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1
UNIVERSIDADE PAULISTA - UNIP
VICE-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
PROGRAMA DE MESTRADO EM
COMUNICAÇÃO
CARAMURU, A INVENÇÃO DO BRASIL:
RUPTURAS COM A HISTÓRIA.
Dissertação apresentada ao Programa
de Mestrado em Comunicação da
Universidade Paulista - UNIP para
obtenção do título de Mestre em
Comunicação.
RAQUEL CRISTINA DOS SANTOS
São Paulo
2006
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2
UNIVERSIDADE PAULISTA
PROGRAMA DE MESTRADO EM COMUNICAÇÃO
CARAMURU, A INVENÇÃO DO BRASIL:
RUPTURAS COM A HISTÓRIA.
Dissertação apresentada ao Programa
de Mestrado em Comunicação da
Universidade Paulista - UNIP para
obtenção do título de Mestre em
Comunicação, sob orientação do
Prof. Dr. Antônio Adami.
RAQUEL CRISTINA DOS SANTOS
São Paulo
2006
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3
Banca Examinadora:
Prof. Dr. Antônio Adami
Prof. Dr. Geraldo Nascimento
Profa. Dra. Helena Bonito Couto Pereira
III
4
SUMÁRIO
Página
AGRADECIMENTOS ..............................................................................................V
LISTA DE ILUSTRAÇÕES.................................................................................... VI
RESUMO................................................................................................................VII
ABSTRACT..............................................................................................................IX
RESUMEN................................................................................................................XI
INTRODUÇÃO ........................................................................................................13
1 - A BANALIZAÇÃO E A INVERSÃO DA HISTÓRIA DO BRASIL ................19
1.1 Algumas pistas sobre a intenção dos autores................................................19
1.2 Um pouco sobre conceito de história e história oral ....................................22
1.3 A história tornada filme ...............................................................................26
1.4 A canibalização da história pela mídia .........................................................32
1.5 O sujeito histórico representado na atualidade .............................................38
2 - O GROTESCO EM CARAMURU: FATOS E VERSÕES................................53
2.1 As celebrações como forma de consumo......................................................53
2.2 O grotesco como categoria estética, fenômeno, gênero e espécie .................59
2.3 Os gêneros como pano de fundo dramático das obras encenadas..................68
2.4 O grotesco identificado: do documentário ao filme ......................................89
3 - ANÁLISE ESTRUTURAL DA NARRATIVA ................................................121
3.1 Aspectos técnicos inerentes ao objeto........................................................121
3.2 Estrutura narrativa do filme .......................................................................122
3.3 Apresentação, qualificação e relação dos personagens ...............................126
3.4 Apresentação do objeto: sinopse................................................................130
3.5 O sentido no filme Caramuru....................................................................133
3.5.1 As fases da narrativa: antes, durante e depois..........................................139
3.5.2 O Tempo e o Espaço em Caramuru........................................................154
3.6. Decupagem clássica do bloco selecionado................................................160
CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................180
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...................................................................185
ANEXOS.................................................................................................................193
IV
5
AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar agradeço a Deus por ter me dado a vida, a saúde, a força e
a coragem que residem em mim.
A todas as pessoas do meu núcleo familiar, em especial aos meus pais e
irmãos, pelo convívio verdadeiro, simples e amoroso; pela educação e pelo
incentivo no caminho do bem.
Agradeço ao amigo e ao companheiro Fernando por me ouvir, compreender,
acreditar, incentivar, não desistir e permanecer ao meu lado em todos estes
momentos.
Aos meus queridos amigos Roberto (Beto), Clarice (Cuca) e Antonio Carlos
(Totaio) pela força espiritual, pela energia e amizade...
Ao especial amigo de longa data, antes professor universitário e hoje
orientador desta dissertação, Prof. Dr. Antônio Adami, meus agradecimentos
por ter enxergado em mim um perfil para a academia e incentivado a minha
busca até este momento.
Aos ilustres membros que participam desta banca e que se dispuseram a
participar deste momento tão importante para a minha carreira acadêmica
emprestando a este trabalho tanto prestígio.
A todos os meus professores do Programa de Mestrado em Comunicação que
contribuíram sobremaneira para a consolidação de meus conhecimentos e
formação, neste imenso e prazeroso universo.
Um especial agradecimento às Profas. Dras. Anna Maria Balogh e Malena
Segura Contrera pela inspiração e transpiração proporcionados a cada aula,
mas principalmente pelo exemplo de personalidades.
Aos meus colegas de mestrado que mantiveram acesa a chama da esperança e
acreditaram que é possível...
A todos o meu mais sincero MUITO OBRIGADO!
V
6
Lista de Ilustrações
Ilustração 1 ............................................................................................................ 92
Ilustração 2 ............................................................................................................ 93
Ilustração 3 ............................................................................................................ 94
Ilustração 4 ............................................................................................................ 95
Ilustrações 5 e 6..................................................................................................... 96
Ilustração 7 .......................................................................................................... 101
Ilustrações 8 e 9................................................................................................... 102
Ilustrações 10 e 11............................................................................................... 103
Ilustrações 12 e 13............................................................................................... 104
Ilustração 14 ........................................................................................................ 105
Ilustração 15 ........................................................................................................ 108
Ilustração 16 ........................................................................................................ 109
Ilustração 17 ........................................................................................................ 117
Ilustração 18 ........................................................................................................ 142
Ilustração 19 ........................................................................................................ 147
Ilustração 20 ........................................................................................................ 153
VI
7
Resumo
Por que é reservado à TV e ao cinema, retratar por meio de imagens, as
experiências da História? De que forma ocorre a transmutação de um fato histórico
para o espaço da ficção? Qual a importância do cinema transformar uma tragédia
numa produção que re-configura o sentido da formação cultural e social do Brasil em
algo grotesco e retratá-la por meio de uma comédia romântica? Ao se realizar um
filme, com base em fatos históricos, as imagens elevam os fatos históricos ocorridos
ou há uma inversão de contexto que pode ser considerada proposital? As dúvidas que
originaram esta pesquisa surgiram a partir do filme Caramuru, a invenção do Brasil,
de Guel Arraes e Jorge Furtado, lançado nacionalmente em 2001, pela Globo Filmes.
O cerne da produção tinha por mote as festividades dos 500 anos de Descobrimento
do Brasil. Porém, ao observarmos a forma distorcida e grotesca com que os autores
trataram a lenda de Caramuru e Paraguaçu achamos relevante um estudo que
abordasse o fenômeno do ponto de vista cultural, já que trata-se de uma narrativa
incorporada e sedimentada ao imaginário simbólico nacional. Para isso, analisamos a
narrativa do filme e uma vasta pesquisa bibliográfica para dar conta de entender a
versão dos autores, buscando aí, as respostas às nossas indagações, do ponto de vista
da comunicação, da sociologia, da cultura e dos meios técnicos de produção cultural
de massa, ou seja, produtos para TV e cinema.
Sumário
Introdução
Capítulo 1 - A Banalização e a inversão da História do Brasil
1.1 Algumas pistas sobre a intenção dos autores
1.2 Um pouco sobre conceito de história e história oral
1.3 A história tornada filme
1.4 A canibalização da história pela mídia
1.5 O sujeito histórico representado na atualidade
VII
8
Capítulo 2 - O grotesco em Caramuru: fatos e versões
2.1 As celebrações como forma de consumo
2.2 O grotesco como categoria estética, fenômeno, gênero e espécie
2.3 Os gêneros como pano de fundo dramático das obras encenadas
2.4 O grotesco identificado: do documentário ao filme
Capítulo 3 - Análise estrutural da narrativa
3.1 Aspectos técnicos inerentes ao objeto
3.2 Estrutura narrativa do filme
3.3 Apresentação, qualificação e relação dos personagens
3.4 Apresentação do objeto: sinopse
3.5 O sentido no filme Caramuru
3.5.1 As fases da narrativa: antes, durante e depois
3.5.2 O tempo e o espaço em Caramuru
3.6. Decupagem clássica do bloco selecionado
Considerações Finais
Referências Bibliográficas
Anexos
VIII
9
Abstract
Why is it reserved for TV and cinema to portray, by means of images, the
experiences of History? How does the transmutation of a historical fact into the
sphere of fiction occur? What is the importance of cinema in transforming a tragedy
into a production that reconfigures the sense of cultural and social formation of
Brazil into something grotesque and, on top of this, portrays it as a romantic
comedy? When making a movie on the basis of historical facts, do the images elevate
the historical facts occurred or is there an inversion of context that can be considered
intentional? The questions that led to this research arouse from the film Caramuru, a
invenção do Brasil (Caramuru, the invention of Brazil), by Guel Arraes and Jorge
Furtado, released nationwide in 2001 by Globo Filmes. The central objective of the
production was the festivity of 500 years of the Discovery of Brazil. However, when
we analyzed the distorted and bizarre form with which the authors treated the legend
of Caramuru and Paraguaçu, we found it relevant to carry out a study that addresses
this phenomenon from a cultural point of view, since it is a narrative that is
incorporated and integrated with the national symbolic imaginary. Therefore, we
have analyzed the narrative of the movie and carried out a vast bibliographic research
in order to understand the authors’ version, hoping to find there the answers for our
quests, from the point of view of communication, sociology, culture and the technical
ways of mass cultural production, or rather, products for TV and cinema.
Sumary
Introduction
Chapter 1 - The banalization and inversion of brazil’s history
1.1 Some clues about the authors’ intention
1.2 Brief on the concept of history and oral history
1.3 History becoming movie
1.4 Media’s cannibalization of history
IX
10
1.5 The historical character represented in present time
Chapter 2 - The grotesque in Caramuru: facts and versions
2.1 The celebrations as a form of consumption
2.2 The grotesque in category esthetics, phenomenon, genus and specie
2.3 The genres as a background for the filmed works
2.4 The grotesque identified: from documentary to movie
Chapter 3 - Structural analysis of the narrative
3.1 Technical aspects inherent to the object
3.2 Narrative structure of the movie
3.3 Presentation, qualification and relation of the characters
3.4 Presentation of the purpose: synopsis
3.5 The meaning in the movie Caramuru
3.5.1 Phases of the narrative: before, during and after
3.5.2 Time and space in Caramuru
3.6. Classic decoupage of the selected block
Final considerations
Bibliographical references
Attachments
X
11
Resumen
¿Por qué se reserva a la TV y al cine, plasmar por medio de imágenes, las
experiencias de la Historia? ¿De qué forma ocurre la transmutación de un hecho
histórico para el espacio de la ficción? ¿Cuál es la importancia del cine transformar
una tragedia en una producción que reconfigura el sentido de la formación cultural y
social de Brasil en algo grotesco y retratarla por medio de una comedia romántica?
¿Al realizarse una película, con base en hechos históricos, las imágenes elevan los
hechos históricos ocurridos o se hace una inversión de contexto que se le puede
considerar intencional? Las dudas que originaron esta investigación surgieron a
partir de la película Caramuru, la invención de Brasil, de Guel Arraes y Jorge
Furtado, lanzado nacionalmente en 2001, por Globo Filmes. El marco de la
producción tenía por tema las festividades de los 500 años de Descubrimiento de
Brasil. Sin embargo, cuando se observa la forma distorsionada y grotesca con la que
los autores trataron la leyenda de Caramuru y Paraguaçu creemos relevante un
estudio que abarcara el fenómeno del punto de vista cultural, ya que se trata de una
narrativa incorporada y sedimentada al imaginario simbólico nacional. Para eso,
analizamos la narrativa de la película y una extensa investigación bibliográfica para
dar abastos a entender la versión de los autores, buscando así, las respuestas a
nuestras indagaciones, del punto de vista de la comunicación, de la sociología, de la
cultura y de los medios técnicos de producción cultural masiva, es decir, productos
para TV y cine.
Sumario
Introducción
Capítulo 1 - La Banalización y la inversión de la Historia de Brasil
1.1 Algunas pistas sobre la intención de los autores
1.2 Un poco sobre concepto de historia e historia oral
1.3 La historia transformada en película
XI
12
1.4 La canibalización de la historia por los medios de comunicación
1.5 El sujeto histórico representado en la actualidad
Caítulo 2 - Lo grotesco en Caramuru: hechos y versiones
2.1 Las celebraciones como forma de consumo
2.2 Lo grotesco como categoría estética, fenómeno, genero y especie
2.3 Los géneros como telón de fondo dramático de las obras escenificadas
2.4 Lo grotesco identificado: del documental a la película
3 - Análisis estructural de la narrativa
3.1 Aspectos técnicos inherentes al objeto
3.2 Estructura narrativa de la película
3.3 Presentación, calificación y relación de los personajes
3.4 Presentación del objeto: sinopsis
3.5 El sentido en la película Caramuru
3.5.1 Las fases de la narrativa: antes, durante y después
3.5.2 El Tiempo y el Espacio en Caramuru
3.6. Guión técnico clásico del trozo elegido
Consideraciones Finales
Referencias Bibliográficas
Anexos
XII
13
INTRODUÇÃO
Nosso objeto de pesquisa é o filme Caramuru, a invenção do Brasil
1
, de Guel
Arraes e Jorge Furtado, que teve por base o poema épico do frei Santa Rita Durão,
originalmente escrito em 1781 e também a versão romanceada para o público
infanto-juvenil, de Viriato Corrêa, de 1957
2
. Tanto as obras literárias citadas quanto
o filme - guardadas suas devidas proporções - trataram da lenda acerca da vida de
Caramuru, como sendo o primeiro habitante do Brasil. O filme foi lançado em 2001
e trouxe uma abordagem diferente da obra televisionada e transmitida pela Rede
Globo, como microssérie em quatro episódios e com trechos documentais.
3
Aparentemente a obra seguiu um processo rápido e prático de elaboração à maneira
“estrangeira das séries curtas”, conforme explica Ana Maria Balogh (Balogh, 2002),
e foi criada tendo por motivo a estratégia de celebração dos 500 anos de
Descobrimento do Brasil, comemorada no ano 2000 (ocasião em que foi ao ar). Pela
força da narrativa o fato mais marcante da lenda passou a ser o romance. Mesmo
com um pano de fundo histórico, outros fatos sobre o casal não foram tratados, ainda
que tenham sido descritos tantas vezes no Brasil quanto em Portugal. Em nosso
estudo, notamos que na versão elaborada para o cinema, houve supressão de algumas
cenas contidas na microssérie e também de alguns fatos históricos, caracterizando a
obra fílmica muito mais uma ficção comprometida com o mercado de produtos de
1
Ficção baseada em fatos reais e também “inventada”, conforme prefácio do livro roteiro da obra.
2
Viriato Correia ocupou a cadeira 32 da Academia Brasileira de Letras, que teve também como
patrono Araújo Porto Alegre, ambos envolvidos com a reconstrução da memória nacional.
3
De acordo com Ana Maria Balogh, a ficção televisual se utiliza de diferentes formatos para adequar
alguns de seus produtos ao ambiente televisivo, sendo a maioria deles caracterizado pela fragmentação
ou descontinuidade e exibidos, geralmente, nos cinco dias da semana ou mais, dependendo da
extensão dos episódios. No Brasil, eles assumem aproximadamente, o seguinte padrão quanto ao
número de episódios: a) microssérie: de quatro a dez; b) minissérie: de dez a 15; c) macrossérie: em
torno de 40 episódios e, telenovela: em torno de 100 episódios.
14
massa. Tal fato denotou tanto uma ruptura com a versão das histórias amadurecidas
pelas literaturas (dentre outras que caracterizam o universo da história oral das quais
lendas como a de Caramuru são partes integrantes), quanto a força de impressão da
marca dos autores na criação de vieses outros que permitissem recontá-la à sua forma
e, de fato, “inventar” um novo Brasil.
Com base nisso, no Capítulo 1 procuramos compreender se no espaço
reservado ao cinema era possível reproduzir as experiências da História e se, por
meio da técnica cinematográfica, ele era capaz de elevar tais fatos ou inverter seu
contexto. Algumas “pistas” sobre a intenção dos autores com a realização deste filme
deram o norte desta caminhada que nos conduziu a uma análise sobre o papel
desempenhado pela indústria cultural nos dias atuais com a desarticulação de
conteúdos nitidamente rígidos e já sedimentados. Como no filme a lenda foi relatada
sob o veio cômico e romanceado pelo envolvimento do casal, não foi possível
distinguir à primeira vista, o que era produção simbólico-cultural e o que era
realidade do ponto de vista histórico, fazendo com que se percorrêssemos o caminho
do diálogo também com disciplinas como a história, a sociologia, a antropologia e a
cultura. Para dar sustentabilidade à toda base teórica deste objeto, no Capítulo 2,
fizemos uma análise quanto a impressão de sentido espetacular dadas a determinadas
cenas do filme, que foram identificadas nas narrativas de frei Santa Rita Durão e de
Viriato Corrêa. Ao fazer isso, as contrapusemos com as histórias extraídas
principalmente da obra de Darcy Ribeiro, sobre a formação e o sentido do Brasil,
bem como, com o pensamento de Roberto DaMatta, tornando-as apoio para que
pudéssemos entender como se construiu ao longo dos anos o retrato de nossa
sociedade e com isto, verificarmos no âmbito dos estudos comunicacionais, as
15
possibilidades de redução da identidade própria do público para o qual tais produções
são feitas e exibidas no cinema, por meio de uma estética que tornou este filme um
produto cuja serventia é, aparentemente, somente o de um consumo ligeiro e
ocasional. A partir deste ponto, passamos a investigar se houve ou não uma redução
de valores simbólico-culturais dentro da narrativa possibilitadas tanto por sua estética
quanto pelo seu gênero cômico. Por estas vias destacamos a importância do cinema
em transformar uma tragédia, como nos diz as copiosas crônicas acerca da
colonização, numa produção que re-configura o sentido da formação cultural e social
do Brasil em algo que beira ao grotesco e caricatural.
4
Porém, se este filme pôde ser
entendido como um produto estendido e alternativo que, uma vez transformado
coube no espaço destinado ao cinema um ano depois com projeção nacional, sem que
perdesse o foco narrativo principal da história, acreditamos ser apropriado analisar o
aspecto relacionado à estética Guel Arraes de produção cinematográfica, na qual re-
elabora seus produtos de uma mídia para outra, portanto de maneira intercambiável.
Contribuiu para esta explanação os textos da pesquisadora Yvana Fechine, que
consideram que as obras de Guel já não podem mais ser pensadas como um processo
de transmutação simplesmente, na qual a essência de uma obra literária, por
exemplo, é adaptada para outro suporte. Temos agora, de acordo com ela, um
processo de “remontagem. A partir desta consideração, no Capítulo 3, averiguamos
de que forma ocorre a transmutação de linguagens no espaço ficcional, analisando a
estrutura da narrativa e realizando a decupagem de um trecho do filme, como forma
de aplicar os conceitos sobre linguagem cinematográfica.
4
Acreditamos também que o veio cômico proporciona um rebaixamento da história, possibilitando
qualquer leitura por parte do espectador, daí nossa proposta para análise do grotesco.
16
Um outro fator relevante neste estudo foi que o tema em torno do filme tinha a
peculiar vantagem de estar relacionado a vários outros que também encontraram no
espaço reservado à mídia o lugar apropriado para que fossem externados. Haja vista
o fato de que desde o começo do século XX, quando o cinema ainda buscava e
explorava suas potencialidades artísticas, culturais e comerciais, já era possível
atestar a existência de filmes cujos temas eram os índios, tornando algumas dessas
produções objeto de amplo destaque tanto aqui como no exterior. No Brasil,
atualmente, elas representam uma vasta filmografia e vão desde os filmes
documentários aos de ficção. Versando sobre a forma de representação do índio, eles
sempre buscaram externar parte do imaginário coletivo da sociedade brasileira e o
mito de sua formação, sendo bons exemplos disso, dois outros filmes:
Descobrimento do Brasil (1937), de Humberto Mauro, “inspirado na carta de
Caminha”
5
e Como era gostoso o meu francês (1971), de Nelson Pereira dos Santos,
“que abraça com imensa paixão a idéia da antropofagia cultural propagada por
Oswald de Andrade, no Manifesto Antropofágico de 1928
6
. Mesmo com todas as
referências do passado, da época em que a história é narrada até os dias atuais, Diogo
Álvares (o Caramuru), ao que consta, foi o único personagem que virou lenda, fato
que possivelmente fez com que ele merecesse um filme a seu respeito. No entanto,
no filme, a atriz que protagonizou a índia Paraguaçu por quem ele se apaixonou e
veio a se casar, teve papel de grande relevância, mas não a mesma que a destacou no
ponto de vista histórico. Talvez a isso tenha sido dada menor relevância pela
5
Neste texto, o autor cita exemplos da arte cinematográfica e fotográfica, que se utilizaram da
imagem do índio como ícone e símbolo de identidade nacional, com destaque para produção tanto de
documentários como ficcional sobre o tema. CUNHA, Edgar Teodoro da. A imagem do índio no
cinema brasileiro. Disponível em: http://www.mnemocine.com.br. Acessado em 13/08/2005.
6
FILHO, Kleber Mendonça. Canibalismo vermelho e cru (canibalismo no cinema). Disponível em:
www.cf1.uol.com.br:8000/cinemascopio. Acessado em 13/08/2005.
17
importância histórica do personagem Caramuru que conseguiu a façanha de coabitar
ao lado dos índios sem que fosse por eles devorado. De certa forma isso esclareceu o
fato de outros dois temas virem sempre ligados ao modo de vida dos índios: a
antropofagia e o canibalismo. Neste estudo estes temas foram tratados de forma a
esclarecer o papel exercido pena indústria cultural de massa. Ao trazer tais temas à
tona, entendemos que talvez o cinema exerça uma estratégia para justificar aos
espectadores porque o índio da época consumia o seu inimigo por meio de um ritual
tido como selvagem embora estivesse associado à degradação da imagem dos
desbravadores e intimamente ligado aos seus aspectos culturais. A justificativa
encontrada nesta análise trás o ponto de vista da ferocidade exercida pelas mídias e o
fato de que, sem perceber, aos poucos esta degradação vem sendo constantemente
aplicada por elas em seu lugar de poder econômico. Significa dizer que de quando
em muito a mídia também pode desempenhar o seu papel devorador, pois de certa
maneira, o público encontra-se envolto a todo um ritual midiático organizado por ela.
Ao servir-se de temas nos quais busca inspiração para suas obras e depois ofer-las à
sociedade, percebemos que é a indústria cultural de massa que se fortalece. Neste
grande “banquete midiático” que é servido, em que um é engolido pelo outro, a
sociedade e seus bens simbólico-culturais tornam-se produtos de puro consumo e
enfraquece - justamente o sentido oposto ao valor cultural e simbólico da
antropofagia praticada pelos índios do século XVI. Ainda assim, muitas produções
alcançaram e continuam a alcançar considerável evidência. Caramuru, a invenção do
Brasil foi exemplo típico deste padrão de sucesso midiático (agora produzido em
série) e que foi reforçada pela dimensão tomada pelo cinema que ao longo do tempo
18
ganhou espaço para tratar destes temas. Então, de que forma este valores foram
destacados no filme Caramuru?
Portanto, partindo da análise de um objeto fílmico, nossa dissertação
empenhou-se, em compreender melhor, sobretudo, o cinema que, se por um lado
marcou a forma como as sociedades passaram a ser retratadas, por outro, trouxe
também impacto na vida das pessoas. Além do impacto visual proporcionado pela
grande tela, o cinema se utilizou de outros recursos que até hoje vêm tornando as
histórias muito mais próximas do imaginado, à custa de um penoso esvaziamento dos
sentidos e do distanciamento do público das versões contidas na História, portanto,
conduzindo-os ao que Jean Baudrillard denomina simulacro. Sendo os detalhes de
uma sociedade os fornecedores principais de sua riqueza histórica, entendemos que a
estes detalhes deveriam ser dados os atributos de incorporar e enriquecer a trama
desta narrativa, tanto por sua singularidade quanto pelo seu peso dramático. Por
nossa análise, o caminho trilhado pelos autores para narrar esta versão da história do
descobrimento do Brasil não seguiu somente as fontes oficiais contidas na
bibliografia do livro-texto (roteiro) publicado no ano 2000, mas também outras
fontes (oficiosas) fruto de suas próprias criações para inventarem um novo Brasil.
19
CAPÍTULO 1
A BANALIZAÇÃO E A INVERSÃO DA HISTÓRIA DO BRASIL
“Se os ritos da desordem promovem temporárias des-construções
ou re-arrumações sociais, os ritos da ordem marcam de forma
taxativa quem é ator e quem é espectador”.
Roberto DaMatta
1.1. Algumas pistas sobre a intenção dos autores
Os materiais e riquezas culturais das sociedades, acumulados por várias
gerações, são na maioria das vezes, utilizados pela mídia, para a recriação de
histórias absolutamente originais e que, depois de reformuladas, tomam uma
roupagem considerada “ideal” para que sejam lançadas como produtos midiáticos e
de massa, sob a proteção e o manto da indústria cultural. Porém, há neste tipo de
operação ganhos não tão explícitos, como por exemplo, aqueles articulados pelas
esferas de poder dentro do universo próprio da comunicação, e ainda, aqueles
relacionados diretamente à intenção dos autores na realização de suas obras. Com
esta manifestação da intenção destaca-se o desejo do criador sobre a obra, bem como
seu prazer realizador com o estabelecimento de certo realismo na escolha da
seqüência dos acontecimentos narrativos, traduzindo-os num código que enseja
outros sentidos, mas, sobretudo, que seja adequado a uma linguagem compreensível
ao público. Desta forma ocorre o processo de controle da significação por parte do
autor, ou seja, o controle também do código, que passa a utilizar para influenciar o
público de acordo com a sua proposta intencional, que se baseia tanto em seu talento
20
artístico, como em seus referenciais culturais e sociais, portanto, suas visões de
mundo. Quando isto ocorre na TV ou no cinema, o autor utiliza o que Roland
Barthes (2001) denomina de “coordenada simbólica”, para explicar o significado
metafórico das coisas em torno de nós, ou seja:
(...) tudo que significa no mundo está sempre, em maior ou menor
grau, misturado com linguagem: nunca se têm sistemas significantes de
objetos em estado puro; a linguagem intervém sempre, como polia de
transmissão, principalmente nos sistemas de imagens, como títulos,
legendas, artigos; é por isso que não é correto dizer que estamos
exclusivamente na civilização da imagem (Barthes, 2001, p. 206).
Seguindo este pensamento e levando em conta que estes recursos dão um
tratamento estético quando utilizados “principalmente nos sistemas de imagens”, por
exemplo, num filme, compreendemos que eles são responsáveis por desempenhar um
papel essencial. Isto justifica o fato de serem muito utilizados, especialmente, pelo
cinema, fazendo com que o produto final, em muitas ocasiões nos remeta a um
sentido diferenciado da fonte inspiradora de base.
7
Por outro lado, esta espécie de aplicação estética tende a distanciar e conduzir o
espectador ao que Barthes (2001) denomina de “conotações tecnológicas” do objeto.
Ou seja, o objeto é definido de acordo com a forma como será fabricado para o
consumo, tornando-se assim, “a matéria acabada, estandardizada, formada e
normalizada” e por isto, “não mais escapa em direção do infinitamente subjetivo,
mas em direção do infinitamente social”, justamente por que é lá, no seio da
sociedade em que ocorrem as repercussões do mesmo. (Barthes, 2001, p. 209). Um
exemplo dessa estética transformadora foi utilizado pelo cineasta soviético Sergei
Eiseinstein, com os processos de montagem que impingiam às suas obras mais
realismo. Segundo Eisenstein (2002):
7
As análises de fatores estéticos serão tratadas apropriadamente no Capítulo 2, quanto analisaremos
os aspectos grotescos e também a questão do gênero (comédia) adotado para narrar esta história.
21
A força da montagem reside (...) no fato de incluir no processo
criativo a razão e o sentimento do espectador. O espectador é compelido
a pensar pela mesma estrada criativa trilhado pelo autor para criar a
imagem, exatamente como foi experimentado pelo autor. E este é,
obviamente, o maior grau possível de aproximação do objetivo de
transmitir visualmente as percepções e intenções do autor em toda a sua
plenitude, de transmiti-las com “a força da tangibilidade física”, com a
qual elas surgiram diante do autor em sua obra e em sua visão criativa
(Eisenstein, 2002, p. 29).
Assim, a percepção dos impactos proporcionados por maior ou menor grau de
influência estética por parte do autor num filme, permite que ele a utilize como
recurso para exercer sobre o público um poder tanto capaz de mantê-lo distante da
compreensão plena de conteúdo da obra que a inspirou originalmente - pois aquela já
não interessa mais, importa esta que recebe uma nova leitura -, como capaz de
exercer sobre o público um fascínio que possibilita aproximá-lo deste novo conteúdo
retendo-o, não raras vezes, do começo ao fim de um filme, sem que este seja
questionado, mas simplesmente visto.
No entanto, quando a fonte inspiradora de um filme baseia-se em fatos
historicamente comprovados e já sedimentados ao longo do tempo e, ainda assim,
sua forma acabada destoa destes conteúdos sem que o público se aperceba disso, é
possível que quase nada ou até mesmo nada seja absorvido pela sociedade para o
qual o filme é produzido. Porém não é somente o tratamento plástico que
proporciona essa alteração na percepção estética do espectador. Em filmes como
Caramuru, a invenção do Brasil, também a ausência de uma compreensão mais
ampla acerca de alguns conceitos históricos e simbólicos sobre a origem da formação
da sociedade, facilita a atuação dos criadores. E é o que pretendemos destacar.
22
1.2. Um pouco sobre conceito de história e história oral
Mesmo inserida no campo da Comunicação, para melhor ilustrar nossa análise,
primeiro vamos definir alguns conceitos de história, a fim de delinear e adequar
nosso objeto de estudo a este contexto, já que a obra é permeada por alguns fatos
relativos à história do Descobrimento do Brasil e tem por base uma lenda. Conforme
Aurélio Buarque de Holanda Ferreira (2004), ao falar de história estamos falando de
aproximadamente quatro definições. Uma delas diz que trata-se de “narração dos
fatos notáveis ocorridos na vida dos povos, em particular, e da humanidade, em
geral”. Também pode ser compreendida como o “conjunto de conhecimentos,
adquiridos através da tradição e/ou mediante documentos, acerca da evolução do
passado da humanidade”. Há também o espaço compreendido pela reunião
metodológica de fatos e ocorrências. Neste sentido trata-se de “ciência e método que
permitem adquiri-los e transmiti-los” e por fim, a “narração de acontecimentos,
ações, fatos ou particularidades a um determinado assunto”. Portanto, pode ser
compreendido como narrativa. (Ferreira, 2004, p.454).
Além desta definição, há ainda as concepções filosófica e formal do termo e
para maior adequação, optamos em utilizar aqui somente a concepção formal.
8
Em
seu sentido estrito, o termo “História” pode ser entendido como uma maneira
encontrada pelos homens para registrar os acontecimentos de seu tempo. De origem
grega, este termo é genericamente utilizado para referenciar ocorrências passadas,
“não somente os fenômenos da vida humana como também os acontecimentos no
mundo natural”. Porém, há mais de uma concepção formal para a utilização da
8
Da enciclopédia virtual Wikipédia. Disponível em: www.wikipedia.org, cuja expressão utilizada na
busca foi “História”. Acessado em 21/08/2006.
23
História. Assim, quando não há aplicação de um processo metódico, ficando o
narrador despreocupado de vincular os acontecimentos com as causas, os resultados
ou a própria veracidade, esta é conhecida por “história narrativa ou episódica”. E, em
nossa análise, é apenas essa concepção que interessa. Num outro contexto nos
esbarramos com a “história pragmática”, que se caracteriza por expor os
acontecimentos com uma ênfase didática, buscando inspiração no passado para,
apontar eventuais erros, com a intenção de corrigir os rumos do futuro. A terceira e
última concepção encontrada é conhecida por “história científica”, e tem por
características o fato de seguir um método, debruçar-se sobre a “verdade”, realizar
análises críticas de causas, conseqüências, tempo e espaço. Esta última categoria
torna-se importante especialmente por ser a precursora da “dialética de Hegel e
Marx”, do século XIX, vindo a consolidar-se somente no início do século XX com o
surgimento da Escola de Annale, nas seguintes condições:
Pensadores franceses fundaram em 1929 uma revista de estudos
“ANNALE” onde rompiam decididamente com o culto aos heróis e a
atribuição da nação histórica aos chamados homens ilustres,
representantes das elites poderosas. Para estes estudiosos, o cotidiano, as
artes, os afazeres do povo e a psicologia social são elementos
fundamentais para a compreensão das transformações empreendidas pela
humanidade.
9
Uma última consideração acerca do termo está relacionada a uma categoria que
imbrica em nosso objeto de estudo, já que a história de Caramuru tornou-se lenda e
foi incorporada ao imaginário social do brasileiro. Estamos falando da história oral.
De acordo com esta categoria é comum que uma lenda venha baseada, por princípio,
em fatos reais, somados a outros acréscimos decorrentes da tradição popular, que é o
que a caracteriza como tradicionalmente a conhecemos: história oral.
9
Idem.
24
Para as historiadoras Janaína Amado e Marieta de Moraes Ferreira (2001), o
uso da história oral é importante para que possamos entender melhor o tempo
presente.
10
As autoras revelam uma mudança no quadro em relação às análises sobre
este assunto especialmente a partir dos anos 80, momento em que houve a ocorrência
de um aprofundamento maior acerca da discussão das relações entre passado e
presente na história e que, o “rompimento com a idéia que identificava o objeto
histórico ao passado abriram novas possibilidades para o estudo da história no século
XX” (Amado e Ferreira, 2001, p. 24). Elas defendem a história oral como
metodologia por entenderem que ela “estabelece e ordena procedimentos de trabalho
(...) funcionando como ponte entre teoria e prática” (Amado e Ferreira, 2001, p. 16).
Os apontamentos das autoras informam ainda que a história oral vem sendo
incorporada à ciência pela conquista de maior espaço no núcleo acadêmico e sua
inserção em núcleo de pesquisas específicas para uma melhor aplicação do termo.
Para elas:
A história do tempo presente contribui particularmente para o
entendimento das relações entre ação voluntária, a consciência dos
homens e os constrangimentos desconhecidos que a encerram e a
limitam. Melhor dizendo, ela permite estabelecer com maior clareza a
articulação entre, de um lado, as percepções e as representações dos
autores, e, de outro, as determinações e interdependências que tecem os
laços sociais (Amado e Ferreira, 2001, p. 24).
Mesmo sendo a lenda produto da tradição oral de narrar histórias, percebemos
que a partir do ponto de vista das autoras, ela tem lugar privilegiado para todos os
seus aspectos de reflexão que impliquem em mecanismos que são incorporados a um
contexto social pelos indivíduos de mesma formação social, ao que concluem parecer
10
Para maior aprofundamento sobre o tema, recomendamos a obra de AMADO, Janaína e
FERREIRA, Marieta de Moraes (Orgs.). Usos e abusos da história oral - 4. ed. - Rio de Janeiro :
FGV, 2001.
25
bastante óbvia “a contribuição da história oral para atingir esses objetivos”. (Amado
e Ferreira, 2001, p. 24). Daí o entendimento de que:
A narrativa, a forma de construção e organização do discurso (aí
compreendidos tanto o estilo, na acepção de Peter Gay, quanto aquilo que
Paul Verne chamou de “trama” e Hayden White de “urdidura do enredo”)
são valorizadas pelo historiador, pois, como lembrou Alessandro Portelli,
fontes orais são narrativas; isso chama atenção ao caráter ficcional das
narrativas históricas” (Amado e Ferreira, 2001, p. 15).
A diferença específica quanto ao nosso objeto de análise está no fato de que o
tratamento dado à narrativa não foi realizado por historiadores, o que nos remete a
uma concepção dada por Walter Benjamin (1994) quanto ao perigo da forma como
as histórias se apresentam. Diz ele a este respeito:
O perigo ameaça tanto a existência da tradição como os que a
recebem. Para ambos, o perigo é o mesmo: entregar-se às classes
dominantes, como seu instrumento. Em cada época, é preciso arrancar a
tradição ao conformismo, que quer apoderar-se dela. Pois o Messias não
vem apenas como salvador; ele vem também como o vencedor do
Anticristo. O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é
privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos
não estarão em segurança se o inimigo vencer. E este inimigo não tem
cessado de vencer (Benjamin, 1994, pp. 224-225).
Verificamos que o termo “tradição” designa o “ato de transmitir ou entregar”.
Além disso, também está vinculado à “transmissão oral de lendas, mitos, fatos, etc.,
de idade em idade, geração em geração” e também ao “Conhecimento ou prática
resultante de transmissão oral de hábitos inveterados”. Com isto esclarecemos que,
neste estudo, o “inimigo” preconizado acima por Benjamin, é representado pela
mídia em seu lugar de poder e a maneira pela qual se utiliza de bens culturais e
simbólicos em sua amplitude feroz e cruel, o que a diferencia, exatamente por isto,
do historiador, que por ofício, procura manter certo distanciamento do fato histórico
para análise. Percebemos que, na tentativa de desenvolver sua arte, as incursões
proporcionadas pelos diretores no filme Caramuru, a invenção do Brasil, em muitos
26
momentos, distorceram e desfavoreceram os fatos, transformando-os culturalmente.
O que também já havia sido previsto por Benjamin ao observar que: “Nunca houve
um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E,
assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de
transmissão da cultura”. (Benjamin, 1994, p. 225). E, uma vez que o filme é
proveniente de uma lenda e que tradicionalmente esta é concebida ao longo dos
tempos de maneira oral, vamos adentrar na forma como os cineastas idealizaram o
filme para transmitir, através do cinema, esta história configurada para o século XXI.
1.3. A história tornada filme
Conforme Eduardo Bueno (2003), historicamente o termo “descoberta do
Brasil” refere-se à duas coisas: a chegada, no ano de 1500, da esquadra comandada
por Pedro Álvares Cabral ao território onde hoje se encontra o Estado brasileiro e
também à tomada de posse do território brasileiro pelo reino de Portugal.
No dia seguinte, uma segunda-feira, 9 de março de 1500, a
poderosa frota de Cabral içou as velas, zarpando em direção ao Oceano
Atlântico. Menos de dois meses depois, iria incorporar ao império
português um vasto território continental, um mundo que ainda não
existia. Um novo mundo (Bueno, 2003, p. 83).
De acordo com a Revista Estudos Históricos (2000), da Fundação Getúlio
Vargas do Rio de Janeiro
11
, as celebrações do V Centenário do Descobrimento do
Brasil começaram a ser divulg0061das pela mídia a partir de 1998, com um projeto
denominado Brasil 500 anos, encabeçado pela Rede Globo, que faria a cobertura
11
OLIVEIRA, Lucia Lippi. Imaginário Histórico e Poder Cultural: as Comemorações do
Descobrimento. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 14, n. 26, 2000, p. 183-202.
27
nacional via satélite de toda sorte de eventos empreendidos relacionados ao fato e,
inclusive, construiria um site na internet, que teria o apoio do “governo da Bahia”,
que traria o slogan Bahia, o Brasil nasceu aqui, e os patrocínios do banco Itaú,
Parmalat, Telemar e Petrobrás. De fato, tudo isso aconteceu e o site, trouxe uma
divisão de blocos com vários assuntos temáticos, dentre eles um, denominado
Celebração, sob o qual demonstramos potencial interesse. Informa o texto da revista:
Na parte Celebração constava o que já acontecera e o que ia
acontecer. Observando o que já acontecera, podia-se ver: em abril de
1998, o show de lançamento do Brasil 500 em São Paulo; em julho de
1998, o show Coração Brasileiro em Paris, durante a Copa do Mundo; de
abril de 1998 a setembro de 1999, as festas de inauguração dos 28
relógios de contagem regressiva em pontos centrais das principais
cidades brasileiras, “formando uma corrente nacional de comemoração
dos 500 anos”; em outubro de 1998 e 1999 os shows Criança Esperança
em São Paulo, e em dezembro/janeiro os réveillons no Rio de Janeiro; em
fevereiro de 1999, os 450 anos de Salvador; em maio de 1999, o show
Mama África em Salvador (sabe-se que dois outros shows sobre a
herança indígena e portuguesa acabaram não acontecendo); em fevereiro
de 2000, o programa Brasil por Natureza, e na semana do
Descobrimento, o seriado A invenção do Brasil, sob a direção de Guel
Arraes. O megashow com diversos artistas da música popular na
Esplanada dos Ministérios em Brasília e a missa no dia 26 de abril em
Porto Seguro como que encerravam a celebração. Todos esses eventos
que colocavam o orgulho de ser brasileiro sob a forma de grandes
espetáculos seriam transmitidos ao vivo, via satélite, para todo o Brasil
(Grifo nosso).
12
Assim, como observamos, a criação e elaboração desta obra fílmica teve, além
de um caráter fictício, a particularidade de ter sido produzida sob encomenda para
marcar, também no ano 2000, as comemorações dos 500 anos de Descobrimento do
Brasil. A idéia inicial de um mundo inexistente, portanto, possibilitou aos autores
criar, inventar um Brasil por eles idealizado. Lançado no cinema em todo o país, em
novembro de 2001, o filme teve acrescido em seu título a palavra Caramuru,
tornando o título principal do objeto do qual foi adaptado, seu subtítulo. Assim A
12
Idem.
28
invenção do Brasil sofreu algumas alterações do roteiro original que a consagrou
antes como microssérie
13
e tornou-se filme um ano depois. Seu lançamento
praticamente encerrou o ciclo das ditas comemorações, iniciado com a encomenda
especial da minissérie, ao núcleo de produções da própria Rede Globo. Diferente do
filme, ela foi apresentada em quatro capítulos seqüenciais e foi ao ar em abril de
2000. Tanto a minissérie quanto o filme são obras dos já renomados roteiristas e
diretores nacionais, Guel Arraes e Jorge Furtado, inseridos ao grandioso e
hegemônico núcleo de produções do Sistema Globo, ao qual pertence também o
maior canal de comunicação televisivo no país, conforme nos informam Muniz
Sodré e Raquel Paiva (2002):
(...) a Rede Globo firmou-se como a mais poderosa, com um
notável raio de ação em termos de empreendimentos comunicacionais.
Assim, enquanto o SBT dispõe hoje apenas de tevê aberta, e
Bandeirantes e Record contam com tevê e rádios, o Sistema Globo possui
jornais, revistas, rádios, tevê aberta e vários ramos de telecomunicações,
como acesso à Internet em banda larga, tevê a cabo, tevê paga por satélite
e outros. Além disso tudo - que, na prática, contraria a proibição
constitucional de formação de oligopólios no setor - são correntes as
alianças com grupos internacionais, como a Microsoft, a Telecom Itália,
etc. Especificamente na tevê aberta, a Globo concentra 50% da audiência
e 70% do faturamento publicitário (Sodré e Paiva, 2002, p. 128).
Portanto, por este modelo hegemônico
14
, as produções tinham tudo para dar
certo. E foi exatamente isto que ocorreu tanto com a microssérie quanto com o filme.
Para facilitar o trabalho dos diretores e tornar o filme um produto de sucesso, uma
das estratégias utilizadas foi a transformação na forma de recontar a história que, de
um tema de fundo histórico, passou a uma conotação leve pela inserção da comédia e
todas as possibilidades que este gênero abarca. Portanto, percebe-se que em cada
13
Sobre microssérie e formato ficcional, vide explicação na nota n. 2, da Introdução desta dissertação.
14
Hegemonia aqui é entendida como a supremacia de poder dos empreendimentos Globo, que é
legitimada na medida da audiência de seus produtos televisivos e outros de consumo também de
massa que são articulados para uma maior conquista da atenção do público.
29
cena o veio humorístico encerrou a infalível vontade de evidenciar o riso, tomando o
propósito líquido e certo de divertir e entreter o público. Uma marca, aliás, que vem
se tornando característica de Guel Arraes de uns anos para cá e que já tinha sido
experimentada em O Auto da Compadecida (2000), que seguiu os mesmos padrões
de produção, passando de microssérie a filme.
Sucintamente a história central de Caramuru
15
conta a lenda do primeiro
imigrante português, Diogo Álvares (Selton Mello), a habitar as terras do Brasil e seu
amor instantâneo por uma índia. Esta é uma versão romanceada da lenda deste
português degredado, cuja embarcação naufraga às margens do que se conhece hoje
pela região povoada da Bahia e vive um romance com duas das índias habitantes do
local, ambas irmãs, mas ele casa-se somente com uma, a mais velha, Paraguaçu
(Camila Pitanga). Passa a ser venerado pelos índios da tribo que o acolhe e ganha
credibilidade e força perante eles após um disparo com uma arma de fogo que fora
encontrada por ele próximo à nau que o trouxera e havia naufragado. A partir daí é
designado Caramuru, que na linguagem dos índios, significava “Filho do Trovão.
