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Daniela Della Torre
CLARICE LISPECTOR: DA SOLIDÃO DE NÃO
PERTENCER À QUARTA DIMENSÃO
Mestrado em Psicologia Clínica
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
SÃO PAULO - 2006
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Daniela Della Torre
CLARICE LISPECTOR: DA SOLIDÃO DE NÃO
PERTENCER À QUARTA DIMENSÃO
Dissertação apresentada à Banca Examinadora
da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, como exigência parcial para a obtenção
do título de MESTRE em Psicologia Clínica
sob orientação do Professor Doutor Gilberto
Safra.
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
SÃO PAULO - 2006
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Banca Examinadora
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_____________________________________
_____________________________________
Para meus pais,
Lourdes e Euzébio (Paco).
AGRADECIMENTOS
Ao Prof. Dr. Gilberto Safra. Agradeço profundamente a generosidade com
que me acolheu quando vim de longe, a paciência de esperar minhas andanças,
minhas paradas, meus silêncios. Agradeço por iluminar através de seus
ensinamentos e de seu carinho esses meus últimos anos. Muito obrigada.
Ao Prof. Dr. Kleber Duarte Barreto pela leitura e sugestões cuidadosas no
exame de qualificação. Agradeço sua atenção, seu carinho, seu apoio nos momentos
difíceis. Obrigada pelo sorriso.
A Profa. Dra. Maria Valéria P. H. Salles Lima pela afetuosa leitura e
preciosas contribuições no exame de qualificação. Obrigada pelas doces palavras.
À Profa Dra. Yudith Rosenbaum pela atenção e por aceitar compor a banca
de defesa.
Aos meus pais, Lourdes e, in memoriam, Euzébio (Paco) pelo amor ao
cachorrinho de pata machucada, confiança e presença constante.
A Djane Della Torre, pelo incansável apoio e dedicação em todos esses
anos: desde a vinda a São Paulo até a última leitura deste texto. Ao Hugo Almeida,
pelo apoio e sugestões.
A Djalmo, Miriam, Franco e Enzo Della Torre por estarem com os meus
pais enquanto eu estava longe.
A amiga Raquel Spaziani pelo apoio, incentivo e, principalmente, pela sua
amizade.
Ao Prof. Dr. Fábio Herrmann (in memoriam), à Prof. Dra. Leda Herrmann
e a Bernardete Ribeiro da Costa pelos ensinamentos, carinho e apoio.
A Rubia Nascimento Zecchin pela sua confiança e amizade.
A Sonia Novinsky e Sílvio Lefèvre pelo afeto e cuidado com que tem me
tratado.
A Ilana Novinsky pelo seu jeito afetuoso de ser.
Aos amigos, Ricardo Telles de Deus, Ricardo Gomide dos Santos,
Cristiano Cemim, Vera e Domingos Palma, Sérgio Perez, Paulo Barbosa, Naíza
França, Raquel Furgeri de Oliveira, Rosemary Bulgarão, Manoela Rosa, Maria
Mercedes Samudi Santos, Roberto Carvalho, que carinhosamente me
acompanharam e me acolheram nesta vida paulistana de ser.
A Lauro e Inácia Fraga por me receberem em sua família.
A Renato Kovacsik Carvalho por alegrar minha solidão.
Aos meus pacientes que compartilham suas vidas comigo e que muito me
ensinam a cada encontro.
Ao CNPq por viabilizar dois anos de pesquisa.
Às minhas incansáveis companheiras: Cris, Cléo e Naomi.
RESUMO
O estudo Clarice Lispector: da solidão de não pertencer à quarta
dimensão reflete sobre as principais questões constitutivas o modo de ser das pessoas. O
diálogo com Clarice Lispector, pessoa conhecida e com modo especial de ser, ilumina essa
reflexão e contribui para apresentar sua singularidade. Este estudo é norteado pelos
pressupostos psicanalíticos de Donald W. Winnicott e, principalmente, baseado nas
concepções de Gilberto Safra sobre o idioma pessoal. A história de Clarice, os estudos
clariceanos, os “depoimentos” deixados ao longo de sua obra e a releitura dela apontam
para o desvelamento de seu idioma pessoal missão/questão, pertencer/não, solidão e
silêncio que deságuam na sua palavra. “Tentativa de artesão” busca reconstruir essa
trajetória, esse jeito de ser. Em “Da solidão de não pertencer à quarta dimensão” o idioma
pessoal vai se desenhando dentro de uma perspectiva ontológica. No começo há uma
missão, que impede o devir. No entanto, ao longo da existência foi re-posicionada em
questão, surge o não pertencer e o anseio de pertencer como elementos constitutivos. A
solidão clariceana é o núcleo do segredo, do mistério, do atrás do pensamento. Enquanto o
silêncio, fonte de minhas palavras, se faz presença esperada. É a palavra, quarta dimensão,
que ao emergir toca sua face oculta e a salva. A lucidez de Clarice diante da existência e da
contingência humana revela, para além dela mesma, a humanidade assentada nestes
registros. Com a palavra ela encontra o destino de suas questões, ergue a ponte ser-ser na
qual se encontram as singularidades do ser gente.
ABSTRACT
The work Clarice Lispector: about the loneliness of not belonging to the
fourth dimension discusses the major constitutive issues of people’s way of being.
The dialogue with Clarice Lispector, a well known person, with a special way of
being, brings light to this discussion and gives its contribution while presenting its
singularity. This study is based on Donald W. Winnicott’s psychoanalytical
assumptions and especially on Gilberto Safra’s ideas about the personal idiom. The
story of Clarice, the studies about her, the testimonials she left during her life and
the new reading of her works allow us to unveil her personal idiom the
mission/issue of belonging/not belonging, her loneliness and silence that appears
in her writings. An “Artisan’s essay” tries do reconstruct this career, this way of
being. From “The loneliness of not belonging to the fourth dimension” the personal
idiom designs itself in an ontological perspective. In the beginning there is a
mission that does not allow a future. But, during her life, it was positioned as an
issue and the not belonging and the wish of belonging appear as fundamental
aspects. Clarice’s loneliness is the center of a secret, of a mystery, behind her
thoughts. While the silence, source of my words, becomes her expected presence.
The word, fourth dimension, when it appears, touches her hidden face and saves
her. Clarice’s clarity in face of existence and human condition allow us to discover
her humanity, beyond herself. With the word she discovers the destiny of her issues,
she builds the bridge between to be and not to be in witch we find singularities of
the human being.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO..........................................................................................................1
1 Uma travessia pessoal...........................................................................................1
1.1 Entre Cacás e Cenildas...................................................................................1
1.2 Entre Clarices.................................................................................................4
1.3 Um encontro...................................................................................................5
1.4 E a Clarice?.....................................................................................................7
2 Objetivo................................................................................................................9
3 Metodologia........................................................................................................12
3.1 Clarice e os críticos um levantamento.......................................................15
3.2 Clarice e a psicanálise...................................................................................23
4 Justificativas...........................................................................................................25
5 Apresentação dos capítulos....................................................................................28
PARTE I TENTATIVA DE ARTESÃO...............................................................30
Os ancestrais ucranianos.......................................................................................31
Do Oriente ao Ocidente........................................................................................33
A mudança: Alagoas para Pernambuco................................................................35
A infância em Recife........................................................................................... 37
Histórias intermináveis: guardiãs de um segredo.................................................42
Amizade, matéria de salvação..............................................................................45
Ainda bem! Restaram as formigas........................................................................47
A procura de não ser..............................................................................................50
Eu era o único eu...................................................................................................52
Tesouro disfarçado e revelado...............................................................................59
De Recife ao Rio....................................................................................................63
O salvo-conduto.....................................................................................................65
Banhos de mar: celebração da presença do pai......................................................69
Novos encontros: Perto do coração selvagem.......................................................71
Rio-Belém..............................................................................................................76
A cor esmaecida de Nápoles.....................................................................................79
O silêncio de Berna...................................................................................................86
Estou me controlando para não ficar alegre demais................................................92
O cheiro de Berna.....................................................................................................94
Da Inglaterra ao Brasil..............................................................................................96
Em Washington, pensando sem parar......................................................................98
Dois meses no Rio..................................................................................................100
Não me incomodo muito de ficar embotada...........................................................101
De volta para casa...................................................................................................106
PARTE II DA SOLIDÃO DE NÃO PERTENCER À QUARTA DIMENSÃO.....135
1 A solidão de não pertencer................................................................................136
A missão............................................................................................................137
Pertencer...........................................................................................................140
Não pertencer....................................................................................................142
Da missão à questão..........................................................................................145
2 Atrás do pensamento........................................................................................151
3 No Rosto, o silêncio.........................................................................................163
4 A palavra, quarta dimensão.............................................................................170
CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................................177
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................................185
ANEXOS................................................................................................................191
Obras de Clarice Lispector: primeiras edições....................................................192
Antologias............................................................................................................194
Correspondências..................................................................................................195
Imagens/citações..................................................................................................196
INTRODUÇÃO
1 Uma travessia pessoal
1.1 Entre Cacás e Cenildas
Parece-me difícil precisar o ponto de partida deste estudo. Talvez tenha
começado na época em que eu contava os meus 10 anos e tricotava meias de lã para
os vovôs do asilo, ou quando me arriscava no teatro amador interpretando a
personagem Emília do Sítio do pica-pau amarelo, de Monteiro Lobato, em escolas e
creches, ou quando já me aventurava pelos caminhos da Psicologia e parei em um
hospital psiquiátrico.
Não houve apenas uma situação ou experiência que me levou a este estudo.
Foi durante o curso de Psicologia, e com a análise pessoal, que comecei a me
inquietar. Além disso, me deparei com algumas dificuldades que também
colaboraram para novas reflexões.
Apesar de me identificar com a psicanálise e me dedicar a ela, parecia que
a minha concepção sobre ser gente se afastava daquilo que me ensinavam alguns
livros e professores. Sim, tudo era muito racional, talvez técnico demais. Deste
modo eu me sentia presa e, entre grades, não poderia ser uma psicóloga ou, quiçá,
uma psicanalista. Andava por caminhos solitários à procura de alguma coisa que não
sabia o que era; entretanto, sentia que deveria continuar.
E continuando fui parar na Oficina de Criatividade de um manicômio em
Porto Alegre. Homens e mulheres depositados, a doença me ntal e a
2
institucionalização arrancaram-lhes a dignidade. Alguns, sem-nome, ganhavam no
prontuário um apelido: Cacá, aquele monossilábico cá---cá; Maria Muda, muda;
Sorriso, o mudo que sorria. Outros, com nome, mas sem sobrenome, como o Seu
Luís, que pintava relógios e os recobria com uma nova camada de tinta; Ângela,
anjo que presenciou a morte de seu amor eletrocutado; Cenilda, que se orgulhava
quando seus pêlos cresciam porque ganharia características masculinas e com isso
teria forças para resistir aos ataques sexuais do irmão.
De acordo com a minha orientação psicopatológica, ali, naquelas pessoas,
não havia ninguém, a não ser um conjunto de sintomas que delimitavam um
diagnóstico e que poderiam ser objetos para um belíssimo estudo. As pessoas
desapareceram, permaneciam apenas os corpos ambulantes, nus em busca de lugar
ao sol e à sombra. Suas histórias pareciam começar na internação, a partir de
registros médicos. Essas pessoas, em sua maioria, foram abandonadas pelas famílias
e entregues a instituição para se “recuperarem”.
Como voluntária deveria promover intervenções que, de alguma forma,
contribuíssem para o aprendizado técnico. Não fui uma boa estagiária, não cumpria
a maioria das tarefas. Eu só queria saber de conversar com a Maria Muda; correr
pelos corredores com o Cacá, que mal andava, puxando um carrão de plástico
amarelo; sorrir com o Sorriso; apressar-me para presenciar o relógio pintado pelo
Seu Luís que, em seguida, desapareceria sob a tinta fresca; abraçar, pela manhã, o
anjo triste; e testemunhar o penujar de Cenilda. Como poderia, diante destas
pessoas, aplicar algum tipo de técnica? Eu, pelo menos, não conseguia.
O que eu encontrava entre os Cacás e Cenildas era algo bastante diferente
da orientação psicopatológica descrita nos prontuários médicos. Existia em mim
3
uma outra compreensão, ainda não nomeada, indefinida sabia, apenas, que estava
às avessas da instituição. Porque entre os Sorrisos e Marias-Mudas não havia apenas
a impossibilidade da fala, mas havia a nossa incapacidade de perceber quem
habitava aqueles corpos marcados pelo sofrimento e pelo abandono. Eram os Seus
Luíses que contavam rapidamente sobre suas questões mais fundamentais, porém,
nós, sem tempo, só conseguíamos ver a camada mais aparente, uma tela pintada
com uma única cor.
Toda essa situação me intrigava, me incomodava porque, do modo como
deveriam ser as minhas intervenções, eu perdia de vista aquilo que considerava
essencial, perdia de vista o relógio de Seu Luís. Eu não queria ser condecorada pelo
bom desempenho, queria tentar reencontrar aqueles que haviam sido jogados no
mundo e que estavam esquecidos, queria apenas sintonizar com o sofrimento deles e
aprender um pouco mais sobre a alma humana.
É possível que minha vontade tenha excedido minha capacidade de
minorar a dor do anjo que enlouquecera com a morte de seu amor. De fato, nada
pude fazer, apenas testemunhei o sofrimento daquelas pessoas que foram
estilhaçadas pela existência. No entanto, restaram em mim as marcas daquilo que
presenciei, restou a vontade de encontrar algo que sustentasse essas experiências,
que sustentasse esses encontros, a vontade de apreender o não-dito, de me dedicar à
compreensão da maneira de ser de cada Cacá, de cada Maria, de cada Ângela que
por acaso se juntaram à minha trajetória. Porque em cada um deles havia uma
história pessoal, porque em cada um deles havia a nossa história, em cada um deles
encontramos um pouco de nós mesmos.
4
1.2 Entre Clarices
Há muito não tenho notícias dessas pessoas que me incitaram a procurar o
humano onde aparentemente não havia ninguém. Mesmo assim não desisti, o anseio
de tentar compreender um pouco da alma humana se manteve, então descobri na
literatura um novo jeito de me reconectar com o Sorriso ou com Seu Luís. Com
isso, não quero dizer que estou interessada em estudar sintomas ou patologias,
quero, todavia, me debruçar sobre as questões que fundamentam o percurso de
determinada pessoa no mundo.
Foi na literatura que me deparei, para minha surpresa, com Clarice
Lispector. Clarice há muito ocupava a minha cabeceira, eu lia e relia sua poesia em
prosa, ela me acompanhava continuamente, porém eu não a via como um recurso
para um possível estudo, estava próxima demais. De repente ao reler Água viva , de
Clarice Lispector, como o relógio oculto de Seu Luís, me apressei e vi:
Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra
pescando o que não é palavra. Quando essa não-palavra a
entrelinha morde a isca, alguma coisa se escreveu. Uma vez que se
pescou a entrelinha, poder-se-ia com alívio jogar a palavra fora. Mas
aí cessa a analogia: a não-palavra, ao morder a isca, incorporou-a.
O que salva então é escrever distraidamente
1
.
O encontro se fez: posso pescar, em Clarice, o não-dito?
Depois da reflexão surgiu uma nova questão: como fazer para tentar
apreender os aspectos mais fundamentais de Clarice? Isso é possível? Não sei.
_____________________________________________________________________________________________________
1 LISPECTOR, Clarice (1973). Água viva. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1994, p. 25.
5
1.3 Um encontro
Apesar de achar difícil dar conta de um projeto como este, resolvi me
arriscar. (Só em pensar suava de ansiedade). Então, o que fazer em primeiro lugar?
Comecei a me perguntar: Como leio Clarice? Procuro interpretar sua fala?
É, às vezes sim. Outras, me entrego, lendo-a em voz alta.
Se me entrego a claricear, imediatamente me aproprio de suas palavras:
Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer
sentido. Eu não: quero uma verdade inventada
2
. São composições literárias como
estas que me levam a outro lugar, me levam a olhar o ser humano sob outro vértice,
que me levam a outra perspectiva clínica, ao encontro das Cenildas.
A princípio fui orientada por uma perspectiva psicanalítica nos moldes
clássicos. No entanto, sentia que a maioria dos estudos de que participava conduzia-
me a uma idéia bastante fechada dos processos vividos pelo homem. Quero dizer, a
psicanálise que acreditava existir era diferente daquela ensinada, aquela em que se
estabelecia uma relação de sujeito-objeto. Eu sonhava em trabalhar com pessoas e
não com objetos, sonhava com outra psicanálise, com uma relação sujeito-sujeito. E
foi nesta busca que encontrei em Donald Winnicott a possibilidade de sustentar este
meu jeito. Contudo, foi no trabalho de Gilberto Safra que, de fato, descobri que as
telas de Seu Luís falavam do tempo, do que passou, mas atualizado a cada
pincelada, que o Sorriso, às vezes, tornava-se desalento, seu rosto ficava sóbrio sem
_____________________________________________________________________________________________________
2 Ibidem, p.26.
6
perder a ternura.
Em 1999, Gilberto lança A face estética do self: teoria e clínica. No mês
do lançamento tive a imensa alegria de ler esse livro e, que ninguém me ouça, não
entendê-lo. Então fiz uma segunda leitura, uma terceira, quando li pela quarta vez já
estava arrumando as malas para ir ao encontro do autor. Naquele momento,
encontrara o psicanalista que, em meu sonho, dava-me a mão para fazer a travessia.
Safra (1999), na introdução do livro, diz:
Estamos habituados à escuta do desejo, e a nossa clínica funda-se na
revelação desse desejo na situação transferencial. Entretanto,
estamos lidando com indivíduos que nem mesmo se constituíram:
buscam existir para que então possam, quem sabe, vir a ter algum
desejo. Para nós ficam as perguntas: como ouvir o ser? Como cuidar
do ser?
3
.
A partir deste olhar encontrei um clínico que estava voltado para a
singularidade do ser, para um trabalho que ultrapassava a exclusividade dos
processos psíquicos e mentais. Antes de qualquer explicitação acerca das
afirmações safrianas, considero fundamental ressaltar que, do meu ponto de vista,
este psicanalista mostrava, ao longo do texto, o seu jeito de se relacionar com o
paciente: era um encontro matizado pela devoção. A devoção do analista me fisgou.
Passei a me dedicar ao estudo de sua obra. Seu trabalho, portanto, me abriu
possibilidades para apreender uma nova prática clínica validando,
epistemologicamente, minhas precárias divagações.
_____________________________________________________________________________________________________
3 SAFRA, Gilberto. A face estética do self: teoria e clínica. São Paulo: Unimarco, 1999, pp.13-4.
7
1.4 E a Clarice?
Depois de me deparar com a perspectiva winnicottiana e com as
concepções de Safra me aventurei a claricear mais.
Como contei, Clarice Lispector, desde que a li pela primeira vez, deixava-
me desassossegada: gostava de ler, mas não conseguia contar o que havia lido, as
palavras estavam tão carregadas de sentidos que me impediam de narrar, as palavras
desvelavam concepções no mesmo instante que as ocultavam; mesmo assim, não me
rendia ao desentendimento e continuava. Porque no claricear estavam as nossas
próprias questões, porque o claricear fazia do íntimo e pessoal um verbo, fazia-se
ação, fazia-se mistério. Logo, as palavras da autora me encaminhavam para algo que
ia além daquilo que se mostrava à primeira vista. Sentia que a autora se entregava à
escrita de maneira tão profunda que ao ler qualquer conto, romance, crônica eu não
conseguia separar a criatura de seu criador. Sentia que a pessoa da autora estava o
tempo inteiro muito presente. Perdoem-me os estudiosos mais rigorosos, Clarice
parecia, do meu ponto de vista, o universo que compunha as narrativas, a própria
obra, Clarice estava em cada letra.
A partir destas sensações e sem um julgamento crítico me entreguei ao
desafio de me aproximar de Clarice. Procurei olhá-la na própria escrita, como se ela
se apresentasse através das palavras, como se falasse de si própria e, ao mesmo
tempo, revelasse uma semântica comum aos outros, comum a todos. Diante disso,
percebi que deveria tomar cuidado para não tamponar as fendas deixadas pela
escritura clariceana.
8
Ouve-me, ouve meu silêncio. O que falo nunca é o que falo e sim
outra coisa. Quando digo “águas abundantes” estou falando da força
de corpo nas águas do mundo. Capta essa outra coisa de que na
verdade falo porque eu mesma não posso. Lê a energia que está em
meu silêncio. Ah tenho medo do Deus e do silêncio
4
.
À medida que eu relia a obra e procurava investigar a biografia da
escritora, me perguntava quais poderiam ser as questões que a fundamentavam,
contavam sobre o âmago de Clarice Lispector. Nesta via, caminhei para o vértice da
singularidade, ultrapassando a exclusividade dos processos psíquicos tão típicos da
psicologia e da psicanálise tradicional.
___________________________________________________________________
4 LISPECTOR, Clarice (1973). Água Viva. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1994, p. 34.
9
2 Objetivo
Os fenôme nos humanos nos oferecem uma multiplicidade de interpretações
e nos encaminham para múltiplas reflexões. De acordo com o meu interesse teórico
e clínico, o objetivo é refletir acerca das principais questões que constituem o modo
de ser de determinada pessoa.
Cada pessoa tem um jeito de se pôr diante do mundo, de se apresentar à
existência. No consultório, o paciente, desde a chegada, vai contando sobre o seu
movimento no mundo: nascimento, tanto pela história que lhe foi contada, quanto
pela que ele mesmo criou, de sua infância, seu dia-a-dia, suas angústias, aspirações e
seus desejos. Enfim, revela e vela suas questões essenciais e com isso faz-se
conhecer.
Não pretendo usar “casos clínicos” na investigação. Mas dialogar com
Clarice a fim de encontrar elementos que possam contribuir para apresentar sua
singularidade.
Clarice Lispector se mostrou amplamente através de sua escrita,
apresentava um modo de escrever que surpreendia e, ao mesmo tempo, causava
estranheza.
Estou atrás do que fica o pensamento. Inútil querer me classificar: eu
simplesmente escapulo não deixando, gênero não me pega mais
5
.
Então, surgem perguntas, derivadas da idéia central: Como é possível
_____________________________________________________________________________________________________
5 LISPECTOR, Clarice (1973). Água viva. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1994, p.17.
10
apreender a singularidade de determinada pessoa sem aprisioná-la? Penso que a
singularidade é composta por elementos que dão matiz inédito à pessoa. Como
encontrar esses elementos que compõem o modo de ser? No mesmo veio,
dialogando com Clarice Lispector, é possível apreender os aspectos mais
fundamentais que acompanham sua marcha pela vida rumo ao fim?
Pessoal e intransferível. Uso o termo singularidade no sentido lato.
Singular é um adjetivo de etimologia latina Singularis
6
que significa particular,
próprio, pessoal. Portanto, compreendo a singularidade como qualidade daquilo que
é único, caracteriza, explicita um modo de ser: um modo único de ser.
É importante esclarecer o que chamo de elemento constitutivo. Entendo,
conforme a concepção safriana, que os elementos constitutivos fazem parte da
composição inicial da vida do sujeito. O sujeito chega à comunidade humana com
uma história iniciada por seus antepassados, entretanto, está em uma situação em
que tudo é inédito. É recebido por seus pais e começa a viver as primeiras
experiências, tem sensações e percepções que, aos poucos, vão povoando, marcando
seu ser. Há uma história que lhe foi dada e há uma outra que se inicia. Porém, a
história pré-existente une-se à nova e transforma-se em outra. Quero dizer, o que
inicia uma nova história são os novos elementos e estes ganham a qualidade de
constitutivo. Esses novos elementos apontam para alguma coisa original, uma
configuração que será a base do modo de existir do sujeito.
Estes mesmos elementos, que se formam na origem do indivíduo e
preconstituem um modo de viver, são aqueles que o acompanham pela vida e se
_____________________________________________________________________________________________________
6 TORRINHA, Francisco. Dicionário latino- português. Porto (Portugal): Gráficos Reunidos LDA, 1942.
11
mantêm até a morte. Esta noção está assentada nas concepções de Safra sobre
idioma pessoal.
12
3 Metodologia
Para este estudo fiz, primeiro, uma investigação voltada para a história
pessoal de Clarice Lispector. Os dados biográficos foram recolhidos de importantes
trabalhos de estudiosos clariceanos e articulados com “depoimentos” deixados ao
longo da obra dela. Depois, na releitura de livros, contos, crônicas, etc. identifiquei
as principais questões que compõem e atravessam sua narrativa pessoal.
Começo com uma viagem à Ucrânia, antes do nascimento de Clarice.
Todavia, é a própria Clarice quem fala:
De camada em camada subterrânea chego ao primeiro homem
criado. Chego ao passado dos outros. Lembro-me desse infinito e
impessoal passado que é sem inteligência: é orgânico e o que me
inquieta. Eu não comecei comigo ao nascer. Comecei quando
dinossauros lentos tinham começado. Ou melhor: nada se começa. É
isso: só quando o homem toma conhecimento através do rude olhar é
que lhe parece um começo. Ao mesmo tempo aparento contradição
eu já comecei muitas vezes. Agora mesmo estou começando
7
.
Seguindo o percurso pela história de Clarice, ve remos a família Lispector
deixando a Ucrânia rumo à América e o nascimento de Haia, quer dizer, Clarice.
Hoje está um dia de nada. Hoje é zero hora. Existe por acaso um
número que não é nada? que é menos que zero? que começa no que
nunca começou porque sempre era? e era antes de sempre?Ligo-me a
esta ausência vital e rejuvenesço-me todo, ao mesmo tempo contido e
total. Redondo sem início e sem fim, eu sou o ponto antes do zero e do
ponto final. Do zero ao infinito vou caminhando sem parar
8
.
_____________________________________________________________________________________________________
7 LISPECTOR, Clarice (1978). Um sopro de vida: pulsações. Rio deJaneiro: Nova Fronteira, 1978, p.28.
8 Ibidem, p.11.
13
O nascimento acontece em meio à viagem, na travessia da Rússia em
direção ao Brasil.
Sou brasileira naturalizada, quando, por uma questão de meses,
poderia ser brasileira nata. Fiz da língua portuguesa a minha vida
interior, o meu pensamento mais íntimo, usei-a para palavras de
amor
9
.
A chegada dos Lispector ao Brasil. Aportaram em Maceió e, três anos
depois, mudaram-se para Recife. É no Nordeste, entre a capital alagoana e a
pernambucana, que se desenrolará a infância de Clarice.
A escrita clariceana e os dados biográficos contam um pouco sobre o
universo infantil: brincadeiras, passeios, traquinagens e preocupações. E como não
poderia ficar de lado, seu encontro com a literatura e o germe da escrita.
Seguindo a trajetória de Clarice e sempre entremeando com suas palavras,
vêm a adolescência e a entrada no mundo adulto, subsídios de nossa reflexão. Por
exemplo, a apropriação da escrita, trabalho, amigos, família, casamento, viagens.
À medida que apresentar os acontecimentos da vida de Clarice, a intenção
é compor um texto em que Clarice dialogue com a humanidade, em muitos
momentos apoiado em seus personagens; em outros, em publicações a respeito da
escritora. Busco mostrar, sempre que possível, o seu modo de sentir e perceber as
experiências relatadas, a fim de acompanhar o seu jeito de apreender vivências.
Ressalto não se tratar de um estudo assentado no campo da literatura, enquanto
disciplina. A idéia não é privilegiar os aspectos formais da obra nem a via da
interpretação tradicional da maioria dos estudos referentes à Clarice. Trilho
_____________________________________________________________________________________________________
9 LISPECTOR, Clarice (1970). Esclarecimentos explicação de uma vez por todas. In. A descoberta do mundo. Rio de
Janeiro: Rocco, 1999, p. 320.
14
um caminho um pouco diferente .
Pela psicanálise, norteada por Donald W. Winnicott e, principalmente, por
Gilberto Safra busco uma reflexão própria acerca de meu objetivo. Também
utilizarei, se necessário, outros autores que dialoguem tanto com Winnicott quanto
com Safra.
Não obstante, é fundamental apresentar, dentro do campo literário, autores
que de alguma maneira contribuíram para o estudo da obra, abriram as portas para o
estudo do mundo clariceano e de alguma maneira contribuíram para compor a
singularidade de Clarice Lispector. Sob esse ângulo, trarei aqueles que julgo
essenciais.
Se uma corrente da crítica literária se opõe à possibilidade de aproximar
vida e obra de determinado autor, acredito, tem seus motivos. Afinal, a obra se
coloca como objeto de estudo e, portanto, cabe interpretar, avaliar conforme a
orientação teórica e técnica de determinada perspectiva, seja no plano da literatura,
da filosofia, ou da psicanálise.
De fato, quando vida e obra parecem se ligar de um modo tão íntimo, como
é o caso de Clarice, há o risco de se enveredar por um caminho e cair em um espaço
bastante perigoso. Todo o cuidado é pouco, principalmente em se tratando de um
estudo em que se cruzam literatura e psicanálise.
A multiplicidade de estudos a respeito de Clarice Lispector torna difícil
enumerá-los (também não é minha intenção). Apresentarei, de maneira breve, alguns
autores. As primeiras críticas merecem destaque por, de algum modo, repercutirem
em Clarice. No caso de outros estudiosos, se destaca a capacidade de olhar a obra
sem perder a autora de vista.
15
3.1 Clarice e os críticos um levantamento
Clarice escreve Perto do coração selvagem, seu primeiro livro, em 1942.
No final de 1943 é publicado. No início de 1944, um mês após a publicação, a
imprensa especializada começa a dar resenhas e críticas do livro. No mesmo ano,
Perto do coração selvagem ganha o Prêmio Graça Aranha, relativo a 1943.
As críticas variam, ora amargas ora aclamando a estréia da escritora. De
qualquer modo, este momento gerava uma certa tensão e, em carta para a irmã Tania
Clarice desabafa: (...) as críticas, de um modo geral, não me fazem bem (...)
10
.
Durante todo o ano de 1944 o livro ficou na mira dos especialistas. Nos
jornais de várias partes do país havia algum tipo de manifestação sobre o romance.
Tanto que Ledo Ivo, amigo de Clarice
11
, em carta, brinca: Pelo que pude calcular
pois estou trabalhando em A Manhã e leio sempre notícias sociais, há atualmente
no Brasil uma moda de se colocar nos recém-nascidos o nome de Joana
12
. E
quando nasce homem, já sabe, é João ou Joano
13
.
Nesta moda de Joana, João ou Joano, o clima de début de Clarice e o
Prêmio Graça Aranha trazem à baila vozes marcantes da crítica, tais como Sérgio
Milliet, Álvaro Lins, Antonio Candido, Lúcio Cardoso.
Uma das primeiras críticas foi de Sérgio Milliet, pelo menos uma das mais
conhecidas. Em 15 de janeiro de 1944, Milliet, colunista do jornal O Estado de S.
_____________________________________________________________________________________________________
10 LISPECTOR, Clarice (1944). Correspondências. Rio de Janeiro: Rocco, 2002, p.38.
11 Clarice, nesta época, morava na Europa.
12 Protagonista do romance Perto do coração selvagem .
13 LISPECTOR, Clarice (1944). Correspondências. Rio de Janeiro: Rocco, 2002, p.46.
16
Paulo, publica um artigo no qual expressa sua estranheza diante de tal livro. Em
seus comentários faz referências que contemplam, por um lado, o valor do romance
e, por outro, um certo receio, afinal a escritora tinha um nome estranho e até
desagradável um “pseudônimo”. Depois de quase desistir da leitura, se deparou
com um trecho que o fez reconsiderar seu ponto de vista. Segundo Nádia Gotlib
14
,
o crítico argumenta que é difícil separar a personalidade da protagonista e da
escritora, tanto que em determinado momento do artigo enquanto fala da
originalidade de Clarice refere-se à Joana.
Clarice, em carta para as irmãs, afirma que se abateu com a crítica de
Álvaro Lins, que leu o romance antes da publicação. Francisco de Assis Barbosa,
jornalista e amigo, leu os originais do romance e sugeriu que enviasse a Álvaro Lins
a fim de tentar a publicação. Portanto, Lins teve acesso aos originais de Perto do
coração selvagem antes da edição do livro. Conta Clarice: Eu peguei, mandei o livro
e telefonei para o Álvaro e perguntei se valia a pena publicá-lo. Ele disse:
“Telefona daqui uma semana.” Aí eu telefonei. Olha, eu não entendi seu livro
não, viu? Fala com o Otto Maria Carpeaux que é capaz dele entender
15
.
Álvaro Lins, em fevereiro do mesmo ano, escreve um ardido artigo no qual
qualificava o romance como uma experiência incompleta, argumento assentado no
conceito de romance. Além disso, filiava a escritora a Virginia Woolf e James
Joyce.
Clarice reage à crítica e envia uma carta a Álvaro Lins. Escreve para seu
_____________________________________________________________________________________________________
14 GOTLIB, Nádia Battella. Clarice: uma vida que se conta. São Paulo: Ática, 1995.
15 Apud SANT’ANNA, Afonso Romano de; COLASANTI, Marina (1976). “Dezembro sem Clarice” . Escrita , ano III, n 27,
1978, p.21.
17
amigo Lúcio Cardoso desabafando:
Imagine que depois que li o artigo de Álvaro Lins, muito
surpreendida, porque esperava que ele dissesse coisas piores, escrevi
uma carta para ele, afinal uma carta boba, dizendo que eu não tinha
“adotado” Joyce ou Virginia Woolf, que na verdade lera a ambos
depois de estar com o livro pronto. Você se lembra que eu dei o livro
datilografado (já pela terceira vez) para você e disse que estava lendo
o Portrait of the artist e que encontrara uma frase bonita? Foi você
quem me sugeriu o título. Mas a verdade é que senti vontade de
escrever a carta por causa de uma impressão de insatisfação que
tenho depois de ler certas críticas, não é insatisfação por elogios, mas
é um certo desgosto e desencanto catalogado e arquivado
16
.
Antonio Candido, que se tornaria um dos renomados críticos brasileiros,
confessa ter levado um choque ao ler Perto do coração selvagem. No ensaio No
raiar de Clarice Lispector, publicado em julho de 1944. Candido diz: (...) tive
verdadeiro choque ao ler o romance diferente que é Perto do coração selvagem, da
sra. Clarice Lispector, escritora até aqui completamente desconhecida para mim
17
. Com esta mesma intensidade, Candido prossegue elogiando o trabalho de Clarice,
reposicionando a crítica a favor da escritora:
A sra. Clarice Lispector aceita a provocação das coisas à sua
sensibilidade, e procura recriar um mundo partindo das suas próprias
emoções, da sua própria capacidade de interpretação. Para ela, (...),
a meta é, evidentemente, buscar o sentido da vida, penetrar no
mistério que cerca o homem
18
.
Os críticos citados são aqueles que, com maior freqüência, foram
lembrados pela Clarice. Entre eles está, talvez, a voz mais importante: a de Lúcio
Cardoso.
Lúcio Cardoso, além de escritor e de crítico, era amigo de Clarice. Foi o
_____________________________________________________________________________________________________
16 LISPECTOR, Clarice. Correspondências. Rio de Janeiro: Rocco, 2002, pp.43-4.
17 CANDIDO, Antonio.Brigada Ligeira e outros ensaios. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1992, p.97.
18 Ibidem, p.99.
18
primeiro leitor do romance, quando ainda não tinha título. Na ocasião Clarice
comenta que estava lendo Joyce e cita uma frase. Cardoso sugere que ela seja a
epígrafe do livro. E, da epígrafe, nasceu o título Perto do coração selvagem.
Ao analisar o livro, o crítico reconhece a existência da singularidade da
escritora e não se preocupa em distingui-la da protagonista. Isto porque considera
Clarice maior do que os conceitos utilizados pelos especialistas para analisar o
romance. E empenha-se em destacar a poesia do livro e em defendê-lo das críticas
mais ásperas.
Está em Perto do coração selvagem o germe para os estudos que se
desenvolverão sobre a vida e obra de Clarice Lispector. O público é atraído,
segundo Abdala Júnior e Campedelli, pela problematização radical da linguagem e
pela tematização de motivos existenciais que pautavam o trabalho artístico de
Clarice Lispector
19
. No princípio os leitores concentram-se principalmente dentro
do círculo especializado da literatura, mas, aos poucos, a escritora vai se tornando
mais conhecida e desperta o interesse de outras áreas de conhecimento e de estudo,
entre eles a filosofia e a psicanálise.
Benedito Nunes em Leitura de Clarice Lispector faz uma análise das
temáticas presentes ao longo da obra até então publicada (Perto do coração
selvagem, O lustre, A cidade sitiada, Laços de família, A maçã no escuro, A legião
estrangeira, A paixão segundo G.H., Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres,
Felicidade clandestina) e se debruça sobre as questões filosóficas que se
_____________________________________________________________________________________________________
19 JÚNIOR , Benjamin Abdala; CAMPEDELLI, Samira Youssef . “Vozes da crítica”. LISPECTOR, Clarice. A paixão
segundo G.H.; Edição crítica; Madrid; Paris;México; Buenos Aires; São Paulo; Rio de Janeiro; Lima: ALLCA XX, 1996,
p.197.
19
apresentam nos textos clariceanos. Segundo ele, as diferentes questões que
compõem as temáticas se articulam formando uma concepção-do-mundo; portanto,
uma temática marcadamente existencial. Temática essa que pode aparecer isolada
ou combinada mas que se repete nos romances e nos contos, atravessando a obra de
Clarice. Nunes assinala:
(...) a inquietação, o desejo de ser, o predomínio da consciência
reflexiva, a violência interiorizada nas relações humanas, a potência
mágica do olhar, a exteriorização da existência, a desagregação do
eu, a identidade simulada, o impulso ao dizer expressivo, o grotesco
e/ou o escatológico, a náusea e o descortínio silencioso das coisas
20
.
Portanto, partindo desses motivos citados, segundo Nunes, é que se pode
entrever a forma de sentir e pensar uma concepção-do-mundo em Clarice. Alfredo
Bosi
21
em História concisa da literatura brasileira também assinala esta
perspectiva filosófica dos textos.
Bosi relaciona os romances de Clarice entre os aqueles que são
denominados romances de tensão transfigurada. Assim, o protagonista procura
ultrapassar as questões que o constituem existencialmente pela transmutação mítica
ou metafísica da realidade. É dentro desta perspectiva que se assenta a interpretação,
do autor, para quem toda a obra da escritora é um romance de educação existencial.
Massaud Moisés em História da literatura brasileira considera o núcleo
da temática clariceana o centramento no EU. A partir do EU se desdobram outros
sinais, que fazem parte de toda a obra de Clarice. Como Nunes e Bosi, Moisés
também aponta o caráter existencial da ficcionista, entretanto, o faz
_____________________________________________________________________________________________________
20 NUNES, Benedito. Leitura de Clarice Lispector. São Paulo: Quíron, 1973, p.95.
21 BOSI, Alfredo (1970). História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix , 1994.
20
aparentando o EU dos protagonistas ao EU de própria autora. Diz Moisés:
A ficção de Clarice Lispector flui exatamente no hiato em que o
drama existencial se delineia: o seu objetivo era o de captar o in fieri,
registrar em palavras, como um flagrante fotográfico, a fímbria em
que o ser se converte em não-ser, o mistério se entreabre sem
deslindar-se, a contemplação defronta-se com a fatal imanência da
morte. Esse trânsito fugaz e sutil é assinalado por “momentos
privilegiados” em que o “eu” toma consciência do que ocorre
dentro/fora dele, e descobre-se habitado e circundado pelo mistério,
pelo insondável, pelo incompreensível (...) De onde o viver significa a
inconsciência do oculto do ser, e o existir, a consciência do oculto, do
misterioso e do relativo ao ser
22
.
