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PAIXÕES ESTRANGEIRAS:
A VINGANÇA
JUDITH VERO
TESE DE DOUTORADO
Orientador: Prof. Dr. Alfredo Naffah Neto
Banca Examinadora: Dra. Liliana Wahba
Dra. Camila Salles Gonçalves
Dr. Paulo Roberto de Carvalho
Dra. Maria Júlia Kovacs
Suplentes: Dra. Laura Villares de Freitas
Dr. Peter Pál Pelbart
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Ao Diego, a melhor Vingança
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Agradecimentos
Em primeiro lugar, gostaria de reconhecer e agradecer o empenho do
meu orientador, Alfredo Naffah Neto, cuja afetiva e incansável dedicação,
ajudou não só a direcionar os rumos deste trabalho, como foi decisivo em
questões de aprofundamento daqueles temas considerados centrais à tese.
À querida co-orientanda Sonia Mansano que, com sua “expertise”
universitária e profundos conhecimentos, esteve incansavelmente ao meu lado
em momentos de alegria e angústia. Grande e continuo encontro!
Agradeço ainda a cada membro do meu grupo de orientação que é,
verdadeiramente, muito especial.
Ao meu pai, in memoriam, que sofreu seu maior revés na vida durante e
no final da elaboração desta tese, mas que foi sempre grande inspirador na luta
de superação pessoal.
À minha mãe, cuja memória hoje é a de uma pessoa amante da vida nas
suas expressões de lazer e prazer, mas cuja vingança foi, lamentavelmente,
inglória.
Ao meu filho Gustavo e sua família, Mariella minha nora – que me
iniciou no difícil papel de sogra - e Diego, meu neto – que refaz comigo, no
quotidiano, vivencias ancestrais de familiaridade com os primórdios da vida e
tem o dom de me re-conectar com o prazer de ser e estar. Certamente a melhor
vingança é uma nova vida e o prazer de acompanhar seu desenvolvimento.
À banca de qualificação que com seus aportes sensatos, pertinentes e
bem humorados foi fundamental para a consecução dos objetivos desta tese.
Ao CNPq pela bolsa concedida
4
Resumo
Este trabalho inicia-se com o 11 de setembro de 2001 a partir do que se pinça
a vingança como parte da motivação para os atos de terror acima mencionados
Assim, objetivo tornou-se definir rastrear e reconhecer a vingança como
elemento componente e estruturante da psique, validando-a como força vital.
O interesse neste tema foi levantado à raiz do episódio de 11 de setembro,
ocorrido nos Estados Unidos. Após um capítulo teórico, envolvendo
principalmente uma abordagem junguiana, o caminho escolhido foi buscar na
cultura e em suas expressões, elementos que permitissem validar a pesquisa.
Verificou-se que a vingança encontra-se presente e atuante, tanto na mitologia,
como nas artes, em filme, literatura e música. São citados exemplos em cada
uma destas expressões artísticas. Após este sobrevôo pela cultura, a atenção
centra-se no mito de Medéia, traduzida por Eurípides para a tragédia, como
representante do arquétipo da vingança. Em seguida a autora recorre aos
contos de fada no sentido de explicitar o feminino através da maternidade
sendo que, nesta leitura, a madrasta aparece como a sombra da mãe. Segue-
se uma entrevista com uma mãe/madrasta filicida. A autora, entretanto,
enfatiza a possibilidade de elaboração existente em situações extremas quando
a psique ameaçada de aniquilamento, pode recorrer à energia subjacente à
vingança para reconectá-la (a psique) a seus elementos vitais, evitando assim,
caminhos que de uma forma ou outra, reduzem a potencia vital.
5
Abstract
This paper begins with the 9/11 episode occurring in the USA from which
revenge is focused as part of the motivation for the above mentioned terrorist
acts. Thus the objective of this paper became to define, trace and recognize
revenge as a structuring element of the psyche, validating it, therefore, as a
vital strength. The interest in this subject arose from the 9/11 episode
occurring in the USA. After a theoretical chapter, centered mainly in a
junguian approach, the author resorted to cultural expressions to underlay this
research. Revenge is not only found but active in mythology as well as arts,
such as films, literature and music. Examples of such follow. After this
contact with cultural manifestations, the focus is centered on Medéia a myth
adapted into tragedy by Euripides as a representative of the revenge archetype.
An incursion into fairy tales tells us about the feminine and its shadow, the
stepmother. After an example coming from an interview with a
mother/stepmother who killed her stepdaughter, the author emphasizes the
elaboration possibility that revenge brings about once the underlying energy is
reconnected to the psyche via an elaboration of underlying issues. This is one
way the psyche has to reconnect to vital aspects of the self, thus avoiding
annihilating pathways.
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Sumário
Prefácio – 7
1. Introdução - 8
2. A Vingança – 12
2.1 Aspectos psicológicos e outros, nem tanto - 14
2.2 A pequena vingança e a grande vingança – 36
2.3 Jung e a vingança - 43
2.4 O Inconsciente Coletivo e Arquétipos - 45
2.5 Símbolo, Função Transcendente, Complexo,
Sincronicidade - 54
2.6 O Mito do Herói e a Figura do Trickster -61
2.7 Dioniso - 67
2.8 Fragmento Clínico – 72
3. A Vingança como expressão cultural - 75
3.1 Nos mitos – Um passeio Mitológico - 76
3.2 No cinema – A vingança em Movimento –
Abril despedaçado - 93
3.3 Na literatura – A sutil Vingança – Salman Rushdie – 100
3.4 Na música – A Melodiosa Vingança – Lupicínio Rodrigues - 110
4. A Medéia: a figura da mãe e da madrasta
4.1 Medéia - 115
4.2 A mãe e sua sombra: a madrasta, a bruxa - 139
4.3 Uma Medéia contemporânea - 162
5. Conclusões - 178
6. Bibliografia - 202
7. Anexos - 205
7
PREFÁCIO
A idéia de escrever a respeito de vingança originou-se no evento
amplamente conhecido de todos, o fatídico episódio de 11 de setembro de
2001, ocorrido nos Estados Unidos, que deixou perplexa a humanidade.
Após os dois primeiros anos de estudos no programa de doutorado da
PUC, resolvi, de comum acordo com meu orientador, “pinçar” do episódio um
tema, no caso, a vingança, e centrar os estudos nesta paixão, já que falar do
episódio em si, àquelas alturas dos acontecimentos, muitos já o haviam feito
de forma bastante abrangente e aprofundada.
Assim, este trabalho tem por objetivo rastrear a vingança como
componente básico da conformação psíquica, inserindo-a no seu devido lugar
dentro da formação de uma psique adulta em processo de individuação. Para
isto, o caminho escolhido foi, em primeiro lugar, circunscrever a vingança do
ponto de vista teórico para, em seguida, recorrer à mitologia e às artes em
geral, buscando exemplos deste arcabouço cultural, mostrando a vingança se
fazendo presente. Em outras palavras, não se trata de diabolizar ou endeusar
este afeto, mas em vez de negar sua existência acolhê-la, dando-lhe o espaço
devido, para que, ao ser reconhecido como manifestação psíquica, possa
compor, como um dos elementos, a elaboração dos sentidos de vida que se nos
apresentam.
Isto posto, recorro à Medéia de Eurípides como representante do que
poderia ter sido, segundo alguns autores, um período de transição entre
matriarcado e patriarcado, com suas conseqüentes transformações sociais na
cultura ocidental. Valho-me também de uma pequena incursão pelos contos de
fada para me referir ao complexo mãe/bruxa, já que se seguem exemplos da
clínica e uma entrevista com uma filicida da atualidade.
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1 - INTRODUÇÃO
Todos vimos, estarrecidos, os acontecimentos de 11/9/01 nos Estados
Unidos. Além da ficção-realidade das imagens, repetidas inúmeras vezes por
todos os canais de comunicação, sentimo-nos todos, de certa forma, atingidos
em algum lugar de nossa alma.
Estava eu às voltas com um paciente na minha sala de atendimento,
quando, subitamente, toca seu celular. Sergio é alto executivo da área
financeira e não raro ocorre de seu celular tocar no meio da sessão, algo coisa
que aparentemente não o abala e ele sempre prossegue, depois de desligar
naturalmente, como se nada houvera. Mas não nesta terça-feira. Noto que seu
discurso é diferente das outras vezes. Percebo que empalidece ao dizer:
“Como? Não acredito! Sério? Mas como é possível?” Em seguida desliga.
Olha para mim com um olhar parado, o que não é seu habitual por ser pessoa
bem agitada e me diz: “Atacaram o Pentágono! Você acredita?” Diante desse
comentário fico inicialmente muda, não sabendo como entender o que ele diz.
Será literal? É alguma metáfora? Quando ele vê que não há reação da minha
parte, a não ser, provavelmente, um certo ar de espanto, repete: “É isto
mesmo: atacaram o Pentágono!”.
A partir daí, o celular de Sergio tocou várias vezes, com seus
funcionários fazendo relatos sucessivos dos acontecimentos. Eram
aproximadamente dez e meia da manhã.
À medida que as notícias iam chegando pelo celular, fomos ficando,
Sergio e eu, progressivamente mais incrédulos, perplexos, sem saber o que
fazer. A sessão havia sido invadida por um turbilhão de acontecimentos.
Aviões seqüestrados, prédios derrubados, Presidentes rapidamente evacuados,
carnificinas de toda a espécie. Às onze horas termina a sessão. Ao me despedir
de Sérgio penso que preciso meditar sobre o ocorrido na sessão. Sérgio tem
9
ascendência que remete a um país do Oriente Médio, eu – Europeu. Mas antes,
preciso ouvir as notícias para saber o que é fato e o que é fantasia. Mas parece
não haver dúvidas. Realmente três aviões detonaram uma parte do Pentágono
e as duas torres gêmeas de Nova York! Isto porque Selma, a paciente seguinte,
me conta que ao vir à consulta estava ouvindo o rádio do carro e falaram de
oito aviões seqüestrados dos quais três já encontrados (um no Pentágono e
dois nas torres) e que ainda não se sabia dos outros cinco aviões. Selma, como
Sergio, estava incrédula diante dos acontecimentos. Difícil começar uma
sessão nestas condições. Mais difícil, ainda, aguardar seu término para poder
ir rapidamente almoçar e, em casa, saber das notícias.
O que eu soube, todos já sabem. Era meio dia quando saí do consultório
e só deveria voltar as três da tarde.
Naquelas três horas ficamos, eu e a família, diante da televisão vendo e
ouvindo o que parecia um conto de fadas às avessas.
Passada a primeira etapa de incredulidade, me senti invadida de uma
tristeza sem paralelos. Era como se houvesse perdido pessoalmente a batalha
contra a insanidade. Afinal eu, psicóloga que há mais de vinte e cinco anos
trabalho lutando com as paixões humanas, acabava de ter arremetido na minha
cara uma realidade irrefutável: contra o terror (e a intenção é demonstrar como
subjacente a ele existem paixões, das quais a vingança é uma) não há defesa
possível. E qual é a diferença entre esse tipo de terror e a loucura? Claro que
falar de loucura exige amplo esclarecimento do que se quer significar com esta
palavra. Mas naquele momento, o que me parecia (e por isso me ocorreu
aquela palavra) é que meu trabalho de consultório, de formiga, batalhando
com subjetividades uma a uma, era total perda de tempo, já que havia
emergido um tipo de loucura, o terror, com toda a sua potência a zombar da
credulidade humana.
10
Será que um século de psicologia não foi suficiente para mostrar um
caminho? James Hillman teria razão quando propõe como título de um de seus
mais recentes escritos “Tivemos cem anos de psicoterapia e o mundo
continua a piorar?”.
Estas questões começaram a se sobrepor a outras nas quais estava
enfronhada quando do acontecido. Acabava de decidir pelo Doutorado e
estava brincando com idéias e temas quando...
Fui afetada. Depois da tristeza inicial e do desalento conseqüente, foi se
organizando em meu seio uma vontade, uma potência. Tenho o privilégio de
estar viva no momento em que a história oferece uma oportunidade única à
humanidade: pensar o acontecido à luz da própria história. Estará a
humanidade (através de seus representantes) à altura da tarefa? E nós, que
militamos junto à alma humana e, inclusive, no varejo, qual o nosso papel?
Como entender e transpor o “macro” no “micro”? Há espaço criativo para
terapeutas? Ou estaremos tão mergulhados na cultura em que vivemos que até
as linhas de fuga nos parecem tênues diante da inesgotável capacidade que
tem o Homem de viver paixões cada vez mais ilimitadas?
Estas são algumas das questões que me proponho a desenvolver nesta
tese.
Trata-se de compreender as paixões, estudando especificamente uma
delas; esmiuçar sua qualidade e intensidade e eventualmente melhor
compreender suas afetações. Trata-se da vingança.
Vários autores, no decorrer da história, nos trazem relatos onde a
vingança está presente como uma das forças que atravessam os personagens.
Quer seja nos mitos, na literatura em geral, ou mais recentemente em filmes,
encontramos a vingança operando de maneira a mover os personagens
envolvidos de forma extrema, levando-os aos limites de seu ser.
11
No intuito de compreender o 11 de Setembro, escolho esta entrada: a
vingança. A vingança entendida sob a ótica da psicologia analítica, fazendo
parte do aspecto sombrio do inconsciente coletivo da humanidade.
Acredito que o olhar psicológico não é suficiente, não esgota a
compreensão do ocorrido. Assim, como “objeto intermediário”, pretendo
recorrer à mitologia e às artes, em especial, ao cinema e à literatura. Em outras
palavras, pretendo demonstrar como a tragédia grega se atualiza na
modernidade como forma de compreensão da realidade.
Pretendo, ainda, incluir casos clínicos e uma entrevista que possam
explicitar a maneira como se formam vivências relacionadas com esta paixão,
a vingança.
1
1
Em Anexo I de 1 a podemos relembrar todo o horror do evento, conforme notícias de jornais e
manifestação de alguns intelectuais a respeito.
12
2 - A VINGANÇA
Roberto tem uma história de abuso sexual na infância. Uma das
conseqüências desse episódio pode ser sentida por ele até os dias de hoje,
quando, ao ser confrontado com alguma crítica, sente-se imediatamente
desqualificado, um deficiente, anormal, e outros adjetivos mais. Quando essas
críticas ocorrem no seio familiar, Roberto se dedica durante dias a pensar no
assunto e preparar maneiras de agir para fazer sentir ao agressor o quanto se
sentiu invadido, humilhado e desrespeitado, em suma, para se vingar do
episódio. Suas ações em relação ao suposto agressor não passam de simples
evitamento, ou seja, ele desaparece do convívio por algum tempo ou se detém
em longas conversas, às vezes até telefônicas, nas quais acredita ter passado,
nas entrelinhas, alguma mensagem que redime sua dignidade. Raramente é
agressivo nesses episódios, embora pense que o foi e sente-se ora culpado, ora
vingado.
Já na sessão, mostra-se periodicamente irado, despejando sua raiva
sobre mim, como se eu fosse alguém dedicado a destruí-lo com minhas
palavras. Pode, por vezes, alterar a voz, gritando desaforos que,
invariavelmente, em algum ponto, fazem referência ao pagamento das sessões.
“Eu quero acabar com isto. Não quero mais sofrer. Venho aqui e pago caro
para me sentir um incompetente, um deficiente, um merda! Vou parar a
análise”, ou então “Você me fez sentir horrível a semana inteira. O que você
me disse, eu não preciso ouvir. Me fez um mal terrível. Levei três dias para
conseguir sair do estado que você me deixou na semana passada. Não quero
mais este sofrimento. Eu pago uma fortuna e tenho que passar por isto?”
Roberto é extremamente inteligente e articulado, profissional bem
sucedido, e ao me atacar dizendo da minha incompetência diante do seu
drama, acredita poder livrar-se de seus sentimentos persecutórios.
13
Trata-se de um exemplo clínico onde a “vingança” se expressa de duas
maneiras bastante interessantes. A primeira, que é dirigida por Roberto ao
suposto agressor e que se configura em evitamento ou fria polidez. A segunda,
dirigida a mim, já que me atribui a “safadeza” da qual se sente vítima. Pune-
me pelo seu sofrimento. Assim, preso ao seu drama infantil, busca “vingança”,
punindo supostos violentadores, atribuindo ao outro as razões de seu
sofrimento.
Mas o que é a vingança afinal? Pulsão? Sentimento? Paixão? Ato?
Pensamento?
No dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, a vingança é descrita
como “ato ou efeito de vingar (se) 1. ato lesivo praticado em nome próprio ou
alheio, por alguém que foi real ou presumidamente ofendido ou lesado, em
represália contra aquele que é ou seria o causador desse dano; desforra,
vindita. 2. qualquer coisa que castiga; castigo, pena, punição”...
Como vemos, neste caso a vingança está diretamente relacionada a um
ato.
2
Apesar de essa definição iluminar a vingança, ela só o faz sob o aspecto
ato, deixando de lado outras nuances, como o sentimento de vingança, a
vingança como paixão, que, aliás, são os exemplos que me interessam
sobremaneira.
Portanto, a intenção neste capítulo é circunscrever a vingança, para, em
seguida, tentar uma compreensão em relação à alquimia que este afeto – por
enquanto vou me permitir assim nomeá-lo – oferece à psique nos dias de hoje.
2
Por enquanto não estou diferenciando “ato” de “acting out”, apesar de existir esta diferença conforme será
explicitado adiante.
14
2.1 Aspectos psicológicos e outros, nem tanto
Em rápido sobrevôo, pretendo ilustrar a visão de alguns autores a
respeito do conceito de vingança. Esta passagem se justifica, já que a intenção
é demonstrar o que é ou pode ser a vingança em suas duas manifestações
principais, ou seja, enquanto vivencia interna e quando atuada.
Segundo Renato Mezan
3
, a vingança está diretamente associada à
ofensa e à humilhação. Ela se configura quando a pessoa sente que perde a
dignidade, a vergonha e a honra. A essência da vingança pode ser ditada pelo
“Olho por olho, dente por dente” bíblico, ou seja, fazer sofrer da mesma forma
que sofremos. Isto é ilustrado já em Spinoza
4
quando diz que “a vingança é o
desejo que, surgindo do ódio recíproco, nos impele a ferir aqueles que, a partir
de um afeto semelhante, nos feriram”. Spinoza faz ainda uma diferenciação
entre cólera e vingança. Cólera seria o esforço para fazer mal a quem odiamos,
enquanto a vingança pretende retribuir o mal que nos infligiram. Assim,
segundo esse autor, a reciprocidade no ódio é o ingrediente essencial à
vingança, justamente o que o distingue da cólera, indignação e emoções
semelhantes.
Freud, em suas Obras Completas, faz trinta e nove referencias à
vingança.
5
Ou seja, para obra tão extensa como a dele, podemos dizer que faz
apenas estas referências. E em nenhuma delas, a questão é tratada como
ingrediente central. Não disseca a vingança de maneira a vinculá-la a alguma
patologia específica. Também não a caracteriza especificamente. Por exemplo,
no “Pequeno Hans”, cita a vingança na interpretação de uma fala do
protagonista, dirigida a seu pai: “Se você realmente pensou que eu era tão
estúpido assim, e esperava que eu acreditasse que a cegonha trouxe Hanna,
então, em troca, eu espero que você aceite as minhas invenções como sendo
3
Mezan, R. Tempo de Muda. S.Paulo: Companhia das Letras, 1998. p.132.
4
Spinoza, B. In Mezan, R. Idem. p.135.
5
Freud, S. Obras Completas. S.Paulo: Ed. Standard, Vol. XXIV, Índice Remissivo.
15
verdade.”
6
Neste trecho, Freud refere-se a uma atitude do pequeno Hans como
tendo sido vingativa e ela estaria relacionada à irritação paterna em conjunção
a um desejo de bater na sua mãe. E é tudo. Não se esclarece mais nada a
respeito da vingança.
Assim, para examinarmos o que seria para Freud a idéia de vingança,
temos que abordar este afeto indiretamente, através de outros, como o ódio,
ressentimento e a inveja.
Dos três afetos acima mencionados, vou destacar a inveja como porta de
entrada à compreensão da vingança para Freud. Se desconsiderarmos a
questão específica da inveja do pênis, nosso autor também faz apenas quatro
referencias diretamente à inveja em toda a sua obra.
7
Segundo Mezan, a inveja
como tal não é para Freud uma referencia teórica importante. Aparece em
meio à discussão de outros temas, sendo descrito como “um sentimento que
visa privar o outro de uma gratificação pulsional que pode ser agressiva ou
libidinal, caso em que a dimensão narcísica parece prevalecer (inveja da
juventude, dos privilégios etc.)”
8
Vejamos, rapidamente, os tipos de inveja aí descritos. A primeira delas
é a inveja que as crianças sentem diante de um irmão mais jovem que lhe tira
o lugar privilegiado e às vezes exclusivo do amor de seus pais. A segunda
seria a inveja da juventude sentida pelo pai diante do filho adulto ou da mãe
diante da filha em idade de se casar. A terceira - mais interessante do meu
ponto de vista para este trabalho - é a inveja sentida por aquele que quebrou
um tabu, por exemplo, o do assassino. Freud passa a explicar, em seguida, que
todos abrigamos essas tendências; apenas as reprimimos, por isso não somos
todos delinqüentes. Finalmente, a quarta, seria a inveja provocada pelo rei por
seus privilégios. Este aspecto também nos interessa para fins do estudo da
6
Freud, S. Obras Completas., Ed. Biblioteca Nueva, Madrid, Tomo II. pg.1431.
7
Freud, S., Obras Completas, S.Paulo: Ed. Standard, Vol XXIV, Índice Remissivo.
8
Mezan, R. A Vingança da Esfinge. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1995, p.86.
16
vingança, já que pode, inclusive, ser entendida como aquela inveja que nós
projetamos no outro quando somos nós que temos algo precioso e passível de
destruição. Neste caso atribuímos ao outro algo que nós mesmos sentiríamos
se a situação fosse invertida. Ou seja, fantasiamos a inveja alheia para poder
proteger nosso objeto do suposto ataque de terceiros. Na realidade somos nós
que potencialmente atacaríamos o objeto de outra pessoa por conta de nossa
inveja.
Vamos, por ora, deixar Freud, lembrando para mais adiante os dois
tipos de inveja que nos chamaram a atenção: a da pessoa que quebra um tabu
importante e a inveja do rei, ou seja, do poder.
Como não é interesse primordial deste trabalho esmiuçar a inveja, vou
deixar de lado Melanie Klein que, como todos sabem, tratou brilhantemente e
com refinamento de detalhes da questão. Interessa apenas, para fins deste
trabalho, saber que, segundo a autora, a vingança já estaria presente como
possibilidade desde a mais tenra idade na fantasia de meninos e meninas. E o
que é mais importante, como componente necessário ao desenvolvimento de
uma psique adulta.
O ressentimento e o ódio poderiam nos dar, também, interessantes
indicações para o desenvolvimento da vingança. O ressentimento é tema
essencial na obra de Nietzsche. Também não é a intenção deste trabalho
mergulhar em questões nietzscheanas. Basta apenas lembrar que o homem
ressentido é um homem considerado por Nietzsche, de certa forma, “menor”,
já que se relaciona com a vida através de atitudes e comportamentos que
restringem suas possibilidades vitais, deixando de conectar-se, em suas
vivências do quotidiano, com aquilo que ela (a vida) tem de valor maior, ou
seja, sua própria expansão. Entretanto, o ressentimento pode ser um estágio
anterior ao aparecimento da vingança, em paixão ou ato, como veremos em
17
capítulo posterior. Em outras palavras o ressentimento pode preceder uma
expressão vingativa.
Já o ódio é mais facilmente conectado à vingança, conforme vimos,
inclusive através da definição que Spinoza nos apresenta.
Passemos, agora, ao desejo, que é outro aspecto que me parece
componente essencial da vingança.
Laplanche e Pontalis dizem: “Em toda a concepção do homem, há
certas noções demasiado fundamentais para que se possa delimitá-las
firmemente; é sem dúvida o caso do desejo na doutrina freudiana.”
9
Vou me permitir a aventura de delimitar o desejo a partir da
compreensão de um de seus componentes, sempre tendo em mente o objeto
deste capítulo, ou seja, circunscrever a vingança.
O componente a que me refiro é a perda, porque sempre que se deseja
algo é quando este algo não está mais (ou nunca esteve) à nossa disposição,
quer seja pela distância no tempo ou no espaço. Desejamos algo que não
temos, mas que “sabemos” existir. Coloquei aspas no “sabemos”, já que se
trata freqüentemente de uma verdade interna, pois o que pode ocorrer é que
alucinamos o objeto do desejo.
O objeto do desejo é um objeto perdido. Neste sentido torna-se quase
indestrutível o que passa a ser a própria essência do desejo. Seria assim: um
primeiro objeto trouxe satisfação e deixou como legado um traço mnésico
dessa vivência. Mezan, citando Freud, diz que:
como conseqüência desta experiência o traço mnésico de uma certa
percepção ficou associado ao traço mnésico da excitação resultante da
necessidade. Quando esta necessidade surge novamente, irá se produzir,
graças à ligação anteriormente estabelecida, um movimento psíquico que
procurará reinvestir a imagem mnésica desta percepção e buscará mesmo
9
Laplanche e Pontalis. Vocabulaire de la Psychanalyse. Paris: PUF, 1967. p.120.
18
evocar esta percepção. Um movimento psíquico deste tipo é o que
chamamos de desejo. A reaparição desta percepção é a realização do
desejo.”
10
Portanto vemos que o desejo não corresponde a uma necessidade, mas a
um movimento psíquico que “desemboca no reinvestimento da imagem
daquele objeto que uma vez aplacou a necessidade.”
11
Assim parece claro que a realização de um desejo está na estreita
dependência da realização de uma percepção que tanto pode vir do mundo
externo quanto do mundo interno de uma subjetividade. O desejo parece
atrair-se por uma identidade com a percepção, e a existência real mesma desta
percepção, no caso, objeto de desejo, deixa de ser importante.
Aí reside outra noção, que desejo (sem ironia) guardar para mais
adiante: a realização do desejo pode ocorrer no registro da fantasia, sintoma,
sonho, ou mesmo alucinação. Claro que estes registros são os que Freud
nomeia de “realidade psíquica”. Ainda acompanhando Mezan, “fantasiar e
sonhar são realizações de desejo, independentemente de seu conteúdo.”
12
Até aqui, ao tentar entender a vingança, e diante das questões sobre se
se trata de pulsão, sentimento, paixão, ato, ou pensamento, parece que
podemos dizer com certa segurança que a vingança pode ser definida como
um ato (Houaiss), que, para materializar-se, pressupõe algumas pulsões
(desejo e perda), entretém algo de paixão e implica em graus variados de
pensamento (já que exige no mínimo certo planejamento para sua execução).
Considero que esses são componentes intrínsecos da realidade psíquica,
associados às questões de percepção e vinculados às quatro instâncias acima
descritas, ou seja, sonho, fantasia, sintoma e alucinação.
10
Mezan, R. A Vingança da Esfinge. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1995, p.81.
11
Id. Ibid.
12
Id. p.82.
19
Neste primeiro ensaio, buscando elucidar o que venha a ser a vingança,
me detive, inda que muito brevemente, no aspecto psicológico, ou seja, como
poderíamos caracterizá-la (a vingança) do ponto de vista psíquico.
Porém, como veremos em capítulo posterior, me interessa, também, a
forma pela qual a vingança pode ser vivenciada por grupos.
Para tal, quero me referir a uma outra maneira de encarar a vingança,
isto é, como diz Nietzsche “originalmente a vingança pertence ao domínio da
justiça, ela é um intercambio.”
13
Por justiça ele quer dizer equidade. De
qualquer modo, isto quer dizer que existe outra maneira de abordarmos a
vingança que não somente através do psiquismo.
É na Genealogia da Moral que Nietzsche vai se referir ao espírito de
vingança, situando-a entre os nobres aristocráticos e sacerdotes. Vejamos
como isto se dá.
Segundo o autor, os valores nobre-aristocráticos são a origem dos
valores sacerdotais, sendo estas duas castas ditas superiores, no sentido de que
pressupõe “constituição física poderosa, uma saúde florescente, rica, até
mesmo transbordante”
14
Em seguida, nos conta que, na realidade, existe uma
sutil diferença, que distancia os dois grupos entre si. Trata-se do seguinte: os
aristocratas amam a guerra, aventuras, caça, dança e torneios e tudo o que
envolve uma atividade robusta livre contente, enquanto que os sacerdotes se
dedicam à vida sedentária, comendo alimentos que não causam doenças de
pele, não se deitam com mulheres, ou seja, uma vida que consideram pura.
Evidentemente o sarcasmo de Nietzsche aparece cortante no que diz ser a vida
malsã dos sacerdotes, que traz como conseqüências “a debilidade intestinal e a
neurastenia.”
15
13
Nietzsche, F. Humano Demasiado Humano. São Paulo: Cia. das Letras, 2000. pg.70.
14
Nietzsche, F Genealogia da Moral. São Paulo: Cia. das Letras, 1999. pg.25.
15
Id. pg.24.
20
Aqui, vale recorrer a Oswaldo Giacoia, que faz um interessante
percurso a partir da leitura do Antecristo de Nietzsche, analisando a figura de
Jesus de Nazareth. Segundo o autor, este personagem só pode ser
compreendido a partir da filosofia da “décadence”. Em Nietzsche, é
importante não tomar como sinônimos decadência, corrupção e niilismo.
Apenas e mui resumidamente, já que o foco deste trabalho é a vingança, o
autor destaca dois tipos possíveis de “décadence”. Uma, que ele denomina de
“ingênua”, que indica “o fenômeno conclusivo de uma determinada formação
histórica da vontade coletiva de poder e se caracteriza como desejo de
repouso, de paz, como renúncia e embotamento de toda a fonte de excitação,
esta sempre sentida e interpretada, então, como fonte de desprazer.”
16
E outra,
que seria aquela expressa pelo personagem de Jesus de Nazareth; a
“décadence” que se aplicaria a ele não é aquela ingênua, em que se renuncia a
toda a vitalidade e que visa ao repouso absoluto da alma. Mas sim aquela que
revela um apego extraordinário à vida, a si mesmo e, por conseguinte, visa à
expansão das possibilidades vitais, ainda que seja em profundidade, em
verticalidade, e não contemple necessariamente o prolongamento da vida.
Seria algo como o que diz nosso poeta musical Vinicius de Morais: “Que seja
eterno enquanto dure”
17
.
16
O Antecristo, #20. In: Giacoia Jr. Os Labirintos da Alma. Campinas: Ed. da Unicamp, 1997. pg. 49.
17
Vinicius de Morais, “Soneto da Fidelidade”. Estoril, outubro, 1939:
De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento
Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento
E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama
Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.
21
Entretanto, para fins deste trabalho, recorro a este conceito, à
“décadence”, pois me leva a considerar o que Nietzsche revela a respeito de
duas grandes religiões monoteístas, o que, por sua vez, me remete à vingança.
Nietzsche atribui o advento tanto do cristianismo como do budismo à
“décadence”, ou seja, ambas as religiões levam ao apaziguamento da alma e
aparecem em momento histórico que “fecha” um ciclo. Vale lembrar que, para
o filósofo, isto corresponde a compactuar com forças que restringem a vida,
portanto representam valores menores. São “religiões de acabamento...estão
para além da cultura, da filosofia, da arte, do Estado.”
18
Estas religiões têm algumas características principais que as aproximam
e afastam, a saber, “A - Em comum: a luta contra os sentimentos hostis, estes
reconhecidos como fontes do mal. A felicidade somente como interior; a
indiferença pela pompa da felicidade.....B – Os mais vigorosos instintos da
vida não mais sentidos como prazerosos, antes como causa de sofrimento...”
19
A grande diferença, entretanto, segundo Nietzsche, entre Cristianismo e
Budismo reside inicialmente em suas origens. O Cristianismo surge das
camadas sociais inferiores e incultas enquanto o Budismo pressupõe “centenas
de anos de duração de um intenso e fecundo movimento filosóficos cultivado
por estratos superiores da sociedade, extraordinariamente desenvolvidos do
ponto de vista intelectual.”
20
Portanto, estas grandes religiões, de acordo com os dois autores,
(Nietzsche e Giacoia), de certa forma pasteurizam o homem na medida em
que tentam transformar vigorosos instintos de vida, antes prazerosos, em causa
de sofrimento. Mas há uma diferença entre o sofrimento cristão e o budista.
Para o cristianismo o sofrimento gerado pelo pecado é de cunho culpógeno. Já
18
Id. pg. 50.
19
Id. pg. 50.
20
Id. pg. 51.
22
para o budismo, o que está em pauta é a aceitação do sofrimento como parte
integrante da vida e trata-se, apenas, de minorá-lo. Assim, para o budismo, o
sofrimento se revela na linha depressiva. Contra a depressão, esta religião
oferece terapeuticamente uma espécie de higiene geral, ou seja, uma vida ao ar
livre e outras recomendações congêneres bem como uma preocupação
espiritual. Tudo isto para evitar que a superexcitabilidade (característica da
alma budista) faça da dor maior um sofrimento insuportável.
De qualquer forma, o cristianismo leva à “décadence” ingênua, já que
pressupõe o apaziguamento do espírito e, na medida do possível, à eliminação
do sofrimento. Toda a busca é de alívio do sofrimento e eliminação de
tensões. Já o budismo leva a um estado contemplativo, que visa evitar a
irritação da excessiva sensibilidade. Como conseqüência, fica eliminado “todo
tipo de ressentimento ou sentimento de vingança, pois tais afetos seriam
fatalmente mórbidos com respeito ao fim dietético principal do budismo: o
apaziguamento das tensões de apetites, o repouso, a paciente sabedoria e
perfeita serenidade.”
21
Ainda, segundo Nietzsche, no cristianismo, este tipo de vida dota a
categoria dos sacerdotes de uma impotência fantástica, que se manifestaria de
forma extremamente agressiva contra seus inimigos. Esta forma de ódio torna-
se insidiosa e venenosa, de maneira que, “comparado ao espírito da vingança
sacerdotal, todo espírito restante empalidece.”
22
O que me interessa nesses aforismos é, inicialmente, a idéia da
impotência gerando ódio que por sua vez se manifestará em vingança,
abarcando todo um determinado grupo; em seguida, como a idéia de escrever
sobre a vingança originou-se no 11 de Setembro, conforme explicitado na
21
Id. pg. 52.
22
Id. pg. 25.
23
Introdução, sentimentos e pulsões vingativas abarcando grupos inteiros
merecem muita atenção no contexto deste trabalho.
Nietzsche cita um exemplo que se encaixa maravilhosamente aqui.
Trata-se de uma compreensão do sentido que teria o judaísmo como eliciador
de atitudes vingativas, por ter sido o cristianismo invenção sua (do judaísmo)
como vingança contra os ditos valores nobre-aristocráticos.
Sempre seguindo o autor, o advento do cristianismo, com o sacrifício de
Jesus na cruz, seria uma vingança diabólica do judaísmo contra os senhores
aristocráticos, já que com este ato conseguiu, para sempre, inverter os valores
da época. Ou seja, a partir daquele momento, venceram os pobres, os
miseráveis, aqueles de quem agora seria o reino de Deus, e por quem Jesus se
sacrificara. Isto significava uma espécie de “dignificação” de classes
inferiores, antes praticamente inexistente sócio e culturalmente, em detrimento
da aristocracia.
Esta maneira de ver o advento do cristianismo é verdadeiramente
revolucionária e o que Nietzsche propõe é uma total inversão de valores. O
judaísmo, através de seu ilustre representante Jesus, teria sido o vetor de uma
incrível vingança que perdura há mais de dois mil anos. Esta vingança só seria
possível a partir de uma magna visão, ou seja, de uma visão que pudesse levar
em conta um longuíssimo período de tempo, com a paciência necessária para
saborear ao longo de milênios e a duras penas seu doce sabor. Ainda, segundo
nosso autor, isto seria próprio das mentes dedicadas à espiritualidade, ou seja,
das ciências ocultas.
Ora, aqui existe um material interessantíssimo para as idéias aqui
expostas. O judeu como figura de “bode expiatório”
23
poderia ter sido
construído como depositário ao longo destes dois milênios e, portanto, alvo de
23
A figura do bode expiatório surge nas culturas pagãs do que hoje chamamos de oriente médio como um
pharmakon, ou seja, um agente de cura.
24
escol para depositações vingativas, inclusive de coletividades, como ocorreu
na Idade Média com a Inquisição, mais recentemente com os “pogrom”
24
dos
países do leste europeu e Rússia, e finalmente no século XX com a Segunda
Guerra Mundial e o nazi-facismo. Haveria no inconsciente coletivo ocidental
algum registro desta terrível suposta vingança judaica que, por sua vez,
incitaria as massas cristãs contra os judeus?
De fato, se seguirmos o pensamento nietzscheano podemos conceber o
início da era cristã baseado numa sutil empreitada vingativa de conseqüências
insuspeitadas. A partir da era cristã, é verdade que os grandes vilões da
história passaram a ser os membros da nobreza a quem a Igreja Cristã passou a
extorquir enormes quantidades de doações, vendendo verdadeiros
“debêntures” anímicos. O “marketing” da época era: “Doe seus bens à Igreja e
garanta sua entrada no paraíso”. Aos menos bem dotados da aristocracia,
vendiam-se punições em troca de regalias. Aos pobres, verdadeiros mártires,
excelentes elementos de massa de manobra, entretanto, prometia-se o reino
dos céus: sofra hoje para desfrutar amanhã.
É ou não uma deliciosa maneira de ver uma vingança de todo um povo
(no caso o judaico) contra não só os povos que os oprimiam, mas também e
quiçá principalmente aos aristocratas e ditos “bem nascidos”?
Não consigo resistir à tentação, neste momento, de fazer uma digressão
para mencionar que discordo de Mezan, para quem o humor judaico se
instaura em meados do século XIX, justamente à raiz dos acima citados
“pogrom”, como única maneira dessa massa humana se defender
psiquicamente dos ataques massacrantes. Se concordarmos com Nietzsche, e
realmente é tentador assim o fazer, veremos que o humor judaico existe há
pelo menos dois mil e tantos anos...
24
“Pogrom” era o nome dado a periódicas invasões aos assentamentos judaicos no interior principalmente da
Polônia e Rússia por forças dos respectivos exércitos que se dedicavam a semear o medo e o pânico,
dizimando aldeias inteiras, queimando vilarejos, expulsando quando não matando seus habitantes.
25
De qualquer maneira, muito pode ser dito a respeito da tal vingança
judaica, principalmente nas conseqüências desastrosas para seus membros
nestes dois últimos milênios. Terá valido a pena? Haveria outras
possibilidades? Deixemos estas questões para os mais eruditos na matéria.
Voltando ao nosso tema, parece que sob vários pontos de vista, a
vingança está na origem de muitos fatos e acontecimentos. O que mais me
interessa, neste momento, nas postulações nietzscheanas, é a idéia de que a
vingança pode ser algo que se liga a uma coletividade, a uma massa humana.
Assim diz ele, “[...] com os judeus principia a revolta dos escravos na moral:
aquela rebelião que tem atrás de si dois mil anos de história, e que hoje
perdemos de vista, porque – foi vitoriosa ...”
25
Gostaria, agora, de avançar uma outra hipótese a respeito da vingança,
ou seja, de que se trata, além do que já foi visto, também de uma paixão. Para
tal, vou me fazer acompanhar das idéias de Gerard Lebrun, que empreende um
passeio ético por Aristóteles e Platão para falar a respeito da paixão.
Paixão, diz Lebrun, é para nós sinônimo de tendência. Tendência esta
que é suficientemente forte para dominar a vida mental. Uma paixão é
potencialmente transformadora, na medida em que exige, para sua resolução,
um agente e um paciente. Por agente quero significar, à moda aristotélica,
alguém criativamente portador de uma forma a ser imposta. Por paciente, por
outro lado, alguém que poderá receber esta forma. Ora, o agente modifica,
mas o paciente se deixa (ou não) modificar. Assim, apesar de a hierarquia
estar estabelecida no conceito aristotélico, parece-me que seu oposto também
existe. Ou seja, quem se deixa modificar, em outras palavras, quem recebe
novas formas, tem tanta ou mais mobilidade do que quem as propõe.
Deixando de lado estas tecnicalidades, já que o que me interessa é a paixão,
parece que esta está presente tanto em um como em outro. Podemos dizer que
25
Nietzsche, F. Além do bem e do Mal. São Paulo: Cia. das Letras, 2000. p. 195.
26
existe uma potencia ativa e outra passiva. Decorre daí que podemos falar em
paixão passiva e ativa?
Acredito que é possível. Vejamos.
A paixão é sempre provocada por uma imago. Ou seja, a imagem de
algo se me apresenta e me leva a reagir. Ora esta imago pode ter origem no
mundo externo ou interno e geralmente este acontecimento ocorre de
improviso. Paixão é, portanto, neste contexto, uma emoção ligada a uma
imagem. Esta emoção visa a seu objeto. Portanto, envolve pelo menos duas
instâncias, ou seja, emoção e imago. O que, por sua vez, sinaliza que a paixão
nos leva à dependência de um determinado objeto.
Diz Aristóteles “Entendo por paixões tudo o que faz variar os juízos e
de que se seguem sofrimento e prazer.”
26
É possível dizer, então, que um homem não escolhe as paixões. Ele é
sua vítima. Isto não significa que não seja responsável por elas. Mas o que é
interessante é que ele é responsável pelo modo como submete estas paixões à
sua ação. Portanto, do ponto de vista ético, só podemos concluir que uma
pessoa é “virtuosa” (Lebrun comenta a imperfeição deste vocábulo) a partir de
suas reações à paixão. Entretanto, sem paixões não haveria a possibilidade de
se pensar valores éticos.
Só a título de esclarecimento, refiro-me às graduações da paixão que
permitem uma elaboração, sabendo que existem determinados graus extremos
de emoção além ou aquém das quais não há possibilidade de se operar a partir
do logos.
Portanto, vou fazer referência aos estados em que ainda estamos de
posse do logos funcionante. É que a paixão está intrinsecamente vinculada ao
26
Lebrun, G. O conceito de paixão. In: Novaes, A. (Org.). Os sentidos da paixão. São Paulo: Cia. das Letras,
1987, pg. 19.
27
logos, já que implica na repressão. A partir desta instância (logos) a paixão
está sujeita a ser considerada fator de desvario potencial, portanto suspeita e
perigosíssima. Ou seja, para o logos, a paixão é desestabilizadora, já que surge
de improviso sem passar por ou se utilizar de seu crivo. A paixão é e está.
Uma vez “acometido” pela paixão, o logos fica à deriva, buscando como pode
algum apoio. Este será encontrado na repressão aplicada à paixão. Ou seja, na
eventual repressão do ato que leva ao objeto da paixão. Claro que há
graduações de repressão. É possível reprimir da paixão, o todo ou parcelas. A
paixão é tanto mais avassaladora quanto menos possibilidade de repressão
estiver à disposição do logos. O que não isenta as subjetividades de paixões, é
claro. Mas relativiza a possibilidade de transformação que as paixões propõe.
Segundo Lebrun, há duas maneiras de se encarar a paixão. A
Aristotélica e a Platônica. A primeira propõe a paixão como algo inerente ao
ser humano e sua práxis. A segunda que, ao discriminar profundamente razão
da paixão, precisa, em seguida, enunciar que razão não é soberana sobre a
paixão.
Faço referencia a estes autores, citados por Lebrun, pois para o intuito
deste trabalho é importante estabelecer a questão da responsabilidade ética em
relação às paixões. Já disse antes, que me interessa não somente aquela
paixão individual, mas a que se refere a grupos.
Assim, aparentemente, Aristóteles é mais elástico na aceitação das
paixões, enquanto Platão divide rigorosamente paixão e razão.
Paradoxalmente, entretanto, é na acepção aristotélica que vamos encontrar
maior ênfase na questão da responsabilidade e ética, já que propõe ser o
indivíduo responsável por suas paixões, sem atenuantes, enquanto Platão, ao
fazer a acima mencionada distinção “desculpa” determinadas atitudes por
terem sido movidas a paixão.
28
Portanto, tal qual Medéia, de Eurípides, poderíamos acompanhar
Lebrun e dizer “Compreendo perfeitamente a infinitude do mal que farei, mas
minha cólera é mais poderosa que meus pensamentos.”
27
Parece-me pertinente, neste ponto, levantar a questão da patologia.
Originalmente, a palavra grega “Pathos” carrega dois significados bem
diferentes, a saber, o passional e o patológico. Se o primeiro faz surgir e
remete à ética, o segundo está referido ao diagnóstico médico.
Trata-se de patologizar o comportamento desviante, taxando-o de
“doente” e propor tratamentos que mais se assemelham a castigos, com o
intuito de “pasteurizar” aquilo - paixão – cuja natureza se ignora, mas que só
pode ser um elemento estrangeiro
28
ao indivíduo. Trata-se então de submetê-
lo a um tratamento que o enfraqueça e exorcize. Expõem-se fantasias, cujas
raízes estão nas pulsões e desnuda-se a intimidade para melhor controle.
Parece que nossa civilização ocidental dos últimos séculos de certa
maneira propõe uma volta ao estoicismo: não devemos nos entregar às
paixões. Devemos exorcizá-la antes que nos “enfermemos” dela. Entregamos,
assim, o poder à medicina e disciplinas correlatas que se propõem a “cuidar”
do doente, curando-o para reintegrá-lo à sociedade. Sociedade, submetida ao
poder institucional.
Devemos, portanto, no entender desta sociedade, aceitar unicamente as
paixões passivas, ou seja, as que serão vividas exclusivamente na interioridade
da subjetividade, sem nenhuma expressão externa, sob pena de submissão a
crivos bio-políticos, com todas as suas bem conhecidas conseqüências.
Entretanto, esta diferenciação entre paixão ativa e passiva tem um aspecto que
me interessa, que é justamente aquela paixão que, ao não ser direcionada para
27
Lebrun, G. id, pg. 29.
28
Enfatizo a palavra estrangeiro, que Lebrun usa em seu texto, pois nos interessa mais adiante quando
falarmos do Estrangeiro como alvo de vinganças.
29
a ação, pode, como energia disponível, ser utilizada pela psique de maneira
criativa.
Gostaria de retomar os pontos esclarecidos que fui deixando pelo
caminho, para chegar, com eles, à idéia de paixão que norteará este estudo.
Vimos, pois, que a paixão pode ser tanto um comportamento (portanto
que leva à ação) como um sentimento, uma emoção, uma pulsão e um
pensamento. Em outras palavras, a paixão nos habita em várias instâncias e
pode se manifestar, também, de várias maneiras.