A fórmula que inspirou os autores nesta produção, quando somada ao fato de
um maior conhecimento de conteúdo histórico por parte do público acerca das
origens já sedimentadas sobre a formação de nossa nação, deu a eles a opção de
retirar do filme toda a roupagem de docudrama que vestira na TV, tornando o filme
uma comédia e, portanto, descomprometida com fontes históricas, dado o hibridismo
que a caracteriza. Antes mesmo de o filme ter sido lançado, já era possível encontrar
nas livrarias em todo o país (2000), o livro-texto que embasou a minissérie e que traz
na capa além do mesmo título, a seguinte inscrição: “O livro da minissérie da TV
15
No Capítulo 3, faremos a análise da narrativa e apresentaremos de maneira mais adequada a
sinopse. Esta é somente uma pequena introdução ao contexto da narrativa, para melhor situar o leitor
ao tema central do filme.
30
Globo”.
16
Já no início, no prefácio, os autores afirmam o seguinte: “Esta é uma
ficção baseada em fatos reais, como toda história. E também em outras histórias, em
parte reais e em parte inventadas. Como toda ficção”. Prosseguem a explanação
acerca da lenda sobre Caramuru e finalizam, na última linha do parágrafo com: “O
resto é mentira”.
Com isso, suspeitamos da possibilidade de que pelo fato de ter tanto a sua
imagem desgastada em toda a história política, econômica e social, a sociedade
brasileira esteja vivenciando um período letárgico, ou seja, “um estado patológico em
que há diminuição do nível de consciência, e caracterizado por indiferença,
sonolência e apatia” (Ferreira, 2004, p.513), no qual não se apercebe a maneira banal
com que é tratada a sua própria imagem e também a sua origem pelo cinema. De
acordo como o dicionário Aurélio, “banalizar” significa “tornar(-se) banal, vulgar;
vulgarizar(-se)”. (Ferreira, 2004, p.164). Para explorar a forma com que a história do
descobrimento foi tratada no filme Caramuru, a invenção do Brasil, aqui o termo
assume o sentido de algo que teve sua importância reduzida. O que se por um lado
justifica o título deste capítulo, por outro, nos faz esbarrar num assunto também
relevante e que diz respeito ao direito de escolha do autor na concepção de sua
criação. Assim, pela explanação, dada pelos autores no início do prefácio do livro
que consagrou mais este produto, depreende-se que, de fato, não se preocuparam em
construir uma narrativa que tivesse uma finalidade histórica que pudesse ser
reavivada pela arte.
Porém, a forma pela qual um autor se utiliza da técnica para recontar histórias -
especialmente com o uso de textos adaptados, tentando estabelecer um elo próximo
16
Esta estratégia de mercado é muito utilizada nos EUA e denominada tie-on, ou seja, um nó,
amarrando o lançamento do livro, do filme, do roteiro, de CD’s com as trilhas sonoras, DVD’s, etc.
Porém, no Brasil a tática não é tão comum.
31
ao da obra original - torna-o, conforme nos explica Antonio Adami (2002), muito
mais “possessivo com sua obra” e, deduzimos então, que esta possessão independerá,
portanto, do fato do objeto fílmico ser fruto de uma adaptação ou não, mas algo que
passa a ser do autor do filme. Considerando o pensamento de Adami, nesta
concepção, o ato de contar histórias, pode ser comparado a algo mágico, já que
“quando entramos neste universo é para viver o mundo dos sonhos dos autores e
nossos anjos e demônios”. Sob o ponto de vista dos ganhos obtidos com tais
estratégias, ainda que haja controle dos códigos por parte do criador, a fórmula
encontrada para dar vida à obra na TV e no cinema teve de levar em conta as
especificidades de cada meio e seus elementos de produção para que fosse conduzida
e finalizada de forma bem sucedida, a fim de encantar o público, geralmente ávido
por uma boa história. Sobre isso, Adami nos informa também que:
No cinema e na TV as estratégias para isto se configuram em torno
da imagem e do som e, nesse sentido, a partir do audiovisual temos todos
os elementos de produção. Primeiramente o roteiro (texto), a
interpretação (ator) e direção (diretor), posteriormente a trilha sonora
(principal condutor narrativo de uma história), cenário, figurino,
iluminação, etc. (Adami, 2002, pp. 158-159).
17
Como percebemos, não é somente a cumplicidade e a intimidade que o autor
tem com a obra que contribui para aproximação desta com o público, mas também os
efeitos estéticos que se adequam ao gosto do criador segundo suas visões de mundo,
corroboradas pelo peso hegemônico dos detentores dos meios de comunicação, e no
caso, também da produção. Para tanto vamos adentrar um pouco neste universo
delimitado pela indústria cultural de massa (e que já não é novo) para situar e
aproximar nosso estudo da forma como objetos como o que analisamos são
elaborados especialmente para uma sociedade de massas.
17
ADAMI, Antonio et al. Literatura adaptada em rádio e televisão: da palavra a imagem e som. In.
Mídia, cultura, comunicação; São Paulo: Arte e Ciência, 2002, pp.157-158.
32
1.4. A canibalização da história pela mídia
Considerando o pensamento de O. Spengler
18
, segundo o qual “as duas
manifestações mais evidentes da morte da cultura ocidental são, a democracia e a
técnica”, Jesús Martin-Barbero (Barbero, 2001, p. 56) exemplifica o uso da técnica
com o advento dos grandes jornais, que trouxe não só a capacidade de
“uniformização” por parte da mídia com também se revelou como “o maior expoente
da civilização moderna e a expressão mais acabada da morte da cultura”, pelo
atrofiamento do leitor tanto pelo seu uso deliberado, como pela perda da “unidade do
saber”. Assim diz ele, ao explicar as palavras de Spengler:
Perdida a unidade do saber, o que nesse processo se liquida é sua
capacidade de orientar a história, e o que resta não é mais que uma
submissão à quantidade, ao dinheiro e à política. E dessa forma, uma
concepção da história incapaz de dar conta das novas contradições mata-
se gritando que é a história que chega ao fim (Barbero, 2001, p. 56).
Mesmo com toda a possível visão dramática contida nesta forma de pensar,
percebemos que ele não foge muito do que queremos representar com o uso da
técnica utilizada também em Caramuru, a invenção do Brasil, o que para Yvana
Fechine (2004) é fruto de uma “remontagem” da TV para o cinema. Assim, todas as
estratégias já mencionadas convergiram tanto para a idealização de uma maneira
muito particular de narrar a história do Descobrimento do Brasil por parte dos
criadores, como também assumiu as características próprias de um produto feito
pelos meios massivos. E é a esta forma estratégica e específica de comunicação, que
neste trabalho, denominamos canibalesca para designar o papel exercido pela
indústria cultural de massa.
18
Citado em Barbero-Martin, Jesús. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia.
UFRJ, 2001, p. 56.
33
Para denominá-la assim, partimos do entendimento de que dentro do universo
em que são regidas as normas televisivas e cinematográficas, “canibalescas” são as
formas de apropriação de histórias baseadas em fatos reais com o intuito de criar
produtos midiáticos de consumo de massa, ainda que ao final seu resultado seja uma
ficção. A nosso ver, esta associação passa a ter coerência por ser esta uma análise
sobre um filme com pano de fundo histórico, ainda que estes fatos não falem por si
justamente por requererem a necessidade de uma interpretação. No caso, a
interpretação é dada pelos diretores que dentre outras coisas, no filme apresentaram
uma imagem possivelmente preconceituosa dos índios Tupinambá, sendo que
nenhuma explicação foi dada a este respeito. Exemplo disso são os hábitos
canibalescos, que eram considerados uma atitude violenta pelos desbravadores
europeus da época, e que no filme foram situados de maneira jocosa, a ponto do
personagem Diogo Álvares, acabar por se safar da “armadilha” dos índios tornando-
se esposo de Paraguaçu, ganhando o romance mais uma vez o lugar de destaque, e
não a história.
Trazendo este exemplo de dentro para fora do filme e fazendo uma analogia
com a amplitude alçada pela mídia, vemos que a mesma condição de apropriação
feita pelo outro (o inimigo, o desbravador) ao longo do tempo, vem sendo processada
pelos meios de comunicação de massa em nossa sociedade. Percebemos que aos
poucos vamos sofrendo uma violência moral e inerente a todo esse processo
colonizador, no qual se vive uma cultura que não é propriamente a nossa, mas que é
constantemente exteriorizada ora pela TV, ora pelo cinema. O que nos remete ao
pensamento de Jean Baudrillard (1991), um dos primeiros teóricos acerca da imagem
contemporânea e que em sua teoria sobre os simulacros aponta para “o paralelismo
34
existente entre a ordem histórica dos simulacros, as fases do desenvolvimento das
imagens e as mutações da lei de valor”
19
. Ali, ele acrescenta que vivemos, por meio
das imagens, num ambiente criado para substituir o que ele denomina “real” e que,
com influência maciça das mídias, na medida em que o espectador se torna mais
próximos desse “não-lugar”, ocorre um esvaziamento de sentidos que conduz a um
mundo de simulação muito mais amplo, ou seja, um simulacro. Para ele, esse
processo faz com que a imagem tenha um lugar de relevância pela habilidade que ela
tem de mascarar e desvirtuar a realidade profunda. A diferença, segundo ele consiste
em entender o que é dissimular e o que é simular:
Dissimular é fingir não ter o que se tem. Simular é fingir ter o que
não se tem. O primeiro refere-se a uma presença, o segundo, a uma
ausência. (...) Logo fingir, ou dissimular, deixam intacto o princípio da
realidade: a diferença continua a ser clara, está apenas disfarçada,
enquanto que a simulação põe em causa a diferença do “verdadeiro” e do
“falso”, do “real” e do “imaginário” (Baudrillard, 1991, pp. 9-10).
Percebemos que a visão de Jean Baudrillard se apresenta e se reafirma cada dia
mais profundamente frente à enxurrada de imagens eletrônicas disponíveis pela
mídia. A grande maioria delas não é questionada e estão bem asseguradas pela
indústria de massa, cujo poder é delimitado pela maneira com que corrobora e
estimula os meios de comunicação ao permitir a transmutação de “vazios” de uma
mídia para outra e desta para toda a sociedade. Esta também pode ser considerada,
então, uma marca da concretude hegemônica dos significantes sobre o significado,
por meio do intercâmbio tanto de discursos no interior de uma mesma obra quanto
pela auto-referencialidade das imagens via meios de comunicação de massa. Daí o
entendimento de Baudrillard que uma vez que a realidade é mediatizada pela mídia,
19
Para maior aprofundamento ver a dissertação de Ruy Sardinha Lopes (USP, 1995).
35
torna-se impossível verificá-la já que se anulam todos os instrumentos de sua
intangibilidade.
Assim é a simulação, naquilo em que se opõe à representação. (...)
A simulação parte, ao contrário da utopia, do princípio de equivalência,
parte da negação radical do signo como valor, parte do signo como
reversão e aniquilamento de toda a referência (Baudrillard, 1991, p. 13).
A partir disso lançamos a hipótese de que Caramuru, a invenção do Brasil
pode ser considerado um exemplo de como um fato histórico pode tornar-se pré-
requisito para que tanto a TV quanto o cinema elaborem os seus produtos visando
antes a manutenção de seus lugares no poder econômico do que no lugar de
transporte de informação de valor cultural para a sociedade, já que com algumas
falsas pinceladas de representações contidas no filme, qualquer realidade pode ser
mascarada, deformada e esvaziada. Apesar das versões exibidas terem por tema
central os 500 anos de Descobrimento do Brasil, vimos que o espaço para a
composição principal da narrativa validou as estratégias da indústria cultural em
manter o seu poder de manipulação da realidade. O que fez da história, como nos diz
Jean Baudrillard, um cenário retro, no qual se exterminam os mitos historicamente
arraigados à sociedade e projetam-no na grande tela de forma banal: “O mito,
expulso do real pela violência da história, encontra refúgio no cinema”. (Baudrillard,
1991, p. 60). Não há segundo ele, problema em ressuscitar o conteúdo imaginário
utilizando as vias do cinema. O problema ocorre quando há perda dos referenciais
históricos.
A história faz assim a sua entrada triunfal no cinema a título
póstumo (o termo “histórico” teve a mesma sorte: um momento, um
monumento, um congresso, uma figura “históricos” são com isso mesmo
designados como fósseis). A sua reinjecção não tem valor de uma tomada
de consciência, mas da nostalgia de um referencial perdido (Baudrillard,
1991, p. 61).
36
A nostalgia figurada por Baudrillard, pode até ser comparada aqui àquela
mencionada por Benjamin (1994) em O narrador, sobre o legado de Nikolai Leskov,
no qual o caracteriza e o destaca como um grande narrador por seus “traços grandes e
simples” e especialmente por sua experiência em narrar já que esta arte “está em vias
de extinção”. (Benjamin, 1994, p. 197). É neste sentido que reside a diferença entre o
perfil canibalesco e antropofágico da própria mídia, quando inserida numa cultura
também de massa. O que nas palavras de Barbero (2001) significa que:
A cultura de massa é a primeira a possibilitar a comunicação entre os
diferentes estratos da sociedade. E dado que é impossível uma sociedade
que chegue a uma completa unidade cultural, então o importante é que
haja circulação (Barbero, 2001, p. 59).
Para nós, isto externa não somente a possibilidade do trânsito de informação
entre os estratos sociais, mas agora também entre as mídias. Vemos nesta espécie de
remontagem, o início de uma outra experiência artística que ilustra a forma de narrar
histórias incentivadas desta vez pela indústria cultural: a que consiste num ciclo
antropofágico entre os próprios meios, no qual uma mídia produz para outra o
produto de seu próprio consumo, fazendo com que a indústria, se fortaleça.
Entendemos que no momento em que a mídia se apóia em fatos históricos com o
objetivo de fazer, a nosso ver, um mau uso deles para isso, ela caminha numa direção
que já a torna mais dependente de todos os aparatos técnicos que possibilita sua
própria realização. Essa dependência abre caminho ao mesmo tempo para uma
liberdade justificada pela perda cada vez maior de seu pseudocompromisso com a
“verdade” e, por sua vez, com a transmissão de uma informação que seja mais fiel ao
público. E não falamos aqui de imparcialidade, pois esta não é de fato uma
característica que marca as relações que envolvem consumo de qualquer produto seja
ele midiático ou outro qualquer, e nem tampouco símbolo dos dias atuais, ou da
37
época que queremos retratar nesta pesquisa, uma vez que o consumo pressupõe, em
maior ou menor grau, interesse e domínio (formalizados ou não) em pelo menos um
dos pólos estabelecidos, independente do tempo em que ele ocorra. Esta forma
mercantil que é premissa para que as trocas se estabeleçam ficou muito bem
evidenciado no filme Caramuru, quando Taparica, o chefe da tribo interpretado pelo
ator Tonico Pereira, é assediado por D. Vasco (Luis Mello) para que passe as terras
em troca de algumas bugigangas trazidas por ele em sua nau portuguesa
20
. E o
diálogo se sucede até culminar na “invenção” e liquidação do Brasil à custa de uma
canibalização indevida da história, mas de acordo com o gosto dos autores.
Por isso Antonio Adami nos diz que “o grande interesse do público sempre foi
ouvir e/ou ver uma boa história”. Embora esta frase pudesse ser mais uma das
críticas veiculadas nos jornais, revistas, internet e televisão, por ocasião tanto do
filme quanto da microssérie, em seus respectivos lançamentos, nossa crença é que ao
mesmo tempo em que é bem distinta a realidade brasileira que muitas vezes vê-se
reduzida em uma narrativa externada pelas mídias, percebemos, hipoteticamente que,
tanto o filme quanto a microssérie, contadas sob o prisma de um romance,
distanciaram o público de uma visão crítica da história que consolidou a origem do
povo brasileiro.
Com este filme, o público ficou sabendo, por exemplo, que Caramuru não
chegou a ser devorado pelos índios como dissemos. Só não se deu conta que os
ocultamentos desta versão histórica dos autores, fez com que a TV e o cinema mais
uma vez os engolisse. Por outro lado, ao privilegiarmos o ponto de vista dos autores
20
Até aqui nos referenciamos somente a dois personagens, Diogo Álvares (Caramuru) e a índia
Paraguaçu, com quem se casou. Adequadamente, todos os personagens serão apropriadamente
apresentados, bem como as cenas fruto de análise da narrativa desta obra. A seqüência em questão é
melhor descrita no Capítulo 2, quando realizamos as análises dos aspectos grotescos deste filme.
38
no filme, mostramos que é possível obter ganhos somente no tocante às suas
respectivas competências para ilustrar, com o devido auxílio da comédia, uma
situação que nem na história compara-se ao trecho exemplificado. Por isso, para
além de toda a sorte de habilidade inerente aos profissionais criadores, temos ainda
as especificidades técnicas encontradas pelo cinema para propiciar os efeitos de
encantamento de quem reverencia seus produtos: o público.
1.5. O sujeito histórico representado na atualidade
Outra grande contribuição para o entendimento da questão relacionada à ordem
de estabelecimento e representação das coisas e do sujeito, também é muito bem
lembrada por Stuart Hall (1997) ao sinalizar as análises feitas pelo pensador francês
Michel Foucault numa série de estudos com vasto desdobramento ao longo do século
XIX, no qual destacou as questões do poder disciplinar, preocupando-se mais com a
regulação, a vigilância e o “governo da espécie humana” para depois dar lugar ao
indivíduo e ao corpo, buscando com isso um ser humano que pudesse ser mais dócil.
(Dreyfus, J. e Rabinow, P. Michel Foucautl: Beyond Structuralism and
Hermeneutics. Brighton: harverster, 1986, apud Hall, 1997, pp.45-48). No sentido
proposto aqui, nada mais é do que um ser humano que se permite ser devorado. Esta
mesma linha de pensamento é também lembrada por Muniz Sodré (2001) ao explicar
que a televisão, enquanto ideologia, “é essencialmente forma (de um poder)” e
exerce, então, da mesma maneira que o Estado, o seu poder “panóptico”, ou seja, um
domínio ideológico “que é invisível, em seu funcionamento interno, para os
39
sujeitos”, mas é “feito de um modo de produção concentracionário e centralizador”
(Sodré, 2001, p. 21). Ao que tudo indica, esta característica vem se tornando uma
espécie de socialização cada vez maior das mídias em nosso cotidiano:
A ciência anda de mãos dadas com o poder panóptico. E esse poder
tornado “científico” visa sempre a obter uma regularidade das condutas
que elimina, ao nível das consciências, a possibilidade de inquietação ou
de mudanças. Tecnicamente (...) o controle tem que ser assumido
individualmente pelos próprios controlados. É o controlado quem
controla (interiorizando os modelos ideológicos da ordem produtiva) e
nisto resiste a astúcia do Poder.
21
É exatamente deste mesmo poder que vemos o personagem Taparica (Tonico
Pereira) imbuído. De posse de um poder ainda que relativo, ele domina com plena
eficácia comercial a sua área. O mesmo ocorre com os produtos midiáticos que
tomam o nosso lar, a nossa vida, nossa consciência e domina ampla e eficazmente o
mercado da comunicação. Por isso enfatizamos a existência de uma comunicação
exercida em seu aspecto canibalesco: os fatos históricos relevantes relacionados ao
momento que se desejava retratar documentalmente na microssérie, em nosso
entendimento, foram canibalizados. Faz-se sim, uma mescla de informações narradas
sobre os fatos e ocorrências na época do descobrimento do Brasil, que se somam a
imagens nem sempre relacionadas ao que é expresso, ou seja: comparações bastante
deslocadas do contexto histórico, mas que de certa forma dá a quem assiste uma
sensação de que se está absorvendo alguma informação. Conforme ressalta Sodré
(2001), “o mito da informação encobre o essencial... as pessoas são informadas para
que não busquem a informação” (grifo do autor) o que por sua vez, facilita a
característica de reprodução da técnica tanto na forma televisiva como na
21
SODRÉ, Muniz. O Monopólio da fala; função e linguagem da televisão no Brasil Petrópolis :
Vozes, 7ª edição, 2001, pp. 44-45.
40
cinematográfica, implicando em transformar a realidade em algo sem valor algum
simulando as próprias operações mantidas pela indústria cultural. Sodré nos diz:
A imagem que interpela diretamente o telespectador, à maneira de
uma comunicação real, precisa apoiar-se num campo de significação que
absorva ou englobe totalmente o “interlocutor”. No caso do vídeo, não é
a imagem em sua autonomia que “engole” o receptor (ao contrário da
plenitude e do poder de significação da imagem cinematográfica, a
imagem televisiva é pobre em sentido), mas o espaço televisivo,
enquanto campo de significação. (Sodré, 2001, p. 59).
22
Neste exemplo, grande parte do que é submetido à mídia (se não a totalidade
dos produtos midiáticos, especialmente na televisão), geralmente ganha um novo
status, tanto pela saturação de informação do público nos dias atuais, quanto pelo
estado anestésico ao qual este já está condicionado e sugestionado, o que em síntese
já despotencializa a mensagem principal pela ausência de criticidade. Uma possível
explicação para o fato é que as mensagens são “jogadas” para o público sem antes
serem mais permeadas de detalhes históricos e, portanto, menos informativas. No
sentido em que nos explica Sodré, a tevê busca mesclar em um único espaço,
imagens ou temas vários que desencadeiem o interesse do telespectador ou que lhe
soem familiar. Desta forma nem a televisão nem o cinema tiveram a preocupação
de exprimir valores culturais, mas sim a de pasteurizar, igualar e homogeneizar
diversos conteúdos ao gosto do público, buscando a popularização da microssérie e
do filme, como uma forma de patrocinador hábil de um modelo consumista
originário nas sociedades industriais do século XIX. E foi desta forma canibalesca e
agressiva, que tanto a microssérie como o filme Caramuru, a invenção do Brasil
foram exibidos: de uma maneira feroz, devoradora e sem questionamento pelo
público.
22
Grifos do autor.
41
Um outro exemplo recente e nesta mesma linha de questionamento, trazido da
história foi o filme Olga, de autoria do também conhecido diretor de novelas e
minisséries televisivas, Jayme Monjardim. Olga estreou em 2004 e teve por base o
livro homônimo de Fernando Morais, do qual foi adaptado para o cinema. Não tão
menos relevante que a microssérie e o filme Caramuru, Olga teve sua importância
no fato de um possível alcance que possui uma adaptação de obra literária para as
telas, já que tanto em um (livro) como em outro (cinema) formato, e especialmente
por se tratar de uma história mais recente, talvez a obra pudesse retratar e/ou resgatar
momentos históricos, que a nosso ver, poderiam ou não ter contribuído para a
transformação de determinados processos culturais e simbólicos do país. Sobre isto,
Aníbal Ford (1999) explica que alguns destes processos podem ser simplesmente
históricos ou uma tentativa de organização de arquivos de conhecimento, aliados às
práticas comunicacionais, facilitadas, aqui, pelo cinema, ou seja:
Estamos diante de novos processos. Mas também estamos diante de
uma reclassificação de arquivos cognitivos e comunicacionais, na qual
saberes muitas vezes deslocados ou desierarquizados pela modernidade
passam a ser referenciais de conhecimento ou campos de recuperação.
(Ford, 1999, p. 55)
23
Entendemos que as implicações destes “saberes deslocados ou
desierarquizados pela modernidade”, na visão Ford, são referenciais de
conhecimento ou campos de recuperação da memória de um povo, ou seja, suas
bases cognitivas. Portanto, como também não se recorreu a elas em Olga (da mesma
forma que em Caramuru, a ênfase dada pelo diretor foi o romance), seria este um
indício de que a indústria cultural evita criar produtos que reproduzem discursos
sociais que estão encravados nos conflitos e nas lutas fundamentais de uma época?
23
FORD, Aníbal. Navegações: comunicação, cultura e crise, Rio de Janeiro, UFRJ, 1999, p. 55.
42
Ou, a televisão e o cinema, por meio de suas respectivas técnicas, manipulam a
realidade dos fatos, invertendo o sentido da narrativa e confundindo o olhar do
espectador?
Em nosso entendimento a complexidade em todas estas relações media também
o campo da visualidade com o esvaziamento de sentido sofrido pela imagem
submetida à lógica da mercadoria (o filme, a microssérie ou a história nele contida),
o que segundo Barbero e Rey (2004), pode ser justificado pelo modelo de produção
atual utilizada pela indústria cultural:
Importa igualmente o ocultamento do real produzido pelo discurso
audiovisual da informação, no qual a substituição da cifra simbólica, elo
entre o passado e o presente, pela fragmentação exigida pelo espetáculo
transforma o desejo de saber em mera pulsão de ver. (Barbero e Rey, G.,
2004, p. 18).
24
É nesta lógica mercantil que se insere as contundentes críticas tecidas por
Theodor Adorno (2002) no texto Indústria Cultural e Sociedade, no qual explica que
o sistema inflado pela indústria do divertimento “não torna, de fato, mais humana a
vida para os homens”. E que ainda que sejam dissipadas inteiramente as
possibilidades técnicas que a indústria possui, quando utilizadas para o consumo
estético da massa, isso não a destitui de seu poder, já que isto faz parte do sistema
econômico “que se recusa a utilizar suas capacidades quando se trata de eliminar a
fome” (Adorno, 2004, p. 34). Mas no filme, a nosso ver, não houve um saciar da
fome nas condições em que se apresentou a lenda sobre Caramuru. As estratégias
utilizadas para conduzir a história na TV e no cinema, tornaram os autores aliados
deste tipo de indústria cultural massificada, privando o público sobre a versão real da
história. Daí o termo canibalesco servir, inclusive, para designar a maneira pela qual
24
O grifo é dos autores. MARTÍN-BARBERO, J. & REY, G. Os exercícios do ver: hegemonia
audiovisual e ficção televisiva; tradução de Jacob Gorender. São Paulo, SENAC, 2004, p. 18.
43
o público foi absorvido pela mídia, no sentido em que o saciar da “fome”, foi mais
uma vez o da indústria cultural de massa. Para uma melhor compreensão,
aproximamos a análise do contexto histórico e vamos distinguir como os termos
“canibalismo” e “antropofagia” se encaixam nesta narrativa fílmica.
Buscamos no texto de Frank Lestringant (1997)
a explicação acerca do
nascimento do canibal a partir da descoberta por Colombo em sua primeira incursão
ao denominado “Novo Mundo”, por ocasião ainda, do Descobrimento da América
nos idos de 1492 e antes mesmo de Pedro Álvares Cabral pisar neste solo:
O nome dos canibais deriva originalmente do arawak “caniba”, que
seria a alteração de “cariba”, palavra pela qual os índios caribes das
Pequenas Antilhas se autodesignavam, e que, em sua língua, significaria
“ousado”. Na boca de seus inimigos - os pacíficos arawak de Cuba -, ao
contrário, o termo tinha um valor claramente pejorativo, por conotar uma
ferocidade e uma barbárie extremas. Foi por esse intermédio que
Cristóvão Colombo, durante a viagem inaugural em 1492, a recolheu,
pois Colombo não é apenas o descobridor da América; ele é, antes de
tudo, o inventor do canibal (Lestringant, 1997, 27).
25
Frank Lestringant
26
deu-nos uma visão do significado do canibal para a época,
ao referir-se sobre as formas pelas quais os europeus dos séculos XV e XVI
realizaram seus intentos. No entanto, de acordo com ele, a avidez pela conquista de
espaço por parte daqueles desbravadores, funcionava como que um estimulante
capaz de fazê-los “projetar no outro, por ódio e por desprezo, o fantasma da
devoração que os assombrava”. Ao salientar que o canibal existiu de verdade, insiste
25
No trecho relacionado a esta citação, o termo “ousado” descrito pelo autor é explicado em nota de
rodapé, da seguinte forma: “[1] Esta etimologia, hoje unanimemente reconhecida, é proposta tanto
pelo Trésor de la langue française (TLF, CNRS, 1977, sv. Cannibale) quanto pelo Französisches
Etymologisches Wörterbuch de W. von Wartburg, t. 20, 1968, p.61”. Para maiores detalhes,
recomendamos a leitura da obra. LESTRINGANT, Frank. O canibal: grandeza e decadência; trad. De
Mary Murray Del Priore. Brasília : Editora Universidade de Brasília, 1997.
26
Frank Lestrintant diz ainda que após Montaigne, o lugar do canibal explode transformando-o num
ser universal, no qual “tudo é canibalismo - o político, o social, o empréstimo bancário, as leis
matrimoniais, a relação entre pais e filhos ou entre alunos e professores” (p. 19). No entanto observa o
cuidado que deve-se ter ao generalizar tal entendimento para que, na alegoria da antropofagia, não se
negue a realidade, perdendo-a de vista. Por isso, para ele, “o canibalismo só existiria como figura de
linguagem”, sentido que utilizamos para também situar o papel da mídia nos dias atuais.
44
que ele “jamais cessou de dirigir-se a nós”. O mesmo ocorre hoje com as imagens do
índio e a da origem de nossa nação quando lembrados na e pela mídia. Percebemos
que ao evocar tais arquivos através das imagens, a mídia encontra a fórmula e a
forma mais cômoda de negar toda a antropofagia cultural, que “deu ao canibal uma
liberdade precária, logo colocada em causa pela avidez dos conquistadores e pelo
excesso de zelo dos missionários” (Lestringant, 1997, pp. 16-18). Talvez seja esta
uma outra maneira de camuflar a realidade e evidenciar o simulacro que se esconde
por trás da colonização: “o genocídio das populações indígenas e seus significados
simbólicos e civilizatórios envoltos num misterioso silêncio” (Subiratz, 2001, p. 107)
e que foi externado de forma tão distante pelo cinema, no filme Caramuru, a
invenção do Brasil. Talvez isso também explique a forma voraz pela qual as mídias
camuflam a realidade e mantém intactos o seu lugar de poder na indústria do
entretenimento.
Por isso, para nós, assim como Colombo “inventou” o canibal, a indústria
cultural de massa inventou também a mídia canibalesca e de massa. Como veremos
mais adiante na análise que fizemos de um trecho da narrativa do filme, há uma
espécie de seqüestro de mensagem principal que poderia ter fixado melhor os fatos
acerca do Descobrimento do Brasil. Este seqüestro, de acordo com Benjamin, é
construído no bojo de uma contigüidade lingüística e no seio de uma memória
individual ou coletiva, a que ele denomina tradição, ou seja, uma espécie de legado
dos povos. E é neste sentido que ele considera que a arte de narrar está acabando:
A arte de narrar está definhando porque a sabedoria - o lado épico
da verdade - está em extinção. Porém esse processo vem de longe. Nada
seria mais tolo que ver nele um “sintoma de decadência” ou uma
característica “moderna”. Na realidade, esse processo, que expulsa
gradualmente a narrativa da esfera do discurso vivo e ao mesmo tempo
dá uma nova beleza ao que está desaparecendo, tem se desenvolvido
45
concomitantemente com toda uma evolução secular das forças
produtivas. (Benjamin, 1994, pp. 200-201).
No entanto, percebemos que este recurso quando utilizado pelo cinema ou pela
televisão poderia antes dar ao público um sentido talvez um pouco mais transparente
do significado de sua existência e de sua realidade frente à história. Mas de fato, na
maioria das vezes, isto não ocorre. Neste filme, especialmente, vimos mais uma vez,
a condução do espectador para as armadilhas do sistema regido e articulado pela
indústria cultural de massa, cujo surgimento fez dela, como diz Adorno (1977), uma
“integração deliberada, a partir do alto, de seus consumidores com o prejuízo de
ambos”, ou melhor, para a indústria cultural e para o que denomina de artes
“superior” e “inferior”, no intuito de distinguir a alta cultura da cultura popular
(Adorno, 1977, p. 287).
27
Da primeira, participa sempre a classe que tem “maior
sensibilidade cultural”, da segunda, a grande massa, com uma simbolização negativa
e grotescamente risível da sua própria “nacionalidade” (Sodré e Paiva, 2002 p. 125).
Feito desta forma deliberada, a indústria tem a liberdade de se recorrer da
história para escolher o tema que desejar e interpretá-la à sua maneira, dando a um
episódio já tornado lenda, como neste caso, uma dimensão sem alcance aos
espectadores. Ironicamente, o que não foi externado no contexto do filme é que esta
mesma integração deliberada ocorreu com a chegada dos portugueses ao Brasil. O
resultado disso é a vitória da indústria cultural e, portanto, das mídias televisiva e
cinematográfica, sobre o fascínio causado no público, mediante uma boa história. Ou
parafraseando Lima Barreto, diz Muniz Sodré: “O Brasil não tem povo, tem público”
(Sodré e Paiva, 2002, p. 151).
27
ADORNO, Theodor. (b). A indústria cultural. In COHN, Gabriel. (Org.). Comunicação e indústria
cultural: leituras de análise dos meios de comunicação na sociedade contemporânea e das
manifestações da opinião pública, propaganda e cultura de massa nessa sociedade. 3ª Ed., São Paulo,
Editora Nacional, 1977, p. 287. - (Série 2ª - Ciências Sociais, V. 39).
46
Entretanto, a parte da história que não se diz - além do extermínio dos índios
praticado nestas terras - é que mesmo antes do descobrimento do Brasil, com a
chegada de Colombo ao Caribe em 1492, a Europa do Renascimento já havia
descoberto um Novo Mundo. E a descoberta deste Paraíso, segundo Eduardo
Subiratz (2001), significava “uma reviravolta radical na história da cultura européia,
comparável somente com a refutação da representação geocêntrica do cosmo pela
astronomia renascentista”. Um pouco desta estranheza é demonstrada com a visita de
Paraguaçu (Camila Pitanga) à Europa, com Caramuru, cujo aspecto da narrativa
será descrito posteriormente.
No entanto, percebemos que não há no centro de Caramuru, a invenção do
Brasil a suposta intenção de narrar fatos históricos. A microssérie parte antes da
concepção já elaborada pela indústria cultural e desta forma é colocada de cabeça
para baixo, tendo seus valores invertidos e, portanto, não questionados. “É a visão da
destruição da consciência por uma força inerente à sua própria constituição interna”,
diz Subiratz. O que para nós é a maneira agressiva de exercer a comunicação.
Por outro lado, ao pontuarmos novamente a intenção dos autores, temos que
considerar que o estilo por eles exercido é também uma forma de expressar o seu
domínio da técnica. Ao fazê-lo lembram-nos de forma sutil, a qual elite pertencem e
de que forma exercem e fortalecem a ideologia da produção, na qual “o sujeito é
aparentemente seqüestrado e reapresentado, transformado por modelos introduzidos
nos meios de comunicação de massa” (Neiva Jr., 1990, p. 33). Na sua devida
importância, todos colaboram para o incremento deste domínio de poder: autores,
atores e público.
47
Ao consideramos então, o fato de que ao celebrar os seus 500 anos de
descobrimento, o Brasil passava por momentos político e economicamente difíceis,
como difícil ainda é a situação atual do país alguns anos após a estréia da microssérie
e do filme, sujeitar-se a esta forma violenta de comunicação, camuflada por uma
comédia permeada ao final por um romance entre um português e uma índia, para
explicar o surgimento do Brasil, é no mínimo colorir nossa história com a mancha da
incoerência frente às inúmeras intenções (boas ou más) que apregoaram historiadores
pelos quatro cantos do mundo. Nesta linha de raciocínio, nos ocorre a frase do então
embaixador brasileiro em Paris, no ano de 1963, que foi muito ampla e popularmente
divulgada em terras brasileiras com sendo do então presidente francês, Charles de
Gaulle, e que hoje reforça um outro mito acerca de nossa gente: “Le Brésil n’est pas
um pays sérieux” (O Brasil não é um país sério).
28
Inicialmente, esta inverdade
desencadeou um sentimento xenófobo e patriótico de muitos brasileiros. No entanto,
a mentira, tão exaustivamente repetida, perpetrou-se como verdade e tornou-se
símbolo de uma identidade controversa. Como nos lembra Zygmunt Bauman
29
,
quando não a garantimos, não nos preocupamos em zelar por ela, e deixamo-nos
subjugar pelo que, por exemplo, a mídia faz dela, e aos poucos adquirimos uma outra
identidade perante outras nações: estereotipada, humilhada, desumanizada e
estigmatizada.
28
Do site http://www.pitoresco.com.br/historia/republ311.htm, acessado em 19/07/2005 às 16h30. A
frase atribuída a Charles de Gaulle, foi de acordo com o site um equívoco, e que a mesma teria sido
dita pelo embaixador aposentado, Carlos Alves de Souza, ao declarar a um jornalista apoio à posição
francesa no conflito pesqueiro estabelecido na época entre Brasil e França, conhecido como “guerra
da lagosta”.
29
BAUMAN, Zigmunt. Identidade: entrevista a Benetto Vecchi. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio
de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 2005. Em seu livro, Identidade, Zygmunt Bauman, externa que a idéia de
“identidade” nasceu como uma ficção, sob o efeito coercitivo do Estado para “legitimar a exigência de
subordinação incondicional de seus indivíduos”. (pp. 26-27 e 44).
48
Nossas observações externam uma preocupação frente aos valores que se
projetam em nossa sociedade ao longo de todo esse tempo e que são constantemente
corroboradas pela mídia e nesta análise, exclusivamente pelo filme. No entanto nada
nos impede de voltar nossos olhos para o passado, para as origens de nosso
descobrimento, ou fatos históricos como este que acabo de citar, para tecer uma
crítica maior em relação ao nosso presente. Se a história se constrói por meio de um
olhar crítico, de tempos em tempos temos que nos voltar para ela. Percebemos, no
entanto, que não há como eternizá-la a não ser por meio das histórias que nós
mesmos criamos e recriamos, ou seja, por meio das narrativas. No entanto, no atual
momento, a vida do lado de fora recebe o apoio da indústria cultural de massa e
também um tratamento enfático do sistema simbólico que representa a sociedade
interiorizada lá dentro, na tela. Ou de outra forma, teremos que contradizer e
desmentir a tese de que a Europa do Renascimento descobriu no Novo Mundo o
Paraíso e que tudo de bom ocorre antes aqui, da mesma forma que se quis
demonstrar no filme. Mas a realidade que se apresenta, como sabemos, é outra.
Em A sociedade do sonho: comunicação, cultura e consumo, Everardo Rocha
(1995) também recorre a Jean Baudrillard para nos falar um pouco mais acerca deste
paradoxo existente entre uma comunicação de massa e o mundo invertido. Ali ele
explica que as imagens, até certo aspecto, numa cultura de massa, se tornaram
também mercadorias, tendo em vista que o consumo neste tipo de sociedade
capitalista tem uma preocupação predominante com a produção de signos, imagens e
sistema de signos, e não somente com as próprias mercadorias. É neste sentido que
Baudrillard insiste em dizer que para a mídia, importa “captar o calor artificial de um
acontecimento morto para aquecer o corpo morto do social”.
49
Se a História também é linear e por vezes se repete como farsa, os personagens
que participam de sua construção e re-construção são ímpares e efêmeros, não
havendo como eternizá-los apropriadamente senão pela veracidade dos relatos dentro
de um contexto desenvolvido para a massa. Isto nos leva ao sentido externado por
Edgard Morin, em sua teoria acerca da hipercomplexidade, ao explicar que sendo o
homem um ser cada vez mais problemático, ele procura sempre fazer uso de
mecanismos de autodefesa e proteção em seu convívio social, o que justifica aspectos
que externam sua busca pelo estabelecimento de vínculos afetivo e comunicativo,
seja por meio da identificação ou da familiaridade criada socialmente. Isto representa
um lado do drama contemporâneo praticado especialmente pela TV em sua maneira
simplificada de narrar histórias, espelhando e retroalimentando a crise de valores
existentes na sociedade. Nesta linha de pensamento a mídia e os eficientes suportes
capazes de retratar a sociedade com sua forma exclusiva de revelar uma época, uma
cultura, hábitos, uma arte, dentre outras tantas coisas que compõem os simbolismos
expressos de uma nação, têm por outro lado, uma enorme função social a cumprir,
uma vez que há evidências de inúmeros casos explicitados das ditas categorias de
jornalismo verdade, documentários, etc.
Talvez a complexidade da questão que colocamos tenha que chegar à
substituição da forma canibalesca de comunicar tal qual a analisamos, para uma
forma mais ritualística, ligada às questões do próprio espírito, como faziam os
próprios Tupinambás, que buscavam no passado, nos mitos e crenças indígenas, as
bases para seu estabelecimento de maneira mais fortificada e encorajadora. Quem
sabe até desta forma, celebrar a comunhão, a harmonia, a criação infinita e o
sacramento. Ou seja, buscar nas origens mitológicas um sentido transformador. Ao
50
fazer uso das narrativas mitológicas para se fortalecer, a comunicação encontrará
então um lado menos nocivo, pois se alimentará de fatos que são devolvidos com o
compromisso de tentar criar no público uma maior criticidade e também uma
maneira de entender e explicar o contexto vivenciado com base no ciclo de suas
diversas ocorrências históricas. Uma forma para se atingir isso, talvez esteja na busca
da compreensão de alguns hábitos dos primeiros antropófagos:
Os primeiros antropófagos adoravam os deuses dos missionários
para devorá-los e gozá-los, para digeri-los e incorporá-los. Os
antropófagos modernos devoram os mitos da modernidade e da pós-
modernidade para transfigurá-los num projeto humanizado de
conhecimento e poder tecnológico (Subiratz, 2001, p. 21139).
Certamente as vias para uma eficácia neste sentido, hão de se voltar ao mesmo
tempo para o reconhecimento daquilo que somos e queremos ser como nação. No
entanto, se o fizermos, corremos o risco ao mesmo tempo de confundir o que precisa
ser explicado pela explicação em si, dada a forma como as coisas nos foram
apresentadas e transformadas no espaço midiático atualmente o único lugar público
no qual as pessoas se encontram. Ao transformá-lo num espaço que fortaleça as
características mais relevantes de nossa cultura, passaremos também a entender a
história em sua amplitude, e assim nos atualizamos. Ao passo que fazer mau uso
deste espaço e falsificando-a, além de nos agredir, regredimos, porque negamos
nossos aspectos embrionários ligados aos mitos primitivos de nossa própria criação,
como apropriadamente nos lembra Mircea Eliade.
Que a habilidade de contar histórias é fortemente alcançada hoje, pelos
registros e lendas que permeiam o acervo cultural de um povo, isto sabemos. Então,
já que os autores não participaram do momento histórico retratado na minissérie, ao
narrá-la como fizeram, contribuíram mais uma vez para ampliar a realidade dos fatos
51
narrados, por meio da mise-en-scène herdada do teatro de outras épocas e também
pela descoberta da montagem. Da mesma maneira, assim como nesta história, muitas
outras são permeadas por vários casos de sucessos e fracassos atribuídos à direção,
roteiro, público entre tantos outros, relacionados também à marcante presença e
influência ocasionada pelo surgimento da indústria cultural, aqui discutida. Nesta
lógica, vem vencendo os aparatos ideológicos utilizados pelas mídias, tendo por
cúmplices os seus autores e a própria audiência do público. O pressuposto
metodológico que sustentou esta análise foi, portanto, a relação que tanto a televisão
quanto o cinema mantiveram com a história, já que seus produtos são compreendidos
como evidências que permitem acesso às ideologias, às relações entre sociedade e o
Estado e, em última instância, acesso às relações de poder em busca do
desenvolvimento, que de acordo com Edgar Morin:
...ignora aquilo que não é calculável nem mensurável, isto é, a vida,
o sofrimento, a alegria, o amor. Concebido unicamente em termos
quantitativos, ele ignora as qualidades: as qualidades da existência, as
qualidades da solidariedade, as qualidades do meio, a qualidade da vida,
as riquezas humanas não calculáveis e não monetarizáveis; ele ignora a
doação, a magnanidade, a honra, a consciência. Sua abordagem varre os
tesouros culturais e os conhecimentos das civilizações arcaicas e
tradicionais; o conceito cego e grosseiro de subdesenvolvimento
desintegra as artes de vida e sabedorias de culturas milenares (Morin,
2002, p. 357).
Uma outra questão importante ao longo da história em Caramuru, a invenção
do Brasil foi o plano narrativo, que não apresentou como pano de fundo a história de
conflitos entre colonizadores e colonizados de maneira enfática. E isto nas duas
versões: filme e microssérie. Especialmente em sua versão televisiva, externou a
cultura brasileira por meio de uma demonstração banal. Se de alguma forma ainda
nos vemos presos às razões colonialistas, isto foi verificado com a escolha do
formato, já que a história se encaixou perfeitamente para TV. Assim, impôs seu
52
caráter industrial, evidenciou a força de sua tecnicidade e reuniu em torno de si, a
estrutura ideal para o seu deleite: a presença da família em frente à tela.
