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Ana Carolina Falcone Garcia
Da relação pai-filha à profissional mulher
Um estudo qualitativo com mulheres adultas jovens, numa
abordagem junguiana
MESTRADO EM PSICOLOGIA CLÍNICA
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
São Paulo-2006
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Ana Carolina Falcone Garcia
Da relação pai-filha à profissional mulher
Um estudo qualitativo com mulheres adultas jovens, numa
abordagem junguiana
Dissertação apresentada à Banca Examinadora
da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para obtenção do título de
MESTRE em Psicologia Clínica Núcleo de
Estudos Junguianos, sob a orientação do Prof.
Doutor Durval Luiz de Faria.
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
o Paulo-2006
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Banca Examinadora
____________________________________________
____________________________________________
____________________________________________
Ao meu pai, João Carlos, pelo seu referencial de
homem;
À minha mãe, Dirce, por sua natureza Masculina;
Aos meus irmãos, Nando e Bito, pelo apoio e
admiração;
E ao meu querido Beto, por todos os momentos
compartilhados.
AGRADEÇO
Às mulheres que gentilmente cederam parte de suas histórias de vida
em colaboração a este estudo;
Ao Durval Luiz de Faria, pela orientação, paciência de dedicação;
Às amigas, psicólogas e companheiras desde a faculdade: Sirlei,
Joseane, Érika e Marcela; à Fernanda, companheira de consultório e Valéria, colega
de mestrado, por terem, de alguma maneira, contribuído para o encontro de
mulheres voluntárias;
À Lunalva, pelas discussões, apoio e eterno acolhimento;
Às amigas de mestrado Luiza de Oliveira e Lygia Molineiro, pelas
revisões, trocas e, acima de tudo, pelo apoio diante das dificuldades;
À minha tia Quida, pela disponibilidade e carinho para as revisões e
traduções enviadas sempre às pressas;
À Luiza Esmeralda Faustinoni, revisora atenciosa, que cuidou das
etapas finais deste trabalho;
A todos os meus familiares e amigos pela paciência, carinho e
incentivo.
A todos, o meu profundo obrigado.
Quando o que fazemos nasce de uma convicção íntima de
que o que optamos por fazer em determinado momento ou
durante nossa vida é significativo, há alma nessa nossa
escolha. (Bolen, 1996, p.186).
RESUMO
Esta pesquisa procurou compreender o relacionamento pai-filha, e suas
conseqüências no desenvolvimento da mulher no trabalho profissional. Buscou-se
desenvolver de que forma determinadas características dessa relação refletem-se
no posicionamento profissional das mulheres adultas jovens, bem como, se elas
estão presas à imagem do pai ou do complexo paterno no desenvolvimento de seu
papel profissional. Também procuramos investigar se ocorre a emergência de
aspectos do animus nesse momento da vida da mulher.
Para o desenvolvimento desse estudo, partimos do princípio de que o pai exerce
uma função importante na vida da filha e contribui, assim, para a discriminação dos
aspectos Masculinos da mulher em relação à figura paterna.
Sendo assim, o objetivo foi verificar como determinadas características da relação
pai-filha se refletiram no posicionamento profissional de mulheres adultas jovens,
utilizando para isso o referencial da Psicologia Analítica.
O método escolhido foi qualititativo, tendo como população de estudo seis mulheres
jovens adultas, entre 28 e 35 anos de idade. O procedimento adotado foi o da
entrevista semidirigida, com roteiro previamente construído.
Os resultados encontrados apontam para o vínculo muito forte com o pai e também
com a mãe, destacando que a maioria das mulheres entrevistadas encontra-se
ainda vinculada a algum complexo parental. Nesta pesquisa, a mãe parece ter
servido como “antimodelo”, para a maioria dessas mulheres, na construção de seus
papéis profissionais. Percebemos, também, que a dimensão do animus da ação já
se encontra parcialmente integrada na maioria das mulheres estudadas, na primeira
metade da vida.
ABSTRACT
This paper aimed at showing the relationship father-daughter in attempt to
understand the way this relationship affects the development of a woman in her
career.