Desde os primórdios da vida, somos acometidos de várias paixões, entre
elas a vingança, que ocorre movida inicialmente pela inveja e desejo. A inveja
é primordialmente dirigida a questões envolvendo tabu e poder. E o desejo
pode manifestar-se em sonho, fantasia, sintoma ou alucinação.
Portanto, para os fins deste trabalho vou considerar a vingança como
uma das paixões a que a humanidade está sujeita, freqüentemente eliciada pelo
ódio recíproco (definição de Spinoza), e mais, desde a tenra infância, como
pulsão que posteriormente se desenvolverá, podendo assumir diferentes
representações, e é vivida internamente, podendo expressar-se através de
ações.
Resta o último ponto importante a esclarecer. Existe na vingança algo
construtivo, que acrescenta, permite desenvolvimento? Ou trata-se
simplesmente de mais uma manifestação, segundo Freud, da pulsão de morte -
ou da sombra, como diria Jung - e, portanto, sujeita a “tratamento”?
29
Nathalie Zaltzman propõe o conceito de pulsão anarquista, dizendo que
“numa relação de forças sem saída, só uma resistência nascida das próprias
fontes pulsionais de morte pode afrontar a ameaça de perigo mortal.Chamo
29
Evidentemente, tanto para Freud como para Jung, afetos integrados à personalidade são construtivos
enquanto os inconscientes, para o primeiro, ou os da sombra, para o segundo, é que devem ser
problematizados.
30
este fluxo da pulsão de morte mais individualista, mais libertário, de pulsão
anarquista.”
30
Segundo a autora, a pulsão anarquista é responsável por uma função
essencial na manutenção da vida, a saber, guardar uma possibilidade de
escolha mesmo quando aparentemente toda a escolha possível parece anulada.
Portanto, vemos que um aspecto da pulsão de morte pode ser essencial para a
vida. Em outras palavras, é somente diante da ameaça da morte que podemos
encontrar aquelas forças que nos conclamam à vida. Eros e Tanathos em sua
luta perpétua a serviço das relações entre homem e sociedade, já que é “na
experiência-limite, relação entre a fragilidade das razões de viver e sua
indestrutibilidade, a vontade individual de viver, a extirpação da destruição,
encontram sua força na ameaça de morte.”
31
Ainda, segundo a autora, a pulsão de morte, ao trabalhar contra as
formas de vida estabelecidas, acaba auxiliando na sua superação. “O
movimento anarquista surge quando toda a forma possível de vida desmorona,
ele extrai sua força da pulsão de morte e remete contra ela e sua destruição”.
32
Anarquismo, em última instância, significa “sem poder”, quer seja
referida a leis, estado, família, honra etc. Portanto, é quando o homem se sente
totalmente sem poder que pode lançar mão daquilo que a autora chama de
pulsão anarquista, da qual faz parte, acredito, a vingança.
Gostaria de avançar a idéia de que, de fato, a vingança pode ser
desdobrada em dois sentidos enquanto pulsão: o que se vive internamente e o
que se lança para o exterior, ou seja, as ações diretamente ligadas a ela.
30
Zaltzman, N. A Pulsão Anarquista. São Paulo: Ed. Escuta, 1994. pg. 64.
31
Op. cit. pg. 65.
32
Op. cit. pg. 66.
31
No meu entender, a vingança enquanto pulsão, ou seja, disposição para,
tem estreito vínculo com a vida, pulsão libidinal ou, se quisermos, com o
instinto de sobrevivência.
A pessoa, quando se sente atingida de maneira vital, isto é, de forma a
colocar em risco sua integridade, é que pode passar a “maquinar” alguma
vingança. Entregar-se ao “prazer” de “elocubrar” maneiras de se vingar do
agressor passa, então, a ocupar o pensamento às vezes até de forma obsessiva.
Enquanto se está entretido assistindo a um filme interno com incessantes
reprises, às vezes com finais diferentes, é certo que se opera em estado de
alerta, ou seja, a pessoa está viva. O desejo de vingança representa, neste
sentido, uma maneira de a subjetividade se manter ou se religar novamente à
vida.
É que a agressão da qual se sentiu vítima, num primeiro momento, a
atira montanha abaixo, em depressão crescente até um determinado ponto
onde, inconscientemente ou não, toma a decisão de entregar-se ou reagir. Uma
das maneiras de reação possível é através do processo da vingança. É através
dela que novas energias começam a circular, pondo em movimento o aparelho
psíquico de maneira a fazer aquela subjetividade sentir-se novamente viva.
Em outras palavras, a dinâmica parece ser:
Agressão (real ou imaginária sofrida pela subjetividade);
Depressão (da vítima);
Desejo de vingança (da vítima contra agressor);
Elaboração do desejo (atuação ou sublimação, elaboração e
supressão).
Se for assim, podemos ver nela um elemento constituinte da psique e
enquanto tal com um papel a desempenhar na alquimia psíquica.
32
Acredito que em determinadas situações-limite, o contato com a
vingança pode ser a única maneira de refazer uma ligação com as forças vitais
que nutrem a psique humana. Talvez seja o último reduto de onde a psique
possa extrair energia vital para não sucumbir ao sentimento de aniquilamento
a que foi submetida.
Quando frontalmente atacada, a psique se defende como pode. E o que é
ataque frontal depende de cada subjetividade. O certo é que sempre que forem
mobilizadas as forças do aniquilamento, a psique pode recorrer à vingança
como meio de salvaguardar a própria vida. Caso isto não seja possível, parece-
me que a outra opção disponível é o processo de aniquilamento que se inicia
com a depressão, podendo estender-se até a melancolia e, porque não, à morte
de pelo menos parcelas - quando não o todo – da psique.
Vejo, portanto, um aspecto interessante na vingança, se a considerarmos
um antídoto potencial contra a possibilidade de aniquilamento da psique.
Desta forma volto a Aristóteles, e à ética, dizendo que cabe ao indivíduo, uma
vez desencadeado o processo de vingança, responsabilizar-se pelo uso que
fizer dela.
Proponho, portanto, que enquanto processo interno a vingança tem um
papel importante a desempenhar na religação do homem à vida, quando este
se vê confrontado com forças aniquiladoras.
É preciso, entretanto, dizer algumas palavras a respeito da outra
possibilidade, ou seja, do aniquilamento, caso as energias de vida não possam,
por algum motivo, ser acessadas.
Na realidade, a morte acompanha o desenvolvimento humano desde o
berço. No início da vida, qualquer ausência ou demora no preenchimento de
necessidades básicas é vivenciado pelo bebê como uma morte. “A experiência
da relação materna, tão acolhedora e receptiva, também é responsável por
33
outra representação poderosa: a da morte, ou seja, a morte como figura
maternal que acolhe, que dá conforto.”
33
Talvez por isso, a morte em si seja ao
mesmo tempo tão temida quanto de certa forma desejada, já que temos
cravados na psique este dado: a mesma pessoa que gratifica, acolhe, é a que
frustra, pune. Assim é a vida! Assim nascem as ambigüidades de que somos
todos partícipes e aos quais estamos sujeitos.
É que, para se sentir vivo, é preciso aproximar-se de emoções,
sentimentos, sensações que representam as ditas angústias existenciais, no latu
sensu, ou seja, angústias que fazem parte do estar vivo. Não há controle
possível sobre o fluxo vital, as sincronicidades, o futuro, etc. Há sempre
pairando sobre a vida a nuvem cinzenta da ambivalência. Será que o que se
vislumbra no horizonte é uma refrescante chuva de verão ou tormentosa
tempestade, quiçá um tsunami? Até que aconteça, não há como saber! Este é o
paradoxo da vida. A ilusão do controle sobre as situações nos anestesia para o
“impromptu”. E a vida, para ser saboreada, precisa que se mergulhe nela. De
acordo com o seu momento psíquico, a subjetividade pode se atirar à vida
pronta a vivenciá-la no que esta lhe trouxer, ou poderá, por medo e/ou
ansiedade, “escamoteá-la” (a vida), escondendo-se de alguma forma. Isto
tende a acontecer quando a angústia interna vivenciada em determinado
contexto é sentida como insuportável, e a subjetividade sofre a ameaça de
entrar em colapso. É quando se configura – além do já exposto, ou seja, a re-
conexão com as forças vitais por conta de novas energias que passam a
circular (no caso deste trabalho a vingança) – a iminência da morte. Esta pode
ser vivenciada de diferentes maneiras, mas sempre acompanhada de medos e
ansiedades, o que, aliás, lhe é característico. “O medo da morte pode estar
ligado à morte concreta, à finitude, à extinção e também a seus equivalentes,
como o medo do abandono, da vingança e de outras forças destrutivas.”
34
A
33
Kovacs, M. J. Morte e desenvolvimento Humano. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1992. pg. 3.
34
Idem, pg. 23.
34
psicóloga Maria Júlia Kovacs, com bastante propriedade, assinala que a
iminência da morte é uma constante realidade para algumas pessoas cuja
fragilidade psíquica não consegue senão se defender do binômio vida/morte.
Entretanto, como bem diz a autora, “A abstenção das experiências vitais
elimina o medo da morte e, consigo, a própria vida”.
35
Nas situações limite, em que a ameaça sobre o self é insuportável, a
psique pode soçobrar, enveredando pelos caminhos da morte, esta entendida
em suas múltiplas manifestações, que vão desde a morte psíquica à física,
exibindo-nos suas várias facetas no quotidiano. Podemos vê-las no dia a dia
das fisionomias anônimas com as quais cruzamos em nossos afazeres sem, às
vezes, nos dar conta do exército de zumbis à nossa volta.
Absurdo que me remete ao mito de Sísifo citado por Kovacs. Os deuses
ofendidos por Sísifo lhe impuseram a tarefa, conhecida de todos, de empurrar
eternamente uma enorme pedra morro acima que, invariavelmente, ao chegar
ao cimo da montanha, rola morra abaixo empurrada por seu peso excessivo.
Lá ia Sísifo iniciar sua tarefa inglória. Sim, porque “não há castigo mais
terrível do que o trabalho inútil e sem esperança”.
36
Este castigo terrível lhe
fora imposto pois havia acorrentado a morte e havia se recusado a entregar-se
a ela. O absurdo do castigo serve para lembrar ao nosso herói que, ao entregar-
se à vida, é preciso, implicitamente aceitar a morte, seu avesso. Isto para não
morrer, inutilmente, antes da hora. No caso, morte em vida.
Kovacs parece concordar com minhas idéias quando diz que “A perda
do sentido é o primeiro sinal do absurdo, a busca de saída se faz pela revolta,
liberdade e paixão”.
37
(Grifo meu)
35
Idem, pg. 26.
36
Idem, pg. 173.
37
Idem, pg. 173.
35
Portanto, em situações limite, conforme proponho, a paixão, no caso a
vingança, pode configurar uma saída vital contra as forças aniquiladoras da
estagnação. Contra a morte, a vida. Contra o medo e a ansiedade, a energia da
vingança. É a “volta por cima”
38
que se esboça.
38
Vanzolini, P – “Volta por cima” – música apresentada ao público em 1959
“Volta por Cima” de Paulo Vanzolini, 1963
Chorei
Não procurei esconder
Todos viram, fingiram
Pena de mim não precisava
Ali onde eu chorei
Qualquer um chorava
Dar a volta por cima que eu dei
Quero ver quem dava
Um homem de moral
Não fica no chão
Nem quer que mulher
Lhe venha dar a mão
Reconhece a queda
E não desanima
Levanta, sacode a poeira
E dá a volta por cima
.
36
2.2 A pequena vingança e a grande vingança
Muçulmano de origem, Cassab, aos 50 anos de idade, acaba de ser
demitido da empresa à qual prestava serviços há 27 anos. No Brasil há 4 anos,
em posição de liderança, começava a sentir-se adaptado à realidade tão
diferente à que estava acostumado, já que, anteriormente, vivia em Londres,
onde pertencia a uma vasta comunidade, com família e amigos.
A demissão, inesperada e realizada, segundo Cassab, por motivo
eminentemente político de reorganização empresarial, pegou-o de surpresa,
principalmente porque está a três anos da aposentadoria. Sente-se
completamente destruído, dorme mal, e relata um sonho recorrente do qual
acorda em pânico: está deitado e alguém o sufoca com um travesseiro. É
quando está quase sem fôlego que consegue despertar com intensa taquicardia
e sudorese. O pior é que começou, também, a sentir-se sufocando durante o
dia. Percebe-se sentado no escritório assumindo fisicamente uma postura de
quem está sufocando e faz os trejeitos para se livrar do suposto sufocador.
Quando, na sessão, me fala dos acontecimentos, mantém a cabeça
baixa, relatando sentir-se injustiçado, e não consegue entender porque o
demitiram. Fica rememorando seu percurso na empresa, computando o tanto
que colaborou com seu talento para o sucesso das filiais de tantos e todos os
países em que atuou. Neste momento, não se lhe apresenta nenhuma linha de
fuga da depressão e pânico em que se encontra. Começou a tomar
antidepressivo receitado por seu clínico geral, que avaliou estar seu paciente
entrando em crise de pânico.
As sessões de análise transcorrem em clima depressivo, com Cassab de
olhos baixos, deprimido, relatando o esforço que tem de fazer para continuar
com seu dia a dia, principalmente seu trabalho. É que se trata de alto executivo
e sua demissão, apesar de já efetuada, só entrará em vigor dentro de um mês.
37
Seu “pacote” de demissão lhe dá vantagens extraordinárias, ou seja, receberá
aproximadamente o equivalente a dois anos de salário, mais benefícios. Fico
surpresa de que em nenhum momento lhe ocorra o lado privilegiado da
situação em que se encontra! Ou seja, pode voltar a Londres, abrir um
pequeno negócio e viver tranqüilo. Quase uma aposentadoria precoce!
Já Charles, árabe-francês de origem, acaba de romper seu casamento de
10 anos com Luiza. Aliás, Luiza é que rompe com Charles, por não agüentar
mais seu autoritarismo, seu egoísmo. Durante as primeiras sessões, Charles se
dedicou a lutar com unhas e dentes a encontrar meios de não romper com
Luiza, que, segundo ele, é a mulher de seus sonhos. É verdade que teve, no
passado recente, algumas atitudes arbitrárias, como, por exemplo viajar
sozinho com a filha de 5 anos a Paris para que conhecesse a família, sem a
concordância de Luiza. Tentou convencê-la de que seria ótimo para a filha.
Luiza não discordava, mas se perguntava porque tinha de ser naquele
momento. Não podia esperar momento mais propício e então iriam todos?
(Luiza tem uma filha mais velha de 12 anos de casamento anterior, muito bem
aceita por Charles que a conhece desde que se casou com Luiza, quando a
menina tinha 2 anos). Sim, pensava Charles, podia esperar, mas não queria. E
não admitia que sua mulher não validasse seu desejo.
Mas este episódio, segundo Luiza, foi apenas a gota d’água, pois ela
sentia-se pouco vista nesta relação.
Quando ficou claro para Charles que a separação tornara-se inevitável,
passou a maquinar maneiras de solapar a decisão tomada. Não procurou
advogado, não saiu de casa, e perseguia Luiza com questionamentos e
controles a respeito de suas idas e vindas.
Quando finalmente foi ver um advogado que lhe entregou os
documentos a serem assinados por eles, ele os guardou cuidadosamente numa
38
gaveta. Mudou-se, finalmente – para o mesmo prédio onde Luiza morava,
ficando no apartamento de uma conhecida. Vigiava as vagas de garagem, para
saber a que horas Luiza havia chegado em casa. Quando demorava, ia a seu
apartamento e dava-lhe “broncas homéricas”, aplicando-lhe verdadeiras lições
de moral a respeito do que é ser mãe de família.
Na sessão, me dizia que não era justo que Luiza vivesse livre, solta,
divertindo-se enquanto ele sofria profundamente a perda da família. Ela era
responsável pelo seu sofrimento e haveria de arcar com isso. Maquinava
pequenas vinganças constantemente.
Enquanto isto ocorria, eu me via na presença de um homem de 40 anos,
profundamente tocado pela tristeza, entretanto falante, às vezes sorridente, às
vezes lacrimoso, enquanto fazia seu relato. Lúcido, fisicamente aprumado e,
para minha surpresa, pensando em maneiras de ganhar mais para poder, dali
em diante, sustentar duas casas, já que não pretendia viver abaixo do nível a
que chegara.
Cito os dois casos clínicos, pois me parece que explicitam o que estou
tentando demonstrar.
No primeiro, Cassab deprime de uma forma que aparentemente não lhe
dá saídas, vivenciando sua perda através de somatizações, sonhos aterradores,
etc. Encontra-se, neste momento de sua vida sob a égide da pulsão de morte.
Sente-se totalmente falido, como se sua vida não tivesse mais sentido algum,
um verdadeiro fracassado.
Já Charles, apesar de deprimido, se mostra inconformado com a
situação. Ao não se conformar, convoca energias vingativas para tentar uma
elaboração da situação. A frustração que sente ao perceber a perda do objeto
amado convoca as forças vingativas que o mantém ligado à vida, já que
exigem estado de vigília constante. Por sua vez, este estado de alerta permite
39
que lance um movimento em direção ao futuro, representado pela sua fala de
“ter que dobrar a sua renda mensal para sustentar duas casas.”.
É precisamente este movimento simultâneo de vingança e energia vital
que me interessa.
A pulsão, o sentimento, a paixão vingativa apresentam um aspecto vital
que pode ser utilizado pela psique como linha de fuga de situações
potencialmente aniquiladoras.
Até agora, venho falando da vingança como substantivo. Neste ponto
gostaria de introduzir o verbo vingar, com seu duplo sentido.
O Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa
39
apresenta as seguintes
definições:
1. obter desforra de (uma ofensa recebida ou algo que é visto como tal)
punindo o ofensor; castigar, punir, desafrontar (vingou a morte da
família) (vingaram-se das injúrias recebidas) (o artilheiro vingou-se da
última derrota fazendo três gols).
2. desagravar [se] (alguém que foi ofendido) de (ofensa recebida
retaliando o ofensor (vingou a irmã das injúrias de que foi alvo)
(vingou-se de todas as chacotas da vizinhança)
3. promover a punição de; servir de castigo a; castigar, punir (sua atual
pobreza vinga sua antiga avareza)
4. resistir vivo (animal ou vegetal recém-nascido); crescer, desenvolver-
se, chegar à maturidade, medrar (naquela pobreza poucos filhos
vingavam) (a plantinha vingou e cresceu) (todas as macieiras vingaram
em frutos)
4.1 vir a existir ou realizar-se, produzir resultado, sair vencedor (o
cristianismo vingou apesar das perseguições) (suas propostas não
vingaram)
4.2 ser bem sucedido em, conseguir, lograr (suas ameaças não vingaram
em amedrontar-me)
5. ultrapassar (espaço, distância); vencer, transpor (na longa viagem
vingaram planícies e vales)
6. galgar ou passar galgando (v. o cimo de um monte) (os animais
vingaram as cercas)
39
Houaiss, A. “Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa”. Rio de Janeiro: Ed. Objetiva, 2001. pg. 2.864
40
7. chegar a, atingir (a maratona já vingara a última etapa, quando
começou a chover) (o campeão vingou ao fim da pista em poucos
segundos)
8. dar-se por ou declarar-se satisfeito (vingo-me que tudo tenha terminado
assim)”
Vemos que, entre oito citações, apenas três fazem referência ao sentido
que vínhamos dando à vingança. Cinco, ou seja, a maioria, apresenta o verbo
vingar com um significado construtivo que indica crescimento, vida, enfim.
Parece que nosso idioma é extremamente fértil no sentido de nos
apresentar aquilo que está claramente delineado em nosso inconsciente
coletivos. Portanto, a vingança enquanto ato pode ser compreendida de duas
maneiras. Refiro-me aos dois aspectos componentes da vingança: um que
representa linhas de fuga contra o aniquilamento, para a qual Houaiss
empresta cinco significados correlatos; outro, que pode levar a conseqüências
insuspeitadas e desastrosas, com apenas três citações.
Assim, emprestei de Nietzsche as expressões “pequeno” e “grande”
para me referir à vingança quando utilizada no sentido de expansão ou não das
forças vitais.
Em outras palavras, sempre que uma subjetividade recorrer à vingança
como uma maneira de ampliar sua potência vital (ou mesmo de preservá-la em
condições altamente ameaçadoras), e promover a vida, trata-se do que
poderíamos chamar, lembrando-nos do filósofo, de uma “grande vingança.”
Por outro lado, quando o que ocorrer em decorrência da vingança for o
estreitamento de possibilidades vitais, ou encurtamento de caminhos que
levem ao encontro intra e entre subjetividades, estamos diante do que, me
permito dizer, Nietzsche chamaria de uma “pequena vingança”.
41
Em termos estritamente psicológicos, diria que quanto mais os aspectos
vingativos encontram uma elaboração na psique, mais vão se aproximando da
“grande vingança”, como veremos adiante.
Apenas para fins de esclarecimento, vale tentar algumas definições de
termos até aqui utilizados:
AFETO - ... “qualquer estado afetivo, penoso ou agradável, vago ou
qualificado, quer se apresente sob forma de uma descarga maciça, quer como
tonalidade geral”.
40
Em outras palavras, considero afeto tudo aquilo que tinge
de cores e intensidades os pensamentos, ações e interioridade de uma
subjetividade, ou seja, o que a atinge, a toca qualitativamente.
EMOÇÃO - “Reação orgânica de intensidade e duração variáveis,
geralmente acompanhadas de alterações respiratórias, circulatórias e de grande
excitação mental.”
41
Portanto, trata-se da expressão física e psíquica das
intensidades.
PAIXÃO – “(8) ânimo favorável ou contrário a alguma coisa e que supera os
limites da razão; fanatismo (9) sensibilidade, entusiasmo que um artista
transmite através da obra, calor, emoção, vida.”(11)“no nietzschianismo –
estado em que determinado afeto organiza e orienta toda a difusa emotividade
humana em uma disposição plena de saúde e vigor.”
42
É quando alguma
intensidade atravessa a subjetividade de tal maneira que fica difícil fazer-lhe
resistência. É como se a psique se deixasse dominar pela intensidade e
sucumbisse a ela podendo o resultado adquirir contornos tanto construtivos
como destrutivos para a subjetividade.
40
Laplanche J. e Pontalis J.B. “Voacbulário de Psicanálise”, S.Paulo, Ed. Martins Fontes, 1967, p.34
41
Houaiss, A “Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa”Rio de Janeiro, Ed. Objetiva, 2001, p.1122, def.
2.1
42
Id.Ibid., p.2105
42
A seguir, dialogo com Jung e apresento a possibilidade de compreensão
da vingança do ponto de vista estritamente psicológico conforme o
pensamento do autor.
43
2.3 - Jung e a vingança
A partir deste momento, interessa-me investigar como podemos
entender a vingança do ponto de vista junguiano, já que pretendo também
utilizar-me deste referencial. Para tanto, antes de me aprofundar na
compreensão da vingança à base do self junguiano, uma breve explanação de
alguns conceitos que formam parte do alicerce do método analítico se faz
necessária. Evidentemente, não pretendo discutir todos os conceitos
junguianos, já que não é o objeto desta tese. E outros autores já o fizeram de
forma magistral. Assim, me aterei àqueles conceitos que, na minha opinião,
são pertinentes ao objeto de estudo ora em questão. Também não é minha
intenção aprofundar-me em questões teóricas, pois o enfoque do trabalho é
eminentemente vivencial, baseando-se principalmente em dados clínicos e
fatos ocorridos recentemente.
Portanto, pretendo neste capítulo fazer um breve sobrevôo das idéias de
Jung no que interessa a este trabalho. Para tal, vou me ater aos conceitos de
inconsciente coletivo, arquétipos, símbolos, função transcendente, complexo e
sincronicidade, para, finalmente, me referir ao arquétipo do herói, mais
especificamente o Trickster, que vou utilizar como o possível representante da
vingança no contexto desta tese. Em seguida, trago à cena Dioniso, este
personagem da mitologia grega que tem uma certa intimidade com a vingança,
a qual utiliza sem escrúpulos
43
sempre e quando sua presença é
desconsiderada, como um possível correspondente ao Trickster junguiano.
Ambos serão usados como elementos do imaginário coletivo que nos auxiliam
a entender que a vingança pode conter em si sementes que, se devidamente
regadas, podem germinar em amadurecimento psíquico.
Inicialmente, é importante salientar que, para Jung, existem dois tipos
de pensamento. Uma primeira expressão do pensamento, que denominou de
43
Esta visão de Dioniso não é aquela que é proposta pelos estudiosos do trágico. Mais adiante explico.
44
adaptativo, é racional, consciente e intencional. Um segundo tipo de
pensamento começa a aparecer no decorrer de seus estudos. Este é irracional,
movido por razões inconscientes. Além de ser responsável por algumas
patologias, este tipo de pensamento seria também, e primordialmente,
responsável pela atividade criativa, fantasia, funcionando em paralelo ao
anterior. Portanto, este tipo de pensamento estende-se para além dos domínios
da razão, ou seja, além da consciência. Assim, segundo o autor, que
denominou este último de pensamento simbólico, ele “flui por imagens em
sucessão de analogias e metáforas, enquanto o pensamento dirigido e
adaptativo é seqüencial e conceitual fluindo por palavras.”
44
Esclarecer estes
dois tipos de pensamento é fundamental, pois é com estas duas ferramentas
que a abordagem da psique deve ocorrer. Como veremos a seguir, os
arquétipos manifestam-se através de símbolos e é para sua compreensão que
necessitamos da conjunção dos dois tipos de pensamento.
44
Penna, H.M.D. “Estudo sobre o método de Investigação da psique de C.G. Jung” Dissertação de Mestrado.
2003. PUC-São Paulo. pg.93.
45
2.4 O Inconsciente Coletivo e Arquétipos
Jung percebe que, além do inconsciente individual conforme descrito
por Freud, parece haver uma outra camada mais profunda, onde poderosas
forças ocultas se movimentam, as quais estariam na origem da psique. Ou
seja, segundo Jung, o inconsciente individual estaria sujeito a forças que
emanariam de um outro nível do inconsciente, de uma camada mais profunda.
Conforme carta a Freud de 29 de Julho de 1913
45
, foi com seu trabalho
sobre imagens primordiais (que apareciam em sonhos e/ou delírios) e a
observação de que freqüentemente apresentam sentido suprapessoal e são
conotados de grande numinosidade
46
que Jung descobre esta camada especial
da psique.
Assim, surge a idéia de um inconsciente coletivo. Jung fica cada vez
mais convencido de que o inconsciente é algo grandioso que transcende o
indivíduo no material que emerge, e que pode ter uma intervenção autônoma
nos eventos psíquicos. Esta grandiosidade alcança sua expressão máxima
justamente em episódios numinosos, onde, através de eventos sincrônicos,
abre-se para o self uma paisagem até então desconhecida que, quando
vivenciada, inunda a psique com sua energia. Diante dela, permanecemos
atônitos e perplexos, pois em geral estes acontecimentos nos tomam de
surpresa.
Ficou claro para o autor suíço que o inconsciente individual, além de
conter material infantil reprimido, traumas e outros conteúdos, era, antes de
45
McGuire, W. A Correspondência Completa de S. Freud e C. G. Jung. R. de Janeiro: Ed. Imago. pg. 557.
Jung é claro: não desconsidera a validade da interpretação dos sonhos segundo as idéias freudianas, mas diz
que as interpretações podem ir além, “Reconhecemos a solidez da teoria da realização de desejos até certo
ponto, mas vamos além dela. Do nosso ponto de vista, ela não esgota o significado do sonho”.
46
Conceito desenvolvido pelo teólogo Rudolph Otto em The Idea of the Holy para explicar o sentimento
causado por uma “revelação”: um misto de terror e êxtase. “Seria a experiência inexpressível, misteriosa,
aterradora, experienciada diretamente e pertencente somente à divindade”. Jung passa a utilizar o termo para
significar o sentimento produzido no indivíduo quando este vivencia um arquétipo.
46
qualquer coisa, regido por forças determinantes que somente podiam ser
provenientes de outra camada mais profunda do inconsciente.
Assim, Jung começa a formular seu conceito de inconsciente coletivo,
postulando a existência de um nível da psique que é inato e pertence a toda a
humanidade. Ou seja, cada indivíduo nasce de “posse” de um arcabouço pleno
de energias que circulam livremente e podem, a qualquer momento, irromper
conteúdos do inconsciente coletivo com os quais o consciente terá que se
haver. Aliás, uma das definições de Jung para o inconsciente coletivo é “uma
figuração do mundo, representando a um só tempo a sedimentação
multimilenar da experiência”
47
.
Jung dialoga com os trabalhos de vários autores da época para
desenvolver seus conceitos. A definição acima se assemelha à da biologia da
época. Nosso autor baseia-se em estudos relatados por Portman, Hediger e
Lorenz, que demonstraram tendências biológicas inatas em comportamento
animal, por exemplo, para fazer ninhos ou executar danças rituais. Ou seja,
alguns comportamentos animais não precisam de aprendizagem prévia para
serem desempenhados. Em determinado momento, os pássaros “sabem” que
devem fazer ninhos (e como fazê-los). As aves também parecem “saber”
exatamente quando romper as cascas dos ovos, assim como, outro exemplo, as
aranhas “conhecem” a arte de tecer teias como se a houvessem aprendido.
Entretanto, estes comportamentos são baseados em “conhecimento” que é um
a priori. Em outras palavras, basta ser ave para romper a casca do ovo na hora
certa, ou ser aranha para tecer teias complexíssimas.
Jung imagina, então, um correspondente humano para estes instintos
animais, ou seja, que existam determinados conteúdos inatos que nos habitam
“ab ovo”. Estes nos seriam dados como um a priori, estariam contidos na
psique e armazenados no inconsciente coletivo, concentrando em cada
47
Jung, C.G. “Psicologia do Inconsciente”. Petrópolis: Ed. Vozes, 1987. Vol VII/1, pg. 86.
47
indivíduo a totalidade das potencialidades humanas. Diferentemente dos
animais, esses “conhecimentos” não se ativam, no homem, espontaneamente
diante de uma necessidade qualquer, ou seja, no exato momento oportuno,
mas dependem de certas circunstancias especiais sobre as quais falarei mais
adiante.
É preciso ressaltar ainda que Jung concorda em grande parte com Freud
no que tange o inconsciente individual. Exceto pela noção de tabula rasa que
Freud acredita ao inconsciente individual no nascimento. Ou seja, Jung amplia
a idéia de inconsciente, dizendo que ele não é apenas um espaço vazio, pronto
para ser preenchido pelas vivências pessoais de cada ser humano. Ao mesmo
tempo em que o inconsciente individual recebe os conteúdos de uma
determinada vivência, ao estar estruturado sobre (posição apenas
didaticamente referida como tal) uma outra instância que nos é dada pela
própria condição humana, sofre também suas influências. Em outras palavras,
o inconsciente pessoal sofre dois tipos de pressão. Uma, que consistiria nos
conteúdos individuais que são apreendidos a partir da primeira infância e no
decorrer da vida, e outra, que seriam aqueles transmitidos pelo inconsciente
coletivo. Por outro lado, não podemos imaginar o inconsciente coletivo como
uma camada situada abaixo do consciente ou inconsciente individual. Para
Jung, o inconsciente coletivo é suprapessoal. Neste sentido, o todo da psique
se encontra rodeado pelo inconsciente coletivo, sem claras delimitações entre
suas instâncias. Assim, para ele, “a psique é um todo consciente-
inconsciente”
48
.
Jung passa a detalhar o funcionamento psíquico a partir deste conceito,
que é um dos pontos nodais de sua teoria.
48
Jacobi, J. “Complex Archetype Symbol in the Psychology of CG Jung.”, N.York, Princeton University
Press,1071, p. 62.
48
O inconsciente coletivo é formatado pelos arquétipos. Os arquétipos são
para Jung uma espécie de formas vazias inatas, marcas por assim dizer,
prontas a serem ativadas por conteúdos que “irrompem” em determinados
momentos da vida. Ou seja, este potencial é constelado e se manifesta sempre
quando circunstâncias vivenciais ativam o conteúdo arquetípico que lhes
corresponde. Isto significa que para qualquer impacto vivencial sofrido pela
psique corresponde um arquétipo que será mobilizado, dependendo da maior
ou menor carga energética ativada pelo complexo atingido pela vivência.
Quando isto ocorre, dizemos que está constelado para aquela psique um
determinado arquétipo. O que por sua vez significa que o sofrimento psíquico,
se devidamente analisado, pode ser entendido mediante a decifração do mito
emergente.
Jung postula o conceito de energia psíquica, fundamental para a
compreensão dos conceitos que estão na base de sua teoria. Diferencia energia
psíquica de força psíquica, mas esta diferenciação não fica clara no decorrer
de sua obra. Ocasionalmente desconsidera o que chamou de força e refere-se
apenas a energia psíquica. Entretanto, acredito que a proposta de diferenciar
energia e força no contexto psíquico pode ser muito útil para o entendimento
da vingança, já que minha hipótese é de que enquanto energia, a vingança é
construtiva, mas enquanto força pode ter um desdobramento desconstrutivo
para a psique. De fato, podemos entender a força de duas maneiras: uma
construtiva, que seria mais ou menos como o “élan” com o qual usamos a
energia para determinada ação; uma segunda maneira seria entender a força
como também contendo um potencial desconstrutivo, na medida em que for
utilizada à base de impulsos inconscientes, ou seja, na forma que se
convenciou chamar de “acting out”. Entretanto, vou me permitir entender do
texto junguiano que energia psíquica é o que move as emoções enquanto
processos psíquicos. Já força é a manifestação da energia quando posta em
ato. Como diz Jung, energia “não existe objetivamente no fenômeno como tal,
49
mas se acha presente no fundamento da experiência específica. Em outras
palavras: na experiência a energia é sempre específica, manifestada no
momento como movimento e força; virtualmente é situação, é condição”
49
Assim, entendo que energia é sempre um conjunto de virtualidades,
sendo a força a possibilidade de sua atualização.
Proponho entender a vingança, do ponto de vista junguiano, tanto como
energia quanto força. Como esclarecido em capítulo anterior, considero que,
enquanto pensamento, emoção e/ou sentimento, a vingança manifesta-se como
energia. Enquanto ato, como força. Desta maneira, do ponto de vista psíquico,
a vingança pode ser entendida como tendo dois momentos muito específicos.
Um primeiro momento em que, se não for totalmente possuído pelo ódio, o
self, atingido de maneira significativa por algum ataque sentido pela psique
como extremamente ameaçador, “maquina” a respeito da situação ou pessoa
específica causadora da ameaça. Isto ocorre quando o ataque sofrido pelo self
provoca um sentimento de ameaça violenta, geralmente sentido como ameaça
de morte, no mínimo psíquica. O tempo de maquinação pode durar dias,
semanas até que de alguma forma a psique encontre uma via de escoamento
para esta energia. Um segundo momento ocorre quando utilizamos esta
energia para tentar elaborar a situação eliciadora, o que, por sua vez, pode
ocorrer de duas maneiras distintas: ou a psique trata de compreender a
situação e operar as transformações psíquicas necessárias para aquele
momento, para, em seguida, agir se for necessário; ou, quando impossibilitada
de elaboração, age sem se dar o tempo de um trabalho psíquico anterior, o que
de certa maneira serve para apaziguar a psique, mas, como se sabe, não
conduz a transformações em termos de amadurecimento psíquico. Em outras
palavras, a força derivada da energia psíquica pode ser utilizada de maneira a
elaborar a situação ou apenas para se livrar do “estrago” que causou, sem
49
Jung, C.G. A dinâmica do Inconsciente, Ed. Vozes, Rio de Janeiro, 1989 p. 14.
50
maior consideração à totalidade, ou seja, ao self. (“acting-out”, conforme
acima explicitado).
Jung diz que a energia psíquica, que também denomina de “libido”, tem
um sentido próprio, ou seja, para o autor, ela circula mais ou menos
livremente na psique, estando em constante tensão entre opostos, buscando
equilíbrio.
50
No momento de uma determinada vivência, parte desta libido
pode ser “seqüestrada” para camadas mais profundas, inconscientes da psique,
ligando-se a complexos com maior ou menor correspondência àquela vivência
consciente desencadeante. Portanto, quando, diante de um estado emocional
tal que ocorra um desequilíbrio energético, o inconsciente é mobilizado,
constelando-se na psique um determinado arquétipo.
Não podemos esquecer que a palavra arquétipo, desde a antiguidade, é
sinônimo de “idéia” no sentido platônico. Portanto, nada mais justo que
imaginar que, quando atacada, a psique, ao mobilizar energias inconscientes,
traga à tona imagens, idéias reativas, ou seja, vingativas, que aparecem através
de, por exemplo, personagens míticos, ancestrais que se apresentam nos
arquétipos. Para Jung, o arquétipo é o material primário do qual se constitui o
inconsciente coletivo. Este está permanentemente à disposição da psique, mas
nem sempre é ativado. Assim, para Jung “o arquétipo é um elemento vazio e
formal em si, nada mais sendo do que uma facultas praeformandi
51
. Sempre
que estimulado, um arquétipo pode constelar-se na psique humana. Isto pode
ocorrer no nível pessoal ou coletivo, como poderá ver-se adiante.
Portanto, o inconsciente coletivo de Jung se expressa por meio de
imagens que, para serem decifradas, podem remeter a expressões culturais,
como por exemplo, os mitos ou contos de fada.
52
50
Esta idéia será desenvolvida mais adiante.
51
Jung, C.G. Os arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 1976. pg. 91.
52
Os mitos e contos de fada aparecem no imaginário popular como manifestações arquetípicas, que
expressam conflitos de uma determinada época em que, por não poder expressar-se no nível consciente,
51
Apesar disso, os conteúdos arquetípicos não são de todo imutáveis, já
que sofrem pequenas mudanças cada vez que são atualizadas na consciência.
53
Isto porque, para que este material tenha acesso à consciência, mistura-se com
conteúdos do inconsciente individual cuja influência também sofre. Assim, no
decorrer dos tempos, a história da humanidade vai sendo acrescida de novos
acontecimentos que, armazenados na consciência coletiva, passam a fazer
parte do arcabouço de possibilidades psíquicas, as quais podem constelar-se a
qualquer momento na psique de uma pessoa. Portanto, a imagem do Trickster
à que aludirei mais adiante pode manifestar-se através de personagens “mais
modernos” que encontram no imaginário coletivo sua correspondência.
Os conteúdos arquetípicos expressam-se por símbolos, que se
manifestam através de imagens.
O acesso ao material do inconsciente coletivo não é direto, sendo antes
uma conquista, já que pressupõe que a pisque esteja disponível para perceber
que em determinado momento alguma perturbação interna ocorreu e esteja
disposta a perseguir este fenômeno até sua decifração. Segundo Jung, esta
situação é mais fácil de ocorrer na segunda metade da vida do indivíduo, que
ele denominou de metanoia
54
, quando se atinge certa maturidade psíquica, ou
seja, quando a pessoa tenha conquistado o que Naffah Neto chama de
envergadura interna.
55
Uso este conceito de Naffah Neto (baseado em
Nietzsche) para este texto com o sentido geral e amplo de uma capacidade
interna para conter angústias e sofrimento, enquanto a psique elabora a
situação desencadeante. Portanto, para que isto ocorra é necessário que a
emergiram qual figuras às vezes fantásticas consteladas no inconsciente e, ao serem repetidas inúmeras vezes
, de alguma maneira, encontrarem sua via de expressão na cultura.
53
O saci pererê, por exemplo, pode ser considerado um trickster mais moderno, já que se constela no
hemisfério sul, cuja história data de apenas 500 anos. É claro que em parte foi colonizada por europeus que
trouxeram consigo, no seu inconsciente coletivo, toda a carga cultural da Europa milenar, mas a miscigenação
com indígenas e africanos pôde de certa forma “adaptar” este material, criando uma cultura própria. Como se
disse acima, o inconsciente individual também exerce influência sobre o inconsciente coletivo.
54
O conceito de metanoia refere-se ao que Jung denominou de metade da vida, que na época representava,
aproximadamente, os trinta e cinco anos de idade.
55
Naffah Neto, A. “O Outr’em Mim”. São Paulo: Ed. Plexus, 1998. pg. 42.
52
subjetividade tenha passado por determinados sofrimentos psíquicos
colecionados como vivências essenciais, que vão construindo, de episódio em
episódio, uma envergadura tal que permita à psique certa tranqüilidade diante
do insólito. Assim, estou me apropriando deste conceito no sentido de que é
acumulando experiências significativas devidamente decodificadas, algumas
causando graus variados de sofrimento, que podemos caminhar para a
maturidade. Por sofrimento entendo tudo o que de novo se apresenta à psique,
ou seja, que exige esforço em graus variados de intensidade até conseguir
incorporar aquela “novidade”. E para caminharmos em direção à dita
maturidade, construindo a envergadura interna e ao mesmo tempo apoiado
nela, é preciso que a “novidade” ou o sofrimento seja elaborado no espaço
psíquico. Assim, essas vivências capacitariam, por assim dizer, a psique a
enfrentar a noite escura da alma. Isto porque Jung diz que, para se ter acesso a
este nível do inconsciente, é preciso que um estado de tensão se revele entre
determinados pólos da psique. A elaboração destes variados estados implica
algum grau de sofrimento psíquico. Apenas no confronto destes (estados) é
que se pode abrir caminho para uma compreensão mais abrangente do
material constelado, já que é então que energias psíquicas originárias das
camadas mais profundas da mesma são convocadas, trazendo consigo, através
de símbolos, a constelação de determinado arquétipo, ou seja, o que deve ser
elaborado, mas tudo devidamente codificado em uma linguagem cuja lógica
transcende a racional, já que é inconsciente.
No “epicentro” de uma crise constelam-se arquétipos. Estes nos vêm,
como já dissemos, através de imagens que necessitam de decifração
56
,
compreensão. Estas imagens podem aparecer em sonhos ou devaneios. São
imagens numinosas de difícil compreensão sem um trabalho analítico
56
Aqui, uso livremente “decifrar”, “traduzir” e “interpretar” apenas para a compreensão do texto. Fica claro
que em termos de processo psíquico, o que deve ocorrer é a compreensão e conseqüente integração ao self de
processos inicialmente inconscientes, que podem se manifestar através de arquétipos, transportados à
consciência através de imagens prontas a serem elaboradas (ou não).
53
correspondente. Devem ser entendidos como símbolos, prontos para serem
decifrados. E, quando este trabalho é realizado, abre-se à nossa frente uma
perspectiva inusitada, por sua amplitude, abrangência e significado. São
momentos únicos em que atingimos uma possibilidade de compreensão
anímica inimaginável.
Acredito que à vingança corresponde um conteúdo arquétipico que
habita as profundezas da alma humana, podendo manifestar-se a qualquer
momento. Sua manifestação pode ser, inclusive, numinosa. Para melhor
compreender o processo de emergência de um arquétipo, temos que nos haver
com o entendimento e funcionamento do símbolo e da função transcendente.
54
2.5 Símbolo, Função Transcendente, Complexo, Sincronicidade
Símbolo e Função Transcendente
Quando aparece na consciência, o símbolo se apresenta em imagens que
devem ser decifradas. O símbolo é o mecanismo que transforma a energia
psíquica. Qual texto em língua estrangeira, é preciso traduzi-lo e interpretá-lo
para que possa fazer sentido em nosso idioma, ou seja, no nível da
consciência. É o símbolo que opera a conexão entre consciente e inconsciente
e tem a função de transformar a energia inconsciente em energia consciente. É
produto da tensão energética entre estas duas polaridades. Mas, o símbolo é
também o resultado de uma função.
Trata-se da função transcendente. A psique, segundo Jung, funciona em
constante tensão entre consciente e inconsciente, entre tensão e auto-regulação
da psique. Quanto mais energia é concentrada no consciente, mais oposição se
cria, o que leva a psique a tentar equilibrar as duas energias. A função
transcendente é precisamente quem opera esta passagem, ou seja, da energia
inconsciente para a consciente através do símbolo. Em outras palavras, a
função transcendente permite que símbolos do inconsciente sejam
transportados para o consciente propiciando a possibilidade de compreensão,
já que trazem à tona uma síntese consciente/inconsciente, permitindo a
elaboração do pensar simbólico. Ela é resultado da dinâmica compensatória de
trocas energéticas entre consciente e inconsciente. A função transcendente
opera na psique como um todo, ou seja, consciente e inconscientemente. Já o
pensar simbólico opera apenas no consciente. Isto significa que para entender
um símbolo, utilizamos funções próprias do consciente, como análise,
associação etc., mas é à função transcendente que devemos a apropriação do
símbolo no nível consciente. Um processo de análise pode ser considerado
como uma função transcendente, já que se propõe a harmonizar o conteúdo
55
inconsciente com o consciente. Isto ocorre através da decifração de símbolos,
que, para Jung, representa a linguagem do inconsciente. “Da união (do
consciente e inconsciente) emergem novas situações ou estados de
consciência. Designei por isso a união dos opostos (consciente e inconsciente)
pelo termo “função transcendente”
57
. Não se pode esquecer que, para Jung, o
conteúdo do inconsciente não é apenas o arcabouço de vivências conscientes
reprimidas. É, antes de mais nada, um vasto repositório de conhecimentos
ancestrais cuja “vida” opera de maneira autônoma, independente da
consciência. É no constante diálogo, ou não, entre estas instancias (consciente,
inconsciente individual e inconsciente coletivo) que a psique encontra seu
caminho em direção à sua especificidade única, que Jung denominou
individuação.
É preciso compreender que, para Jung, a psique representa uma
totalidade dinâmica, embora ela contenha elementos diversos. Ou seja, a
psique está sempre em movimento, oscilando continuamente entre unidade e
multiplicidade. Ora se compõe ora se decompõe, sendo atravessada, a todo
momento, por fluxos de ordem inconsciente, bem como consciente.
Quando Jung fala de psique, fala do “selbst” ou si mesmo ou ainda
“self”. Com isto, refere-se à individualidade e generalidade do ser humano.
A concepção de ser humano em termos de individualidade está alicerçada
na noção de um ser único, indivisível e complexo: uma totalidade eco-
bio-psiquica-social, resultante de um potencial arquetípico que se atualiza
num corpo biológico e num contexto histórico e social; um microcosmo
dentro de um macrocosmo.
58
Podemos dizer, então, que a psique individual seria o ponto de encontro
entre a história universal e a pessoal, já que nela se atualizam, potencialmente,
todas as possibilidades humanas, desde seus primórdios. É, portanto, neste
57
Jung, C.G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 1976, pg. 282 – parênteses
meus.
58
Penna, E.M.D, op. cit., pg. 128.
56
nível que se elaboram heranças atávicas que nos tomam de assalto em
determinados momentos de vida e pedem passagem. Além disto, é também
que às vezes irrompem paixões eliciadas por vivências individuais ou
coletivas da atualidade. Mas, para que isto ocorra, ou seja, para sua
manifestação, estes conteúdos necessariamente passarão pelo crivo da
consciência, ao se expressarem em uma determinada psique.
