIZAÇÃO DAS PRINCIPAIS ÁREAS DE REFERÊNCIA CAXIXÓ........................... 174
V FOTOS ....................................................................................................................................... 175
9
“Para que nenhuma forma de humanidade
seja excluída da humanidade
É que as minorias têm lutado,
que os grupos discriminados têm reagido”.
(Eclea Bosi; [1979] 1994: 81)
10
INTRODUÇÃO
Essa dissertação apresenta uma reflexão acerca dos processos socioculturais de
construção da etnicidade indígena dos caxixós do Capão do Zezinho. Habitantes das
margens do rio Pará, municípios de Martinho Campos e Pompéu, região centro-oeste de
Minas Gerais (área distante aproximadamente 280 km de Belo Horizonte)
1
, os caxixós até
período recente, década de 1980, não eram identificados como indígenas. Sob a insígnia do
termo genérico “caboclo”, eles eram compreendidos como mais um dentre os vários grupos
de trabalhadores rurais na região.
1
De acordo com o mapa “Macrorregiões de Planejamento 2006”, produzido pelo Instituto de Geociências
Aplicadas – IGA / Secretaria de Estado de Ciência e Tecnologia e Ensino Superior de Minas Gerais, a região
estudada localiza-se na fronteira entre a macrorregião central (município de Pompéu) e a macrorregião centro-
oeste (município de Martinho Campos). A considerar que a localidade do Capão do Zezinho situa-se no
município de Martinho Campos, optamos por adotar a macrorregião centro-oeste como referência nesse
trabalho.
11
Todavia, em decorrência de um histórico contexto de pressão fundiária e em função
da ameaça concreta de dissolução de sua base territorial, os caxixós do Capão do Zezinho
anunciaram sua identificação indígena. Em função de uma origem pensada comum e pré-
colombiana, e de uma história compartilhada – marcada pelo processo de submissão e
espoliação, esse grupo reelaborou seu discurso identitário. Questionados sobre a razão pela
qual reivindicavam o direito àquela terra, eles responderam: “somos índios, índios
caxixós”.
Os processos conhecidos como “etnogênese
2
implicam em um “processo de
organização política de coletividades que, face à reelaboração simbólica do passado e do
vínculo com uma origem pensada como comum, passam a reivindicar do Estado o
reconhecimento como grupos diferenciados” (Santos apud Caldeira et alli; 2003: 94). Esse
fenômeno abarca o contexto vivido por dezenas de povos indígenas no Brasil nas últimas
décadas
3
. Analisar esse processo e a forma como os caxixós do Capão do Zezinho elaboram
sua condição étnica constitui a tarefa principal da pesquisa de mestrado.
No intuito de rejeitar qualquer simplificação, que aponte para o discurso de que
esses seriam “índios falsos” ou que esse processo seria composto por grupos oportunistas
em busca de aquisição de terras, ou ainda que apenas dizer-se indígena constitui em si tal
processo, entendemos que a pesquisa poderia cumprir a uma dupla condição: a de
estabelecer uma discussão teórico-metodológica a respeito do tema, mas também de
estabelecer um diálogo com um público maior, que ultrapassa o mundo acadêmico e
antropológico. Essa foi nossa intenção.
2
Oliveira estabelece uma crítica a esse termo em função deste ter sido criado no contexto de oposição ao
fenômeno do etnocídio, e sobretudo, segundo ele, porque a noção pode acabar por substantivar “um processo
que é histórico, dando a falsa impressão de que, nos outros casos em que não se fala de ‘etnogênese’ ou de
‘emergência étnica’, o processo de formação de identidades estaria ausente” ([1999] 2004: 30). Todavia, na
falta de um termo melhor, seu uso tornou-se necessário. Com as devidas ressalvas, a explicação aqui
apresentada demonstra que seu uso em nada se assemelha à compreensão ofertada ao termo em si.
3
De acordo com dados do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), são mais de 40 (quarenta) os povos que
nas últimas décadas tem se anunciado como indígena e reivindicado direitos específicos (ver Cimi, Jornal O
Porantim, nº 245, jun/jul 2003).
12
Antecedentes a essa pesquisa
Meu primeiro contato com a comunidade caxixó do Capão do Zezinho ocorreu em
1997. Nesse ano, recém formada em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG), participei de um processo de seleção para o cargo de indigenista no Centro
de Documentação Eloy Ferreira da Silva - Cedefes
4
. Apesar da inexperiência com a
questão indígena, fui contratada em março daquele mesmo ano.
Ao contrário de alguns colegas, o trabalho na área indigenista nunca havia sido
parte de um sonho, pelo menos até aquele momento. Durante a graduação, acreditava que
meu interesse profissional estava vinculado às questões urbanas. No entanto, surpreendida
pela necessidade e oportunidade de emprego, aceitei o desafio de desenvolver um trabalho
até então jamais imaginado.
O caso caxixó foi uma das primeiras demandas que me foi apresentada. O Cedefes,
que apoiava o grupo desde a década de 1980, discutia no momento de minha chegada como
responder à solicitação caxixó por apoio na contestação de um laudo antropológico que
concluía pela não identidade indígena do grupo.
Produzido pela Funai – Fundação Nacional do Índio (órgão indigenista oficial), em
1994, o laudo causou uma imediata reação por parte de famílias caxixós residentes na área
rural conhecida como Capão do Zezinho. Além do grupo, o movimento indígena regional
(em destaque a Apoinme – Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e
Espírito Santo), alguns indigenistas e antropólogos somaram questionamentos ao
documento. O caso intensificou os debates na Associação Brasileira de Antropologia –
ABA sobre “a complexidade e os riscos implicados” (Oliveira, 2002a: 254) na atividade do
antropólogo como perito e sua “função” de classificar coletividades, “sentenciar”
identidades étnicas.
No entanto, apesar dos debates e polêmica gerados, o caso foi tratado pelo órgão
indigenista oficial como encerrado em 1995, e aquelas famílias que se autodenominavam
Caxixó não foram inseridas no planejamento de atuação daquele órgão.
4
O Cedefes é uma organização não governamental, com sede em Belo Horizonte. Sua atuação é voltada para
as questões sociais referentes aos povos indígenas, comunidades negras rurais e trabalhadores(as) rurais no
estado de MG. O nome da entidade é uma homenagem ao sindicalista rural mineiro Eloy Ferreira da Silva,
assassinado em função de sua atuação na luta pela terra em 1985, ano de fundação da ONG.
13
Desconhecendo os possíveis caminhos para contestação do laudo antropológico, os
caxixós queixaram-se publicamente da ausência de assessoria e apoio efetivo à sua luta
durante o IV Grito da Terra Brasil, em maio de 1997, na cidade de Brasília. Em reunião
com representantes de povos indígenas de Minas Gerais e Espírito Santo (Xacriabá,
Krenak, Maxakali, Pataxó, Pankararu, Tupinikim e Guarani) e de entidades presentes no
evento (Cedefes, Cimi – Conselho Indigenista Missionário, entre outras), eles manifestaram
sua dificuldade em ter que sintetizar sua trajetória histórica a cada entidade, evento e ou
órgão público a quem solicitavam apoio. Segundo eles, apresentar de forma objetiva,
resumida e ordenada sua história constituía tarefa árdua e exaustiva.
Como agente indigenista do Cedefes presente na reunião, manifestei, diante do
exposto pelo grupo caxixó, a possibilidade da entidade apoiá-los na elaboração de um texto
onde eles pudessem contar a sua história.
Assim, após o evento, eles solicitaram ao Cedefes a produção de um novo
documento que garantisse a participação e a voz efetiva do grupo. Segundo os indígenas
presentes no evento em Brasília, esse documento teria como objetivo não apenas garantir
um registro da história oral caxixó, mas também provocar a rediscussão do caso (Caldeira
et alli; 1999: 06).
Foi então em 1998 que o Cedefes iniciou o projeto que os caxixós do Capão do
Zezinho denominaram de “um apanhado da nossa história”. “Sem pretensões de realizar
uma vasta pesquisa bibliográfica, ou um trabalho pericial, ou ainda acadêmico” (Caldeira et
alli; 1999: 05), o relatório, produto desse projeto, tentou ao máximo dar voz a esse povo
que desejava falar sobre si mesmo, sobre sua história e sua forma de ver e sentir o mundo.
O relatório, intitulado “Kaxixó: quem é esse povo?”
5
, pode ser então considerado o
segundo texto a tratar do caso, e o primeiro a sistematizar a memória oral do grupo, sua luta
5
O Cedefes até o ano 2001 adotou, bem como outras instituições, a grafia “Kaxixó” para o etnônimo do
grupo, considerando recomendação lingüística nacional para uso da escrita de nomes indígenas da CGNT
(Convenção para a Grafia de Nomes Tribais), estabelecida pela Associação Brasileira de Antropologia
(ABA), no Rio de Janeiro, em 1953, que teve como finalidade padronizar a grafia e a pronúncia dos referidos
termos. Contudo, o antropólogo João Pacheco de Oliveira, autor do último relatório técnico encomendado
pela agência indigenista nacional, Funai, acerca da identidade étnica do grupo, recomenda a grafia “Caxixó”.
Ressalta o antropólogo:
É interessante notar que, à diferença das ONG’s, da FUNAI, da PGR [Procuradoria
Geral da República] e do próprio movimento indígena, seu Djalma [cacique Caxixó]
14
pelo reconhecimento étnico oficial e as implicações do duro processo político vivido por
eles até então.
Marcados por uma longa história de conflitos fundiários na região, as famílias do
Capão do Zezinho mantiveram sua identidade indígena “em segredo” (como eles mesmos
dizem) por muitos anos. Apenas na década de 1980, em função da ameaça concreta de
dissolução de sua última base territorial, é que esse povo revelou publicamente sua
identidade indígena. Segundo os caxixós, eles não precisavam anunciar uma identidade que
era sabida, apesar de não plenamente vivida. Afinal, “Caxixó é caxixó, uai!”, fala o cacique
Djalma. No entanto, em função da possibilidade real de serem expulsos do último espaço
territorial que ocupavam, eles depositaram sua confiança
6
na legislação nacional e na ação
sempre escreve o nome da comunidade “Caxixó” (com c, e não com k). Acredito que seja
mais razoável acompanhar esse uso freqüente e autorizado registrado no plano local,
optando por referir-se a eles em textos escritos como “caxixós” (e não Kaxixós). Não
vejo razão para insistir em uma imposição exotizante, pois no momento é na língua
portuguesa que os membros dessa coletividade se exprimem (inclusive com muita
precisão e poesia, como é possível verificar nas transcrições de entrevistas) (Oliveira;
2003: 172).
Assim, ao considerar tal recomendação legítima e ao considerar que a mesma advém de relatório
produzido para a própria agência indigenista nacional; adotaremos aqui a grafia do etnônimo com a letra “C”.
No texto também optamos pela utilização da flexão de número e uso da letra inicial minúscula
quando o termo fizer referência a um substantivo comum, como recomenda a gramática da língua portuguesa.
Grafia em caixa alta somente fazer-se-á presente quando referente a uma citação, topônimo ou etnônimo.
A decisão por tal grafia tem sido utilizada também por outros antropólogos em seus textos, como
Henyo Trindade Barreto Filho:
A grafia de nomes indígenas segue aqui as orientações de Julio Cezar Melatti e as
críticas deste à CGNT (Convenção para a Grafia de Nomes Tribais, estabelecida pela
ABA, no Rio de Janeiro, em 1953), em especial à pretensão desta em constituir-se numa
nomenclatura científica para as sociedades indígenas, como se fossem espécies animais e
vegetais (Melatti, 1979 e 1989). Levo em consideração, também, as sugestões de Handler
(1985) quanto à cautela retórica que se deve ter ao narrar fenômenos da ordem do
nacionalismo e da etnicidade. Onde quer que o termo apareça grafado em caixa alta (A)
refere-se aos topônimos ou constitui citação de texto no qual ele aparece grafado deste
modo. Optei por manter o nome da coletividade em questão grafado segundo a
ortografia oficial brasileira, com a letra inicial em minúsculo e usando o “s” para fazer-
lhe plural ([1999] 2004: 94).
6
“Embora reconhecendo que fé e confiança são intimamente aliadas, Luhmann faz uma distinção entre as
duas que é a base de sua obra sobre confiança. A confiança, diz ele, deve ser compreendida especificamente
em relação ao risco, um termo que passa a existir apenas no período moderno. A noção se originou com a
compreensão de que resultados inesperados podem ser uma conseqüência de nossas próprias atividades ou
decisões, ao invés de exprimirem significados ocultos da natureza ou intenções inefáveis da Deidade. ‘Risco’
substitui em grande parte o que antes era pensado como fortuna (fortuna ou destino) e torna-se separado das
cosmologias. A confiança pressupõe consciência das circunstâncias de risco, o que não ocorre com a crença.
(...) Na concepção de Luhmann, quando se trata de confiança, o indivíduo considera conscientemente as
alternativas para seguir um curso específico de ação. (...) A distinção entre confiança e crença depende da
15
do poder público para garantia de seus direitos, e revelaram a razão pela qual entendiam
serem os donos daquela terra: eles eram indígenas e seus antepassados foram seus
primeiros habitantes.
A produção de um laudo antropológico que não concluiu pela identidade indígena
daquelas famílias causou um forte impacto nos caxixós – seu primeiro contato com a
antropologia foi frustrante. No entanto, apesar da frustração e do medo da reação dos
fazendeiros, eles continuaram a buscar alternativas para reverter a posição adotada pela
Funai. E segundo o cacique Djalma, a fé em Deus e a confiança na “lei dos homens”
constituíram os dois principais instrumentos em que seu povo se apoiou para dar
continuidade à luta pela permanência na terra.. Foi nesse momento político delicado que
realizei meu primeiro trabalho com a comunidade do Capão do Zezinho, ainda no ano de
1998.
Durante a reunião em Brasília (IV Grito da Terra Brasil) senti uma resistência
inicial dos representantes caxixós ali presentes em função de ter me apresentado como
antropóloga. Porém, essa resistência foi rapidamente vencida e a acolhida e a confiança que
o grupo depositou em mim foram fundamentais para que o trabalho indigenista se tornasse
então parte definitiva de minha vida.
Tão importante quanto a acolhida e a confiança dos caxixós foi a presença do
restante dos membros da equipe. Inexperiente e ciente da responsabilidade que carregava,
busquei apoio para a execução do projeto proposto pelo Cedefes. Foi então que a
Associação Nacional de Ação Indigenista – ANAÍ, organização não governamental com
sede em Salvador, tornou-se parceira nesse trabalho. José Augusto Sampaio (antropólogo e
diretor da ANAÍ), Alenice Baeta (historiadora, arqueóloga e atual diretora do Setor Povos
Indígenas do Cedefes) e Izabel Mattos (antropóloga e atual sócia do Cedefes) foram as
pessoas que aceitaram o desafio de desenvolver o projeto e integrar a equipe
7
. Geralda
Soares (pedagoga, indigenista e uma das sócias fundadoras do Cedefes) foi quem iniciou o
possibilidade de frustração ser influenciada pelo próprio comportamento prévio da pessoa e portanto de uma
discriminação correlata entre risco e perigo” (Giddens, 1991: 38-9).
7
O projeto recebeu o importante apoio financeiro da CESE – Coordenação Ecumênica de Serviço. No
entanto, o valor solicitado não era suficiente para pagamento de consultorias. Nesse caso, a equipe realizou o
trabalho de forma voluntária. Como indigenista do Cedefes, fui a única que atuou de forma remunerada e meu
salário foi contemplado via outro projeto.
16
acompanhamento do caso caxixó. O material por ela sistematizado, seu apoio ao pleito
caxixó, bem como sua colaboração no projeto foram fundamentais. Esses profissionais
tornaram-se grandes amigos e importantes referências para mim no campo do indigenismo
e da prática antropológica
8
.
O principal produto resultante do projeto foi o relatório “Kaxixó: quem é esse
povo?”, que apresenta um registro da história oral caxixó, alguns dados da historiografia
oficial, identificação e contextualização de alguns sítios arqueológicos existentes na região,
e reflexões acerca da questão da etnicidade e do reconhecimento étnico. Este relatório,
concluído em janeiro de 1999, foi entregue a vários órgãos públicos que possuíam atuação
com os povos indígenas em nível federal e estadual, e ao Cimi, Conselho Indigenista
Missionário, órgão vinculado à CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil).
Esse material foi amplamente utilizado pela Procuradoria da República em Minas
Gerais (PRMG), que após receber uma denúncia caxixó de que sítios arqueológicos no
entorno da terra que eles ocupavam (e ainda ocupam) foram destruídos por fazendeiros,
iniciou um processo de investigação sobre o caso da identificação indígena caxixó.
A partir desse processo, o caso retornou à discussão no âmbito do poder público.
Em 1999, a Procuradoria da República em Minas Gerais produziu um laudo antropológico,
cuja conclusão foi contrária à contida no laudo solicitado pela Funai em 1994. Diante de tal
conclusão, a PRMG recomendou formalmente à Funai e aos demais órgãos públicos que
atuavam com os povos indígenas no estado que inserissem os caxixós nos programas
destinados aos povos indígenas.
O Programa de Implantação das Escolas Indígenas de Minas Gerais
9
realizou então,
ainda no ano de 2000 (ou seja, antes do pronunciamento formal do órgão indigenista), a
inserção dos caxixós no programa de formação de professores indígenas. Em função da
necessidade de realização do diagnóstico escolar no Capão do Zezinho, os coordenadores
8
Após a conclusão do meu contrato de trabalho no Cedefes, em 1999, iniciei outro trabalho indigenista,
contudo, no Amazonas. Através da Opan (Operação Amazônia Nativa), participei do projeto de formação dos
professores indígenas Tenharim, Parintintin, Torá e Djahui. Nessa entidade, da qual sou membro, tive uma
rica experiência de trabalho, encontrei amigos, e somei referências para minha formação.
9
O Programa de Implantação das Escolas Indígenas em MG é uma parceria entre a Secretaria de Estado da
Educação de MG (SEE/MG), a Fundação Nacional do Índio (Funai), o Instituto Estadual de Florestas
(IEF/MG) e a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
17
do referido Programa me convidaram para participar da equipe. Foi então que realizei meu
segundo trabalho com aquelas famílias (ver Caldeira.& Mendes; 2000).
O órgão indigenista oficial, diante da recomendação do Ministério Público,
contratou um terceiro antropólogo para analisar os dois laudos e produzir um parecer a
respeito. Em 2001, esse parecer concluiu pela identificação indígena caxixó e finalmente o
grupo étnico teve seu pleito pela demarcação da Terra Indígena assumido pelo órgão
indigenista oficial
10
.
Cientes do longo, burocrático e difícil processo que se iniciaria a partir do
reconhecimento oficial – a regularização fundiária –, os caxixós solicitaram então em 2001
novo projeto de apoio ao Cedefes com o intuito de conhecerem e compreenderem os
direitos indígenas dispostos na legislação nacional, e os trâmites administrativos referentes
ao processo de demarcação de uma terra indígena no país. Foi então em 2002 que realizei
meu terceiro trabalho com o grupo.
Acompanhar a construção dos critérios de territorialidade caxixó foi uma
experiência riquíssima. Todavia, esse trabalho se fez especial pelo fato de poder estar ao
lado daquelas pessoas quando elas discutiram a questão da terra não mais como um sonho,
mas como uma realidade eminente. Apesar de o processo de identificação e delimitação
oficial da terra indígena ainda não ter tido início naquela época, foi naquele momento que
os caxixós realizaram pela primeira vez uma discussão aberta sobre o seu direito à terra –
um discussão que muitos temiam nunca poder acontecer.
Estimulada pela história que construí ao lado daquelas famílias, decidi por participar
do processo de seleção da Funai para composição do Grupo Técnico (GT) responsável pela
identificação e delimitação da Terra Indígena (TI) Caxixó. Selecionada, em 2004 iniciei
então meu quarto trabalho com o grupo.
10
Infelizmente, a produção de vários laudos e contra laudos e a decisão administrativa do governo federal em
inserir o grupo étnico nos programas específicos destinados aos povos indígenas no país não encerrou o caso.
Em novembro de 2002, os fazendeiros da região criaram a Associação dos Proprietários do Rio Pará e
mediante processo nº 2002.38.00.048627-2 instaurado na Justiça Federal em Minas Gerais, impetraram ação
ordinária contra a Fundação Nacional do Índio (Funai) e a União, objetivando a nulidade do ato
administrativo que reconheceu a existência de um grupo indígena denominado Caxixó. Em dezembro de
2002, a ação foi indeferida pelo juiz federal. No entanto, a Associação dos Proprietários do Rio Pará recorreu
na sentença e a ação permanece em trâmite, conforme consulta processual realizada em 08/08/2006.
18
Nesses nove anos de trabalho, a história construída com os caxixós se tornou
determinante no meu envolvimento com a causa indígena. Eles, o Cedefes, a Opan
(Operação Amazônia Nativa) e os amigos que adquiri desde 1997 me fizeram não apenas
“mergulhar” numa causa, mas a me sentir parte dela. Se a escolha pelo curso de Ciências
Sociais adveio de uma inquietação com a desigualdade social em nosso país, o indigenismo
e os povos indígenas têm sido uma gratificante oportunidade de transformar a inquietação
(estímulo para reflexão) em uma ação prática.
Metodologia
No período de 1997 e 2006 realizei 14 viagens ao Capão do Zezinho: 06 em 1998,
01 em 2000, 04 em 2003, 01 em 2004 e 02 em 2006. Além desses períodos em que
permaneci junto aos caxixós na área do Capão do Zezinho, tive a oportunidade de me
encontrar com representantes caxixós em vários eventos e reuniões em outras localidades
durante esse período.
Os quatro trabalhos que realizei foram focados na comunidade do Capão do
Zezinho. Essa escolha adveio do fato de esta ter sido a comunidade responsável pelo início
da organização política do grupo no pleito pelos direitos indígenas, e por essa se manter em
uma das áreas referência de ocupação tradicional até os dias atuais. Nesse sentido, tornou-
se fundamental manter o foco da pesquisa de mestrado nesse núcleo populacional.
O Capão do Zezinho se caracteriza por ser uma das áreas rurais ocupadas por
famílias caxixós e por estar localizado na margem esquerda do rio Pará, distante
aproximadamente 15 km do distrito Ibitira, área urbana pertencente ao município de
Martinho Campos. A comunidade do Capão do Zezinho, no entanto, foi compreendida aqui
como sendo não apenas o universo das famílias ali residentes. Os caxixós moradores da
área rural denominada Fundinho (localizada na margem direita do rio Pará, pertencente ao
município de Pompéu) e da Pindaíba (área vizinha ao Fundinho na margem direita do rio),
bem como aqueles residentes nas fazendas do entorno do Capão do Zezinho também foram
aqui considerados. A inserção dessas famílias adveio do fato de perceber que elas
estabelecem um forte vínculo social nessa localidade. Apesar de residirem em outras áreas
rurais (muito próximas geograficamente), é no Capão do Zezinho que elas estabelecem seu
19
cotidiano. Inseridas na trajetória política caxixó de luta por seus direitos enquanto
indígenas, essas famílias possuem um elo de solidariedade e compartilham uma mesma
trajetória social política com os moradores do Capão
11
. Daí a razão do universo de estudo
ter sido a comunidade
12
do Capão do Zezinho e não apenas de seus moradores.
Os vários momentos de minha permanência no Capão do Zezinho me possibilitaram
conviver com essa comunidade
13
. Estar no Capão do Zezinho, ser recebida e acolhida por
uma das famílias em sua casa, coordenar trabalhos que respondiam demandas específicas
da comunidade, participar do seu cotidiano e de momentos especiais (como festas, rezas,
reuniões, acolhimento de parentes vindos de outras regiões) do grupo foram fundamentais
para minha interação com essas pessoas e minha melhor compreensão acerca da realidade
caxixó.
A realização de quatro distintos trabalhos junto a essa comunidade me proporcionou
a possibilidade de conhecer as localidades rurais caxixó de Criciúma, Fundinho, Pindaíba e
Logradouro; e realizar reuniões com alguns caxixós que residem nas áreas urbanas de
Pompéu, Martinho Campos e Ibitira.
A análise antropológica foi o fio condutor dos quatro trabalhos realizados. Assim,
os trabalhos de campos mantiveram-se constantemente vinculados a uma prática
11
A área denominada Logradouro (margem esquerda do rio Pará) localiza-se a aproximadamente 10 km do
Capão do Zezinho. Na década de 1940, muitas famílias caxixós ali residentes migraram para o Capão,
inclusive a família do cacique Djalma. Apesar de Logradouro se constituir em um lugar de referência na
memória social desse povo, as famílias que ali permaneceram não mantiveram uma vida social com as
famílias das outras localidades rurais caxixós na região, não tendo se envolvido na luta do grupo pelos direitos
indígenas. Por esta razão, as famílias residentes em tal localidade não foram inseridas no grupo de análise do
presente trabalho.
12
De acordo com Max Weber, “chamamos de comunidade a uma relação social na medida em que a
orientação da ação social – seja no caso individual, na média ou no tipo ideal – baseia-se em um sentido de
solidariedade: o resultado de ligações emocionais ou tradicionais dos participantes” ([1987] 1989: 77).
13
As viagens ao Capão do Zezinho tiveram duração em média de 3 a 4 dias, com exceção do trabalho
realizado para a Funai, quando a pesquisa de campo teve duração de 35 (trinta e cinco) dias, em função de ter
que ser realizada em uma única etapa. Durante os trabalhos de campo fiquei sempre hospedada na casa de Seu
Zezinho Caxixó, irmão do cacique Djalma, com exceção (novamente) para o trabalho realizado para a Funai,
quando fiquei hospedada em um hotel em Martinho Campos, juntamente com os demais membros da equipe.
Minha estadia na casa de Seu Zezinho, no Capão, foi muito importante, pois ela me proporcionava estar com
as pessoas não apenas em momentos específicos do trabalho. Ficar hospedada na casa de um dos membros do
grupo me permitiu estabelecer uma convivência com as pessoas, participar de conversas informais,
acompanhar seu cotidiano. Essa convivência proporcionou maior interação e possibilidades de conhecimento
mútuo entre antropólogo e comunidade local. Seu Zezinho Caxixó faleceu no ano 2003. Gostaria de registrar
aqui, como já o fiz em outros textos, meu carinhoso agradecimento a ele e sua filha Cristina pela sempre
acolhedora estadia.
20
etnográfica que, segundo C. Geertz, implica em uma atividade que vai além de uma coleta
de dados objetivos ou de uma simples descrição. Segundo ele, uma análise antropológica
implica em uma descrição densa, uma escolha entre estruturas de significação e a
determinação de sua base social e sua importância (1989: 19).
Em antropologia ou, de qualquer forma, em antropologia social, o que
os praticantes fazem é a etnografia. E é justamente ao compreender o
que é a etnografia, ou mais exatamente, o que é a prática da etnografia,
é que se pode começar a entender o que representa a análise
antropológica como forma de conhecimento. Devemos frisar, no
entanto, que essa não é uma questão de métodos. Segundo a opinião dos
livros-textos, praticar a etnografia é estabelecer relações, selecionar
informantes, transcrever textos, levantar genealogias, mapear campos,
manter um diário, e assim por diante. Mas não são essas coisas, as
técnicas e os processos determinados, que definem o empreendimento.
O que o define é o tipo de esforço intelectual que ele representa: um
risco elaborado para uma descrição densa, tomando emprestada uma
noção de Gilbert Ryle (1989: 15).
Para esse antropólogo,
O que o etnógrafo enfrenta, de fato – a não ser quando (como deve
fazer, naturalmente) está seguindo as rotinas mais automatizadas de
coletar dados – é uma multiplicidade de estruturas conceptuais
complexas, muitas delas sobrepostas ou amarradas uma às outras, que
são simultaneamente estranhas, irregulares e inexplicáveis, e que ele
tem que, de alguma forma, primeiro apreender e depois apresentar
(1989: 20).
Para auxiliar no desenvolvimento da pesquisa antropológica, privilegiamos três
técnicas no decorrer dos trabalhos de campo: observação participante, entrevista semi-
estruturada e Diagnóstico Rápido Participativo.
A observação participante se constitui no principal método qualitativo utilizado na
pesquisa antropológica, e se baseia em três principais ações: coletar relatos, observar, e
participar, em certa medida, da vida cotidiana de grupos sociais. O objetivo é “tentar ver o
mundo através dos olhos dos atores sociais” e compreender os “sentidos que eles atribuem
aos objetos e às ações sociais que desenvolvem” (Haguette; 1992: 52). Esse método de
pesquisa tem como objetivo compreender os mecanismos sociais de ação e compreensão do
mundo de um grupo social específico.
21
A entrevista implica na interação social normalmente entre duas pessoas:
entrevistado e entrevistador. A opção pelo tipo semi-estruturada permite que as
informações possam ser obtidas através de um roteiro com pontos ou tópicos previamente
estabelecidos de acordo com a problemática investigada. Nesse caso, o roteiro não possui
questões objetivas, mas direciona a entrevista.
Em função dos quatro trabalhos realizados com a comunidade do Capão do
Zezinho, foi possível entrevistar, ao longo dos anos, o universo de 78% das famílias
residentes nas seguintes localidades rurais: Capão do Zezinho, Logradouro, Criciúma,
Fundinho e Pindaíba
14
. No entanto, o cacique Djalma se destaca como o principal
informante autorizado pelo grupo a falar e apresentar a memória social caxixó. Nesse
sentido, a grande maioria dos depoimentos transcritos na dissertação é de sua autoria.
O DRP - Diagnóstico Rápido Participativo (também conhecido como Diagnóstico
Rural Participativo) foi outro método utilizado para realização do trabalho
15
.
O DRP se constitui como uma metodologia que permite o levantamento
de informações que irão possibilitar o conhecimento da realidade da
comunidade a partir do ponto de vista dos moradores. Através de
métodos e técnicas participativas, o DRP possui como pressuposto
básico que os membros da comunidade são os protagonistas na
produção do conhecimento da sua própria realidade (Rede de
Intercâmbio de Tecnologias Alternativas. Apostila “Diagnóstico
14
Durante o trabalho de campo desenvolvido para a Funai, identificamos um total de 32 domicílios caxixós
nas áreas Capão do Zezinho e fazendas do entorno, Logradouro, Pindaíba e Fundinho. Destes, realizamos
entrevistas em 25 domicílios.
15
“O DRR (Diagnóstico Rural Rápido) surgiu em meados dos anos 1970, com enfoque na investigação rural
objetivando o desenvolvimento. Nesta época, o enfoque dado à investigação de Agroecossistemas era
estimulado pelo interesse numa análise mais rápida e mais exata das complexidades dos sistemas agrícolas.
Uma variedade de metodologias de estudo foi desenvolvida pelos centros internacionais de agricultura, dos
quais merecem destaque o “Exploratory Survey”, o “Informal Agricultural Survey”, o “Sondeo” e “Diagnosis
and Design”. Paralelamente a estes desenvolvimentos, vários pesquisadores individuais e aqueles
relacionados com centros nacionais de pesquisa estavam trabalhando numa versão própria de estudos rápidos,
informais e interdisciplinares. Em 1985, aconteceu uma Conferência Internacional de DRR, realizada pela
Universidade de Khon Kaen na Tailândia, para unir toda experiência acumulada e o refinamento de um marco
conceitual. No início da década de 1990, a metodologia do DRR começou a ser utilizada no Brasil.
Originalmente destinado ao enfoque da realidade rural, atualmente tem sido adaptado e aplicado em outros
contextos, como o urbano e o indígena. Por isso a adequação do nome para DRP” (Rede de Intercâmbio de
Tecnologias Alternativas. Apostila “Diagnóstico participativo: uma leitura da realidade a partir do ponto de
vista da comunidade”, S/D; dat; BH/MG).
22
participativo: uma leitura da realidade a partir do ponto de vista da
comunidade”, S/D; dat; BH/MG).
Aliar o DRP, que possui sua origem no campo da investigação de agroecossistemas,
aos métodos antropológicos de pesquisa ampliou as possibilidades de coleta de dados,
principalmente quando a exigüidade de tempo é o maior desafio.
Problemática a ser investigada
A comunidade do Capão do Zezinho superou muitos obstáculos na luta por seus
direitos como povo indígena no país. O preconceito vivido por eles ainda é um desafio. A
imagem estereotipada de “índio”: corpos nus, língua exótica, cabelos negros e lisos,
habitantes das florestas, etc, que compõe o imaginário popular, não se encaixa na imagem
de muitos povos indígenas no Brasil contemporâneo; e no caso caxixó, essa imagem em
nada se assemelha à dos membros da comunidade do Capão do Zezinho. Nesse sentido, o
preconceito é marcante e por muitas vezes foi determinante para o seu silêncio.
A população regional (que disputa terra e demais benefícios com a comunidade do
Capão do Zezinho); os indígenas que possuem um discurso “essencialista” de que são mais
índios que os caxixós; e a imagem estereotipada de “índio” (cabelo liso e preto, corpo nu,
morador das florestas, etc), muito presente na opinião geral sobre como são ou como devem
ser os indígenas brasileiros; são algumas dificuldades que os caxixós enfrentam desde o
momento que optaram por se assumir como indígenas.
Perceber, compreender, conhecer esses sujeitos históricos é um desafio. Dar voz a
esses grupos étnicos, aceitar o seu convite a despir-nos de nossos (pre)conceitos e conhecer
sua forma de ver e sentir o mundo é algo que não podemos negar sob pena de
reproduzirmos uma outra forma de “colonização”, de dominação.
Ao aceitar o desafio da comunidade do Capão do Zezinho para auxiliá-la na
sistematização de sua memória social tive como objetivo procurar entender o que essa
comunidade tinha a dizer sobre si mesma. Penso que a antropologia se caracteriza como o
principal instrumento capaz de nos auxiliar nesse desafio; além, é claro, dos próprios
sujeitos e da relação construída com eles.
23
Assim sendo, a problemática que me propus investigar através da pesquisa de
mestrado é: como a comunidade caxixó do Capão do Zezinho constrói suas fronteiras
sociais num contexto em que sua imagem se apresenta na contramão da imagem
estereotipada de “índio”? Inseridos na economia regional, católicos, moradores de casas de
alvenaria, falantes da língua portuguesa, entre outras características comuns à sociedade
nacional, como a comunidade do Capão do Zezinho determina quem pertence ou não ao
grupo étnico denominado Caxixó?
O contato intenso com não indígenas não produziu a “assimilação” ou “integração”
desse grupo. Ao contrário, sua persistência se faz viva. O que seria responsável, então, pelo
sentimento de pertença daquelas pessoas que se auto-identificam como caxixós do Capão
do Zezinho?
Nesse caso, o foco da pesquisa não recai sobre a “cultura” caxixó, mas sobre a
história de um grupo étnico ao longo do tempo, suas fronteiras sociais, seus critérios de
pertença, que, “apesar das modificações, nunca deixaram de delimitar uma unidade
contínua” (Barth; [1995]1998: 227).
Assim, para responder essas questões, vamos no decorrer da dissertação sistematizar
alguns dados históricos oficiais que tratam da presença indígena na região tradicionalmente
ocupada pelos caxixós; apresentar dados e análises referentes à memória social da
comunidade do Capão do Zezinho; e refletir sobre como essa comunidade se elabora em
termos étnicos. O caso caxixó e minha trajetória profissional como indigenista me
instigaram ainda a realizar uma breve discussão sobre a dificuldade do conhecimento de
senso comum em aceitar a condição indígena de alguns povos que se afirmam como tal. Em
função, muito provavelmente, de questões que me acompanharam e me angustiaram nessa
trajetória da vida, tomei a liberdade de refletir sobre elas aqui.
24
Capítulo I – ASPECTOS DA HISTORIOGRAFIA
I.1) A presença indígena na confluência do rio São Francisco com o rio Pará
Não são poucos os registros na historiografia oficial que informam sobre a presença
indígena na confluência do rio São Francisco com o rio Pará, região tradicionalmente
habitada pelos caxixós
16
. Contudo, tais registros e relatos oficiais, apesar de inúmeros, são
demasiadamente genéricos. Como referência à presença indígena, os termos utilizados são
tapuias, bugres, gentios, selvagens, bárbaros, carijós, entre outros.
A presença indígena na confluência do São Francisco com o Pará, região centro-
oeste de Minas Gerais, é mencionada nos vários documentos referentes à antiga região da
Vila de Pitangui, Comarca de Sabará (ou Rio das Velhas) – ver mapa, anexo I.
Segundo Gomes da Silva (1902: 712), a Vila de Pitangui era formada, no final do
século XVIII, por 20 freguesias; classificadas por ele em três grupos (ver mapas, anexo II e
III):
1º Grupo: Confusão (atual São Gotardo); Tiros; Morada Nova; Marmelada (atual
Abaeté); e Dores do Indaiá.
2º Grupo: Pequi; Patafufo (atual Pará de Minas); Matheus Leme; Cajuru (atual
Carmo do Cajuru); Sant´Ana de S. João Acima (atual Itaúna); São Gonçalo do Pará;
Espírito Santo do Itapecerica (antiga Tamanduá e atual Itapecerica); e Santo Antonio de
São João Acima (atual Igaratinga);
3º Grupo: Pitangui; Onça (atual Onça de Pitangui); Abbadia (atual Martinho
Campos); Buriti da Estrada (atual Pompéu); Maravilhas; Saúde (atual Perdigão); Bom
Despacho
17
.
Contudo, com o passar dos anos, “a dilatada e opulenta área” da referida Vila
(Gomes da Silva; 1902: 713) sofreu desmembramentos de muitas freguesias, tendo sido
16
Capão do Zezinho localiza-se a não mais que 20 km da confluência desses dois rios.
17
A atualização das denominações das localidades referidas pelo autor foi verificada no banco de dados da
Assembléia Legislativa de Minas Gerais (www.almg.gov.br
em 01/11/2004).
25
reduzida a apenas cinco, na segunda metade do século XIX (Pitangui, Onça do Pitangui,
Martinho Campos, Pompéu e Maravilhas).
Para um estudo sobre a presença indígena na região tradicionalmente ocupada pelos
caxixós, o enfoque recai sobre a história dos atuais municípios de Martinho Campos, Dores
do Indaiá e Pompéu.
Segundo Diniz (1965: 7), é provável que a região entre os rios Pará e
Paraopeba tenha sido inicialmente atingida por sertanistas ainda no
século XVII, no ano de 1601, quando a zona do Alto São Francisco foi
percorrida pela expedição de Glimmer. Inaugurando de modo típico sua
narrativa sobre a história de Pitangui, o autor destaca dessa expedição
apenas a notícia de que ‘a região naqueles remotos tempos era habitada
por populosa tribo de bárbaros (ibid.: 9, grifo no original) (Santos;
2003: 66).
De acordo com pesquisa realizada por Mattos, apresentada no relatório
Cedefes/ANAI, a “lenda da resplandecente Sabarabuçu e o preamento de índios motivaram
as primeiras expedições de bandeirantes paulistas nas imediações do Rio Pará” (Caldeira et
alli; 1999: 51).
Entretanto, apesar da existência de expedições ainda no século XVII serem relatadas
por alguns historiadores e antropólogos, pode-se afirmar que somente no século XVIII se
consolidou o efetivo povoamento por não índios da região centro-oeste de Minas Gerais. E
de acordo com Dornas Filho (1956: 70), o devassamento dos sertões do oeste mineiro pode
ser atribuído a três circunstâncias específicas:
1) A primeira circunstância, segundo o historiador, foi a carestia dos alimentos
nos anos de 1701 e 1713: segundo Dornas Filho, em função do grande interesse
na atividade mineradora, a concorrência que a mão-de-obra do trabalho no
garimpo estabeleceu com a mão-de-obra do trabalho na agricultura, somada à
concorrência das terras de mineração com as terras de cultivo, causou
significativa diminuição na oferta de alimentos. A dispersão em busca de novas
terras para cultivo promoveu, então, a criação de novos núcleos populacionais
nos sertões do estado e a descoberta, por conseguinte, de novas lavras de ouro.
26
2) A segunda circunstância foi atrelada à rivalidade entre paulistas,
taubateanos, baianos e reinóis, que culminou com a Guerra dos Emboabas: a
descoberta de metais preciosos nas Minas Gerais atraiu, ainda no início do
século XVIII, muitos aventureiros brasileiros e portugueses em busca de
riqueza. Contudo, o intenso fluxo de novos povoadores incomodou os
bandeirantes paulistas, que reivindicaram ter o direito exclusivo de exploração
das minas que haviam descoberto. Nos anos de 1708 e 1709, vários conflitos
armados ocorreram na região aurífera das Minas Gerais, envolvendo de um lado
os paulistas e de outro os emboadas – apelido pejorativo dado pelos paulistas a
todos os recém-chegados à região. Na Guerra dos Emboabas, os paulistas foram
perdedores. Obrigados a abandonar suas fazendas, eles partiram em busca de
novas terras e novas riquezas rumo a Goiás e Mato Grosso. No entanto, ao
percorrerem o oeste mineiro, ali encontraram novas minas, riquezas e terras.
3) E por fim, a terceira circunstância foi a descoberta de ouro e de diamante em
Pitangui e nos vales do rio Abaeté e do rio Grande: a busca de terras para cultivo
em função da carestia dos alimentos e a fuga dos paulistas bandeirantes de suas
antigas fazendas são os principais fatores responsáveis pela chegada dos
paulistas ao oeste mineiro. Contudo, foi a descoberta de novas minas de ouro e
diamante naquele sertão, o fator preponderante que determinou a fixação de
nova população e a formação de arraiais e vilas no oeste mineiro.
A Vila de Pitangui
A descoberta de ouro em Pitangui marcou “o início do povoamento da região do
centro-oeste”(Dornas Filho1956: 71). No início do século XVIII, Brás Baltazar da Silveira
era o governador da então Capitania de Minas Gerais e São Paulo; e nessa época, como já
foi ressaltado, a mineração se caracterizava como a principal atividade dos bandeirantes
paulistas, responsáveis pela ação de desbravamento das Minas Gerais. Domingos Rodrigues
do Prado, genro de Bartolomeu Bueno da Silva, famoso bandeirante paulista, foi quem
liderou a bandeira que culminou com a criação da Vila de Pitangui (Dornas Filho, 1956:
71).
27
Ao topônimo Pitangui, dois significados são atribuídos. Historiadores remetem a
etimologia de Pitangui às seguintes derivações: pitang-y, o rio das pitangas (rio vermelho);
ou mitang-y, o rio das crianças. Vários historiadores apresentam a explicação do topônimo
associada à tradução “rio das crianças”:
Em 1709, o rio Pará chamava-se Pitanguy, que na língua vulgar do
gentio da terra, queria dizer – rio das crianças, porque, na sua margem
direita, encontraram os Paulistas um pequeno aldeamento de índios
com muitas creanças.
Do nome do rio proveio, para este logar a denominação de – Minas de
Pitanguy.
Depois os vindouros mudaram o nome do rio Pitanguy para rio Pará,
que quer dizer – rio grande (Gomes da Silva; 1902: 706. Grifo nosso).
(...) no arraial de Sant´Anna ouvia também a notícia de um ribeiro, que
fornecia aos pedaços o ouro de suas areias; e pedaços elle os viu em
ornato das índias. Feitas as indagações, o ribeiro ficava ao norte,
quatro jornadas além do arraial. Esta nova deliberação de se pensar
n´esses mananciais foi a sua glória. Posto em marcha, guiado pelos
índios de Sant´Anna, quando foi se approximando ao ribeiro, as
indígenas que se banhavam presentiram o tropel e, pensando serem
traficantes, fugiram aterradas, deixando algumas crianças de peito na
margem. O rio tomou por isso o nome de ‘Pitang-y’, rio das crianças
(1696)(Vasconcelos; 1904: 100. Grifo nosso).
Dornas Filho (1956: 72) ressalta em seu texto “Povoamento do Alto São Francisco”
que o significado “rio das crianças” apresenta-se como a tradução que os portugueses
realizaram da palavra Pitangui. Nesse sentido, torna-se compreensível a existência de
possível equívoco na tradução. Francisco Pereira, em seu texto “Descobrimento e
Devassamento do território de Minas Gerais” (1902: 564), apenas apresenta a tradução da
palavra Pitang-y como “água vermelha”, “rio vermelho”; e o Dicionário Guarani-
Português, obra contemporânea de Mário Arnaud Sampaio, também apresenta somente o
significado “rio avermelhado, rosado” (1986: 138). Nesse sentido, entendemos que o
significado “rio das crianças” muito provavelmente se apresenta mais fortemente
relacionado ao contexto histórico atribuído à formação da vila (encontro de colonizadores e
indígenas) do que à fiel tradução portuguesa do topônimo; que no nosso entender se
aproxima do significado não muito difundido na literatura: “rio vermelho”.
28
A Vila de Pitangui, Sétima Vila do Ouro das Gerais
18
, teve sua história marcada por
muita disputa e motins. A promessa de ouro fácil e em abundância acarretou um intenso
fluxo migratório para a localidade, que não possuía nenhuma repartição judicial. Segundo
Gomes da Silva (1902: 706), “muitas dissenções, mortes e ruínas” caracterizaram as duas
principais fases de migração para Pitangui no ano de 1711 e 1713. Segundo ele, “o poder e
a força prevaleceram contra a razão e a justiça” (1902: 706) nos primeiros anos da vila.
Poucas notícias há relativamente à mineração no Distrito de Pitangui.
Sabidamente, o primeiro ouro deu proveito a poucos. Extraíram-no à
revelia do regimento mineral. Não houve repartição de datas nem
designação de guarda-mor. A oportunidade era dos audazes. Não há
exagero na assertiva de ter prevalecido a lei do mais forte.
Bartolomeu Bueno da Silva informou ao governador Dom Brás que os
moradores pretendiam lavras os novos descobrimentos juntamente com os
descobridores, mas estes, empunhando armas, não lhes permitiam isso.
As datas não eram repartidas, eram conquistadas.
(Sílvio Gabriel Diniz apud Sesc: 1986. Grifo nosso).
Dornas Filho define Pitangui como o “turbulento arraial de Domingos Prado”
(1956: 71). Segundo ele, a descoberta do ouro no Batatal e no córrego Lava-pés
intensificou o povoamento frenético da região.
É tradição constante que as Minas de Pitangui foram descobertas em
1709 pelos Paulistas, que vinham das partes de Sabará e Caeté, em
demanda das terras que ficam ao poente e onde supunham haver ricas
minas de ouro.
É também tradição constante que, tendo eles pernoitado à margem
esquerda do córrego Caruru ou Lava-pés, ali morreu, mordido de cobra,
o velho guia que traziam enfermo em uma rede e era o homem que sabia
a parte ponto certo do seu destino.
Desanimados de prosseguir na jornada pela falta do guia, sem o qual
difícil e contingente seria o acerto em um dilatado sertão, resolveram os
Paulistas regressar, saindo pelo mesmo rumo por onde haviam entrado.
Com efeito, na manhã seguinte, tristes e silenciosos, partiam eles das
margens do Caruru.
18
Pitangui é a sétima vila mais antiga de Minas Gerias, precedida por Mariana, Ouro Preto, Sabará, São João
Del Rei, Caeté e Serro.
29
A pouca distância, porém, do Caruru no morro que hoje se chama
Batatal, vio o aventureiro da dianteira um pequeno grão de ouro na
terra de um buraco de tatu.
Ali os Paulistas fizeram alto e trataram de examinar o terreno
adjacente.
Era uma riqueza que ali existia.
As formações primeiras mostraram ouro de mui fácil extração,
superficialmente espalhado na terra, à guisa de batatas.
Dali proveio o nome de Batatal àquele morro.
(Gomes da Silva; 1902: 705. Destaques do autor).