In this sense, we looked forward both to some characteristics of this relationship and
the attitude of a young adult woman in her professional work. The analysis also
permitted the discussion about these characteristics whether they were attached to
the image of the father or to the parental complex, thus, affecting or not the behavior
of a woman in her professional environment. In addition, we also examined a partial
integration of the animus in this crucial moment of the life of a woman.
The qualitatative method was employed in this search and semi-structured interviews
were conducted with six young adult women. The participants´ mean age was
between 28 and 35 years of age.
The results indicate that the relationship father-daughter is significant for the women
both in terms of development of affection as well as in terms of guidance to her
career. Anyway, we realized that the majority of women are still attached to one or
other parental complex, so, while the influence of the father is important at the
moment of choosing a career, conversely, the representation of the mother works as
an “anti-model”. We also realized that the dimension of the animus of action
influences most of our interviewees. In this way, the animus has been partially
integrated in the life of a woman, playing an important role in this particularly period
of her life.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................
10
1 O PAI ARQUÉTIPO E VÍNCULO COM A FILHA ............................
17
1.1 Conceitos básicos de Psicologia Analítica ........................................... 17
1.2 O arquétipo do Pai e a relação com o pai pessoal................................. 21
1.3 A relação pai-filha: vínculos específicos ............................................... 25
1.4 Os complexos............................................................................................ 31
1.5 A superação do complexo de Édipo ...................................................... 36
1.6 A anima e o pai ......................................................................................... 37
2 A MULHER E A RELAÇÃO COM O FEMININO ................................
40
2.1 Sobre o Feminino: características gerais ............................................ 40
2.1.2 A relação com o Feminino ..................................................................... 42
2.2 A relação mãe-filha ............................................................................... 44
2.2.1 O Complexo ............................................................................................ 44
2.2.2 O animus da mãe .................................................................................... 46
2.3 Características da mulher adulta jovem ............................................... 47
3 O ANIMUS ...........................................................................................
50
3.1 O animus: Abordagem do animus na dinâmica psíquica da mulher.. 50
3.1.1 A concepção de C. Jung ........................................................................ 50
3.1.2 A visão de Emma Jung .......................................................................... 52
3.1.3 Outras concepções a respeito do animus ........................................... 56
3.1.4 As dimensões do animus ...................................................................... 63
3.2 O complexo paterno e o animus ............................................................ 65
4 MÉTODO .............................................................................................
67
4.1 Considerações gerais ............................................................................... 67
4.2 O problema ................................................................................................ 68
4.3 Participantes ............................................................................................. 68
4.4 Procedimento ............................................................................................ 71
4.5 Cuidados éticos ....................................................................................... 72
4.6 Procedimento de análise dos dados ....................................................... 73
5 ANÁLISE DOS DADOS ......................................................................
75
5.1 Antonia: uma mulher de ação .................................................................. 75
5.2 Beatriz: uma vida voltada para o trabalho e o conhecimento .............. 91
5.3 Carmem: uma mulher em busca? ............................................................ 106
5.4 Daniela: uma mulher a serviço da criação .............................................. 122
5.5 Elisa: uma mulher a procura de valor ..................................................... 140
5.6 Fabiana: uma mulher de valor ................................................................. 155
6 DISCUSSÃO: AS FILHAS DO PAI......................................................
175
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................
186
REFERÊNCIAS ......................................................................................
190
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA ...........................................................
194
ANEXO A ................................................................................................
196
ANEXO B...............................................................................................
ANEXO C.................................................................................................
197
198
APÊNDICE A ..........................................................................................
199
APÊNDICE B ..........................................................................................
200
APÊNDICE C ..........................................................................................
201
APÊNDICE D ..........................................................................................
202
10
INTRODUÇÃO
Jung acreditava que a vida é composta por situações que vão além do
que chamamos coincidência de fatos. A vida nos proporciona encontros, muitas
vezes, não programados.
Este estudo é fruto desta concepção. Ao entrar no curso de mestrado
da PUCSP, compondo a primeira turma do Núcleo de Estudos Junguianos, não
sabia ao certo o que gostaria de pesquisar. Estava saindo de uma especialização
em Farmacodependência e a única certeza é que eu gostaria de ampliar minha área
de estudo e pesquisa. Mas o que fazer? Foram meses de busca angustiosa a que
procurei a todo custo, fazer uma escolha racional.