No âmbito da cultura, ou macrocosmos, ou história universal, o conceito
de tempo é variável, ou seja, as vivências subjetivas promovidas por
arquétipos são, em essência, atemporais. Tanto podem remeter ao passado,
como presente e, quiçá, futuro. Como aparecem através de símbolos, as
“mensagens” devem ser traduzidas para que delas a psique possa extrair a
essência, cujo objetivo é transformar energia psíquica inconsciente em
consciente. Para que isto possa ocorrer, é preciso um ponto de confluência
entre o mundo arquetípico, inconsciente, e a consciência. Trata-se do
complexo.
Assim, resumindo, “o símbolo, forjado pela função transcendente,
guarda significados que se insinuam na consciência, mas não são
imediatamente revelados. Tais significados, contidos a priori no símbolo, são
desvendados pela consciência no trabalho de elaboração simbólica. Dessa
forma, não é a consciência que cria o significado, ele emerge da psique
inconsciente para ser conhecido (ou não) pela consciência.”
59
Estes conceitos são de extrema utilidade para se referir a processos de
massa em diferentes culturas. O arquétipo da vingança pode constelar-se no
inconsciente de uma cultura, ou seja, de um povo, nação, dependendo das
circunstâncias. A onda de terrorismo do qual padece o mundo na
contemporaneidade pode ser entendida, neste contexto, como exemplo do que
pode ocorrer com as massas quando da ativação inconsciente do arquétipo da
59
Penna E.M.D. Op. cit. pg. 161.
57
vingança. Quando um Trickster que, sem ser reconhecido como tal, reina solto
a seu bel prazer, constelado no inconsciente coletivo de uma cultura, acaba se
validando, por exemplo, o terrorismo como forma de expressão máxima e
única de conteúdos coletivos, inclusive através da prática da auto-imolação.
Homens-bomba, ensandecidos e exaltados, saltam para a morte desprezando a
vida como valor maior. Quando a política é regida por dogmas, perde-se o
bom senso. Doença das mais perigosas e contagiantes, originária de uma pura
atuação arquetípica, sem qualquer elaboração.
Complexo
Como já dissemos, a estrutura psíquica, segundo Jung, é dupla,
contendo material tanto pessoal quanto coletivo. Os conteúdos do inconsciente
pessoal compõem o que o autor chama de complexos inconscientes, ou seja,
constelações energéticas que se formaram a partir de material reprimido ou até
mesmo posto de lado pela consciência e que se agrupam em torno de um
núcleo arquetípico. Os conteúdos do inconsciente coletivo, como já
enfatizamos, são representados pelos arquétipos, ou seja, potencialidades
inatas a serem atualizadas.
A conexão na psique entre os níveis pessoal e coletivo se dá através dos
complexos, já que fazem a conexão entre o inconsciente coletivo, inconsciente
pessoal e experiências vivenciais. Para Jung, os complexos são compostos, por
assim dizer, de duas sub-estruturas.
Toda a experiência vivencial ativa um arquétipo correspondente e agrega
energia associada ao tema do arquétipo e às experiências pessoais. Desta
forma, o complexo é a estrutura básica da psique pessoal e o ponto de
conexão entre o potencial arquetípico e as características psíquicas
adquiridas na vida individual.
60
Até aqui falamos a respeito de inconsciente coletivo, arquétipo, símbolo
e complexo. Estes conceitos formam parte do alicerce do método de análise
60
Penna E.M.D. Op cit., pg. 136.
58
proposto por Jung. Na realidade, a grande inovação do método é a introdução
do inconsciente coletivo à compreensão do funcionamento psíquico.
O aporte junguiano à psicologia, apesar de ter ocorrido no final do
século XIX e início do século XX, carrega uma sutil correspondência com o
mundo compreendido à luz do século XXI. Explico: a visão de mundo
contemporânea contempla a subjetividade de maneira muito semelhante à
proposta por Jung, ou seja, aberta, atravessada por fluxos
61
, ora compondo-se
ora se decompondo, nunca rígida ou fixada. Já em 1916, quando o autor
propõe as duas formas de pensamento, avança singularmente na psicologia de
seu tempo, já que imagina uma abertura que só viria a ser conceituada
filosoficamente muitos anos mais tarde. Este constante jogo entre energias nos
diferentes níveis da psique nos permite enveredar para uma compreensão mais
aberta e abrangente dos processos psíquicos, em consonância com a visão de
mundo pós-moderna.
62
No que tange a vingança, gostaria de avançar a idéia de que se trata de
uma paixão com características universais, e de expressão tanto individual
quanto coletiva. Em determinadas circunstâncias, o inconsciente individual ou
coletivo de um povo pode se ver mobilizado. Diante da constelação do
arquétipo da vingança, ou seja, deste Trickster, quando não elaborado, este
passa a ser vivido em seu lado obscuro. É quando crianças saltam alegremente
para a morte, envolvidos em cinturões explosivos com promessas de paraíso e
virgens à sua espera. Qual bacantes, estes jovens abraçam a morte, cegos e
surdos à sua interioridade, totalmente prisioneiros dos aspectos sombrios do
Trickster Dioniso.
63
61
O conceito de fluxos conforme proposto neste trabalho é entendido de acordo aos conceitos de Deleuze e
Guatarri. Resumidamente corresponde aos vetores de forças (político-religioso-econômico-ambientais) aos
quais os corpos estão sujeitos em suas movimentações vitais.
62
A visão de mundo proposta pelos autores anteriormente citados.
63
Mais adiante falaremos de Dioniso como Trickster.
59
Resta, ainda, um conceito para compor o que é preciso para nossa
investigação. Trata-se da idéia de sincronicidade.
Sincronicidade
Desde cedo Jung interessou-se por fenômenos que poderíamos chamar
de intrigantes, ou seja, coincidências bizarras e todo tipo de eventos que
chamavam sua atenção nas manifestações de seus pacientes no Hospital
Bürghorzli de Zurique. Logo percebeu que havia determinadas coincidências
que se conectavam por outra via que não a causalidade. Eram eventos que
ocorriam simultaneamente, mas sem que um fator ou outro tivesse causado a
coincidência. Jung percebe, então, a existência de fenômenos que se
conectam, não através da causalidade, mas através do significado. A estes
fenômenos denominou sincronicidade, evitando inclusive o termo
sincronismo, já que desejava expressar ocorrências que vão além da
coincidência e que, portanto, são bastante raras.
Para Jaffe, Jung imagina que estes fenômenos supõem um significado
“transcendental independente da consciência (...) que subsiste por si
mesmo”
64
. Em outras palavras, a psique funciona não apenas pelo princípio da
causalidade, mas também teleologicamente. Isto significa que os conteúdos
psíquicos não podem ser compreendidos apenas à base de suas causas. Toda
energia psíquica apresenta um caráter prospectivo em sua manifestação.
A dinâmica energética que alterna fluxos de progressão, regressão e
fluxos de autoregulação rumo ao desenvolvimento da personalidade
integra o ponto de vista redutivo causal e o energético final, atribuindo ao
inconsciente uma função teleológica e uma função histórica.
65
A perspectiva arquetípica, portanto, permite ampliar a dimensão
psíquica para além do pessoal. É quando ocorrem eventos sincrônicos que esta
dimensão fica mais claramente exposta. Eventos que ocorrem
64
Jaffe, A. O mito do Significado na obra de C.G.Jung. In: Penna, op. cit. pg. 160.
65
Id. Ibid. pg. 159.
60
simultaneamente, sem relação de causalidade, podem abrir portas, e porque
não, comportas, para a emergência de material inconsciente que, sempre e
quando devidamente compreendido, permite à consciência tomar
conhecimento de novas dimensões da realidade da psique.
Em outras palavras, quando ocorre uma sincronicidade, esta pode ser
apreendida pela psique, permitindo uma ampliação da consciência de maneira
numinosa, trazendo à luz novas possibilidades de compreensão para o ego e
posterior integração ao ego.
Finalmente é possível entender que a vingança como paixão
66
, do ponto
de vista da psicologia analítica, pode ser compreendida como habitante da
psique coletiva e capaz de se manifestar em qualquer momento histórico
sempre e quando energias psíquicas forem mobilizadas de maneira a constelar
um arquétipo que aparece na consciência qual símbolo a ser compreendido e
elaborado. Postulo, para fins deste trabalho, como arquétipo representante da
vingança a figura do Trickster
67
, herói mítico, que pode aparecer travestido de
vários personagens e ser convocado sempre que a psique se vê ameaçada de
desintegração. O Trickster é uma das manifestações do arquétipo do herói.
Este é sempre necessário quando o trabalho psíquico é de tal ordem que, se
não elaborado, pode ameaçar a integridade do self. O arquétipo do herói
funciona de certa maneira como o barqueiro, que auxilia a alma na travessia
da noite escura. Todos temos acesso a nosso herói interno. Basta estar
preparado para invocá-lo.
66
Ver cap. I.
67
Evidentemente, o Trickster é apenas uma das possibilidades de manifestação para o arquétipo da vingança.
61
2.6 O Mito do Herói e a figura do Trickster
“O mais nobre de todos os símbolos da libido é a figura humana do
demônio e do herói”
68
. Assim, Jung inicia o capítulo a respeito da figura do
herói. Obviamente, fica claro que, para nosso autor, o herói contém em si a
sua “contra-figura”, ou seja, seu aspecto obscuro, que eu chamaria de anti-
herói. E mais: segundo Jung, esta duplicidade é necessária, já que a imagem
do herói tem uma correspondência com o ser humano. E ao ser humano,
criatura mundana, correspondem todas as vicissitudes do mundo real. Assim
como na natureza ao Zenith solar corresponde a noite profunda, também a
psique tem seu lado claro e obscuro. Em outras palavras, os arquétipos,
quando se constelam, nos trazem tanto seu lado iluminado, construtivo, quanto
seu lado destruidor, obscuro. Cabe à psique o trabalho de elaboração, que é
sempre apenas aquele que puder ser realizado naquele momento.
Portanto, a figura do herói – doravante quando me referir ao herói, fica
implícita também a imagem do anti-herói – aparece desde tempos imemoriais
na psique humana como forma de elaboração psíquica. Freqüentemente, em
análise, recorre-se a personagens da mitologia para ajudar os clientes a
entender o que os possui em determinado momento do trabalho analítico. As
figuras mitológicas, heróis e outros, contêm em si as polaridades expressas na
figura do “demônio” e “herói”. Em outras palavras, cada personagem
representa um continuum que vai desde as características mais heróicas às
mais demoníacas. Quando se constela no inconsciente um determinado
arquétipo, devemos saber que podem eclodir conteúdos de qualquer das
polaridades. Jung chama esta possibilidade de “ambitendência”
69
, ou seja,
cada arquétipo contém em si a possibilidade de destruir e construir.
70
68
Jung, C.G. Símbolos da Transformação. Petrópolis: Ed. Vozes, 1986. V, pg. 157.
69
Conceito desenvolvido por Bleuler, citado por Jung em “Símbolos da Transformação”, pg.159.
70
Vale ressaltar uma semelhança entre Jung e Freud, já que este propõe que a psique obedece a duas pulsões
de vida e morte, apesar de Jung ser monista e Freud dualista em suas respectivas teorias.
62
Dentre os arquétipos, parece-me que o Trickster se presta
brilhantemente à caracterização da vingança. Esta figura é de uma riqueza tal
que pode representar várias possibilidades.
Trickster aparece como figura arquetípica em mitos, lendas e contos de
fada. Seria aquele personagem que se mostra através do Bufão, ou, na cultura
brasileira, do Arlequim, Dunga, João Bobo, Saci Pererê e tantos outros. É
aquele que fala certas “verdades” de maneira mordaz, sarcástica, e parece sair
incólume mesmo quando diz seus disparates diante de poderosas autoridades.
O Trickster permite que riam dele e aquilo que parece muito divertido em
determinado momento esbarra em profundas tristezas, às vezes somente
percebidas a posteriori. O Trickster pode, também, representar um aspecto dos
arquétipos. Quando um arquétipo se constela na psique, pode se apresentar
através do seu lado Trickster.
Jung informa que o “trickster é um ser originário”, “cósmico”, de
natureza divino-animal, por um lado, superior ao homem, graças à sua
qualidade sobre humana e, por outro, inferior a ele, devido à sua insensatez
inconsciente.
71
Já que às figuras míticas correspondem vivências interiores, é possível
que o Trickster também se manifeste através de fenômenos quase
paranormais, como, por exemplo, os “poltergeist”, cujas manifestações são, às
vezes, bastante engraçadas e divertidas. Aliás, estes fenômenos podem ser
decorrência de sincronicidades que ocorrem quando uma imagem sombria
(mas que pode também ser mais pueril, arcaica) é “lançada” a níveis
superiores da consciência. Neste momento a psique capta o numinoso que
aparece numa vivência de sincronicidade.
71
Jung, C.G. “Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo”. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 1976. pg. 259.
63
A figura do Trickster é considerada um dos arquétipos mais antigos do
inconsciente coletivo. É que o processo civilizatório inicia-se com o que Paul
Radin
72
chama de o ciclo do Trickster. É de se supor que, em um determinado
momento da história da humanidade, os sinais de uma profunda inconsciência
vão desaparecendo e, portanto, “em lugar de manifestar-se de maneira brutal,
cruel, bobo e insensato, o Trickster começa a fazer coisas úteis e sensatas...”
73
.
Em outras palavras, a consciência começa a aflorar como um valor, o que
naturalmente significa o começo da repressão na cultura. Na realidade,
começa a ocorrer uma liberação da consciência que, ao destacar-se do
inconsciente, permite que não se tenha que viver mais, compulsivamente, seus
lados obscuros (“acting-out”).
Isto não significa que aquilo que é negativo, obscuro tenha se esvaecido,
mas o que ocorreu foi uma perda de energia dirigida a estes conteúdos
conscientes que, então, se recolhem a camadas mais profundas da psique, onde
permanecem como que “adormecidos” enquanto tudo estiver equilibrado no
nível consciente.
Entretanto, quando a consciência sofre algum tipo de crítica ou pressão
insuportável, percebe-se que aquilo que foi recolhido a camadas mais
profundas da psique retorna com toda a sua energia, assim que aparece a
oportunidade para tal. Sua manifestação, a partir daí, passa a ser passível de
atualização em ato na vida real, com ou sem elaboração anterior, o que
depende, entre outras coisas, de seu portador estar em análise.
Assim, podemos perceber que o “homo-sapiens” da contemporaneidade,
que algumas vezes acredita ter se livrado de sua condição primitiva de
funcionamento na vida, acaba atuando sem filtros culturais, totalmente
entregue e ao sabor do primitivismo de atos inconscientes.
72
Radin, P. In: Jung, C.G. “Os arquétipos e o inconsciente coletivo”. R. Janeiro: Vozes, 2000. gp. 258-261.
73
Id. ibid. pg. 261.
64
Em suma, parte da psique nega a existência do primitivo, enquanto
outra se apega ferozmente a ele.
Jung afirma que “A oposição das duas dimensões da consciência é a
expressão da estrutura contraditória da psique, a qual depende, enquanto
sistema energético, da tensão entre opostos.”
74
Portanto, para o autor, a psique
vivencia a vivo e a cores um determinado mito sempre e quando esta (psique),
que se considera superior e portanto imune aos “males do espírito”, confronta-
se de alguma maneira com a autonomia daquela figura mítica. É que não
consegue escapar de seu fascínio.
Esta figura tem a capacidade de atuar sobre a psique individual e às
vezes coletiva, porque “tem uma correspondência secreta na psique do
espectador, aparecendo como um reflexo da mesma, o qual, no entanto, não é
reconhecido como tal. A figura está cindida da consciência subjetiva e se
comporta por isso como personalidade autônoma.”
75
É por isso que, para Jung, o Trickster é a somatória de todos os traços
de caráter inferior e representa “a figura da sombra coletiva”
76
. E mais,
segundo nosso autor, é por aspectos ditos “negativos” nunca estarem ausentes
da psique individual que o Trickster é sempre atualizado na subjetividade e às
vezes no coletivo. Neste momento, vou me permitir ampliar a compreensão
junguiana da figura do Trickster, já que pretendo utilizá-la, também, em seus
aspectos positivos. Se por um lado, como diz o autor, o Tickster pode ser
entendido como paradigma da sombra individual e/ou coletiva, é de se
compreender que, pelos mesmos argumentos anteriormente utilizados, ou seja,
de que todo arquétipo pode manifestar-se através de seus dois pólos, o
sombrio e o iluminado, é de se supor que também o arquétipo do Trickster
74
Id. ibid. pg. 264.
75
Id. ibid. pg. 264.
76
Id. ibid. pg. 264.
65
contenha em si estas polaridades, até porque, como diz o próprio Jung, é da
tensão destas polaridades que nasce a energia mobilizadora da psique.
Assim, como já dissemos em capítulo anterior, se a vingança pode ser
entendida como paixão, sentimento, emoção, ato etc., podemos, agora,
acrescentar que, do ponto de vista junguiano, a vingança pode ser vista como
um arquétipo que pode surgir do inconsciente coletivo através de um símbolo
que, movido pela função transcendente e conectado a um complexo, pode
aparecer sincronicamente, ou seja, sempre que a psique estiver fortemente
ameaçada na consciência.
Proponho que sempre e quando a psique se vê ameaçada por um ataque
externo (ou interno) que a confronta de tal maneira que se sente próxima a um
estado de despersonalização, ou seja, quando se sente atingida em sua
integridade e a violência do ataque é sentida como quase fatal, restam à psique
poucas possibilidades. Por um lado, submeter-se ao infortúnio, o que significa
sucumbir, deprimir ou qualquer de suas variantes; no limite: morte psíquica
e/ou física. Por outro, confrontar-se com o ataque e, novamente, qualquer de
suas manifestações; no limite, entregar-se à vida tal qual é. Para tal, é preciso
mobilizar energias psíquicas inconscientes que, ao se ativarem, precisam
constelar o arquétipo do herói, seja ele qual for, pois a luta que está pela frente
é árdua, dura e extremamente ameaçadora. No caso da vingança, proponho
que o herói convocado é um Trickster. É ele que tem as características, ao
mesmo tempo, de ousadia, intensidade e irreverência que vão permitir o
confronto com afetos profundos. Isto porque, uma vez atacada, a psique
inicialmente “maquina” vinganças contra o objeto-autor do ataque sofrido.
Para tal, é preciso convocar energias que inicialmente, diante do ataque
sofrido, estão indisponíveis. Mas, uma vez constelado o Trickster, este começa
a “soprar ao ouvido” mensagens vingativas. Estas “instruções”, ouvidas de
coração e alma, transformam-se em elementos vitais, já que ao se concentrar
66
neles a energia psíquica começa novamente a fluir, o que, por sua vez, auxilia
a psique a se re-conectar à vida. Enquanto a psique pensa em vinganças
possíveis, está em estado de alerta, ou seja, viva, pois no nível consciente,
apesar do sofrimento, começa a se articular uma maneira de “dar a volta por
cima”
77
. Este processo continua por um tempo até que, e principalmente, abra-
se para ela a possibilidade de uma elaboração.
Um Trickster qual Dioniso é extremamente ágil e rápido nas suas
manifestações. Se visto e compreendido, acrescenta energia criativa ao
processo. Se negado, pode empurrar a pessoa para realizar irrefletidamente
suas vinganças sem medir conseqüências. Qual Dioniso, ao não ser
reconhecido por Penteu, rei de Tebas, arquiteta e executa sua vingança: rapta
as donzelas do palácio e reino e as transforma em bacantes, indo habitar as
montanhas, onde vivem em constante estado de euforia e alienação.
Autores que trabalham a tragédia grega não concordariam, talvez, com
esta visão vingativa de Dioniso. Por exemplo, Naffah Neto diz que o que
ocorre “é a erupção da alteridade levada a seu extremo, única forma de se
fazer reconhecer.”
78
Entretanto, se aplicarmos a visão analítica a esta
manifestação, acredito que cabe perfeitamente a idéia de que quem não é
ouvido na expressão da sua “verdade” se vinga e o faz de maneira a que os
“outros” a reconheçam a qualquer preço. Gostaria de lembrar que a questão
aqui não é moralista, ou seja, o quanto esta manifestação é “boa” ou “má”,
nem se trata da questão da “culpa”, ou seja, se há ou não intenção premeditada
de vingança. O que está em questão é uma maneira diferente de abordar a
vingança, ou seja, qual energia disponível a ser utilizada pela psique. A figura
do Trickster pode ser justaposta à de Dioniso, da mitologia grega. Cabem,
agora, algumas considerações sobre a figura de Dioniso.
77
Ver p. 35, nota de rodapé 37 com letra completa desta canção; é a segunda vez que me ocorre esta
associação musical
78
Naffah Neto, A. Discussão realizada por ocasião do Seminário Interlocuções Clínicas ministrado pelo autor
no decorrer do segundo semestre de 2004 no Programa de pós-graduação em Psicologia Clínica da PUC/SP
67
2.7 Dioniso
Apesar de ter ciência de que o Trickster por excelência, na mitologia
grega, corresponda ao personagem Hermes, acredito que posso usar Dioniso,
também, como seu digno representante.
Filho da mortal Semele e do deus Zeus, tendo como madrasta Hera,
Dioniso é figura mitológica das mais presentes na antiguidade, no mundo
ocidental, inclusive na atualidade. Representa tudo o que é movimento,
inquietação, insubordinação, enfim, poderíamos dizer, mania. Por isso, atual,
já que vivemos, pelo menos no mundo ocidental, um estado de aceleração
insuspeitada da vida.
Mas reduzir Dioniso a deus maníaco é não compreender o alcance deste
personagem arquetípico maior. Inquieto, sim. Não se fixa a lugar nenhum, é
quase onipresente em diferentes regiões e situações, podendo ter nomes
diversos de acordo com o local em que aparece. Mas, Dioniso, quando
aparece, não deve ser ignorado. Deve sempre ser reconhecido, ainda que
apareça disfarçado. Ser hermafrodita, difícil de captar em sua essência.
Entretanto, com algum esforço, e mediante maior conhecimento, cada psique
pode dar-lhe contornos que, ainda que diáfanos, vão compondo o personagem.
Estrangeiro, desconhecido, transmutante, quando se apresenta, exige extremo
esforço em seu reconhecimento. Arquétipo da diferença, daquilo que nos é
desconhecido, invoca o mais íntimo e estranho na psique. Assim é este
personagem que, por estas características, ouso chamar de Trickster. Brinca
com a imaginação ora escondendo-se ora se apresentando – sob diferentes
máscaras. Assim, “Por suas virtudes epifânicas, o deus que chega conhece
intimamente as afinidades da presença e ausência. Quer caminhe sorrindo ou
68
salte irritado, Dioniso se apresenta sempre sob a máscara do estrangeiro. É o
deus que vem de fora; ele vem de Outro Lugar.”
79
.
Por ser o deus representante, por excelência, do que é estrangeiro,
interessa-me sobremaneira, já que a vingança é aquilo com o que a psique
dificilmente se identifica conscientemente. Quando uma psique é tomada de
assalto pela vingança, esta atua sobre ela qual paixão fulminante. Algumas
coisas podem, então, ocorrer: paralisação do movimento vital; atuação
imediata do ódio qual fúria ensandecida; inicialmente, negação desta paixão,
pois o interdito é precocemente apreendido pela psique, já que está (a psique)
mergulhada na cultura, que por sua vez teve sua influência sobre a psique
através, entre outras coisas, da internalização de limites. De qualquer maneira,
entende-se que, se não elaborada de alguma maneira, a vingança passará a ser
atuada. Quando as áreas sombrias da psique se manifestam no nível
consciente, são em geral percebidas como estrangeiras, ou seja, algo que me é
estranho, que não faz parte de mim. Assim,
.... todos somos potencialmente portadores de uma porção de estrangeiro
soterrada debaixo de camadas de material inconsciente ou mais exposta,
dependendo das circunstâncias. A parte de alma estrangeira integrante do
nosso ser está apenas à flor da pele. Portanto, pode eclodir a qualquer
momento, trazendo consigo não só o seu maná, o material inconsciente
que, elaborado, fertiliza nossa vida, como também novas possibilidades
para nossas cartografias.
80
Dioniso é, portanto, um deus que ao mesmo tempo nos revela o que é
estranho, insólito e, entretanto, muito presente, já “que se difunde através do
desconhecimento, ou melhor, do não-reconhecimento.”
81
O que não significa
ausência. Apenas certa ignorância... Aliás, diz a lenda que quanto mais
próximo de seu local de origem, com mais veemência aparece. O que
79
Detienne, M. “Dioniso a Céu Aberto”. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1988. pg. 19.
80
Vero, J. “Alma Estrangeira”. S.Paulo: Ed. Agora, 2003. p. 148.
81
Detienne, M. op cit, p. 26.
69
significa, por outro lado, que “quanto mais próximos de seu nascimento estão
os que o ignoram, mais forte se torna sua necessidade de ser reconhecido.”
82
As peças do quebra cabeça parecem começar a se encaixar. Quanto
menos contato a psique tenha com suas paixões, no caso, com a vingança,
mais fica a mercê da atuação de seu inconsciente, no caso, do Trickster
Dioniso; por outro lado, quanto mais soterradas estiverem as paixões no
inconsciente, maior a probabilidade de que, quando se constelar o arquétipo
do Trickster Dioniso, ele não seja reconhecido. Entretanto, é nestes casos que
deveria ser reconhecido com maior presteza. Ora, sabemos que os arquétipos
tanto podem aparecer com seu lado obscuro como com o iluminado. Quanto
mais a vingança for sentida como estrangeira, mais seu lado Trickster tende a
aparecer. Quando isto ocorre, é no seu estado maníaco, ou seja, desgovernado,
pronto a ações inconseqüentes e extremas que esta paixão tende a se
manifestar. É Dioniso embriagado levado ao limite.
Hibris. A desmesura, aquilo que vai além do conhecimento humano,
produzindo o trágico. Proponho que a vingança, enquanto estrangeira, não
reconhecida mas atuada na psique, é em essência trágica. O lado Trickster de
Dioniso é fundamental para a transmutação das paixões, no caso da vingança.
Dioniso é o deus da alquimia, da introdução do vinho na cultura
ocidental, já que ensina aos gregos a arte de misturar. “É bebendo o vinho bem
misturado que os homens deixam de ficar encurvados, como acontece com o
vinho puro.”
83
Ensina ainda a ingerir sólidos antes de beber o “sangue da
terra”, para que, uma vez ingerido, transforme-se em sangue dos homens.
Dioniso abre o caminho para o conhecimento da inebriação, do desvario
etílico, ao mesmo tempo em que ensina a como contornar seus excessos.
82
id ibid, p. 37.
83
Id. ibid. p. 67.
70
Proponho que a vingança é como o vinho puro, companheiro do
Trickster Dioniso, e a arte da psique está em transformá-lo em energia potável
e revigorante, em vez de verter “o delírio em seu borbulhar”.
84
Visto do ponto de vista junguiano, como arquétipo, Dioniso pode
apresentar-se e agir como Trickster, sempre e quando não reconhecido. Nestes
momentos, enfurece-se e empurra a psique para o excesso, a mania. Quando
reconhecido, seu poder curador é inigualável, já que como deus e não deus
que é, ao conhecer as vicissitudes humanas, é capaz de entendê-las e conduzir
a psique a porto seguro.
O mito do rei Midas é exemplo do acima exposto.
Midas era um rei da Macedônia que amava os prazeres. Quando criança
profetizara que seria muito rico, pois assistiu-se a uma procissão de formigas
subindo ao leito do bebê. Foi o que aconteceu. Mas Midas queria mais. Um
dia encontrou nos jardins do palácio Sileno, tutor do deus Dioniso,
embriagado. Em vez de repreendê-lo, cuidou dele com carinho, devolvendo-o
são a Dioniso. Este, feliz, disse a Midas que pedisse o que quisesse que ele lhe
daria. Midas, então, pediu o dom de transformar em ouro tudo o que tocasse.
“Assim seja!” Respondeu Dioniso, rindo de modo a deixar Midas preocupado.
(o mito continua)
Todos conhecemos a continuação da história. O que deveria ter sido
uma bênção transforma-se em maldição. Dioniso, com seu aspecto Trickster,
aplica em Midas um golpe que hoje poderíamos chamar de narcísico. É ao
dar-lhe exatamente o que pede, que demonstra a Midas sob forma de “castigo”
a sua cobiça. É Dioniso sutil, sedutor, de certa forma vingando-se de um
pedido improcedente. E, note-se que é o próprio Midas o vetor de sua graça e
seu castigo.
84
Id. ibid. pg. 66.
71
Quando diante de perigo fatal, constela-se na psique o arquétipo do
herói para auxiliar a psique na sua transição do caos para um eventual porto
seguro. Neste enquadre, o Trickster Dioniso pode entrar em cena trazendo
todo o seu cabedal de conhecimentos, colocando-os à disposição da psique.
Cabe a ela (psique) separar o joio do trigo.
A vingança, quando desponta na psique, é inicialmente sentida como
fúria. Emoções, qual bacantes ensandecidas, tomam conta da fantasia e
pensamento humano.
Dioniso aparece na mitologia como deus da primavera, ocasião das
colheitas. Nestes festivais, é venerado e “praticavam-se danças,
desmembravam-se animais que eram devorados crus, chegando a um estado
de êxtase que originalmente nada tinha a ver com o vinho.”
85
Este era Dioniso
em fúria, desmesurado, sem limites. Parece que diante da ameaça de
despersonalização, a psique, ao convocar o herói, o faz na sua forma mais
arquetípica, enfurecida. Se deixadas a seu bel prazer, estas paixões podem
tomar conta da psique e apresentar-se com toda a sua força primitiva -
dionisíaca.
É neste momento – diante da ameaça de despersonalização – que na
psique pode constelar-se o arquétipo do herói, neste caso, o Trickster Dioniso.
Colocar esta energia à disposição da psique é fundamental para por a vida
novamente em marcha.
86
85
The Chiron Dictionary of Greek & Roman Mythology”. Ed. Chiron Publications, 1994. pg. 92.
86
Nos Anexos II de 1 a 7 vemos o Trickster atuando na Internet, veiculando temas relacionados à vingança
72
2.8 Um fragmento clínico
Cris é casada e reclama que seu marido não lhe dedica o interesse
necessário para manter o casamento. Diz que nunca está disponível para
acompanhá-la a festas e reuniões, ou mesmo para jantar fora. Sexo, nem
pensar. Raramente, apenas. Pensa e fala em se separar, mas ao mesmo tempo
não quer perder o marido, que considera homem honesto e correto. Vai
deixando, então, lentamente, no decorrer dos últimos anos, de assumir as
funções de “dona de casa” e, aos poucos, começa a sair à noite sem o marido,
freqüentando festas nas quais permanece até a madrugada, sendo quase
sempre a última a sair. Bebe muito, toma drogas e fica “imprestável” no dia
seguinte. Aparentemente, seu marido permanece incólume a estes fatos.
Apenas, ocasionalmente, reclama da desordem da casa, falta de alimentos ou
“bagunça”, espalhada pela casa.
Estávamos Cris e eu neste momento de sua análise quando, depois e
idas e vindas, o marido resolve que agora é ele que não quer mais a relação e
se muda para outro domicílio. Cris entra em depressão profunda. Não
consegue mais trabalhar, fica dias e dias “largada” na cama; falta muito às
sessões de análise e quando vem, chora copiosamente e diz que para ela “não
tem solução e se pergunta se a melhor coisa não seria morrer.”
A mãe de Cris faleceu em acidente de automóvel quando Cris tinha 2
anos, sendo que ela, Cris, estava no mesmo veículo e sobreviveu. Foi criada
pela segunda esposa do pai, verdadeira madrasta (bruxa, como veremos
adiante), segundo seu relato.
Depois de ter trabalhado a morte da mãe com Cris durante a maior parte
de sua análise, pude aos poucos lhe mostrar como passara o restante de sua
vida buscando experiências “maternas”. Em outras palavras, também com seu
marido com quem vivia há onze anos, esperava que tolerasse todos os seus
73
comportamentos, sem reservas e, qual mãe, jamais a abandonasse. Vingava-se
da vida por ter sido “abandonada” pela mãe, exigindo do mundo a
maternagem que lhe faltara. Entrega-se a excessos sem perceber que perdia
aquilo mesmo que mais queria: a maturidade para recuperar o sentido da vida,
a energia vital, esta, neste momento, depositada no seu marido. Acusava o
marido – e o mundo, na verdade – de ter-lhe furtado o amor materno. Todos
“deviam” a ela. Ao não se entregar à vida, vingava-se daqueles que, do seu
ponto de vista, estavam equipados para saboreá-la. Triste vingança!
Posso dizer que Cris entregava-se a prazeres dionisíacos, atirando-se
sem limites a qualquer estímulo, desejando sempre mais e mais. Qual bacante
ensandecida dançava e se drogava até o sol raiar para cair em sono profundo,
sem que nada disto resolvesse sua angústia maior. Não conseguia entrar em
contato com Dioniso constelado na sua psique que, sem ser visto e
reconhecido, agia, qual estrangeiro, de maneira autônoma.
Após a saída do marido de casa é que pôde, aos poucos, compreender a
aliança possível com suas energias psíquicas, resultado da constelação do
arquétipo. O herói é imprescindível para nos acompanhar em alguns
momentos de vida. Este era um deles. Faltava a elaboração.
Diante da separação, Cris pensou morrer. Para convocar suas energias
vitais, precisou perceber que aquilo que a empurrava para o desvario,
enquanto casada, poderia ser a mesma energia a ser utilizada, agora, para se
re-conectar à vida. Mas antes, era preciso aceitar que sua vida estava em suas
mãos. Para realizar esta tarefa hercúlea, aos 34 anos de idade, tendo vivido
uma vida inteira parasitando energias alheias,
87
é preciso muita ajuda. A de
um verdadeiro herói. Aquele que conhece as vicissitudes humanas e é capaz,
ao mesmo tempo, de acenar com o “divino” nos picos de insegurança maior. É
87
Ver correspondência com a entrevista da Medéia/Madrasta
74
preciso dar as mãos e caminhar com o herói constelado, reconhecendo cada
pedra do caminho.
Ao conseguir conectar-se à vida, Cris talvez consiga a “vingança
maior”. Viver intensamente suas paixões sem delas ser refém, assumindo seu
desejo como justo e possível. Conquistar este patamar implica construir uma
envergadura interna que a prepare e proteja para o restante de sua vida, com
tudo o que esta pode lhe trazer.
Compreender a alquimia energética e simbólica da psique é
fundamental para que Cris possa conhecer a vida a partir de outro colorido.
Elaborar seu ressentimento contra o que considera a injustiça maior, ou seja,
sua orfandade, significa tomar posse de sua existência, mas com “amor fati”,
no sentido nietzscheano.
No que tange a vingança, acredito que seja uma das paixões mais
violentas e viscerais de que possa ser acometida a psique humana. Por isso
mesmo, é promotor do despertar de grandes complexos energéticos. Estes, se
deixados intocados, começam a movimentar-se autonomicamente, podendo
gerar situações de intenso sofrimento individual e social. Entretanto, se
reconhecida, esta enorme massa energética pode ser posta a serviço da psique
que, por sua vez, pode então iniciar o árduo trabalho de re-conectar-se à
vida.
88
88
Como já ficou claro, também me interessa a vingança como efeito no seu coletivo. Acredito que o
inconsciente coletivo de toda uma cultura possa ser invadido e possuído pela vingança e seu representante,
Trickster Dioniso.
75
3. A vingança na cultura
A seguir interessa apresentar várias facetas culturais onde a expressão
da arte inclui ou se centra na vingança. Veremos como a partir dos mitos,
tanto no cinema como na literatura existem exemplos máximos de produção
que espelham a vingança em seus vários modos de apresentação. Na música,
escolhi um autor brasileiro do cancioneiro popular onde se vê as nuances do
processo vingativo em ação no contexto do quotidiano.
No cinema, o exemplo é de uma atuação vingativa circular, quase sem
perspectiva de transformação possível. É, do ponto de vista estritamente
psicológico, o “acting out”. Já na literatura e música o que vemos é aquilo que
para Freud seria a elaboração de uma pulsão através da sublimação. Para Jung,
trata-se de uma elaboração possível de um arquétipo ativado por energias que
atravessam um (ou mais) complexo (s) encontrando seu escoamento na
produção de material cultural.
Interessa, no limite, que a cultura é fértil em apresentar, artisticamente,
aquilo que perpassa a alma humana, mas que, quando ativada, é recebida, na
maioria das vezes como elemento estrangeiro, ou seja, a subjetividade não
reconhece a fúria, a vingança, como sendo algo imanente. O estranhamento
inicial diante do aparecimento de uma energia vingativa será ou não passível
de elaboração, conforme se disse anteriormente, quanto mais a psique puder
conter em sua envergadura a estranheza e o sofrimento necessários para a
elaboração dos fatos geradores do afeto em questão. Claro, a vingança não é a
única paixão estrangeira. Todas aquelas potencialmente culpógenas, negadas
socialmente, vistas como “más” caem nesta categoria.
76
3.1 Nos Mitos – Um passeio mitológico
A vingança como paixão e propulsora de comportamentos aparece no
inconsciente coletivo da civilização ocidental desde tempos imemoriais,
através dos mitos.
Mitos são histórias que nos chegam denunciando nossos primórdios, em
tempos onde deuses e humanos estavam às voltas com a constituição de seus
“reinos” e em épocas em que o limite entre estes não estava ainda claramente
definido. Mitos, portanto, são histórias que tentam explicar o mundo, os
homens. Os mitos falam das estruturas do universo, da formação da sociedade
e tentam explicar como os homens foram forjados, como apareceram as
virtudes, como os males e pecados se instalaram no mundo. Em última
análise, tentam explicar como entender a vida e a morte, enfim, o sentido de
cada coisa.
Psicologicamente, podemos entender que em priscas eras, quando da
formação da humanidade, era ainda muito difícil uma separação entre
realidade e fantasia, e, portanto, estas histórias míticas revelam variados graus
de compreensão da psique humana.
89
Funcionaram e funcionam, portanto,
como elementos estruturantes da psique. Assim, na tentativa de compreender o
mundo circundante, a psique, em sua elaboração constante, produzia imagens
que, transmitidas verbalmente, iniciaram o que hoje se conhece como o
arcabouço mitológico da humanidade, ocupando os recônditos da alma
humana.
Mitos não são propriedades exclusivas do ocidente e vamos encontrar
lendas e contos que, de alguma forma, encontram correspondências tanto no
oriente quanto no ocidente. Mesmo entre povos primitivos “descobertos” nas
Américas por volta do século XVI, encontramos equivalentes míticos. Estas
89
Ainda hoje é difícil para a psique operar clara e definitivamente esta distinção, apesar de a ciência tentar se
encarregar de construir esta barreira.
77
histórias, geralmente transmitidas através da tradição oral, “encarnam sob
forma simbólica, as forças da natureza e os aspectos gerais da condição
humana.”
90
Mitos, portanto, são histórias de conteúdo às vezes fantástico e
representam uma tentativa de explicação dos fenômenos circundantes que,
segundo C.G.Jung, são “habitantes” primeiros da nossa psique.
Segundo este autor, a psique contém as instâncias consciente e
inconsciente; esta última comportando também o chamado inconsciente
coletivo. O inconsciente se divide (apenas didaticamente) em inconsciente
individual e coletivo. O coletivo seria inato e, portanto, como possibilidade,
existente a partir da concepção, e conteria o todo do potencial já vivido pela
humanidade. Já o individual é o que vai se constituindo, calcado no anterior, a
partir das experiências a que o ser humano se vê exposto a partir do seu
nascimento. Portanto, Jung apesar de, de certa forma, dividir o conceito de
inconsciente, reafirma sua unidade, dizendo que não se pode dizer que o
inconsciente coletivo, por ser camada mais profunda, se situe abaixo do
consciente ou inconsciente individual. Trata-se de uma instância que, além de
supra-pessoal, onipresente, permeia a psique por todos os lados, sem claras
delimitações entre seus componentes. “A psique é um todo consciente-
inconsciente”
91
, diz Jung.
Assim, habitados por conteúdos conscientes e inconscientes, a psique
evolui durante milênios, trazendo-nos, a humanidade, aos dias de hoje.
Mitos, histórias, lendas nos acompanham desde o nascimento. Todos
crescemos sob a égide do Chapeuzinho Vermelho, Cinderela, Branca de Neve,
Peter Pan, Dumbo, Asterix, Capitão Marvel e, mais recentemente revividos,
90
Houaiss, A.” Dicionário da língua portuguesa.” pg. 1936.
91
Jacobi, J. “Complex/Archetype/Symbol in the psychology of C.G. Jung. Princeton University Press, 1971.
p.62. Para maior aprofundamento destes conceitos, ver Cap. 3.
78
entre outros, Batman e Robin e O Homem Aranha. Quando contadas pelos
pais, ao pé da cama, debaixo do quentinho dos cobertores, crianças de todo o
mundo estremecem de emoção. Parece que, de fato, histórias do imaginário
coletivo ativam conteúdos infantis preciosos, instando suas psiques ao
desenvolvimento, o que, no limite, levará a singulares subjetivações.
Alguns mitos nos remetem a várias etapas da vida, e, me parece,
funcionam como verdadeiros “agentes transformadores” da psique. É que
mitos funcionam potencialmente como agentes liberadores, ajudando-nos a
nos conectar às profundezas da alma, fazendo-nos de certa forma
“companhia”, remetendo-nos à universalidade, ao infinito. Nos mitos, nos
reconhecemos e aprendemos que não somos únicos em nosso sofrimento ou
elação. Prazer e sofrimento são antigos como a humanidade, e por mais únicos
que de fato sejam estas manifestações em nossas subjetividades, já que a
alquimia individual é irreproduzível, estamos todos no mesmo barco: sujeitos
às leis universais de não mais do que meia dúzia de paixões. É sua
combinação única, sua alquimia pessoal que nos transforma em singularidades
– pelo menos até o momento, antes do advento de clones...
Nesta tese optei por enfocar uma paixão humana que, na minha opinião,
é ingrediente essencial da contemporaneidade: a vingança.
Tomando o caminho mitológico, pude constatar, com certa surpresa,
que a vingança é mais comum do que supunha. Como paradigma, vou me
utilizar do mito de Medéia, traduzido na peça “Medéia” de Eurípides, para o
qual reservo capítulo a parte.
92
Fazendo uma pequena varredura por outros
mitos, encontrei meu ingrediente (a vingança) em praticamente todos os mitos
visitados. Assim, parece-me justo relatar alguns deles, para que possamos
entender a importância desta paixão na civilização ocidental, como
92
Sobre Medéia, ver Cap. 4.
79
participante sombrio
93
da psique, que, quando atuado, pode levar a
conseqüências insuspeitadas e desastrosas. Mas, por ser quase onipresente nos
mitos, parece ser elemento essencial à formação da psique, devendo ter,
portanto, importância crucial na construção de uma psique saudável.
94
A proposta é apresentar, a seguir, alguns mitos que se referem aos
vários estágios da vida, desde o nascimento até a morte, mostrando como o
elemento vingança está presente em todos. Por uma questão de praticidade,
menciono apenas um resumo, ou um trecho dos mitos, já que são apenas
ilustrativos da importância milenar da vingança na composição das camadas
mais arcaicas da psique.
Mitos sobre o nascimento
Hera e Hefesto
Zeus e Hera, deuses supremos do Olimpo, tiveram seu primeiro filho,
resultado de uma paixão pré-nupcial. Hefesto nasceu com uma malformação
terrível. Tinha os pés tortos e quadris deslocados. Todos se riam à sua
passagem. Hera, envergonhada por ser tão perfeita e ter produzido um ser tão
imperfeito, decide livrar-se do filho, atirando-o do alto do Olimpo ao mar.
Hefesto, entretanto, é recebido pela nérida Tétis, a rainha dos oceanos. Por
nove anos lá reside, escondido sob as águas. Seu talento, porém, era
equivalente à sua feiúra. Aos poucos, e à medida que se fortalece, arquiteta
uma vingança contra sua mãe. Manda-lhe um requintado trono de ouro. Hera,
encantada com o presente, senta-se nele. Foi imediatamente agarrada por mãos
invisíveis. Em vão tentaram retirá-la do trono. Apenas Hefesto poderia soltá-
la. Este, porém, recusa-se, apesar dos esforços de Ares, seu irmão. Dioniso,
93
Sombra, conceito junguiano. Para uma definição dos conceitos junguianos, ver Cap. 3.
94
Os relatos dos mitos baseiam-se em “Uma Viagem através dos Mitos” de Liz Greene e Juliet Sharman-
Burke, Rio de Janeiro, Zahar, 2001. Não desconheço autores mais renomados em mitologia, entretanto a
escolha deste referencial baseia-se unicamente na vasta coletânea de mitos relatados na obra. Foram
consultados ainda Junito Brandão (3 vols.) e Kerennyi – Deuses Gregos.
80
meio-irmão de Hefesto, embriaga-o, então, jogando-o no lombo de uma mula
e leva-o ao Olimpo. Mas mesmo assim, Hefesto recusava-se a liberar sua mãe,
a menos que fossem concedidas algumas exigências. Uma delas foi pedir
como esposa Afrodite, a mais bela das deusas. Desde então há paz entre Hera
e seu filho, que a libertou, enfim, da cadeira amaldiçoada. Mais tarde, Hefesto
tenta defender sua mãe de Zeus, que a espancou. É preso e atirado ao mar, mas
novamente reconduzido ao Olimpo, onde faz as pazes também com seu pai e
passa a desempenhar o papel de pacificador entre os imortais.
Teseu e Hipólito
Teseu, filho do deus Poseidon,
95
torna-se rei da Ática depois de derrotar
o temível Minotauro. Herdeiro legítimo de Athenas, reina após Egeu deixar o
trono. Era um grande governante, haja vista que instituiu o regime
democrático em Atenas, determinando a criação de uma grande assembléia
composta de representantes eleitos pelo povo. Instituiu o uso do dinheiro para
trocas comerciais e dividiu a população em três níveis: sacerdotes, generais e
povo. Promoveu grande desenvolvimento de sua terra, mas não permaneceu
tempo suficiente no governo para que suas inovações se consolidassem. O
espírito heróico sempre o chamava e novas aventuras o levavam para longe de
Atenas. Seu relacionamento com as mulheres foi sempre desastroso. Teseu
pode ser considerado um abandonador de mulheres. Assim, Ariadne foi
abandonada tão logo deixou Creta, após ajudá-lo com o Minotauro, e Hipólita,
rainha das amazonas, após dar-lhe um filho, Hipólito, teve fim trágico,
morrendo ao ajudá-lo a defender Atenas. Finalmente, Teseu, já em idade
avançada (50 anos), casa-se com Fedra. Afrodite, injuriada com tal atitude,
instila uma paixão desenfreada em Fedra (sempre sozinha pelas ausências de
Teseu) por Hipólito. Entra em cena Hipólito, consagrado a Ártemis, que
recusa os amores das mulheres pretendendo manter-se casto. O jovem,
95
Junito Brandão usa a grafia Posidon para o personagem.