A região do Batatal deu origem à formação da Vila de Pitangui e atraiu grande
número de novos moradores em função da promessa de ouro em abundância e de fácil
extração. No entanto, essa promessa não se configurou como realidade. Rapidamente as
minas do Batatal demonstraram sinais de esgotamento.
Segundo Diniz, após uns poucos anos de exploração, as primeiras minas
de Batatal se mostraram infrutíferas, deixando vários moradores sem
ter onde lavrar e dificultando o pagamento dos quintos reais à Coroa
Portuguesa (ibid.: 17-9, 23, 26). A escassez de ouro, associada à
cobrança dos quintos, provocaria, em ao menos duas ocasiões (1715 e
1718), o abandono do Distrito, cujos moradores, impossibilitados de
arcar com o imposto, não desejavam ser ‘incriminados de rebeldia’
(ibid.: 87). Mesmo assim eles se rebelariam por diversas vezes entre os
anos de 1717 e 1720, episódios que se tornariam conhecidos como os
‘motins de Pitangui’. Diniz credita essa movimentação basicamente à
escassez de minério (ibid: 20). Divergindo dessa interpretação,
Anastasia ressalta, em sua análise, que desde o início do povoamento os
moradores de Pitangui se recusavam a acatar as regras impostas à
exploração do ouro, inclusive com a tentativa de isolar as novas minas
do governo da Capitania por meio de abertura de um caminho direto de
São Paulo ao arraial (1997: 88) (Santos; 2003: 69. Grifo nosso)
19
.
A interpretação de Anastasia corrobora com a análise de Gomes da Silva (1902) de
que a “turbulência” vivida no início do povoamento de Pitangui ocorreu em função da
recusa dos moradores em pagar os impostos oriundos da exploração do ouro – postura
similar àquela assumida pelos paulistas quando declararam guerra aos emboabas. A prática
19
A obra de Diniz citada por Santos é: “Pesquisando a história de Pitangui” (1965). Belo Horizonte: s/e.
30
de não pagar os tributos da exploração mineradora à Coroa Portuguesa faz-se notar até
mesmo nos documentos referentes à própria descoberta de ouro em Batatal. A fim de
sonegar o pagamento do tributo, os paulistas atribuíram à população indígena escrava e aos
negros fugidos a descoberta daquelas minas, como relata o próprio governador D. Brás
Baltasar ao Rei:
Senhor. Não tornei a dar contas a Vossa Majestade das minas do
Pitangui, por terem faltado, e entendendo-se serem as de maior
grandeza que jamais se viram. Hoje não se tira nenhum ouro nelas; o
que se tirou ao princípio não se pôde averiguar, por que nesse tempo
não encontrava lá ninguém. Só depois de minha chegada a estas minas
é que eles consentiram saber do ouro que se tirou de um buraco a que
chamam Batatal, que foi donde se achou a grandeza que os paulistas
entendiam ser ouro de Beta, e não pagaram a Vossa Majestade os
quintos por serem negros e carijós os que fizeram o descobrimento, e
quando os seus senhores lhes acudiram já eles tinham sumido com o que
haviam tirado. (Diniz; 1965: 11 apud Santos; 2003: 69. Grifos nossos).
Segundo o historiador Dornas Filho, “por esse tempo o arraial [de Pitangui], cuja
riqueza aurífera parecia medir-se com a pujança das jazidas de Ouro Preto e Rio das
Velhas, já fervilhava de aventureiros sem nome e sem escrúpulos...” (1956: 72).
A necessidade de realizar de forma sistemática a repartição das “datas auríferas”,
fiscalizar e cobrar os tributos, somada à necessidade de conter os motins fizeram com que
em 1715 o distrito de Pitangui fosse erigido à Vila de Nossa Senhora da Piedade do
Pitangui, sendo instalados ali tabelionato de notas, força policial e demais autoridades.
Contudo, nessa época, fazendas de criação e as primeiras sesmarias de terras já
estavam consolidadas. Quando Pitangui recebeu seus primeiros juízes e oficiais, em 1718,
“a região já estava ilhada de arraiais e fazendas” (Dornas Filho; 1956: 71). As primeiras
concessões ou posses conferidas pelos Guarda-móres somente foram realizadas em 1719; e
conforme destaca Gomes da Silva (1902: 708): o livro 1º do Guardamoria não apresenta
nenhuma informação a respeito dos descobridores das referidas minas. Segundo ele, tal
procedimento se fazia comum à época – dificilmente se creditavam as posses ou
concessões àqueles que descobriram suas riquezas. Nesse sentido, irregularidades, revoltas
e motins permaneceram no cenário da formação de Pitangui até o ano de 1720.
31
Todo o ano de 1719 correu revolto e cheio de perniciosas intrigas,
nascidas principalmente da irregularidade com que se ocupavam as
terras mineraes.
O povo, pouco respeitoso à justiça que então principiava a conhecer se
em uma paiz nascente, auxiliado por alguns poderosos descontentes,
levou seu arrojo a fazer sahir da terra o Brigadeiro de auxiliares e
assassinou violentamente a um dos Juízes ordinários, Manoel de
Figueiredo Mascarenhas.
(...) Officiaes, homens bons e honrados, amigos da paz, do real serviço e
do bem público, com outros mais de boa conducta, deram favor ao
Corregedor da Câmara, Bernardo Pereira de Gusmão, para que, sem
perigo, podesse entrar na Villa, corrigir e castigar as discordias
antecedentes que ameaçavam arruiná-la.
A furiosa insolência dos sediciosos chegou a impedir com mão armada
a entrada do dito Corregedor, pondo guardas que lh´a disputassem e o
opprimissem no logar, que por esse facto, se chamou e ainda hoje se
chama – Guardas
20
(Gomes da Silva; 1902: 708. Grifo nosso).
Segundo Gomes da Silva (1902: 708-9) e Dornas Filho (1956: 73), somente com a
severa administração de D. Pedro de Almeida, o processo de constantes motins e revoltas
foi encerrado. Para se contrapor à recusa do pagamento dos tributos pelos paulistas,
Almeida forneceu regalias, em forma de indultos, para aqueles que povoassem a região de
Pitangui; estabeleceu a criação de casas de fundição de ouro; sitiou a vila com tropas
governamentais; e declarou seqüestro dos bens e a “caça” aos líderes dos motins. A fuga
dos paulistas revoltosos, como Domingos do Prado, para outros sertões que prometiam
novas riquezas (Goiás e Mato Grosso), proporcionou nova fase a então Vila de Nossa
Senhora da Piedade do Pitangui, que no ano de 1855 foi elevada à categoria de cidade.
Com a chegada do Corregedor e devassa a que procedeu, desertaram os
revoltosos, internando-se pelos sertões de Goyaz, que principiava a
descobrir-se, sendo um dos chefes da revolta Domingos Rodrigues do
Prado, homem poderoso, de grande séqüito, dotado de prendas que o
recommendavam, como a de muito valor e experiência em penetrar os
sertões e conquista-los para descobrimento do ouro. Com a sua
ausência a terra ficou em paz (Gomes da Silva; 1902: 708-9).
20
Guardas e quartéis foram criados na região de Pitangui para conter o contrabando dos metais preciosos
retirados das minas. No final do século XVIII, dois quartéis se destacaram: o Quartel Geral do Espírito Santo
de Indaiá, que se tornou referência nas ações de fiscalização e guarda na região, e que deu origem ao atual
município de Quartel Geral, próximo às cidades de Dores do Indaiá e de Martinho Campos; e o quartel da
Ascenção, próximo ao córrego do Gentio, que por sua vez é próximo ao rio Abaeté (Dornas Filho, 1956: 92-
3. Grifo nosso).
32
Batidos em Pitangui pela dura mão de D. Pedro de Almeida, os
descontentes, a principiar pelo próprio Domingos do Prado, deixaram
as Minas atraídos pelas novas promessas que luziam além da serra da
Saudade, em direção dos Goiases (...) (Dornas Filho; 1956: 73).
A presença do “selvagem” na formação da região do Alto São Francisco
Apesar dos motins e revoltas terem sido controlados, a segunda metade do século
XVIII ainda foi marcada por muita violência na Vila de Pitangui. A descoberta acidental do
ouro no Batatal fez com que muitos moradores da vila, quando dos primeiros sinais de
esgotamento do ouro naquele lugar, investissem em descobrir nas terras vizinhas o ouro
procurado inicialmente pelos primeiros bandeirantes paulistas.
Logo depois da povoação desta Villa, Antonio Rodrigues Velho e seu
sogro – José de Campos Bicudo, penetrando os sertões d´aquem e
d´além do rio S. Francisco, buscando sua nascença, só encontraram
muitos índios bravos que trouxeram e que, mansos, viveram nesta terra
por muitos annos.
Algum tempo depois, Baptista Maciel, também paulista, tendo sahido da
Villa com o mesmo desígnio, fez roças e lavouras, nas cabeceiras do rio
S. Francisco para com mais facilidade explorar o sertão.
Os calhambolas estavam senhores desses logares, onde viviam em
grandes quilombos. Uma noite, acommettendo repentinamente ao dito
Baptista, o mataram e a muitos de sua comitiva, escapando apenas 18
ou 19 pessoas, que, feridos e maltratados, vieram em canoas pelo rio S.
Francisco a curar-se nesta Villa. Isto se deu no anno de 1750.
Os mesmos negros, tornando-se mais audazes, costumavam sahir em
tropas a offender e roubar os moradores deste districto pelas roças e
povoações de menos forças, passando também a inquietar os habitantes
dos termos das Villas de Sabará e S. José do Rio das Mortes. (...)
No anno de 1759, por ordem do Exm. Conde de Bobadella, então
Governador destas Minas, com auxilio e despeza das Câmaras,
Bartholomeu Bueno do Prado, filho de Domingos Rodrigues do Prado,
assistente nas minas do rio das Mortes, os destruio e conquistou. (...)
O Exm. Sr. Conde de Valladares foi o que mais se empenhou em
diligenciar o pretendido descobrimento daquelles sertões. Governando
estas Minas, fez sahir em 1770 do Paracatu várias bandeiras para esse
fim. (...)
Pelos fins do mesmo ano fez sahir o Capitão Ignácio de Oliveira
Campos, Commandante da Ordenança desta Villa, o qual, indo à sua
33
custa se recolheu no começo do anno de 1773, trazendo esperanças
mais animadoras. (...)
Nesse mesmo anno de 1773 se recolheu para Portugal o Exm. Sr. Conde
de Valladares e ficou suspenso o reconhecimento d´aquelle sertão, aliás
perigoso, não só pelos quilombos de negros fugidos, como pela má
visinhança do Gentio Cayapó
21
, que subindo das partes e capitania de
Goyas, patrulhavam e defendiam aquellas terras, chegando a offender
e sobressaltar os últimos moradores confinantes nas partes do rio S.
Francisco. (Gomes da Silva; 1902: 708-9. Grifos nossos).
Segundo Dornas Filho, a destruição dos “quilombos da margem esquerda do São
Francisco até os confins da Farinha Podre
22
”(1956: 74) resultou em maior conhecimento
21
À denominação Cayapó faz-se necessária uma breve reflexão. De acordo com os estudos de Terence Turner
(1992: 311), “Kayapó” é um nome de origem tupi, que significa literalmente “como macaco” ou “cara de
macaco”. Essa seria uma atribuição dada pelos portugueses e brasileiros colonizadores à ocupação indígena
na ampla região que abrange o norte do estado de São Paulo, extremo oeste de Minas Gerais, sul de Goiás,
Mato Grosso do Sul, Mato Grosso e sul do estado do Pará. Segundo T. Turner, o nome “Kayapó” atualmente
refere-se ao etnônimo de um povo indígena de origem jê que ocupa o norte do estado do Mato Grosso e sul do
estado do Pará, conhecidos como Kayapó setentrionais. A auto-denominação desse povo é “Mebengokre”,
que significa “gente do espaço dentro da(s) ou entre a(s) água(s)”. Esses são os Kayapó contemporâneos
amplamente divulgados na mídia nacional e internacional. No caso do uso da denominação Cayapó nas
citações históricas aqui registradas, esse nome remete ao que os estudiosos (Turner, 1992; Giraldin, 1997)
denominam de os Kayapó meridionais, ou seja, aqueles que habitaram o norte de São Paulo, oeste de Minas
Gerais (Triângulo Mineiro), sul e sudoeste do estado de Goiás, leste do Mato Grosso e leste e sudeste do atual
Mato Grosso do Sul (Giraldin; 1997: 57). Todavia, essa vasta região mapeada como ocupação kayapó possui
poucos dados etnográficos, o que dificulta a análise acerca da especificidade da atribuição dessa
denominação. Os dados pesquisados (Turner; 1992; Giraldin; 1997; Ataídes; 1998) não nos oferecem
informações suficientes para afirmarmos com segurança que essa denominação referia-se a um único povo. Se
aquela era uma denominação externa, atribuída por colonizadores, e que possui significado como “cara de
macaco”, é possível pensar no fato dessa ser uma referência a vários povos indígenas que possuíam apenas
fisionomia similar. Segundo Turner, “a aplicação dos mesmos nomes tribais a vários povos distintos, e de
nomes diferentes para o mesmo povo, tanto por parte dos escritores europeus quanto de informantes
indígenas, e a falta de esclarecimento, na maior parte das fontes, quanto aos critérios para identificar ou
distinguir os grupos a que se referem reflete muitas das confusões já registradas que assolam a pesquisa etno-
histórica em fontes dos séculos XVII, XVIII e até muitas do século XIX” (1992: 312).
Giraldin, em seu estudo sobre os Cayapó e Panará, apresenta e constata o vínculo entre os Cayapó
(Kayapó meridionais) e o povo Panará, que atualmente ocupa o sul do Pará. No entanto, esse estudo não
apresenta dados suficientes para afirmarmos que o coletivo populacional indígena identificado na literatura
como Cayapó ou Kayapó meridionais se configura como um só povo indígena.
Dessa forma, o registro do nome Cayapó nas citações do presente texto não nos permite aqui
afirmarmos que se refere a um povo específico, mas sim à presença indígena na região do Triângulo Mineiro,
que possuí vínculos com a presença e história indígena da região do norte de São Paulo, sul de Goiás, leste do
Mato Grosso do Sul e sul do Mato Grosso dos séculos XVII, XVIII e XIX.
22
“No início do século passado, esta região funcionou como o principal elo de ligação para tropeiros que
cruzavam as terras paulistas e mineiras em busca dos campos prósperos goianos. Estrategicamente - o local
que pode ser compreendido hoje como o antigo Sertão da Farinha Podre, limita-se entre as regiões do Alto
Paranaíba e Triangulo Mineiro. É estranho falar em Farinha Podre. Mas, era assim que os viajantes
encontravam presos em árvores pelos caminhos, o restante dos mantimentos deixados por tropas que
passaram pela região anteriormente. Na expectativa de um breve retorno, acondicionavam alimentos em certo
ponto da estrada; aliviando assim, o peso das bagagens. Boa parte dos tropeiros firmava residência pelas
34
da região e a fundação de várias povoações. Ainda, segundo esse historiador, o capitão
Inácio de Oliveira Campos retornou de sua expedição pelos sertões com mostras de ouro
que trouxera das vertentes dos rios das Velhas (rio das Abelhas), Paranaíba e Dourados; e
com a opinião de que as terras daqueles sertões “se prestavam para a agricultura e
pecuária”.
As terras eram férteis e saudáveis, as águas boas e abundantes.
Fez o capitão duas roças de milho e outros gêneros e os monjolos para
os moer, uma no ribeirão do Esmeril e outra no dos Pavões. Destruiu
um grande quilombo nas matas da serra Negra, onde também encontra
sinais de ouro. Prendeu mais de cinqüenta negros, e, entre estes, muitos
crioulos pagãos, os quais remeteu a seus senhores em Paracatu.
Tomou a Câmara de Pitangui posse daquele sertão, erigindo vários
marcos para memória, do que se lavraram termos.
Por algum tempo estiveram abandonadas aquelas terras, infestadas
pelos quilombos e o gentio Caiapó, cuja ferocidade afastava a
colonização.
Já ostentando um núcleo considerável de povoamento, Pitangui seria
em breve o entroncamento das estradas que ligavam o centro e o sul de
Minas a Goiás (Dornas Filho; 1956: 74. Grifos nossos).
A expansão da Vila de Pitangui adquiriu dinamicidade após terem sido controlados
os motins entre os colonizadores e iniciadas as frentes de destruição da “má vizinhança”
(Gomes da Silva: 1902: 709): indígenas e quilombolas.
Apesar de o povoamento da Vila de Pitangui ter se consolidado apenas no século
XVIII, dados da historiografia oficial registram o contato de indígenas, negros e
colonizadores na ampla região dos sertões de Minas Gerais (centro-oeste e triângulo
mineiro), desde o final do século XVI.
Sobre o triângulo formado pelo rio Paranaíba (Rio Mau, dos
indígenas), rio Grande (Juticaí) e rio das Velhas, que os primitivos
sertanistas chamavam de rio das Abelhas, passava em 1592 o capitão
Sebastião Marinho à frente da sua pequena bandeira de exploração,
destroçada pelos selvagens. (Tal é proximidade das zonas do Alto São
bandas goianas; e a outra, se aventurava em novas jornadas e desafios. Na maioria das vezes, não voltavam
pelo mesmo caminho da viagem de ida. Com a chegada de mais tropeiros e viajantes pelas estradas, o
encontro com alimentos estragados acabava se tornando inevitável. Por isso a denominação Sertão da Farinha
Podre. E nesta passagem de idas e voltas, cidades como Araxá, Uberaba e Desemboque, foram sendo
construídas vagarosamente” (Zaidan & Castro; 2004).
35
Francisco e Alto Rio Grande – a separação é apenas a lombada da
serra da Canastra – que a referência ao Triângulo Mineiro se impõe no
exame do assunto desta monografia).
Depois dessa primeira investida, outros sertanistas a percorreram em
várias direções, como João Pereira de Souza Botafogo, em 1596;
Domingos Rodrigues, Afonso Sardinha, André de Leon, Belchior Dias
Carneiro e Martim Rodrigues Tenório.
Mas, só em 1671, Lourenço Castanho Taques daria positivas notícias da
região, onde estivera anteriormente e atingira os sertões do Paracatu
que, aparentemente pobres de riqueza aurífera, só mais tarde seriam
povoados, ao influxo do ouro de Vila Boa. (...)
Entretanto, a presença dos selvagens e dos quilombolas do Tengo-
Tengo anulava qualquer tentativa de povoamento, como a daqueles
aventureiros que saíram de Tamanduá.
Aos quilombolas, desde 1675 se tentou exterminar, até que Lourenço
Castanho Taques, depois de bater os cataguá e araxá, os arremeteu e
esmagou em rude carnificina. (...) (Dornas Filho; 1956: 79-81. Grifos
nossos).
Apesar do contexto acima relatado remeter à região do Triângulo Mineiro e à região
noroeste do estado (Paracatu), a política de extermínio dos “selvagens” e quilombolas na
região vizinha – Pitangui –, ao que tudo indica, ocorreu de forma similar. Domingos Prado
e o capitão Inácio de Oliveira Campos são personagens comuns na história do Triângulo
Mineiro, Paracatu e Pitangui – história essa de combate às populações negras e indígenas,
que segundo Gomes da Silva, “estavam senhores desses lugares” (1902: 709).
Capitão Inácio foi o principal responsável pela formação do lugar denominado
Buriti da Estrada, atual município de Pompéu. Sobre a história de seu surgimento, Pierson
escreveu:
A mais velha trilha da área é a conhecida como “Velha Estrada Real”,
ao longo da qual boiadeiros viajavam de Montes Claros, na zona norte
de minas, para uma das cidades de mineração de ouro na parte sul do
Estado. Depois de passar a noite em Santo Antônio da Estrada [atual
Curvelo], a caminho do sul, geralmente alcançavam na noite seguinte o
local onde hoje se ergue Cerrado [cidade de Pompéu]
23
. A oeste desta
23
Conforme prática dos estudos de comunidades à época, Pierson adota denominações fictícias para as
localidades que estuda. No caso de “Cerrado”, porém, as referências a sua localização geográfica, a presença
da grande matriarca e, em especial, a sua antiga denominação real “Buriti da Estrada” não deixam margem a
dúvida de se tratar de Pompéu. Município de Pompéu: “Terra de Joaquina do Pompéu, figura histórica de
36
estrada abriam-se as chamadas ‘bocas de sertão’, cujos moradores
eram abastecidos por suprimentos trazidos em carros de boi do sul de
Minas. A cidade de Cerrado, portanto, cresceu como pousada dos
boiadeiros, localizada sob um pequeno bosque de buriti, no ponto de
encontro desta trilha de gado com outra que seguia para a oeste.
Durante longo tempo e antes de ser transformada em sede de distrito,
era conhecida como ‘Buriti da Estrada’.
Conforme esclarecido acima, a área onde se localiza Cerrado foi
tomada dos ameríndios e colonizada pelos europeus e seus
descendentes em princípios do século XVIII, pouco tempo depois da
descoberta de ouro e diamante em Minas. A zona constitui
originalmente a grande fazenda mencionada acima, supervisionada por
uma mulher [Dona Joaquina de Pompéu] que ganhou tal fama na região
que os detalhes de sua vida são ainda hoje vividamente lembrados.
Filha de um advogado português que se estabelecera anteriormente em
Vila Rica, casou-se aos 12 anos de idade. Seus quatro filhos e seis filhas
casaram-se mais tarde com descendentes de famílias que dariam
algumas das figuras mais importantes de Minas. Calculam-se hoje seus
descendentes em aproximadamente 7.000, alguns dos quais ocupam
altos postos na vida política e administrativa do Brasil. Pelo menos um
recente Presidente da República era aparentado com eles pelo
casamento. Juntamente com os descendentes de seus escravos,
agregados e outras pessoas que, de tempos em tempos, mudaram-se
para a comunidade e casaram-se com as famílias originais, os membros
deste grande grupo de parentesco que ainda permanecem na área
formam quase toda a população atual (1972: 63. Grifos nossos).
Tomada dos ameríndios, Pompéu se destacou na esfera política e econômica
regional. Apesar de Antônio Pompeu Taques ser mencionado na historiografia como o
fundador do sítio, foi através do capitão Inácio de Oliveira Campos e sua esposa, a famosa
matriarca Dona
Joaquina Bernarda da Silva de Abreu Castelo Branco, que o lugar
conhecido por Pompéu Velho ganhou fama.
matriarca de toda uma vastidão do Oeste mineiro, o município nasceu do Pouso dos Buritis, ponto de
parada das tropas na longa estrada de Montes Claros e Nordeste de Minas a Pitangui e litoral
Atlântico. Hoje é próspero município de agropecuária e pólo alcooleiro situado nos chapadões do alto São
Francisco, fazendo divisa com Abaeté, Martinho Campos, Pitangui, Papagaios, Curvelo, Felixlândia e Morada
Nova de Minas. A história do município remonta há mais de duzentos anos, mas somente em 1840 dá-se a
fundação do arraial por Joaquim Cordeiro Valadares. A matriarca do município foi Dona Joaquina Bernarda
Silva de Abreu Castelo Branco Souto Mayor, mais conhecida como Dona Joaquina do Pompéu. Em 17 de
dezembro de 1938, o então arraial do Buriti da Estrada foi elevado à categoria de cidade, emancipou-se de
Pitangui, com o nome de Pompéu em homenagem ao seu primeiro habitante, Antônio Pompéu Taques”
(Secretaria de Estado da Cultura de Minas Gerais; site da Assembléia Legislativa de Minas Gerais; dados do
município de Pompéu; 01/11/2004).
37
A fazenda do Pompéu de Dona Joaquina chegou a agregar vastas
extensões de terras onde hoje se situam os municípios de Abaeté, Dores
do Indaiá, Paracatu, Pitangui, Pompéu, Pequi, Papagaio, Maravilhas e
Martinho Campos. Ao morrer, em 1824, sua herança compreendia um
milhão de alqueires de terra, mais de 1.000 escravos, 53.932 reses de
criar, 9.000 éguas e 2.411 juntas de bois, além de jóias, ouro em pó e
em barra, baixelas de prata, que não foram declarados. (Mathieu, s/d,
15-16 apud Caldeira et alli; 1999: 57).
Após a doença que acometeu seu marido, deixando-lhe paralítico, Dona Joaquina,
contradizendo os costumes da época, assumiu e ampliou o latifúndio da família. A morte de
seu marido em 1799 fez com que a matriarca, que já havia sofrido um atentado, se
preocupasse ainda mais com a segurança da sua fazenda, proporcionando abrigo e proteção
a criminosos que desejavam escapar da aplicação da lei. Em troca, tais infratores
obedeciam as ordens da fazendeira.
De acordo com Dornas Filho:
A fazenda do Pompéo abastecia o centro aurífero das Minas com a sua
produção agrícola em grande escala, movimentando uma população de
centenas de pessoas. A tradição de família informa que a Casa-grande
contava quarenta quartos de dormir, todos afaiados a primor. (...) E no
sótão do sobrado, arsenais de armas para a defesa militar da fazenda;
prisões subterrâneas para escravos criminosos ou salteadores de
rebanhos. Dona Joaquina aplicava em pessoa os castigos, efetuava as
prisões e inquéritos, perdoava, indultava. E por tudo isto, o Pompéo
tornava-se asilo de trabalhadores honestos, que por acaso sofressem
vexames noutras fazendas, ou fossem perseguidos pela sanha dos
mandões políticos. Ali todos eram intangíveis (1956: 86-7).
O patriotismo de Dona Joaquina também proporcionou evidência à região de
Pompéu. Na Guerra da Independência em 1822, ela disponibilizou escravos, transporte e
alimentação para as tropas brasileiras que lutaram.
Com a morte de D. Joaquina do Pompéo
24
desagregou-se o grande
latifúndio, cujo território daria uns quatro ou cinco municípios; e a
extensa parentela, por sua vez, disseminou-se por toda a região,
esgalhando-se em inúmeras famílias como os Álvares, Silva, Abreu,
24
Dona Joaquina nasceu na cidade de Mariana/MG no dia 20 de agosto de 1752 e faleceu em 14 de dezembro
de 1824 (Catálogo dos arquivos privados do Arquivo Público Mineiro; 2005).
38
Contagem, Campos, Cordeiro, Valadares
25
, Vasconcelos, Oliveira,
Xavier, Capanema, etc (Dornas Filho; 1956: 88. Grifo nosso).
Da mesma forma que Pompéu, os municípios de Martinho Campos e Dores do
Indaiá, como áreas também vinculadas à antiga Vila de Pitangui, remetem sua formação à
presença indígena.
O Sr. Joaquim Zacarias Corgozinho
26
, escritor, natural de Martinho Campos,
destaca em uma de suas obras sobre a história de sua família e a história do município, a
presença de “índios bugres” na região.
(...) meu bisavô [paterno, João Corgozinho] apareceu doente suspeito de
morféia ou lepra. Foi a Pitangui que era a cidade mais adiantada da
época e ficou constatado que era mesmo lepra. Como naquele tempo
não tinha cura e o povo morria de pavor da doença, começou a
desprezá-lo. Ele, muito triste, sabendo de uma pequena tribo de índios
antropófagos na confluência dos rios São Francisco e Pará, um lugar
coberto de matas virgens de grande extensão, dirigiu-se para lá mesmo
sabendo que poderia ser devorado pelos índios bugres; o que seria
melhor que ficar no arraial desprezado, esperando a morte à míngua,
devorado pela lepra.
Partiu a pé num trajeto de 24 quilômetros aproximando-se da aldeia
naquele capoeirão de mato (1993: 07-8. Grifo nosso).
De acordo com o Sr. Joaquim, seu bisavô viveu cinco anos junto a essa “tribo”.
Segundo ele, a primeira reação dos indígenas foi tentar matá-lo. Contudo, em função da
intervenção de uma jovem nativa, filha do chefe, os indígenas entenderam, ao perceber que
ele estava doente, que seria necessário primeiro curá-lo para depois matá-lo, e só então
realizar o ritual da antropofagia.
Segundo o Sr. Joaquim, seu bisavô, após uma dieta especial e uso das ervas
selvagens ministradas pelos indígenas, ficou curado. Tendo vivido por cinco anos com
aquele povo, teria aprendido e se adaptado ao sistema indígena. Contudo, após sua cura,
sabia que precisava fugir. Com a ajuda da filha do chefe, ele seguiu para a então Abadia
25
Cordeiro e Valadares são famílias que disputam atualmente a área ocupada pelos caxixós em Pompéu.
26
Em fevereiro de 2004, entrevistei o Sr. Joaquim em sua casa, na cidade de Divinópolis. Naquela data, ele
contava 88 anos de idade e não possuía mais a visão. Ele e sua esposa foram extremamente gentis conosco
(equipe Funai). A eles, o meu agradecimento pela atenção e informações disponibilizadas.
39
(Martinho Campos); todavia, levou à força a jovem índia, que foi obrigada a se casar com
ele na pequena cidade. O retorno à aldeia somente teria acontecido quando João soube da
morte do chefe indígena. Segundo seu bisneto, “João, valente como era, retornou à morada
dos índios, tomou conta do imenso patrimônio e trabalhando na lavoura e pecuária, ali
desenvolvida por ele próprio, ficou rico e o homem mais respeitado em toda a região”
(Corgozinho; 1993: 08).
No segundo de seus três livros escritos sobre a história de Martinho Campos (este
ainda não publicado), o Sr. Joaquim também faz referência à presença indígena.
Segundo comentários oriundos dos meus antepassados que habitavam a
região no final do século XVIII, dois senhores trabalhavam no garimpo
da Vila do Infante, hoje Pitangui. Um deles era natural de Pernambuco
e se chamava Maximiano Alves de Araújo. O outro era de nacionalidade
portuguesa e se chamava Jerônimo Vieira de Alcântara. Informados de
que na região existia terra fértil, inclusive matas virgens, no início do
século XIX, influenciados pela Dona Luzia de Medeiros – e uma vez que
o garimpo já não lhes oferecia maior interesse – partiram para lá.
Adquiriram grandes áreas de terra boa e matas virgens. Sendo
Jerônimo Vieira de Alcântara lá pelos lados da barra do rio Pará com o
rio São Francisco, próximo de uma tribo de bugres e Maximiano Alves
de Araújo lá pelos lados do Junco. Isso tem tudo para ser verdade,
porque até hoje existem alguns Vieiras e Araújo no município de
Martinho Campos, remanescentes dos seus inúmeros descendentes.
Ambos tornaram-se grandes agricultores e criadores de gado (1998: 05.
Grifo nosso).
De acordo com a historiografia, Martinho Campos foi fundada no início do século
XIX, em função da decadência da atividade mineradora e da necessidade de alimentos para
a população regional. Dona Luzia de Medeiros, senhora da fazenda Monjolos, situada em
Martinho Campos, no limite com Dores do Indaiá, sabendo da fome que abatia a população
da mina de Pitangui, enviou carros de boi com alimentos, que foram vendidos rapidamente.
Devido ao sucesso do comércio, Dona Luzia passou então a repetir tais viagens.
Questionada sobre a qualidade das terras pelo português Jerônimo Vieira e pelo
pernambucano Maximiano Araújo, Dona Luzia respondeu positivamente; o que
proporcionou a fixação dos três fazendeiros no lugar que denominaram inicialmente por
Abadia, em homenagem à santa, e posteriormente denominado Martinho Campos, em
homenagem a um político natural daquele município (Cidades net; 2004).
40
A fundação do município de Dores do Indaiá também apresenta referência ao
enfrentamento dos colonizadores com povos indígenas.
Em 1764, o homem que veio a ser dos maiores fazendeiros, Inácio de
Oliveira Campos, extraordinária figura de sertanista e explorador,
obtém sesmaria nas vizinhanças do rio São Francisco, atingindo suas
terras o ribeirão dos Machados.
Outros vão penetrando por esse sertão: em 1769, é concedida sesmaria,
no sertão do Lambari a Felix de Abreu Lima e sua filha Maria de
Araújo Lima. Em seguida, surge a sesmaria de Francisco Dias dos
Santos, também no Lambari.
Nas cabeceiras do Picão, em pleno município de Bom Despacho,
estabeleceu-se primeiramente Luís Ribeiro da Silva, cuja fazenda veio a
ser arrematada, em 1770, por João Gonçalves Paredes, morador na
Vila de Pitangui. Ficava essa fazenda entre a de Domingos da Silva, a
de Nicolau Lopes, a de Francisco Dias da Silva e a de José Fernandes
Coura (também este da Vila de Pitangui); a fazenda deste último
localizava-se entre o Picão e o ribeirão dos Machados.
Afinal, estava também habitada a fazenda da Piraquara, junto ao rio
São Francisco, pelos seus primeiros moradores, os Costas: Francisco
Marques da Costa, José Marques da Costa, Antonio Marques da Costa,
além de vários vizinhos, como João Gomes de Carvalho, José de Souza
Ferreira, Domingos Gonçalves, Manoel Afonso Gonçalves.
Com a conquista e povoamento da margem direita do rio São
Francisco não foi difícil o avanço para a margem esquerda. (...)
Quase meio século depois da fracassada tentativa de Domingos Brito,
inicia-se realmente o povoamento além do São Francisco, isto é, do
território do município de Dores de Indaiá, com a entrada dos irmãos
da Costa Guimarães: Amaro, José, João e Joaquim da Costa
Guimarães. (...)
Os irmãos Costa Guimarães foram os pioneiros, os desbravadores, que
tiveram de enfrentar o gentil hostil e toda sorte de dificuldades
encontradas pelos primitivos criadores de fazenda. Mas não demoraram
a vir outros a estabelecer-se nas sobras de terras (Barbosa; 1964: 16-8.
Grifos nossos).
Abaeté, Candidé, Araxá, Cataguá, Xacriabá, Caiapó, Tocoió são alguns dos
etnônimos apresentados por Dornas Filho (1956: 79) que caracterizaram a diversidade
étnica do Alto São Francisco nas Minas Gerais dos séculos XVIII e XIX. No entanto, é o
gentio, selvagem, carijó, índio bugre, ameríndio, que caracteriza, de acordo com a
41
historiografia e conhecimento popular, a presença indígena na região da antiga Vila de
Pitangui, mais especificamente na confluência entre os rios São Francisco e Pará.
I.2) O etnônimo
Os documentos e textos pesquisados não registram o etnônimo Caxixó e a memória
social do grupo contemporâneo não registra informações sobre outro idioma falado por eles
além da língua portuguesa. Este fato inviabiliza, nos tempos atuais, a especulação acerca de
uma “tradução” ou atribuição de significado específico para o etnônimo.
A prática de tradução de nomes indígenas é registrada na historiografia desde o
século XVI, quando da chegada dos primeiros colonizadores ao país. O interesse por
compreender as línguas nativas motivou o interesse pelo conhecimento do significado das
autodenominações dos povos autóctones. Nesse contexto do conhecimento-aprendizado das
línguas indígenas, muitas foram as atribuões dadas pelos colonizadores a esses povos.
De acordo com estudos etnográficos, a maioria dos nomes indígenas
(autodenominações), quando passíveis de tradução para o português, freqüentemente
remetem ao termo “nós”, “gente”, “humano”; em oposição às denominações externas
atribuídas por outros grupos étnicos, que com freqüência significam “o outro”, “inimigo”,
“não humano”.
O cacique Djalma, quando questionado sobre o significado do etnônimo de seu
povo, responde: “Caxixó é caxixó, uai!”; “Caxixó somos nós” (1998). “Caxixó é da terra
mesmo. Do mesmo jeito que Deus criou o mundo, criou os caxixós aqui!” (Djalma,
21/09/2003).
O etnônimo, para ele, configura a afirmação da etnicidade de seu povo. Mantido em
“segredo” por muito tempo, somente no final da década de 1980, ele foi revelado à
sociedade nacional. Segundo o cacique, o processo de dominação e a acirrada disputa
fundiária na região foram os motivos que os caxixós mais velhos tiveram para orientar seus
parentes a não manifestarem o etnônimo, pois se afirmar indígena, intensificaria a ação
42
violenta dos donos de fazenda. Como estratégia de sobrevivência e permanência naquelas
terras, a “invisibilidade” foi uma das soluções criadas pelos caxixós.
Agora nós podemos falar que nós somos Kaxixó mesmo. Mas de
primeiro, a mãe falava, contava nós desde menino: ‘vocês fala assim:
índio caboclo da Várzea do Galinheiro, e não é! Nós chamamos é
Kaxixó. Mas não pode falar até hoje. Vocês não precisam inventar falar
isso, vocês vai ser morto! Não pode falar não!’ Nosso bisavô explicava
tudo (Caldeira et alli; 1999: 37).
A revelação do etnônimo e da história indígena ocorreu quando os caxixós sentiram
a ameaça concreta de dissolução de sua base territorial. Foi em uma reunião entre a
comunidade do Capão do Zezinho, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e Sindicato dos
Trabalhadores Rurais de Pompéu (STR) em 1986, que Djalma revelou a identidade
indígena de seu povo. Questionado sobre o direito de ocupar aquelas terras, ele afirmou:
“somos índios” (Caldeira et alli; 1999: 09).
O estudo realizado pelo Cedefes em parceria com ANAI (1999); o laudo de Santos
(2003) e o relatório técnico elaborado por Oliveira (2003) não apresentam informações
acerca de um momento específico para a revelação do etnônimo. Paraíso (1994), em seu
laudo para o órgão indigenista oficial, afirma que a origem do etnônimo é contemporânea, e
atribui sua criação a membros de entidades não governamentais que tiveram contato com os
caxixós na década de 1980. Segundo a antropóloga, Caxixó seria “uma forma sincrética de
Kaiapó (Ka) e Pataxó (xixó)”
27
, grupos indígenas com quem os caxixós teriam mantido
“intensa relação” (apud Santos; 2003: 113).
27
De acordo com o mapa etno-histórico de Curt Nimuendaju ([1944]1981), muitos povos indígenas da região
leste do Brasil possuíam ou possuem etnônimos com a terminação fonética “xó”: Monosó, Mapasó, Kaposó,
Kutasó, Kumanasó. Todos esses povos foram classificados por Nimuendaju como falantes da língua
maxakali, tronco lingüístico macro jê. Turner (1992: 313) ao citar Von den Steinen, apresenta o etnônimo
“Kayaxó”. Segundo Turner, “os Bakairi disseram a Von den Steinen que um grupo que chamavam de Kayaxó
tinha se unido a eles para expulsar os Suyá da região do rio Verde para o Alto Xingu. Von den Steinen
identificou esses ‘Kayaxó’ aos ‘Coroados’ dos relatos brasileiros, e equiparou ambos os termos a ‘Kayapó’,
mas parece nunca ter feito distinção entre os Kayapó setentrionais e meridionais. Seus relatos devem,
portanto, ser vistos como se referindo aos Kayapó meridionais, e não os setentrionais (Von den Steinen, 1894:
395-5).” No caso do etnônimo “Kayaxó”, não há dados lingüísticos que nos permitam afirmar se de fato
identificados como Kayapó, seu tronco lingüístico também seria macro jê.
A intenção de tal observação é apenas demonstrar que a construção fonética do etnônimo Caxixó não
se apresenta distante dos registros históricos de etnônimos no leste brasileiro.
43
A comunidade caxixó do Capão do Zezinho não confirma a afirmação apresentada
por Paraíso. Djalma, conforme relato descrito, atribui à sua mãe (Sérgia) o momento em
que ouviu o nome Caxixó pela primeira vez. Bem como Djalma, os principais
representantes caxixós atribuem a apresentação do etnônimo aos seus parentes mais velhos
ou então ao próprio cacique.
A afirmação de que o nome seria uma forma sincrética criada por membros de
organizações não governamentais, na opinião de Paraíso, implicaria na falta de
autenticidade do nome e conseqüentemente em dúvidas com relação à identificação
indígena Caxixó.
A discussão sobre autenticidade de etnônimos nos remete ao debate sobre
tradicionalidade. Para Paraíso, o fato de o etnônimo não constar nos documentos por ela
pesquisados e a possibilidade deste ser uma construção recente, seja ela intra ou extra grupo
étnico, implicaria na dúvida sobre sua identidade indígena.
No entanto, “a ausência de registros históricos de um etnônimo constitui elemento
insuficiente para a avaliação da condição étnica de um grupo social” (Santos; 2003: 113).
Várias são as lacunas, imprecisões e confusões presentes na historiografia oficial brasileira
no que diz respeito à história indígena (Turner; 1992; Carvalho; 1933; Gomes da Silva;
1902)
28
. Assim sendo, a ausência de registros oficiais não implica obrigatoriamente na
inexistência passada do grupo étnico.
Oliveira afirma em seu relatório sobre a identificação indígena caxixó que nada nos
permite “estabelecer uma igualdade entre verdade e fonte documental” (2003: 151). Se
28
Já no início do século XX, pesquisadores já apontavam para imprecisões das fontes historiográficas. Gomes
da Silva, em seu texto “Excavações ou apontamentos históricos da cidade de Pintanguy”, relata sua
dificuldade em realizar pesquisa documental sobre a região:
Aqui interrompe-se o manuscripto, precioso fornecedor desta notícia, bem que
sucinta, interessante, todavia, àquelles que se deleitam com as escavações do passado.
Pefunctorios e resumidos, com relação ao desdobramento de factos longamente
occorridos no decurso de três quartos de século, estes apontamentos históricos,
comquanto deficientes e incompletos, irradiam sobre os primodios da velha serrana uma
luz escassa, é verdade, mas em todo caso, preferível às burmas do desconhecido que,
porventura, a constituíssem filha espúria, enrubescendo se por não poder exhibir aos
olhos investigadores da história sua escriptura de perfilhação.
Com o auxillio daquelle documento podemos jornadear pelo dilatado estádio que
decorre de 1709 até 1798, sem que nos fosse de mister invocar a reminiscência dos
velhos, como aconteceu para poder prosseguir em nossa tarefa de 1798 por diante (1902:
711. Grifos nossos).
44
considerarmos o contexto da criação dos etnônimos, a busca em documentos oficiais
antigos torna-se ainda menos eficaz como instrumento de pesquisa e fonte da verdade
histórica. A ausência de dados oficiais sobre um povo indígena, além de representar a
possibilidade de imprecisão no trabalho de registro, pode apontar para a recriação de
etnônimos. Segundo Sampaio, inúmeros povos que vivenciaram um intenso processo de
reorganização social e étnica recriaram, no passado recente, suas designações étnicas. De
acordo com esse antropólogo, no nordeste brasileiro, muitos são os casos: Kapinawá,
Pankararé, Tingui-Botó, Wasu, Kambiwá, Atikum e Kantaruré. Segundo ele, nenhum
desses etnônimos possui referência em fontes históricas oficiais, pois “foram adotados em
tempo bastante recente e por meio de processos diversos de ‘escolha’ ou ‘descoberta’, dos
quais o mais comum parece ser o de consulta aos ‘encantados’ durante sessões xamânicas
ou de possessão associadas ao complexo ritual do Toré” (Sampaio; 1995: 245-246).
Oliveira (1993: 07) também destaca contextos em que chefes ou líderes históricos,
em função de seus poderes mágicos, conseguem promover a re-fundação da aldeia e o
‘encontro’ do ‘verdadeiro’ nome daquele povo, logo adotado como etnônimo.
O processo de recriar (inventar) nomes, ao contrário do que a expressão pode
imediatamente remeter, não caracteriza produção de falsas verdades ou de fatos gratuitos.
Segundo Pierre Sanchis, “inventar é pretender reencontrar a história” (1998: 09). Citando
Hobsbawn, ele afirma que “toda tradição inventada utiliza, na medida do possível, a
história como legitimadora das ações e como cimento da coesão grupal” ([1984] 2002: 21).
Inventar, em se tratando de uma análise sobre identidade étnica, seria um ato de “visitar” o
passado, um diálogo constante entre a memória e a descoberta.
A considerar que a identidade étnica não deve ser compreendida como um estado de
permanência, mas sim um processo dinâmico em constante elaboração, a invenção se
configura como o re-criar a história, não se caracterizando como ato fortuito e aleatório.
Dessa forma, a (re)criação recente de designações étnicas não deslegitima a autenticidade
da identidade étnica de um grupo. “Constituindo o nome uma criação individual ou
coletiva, sua autenticidade e a autenticidade do que representa independem da época de seu
surgimento, seja esta pré-colombiana, colonial ou pós-colonial” (Santos; 2003: 113-4).
45
Quando assumido pelo grupo, também independe da autoria de sua construção, seja ela
intra ou extra grupo.
Autêntico, o nome atribui identidade, unicidade de um grupo no campo da
alteridade. Ele remete à origem, ao nascimento e à individualização do ser coletivo. O
nome classifica, especifica, faz conhecer. No caso em estudo, o etnônimo enuncia a origem
indígena, até muito recentemente silenciada como estratégia de acomodação do conflito.
Sob a alcunha de “caboclos”, eles conseguiram garantir sua permanência nas terras de
origem e sua vida enquanto coletividade – situação esta que acreditam teria sido difícil
garantir mediante um confronto declarado.
Para os caxixós do Capão do Zezinho, o nome de seu povo foi apresentado por seus
antepassados (ainda que recentes), “portanto, sua designação étnica é um elemento da
tradição, cuja origem no tempo é indeterminada e, justamente devido a esse caráter, não
requer grandes explicações” (Santos; 2003: 114).
Ninguém sabe exatamente a origem do termo Caxixó, mas isso não afeta
os membros da coletividade. O que importa é que sabem perfeitamente a
opção política e social que o nome significa, que a aceitam e
incorporam (Oliveira; 2003: 172).
I.3) A história para além dos documentos
A documentação pesquisada (livros acadêmicos, documentos oficiais, registros
literários regionais – fontes primárias e secundárias) demonstra a inegável presença
indígena na confluência do rio São Francisco com o rio Pará desde o início da colonização.
Essa documentação possibilita a constatação de que o povoamento dessa localidade não
teve início com as bandeiras e que o processo de colonização impôs escravização e
espoliação aos povos nativos. Todavia, as informações referentes à presença de povos
autóctones nos documentos (textos) pesquisados são demasiadamente genéricas. Através
desse material, que não apresenta dados etnográficos específicos acerca dessa população
nativa, torna limitada uma compreensão acerca da vida desses povos.
46
Muitos tendem a supervalorizar as fontes escritas por acreditarem que elas
apresentam dados objetivos, neutros, simplesmente por estarem grafados. No entanto, a
comunicação escrita também possui em seu conteúdo a interpretação dos fatos daquele que
a produz. Afinal, toda informação é produzida por alguém, logo, representa um “olhar”
para os fatos.
Segundo Le Goff, a supervalorização do documento como texto e de seu significado
como “prova” de um acontecimento é antiga. No entanto, foi através da escola positivista,
no século XX, que o documento escrito triunfou como material de análise da história.
Nessa época, segundo ele, os princípios eram: “não há história sem documentos”; e “se dos
fatos históricos não foram registrados documentos, ou gravados ou escritos, aqueles fatos
perderam-se” (Lefebvre; 1971: 17 apud Le Goff; [1977] 2003: 529).
No entanto, de acordo com Le Goff, o método seguido pelos historiadores sofreu
uma mudança na segunda metade do século XX. A crítica acerca da definição limitada do
que é documento (apenas o que é escrito ou gravado) e a necessidade de contextualização
do material, fez com que o valor objetivo dado a esse tipo de material se tornasse um valor
relativo.