Tais estudiosos consideram Clarice filha do existencialismo, mas ela
resiste a essa classificação. Em entrevista (1974), ao ser perguntada se havia
preocupação com questões filosóficas, diz:
Não. Há críticos que acentuam muito o aspecto existencialista de
minha obra. Coisa nenhuma! Eu não li existencialistas. Fui saber da
existência de Sartre depois que já tinha publicado meu primeiro
romance. Quanto à preocupação de organizar a alma em linguagem
é algo que qualquer artista pode pretender. Não é preciso ler
Heidegger
23
.
O questionamento sobre as bases filosóficas que compõem a obra
clariceana continua. Em 1976, também em entrevista, Afonso Romano de
Sant’Anna pergunta a Clarice se ela teve influências específicas ou fez leituras
existencialistas para fazer seu livro A maçã no escuro. Clarice responde:
Não, nenhuma. Minha náusea inclusive é diferente da náusea de
Sartre. Ela é sentida mesmo. Quando eu era pequena não suportava
leite e quase vomitava quando tinha que beber. Eu sei o que é náusea
do corpo todo, de alma toda
24
.
_____________________________________________________________________________________________________
22 MOISÉS, Massaud. História da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix/Edusp, v.5, 1989, p.457.
23 Apud SEM ASSINATURA. Clarice Lispector. Entrevista concedida à Revista Textura. São Paulo: Letras/Universidade de
São Paulo, maio de 1974, pp.23-4.
24 SANT’ANNA, Afonso Romano de; COLASANTI, Marina (1976); MIS. “Dezembro sem Clarice”. In. Escrita. São Paulo:
Vertente, ano III, n.27, 1978, p. 22
21
Por um lado, se Clarice negava esta filiação e sofria com as críticas, por
outro sabia reconhecer aqueles que contribuíam com seu trabalho. Quanto ao estudo
de Benedito Nunes, disse: Ele é muito bom. Ele me esclarece muito sobre mim
mesma. Eu aprendo sobre o que escrevi
25
.
Posteriormente, outros estudiosos procuraram esclarecer Clarice através da
própria história. A primeira biografia de Clarice, feita nos anos 1960 por Renard
Perez, serviu de referência até a década de 80-90. Depois foi Olga Borelli, amiga de
Clarice, quem trouxe um pouco mais da intimidade da autora em Clarice Lispector:
esboço para um possível retrato, articulando vida e escrita.
Em 1995, foi a vez de Nádia Battella Gotlib fazer uma biografia: Clarice:
uma vida que se conta. Gotlib excedeu à biografia: integrou a escrita à vida de
Clarice. Como uma tecelã, vai simultaneamente entrelaçando os aspectos
biográficos com a obra e a obra com os aspectos pessoais.
Em 1999, é Teresa Cristina Montero Ferreira quem investiga e publica Sou
uma pergunta: uma biografia de Clarice Lispector. Passa a ser a biógrafa oficial de
Clarice.
Além desses estudiosos clariceanos há muitos outros. É preciso citar
alguns: Olga de Sá, A escritura de Clarice Lispector e Clarice Lispector: a
travessia do oposto; Regina Pontieri, Clarice Lispector: uma poética do olhar e
Leitores e leituras de Clarice Lispector (Org); José Rosa de Almeida, A
experimentação do grotesco em Clarice Lispector; Edgar Cezar Nolasco, Restos de
___________________________________________________________________
25 Apud SEM ASSINATURA. Clarice Lispector. Entrevista concedida à Revista Textura. São Paulo: Letras/Universidade de
São Paulo, maio de 1974.
22
ficção: a criação biográfica-literária de Clarice Lispector; Gilberto Figueiredo
Martins, As vigas de um heroísmo vago (três estudos sobre A maçã no escuro),
Yudith Rosenbaum, Metamorfoses do mal: uma leitura de Clarice Lispector; Claire
Varin, Línguas de fogo: ensaio sobre Clarice Lispector; Berta Waldman, A paixão
segundo Clarice Lispector; etc.
23
3.2 Clarice e a psicanálise
Tanto na literatura quanto na psicanálise muito já foi escrito a respeito de
Clarice. Citarei apenas Dany Al-Behy Kanaan por estar mais próximo do modo
como penso a singularidade de Clarice.
Kanaan, em À escuta de Clarice Lispector: entre o biográfico e o literário,
uma ficção possível, fez o que parte dos estudiosos e críticos de literatura condena,
uma ponte entre o biográfico e o literário. Entretanto, foi bastante cuidadoso ao
aproximar a escrita de Clarice da sua vida pessoal. O autor se deteve na questão da
subjetivação apoiando-se nos textos judaico-cristãos. Essa escolha colaborou para
que o texto revelasse algumas questões pessoais da autora sem ferir ou invadir a
pessoalidade de Clarice.
Além de ser um belíssimo trabalho, Kanaan tem importância maior: abriu
possibilidades de se fazer, dentro do contexto psicanalítico-literário, novas leituras
da obra clariceana e de outros autores. Outro vértice, a publicação de um trabalho
que tem uma escuta clínica com rigor teórico, que está assentado principalmente na
obra de Clarice sem, contudo, perder de vista a singularidade da escritora.
Ao mesmo tempo em que tenta manter o rigor ele introduz sentenças dos
textos como se fossem palavras pessoais de Clarice, entretanto é a voz do
personagem. Para mim são palavras pessoais de Clarice porque não vejo, ao
contrário de muitos especialistas, como separar a escrita do escritor. Mesmo que
seja ficção, a escritura passa, segundo Clarice, por aquilo que está atrás do
24
pensamento. Deste modo, Kanaan vem para confirmar algumas indagações, refutar
outras, mas, de qualquer modo, aprofundar reflexões.
25
4 Justificativas
Acredito que o tema proposto tenha sua importância principalmente como
objeto de reflexão a respeito das principais questões que constituem o ser humano.
E um modo de iluminar essa reflexão foi tomar Clarice Lispector pela mão e contar
com ela para fazer a travessia.
Os pacientes ao chegarem no consultório estão em busca de alguma coisa.
Aparentemente não sabem o que é, mas têm a certeza de que alguma não está
caminhando bem. É comum chegarem com o diagnóstico pronto, apontando os
sintomas e as conseqüentes dores. Por outro lado, queixam-se de que mesmo
conhecendo todos os sinais, fruto de psicoterapias anteriores, não encontram alívio
para o sofrimento. Relatam que em muitos momentos não se sentem
compreendidos, não apenas pelo analista, mas pelos familiares e amigos. Se sentem
como se muros fossem levantados em torno de si, evitando a comunicação com os
outros.
Esta questão poderia ser tratada sob diferentes ângulos: político,
econômico, histórico, enfim depende da necessidade daquele que está vivendo a
experiência. Este estudo elege olhar o sujeito sob o vértice da psicanálise, tentando
reconhecer as questões que compõem a essência de determinada pessoa.
Há um certo desencontro com colegas no momento de discutir determinada
situação clínica. De certo modo repetem-se as inquietações vividas, durante a
graduação em psicologia. A intenção não é julgar a prática de meus colegas, mas
ressaltar uma espécie de estranhamento um fora do ninho, tal qual os pacientes.
26
Além disso, percebo que não se trata apenas do ponto de vista teórico, mas da falta
de abertura diante das diferentes questões que o ser humano porta.
Voltando a Clarice. Muitas e muitas vezes ouvi as pessoas falarem de
Clarice como se ela fosse uma alienígena, como se não fosse filha deste mundo.
Talvez tenham razão. Afinal, não só pela sua escritura, mas seu modo de estar e
compreender o mundo, desvelava um profundo conhecimento de si e da condição
humana, diferentemente da maioria das pessoas.
Por exemplo, vamos tomar seu nome: Clarice Lispector. No início de sua
carreira, Sérgio Milliet considerou seu nome tão estranho a ponto de acreditar ser
um pseudônimo. E daí para a frente muito se falou, não necessariamente em relação
a seu nome, mas ao mistério que rondava o seu jeito de ser.
Não só de estranha denominavam Clarice, mas também de louca. Em
entrevista um escritor afirmou que ela havia sido hospiciada. A propósito, não há
em sua biografia nenhuma menção de internação por surto psicótico. No entanto,
consigo compreender tais afirmações, porque, como veremos ao longo deste
trabalho, Clarice está assentada no originário. Safra diz:
O aparecimento de um número cada vez maior de pessoas nos
consultórios, que experimentam modos de subjetivação e de
sofrimento inusitados, em conseqüência de processos educativos e, às
vezes, até mesmo de tratamentos psicoterápicos ou psicanalíticos
orientados por perspectivas excessivamente abstraídas da experiência
de vida, aponta para a necessidade de uma revisão de nossa prática
clínica. Essa problemática vem sendo assinalada, exemplarmente
pelos pacientes que afirmam sofrer a agonia do totalmente pensado.
Eles se referem a um mundo em que tudo é excessivamente nomeado e
racionalizado, sem que seja levada em conta a dimensão do ser
humano que está para além de qualquer possibilidade de
conhecimento e para além de qualquer tentativa de apreensão da
27
experiência humana, por excessiva nomeação
26
.
Pelo já exposto, Clarice é uma boa companhia. Pessoa conhecida, facilita
a discussão. A escolha derivou, fundamentalmente, do seu modo de ser.
Portanto, contando com Clarice, este trabalho pretende refletir o ser
humano a partir de uma perspectiva ontológica
27
, apoiado, principalmente, nas
reflexões e nos pressupostos de Gilberto Safra.
_____________________________________________________________________________________________________
26 SAFRA, Gilberto. Hermenêutica na situação clínica: o desvelar da singularidade pelo idioma pessoal. São Paulo: Edições
Sobornost, 2006, pp. 19-20.
27 Na perspectiva ontológica, de acordo com Safra, o ser humano se constitui fundamentalmente a partir de sua condição
originária, que não é apreensível pelos sentidos, mas sustenta o acontecer humano .
28
5 Apresentação dos capítulos
O cerne deste trabalho tem duas partes. “Tentativa de artesão” é dedicada à
vida de Clarice Lispector. Da solidão de não pertencer à quarta dimensão
relaciona aspectos que considero essenciais da constituição de seu modo de ser.
Na primeira parte está a história de Clarice entrelaçada com sua escrita e
com “depoimentos” deixados ao longo de sua obra. São 24 capítulos, alguns breves,
outros mais extensos, a maioria em formato de crônica. Em “Os ancestrais
ucranianos”, a família Lispector deixa a Ucrânia rumo à América e nasce Clarice.
Depois a chegada, “Do Oriente ao Ocidente”. Nos seguintes, a mudança de Maceió
para Recife e os quintais da infância de Clarice: “A mudança: Alagoas para
Pernambuco”, “A infância em Recife”, “Histórias intermináveis: guardiãs de um
segredo”, “Amizade, matéria de salvação”, Ainda bem! Restaram as formigas”, “A
procura de não-ser”, “Eu era o único eu”, “Tesouro disfarçado e revelado”. Nos
capítulos subseqüentes, veremos o trânsito pela adolescência e pelo início da vida
adulta: De Recife ao Rio”, “O salvo-conduto”, “Banhos de mar: celebração da
presença do pai”, “Novos encontros: Perto do coração selvagem”. A partir do
capítulo intitulado “Rio-Belém” se iniciam longos anos de viagens pelo mundo: “A
cor esmaecida de Nápoles”, O silêncio de Berna”, “Estou me controlando para
não ficar alegre demais”, O cheiro de Berna”, “Da Inglaterra ao Brasil”, “Em
Washington, pensando sem parar”, “Dois meses no Rio”, “Não me incomodo muito
de ficar embotada”. Por fim, “De volta para casa”.
29
Na segunda são quatro capítulos. Em “A solidão de não pertencer”, além
de contar outra história de Clarice, como se apresenta a missão, o pertencer e o não
pertencer e o encaminhamento desses fatores rumo à questão. Atrás do
pensamento mostra como a solidão se faz elemento constitutivo do modo de ser
Clarice. “No Rosto, o silêncio” aborda o lugar do silêncio. A escrita como dimensão
icônica está emA palavra, quarta dimensão”.
Nas considerações finais são retomadas e reformuladas as principais
questões do originário de Clarice feitas ao longo do estudo.
30
PARTE I
Tentativa de artesão
31
Os ancestrais ucranianos
Gotlib
28
conseguiu recolher alguns dados dos antepassados de Clarice
Lispector, principalmente do pai. Os avós paternos eram judeus e chamavam-se
Samuel e Echerved Lispector, tiveram nove filhos, entre eles Pedro, pai de Clarice.
Pedro nasceu em 9 de março de 1885 em uma aldeia, Teplek, na Ucrânia. Dos avós
maternos, os Krimgold, também judeus, segundo Gotlib, pouco se sabe, não há
registros deles e nem de Marieta, mãe de Clarice. Nem datas nem a procedência da
família, tampouco o lugar do nascimento de Marieta. Sabe-se apenas que Marieta
tinha quatros irmãos, chamados Joel, Sara, Zina e Anita. É através deles que se
começa a desenhar a trajetória da família Lispector.
Zina, uma das irmãs de Marieta, namorava José Rabin, que decidira dar
novo rumo à sua vida. Mesmo antes da Primeira Grande Guerra e da Revolução
Bolchevique, as condições de sobrevivência na Rússia eram muito complicadas. A
fome predominava pois os camponeses eram obrigados a entregar a colheita ao
governo; a violência era a força motriz contra os opositores do regime czarista e
depois bolchevique. O clima era de tensão. Saques, estupros, assassinatos estavam
no cotidiano daquelas pessoas. Uma das alternativas era migrar à procura de
melhores condições de vida. Foi o que José Rabin fez.
José Rabin viajou para o Brasil. Aportou em Maceió e se estabeleceu como
comerciante. Quando se sentiu mais seguro, mandou buscar sua Zina. Casaram-se
___________________________________________________________________
28 GOTLIB, Nádia Battella. Clarice: uma vida que se conta. São Paulo: Ática, 1995.
e tiveram dois filhos: Sarita e Henrique.
32
Consciente das dificuldades enfrentadas na Ucrânia, José, por
correspondência, convida os irmãos de Zina para virem para o Brasil. A primeira a
aceitar o convite foi Marieta com o marido Pedro Lispector e as três filhas: Elisa,
Tânia e a pequena Clarice, Clarice Lispector, talvez com dois meses. Em seguida
vieram Joel Krimgold casado com Berta e seus filhos: Anita, Sônia, Tânia, Clarice,
primas de Clarice Lispector e Jacó. Depois, vieram a irmã Sara, casada com Marcos
Chut e os filhos Isaac e Clarice. Por fim, chegaram Anita, a mais nova, e Boris
Asrilhant, seu marido e o filho, Isaac.
33
Do Oriente ao Ocidente
Pedro e Marieta Lispector, de origem judaica, viviam em uma cidade
chamada Savran, na Ucrânia, onde nasceu a primeira filha, Elisa. Depois se
mudaram para Teplik, lugar de nascimento de Pedro, e da segunda filha, Tania.
A situação na Rússia pós-Revolução Bolchevique (1917) era insustentável,
e a família Lispector decide partir para a América, pois contava com parentes tanto
no Brasil como nos Estados Unidos.
A família inicia a viagem de imigração. Ainda antes de embarcar surgem
muitas dificuldades, assaltos e surtos epidêmicos, o que aumenta a preocupação com
Marieta, que sofria de paralisia progressiva. E está grávida, pela terceira vez.
Em 10 de dezembro de 1920, em Tchechelnik, uma aldeia da Ucrânia,
nasce Clarice, terceira filha do casal. A família segue viagem em direção à América.
O ponto de partida foi Teplik, passara por Tchechelnik, seguira para Odessa (cidade
do Mar Negro), em direção à Romênia. Na passagem por Bucareste (Romênia)
Pedro conseguiu no consulado da Rússia passaporte para todos os membros da
família. Este documento permitiu que prosseguissem a jornada. O rumo estava
tomado: viajariam para o Brasil. Atravessaram a Europa Oriental em direção à
Alemanha, para o porto de Hamburgo, onde Pedro procura emprego, não consegue e
isto contribui para que se ponham a bordo do navio Cuyabá e encaminhem-se para o
Brasil.
É provável que os Lispector tenham chegado ao Brasil depois de uma
34
viagem de cerca de trinta dias. De acordo com Gotlib
29
, a família Lispector estava
na Romênia em fevereiro e, em março, aportou em Maceió, Alagoas. Esta mesma
autora apresenta uma foto de toda a família e registra que havia sido tirada para o
passaporte coletivo, em fevereiro de 1922. Entretanto, em obra anterior (1995), a
mesma autora refere outra data de chegada: fevereiro de 1921. Porém a própria
Clarice relata em uma crônica de 14 de dezembro de 1970: Cheguei ao Brasil com
apenas dois meses
30
. Portanto, é difícil precisar algumas datas, o que deixa certa
dúvida em relação ao tempo da viagem e à idade de Clarice.
No Brasil a família é recebida por Zina, irmã de Marieta, e por José Rabin,
casal que fizera o convite e viabilizara a entrada dos Lispector no país.
Inicialmente Pedro trabalha como mascate, vendendo os produtos que José
Rabin financiava. Depois José torna-se proprietário de uma fábrica de sabão e Pedro
colabora aplicando técnicas aprendidas na Rússia.
A família Lispector permanece em Maceió por três anos e meio. Pedro,
insatisfeito com seus negócios, decide buscar alternativas de trabalho e resolve se
mudar de Alagoas para Pernambuco.
___________________________________________________________________
29 GOTLIB, Nádia Battella, MIS, Equipe. “A descoberta do mundo”. Cadernos de literatura brasileira: Clarice Lispector.
São Paulo: Instituto Moreira Salles, ed. especial, n 17 e 18, 2004.
30 LISPECTOR, Clarice (1970). A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p.320.
35
A mudança: Alagoas para Pernambuco
É provável que Pedro tenha sido atraído pela pujança que a indústria
açucareira e o comércio promoviam em Pernambuco, em especial em Recife.
A família se instala no bairro de Boa Vista, onde predominava a
comunidade judaica e onde viviam outros parentes de Marieta. Foram morar no
segundo andar de um velho casarão, na praça Maciel Pinheiro, esquina da travessa
do Veras com a rua Aragão. O chefe da família dedica-se ao comércio, como
mascate, vendendo tecido para roupas e roupas já prontas. Na época, em Recife, não
havia núcleos comerciais nos bairros, o comércio se concentrava no centro da
cidade. Assim, eram os mascates que levavam os produtos aos fregueses,
percorrendo os bairros, de porta em porta, vendendo de tudo e aceitando
encomendas. Dona Marieta permanecia o tempo todo em casa, em cadeira de rodas,
conseqüência da grave paralisia. Relata Samuel Lispector que além de enfrentar as
dificuldades físicas, Marieta era muito nervosa. Samuel é primo de Clarice, filho de
Salomão e Mina Lispector. Esta família também migrou da Ucrânia para o Brasil em
busca de uma vida melhor.
A vida em Recife estava longe do que Pedro havia sonhado. O que ganhava
era insuficiente, a família passava por muitas privações e o estado de Marieta
piorava. Em 1976, em entrevista concedida a Affonso Romano de Sant’Anna e a
Marina Colasanti Clarice diz: Nós éramos muito pobres e ainda havia doença em
36
casa. E eu era tão alegre que escondia a dor de ver aquilo tudo
31
. A
responsabilidade recaía sobre a filha mais velha, Elisa, que assumia tanto o cuidado
da mãe como das irmãs mais jovens e os afazeres domésticos.
___________________________________________________________________
31 Apud SANT’ANNA, Affonso Romano de; COLASANTI, Marina. “Dezembro sem Clarice”. Escrita São Paulo, n. 27,
1978, p.21.
37
A infância em Recife
A infância de Clarice não foi fácil, foi de muito sofrimento, a menina
convivia com muitas faltas, entre elas uma que lhe era vital: o colo materno. A
solidão era sua companheira no desamparo, a angústia era o seu mal de estar viva, e
para compensar entregava-se à imaginação. Brincava de faz-de-conta. Até os seus
pequenos delitos, como roubar rosas e pitangas e invenção do jogo essa casa é
minha, relatados na crônica Cem anos de perdão
32
, de 25 de julho de 1970,
apontavam a necessidade de possuir, ter algo seu.
Clarice morava em um velho casarão, muito pobre e, como toda criança que
deseja um mundo diferente, sonhava com castelos, com príncipes e princesas.
Surgiu, desta forma, uma brincadeira que chamou de essa casa é minha. Em Recife
havia ruas em que as propriedades pertenciam a pessoas abastadas, eram construções
semelhantes a palacetes, com jardins imensos, que encantavam a menina. Com uma
amiga, brincava de escolher a quem pertencia cada castelo, assim, de acordo com
seus desejos, discutiam qual das duas seria a nobre proprietária.
Os “palacetes” eram sempre rodeados por lindos jardins e nos fundos
localizavam-se suculentos pomares. Uma vez, quando estavam brincando de essa
casa é minha, Clarice foi tomada pela visão de uma rosa cor-de-rosa-vivo: Fiquei
feito boba, olhando com admiração aquela rosa altaneira que nem mulher feita
ainda não era. E então aconteceu: do fundo do meu coração, eu queria aquela rosa
___________________________________________________________________
32 LISPECTOR, Clarice (1970). “Cem anos de perdão”. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
38
para mim
33
. Continua: No meio do meu silêncio e do silêncio da rosa, havia o meu
desejo de possuí-la como coisa só minha. Eu queria poder pegar nela. Queria
cheirá-la até sentir a vista escura de tanta tonteira de perfume
34
. A menina não
resistiu ao seu ardente desejo. Preparou um plano: entrou com muito cuidado pelo
jardim, enquanto sua amiguinha vigiava qualquer aproximação. Clarice pegou a rosa
e correu para bem longe da casa: agora a rosa era sua.
Esta aventura se repetiu várias vezes: (...) a menina vigiando, eu entrando,
eu quebrando o talo e fugindo com a rosa na mão. Sempre com o coração batendo e
sempre com aquela glória que ninguém me tirava
35
. Pitangas também a levavam ao
delito. O processo era semelhante: olhava em volta, vendo que não havia ninguém,
metia a mão pelas grades, apalpava, sentia as frutinhas e as tirava. Deliciava-se com
as pitangas ali mesmo.
Pequenos acidentes podiam se tornar divertimentos. Foi assim quando
Clarice quebrou um termômetro. O metal de cor prata se espalhava, com um
pequeno toque se reconstituía, e separava-se novamente, e assim por diante, era
impossível segurá-lo, prendê-lo. Ao relatar essa experiência ímpar, vivida na
infância e conteúdo da vida onírica quando adulta, diz: O espírito, através do corpo
como meio, não se deixa contaminar pela vida, e esse pequeno e faiscante núcleo é
o último reduto do ser humano (...) núcleo de pureza e integridade
36
.
Como o mercúrio, metal que sempre mantém a essência, quando livre pode
___________________________________________________________________
33 Ibidem, p.298.
34 Ibidem.
35 Ibidem, p.299.
36 LISPECTOR, Clarice (1972). “A festa do termômetro quebrado”. In A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999,
p.425.
39
se multiplicar em fragmentos e retornar ao estado original, eram os passeios que
Clarice fazia com seu pai. Pedro acreditava que se deveria fazer, uma vez ao ano,
um tratamento preventivo de saúde com banhos de mar, de preferência em jejum e
antes do sol nascer. Pai e filha saíam de Recife rumo a Olinda ainda de madrugada,
tomavam o bonde e chegavam à praia ao amanhecer. Clarice relata que não sabe da
infância alheia, mas para ela:
(...) essa viagem diária me tornava uma criança completa de alegria.
E me serviu como promessa de felicidade para o futuro. Minha
capacidade de ser feliz se revelava. Eu me agarrava, dentro de uma
infância muito infeliz, a essa ilha encantada que era a viagem diária
37
.
A felicidade começava a dar indícios no dia anterior, diante da expectativa
do passeio. Na madrugada em que a viagem ocorreria, a menina acordava todos na
casa com sua agitação, tinha pressa em sair. No trajeto, dentro do bonde, observava
a cidade escura e o despovoamento da noite. À medida que o tempo passava,
surgiam os primeiros sinais do amanhecer, cruzavam o campo, e extasiada ela
gritava coisas como: Olhe um porco de verdade
38
. Quando chegavam à praia, o
cheiro do mar a invadia, a embriagava, então com as mãos em concha tomava a
água do mar, unindo-se para sempre a ele. Não demoravam muito, pois seu pai
tinha que trabalhar, mas sabia que no dia seguinte a viagem se repetiria, o que a
deixava (...) séria de tanta ventura e aventura
39
. As viagens com o pai não serão
___________________________________________________________________
37 LISPECTOR, Clarice (1969). “Banhos de mar”. In A descoberta do mundo . Rio de Janeiro: Rocco,1999, p.170.
38 Ibidem.
39 Ibidem., p.171.
40
esquecida, o momento de unir-se ao mar será, sempre que possível, repetida no
futuro através de banhos de mar ou de sua literatura aparentando-a ao prateado
metal líquido.
Outra lembrança da infância registrada por Clarice
40
, no entanto sem auto-
referência, eram os passeios dominicais ao cais do porto. Juntos, pai e filhas. O pai,
na época, tinha nos olhos aquelas águas oleosas da tristeza, as meninas, inquietas,
tentavam desviar a atenção do pai mostrando-lhe coisas melhores, parece que nada
ajudava. Até que a filha mais nova quis sentar em um dos bancos altos e giratórios
de um bar, o pai achou aquilo engraçado. A menina percebeu que alegrara o pai e,
para mantê-lo alegre, fez mais graça. Pediu para o pai uma bebida, escolheu a mais
barata: Ovomaltine. O leite com espuma a deixou nauseada, não gostou, quer dizer,
detestou mas fingiu o contrário. Aquele bar em banco alto e giratório e o ovomaltine
custavam caro, e ela não poderia decepcionar a família que a assistia, era como se
dela dependessem para acreditar ou não em um mundo melhor:
Domingo ia ser sempre aquela noite imensa e meditativa que
gerou todos os futuros domingos e gerou navios cargueiros e gerou
água oleosa e gerou leite com espuma e gerou a Lua e gerou a
sombra gigantesca de uma árvore apenas pequena e frágil. Como eu
41
.
É possível que esta experiência tenha pertencido a sua meninice como a
sombra gigantesca de uma menina apenas pequena e frágil que se preocupava com
o mundo. Apreensiva com as dificuldades que enfrentavam, com a tristeza paterna,
com o dinheiro que haviam gastado no passeio, o que era para ser alegria tornava-se
_________________________________________________________________
40 LISPECTOR, Clarice (1971). “O passeio da família”. A descoberta do Mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
41 Ibidem, p.343.
41
tormento. Então, para não agravar a situação, fazia-se de satisfeita, feliz. Quer dizer,
a menina se abalava com os problemas que via colocando-se como aquela que
deveria responder pelo bem-estar dos seus; entretanto, pouco podia fazer para
modificar tal situação, podia, apenas, fazer-de-conta.
Tania Kaufmann, em depoimento a Nádia Gotlib, conta sobre a menina
observadora e engraçada que foi Clarice:
Naquela época não se usava mulher sair sozinha na rua. Quando uma
mulher saía, levava uma outra pessoa junto. Se Elisa precisava ir ao
médico, por exemplo, geralmente era Clarice que a acompanhava.
Elisa entrava para ser atendida e Clarice ficava na sala de espera. E
ao chegar em casa, o espetáculo começava. Clarice imitava as
pessoas que estavam na sala de espera. Imitava como as pessoas
ficavam, enquanto esperavam. Mas imitava percebendo como cada
uma era, como se comportavam, com gestos engraçados. E todo
mundo ria muito. Ela era engraçada
42
.
_________________________________________________________
42 Apud, GOTLIB, Nádia Battella. Clarice: uma vida que se conta. São Paulo: Ática, 1995, p.85.
42
Histórias intermináveis: guardiãs do segredo
O mergulho em cenários imaginários acontecia entre a fantasia e a difícil
realidade, apresentava-se sob a forma de histórias inventadas muito antes de saber
ler ou escrever: eram histórias que não acabavam nunca
43
, diz Clarice
em
entrevista à TV Cultura. Essas histórias intermináveis podem ter sido escritas, mas
jamais publicadas. Tornaram-se guardiãs do segredo da atualidade, nada atravessará
a sua continuidade. O mistério não publicado vive para sempre no que não se acaba
nunca.
Não se sabe ao certo com que idade Clarice ingressou na escola. Talvez aos
seis ou aos sete anos. Sabe-se, porém, que a primeira série foi cursada no Grupo
Escolar João Barbalho, na rua Formosa, em Recife, onde aprendeu a ler e escrever.
A partir deste então, a imaginação ganha o corpo da escrita e a escrita apresenta a
alma de Clarice. Por um lado, está capacitada para a leitura, lê O patinho feio e
Aladim, duas histórias que pertenciam a um mesmo livro, que a inicia no universo
da literatura. Por outro, pode escrever suas próprias histórias.
No universo dos contos infantis tudo pode acontecer. Clarice
44
fica deslumbrada
com o mistério da história do patinho feio. O patinho que era feio vivia entre outros
patos, que eram considerados bonitos. Por ser diferente, era sempre excluído. O
tempo passou, o patinho cresceu e tornou-se um belo cisne: Essa história me fez
___________________________________________________________________
43 Recurso audiovisual. Entrevista de Clarice Lispector concedida a TV Cultura, São Paulo, 1º de fevereiro de 1977.
44 LISPECTOR, Clarice (1973). “O primeiro livro de cada uma de minhas vidas”. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro:
Rocco, 1999.
43
meditar muito, e identifiquei-me com o sofrimento do patinho feio quem sabe se
eu era o cisne?
45
. A partir da identificação com o sofrimento do personagem é
possível perceber a presença daquilo que a faz mergulhar no mundo imagético. A
menina se coloca no lugar daquele que foi deixado em ninho estrangeiro, daquele
que se tornou um forasteiro no próprio lugar onde nasceu, denunciando sua terrível
condição, experimentando, desde a origem, o sabor da solidão. Por outro lado, a
transformação do patinho em cisne dava-lhe esperança. E ser o cisne era a
possibilidade de buscar quem se quer ser e o que se quer ser, era a possibilidade de
encontrar um lugar onde se pudesse ser, o lugar do devir.
A capacidade de fantasiar mediava a triste realidade de Clarice, como se o
impossível pudesse a qualquer momento receber a consagração de uma realização e
tudo se modificar. Assim é na história de Aladim: A idéia do gênio que dizia: pede
de mim o que quiseres, sou teu servo isso me fazia cair em devaneio
46
. Quando
voltava ao mundo real, o colorido do sonho se desfazia em um preto-e-branco
angustiante de quem não tem graça a receber: Quieta no meu canto, eu pensava se
algum dia um gênio me diria: “Pede de mim o que quiseres”. Mas desde então
revelava-se que sou daqueles que têm que usar os próprios recursos para terem o
que querem, quando conseguem
47
.
Por si mesma, fez do fantasiar sua salvação.
Assim surgiu a possibilidade de viver através das palavras. Foi a surpresa
do nascimento da escrita. Então, a escrita vive. A própria Clarice conta: Depois de
___________________________________________________________________
45Ibidem, p.425.
46Ibidem, p.452.
47 Ibidem.
44
aprender a ler e a escrever, devorava os livros. Eu pensava que livro era como
árvore, como bicho, coisa que nasce. Não sabia que era um autor por trás de tudo.
Lá pelas tantas, eu descobri e disse: “Eu também quero”
48
. Então, o movimento da
menina é de querer ser uma autora, dar origem, ser agente daquilo que se encarna
pelo caminho da imaginação, como o gênio da lâmpada que realiza os anseios mais
íntimos.
___________________________________________________________________
48 Apud SANT’ANNA, Affonso Romano de; COLASANTI, Marina (1976). “Dezembro sem Clarice”. Escrita. São Paulo, n.
27, 1978, p.21.
45
Amizade, matéria de salvação
As fábulas criadas não bastavam para driblar o cotidiano. A pequena, que
era envergonhada, carecia de alguma presença que lhe indicasse que não haviam
desistido dela. Ficava sentada na escada de sua casa esperando que viesse alguém
com quem pudesse brincar e, quando via algum menino ou menina, deixava de lado
sua timidez, tomava coragem e perguntava: Quer brincar comigo? Sobre essa
atitude, diz Clarice: (...) quando eu era pequena em Recife meu encabulamento
nunca me impediu de descer do sobrado, ir para a rua, e perguntar a moleques
descalços: “Quer brincar comigo?” Às vezes me desprezavam como menina
49
.
Na escola conheceu um menino que não a desprezou como menina, pelo
contrário, tornou-se seu amigo. Era Leopoldo Nachbin. Clarice o conheceu no
primeiro dia de aula do Jardim da Infância, no Grupo Escolar João Barbalho. Juntos
fizeram muitas traquinagens. Mantiveram-se unidos até o terceiro ano. Considerados
alunos inteligentes, com boas notas, com exceção daquela que avaliava o
comportamento, foram encaminhados para participarem de uma pesquisa, solicitada
pelo governo estadual, de avaliação da capacidade intelectual das crianças. Devido a
facilidade de aprenderem tiveram de fazer o teste do quarto ano, porque, na opinião
da professora, o do terceiro seria fácil demais para a dupla. A menina entrou em
pânico. Como era muito chorona, no início chorou baixinho, depois as lágrimas
banhavam-lhe o rosto e o peito, mas lá estava Leopoldo para consolá-la. Ele
___________________________________________________________________
49 LISPECTOR, Clarice (1972). “Vergonha de viver”. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999 , p.429.
46
tranqüilo, ela desesperada. Clarice não conseguia escrever uma só palavra, chorava
e sofria foi uma das dores de sua vida.
Quanto a Leopoldo, diz: Leopoldo além de meu pai foi o meu primeiro
protetor masculino, e tão bem o fez que me deixou para o resto da vida aceitando e
querendo a proteção masculina
50
. E prossegue: Leopoldo, além de escrever,
ocupava-se de mim
51
. Então, mais tarde, vem a dizer: Amizade é matéria de
salvação
52
.
___________________________________________________________________
50 LISPECTOR, Clarice (1967). “A grandes punições”. In A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p.41.
51 Ibidem.
52 LISPECTOR, Clarice (1973). “Os grandes amigos”. In A descoberta do mundo .Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p.455.
47
Ainda bem! Restaram as formigas
Clarice teve Leopoldo, assim quis o destino que ele ficasse, pelo menos
durante alguns anos de sua infância, ao seu lado. O mesmo não aconteceu com os
animais de que tanto gostava.
O casarão em que morava era muito grande, em Recife, na praça Maciel
Pinheiro, tinha quintal, e ela tentava criar bichos. Parece que teve um macaco e,
provavelmente, galinhas.
Certo mesmo é que quando criança teve uma gata vira-lata, que tinha a seu
cargo, além de alegrar a menina, dar cria. Freqüentemente, novos habitantes
surgiam na casa dos Lispector para a felicidade e infelicidade de Clarice: Eu queria
ficar com todos os gatinhos e ter uma verdadeira gataria em casa
53
. Isso não lhe
era permitido, davam todos os filhotes e ela nem sabia para quem. Mesmo
reclamando a ausência dos animaizinhos, nada acontecia. Foi até pior. Um dia,
enquanto estava na escola, deram sua gata. Foi um choque. Desesperada, adoeceu.
Teve febre. Então, para consolá-la, deram-lhe um gato de pano. Todavia, tal
presente leva-a dizer: (...) como é que aquele objeto morto e mole e “coisa”
poderia jamais substituir a elasticidade de uma gata viva
54
. Para ela as relações
entre homem e animal são singulares, insubstituíveis por qualquer outra: Ter bicho
é uma experiência vital
55
.
___________________________________________________________________
53 LISPECTOR, Clarice (1971). “Bichos (I)”. A descoberta do mundo .Rio de Janeiro: Rocco, 1999 , p.333.
54 Ibidem.
55Ibidem.
48
Talvez Clarice tenha também tentado criar galinhas, pois tinha grande
afeição por tais aves. No conto História de tanto amor
56
relata a experiência de uma
menina que tinha duas galinhas, Pedrina e Petronilha, e sua grande capacidade de
amar sem esperar reciprocidade. Preocupava-se com a saúde das aves e ao cheirar
embaixo das asas das galinhas achava que estavam doentes, talvez do fígado, afinal
passavam o dia ciscando e comendo porcarias. Administrou-lhes um certo remédio,
dado por uma tia. A menina desconfiava que se tratava de água com alguns pingos
de café mas, mesmo assim, com muito esforço abria o bico e dava-lhes o elixir da
boa saúde. Preocupava-se também com o fato de estarem um tanto magras, apesar
de comerem o dia todo. A menina ainda não havia percebido que engordá-las seria
um risco, o risco de serem assadas.
Aqui se repete a história, a da gata. A menina sai de casa e a sua galinha,
Petronilha, se torna a principal refeição do dia. Quando soube passou a odiar todos
aqueles que haviam comido sua querida galinha. Sua mãe, porém, lhe explicou que
Petronilha ficaria para sempre dentro daqueles que a haviam ingerido. Pedrina
morreu por outros motivos. A menina, ao perceber que a galinha não estava
passando bem, resolveu enrolá-la e aquecê-la próxima do fogão. A ave morreu. Em
lágrimas, a menina tomou consciência de que apressara a morte. Mais tarde, teve
outra galinha: Eponina. Quanto a esta, foi mais realista. Eponina foi servida ao
molho pardo, e a menina, lembrando-se das palavras da mãe, saboreou-a, pois assim
seria mais sua do que em vida. Teve ciúme de quem comeu Eponina.
Como não podia ter animais, a pequena resolveu tomar conta das formigas.
___________________________________________________________________
56 LISPECTOR, Clarice. “História de tanto amor”. Felicidade clandestina. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1996.
49
Clarice relata que era (...) nos quintais da infância no sábado é que as formigas
subiam em fila pela pedra
57
. E ali estava a menina cuidando das formigas,
observando os seus diálogos e suas tarefas. As formigas eram do mundo e, também,
suas. Não poderia tê-las só para si, mas também ninguém poderia impedir que
fossem suas.
_____________________________________________________________________________________________________
57 LISPECTOR, Clarice (1970). “Sábado”. A descoberta do mundo .Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p.297.
50
A procura de não-ser
Aos 8 anos um quase nada a deixava feliz. Clarice criava o seu mundo entre
fadas, duendes, príncipes encantados e entre pessoas com seus mistérios. Lembra da
festa de carnaval e uma agitação íntima
58
a tomava nas escadarias de sua casa em
Recife. Apenas olhava os outros se divertirem, não podia participar. Nunca havia ido
a um baile de carnaval e nem mesmo usado uma fantasia. As máscaras denunciavam
que no seu avesso havia um rosto humano, e para a pequena isso dava medo. O
medo de que o rosto humano pudesse ser um tipo de máscara. Mesmo assim,
sonhava em um dia ser fantasiada, em que pudesse, com isso, não ser ela mesma. Na
época, a doença de sua mãe se agravara, sobrecarregando todos da família , portanto
ninguém se preocupava com o anseio de uma criança de 8 anos.