Percebemos que ao reinterpretar o fato histórico, acerca dos 500 anos de
Descobrimento do Brasil, convertendo-o num fato televisivo e cinematográfico, os
diretores evidenciaram na lenda de Caramuru, o romance do casal fazendo com que
a “melodramatização” roubasse da História seu sentido político. A escolha
possivelmente sofreu influência do fato dos diretores terem uma forma hegemônica e
uma linha de atuação mais voltada para a produção televisiva, o que indica que suas
produções têm sempre um contexto de público. Por isso, entender Caramuru e Olga
(como exemplificamos) é vê-los dentro de um formato e uma forma, no qual o
formato está mais preconizado dentro do gênero da ação, mas a ênfase foi a comédia
e o melodrama, respectivamente. Em Caramuru, sua forma só existiu em função do
diálogo criativo exercido pelos autores, cuja opção foi enfatizar nestas histórias, um
amor sem contradições e aventuras que beiram ao grotesco.
Nossa conclusão é de que os autores não primaram pela manutenção dos
esforços daqueles que os antecederam ao não valorizar na história da minissérie, a
busca por uma criação “independente” e “antiimperialista”. Estiveram menos
preocupados com as questões históricas do que com “a auto-expressão autoral” ou a
“sofisticação do consumidor”, o que é lembrado por Rubem Alves, no texto Mares
Pequenos Mares grandes (para começo de conversa), referindo-se ao sentimento
de estranheza causado nele, ao assistir o filme ET. Igualmente, também o sentimos
ao ver Caramuru, a invenção do Brasil retratando nossa história de forma tão banal
na TV e no cinema, levando-nos a questionar: será que estamos na contramão da
História?
53
CAPÍTULO 2
O GROTESCO EM CARAMURU: FATOS E VERSÕES
“A coletividade dos que riem é a paródia da humanidade”.
Theodor Adorno
2.1.As celebrações como forma de consumo
Em 2001, Caramuru, a invenção do Brasil, encerrou o período das celebrações
dos 500 anos do Brasil. Ou seja, o filme é parte de algo muito mais amplo e que foi
pensado para possibilitar às pessoas uma maior compreensão do significado, ainda
que simbólico, de como tudo começou. Um marcante sinal de transição de um século
para outro, mas também o de uma cultura de mercado para uma cultura globalizada,
ou seja, uma cultura mundo, imprimindo ao mesmo tempo as marcas da entrada da
nação não só num novo período, mas também a da necessidade que ela possui de,
tempos em tempos, se voltar ao passado para ali, confirmar sua identidade, ainda que
para isso a forma utilizada seja a mídia.
Deduzimos disso que em meio a toda ordem de tecnicidade em que se vêem
envolvidas pelas celebrações, é possível que as pessoas sejam tomadas por um
sentimento pátrio que, de certa maneira, reflete o seu lado “cívico” - ainda que em
outras instâncias cotidianas este sentimento seja pouco externado. Esta questão
relacionada ao papel desempenhado pelo cidadão é muito bem destacada por Néstor
García Canclini (1997), que o observa sob a ótica das relações de consumo num
universo cada vez mais conflituoso e multicultural em que a perda de identidades
54
vem sendo cada vez mais impulsionada pela globalização enquanto nova ordem
econômica mundial. Sua análise pressupõe o uso do bom senso nas relações de
consumo, já que crê que o “consumo serve para pensar” (Canclini, 1997, p. 57).
30
Se as comemorações dos V Centenário tivessem sido aproveitadas para pensar,
talvez conseguíssemos ter clareza do que de fato estava-se celebrando. Porém,
tivemos a sensação de que o significado de toda essa simbologia festiva, de toda a
reatualização desempenhada por ela, não é bem compreendida pela sociedade, já que
ganha toda essa dimensão somente a cada 100 anos. Com isso, deduzimos que na
atualidade, o sentido das celebrações se torna vivo entre as pessoas pela possibilidade
impostas pelo consumo tanto nos eventos como dos produtos desenvolvidos para a
ocasião em que são suscitados. Caso contrário, funcionaria uma outra lógica: a de
uma participação mais ampla e efetiva da sociedade. De acordo com Canclini,
“devemos admitir que no consumo se constrói parte da racionalidade integrativa e
comunicativa de uma sociedade
31
ainda que percebamos o predomínio, no momento
atual, de certo “esgotamento dos paradigmas que organizavam a racionalidade
histórica moderna” (Canclini, 1997, pp. 56-57). O esgotamento desses paradigmas
32
é também analisado por Muniz Sodré (1999) ao indicar que eles passam pela
comunicação, já que as relações sociais com ela estabelecidas forneceriam o
“pretexto contemporâneo para a abordagem do pensamento da força do simbólico e
da linguagem na constituição da identidade dos sujeitos sociais”. Assim, a
comunicação pode ser considerada como um “ponto de convergência de instâncias
30
Sob este assunto recomendamos a obra do autor. Canclini, Néstor García. Consumidores e
cidadãos; conflitos multiculturais da globalização. Tradução de Maurício Santana Dias e Javier Rapp.
Rio de Janeiro : Editora UFRJ, 1997.
31
Grifo do autor.
32
Tomamos aqui, por paradigma, o mesmo conceito adotado por Muniz Sodré, segundo Thomas
Kuhn, para quem paradigma, designa o “conjunto de crenças comuns, partilhadas por pesquisadores
ou cientistas a respeito de um determinado fenômeno”. Sodré, Muniz. Reinventando a cultura: a
comunicação e seus produtos. Petrópolis : Rio de Janeiro, Vozes, 3ª ed., 1999, p. 35.
55
diversas, sintoma de uma crise da estabilidade paradigmática” (Sodré, 1999, p. 35).
Desse modo fica claro que de tão popular que foi tornada as celebrações do
descobrimento e todo o seu entorno organizativo, pouco espaço sobrou para as
reflexões, uma vez que o cinema, a televisão e os jornais tornaram-se tão ou mais
importantes que o próprio festejo. Segundo Canclini, apesar de toda a organização
festiva para um evento de tal porte, eles deveriam ser pensados e ordenados de uma
maneira racional, visando sempre àquilo que é desejado socialmente e não
simplesmente o consumo de seus substratos em si, já que “consumir”, de acordo com
ele, “é tornar mais inteligível um mundo onde o sólido se evapora” (Canclini, 1997,
p. 59). Quanto a isso ele acrescenta:
Por meio dos rituais, dizem Mary Douglas e Baron Isherwood, os
grupos selecionam e fixam - graças a acordos coletivos - os significados
que regulam a sua vida. Os rituais servem para “conter o curso dos
significados” e tornar explícitas as definições públicas do que o consenso
geral julga valioso. Os rituais eficazes são os que utilizam objetos
materiais para estabelecer o sentido e as práticas que os preservam.
Quanto mais custosos sejam esses bens, mais forte será o investimento e
a ritualização que fixa os significados a eles associados. Por isso eles
definem muitos dos bens que são consumidos como “acessórios rituais”,
e vêem o consumo como um processo ritual cuja função primária
consiste em “dar sentido ao fluxo rudimentar dos acontecimentos”
(Douglas, M., Isherwood, B. El mundo de los bienes. Hacia una
antropología del consumo. México: Grijalbo-CNC, 1990, p. 80 apud
Canclini, 1997, pp. 58-59).
Apesar do paradoxo, celebrações como a do V Centenário do Brasil são
exemplos do tipo de percepção de senso comum entre os povos, no qual é até
possível o resgate de determinados valores simbólicos relacionados aos mitos de e
lendas de suas respectivas identidades. Por isso Canclini compreende ser necessário
que a sociedade se organize racionalmente para transformar em linguagem e bens
acessíveis, alguns dos significados simbólicos que as identifique.
56
Uma forma de como a identidade pode ser obtida por meio do passado e do
futuro diante do presente são exatamente as celebrações. Para citar um exemplo, nas
festividades de encerramento de final de ano é bastante comum que se instaure uma
espécie de ritual em que as pessoas irmanadas umas com as outras, preparam corpo e
alma para novos ciclos de promessas, desafios e recomeços por meio de uma análise
do passado, do presente e do que almejam em seu futuro. Tal situação é muito bem
demonstrada por Mircea Eliade (2001), ao descrever a essência das religiões em O
sagrado e o profano. Em sua contribuição, acrescenta que a tradição de celebrar não
pertence ao nosso tempo atual, mas que ela vem de longe e está ligada especialmente
ao tempo em que os homens buscavam imitar os deuses, para assim, se aproximarem
deles ao mesmo tempo em que reavivavam seus mitos, marcando a passagem “do
Tempo profano ao Tempo sagrado”. Assim, ele destaca a importância de
reatualização de determinados rituais para as sociedades “arcaicas”:
Seja qual for a complexidade de uma festa (...), trata-se sempre de
um acontecimento sagrado que teve lugar ab origine e que é, ritualmente,
tornado presente. Os participantes da festa tornam-se os contemporâneos
do acontecimento mítico. Em outras palavras, “saem” de seu tempo
histórico - quer dizer, do Tempo constituído pela soma dos eventos
profanos, pessoais e intrapessoais - e reúnem-se ao Tempo primordial,
que é sempre o mesmo, que pertence à Eternidade (Eliade, 2001, pp. 77-
79).
Com isso, enxergamos duas situações. A primeira, considerada sob o atual
momento cultural em que as técnicas têm a propriedade de transformar-se em meios
que alteram a percepção que as pessoas têm do mundo ou de situações específicas -
como no caso das celebrações -, conferindo assim, um olhar diferente sobre a
realidade. Ao se colocarem desta forma, tanto as técnicas como as mídias que dela se
utilizam, tornam-se os meios (suportes) para transmissão da própria ideologia
57
capitalista, na qual o consumo passa a ser um “processo em que os desejos se
transformam em demandas e em atos socialmente regulados” (Canclini, 1997, p. 59).
A segunda situação vislumbrada por nós é observada pelo prisma tanto de
Canclini quanto de Muniz Sodré (2001). Canclini (1997, p. 65) analisa que os
cidadãos também mudaram suas condutas e não somente as suas relações de
consumo com os mercados. Com isto enfatiza que houve certa diminuição da
participação da vida pública e um aumento, em contrapartida, do “retiro familiar da
cultura eletrônica”, como forma de explicar o desinteresse pelas questões políticas:
“não obstante, esta transformação das relações entre o público e o privado no
consumo cultural cotidiano representa uma mudança básica das condições em que
deverá se exercer um novo tipo de responsabilidade cívica” (Canclini, 1997, p. 65).
Assim, pela forma feroz (externada anteriormente como canibalesca), nenhum
pouco polida e altamente interesseira com que age o mercado e a própria indústria
cultural de massa (bem como as mídias), é liberado um cenário lúdico e convidativo
ao lazer e ao entretenimento, no qual “o consumo tornou-se um lugar onde
freqüentemente é difícil pensar” (Canclini, 1997, p. 65). O “retiro familiar” e o
“culto” aos meios eletrônicos, especialmente a TV, dão lugar assim, à ausência de
criticidade do “real”, de uma participação social efetiva e de uma maior compreensão
política de determinadas situações pelos quais os consumidores “ascendem à
condição de cidadãos”. Entendido desta forma, o consumo e as relações por ele
impostas devem servir a diversas situações, dentre as quais o envio e o recebimento
de mensagens.
Sob o mesmo ponto de vista - o que atualmente coloca a família prostrada
frente aos meios eletrônicos -, Muniz Sodré (2001) analisa a força da mídia televisiva
58
e seus esforços frente a conquista de audiência, com um amplo apelo tanto à sua
tecnicidade quanto aos conteúdos desprovidos de valores sólidos
33
. De seus aspectos
técnicos e variados o que mais se pode dizer é sobre a sua forma de simular
operacionalmente o mundo. No entanto, com a nova ordem econômica imposta pela
globalização, um de seus maiores efeitos torna-se cada vez mais manifesto: a
“tendência de apagar diferenças individuais”, ou melhor, a “desindividualização do
sujeito através da linguagem uniformizante do consumo e da socialização autoritária,
nos moldes do status quo”, reforçada pela livre escolha: “antes, a escolha política;
agora, a de consumo” (Sodré, 2001, pp. 55-56). A forma pela qual a televisão se
utiliza para se dirigir ao indivíduo, de acordo com Sodré, é a função fática, que visa
manter ou sustentar a comunicação entre falante e ouvinte. Assim, ele explica:
Na tevê, para simular contato íntimo com o espectador, a função
fática tem de se apoiar na família
34
como grupo-receptor necessário. É
bom esclarecer: o que importa não é este ou aquele membro da família
em particular (a mãe
35
, por exemplo), mas a família como idéia, em seu
caráter de instituição onde predominam relações primárias do tipo cara-a-
cara (terminologia de Cooley) e princípios morais específicos (Sodré,
2001, p. 57).
Assim, o consumo de bens simbólicos exemplificado aqui com as celebrações
dos 500 anos do Brasil e com os produtos midiáticos encomendados pela Rede Globo
para o mesmo período, somente poderá ser um lugar de valor cognitivo, “útil para
pensar e agir”, como nos diz Canclini, ao vinculá-los às práticas de cidadania. De
outra forma, não terão outro valor que o propiciado pelo status de meras
33
Apesar de nossa análise se debruçar sobre um objeto fílmico, sua existência é decorrente de um
produto televisivo, a microssérie A invenção do Brasil. Assim, sempre que houver necessidade,
teceremos comentários sobre o papel desempenhado pela TV enquanto expressivo meio de
comunicação de massa.
34
Grifos do autor.
35
Em nota, o autor informa que os técnicos em marketing e em análise de comportamento do
consumidor “costumam orientar a programação de tevê em função da dona-de-casa, uma vez que ela é
hoje, o pólo ativo de consumo no lar. Mas, do ponto de vista semiológico (relativo à produção de
significações), é a instituição familiar, como um todo, que deve ser considerada”.
59
mercadorias. Com isto, queremos dizer que, por ser parte integrante das celebrações,
a microssérie A invenção do Brasil e, posteriormente o filme Caramuru, a invenção
do Brasil, uma vez tornados produtos de consumo de mídia, criados e localizados
num determinado momento, ao invés do resgate da lenda de “Caramuru”,
personagem real de nossa História e o mito da formação do Brasil, em nosso
entendimento, banalizou-a em ambas as produções.
Para entender como ocorre essa banalização, vamos analisar o objeto fílmico
que materializa a lenda, sob o ponto de vista do padrão estético da obra, que em
nosso entendimento, beirou ao grotesco causando uma espécie de “rebaixamento”
típico da forma de identificação deste fenômeno como veremos adiante - e de onde
parte outro interesse: sua análise como categoria estética.
2.2.O grotesco como categoria estética, fenômeno, gênero e espécie
Para melhor entender o que configura um padrão estético, nos vimos
compelidos a pesquisar sobre esta questão. O adjetivo estético provém do grego
aisthetikós”, e significa “sensível, sensitivo” e é “relativo à estética, ao sentimento
do belo”, ou seja, “que tem características de beleza, harmonioso” (Ferreira, 2004, p.
581). O tema é analisado por Muniz Sodré e Raquel Paiva em O império do grotesco
(Sodré e Paiva, 2002), obra que tomamos aqui por base e na qual os autores
observam a existência de diferentes tipos de padrão artísticos e estéticos, que viriam
ao longo do tempo a designar o que é belo ou não conforme a visão grega. De acordo
com eles teria sido o pensador alemão Baumgarten, o “inventor da palavra estética”
60
interpretada por ele como uma “ciência do modo sensível de conhecimento de um
objeto”. Porém, somente a partir da Modernidade, é que “o belo converte-se em
valor apenas estético com Kant, ao refletir um objeto de prazer universal e
desinteressado” e não necessariamente o “mau” ou aquilo que é “feio”, ou seja:
O feio (...) não é um simples contrário do belo, porque também se
constitui em um objeto ao qual se atribui uma qualidade estética positiva.
Ou seja, se retirarmos do belo um traço positivo que o constitui como tal
(por exemplo, a proporção ou a harmonia), não produzimos
automaticamente o feio. Esta última qualidade tem seu modo específico
de ser, requer uma produção particular, que não é o puro negativo do belo
(Sodré e Paiva, 2002, p. 19).
36
Assim, Baumgarten e Kant tinham em comum o fato de conceberem o gosto
estético como o “lugar de uma abertura especulativa”. Isso explica o porquê “um
objeto pode causar repulsa ou estranhamento do gosto e não ser necessariamente
feio”. Este sentido está associado ao que se compreende por categoria estética. Por
sua vez, uma categoria estética está associada à noção de gosto e responde tanto pela
produção e estrutura de uma obra quanto pela “ambiência afetiva do espectador”, na
qual esse gosto é desenvolvido. Ao espectador, portanto, a partir desta noção é dada a
“faculdade de poder julgar ou apreciar objetos, aparências e comportamentos”. E são
esses julgamentos relacionados a noção de gosto, que desde o início da modernidade
européia, vêm sendo entendidos como operadores das motivações estéticas, morais e
sensoriais e estão incutidas sob o conceito de “subjetividade livre e autônoma”.
Porém, de acordo com Sodré e Paiva, três planos concorrem e imbricam-se para
definir uma categoria estética: “a criação da obra, seus componentes e os efeitos de
gosto que ela provoca junto ao contemplador”, e o que, efetivamente, constitui uma
36
Grifos dos autores.
61
categoria estética são elementos como o “equilíbrio de forças”, “reação afetiva”,
“valor estético” e “trânsito estético” (Sodré e Paiva, 2002, p. 34).
Do primeiro, o equilíbrio de forças, participam os elementos que interagem e
operam numa obra, com a função de equilibrá-la ou desequilibrá-la. Assim: “O
trágico, por exemplo, supõe um equilíbrio especial entre o movimento de autonomia
da personagem e a inexorabilidade do Destino”. Já a reação afetiva relaciona-se
diretamente com o espectador e a natureza das emoções que uma obra pode vir a
provocar nele. Exemplo: “piedade e horror (trágico), riso (cômico), espanto e riso
(grotesco) e assim por diante”. No que tange ao valor estético, suas bases são
resultantes do equilíbrio e da atmosfera afetiva da obra (seu ethos) que desencadeará
uma reação no espectador, levando-o a um julgamento de valor de maior ou menor
grau de intensidade, portanto, aqui a obra é julgada qualitativamente. Finalmente o
último elemento, diz respeito ao trânsito estético que é caracterizado pelo trânsito
entre diferentes formas de expressão simbólica. Isto confere autonomia às obras, isto
é, permite com que o valor a ela atribuído em uma categoria não se limite a uma
única modalidade de realização: “O cômico, por exemplo, pode fazer-se presente
num texto, num desenho, numa peça teatral, etc; o grotesco pode acontecer numa
pintura, num romance, num filme, na vida real e assim por diante” (Sodré e Paiva,
2002, pp. 34-35).
A explicação sobre a categoria estética e a forma como ela se relaciona com a
noção de gosto numa obra, tornam mais claro, então, os motivos que levam o
espectador a sentir afeição ou não a um objeto, a ponto de ele causar estranhamento
do gosto ou repulsa sem que venha a ser categorizado como algo feio. E é justamente
62
por esta qualidade que sua manifestação é denominada de grotesco
37
, “um tipo de
criação que às vezes de confunde com as manifestações fantasiosas da imaginação e
que quase sempre nos faz rir”, e que é presenciado tanto na “Antigüidade e nos
tempos modernos” (Sodré e Paiva, 2002 p. 19). Como veremos mais adiante, desde
aquela época o grotesco não se aplica apenas à obra de arte:
(...) como categoria estética, participava igualmente da estesia
social ou do “sensível”, entendido como faculdade humana de sentir (do
latim sentire, tradução do grego aisthanomai) que, de maneira positiva,
afeta e repercute em nós. Desta faculdade, vem a palavra estética (Sodré
e Paiva, 2002, p. 37).
38
Os autores citam Jan Mukarovsky, considerado segundo eles, um “expoente do
Círculo Lingüístico de Praga nos anos 30”, que sublinhou que “a arte não é
naturalmente a única portadora da função estética: qualquer fenômeno, qualquer fato,
qualquer produto de atividade do homem pode tornar-se signo estético”
(Mukarovsky apud Sodré e Paiva, 2002 p. 38). Com isso o grotesco também toma
forma em nossa fala, primeiramente a partir de sua definição e, posteriormente, do
encontro de determinados elementos grotescos detectados em certas cenas do filme,
que serão contrastadas com alguns trechos dos textos em que também foi baseado,
para posteriormente, fazer frente a outros escritos sociológicos sobre o
descobrimento e o processo de colonização do “Novo Mundo”.
Assim, buscamos diversas leituras para compreender o fenômeno já que ele
possui também variadas acepções. No dicionário, descobrimos que o termo grotesco
provém do italiano e significa aquilo ou aquele que suscita o “riso ou escárnio;
ridículo”, como também pode ser a “qualidade ou caráter daquilo que é ridículo”
37
Os autores informam haver variações do grotesco (apresentaremos algumas situadas no filme), daí
classificá-lo como “maneirista”, isto é, típica do espírito daquele “estilo de transição entre a arte
renascentista e a propriamente barroca, apontado pelo crítico Arnold Hauser como a ‘expressão da
crise que convulsiona toda a Europa ocidental no século XVI’” (Sodré e Paiva, p. 26).
38
Grifo dos autores.
63
(Ferreira, p. 703). Para Muniz Sodré e Raquel Paiva, na cultura moderna, o termo
pode ser entendido como:
(...) a sensibilidade espontânea de uma forma de vida. É algo que
ameaça continuamente qualquer representação (escrita, visual) ou
comportamento marcado pela excessiva idealização. Pelo ridículo ou pela
estranheza, pode fazer descer ao chão tudo aquilo que a idéia eleva alto
demais (Sodré e Paiva, 2002, p. 39).
Em Caramuru, a invenção do Brasil, situamos o fenômeno tanto na narrativa
quanto em sua parte documental, como veremos mais adiante. Sua importância pode
também ser detectada ao longo da história, já que sua manifestação provocou
interesse em diferentes personalidades. Conforme os autores, o precursor teria sido
Victor Hugo, que o concebeu ora na forma de conceito ora na de imagem e para
quem, no século XIX, grotesco era entendido como “o cômico, o feio, o monstruoso,
a palhaçada, mas, sobretudo, um modo novo e geral de conceber o fato estético, pois
termina irrompendo em qualquer lugar onde aconteça a produção simbólica” (Sodré
e Paiva, 2002, p. 44). Depois dele a questão do grotesco só retornaria a ser pauta de
interesse após a Segunda Grande Guerra com as obras A Cultura Popular na Idade
Média e no Renascimento - o contexto de François Rabelais, de Mikahil Bakhtin e O
Grotesco, de Wolfgang Kayser
39
. Mesmo considerando as distâncias temporais das
duas obras, elas se inserem no “movimento geral de renovação do pensamento
estético no século vinte” (Sodré e Paiva, 2002, p. 54). Kayser é movido para a análise
do grotesco após contemplar quadros de Goya, Velasques, Bruegel e Bosh, ao visitar
o Museu do Prado, em Madri, o qual se interpela sobre a definição de grotesco,
deixada em “estado de suspensão desde o século dezenove”. O impacto causado com
39
Tomamos aqui Bakhtin e Kayser pela relevância externada na obra que lemos. No entanto, Muniz
Sodré e Raquel Paiva citam que o fenômeno do grotesco provocou interesse também em Montaigne,
Justus Möser e em críticos literários como Théophile Gautier e Baudelaire. Por sua característica
marcante, pôde ser identificado, exemplificadamente, em análises das obras de Shakespeare,
Nietzsche e Schopenhauer.
64
as obras vistas causou nele uma espécie de perturbação que fez com que designasse o
grotesco como algo “feito desarticulado e estranho”. Para ele “(...) trata-se da
constante supratemporal de algo negativo, mas tragicômico, algo que se repete ao
longo da História, embora sob formas diferentes” (Sodré e Paiva, 2002, p. 55).
Embora o grotesco tenha sido apresentado e considerado como uma categoria
estética somente no século XIX, o período retratado no filme Caramuru, a invenção
do Brasil, foi antecedido pelas manifestações artísticas do próprio fenômeno. Em
Portugal, por exemplo, ele chegou a também ser conhecido por “brutesco” e era
presenciado nas obras de artesões ou artistas populares, em especial “a partir do
século dezessete, quando começam a ser utilizadas composições livres”, sendo o
principal suporte utilizado, o azulejo. Nele o grotesco exerceu importante função,
pois utilizou simbologias pagãs para ornamentar “os frontais de igrejas oitocentistas”
e com isto manifestar no espaço ritualístico da missa uma espécie de “transgressão da
rigidez canônica naquele tempo”. Por esta via, cremos ter esclarecido mais uma
característica relacionada ao grotesco: a quebra de padrão, ou seja, uma ocorrência
que ficou marcada especialmente na antiguidade clássica tanto nas obras de arte
como em narrativas míticas. “Desse modo, pode-se localizar o grotesco em quase
tudo aquilo que os gregos enfeixavam na expressão paraskópten pollá, isto é, as
brincadeiras escatológicas, as obscenidades, os ditos provocativos, capazes de
suscitar o riso” (Sodré e Paiva, 2002, pp. 35-36).
Retomando um pouco a análise, segundo os autores, Kayser via que os planos
constitutivos desta categoria estética tinha a peculiar vantagem de “surgir na visão de
quem sonha, de quem devaneia, de quem exprime uma visão desencadeada da
existência, assimilando-a como um jogo de máscaras ou uma representação
65
caricatural”. Com isso identificamos o primeiro plano que o constitui: a criação. O
segundo, é o plano da composição, no qual o grotesco é expresso segundo a
monstruosidade que pode destacar por meio de formas humanas, animais, vegetais ou
mesmo maquínicas, fazendo destes traços uma constante ênfase de sua existência
numa obra. Para além das formas monstruosas ou “aberrações” que o fenômeno
venha a provocar, ao terceiro e último plano pertence o efeito. Assim, dentro de um
contexto de uma obra ele pode provocar o sentimento de “medo ou de riso nervoso,
para que se crie um ‘estranhamento’ do mundo, uma sensação de absurdo ou de
inexplicável” correspondente ao grotesco (Sodré e Paiva, 2002, pp55-56).
Já a teoria de Bakhtin é vista como complementar à do antecessor que
analisamos, diferindo-se essencialmente, no que tange à sua reinterpretação, pois,
Bakhtin entendia que o “paradigma neoclássico, a partir do qual se constituiu a
reflexão estética no Ocidente, cognitivamente era incapaz de apreender
adequadamente o grotesco”, enquanto Kayser, “limitou-se aos produtos da cultura
oficial”. Na visão de Bakhtin, as bases do grotesco inspiravam-se “na criatividade da
cultura popular, desde as festas até as formas conviviais das camadas sociais rústico-
plebéias”. Daí o seu interesse em concentrar-se no “realismo grotesco” como
principal categoria analítica, realizando grande ênfase de estudos sobre o carnaval,
entendida como espetáculo e “uma espécie de manifestação transgressora das
fronteiras convencionais” extensivas à vida social.
Na verdade, para ele, só a ligação com a cultura popular é que dá
margem ao correto entendimento do fenômeno, uma vez que concebe o
corpo grotesco como um corpo social, cujo princípio será contido “não
no indivíduo biológico, não no ego burguês, mas no povo, um povo que
está continuamente crescendo e se renovando” (Sodré e Paiva, p. 58).
66
Portanto, para ele, o carnaval foi a maior fonte de inspiração por ser
considerado uma espécie de submundo, cujas regras opunham-se à seriedade da
cultura oficial. Nessa espécie de rebaixamento, que consiste em “aproximar as coisas
da terra”, Bakhtin enxergava a presença do grotesco por meio da manifestação
popular. Sua materialização se dava então, sob a forma do espetáculo e as análises
acerca do fato, eram representadas na obra de François Rabelais, estudada por ele.
“A partir da modelagem carnavalesca, entende-se por que o grotesco subverte as
hierarquias, as convenções e as verdades socialmente estabelecidas” (Sodré e Paiva,
2002, p. 59).
Porém, do ponto de vista da forma discursiva, o grotesco deve ser entendido
como genericamente “representado” e como algo “atuado” (vivido). Assim, sua
forma de representação, segundo os autores, pode ser enquadrada em cenas ou
situações pertinentes aos diferentes tipos de comunicação indireta, dos quais utiliza
a diversidade de suportes existentes. Ou seja, se o suporte for escrito, ele pode ser
encontrado na literatura ou na imprensa; se for imagístico, na pintura, na escultura,
na arquitetura, no desenho, na fotografia, no cinema e na televisão. Porém em sua
forma de atuação há uma variedade de situações de comunicação direta, em que
também pode ser vivenciado. A natureza grotescamente externada, poderá ser
enquadra em uma das seguintes categorias: (i) espontânea, (ii) encenada ou (iii)
carnavalesca. Se enquadrar-se na primeira categoria (i), tratará de apresentar
“episódios ou incidentes da vida cotidiana, geralmente expostos na mídia, que
apontam para o rebaixamento espiritual ou a irrisão (absurdos da realidade,
disparates levados a sério, o ridículo advindo do exagero, etc)”. Caso seja de
natureza encenada (ii), pode ser encontrado atualmente nas paródias teatrais e
67
cinematográficas e é caracterizado pela similaridade com os jogos cênicos
interpretados na Commedia dell’arte” tendo, por este motivo, a peculiaridade de
conquistar a adesão e a cumplicidade do público por meio de gestos corporais
rísíveis
40
. “O grotesco encenado é também típico dos antigos heróis rústicos e
grosseiros do velho teatro popular, assim como dos enredos das farsas e entremezes
características das trupes ambulantes”. Já na última hipótese (iii), sua manifestação
pode ser notada em “ritos e festas regidos pelo espírito carnavalesco e circense,
desde festejos populares até o Carnaval propriamente dito”.
De acordo com Muniz Sodré e Raquel Paiva, mesmo em sua forma
representada ou atuada é passível que o grotesco assuma também modalidades
expressivas diferentes, ou seja, “espécies”, dentre as quais destacamos aqueles em
que tanto a televisão como o cinema brasileiros, são pródigos em exemplos. São eles:
1) Escatológico - Trata das situações escatológica ou
coprologicamente caracterizadas, por referência a dejetos humanos,
secreções, partes baixas do corpo, etc.; (...)
2) Teratológico - São as referências risíveis a monstruosidades,
aberrações, deformações, bestialismos, etc.; (...)
3) Chocante - Seja escatológico ou teratológico, quando voltado
apenas para a provocação superficial de um chope perceptivo, geralmente
com intenções sensacionalistas, o fenômeno pode ser classificado como
grotesco chocante”, e;
4) - Crítico - Neste caso, o grotesco dá margem a um
discernimento formativo do objeto visado. (...) É, assim, um recurso
estético para desmascarar convenções e ideais, ora rebaixando as
identidades poderosas e pretensiosas, ora expondo de modo risível ou
tragicômico os mecanismos de poder abusivo. (...) Lúcida, cruel e risível
- aqui estão os elementos da chave para o entendimento da crítica
exercida pelo grotesco (Sodré e Paiva, 2002, pp 68-72).
Por fim, entendemos que o grotesco fica caracterizado em nossos estudos de
acordo com as diversas convenções em que ela se apresenta: como categoria estética,
40
No trecho que analisamos, há uma cena que nos remete diretamente a esta característica, quando na
companhia de Vasco, já na Europa, e sendo re-introduzido à corte, Caramuru, escuta a carruagem que
traz Isabelle e corre para recepcioná-la, sendo advertido pelo suposto amigo para que ande “devagar”.
68
fenômeno, gênero e espécie. Com base nisso, nossa percepção foi de que os autores,
ao se apropriarem de um modelo tão amplo e diverso em sua forma de manifestação
talvez não tivessem se dado conta de sua importância. Por isso, levando em
consideração as análises realizadas até agora, cremos que num momento de
celebração nacional ao “recriarem” a história do descobrimento do Brasil, para a
televisão e para o cinema, Guel Arraes e Jorge Furtado foram tomados por duas
preocupações: a primeira relativa ao dever de ofício já que a obra havia sido
encomendada e, portanto, associada à relação de poder hegemônico exercido pela
Rede Globo; a segunda, pela possibilidade de, em mais uma obra, impingir o sucesso
de bilheteria tão tipicamente manifestada em assinaturas anteriores dos próprios
autores (especialmente Guel Arraes) com o gênero comédia, além de toda sorte de
possibilidades que este gênero permite numa encenação dramática. Por isso,
seguiremos com o estudo dos gêneros para, posteriormente, adentrar propriamente na
comédia, presente no filme Caramuru, a invenção do Brasil.
2.3.Os gêneros como pano de fundo dramático das obras encenadas
Tratar dos gêneros não é uma tarefa fácil haja vista as inúmeras interpretações
que têm os estudiosos acerca do assunto, especialmente dentro das categorias
artísticas de encenação como ocorrem no teatro, na TV e o cinema. A forma como
estas categorias são identificadas por roteiristas, diretores, bem como pelos críticos e
espectadores de produtos midiáticos de encenação provém de longa data e, se
dividem comumente em: melodrama, tragédia, comédia e farsa. Nesta análise
69
trataremos do gênero comédia, já que este é o gênero dramático que se manifesta em
todo o percurso da narrativa de Caramuru, a invenção do Brasil e que é identificada
por “comédia romântica”. Porém, daremos uma sucinta abordagem quanto à
manifestação dos demais estilos de encenação, já que, não raras vezes, dentro de um
mesmo filme e numa determinada situação narrativa, é possível que alguns destes
gêneros sejam alternados por opção dos roteiristas, justamente para conferir à obra
um efeito mais preciso daquilo que se deseja externar quanto ao papel desempenhado
por um ou mais personagens. Portanto, como identificamos esta situação convergente
também no filme, faremos alusão a alguns trechos do roteiro para melhor ilustrar o
fato. Neste exercício, optamos por tomar a análise do ponto de vista do roteirista. Ao
fazer esta opção, estamos trabalhando com a metodologia utilizada para a elaboração
de roteiros, que é muito difundida em manuais desta natureza. A obra que seguimos é
intitulada Manual de Roteiro, ou Manuel, o primo pobre dos manuais de cinema e
TV, de Leandro Saraiva e Newton Canitto (2004), que serviu de “apoio a um curso de
roteiros que usava a série ‘Cidade dos Homens’ (...)”, diz Fernando Meirelles, no
prefácio da obra. Apesar do título pitoresco, o livro é detentor de um rico conteúdo e
também bastante esclarecedor de todas as fases de elaboração de um roteiro,
servindo-nos essencialmente para maior compreensão dessa etapa que antecede a
produção de um filme. Portanto dedicamos este subcapítulo para tratar dos gêneros
dramáticos, em especial a comédia, inserida no contexto do filme Caramuru.
De acordo com os autores a televisão e o cinema brasileiros estão carregados
de exemplos clássicos em que cada uma das categorias dramáticas pode ser
encontrada. No entanto, entender como são classificadas, até hoje é uma questão
70
polêmica. Daí a explicação estar relacionada às épocas em que determinados
assuntos são analisados:
Cada época parece ter a necessidade de revisar tudo e fazer sua
própria teoria dos gêneros. Só esse gesto já é revelador, pois se as
questões são recolocadas, é porque as respostas herdadas soam
dissonantes aos ouvidos contemporâneos . (...) Fundamentalmente, dois
tipos de respostas surgem. A primeira aposta numa evolução da
percepção da história da cultura. Em perspectiva, o presente seria capaz
de uma nova síntese, superior às demais. A outra resposta é relativista:
cada época usa os conceitos de gênero a seu modo ‘recortando’ a
experiência em zonas de sensibilidade próprias (Saraiva e Canitto, 2004,
p. 81).
Para evidenciar ainda mais a problemática em torno do assunto, os autores
assinalam ainda as palavras de Martin Esslin, professor e diretor teatral, autor da obra
Uma anatomia do Drama, na qual se diz fascinado “pelos difíceis problemas da
definição dos gêneros e suas implicações estéticas e filosóficas”. Colocando-se na
posição de crítico, homem ligado ao teatro e diretor militante, ele diz encarar tais
problemáticas com “indiferença” já que é necessário que se decida “sobre o gênero
ao qual pertence a peça” que pretende realizar “não segundo algum princípio
abstrato, mas pura e simplesmente para saber o ponto de vista segundo o qual ela
deverá ser representada” (Saraiva e Canitto, 2004, p. 82). Esslin é tácito quanto à
influência e importância que tem a escolha do gênero para a condução final da obra:
A visão que terá o diretor daquele texto, encarando-o como
tragédia, comédia ou até mesmo como farsa, terá um efeito imediato e
extremamente objetivo no modo pelo qual conduzirá a produção: ela
influenciará a escolha do elenco, o desenho do cenário e figurinos, o tom,
o ritmo e o andamento do espetáculo. E, acima de tudo, o estilo no qual
ela será representada (Esslin, Martin. Uma anatomia do Drama. Rio de
Janeiro: Zahar, 1978, p. 75, apud Saraiva e Canitto, 2004, p. 82).
Desta forma, e mesmo assentindo com as possíveis mudanças ao longo do
tempo, preconizadas pelos autores, é sabido que no período atual, vivenciamos ao
mesmo tempo a constante influência das questões mercantilistas que interferem na
71
produção cultural. Com este fato, é possível que a maioria das obras acabe por ser
dimensionadas, tomando uma forma capaz de também interferir nas transformações
dos modelos e dos modos já preexistentes de produtos midiáticos. Em todo caso, a
produção artística de produtos ficcionais para a TV e para o cinema, segue algumas
tendências quanto aos gêneros dramáticos que até onde se tem conhecimento não
sofreram mudanças drásticas. Ainda que haja divergência quanto às conceituações ou
entendimento, na prática, o que externam, ou seja, seus efeitos no espectador, já
estão sedimentados, interiorizados. No geral, as mudanças às quais os autores
referem-se, levam-nos a crer que estejam mais associadas aos fatores culturais do que
tecnológicos, já que mudanças sutis no roteiro ou na direção proporcionam um efeito
diferenciado em uma cena aproximando-a em muitas vezes, do contexto e do
repertório vivenciado pelo espectador. Para exemplificar como os gêneros podem
sem compreendidos, de uma maneira bem simples, os autores sugerem:
(...) nosso sentimento da vida varia, às vezes até de um momento
para outro. Nossa condição de seres humanos não nos parece sempre a
mesma. Se pensarmos na mais básica e popular das diferenças,
poderíamos dizer que há otimismo e pessimismo e que comédia e
tragédia (alegria e tristeza, filmes alegres e filmes tristes, que acabam em
“happy end” ou nos fazem chorar) correspondem a essa dicotomia
(Saraiva e Canitto, 2004, p. 83).
Os gêneros podem ser percebidos conforme suas características. Assim, o
melodrama pode ser compreendido pelo fato de criar situações através da qual o
espectador compartilha com o protagonista sensações como “solidão e desamparo”.
Quando, por exemplo, ocorrem “complicações” no desenrolar da história,
aparentemente o “mundo” se contrapõe ao “herói” do melodrama “como um bloco
opaco, incompreensível e cruel que se abate sobre ele com a força cega e total de
uma tempestade”. Da mesma forma que o grotesco, o melodrama também é
72
considerado um fenômeno estético. No entanto, no melodrama esta estética é
exagerada: “(...) é um esforço para imprimir no mundo representado - ou seja, nos
olhos do espectador - uma espécie de ‘código moral em cores’, didático, assinalando
onde o Mal se oculta”. Por isso, o melodrama inserido numa história cheia de
peripécias e uma mise-en-scène de forte apelo visual conflui para impactar o
espectador, fazendo com que este envolva-se a tal ponto de sentir o “mesmo”
sofrimento do herói (o pathos)
41
. É desta maneira que o melodrama dá “o seu recado
moral”, pois tenta “tornar visível uma ordem moral num mundo aparentemente sem
sentido e caótico” e complementa o seu papel, movendo o espectador para junto da
vítima. Explicam os autores que “o crucial no melodrama é a afirmação da
superioridade moral do sofredor em relação à maldade e às ilusões do mundo”.
Não há jogo de pontos de vista, já que tudo e todos são “chapados”
pela identificação vitimizadora com o herói. A mise-en-scène é exageraa
porque o espetáculo busca as emoções do espectador, tentando criar um
elo imediato, sem recuos. Por isso não há espaços no melodrama para
procedimentos distanciadores. Tudo é drama, e drama reduzido a sua
essência: um homem contra o mundo (Saraiva e Canitto, p. 87)
Mesmo sendo o filme Caramuru uma comédia, nele a presença do gênero
melodrama pode ser encontrada em algumas situações. A título de exemplo, citamos
a cena, logo no início do filme, em que o personagem Diogo Álvares (Selton Mello),
a serviço da corte portuguesa como simples ilustrador de mapas é denunciado ao
cartógrafo D. Jaime (Pedro Paulo Rangel) por sua pseudo-amada Isabelle (Débora
Bloch), que promete a ele o seu amor, envolvendo-o numa cilada e fazendo com que
roube o mapa original da expedição de Pedro Álvares Cabral, para que o jovem
41
Ao discorrer sobre a categoria estética Muniz Sodré e Raquel Paiva informam: “quando Aristóteles,
expondo a sua teoria do ‘prazer próprio’ (hêdonê oikeia, capítulo dezesseis da Poética), fala de um
estado afetivo (um pathos), variável segundo a diversidade das obras-de-arte, que se deve à
organização interna dos elementos na criação do artista”. Sodré, M. e Paiva, R. O império do grotesco.
Rio de Janeiro, Mauad, 2002, pp. 33-34.
73
artista português (Diogo), nele a retratasse. Ela mesma o denuncia, enviando uma
carta ao “ofício de cartografia”. Com tal feito é preso, condenado, deportado e
entregue ao vilão D. Vasco (Luis Mello), amigo de Isabelle, que o conduzirá a um
destino até então, incerto. O texto abaixo, extraído diretamente do livro-roteiro da
obra, evidencia o melodrama que se estabelece no filme, a partir do que explicamos:
Casa de Diogo, Lisboa: Diogo acorda com batidas na porta.
Levanta-se e abre-a para Isabelle.
ISABELLE: Diogo Álvares? Vim me pôr à disposição do seu
gênio. (...).
DIOGO: Ah, dona Isabelle. Eu não vou lhe decepcionar. Farei a
senhora encarnada em Vênus, a deusa grega da beleza. Ela surge
inteiramente nua de uma concha do mar. Zefir, o vento do oeste, sopra
seus longos cabelos. E uma ninfa lhe estende o manto florido que cobrirá
sua magnífica nudez.
ISABELLE: Belíssimo. Mas você deve retratar o seu século. Sua
glória deve se associar às de Portugal, o quadro tem que abordar o grande
tema de hoje.
DIOGO: Os descobrimentos!
ISABELLE: Exatamente. (...)
DIOGO: Perfeito! A Vênus do Descobrimento, ilustrando o
próprio mapa! Vou buscá-lo no ofício onde trabalho.
Diogo saindo. (...) Diogo pára, volta.
DIOGO: Ai, meu Deus, que desgraça, isso não vai ser possível.
(...) Os mapas são secretos. Não posso mostrá-los a ninguém.
ISABELLE: Então eu me disponho a lhe mostrar meu maior
segredo e você esconde os seus?
DIOGO: São ordens do rei, marquesa. O que é que eu posso fazer?
Isabelle vai pegando a capa e saindo. (...)
DIOGO: Posso desenhar um mapa aqui mesmo, um que não fosse
conforme o original, um falso mapa?
ISABELLE: Para fazer imitações você não precisa de uma
verdadeira mulher. Peça à condessa de Sintra para despir-se e servir-lhe
de modelo. Ou então, use um bacalhau seco que dará no mesmo.
DIOGO: Espere! Eu trarei o mapa. Mesmo que eu tenha que
morrer, quero antes olhar para a verdadeira face da beleza.
ISABELLE: Eu vou lhe mostrar a face e todo o resto
Diogo sai.
74
Ofício de Cartografia: D. Jaime desenrola uma carta e percorre
seu conteúdo com os olhos.
Denúncia contra Diogo Álvares, artesão instalado no ofício
cartográfico real.
D. Jaime toma uma decisão.
Casa de Diogo, horas mais tarde: Diogo desenha a barriga de
Isabelle. (...)
Ruas de Lisboa: D. Jaime continua tomado pelas palavras que
acabara de ler...
O dito Diogo Álvares cometeu crime contra a Coroa ao furtar um
mapa do ofício cartográfico e escondê-lo em sua casa, onde se encontra
até esta hora, à rua das Cabras número seis. (...)
Rua das Cabras, Lisboa: O batalhão caminha e...
Assino e dou fé, Isabelle d’Avezac, marquesa de Sévigny. Lisboa,
ano da graça de 1500.
... pára diante da casa de Diogo.
Casa de Diogo: Diogo desenha o umbigo de Isabelle
DIOGO: Se aproxima o cabo da Boa Esperança.
ISABELLE: O maior de todos os feitos.
Ela deixa o vestido cair no chão.