Com o tempo e discussões diversas, percebi que meu interesse dirigia-
se para o estudo da mulher adulta jovem. Não era fruto do acaso. Anos antes, fiz
uma monografia a respeito do feminino, enfatizando o desenvolvimento psíquico da
mulher. Não percebi, porém, que esses estudos poderiam estar relacionados a
questionamentos profissionais anteriores e, até mesmo, pessoais. Foi o início de
meus estudos sobre a teoria de Jung.
Hoje, ao fim do curso e da dissertação, estou consciente de que
nossos estudos, ainda que vinculados às pesquisas acadêmicas, têm estreita
relação com nossos caminhos profissionais e pessoais; assim é o tema desta
pesquisa: um estudo sobre a mulher e o seu relacionamento com o pai.
Na atividade clínica, deparo-me frequentemente com questionamentos
das mulheres jovens sobre seus papéis na sociedade, seus relacionamentos
afetivos, suas dificuldades na busca do trabalho e suas inquietações nesse meio;
em resumo: suas dúvidas em acreditarem profissionalmente em si mesmas.
Percebi a necessidade de compreender melhor quem é essa mulher
que vive no início do século 21, as quais, mesmo diante das conquistas e vitórias
femininas, ainda se defrontam, entre outros, com conflitos referentes às posturas no
ambiente de trabalho.
Alguns comportamentos considerados masculinos são muitas vezes
adotados por algumas delas, como estratégias para se colocarem no mundo do
trabalho, organizado dentro dos padrões masculinos. Tais comportamentos acabam
11
sendo facilmente encontrados em mulheres que trabalham em funções consideradas
de domínio dos homens, como engenharia, administração, economia, direito,
embora, também, em mulheres que exercem outras profissões.
Com base em nossa experiência de consultório e também nas relações
pessoais, foi possível observar que essas mulheres apresentam sofrimento na
aceitação de sua feminilidade e um conflito grande quanto à forma de se colocarem
no mundo. Como essas mulheres poderiam se sentir mais plenamente realizadas
profissionalmente e em suas relações no dia-a-dia de seus trabalhos, eram as
perguntas que me fazia.
Essas questões estão ligadas a alguns aspectos do animus da mulher.
Sabe-se que o animus se constrói, incialmente, na vivência com o pai. O progenitor
é um colaborador importante para a construção de algumas posturas na vida da
filha, sendo ele um referencial do princípio masculino.
No artigo “A importância do pai no destino do indivíduo”, Jung (1998)
indica que a imagem do pai exerce um poder extraordinário sobre a vida psíquica do
indivíduo. “Ela influencia a criança de maneira tão forte que convém perguntar se
podemos atribuir tal força mágica a um simples ser humano.” (JUNG, 1998, § 728,
p.305).
Segundo Lima Filho (2002), o pai atua como mediador da relação entre
mãe e filhos, e também na relação dos filhos com o mundo, uma vez que fornece os
limites, as regras, isto é, as bases para os filhos se relacionarem no mundo. Sendo
assim,
[...] [ele] discrimina o mundo em categorias, tornando-o
compreensível e, portanto, utilizável; interrompe o que até então era
“natural” para instaurar o deliberado, o escolhido, o proposital, o
eleito, o consciente. E fornece os critérios para tudo isso. (LIMA
FILHO, 2002, p.69)
Para o autor, o pai inaugura para a criança o conceito de “outro”; é o
representante da lei, é o determinante das regras, é o introdutor dos métodos, dos
critérios de compreensão e de julgamento. É ele quem discrimina o todo em
categorias, facilitando a compreensão de mundo da criança.
Além de mediador na relação da criança com o mundo, o pai é o
primeiro e talvez um dos vínculos mais significativos que a mulher tem com um
homem em sua vida. Assim, como nos apresenta Scull (1992), o vínculo pai-filha
12
influencia o futuro da relação da filha com os homens amigos e amores bem
como o modo pelo qual ela se relaciona com o mundo.