O documento é monumento
29
. Resulta do esforço das sociedades
históricas para impor ao futuro – voluntária ou involuntariamente –
determinada imagem de si próprias. No limite, não existe um documento-
verdade. Todo documento é mentira. Cabe ao historiador não fazer o
papel de ingênuo. Os medievalistas, que tanto trabalharam para construir
uma crítica – sempre útil, decerto – do falso, devem superar essa
problemática, porque qualquer documento é, ao mesmo tempo, verdadeiro
– incluindo talvez sobretudo os falsos – e falso, porque um monumento é
em primeiro lugar uma roupagem, uma aparência enganadora, uma
montagem. É preciso começar a desmontar, demolir esta montagem,
desestruturar esta construção e analisar as condições de produção dos
documentos-monumentos (Le Goff; [1977] 2003: 538. Grifos nossos).
Nesse sentido, torna-se fundamental não apenas a leitura do conteúdo escrito. É
necessário desmontar sua construção: o documento “deve ser estudado numa perspectiva
29
“O verbo monere significa ‘fazer recordar’, de onde ‘avisar’, ‘iluminar’, ‘instruir’. O monumentum é um
sinal do passado. Atendendo às suas origens filológicas, o monumento é tudo aquilo que pode evocar o
passado, perpetuar a recordação (...) O monumento tem como características o ligar-se ao poder de
perpetuação, voluntária ou involuntária, das sociedades históricas (é um legado à memória coletiva) e o
reenviar a testemunhos que só numa parcela mínima são testemunhos escritos” (Le Goff; [1977] 2003: 526).
47
econômica, social, jurídica, política, cultural, espiritual, mas, sobretudo, enquanto um
instrumento de poder” (Le Goff; [1977] 2003: 538).
Para que um documento possua valor é fundamental não isolá-lo do conjunto de
monumentos de que faz parte. Nesse sentido, os textos pesquisados constituem apenas uma
entre várias outras fontes importantes de informação.
A pesquisa de mestradoo teve como objetivo, claro, cotejar as fontes escritas
sobre a presença indígena na região tradicionalmente ocupada pelos caxixós. Nem
tampouco se dedicou a uma análise das condições de produção das fontes apresentadas.
Isso exigiria uma outra pesquisa, além de uma competência específica. No entanto, é
possível afirmar que as fontes que pesquisamos apresentam um “olhar” para a história, e
um “olhar” de quem detinha o poder do registro. Ainda que um rico material sobre o
passado, ele não responde muitas questões, principalmente aquela que diz respeito a quem
eram os povos originários daquele lugar.
Portanto, quando um grupo de pessoas, no tempo presente, alega ter ali “assentado
o seu passado, a sua história, a sua origem, como os caxixós têm feito, torna-se
fundamental ouvi-lo. Sua memória, suas lembranças são importantes fontes de
conhecimento. No entanto, dar voz aos caxixós implica em proporcionar uma polifonia
para o tratamento do conhecimento do passado, implica em “quebrar” o monopólio de
quem tem o poder de dizer. A constatação de uma pluralidade de saberes traz como
principal conseqüência o reconhecimento de um pluralismo de autoridade. Daí talvez a
resistência em ouvir para além da historiografia oficial: dividir conhecimento implica em
dividir autoridade, em dividir poder.
A memória não é oprimida apenas porque lhe foram roubadas suportes
materiais, nem só porque o velho foi reduzido à monotonia da repetição,
mas também porque uma outra ação, mais daninha e sinistra, sufoca a
lembrança: a história oficial celebrativa cujo triunfalismo é a vitória do
vencedor a pisotear a tradição dos vencidos (Marilena Chauí apud Bosi;
[1979] 1994: 19).
48
Tornar-se senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes
preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e
dominam as sociedades históricas. Os esquecimentos e os silêncios da
história são reveladores destes mecanismos de manipulação da memória
coletiva (Le Goff; [1977] 2003: 422).
A intenção aqui não é invalidar a historiografia oficial, mas relativizar seu poder. As
fontes escritas oficiais apresentam uma importante interpretação dos fatos, porém, em um
momento específico, localizado no passado – uma interpretação “congelada”, “cristalizada”
dos fatos. Elas representam o esforço de registro de um grupo específico em um tempo
determinado.
A memória coletiva, a memória oral, diferentemente, é dinâmica. Ela é “o que fica
do passado no vivido dos grupos, ou o que os grupos fazem do passado” (Nora apud Le
Goff; [1977] 2003: 467). Ela é uma “reserva crescente que dispõe da totalidade da nossa
experiência adquirida” (Bosi; [1979]1994: 47). A memória é viva; dialoga; comunica-se
com o presente e com o futuro.
A memória é um glorioso e admirável dom da natureza, através do qual
reevocamos as coisas passadas, abraçamos as presentes e contemplamos
as futuras, graças à sua semelhança com as passadas (Signa apud Le
Goff; [1977] 2003: 447).
“A lembrança é a sobrevivência do passado” (Bosi; [1979] 1994: 47); é o que
fazemos desse passado; como o recebemos, o sentimos, o compreendemos e o projetamos.
Nesse sentido, do passado fica o que possui significado para o grupo no presente – fica o
que significa (Chauí apud Bosi; [1979] 1994: 22).
Portanto, a memória, apesar de razão, também é emoção. A memória é muito mais
do que saber de cor, do que repetir dados, ela é construção. Sua função não é apenas reter,
mas elaborar. No presente, lembrar não é reviver, é refletir, compreender o agora a partir do
outrora; é sentimento, reaparição do ocorrido, não sua mera repetição (Chauí apud Bosi;
[1979] 1994: 20).
Na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir,
repensar, com imagens e idéias de hoje, as experiências do passado. A
memória não é sonho, é trabalho. Se assim é, deve-se duvidar da
sobrevivência do passado, “tal como foi”, e que se daria no inconsciente
49
de cada sujeito. A lembrança é uma imagem construída pelos materiais
que estão, agora, à nossa disposição, no conjunto de representações que
povoam nossa consciência atual. Por mais nítida que nos pareça a
lembrança de um fato antigo, ela não é a mesma imagem que
experimentamos na infância, porque nós não somos os mesmos de então e
porque nossa percepção alterou-se e, com ela, nossas idéias, nossos juízos
de realidade e de valor. O simples fato de lembrar o passado, no presente,
exclui a identidade entre as imagens de um e de outro, e propõe a sua
diferença em termos de ponto de vista (Bosi; [1979] 1994: 55. Destaque
da autora).
Nesse sentido, os relatos de memória não têm necessariamente que repetir os dados
apresentados pela historiografia oficial. As diferenças, muitas vezes presentes, entre o
escrito oficial e a memória oral ou entre as memórias de diferentes grupos não implicam
em falsidade de uma das fontes. Contextualizadas e analisadas, todas apresentam uma
compreensão dos fatos; no caso das memórias coletivas, elas representam a compreensão
do passado de um grupo a partir do seu presente, ou seja, sua releitura da vida.
Muitos grupos ainda lutam pela dominação da recordação e compreensão de sua
própria história. Silenciados pela historiografia oficial, eles lutam para conquistar o seu
passado. Como principal instrumento nesse percurso, eles possuem a memória social,
sobretudo, a oral. E nesse sentido, os fatos não se perderam simplesmente porque não
foram grafados – eles permanecem vivos através da memória.
50
Capítulo II - CAXIXÓ: UM POVO ASSUMIDAMENTE
“MISTURADO”
II.1) A Memória Social Caxixó
Segundo censo populacional realizado pela Funasa (Fundação Nacional de Saúde),
no ano de 2003, os caxixós totalizam 302 indivíduos nos municípios de Martinho Campos e
Pompéu, somados os habitantes das áreas rurais e urbanas. Contudo, segundo a
comunidade do Capão do Zezinho, o povo Caxixó extrapola em muito esse número.
Segundo eles, vários de seus parentes
30
, em função dos conflitos fundiários, partiram para
outras localidades nos estados de Minas Gerais e Goiás. Assim, apesar de haver um número
oficial para a população caxixó, ressaltamos que, em função da dispersão e de outras
questões relativas à identificação indígena, esse número é apresentado aqui apenas como
um dado referência e não como um número absoluto e exato.
A comunidade caxixó que ainda permanece na área rural de Martinho Campos e
Pompéu ocupa as margens do rio Pará, nas localidades conhecidas como: Capão do
Zezinho e Criciúma, margem esquerda do referido rio, área do município de Martinho
Campos; e Pindaíba e Fundinho, margem direita, área do município de Pompéu (ver anexo
IV). A soma das áreas atualmente ocupadas pelos caxixós nessas quatro localidades não
ultrapassa 40 hectares (Caldeira et alli; 1999; 30). O Capão do Zezinho concentra o maior
número populacional caxixó (101 indivíduos) dentre essas quatro áreas rurais e se
configura como área de referência da vida social do grupo.
As mulheres representam um papel de destaque na organização social e espacial da
comunidade do Capão do Zezinho. Vó Sérgia, vó Chica e Dona Antonieta são as figuras
centrais da atual organização do grupo. Elas caracterizam as três das quatro principais
30
Poder-se-ia afirmar que a categoria “parente” remete, no caso caxixó, aos descendentes diretos (filhos,
genros, noras, netos, bisnetos, etc) das quatro figuras centrais na atual organização social do grupo do Capão
do Zezinho: vó Sérgia, vó Chica, Dona Antonieta e Tonho Candinho (que serão apresentados mais adiante
nessa dissertação). No entanto, em função do atual momento de reelaboração da memória social, os caxixós
vivenciam o processo de construção de um novo olhar para seu passado. Nesse percurso, o conhecimento e o
mapeamento sobre quem são seus antepassados, e consequentemente, seus “parentes” contemporâneos, bem
como a inserção ou não destes no projeto étnico caxixó são partes constitutivas de um processo em plena
construção. Destacar uma lógica parental caxixó aqui seria demasiadamente precoce.
51
linhas de descendência responsáveis pela distribuição espacial das famílias caxixós nos
tempos atuais. A figura responsável pela quarta principal linha de descendência é Antônio
Cândido (Tonho Candinho).
A memória social caxixó remete a origem de seu povo ao período pré-colombiano
definido como o tempo “antes dos mil e quinhentos”, ou seja, antes do contato com os
colonizadores. Esse tempo, Djalma Vicente de Oliveira (69 anos), cacique caxixó, define
como pertencente à época do povo selvagem ou povo do mato. Apesar de difuso, esse
tempo é marcado por elaborações que refletem a compreensão nativa sobre a ocupação
territorial e a conformação social caxixó.
Segundo Djalma, enunciador oficial da memória do referido grupo étnico
31
, “antes
dos mil e quinhentos”, a origem de seu povo remete à presença de grupos familiares
caxixós distintos. Dentre esses grupos indígenas caxixó, ele destaca os grupos selvagens e
os grupos de aldeia. Os grupos selvagens ou povo do mato seriam aqueles que habitaram,
no passado antigo, lugares ermos, isolados, e que estabeleceram pouco contato com os
demais grupos locais. Os caxixós de aldeia seriam exatamente o seu oposto: aqueles que
estabeleciam contato com os demais grupos locais e que se mantinham fixados em áreas
descampadas às margens do rio Pará.
Ambas as margens desse rio foram, segundo a memória coletiva dos caxixós
contemporâneos, habitadas pelo povo do mato e pelo povo de aldeia. Contudo, à margem
direita do rio, os caxixós relatam a existência de sua aldeia mais antiga: Vargem (ou
Várzea) do Galinheiro, hoje um bairro da cidade de Pompéu
32
.
A margem direita do rio Pará, de acordo com o discurso do cacique, era habitada
por dois grupos caxixós: o povo da Mãe Joana (povo do mato, selvagem, bicho ou xavante)
e o povo da aldeia Vargem do Galinheiro. A margem esquerda, de forma análoga, seria
31
Muitas são as sociedades que possuem seus especialistas em memória. São os memorialistas ou
recordadores, segundo Ecléa Bosi ([1979] 1994) ou ainda homem-memória, segundo Le Goff ([1977] 2003).
Homens que são ‘a memória da sociedade’, simultaneamente depositários da história ‘objetiva’ e da história
‘ideológica’; personagens, que exercem na humanidade tradicional, o importantíssimo papel de manter a
coesão do grupo (Le Goff; [1977] 2003; 425).
32
“Segundo os Kaxixó, o local possui este nome por ter se transformado em local de passagem e
acampamento noturno de viajantes (tropeiros), que se alimentavam basicamente de farofa de galinha”
(Caldeira et alli; 1999: 27). De acordo com o Novo Dicionário Aurélio (versão eletrônica v 5.0.40, Positivo
Informática, 2005), os vocábulos vargem e várzea são sinônimos e significam: vale ou planície fértil e
cultivada.
52
habitada também por dois grupos: o povo Tio, que como o povo da Mãe Joana, é
identificado como povo do mato; e o povo Gentio, povo de aldeia.
De acordo com Djalma, foi na margem direita do rio que Mãe Joana (sua bisa
materna), principal ancestral presente na memória coletiva do grupo, foi raptada pelos
caxixós da aldeia da Vargem do Galinheiro. Mãe Joana, pertencente ao grupo identificado
como selvagem ou povo do mato ou ainda os xavantes da Mãe Joana
33
, povo bicho, teria
sido levada para Vargem do Galinheiro para se casar com um indígena caxixó de aldeia.
Tal casamento, ainda que possivelmente resultante de um rapto
34
, caracterizou a união
entre os dois grupos. De acordo com a memória caxixó, laços de parentesco entre eles
foram estabelecidos ou consubstanciados a partir desse momento.
Segundo o cacique, o povo Tio, na margem esquerda e o povo da Mãe Joana, na
margem direita, são classificados como povo do mato e apesar de ocuparem espaços
distintos, separados pelo rio Pará, eles mantinham contato entre si, o que configura,
segundo o cacique, a conformação de uma turma só.
Os Xavante da Mãe Joana com esses Tio era junto. É uns de lá e outros
de cá, você está entendendo? Um do outro lado do rio e outro de cá.
Quer dizer que os Tio com o povo da Mãe Joana conferia. (...) Eles
tinham contato um com o outro.(...) Os Tio são os Kaxixó Xavante de cá,
de Martinho Campos, entendeu? Era o mesmo povo da Mãe Joana. É a
mesma turma. (Djalma, 1998 apud Caldeira et alli; 1999: 31).
De forma análoga à ocupação da margem direita, o povo Tio seria o povo do mato,
povo selvagem (bem como o povo da Mãe Joana), e seu território de origem se estenderia
33
A utilização freqüente do nome “xavante” pelo cacique Djalma como uma das identificações atribuídas ao
povo da Mãe Joana foi compreendida pela equipe Cedefes/Anai (1999) como uma designação que
possivelmente compõe o imaginário caxixó sobre um povo indígena “isolado”, “índio bravo”. Provavelmente,
em função do seu contato com os movimentos indígenas, a literatura e acesso ao meio midiático, Djalma
associou, no contexto da dinamicidade histórica de elaboração e reelaboração da identidade étnica, o contexto
vivido pelo povo Xavante contemporâneo, habitante do estado Mato Grosso, ao povo da Mãe Joana. Nesse
sentido, não acreditamos aqui em uma associação do etnônimo a um contato ou vínculo do grupo indígena
caxixó da Mãe Joana com o povo Xavante. Ana Flávia Moreira Santos, antropóloga da Procuradoria da
República em Minas Gerais, compartilha dessa análise ao afirmar que: “paradigma brasileiro de índios ‘puros’
ou ‘bravos’, os Xavante representam a afirmação da etnicidade e da natividade, tomadas como qualidades em
si mesmas e incorporadas aos caxixós por meio do povo da Mãe Joana” (2003: 37).
34
Não necessariamente a forma rapto precisa implicar a ausência de um modo estabelecido de reciprocidade
matrimonial. Em algumas sociedades, o rapto pode ser consentido, ainda que de forma velada. Se regras
sociais referentes ao matrimônio não são possíveis de serem realizadas (como presentes, pagamento, festas,
etc), mas a união é considerada “ideal”, o rapto surge uma como solução: ele permite que o casamento seja
realizado sem que as regras sociais sejam desrespeitadas.
53
pela margem esquerda do rio Pará. Seu mais antigo ancestral é Antônio Luís Velho,
pertencente ao grupo dos caxixós da Vargem do Galinheiro, que teria migrado para outra
margem do rio e se unido ao povo Tio através do casamento.
Segundo Djalma, gentio teria sido uma denominação atribuída aos indígenas
caxixós da margem esquerda do rio Pará que se submeteram ao trabalho nas fazendas.
(...) E essa turma que ficou são os que aceitaram os fazendeiros mandar.
Então, o Tonho Luiz era chamado de gentio porque ele aceitou os
fazendeiros da Criciúma mandarem para ele. Mas a família dele não
aceitou. (...) Os que aceitaram chamam gentio. É o mesmo índio. Que é
um pouco ... eles eram tratados como gente, já não era índio, para o
fazendeiro falar para os outros: “cês é gente, gentio”. (Djalma Caxixó;
1998 apud Caldeira et alli; 1999: 35).
Categoria fortemente presente na historiografia oficial, “gentio” é uma palavra que
advém do latim gentivo, cujo significado dado pelos cristãos é nativo ou aquele que
professa a religião pagã, o bárbaro, o selvagem
35
. Essa é a definição nacionalmente
difundida. Todavia, ela foi estabelecida na historiografia pelos não índios. Como categoria
criada a partir do contato, ela retrata a compreensão (o olhar) do colonizador para com os
povos autóctones. A compreensão caxixó para o termo, porém, difere bastante do
significado cristão encontrado nos dicionários e textos literários. Como denominação
externa, ela adquire novo significado quando analisada sob a perspectiva nativa. Para os
hebreus, por exemplo, gentio significa estrangeiro
36
. Para os caxixós, aqueles indígenas que
conviveram com os não índios (com os “estrangeiros”) certamente apresentaram um
distanciamento da vida “selvagem” do povo do mato. O que torna então compreensível a
atribuição de gentio como uma oposição ao termo povo do mato.
A origem do povo caxixó é então apresentada pelo grupo étnico contemporâneo
como composto por quatro distintos grupos caxixós que dominavam as margens do rio
Pará: Índios da Vargem do Galinheiro, povo da Mãe Joana, povo Tio e povo Gentio
37
.
35
Fonte: Novo Dicionário Aurélio, versão eletrônica 5.0.40, Positivo Informática, 2005.
36
Fonte: Novo Dicionário Aurélio, versão eletrônica 5.0.40, Positivo Informática, 2005.
37
De acordo com Santos (2003: 41), antropóloga autora de um dos laudos referentes à identidade indígena do
povo Caxixó, os termos utilizados para identificar os grupos não por acaso expressam uma relação de
afinidade ou aliança: tio, mãe, vó. Os próprios nomes remetem às situações de união e parentesco entre os
grupos caxixós da margem direita e margem esquerda do rio Pará.
54
Margem direita
(Pompéu)
Margem esquerda
(Martinho Campos)
Mãe Joana (Povo do Mato) Tio (Povo do Mato)
Índios caboclos da Vargem do Galinheiro
(Povo de Aldeia – descendentes do povo da
Mãe Joana e do povo da Tia Vovó)
Gentio
(Povo de Aldeia – descendentes do povo da
Mãe Joana, do povo da Tia Vovó e do povo
Tio)
A mistura
O episódio do rapto de Mãe Joana possui extremo significado na compreensão da
conformação social caxixó. Como já destacamos, seu casamento e fixação na Vargem do
Galinheiro caracterizaram importante aliança entre o povo do mato e o povo de aldeia. No
entanto, seu casamento não significou apenas a união entre os dois grupos indígenas, mas a
inserção marcante de um terceiro grupo nas relações de parentesco caxixó: o povo do
Governo.
Mãe Joana se casou na Vargem do Galinheiro com um caxixó de nome Fabrisco (ou
Fabrício), filho de Tia Vovó (ancestral caxixó mais antiga presente na memória social do
grupo) com um dos filhos da notória matriarca local Dona Joaquina de Pompéu e do
capitão Inácio de Oliveira Campos, casal responsável pela colonização da região.
Oh, vocês querem saber? O primeiro filho do Governo – que o capitão
Inácio de Oliveira Campos com a Dona Joaquina – adquiriu um filho lá
com os índios Kaxixó da Vargem do Galinheiro... Que a mulher,
chamava Tia Vovó, criou um filho com nome de Fabrisco. É o primeiro
neto do Governo. (...) Primeiro neto do Governo, índio Kaxixó, mas
primeiro era da mesma família, primeiro era neto do capitão Inácio de
Oliveira Campos, que fez a capital do estado de Minas Gerais, que é o
Pitangui. É o primeiro neto da Dona Joaquina para ele levar uma turma
de Kaxixó lá para o Buriti da Estrada para ele formar o boteco. E então
hoje o povo já conhece a cidade, que é grande. Aí, já têm as histórias
nossas agora dentro da lei de Kaxixó... É que vem a complicação: nós’
Kaxixó já desse cruzamento no [crispir (?)] com o povo mesmo da
55
Dona Joaquina, com o Governo (Djalma Caxixó, 1998 apud Caldeira et
alli; 1999; 31-2)
38
.
Fabrisco, “primeiro neto do Governo”
39
, marca a inserção de um novo grupo social
nas relações de parentesco caxixó. A considerar sua ascendência paterna não indígena, sua
união com Mãe Joana dá início ao processo conhecido como miscigenação
40
.
Fabrisco (neto do governo) e Mãe Joana (povo do mato) estabeleceram sua união
em um espaço de aldeia – junto ao grupo de indígenas caxixós da Vargem do Galinheiro.
Este é um importante momento que caracteriza a constituição e formação do grupo caxixó
contemporâneo na margem direita do rio Pará. Tão importante quanto os dois grupos de
caxixós, o povo do Governo, identificado como a família de Dona Joaquina de Pompéu e
do capitão Inácio de Oliveira Campos, simboliza o início do processo de colonização e
dominação dos caxixós pelos não índios.
Segundo a memória social do grupo, o capitão Inácio, ao iniciar seu processo de
colonização na Vila de Pitangui, teria primeiramente tentado construir a sede de sua
fazenda em área de domínio dos caxixós da Vargem do Galinheiro. Em função da
38
Os destaques contidos nos depoimentos transcritos nesse trabalho implicam em ênfase dada por mim por
considerar a informação relevante para a análise, não representando assim qualquer ênfase dada pelo
entrevistado.
39
Capitão Inácio era neto de Antonio Rodrigues Neto, figura legendária, também conhecido pelo nome
“Velho da Taipa”. Antonio Rodrigues foi um dos primeiros bandeirantes a chegar em Pitangui, tornando-se
capitão-mor. Quando da 1ª Câmara da Vila, fez-se eleger juiz ordinário, juntamente com um seu parente,
Campos Bicudo, e com Fortunato Lopes Cançado, eleitos vereadores. No século XVIII, os municípios de
Martinho Campos e Pompéu faziam parte da antiga Vila de Pitangui. Atualmente, Martinho Campos e
Pompéu são dois dos municípios limítrofes da cidade de Pitangui, que dista 153 km da capital mineira, Belo
Horizonte. Capitão Inácio, desbravador na região do Triângulo Mineiro, Paracatu e Pitangui, foi um dos
principais responsáveis pela fundação de Pompéu. De acordo com os dados do IBGE, “o início da povoação
deve-se ao paulista Antônio Pompeu Taques, em uma sesmaria onde se instalou com uma fazenda designada
Pompeu, mais tarde vendida ao capitão Inácio de Oliveira Campos. O primeiro nome do arraial foi Buriti da
Estrada, devido à abundância de buriti na região. Em 1784, o capitão Inácio desenvolveu a fazenda, atraindo
várias pessoas para o povoado. Seu genro, Joaquim Cordeiro, em 1840, doou grande área para a construção de
casas, iniciando também a construção da primeira capela. No lugar, hoje se encontra a Santa Casa de
Misericórdia. O topônimo Pompéu foi homenagem ao pioneiro da povoação” (IBGE, Monografia – Nova
Série – nº 278; 1985). Nesse sentido, torna-se compreensível a vinculação estabelecida por Djalma entre
capitão Inácio e povo do Governo, grupo local que detinha poder.
40
Cientes da ambigüidade e das implicações ideológicas de tal conceito, limitamo-nos a utilizar apenas seu
sentido populacionista, como assim define Kabengele Munanga. Segundo esse estudioso, a mestiçagem, sob
esse aspecto (populacionista), pode ser definida “como uma troca ou um fluxo de genes de intensidade e
duração variáveis entre populações mais ou menos contrastadas biologicamente” e pode ser entendida como
“um fenômeno universal ao qual as populações só escapam por períodos limitados” (1999: 17).
56
resistência indígena, ele teria desistido e construído a sede de sua fazenda no local
conhecido como Pompéu Velho.
Segundo Djalma, o capitão Inácio somente teria conseguido se fixar na região de
Pompéu porque teria trazido consigo grande contingente de escravos negros e indígenas,
pois seu povo impusera resistência ao processo de colonização. No entanto, após a morte
do capitão
41
, Dona Joaquina, temerosa pela segurança de sua fazenda, instaurou nova
estratégia de dominação: o aliciamento dos indígenas caxixós da Vargem do Galinheiro.
Treinados em uma escola para jagunços criada por ela na fazenda Quati, os caxixós
aliciados tornaram-se mão-de-obra no trabalho de proteção às propriedades e família de
Dona Joaquina. Sob a imposição da lei de jagunço, eles foram treinados para serem
“matadores”, capitães do mato, tendo sido responsáveis por assassinatos inclusive de
importantes líderes indígenas de seu próprio povo.
Os caxixós da Vargem do Galinheiro que foram aliciados por Dona Joaquina
passaram a ser denominados por seus parentes como índios caboclos. E segundo Djalma,
eles foram fundamentais na garantia do domínio dos não índios na região. Segundo ele, se
capitão Inácio conseguiu manter seu poder na região “com a ajuda dos negros”, Dona
Joaquina o fez “com a ajuda dos índios caboclos” (Caldeira et alli; 1999: 33).
Fortemente presente na memória social caxixó, a família do capitão Inácio não se
caracteriza apenas como símbolo de poder e dominação, mas como importante ancestral na
constituição da genealogia caxixó (Caldeira et alli; 1999: 33). O nascimento de Fabrisco,
filho de uma índia caxixó com um dos filhos de Dona Joaquina, marcou o início do
processo de miscigenação desse povo indígena, que identifica o “povo do Governo” como
grupo importante na sua constituição enquanto coletividade.
A miscigenação - inserção de ascendência não indígena – e a jagunçagem
caracterizaram o que os caxixós definem como o início da lei de Caxixó. A dominação de
Dona Joaquina de Pompéu sobre esse povo e sua inclusão como ancestral do grupo étnico
impôs o surgimento de uma nova realidade social. Para se adequarem a ela, os caxixós
tiveram que se reorganizar para conseguirem se manter enquanto tal na região. A lei de
41
Ocorrida em 1799, conforme descrito anteriormente.
57
Caxixó implica na transformação dos indígenas, que então viviam como “senhores
daquelas terras”, em indígenas trabalhadores, empregados (Caldeira et alli; 1999: 33).
“A fazenda do Pompéu de Dona Joaquina chegou a agregar vastas extensões de
terras onde hoje se situam os municípios de Abaeté, Dores do Indaiá, Paracatu, Pitangui,
Pompéu, Pequi, Papagaio, Maravilhas e Martinho Campos” (Mathieu, s/d, 15-16 apud
Caldeira et alli; 1999: 57). Dona Joaquina e capitão Inácio destinaram essa vasta extensão
de terras à atividade de agropecuária, onde muitos caxixós iniciaram seu trabalho como
vaqueiros e agricultores.
Como trabalhadores nas fazendas ou como jagunços, os caxixós conviveram
intensamente com a população escrava (negra e indígena) mantida até a segunda metade do
século XIX por Dona Joaquina. “Índios carijós” (indígenas escravos trazidos para a região
com os bandeirantes)
42
e os negros escravos, somados à população indígena caxixó,
constituíam a principal parcela da mão-de-obra das fazendas.
Ao compartilhar a situação de submissão, os caxixós estabeleceram também com a
população cativa laços de parentesco. Através do casamento, caxixós e negros escravos
estabeleceram o que denominamos de a segunda “mistura” na composição da genealogia do
grupo étnico.
Enquanto eram só os negros que eram africanos, eles [os fazendeiros]
não misturou de jeito nenhum. Eles deixaram os negros casarem com as
índias. Daí, os filhos de negros com índios, que já eram bonitos, que os
Cordeiro entrou. Os Cordeiro contavam é com índio, não é com negro,
não. Já é trem cruzado, cruzado com índio (Djalma Caxixó, 1998 apud
Caldeira et alli; 1999: 50).
Misturou. Era para ser raça de negro. Meu avô é com negro. Mas eu sei
que eu não sou negro. Sou misturado com os negros também. É como se
eu fosse neto de negro. Isso é, fica em segredo: neto de negro. Sei a
história dos negros. Convivi com os negros, criado com os índios e os
brancos. Então, a história dos brancos eu sei tudo. (Djalma Caxixó, s/d
apud Caldeira et alli; 1999: 50).
42
“Carijó – originalmente um grupo guarani específico, o termo passou a referir-se aos cativos guaranis em
geral e, gradativamente, a designar qualquer índio subordinado, a despeito de sua heterogeneidade étnica. Nas
regiões de Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso, o termo designa o escravo indígena para diferenciá-lo do
escravo africano” (Códice Costa Matoso; 1999, V: 2, p: 83). Sobre a escravidão indígena em Minas Gerais,
ver Venâncio; 1997.
58
A presença dos “índios carijós”, outra categoria étnica, também caracteriza o
processo de constituição do grupo caxixó contemporâneo. Segundo Djalma, Mãe Joana e
Fabrisco tiveram quatro filhos: Chico Fabrisco; Maria Parada; Tia Vovó (neta) e Antônio
Pio. Segundo o cacique, foi através do casamento de Chico Fabrisco que a união entre
Caxixó e “carijó” foi consolidada.
Chico Fabrisco se casou com Isabel Cristina, então identificada como “índia carijó”,
e tiveram sete filhos: vó Sérgia – mãe de Djalma –, Alita, Maria Edite, Antônio, Altair,
João (conhecido como João Isabel), José e Maria (Caldeira et alli; 1999: 34). A inserção
“carijó” nas relações de parentesco com os caxixós pode ser denominada como constituinte
então da terceira “mistura”
43
.
Além desses três grupos (povo do Governo, negros escravos e “índios carijós”), os
caxixós ainda atribuem a um quarto grupo a construção de sua identidade étnica: os
caboclos d´água.
Seres fantásticos, os caboclos d’água representam a total rejeição ao
contato com os “brancos”. Refugiando-se nas águas do rio Pará, eles
são descritos como homens de estatura muito baixa, corpo coberto de
pêlos e braços muito fortes. Habitando algumas locas às margens do
rio, eles teriam aprendido a sobreviver tanto na terra quanto embaixo
d’água.
Informantes kaxixó descrevem alguns casos, situados no tempo atual,
relacionados a estes seres. Segundo eles, no intuito de brincar com seus
parentes, eles balançam as canoas, assustando as pessoas, tendo, uma
vez, o marido de Nega Kaxixó cortado quatro dedos de um deles com
um facão.
Descritos como homens que nadam como peixes, surgindo apenas para
algumas pessoas, eles seriam possuidores de uma fala ou língua
43
Oliveira destaca em um de seus textos contexto similar vivido pelos povos indígenas no nordeste do Brasil:
A população indígena desta região sofreu um profundo e persistente impacto
econômico e sociocultural por parte dos empreendimentos econômicos e religiosos que
viabilizaram a ocupação dos sertões e a expansão territorial dos domínios
portugueses. Logo, para as etnias que sobreviveram só restaram dois caminhos: ou
buscaram temporariamente áreas de refúgio, algumas vezes coexistindo com
quilombos e sertanejos, até que viessem a ser incomodados por novas pretensões
territoriais das fazendas e dos pequenos agregados urbanos, ou foram logo
incorporadas pelo processo civilizatório – insuladas (isto é, reunidas,
reterritorializadas e disciplinadas pelas missões religiosas) ou colhidas na sua
capilaridade (isto é, fragmentadas em famílias e coletividades acabocladas ou
destribalizadas) (1999: 110-1).
59
específica. Todavia, isto não teria impedido a comunicação entre eles e
seus parentes Kaxixó, pois são capazes de se fazer entender ou de serem
entendidos.
Símbolos da máxima resistência Kaxixó frente aos colonizadores, os
“caboclos d’água” teriam estabelecido a união e a integração
territorial entre os descendentes do “povo Tio”, ou “índios da
Criciúma”, e os descendentes do “povo da Mãe Joana”, que resultam
da união dos “índios caboclos” com “o povo selvagem”. Ambos os
grupos teriam “cruzado” com estes seres fantásticos nas águas do rio
Pará, compondo um grupo desconhecido (Sampaio apud Caldeira et alli;
1999: 48).
Habitantes de locas situadas nas margens do rio Pará, os caboclos d´água teriam
três lugares de morada: Pindaíba (entre o rio do Peixe e o córrego Pari, margem direita do
Pará); Baianço ou Cavinha (Volta do Paraguai até o rio São Francisco, na margem esquerda
do Pará); e Itaoca (também na margem esquerda do Pará, entre a Volta do Paraguai até a
ilha da Batateira).
Os caboclos d´água parecem representar a total rejeição à colonização. Eles
proporcionam o fortalecimento da união entre os caxixós da margem esquerda e da margem
direita do rio Pará, bem como a união entre povo do mato e povo de aldeia. “Intocados pela
história, [eles] persistem, apesar dela e dentro dela, como seres míticos” (Santos; 2003: 43).
E novamente através do elo do casamento, novas alianças foram (são) estabelecidas no
processo dinâmico de elaboração da identidade étnica caxi
44
.
É tudo cruzado. Então, a história é bem complicada. Pega lá no mato,
daí sai... (Djalma Caxixó, 1998 apud Caldeira et alli; 1999: 15).
Dessa forma, povo da Mãe Joana, índios caboclos da Vargem do Galinheiro, Tio e
Gentio constituem os vários grupos familiares caxixós que “misturados” ao povo do
Governo, aos negros escravos, índios carijós e aos seres míticos Caboclo d´água
44
Mitos de outras regiões também incluem a figura do caboclo d´água como personagem. Na região do rio
São Francisco, bem como em outras regiões brasileiras (região do rio Juruá, no Acre, por exemplo), existem
mitos do caboclo d´água (Araújo, 2004). Apesar de apresentarem características similares (seres pequenos,
corpo coberto de pêlos, moradores de locas, que assustam os pescadores balançando suas canoas), esses seres
míticos possuem especificidades no caso caxixó. Em especial o fato de definirem sua origem: eles são aqueles
indígenas caxixós que, para fugirem do aliciamento, tornaram-se, então, seres encantados nas águas do rio
Pará.
60
consolidam a história de formação do povo Caxixó contemporâneo, um povo feito de
“misturas”.
II.2) A Memória Indígena sobre a Terra
O passado
Conforme já mencionado, o povo Caxixó possui como território tradicional as
margens do rio Pará, região dos municípios de Martinho Campos e Pompéu. Segundo
Djalma, o povo da Mãe Joana ocupava a margem direita do referido rio desde que “Deus
criou o mundo” (depoimento em 04/02/2004); o que implica em remeter a origem de tal
ocupação a um tempo mítico.
Nesse tempo, os grupos caxixós se dividiam por dois critérios principais: familiar e
espacial. Geograficamente, existiam então dois grandes grupos: aquele que ocupava a
margem direita do rio Pará e aquele que ocupava a margem esquerda. Cada margem do rio,
de forma análoga, possuía também dois distintos grupos familiares caxixós: povo do mato e
povo de aldeia, correspondendo assim aos nativos da região.
A categoria Gentio surge no período da colonização da região em função do contato
com os novos ocupantes daquelas terras: os fazendeiros (os “estrangeiros”). Sobre esse
momento, o registro da memória social caxixó apresenta narrativas específicas para o
processo vivido em cada margem do rio.
Segundo a narrativa de Djalma
45
, teria sido ainda no século XVII, através das
bandeiras – “picadas” – realizadas na região central de Minas Gerais, que os caxixós teriam
tido os primeiros contatos com os primeiros “estrangeiros”. Segundo a memória social da
comunidade do Capão do Zezinho, seus antepassados foram atacados inúmeras vezes nesse
45
A comunidade do Capão do Zezinho delega a Djalma o papel de fiel depositário da trajetória histórica e da
identidade étnica caxixó. Homem admirado por sua capacidade de memorizar fatos, nomes e datas, Djalma se
caracteriza como o principal informante autorizado pela comunidade a falar e apresentar a memória social de
seu povo àqueles que indagam a respeito. “Uma pessoa profundamente admirada por sua ‘inteligência’, por
sua habilidade em ‘contar as histórias’, pela idade avançada e por ser nativo dali, reconhecido como o maior
conhecedor das pessoas, dos lugares e das ervas do mato. Em suma, Djalma goza de ampla e plena
legitimidade, admiração e respeito, atitude compartilhada por parentes moradores das cercanias” (Oliveira;
2003: 172).
61
período, o que causou o surgimento da resistência ao processo de colonização na região,
que se iniciou pela margem direita do rio Pará.
Segundo o cacique, o capitão Inácio, antes de se casar com Dona Joaquina e tendo
como base a já consolidada colonização de Pitangui, havia realizado algumas tentativas de
povoar a região de Pompéu e Martinho Campos. Todavia, a resistência indígena dificultou
sua fixação (Caldeira et alli; 1999: 19).
O capitão Inácio e o Tonho Taco, ou Pedro Taco, filho do pai de Dona
Joaquina, faziam casa para fazer o estado de Minas Gerais e os índios
desmanchavam (Djalma Caxixó - depoimento não gravado - 17/01/1999
apud Caldeira et alli; 1999: 20).
No entanto, a narrativa caxixó revela que no século XVIII, após a vitória e
instalação da família Oliveira Campos na região de Pompéu, o povo Caxixó não teria mais
conseguido manter resistência ao domínio dos colonizadores. Em função da persistência e
do grande contingente de escravos que lutavam a seu favor, o capitão Inácio teria
conseguido “esbagaçar” o povo Caxixó.
Quando ele esbagaçou os índios com os negros, ele foi para Portugal e
falou com o rei lá que podia mandar os fazendeiros para essa terra
porque só existia bicho. Bicho eram os Kaxixó. Aí, eles vieram para
Pitangui e foram esparramando os fazendeiros... Nesse entremeio, o
capitão casou com Dona Joaquina e fez casa para Pompeu Velho [pai
de Dona Joaquina] no pé da serra, e depois construiu o sobrado. Fim
de semana saía de Pitangui e vinha para cá... Aí ele entrou na parte
selvagem, que já estava tudo para o mato. Ele esbagaçou os que eram
ativos, da Várzea do Galinheiro, e, os que ficaram, a Dona Joaquina
combinava. E ela pôs eles para trabalhar na terra e como jagunço
(Djalma, 17/01/1999 apud Caldeira et alli; 1999: 20).
É o Governo [refere-se ao capitão Inácio]... Antes de casar, é ele que
esbagaçou os Kaxixó. (...) Foi o Governo com os bandeirantes (Djalma;
14/12/1998 apud Caldeira et alli; 1999: 20).
Djalma entende esse período como uma grande guerra, em que muitos de seus
antepassados foram mortos. Segundo ele, essa foi a primeira matança dos indígenas
caxixós.
62
O cacique remete a esse momento da história a explicação para o desaparecimento
do etnônimo de seu povo. Segundo ele, o capitão Inácio, com a “ajuda de mil negros” e dos
“índios carijós”, exterminou (“esbagaçou”) parte de seu povo e escravizou muitos de seus
parentes. Inseridos na população cativa, os caxixós foram misturados aos outros indígenas e
negros escravos, tendo sua identificação associada ao genérico nome “carijó”. A primeira
matança, na memória caxixó, foi a responsável então pelo início de um processo de
“invisibilidade” étnica vivida pelo grupo.
A segunda matança, segundo o cacique, ocorreu através de um ataque, uma tocaia,
da família de Dona Joaquina ao povo Caxixó alguns anos depois. De acordo com a
memória indígena, essa tocaia ocorreu em um território que se estende desde a curva do rio
Pará, identificada como curva do Paraguai (ou Volta do Paraguai)
46
, até o rio Paraopeba
(ver anexo IV). Segundo Djalma, como o confronto foi através de uma tocaia, a família de
Dona Joaquina e o capitão Inácio não precisaram de grande contingente de escravos: “eles
só precisaram de 40 negros para matar os caxixós” (Djalma, 04/02/2004).
Os caxixós da Vargem do Galinheiro, segundo Djalma, não foram alvo dessa tocaia,
pois já havia se consolidado, nesse período, a união entre os caxixós dessa aldeia e o “povo
do governo”: Fabrisco (Fabrício) seria neto de Dona Joaquina e capitão Inácio, e por viver
na Vargem do Galinheiro, esta aldeia teria sido poupada do ataque
47
.
Segundo Djalma, três caciques caxixós definiam o domínio indígena das terras às
margens do rio Pará no período da colonização: um deles dominava a curva do Paraguai
descendo o referido rio. Essa foi a área de domínio do cacique Cambino, assassinado por
jagunços caxixós a mando de Dona Joaquina. O segundo cacique dominava a curva do
Paraguai subindo o rio Pará. Este também foi assassinado, segundo Djalma, por jagunços
46
Os córregos do Salobro e do Penedo deságuam no rio Pará no ponto identificado pelos caxixós como Curva
ou Volta do Paraguai. O sítio Itaoca também está localizado na referida área.
47
De acordo com Aguiar (s/d), Dona Joaquina e o capitão Inácio tiveram dez filhos: Ana Jacinta, Félix, Maria
Joaquina, Jorge, Joaquina, Isabel, Inácio, Anna Joaquina, Antônia e Joaquim, todos com sobrenome Oliveira
Campos. No entanto, “o fato de Inácio e Joaquina serem ou não avós de Fabrisco permanece no campo das
possibilidades históricas. A afirmação do elo genealógico, contudo, contem sentidos que não podem ser
desprezados” (Santos; 2003: 34). Afinal, os caxixós atribuem a essa união o fato dos seus parentes da Vargem
do Galinheiro terem sido poupados do ataque da família do capitão Inácio, bem como a essa união atribuem
sua identificação e formação contemporânea como netos do governo.
Santos (2003: 34) analisa tal questão também sob a estrutura de dominação na região, na qual o acesso a
favores sexuais decorria do poder sobre a terra. Vários são os casos relatados pelos caxixós que caracterizam
tal prática.
63
caxixós. O terceiro dominava a margem esquerda do mesmo rio. Seu domínio se estendia
até os rios Picão e Lambari. Esse cacique também foi assassinado, contudo, em período
posterior e por descendentes da família de Severiano Medeiros da Costa, um dos primeiros
fazendeiros a se fixar na margem esquerda do Pará.
Mapa parcial da Bacia do Rio São Francisco em MG.
Fonte: Igam, 2003. Base digital Geominas. Escala 1: 1.500.000
No período do início da colonização, os caxixós viveram dois grandes conflitos com
os “brancos”, que resultaram em duas grandes matanças, conforme relata Djalma. O
terceiro grande conflito, os caxixós remetem aos assassinatos dos dois caciques caxixós que
dominavam a margem direita do rio Pará. Todavia, ao contrário dos relatos anteriores, esse
conflito não foi marcado pela “oposição radical entre os colonos e seus negros e carijós, e
64
índios ainda isolados, os Kaxixó” (Sampaio apud Caldeira et alli; 1999: 22); ele foi
marcado pela ruptura interna do povo Caxixó.
A Tonho Candinho (Antônio Cândido Barbosa) é atribuído o assassinato de
Cambino. Treinado para jagunço, ele se caracteriza como o principal representante caxi
que agiu contra seu povo, ao atender solicitação da família Oliveira Campos, conforme
relata Djalma em uma entrevista realizada por Geralda Soares, ainda na década de 1980.
Djalma: Vou contar o segredo agora: Antônio Candinho, que é
sobrinho... O pai dele é sobrinho de nosso avô, chamava Fabrisco. Eles
mandaram matar o Cambino para ficar com as terras da Várzea do
Galinheiro até no Cambino, no rio Pará.
Geralda: Quem mandou matar?
Djalma: O capitão de Oliveira... Não! O capitão Olímpio. Era outro
capitão novo, casado com [inaudível]. E esse era morador do Quati. Em
vez dele ficar lá em Buriti da Estrada, hoje cidade de Pompéu, ele
morava na fazenda Quati. Então ele interessava nas terras. Ele mandou
os jagunços que eram da Dona Joaquina, que era... devia ser mãe da
mulher dele ou avó. Ele mandou matar... Ficou com essa terra da
Várzea do Galinheiro, tomando outros [inaudível], da Várzea do
Galinheiro no Cambino, no rio Pará. Aí, ficou a área do São José, que
era a antiga fazenda Paulista, até no rio do Peixe.
Aí, o que eles fizeram? Foi lá na área, beira do rio Pará, hoje situado
na fazenda São José, que o nome lá é Fundinho. Tinha outro cacique lá,
que era dono desse resto de terra. Aí, não foi só Antônio Candinho não.
Esse, os Cordeiro também ajudou o Tonho Candinho, pai de Zé
Candinho, a matar. E eles enterraram ele lá perto do mato. Lá está a
cova. Quer dizer que ficou a cova. Então, lá eles mataram ele e puseram
segredo no Tonho Candinho. O Tonho Candinho não contava a história.
Eu, Djalma Vicente de Oliveira, que sou cacique hoje, contava a
história toda. Mas é segredo, não pode contar quem ajudou a enterrar.
Mas ficou com a história assim: como ele tinha saído a cavalo, e eles
mataram ele, danou a cela tudo de sangue. O cavalo era um burro e eles
falaram que era onça que tinha matado. E enterrou... (apud Caldeira et
alli; 1999: 21).
Já no início do século XX, segundo Djalma, há o possível envolvimento de Tonho
Candinho no assassinato de outro cacique caxixó:
Aí, o Tonho Candinho deixou ele [refere-se ainda ao assassinato de
Cambino]... A hora que ele deitou, para dormir, aí ele matou ele na
cama, lá no giral. Aí, assim, ele matou e cortou a língua dele e levou.
65
Agora, aquele que fica lá de cima, que fica [inaudível], ele ajudou
enterrar. Aí, pode ser até que tenha matado. Mas ele é da família nossa
e eles não dão nome dele. Pode ele ter ajudado matar também. Mas ele
fala que aí é os outros que mataram, ele ajudou só a enterrar. Mas o de
baixo [Cambino], ele matou e cortou a língua dele (Djalma, 1998 apud
Caldeira et alli; 1999: 22).
A jagunçagem caxixó não é assumida explicitamente pela comunidade. Mantida em
segredo por longo período, essa revelação somente foi possível após a morte de Tonho
Candinho, ocorrida há aproximadamente 15 anos. “Refratário à arena pública” (Santos;
2003: 57), o tema da jagunçagem definiu e ainda define divisões e secessão entre as
famílias caxixós, que mantém o assunto permeado de restrições.
Nesse período de grandes confrontos entre caxixós e os Oliveira Campos e sua
população cativa e jagunços, a ocupação caxixó, segundo Djalma, atingia uma extensa área.
Em entrevista a antropóloga da Procuradoria da República em Minas Gerais (PRMG),
Djalma relata as principais aldeias caxixós:
Djalma: Mas vou falar das aldeias, primeiro. Isso aí pegava as aldeia
da Vargem, descia no Pasto Grande, Olho D´Água, aí já pegava a beira
do rio Pará. Capãozinho, Barroca, Mocambo, Catitu, Cabaceira,
Cabaceira de fora. Aí já pega a área do São Francisco, Buriti
Comprido, desce lá nos Diamante, cá na beira da represa, Diamante 1,
Diamante 2, Diamante 3, já vinha passando Grotão, Ferrada, Queima
Fogo, tudo era localidade dos índios, nós tinha representante tudo...