Inesperadamente, o mundo estourou em fogos de artifícios mudos: Clarice
ganha uma fantasia de rosa. Era a felicidade perdida no meio do descampado. A
menina, enfim, era uma rosa. Entretanto, foi atingida pelo destino e este lhe foi
impiedoso. De súbito a saúde de sua mãe piorou muito e a mandaram depressa
comprar um remédio na farmácia e ela, vestida de rosa, foi correndo, assustada,
perturbada entre confetes e serpentinas. Horas depois a atmosfera familiar acalmou-
se mas, como diz Clarice:
alguma coisa tinha morrido em mim. E, como nas histórias que eu havia lido
sobre fadas que encantavam e desencantavam pessoas, eu fora desencantada;
não era mais uma rosa, era de novo uma simples menina (...) com remorso
___________________________________________________________________
58 LISPECTOR, Clarice (1970). “Sábado”. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
51
lembrava-me do estado grave de minha mãe e de novo morria
59
.
Clarice assiste a uma peça de teatro. Influenciada pela experiência vivida
escreve, aos 9 anos, uma história para o teatro em três atos, intitulada Pobre menina
rica. Uma história de amor em quatro folhas de caderno. Não mo strou para
ninguém. Tinha vergonha de escrever e escondeu atrás de uma estante, mantendo-a
em segredo. Mais tarde, precisou recuperá-la, já que estava havendo uma mudança,
iriam para um novo endereço. Por medo de descobrirem que já pensava sobre o
amor decidiu desfazer-se dela, a rasgou.
___________________________________________________________________________________________________
59 LISPECTOR, Clarice (1968). “Restos de carnaval”. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p.85.
52
Eu era o único eu
Em 21 de setembro de 1930, aos 41 anos, morre Marieta. Clarice fala pouco
sobre a morte da mãe, faz alguns comentários misturados aos enredos de alguns
textos e discorre um pouco mais na crônica Lição de piano
60
, escrita em 1967 para
o Jornal do Brasil.
Sem Marieta, Pedro, que estimava livros e música, oferece às filhas o
estudo da música: aulas particulares e um piano comprado com muita dificuldade.
Clarice conta que considerava as lições de piano uma tortura, exceto por:
Uma era um pé de acácia que aparecia empoeirado a uma curva do
bonde e que eu ficava esperando que viesse. E quando vinha ah
como vinha. A outra: inventar músicas. Eu preferia inventar a
estudar. Tinha nove anos e minha mãe morrera. A musiquinha que
inventei, então, ainda consigo reproduzir com dedos lentos. Por que
no ano em que morreu minha mãe? A música é dividida em duas
partes: a primeira é suave, a segunda meio militar, meio violenta,
uma revolta suponho
61
.
Na mesma crônica, Clarice lembra que à noite seu pai pedia que tocassem
piano e comenta: Lembro-me de uma tarde, ele estava dormindo, acordou com o
rádio e perguntou emocionado que música era aquela. Era Beethoven
62
. Pedro se
emocionou com Beethoven e Clarice o traduziu: Beethoven é a emulsão humana em
tempestade procurando o divino e só o alcançando na morte
63
.
Entre aulas de piano, um pé de acácia, a criação de música, Beethoven e
___________________________________________________________________
60 LISPECTOR, Clarice (1967). “Lição de piano”. In. A desco berta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
61 Ibidem, pp.51-2.
62 Ibidem, p.52.
63 LISPECTOR, Clarice (1978). Um sopro de vida: pulsações. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978, p.14.
53
uma tesoura aberta sobre a mesa está a falta de Marieta. Anita Levy, uma colega de
escola, é quem conta sobre o estado em que ficou Clarice com a morte da mãe:
Naquela época fazia pouco tempo que mãe dela tinha morrido. Alguns
meses. Ela ficou muito impressionada com a morte da mãe. E ia para
o colégio. E falaram para ela que não se podia deixar na mesa uma
tesoura aberta. E ela viu uma tesoura aberta na mesa, na casa dela.
Então ela disse que foi por isso. Foi por isso que a mãe morreu.
Porque alguém deixou uma tesoura aberta
64
.
É provável que a noveleta Desastres de Sofia ou Travessuras de uma
menina, publicada em diferentes livros (A legião estrangeira, Felicidade
clandestina, A imitação da rosa e A descoberta do mundo), fale da própria Clarice,
já que alguns dados biográficos se encaixam com o conteúdo literário. Nesta, a
personagem é uma menina que se “apaixona” pelo professor, que nem era bonito,
era até desajeitado, todavia tinha um silêncio e uma controlada impaciência que a
atraíam. Sem saber o que fazer com este sentimento, reage atrapalhando as aulas,
despertando no homem a ira: (...) amava-o como uma criança que tenta
desesperadamente proteger um adulto, com a cólera de quem ainda não foi covarde
e vê um homem forte de ombros curvos
65
.
Ela, instrumento agudo, tentava feri-lo, às vezes conseguia e isto a deixava
em glória de martírio. No dia seguinte, quando voltava à escola, abalava-se ao
encontrar aquele homem que a fazia (...) devanear por um abismal minuto antes de
dormir. Em superfície de tempo fora um minuto apenas, mas em profundidade eram
velhos séculos de escuríssima doçura
66
, e tudo isso a jogava numa assustadora
___________________________________________________________________
64 Apud GOTLIB, Nádia Battella. Clarice: uma vida que se conta. São Paulo: Ática, 1995,p. 94
65 LISPECTOR,Clarice. “Os desastres de Sofia” In. A legião estrangeira. São Paulo: Ática, 1987, p.11.
66 Ibidem, p.12.
54
esperança. Para a menina, seu pecado maior era ter tal esperança.
Os dias se seguiam. O ritual obsessivo de amar/massacrar o professor
continuava com a intenção de retirá-lo do perigo iminente que o rodeava. Sem
descanso, enredada pelas sombras que havia criado, diz:
Meu enleio vem de que um tapete é feito de tantos fios que não posso
me resignar a seguir um só fio; meu enredamento vem de que uma
história é feita de muitas histórias. E nem todas posso contar uma
palavra mais verdadeira poderia de eco em eco fazer desabar pelo
despenhadeiro as minhas altas geleiras
67
.
E cada vez mais ocupada em atingir seu mestre e cada vez mais preocupada
em protegê-lo, diz: (...) não me sobrava tempo para estudar
68
. Também, havia os
livros de histórias que a menina lia (...) roendo de paixão as unhas até o sabugo,
nos primeiros êxtases de tristeza, refinamento que eu já descobrira
69
.
A menina não só roía as unhas até o sabugo angustiada pela leitura, mas
também pelos amores impossíveis. Explica que elegera meninos para receber seus
afetos e eles, por sua vez, não haviam feito o mesmo. Rejeitada, sofria.
Além disso, estava absorvida em íntimo conflito, em querer e não querer
ser quem era, sabia apenas que toda não poderia ser, afinal, como disse (...) ter
nascido era cheio de erros a corrigir
70
. Na verdade, ela só tinha tempo para crescer
e nessa sua urgência, crescia sem saber para onde: O que eu fazia para todos os
lados, com uma falta de graça que mais parecia um erro de cálculo: as pernas não
combinavam com os olhos, e a boca era emocionada enquanto as mãos se
___________________________________________________________________
67 Ibidem.
68 Ibidem, 14.
69 Ibidem.
70 Ibidem.
55
esgalhavam sujas
71
. Esse estado desordenado era restrito a sua concepção de si
mesma, enquanto sua imagem fixada em fotografia revelava algo um tanto distinto:
(...) uma menina bem plantada, selvagem e suave com olhos pensativos embaixo da
franja pesada, esse retrato real não me desmente, só faz revelar uma
fantasmagórica estranha que eu não compreenderia se fosse a sua mãe
72
. A menina
não conseguia se reconhecer quando comparava sua expressão plástica à estética,
sua representação física não a escondia, mas demonstrava coisa diferente do que era.
Esse enredo fora parte daquilo que emergiu enquanto esperava que o tempo
passasse. O tempo passou e a menina ficou um pouco mais segura arriscando-se a
estudar, porém não poderia aventurar-se a aprender. Aprender poderia colocá-la em
risco, risco de perder a serenidade de espírito que parcialmente conquistara: (...)
tomava cuidado com o que era, já que não sabia o que era
73
.
Em meio a isso tudo e de volta à sala de aula, diz a menina: Foi talvez por
tudo o que contei, misturado e em conjunto, que escrevi a composição que o
professor mandara, ponto de desenlace dessa história e começo de outras
74
. O
professor contou uma história e mandou os alunos escreverem com suas palavras a
mesma história, e depois estariam livres para o recreio. Assim, a menina o fez e saiu
correndo para brincar. Em meio às brincadeiras, a menina decide buscar alguma
coisa em sala de aula, vai correndo, chega na sala e não percebe que ali estava seu
professor. Quando se deu conta já era tarde: estavam os dois sozinhos, frente a
frente. A menina ficou paralisada, sem saber o que fazer. Tentou sair lentamente da
___________________________________________________________________
71 Ibidem.
72Ibidem.
73 Ibidem, pp.14-5.
74 Ibidem, p.15.
56
sala, mas de súbito ouve o seu nome. O professor a chamava. Então lá estava a
menina: Pequena, sonâmbula, sozinha, diante daquilo a que a minha fatal
liberdade finalmente me levara
75
, jogada na sua própria teia, arrependida e
desamparada: Meu pai estava no trabalho e minha mãe morrera há meses. Eu era o
único eu
76
.
Então o professor lhe pergunta sobre a história que havia feito: Como é que
lhe veio a idéia do tesouro que se disfarça?
77
. A menina se surpreendeu ao ver que
ele já não a odiava e isso a deixou completamente perturbada a ponto de dizer: (...)
eu vi o abismo do mundo
78
, e prossegue em sua perplexidade:
Era cedo demais para eu ver como nasce a vida. Vida nascendo era
tão mais sangrento do que morrer. Morrer é ininterrupto. Mas ver
matéria inerte lentamente tentar se erguer como um grande morto-
vivo ... Ver a esperança me aterrorizava, ver a vida me embrulhava o
estômago
79
.
E nesta situação, a menina só pensava em fugir, refugiar-se em algum lugar
que lhe desse a medida de quem era, mesmo que não soubesse quem era, um lugar,
que algum modo, já havia registrado as suas pegadas:
Aquele meu colégio, alugado dentro de um dos parques da cidade,
tinha o maior campo de recreio que já vi. Era tão bonito para mim
como seria para um esquilo ou um cavalo. Tinha árvores espalhadas,
longas descidas e subidas e estendida relva. Não acabava nunca.
Tudo ali era longe e grande, feito para pernas compridas de menina,
com lugar para montes de tijolo e madeira de origem ignorada, para
moitas de azedas begônias que nós comíamos, para sol e sombras
onde as abelhas faziam mel. Lá cabia um ar livre imenso. E tudo fora
___________________________________________________________________
75 Ibidem, p.18.
76 Ibidem, p.19.
77 Ibidem.
78 Ibidem, pp.20-1.
79 Ibidem, p.21.
57
vivido por nós: já tínhamos rolado de cada declive, intensamente
cochichado atrás de cada monte de tijolo, comido de várias flores e
em todos os troncos havíamos de canivete gravado datas, doces
nomes feios e corações transpassados por flechas; meninos e meninas
ali faziam o seu mel
80
.
O ritual de infernizar o professor foi interrompido pelos elogios que ele
fizera à história que a própria menina escreveu, como se o feitiço se voltasse contra
o feiticeiro. Ela não resistiu, saiu correndo em direção ao grande pátio da escola, em
direção ao fim do mundo: ... E foi assim que no grande parque do colégio
lentamente comecei a aprender a ser amada, suportando o sacrifício de não
merecer (...)
81
.
A noveleta apresenta conteúdos que estão de acordo com a vida de Clarice
na época. A menina revela Clarice. É possível que Clarice tenha se apaixonado por
um professor, é possível que tenha gostado de meninos que não gostaram dela, é
possível que a composição tenha sido começo de muitas histórias, é possível que a
escola em que a personagem estudava era o Grupo Escolar João Barbalho,
conforme a descrição. Sem contar que há a referência à morte da mãe,
possivelmente de Marieta, mãe de Clarice, que ocorrera neste mesmo período.
Além disso, o universo da personagem é atravessado por Clarice, atravessado por
sentimentos que contam a seu respeito: desamparo, solidão, medo, perplexidade.
Esta noveleta traz à tona sensações e percepções profundas de quem busca “ser” a
partir do encontro com o outro, de quem no desamparo sofre: (...) humilhada por
não ser uma flor, e sobretudo torturada por uma infância enorme
___________________________________________________________________
80 Ibidem, p.16.
81 Ibidem, p.19.
58
que eu temia nunca chegar a um fim
82
. Afinal: Eu tinha nove anos e pouco, dura
idade como o talo não quebrado de uma begônia
83
.
___________________________________________________________________
82 Ibidem, p.14
83 Ibidem, p.12.
59
Tesouro disfarçado e revelado
Em dezembro de 1931, Pedro inicia, por meio da Secretaria de Justiça do
Estado de Pernambuco, um processo para obter nacionalidade brasileira. Junta
documentos que comprovam sua filiação, origem, estado civil, tempo de residência
no país. Conseqüentemente, se inicia o processo de naturalização de Clarice. Este
novo estado lhe garantiria direitos de cidadã brasileira, porém, a naturalização
propriamente dita só ocorrerá mais tarde, mas esses documentos permitem a
inscrição no Ginásio Pernambucano. A menina muda, novamente, de escola.
Foi mais ou menos nesta época que Clarice iniciou a sua andança pela
escrita. Escreveu histórias e, na tentativa de publicá-las, as enviou para o caderno
infantil do jornal de Recife, por volta de 1931. Nenhuma foi publicada. Em um texto
de 1972, escrito para o Jornal do Brasil, intitulado Ainda Impossível, nos conta: (...)
ocupada em me lembrar de minhas primeiras histórias aos sete anos, todas
começando com “era uma vez”. Eu as enviava para a página infantil das quintas-
feiras do jornal de Recife, e nenhuma, mas nenhuma mesmo, foi jamais publicada
84
.
Segundo ela, suas histórias não eram publicadas porque narravam sensações. E, em
outro texto, do mesmo ano, chamado Vergonha de Viver, complementa: E eu,
teimosa, continuava escrevendo
85
. Assim, comenta: Adestrei-me desde os sete anos
de idade para que um dia eu tivesse a língua em meu poder
86
. Do mesmo modo,
___________________________________________________________________
84 LISPECTOR, Clarice (1972) .“Ainda impossível”. In A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p.406.
85 LISPECTOR, Clarice (1972). “Vergonha de viver”. In A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p.429.
86 LISPECTOR, Clarice (1968). “As três experiências”. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p.101.
60
como foi dito, desejou o mar, flores, frutas, palacetes, desejou a si mesma.
Em 1932 Clarice é aprovada no exame de admissão e ingressa no Ginásio
Pernambucano. Talvez tenha entrado aos 12 anos, mas a idade pode não estar certa,
pois na época era comum alterar documentos para conseguir algum benefício, como
antecipar a entrada na escola. E, nesta, Clarice tem uma surpresa: reencontra seu
amigo e protetor, Leopoldo: (...) e foi como se não nos tivéssemos separado. Ele
continuou a me proteger
87
, lembra em 1967.
A menina continuava suspirar por histórias e a fazer qualquer sacrifício
para lê-las, vivê-las, apossar-se delas. Ao lado de sua casa, na rua da Imperatriz,
havia uma livraria que aguçava sua curiosidade e vontade de ler a ponto de dizer que
tudo o que uma criança devoradora de histórias gostaria de ter era um pai dono de
livraria. Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato, foi livro sagrado de Clarice.
Por causa dele experimentou, por um lado, o sofrimento de ser maltratada; por outro,
a felicidade. Muito pobre e não tinha condições de comprar o livro. A solução foi
pedir emprestado. Em Felicidade clandestina
88
, publicado 1971, Clarice narra
como tudo aconteceu.
A protagonista da história tinha uma amiga, filha de dono de livraria, a
quem pedia emprestados os livros que a menina não lia. Iniciou, assim, a tortura,
tortura chinesa, como disse Clarice. A amiga informou-lhe que possuía Reinações
de Narizinho. Com a informação, a protagonista não pensava em outra coisa: Era
um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o,
dormindo-o e completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse
___________________________________________________________________
87 LISPECTOR, Clarice (1967). “As grandes punições”. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p.42.
88 LISPECTOR, Clarice. “Felicidade Clandestina”. In Felicidade Clandestina. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1996.
61
pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria
89
. No dia seguinte a menina
não vivia, nadava devagar em mar suave, as ondas a levavam e traziam. Foi à casa
da amiga, correndo de esperança. Corrida em vão, a amiga disse que havia
emprestado o livro para outra menina e que ela voltasse no outro dia. Os dias se
sucederam, as corridas se repetiram e a amiga insistia que o livro não estava em seu
poder, ou que esteve com ela no dia anterior à tarde, enquanto a menina tinha vindo
só pela manhã. Isto se tornou o drama do dia seguinte. A menina foi a escolhida para
sofrer.
O tempo foi passando e nada do livro. Até que um dia, quando a menina
estava à porta da casa de sua amiga, apareceu sua mãe. A senhora, estranhando a
aparição diária da menina, exigiu uma explicação, as meninas meio confusas mal
conseguiram expor o assunto. Porém, a mãe entendeu e, surpresa, afirmou que o
livro nunca saíra daquela casa. A mulher percebeu o jogo e determinou que a filha
imediatamente emprestasse o livro e por prazo indeterminado.
A menina mal acreditava que estava com o livro, até fingia que não o tinha
só para ter o susto de ter, fingia que o perdia para poder encontrá-lo. Criava as mais
falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade
90
.
Quanto a Monteiro Lobato, Clarice, em um pequeno texto de 1968, o trata
como companheiro no desamparo: Ele deu iluminação de alegria a muita infância
infeliz
91
. O autor traz à menina mais um universo de fantasias, histórias contadas
pelos personagens que vivem no Sítio do Pica-pau Amarelo e, como Clarice,
___________________________________________________________________
89 Ibidem, p.16.
90 Ibidem, p.18.
91 LISPECTOR, Clarice (1968). “Fidelidade”. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco,1999, p.142.
62
mergulhados no mar narrativo, todos vivendo das próprias fábulas.
A tortura chinesa, decorrente do anseio de possuir Reinações de
Narizinho, aconteceu de fato. Quem relata é Suzana Rorovitz, irmã da maldosa
amiga, que se chamava Reveca. Clarice precisava fazer um trabalho escolar, mas
não tinha o livro e menina prometeu que o emprestaria. E tudo acontece como em
Felicidade clandestina.
Clarice naquela época já se sobressaía em português, contou Suzana
Rorovitz à Nádia Gotlib
92
. A própria Clarice relata em uma crônica de 29 de maio
de 1971, no Jornal do Brasil, que ainda muito menina dera aulas particulares de
português e matemática. Tania Kaufmann, irmã de Clarice, disse a Nádia Gotlib que
desde muito cedo Clarice se dedicava à transmissão do conhecimento: Desde
pequena minha irmã gostava de dar aulas, ensinar. Colocava, para isso, os azulejos
arrumados como se fossem alunos, e lhes falava demoradamente
93
.
___________________________________________________________________
92 Apud GOTLIB, Nádia Battella. Clarice: uma vida que se conta. São Paulo: Ática, 1995.
93 Ibidem, p.137.
63
De Recife ao Rio
Por volta de 1932, Clarice viaja com seu pai a Maceió para rever a família
materna. Ela conta a viagem em Viagem de trem, de 5 de junho de 1971 no Jornal
do Brasil. Tinha 11 anos: Eu já era altinha, e pelo que se revelou, já meio mocinha
94
. Neste trajeto conheceu, conforme suas palavras, um rapaz lindo de morrer, de
olhos verdes com longos cílios pretos, e que comia laranjas, pelo menos uma dúzia
delas. O rapaz pediu permissão ao pai para conversar com a menina. O pai
concordou. A mocinha não cabia em si: (...) namoramos o tempo todo sob o olhar
aparentemente distraído de meu pai
95
.
No ano seguinte, Pedro consegue comprar uma casa no mesmo bairro em
que moravam. Os Lispector mudam-se para a avenida Conde de Boa Vista, ali na
Boa Vista. Permanecem nesta casa mais ou menos dois anos.
Em 1935, Pedro parte com as três filhas para o Rio de Janeiro. Não há
registros dos motivos da mudança, a família continua itinerante. Os Lispector,
imigrantes russos judeus, vindos da Ucrânia, acompanham o destino de muitos
nordestinos que procuram no Sudeste do Brasil o recomeço.
A família viaja na terceira classe de um navio inglês: De 12 para 13 anos
mudamo-nos do Recife para o Rio, a bordo de um navio inglês
96
, rememora Clarice.
___________________________________________________________________
94 LISPECTOR, Clarice (1971). “Viagem de trem”. In A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p.350.
95 Ibidem, p.351.
96 LISPECTOR, Clarice (1972). “Vergonha de viver”. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco,1999, p.429. Neste
texto, há um desencontro de datas. Se Clarice nasceu em 1920 e se saiu, junto de sua família , de Recife em 1935, como pode
ter 12 ou 13 anos? Trata-se de uma crônica que procura revelar velando a intimidade da escritora.
64
O idioma do cardápio de bordo era estrangeiro e a menina o desconhecia, o que a
leva contar, em crônica de 5 de junho de 1971: Foi terrivelmente exciting. Eu não
sabia inglês e escolhia no cardápio o que o meu dedo de criança apontasse.
Lembro-me de que uma vez caiu-me feijão branco cozido, e só. Desapontada, tive
que comê-lo, ai de mim. Escolha casual infeliz. Isso acontece
97
.
___________________________________________________________
97 LISPECTOR, Clarice (1971). “Viajando por mar (1ª parte)”. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p.349.
65
O salvo-conduto
Chegando ao Rio de Janeiro instalam-se no bairro do Flamengo, em quarto
alugado na residência dos Malamud, também judeus russos. Permanecem ali alguns
dias. Mudam-se para uma casa antiga perto do campo de São Cristóvão. Pouco
tempo depois vão para a Tijuca, para a rua Mariz e Barros, onde usavam apenas
parte de uma casa.
Pedro trabalha, mas não se sabe a ocupação dele nesta época. Sabe-se
apenas que participava do movimento político e religioso judaico, integrando a
diretoria executiva da Federação Sionista.
As filhas são matriculadas no Colégio Silvio Leite, na mesma rua em que
reside a família Lispector. Clarice cursa o quarto ano do ginasial e tem o primeiro
emprego: professora particular de português e matemática. Ela conta:
quando... tinha treze para catorze anos eu era... era professora de
português. Ainda tava no ginásio, mas eu era professora particular de
português e matemática [...] Mas a matemática me fascinava. Me
lembro que eu era tão menina! Botei anúncio no jornal como
explicadora. Aí, uma... uma senhora me telefonou e disse que tinha
dois filhos, um filho e uma filha. Hernani Fornalha, o pai, um que foi
escritor, não me lembro o quê. Aí, eu ... ela mesma me deu endereço,
eu fui lá: “Ah, meu bem! Não serve! Você é muito criança!” Eu disse:
“Olha, vamos fazer o seguinte: se os seus filhos não melhorarem de
nota, então a senhora, a senhora não me paga nada”. Ela achou
curiosa a coisa e me pegou. Aí, melhoraram. Sensivelmente
98
.
Até os treze anos Clarice ainda não havia se apropriado da escrita. Ela
___________________________________________________________________
98 Apud GOTLIB, Nádia Battella. Clarice: uma vida que se conta. São Paulo: Ática, 1995, p.136 .
66
percorria o mundo imaginário das histórias, inventava algumas, escrevia outras,
ainda no faz-de-conta. Contudo, foi uma surpresa quando descobriu que o caminho
que estava trilhando a levava a um local conhecido e, simultaneamente, inédito o
lugar da escrita afinal já estava escrevendo pequenos contos. E é ela quem conta:
Quando conscientemente, aos 13 anos de idade, tomei posse da vontade de escrever
eu escrevia quando era criança, mas não tomara posse de um destino quando
tomei posse da vontade de escrever, vi-me de repente num vácuo. E nesse vácuo
não havia quem pudesse me ajudar
99
.
Clarice escolhia os livros pelo título. Ela não fora iniciada na literatura
clássica, seguia sua intuição. Os livros eram muito caros, então se associou a uma
biblioteca pública onde podia ler aquele que a interessasse. Isto é o seguinte: eu
misturei minhas leituras sem nenhuma orientação. Freqüentava uma biblioteca e
escolhia os livros pelos títulos. Resultado: misturei Dostoievski com livro para
mocinha
100
, afirma Clarice em entrevista a Affonso Romano de Sant’Anna. Numa
dessas ida à biblioteca, encontrou O lobo da estepe, de Herman Hesse, o título a
interessou imaginando que se tratasse de um livro de aventuras. De fato, tratava-se
de aventuras, mas de outro tipo: da experiência daquilo que se vê por trás da retina.
Deslumbrada, sorveu o livro página a página. E eu, que já escrevia pequenos
contos, dos 13 aos 14 anos fui germinada por Herman Hesse e comecei a escrever
um longo conto imitando-o: a viagem interior me fascinava. Eu
___________________________________________________________________
99 LISPECTOR, Clarice (1970) “Escrever”. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p.286.
100 SANT’ANNA, Affonso Romano de; COLASANTI, Marina (1976). “Dezembro sem Clarice”. Escrita. São Paulo, n. 27,
1978 , p.21.
67
havia entrado em contato com a grande literatura
101
, conta Clarice.
Ela não podia permanecer nesta espécie de vácuo que surgira com a
vontade de escrever, precisava se restabelecer e sair de onde estava aprisionada. A
saída era escrever. Estava confusa. O material que já havia escrito era um
amontoado de papéis que, aparentemente, não tinha conexões, era uma história
interminável, influenciada pela leitura de Hesse. Não suportando o fato de ter
assumido o chamamento, rasgou o material escrito, porque não sabia como
continuar. Em entrevista à Revista Escrita, diz: Li “O lobo da estepe” aos treze
anos. Me deu uma febre danada. Fiquei feito doida. Eu comecei a escrever e
imaginei um conto que não acabava mais. O que é que eu vou fazer, me perguntei.
Rasguei e joguei fora
102
.
Entre os treze e quinze anos Clarice lia muito, bastava cair em suas mãos
um livro, qualquer livro, que imediatamente o devorava. Entre eles estavam
Dostoievski, Julien Green, Eça de Queiroz, Machado de Assis, José de Alencar,
Graciliano Ramos e muitos outros. A leitura de Crime e Castigo, de Dostoievski, a
o deixou atordoada a ponto de ter febre.
É possível que esta lembrança a tenha levado, bem mais tarde (1970), a
escrever o conto chamado A italiana, no qual mostra a influência da leitura sobre
estado emocional do leitor. Trata-se de uma menina que, após a morte dos pais,
entrou para o orfanato de um convento suíço. Viveu lá até os vinte anos. Sem um
motivo definido, saiu e empregou-se como criada na casa de uma família. A
___________________________________________________________________
101 LISPECTOR, Clarice (1973). “O primeiro livro de cada uma de minhas vidas”. In A descoberta do mundo. Rio de
Janeiro: Rocco, 1999, p.453.
102 Apud SANT’ANNA, Affonso Romano de; COLASANTI, Marina (1976). “Dezembro sem Clarice”. Escrita. São Paulo,
n. 27, 1978 , p.21.
68
jovem permanecia enclausurada por vontade própria. Em determinado dia resolveu
ler um livro. A família a esperava para servir o jantar, mas ela não aparecia. Foram
buscá-la e a encontraram ardendo em febre. Como a febre não cedia, chamaram um
médico. Por acaso, durante a consulta, o médico se deparou com um livro intitulado
Le corset rouge
103
, o examinou e disse à jovem que ela não deveria ler este tipo de
livro e tudo o que dizia era mentira. A moça suspirou, sorriu tristemente e disse: É
que eu pensava que tudo o que se escreve num livro e que se publica é verdade
104
.
Clarice conta que aos 15 anos
105
, com seu primeiro dinheiro, resultado de
seu próprio trabalho, foi a uma livraria. Folheou muitos livros, lia algumas linhas e
passava para outro. E de repente, um dos livros que abri continha frases tão
diferentes que fiquei lendo, presa, ali mesmo. emocionada, eu pensava: mas esse
livro sou eu! E, contendo um estremecimento de profunda emoção, comprei-o
106
,
lembra Clarice. Tratava-se de Felicidade, da inglesa Katherine Mansfield.
___________________________________________________________________
103 O espartilho vermelho.
104 LISPECTOR, Clarice (1970). “A italiana”. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p.281.
105 Diferente de Clarice, tanto Teresa C. M. Ferreira quanto Nádia Gotlib dizem que Clarice comprou Felicidade com o
primeiro salário de jornalista por volta dos 20 anos.
106 LISPECTOR, Clarice (1973). “O primeiro livro de cada uma de minhas vidas”. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro:
Rocco,1999, p.453.
69
Banhos de mar: celebração da presença do pai
No final de 1936, Clarice conclui o curso fundamental. No ano seguinte,
inicia o curso complementar (nome dado na época aos dois últimos anos do atual
ensino secundário) de direito da Faculdade Nacional de Direito, preparando-se para
a entrada na Faculdade de Direito propriamente dita. Quarenta anos depois ela
esclarece a escolha: Diziam que eu ia ser advogada porque gostava de reivindicar
os direitos. Depois vim pra cá e reparei que nunca cuidaria de papéis. Queria
estudar advocacia para reformar as penitenciárias
107
. Ao terminar o primeiro ano,
pede transferência para o Colégio Andrews, na praia de Botafogo. Cursa o segundo
ano do complementar, portanto, no Andrews. Ao mesmo tempo, continua dando
aulas particulares, aprende datilografia e estuda inglês na Cultura Inglesa.
Em 1939, é admitida no curso superior da Faculdade Nacional de Direito.
Neste ano, os Lispector deixam a rua Mariz e Barros e se mudam para uma vila na
rua Lúcio de Mendonça. Clarice trabalha como secretária em um escritório de
advocacia e também em um laboratório e ainda faz traduções de textos para revistas
científicas. No ano seguinte, sofre uma grande perda:
Hoje de manhã, quando amanhecer e o sol nascer, irei à praia.
Entrarei n’água. É tão bom. Ah, quantas dádivas! Por exemplo, eu
ainda estar viva e poder entrar na água do mar. Às vezes, de volta da
praia, não tomo chuveiro: deixo o sal ficar na pele, meu pai dizia que
era bom para a saúde. Na verdade estou sem doença alguma. Mas
doença é coisa imprevisível. Meu pai morreu em plena maturidade:
__________________________________________________________________
107 Apud SANT’ANNA, Affonso Romano de; COLASANTI, Marina (1976). “Dezembro sem Clarice”. Escrita. São Paulo,
n. 27, 1978 , p.21.
70
choque operatório. Fiquei perplexa. Mas de algum modo as pessoas
são eternas
108
.
Este texto foi escrito em setembro de 1971, trinta anos após a morte de seu
companheiro e dedicado pai. Durante toda a sua vida Clarice irá celebrar com banho
de mar a memória do pai. Pedro morreu em 26 de agosto de 1940, aos 55 anos, após
uma cirurgia de vesícula. Foi um choque. Perdeu aquele que havia lhe ensinado a
mais preciosa lição sobre ser pessoa:
Vou falar da palavra pessoa, que persona lembra. Acho que aprendi o
que vou contar com meu pai. Quando elogiavam demais alguém, ele
resumia sóbrio e calmo: é, ele é uma pessoa. Até hoje digo, como se
fosse o máximo que se pode dizer de alguém que venceu numa luta, e
digo com o coração orgulhoso de pertencer à humanidade: ele, ele é
um homem. Obrigada por ter desde cedo me ensinado a distinguir
entre os que realmente nascem, vivem e morrem, daqueles que, como
gente, não são pessoas
109
.
___________________________________________________________________
108 LISPECTOR, Clarice (1971). “Trechos”. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p.377.
109 LISPECTOR, Clarice (1968). “Persona”. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco,1999, p.80.
71
Novos encontros: Perto do coração selvagem
Após a morte do pai, Clarice e Elisa foram morar com Tania, casada com
William Kaufmann, em uma vila da rua Silveira Martins, no bairro do Catete.
Neste ano tão difícil, Clarice escreve vários contos. O primeiro pub licado
foi Triunfo, no semanário Pan. Depois Eu e Jimmy, publicado na Vamos ler!. Esses
dois contos serão novamente publicados somente em 2005, em Outros escritos. A
fuga, História interrompida e O delírio aparecerão em A bela e a fera, de 1979.
Clarice continua estudando, se dedicando à escrita e, insatisfeita com a sua
função de secretária, resolve procurar uma atividade condizente com sua vocação.
Dirige-se ao DIP Departamento de Imprensa e Propaganda, órgão do governo
Getúlio Vargas, pleiteando uma vaga de tradutora. Diante da falta de vaga para esta
função, é encaminhada à Agência Nacional, onde se transforma em repórter e
redatora. Mais tarde vai para o jornal A Noite, onde encontra Antonio Callado, José
Conde, Lúcio Cardoso, Octávio Thyrso, jornalistas já conhecidos.
Tania Kufmann lembra: Fazia reportagens. Ela era muito bem tratada lá.
Se divertia muito. Acho que ela gostava. Não havia mulheres trabalhando naquela
época. E, quando mandavam, ela ia fazer reportagens fora
110
.
Clarice se torna amiga do jornalista e escritor Lúcio Cardoso, por quem se
apaixona, mas não é correspondida. Em crônica, escreve: Lúcio e eu sempre nos
admitimos: ele com sua vida misteriosa e secreta, eu com o que ele chamava de
___________________________________________________________________
110 Apud GOTLIB, Nádia Battella. Clarice: uma vida que se conta. São Paulo: Ática, 1995, p.150.
72
“vida apaixonante”. Em tantas coisas éramos tão fantásticos que, se não houvesse
a impossibilidade, quem sabe teríamos nos casado
111
. Diz ainda que Lúcio
Cardoso fora a pessoa mais importante de sua adolescência. Em 1941, durante uma
viagem a Belo Horizonte, escreve carta a Lúcio. A correspondência revela uma
relação intensa, a jovem relata que há mais homens andando pelas ruas da cidade do
que mulheres, descreve as características das poucas que são vistas nas ruas e
pressupõe que a maioria está guardada em seus lares cuidando dos filhos,
assinalando, de certa forma, o contraste com seu próprio retrato. Confidencia sobre
um possível admirador e sobre temas particulares:
Meu exílio se tornará + suave, espero. Sabe Lúcio, toda a
efervescência que eu causei só veio me dar uma vontade enorme de
provar a mim e aos outros que sou + do que uma mulher. Eu sei que
você não o crê. Mas eu também não o acreditava, julgando o q. tenho
feito até hoje. É que eu não sou senão um estado potencial, sentindo
que há em mim água fresca, mas sem descobrir onde é a sua fonte
112
.
No terceiro ano da faculdade de direito, Clarice escreve também sobre
literatura. No início de 1941 publica uma reportagem sobre a inauguração, pela
primeira-dama, Darcy Vargas, de um lar para meninas carentes, com o título Onde
se ensinará a ser feliz, no jornal Diário do Povo, de Campinas (SP). Também são
publicados os contos Trecho, na revista Vamos lêr! Cartas a Hermengardo, no
semanário Dom Casmurro. Além disso, é editada uma tradução
113
de O
missionário, na Vamos lêr! e uma reportagem com o título Uma visita à casa dos
________________________________________________________________________________________________
111 LISPECTOR, Clarice (1969). “Lúcio Cardoso”. In A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p.167.
112 LISPECTOR,Clarice (1941) . Correspondências. Rio de Janeiro: Rocco, 2002, p.16.
113 Provavelmente se trata do idioma inglês.
73
expostos. Clarice escreve outros contos, não publicados na época: Gertrudes pede
um conselho, Obsessão e Dois bêbados (publicados apenas em 1979 em A bela e a
fera). A jovem colabora com a revista A Época, organizada pelos alunos do curso
de Direito, com: Observações sobre o fundamento do direito de punir e Deve a
mulher trabalhar?
O envolvimento com a produção literária e jornalística amplia também suas
relações pessoais. Clarice começa a freqüentar o bar Recreio, na Cinelândia, com
seus amigos Lúcio Cardoso, Octavio de Faria e Adonias Filho, local onde conhece
Vinícius de Moraes, Rachel de Queiroz, Cornélio Pena.
Clarice começa a namorar seu colega de faculdade Maury Gurgel Valente.
Em 1942, vai passar férias na fazenda Vila Rica, em Avelar, no Rio de Janeiro, de
onde se corresponde com seu Ratinho curioso, modo como Clarice chamava seu
namorado. Escreve: Mandarei imprimir cartões especiais, com cestinhos de flores e
anjos rosados, anunciando que sou sua namorada
114
. Mesmo em ambiente rural e
em estado de apaixonamento, a inquietação a acompanha: (...) ando de um lado pra
outro, dentro de mim, as mãos abandonadas, pronta para inventar uma tragédia
russa, pronta para criar um motivo que me acorde... horrível
115
.
Em março, ao voltar de férias, obtém seu primeiro registro profissional,
como redatora do jornal A Noite. É neste mesmo mês, segundo Clarice, em um de
seus depoimentos a Ziraldo, que ela inicia a elaboração de seu primeiro livro: Perto
do coração selvagem. Em entrevista concedida a Affonso Romano de Sant’Anna,
Clarice afirma que foi aos 17 anos que escreveu esse livro (considerava 1925 o ano
_____________________________________________________________________________________________________
114 Ibidem , p.20.
115 Ibidem ..
74
de seu nascimento).
No mesmo período, solicita sua naturalização. De posse de algumas
informações sobre a possibilidade de antecipar sua cidadania, em junho escreve ao
presidente Getúlio Vargas pedindo a dispensa do prazo estipulado (um ano). Clarice
recebe o apoio do diretor do jornal em que trabalhava, André Carrazzoni. Ele envia
uma carta ao ministro das Relações Exteriores, Oswaldo Aranha, pedindo atenção
especial ao caso de Clarice: Foi com surpresa que a soube estrangeira, tal sua
maneira de ser, tão nossa que a torna filha legítima do Brasil. Realmente, a
nacionalidade, nesse caso, constitui um acaso. Clarice veio para o Brasil com
meses de idade. Aqui aprendeu a ler e escrever. Aqui formou seu espírito, como
verdadeira brasileira
116
. E reforça: (...) em tudo e por tudo nossa patrícia, filha do
nosso clima sentimental e moral
117
. Não recebem resposta. Somente em outubro,
quando o ministro solicita ao presidente seu parecer, o processo tem continuidade.
Getúlio Vargas questiona o pedido, afinal a jovem reside há muito no país
e por que somente naquele momento e com tanta urgência requer sua naturalização?
Clarice responde, argumentando ter chegado à maioridade, retifica dados e
confirma outros declarados na abertura de seu processo de naturalização.
A jovem escritora está no quarto ano do curso de Direito e faz também
disciplinas de antropologia brasileira e psicologia na Casa do Estudante do Brasil.