A maneira como este vínculo se estabelece traz conseqüências
marcantes para o desenvolvimento da filha, como mulher. Assim, diversos autores
junguianos ou de outras abordagens (Murdock, 1992 e 1998; Carter, 1992; Zweig,
1992; Arndt 1988; Leonard, 1982; Kast,1994; Bolen, 1992) ressaltam que os
vínculos estabelecidos entre o pai e a filha, no sentido da aprovação/rejeição; da
presença/ausência; do carinho/sedução, marcam, no futuro, os modos como essa
filha agirá no mundo.
Nessa visão, a compreensão do papel do pai no desenvolvimento da
mulher é fato relevante, pois uma parte da referência do ser alguém no mundo é
proveniente desse relacionamento.
Parte da bibliografia relacionada neste trabalho aponta as influências
do pai no universo da filha na forma de feridas profundas na psique feminina, sejam
elas positivas ou negativas, como se pode conferir nas autoras junguianas: Kast
(1994), Leonard (1982), Murdock (1998), Koltuv, (1992). Em Psicologia Analítica,
essas influências são chamadas de complexos.
Os complexos, na compreensão de Jung, são agrupamentos de
conteúdos psíquicos carregados de energia, concentrados em torno de um núcleo
arquetípico. Podemos dizer que o complexo paterno é composto por situações e
vivências que foram atraídas junto ao núcleo arquetípico do Pai e que pela
experiência afetiva faz algum sentido para o indivíduo, neste caso, a filha.
Como traduz Faria (2003, p.102), “o complexo paterno se estrutura na
relação com o pai pessoal ou substituto entremeada de elementos da fantasia
provenientes do arquétipo do Pai.” A sua manifestação pode se dar com um homem
concreto e também com tudo o que é definido como masculino numa determinada
cultura. Com isso, questões referentes às normas, aos valores, aos interesses
intelectuais, que são consideradas masculinas, podem ser portadoras das
manifestações do complexo paterno.
Além do complexo paterno, a mulher tem dentro de si uma referência
masculina, chamada animus, cuja função a auxilia na sua jornada psíquica.
Segundo Von Franz (1964), “o animus é a personificação masculina do
inconsciente na mulher. [...] É o pai que dá ao animus da filha convicções
incontestavelmente ‘verdadeiras’, irretrucáveis e de um colorido todo especial [...]”
13
(p.189) Tendo em vista que o animus sofre influência do complexo paterno, este,
quando não trabalhado, pode vir a afetar o modo de ser/agir/estar da mulher no
mundo.
Para essa autora, existem quatro estágios de desenvolvimento do
animus. O primeiro deles refere-se à força física; o segundo, à personificação da
ação e do planejamento; o terceiro à manifestação do verbo, da palavra, e o quarto,
à representação da sabedoria. Essas formas de apresentação do animus
caracterizam alguns aspectos de relevância para a vida da mulher. Assim,
[...] o lado positivo do animus pode personificar um espírito de
iniciativa, coragem, honestidade e, na sua forma mais elevada, de
grande profundidade espiritual. Através do animus a mulher torna-se
consciente dos processos básicos de desenvolvimento da sua
posição objetiva, tanto cultural quanto pessoal, e encontra, assim, o
seu caminho para uma atitude intensamente espiritual em relação à
vida. (VON FRANZ, 1964, p.195).
Neste estudo, adotaremos a visão de E. Jung (2003), de que o animus,
não acontece em estágios. Considerando essas características da psique, a mulher
adulta jovem precisa estar consciente de vários aspectos da sua vida, sejam eles
internos animus e complexos , ou externos sua realidade social e cultural,
sobretudo diante das múltiplas alterações de seu papel na família e na sociedade.
McGoldrick (2001) ressalta que, até muito recentemente a mulher
passava diretamente de sua família de origem para o marido; não havia um espaço
de tempo em que ela se encontrasse diante da vida, livre, desvinculada da família
original e sem construir uma outra sua. O mundo profissional ficava em segundo
plano. A mulher adulta solteira hoje encontra-se fora dos padrões acima referidos.