81
portanto, repudia os amores da rainha que, também injuriada, enforca-se
deixando carta acusando Hipólito de assédio sexual. Quando Teseu regressa e
toma ciência da carta, amaldiçoa o filho e pede que Poseidon se vingue,
decretando, desta maneira, a morte de seu único filho.
96
Após a morte do filho,
a sorte abandona Teseu. Ele se entrega à pirataria e é jogado ao mar após uma
traição de seu anfitrião, na ilha de Ciro.
Osíris, Isis e Horus
Trata-se de uma lenda do antigo Egito. Osíris foi o primogênito do Pai
Terra e da Mãe Céu. Casou-se com a irmã Isis, a deusa da lua. Governavam
com justiça e sabedoria, transmitindo com gentileza ensinamentos ao seu
povo. Mas Set, irmão caçula de Osíris, cheio de inveja, bruto e selvagem,
convida o irmão para um banquete e assassina-o, jogando seu corpo dentro de
um caixão ao rio Nilo. Segue-se uma série de peripécias, que finalmente
levam Isis a encontrar todos os pedaços de seu marido, exceto o falo, que fora
engolido por um caranguejo. Isis, então, fabrica um novo falo de barro
97
e,
enquanto Osíris espera o renascimento, Isis deita-se com ele e concebem
Horus. Tempos depois, cabe a Horus vingar o pai, através de intermináveis
lutas, recuperar o trono, e reinar pacificamente ao lado de seu pai e mãe. Passa
a fazer freqüentes visitas ao reino das trevas, conduzindo os mortos à presença
de Osíris.
98
Mito que prenuncia o tornar-se adulto.
Siegfried
Este é um mito conhecido desde a Alemanha até a Islândia, sendo
chamado de Sigurd nas lendas escandinavas. Filho de uma ligação proibida,
96
Este mito é bastante relevante para o presente trabalho já que se refere à vingança de uma madrasta contra o
enteado como forma de atingir o pai deste, que é marido dela.
97
Outros autores se referem ao falo tendo sido reconstruído a partir de um tronco de cedro ou carvalho.
98
Neste mito vemos a vingança sendo transferida de uma geração à outra. Aqui se fala da motivação de ter
filhos, que nem sempre é isenta de intenções.
82
de Siegmund e sua irmã Sieglinde, Siegfried
99
é, entretanto, herdeiro de uma
espada deixada por seu pai. A espada estava partida, mas se fosse consertada,
jamais seria vencida. Órfão, nosso herói foi criado pelo anão nibelungo Mime,
que cuidou dele para que crescesse forte e saudável e matasse o terrível dragão
Fafnir para poder capturar o tesouro – entre muito ouro, um anel com grandes
poderes – que há muito havia sido roubado pelo deus Wotan. Em seguida,
Mime planeja matá-lo. Mas os deuses, através de pássaros, avisam Siegfried
das intenções de Mime. Quando este julga que seu protegido está pronto,
instrui-o a consertar a espada, e assim que o conserto estiver pronto, partir em
busca do tesouro, matando o temível dragão. Mas Siegfried já estava farto de
obedecer às ordens de Mime e, após consertar a espada, vinga-se das intenções
malignas de seu suposto protetor, matando-o e seguindo viagem em busca do
tesouro prometido. Quando o encontra, mata o temível Fafnir e do tesouro
leva, apenas, um capacete que tem o dom de torná-lo invisível e o precioso
anel dos nibelungos, cujo verdadeiro poder ainda não compreendia.
Mitos sobre paixão, enamoramento e casamento.
Cibele e Átis
Este mito nos chega da região central da Turquia. Cibele, grande deusa
anatólia da terra, criadora dos reinos da natureza, teve um filho, Átis. Este era
tão belo e formoso que sua mãe afastou-o do mundo para que permanecesse
apenas com ela em estreito idílio, prendendo-o a um juramento de fidelidade
absoluta. Viviam os dois em mundo paradisíaco, quando Átis, que se
comprazia em andar pelos montes, vislumbra uma bela ninfa e se apaixona,
deitando-se com ela. Cibele, quando descobre a infidelidade de seu filho-
amante, tem um terrível acesso de ciúmes, fazendo Átis entrar em transe
delirante. Durante este transe, Átis se castra, garantindo com isto a volta à
99
Interessante ver a origem celta do nome: “sieg”- vitória; fried (de frijo-s = reino/governo/governar-se,
controle) que se desenvolve para “rhydd” = livre; cf. Freya a deusa do amor
83
fidelidade anterior. Cibele estava vingada. Entretanto Átis, por ser Deus, não
morre definitivamente e ressurge a cada primavera sob um pinheiro onde se
encontra com Cibele. A cada inverno Cibele chora a ausência de seu amado,
até que chegue a primavera.
100
Sansão e Dalila
O israelita Manoá e sua mulher, que era estéril, fizeram uma prece ao
Senhor para que lhes mandasse um filho. Assim ocorreu e nasceu Sansão.
Sansão cresceu alto e forte, dono de uma ira poderosa. Um dia decide casar-se
com uma filistéia. Como estes dominavam os israelitas naquela época, seus
pais lhe perguntaram porque ele não se casava com alguém de seu próprio
povo. Enraivecido, não dá nenhuma resposta, mas casa-se assim mesmo com
ela. Mais tarde, ao cansar-se dela, devolve-a a seus pais. Um dia decide visitá-
la e o pai da moça recusa-se a que ele a visse. Enraivecido, Sansão incendeia
os milharais dos filisteus. Quando se dão conta do acontecido, os filisteus
queimam sua mulher e o pai dela como vingança. Em retaliação, Sansão mata
muitos deles. Estes tentam capturá-lo, mas não conseguem vencê-lo. Assim
ficou preparado o terreno para o ódio interminável entre Sansão e os filisteus.
Um dia, Sansão apaixona-se por Dalila. Os filisteus a procuram e oferecem-
lhe mil e cem moedas de prata para que descubra o segredo da força de
Sansão. Depois de muita insistência de sua amada, Sansão revela seu segredo
a Dalila, que convoca os filisteus. Enquanto Sansão dormia nos braços de
Dalila, os filisteus cortam-lhe os sete cachos e com isto conseguem prendê-lo.
Tempos depois, levam-no preso ao palácio para divertir os filisteus, mas neste
ínterim seu cabelo havia crescido. Apóia-se em uma coluna do palácio e
inclinando-se para frente, derruba o edifício matando os filisteus. Acaba
também morto, mas vingado.
100
Junito Brandão, no Dicionário Mítico Etimológico da Mitologia Grega, Vol I, pgs. 40, 41, 140, 141, 206,
207, nos faz um relato mais extenso e diferenciado do mito.
84
Mito sobre posição e poder
Um mito de dois irmãos
Trata-se de um mito que nos chega do leste da África. Havia um homem
que tinha dois filhos: Mkunare, o mais velho, e Kanyanga, o mais novo. A
família era muito pobre. Um dia, Mkunare dispôs-se a ir até Kibo, um dos
pontos mais altos do Monte Kilimanjaro, pois ouvira falar que lá havia um rei
extremamente generoso com os pobres. Assim, pensava cumprir sua missão de
vida, ou seja, salvar sua família e seu povo. Após partir com alguns
mantimentos, deparou-se, no meio do caminho, com uma velha sentada à beira
do caminho. Estava com os olhos tão machucados que nem conseguia ver.
Após cumprimentá-la, Mkunare explica que estava a caminho do alto da
montanha para ver o rei. Disse a velha “Lambe meus olhos e te direi como
chegar lá”. Mas Mkunare teve muito nojo e seguiu seu caminho. Mais adiante
chegou a Koniyungo, o reino da Gente Miúda, ou Povo Pequeno. Ao chegar,
exclama com profundo desdenho “Onde posso encontrar seus pais ou irmãos
mais velhos?” Os Koniyungo disseram “Espera aqui até que cheguem”. Mais
adiante, Mkunare vê os koniyungo prepararem sua refeição, mas não lhe
ofertam nada, dizendo que deveria esperar os pais e irmão chegarem. No dia
seguinte, faminto e sedento, Mkunare resolve descer a montanha. Novamente
passou pela velha e pergunta “O que foi que aconteceu comigo?” A velha se
recusa a comentar. Assim, ele desce a montanha e perde-se pelo caminho,
demorando um mês para chegar à tribo. O povo pequeno havia se vingado da
arrogância de seu visitante. Este teve que admitir seu fracasso e conta que no
alto do monte Kibo havia um povo com muitos rebanhos, mas mesquinho, não
dava nada aos estranhos. Já seu irmão refaz a jornada de Mkunare, mas
obedece à velha com seu pedido e assim Kanyanga chega ao topo da
montanha, onde cumprimenta respeitosamente o rei ensinando ao povo miúdo
os encantamentos e remédios que protegem as plantações e os animais contra
85
insetos e pestes. Agradecidos, cada membro da tribo dá um animal a
Kanyanga que prospera. Assim surgiu a canção dos boiadeiros que o povo
compôs sobre Mkunare: “Ó Mkunare, espera que os pais deles cheguem. Que
direito tens de desprezar a Gente Miúda?”
101
Mito a respeito de Ritos de Passagem, luto e morte
Orfeu e Eurídice
Orfeu, filho da musa Calíope e do rei traciano Ôriago
102
(embora
corressem boatos de que seria, na verdade, filho do deus Apolo) era célebre
por tocar a música mais suave do mundo. Possuía uma lira de ouro, dada por
Apolo, e quando a tocava, rios interrompiam seu curso, pedras e árvores se
soltavam do chão só para ouvi-lo. Assim, não teve dificuldades para
conquistar o amor da bela Eurídice, sendo seu casamento muito abençoado.
Infelizmente, Eurídice, fugindo do apicultor Aristeu que tentou violentá-la, é
picada por uma serpente e morre. Como a vida parecia não ter mais sentido
sem Eurídice, Orfeu desce aos portões de Hades em busca de sua amada.
Nenhum mortal podia passar destes portões. Mas a música de Orfeu é tão
envolvente que o barqueiro Caronte, responsável pelo transporte das almas na
travessia do rio Estige, esquece de verificar se Orfeu trazia na língua a moeda
necessária. A música encanta os portões de ferro que se abrem sozinhos e
Cérbero, o cão de três cabeças, guardião dos portões da morte, encolhe-se sem
sequer mostrar os dentes, amansado pela melodia. Por breve período,
enquanto passava, indo em direção ao mundo subterrâneo, ia aliviando os
tormentos infindáveis dos mortos. Com humildade, ajoelha-se diante do rei e
rainha das trevas, implorando, e tocando suas melodias, para que Eurídice
pudesse voltar para o mundo dos vivos. Perséfone, a rainha, sussurra algo ao
ouvido de Hades, o rei, e todo o mundo subterrâneo silencia para ouvir o
101
Greene.L e Sharman Burke, J, “Uma Viagem Através dos Mitos” Rio de Janeiro, Ed. Jorge Zahar, 1999.
102
Também conhecido por Eagro.
86
ditame de Hades: “Pois que seja, Orfeu! Retorna ao mundo superior e Eurídice
te acompanhará como tua sombra! Mas, não pares, não fales, e
principalmente, não olhes para trás até chegares em cima, pois se o fizeres
nunca mais voltarás a ver Eurídice”.Orfeu, muito grato, dá as costas ao trono
da morte e caminha para cima em direção ao raio de luz que mostrava o
caminho para a superfície. Mas a dúvida o atormentava. E se Eurídice não
estivesse junto a ele? Não consegue evitar. Olhe para trás e ao fazê-lo vê
Eurídice afastando-se dele com os braços estendidos. Perdia Eurídice para
sempre. Orfeu, inconsolado, é ordenado sacerdote pregando aos homens da
Trácia os males do assassinato sacrificial. Leva alegria a muita gente. Mas sua
morte foi violenta, pois Dioniso ressentiu-se de que um mortal fosse cultuado
como um deus. As adoradoras que seguiam Dioniso despedaçam Orfeu
membro a membro e as Musas sepultam seu corpo destroçado aos pés do
Monte Olimpo, onde dizem que o canto dos rouxinóis é mais melodioso do
que em qualquer outro lugar do mundo.
Ao desafiar Hades (olhando para trás), este se vinga da desobediência
cumprindo o prometido, apoderando-se, novamente, de Eurídice.
Comentários
Certamente, pelo que se pode verificar através deste pequeno
“aperitivo” mítico, seus conteúdos estão presentes – e atuantes – na psique,
como manifestações arquetípicas às quais estamos todos sujeitos em diferentes
momentos de vida. Muito poderia ser dito a respeito destes mitos, mas o
recorte que faço deve-se exclusivamente ao meu objeto de pesquisa, ou seja, a
vingança. Portanto, neste momento, escolho olhar para esta rica mitologia
apenas com esse viés, ou seja, como representante possível da vingança
conforme constelada no inconsciente coletivo do mundo ocidental e oriente
médio.
87
Todos os mitos acima referidos nos falam direta ou indiretamente de
vingança. Talvez a vingança não seja o cerne de todas, mas, certamente, é um
de seus componentes essenciais.
Vemos histórias relacionadas com a origem da constituição familiar, ou
seja, relacionamentos entre pais, filhos, irmãos. Em alguns, podemos observar,
de certa maneira, a questão da herança familiar. A vingança como moto
contínuo nestas histórias nem sempre promove a destruição (morte) do
“inimigo”, ao contrário, é possível, inclusive, que leve à conscientização dele
para com a dor do outro.
É o que ocorre no mito de Hera e Hefesto. Ilustrei a parte referente à
vingança, mas no final do mito, Hefesto perdoa sua mãe e podem se
reconciliar. Este aspecto é de vital importância para o trabalho, já que mostra
um aspecto da vingança que é o de redimir uma relação, ou, no limite, permitir
à subjetividade reconectar-se, inicialmente através da vingança, com afetos
criativos de forma a poder prosseguir, expandindo suas possibilidades vitais.
De fato, inicialmente, a ira de Hefesto pode ser compreendida como a revolta
“natural” sentida por qualquer criança diante da rejeição materna.
Freqüentemente, diante de expectativas projetadas sobre os filhos, pais e
mães, até sem se dar conta, agem como verdadeiras Heras, empurrando sua
progênie para o mundo das sombras, (de onde não se sai com facilidade) por
conta de comportamentos que julgam inadequados. A vingança de Hefesto
com o trono enfeitiçado pretende não a aniquilação de um suposto inimigo,
mas a conscientização da mãe. Em outras palavras, simbolicamente, o filho
pretende “prender” a mãe à conscientização de seus (de Hefesto) múltiplos
talentos. Que ela veja além das aparências. Que perceba em seu filho
potências que não são visíveis a olho nu. Há um pedido subliminar de
aceitação, já que a mãe é poupada no ato vingativo, indicando a expectativa da
realização do desejo de Hefesto (ser aceito pela mãe). Se no final da história
88
ocorre a reconciliação entre mãe e filho, esta somente foi possível após uma
vingança engendrada por Hefesto.
Teseu e Hipólito nos confrontam com a questão da inveja de um pai
“envelhescente” e seu filho jovem e garboso que, diante da paixão de sua
madrasta, se nega a deitar-se com ela, que, por sua vez, se vinga no suicídio,
deixando nota explicativa que incrimina Hipólito. A vingança da madrasta se
confirma na morte de seu objeto de amor. Entretanto, o que acontece depois é
só desgraça. Teseu vai perdendo o poder e sente, na falta do filho, a
impotência da sucessão e após algumas peripécias acaba morto, jogado ao mar
como seu filho. Triste fim para uma linhagem real. É o que vemos acontecer
com muitas famílias multiparentais onde excesso de críticas aliadas a
“fofocas” oriundas de dificuldades vinculares entre o quarteto pais, padrastos,
mães e madrastas pode levar a conseqüências desastrosas. Neste caso,
diferentemente do anterior, a vingança deságua em morte de toda a linhagem
de Teseu, já que morre ele e seu filho.
Já no mito de Osíris, Isis e Horus, a vingança é transgeracional e ocorre
pela mão, não de Osíris, mas de seu filho Horus. De novo, muitos paralelos
podem ser convocados por este mito. Principalmente a perseverança feminina
mostra-se em sua plenitude através de Isis, que não esmorece diante do
assassinato de seu marido e luta pela sua ressurreição. Quando consegue seu
feito, concebe um filho que terá a incumbência de vingar o mal perpetrado
contra seu pai, Osíris. Novamente sua força feminina é convocada para cuidar
de um filho frágil que precisa sobreviver e vingar a família despossuída.
Finalmente a vingança se completa e Horus é reconduzido ao trono do Egito,
reinando com generosidade e sabedoria. Nesta história fica patente a
importância da continuidade geracional (de corpo e espírito). Sua importância
se concretiza ao possibilitar a vazão a legados de gerações anteriores dos
quais, sem dúvida, um é a vingança.
89
Siegfried representa o crescimento, a passagem para a fase adulta da
vida. Neste mito a vingança aparece como preservação da vida, já que
Siegfried mata Nime em legítima defesa, pois se não o fizesse seria morto por
ele. Mas também o jovem mostra-se cansado com todas as exigências do anão
que, de certa forma, se sentia seu dono. Freqüentemente os jovens, para atingir
a vida adulta, devem simbolicamente “matar” alguns aspectos que até então
lhes eram necessários. Devem começar a discriminar entre relacionamentos
que lhes servem de âncora e, portanto, os restringem e outros, que se propõem
à viagem com eles. É, também, preciso que se separem do ninho
materno/paterno e se proponham a enfrentar a vida. Para tal, contam, como no
mito, com um pássaro que lhes indica o caminho. Este pássaro, representante
das forças intuitivas, conduz Siegfried a seu destino, à libertação, e à vida
adulta. E note-se que para tal, não necessita de todo o ouro do tesouro, como
nos revela o final do mito. Apenas um capacete e o anel dos Nibelungos o
satisfazem. É, talvez, o início da construção de uma sabedoria.
Nos próximos dois mitos, a vingança aparece com um caráter mais
narcisista, ou seja, diretamente relacionado com questões de auto-estima.
Em Cibele e Átis, Cibele, que na realidade é mãe de Átis, não consegue
admitir sua existência num plano independente. Pelo contrário, ata-o a si
através de um juramento de fidelidade, retirando-o do convívio social. Mas
Átis, que se comprazia em correr pelos montes, um belo dia conhece e se
apaixona por uma ninfa com a qual se deita. Na sua ingenuidade, não
conseguindo esconder nada de Cibele, revela-lhe a traição e esta, enfurecida
faz Átis entrar em transe e obriga-o a castrar-se para garantir sua fidelidade.
Conhecemos muitas formas de amor materno e filial. Simbolicamente, o que
vemos retratado no mito é o que se apresenta com freqüência em nossos
consultórios: homens emasculados por excesso de amor materno. São jovens,
adultos e até cidadãos sênior cuja insegurança e angústia diante da vida
90
remete a anos de relação simbiótica com mãe ou equivalente afetivo. Mães
que em seu narcisismo mantém sua cria efetivamente presa ao afeto original,
inclusive vingando-se em caso de “abandono”, dando as costas a seu
protegido diante de qualquer investimento que ameace o vínculo original. Este
abandono é sentido como verdadeira castração e pode levar um homem a
buscar equivalente materno em outras relações vida afora.
Sansão e Dalila nos remetem a uma série interminável de vinganças
onde, Sansão e os filisteus se revesam na execução de planos diabólicos de
vinganças recíprocas. No entanto, o mito mostra claramente a reação de um
jovem quando confrontado com a negativa paterna diante de um
relacionamento que, narcisicamente, fere os valores paternos. O jovem
enfrenta seus pais casando-se e, provavelmente, quando devolve sua esposa a
seus pais, se alinha novamente aos hebreus achando que, como filistéia que
era, sua mulher podia ser devolvida sem muita cerimônia a seu grupo de
origem. Novamente temos um exemplo de vingança atuada que não leva à
superação do conflito, mas o agrava numa espécie de história sem fim.
Quando se fala em vinganças intermináveis, é preciso lembrar-se das Fúrias
ou Eríneas, protótipo de seres vingativos.
103
Já em plena maturidade, o mito sobre posição e poder nos remete a
situações de vingança diante da dificuldade de coadunar sucesso com
humildade, poder com simplicidade. Assim ocorre com Mkunare, que, ao
contrário do irmão, se recusa a um ato que lhe parece indigno (lamber o olho
da velha). Com isso não consegue seu intento. Para sua grande humilhação,
fica forçado a admitir seu fracasso. Já seu irmão, que diante da velha não se
intimida e lhe oferece o que ela pede, por mais esdrúxulo que lhe pareça, sai
vencedor por tratar em igualdade de condições com seus semelhantes (mas
103
As Fúrias, ou Erínias são as deusas da vingança por excelência e representam um direito divino à vingança
quando se trata de mortes em família. Em outras palavras, passa a ser atributo do “Estado de Direito”
matriarcal o direito à vingança contra a morte de um parente próximo. As Eríneas são, portanto, um elemento
fundamental da dinâmica matriarcal.
91
diferentes...) Estes seres ditos “diferentes” vingam-se como podem, ou seja,
não pela força, mas pela astúcia. Simplesmente não dão as informações
pedidas ou não respondem às perguntas feitas. Paralelos também podem ser
traçados entre este mito e a vida atual. O que está ocorrendo atualmente na
nossa política tupiniquim é uma série interminável de revelações, exposições,
maquiavelices e vinganças sabe-se lá de quem contra quem, mas seguramente
revelam enormes feridas narcísicas dos “poderosos” em questão. Triste
exposição, esta!
No confronto com a morte, ou nos ritos de passagem, a vingança
novamente se apresenta como ingrediente possível. Em Orfeu e Eurídice, a
vingança vem como ensinamento, ou seja, aos mortais é vetado o
conhecimento último. Orfeu, com sua música encantada consegue descer ao
mundo dos mortos enganando o barqueiro Caronte, bem como os cães
guardiões, mas mesmo conseguindo seu intento, ou seja, reaver sua amada,
não escapa à sua humanidade e faz o que é proibido: olhar para trás. Quem
não aceita esta realidade, ou seja, de que há limites, se perde e perde o que
pensou conquistar. Aos humanos é vetada a totalidade. Não se pode ter tudo.
Nem todo o conhecimento. Às vezes nos vemos “obrigados” a abrir mão de
algum conhecimento. É melhor não olhar para trás. O conhecimento pode ser
fatal. Assim Hades mostra, em vingança, realizando o prometido, que quem
não aceita uma perda, acaba perdendo muito mais. Em última instância, ao ser
humano é vetada a imortalidade. Para tanto é preciso o manejo da perda que
nos prepara para a perda última, a morte. Aceitá-la é preciso, já que inevitável.
Trata-se de um caminho que se inicia já no nascimento e nos acompanha pela
vida. Quem puder aceitar o exercício, poderá minorar seu próprio sofrimento
quando chegar a hora. Quem sabe quando será!
A intenção, aqui, foi mostrar que a vingança ao estar presente nos mitos,
é material precioso no conteúdo do inconsciente coletivo, permeando todo o
92
ciclo vital, ocupando o espaço psíquico desde a mais tenra infância até os
momentos finais de vida, ou seja, a morte. E mais: esta presença não se dá
apenas com fins destrutivos, mas, e principalmente, apontando para uma
solução criativa e em estreita ligação com a vida.
93
3.2 No Cinema - A Vingança em Movimento
104
- Abril Despedaçado
Walter Salles entrou em contato com o livro “Abril Despedaçado” do
escritor albanês Ismail Kadaré três anos antes de esse se transformar no filme
transportado para o sertão nordestino.
Kadaré narra um ciclo de vingança que é perpetuado por gerações no
norte da Albânia. A paisagem, os rituais, a maneira como é encarada a
vingança descrita no livro chamaram a atenção de Salles que, depois de dirigir
“Central do Brasil”, em que havia realizado extensa pesquisa pelo nordeste
brasileiro, viu a correspondência entre o descrito por Kadaré e acontecimentos
que fazem parte da história daquela região brasileira.
Kadaré deixou a Albânia em 1990 para radicar-se em Paris, onde se
encontrou com Walter Salles e iniciaram as conversações que levaram à
execução do filme. Com a concordância do autor, Salles transpôs a história
para o nordeste brasileiro sem com isso perder as características da história
original.
Na Albânia, as famílias Berisha e Kryeqyq viviam em guerra
permanente desde que, setenta anos antes, um membro da família Kryeqyq
assassinara um hóspede dos Berisha. Estes, diante desta grave ofensa
105
,
enviaram um filho para matar o assassino do hóspede, iniciando um ciclo
interminável de vendetas.
Conta Kadaré que na Albânia existe um livro, o Kanun, um complexo
código cujo conteúdo é mais poderoso do que as leis. Sua máxima é uma lei
ancestral que reza: “Sangue com sangue se paga”.
104
Dados retirados de “Abril Despedaçado”, Companhia das Letras, S.Paulo, 2002.
105
Na Albânia, como em outros países, um hóspede é considerado sagrado, já que Deus pode vir a qualquer
momento bater à porta, disfarçado, para testar a generosidade da casa. É, portanto, melhor perder um filho do
que ver, sem revide, um hóspede ofendido, quanto mais, morto.
94
Pois Salles, para a surpresa também de Kadaré, nas suas pesquisas,
descobre que há muitas histórias de vendetas semelhantes à acima descrita no
nordeste. E relata que “em episódios como a ocupação do território dos
Inhamuns, no sertão cearense, vários crimes de sangue tiveram características
iguais às descritas por Kadaré.”
106
No livro, a história tem início com Gjorg Berisha, que espera por sua
vítima, Zef Kryeqyq, que havia assassinado seu irmão. Tem plena consciência
de que sua sorte está selada, mas segue seu destino, pois deve obedecer às leis
do Kunan.
Segundo Kadaré, Abril Despedaçado tem a estrutura fundamental da
tragédia grega. Acredita ele que Ésquilo, na sua trilogia A Oréstia, foi o
“primeiro a usar o tema da cobrança de sangue numa obra dramática”.
107
A história de Oréstia se passa durante a sangrenta guerra travada entre
gregos e troianos que, segundo o autor (Kadaré), poderia ser considerada a
primeira guerra mundial da história. Agamenon, o rei, imola sua própria filha
em sacrifício aos deuses com a finalidade de colocá-los a seu lado. A rainha
Clitemnestra, por sua vez, assassina Agamenon e o seu véu manchado de
sangue é achado posteriormente por seu filho Orestes.
As idéias de Kadaré a respeito da tragédia grega contradizem as de
Nietzsche, pois diz que as origens da tragédia não estariam em Dioniso, como
aventa este, mas nos cantos fúnebres das rezadeiras profissionais nos enterros
da Grécia antiga. E diz mais:
“A fossa do morto e o espaço que a cerca são ao mesmo tempo a matéria-
prima e a primeira cena do teatro trágico. O personagem principal, o
morto, está entre dois reinos rivais – a vida e a morte. Como não é mais
capaz de falar de si, outros o farão por ele. Esta incumbência caberá às
primeiras atrizes, as rezadeiras. Os seus lamentos codificados pertencem
ao território da realidade interpretada, como o coro antigo o faria mais
106
Op.Cit. pg.78/79
107
Op, cit pg. 80/81
95
tarde no teatro grego. Ainda em grego, a palavra ator se traduz por
hypokrites. É uma definição que cabe como uma luva às profissionais que
choram um morto que não lhes pertence.
Estas reflexões dizem respeito a um ritual fúnebre ordinário. Mas quando
o morto é vítima de uma vendeta e o assassino é obrigado a participar do
enterro e do almoço fúnebre de sua vítima, como acontece em alguns
países do mundo, estamos no campo da tragédia expressa em sua
totalidade. Num teatro integral.”
108
As adaptações de Salles incluíram a transformação de Bessian, um
escritor que viaja a Albânia pesquisando o Kunan em Salustiano, ator
mambembe que apresenta seu espetáculo circense pelo nordeste. Diana, noiva
do escritor, transforma-se em Clara, que mantém um relacionamento ambíguo
com o mambembe. É filha de criação e também amante. (Será uma alusão a
muitas histórias que conhecemos de pai e filha da literatura brasileira?) No
livro, Bessian e Diana têm suas histórias paralelas às das duas famílias rivais,
mas elas nunca se cruzam. Já Salles opera uma transformação importante para
o desenrolar de seu filme, ao fazer Tonho se apaixonar por Clara. É a partir
deste episódio que Pacu, mais adiante no filme, se imola, oferecendo sua vida
para que Tonho possa fruir sua paixão.
Assim, sem perder completamente as características do livro, Walter
Salles cria um mundo que nos é ao mesmo tempo estranho e familiar. Sua
metáfora, que se inicia com a bolandeira que, por um lado, parece dizer no
início do filme “mais um, mais um”, a partir de determinado momento, passa a
sussurrar, “menos um menos um”. É como se a bolandeira em suas
engrenagens esmagasse a cana e os Breves, sugando sua energia vital.
No filme, a ação se inicia com a visão de uma camisa balançando ao
vento no varal, visivelmente manchada de sangue. Entendemos tratar-se de
uma forma peculiar de comunicação que a família utiliza para com o além. É
através da camisa que se sabe que a alma do morto não descansará enquanto
108
Op. Cit. pg. 80-81.
96
não for vingada. Mas a vingança só poderá ocorrer vinte e oito dias após sua
morte, quando o sangue mudar de cor.
Salles, nesta pequena obra prima da filmografia brasileira, nos conta
magistralmente a história de duas famílias presas a códigos rígidos que, apesar
de não serem escritos, como o Kunan, se aplicam à vida com igual severidade.
A trama se passa por volta de 1910 e a metáfora que Salles utiliza é a
bolandeira. Trata-se de uma engenhoca giratória, atrelada a dois bois que,
andando em círculos fazem girar as engrenagens da moenda de cana. De um
lado, Tonho, o protagonista, enfia a cana de açúcar entre as engrenagens. Seu
irmão caçula é encarregado de trazer os feixes de cana e colocá-los perto de
Tonho. De outro, sua mãe retira o bagaço. O caldo é despejado num recipiente
em baixo da moenda. Em seguida, é retirado e levado para cozimento, de onde
se extrai a rapadura, meio de sobrevivência da família Breves.
Percebe-se que a família já foi mais “poderosa”, mas que agora
sobrevive a duras penas. Já seus rivais, os Ferreira, que vivem da pecuária, são
visivelmente mais abastados.
A bolandeira, que gira sem descanso, parece contar a cada passo dos
bois os segundos e minutos que separam as horas, que se sucedem, num
incessante “mais um, mais um, mais um.”
É nestes tons de terra, pó e descompasso ritmado que a história vai se
desenrolando. Não há espaço para a fantasia, a esperança ou o prazer. Apenas
a seqüência interminável do esperado, do previsível, para a família Breves.
Tonho, no filme, ganha um irmão menor, já que Salles necessitava de
um olhar inocente. É o Menino, como é conhecido, pois nem nome tem, mas é
aquele que se revela capaz de, através do contato com o mundo exterior,
entender e transformar sua realidade, ainda que isto lhe tenha custado a
própria vida. No desenrolar da história, chega à cidade um grupo circense.
97
Clara, uma das mambembes, dá um livro de contos ao Menino que se chama,
a partir deste momento, Pacu. Pacu não larga mais o livro e através dele sua
fantasia viaja e se desenvolve. Aprende a sonhar. Sonha com todos os contos
que lê, mas está muito atento, ao mesmo tempo, a tudo o que ocorre à sua
volta. Percebe o enamoramento de Tonho e Clara, e sabe que o momento da
vingança se aproxima. Cabe a Tonho matar o assassino de seu irmão. Com
isto, Pacu sabe, que ele (Tonho) seria o próximo a ser morto por alguém da
família Ferreira. Assim foi sempre: assim será. Pacu, então, diante do que vê,
ou seja, da insensatez reinante, desejoso de ajudar seu irmão (Tonho) e sua
protetora (Clara) interpõe-se a Ferreira e Tonho e recebe por seu irmão a bala
desferida. Não hesita em se oferecer em sacrifício, lavando com seu sangue o
pecado dos outros, propondo-se a interromper o ciclo das vinganças
intermináveis. Em outras palavras, Pacu, ou seja, a inocência, representa uma
linha de fuga possível.
O pai continua tocando os bois, anda em círculos e, como disse Pacu em
uma de suas poucas falas no filme, “a gente é que nem os boi: roda, roda e não
sai do lugar”.
109
Este pai representa o orgulho em estado bruto.
Para nossa surpresa, a mãe, que poderia ser retratada como verdadeira
“mater dolorosa” (já que perde não um, mas dois filhos), apresenta-se
totalmente conivente com a perda do segundo filho. Para ela é mais
importante salvar a alma daquele que já morreu do que preservar o outro filho
vivo. Sua dura determinação mostra a rigidez da alma sem perspectivas,
dominada pelas certezas culturais, aceitando e passando de geração em
geração a inexorabilidade daquela vida. Damos-nos conta do papel das
mulheres nesta região, ao perceber o quanto aceitam e, por conseguinte,
incentivam o ciclo da violência.
110
109
Op.Cit. pg. 88/89
110
São as Erínias em movimento!
98
Tonho passa a usar uma tarja preta em sinal de seu envolvimento em
uma guerra familiar.
Seu irmão, Pacu, acaba conhecendo Clara e fica fascinado com a
possibilidade de ir à cidade ver o circo. Convence Tonho a levá-lo. Os dois, à
revelia do pai, vão assistir o espetáculo.
Momento mágico este, em que Tonho se deixa enlevar pela arte de
Clara e Salustiano! As cores explodem na tela impelidas pelo fogo que jorra
da boca de Clara. Vemos, imediatamente, dissolver-se no fogo sagrado o caldo
cultural secular que prende a alma destes dois Breves. Seus olhares revelam o
encanto que o mundo pode oferecer de desconhecido e imprevisto. Um
momento e abre-se a fronteira do infinito.
É neste instante que começa a se organizar uma possível linha de fuga
das correntes culturais. Tonho se apaixona perdidamente por Clara, que
retribui entregando-se a ele com a simplicidade da juventude. Pacu observa de
longe.
Aliás, todo o filme se baseia em movimentos. Os personagens se
deslocam nas cenas, na maior parte sem dizer nada, e, no entanto, tudo fica
explicitado. A densidade da obediência materna, a tragicidade do caminho
paterno, o conformismo de Tonho e finalmente, a irreverência de Pacu que
ousa desafiar o destino.
Felizmente, Walter Salles não freqüentou as escolas hollywoodianas,
portanto o final do filme é um belo ponto de interrogação, onde Tonho foge de
seu perseguidor em direção ao mar. Pacu sempre quis ver o mar e, agora,
Tonho reverencia o irmão, peregrinando em direção à imensidão turbulenta.
Na última cena, vemos o rapaz diante do mar com a expressão ao mesmo
tempo deslumbrada e assustada com o que se lhe descortina.
99
Podemos vislumbrar que agora, diante do mar, Tonho começa a
entender a representação do desconhecido à sua frente. Está perplexo. Cabe ao
espectador fantasiar (ou não) seu caminho a partir daquele ponto, na praia.
É interessante notar que Salles, ao contrário de Kadaré, propõe uma
solução à dinâmica ancestral. É através da inocência que se encontra a saída
para o ciclo interminável de vendetas. A vingança é vista como a mola
propulsora daquela cultura, verdadeiro “establishment” do sertão nordestino.
O filme é precioso, pois nos dá uma visão magistral da vingança em
movimento. Em outras palavras, vemos a vingança operando no interior da
cultura, expressa por pequenos grupos, indivíduos, como o único sinal de
“vida” entre aqueles personagens.
As cores no filme, as cenas, e todos os personagens nos remetem a um
sentimento de modorra, que se interrompe unicamente em duas circunstâncias:
a vingança e amor. É como se a vida transcorresse borrada de afetos até que as
paixões sejam desencadeadas e comece a fluir a vida. Morte em vida antes da
vida.
100
3.3 Na literatura - A Sutil Vingança – Salman Rushdie
Nenhum outro autor contemporâneo descreve com maior habilidade a
intrincada vivência psicológica de personagens cujas vidas oscilam entre o
familiar e o desconhecido, quer passando de uma cultura a outra, quer dentro
da mesma casa construindo gerações.
Autor hindo-inglês, sua obra, ganhadora de diversos prêmios de
literatura, se estende desde a Índia até os Estados Unidos, conforme sua última
produção, traduzida para o português, “A Fúria”.
Rushdie é extremamente hábil no exercício da escrita em inglês. Sua
obra é pontilhada de frases de duplo sentido, onde joga com as palavras de
maneira magistral, absolutamente brilhante e com insuspeitado humor. Aliás,
me parece incrível que possa ser traduzido a outros idiomas. É um Guimarães
Rosa de além-mar.
Em um de seus primeiros livros, intitulado “Shame” (Vergonha), inicia
um relato que remete a um ambiente semelhante às mil e uma noites: leve,
delicioso, falando de mitos e lendas do longínquo oriente. Subitamente, mas
sem que o leitor se dê conta de como isto se deu, entende-se que um drama
real e profundo se desenrola e não se está mais no campo da ficção. Como o
autor passa da fantasia, leveza e sutileza, para o real, profundo e angustiante, é
um mistério. Só sei que isto é feito magistralmente e que, ao ler este livro,
meu primeiro contato com o autor há quase quinze anos, fui tomada de
emoção inédita diante da obra que me havia sido recomendada por um colega
alemão.
101
Era a época em que foi declarada a “Fatwa”
111
contra o autor, pelo
então ayatolá Khomeini, em resposta ao recém escrito “Versos Satânicos”,
considerado pelos fundamentalistas obra que ofendia seus princípios.
Na minha ingenuidade tupiniquim, escrevi ao meu amigo perguntando
quem era este autor que se pavoneava na mídia através de obra polêmica
buscando publicidade, inda que negativa! Meu amigo, mui justamente, me
qualificou de ignorante dizendo tratar-se de um dos autores mais eruditos de
nossos tempos. Assim, “enfiei a viola no saco” e fui cabisbaixa comprar seus
livros. Desnecessário dizer que me transformei em fã incondicional deste
escritor.
Este intróito tem por objetivo familiarizar o leitor com Salman Rushdie
que, entre nós, não é muito conhecido, senão pelo fato de, em determinado
momento, ter sido alvo do fundamentalismo muçulmano.
Toda a sua obra é caracterizada por um profundo conhecimento da alma
humana, que descreve magnificamente. Sabe, perfeitamente, como apresentar
as mazelas terrenas de maneira a tocar veias sensíveis no leitor. Em outras
palavras, é muito fácil identificar nas diversas obras do autor personagens
conhecidos da história particular de cada um. E, certamente, lá estão, a vivo e
a cores, todas as paixões que permeiam a vida íntima de todos nós.
E, claro, uma das paixões descritas em várias de suas obras é a
vingança.
Há vinganças, como, por exemplo, aquela, perpetrada pela governanta
que, durante anos a fio, sem ter outra expressão possível para seus
sentimentos, cozinha, através das lágrimas, suas mágoas aos alimentos,
fazendo com que os patrões, à mesa, ao ingerir a refeição, comecem a passar
111
Fatwa – decreto de morte proferido contra quem, na opinião de ayatolás, ofende o Corão ou algum
princípio religioso muçulmano. Estimula qualquer muçulmano a assassinar o “réu”, prometendo recompensa.
102
mal, mas exatamente daquele “mal” que a aflige.
112
É uma delícia a maneira
como o autor descreve a cena na cozinha. A cada mexida da colher de pau na
panela, lá se vão umas tantas lágrimas mescladas ao “chutney”, a ser
degustado pela família causadora, na sua opinião, de todos os seus males.
E, claro, há as menos sutis, como quando o marido londrino, à noite,
desperta para o sem sentido de sua vida e em um momento de intensa
angústia, aliás, magistralmente relatada pelo autor, em estado de
semiconsciência, vai à cozinha em busca de uma faca para assassinar sua
esposa. É que percebe na sua figura, condensados, os aspectos diuturnos de
sua vã existência e de alguma forma a responsabiliza por seu sofrimento e
angústia. Acordamos com o personagem de faca em punho debruçado sobre
sua esposa. No horror da cena noturna, à luz da lua, num instante de lucidez,
Malik Solanka se dá conta do que está por fazer e, em estado de absoluto
terror, desaparece do quarto, casa, cidade, país e continente, enfim, daquela
vida, e passa a viver anonimamente em Nova York.
113
Entretanto, na minha opinião, a grande vingança executada pelo autor
foi escrever um livro dito infantil, “Haroum and the Sea of Stories”, este
também já traduzido para o português.
114
Este livro, segundo consta, foi escrito imediatamente após a declaração
da “Fatwa”, que obrigou o autor a viver vários anos escondido, protegido pela
Scotland Yard, a polícia inglesa. Durante esse período, foi obrigado a se
distanciar de sua mulher e filho e, como resultado deste sofrimento intenso,
escreveu a dita obra. Parece que, explicitamente, queria escrever para seu
filho, que na época tinha aproximadamente 10 anos, mas, acredito,
explicitamente ou não, acabou escrevendo um livro, que é uma vingança em
obra-prima.
112
Rushdie, S.Midnight’s Children, 1995, Ed. Penguin, USA.
113
Id. “Fury”, Random House, N. York, 2001.
114
Id. “Haroum and the Sea of Stories”, Granta Books, Londres, 1990.
103
É um “tapa com luva de pelica” em qualquer fundamentalista, já que
promove valores totalmente avessos aos praticados pelos ayatolás. O que é
maravilhoso na obra é que, além de ninguém poder condenar o autor por dizer
coisas inapropriadas, ou por estar “dando uma lição de moral” nos que o
perseguiam, não se trata de um conto que promove valores contrapostos, ou
seja, o “bem” contra o “mal”. No entanto, qualquer leitor esclarecido consegue
acompanhar durante toda a leitura os dois níveis de realidade ali desenhados: a
mágica da ficção e sua alusão à realidade vivida por seu autor. Exemplos disso
podemos perceber em momentos como aquele quando diz através de um
personagem que “Uma figura de linguagem é coisa resvaladiça; pode ser
tortuosa ou alinhada”.
115
Assim Rushdie se nos revela, ainda, através de um
personagem de nome Khattam-Shud
116
, que ele descreve como “o
arquiinimigo de todas as histórias, da própria linguagem. É o príncipe do
Silêncio e o Inimigo da Fala.”
117
E sempre que este personagem aparece,
literalmente, o tempo fecha, e aparecem “neblinas mal-cheirosas”.
Em outras palavras, a história se passa na fantasia, mas ao mesmo
tempo, não se consegue deixar de pensar na realidade do autor enquanto
escrevia a obra. Sozinho e “desterrado”, triste e deprimido, escreve sobre um
contador de histórias cuja verve sobejamente conhecida no seu país, seca
subitamente após sua mulher fugir com o vizinho de cima. Haroun, seu filho,
o acompanha, então, em viagem a terras distantes, cujos nomes estão prenhos
de múltiplos sentidos, aliás, para mim, intraduzíveis. E aí começa a história.
Vamos a ela.
115
Rushdie, Op. cit. p. 33 – tradução minha.
116
Esta palavra em indiano significa acabado, totalmente rendido.
117
Id.Ibid. p. 39 – tradução minha.
104
Rashid Khalifa
118
, conhecido como Rashid, o “Ocean of Notions” é o
Shah do Blah (para seus inimigos), um famoso contador de histórias. Ganha a
vida exibindo-se em eventos onde sua presença “agrega valor” a quem o
contrata. Vive placidamente com sua mulher e filho no térreo de uma casa de
dois andares.
Um belo dia, ao regressar de um trabalho, percebe a ausência da
mulher: ela fugiu com o vizinho de cima, lhe contam!
A partir deste momento, sua voz seca, e o contador de histórias
emudece. Acontece que já havia assumido compromissos com um político que
desejava que se apresentasse em comício para atrair grande público. Nosso
personagem, entre atônito e aflito, decide que não pode cancelar o
compromisso e parte, com seu filho, rumo ao compromisso, na esperança de
recuperar sua fluência. No dito evento, o contador de histórias continua
emudecido, é ridicularizado e entra num estado depressivo monumental. Seu
filho, então, se propõe a ajudá-lo. Aí começa a deliciosa ficção. Durante a
viagem, numa determinada noite, Haroun escuta um ruído no banheiro e
verifica tratar-se do “Gênio das Águas”. Este está atarefado, tentando fechar a
torneira de histórias, torneira esta que fica entre o cano de água quente e fria,
embutido na parede. Depois de colorido diálogo, onde a qualquer pergunta de
Haroun o gênio responde: “trata-se de um P2C2E”
119
, esclarece que seu pai
rompeu o contrato assinado com o “Grand Comptroller”, que é o responsável
pelo envio do fluxo de histórias, já que Raschid desistiu de contar histórias.
Haroun nega que seu pai tenha desistido, dizendo que apenas se encontrava
numa certa crise, ao que o Gênio das águas responde sempre com a mesma
afirmativa: tinha suas ordens a cumprir. Haroun decide, então, roubar o
118
Haroun e Raschid Khalifa, explica o autor em apêndice, são nomes inspirados em “As mil e Uma Noites”.
Haroun al-Rashid é personagem recorrente nos contos, enquanto o sobrenome faz referência ao Califa de
Bagdad, também presente nas histórias.
119
O personagem explica que significa em inglês “A process too complicated to explain”.
105
“disconector” e com isto o gênio não pode completar a tarefa de cortar o fluxo
das histórias.
É que, diante da mudez de seu pai, assume de certa forma a culpa por
seu estado, já que lhe havia perguntado, exatamente no dia em que sua mãe
fugiu, “para que servem as histórias se elas nem são verdadeiras?”. Assim, o
menino se acha responsável pela interrupção da verve de seu pai e se propõe a
ajudá-lo.
Depois de uma série de peripécias em que a presença de Khattam-Shud
é intensa, finalmente pai e filho conseguem dissipar as “neblinas mal-
cheirosas”, chegando à conclusão de que “o mundo real era pleno de magia,
portanto mundos mágicos poderiam muito bem ser reais”.
120
Haroun, portanto
redimido, reinicia sua viagem acompanhado de seu pai, começando com uma
aventura em terras míticas, surrealistas e o tempo todo pontilhadas de, no
mínimo, sentidos duplos, senão, múltiplos.
No meio de uma determinada noite, Haroun é transportado nas asas de
um ser mítico a um país distante, que seria uma lua desconhecida da terra.