Como já iniciara o primeiro romance havia sete meses e precisava concluí-lo, no
oitavo mês se recolhe a uma pensão na rua Marquês de Abrantes, no Botafogo, para
escrever.
___________________________________________________________________
116 Apud GOTLIB, Nádia Battella. Clarice: uma vida que se conta. São Paulo: Ática, 1995, pp.165-6.
117 Ibidem, p.166.
75
Em nove meses está pronto Perto do coração selvagem, título como se
sabe sugerido por seu amigo Lúcio Cardoso, o primeiro leitor do romance.
76
Rio-Belém
Depois de quase um ano de espera, em janeiro de 1943, Clarice recebe os
documentos de naturalização. Nesse mês casa-se com Maury Gurgel Valente,
então cônsul de terceira classe. Segundo Tania Kaufmann, em depoimento a Nádia
Gotlib, Clarice escolhe, sem muito entusiasmo, o vestido de noiva, porém em alguns
momentos Clarice e Maury pareciam apaixonados. O casal, inicialmente, reside na
casa dos pais de Maury, no bairro da Glória, no Rio. Em seguida, o casal muda-se
para rua São Clemente, no Botafogo.
No final de 1943 Clarice e Maury formam-se no curso de Direito.
Entretanto, o casal não chega a colar grau. Maury foi nomeado agente de ligação
entre o Ministério das Relações Exteriores e autoridades estrangeiras que residiam
ou que visitavam Belém, no Pará. E Clarice estava tentando publicar seu livro. Faz
duas tentativas, ambas fracassam, os editores rejeitam seu romance. A jovem autora
não desiste. A editora A Noite, do mesmo grupo do jornal em trabalhava, acaba
publicando o livro, mas Clarice teve de abdicar os direitos autorais. A primeira
edição de Perto do coração selvagem uma tiragem de mil exemplares. Eu não
pagava nada e também não ganhava nada. Se houvesse lucro, era deles
118
, declara
Clarice.
Com 1944 se inicia uma nova etapa de viagens na vida de Clarice, desta
vez acompanhando seu marido. Maury, vice-cônsul, é mandado para Belém, onde o
___________________________________________________________________
118 Apud SANT’ANNA, Affonso Romano de; COLASANTI, Marina (1976) . “Dezembro sem Clarice”. Escrita. São Paulo,
n. 27, 1978, p.21.
77
casal permanece por seis meses.
Na capital paraense instalaram-se no Central Hotel, de onde Clarice escreve a
Lúcio Cardoso. Na carta procura esclarecer o mal-entendido que houve entre ambos
antes de sua partida, dizendo que tentava se aproximar dele disfarçando suas
perguntas de amizade em perguntas de curiosidade, e prossegue contando sobre seu
estado:
Estou aqui meio perdida. Faço quase nada. Comecei a procurar
trabalhar e começo de novo a me torturar, até que resolvo não fazer
programas; então a liberdade resulta em nada e eu faço de novo
programas e me revolto contra eles. Tenho lido o que me cai nas
mãos. Caiu-me plenamente nas mãos Madame Bovary, que eu reli.
Aproveitei a cena da morte para chorar todas as dores que eu tive e
as que nunca tive. Eu nunca tive propriamente o que se chama
“ambiente” mas sempre tive alguns amigos. Aqui só tem “mutucas”
(...)
119
.
Acompanhada de Flaubert, Rilke e Proust foi se compondo a estada de
Clarice em Belém. Conheceu os professores Francisco Paulo Mendes e Benedito
Nunes (depois especialista na obra clariceana). Procurou manter-se ativa, tentando
escrever outro romance, e, mesmo licenciada de suas funções jornalísticas, escreve
artigo para o jornal A Noite relatando a passagem da primeira-dama dos Estados
Unidos, Eleanor Roosevelt, por Belém.
Afastada do Rio de Janeiro, Clarice não pôde acompanhar de perto a
repercussão de seu livro, que se iniciou um mês após a publicação. Tania Kaufmann
colocava Clarice a par das notícias, lhe enviando recortes de jornal em que aparecia
qualquer menção ou crítica ao romance. A estréia de Clarice surpreendeu
___________________________________________________________________
119 LISPECTOR, Clarice.(1944) Correspondências. Rio de Janeiro: Rocco, 2002, p.36.
78
muitos críticos e muitos artigos foram publicados. A respeito de seu livro, em carta
a Tania, Clarice diz:
Procuro não me desesperar, ou melhor, nem posso porque estou
vagando numa quietude chata. Espero que isso se transforme
depressa; as críticas, de um modo geral não me fazem bem; a do
Álvaro Lins (...) me bateu e isso foi bom de certo modo. Escrevi para
ele dizendo que não conhecia Joyce nem Virgínia Woolf nem Proust
quando fiz o livro, porque o diabo do homem só faltou me chamar de
“representante comercial” deles
120
.
Neste cenário, Clarice toma conhecimento do artigo publicado por Lúcio
Cardoso, e se surpreende. Lúcio diz que o livro talvez seja o mais importante da
autora. Ela gosta, mas fica assustada, afinal se tratava de seu primeiro livro:
Tenho vontade de rasgá-lo e ficar livre de novo: é horrível a gente já
estar completa (...) quanto ao meu meio sucesso me perturbar, às
vezes ele me deixa saciada e cansada. Às vezes, embora possa parecer
falso, me desanima, mas não sei por quê. Parece que eu esperava um
começo mais duro e, tenho a impressão, seria mais puro
121
.
Conta ainda de como tem escrito, de suas dúvidas:
(...) como eu acho horrível o que tenho escrito e como às vezes me
parece sufocante de bom o que tenho escrito, e dois dias depois aquilo
não vale nada, como eu tenho aprendido a ser paciente, como é ruim
ser paciente, como eu tenho medo de ser uma “escritora” bem
instalada, como eu tenho medo de usar minhas próprias palavras, de
me explorar...
122
.
Em julho recebe carta de seu amigo Lêdo Ivo contando que Antonio
Candido publicará um artigo sobre ela, que é (...) um hino de aleluia kirie eleison e
outras coisas. As palavras de restrições são genial, assombrosa, invulgar, etc.
123
.
___________________________________________________________________
120 Ibidem , p.38.
121 Ibidem , p.41.
122 Ibidem, pp.41-2.
123 Ibidem , p.47.
79
A cor esmaecida de Nápoles
A estada do casal em Belém chega ao fim. Clarice e Maury retornam ao
Rio de Janeiro, mas ficam na cidade por pouco tempo. Maury é enviado como vice-
cônsul a Nápoles, na Itália. Antes de partirem para a Europa, passam por Natal
(RN), onde permanecem alguns dias até Maury receber um documento necessário
para continuar a viagem em avião de empresa norte-americana. Ele parte antes de
Clarice, pois os responsáveis pela comissão diplomática deveriam chegar antes para
instalar o consulado. Ela permanece mais alguns dias na capital potiguar, de onde
escreve para Lúcio Cardoso: Estou lhe escrevendo de Natal, do horrivelzinho
Grande Hotel daqui. Maury embarcou ontem e eu estou esperando condução talvez
para esse final de semana. Só tomara que isso tudo já siga um rumo claro, porque
estou tão desorientada
124
.
Parece que ela antevia a possibilidade de não haver um percurso
determinado e isso já a deixava um tanto sem norte. No dia 30 de julho embarcou,
com um grupo de missionários, em direção ao continente africano. Neste tempo
estava em curso a Segunda Guerra Mundial (1944) o que dificultava o transporte,
principalmente na Europa. No dia seguinte se iniciaram as escalas: chegou à Libéria,
onde passou um dia e uma noite, almoçou em Guiné-Bissau, seguiu para Dacar, no
Senegal, onde ficou por duas horas e, por fim, partiu para Portugal. Desembarcou
em Lisboa, onde foi recebida pelo diplomata Ribeiro Couto. Na capital, permanece
___________________________________________________________________
124 LISPECTOR, Clarice (1944). Correspondências. Rio de Janeiro: Rocco, 2002, p.48.
80
dez dias e em seguida é incumbida de tarefa diplomática: parte para o Marrocos
como correio diplomático, levando carta de Ribeiro Couto para o embaixador
brasileiro em Roma, Vasco Leitão da Cunha, que se encontrava, temporariamente,
em Casablanca. Fui como correio diplomático, carregando comigo um grande
embrulho, sem largá-lo um instante. Mas isso me facilitou arranjar prioridade para
Argel, no dia seguinte
125
.
Na capital argelina Clarice é hospedada em casa da delegação brasileira,
local onde também estava hospedado seu cunhado, o diplomata Mozart Gurgel
Valente. De Argel escreve às irmãs Elisa e Tania: Todo esse mês de viagem nada
tenho feito, nem lido, nem nada sou inteiramente Clarice Gurgel Valente
126
.
Comenta, ainda, a respeito das pessoas que conheceu durante esse período:
Nunca ouvi tanta bobagem séria e irremediável como nesse mês de
viagem. Gente cheia de certezas e julgamentos, de vida vazia e
entupida de prazeres sociais e delicadezas. É evidente que é preciso
conhecer a verdadeira pessoa embaixo disso. Mas por mais protetora
dos animais que eu seja, a tarefa é difícil
127
.
Após doze dias em Argel, parte para Roma em companhia de Mozart e de
Leitão da Cunha, ambos transferidos da Argélia para a Itália. Desta vez, a viagem é
pelo Mar Mediterrâneo. O destino é Taranto, na Itália. Clarice relata para Lúcio
Cardoso, em carta, como foi a travessia: (...) em largar um instante o salva-vidas
obrigatório, comboiada nos dois destróieres
128
. O comentário descreve a situação,
durante a Guerra. Chegando a Taranto tomaram o avião particular do comandante-
___________________________________________________________________
125 LISPECTOR, Clarice (1944). Correspondências. Rio de Janeiro: Rocco, 2002, p.49.
126 Ibidem, p.50.
127 Ibidem , p.51.
128 Ibidem , p. 56.
81
em-chefe das forças aliadas do Mediterrâneo até Nápoles.
Em Nápoles, os membros da comissão diplomática brasileira são alojados
em um apartamento, sede do próprio consulado. E Clarice também passa a viver
neste local. Nápoles converte-se em sua nova morada: Passei várias noites
sonhando que tinha que arrumar de novo as malas
129
. Parece que, desde o seu
casamento, esta foi a primeira oportunidade que teve para descansar, sabia que tão
cedo não mudaria de cidade, o que a leva dizer: Isso aqui é lindo. É uma cidade suja
e desordenada, como se o principal fosse o mar, as pessoas, as coisas (...) E tudo
aqui tem uma cor esmaecida, mas não como se tivesse um véu por cima: são as
verdadeiras cores
130
. Entretanto, de algum modo, também sabe que sua
permanência em Nápoles não é definitiva: As pessoas parecem morar
provisoriamente
131
.
Em meados de setembro de 1944 Clarice escreve a Lúcio Cardoso contando
sobre a estada na Itália. Diz que por vezes está ótima, por outras não vê e não sente
nada e por outras está simplesmente delicada. Chovia e fazia frio em Nápoles. O
seu quarto era independente dos outros no apartamento e isso lhe dava a liberdade de
desarrumá-lo, além disso, fora presenteada com o azul mediterrânico do mar. Conta
que um novo livro estava acabado e se chama O lustre. Possivelmente já estava
terminado quando saiu do Brasil mas não estava completo, esta era a impressão de
Clarice. Pronto o livro, solicita ao amigo que se encarregue de conseguir a
publicação, rapidamente, pela Editora José Olympio. Caso não conseguisse, a
___________________________________________________________________
129 Ibidem.
130 Ibidem.
131 Ibidem.
82
própria Clarice, por intermédio de sua irmã Tania, tentaria algo mais modesto, até
mesmo pago, tamanha era a urgência de publicar. Por fim, pede a Lúcio que não a
esqueça e que não a considere uma exilada.
Em correspondência posterior diz não saber como descrever o que está
vivendo, apenas que está triste e cansada, talvez precisando iniciar um novo
trabalho:
Minha impaciência chega a ser tão grande que às vezes me dói. Assim
não tenho gostado verdadeiramente da Itália, como não poderia
gostar verdadeiramente de nenhum lugar; sinto que há entre mim e
tudo uma coisa, como se eu fosse daquelas pessoas que têm os olhos
cobertos por uma camada branca. Sinto horrivelmente ter que dizer
que esse véu é exatamente a minha vontade de trabalhar e ver demais
132
.
Declara-se pobre por dentro e diz ter um rosto que é qualquer coisa feia.
No mês seguinte, Clarice é informada de que ganhara o prêmio Graça
Aranha com Perto do coração selvagem como o melhor romance de 1943.
Mesmo morando na Europa, Clarice não perde contato com seus amigos
brasileiros. Pelo contrário, por meio de cartas, esses contatos se intensificam e deste
modo mantém laços tanto afetivos quanto intelectuais com o Brasil. Seus amigos e
suas irmãs enviam-lhe livros e notícias. Escreve a Lúcio Cardoso dizendo que
recebera Inácio, novo livro dele, e que já iniciara a leitura. Relata que na cidade
ainda faz frio e por ter respirado tanto o outono napolitano contraíra um resfriado e
isso a levou ao encontro da poesia de Emily Brontë. A leitura destas poesias lhe
dava a impressão de (...) ter entrado no céu, no ar livre
133
, pois tinha a sensação de
___________________________________________________________________
132 Ibidem , p.63.
133 Ibidem , p.66.
83
que era compreendida pela autora, o que a sensibilizou a ponto de ter vontade de
chorar, mas não o fez (...) porque quando choro fico tão consolada, e eu não quero
me consolar dela; nem de mim
134
. Clarice sente que as coisas se completam
perfeitamente. Depois de ter dito isso, algo a mobilizou tanto que revelou sua
necessidade de se conter para não entrar em desespero. Assim, muda o tom da carta
tentando tratar de assuntos práticos a respeito da publicação de seu livro.
Clarice também escreveu a Manuel Bandeira, porém esta carta não foi
publicada, sabe-se dela pela resposta dada pelo poeta. Bandeira lhe escreve
carinhosamente; manda seus dois livros recentemente reeditados (Poesias
Completas e Poemas Traduzidos) e ainda solicita que entregue os outros volumes
aos seus amigos que também vivem na cidade. Encaminhar e entregar
correspondências ou outros objetos provenientes do Brasil era tarefa que Clarice
cumpria constantemente.
Era tempo de Guerra, 1945, e Clarice via-se convidada a participar. Passou
a trabalhar no hospital americano dando assistência aos seus compatriotas feridos na
luta. Em carta para Lúcio Cardoso, diz:
Visito diariamente todos os doentes, dou o que eles precisam,
converso, discuto com a administração pedindo coisas, enfim sou
formidável. Vou lá todas as manhãs e quando sou obrigada a faltar
fico aborrecida, tanto os doentes já me esperam, tanto eu mesma
tenho saudades deles
135
.
Este trabalho foi reconhecido pelos médicos da Força Expedicionária
Brasileira e, via ofício assinado, recebe agradecimentos pelo serviço prestado.
___________________________________________________________________
134 Ibidem.
135 Ibidem , p.70.
84
Em 7 de maio de 1945 ocorre a rendição da Alemanha, encerrando na
Europa a Segunda Guerra Mundial, mas é somente em 2 de setembro que ela acaba
com a rendição do Japão. Neste dia, Clarice posa, pela última vez, para o pintor
italiano Giogio de Chirico e, neste momento, ouve um jornaleiro que anuncia: È
finita la guerra! Clarice enche-se de alegria e vibra. Contudo, se surpreende ao
perceber que não houve comemorações nem grande euforia, o povo estava muito
cansado até mesmo para celebrar a paz.
Neste mesmo ano, inicia uma série de viagens pela Itália acompanhada do
marido. Visita Florença, Veneza, e novamente Roma. Também vai a Córdoba, na
Espanha. E volta para Nápoles.
Escreve à sua irmã Tania e queixa-se da dificuldade de comunicar-se por
cartas. Considera que às vezes até pessoalmente é difícil, mesmo entre duas irmãs
que se gostam e se entendem, porque muitos sentimentos atrapalham. Conta que não
tem participado de eventos sociais e confessa: Tudo o que eu tenho é a nostalgia que
vem de uma vida errada, de um temperamento excessivamente sensível, de talvez
uma vocação errada ou forçada (...) Meus problemas são os de uma pessoa de alma
doente e não podem ser compreendidos por pessoas, graças a Deus, sãs
136
.
No término, apesar de mostrar sua angústia, afirma estar bem e feliz, não
hesita em pedir: (...) me abrace, que no abraço mais do que em palavras, as pessoas
se gostam
137
.
Em um passeio pela cidade, Clarice se depara com um cãozinho vira-lata,
___________________________________________________________________
136 Ibidem , p.75.
137 Ibidem , p.77.
85
se apaixona, não resiste e o compra. O chamou de Dilermando. Nesta mesma
correspondência, declara seu amor ao bicho e o quanto está triste em descobrir que
ele apresenta uma doença, aparentemente incurável.
86
O silêncio de Berna
O casal é comunicado de que deixará a Itália, irá desta vez para Berna, na
Suíça. Em 1946, antes de se instalar em Berna, Clarice visita o Rio de Janeiro.
Aproveita a oportunidade, enviada como correio diplomático pelo Ministério das
Relações Exteriores, para divulgar O lustre, que havia sido lançado no final de 1945,
reencontrar amigos e fazer outros. Em março, viaja para a Itália e no mês seguinte
muda-se para Berna.
Com pesar Clarice deixa Dilermando, porque a haviam informado que não
era permitida a presença de animais no hotel onde se instalaria. O abandono do
querido cão será a base para o conto O crime do professor de matemática. A
escritora jamais o esquecerá. Muitos anos depois, 1971, em crônica, escreve:
Mulher feita, tive um cachorro vira-lata que comprei de uma mulher
do povo no meio do burburinho de uma rua de Nápoles porque senti
que ele nascera para ser meu, o que ele também sentiu em alegria
enorme, imediatamente me seguindo já sem saudade da ex-dona, sem
sequer olhar para trás, abanando o rabo e me lambendo. Mas é uma
história comprida, a de minha vida com esse cão que tinha cara de
mulato-brasileiro, apesar de ter nascido e vivido em Nápoles (...)
138
.
Clarice era muito ligada a esse italianinho, trocavam confidências e
conheciam-se mutuamente: Nenhum ser humano me deu jamais a sensação de ser
tão totalmente amada como fui amada sem restrições por esse cão
139
.
De Berna, Clarice escreve às irmãs, Tania e Elisa, dizendo que era uma
___________________________________________________________________
138 LISPECTOR, Clarice (1971). “Bichos (I)”. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p. 333.
139 Ibidem , p. 334.
87
pena não ter paciência para gostar da tranqüilidade da cidade e complementa: Em
Berna ninguém parece precisar um do outro, isso é evidente. Todos são laboriosos.
É engraçado que pensando bem não há um verdadeiro lugar para se viver. Tudo é
terra dos outros, onde os outros estão contentes. É tão esquisito estar em Berna e
tão chato este domingo...
140
.
A dificuldade de adaptação, a solidão, o silêncio de Berna fazem Clarice
pedir a presença, mesmo distante, de suas irmãs. Então, escrever é (...) um anzol
compridíssimo cuja isca bate no Rio de Janeiro para pescar resposta
141
. Esta
imagem, portanto, aproxima, converte-se em comunicação e o saudoso Rio se
apresenta.
Clarice se corresponde também com Fernando Sabino, Manuel Bandeira,
Bluma Wainer, Lúcio Cardoso, entre outros. A Fernando Sabino conta, por
exemplo, que teve uma das piores semanas em relação a seu trabalho: Nada presta,
não sei por onde começar, não sei que atitude tome, não sei de nada. Digo a mim
mesma: não adianta desesperar, desesperar, desesperar é mais fácil ainda do que
trabalhar. Me mande um conselho, Fernando, e uma palavra bem amiga
142
. Em
carta posterior narra para Sabino um sonho:
Sonhei que estava num lugar de cores apagadas, tudo meio dormente,
e que eu ia subir uma escadaria imensa, alta, alta. Eu me aproximava
para subir e com horror via que a escadaria era apenas pintada
nem pintada, desenhada a lápis com perspectivas certas em claro e
escuro, parece que em cima de papel móvel porque havia vento. Nem
___________________________________________________________________
140 LISPECTOR, Clarice (1946). Correspondências. Rio de Janeiro: Rocco, 2002, p.80.
141 Ibidem , p.81.
142 Ibidem , p.88.
88
lhe posso descrever de como comecei a subir e que dificuldade sentia:
era uma imagem de escada e eu pisava em degraus desenhados e sem
profundidade
143
.
Clarice e Sabino compartilham um universo, conseguem trocar tanto
angústias quanto textos e sugestões.
Ainda neste ano, Clarice, além de escrever contos, começa a escrever A
cidade sitiada, seu terceiro livro. São publicados, no jornal A Manhã, do Rio de
Janeiro, os contos O crime e O jantar.
O ano de 1946 é encerrado com uma viagem à França. Clarice e Maury são
convidados pelos amigos brasileiros Samuel e Bluma Wainer para comemorarem o
final de ano em Paris. O casal permanece na França até fevereiro do ano seguinte. A
estada de Clarice em Paris é bastante movimentada. Encontra amigos brasileiros
com os quais participa de jantares e almoços, conhece novas pessoas, assiste a
concertos e peças de teatro. Entretanto, a respeito dessa vida social relata, em carta,
a suas irmãs:
Não sei se estou louca por Paris. É difícil dizer. Com a vida assim
parece que sou “outra pessoa” em Paris. É uma embriaguez que não
tem nada de agradável. Tenho visto pessoas demais, falado demais,
dito mentiras, tenho sido muito gentil. Quem está se divertindo é uma
mulher que eu não conheço, uma mulher que eu detesto, uma mulher
que não é a irmã de vocês. É qualquer uma
144
.
Os Gurgel Valentes retornam à Suíça. Clarice, sem conseguir escrever,
ocupa suas tardes indo ao cinema e pouco importava o filme freqüentando a
biblioteca pública, passeando pelo jardim zoológico. Se conseguisse escrever,
___________________________________________________________________
143 Ibidem , pp.106-7.
144 Ibidem ,p.115.
89
Clarice estaria salva do silêncio de Berna. Diz:
A noite de Berna tem o silêncio. Tenta-se em vão trabalhar para não
ouvi-lo, pensar depressa para disfarçá-lo. Ou inventar um programa,
frágil ponte que mal nos liga ao subitamente improvável dia de
amanhã. Como ultrapassar essa paz que nos espreita. Silêncio tão
grande que o desespero tem pudor. Montanhas tão altas que o
desespero tem pudor. Os ouvidos se afiam, a cabeça se inclina, o
corpo todo escuta: nenhum rumor. Nenhum galo. Como estar ao
alcance dessa profunda meditação do silêncio. Desse silêncio sem
lembrança de palavras. Se és morte, como te alcançar. É um silêncio
que não dorme: é insone; imóvel mas insone; e sem fantasmas. É
terrível sem nenhum fantasma
145
.
E assim se vão os dias. Até que, no final de 1947, Clarice é surpreendida
pelo fato de ter encontrado um dos motivos para o qual nasceu: gestar. Clarice está
grávida de seu primeiro filho.
Há uma certa mudança no cotidiano. A autora, apesar da angústia, consegue
investir mais no seu trabalho, buscando concluir seu terceiro romance, iniciado em
1946. Ocupou-se em copiá-lo quantas vezes achasse necessário, atitude que veio a
configurar o seu método de escrita. A decisão de terminá-lo não a impediu que se
dedicar à produção de contos. Neste ano, 1948, escreveu Mistério de São Cristóvão,
Laços de família e Um jantar. Em meados de maio dá por terminado o livro A
cidade sitiada e, com isso, se inicia uma nova batalha, o envia ao Brasil para tentar
publicá-lo. Em correspondência a Ta nia (6/7/48), diz: O que eu quero é que este
livro saia daqui. Melhorá-lo é impossível para mim. E, além disso, preciso com
urgência me ver livre dele
146
.
___________________________________________________________________
145 LISPECTOR, Clarice (1968). “Noite na montanha”. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p.128.
146 Apud BORELLI, Olga. Clarice Lispector: esboço para um possível retrato. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1981, p.134
90
Segundo Olga Borelli, amiga de Clarice, A cidade sitiada foi o livro que a
autora considerou mais difícil de escrever. Contou a Borelli que durante a
elaboração perseguia algo que não conseguia descobrir o que era; trabalhava meio
cegamente e às vezes tinha a sensação de que não estava fazendo nada; então ficava
sentada esperando e eis que de repente uma frase surgia. O livro vai se compondo
com a visita do inesperado.
De certa forma, tanto Perto do coração selvagem e O lustre quanto A
cidade sitiada são romances que vão apresentando uma maneira de trabalhar que se
tornaria característica da escrita clariceana.
Meu trabalho vem às vezes em nebulosa sem que eu possa concretizá-
lo de algum modo. Passo dias ou até anos, meu Deus, esperando. E,
quando chega, já vem em forma de inspiração. No início de uma
história, acho que tenho um vago plano inconsciente que vai
desabrochando à medida que eu trabalho. Fundo e forma sempre
foram uma coisa só. A frase já vem feita, mas não gosto da fase
posterior do trabalho que consiste em reunir esses pensamentos e
idéias nascidas aos pedaços
147
.
O terceiro romance foi escrito em Berna em uma época bastante difícil da
vida da autora. Época em que inadaptação à cidade, a solidão e o silêncio a
inquietaram. Não via meios de viabilizar uma quietude.
O que me salvou da monotonia de Berna foi viver na Idade Média, foi
esperar que a neve parasse e os gerânios vermelhos de novo se
refletissem na água, foi ter um filho que lá nasceu, foi ter escrito um
de meus livros menos gostado, A cidade sitiada, no entanto, relendo-
o, pessoas passam a gostar dele; minha gratidão a este livro é
enorme: o esforço de escrevê-lo me ocupava, salvava-me daquele
silêncio aterrador das ruas de Berna, e quando terminei o último
capítulo, fui para o hospital dar à luz o menino
148
.
__________________________________________________________________
147 Ibidem , pp. 81 -2.
148 LISPECTOR, Clarice (1970). “Lembrança de uma fonte, de uma cidade”. In A descoberta do mundo. Rio de Janeiro:
Rocco,1999, p.270.
91
E foi assim que recebeu seu bebê Pedro, nome adotado por seu pai quando
chegou ao Brasil, em 10 de setembro de 1948. A jovem mãe dedicou-se
inteiramente aos cuidados do recém-nascido aprendeu a tricotar e fez, até mesmo
um curso de modelagem, é o que escreve para as irmãs: Estou modelando uma
cabeça de... macaco. Nunca pensei ter tanta dificuldade com macacos
149
. Além de
cuidar do pequeno Pedro, Clarice continuava tentando a publicação do livro.
__________________________________________________________________
149 Apud BORELLI, Olga. Clarice Lispector: esboço para um possível retrato. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1981, p. 137.
92
Estou me controlando para não ficar alegre demais
No ano seguinte (1949), o Ministério das Relações Exteriores transfere
Maury Gurgel Valente para a Secretaria de Estado, no Rio de Janeiro. É com grande
alegria que Clarice recebe a notícia tão esperada.
Em carta às irmãs, datada de 25 de março de 1949, diz:
... estou escrevendo sob o secador do cabeleireiro, me preparando
para ir hoje de noite a Roma para fazer alguma roupa.
Nem sei dizer o que senti quando soube que iremos embora pro
Brasil. A grande alegria é inexpressiva. Minha reação foi coração
batendo, pés e mãos frios. Em seguida passei a dormir mal à noite e
consegui emagrecer ainda mais. Sou tão chata que já estou pensando
que irei embora do Brasil de novo. Estou me controlando para não
ficar alegre demais.
Estou tão contente. Quem sabe no Rio conseguirei escrever de novo e
me animar
150
.
Na viagem de volta ao Brasil, rumo ao Rio, Clarice aproveita uma parada
em Recife para ver tios e primos e visitar alguns lugares que foram especiais durante
sua infância. Sua prima Vera Lispector conta que Clarice, Maury e Pedro ficaram
poucas horas na cidade, almoçaram na casa de seus pais, foram rever a avenida
Conde da Boa Vista. Clarice ficou decepcionada porque a achou estreita. E já
haviam alargado a avenida
151
, acrescentou Vera.
Ao chegarem ao Rio fixam residência à rua Marquês de Abrantes, no
Flamengo. Clarice, feliz, reencontra familiares e amigos. As relações tanto afetivas
quanto profissionais se ampliam. E, finalmente, seu romance A cidade sitiada é
___________________________________________________________________
150 Apud BORELLI, Olga. Clarice Lispector: esboço para um possível retrato. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981, p.138.
151 Apud GOTLIB, Nádia Battella. Clarice: uma vida que se conta. São Paulo: Ática, 1995, p.121.
93
publicado pela editora A Noite.
O jornal Letras e Artes, da mesma editora, publica duas matérias a respeito
da escritora, uma com sua opinião acerca de “Literatura e verdade”; outra sobre a
sua volta ao Brasil.
Em 1950, Clarice concede uma entrevista ao jornalista e amigo Paulo
Mendes Campos. O jornalista conta que ao chegar na casa encontra Clarice
cuidando de seu filho Pedro e que ela havia dito que estava se educando com o
crescimento do filho: (...) descobriu através do garoto ser mais áspera de voz e mais
brusca de gestos do que poderia imaginar
152
. No final, ao ser indagada sobre o que
estaria escrevendo, declara que só tem feito colaborações para revistas e jornais e
que não tinha nenhuma idéia para novo romance. A autora dedicava-se a escrever
contos. São deste período Amor, Uma galinha e Começos de uma fortuna.
A permanência no Rio de Janeiro é curta. Quando Clarice já estava
adaptada à cidade, Maury é novamente transferido e vai integrar a delegação
brasileira na Conferência Geral de Comércio e Tarifas em Torquay, na Inglaterra.
De novo, é hora de partir.
___________________________________________________________________
152 Apud GOTLIB, Nádia Battella. Clarice: uma vida que se conta. São Paulo: Ática, 1995, p.269.
94
O cheiro de Berna
Chegando a Torquay, vão para um hotel. Clarice escreve a Tania (23/10/50)
contando sobre o novo lugar. Diz que estão bem hospedados, seu filho está
gordinho, embora mais pálido do que no Rio, não quer saber de aprender inglês e,
quanto às poucas palavras aprendidas, ele mais parece um caboclo falando inglês.
Fala das dificuldades com babás: Estou ainda esperando “a mulher de minha
vida”... Se eu pudesse encontrar uma pessoa que passasse a ser “nossa” para
sempre nem sei o que daria
153
. A cidade é pequena e tem o cheiro de Berna. Para
Clarice, a época na Suíça foi bastante difícil, o tempo não passava e quanto mais
tentava ocupá-lo mais atormentada ficava. Entretanto, em Torquay sabia que a
estada seria breve: De qualquer modo, apesar de Torquay ser tão chatinho, gosto da
Inglaterra. A falta de sol, certas praias com rochas escuras, a falta de beleza tudo
isso me emociona muito mais do que a beleza da Suíça. Por falar nesta, cada vez
mais a detesto. Espero nunca mais estar nela
154
.
Na Inglaterra o seu cotidiano parece mais calmo e ela então se volta,
principalmente, para Pedrinho. É o que revela a carta, do mês seguinte, enviada às
irmãs:
Mas está tão agarrado a mim que é um desespero. Ele está muito
bem, cheio de palavras novas, mas tudo em português. Come que é
uma beleza, vive faminto, conversando sobre comida, ‘carninha
___________________________________________________________________
153 LISPECTOR,Clarice (1950) . Correspondências. Rio de Janeiro: Rocco, 2002, p.191.
154 Ibidem , p.192.
95
gostosa’, ‘peixinho ótimo’, etc. Ele fala tanto que se ele de modo
geral não fosse um filho eu ficava cansada. A conversa não varia
muito é sobre comida, carros, ônibus e comida de novo
155
.
Conta ter visitado caverna com vestígios pré-históricos, experiência que a
levou pensar que não deveria se preocupar com coisas pequenas, já que antes dela
havia tantos e tantos anos. Para logo depois concluir: (...) nada tenho a ver com a
pré-história, a comida de Pedrinho é mais importante
156
.
Apesar da tranqüilidade, a saudade do Brasil e o desejo de voltar estavam
sempre presentes. ... Já tinha vontade de arrumar as malas de novo e de estar no
Brasil. Aqui está frio de doer. Às quatro da tarde é noite fechada. O vento corta o
rosto, dá uma vontade de gritar. Deixa tudo miserável
157
, diz na mesma carta. Na
época conhece Londres, gosta muito da cidade, mas ela não era exatamente como
imaginava, não se poderia chamá-la de “misteriosa”: É preciso ir pouco a pouco
entendendo, pouco a pouco reconhecendo. E depois a pessoa começa a gostar
158
.
Entre o fim de 1950 e início de 1951, numa de suas idas a Londres, Clarice
passa mal e é levada a um hospital: sofrera um aborto espontâneo. Quando acorda,
do seu lado está seu amigo, escritor e poeta João Cabral de Melo Neto, na época
vice-cônsul na capital inglesa.
São também deste período as primeiras anotações do futuro romance A
veia no pulso, que mais tarde será chamado A maçã no escuro.
___________________________________________________________________
155 Apud BORELLI, Olga. Clarice Lispector: esboço para um possível retrato. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981, p.139.
156 Ibidem .
157 Ibidem , pp.139-0.
158 Ibidem , p.140.
96
Da Inglaterra ao Brasil
Seis meses em Torquay. Alegria, é hora de voltar para sua terra. Em março
de 1951, Clarice, com a família, regressa ao Rio e dedica o ano aos contos.
Convidada a publicar alguns deles na coleção Cadernos de Cultura, editadas pelo
Ministério da Educação e Saúde, escolhe aqueles que havia escrito em 1950, no
Rio, Amor, Uma galinha e Começos de uma fortuna e os da Europa, Mistério de São
Cristóvão, Laços de família e O jantar.
O cotidiano no Rio aparece na correspondênc ia com o casal Eliane e
Mozart Gurgel Valente. Conta que tem trabalhado muito e está com um novo
projeto, algo que lhe traga mais dinheiro, reclama da babá e da cozinheira.
Além de ocupar-se de sua família e da literatura, Clarice se dispõe a cuidar
de sua amiga Bluma Wainer; separada, que está com câncer. A doença avança
rapidamente e a amiga acompanha até o fim.
Em 1952, a seleção de contos se transforma no livro Alguns contos. A
primeira edição, com seu nome fora escrito incorretamente, com dois “s”, é
recolhida. Logo depois sai a nova, correta.
Nesse ano Clarice é convidada por Rubem Braga a escrever no jornal
Comício. Assume uma página feminina, “Entre mulheres”, assinando com o
pseudônimo Teresa Quadros. Nela faz de um tudo, escreve e traduz; dá dicas de
beleza e de moda; conselhos de saúde e de economia doméstica; além de receitas
tanto de um delicioso bolinho de queijo quanto de assassinato de baratas.
97
É junho. Clarice está grávida do segundo filho, que nascerá fora do Brasil,
afinal, o trabalho de Maury na Secretaria de Estado está em vias de ser concluído.
Em julho, anos depois de ter terminado o curso de Direito, o casal cola
grau.
98
Em Washington, pensando sem parar
De malas prontas. Em setembro de 1952, a família Gurgel Valente embarca
para Nova York. E segue para Washington, onde Maury assume o posto de segundo-
secretário da Embaixada Brasileira.
Nasce, em fevereiro de 1953, Paulo, segundo filho do casal Gurgel Valente.
Em Washington, convivem com vários brasileiros, entre eles o escritor gaúcho Érico
Veríssimo e sua família. Saudosa da escrita e querendo ganhar algum dinheiro,
Clarice propõe a Fernando Sabino uma coluna para a revista Manchete, com formato
semelhante a “Entre mulheres”. O projeto é aprovado, mas sem uso de pseudônimo.
Clarice passa a escrever semanalmente para a revista. Os assuntos são de sua livre
escolha.
Escreve, em 5 de outubro de 1953, ao amigo Fernando Sabino combinando
algumas questões técnicas sobre a coluna e falando do cotidiano.
Tomo menos milk-shake e levo uma vida diária vazia e agitada. Passo
o tempo todo pensando não raciocinando, não meditando mas
pensando, pensando sem parar. E aprendendo, não sei o quê, mas
aprendendo. E com a alma mais sossegada (não estou totalmente
certa). Sempre quis “jogar alto”, mas parece que estou aprendendo
que o jogo alto está numa vida diária pequena, em que uma pessoa se
arrisca muito mais profundamente, com ameaças maiores. Com tudo
isso, parece que estou perdendo um sentimento de grandeza que não
veio nunca de livros nem de influência de pessoas, uma coisa muito
minha e que desde pequena deu a tudo, aos meus olhos, uma verdade
que não vejo mais com tanta freqüência. Disso tudo, restam nervos
muito sensíveis e uma predisposição séria para ficar calada. Mas
aceito tanto agora. Nem sempre pacificamente, mas a atitude é de
aceitar
159
.
_____________________________________________________________________________________________________
159 LISPECTOR,Clarice. Correspondências. Rio de Janeiro: Rocco, 2002, p.201.
99
Além da coluna, continua fazendo anotações, iniciadas em Torquay, para
outro romance.
No final do ano, o primeiro livro de Clarice Perto do coração selvagem é
traduzido para o francês. Clarice recebe as provas. Decepção. Envia carta ao editor
francês reclamando da tradução, escandalosamente má”
160
, e afirma que preferia
que seu livro não fosse publicado na França. Ela escreveu “ao fim de alguns
instantes, as chamas subitamente reanimadas”, o que foi traduzido por “ao fim de
alguns instantes, tudo o que nela o chamava se acordou”; no original “o pai estava
despenteado”, na tradução “o pai estava sem fôlego”; “fiquei tonta, disse ela”
virou “fiquei estúpida, disse ela”. Tão ruim que tentou se conformar e esquecer a
edição.
___________________________________________________________________
160 Apud BORELLI, Olga. Clarice Lispector: esboço para um possível retrato. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981, p.141.
100
Dois meses no Rio
Em julho, em férias, Clarice viaja com os filhos para o Rio de Janeiro. De
Teresópolis escreve à amiga Mafalda, mulher de Érico Veríssimo, que está em
Washington. Fala a respeito dela, dos filhos e da cidade, que mudou muito: Ainda
não absorvi o Rio, sou lenta e difícil. Precisaria de mais alguns meses para
entender de novo a atmosfera. Mas que é bom, é. É selvagem, é inesperado
161
. Dos
filhos diz: Pedrinho e Paulinho têm às vezes brigas, corpo a corpo, de arrepiar os
cabelos. (...) Paulinho perdeu o resto do medo que tinha pelo mundo, e agride
crianças de 8 anos para cima. Ele está um amor, cada vez mais ocupado e sem-
vergonha
162
.
Durante o tempo que está no Rio, Simeão Leal, editor do Caderno de
Cultura do Ministério da Educação e Saúde, encomenda-lhe mais contos com o
propósito de compor um novo livro e, além disso, paga os direitos autorais
adiantados.