DIOGO: Bartolomeu Dias! Posso até ouvir as batidas do meu
coração.
Alguém bate vigorosamente na porta.
D. JAIME: Abram em nome do rei.
ISABELLE: Fomos denunciados. (...) [Ela foge levando o mapa.
Deixa-o só, sem entender a farsa, para dar explicações ao D. Jaime].
Diogo vai sendo arrastado. [Ele é preso e levado à masmorra].
Masmorra real: Diogo, algemado, é escoltado pelos corredores de
uma masmorra. Neste momento corre a sentença de seu julgamento. (...)
75
Um palácio, Lisboa: Isabelle encontra Vasco. (...) Isabelle
desenrola o mapa.
ISABELLE: Nosso intrépido navegador! Como vão os
preparativos para a viagem?
VASCO: De mal a pior. Deram-me o comando da nau dos
degredados.
ISABELE: Console-se. Comigo sua sorte vai virar.
VASCO: Conseguiu o mapa?
ISABELLE: Vasco, o que você faria sem mim?
Isabelle desenrola o mapa. (...)
ISABELLE: A rota traçada foi bastante alongada. Basta devolvê-
lo a Cabral e ele dará um belo passeio pelo Atlântico antes de chegar às
Índias. Você segue o mapa original e chega primeiro.
VASCO: E onde está o mapa com a verdadeira rota?
ISABELLE: Em lugar seguro. Você o receberá quando já estiver a
bordo e não houver mais tempo para me trair. (...)
ISABELLE: (...). Quando todos estiverem embarcados, eu lhe
indico quem é, você confisca o mapa em nome do rei.
VASCO: E o falso mapa?
ISABELLE: Devolva-o ao Ofício de Cartografia, diga que o
comprou de uma espiã francesa. E não peça nada em troca. Sua
recompensa será o fracasso de Cabral.
Vasco pega o mapa.
Masmorra real: Diogo está deitado no chão da cela. A porta se
abre para Isabelle.
DIOGO: Dona Isabelle!
ISABELLE: Soube que tinhas sido degredado.
DIOGO: E a senhora onde estava?
ISABELLE: Fugi com o mapa assim que vi a guarda se
aproximar.
Isabelle mostra o mapa. [E o entrega a Diogo para que termine, a
pintura na viagem].
O carcereiro abre a porta encerrando a entrevista.
DIOGO: Espere-me Isabelle.
ISABELLE: Até o fim dos tempos.
DIOGO: Eu voltarei.
A porta se fecha.
76
Porto de Lisboa: Navios no porto em preparação para a partida:
velas içadas, amarras soltas, âncora recolhida. Diogo ajuda nos trabalhos,
quando ouve chamar seu nome.
ISABELLE (gritando): Diogo Álvares!
Diogo corre até a amurada da nau, vê Isabelle lá em baixo.
DIOGO: Isabelle!
ISABELLE: Nem um oceano sem fim pode separar nosso amor!
DIOGO: Nem mil oceanos!
ISABELLE: Guarde nosso segredo!
DIOGO: Junto ao meu peito! [indicando onde levaria o mapa].
Isabelle joga uma rosa que Diogo apanha no ar. Vasco se aproxima
e encosta uma adaga no pescoço de Diogo.
DIOGO: Sr. Vasco!
VASCO: Que cena romântica: uma rosa, uma dama, uma partida!
Cheire-a com gosto: onde vai elas não existem. Olhe-a bem, é a última
vez. Despeça-se de Portugal: vai ser para sempre. [Ele toma o mapa
verdadeiro de Diogo].
A frota de Cabral afasta-se do porto. (Arraes e Furtado, 2000,
pp.29-48).
No exemplo que transpomos do roteiro esta é a primeira seqüência em que
podemos considerar que o melodrama ocorre no filme, embora ao mesmo tempo
diagnosticássemos que todo esse percurso tivesse sido permeado de cenas cômicas.
Um outro gênero dramático muito empregado pelo cinema é a farsa. Saraiva e
Canitto (2004) dizem que Lumet considera-o “o equivalente cômico do melodrama”.
Tal qual o melodrama a farsa não se interessa pela unidade dramática. Seu
desenvolvimento é um contínuo desdobramento de um “mesmo sistema de forças,
mas uma sempre surpreendente sucessão de situações novas e arranjos”. Para os
autores, o princípio da farsa é “a surpresa que nos desconcerta e faz rir” e seu
objetivo, inversamente ao melodrama é o de “nos afastar de tal forma dos
personagens que toda dor que lhes seja infligida nos faça rir. O protótipo da farsa é o
mais que clássico escorregão na casca de banana”, sendo seu efeito geral, o
77
esvaziamento emocional do mundo. “O riso franco abole o ‘coração’”. De acordo
com os autores, há uma caricaturização do mundo assim como o que normalmente
encontramos nos desenhos animados, mas não somente pelos traços, mas,
principalmente pelo que denominam “princípio de irrealidade, em dois aspectos
cruciais”. O primeiro deles é a “inconseqüência”, pois geralmente não há tempo nem
chance para o prolongamento do sofrimento. Já o segundo aspecto crucial e bem
próximo do anterior, é a “abolição das regras deste mundo”, que torna tudo possível
no limite. “Na farsa, como diria Tom Zé, ‘geladeira já teve febre e penicilina teve
bronquite’”
42
. Assim, ao suspender o princípio da realidade, ela libera todos os
princípios que levam ao prazer dentro do gênero, de maneira amplamente exagerada,
dimensionando para mais toda tendência ao exagero sexual, violência e gozação.
Como todos os carnavais, a farsa se apóia em seus limites, na
quarta-feira de cinzas. O riso frouxo desata o nó das cordas que,
sabemos, sustentam o nosso mundo. Há uma dialética entre ordem e
desordem no cerne da farsa, não apenas filosoficamente (os estudos
antropológicos de carnavalizações
43
afirmam a função renovadora da
ordem dessas inversões festivas), mas na própria economia narrativa
(Saraiva e Canitto, 2004, p. 90).
Pelo que externamos, fica a farsa caracterizada por vários motivos que a
distingue, como gênero, por seu caráter oposto ao do melodrama, porém, assim como
o melodrama, a dialética farsesca cabe em qualquer situação, já que trabalha sobre os
defeitos humanos. No caso, o melodrama, atua sobre as maldades do mundo. Há na
parte intermediária do filme, logo após o degredo de Diogo, uma seqüência em que
Diogo, já no convés da caravela conhece um colega de viagem, Heitor (Diogo
42
Tom Zé é reconhecidamente um grande compositor de nossa Música Popular Brasileira. Esta frase é
um verso da música Jeitinho dela, gravada por ele, no ano de 1970.
43
Como exemplo de um estudo antropológico sobre o significado do carnaval, os autores citam:
DAMATTA, Roberto A. Carnavais, Malandros e Heróis. São paulo: Rocco, 1997; VAN GENNEP,
Arnold. Ritos de Passagem. Petrópolis: Editora Vozes, 1978. E nós, acrescentamos: SODRÉ, Muniz.
Samba, o dono do corpo. Rio de Janeiro, 2
a
. Ed., Mauad, 1998.
78
Vilella), comparado aqui a um “mochileiro” dos dias atuais e que vive para ser
condenado e degredado pela corte, criando com isso facilidades para saciar sua sede
de conhecer o mundo por meio destas “viagens” proporcionadas com seu degredo.
Diogo, desesperado, diz a Heitor que daria tudo para fugir da prisão a quem o recém
amigo sugere que ele vista-se de mulher, já que mulheres não eram permitidas à
bordo. A partir daí, uma enorme confusão ocorre. Vejamos o que se passa:
Porão da caravela (...)
DIOGO: Parece uma boa idéia, se eu tivesse um vestido.
Heitor abre um baú cheio de bugigangas: vestidos, espelhos,
colares, panelas. [Típico de quem sabe o que precisar em viagens].
HEITOR: Gosta de azul? Tenho também este vermelho, de
alcinha.
DIOGO: O azul está bom.
HEITOR: Combina com seus olhos... Vista que eu aviso o capitão.
Heitor sai. Diogo hesita entre o vestido azul e o vermelho.
HEITOR: Uma mulher! Uma mulher a bordo!
Correria, Vasco se aproxima.
VASCO: Onde?
HEITOR: Por aqui, capitão!
VASCO: Tem certeza?
HEITOR: Claro. Quem mais poderia estar usando um vestido de
musselina azul... (eles vêem Diogo com um vestido vermelho) digo,
vermelho de alcinha?
Diogo abaixa a cabeça, esconde-se por trás de um véu.
VASCO: Silêncio! Quem trouxe esta mulher?
HEITOR: Fui eu, capitão.
VASCO: Não sabe que é proibido, trazer mulheres abordo?
HEITOR: Sei, capitão. Está no código: artigo 12, parágrafo 3º.
VASCO: Terá sua pena dobrada.
HEITOR: Muito justo, capitão.
VASCO (para Diogo): E você me acompanhe. Será desembarcada
no primeiro porto.
DIOGO: Aceito a punição que me é devida.
79
Aposentos de Vasco: Vasco serve dois cálices de vinho, oferece
um a Diogo.
DIOGO: Obrigado, capitão, eu não bebo.
VASCO: Beba!
Diogo pega o copo e bebe sem tirar o véu.
VASCO: Já estamos há 15 dias no mar. Calcule o tamanho de
minha solidão.
DIOGO: Água fria é bom para acalmar os desejos.
VASCO: Se houvesse água. Não tomo banho há 15 dias.
DIOGO: Eu percebo.
VASCO: O que procurava a bordo?
DIOGO: Novidade, excitação, prazeres...
VASCO (se aproxima): Já encontrou.
DIOGO (esquivando-se): Controle-se, capitão. O senhor tem uma
esposa.
VASCO: Um monstro marinho é mais atraente.
DIOGO: Quando o senhor pretende me desembarcar?
VASCO: Espero que a senhora me perdoe o rigor com que está
sendo tratada.
DIOGO: Não se preocupe, eu sei que o senhor cumpre com seu
dever.
VASCO: Mas antes é necessário que eu me certifique que não
estou cometendo nenhuma injustiça.
DIOGO: Como assim?
VASCO: Eu preciso provar que a senhora é realmente uma mulher.
DIOGO: Ora capitão, o senhor não sabe reconhecer uma mulher?
VASCO: Claro que sei: as formas voluptuosas, as curvas, a
generosidade das carnes... a senhora cumpre todos os requisitos. Mas eu
preciso de uma prova definitiva.
DIOGO: Talvez eu possa cantar alguma romanza, ou executar
algum bordado...
VASCO: Será bem mais rápido se a senhora se despir.
DIOGO: Capitão!
VASCO: Minha senhora!
DIOGO: Eu sou uma moça recatada!
VASCO: Desculpe-me, não estou a agir como um cavalheiro.
Logo se vê que é uma dama: elas nunca querem se despir na minha
frente.
DIOGO (Mostra o mapa com o retrato de Isabelle.): O pintor
deste quadro teve mais sorte.
VASCO: Essa aí não conta. Já se mostrou assim para metade de
Lisboa.
DIOGO (se revelando): Como ousa difamar a imagem da pureza,
canalha?
80
VASCO: Ora, então, além de mentiroso e ladrão, também é um
invertido?
DIOGO: E parece que disso o senhor faz gosto!
VASCO: Morrerá pela ofensa.
DIOGO: A morte não será pena maior que viver naquele porão
infecto, apertado, imundo.
VASCO: Tem razão. (Para os guardas). Levem-no para o porão.
Diogo é arrastado para fora. (Arraes e Furtado, 2000, pp.49-57)
Desta forma atrapalhada ocorre todo esse diálogo, cujas cenas além de
amplamente exageradas, são também inconseqüentes e engraçadas. Diogo deixa de
usar um vestido e coloca o outro causando uma enorme confusão, até que o capitão
descobre a sua artimanha, momento em que dá início uma nova batalha na nau:
Diogo tem que explicar ao capitão Vasco o que significam determinados “borrões”
que ilustram o mapa da navegação já que começa uma grande tempestade e ele
precisa proteger a nau. Porém começa uma nova busca para o nosso herói: sobreviver
ao naufrágio, que ocorre logo nas cenas subseqüentes.
O terceiro gênero que vamos apresentar, sempre segundo Saraiva e Canitto
(2004), é a tragédia. A tragédia é composta pelo desenrolar implacável de uma
situação dramática que não permite solução. Tal como no melodrama, é possível que
um homem se veja sozinho, isolado do congraçamento social. Mas no universo da
tragédia, ao contrário, o destino não se abate sobre o personagem como uma sentença
de morte de maneira injusta. Ele tomará uma decisão, “de uma ação dramática” que
fará com que o destino se abata sobre ele. “Na tragédia, o personagem não sofre as
ações do mundo, ele age sobre o mundo. Passamos da voz passiva à voz ativa”.
Raymond Williams
44
explica que a tragédia, nas ficções atuais, é praticamente
inexistente, já que o uso desmedido e corriqueiro do termo “trágico” para “acidentes”
44
WILLIAMS, Raymond. Tragédia Moderna. São Paulo, Cosac & Nayf, 2002.
81
comuns (como os de trânsito, por exemplo), manifesta certa perda da “dimensão
cósmica da vida”, o que levaria a uma espécie de “inflação vocabular”. Mas a
tragédia serve também para, de certa forma, polemizar. Vejamos:
Tematizando questões cruciais ainda em aberto, dilemas não
encerrados da sociedade, a tragédia promove a destruição do herói, sim,
mas dentro do movimento de forças desencadeado por ele, o que é mais
importante e, inclusive, costuma ser objeto de representação e balanço
depois da morte do protagonista (Saraiva e Canitto, 2004, p. 92).
Assim, na dramaturgia a tragédia pode ser entendida como uma espécie de
encenação de alguma “contradição social”, materializada por meio da representação
de uma situação dramática “insolúvel”, que provocará a destruição dos personagens
e, no mesmo movimento, “revelará quais forças são essas que causaram sua
destruição”. Para concluir, Saraiva e Canitto, explicam que o que diferencia a
tragédia do melodrama é o “modo de tratamento”. No entanto, na visão dos autores,
mesmo que o melodrama leve o “seu solitário sofredor” à morte, isso não fará dele
algo próximo da tragédia, pois a “estrutura do enredo é diferente”. Um exemplo
dentro desta afirmação seria a ocorrência do naufrágio em Caramuru, a invenção do
Brasil. No entanto o fato não pode ser tratado como tragédia, mesmo considerando a
hipótese de que todos os seus tripulantes tivessem morrido. Isto porque, apesar do
desastre, o herói de nossa história se salva e, mesmo com as inúmeras tentativas do
capitão Vasco de matá-lo, ele também o salva. Dentro da mesma temática - naufrágio
-, um tratamento diferenciado é dado por James Cameron, em Titanic (1997). O
filme que foi generalizado ao mesmo tempo por drama e romance, expôs uma
estética que, ao nosso ver, estava mais próxima da tragédia por basear-se nos fatos
reais que inspirou a narrativa, levando o filme além de uma produção milionária, à
82
indicação de 11 Oscars. O grande clímax do filme é a tragédia ao final, configurada
pela plasticidade impingida à seqüência de cenas.
Porém, voltando à Caramuru, a evidência mais próxima que caracterizaria a
tragédia no filme, ocorre após a chegada de Diogo ao Brasil em que se estabelece o
triângulo amoroso entre ele (Caramuru), Paraguaçu e Moema. Amando ao mesmo
tempo as duas irmãs índias, vê-se compelido a voltar para Portugal, já que pelas leis
da Igreja a união não poderia ocorrer. Ironicamente, isso é um drama, uma crueldade
do destino. Ao decidir fugir às escondidas, Paraguaçu e Moema o perseguem, mas a
esta altura a nau que o levava já seguia ao longe. Apaixonadas, lançam-se ao mar e
seguem nadando até se aproximarem da nau, quando ele joga uma corda. No entanto,
somente Paraguaçu consegue alcançá-la e sobe à nau. Moema não consegue. Com
seu olhar triste, fica ao mar olhando a irmã e o amado partirem sabe-se lá para onde.
Eles voltam a se encontrar somente quase ao final do filme.
Transportando esta passagem da lenda para o filme, entendemos que a opção
do roteirista e diretor foi pela não alteração do tom e do foco da narrativa, fazendo
com que esvaziasse o sentido trágico e dramático e privilegiasse a reconciliação, uma
característica da comédia como veremos mais adiante. Assim, seu esforço fez
prevalecer a sua intenção e impingiu na obra, o efeito que queria causar no
espectador. Ao contrario do filme, a lenda diz que Moema morre. Caso Guel
considerasse este fato, a seqüência poderia ser a de uma tragédia já que não havia
mais o que ser feito. Percebemos que isso não foi tratado no filme com este sentido -
ou melhor, foi tratado com a ênfase da conciliação requerida pela comédia -, mas
ainda assim, este é um ponto alto a ser destacado da lenda original sobre a vida de
Caramuru. Assim, como o tratamento dado à morte de Moema não foi caracterizado
83
no filme como uma tragédia (neste caso mais próximo do melodrama), a nosso ver, é
importante destacar ao menos os versos em que esta parte da lenda é narrada no
poema épico de Santa Rida Durão
45
. Ali são relatados tanto o seu ódio quanto a sua
trágica morte, conforme as estrofes que se seguem de seu canto VI:
XL
Tão dura ingratidão menos sentira
E esse fado cruel doce me fora,
Se o meu despeito triunfar não vira
Essa indigna, essa infame, essa traidora:
Por serva, por escrava te seguira,
Se não temera de chamar senhora
A vil Paraguaçu, que, sem que o creia,
Sobre ser-me inferior, é néscia e feia.
XLI
Enfim, tens coração de ver-me aflita,
Flutuar, moribunda entre estas ondas;
Nem o passado amor teu peito incita
A um ai somente, com que aos meus respondas:
Bárbaro, se esta fé teu peito irrita,
(Disse vendo-o fugir) ah não te escondas;
Dispara sobre mim teu cruel raio...
E indo a dizer o mais, cai num desmaio.
XLII
Perde o lume dos olhos, pasma e treme,
Pálida a cor, o aspecto moribundo;
Com mão já sem vigor, soltando o leme,
Entre as salsas escumas desce ao fundo:
Mas na onda do mar, que irado freme,
Tornando a aparecer desde o profundo,
Ah Diogo cruel! disse com mágoa,
E sem mais vista ser, sorveu-se n’água (Durão, 2004, pp. 146-147).
O terceiro e último gênero dramático a ser tratado neste trabalho será a
comédia. Assim como nos casos anteriores, ela pode ser entendida como um gênero
45
Fazemos alusão ao dito poema neste mesmo capítulo, um pouco mais adiante, em nosso próximo
subtítulo.
84
que também desenvolve uma situação no qual prevalece uma unidade dramática, mas
para chegar ao que os autores denominam de “reequilíbrio conciliado”, ou seja, o
típico final feliz ou a festa de reconciliação, tão canonizados pelo cinema e que nos
referimos a algumas linhas atrás. Os mesmos autores advertem que necessariamente,
o fato de uma obra possuir um ou outro destes modelos de “finais” já canonizados
não significa que uma obra possa ser considerada uma comédia. Ou seja, sob o ponto
de vista analítico, a comédia do riso, por exemplo, pode provocar apenas sorrisos de
participação. Assim:
Se não houver uma situação dramática e progressão unitária,
teremos ou um melodrama ou uma farsa (estruturas de enredo mais
episódico). Neste nível estrutural (sem levar em consideração o tom), a
comédia diferencia-se da tragédia por não “bater de frente”, “buscar
contradições irreconciliáveis” da época, mas ao contrário, por tentar
“driblar” essas contradições, estabelecendo pactos que permitem à vida
prosseguir (Saraiva e Canitto, 2004, pp. 93-94).
Os pactos a que se referem os autores dizem respeito a determinados tipos de
arranjos na dramatização e caracterizam-se por serem sempre finitos, provisórios.
Isso explica, por exemplo, o fato de a comédia sempre ser finalizada com uma
situação harmoniosa, em que “todos” se saem “bem”. Porém, em caso de suspensão
ou adiamento deste tipo de “acordo” tem-se a sensação de que o arranjo corre o risco
de esvair-se pela própria fragilidade criada com tal situação, podendo, inclusive,
comprometer o equilíbrio feliz - “essa variação tonal executada à beira do abismo
que cerca a felicidade pode render visões profundas da experiência”, informam os
autores. De acordo com eles, Northrop Frye (Frye, N. Anatomia da Crítica. São
Paulo: Cultrix, 1973 apud Saraiva e Canitto, 2004, p. 94) explica que o “risco
sombrio que habita na promessa canônica de felicidade” é altamente destacado na
comédia, pois nela costuma haver um ponto (em geral o desenlace) no qual “tudo
85
está por um fio, sendo o fim trágico afastado”, em geral, por uma reviravolta na
história. Isto é um exemplo do que ocorre também em Caramuru. O trecho que
destacamos ainda há pouco sobre o abandono de Moema ao mar é um exemplo disso.
Um outro ocorre quando a vida de Diogo Álvares está por um fio e tudo parece
acabado, mesmo após um naufrágio. Ele consegue salvar-se e eis que é acolhido por
uma tribo de índios selvagens que, inclusive, desistem de “comê-lo”. Segundo a
lenda, devido à sua suposta “bravura”. Há uma sucessão de outros exemplos no
contexto do roteiro para externar como essas conciliações são elaboradas de maneira
lógica ao longo do processo de tratamento e evolução dos personagens no filme.
Assim, deduzimos que numa mesma situação dramática é possível a ocorrência
de um tratamento ao mesmo tempo cômico e também dramático, farsesco e trágico,
como nesta obra de Guel Arraes e Jorge Furtado. Mesmo porque os roteiristas se
utilizam enormemente da experiência cotidiana para inspirar-se em suas obras. Uma
prova disso é o vasto material proporcionado a partir de conflitos humanos que pode
servir como insumo nessa espécie de indústria manufatureira do entretenimento: o
cinema e a televisão. A isso os autores atribuem o papel da lógica, importante
elemento inerente ao processo de realização de uma obra. E explicam:
A “comédia séria” - da qual a comédia romântica é a vertente mais
famosa - é aquela em que não rimos, ou rimos só às vezes.
Acompanhamos os personagens resolvendo seus problemas, o que neste
caso, deve ser feito com todas as preocupações de preparação e lógica - e
não com “mágicas” farsescas (Saraiva e Canitto, 2004, p. 95).
Ou seja, nesse tipo de comédia, para que se tenha uma narrativa baseada na
compreensão de todos os pontos de vista envolvidos, é fundamental que um
tratamento lógico seja dado pelo roteirista. Em Caramuru, por exemplo, na maioria
das situações em que Diogo Álvares -se envolvido, os fatos são desencadeados por
86
ele próprio ou por alguém associado a ele. Melhor dizendo: em algum momento na
trama quem tiver envolvimento com ele o conduz ao comprometimento de sua
própria “pele”, iniciando assim sua próxima busca, expondo naturalmente o
personagem. Assim, para o roteirista, mesmo havendo ao mesmo tempo uma esta
seqüência muito bem delineada, não necessariamente há a intenção de “ridicularizar”
(farsa), nem tampouco a de “confrontar em bloco” (tragédia), nem de entregar-se à
“comiseração” (melodrama). Para Saraiva e Canitto, “trata-se de tomar os pontos de
vista em questão e agir para harmonizá-los”. Por isso o tratamento dado à uma
comédia pode ser considerado como o extremo oposto da “visão essencialista-
moralista” do melodrama, que preconiza, como informamos, um mundo dividido
entre o “bem” e o “mau” ou melhor, entre “Pureza e Engano”.
Um exemplo da caracterização da comédia em Caramuru se dá logo no início
do filme, quando Vasco vai ao ateliê de Diogo Álvares apresentar-se e informar que é
o noivou da condessa de Sintra, por quem pediu a mão logo após ter visto o quadro
dela, pintado pelo artista. Eles travam um pequeno diálogo sucedido pela tentativa de
golpes de espada de Vasco, já que ao conhecer a noiva pessoalmente, ela era
totalmente diferente da pintura. Vejamos o que ocorre:
Alguém bate vigorosamente na porta.
VASCO: Diogo Álvares?
DIOGO: Para servi-lo, excelência.
VASCO (olhando os quadros): Da Vinci, Botticcelli... O senhor
imita bem os italianos.
DIOGO: Eles são para mim os mestres absolutos. O senhor
também é artista? (...)
VASCO: Vasco de Ataíde, o cavalheiro da Casa Real. Vim de
Lisboa conhecer minha noiva. E foi este retrato que o senhor fez dela que
me trouxe a sua casa.
Vasco mostra a pintura de uma bela jovem.
87
DIOGO: A condessa de Sintra. Gostou da pintura? (...) Com este
quadro ganhei da Academia Real o prêmio de “Grande Promessa da
Pintura Portuguesa”.
VASCO: Pena que esta promessa não vá se cumprir. Hoje, quando
encontrei a condessa pela primeira vez, descobri que era a moça mais feia
de Lisboa.
Vasco saca a espada e a põe no pescoço de Diogo.
DIOGO: A arte não pode se limitar a uma simples cópia da vida,
senhor Vasco. Ela tem por missão embelezar “um pouco” a realidade.
VASCO: Um pouco? O mínimo que eu esperava é que ela tivesse
as duas orelhas.
DIOGO: Por quê? Ela precisa de óculos?
VASCO: De óculos precisa o senhor, que viu esta deusa por trás
daquele acidente da natureza.
DIOGO: Faça como eu, senhor, use a imaginação.
VASCO: É preciso mais que imaginação para passar o resto dos
meus dias ao lado daquele estrupício.
DIOGO: Pois então? Minha pintura poderia ajudá-lo nessa tarefa.
VASCO: Canalha! Você vai queimar agora todos esses quadros e
abandonar de vez a profissão de retratista para sempre.
DIOGO: Excelência. O senhor não pode privar a humanidade da
minha arte.
VASCO: Se o senhor preferir, eu posso privá-la do artista.
Uma fogueira consome todos os quadros de Diogo. (Arraes e
Furtado, 2000, pp.16-18)
Com este exemplo percebemos que na comédia, os personagens são sempre
apresentados “em situação”, agindo em função da ação e do olhar alheios. Mais que
isso, neste trecho e também em outros que ainda abordaremos, fica também
caracterizada a estética do grotesco, que ganha novamente aqui o seu espaço, mas
agora, em sua forma discursiva de maneira direta. Desta forma, a comédia, pela
característica que possui de investigar, geralmente, problemas vividos pela maioria
das pessoas em seu cotidiano, e pelo fato de os roteiristas apropriarem-se disso para
utilizar em seus filmes ângulos de reflexão e exploração, em seu sentido amplo, é a
forma que eles designam de “realismo”. A partir disso, o cinema, através do gênero
comédia, dá um tratamento estético suficientemente capaz de materializar uma
88
história, tornando-a mais visível e, portanto, mais próxima do real, sendo um dos
recursos mais utilizados para isso, a variação tonal ao logo da estrutura do enredo.
Para finalizar, reforçamos o fato de que numa comédia todos têm interesses,
senão totalmente comuns, ao menos em alguma parte. E é isso que faz com que as
ações sejam eficientes - dramaticamente falando - para que dêem conta de superar
todo e qualquer conflito existente na trama dando margem ao “e viveram felizes para
sempre”. No caso de nosso filme o final é tão feliz, que mesmo após tantas
confusões, idas e vindas entre os personagens, ao final - já tendo retornado ao Brasil
- a índia Paraguaçu - praticamente civilizada aprende a ler e a escrever e decide
registrar o relato de suas aventuras num livro. Em suas linhas lê-se a seguinte frase:
“Diogo me ensinou a amar, eu ensinei ele a querer bem. E fomos felizes agora, que é
melhor que pra sempre”. Dessa inscrição temos a sensação de que na comédia a
caricaturização, as aparências são o próprio “mundo”, mas não no sentido de
suspensão do peso das relações, como na farsa, mas em seu sentido oposto. Veja-se,
por exemplo, a seqüência quase ao final, em que Paraguaçu consegue, por meio de
artifícios, pagar na mesma moeda as façanhas de Isabelle, fazendo com que esta
desista do casamento com Diogo, assumindo supostamente o papel de “amante”,
tornando-se Paraguaçu sua esposa oficial e ainda, casada na corte francesa! A partir
do seguinte ponto de vista de Saraiva e Canitto, tem-se uma visão mais ampla:
Forçando um pouco a sistematização, poderíamos dizer que a farsa
tem vocação anarquista; a tragédia, vocação revolucionária; o melodrama
é assistencial, e a comédia é o modo de democracia formal.
(...) Em termos narrativos, isso quer dizer que na comédia a
progressão dramática terá de se fazer através do entrecruzamento de
focos narrativos ou, pelo menos deciframento das perspectivas alheias, a
partir de um foco situado, nunca absolutizado.
46
46
No Capítulo 3, reservado à análise da narrativa de um trecho do filme, esta situação será
visualizada.
89
Esta forma de realização do roteiro, de maneira estruturada e “sistematizada”
ocorre, portanto, em todo o filme e é sempre afirmada pelas aparências que são
postas na posição de concordância, corroborando em todos os aspectos segundo o
interesse de quem age. Por todos estes motivos, Caramuru, pode ser caracterizado
como uma comédia romântica, justamente pelo fato de lançar mão não somente dos
recursos humorísticos que dão forma a toda sua estrutura, mas também porque
mescla momentos de melodrama e de farsa no contexto desta narrativa ilustrada,
terminando em final feliz. Porém, a manifestação do fenômeno do grotesco,
enquanto categoria estética, também é identificada na obra e será o assunto que
trataremos a seguir.
2.4.O grotesco identificado: do documentário ao filme
Geralmente para o público é comum a ansiedade gerada pela expectativa de
lançamento de um “bom” filme. Também não é raro ao público o fato de uma “boa”
história vir associada ao que habitualmente reconhecem por lenda, conto ou mito
como é dito popularmente ou, como é comercialmente conhecido o jargão: “baseado
em fatos reais”, causando com esta inscrição, não raras as vezes, uma conquista
maior de atenção sobre a obra.
Guardadas as proporções relativas ao conhecimento que as pessoas detêm
sobre o tema histórico e da lenda, tratados sob o ponto de vista da ficção - dos
autores que sabiam o que estavam fazendo e do público composto em sua maior
parcela de pessoas comuns e que simplesmente absorveram a informação que
90
estavam vendo -, nossa impressão é de que neste filme a narrativa tomou um rumo
que subordinou o leitor ao seu não contestamento, o que é uma estratégia da indústria
cultural de massa de conduzi-lo, como dissemos, ao simulacro, por meio do
entretenimento amplamente amparado em recursos técnicos e também lingüísticos.
Assim, uma vez analisadas as questões relativas à categoria estética e de como o
grotesco se enquadra nelas como fenômeno de manifestação artística, vamos agora
realizar a análise de como este mesmo fenômeno se insere no documentário do filme,
considerando sua diversidade de gênero e espécie. Utilizamos, portanto, a mesma
designação dada pelos autores que estamos tomando por base para esta análise, no
qual gênero deve ser entendido como “modo ou maneira de apresentação do
fenômeno” (Sodré e Paiva, 2002, p. 66).
Em Caramuru, a invenção do Brasil, consideramos que a usurpação da
realidade histórica do povo que passou por todo o processo de colonização a partir
das primeiras expedições ao Novo Mundo, tomou o signo de uma espécie de
violência midiática pelo ocultamento dos trechos documentais que continha a própria
microssérie. Do início ao fim, o filme ainda nos faz rir e a impressão que se tem é
que tudo (o próprio documentário), de fato, não passou de uma grande invenção que,
apesar do colorido diferenciado, recebe a afirmação de Guel Arraes de que muitos
trechos são de fato inventados, o que retira da obra a sua historicidade em detrimento
da originalidade de quem a produziu. A esta desvalorização dos pontos históricos
também na parte documental, é que consideramos que toma um viés da estética do
grotesco, pelo nível de rebaixamento que impõe ao filme. Rebaixamento este,
segundo os moldes já vistos e que caracteriza o fenômeno esteticamente, conforme
observado por Muniz Sodré e Raquel Paiva, na obra que utilizamos.
91
Em entrevista ao jornal O Estado de São Paulo, Guel afirma que considera a
transformação de A invenção do Brasil (nome original da microssérie) “algo
politicamente necessário para o nosso grupo”. Por suas palavras deduzimos que o
autor considerou o grupo pertencente ao seu núcleo de produção, que incluía o co-
roteirista Jorge Furtado, a diretora de Arte Lia Renha, o narrador da parte documental
Marcos Nanini (na versão para a TV havia interrupções feitas pelo ator), entre outros
elencados na ficha técnica anexada a este trabalho. A este grupo, pertencente à elite
fomentadora da indústria cultural, cabe manter e bem utilizar o poder articulador da
Rede Globo e seu núcleo de cinema, a Globo Filmes, responsável por encomendar as
produções, como dissemos. Porém, na microssérie, em que a parte documental é
exibida, além da comédia em si, o autor utilizou um recurso denominado
documentário de criação. Com esta estratégia pôde usufruir dos efeitos de montagem
com animação e aplicação de locução em “voz off - bastante típicos nos
documentários e em até certos aspectos pautados pelo exagero contidos
especialmente no Cinema Novo
47
.
Nosso primeiro exemplo é o de uma cena em que o famoso quadro de Monalisa
é apresentado tendo seu rosto pintado de índio, usando colar e pulseiras artesanais.
Atrás dela uma visão paradisíaca com palmeiras e índios. Como pano de fundo, uma
narração simultânea à imagem. Na seqüência, apresentamos o trecho da narração off
e também a imagem a ela correspondente e que aqui, estamos referenciando em seu
aspecto grotesco, devido à comparação utilizada pelo roteirista.
47
Em teoria cinematográfica, o termo “voz off refere-se a momentos nos quais ouvimos a voz de um
personagem que não pode ser identificado no quadro. Neste caso, o filme, por meio de seqüências
anteriores ou por outros determinantes contextuais, afirma a “presença” do personagem no espaço da
cena. Para um maior aprofundamento sobre o assunto, recomendamos o texto de Mary Ann Doane, A
voz no cinema, in Xavier, Ismail. A experiência do cinema. Rio de Janeiro, Graal Ed., 1983.
92
Em 1550, a cidade francesa de Rouen organizou o “Baile dos
Brasileiros”, um grande teatro ao ar livre, com árvores pintadas de
vermelho, macacos e papagaios. Levaram do Brasil cinqüenta índios
tupinambás. O espetáculo fez grande sucesso entre a nobreza européia.
“As damas da corte mostraram rosto alegre e sorridente diante dos
trezentos homens nus, bronzeados e hirsutos”. O índio brasileiro estava
entrando na moda (Arraes e Furtado, 2000, p. 143).
Ilustração 1
Outro exemplo dentro deste mesmo contexto e acerca dos trechos documentais
que analisamos, foi o fato do autor ter comparado as grandes expedições, como a de
Vasco da Gama, com a primeira viagem do homem à lua. Na ilustração 2, Vasco da
Gama deposita o escudo português na lua, simbolizando assim um gesto que séculos
depois seria imitado pelo primeiro astronauta americano, Neil Armstrong.
Comparativamente, a descoberta do Brasil, portanto, teve para os portugueses a
mesma importância que teve para o homem sua chegada à lua. Depositar,
simbolicamente, um objeto no local é determinar além da origem da conquista, dar a
conotação de pertencimento, apropriação do território conquistado de maneira lúdica.
Nossa percepção é de que o sentido que os autores tentaram impingir com tal
93
comparação é de algo altamente inusitado para as respectivas sociedades,
considerando o momento em que se deu tanto um como o outro episódio. Assim,
para melhor externar o que está sendo dito, selecionamos trechos do texto presente
no livro roteiro, seguidas de algumas imagens:
Em 1498, quando Vasco da Gama chegou enfim àquele reino
riquíssimo, a notícia teve, para os europeus do século XV, o mesmo
impacto que a chegada do homem à Lua teve para a humanidade do
século XX (Arraes e Furtado, 2000, p. 25). (...)
Ilustração 2
Nestas duas primeiras ilustrações evidenciamos que o grotesco avança tanto
com a memória das artes plásticas quanto com a do próprio cinema. Assim, Guel
trabalha respectivamente, com o imaginário a partir da obra de Leonardo da Vinci e
também com o uso que faz de um dos mais conhecidos filmes do francês George
Méliè, Le Voyage dans la lune (Viagem à lua), de 1902.
48
48
George Méliè, foi famoso ilusionista, proprietário do Theatre Robert-Houdin e também cineasta. No
filme que referenciamos, obteve efeitos especiais inovadores para a época, utilizando técnicas de
dupla exposição, para criar mundos fantásticos por meio de efeitos fotográficos. Viagem à lua, foi
inspirado na obra literária O primeiro homem na lua, escrita por H. G. Wells, um ano antes.
94
No caso do filme de George Méliè, trata-se além de uma referência cognitiva a
partir do próprio cinema, de nos remeter ao que Roland Barthes (2001) denomina de
“código metalingüístico”, palavra, que segundo ele designa “uma linguagem que fala
de outra linguagem” (Barthes, 2001, p. 273). Dando seqüência à análise, o texto
abaixo e a seqüência de imagens ganham uma tônica mais voltada para o exagero:
Nas primeiras horas da manhã do dia 9 de setembro de 1499, os
sinos de todas as igrejas de Lisboa repicavam em sinal de regozijo, e
multidões se acotovelavam no porto do Restelo, às margens do rio Tejo.
O comandante Vasco da Gama estava enfim retornando a Portugal,
depois de dois anos e dois meses além-mar. Tinha navegado pelas águas
de dois oceanos, singrara quase vinte mil quilômetros e havia descoberto
o caminho marítimo para a Índia. O feito “foi celebrado durante uma
semana com touradas, momos, canas e outros festejos populares” [Não é
identificada autoria da frase no roteiro]. O povo, na rua, comemorava o
alvorecer de uma nova era. O mundo nunca mais seria o mesmo (Arraes
e Furtado, 2000, p. 25).
Ilustração 3
As imagens, bem como os feitos aqui ilustrados, tomam uma proporção que é
somente comparável - no documentário presente no filme - ao ufanismo tão
característico do povo americano ou ao extremismo de torcedores de futebol reunidos
para um grande clássico entre times rivais.
95
Ilustração 4
Porém, destoam do conteúdo textual. Conforme observamos nesta análise, a
maioria das imagens resulta ou de montagem ou de cenas de outros episódios (como
o do retorno dos astronautas americanos à sua primeira viagem à lua na seqüência).
Sendo externadas desta forma, fica ao mesmo tempo caracterizado o distanciamento
quanto ao que se estava comemorando, ainda que o tema central fosse o
Descobrimento do Brasil. Ou seja, na mesma medida em que as imagens tentam
proporcionar uma aproximação pela comparação, elas levam a um distanciamento
provocado pelo exagero impingido com a comparação.
Assim, ao ilustrar os perigos da navegação, Guel Arraes e Jorge Furtado
tiveram o interesse em ressaltar o importante papel do Estado na convocação de
jovens marinheiros para compor as naus que sairiam em busca dos interesses
expansionistas da nação portuguesa, conforme a ilustração 5, ou melhor, a
publicidade criada pelos autores. Porém, antes dela, vejamos o seguinte texto:
96
Em cada 40 soldados que partiam para a Segunda Guerra Mundial,
um morria em combate. Em cada 40 marinheiros portugueses que
partiam nas expedições, 20 morriam. A expedição de Vasco da Gama
tinha 158 homens. Apenas 55 voltaram. Das 13 naus comandadas por
Pedro Álvares Cabral, só quatro voltaram. A carta de Caminha foi
também seu bilhete de despedida. Ele nunca voltou a Portugal. Os
naufrágios tornaram-se a principal causa de morte em Portugal. Aos 45
anos, a mulher portuguesa do século XVI já era viúva, tinha perdido dois
filhos, os irmãos e os pais. “Oh, mar salgado, quanto do teu sal são
lágrimas de Portugal.” (Arraes e Furtado, 2000, p. 42).
Ilustração 5
Jovem, se você gosta de aventura venha se
inscrever nas “Expedições Ultramarinas
Portuguesas”.
Navegar apenas no mar Mediterrâneo agora é coisa do
passado. Conheça o mundo sem limites do oceano Atlântico.
Participação nos bens saqueados em combate aos povos hostis,
direito de importar produtos livres de impostos, um ano de
adiantamento de salário para proteção de suas famílias. Ganhe fama
e dinheiro participando de um dos maiores empreendimentos da
humanidade: a descoberta de um Novo Mundo.
Navegar é preciso, viver não é preciso!
Ilustração 6
97
Por estes exemplos, percebemos que a tônica dada pelos autores caracteriza a
presença do grotesco. Sua ênfase neste sentido determinou, por assim dizer, que as
imagens e os textos deveriam possuir uma expressividade suficientemente capaz de,
a partir das comparações, levarem o espectador ao riso. Além disso, tentamos
demonstrar, que uma das características dos autores com estes exemplos foi a de
imprimir velocidade de movimento e de fala (sempre constante), tanto na parte
documental que analisamos como na dos personagens ao longo do filme. O recurso é
amplamente utilizado como artifício para inibir o pensar, ou seja, para não dar tempo
de o espectador analisar o contexto do que está sendo dito ou mostrado, característica
essa que tem consagrado especialmente Guel Arraes, pelo estilo de realização rápida,
conferindo a ele ao mesmo tempo enorme destaque e prestígio nas produções para a
Rede Globo. Além disso, nestas novas produções adaptadas de uma mídia para a
outra, o autor encontra a fórmula mais que perfeita para envolver o público. Em
Caramuru, mais do que cenas grotescas, percebemos que tanto na imagem como no
texto, tem-se a impressão de uma suposta liberdade artística de Guel Arraes,
configurada e delineada, a nosso ver, entre o paraíso e o horror, marcas que causam
aquela espécie de desconforto já analisadas e que é tão própria da estética do
grotesco. Assim, esta “liberdade” possibilita criar o ambiente necessário para a
manipulação da história de forma desproporcional a fatos já consolidados
culturalmente. O risco é de que nesta linha de ação, apoiada em temas e textos já
sedimentados haja uma espécie de “contracultura”, que seja capaz de emergir na
narrativa fílmica contextos outros que possam até mesmo se sobrepor ao próprio
cinema em sua forma clássica de representação. Portanto a forma idealizada pelos
autores, bem como a maneira com que Marcos Nanini foi dirigido, implica num
98
caminho divergente ao que traça Walter Benjamin (1994) em seus escritos sobre o
Conceito de História, em que diz que “(...) Sem dúvida, somente a humanidade
redimida poderá apropriar-se totalmente do seu passado. Isso quer dizer: somente
para a humanidade redimida o passado é citável, em cada um dos seus momentos”
(Benjamin, 1994, p. 223). Assim, ao “inventar” um Brasil, mesclando na parte
documental cenas de contextos de outros povos inclusive, torna-se praticamente
impossível que no filme seja distinguido o que é fundamento histórico e o que é
ficção.
Mesmo considerando que lendas, contos e mitos geralmente têm por
características o fato de virem ilustradas por trajetórias heróicas, que a seu modo
peculiar tentam relatar histórias de inúmeros povos, a forma pitoresca com que as
cenas são abordadas, vinculadas aos textos do documentário, a nosso ver, ao invés de
aproximar pela associação, o reforço dado ao contraste das imagens, distancia os
autores desta intenção. Parece haver certo prazer da narrativa em estampar e em
evidenciar, tudo o quanto nos diminui (nós, brasileiros) frente a outras nações ao
logo dos tempos ou até mesmo o de rebaixar as raízes que originaram a identidade da
nação. Com isso queremos enfatizar que o que mais incomoda nas cenas
documentais não é apenas a intensidade com que os autores colorem as informações
destes trechos, mas o tipo de comparação como as que ilustramos.
Acerca deste assunto, Fernão Pessoa Ramos (1993)
49
ao fazer um panorama do
cinema brasileiro dos anos 60 aos 90, se diz deparar com um companheiro
inseparável de viagem: “os estados d’alma exaltados, compondo uma espécie de
‘overdose’ de dramaticidade”. Sua principal referência de análise é o cinema
49
RAMOS, Fernão Pessoa. A dialética do comer e da comida e outros babados. Revista USP. Dossiê
sobre Cinema Brasileiro, nº 19, pp. 97-107, Set-Nov/93.