Silva Campo, aí já na beira do rio Paraopeba. Aí já vem cortando pra
cima. Essas eram as aldeias.
Ana: Era tudo aldeia caxixó, ou de outros índios?
Djalma: Tudo era aldeia caxixó. Porto do Choro, tudo era aldeia
caxixó. Essas eram as aldeias. Vinha até a área do Barreiro Branco.
Agora, do Barreiro Branco até o rio do Peixe [afluente da margem
direita do Pará], aqui agora é área selvagem (Santos; 2003: 28).
Da extensa área ocupada pelo povo de aldeia e pelo povo do mato, a comunidade do
Capão do Zezinho destaca como principais aldeias ou lugares de referência na margem
direita do Pará, os seguintes pontos:
66
Na antiga fazenda Paulista:
- Povo do mato – descendentes da Mãe Joana
1) Veloso (ocupação do povo da Mãe Joana com os negros)
2) Açude ruim (lugar do quilombo, ocupação do povo do mato: união do povo da
Mãe Joana com os negros)
3) Rio de Peixe (ocupação do povo do mato – Mãe Joana)
4) Barreiro Branco (encontro do rio Pará com o rio do Peixe: ocupação do povo
do mato – Mãe Joana e Chico Fabrico e o povo Tio, ascendentes de vó Chica)
5) Barrocão (ocupação do povo da Mãe Joana)
6) Pindaíba (área de ocupação da família de Zé Candinho. Local onde os caxixós
construíram, na década de 1950/60, um cruzeiro, que já foi destruído. À margem
do Pará, Djalma indica uma das aldeias ou morada dos caboclos d´água)
7) Fundinho (antigo local das roças coletivas, atual ocupação do João Isabel
Caxixó e José Francisco Caxixó – o Marreco)
8) Córrego Pari
9) Mata da Chácara (área de ocupação de Maria Caxixó, parente de Mãe Joana)
10) Casas subterrâneas (sítio arqueológico indicado pelos caxixós como antiga
morada dos indígenas – área rural de Pompéu)
11) Cemitério (ocupação do povo da Mãe Joana)
12) Local das covas dos antigos caciques (margem direita do Pará)
13) Salgado (Saco Barreiro – local de ocupação de Mãe Joana e Zé Candinho)
- Povo de aldeia – descendentes do povo da Tia Vovó
14) Vargem do Galinheiro (Buriti da Estrada, domínio do cacique Cambino)
15) Pasto Grande (Fazenda Quati: local onde eram realizados os casamentos
caxixós)
16) Barroca (margem do rio Pará)
17) Olho D´Água (povo do Tonho Luiz, Alexandrina)
Na antiga fazenda Laranja:
- Povo de aldeia – descendentes do povo da Tia Vovó
18) Cabaceira
19) Catitu (povo do Logradouro, do Brejo)
67
20) Mocambo (próximo da Cabaceira, próximo ao rio São Francisco)
21) Porto Pompeu (rio S. Francisco, estrada que antigamente levava até Abaeté)
22) Buriti Comprido (próximo a margem direita do S. Francisco, córrego do Buriti
Cumprido)
23) Saudade (próximo ao Buriti Comprido)
24) Buritizal (atual distrito de Silva Campo)
25) Santa Helena
26) Grotão (entre o rio S. Francisco e o rio Paraopeba)
27) Queima Fogo (próximo ao Grotão)
28) Diamante I
29) Diamante II
30) Diamante III
31) Baú (antigo Porto do Choro, rio Paraopeba)
32) Pedro Moreira (próximo a rodovia MG 040, área do rio S. Francisco)
A localidade conhecida como Barreiro Branco é considerada pela comunidade do
Capão do Zezinho como a principal área de ocupação do povo do mato na margem direita
do Pará; e as localidades: Vargem do Galinheiro, Buriti Cumprido e Buritizal são
consideradas as áreas centrais pelos caxixós na organização social do povo de aldeia, que
ocupa essa mesma margem do rio.
De acordo com Djalma, foi a partir dessas localidades que as demais foram se
constituindo. Através da prática do casamento entre pessoas dos diferentes grupos caxixós,
da miscigenação com outros grupos étnicos (negros, indígenas e colonos) e da atividade
comercial de troca de bens entre esses grupos, novas comunidades caxixós foram
constituídas ao longo do tempo.
Segundo o cacique caxixó, foi no decorrer dos conflitos fundiários vividos na
margem direita que duas grandes fazendas foram constituídas: fazenda Paulista e fazenda
Laranja. Transformadas em propriedade privada, as terras ocupadas pelos grupos caxixós
tornaram-se terras de herança e sofreram um intenso processo de partilha e divisões.
Atualmente, é na área conhecida como fazenda São José, inserida no perímetro da antiga
fazenda Paulista, que algumas famílias caxixós ainda mantêm sua ocupação nessa margem
do rio.
68
A ocupação da margem esquerda do rio Pará também possui sua história marcada
por conflitos fundiários na memória social caxixó. Através da migração das famílias Costa,
Pinto, e Ferreira, os caxixós sofreram o processo de espoliação e aliciamento ao trabalho
nas recém-constituídas fazendas da região.
Segundo a comunidade do Capão do Zezinho, seus antepassados ocuparam uma
grande extensão de terra na margem esquerda do rio Pará. De forma análoga à ocupação na
margem direita, esse povo indígena se dividia em grupos familiares de acordo com as
categorias: povo do mato e povo de aldeia.
As principais localidades que a comunidade do Capão do Zezinho destaca em seu
processo de ocupação na margem esquerda são:
- Povo de aldeia – Gentio
1) Logradouro (próximo ao córrego Logradouro e rio Picão. “Aldeia central”, onde
viveu vó Sérgia, mãe de Djalma)
2) Retiro
3) Retirão
4) Cao da Cana
5) Ribeirão Formiguinha
6) Buriti (atual Ibitira)
7) Lapa
8) Saco da Ponte
9) Cao do Coelho
10) Bocaina 1, Bocaina 2
11) Ripa (povo da aldeia Morada)
12) Cabeceira da Ripa (povo da Morada)
13) Onça
14) Morada (descendentes da Mãe Joana que migraram e casaram com a família
Tio)
15) Feixo
16) Limeira (descendentes da Mãe Joana que migraram e casaram com a família
Tio)
69
- Povo do Mato – descendentes da família Tio
17) Bom Sucesso (família do Hilarino, sobrinho do indígena conhecido como Tio.
Local de ocupação dos ascendentes de vó Chica Caxixó)
18) Ponte Alta (área conhecida como Ponte Alta incide sobre as atuais localidades
Criciúma, Pindaíba, Capão e Grota D´Água. Criciúma e Pindaíba são
localidades onde os caxixós permanecem e mantém sua ocupação. Ponte Alta é
considerada uma das áreas centrais de ocupação do povo do mato. Maria, esposa
de Tonho Luiz Caxixó pertencia ao grupo que ocupava essa localidade)
19) Varginha (comunidade que se originou do casamento entre caxixós do povo
Tio e caxixós da aldeia Logradouro)
20) Urubu (Maria Clara, prima do Tio, pertencia ao grupo que ocupava essa
localidade)
21) Salitre (descendentes do Tio)
22) Riacho (essa localidade abrigava três pequenos grupos caxixós)
23) Brejo (descendentes do Tio)
24) Capão (localizado na cabeceira do córrego da Criciúma)
25) Local do encontro entre o córrego da Criciúma e o rio Pará (descendentes do
Tio)
26) Grota D´Água (localidade onde se fixaram os descendentes de Mulata Caxixó e
Flaviano Ferreira da Silva)
27) Capão do Zezinho (local de ocupação de filhos de Tonho Luiz. Os caxixós
mantêm a ocupação desse lugar até os dias atuais, sendo este o local de
referência para os caxixós que permaneceram nas áreas rurais da região)
28) Pindaíba (essa área abrigava quatro pequenos grupos caxixós descendentes do
Tio que se casaram com outros grupos étnicos)
29) Liro (descendentes do Tio)
30) Caetana (descendentes do Tio)
31) Confluência do córrego da Formiguinha com o rio Pará (descendentes do Tio)
32) Grota Funda (descendentes do Tio)
A organização territorial nessa margem do rio segue de forma similar à estrutura
observada na margem direita. As localidades consideradas “centrais” são aquelas indicadas
como formadas apenas por grupos de indígenas caxixós em um período anterior ao contato.
Logradouro, Retirão e Morada seriam as primeiras localidades formadas pelo povo de
aldeia; Ponte Alta, Varginha e Capão do Zezinho, as localidades de referência para o povo
do mato. Através dos casamentos entre os grupos caxixós (povo do mato e povo de aldeia),
70
do intenso contato interétnico e da significativa prática de comércio através da troca, outros
grupos caxixós se constituíram, consolidando novas ocupações.
A comunidade do Capão do Zezinho não determina uma data ou período exato para
o início dos conflitos com “os estrangeiros” na margem esquerda do Pará. No entanto, o
final do século XIX é identificado como um dos períodos mais difíceis para os caxixós
nessa margem do rio. A matança, organizada pela fazendeira Escolástica Pinto Costa no
início do século XX, marcou de forma preponderante a memória social do grupo. Esse
episódio consta do relato de Jerry Caxixó no vídeo documentário de Bruno Pacheco de
Oliveira (2002) e é relatado por Djalma em uma das entrevistas durante o trabalho de
campo em 2004. Segundo o cacique, Escolástica comandou uma matança dos indígenas
caxixós no Retirinho em função de uma disputa de terras com o fazendeiro Pedro Pinto,
cuja propriedade era no atual município de Leandro Ferreira. O filho da Escolástica foi
assassinado e ela, por desconfiar que a autoria era do tal fazendeiro, organizou uma festa no
Retirinho e convidou os moradores da região para, através de uma emboscada, matar
aqueles que trabalhavam para Pedro Pinto. Durante o festejo, jagunços disfarçados de
mulheres entraram no barracão onde todos estavam dançando e assassinaram os caxixós
que trabalhavam para o fazendeiro. Foram muitos os que morreram e, segundo Djalma, o
verdadeiro assassino do filho da fazendeira havia sido um dos negros que prestou serviços
em suas terras. Esse episódio marcou a memória caxixó pela violência e pelo fato de terem
morrido inocentes em um conflito que era apenas entre os fazendeiros.
Os caxixós entendem que o processo de dependência em relação aos fazendeiros,
que se estende até os dias de hoje, teve início com o domínio daquela área por José Vitor
Costa (Zé Vitoro, como é conhecido pelos caxixós), filho de Severiano. Segundo eles, o
domínio estabelecido por esse fazendeiro determinou sua condição atual: “escravos de
fazenda”.
De acordo com Djalma, apenas duas famílias caxixós conseguiram manter sua base
territorial naquela margem do rio após a chegada de Severiano Medeiros da Costa: a família
de Antonio Luiz (Tonho Luiz) e a família de Dona Antonieta. Ambas as famílias
conseguiram, segundo o cacique, garantir sua permanência naquelas terras por terem
estabelecido laços de parentesco com a família Costa. “Cunhado da família dos
71
estrangeiros” (Caldeira et alli; 1999: 23), Tonho Luiz garantiu a contínua ocupação dos
caxixós na área conhecida hoje como Capão do Zezinho
48
.
Dona Antonieta Caxixó, falecida em março de 2001
49
, conseguiu manter sua família
na margem esquerda do rio, atual fazenda Criciúma, por ser ela filha de Antonio Pedro
Caxixó e Francisca Costa Pinto, neta de Severiano.
Zé Vitoro e Firmina são identificados como filhos do casal Severiano Medeiro da
Costa e Jerônima Pinto da Costa. De origem portuguesa, o casal teria se instalado na
margem esquerda do rio Pará na segunda metade do século XIX.
A migração e o processo de dominação das terras da margem esquerda do Pará,
atual município de Martinho Campos, apresentam-se diretamente associados ao histórico de
colonização das áreas vizinhas de Dores do Indaiá e Pompéu, ambas regiões pertencentes à
antiga Vila de Pitangui.
O processo de colonização das regiões de Dores do Indaiá e Pompéu teve sua
origem ainda no século XVIII, período da abertura da picada Pitangui-Paracatu. No
entanto, de acordo com a historiografia, devido à presença dos tapuias, essa região ficou
“abandonada” por muito tempo.
Não resta, pois, dúvida de que a picada fora realmente construída; pode
ter tido algum movimento; mas a presença dos tapuias amedrontou os
sesmeiros e os próprios viandantes: os primeiros abandonaram suas
sesmarias e nenhum sinal deixaram de sua permanência, aquém e além
da serra da Saudade, até as Guaritas; e os segundos julgaram mais
segura a viagem pela picada de Goiás. A presença da nação Tapuia, em
nosso meio, está assinalada pelo topônimo – Tapuias – local que fica a
poucos quilômetros da cidade de Dores do Indaiá.
Esse povoamento, a partir de Pitangui, rumo ao São Francisco,
começou com raízes firmes, em meados do século XVIII. A tarefa era
árdua. Além do indígena, infestavam a zona os quilombos de negros
fugidos (Barbosa; 1964: 15).
48
Tonho Luiz, que migrou da Vargem do Galinheiro para a margem esquerda do rio Pará, se casou com
Maria, uma das filhas do caxixó identificado como Tio. Maria era irmã de Mulata, que se casou com Flaviano
Ferreira da Costa, parente da família de origem portuguesa que dominou a região. Flaviano é avô de vó Chica,
falecida no ano de 2003, vítima de um derrame cerebral, aos 85 anos de idade.
49
Dona Antonieta faleceu aos 87 anos, vítima de um câncer.
72
A família Costa Guimarães constitui o grupo de “pioneiros, desbravadores, que
tiveram que enfrentar o gentio hostil e toda sorte de dificuldades encontradas pelos
primitivos criadores de fazenda” na região de Dores do Indaiá (Barbosa; 1964: 18). Os
irmãos Amaro, José, João e Joaquim Costa Guimarães obtiveram sesmarias em 1785 no
território ocupado hoje pelo município de Dores do Indaiá (Barbosa; 1971: 171).
Em seus pedidos [de sesmarias], todos se diziam moradores ali ‘há mais
de vinte anos’. No de Amaro da Costa Guimarães, porém, este se dizia o
‘primeiro povoador’ daquele sertão. Amaro tinha sua sesmaria entre o
rio São Francisco, Ribeirão das Antas e Ribeirão do Jorge; as terras de
João ficavam além das de Amaro, a partir do Ribeirão das Antas; José
estabeleceu-se mais adiante, além do Ribeirão dos Porcos, incluindo
parte do território do atual município de Estrela do Indaiá; Joaquim
fixou-se entre as terras de João e as de José em território do atual
município de Serra da Saudade (Barbosa; 1971: 171).
Outros, porém, vindos de outras plagas, adquiriram terras e se fixaram
por aí: Manoel Correia de Souza, oriundo das lavras de Funil, fixou-se
na fazenda dos Patos; Albino José Pinto Coelho (fazenda dos Cocais) e
Elias Pinto Coelho (fazenda do Sobrado) descendiam de uma raça de
militares radicados em Pitangui; Antonio de Souza Fernandes, também
nos Cocais; Manoel Lino Fiúza, Manoel Alves Cirino, Manoel Ribeiro e
tantos outros (Barbosa; 1964: 18).
A literatura registra a presença de indígenas na região de Dores de Indaiá e a
presença de famílias colonizadoras de sobrenome Costa e sobrenome Pinto. Documentos
oficiais também apontam a presença do sobrenome Medeiros (Dona Luzia de Medeiros) no
processo de colonização da região de Martinho Campos
50
. Esses dados então não
apresentam contradição com os relatos e a memória social caxixó.
Apesar da apresentação dos dados oficiais, a intenção da pesquisa não é comprovar
a memória social caxixó, como bem afirma Santos em seu laudo sobre a identidade étnica
50
Ao pesquisar a Coleção de Mapas de População do Arquivo Público Mineiro (versão preliminar), foi
possível constatar o registro dos sobrenomes Costa, Pinto e Medeiros para as localidades de Nossa Senhora da
Abadia (Martinho Campos) e Nossa Senhora das Dores (Dores do Indaiá). O material pesquisado refere-se ao
mapa dessas populações no ano de 1832. Antônio de Medeiros, Antonio Pinto, João da Costa, Elias Pinto
Coelho, Amaro da Costa, Manoel Lino Fiúza, são alguns dos nomes encontrados nos registros referentes a
Dores do Indaiá; Luzia de Medeiros, Elias Pinto de Andrade, José Pereira da Costa, Maria de Medeiros Costa,
Francisco José da Costa, Antonio Leandro de Medeiros, Manoel de Medeiros Costa, Antonio Julião de
Medeiros, Joaquim de Medeiros Costa, Francisca de Medeiros Costa, Manoel Pinto Moreira, David
Gonçalves de Medeiros, são alguns nomes encontrados nos registros referentes à localidade de Nossa Senhora
da Abadia, atual Martinho Campos (Mapa de Populações/APM; 1832: caixa 03/03, doc. nº 03, p. 19-48).
73
caxixó. A intenção é sim contextualizar e demonstrar que memória social e história oficial
não são incompatíveis.
Enfatizo que a intenção não é procurar ‘provas históricas’ que
permitam ‘confirmar’ os referidos relatos, mas antes ressaltar que,
embora expressem uma experiência histórica particular, configurando
necessariamente uma versão distinta sobre o passado local, não
demonstram incompatibilidade ou incongruência com as fontes
consultadas sobre a história do Distrito de Pitangui. Em outras
palavras, tais relatos não apenas seguem uma lógica interna, como
também se articulam logicamente à formação histórica da região e ao
lugar ocupado, nesse processo, pela população indígena local (Santos;
2003: 83. Destaque da autora).
De acordo com Djalma, quatro colonizadores marcam a memória caxixó sobre o
processo de ocupação da margem esquerda do Pará. São eles: Deolinda Ferreira da Costa,
Escolástica Ferreira da Costa, Severiano Medeiros da Costa e Jerônima Pinto da Costa.
Segundo Djalma, Jerônima, casada com Severiano, era filha da portuguesa Francisca Pinto
da Costa. Escolástica e Deolinda eram primas de Severiano.
Jerônima Severino
Chiquinha José Vitor (Zé Vitoro) Firmina Manoel
Marcílio Civico Piduca Tim Antonio Biluca Veva Maria Zica Francisca Antonio Pedro Maria
Rita (Caxixó)
Antonieta Veríssimo
(Caxixó) (Caxixó)
74
Segundo Djalma, o domínio dos “estrangeiros” nas terras da margem esquerda do
Pará ocorreu de forma distinta àquela vivida na margem direita. Por ter ocorrido em
período posterior, o povo Caxixó já havia sofrido matanças e aliciamento. A jagunçagem e
a divisão interna causaram forte impacto na organização e domínio caxixó do seu território.
Tal contexto proporcionou, segundo o entendimento do cacique, menor resistência indígena
à colonização na margem esquerda. A já consolidada dominação de Dona Joaquina de
Pompéu na margem direita do rio Pará, o extermínio de grande parte dos grupos caxixós e a
jagunçagem indígena fizeram com que os assassinatos de algumas lideranças na margem
esquerda garantissem aos “estrangeiros” a sua fixação naquelas terras. Para os caxixós, o
histórico de dominação já imposto na margem direita e o medo fizeram com que seus
parentes não conseguissem impor intensa resistência.
José Vitor, filho de Severiano Medeiros da Costa
51
e Jerônima Pinto da Costa,
caracterizam-se não apenas como a principal referência no processo de dominação
“estrangeira” na margem esquerda do Pará, mas, sobretudo, pela inserção do “povo
estrangeiro” na genealogia do grupo étnico: Antonio Pedro Caxixó e Francisca, sobrinha de
José Vitor, tiveram uma filha.
A história de domínio de José Vitor na área conhecida como fazenda Criciúma é
descrita como permeada de violência e injustiças, inclusive contra membros de sua própria
família. Segundo Dona Antonieta Caxixó, José Vitor roubou as terras da própria irmã
(Firmina, mãe de Francisca) para ampliar seu direito nas terras de herança. Antonieta
Caxixó era neta de Firmina e no depoimento abaixo, ela retrata parte da história de sua
família:
51
Em um de seus livros, o Sr. Joaquim Corgozinho apresenta alguns dos primeiros fazendeiros e propriedades
consolidados no município de Martinho Campos: “Antônio Francisco, RASGÃO DE BAIXO; Luís Alves da
Silva, RASGÃO DE CIMA; João Ataíde Ferreira, BURITI; Francisco Lino, Pedro da Angelina, José da Clara
e sô Ricardo, BARRA; Chiquinho Bié, PAULISTA; José Joaquim, CANAVIAL; Francisco Lino, LARGA;
João do Corgosinho e Jerônimo Caçamba, PONTAL; Pedro Lino, CAPÃO DO BASTIÃO, PARÍ,
BOCAINA; José Carreiro, LAPA; José Cançado, LAPA; José Vitor e Marcílio, LOGRADOURO; Costa
Pinto e Lintro, RETIRÃO; Altino Quirino, ABADIA e FORQUILHA; José Lino, José Pinto, Inhazinha e José
Curral, ALBERTO ISAACSON; José Jovelino, Fiinho da Sá Inez, Berto Lino, todos na região Leste. Na
região Sul e Oeste: Severiano Costa, Lico Costa, Aristides Costa, Pedro Emiliano, Rafaiezinho, Tiguilo,
Afonso Vaz, Flávio Carreiro, Doreco, José Pedro Euzébio, Domingos Garcia, Pedro Fernandes, Agustinho
Ludovico, Alexandre Costa, Toniquinho Costa, José da Costa, Sô Teodoro do Junco, José Joaquim de Barros,
Augusto Arruda, Dona Carola” (1993: 10. Grifos nossos). Esses dados corroboram a memória social caxixó.
75
(...) o José Vitor, irmão da Firmina. Quando ela casou, teve um
pequeno desfruto diante do tempo que esteve casada com o senhor
Manoel Gregório da Silva. Quando Manoel morreu, o José Vítor quis
ser o tutor da sua irmã, a Firmina, mas ela não queria. Ela queria que
fosse o tutor dela é um outro, um parente, o Costa Pinto. Sem ela
querer, o José Vítor ficou sendo o seu tutor, cuidando dos animais, e
impediu que ela tocasse roças; mas ela teimou e fez a roça. Quando o
milho estava com a palha branca e o feijão tinha amadurecido, ele, o
José Vítor, ajuntou todo o gado e levou para a roça da Firmina, lá no
Baianço de Cima, na parte onde era dela. Este gado que ele, o José
Vítor, colocou nesta roça, acabou com tudo. Então ficou sendo o último
ano que a Firmina fez roça. Aí ele deu de cima dela para vender o que
era dela para ele. Aí ela falava que não vendia, mas ele ficava sempre
insistindo com ela para vender. E ela dizia: ‘não lhe devo nada’ e ele
falava: ‘pensa que você tem só dois filhos, e eu tenho doze’ (...); ela
dizia: ‘não lhe mandei encher o mundo de filhos’. Aí ele ficou
insistindo com ela.(...) Quando José Vítor viu que não tinha jeito dela
vender o que era dela, aí ele foi fazer uma divisão com a Firmina da
Costa, dividindo a fazenda Criciúma com a fazenda do Bom Sucesso:
‘Oh! Firmina, eu vim cá para você entregar os seus documentos para
fazer a divisão, porque na hora da divisão, se os seus documentos não
forem apresentados, quem perde é você’. Aí ela foi boba e ela entregou
e viu pela última... Aí ela viu os documentos pela última vez da vida. (...)
e o povo sempre fala que ele tinha comprado a parte dela; sem ela dar
nem uma assinatura.
Quando ele morreu, eles foram fazer a partilha e, quando chegou de
frente à casa da Firmina medindo, ela saiu e foi conversar com o
agrimensor, e o filho que chamava Piduca veio e chamou o agrimensor
para a casa deles e não deixou a Firmina seguir mais o assunto, porque
ela queria conversar com ele que ela também era herdeira e precisava
de estar nesta partilha. E o agrimensor perguntou se ela tinha os
documentos. Ela dizia: ‘está com o José Vítor, o meu irmão’. (...) E esta
partilha ficou parada por um tempo. Depois eles fizeram a partilha, mas
não entregaram nada a Firmina. Diante deste tempo, veio um homem
para perguntar outra vez se ela não tinha mesmo nenhum documento.
Eles fizeram a partilha.
A Firmina, a única coisa que ela vendeu foi uma casa, para o seu
irmão, por dois contos de réis. E este foi o único que ela deu a
assinatura nos documentos só dela, sendo que suas filhas Maria e a
Francisca não deram a assinatura da venda da casa. Na escritura, ele
pagou apenas quinhentos mil réis e o resto ficou sem pagar. Aí ela
falou: ‘eu vendo, mas quero o lugar da horta’. Aí ela plantou a horta
neste lugar. E esta horta ficou até tremendo de tão bonita. Aí a mulher
do José Vítor com as suas filhas vieram a noite e picaram esta horta
tudo. E a Firmina apaixonou e não plantou horta mais. Com esta
história, ela ficou tão pobre que ficou pedindo esmola até morrer, sem
76
poder comprar remédio. E o que segurava a roupa no corpo dela eram
as costuras, de tão esmolambada de pobre.
Diante desse tempo ele só tratava da Firmina só com vingança. Ela
piava cerca do mandiocal e ele pegava e picava e punha os porcos neste
mandiocal. Os porcos que ela tinha iam para a casa dele e chegava
perto do chiqueiro dele e ele batia o facão no focinho deles para que
eles não dessem conta de comer. Por vingança!
(Antonieta Caxixó; 15/05/1992 apud Caldeira et alli; 1999: 23-4)
José Vitor marca o início da disputa fundiária entre os próprios colonizadores que
ali se fixaram. Segundo o Sr. Joaquim Corgozinho, autor de três livros sobre a região (ver
Corzinho, 1993 e 1998), José Vitor era famoso por sua ganância e pelos maus tratos
àqueles que trabalhavam em sua fazenda. Em entrevista concedida em sua casa, na cidade
de Divinópolis, em fevereiro de 2004, ele afirmou o seguinte sobre tal fazendeiro:
Ele era ruim para os camaradas, né?! Ele gostava de espancar os
outros, de bater nos outros... E era miserável, coisa assim. (...) Ele era
ruim, ele tomava as coisas dos outros, terreno, propriedade, ele
tomava... (Corgozinho, 17/02/2004).
A colonização na margem esquerda difere da colonização na margem direita, que se
caracterizou principalmente pelas instalações de latifúndios sob o domínio de uma única
família: capitão Inácio e Dona Joaquina. A colonização na margem esquerda ocorreu sob o
domínio de várias famílias, que apesar de aparentadas, estabeleceram uma acirrada disputa
interna pelo domínio da terra. As famílias Costa Pinto, Medeiros, e Ferreira marcaram, na
memória caxixó, o início de um longo período de conflitos fundiários.
77
Margem
do rio
Pará
Município Fazenda Grupos
familiares
caxixós
Principais
localidades
caxixós
Famílias
colonizadoras
Esquerda Martinho
Campos
Criciúma Tio
e
Gentio
Capão do
Zezinho,
Pindaíba e
Logradouro
Família Costa
Pinto
e
Família Medeiros
Direita Pompéu São José Mãe Joana e
Vargem do
Galinheiro
Fundinho e
Pindaíba
Família Oliveira
Campos
O presente
O século XX permanece na memória caxixó como o tempo em que eram escravos
de fazenda. Waldetrudes Caxixó
52
, irmã de Djalma, mais conhecida por seus parentes como
Nega, e Conceição Caxixó (48 anos) relataram, ainda no ano de 1987, a Geralda Soares,
aspectos da vida e do trabalho nas fazendas:
Depois repartiu a fazenda [Marcílio, filho do José Vitor, repartiu a
fazenda Criciúma] e ficou sendo do filho dele, Pedro Luiz Gonzaga da
Silva [Piduca]. Depois Pedro Luiz Gonzaga da Silva vendeu a fazenda
para Antônio Ribeiro da Silva, fazendeiro de Carmo da Mata [Tonho
Berto]. Esse é que ofendeu nós mesmo! Esse homem nós sofremos
demais na mão dele! Depois, o Antônio vendeu a fazenda para o Tezé,
José Tomás de Aquino. Bom demais! Sei lá! Até hoje não amola a gente
com nada. A gente depende dele. (...) Desse não tem o que reclamar
não. Mas do Pedro e do Antônio nós sofremos demais! Tipo mesmo
escravo! Eu, inclusive, era empregada nas casas de família. Eles
brigavam por causa da gente. Eu ficava numa fazenda, ficava na
outra... Ele vinha para cá por debaixo de ordem, marcando horário
certo de eu trabalhar na casa de uma sogra dele. Eu levava água daqui
na cabeça, carregava na lata, três quilômetros... Uma lata d’água para
uma dona que eu morava com ela, chamada Sílvia; é vizinha dessa
fazenda deles lá. Ele um dia fez eu tirar a lata da cabeça e jogar a
água fora. Não queria que eu levasse a água para a dona, porque eles
52
Waldetrudes Caxixó faleceu em março de 2006, aos 66 anos de idade, vítima de um infarto.
78
eram inimigos. Eu teria que levar a água para ele. Aquela confusão!
Fazia de conta que a gente era escravo mesmo e ele não marcava o dia
do serviço dele não. Eu chegava aqui ... como por exemplo, ele queria a
turma de companheiros quarta-feira: chegava aqui e falava com meu
padrasto [Pedro Ferreira]: ‘amanhã eu quero tantos companheiros. É
para ir todo mundo!’ -‘Ah, mas nós já estamos marcados para outra
turma.’ -‘Não tem conversa! Ou vocês vão ou desocupam a terra em
vinte e quatro horas!’ Sendo que o negócio aqui já era nosso! Meu
padrasto morou aqui sete anos (Waldetrudes Caxixó, 15/03/1987 apud
Caldeira et alli; 1999: 26).
Desde quando nós viemos para cá, o fazendeiro sempre amolava muito.
Era outro fazendeiro. A gente era os escravos dele. Tinha que ter
aceitação de tudo que eles falavam. Se falasse: ‘Amanhã é para mim!’,
a gente tinha que largar o serviço todo e ir para lá trabalhar, porque se
não fosse, podia mudar no outro dia (Conceição Caxixó, 14/03/1987
apud Caldeira et alli; 1999: 26).
A categoria “escravo de fazenda”, muito recorrente no discurso caxixó para
descrever sua relação com os fazendeiros, provavelmente diz respeito à exploração da mão-
de-obra caxixó, à realização de um trabalho imposto e às exigências e obrigações a que
esses indígenas foram submetidos para se manterem na terra. Todavia, não podemos
afirmar aqui, com base nos relatos e dados de campo
53
, a caracterização de um trabalho
escravo, conforme definição da legislação nacional e ou internacional. O trabalho nas
fazendas, de acordo com os depoimentos caxixós, parece ter sido sempre remunerado
(ainda que pese as críticas às condições desse pagamento); e o cerceamento à liberdade dos
caxixós para trabalharem em outros lugares, parece não ter ocorrido, muito antes pelo
contrário: o desejo pela saída das famílias parece ter sido, nas últimas décadas, justamente a
intenção dos fazendeiros.
No entanto, apesar de os donos de fazenda não possuírem o direito de propriedade
da pessoa – condição legal para possuir um escravo (período colonial); não estabelecerem o
endividamento; nem a privação do pagamento pelos serviços prestados e nem a privação da
liberdade dos indígenas; eles instalaram o direito de propriedade na terra tradicionalmente
53
Os relatos e dados de campo se baseiam quase que exclusivamente nos depoimentos caxixós. Não ouvimos
nem contratantes (fazendeiros) nem outros contratados (não índios) para conhecermos melhor a situação
trabalhista na região.
79
ocupada pelo grupo étnico, e consolidaram ali um padrão de relação de poder, em que os
caxixós se viram intimados a obedecê-los sob pena de perderem sua base territorial.
Dessa forma, sob o forte objetivo de permanecerem na terra, mas sem condições de
resistirem ao domínio fundiário dos fazendeiros, esses indígenas acabaram por sentirem-se
escravizados (presos) a uma situação. Seu vínculo com os donos de fazenda passa a ser
percebido como um vínculo de poder e de difícil desligamento e sua vida na terra como
uma vida permeada de sofrimento – daí muito provavelmente o surgimento da expressão
“escravo”.
Mas o que move um grupo a se submeter a tal situação? Porque permanecer em um
local em que as dificuldades tornaram-se crescentes?
De acordo com Aziz Ab´Sáber,
Todos os que se iniciam no conhecimento das ciências da natureza – mais
cedo ou mais tarde, por um caminho ou por outro – atingem a idéia de
que a paisagem é sempre uma herança. Na verdade, ela é herança em todo
o sentido da palavra: herança de processos fisiográficos e biológicos, e
patrimônio coletivo dos povos que historicamente as herdaram como
território de atuação de suas comunidades ([2003] 2005: 09. Destaque do
autor).
As margens do rio Pará compõem o território de atuação dos caxixós. Ali eles
nasceram enquanto coletividade e ali eles tentam se manter enquanto tal. Ali eles
imprimiram sua marca, construíram sua história e estabeleceram suas referências.
Segundo Halbwachs,
Quando um grupo está inserido numa parte do espaço, ele a transforma à
sua imagem, ao mesmo tempo em que se sujeita e se adapta às coisas
materiais que a ele resistem. Ele se fecha no quadro que construiu. A
imagem do meio exterior e das relações estáveis que mantém consigo
passa ao primeiro plano da idéia que faz de si mesmo ([1968] 2004: 139).
Cada aspecto, cada detalhe desse lugar em si mesmo tem um sentido que é
inteligível apenas para os membros do grupo, porque todas as partes do
espaço que ele ocupou correspondem a outro tanto de aspectos diferentes
da estrutura e da vida de sua sociedade, ao menos, naquilo que havia nela
de mais estável ([1968] 2004: 139).
80
Estar fora de sua terra significaria interromper uma relação e uma história em
construção. Nas últimas duas décadas, os caxixós têm lutado para conquistar o seu passado,
(re)construir sua história e sua consciência enquanto coletividade que crê numa origem
comum e indígena. E é no espaço, na terra, que eles têm buscado o apoio, o suporte, para
sua razão de ser.
Para um dos professores indígenas caxixó, se eles tivessem que ir para uma outra
terra, isso implicaria em iniciar uma nova relação com um novo ambiente, o que
significaria investir em outro conhecimento que não aquele vinculado ao seu passado. Para
um grupo que se viu privado da liberdade de viver plenamente sua identificação indígena,
sair do espaço que guarda muito de sua história antiga (cemitérios, casas, lugares
encantados, entre outros) significaria o distanciamento de suas referências materiais.
Para uma das professoras caxixós, todo lugar possui sua história – história esta que
precisa ser respeitada. Como só podemos respeitar aquilo que conhecemos, a professora
acredita, assim como seu colega, que se os caxixós tivessem saído de sua terra ou fossem
retirados dali, eles teriam interrompido seu processo de diálogo com os lugares de
memória
54
para então iniciar um conhecimento e uma relação com o novo espaço.
Os caxixós têm voltado muito o seu ‘olhar’ para o passado para compreender o seu
presente e projetar o seu futuro. Falar, pensar, elaborar esse passado com base nas
experiências e memórias das pessoas de hoje é um processo pulsante, vivo, em pleno
desenvolvimento pela comunidade do Capão do Zezinho. E a terra possui papel
importantíssimo nesse processo.
O espaço é uma realidade que dura: nossas impressões se sucedem, uma
à outra, nada permanece em nosso espírito, e não seria possível
compreender que pudéssemos recuperar o passado, se ele não se
conservasse, com efeito, no meio material que nos cerca. É sobre o
espaço, sobre o nosso espaço – aquele que ocupamos, por onde sempre
passamos, ao qual sempre temos acesso, e que em todo o caso, nossa
imaginação ou nosso pensamento é a cada momento capaz de reconstruir
– que devemos voltar nossa atenção; é sobre ele que nosso pensamento
54
Expressão criado por Pierre Nora, ela significa: “toda unidade significativa, de ordem material ou ideal, da
qual a vontade dos homens ou o trabalho do tempo faz um elemento simbólico do patrimônio da memória de
uma comunidade qualquer” (Nora apud Enders; 1993: 134).
81
deve se fixar, para que reapareça esta ou aquela categoria de lembranças
(Halbwachs; [1968] 2004: 150).
Na região às margens do Pará, os caxixós conhecem os seus lugares. Eles sabem
onde estão os cemitérios, onde é permitido construir casas, onde existem plantas
medicinais, onde foram as casas dos seus antepassados. Eles sabem que onde há cemitério
não se pode construir casas. Eles sabem que no local onde estão as plantas medicinais não
se deve desmatar para fazer roça. Enfim, a natureza se fez referência para alguns dos
hábitos (comportamento) caxixós e estes, por sua vez, atribuíram especificidades a lugares.
Nesse sentido, a terra carrega e produz marcas. Ela é uma herança e também
carrega uma herança deixada pelos povos. Compreendida como testemunha de uma vida,
como diria a professora Lúcia Helena Rangel sobre o pensamento de Ab’Sáber, a terra
“guarda” consigo vidas. Com poder de envolver e “transportar” as pessoas para um passado
(vivido ou imaginado), a terra ocupada possibilita lembranças, descobertas e esperança de
novos conhecimentos.
Silenciados, os caxixós mantiveram sua origem e história em segredo por muito
tempo. Deflagrado o conflito fundiário em que sua última base territorial, eles revelaram
sua condição indígena na esperança de ter seus direitos garantidos. ‘Revelado o segredo’,
eles procuram hoje assegurar seu direito de (re)construir-se. Para isso, estar na terra-
testemunha é fundamental. Ela tem muito a dizer a eles, além de lhes proporcionar um elo e
um sentimento de pertencimento.
Os caxixós carregam de significados os lugares que habitam. Por isso eles
permanecem na terra, ainda que sob condições tão adversas. Através dos lugares que
ocupam, eles entrelaçam histórias, promovem o conhecimento, fortalecem laços e projetam
seu futuro.
A ausência de leis e a ameaça de expulsão da terra fizeram com que os caxixós se
submetessem aos mandos e desmandos dos fazendeiros. Segundo eles, o período recente
caracteriza-se como um período em que a violência adquiriu novo formato: sem confrontos
declarados, sem assassinatos, os fazendeiros impuseram seu domínio através das péssimas
condições de trabalho na terra. A falta de autonomia para definir aonde trabalhar, o baixo
salário pago pelos serviços prestados, a dificuldade de alimentação e a realidade da
82
imposição de “favores” sexuais preenchem a memória social dos caxixós sobre a terra no
período contemporâneo.
Porque de primeiro diz que era assim, né. O povo, eles, então... as
mulheres... então vinham os fazendeiros, né, esse povo mais graduadão.
As mulheres dos índios, que era raça de índio, né, então tinha que ser
mulher deles [...]. Aí então foi misturando, porque a família, ela é muito
misturada, muito complicada. Porque aqui mesmo tem, aqui, a minha
mãe conta o caso, depois te conto, do homem que é dessa família desses
Cordeiro mesmo, tem raça da nossa família misturada! Com a família
dos Cordeiro! Porque então, no tempo deles, né, elas conhecem o povo
que [...]. Então eles eram de lá, mas era ligado com o povo de cá (Maria
Caxixó, 56 anos, 07/05/1998 apud Santos; 2003: 35).
Maria: O meu pai foi embora pra Goiás, eu saí. Quando chegou em
Itaberaí, nós entramos lá, então vinha aquele povo pra pegar o povo pra
ir trabalhar, mas assim, já querendo as filhas pra poder empregar, né.
Você compreende? Aí o meu pai entrou numa fazenda lá, então eu já fui
chegando, eles queriam pra empregar. Meu pai ficou nove dias nessa
fazenda, nós passamos tanto inferno, minha filha, que nós saímos desse
lugar. Depois pra voltar pra trás ficamos lá nove dias. Voltou pra trás,
era assim: se não tivesse filha pra empregar não tinha serviço.
Pedro: Primeiro são os filhos, né, que estão em casa, servir patrão. Mas
também aqui, antigamente, já existia isso.
Maria: Porque, quando num pegava as filhas... Porque quando pegava,
então já desonrava elas, largava pra lá, né. Igual muitos, e num
acontecia isso. Mas hoje, não. Igual aqui na fazenda do [inaudível],
mesmo. Igual meu pai fala que lá, foi por isso. Porque então, tudo foi
criado lá dentro, tinha que ser as mulheres dos meninos deles. Então
meu pai não quis aquilo, a gente saiu fora da fazenda dele.
Ana: Isso, lá em Itaberaí...
Maria: Não, uá, no Bom Sucesso, minha filha! [...] Então, ali ia
crescendo, a família que tivesse em redor, os ligado, então as menina
que ia crescendo ia sendo tudo mulher deles. Então, onde quem tinha
família não queria aquilo não, ia saindo, porque num podia ficar lá
dentro.
(apud Santos; 2003: 35)
Os relatos acima e a memória social caxixó sobre o início do processo de
colonização na região demonstram quão complexa se faz a relação entre indígenas e
fazendeiros. Se estes compõem a origem étnica heterogênea do grupo caxixó, eles também
83
representam a existência da dominação e do poder que historicamente constituem a
estrutura agrária brasileira desde a colonização. Se a origem caxixó remete ao elo existente
entre Tia Vovó e um dos filhos de Dona Joaquina como elemento fundante do grupo étnico
contemporâneo, esse elo também representa a presença e a constância desse sistema de
dominação (Santos; 2003: 36).
A aparente contradição existente na relação entre caxixós e fazendeiros –
proximidade em função dos laços de parentesco e distanciamento em função da disputa
fundiária – marca aspecto singular da identidade e da trajetória histórica caxixó. A
acomodação de tal situação proporciona particularidades ao grupo étnico, que se entende
“escravo de fazenda” e “parente dos fazendeiros”.
Anunciando uma clara distinção entre escravos (tempo antigo, quando negros e
indígenas ocupavam as senzalas) e “escravos de fazenda”, os caxixós entendem essa última
categoria como aquela em que o acesso à terra apresenta-se vinculado à dependência e à
sujeição ao fazendeiro. Ali os caxixós vendem sua força de trabalho, todavia, sob as
condições daqueles que determinam o sistema fundiário na região.
Contudo, a relação autoritária vivida entre esses nativos e os novos donos de terra
também é permeada pela construção de relações pessoais que os caxixós definem como
sendo boas. A proximidade estabelecida entre esses e os fazendeiros possibilita a geração
de relações pessoais diversas. Em relatos aqui anteriormente descritos, Djalma afirma que
seria bom trabalhar para o Juquita: “nós gostavámos demais do Juquita. Ele contava hora
certa de trabalhar e era bom para pagar”. Para muitos caxixós, apenas o cumprimento do
acordo de trabalho já proporciona a alguns fazendeiros a condição de “homem bom”.
Segundo o cacique, “os fazendeiros velhos (os donos de terra no período anterior à
década de 1950) eram mesmo como um pai para eles” (10/07/2006). Segundo ele, quando
os caxixós chegavam em uma fazenda para iniciar um período de trabalho, os fazendeiros
auxiliavam as famílias à construírem seus ranchos, adquirirem alimentos; emprestavam
dinheiro (caso fosse necessário) e permitiam que o trabalho fosse realizado à meia.
Segundo Djalma, “os fazendeiros velhos tomaram as terras, mas eles davam assistência ao
índio”. Na visão do cacique, havia nessa época “tipo uma sociedade” (10/07/2006).
84
De acordo com o cacique, os caxixós que assumiram o trabalho nas fazendas
passaram a ser identificados como índios camaradas. De acordo com pesquisa realizada
por Santos, existem duas principais definições para a categoria camarada na literatura sobre
a vida rural brasileira:
a) Lavrador totalmente desprovido de acesso à terra, mesmo que de propriedade
alheia, que passa a vender sua força de trabalho (Franco; 1969 apud Santos; 2003:
82-85)
55
;
b) Camarada, agregado ou meeiro – aquele que faz supor uma população estabelecida
nas grandes propriedades, com acesso à terra restringido por normas e negociações,
chamada a trabalhar temporariamente para o proprietário nas ocasiões de pico das
atividades agrícolas (desmatamento, plantio, colheita, etc) ou a desenvolver
atividades mais constantes em dias de trabalho “separados” para o patrão (Barbosa;
s/d apud Santos; 2003: 82-85)
56
.
De acordo com as definições apresentadas, a característica que se configura como
dissenso é a compreensão sobre o acesso ou não a terra. Enquanto Barbosa entende que a
categoria camarada é um sinônimo de agregado, Franco estabelece a distinção entre as duas
definições mediante o fato de o agregado possuir o acesso a terra em oposição ao camarada,
que possui apenas a venda de sua força de trabalho como fonte de sobrevivência. Os
caxixós vivenciaram ambas as situações. Se no passado, eles conseguiram garantir o acesso
à terra, no presente essa situação não mais existe. Atualmente, os caxixós não possuem
acesso à terra e possuem apenas a venda de sua força de trabalho como meio de
sobrevivência.
Franco atribui ao desenvolvimento da exploração lucrativa da terra a transformação
da população livre em uma população que subsiste, que depende da necessidade do patrão
de contratar seus serviços (Santos; 2003: 84). Na região ocupada pelos caxixós, a crescente
55
Franco, Maria Sylvia de Carvalho ([1969] 1997). A dominação pessoal em Homens livres na ordem
escravocrata. São Paulo: Fundação Editora da Unesp.
56
Barbosa, Waldemar de Almeida (s/d). A decadência das minas e a fuga da mineração. Belo Horizonte:
Itatiaia.
85
disputa entre fazendeiros e a ausência de uma regularização fundiária propiciaram a
crescente exploração da terra e da mão-de-obra local pelos “estrangeiros”.
No contexto do trabalho caxixó, a proximidade vivida entre patrão e empregado, no
entanto, cria, inevitavelmente, vínculos pessoais entre aqueles que estabelecem uma
convivência. A fidelidade é apontada como uma das características que esse vínculo do
agregado e ou camarada com o fazendeiro pode gerar. No entanto, é difícil apreender a
linha tênue que divide a fidelidade da dominação. Franco, embora ressalve em sua obra
Homens livres na ordem escravocrata, que moradores e camaradas tivessem a liberdade de
vender o trabalho para patrões distintos, relata que esses se mantinham pessoalmente
obrigados aos proprietários (Santos; 2003: 85); situação que os caxixós descrevem como
condizente com a vivida por eles na região.
Se por um lado esse grupo étnico rivaliza a posse daquelas terras com os
fazendeiros, por outro, eles freqüentavam as festas que estes organizavam na região para
seus trabalhadores, aceitavam-nos como padrinhos de seus filhos, benziam famílias e
animais de criação de seus patrões e tornaram-se devotos de um santo católico (São
Francisco) por influência de uma das fazendeiras (boas) da região (Dona Francisca Costa).
Nos dias atuais, essa relação ambígua se manifesta na dificuldade que alguns caxixós
demonstraram no processo oficial de identificação e delimitação da terra indígena em
consolidar o pleito de áreas sob o domínio de fazendeiros tidos como “bons”. Atualmente, o
fato de os fazendeiros contratarem mão-de-obra caxixó ou efetivarem a contratação via
CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), parece promover o sentimento de gratidão.