______________________________________________________
161 LISPECTOR,Clarice. Correspondências. Rio de Janeiro: Rocco, 2002, p.204.
162 Ibidem .
101
Não me incomodo muito de ficar embotada
Em setembro, Clarice e os meninos voltam para os Estados Unidos.
Retoma os contos e produz Feliz aniversário, A imitação da rosa, Devaneio e
embriaguez de uma rapariga, Os desastres de Sofia, A mensagem, Os obedientes e
reescreve O crime do professor de matemática. Em 1955, retoma as anotações do
novo romance e escreve mais dois contos: Preciosidade e A menor mulher do
mundo.
Em carta às irmãs, Tania e Elisa, em 17/3/1956, se declara meio cansada de
“fazer força” e empurrar, diz que gostaria de tirar férias de preocupações. Preferia
sinceramente ser Ava Gardner sem caráter... Meu caráter anda me enjoando
bastante ultimamente
163
. Conta que Paulinho levou um tombo, está um amor,
engraçado, disposto e malcriado, Pedrinho continua com suas leituras e às voltas
com animais, tanto que disse a Clarice que ela é uma mistura de tigre e veado. Érico
Veríssimo, conta, é um dos primeiros a ler seu novo romance e tem feito sugestões.
Finaliza a carta: Tinha uma vontade louca de me ocupar muito, mas não em livro,
estou muito cansada. Esse livro teve umas oito cópias, cada uma um pouco diferente
da outra. Mas queria me ocupar, cabeça sem emprego só dá chateação
164
.
Maio chega e A veia no pulso, título provisório do romance, está pronto e à
espera de publicação. É, de novo, tempo de contos, nasce O búfalo. A pedido do
filho Paulo, escreve uma história infantil, depois chamada O mistério do coelho
___________________________________________________________________
163 LISPECTOR, Clarice. Correspondências. Rio de Janeiro: Rocco, 2002, p.206.
164 Ibidem , p.208.
102
pensante.
Escreve às irmãs contando que está estudando inglês, mas que não tem
jeito para a coisa, sua vida é uma preguiça contínua e tudo lhe parece difícil, fora de
hora, fora de mão, fora de interesse: Se não tomar cuidado, fica-se embotada... Mas
não me incomodo muito de ficar embotada
165
. De fato, a rotina diplomática
também não a entusiasma, nem mesmo a chegada de João Goulart, vice-presidente
da República do governo Juscelino Kubitschek: ...O Jango vem aí, e não me sinto
mentalmente pronta para recebê-lo. Sem vê-lo, já o clarividencio completamente.
Vai haver recepção na embaixada na terça-feira
166
. Para ela, as festas na
embaixada são tão chatas que parecem pesadelo. ...Meu próprio futuro me parece a
coisa mais vaga, procuro viver dia a dia, é um esforço essa tentativa
167
.
Apatia, confluência de preguiça contínua, dificuldades em agir, falta de
entusiasmo aponta para a indefinição; entretanto, há uma reação e escreve O búfalo.
Segundo a autora, o conto foi escrito em um dia de ódio, sentimento que nunca se
permitiu ter. Tinha necessidade do ódio: É a história de uma mulher que vai ao
Jardim Zoológico para aprender com os bichos como odiar. Essa mulher, que só
aprendeu a perdoar e a se resignar e a amar, precisa pelo menos uma vez tocar o
ódio de que é feito o seu perdão
168
.
Em 7 de setembro de 1956, já em Washington, a família Veríssimo resolve
retornar ao Brasil. O casal Gurgel Valente fica desolado. Antes da partida, Clarice
envia o bilhete:
___________________________________________________________________
165 Apud BORELLI, Olga. Clarice Lispector: esboço para um possível retrato. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981, p.143.
166 Ibidem.
167 Ibidem.
168 Ibidem.
103
Prezados Sr. e Sra. E. Verissimo,
Como é do conhecimento dos senhores, meu marido e eu, não tendo
infelizmente uma religião (por enquanto), criamos nossos filhos na
idéia de Deus, mas sem lhes dar rituais definitivos, e à espera de que
eles próprios mais tarde se definam. (...)
Desejo perguntar-lhes se acreditam na possibilidade de padrinhos
leigos. Eu acredito. No caso do sr. É da sra. Fal também acreditarem,
esta carta os convida, em nome de uma amizade perfeita, a serem
padrinho e madrinha de Pedro e Paulo. A condição única é
continuarem a gostar deles
169
.
É e Fal, quer dizer, Érico e Mafalda aceitam o convite.
A batalha pela publicação de A veia no pulso e do livro de contos continua.
As primeiras tentativas foram com as editoras Agir e Civilização Brasileira, por
intermédio de Fernando Sabino. Ambas não decidem. Rubem Braga procura a
editora José Olympio e ela concorda em publicar, mas somente em 1958.
Impaciente, Clarice, resolve publicar por conta própria o romance e comunica aos
amigos Fernando e Rubem. Eles recomendam que espere. Clarice aceita a sugestão.
No início de 1957, a escritora autoriza os amigos Fernando e Rubem a
encaminharem seus contos para a publicação no “Suplemento Cultural” do jornal O
Estado de S. Paulo. O romance continua sem editora.
A relação com a família Veríssimo é intensa. Tanto Clarice quanto seus
filhos escrevem com freqüência para os gaúchos. Os meninos mandam bilhetes e
Clarice dá notícias de Clarissa, filha de Mafalda e Érico, que vive nos Estados
Unidos.
A relação de Clarice e Maury começa apresentar os primeiros sinais de
esgotamento. Pouco se sabe da vida pessoal de Clarice em 1958, mas surgem novas
___________________________________________________________________
169 LISPECTOR, Clarice. Correspondências. Rio de Janeiro: Rocco, 2002, p.209.
104
oportunidades de trabalho. É convidada pelo jornalista Nahum Sirotsky a colaborar
com a revista Senhor, que será lançada no ano seguinte, com comentários ou
crônicas. O convite é reforçado por Paulo Francis, responsável pela seção de ficção
da revista. Além disso, segundo o editor, a revista também estaria interessada em
publicar seus contos e sugere começar com A menor mulher do mundo. Ela topa.
Érico Veríssimo escreve, em 9 de dezembro de 1958, uma carta
cumprimentando a comadre pelo aniversário. E lhe dá a notícia de que poderia
publicar o romance e os contos pela da Editora Globo, mas esperava uma posição da
Editora Civilização Brasileira que anunciara a publicação do romance e, ainda, a
liberação dos contos que estavam retidos por Simeão Leal.
A editora Plon, que publicara Perto do coração selvagem, comunica à
escritora que os exemplares estocados serão destruídos, pois não tem espaço para
mantê-los.
Clarice inicia o ano de 1959 com uma viagem à Europa, acompanhando a
embaixatriz brasileira Alzira do Amaral Peixoto, filha de Getúlio Vargas. Embarcam
rumo à Holanda, passam por Paris. Depois retornam aos Estados Unidos.
Na volta a Washington, Clarice é surpreendida pelas provas do livro de
contos enviadas por Simeão Leal. Estes contos foram encomendados em 1954 e até
então não haviam sido publicados. A autora não se interessa mais pela publicação
via Ministério da Educação, o que comunica em carta para Leal e decide romper o
contrato, devolvendo o adiantamento em troca dos originais. Simeão Leal havia
engavetado durante anos estes contos sem dar qualquer justificativa. Nesse ínterim,
Clarice resolveu publicá-los no “Suplemento Cultural”, mas apenas um saiu. O
jornal negava-se a continuar a publicação pois o contrato previa exclusividade. E um
105
jornal do Rio publicara um dos contos. A autora não sabia da publicação carioca, por
isso se desculpa com o jornal paulista e perde o contrato. Leal acaba cedendo e
devolvendo os originais à autora.
Clarice os repassa à revista Senhor. Em fevereiro, Fernando Sabino a
comunica que seu romance fora aceito pela Civilização Brasileira e que seria
lançado no mesmo ano. O quarto romance passa a se chamar A maçã no escuro.
Em março, no lançamento da revista Senhor é publicado o conto A menor
mulher do mundo. Em junho, O crime do professor de matemática; em outubro,
Feliz aniversário; em dezembro, Uma galinha. Clarice não desiste de publicá-los em
livro. Negocia com a Editora Agir. Entretanto, procura, via contrato, um controle
maior de sua produção, mas isso acaba colaborando para que a editora recuse a
publicação.
Enquanto isso, recebe aviso da Civilização Brasileira de que a publicação
de A maçã no escuro foi adiada para o ano seguinte, talvez maio.
A crise no casamento se aprofunda e após um ano a separação é inevitável.
106
De volta para casa
Descasada, em junho de 1959 Clarice regressa ao Brasil com os filhos,
Pedro e Paulo. No Rio hospeda-se na casa de Tania enquanto procura apartamento.
É no bairro do Leme que Clarice decide morar, então se muda para um apartamento
na rua general Ribeiro Costa. Dois meses após a separação, Maury quer se
reconciliar. De Washington manda uma longa carta na qual usa personagens Perto
do coração selvagem para tentar se reaproximar de Clarice. Maury encarna Otávio
para, via personagens Joana e Lídia, chegar à própria Clarice. Tarde demais, Clarice
já havia ido embora e mantém sua decisão.
Agora, mudando de assunto, vou escrever-lhe pedindo perdão.
Perdão com humildade mas sem humilhação. Falo-lhe com a
autoridade de quem sofre, de quem está profundamente só, muito
infeliz, sentindo na alma e na carne a sua falta e dos meninos. Muitas
das coisas que você vai ler provocar-lhe-ão raiva e escárnio.
Sei disso, mas nada posso fazer. Os amigos têm-me aconselhado a
procurar a reconciliação por vias indiretas. Não sou disso, em
primeiro lugar e, em segundo, pouco adiantaria pois você é
demasiado perceptiva para aceitar “táticas”, embora as intenções
sejam boas
170
.
Talvez eu devesse me dirigir a Joana e não a Clarice. Perdão, Joana,
não lhe ter dado o apoio e a compreensão que você tinha direito de
esperar de mim. Você me disse que não era feita para o casamento,
antes de casar. Em vez de tomar isso como uma bofetada, eu deveria
interpretar como um pedido de apoio. Faltei-lhe nisso e em muitas
outras coisas. Mas intuitivamente jamais deixei de acreditar que
coexistissem em você, Clarice, Joana e Lídia. Rejeitei Joana porque o
seu mundo me inquietava, ao invés de dar-lhe a mão. Aceitei, demais,
o papel de Otávio e acabei me convencendo de que “éramos
incapazes de nos libertar pelo amor”. Fui incapaz de desfazer a
apreensão de Joana de “se ligar a um homem sem lhe permitir que a
aprisione”. Não soube livrá-la da asfixiante certeza de que um
___________________________________________________________________
170 Apud GOTLIB, Nádia Battella. Clarice: uma vida que se conta. São Paulo: Ática, 1995, p. 317.
107
homem a tomasse nos braços, ela não sentiria através dos noivos
nenhuma doçura muito doce; seria ao contrário, como suco ácido de
limão” e que “seria madeira seca perto do fogo, torcendo-se prestes
a estalar”(estou traduzindo do francês)
171
.
Um amor tão forte que ela só podia esgotar a paixão através do ódio.
(...) Não estava maduro para entender que, em Joana ou em Clarice,
“o ódio pode transformar-se em amor”, não sendo mais do que “uma
procura de amor”. Não soube liberá-la do “medo de não amar”.
Talvez, como Otávio, eu não tivesse amado “como uma mulher que se
abandona” e tivesse necessidade de que ela fosse “fria e segura”.
Acabei dizendo, “como na infância, quase vitorioso: não tenho
culpa”.
(...) Nunca cheguei a compreender a intensidade de um ciúme, sempre
negando e profundamente reprimido por Joana e Clarice, que fizesse
com que detestassem Otávio e Maury.
(...) Lídia, ao contrário, e que também é uma faceta de Clarice, “não
tem medo do prazer e o aceita sem remorso” (página 173). Perdoe-
me, meu benzinho, de não ter sabido, em dezesseis anos de
casamento, realizar a reconciliação de ambas. Não ter sabido
convencer Joana de que ela e Lídia eram, e são, a mesma pessoa em
Clarice. Joana não precisava invejar Lídia nem você precisava
invejar as famosas “mulheres doces” que se interpuseram entre nós,
nesses dezesseis anos, e de quem você sentia ciúme, inconfessado e
reprimido, que explodia em raiva
172
.
Com essas premissas, não seria de estranhar que Joana visse o
casamento como um fim, como a morte (páginas 182 a 183). Não
seria de estranhar que Joana quisesse ter um filho de Otávio, para
depois abandonar o marido, devolvendo este a Lídia. Perfeitamente
lógico que Clarice, cumprindo mais ou menos o destino de Joana,
devolvesse a “beleza” do Maury ao mundo, às “mulheres doces e
meigas”. Poderia continuar citando mas teria que copiar inteiro esse
grande livro, profundo documento e depoimento de uma alma de
mulher adolescente de uma grande artista. Desculpe-me, meu bem,
invadir dessa forma e possivelmente com enormes distorções, uma
seara que você guarda tão “pudorosamente” (existe a palavra?). Não
posso conformar-me, porém. Sem tornar, fora de brincadeira,
literalmente a analogia, não posso conformar-me com o fato de você
estar palmilhando, de certa forma, na vida real, o destino de Joana.
Com toda a sinceridade, sem falar nos filhos que, por força das
circunstâncias, acabarão gradativamente “perdendo o pai”,
reduzindo este a um mero financiador de sua vida e estudos. Com
toda a sinceridade, o propósito desta carta é dizer-lhe que, sofrendo
_____________________________________________________________________________________________________
171 Ibidem , p.318.
172 Ibidem , p.319.
108
eu ou não, voltando você para mim ou não, minha parcela nesse
acontecimento é muito, muito grande. Pelo amor de Deus, não
interprete esta carta como acusação. Sei que minha imaturidade,
minha distração, minha falta de apoio, foram um dos pólos da
equação. Eu não estava preparado, por circunstâncias bem
conhecidas da minha infância, para dar-lhe mão forte, para ajudá-la
a resolver o conflito que você tão eloqüentemente refletiu no primeiro
livro
173
.
De acordo com Gotlib, Clarice se sente muito só, perde alguns amigos e
evita aqueles relacionados ao ex-marido. A respeito da separação, fez poucos
comentários. Contudo, no Jornal da Tarde, escreveu: Se não se tem dinheiro para
comer, de nada adiantam o amor e a amizade. Por outro lado, se a gente tem
dinheiro e não tem os outros ingredientes, a vida é vazia, uma fossa constante
174
.
Talvez essas fossem as condições com as quais contava para manter um
relacionamento amoroso.
Maury enviava mensalmente US$ 500 à família, insuficiente para cobrir as
despesas domésticas, ainda que somados ao pequeno rendimento provindo de
direitos autorais. Para complementar a renda Clarice volta-se para o trabalho
jornalístico.
Mantém publicações na revista Senhor. Começa, em agosto, a fazer uma
coluna no jornal carioca Correio da Manhã, a “Correio feminino - Feira de
utilidades”, sob o pseudônimo de Helen Palmer. No ano seguinte (1960), abre outra
frente de trabalho, no jornal Diário da Noite, escrevendo uma coluna também
feminina, a “Só para mulheres”, em que seria uma espécie de ghost-writer da atriz
Ilka Soares, considerada a atriz mais bonita do cinema brasileiro. A imagem
_____________________________________________________________________________________________________
173 Ibidem , pp. 319-0.
174 Ibidem , p.314.
109
de Ilka estava associada à feminilidade e daí os assuntos específicos. Muitas vezes
Clarice e Ilka se encontraram para conversar sobre receitas, moda e beleza,
comportamento feminino.
Em março de 1960 é publicado o conto A imitação da rosa e, em abril, O
búfalo, na Senhor. Em julho, Clarice consegue pôr fim às angústias relacionadas à
falta de publicação. É com a Editora Francisco Alves que assina contrato e sai o
livro de contos Laços de família.
A constância na mídia e o lançamento do livro devolvem a Clarice seu
lugar nas livrarias e entre os leitores.
Termina a longa espera. A maçã no escuro vai sair pela Francisco Alves,
em 1961, juntamente com a edição de Laços de família.
Clarice inicia o ano de 1961 com a publicação do conto A legião
estrangeira, na revista Senhor. Entretanto, em fevereiro chega ao fim a coluna
“Correio feminino - Feira de utilidades” do Correio da Manhã e, em março, o
mesmo acontece com a página de Ilka Soares, pois o jornal Diário da Noite é
fechado.
Depois de muitas tentativas de publicação sai o romance A maçã no escuro.
A sessão de autógrafos foi em Copacabana, no Rio, na abertura do II Festival do
Escritor Brasileiro. Entre o público leitor estava o compositor Tom Jobim.
O livro de contos Laços de família, muito bem acolhido pelo público e pela
crítica, recebe o Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro.
Em 1962, a revista Senhor passa por mudanças editoriais e Clarice ganha
novo espaço. Passa a assinar uma coluna em que poderia não só publicar seus contos
mas também crônicas e fragmentos.
110
Durante as férias escolares de julho, Clarice e os filhos viajam à Polônia
para visitar Maury, então embaixador do Brasil naquele país. Em crônica de 1971,
conta o que viveu neste lugar:
Na Polônia eu estava a um passo da Rússia. Foi-me oferecida uma
viagem à Rússia, se eu quisesse. Mas não quis. Naquela terra eu
literalmente nunca pisei: fui carregada no colo. Mas lembro-me de
uma noite, na Polônia, na casa de um dos secretários da Embaixada,
em que fui sozinha ao terraço: uma grande floresta negra apontava-
me emocionalmente o caminho da Ucrânia. Senti o apelo. A Rússia
me tinha também. Mas eu pertenço ao Brasil
175
.
Clarice teve a oportunidade de tocar a terra onde nasceu, contudo escolheu
manter-se apenas em seu colo.
De volta ao Brasil, Clarice ganha o Prêmio Carmem Dolores: O prêmio
Carmem Dolores Barbosa destinado ao melhor livro do ano publicado em 1961 foi
dado, por unanimidade, ao romance A maçã no escuro, de Clarice Lispector, edição
da Livraria Francisco Alves
176
. O prêmio, no valor de vinte cruzeiros, lhe é
entregue no dia 19 de setembro de 1962 por Jânio Quadros, presidente da República
que havia renunciado seu mandato no ano anterior. Ela comenta o evento de modo
depreciativo: Aí eu fui lá e recebi exatamente da mão do Jânio Quadros, depois de
um discurso enorme dele. Recebi um envelope e dentro tinha vinte cruzeiros... (...)
Eu fiquei boba
177
.
Clarice ganha reconhecimento, seus livros são traduzidos, reeditados e
___________________________________________________________________
175 LISPECTOR, Clarice (1971) “Falando em viagens”. In A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p. 353.
176 Apud GOTLIB, Nádia Battella. Clarice: uma vida que se conta. São Paulo: Ática, 1995, p. 341.
177 Ibidem, pp. 341-2.
111
premiados. Em 1963 é convidada a dar uma conferência no XI Congresso Bienal do
Instituto Internacional de Literatura Ibero-Americana, em Austin (Texas), nos
Estados Unidos. Aceita o convite principalmente pelo fato de que seria remunerada
e não teria gastos com a viagem, pagariam a passagem e hospedagem. Neste
congresso conhece Gregory Rabassa, americano, que viria a traduzir A maçã no
escuro.
Em 1963 é oficializada a separação e ocorre a divisão de bens do casal
Gurgel Valente. Clarice consegue comprar um apartamento, ainda em construção,
no Leme. A escritora vive em um período de muitas dificuldades, mesmo
alcançando sucesso profissional. É com espanto que recebe a notícia de que seu ex-
marido, Maury, casou-se novamente, com Isabel, filha do diplomata Vasco Leitão
da Cunha. De acordo com Alceu Amoroso Lima, a separação foi uma das grandes
dores da vida da amiga escritora.
Clarice investe na literatura. Seu primeiro romance, Perto do coração
selvagem, é reeditado. Em pouco tempo um novo livro é concluído, o quinto,
batizado de A paixão segundo G.H. É entregue a Fernando Sabino e Rubem Braga,
proprietários da Editora do Autor.
A paixão segundo G.H. é publicado no primeiro semestre de 1964.
É curioso, porque eu estava na pior das situações, tanto sentimental,
quanto familiar, tudo complicado. E escrevi “A Paixão...” que não
tem nada a ver com isso. E não reflete a minha vida porque eu não
escrevo como catarse, para desabafar, não. Eu nunca desabafei num
livro. Pra isso servem os amigos. Eu quero a coisa em si
178
.
A Editora do Autor também lança o livro de contos A legião estrangeira. E
__________________________________________________________________
178 Apud SANT’ANNA, Affonso Romano de; COLASANTI, Marina (1976). “Dezembro sem Clarice”. Escrita. São Paulo,
n. 27, 1978 , p.23.
112
por José Álvaro, Editor são reeditados O lustre e A cidade sitiada.
Enquanto escrevia o livro A paixão segundo G.H., conforme o depoimento
acima, (...) estava na pior das situações (...), além de ter sido dispensada da revista
Senhor, estava preocupada com a educação e com o bem-estar dos filhos. De acordo
com Teresa Cristina Ferreira, Clarice, em entrevista ao Diário de Notícias, disse que
cada um dos filhos representava uma parte sua. Pedro, com seu jeito indagador e
reservado, seria sua parte mais triste. Paulinho seria sua parte alegre e
comunicativa, tão levado como ela foi na infância
179
. A parte mais triste a fazia
mergulhar ainda mais no desconhecido, Pedro estava doente. Mais tarde, em carta a
Paulo, desabafa: Hoje Pedro foi almoçar com teu pai, felizmente. Eu estava ficando
literalmente doente com o Pedro nesses últimos dias, pois ele agora fica em pé ou
me seguindo e dizendo literalmente sem parar: mãe, mãe, mãe
180
.
Em maio de 1965 Clarice muda-se para o apartamento que comprara em 63
na rua Gustavo Sampaio, no Leme.
A partir do quinto romance a produção literária de Clarice Lispector se
torna intensa. O espaço clariceano vai se alargando, há maior divulgação da obra e
importantes críticos começam a se debruçar sobre o universo ficcional e filosófico
da escritora: Benedito Nunes publica um ensaio, no jornal O Estado de S. Paulo,
chamado “A náusea em Clarice Lispector”; José Américo Motta Pesanha, “Itinerário
da paixão” na revista Cadernos Brasileiros. Pela primeira vez os textos de Clarice
são adaptados e encenados. No ano seguinte, Benedito Nunes publica O mundo de
_____________________________________________________________________________________________________
179 FERREIRA, Teresa Cristina Montero. Eu sou uma pergunta: uma biografia de Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Rocco,
1999, p. 215.
180 Ibidem , p. 249.
113
Clarice Lispector, primeiro livro dedicado à obra dela.
Em meados de setembro de 1965 Clarice sofre um acidente. Em crônica de
21 de dezembro de 1968, conta:
(...) houve o incêndio no meu quarto que me atingiu tão gravemente
que fiquei alguns dias entre a vida e a morte. Meu quarto foi
inteiramente queimado: o estuque das paredes e do teto caiu, os
móveis foram reduzidos a pó, e os livros também.
Não tento sequer explicar o que aconteceu: tudo se queimou, mas o
missal ficou intacto, apenas com um leve chamuscado na capa
181
.
Na noite de 14 de setembro de 1965, Clarice adormece com um cigarro
aceso. Do outro lado da rua, uma vizinha vira a fumaça que saía do apartamento e
imediatamente procurou ajuda. Clarice acorda e, desesperada, tenta apagar o fogo
com as mãos, queria salvar alguns papéis do escritório mas não consegue. O quarto
ficou completamente destruído e, pior, a escritora ficou gravemente queimada,
sobretudo sua mão direita. As lesões em sua mão foram de terceiro grau. A
indicação médica foi de amputação, mas graças à intervenção de uma das irmãs,
que solicitou que esperassem mais um dia, fizeram enxerto de tecido e a salvaram.
Foram três dias sob o risco de morte e quase três meses hospitalizada. Nos
primeiros dias, o médico responsável proibiu visitas porque a situação era bastante
grave. Sobre este período, a escritora relata a visita de uma desconhecida: Teresa,
quando você me visitou no hospital, viu-me toda enfaixada e imobilizada. Hoje me
veria mais imobilizada ainda. Hoje sou a paralítica muda. E se tento falar, sai um
rugido de tristeza. Então não é cólera apenas? Não, é tristeza também
182
.
___________________________________________________________________
181LISPECTOR, Clarice (1968). “Meu Natal”. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p.159.
182 LISPECTOR, Clarice (1967). Dies irae”. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco,1999, p.38.
114
A recuperação de Clarice foi bastante dolorosa. Teve queimaduras em
outras partes do corpo além da mão, sem contar os dolorosos procedimentos para a
retirada de tecido usados nos enxertos. Quatro anos após o acidente, confessa:
Quando tiraram os pontos de minha mão operada, por entre os dedos, gritei. Dei
gritos de dor, e de cólera, pois a dor parece uma ofensa à nossa integridade física.
Mas não fui tola. Aproveitei e dei gritos pelo passado e pelo presente. Até pelo
futuro gritei, meu Deus
183
.
Mesmo depois de receber alta precisava de cuidados especiais e contratou
enfermeira. A própria Clarice entrevistou algumas candidatas e decidiu-se por Siléa
Marchi. Mesmo depois da recuperação, a moça continuou trabalhando para a
escritora. Clarice fez fisioterapia na Associação Brasileira Beneficente de
Recuperação, onde encontrou seu querido amigo Lúcio Cardoso, que se tratava de
seqüelas deixadas pelos sucessivos acidentes cardiovasculares. Seus amigos lhe dão
todo o apoio. Rubem Braga, por exemplo, a visitava com freqüência e a levava para
passear de carro.
Clarice é submetida a várias cirurgias plásticas, todas feitas por Ivo
Pitanguy. Entretanto, ainda ficam profundas cicatrizes. Olga Borelli, amiga de
Clarice, descreve como ficaram suas mãos:
A mão esquerda era um milagre de elegância. Muito móvel,
evolucionava no ar ou contornava os objetos com prazer. No
trabalho, ágil e decidida, parecia procurar suprir as deficiências da
outra, dura, com gestos mal controlados, de dedos queimados,
retorcidos, com profundas cicatrizes
184
.
__________________________________________________________________
183 LISPECTOR, Clarice (1969). “A revolta”. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco,1999, pp. 193-4.
184 BORELLI, Olga. Clarice Lispector: esboço para um possível retrato. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981, p. 12.
115
Para a escritora foi muito difícil conviver com as marcas e com as
dificuldades motoras. Clarice era vaidosa, preocupava-se em estar bem vestida e
maquiada, valorizava sua aparência, e a elegância era uma exigência. Com as
queimaduras passou à introspecção e, por sua vez, a um recolhimento maior.
Ainda que seu estado emocional estivesse alterado, sua vida profissional
mantinha-se em movimento. A José Álvaro, Editor lhe propõe a publicação de seu
livro infantil O mistério do coelho pensante. Segundo Clarice, quando este editor lhe
perguntou se não gostaria de fazer um livro infantil, respondeu negativamente. O
editor insistiu: Você não tem nenhuma estória pronta, nenhum livro? Clarice lhe
respondeu: Não. De repente, lembrou da estória do coelho, que era só traduzir para o
português. Mas, que estória é essa?
Bem, primeiro foi meu filho Paulo, em Washington, quando eu estava
escrevendo “A Maçã no Escuro”. Ele chegou e disse para mim, em
inglês, escrever uma história para ele. Eu respondi que agora não. Só
depois. Ele insistiu: “Não, já!” Então tirei o papel da máquina e
escrevi a estória do coelho pensante que era real, que ele conhecia.
Escrevi em inglês para a empregada poder ler para ele (...) aí a
estória ficou lá
185
.
Em 1967 sai seu primeiro livro para crianças. É convidada a escrever uma
coluna semanal para o Jornal do Brasil e, precisando de dinheiro, aceita. Essas
publicações contribuem para ampliar a relação com os leitores, as crônicas abrem
espaço para um novo público. O contato se modifica, torna-se mais vivo e presente,
ao responder cartas, fazer comentários mais diretos com determinado leitor, relatar
tanto conversas na rua como por telefone. Nasce deste trabalho A descoberta do
___________________________________________________________________
185 Apud SANT’ANNA, Affonso Romano de; COLASANTI, Marina (1976). “Dezembro sem Clarice”. Escrita. São Paulo,
n. 27, 1978 , p.22.
116
mundo, livro de crônicas.
No final desse ano, arranja nova atividade. Integra o Conselho Consultivo
Nacional do Livro, órgão do Ministério da Educação e Cultura, em que contribuía
para selecionar as obras a serem publicadas.
Em março de 1968 Clarice recebe o prêmio de melhor livro de história
infantil do ano anterior com O mistério do coelho pensante, promovido pela Ordem
Calunga.
A revista Manchete a contrata para entrevistar pessoas de destaque no
cenário cultural e artístico. A Diálogos possíveis com Clarice Lispector abordava
assuntos variados de pessoas de áreas diversas. Entrevistou escritores, músicos,
jornalistas, economistas, humoristas, médicos, atores e atrizes, entre eles Pablo
Neruda, Nélson Rodrigues, Millôr Fernandes, Benedito Nunes, Chico Buarque, Tom
Jobim, Tônia Carrero, Oscar Niemeyer, Jacob David Azulay e muitos outros.
Além de escrever e de cuidar da família, se engaja politicamente. Em 22 de
junho de 1968 a escritora, com um grupo de mais de trezentos intelectuais e artistas,
participa de uma passeata contra a ditadura e, quatro dias depois, volta às ruas na
“Passeata dos Cem Mil”.
Em crônica de 24 de setembro de 1968, Clarice escreve:
Não, não quero mais gostar de ninguém porque dói. Não suporto mais
nenhuma morte de ninguém que me é caro.
Meu mundo é feito de pessoas que são minhas e eu não posso perdê-
las sem me perder
186
.
Nesses dias haviam morrido seu querido amigo Lúcio Cardoso e também
_____________________________________________________________________________________________________
186 LISPECTOR, Clarice (1968). “As dores da sobrevivência: Sérgio Porto”. In A descoberta do mundo. Rio de Janeiro,:
Rocco,1999, p.140.
117
Sérgio Porto (nome verdadeiro de Stanislaw Ponte Preta).
Sem pudor, com lágrimas nos olhos, choro a morte de Sérgio Porto.
Ele criava alegria, ele se comunicava com o mundo e fazia esta terra
infernal ficar mais suave: ele nos fazia sorrir e rir. Não pude deixar de
pensar: ó Deus, por que não eu em lugar dele? (...)
Sérgio Porto, perdoe eu não ter dito jamais que adorava o que você
escrevia. Perdoe eu não ter procurado você para uma conversa entre
amigos. Mas uma conversa mesmo: dessas em que as almas são
expostas. Porque você tinha lágrimas também. Atrás do riso. Perdoe
eu ter sobrevivido
187
.
Quanto a Lúcio, naqueles dias, não escreveu nada dirigido a ele.
Entretanto, mais tarde diz:
Lúcio, estou com saudade de você, corcel de fogo que você era, se
limite para o seu galope.
(...)
Entrei no quarto e vi o Cristo morto. Seu rosto estava esverdeado
como um personagem de El Greco. Havia a Beleza em seus traços.
Antes, mudo, ele pelo menos me ouvia. E agora não ouviria nem que
eu gritasse que ele fora a pessoa mais importante da minha vida
durante a minha adolescência.
Naquela época ele me ensinava como se conhecem as pessoas atrás
das máscaras, ensinava o melhor modo de olhar a lua.
(...)
Não fui ao velório, nem ao enterro, nem à missa porque havia
dentro de mim silêncio demais. Naqueles dias eu estava só, não podia
ver gente: eu vira a morte
188
.
As dificuldades emocionais levaram Clarice a procurar ajuda. Iniciou
aná lise com o psicanalista Jacob David Azulay. Em crônica de 1971, relata a ligação
amorosa entre uma rosa cor-de-rosa e o analista:
O curioso é que uma paciente sua que freqüentava o consultório
perguntou-lhe sem mais nem menos: “E aquela rosa?” Ele nem
perguntou qual, sabia da que a paciente falava. Essa rosa, que viveu
___________________________________________________________________
187 Ibidem.
188 LISPECTOR, Clarice (1969). “Lúcio Cardoso”. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco,1999, p.166.
118
mais longamente por amor, era lembrada porque a paciente, tendo
visto o modo como o médico olhava a flor, transmitindo-lhe em ondas
a própria energia vital, intuíra cegamente que algo se passava entre
ele e a rosa. Esta e deu-me vontade de chamá-la de “jóia da vida”
tinha tanto instinto de natureza que o médico e ela haviam podido se
viverem um ao outro profundamente
189
.
Apesar do sofrimento Clarice pôde ser a rosa. A rosa não murchou, tornou-
se jóia da vida. Como a flor, estava viva e isso se refletiu em seu trabalho: sua obra
ganha espaço no campo universitário. Viaja a Belo Horizonte, pois havia sido
convidada para fazer palestras na Universidade Federal de Minas Gerais e na
Livraria do Estudante. Seu livro A paixão segundo G.H. é reeditado, desta vez pela
Editora Sabiá, de propriedade de Rubem Braga e Fernando Sabino, que também
publica o seu segundo livro infantil, A mulher que matou os peixes.
Este livro para crianças, como o Mistério do coelho pensante, também
surgiu a partir de uma situação vivida com um dos filhos. Pedro encarregou a mãe
de cuidar de seus peixes enquanto viajava. A incumbência era apenas alimentar os
peixinhos vermelhos; no entanto, a encarregada esquece deles durante três dias e
eles não resistem à falta da ração. Clarice sentiu-se muito culpada com seu descuido,
mas não escreveu história nenhuma imediatamente após o episódio. Diante de
indagações sobre quando escreveria novo livro infantil, chegou à conclusão de que
se escrevesse várias histórias, iniciando com a dos peixinhos vermelhos, poderia
livrar-se da sensação de culpa.
O lançamento do livro estava marcado para 17 de dezembro mas foi
cancelado por causa da promulgação, no dia 13, do AI-5 (Ato Institucional número
__________________________________________________________________
189 LISPECTOR, Clarice (1971). “ Bichos (conclusão)”. In A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco,1999, pp.336-7.
119
5) e conseqüente fechamento do Congresso Nacional.
Com a publicação desse segundo livro infantil abre-se a possibilidade de
novos contatos com os leitores. Recebia cartas de crianças culpando ou inocentando
a personagem pelos assassinatos. Em entrevista dos anos 70, Clarice diz: Hoje eu
fui entrevistada por quatro menininhas de 11 anos, com fotografias e perguntas &
perguntas & perguntas & perguntas, por causa da estória da mulher que matou os
peixes. E se era verdade que eu gostava de bicho. Eu disse, é claro. Também sou
bicho
190
.
A produção não pára, embora pouco fale do que está escrevendo. Seu filho
Paulo parte para os Estados Unidos em intercâmbio cultural e Clarice lhe escreve.
Além de discorrer sobre seus sentimentos e preocupações do cotidiano, diz:
Hoje, dia de sua partida, domingo, ocupei-me o tempo todo para
disfarçar a saudade. Acabei de copiar o resto do livro, e certamente
amanhã mesmo telefono para a Editora Sabiá pedindo que mandem
buscar. Se o livro é bom? Eu acho ele detestável e malfeito, mas as
pessoas que o leram acham-no bom
191
.
O livro que copiara recebeu o título de Uma aprendizagem ou O livro dos
prazeres. Clarice, como contou ao filho, o entregou à Editora Sabiá, que reedita
Perto do coração selvagem simultaneamente com a publicação de seu novo
romance.
Mantém as crônicas no Jornal do Brasil e as entrevistas para a revista
Manchete. A fim de entrevistar o escritor Jorge Amado, o escultor Mario Cravo e o
tapeceiro Genaro, viaja à Bahia. Conta, em carta a Paulo:
___________________________________________________________________
190 Apud SANT’ANNA, Affonso Romano de; COLASANTI, Marina (1976). “Dezembro sem Clarice”. Escrita. São Paulo,
n. 27, 1978 , p.22.
191 LISPECTOR, Clarice. Correspondências. Rio de Janeiro: Rocco, 2002, p.261.
120
(...) adorei Salvador. Foram três dias e meio de sonho e agora só
penso em voltar para lá e quem sabe, passar um mês trabalhando lá
mesmo. Eu fui a convite do governador da Bahia que pôs à minha
disposição um carro e um chofer, de modo que pude ver e sentir mil
vezes mais do que se passasse tempo e procurando ruas. Nunca comi
tanto azeite de dendê na minha vida
192
.
Clarice vive a distância de Paulo, de quem a saudade é intensa, e a doença
de Pedro. O filho mais velho está cada vez mais afetado. A internação é inevitável
e ele fica um mês hospitalizado.
Ainda que a situação familiar fosse delicada, Clarice investe em seu
trabalho. Seu livro infantil A mulher que matou os peixes foi adotado em várias
escolas, o que significa mais vendas e, portanto, um pouco mais de dinheiro. Além
disso, ocupa-se em reunir anotações para compor nova publicação. Por outro lado,
não esquece os amigos, em carta enviada a Paulo (maio de 1969) come nta que irá
prestigiar a posse de seu amigo João Cabral de Melo Neto na Academia Brasileira
de Letras: Hoje fui ao cabeleireiro e me enfeitei toda porque de noite vou à
Academia Brasileira de Letras assistir à posse de João Cabral de Melo Neto
193
. E
brinca: O pior, meu caro, são os discursos que terei de ouvir: vai ser o escândalo do
século se eu adormecer na frente de todos
194
.
A década de 70, depois de ter reunido antigas anotações, se inicia com a
organização delas. Esses apontamentos darão origem ao romance denominado,
inicialmente, Atrás do pensamento: monólogo com a vida.
Neste ano, 1970, Clarice faz uma nova amiga, com quem vai conviver até o
_____________________________________________________________________________________________________
192 LISPECTOR, Clarice. Correspondências. Rio de Janeiro: Rocco, 2002, pp.271-2.
193 Ibidem, p.270.
194 Ibidem.
121
seu último momento de vida: Olga Borelli.
Borelli relata que a primeira vez que viu Clarice foi quando assistia a um
programa de televisão. Na época estava lendo A paixão segundo G. H. e decidiu
conhecê-la pessoalmente. Borelli trabalhava como voluntária em um abrigo para
menores abandonados e, pretexto ou não, procura Clarice para autografar os livros
para as crianças da fundação. Assim descobriu o telefone da autora, ligou e marcou
um encontro. Borelli foi até a casa de Clarice com o objetivo de fazer o convite, que
de fato fez, mas a conversa se encaminhou para sua vida e de Olga. Clarice foi à
fundação autografar seus livros e, no final, pediu que Olga a acompanhasse até em
casa. Dois dias depois, 11 de dezembro, convida a nova amiga para um encontro e,
neste, entrega a ela um pedido por escrito:
Eu achei, sim, uma nova amiga. Mas você sai perdendo. Sou uma
pessoa insegura, indecisa, sem rumo na vida, sem leme para me
guiar: na verdade não sei o que fazer comigo. Sou uma pessoa muito
medrosa. Tenho problemas reais gravíssimos que depois lhe contarei.