99
documentário presente no período em que se encontra o Cinema Novo. No contexto
de sua observação há uma realidade de tensão vivenciada pelos cineastas da época,
cujas marcas nos filmes privilegiavam um outro estilo de estética, mas que para nós,
de certa forma, toma a mesma similaridade quanto ao fazer cinematográfico que
encontramos em Guel Arraes e Jorge Furtado, já que o exagero é a sua maior marca
de manifestação. Com este destaque, Ramos esclarece ainda que o artifício do
exagero foi também muito utilizado nos filmes documentários do período para
apontar o “caráter histórico de sua ocorrência e de sua dimensão”. Implica em dizer
que ao surgir com tamanha intensidade, da mesma forma se esvai, apesar de suas
marcas, ou, nas palavras de Ramos:
Em suas formas, em suas imagens, a exacerbação dramática deve
ser pensada de maneira extensa, abarcando uma gama de expressão que
abrange elementos bem mais diversos do que seu significante
característico (...) que se sobrepõe às motivações da ação dramática,
tornando-se ponto focal da narrativa (Ramos, 1993, pp 98-99).
Observamos que no filme, o exagero não prima nem pelo “caráter histórico”. A
intensidade dada à sua tônica fez com que pouco ou nada restasse para reflexão do
significado do momento histórico em si, esvaindo-se assim o seu valor. Por isso, ao
abordar os aspectos do grotesco no filme, tentamos não cometer a injustiça diminuir
o valor da lenda nele presente, nem tampouco o dos mitos. Um e outro não se
comparam aqui a outras espécies de produtos midiáticos, por suas respectivas
peculiaridades narrativas e pela forma como foram introduzidas à cultura da maioria
dos povos que ainda as mantém vivas: a oralidade.
Assim, vamos adentrar nesse contexto considerando que a maior característica
da lenda e do mito, presente no que pode ser entendido como sendo a tradição oral de
um povo, é a preservação e o constante resgate de suas histórias, usos e costumes
100
através da fala. Para tanto, partimos do entendimento de que uma lenda faz parte de
uma cultura, nos leva a deduzir que também fundamenta a identidade cultural de um
povo. No Brasil, o símbolo mais próximo da origem dessa identidade mais que
lendária, é a representação do índio e suas histórias, mas que como dissemos, se teve
algum destaque ao longo dos tempos, no cinema nacional e mundial, foi dentro de
uma ênfase reducionista - quando não preconceituosa -, que buscou sua inspiração
muito mais na literatura romântica, utilizada portanto, como forma de registro da
marcante presença do índio em nossa história. Além da literatura, está claro que
conta-se também com o contexto extraído das lendas em si. Muito embora suas
estruturas sejam permeadas por narrativas fantasiosas, ou seja, de caráter fantástico
e/ou fictício (o que não é um fato), também combinam fatos reais e históricos que
aconteceram em uma determinada época, dentro de uma cultura particular. No
entanto, é essa mescla de contextos reais e irreais, frutos da imaginação e da ação
humanas que as tornam especiais e as diferenciam de suas forma representada, como
neste filme. Nas narrativas lendárias ou mitológicas as explicações acerca de um
evento são normalmente consideradas plausíveis e até certo ponto aceitáveis para
aquelas coisas que não têm explicações cientificamente comprovadas, como
acontecimentos misteriosos ou sobrenaturais. Exemplo disso foi a presença do
canibal para a época em que o filme retratou. Como afirma a pesquisadora Janaína
Amado (1998), as narrativas mesclam tradição e história com elementos que a
própria tradição convencionou literários, e enfatiza:
Historiadores, cronista, romancista e poeta, indistintamente,
enveredam por enredos onde visões celestiais, antropofagias, colóquios
imaginários em cortes estrangeiras e profecias fundem-se tranqüilamente
com fatos e personagens da história do Brasil e de Portugal.
50
50
AMADO, Janaína. Mito e Símbolo na História de Portugal e do Brasil, in Actas dos IV Cursos
Internacionais de Verão de Cascais. 1998, pp. 175-209.
101
Guel Arraes e Jorge Furtado repetem o estilo. E para externar este ponto de
vista documental assinalando a presença do canibal, como algo descomunal e longe
do contexto dócil propício à “domesticação”, selecionamos o texto a seguir como
exemplo:
(...) Na época dos descobrimentos, os intelectuais renascentistas
também buscavam um modo de vida diferente do artificialismo da corte e
que estivesse mais próximo da natureza. Os índios pareciam representar
este ideal e foram logo assimilados como modelo de bondade e
inocência. Mas a imagem do índio como um ser puro e angelical não iria
durar muito. Essa transformação aconteceu quando os primeiros viajantes
trouxeram do Novo Mundo uma notícia que encheu a Europa de pavor
(Arraes e Furtado, p. 89).
Fora do roteiro, mas inclusa no documentário, as imagens a seguir,
demonstram com precisão o que tentamos exprimir com o texto que acabamos de
destacar. De igual valor, as próximas são acompanhadas de texto praticamente igual
ao das manchetes e que, mesmo em locução off, percebe-se que não é a voz de
Marcos Nanini:
Extra, extra, canibais no Novo Mundo. Assados e devorados por
selvagens semi-nus. Ninguém é de ninguém!
Ilustração 7
102
Ilustração 8
Ilustração 9
Na seqüência, grotescamente, Marcos Nanini oferece uma típica receita de
português à brasileira.
[NANINI]: Agora peguem lápis e papel que vamos dar a receita de
português à brasileira. Os ingredientes são: um prisioneiro em pedaços,
água, tintura de sapucaia, mel, penas e ovos. O material de cozinha: um
tacape, uma cuia e uma grelha.
103
Ilustração 10
[NANINI (voz off)]: O prisioneiro deve ser muito bem preparado.
Na véspera do sacrifício, banhe e depile o seu futuro manjar. Guarde a
água para a beberagem de cauim. Pinte o corpo do prisioneiro com a
sapucaia e cubra-o com penas e ovos à vontade. Amarre o prisioneiro
pela cintura com cordas de algodão ou de fibras de uma árvore. Deixe
seus braços livres e faça-o passear pela aldeia em procissão.
Ilustração 11
[NANINI (voz off)]: O encarregado da execução levanta então o
tacape com ambas as mãos e desfecha uma pancada segura na cabeça do
prisioneiro e, se tudo der certo, cai redondamente morto.
104
Ilustração 12
[NANINI (voz off)]: Depois do abate, separe o corpo em pedaços e
leve ao fogo.
Ilustração 13
NANINI: Um português médio serve sessenta pessoas.
105
Ilustração 14
Uma vez que os autores afirmam que “esta é uma ficção baseada em fatos
reais, como toda história. E também em outras histórias, em parte reais e em parte
inventadas. Como toda ficção” (Arraes e Furtado, 2000, p. 7), fica mais fácil
compreender o caminho percorrido por eles no desenvolvimento da microssérie e do
filme. A partir disso, nos concentraremos em como os autores introduziram no filme,
a mesma tônica do grotesco a partir dos aspectos relacionados à lenda e à história do
descobrimento do Brasil. Para tanto, amparamos nossa análise no ponto de vista da
antropologia, sociologia e da cultura.
Como observamos no Capítulo 1, Frank Lestringant nos antecipou qual era a
visão tida pelo canibal da época. Seu esclarecimento do ponto de vista antropológico
e também, por este aspecto muito valorizado, está bem distante do que observamos
do contexto documental externado no filme. Tanto que nas ilustrações 10 a 14,
Nanini ensina como preparar um tradicional prato para a época. A maneira como o
assunto antropofagia é tratado na parte documental está bem longe da realidade
externada pelos indígenas da época. Porém de certa forma, isto é ilustrado na
106
narrativa fílmica, quando Caramuru passa a conviver na tribo, momento em que as
índias Paraguaçu e Moema passam a “cuidar” do estrangeiro com todo o zelo,
fazendo-o engordar o suficiente para quando estivesse pronto para o abate. Isto
ilustra bem a espécie de descuido que tiveram em tratar a informação como
“documento” dentro do filme. Tanto isto é fato, que numa outra margem, o que
difere a lenda do mito é o vínculo que o segundo possui com o “sagrado”. E este é o
aspecto que deve ser mais destacado quanto aos hábitos antropofágicos da época: a
antropofagia era algo sagrado para os indígenas e, como nos exemplos anteriores,
muito grotescamente foi aludido no filme.
De acordo com Mircea Eliade (2001), um mito é uma narrativa que nos remete
a “um modelo exemplar” de caráter explicativo ou simbólico profundamente
relacionado a uma dada cultura ou religião. Também alguns acontecimentos
históricos podem se transformar em mito dada a carga simbólica que o fato
representa para uma determinada cultura. Portanto, todas as culturas possuem seus
mitos. No caso deste filme, já que destacamos o fato dele ser produto que compunha
as comemorações dos 500 anos, percebemos que seu conteúdo não estava associado
à origem formadora do Brasil. A ausência de verossimilhança no filme, deixou de
remeter o público para a “história do que se passou in illo tempore, a narração
daquilo que os deuses (...) fizeram desde o começo do Tempo”. Mais que isso, com a
ênfase dada às comemorações e ao contexto externado, é possível observar ainda que
os mitos que deveria ser acionados para conferir uma essencialidade à nação
brasileira não o foram. O que implica em dizer que comemorações como esta, feitas
de maneira efêmera e com intenção mercantil, realizadas em datas que aludem a
episódios considerados notáveis da história, poderiam, ao menos permitir refundar,
107
reatualizar nossa identidade, seja ela nacional ou local, oficial ou privada, pública ou
pessoal, mas não o fazem porque as bases com os quais são constituídos não
permitem. Em nossa compreensão, pela forma com que banalizaram os temas
contidos na parte documental, bem como no contexto fílmico, os autores não deram
conta de elucidar a sua importância num tempo aproximado de 88 minutos, já que:
O mito proclama a aparição de uma nova “situação” cósmica ou de
um acontecimento primordial. Portanto é sempre narração de uma
“criação”: conta-se como qualquer coisa foi efetuada, começou a ser. É
por isso que o mito é solidário da ontologia: só fala das realidades, do
que aconteceu realmente, do que se manifestou plenamente (Eliade,
2001, pp. 84-85).
Voltando à lenda que retrata a história do personagem Caramuru, fica claro
ainda que a intenção dos autores foi a de contar uma história oficiosa, utilizando o
gênero comédia como já afirmado, até mesmo em sua parte documental. Não é nosso
interesse neste trabalho dissertar mais sobre a intenção dos autores, mas queremos
ressaltar que com a opção pela versão cômica, não é dado espaço para que se
discorra sobre os cativeiros indígenas implantados para explorar a mão de obra
nativa aqui residente. Como demonstramos anteriormente, alguns assuntos não se
encaixam neste tipo de gênero dramático. Tanto que uma versão bem mais distante
da realidade pode ser destacada a partir de um diálogo entre Taparica, Vasco e
Caramuru no filme sobre os interesses, desta vez dos franceses, em adentrar nas
terras brasileiras com o intuito de explorá-las. Vejamos:
Um bote com os tripulantes está chegando à areia. O chefe deles
está embaixo de um guarda-sol.
DIOGO: Deixa que eu trato com eles. Tentarão nos dominar, mas
não conseguirão. Temos dignidade, inteligência e, acima de tudo, temos
coragem.
DIOGO (caindo de joelhos): Senhor Vasco! Perdoa este inocente
que te suplica pela vida!
108
VASCO: Eu devo minhas desculpas ao famoso Caramuru,
soberano dessas terras. Sua fama já corre a Europa.
DIOGO: Sou apenas um degredado, excelência.
VASCO: Não para o rei da França, que agora represento. É em
nome dele que venho propor uma sociedade comercial ao chefe dos
tupinambás. Juntos, podemos ganhar muito dinheiro.
Taparica retira Vasco de Perto de Diogo.
TAPARICA: Eu ainda sou o chefe dos tupinambás.
VASCO: O pau-brasil vale uma fortuna na Europa.
TAPARICA: Isso aqui tem muito!
VASCO: Tudo que eu preciso é gente disposta a trabalhar!
Taparica aproxima Diogo de Vasco.
TAPARICA: Isso aqui tem pouco. Para esse assunto de trabalho, o
senhor fale com o meu genro que é o novo chefe.
VASCO: Minha proposta é extremamente vantajosa. Eu gerencio
as vendas com exclusividade e fico com os lucros.
DIOGO: E nós?
VASCO: Vocês não.
TAPARICA: Parece justo.
VASCO: Mais que justo. Em troca, vocês trabalham.
DIOGO: E o que eu ganho para trabalhar?
TAPARICA: E o que eu ganho para não trabalhar?
VASCO: Quem ganha é o país, que se desenvolve, gerando
empregos, aumentando a circulação de mercadorias. E vocês não
precisam me pagar nada.
TAPARICA: Bom demais! Ele trabalha, você lucra e eu não faço
nada. Para mim está tudo certo. (Arraes e Furtado, 2000, pp.103-105)
Ilustração 15
109
Ao mesmo tempo em que faz esta oferta desmedida, Vasco, agora na posição
de contrabandista, oferece a Taparica um espelho em troca da oferta gratuita do pau-
brasil. Para se ter uma noção da superficialidade com que o assunto foi tratado,
fizemos um contraste sob o ponto de vista da História do Brasil, a partir de um texto
de Eduardo Bueno (1998), em que ilustra a entrada dos franceses no Brasil.
(...) E a indústria naval da Bretanha não só nascera sob a tutela dos
portugueses como seria justamente a partir dali, e da vizinha Normandia,
que zarpavam os contrabandistas de pau-brasil que, durante mais de três
décadas, assolaram o litoral brasileiro. A ação desses homens (...) não só
causou grandes prejuízos financeiros a Portugal como levou a França a
contestar juridicamente e ameaçar na prática a soberania portuguesa
sobre o Brasil. (...) Muitos desses homens, em sua absoluta maioria
normandos, obtinham permissão para viver nas aldeias indígenas e
acabavam estabelecendo com eles uma ligação de mútua cumplicidade.
(...) A intensa lealdade de alguns grupos nativos e estes seus “parentes”
europeus seria de grande valia aos franceses quando, anos mais tarde, na
baía de Guanabara, eles trataram com os portugueses (e seus aliados
nativos) a luta decisiva pela posse do Brasil (Bueno, 1998 pp. 88-89).
A cumplicidade externada por Eduardo Bueno, pode ser também apreciada em
outra cena, em que Taparica conversa com Caramuru, mas que desta vez aparece
com outros atrativos ofertados pelos franceses e ridiculamente caricaturizado com
chapéu similar aos dos bobos da corte de antigamente. Aqui, o chapéu toma o lugar
de seu tradicional e simbólico cocar. Vejamos a imagem deste índio:
Ilustração 16
110
Outro exemplo da forma grotesca com que o índio é tratado no filme, foi o
processo que denominamos “liquidação” do Brasil, em que Taparica, num dado
momento aparece numa praia ao sul da Bahia, cercado de marinheiros e vende as
bugigangas trazidas pelos franceses. Sua fala, de acordo com o roteiro é:
TAPARICA: Olha a pulseira, uma três, três é dez. Está acabando.
Leva o remédio do índio, maravilha curativa da floresta. Traz força pro
marido e felicidade pra esposa. Na minha mão é mais barato. Olha o
remédio do índio. Feito de semente rara e da raiz mais profunda, é bom
pra passar na cara, é bom pra passar nas costas.
Depois de terminar o escambo, Taparica mostra a bela paisagem
para Vasco.
TAPARICA: O terreno é uma beleza! Não tem terremoto, vulcão,
maremoto, furacão, nada disso. Vista consolidada. Tem a praia para as
crianças, 5.000 quilômetros. E a localização? No caminho das Índias.
Florestas, minérios, lugar para estacionar. Lá para o sul tem até neve.
Para você, eu faço por um espelho. Mas um espelho bom.
VASCO: Quantos quiseres. (Arraes e Furtado, 2000, pp.107-108)
Para quem conhece só a versão dos diretores Guel e Jorge Furtado, a cena de
tão tosca chega a ser hilária. Comparável somente ao que Roberto DaMatta apregoa
como sendo a forma singularmente brasileira de produzir aqueles “jeitinhos” e
arranjos que fazem com que possamos operar um sistema que quase sempre nada tem
a ver com a realidade. Para ele, o “jeito” é “um modo e um estilo de realizar”
(DaMatta, 1984, p. 99). Porém, uma outra proposta para essa versão da liquidação do
Brasil foi ilustrada por Viriato Corrêa, mas em seu contexto, não é Taparica quem
efetua a venda, mas o próprio Diogo Álvares, ao franquear o seu retorno com
Paraguaçu para o Brasil, após viagem à Paris. Em Viriato, é Caramuru quem narra:
Não há saudade mais inquiete do que a da terra natal. Uma semana
depois da festa do casamento e do batizado, percebi que Paraguaçu
entristecia. (...) Era a saudade das florestas, da gente, do céu azul e do sol
ardente de sua terra. (...) Dava-se agora comigo um caso curioso. Lá no
Brasil, entre os indígenas, eu não amava Paraguaçu. Retribuía-lhe os
carinhos por pura delicadeza. Mas agora, em Paris, entre mulheres
111
civilizadas, o meu coração começava a ter um grande amor pela moça
selvagem. Lá no Brasil, no meio dos bárbaros, eu só desejava a vida
européia. Agora, na Europa, no esplendor de Paris, eu tinha saudades da
taba tupinambá. E fui várias vezes ao palácio real rogar ao rei que nos
mandasse levar para o Brasil. (...) Francisco I não me mandaria deixar no
Brasil. Escrevi então uma carta a D. João III, rei de Portugal (...). D. João
não me respondeu. (...) Deus, quando tarda, já vem no caminho, diz o
povo. Um dia, uns mercadores de Saint-Malo que me tinham falado
quando saltei naquele porto, vieram conversar comigo. Não seria possível
arranjar-se entre os selvagens brasileiros, um grande carregamento de
pau-brasil para dois ou três navios? Se era! E combinamos. Eles me
mandariam deixar entre os tupinambás, eu lhes forneceria o
carregamento de pau-brasil que quisessem. E, numa noite, Paraguaçu e
eu saímos de Paris, para embarcar no porto de Saint-Malo. Não era fuga,
pois ninguém nos guardava (...) (Corrêa, 2002 pp. 82-84).
Muitas informações referentes à vida e à obra de Diogo Álvares foram
extraídas de Caramuru: poema épico de descobrimento da Bahia, escrito pelo frei
Santa Rita Durão, obra construída em dez cantos, no estilo camoniano, no ano de
1781. De acordo com Eduardo Bueno, a obra tornou-se referência e até hoje, mesmo
sendo uma ficção, as informações ali contidas são tratadas como fatos históricos.
Sobre o trecho que liquida o Brasil, reproduzimos o Canto VIII, que descreve:
I
Três vezes tinha o Sol no giro oblíquo
A carreira dos trópicos voltado,
E três de Europa pelo clima aprico
Tinha as plantas o abril ressuscitado:
Depois que do Brasil se tinha rico
À França e o nobre Diogo transportado,
Buscando nas viagens meio e lume
Com que reforme o bárbaro costume.
II
Mas da mísera gente na lembrança,
Que lhe excita da esposa a cara imagem,
Meditava deixar a amiga França,
Repetindo a brasílica viagem.
Na generosa empresa não descansa
De instruir a rudeza do selvagem,
E cuida com razão que é humanidade
Amansar-lhe a cruel barbaridade.
112
III
Enquanto nau e embarque negoceia,
Do amigo Du Plessis solicitado,
Foi-lhe do rei francês proposta a idéia
De erguer as lises no país buscado:
Terás (lhe disse, e é fácil que se creia,
Que lho dizia do seu rei mandado),
Terás da França auxílio e tropa imensa,
E maior que o serviço a recompensa.
(...)
X
E sem que ofenda a França a minha escusa,
É bem que esta conquista Lísia faça;
Mas, enquanto a Bahia o não recusa,
Ser-vos-á no comércio a melhor praça:
Cópia de drogas achareis profusa,
E o lenho precioso ali de graça;
E durando eu na pátria obediência,
Serei francês na obrigação e agência.
XI
Admirou Du Plessis no peito nobre
A generoso ardor e o pátrio zelo,
Que a ilustre condição no obrar descobre
Novo motivo para mais querê-lo;
Sem mais receio que o contrário ele obre
Na nova expedição quer sócio tê-lo.
Mas antes de embarcar-se o herói prudente
Avisa o luso rei da empresa ingente. (Durão, 2004, pp. 177-179)
Além dos textos acima, o roteiro do filme tornado livro, é composto por outras
fontes bibliográficas, cuja matriz temática gira mesmo em torno dos assuntos
inerentes ao descobrimento, às expedições marítimas, estudos sociológicos e
antropológicos sobre os habitantes da época, etc. Não houve, por exemplo, citação
que nos remetesse a um estudo mais profundo, especificamente sobre as atividades
de Caramuru e Paraguaçu. Por outro lado, todos descrevem de certa forma, como
ocorreu o processo de entrada dos portugueses no país. Do ponto de vista da
sociologia, em O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil, Darcy Ribeiro
113
fala desse processo civilizatório dos povos germinais, se é que podemos denominar
de “civilizatório” a maneira como a dominação ocorreu. Apesar de um pouco
extenso, o trecho que assinalamos a seguir elenca bem o dito processo de formação
do Brasil, quando comparado também ao trecho do filme:
O processo civilizatório, acionado pela revolução tecnológica que
possibilitou a navegação oceânica, transfigurou as nações ibéricas,
estruturando-as com impérios, mercantis salvacionistas (...) A certa
altura, como aconteceu com todas as civilizações, entram em
obsolescência e se feudalizam, abrindo espaço para um novo gênero de
salvacionismo. (...) Os iberos estabeleceram, assim, os fundamentos do
primeiro sistema econômico mundial, interrompendo o desenvolvimento
autônomo das grandes civilizações americanas. Exterminaram
simultaneamente, milhares de povos que antes viviam em prosperidade e
alegria, espalhados por toda a terra com suas línguas e com suas culturas
originais. (...) Os iberos, se lançaram à aventura do além-mar, abrindo
novos mundos, atiçados pelo fervor mais fanático, pela violência mais
desenfreada, em busca de riquezas a saquear ou de fazer produzir pela
escravaria. Certos de que eram novos cruzados cumprindo uma missão
salvacionista de colocar o mundo inteiro sob a regência católico-romana.
Desembarcavam sempre desabusados, acesos e atentos aos mundos
novos, querendo fluí-los, recriá-los, convertê-los e mesclar-se
racialmente com eles. Multiplicaram-se em conseqüência,
prodigiosamente, fecundando ventres nativos e criando gêneros humanos
(Ribeiro, 2005, pp. 64-67).
Como exposto, os fatos primam pela crueldade. Porém a aproximação da
França se dá por causa da importância que ganha o pau-brasil para os europeus,
marcando tanto a quebra (de certa forma) da hegemonia portuguesa com o início do
processo de pirataria com a “intensa demanda por corantes naturais, provocada pela
indústria têxtil local” e, especialmente pela recusa de Inglaterra e França em aceitar
como juridicamente válida, a “partilha planetária feita em 1494 entre Portugal e
Espanha”, ou seja, o Tratado de Tordesilhas (Bueno, 1998, pp. 90-91). No filme,
apesar disso não ser narrado, é demonstrado na parte documental, somente no tocante
às questões da moda requerida pela aristocracia européia da época, por causa do
impacto causado pela cor vermelha na coloração dos tecidos.
114
Da mesma forma em que o filme gira em torno de versões também inventadas,
a lenda nele contida gira em torno de um único personagem, o de Caramuru, o que
tornou Paraguaçu menos importante dentro do contexto das celebrações. Seria esta
uma ênfase preconceituosa, que privilegia somente o ponto de vista do Europeu em
detrimento da história do índio? Ou o índio, suas lendas, mitos e histórias na forma
de representação cultural e símbolo nacional só servem para serem ilustrados de
maneira lúdica e grotesca nas celebrações do carnaval, com a ênfase dada às
fantasias e alegorias desenvolvidas para a ocasião?
No primeiro caso é possível que haja um posicionamento preconceituoso, mas
não o podemos afirmar. Por isso, partimos do princípio que tenha sido esta, mais um
posicionamento relativo à opção dos autores. Porém, numa análise mais bem
apurada, Eduardo Subirats (2001), consegue nos dar pistas para que compreendamos
este fato, a partir da frase de Salvador Dalí: “Os simulacros podem facilmente
assumir a forma da realidade e esta, por sua vez, se adaptar às violências dos
simulacros” (Dalí, Salvador. Rétrospective, op. cit., p. 277 apud Subirats, 2001, p.
33). Segundo ele, esta sentença nos conduz a duas pistas importantes. A primeira
ligada à “exaltação metafísica do artista como artífice dos simulacros”. Neste
contexto, a elevação do artista faz com que a arte desempenhe um papel
“transestético” e se torna, assim, uma espécie de “agente civilizador” da sociedade. A
segunda pista, segundo ele, está ligada ao que Dalí determinou como sendo uma
conseqüência da “falsa alquimia artística do real”. Trata-se, portanto da própria
violência, conforme nos diz Subirats:
O significado comum da abstração com criação a partir do nada,
esgrimido pelos pioneiros das vanguardas artísticas do século XX, supõe
um âmbito de ação que, nesse sentido, vai além dos limites tradicionais
da representação e da experiência artísticas (...). O novo poder artístico é
115
uma força revolucionária em certos casos, um princípio regulador em
outros, o ponto de partida, enfim, da nova organização do cosmo
civilizador. Seu sentido é globalizador: compreende das mais delicadas
expressões emocionais à organização global dos espaços urbanos e ao
projeto do destino histórico dos povos (Subirats, 2001, p. 32).
Este posicionamento que privilegia o ponto de vista do estrangeiro dentro do
contexto do filme, também foi externado nas comemorações do IV Centenário.
Conforme Lúcia Lippi Oliveira (2000), a organização dos festejos em 1922 foi
dividida entre “a versão européia e portuguesa e a versão americana e brasileira, mas
o que acabou sendo predominante foi mesmo a valorização da herança portuguesa,
branca e européia, que ligava o passado brasileiro à herança ocidental desde a sua
fundação”. Com esta ênfase dada à valorização do outro, no caso, do estrangeiro, não
é de se estranhar que Diogo Álvares tivesse tido também maior destaque no filme. Já
o nosso segundo questionamento, ao que consta, ele vem se tornando prática
constante culturalmente mesmo entre nós, brasileiros, e corrobora com o que já havia
preconizado Bakhtin sobre as análises que desenvolveu das obras de Rabelais. Sobre
o fato, nos diz Muniz Sodré e Raquel Paiva (2002) que com o termo
“carnavalização”, Bakhtin “amplia a acepção desse fenômeno, que ganha também
foros trans-históricos”. Lúcia Lippi Oliveira também ilustra um trecho da entrevista
concedida a Hélio Gaspari, no jornal O Globo, de 16 de abril de 2000, pelo
historiador Evaldo Cabral de Mello, da qual extraímos o seguinte trecho:
Toda vez que se organiza uma comemoração do passado, o que se
está comemorando é uma visão do presente. Desde o começo, essa festa
teve uma raiz popularesca, superficial, destinada a carnavalizar o Brasil.
(...) Desde o século XVI, Portugal nunca esteve tão bem. Eles festejam o
descobrimento com iniciativas de alto nível. (...) É uma pena que o
Brasil, com sua cultura precária, só consiga se expressar por meio de
efemérides. (Oliveira, 2000, pp. 183-202).
116
Além desse aspecto temos que ressaltar que de acordo com a autora, no mesmo
jornal (O Globo), do dia 14/03/2000, Arnaldo Jabor menciona que “o carnaval quer
fundar um novo país ao avesso, avesso a autoritarismos, avesso à tragédia da
pobreza”, e conclui: “No carnaval estão nossas três raças celebrando uma grande
suruba colorida e fecunda - negros brancos e índios à luz a um grande bebê mestiço e
gargalhante”. Completa a autora que esta seria a “aula magna sobre os 500 anos do
Brasil dada pelas escolas de samba”.
Assim, podemos compreender que o destaque dado á personagem da índia
Paraguaçu no filme fica bem caracterizado pela escolha de seu figurino, similar às
fantasias carnavalescas da atualidade ou, de outra forma, quando expõe seu corpo
semi-nu resgatar a visão genuína que os próprios europeus tinham do Novo Mundo.
Esta visão é destacada por Subirats: “O que a Europa do Renascimento descobriu no
Novo Mundo foi, em primeiro lugar, o Paraíso, isto é, o homem edênico, livre do
pecado, da culpa e das constrições sexuais e sociais impostas em seu nome”
(Subirats, 2001, p. 65). No filme, essa visão do Éden é destacada, tanto nas paisagens
como nas formas das duas índias, Paraguaçu e Moema. Porém, do ponto de vista da
cultura indígena, o filme realça somente a “hospitalidade tupinambá” aos franceses,
no qual a atitude expressada pelas índias é livre de preconceitos. A obra De cunhã a
mameluca: a mulher tupinambá e o nascimento do Brasil, escrita por João Azevedo
Fernandes (2003), trás uma série dos hábitos cultivados pelos indígenas na ocasião,
em especial àqueles cujos tributos eram desempenhados pelas mulheres. A título de
exemplo, de como as relações de “cunhadismo” se estabeleciam entre os integrantes
de uma tribo Tupinambá, destacamos o seguinte parágrafo em que o autor explica
melhor sua ocorrência:
117
É a este mundo que se integração os primeiros europeus, náufragos
e degredados portugueses ou intérpretes (truchement) normandos e
bretões, entre outros (...) trata-se do fenômeno da transição entre uma
fase em que os europeus se integram ao mundo indígena como genros
cobiçados por seus presentes, por suas armas e por sua ligação com as
estruturas coloniais de poder, sendo que alguns dentre eles alcançam
inclusive uma situação privilegiada nos próprios termos indígenas,
enquanto doadores de mulheres; em segundo momento assiste-se à
consolidação de algo semelhante à “família patriarcal” descrita por um
Gilberto Freyre, em que o cunhadismo de base Tupinambá desaparece e a
política se camufla nos interstícios da escravidão e do compadrio
(Fernandes, 2003, pp. 27-28).
Porém, em Caramuru, a invenção do Brasil a “hospitalidade tupinambá”
significa nada mais nada menos que o fato das índias servirem os estrangeiros com
sua generosidade sexual. Ou como traz o próprio roteiro quando Paraguaçu fala a
Caramuru: “dar para os franceses” ou, da boca de Vasco para Diogo: “Ah, os
trópicos. Não existe pecado ao sul do Equador”. Desta forma, Paraguaçu e Moema
são rebaixadas a suas condutas no filme, sem qualquer explicação acerca dos hábitos
da época. Ficando mais gravado na memória, suas respectivas “purezas”, em contrate
tanto com o figurino, bem como suas atitudes.
Ilustração 17
118
Para externar ainda mais o pouco destaque dado à Paraguaçu no filme,
considerando o ponto de vista de sua contribuição na construção da lenda,
destacamos que em nossa pesquisa encontramos valiosas informações acerca da vida
dela ao lado de Diogo Álvares. Assim no poema de Santa Rita Durão é possível
encontrar trechos acerca da relação do casal, que não foram destacados ao longo do
filme.
51
Diz a lenda que no retorno de sua viagem à Europa, Paraguaçu já batizada
pelo nome de Catarina, profetiza o futuro da nação de maneira bastante
complementar ao que é descrito no citado livro de Darcy Ribeiro. Em sua visão, ela
descreve as terras da Bahia, suas povoações, igrejas, engenhos e fortalezas. Fala
sobre seus governadores, a luta que se daria contra os franceses e discorre ainda,
sobre o ataque de Mem de Sá aos franceses no forte da enseada de Niterói e sobre a
vitória de Estácio de Sá sobre as mesmas forças. Por fim, numa de suas visões
proféticas, ela tem um encontro com uma Virgem, como sinônimo de coroamento de
sua fé. Nessa visão a virgem pede para que ela erguesse uma capela, na qual seria
difundida a palavra de Deus e ministrados os sacramentos da Santa Igreja, o batismo
e a união através do casamento. Coincidência ou não, em 1535, uma nau espanhola
naufragou em Boipeba e o casal para lá correram a fim de auxiliar os sobreviventes.
Por ocasião, havia notícia de que uma mulher se encontrava em poder dos índios, o
que aguçou a curiosidade feminina de Paraguaçu. No entanto, entre os destroços da
nau os índios encontraram uma imagem de Nossa Senhora. Quando a viu, Paraguaçu
51
Quase ao final de nossos estudos, descobrimos a existência de um livro intitulado Catarina-
Paraguaçu, a mãe do Brasil, na qual esta e outras histórias são ilustradas. O trecho que descrevemos
aqui, foi compilado do site www.cronicasdabahia.com.br/cronica.php?idCronica=71, acessado em
21/07/2006, às 10 h. Sobre a obra que descrevemos, ver; FRANCO, Tasso. Catarina-Paraguaçu - a
mãe do Brasil. Rio de Janeiro, Editora Relume Dumará, 200.
119
abraçou-a e derramou-se em lágrimas, afirmando que se tratava da mesma virgem,
mãe de Deus que lhe aparecera e pedira que erguesse uma capela naquele local.
Em nosso ponto de vista, houve, portanto não somente uma espécie de
falsificação da história a partir da “invenção” de um novo Brasil, mas ao mesmo
tempo um ocultamento, uma tendência a narrar fatos oficiosos que conduziram o
espectador a conteúdos além de grotescos, com ênfases que priorizam a falsificação
da história. Sobre este aspecto, imprime Marc Ferro em um de seus textos que: “todo
filme tem uma história que é História”. (Ferro, 1992, p. 17). E é sobre a História
descartada pelo roteiro e que o cinema não contou de que tratamos neste capítulo,
que buscou, entre outras coisas, mostrar fatos e versões sobre estes mesmos fatos, do
ponto de vista da antropologia, sociologia, da cultura e da comunicação. Vale a pena
destacar que o cinema transformou uma tragédia como a morte dos índios, as
batalhas entre os Tapuias, os Tamoios e os Tupinambás descritas nas copiosas
crônicas acerca da colonização, numa produção que re-configura o sentido da
formação cultural e social do Brasil em algo ridículo, no sentido mesmo de grotesco,
e como se não bastasse, a retratou por meio de uma lenda contada às avessas e, para
concluir, fez uso do gênero comédia para banalizar e carnavalizar nossa identidade.
De forma que, ao abordar o modo brasileiro de elaborar produções
cinematográficas, enfatizamos a forma “Arraes” de fazer cinema, através de criações
narrativas articuladas para envolver o público, utilizando para isso, toda a gama de
recursos estéticos permitidos tanto pela presença do fenômeno grotesco quanto do
gênero dramático comédia, tão bem destacados pelos autores que utilizamos para
indicar as motivações políticas e mitológicas que envolvem a cultura de massa
brasileira. Procuramos ao mesmo tempo construir uma visão de como os meios
120
técnicos de comunicação, em especial o cinema possibilita a
racionalização/destruição da memória. Enfim, neste capítulo, procuramos entender
como os meios de produção e os processos de reprodução e organização da cultura e
o fizemos por meio do entendimento da ótica das celebrações dos 500 anos do
Descobrimento do Brasil, comemorado no ano 2000.
121
CAPÍTULO 3
ANÁLISE ESTRUTURAL DA NARRATIVA
“O que conta é poder submeter uma massa enorme de fatos
aparentemente anárquicos a um princípio de classificação, e é a significação
que fornece esse princípio: ao lado das diversas determinações (econômicas,
históricas, psicológicas), será preciso doravante prever uma nova qualidade
do fato: o sentido.”
Roland Barthes
3.1.Aspectos técnicos inerentes ao objeto
As informações técnicas acerca do filme Caramuru, a invenção do Brasil
limitam-se ao conteúdo obtido na versão lançada em DVD pela Globo Filmes, bem
como, da leitura e análise do roteiro da obra, publicada posteriormente pela editora
Objetiva. Este filme é um longa-metragem, produzido com som e trata-se de uma
ficção enquadrada no gênero comédia. O material original foi gravado em 35
milímetros, colorido e com 110 minutos de duração. A produção foi feita no Rio de
Janeiro, no ano 2001.
A versão em DVD que tomamos por base trás algumas facilidades e benefícios,
se comparada com a exibição realizada pelo cinema. Ela permitir observar o filme
em sua completude ou por cenas (no total são 19), perfazendo uma duração
aproximada de 88 minutos, excluindo-se, portanto, a sua parte documental, que se
somada, chega aos 110 minutos totais. Da mesma forma, permitiu a observação da
parte documental em separado, já que não faz parte do contexto fílmico, mas do
material que foi exibido na microssérie, em 2000.
122
3.2.Estrutura narrativa do filme
Neste tópico discorreremos sobre a estrutura narrativa do filme Caramuru, a
invenção do Brasil. Para esta análise nos serve de guia o modelo estrutural sugerido
por Anna Maria Balogh (1996) em Conjunções, disjunções, transmutações: da
literatura ao cinema e à TV, e também da mesma autora (2002), a obra O discurso
ficcional na TV: sedução e sonho em doses homeopáticas e Aventura semiológica de
Roland Barthes (2001). Porém, para aqueles assuntos relacionados às partes que
constituem todo o aparato cinematográfico responsável pela transformação estética
do roteiro em imagem propriamente dita, e que configura um sentido ao espectador,
nos valemos dos conceitos de alguns teóricos e estudiosos do cinema, como Ismail
Xavier, Sergei Eisenstein, Noel Burch e André Bazin.
De acordo com a jornalista e pesquisadora Yvana Fechini
52
, Caramuru, a
invenção do Brasil inaugura “uma nova lógica de produção no mercado audiovisual
brasileiro”. Além das questões mercadológicas que envolvem o grande impulso de
bilheteria alcançada por Guel Arraes com mais este filme, há também a lógica
referente ao fazer cinematográfico que caracteriza seu estilo de produzir e criar que
ensejam um novo processo marcado pela diferenciação na maneira de elaboração.
Por sua vez, ao se realizar uma adaptação propriamente dita de um clássico do
campo da literatura para o do cinema, Balogh (1996) nos informa que lidamos com
um objeto cuja substância expressiva é homogênea. Desta forma, a partir do
momento em que ocorre uma adaptação para o campo das imagens, em especial as
do cinema que são imagens em movimento, a tratativa dada aos elementos
52
Tomamos por base o artigo da autora intitulado Montagem e remontagem na produção audiovisual
de Guel Arraes, apresentado e publicado no XXVII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação
(Intercom), ocorrido de 31/08 a 04/09/2004, do qual participamos como ouvinte.
123
constituintes da narrativa é pautada pelo campo da heterogeneidade. Neste caso, sua
forma expressiva para manifestar-se leva em conta outros fatores, tais como o som,
os ruídos de ambiente, a fala dos personagens, etc. “Trata-se, em última instância, de
‘contar a mesma história’, explorando os recursos técnico-expressivos de um outro
meio (suporte); recursos que são diferentes, portanto, daqueles com os quais foi
concebida”, nos informa ainda Yvana Fechini. Levando isso em conta, então, este
filme não pode ser considerado uma adaptação, mas um objeto híbrido, fruto de uma
convergência midiática e que, além da heterogeneidade que caracteriza o cinema (a
mídia que o materializa e, portanto seu suporte), contamos ainda com o fato da
estrutura narrativa se apoiar em vários eventos históricos já sedimentados, com a
cultura oral que proporcionou o conhecimento da lenda e também da própria ficção,
como é o caso tanto da lenda como também do conto de Viriato Correia e do poema
épico de Santa Rita Durão. Para melhor esclarecimento, nos informa Balogh:
Na prática se reconhece como adaptado o filme que “conta a
mesma história” do livro do qual se inspirou, ou seja, a existência de uma
mesma história é o que possibilita o “reconhecimento” da adaptação por
parte do destinatário (Balogh, 1996, p. 45).
Somando-se a esta conceituação, acrescentamos o seguinte pensamento de
Antonio Adami (2003):
Adaptar, transmutar de linguagem, transladar, enfim, experimentar
de novo uma obra em uma outra linguagem diferente daquela em foi
concebida, originalmente, é uma forma de recontar uma história.
Obviamente o conceito é limitado e dificilmente dará conta de todas as
possibilidades e variáveis que podem ser contadas estas histórias
originais. Podemos produzir uma adaptação de uma obra, respeitando
tempo, espaço, personagens etc.; podemos inclusive adaptar no interior
de um gênero ou entre vários gêneros, em diferentes veículos; também
podemos produzir uma adaptação a partir de uma parte da trama e não
toda ela e, inclusive, a partir de uma trama paralela do texto de partida, se
esta possibilitar uma adaptação. (...) Contar história é sempre mágico
(Adami, 2003, pp. 86-91).
124
Com base nestes dois conceitos, é possível reconhecer que tanto em uma
quanto em outra versão (TV ou cinema) a história que analisamos, nos leva a
caracterizá-la, em um objeto híbrido graças à possibilidade de convergência entre
duas mídias. Assim, se ele não é uma adaptação literária, é uma adaptação de
linguagem de mídia, pois, neste caso, o cinema se apropria da mesma base que
constituiu a microssérie e trabalha com o fator tempo para incorporá-la. Quando
dissemos que não é adaptação, ao mesmo tempo consideramos que sim, pois, na
ausência de um sentido diferente para caracterizar esta espécie de convergência
midiática entre uma mídia e outra, o denominamos desta forma. Assim, quando
necessário, faremos uso do termo para referenciar somente esta situação: sua
migração da TV para o cinema.
Com isso, deduzimos que a base da análise desta narrativa, o seu ponto inicial e
sua base constituinte é a lenda e a mídia de que se serve, é a televisão. Já o seu ponto
terminal, se dá sobre a mesma base, a lenda, mas ocorre no cinema. No caso, ambas
as mídias são caracterizadas pela heterogeneidade que destacamos, dada a vasta
habilidade de incorporação de outros efeitos que não somente o da imagem em
movimento.
Contudo, analisar os procedimentos narrativos e discursivos inerentes à lógica
de construção de um objeto fílmico, só tornou-se possível graças à teoria geral dos
signos detentora ao longo dos tempos de um grande avanço quanto às análises
possíveis nos estudos da narrativa. Assim, segundo Balogh (2002), um objeto
cultural é constituído de uma narrativa quando sua estrutura é organizada dentro de
uma seqüência em que se pode presenciar a ação dos personagens. Para tanto é
necessário:
125
a) que a estrutura apresente um “começo e fim, entre os quais se configura
gradualmente um efeito de sentido”;
b) possua “um esquema mínimo de personagens” que em suas intenções
manifestem interesses contrários;
c) que estes personagens possuam “algum tipo de qualificação” que venha a
distingui-los;
d) que as ações destes personagens dêem “andamento à história e mostrem as
relações entre os mesmos”;
e) que o tempo da ação seja distinto a ponto de se perceber um “momento
anterior” e um “momento posterior” e;
f) que “essa correlação entre a temporalização e os conteúdos” constitua um
“arcabouço narrativo”.
Além disso, segundo André Bazin (1989), graças ao “conteúdo plástico da
imagem”, obtida com o cinema, e aos “recursos da montagem” de que ele fez uso, é
possível compreender como são elaborados os procedimentos que impõem aos
espectadores a “interpretação do acontecimento representado” na grande tela. Assim,
a plasticidade se dá não somente pela observação destes aspectos, mas também, pelos
enquadramentos e movimento de câmera na ação representada.
Esta característica da qual o cinema se apropriou, ele a tomou emprestada,
tanto da vocação de contar histórias que era antes pertencente ao ambiente literário e
também do espaço reservado à representatividade advinda do teatro. Portanto,
somadas as especificidades técnicas próprias de cada meio (literatura e teatro), o
cinema também conseguiu dar forma a este filme, produzindo nele, o efeito de
imitação da realidade, através de elementos como a montagem. Ou seja, por meio
126
deste artifício, Guel Arraes conseguiu elaborar uma estrutura modular para a
narrativa, possibilitando a adaptação da microssérie neste filme.
Porém, antes de continuarmos nossa análise, é necessário apresentar o filme,
motivo pelo qual, passamos a introduzir os personagens da história, suas
qualificações e relações. Depois, passaremos à sinopse, para que seja possível
entender a história e como ela ocorre em 1500. Feito isso, retomaremos nosso estudo
a partir da análise e interpretação do sentido (ou sentidos) da narrativa dentro do
contexto da estrutura em que foi configurada e, finalmente, realizaremos a
decupagem de um trecho específico, reservado para a aplicação da decupagem
clássica de cinema.
3.3.Apresentação, qualificação e relação dos personagens
De acordo com Muniz Sodré (2001), a TV utiliza diversas estratégias para criar
interesse no espectador para sua programação. Uma delas é delimitar o “espaço
familiar”, levando sua atração até o público. Desta maneira os artistas tornam-se cada
vez mais conhecidos e, aos poucos, ocorre uma identificação tal com eles que se
criam as bases para uma espécie de “familiaridade instaurada por seu rosto” (Sodré,
2001, p. 61). Caramuru, a invenção do Brasil trouxe um elenco bastante conhecido
do público televisivo nacional, o que de certa forma, facilitou a estratégia de utilizar
artistas já conhecidos e consagrados antes na “telinha” para dar uma roupagem
popular posteriormente, na grande tela. Vejamos então quem são e como foram
127
caracterizados os personagens nesta comédia romântica, que viveram na época em
que se deu o Descobrimento do Brasil.