Desconhecida, pois gira a tal velocidade que não consegue ser avistada por
nenhum telescópio. Mas para conseguir este feito, não gira sobre si mesma e,
portanto, seu mundo é dividido entre uma metade que vive iluminada pelo sol
e outra que vive mergulhada nas sombras. Entre os dois mundos existe uma
“twilight strip”
121
e é preciso saber atravessá-la. No mundo escuro, as pessoas
não devem falar e vivem tristes. Alguns “exagerados”, para provar sua
aceitação total deste esquema, costuram a boca, o que evidentemente leva à
sua morte, já que não conseguem mais se alimentar.
Os diálogos são verdadeiramente impagáveis, em humor, ironia e
profundidade, assim como os personagens que são, como já disse, seres
120
Rushdie, S. – Op. cit – p. 50.
121
Este termo pode ser traduzido como “faixa de penumbra” ou “faixa de semi-consciência”.
106
míticos, mistos de animais e humanos, todos com nomes altamente sugestivos
de um sentido subjacente.
A alusão ao mundo “escuro” da rigidez fundamentalista e do mundo
“iluminado” das liberdades ocidentais fica clara. Assim como a dificuldade de
se lidar com áreas sombrias entre as duas. Em outras palavras, na história,
traça-se um continuum, onde não há contraposição do bem e o mal, mas uma
sutil descrição, repito, muito bem humorada, da jornada humana por ele
(continuum). Mesmo os personagens da parte sombria e tristes têm seu
charme.
Durante todo o desenrolar da história, o autor vai de pincelada em
pincelada - de forma hilária, às vezes, outras, com uma sensibilidade ímpar -
nos mostrando o que pode acontecer quando uma voz é silenciada
arbitrariamente. Digo arbitrariamente, pois li “Os Versos Satânicos”, cuja
referência ao Corão absolutamente nada tem de ofensivo ao espírito
esclarecido. Trata, isto sim, com muito humor, de questões seculares religiosas
não específicas a qualquer religião, mas sempre muito polêmicas em todas.
Penso que, diante da incredulidade de ter sido declarado “inimigo do
povo muçulmano” e com a cabeça a prêmio, Rushdie deve ter passado por
todo o processo que, no limite, pode levar à vingança, conforme descrito em
outro capítulo. Como espírito superior que é, produziu, em represália, uma
pequena obra prima, como resposta àqueles que queriam calá-lo.
Hoje, como se sabe, o autor vive livremente nos Estados Unidos, tendo
suas obras publicadas em vários idiomas. É verdade que durante os anos de
perseguição, um tradutor seu foi assassinado. Mas, felizmente, não se
conseguiu calar uma voz magnífica, que usa as palavras como instrumento de
ampliação da consciência, atingindo o leitor em todos os níveis de sua psique.
Qual melodia harmoniosa, é como se seus escritos com os vários sentidos
107
subjacentes tocassem simultaneamente todas as cordas emocionais contidas
tanto no consciente como inconsciente, falando diretamente ao inconsciente
coletivo da humanidade, ou seja, de quem se interessar em acessar sua obra.
Considero, portanto, Salman Rushdie, expoente da literatura mundial,
alguém que vivenciou profundamente as etapas que levam à vingança e
demonstrou, de forma única, como esta paixão humana pode conectar seu
“portador” à vida, construindo, neste caso, uma pequena obra-prima. Acredito
que sua outra opção teria sido alguma forma de desintegração, no limite, a
morte, ao menos de sua arte.
Creio que continuar escrevendo, inda que sob pena de se ver
assassinado em qualquer esquina, e, ainda, com humor e enviando mensagens
“cifradas” a quem quisesse entender, driblando a “polícia” muçulmana, nesta
obra que, de fato, parece ser um belo “puxão de orelhas”, inda que sutil, ao
fundamentalismo em qualquer que seja sua expressão, foi para o autor uma
forma de re-conexão à vida, permitida àqueles que por algum motivo beberam
na fonte da vingança.
“Ruminar” no exílio permitiu que o autor concebesse uma maneira de
não ceder ao ataque “inimigo”. Ao mesmo tempo em que sua psique se
ocupava em metabolizar o fel, encontrou uma forma de atuação que
possibilitou a expansão de seu self. Permaneceu, assim, conectado a seu filho,
ao mundo externo, escrevendo e distilando sutil veneno vingativo.
122
Três
coelhos de uma só cajadada?
Rushdie me remete a Chico Buarque e tantos outros expoentes da
vanguarda nacional que, no Brasil, durante os “anos de chumbo” e do exílio
(às vezes), produziram vasto material de duplo sentido que conseguia driblar
as autoridades ditas competentes da época, ou seja, os censores. Quem não se
122
A vingança de Rushdie obviamente está sublimada, já que se apresenta em obra-prima.
108
lembra do famoso “Cálice” (Cale-se)?
123
Este e outros tantos autores
brasileiros, forçados a se retirar do país natal, no estrangeiro permaneceram
vinculados à pátria através de suas criações. Estas, prenhas de mensagens,
serviam também para expurgar os sentimentos de rejeição, ódio e
desacreditamento a que tinham sido submetidos. A vingança veio em forma de
arte, já que esta era sua forma preferencial de expressão.
123
Chico Buarque de Hollanda, “Cálice
Composição: Chico Buarque e Gilberto Gil - 1973
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
Como beber dessa bebida amarga
Tragar a dor, engolir a labuta
Mesmo calada a boca, resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta
De que me vale ser filho da santa
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta
Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada pra a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa
De muito gorda a porca já não anda
De muito usada a faca já não corta
Como é difícil, pai, abrir a porta
Essa palavra presa na garganta
Esse pileque homérico no mundo
De que adianta ter boa vontade
Mesmo calado o peito, resta a cuca
Dos bêbados do centro da cidade
Talvez o mundo não seja pequeno
Nem seja a vida um fato consumado
Quero inventar o meu próprio pecado
Quero morrer do meu próprio veneno
Quero perder de vez tua cabeça
Minha cabeça perder teu juízo
Quero cheirar fumaça de óleo diesel
Me embriagar até que alguem me esqueça
109
3-4 Na Música - A Melodiosa Vingança – Lupicínio Rodrigues
“Este garoto é bom, esse garoto vai longe” Noel Rosa, 1932
Chovia copiosamente. Era noite alta e o silêncio chuvoso se fazia ouvir
pelos cantos do bar. Ao fundo, à mesa da esquerda, uma mulher desgrenhada e
maltrapilha, tentava dizer coisas que ninguém entendia. Aliás, os poucos
freqüentadores do recinto, àquela hora, já estavam além de cansados, bastante
etilizados, de maneira que aquela presença prestava-se a muitas fantasias para
os que quisessem dela fazer uso.
Lupi, um dos ainda presentes, tira sonolentamente do bolso sua famosa
caixa de fósforos e se põe a cantarolar:
“Eu gostei tanto”.
Tanto quando me contaram
Que lhe encontraram
Bebendo e chorando
Na mesa de um bar
E que quando
Os amigos do peito
Por mim perguntaram
Um soluço cortou sua voz
Não lhe deixou falar
Eu gostei tanto
Tanto quando me contaram
Que tive mesmo
De fazer esforços
Para ninguém notar.
O remorso talvez seja a causa do seu desespero
Ela deve estar bem consciente do que praticou
Me fazer passar tanta vergonha com um companheiro
E a vergonha é a herança maior
Que meu pai me deixou.
Mas enquanto houver voz em meu peito
Eu não quero mais nada
Que pra todos os santos,
Vingança, vingança clamar
Ela há de rolar
Qual as pedras que rolam nas estradas
Sem ter nunca um cantinho seu
Pra poder descansar.”
124
124
Rodrigues Filho, L. “Foi Assim” Porto Alegre, L&PM, ,1995. p. 124.
110
A canção intitula-se “Vingança”, escrita em 1951, uma das obras primas
de um compositor gaúcho. Grande retratista do dia a dia da metrópole.
Lupicínio Rodrigues nasceu em 16 de setembro de 1914 no bairro pobre
de Ilhota em Porto Alegre. Era o quarto de uma penca de mais de vinte filhos.
Conta a lenda que teve um início de vida escolar atribulado, já que teve de
mudar várias vezes de escola, pois ninguém agüentava aquele menino que
cantava o tempo inteiro distraindo os coleguinhas. Assim nasceu um dos
grandes expoentes da música popular brasileira, cancioneiro profícuo com
mais de 300 composições, das quais muitas conhecidas e re-criadas
contemporaneamente por músicos do calibre de Elis Regina, Gal, Gilberto Gil,
Fagner, Maria Bethânia, e muitos outros.
Compunha letra e música, apesar de não ter nenhuma formação musical.
Recorria a amigos para poder colocar em partitura suas composições.
Inspirava-se no quotidiano, ou seja, era capaz de ver, nas diferentes rotinas,
enredos pitorescos, cuja descrição musical revelava profundo conhecimento
da alma humana: sempre exposta de maneira quase simplória, se não fosse
surpreendentemente aguda sua percepção das emoções subjacentes. Nos
últimos anos de sua vida, escrevia, aos sábados, uma crônica no jornal Última
Hora, onde, em prosa, nos revela o que em música e verso já estava
sacramentado. Nestas crônicas, aparece claramente seu metódico
entendimento das emoções e frustrações da “grande Porto Alegre”.
Sua primeira composição (Carnaval) data de quando tinha apenas
quatorze anos, e já cantava com um grupo de seresteiros da Ilhota desde os
doze anos. Aos dezesseis anos, seu pai engajou-o como voluntário no exercito,
talvez como uma forma de colocar arreios no irrequieto moleque. Mas nada
segura este músico “malgré soi” no sentido de que apenas deixava que a
música o perpassasse, jorrando de seus lábios, pronta a ser degustada por
milhões de brasileiros.
111
Vários “cabides de emprego” mais tarde, Lupi consegue a aposentadoria
por motivo de doença. É o sinal para que, doravante, se dedique
exclusivamente à musica.
É a partir de fevereiro de 1963 que Ary de Carvalho, diretor do Última
Hora, convida Lupicínio para escrever uma crônica semanal, aos sábados, no
seu jornal. Nestas, o autor conta casos, descreve cenas do quotidiano e no final
de cada crônica, apresenta uma de suas composições. É interessante notar a
maneira casual com que comenta os temas e a simplicidade com que se
expressa.
Assim diz Lupi: “Sempre que falo do bem, gosto de falar do mal,
porque eles são companheiros inseparáveis. Sem um não haveria o outro.”
125
Desta maneira, o autor resume e explicita dois mil anos de filosofia ocidental,
sem mencionar a oriental! Foi preciso que psicólogos estudassem durante anos
sua matéria para compreender que não há sentimentos “puros”, e foi preciso
importar do oriente o símbolo milenar do yin e yang para entender que no
branco se encontra a “semente” do negro e vice-versa, com toda a simbologia
aí condensada.
É importante, no entanto, perceber que Lupicínio tentou, durante toda a
sua vida e obra, enquadrar o feminino e o masculino em categorias
mutuamente excludentes, caracterizadas de forma a excluir a possibilidade de
um continuum entre as diferenças. Mergulhado na cultura, sofria as
influencias da dicotomização milenar. Era como se tivesse um script para os
diferentes personagens: o boêmio, o provedor, a dona de casa, a dançarina etc.
Entretanto, intuitivamente compunha e escrevia de uma forma que negava,
neste aspecto, sua herança cultural. Assim, na sua obra, temos descrições às
vezes hilárias outras vezes patéticas da realidade vivida nas relações.
125
Id. Ibid. p. 62.
112
É que através da música é possível dizer coisas que não poderiam ser
ditas em prosa. “... a música (vem sendo apontada) como uma das únicas
instâncias públicas em que o homem se permite falar com sinceridade sobre
seus sentimentos com relação à mulher, confessando suas angústias, medos,
fraquezas, dores e desejos.”
126
Assim se expressa Lupi em uma de suas canções:
“...e eu jogo os meus versos
qual pontas de lança
pra ver se alcançam
onde eu quero acertar...”
(Ponta de Lança, 1952.)
Vejamos o que diz Lupi a respeito de sua canção, tema deste escrito.
Em um determinado sábado, na Última Hora, é publicada a canção
“Vingança” com a seguinte resenha do nosso autor, sob o título de “Do Amor
ao Ódio”:
Eu não gosto de fazer mal a ninguém. Por isso, é que não tenho medo
quando me vêm esses pensamentos. Acho que nem em pensamento a
gente deve desejar mal aos seus semelhantes. Entretanto, nunca se está
livre de ter, num momento de rancor, algum desejo de vingança. É isso
que aconteceu comigo quando me fizeram uma grande traição.”
127
E a maneira de o nosso autor tratar a situação foi escrever uma canção
onde a experiência da vingança é relatada com requintes de crueldade, como
nas suas últimas frases:
“ela há de rolar
qual as pedras que rolam nas estradas
Sem ter nunca um cantinho seu
Pra poder descansar”
126
Matos e Faria, “Melodia e Sintonia em Lupicínio Rodrigues” Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1996, p.137
127
Rodrigues Filho L., “Foi Assim” Porto Alegre, L&PM, 1995, p. 123
113
Parece que escrever a canção mostra para Lupi a função, que justamente
é o cerne deste trabalho, ou seja, encontrar uma maneira de se re-conectar à
vida através da vingança. A partir do sentimento de aniquilação provocado
pela traição do ser amado, propõe-se à subjetividade alguns caminhos
possíveis: várias nuances depressivas – no limite volta à aniquilação – ou
entregar-se à vingança, uma alternativa criativa ao self que, a partir deste
sentimento, consegue despertar uma paixão – re-conexão à vida - que, se bem
elaborada, leva, por exemplo, à obra prima criada por Lupicínio Rodrigues.
A linguagem musical acompanha as artes em geral, ou seja, propõe uma
maneira de o self se expressar criativamente quando ações não são possíveis.
A música, além de remeter a subjetividade aos primórdios da
civilização, portanto ser atávica em sua expressão, toca cordas sensíveis que
encontram correspondência em toda a humanidade. Isto porque foi imitando
os sons da natureza que o homem primordial descobriu sua capacidade de
emitir sons e, portanto, com o passar dos milênios pode criar um modo sui
generis de comunicação – a fala.
E que maneira melhor de “falar” do que através da música? Embalada
em sons que falam à sensibilidade de nossa humanidade, o conteúdo da
canção vai se expandindo, ocupando espaços internos, fazendo bailar
subjetividades ao redor do mundo. Quando digo bailar, evidentemente, penso
no concreto e no simbólico. Às vezes o que baila dentro de nós é a alma que se
regozija com este ou aquele afago que a música transmite.
Ao me referir à “Vingança” de Lupicínio Rodrigues, quis, além de um
exemplo musical, falar de um autor brasileiro. Mas é evidente que podemos
encontrar nos quatro cantos do universo exemplos musicais para ilustrar
trabalhos acadêmicos.
114
É que, na minha opinião, a expressão musical é a mais envolvente, e,
portanto, a mais bela de todas as artes. Por isso a trago para este trabalho
como uma das maneiras de ilustrar a vingança operando na cultura.
Entretanto, o humor também desempenha papel importante na
civilização conforme já explicitado, e é, sem dúvida, uma das expressões da
cultura, principalmente a partir do século XX, apesar de a caricatura, já estar
presente, por exemplo na Revolução Francesa. Nos Anexos II (já
mencionados) encontram-se manifestações deste tipo de produção cultural que
circularam na Internet durante a elaboração desta tese.
115
4.1 Medéia
A história de Medéia
128
é sobejamente conhecida e foi, durante séculos,
reproduzida, imitada, e re-contada de várias formas através da escrita, da
música e do teatro. Tendo suas origens no mito, parece que Medéia é uma
figura que representa alguma estrutura fundamental da psique humana, já que
sua simbologia reaparece na cultura de tempos em tempos.
Utilizando como referencia a mitologia grega, Junito de Souza Brandão
conta que, para entender a história de Medéia, é preciso também conhecer a de
Jasão e de alguns antecedentes.
Jasão, recebeu este nome que, segundo nos relata o autor, está ligado a
experiências de cura. A história de Jasão é interessante não somente do ponto
de vista mítico, mas também histórico.
Desde criança, Jasão viveu no exílio, pois seu pai, Esão, fora destronado
do reino de Iolco e condenado à morte por seu meio-irmão, usurpador, Pélias.
129
Jasão, então, educado pelo centauro Quirão, aos 20 anos de idade volta à
cidade natal em busca de sua verdadeira vocação. Entretanto, vestido de forma
estranha - uma sandália só e coberto com pele de pantera - chama a atenção
do rei que, embora sem o reconhecer, assusta-se com sua presença insólita. É
que segundo o oráculo “devia desconfiar do homem que tivesse apenas uma
sandália”.
130
128
O nome Medéia (Mideia) relaciona-se com o da deusa da sabedoria Métis (prudência). Todos os nomes
gregos com terminação –mede – são de mulheres sábias e conhecedoras da arte de curar. Pauly, na sua
Enciclopédia Real da Ciência da Antiguidade Clássica (Stuttgart, 1931), escreve no verbete Medéia:...
“Evidentemente, todos esses nomes fazem parte de midomai, palavra do grego antigo; na base deles, há a
meditação ligada à realização do pensamento; são mulheres que sabem aconselhar a si mesmas e aos outros”.
129
Em outra versão, Esão, já idoso, havia confiado o reino a Pélias até que Jasão atingisse a maioridade.
130
Brandão, J.S.,” Mitologia Grega”. Vol. III, Petrópolis: Ed. Vozes, 1987. p. 176.
116
Jasão, após certo tempo, apresenta-se a Pélias e reclama o trono. Pélias
concorda, desde que cumprisse a seguinte tarefa: deveria dirigir-se à Cólquida
e trazer “o tosão (ou velocino) de ouro (pele de um carneiro prodigioso, alado
e dotado de lã de ouro e que transportara pelos ares Frixo e sua irmã Hele,
fugitivos de Tebas, até a Ásia Menor, e depois fora morto por Aietes)”.
131
`
132
Cinqüenta heróis se apresentaram à convocação feita em toda a Grécia
para participar da expedição. O navio, Argo, foi lançado ao mar na praia de
Págasas, na Tessália. Houve uma cerimônia de sacrifício solene a Apolo e
Jasão parte em direção à Cólquida. Do início da viagem até a chegada em
Cólquida, ocorre verdadeira epopéia. A Argo faz várias paradas estratégicas,
onde as aventuras se sucedem. Finalmente chegam a seu destino.
Jasão apresenta-se ao rei, Eetes, pai de Calcíope, Medéia e Apsirto,
contando-lhe o que o levara a realizar esta expedição. O rei, um pouco para se
livrar do importuno, promete devolver-lhe o velocino, desde que cumprisse
algumas tarefas, dificílimas para um mortal “a não ser que a grande faísca da
eternidade, o amor, que transmuta impossíveis em possíveis, aparecesse!”
133
Estas provas eram as seguintes: pôr o jugo em dois touros bravios e atrelá-los
a uma charrete de diamantes. Estes touros lançavam chamas pelas narinas e
eram perigosíssimos. A seguir, deveria lavrar com eles uma grande área
semeando dentes de um dragão morto que fora presente de Atena ao rei; em
seguida, matar os gigantes que nasceriam daqueles dentes; finalmente, matar o
dragão que guardava o velocino no bosque sagrado do deus Ares.
Estas tarefas verdadeiramente hercúleas assustam Jasão, ainda mais que
deveriam ser realizadas em um só dia. Estava nosso herói pronto para retornar
131
Eurípides, “Medéia, Hipólito, As Troianas”, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p. 12.
132
Há outras versões para esta viagem, entre elas a de que Pélias, ao ver Jasão com uma sandália,
compreendeu o perigo que corria, já denunciado pelo oráculo, e teria perguntado a Jasão que castigo ele
imporia, se fosse rei, à pessoa que o ameaçasse. Jasão teria respondido que mandaria a pessoa em busca do
velocino de ouro. Em outra versão, teria sido Hera a autora da tarefa, pois irritada com Pélias, queria trazer
Medéia para que sua mágica desse cabo de Pélias.
133
Brandão, J.S.,’ Mitologia Grega”. Vol III. Petrópolis: Ed. Vozes, 1987. p.183.
117
à Grécia, quando surge Medéia, portadora de todos os recursos de magia que
poderiam ajudar Jasão na execução das tarefas. Através de uma série de
expedientes mágicos, Medéia ensina a Jasão como vencer as quatro tarefas
impostas pelo rei, restando apenas vencer o dragão no bosque de Ares. Medéia
faz, ainda, utilizando-se de sua magia, com que o dragão adormeça e Jasão
atravessa-o com uma lança, tomando posse do velocino de ouro.
Entretanto, o rei Eetes recusa-se a cumprir sua promessa, ameaçando
incendiar a nau Argo. Jasão foge, então, com Medéia, que leva seu irmão
Apsirto como refém. O rei, ao se dar conta da fuga, inicia uma perseguição à
nau. Neste momento, e já tendo previsto a perseguição, Medéia esquarteja seu
irmão e espalha-o pelo mar, obrigando seu pai a abandonar a perseguição para
recolher os pedaços de seu filho.
134
Novamente, a viagem de regresso à Grécia é pontuada de
acontecimentos, e a Argo faz uma série de paradas em vários sítios, onde
verdadeiros dramas se desenrolam, até que finalmente, após quatro meses,
aportam em Iolco. Lá, Jasão consagra a nau a Posídon e entrega o velocino de
ouro a Pélias. A partir daí, existem, novamente, várias versões para o mito. A
versão mais seguida – e a que vou adotar - “é a que aponta Medéia como a
grande ‘vingadora de Iolco’.”
135
É que o amor por Jasão faz com que Medéia se sinta tremendamente
ofendida por Pélias, que usurpara o trono de seu amado. Além disso, não havia
cumprido a promessa de devolver-lhe o trono após a entrega do velocino de
ouro. Assim sendo, para vingar-se, convence as filhas do usurpador a cortarem
Pélias em pedacinhos e fervê-lo em poção mágica, o que lhe devolveria sua
juventude. Para convencer as filhas, Medéia faz uma demonstração com um
134
Em outra versão, o rei enviara Apsirto e um comboio em perseguição à Argo, mas a nau de Apsirto
adiantara-se muito e fora tomada pelos tripulantes da Argo. Jasão, com o auxílio de Medéia, teria assassinado
Apsirto no templo de Ártemis na embocadura do Íster.
135
Op.Cit., p.186.
118
cordeiro que, após o procedimento, de fato ressuscita como um cordeirinho
jovem e fogoso. Entretanto, Pélias, uma vez “picado e cozido”, morre, fazendo
suas filhas refugiarem-se horrorizadas na Arcádia.
Com a morte do rei, Jasão e Medéia, com seus filhos Feres e Mérmero,
são banidos de Iolco, sendo recebidos em Corinto por graça do rei Creonte.
136
Creonte, entretanto, decide dar sua filha Glauce (ou Creúsa) em
casamento a Jasão, que aceita sem hesitar. Diante disto, o rei expulsa Medéia
do reino. Esta implora ao rei que permita que fique um só dia a mais para
poder despedir-se de seus filhos. Com esta prerrogativa, confecciona um
sinistro presente de casamento a Glauce: um manto (em outras versões um véu
ou uma coroa) cujos poderes eram impensáveis. Quem o pusesse, arderia no
fogo até morrer. Os filhos de Medéia e Jasão são encarregados de transportar o
presente. Glauce, que é muito vaidosa, não resiste e coloca o manto, morrendo
em seguida. O rei, que corre para tentar salvar a filha é envolvido em chamas
e acaba, também ele, morrendo.
Mas a vendeta de Medéia não para aí. Dirige-se ao templo de Hera,
onde assassina os próprios filhos, fugindo para Atenas em carro ofertado por
seu avô Hélio, o Sol, puxado por dragões ou, em outras versões, serpentes.
Este exílio também acaba mal, pois Medéia “sempre colocou a paixão como
fio condutor de suas ações.”
137
Assim, Medéia, pode-se dizer, à primeira vista, representa o feminino
apaixonado que não hesita em abandonar suas raízes para seguir o objeto
amado, “fazendo de tudo para apoiá-lo em seus objetivos e vendo o sentido de
sua própria vida em amá-lo”, o que “representa ainda hoje a situação típica da
136
Segundo outra vertente, Medéia, disfarçada de sacerdotisa de Ártemis, convence as filhas de Pélias a
cozinhar seus membros. Em seguida faz vir Jasão que entrega o trono a Acasto em agradecimento à sua
participação na viagem dos argonautas. Assim, segundo esta versão, o exílio de Jasão e Medéia teria sido
voluntário.
137
Op. cit. p.188.
119
mulher, sobretudo da mulher jovem”
138
. Ela é paixão desenfreada, “feiticeira”,
que move montanhas em nome de seu amor. O amor tudo pode, tudo vence.
Não há obstáculos que não possam ser transpostos, nem indivíduos que
obstem esta perseguição do prazer sensual. Nem ética que contenha as ações
de uma Medéia enfurecida pela paixão. (Talvez pudéssemos nomeá-la de
arquétipo da paixão feminina).
Mas Medéia, nas suas origens como mito, é também um personagem
que emerge na transição do período do matriarcado para o patriarcado
139
.
Quando do início do aparecimento das culturas matriarcais, o advento
da agricultura promoveu verdadeira revolução no desenvolvimento humano.
Entre o terceiro e o quarto milênios a.C., apareceram as primeiras
invenções que poderíamos chamar de “tecnológicas” e que terminaram por
promover o final da era matriarcal. Estas inovações colaboraram muito para o
desenvolvimento da economia e das formas de produção da época. Em outras
palavras, iniciava-se, a partir, por exemplo, do arado puxado por bois, dos
metais fundidos, do barco a vela e dos processos de irrigação, a produção de
excedentes. “Só essas primeiras tecnologias tornaram possível obter um
superávit de alimentos, condição básica para a formação de uma sociedade
diferenciada pela divisão do trabalho e para o desenvolvimento de ofícios e do
comércio.”
140
A partir deste desenvolvimento, iniciou-se, ainda nas cidades, a
necessidade de organizar os fluxos de produção, já que este processo havia se
tornado mais complexo. A produção de excedentes teve como conseqüência
também a necessidade de encontrar um caminho de escoamento para estes
138
Rinne, Olga. “ Medeia: O Direito à Ira e ao Ciúme”. São Paulo: Editora Cultrix, 1998. p. 17.
139
Sabemos de autores que negam a existência deste período, pois negam o matriarcado como tal. Sobre isto
falo mais adiante. Para fins deste capítulo, considero a existência do matriarcado pois, como veremos mais
adiante, se não existiu concretamente, apresenta-se como existente em conteúdos do inconsciente coletivo.
140
Op cit.. pg. 54.
120
bens, gerando a formação de classes e hierarquias sociais e, como diz Erich
Fromm, uma mudança fundamental na história do homem: “Descobriu-se que
o homem poderia ser usado como ferramenta econômica, que poderia ser
explorado e escravizado.”
141
Desde este momento, começa a aparecer a necessidade de lutar pela
posse dos bens, e com isto, surge uma nova hierarquia, a dos guerreiros. Isto
significa a instalação do poder masculino, institucionalizado e politicamente
útil.
No período, portanto, de transição para a emergência do patriarcado é
bem possível que, ao lado dos templos das sacerdotisas cuja hierarquia social
provavelmente estaria ainda no seu ápice, começa a formar-se uma
“aristocracia militar masculina”.
142
É neste clima de transformação que se
insere o mito de Medéia.
O feminino, com seu equivalente mais arcaico, ou seja, a fecundidade
da terra, não é mais o representante exclusivo da criatividade. Entra em cena o
masculino, com sua criatividade inventiva, promovendo a tecnologia e com
ela o pensamento abstrato como novas molas motrizes da cultura.
Fica relegado a segundo plano o ventre materno como receptáculo de
criação-mor vencido pelo espírito criador. Entra em cena o masculino em
detrimento do feminino.
Claro que esta mudança não ocorreu em breve período, mas
provavelmente no decorrer de pelo menos um milênio, acarretando longo
período de transformações, durante o qual resquícios de sociedades
matriarcais permaneceram funcionando, inda que qual bandeira a meio pau.
141
Fromm, E. In: Rinne, O. Op. cit. Notas. pg. 142.
142
Id. pg. 55.
121
Parte da ética matriarcal (segundo alguns autores, Jung entre eles, este
período antecede o patriarcado) é formada pelo direito de sangue que a
linhagem feminina representa. Um homem, para adquirir posição e
reconhecimento, deveria ter de desposar uma mulher altamente posicionada.
Por outro lado, são as mulheres que devem, ou melhor dito, têm o direito, e
isto sob a égide inclusive das Fúrias
143
, de vingar os crimes de sangue
cometidos contra sua família. Vamos a elas, portanto, às Fúrias.
As três Erínias ou Fúrias estão entre as mais antigas deusas gregas. Elas
representam as forças de retribuição personificadas como Três Donzelas
negras imortais. Têm um lugar no esquema primordial das coisas, precedendo
em muito as divindades masculinas do ciclo de Zeus. Deste modo, são
consideradas contemporâneas dos Titãs, nascidas da união entre o Ar e a Mãe
Terra, ou filhas da Terra, surgidas do sangue de Urano mutilado. Ésquilo as
descreve como "filhas da noite", pois elas refletem os aspectos sombrios da
deusa. Na alma, representam os elementos primais do inconsciente.
Elas constituem o que se chama a raiva primal, de nosso íntimo,
personificadas no desejo de vingança diante de uma ameaça real ou iminente.
Onde elas assumem o controle, podemos ficar chocados com os extremos a
que se pode chegar.
Podemos visualizá-las também como guardiãs de linhagem, forças que
atuam na hereditariedade. Na qualidade de guardiãs do parentesco, as Erínias
defendem os direitos e as prerrogativas do vínculo de apego com pessoas,
lugares e objetos materiais. Elas defendem nossos sentimentos mais íntimos e
penetrantes de vinculação afetiva, nossos primeiros elos físicos e psicológicos
de relação com pessoas e coisas e também nossa ligação com o corpo e nossas
próprias necessidades físicas. As Fúrias invadem com seu fedor intolerável
143
As Fúrias, ou Erínias, são deusas titânicas, entidades eminentemente femininas nascidas do sangue
derramado sobre a terra oriunda da castração de Urano. São, portanto, pertencentes ao ciclo do matriarcado.
122
quando o parentesco primordial com a mãe é transgredido. E caso se
embarque no impulso de cortar os laços com este princípio telúrico e
conservador do inconsciente, ou ignorá-lo, as Erínias irrompem com toda a
força de sua fúria subterrânea.
Desde tempos imemoriais, as Fúrias, ou Erínias, exigem vingança
contra crimes familiares. Incitam e protegem a linhagem feminina, que era
considerada a transmissora dos poderes divinos. São as grandes vinganças
sagradas.
Vale ressaltar que, ainda no matriarcado, os sacrifícios humanos eram
absolutamente rotineiros, oferecidos aos deuses em momentos importantes da
vida de uma cultura. Portanto, a culpa, tal como a conhecemos (por
assassinatos) não existia, já que era de domínio público, ou seja, esperado e
absolutamente natural, que ocasionalmente pessoas fossem sacrificadas –
freqüentemente crianças e virgens, ou seja, adolescentes - em nome de deuses
para garantir colheitas ou evitar catástrofes naturais. Após a abolição dos
sacrifícios humanos, a partir de então considerados desumanos, é que a culpa
por atos irrefletidos e sanguinários encontra seu caminho e começa a penetrar
na cultura.
A transição entre o matriarcado e patriarcado é freqüentemente
representada por Medéia. Todos os heróis masculinos associados à heroína
têm “características dos reis sagrados, das encarnações do deus-Sol”
144
.
Aliás, um dado que corrobora esta fase de transição é a origem da
palavra herói: “heros” (masculino), que deriva da deusa Hera (feminino). No
período matriarcal, a maneira de os homens se sobressaírem, como já
mencionei, era buscando a proteção de alguma sacerdotisa ou deusa feminina.
Como eram elas as transmissoras das linhagens, era, portanto, delas também a
144
Op Cit. pg.58.
123
possibilidade de transmissão de reinados, bem como o poder de dar e tirar a
vida. Assim, era preciso, para os heróis da época, associarem-se,
preferencialmente através do casamento, a uma deusa que pudesse conferir-lhe
status e proteção.
Portanto, os heróis do período matriarcal eram nomeados por títulos que
lhes conferiam importância e que se referiam a uma deusa à qual estavam de
alguma forma conectados ou que os havia de certo modo protegido. Assim,
apesar de ter sido, segundo consta, Quiron que o nomeou, Jasão é “aquele que
traz a cura”, nome bastante honroso, e estava sob a proteção da deusa Hera.
145
Ao se considerar o mito, como não havia ainda uma soberania
masculina à sua época, “a rainha-sacerdotisa dirigia a comunidade com
autoridade superior. Seu esposo, o rei sagrado, cumpria importantes deveres
de ordem ritual e cerimonial.”
146
O que nos ajuda a compreender por que,
tanto em Iolco como na Cólquida, Jasão fora convocado a se submeter a
determinadas provas.
De qualquer forma, Jasão pode ser considerado representante típico do
período de transição entre matriarcado e patriarcado, já que se associa a
deusas importantes, mas, ao mesmo tempo, exerce certa liberdade de atuação,
escapando de alguma forma do jugo delas.
O mito acima referido encontra na tragédia de Eurípides
147
uma
expressão interessante que, até hoje, é encenada e re-encenada pelo mundo
afora. Resumidamente, a tragédia constitui um dos episódios finais da
complexa e longa lenda que envolve, na verdade, um entrecruzamento de
145
Menciono Jasão e também Héracles por serem heróis que exibem em muitos aspectos características
semelhantes: ambos foram educados por Quiron, o centauro conhecedor da arte de curar, e eles próprios
acabaram sendo conhecidos como “heróis da medicina”. Jasão se apresentava com uma pele de pantera e
Héracles com uma pele de leão.
146
Op. Cit. pg. 59.
147
Eurípides, nascido por volta de 485 a.C. usou a figura de Medéia, presente em mitos cujos fragmentos
chegaram à sua época. Entretanto, foi ele que lhe emprestou, pela primeira vez, a característica de filicida. A
peça foi encenada pela primeira vez em 431 a.C. no concurso trágico, em que recebeu um modesto terceiro
lugar.
124
várias lendas da mitologia grega. Conta-se que Jasão, quando chega a Iolco,
torna-se bastante popular, fazendo muitos amigos graças à sua inteligência e
força física. Pélias lembra então a Jasão que seu pai tratara Frixo, primo de
ambos, de forma desumana e roubara-lhe o velocino de ouro. Mas o velocino
havia transportado Frixo e sua irmã Hele, fugitivos de Tebas, até a Asia
Menor e depois fora morto por Aietes. O velocino, portanto estava em Argos
sob a proteção de um terrível dragão. Pélias alega que já era muito idoso para
empreender a viagem em busca do velocino, de maneira que diz a Jasão para
fazê-lo. Na volta lhe devolveria o trono de Iolco. Jasão parte em busca do
velocino de ouro, embarcando com os argonautas em viagem mítica à
Cólquida. É lá que encontra Medéia, princesa famosa pela arte de curar e por
seus poderes mágicos. Ambos apaixonam-se e Medéia, opondo-se a seu pai,
foge com Jasão para a Grécia, conforme já consta no acima relatado. Nesta
fuga, além de matar seu irmão, esquartejando-o e espalhando seus pedaços no
mar, usa de todos os seus poderes para proteger seu amado, que consegue
realizar tarefas e intento na sua empreitada, utilizando-se, portanto, para estes
fins, dos recursos de sua amada.
A tragédia passa-se inteiramente em Corinto e inicia-se com o coro dos
cidadãos que nos dão conta dos humores de Medéia diante da traição de Jasão.
Toda a tônica da peça é o ódio sobre-humano simétrico, aliás, ao
tamanho da paixão que Medéia nutriu por Jasão. O amor desmesurado
transforma-se em ódio feroz, quando Medéia se vê traída, humilhada, aviltada
mesmo. Assim, Medéia passa de um abatimento total, provocado pela traição
do marido perjuro
148
, em que, aparentemente conformada com sua sorte,
simplesmente jazia sobre o leito sem sequer abrir os olhos, para um terrível
desejo de vingança e extermínio. Àquela altura, nada poderia deter sua sanha
148
Jasão havia jurado fidelidade e casamento a Medéia no templo de Hécate, deusa propiciadora de poderes
mágicos, padroeira das bruxarias e sortilégios.
125
vingativa que não se intimida diante da tarefa a que se propõe: matar os filhos
de Jasão, objetivando o total aniquilamento de dele.
O casal estabelecera-se em Corinto, já que Medéia era considerada
estrangeira na Grécia e por seus poderes, temida. Vivia, portanto, semi-
reclusa, dedicada ao marido e filhos.
Entretanto, o tempo faz o seu trabalho. Sob um olhar contemporâneo,
podemos entender que Medéia descobre que sua paixão aportou na seara de
um homem bastante oportunista, que também, por sua vez, persegue um
objetivo: seu bem estar pessoal. Assim, Jasão propõe-se a abandonar Medéia
sem nenhum pudor, quando se lhe oferece a oportunidade de vincular-se a
uma princesa grega, filha de Creonte, rei de Corinto, cujo patrimônio a ser
herdado acrescentaria prestígio e conforto à sua pessoa e, segundo ele, à sua
prole.
Aliás, conta a lenda que é este o argumento com o qual pretende
convencer Medéia da legitimidade de sua intenção. Reflete que seus filhos,
como filhos híbridos de um grego com uma estrangeira, não teriam direito aos
privilégios de cidadãos plenos na Grécia. Mas, casando-se com uma princesa,
automaticamente conseguiria, para seus filhos, o status tão almejado.
Diante do inexorável, Medéia arquiteta um plano terrível. Assassinar a
noiva, o pai dela e os próprios filhos. No caso específico, o que mais interessa
é o assassinato dos filhos. O que pretende com esta atitude extrema? O que
significa tal ato?
Descobre Medéia, (ainda sob o olhar da contemporaneidade) que havia
se iludido ao achar que poderia manter-se com seus poderes de divindade e
ser, ao mesmo tempo, esposa de um grego. Percebe que não pode ser, ao
mesmo tempo, “divina” e “humana”, ou seja, ao se desligar de suas origens,
deixa para trás suas possibilidades como neta do deus Sol, com poderes supra-
126
humanos, integrados numa sociedade estabelecida. Ao deixar sua pátria e
“imigrar” para a Grécia, perde o que tinha, uma pertinência, tendo que se
conformar agora com outra maneira de se (des) integrar, aposta pelos gregos:
bárbara. Portanto, ao seguir Jasão, assume sua porção humana, e como
continua utilizando-se de seus poderes mágicos, “bárbaros”, para favorecer
seu amado, é vista pelo povo de Jasão como feiticeira e estrangeira, de modo
geral, bárbara.
Jasão é venal. Já não precisa mais dos atributos extraordinários de
Medéia. O velocino de ouro já fora conquistado. Pode, agora, dar continuidade
ao que lhe parece muito natural: seu futuro promissor.
Confrontada com esta realidade, Medéia toma consciência do que fizera
consigo mesma. Abrira mão de suas raízes mais profundas, de suas origens,
negara pai e mãe, abandonara sua cultura, enfim, negara sua verdadeira
pertinência.
Tomada de fúria, vinga-se de Jasão –a quem considera responsável por
sua desgraça - matando sua noiva, o pai dela e, finalmente, seus filhos.
Elimina, assim, toda a possibilidade de continuidade, de descendência, ou
seja, de “imortalidade” de Jasão.
Mas há outra leitura possível: Medéia mata o passado recente de
maneira irreversível. Não tendo mais filhos, nada mais a prende a este marido
em nome de quem se corrompera. Uma vez liquidados os liames que a atam
aos gregos, pode agora renunciar à paixão terrena e retornar às origens em
carruagem de fogo. O fogo purifica. Medéia imagina um novo recomeço. O
fogo apaga vestígios antigos e prepara o terreno para novas plantações. Aí
termina a tragédia.
O que ela nos revela é que para recuperar sua pertinência, ou seja, para
que se proponha a recuperar sua dignidade, depois de um período depressivo,
127
busca energias no recôndito de seu ser. Toda a dor de se alijar das raízes, ou
seja, da sua cultura original, de ter se afastado de suas origens para dedicar-se,
em terras estranhas a um grande amor, aparece e se transforma em ódio
violento que cobra seu preço. Medéia humanizada e ensandecida necessita dar
vazão à sua energia psíquica, em forma de vingança. Para tal, nada melhor do
que a prática de atos extremos. E arquiteta, a partir de então, uma terrível e
trágica vingança.
Ora, o arquétipo Medéia, como qualquer outro, pode emergir do
inconsciente coletivo em determinados momentos históricos. Podemos
compreendê-la como a força feminina tresloucada, sem limites, energia
incontida e direcionada a um objetivo determinado. Acredito que poderíamos
pensar em Medéia, neste sentido, como a sombra
149
do feminino
contemporâneo. É o aspecto sombrio do feminino que clama por vingança,
mata sua própria carne como único modo de escoamento possível de violentos
sentimentos de exclusão, rejeição e abandono.
De modo geral, a tragédia, ao utilizar-se da mitologia como meio de
expressão, o faz no sentido de uma espécie de “invenção” para aquela época.
Ao colocar no palco personagens e situações referentes a um passado remoto,
o público tem a impressão de estar assistindo a um espetáculo que nada tem a
ver com sua realidade atual. Entretanto, a tragédia traz para a cultura grega no
século V a.C. grandes modificações no plano das instituições sociais, das
formas literárias e da experiência humana.
A partir do advento da tragédia, são instituídos concursos trágicos cujos
regulamentos obedecem “exatamente as mesmas normas que regem as
assembléias e os tribunais democráticos”.
150
Na literatura, é o início de um
gênero projetado para ser não apenas lido, mas também ouvido e interpretado
149
Para conceitos junguianos, ver cap. II.
150
Vernant, J-P e Naquet, P.V. “Mito e Tragédia na Grécia Antiga.” Vol. II, Ed. Brasiliense, S.Paulo, 1991.
pg. 24.
128
publicamente. Em termos de experiência humana – que é a que mais me
interessa para este trabalho - cria-se, na psique, uma nova consciência através
da tragédia. É que os textos, apresentados em cena, diante de um conjunto de
cidadãos, “apresenta(m) no palco personagens e acontecimentos que
camuflam, na atualidade do espetáculo, todas as aparências da existência
real.”
151
Acontece que subliminarmente estes textos e seus respectivos
contextos começam a provocar na subjetividade inquietações, uma vez que, a
partir do que se apresenta como imaginário, conexões começam a se fazer.
O público, inicialmente, percebe que assiste a uma ficção ideada pelo
autor. Entretanto, como se trata de uma produção baseada na mitologia, os
conteúdos apresentados têm correspondência direta com o inconsciente
coletivo. Daí o público começar a fazer “associações” com elementos de sua
realidade atual.
Assim, temos neste primeiro período de desenvolvimento da tragédia
uma aquisição importante para a cultura, pois aparece “a consciência da ficção
(que ao ser) constituinte do espetáculo dramático.... aparece, ao mesmo tempo
como sua condição e seu produto.”
152
Em seguida, portanto, aquele outro
acréscimo interessante e acima mencionado começa a se delinear: os
rudimentos de uma tomada de consciência tal que, a partir de uma ficção,
permite elaborações referentes à vida real dos espectadores.
Mais esta pequena incursão no mundo da mitologia
153
e especificamente
no período de transição do matriarcado para o patriarcado me pareceu
relevante neste momento.
É que Medéia, por ser uma heroína representante de um período de
transição, pode também ser considerada como arquétipo presente em qualquer
151
id. pg.25.
152
Id. pg. 26.
153
Em capítulo anterior usamos mitos como “comprovantes” da existência da vingança no ideário humano e,
portanto, no inconsciente coletivo
129
situação de transformações, preferencialmente aquelas que prenunciam ou
ocorrem próximas de períodos de grande turbulência psíquica.
Medéia, mãe e madrasta, amante e traiçoeira, enciumada e protetora,
incapaz de elaboração em relação aos seus próprios desígnios, se vê tomada.
Age enfurecida na esperança de eliminar a angústia, que invade sua psique.
O que podemos perceber na tragédia é uma mulher, Medéia, tomada
pela paixão, que, ao renegar suas origens divinas, não consegue medir as
conseqüências de suas ações. Migra, por assim dizer, com sua onipotência de
deusa, neta de Hélio, para o campo dos humanos, para a Grécia, acreditando
que a força da sua paixão seria capaz de dissolver quaisquer dificuldades que
encontrasse pelo caminho. É quando se vê traída nesta paixão que começa a
“ruminar” seu ódio, que eventualmente desencadeará o terror, ou seja, o
assassinato de Glauce, o pai desta, e de seus próprios filhos. Ao dar-se conta
do fracasso de sua paixão, ao perceber que sua presença em solo grego passa
a ser intolerável, de que está sendo descartada por Jasão em nome de uma
princesa grega, e que contra esta realidade em nada lhe servem seus poderes,
cai inicialmente em estado de apatia profunda. Entretanto, num segundo
momento, é tomada pelo ódio enciumado que a leva à ação. Desperta para a
vida terrena com toda a energia da vingança.
Desde os primeiros versos, Eurípides anuncia, através da ama, a
tragédia que irá se desenrolar. “Ah! Se jamais os céus tivessem consentido que
Argó singrasse o mar profundamente azul entre as Simplégades... Não teria
Medéia, minha dona, então, realizado esta viagem rumo a Iolco com o coração
apaixonado por Jason ...”.
154
Portanto, já vai se criando na platéia o clima do que virá a suceder. Em
outras palavras, a tragédia se prenuncia na medida em que os versos anunciam
154
Eurípides, “Medéia.” Rio de Janeiro, Ed. Jorge Zahar, 1991. p. 19 – Uso, daqui em diante, o número dos
versos para identificar as citações desta obra.
130
que o que está para acontecer poderia (e quiçá deveria) ter sido evitado. E
também já se esclarece que a paixão, o amor desmedido pode trazer tais
conseqüências.
Diante destas constatações, ainda na voz da ama aparece toda a tristeza
de Medéia, que diante do inexorável, ou seja, de seu marido querer casar-se
com outra, entra em estado depressivo. A ama diz conhecer bem sua patroa e
saber de seus poderes. O que ela diz, na realidade, mostra o lado negro da
alma humana que, quando pressionada às últimas conseqüências, é capaz de
qualquer coisa para defender sua sobrevivência. Inicialmente, Medéia volta
sua raiva para si própria “Os filhos lhe causam horror e já não sente satisfação
em vê-los.” (v. 45, 46) Em seguida, a ama que diz conhecer bem sua dona,
teme que... “dissimuladamente traspasse com punhal agudo o próprio
fígado”... (v. 50, 51)
Em seguida, começa a aparecer o “olhar feroz de uma leoa que teve
filhotes” (v. 207, 208) que invoca “Têmis, filha de Zeus, deus dos juramentos”
(v. 232, 233) já preparando o caminho para uma justificativa do que está por
vir.