A prestação de serviço nas fazendas marca a identidade caxixó de forma
preponderante. Santos, em seu estudo sobre a identidade étnica do grupo, destaca:
Em sua forma compulsória [...] ou livre, o trabalho é o elemento fundante
da identidade caxixó, posto que definidor do povo da Vargem do
Galinheiro ou do próprio lugar da aldeia. “Tirados” para jagunço,
vaqueiro, parteira, os antepassados de Vargem do Galinheiro se inserem
desde sempre em um sistema de trabalho, cuja antítese, a vida selvagem,
só era possível no tempo mítico
57
de antes dos brancos. Se a aldeia existe
57
Santos (2003) apresenta em sua análise sobre a narrativa caxixó a distinção entre tempo mítico (tempo a-
histórico) e tempo histórico. Tempo mítico (ou a-histórico) seria aquele concernente ao tempo que os caxixós
remetem para um período anterior ao contato (ao tempo “antes de mil e quinhentos”). Em diálogo com o profº
Rinaldo Arruda (orientador da pesquisa de mestrado), tal análise foi mantida em suspenso para um debate
86
desde o princípio da lei de Caxixó, dessa lei faz parte o trabalho,
entendido com a prestação de serviços para aqueles que se fixaram na
terra. Tudo indica que, historicamente, foi a inserção direta no sistema de
trabalho instaurado pela colonização – ou seja, não mediado pela
instalação de um aldeamento como reserva institucional de terra e mão-
de-obra –, o vetor básico que conformou a permanência da população
indígena na região (Santos; 2003: 83. Destaques da autora).
“Tempo do índio livre a gente não conheceu”. Essa afirmação de Djalma demonstra
que ser livre não faz parte nem do tempo nem do espaço vivido pela comunidade do Capão
do Zezinho. Nesse sentido, a condição camponesa marca de forma preponderante a
experiência dessas famílias. Segundo Santos, a condição camponesa e a condição indígena
“se constituem mutuamente em estratégias de ocupação e defesa de um espaço – e de um
modo de vida – atravessado por relações de poder” (2002: 02-3).
O tempo da camaradagem é referido como o “tempo bom” quando comparado com
o tempo dos novos fazendeiros. Segundo os caxixós, a extinção do sistema de
camaradagem implicou na expulsão de muitos parentes das terras ocupadas e deu início ao
processo de trabalho diário nas fazendas. Sem vínculos, sem compromissos, sem terra: essa
foi a condição imposta pelos “novos fazendeiros” para evitar qualquer possibilidade de
litígio sobre as terras de fazenda.
Esse período é marcado pela substituição dos acordos costumeiros pelo contrato,
ainda que verbal, de prestação de serviços (Santos; 2002: 07). O processo de ruptura da
camaradagem foi percebido de diferentes formas. Alguns fazendeiros romperam com esse
sistema de forma abrupta, outros o fizeram de forma gradativa.
O encerramento da relação pode ser abrupto ou prolongado em anos de
uma convivência deteriorada que termina por provocar o abandono da
terra por parte do agregado e sua família. Implica, via de regra, na
imposição de tratos cada vez mais desfavoráveis, em que se suprime, por
exemplo, o leite fornecido aos filhos do agregado, a permissão para a
retirada de madeira ou para o plantio – que doravante deverá consorciar-
se com o capim – de roças sucessivas no mesmo local. Designado pelos
agregados de despejo (em contraposição à ‘despedida’ costumeira), trata-
se de um processo marcado pela violência – material, como os exemplos
mais aprofundado sobre a distinção estabelecida por Santos entre mito e história. Segundo Arruda, todo mito
é história e como tal também é vivenciado, ainda que não da mesma forma que uma experiência
contemporânea. Assim, optamos aqui por não apresentar ou desenvolver tal questão.
87
acima descritos: simbólica, em que se desrespeita códigos vigentes de
conduta -, podendo culminar com a ameaça ou o uso da força física. A
violência, segundo Moura, é a contrapartida da generosidade: “quando
se deseja realizar o trato, há de ser bom; para encerrá-lo há de ser mau”
(id. ibd.: 97)
58
(Santos; 2002: 07-8).
No momento em que o sistema da camaradagem foi instalado – “há de ser bom” –,
no momento de seu rompimento, então, – “há de ser mau”. Essa análise corrobora a
interpretação caxixó sobre o processo histórico vivido por eles. A substituição da condição
de agregado para prestador de serviço nas fazendas é compreendida pelos caxixós como a
origem do “tempo da escravidão” em função da degradação de sua condição na terra.
Apesar de o aliciamento e o trabalho nas fazendas serem descritos como práticas existentes
desde o início do período de contato com o “povo estrangeiro”, esse período se caracteriza
na memória social como aquele em que o sistema da camaradagem vigorava e sustentava
um mínimo de acesso à terra. Somente após o rompimento desse sistema é que o termo
“tempo da escravidão” começa a ser utilizado pelos caxixós para caracterizar a vida nas
fazendas. A arbitrariedade dos mandos e desmandos dos fazendeiros, a insegurança gerada
pela incerteza de trabalho no dia seguinte e a ameaça constante de expulsão da terra fizeram
com que as condições de trabalho dos caxixós pudessem ser comparadas às do “tempo da
escravidão”.
Os caxixós, apesar da suspensão do sistema de camaradagem, conseguiram ainda
manter por algum período sua atividade de plantio naquelas terras. Agricultores desde o
tempo “antes de mil e quinhentos”, os caxixós mantiveram suas roças familiares até a
década de 1950. Como meeiros, eles plantavam nas terras de fazenda principalmente arroz,
milho, feijão e amendoim. As atividades de coleta e de caça, apesar de terem sofrido
significativa diminuição também continuaram a ser exercidas, ainda que de forma menos
intensa.
A segunda metade do século XX é marcada pelo temor dos novos fazendeiros de
que os trabalhadores instalassem seu domínio nas pequenas glebas de terras que ocupavam.
A preocupação com o uso da terra pelos caxixós fez com que os fazendeiros não mais
permitissem a existência de roças e criação de animais domésticos nas áreas de fazenda.
58
Moura, Margarida Maria (1988). Os deserdados da terra. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.
88
Nós plantávamos, Piduca punha porco para comer tudo! Punha fogo!
Isso o padrasto ainda estava com nós. Tinha que pagar para criar
porco. Ninguém pagava, só nós. Vingança demais! Aí nós atravessamos
o rio. Plantamos milho. Mas a moagem era aqui. Aí era escravidão!
(Djalma Caxixó, 17/01/1999 apud Caldeira et alli; 1999: 26)
O cacique credita à iniciativa do fazendeiro Pedro Luiz Gonzaga, o Piduca, bisneto
de Severiano Medeiros da Costa (e filho de Marcílio), a expulsão de muitos de seus
parentes. Na década de 1960, diante das dificuldades crescentes vividas nas fazendas,
muitos migraram para área rural de Itaberaí, no estado de Goiás, e para áreas urbanas da
região, como: Pompéu, Martinho Campos, Leandro Ferreira, Pitangui, Curvelo, Bom
Despacho, Pará de Minas, Divinópolis, Juatuba, Belo Horizonte, Contagem, Betim, entre
outras. Djalma entende esse período recente como mais uma tentativa de expulsão de seu
povo das terras que ocupavam na margem esquerda do Pará. Foram muitos os grileiros que
contrataram caminhões para levar trabalhadores da região (entre eles, os caxixós) para
Goiás e assim “limpar” a terra (Oliveira; 2002).
As dificuldades e a tensão vivida com Piduca na fazenda denominada Criciúma fez
com que os caxixós, que resistiram e permaneceram na terra, plantassem suas roças na
outra margem do rio, em terras da fazenda conhecida como São José. A tensa relação com
Piduca foi determinante na decisão indígena pela retomada e ocupação da margem direita
do Pará.
Segundo depoimento dos caxixós, tal retomada teve início na década de 1950,
quando esses iniciaram roças familiares em regime de mutirão nas áreas denominadas
Pindaíba, Fundinho e Nogueira. A partir da década de 1960, instaladas as roças, algumas
famílias indígenas, então, fixaram residência naquelas áreas.
De acordo com a memória social do grupo, na década de 1950, Marcílio (filho de
José Vitor), ainda em vida, dividiu a fazenda Criciúma para seus seis filhos. Cada um
recebeu aproximadamente 200 alqueires de terra. Pedro Luiz Gonzaga (o Piduca) recebeu
uma área que incluía Capão do Zezinho e Itaoca e que alcançava a atual fazenda de Valter
Cordeiro, área conhecida atualmente como fazenda do Liro. Na tentativa de impedir a
continuidade do uso da terra pelos caxixós, ele intensificou as dificuldades do trabalho
indígena na área, pressionando a saída dos mesmos. Foi nesse período que o padrasto de
89
Djalma e Zezinho
59
, Pedro Ferreira, foi trabalhar para o arrendatário João Miguel na
margem direita do rio Pará com os filhos ainda crianças e adolescentes. O trabalho para este
arrendatário só foi possível porque João Miguel e Luiz Crisipo (que ocupava a região da
beira do córrego Pari até a divisa com Barreiro Branco e atualmente é casado com uma das
irmãs de Valter Cordeiro) disputavam o domínio daquelas terras. Para poder trabalhar
aquela área, João Miguel necessitava rapidamente de um contingente significativo de mão-
de-obra, o que o fez contratar então os caxixós.
Marreco começou a trabalhar na margem direita com Djalma, que auxiliava seu
padrasto na chefia do trabalho dos seus parentes naquela terra. Tio Adu, neto de Chico
Fabrisco e Isabel, foi um dos primeiros que construiu casa na margem direita nesse período.
Contudo, com a vinda da Belgo Mineira (Grupo Arcelor) para região no início da década de
1980, ele foi trabalhar na empresa e abandonou sua casa, que então foi ocupada por
Marreco, que até hoje permanece no local.
A ocupação do Tio Adu e a construção de sua moradia na margem direita somente
foram possíveis, segundo Djalma, pelo fato de sua mãe, Galdina, ser filha de Maria, que era
sobrinha da esposa de José Vitor e casada com um indígena caxixó, Pedro Ferreira
(segundo marido de Sérgia, pai do Marreco e padrasto do Djalma) - aqui novamente os
laços de parentesco com o povo “estrangeiro” são entendidos como principal responsável
pela permanência caxixó na terra.
No final da década de sessenta, João Isabel foi o primeiro a fixar
residência na margem direita do rio, ocupando dois hectares da área
denominada Fundinho. Na década de setenta, Antônio Cândido, então
residente na Várzea – ou Vargem – do Galinheiro, com o apoio da
comunidade do Capão do Zezinho, ocupou vinte hectares da área
denominada Pindaíba. Na década de oitenta, Marreco também seguiu
para aquele lado do rio, ocupando oito hectares da área do Fundinho
(Caldeira et alli; 1999: 27).
59
Djalma e Zezinho são irmãos de José Francisco (o Marreco) por parte de mãe. Sérgia foi casada três vezes:
primeiro com João Vicente, depois Firmino Nogueira Faria e por fim com Pedro Ferreira, o Pedro Toninho.
No entanto, teve filhos apenas com João Vicente (Zezinho e Nega) e com Pedro Ferreira (José Francisco,
Maria de Lourdes, Faustina e Pedro). Segundo depoimento de Djalma, seu pai biológico era um dos
fazendeiros da região – informação que será abordada mais a frente nessa dissertação (Capítulo III, item:
“Chefia e Liderança Caxixó”).
90
A manutenção da ocupação dos caxixós na margem direita ocorreu em função dos
trabalhos prestados nas fazendas como agregados ou jagunços. Entretanto, na segunda
metade do século XX, conforme relatam os caxixós, em decorrência da crescente
dificuldade de cultivar terras na margem esquerda, eles passaram a plantar roças e criar
animais (suíno, bovino e galináceo) na margem direita, nas áreas conhecidas como
Fundinho e Pindaíba.
Os fazendeiros velhos eram bons, e os novos entram, o sujeito não
conhece nem o que é os caxixós, nem o que é a lei da fazenda, e daí é a
hora que dá deles... O que eles queriam? Tirar os caxixós para mudar,
mas é para eles passarem fome. Nosso padrasto mesmo trabalhava era
no Baianço. Quando ele trabalhava lá, era na terra boa. Já pôs ele na
terra ruim. Nós vamos para Peneira, as famílias danam a brigar para
tomar as terras dele. Vai para o outro lado do rio. Assim aconteceu com
esses outros (Djalma Caxixó, 18/02/2004).
Família deles da Criciúma, então, eles eram unido, o Juquita mais a
Zizita madrinha desse Toninho aqui. Foi tudo combinado com eles, mas
tudo lá em Pompéu, não é aqui não, porque aqui se fosse combinar, o
Moacir não aceitava, porque velho é outra cabeça. Combinar com eles
em Pompéu como é que é vingava de nós, uai. É tomar a terra. Não,
primeiro, é tirar o gado. Quando foi para tirar o gado era uma época
que não era época de vender gado, aquele tanto de gado aí dentro. O
Juquita mesmo foi um que comprou. O gado foi é para Goiás, os bois.
Foi tudo para vingar. Tirando o modo de trabalhar, que eles tiraram
primeiro. Aí já deu um problema. Mas nós arrumamos foi outro jeito.
Pensando: agora tem que tirar é a terra. Combinou com eles, uai. Nós
falamos dos sobrinhos: tomar a terra. Aí tomou a terra. Aí agora que é
o problema (Djalma, 28/02/2004).
Os fazendeiros conseguiram, então, inviabilizar a continuidade do acesso a terra na
margem esquerda. Em função disso, os caxixós partiram para a margem direita e
estabeleceram novas terras de cultivo. Em terras arrendadas, o grupo trabalhou
coletivamente e mais uma vez criou formas alternativas de manter-se na região. Esse
período marca uma mudança significativa no contexto vivido entre o grupo étnico e
fazendeiros: os conflitos, antes não declarados, adquiriram visibilidade.
91
Djalma atribui a intensificação e a visibilidade dos conflitos à visita da Ruralminas
60
à região, ainda no final da década de 1980, para uma vistoria. A fim de iniciar o processo
de regularização fundiária, o órgão estadual realizou uma reunião com a comunidade do
Capão do Zezinho. Ao informar que aquela área se constituía em terra devoluta, a
instituição comunicou aos caxixós a possibilidade de regularização da terra Capão do
Zezinho. O cacique foi o requerente, pois segundo ele, a Ruralminas informou que a
documentação deveria ser emitida em nome de um proprietário (pessoa física ou jurídica).
A escritura foi então emitida em nome de Djalma Vicente de Oliveira. No entanto, apenas
uma parcela da área denominada Capão do Zezinho foi regularizada: a extensão de 2,28
hectares. A comunidade ocupa aproximadamente cinco hectares.
Segundo Djalma, a Ruralminas disse ser importante que os confrontantes fossem
pessoas da própria comunidade para evitar discussão com os fazendeiros a respeito da
fronteira de suas terras, que também ainda não estavam completamente regularizadas
(Caldeira et alli; 1999: 28). Dessa forma, com um número menor de ocupantes do que hoje
existe no Capão do Zezinho, os confrontantes que constam na referida escritura são: ao
norte e a leste José Vicente de Oliveira (Zezinho Caxixó, irmão de Djalma, falecido no ano
de 2003) e ao sul e oeste, José Zico da Silva (Zico Caxixó).
Na época da vistoria do órgão estadual, muitas casas caxixós que hoje existem no
Capão do Zezinho ainda não tinham sido construídas. A ocupação a partir da década de
1980 se intensificou, bem como a ocupação na margem direita do rio Pará.
Segundo os caxixós, a regularização, ainda que de uma parcela pequena da terra,
proporcionou maior segurança, estabilidade e melhorias para o Capão do Zezinho (como a
instalação de energia elétrica). Segundo Djalma, “depois que a lei passou por aqui, tudo
ficou diferente” (Caldeira et alli; 1999: 28).
Todavia, se a conquista da regularização daquela pequena gleba de terra trouxe
segurança para os caxixós, ela também gerou, por sua vez, a insegurança nos fazendeiros,
que reagiram contra o direito e a estabilidade adquiridos por essas famílias. Foi em 1986,
60
Fundada em na década de 1960, a Ruralminas foi, até a década de 1990, o órgão estadual que atuava nos
setores de colonização e titulação de terras. A partir do ano 2000, quando foi reestruturada, a Ruralminas
passou a concentrar-se nas atividades de planos, programas e projetos de desenvolvimento rural (site:
http://www.ruralminas.mg.gov.br/
, acessado em 29/01/2006).
92
nas terras caxixós da Pindaíba e Fundinho, localizadas na margem direita do Pará, que os
fazendeiros então investiram novamente.
Na área denominada Fundinho residiam, na época, as famílias de José Francisco
Caxixó (Marreco, irmão de Djalma) e João Caxixó (João Isabel, tio de Djalma). Na área da
Pindaíba, também na margem direita do rio, residia a família de Zé Candinho. Ali os
caxixós possuíam suas roças familiares.
O conflito que ocorreu nessas duas áreas em 1986 pode ser considerado o principal
momento de confronto entre caxixós e fazendeiros no período contemporâneo. Ao contrário
dos demais conflitos, esse se fez de forma declarada. Os administradores da fazenda São
José ameaçaram os caxixós de morte, destruíram suas cercas e alguns sítios arqueológicos,
e impuseram-lhes a saída daquelas terras. O conflito foi registrado em um processo policial
no município de Pompéu. A comunidade do Capão do Zezinho, nesse momento, solicitou o
apoio do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Pompéu (STR), da CPT (Comissão
Pastoral da Terra) e do Cedefes (Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva).
Diante da ameaça concreta de dissolução definitiva de sua base territorial e do
conflito declarado, os caxixós decidiram então enunciar sua identificação indígena. Com o
apoio de entidades e tendo já conquistado legalmente uma gleba de terra, ainda que muito
pequena, os caxixós acreditaram que a lei poderia garantir seus direitos.
Os depoimentos abaixo retratam episódios referentes ao conflito fundiário de 1986:
Vanda Kaxixó: O Zé Galinha [administrador da fazenda São José]
chegou na casa do João Isabel e lá estavam duas crianças. Elas ficaram
com medo e vieram correndo contar para nós. Quando elas chegaram
aqui, levaram uns dois minutos, ele chegou aqui perto da minha casa e
ficou rodeando, olhando quem estava aqui dentro. As crianças vieram
aqui e contaram: ‘ele tá chamando o meu pai. Ele tá aí fora!’ Ele veio,
apeava, olhava quem estava aqui dentro. Aí ele voltou, viu que meu
marido não ia, que é o José Francisco [o Marreco]. Ele montou no
cavalo e saiu. Ele fez de arrancar a porteira e subir para o Seu Zé
Candinho e arrancaram lá a cerca dele. Um pedaço bom... e foi
bastante poste.
Zé Flori [Caxixó]: Nós estava aqui, a nossa turminha. Então quando ele
[Zé Galinha] subiu para cima. Então Seu Zé Candinho levou nós de
charrete. Nós encontramos com ele no caminho. Então levamos até o
gravador para ver se ele falava alguma coisa. Ele não disse quase nada.
Então nós seguimos a viagem para diante. Então chegamos lá! Estavam
93
nove postes arrancados e uma lasca quebrada, bem perto do colchete.
Então... As três cordas do arame cortadas. Então nós voltamos para
traz. Nós estamos pedindo rapidamente ao INCRA e à CPT para nos dar
apoio para ver o que vai acontecer. Porque nós estavámos, todo mundo,
acismado.
José Francisco (Marreco): O Zé Galinha hoje teve aqui em casa, nós
estávamos fazendo o mutirão, fazendo a cerca, que eles tinham
desmanchado. E a hora que ele chegou aqui em casa, o povo tinha uma
santa que é visitadeira. Então o Pedro começou a fazer a novena. O
povo que estava em mutirão começou a fazer a novena. Eu estava
mexendo com a criação. Aí na hora que eu acabei de arrumar a criação,
esse Zé Galinha chegou lá na porta procurando eu. Andando lá,
beirando a porta. Aí eu agachei numa moita para ele não me ver. Aí os
meninos procuravam eu lá dentro; eu não estava. Aí eu saí ligeiro e vim
para assistir a novena. Aí os meninos toparam comigo que lá ia
chegando na porta! Falou: ‘o Zé tá te chamando, pai!’ Eu falei com
eles: ‘só na hora que acabar a reza.’ Aí, eu estou rezando lá junto com o
povo, fazendo a novena. Aí antes da novena acabar, o meu menino
chegou, falou: ‘Pai, anda depressa que ele tá desmanchando a cerca’.
Aí eu chamei um cunhado meu, que chama Zé Flori, e nós fomos
depressa mesmo! E ele já tinha arrebentado a alça de arame e jogado
para lá e nós vimos ele montar a cavalo e sair correndo para a posse do
Zé Candinho. Aí eu falei com o Zé Flori: ‘Vamos falar com o Zé
Candinho para pegar a charrete e ir depressa lá para ver, que ele foi
direto lá para a cerca.’ Aí ele esperou a novena acabar e entrou na
charrete. Eles foram três e levou o gravador. Topou com ele no
caminho, antes de chegar na cerca, e deu conta de gravar umas coisas
dele. E chegou lá e viu a cerca que ele tinha desmanchado. Ele
desmanchou bastante (Depoimentos concedidos a Geralda Soares em
1986; apud Caldeira et alli; 1999: 28-9).
Djalma: Estava só eu mais o Marreco, Zé Candinho e o Dawler, dentro
daquela época que tinha que ir para Belo Horizonte. Nós invém de Belo
Horizonte, chegou de noite, para vim de charrete do Pompéu para o
Fundinho. Então é só carro fora de hora passando para adiante,
voltando para trás, invém aquilo. Quando chegou aqui no Capão do
Barreiro, passou um caminhão (...), então, já lá para meia noite, nós
falou com o Marreco: passa por dentro aqui e nós damos a volta: eu
mais o Dawler e o Zé Candinho. Marreco deu com um terno de
[inaudível]. Ele sobe num pau. Subiu no pau pensando: ‘daqui do pau
se eles matarem vocês três, vai ficar eu sem matar para daí comunicar à
justiça. Daí o caminhão atravessou no Mato da Chácara, veio cá no
cerrado e virou e voltou para trás e ficou esperando nós, do outro lado
do córrego, no pé do morro. Quando nós lá vai, eu atrás, o Zé Candinho
mais o Dawler na frente. O Zé Candinho parece que teve medo nessa
94
hora. Essa hora, ele pensou: ‘vou ser morto agora!’ O Dawler era
pequeno, mas acompanhando a luta, porque o Dawler acompanhou. O
resto dos filhos do Marreco não conhece nada não.
Vanessa: O Dawler é o que está em BH?
Djalma: É, ele conta que a hora que tiver pronto [a terra], ele vem
embora. Ele acompanhou. Então, quando foi chegando perto.
desceram os dois homens. O lugar de passar era beirando eles. Era só
atirar mesmo. Zé Candinho:’ como é que faz?’ Querendo só que eu
passasse para frente. ‘Uai, já tá pertinho, tanto faz eu ficar aqui dentro
como eu ficar aí na frente com vocês, como no lugar que eu tô, uai, pois
nós estamos é dentro de uma charrete!’ (...) “Pode tocar Dawler, está
pertinho’. Falando: ‘Segura Zé Candinho, que nós vamos ser mortos
agora! Eles são dois, mas nós matamos ao menos um!’
Vanessa: Isso em que época?
Djalma: Na época do conflito que era do Marreco, mas era cá adiante,
porque quando eu entrei, dois anos, eu mais o Pedro, e a Nega mais o
Zé, éramos nós quatro daqui... Quando a Vanda fala, éramos nós
quatro, não era todo índio não. Índio que acompanhou foi lado de
cerca. Essa época era quando a Geralda já mexia. Isso não tem muitos
anos não.
Falei: ‘Eles vão matar nós, mas vê que nós matamos um!’ Falando
sempre que se eles matassem a gente, não precisa ter medo, eles
também vão morrer! Porque eu falei: ‘eu também já arrumei dois
jagunços para matar eles. Matar não os camaradas não, matar é os
donos mesmos!’ A hora que eu falei isso, eu falei: ‘vocês sabem que nós
não temos medo, mesmo! Eu falo dentro [inaudível] de Pompéu que nós
somos de uma raça só. Não precisa pensar que nós temos medo deles,
que eu não tenho não, Zé Candinho. Parece que você bambeou. Eu não
tenho medo de homem não! Eu conto é com direito. Nós estamos
mexendo é com lei, e eles sabem que é com lei. Não é lei de matar.
Então, chegou a hora, uai. Eles vão atirar, mas às vezes em nós atirar
nós matamos um deles’. Ah, a hora que eu falei isso, falando se eles
matar nós, eles vão morrer mesmo; falando: ‘eu tô com dois jagunços
para eles também encapado e é lá na rua; eles vêm lá da rua para fazer.
Eles vão ser mortos lá’. Ah, eles só deram a volta. Isso é trem beirando
igual mesmo fogão. Eles só retiraram. Daí o cavalo não tinha jeito de
passar, era uma égua. Nós passamos. Daí falei: ‘tá vendo Zé Candinho,
você que não sabe. Eu fui ensinado nessa família: o rico mesmo tem
medo de morrer. Você não precisa de pensar que Cordeiro não tem
medo de morrer. Ele tem coragem é de pagar. E nós fomos ensinados
também, você que não sabe, é turma’ (18/02/2004).
95
Apesar da violência e da tentativa de expulsão, os caxixós ainda permanecem nas
áreas Fundinho e Pindaíba. Segundo Marreco, o fazendeiro e os caxixós ali residentes
estabeleceram um acordo na delegacia de Pompéu: as famílias caxixós permaneceriam na
terra, contudo, em uma área reduzida.
A família de Zé Candinho (falecido em 2000) foi quem estabeleceu residência na
área Pindaíba até muito recentemente. As condições que lhe permitiram permanecer e
garantir a maior dentre as posses de terra caxixós na margem direita são marcadas por
indicações que apontam para a situação passada de sua família: a jagunçagem. Esta teria
possivelmente lhe proporcionado o acesso à terra da Pindaíba. Contudo, apesar desta
questão permear a análise, os caxixós entendem que quando do conflito de 1986, Zé
Candinho somente conseguiu permanecer na terra graças ao processo de ocupação que a
comunidade realizou naquela margem do rio.
Todavia, apesar de várias famílias caxixós utilizarem aquela terra para cultivo de
roças, Zé Candinho, sob pressão dos fazendeiros e identificado por esses como o ocupante
da gleba de terra, realizara acordos com um dos fazendeiros. Estabelecida uma permuta de
terras que envolvia a área da Pindaíba, o fazendeiro, então, investiu com fogo e tratores
sobre as cercas e roças dos indígenas, deflagrando o conflito descrito (Caldeira et alli;
1999: 29).
Segundo os caxixós, no processo policial instaurado, os fazendeiros alegaram assim
estarem no seu direito. Todavia, a comunidade do Capão do Zezinho não reconhece o
acordo, pois sendo a Pindaíba uma ocupação coletiva, Zé Candinho não tinha poder para
autorizar tal permuta.
A relação entre Zé Candinho e a comunidade do Capão do Zezinho parece
caracterizar a atualização da situação limítrofe vivida por aqueles caxixós que serviram ao
dominador. Sampaio, no relatório Cedefes/ANAÍ, analisa a questão da seguinte forma:
Não se pode deixar de observar aqui como a figura do senhor Zé
Candinho, tido como o último herdeiro na área dos kaxixó “tirados
para jagunço”, dos quais seu pai, Tonho Candinho, foi certamente, o
personagem mais notável, persiste, de certo modo, atualizando a
polaridade instaurada entre os Kaxixó há mais de duzentos anos com a
implantação da dominação dos “brancos” e da “lei de Kaxixó”.
96
Morando sozinho e isolado na Pindaíba e detendo, destacadamente, a
maior dentre as posses de terra dos Kaxixó, ele parece atualizar uma
relação de admiração, respeito e temor da parte dos outros Kaxixó por
assumir a situação limítrofe do personagem contemporâneo que remete,
inquestionavelmente, à ruptura originária, ao “segredo”, ao vínculo de
honra que os “não batizados” são capazes de manter e acionar, real ou
potencialmente, com o dominador [segundo Djalma, os jagunços não
eram batizados para manter em segredo sua identidade; e o pai de Zé
Candinho parece ter sido o último caxixó a ter exercido tal atividade.
Após sua morte, tornou-se possível então revelar a jagunçagem, mortes e
ruptura do próprio grupo].
Deste modo, a atual barganha entre o senhor Zé Candinho e um
pretenso herdeiro da São José propicia, mais uma vez, como no
assassinato de Cambino, a reprodução da violência do conquistador
sobre seus parentes e a atualização, na memória e na vida, das cenas
que parece representar o signo maior da própria instauração da
sociedade e da lei dos Kaxixó. Assim, destruir e atear fogo nas roças,
arrancar cercas, ocupar áreas com gado, realizar ameaças de morte
constituem práticas ocorridas contra os Kaxixó também e ainda durante
o ano de 1998. Porém, como afirma Djalma, houve um “avanço” na lei
de seu povo. Atualmente, o grupo possui maior clareza sobre seus
direitos. Conquistando o apoio de instituições e entidades, os Kaxixó
resistem às ameaças e pressões para expulsão da terra, dando
seguimento à luta pelo reconhecimento étnico oficial (Sampaio apud
Caldeira et alli; 1999: 29-30).
Após o conflito em 1986, os caxixós deram início à reivindicação pelo seu direito à
terra ao órgão indigenista oficial (Funai). O procedimento adotado pela agência nacional foi
estudar o caso e solicitar um laudo antropológico sobre a identidade indígena caxixó. Em
1994, a antropóloga Maria Hilda Paraíso, responsável pelo laudo, concluiu pela não
identidade indígena do grupo.
Nesse momento, os caxixós formaram seu conselho indígena, iniciaram sua
participação no movimento indígena regional e nacional, conquistaram apoio de entidades
não governamentais, rejeitaram o laudo antropológico da Funai que não os reconhecia
como indígenas e denunciaram a destruição de sítios arqueológicos na área por eles
ocupada.
De forma ímpar, o caso da identidade indígena caxixó foi alvo de uma larga
produção de relatórios técnicos. Como já indicamos anteriormente, o primeiro deles foi
97
produzido por Paraíso mediante solicitação da Funai em 1994. No período de 1998 a 1999,
as organizações não governamentais Cedefes e ANAÍ produziram um relatório a respeito
do tema, que forneceu “uma etnografia básica dos Caxixó, contendo mapas, genealogias,
um censo por casas e famílias, informações sobre a vida econômica e as múltiplas esferas
da vida social, bem como transcrição de narrativas orais, descrição de algumas situações
sociais e produção de documentos relevantes para a compreensão dessa população”
(Oliveira; 2003: 166). O relatório também conteve dados sobre alguns dos sítios
arqueológicos identificados pelos caxixós na área rural de Martinho Campos e Pompéu e
dados referentes à história oficial da região. Ainda em 1999, a Procuradoria da República
em Minas Gerais, através do trabalho da perita em antropologia Ana Flávia Moreira Santos
e do procurador Dr. Álvaro Ricardo de Souza Cruz, produziu o laudo “A história ‘tá é ali”:
sítios arqueológicos e etnicidade”, com a finalidade de apurar as denúncias realizadas pela
comunidade do Capão do Zezinho acerca da destruição dos sítios arqueológicos na margem
direita do rio Pará. Por recomendação do Procurador, o laudo deveria conter uma análise
sobre a identidade do grupo que alegava ser indígena e manifestava uma relação de
proteção com os sítios. O referido laudo além de elucidar o contexto das denúncias caxixós
e a relação que essa população estabelecia com os tais sítios, apresentou dados históricos e
etnográficos de extrema relevância para a compreensão da realidade vivida pelos caxixós.
Por solicitação expressa do Procurador, o estudo também incluiu “uma análise detalhada”
do laudo de Paraíso (Oliveira; 2003: 167).
O laudo da Procuradoria concluiu pela identidade indígena do grupo, contrapondo-
se àquele encomendado pela Funai (Paraíso), e em função da conclusão do seu documento,
a PRMG agiu no sentido de atuar na garantia dos direitos indígenas daquelas pessoas,
conforme prevê nossa Carta Magna. A Procuradoria da República em Minas Gerais
recomendou, então, oficialmente, à Funai a inserção do povo Caxixó nos programas
direcionados aos povos indígenas no Brasil. No entanto, de forma surpreendente, o órgão
indigenista nacional entendeu ser necessário ainda mais um parecer antropológico com
relação ao caso. O atendimento e a garantia dos direitos do povo Caxixó mais uma vez
foram postergados e o caso foi novamente remetido aos antropólogos, num contexto em
que é dado a eles (nós) a equivocada função (poder) de dizer quem são os povos indígenas
no Brasil contemporâneo (ver Oliveira; 2002a).
98
A Associação Brasileira de Antropologia (ABA), no intuito de atender solicitação
formal da Funai, indicou João Pacheco de Oliveira para realização do novo relatório, que
deveria conter uma análise e uma conclusão acerca dos dois laudos já produzidos: Paraíso
(Funai) e Santos (PRMG). Após a realização de visita à comunidade, leitura detalhada dos
dois laudos e do relatório Cedefes/ANAÍ, e das demais pesquisas bibliográficas; em 2001,
Oliveira apresentou seu relatório, que concluiu pela identidade indígena caxixó.
Nesse sentido, dois laudos e dois relatórios técnicos foram produzidos no intuito de
apresentar análises referentes à identificação indígena caxixó. De forma singular, esse caso
sofreu um exaustivo debate, o que nos permite afirmar que tal questão foi esgotada de
forma muito mais completa que qualquer outro caso administrativo de identidade étnica que
temos conhecimento.
II.3) Lugares da história
A destruição de sítios arqueológicos na região de Martinho Campos e Pompéu foi
alvo de denúncia caxixó ao Ministério Público Federal no ano de 1998. O processo
administrativo desencadeado a partir de então foi responsável pela retomada da discussão
sobre o acesso caxixó aos direitos indígenas previstos na Constituição Federal. Em função
dos sítios arqueológicos, matéria de relevância para a comunidade do Capão do Zezinho, o
poder público federal realizou ampla investigação acerca da situação vivida por aquelas
famílias, o que proporcionou material suficiente para solicitação da inserção dos caxixós
nas políticas públicas destinada aos povos indígenas.
Os caxixós são os principais responsáveis pelo descobrimento e proteção desses
sítios. Considerados como lugares sagrados, aos olhos dos caxixós esses sítios abrigam a
história de seu povo. Eles são compreendidos como uma concretização da origem e da
presença indígenas na região. Exímios guardiões, eles denunciam toda e qualquer ameaça
ou ação que possa vir a causar danos a esses lugares de memória.
A comunidade do Capão do Zezinho foi a primeira a solicitar a presença de um
arqueólogo na região. Alenice Motta Baeta, através do Cedefes, em 1995, foi a profissional
responsável pelo primeiro relatório técnico a respeito do assunto.
99
Os primeiros levantamentos arqueológicos em Martinho Campos e
Pompéu, localizados na Bacia do Baixo Rio Pará, tributária do Alto São
Francisco, iniciaram-se em 1995, quando integrantes da comunidade
indígena Kaxixó, solicitaram vistoria de um arqueólogo nestes
municípios, que segundo eles “tinham muitas coisas antigas de índios”.
Nesta oportunidade, foram identificados e registrados cinco sítios
arqueológicos, tendo sido produzido um relatório de campo sobre os
seus resultados
61
. Posteriormente, a partir de uma solicitação do
Ministério Público Federal, incorporou-se junto a equipe de
antropologia, trabalhos relacionados a levantamentos arqueológicos,
que foram realizados por Fabiano Lopes de Paula, arqueólogo do
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Estadual - IEPHA. Três
novos sítios arqueológicos (Pré-coloniais e histórico) foram
identificados nas adjacências da localidade denominada Capão do
Zezinho.
O Baixo Rio Pará ainda é uma região desprovida de pesquisas
arqueológicas sistemáticas. Além de Pompéu e Martinho Campos,
somente os municípios de Bom Despacho, Pitangui e Nova Serrana,
haviam sofrido rápidas vistorias, sendo que todas decorreram de
descobertas fortuitas de evidências pré-coloniais lito-cerâmicas (Baeta
apud Caldeira et alli; 1999: 58).
Expressão recorrente no discurso de Djalma, os sítios arqueológicos são
identificados como o “lugar da história”. A expressão é utilizada pelo cacique, que
inclusive foi motivo do título utilizado por Santos quando da elaboração do laudo da
PRMG: “a história tá é ali”. Segundo Santos, os sítios localizados pelos caxixós
funcionam como índices concretos da memória coletiva, sumariando
todo o passado caxixó desde seu princípio mítico – o tempo antes do
1500, tempo dos antigos e do povo da Mãe Joana – até época mais
recente, sinalizada pelas marcas deixadas pelos caxixós nas terras
trabalhadas por eles (Santos; 2003: 45).
O cacique Djalma é o principal conhecedor dos sítios localizados pelos caxixós. Ao
longo dos anos, muitos foram detectados pela comunidade, que na oportunidade da
primeira visita de um arqueólogo, solicitou “orientações a respeito dos procedimentos
necessários quando da descoberta de novos locais antigos de índios” (Baeta apud Caldeira
et alli; 1999: 59). Essa solicitação adveio da preocupação dos caxixós com a integridade
61
Baeta; 1996a. Para descrição de alguns sítios, ver também Baeta, 1996b.
100
dos sítios, que segundo eles estavam sendo destruídos em função do conflito de terras
vivido entre eles e os fazendeiros.
Segundo denúncias desta comunidade, em 1995, inúmeras evidências
arqueológicas encontradas na Fazenda São José, em especial pedaços
de potes cerâmicos, foram coletados, colocados em sacos e jogados no
rio a mando de alguns fazendeiros da região. Este dado não pôde ser
confirmado nos trabalhos de campo, mas é fato, que os sítios
arqueológicos mais próximos das residências dos integrantes desta
comunidade, mais facilmente vigiados, são os mais conservados,
apresentando inclusive maior número de testemunhos na superfície do
solo (Baeta apud Caldeira et alli; 1999: 59).
Sobre os sítios arqueológicos já detectados na região da Bacia do Baixo Rio Pará e
aqueles detectados na região próxima ao Capão do Zezinho, Baeta informa:
A maioria dos sítios vistoriados nestes municípios [Abaeté, Bom
Despacho, Pitangui, Nova Serrana e Pompéu] foi caracterizada como
sítios a céu aberto com aproximadamente 300m de extensão,
apresentando em sua área perceptível na superfície do solo, fragmentos
cerâmicos esparsos, material lítico polido, bem como manchas escuras
circulares, possivelmente, evidências de antigas habitações indígenas,
dentre outros tipos de testemunhos. Muitos dos fragmentos cerâmicos
apresentam variadas dimensões e espessuras, alguns, possivelmente
componentes de grandes igaçabas-urnas funerárias globulares, comuns
ao padrão de enterramento dos grupos indígenas do período pré-
colonial entre
±
3.000 e 500 BP
62
em todo o Brasil Central.
Muitos destes sítios arqueológicos em Minas Gerais foram atribuídos à
Tradição Sapucaí (variedade regional de uma Tradição Cerâmica mais
ampla, a Aratu), associados aos padrões culturais dos grupos Jês.
Segundo Prous, na região sudoeste do estado, “esses sítios costumam
ser atribuídos aos ‘Cataguás’, que resistiram demoradamente aos
invasores brancos, mas que não chegaram a ser estudados.”
(1992:352)
Contudo, há também registros de sítios arqueológicos típicos da Cultura
Tupi-Guarani, que ocuparam ao longo do período pré-colonial, vastas
áreas em todo o território, que hoje constitui o estado de Minas Gerais.
Muitas das ocupações do período cerâmico Tupi-Guarani podem ter
sido, inclusive, mais antigas do que as de alguns grupos Jês. No Vale do
Rio Doce, por exemplo, dados arqueológicos apontaram um grande
número de sítios arqueológicos Tupi. No entanto, na época do contato,
62
Before Present - Antes do Presente
101
não houve referências etnográficas sobre a ocupação destes grupos
naquela porção territorial.
[Com relação aos sítios detectados pelos caxixós na região próxima ao
Capão do Zezinho estes] Localizam-se, na maioria das vezes, próximos
a drenagens, córregos e rios, tendo sido percebidos, sobretudo, grandes
fragmentos cerâmicos, estruturas de fornos, além de instrumentos líticos
polidos, tais como: machadinhas, batedores, mão-de-pilão e quebra-
cocos (Baeta apud Caldeira et alli; 1999: 58-9).
Desde 1995, Baeta tem se dedicado a atender às solicitações dos caxixós sobre
registro e orientações acerca dos procedimentos adequados a cada localização de novo sítio,
ameaça ou denúncia de destruição dos mesmos. Ao longo desse período foram detectados
por ela 14 (quatorze) sítios arqueológicos, a maioria deles localizados no seguinte
perímetro: “micro-bacia do córrego Pindaíba até a fazenda Itaoca, na margem esquerda do
rio Pará, e na margem oposta, entre as fazendas do Pari e São José” (Baeta apud Caldeira et
alli; 1999: 61). Além dos sítios encontrados nesse perímetro, Baeta registra a indicação de
outros sítios que se encontram destruídos ou semi-destruídos (total de quatro sítios) e outros
(três) que ela definiu como de “referências materiais e intangíveis” (Baeta apud Caldeira et
alli; 1999: 68 e 70).
Os sítios arqueológicos de forma muito recorrente no conhecimento de senso
comum
63
são percebidos como material passível de uma investigação científica objetiva e
de um diagnóstico certeiro, capaz de oferecer o “retrato” de um momento da história de
forma isolada. Sem dúvida, há essa possibilidade. Contudo, a arqueologia não se configura
como um conhecimento que apenas gera informação nesse contexto objetivo. Sua
contribuição para os estudos referentes à história, antropologia, entre outras, advém,
sobretudo, da sua capacidade de reflexão e contextualização.
Baeta ressalta em seu trabalho que poucos são os sítios que proporcionam a relação
direta entre o material encontrado, seus antepassados e o grupo atual. A atribuição linear,
nesses casos, é rara em função da própria dinâmica dos grupos étnicos em construir e
reconstruir sua vida coletiva. Nesse sentido, a etnoarqueologia adquire importante papel no
contexto da pesquisa arqueológica.
63
Para uma discussão sobre o pensamento de senso comum, ver Sousa Santos (2002).
102
Sobre esse assunto e o estudo realizado junto à comunidade do Capão do Zezinho,
Baeta ressalta:
Os sítios arqueológicos pré-coloniais identificados e cadastrados na
região historicamente apreendida pela comunidade Kaxixó, não podem
ser diretamente atribuídos aos antepassados da mesma. Mesmo em
regiões onde as pesquisas arqueológicas são mais profícuas, é quase
impossível, com raras exceções, identificar com exatidão a autoria
étnica dos testemunhos coletados, tão pouco uma atribuição linear a um
grupo étnico atual, visto a contínua construção e rearranjos sócio-
políticos, intertribais dos grupos indígenas na “pré-história” e,
principalmente, durante os últimos séculos, após o contato com os
vorazes colonizadores.
Quando esta atribuição cultural direta é feita, normalmente, baseia-se
em abordagens etno-arqueológicas
64
que devem sempre ser
fundamentadas em pesquisas extremamente aprofundadas, com um
extenso levantamento de fontes etnográficas, além é claro, de
escavações arqueológicas sistemáticas em sítios arqueológicos
diagnósticos. [...]
Erroneamente, os sítios arqueológicos pré-coloniais, na grande
maioria das vezes, são considerados registros congelados de uma
época, não sendo apreendidos numa perspectiva histórica.
Ao longo do tempo, um ambiente munido de testemunhos do passado,
os mais remotos que sejam, podem ser interpretados e reinterpretados
por culturas adventícias, como também por grupos indígenas atuais,
independente da relação de parentesco ou cultural existente entre os
mesmos.
Sob essa perspectiva, um território histórico ou cultural pode ser
considerado “um espaço percebido e sentido pelos homens em função
tanto dos seus sistemas de pensamento como de suas necessidades. A
percepção do espaço real, campo, aldeia ou cidade, vêm somar-se ou
combinar-se a elementos irracionais, míticos ou religiosos” (Dolfus,
1982: 52) (Baeta apud Caldeira et alli; 1999: 60. Grifos nossos).
64
A Etnoarqueologia caracteriza-se por propor uma forma de estudo interdisciplinar, em que a compreensão
de vestígios materiais do passado pode ser feita enquanto um testemunho dos comportamentos humanos
através do intercruzamento de dados de diferentes naturezas. Essa compreensão se efetiva, portanto, através
de um método analógico, comparando fatos materiais conseqüentes de comportamentos observados
etnograficamente e/ou descritos nas fontes documentais com os testemunhos arqueológicos. [...] Desta forma,
está se pensando aqui numa Etnoarqueologia que contribua não só para interpretarmos o passado através do
presente, mas também o presente com uma perspectiva histórica, contemplando o passado” (Assis & Garlet;
2002: 209).
103
A contribuição da análise estabelecida pela arqueóloga é fundamental para que os
sítios caxixós possam ser compreendidos em seu conjunto e contexto contemporâneo.
Santos ressalta em seu relatório (laudo), que
os significados atribuídos às evidências arqueológicas encontradas na
região não têm sua lógica restrita a qualquer sítio em particular. É no
complexo formado pelo conjunto de sítios que se encontram a base e a
explicação das interpretações nativas elaboradas sobre um sítio
específico (2003: 45).
Compreender a relevância dada pelos caxixós a esses sítios somente se torna
possível mediante o entendimento de que esse grupo, constituído por uma origem
heterogênea, realiza uma leitura própria desses espaços, que segundo a arqueologia, não
possuem “uma atribuição cultural direta”.
Ao atribuir significado e valor simbólico a esses sítios, lugares da história, os
caxixós percebem tais espaços de forma mítica e por isso se tornam seus guardiões.
Depositários de uma história passada, no presente, eles são interpretados e adquirem espaço
na constituição de uma identidade social denominada Caxixó. Podemos dizer que esses
lugares são no presente o lugar onde se depositam (projetam) uma história enquanto
passado. Como “não são registros congelados de uma época”, os sítios são apreendidos
através de uma relação dialógica entre o presente e o passado. Nesse sentido, eles são
(re)interpretados.
A interpretação é uma via de mão dupla: se por um lado os sítios são
inseridos na memória coletiva, funcionando como índice da narrativa
fundadora do grupo, tornam-se, por outro, contínua fonte de
informações, que, uma vez interpretadas, realimentam a tradição
(Santos; 2003: 48).
Os caxixós entendem, a cada sítio descoberto, um caminho para o
(auto)conhecimento, para o conhecimento de sua ancestralidade, que é desconhecida em
sua completude, posto que atropelada pelo advento da história (Santos; 2003: 49). Os sítios
são ícones de um conhecimento que estabelece uma relação de troca, em que o material do
passado é revisitado pela interpretação do presente. E através dessa dinâmica, os caxixós
sentem, refletem, dialogam e elaboram sua história.
104
II.4) A especificidade como construção
Habitantes das margens do rio Pará, importante afluente do rio São Francisco, os
caxixós possuem sua trajetória histórica marcada por antigos e contemporâneos conflitos
fundiários. Habitantes da destacável região mineradora do Brasil Colonial, eles remetem
sua história ao violento processo de colonização do final do século XVIII, quando as
bandeiras adentraram as Minas Gerais, desbravando a região em busca de metais preciosos.
A ávida “corrida” por riquezas e terras, fez com que a região centro-oeste mineira
vivenciasse de forma preponderante acirradas disputas por riquezas.
A necessidade de mão-de-obra escrava no trabalho do garimpo era grande. Negros e
indígenas, de diversas etnias e origens, foram trazidos pelos bandeirantes para a região. A
essa população, cativa, estrangeira e etnicamente diversificada, os bandeirantes agregaram
os povos indígenas locais. Aliciados ao trabalho, esses nativos foram inseridos e
misturados à população estrangeira escrava, dividindo com esta as senzalas e o trabalho no
garimpo e na lavoura.