Diogo Álvares/Caramuru (Selton Mello): É o protagonista cuja lenda torna-se
o programa narrativo de base desta história, portanto a espinha dorsal, sem o qual ela
não existiria da forma como foi concebida: sobre a sua lenda. No filme ele é um
pintor português (que vivia em Portugal) bem articulado verbalmente, porém de
caráter ingênuo, sonhador e mal sucedido em sua profissão. Por não ter seu talento
reconhecido pela aristocracia da época passa a trabalhar na cartografia real,
ilustrando os mapas secretos das expedições marítimas. Tem um ponto fraco: as
paixões súbitas. É iludido num relacionamento e vê-se envolvido num logro
articulado pela amada Isabelle (Débora Bloch), que se torna o seu objeto de
conquista. No entanto, entre outras coisas, ela encarrega-se de sua condenação,
prisão e degredo, sendo levado em uma das naus da expedição conduzida por Pedro
Álvares Cabral que naufraga e o conduz ao Brasil. Sua chegada é marcada pelo
encontro com duas índias Tupinambás pelas quais se apaixona novamente e ao
mesmo tempo. Pouco habilidoso com armas de fogo, sem querer dá um disparo com
uma e é designado pelos índios de “Filho do Trovão” ou Caramuru como passa a ser
conhecido. Pelo feito, ganha a simpatia dos índios e entra para a história, tornando-se
lenda por ter sido o primeiro estrangeiro a habitar o Novo Mundo e a desposar uma
índia, num mundo ainda selvagem.
Paraguaçu (Camila Piganga): Transforma-se num objeto de desejo de nosso
protagonista num segundo momento. Ao lado dele seu papel ganha importância.
Brasileira, nascida na região da Bahia. Índia da tribo dos Tupinambás e filha mais
velha do cacique Itaparica é a primeira personagem que toma contato com Caramuru
128
no Novo Mundo. Bonita, sensual, dengosa, livre de preconceitos, altamente curiosa e
eloqüente. Irmã da caçula Moema (Débora Secco) a quem ensina todas as habilidades
para assediar, encantar e prender os homens, preparando-os para o ritual
antropofágico. Apaixona-se por Caramuru e pelo seu mundo, fugindo com ele para a
Europa. Lá conhece Isabelle, que estava à espera de Diogo. Porém, passa-lhe um
golpe e lá mesmo na França se casa com Diogo, tornando-se Catarine du Brèsil. Sua
curiosidade e fácil aprendizado levam-na a aprender o idioma e a escrever um livro
sobre a sua história de amor e as aventuras ao lado de seu amado.
Moema (Débora Secco): Da mesma forma que Paraguaçu é também objeto de
desejo de Caramuru e motivo de sua grande inquietação. É índia pertencente à
mesma tribo tupinambá e irmã caçula de Paraguaçu, de quem puxou os predicados
da beleza, da curiosidade e da libidinagem. Do pai herda a esperteza, a malandragem.
Encanta-se por Caramuru e é estimulada pela irmã a fazer a corte aos estrangeiros,
uma espécie de “hospitalidade tupinambá”. Com o seu envolvimento com Diogo
ocorrem dois fatos: antes da fuga de Caramuru e Paraguaçu, estabelecem-se o
primeiro triângulo amoroso que se tem conhecimento na história do Brasil e, depois,
com o retorno deles já casados, a primeira relação de traição pós casamento, pois
acaba por tornar-se amante de Caramuru com o apoio da irmã.
Cacique Taparica (Tonico Pereira): Chefe da tribo Tupinambá, pai de
Paraguaçu e Moema; sogro de Caramuru. É extremamente preguiçoso, malandro e
divertido. Lembra a figura ontológica do bobo da corte. Com a chegada dos
saqueadores franceses, desenvolve mais uma habilidade, o seu perfil de biscateiro e
vendedor de bugigangas na orla da praia. Torna-se um negociador nunca antes visto
129
e cúmplice de Vasco nas negociações com os franceses que culminariam na famosa
“liquidação” do Brasil.
Vasco de Athayde (Luís Mello): De família nobre, tinha por profissão, assim
como Cabral, o fato de ser navegador. É também preconceituoso, invejoso, mau-
caráter, ganancioso e traidor de sua pátria, Portugal. É o primeiro vilão que aparece
na história e persegue Diogo Álvares a mando de Isabelle, sua amiga. Depois, alia-se
aos franceses ao perceber que a aproximação dele e da França a Diogo traria a ambos
uma grande vantagem. Sua proposta inicial é roubar o mapa da expedição de Cabral
e alterá-lo para chegar antes dele às Ilhas Canárias. Acometido pelo mesmo
naufrágio em que conduzia o degredado Diogo, chega também ao Brasil, sem não
antes, tentar matá-lo de todas as formas. Torna-se um anti-sujeito de nossa história e
o responsável por re-introduzir Diogo e Paraguaçu aos hábitos da corte devido ao
seu interesse de reaproximação. Por seu intermédio Paraguaçu e Diogo chegam à
França e acabam se casando. Ao final, ele acaba prendendo a amiga Isabelle quando
descobre que ela armava um golpe para traí-lo.
Isabelle (Débora Bloch): Cortesã francesa preconceituosa que pauta sua vida e
conduta em prol do luxo e da luxúria, riqueza, roupas, intrigas e todo grau de
futilidade. É a vilã ao lado de Vasco de Athayde, responsável pela armadilha de
“amor” que seduz Diogo Álvares fazendo-o articular o roubo do mapa da cartografia
real. É, portanto, astuta e malvada, também pode ser considerada um anti-sujeito na
narrativa. É prometida a Diogo pelo rei da França, que visa interesses específicos no
Brasil com o retorno de Diogo à Europa. No entanto é passada para trás por
Paraguaçu ao conhecê-la durante a viagem com Caramuru.
130
D. Jaime (Pedro Paulo Rangel): Não se sabe sua origem de nascimento.
Porém, é corcunda, desajeitado e indeciso quanto à própria personalidade que forja a
todo instante para que não seja reconhecido. Sua aparência é seu ponto fraco e maior
subterfúgio. É cartógrafo do rei e chefe de Diogo, mas prefere não ser. Por fim,
envolve-se na disputa que provocará o degredo dele ao Brasil. Após a prisão de
Diogo o personagem não aparece mais.
Heitor (Diogo Vilella): Dele sabe-se somente que é um típico “garoto esperto
com 20 anos de praia” e representa o “mochileiro” de outras épocas. Vive a vida
como degredado e a vida assim vai levando. É um descompromissado com as coisas
e com qualquer tipo de causa. Seu interesse único é decorar as leis locais para depois
poder infringi-las e com isso ser condenado e degredado. Ou seja, arma situações
para que possa viajar de um lugar a outro e assim realizar o sonho de conhecer o
mundo. Está na mesma nau que Diogo e articula uma farsa para que Diogo saia da
nau. Porém a artimanha é descoberta. Heitor tem sua pena dobrada, o que o faz feliz
da vida, já que criou a situação perfeita para continuar viajando. No entanto não
sabemos o seu fim, pois ocorre um naufrágio e ele não aparece mais na história.
3.4. Apresentação do objeto: sinopse
Esta história narra a lenda de Caramuru, o degredado que teria nascido em
Viana do Castelo, norte de Portugal, em 1475, e chegado às costas brasileiras por
volta de 1510, apaixonando-se e casando-se com a índia Paraguaçu, da tribo dos
Tupinambás. Tudo começa em Portugal, onde Diogo (Selton Mello) é repreendido
131
por Vasco (Luis Mello) por pintar um quadro que faria com que ele se apaixonasse
pela personagem nele representado. Ao noivar-se a distância e depois vir a conhecer
a dama, teve a sua grande decepção: a noiva era horrível e em nada tinha a ver com o
retrato. Após isso, passa a perseguir Diogo fazendo com que queime todos os seus
quadros. Sem ofício de pintor, Diogo arruma emprego na cartografia real. Durante
este período é procurado por Isabelle (Débora Bloch), por quem se apaixona à
primeira vista. Porém, conhecendo-a, começa também o seu martírio. Primeiro,
rouba o mapa da expedição de Cabral da cartografia real onde trabalhava para assim,
adorná-lo com a imagem de sua amada Isabelle. Apaixonado, não enxerga a trama
em que está prestes a ser envolvido: ela o seduz, rouba-lhe o mapa e o denuncia à
corte. Graças à habilidade de D. Jaime, chefe da cartografia real, em conferir a
denúncia no ato, este o pega em flagrante e ele é condenado ao degredo. Isabelle
encontra-o depois com a desculpa de que fugiu com o mapa para salvar a obra de arte
(o mapa verdadeiro) simulando o seu desejo de que ele o concluísse durante a
viagem. Porém, ao amigo e malvado Vasco de Athaíde (Luís Mello), entrega uma
cópia falsa do mapa, para que o dê a Cabral, pois este tem ampliada a rota da
expedição, fazendo com que Cabral chegasse muito depois ao seu destino,
favorecendo assim, Vasco e a ela própria. Na nau, DiogoIsabelle pela última vez
e fazem juras de amor eterno. Já Vasco percebe que o mapa verdadeiro estaria com
ele e trata de tomar-lhe aquela preciosidade. Durante a viagem Diogo conhece
Heitor, outro degredado bastante acostumado às leis e às condições do degredo que
ajuda a simular uma situação para que fosse expulso da nau, pois o desejo maior de
Diogo era voltar para os braços de Isabelle. Assim, ele faz com que Diogo se vista de
mulher para que seja deportado na primeira parada da viajem. O truque não funciona
132
já que Vasco logo descobre a artimanha, fazendo com que sua atitude aumente ainda
mais a sua fúria contra Diogo. Uma grande tempestade os acomete e a caravela
naufraga, salvando-se Diogo e Vasco. Contando somente com a sorte, avistam terra,
mas somente Diogo as alcança, já que sendo ameaçado por Vasco, não tinha o
mínimo interesse em sua companhia, fugindo sozinho e deixando o malvado à
própria sorte. Chega a uma praia e tem o seu primeiro encontro com a índia
Paraguaçu, com quem tem um relacionamento amoroso e apaixona-se (de novo) à
primeira vista. Ela o apresenta à tribo liderada pelo cacique Taparica, que também é
o seu pai e à irmã caçula, Moema a quem aconselha acolher o prisioneiro, dar-lhe
carinho, atenção e principalmente o que de comer, pois a tribo tem em vista o seu
próximo jantar (o próprio Diogo). Ele percebe a cilada e como por um acaso,
encontra uma arma e dela solta um disparo, passando a ser venerado e denominado
pelos índios de Caramuru, “Filho do Trovão”. Desta forma deixa de ser manjar para
os índios e passa a ser “manjado” pela corte francesa que envia suas naus para fazer
comércio com os tupiniquins. Taparica vê na proposta um grande negócio e tenta
convencer seu futuro genro para selarem o acordo. Como Caramuru -se saudoso
da terra natal, apaixonado pelas duas irmãs e diante de um grande dilema segundo
sua formação cristã, ele negocia com os franceses o seu retorno à Europa onde
finalmente reencontraria Isabelle sua primeira paixão. Ao perceber sua fuga
Paraguaçu o persegue, a nado. Imitando o gesto da irmã, Moema lança-se ao mar,
mas não consegue chegar à nau, ficando para trás. Na Europa, Paraguaçu, uma
selvagem, recebe aulas de Diogo para adquirir atitudes mais civilizadas. Ali toma
conhecimento de Isabelle e de seu casamento com Diogo. Enciumada, seduz Isabelle
com ouro. Facilmente ela concorda em tornar-se índia e amante, e fazer de
133
Paraguaçu a esposa nobre e oficial. Consumado o casamento, Diogo e Paraguaçu
retornam ao Brasil. Ela escreve um livro em que registra a sua aventura e o final
desta história, na qual eles vivem felizes para sempre. Fim.
3.5.O sentido no filme Caramuru
Feita a introdução do filme e seus personagens, retomamos a análise estrutural
da narrativa a partir do sentido (ou sentidos como dissemos) que ela preconiza. Nessa
pesquisa detectamos que tanto na TV como no cinema o objeto foi produzido com
base em elementos históricos, portanto, por este aspecto, já era passível de inúmeras
interpretações. Além disso, há outros textos que se somam a esta história e que dão
uma tonalidade especial ao filme e que são os responsáveis por fundamentar
culturalmente o fio condutor da estrutura narrativa deste objeto. Fazem parte deles os
textos históricos e literários que narram o ocorrido no período do descobrimento do
Brasil, faltam também acerca da lenda e, ao fazê-lo, introduzem a parte ficcional da
história (além de alguns já citados, há cerca de outras trinta obras elencadas no livro
roteiro publicado no ano 2000).
Por outro lado, os elementos fruto da inventividade do autor também podem
ser considerados vestígios que agregam sentido à esta narrativa a partir da ordenação
sintática que se elabora e que repousa sobre estas bases narrativas, portanto, o teor
criativo que tem por inspiração a base literária que lhe serviu de modelo. Assim, uma
vez reunidos os elementos históricos e as informações ficcionais, tem-se a base que
134
constituiu toda a estrutura formadora do sentido do filme bem como o tom da
narrativa, segundo o gênero dramático comédia, que foi o selecionado pelos autores.
Com base nisso, deduzimos que para compreender o filme devemos considerar
toda a sua estrutura literária, mas é especialmente em sua parte histórica, que ocorre
a possibilidade de melhor entendimento de seu sentido e significado. Há nestes
trechos referências clássicas da história que narra sobre um contexto vivido no
passado e, uma vez que seus elementos constituintes são inseridos no programa
narrativo de base, eles complementam o objeto em si, permitindo ao espectador uma
maior fruição da obra e seu sentido. Assim, muitos desses conteúdos quando
externados auxiliam no resgate, por parte do espectador, de assuntos de sua base
cognitiva elementar. Se não inteiramente, ao menos em parte, mas referem-se a
conceitos já apreendidos e que versam, entre outras coisas, sobre as expedições
marítimas que culminaram no descobrimento do Brasil, o encontro do índio e do
branco, o interesse do europeu na exploração das riquezas do Novo Mundo, a própria
lenda de Caramuru e Paraguaçu, os hábitos e culturas indígenas da época, como por
exemplo, o canibalismo, o princípio da colonização do Brasil, etc.
Contudo, no filme, estes elementos tomam a forma de complemento
informativo dessa história, uma vez que o fio condutor da estrutura narrativa é a
lenda, ou seja, ela é o que denominamos de programa narrativo de base sob a qual se
amarram todas as demais tramas que envolvem tanto o personagem principal Diogo,
como os demais que com ele se relacionam. Assim, é possível compreender porque o
filme começa com Diogo Álvares e termina com Caramuru e Paraguaçu. Apesar
disso é importante considerar novamente, que os fatos históricos somente
135
contextualizam o filme dentro de uma determinada época em que se passou esta
história, mas devem ser considerados elementos acessórios à trama principal.
Indo além do hibridismo que caracteriza a base da adaptação (da TV para o
cinema), também a lenda que permeia a narrativa pode ter sofrido várias alterações
ao longo do tempo, já que tradicionalmente, a base para que seja transmitida é a
oralidade. Assim é possível dizer que falar de sentido nesta análise é também falar de
múltiplas interpretações, motivo pelo qual nossa abordagem, parte do ponto de vista
de observação da estrutura e não de um posicionamento crítico. Para tanto,
procuramos seguir a orientação de Roland Barthes (2001), segundo o qual, ao
realizar uma análise de narrativa não se deve buscar significados plenos, mas a busca
pelo ponto de partida rumo a um código. Para ele, “sentido” é:
(...) todo tipo de correlação intratextual ou extratextual, isto é, todo
traço da narrativa que remete a outro momento da narrativa ou a outro
lugar da cultura necessário para se ler a narrativa: (...) todas as ligações,
todas as correlações paradigmáticas e sintagmáticas, todos os fatos de
significação e também os fatos de distribuição. Repito, o sentido não é
então um significado pleno, tal que eu poderia encontrá-lo num
dicionário, mesmo que fosse ele da Narrativa; é essencialmente uma
correlação, ou o termo de uma correlação, um correlato, ou uma
conotação. (Barthes, 2001, p. 260)
Com isso, (repetimos) entendemos que o filme Caramuru: a invenção do
Brasil pode ser considerado um exemplo de como uma narrativa pode sofrer
inúmeras interpretações e inferências. Possibilidades estas, aliás, obtidas pela
variedade de linguagem e suporte em que se apoiou ao longo do tempo, permitindo
sua (re)interpretação pela história, pela literatura, por vias orais e mais recentemente,
pela linguagem televisiva e cinematográfica. E a partir dessas duas linguagens, Guel
utilizou tanto o artifício da filmagem em módulos como o recurso da montagem e
136
com isso, obteve a adaptação com a convergência das mídias, sem a perda do sentido
original da obra de base, a microssérie.
No trabalho de análise das microsséries e dos filmes O auto da compadecida e
A invenção do Brasil, realizado por Yvana Fechini, ela observa que compreender o
sentido através dessa estrutura de montagem, pressupõe a idéia de como estas obras
foram concebidas e desenvolvidas para o ambiente audiovisual. Segundo ela:
Na análise de um programa de TV ou de um filme, a montagem
pode ser compreendida, enfim, como o modo de articulação (interligação
ou interrelação) das partes em um todo, nos diferentes níveis de
organização textual: da articulação de planos numa seqüência fílmica
(nível discursivo) à articulação de segmentos narrativos num percurso
unificador (transformação dos estados de sujeitos cujas ações se
entrelaçam no curso de narrativa englobante como um início, um
desenvolvimento e um ponto final). (Fechini, 2004).
Assim, percebemos que toda a estrutura narrativa foi pensada durante o
processo, ou seja, desde o roteiro, a filmagem e a edição, como se já estivessem
estabelecidas as diversas relações responsáveis pela produção de sentido e sem que
isso fosse afetado quando da transformação do objeto televisual para o
cinematográfico (microssérie a filme). De fato, essa estratégia, há muito já era
utilizada pelo cineasta soviético Sergei Eisenstein. Para ele (2002) a montagem
permitia a “coexistência simultânea de detalhes”, que uma vez ordenados e
justapostos davam à obra um sentido mais realista “como nas artes”. Desta forma
Eisenstein exprime o seu pensamento:
A montagem tem um significado realista quando os fragmentos
isolados produzem, em justaposição, o quadro geral, a síntese do tema.
Isto é, a imagem que incorpora o tema (...) Diante da visão interna, diante
da percepção do autor, paira uma determinada imagem, que personifica
emocionalmente o tema do autor. A tarefa com a qual ele se defronta é
transformar esta imagem em algumas representações parciais [grifo do
autor] básicas que, em sua combinação é justaposição, evocarão na
consciência e nos sentimentos do espectador, leitor ou ouvinte a mesma
137
imagem geral inicial que originalmente pairou diante do artista criador
(Eisenstein, 2002, p. 28).
Portanto, neste filme, o processo de montagem ganhou importância por
evidenciar os procedimentos narrativos e discursivos antecipando-se às necessidades
de transmissão da informação para o meio audiovisual e, por consegüinte, para o
espectador. Portanto, da técnica de elaboração de sentido. Ao reordenar a seqüência
narrativa da TV para o cinema, Guel Arraes preocupou-se em subtrair da microssérie
partes que não eliminassem seu sentido já que na TV (incluindo a parte documental),
o objeto era seriado e no cinema, sua adaptação deu-se em função da limitação do
tempo, que regula a exibição de filmes, numa duração que varia entre duas a três
horas de transmissão. Por essa estratégia, Yvana diz que ele “concebe a sua
montagem não tanto como um arranjo sintático”. É possível, segundo a autora,
“observar um exercício de exploração semântica”, a partir da dualidade estabelecida
com a expansão/supressão, aparecimento/desaparecimento de algumas cenas da
seqüência narrativa nas quais são firmadas determinadas ações dos personagens.
Para compreender o sentido, portanto, Roland Barthes (2001) fala da
necessidade de também decifrar o “código das ações”. De acordo com ele, Lévi-
Strauss e Greimas, estruturaram a seqüência narrativa de forma a estabelecer um
paradigma entre elas e reconstruí-las como “sucessões e oposições”. Desta forma
entendemos que o início está em oposição ao fim, assim como a vitória está para a
derrota e a tristeza para a felicidade.
O período compreendido entre um e outro estado e que é medido e mediado
pelo tempo é o que Barthes designa de “enfrentamento”. Ele cita a existência de uma
seqüência elementar com dois núcleos, do tipo pergunta/resposta e uma outra
desenvolvida com vários núcleos. Em Caramuru, a invenção do Brasil, identifica-se
138
ambas as seqüências. As do primeiro tipo encontram-se, por exemplo, em alguns
momentos em que temos a presença de diálogos bem definidos de ações que ocorrem
em núcleos bem distintos. As do segundo encontram-se praticamente em toda a
extensão da narrativa, ou seja, quando os personagens de outros núcleos se mesclam
com os do primeiro grupo.
De qualquer maneira, partimos da premissa que os autores basearam-se nas
expedições marítimas, para, a partir delas, incluírem um outro elemento que passa a
ser a base desta história, ou seja, a lenda de Caramuru. Assim, o fator comemorativo
dos 500 anos de Descobrimento do Brasil, foi o motivo que desencadeou esta
história. Desta forma o sentido que se postula gira em torno das ações deste
personagem, que quando se relaciona com outros passa a dar uma seqüência lógica
aos inúmeros fatos que culminam num entendimento maior de sua representação na
história para a época vivida, bem como na lenda que inspirou o filme.
Mesmo levando em conta este fato, podemos dizer ainda que apenas algumas
coisas no filme são comuns tanto na história quanto na lenda. Assim, é fato que
Diogo Álvares foi um dos primeiros habitantes brancos a residir no país e instalar-se
nas cercanias da Bahia. Isso é dito na história e também o encontramos no filme, mas
de certa forma, a maneira como foi colocado não afeta a distribuição dos códigos e
das funções porque o sentido que se pretende apregoar quanto à passagem deste
personagem pelo Brasil é o mesmo, já que aqui ele esteve. Um outro conteúdo
bastante conhecido e tratado no filme e também descrito no poema de Santa Rita
Durão, é o do assédio expedicionário português sobre os índios em troca das riquezas
naturais que havia no Novo Mundo. Portanto, entre uma passagem e outra, sempre há
a imbricação de conteúdos históricos e lendários. Porém para facilitar a compreensão
139
do objeto dividiremos a análise do filme de maneira temporal, ou seja, ilustrando a
ação de nosso protagonista (Caramuru) em antes, durante e depois.
O “antes”, diz respeito à estada de Diogo em Portugal e todo o processo que
culminou em seu degredo, o período da viagem em que conhece Heitor (Diogo
Vilella) e vai até o naufrágio da nau. O “durante”, se estabelece com a sua chegada e
convivência no Brasil, ao lado dos índios tupinambá, local em que inicia sua relação
amorosa com Paraguaçu e Moema, deixando a segunda para trás e retornando à
Europa com a primeira. Finalmente, o “depois”, pertence ao tempo em que já está na
Europa e é reintroduzido à corte na França, reencontra Isabelle marca o casamento,
mas casa-se com Paraguaçu e depois, retorna ao Brasil. Por esta divisão na análise,
ao mesmo tempo faremos o estudo do tempo e do espaço em que ocorrem as ações
dentro de núcleos narrativos específicos. Este esquema demonstrará o programa
narrativo de base e os outros programas que interferem no percurso de Diogo.
3.5.1. As fases da narrativa: antes, durante e depois
Na primeira fase, interagem com Diogo Álvares três personagens, de acordo
com a ordem de aparição: Vasco, D. Jaime, Isabelle e Heitor. Seguindo o esquema
proposto por Balogh, a interação com cada um dos personagens antecipa de certa
forma o percurso do personagem dentro dos vários “programas narrativos” que
podem existir numa narrativa. Assim:
Cada narrativa nos mostra um microuniverso de valores que em
geral refletem os valores da própria cultura em que ela se insere. Os
personagens desejam aquilo que é socialmente valorizado (amor,
dinheiro, fama, poder, etc.). Desse modo, os objetos do desejo são, em
140
geral, cobiçados, almejados, por mais de um personagem (Balogh, 2002,
p. 61).
Vejamos como isso ocorre no início de nossa história.
Diogo deseja ser um famoso pintor, enquanto Vasco é da alta aristocracia e já
detém um posto nobre, mas quer se casar. Diogo pintou um quadro no qual ilustrou o
retrato da condessa de Sintra e ganhou da “Academia Real o prêmio de Grande
Promessa da Pintura Portuguesa” e conhece Vasco por causa do quadro. Vasco
ameaça Diogo e diz que a promessa não vai se cumprir, pois quando encontrou a
condessa pela primeira vez descobriu “que era a moça mais feia de Lisboa”, mas já a
havia pedido em casamento. Portanto, aqui temos dois sujeitos e dois objetos de
desejos diferentes e o primeiro conflito instaurado.
Seguindo o pensamento de Balogh, até o momento em que desejava
simplesmente ser famoso, Diogo estava em conjunção (n) com seu objeto (O). Ao
causar uma espécie de falsificação no retrato, causa o primeiro dano em seu percurso,
entrando em disjunção (U) com a sua busca, ou seja, seu “programa narrativo” (PN)
fica ameaçado, já que Vasco descobre o feito. Este personagem aparece dentro desse
PN como um “anti-sujeito” (AS), que tentará a todo custo interromper a carreira
“promissora” de Diogo, como forma de se vingar do dano causado por ele.
A narrativa [N] é uma contínua sucessão de estados de
transformações em que um sujeito [S] estará de posse do objeto (estado
de conjunção S n O) e o outro estará em disjunção com o objeto do
desejo (AS U O) ou vice-versa, ambos estarão lutando pela obtenção do
objeto do desejo (S & AS U O) e assim por diante... (Balogh, 2002, p. 62).
Resultado: Vasco obriga Diogo a rasgar todos os quadros de seu ateliê fazendo
com que este encontre outro tipo de ocupação. Desta forma ele encontra emprego na
cartografia real, local em que conhece D. Jaime, o segundo personagem que aparece
141
na história e que lhe dá a função de ilustrar os mapas da navegação. Diogo entra em
mais um ciclo de busca: a do emprego para a sua sobrevivência.
Tudo corre bem até que Isabelle, uma amiga de Vasco encontra Diogo e pede-
lhe para que também faça o seu retrato, para que fique imortalizada na obra de um
grande artista dentro do maior tema da época: as navegações expedicionárias de
conquista do Novo Mundo. Assim, pede que seja ilustrada no mapa da expedição de
Cabral. Ao que Diogo corresponde, por amor, à primeira vista. Aqui irá se
estabelecer o que Balogh denomina “anti-programa narrativo”, pois esta personagem
(Isabelle) será responsável por envolver Diogo num engodo, cuja sansão será o seu
degredo, culminando em sua chegada, equivocada, no Brasil.
Até aqui, Diogo faz o que faz porque está apaixonado, perdido de amor. Nesta
circunstância, não mede esforços para satisfazer a vontade de sua amada e, por
conseguinte, a dele também. Já que seu ofício originalmente era a de ser um grande
pintor. A proposta de Isabelle, portanto, vem ao encontro da necessidade de Diogo.
Mas, ao agir de maneira impetuosa e inconseqüente, ele é acusado de roubo do mapa
(pela própria Isabelle sem que o saiba), preso e condenado ao degredo numa nau,
comandada pelo vilão Vasco, que partiria rumo à África.
Na nau, após a dramática despedida de Isabelle ele se vê encurralado por
Vasco. Durante a viagem Diogo conhece Heitor (Diogo Vilella), que arma uma
situação hipoteticamente favorável a ele e a Diogo. Assim, propõe que o amigo vista-
se de mulher, para que fosse desembarcado na primeira parada, já que mulheres não
eram permitidas a bordo. Isso proporcionaria dois prazeres: Diogo teria a
possibilidade de retornar à Portugal e reencontrar sua amada Isabelle e Heitor teria a
142
sua pena aumentada e continuaria a viajar às custas da corte portuguesa conhecendo
muito mais lugares, vivendo sua confortável vida de aventuras marítimas.
Desta forma, Vasco é chamado para que averiguar a presença de uma mulher
entre os homens. Após a tentativa de sedução da dama (Vasco tenta seduzir Diogo
sem saber) que não funciona, ele descobre a trama e o manda de volta para o porão.
Contudo, a nau começa a entrar em deriva, pois uma grande tempestade se aproxima.
Vasco é obrigado a chamar Diogo para que lhe explique o mapa que havia
desenhado, evitando com isso, colidir em alguma pedra. Durante a tentativa de
explicação de Diogo, a nau colide e naufraga. Mesmo em meio à turbulência, Vasco
tenta matar Diogo que estava ancorado num pedaço de madeira que sobrou do barco.
Para salvar-se, Vasco propõe uma trégua até que encontrem terra firme. Quando isso
ocorre, o oportunista e vilão, tenta matar definitivamente Diogo, que escapa e se
salva a nado, sozinho, deixando Vasco para trás. Este trecho, está sinteticamente
ilustrado abaixo, para demonstrar a maneira com que as ações ocorreram de maneira
ordenada durante a etapa que identificamos como “antes”. Vejamos:
Ilustração 18
Vasco
conhece
Diogo e o
proíbe de
pintar falsos
quadros.
Diogo conhece Isabelle, que
lhe pede que roube o mapa
para nele ser imortalizada pela
arte. Ele o faz por amor e cai
no seu engodo marcado pela
frieza e interesses escusos
que tem com Vasco.
Diogo é preso
e condenado
ao degredo, e
é conduzido
por Vasco à
África.
Dom Jaime
emprega
Diogo na
cartografia
onde passa a
ilustrar mapas
secretos.
ANTES
Heitor envolve
Diogo em
confusão.
Vasco
descobre. A
nau naufraga.
n
N
143
Na ilustração acima, é possível verificar qual foi o procedimento adotado por
Guel Arraes, na reconstrução e, portanto, adaptação remontada, do objeto televisivo
ao cinematográfico. Entre uma seqüência narrativa e outra, no produto para TV,
havia a inferência pontual de Marcos Nanini, que foi retirada do filme. Segundo
Yvana, o narrador interrompia “o relato da estória de amor de Caramuru e
Paraguaçu, dirigindo-se ao espectador, de modo interpelativo e direto (...)”. Para ela,
a presença do narrador, que não se vê no filme, serviu para na TV, conferir à
microssérie um caráter didático. Assim, ela acrescenta:
Na minissérie e no filme, identifica-se claramente essa narrativa de
base ou narrativa principal, que consiste na busca de conjunção de um
sujeito (DiogoÁlvares) com determinados objetos de valor (amor, fama,
riqueza), enfrentando, nesse percurso, anti-sujeitos poderosos (um
ambicioso traficante de escravos, o mar, os tupinambás).
Assim, na primeira fase, percebemos ficaram evidenciadas as buscas de nosso
herói neste percurso: o amor. Porém, teve de enfrentar os anti-sujeitos que
apareceram para deixar esta estória ainda mais “picante”: Vasco, Isabelle, Dom
Jaime e até o seu mais novo amigo, Heitor. Com esta descrição, evidenciamos o
primeiro núcleo da história: em que surge um simples pintor português que sai de sua
terra para tornar-se personagem principal de uma lenda, no Brasil. Descreveremos
agora, a etapa intermediária, ou seja, a segunda fase e mais longa, que dá estrutura à
base principal da narrativa, na qual identificamos o segundo núcleo: o Novo Mundo.
Deixamos nosso herói nadando, tentando se esquivar de Vasco que nem
ameaçado por um terrível naufrágio o deixou em paz. Porém, Diogo chega a uma
praia exausto... sem que soubesse, pisava pela primeira vez ao sul da Bahia, Brasil.
Ali cai desmaiado e tem suas faculdades mentais recobradas quando é acordado por
Vasco que ainda o persegue e o ameaça com uma arma. Porém sua mão é flechada
144
pelos índios e sua arma cai. Diogo sai correndo e é perseguido também, mas
consegue se esconder. É Paraguaçu quem o encontra, momento em que travam o
seguinte diálogo inicial.
PARAGUAÇU: Oi.
DIOGO: Olá.
PARAGUAÇU: Vieste?
DIOGO: Vim.
PARAGUAÇU: Choveu pouco esse ano, não foi?
DIOGO: Não sei, foi?
PARAGUAÇU: Foi. Tucuruí ta tiririca com Teça, não ta?
DIOGO: Não sei, ta?
PARAGUAÇU: Ta. Sua cara é da cor da sola do meu pé, não é?
DIOGO: Não sei, é?
PARAGUAÇU: Sabe o que foi que o papagaio disso pro
português?
DIOGO: Não sei não, o que foi?
PARAGUAÇU: Você não sabe responder nada! Perguntar, você
sabe, não sabe?
DIOGO: Sei, claro.
PARAGUAÇU: Você respondeu de novo. E perguntar, você sabe?
DIOGO: Sei, já disse que sei.
PARAGUAÇU: Então pare de responder e faça logo uma
pergunta.
DIOGO: Uma pergunta?
PARAGUAÇU: Sim, agora faça outra.
DIOGO: Outra?
PARAGUAÇU: Isso, agora faça outra.
DIOGO: Eu?
PARAGUAÇU: Você não tem pergunta mais interessante para
fazer?
DIOGO: Tenho.
PARAGUAÇU: Então faça logo a maldita dessa pergunta!
DIOGO: Onde é que eu estou?
PARAGUAÇU: Você? Você está com o pé em cima, como é que
eu posso ver? Agora faça outra.
DIOGO: Como é que você fala a minha língua?
PARAGUAÇU: Língua?
DIOGO: Sim, mas agora é sua vez de responder.
PARAGUAÇU: Língua!
DIOGO: Você fala a minha língua.
Dá uma lambida no pescoço de Diogo e vai lambendo o pescoço
abaixo.
DIOGO: E fala fluentemente.
(Arraes e Furtado, 2000, pp. 68-71).
145
Neste diálogo percebemos a ocorrência do estilo Guel Arraes de impingir
velocidade às falas. Há um aparente trocadilho intencional em que se busca mais a
desestruturação da fala por meio da velocidade em que ocorre o diálogo, do que a
ordenação correta das frases. Aparentemente, o objetivo é demonstrar ao espectador
a dificuldade encontrada pelos portugueses ao tentar se comunicar com os índios.
Após o diálogo temos o início de uma aproximação sem precedentes, até que,
algum tempo depois, ao tentar explicar e traduzir sua atração já materializada num
crescente sentimento desde que chegara, eles fazem amor na mata, pela primeira vez
das muitas que se sucedem. E assim começa o romance do casal. Tempos depois de
Diogo ser introduzido à aldeia dos tupinambás, ele realiza sua primeira obra de arte:
ele pinta Moema, que posa para ele. Como era praxe dos tupinambás, o capturado
tinha de ser servido para a aldeia. Portanto Diogo corria risco de virar o prato
principal de um futuro ritual antropofágico organizado pelas índias, que não paravam
de mimá-lo e dar comida a ele para que engordasse o quanto antes. A partir dos
caprichos das selvagens, Paraguaçu instrui a irmã Moema para que dê ao estrangeiro,
toda sorte de “privilégios”. Perturbado, Diogo não entende os costumes do local e
inicia uma tensa batalha moral. Acaba por se render aos caprichos das índias e deita-
se com ambas.
O tempo passa e morando na mesma taba, ele conhece o pai das índias,
Itaparica (Tonico Pereira) que promete por um fim na “confortável” situação de seu
hóspede realizando uma festa, na qual Diogo seria servido à toda tribo. Diogo fica
desolado e tenta de todas as formas dissuadir as índias para causar o desinteresse do
pai. Como não adiantasse, de manhã bem cedinho tenta fugir, mas é seguido pelo
sogro e seus guerreiros. Mas o destino o salva, pois encontra uma arma e com ela
146
dispara, causando “um grande estrondo”, pasmando de vez os índios. E então, ele
torna-se Caramuru, o rei dos tupinambás, o “Filho do Trovão” e torna-se amigo do
chefe da tribo e é empossado por este, genro, momento em que percebemos os
conflitos de interesse entre um e outro. Taparica propõe a Diogo a guerra ao passo
que este, está mais interessado em riqueza, portanto em estabelecer o comércio.
Aos poucos, percebemos que o temperamento de Diogo passa a mudar. Ele
entristece de saudade das comodidades de sua terra natal. E vai frequentemente à
praia para ver se avista algum navio. Até que um dia, isso acontece. Mas é Vasco
quem retorna, desta vez, num tom amistoso e propondo parceria em nome do rei da
França. Desconfiado, tenta não render-se às palavras de Vasco. Porém convencido de
que este seria um bom negócio Taparica aceita o acordo em troca de espelhos e
muitas outras bugigangas. Com a chegada da caravela de Vasco as índias se enfeitam
e decidem fazer a corte aos cavalheiros europeus. Diogo enciumado, zanga-se e as
proíbe de ir “dar para os franceses”. Taparica vendo o genro nervoso, diz que isso é
hospitalidade tupinambá. Diogo nega-se a deitar-se com elas novamente até que
removam tal idéia da cabeça. Ao final, ele permite e percebem que recobrando seu
juízo moral e não poderia impedi-las de deitarem-se com outros homens já que ele
estava com as duas ao mesmo tempo. Diogo é convidado a jantar com Vasco que o
informa que o rei da França faz muito gosto de seu casamento com Isabelle, que
ainda o espera. Mas para isso, teria que iniciar os negócios entre um país e outro.
Vasco entrega a ele um bilhete de Isabelle no qual ela o perdoa. Ele recorda a jura de
amor entre os dois. Fica dividido e por fim, decide partir com Vasco. Ao informar as
índias de que faria uma longa viagem, estabelece-se um novo conflito, pois elas
querem ir junto. Na manhã seguinte ele foge ao encontro da caravela de Vasco. As
147
índias pulam no mar e o perseguem, mas somente Paraguaçu o alcança e segue com
ele rumo à Europa e a um novo estilo de vida.
Apesar de longo este núcleo estabelece o marco da narrativa principal, com a
chegada de Caramuru ao Brasil e o início do romance, portanto, a história de amor
que culminaria na lenda. Vamos então, ilustrar e analisar este trecho.
Ilustração 19
As conjunções encontradas neste trecho em que há uma aparente harmonia de
Diogo frente à situação em que se encontra são:
Conjunções:
Diogo chega a terra firme, embora cansado, são e salvo.
Diogo encontra Paraguaçu e por ela se apaixona.
É acolhido pela tribo e recebe os agrados e mimos de Moema.
Diogo torna-se Caramuru e passa a ser querido pelos tupinambás.
Vasco retorna ao Brasil e faz uma excelente proposta a Diogo.
Diogo chega
ao Brasil.
Vasco o
encontra. Os
índios
perseguem
Diogo que
escapa.
Diogo é introduzido à aldeia e
torna-se o alvo de um ritual
armado por Taparica. Ele foge
e é perseguido. Encontra uma
arma e a dispara e torna-se
Caramuru. Ele se envolve
num conflito moral, pois
também ama Moema.
Vasco retorna
e propõe
acordo
comercial a
Diogo. Ele
aceita, pois
ficaria rico,
voltaria para
Isabelle e sua
terra natal.
Paraguaçu
encontra
Diogo. Eles se
encantam um
pelo outro e
iniciam o
romance.
DURANTE
Sem poder
levá-las, ele
foge, mas é
seguido por
Paraguaçu e
Moema. Mas
só Paraguaçu
parte com ele.
N
n
148
Diogo aceita retornar à Europa e casar-se com Isabelle.
Paraguaçu alcança a nau em que está Diogo e vai para a Europa com ele.
Porém, há em todo o trecho elementos e personagens que tentam desestruturar
as buscas de nosso herói. Os elementos são conhecidos pelas situações que criam as
disjunções, as separações que interrompem a linearidade da trama narrativa. Já os
personagens, como dissemos, são os anti-sujeitos, que por seus perfis somam-se ao
contexto deste núcleo da história com a função de alterar os caminhos de nosso herói.
Disjunções:
Vasco persegue Diogo e tenta matá-lo.
Taparica informa a Diogo que dará uma festa e que ele será servido nela.
Diogo tenta fugir, mas é capturado.
Diogo entra em conflito moral ao perceber que ama as duas irmãs.
Diogo entristece, mas foge para a Europa.
Moema fica para trás.
Uma curiosidade sobre Paraguaçu e que não abordamos anteriormente, é que
desde o seu encontro com Diogo ela externa certos pensamentos. A representação
deste pensar se dá, inicialmente, da mesma maneira realizada por Marcos Nanini na
parte documental, ou seja, a voz off. Desta forma, seus pensamentos parecem
estabelecer o princípio mágico que envolve o romance entre o casal ao longo do
tempo em que permanecem juntos. Para concretizar melhor essa idéia, ao final do
filme ela passa a registrá-los em seu livro, pois aprende a escrever com Diogo.
Abaixo exploramos estes pensamentos, iniciando com o momento em que encontra
com Diogo pela primeira vez, na praia. Ela o observa ternamente e pensa:
No fundo da mata virgem, o céu incendiou-se de araras vermelhas.
Depois fez um silêncio tão grande que alguma estava pra acontecer. Eu
149
ainda nem não sabia que ia topar com Diogo, mas tinha me enfeitado
toda pintando o rosto e os distintivos com semente de urucum. Fiquei
muito linda (Arraes e Furtado, 2000, p. 68).
Num outro trecho, após a consumação do ato sexual, ela informa: “O amor
aromava tanto chega a gente sentia uma tonteira. E andamos por lá muito, brincando
no mato até a boca da noite”. (Arraes e Furtado, 2000, p. 79). Sua gana incansável e
insaciável pelo estrangeiro continua e revela também os segredos dos índios:
Aquela tarde brincamos até mais não. Quando Diogo esmorecia eu
dava-lhe uma surra de urtiga que ele acendia de novo. Quando voltamos
para casa, Diogo estava muito fatigado. Mas ficou sarapantado com a
lindeza de nossa maloca, toda enfeitada de luz e de tantas qualidades de
flores que não tinham mais conta (Arraes e Furtado, 2000, p. 81)
Na seqüência Paraguaçu descreve as primeiras atividades de Diogo e tenta
imaginar a vida que ele tinha no lugar de onde veio:
Lá de onde ele vem não deve existir aldeia tão imensa e tão
formosa por causa de que ele danou-se a pintar tudo que enxergava:
cunhãs e cajus, guerreiros e guaiamuns e as gentes, e as frutas e os bichos
todos daqui. E de quem mais fez gosto foi de minha mana, uma cunha
que faceirava muito pintando a cara com jenipapo e aromando os cabelos
com essência de Umiri. Moera era linda (Arraes e Furtado, 2000, pp. 81-
82).
Para explicar a relação entre membros da mesma família, conhecida por
“cunhadismo”, Paraguaçu informa: “Diogo entendeu que não carecia ser fiel não e
podia brincar com as cunhas por aí quantas fossem e eram muitas. E conheceu que o
paraíso existia sendo o paraíso bem ali onde ele estava” (Arraes e Furtado, p. 88).
Mais adiante: “Diogo vivia no melhor do bem-bom do paraíso”. (...) “Até que voltou
da guerra nosso pai, chefe dos tupinambás, tribo nação de mais de 100 mil guerreiros
comedores de gente, esse chefe valente se chamando...” (pp. 90-91).
Paraguaçu também revela o momento em que Caramuru foge pela primeira
vez, na tentativa de escapar de ser devorado pelos índios:
150
Aquela noite, Diogo fez um tudo pra dar uma canseira em nós duas
que ficamos molinhas, molinhas e ferramos no sono. Daí o pajé velho
guardou a noite no buraco outra vez e amanheceu. (...) Então, Diogo
levantou madrugadinha, indagou ‘pernas, pra que te quero?’ e danou-se
no mundo (Arraes e Furtado, 2000, p. 96)
Após o episódio em que Diogo torna-se Caramuru, ela observa: “De repente
Diogo virou herói de nossa gente. E correu pelo mato uma notícia de assombro:
Caramuru, o filho do trovão, desceu do céu pra ser rei dos tupinambás” (Arraes e
Furtado, 2000, p. 98). Interessante detectar neste trecho a forma com que ocorriam a
transmissão da informação e do conhecimento. Fica explicitado que ao “correr pelo
mato”, a mídia utilizada pelos índios era a fala, portanto, a transmissão oral.
Os pensamentos de Paraguaçu não param por aí e o seu sucessivo pensar, aos
poucos se materializa numa obra literária a partir dos ensinamentos de Diogo,
tendo sido introduzida na civilização. Com essa informação, entramos na terceira
fase de nossa análise e também no último núcleo de personagens que analisaremos.