E outros problemas, esses de personalidade. Você me quer como
amiga mesmo assim? Se quer, não me diga que não lhe avisei. Não
tenho qualidades, só tenho fragilidades. Mas às vezes (...) tenho
esperança. A passagem da vida para a morte me assusta: é igual
como passar do ódio, que tem um objetivo e é limitado, para o amor
que é ilimitado. Quando eu morrer (modo de dizer) espero que você
esteja perto. Você me pareceu uma pessoa de enorme sensibilidade,
mas forte.
Você foi o meu melhor presente de aniversário.
Porque no dia 10, quinta-feira, era meu aniversário e ganhei de você
o Menino Jesus que parece uma criança alegre brincando no seu
berço tosco. Apesar de, sem você saber, ter me dado um presente de
aniversário, continua achando que o meu presente de aniversário foi
você mesma aparecer, numa hora tão difícil, de grande solidão
195
.
Após este pedido, tornaram-se inseparáveis.
__________________________________________________________________
195 Apud GOTLIB, Nádia Battella. Clarice: uma vida que se conta. São Paulo: Ática, 1995, p. 396.
122
Mesmo trabalhando em seu novo romance, Clarice prepara-se para
publicar um outro livro de contos, com textos já publicados e inéditos que
relembram sua infância. Em 1971 é lançado Felicidade clandestina, pela Editora
Sabiá.
O romance Atrás do pensamento: monólogo com a vida, iniciado em 70 e
concluído em 71, causou grande inquietação em Clarice, que não estava satisfeita
com o que produzira, tanto que passou 1972 debruçada sobre ele. Com a
colaboração de Olga, à medida que revê a evolução do romance, faz alterações, o
chama de Objeto gritante e, depois, Água viva.
Depois de revisões e sugestões de amigos, Água viva é publicado em agosto
de 1973. A Editora Artenova lança também uma antologia de contos. O quinto livro
de contos é A imitação da rosa.
Clarice e Olga Borelli viajam para a Europa, onde permanecem cerca um
mês. Visitam Londres, Paris, Roma, Zurique, Lausanne e, até mesmo, Berna. Borelli
conta que era comum Clarice programar viagens; entretanto, eram imaginárias. Ela
sonhava com uma determinada viagem e conseqüentemente os lugares se
apresentavam e a povoavam de tal modo como se tivesse feito a viagem, então
desistia.
Ligava para as agências de turismo, marcava entrevistas, idealizava
roteiros e devaneava dias e dias sobre os lugares que visitaria:
contemplava paisagens, ouvia o zumbido dos insetos nas tardes
ensolaradas do verão da Itália; ou ficava em êxtase, vendo a neve
cair e transformar com tons violáceos o que antes tremulava no
amarelo-ouro do outono europeu. Via elevar-se a fumaça das
chaminés e ouvia a chuva cair pesadamente nos telhados e rolar nas
pedras da rua. Caminhava delicadamente pelos floridos jardins de
Rosegarten, na Suíça, a caminho do museu com obras de Paul Klee...
123
Tudo era tão real que, de repente, nada restava para ser visto ou
vivido; sobrevinha-lhe uma inevitável preguiça ante a perspectiva de
pôr seus sonhos em prática. Exausta, cancelava a viagem
196
.
Alberto Dines, amigo e responsável pela entrada de Clarice no Jornal do
Brasil, é demitido no final de 1973. Em janeiro de 1974, Clarice recebe uma
correspondência na qual é oficialmente dispensada de sua função e junto estavam as
crônicas que seriam publicadas no jornal. A escritora contava com os pagamentos e
precisou encontrar uma alternativa para complementar sua renda. A saída foi
trabalhar como tradutora. A Ediouro encomendou a tradução de O retrato de
Dorian Gray, de Oscar Wilde; a Artenova também a contratou, solicitando várias
traduções, entre elas A receita natural para ser bonita, de Mary Ann Crenshaw.
Pela Artenova, Clarice lançou o sexto livro de contos Onde estivestes de
noite. Recebeu um poema de Carlos Drummond de Andrade (1974):
Querida Clarice:
Que impressão me deixou o seu livro!
Tentei exprimi-la nestas palavras:
Onde estivestes de noite
que de manhã regressais
com o ultramundo nas veias,
entre flores abissais?
Estivemos no mais longe
que a letra pode alcançar
lendo o livro de Clarice,
mistério e chave do ar
197
.
A mesma editora lhe encomenda novo livro, mas agora com tema
determinado. O volume deveria tratar de sexo. Clarice aceita e escreve 13 contos,
__________________________________________________________________
196 BORELLI, Olga. Clarice Lispector: esboço para um possível retrato. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981, p. 42.
197 LISPECTOR, Clarice. Correspondências. Rio de Janeiro: Rocco, 2002, p.287.
124
resultando no título A via crucis do corpo.
Com exceção desse último livro de contos, nos outros era recorrente a
presença de animais. Em crônica de 1971, escreve: Não ter nascido bicho parece ser
uma de minhas secretas nostalgias. Eles às vezes clamam do longe de muitas
gerações e eu não posso responder senão ficando desassossegada
198
. E em sua vida
os animais também estiveram presentes. Além do cachorro napolitano chamado
Dilermando que teve quando viveu na Europa; nos Estados Unidos, Clarice teve o
Jack; no Rio, seu companheiro era Ulisses. Borelli descreve como era seu cãozinho
carioca: Ulisses, mistura de algumas raças com vira-lata, era seu grande amigo.
Havia entre eles uma autêntica simpatia, embora já a tivesse mordido duas vezes no
lábio superior. Lambia-a quando acariciado e mordia-a quando obrigado a uma
aproximação maior
199
.
Provavelmente, de acordo com a descrição de Borelli, Ulisses foi forçado a
uma aproximação maior e isto resultou em um acidente: Ulisses mordeu Clarice no
rosto, o que exigiu uma cirurgia plástica. O procedimento foi realizado por Ivo
Pitanguy, cirurgião plástico que já cuidara das queimaduras decorrentes do incêndio.
Naquele ano de 1971, seu filho mais moço decide morar sozinho, muda-se
para endereço próximo para continuar fazendo as refeições na casa da mãe. E Pedro
mudara-se para Montevidéu, para viver com seu pai, onde era embaixador do Brasil.
Em casa, Clarice convive com Siléa, que foi sua enfermeira, Geni, a cozinheira, e
Ulisses.
Clarice havia recebido alta da análise e J.D.Azulay, seu psicanalista,
____________________________________________________________________________________________________
198 LISPECTOR, Clarice (1971). “Bichos (conclusão)”. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco,1999, p.337.
199 BORELLI, Olga. Clarice Lispector: esboço para um possível retrato. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981, p.55.
125
tornara-se amigo. Deste modo, aproxima-se de Andréa Azulay, menina de 9 anos,
que aspira à carreira de escritora, com quem começa a trocar cartas. Em uma delas,
Andréa lhe pergunta se podem se conhecer; Clarice responde:
Quero lhe dizer, minha querida coleguinha, que a mais bela música
do mundo é o silêncio interestrelar. E me desculpe: não posso ficar
sozinha contigo porque senão nasce uma estrela no ar.
Você precisa saber que já é uma escritora. Mas nem ligue, faça de
conta que nem é. Eu lhe desejo que você seja conhecida e admirada
só por um grupo delicado embora grande de pessoas espalhadas pelo
mundo. Desejo-lhe que nunca atinja a cruel popularidade porque esta
é ruim e invade a intimidade sagrada do coração da gente. Escreva
sobre ovo que dá certo. Dá certo também escrever sobre estrela. E
sobre a quentura que os bichos dão à gente. Cerque-se da proteção
divina e humana, tenha sempre pai e mãe escreva o que quiser sem
ligar para ninguém. Você me entendeu?
200
.
Elas estabelecem uma relação muito próxima, o encontro se dá através de
cartas. Nessas a escritora é muito carinhosa e o tratamento é quase filial, a ponto de
dizê-la filha espiritual tanto que guarda em sua carteira, junto com as fotografias dos
filhos, a foto de Andréa. Em cada carta dá conselhos e sugestões à jovem escritora,
sem contar que a presenteia a seu modo. Por exemplo, na carta de 27 de junho:
(...) dou-lhe de presente este objeto. Espero que você goste dele. Seu
nome é móbile. Mas eu lhe dei sete nomes. O primeiro: la donna é
móbile qual piuma ao vento (a mulher é volúvel como pluma ao
vento). O segundo nome é: vertigem. O terceiro é: ano 2000. O quarto
é: sussurros delicadíssimos. O quinto é: suspiros. O sexto é: pássaro
azul. O sétimo é: Andréa de Azulay
201
.
Em outra, de 28 de junho de 1974: Vou lhe dar de presente uma coisa. É
assim: borboleta é pétala que voa
202
. Clarice também é pétala que voa. Vai a
_____________________________________________________________________________________________________
200 LISPECTOR, Clarice. Correspondências. Rio de Janeiro: Rocco, 2002, p. 290.
201 Ibidem.
202 Ibidem , p. 291.
126
Brasília fazer conferência e utiliza o mesmo texto proferido no Texas. Em seguida
viaja para Cali, na Colômbia, como convidada do IV Congresso da Nova Narrativa
Hispano-Americana.
Ainda em 1974, a José Olympio Editora publica o terceiro livro infantil da
escritora, A vida íntima de Laura. Desta vez, não se trata de um pedido ou episódio
ocorrido em sua vida familiar, mas da intimidade de uma galinha, ave tão estimada
por Clarice, chamada Laura.
Clarice, algumas vezes, na sua juventude optou em deixar seu ambiente
familiar para conseguir escrever. O mesmo aconteceu em 1975. Deixou sua casa e se
hospedou em hotel a fim de ficar sozinha e se entregar à escrita.
Além disso, Clarice estava muito envolvida com traduções. Dedicou longo
tempo a esta antiga atividade. Traduziu para a Nova Fronteira livros policiais de
Agatha Christie e Luzes acesas, de Bella Chagal; para a Imago, A rendeira, de
Pascal Lainé; para a Artenova, A yoga do amor, de Jean Herbert. E durante a década
de 70 trabalhou em adaptações de obras de escritores como Edgar Allan Poe, Júlio
Verne, Walter Scott, Jonathan Swift e Jack London, bem como na peça Hedda
Gabler, de Ibsen.
A escritora sempre surpreende. Desta vez trata-se de sua participação no I
Congresso Mundial de Bruxaria em Bogotá, na Colômbia. Clarice vai acompanhada
de Olga Borelli. Porém, o que mais lhe interessava era o passeio. Aproveitava para
viajar, sobretudo se os anfitriões cuidassem de suas despesas.
Clarice estranha o clima da capital colombiana, talvez pela altitude, sente
dores de cabeça e isto a deixa indisposta.
Havia preparado um texto para sua apresentação que dizia:
127
Eu tenho pouco a dizer sobre magia.
Na verdade eu acho que nosso contacto com o sobrenatural deve ser
feito em silêncio e numa profunda meditação.
A inspiração, em todas as formas de arte, tem um toque de magia
porque a criação é uma coisa absolutamente inexplicável. Ninguém
sabe nada a propósito dela. Não creio que a inspiração venha de fora
para dentro, de forças sobrenaturais. Suponho que ela emerge do
mais profundo “eu” de uma pessoa, do mais profundo inconsciente
individual, coletivo e cósmico
203
.
Em seguida propõe a leitura, em espanhol por uma terceira pessoa, do conto
O ovo e galinha e o considera misterioso e com simbologia secreta. Antes da leitura,
ainda observa: Eu peço a vocês para não ouvirem só com o raciocínio porque, se
vocês tentarem apenas raciocinar, tudo o que vai ser dito escapará ao entendimento
204
. Além do conto, preparou o seguinte texto:
Magia
Para mim só existe mesmo é a magia. Os fenômenos naturais
sobretudo é que são os mais mágicos. Não busco o mágico do
sobrenatural. Mas eu me arrepio toda quando, como aconteceu um
dia destes, eu estava angustiada e solitária e sem futuro quando de
repente sem aviso prévio, ao entardecer do dia, caiu uma chuva que
veio descarregar toda a minha energia elétrica e me acalmar me
fazendo dormir profundamente aliviada. A chuva e eu tivemos um
relacionamento mágico. No dia seguinte li no jornal, com grande
surpresa, que essa chuva que agiu em mim como magia branca,
tivesse funcionado como magia negra com outras pessoas: o jornal
dizia que a chuva fora de granizo, que destelhara casas, que impedira
o vôo de aviões. Considero também mágico o inexplicável sol que
aquece minhas entranhas. Mágico também é termos inventado Deus e
por um milagre termos acertado. Pintei um quadro que uma amiga
me aconselhou a não olhar porque me faria mal. Concordei. Porque
neste quadro que se chama medo eu conseguiria pôr pra fora de mim,
quem sabe se magicamente, todo o medo-pânico de um ser no mundo.
É uma tela pintada de preto tendo mais ou menos ao centro uma
mancha terrivelmente amarelo-escuro e no meio uma nervura
vermelha, preta e amarelo-ouro. Parece uma boca sem dentes
tentando gritar e não conseguindo. Perto dessa massa amarela, em
___________________________________________________________________
203 Apud GOTLIB, Nádia Battella. Clarice: uma vida que se conta. São Paulo: Ática, 1995, pp. 428-9.
204 Ibidem , p. 429.
128
cima do preto, duas manchas totalmente brancas que são talvez a
promessa de um alívio. Faz mal olhar este quadro.
Eu não creio em nada. E contraditoriamente creio em tudo
205
.
Na volta ao Brasil, retoma suas atividades e prepara novas publicações.
Pela Francisco Alves é editado seu primeiro livro de crônicas, Visão do esplendor.
Trata-se de um conjunto de textos já publicados na revista Senhor e no Jornal do
Brasil. A Artenova lança De corpo inteiro, livro que traz algumas das entrevistas
feitas para a revista Manchete. E ainda é lançado Seleta de Clarice Lispector, uma
antologia, pela José Olympio e Instituto Nacional do Livro.
Em novembro, depois de ter voltado de Belo Horizonte, recebe a triste
notícia da morte de seu amigo e compadre Érico Veríssimo. Clarice não consegue ir
até Porto Alegre para a despedida de Érico, fica tão abalada que adoece. Em carta a
sua comadre Mafalda, diz: Eu também queria ver você para por incrível que
pareça a ilogicidade das coisas , para me consolar com você
206
. Em 1972, em
crônica, escreveu: Érico Veríssimo é um dos seres mais gostáveis que conheci: é
pessoa humana de uma largueza extraordinária
207
. Na mesma crônica, acrescenta
que fez ninho na casa e na vida do casal Érico e Mafalda enquanto morava em
Washington.
Durante este ano de 1975, como relatou no texto Magia, procurou se
distrair com a pintura. Fez vários quadros, utilizando principalmente a madeira para
_____________________________________________________________________________________________________
205 Apud BORELLI, Olga. Clarice Lispector: esboço para um possível retrato . Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981, pp.
56-7.
206 LISPECTOR, Clarice. Correspondências. Rio de Janeiro: Rocco, 2002, p. 310.
207 LISPECTOR, Clarice (1972). “Desculpem, mas não sou profundo”. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro:
Rocco,1999, p. 440.
129
pintar a óleo, entre os quais dois em frente e verso. Além disso, produz uma edição
artesanal dos textos de pequena Andréa Azulay, chamado Meus primeiros contos, e
Clarice, além de fazer a apresentação do livro, preocupa-se com a ilustração. É
Sérgio Mata, ilustrador do livro A vida íntima de Laura, quem assina os desenhos.
Envia o original e cinco cópias a Andréa, junto manda um bilhetinho dizendo que o
livro demorou a vir à luz, mas finalmente estava editado seu livro de cinco cópias.
Em abril de 1976, Paulo se casa com Ilana Kauffmann. Neste dia,
conversando com uma tia, Clarice é surpreendida ao descobrir que sua mãe, d.
Marieta, mantinha um diário e escrevia poesias. Em entrevista a Júlio Lerner, para a
TV-2 Cultura, declarou: Bom... Eu soube, ultimamente, para minha enorme
surpresa, que minha mãe escrevia. Não publicava, ela escrevia. (...) Eu soube por
uma informação de uma tia: “Você sabe que sua mãe fazia um diário e escrevia
poesia?” Eu fiquei boba
208
.
Clarice viaja para Buenos Aires, acompanhada de Olga Borelli, para uma
feira internacional de literatura. Sua obra já havia sido traduzida para o espanhol e o
reconhecimento vem em forma de homenagens da comunidade literária.
Ainda em abril, depois de voltar da Argentina, vai a Brasília. A Fundação
Cultural do Distrito Federal concede a Clarice um prêmio de Cr$ 70 mil pelo
conjunto de sua obra. Ficou, segundo Borelli, contentíssima e ao recebê-lo declara:
Eu bem estava precisando desse dinheiro. Sinto-me um tanto humilde,
por não merecer tanto. Disseram-me que quando nos conferem um
prêmio, é porque já nos consideram aposentados. Mas eu não me
aposentarei. Espero morrer escrevendo. O que eu não disse por falta
de frieza ficará sempre no limbo
209
.
_____________________________________________________________________________________________________
208 Recurso audiovisual. Entrevista de Clarice Lispector concedida a TV Cultura, São Paulo, 1º de fevereiro de 1977.
209 Apud BORELLI, Olga. Clarice Lispector: esboço para uma possível retrato . Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981, p. 71.
130
Nesse meio tempo, a escritora está voltada para a elaboração da novela A
hora da estrela. A amiga reúne as anotações e depois passa a limpo, à máquina, os
manuscritos. Além disso, concomitante escreve fragmentos para o próximo
romance intitulado Um sopro de vida e produz novos contos: A bela e a fera e Um
dia a menos.
Vai a Porto Alegre e a Recife. O retorno à cidade de sua infância foi uma
de suas últimas viagens. Na capital pernambucana visita a universidade, seus
familiares e se hospeda em hotel na praça Maciel Pinheiro, onde reencontra a
pequena Clarice:
Depois minha lembrança é a de no andar ainda vazio de móveis
olhar pela varanda na praça Maciel Pinheiro, em Recife, e ter medo
de cair: achei tudo alto demais. A casa se acabou? Mas o nome da
praça continua o mesmo, segundo me informaram. É capaz do hotel
localizar-se no lugar onde era a minha casa. Que acabou, acabou,
acabou. Era pintada de cor-de-rosa. Uma cor acaba? se desvanece
no ar, meu Deus
210
.
No final de 1976, é contratada pela revista Fatos e Fotos-Gente, do mesmo
grupo da Manchete, como entrevistadora e cronista, atividade em que permaneceria
até outubro de 77.
Fevereiro de 1977, Clarice viaja a São Paulo para dar entrevista à TV
Cultura, ao programa Panorama especial. Seria entrevistada por Júlio Lerner.
Durante a gravação não ficou à vontade e o desencontro entre eles ficou evidente. O
entrevistador tentou capturar a personalidade da escritora, o que provocou uma
situação de impasse e de crescente tensão, com isso Júlio a perdeu de vista. Clarice
se recolheu. Concluída a gravação, primeiro e único registro audiovisual da
___________________________________________________________________
210 Apud GOTLIB, Nádia Battella. Clarice: Uma vida que se conta. São Paulo: Ática, 1995, pp. 77-8.
131
escritora, fez o jornalista prometer que a entrevista só seria exibida após sua morte.
Clarice ainda nesta época escreve o quarto livro infantil Quase de verdade.
Nesse, quem narra a história é um cão Ulisses. Tudo gira em torno de uma
figueira que anseia por riqueza e de galinhas que até perdem os dentes de tanto
morder pirulitos.
É contratada pela fábrica de brinquedos Estrela para fazer um calendário
de 1978. São 12 histórias, uma para cada mês, com elementos da cultura popular
brasileira. Este conjunto é intitulado Como nasceram as estrelas, com o subtítulo
“Doze lendas brasileiras”.
Em junho, parte, acompanhada de Olga Borelli, para a Europa. A previsão
era de um mês de viagem, contudo Clarice sente-se muito angustiada e elas
regressam ao Rio uma semana depois da partida.
A novela A hora da estrela fora entregue à José Olympio Edditora e saiu
em 1977. No mesmo ano, a Editora Ática reedita A legião estrangeira, mas apenas
com os contos mais longos da edição de 64.
Em outubro, depois da publicação da vigésima sétima entrevista para a
Fatos e Fotos-Gente, sua atividade na revista é interrompida. Clarice tem uma
obstrução intestinal e é hospitalizada na Casa de Saúde São Sebastião, no Catete. É
submetida a uma cirurgia, na qual se descobre um adenocarcinoma de ovário. O
câncer era irreversível e em pouco tempo se alastra pelo corpo todo. Em meados de
novembro Clarice foi transferida para o Hospital da Lagoa, que é público, onde fica
em quarto individual. Mesmo com o avanço da doença os médicos indicaram quimio
e radioterapia; entretanto, o tratamento foi paliativo, a metástase já tomava todo seu
corpo.
132
Clarice não tomou conhecimento da gravidade da doença e escreveu até o
fim. Durante esse período foi acompanhada pelas irmãs, por Olga Borelli, entre
outros amigos, que procuravam não a deixar só.
Em 9 de dezembro, ditava a Olga Borelli suas últimas palavras:
Súbita falta de ar. Muito antes da metamorfose e meu mal-estar, eu
já havia notado num quadro pintado em minha casa um começo.
Eu, eu, se não me falha a memória, morrerei.
É que você não sabe o quanto pesa uma pessoa que não tem força. Me
dê sua mão, porque eu preciso apertá-la para que nada doa tanto
211
.
Olga segurou com força a mão de Clarice, e ela continuou:
Sou um objeto querido por Deus. E isso me faz nascerem flores no
peito. Ele me criou igual ao que escrevi agora: ‘sou um objeto
querido por Deus’ e ele gostou de me ter criado como eu gostei de ter
criado a frase. E quanto mais espírito tiver o objeto humano mais
Deus se satisfaz. Lírios brancos encostados à nudez do peito. Lírios
que eu ofereço e ao que está doendo em você. Pois nós somos seres
carentes. Mesmo porque certas coisas se não forem dadas
fenecem. Por exemplo junto ao calor de meu corpo as pétalas dos
lírios se crestariam. Chamo a brisa leve para a minha morte futura.
Terei de morrer senão minhas pétalas se crestariam. É por isso que
me dou à morte todos os dias. Morro e renasço.
Inclusive eu já morri a morte dos outros. Mas agora morro de
embriaguez de vida. E bendigo o calor do corpo vivo que murcha
lírios brancos.
O querer, não mais movido pela esperança, aquieta-se e nada anseia.
Meu futuro é a noite escura e eterna. Mas vibrando em elétrons,
prótons, nêutrons, mésons e para mais não sei, porém, que é no
perdão que eu me acho.
Eu serei a impalpável substância que nem lembrança de ano anterior
substância tem
212
.
Era sexta-feira, 10h30 da noite, véspera de seu aniversário de Clarice. Olga
segura a mão da amiga e sussurra devagar e delicadamente perto de seu ouvido, a
palavra paz. Clarice Lispector acaba de morrer. A cerimônia de sepultamento ocorre
___________________________________________________________________
211 Ibidem , p. 61.
212 Ibidem , p. 62.
133
somente no domingo, em obediência às leis judaicas (shabat). O corpo de Clarice é
sepultado no Cemitério Comunal Israelita, no Caju, Rio de Janeiro, um dia após a
comemoração de seu nascimento; dois, de sua morte.
Em 28 de dezembro vai ao ar a entrevista concedida à TV Cultura. No final
desta, Clarice havia dito: Bem, eu agora morri... Vamos ver se eu renasço de novo.
Por enquanto eu estou morta... Estou falando de meu túmulo...
213
.
No ano seguinte, são publicados Um sopro de vida Pulsações, pela Nova
Fronteira; Quase de verdade, pela Rocco; Para não esquecer (contos que também
compunham a primeira edição de A legião estrangeira), pela Ática. A novela A hora
da estrela é premiada como “Melhor Romance”. Em 1979, é publicado o livro de
contos A bela e a fera pela Nova Fronteira. Sai em 1981, pela Abril Educação,
Clarice Lispector, uma antologia organizada por Benjamin Abdala Jr. e Samira Y.
Campedelli; em 1984 é lançado A descoberta do mundo pela Nova Fronteira; e em
1987, pela mesma editora, é publicado Como nasceram as estrelas. Em 1991 é
lançado, pela Ática, O primeiro beijo e outros contos, de Clarice Lispector
(antologia).
Fernando Sabino em 2001 publica, pela Record, cartas trocadas com
Clarice Cartas perto co coração. No mesmo ano sai Os melhores contos de Clarice
Lispector, organizado por Walnice Nogueira Galvão, pela Global. Em 2002 é
publicado, pela Rocco, Correspondências. Pela mesma editora são lançados em
2004 Aprendendo a viver Imagens; em 2005 Outros escritos; e em 2006 Correio
feminino.
134
Muitos dos livros de Clarice são traduzidos. Há traduções para o alemão,
dinamarquês, espanhol, francês, hebraico, holandês, inglês, italiano, norueguês,
polonês, russo, sueco, tcheco, japonês e turco.
___________________________________________________________________
213 Recurso audiovisual. Entrevista de Clarice Lispector concedida a TV Cultura, São Paulo, 1º de fevereiro de 1977.
135
PARTE II
Da solidão de não pertencer à quarta dimensão
136
1 A solidão de não pertencer
Esta história começa em 10 de dezembro de 1920 em uma aldeia da
Ucrânia chamada Tchechelnik. Neste dia nasceu uma menina que recebeu o nome
de Haia Lispector. Haia é a terceira filha de Pinkouss e Mania.
Nesta época a família migrava na tentativa de fugir das conseqüências da
Primeira Grande Guerra e da Revolução Bolchevique. A Rússia estava arrasada.
Durante esse período milhares de homens foram mortos, outros sucumbiram às
doenças. A situação era de desespero. Até mesmo as necessidades primárias estavam
profundamente ameaçadas, os alimentos tornaram-se cada vez mais escassos. Nestas
condições e depois de verem Isaac Krimgold, pai de Mania, ser fuzilado por
bandidos, os Lispector resolvem deixar a Ucrânia.
Ficavam para trás a terra natal e o sofrimento experimentado no dia-a-dia
daquele lugar, a fome, a violência. A família renunciou ao lugar que, no momento,
perdera a qualidade de lar. Assim, desistir do país, exilar-se, era sinônimo de investir
na vida, era o caminho para uma possível liberdade. É com tal expectativa que os
Lispector arriscaram-se em meio às mais diversas dificuldades à procura de d euma
nova terra.
Não bastassem a terrível situação do país e a conseqüente
necessidade de emigrar, havia ainda a doença de Mania. Mania sofria de paralisia
progressiva, doença crônica que afeta o sistema neuromuscular. É difícil apontar a
causa da paralisia progressiva, pois se trata de terminologia genérica que deixa
muitas dúvidas acerca de sua nosologia e topografia. Entretanto, de acordo com
137
Harrison
214
, a partir da metade do século XIX passou-se a considerar como hipótese
mais provável para a origem da doença um defeito genético que causa uma
deficiência metabólica ou enzimática. Como não se sabe exatamente o tipo de
paralisia que afetava Mania, a contaminação pela tuberculose ou pela sífilis,
doenças bastante comuns na época, poderia ser uma hipótese, pois afecções
neuromusculares também podem advir de bactérias ou de vírus. Contudo, de acordo
com Ferreira
215
, a mulher sofria de uma afecção neurológica paralisante,
provavelmente oriunda de um parkinsonismo. Portanto, pouco se pode afirmar sobre
os pormenores da doença de Mania, as hipóteses servem apenas para refletir a
respeito do intenso sofrimento dela e de seus familiares.
A missão
Na Ucrânia havia uma crença popular segundo a qual uma mulher doente
poderia se salvar se tivesse um filho. Mania fez uma tentativa. Engravidou e nasceu
Haia.
É a própria Clarice quem conta:
Minha mãe já estava doente, e, por uma superstição bastante
espalhada, acreditava-se que ter um filho curava uma mulher de uma
doença. Então fui deliberadamente criada: com amor e esperança. Só
que não curei minha mãe. E sinto até hoje essa carga de culpa:
fizeram-me para uma determinada missão e eu falhei. Como se
contassem comigo nas trincheiras de uma guerra e eu tivesse
desertado. Sei que meus pais me perdoaram por eu ter nascido em
vão e tê-los traído na grande esperança. Mas eu, eu não me perdôo.
Quereria que simplesmente se tivesse feito um milagre: eu nascer e
_____________________________________________________________________________________________________
214 HARRISON, Tinsley Randolph. Medicina interna. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1984, vol 2.
215 FERREIRA, Teresa Cristina Montero. Eu sou uma pergunta: uma biografia de Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Rocco,
1999.
138
curar minha mãe. Então, sim: eu teria pertencido a meu pai e a minha
mãe. Eu nem podia confiar a alguém essa espécie de solidão de não
pertencer porque, como desertor, eu tinha o segredo da fuga que por
vergonha não podia ser conhecido
216
.
Assim se inicia a história. Haia em hebraico significa “vida”
217
, diz
Ferreira, biógrafa de Clarice. Entre o sofrimento e a esperança está o começo da
menina. Mesmo em meio às terríveis experiências vividas com o pós-guerra, os
Lispector não esmoreceram, acreditaram em dias melhores e partiram. Entre
diferentes lugares vai se desenhando uma nova vida. Uma vida que tem destino
certo: vão ao encontro de parentes na América. Quer dizer, entre o pequeno
povoado de Tchechelnik e a América uma menina foi, na voz da própria Clarice,
deliberadamente criada: com amor e esperança
218
.
É nesta perspectiva que Mania, gravemente doente, não perdera a vontade
de viver, valeu-se da superstição e encomendou um novo bebê. Aqui se poderia
percorrer as mais diversas interpretações, principalmente as psicanalíticas, para se
pensar a situação; no entanto, vou considerar as palavras de Clarice: a esperança e
a salvação.
É esperado que as pessoas adoentadas busquem a cura. Procuram
terapêuticas que vão das mais às menos científicas na tentativa de recuperar a
saúde. Essas ações indicam não só o desejo de cura, mas também a fé em alcançar
uma sobrevida. Uma sobrevida que pode ser obtida, como no caso de Mania, com o
nascimento de um bebê. Então, em expressão popular, se está de esperança.
_____________________________________________________________________________________________________
216 LISPECTOR, Clarice (1968). “Pertencer”. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p. 111.
217 FERREIRA, Teresa Cristina Montero. Eu sou uma pergunta: uma biografia de Clarice Lispector. Rio de Janeiro:
Rocco, 1999.
218 LISPECTOR, Clarice (1968). “Pertencer”. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p. 111 .
1
39
Nascimento que é esperança.
Estar de esperança, de acordo com o dicionário, é estar grávida. Dado que
para a sra. Lispector é também salvação. Nesta história a esperança está
intimamente ligada à salvação porque a esperança está no bebê e o bebê é a própria
salvação entre a esperança e a salvação está Haia, está a “Vida”.
É comum os pais atribuírem aos futuros bebês funções e desejos especiais.
Há aqueles que desejam determinado status social e colocam sobre o filho a
responsabilidade de alcançá-lo; outros esperam a garantia de um casamento, de um
salário; etc. E outros, ainda, contam com milagres.
Dentro deste contexto, o bebê esperado parece não receber o estatuto
daquele que é novo, que é recém-chegado à existência. Os pais não se entregaram à
surpresa daquele que está por começar porque determinaram previamente o lugar
do bebê na família. Assim, a tarefa desse indivíduo se iniciou mesmo antes de
nascer.
De acordo com Safra um bebê ao nascer, além de trazer consigo o aparato
biológico, é um acontecimento no mundo. Ao nascer o bebê é afetado (...) pela
história de seus ancestrais, pelo encontro com os contemporâneos, impulsionada
em direção àqueles que virão
219
. E, para que este novo ser possa começar a sua
marcha pela vida, para que venha a se constituir como ser humano, Safra afirma:
(...) necessita que alguém no mundo seja seu anfitrião e acolha seu gesto que
constitui o início de si mesmo
220
.
No início do si mesmo de Haia, estão Mania, Pinkouss, suas irmãs, a
___________________________________________________________________________________________
219 SAFRA, Gilberto. A po-ética na clínica contemporânea. Aparecida, SP: Idéias e Letras, 2004, p. 103.
220 Ibidem, p. 104.
140
herança judaica, o momento histórico da Ucrânia, o exílio, uma missão e a
esperança. Estas circunstâncias iluminam as palavras de Clarice: Então fui
deliberadamente criada: com amor e esperança. Para quê? Para a função especial
de salvar uma vida. Salvar a vida daquela que lhe deu a vida. Seu destino estava
traçado.
Safra diz: O bebê que nasce em missão nasce um tanto quanto roubado da
possibilidade de poder articular um destino próprio. Os elementos fundamentais de
sua existência se encontram bastante definidos (...)
221
.
Esses elementos demarcados pela situação de missão obturam a
possibilidade de o bebê, por si próprio, encontrar o lugar que lhe cabe na família,
na comunidade, fixam o lugar deste bebê no mundo e o submetem ao posto. Nessa
perspectiva, esses elementos conferem uma determinada configuração que, por sua
vez, circunscreve o campo onde o indivíduo estará inserido.
Encerrado neste lugar, o indivíduo é condecorado pela missão, mas é
condenado, usando as palavras de Clarice, a não-pertencer?
Pertencer
O que é pertencer? O verbo nos remete à idéia de ser propriedade de,
então sugiro tomar em consideração a palavra propriedade e elevá-la à qualidade
de próprio. Por sua vez , o que é próprio pertence a. Compreendendo deste modo, o
pertencer ganha o atributo humano não somente de fazer parte de alguma coisa ou
ser de alguém, mas ser em si.
_____________________________________________________________________________________________________
221 Ibidem, p. 105.
141
Tais afirmações acerca do pertencer se apresentam um tanto paradoxais,
porque para se poder ser em si é necessário, antes, ter sido para alguém. Com tal
espírito Clarice escreve:
Estou no âmago.
Ainda estou.
Estou no centro vivo e mole.
Ainda.
Tremeluz e é elástico. Como o andar de uma negra pantera lustrosa
que vi e que andava macio, lento e perigoso. Mas enjaulada não
porque não quero (...) No âmago onde estou, no âmago do É, não
faço perguntas. Porque quando é é. Sou limitada apenas pela minha
identidade. Eu, entidade elástica e separada de outros corpos.
(...)
Mas vou me seguindo. Elástica. É um tal mistério essa floresta onde
sobrevivo para ser (...) Um dia eu disse infantilmente: eu posso tudo.
Era a antevisão de poder um dia me largar e cair num abandono de
qualquer lei. Elástica. A profunda alegria: o êxtase secreto (...)
Nesse âmago tenho a estranha impressão de que não pertenço ao
gênero humano
222
.
De fato, neste estado de pertencimento total, estando no centro do ser,
talvez a impressão realmente ultrapasse aquilo de humano que tem em pertencer a
alguém ou a alguma coisa e apenas se é. Ser em si parece tão distante dos atributos
humanos, parece inatingível aos olhos da razão e do conhecimento. Porém, ser é
uma das tarefas que o homem quer realizar em sua passagem pela vida.
Nesta procura de ser a percepção da vida perde a fixidez da necessidade de
encontrar uma resposta que garanta, que dê validade ao se ser. Na procura em ser
abre-se interstícios para que o movimento reflexivo acerca da existência se
pronuncie em nota musical maior. Assim, a canção da vida vai se fazendo em
melodias que, em determinado momento, podem ser mais animadas e, em outras,
mais tranqüilas, excitadas ou sofríveis, como as questões que emergem enquanto
_____________________________________________________________________________________________________
222 LISPECTOR, Clarice (1973). Água Viva. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1994, pp. 32-3.
142
fundantes do ser, que são tão variadas quanto a combinação de notas que podem
compor uma peça musical.
Não-pertencer
Como um sinal colocado no início de uma nova pauta, o pertencer surge
como um anseio, como uma abertura para indicar a composição da canção de
Clarice. Ela diz:
Tenho certeza de que no berço a minha primeira vontade foi a de
pertencer (...) eu de algum modo devia estar sentindo que não
pertencia a nada e a ninguém. Nasci de graça.
Se no berço experimentei essa fome humana, ela continua a me
acompanhar pela vida afora, como se fosse um destino
223
.
É tamanha essa fome humana em pertencer que acaba sendo visitada pelo
seu contrário. De acordo com as palavras de Clarice, ela nasceu de graça, nasceu
gratuitamente, como se fosse guaxa. Nascer fora do ninho é também o tema da
história infantil O patinho feio, uma das primeiras histórias lidas por Clarice. Em
“Histórias intermináveis: guardiãs do segredo”, foi apontada a identificação da
menina com o patinho feio, em que ambos experimentaram a sensação de serem
adventícios no próprio berço. Esta condição de estrangeiro guarda, de certo modo,
o segredo de não-pertencer. Do modo semelhante, nascer de graça sugere que não
houve razão para o seu nascimento e, portanto, contraria a situação de missão.
Neste instante cabe perguntar: será que são situações totalmente opostas?
Impossível de coexistirem? Ou são interfaces de um mesmo começo?
Tanto na situação de missão quanto na gratuidade do nascimento o
_____________________________________________________________________________________________________
223 LISPECTOR, Clarice (1968). “Pertencer”. In A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p. 110.
143
indivíduo é impelido a escrever sua história sobre papel já escrito. Por um lado, há
o impedimento, uma parada, os elementos que foram definidos pela missão e, por
outro, a ausência deles, pela gratuidade. Portanto, o indivíduo é, ao mesmo tempo,
totalmente cercado pelo destino posto e arremessado como uma geléia viva
224
à
existência. As duas condições convergem para o surgimento de uma experiência
em que o indivíduo toma conhecimento de sua instabilidade no mundo: quer por
enclausuramento, quer pelo lançamento no espaço sem-fim.
Clarice conta:
Quando era criança, inesperadamente tinha a consciência de estar
deitada numa cama que se achava na cidade que se achava na Terra
que se achava no Mundo. Assim como em criança, tive então a noção
precisa de que estava inteiramente sozinha numa casa, e que a casa
era alta e solta no ar, e que esta casa tinha baratas invisíveis
225
.
É a lucidez experimentada com o desvanecer. Render-se à amplidão
infinita do mundo arremessa o indivíduo em uma espécie de vórtice, em uma
realidade difícil de ser apreendida pelos sentidos. Mas Clarice, apesar da voragem,
abre a caixa de Pandora e se depara com o desamparo desse lugar.
Em terreno descampado há um mundo bastante delicado, porém marcado
pela densidade. Na perspectiva desse lugar apresentam-se, simultaneamente, três
referências: um espaço que está pronto para ser povoado, um espaço saturado pela
incumbência de salvaguardar uma vida e outro que é movimento.
Na época em que Haia nasceu, a família deixava seu país, a Ucrânia. Sem
paradeiro definido, os Lispector seguiam rumo à América. E em meio à andança, a
_____________________________________________________________________________________________________
224 LISPECTOR, Clarice (1968). “A geléia viva como placenta”. In A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p.
402 .
225 ___ (1964). A paixão segundo G.H. Edição Crítica, Benedito Nunes, coordenador. 2
a.
ed. Madrid; Paris, México;
Buenoa Aires; São Paulo; Rio de Janeiro; Lima: ALLCA XX/ Edusp, 1996, p. 33.