Neste estado de depressão, começa a aparecer o ressentimento de
Medéia. Lembra-se de tudo o que fez para ajudar seu amado a realizar suas
metas e percebe que, apesar de tudo, é vista como estrangeira e, portanto, sem
nenhum privilégio. Medéia inicia sua “ruminação”: “Estou só, proscrita,
vítima de ultrajes de um marido que, como presa, me arrastou a terra
estranha...” (v. 287, 288, 289) Vemos, portanto, que culpa seu marido de tê-la
retirado de seu ambiente e de usá-la como uma espécie de troféu que um dia
pode ser facilmente descartado, quando de posse do troféu seguinte.
Pode-se, assim, ver claramente o caminho percorrido pela psique
quando despossuída de seu objeto amoroso. Inicialmente se deixa tomar pelo
131
sentimento de abandono, entrando em estado depressivo, quase letárgico. Na
etapa seguinte, começa a se delinear uma linha de fuga, que transforma o
sentimento de apatia em agressividade, inicialmente auto-dirigida e em
seguida direcionada para o objeto causador da ofensa. Assim se expressa
Medéia neste momento, falando com o coro de vizinhas:
Vou dizer tudo que espero obter de vós:
se eu descobrir um meio, um modo de fazer
com que Jason pague o resgate de seus males
e sejam castigados quem lhe deu a filha
e aquela que ele desposou, guardai segredo!
Vezes sem número a mulher é temerosa,
covarde para a luta e fraca para as armas;
se, todavia, vê lesados os direitos
do leito conjugal, ela se torna, então,
de todas as criaturas a mais sanguinária!
(v. 293 – 303)
Não só a vingança começa a esboçar-se, como também sua justificativa.
Ou seja, é como se, diante desta ofensa sentida como injusta e, portanto,
aniquiladora, não só coubesse a vingança mais sangrenta imaginável, como ela
seria plenamente justificada.
Em vão as súplicas de Jasão. Em vão a expulsão de Creonte e sua
generosidade a contragosto: permite que fique mais um dia para despedir-se
de seus filhos. Medéia arquiteta seu plano e passa a executá-lo com a
implacabilidade do destino. Uma vez tomada a decisão, já nada mais pode
detê-la, apesar do coro, que neste momento a alerta: “Quanta desgraça a tua,
infortunada!... Para que chão dirigirás teus passos? Onde acharás um lar, uma
cidade a salvo da desdita?” (v. 402 – 406)
Medéia segue sua elocubração: “E neste dia serão cadáveres três
inimigos meus: o pai, a filha e seu marido.” (v. 421-423) “...incendiarei o lar
dos noivos, ou lhes mergulharei no fígado um punhal bem afiado, entrando a
passos silenciosos na alcova onde está preparado o leito deles..” (v. 426-429).
132
O ódio subjacente ao sentimento de vingança se expressa claramente no
requinte com o qual Medéia planeja a execução do seu plano. E diz: “Quando
eu puder contar com refúgio certo, consumarei o assassinato usando astúcia e
dissimulação; e quando eu decidir, nada, nenhum obstáculo me deterá...” (v.
442-444) Invoca, ainda, Hécate, deusa da encruzilhada, da magia. É que, neste
momento, recusa e trata de abandonar sua humanidade em prol da divindade
que perdeu e quer reconquistar. É a única saída que acredita ter a seu dispor.
Usará, portanto, de sua magia para executar o plano diabólico. Em suas
palavras: “...se a natureza fez-nos a nós, mulheres, de todo incapazes para as
boas ações, não há, para a maldade, artífices mais competentes que nós!” (v.
464-467)
Neste momento o coro adverte: “Voltam os sacros rios para as fontes e
com justiça marcham para trás todas as coisas.” (v. 468-470).
Portanto, o público é constantemente alertado para o desvario que está
por acontecer. Nos versos acima, claramente se diz que o que virá, vai contra a
natureza. Natureza esta entendida como aquilo que pertence ao natural
humano.
Assim mesmo, ocorre uma espécie de embate entre Jasão e Medéia,
onde ele trata de dissuadi-la de qualquer intento vingativo, mas ela o confronta
com uma série de recriminações, em que relembra tudo o que fizera para
ajudá-lo e que não merecia este desfecho de relação. Enfim, temos um diálogo
bastante atual entre um casal em crise, nada muito diferente do que se escuta
hoje nos consultórios de psicologia, cada um invocando o céu e a terra para
fazer o outro “cair em si”. Finalmente Medéia encerra a conversa “Corre! Vai
consumar depressa o casamento, pois se os deuses me ouvirem tuas reais
bodas serão de tal maneira estranhas que nem tu hás de querer a noiva para tua
esposa!” (v. 723-726). Novamente entra em cena o coro, alertando que
133
“...amor sem freios não traz aos mortais honra ou virtude. Quando porém
Cipris
155
é comedida, não há divindade mais benfazeja, mais cheia de graça.”
Medéia, depois de garantir sua segurança futura com a proteção de
Egeu, que jura dar-lhe guarita, passa a executar sua vingança.
Invoca Zeus em nome da justiça e se deixa inundar pelos sentimentos
vingativos, o que põe em marcha o inexorável: a ação, no caso, destruidora de
seus inimigos. “[Glauce] perecerá em meio às dores mais cruéis e quem mais a
tocar há de morrer com ela, tão forte é o veneno posto nos presentes.” (v. 900-
903); e mais “devo matar minhas crianças e ninguém pode livrá-las desse
fim.” (v. 905, 906) e “matando-os, firo mais o coração do pai.” (v. 937).
Que não paire a menor dúvida a respeito dos caminhos possíveis para a
vingança, uma vez ativado seu circuito: inicialmente trata-se de um
movimento vital, já que move a psique, ou seja, põe em movimento energias
até então estão em estado letárgico, ou dormentes. A partir deste momento, o
escoamento, no nível das ações ou atitudes, pode seguir caminhos
ambivalentes, tanto construtivos como destrutivos de uma subjetividade.
Assim se expressa Medéia, neste momento: “Que ninguém me julgue covarde,
débil, indecisa, mas perceba que pode haver diversidade de caráter: terrível
para os inimigos e benévola para os amigos. Isto dá mais glória à vida”. (v.
923-927).
Segue-se um período de intensa ambivalência, em que Medéia cogita
voltar atrás em seus desígnios, ou seja, poupar os filhos. Neste longo
monólogo, mostra claramente estar de posse de suas faculdades mentais.
Trata-se de uma série de pensamentos expressos de forma coerente,
evidenciando toda a duplicidade envolvida em atos extremos. Pondera suas
ações oscilando em uma e outra direção, mas a expressão da vingança está por
155
Cipris – Uma das designações de Afrodite.
134
demais avançada para ser apaziguada. Em outras palavras, parece haver um
ponto além do qual o retorno não é mais possível, por mais que se pondere a
respeito. A psique acaba encontrando fórmulas racionais para justificar aquilo
que é exigência da energia liberada pelo desejo de vingança. Assim, Medéia
diz: “se a morte é inevitável, eu mesma, que lhes dei a vida, os matarei!” (v.
1208-1210).
E, finalmente o que me parece ser o epíteto desta tragédia, já antes
mencionado, “Sim, lamento o crime que vou praticar, porém maior do que
minha vontade é o poder do ódio causa de enormes males para nós,
mortais!”(v. 1226-1229).
Parece que a energia que move a vingança é sentida na medida exata do
apaziguamento necessário à psique. E o imediatismo exigido também o é.
Assim, o sofrimento psíquico diante da ameaça de aniquilamento exige
redenção o mais rapidamente possível, já que o nível de sofrimento envolvido
é insuportável para a psique.
De nada vale o vaticínio de Jasão “Ah! Céus! Matem-te as Fúrias
vingadoras de nossos filhos e a justiça certa!” (v. 1584-1585) “Tu os mataste!”
(v. 1593). Ao que Medéia responde: “Para que sofresses!” (v. 1594)
156
.
Finalmente aparece aquilo que poderíamos chamar na atualidade de
“moral da história”:
Dos píncaros do Olimpo Zeus dirige
o curso dos eventos incontáveis
e muitas vezes os deuses nos deixam
atônitos na realização
de seus desígnios. Não se concretiza
a expectativa e vemos afinal
o inesperado. Assim termina o drama.
(v.1609 – 1615)
156
Com o nosso olhar contemporâneo, temos que sorrir diante do inexorável, ou seja, os terceiros – mesmo
os filhos – envolvidos na trama que rege as relações conjugais serão sempre sacrificados de uma forma ou
outra em “proveito” da contenda do casal.
135
De certa forma isto significa que sempre pode acontecer o que menos se
espera, ou seja, por mais que se deseje controlar o destino, este se nos escapa.
Por outro lado, Eurípides coloca na figura de Zeus a justificativa para ações
das quais o homem é capaz, mas que escapam a uma compreensão linear do
humano. É a manifestação da psique com sua intensa turbulência subjacente
que apenas milênios depois de Eurípides pode começar a tomar forma com os
estudos de Freud.
De qualquer maneira, para um personagem que atua como Medéia,
matando seus próprios filhos, não é pequena a sua ambivalência. Por um lado,
o amor a seus filhos; por outro, a frustração provocada pela traição do marido
a faz entrar em contato com o peso de ser uma estrangeira ostracizada. Assim,
empurrada para os limites de sua existência, na encruzilhada entre o humano e
o divino, sente-se impelida a esta ação extrema: matar, matar, matar. Inclusive
seus filhos. Só assim poderá sentir-se redimida.
Aqui, vale lembrar Ésquilo, com sua trilogia, Orestia, que é composta
de três peças, Agamêmnon, Coéforas e Eumênides. Ele a escreveu por volta de
467 a.C.
Desta trilogia, interessa, para fins deste trabalho, entender a longa
“saga” dos personagens, cuja história é composta, como aliás em todos os
mitos, de uma série de assassinatos, onde cada geração tem o dever de vingar
a morte consangüínea acontecida na geração anterior. Quando isto não se
realiza, as Fúrias ou Eríneas perseguem implacavelmente aqueles cuja
“responsabilidade” não foi cumprida. Até que finalmente, com a terceira
trama, as Eumênides, por intervenção da deusa Atena, as Fúrias se acalmam e
se transformam nas Eumênides, o que marcaria o início do patriarcado, com o
advento das leis e a instituição permanente dos tribunais.
136
Podemos dizer que a partir da tragédia grega se revela ao público o
princípio das regras sociais, que eventualmente desembocarão nos rudimentos
da democracia, iniciando-se o período do patriarcado, ou seja, do masculino,
com suas leis e normas.
Entretanto, vale recordar que ainda se trata de um período de transição
entre matriarcado e patriarcado, e que, portanto, o sacrifício de crianças ainda
é bastante rotineiro. Assim, a questão da culpa filicida apenas desponta neste
período. É que a questão que se coloca para o período em que se esboça a
interdição para tais rituais é inicialmente a seguinte: de quem é a culpa pelos
sacrifícios humanos? Dos Deuses a quem eram dedicados? Das sacerdotisas
que os executam? Da coletividade que aprovava tais ritos? Obviamente, de
todos é a conclusão do nosso olhar no seu exercício de regredir alguns
milênios.
Mas a própria pergunta só pode ter surgido após o interdito, o que, por
sua vez, mobilizou a consciência em relação àquelas práticas, doravante
consideradas desumanas.
Entretanto, lembremos que Eurípides, ao situar Medéia no período de
transição entre matriarcado e patriarcado, durante a qual ainda imperavam,
entre outros deuses titânicos, as Fúrias, indica uma fragilidade masculina, já
que Jasão, neste momento representando o masculino, se mostra venal e
irresponsável, interessado apenas na consecução de seus objetivos. É o que
ocorre em períodos de transição. Atuam, simultaneamente as leis do
matriarcado e patriarcado.
Acredito que vivemos na contemporaneidade uma situação semelhante
no campo da política. Com a queda dos impérios socialistas, o mundo,
aparentemente globalizado, parece ser regido unicamente pelas leis de
mercado. Novos códigos começam a nortear nosso comportamento global.
137
Grandes populações de excluídos, principalmente do hemisfério sul, reagem
como podem a esta situação. É quando entra em cena a possibilidade da
vingança como último reduto possível de vida. Matar e/ou morrer.
Em recente entrevista, o eminente sociólogo Laymert Garcia dos Santos
apresenta uma visão bastante interessante a respeito da democracia. Diz ele
“Sou bastante pessimista. Estamos assistindo ao enfraquecimento contínuo da
democracia representativa.”
157
Desta maneira, o terrorismo como o vemos na
contemporaneidade pode ser uma das manifestações de um momento de
transição histórica. Falarei mais sobre isto adiante.
De qualquer forma, não se trata de reduzir a questão política
exclusivamente a uma compreensão de Medéia. Apenas sinalizar o quanto este
arquétipo pode estar constelado no inconsciente coletivo da atualidade.
Sem a possibilidade de elaboração pertinente a estes processos
inconscientes, a violência individual e coletiva pode se manifestar em
proporções impensáveis. E, de certa forma, já é o que vemos acontecer a partir
de notícias que nos chegam, inclusive, via Internet.
Acredito que, pelo menos no Brasil, a tragédia aponta até para o fato de
que Medéia, como arquétipo inconsciente, passa se expressar, na
contemporaneidade, através do inconsciente masculino, conforme podemos ler
em recentes notícias de jornal. Lemos a história do cidadão que atirou seu
filho de aproximadamente dois anos contra o pára-brisa do automóvel, o
namorado traído que envenena a filha da amada e outras histórias mais.
158
É que, apesar de ser um arquétipo feminino, nada impede os arquétipos
– que, como disse, são atemporais - de se manifestarem tanto na psique do
homem como da mulher, já que ambos contêm em seu sistema psíquico os
157
Garcia dos Santos, L. entrevista ao Estado de S.Paulo de 18 de Setembro de 2005, p.J4
158
Estas e outras histórias encontram-se, por inteiro, no Anexo III – 1 a 3
138
dois princípios, o masculino e feminino.
159
O que ocorre é que em
determinados momentos históricos um ou outro arquétipo pode se manifestar
preferencialmente em homens ou mulheres. Medéia, por ser um arquétipo
feminino, é mais comumente associado às mulheres. Os exemplos citados no
Anexo II remetem à atualidade no Brasil.
Assim, nos chegam mais histórias de homens filicidas do que anos atrás,
o que indica que, se apostamos na leitura de Medéia como um arquétipo que
se manifesta preferencialmente em períodos de instabilidade ou movimento,
provavelmente algo no nível do inconsciente coletivo está em movimento. E,
ainda há pouco, lembrei que Medéia é um arquétipo associado à
transformação, e é, portanto, esperado que se manifeste nestes períodos.
Se isto é assim, penso que pode estar conectado com uma série de
acontecimentos do último século, quando, além da revolução política e da
informática, temos também o surgimento claro do movimento para a
emancipação feminina. Parece que este século tomou de assalto a psique
humana, que ainda busca como melhor reagir a estas “novidades”. Sobre esta
questão, falarei mais adiante.
A seguir, algumas palavras sobre o princípio materno, ou seja, a figura
da mãe, contraposta à sua sombra, ou seja, a madrasta.
159
Jung chama o princípio feminino no homem de anima e o masculino na mulher de animus
139
4.2 A mãe e sua sombra: a madrasta, a bruxa
A intenção, neste capítulo, é rastrear os rumos da expressão do feminino
na maternidade. Mais especificamente, vislumbrar a vingança como
componente intrínseco do feminino atuante nos dias de hoje. A idéia é
introduzir as “Medéias” que invadem, através da mídia, o nosso quotidiano.
Mesmo “Medéias” do sexo masculino que pululam lá e cá, inclusive porque
na atualidade quem exerce o papel materno nem sempre é a mãe.
160
Assim, vou me referir ao papel materno sempre que falar da mãe. E
falar da mãe é, freqüentemente, falar do feminino, já que, ainda hoje, início do
século XXI, freqüentemente se confunde maternidade com o feminino mais
amplo.
Falar da mãe é falar de um arquétipo que se manifesta em qualquer
sociedade de qualquer tempo histórico, quer seja em tribos aborígines, onde a
maternidade pode ser exercida, inclusive, pelo conjunto de todo um povo (às
vezes até pelos homens), quer seja na sociedade ocidental da
contemporaneidade, onde ela se exerce não exclusivamente pela mãe
biológica mas, mais freqüentemente até, pela mãe substituta, babá, avó, “tia”
de algum berçário, madrasta, companheira do pai, quando não, pelo próprio
pai ou cuidador.
Geralmente, a maternagem se confunde com “doação”, “amor”, enfim,
cuidar e nutrir de maneira a promover uma determinada intimidade entre
cuidador e cuidado, ou seja, inicialmente, mãe e bebê. E estas características
são, na sociedade ocidental, estreitamente associadas não só à maternidade,
mas ao mundo feminino.
160
Ver anexos III. De I a 3
140
Mas, o mundo feminino não foi sempre o que se dizia dele no século
XX. Como já mencionei em capítulo anterior, há autores, entre eles Jung, que
acreditam ter havido época em que imperava o matriarcado, ou seja, a
linhagem feminina, todo-poderosa. Ela representava a encarnação do poder
divino, sendo respeitada e venerada pelo povo. O ventre materno, sagrado,
detinha, por assim dizer, o monopólio da criatividade representado pela
capacidade de procriação: de fato e de direito, um privilégio feminino.
Geia, representante da grande mãe-terra, era a energia inspiradora
desses tempos, em que ela, e somente ela, a terra, era capaz de gerar
determinadas preciosidades, indispensáveis à sobrevivência humana. A
Natureza, entendida como o mundo em geral, incluindo seus grandes
mistérios, navegava sob a égide do princípio feminino.
Outros autores, mais contemporâneos, como Magdalena Ramos,
contestam a existência deste período. Evolucionistas como Bachofen e Lewis
Henry – citados pela autora - apoiavam a idéia do matriarcado, mas Lévi-
Strauss refuta esta vertente afirmando, segundo Ramos, que “a humanidade
teria começado a partir de relações triangulares, caracterizadas pelo exercício
do poder do pai sobre a mulher e os filhos.”
161
Sua idéia é a de que teria
havido, na realidade, uma aliança entre os homens através da força, o que lhes
garantia posições de liderança, versus a mulher, que freqüentemente adotava
uma postura física curvada – em direção ao filho ou à plantação – que poderia
ser facilmente interpretada como de submissão e/ou inferioridade.
Como não é objeto deste trabalho aprofundar esta questão, me permito a
liberdade de considerar que, no contexto do que me interessa, ou seja, a
vingança, pouco importa se de fato houve ou não um matriarcado. O fato é
que na psique temos notícia dele, já que os arquétipos se manifestam através
de imagens e estas, referendadas por mitos, são indicativas de um poder
161
Ramos, Magdalena. In: “Vínculos amorosos contemporâneos”. São Paulo: Callis, 2003. pg. 57, 58.
141
feminino ancestral. Em outras palavras, a psique parece funcionar como se
contivesse imagens que remetem a um poder feminino ancestral. E é a isto que
me refiro neste texto.
Este feminino ancestral, uterino, continente e poderoso era,
simultaneamente, feroz, ciumento e... vingativo, isto é, em nada parecido com
o que a cultura ocidental nos apresentou como feminino nestes últimos
milênios.
Em priscas eras, e usando como referência a mitologia grega, ao mesmo
tempo em que se admitiam matanças quase generalizadas, inclusive entre os
deuses, os crimes consangüíneos eram malditos e perseguidos pelas Fúrias ou
Eríneas, como vimos. Assim, o papel feminino incluía atitudes e ações que,
com o passar dos séculos, foram sendo delegados exclusivamente aos homens.
Temos, portanto, como humanidade, no nosso inconsciente coletivo,
reminiscências de histórias míticas, onde, sob certas circunstâncias, o
feminino podia revelar-se cruelmente vingativo e, inclusive, para este fim,
desempenhando um papel ativo.
Com o poder masculino iniciando sua institucionalização, acaba por
instalar-se no mundo ocidental o patriarcado
162
, em que o princípio feminino,
como potência, começa sua longa jornada para o “underground”,
permanecendo na superfície apenas uma espécie de estereótipo que passa a
ocupar preferencialmente dois espaços privilegiados: o da maternidade,
incluindo aí o papel cuidador em geral, e, em segundo lugar, mas não lugar
menos importante, o espaço do inconsciente.
163
Assim, do momento em que o princípio masculino começa a dominar a
cena nas sociedades ocidentais, sempre tomando como referência a civilização
162
O patriarcado não foi instituído em um determinado período, com data marcada. Tratou-se de um processo
lento e paulatino que se estende aos dias de hoje.
163
Esta condição à qual foi relegado o princípio feminino durante milênios acaba cobrando um preço como
podemos vivenciar na contemporaneidade. Sobre isto, falarei, em maior detalhes, em capítulo posterior.
142
grega, muito do feminino passa a ser vivenciado como material inconsciente,
freqüentemente reprimido, portanto, associado à sombra.
É também nesta época em que o patriarcado começa a se
institucionalizar que a divisão mais clássica entre o “bem” e o “mal” na
expressão humana começa a se formatar. O princípio feminino também sofre
esta dicotomização, de maneira que no inconsciente ficam aqueles aspectos
que, de acordo com os novos valores, são considerados negativos ou
expressões do “mal”. Na superfície, ou seja, no nível consciente, aparecem
aqueles aspectos ditos positivos e valorizados, já que estão adequados aos
moldes sociais. Lembro, entretanto, que muito do feminino já estava a
caminho do inconsciente. Agora percorre este trajeto – da superfície às
profundezas – separado: o “bem” e o “mal” femininos.
Como conseqüência, aquilo que era expresso nos mitos, através de
deuses ora pródigos, ora capazes das piores atrocidades, começa a sofrer um
julgamento moral e a ser dicotomizado. Com o advento das leis, passa a
vigorar o princípio do “certo” e “errado”, com suas conseqüentes punições
devidamente associadas. Os mitos, no plano consciente, deixam de ser balizas
para o comportamento humano, passando à história como uma espécie de
literatura referente à nossa ancestralidade. No plano inconsciente, entretanto,
continuam seu trabalho, manifestando-se na subjetividade
164
através de
arquétipos sempre e quando a psique seja confrontada com um complexo ou
evento numinoso ou crucial, capaz de potencialmente desencadear uma crise.
Assim, a partir de então, toda a mitologia que passa a povoar o
inconsciente (individual e coletivo) começa a aparecer no ideário cultural
apenas através de resquícios; ou seja, para o nível consciente migram imagens
que, ao serem narradas e passadas de geração em geração, às vezes de região
164
É possível também a eclosão de determinados arquétipos, que passam a “contaminar” grupos, como
veremos mais adiante.
143
em região, vão sofrendo pequenas transformações, chegando a nós em forma
de histórias fantásticas que se construíram à medida que estas reminiscências
foram se disseminando e acrescentando.
Os Contos de Fada
Nada como os contos de fada para nos aproximar das questões do
“bem” e do “mal”. Neles, estas duas instancias estão, em geral, tão claramente
diferenciadas que nos aparecem quase como uma caricatura; daí talvez a idéia
de apresentá-los às crianças, passando a funcionar como ensinamentos básicos
do que vem a ser a humanidade, ou a sociedade, no caso, ocidental.
Dessas histórias, talvez as mais antigas de que temos notícia sejam
aquelas dos relatos da Ásia Menor, que posteriormente deram origem às
Sagradas Escrituras, e das “Mil e uma noites” na cultura árabe, também mais
tarde transformados em manuscritos. Simultaneamente, no continente indo-
europeu começam a aparecer histórias populares, transmitidas por tradição
oral. De todas essas histórias quero ressaltar os assim chamados contos de
fada europeus.
Sua origem é desconhecida, mas autores como Marie-Louise Von
Franz, analista junguiana que dedicou grande parte de sua obra ao estudo desta
forma de expressão, acredita que possa tratar-se de “remanescentes
degenerados de mitos e doutrinas religiosas, .... ou que.... eles provêm de uma
parte degenerada da literatura. Já disse também que são uma espécie de sonho,
mais tarde contados como histórias”
165
. Ainda, segundo a autora, eles têm
origem européia e africana.
165
Von Franz, M.L. – “A sombra e o mal nos contos de fada”. São Paulo: Edições Paulinas, 1985. p. 19.
144
Nos contos de fada, as histórias, quando comparadas aos mitos, refletem
traços mais humanos, ainda que bem generalizados. Essas histórias eram
contadas nos vilarejos por pessoas comuns entre o povo e se espalhavam de
região em região, adquirindo luz própria de acordo com os acréscimos ou
transformações que sofriam ao passar de uma área à outra. Inicialmente
relatados por contadores de histórias “profissionais”
166
, os contos de fada
foram se disseminando e adquiriram a popularidade abrangente de que hoje
temos notícia.
Muito desta notoriedade se deve a que esta forma de expressão,
inicialmente de transmissão oral, passou a adquirir uma roupagem literária a
partir dos irmãos Grimm
167
, que reuniram uma série desses relatos e os
transpuseram ao papel. Outros autores se seguiram, reunindo as histórias mais
conhecidas para publicação.
Menciono os contos de fada, pois me parece que neles podemos
encontrar os conteúdos do feminino ferido de que se trata quando vemos ainda
hoje, ou seja, em plena contemporaneidade, a dicotomia entre a mãe dita
“boa” e a “má”, esta última freqüentemente associada à figura da madrasta,
bruxa e secundariamente à sogra.
168
Para entender a maldade encarnada pelo personagem feminino, há de se
referir não ao inconsciente individual, mas ao coletivo. A sombra coletiva
feminina vê-se projetada, nos contos de fada, em mulheres que, por inveja
(Branca de Neve – “Espelho espelho meu, existe alguém mais bela do que
eu?”) ou ciúmes (A Gata Borralheira – as irmãs versus a “irmã” enteada,
doce, alegre, como diríamos hoje, “de bem com a vida”, mesmo sendo
166
A autora, suíça, relata que até o séc. XVII os contos de fada eram destinados não somente às crianças, mas
também aos adultos de classes menos privilegiadas, como camponeses, lenhadores etc., onde se contratavam
pessoas que narravam os contos enquanto as mulheres, por exemplo, fiavam.
167
Os irmãos Grimm publicaram pela primeira vez os “Children and Household Tales”, primeiro volume, em
1812, contendo 86 contos. Em 1814/5 publicaram o segundo volume com mais 70 contos. Assim, publicaram
200 contos e mais 10 lendas infantis. Entre 1816–18, publicaram 575 lendas alemãs e européias.
168
Na cultura ocidental a caricatura da mãe sombria (má) passou a ser encarnada pela madrasta e/ou a sogra.
145
explorada pela família) cometem suas pequenas e grandes maldades contra
aquela que crêem ser a responsável por suas agruras. Neste sentido, as
manifestações inconscientes que aparecem nos contos de fada nos dão conta
das vicissitudes sofridas pelo princípio feminino nos últimos milênios.
É interessante notar que, no mundo ocidental, é através dos contos de
fada, introduzidos ao conhecimento das crianças desde a mais tenra idade, que
somos, talvez pela primeira vez, expostos às questões do “bem” e do “mal”.
Qual seria o sentido desta exposição senão mostrar às crianças, desde o berço,
aquilo que em seguida será reprimido pela socialização, isto é, pela
civilização? Em outras palavras, é como se precisássemos ser lembrados de
que existe no mundo muita coisa que em determinado momento é visto como
muito natural
169
, tanto que pertence às histórias contadas para as crianças
adormecerem à noite. A verdade é que os contos de fada nos mostram
personagens capazes de maldades terríveis uns contra outros. E são estas as
histórias que contamos, todos nós, às crianças no momento de maior
intimidade com eles. No quentinho dos cobertores, pimpolhos incautos são
introduzidos nos caminhos de um mundo traiçoeiro e cruel, povoado de
fantasmas, bruxas e fadas. É assim que recebem precocemente esses
“imprintings” ditos civilizatórios. Mais tarde, nossos filhos terão de aprender
que não se pode “comer a vovozinha” e muito menos “abrir a barriga do
caçador com enorme facão para retirá-la de suas entranhas”.
Considero que um conto de fadas, em especial, nos ajudará a melhor
entender a dicotomia que se operou na mulher, mais especificamente, no
feminino, e que ao mesmo tempo aponta para movimentos que se operam na
contemporaneidade. Trata-se do conto russo “A Bela Wassilissa” relatado por
Von Franz que passo a descrever:
*****
169
Natural, neste contexto, se refere à natureza como um todo.
146
“A Bela Wassilissa”
170
“Era uma vez um reino muito distante onde viviam um mercador e sua
mulher. Eles tinham apenas uma filha chamada a Bela Wassilissa (a palavra
Wassilissa quer dizer rainha, mas é somente um nome comum). Quando a
menina estava com oito anos, a esposa do mercador chamou a filha dizendo
que ela, sua mãe, logo morreria, mas que lhe deixaria sua bênção maternal e
uma boneca. Wassilissa deveria sempre guardar a boneca junto a si, sem
mostrá-la a ninguém; se estivesse em dificuldades, deveria aconselhar-se com
a boneca. Tendo dito isto, a esposa do mercador morreu.
Posteriormente o mercador casou-se com uma viúva que tinha duas
filhas, mais ou menos da idade de Wassilissa. Aos poucos a madrasta foi
ficando hostil a Wassilissa, mas sempre sua boneca a confortava.
Um dia o mercador teve que sair do país por muito tempo. Durante sua
ausência a madrasta mudou-se com suas três filhas para outra casa, perto da
floresta. Numa clareira dessa floresta ficava a casa de Baba-Yaga (a grande
bruxa dos contos de fada russos). A ninguém era permitido aproximar-se dela,
e qualquer um que caísse em suas mãos era comido como se fosse uma
galinha. A situação convinha à madrasta, pois ela tinha esperanças de que um
dia Wassilissa cruzasse o caminho de Baba-Yaga.
Uma noite a madrasta deu três velas às filhas, ordenou-lhes que
bordassem, tricotassem e fiassem, e foi dormir. Com o passar das horas as
velas queimaram. Uma das meninas pegou sua agulha de tricô para limpar os
pavios mas propositadamente acabou fazendo com que a vela se apagasse. Aí
ela disse que não se importava, pois podia fazer o seu bordado sem luz; a outra
disse que podia tricotar sem luz, mas você, as duas meninas disseram a
Wassilissa, deve ir à casa de Baba-Yaga arrumar fogo para que a gente possa
170
Von Franz, M.L. “A sombra e o mal nos contos de fada”. São Paulo: Ed. Paulinas, 1985. p. 203 a 207.
147
ter luz novamente e a empurraram para fora. A menina foi até seu quarto e
perguntou à boneca o que deveria fazer. A boneca lhe disse para não ter medo
e ir aonde as outras a tinham mandado, levando-a consigo pois a ajudaria.
Wassilissa andou durante toda à noite. Aí encontrou um cavaleiro
vestido de branco, montado num lindo cavalo coberto de branco e no
momento em que ele passou por ela, o dia nasceu. Pouco depois encontrou um
segundo cavaleiro vestido de vermelho, montado num cavalo coberto de
vermelho e nesse momento o sol surgiu.
Tendo já andado toda a noite, Wassilissa andou durante todo o dia
seguinte. À tarde chegou à clareira onde ficava a casa de Baba-Yaga. A casa
era rodeada por uma cerca feita de ossos humanos intercalados de caveiras. As
trancas das portas eram feitas de braços de esqueletos e a fechadura, de dentes
de caveira. Wassilissa estava apavorada, quase desmaiando e como que
pregada no chão, quando, de repente, um cavaleiro negro, num cavalo também
negro, passou galopando e a noite caiu. Mas a escuridão não durou muito, pois
logo os olhos das caveiras na cerca começaram a brilhar, e a clareira ficou tão
iluminada como se fosse dia. Wassilissa tremia de medo mas logo ouviu um
zunido estranho; as árvores começaram a farfalhar e Baba-Yaga surgiu da
floresta. Ela vinha sentada dentro de um almofariz e com uma vassoura
apagava suas pegadas. Quando chegou à porta, cheirou o ar e disse: "Sinto
cheiro de russos! Quem está ai?".
Wassilissa foi ao seu encontro e curvando-se disse: "Sou eu, vovó,
minhas irmãs de criação me mandaram aqui para lhe pedir fogo".
"Bom", respondeu Baba-Yaga, "eu as conheço. Fique um pouco comigo
e depois você terá o fogo".
Daí ela pronunciou umas palavras mágicas. A porta se abriu, Baba-
Yaga entrou no páteo e depois a porta se fechou atrás delas. Ela então mandou
148
a menina acender o fogo e lhe trazer comida. Comeu bastante, deixando
praticamente nada para Wassilissa: só um pouco de sopa de repolho e uma
crosta de pão. Aí deitou-se para dormir e disse a Wassilissa que na manhã
seguinte, depois que ela saísse, Wassilissa deveria varrer o páteo e a casa,
fazer o almoço, lavar a louça, separar os grãos bons dos carunchados. Tudo
deveria estar pronto na hora que chegasse em casa, caso contrário ela a
comeria.
A menina pediu ajuda à boneca e esta lhe disse que não tivesse medo,
que jantasse, fizesse suas orações, deitasse e dormisse, pois "a noite é boa
conselheira".
Na manhã seguinte, quando acordou, Wassilissa olhou pela janela e viu
que os olhos das caveiras já estavam se fechando. O cavaleiro branco passou e
o dia nasceu. Baba-Yaga saiu e a menina andou por toda a casa, admirando
seus tesouros. Daí ficou imaginando por onde começaria o trabalho, mas todas
as tarefas já tinham sido feitas pela boneca, que estava justamente terminando
de separar o último grão preto dos brancos.
De noite, quando Baba-Yaga chegou, encontrou tudo pronto e ficou
furiosa, pois não havia em que pôr defeito. Aí uma coisa muito estranha
aconteceu, pois ela gritou: "Meus fiéis servos, moam os grãos para mim". E
três pares de mãos de esqueletos apareceram e levaram os grãos.
Em seguida a bruxa deu ordens para o dia seguinte, dizendo que a
menina deveria fazer tudo o que já tinha feito no dia anterior e além disso
limpar as sementes de papoula. Na noite seguinte, ao retornar, Baba-Yaga
chamou mais uma vez as mãos para extraírem óleo das sementes de papoula.
Enquanto Baba-Yaga jantava, Wassilissa ficou ali perto, silenciosa.
Baba-Yaga disse: "Por que é que você está olhando sem dizer nada? Você é
muda?"
149
A menina respondeu: "Se pudesse, gostaria de lhe fazer algumas
perguntas".
"Pergunte", disse Baba-Yaga, "mas lembre-se, nem todas as perguntas
são boas. Saber demais envelhece!".
Wassilissa então disse: "Gostaria somente de lhe perguntar a respeito
das coisas que tenho visto: no caminho de sua casa um homem todo vestido de
branco passou por mim montado a cavalo. Quem era ele?".
"Esse é o meu dia, o luminoso", respondeu Baba-Yaga.
"E daí outro cavaleiro passou por mim, todo vestido de vermelho e
montado num cavalo vermelho. Quem era ele?".
"Esse é o meu sol. O vermelho".
"E daí, no portão, apareceu um cavaleiro negro".
"Esse é a minha noite, o escuro".
Então Wassilissa pensou nos três pares de mãos mas não ousou
perguntar mais nada, ficando quieta.
E Baba-Yaga disse: "Por que você não me faz mais perguntas?"
E a menina respondeu que essas eram suficientes, acrescentando: "Você
mesma disse, vovó, que perguntar demais envelhece".
Aí Baba-Yaga retrucou (e isto é importante): "Você fez bem em
perguntar só a respeito do que viu lá fora, e não do que viu dentro da casa.
Não gosto quando a sujeira é levada para fora. Mas agora eu quero perguntar a
você uma coisa: Como conseguiu fazer todas as tarefas que lhe dei?"
"A benção de minha mãe me ajudou", respondeu Wassilissa. (Ela não
mencionou a boneca).
150
"Ah, foi isso? Então dê o fora daqui, filha abençoada, eu não preciso de
nenhuma benção em minha casa!".
E Baba-Yaga pôs Wassilissa para fora, empurrando-a pelo portão. Tirou
da cerca uma das caveiras com olhos flamejantes, colocou-a num pau e deu-a
à Wassilissa dizendo: "Aqui está o fogo para suas irmãs, pegue-o e leve-o para
casa".
A menina afastou-se correndo de Baba-Yaga, fugindo através da
floresta escura, iluminada apenas pela luz da caveira que só se extinguiu
quando o dia nasceu. Na noite seguinte ela chegou em casa. Quando se
aproximou do portão pensou em jogar a caveira fora, mas uma voz cavernosa
disse: "Não faça isso, leve-me para sua madrasta".
Assim Wassilissa obedeceu e quando entrou com o fogo no quarto, os
olhos flamejantes da caveira fixaram-se na madrasta e em suas filhas,
queimando sua alma e perseguindo-as onde quer que fossem se esconder.
Quando amanheceu, tinham virado cinzas, e somente Wassilissa escapou sã e
salva.
De manhã, Wassilissa enterrou a caveira, fechou a casa e foi para a
cidade.
****
Vou resumir a segunda parte da estória. Wassilissa foi morar com uma
boa velhinha que lhe comprou fio para tecer linho. O linho que tecia era tão
bonito que era usado para fazer camisas para o rei. Através disso ela entrou
em contato com o rei e os dois se casaram. Quando seu pai, o mercador,
voltou, ficou muito feliz com a boa sorte da filha. Foi morar com ela no
palácio e com a mulher idosa que a ajudara, que Wassilissa havia trazido
consigo (assim novamente ela tem pai e mãe), e a boneca, ela a conservou até
o fim da vida.”
151
****
Há muito que se dizer a respeito desse conto. Mas vou me ater
principalmente à questão da divisão entre o “bem” e o “mal”. Essa divisão
excludente já vem sendo questionada na história. Dostoievski na literatura,
Nietzsche na filosofia, apenas para citar alguns exemplos, são expoentes
máximos que, nas respectivas obras nos mostram o que empiricamente e,
principalmente, pela nossa própria vivência, já é sobejamente conhecido:
ninguém age movido por um único impulso. Somos todos um esplendoroso
arco-íris cujas manifestações podem aparecer de mil modos diferentes,
dependendo das condições ou, mais especificamente, das energias disponíveis
à psique em determinado momento. E estas energias nos vêm dos símbolos
e/ou complexos ativados na psique. O que vivenciamos na contemporaneidade
é que as barreiras rígidas entre opostos começam a se borrar e novas maneiras
de compreensão da vida aparecem no cenário intelectual.
Inicialmente, fica claro que o conto é um “clássico”. Isto no sentido de
dicotomizar claramente seus personagens em “bons” e “maus”. Inicia-se com
um clima ameno e uma família em ambiente tranqüilo, até que se prenuncia a
tragédia: doença e morte da mãe (personificação do bem). Entra em cena a
madrasta, esta fiel representante da sombra feminina não elaborada e suas
maquinações (personificação do mal). Em alguns contos, existe o
desdobramento destes personagens, ou seja, mais de um personagem a
perpetrar o bem e outros tantos para o mal. Neste conto, aparece apenas mais
um personagem incorporando forças negativas: a bruxa. Mas como veremos,
nem tudo é como parece ser. Lá no finalzinho entra em cena a “boa velhinha”
que, após mil peripécias, recebe Wassilissa até o retorno de seu pai e é,
inclusive, através dela que ela sela seu destino – casar-se com o rei. Este
conto, como todos os contos de fada, por terem uma função educativa,
preconiza uma moral no seu final, ou seja “o bem”. Dito de outra forma, o
152
ensinamento parece ser o seguinte: quando o mal é extirpado, pode prevalecer
o bem.
Vejamos como isto se dá em maior detalhe.
No início da história, novamente (conforme em Branca de Neve e A
Gata Borralheira), vemos a mãe de Wassilissa sendo a representante da
bondade infinita, já que mesmo diante da morte se preocupa em legar à sua
filha proteção eterna através de uma benção e uma boneca. Trata-se, portanto,
da representação clara do aspecto positivo da mãe. Em seguida, entra em cena
a madrasta (“mal”), avesso de mãe (“bem”), que sem nenhum pejo na primeira
oportunidade maquina livrar-se da enteada. Aliás, mais do que isso: deseja sua
morte. O interessante é que a madrasta espera que um mal maior a devore; em
outras palavras, há todo um trabalho de planejamento para que a tarefa seja
executada por outra pessoa, este personagem, então, incorporação do “mal”:
trata-se de Baba-Yaga, a bruxa. Psicologicamente, podemos entender que num
ambiente social dicotômico que preconiza a separação estanque entre opostos
como “certo” “errado”, “bem” e “mal” (entre tantos outros), para que a psique
sobreviva à sua pluralidade inerente, ou, dito de outra forma, sua plasticidade
multicolorida, é preciso que projete para fora de si aquilo que contém como
possibilidade, mas não pode expressar sem correr o risco de marginalização.
Assim, podemos ver que Baba-Yaga representa aquela parte do feminino que
é rejeitada, afastada, eliminada, negada. Sabemos que a energia subjacente aos
aspectos negados, quando não elaborados, ao se manifestar, o faz de forma
violenta, irracional e destrutiva. É o “pega, mata e come”
171
que conhecemos
171
“Carcará” de José Cândido e João do Vale, 1964.
Carcará
Lá no sertão
É um bicho que avoa que nem avião
É um pássaro malvado
Tem o bico volteado que nem gavião
Carcará
Quando vê roça queimada
Sai voando, cantando,
Carcará
153
tão bem, inclusive a partir da canção. O que parece claro, entretanto, é que a
maldade da bruxa, por não se manifestar imediatamente em toda a sua
potência, permite a Wassilissa o tempo necessário para que inicie um certo
desenvolvimento egóico. É um princípio de amenização de características
estanques e prenuncia possibilidades de compor entre opostos. Desta maneira,
aquilo que na aparência é de uma crueldade máxima, segundo o conto, de fato
se transforma em uma possibilidade de resgate para ambas personalidades, ou
seja, de Baba Yaga e Wassilissa. O que por sua vez aponta para a
possibilidade de um des-acirramento das condições humanas, se assim
quisermos ver.
Entretanto, as maquinações do feminino, com suas sutilezas, meandros
indecifráveis pelas leis do raciocínio lógico, apenas se insinuam neste conto.
Wassilissa, ao não se dobrar nem desafiar a bruxa, a “reforça” na sua
atitude complacente para com a menina, que por sua vez, através de sua
Vai fazer sua caçada
Carcará come inté cobra queimada
Quando chega o tempo da invernada
O sertão não tem mais roça queimada
Carcará mesmo assim num passa fome
Os burrego que nasce na baixada
Carcará
Pega, mata e come
Carcará
Num vai morrer de fome
Carcará
Mais coragem do que home
Carcará
Pega, mata e come
Carcará é malvado, é valentão
É a águia de lá do meu sertão
Os burrego novinho num pode andá
Ele puxa o umbigo inté matá
Carcará
Pega, mata e come
Carcará
Num vai morrer de fome
Carcará
Mais coragem do que home
Carcará
154
atitude, permite à bruxa experimentar ou experienciar um comportamento
mais complacente.
Uma vez tendo despachado Wassilissa à floresta, para seu encontro com
a bruxa, a menina inicia uma batalha velada do “bem” contra o “mal”. A bruxa
exige que a menina execute determinadas tarefas domésticas, algumas
bastante trabalhosas, no que ela é auxiliada pela boneca mágica. Os dois
personagens, menina e bruxa, detêm de certa forma poderes mágicos de que se
utilizam neste embate. Simbolicamente, trava-se uma surda batalha pela
sobrevivência psíquica da menina. A ameaça, sempre presente, é da invasão
da psique da bruxa sobre Wassilissa, que, com ajuda de determinadas mágicas,
consegue não se deixar aniquilar. Pelo contrário: serve-se desta situação para
promover seu desenvolvimento psíquico em direção a posições mais
amadurecidas. A benção materna e a boneca não são senão representantes da
potência já incorporada no desenvolvimento prévio da menina. Entretanto,
necessita ainda do objeto (boneca) para garantir sua (da potência) presença.
Em outras palavras, o concreto ainda tem função prevalente na psique da
criança. Apesar de não sabermos a idade precisa da menina, o resultado de
suas ações nos mostra o quanto é precisa a maneira como manipula suas
“armas”.
Nesta história, como na maioria dos contos de fada, ganha o “bem”, já
que Wassilissa sai ilesa da aventura e, no final das contas, a madrasta e as
irmãs invejosas é que morrem. Wassilissa, depois de algumas peripécias, casa-
se com o rei e vive feliz, inclusive para a alegria de seu pai quando este,
finalmente, retorna de viagem.
Repito este final de forma extra-concisa, pois sempre me chamou a
atenção a maneira como geralmente terminam os contos de fada. Os últimos
parágrafos parecem não obedecer ao ritmo do conto. É como se o autor já
tivesse dito o que queria e ansiasse por pôr fim à empreitada. Parece, portanto,
155
que o encanto da trama está nos seus meandros. Uma vez desenvolvido o tema
principal, há que seguir adiante, pensar em outro conto, talvez. Assim, os
contos de fada já apontam para o processo como sendo de vital importância,
até muito mais vital do que seu final. O que, por sua vez, remete aos processos
psíquicos cuja influência vivemos ao longo de toda uma vida, sendo,
evidentemente, mais precioso, neste sentido, o enredo do que seu final.
É interessante notar neste conto o aparecimento da “mauvaise
conscience” ou seja, a consciência pesada. Pode-se interpretar a morte da
madrasta e filhas pela caveira de olhos flamejantes como o resultado de uma
certa culpa.
Esta culpa merece algumas palavras adicionais. Trata-se, como bem
conhecemos a partir da clínica, do resultado de profundas paixões. No conto,
Wassilissa é o “produto” de uma relação anterior do marido da madrasta. Até
pouco tempo atrás, no ocidente, na cultura judaico-cristã, a família constituía-
se em moldes bastante estanques no que tange os papeis do homem e mulher
no casamento. Ao homem, responsável pelo sustento de sua família, eram
reservados papeis mais agressivos, já que tinha que se voltar para o mundo em
busca de oportunidades de trabalho que favorecessem sua família. Já à mulher,
os papeis domésticos a que se dedicava realçavam o cuidado com a casa, as
relações entre os membros da família, as emoções, em geral. Naturalmente,
esta divisão de trabalho leva também ao desenvolvimento de competências
específicas. Assim, podemos dizer que o homem acabava desenvolvendo
aptidões para lidar com o mundo externo, enquanto a mulher lidava melhor
com o mundo interno. Externo e interno, entendidos, aqui, tanto na prática
como nos processos psíquicos.