Porém, nos anteciparemos para não ter que voltar aos pensamentos de Paraguaçu e
concluiremos a segunda fase de nossa análise com mais alguns deles. Assim, bem ao
final do filme, durante a viagem de volta ao Brasil, momento em que ela também
inicia o seu livro, ela pára, pensa e ao pensar, relembra da maneira com que
conheceu Diogo, retomando o seu mesmo pensamento embrionário já citado.
No fundo da mata virgem o céu incendiou-se de araras vermelhas.
Depois fez um silêncio tão grande que alguma coisa estava pra acontecer.
Eu ainda nem não sabia que ia topar com Diogo, mas tinha me enfeitado
toda pintando o rosto e os distintivos com semente de urucum. Fiquei
muito linda. Era o navio atravessando o mar e eu atravessando o livro
com esses sucedidos que vocês acabaram de ouvir. E por fim o navio e o
livro trouxeram a gente de volta até a praia onde essa história toda
começou (Arraes e Furtado, 2000, p. 171).
Seus últimos pensamentos nesta história ficam registrados e materializados em
seu livro, no qual conta também a história de seu povo: “Nosso pai e seus guerreiros
151
gostaram muito das roupas da francesa. E quando iam para a guerra só se vestiam
com elas e ficavam mais valentes ainda” (Arraes e Furtado, 2000, p. 177). E
continua: “Quadro que Diogo fez de Moema foi pra Europa, ganhou fama e nossa
praia encheu de gente querendo casar com ela. Mas Moema desejava ser esposa não.
Amante só, que ela queria ser”. (Arraes e Furtado, 2000, p. 178).
Porém, sua última frase demarca a intenção dos autores com esta comédia
romântica e fundamenta a base na qual o gênero dramático é estabelecido, a
conciliação. Assim ela descreve e registra o seu final feliz ao lado de Diogo Álvares:
“Diogo me ensinou a amar, eu ensinei ele a querer bem. E fomos felizes agora, que é
melhor que pra sempre”.
Retomando nossa análise, esta terceira fase (depois) tem início com a chegada
de Diogo Álvares e Paraguaçu na França, sendo ele reintroduzido aos hábitos da
corte por Vasco de Athayde e, Paraguaçu, iniciada. Nesta opção verificaremos o
reencontro de Isabelle e Caramuru (agora o rei dos Tupinambás), que quer ter seu
status elevado na corte a partir de seu casamento com Isabelle. Durante esta viagem,
nosso herói, ainda no barco sentido à Europa, inicia alguns ensinamentos à
Paraguaçu, uma vez que irá conhecer a civilização e não pode mais comportar-se
como uma “selvagem”. No barco, portanto, obriga-a a vestir-se, pois não é natural
que as pessoas a vissem nua como estava habituada. Segundo ele, “o normal é ter
vergonha”. Chegando ao castelo francês, de súbito, ela estranha a presença de uma
escada, indagando porque o chão ali era dobrado. Como nunca havia visto uma, ele
inicia a explicação. E assim sucessivamente para cada coisa ou objeto que ela toma
conhecimento naquele mundo “esquisito” para os padrões indígenas. Seu fascínio
ocorre mesmo quando toma conhecimento do livro e descobre a capacidade infinita
152
que ele tem de registrar cada episódio, cada fato de tudo o quanto sabe e pode ser
visto ou ouvido no mundo. A todo o tempo ela compara as coisas que ele mostra
tentando encontrar semelhança com o universo que ela conhecia. Quando ele
apresenta a ela um poço, ela vê água e pergunta se ali tem peixe e dava para tomar
banho. Mas seu deslumbramento dura pouco, pois Diogo deixa-a e vai ao encontro
de Vasco, que por sua vez, organiza seu reencontro com Isabelle. Ao conhecê-la,
surpreende-a aos beijos com Diogo, momento em que, constrangido, ele apresenta
uma para a outra e ocorre o primeiro “incidente diplomático” registrado em forma de
filme na história: Paraguaçu morde a mão de Isabelle. Após este momento há uma
seqüência em que os dois conversam sobre o casamento de Diogo e Isabelle, pois
Paraguaçu precisa entender o por quê naquele mundo um homem só pode conviver
com uma mulher, quando na sua terra Diogo possuía a ela e a irmã Moema. O clima
de amor entre os dois aumenta e o ciúme de Paraguaçu também, demonstrando um
novo perfil desta personagem, que de “liberal”, ou melhor, “livre de preconceitos”,
passa a ser contaminada pela normalidade da vida comum de pessoas nada comuns.
Desta maneira, ela trabalha para desarticular o envolvimento de Diogo e Isabelle,
tornando-se para esta o anti-sujeito. Ao mesmo tempo, Diogo transforma-se
definitivamente em seu objeto de valor e motivo de sua trajetória, convertendo a
intenção de casamento de Isabelle em sua própria intenção e causa. Por sua vez,
Isabelle torna-se aliada de Paraguaçu sem que perceba, pois a índia trama um plano
para afastar o casal definitivamente e, para tanto, alia-se a Vasco, para quem revela
as intenções escusas de Isabelle.
Este é o trecho que selecionamos para fazer a decupagem clássica: um recurso
amplamente utilizado no universo cinematográfico.
153
Ilustração 20
As conjunções encontradas neste trecho são:
Conjunções:
Diogo chega à França e retoma seus velhos hábitos.
Diogo mostra novidades à Paraguaçu e ela gosta.
Diogo reencontra Isabelle e beijam-se.
Diogo aprova o convite de seu casamento com Isabelle.
Diogo gosta quando Isabelle e Paraguaçu tornam-se amigas.
Já as disjunções obtidas nesta etapa são:
Disjunções:
Diogo se aflige por não saber como se portar diante de Isabelle.
Diogo causa um incidente diplomático ao apresentar Paraguaçu à Isabelle.
Diogo diz à Paraguaçu que se casará com Isabelle em breve.
Paraguaçu diz gostar de Diogo e eles se beijam pela primeira vez.
Paraguaçu diz querer se casar com Diogo também.
Paraguaçu convence Isabelle a não se casar co Diogo.
Diogo chega à
Europa com
Paraguaçu.
Um novo
mundo é
apresentado
para ela.
Diogo precisa se casar com
Isabelle. Paraguaçu quer se
tornar esposa de Diogo
também. O romance
aumenta e eles se beijam.
Diogo a ensina a escrever e
ela inicia um livro.
O convite do
casamento fica
pronto. Paraguaçu
pede desculpa a
Isabelle e tornam-
se amigas.
Vasco relembra
os hábitos da
corte à Diogo.
Ele reencontra
Isabelle e a
apresenta à
Paraguaçu.
DEPOIS
Paraguaçu
seduz Isabelle
com uma
pepita de ouro
e ela desiste
do casamento
com Diogo.
n
N
154
3.5.2. O tempo e o espaço em Caramuru
Agora que conhecemos bem a narrativa, fica mais fácil abordar as questões
relacionadas ao tempo e ao espaço desta história. De acordo com Noel Burch (1969),
do ponto de vista formal, um filme é uma sucessão de “pedaços de tempo” e de
“pedaços de espaço”. Neste filme, o desenvolvimento cronológico é pautado, em
primeiro lugar, pelo tempo histórico conhecido pela grande expansão comercial dos
países europeus com a organização de expedições marítimas que culminaram com o
descobrimento do Brasil no ano de 1500. Assim:
Cada discurso é dotado de um “relato de apresentação (Greimas”,
fundador da realidade de que o discurso deverá falar, no interior do qual
o texto narrativo e o texto figurativo vão se articular. Esse relato
contextualizador em geral pressupõe o título, os protocolos de abertura,
as frases iniciais da história (Balogh, 2002, p. 70).
O “relato de apresentação”, portanto, nos insere no contexto do assunto do
filme e também delimita imediatamente em que tempo e espaço ocorre a ação,
estando vinculados aos programas narrativos de base. A introdução deste filme é
feita por Marcos Nanini, momento único em que ocorre sua narração, em voz off, os
demais momentos, como dissemos, são expressados ora pelo pensamento, ora pelas
palavras de Paraguaçu, conforme registra os fatos em seu livro.
Porto de Lisboa, Portugal
Primeiro de janeiro de 1500. Um jovem português olha para a
primeira noite de uma nova era. A estrela Polar, guia dos navegantes, faz
um ângulo de 25 graus com o horizonte. A constelação de Orion está
quase afundando no oceano Atlântico. Ele ainda não sabe, mas os astros
lhe reservaram um destino incomum.
Ilha de Itaparica, Brasil
Nesse mesmo momento, a 7.000 quilômetros dali, do outro lado do
Atlântico, num lugar chamado Pindorama, brilha a constelação do
Cruzeiro do Sul, que lá se chama Pauí-Pódole. Uma jovem índia vê este
outro céu. Ela sabe que as estrelas são as almas dos heróis indígenas que
155
morreram. O que ela não sabe é que também vai se tornar uma heroína e
virar estrela lá no céu. (Arraes e Furtado, 2000, p 15).
Portanto a história se passa no passado e vem intrinsecamente ligada à
categoria da espacialidade como forma de organizar o discurso e com isso, expõe sua
marca de quebra de linearidade já que a ação ocorre em vários locais (Portugal/
Brasil/França/Brasil). Embora a história tenha essa característica temporal, a ação
dos personagens se passa no tempo presente. Acerca disso nos explica Leigthon
Gage e Cláudio Meyer (1991):
A ação do filme é apresentada como se estivesse acontecendo
agora, no presente. As personagens não sabem o que vai acontecer no
momento seguinte. E o espectador, durante todo o filme, não recebe
nenhuma informação sobre o que aconteceu antes ou depois das cenas
que se está assistindo. Porque as diversas cenas são montadas numa
seqüência temporal lógica: sem pulos de tempo, nem para o passado, nem
para o futuro (Gage e Meyer, 1991, p. 87).
Porém, neste filme, não nos é informado quanto tempo se passa entre a ida de
um personagem de um lugar a outro. A este aspecto, verificamos a dissertação de
Maurício Hermini de Camargo (2005), na qual observa:
Graças à montagem, o cinema pode, com uma simples mudança de
enquadramento, aproximar-se ou distanciar-se de qualquer coisa, mostrar
um espaço inteiro e posteriormente concentrar-se sobre um detalhe,
passar rapidamente de um lugar ao outro, em uma fração de segundos
podem transcorrer várias décadas, enfim, o uso tão natural do cinema da
‘elipse’
53
.
Uma forma de identificar como o espaço para os navegadores da época é
caracterizado neste trecho pelas estrelas que lhes serviam de guia. Mais adiante,
veremos num outro trecho, a manifestação temporal a partir da “crença” indígena
também baseada nas estrelas.
53
CAMARGO, Maurício Hermini. La ciociara: romance e a relação com o espaço. Dissertação de
Mestrado, Universidade de São Paulo, 2005. Disponível em: http://www.teses.usp.br, acessado em
19/07/2006.
156
Um outro fator que detectamos foi a presença de demarcadores temporais na
narrativa caracterizados pela representação do dia, da noite, do crepúsculo etc. Estes
fatores, de acordo com Balogh, desvelam “a mimese da arte em relação ao real”.
Como a maioria das cenas ocorre no ambiente exterior, geralmente fica referenciada
a presença maior da luz do dia. Porém há também cenas de interior, em que o autor
deixa perceber em que momento do dia ou da noite se passa a ação.
Temos também na narrativa e no filme, espaços bem demarcados quanto aos
aspectos que relacionam o ambiente em que se passa a ação. De acordo com Anna
Maria Balogh, quando ocorre esse tipo de relação os espaços recebem uma
classificação que possibilita identificá-los dentro de uma categoria espacial distinta.
Vejamos então estas características e de que modo eles se manifestam na ação:
Espaços tópicos: aqueles em que as coisas acontecem ou espaços
das transformações narrativas.
Os espaços tópicos se dividem em: espaço utópico, aqueles em que
ocorre a performance principal do sujeito, e paratópico, aqueles em que
ocorre a aquisição da competência e a sansão.
O espaço tópico opõe-se ao espaço heterotópico, “ou o espaço dos
estados narrativos, em que nada ocorre” (Barros, apud Balogh, 2002, p.
73).
Assim, quando a ação se passa em Portugal ou na França, há limites quanto ao
espaço de representação também marcado pelo ambiente interior e exterior. No
Brasil, como as cenas foram gravadas num litoral paulista e remetem a um espaço
que esteticamente ficou conhecido por Paraíso ou Novo Mundo, um espaço,
portanto, que nos remete ao princípio da criação do mundo, ou até mesmo ao do
Éden. Neste caso a marca do espaço pode ser verificada pela presença constante de
cenas que evidenciam o exterior, a praia, a natureza o que permite um
enquadramento mais amplo e bem definido do local. É também externado quando
Paraguaçu, em seus pensamentos, a exemplo da frase: “Diogo vivia no melhor do
157
bem-bom do paraíso”. No entanto, na tribo, o espaço de interiorização fica
delimitado ao interior da oca em que reside Taparica, Moema, Paraguaçu e
Caramuru. O espaço utópico do filme fica é determinado como sendo o Brasil, praia
de Itaparica, litoral da Bahia, pois é neste local que o nosso personagem entra para a
história, torna-se conhecido e acaba virando lenda por conta de um tiro que disparou
acidentalmente.
Destacamos um fator relacionado ao tempo e que fica bem caracterizado no
transcorrer das ações dos personagens: a fala rápida. Guel Arraes prioriza na ação o
intercâmbio de mensagens de maneira rápida, similar a um jogo de palavras entre os
atores. Um fala e o outro imediatamente responde. Isso é bem distinto especialmente
entre Caramuru, Paraguaçu e Moema, o que confere ao mesmo tempo, o ritmo que
marca seu estilo cinematográfico. Essa característica ficou registrada, por exemplo,
em matéria publicada por Carlos Alberto Mattos, no Jornal do Brasil, em
14/11/2001, sob o título Licenças Poéticas de Caramuru, na qual o articulista refere-
se ao autor do filme assim:
A máquina Guel Arraes de contar histórias, em ritmo de tagarelice
alucinada, não deixa tempo para respirar nem para olhar paisagens. Está
de olho num público que talvez não ligue mesmo para isso, educado que
está na velocidade da apreensão e na indiferença à reflexão. (...) A língua
exercitada à exaustão (como linguagem, não como sexo), é a base de um
humor até mesmo fácil, mas inegavelmente contagiante.
54
Além desse recurso utilizado por Guel, outros fatores também colaboram para
configurar o sentido preconizado no espaço temporal e são responsáveis por uma
melhor “leitura ou a fruição de um texto figurativo” como por exemplo “o ritmo, os
temas e figuras” (Balogh, 2002, p.80). O primeiro fica bem caracterizado com o
54
Utilizamos como fonte de pesquisa, o banco de dados denominado TV Pesquisa, da PUC-RIO, em
que há grande acervo de registros de revistas e jornais. O banco pode ser acessado através da internet,
no seguinte endereço: http://tv-pesquisa.com.puc-rio.br, acessado em 23/05/2006.
158
parágrafo que descrevemos ainda há pouco e também pela aceitação desse novo tipo
de formato que vem inspirando as produtoras televisivas. Já os temas e figuras, são
de ordem semântica, portanto, itens relacionados a conceitos. “Os temas explicam e
classificam a realidade significante estabelecendo seus elementos de relações e
dependências” (Fiorin, apud Balogh, 2002, p. 80). No filme que analisamos, os
principais temas que o constitui são: o surgimento do “Novo Mundo”, as expedições
marítimas e os mapas de navegação. “A figura (...) é o termo ou representação que
remete a algo existente no mundo natural”. Elas criam o que Balogh denomina
“efeito de realidade”, porque criam um simulacro na forma de representação dessa
forma o mundo. Em nossa análise, o próprio filme, por seu título, já nos remete a este
entendimento de maneira dupla: Guel Arraes “inventa” um Brasil, criando um lugar
paradisíaco, por meio da ficção. Portanto:
As categorias de tempo, espaço e pessoa giram, como os demais
elementos do relato, em torno de um ou mais temas que fornecem o
conteúdo constante da mensagem e investem os programas narrativos
(PNs) do relato. (Balogh, 2002, p. 80)
É importante destacar, portanto que por tantos fragmentos temporais, no filme
ele é representado de maneira não linear já que em determinadas cenas, retrata
espaços diferentes. Assim, há o tempo em que alguns personagens estão em Portugal
e vão para a África. Assim, deixam a terra e vão para o mar. Do mar chegam ao
Brasil (terra firme) e ali permanecem por um período. Há depois, um tempo em que
saem do Brasil e seguem em destino à França, de lá retornando finalmente ao Brasil.
Assim, os fatos se sucedem num tempo lógico desencadeando inúmeros outros
acontecimentos desde a sua primeira fase, porém não há uma identificação exata
quanto ao tempo cronológico em ocorre cada ação desencadeada nestes espaços.
Estas elipses temporais, de acordo com Noel Burch (1969), ocorrem no “nível do
159
roteiro”, e estão intimamente ligadas ao “conteúdo da imagem e da ação” e que, por
seu intermédio, permanecem como uma “função temporal autêntica”.
Um exemplo de tempo ligado ao infinito vem de uma fala entre Isabelle e
Diogo Álvares. Logo após sua condenação de Diogo é visitado na masmorra por
Isabelle. Ao término da visita Diogo fala: “Espere-me, Isabelle” e ela responde, “Até
o fim dos dias”. Já um exemplo de tempo ligado ao passado, mais precisamente à
lembranças, vem da exteriorização do sentimento de saudade da terra natal que
acomete Caramuru. Nestes dois exemplos, a personagem externa suas aflições e
revela assim, o que Balogh indica como sendo o “estado de ânimo”.
Com este fato, verificamos também que o tempo da ação foi responsável pela
mudança de identidade de dois personagens da história. Em Portugal, o protagonista
era Diogo Álvares, no Brasil, tornou-se Caramuru. Já uma das índias, no Brasil e em
sua tribo, era conhecida por Paraguaçu. A partir do momento em que vai para a
França e lá se casa com Diogo (agora também conhecido pelo nome a ele atribuído
no Brasil), passa a denominar-se Catarina.
Um momento que revela um passado longínquo ocorre quando Taparica
mostra para Vasco uma pepita de ouro. Vejamos a fala dos dois personagens:
TAPARICA (falando como índio de cinema): Pedras de luz. A
cinco luas de distância, o sol se esconde na montanha faiscante. O chão
se cobre de pedras de luz, nossos antepassados ensinaram que são
estrelas caídas.
VASCO: Eu compro. Compro tudo. (Mostra uma esmeralda.)
Essas aqui vocês não têm?
TAPARICA: Deixa na minha mão que eu consigo para vocês.
(Arraes e Furtado, 2000, p. 108).
Com o exemplo do trecho acima percebemos algumas características do tempo
e do espaço preconizados nesta ação. O primeiro diz respeito ao tempo de Taparica,
160
que neste caso é apresentado de forma a remeter o personagem às suas bases
cognitivas e de aprendizado cultural e muito provavelmente a suas crenças e mitos de
origem. Algo que o liga à sua gente e à sua cultura, e que provém de uma época
muito anterior ao do momento representado na ação. Algo que foi aprendido por ele
por meio da transmissão oral, pelos seus antepassados e que numa outra ação (quase
ao final do filme), é repetido da mesma forma de Paraguaçu para Isabelle marcando
o caráter da transmissão oral entre os índios. Depois, fica delimitado o tempo da
ganância e da expansão dos negócios, marcado pela cumplicidade entre os dois
personagens e já externado através da visão de Darcy Ribeiro (2005) no Capítulo 2.
Inexiste no filme, por exemplo, o tempo e o espaço preenchidos pelo narrador
(Nanini), pois a parte documental foi dele excluída. Porém, na estrutura do roteiro, a
marcação gráfica dá lugar a textos que discorrem sobre curiosidades da época e que
foram ilustrados na microssérie na parte documental e citados neste trabalho,
também no Capítulo 2 em vários dos trechos em que analisamos os aspectos
estéticos do fenômeno grotesco no filme.
Passemos agora, o nosso último item deste capítulo, no qual faremos a
decupagem clássica de um trecho em que muitas das questões aqui analisadas
poderão ser melhor percebidas, com a análise dos fragmentos de cena.
3.6. Decupagem clássica do bloco selecionado
Neste último trecho que selecionamos para análise da narrativa também
faremos a decupagem clássica - um recurso amplamente utilizado no universo
161
cinematográfico - e no qual descreveremos as cenas plano a plano. Porém, antes de
iniciar nossa análise vamos esclarecer alguns conceitos relacionados às técnicas de
produção, com base na linguagem utilizada no universo cinematográfico. O trecho do
filme que selecionamos para esta análise possui 10 minutos e 20 segundos e pode ser
considerado “suplementar e variável”, já que seu conteúdo não pode ser considerado
o de maior peso. Para sua análise, estamos utilizando o modelo atuacional atribuído à
Greimas que, de acordo com Balogh:
(...) permite detectar um conjunto de atuantes e de relações básicas
entre eles em nível profundo, que são representados em nível superficial
por uma sintaxe de papéis atuacionais e temáticos assumidos por atores.
A base do esquema atuacional está na relação central sujeito/objeto, ou
seja, no eixo do querer. Somente a partir do momento em que um objeto
se torna, de fato, valor desejado e que o sujeito se vê impulsionado a
buscá-lo, a agir no sentido de obtê-lo, é que temos uma trajetória
narrativa. (Balogh, 2002, p. 58).
Algo que contribui significativamente para a transformação atuacional no
universo narrativo são as técnicas empregadas pelo fazer cinematográfico. De acordo
com Ismail Xavier (1984), “um plano corresponde a cada tomada de cena, ou seja, à
extensão de filme compreendida entre dois cortes, o que significa dizer que o plano é
um segmento contínuo da imagem” (Xavier, 1984, p. 19). Assim, para realizar a
decupagem (processo de decomposição do filme em planos), é necessário também
identificar o enquadramento, a angulação e o movimento de câmera, definindo ao
mesmo tempo, aonde se encontra o foco de cada ação, bem como em que ambiente
ela ocorre, a fala dos personagens analisados neste trecho e, por fim, os ruídos de
fundo ou trilhas que acompanham as cenas que descreveremos. Pela importância que
o apelo audiovisual ganhou com a materialização da imagem através do cinema,
vamos decifrar alguns códigos relacionados à linguagem de câmera para facilitar a
compreensão da leitura de nosso trecho.
162
Nele fizemos uso praticamente de todas as nomenclaturas que designam os
planos, tendo por base a obra Discurso cinematográfico, de Ismail Xavier (1984),
para quem “Plano Geral” [PG] geralmente é utilizado em cenas “localizadas em
exteriores ou interiores amplos” permitindo que a câmera tome “uma posição de
modo a mostrar todo o espaço da ação”. Outro conhecido plano é o “Plano Médio ou
de Conjunto” [PM], que geralmente é utilizado em interiores para demonstrar “o
conjunto de elementos envolvidos na ação”. De acordo com Xavier, apesar da
arbitrariedade existente entre o plano anterior e este, a diferença está no fato de que o
PG “abrange um campo maior de visão”. Há também o “Plano Americano” [PA],
correspondente a um ponto de vista em que “as figuras humanas são mostradas até a
cintura, aproximadamente, em função da maior proximidade da câmera em relação a
elas”. Já o “Primeiro Plano” ou Close-Up[C] é o plano do detalhamento, da
aproximação quase máxima do objeto e que ocupa quase toda a tela. Segundo o
autor, há uma variante chamada Primeiríssimo Plano [PP], que confere à imagem um
detalhamento “ainda maior”. (Xavier, 1984, p. 19).
Quanto aos ângulos de câmera, Ismail Xavier informa:
(...) considera-se em geral normal a posição em que a câmera
localiza-se à altura dos olhos de um observador e de estatura média, que
se encontra no mesmo nível ao da ação mostrada. (...) “câmera alta” e
“câmera baixa” designam as situações em que a câmera visa os
acontecimentos de uma posição mais elevada (de cima para baixo) e de
um nível inferior (de baixo para cima) (Xavier, 1984, p. 20).
Juntamente com os ângulos, os movimentos de câmera são responsáveis por
determinar o efeito dado à ação. Assim, movimentando a câmera para cima ou para
baixo, revela-se a posição de dominância ou sujeição da pessoa que está sendo
filmada. De acordo com Leigthon Gage e Cláudio Meyer (1991), é muito importante
escolher adequadamente “o ângulo certo entre a câmera e a pessoa ou objeto
163
filmado” (Gage e Meyer, 1991, p. 80), pois eles também determinam a
“profundidade de campo”, o que permite alterar a impressão da cena e, portanto, do
contexto dramático que se quer impingir. Além do que já externamos acima, estes
autores acrescentam que se a câmera se encontrar na posição horizontal, “teremos um
Ângulo Plano”. Portanto, neste tipo de narrativa, a câmera é o elemento que
“funciona como foco narrativo”, a partir do momento em que conduz o olhar do
espectador, mostrando ou ocultando imagens e, portanto, assumindo, também o papel
do narrador do começo ao fim. Assim, a combinação de elementos como o
enquadramento, o ângulo e o movimento de câmera, determina a relação que se quer
obter frente ao objeto ou pessoa, variando suas posições, que pode ser: de frente, de
trás, do alto, de baixo, de lado, em contínuo movimento de um lado a outro,
conhecido por panorâmica; a câmera pode também estar fixa ou no ombro do
filmador, que pode contar ainda com os efeitos da lente que permite aproximação ou
distanciamento do objeto, conhecido, respectivamente por zoom in e zoom out. Um
exemplo clássico de recurso de câmera é a “câmera subjetiva”, pois é assim tratada
por assumir o ponto de vista de uma das personagens (quando há duas interagindo no
mesmo ambiente). A inversão da técnica é designada de campo/contra-campo e
também muito utilizada, para informar quando “a câmera assume o ponto de vista de
um e de outro interlocutor, fornecendo uma imagem da cena através da alternância
de pontos de vista diametralmente opostos” (Xavier, 1984, p. 26).
Sobre a importância da imagem neste contexto, utilizamos a definição de
André Bazin (1989), de maneira complementar:
Por imagem, entendo de modo bem geral tudo aquilo que a
representação na tela pode acrescentar à coisa representada. Tal
contribuição é complexa, mas podemos reduzi-la essencialmente a dois
grupos de fatos: a plástica da imagem e os recursos da montagem (que
164
não é outra coisa senão a organização das imagens no tempo). Na plástica
é preciso compreender o estilo do cenário e da maquiagem, de certo
modo até mesmo da interpretação, aos quais se apresentam a iluminação
e, por fim, o enquadramento que fecha a composição. Quanto à
montagem, oriunda principalmente, como se sabe, das obras-primas de
Friffith, André Malraux dizia, em Pisicologia do cinema, que ela
constituía o nascimento do filme como arte: o que o distingue realmente
da simples fotografia animada. Na realidade, enfim, uma linguagem.
(Bazin, 1989, p. 67).
Para este autor, a imagem dentro da linguagem cinematográfica, “vale, a
princípio, não pelo que acrescenta mas pelo que revela da realidade”. Daí a
importância que ele dá, por exemplo, à “imagem sonora” pelo fato de ter sido
responsável por ampliar este realismo, “eliminando, cada vez mais, tanto o
expressionismo plástico quanto as relações simbólicas entre as imagens” (Bazin,
1989, pp. 70-75). Com mais essa influência no cinema (o som), sua vocação em
aproximar-se da realidade fica muito mais evidenciada, a ponto deste autor também
informar que no tempo do cinema mudo, “a montagem evocava o que o realizador
queria dizer”. Passado um tempo, a decupagem “descrevia” e atualmente, para ele, o
diretor “escreve diretamente em cinema”.
A imagem - sua estrutura plástica, sua organização no tempo -,
apoiando-se num maior realismo, dispõe assim de muito mais meios para
infletir, modificar de dentro a realidade. O cineasta não é somente o
concorrente do pintor e do dramaturgo, mas se iguala enfim ao
romancista (Bazin, 1989, p. 81).
Apesar de técnicos, os termos que adotamos são amplamente utilizados pelos
cineastas durante a fase da montagem de um filme. Assim, da mesma forma que para
análise da narrativa Balogh (2002) antecipa algumas regras sem as quais não é
possível ler a história para fins de análise, também no cinema há esta preocupação.
De acordo com Ismail Xavier (1984), para que a ação tenha a possibilidade de
165
manipular precisamente a atenção do espectador, as imagens a ele apresentadas
devem obedecer a “uma cadeia de motivações psicológicas”. Além disso:
(...) O que é característico da decupagem clássica é a utilização
destes fenômenos para a criação, no nível sensorial, de suportes para o
efeito de continuidade desejado e para a manipulação exata das emoções.
Assim, afirma-se um sistema de ressonâncias, onde um procedimento
complementa e multiplica o efeito do outro (...) uma interação entre o
ilusionismo construído e as disposições do espectador, “ligado” aos
acontecimentos e dominado pelo grau de credibilidade específica que
marca a chamada “participação efetiva” (Xavier, 1984, p. 25).
Essa capacidade da linguagem de cinema de provocar efeitos múltiplos a partir
de certa impressão de realidade pela elevação da estética, pode ser somada ao que
Umberto Eco (2004) denomina “convenção lingüística” (Eco, 2004, p. 126) aplicada
à própria estética tanto dos objetos quando dos meios. Em outra obra (2003) ele
observa que o “código fílmico não é o código cinematográfico: o segundo codifica a
reprodutibilidade da realidade por meio de aparelhos cinematográficos, ao passo que
o primeiro codifica uma comunicação ao nível de determinadas regras narrativas”
(Eco, 2003, p. 139). Isso permite ao cinema, por exemplo, criar através de todo o
aparato que o constitui, uma linguagem própria. Assim, ao analisar o sistema de
linguagens convencionadas pelo cinema, Umberto Eco assinala:
(...) a ilusão da imagem cinematográfica como representação
especular da realidade estaria destruída caso não tivesse na experiência
prática, um indubitável fundamento, e se uma investigação semiológica
mais aprofundada não nos explicasse as razões comunicacionais
profundas deste fato (...) (Eco, 2003, pp. 146-147).
Assim, no cinema, a combinação de signos se obtém através de articulações
introduzidas no código responsáveis por “comunicar o máximo de acontecimentos
possíveis com o mínimo de elementos combináveis” (Eco, 2003, p. 149).
Acreditamos que com todas essas explanações técnicas, já é possível iniciar a
decupagem do trecho que selecionamos do filme Caramuru, a invenção do Brasil.
166
Conhecendo a civilização (p. 144).
IMAGEM
CÂMERA
SOM
PLANO
EQUADRAM.
ANGULAÇÃO
MOVIMENTO
AÇÃO/AMBIENTE
FALA RUÍDO
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
C à PM
PA à PM
PM à PA
PM à C
C
PG à PM
PM à C
PG à C
PG
C à PG
PG
FRENTE
FRENTE
FRENTE à
LADO
FRENTE
FRENTE
FRENTE
ATRÁS DE
DIOGO
FRENTE
FRENTE
FRENTE
COSTAS
ÂNGULO
BAIXO, EM
TRAVELLING
DE UMA
CABECEIRA
A OUTRA DA
MESA à
FIXO
FIXO à
PLANO
CONTRA-
PLANO DE
VASCO P/
DIOGO
FIXO à P/
ESQUERDA
ACOMPA -
NHANDO
DIOGO
FIXO à P/
ESQUERDA
ACOMPA-
NHANDO
DIOGO
FIXO
FIXO
FIXO
FIXO
FIXO
FIXO
FIXO
Castelo francês.
Interior. Diogo e
Vasco estão em pé
ao lado de uma
mesa arrumada
para um jantar, e
conversam.
Vasco afasta os
cotovelos de Diogo
da mesa e senta-
se, lentamente.
Seca a boca. O
movimento é
imitado por Diogo.
Diogo espeta um
pedaço de carne e
tenta soprá-lo, mas
é repreendido.
Diogo levanta-se
incomodado com a
situação.
Vasco também se
levanta.
No meio do salão,
ar de desconsolo.
Vasco oferece
vinho a Diogo.
Eles olham pela
janela. Diogo
precipita-se para a
saída quando
Vasco o adverte e
ele olha para ele.
Ele caminha
lentamente.
Diogo vai sem
jeito.
DIOGO: Temo por um
vexame. Desaprendi
as maneiras da corte.
Como posso jantar
com uma marquesa,
Vasco?
VASCO: Não estale
os lábios enquanto
comes. Lembra-te de
esvaziar e enxugar a
boca antes de beber.
Corta e não rompas o
pão. Não sopre a
comida, nem para
esfriar nem para
aquecer.
DIOGO: Melhor que
não coma nada.
Isabelle há de pensar
que tornei-me um
selvagem.
VASCO: Calma,
Diogo. Ela te ama.
Depois o exotismo
está em moda na
Europa.
DIOGO: Estarei
ansioso demais para
comer.
VASCO: Pois então
beba. Antes, o amor
dá sede. Depois, ele
abre o apetite.
DIOGO: É ela que
chega.
VASCO: Devagar.
Andar muito rápido é
bom para os lacaios.
VASCO: Nem tanto.
Devagar demais é
próprio das matronas.
Trilha
incidental.
A trilha é
cortada.
Som
ambiente.
Passos de
Vasco.
Passos de
Diogo.
Passos de
Vasco
Ruído de
carruagem.
Passos de
Diogo.
Passos de
Diogo.
Passos de
Diogo.
167
O reencontro com Isabelle, a prometida (pp. 145-146)
IMAGEM
CÂMERA
SOM
PLANO
EQUADRAM.
ANGULAÇÃO
MOVIMENTO
AÇÃO/AMBIENTE
FALA RUÍDO
12
13
14
15
16
17
18
19
20
21
22
23
24
25
26
27
PP à C
PA
PA
PP
PP
PA
PP
PP à PM
PM
PP
PM
PP
PM à PP
PM à PG
C à PA
PA à PM
FRENTE
ATRÁS DE
ISABELLE
ATRÁS DE
DIOGO
FRENTE
FRENTE
FRENTE
FRENTE
LADO
LADO
LADO
LADO
LADO
LADO
FRENTE à
ATRÁS
FRENTE
FRENTE à
ATRÁS
DE BAIXO
PARA CIMA
FIXO
PLANO
CONTRA
PLANO
FIXO
FIXO
FIXO
FIXO
FIXO
PAN
ACOMPANHA
PAN
PAN
PAN
PAN à FIXO
FIXO
FIXO
FIXO
Frente do castelo.
PP de seus pés.
Isabelle desce da
carruagem e sorri.
Os lacaios
carregam suas
malas quando
surge Diogo.
Ela dirige-se aos
empregados e
ordena.
Volta-se para
Diogo.
Diogo olha para
ela.
Ele fica sem
graça, pega-a pelo
braço e sai
andando.
Ao fundo, avista-
se um lindo jardim.
Eles caminham de
um lado a outro.
Ela dá um sorriso
desconcertado e
vai em sua direção
e beija-o.
Paraguaçu, em
seu novo visual
surge no jardim,
ao fundo do casal.
Diogo e Isabelle
se separam,
olham para ela.
DIOGO: Isabelle!
Temia que não
viesses.
ISABELLE: Desta
vez para sempre.
Coloquem as malas
no primeiro andar.
Nem um oceano sem
fim pode separar
nosso amor.
DIOGO: Esperaste
por mim?
ISABELLE: Até o fim
dos tempos, e você?
DIOGO: É que...
aconteceu tanta
coisa. Eu estava
muito sozinho
ISABELLE: Eu
também.
DIOGO: Eu quase
morri.
ISABELLE: Eu
também.
DIOGO: Quase fui
comido.
ISABELLE: Eu
também. Vamos
esquecer o passado.
Meu amor!
PARAGUAÇU: O
que é isso?
DIOGO: Paraguaçu.
Chegas em boa hora!
ISABELLE: Quem é
essa?
Trilha
incidental.
Som de
passos dos
criados que
andam
Trilha de
fundo
continua.
A trilha
aumenta de
volume aos
poucos.
A trilha é
cortada.
Som de
passarinhos
ao fundo dá
lugar ao
ambiente.
168
(Continuação).
IMAGEM
CÂMERA
SOM
PLANO
EQUADRAM.
ANGULAÇÃO
MOVIMENTO
AÇÃO/AMBIENTE
FALA RUÍDO
27
28
29
30
31
32
33
34
PA
PA
PP à C
PP
PP à C
PA
PP à PA
PP
FRENTE à
COSTAS
FRENTE
FRENTE
FRENTE
FRENTE
FRENTE
FRENTE
BAIXO
FIXO
FIXO
FIXO
FIXO
FIXO
FIXO
FIXO
FIXO BAIXO
Para Isabelle e
para Paraguaçu,
simultaneamente e
vão até Isabelle e
pega-a pelo braço
e aproxima-a da
índia.
Isabelle estende a
mão.
Paraguaçu
examina a mão de
Isabelle, cheia de
anéis, unhas
pintadas.
Paraguaçu segura
a mão de Isabelle
e dá-lhe uma
mordida.
Ela não solta.
Surge Vasco
correndo.
Cada um puxa
uma pelo braço e
as separam.
Vasco e Isabelle
caem ao chão.
DIOGO: Isabelle...
essa é Paraguaçu.
Paraguaçu, Isabelle.
Não há motivos para
constrangimentos,
Isabelle. Os
tupinambás não
conhecem o ciúme.
ISABELLE: Aaai!!!
DIOGO: Paraguaçu!
Solte! Acudam!
VASCO: Mas o que
houve?
DIOGO: Um
incidente
diplomático.
ISABELLE: Essa
mulher é uma
selvagem!
Som de
passarinhos
Uma nova
trilha tem
início e se
intensifica
com as
cenas.
A trilha é
interrompida.
O primeiro beijo (pp. 147-153)
IMAGEM
CÂMERA
SOM
PLANO
EQUADRAM.
ANGULAÇÃO
MOVIMENTO
AÇÃO/AMBIENTE
FALA RUÍDO
35
36
C à
PP na
mão de
Paraguaçu
PM
FRENTE
FRENTE
FIXO
FIXO
Castelo, sala de
jantar. Paraguaçu
come com as mãos.
Diogo fala devagar
enquanto corta o
alimento com os
talheres tentando
retomar seus
hábitos.
PARAGUAÇU: Aquela
mulher é muito magra
DIOGO: Olha, vais ter
que te acostumar com
Isabelle: ela será
nossa hóspede.
Som
ambiente
169
(Continuação).
IMAGEM
MERA
SOM
PLANO
EQUADRAM.
ANGULAÇÃO
MOVIMENTO
AÇÃO/AMBIENTE
FALA RUÍDO
37
38
39
40
41
42
43
44
45
46
47
48
49
50
51
PM
PG
PM
PM
PM
PM
PM
PM
PP
PG à PP
PP
PP
PM
PP
C
FRENTE
LADO
FRENTE
FRENTE
FRENTE
FRENTE
FRENTE
FRENTE
FRENTE
LADO
FRENTE
FRENTE
FRENTE
FRENTE à
ATRÁS
FRENTE
FIXO
FIXO
FIXO à PAN
PARA O
ALTO
FIXO
FIXO
FIXO
FIXO
FIXO
FIXO
FIXO
FIXO
FIXO
FIXO à PAN
À ESQ.
FIXO
FIXO
Castelo, sala de
jantar. Paraguaçu
está acocorada na
cadeira.
Cada numa ponta
da mesa.
Ele se levanta.
Parado.
Ela brinca com as
mãos e sorri.
Ele olha para a
taça que tem nas
mãos e esfrega-a
nos lábios para
demonstrar.
Paraguaçu passa
a mão na boca
imitando o gesto.
Ele responde.
Ela olha para ele
seriamente e com
ar de decepção.
Diogo está de pé
ao lado da mesa
jantar e caminha
até Paraguaçu.
Ela olha para
baixo.
Ele se emociona.
Ela se levanta e
sai magoada. Ele
a acompanha.
Ela se volta para
ele e sorri.
Aproxima-se e
começa a beijar a
taça, repetindo o
gesto que ele fez
antes.
PARAGUAÇU:
“Hospitalidade
francesa”?
DIOGO: Não é o que
estás pensando.
PARAGUAÇU: E o
que é que eu estou
pensando?
DIOGO: Pensas que
eu e a Isabelle... que
estávamos dando um
beijo.
PARAGUAÇU: O que
é isso?
DIOGO: Beijo? Beijo
é uma coisa que se
faz aqui, assim,
encostar a boca um
no outro.
PARAGUAÇU: De
que serve?
DIOGO: Não serve
para nada. É algo que
se f az em quem se
gosta.
PARAGUAÇU: Então
tens amor por ela.
DIOGO: Nos
conhecemos há muito
tempo. Vamos nos
casar.
PARAGUAÇU: E de
mim, você gosta?
DIOGO: Gosto. Muito.
PARAGUAÇU: Mas
nunca que não me
deu um beijo.
DIOGO: Queres...
que eu te dê um
beijo?
PARAGUAÇU:
Quero.
Som
ambiente.
Uma trilha
incidental e
melancólica
começa.
170
(Continuação).
IMAGEM
CÂMERA
SOM
PLANO
EQUADRAM.
ANGULAÇÃO
MOVIMENTO
AÇÃO/AMBIENTE
FALA RUÍDO
52
53
54
55
56
57
58
59
60
61
62
63
64
65
66
67
C
C
C
C
PP
PP
PP
PM
PP
PM à PP
PP
PA à PM
PP
PM à PP
PM
PM
FRENTE
FRENTE
FRENTE
FRENTE
FRENTE
FRENTE
FRENTE
LADO
FRENTE
LADO
LADO
LADO
FRENTE
LADO
LADO
LADO
FIXO
FIXO
FIXO
FIXO
FIXO
FIXO à MINI
PAN PARA
DIR.
FIXO
FIXO
FIXO
FIXO à MINI
PAN PARA
ESQ.
FIXO
MINI PAN
PARA ESQ.
MINI PAN
PARA ESQ.
FIXO
FIXO
FIXO
Ele tira a taça de
sua boca e beija-a.
Ela fica parada, de
olhos fechados.
Quando ele começa
a beijar ela abre os
olhos.
Ele espera por uma
resposta.
Meio decepcionada
e sem jeito ela dá
as costas a Diogo
enquanto externa
sua opinião.
Ela se volta
novamente para ele
toda empolgada.
Ela o agarra e vai
para cima de Diogo.
Paraguaçu dá um
superbeijo em
Diogo.
Diogo está sem ar,
mas responde,
quando ela o puxa
para si de novo.
Ele tampa a boca
evitando um
acidente.
Ela puxa Diogo pelo
braço e sai
andando.
Ele responde.
Ela pára e pergunta.
Ele responde
animado.
Ela puxa Diogo para
fora do quadro.
DIOGO: Bem... Com
sua licença, então.
DIOGO: E então?
PARAGUAÇU: Então
o quê?
DIOGO: Gostaste?
PARAGUAÇU: Assim,
assim. Botando a
língua ficava melhor.
DIOGO: Podes botar a
língua.
PARAGUAÇU: Pode?
Então chegue.
PARAGUAÇU: Ficou
melhor, ficou não?
DIOGO: Bem melhor.
PARAGUAÇU:
Morder pode?
DIOGO: Não! Morder
não.
PARAGUAÇU: Pode
escrever num livro pra
toda a gente ficar
sabendo que você me
beijou bem muito?
DIOGO: Pode.
PARAGUAÇU: Pode
beijar na escada?
DIOGO: Acho que
pode.
PARAGUAÇU: Então
vem cá.
Trilha
encerra
junto com
sua fala
Volta o
som
ambiente.
171
(Continuação).
IMAGEM
CÂMERA
SOM
PLANO
EQUADRAM.
ANGULAÇÃO
MOVIMENTO
AÇÃO/AMBIENTE
FALA RUÍDO
68
69
70
71
72
73
74
75
76
77
78
79
80
81
82
PP
PP
PP
PP à PM à
PP
PP
PP
PP
PM
PM
PM
PM
PP
PP
PP
PP
ALTO à
ATRÁS
ALTO à
FRENTE à
ATRÁS
FRENTE à
ATRÁS
FRENTE à
LADO à
FRENTE
FRENTE à
BAIXO à
ALTO
BAIXO à
FRENTE
ALTO
FRENTE à
PARA O
ALTO
FRENTE
FRENTE
FRENTE
FRENTE
FRENTE à
PLANO
CONTRA
PLANO
LADO
LADO
CONTÍNUO
CONTÍNUO
FIXO
FIXO
FIXO à MINI
PA N PARA
BAIXO à
FIXO
FIXO
FIXO
MINI PAN
PARA O
ALTO
FIXO
CONTÍNUO
CONTÍNUO
FIXO
FIXO
MINI PAN
PARA ESQ.
MINI PAN
PARA DIR.
Lado de fora do
castelo. Ela puxa
Diogo pelas mãos
enquanto sobe a
escada empolgada.