A aparente “assimilação” à população cativa e a miscigenação podem ser
compreendidas aqui como estratégia de sobrevivência e talvez a principal razão pela
invisibilidade da diversidade étnica dos povos autóctones da região na historiografia oficial.
A miscigenação e os poucos dados históricos oficiais referentes ao período anterior ao
contato dos povos nativos na região da confluência do rio Pará com o rio São Francisco
remetem a identificação dos povos indígenas locais a denominações genéricas, como:
tapuias, selvagens, bárbaros, gentios, negros da terra, caiapós, carijós, entre outros.
Todavia, vale ressaltar que no contexto da colonização, da luta pela sobrevivência
física dos povos escravizados, inevitavelmente a vida cultural sofre significativas
transformações, sendo a identidade étnica resultado de constantes elaborações e re-
elaborações coletivas.
Segundo João Pacheco de Oliveira, supor que os indígenas, tal como falamos deles
hoje, sempre existiram é um grave equívoco. Segundo esse antropólogo:
105
Um notável historiador da ciência, George Stocking Jr., chamou isto de
o ‘vício do presentismo’: descrever os fatos e idéias do passado com os
olhos do presente, tomando o que nos é familiar e natural como
contemporâneo aos fatos relatados do passado.
Entrando diretamente no assunto, não podemos supor – muito menos
instilar ou reforçar em outros (juízes, legisladores, indigenistas, nos
próprios índios ou no público em geral) uma tal crença – de que
aqueles índios com que estamos lidando concretamente, em nossas
pesquisas ou nas ações cotidianas, sempre existiram e que são,
portanto, anteriores à constituição da nação brasileira, e nem de que, se
dispuséssemos de lunetas mais possantes, ou ainda se encontrássemos
algum registro esquecido de um cronista colonial, poderíamos localizá-
los perfeitamente no passado, há séculos de distância, bastante
modificados, é verdade, mas ainda reconhecivelmente eles (1999: 105-
106. Grifo nosso).
Segundo Oliveira, populações indígenas com baixo grau de distintividade cultural,
marcadas por processos históricos de mudança e por mecanismos de transferência,
dominação e integração sociocultural não oferecem, em geral, muito interesse (1999: 99).
No entanto, ressalta o antropólogo,
se aprendemos as lições de outras correntes da antropologia e das
ciências humanas; se acreditamos que é mais fecundo estudar as
unidades sociais situando-as no tempo e na história (ver Turner, 1973;
Wolf, 1982); se abordamos as suas instituições e a construção de suas
fronteiras como resultado de processos políticos e identitários ocorridos
em uma situação de interação específica (ver Barth, 1969); se
percebemos a necessidade de uma análise dos fluxos culturais e das
agências sociais que perpassam unidades étnicas, nacionais e regionais
(ver Anderson, 1983; Barth, 1988 e Hannerz, 1996), então devemos
valorizar bastante as investigações atuais que se realizam em diversas
instituições de dentro e de fora da região, sobre os chamados “índios
aculturados”, “misturados” ou “integrados” (1999: 99-100).
Por imposição e ou estratégia de sobrevivência, a “mistura” marcou a trajetória
caxixó como insígnia. Em oposição à imagem estereotipada de “índio” - ser “selvagem”,
“primitivo”, “puro” -, os caxixós se apresentam à sociedade contemporânea como um grupo
assumidamente misturado. No entanto, ao contrário do que rege o imaginário popular e as
antigas políticas nacionais assimilacionistas, a comunidade do Capão do Zezinho entende a
106
“mistura” como elemento legítimo da constituição de sua identificação indígena - de sua
história.
Com relação a tal questão, Oliveira afirma:
a demonstração de que uma coletividade se enquadra na situação de
indígena se faz mediante a investigação de seus critérios identitários e a
explicitação de fatores simbólicos que conectam os índios atuais com
as populações autóctones, nada tendo a ver com alguma comprovação
de pureza cultural (1999: 118. Grifo nosso).
A “mistura” proporciona a releitura sobre o mundo nativo caxixó e essa releitura
não se faz aleatoriamente; ela é organizada e ocorre a partir de uma história comum, uma
origem pensada como comum e uma forma coletiva de se organizar e estar no mundo
(Weber; [1921] 1984). A “mistura”, ao contrário do que rege o pensamento de senso
comum, não elimina a especificidade étnica, pois a especificidade não se faz apenas pelo
viés do isolamento, da permanência, ou da continuidade, como afirma Sanchis (1998). A
especificidade é uma construção. No estudo sobre identidade é fundamental compreender
essa construção, esse dinamismo, pois as respostas dos povos indígenas ao mundo
contemporâneo não são arbitrárias, elas são articuladas entre si e seu projeto não é
aleatório, mas sempre “a partir de” uma trajetória e uma interpretação própria do grupo
étnico (Sanchis, 1998: 06).
107
Capítulo III – A DIMENSÃO DAS ESCOLHAS
III.1) Os caxixós do Capão do Zezinho
Distribuição espacial
Na área do Capão do Zezinho existem 19 residências; 01 escola, que em 2005
iniciou seu funcionamento como escola indígena (Escola Indígena Caxixó Itaoca Sérgia);
01 posto de saúde recentemente construído pela Funasa através do Programa de
Atendimento à Saúde Indígena (Posto Municipal José Vicente de Oliveira); 01 igreja
católica em fase final de construção; 01 Casa de Ritual; 01 bar e 01 telefone público; e uma
nova casa em construção.
Na área Fundinho há 06 residências e suas respectivas roças familiares. Na área
Pindaíba (margem direita do Pará, localizada a 6 km do Capão do Zezinho) há a residência
de Maria Caxixó, filha de Zé Candinho, que atualmente está desocupada. E na área da
Criciúma (a aproximadamente 3 km do Capão do Zezinho na margem esquerda do Pará),
existe a residência de Eva Caxixó que, após o falecimento de sua mãe, Dona Antonieta, se
mudou para o Capão do Zezinho.
A distribuição espacial caxixó mantém a forma de ocupação historicamente
apresentada pela memória social do grupo, salvo algumas migrações: os descendentes do
povo Tio e do povo Gentio mantêm-se na margem esquerda do Pará, e os descendentes da
Mãe Joana e do povo da Vargem do Galinheiro na margem direita. O Capão do Zezinho
atualmente possui moradores descendentes principalmente da Mãe Joana (como é o caso do
próprio cacique Djalma) e do povo Tio. A residência existente na localidade denominada
Criciúma pertence à família de Antonieta, que descende da união entre uma fazendeira e
um indígena caxixó descendente do povo do mato que ocupava a margem direita, contudo,
não do mesmo grupo familiar que Mãe Joana. O pai de Antonieta era do grupo familiar do
velho Candinho, que atuou como jagunço. Antonieta se casou com Veríssimo, descendente
também da margem direita, todavia, vinculado ao grupo familiar de Mãe Joana. O
Fundinho abriga famílias cuja descendência é de Mãe Joana; e a Pindaíba, os descendentes
108
do grupo familiar que serviu como jagunço, identificado como povo do mato da margem
direita.
Os dois grupos familiares que possuem sua história vinculada à atividade de
jagunço ou de união com donos de fazenda através de laços de parentesco são os grupos
que possuem suas residências geograficamente mais distantes do núcleo central do Capão
do Zezinho. Fundinho, apesar de localizar-se na margem direita, encontra-se situado
defronte; e as famílias que residem ali freqüentam diariamente o Capão do Zezinho, ao
contrário das famílias que ocupavam Pindaíba e Criciúma.
Segundo Djalma, Antonieta sofreu mais que os outros Kaxixó as
ameaças e perseguições dos fazendeiros, pois havia sempre o medo de
que ela viesse a conseguir legalizar sua situação de herdeira da
fazenda, apesar destes jamais assumirem sua relação de parentesco com
ela, conforme esclarece seu neto, Jerry (Caldeira et alli; 1999: 24).
Eles tinham medo de um dia a lei descobrir que a metade da fazenda é
dela. Ela sofreu demais, sofreu mesmo! E vingam até hoje do Jerry
também. A rixa da família continua para ajudar fazer vingança (Djalma,
18/01/1999 apud Caldeira et alli; 1999: 24).
De acordo com Djalma, Antonieta sofreu duplamente as dificuldades vividas por
seu povo, pois identificada como descendente de fazendeiros (ela era neta de Firmina, irmã
de José Vitor), os caxixós temiam que ela pudesse se aliar aos fazendeiros; e estes, por sua
vez, temiam que ela tentasse reaver seus direitos enquanto herdeira daquela terra. Segundo
Djalma, a família de Antonieta resistiu não apenas à violência de José Vítor, que
concentrava suas ameaças nesse grupo familiar, como também ao preconceito dos próprios
parentes indígenas.
Seus descendentes (em destaque Eva e seu filho Jerry) entendem que a existência de
sua casa na Criciúma até hoje é uma vitória de sua família. Após o casamento dos filhos e o
falecimento de sua mãe, Eva ficou sozinha na casa. Temerosa pela sua proximidade com a
sede da fazenda Criciúma e pelo fato de estar isolada do restante das moradias caxixós, ela
se mudou para o Capão do Zezinho em 2001. A saída de Eva e Jerry da Criciúma fez com
que a comunidade sentisse a perda da ocupação de um importante espaço. Aparecida
109
Caxixó, professora indígena (22 anos), em uma das entrevistas, ressalta a importância desse
lugar para a comunidade do Capão do Zezinho.
A: Lá na Criciúma...Lá vivia, né, outra comunidade da gente, mas lá tem
fazendeiro, né?! A Eva saiu de lá, aí, ficou esquisito, né?! Parece que
acabou lá.
V: Lá na Criciúma?
A: É, lá na Criciúma, né. Por exemplo: se viesse todo mundo [para terra]
podia estar ali... Não ser só aqui no Capão do Zezinho, mas...
V: Você falou com certa tristeza. Parece que acabou a Criciúma quando a
Eva veio para cá?
A: Porque a gente ia lá, a gente, né, ficava lá com eles lá. Mas, agora... É
bom que ela veio para perto da gente. Mas parece que aquele lugar ficou
só deles [dos fazendeiros]. (Capão do Zezinho, 24/06/2006)
Eva e Jerry tentaram manter a casa, ainda que vazia. Eles não queriam perdê-la, pois
segundo eles, aquele é um espaço “duplamente” seu: pela ocupação antiga caxixó e pela
regra das terras de herança imposta pelas famílias colonizadoras. No entanto, atualmente, a
casa está abandonada.
A resistência da família de Antonieta é valorizada pelo cacique, que após o conflito
de 1986, iniciou um processo de diálogo com a comunidade do Capão do Zezinho a fim de
alterar a relação de discriminação vivida entre os grupos. Nesse sentido, Djalma enfatizou
para a comunidade o esforço de Antonieta em manter-se na terra e impedir o domínio de
José Vítor; enfatizou sua ascendência paterna caxixó e seu casamento com Veríssimo
Caxixó (descendente de Mãe Joana); seu conhecimento da história antiga e o interesse
demonstrado por sua família em reivindicar os direitos indígenas. Nesse momento, o
discurso étnico é assumido por Jerry e Djalma de forma enfática no intuito de amenizar
conflitos internos.
O esforço do cacique fez com que a relação entre os grupos fosse alterada. Durante
a década de 1990, o neto de Dona Antonieta, Jerry Caxixó, foi escolhido vice-cacique e foi
o autor da denúncia da destruição dos sítios arqueológicos na Procuradoria da República
em MG. Jerry se destacou nesse período no movimento indígena regional e tornou-se o
porta-voz dos caxixós juntamente com o cacique Djalma. No entanto, em função de
110
divergências internas, ele não mais reside no Capão do Zezinho. Atualmente, casado com
uma não índia, ele reside em Belo Horizonte
65
.
Em Logradouro, área localizada distante aproximadamente 12 km do Capão do
Zezinho, estão os descendentes da família Tio e Mãe Joana. Sérgia (vó Sérgia como é
conhecida pelos caxixós), mãe de Djalma, morou muitos anos nessa comunidade. De
acordo com o cacique, atualmente existem 12 domicílios caxixós no Logradouro, entre
outros domicílios de não índios.
Como representantes de uma vida ainda isolada (povo do mato), os caxis
apresentam Mãe Joana e o caxixó Tio como principais referências. O cacique Djalma
entende que esses são os legítimos representantes do pé da árvore
66
caxixó. No peodo
contemporâneo, a descendência dessas duas figuras centrais nas relações de parentesco
define a organização espacial e social das famílias que ocupam as margens do rio Pará. Nos
tempos atuais, os caxixós que habitam a área rural possuem sua população centralizada na
descendência de cinco membros da comunidade: vó Sérgia (Mãe Joana), vó Chica (povo
Tio), Dona Antonieta (povo Tio), Dona Josina (povo Tio) – margem esquerda do Pará; João
Isabel (Mãe Joana) e Zé Candinho (Mãe Joana) – margem direita. O modo de ocupação
territorial mantém a forma relatada pelos caxixós como no tempo “antes dos mil e
quinhentos”.
65
Jerry e sua esposa residiram no Capão do Zezinho por um período. No entanto, em função de divergências
internas, eles se mudaram para a cidade de Pompéu e posteriormente para Belo Horizonte. Interessado e
atento às questões referentes à luta caxixó, ele acompanha o desenvolvimento do processo étnico através do
contato freqüente com sua mãe.
66
Expressão utilizada por Djalma, a metáfora que utiliza o símbolo da árvore se faz bastante recorrente na
dinâmica étnica para diversos povos indígenas no Brasil (galho, tronco, ponta de rama, etc). Djalma ainda se
refere aos caxixós jovens como “galhinhos” e aos mais velhos como “tronco”.
111
Área Localização Grupos familiares
contemporâneos
Ascendência
(“o pé da árvore”)
Capão do Zezinho Margem esquerda do
rio Pará
vó Sérgia, Dona Josina
e vó Chica
Mãe Joana e povo
Tio
Criciúma Margem esquerda do
Pará
Dona Antonieta Povo Tio
Logradouro Margem esquerda do
Pará
vó Sérgia e vó Chica Povo Tio e Povo da
Mãe Joana
Fundinho Margem direita do
Pará
João Isabel Mãe Joana
Pindaíba Margem direita do
Pará
José Candinho Mãe Joana
Não foi possível estimar a extensão total da terra que os caxixós ocupam. A área do
Capão do Zezinho possui extensão de aproximadamente 05 (cinco) hectares; Fundinho, 10
(dez) hectares; Pindaíba na margem direita, 20 (vinte) hectares; e Criciúma, 01 (um)
hectares (Caldeira et alli; 1999: 30). Não foi possível estimar a área ocupada em
Logradouro por esta estar localizada em área de fazendas e não constar em nenhuma
bibliografia pesquisada. No entanto, Logradouro é considerado pelos caxixós uma
localidade de extrema relevância histórica, tendo sido também alvo de pleito da
comunidade do Capão do Zezinho à Ruralminas, quando da sua vistoria na região na
década de 1980. Djalma informa que a área vistoriada pelo órgão estadual possui 4,067
hectares, no entanto, ele afirma que a ocupação caxixó expande tal perímetro.
A extensão total de todas as áreas ainda ocupada pelos caxixós deve ser de
aproximadamente 40 hectares.
Através de entrevistas semi-estruturadas realizadas com representantes da
comunidade Capão do Zezinho foi possível traçar as principais áreas de migração dos
caxixós. Fundinho, Pindaíba e Diamante, inseridas no perímetro da conhecida fazenda São
José, e a área urbana da Vargem do Galinheiro, em Pompéu, são as principais áreas de
migração caxixó na margem direita do rio Pará. Logradouro, Brejo, Varginha, Urubu, Bom
112
Sucesso, Grota D´Água, Ponte Alta e Pindaíba
67
, contidas no perímetro da conhecida
fazenda Criciúma, caracterizam as principais áreas de migração na margem esquerda do
referido rio. Todavia, além dessas áreas, muitos dos moradores do Capão do Zezinho já
residiram nas áreas rurais do município goiano de Itaberaí. As áreas urbanas de Ibitira,
Pompéu, Martinho Campos, Pará de Minas, Belo Horizonte e Curvelo também foram
citadas pelos caxixós do Capão do Zezinho como locais em que já residiram.
Já a ocupação não indígena na região, que teve início, conforme já mencionado, nos
primeiros anos do século XVII, com as bandeiras, teve sua consolidação no século XVIII
através da ação de capitão Inácio de Oliveira Campos e de Dona Joaquina de Pompéu.
Djalma afirma que no decorrer da história de domínio da família Oliveira Campos,
duas grandes fazendas se consolidaram na margem direita:
- Fazenda Paulista: adquiriu este nome em função do casamento de uma das
filhas de Dona Joaquina com um paulista. Esta fazenda ocupava a região do
rio Pará até o Paraopeba e rio do Peixe.
- Fazenda do Laranja: rios Pará, Paraopeba e São Francisco.
Segundo Djalma, Fabrisco e muitos caxixós ajudaram na construção do Buriti da
Estrada, atual município de Pompéu. Segundo ele, os caxixós, naquela época, costumavam
roubar animais das fazendas para se alimentarem. Os caxixós do Capão do Zezinho
entendem essa atitude como uma das poucas formas de reação indígena possível à
dominação sofrida. Vigente até muito recentemente (no entanto, através do roubo de
produtos da roça), essa prática era justificada pelos caxixós, que alegam o seguinte: “não
roubamos, apenas pegamos o que é nosso por direito”.
Quando a Vila de Buriti da Estrada se expandiu, o capitão Olímpio se casou com a
neta de Dona Joaquina e construiu na fazenda Quati uma escola para jagunço
68
. Tonho
Candinho formou-se ali. Segundo Djalma, a escola para jagunço foi construída no local
conhecido como Pasto Grande – área onde os caxixós realizavam seus casamentos. De
67
Localidades com o nome Pindaíba existem em ambas as margens do rio.
68
A construção de um local específico para formação de jagunços e a prática da jagunçagem na região
apresentam-se, no discurso do memorialista, como aspectos constitutivos da história caxixó. Nesse sentido, o
tema caracteriza importante material para uma discussão e problematização etnográfica e teórica mais densa.
Todavia, isso exigiria uma maior investigação e um enfoque direcionado à questão da jagunçagem, algo que
foge ao escopo dessa dissertação.
113
acordo com o cacique, a intenção era eliminar as práticas e os espaços de uso exclusivo do
grupo e construir ali não apenas um espaço de dominação do “povo do governo”, mas,
sobretudo, um espaço para investidas contra os caxixós – com formação e participação
inclusive de alguns deles.
Segundo Djalma Caxixó, Alvarina, uma das netas (talvez bisneta) de Dona Joaquina
Bernarda da Silva de Abreu Castelo Branco e de capitão Inácio de Oliveira Campos, ao se
casar com Álvaro, iniciou o domínio da família Cordeiro Valadares na margem direita do
Pará. Segundo informações dos caxixós, esse casal teve 13 filhos. Os descendentes de
Álvaro e Alvarina seriam os atuais proprietários das terras inseridas no perímetro da antiga
fazenda São José.
Moacir, um dos filhos de Álvaro, se destaca na memória da comunidade do Capão
do Zezinho em função do conflito de 1986, pois um de seus filhos, conhecido pelo apelido
de Zé Galinha, protagonizou o confronto entre caxixós e fazendeiros e foi o responsável
pelo episódio da derrubada das cercas caxixó no Fundinho e por muitas das ameaças já
descritas.
Valter Cordeiro e Francisco Cordeiro, que atualmente são proprietários de fazendas
na margem esquerda do Pará, são respectivamente irmão e filho de Sebastião Cordeiro
Valadares (um dos filhos de Álvaro e Alvarina) e Marieta de Abreu.
Jadir Cordeiro, fazendeiro que participou do conflito de 1986, é neto de Quileu e
neto de Adelaide Cordeiro, ambos filhos do casal Álvaro e Alvarina. O pai de Jadir era
filho de Adelaide com Agenor, e sua mãe era filha de Quileu com uma índia caxixó. Os
pais de Jadir eram então primos. Jadir, além de sobrinho neto de Moacir, possui
ascendência caxixó, segundo Djalma
69
.
Ao contrário das características presentes na colonização da margem esquerda, em
que a heterogeneidade de famílias e o antigo processo de venda de terras marcaram o
processo de formação das atuais propriedades rurais, a colonização da margem direita
69
As relações de parentesco compõem o principal assunto de interesse para o cacique. Sua forma de pensar o
modo de ser caxixó perpassa pela questão da “mistura” e a apresentação das relações de parentesco acima
descritas parecem constituir a intenção do memorialista em atualizar a presença do “povo do governo” na
constituição étnica contemporânea caxixó.
114
manteve duas grandes famílias como principais detentoras daquelas terras: Oliveira
Campos e Cordeiro Valadares.
A economia regional
A região ocupada pelos caxixós caracteriza-se por uma vegetação tipo cerrado.
Atualmente, as principais atividades econômicas existentes nos municípios de Martinho
Campos e Pompéu são: pecuária, cultivo de eucalipto, produção industrial de álcool
hidratado (combustível) e exploração mineral.
Região de forte interesse econômico, grandes empresas como Belgo Mineira (Grupo
Arcelor), CAF Santa Bárbara Ltda (Grupo Arcelor) e Micapel – Pedras Ornamentais do
Brasil ali se instalaram.
Produção de cana de açúcar, de carvão de cerrado e de eucalipto, criação de gado
para corte e produção de leite caracterizam as principais atividades econômicas no
município de Pompéu, ao longo do último século. A área em que se localiza a ocupação
caxixó nesse município é constituída basicamente por fazendas (pequenas e médias
propriedades rurais), cuja principal atividade é a pecuária (gado para corte e leiteiro),
incluindo ainda a indústria Agropéu
70
.
O município de Martinho Campos se caracteriza por fazendas de pecuária e por
grandes áreas de eucaliptais (reflorestamento). Placas de identificação da empresa CAF
Santa Bárbara Ltda podem ser observadas no eucaliptal localizado na área limítrofe ao
Capão do Zezinho. Contudo, a área é de propriedade da Companhia Siderúrgica Belgo
Mineira, conforme relação de cadastro de imóveis rurais do Incra referente ao município de
Martinho Campos.
De acordo com pesquisa realizada no site “Investindo em Minas”, no dia
21/04/2004
71
,
70
Dados obtidos através do site IBGE e dos arquivos do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária) em Belo Horizonte.
71
http://www.indi.mg.gov.br/perfil/setores/mm.html
115
A CAF (empresa do Grupo Belgo Mineira) implantou em Martinho
Campos uma serraria com capacidade de processamento de 1.000
metros cúbicos/mês, para aproveitar seu maciço florestal de eucalipto
da região de Bom Despacho. Em menos de dois anos, a empresa passou
a produzir 1.500 metros cúbicos/mês de madeira serrada e seca em
estufa, com tecnologia desenvolvida em parceria com a Universidade de
Hohenheim (Alemanha). A matéria-prima da CAF é fornecida para mais
de 70 pequenas indústrias moveleiras que já surgiram na região. Uma
parte é ainda exportada e outra destinada a fabricantes de móveis de
outros estados.
A empresa Micapel – Pedras Ornamentais do Brasil possui forte presença na região,
atuando na extração de ardósia e quartzo. A empresa possui jazidas nos municípios de
Pompéu e Martinho Campos, e sua sede localiza-se na cidade de Pompéu. O produto
extraído é exportado em escala mundial, segundo dados apresentados no site da empresa
72
.
A presença da Micapel pôde ser observada em campo mediante placas de identificação da
empresa na região e em transportes rodoviários (caminhões com cargas de ardósia).
De acordo com pesquisa realizada no Departamento Nacional de Produção Mineral
(DNPM) em Brasília e em Belo Horizonte foi possível constatar a presença de inúmeras
solicitações de pesquisa e exploração mineral na região. Ardósia, quartzo, areia e diamante
compõem o objeto das principais solicitações.
Nesse sentido, a terra de ocupação tradicional caxixó, além de estar inserida num
complexo contexto de disputas fundiárias, que se intensificou ao longo dos anos, tornou-se
também alvo de interesses comerciais devido ao seu grande potencial econômico.
A inserção regional dos caxixós
De acordo com Djalma, seus antepassados, no período “antes dos mil e quinhentos”,
exerciam principalmente as atividades econômicas de caça, coleta, pesca e agricultura. Tais
atividades, segundo ele, eram exercidas coletivamente e o seu produto distribuído a cada
família, com exceção da atividade de roça. Apesar de o trabalho ser coletivo, cada família
possuía seu próprio roçado.
72
www.micapel.com.br
116
Em função da chegada dos colonizadores e da constituição das terras como áreas de
fazenda, essas atividades sofreram um forte impacto. Apesar destas ainda se constituírem
como atividades dos caxixós, elas foram drasticamente alteradas.
Segundo os membros da comunidade do Capão do Zezinho, a caça e a coleta são
atualmente exercidas de forma pontual, pois exigem a locomoção pelas propriedades dos
fazendeiros. Como conseqüência imediata, as atividades se concentraram na agricultura e
na pesca. Todavia, em função da pressão dos fazendeiros nas últimas décadas, essas
atividades não têm sido suficientes nem mesmo para garantir a subsistência.
Atualmente várias são as outras atividades exercidas pela comunidade do Capão do
Zezinho em função da constituição das fazendas na região. Dentre as atividades
remuneradas, os caxixós trabalham principalmente na manutenção da infra-estrutura das
fazendas e como vaqueiros.
A exploração do trabalho rural na região sempre foi um fato anunciado e destacado
no discurso dos caxixós aos seus visitantes. Segundo eles, em represália à insistência na
luta pelos direitos indígenas, após o reconhecimento étnico oficial, muitos fazendeiros
dispensaram a mão-de-obra caxixó. Segundo depoimentos de alguns desses trabalhadores
em 2004, os poucos que ainda os contratavam ofereciam um salário inferior ao salário da
região, destinado aos demais trabalhadores não indígenas.
De acordo com informações prestadas pelo médico que compunha a equipe de
saúde indígena na região em fevereiro de 2004, Dr. José Geraldo Monteiro de Castro, a
discriminação pode ser percebida com relação à disponibilidade dos equipamentos de
proteção individual (EPI) exigidos por lei para determinadas atividades realizadas nas
fazendas, em que o trabalhador é exposto ao contato com substâncias químicas, como
herbicidas. Segundo ele, equipamentos de proteção, como máscaras, luvas, óculos, botas,
entre outros, disponibilizados aos trabalhadores regionais, não são disponibilizados aos
trabalhadores caxixós, que apresentam significativo índice de problemas respiratórios e
doenças de pele
73
.
73
Entrevista concedida pelo Dr. Monteiro no dia 27/02/2004 nas dependências do posto de saúde da cidade de
Martinho Campos.
117
As mulheres demonstram demasiada preocupação com o futuro de suas famílias,
com a falta de emprego, a aposentadoria e o excesso de trabalho daqueles maridos que
conseguiram manter-se empregados na região. Os homens reclamam e têm consciência de
que estão sendo explorados pelos fazendeiros da região. Entretanto, temem insistir e ou
exigir a contratação formal e os fazendeiros dispensarem seus serviços ou exigirem
informalmente uma “compensação” pelo “benefício”. De acordo com o depoimento de
Cristina Caxixó (34 anos), quando o marido solicitou ao fazendeiro que este realizasse a
contratação formal, a resposta foi: “se assinar carteira, não tem hora para começar o serviço
nem hora para terminar”.
A comunidade do Capão do Zezinho sofreu de forma mais intensa o desemprego e a
exploração do trabalho na região quando decidiu iniciar sua luta pelos direitos indígenas. O
desemprego, já existente em função da transformação das relações econômicas na região,
devido à inserção de atividades agrícolas que exigem pouca mão-de-obra: reflorestamento e
pecuária intensiva, se caracterizou como uma das grandes preocupações do grupo étnico.
Como conseqüência do gradual desemprego e da redução da base territorial caxixó,
a utilização de bebidas alcoólicas se intensificou, inclusive tendo se verificado o início do
consumo por parte das mulheres. Segundo o Dr. Monteiro, algumas iniciaram atendimento
psicológico na cidade de Martinho Campos.
As mulheres definem o trabalho de seus maridos como um trabalho “semi-escravo”.
Uma delas disse: “Meu sonho é que vocês tragam a lei pra cá e que os nossos maridos
trabalhem com dignidade. A terra caxixó vai demorar muito, mas se os homens pelo menos
pudessem estar trabalhando bem até lá...” (Caldeira & Magalhães; 2004: 24).
O árduo trabalho nas fazendas, bem como a dificuldade em conseguir emprego na
região, fez e ainda faz com que pais de família migrem para outras regiões em busca de
uma fonte para subsistência. Muitos caxixós foram para fazendas mais distantes, para
carvoarias, ou para Goiás em busca de trabalhos temporários.
Crianças e adolescentes auxiliam suas famílias nas atividades domésticas: limpeza
da casa, atenção à educação dos irmãos mais novos, e administração das criações de
animais domésticos (suínos e galináceos). Além deste trabalho e dos estudos escolares,
alguns ainda realizam eventuais trabalhos remunerados nas fazendas.
118
Alguns caxixós possuem pequenas roças familiares no entorno do Capão do
Zezinho. Em 2005, de acordo com depoimento de Djalma, a Funai intermediou uma
negociação com um dos fazendeiros da região para que os caxixós pudessem plantar suas
roças como meeiros. Realizado o acordo, a Funai enviou ao Capão do Zezinho sementes e
alguns instrumentos agrícolas para a comunidade ter condições de plantar algumas novas
pequenas roças. Os principais produtos plantados pelos caxixós são: amendoim, feijão,
milho e mandioca. A maioria das famílias possui pequenas hortas em suas casas, onde
cultivam alface, couve, pimenta, cebola, jiló, tomate e quiabo. Foram percebidas poucas
plantas medicinais nos quintais, que, em sua maioria, estavam com o solo bastante
desgastado (Caldeira & Magalhães; 2004).
Além do trabalho nas fazendas, das atividades domésticas e da pequena atividade
agrícola, os caxixós realizam outras importantes atividades, como a pesca e a coleta. A
pesca é realizada com tarrafa, arpão, rede, tiro (arma de fogo) e também com anzol,
dependendo da época. Segundo informações dos caxixós, os peixes mais comuns na região
são: pacu, cascudo, mandi e curumatã, e a melhor lua para pescar é a lua nova. “Quando a
água parece mais suja, em função das chuvas, é que caxixó gosta de pescar”, afirma um dos
moradores do Capão do Zezinho.
As margens do rio Pará atraem muitos pescadores para a área, sendo pacífico o
convívio com os caxixós.
A pesca é direcionada para o consumo doméstico (renda indireta), constituindo-se
uma fonte importante de proteínas na dieta alimentar. Apenas duas famílias
comercializavam peixe e mantinham a atividade pesqueira como sua principal fonte de
renda monetária até o ano de 2004. A fiscalização da polícia florestal tem dificultado
sobremaneira essa atividade. Segundo alguns caxixós, após a realização do trabalho de
campo do GT - Funai para identificação e delimitação da terra indígena, denúncias contra a
atividade de pesca dos caxixós aconteceram. De acordo com algumas famílias, uma das
vistorias realizada por policiais nas casas foi perturbadora e traumática. Segundo Marta
Caxixó (30 anos), os policiais entraram em sua casa, revistaram seus armários, jogaram
seus pertences no chão, reviraram caixa d’água, até encontrarem o material de pesca de seu
marido e realizarem a apreensão. Segundo Marta, a denúncia foi relativa ao uso de
119
instrumentos de pesca irregulares utilizados pelos caxixós, como a tarrafa. Apesar de
reconhecer a irregularidade, a comunidade disse que anteriormente nunca havia sido feito
uma denúncia contra eles. Os policiais, com mandato de apreensão e busca, efetuaram com
vigor a fiscalização, algo incomum na região.
A coleta de frutos também é uma atividade importante na vida caxixó.
Normalmente realizada por mulheres e crianças, ela ocorre principalmente no mês de
novembro. Pequi, bacupari, murici, marmelo, gariroba, gravatá, caju, mangaba, araçá,
coquinho, jatobá, jenipapo, olho de piriquito, manga, goiaba, araticum, cabo, angá, ananás,
maxixe, pitanga, rói-rói, mata-fome, cagaita, bom sucesso, baru, são os principais frutos
coletados. Além desses, os caxixós coletam também ovo de perdiz (Caldeira & Magalhães;
2004).
A comunidade do Capão do Zezinho possui um rico conhecimento acerca do
cerrado; seus ciclos, sua biodiversidade e seus potenciais. Entretanto, demonstra-se
preocupada com a ocupação deste bioma pelas empresas de reflorestamento e pelas
fazendas de pecuária. Segundo Pedro Tolé Caxixó (60 anos), antigamente havia uma maior
diversidade e abundância de frutos na região. Segundo ele: “o nosso armazém de
antigamente era o cerrado. Os fazendeiros acabaram com muito desse cerrado” (Caldeira &
Magalhães; 2004: 25).
Além da questão referente à problemática da biodiversidade, a comunidade
preocupa-se também com a perenidade das fontes d’água na região. Como a maioria destas
está inserida no perímetro das extensas áreas de eucaliptais na região, os caxixós temem as
conseqüências desse plantio para o meio ambiente.
Apesar da forte matriz camponesa, sobretudo entre os mais velhos, a exigüidade das
terras agricultáveis disponíveis contribuiu para que uma série de atividades não agrícolas se
desenvolvesse no Capão do Zezinho, tais como trabalhos vinculados à construção civil, à
prestação de serviços domésticos, à prestação de serviços ao poder público (cantineira,
faxineira, agente de saúde, professor, etc). Todas estas atividades auxiliam os caxixós na
manutenção de sua subsistência. Realizadas na comunidade ou nas fazendas ou ainda nas
cidades como prestação de serviços, elas ilustram habilidades adquiridas em função da
necessidade.
120
Na luta pela sobrevivência, os caxixós estabeleceram, através de uma rede de
solidariedade, um circuito interno de mercado de trabalho. Famílias que possuem uma fonte
de renda através da prestação de serviços ou aposentadoria, “contratam” serviços daqueles
que estão desempregados. Caxixós que viajam para participar de reuniões sobre a questão
indígena em outras cidades e estados pedem aos caxixós desempregados para os
substituírem no trabalho. Mulheres que possuem uma fonte de renda (cantineira, agente
indígena de saúde, professoras indígenas, etc) “contratam” outras caxixós, que estão com o
marido desempregado, para realizar os serviços domésticos em suas casas. Os mais velhos,
mediante suas aposentadorias (que muitas vezes representa a principal fonte de renda da
família), também possuem papel significativo nessa rede de solidariedade, que fortalece a
micro-economia local e propicia a circulação de moeda e mercadorias na própria
comunidade (Caldeira & Magalhães; 2004: 26).
Chefia e liderança caxixó
Segundo Djalma, a organização das chefias caxixós perpassa por duas principais
categorias: caciques e lideranças. Os caciques, segundo ele, comumente são definidos em
função dos critérios hereditariedade e dom. De acordo com Djalma, seu bisavô (Fabrisco) e
sua mãe (Sérgia) foram caciques, assim como ele. Compreendidos como caciques “de
nascença”, eles exercem o papel de chefia há gerações. No entanto, segundo Djalma, um
grupo caxixó pode não ter “cacique de nascença”. Nesses casos, o processo de escolha
(eleição) ocorre.
Meu bisavô (Fabrisco) era cacique de nascença, minha mãe, Sérgia,
também, e eu também. No lugar que não tem cacique de nascença tem que
fazer eleição. No Capão do Zezinho não precisa. A eleição é apenas para
liderança. Liderança é diferente de cacique. João Izabel, Vanda, Marreco,
Eva, Pedro Baixinho: eles são lideranças, escolhidos pelo grupo [na
década de 80] depois que nós passamos para índio (Djalma, 06/08/2006).
As atuais lideranças representam o “tronco da árvore”, grupos familiares “do tempo
antigo” e ou são pessoas que aceitaram a “lei de índio” e se envolveram nas atividades
vinculadas ao movimento indígena e ao pleito pelos direitos indígenas.
121
As eleições para escolha das lideranças no Capão do Zezinho não possuem
periodicidade certa para ocorrer. Normalmente, a razão motivadora de novas eleições
advém de uma insatisfação das famílias, da desistência ou falecimento dos chefes.
O cacique Djalma nasceu em Ibitira e até os 07 anos de idade residiu no
Logradouro, quando então se mudou para o Capão do Zezinho, local em que vive até os
dias de hoje. Fruto de um possível estupro
74
, ele teve sua infância marcada por um
tratamento diferenciado. Segundo Djalma, sua mãe não permitia sua presença constante em
casa. Quando saía para trabalhar, ela o trazia consigo, contudo, o deixava no mato, próximo
à fazenda onde prestava serviços. Na hora do almoço levava, escondida, comida para ele.
Segundo Djalma, sua mãe amassava feijão com farinha e fazia “pelotas” de comida para
alimentá-lo sem que o fazendeiro percebesse. Ele lembra de sua infância como um tempo
sofrido, cuja vida familiar era representada apenas por alguns poucos momentos em casa.
No mato, ele alega que aprendeu a conhecer os frutos e se alimentar sozinho. Escondido,
ele transitava pelas fazendas, matas e córregos, identificando cada pedaço de terra e seus
moradores.
Quando completou 07 anos de idade, após a morte de seu padrasto, Firmino
Nogueira Faria (segundo marido de Sérgia), sua família se mudou para o Capão do
Zezinho. A mudança adveio do casamento de sua mãe com Pedro Ferreira (seu terceiro
marido e pai de Marreco, Pedrinho, Faustina e Maria de Lourdes). No Capão do Zezinho,
Djalma iniciou seu trabalho nas fazendas e a convivência com sua família tornou-se mais
intensa. Segundo ele, Sérgia sempre ocupou lugar de destaque na vida social e política da
comunidade. De acordo com Djalma, muitos caxixós a procuravam para fazer confidências
e pedir conselhos. Liderança de referência para os descendentes do povo da Mãe Joana, ela
ocupou lugar que corresponde, no tempo presente, ao do cacique. Conhecedora da história
de seu povo, ela foi uma importante influência na vida de Djalma, que afirma: “ela era
mesmo que um chefe para nós aqui; quando ela era viva, a gente punha ela na frente”
(21/09/2003).
Apesar do importante papel político desempenhado por Sérgia, não podemos aqui
afirmar, de forma contundente, que a liderança de Djalma se configura como um caso de
74
Segundo Djalma, seu pai biológico é o fazendeiro Pedro Lino Filho, já falecido.
122
hereditariedade. Aos 69 anos, ele não possui filhos e a comunidade não discute ainda sua
sucessão. O dom, o aprendizado, o carisma, o status, a memória, a espiritualidade, a mística
podem ser elementos definidores de sua chefia, bem como do processo de escolha de outros
possíveis caciques.
Djalma não apenas detém a memória social caxixó como também possui papel
central na vida econômica e religiosa do Capão do Zezinho. Desde os 07 anos acompanhou
seu padrasto (Pedro) nos trabalhos e dedicou sua vida à permanência de seus parentes na
terra. Não constituiu família e entende ser sua “missão” unir novamente seu povo sobre a
terra que tradicionalmente ocupam para que possam então ser livres
75
.
Com 13 anos de idade, ele comprou uma bicicleta com a primeira soma de dinheiro
que conseguiu acumular. Proprietário de um dos poucos instrumentos de transporte da
comunidade naquela época, seu padrasto fez com que ele assumisse a responsabilidade pelo
transporte dos caxixós doentes até a cidade mais próxima.
Aos 14 anos, ele e seu irmão Zezinho trabalharam para seu padrasto nas terras
reocupadas pelos caxixós na margem direita do Pará e, como pagamento, recebiam
permissão para plantar sua própria roça em uma pequena parcela de terra destinada à roça
da família. A terra que seu padrasto conseguiu na margem direita era arrendada. Em função
da disputa entre os fazendeiros João Miguel e Luiz Crisipo, a área arrendada foi dividida
(situação recorrente na região). A terra na beira do rio Pará foi então arrendada para Djalma
e Zezinho.
No final da década de 1950, o grupo familiar de vó Chica, que trabalhava para o
fazendeiro Piduca, na margem esquerda do Pará, ficou sem trabalho, tendo sido
“escamuçado” (expulso) da Criciúma, como afirma Djalma. Assim, em função da
dificuldade vivida ali, algumas famílias partiram para o outro lado do rio e foram trabalhar
nas terras arrendadas por ele e seu irmão. Djalma conseguiu um pequeno financiamento no
Banco do Brasil para comprar as sementes, arame e alguns instrumentos de trabalho,
75
Não constituir família, assumir uma vida “celibatária”, não configura uma postura comum entre as pessoas
da geração de Djalma. Difícil precisar aqui qual a opinião dos caxixós a respeito dessa condição de vida do
cacique. Alguns o assemelham a um padre; outros, a um homem diferente, especial, que optou pelo “povo”,
como ele mesmo assim anuncia – opiniões que muito provavelmente auxiliam na consolidação da mística e da
força política que envolvem esse líder. Em muitas sociedades, principalmente naquelas em que o critério da
hereditariedade define os chefes, ter filhos pode ser um projeto político. Djalma não teve filhos. Todavia, seu
projeto parece ter sido assumir o “povo” de forma que todos se sintam seus descendentes diretos.
123
organizou a divisão do serviço nas roças e auxiliou as famílias na construção de seus
ranchos.
Djalma e Zezinho combinaram plantar à meia com os outros caxixós. Contudo,
segundo o cacique, seus parentes não conseguiram, na época, armazenar sementes para as
plantações subseqüentes, pois a terra era pequena, e para sustentar uma família, a colheita
era insuficiente. Zezinho apesar de compartilhar com Djalma o arrendamento, não
trabalhava na terra. Para conseguir renda monetária, ele foi trabalhar como pedreiro em
Ibitira e Martinho Campos. Djalma era quem coordenava e freqüentemente emprestava
sementes para as famílias poderem dar continuidade ao plantio.
Eu arrendava a terra e os caxixós plantavam comigo à meia. Eles
vendiam tudo que ficava para eles. Eu vendia um pouco, comia e
guardava o que precisava para o próximo arado. Eu era mesmo que um
pai para eles (Djalma, 07/02/2004).
Após o falecimento de seu padrasto, Djalma “herdou” um lote em Ibitira, que sua
família havia ocupado por um curto período de tempo. Com suas economias, comprou
alguns outros ao longo da década de 1960. Há mais ou menos 10 anos atrás, o cacique deu
um desses lotes para uma família caxixó vinda do município de Papagaio
76
para que eles
construíssem sua casa. Djalma não possui a documentação regularizada dos lotes, mas sua
atual intenção é regularizá-los e disponibilizar o espaço para que os caxixós possam realizar
reuniões em Ibitira e assim envolver um número cada vez maior de parentes nos projetos de
futuro do Capão do Zezinho.
Não é raro os caxixós procurarem Djalma para solicitar dinheiro emprestado. No
único bar existente no Capão, o cacique possui uma conta para atender aos pedidos de
guloseimas das crianças (doces, biscoitos, refrigerantes), a maioria seus afilhados.
Destarte, a aquisição de bens, a chefia (ainda que compartilhada com seu irmão) no
arrendamento das terras na margem direita, os empréstimos que até hoje ele proporciona
aos caxixós, renderam a Djalma o título, dado por seus próprios parentes, de “empresário”.
Quando questionado sobre como conseguiu acumular recursos financeiros em situações tão
adversas, ele responde que por nunca ter questionado ordem de fazendeiro, ter sido
76
Papagaio localiza-se na divisa entre os municípios de Pompéu e Curvelo e dista 151 km de Belo Horizonte
(Secretaria de Estado da Cultura apud site da Assembléia Legislativa de Minas Gerais em 01/08/2006).
124
trabalhador, não ter raiva de ninguém; ele conquistou a simpatia e confiança de muitos,
inclusive de fazendeiros. Através de sua capacidade de se relacionar bem com as pessoas,
ele alega nunca ter lhe faltado trabalho nas fazendas. Além disso, ressalta que optou por
não constituir família para que pudesse “cuidar do povo”.
Somado aos fatores apontados por Djalma, é válido ressaltar que o fato da primeira
esposa do seu padrasto (Pedro Ferreira) ser sobrinha de Dona Francisca, esposa de José
Vitor, também pode ter lhe proporcionado uma condição privilegiada na relação com os
fazendeiros da região. Conforme informação prestada pelo próprio cacique, seu padrasto
era um trabalhador que gozava de plena confiança de Dona Francisca, e após a morte de
José Vitor, ele assumiu a administração dos recursos financeiros da fazenda. Djalma
acompanhava o padrasto em seus serviços. O conhecimento do trabalho e a relação com a
fazendeira fizeram com que Djalma herdasse o “espaço” conquistado por seu padrasto no
universo das fazendas. A confiança que ele conquistou junto aos fazendeiros lhe rendeu,
bem como ao seu padrasto, ofertas contínuas de trabalho.
Djalma: Fazia ruindade, mas daí fazia ruindade para lá, mas chamava
pra cá e eu estava junto, né? Então, eles ficavam sem jeito. Pensa: ‘nós
faz vingança com ele e de todo jeito que faz eles estão junto com nós’.
Você está entendendo?
Vanessa: O senhor não tinha raiva deles então, não?
Djalma: Não, não tinha, nunca tive. Até hoje quando encontra tem
negócio não. É a mesma coisa desses daqui [fazendeiros]. Porque que
eles arrumam calado? Porque eles sabem que não sou eu. Tem eu na
frente. Nesse tempo também é a mesma coisa, invém do tempo do avô
deles. Não tem vingança. Eles marcavam: ‘é para fazer aquilo!’ Na
outra hora: não. ‘Ah, o Djalma tem que ir lá para dar uma mudança
neles’. Dava mudança. Mas é para ir pra ali. Aí, eles sabiam: ‘não, ele é
bom, que todo jeito que a gente marca, dá certo’. Para corrigir, tinha
que eles chamar o Dico, pai do Jadir [fazendeiro], para ele vir, para nós
sairmos, nós dois corrigindo o povo. Então é isso (27/02/2004).
Difícil precisar o tipo de mudança e de “correção” a que Djalma faz referência. No
entanto, entendemos que essas mudanças podem ser compreendidas no âmbito da expulsão
de famílias de uma área para outra, bem como mudanças de comportamento (correção).
Djalma muitas vezes foi chamado para conversar com os caxixós no intuito de evitar o
confronto direto entre seus parentes e os fazendeiros (acomodação do conflito). A forma
125
com que Djalma lidou com a dominação e a arbitrariedade dos fazendeiros fez com que se
tornasse referência na região até mesmo para os próprios fazendeiros, que o chamavam para
realizar a intermediação junto aos caxixós, reconhecendo seu papel de líder.
Djalma entende que nessa época em que os caxixós não conheciam seus direitos, era
importante manter a sujeição para que o conflito não fosse deflagrado e seus parentes
definitivamente expulsos da região. Ele explicava para seus parentes que aquela terra
possuía um novo dono e que haviam regras a serem cumpridas para que a comunidade
permanecesse na terra. Nesse período, Djalma entende que os fazendeiros controlavam a
vida dos caxixós. Sem poder para mudar tal condição, ele afirma que não questionar as
ordens dos fazendeiros era a melhor solução.