No século vinte, muitos fatores colaboraram para que a estrutura
familiar sofresse grandes transformações. Pode-se citar, a título de exemplo,
os movimentos feministas, cuja conseqüência primeira foi a entrada da mulher
156
no mercado de trabalho (em cargos antes apenas destinados aos homens), e os
avanços tecnológicos, como por exemplo o aparecimento da pílula
anticoncepcional, que proporcionou à mulher uma liberdade erótica inusitada.
Como conseqüência, novas modalidades de constituição familiar passaram a
conviver com as formas tradicionais. Assim, na atualidade, famílias de
composição que vou nomear de “mistas” são corriqueiras no cenário social.
Casais em segundo ou terceiro casamentos não são mais exceção, nem casais
homossexuais adotando filhos. Ora, isto exige, por parte da psique, um certo
trabalho de integração de aspectos antes não vivenciados, freqüentemente
reprimidos.
Faz parte da intolerância humana odiar a vida pregressa do companheiro
(a). O desejo de recomeçar a vida, com a fantasia de retornar
cronologicamente aos primórdios da relação amorosa, mobiliza profundas
correntes afetivas. No conto, a madrasta, no desejo de eliminar Wassilissa,
visa apagar do passado qualquer vestígio possível na sua relação com o
marido (vestígio de relação que porventura o marido possa ter tido – e de fato
teve, já que aí está a filha deste encontro que não permite negações - com
outra mulher). No afã de retornar cronologicamente ao passado, a madrasta
perde de vista seu próprio processo, ou seja, de que ela mesma tem duas filhas
anteriores a este casamento, passando a atuar como se fosse uma adolescente
lutando para encobrir uma pecha na vida pregressa de seu marido, como se
necessitasse afirmar a sua existência, as suas marcas ad aeternum, tanto no
nível da ascendência como da descendência. A madrasta, inclusive, para estes
fins, se faz acompanhar de suas filhas que, em perfeita união e harmonia
contra a ameaça de um passado sobre seu presente e futuro, compactuam com
a mãe na necessidade de eliminar Wassilissa. É como se, eliminando o “fruto
do ventre”, pudessem apagar a existência da história pregressa. Nos
consultórios abundam histórias de famílias com problemas múltiplos de
vinculação afetiva concernente aos filhos de genitores diversos que em
157
determinado momento decidem coabitar. Pais lutam pela posse dos filhos,
privilegiam a prole própria em detrimento da do companheiro(a), etc. Nestas
histórias, o pai ausente, a mãe, madrasta ou bruxa comparecem retratados de
forma tão transparente ou caricata, que às vezes parece que estamos diante dos
personagens de um conto de fadas.
Von Franz nos diz da simbologia dos olhos flamejantes “a madrasta e
suas filhas são destruídas, não pela menina, mas pelo fenômeno do mal, a
consciência pesada, seu próprio mal...”
172
. É que a autora associa os olhos da
caveira com o olhar da consciência, que queima e mata. Em outras palavras, o
“mal” é funesto para quem dele se utiliza na consecução de seus objetivos. O
“mal” deve ser punido, de preferência com a morte. Temos, aí, resquícios de
um período ancestral quando de fato era o que ocorria. E, preferencialmente,
através do feminino.
Segundo Alfredo Naffah, quando ocorre um ato filicida, como em
Medéia, é muito comum que, além do desejo vingativo mobilizado pelo ódio
ao parceiro, exista também uma meta inconsciente que seria exatamente esta:
a de apagar qualquer vestígio da história anterior, eliminando seu resultado: o
filho.
173
Entretanto, Wassilissa não tem a intenção de matar suas irmãs e
madrasta; este fato ocorre, simplesmente. E o que a menina faz a seguir é
enterrar a caveira, esquecendo-a a partir daquele momento. Aqui, este conto
nos revela uma espécie de sabedoria: “tudo o que é mal, tende a produzir uma
reação em cadeia, seja suicídio, vingança ou pagar o mal com o mal; ...”
174
.
Assim, ao enterrar a caveira, a menina interrompe esta espécie de círculo
172
Von Franz, M.Louise, “A sombra e o mal nos contos de fada” Ed. Paulinas, S.Paulo 1985, p. 218.
173
Discussão realizada por ocasião do Seminário Interlocuções Clínicas ministrado pelo prof. Alfredo Naffah
Neto no decorrer do segundo semestre de 2004 no Programa de pós graduação em Psicologia Clínica da
PUC/SP
174
Von Franz, M.Louise, “A sombra e o mal nos contos de fada” Ed. Paulinas, S.Paulo 1985, p. 218.
158
vicioso. Esse círculo traduz uma história sem fim, como conhecemos, por
exemplo entre católicos e protestantes na Irlanda, ou ainda judeus e árabes no
Oriente Médio. Cada ato deve ser vingado por outro de iguais ou maiores
proporções. O sentido dessas lutas não é outro, no limite, senão afirmar a
supremacia de um ou outro sistema de crenças, sempre tendo em mente uma
grande e absoluta verdade, justamente aquilo que sabemos, no contemporâneo,
ser impossível, já que há múltiplas perspectivas para qualquer situação ou
dado. A grande batalha que se prenuncia para este milênio é a conquista da
tolerância. Aceitação versus imposição. As diferenças podem acrescentar e
não devem, necessariamente, diminuir ou eliminar.
Esta sabedoria significa aprender a perder para ganhar. Em outras
palavras, é preciso saber “quitter la table quand l’amour a été servi”, como
diz outra canção.
175
Certamente uma das maiores e mais difíceis
170. “Il faut savoi”. Charles Aznavour
Il faut savoir encore sourire
Quand le meilleur s'est retiré
Et qu'il ne reste que le pire
Dans une vie bête à pleurer
Il faut savoir, coûte que coûte,
Garder toute sa dignité
Et, malgré ce qu'il nous en coûte,
S'en aller sans se retourner
Face au destin, qui nous désarme,
Et devant le bonher perdu,
Il faut savoir cacher ses larmes
Mais moi, mon coeur,je n'ai pas su
Il faut savoir quitter la table
Lorsque l'amour est desservi
Sans s'accrocher, l'air pitoyable,
Mais partir sans faire de bruit
Il faut savoir cacher sa peine
Sous le masque de tous les jours
Et retenir les cris de haine
Qui sont les derniers mots d'amour
Il faut savoir rester de glace
Et taire un coeur qui meurt déja
Il faut savoir garder la face
Mais moi je t'aime trop
Mais moi je ne peux pas
Il faut savoir
Mais moi je ne sais pas
159
aprendizagens humanas, principalmente no mundo contemporâneo, onde a
pressão social e cultural que nos chega do primeiro mundo, mais
especificamente dos Estados Unidos, é ainda muito no sentido do acerto
sempre maior e mais incondicional e mais rapidamente possível. Há que se
“agregar valor”...
Este dado é importante, já que a questão da contaminação do
pensamento, emoções e principalmente paixões pode ser referido aos
fenômenos de massa.
De qualquer maneira, o que se vê neste conto, como em tantos outros, é
uma luta de foice entre o “bem” e o “mal” com diferentes matizes, mas
sempre claramente dicotomizados.
Escolho este conto porque percebo que prenuncia, ao mesmo tempo em
que explicita, uma certa aproximação destes opostos.
Um destes momentos é quando Baba-Yaga, teoricamente bruxa
implacável, acaba poupando Wassilissa, mandando-a de volta para casa, de
posse do fogo que fora buscar. Algo ocorre neste conto de fada: A bruxa não é
tão má assim! Parece que aí se estabelecem os rudimentos de um movimento
de continuidade entre opostos. O “bem” no seu limite fusiona-se com o “mal”
e vice-versa. Em outras palavras, detectam-se na bruxa “sementes” de
generosidade. A menina, por outro lado, “mostra seus dentes” na medida em
que percebe que deve mentir, omitindo da bruxa os poderes mágicos de sua
boneca, pois ela (Baba-Yaga) poderia enfurecer-se ao saber que sua presa
também tem poderes mágicos. Assim, Wassilissa, que no início do conto
representa o “bem”, mostra que contém em si não somente esta possibilidade
de agir no mundo que a cerca. Ela também é bastante competente na arte de
ludibriar o adversário, sabendo olhar para ver. Percebe a fragilidade da velha
160
bruxa e a explora em benefício próprio. Omite a presença da boneca e não faz
as perguntas que poderiam ser consideradas invasivas e assim desencadear a
fúria da bruxa. Mostra, portanto, que também contém em si as “sementes”
equivalentes do “mal” em relação às da bruxa no quesito do “bem”. Além
disto, dá sinais de que no processo de convivência com Baba-Yaga teria
conquistado uma certa maturidade, posto que consegue conter partes de seus
desejos em prol de um objetivo maior: a sobrevivência.
Portanto, no imaginário ocidental, na medida em que o princípio
feminino começa a tomar consistência, para se instalar no nível da consciência
como algo de valor renovado, começa também a irromper a sua sombra. Esta
pode aparecer de diferentes maneiras. É que o que esteve muito tempo
reprimido, quando irrompe, traz consigo uma energia às vezes furiosa.
Quando se manifesta sem uma elaboração, aparece sombriamente.
176
O que
não significa, obviamente, que somente existem estas duas possibilidades.
Lembremo-nos, sempre, das mil nuances.
Assim, de fato, me parece que com a emergência do feminino dos
recônditos do inconsciente coletivo, no seu lento caminhar para a superfície, é
de se esperar que suas (do feminino) partes mais sombrias se manifestem,
“pipoquem”, fazendo-se presentes de várias maneiras, especialmente em
situações psicológicas ditas limite, para uma sociedade, subjetividade ou
grupo, levando a atos extremos, antes talvez impensáveis.
Pessoas mais sensíveis, mais desprotegidas psicologicamente, podem
ser presas fáceis deste clima psíquico e inadvertidamente se prestarem a
veicular aspectos sombrios deste feminino emergente. Estas subjetividades
podem também servir de “contaminantes” para pequenos grupos, que se
alastram podendo transformar-se em grandes movimentos de massa.
176
É o que chamamos de atuação, ou seja, ato sem elaboração, no limite, poderíamos dizer possessão.
161
Portanto, quando invoco Medéia como mito representante deste
momento histórico é precisamente porque, para que o feminino comece seu
longo percurso em direção à livre expressão de sua potência, é necessário que
grandes quantidades de energia estejam disponíveis à psique. E, justamente, o
intuito deste trabalho é demonstrar que a vingança pode ser um dos vetores a
propiciar este caminho à psique. Se ela (energia) for mobilizada sem a
elaboração necessária, numa descarga direta, dela derivarão atos extremos e
seguramente pouco construtivos, tanto em termos individuais como coletivos.
Isto porque de pouco vale uma descarga energética sem uma compreensão
maior das imagens subjacentes e provocadoras associadas a ela. Ou seja, para
que um complexo possa ser elaborado, é preciso que o símbolo possa se
manifestar, pois é através dele que a energia psíquica se transforma de seu
estado “bruto” para seu desdobramento. Caso a elaboração não aconteça, a
energia percorre o caminho psíquico já bastante conhecido de analistas, que é
a descarga transformada em agressividade pura. Entretanto, se houver
elaboração pertinente, esta energia poderá conectar-se a múltiplas
possibilidades de expressão do self, que, por certo, não se reduzem à avaliação
de “bem” ou de “mal”, o que por sua vez poderá levar a importantes
realizações pessoais e coletivas, favoráveis ao desenvolvimento humano. Estes
são os rumos para a individuação
177
.
177
Muito resumidamente, individuação é aquele conceito junguiano que representa a aquisição daquelas
características que expressam a singularidade de uma pessoa. Este processo é tarefa e se prolonga por toda
uma vida e leva a pessoa a desenvolver aquilo que lhe é peculiar. A pessoa vai se transformando, ao longo da
vida, naquilo que realmente é.
162
IV – 3 Uma Medéia/madrasta contemporânea: Ivete
Ivete está condenada a 21 anos de prisão. O motivo da pena é o de ter
assassinado a enteada de 9 anos de idade. Está em seu quinto ano de
cumprimento da pena.
Inicialmente, Ivete não quis dar a entrevista, pois dizia que era muito
difícil recordar os acontecimentos e não gostava de falar sobre seu crime.
Aliás, não gostava de falar, pois “era muito tímida e retraída” (sic). Esteve
comigo durante aproximadamente quinze minutos, durante os quais tentei
ganhar sua confiança, mas em vão. Disse que a primeira vez que falou a uma
psicóloga, na carceragem, ela (psicóloga) teve de voltar duas vezes antes que
se dispusesse a falar. Assim, me assegurou que se eu voltasse dali a uma
semana talvez conseguisse falar comigo.
Perguntou-me várias vezes se o que eu iria escrever sairia nos jornais
e/ou televisão; eu lhe assegurei que não. Mas pareceu não se convencer.
Expliquei-lhe ser da PUC, estar escrevendo uma tese de doutorado etc. Fez-
me ouvidos moucos. “Talvez dentro de uma semana”, repetia sem me olhar
nos olhos e com voz embargada, quase chorando.
Uma semana mais tarde (no mesmo dia e hora) telefonei à carceragem,
falei com uma funcionária que me havia atendido e perguntei-lhe se ela tinha
algum recado da Ivete para mim. Ela respondeu que sim. “Ivete disse que
ainda não está pronta para a entrevista, mas acha que daqui mais uma semana
talvez estará.”
Esperei pacientemente mais duas semanas, sempre com a mesma
resposta semanal de Ivete, até que, sem telefonar, apresentei-me à funcionária
do presídio pedindo para falar com Ivete. Ao chegar, a funcionária nos dirigiu
a uma sala onde poderíamos conversar. A sala era pequena e ficava no fundo
163
de outra sala pela qual tínhamos que passar. Esta sala do fundo não tinha
porta, apenas uma abertura pela qual passávamos à salinha que continha uma
mesa, 2 cadeiras e uma janela. Ao sentar-se à minha frente, Ivete ficava de
costas para a abertura que conduzia à outra sala. Dali, podíamos ouvir o
burburinho da conversa das pessoas nas outras salas.
Ivete parecia mais tranqüila e antes que eu pudesse dizer qualquer coisa
disse “Aqui não dá pra gente falar. Eu quero uma sala fechada”. Eu disse que
ela estava com toda a razão e que eu tentaria providenciar.
Minutos depois fomos conduzidas a uma das salas de “psicologia” para
termos a privacidade necessária. No trajeto não pude deixar de me surpreender
com esta atitude de Ivete.
A entrevista foi gravada com a autorização de Ivete, que não quis
escolher um nome fictício, mas não queria, obviamente, que se usasse o dela.
Concordou com minha sugestão de “Ivete” e fez reiteradas recomendações
para que não se publicasse nada nos jornais ou TV. Disse que não assistia
noticiários na TV por não estar preparada para ver e ouvir coisas terríveis,
portanto não queria ser, ela, colaboradora do incremento destas notícias. Disse
que na época do crime havia saído muito nos noticiários e ficou
“traumatizada” (sic).
No final da entrevista, despedimo-nos e prometi levar-lhe uma cópia do
trabalho, assim que estivesse pronto. Pairava no ar uma sensação de
desconforto mútuo. Entre nós, todas as dicotomias tão explicitadas na
sociedade ocidental do século XX pareciam tomar corpo e bailar à nossa volta:
certo/errado, fada/bruxa, liberdade/confinamento, possibilidade/restrição, e
tantas outras! Sem falar na minha sensação de opressora-exploradora versus
vítima-explorada.
164
Entrevista
I – Vai ser muito difícil...Eu não sou de falar muito. Aliás, pedi a sala
fechada porque o próprio juiz me disse para não comentar a razão da
minha prisão com as colegas. Disse que quanto menos eu falasse,
melhor seria. Tenho algumas amigas aqui dentro, mas não falamos
sobre isto. Acho melhor você começar a fazer perguntas.
J – Certo. Então me conte porque você está aqui.
I – Você não sabe? Não leu meu prontuário?
J - Não. Não li seu prontuário. Só sei que teve a ver com a morte de
alguma criança, pois é o que eu precisava para a minha pesquisa.
I - Acho que vai ser difícil. Quando falei com a outra psicóloga, ela me
fazia perguntas. Fica mais fácil.
J - Você está aqui há quanto tempo?
I – Cinco anos.
J - E foi condenada a quanto?
I – Vinte e um anos.
J – Como foi que isto aconteceu?
I - Eu mesma não sei como isto foi acontecer comigo. Eu casei com ele
muito novinha e ele tinha uma filha de 3 anos. Fiquei casada 6
anos...
J – Você gostava dele?
I – Adorava! Separei-me dele três vezes, mas sempre voltava. Não
conseguia deixar de gostar dele. Olha, para falar a verdade, nos cinco
anos que estou presa minha vida aqui dentro é mil vezes melhor do
que os seis que fiquei casada. Foi uma verdadeira tortura. Ele não me
deixava sair de casa. Não me deixava dinheiro para nada, não tinha a
chave de casa, enfim era uma empregada dele. A gente morava no
Morumbi, com bastante luxo, mas eu não podia desfrutar de nada
porque eu tinha que lavar, passar, limpar e cozinhar pra ele. Ele era
tão exigente que as camisas dele tinham que estar sempre todas no
armário em ordem, enfileiradas. A limpeza tinha que ser minuciosa.
Para sair eu tinha que mentir, me esconder e quando ele
percebia.....bem, ele nunca me bateu, mas me jogava contra os
móveis ou a parede, ou sobre a cama e gritava muito, xingava....era
terrível!
J – Mas você ficou casada seis anos. Como isto aconteceu?
165
I – É que eu tinha loucura por ele. Ele tinha as padarias dele e eu sabia
que tinha outras mulheres. Isto me deixava furiosa. A primeira vez,
me separei dele e fiquei 4 dias longe. Mas ele veio me buscar e eu
voltei. A segunda vez, me separei dele por 3 semanas. Mas de novo
voltei. Eu chorava todas as noites debaixo do cobertor para minha
irmã não ver. Minhas irmãs ficavam bravas comigo, porque sabiam
como ele me maltratava. Não entendo como eu amava tanto aquele
cara! A terceira vez, fiquei três meses fora. Já havia encontrado
emprego numa padaria, estava refazendo minha vida. Mas ele veio
de novo me buscar, me prometeu que não haveria mais mulheres e
que eu poderia trabalhar na padaria dele. Ele tinha muitos negócios,
além das padarias, tinha oficina mecânica. Então eu acreditei nele e
voltei. Fui trabalhar na padaria, no caixa. Mas fiquei sabendo que
durante os três meses que fiquei fora ele tinha tido muitas mulheres.
J – Você teve filhos?
I – Não, só a enteada dele.
J – Me conte o que aconteceu
I – Eu mesma não sei como aconteceu. Só sei que me arrependo muito
daquilo. Penso muito no que fiz e não consigo entender porque tudo
aconteceu. No primeiro ano do casamento eu era muito feliz, eu
gostava muito dele e a gente vivia muito bem. Mas depois ele
começou com aqueles ciúmes e controle. A vida com ele naqueles
cinco anos foi mil vezes pior do que os cinco anos que estou aqui.
Aqui tenho trabalho, ganho salário e tenho amigas. Com ele, não
podia sair de casa, não tinha ninguém para conversar e vivia só
dentro de casa trabalhando para ele. Às vezes ele chegava tarde da
noite e eu tinha que servir jantar pra ele. Foi horrível. E queria me
separar, até, como já te falei, me separei três vezes. Mas minha mãe
ficava me dando conselhos, que era para eu voltar, quem sabe as
coisas melhorariam. É que na minha família não tinha isto de
separação. Então minha mãe sempre me aconselhava a tentar de
novo, dar uma nova chance a ele. Mas não adiantava. Minha vida
com ele era horrível. Eu chorava muito. Às vezes ficava três dias
inteiros só dentro do quarto chorando. Uma época minha irmã veio
morar comigo e ela via. Foi muito ruim. Às vezes ele chegava tarde
e arrebentava a porta que estava trancada.
J – E com sua enteada, vocês se davam bem?
I - No começo até que a gente se dava bem. Depois...não entendo como
isto foi acontecer. Ela não tinha nada que ver com as traições do pai
dela. Ela era apenas uma menina. Era inocente. Não consigo
entender como é que tudo aconteceu. Não tem um dia em que à
166
noite, antes de dormir, eu não me lembre daquela cena e não me
pergunte como foi que aquilo pode ter acontecido!
J – Você disse que se separou dele 3 vezes mas sempre voltava. Como
isto acontecia?
I – É que ele vinha atrás, me infernizava, telefonava para a casa da
minha irmã, da minha mãe, até eu atender ao telefone. Na segunda
vez que eu me separei dele, ele me ligava todos os dias, durante 40
dias, até eu voltar para casa. Eu dizia que iria voltar para Fortaleza e
ele me perguntava quem pagaria minha passagem. Eu disse que seria
um tio. Ele não acreditou, continuou telefonando até eu voltar para
casa. Mas foi a mesma palhaçada. Depois ainda separei dele mais
uma vez, fiquei três meses fora, mas voltei de novo. É que eu
gostava muito dele. Não sei porque. Mas desta vez ele me havia
prometido que eu poderia trabalhar na padaria ele. E de fato, ele me
deixou trabalhar. Aí uma sexta feira à tarde tocou o telefone e me
chamaram. Eu atendi e era uma mulher que disse que era a mulher
dele, do meu marido. Aí eu disse que quem era a esposa dele era eu.
Ela disse que já tinha ido à minha casa e nunca havia me visto lá. Ela
perguntou quem eu achava que de nós duas estava mentindo. E que
ela é que era a mulher dele. Fiquei muito brava e quando terminou o
trabalho fui pra casa e esperei ele chegar. Quando chegou, eu disse o
que tinha acontecido, mas ele disse que era mentira, que eu tinha
inventado esta história. E foi ficando bravo, me empurrando, as
coisas que ele sempre fazia. Dizia que era mentira. Às 5 da manhã eu
acordei e fui ao quarto da menina, bati na porta e perguntei a ela se
era verdade que havia outras mulheres na vida do pai dela. Ela disse
que sim, que enquanto não estive em casa, todo dia ele vinha com
uma mulher diferente. Aí eu voltei para meu quarto, peguei a corda
do meu roupão, voltei ao quarto dela e enforquei a menina. Não sei o
que me deu. Não sei o que tinha dentro de mim. Foi como se um
espírito maligno tivesse entrado dentro de mim. Fiquei transtornada.
Você acredita em espiritismo? Porque foi como se uma coisa me
possuísse. Não sei...não sei o que me deu. Aí eu saí, fui no orelhão e
liguei pra ele e disse. ‘Volte para casa porque eu acabei de matar tua
filha’. Ele disse que não acreditava no que eu estava dizendo. Aí
voltei para casa, fui ao quarto da empregada, falei com ela e ela me
disse que não sabia de nada. Contei pra ela o que tinha feito. Fui ao
quarto, peguei umas moedas que tinha na cômoda, a bolsa, e saí.
Mas na minha mente eu ia encontrar com ele. Mas peguei um
ônibus, fui ao centro da cidade encontrar com minha amiga. Ela não
estava. Fiquei esperando ela chegar do serviço até as duas da tarde.
Mas naquele dia eu estava tão sonolenta, como se não conseguisse
ficar acordada. Onde me encostasse eu dormia. Mas não sentia nada.
167
No dia seguinte quando acordei, tinha uma dor nos braços enorme. À
noite eu vi a notícia na televisão, no dia seguinte me trouxeram o
jornal, e eu vi a notícia no jornal, mas era como se não fosse comigo,
eu não sentia nada, não conseguia entender o que estava
acontecendo. Fui à delegacia, contei pro delegado e ele me disse que
eu devia voltar para casa. Eu voltei e não tinha medo de sair à rua,
apesar de saber que meu marido andava à minha procura armado.
Mas eu não tinha medo. Saía como se não fosse comigo. Fiquei
assim uns meses e depois o advogado me aconselhou a viajar para o
interior. Aí ele mesmo arranjou para eu viajar para Rondônia e eu
fui. Mas não cheguei a ficar lá porque me prenderam.
J - Vamos voltar um minuto para o momento em que você voltou ao
quarto da tua enteada já com a corda do roupão na mão. Você
poderia me dizer o que estava sentindo?
I – Era um ódio tão grande que eu mesma não consigo entender o que
aconteceu. Não tem um dia em que eu não pense naquele momento.
Tento entender e não sei o que aconteceu comigo. Eu sou uma
pessoa tão calma, tão quieta...na minha cidade, na minha família
todo mundo sabia que eu era assim. Ninguém acreditou no que
aconteceu. Eu não entendo como tudo isso foi acontecer comigo.
J – Era como se quisesse acabar com aquela vida que você vivia, mas a
única maneira, na tua cabeça, era acabar com ele. Como ele era
muito forte, andava armado e te dominava completamente, você o
matou, matando sua filha.
I – Eu realmente não poderia ter enfrentado meu marido. Bastava eu
falar algo que ele sacava a arma e apontava para mim. Nunca atirou
em mim, mas uma vez deu um tiro na parede. Eu era a empregada
dele. Ele falava que queria me matar. Era horrível. Se ele chegasse
em casa às 3 da manhã, eu tinha que por a janta na mesa, com a
toalha impecável. Aliás, tudo tinha que ser impecável.
J – Acho que você estava sendo torturada psicologicamente e a única
maneira que você achou de sair desta situação foi acabando com ele.
E isto você fez, matando sua filha.”
178
A entrevista terminou poucos momentos depois. As minhas
intervenções finais ocorreram como uma forma de tentar dar-lhe algo em troca
178
Os três últimos parágrafos se referem a uma devolutiva minha a Ivete cujo objetivo foi retribuir de alguma
forma pela entrevista concedida. Trata-se, portanto, de uma “interpretação” de cunho eminentemente
apaziguador.
168
do que Ivete estava me dando. Era muito pouco em troca de seu gesto, mas era
o possível, naquele momento.
De início, Ivete se recusara a me dar uma entrevista. Por outro lado,
estendera uma mão sedutora dizendo que “talvez...daqui a uma semana”. Ao
me fazer esperar várias semanas, provavelmente esperava que meu interesse
estivesse à altura do que poderia me revelar. Minha persistência lhe era
necessária, já que fazia-a sentir-se possuidora de algo valoroso. Sua história
era, aos olhos da sociedade, companheiras, médicos, advogados etc., ao
mesmo tempo hedionda, motivo de vergonha e culpa, e agora abria-se a
possibilidade de também ser, de certa forma, motivo de certo orgulho, algo
que poderia acrescentar certa dignidade a sua história, já que passaria a fazer
parte de uma tese de doutorado.
Contar ou não contar sua história, vangloriar-se ou envergonhar-se
eram, acredito, no momento da minha proposta, as dicotomias em que Ivete se
debatia.
Apesar de perceber este jogo, optei por aceitá-lo, um pouco por
curiosidade e também por me sentir atraída a uma psique capaz de, num
momento de fúria, ato tão extremo. A proximidade com aquela mulher não
deixava de ser extremamente interessante e instigante para mim.
Assim, esperei pacientemente, jogando com Ivete o jogo necessário para
obter o resultado de que eu necessitava. Durante as semanas de espera, muitas
vezes senti a dubiedade do investigador. É lícito “explorar” para fins ditos
científicos a história alheia? O que Ivete ganha com isto? Se nada, o que estou
fazendo, senão repetindo a perversão dos dispositivos de poder em vigor na
nossa sociedade? Por fim, decidi abrir mão destas questões e proceder com a
entrevista.
Esta ocorreu na terça-feira, 23 de março de 2004, às 15hs.
169
Cheguei pontualmente e fui levada a uma sala nos fundos dos
escritórios do presídio. Em seguida, chegou Ivete, acompanhada por uma
atendente. Fomos encaminhadas para a sala seguinte.
Para minha surpresa, quando entramos nesta sala de entrevistas, sentia-
me muito mais inclinada à compreensão do que ao horror do que Ivete havia
cometido! Portanto, surpreendi-me com a fria objetividade com a qual
examinou a sala e pediu mais privacidade. Confesso que eu estava tão
envolvida com a perspectiva da entrevista que este “detalhe” me havia
passado quase despercebido.
Fiz, entretanto, uma anotação mental deste ocorrido para avaliá-lo mais
adiante.
No início da entrevista Ivete aparentava um certo recato, evitando olhar
diretamente para mim, pedindo que eu fizesse perguntas, como se fosse muito
difícil para ela encarar a realidade que a havia levado àquela circunstância.
À medida que vai fazendo seu relato, fica clara a paixão pelo marido, já
que se separara dele três vezes, mas sempre que ele aparecia e pedia que
voltasse, ela “obedecia”. Era como se estivesse “possuída” e atravessada por
um afeto sobre o qual nada podia.
Conforme já descrito em capítulo anterior, um afeto, quando se
manifesta sob a égide da paixão, pode invadir a psique e “apoderar-se” de uma
subjetividade, levando-a às últimas conseqüências.
“Eu mesma não sei como aconteceu. Só sei que me arrependo muito
daquilo”, diz Ivete, enquanto algumas lágrimas brotam de seus olhos. A
paixão desmesurada que sente pelo marido e que faz com que ela “esqueça”
sua violência (do marido) e volte ao lar sempre que procurada, vai cobrando
um preço. É como se vivesse duas realidades distintas: uma– inclusive
fomentada pela família e sociedade - que é de uma fantasia romântica com
170
toda a sua potência, e outra, a realidade, ou seja, o que ocorria de fato, vivido
no cotidiano. Escutava os comandos sócio-familiares que preconizavam o
amor eterno, a vida a dois, enfim, o sacrifício em prol da família. Para ser
considerada adequada, era necessário que fosse boa esposa e mãe. Deveria,
independente de qualquer outra realidade, apresentar-se como o feminino tipo
“mãe boa”.
De fato, o que acontecia é que vivia semi-reclusa, confinada aos quatro
cantos da casa, e exigida como tarefeira doméstica sem direito a erro ou
imprecisão. “A vida com ele foi mil vezes pior do que os cinco anos que estou
aqui. Aqui tenho trabalho, ganho salário e tenho amigas.”
179
Ivete, aparentemente, era uma daquelas pessoas anteriormente descritas,
cuja composição psíquica não conseguiu dar conta da vida como ela é,
cedendo a formas mais dicotômicas e, portanto, previsíveis e controláveis de
ser – até um determinado limite. O certo é casar, o correto é manter-se casada,
independentemente de qualquer circunstância. “Minha mãe ficava me dando
conselhos que era para eu voltar, quem sabe as coisas melhorariam. É que na
minha família não tinha isto de separação”.
Movida por sua paixão pelo marido e contida pelas exigências sócio-
familiares, encontrou-se, subitamente, diante de um momento limite.
Nestas circunstâncias, ou seja, ego frágil, pressão sócio-cultural-
econômica, dificilmente é possível para a psique suportar tal dicotomia. Qual
Medéia ensandecida, executa a enteada.
Existe, entretanto, outra compreensão possível. O ego, ao não suportar a
tensão na relação com o marido, regride a níveis arcaicos executando a filha,
179
Na carceragem onde está reclusa existe um sistema de trabalho ao qual aderiu que lhe dá salário. Trata-se
de uma fábrica de material hospitalar que instalou uma unidade no presídio. As internas selecionadas
trabalham 8 horas diárias, ganham salário mínimo e recebem treinamento. São tarefas simples, mas que dão a
estas mulheres uma certa dignidade; 20% do salário pode ser retirado mensalmente para seus gastos pessoais
e o restante é depositado em nome de cada uma numa poupança, a permanecer intocada enquanto estiverem
presas.
171
por entender que ela é a extensão natural do pai. Portanto, matar a enteada
corresponde a um acerto de contas com o pai.
Na Grécia antiga, era comum a descendência ser punida pelos crimes de
sua família de origem. Basta lembrar a história de Labdaco e sua
descendência, Laio, Édipo e seus filhos Etéocles e Polinices. O primeiro era
coxo e, portanto, associado a uma série de previsões nefandas. Um antigo
oráculo previa: “Atenção Esparta, firma-te sobre tuas duas pernas... para que
um dia tua realeza não se torne manca... Tu serias, então, cumulada de
males.”
180
Assim nasce Laio, filho de Labdaco que morre pouco tempo depois.
O trono é assumido por um estranho e Laio, desterrado, recebe a alcunha de
Canhestro por mostrar-se desequilibrado principalmente em seu
comportamento sexual, exacerbando a homossexualidade, causando,
finalmente, o suicídio de Crisipo, filho de quem lhe dera abrigo, Pélops. Este
lança, então, uma maldição sobre Laio “que condena sua raça ao esgotamento:
o genos dos Labdácidas não deve mais se perpetuar.”
181
Laio, entretanto, retorna a Tebas, reconquista o trono e casa-se com
Jocasta. É advertido que não deve ter filhos, pois corre o risco de ser
assassinado por um filho. Assim, passa a ter com a esposa “uma relação
desviada, de tipo homossexual, para não ter filhos. Mas numa noite de
embriaguez, não toma cuidado: semeia um filho no sulco de sua esposa.”
182
O
resto da história, todos já conhecemos.
O fato é que as paixões são insidiosas na sua expressão sombria.
Quando a fúria emerge, exige escoamento, freqüentemente, físico. Ivete,
mulher franzina, com não mais de um metro e sessenta de altura, aparentando
cinqüenta quilos no máximo, é tomada de força tal que consegue enforcar uma
180
Verrnant, J.P. e Vidal Naquet, P. “Mito e tragédia na Grécia Antiga”. vol. II. São Paulo: Ed. Brasiliense,
1991. p. 53.
181
Id. Ibid, p. 54
182
Id. Ibid. p 54
172
pré-adolescente de nove anos com o cinto de um roupão. “No dia seguinte,
quando acordei, tinha uma dor nos braços enorme”. O ódio e a desqualificação
de que se sente vítima naquele momento se volta contra o objeto de tal forma
que somente o aniquilamento (do objeto) poderia acalmar a violência interna à
qual estava submetida.
O terrível, no caso de Ivete, se refere ao fato de ter pagado com um
assassinato o preço de apaziguar sua alma. O encontro com a sombra é um
trabalho para toda uma vida e se a negamos, ficamos, no limite, à sua mercê.
Shakespeare assim se expressa através de Macbeth,
183
“ A vida é uma sombra andante, nada mais...
é uma fábula
contada por um idiota, cheia de som e de fúria,
que nada significa.”
Tendo passado sua sombra ao ato, nada mais resta a Macbeth senão uma
certa perplexidade e desconsolo diante da vida.
Parece que, de certa forma, o mesmo ocorre com Ivete. Após o
assassinato, é tomada por uma calma distanciada e sonolenta. Sai de casa,
pega ônibus, procura uma amiga, avisa o marido, enfim, age como se o
ocorrido não fosse o horror, segundo diz: “Não tem um dia em que à noite,
antes de dormir eu não me lembre daquela cena e não me pergunte como foi
que aquilo pode ter acontecido!” Ao mesmo tempo em que relata sua angustia,
percebo na sua expressão um certo conformismo, uma calma, um alívio,
talvez. Alívio do que seria uma angústia insuportável movida pelo ciúme da
mulher (a outra, a bruxa) que se identificara como “esposa” e,
impertinentemente ainda ousara perguntar “Quem de nós duas você acha que
está mentindo?” O marido, ao chegar em casa, acrescenta “caldo na fervura”
na medida em que diz que ela, Ivete, estava mentindo. Desconfirmada na sua
183
Zweig, C. e Abrams, J. (Org.). “Ao Encontro da Sombra”. São Paulo: Cultrix, 1991. p. 261.
173
percepção, o ódio atinge níveis insuportáveis e, aliado ao ciúme desvairado,
cobra seu preço às 5 da manhã, quando interroga a enteada e a enforca em
seguida.
Não vemos em Ivete sequer uma hesitação diante do ato. Não há espaço
para interiorização, pensamento racional. É fúria passada ao ato.
Medéia/madrasta contemporânea, inicia sua trajetória pós-ato no que
seria o equivalente à carruagem de fogo protegida pelos deuses: cela
individual com direito a trabalho remunerado e condições humanas de
tratamento, amizades etc. “Minha vida aqui dentro é mil vezes melhor do que
os seis anos que fiquei casada.” Castigo maior é para o marido que fica, qual
Jasão, sem a filha, ou seja, que se vê privado da descendência, ou, no limite,
de sua possibilidade de imortalidade.
Ao encerrar a entrevista, desligo o gravador e pergunto a Ivete se
gostaria de me dizer mais alguma coisa, ou se posso ajudar em algo.
Ela, então, me faz uma revelação surpreendente! Ao ser presa, ficou em
uma outra carceragem onde visitas íntimas eram permitidas. Decidiu
engravidar. Tem, hoje (na data da entrevista) uma filha de 3 anos, que a visita
regularmente trazida pela irmã. Deu à luz no presídio, onde ficou na
enfermaria durante os quatro primeiros meses, cuidando e amamentando sua
filha. Depois deste período, teve que entregá-la à família para que a cuidasse e
ela pudesse retornar ao presídio comum para terminar sua pena. Parte do
salário que recebe, entrega à irmã para ajudar no sustento da filha.
Diante do meu silêncio, Ivete me olha e diz: “Assim, quando sair daqui,
tenho por que viver.”
Enquanto me falava da filha, todo o seu semblante se transformou.
Deixou de ser a vítima chorosa e passou a exibir um ar de superioridade
estranha. Parecia que seu relato vinha com um sub-texto em que se lia uma
174
vitória qualquer. Era como se, no final das contas, tivesse ganhado a parada.
Agora sua vingança estava completa. Estava “quites” com seu marido. Mesmo
sem ter com ele um confronto verdadeiro, era como se o houvesse matado, já
que havia exterminado sua extensão, a filha. Além disto, havia conquistado
sua imortalidade. É que ao matar a filha do marido, reduz a sua (do marido)
existência ao mero período de vida; ou seja, quando ele morrer não restará na
face da terra marca alguma dele. Ivete, por outro lado, ao gerar uma filha
própria, afirma sua existência ao desdobrá-la n’outra, deixando sua marca
indelével para a posteridade. É a afirmação de uma vida sobre uma outra vida.
Em outras palavras, ela salva sua vida às expensas de outra vida.
O que isto significa em termos psicológicos? Pode parecer que se trata
de uma repetição
184
daquilo que já foi vivido anteriormente. Ou seja, se Ivete
se casa “para ser feliz” e, para tal, elege como parceiro uma pessoa que lhe
acena com uma possibilidade de vida mais confortável financeira e
economicamente, ao mesmo tempo, deixa de lado uma investigação mais
detalhada dos aspectos sombrios da personalidade de seu futuro parceiro. Se
por pressa de efetivar seu sonho ou por opção de negar estes aspectos, o fato é
que aquele casamento que deveria ser responsável pela sua felicidade,
transforma-se no suplício de Ivete. A repetição está em ela novamente projetar
sua “felicidade” em outra pessoa, desta vez na filha de três anos.
Viver através de outra pessoa, ou, em outras palavras, debitar sua vida
na conta de outrem é, em termos psicológicos, uma postura a ser investigada
em análise. Além da perda pessoal que é representada por uma personalidade
deste tipo, cabe um questionamento a respeito da vida vivida através de outra
vida.
184
Aqui me refiro à repetição em termos freudianos, conforme “Recuerdo, repetición y elaboración”, em
Obras Completas”. Vol. II, Madrid: Ed. Biblioteca Nueva, 1973. pg. 1683.
175
São personalidades cuja psique, por motivos vários, não suportando a
realidade na qual está inserida, abre mão da responsabilidade sobre sua vida e,
quando encontra parceiro complementar, passa a funcionar como uma parte
sua (do parceiro); em geral aquela que, se mostra como vítima mas que, na
realidade controla, subliminarmente, o parceiro. Muito parecido com as
personalidades “borderline”. Estas podem se desenvolver e se apresentar ao
mundo através de um “falso self” que é facilmente confundido, num primeiro
momento, por uma personalidade segura de si e perfeitamente atuante no
plano relacional.
Aqui, vale a pena lembrar Nietzsche. Para ele, a vida é um valor maior.
Tudo o que se contrapõe a ela, ou seja, o que diminui a potência vital, deve ser
evitado. Quando uma psique abre mão de sua potência para viver à sombra da
potência do outro, é como se negasse sua existência, o que equivale a negar a
vida. Portanto, não se trata de aplicar valores morais sobre o comportamento
de Ivete, ou de uma personalidade “borderline”. Mas sim uma ética. Porque,
segundo este autor, “os valores não têm qualquer fundamento ‘em si’: (...)
meu princípio maior: não há fenômenos morais, mas somente uma
interpretação moral destes fenômenos. Esta interpretação é, ela própria de
origem extra-moral.”
185
Não cabe, no sentido psicológico, portanto, analisar se
é “certo” ou “errado” o comportamento de Ivete. Mas o uso que fez de seu ato,
sua vingança.
Existe, entretanto, outra visão possível, que seria mais elaborada. Ter
uma filha poderia proporcionar a Ivete um outro sentido para a vida, já que
com ela seria possível refazer um caminho interrompido. Talvez, ao ensinar a
filha os caminhos para relacionamentos mais amadurecidos, possa recuperar,
ela também, a maturidade de que necessita para enfrentar sua vida.
185
van Balen, R. M. L. “Sujeito e Identidade em Nietzsche” Ed. UAPÊ Espaço Cultural Barra Ltda, 1999. p.
23
176
Meu breve contato com Ivete, evidentemente, não me permite
afirmações a respeito de sua personalidade, mas certamente abre
possibilidades para elaboração de hipóteses, como as acima mencionadas.
Entretanto, pelo meu contato pessoal com ela durante a entrevista,
acredito mais na primeira hipótese, já que fiquei bastante afetada pela
mudança brusca de sua postura e atitude enquanto me falava da filha. Volta à
minha sensação inicial, acima mencionada, de compreensão para com o drama
de Ivete. No final da entrevista, entretanto, me senti quase “traída”. A
sensação durante seu relato final foi de um frio distanciamento. E sincrônico:
de ambas as partes. Ou seja, a partir desta sua transformação, pude rever a
entrevista e lembrar-me da “objetividade” de Ivete ao olhar para a primeira
sala que nos havia sido oferecida e exigir um lugar mais “protegido”. Eu, no
meu total foco na pessoa de Ivete, nem sequer havia prestado atenção naquele
“detalhe” que, no meu consultório, jamais me escaparia.
Quando a vingança é constelada no inconsciente de uma subjetividade,
sua energia pode ser usada para re-conectar a psique às forças vitais de que
necessita para seguir sua vida. Para que isto aconteça, certamente a psique terá
de realizar um trabalho de elaboração desta paixão. Quando esta elaboração
não é possível, como no caso de Ivete, em que a vingança foi atuada, a energia
subjacente foi consumida no ato e, portanto, ficou indisponível para a psique
para uma possível elaboração do afeto. Assim, Ivete repete sua situação inicial
e, com isto, anda em círculos, correndo o risco de repetir situações de vida. Se
concordarmos com a primeira hipótese levantada, toda a sua potência vital fica
presa à repetição, deixando de estar disponível para o que, de fato, poderia ser
a vivência plena. Fica-lhe indisponível aquilo que a vida oferece de mais
intenso, ou seja, o devir: aquilo que é o imponderável, o não controlado, o
desconhecido, o potencialmente maravilhoso, o numinoso.
177
Porque viver através do outro significa abrir mão de seu movimento
vital, entregar-se ao embotamento afetivo, enfim, no limite, sucumbir à
vontade do outro.
Não é de estranhar que, uma vez tendo abraçado esta forma de vida,
Ivete tenha perdido o controle e cometido ato “hediondo”. Nossas leis
condenam da mesma maneira os psicopatas, os “serial killers” e as
personalidades que, por terem se submetido a situações-limite, não resistiram
e acabaram se entregando às forças sombrias do inconsciente.
Ficam as perguntas:
Será este procedimento de nossas instituições ético? Protege seus
cidadãos? Auxilia na recuperação dos recuperáveis? Ou trata-se de mais uma
vertente da massificação do poder constituído?
E mais:
Ivete já se perdoou? Ter tido uma filha anula o assassinato de outra
criança? Trata-se de uma “vítima das circunstâncias” que tenta como pode
reparar seus erros ou uma fria e premeditada personalidade?
E ainda:
Como deveriam os poderes instituídos agir nestes casos? Existe alguma
fórmula? O que poderia/deveria mudar no nosso sistema penal? Como realizar
esta mudança?
E por último:
Como validar uma energia potencialmente construtiva e que, quando
não elaborada, pode causar verdadeiras hecatombes?
Esta tese visa dar uma resposta possível à última questão.
178
5 - Conclusão
Chego ao final deste trabalho com uma última tarefa à minha frente:
costurar todas as pontas que fui deixando pelo caminho e, assim, apresentar ao
leitor um pano de fundo sobre o qual possa integrar os elementos apresentados
nos capítulos anteriores.
Iniciei com o 11 de setembro, fato que tomou de surpresa não só a mim
com meu paciente naquela terça-feira, mas o mundo inteiro. A globalização
encarregou-se de espalhar em tempo real as imagens que horrorizaram o
mundo. Este observou impotente seu mais novo holocausto e, com profundo
desanimo, exalou mais um “ultimo” suspiro e encerrou outra etapa de seu
“desenvolvimento”. O rei estava morto. Viva o rei!!
O que morreu com este episódio talvez tenha sido uma das ultimas (para
não ser mais pessimista) possibilidades de re-direcionamento do Império
186
no
seu caminho conquistador desenfreado.
Ficou, também, evidente que o ódio pode ocasionar verdadeiros
massacres quando turbinado pela vingança e estimulado pela soberba.
Diante disto, para não entrar no 11 de setembro propriamente dito, já
que muitos o fariam, (e fizeram) decidi concentrar esforços em um aspecto
deste episódio, aquele que mais me chamou a atenção após uma série de
186
Refiro-me aos Estados Unidos. O conceito de Império é proposto por Michael Hardt e Antonio Negri em
Império” Ed. Record, Rio de Janeiro, 2001, p 14/15. Segundo estes autores, “o conceito de Império
caracteriza-se fundamentalmente pela ausência de fronteiras: o poder exercido pelo Império não tem limites ...
o Império se apresenta, em seu modo de governo, não como um momento transitório no desenrolar da
História, mas como um regime sem fronteiras temporais, e, neste sentido, fora da Historia ou no fim da
História...Não apenas regula as interações humanas como procura reger diretamente a natureza
humana...apesar de a prática do Império banhar-se continuamente em sangue, o conceito de Império é sempre
dedicado à paz – uma paz perpétua e universal fora da História.”