Ela vira para Diogo.
Ele esconde os
lábios com a mão.
Ela retira e o beija.
Jardim ao fundo.
Ele olha para ela
com tristeza. Ela
senta-se na escada.
Ele abaixa-se para
ficar como ela.
Ela pergunta.
Ele explica.
Ela levanta irritada
com a resposta e sai
do quadro.
Ele tenta desolado e
desce a escada
atrás dela.
Ela desce.
Ele desce.
Ela se volta para
ele.
Ele gesticula.
Ela começa a andar.
Ele a acompanha
PARAGUAÇU: Vamos
subir correndo e
descer beijando.
DIOGO: Está bem.
PARAGUAÇU: De
certeza que não pode
morder? Dá uma
vontade...
DIOGO: Melhor não.
PARAGUAÇU: Casa
comigo também.
DIOGO: Não posso.
Aqui só se casa com
uma. Mas se aceitares,
poderemos ser
amantes.
PARAGUAÇU: E
amante é o quê?
DIOGO: Parecido com
esposa. E não precisa
cozinhar.
PARAGUAÇU: Eu
acho bom cozinhar.
DIOGO: Cozinhas
escondido!
PARAGUAÇU: E a
francesa deixa?
DIOGO: Você
cozinhar?
PARAGUAÇU: Não,
eu ser amante?
DIOGO: Não creio. Ter
amante é proibido.
Mas muitos as têm.
PARAGUAÇU:
Esquisito.
DIOGO: Por quê?
Com Moema não era
assim?
Som
externo.
Pássaros
cantam.
Pássaros
cantam.
172
(Continuação).
IMAGEM
CÂMERA
SOM
PLANO
EQUADRAM.
ANGULAÇÃO
MOVIMENTO
AÇÃO/AMBIENTE
FALA RUÍDO
83
84
85
86
87
88
89
90
91
92
93
94
95
96
97
PP
PP
C
PP
PP
PP
PP
C
PP
PG à PM
PM
PM
PM
PM
PM
LADO
LADO
FRENTE
LADO
FRENTE à
LADO
FRENTE à
ATRÁS
FRENTE
FRENTE
FRENTE
LADO à
FRENTE
FRENTE
FRENTE
FRENTE
FRENTE
FRENTE
MINI PAN
PARA ESQ.
MINI PAN
PARA DIR.
FIXO
FIXO
FIXO
ACOMPANHA
DIOGO.
CONTÍNUO
FIXO
FIXO
MINI PAN
PARA ESQ.
FIXO
FIXO
FIXO
MINI PAN
PARA CIMA
FIXA à
ZOOM IN
Eles continuam a
andar.
Ela pára.
Ele entristece.
Ela se declara.
Ele vira-se e entra
para o interior do
castelo.
Ela o segue
Com o olhar terno.
Ela pega o braço
de Diogo e o
conduz a mesa
próxima.
Ele se senta e
demonstra.
Começa a escrever
numa folha.
Ela gesticula para
mostrar o tamanho
que deseja.
Ele continua.
Ela pergunta
Ele se levanta e
cede o lugar para
ela.
Posicionado atrás
dela, ele segura
sua mão para
ensinar.
PARAGUAÇU:
Moema é diferente,
ela é minha irmã.
Depois, lá pode.
DIOGO: Aqui não.
Isabelle não pode
saber.
PARAGUAÇU: E se
ela desiste de casar?
DIOGO: Mas ela me
ama.
PARAGUAÇU: E eu
sou perdida por ti.
DIOGO: Juramos
amor eterno. Ela me
esperou este tempo
todo. E eu também
gosto dela.
PARAGUAÇU: E de
mim não?
DIOGO: Muito. Mais
ainda depois do beijo.
PARAGUAÇU: “Beijo”
escreve como?
DIOGO: Assim, ó.
PARAGUAÇU: Faz
um beijo bem grande.
DIOGO: Grande ou
pequeno, escreve-se
igual.
PARAGUAÇU:
Quantos beijos cabem
num livro?
DIOGO: Muitos.
Quantos quiseres.
PARAGUAÇU: Eu
vou copiar uma
imensidão de vezes
pra entulhar nossa
história de beijo?
Pássaros
cantam.
Som
ambiente.
173
(Continuação).
IMAGEM
CÂMERA
SOM
PLANO
EQUADRAM.
ANGULAÇÃO
MOVIMENTO
AÇÃO/AMBIENTE
FALA RUÍDO
98
99
100
101
102
103
104
105
PM
PM
PM
C
C
PM à PP à
C
C
C
FRENTE
FRENTE
FRENTE
FRENTE
LADO
LADO
FRENTE
LADO
FIXO
FIXO
FIXO
FIXO
FIXO
FIXO,
PLANO
CONTRA
PLANO
FIXO,
PLANO
CONTRA
PLANO
FIXO
Ele escreve o “s”.
Ela se levanta e dá
lugar a ele.
Ele escreve.
Ele larga a pena.
Ele se levanta e
olha para ela que
sorri.
Ele se aproxima.
Ele pensa rápido,
mas fica
desconfiado.
Ela morde
suavemente seus
lábios.
DIOGO: Para dizeres
que são muitos, basta
colocares a letra “s” no
fim da palavra.
PARAGUAÇU: Me
ensina de novo.
DIOGO: -i...
PARAGUAÇU: Não,
de verdade.
DIOGO: Ah!
PARAGUAÇU: Nem
uma mordidinha?
DIOGO: Bem...
Mordidinha.
Som
ambiente.
Isabelle e Vasco tramam o casamento (pp. 153-154)
IMAGEM
CÂMERA
SOM
PLANO
EQUADRAM.
ANGULAÇÃO
MOVIMENTO
AÇÃO/AMBIENTE
FALA RUÍDO
106
107
108
PP à PA à
PP à PA
PA
PA
FRENTE
LADO à
CIMA
LADO à
CIMA
FIXO à MINI
PAN PARA
DIR.
MINI PAN
PARA DIR. E
PARA BAIXO
FIXO
Quarto de Isabelle.
Vasco beija sua
mão, que está
enfaixada.
Ela se levanta e se
dirige ao toucador.
Ele a segue.
Ela arruma a
maquiagem e o
cabelo.
Vasco senta-se.
ISABELLE: Avise o rei
que o preço subiu.
Ninguém me disse que
ele era casado com
uma canibal.
VASCO: Ela é filha do
chefe.
ISABELLE: Não
disseste que o chefe
era ele?
VASCO: É. Mas se ele
voltar sem ela, acho
que vira almoço.
Som
ambiente.
174
(Continuação).
IMAGEM
CÂMERA
SOM
PLANO
EQUADRAM.
ANGULAÇÃO
MOVIMENTO
AÇÃO/AMBIENTE
FALA RUÍDO
109
110
111
112
113
114
115
PA à PM
PM à PP
PM à PP
PA
PA
PM à PP
PM
LADO à
CIMA
LADO
FRENTE à
LADO
FRENTE
FRENTE
FRENTE
FRENTE /
TRÁS
FIXO
FIXO
FIXO
FIXO
MINI PAN À
DIR
FIXO
PLANO
CONTRA
PLANO
Quarto de Isabelle.
Vasco se levanta e
senta novamente.
Isabelle se levanta e
senta novamente.
Vasco se levanta e
caminha em direção
da câmera e sai do
quadro.
Isabelle se levanta e
vai atrás dele,
também sai do
quadro.
De pé em frente à
porta ele estende a
mão para ela.
Ela revida e ele
beija e sai.
ISABELLE: E por que
foi que a trouxeste?
VASCO: Ela nadou
até o navio. O que eu
podia fazer?
ISABELLE: Matá-la.
Mas pode deixar que
isso faço eu.
VASCO: O importante
é garantires teu
casamento. Depois
nos livramos dela.
ISABELLE: Como eu
vou entrar na igreja
com essa louca me
mordendo?
VASCO: Sem
casamento, não
recebes nada. É uma
profissional. Não deve
ser esta a primeira
mulher ciumenta que
tens de enfrentar.
ISABELLE: A primeira
que morde.
Som
ambiente.
Paraguaçu aprende a escrever (pp. 154-156)
IMAGEM
CÂMERA
SOM
PLANO
EQUADRAM.
ANGULAÇÃO
MOVIMENTO
AÇÃO/AMBIENTE
FALA RUÍDO
116
117
118
119
120
121
PM
PM
C
PM
C
PM
FRENTE
FRENTE
ALTO P/
BAIXO
FRENTE
ALTO P/
BAIXO
FRENTE
MINI PAN À
ESQ.
FIXO
ZOOM IN
FIXO
ZOOM IN
FIXO
Castelo francês.
Diogo mostra a
Paraguaçu uma
arara desenhada no
livro.
Ela escreve
Ele aponta para a
figura.
Ela escreve.
Ela escreve.
DIOGO: Isso, como se
escreve?
PARAGUAÇU: Isso.
DIOGO: Não. Isso,
isso aqui.
PARAGUAÇU: De-do.
DIOGO: Não. O que
estou apontando. Isso.
PARAGUAÇU: Li-vro.
Som
ambiente.
175
(Continuação).
IMAGEM
CÂMERA
SOM
PLANO
EQUADRAM.
ANGULAÇÃO
MOVIMENTO
AÇÃO/AMBIENTE
FALA RUÍDO
122
123
124
125
126
127
128
C
PM
PM à PP
PP à PM
PM
PM
PM à C na
folha de
papel.
ALTO P/
BAIXO
FRENTE
FRENTE
FRENTE
LADO
LADO
FRENTE
ZOOM IN
FIXO
FIXO
FIXO
FIXO à MINI
PAN À DIR.
FIXO
FIXO
Ela aponta de novo.
Ela escreve.
Ele se aproxima.
Ela mostra com as
mãos o tamanho de
uma arara.
Ele se aproxima.
Ela fica nervosa.
Ele se levanta e
caminha.
Pára ao lado dela,
na mesa.
Ela escreve em
letras minúsculas,
ele sorri.
DIOGO: O que está no
livro.
PARAGUAÇU: Ah!
Tin-ta.
DIOGO: Uma arara!
Arara.
PARAGUAÇU: Isso
não é arara nem...
Arara é maior muito.
DIOGO: É uma arara
pequena.
PARAGUAÇU: Não
existe arara tão
pequena assim. Só se
for aqui, lá é que não.
DIOGO: É só para que
escrevas. Arara.
PARAGUAÇU: Vou
escrever bem
pequenininho.
A-ra-ra que não e-xis -
te.
Som
ambiente
Isabelle e Diogo marcam o casamento (p. 154-156)
IMAGEM
CÂMERA
SOM
PLANO
EQUADRAM.
ANGULAÇÃO
MOVIMENTO
AÇÃO/AMBIENTE
FALA RUÍDO
129
130
131
C à PM à
PA
PA à PP
PP à PM
FRENTE
FRENTE
FRENTE
FIXO à
ZOOM OUT
FIXO
FIXO
Quarto de Isabelle.
Isabelle e Diogo
escolhem o convite
para o casamento.
Vasco lê.
Ela toma o convite
das mãos de Vasco
e começa à
caminhar para a
esquerda.
VASCO: Sua
Majestade, o rei
Francisco I, convida
para o casamento de
Diogo Álvares Correia,
soberano dos
tupinambás, e Isabelle
d’Avezac, marquesa
de Sévigny, selando o
acordo entre França e
a Terra dos
Papagaios.
ISABELLE: Parece
bom. Que tal soberano
supremo dos
tupinambás?
DIOGO: Soberano já
parece muito.
Som
ambiente
176
(Continuação).
IMAGEM
CÂMERA
SOM
PLANO
EQUADRAM.
ANGULAÇÃO
MOVIMENTO
AÇÃO/AMBIENTE
FALA RUÍDO
132
133
PM à PA
PA à
C no
convite
FRENTE
FRENTE
FIXO
FIXO
Quarto de Isabelle.
Ela dá um sorriso
irônico
VASCO: És muito
modesto.
ISABELLE: A
modéstia é a moldura
da glória. Soberano
apenas está bom.
Som
ambiente
Paraguaçu conversa com Diogo sobre casamento (p. 156-157)
IMAGEM
CÂMERA
SOM
PLANO
EQUADRAM.
ANGULAÇÃO
MOVIMENTO
AÇÃO/AMBIENTE
FALA RUÍDO
134
135
136
137
138
139
140
141
142
C à
PP na
mão à C
PM
C
C
PM
PM
PA
PM
PP
FRENTE à
BAIXO P/
CIMA
FRENTE
FRENTE
FRENTE
FRENTE
LADO
LADO
FRENTE
LADO
FIXO
FIXO
FIXO
FIXO
FIXO
MINI PAN
PARA ESQ.
FIXO
FIXO
FIXO
Castelo francês.
Paraguaçu amassa
o convite. Está com
raiva.
Diogo está sem
graça. Ela vira as
páginas do livro
com muita raiva. Ele
está de pé, ela
sentada.
Ela está emburrada.
Ele se senta.
Ela levanta e senta-
se no colo dele.
Ela levanta
Ele se levanta
Olhando para ela.
Ela se empolga e
sai em busca de
Isabelle. Ele fica
preocupado.
PARAGUAÇU: De
que jeito se casa aqui?
DIOGO: É numa
igreja. O padre
abençoa, escrevemos
nossos nomes num
livro, para que todos
saibam que casamos.
Você pode ser
madrinha.
PARAGUAÇU: Que
serventia tem?
DIOGO: A madrinha,
como os noivos,
escreve o nome no
livro do casamento.
PARAGUAÇU: Posso
escrever junto de
madrinha que eu sou
também sua amante?
DIOGO: É melhor não.
PARAGUAÇU: Gosto
mais de ser noiva.
DIOGO: Eu já
expliquei que não
podes ser a noiva.
Tenho que casar-me
com uma francesa.
PARAGUAÇU: Eu
chamo a francesa pra
ser madrinha. Volto já-
já.
Som
ambiente.
177
Paraguaçu convence Isabelle a não se casar (pp. 157-160)
IMAGEM
CÂMERA
SOM
PLANO
EQUADRAM.
ANGULAÇÃO
MOVIMENTO
AÇÃO/AMBIENTE
FALA RUÍDO
143
144
145
146
147
148
149
150
151
152
153
154
PG à PM
PM
PM à C
C à PP
PP à PA
PP à PA à
PP à PA à
PP à PM
PA
PM à PA à
PM à PP
PP
PM à PP
PP
PP à PG à
C na mão de
Isabelle
FRENTE
FRENTE
LADO
FRENTE
FRENTE à
LADO
FRENTE à
LADO à
FRENTE à
LADO
FRENTE
FRENTE à
LADO
FRENTE
LADO à
FRENTE
FRENTE
FRENTE à
LADO à
ALTO
FIXO
FIXO
FIXO
FIXO
FIXO
PLANO
CONTRA
PLANO à
MINI PAN
PARA ESQ.
EM
ISABELLE.
FIXO
FIXO à
ZOOM OUT
à MINI PAN
PARA ESQ.
FIXO
FIXO à MINI
PAN PARA
CIMA
FIXO
FIXO à
ZOOM OUT
à MINI PAN
PARA DIR.
à FIXO
Quarto de Isabelle.
Paraguaçu entra,
Isabelle fica em
estado de alerta,
com a escova de
cabelo na mão.
Ela se senta ao lado
de Isabelle
Isabelle estranha a
pergunta.
A se olha no espelho
e se arruma.
Isabelle passa
perfume. Paraguaçu
pega o vidro e imita
o gesto
intensamente.
Isabelle pega um
lenço e tapa as
narinas e sai.
De frente para o
espelho, a índia
agora arruma os
cabelos.
Cara de esperteza.
Ela caminha em
direção à índia,
abaixa-se e pega a
mão dela para
explicar melhor.
Com ar de faceira.
Isabelle solta a mão
da índia e se levanta
desconfiada.
Com ar de faceira.
Ela estranha o
comentário e se
dirige a uma mesa
no quarto e pega um
objeto.
PARAGUAÇU:
Conheci que não pode
morder não.
ISABELLE: Que bom.
PARAGUAÇU: Você
gosta de cozinhar?
ISABELLE: Não muito.
PARAGUAÇU: Por
amor de que você quer
casar com ele?
ISABELLE: Eu?
Bem... Esperei por ele
este tempo todo,
juramos amor eterno,
essas coisas, sabe
como é. Olha, eu sei
que tinhas uma grande
expectativa, nadaste
atrás do navio e tudo
mais. Eu compreendo,
a lua, o calor, os dois
nus naquela praia
tropical, eu sei como é
isso.
PARAGUAÇU: Só nós
dois não, tinha gente
muita naquela praia.
ISABELLE: Eu sei
como é isso também.
Mas tens que entender
que este casamento é
muito importante para
mim, para o rei da
França e para o Diogo.
PARAGUAÇU: Você já
mordeu ele?
ISABELLE: Eu? Não
que eu lembre? Tu já?
PARAGUAÇU:
Mordidinha.
ISABELLE: Eu estou
disposta a
recompensá-la pela
perda. E pelo seu
esforço. Sabes o que é
isso?
Rangido
de porta
ao abrir
e fechar
178
(Continuação).
IMAGEM
CÂMERA
SOM
PLANO
EQUADRAM.
ANGULAÇÃO
MOVIMENTO
AÇÃO/AMBIENTE
FALA RUÍDO
155
156
157
158
159
160
161
162
163
164
165
166
PM à PP
C à Nas
mãos delas
à PM à PP
PM à PA à
PP à PM
PP
PP à PA
PA à PP à
PG
PM à PP
PM
PM
PM
PM
PM
FRENTE
ALTO à
FRENTE
FRENTE à
LADO à
FRENTE
FRENTE
ATRÁS à
FRENTE
FRENTE
LADO
FRENTE
LADO
FRENTE
LADO
FRENTE
FIXO
FIXO
FIXO à MINI
PAN PARA
BAIXO à
PARA CIMA
à FIXO
FIXO
FIXO
FIXO
FIXO
FIXO
FIXO
FIXO
FIXO
FIXO
Isabelle mostra
algumas moedas de
ouro a Paraguaçu.
Ela examina a
moeda.
Paraguaçu mostra a
pepita de ouro para
Isabelle. Isabelle
examina a pepita.
Paraguaçu entra
numa espécie de
transe e começa a
falar e gesticular
como índio de
cinema.
Ela volta a falar
normalmente.
Vai em direção a
Isabelle.
Ela segura a mão
da índia e pega a
pepita para ela e
guarda o objeto.
Senta-se.
Senta-se.
Balançando as
pernas igual a
criança.
Indigna-se.
Como quem não
sabe o significado
do que diz.
Levanta-se e sai do
quadro em direção
à porta e abre-a.
PARAGUAÇU:
Pedras de luz. Lá tem
muito. Falta só essa
carinha pintada.
ISABELLE: Isso é
ouro. De onde vem
isso?
PARAGUAÇU: A
cinco luas de
distância, o sol se
esconde na montanha
faiscante. O chão se
cobre de pedras de
luz, nossos
antepassados
ensinaram que são
estrelas caídas. Eu
levo você lá.
ISABELLE: O Vasco
sabe do ouro?
PARAGUAÇU: Sabe
nada. Querendo eu
mostro.
ISABELLE: Não.
Melhor não. Não fale
do ouro para ninguém.
Não sabes o que as
pessoas fazem por
ouro.
PARAGUAÇU: Sei
demais.
ISABELLE: O que
queres?
PARAGUAÇU: Casar
com ele e escrever um
livro.
ISABELLE: E eu?
PARAGUAÇU: Você
vira madrinha. E
amante.
ISABELLE: Eu?
Amante? Nunca.
Nunca!
Som
ambiente.
Passos
de
Isabelle.
Rangido
da porta.
179
(Continuação).
IMAGEM
CÂMERA
SOM
PLANO
EQUADRAM.
ANGULAÇÃO
MOVIMENTO
AÇÃO/AMBIENTE
FALA RUÍDO
167
168
169
170
171
172
PM
PM à PA à
PP à PA à
PM à PA à
PP
PM
PP
PM
PM à PP
LADO
LADO à
FRENTE à
ATRÁS à
FRENTE
LADO
FRENTE
FRENTE
FRENTE
FIXO
FIXO à MIN
PAN PARA
DIR. à FIXO
FIXO
FIXO
FIXO
FIXO
Ainda balançando
as pernas como
quem não tem nada
a perder.
Ela pára, pensa e
fecha a porta de
novo.
Ela passa as mãos
sobre as pernas.
Sorri, satisfeita com
o acordo.
Ela deita-se na
espreguiçadeira.
Pisca e sorri
satisfeita enquanto
põe um anel no
dedo médio.
PARAGUAÇU: Melhor
ser amante com ouro
do que esposa sem
ouro.
ISABELLE: Confesso
que não havia
analisado a situação
por este ponto de
vista. Paras de me
morder, eu fico com o
ouro, posso ser
amante dele quando
quiser e não preciso
mais casar-me com
esse banana?
PARAGUAÇU: Eu
gosto de banana.
ISABELLE: Parece
bom.
PARAGUAÇU: Eu lhe
ensino a ser amante.
ISABELLE: Eu lhe
ensino a ser esposa.
Rangido
da porta.
Rangido
da porta.
Passos
de
Isabelle.
Som
incidental.
Com estes exemplos, concluímos este capítulo. De maneira geral, percebemos
que os programas narrativos funcionam dentro da lógica preconizada pelos autores
que utilizamos, e são os responsáveis por deflagrarem as ações dos personagens ao
longo da história, estabelecendo entre eles relações criadas em função do tempo e do
espaço em que ocorrem as ações descritas, nos períodos aqui identificados por antes,
durante e depois. Isto permitiu ao autor, criar diferentes núcleos dentro da mesma
história, um processo que ficou bem evidenciado a partir do trecho que decupamos,
mas que é, sobremaneira, um recurso inerente à característica deste tipo de narrativa
utilizada em série - como foi o caso para a TV - ou filme. Ou seja: lugares de
excelência tanto para este tipo aplicação e como para a análise aqui desenvolvida.
180
CONSIDERAÇÕES FINAIS
“Cada gesto criativo nosso, uma vez esboçado, está condenado a cair
nesse reduto, que é o universo a que pertencemos. Trata-se, portanto, para
todos os artistas criadores, de um desafio que não é a busca do singular e do
bizarro e sim o esforço de ser o melhor do mundo”.
Darcy Ribeiro
A trajetória percorrida nos capítulos anteriores nos leva, neste momento, a
arrematar nosso tema fazendo algumas considerações gerais. Na perspectiva histórica
da evolução dos meios de comunicação, pudemos verificar que, no seio de cada
cultura midiática, há um certo movimento de apuração das propriedades dos meios
em uso. Mesmo passando pelo espaço pertinente aos produtos televisivos, neste
trabalho, procuramos destacar especialmente o papel do cinema. Evidenciamos que
com o surgimento do cinema e outros meios de comunicação mais recentes, aos
poucos vamos nos distanciando da cultura oral, que em seu processo histórico,
especializou-se em recursos para manter a cultura dos povos. Portanto, o cinema e a
TV, por exemplo, tomaram o seu espaço original, ao desenvolver uma linguagem e
recursos próprios dando lugar a uma nova experiência mnemônica, antes exercida
por estas ditas culturas orais.
Sob esse ponto de vista destacamos o que preconiza Edgar Morin (1990) como
sendo o “espírito do tempo” advindo com essas novas tendências tecnológicas, ou
seja, uma nova forma de individualismo, de “tendências libidinosas, consumidoras,
lúdico-estéticas” em que o presente é mais que antecipado pela urgência em se
realizar várias coisas ao mesmo tempo, facilitadas pela presença da técnica no
quotidiano. Com isso neste trabalho abordamos as questões plásticas inerentes ao
181
filme, ao percebermos na produção de Guel Arraes uma tendência de utilizar o
gênero comédia, para uma experiência estética que elevou o fenômeno grotesco e, de
certa forma, rebaixou os padrões culturais ao deixar de explorar os fatos históricos
inerentes ao contexto pelo qual o objeto foi construído. Assim, com o uso do
grotesco no filme a representação da sociedade brasileira, do índio e da própria
história do descobrimento passou por um tratamento diferenciado, caricaturizado e
lúdico.
Por outro lado, com a análise estrutural que fizemos do filme, vimos que o
método de produção cinematográfico tornou-se muito mais veloz e os recursos de
reprodução tornaram-se muito mais precisos e mais acessíveis. Em sua parte técnica,
esta produção de Guel Arraes apresentou recursos novos como o processo de edição,
kinescopagem (passagem para película de 35 milímetros) e um novo tratamento de
som. Na estrutura narrativa, a diferença básica entre a microssérie e o filme é que a
primeira trazia trechos documentais que foram descartados. Por sua vez, a versão
para o cinema ganhou um tratamento de linguagem destacado com a aceleração da
fala dos personagens e que também foi facilitado pelo processo de “remontagem”, a
partir da microssérie de base, que tinha quatro capítulos.
Esta particularidade permitiu desdobramentos que facilitaram a produção,
permitindo a transformação de micros em longas e vice-versa. Daí, portanto, a
configuração em nosso estudo, de seu caráter canibalesco que determina que para
que um prevaleça, a existência de outro deve ser sucumbida. Este filme é um
subproduto criado a partir de uma microssérie e, neste ponto a televisão devorou o
cinema. Ele também possui a propriedade de ter bebido na fonte da tradição oral,
indo buscar de lá uma lenda que inspirou a produção de um filme de fundo histórico,
182
mas sucumbiu exatamente este detalhe: a história. Traduziu assim, também a maneira
pela qual a indústria cultural de massa construiu suas bases que vêm aflorar agora,
com o neoliberalismo econômico, conforme Morin:
A técnica transforma as relações entre os homens e as relações
entre o homem e o mundo; ela objetiva, racionaliza, despersonaliza. Tudo
parece dever reduzir-se à algarismos. Há uma coisificação tecnicista que
é preciso distinguir da “reificação” mítica, em que se investe a
necessidade de possessão, como há uma alienação propriamente moderna
nascida da quantificação e da abstração. (...) A recuperação do passado
perdido por um excesso lúdico de vida tecnicizada, própria do lazer
moderno, vai no mesmo sentido que a cultura de massa (...) (Morin,
1990, pp. 171-172).
Dentro desse contexto, também discorremos sobre a peculiar característica
industrial do processo de produção já consolidado pela indústria cultural e de massa,
visando produtos que são altamente apoiados pelos meios de comunicação também
de massa e feitos exclusivamente para o entretenimento do público. O filme que
analisamos além de inserir-se no contexto acima descrito fez parte de uma espécie de
cinema atualmente muito em voga no Brasil. Nesta análise consideramos três
grandes vantagens para este tipo de produção: a) o amplo apoio da iniciativa privada
capaz de promover, desenvolver e viabilizar financeiramente os seus custos; b) as
vantagens comerciais e a alta margem de lucro obtida com um novo cenário
econômico e cultural e; c) a agilidade a partir de uma fórmula reducionista aplicada
na forma de elaborar uma estrutura narrativa modulada, transformando minisséries
em microsséries e possibilitando novos desdobramentos.
Do primeiro aspecto, conseguimos destacar a vantagem do status hegemônico
das organizações Globo - discorrido neste trabalho - com a criação de núcleos de
cinema específicos, que possibilitam controlar a produção ao mesmo tempo de várias
obras num único complexo e de uma única obra, a partir de vários locais, sendo que
183
neste filme, parte das gravações foi realizada também em Portugal. Em matéria
produzida para o jornal O Estado de São Paulo, em 24/02/2000, o repórter Jair
Ratter, informa que apesar da viagem não ter sido prevista no orçamento do
programa ela foi viabilizada por ter sido considerada importante quanto maneira de
privilegiar na tela o “encontro das duas culturas”, reforçando com esta colocação o
mito da formação do Brasil e de que nossa identidade vem dessa fusão (índios e
portugueses e negros). Do segundo ponto, percebemos o interesse das emissoras em
obter lucratividade a partir de ações planejadas comercial e estrategicamente para
que tudo seja articulado visando o apoio incondicional da publicidade em suas fases
de pré e pós-lançamento da obra, motivando no público um interesse quase que
imediato com a sua estréia. Para tanto, destacamos aqui os aspectos da fase de
organização do evento por parte da indústria cultural de massa, responsável por
desencadear todo um processo de envolvimento das esferas pública e privada,
vinculando-as ao momento de celebração dos 500 anos do descobrimento do Brasil,
apoiadas, especialmente pelas organizações Globo, que ao inserir as chamadas (em
2000) da nova atração na grade de programação televisiva (a microssérie),
comercializou espaços publicitários visando, não só custear a produção, mas a
necessária obtenção de lucro, controlada também a partir da aferição da audiência.
No tocante ao terceiro e último aspecto buscamos abordar tanto a estrutura da obra,
como também a maneira com que foi idealizada e compreendemos que em seu estilo
de trabalho, Guel Arraes mescla conteúdos e essa alternância, permitindo que se
possa ora omitir, ora inserir trechos já pensados para o mesmo roteiro, sem
comprometer o eixo narrativo principal. E vislumbramos com isso um novo modo de
fazer cinema que, de acordo com nossa pesquisa, vem possibilitando uma espécie de
184
convergência das mídias e por este aspecto distanciando-se da forma “clássica” e já
consagrada. Da mesma forma, vem criando um caminho mais próximo de uma
versão popular e uma fórmula que, somada aos fatores anteriores, resulta em êxito
mercadológico, de público e também de crítica. O reforço dado pela idéia de
transformar produtos feitos antes à moda clássica - veja-se portanto, o poema épico
que inspira esta obra - em algo mais popular - como o conto de Viriato Corrêa -,
tornou-se uma rota alternativa ou uma fórmula que vai se firmando, já que dá ao
público algo que ele já conhece, com uma nova roupagem.
Por um lado, ao inserir em nossa cultura esta maneira de exercitar seu trabalho
introduzindo “novidades” no fazer artístico, tornando-o mais próximo do gosto
popular, vamos detendo a habilidade de anexarmos à nossa cultura cinematográfica,
outras formas de atividades, ao mesmo tempo em que criamos estruturas próprias de
mercado que determinam a nossa produção artística e cultural. Porém, não está claro
quanto o autor pauta seu trabalho com o olhar cultural, já que em nosso entender,
Guel vem se afastando da compreensão da arte como sistema cultural. Neste filme,
vimos uma busca dele em aproximar-se à capacidade do público, ou seja: “a
capacidade de ver, de ouvir, de tocar, à vezes até de sentir gosto e de cheirar, com
certa compreensão” (Geertz, 1998, p. 178), os elementos fundamentais existentes na
cultura de um povo. No entanto, consideramos que a lógica não pode ignorar ou
banalizar a história para facilitar a fruição de um objeto. Diferente das festividades
de carnaval, em que a fantasia permite passar de “ninguém a alguém” (DaMatta,
1984, p. 75), este filme fez parte de um tema muito maior e encerrou um ciclo de
celebrações que destacava a origem da nação Brasil. Ele trouxe entretenimento e
lazer a quem o assistiu, mas à custa da construção de mais um enorme vazio.
185
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disponível em http://www.cinemateca.gov.br. Acesso em 25/09/2006.
Filmografia:
Caramuru, a invenção do Brasil. Brasil, Globo Filmes, 2001. Longa-metragem;
Sonoro; Ficção; 35 mm; Cor; 110 min.; Gênero: Comédia; Idioma: português;
Direção Guel Arraes.
O auto da compadecida. Brasil, Globo Filmes, 2000. Longa-metragem; Sonoro;
Ficção; 35 mm; Cor; 104min; Gênero: Comédia; Idioma: português; Direção Guel
Arraes.
Le Voyage dans la Lune. França, 1902. Curta-metragem; Mudo; P&B, 14 min.
Gênero: Ficção científica, Idioma: mudo. Direção: George Méliè e Pau Schneider.
Descobrimento do Brasil. Brasil, 1937. Longa-metragem; Sonoro; Ficção; 35 mm;
P&B; 60 min.; Gênero: drama; Idioma: português; Direção Umberto Mauro.
Como era gostoso o meu francês. Brasil, Condor Filmes; L.C.B. Produções
cinematográficas, 1971. Longa-metragem; Sonoro; Ficção; 35 mm; Cor; 79 min.;
Gênero: drama; Idioma: português; Direção: Nelson Pereira dos Santos.
193
ANEXOS
194
ANEXO 1 - ELENCO E FICHA TÉCNICA
195
ELENCO
Selton Mello ........................................................................Diogo Álvares, o Caramuru
Camila Pitanga .............................................................................................Paraguaçu
Déborah Secco..................................................................................................Moema
Tonico Pereira................................................................................................ Itaparica
Débora Bloch...................................................................................................Isabelle
Luís Mello....................................................................................... Vasco de Athayde
Pedro Paulo Rangel.................................................................................... Dom Jayme
Diogo Vilela ...................................................................................................... Heitor
FICHA TÉCNICA
Direção..................................................................................................... Guel Arraes
Roteiro...............................................................................Guel Arraes e Jorge Furtado
Diretor de Fotografia ...................................................................................Félix Monti
Direção de Arte ............................................................................................Lia Renha
Figurino.............................................................................................Cao Albuquerque
Cenografia................................................................................................Fábio Rangel
Produção de Arte...................................................................................... Moa Batsow
Maquiagem/Caracterização.................................................................... Marlene Moura
Direção Musical................................................................................................. Lenine
Consultoria de Criação................................................................................João Falcão
Assistente de Direção............................................................................ Flávia Lacerda
Câmera............................................................................................... Ricardo Fuentes
Montagem............................................................................................ Paulo H. Farias
Efeitos Especiais.................................................................................... Gerald Köhler
Diretora de Produção................................................................................Anna Barroso
Produtor Executivo.............................................................................Eduardo Figueira
Produtor Associado....................................................................................Daniel Filho
196
ANEXO 2 - ENTREVISTA: JORGE FURTADO
197
ENTREVISTA: JORGE FURTADO
Foi bom inventar o Brasil?
Foi ótimo. Gostei especialmente da mistura de raças, da praia, longa e variada, e da
localização da Amazônia.
Você trabalhou o programa já pensando em exibição na TV e no cinema?
Sim, os enquadramentos e as piadas foram pensados para os dois formatos.
Qual o maior desafio do projeto? Conciliar História com leveza, humor?
O maior desafio do projeto foi mentir descaradamente e contar histórias reais ao mesmo
tempo.
Você se preocupou em ser politicamente correto na abordagem da História?
Não. Não existe humor politicamente correto. Mas os fatos descritos são todos
documentados pela história, algum há de ser verdadeiro.
Qual a sua opinião sobre o registro de imagem em HDTV?
A melhor possível. A imagem é quase tão boa quanto a do negativo. A produção é mais ágil
e os recursos de pós-produção são maiores, mais rápidos e mais baratos.
Qual o método de trabalho com o Guel? Há uma divisão de tarefas?
Nós escrevemos juntos, parte ao vivo, parte por e-mail. Ele dirigiu a ficção e eu os
documentários, na versão para TV. A versão para o cinema não tem os documentários, a
direção e a montagem são do Guel.
198
ANEXO 3 - ENTREVISTA: GUEL ARRAES
199
Como você define o filme Caramuru - A Invenção do Brasil?
Uma comédia romântica histórica narrada em tom de fábula. Embora o encontro de
Caramuru e Paraguaçu se baseie em fatos reais, trabalhamos as referências da História
com muita liberdade. E surpreendentemente, o filme está mais leve e mais popular do que a
minissérie, enquanto devia ser o contrário - era de se esperar um produto para a TV mais
leve que para o cinema. A série era um docudrama, mistura de jornalismo com ficção, e a
parte mais documental não está no filme, no qual predomina a comédia em torno do
triângulo amoroso entre Caramuru, Paraguaçu e sua irmã Moema nos primeiros anos da
História do Brasil.
Caramuru repete o pe rcurso de O Auto da Compadecida ao migrar da TV para o
cinema. Quais os paralelos entre os dois projetos?
Para levar O Auto da Compadecida para o cinema a gente simplesmente condensou a série
da TV de 2h40 para 1h40. Já o filme Caramuru tem um resultado final bem diferente da
série. Para fazê-lo nós extraímos do seriado, que era um “docudrama” misturando cenas de
ficção e informações históricas, apenas a história de Caramuru e Paraguaçu, eliminando a
parte documental. A preocupação deixou de ser comemorar os 500 anos do descobrimento
do Brasil para narrar em tom de comédia uma história que tem como pano de fundo aquela
época. Como o programa foi exibido durante a semana de comemoração dos 500 anos do
descobrimento, as referências históricas e documentais faziam sentido. Tivemos a
preocupação de transmitir essas informações de forma leve e atraente, desde a narração do
Marco Nanini à criação de cenas de animação, encenações, vinhetas. Na edição para o
cinema cheguei a pensar na inclusão de alguma narração, mas consultando várias pessoas
envolvidas com o projeto cheguei à conclusão de que o filme deveria se voltar para a história
do relacionamento de Caramuru e das índias.
E quanto às opções narrativas entre os dois filmes?
O Auto da Compadecida se baseava em um clássico da literatura brasileira, e procurei ficar o
mais próximo possível deste modelo. Eu diria que A Invenção do Brasil, na falta de um
termo melhor, é uma obra pop, com as vantagens, desvantagens e imperfeições do gênero.
O Auto fazia uma espécie de reverência à geração anterior através de um grande autor
preocupado com a valorização da cultura popular. Invenção estaria mais ligado à minha
geração, marcada pela retomada nos anos setenta das teses dos modernistas sobre a cultura
brasileira. O projeto representa também dez anos de parceria com Jorge Furtado, e reflete
muito da nossa experiência, das nossas discussões ao longo desse tempo. Enquanto O Auto
foi inspirado em Ariano Suassuna e aspectos regionalistas, A Invenção teve por base os
modernistas, e Macunaíma talvez tenha sido a grande luz para a nossa criação. Não quanto à
trama ou o personagem mas em relação ao olhar que lança sobre o Brasil.
Que linhas vocês seguiram nesta criação?
O projeto foi totalmente desenvolvido a quatro mãos com o Jorge Furtado. Quando
pensamos em um tema para os 500 anos, passamos a ler dezenas de livros, romances,
pesquisas históricas. E o Jorge chamou a atenção para a lenda do Caramuru, e de como a
história do Brasil começava com um casal, e que esta seria uma história exemplar. Passamos
a desenvolver o roteiro e acho que A Invenção resultou em uma pequena utopia do Brasil
justificada pela História. Até 1530, embora também houvesse massacres e matança de índios,
a relação de forças entre portugueses e índios era muito diferente. Muitas vezes, três ou
quatro portugueses eram colocados no meio de uma tribo, e os dois lados tinham que se
entender. Essa situação criou uma espécie de convivência inevitável, às vezes através da
força, outras através do entendimento, como no caso de Caramuru.
200
Como vocês chegaram ao tom de humor e leveza para narrar a história?
Queríamos contar um pouco desta fábula meio à maneira modernista, neo-tropicalista,
aplicada às cores, música, elementos de chanchada, que são as principais influências da
nossa geração. E esta mistura nos possibilitaria também falar do Brasil de hoje. Não fizemos
o épico próprio a essas ocasiões comemorativas, até porque o Brasil permite este humor e
fantasia, uma abordagem menos sisuda da História. O filme tem este tom evocativo, para
comemorar nossa nacionalidade, nosso sentimento. E escolhemos o tom de comédia
romântica, um ar de utopia abordado com leveza e humor para falar desses nossos 500 anos.
Como foi para você inventar o Brasil?
Uma emoção muito particular. O projeto teve muito a ver como o meu reencontro com o
Brasil há 20 anos. Vivi muito tempo fora, e fiquei deslumbrando quando voltei. Viajei de
Belém ao Rio de carro, de ônibus, encantado com a paisagem, com a beleza das brasileiras e
dos brasileiros. Por mais que eu estivesse ligado às coisas do Brasil, talvez pela ditadura, a
minha visão do país tenha ficado meio sisuda. Cheguei logo depois da abertura, quando tudo
parecia possível. E a história de Caramuru tem um aspecto interessante: ele tem a
possibilidade de voltar para a França, mas escolheu viver no Brasil. A sua ligação com o país
começou como necessidade e terminou como opção. Nesse sentido, também é uma história
exemplar, quase uma bula de como virar brasileiro.
No tratamento da história, houve a preocupação em ser politicamente correto?
Houve a preocupação em sermos evocativos, em comemorar os 500 anos como uma festa
para celebrar o nascimento do Brasil. O filme não tem culpa, ele nasce de um sentimento de
amor pelo Brasil, de querer gostar de ser brasileiro, o que permite também uma irreverência
à História, com respeito mas com criatividade. Muitas informações históricas estão no
subtexto, e o conhecimento da época nos permitiu alguns anacronismos: a rigor, o visual de
Isabelle deveria ser mais recatado, típico do início do Renascimento, mas optamos por um
visual mais arrojado, para mostrar uma mulher à frente do seu tempo. As regras sexuais de
nossos índios eram muito diferentes da dos europeus e isso nos inspirou a contar o
nascimento do Brasil a partir de um casal com certa liberdade sexual e de relacionamento, e
com uma particularidade: este primeiro casal já era um triângulo permitido.
Como vocês chegaram à representação dos índios?
Em A Invenção do Brasil todos os personagens são brasileiros - de Paraguaçu a Caramuru.
Como eu disse, Macunaíma foi um pouco a luz que orientou o projeto, e ele é índio e vira
branco e é brasileiro. Por mais que se diga que descendemos de índios, brancos e negros, se
colocássemos uma índia para fazer o papel de mocinha em um filme ou seriado de TV, ela
seria vista com olhar estrangeiro. Assim, as índias do filme são quase garotas de praia, mas
funcionando como índias de época. Já o Caramuru representaria aquele estrangeiro que
existe dentro de nós: quando vamos a uma favela, também nos sentimos meio gringos diante
de uma escola de samba. As roupas das índias foram resultado de muita pesquisa e só utiliza
material natural, como cascas de cocos, resinas, cordas, escamas de peixes, penas. A
maquiagem, quase futurista, também foi uma recriação. A maior questão da interpretação da
Camila e da Déborah foi definir como falariam. Enquanto a maior parte do elenco usa um
português um pouco mais castiço, elas falam um português arrevesado, um “macunaimês”,
com expressões da Bahia, do Sul, do Nordeste. E essa prosódia deveria ser a mais natural
possível.
Como você trabalhou com o elenco?
O mesmo método de O Auto: muita leitura, muito ensaio, muita marcação, como no teatro.
Escolhemos atrizes da nova geração para representar o Brasil, enquanto a Europa vem
representada por atores mais experientes. O Selton foi a confirmação do que eu já achava em
201
O Auto: além de um comediante de primeira linha, é um grande companheiro de filmagem -
ele sabe tudo que interessa ao ator. Pensamos no personagem com cara de anjo - um pouco
inspirado no Cândido do Voltaire. A Camila trabalhou muito, estudou o texto com perfeição,
sabia as falas de trás prá frente. Ela e Déborah desenvolveram um trabalho de dupla, com
uma cumplicidade muito bacana, e embora não sejam parecidas, passaram uma irmandade
resultado de uma sintonia muito fina.
Se O Auto foi pioneiro na filmagem de um projeto para TV em película, A Invenção
traz o pioneirismo de ter sido filmado em HDTV. Por que você optou por esse
processo?
Esta opção talvez tenha sido o nosso maior risco, mas que acabou totalmente revertido a
nosso favor. Como o produto tinha dupla linguagem, a princípio pensei em filmar a ficção
em 35mm e a parte documental em vídeo. Como essa parte tinha muitos efeitos e utilizava
amplo material de arquivo, optei pelo HDTV basicamente por duas razões: economia de
custos e pela experiência. Ainda não estava seguro quanto ao resultado técnico final, que
acabou revelando uma qualidade perfeita.
E quais as vantagens desta utilização do HDTV?
No Brasil, sem dúvida o HDTV abre uma nova perspectiva na ligação entre cinema e TV. As
vantagens são inúmeras, sobretudo para um diretor de TV como eu: o equipamento é mais
leve, não há problemas de gastar película, todo o processo é mais fácil e mais rápido. No
caso de A Invenção, talvez a grande vantagem tenha sido utilizar toda a experiência técnica
da Globo, como o olhar, os técnicos, equipamentos, o padrão de produção. A TV tem
artistas, autores, atores, figurinistas, cenógrafos e técnicos que fazem cinema para a TV, mas
na hora de filmar em película há uma certa inibição. Embora em O Auto tivéssemos utilizado
o máximo do staff da TV, quando se roda em película, uma parte do staff fica alijado. No
caso do HDTV não há esta transição, a integração entre TV e cinema é imediata, o controle
de todas as etapas é total, dos créditos iniciais à copia final. O produto só vai para o
laboratório para ser kinescopado. A meu ver, esta tecnologia pode transformar a Globo no
maior estúdio de cinema do país.
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