144
pequena experimentou os primeiros sinais da errância: nasceu na Ucrânia a caminho
da América, em Tchechelnik, ainda no país dos Lispector.
Por acaso Haia nasceu neste lugarejo, poderia ter sido outro qualquer na
rota prevista por Pinkouss. Mas Mania entrou em trabalho de parto perto daquele
povoado.
Clarice, em crônica de 14 de novembro de 1970, Esclarecimentos
explicação de uma vez por todas, conta:
(...) nasci na Ucrânia, terra de meus pais. Nasci numa aldeia
chamada Tchechelnik, que não figura no mapa de tão pequena e
insignificante. Quando minha mãe estava grávida de mim, meus pais
já estavam se encaminhando para os Estados Unidos ou Brasil, ainda
não haviam decidido: pararam em Tchechelnik para eu nascer, e
prosseguiram viagem
226
.
Durante a migração seria um tanto difícil pertencer a um país. A família
não desejava se estabelecer em nenhum lugar por onde passava, não havia pouso,
pernoitava aqui e ali de acordo com as condições e as necessidades. Os dias foram se
seguindo entre diferentes terras, saindo da Rússia entraram na Europa e a
atravessaram até o porto de Hamburgo, onde tomariam um navio em direção à
América. Nesta travessia os Lispector eram estrangeiros. Nada lhes pertencia: nem
casa, nem cidade, nem país; salvo a própria família. Eles se pertenciam, era somente
a esperança o fio condutor nesta jornada .
Haia pertencia não pertencendo. Como uma peregrina que tem missão a
cumprir, (...) como estrangeiro em qualquer parte do mundo
227
, vai se desenhando
seu devir. Entre a missão, a gratuidade do nascimento, o exílio e a esperança
_____________________________________________________________________________________________________
226 ___ (1968). “Esclarecimentos explicação de uma vez por todas”. In A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco,
1999, pp. 319-0.
227 ___ (1978). Um sopro de vida: pulsações. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978, p. 55.
145
começam brotar os primeiros sinais daquilo que a pequena Haia, que Clarice,
guardará como substrato de suas principais questões. Ela mesma explicita seu
pertencer:
Se meu desejo mais antigo é o de pertencer, por que nunca fiz parte
de clubes ou de associações? Porque não é isso o que eu chamo de
pertencer. O que eu queria, e não posso, é por exemplo que tudo o
que me viesse de bom de dentro de mim eu pudesse dar àquilo que eu
pertencesse (...)
228
.
Da missão à questão
A viagem dos Lispector para o exílio demora aproximadamente um ano e três
meses, segundo os dados apresentados por Ferreira
229
,
apesar de Clarice dizer que
chegou ao Brasil aos dois meses. Neste caso, é bom não esquecer que Clarice
falseava a idade: nos documentos constava o nascimento em 10 de dezembro de
1920, mas ela gostava de dizer 1922, ano em que foi expedido o passaporte coletivo
230
e até mesmo 1925.
Durante o primeiro ano de Haia, não houve descanso para os Lispector.
Depois de deixarem a Ucrânia, foram seguindo uma espécie de rota que os levaria à
América. Desembarcam em Maceió. Parece que o exílio chegou ao fim e a promessa
de uma nova vida estava se efetivando. Até os nomes são novos: Pinkouss vira
Pedro; Mania, Marieta; Lea, Elisa; o de Tania se mantém; e Haia ganha o nome de
Clarice. Entretanto, não são somente os prenomes que mudam: a permanência dos
Lispector na capital alagoana dura apenas três anos, então se mudam para Recife.
_____________________________________________________________________________________________________
228 ___ (1968). “Pertencer”. In A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999 , p. 110 .
229 FERREIRA, Teresa Cristina Montero. Eu sou uma pergunta: uma biografia de Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Rocco,
1999.
230 Cf. Do Oriente ao Ocidente”.
146
Como no princípio, entre vilarejos e cidades, entre cidades e países, entre
terras e mares, Clarice vai se desenvolvendo. Mas é na capital pernambucana que
Pedro decide fixar residência.
Temporariamente cessa a itinerância dos Lispector e começa emergir a vida
assentada em determinado lugar se inicia uma nova etapa para Clarice. Agora é
tempo de brincar com a vida, tempo de jogar essa casa é minha, de roubar pitangas e
rosas, de ver o porto e banhar-se no mar, é tempo de mãe doente e, como um
termômetro quebrado, é tempo de se espalhar pelo mundo imaginário para
encontrar, encontrar a essência do metal prateado.
Tempo de brincar. Segundo Winnicott, o brincar é uma experiência
criativa
231
, uma ação que norteia a continuidade no tempo e no espaço, é uma
forma de viver. Winnicott diz:
A importância do brincar é sempre a precariedade do interjogo entre
a realidade psíquica pessoal e a experiência de controle dos objetos
reais. É a precariedade da própria magia, magia que se origina na
intimidade, num relacionamento que está sendo descoberto como
digno de confiança
232
.
O sofrimento da mãe e as águas oleosas nos olhos do pai, figuras de
fundamental confiança, reverberavam a dura realidade. Contudo, como toda criança,
Clarice brincava.
Nesta atmosfera lúdica, a menina navega por entre mares à procura de uma
outra realidade, uma realidade que a salve: A precariedade da brincadeira está no
_____________________________________________________________________________________________________
231 A criatividade é entendida a partir dos pressupostos winnicottianos: processo em que o indivíduo busca
encontrar e estabelecer o EU SOU. E ainda, complementada pela perspectiva safriana como uma ação que
possibilita o acontecer e o aparecimento do singular de si mesmo, a partir de seu registro ontológico.
232 WINNICOTT, Donald W. (1971) “O brincar”. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975, p. 71.
147
fato de que ela se acha sempre na linha teórica existente entre o subjetivo e o que é
objetivamente percebido
233
. Deste modo, o brincar é por si mesmo uma terapia
234
porque é no brincar, e somente no brincar, que o indivíduo, criança ou adulto, pode
ser criativo e utilizar sua personalidade integral: e é somente sendo criativo que o
indivíduo descobre o eu (self)
235
.
O brincar surge muito cedo na vida do indivíduo, começa no encontro
entre o bebê e sua mãe. Inicialmente pertence a uma área intermediária denominada
por Winnicott de transicional, que inclui objetos e fenômenos transicionais. À
medida que o indivíduo amadurece, esse lugar se amplia para a brincadeira e depois
para todo o campo cultural.
Assim acontece com Clarice. Ela descobre nos cenários imaginários um
modo de lidar com as dificuldades. Em meio à doença da mãe e a iminência da
morte, mesmo sem saber ler ou escrever, recorria à criação de histórias que não
tivessem fim, criava , por assim dizer, a eternidade, como o chiclete que ganhara de
Tania, sua irmã. Conta Clarice:
Eu estava boba: parecia-me ter sido transportada para o reino de
histórias de príncipes e fadas. Peguei a pequena pastilha cor-de-rosa
que representava o elixir do longo prazer. Examinei-a, quase não
podia acreditar no milagre. Eu que, como outras crianças, às vezes
tirava da boca uma bala ainda inteira, para chupar depois, só para
fazê-la durar mais. E eis-me com aquela coisa cor-de-rosa, de
aparência tão inocente, tornando possível o mundo impossível do qual
eu já começara a me dar conta
236
.
A menina acreditava que poderia transformar o impossível em possível, sua
_____________________________________________________________________________________________________
233 Ibidem, p. 75.
234 Ibidem , p. 74.
235 Ibidem , p. 80.
236 LISPECTOR, Clarice (1970). 290O medo da eternidade. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco,1999, p. 290.
148
esperança era livrar a mãe da morte: ordenaria ao Aladim, gênio da lâmpada, que
realizasse seu desejo. Diz Winnicott que o brincar facilita o crescimento e,
portanto, a saúde
237
. Era desta maneira que Clarice ia lidando com ausência da
mãe, presa a uma cadeira de rodas. Apesar de sua mãe estar ali, não podia contar
com o seu colo, nem com suas repreensões e nem brincar com ela, tentava uma vez
ou outra roubar um sorriso com suas peraltices, mas a tristeza inundava os olhos de
Marieta, a dor a consumia, então pouco a menina podia fazer.
A dor de Marieta também acompanhava Clarice, mas para a menina ainda
se somava à impotência. As incumbências que, possivelmente, lhe foram delegadas
potencializaram a de responsabilidade. Desde muito cedo Clarice via a mãe
impossibilitada de andar e, durante certo tempo, se culpou pela paralisia. Mais tarde,
veio a saber que a mãe era paraplégica mesmo antes de ela nascer. E que o seu
nascimento fora uma esperança.
As duas situações apresentadas possivelmente tenham marcado de maneira
significativa a vida de Clarice. Quanto à primeira, a menina se fez causadora de um
mal, seu surgimento paralisara o viver de sua mãe. Dentro desta perspectiva, ela
deve ter, do mesmo modo que a mãe, experimentado o impedimento. Todavia, a
sentença se modificou, houve uma retomada da história inicial de Clarice: nasceu
incumbida.
Gilberto Safra (2004) aponta três grandes situações que podem ocorrer com
o bebê ao entrar no mundo humano: (...) o bebê pode encontrar em seu berço uma
missão, um enigma ou uma questão
238
. Safra explica: Cada uma dessas
_____________________________________________________________________________________________________
237 WINNICOTT, Donald W. (1971). “O brincar”. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975, p. 63.
238 SAFRA, Gilberto. A po-ética na clínica contemporânea. Aparecida, SP: Idéias & Letras, 2004, p. 105.
149
possibilidades estabelece de modo distinto a situação originária do bebê e
influencia, decisivamente e de forma singular, aquele que será o percurso dessa
criança pela sua existência
239
. Sob este ponto de vista, na origem de Clarice não se
estabelece uma situação de enigma e sim uma missão.
A situação de enigma, denominada por Safra, implica: (...) um
atordoamento enlouquecedor originário que coloca o bebê em uma suspensão de si,
em uma origem que se inicia num estado de perplexidade. O enigma é aquilo que
não pode ser formulado e, deste modo, não pode ser destinado. Assim sendo, a
situação enigmática suspende a possibilidade de um devir
240
.
Neste caso, o indivíduo pressente que algo lhe foi ocultado acerca de sua
origem, de sua história. É uma situação em que não se guarda a presença do rosto
humano, não há acolhimento nem palavras é o encontro com o horror.
Enquanto na situação de missão o devir é impedido, como um obstáculo
entre o indivíduo e a realização de seus anseios; no enigma, o devir é, de acordo com
Safra, posto em suspensão, e o sofrimento se faz sem palavra, sem rosto.
A outra possibilidade apresentada por Safra é a situação de questão. O
autor traz nesta acepção as seguintes questões: da precariedade humana, do
imponderável, da solidão essencial, da sexualidade, da vida e da morte. O
sofrimento, nesta possibilidade, coloca-se em direção à, ou em outras palavras, em
um destinar-se
241
. Desse modo, a situação de questão leva o indivíduo a apropriar-se
de sua questão original, de seu porvir.
_____________________________________________________________________________________________________
239 Ibidem .
240 Ibidem , p. 106.
241 Ibidem , p. 111.
150
Daquele lugar de missão, apesar de ser esperança para os Lispector, Clarice
gostaria de sumir, desertar:
Raízes semoventes que não estão plantadas ou a raiz de um dente?
Pois também eu solto as minhas amarras: mato o que me perturba e o
bom e o ruim me perturbam, e vou definitivamente ao encontro de um
mundo que está dentro de mim, eu que escrevo para me livrar da
carga difícil de uma pessoa ser ela mesma
242
.
Às vezes conseguia. Depois de ter aprendido a ler e escrever, nova
transformação ocorreu na vida da menina: entre letras criou mundos, neste universo
tudo era possível. Através das letras, surgiu a possibilidade de, nas palavras de
Safra, colocar em trânsito suas principais questões, (...) portar sua questão, seu
gesto a coloca em direção ao porvir
243
. Portanto, pela escrita Clarice põe a situação
de missão em questão, ou melhor, a situação de missão se transforma em situação
de questão.
_____________________________________________________________________________________________________
242 LISPECTOR, Clarice (1978). Um sopro de vida: pulsações. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978, pp. 15-6.
243 SAFRA, Gilberto. A po-ética na clínica contemporânea. Aparecida, SP: Idéias & Letras, 2004, p.112.
151
2 Atrás do pensamento
(...) no decorrer desse dia até a hora de dormir
tive umas três vezes um súbito reconhecimento
de mim mesma e do mundo que me assombrou
e me faz mergulhar em profundezas obscuras
de onde saí para uma luz de ouro. Era o encontro
do eu com o eu. A solidão é um luxo
244
.
Entre o pertencer e o não-pertencer, entre a missão e a questão, entre
pessoas e seus mistérios, entre mundos, brota a solidão. Clarice não gostava muito
de ficar dentro de casa, gostava de andar saltitando pelas ruas de Recife, de sentar
em frente a sua casa e esperar que alguém passasse e aceitasse o convite para
brincar. Além disso, não dispensava, sob hipótese alguma, o encontro com outros
amigos, aqueles do mundo animal. Adorava a companhia deles, caso não tivesse
nenhum, satisfazia-se com as formigas que em algum lugar trabalhavam. Entre
amigos e bichos ela ia tomando conta do mundo:
Antes de dormir tomo conta do mundo e vejo se o céu da noite
está estrelado e azul-marinho porque em certas noites em vez de
negro o céu parece azul-marinho intenso, cor que já pintei em vitral.
Gosto de intensidades. Tomo conta do menino que tem nove anos de
idade e que está vestindo trapos e magérrimo. Terá tuberculose, se é
que já não a tem. No Jardim Botânico, então, fico exaurida. Tenho
que tomar conta com o olhar de milhares de plantas e árvores e
sobretudo da vitória-régia. Ela está lá. E eu a olho.
(...)
Se tomar conta do mundo dá muito trabalho? Sim. Por
exemplo: obriga-me a me lembrar do rosto inexpressivo e por isso
assustados da mulher que vi na rua. Com os olhos tomo conta da
miséria dos que vivem encosta acima.
_____________________________________________________________________________________________________
244 LISPECTOR, Clarice (1978). Um sopro de vida: pulsações. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978, p. 65.
152
Você há de me perguntar por que tomo conta do mundo. É que
nasci incumbida.
Tomei em criança conta de uma fileira de formigas: elas
andam em fila indiana carregando um mínimo de folha. O que não
impede que cada uma comunique alguma coisa à que vier em direção
oposta
245
.
Clarice tomava conta do mundo e isto lhe dava a sensação que o mundo
todo a pertencia. Como explicar que me sinto a mãe do mundo?
246
, perguntava
Clarice.
Ser a mãe do mundo, na imanência do mundo, é uma condição que jamais
alguém pode invalidar, é estar sempre acompanhada pelo fluxo da vida. Ao mesmo
tempo, o mundo vai, em torno de seu eixo, realizando sua grande volta e nem
percebe que alguém vela seu giro. Parece que ser a mãe do mundo a colocava em
uma posição bastante longínqua daquilo que chamamos de solidão, ou é sob esta
condição que se pressente a essencialidade da solidão?
Winnicott argumenta que no princípio da existência de um ser humano há
uma solidão que é fundante, denominada solidão essencial.
O ser humano no princípio encontra-se mergulhado em profundezas
abissais, em um estado, segundo Winnicott, caracterizado pelo não-estar-vivo (mas
não significa estar morto). O ser humano ainda não começou a ser, quer dizer, está
no interior do não-ser. Contudo, em um minuto pode sair de onde estava submerso
e chegar ao lume do existir. Paradoxalmente, afirma Winnicott, no princípio há uma
solidão essencial. Ao mesmo tempo, tal solidão somente pode existir em condições
de dependência máxima. Aqui, neste início, a continuidade do ser do novo
indivíduo é destituída de qualquer conhecimento sobre
_____________________________________________________________________________________________________
245 ___ (1973). Água viva. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1994, p. 66.
246 ___ (1968). “ Adeus, vou-me embora. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco,1999, p. 96.
153
a existência do ambiente e do amor nele contido (...)
247
. Quer dizer, neste estado o
bebê depende totalmente da mãe, entretanto não reconhece esta necessidade.
Portanto, se estabelece, para esta questão, o paradoxo: o estado de solidão é pré-
primitivo, anterior a qualquer reconhecimento de dependência e, ao mesmo tempo,
depende vitalmente da presença de um outro que acolha de modo devotado o
recém-chegado.
A solidão é uma velha conhecida, companheira dos primeiros momentos
de vida de qualquer ser humano.Em vez de Winnicott é Clarice quem descreve:
Sou um coração batendo no mundo.
Você que me lê que me ajude a nascer.
Espere: está ficando escuro. Mais.
Mais escuro.
O instante é de um escuro total.
Continua.
Espere: começo a vislumbrar uma coisa. Uma forma
luminescente. Barriga leitosa com um umbigo?Espere pois sairei
desta escuridão onde tenho medo, escuridão e êxtase. Sou o coração
na treva.
(...)
Agora as trevas vão se dissipando.
Nasci.
Pausa.
Maravilhoso escândalo: nasço.
Estou de olhos fechados. Sou pura inconsciência. Já
cortaram o cordão umbilical: estou solta no universo. Não penso mas
sinto o it. Com olhos fechados procuro cegamente o peito: quero leite
grosso. Ninguém me ensinou a querer. Mas eu já quero. Fico deitada
com os olhos abertos a ver o teto. Por dentro é a obscuridade. Um eu
que pulsa já se forma. Há girassóis. Há trigo alto. Eu é.
(...)
Ainda não estou pronta para falar em “ele” ou “ela”.
Demonstro “aquilo”
248
.
(...) estou entrando sorrateiramente em contato com uma
_____________________________________________________________________________________________________
247 WINNICOTT, Donald D. (1954) “ Um estado primário do ser: os estágios pré-primitivos”. Natureza Humana. Rio de
Janeiro: Imago,1990, p. 154.
248 LISPECTOR, Clarice (1973).Água viva. Rio de Jan eiro: Francisco Alves, 1994, pp. 41-2.
154
realidade nova para mim que ainda não tem pensamentos
correspondentes e muito menos ainda alguma palavra que a
signifique: é uma sensação atrás do pensamento
249
.
Como foi dito, neste estado ainda não há um outro, há apenas o ser que
acabou de chegar à existência. Não há, ao modo de Clarice, pensamentos tampouco
palavras para descrever sua natureza. É pela obscuridade, ou quem sabe pela falta
de clareza, de pensamentos, de palavras... que se forma o núcleo do segredo, do
mistério, do que está por detrás do pensamento.
Para Safra o conceito de solidão essencial assinala que há em cada ser
humano um cerne que jamais chega à comunicação, sendo a solidão o ponto de
partida do acontecer humano
250
. É um estado muito próximo das construções feitas
por Clarice quando se refere ao que fica atrás do pensamento:
Atrás do pensamento atinjo um estado. Recuso-me a dividi-lo em
palavras e o que não posso e não quero exprimir fica sendo o mais
secreto dos meus segredos. Sei que tenho medo de momentos nos
quais não uso o pensamento e é um momentâneo estado difícil de ser
alcançado, e que, todo secreto, não usa mais palavras com que se
produzem pensamentos
251
.
Para Clarice atrás do pensamento é algo que ainda não se pensou, é uma
espécie de guia e se liga intimamente à sua muda inconsciência, é em preto-e-
branco, é um descampado lugar onde ainda não há palavras, aqui o ser humano
está começando. Atrás do pensamento mais atrás ainda está o teto que eu
olhava enquanto infante. De repente chorava. Já era amor. Ou nem mesmo
chorava. Ficava à espreita. A perscrutar o teto. O instante é o vasto ovo de vísceras
_____________________________________________________________________________________________________
249 Ibidem , pp. 52 -3.
250 SAFRA, Gilberto. A po-ética na clínica contemporânea. Aparecida, SP: Idéias & Letras, 2004, p.24.
251 LISPECTOR, Clarice (1973).Água viva. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1994, pp.76-7.
155
mornas
252
. O que está atrás do pensamento está bem guardado e comumente não se
conta a ninguém, porque este é o lugar do segredo. E segredo é diálogo entre eu e...
eu, é aquele olhar que aparentemente está longe, mas está longe apenas daquele que
vê o olhar, porque aquele que olha está à espreita de si, às vezes, a perscrutar o teto.
Neste momento, se está só e (...) não há palavras: é-se
253
, como uma história de
amor que se escreve aos 8 anos e que se esconde atrás de uma estante
254
, atrás do
pensamento.
Este estado não carrega consigo nenhum tipo de dor, de sofrimento, de
nostalgia porque ainda não se reconhece a necessidade da presença do outro e,
segundo Winnicott, (...) não haverá jamais uma reprodução exata desta solidão
fundamental e inerente. Apesar disso, pela vida afora do indivíduo continua a
haver uma solidão fundamental, inerente e inalterável
255
. Esta solidão é
fundamentalmente caracterizada pela suavidade e pela quietude na qual se pode
perceber, segundo Clarice, o it
256
do mundo.
Paradoxalmente, como disse Winnicott, enquanto se está vivendo o estado
de solidão se está continuamente acompanhado pelo cuidado materno. Nesta época,
a mãe está totalmente voltada para o bebê: enquanto está amamentando ou trocando
a roupa de seu bebê ela conversa, cantarola, toca a solidão do bebê com o seu amor.
Porém, se o bebê se entrega a este conforto e adormece, a mãe se silencia e deixa a
tranqüilidade embalar o sono do bebê. Deste modo, o holding ofertado pela mãe vai
_____________________________________________________________________________________________________
252 LISPECTOR, Clarice (1973).Água viva. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1994, p. 47.
253 Ibidem , p. 33.
254 Cf. A procura de não-ser.
255 WINNICOTT, Donald D. (1954). “Um estado primário do ser: os estágios pré-primitivos”. Natureza Humana. Rio de
Janeiro: Imago,1990, p. 154.
256 LISPECTOR, Clarice (1973).Água viva. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1994.
156
indicando ao bebê que ele pode confiar em sua contínua presença, no cuidado-amor
que está recebendo. Mais tarde, essa confiança se tornará a base para a capacidade
de estar só e acompanhará o indivíduo até sua morte.
Neste estado de solidão essencial ainda não há uma consciência, uma
mente para articular pensamentos. O bebê é totalmente dependente, mas não sabe
disso. Ainda não estabeleceu uma relação com o outro, ainda é único e só, está no
início do processo do viver.
No início do processo de viver está a solidão fundamental, todas as
experiências que compõem aquilo que é, de acordo com Clarice, atrás do
pensamento. No início de tudo está a solidão, que é totalmente acompanhada.
Portanto, é solidão-presença.
A solidão-presença é a que Françoise Dolto chamou de solidão feliz. A
solidão feliz está no sono reparador, em lugares da natureza que são matizados pela
paz, pela beleza, pela serenidade que apazigua o coração, entre pessoas e entre
animais que se aproximam do coração selvagem da vida e o tranqüilizam. A solidão
feliz se compara a um estado de graça. Dolto diz:
Esses momentos de graça do fenômeno humano que somos também
para nós mesmos , todos conhecemos desde a infância, quando a
solidão não sentida como amarga rejeição de nosso desejo pelo
desejo dos outros, mas quando, cansados de nos exercitarmos até que
seja dada a nossa melhor expressão, na vigília, num trabalho, ou em
nossos contatos com os outros, até o limite de nosso desejo e de nosso
poder, mergulhamos deliciosamente no sono reparador. Pois o
homem, depois dos jogos do desejo, deve voltar para seu corpo numa
solidão recuperadora de seu ser no mundo, no ritmo de sua
respiração, no esquecimento de seus pensamentos, de seus gestos, de
seus sentimentos, de si mesmo e dos seres que lhe sejam caros ou
inimigos, no mergulho em seu anonimato reassumido
257
.
_________________________________________________________________________________ ____________________
257 DOLTO, Françoise (1985). Solidão. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 401.
157
A solidão-presença é lugar de sonho, de graça.
O estado de graça de que falo não é usado para nada. É como se
viesse apenas para que se soubesse que realmente se existe. Nesse
estado, além da tranqüila felicidade que se irradia de pessoas e
coisas, há uma lucidez que só chamo de leve porque na graça tudo é
tão, tão leve. É uma lucidez de quem não adivinha mais: sem esforço,
sabe. Apenas isto: sabe.
(...)
E há uma bem-aventurança física que a nada se compara.
(...)
É apenas o estado de graça de uma pessoa comum que de súbito se
torna totalmente real porque é comum e humana e reconhecível.
As descobertas nesse estado são indizíveis e incomunicáveis.
(...)
é como se o anjo da vida viesse me anunciar o mundo
258
.
O estado de graça anuncia o mundo e este emerge da solidão: Eu nasci
amalgamada com a solidão deste exato instante e que se prolonga tanto, e tão
funda é, que já não é minha solidão mas a Solidão de Deus
259
. A partir deste lugar,
da solidão-presença, daquilo que está atrás do pensamento surge a possibilidade de
ser. Safra afirma:
Partindo da solidão essencial, o ser humano entra no mundo na
condição de exilado surpreendido, acolhido no abraço e no olhar de
alguém para que um lugar se estabeleça e um iniciar-se possa
acontecer. Esse é um lugar que se constitui no horizonte da
existência, onde se preserva a fronteira de mundos e de possibilidades
de estar
260
.
Clarice gostava de estar acompanhada. Tinha amiguinhos com quem se
aventurava a roubar rosas e pitangas, com que compartilhava a invenção de jogos
como essa casa é minha, ou de histórias que não acabavam nunca. Mas se por acaso
nenhum desses amiguinhos estivesse por perto e sentia que precisava povoar sua
_____________________________________________________________________________________________________
258 LISPECTOR, Clarice (1968). “Estado de graça - trecho”. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, pp. 91-
2. Também publicado em Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres e em Água viva.
259 ___ (1978). Um sopro de vida: pulsações. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978, p. 33.
260 SAFRA, Gilberto. A po-ética na clínica contemporânea. Aparecida, SP: Idéias & Letras, 2004, p. 24.
158
solidão, enfrentava sua timidez, se enchia de ousadia e ia ao encontro de alguém
que com ela quisesse brincar.
Por outro lado, encontrava na solidão a sua adorável gata, ou o susto das
galinhas que reclamavam porque foram interrompidas em seu eterno devaneio, ou
os banhos de mar. O pé de acácia, o jardim botânico, seu cão napolitano chamado
Dilermando ou o carioquinha Ulisses retiravam de Clarice a dor e a perplexidade:
Ter contato com a vida animal é indispensável à minha saúde
psíquica. Meu cão me revigora toda. Sem falar que dorme às vezes
aos meus pés enchendo o quarto de cálida vida úmida. O meu cão me
ensina a viver. Ele só fica “sendo”. “Ser” é a sua atividade. E ser é a
minha mais profunda intimidade
261
.
O estado de solidão dá sentido aos encontros e faz com que se acentue a
necessidade do outro. Diante do desenvolvimento emocional pode-se perceber que
em determinado momento o bebê se percebe sozinho. Winnicott considera esse
despertar intimamente relacionado com o reagir, com uma quebra na continuidade
de ser. Isto significa que o ambiente, a mãe-ambiente, não consegue manter-se
totalmente dedicada às necessidades do bebê. Em outras palavras, há uma falha na
adaptação materna. É claro que à medida que o bebê se desenvolve a mãe precisa
gradualmente proporcionar uma desadaptação. Porém, se esse desafinamento
ocorrer prematuramente o bebê ver-se-á obrigado a reagir contra a quebra da
continuidade. Essa reação, de acordo com Winnicott, contribui para a formação da
mente, do intelecto. Mas se a reação for ainda mais intensa a saída será a
psicopatologia.
Formação da mente e psicopatologia não são temas deste trabalho, portanto
_____________________________________________________________________________________________________
261 LISPECTOR, Clarice (1978). Um sopro de vida: pulsações. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978, p. 57.
159
são citados apenas como outras formas de reação do ser humano perante a ruptura
da continuidade de ser.
Caso a tranqüilidade do bebê seja rompida e ele venha a se sentir
ameaçado, a solidão se tornará um padrão. E o padrão será manter-se isolado,
incomunicável, apenas eu-comigo-mesmo. Deste modo, a solidão será uma solidão-
daquele-que-é-esquecido-pelo-outro-e-de-quem-também-esqueceu. Neste caso, a
solidão poderá ser de fato traduzida como angústia, desassossego, tristeza,
incompreensão e tantos outros nomes podem ser associados a este estado.
Esta solidão passa a ser nomeada, ganha palavras, pode ser desenhada,
quase medida e, portanto, perde a qualidade de estado e recebe, conforme os
pressupostos winnicottianos, uma função: a solidão passa a ser pensada, pesada.
Quando eu penso, estrago tudo. É por isso que evito pensar: só vou
mesmo é indo. E sem perguntas por que e para quê. Se eu penso, uma
coisa não se faz, não aconteço. Uma coisa que na certa é livre de ir
enquanto não for aprisionada pelo pensamento
262.
E Clarice diz mais:
Outra coisa que não parece ser entendida pelos outros é
quando me chamam de intelectual e eu digo que não sou. Ser
intelectual é usar sobretudo a inteligência, o que eu não faço: uso a
intuição, o instinto. Sou uma pessoa que tem um coração que por
vezes percebe, sou uma pessoa que pretendeu pôr em palavras um
mundo inintelegível e um mundo impalpável. Sobretudo uma pessoa
cujo coração bate de alegria levíssima quando consegue em uma
frase dizer alguma coisa sobre a vida humana e animal
263
.
Clarice sentia-se incomodada e perplexa ao ser qualificada como
intelectual. Quando percebia o excessivo movimento em seu entorno sentia-se
_____________________________________________________________________________________________________
262 Ibidem , p. 35.
263___ (1968). Intelectual? Não. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p. 149.
160
invadida e de algum modo mitificada:
Uma das coisas que me deixam infeliz é essa história de monstro
sagrado: os outros me temem à toa, e a gente termina se temendo a si
própria. A verdade é que algumas pessoas criaram um mito em torno
de mim, o que me atrapalha muito: afasta as pessoas e eu fico
sozinha. Mas você sabe que eu sou de trato muito simples, mesmo que
alma seja complexa
264
.
Portanto, a solidão que perde de vista o encontro com o outro se
transforma em solidão agônica, de morte. De acordo com Winnicott, sem o
encontro com o outro o indivíduo sofre uma queda no não-ser, uma queda sem
fim
265
, uma agonia impensável. Safra aponta a gravidade desta condição e afirma:
O sofrimento do não-ser emerge como agonia do não existir e como um grito sem
eco
266
.
A partir dessas considerações é essencial apresentar a solidão sob o vértice
da criatividade, de uma perspectiva ontológica. Diz Safra:
É fundamental a experiência do Outro para que se alcance a
experiência da solidão, pois a solidão implica referência a um Outro.
É preciso que haja a presença do Outro para que o não-ser seja
possibilidade de liberdade. Sem o Outro, a possível liberdade é
espaço sem fim, a solidão é não existir, facetas da agonia impensável.
O fato de o homem estar entre o ser e o não-ser faz com ele não seja
derivado das necessidades, mas seu aparecimento é surpresa em meio
às necessidades
267
.
Logo, a solidão acompanhada é uma experiência antes, chamada de um
estado que dá a possibilidade de se criar o outro, é uma experiência que sustenta o
devir. Caso contrário, a solidão sem o outro, diz Safra (2004), é solidão absoluta
_____________________________________________________________________________________________________
264 ___ (1975). De corpo inteiro . Rio de Janeiro: Artenova, 1975, p. 81.
265 WINNICOTT, Donald W. (1957). “ Sobre a contribuição da observação direta da criança para a psicanálise”. O ambiente
e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional. Porto Alegre: Artes Médicas, 1983, p.
105.
266 SAFRA, Gilberto. A po-ética na clínica contemporânea. Aparecida, SP: Idéias & Letras, 2004, p. 40.
267 Ibidem , p.62.
161
e significa que a pessoa
(...) se singulariza a partir da experiência de solidão, que é o que o
constitui. Uma pessoa que viveu este tipo de experiência não
experimenta o sentimento de solidão, ela é solidão. Do ponto de vista
clínico, não basta trabalhar essa solidão como se fosse decorrente de
uma angústia de separação, de exclusão da cena primária ou de um
ataque ao objeto. Essa solidão é anterior a qualquer uma dessas
experiências psíquicas. Ela foi constitutiva
268
.
A solidão clariceana é aquela que está atrás do pensamento, que encontrou
no toque, nas palavras, no cheiro, no balanço o acolhimento do outro, é aquela que
tem uma dimensão estética, experiencial, mas também a ultrapassa. Esta é a solidão
com a qual Clarice nasceu amalgamada, é a solidão-presença, é a experiência que
ancora a instabilidade, a precariedade e a faz mergulhar nas profundezas da alma, é
uma solidão que se faz abertura, nas palavras de Safra, uma solidão ontológica
269
.
É a partir desta abertura, desta profunda lucidez a respeito do sofrimento
que ela pode dizer de onde vem, pode dizer que emerge da escuridão: Escuridão
pululante, lava de úmido vulcão em fogo intenso. Escuridão cheia de vermes e
borboletas, ratos e estrelas
270
. Escuridão que germina em luz e se faz vida. Então,
diz Clarice: Pergunto-te em que reino estiveste de noite. E a resposta é: estive no
reino do que é livre, respirei a magna solidão do escuro e debrucei-me à beira da
lua
271
.
Entretanto, isso não significa que Clarice não experimentasse a solidão da
falta do outro, é claro que experimentava, todos experimentamos. Ela diz:
_____________________________________________________________________________________________________
268 Ibidem , p. 131.
269 SAFRA, Gilberto. Desvelando a memória do humano: o brincar, o narrar, o corpo, o sagrado, o silêncio. São Paulo:
Edições Sobornost, 2006, p. 71.
270 LISPECTOR, Clarice (1978). Um sopro de vida: pulsações. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978, p. 72.
271 Ibidem , p. 105.
162
E o que se passa na luz acesa da sala? Pensa-se uma escuridão. Não,
não se pensa. Sente-se. Sente-se uma coisa que só tem um nome:
solidão. Ler? Jamais. Escrever? Jamais. Passa-se um tempo, olha-se
o relógio, quem sabe se são cinco horas. Nem quatro chegaram.
Quem estará acordado agora? E nem posso pedir que me telefonem
no meio da noite pois posso estar dormindo e não perdoar. Tomar
uma pílula para dormir? Mas e o vício que nos espreita? Ninguém me
perdoaria o vício. Então fico sentada na sala, sentindo. Sentindo o
quê? O nada
272
.
Mas, por outro lado:
De repente no meio da noite e ter essa coisa rara: solidão. Quase
nenhum ruído. Só o das ondas do mar batendo na praia. E tomo café
com gosto, toda sozinha no mundo. Ninguém me interrompe o nada. É
um nada a um tempo vazio e rico. O mar é meu, o sol é meu, a terra é
minha
273
.
Assim, experimentando solidões, Clarice foi caminhando entre a escuridão
e a luz, entre o Oriente e o Ocidente, entre a missão e liberdade. Ela mesma diz:
vivo à beira
274
, vivo por um fio
275
: (...) entre a palavra e o pensamento existe o
meu ser
276
. Às vezes, talvez muitas, caminhando no limite:
Agora sei: sou só. Eu e minha liberdade que não sei usar. Grande
responsabilidade da solidão. Quem não é perdido não conhece a
liberdade e não a ama. Quanto a mim, assumo a minha solidão. Que
às vezes se extasia como diante de fogos de artifício. Sou só e tenho
que viver uma certa glória íntima que na solidão pode se tornar dor.
E a dor, silêncio. Guardo o seu nome em segredo. Preciso de
segredos para viver
277
.
_____________________________________________________________________________________________________
272___ (1968) “Insônia infeliz e feliz”. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p. 69.
273 Ibidem .
274 ___ (1973).Água viva. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1994, p. 16.
275___ (1978). Um sopro de vida: pulsações. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978, p. 30.
276 ___ (1978). Um sopro de vida: pulsações. Rio de Janeiro:Nova Fronteira, 1978, p. 48.
277 ___ (1973). Água viva. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1994, p. 77.
163
3 No Rosto, o silêncio
Há um grande silêncio dentro de mim. E
esse silêncio tem sido a fonte de minhas
palavras. E do silêncio tem vindo o que é mais
precioso que tudo: o próprio silêncio
278
.
Clarice sempre foi dada a brincadeiras, a invenções. Tanto que até
aprendeu a criar o silêncio: É assim: ligo o rádio bem alto então de súbito desligo.
E assim capto o silêncio. Silêncio estelar. O silêncio de lua muda. Pára tudo: criei
o silêncio. No silêncio é que mais se ouvem os ruídos
279
.
Como alguém pode querer criar o silêncio? Ela queria.
Clarice consegue transitar pelo silêncio. O silêncio para ela é plenitude e
pode ser altamente temível. Safra explica: porque o silêncio é a possibilidade que o
indivíduo pode vir a ter, de estar posto em si na vida, de maneira a pôr entre
parênteses e esquecer tudo aquilo que o define social e psicologicamente
280
. O
silêncio ganha, portanto, uma qualidade posicional.
O silêncio, como a solidão, é originalmente uma experiência estética, fruto
do encontro com outro ser humano que lhe é devotado. Safra afirma que é através
de uma forma sensorial privilegiada que se abre no indivíduo o processo de
_____________________________________________________________________________________________________
278___ (1968). “Anonimato”. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p.76. Também publicado em Uma
aprendizagem ou o livro dos prazeres. Rio de Janeiro: Sabiá, 1973, p. 74.
279___ (1978). Um sopro de vida: pulsações. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978, p. 52.
280 Apud PERDIGÃO, Andréa Bomfim. “Experiência de lugar”. Sobre o silêncio. São José dos Campos, SP: Pulso, 2005, p.
113.
164
constituição da subjetividade e do estilo de ser. De modo que ultrapassa o que
comumente se entende por silêncio estado livre de sons, de ruídos.
A sonoridade é um dos elementos que marcam a presença da mãe. Mas não
é somente a fala, canções ou melodias que avisam ao bebê que está acompanhado, o
cheiro, a respiração, eventuais espirros também vão assinalando que há alguém por
perto. O manejo do corpo do bebê para mamar, para ser trocado ou, simplesmente,
para ser acolhido nos braços também vai apresentando formas sensoriais que
indicam presença. Porém, há algo que acontece entre esses encontros e que coloca o
bebê em determinada posição, em expectativa: o silêncio.
O mundo do bebê, em seu começo, é muito simples um campo aberto a
experiências. Se o bebê está acordado e não há qualquer vestígio de mãe, ele
aguarda um tempinho para “ver” o que acontece. Este tempinho enquanto aguarda é
o seu silêncio. É o seu silêncio de ser, é o encontro consigo mesmo em expectativa
de.
O silêncio se rompe quando alguém aparece e oferece um afago, uma nova
fralda, um seio, um olhar. O silêncio ganha a marca humana e torna-se pleno. O
silêncio espaçoso me interrompe, me deixa o corpo num feixe de atenção intensa e
muda. Fico à espreita de nada. O silêncio não é o vazio, é a plenitude
281
.
O silêncio-plenitude é realização. É uma experiência que vai além da
questão estética, da corporeidade e se dirige para um novo lugar, para uma nova
dimensão. De acordo com Safra o silêncio é uma experiência de lugar. Este novo
lugar não é nem dentro e nem fora do indivíduo, mas é entre o bebê e a mãe, é entre
_____________________________________________________________________________________________________
281 LISPECTOR, Clarice (1978). Um sopro de vida: pulsações. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978, p. 53.