O cacique afirma que a liderança exercida por sua mãe era diferente da exercida por
ele. Enquanto sua mãe era uma conselheira muito respeitada pela comunidade, ele se tornou
a figura central na busca por soluções econômicas para as famílias para que estas não
precisassem migrar para outras regiões. Quando uma nova família se constituía ou quando
uma família retornava para a terra, Djalma era o responsável por viabilizar o lugar para
construção da casa, bem como o auxílio inicial para que a família pudesse consolidar sua
permanência na comunidade. Essa função ele desenvolve até os dias de hoje - é ele quem
autoriza ou realiza as intermediações necessárias para que uma nova moradia possa ser
construída na área do Capão do Zezinho. Ele negocia com a Igreja Católica, com
fazendeiros, solicita empréstimo em banco, entre outros agenciamentos, para adquirir o
necessário para a sobrevivência caxixó naquela terra.
Além de uma referência na vida política e econômica da comunidade, Djalma
também se destaca na vida religiosa. Grande conhecedor do catolicismo, ele é um dos
principais organizadores das novenas e festas para o santo padroeiro (São Francisco). Além
disso, ele é um dos benzedores mais procurados pelos moradores do entorno, inclusive por
fazendeiros.
Segundo o cacique, existem vários benzedores na comunidade e “duas qualidades”
de benção: a que utiliza ervas medicinais e a que utiliza apenas as rezas. Para ser benzedor
a pessoa tem que ter dom e ensinamento. Foi seu avô, Chico Fabrisco, e um padre da região
que lhe ensinaram as primeiras rezas. Segundo Djalma, o benzedor trata das “doenças do
126
espírito” e das doenças do corpo. O conhecimento das rezas católicas é entendido como
fundamental para o exercício da benzeção. Porém, ele afirma: “aprender apenas usando as
palavras, não serve. O benzedor tem que conhecer as coisas invisíveis, a parte espiritual, a
lei divina. É um dom” (29/01/2006).
A espiritualidade e a mística marcam intensamente a figura desse líder.
Memorialista, ele se destaca pelo dom de contar histórias “dos antigos” (caxixós). Homem
especial, cercado por uma “atmosfera” sagrada, ele se caracteriza por ser um exímio
narrador. Como afirma Ecléa Bosi:
Mestre do ofício que conhece seu mister: ele [narrador, memorialista] tem
o dom do conselho. A ele foi dado abranger uma vida inteira. Seu talento
de narrar lhe vem da experiência; sua lição, ele extraiu da própria dor;
sua dignidade é a de contá-la até o fim, sem medo (Bosi; [1979] 1994:
91).
Capaz de armazenar muita informação, elaborar rapidamente e de forma muito
particular os acontecimentos, Djalma apresenta uma narrativa complexa, um discurso não
linear da história e uma enorme disposição para falar a respeito do passado. Tais qualidades
já lhe renderam o injusto atributo de confuso. Muitos foram aqueles que desmereceram seu
conhecimento e sua memória por acreditarem se tratar de uma invenção ou uma estratégia
política para a aquisição da terra. Muitos foram aqueles que afirmavam ser aquela narrativa
parte componente apenas do pensamento dele e não da comunidade.
Apesar da narrativa apresentada por Djalma se constituir como memória enunciada
por um único indivíduo, ela não deve ser entendida como uma memória estritamente
individual.
O grupo transmite, retém e reforça as lembranças, mas o recordador, ao
trabalhá-la, vai paulatinamente individualizando a memória comunitária
e, no que lembra e no como lembra, faz com que fique o que signifique
(Chauí apud Bosi; [1979] 1994: 31).
A memória do indivíduo depende do seu relacionamento com a família,
com a classe social, com a escola, com a Igreja, com a profissão; enfim,
com os grupos de convívio e os grupos de referência peculiares ao
indivíduo (Bosi; [1979] 1994: 54).
127
Se lembramos, é porque os outros, a situação presente, nos fazem
lembrar: ‘o maior número de nossas lembranças nos vem quando nossos
pais, nossos amigos, ou outros homens, no-las provocam’ (Halbwachs
apud Bosi; [1979] 1994: 54-55).
Goethe já observava, em Verdade e Poesia: “quando queremos lembrar o
que aconteceu nos primeiros tempos da infância, confundimos muitas
vezes o que se ouviu dizer aos outros com as próprias lembranças...Daí
o caráter não só pessoal, mas familiar, grupal, social, da memória (Bosi;
[1979] 1994: 59).
As instituições formadoras do sujeito são sociais. Tornar-se memorialista somente
foi possível porque o individual encontrou ressonância no coletivo e vice-versa. Ainda que
os elementos dessa memória não sejam em sua maioria acontecimentos vividos
pessoalmente, Djalma tem o dom de transformá-los em acontecimentos vividos “por
tabela” (Pollak; 1992: 201). Ele “incorpora” as histórias e assim “transporta” quem o escuta
para o passado. É como disse Jean Duvignaud, “a memória coletiva tem o poder de
recompor magicamente o passado” (apud Halbwachs; [1968] 2004: 15. Destaque nosso).
É fato que compreender a narrativa de Djalma não é simples, como afirmam alguns
moradores do Capão do Zezinho.
Geraldo: Ele conta muita história, sabe?! Só que a gente não guarda as
histórias. Tem dia que ele fica até tarde...
Ronilda: Mas sabe por que a gente não grava o que ele fala? Porque para
ele te contar uma história que aconteceu ontem, ele vai há 100 anos atrás,
aí mistura a cabeça da gente.
(Capão do Zezinho, 27/06/2006)
Marta: Quer dizer, a gente não sabe quase nada da história caxixó. Igual,
você sabe, ele fala muito. E entender ele é difícil. Não é que é difícil
entender ele, difícil é ouvir ele. Porque às vezes ele vai falando tanto,
falando, falando, falando... Você começa a pegar o começo da coisa, aí o
quê que acontece? Ele vai falando tanto que você passa a não entender
mais. Tem que ter aquele tempo (Capão do Zezinho, 25/06/2006).
Não entendemos o tempo a que Marta se refere apenas como aquele que a pessoa
deve disponibilizar para ouvir uma história, mas também um outro tempo: aquele que
128
necessita ser incorporado. Os caxixós estão (re)construindo sua história, nesse sentido,
também existe um tempo para que o passado seja revisitado, elaborado e então incorporado.
E enquanto esse tempo caxixó se desenvolve, a comunidade do Capão do Zezinho tem
consciência de que sua história está muito bem “guardada”.
Como fiel depositário da memória caxixó, Djalma assumiu a tarefa de conduzir o
processo de (re)leitura e elaboração do passado – tarefa tão importante nos casos de
etnicidade
77
.
A memória e a mística desse líder são enaltecidas por Ronilda (36 anos) e Geraldo
Caxixó (38 anos), quando em uma conversa comigo no Capão do Zezinho:
R: Eu acredito em tudo o que ele fala, Vanessa. Sabe por que eu acredito?
Porque tudo o que ele falava quando a gente começou a lutar, já está
acontecendo tudo!
V: O quê, por exemplo?
R: Por exemplo: a escola ia voltar aqui, os professores iam ser daqui, ia
ter posto de saúde aqui dentro, ia ter muito emprego, sabe?! Ocê vê: só na
escola já aconteceram 8 empregos!
G: Ele tem uma visão grande, né, Vanessa?! O Djalma falou isso já tem
muitos anos...
R: No posto já interou 4 empregos só aqui. Tudo que ele falava que ia
acontecer está acontecendo mesmo. Então, eu acredito. Eu não tenho essa
hora que eu duvido dele, do que ele fala, sabe?! Não duvido, não. Porque
esses dias mesmo, eu fui falei com minha mãe: não, mãe, eu acho que o
Djalma é um profeta! Porque não tem como, Vanessa, não tem como uma
pessoa... Não sei se é porque se você falar uma coisa aqui comigo,
amanhã eu já fico batalhando para pensar o que foi aquilo que você falou
comigo. E ele não, Vanessa! Todo mundo que vem aqui, ele grava na
memória. A família daquela pessoa, que está lá para os Estados Unidos
afora [refere-se ao pesquisador norte-americano Johnathan Warren, que
realizou uma visita à comunidade no início da década de 1990], ele grava.
Grava tudo! Então, eu não duvido dele hora nenhuma, das coisas que ele
fala.
(Capão do Zezinho, 27/06/2006).
77
Segundo Lapierre, “o que diferencia, em última instância, a identidade étnica de outras formas de
identidade coletiva é o fato de ela ser orientada para o passado”(apud Poutignat & Streiff-Fenart; [1995]
1998: 13). Nesse sentido, a memória, o dom de interpretar a história, o passado, são atributos extremamente
valorizados, que proporcionam ao memorialista a possibilidade de desempenhar um papel social até então
sem precedentes na vida do grupo (Arruti; 1997: 14).
129
A memória e o interesse de Djalma pela história são qualidades mencionadas por
sua mãe, que as identificou desde quando ele era muito jovem. Em um dos raros registros
de depoimento de Sérgia (realizado por Geralda Soares), a mãe assim se refere a Djalma:
Negócio dele aprender é porque é assim: uma pessoa conta uma história
para ele, ele guarda aquilo no sentido. Desde ele rapazinho. Se você ver
as histórias que ele conta de quando ele era rapazinho! Eu fico
impressionada! (...) E fica contando as histórias todas para ele, para o
Zezinho, recordar. (...) Toda vida ele era mais curioso. (...) (Capão do
Zezinho, 1987).
Como benzedor, Djalma atende chamados de seus parentes e também de
fazendeiros. Como sua mãe, ele também é procurado por pessoas que lhe pedem conselhos
e lhe fazem confidências. Como principal conhecedor da história antiga, ele é muito
solicitado por antropólogos, pesquisadores e estudantes. Respeitado por sua bondade,
dedicação e memória, ele é solicitado constantemente pela comunidade. Atualmente,
católico, ele coordena o grupo de reza; e como pessoa que possui boas relações na região e
uma estabilidade econômica (aposentadoria), ele também é solicitado para administrar as
dificuldades financeiras e políticas da comunidade.
Djalma possui um estilo de vida peculiar. Com uma infância marcada pelo
distanciamento da vida familiar, ele afirma ter aprendido a viver sozinho. Segundo ele, a
realização das atividades domésticas não era um problema – Djalma afirma que até a
década de 1980 era ele mesmo quem preparava suas refeições, realizava a limpeza da casa e
lavava suas roupas. No entanto, em função do seu destacado envolvimento na luta pelos
direitos indígenas e do avançar da idade, o cacique diz não ter mais o tempo e a condição
de realizar todas essas atividades sozinho. Solteiro e único morador da antiga casa de sua
mãe, Djalma, atualmente, contrata alguém no Capão do Zezinho para lavar suas roupas. As
refeições, muitas vezes, ele realiza na casa de algum de seus sobrinhos. Como retribuição,
frequentemente, ele envia algum tipo de mantimento. Hoje, a aposentadoria e o salário que
possui como “professor de cultura” na escola indígena Itaoca Sérgia compõem sua principal
fonte de renda.
A figura de Djalma é singular. Seu carisma e sua dedicação ao “povo” e ao projeto
étnico caxixó é destacável. No entanto, após a enunciação da identidade étnica caxixó e do
130
início do processo político de reivindicação pela garantia dos direitos indígenas, os caxixós,
e principalmente Djalma, entenderam ser necessário a consolidação de um novo perfil de
liderança. A inserção caxixó no movimento indígena regional e nacional; as várias
solicitações de entrevistas e palestras; audiências com o poder público; entre outros
compromissos fizeram com que os caxixós entendessem ser importante a consolidação de
lideranças que tivessem maior facilidade em articular um discurso para os não índios. No
período em que a identidade étnica foi divulgada e a reivindicação da demarcação da terra
indígena foi deflagrada, Jerry Caxixó assumiu esse importante papel. Articulado, com um
discurso incisivo, ele encaminhou a denúncia à Procuradoria da República em Minas Gerais
sobre a destruição dos sítios arqueológicos, representou os caxixós nos vários fóruns do
movimento indígena e se consolidou como porta-voz da comunidade para o público
externo. Interessado na história antiga, ele tornou-se principal companheiro de Djalma, que
parece ter visto nele um possível sucessor. Dessa forma, Jerry foi eleito vice-cacique na
década de 1990 e ocupou tal posição até o início de 2001.
Na década de 1990, os caxixós criaram o Conselho das Comunidades Indígenas
Kaxixó – CCIK com o objetivo de angariar recursos financeiros para realização de projetos
e organização de suas ações políticas referentes aos direitos indígenas. Nessa época, os
caxixós também foram convidados a integrar o Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Pará
como único povo indígena ainda habitante das margens daquele rio.
Em função da implantação da Política Nacional de Atendimento à Saúde Indígena,
cujo modelo corresponde aos Distritos Sanitários Especiais Indígenas – DSEI´s, os povos
indígenas no Brasil foram estimulados a constituir os conselhos locais de saúde e a
participarem do Conselho Distrital. O Conselho Local Caxixó é formado por dez membros,
entre habitantes do Capão do Zezinho, cidade de Pompéu, cidade de Martinho Campos e
distrito de Ibitira.
Com o apoio do Cimi, os caxixós estão organizando a I Assembléia Geral do Povo
Caxixó, que deve acontecer no período de 01 a 03 de setembro do corrente ano, no Capão
do Zezinho. Com o tema: “essa terra é nossa!”, eles têm como objetivo central discutir o
processo oficial, ainda inconcluso, de demarcação da TI Caxixó.
131
Religiosidade
A comunidade do Capão do Zezinho é católica e tem como padroeiro São Francisco
de Assis. Anualmente, no dia 04 de outubro, a comunidade prepara uma grande festa para
homenagear o santo. Os festeiros e o grupo de reza, escolhidos pela comunidade, são os
responsáveis por organizar a festa e arrecadar os recursos para pagar a missa (deslocamento
e presença do pároco).
Durante o mês de maio, a comunidade realiza a novena para Nossa Senhora
Aparecida. No período de 1998, quando o Cedefes teve a oportunidade de acompanhar o
evento, eles se reuniram várias noites no Cruzeiro para rezar. Eles levaram a imagem de
Nossa Senhora Aparecida e velas, acenderam uma fogueira e estouraram fogos. Ao final de
cada reza, os caxixós lembraram dos parentes que estão em outras cidades, outros estados, e
pediram por sua saúde e proteção.
Apesar de se identificarem como católicos, o discurso relacionado a “doenças de
espírito”, visões, presságios faz-se frequentemente presente entre os membros da
comunidade. O tema de uma espiritualidade não relacionada ao catolicismo é tratado com
certa reserva – um assunto restrito, que não ocupa o discurso comum e público.
Jerry: Outra questão é que o Manoel Peão é quase como um pajé, sabe?
Muita gente tem fé que ... Hoje, ele está assim mais ... para essa questão
da católica, da Igreja Católica, que ensina ele muita coisa. Que ele tem
força e poder de cura. (...) Só que Djalma também ... e ele, eles, já
pegaram uma influência muito grande da Igreja Católica, que acabou
tirando muita coisa da sua sabedoria e colocando outras coisas, né?
‘Não, você tem que rezar o terço, você tem que fazer isso, fazer aquilo.’
E ele está acabando esquecendo o que ele fazia. (...) Isso se deu muito
forte foi comigo, né? (...) Por exemplo, você está perante uma situação e
acaba aparece uma cobra, né? Parece engraçado, né, essa questão?
Mas, assim, isso não se deu somente agora [refere-se ao aparecimento
de uma cobra quando do trabalho de campo da arqueóloga], né? (...)
Porque na verdade, Vanessa, eu percebi que eu tinha uma força
espiritual muito grande, né? Apesar de que, eu acredito no seguinte: até
hoje eu não consegui concretizar isso.
Vanessa: Dizem que a sua avó tem ...
Jerry: Ela tem, mas ela não aceita tocar nesses assuntos, né?!
(Belo Horizonte – 14/12/1998 apud Caldeira et alli; 1999: 44)
132
Ao chegar ao Capão do Zezinho ocorria uma fantástica discussão.
Chegaram a um impasse no último encontro e esperavam minha
chegada para ouvir a opinião de alguém de fora, alguém de outro
‘mandamento’, na cabeça de Djalma. (...) O padre Geraldo, não sei
como, conseguiu do fazendeiro Matozinho a doação de um terreno
vizinho do Capão para construir uma Igreja. Logo, Djalma, Zezinho e
algumas famílias se uniram para realizar o empreendimento da
paróquia. Construir a igreja. (...) E aí começou a divisão. Outro grupo
de famílias argumentava que se fizesse a igreja com todo este
envolvimento, na hora das eleições, que estão chegando, seria um prato
cheio para conseguir votos dos pobres. ‘Depois, padre Geraldo, bom,
mas e se vier um do lado dos fazendeiros? Como que vamos impedir
mais um para falar contra nós dentro da área? Basta a escola: ela está
aí, fechada para nós. Com duas professoras de fora e uma que se opõe
ao que queremos. Por outro lado ... nós temos nosso modelo de fazer a
nossa casa (o Jerry introduz o nome de Casa de Ritual). Vamos fazer de
nosso jeito a Casa de Ritual. De chão, barro batido, sapé e madeira,
toda amarrada de cipó ... Tem gente aqui que sabe apanhar sapé. Sabe
onde tem. Precisa é de ajuda ...’ (...) Na verdade, o nome, mesmo
estranho, ganhou adesão da maioria. Mas os outros, inclusive Djalma,
jogavam com algo forte que era ter a igreja para ter o Santíssimo ali
para adoração toda noite ... (...) Os ânimos se acirraram tanto que a
discussão parou por aí (Geralda Soares, 1995 apud Caldeira et alli;
1999: 45).
A existência da Casa de Ritual e a construção pela comunidade de uma Igreja
Católica no Capão do Zezinho; o respeito à doutrina católica e o reconhecimento da
existência de “espíritos”, visões e presságios, podem nos remeter a um possível
“sincretismo
78
religioso caxixó. Todavia, a espiritualidade é um tema de difícil
abordagem, repleto de restrições aos não índios. Como não investigamos os costumes e a
religiosidade dos outros habitantes daquela região, não podemos aqui nem mesmo afirmar
78
“O antropólogo baiano Ordep Serra, em trabalho polêmico, discute longamente a problemática do
sincretismo, analisando sobretudo a situação na Bahia. Não concorda que sincretismo seja apenas mistura e
confusão. Propõe
[...] que se chame de ‘sincretismo, em sentido estrito, a todo processo de estruturação de
um campo simbólico-religioso ‘interculturalmente’ constituído, correlacionando modelos
míticos e litúrgicos ou gerando novos paradigmas dessa ordem que assinalem
expressamente outros [...] de maneira a ordenar novo espaço intercultural (1995, pp.
197/198).
(...) Em interessante artigo, Pierre Sanchis lembra que se escreveu demasiadamente tanto sobre sincretismo
quanto sobre totemismo, que se referem a um problema de classificação. Indaga se o sincretismo não seria
‘um universal dos grupos humanos em contacto, ou o modo pelo qual as sociedades humanas, quando
confrontadas, são levadas a entrar num processo de redefinição de sua própria identidade’. Para o autor, esse
processo se daria numa relação de desigualdade e de dominação política, cultural ou religiosa” (Ferreti; 2001).
133
que tais características são específicas dos caxixós do Capão do Zezinho. Apenas nos é
possível afirmar nesse trabalho que o sagrado e o profano compõem fortemente o discurso e
análise caxixós sobre sua trajetória, e que a interpretação religiosa espiritual para fatos da
história se faz recorrente no discurso de Djalma.
III.2) Os projetos de futuro
A mobilização étnica caxixó teve início a partir de um conflito de terras em que os
caxixós sentiram a ameaça concreta de dissolução de sua última base territorial. Garantir a
demarcação da Terra Indígena (TI) Caxixó se configura ainda como o atual e principal
objetivo da comunidade do Capão do Zezinho
79
. Como fator responsável pela mobilização
étnica, a terra foi a razão da “revelação” da identidade indígena caxixó. Para eles,
(re)conquista-la representa a possibilidade de realização do desejo de “viver um tempo” que
não conheceram: “tempo do índio livre”, como afirma Djalma.
Segundo Glayson Caxixó (28 anos), professor indígena, ser livre é poder
“movimentar-se na terra sem medo”.
A gente estaria cortando essa área hoje que às vezes a gente pode estar
encontrando, cercado com fazendeiro, falando assim: ‘oh, vocês não vão
passar pra frente não, que se vocês passarem eu mato vocês’. Às vezes a
gente está guardando essa terra... falando assim: livre, estar
movimentando, andando nela, sem preocupação de fazendeiro. Falar
assim: hoje não tem mais nada para fazer, a gente pode estar
movimentando, andando, conhecendo os parentes (Capão do Zezinho,
24/06/2006).
79
De acordo com o Decreto nº 1775 de 08 de janeiro de 1996, que dispõe sobre o procedimento
administrativo de demarcação das terras ingenas e outras providências, são sete as etapas envolvidas nesse
longo processo: (1) Estudo de identificação, (2) Aprovação pela FUNAI, (3) Contestações, (4) Declarações
dos limites da Terra Indígena, (5) Demarcação Física, (6) Homologação, (7) Registro (ISA,
http://www.socioambiental.org/pib/portugues/quonqua/ondeestao/demarc.shtm
). O processo caxixó
apresenta-se, desde fevereiro de 2004, ainda na primeira etapa.
134
Para Geraldo (38 anos), ser livre significa não ter que trabalhar para fazendeiro.
V: Você tem um sonho?
G: Tenho muitos. A gente vive sonhando, né, Vanessa.
V: Quais são os sonhos que você tem?
G: Trabalhar para mim, não depender dos outros, isso que é meu sonho.
Não ter ninguém mandando em mim.
(Capão do Zezinho, 26/06/2006)
Segundo Nilvando (36 anos), os caxixós vivem de esperança. Desde a década de
1980, muitos foram aqueles que participaram da mobilização étnica pela terra e que
morreram antes de vê-la demarcada: Zé Flori, Zé Candinho, Antonieta, vó Chica, Zezinho
(pai de Nilvando, Cristina e Geraldo), Maria Aparecida, Ailson, Ademilson, Nega, e mais
recentemente, Pedro (Pedrinho, irmão de Marreco e meio irmão de Djalma). Nilvando
destaca seu desejo de poder estar vivo para conhecer esse “tempo”.
Eu só espero que nós não morramos também, que essa geração nossa não
morra com essa esperança; para que os filhos nossos tenham outra
esperança, de outra coisa. Porque já passaram duas gerações que já
foram com a esperança de ter uma terra para trabalhar. Será que nós
também vamos ser a mesma coisa, passar nossa geração só na
esperança?! (Capão do Zezinho, 25/06/2006).
Em fevereiro de 2004, o governo federal deu início ao processo oficial de
identificação e delimitação da Terra Indígena Caxixó (conforme Portaria nº
072/PRES/FUNAI/2004). Somente, então, após 18 anos do conflito vivido na terra
Fundinho, quando a comunidade anunciou publicamente sua identificação indígena, o
processo de regularização fundiária foi instaurado. Foram quase duas décadas de
mobilização do grupo étnico para que a ação governamental sobre a terra tivesse início.
Esse longo período de espera foi marcado pela incerteza e pelo medo. Incerteza a
respeito da efetividade da demarcação da TI e medo da reação dos fazendeiros. E se, por
um lado, a visita do Grupo Técnico (GT) responsável pela identificação da referida terra
amenizou a incerteza, por outro, intensificou o sentimento de medo.
Aquela época do GT mesmo, aquela época eu não dormia, Vanessa. Eu
deitava aqui, assim, eu imaginava assim... Eu deitava lá na minha cama,
deitava com a cabeça assim, e pensava: gente, se alguém ali fora der um
135
tiro, será que o tiro vai passar nessa parede, na cama e vir na minha
cabeça? Aí eu passei a dormir para baixo, né. Não, se der um tiro lá, não
sei nem se vai acertar a minha cabeça, eu durmo para baixo, esse trem
pega no meu olho. Ah, não, não vou não! Menina, eu passei tanto medo,
mas tanto medo daquela vez (Marta Caxixó, 30 anos, Capão do Zezinho,
25/06/2006).
Aí depois a gente ficou meio com medo, porque falaram que os
fazendeiros depois disso já estava é falando que ia acabar com os índios
não só de MG, mas com os índios do Brasil inteiro, tentar acabar
(Glayson Caxixó, 28 anos, Fundinho, 24/06/2006).
A gente não tem direito nem de plantar uma rocinha ali porque é deles
[refere-se aos fazendeiros], né?! Acho que é importante demarcar, ter o
lugar da gente de novo, né?! Poder ir onde a gente quiser, pegar uma...
né?! A gente faz um trabalho de escola, vai ali, em terra de fazendeiro,
fica com medo, aquele medo deles, né, estar tirando coisas deles e eles
brigarem com a gente. Não tem liberdade (Aparecida Caxixó, 22 anos,
professora indígena. Capão do Zezinho, 24/06/2006).
A minha vontade é que essa terra saia sem ter nenhuma morte, sem ter
briga. Esse é meu sonho, porque eu tenho muito medo de morte,
principalmente por terra, porque eu acho que a terra é de Deus (Elenir,
30 anos. Capão do Zezinho, 25/06/2006).
A comunidade do Capão do Zezinho teme uma (re)ação violenta dos fazendeiros. O
início do processo de regularização fundiária demonstrou o poder de mobilização daquelas
famílias. Como autoras do pleito pela demarcação da TI, elas assumiram publicamente a
sua identificação indígena. Marcadas por uma história de dependência e submissão, elas
romperam o silêncio e deram início a uma disputa declarada. Moradoras de uma área
rodeada por fazendas, cientes que o processo de demarcação de uma TI no país tramita em
diversas instâncias administrativas da burocracia estatal e que, consequentemente, sua
conclusão pode demorar anos, até mesmo décadas, essas famílias se sentem extremamente
expostas e vulneráveis a uma investida daqueles que historicamente dominaram aquelas
terras.
Assumir-se indígena, assumir o pleito pela terra, expor-se em contexto tão adverso –
tais posturas fortaleceram os laços de união entre essas famílias. Apesar da incerteza sobre
os resultados efetivos da ação governamental sobre a terra (quando a terra vai ser
136
demarcada? O limite proposto por eles e pelo GT será o definitivo? Depois da demarcação,
quando serão retirados os não índios?), e da incerteza sobre sua situação na terra até a
conclusão do processo, a comunidade do Capão do Zezinho assumiu os riscos. Unidas por
uma postura – assumir-se Caxixó – essas famílias delineiam um futuro comum. Como uma
comunidade de destino
80
(Chauí apud Bosi; [1979] 1994), optaram por percorrer juntas um
mesmo caminho – optaram por compartilhar uma mesma condição de ser.
É fato que muitos caxixós que residem nos centros urbanos da região (cidades de
Martinho Campos e Pompéu e distrito de Ibitira) também se assumiram Caxixó, pois estão
cadastrados e recebendo atendimento pelo Programa Nacional de Atenção à Saúde dos
Povos Indígenas. Para serem incorporados em tal programa foi necessário que eles se
apresentassem e fossem apresentados à equipe da Funasa (pela comunidade do Capão do
Zezinho) como indígenas caxixós fato este que fortaleceu significativamente o projeto
étnico. No entanto, muitos desses seus parentes, segundo famílias do Capão do Zezinho,
apesar de se apresentarem à Funasa como caxixós, não se envolveram na mobilização
étnica para conquista dos direitos indígenas. Segundo eles, muitos desses seus parentes
mantiveram-se em silêncio e passivos enquanto eles reivindicaram do Estado brasileiro o
seu reconhecimento como indígenas.
Alguns caxixós do Capão do Zezinho alegam que alguns de seus parentes que
residem nos centros urbanos apenas se apresentam como indígenas à equipe da Funasa
porque o benefício do atendimento já se configura como uma realidade e porque o
atendimento se constitui como uma necessidade para essas famílias. No entanto, por razões
várias, eles não estariam se assumindo Caxixó em outros contextos. O assumir-se indígena
estaria ainda permeado de restrições.
Para alguns caxixós do Capão do Zezinho, a razão principal para tais restrições seria
o medo de uma reação dos fazendeiros. Muitos destes também são empregadores nas
cidades e os caxixós dependem da boa relação com os fazendeiros para garantirem seu
80
Para Chauí, “comunidade de destino é sofrer de maneira irreversível, sem possibilidade de retorno à antiga
condição, o destino do sujeito” (apud Bosi; [1979] 1994: 26). Segundo Bauman, existem dois tipos de
comunidades. “Existem comunidades de vida e de destino, cujos membros (segundo a fórmula de Siegfried
Kracauer) ‘vivem juntos numa ligação absoluta’, e outras que são fundidas unicamente por idéias ou por uma
variedade de princípios’” (2005: 17). As famílias da comunidade do Capão do Zezinho sofrem (de maneira
irreversível) a condição de ser, além de viverem juntas e compartilharem idéias.
137
emprego. Nesse sentido, essa poderia ser uma das razões desse silêncio. Para outros, o fato
de seus parentes já residirem na cidade há muitos anos fez com que estes se distanciassem
dos projetos de futuro do Capão do Zezinho e não mais compartilhassem o desejo de estar e
trabalhar na terra. Para outros, ainda, a razão principal seria a vergonha. Para eles, alguns
de seus parentes entendem que ser Caxixó, ser indígena, implicaria em ter necessariamente
que ser diferente, em ter que assumir o estereótipo de “índio”: assumir-se caxixó implicaria
em assumir a condição de ser “primitivo”, “inferior”.
A questão da “identidade” étnica se configura como complexa. Assumir uma
“identidade” (tornar-se Caxixó) faz parte de um processo, de uma construção. Segundo
Bauman, o “pertencimento” e a “identidade”
81
não têm a solidez de uma rocha e não são
garantidos para toda a vida; eles são, na verdade, bastante negociáveis e revogáveis (2005:
17). Segundo ele, foram necessárias grandes transformações nas sociedades em função de
uma “crise da modernidade”
82
para que a questão da “identidade” fosse compreendida
como problema e, acima de tudo, como tarefa (2005: 24). “Para a grande maioria dos
habitantes do líquido mundo moderno, atitudes como cuidar da coesão, apegar-se às regras,
agir de acordo com os precedentes e manter-se fiel à lógica da continuidade” (Bauman;
81
Altamente contestado, o conceito “identidade” muitas vezes remete à idéia de um “rótulo”, que as pessoas
ao adquirirem jamais se desvinculam; uma identidade fixa, rígida, coesa, solidamente construída. E nesse
sentido, ela restringe. No intuito de evitar a associação do termo a tal definição, optamos por utilizar, sempre
que possível, o termo “identificação”, que facilmente remete à idéia de processo, momento, construção.
82
Sob o triunfo da ciência (razão), a modernidade acreditava em uma nova ordem para o mundo. Ao
substituir o controle teológico (cosmológico) do conhecimento pelo controle científico (desacralização da
experiência), a modernidade postulava a lei da universalidade, da ordem e do controle. Uma de suas
promessas era a consolidação de um mundo mais seguro, agradável e pacífico, em que os seres humanos
teriam o poder de conduzir a própria história – “o ‘enredo’ dominante por meio do qual somos inseridos na
história como seres tendo um passado definitivo e um futuro predizível” (Giddens, 1991: 12. Destaque
nosso). No entanto, o futuro não poderia ser tão previsível, tão seguro, como a modernidade desejava. Apesar
do fato de termos que reconhecer que algumas promessas da modernidade se realizaram, o triunfo da razão
não impediu as sociedades modernas de produzirem concomitantemente aos seus “bens”, os seus próprios
“males”. Em função da supremacia do conhecimento científico e tecnológico e do progresso econômico a
qualquer custo, ameaças, conflitos e novos problemas foram produzidos pelas sociedades modernas, como as
grandes catástrofes da natureza, a megatecnologia nuclear e química, a sobremilitarização, a destruição
ambiental, e o crescente empobrecimento e exclusão de grupos sociais (Beck; 2000: 06). Ao aceitar o fato de
que a ciência produz suas próprias ameaças e imprevistos, que o progresso pode significar destruição; as
sociedades modernas ocidentais constataram a necessidade de “encontrar e inventar novas certezas para si”
(Beck, 2000: 14). Nesse caso, a “identidade perde as âncoras sociais que a faziam parecer ‘natural’,
predeterminada e inegociável” (Bauman; 2005: 30).
138
2005: 60. Destaque do autor) significaria negar o processo (inevitável) de circulação de
significações, de comunicação e interação – significaria um “não estar” no mundo –
aspectos de uma vida social que o moderno mundo globalizado condena.
Percebida como uma tarefa, a etnicidade pode ou não ser ativada pelos atores
(Poutignat e Streiff-Fenart; [1995] 1998: 124). Baseada na experiência da vida mais do que
na manutenção de uma antiga “cultura”, ela em nada se assemelha a uma definição de
identidade social essencial e universal. Nesse sentido, não basta nascer para ser, é
necessário mais. As diferenças, bem como as identificações sociais, culturais, são
adquiridas ao longo da vida coletiva. Toda comunidade pode atuar como geradora de
“costumes” e vincular ou não características herdadas ao seu modo de vida atual. O
sentimento étnico, aquele que vincula o grupo ao seu passado, sua origem, somente será
acionado se isso fizer sentido para as pessoas no presente (Weber [1921] 1984).
Portanto, os distintos contextos, condições ou estilos de vida não necessariamente
anulam a construção de uma identidade étnica comum. Específico, o sentimento étnico é
acessível a todos aqueles que crêem pertencer a uma comunidade de origem (Weber;
[1921] 1984). A crença na origem favorece a acolhida gradativa de membros ao grupo
étnico (Weber; [1921] 1984: 322). E nesse sentido, a heterogeneidade não inviabiliza o
sentimento de origem comum – elemento fundamental para construção da etnicidade.
De acordo com A. D. Smith, um grupo étnico se constitui quando seus membros
“compartilham um sentimento de origem comum, reivindicam uma história e um destino
comuns e distintivos, possuem uma ou várias características distintivas e sentem um senso
de originalidade e de solidariedade coletivas” (apud Poutignat & Streiff-Fenart; [1995]
1998: 83). Como uma construção da pertença, a etnicidade se caracteriza por ser
conscientemente acionada, determinada e articulada pelos próprios atores. Ela não é
oferecida, dada, ela é construída – e não simplesmente herdada.
Nenhum grupo humano é condenado se reconhecer eternamente
referências, interesses ou destino comuns, simplesmente em nome de um
passado ou de um conjunto de traços ‘naturais’ compartilhados.
Constantemente ele se auto-identifica criativamente, frente a outros e no
seio de situações determinadas. Mas é também verdade que este projeto
não é resposta arbitrária a tais situações. Ele é ‘pro-jetado’
criativamente, mas ‘a partir de’. E estas duas dimensões chamam para
139
serem articuladamente reconhecidas (Mattos apud Caldeira et alli,
1999: 47).
Projetiva, mas com uma forte referência no passado (na origem), a identidade
étnica representa um movimento dialético entre o herdado e o projetado (Arruti; 1997) –
um movimento em que o passado depende do futuro e vice-versa. Sendo uma construção
social, como toda e qualquer identidade étnica, ela depende do desejo, da necessidade ou
das possibilidades de seus membros em realizá-la.
O que seria próprio das identidades étnicas é que nelas a atualização
histórica não anula o sentimento de referência à origem, mas até mesmo
o reforça. É da resolução simbólica e coletiva dessa contradição que
decorre a força política e emocional da etnicidade (Oliveira, [1999]
2004: 33. Grifos nossos).
Alguns caxixós entendem que as condições e possibilidades de construção da
etnicidade são diferentes para aqueles seus parentes que residem nas áreas urbanas.
Segundo eles, seus parentes citadinos percorrem uma outra trajetória e vivem um outro
contexto local desde a expulsão da área rural.
Você está lá cidade, você está começando a reconhecer o processo agora
que você é índio. Ele vai chegar para todo mundo e falar assim: eu sou
índio?! Não vai saber nem o que vai acontecer com ele, se ele está
falando ali, ele pode estar talvez prejudicando ele mesmo no serviço dele.
Na cidade tem muitos fazendeiros. A maioria do comércio é deles. Se eles
estão trabalhando no comércio, eles começam a falar assim: eu sou índio
Caxixó; eles são contra. A Funasa, eles têm interesse, eles têm que falar
que eles são índios. Agora, para o povo, eles não têm essa necessidade de
estar falando para o povo que eles são índios, que eles estariam
arriscando a situação deles, convivência deles no dia-a-dia (Juliano
Caxixó, 24 anos. Fundinho, 24/06/2006).
O processo de se (re)conhecer “índio” parece ter tido início em um tempo e ritmo
diferentes para alguns caxixós que vivem nos centros urbanos. Em um outro tempo, em um
outro contexto local, eles parecem ter acionado sua identificação indígena de forma
particular. Daí talvez uma possível razão para suas restrições em assumir-se publica e
irrestritamente como Caxixó.
140
O não envolvimento de alguns parentes no projeto étnico Caxixó e as razões que
determinam tal postura vão permanecer aqui apenas no campo das possibilidades, pois não
realizamos nenhum contato com os caxixós que residem nas áreas urbanas. No entanto, o
que aponta como relevante aqui para análise é a percepção (consensual) da comunidade do
Capão do Zezinho sobre o não envolvimento de alguns de seus parentes no atual projeto
étnico caxixó. Apesar de não termos realizado um contato com aqueles que residem nos
centros urbanos para investigação desse tema, analisar a forma como os caxixós do Capão
do Zezinho percebem, entendem e sentem a posição adotada por alguns de seus parentes
nas cidades é muito importante, pois no entendimento deles, nem todos os caxixós
decidiram por percorrer o mesmo caminho. Ainda que parentes, nem todos, nesse momento
da história, desejam se apresentar irrestritamente como Caxixó. Nesse sentido, nem todos
parecem compartilhar plenamente a posição e a conduta adotadas por aquele coletivo que
compõe a comunidade do Capão do Zezinho
83
.
É consenso entre os caxixós que todos são parentes entre si e que todos possuem,
então, o direito a ter direitos. A divergência parece se estabelecer no âmbito da estratégia e
da ação políticas. Como uma expressão enunciada, alguns caxixós do Capão do Zezinho
questionam: “somente eu luto para que todos se beneficiem”?!
Na opinião de alguns, a comunidade do Capão do Zezinho, como grupo que deu
início ao projeto étnico e que se tornou referência para os agentes externos (órgãos
públicos, ong´s, imprensa, etc), deveria apenas reconhecer a existência de seus vários
outros parentes que residem em outras localidades. A garantia dos direitos específicos
deveria, no entanto, restringir-se àqueles que de alguma maneira participam da mobilização
política caxixó. Para eles, a posição adotada por muitos de seus parentes é demasiadamente
cômoda. Em depoimentos colhidos no Capão, alguns caxixós alegam que a lógica que
perpassa o pensamento de alguns de seus parentes é: “ah, eu não vou participar porque para
mim tanto faz, eu sou índio mesmo. Pra mim tanto faz lutar como não lutar, eu vou ser
beneficiado do mesmo jeito”.
83
A situação não é uma exclusividade da realidade caxixó. Em depoimento no vídeo documentário
“Assumindo minha responsabilidade” (Dantas; 2004), Manoel Vicente, liderança do povo Pipipã, estado de
Pernambuco, afirma que alguns parentes pipipã não se assumem como tal. Segundo Manoel: “eles querem
seguir no caminho que eles se criaram” – no caminho do não índio.
141
Sob essa perspectiva, os caxixós do Capão do Zezinho admitem que após a
regularização fundiária, após o direito adquirido e consolidado, parentes que alegavam não
desejar vir para a terra acabarão por vir.
Vanessa: E quando a terra for demarcada, esse pessoal da cidade vem
para terra?
Marta: Por conta deles, vem, né. Vem, assim, alguns eu sei que vem.
Alguns que eu conversei vem. Outros já falam assim: ‘ah, esse negócio
não vai sair não. Tendência daquilo ali é só acabar. Escola vai acabar,
aquele posto de saúde seus vai acabar, não sei o que mais vai acabar.
Vocês estão achando que vocês vão ganhar terra?!’ Outros dizem assim:
‘ah, não, o dia que a terra sair, oh, se Deus quiser, vou comprar umas
cabeças de gado, colocar naquele lugar lá e criar muito porco, fechar
meu pedacinho. Quero viver bem. Quero ficar tranqüilo’. Tranqüilo, né?!
Mas enquanto eles estão pensando que eles vão viver tranqüilos, nós
estamos pensando que nós podemos levar é chumbo aqui, né, Vanessa?!
(Capão do Zezinho, 25/06/2006)
A interação dentro de um quadro político preciso não se configura como uma
realidade compartilhada entre os caxixós do Capão do Zezinho e alguns parentes citadinos.
Sua postura de “observadores-beneficiários” tem sido alvo de críticas e reclamações entre
aqueles que participam ativamente da mobilização caxixó por direitos. Expor-se como
único grupo autor de denúncias e pleitos, perder dia de serviço para participar do
movimento indígena, viver a suspeição e o descrédito por não apresentar uma imagem que
se assemelhe ao estereótipo de “índio”, são situações muitas vezes não compartilhadas
pelos parentes que vivem nas cidades.
De acordo com alguns moradores do Capão do Zezinho, parentes que moram na
cidade e não participam da mobilização política pela terra, mas que tiveram condições de
acumular recursos financeiros, afirmam que se a terra for de fato um dia demarcada, eles
investirão em projetos econômicos ali. Com a intenção de continuar residindo na cidade,
eles afirmam que iriam contratar os caxixós do Capão do Zezinho para trabalhar para eles.
Tal perspectiva, ainda que pertencente apenas ao campo da especulação, causou indignação
e sentimento de “revolta” nos caxixós que a ouviram. Além de uma postura individualizada
sobre como enfrentar os próximos desafios, ela demonstra uma intenção (vontade) em dar
continuidade ao histórico processo de dominação agrária. Como uma atualização da
142
polaridade instaurada entre os caxixós há mais de duzentos anos em função da jagunçagem
indígena, essa perspectiva implicaria em (novas) cisões e na impossibilidade de um destino
político compartilhado.
Djalma analisa as atuais diferenças políticas existentes entre os caxixós de outra
forma. Para ele, tais diferenças se configuram como uma extensão dos antigos conflitos
existentes entre os descendentes do povo da Mãe Joana e do povo Tio. Segundo ele, as
disputas internas das famílias advêm como conseqüência das disputas instituídas pelos
fazendeiros que envolveram os representantes indígenas em seus conflitos e partilhas de
terra. Contudo, o cacique acredita que a demarcação oficial da Terra Indígena Caxi
poderá “solucionar” tal problema, pois a terra será entregue a quem de direito pertence.
No tirar essas terras, essas coisas de briga de família vão acabar,
porque a origem da coisa do capeta, vingança, foi a tirada da terra, a
injustiça dos irmãos, dos herdeiros (Djalma, 21/09/2003).
Muitos dos conflitos e divisão internos vividos pelas famílias, Djalma credita à
presença dos “espíritos” de fazendeiros na região. Segundo ele, os fazendeiros, através de
seus “espíritos”, continuam a investir e instigar a divergência e disputa interna caxixó, tal
como historicamente fizeram ao aliciar determinados grupos. Essa é a interpretação mística
que Djalma apresenta para explicar as divergências internas. Esse seria um conflito vivido
entre os descendentes do povo de aldeia e povo do mato sob influência dos “espíritos” de
fazendeiros, que segundo ele, utilizam essa estratégia como forma de continuar a
inviabilizar o domínio indígena naquelas terras.
Os caxixós do Capão do Zezinho não concordam publicamente com a interpretação
do cacique para a existência das diferenças de posições entre eles
84
. Enquanto alguns
atribuem a divergência a uma questão de estratégia e participação política, outros parecem
entender que a questão se concentra nos diferentes ritmos de compreensão e contextos de
vida para produção da etnicidade.
No entendimento de alguns, a postura de lutar por benefícios apenas para a
comunidade do Capão representa uma lógica excludente, uma visão individualizada do
84
Apesar dos caxixós não operarem com os mesmos princípios que Djalma, essa, como as demais
interpretações desse líder, não são desprezadas.
143
grupo étnico, que eles não aceitam. Eles entendem que não é viável no presente envolver
todos os parentes na organização política pela reivindicação dos direitos indígenas.
Segundo Djalma e Marreco, muitos não possuem a condição financeira para se deslocarem
para o Capão do Zezinho e outros ainda necessitam de esclarecimentos sobre a dinâmica do
movimento indígena regional e sobre a legislação indigenista. No entanto, segundo eles, o
Capão do Zezinho deve lutar por todos aqueles que possuem uma relação de parentesco
caxixó. Independente de quem faça parte do grupo na reivindicação dos direitos indígenas,
estes devem ser extensivos a todos os parentes. Afinal, “a lei é para todos”, como afirma
Geraldo Caxixó.
Djalma defende a inserção gradativa dos outros grupos familiares na organização
política de seu povo. Para ele, a inserção desses outros grupos é necessária. Caso contrário,
como afirma José Francisco (o Marreco), se a comunidade do Capão do Zezinho reivindicar
direitos apenas para si, “o povo Caxixó acaba” (Caldeira & Magalhães; 2004: 36).
Para alguns, o projeto étnico envolve vários grupos em vários diferentes momentos.
Na visão destes, cabe à comunidade do Capão do Zezinho o papel de iniciar a organização
política, envolver os demais grupos e ampliar as perspectivas étnicas do povo Caxixó. No
sonho dessas pessoas (em sua maioria, os mais velhos), quando a terra for demarcada, a
comunidade caxixó irá incluir um crescente número de famílias.
A comunidade do Capão do Zezinho possui suas divergências e demonstra sua
heterogeneidade no que diz respeito a algumas posições. No entanto, mantém-se unida por
uma postura (assumir-se irrestritamente como Caxixó) e por uma luta compartilhada (a
terra). As diferenças políticas ou as diferentes posturas existentes entre eles não tem
inviabilizado seu projeto étnico. Muito pelo contrário, têm sido partes constitutivas desse
projeto, que confirma seu aspecto polifônico e situacional
85
. As divergências, no modo
como se apresentam, não anulam o sentimento e reconhecimento dos caxixós como uma
coletividade étnica.
85
De acordo com Oliveira, “toda identidade é situacional, ou seja, seu uso depende de contextos históricos e
varia de acordo com os diferentes segmentos de uma população. Pretender que sua utilização dentro de uma
coletividade seja constante e homogênea corresponderia a uma verdadeira ‘ingenuidade sociológica’
(Gluckman & Devons 1964) que necessariamente conduz o pesquisador a conclusões errôneas” (2003: 173).
144
O envolvimento de outros grupos familiares que residem em outras localidades
configura-se como possível e, principalmente, constitui-se em um projeto do cacique.
Esses grupos, ligados por uma complexa rede de parentesco com as famílias do Capão do
Zezinho, possuem condições de acionar a identificação indígena e propor demandas. Sua
inserção no atual projeto de consolidação do acesso à terra se caracteriza como uma questão
de escolha e vinculação.
Segundo alguns caxixós do Capão do Zezinho, muitos de seus parentes que vivem
no contexto urbano não compartilham atualmente do sonho de estar e trabalhar na terra. No
entanto, é com base nesse sonho que a comunidade do Capão tem trilhado seu caminho e
procurado construir seu futuro.
O fato do processo oficial de identificação da TI já ter tido início permite que essa
comunidade vislumbre um novo “tempo” e com ele novos desafios. Viabilizar o trabalho na
terra, fortalecer o conhecimento sobre o passado e ampliar as condições de acesso à
formação escolar diferenciada (continuidade dos estudos, especialização, novas escolas)
compõem esses principais novos desafios, segundo depoimento de alguns caxixós do
Capão do Zezinho. Segundo eles, essas são as questões que irão mobilizar a comunidade
em um futuro próximo.