Na atualidade, o período referente ao de jovem adulta solteira corresponde à fase de
vida em que ela ainda não construiu uma família de procriação.
Essa mulher encontra-se, então, em um momento especial da vida no
qual a exploração de suas capacidades e conhecimentos tem destaque. Está à
procura de si mesma, de sua identidade como mulher.
Para este estudo, procuramos localizar também o contexto psíquico em
que essa mulher se encontra. Ao longo de sua vida, conviveu com os pais mãe e
pai, que, por sua, vez também portam características psíquicas específicas.
No relacionamento com a mãe, a filha entra em contato com o
feminino, relacionado com a persona da mãe e também com o animus materno e
com os complexos. No relacionamento com o pai, a filha se depara com o masculino
14
da persona do pai, com sua anima e com os complexos, decorrentes do vínculo pai
e filha.
A filha assimila a capacidade de discriminação também a partir da sua
convivência com a mãe, que, por sua vez, também possui um animus que a auxilia
no seu modo de agir no mundo. A figura da mãe é importante na relação
estabelecida entre pai e filha porque é ela quem, de alguma forma, apresenta esse
pai. De acordo com Scull (1992, p.102), a forma de a mãe se relacionar com a filha e
o modo como, a partir dessa relação, apresentar-lhe o pai, influencia o tipo de
aliança que ele terá com a filha. Essa aliança pai-filha só será possível se a mãe o
reconhecer perante a filha. Caso contrário, a criança continua identificada com a
mãe. O pai tem como uma de suas funções separar a filha da mãe, permitindo que
ela se relacione com o outro, o diferente.
Tendo em vista o quadro conceitual dentro do qual nos movemos,
colocamo-nos algumas perguntas para delimitar nossa principal questão. Tomando
como foco de análise a relação pai e filha, de que forma determinadas
características dessa relação refletem-se no posicionamento profissional das
mulheres adultas jovens, tais como a tomada de decisões, as reações diante de
situações-problema, as reações diante de mudanças e o enfrentamento de situações
novas? Até que ponto as mulheres adultas jovens estão presas à imagem do pai ou
do complexo paterno no desenvolvimento de seu papel profissional? Haveria, nesse
momento de vida, a emergência de aspectos do animus que se diferenciariam do
pai?
Consideramos importante analisar e compreender o papel do pai na
vida da filha, pois a discriminação dos aspectos masculinos da mulher em relação à
figura paterna possibilita melhor relação consigo própria e com o mundo.
Conforme já afirmamos nesta Introdução, existem muitas pesquisas
sobre a mulher, mas poucas que façam associações entre o relacionamento com o
pai e as contribuições dessa relação para o desenvolvimento da filha. Uma parte da
literatura encontrada focaliza o relacionamento pai-filha pelo olhar do complexo de
Édipo, numa visão psicanalítica.
Para este estudo, não encontramos nenhuma pesquisa que
considerasse a relação pai e filha e o trabalho da mulher sob o olhar da Psicologia
15
Analítica. Não encontramos nenhum estudo que associasse a participação do pai no
desenvolvimento da mulher. Desta forma, consideramos importante para a
compreensão da mulher adulta jovem de hoje, uma pesquisa que buscasse
relacionar a importância do pai no desenvolvimento da filha e as contribuições dessa
relação para o seu desenvolvimento como mulher.
Sendo assim, como objetivo geral de nosso trabalho, procuramos
verificar de que forma determinadas características da relação pai-filha se refletem
no posicionamento profissional de mulheres adultas jovens. Como objetivos
específicos, procuramos fazer um levantamento dos estudos sobre a relação pai e
filha na literatura junguiana e também da literatura sobre o animus.
Para trabalharmos nossa questão, realizamos uma pesquisa qualitativa
com mulheres jovens adultas. Como procedimento, utilizamos a entrevista
semidirigida, com seis mulheres de 28 a 35 anos de idade. As questões abordadas
na entrevista foram consoantes com os objetivos do trabalho: forma de agir no
mundo do trabalho, isto é, a escolha profissional, atuação no mercado de trabalho,
relação com as pessoas nesse ambiente, reação diante de circunstâncias
específicas, como crises, promoções, situações novas, e como estas questões se
articulam à figura do pai. (Ver Apêndice B).