165
ser e não-ser, é lugar da precariedade, da instabilidade, é um lugar que não ocupa
um espaço, é potência, é mistério. Assim, conta Clarice:
Vou agora te contar como entrei no inexpressivo que sempre foi a
minha busca cega e secreta. De como entrei naquilo que existe entre o
número um e o número dois, de como vi a linha de mistério e fogo, e
que é linha sub-reptícia. Entre duas notas de música existe uma nota,
entre dois fatos existe um fato, entre dois grãos de areia por mais
juntos que estejam existe um intervalo de espaço, existe um sentir que
é entre o sentir nos interstícios da matéria primordial está a linha
de mistério e fogo que é a respiração do mundo, e a respiração
contínua do mundo é aquilo que ouvimos e chamamos de silêncio
282
.
Nos interstícios da vida, para Clarice, está o silêncio. O silêncio ao mesmo
tempo é pleno e pleno de possibilidades. É um lugar que contém em si o paradoxo.
Diz Safra: Somente o paradoxo contempla a condição humana como ser no mundo
e sempre para além dele
283
. Esta faceta paradoxal do silêncio apresenta ao
indivíduo a sua contingência, que é pré-existente e que o acompanhará sempre.
Nesta perspectiva, o silêncio se coloca como um aspecto da condição
ontológica do ser humano. De acordo com Safra: O homem, no cerne de si mesmo,
carrega o silêncio. Nas fraturas éticas, freqüentemente, o homem experimenta
terror ao vislumbrar a sua condição ontológica e, em conseqüência disso, não pode
viver o silêncio como serenidade
284
.
Se o silêncio se coloca no indivíduo como uma experiência, um lugar ou
como presença do outro então é experimentado como apaziguamento, como lugar
em que o ser repousa na presença da quietude. Por outro lado, se o silêncio foi
_____________________________________________________________________________________________________
282___ (1964). A paixão segundo G.H. Edição Crítica, Benedito Nunes, coordenador. 2
a.
ed. Madrid; Paris, México; Buenos
Aires; São Paulo; Rio de Janeiro; Lima: ALLCA XX/ Edusp, 1996, p. 64.
283 SAFRA, Gilberto. A po-ética na clínica contemporânea. Aparecida, SP: Idéias & Letras, 2004, p. 44.
284 SAFRA, Gilberto. Hermenêutica na situação clínica: o desvelar da singularidade pelo idioma pessoal . São Paulo:
Edições Sobornost, 2006, p. 33.
166
vivido desacompanhado, então será experimentado como algo temível, terrível,
ameaçador, conseqüência da experiência da solidão sem o outro.
Silêncios. Que silêncios serão estes? Safra define alguns:
Silêncio-temor: surge (...) quando as pessoas temem a solidão. A solidão
que é temida não é a possibilidade de se estar só, mas o horror vivido, decorrente
de a pessoa se sentir abandonada, esquecida por alguém; ficar em silêncio pode
significar estar abandonado, o que é muito complicado
285
.
Silêncio-do-estranho-em-si: nesta posição o indivíduo é atravessado por
alguns afetos e sentimentos que não se constituíram como experiência de si mesmo.
No momento em que o silêncio emerge nesse registro, aquilo que a pessoa carrega
em si é estranho é um outro em si e tende a ganhar visibilidade, expressão. Isso
causa um outro tipo de temor que já não é só o da solidão, mas o estranho em si
286
.
Silêncio-mistério: neste, o silêncio revela à pessoa sua condição humana, é
expectativa, é pré-anúncio. Aí o silêncio a informa da sua incompletude, da sua
precariedade; do fato de que ela é um buraco aberto para o outro, aberto para o
seu futuro que é alguma coisa que ela não sabe o que é. Ela pode até datar
“nasci desses pais e nessa situação”, mas sua vida é um mistério
287
.
Clarice, no texto usado como epígrafe deste capítulo, diz haver dentro dela
há um grande silêncio, silêncio que é a fonte de suas palavras. O silêncio
clariceano não pode ser localizável, de modo concreto, em sua biografia. Nos
_____________________________________________________________________________________________________
285 Apud PERDIGÃO, Andréa Bomfim. “A experiência de lugar”.Sobre o silêncio. São José dos Campos,SP: Pulso, 2005, p.
115.
286 Ibidem.
287 Ibidem.
167
registros é possível encontrar os mais diversos sofrimentos enfrentados por ela ao
longo de sua história, indicando de alguma maneira como sua singularidade foi
afetada. Tanto a solidão como o silêncio se apresentaram na vida de Clarice
apontando a contingência da condição humana.
Através de Lóri, protagonista do romance Uma aprendizagem ou O livro
dos prazeres, é possível presenciar o silêncio clariceano. A jovem escreve:
“É tão vasta a noite na montanha. Tão despovoada. A noite
espanhola tem o perfume e o eco duro do sapateado da dança, a
italiana tem o mar cálido mesmo se ausente. Mas a noite de Berna
tem o silêncio.
Tenta-se em vão ler para não ouvi-lo, pensar depressa para disfarçá-
lo, inventar um programa, frágil ponte nos liga ao subitamente
improvável dia de amanhã. Como ultrapassar essa paz que nos
espreita. Montanhas tão altas que o desespero tem pudor. Os ouvidos
se afiam, a cabeça se inclina, o corpo todo escuta: nenhum rumor.
Nenhum galo possível. Como estar ao alcance dessa profunda
meditação do silêncio? Desse silêncio sem lembrança de palavras. Se
és morte, como te abençoar”
288
.
Lóri diz mais:
É um silêncio, Ulisses, que não dorme: é insone: imóvel mas insone e
sem fantasmas. É terrível sem nenhum fantasma. Inútil querer
povoá-lo com a possibilidade de uma porta que se abra rangendo, de
uma cortina que se abra e “diga” alguma coisa. Ele é vazio e sem
promessa. Como eu, Ulisses? Mas este silêncio não deixa provas. Não
se pode falar do silêncio como se fala da neve. O silêncio é a
profunda noite secreta do mundo
289
.
Mas há um momento em que do corpo descansado se ergue o espírito
atento, e da Terra e da Lua. Então ele, o silêncio, aparece. E o
coração bate ao reconhecê-lo: pois ele é o de dentro da gente.
Pode-se depressa pensar no dia que passou. Ou nos amigos que
passaram e para sempre se perderam. Mas é inútil esquivar-se: há o
silêncio. Mesmo o sofrimento pior, o da amizade perdida, é apenas
_____________________________________________________________________________________________________
288 LISPECTOR, Clarice (1969). Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres. Rio de Janeiro: Sabiá, 1973, pp.33-4.
Aqui há uma alusão ao poema de João Cabral de Melo Neto “Tecendo a manhã”: “Um galo sozinho não tece uma manhã:/ ele
precisará sempre de outros galos”. Clarice e J. Cabral eram amigos e “pernambucanos”. NETO, Jõao Cabral de Melo. Obras
Completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p. 345.
289 Ibidem , p. 34.
168
fuga. Pois se no começo o silêncio parece aguardar uma resposta
como arde, Ulisses, por ser chamada e responder cedo se descobre
que de ti ele nada exige, talvez apenas o teu silêncio
290
.
O silêncio em Clarice parece apresentar nuances de uma experiência em
que não há presença do outro. Não se trata disso. Este silêncio registrado pela
autora é um silêncio dolorido porque experimenta, no momento, a falta do encontro,
a falta da presença do outro. Então, se é possível experimentar a falta é porque o
outro já esteve presente. É uma presença esperada. A presença reclamada é aquela
que está assentada na corporeidade, no registro estético do encontro. Todavia, à
medida que o silêncio se integra ao eu do sujeito como um lugar, então, ele é o de
dentro da gente.
Para Clarice, o silêncio de dentro é aquele revelador, é constitutivo de uma
posição diante da existência, é aquele que anuncia o mistério:
Mas como era antes o meu silêncio, é que eu não sei e nunca soube.
Às vezes, olhando um instantâneo tirado na praia ou numa festa,
percebia com leve apreensão irônica o que aquele rosto sorridente e
escurecido me revelava: um silêncio. Um silêncio e um destino que
me escapavam, eu, fragmento hieroglífico de um império morto ou
vivo. Ao olhar o retrato eu via o mistério. Não. Vou perder o resto do
medo do mau gosto, vou começar meu exercício de coragem, viver
não é coragem, saber que se vive é coragem e eu vou dizer que na
minha fotografia eu via O Mistério. A surpresa me tomava de leve, só
agora eu estou sabendo que era uma surpresa o que eu tomava: é que
nos olhos sorridentes havia um silêncio como só vi em lagos, e como
só vi no silêncio mesmo
291
.
Não se trata apenas de um aspecto expressivo registrado na fotografia, o
que se contempla é um rosto que traduz a face do silêncio, do silêncio de ser.
____________________________________________________________________________________________________
290 Ibidem , p. 35.
291___ (1964). A paixão segundo G.H. Edição Crítica, Benedito Nunes, coordenador. 2
a.
ed. Madrid; Paris, México; Buenos
Aires; São Paulo; Rio de Janeiro; Lima: ALLCA XX/ Edusp, 1996, p. 18.
169
Segundo Safra ser um Rosto é uma das possibilidades de existir no mundo humano:
O Rosto assinala a pessoa que, mesmo estando no mundo humano, está sempre
para além dele. Possibilidade para aqueles que puderam integrar sua condição de
instabilidade por meio do gesto criativo frente ao Outro
292
. O silêncio, em Clarice,
é Rosto.
E o primeiro verdadeiro silêncio começou a soprar. O que eu havia
visto de tão tranqüilo e vasto e estrangeiro nas minhas fotografias
escuras e sorridentes aquilo estava pela primeira vez fora de mim e
ao meu inteiro alcance, incompreensível mas ao meu alcance
293
.
Neste lugar em que se encontra o si mesmo também emerge o não-eu de
Clarice, dentro deste território matizado pelo paradoxo. Como diz Safra: (...) para
falar de um ser humano é preciso utilizar-se não de conceitos, mas sim de uma
linguagem que acolha o paradoxo que é o homem: poesia e literatura
294
.
_____________________________________________________________________________________________________
292 SAFRA, Gilberto. A po-ética na clínica contemporânea. Aparecida, SP: Idéias & Letras, 2004, p. 66.
293 ___ (1964). A paixão segundo G.H. Edição Crítica, Benedito Nunes, coordenador. 2
a.
ed. Madrid; Paris, México; Buenos
Aires; São Paulo; Rio de Janeiro; Lima: ALLCA XX/ Edusp, 1996, p. 42.
294 SAFRA, Gilberto. A po-ética na clínica contemporânea. Aparecida, SP: Idéias & Letras, 2004, p. 66.
170
4 A palavra, quarta dimensão
Eu escrevo como se fosse
para salvar a vida de alguém.
Provavelmente
a minha própria vida
295
.
A escrita visitou Clarice, como foi visto, nos quintais de sua infância, antes
mesmo de ela aprender a ler e escrever. Sem conhecer a escrita propriamente dita,
Clarice inventava suas histórias na tentativa de driblar o difícil cotidiano: fazia da
imaginação sua salvação.
Diante das condições de seu nascimento, das dificuldades do dia-a-dia, da
doença e morte da mãe, o sofrimento foi companheiro inseparável. Clarice,
diferentemente da maioria das outras crianças, não pôde contar com a mobilidade
do corpo da mãe, era paralítica. É certo que a menina sentiu, através da mãe, o
torpor em seu próprio corpo. Por outro lado, experimentou sua presença constante.
O contato direto com esta realidade contribuiu para que, desde muito cedo,
conhecesse a fundo a precariedade do viver.
Esse contato tão direto com as dores do mundo potencializou sua
compreensão do sofrimento humano a ponto de dizer: Eu agüento porque comi
minha própria placenta
296
. E a escrita foi um modo de sobreviver e, ao mesmo
tempo, um lugar para onde podia ir encontrar amparo, segurança. Eu me refugiei em
_____________________________________________________________________________________________________
295 LISPECTOR, Clarice (1978). Um sopro de vida: pulsações. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978, p.11.
296 ___ (1973).Água viva. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1994, p.40.
171
escrever
297
. Refugio-me nas rosas, nas palavras. Pobre consolação
298
.
Provavelmente, tudo começou com as histórias que não acabavam nunca,
depois escreveu uma história em quatro páginas, Pobre menina rica, e tentou
publicar outras que narravam sensações no caderno infantil do jornal de Recife.
Mas é por volta dos treze ou quatorze anos que Clarice toma, conforme suas
palavras, posse de um destino, da vontade de escrever
299
. Na época escrevia
pequenos contos. Esses foram reunidos e publicados postumamente no livro A bela
e a fera.
Desde menina era uma devoradora de livros, escolhia os títulos seguindo
sua intuição. À medida que foi criando seu universo diante das letras, foi se
encaminhando para a grande literatura, Herman Hesse, Fiódor Dostoievski, Eça de
Queiroz, Machado de Assis, Katherine Mansfield. Esses autores, principalmente
Hesse e Mansfield, bem como a sua história pessoal e seu cotidiano, mostraram à
mocinha seu rosto. Entre as palavras dos autores, e o que não compreendia em si,
Clarice foi se reconhecendo.
Influenciada pelas leituras e perplexa com suas descobertas ficou um tanto
confusa: escrevia, escrevia, escrevia, e os papéis se amontoavam, e a história
continuava, sem-fim estava em uma espécie de vórtice vórtice que é se pôr em
estado de criação
300
. Neste estado não poderia permanecer. A interrupção era
necessária. Rasgou os papéis e os jogou fora.
No entanto, o destino é implacável. A escrita era o caminho, e era,
_____________________________________________________________________________________________________
297 ___ . De corpo inteiro. Rio de Janeiro: Artenova, 1975, p. 80.
298 ___ (1978). Um sopro de vida: pulsações. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978, p. 53.
299 ___ (1970). “Escrever”. A descoberta do mundo.Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p. 286.
300 ___ (1978). Um sopro de vida: pulsações. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978, p.72.
172
inclusive, o beco: Eu escrevo para fazer existir e para existir-me. Desde criança
procuro o sopro da palavra que dá vida aos sussurros
301
. Assim, as palavras
começaram a visitá-la e as frases, aparentemente, descompromissadas espocavam
reluzindo em sua alma. A escrita não parecia ser um ato deliberado. Parecia emergir
desta espécie de vórtice, resultado de sua extrema lucidez a respeito das questões
que conhecia, que via ao vivo.
Sua escrita foi se compondo a partir de experiências que, de algum modo,
comunicavam a contingência da existência e que reclamava pela essência, pela sua
própria essência:
E eis que percebo que quero para mim o substrato vibrante da
palavra repetida em canto gregoriano. Estou consciente de que tudo o
que sei não posso dizer, só sei pintando ou pronunciando, sílabas
cegas de sentido. E se tenho aqui que usar-te palavras, elas têm que
fazer um sentido quase que só corpóreo, estou em luta com a vibração
última. Para te dizer o meu substrato faço uma frase de palavras
apenas dos instantes-
302
.
A escrita não era apenas profissão para Clarice. As palavras contribuíam
para mediar suas angústias, tanto que ela própria afirmou: Eu não agüento o
cotidiano. Deve ser por isso que escrevo
303
. E diz mais: (...) eu que escrevo para
me livrar da carga difícil de uma pessoa ser ela mesma
304
.
O ato de escrever a levava ao âmago de si mesma, isto justificava a sua
“incapacidade” de escrever sob encomenda. Não era possível marcar o papel sem se
comprometer, se entregar, se delatar pelo menos um pouco. Embora afirmasse que
_____________________________________________________________________________________________________
301___ (1978). Um sopro de vida: pulsações. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978, p. 94.
302 ___ (1973).Água viva. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1994, p. 15.
303 ___ (1978). Um sopro de vida: pulsações. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978, p. 17.
304 Ibidem , p.16.
173
sua obra não era autobiográfica, Clarice contava de si em sua escritura, deixava
transparecer que tinha a intenção de se aproximar cada vez mais de seu eu, mesmo
que tocasse naquilo que desconhecia ou que mexesse na face oculta de si. Afinal
(...) equilibro-me como posso entre mim e eu, entre mim e os homens, entre mim e o
Deus
305
.
Como uma malabarista, Clarice vai captando uma nova dimensão de si.
Sobre a corda, seu estado é delicado e a sensação de risco é maior. Sobre a corda e
dedicada a “ver” os dois lados, a queda pode, como diz, arrancar sangue:
Tenho medo de escrever. É tão perigoso. Quem tentou sabe. Perigo
de mexer no que está oculto e o mundo não está à tona, está oculto
em suas raízes submersas em profundidades do mar. Para escrever
tenho que me colocar no vazio. Neste vazio é que existo
intuitivamente. Mas é um vazio terrivelmente perigoso: dele arranco
sangue. Sou um escritor que tem medo da cilada das palavras: as
palavras que digo escondem outras quais? talvez as diga. Escrever
é uma pedra lançada no poço fundo
306
.
O escrever é perigoso e, além disso, difícil (...) porque toca nas raias do
impossível
307
. Para a autora o perigo está em revelar aquilo que deve ser mantido
em segredo, em formular uma pergunta que não tem resposta. O perigo é justamente
encontrar uma resposta. O perigo é trazer à tona o indizível, o ininteligível. É deixar
que o oculto impetuosamente surja das profundezas abissais e mostre o “outro
lado”. Assim, o encontro com a barata
307
, fio condutor em A paixão segundo G.H.,
é inevitável.
Eu me pergunto: se eu olhar a escuridão com uma lente, verei mais
_____________________________________________________________________________________________________
305 Ibidem , p.85.
306 Ibidem , p. 13.
307 Ibidem , p. 62.
308 ___ (1964). A paixão segundo G.H. Edição Crítica, Benedito Nunes, coordenador. 2
a.
ed. Madrid; Paris, México; Buenos
Aires; São Paulo; Rio de Janeiro; Lima: ALLCA XX/ Edusp, 1996.
174
que a escuridão? a lente não devassa a escuridão, apenas a revela
ainda mais. E se eu olhar a claridade com uma lente, com um choque
verei apenas a claridade maior. Enxerguei mas estou tão cega quanto
antes porque enxerguei um triângulo incompreensível. A menos que
eu também me transforme no triângulo que reconhecerá no
incompreensível triângulo a minha própria fonte e repetição
309
.
Apesar de pressentir o perigo, Clarice não se esquivava. Se uma inspiração
lhe batesse à porta, ela respondia:
(...) morro de medo porque sei que de novo vou viajar e sozinho num
mundo que me repele. Mas meus personagens não têm culpa disso e
eu os trato o melhor possível. Eles vêm de lugar nenhum. São a
inspiração. Inspiração não é loucura. É Deus. Meu problema é o
medo de ficar louco
310
.
Se por um lado, o escrever tinha a face assustadora de desvelar o âmago do
desassossego; por outro, se fazia sonho. No ato de escrever eu atinjo aqui e agora o
sonho mais secreto, aquele que eu não me lembro dele ao acordar. No que escrevo
só me interessa encontrar meu timbre
311
.
É nesta atmosfera de sonho que procurava atingir sua realidade (...) com a
vida pobre eu me salvo dela através de meu imaginário. Só que meu imaginário
não se faz através de ações e sim através do sentir-pensar que na verdade é sonho
312
. O sentir-pensar se materializa em palavras e dele brota a frase, que brota uma
história interminável, que brota um conto, que brota um livro, que brota Perto do
coração selvagem e que brotou toda sua obra:
Tudo o que aqui escrevo é forjado no meu silêncio e na penumbra.
Vejo pouco, ouço quase nada. Mergulho enfim em mim até o
nascedouro do espírito que me habita. Minha nascente é obscura.
____________________________________________________________________________________________________
309 Ibidem , p. 15.
310 ___ (1978). Um sopro de vida: pulsações. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978, p. 15.
311 Ibidem , p. 73.
312 Ibidem , p. 73.
175
Estou escrevendo porque não sei o que fazer de mim. Quer dizer: não
sei o que fazer com o meu espírito. O corpo informa muito. Mas eu
desconheço as leis do espírito: ele vagueia. Meu pensamento, com a
enunciação das palavras mentalmente brotando, sem depois eu falar
ou escrever esse meu pensamento de palavras é precedido por uma
instantânea visão, sem palavras, do pensamento palavra que se
seguirá, quase imediatamente diferença espacial de menos que um
milímetro
313
.
Antes, bem antes, antes do começo, antes de encontrar a barata Eu estava
habituada somente a transcender. Esperança para mim era adiamento. Eu nunca
havia deixado a minha alma livre, e me havia organizado depressa em pessoa
porque é arriscado demais perder-se a forma
314
, lembra G.H
315
. Depois do
encontro (...) para mim mesmo acabou-se a minha inocência e estou mais em face
de uma obscura realidade que eu quase, quase, pego na mão. É uma verdade
secreta, sigilosa, e eu às vezes me perco no que ela tem de fugidia
316
.
A quarta dimensão se faz palavra última e esta se faz salvação que
aprofunda e alarga o tempo
317
. Clarice diz: Eu não faço literatura: eu apenas vivo
ao correr do tempo. O resultado fatal de eu viver é o ato de escrever
318
.
E escrever:
(...) é uma maldição. (...) mas uma maldição que salva. É uma
maldição porque obriga e arrasta como um vício penoso do qual é
quase impossível se livrar, pois nada o substitui. É uma salvação.
Salva a alma presa, salva a pessoa que se sente inútil, salva o dia que
se vive e que nunca se entende a menos que se escreva. Escrever é
procurar entender, é procurar reproduzir o irreproduzível, é sentir
_____________________________________________________________________________________________________
313 Ibidem , p. 16.
314 ___ (1964). A paixão segundo G.H. Edição Crítica, Benedito Nunes, coordenador. 2
a.
ed. Madrid; Paris, México; Buenos
Aires; São Paulo; Rio de Janeiro; Lima: ALLCA XX/ Edusp, 1996, p. 94.
315 G.H. protagonista de A paixão segundo G.H.
316 ___ (1978). Um sopro de vida: pulsações. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978, p. 36.
317 ___ (1968) “Aprofundamento das horas”. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p. 152.
318___ (1978). Um sopro de vida: pulsações. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978, p. 15.
176
até o último fim o sentimento que permaneceria apenas vago e
sufocador. Escrever é também abençoar a vida que não foi abençoada
319
.
_____________________________________________________________________________________________________
319 ___ (1968) “Escrever”. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p.134.
177
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Retomando as questões que norteiam este estudo, derivadas da idéia
central:
Como é possível apreender a singularidade de determinada pessoa sem
aprisioná-la? A singularidade que é formada por elementos que dão matiz
inédito à pessoa. Como encontrar esses elementos que compõem o modo de
ser? Na mesma senda, dialogando com Clarice Lispector, é possível
apreender os aspectos mais fundamentais que acompanham sua marcha pela
vida?
Na reflexão acerca das principais questões que constituem o modo de ser
de determinada pessoa contei com a companhia de Clarice Lispector, sustentada
epistemologicamente pelas concepções psicanalíticas de Gilberto Safra.
Este estudo se iniciou com a história pessoal de Clarice. Não para
satisfazer curiosidades, ou para compor uma anamnese, mas para testemunhar um
percurso. Uma história para apontar o pessoal que, entrelinhas, torna-se impessoal,
porque conta a vida de muitos: a minha, a tua, a nossa. História que se faz “Vida”
no berço até as flores-de-lis sobre o peito.
Para Safra o ser humano acontece entre dois pólos: a dimensão do
originário e o fim último. A questão originária emerge como uma questão, enquanto
o fim se coloca como resposta. O autor afirma que esta questão não muda ao longo
da vida da pessoa, mas é re-posicionada a cada momento de sua existência.
178
Cada ser humano está singularizado por uma pergunta, que está
sempre presente em seu berço. Ela esboça desde os primeiros gestos
da criança, no movimento que faz em direção ao Outro, nos sentidos
que se descortinam. O modo como a questão é encontrada por ela dá
a ela seu lugar na vida familiar. As famílias organizam-se ao redor de
mitos e estes são constituídos pelas formulações que, através de
gerações, foram feitas por elas, para que seus membros possam lidar
com as questões fundamentais que marcaram a história familiar. O
bebê constitui-se nesse campo. Ele porta essas questões enraizadas na
organização mítica que caracteriza sua família e que se estende à
comunidade e que, por sua vez, relacionam-se, ontologicamente , às
grandes questões de toda a humanidade
320
.
Safra afirma que existe um momento em que a pessoa se acolhe e se
assenta nesta questão originária, apropriando-se de seu modo de ser. É nesse ponto
que o ser humano se apossa de sua vocação e insere o inédito, decorrente da sua
forma de ser, na história humana
321
.
Clarice Lispector no seu começo foi Haia, a esperança de “Vida”. Depois
virou Clarice. Me deram um nome e me alienaram de mim
322
. Ao lhe darem um
nome, o seu eu passou a ser pessoal, retiraram a total impessoalidade que até o
momento possuía. Mas, como vimos, ela guardou para si alguns elementos que
podem sustentar seu it :
Mas há também o mistério do impessoal que é o “it”: eu tenho o
impessoal dentro de mim e não me é corrupto e apodrecível pelo
pessoal que às vezes me encharca: mas seco-me ao sol e sou um
impessoal de caroço seco e germinativo
323
.
Podemos através da história de vida e de sua vocação vislumbrar a relação
do pessoal com o impessoal, ver como foram se articulando os elementos
____________________________________________________________________________________________________
320 SAFRA, Gilberto. A po-ética na clínica contemporânea. Aparecida, SP: Idéias & Letras, 2004, pp. 69-0.
321 Ibidem , p. 83.
322___ (1978). Um sopro de vida: pulsações. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978, p. 15.
323 ___ (1973).Água viva. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1994, p. 34.
179
que compunham a questão fundamental de Clarice. Safra afirma:
(...) o ser humano tem em seu modo de ser a possibilidade de mover-
se continuamente em meio aos acontecimentos de sua vida ao longo
do tempo (registro ôntico), ao mesmo tempo em que sua própria
questão originária lhe revela os fundamentos de si mesmo (registro
ontológico). Desse modo, o ser humano pode ser visto como um ente
ontico-ontológico cujo cerne é uma questão e uma pré-compreeensão
do ser
324
.
Em Clarice podemos acompanhar de modo claro as assertivas de Safra. A
dimensão ôntica se faz pelas experiências que podem facilmente ser contadas. No
decorrer deste estudo procurei tecer os fios da biografia de Clarice. Maneira de
conhecer um pouco mais sobre o registro ôntico, que é, segundo Safra, uma
situação ou experiência que ocorre no espaço e tempo, na existência, isto é, na
biografia de uma pessoa
325
.
A dimensão ontológica se coloca como um conhecimento que não encontra
sustentação na razão e ultrapassa os registros representacionais. Safra afirma que o
registro ontológico está presente antes mesmo de se ser, (...) é pré-existente e
fundante, contendo o homem desde sempre
326
. E diz mais:
(...) a condição ontológica do ser humano é compreensão antes que se
possa acessar algo mentalmente. Isto é fundamental: o ser humano,
de antemão é pré-compreensão, ou seja, é ontologicamente aberto ao
sentido, possui um saber do qual nem sempre lhe é possível se
apropriar. Isto é o que faz do ser humano um hermeneuta
327
.
Essa dimensão se manifesta como aquele que vê por trás da retina, como
_____________________________________________________________________________________________________
324 SAFRA, Gilberto. Hermenêutica na situação clínica: o desvelar da singularidade pelo idioma pessoal. São Paulo:
Edições Sobornost, 2006, p.22.
325 Ibidem , p.27.
326 Ibidem .
327 Ibidem ,p.84.
180
aquele que está atrás do pensamento mais atrás ainda
328
. É a dimensão do
impessoal, do “it” que acompanha todas as pessoas, que contém homem desde
sempre, é o ser que se revela pela poesia.
De acordo com Safra, os registros ônticos e ontológicos de maneira
concomitante acompanham a caminhada do ser humano pela existência. Então, se
andam juntos, conseqüentemente, um afeta o outro e vice-versa, são as interfaces do
percurso humano. Diz o autor:
De fato, os dois registros de experiência caminham juntos. Embora
estejamos continuamente atravessados pelos acontecimentos
biográficos (ônticos), eles nos abrem continuamente para as questões
ontológicas. Há um fluir no homem que acontece em meio a estes dois
registros: ôntico e ontológico. Esse aspecto do ser humano faz com
que o homem, em sua estrutura fundamental, seja paradoxo. Como
ser paradoxal, o homem é finito que anseia o infinito, limitado que
vive o ilimitado, criatura que anseia por um criador. É um ser que
vive entre agonias impensáveis e o terror do totalmente pensado
329
.
Esses registros são formados por elementos que vão matizando a
singularidade da pessoa. Vimos em “Da solidão de não pertencer à quarta
dimensão” o registro ôntico, gradualmente, perdendo sua força para deixar surgirem
elementos que revelam uma outra faceta.
A missão: Clarice nasce para cumprir a tarefa de salvar a mãe. Esta situação
é pré-existente ao nascimento e define aquele que está por vir: (...) eu sofro (...)
porque estou preso dentro de uma estreita gaiola de forçada higiene mental. Sofro
mais porque não digo porque sofro
330
. A missão impede a pessoa que ela, por si só,
_____________________________________________________________________________________________________
328 ___ (1973).Água viva. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1994, p. 47.
329 SAFRA, Gilberto. Hermenêutica na situação clínica: o desvelar da singularidade pelo idioma pessoal. São Paulo:
Edições Sobornost, 2006, p. 27.
330 LISPECTOR, Clarice (1978). Um sopro de vida: pulsações. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978, p. 40.
181
encontre os elementos que lhe dão a medida de quem é, que localize o seu lugar na
família, na comunidade. No entanto, a pessoa submetida a uma situação de missão
pode se recolocar diante da existência se outros elementos surgirem para resgatá-la,
mas fica como uma marca indelével, que lhe foi posto antes do nascimento e se
manterá até a morte.
A missão, como vimos, fixa elementos dando à pessoa a sensação de ser
estranha para si mesma. É uma solidão de não pertencer. Uma solidão de não
pertencer a si própria. Na missão se obtura o inédito porque já estão presentes
alguns elementos que definem o ser, em uma linguagem winnicottiana poderíamos
dizer que já está definido o objeto subjetivo
331
. A partir da missão encontramos o
elemento do não pertencer e o anseio de pertencer. O não pertencer vai se
expressando como elemento ôntico. Por exemplo, Clarice sentia que havia nascido
de graça; ou que havia provocado a paralisia na mãe; ou ainda, uma vida marcada
pela itinerância. Por outro lado, vai norteando a dimensão ontológica de Clarice à
medida que se torna abertura e a faz se encontrar com as questões que são suas, mas
que também acolhem o sofrimento do outro.
Atrás do pensamento: Neste capítulo, tentamos chegar à solidão, através de
reflexões que legitimassem o lugar de experiência constitutiva. A solidão também
tem sua dimensão ôntica, se coloca a todo o momento em nossa vida, como vimos
ela também se pôs ao lado de Clarice. Porém, a solidão clariceana vai se fazendo,
de modo claro, experiência ontológica: aquela que está atrás do pensamento é
solidão-presença, é a experiência que ancora a instabilidade e a faz mergulhar
___________________________________________________________________
331 O objeto subjetivo é o primeiro objeto do ser humano, onde não diferenciação entre o bebê e o mundo, entre o bebê e a
mãe, entre o eu e o não-eu. entretanto, é com ele que se começa a existir e se começa o processo do sentido de si mesmo .
182
nas profundezas da alma, depois emergindo, tomada pela lucidez.
No Rosto, o silêncio: O silêncio é essencialmente uma experiência
ontológica, que às vezes se apresenta como estética. É uma experiência concebida
como lugar que acolhe o entre, o entre ser e não-ser, que acolhe a precariedade, que
acolhe o mistério e, por isso se faz, ao mesmo tempo, pleno e aberto.
Esta faceta paradoxal do silêncio apresenta ao indivíduo a sua
contingência, que é pré-existente e que o acompanhará até a morte. Nesta
perspectiva, o silêncio se coloca como um elemento originário da condição
ontológica do ser . Segundo Safra o silêncio pode ser registrado da seguinte
maneira:
Silêncio-temor: a experiência do abandono;
Silêncio-do-estranho-em-si: experiência do atravessamento por elementos
que não fazem parte de si;
Silêncio-mistério: experiência de expectativa, de revelação da condição
humana.
O silêncio clariceano não pode ser localizável e tocado pela razão. É uma
presença esperada que anuncia o mistério e que revela o Rosto da contingência
humana.
Por esses elementos fundamentais que compõem o modo de ser de Clarice
não pertencer, solidão e silêncio refletimos sobre os registros ôntico-ontológico
que acompanham o ser humano durante a vida. Porém, há ainda, conforme as
concepções de Safra, um terceiro registro: a ontologia. Ontologia é, para ele,
183
(...) todo sistema representacional que uma pessoa ou um grupo de
pessoas cria por meio do discurso e das imagens, procurando
abordar uma concepção sobre a origem de si e/ou do mundo. A
ontologia emerge em decorrência da condição fundamental do ser
humano de estar sempre aberto ao ser, ao mesmo tempo em que se
encontra em meio aos acontecimentos do mundo
332
.
A ontologia é uma construção que a pessoa faz e que está relacionada tanto
com a história pessoal quanto com as experiências ontológicas. Safra diz:
O sofrimento decorrente da biografia de uma pessoa revela os
aspectos fundamentais, ontológicos, de sua condição humana. O
sofrimento é a esperança! A apropriação desse saber, proporcionada
pelo encontro com o outro, lhe permite que o seu gesto re-posicione
as questões fundamentais sobre o destino humano, recriando o
sentido de sua existência
333
.
A palavra: sua quarta dimensão: Clarice desde muito cedo tentou re-
posicionar suas questões, abrindo espaços para recriar o sentido de sua existência, e
o fez via escrita. A ontologia de Clarice foi se revelando pela palavra A última
palavra será a quarta dimensão
334
. Na palavra encontrou a salvação. E da salvação
fez seu fim último.
Safra reuniu os principais aspectos que revelam o ser e o denominou de
idioma pessoal. Idioma pessoal é (...) a maneira pela qual o modo de ser de alguém
se apresenta no seu gesto, no seu mundo, na sua linguagem
335
. Safra afirma que
encontramos três grandes modos de ser na atualidade. São eles: bidimensionais,
tridimensionais e os abismais.
_____________________________________________________________________________________________________
332 SAFRA, Gilberto. Hermenêutica na situação clínica: o desvelar da singularidade pelo idioma pessoal. São Paulo:
Edições Sobornost, 2006, pp. 27-8.
333 Ibidem , p. 30.
334 LISPECTOR, Clarice (1978). Um sopro de vida: pulsações. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978, p. 22.
335 SAFRA, Gilberto. Hermenêutica na situação clínica: o desvelar da singularidade pelo idioma pessoal. São Paulo:
Edições Sobornost, 2006, p. 82.
184
Bidimensionais: (...) é o modo de ser de pessoas que vivem reduzidas à mera
imagem estética midiatizada ou mero signo social
336
.
Tridimensionais: (...) tem um modo de ser que se enraíza em sua
interioridade. A sua constituição é dialógica. O Outro é referência fundamental em
seu modo de ser
337
.
Abismais:
São pessoas que, em decorrência das questões que a visitaram em seu
berço ou pelo fato de terem sido atravessadas por acontecimentos em
sua história, dizem o inédito. Elas são profundamente lúcidas em
relação ao registro ontológico da condição humana (...) estão
continuamente conscientes da condição ontológica do ser humano. O
que pode ser complicado, dependendo do destino que elas consigam
dar a esta lucidez que as constitui
338
.
Safra ressalta que os abismais são, na maioria das vezes, (...) pessoas
lúcidas que tiveram um encontro humano significativo e que têm a possibilidade de
falar o originário, de assinalar aquilo que é fundamental na experiência humana.
O maior drama para essas pessoas, no mundo contemporâneo, é isto ser
compreendido como loucura
339
.
No jardim da vida de Clarice foram semeadas muitas sementes. Algumas
puderam ser reconhecidas: rosas, cravos, girassóis, violetas, margaridas, orquídeas,
acácias, gerânios; outras, permanecerão escondidas, ocultas, afinal como ela mesma
dizia:
Sou uma pergunta
340
.
_____________________________________________________________________________________________________
336 Ibidem , p. 58.
337 Ibidem , p. 59.
338 Ibidem , pp. 59 -0.
339 Ibidem , p. 61.
340 LISPECTOR, Clarice (1971). “Sou uma pergunta”. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p. 367.
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Alegre: Artes Médicas, 1983.
191
ANEXOS
192
Obras de Clarice Lispector: primeiras edições
Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro: A Noite, 1943.
O lustre. Rio de Janeiro: Agir, 1946.
A cidade sitiada. Rio de Janeiro: A Noite, 1949.
Alguns contos. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1952.
Laços de família. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1960.
A maçã no escuro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1961.
A legião estrangeira. Rio de Janeiro: Ed. do Autor, 1964.
A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro: Ed. do Autor, 1964.
O mistério do coelho pensante. Rio de Janeiro: José Álvaro: 1967.
A mulher que matou os peixes. Rio de Janeiro: Sabiá, 1968.
Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. Rio de Janeiro: Sabiá, 1969.
Felicidade clandestina. Rio de Janeiro: Sabiá, 1971.
A imitação da rosa. Rio de Janeiro: Artenova, 1973.
Água viva. Rio de Janeiro: Artenova,1973.
Onde estivestes de noite. Rio de Janeiro: Artenova,1974.
A via crucis do corpo. Rio de Janeiro: Artenova, 1974.
A vida íntima de Laura. Rio de Janeiro: José Olympio, 1974.
Visão do esplendor: impressões leves. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1975.
De corpo inteiro. Rio de Janeiro: Artenova, 1975.
A hora da estrela. Rio de Janeiro: José Olympio, 1977.
Para não esquecer. São Paulo: Ática, 1978.
193
Um sopro de vida: pulsações. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978.
Quase de verdade. Rio de Janeiro: Rocco, 1978.
A bela e a fera. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1979.
A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
Como nasceram as estrelas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987.
Outros escritos. Rio de Janeiro: 2005.
Correio feminino. Rio de Janeiro: Rocco, 2006.
194
Antologias
Seleta de Clarice Lispector. Org. Renato Cordeiro Gomes. Rio de
Janeiro/Brasília: José Olympio/ Instituto Nacional do Livro, 1975.
Clarice Lispector. Org. Benjamin Abdala Júnior e Samira Youssef
Campedelli. São Paulo: Abril Educação, 1981.
O primeiro beijo e outros contos, de Clarice Lispector. São Paulo: Ática,
1991.
Os melhores contos de Clarice Lispector. Org. Walnice Nogueira Galvão.
São Paulo: Global, 2001.
195
Correspondências
Cartas perto do coração. Org. Fernando Sabino. Rio de Janeiro: Record,
2001.
Correspondências Clarice Lispector. Org. Teresa Cristina Montero
Ferreira. Rio de Janeiro: Rocco, 2002.
196
Imagens/ citações
Aprendendo a viver imagens . Rio de Janeiro: Rocco, 2004.
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