Tem muita coisa na cabeça do povo, aí. Essa região nossa aqui tem muita
água. Então, pode fazer criação de peixe. Pode arrumar até... Eu acho
que pode arrumar uma tiração de leite. Não precisa estar vendendo o leite
para cooperativa para dar serviço. Nem sei como que fala... laticínio?
Para estar dando serviço para as mulheres e para os homens também.
Envolvendo um tipo de trabalho para dar emprego para todo mundo. Mas
emprego assim, vai ganhar pela produção, todo mundo ganha igual, né?!
Acho que depois da terra, nós temos que correr atrás disso aí, desse tipo
de projeto (Nilvando Caxixó, 36 anos, 25/06/2006).
Eu sonho também a gente conseguir nossos objetivos, que é a educação,
né, para a gente poder estar seguindo na educação que a gente quer, estar
produzindo nosso próprio material. Falando assim: a gente conseguiu o
material de educação, esse trem assim...
(...)
Fazer uma rádio comunitária. Às vezes, a gente pode estar apresentando
nosso próprio trabalho informativo. Praticamente uma rádio comunitária.
A gente estar fazendo aquele próprio trabalho e estar mandando notícias,
esses trem assim, folhetos, esses trem assim, pinturas... Nossa própria
145
concepção, que a gente tem, né?! E estar mandando para a cidade, para
eles estarem vendo nosso conhecimento, nosso trabalho, que às vezes com
a terra também pode estar ajudando muito com isso (Glayson Caxixó, 28
anos, 24/06/2006).
Nós até pedimos para o projeto [refere-se ao programa de educação
escolar indígena] lá para ajudar a gente a criar o livro com Seu Djalma,
para entrar a história dos jovens com ele, né?! A história como foi, como
surgiu, tudo; ajudar a gente a criar mais perguntas (Fernanda Caxixó, 20
anos, professora indígena. Capão do Zezinho, 26/06/2006).
V: Daqui alguns anos, uns 10 anos, você pensa que você estará aonde e
fazendo o quê?
F: Eu penso estar aqui, lutando pelo nosso povo, com a ajuda suas, né?!
Eu podia estar estudando as coisas – antropologia – para a gente estar
por dentro de tudo. Que mais? A gente podia ser arqueólogo. Porque
assim, o índio vai estar buscando o direito para si mesmo. Não vai estar
precisando ir atrás de você: oh, Vanessa, vamos fazer isso e isso? Com
certeza, a gente vai precisar de ajuda, né?! Mas vai chegar um ponto que
vai ser igual vocês chegaram. Estudar e começar a trabalhar dentro,
coisa para área mesmo, dentro da aldeia (Fernanda Caxixó, Capão do
Zezinho, 26/06/2006).
Tento fazer o máximo que eu posso, sabe? Mas às vezes é difícil. Porque,
às vezes, as pessoas acham assim: ah, ser caxixó é bom demais, vão me
dar remédio, vão me dar isso, vão me dar aquilo, aquilo outro. Aí o quê
que acaba acontecendo? Perde a história, pega o bonde andando, não
sabe o que aconteceu. A gente carrega aquele monte de problema, às
vezes, por causa de uns e de outros que não se interessam pelo seu
passado, pelo seu antepassado, tudo, né? Eu acho que se a gente juntasse
todo mundo e tentasse entender mais a história caxixó... Porque eu acho
que aqui o que mais precisa é isso, oh, Vanessa (Marta Caxixó, 30 anos,
Capão do Zezinho, 25/06/2006).
Eu acho que a grande questão seria resgatar a própria cultura, né? O
modo de habitar dentro da sua terra, porque ninguém vai adaptar do dia
para noite, né?! Não tem como. Então, eu acho que o grande objetivo
seria esse: resgatar (Juliano Caxixó, 24 anos, Fundinho, 24/06/2006).
Com base nesses sonhos é que a comunidade do Capão do Zezinho delineia seu
futuro. Através da experiência e de um destino compartilhados, eles negociam interesses,
vivenciam processos específicos de ação coletiva e demonstram sua vontade de ser Caxixó.
Como elemento fundamental, “a dimensão utópica e projetiva (e não apenas política) marca
a construção do fenômeno da etnicidade”(Oliveira; 1999: 118).
146
III.3) As fronteiras
De acordo com o cacique Djalma, os laços de parentesco, sejam estes por
consangüinidade ou afinidade, determinam em seus critérios o primeiro elemento produtor
do sentimento de pertença ao grupo étnico. Porém, segundo ele, apesar da identificação
indígena possuir relação direta com a rede de parentesco, esta não se constitui como o único
elemento definidor da inserção do indivíduo na vida social caxixó. Segundo Djalma, é
necessário que a pessoa tenha conhecimento das leis que regem os direitos indígenas no
país e que esteja disposta a aceitá-las, inserindo-se no contexto e no projeto de uma vida
coletiva.
Tem Caxixó, mas tem caxixó que aceita a lei. Caxixó no nome é, mas se
não aceitar a lei, não vem para a terra. E só vai para terra depois de
aprender a aceitar a lei. Antes disso não vem para terra porque a gente
não deixa (Djalma, 24/02/2004).
Djalma entende que a (espiritualidade) e a lei (Direito) são os dois principais
aliados de seu povo. Ele afirma aguardar a demarcação da TI (Terra Indígena) para então,
depois de legalizada a situação fundiária, iniciar o processo de agregar os diversos grupos
familiares caxixós dispersos nos estados de MG e GO. Segundo ele, esse objetivo não
poderia ter sido iniciado no passado recente, pois isso implicaria em uma retomada da terra.
Assim, sua orientação segue no sentido para que todos obedeçam a lei e as orientações dos
órgãos públicos e aguardem a regularização fundiária.
O cacique Djalma parece atribuir à legislação indigenista um dos novos critérios
para o estabelecimento da organização social de seu povo. Segundo ele, a Lei (Direito
Constitucional) se configura como principal instrumento de apoio capaz de auxiliar os
caxixós na criação e consolidação de uma nova relação histórica com a terra e com os
vários grupos familiares.
Segundo o cacique, quando o Estado brasileiro demarcar aquelas terras como Terra
Indígena Caxixó, os “espíritos” dos fazendeiros, seu sentimento de vingança e sua
influência sobre os grupos familiares caxixós irão cessar. Resolvido o conflito fundiário, na
compreensão mística de Djalma, os conflitos intra grupo serão amenizados e os projetos de
futuro terão melhores condições de serem implementados. Como numa relação de troca, a
147
lei proporciona o fim de um processo histórico de submissão e sofrimento, e os caxixós a
obedecem, determinando assim uma nova forma de organização social: ficam na terra, ou
seja, tornam-se efetivamente uma coletividade (no sentido da pertença), aqueles que
aceitarem os critérios legais de usufruto de uma terra indígena.
A confiança que Djalma deposita na atuação do poder público surpreende. O
histórico singular de produção de laudos a respeito da identidade étnica caxixó e a
morosidade da atuação do órgão federal no que se refere à regularização fundiária
normalmente seriam compreendidos como sinais de um funcionamento precário das leis e
uma atuação debilitada do Estado – sinais que facilmente conduziriam a uma postura
exatamente oposta à adotada pelo cacique. Questionado sobre uma aparente contradição
entre a confiança depositada no poder público e a atuação do mesmo junto aos caxixós,
Djalma esclarece: “a lei é justa, o povo branco é que atravessa a lei” (06/08/ 2006).
Nesse caso, se a lei é justa torna-se fundamental garantir que ela não seja
“atravessada”. Para isso, Djalma aciona a fé e a espiritualidade. Através da oração e das
forças espirituais, as leis serão cumpridas e a justiça será feita, segundo o entendimento
desse líder.
A mobilização étnica e os contextos por ela gerados inseriram os caxixós do Capão
do Zezinho em processos administrativos de reconhecimento fundiário ancorados em
normas jurídicas concernentes ao sistema político nacional. Tal inserção os fez não apenas
conhecer esses processos como também analisá-los sob sua própria perspectiva.
O Direito Constitucional define apenas o que é uma terra tradicional
86
, não o que é
“ser índio”. Ao afirmar que efetivamente se tornarão Caxixó (no sentido de
compartilhamento de uma vida coletiva na terra) aqueles que aceitarem a lei, Djalma não
determina uma simples relação de subordinação às normas jurídicas – ele as interpreta e a
elas proporciona novo uso e significado. Nesse caso, se a legislação refere-se à questão
fundiária, o cacique a transformou num critério identitário.
86
“São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as
utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais
necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e
tradições” (Constituição da República Federativa do Brasil 1988, Cap. VIII, artº 231, § 1º).
148
Para Djalma, é necessário “aceitar a lei” (nacional) para “ser” Caxixó (índio). Esse
paradoxo (aceitar o que é determinado pelo não índio para ser índio) demonstra a forma
criativa como os caxixós têm respondido aos novos contextos gerados pela mobilização
étnica. Diante do objetivo de (re)estabelecer o território caxixó, o grupo étnico tem
promovido seu processo de reorganização social. E nesse sentido, nascer caxixó, ter uma
ascendência comum e pensada como indígena, não basta. Para “ser” Caxixó é preciso mais,
é preciso também assumir uma conduta.
Atualizados pelos atores, os critérios para definição dessa conduta não são rígidos,
muito menos formam uma linha clara e exata que divide quem reconhecidamente é e quem
não é. De acordo com João Pacheco de Oliveira, a grande dificuldade em estabelecer
procedimentos classificatórios para a questão da etnicidade se constitui exatamente no
equívoco de “tentar aplicar aos fenômenos socioculturais o mesmo tipo de definição
empregado para os fenômenos naturais” (2002b: 109). Segundo ele,
As unidades sociais se transformam com uma velocidade, uma
radicalidade e uma intencionalidade muito maiores que as mutações
biológicas. Ainda que nas sociedades indígenas o ritmo das mudanças
não seja tão acelerado quanto o das sociedades industriais, é perigoso
procurar conceituá-las (em bloco ou individualmente) como unidades
discretas que podem ser descritas por meio da presença/ausência de
características genéricas.
Tal equívoco alimenta os estereótipos e preconceitos que se encontram no
senso comum e nos discursos cotidianos, nos quais os indígenas são
sempre descritos como exemplificações (idealmente cristalinas) de
primitividade. Estão necessariamente comprometidos todos os esforços
para vir a produzir definições do que é “ser índio”, sejam estes
manifestados em classificações administrativas, eruditas ou técnico-
operacinonais, uma vez que tomam tal representação como ponto de
partida (Oliveira, 2002b:109).
Segundo Oliveira,
os povos indígenas hoje estão tão distantes de culturas neolíticas pré-
colombianas quanto os brasileiros atuais da sociedade portuguesa do
século XV, ainda que possam existir, nos dois casos, pontos de
continuidade que precisariam ser melhor examinados e diferencialmente
avaliados. As sociedades indígenas são efetivamente contemporâneas
àquela do etnógrafo (Laraia, 1995) (...) ([1999] 2004: 36. Grifo nosso).
149
Nesse sentido, como identificar essas sociedades se “a identificação de uma
coletividade como “indígena” não é uma questão de grau, de maior proximidade ou
afastamento do estereótipo da primitividade” (Oliveira; 2002b: 109)? A auto-identificação
já se caracteriza como ponto de consenso no meio acadêmico e administrativo-jurídico. A
Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, datada de junho de 1989, e da
qual o Brasil tornou-se signatário em 2002 (mediante Decreto Legislativo nº 143), traz em
seu art. 1º, item II, o critério da consciência de uma identidade indígena como fundamental
para determinar quem são esses povos. Como critério aceito mundialmente (inclusive por
juristas), esse seria um primeiro fator a ser considerado.
Um segundo fator (se assim podemos dizer) pode ser referente à origem. Segundo
João Pacheco, “ao falarmos em indígenas, devemos pensar em coletividades que se
reconhecem como descendentes daquelas populações que estiveram presentes nesse marco
territorial antes da chegada dos colonizadores europeus e da constituição dos Estados
nacionais” (2002b: 111-2).
Esses dois fatores constituem a condição básica para que o Estado não apenas
estabeleça um tratamento diferenciado a essas coletividades, mas, sobretudo, destine a elas
direitos especiais. “A crença na (e não o fato da) origem comum” (Poutignat & Streiff-
Fernart; [1995] 1998: 162) e indígena faz com que essas coletividades construam sua
identificação a partir do histórico e violento processo de colonização e espoliação. Como
coletividades que se reconhecem descendentes dos primeiros habitantes dessas terras
(autoctonia), “a existência de uma política especial e de mecanismos compensatórios”
destinados a esses povos são necessários (Oliveira; 2002b: 112).
Segundo João Pacheco de Oliveira,
Os direitos indígenas não decorrem de uma condição de primitividade ou
de pureza cultural a ser comprovada nos índios e coletividades indígenas
atuais, mas sim do reconhecimento pelo Estado brasileiro de sua
condição de descendentes da população autóctone. Trata-se de um
mecanismo compensatório pela expropriação territorial, pelo extermínio
de incontável número de etnias e pela perda de uma significativa parcela
de seus conhecimentos e do seu patrimônio cultural (1999: 117-8).
150
O “olhar” para o passado marca essas coletividades. Origem e trajetória constituem
os elementos principais no processo de construção de uma identificação étnica, e o
arraigado sentimento de espoliação e a luta por garantir seu território movem esses grupos.
Nesse sentido, não é o conteúdo “cultural” que necessariamente une essas pessoas, mas sua
consciência de um passado (origem) e uma trajetória comuns.
O que permite que se dê conta, então, da existência dos grupos étnicos e de sua
persistência no tempo é a existência de fronteiras étnicas independentemente das mudanças
que afetam os marcadores aos quais elas se colam (Poutignat & Streiff-Fernart [1995]
1998: 153). De acordo com essa perspectiva, o ponto central torna-se a existência de uma
fronteira étnica que define o grupo e não a “matéria cultural” que ela abrange (Barth;
[1995] 1998: 195) – a “matéria cultural” pode mudar sem que necessariamente a fronteira
étnica mude.
Sendo assim, as identidades étnicas somente são concebidas em contextos de
alteridade (“nós” em contato com “eles”) – “é sempre com relação ao outro que se coloca a
questão da identidade” (Auge; 1998: 19). Nesse sentido, é que a teoria apresentada por
Fredrik Barth, ainda na década de 1960, inovou.
Barth definia um grupo étnico como um tipo organizacional em que uma
sociedade se utilizava de diferenças culturais para fabricar e refabricar
sua individualidade diante de outras com que estava em um processo de
interação social permanente. Do ponto de vista heurístico, portanto, seria
um equívoco pretender reportar-se a uma condição de isolamento
(localizada no passado) para explicar os elementos definidores de um
grupo étnico, cujos limites (boundaries) seriam construídos – e sempre
situacionalmente – pelos próprios membros daquela sociedade. Isso o
leva a propor o deslocamento do foco de atenção das culturas (enquanto
isoladas) para os processos identitários que devem ser estudados em
contextos precisos e percebidos também como atos políticos (recuperando
assim a definição weberiana de ‘comunidades étnicas’ – Weber 1921)
(Oliveira; [1999] 2004: 22-3. Grifos nossos).
Segundo Barth,
A identificação de outra pessoa como pertencente a um grupo étnico
implica compartilhamento de critérios de avaliação e julgamento. Logo,
isso leva à aceitação de que os dois estão fundamentalmente ‘jogando o
mesmo jogo’ (...).
151
De outro modo, uma dicotomização dos outros como estrangeiros, como
membros de um outro grupo étnico, implica que se reconheçam limitações
na compreensão comum, diferenças de critérios de julgamento, de valor e
de ação, e uma restrição da interação em setores de compreensão comum
assumida e de interesse mútuo ([1995] 1998: 196 – ed. original 1969).
Para esse antropólogo,
Os fatores socialmente relevante tornam-se importantes para diagnosticar
o pertencimento, e não as diferenças explícitas e ‘objetivas’ que são
geradas a partir de outros fatores. Não importa quão diferentes sejam os
membros em termos de seu comportamento manifesto: se eles dizem que
são A, em contraste com outra categoria B da mesma ordem, desejam ser
tratados e ter seu comportamento interpretado e julgado como próprio de
A e não de B. Em outras palavras, declaram sua adesão à cultura
compartilhada por A (2000: 33).
A identificação de quem são as pessoas que compõem o grupo étnico caxixó, apenas
os próprios caxixós têm condições e poder de realizar. Todavia, podemos aqui dizer que a
crença em uma origem indígena e comum, o compartilhar uma trajetória histórica, a
constituição de uma complexa rede de parentesco, a construção de um projeto de futuro
vinculado à terra, e a constituição de um modo afetivo de ser, viver e sentir como um
sujeito daquele grupo, somam elementos comuns e condizentes às famílias que compõem a
comunidade caxixó do Capão do Zezinho.
Em um mundo globalizado, de ritmo frenético, é no Capão do Zezinho que os
caxixós expressam-se, confessam seus sentimentos e exibem seus pensamentos, sonhos e
angústias (Bauman; 2001: 112). Nesse espaço, os membros do grupo sentem-se pessoas.
Ali eles encontraram o sentido de si próprios (Brandão; 1986: 27). Ao construir coletiva e
gradativamente seus pensamentos, ações e sentimentos, o sujeito não apenas faz parte do
grupo – o grupo faz parte dele e também se faz através dele (Brandão; 1986: 42). Ali o
indivíduo se sente protagonista.
Como tal, os caxixós do Capão do Zezinho valorizam sua coragem em permanecer
na terra. Apesar da narrativa da violência marcar fortemente a memória do grupo, este não
se apresenta como vítima indefesa do processo de espoliação. Conscientes da existência de
uma correlação de forças historicamente existente, eles entendem terem reagido e assim
conseguido manter-se na terra. Como características pertinentes à comunidade, eles
152
enaltecem a solidariedade e o modo afetivo de se relacionarem, apesar das divergências e
dificuldades vividas entre eles.
Igual eu mais a Cristina, a gente trabalha de agente de saúde. Às vezes, a
gente trabalha dia e noite, qualquer hora que precisa. Porque? A gente
tem amor às pessoas (Elenir Caxixó, 30 anos. Capão do Zezinho,
25/06/2006).
É aí que as pessoas não acreditam que a gente é índio, porque foi
misturando muito. Igual o Djalma conta, né, das matanças que tiveram,
né?1 Então, misturou muito. Igual os parentes, mesmo, da gente, saí fora,
casa, uai, vai misturando, né?! E os filhos já vai misturando mais ainda,
né?! Mas no fundo, no fundo, a gente é diferente. Não sei... Assim, as
pessoas brigam, mas na hora que precisa está ali para ajudar. Então,
acho que isso aí já é uma diferença. Porque a gente vê muitas pessoas...
‘Ah, eu não gosto de fulano, não gosto de cicrano, precisou também, se
vira, morre para lá’. Até nisso aí, eu acho que tem uma diferença. A gente
ser, assim, mais amoroso, não sei... (Elenir Caxixó, 30 anos. Capão do
Zezinho, 25/06/2006).
Parece que nós... que a gente fica tudo ali junto, ali oh, ali unido, oh. Nós
gostamos assim. Briga um com outro, mas quer estar junto (Nilvando
Caxixó, 36 anos. Capão do Zezinho, 25/06/2006).
Eu gostaria que fosse assim: eu queria terra sem briga, eu queria uma
terra com união. Queria trabalhar com união, né?! Eu sei que ela [a terra]
não é minha, que ela não é sua; ela é do povo. Então, para o povo
trabalhar. Sem briga. O povo Caxixó é muito brigador, Vanessa. Mas é
briga, briguinha sadia, sabe, as daqui de dentro. Mas eu sei que se vierem
os de fora, aí, sim, vai dar confusão. Aí não vai ser, assim, como essas
briguinhas nossas aqui. Que aqui a gente briga, às vezes, a gente briga
assim: eu quero aquilo, o outro não quer; eu quero aquilo, o outro não
quer; eu quero aquilo... E de tanto que a gente briga, a coisa acaba dando
certo, sabe? Aí, vai falando, vai falando, aquele que não estava
entendendo, que não queria entender, passa a entender um pouquinho.
Mesmo que ele não demonstra que ele entendeu, ele cala no canto dele,
entendeu?(...) Isso aqui é uma família, Vanessa. Aqui todo mundo é
família, mesmo que não seja parente. Pelo fato de morar junto, é como se
fosse uma casa, assim. Eu falo muito isso: gente, aqui no Capão, é a
mesma coisa que uma casa só, porém com muitos cômodos, sabe? É
mesmo, aqui é assim (Marta Caxixó, 30 anos. Capão do Zezinho,
25/06/2006).
“Povo brigador”, mas unido (amoroso); povo originário (autóctone), mas cuja
elaboração identitária é recente; povo indígena, mas assumidamente misturado; esses são
153
alguns dos paradoxos que permeiam a vida da comunidade que se auto-denomina Caxixó.
Permeado por heterogeneidades, os caxixós configuram um exemplo emblemático de que
um grupo étnico não se baseia na homogeneidade, no isolamento, ou na “pureza”.
Compartilhando amplamente uma “cultura” regional (trabalhadores nas fazendas, devotos
de São Francisco de Assis, falantes da língua portuguesa, etc), eles demonstram que as
fronteiras sociais se constituem como zonas privilegiadas de contato para escolha e
composição do repertório étnico e cultural.
Portanto, é válido ressaltar: a linha fronteiriça exata e rígida não existe. Ela é fluída,
móvel, pois se faz com o tempo e pelos próprios atores em seus contextos específicos. Ela é
situacional, por isso, sempre passível de transformações. Assim sendo, em casos de
etnicidade, o fundamental não é a persistência dos elementos que compõem (ou
determinam) a fronteira, mas a construção e persistência de uma zona fronteiriça em que o
par dicotômico “nós” e “eles” se faça presente.
Destarte, não se trata de nos preocuparmos com o aperfeiçoamento de uma tipologia
para o estabelecimento de rotulações étnicas, mas de tentarmos descobrir quais são os
processos que produzem o agrupamento social a partir da questão étnica (Barth; 2000: 54).
154
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A identificação indígena: um processo histórico
A memória social caxixó incorpora uma origem heterogênea. Assumindo-se como
uma “mistura” entre indígenas caxixós, “índios carijós”, negros escravos e “brancos”
governantes, os caxixós contemporâneos apresentam seu complexo contexto de elaboração
identitária processo este ocorrido no decorrer de sua história.
Complexa, a conformação da identificação indígena caxixó exige um olhar atento
de antropólogos, movimento indígena e indigenista, e do poder público nacional para que
esse grupo seja compreendido em sua particularidade étnica. Como “produto da história”
(Santos; 2003: 135), os caxixós se colocam no contexto nacional de forma muito
específica. Nesse caso, como ressalta Oliveira (2003: 176), o objetivo não pode ser
reconhecê-los como indígena no sentido da categoria estereotipada no imaginário popular,
mas sim conhecer e compreender a narrativa e a interpretação nativa dos fatos históricos.
Como sujeitos ativos, os caxixós elaboraram situações, sejam estas registradas na história
oficial ou não, e reagiram de acordo com sua própria forma de pensar e se colocar (se
projetar) no mundo.
Sob o domínio do governo, os caxixós tornaram-se mão-de-obra nas fazendas,
conviveram com grupos étnicos distintos e, como resultado de sua história, a miscigenação,
a subordinação e a re-elaboração identitária foram gradualmente processadas. A crença
subjetiva em uma origem indígena comum (Weber; [1921] 1984: 318), a convicção de que
são os primeiros ocupantes daquela terra, uma complexa rede de parentesco, uma trajetória
histórica construída coletivamente, laços de solidariedade e projetos de futuro comuns
fizeram com que os caxixós do Capão do Zezinho criassem formas alternativas de
resistência para permanecer na terra que entendem sua por direito.
A identidade étnica compreendida como um processo dinâmico, seletivo,
situacional (Oliveira; 2003: 169) nos permite concluir que a identificação indígena caxixó é
um processo em construção. Produtos da história e atuantes nela, eles estão elaborando
155
questões e se projetando como uma coletividade. Em uma via de mão dupla, eles são
produto da história e participam ativamente da produção da história indígena do país.
O surgimento recente dos caxixós como um povo pensado como indígena, ou seja,
como um povo que se pensa originário, pode inicialmente remeter a um aparente paradoxo.
As lacunas etnográficas e o silêncio da historiografia – componentes de um discurso de
poder – podem ser entendidos como elementos que colaboraram para consolidação dessa
perspectiva. No entanto, tais fatores não esgotam a análise do problema (Oliveira; 1999
[2004]: 14). Para tanto, é fundamental o entendimento que a identificação étnica é uma
formulação, e como tal, faz parte do processo histórico vivido pelos atores sociais. Talvez,
a principal questão a ser destacada hoje possa ser a conquista de direitos constitucionais
significativos, que garantem a essas coletividades direitos específicos. Se no passado, a
intenção era integrar, assimilar, atualmente, a legislação garante o direito deles serem
“índios”.
Os caxixós do Capão do Zezinho têm formulado sua condição de ser ao longo da
história. Em função desta, eles têm estabelecido um diálogo com o passado para pensar o
futuro. No intuito de conquistar ambos, eles se projetam como um “novo” povo indígena.
Nesse sentido, o surgimento, que muitas vezes, pode parecer repentino para nós, não
índios, na verdade, faz parte, de um intenso processo, que implica na comunhão de sentidos
e valores, no ‘batismo’ de cada um de seus membros e no respeito a uma autoridade
simultaneamente religiosa e política (Oliveira; [1999] 2004: 34). Um processo que não
pode ser entendido simplesmente como ato para concessão de território.
Assim sendo, identificar-se, nos dias de hoje, como indígena não pode ser entendido
como simplesmente a procura por copiar modelos ou padrões que existiram no passado.
Identificar-se enquanto indígena é algo muito mais profundo do que “resgatar” um antigo
modo de ser, como se o tempo e a história não tivessem imprimido suas marcas.
Identificar-se enquanto indígena supõe uma utopia, um modo de ser e de encarar o futuro
com base no passado, nessa origem pensada como comum e anterior ao período do contato.
Identificar-se enquanto indígena significa optar por um modo coletivo de ser, que
pressupõe uma relação das pessoas umas com as outras e um compartilhar de valores, que
são reafirmados no cotidiano do grupo (Oliveira apud Dantas; 2004). Sobretudo, assumir-se
156
indígena hoje implica em enfrentar a opinião senso comum e as posturas de setores
conservadores da sociedade brasileira de que eles não são mais índios.
Segundo Oliveira,
Não importa o quanto os símbolos e valores venham efetivamente de fora,
o que conta é que são vividos e pensados como se estivessem impressos a
ferro e fogo nos corpos e sentimentos dos indivíduos; e que daí lhes
determina – como uma força interior – o seu futuro, concebido como um
reencontro com o seu verdadeiro destino (1993: 07).
Todavia, desmontar o complexo ideológico que marca a concepção naturalizada
sobre os “índios” é muito difícil. A antropologia, em seus primórdios, colaborou
significativamente para a consolidação dessa concepção. A expansão colonial foi o quadro
político e ideológico que subsidiou a formação da disciplina, que deveria focar suas
análises especificamente no pensamento e na existência dos chamados povos “primitivos”
(Oliveira; 1999: 113). Nesse sentido,
as culturas nativas foram exaustivamente descritas pelos antropólogos
como sistemas fechados e coerentes, quase inteiramente virgens da
influência cultural do Ocidente – o que permitia que os antropólogos
avançassem nesta contradição era, justamente, o modo como os limites
estavam estabelecidos previamente para a sua disciplina: a Antropologia
não devia se confundir com a Sociologia ou a Ciência Política, muito
menos envolver-se com os problemas práticos da Administração (ver
Evans-Pritchard e Fortes, 1940). O seu objeto, portanto, deveria ser o
estudo dos sistemas nativos e não da situação colonial (Oliveira; 1999:
113).
No entanto, já há algumas décadas, a antropologia abriu novas possibilidades e
instrumentos de análise. Numa tentativa de escapar das imagens arquitetônicas de sistemas
fechados e passar a trabalhar com processos de circulação de significados, que enfatizam o
caráter não estrutural, dinâmico e virtual como elementos constitutivos da cultura (Oliveira,
[1999] 2004: 37), alguns antropólogos, em destaque o norueguês Fredrik Barth, elaboraram
teorias e apresentaram questões que convidam o antropólogo a construir atitudes mais
políticas em seu trabalho (Lask apud Barth; 2000: 15).
Segundo F. Barth, muitos de nós, antropólogos, fomos treinados para suprimir os
sinais de incoerência e de “multiculturalismo” encontrados nos grupos étnicos e tomá-los
157
como aspectos não-essenciais decorrentes da modernização (2000: 109). Segundo ele, uma
abordagem honesta, que respeite o que se pode constatar do que acontece entre as pessoas,
exige a não imposição de modelos, estruturas, formas pré-determinadas que reduzam os
fenômenos sociais à homogeneização ou à assimilação cultural. Os grupos sociais e as suas
formas de atribuição de significados não têm necessariamente que se encaixar em modelos
teóricos construídos. O movimento é exatamente contrário. Os fenômenos sociais é que
devem nos propor desafios, questões e material para reflexão; “neles não devemos buscar
moldes daquilo que esperamos ou gostaríamos de encontrar” (Barth; 2000: 113).
Para Barth, “as pessoas participam de universos de discursos múltiplos, mais ou
menos discrepantes; constroem mundos diferentes, parciais e simultâneos, nos quais se
movimentam. A construção cultural que fazem da realidade não surge de uma única fonte e
não é monolítica” (2000: 123). A cultura é criativa. Nesse sentido, Barth baseou seu
trabalho em análises referentes à interação social, às variações culturais e à manutenção das
fronteiras sociais.
Vários outros antropólogos baseiam seus estudos e análises no caráter criativo e
dinâmico da cultura. Marc Augé, antropólogo francês, é um deles. Segundo ele, vivemos
uma época em que observamos o desenvolvimento de um notável paradoxo.
Por um lado, poderosos fatores de unificação ou de homogeneização
estão em ação na Terra: a economia, a tecnologia são cada dia mais
planetárias; agrupamentos de empresas operam-se na escola do globo,
novas formas de cooperação econômica e política aproximam Estados; as
imagens e a informação circulam na velocidade da luz; certos tipos de
consumo espalham-se por toda a Terra. Por outro lado, vemos impérios
ou federações se deslocarem, particularismos se afirmarem, nações e
cultura reivindicarem sua existência singular, diferenças religiosas ou
étnicas serem invocadas com força, até o ponto de ruptura que pode
conduzir à violência homicida (Augé; 1998: 17).
As “culturas” circulam, contudo, sua circulação não implica em homogeneização
identitária – a alteridade persiste. Como uma resposta à pressão (histórica) do imperialismo
ocidental, povos reivindicam, em todo o planeta, com novo ímpeto e muito mais força, sua
especificidade. Através da questão étnica e da dívida histórica que os países colonizadores
158
reconheceram possuir junto aos povos autóctones, coletividades têm lutado para terem
direitos e, assim, saírem da condição de excluídos e subjugados.
Para o antropólogo Marshall Sahlins (1997), os povos que sobreviveram ao
violento processo colonizador apenas elaboraram (e ainda elaboram) culturalmente tudo o
que lhes foi infligido. Segundo ele, a dependência é sempre péssima, mas nem sempre é o
fim da história. As imposições do imperialismo não foram e não são capazes de fato de
constituir uma única experiência humana no planeta, e a capacidade dos povos de
interpretar a história, ainda que sob dominação, não foi anulada pelo contexto histórico
iniciado pelo colonialismo e potencializado pelo capitalismo ocidental. A colonização e a
modernidade causaram a integração de sociedades indígenas à economia global. Todavia,
associado à uma promoção explícita de uma base material fundamentada na articulação
com o mercado (que na maioria das vezes, acarreta a dependência), esse processo global
produz concomitantemente a intensificação das bases culturais dessas sociedades, posto
que, muitas vezes, chama as mesmas para melhores condições de vida. Essas melhores
condições, no caso dos povos indígenas, possuem bases específicas – a noção tradicional
do que é viver bem (Sahlins; 1997: 53). Assim, muitas vezes a riqueza material do grupo,
advinda do contato, acaba por ser utilizado de maneira a fortalecer os padrões e desejos
próprios de vida coletiva – e nesse sentido, nem sempre os bens estrangeiros tornam as
pessoas mais semelhantes aos estrangeiros; muitas vezes, os torna mais semelhantes a elas
próprias (Sahlins; 1997: 60). Segundo Sahlins, vários são os povos que têm utilizado o
acesso a bens materiais nacionais (dinheiro, máquinas, etc) para fortalecer práticas e
valores tradicionais (ver Arruda; 1999).
Portanto, o capitalismo e a modernidade não conduzem os povos a uma
homogeneização de “cultura” ou de “identidade”. Essa é uma impressão equivocada, mas
arraigada no senso comum.
Nesse sentido, se “cultura” e “identidade” não simbolizam conteúdos estáveis e
imóveis, e se o sistema imperialista de um capitalismo ocidental e o fenômeno da
“globalização” não foram capazes de promover a homogeneização dos povos, por que
ainda é tão comum uma cobrança pela “autenticidade cultural”? Em um de seus artigos,
Oliveira cita uma questão pertinente, formulada por Rahakrishnan: “a autenticidade é um
159
lar que construímos para nós mesmos ou é um gueto que habitamos para satisfazer ao
mundo dominante?” ([1999] 2004: 37). Essa pergunta nos convida a pensar...
O conceito de grupos étnicos há muito compõe o campo de interesse da política
brasileira. Como fator capaz de gerar direitos, sua definição é marcadamente disputada.
A atual Constituição Brasileira possui em seu capítulo VIII, o seguinte artigo:
Art. 231: São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes,
línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que
tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e
fazer respeitar todos os seus bens (Grifo nosso).
Ser “índio” no Brasil significa ter acesso a direitos especiais, em destaque o direito
à terra – elemento alvo de acirradas disputas entre os homens desde os seus primórdios
87
.
Apoiados por antropólogos, juristas, entidades internacionais, sociedade civil organizada
(ong´s, pastorais, etc), os povos indígenas se mobilizaram e conquistaram o maior avanço
constitucional que diz respeito aos direitos dos povos autóctones no Brasil: “a partir de
1988, o Direito brasileiro passou a reconhecer o (estranho) direito dos indígenas de
continuarem a ser índios, sem a necessidade de integração na sociedade nacional,
afirmando sua titularidade de direitos coletivos” (Marés; 2002: 50).
No entanto, apesar do avanço legal, as tensões que envolvem o acesso, pelos grupos
étnicos, a direitos específicos não cessaram. A nossa atual Carta Magna nasceu em um
contexto político singular do fim de um período de ditadura militar. Sob o esforço de
reorganização política, jurídica e institucional, o Brasil ansiava por liberdade. O processo
de redemocratização trouxe consigo o forte discurso da igualdade na diversidade.
Imposição e negação não poderiam mais fazer parte da perspectiva política nacional. No
entanto, nem sempre a prática acompanha o discurso. Em um país capitalista, as políticas
87
Sobre os direitos que a atual Carta Magna destina aos povos indígenas, o Sr. Mariano Wekede, cacique
Krahô-canela, estado do Tocantins, estabelece uma simples e rica reflexão: “A Constituição – eu tenho dito
assim para meu pessoal – a Constituição Brasileira dá direito ao índio, mas ela é uma árvore com muitos
galhos e ela dá direito a todos no Brasil. Todos são tratados por ela” (depoimento contido no vídeo
documentário “Assumindo minha responsabilidade”; Dantas; 2004). Afinal, segundo Josenice França,
professora indígena do povo Tupinambá de Olivença, Bahia, “o Brasil está aí para os negros, para os brancos
e para os índios!” (Dantas; 2004). Sobre a Constituição Brasileira de 1988 e o povos indígenas, ver Pereira;
2002, Santos; 1995, Tourinho Neto; 1993.
160
públicas favoráveis aos povos excluídos muitas vezes são entendidas como um obstáculo
ao “progresso”.
Os interesses de grupos econômicos específicos sobre as terras indígenas, bem
como de outros segmentos tradicionais da sociedade dominante impõem dificuldades
significativas para o cumprimento dos direitos constitucionais dos povos indígenas no
Brasil (ver Arruda; 2000). Uma delas é lançar mão do discurso da autenticidade cultural de
alguns povos. Se o direito dos povos autóctones à terra já se constitui consolidado na
legislação nacional e em nível mundial, discute-se então quem são “os índios de verdade”.
Nesse caso, a lógica perversa existente é: se não é possível negar o direitonega-se o
sujeito. Daí talvez uma das razões pelas quais o superado discurso da autenticidade cultural
na antropologia, ainda não se faça superado no campo político. Como afirma Djalma: “a lei
é justa, o povo branco é que atravessa a lei”.
É nesse sentido que F. Barth considera imprescindível a presença dos antropólogos
nos processos decisórios na política. A fim de criar um espaço no campo político para o
conhecimento antropológico, ele defende a idéia de que “os antropólogos têm de construir
uma atitude mais política em seu trabalho, assim como os cientistas políticos devem
reapropriar-se das idéias antropológicas para melhorar as análises políticas” (Lask apud
Barth; 2000: 15).
Não defendemos aqui, de forma alguma, a primazia do conhecimento antropológico
sobre os demais. Nossa intenção é apenas destacar o quanto a antropologia pode ser uma
importante aliada dos povos e pessoas que desejam alterar o status quo. A antropologia
pode ser um excelente instrumento de apoio para leitura e diálogo com os representantes do
Estado brasileiro no que diz respeito à vida política e social do país. Na luta por um Brasil
mais justo, mais humanitário, é que defendemos uma postura política dos antropólogos e a
quebra do “monopólio decisório de certos saberes, particularmente da economia” (Lask
apud Barth; 2000: 19).
Aos antropólogos é possível ir além das atitudes de denúncia em relação à
hegemonia. A antropologia possui potencial e pode auxiliar na construção de análises sobre
o poder dos povos indígenas em se projetar no sistema mundial e em responder, de maneira
própria e criativa, a tudo aquilo que lhe foi imposto. Os povos indígenas, bem como outras
161
minorias, não devem continuar subsumidos ao “universal” em função do processo histórico
da colonização.
Sobre tal reflexão, não poderíamos concluir sem ressaltar a importante contribuição
dos “estudos circunstanciados que indicam as razões pelas quais são acionadas identidades
indígenas específicas” (Oliveira; [1999] 2004:08. Destaque nosso).
O fenômeno étnico foi relativizado, em um movimento que levou à
proliferação de identidades múltiplas e heterogêneas, antes descritas
como “novas” ou “emergentes” (Bennett 1975), parte de um processo de
“invenção de tradições” (Hobsbawn e Ranger 1984), e agora
consideradas integrantes de um contexto pós-colonial, de mundialização
econômica, política e cultural (Oliveira; [1999] 2004: 08).
O processo ou fenômeno conhecido como “etnogênese”– proliferação de grupos
anunciando-se como indígenas no Brasil, sobretudo na região Nordeste – provocou uma
forte e especial reação da opinião pública e governo
88
. As demandas identitárias desses
povos, até então subsumidos, foram recebidas com suspeição e descrédito. Distantes da
imagem estereotipada de “índio” como ser primitivo, eles sofrem ainda a discriminação por
não serem aquilo que os outros gostariam que eles fossem.
Em uma palestra organizada pelo Cedefes durante a Semana dos Povos Indígenas
em Contagem/MG, no ano de 1997, tive a oportunidade de ouvir o indígena boliviano
Carlos Intimpampa falar a respeito dessa questão. Segundo ele, quando os europeus
chegaram à América, encontraram diferentes povos com diferentes hábitos e crenças.
Mediante o violento processo colonizador, disseram que esses outros hábitos e crenças não
eram “certos” e que era necessário que os indígenas falassem o seu idioma, rezassem para
o seu Deus, comessem o seu tipo de comida, usassem o seu tipo de vestimenta. Após cinco
séculos de imposição, indígenas usam camiseta, falam português, comem alimentos
industrializados, usam celular, etc. No entanto, não é mais isso que se deseja dos povos
indígenas. Deseja-se que eles retornem àquele modelo e imagem de cinco séculos atrás.
Segundo Carlos Intimpampa, o ponto crucial dessa discussão é: os povos indígenas não
88
Em Minas Gerais, além do caso Caxixó, há o contexto de luta vivido pelo povo Aranã, que foi considerado
extinto pela historiografia oficial ainda no século XIX (ver Caldeira; 2001; Caldeira et alli; 2003; Caldeira;
2003). Sobre o contexto dos índios no nordeste e a questão da “emergência étnica”, ver Oliveira; 1993 e
[1999] 2004.
162
podem ser aquilo que os grupos dominantes querem que eles sejam. Eles precisam assumir
a condução e os rumos de sua história. Eles não podem permanecer eternamente sendo
aquilo que outros querem que eles sejam em nome da manutenção de uma ordem, de um
status quo.
Nossos contemporâneos, os mais de 220 povos indígenas no Brasil, caracterizam a
diversidade étnica de nosso país. Eles não apenas sobreviveram à violência e massacres,
mas também ao domínio físico e cultural, à política integracionista, ao mito do “bom
selvagem”, à ideologia da raça pura.
Na busca por garantir o direito de permanecerem em suas terras, com atendimento e
políticas públicas diferenciados, os povos indígenas reivindicam direitos especiais.
Ocupando espaços que vão além das aldeias, eles lutam para dizer o que querem e o que
pensam e “mostram sua cara” na busca por conduzir o rumo de sua história. Através de
representações sociais que fogem ao estereótipo do índio presente no imaginário popular,
eles tentam garantir aquilo que historicamente lhes foi (e ainda parece ser) negado: o
direito de ser o que são.
A proliferação de identidades indígenas no país (povos que não eram reconhecidos
como indígenas ou que foram considerados extintos pela historiografia oficial) não é um
caso de “índios falsos”, que forjam identidades apenas para ter acesso a direitos. Essa seria
uma maneira rasa e cômoda de tentar compreender tal questão. O mais apropriado, no caso,
é tentarmos ouvir e entender esses povos para então nos comportarmos como se os
conhecêssemos. A “invenção” de identidades não se caracteriza por um processo fortuito.
Ela ocorre sempre ‘a partir de’, com base ‘em’. Através do par memória-direitos (e não
necessariamente cultura-proteção) (Arruti; 1997: 13), coletividades elaboram seu passado.
Através da “descoberta” de direitos, de um processo de conscientização, elas “olham” para
o passado, percebem o presente e projetam o futuro. Assim, elas lutam contra a imagem
senso comum de “índio”, o discurso retrógrado da autenticidade cultural, e buscam sair da
condição histórica de exclusão e submissão.
Os caxixós do Capão do Zezinho somam voz a esse coro e força a esse movimento.
O processo singular de produção de laudos, seu discurso como “índios misturados”, sua
interpretação da história, sua crença em uma origem indígena comum, sua resistência e luta
163
por manter-se na terra e sua opção pelo projeto étnico fez com que essa coletividade
desafiasse setores dominantes da sociedade brasileira. Com uma aparência física e uma
vida cotidiana que se assemelha em muito à vida dos trabalhadores rurais no país, os
caxixós não têm “cara de índio”. Eles têm a “cara” da história do nosso país – uma história
de imposições, violência e mistura.
Você é índio? Mas não parece com índio! Você não tem o cabelo bom,
não tem o cabelo liso, cabelo grande, cabelo preto; não tem os olhinhos
esticados... Aí, a gente coloca uma questão: eu mesmo não quero parecer
índio, nem quero ter cabelo liso, nem meus olhos fechados. O que eu
quero ser é descendente de Pankararu e ser Kalankó. Essa é minha
verdade. Eu fui de muito tempo Kalankó e estou assumindo minha
responsabilidade (Cacique Paulo Antonio dos Santos. Dantas; 2004).
Ser Caxixó, ser Kalankó, Aranã, Náua, Pipipã, Miqueleno, Xetá, Kambá,
Kinikinawa, Tupinambá, Tumbalalá, Tremembé, Kantaruré, Krahô-Canela... Esse é o
desejo desses povos – serem eles mesmos; serem aceitos pela imagem de si próprios. Nesse
sentido, conhecer esses povos tem sido um grande aprendizado, e, sobretudo, um prazer.
164
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- Arquivo Público Mineiro (2005). Coleção Família Joaquina Bernarda de Pompéu.
Catálogo dos arquivos privados. Código FJBP.
170
ANEXOS
171
I - Capitania das Minas Gerais
Fonte: Cunha, Alexandre Mendes (2002).
172
II - Zonas Geográficas do Estado de Minas Gerais
Fonte: Atlas Geográfico Escolar do Estado de Minas Gerais (s/d)
173
III - Mapa de localização da zona geográfica Alto do São Francisco
Fonte: Atlas Geográfico Escolar do Estado de Minas Gerais (s/d)
174
IV - Esboço da localização das principais áreas de referência caxixó
175
V – Fotos
Foto: Vanessa Caldeira
Foto 1 – Área central do Capão do Zezinho, conhecida como pracinha (agosto de 2006)
Foto Antonio Barros
Foto 2 – Paisagem da região entre o Capão do Zezinho e a área Fundinho (junho de 2006)
176
Foto Antonio Barros
Foto 3 – Vanessa e Djalma seguindo para área Fundinho (junho 2006)
Foto Antonio Barros
Foto 4 – Glayson Caxixó realizando a travessia no rio Pará (junho de 2006)
177
Foto Vanessa Caldeira
Foto 5 – Djalma Caxixó (fevereiro de 1998)
Foto Vanessa Caldeira
Foto 6 – Djalma Caxixó (junho de 2006)
178
Foto Vanessa Caldeira
Foto 7 – Dona Josina Caxixó e seu filho Antonio. Ele reside em Goiânia e veio visitar os parentes
no Capão do Zezinho (agosto de 2006).
Foto Juliano Caxixó
Foto 8 (da dir. p/ esq.) - Eva, Marreco, Djalma e Josina (agosto de 2006)
179
Uma homenagem
Fotos: Vanessa Caldeira
Seu Zezinho Caxixó, filho de vó Sérgia, irmão de Djalma, pai de Cristina, Geraldo,
Nilvando e Aparecida. Pessoa querida, que fez história e deixou saudade. Seu Zezinho
faleceu em 2003, aos 69 anos de idade, vítima de um derrame cerebral, em Belo
Horizonte, durante o Fórum Social Brasileiro.
Dona Antonieta se destacou por ser a principal representante do grupo familiar caxixó
que imprimiu grande resistência à ocupação não índia na Criciúma. Mãe de Eva, Maria
Elza, Milton, Wilson e Francisca, ela faleceu no ano de 2001, aos 87 anos de idade.
Juntamente com vó Sérgia e vó Chica, Antonieta foi uma das mulheres de grande
destaque na vida social caxixó. A mística e a espiritualidade, a força e a resistência,
são características que marcaram sua trajetória. Após sua morte, a histórica ocupação
caxixó na Criciúma sofreu uma interrupção.
180
Fotos: Vanessa Caldeira
Seu Candinho, figura marcante na trajetória caxixó, ele foi um dos importantes
representantes do grupo familiar ligado à história da jagunçagem. Após sua morte, no
ano de 2000, a histórica ocupação na Pindaíba (margem direito do Pará) também foi
interrompida.
Vó Chica, ao lado de João Isabel (tio de Djalma), faleceu, assim como Seu Zezinho, no
ano de 2003, vítima de um derrame cerebral. Figura carinhosa, dona de um carisma e
uma simpatia, ela foi uma pessoa muito querida por todos.
A esses e aos outros caxixós que conheci nessa trajetória e que não estão mais
conosco, fica aqui registrada a lembrança da importante passagem de cada um.
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