A dissertação está estruturada da seguinte forma.
Os capítulos iniciais procuram situar o referencial teórico que iremos
usar no que diz respeito ao pai, à mulher e ao animus. Sendo assim, o capítulo
inicial destaca a relação pai e filha, em suas especificidades. O primeiro aspecto
abordado abrange as noções básicas da Psicologia Analítica. Na seqüência,
apresentamos o arquétipo do Pai e a relação com o pai pessoal; os modos de
vínculos estabelecidos entre pai e filha, o complexo paterno, a superação do
complexo de Édipo e a anima e o pai.
O segundo capítulo refere-se à mulher. Neste, tratamos das
características referentes à mulher e ao Feminino. Abordamos a relação com o
Feminino, o relacionamento entre mãe e filha, os complexos relacionados, o animus
da mãe, e por fim, as características da faixa etária estudada (28 a 35 anos a
jovem adulta) no mundo atual.
No terceiro capítulo definimos a compreensão de animus.
Apresentamos inicialmente a concepção de Jung sobre o conceito. Em seguida,
16
destacamos a visão de Emma Jung e de outros autores junguianos sobre o animus.
As dimensões do animus são baseadas na compreensão de Emma Jung. E, por fim,
discorremos sobre a relação entre complexo paterno e animus.
No quarto capítulo abordamos as questões do método utilizado no
desenvolvimento deste trabalho, em destaque, o método de investigação, o
problema, as participantes e o procedimento. O quinto capítulo faz uma análise das
entrevistas efetuadas de acordo com a metodologia escolhida. O sexto capítulo
apresenta uma discussão sobre as entrevistas e o problema de pesquisa estudado,
seguido das considerações finais.
17
1 PAI: ARQUÉTIPO E VÍNCULO COM A FILHA
É inegável a influência do pai sobre a criança.
[...] O importante é que ele é aquele que
transmite pela primeira vez à criança a grande e
poderosa lei do princípio paternal. Jung escreveu
o seguinte a respeito dessas leis: “Não são leis
urdidas pela inteligência do homem, e sim leis e
forças da natureza, entre as quais o homem
caminha como sobre o fio da navalha.” (FIERZ,
1997, p.86).
Neste capítulo abordamos as especificidades e questões apontadas na
literatura junguiana sobre a relação pai-filha, os complexos e a relação da anima
com o pai. Para tanto, apresentaremos brevemente alguns conceitos básicos da
Psicologia Analítica e seguiremos com os tópicos de interesse para este estudo.
1.1 Conceitos básicos em Psicologia Analítica
Jung postula sua teoria com base em seu contato com o inconsciente e
nas observações e tratamentos de seus pacientes. Em suas memórias (1996), Jung
apresenta sua vida, permitindo ao leitor o contato com os princípios de sua obra.
Partindo deste ponto, em que Jung construiu seus pressupostos
teóricos baseado, em parte, em sua própria experiência psíquica, apresentaremos
alguns conceitos de sua teoria, que nos auxiliarão na execução desta pesquisa.
Jung considera o ser humano como um ser dialético, sendo a
totalidade psíquica composta por conteúdos e vivências conscientes e, também, por
conteúdos e vivências inconscientes. Considera que no inconsciente também se
encontram as sementes de muitas potencialidades a serem desenvolvidas pelo
indivíduo. Os componentes de ordem pessoal e coletiva ocupam lugares específicos,
ou seja, na camada considerada mais superficial estão localizados os conteúdos de
ordem pessoal, que recebem o nome de inconsciente pessoal. Já os conteúdos de
18
caráter coletivo estão locados na camada mais profunda da psique, denominada de
inconsciente coletivo, cujos conteúdos são universais para todos os indivíduos.