179
leituras e reflexões a respeito, mais especificamente, um afeto que me parecia
ser fundante e portanto um dos elementos provocadores do acontecimento: a
vingança.
Empreendi um caminho tipo “colcha de retalhos” pois me interessava
explorar vários aspectos que chamavam a atenção em conexão com o tema
proposto. Senti a necessidade de demonstrar que a vingança ao mesmo tempo
era, culturalmente, temida, e na seqüência diabolizada, mas também se
mostrava fascinante, pois presente em várias manifestações humanas,
inclusive artísticas.
O primeiro capítulo é dedicado a aspectos teóricos onde faço um
recorrido entre alguns autores chegando a Jung e, o que acredito poderia ser
uma visão junguiana a respeito da vingança. Assim, considero a vingança um
arquétipo que, quando se manifesta o faz inicialmente como sombra, mas pode
ser elaborado se, ao se apresentar geralmente através de um complexo,
permitir uma elaboração. Entretanto, como se trata de um arquétipo muito
carregado de energia para iniciar uma elaboração a psique necessita estar
ancorada em seu (algum) herói interno. Apresento Trickster e Dioniso como
um de seus representantes, e, neste sentido, como o herói a ser invocado para
se trabalhar com este afeto. O cerne deste capítulo é entender que a vingança
está presente na alma humana desde os primórdios e, como afeto que é
responde, inclusive, a uma lógica inconsciente que, como sabemos, nada tem a
ver com a da consciência. Entretanto, proponho que é possível “domar” este
afeto utilizando sua energia subjacente para se re-conectar com elementos
vitais, devolvendo, nestes casos à psique sua integridade, podendo esta
(psique), através deste movimento expandir as possibilidades vitais da
subjetividade. Em outras palavras, uma vez constelado o arquétipo da
vingança, com o auxílio de outro arquétipo, o de um herói, como por exemplo
180
Dioniso/ Trickster, é possível trabalhar com a energia vingativa e reconectá-la
(energia) aos aspectos mortificados da psique, conseguindo-se, assim, uma re-
conexão à potencia vital da subjetividade. Quando algo falha, ou seja, por
exemplo, a psique não consegue acesso a um herói interno, ela (psique) fica
submetida a diferentes formas de aniquilamento, no limite, a morte.
Assim, do ponto de vista teórico parece que é possível trabalhar a
energia que emerge como substrato de uma vingança no sentido de canalizá-la
para uma ação vital, e não destrutiva. Quando este trabalho não é possível para
a psique, o resultado pode ser extremamente violento tanto para a psique em
questão como para suas vinculações afetivas. É que a vingança, quando não
elaborada, causa destruição por onde passa. Qual fúria elementar, a energia
vingativa sem lastro de elaboração é capaz, qual tsunami, de varrer territórios
inteiros: psíquicos e freqüentemente físicos. E conhecemos bem vários tipos
de morte possíveis à raiz destes eventos.
No segundo capítulo recorro à cultura e alguns de seus meios de
expressão para explicitar a vingança como parte integrante das manifestações
de cunho artístico no mundo ocidental. Escolhi este caminho pois acredito que
as artes em geral estão sempre vinculadas a elementos psíquicos,
freqüentemente inconscientes e cuja compreensão permite vislumbrar os
caminhos de um grupo, uma cultura, ou mesmo uma sociedade. Assim, vemos
que, houve época em que a vingança fazia parte natural do repertório de
deuses e semideuses servindo de paradigma para o comportamento humano
187
.
Nesta época, segundo alguns autores, imperava o matriarcado e, portanto, o
feminino era o princípio regente que dava o tom aos acontecimentos. Vimos,
também, que nem todos os autores concordam com esta visão, mas ainda que
187
Evidentemente não era só a vingança que pautava os comportamentos. Entretanto fazia parte quase do
cotidiano dos deuses, conforme referido em mitos.
181
não tenhamos em passado remoto vivido sob a égide do matriarcado, este não
deixa de ser elemento constituinte do inconsciente coletivo.
De qualquer modo, o feminino constituinte da psique foi, nos últimos
dois milênios, reprimido ocupando um espaço eminentemente inconsciente.
Entretanto, lentamente e a partir de era cristã, este feminino encontra o
caminho de volta à expressão, apesar dos esforços racionalistas desde o século
XVII confirmando a dualidade de pensamento proposta quando o patriarcado
foi institucionalizado. A partir do advento da tragédia grega, o mundo racional
e dicotomizado separa claramente os aspectos vitais em “bem” e “mal” sendo,
assim a vingança nos últimos milênios demonizada, obedecendo a esta
separação para os afetos humanos. Parece que ficou perdido aquele aspecto
que potencialmente poderia ser construtivo representado pela energia psíquica
ligada à vingança.
188
Assim como caiu em desuso a aceitação da vingança
quando referente a crimes consangüíneos. Aquilo que para uma época era uma
questão de honra, subsiste, nos dias de hoje, apenas, como cultura primitiva
em regiões supostamente pouco evoluídas culturalmente, como certas partes
do oriente médio e nordeste brasileiro, conforme vimos nos exemplos citados.
Estes exemplos nos dão conta da mortificação do self quando atacado no cerne
de sua auto-estima.
O último capítulo, é dedicado ao mito de Medéia como grande
paradigma da vingança, já que a representa magistralmente através da tragédia
grega sua manifestação máxima nas artes. Medéia apresenta e representa a
vingança como manifestação daquilo que é reprimido (às vezes até
inadvertidamente), mas cuja energia não se deixa ludibriar: quando menos se
188
É possível que outros afetos considerados neste paradigma como “negativos” possam ser entendidos de
forma semelhante. Em outras palavras, não se trata, neste trabalho, de eleger um afeto específico como a
única, aquela, mola propulsora da humanidade.
182
espera retorna qual fúria, impossível de domar. Medéia ainda dialoga com sua
sombra:
“Quem não quiser presenciar o sacrifício,
mova-se! As minhas mãos terão bastante força!
Ai! Ai! Nunca, meu coração! Não faças isso!
Deves deixá-los, infeliz! Poupa as crianças!
Mesmo distantes serão a sua alegria.
Não, pelos deuses da vingança nos infernos!
Jamais dirão de mim que eu entreguei meus
filhos
À sanha de inimigos! Seja como for
Perecerão! Ora: se a morte é inevitável,
Eu mesma, que lhes dei a vida, os matarei!”
189
Mas nada pode contra a fúria elementar. Capitula a ela, sem chance de
elaboração possível.
Medéia expressa talvez o último reduto do feminino dicotomizado.
Quando decide deixar seu país e seguir Jasão, ajudando-o com suas magias a
vencer as tarefas propostas por seu pai, mostra-se a mulher amante, solidária
que não mede esforços em prol de seu amado. Assim, negando suas origens
por amor a Jasão, entrega-se corpo e alma a esta relação. É como se vivesse
em função do amor que sente entregando ao companheiro o todo do seu ser.
Mas aparece a bruxa, ou melhor o aspecto bruxa de Medéia: mata o próprio
irmão. Neste momento, para Medéia, sua sombra não é sentida como tal já que
vigora o, “por amor tudo se faz”. Neste primeiro momento de relação um é
tudo para o outro, já que a vida de Jasão também depende das competências
em magia de sua Medéia. Medéia é, e se sente, portanto, a “salvadora” de
Jasão, a fada, aquela que é representante do feminino santificado.
Entretanto, o tempo, como dissemos antes, cobra seu preço. Aos poucos
Medéia que em sua terra natal transformara-se em bruxa, que passou a ser
189
Eurípides, “Tragédia grega, Vol III, Medéia”, Ed. J.Zahar, Rio de Janeiro, 1991, p.63
183
deusa salvadora para Jasão, é vista e se transforma lentamente em bruxa
novamente com o acréscimo de estrangeira à medida que a convivência na
terra adotiva começa a se estabelecer. Assim, parece a Jasão muito justo
quando tranqüilamente se propõe a abandonar Medéia no momento em que
aparece a oportunidade de se unir em matrimonio à casta a que originalmente
pertencera. A volta à condição de realeza o fascina a ponto de entender
“natural” que deixe sua companheira por outra. Sua expectativa é que Medéia
não só entenda seu ato como compreenda sua “nobre” motivação.
O sub-item sobre a mãe e a madrasta se deve ao fato da entrevista que
se segue referir-se a uma Medéia/ madrasta. Fez-se, então, necessário,
localizar e posicionar a madrasta como um substituto da mãe, obedecendo as
mesmas vicissitudes, porém mais evidente, do ponto de vista cultural, como a
sombra da mãe. Sabe-se, entretanto, que a madrasta e sua apresentação
cultural como a sombra da mãe existe em qualquer vivencia de maternidade,
seja a mãe biológica ou não.
Na realidade, a madrasta apenas explicita, culturalmente, os aspectos
sombrios contidos na maternidade. É como vestir uma roupa do avesso.
Quando vestimos a roupa, sabemos de seu avesso, mas este fica escondido,
pouco evidente. Não sabemos os seus detalhes. Às vezes sentimos seu
incomodo nas filigranas, no seu contorno, mas é só. Na figura da madrasta,
conotada negativamente pela cultura, o avesso é visível e a outra face é que
permanece pouco evidente.
190
A sombra se faz presente por definição.
A Medéia/madrasta contemporânea permite vislumbrar a vingança em
ação. Como se dão os processos psíquicos que levam a um ato extremo. Ivete
190
Recentemente a moda inverteu o status do avesso. Camisas, blusas e vestidos, enfim, roupas de ambos os
sexos foram elaborados com as costuras à mostra. O avesso entrou na moda há alguns anos. Pode ter sido
mais um movimento tipo “contra-cultura”, ou algum movimento do inconsciente coletivo buscando expressão
menos dicotomizada, ou ainda, ... quem sabe ?
184
se transforma naquele instante fatídico em que executa sua enteada em energia
pura buscando escoamento. Sua fúria não permite nenhum espaço para a
razão. Lentamente, vai ruminando seu ódio e em determinado momento, não
mais podendo suportar a tensão, o dique se rompe e ela passa ao ato. Sente-se
extenuada na seqüência. Dói seu braço. Parecem as únicas seqüelas deste ato
selvagem. Retorna à sua rotina de menina obediente que segue as instruções:
de seu advogado (deve fugir) e, mais adiante, uma vez presa, enquadra-se na
categoria de detenta “padrão”,ou seja, obediente às regras, tendo, com isso,
acesso a privilégios como visitas intimas e mais adiante trabalho remunerado.
Durante a apresentação dos capítulos, pude aos poucos inserir trechos
de relatos terapêuticos demonstrando aquilo de teoria que aparece no
consultório. Claro que teorias, na prática, perdem um pouco sua
especificidade. É que teoria sempre necessita de clareza didática e, como se
sabe, a psique ao se revelar ao analista o faz da forma que é, ou seja,
complexa, mas eloqüente, caleidoscopica, mas sedenta de sentido racional.
Quando a vingança é atuada, freqüentemente é arrasadora por onde
passa. É que constelado um arquétipo, sua energia geralmente se manifesta
através de um complexo. A energia ligada ao complexo se “acende” fertilizada
pela do arquétipo. Assim, a possibilidade do comportamento furioso entrar em
ação é maior sempre e quando a psique tenha dificuldades ou esteja
impossibilitada de elaboração do complexo. Trocando em miúdos,
191
é
191
Esta canção “Trocando em Miúdos” de Francis Hime e Chico Buarque de Holanda, de 1978 mostra bem
alguns requintes de vingança quando sua energia passa pela elaboração da consciência:
Eu vou lhe deixar a medida do Bonfim
Não me valeu
Mas fico com o disco do Pixinguinha, sim ?
O resto é seu
Trocando em miúdos, pode guardar
As sobras de tudo que chamam lar
As sombras de tudo que fomos nós
As marcas de amor nos nossos lençóis
185
preciso preparo, cuidado e, decididamente elaboração ao se lidar com
conteúdos psíquicos de cunho vingativo.
Quando a elaboração não tem espaço, as forças vingativas podem se
alastrar e contaminar outras subjetividades. É o que ocorre nos fenômenos
grupais. No limite, podem levar à morte.
Os fatos de que temos notícia e que estão na raiz do 11 de setembro,
certamente têm algo a ver com o que acabo de descrever. Seria ingênuo
imaginar que é a única explicação para o fato. Certamente não.
Entretanto, proponho que na raiz de diferentes ódios raciais, que geram
comportamentos circulares de vingança (e isto ocorrendo com maior
visibilidade desde o século passado) na atualidade, estão elementos como
aqueles apresentados neste trabalho.
Quando a energia ligada ao ódio não tem um caminho de escoamento
aberto e conectado com alguma elaboração, a tensão se acumula na psique.
As nossas melhores lembranças
Aquela esperança de tudo se ajeitar
Pode esquecer
Aquela aliança, você pode empenhar
Ou derreter
Mas devo dizer que não vou lhe dar
O enorme prazer de me ver chorar
Nem vou lhe cobrar pelo seu estrago
Meu peito tão dilacerado
Aliás
Aceite uma ajuda do seu futuro amor
Pro aluguel
Devolva o Neruda que você me tomou
E nunca leu
Eu bato o portão sem fazer alarde
Eu levo a carteira de identidade
Uma saideira, muita saudade
E a leve impressão de que já vou tarde
186
Esta tem, a partir daí alguns caminhos para recuperar seu equilíbrio: passar ao
ato, destilando assim a energia sobre a vítima; novamente reprimir esta
energia contando, entretanto, com algumas válvulas de escoamento, ou
qualquer composição entre estas possibilidades, e outras possíveis saídas,
como por exemplo, no limite, sucumbir a esta energia, voltando-a contra si
mesmo gerando vários tipos de suicídio. As válvulas de escoamento supra-
citadas, que interessam a este trabalho, ficam no nível da contaminação
pessoal em pequenos grupos, a partir, inclusive, do familiar, mas podendo
atingir inicialmente pequenas comunidades, chegando até aos conflitos
mundiais que todos conhecemos.
Temos exemplos do acima relatado nos movimentos raciais do sul dos
Estados Unidos na primeira metade do século XX onde um punhado de
“almas” contaminadas com um ódio racial extremo, acabaram fundando a Ku
Klux Klan, movimento este que, qual peste, alastrou-se sem respeito a
fronteiras humanas, éticas ou racionais. Seus resquícios ainda persistem em
algumas áreas dos Estados Unidos.
O que desejo ressaltar deste episódio, é a potencia de alastramento que
tem um afeto, por ex, a vingança, quando, sem condições de elaboração, se
propaga por um grupo até atingir, de alguma forma, toda uma comunidade,
podendo incendiar um povo.
Subjacente a este potencial de alastramento, acredito que estão os
grandes “mistérios” da psique.
Nos dias de hoje, um dos movimentos que mais tem chamado a atenção
de estudiosos de várias disciplinas é o terrorismo.
187
Se pudéssemos pensar o terrorismo fora de seu contexto político, apenas
levando em consideração seus aspectos psicológicos, poderíamos dizer que
estão em jogo, segundo Freud (instintos) e Jung (arquétipos), elementos
centrais constituintes da psique. Trata-se de Eros e Tanatos, que em seu jogo
constante nos apresentam o enigma em que grupos inteiros marcham
voluntariamente e com alegria para a morte. Temos exemplos desde as
Cruzadas, onde as posições entre cristãos e herejes (em geral árabes e judeus)
era semelhante à de hoje entre muçulmanos e cristãos e/ou judeus, mas em
posições invertidas. Guggenbul-Craig fala de Tanatos com suas duas
apresentações possíveis: matar ou morrer. Segundo este autor, para Jung “no
âmago da nossa sombra – no centro arquetípico – está o maníaco suicida e
assassino”
192
. Neste sentido, os cruzados expressavam seu instinto de morte
matando os inimigos e propondo-se à imolação, já que se apresentavam,
voluntariamente, aos perigos da conquista da Terra Santa. Outro exemplo
vem da primeira guerra Mundial, onde milhares de jovens marcharam
euforicamente rumo às batalhas mais mortíferas. Idem para o Jao, durante a
Segunda Guerra, quando inúmeros civís se apresentaram voluntariamente
como camicases.
“Aparentemente os objetivos nobres tornam possível a união do instinto
de morte com Eros. A tensão impossível entre Tanatos e Eros é resolvida em
um momento explosivo e extático.”
193
Este autor nos explica que o instinto de morte é reconhecido
indiretamente entre cristãos e muçulmanos já que entre os Dez Mandamentos
consta “Não Matarás”. “Proibir algo significa que o impulso ou ação é
192
Guggenbhul-Craig, A. em “Manhã de setembro” de Zoja, L e Williams D, org. S.Paulo Ed. Axis Mundi, ,
2003, p. 88
193
Id. Ibid. p. 89
188
obrigatoriamente tentador. Não há a necessidade de proibir alguma coisa que
ninguém tem o desejo de fazer.”
194
Do ponto de vista psicológico, secundado por ambos, Freud e Jung,
existe o reconhecimento de que Tanatos pode se expressar tanto através de
desejos assassinos quanto suicidas.
Segundo Gugenbhul-Craig, o que pode levar ao terrorismo, do ponto de
vista psicológico, (e segundo ele o terrorismo é um fenômeno psicológico)
seria uma fusão entre Eros e Tanatos. Entretanto, o autor nos diz – e concordo
plenamente com ele – que conceitos são apenas palavras, ou no limite
imagens. Como estamos, ainda, nos rudimentos da psicologia, ao tentarmos
uma aproximação à psique, os conceitos, pelo menos de Eros e Tanatos,
parecem simplificações. Seria melhor descrevê-los como mistérios. Já que os
terroristas são humanos como nós, “Não sei como usar minhas reflexões para
lidar de modo concreto e prático com o terrorismo. No entanto, como analista,
creio que qualquer progresso na compreensão do ser humano ajuda-nos a
tolerar e manter sob controle as enormes tensões do nosso tempo”.
195
Com a
modéstia e sabedoria que lhe é característica este autor define magistralmente
nossa impotência diante de fenômenos de massa aos quais poucas teorias
conseguem responder. O que entretanto fica claro é o poder incendiário da
energia subjacente, no caso, à vingança quando sem possibilidade de
elaboração explode em um grupo, passando a contamina toda uma
comunidade e uma cultura.
196
194
Id. Ibid. p.89
195
Id. Ibid. p.90
196
Recentemente a TV Al Jazeera veiculou a matéria em que uma jornalista entrevista uma menina de não
mais de 5 anos. Diante das perguntas da entrevistadora, a menina recita a cartilha islâmica: odeio os judeus,
são os representantes de mal, etc.
189
Gostaria, no final deste trabalho, aventurar-me a descrever o fenômeno
da vingança sob um olhar mais inter-psíquico.
É sobejamente conhecido de todos que tudo o que é novo elicia,
inicialmente, resistência sempre que se apresenta. Ora, não é pequeno nem
insignificante este novo, que parece estar surgindo na consciência coletiva
neste momento histórico. Se é verdade – e eu acredito que seja – que valores
adormecidos durante milênios despontam como orientação para o
comportamento humano na contemporaneidade, também tem que ser dito que
a resistência a este movimento será, provavelmente, equivalente ao tamanho
da novidade. Talvez por isso irrupções tão avassaladoras ocorram no mundo
numa tentativa desesperada de enquadrar os acontecimentos em
compartimentos estanques, controlados, portanto, conhecidos das autoridades
competentes, o que, no limite, lhes dá (às autoridades) a ilusória sensação de
que está tudo organizado, conforme reza a cartilha, ou seja, está tudo sob
controle. Não há motivo para ansiedade ou angústia. Nada mudará, ou seja,
viceja o “Plus ça change, plus c’est la même chose”
197
Claro que nestas circunstâncias, impera o princípio masculino de
autoridade, do certo e errado, ou, em outras palavras, não há espaço para o
imponderável. Este, sempre considerado falha ou fracasso é, de preferência,
imputado ao outro, seja ele, este outro, subjetividade ou grupo. Talvez o
maior exemplo de que temos notícia na contemporaneidade é o que nos é
mostrado pela medicina. Indubitavelmente houve grande avanço tecnológico
neste campo. Isto além de melhorar a qualidade de vida no mundo ocidental,
teve um outro grande aporte: aumentar a expectativa de vida em mais de duas
décadas. Entretanto, a morte que, até o século XIX, era considerada parte
inerente à vida, de certa forma esperada, encarada com naturalidade, hoje é
197
Quanto mais muda, mais permanece idêntico” – tradução livre da autora
190
vista como um fracasso. Ninguém pode morrer
198
sob pena de que a
responsabilidade deste episódio recaia sobre a ineficácia de algum tratamento
ou ineficiência da equipe de branco. Bancas de advogados enriquecem por
conta de ações que movem contra erros médicos, principalmente nos Estados
Unidos, baseados nestes e outros fracassos da medicina. Com isto, perde-se a
intimidade com o moribundo que é transportado a hospitais (quando já não
está lá há meses) assim que dá os primeiros sinais de sofrimento. Naquele
ambiente esterilizado, com horários rígidos de visitas, o “paciente” perde
totalmente sua humanidade e passa a ser visto como um objeto a ser
preservado a qualquer custo. Tubos e fios o alimentam e aliviam, tudo a
serviço de uma medicina eficiente.
Ficam para sempre perdidos, momentos preciosos para rituais de
despedida. Rituais, estes, tão importantes quanto os de chegada a este mundo.
Trata-se de neutralizar a morte, imaginar que pode não acontecer, e
adiar infinitamente este confronto até que quando o trágico da morte ocorra,
seja imediatamente superado por atividades mecânicas exercidas por um
“exercito” (inclusive o de branco) a serviço da negação.
Assim, as cerimônias do adeus
199
, tão ricas e diferentes em cada cultura,
passam ao ostracismo. Perde o morto, sua família, e, certamente, a cultura. Ou
seja, uma cultura que não respeita a finitude, tentando negar a sua existência,
certamente mostrará ao mundo sua sombra. E das formas mais terríveis,
quando no coletivo.
198
Duas notícias recentes em jornais da Capital, uma de 8/12/05 e outra de 23/12/05 nos dão conta de dois
decretos emitidos por prefeitos. Em Arraial do Cabo, (26.000 habitantes) o prefeito do PDT, Henrique
Mellman decretou que, a partir ddaquela data, era proibido morrer.Quem desobedecesse a ordem teria de
pagar multa! Idem para Biritiba Mirim, (28.000 habitantes) município a 80km de S.Paulo.
199
Matéria publicada no “OEstado de S.Paulo” em 30 de outubro de 2005
191
Também, me parece que os fundamentalismos na fé aparecem com toda
a sua potência no momento em que os valores professados pelas diferentes
religiões são questionados e sua universalidade contestada. É preciso invocar
os dogmas, e se proteger contra os hereges. Tudo o que não cabe nos autos da
fé deve ser violentamente demonizado e exorcizado. O medo, seara fértil para
o crescimento de idéias persecutórias, se alastra e leva a um acirramento de
posições, ainda correspondente ao “certo” e “errado”, ou seja, “quem não está
comigo, está contra mim”.
Um movimento que, na minha ótica, originou-se de uma causa legítima,
a “intifada”
200
palestina, acabou sendo sugada para este emaranhado de medo,
retaliação, vingança vã, em última análise. Vã porque se trata de um círculo
vicioso que se esgota em si mesmo, como pudemos ver, por exemplo, no filme
descrito em capítulo anterior.
O que, inicialmente era válido, ou seja, chamar a atenção do mundo
para um povo que a merecia – tanto quanto Israel a mereceu quando da
criação do Estado de Israel em 1946 – vulgariza-se ao entrar numa rotina de
suicídios estúpidos, perpetrados por adolescentes crédulos e inflados de um
ódio sem limites, instilados desde a mais tenra infância.
Presenciamos, entretanto, já na segunda metade século XX, no ocidente,
uma mudança significativa na erupção do feminino, ou seja, o aumento
expressivo de mulheres que, tendo “jogado o soutien” na década de 60, agora
propõe posturas mais conciliatórias. Atrizes, modelos, adotam crianças de
países extremamente pobres e arrasados por crises políticas ou religiosas.
200
Houve duas “intifada” ou seja, levante de palestinos no Oriente Médio. Uma na década de 60 como
conseqüência da ocupação israelense de determinados territórios, com a conseqüente expulsão dos residentes
palestinos e outra mais recente em 98 como resposta à atitude arrogante de Ariel Sharon, primeiro ministro de
Israel, que, de forma, declaradamente provocativa se deu o direito de “visitar” a Mesquita do Domo em
Jerusalém, espaço sagrado dos muçulmanos, devidamente acompanhado de um grupo de militares.
192
Estas adoções pouco levam em conta diferenças raciais num movimento
diametralmente oposto ao que se preconizava na primeira metade do século,
mais segregacionista. Em outras palavras, surgem as “boas” madrastas.
Também, nos grandes centros urbanos, os bebês passam a ser criados com
maior freqüência pelas avós, já que as mães estão ativamente integradas no
mercado de trabalho o que me leva a supor, também, que aparecem as “boas”
sogras!
A emergência do princípio feminino atuando de forma mais evidente
leva também ao fortalecimento de trabalhos voluntários, hoje preconizados
inclusive por empresas multinacionais que descobrem aí um rico veio a ser
explorado quando se apresentam à mídia como empresas “de valor agregado”,
já que se preocupam com o social, permitindo (e exigindo) que seus
funcionários dediquem algumas horas semanais a trabalhos comunitários,
como por ex. a Nortel Telecomunicações
201
. Estes trabalhos são realizados por
homens e mulheres, indiferentemente.
Acredito que a dicotomia referente ao masculino e feminino, começa a
ficar mais clara a partir do século XVIII e XIX com o advento dos ideais
românticos, atingindo seu ápice no final do século XIX. A mulher (o
feminino), neste período, passa por uma categorização interessante: por um
lado, aquela que corresponde ao ideal da época, que se dispõe ao amor e à
família com uma dedicação quase santificada (e, portanto, livre de qualquer
manifestação sensual erótica)e por outro lado “a outra” que renuncia a este
papel e se entrega à vida de uma maneira mais voluptuosa, perseguindo suas
próprias necessidades e desejos. Exemplos destas mulheres podem ser
201
Empresa canadense, do ramo de telecomunicações estabelecida há aproximadamente uma década no
Brasil.
193
encontrados, na ópera, em La Traviatta
202
, com suas duas personagens
femininas, a filha de Sergio Germonte, a donzela (virgem) ideal e Violetta
Valery, considerada cortesã, já que abria seus salões a grandes festas
orgiasticas. É interessante iluminar estes dois aspectos do feminino:
“A primeira dessas imagens é a da jovem
romântica apaixonada, cujo amor, no entanto, é qualificado como
puro, espiritualizado e destituído de amor carnal. Não sem razão,
ela foi, no senso comum, denominada “santa”, o que revela a
origem religiosa desta partilha moral. A segunda figura congrega
tudo o que o idealismo burguês do início do século XX deseja
excluir do seu ideal de amor, a saber, o interesse econômico, posto
que o amor deveria ser altruísta, bem como o gozo sexual. Esta
segunda figura, condenada moralmente, é, muitas vezes,
caracterizada como a prostituta.”
203
Paulo Carvalho resume com especial singeleza a perspectiva da mulher,
do ponto de vista social, durante o período do romantismo e que vigora ainda
nos dias de hoje em alguns grupos.
Nietzsche, na sua crítica à moral romântica, condena a elevação
espiritual que estaria subjacente ao ideal da época, segundo a qual o valor
maior no amor seria o altruísmo. Nesta vertente, o que devem buscar os
amantes é a fusão entre dois seres, de preferência completo e perfeito, no
encontro amoroso. Não é preciso muito para entender que perde-se, neste
modus operandi”, aquilo que para Nietzsche é, na verdade, o valor maior: a
potência vital, já que para que este tipo de amor floresça é necessário que os
parceiros se percam na dinâmica psíquica de seus companheiros.
Mas, este modo de amar continua, até os dias de hoje, bastante atual nas
sociedades ocidentais contemporâneas, apesar de dar sinais múltiplos de
falência.
202
Ópera de Giuseppe Verdi com libreto de Francesco Maria Piave, baseado em obra de Alexandre Dumas,A
Dma das Camélias, encenada pela primeira vez em 6 de março de 1853
203
Carvalho, P.R. in Naffah, A., org. “Falando de Amor” Ed. Agora, 2006, p. 138
194
E é neste, agora, o que acredito ser um segundo período de transição,
204
(se é que houve um primeiro, segundo Jung) ou seja, um esboço de volta a
valores femininos, de novas experimentações de parcerias na constituição
familiar, que se insere um feminino já não mais tão dicotomizado, mas
portador de nuances e perspectivas múltiplas.
Com a mulher conquistando uma situação de equiparação à do homem
no local de trabalho, declinando o trabalho doméstico em prol do remunerado,
o mundo ocidental passa por profundas mudanças no século XX, concernentes
à emergência de um feminino ativo, agente de seu próprio destino,
independente, autônomo, que poderíamos dizer ser bastante incomum até
então. Assim, o século XX caracteriza-se, neste aspecto, por ser um período de
transformação que apenas aí se inicia.
Interessa-me o fato de que o princípio feminino “underground” começa
a se movimentar lentamente em direção a uma expressão mais eloqüente. Com
este movimento, os limites entre o feminino e sua sombra começam a se
borrar, de maneira que, esta, passa a pipocar lá e cá.
Como em qualquer período de transição, parcelas do inconsciente
coletivo começam a aparecer no imaginário levando a novas expressões
culturais nas artes em geral e em modismos populares. Assim expressões
verbais, como, por exemplo, em português, “as bruxas estão soltas” tem uma
conotação especifica e clara ao ser utilizada neste período para explicar
quaisquer circunstâncias que prejudiquem um acontecimento. Mas este é
apenas um dos muitos exemplos que podem ser encontrados na cultura
contemporânea.
204
Sempre levando em consideração que não há uma data marcada para que isto aconteça. Trata-se de um
processo que, apesar de fluir com maior velocidade na contemporaneidade, ainda assim, é processo.
195
Este século XX nos trouxe o mais profundo acirramento das condições
humanas. Duas grandes guerras de conseqüências catastróficas nos contam do
rompimento de barreiras psíquicas numa contaminação generalizada de
projeção do “mal” sobre figuras hoje entendidas como “bodes-expiatórios”
numa tentativa de exorcizar conteúdos internos identificados como
insuportáveis. Assim, judeus, homossexuais, ciganos são executados aos
milhares numa “limpeza étnica” que visa a criação humana dita superior,
perfeita, ou seja, a raça ariana pura. Acredito que este movimento que, no
limite, levou a múltiplos levantes populares durante o século, culminando com
o 11 de setembro
205
e suas conseqüências, prenuncia, na verdade, a revolução
maior: a eclosão do princípio feminino como nova pauta para o século XXI.
Como em toda transição, antes de que ela aconteça, existe um período de
acirramento daquilo, precisamente, que se visa transformar, no caso, a
prevalência do princípio masculino como “régisseur” da norma mundial.
Assim, presenciamos neste século o aparecimento de diferentes
fundamentalismos, empresariais, tecnológicos, mas principalmente religiosos,
onde imperam os princípios masculinos exacerbados, como no exercício da
medicina supra citada. Paralelamente, entretanto, mulheres jogavam o
soutien” na década de 1960 iniciando, abertamente, o que já se prenunciava:
a volta do feminino como potência . Mulheres passaram a ocupar posições de
liderança tanto na administração pública como privada. Nomes como Golda
Meyer, Indira Ghandi, na política, Anna Freud, Melanie Klein, e mais
recentemente Elisabeth Kubler-Ross, Elisabeth Rudinesco, na psicologia,
Frida Kahlo, Ligia Clark, nas artes, apenas para citar alguns exemplos,
aparecem no cenário mundial como expressões de um feminino ativo e
205
O episódio de 11 de setembro, certamente, é um acontecimento complexo que se presta a múltiplas
interpretações a parir de diferentes pontos de vista.
196
presente e representante de uma força pujante que se expressa vivamente e não
cala.
Entretanto, neste início de século XXI, com conquistas importantes já
firmemente estabelecidas, mulheres começam a rever posições mostrando
atitudes menos drásticas e se dispõe a abrir publicamente traços mais
femininos, humanizados, antes considerados “fragilidades” assumindo sua
condição humana por excelência, ou seja, a de uma mescla de características
que não são excludentes de outras. O que, no limite, leva a uma condição de
“imperfeição” de acordo com modelos mais rígidos que vigoraram no século
anterior. Tudo isto, sem deixar de lado as importantes conquistas realizadas e,
já de certa forma, arraigadas.
Exemplos destas transformações ficam mais visíveis entre
personalidades públicas, como artistas e mesmo políticos que, com atitudes
antes impensáveis, assumem, por exemplo, sua homossexualidade
publicamente, ou abraçam causas étnicas ou ecológicas, ou, ainda, engajam-se
ativamente em questões polêmicas, acenando para uma mediação possível
entre conflitos.
Pode ser o início de uma futura superação entre a dicotomização do
“certo” e “errado”, “bem” e “mal”. Assim, uma das características do
feminino esquecido, a possibilidade de relativização e contemporização, ou
seja, a continência mais ampla, começa a aparecer. Os opostos não mais
devem, necessariamente, se contrapor, mas podem se fertilizar, em suma, se
somar.
Começa a aparecer uma nova forma de feminilidade, inclusive de mãe,
menos “sacrificada” e mais hedonista, sem com isso, perder suas
197
características de mulher. É o inicio do aparecimento de um continuum entre
as diferentes características humanas, distintas dos extremos anteriormente
definidos como “bom” e “mal”.
Surge Betty Friedan,
206
líder do movimento feminista das décadas de
60/70. Ela que, apesar de ter convivido de perto com e sob o machismo, se
transforma em líder feminista, entusiasta e incendiaria de fato (com a queima
de “soutiens”) e de direito, através de suas idéias. Consegue, entretanto,
simultaneamente, viver vida familiar e ao tornar-se líder do movimento
feminista, sem nunca ter rejeitado a família como um valor, escrever em 1963
“A Mística feminina” onde ensina que deve-se respeito à mulher. E esta, não
deve ser considerada apenas através de seus “dotes femininos” o que nós, há
anos chamávamos de mulher “cri-cri”
207
, mas pela busca de sua
individualidade. Funda a NOW, sociedade para o desenvolvimento de
mulheres.
Já nos anos 80, Friedan começa a mudar de posição, dizendo que mais
do que demonizar o sexo oposto é preciso promover uma espécie de aliança
entre os sexos. Finalmente, antes de falecer, aos 85 anos, sua luta era muito
mais contra a globalização do que a favor do feminismo. Globalização no
sentido da pasteurização, do nivelamento, e, portanto, no limite, do fomento à
identidade e, portanto, do desrespeito à diversidade.
O que, por sua vez, me remete, novamente, ao 11 de setembro, já que
este episódio foi uma espécie de divisor de águas na luta palestina pela
sobrevivência étnica. Acabou alastrando-se para o mundo árabe como um
todo, deixando atrás de si um rastro de ódio, vingança e traições.
206
Ver Anexo IV
207
“Cri-cri” nos anos 60 e 70 era referida àquela mulher que não trabalhava fora, ou seja, que, socialmente,
só falava de criança e criada
198
É que o choque do inusitado foi violento. Toda a superioridade,
incluindo-se aí a soberba americana foi ao chão junto com milhares de
inocentes que davam expediente nos alvos pré-determinados. Entretanto, o
efeito-rebote deste episódio, infelizmente, reforça a idéia do sub-mundo árabe
e deixa inabalada a idéia da supremacia americana. De vítima, o mundo árabe
(incluindo-se aí os palestinos) passa a ser visto como um povo sem
escrúpulos, que não hesita em sacrificar milhares de civis como forma de
afirmar suas idéias e ideais.
A vida, como valor maior, cede espaço para pequenas e grandes
vinganças impelidas por paixões desencadeadas pela intolerância mútua entre
povos de diferentes etnias. Cada qual agarrado à sua verdade de forma
inconseqüente e freqüentemente inconsciente se deixa atravessar pela
violência reinante e torna-se seu executor.
Em vão as artes nos dão conta da importância e possibilidades que as
paixões, colocam a nosso alcance. Em vão a literatura que denuncia os perigos
de uma visão míope da vida, diante da potencia humana seqüestrada pelas
instituições estabelecidas. Em vão a cultura. Mas...será?
No capítulo 3 descrevi mitos, filme, texto e música que lidam
magistralmente com a vingança. Mas, apesar da vingança ser o tema central
em todas estas manifestações, nenhuma acena para o uso desastroso desta
paixão. Cada uma delas, se soubermos ler nas linhas e entrelinhas, expressa de
alguma forma a vingança como potencia de vida.
Nos mitos, a vingança raras vezes se apresenta como um fim em si.
Geralmente se apresenta como um estágio anterior ao desenlace da trama. Em
199
Abril Despedaçado, vemos o circulo vicioso da vingança operando por
gerações sem fim, até que algo novo surge para interromper este ciclo. Não é à
toa que este novo é representado por um menino jovem e relativamente
ingênuo em relação às mazelas daquela cultura. Parece que é preciso que o
ciclo vicioso esteja de tal forma exaurido que permita a “intromissão” da
novidade. Qual pé na porta, e com a ajuda interna que for possível, o novo
pode tomar corpo e deflagrar suas linhas de fuga daquilo que resiste por trás
da paixão. Isto equivale, no caso desta tese, a utilizar a energia subjacente à
vingança e utilizá-la qual potencia vital.
Nos conflitos do oriente médio, o arquétipo da Medéia parece reger o
inconsciente coletivo da atualidade. Amplificando um pouco seu alcance, é
geração contra geração, na medida em que filhos são criados e motivados para
se imolarem em nome de uma justiça “divina” mas que, na realidade, ocorre
numa luta desvairada pelo poder. Na ilusória esperança de uma vida nirvanica,
meninos, e mais recentemente meninas se deixam cooptar por forças
vingativas e executam, juntamente consigo, os desejos e necessidades de
instituições que pouco conhecem e cujo alcance nem de longe reconhecem.
Se a vingança estiver constelada no inconsciente coletivo de um grupo,
quanto menos elaborada for sua composição, mais rapidamente se alastrará a
paixão. Haverá a tendência de um crescimento desmedido da energia que
alimenta a paixão. Esta, qual vírus de gripe aviária, poderá se alastrar
rapidamente, tomando de assalto as psiques de cidadãos desavisados e
despreparados para lidar com tais situações de crise. A fúria, com a força dos
desastres naturais, é capaz de avançar cegamente causando a destruição de
tudo na sua passagem.
200
Foi o que vimos em torno ao episódio de 11 de setembro nos Estados
Unidos cujas conseqüências se alastram aos dias de hoje.
Agora, no final deste trabalho, passados cinco anos deste episódio, a
pergunta que não quer calar é: a humanidade aprendeu algo com este
episódio?
Penso que nos falta, ainda, o recuo necessário para compreender os
eventos do final do século passado e início deste. Talvez fatos, de que tivemos
notícia nestes últimos anos, sejam indicativos de um tipo de transformação
maior, onde, se levarmos em conta unicamente as expressões localizadas,
estaremos perdendo de vista o fruto maior subjacente.
Trata-se deste movimento subjacente sutil, mas profundo que acredito
ser representante do feminino reprimido como potencia e que, na atualidade,
busca modos de expressão maior.
A grande transformação, acredito, será contrabalançar o poder
masculino ainda vigente com o feminino, ainda incipiente. Daí, se for possível
um verdadeiro “casamento” não do tipo “antropofágico” do qual nos fala
Paulo Carvalho, mas colaborador, fertilizador, aquele que buscam as
subjetividades envolvidas em novas modalidades de composição familiar,
poderão brotar dele filhotes que ao se apresentarem ao mundo se saberão
equivalentes em presença, importância, e beleza. Se isto puder, de fato, ser um
caminho, certamente não ocorrerá subitamente, e a humanidade necessitará de
tolerância durante mais alguns séculos, talvez para ver a transformação em
operação.
201
Entretanto, do ponto de vista do feminino, é como se, usando
terminologia em voga na atualidade, clamasse: “Me aguardem!!”
208
Eu digo: “Qui vivra verra!”
208
“Tô Voltando Paulo César Pinheiro / Maurício Tapajós - década de 70
Pode ir armando o coreto e preparando aquele feijão preto
Eu tô voltando
Põe meia dúzia de brahma prá gelar, muda a roupa de cama
Eu tô voltando
Leva o chinelo prá sala de jantar
Que é lá mesmo que a mala eu vou largar
Quero te abraçar, pode se perfumar porque eu tô voltando
Dá uma geral, faz um bom defumador, enche a casa de flor
Que eu tô voltando
Pega uma praia, aproveita, tá calor, vai pegando uma cor
Que eu tô voltando
Faz um cabelo bonito prá eu notar que eu só quero mesmo é despentear
Quero te agarrar, pode se preparar porque eu tô voltando
Põe prá tocar na vitrola aquele som, estréia uma camisola
Eu tô voltando
Dá folga prá empregada, manda a criançada prá casa da avó
Que eu tô voltando
Diz que eu só volto amanhã se alguém chamar
Telefone não deixa nem tocar
Quero lá lá lá iá, lá lá lá lá lá iá, porque eu tô voltando
202
BIBLIOGRAFIA
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1987
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Zweig, C e Abrams, J, org. , Ao encontro da sombra S.Paulo, Ed. Cultrix, 1991
205
Anexo II.1 - “Vingativo”
Um dia um garoto de 12 anos entra num bordel arrastando um gato morto por
um barbante.
Ele coloca uma nota de 50 no balcão e diz:
- Quero uma mulher!
A cafetina, olhando para ele, responde :
- Você não acha que é um pouco jovem para isso?
Ele baixa uma segunda nota de 50 no balcão e repete:
- Quero uma mulher!
- Tá certo, - responde ela
- Senta aí que vem uma dentro de meia hora.
Ele põe outra nota de 50:
- Agora!
- E ela tem que ter gonorréia.
A cafetina começa a perguntar por que, mas ele deixa mais uma nota de 50 e
repete: Gonorréia!
Alguns minutos depois chega uma mulher. Eles sobem a escada (ele arrastando o gato
morto).
No quarto ela faz seu trabalho... Quando eles estão saindo, a cafetina pergunta:
- Tudo bem, mas por que você queria alguém com gonorréia?
Quando eu voltar para casa, eu vou transar com a babá, e quando o papai
voltar para casa, ele vai levar a babá para casa dela e vai transar com ela.
Quando ele voltar para casa, vai transar com a mamãe e amanhã de manhã, depois que o
papai sair para o trabalho, a mamãe vai transar com o leiteiro. O leiteiro é o filho da
puta que atropelou meu gato!!!”
206
Anexo II.2 - “Não seria, doce vingança"?
A filha faz 18 anos e o pai está todo feliz por emitir o último cheque da pensão que paga
à ex-mulher.
Pede à filha que lhe conte a cara da mãe, ao dizer-lhe que é o último cheque que ela
verá da parte dele.
A filha entrega o cheque à mãe e volta à casa do pai para lhe dar a resposta.
- Diga filha, qual foi a reação dela?
- Ela mandou lhe dizer que você não é o meu pai.”
207
Anexo II.3 "Mulher não trai,mulher se vinga".
Vingança feminina 1
Um homem sempre gozava sua mulher que era loira.
Um dia, ele passou na casa de seus amigos para que eles o
acompanhassem até o aeroporto, porque sua mulher ia viajar.
Como sempre gozava com ela, ele disse na frente de todo mundo:
- Amor, traz uma francesinha de Paris pra mim?
Ela abaixou a cabeça e embarcou muito chateada.
A mulher passou quinze dias na França.
O marido pediu que os amigos o acompanhassem novamente ao
aeroporto. Ao chegar lá, ele perguntou para a mulher:
- Amor, você trouxe minha francesinha?
Ela disse:
- Eu fiz o possível. Agora é só rezar para nascer menina!
Vingança feminina 2
O casal está passeando pela praia, e ela pede que ele lhe compre um
biquíni.
Ele responde:
- Com esse corpo de máquina de lavar? Nem pensar!
Continuam caminhando, e ela insiste:
- Bom, então compra um vestido para mim?
Ele responde: Com esse corpo de máquina de lavar? Nem pensar!!
Passa o dia. À noite, já na cama, o marido vira para a esposa e pergunta:
E aí, mulher? Vamos botar a máquina de lavar para funcionar?
E a mulher, com ar de desprezo, responde:
Para lavar só esse pedacinho de pano? Ah...!
Lava na mão!
Vingança feminina 3
A velhinha pergunta para o marido moribundo:
-Meu bem, depois de 40 anos de casado, me satisfaça uma curiosidade.
Você já me traiu alguma vez?
-Sim, querida! Uma única vez! Lembra-se quando eu trabalhava na
Nestlé, e tinha uma secretária chamada Margarida?
-Sim, me lembro!
-Pois é, aquele corpo já foi todinho meu!
E após alguns segundos, ele pergunta E você, minha velha, já me traiu
alguma vez?
-Sim, meu bem! Uma única vez! Lembra-se quando a gente morava na
Vila Andrade, em frente ao Corpo de Bombeiros?
-Sim.. me lembro! - responde o moribundo.
-Pois é... aquele corpo já foi todinho meu!
208
Anexo II.4 “Vingança III - a missão
Bom, agora vou contar esta piada com as minhas
palavras.
Um fazendeiro rico entrou num restaurante super
luxuoso nos Jardins e sentou no piano bar.
Pediu uma dose de whisky Royal Salut 17 anos e ficou
ouvindo o som. Quatro doses depois chamou o maitre e
disse que queria passar para o restaurante para jantar. O
maitre, muito educado disse a ele: Senhor, nós temos o
hábito de informar aos nossos clientes o valor da despesa
do bar, antes de levá-los ao restaurante. A sua despesa
foi de sessenta centavos.
O que é isso, o senhor deve estar enganado eu tomei 4
doses de Royal Salut!
Perdão, mas nós nunca nos enganamos com a conta dos
clientes. Cada dose é R$ 0,15 portanto os 4 são R$ 0,60.
O fazendeiro resolveu arregaçar: - Vou começar com
lagosta da Finlândia, depois javali com trutas italianas,
acompanhado de uma garrafa de Mouton-Rotschild safra
1934 e para sobremesa um crepe Suzette. Para terminar
um charuto Davidoff e uma dose de brandy Remy
Martin.
- O senhor perdoe o comentário, mas isso vai ficar um
pouco caro, algo em torno de R$ 18,00.
- Vocês são loucos aqui, ou o que? Quero falar com o
dono.
- O dono está ocupado lá em cima.
- Fazendo o que?
- Fazendo a mesma coisa com a minha mulher que eu
estou fazendo com o restaurante dele.”
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