Além dos aspectos inconscientes, temos também a presença de
conteúdos conscientes. Como o próprio Jung descreve: “uma existência psíquica só
pode ser reconhecida pela presença de conteúdos capazes de serem
conscientizados. Só podemos falar de inconsciente na medida em que
comprovarmos seus conteúdos.” (JUNG, 2000, § 4, p.16). Para isto, é significativo
levar em conta a presença da consciência. Apesar de a consciência não ter sido seu
foco central de estudo, para Jung, o acesso aos conteúdos inconscientes ocorre à
medida que estes são passíveis de se tornarem conscientes, fato que necessita da
participação do ego do sujeito. O ego é compreendido por ele como sendo o centro
da consciência e tudo o que vier a ser consciente tem que por ele passar.
Entendemos por ego aquele fator complexo com o qual todos os
conteúdos conscientes se relacionam. É este fator que constitui
como que o centro do campo da consciência, e dado que este campo
inclui também a personalidade empírica, o ego é o sujeito de todos
os atos conscientes da pessoa. (JUNG, 1988, §1, p.1).
Convém ressaltar que, apesar desta característica do ego, sua
liberdade de ação é limitada, uma vez que ele também sofre influências de estímulos
psíquicos e ambientais. É importante enfatizar que o ego não é sinônimo de
consciência, mas representa uma parte dela, a parte nuclear, que se movimenta no
seu interior.
Cabe destacar que o ego também passa por um crescimento e um
desenvolvimento. Jung afirma que o crescimento e o desenvolvimento do ego são
importantes para o indivíduo, mas só podem acontecer quando diante de conflitos,
dificuldades, angústia, pena e sofrimento. Não há crescimento em um ambiente
superprotetor, como destaca Stein (2001, p.34).
Conforme mencionamos, sabemos que o psiquismo é composto por
elementos conscientes e inconscientes e que a energia psíquica promove a
movimentação e desenvolvimento psíquicos, a partir da circulação pela psique, que
se faz através de movimentos de progressão e regressão, do inconsciente para o
consciente, e vice-versa. Jung destaca que este fenômeno energético é um dos mais
importantes da vida psíquica, pois ele é responsável pela adaptação externa e
interna, respectivamente. Este processo é constante na vida do indivíduo.
19
Falamos até agora de alguns aspectos da estrutura da psique:
inconscientes pessoal e coletivo, consciente e ego. Ainda sobre os aspectos mais
conscientes da psique, caberia destacar a relação da persona com o ego.
A persona tem a função de facilitar a adaptação ao mundo externo,
protegendo o ego, na execução de papéis e na relação com as pessoas. Num
primeiro momento, poderíamos entender a persona como um mecanismo puramente
defensivo do ego, já que uma de suas funções é protegê-lo; uma espécie de
máscara protetora. No entanto, é preciso considerar também a qualidade criativa da
persona. Ela permite tanto a expressão de aspectos da personalidade, como a
inibição de outros, que são desfavoráveis para o indivíduo apresentar em
determinados momentos de sua vida.
Por exemplo: um médico. Quando ele se encontra em um ambiente
profissional, em que tem uma imagem construída de profissão, ele mantém essa
imagem essa persona de médico como proteção de seus aspectos individuais
que não precisam ser demonstrados para a sociedade em geral. A exposição de
seus aspectos pessoais pode ficar restrita aos ambientes de relação mais pessoal,
como a casa e a família.
Quando a pessoa se encontra em lugar público, de convívio com
pessoas com as quais os laços afetivos não são muito estreitos, é preferível manter
uma proteção. Nessa hora entra a proteção fornecida pela persona. Cabe a ela
proteger o ego de exposições desnecessárias. A habilidade do ego em lidar com
essa persona vai permitir que ela seja funcional ou neurótica. Se a pessoa ficar
completamente identificada com ela, presa apenas à ‘roupagem’ criada para a
relação com o mundo, como no caso, a persona de médico, diz-se que ela tem uma
persona neurótica, pois o indivíduo perde a relação com suas características mais
individuais.
Segundo Stein,
[...] a persona, quando usada criativamente dentro do contexto de um
forte desenvolvimento psicológico, funciona tanto para expressar
quanto para esconder aspectos da personalidade. Uma persona
adequada possui amplitude suficiente não só para expressar
aspectos socialmente apropriados da personalidade mas também
para ser autêntica e plausível. O indivíduo pode, sem muito dano,
identificar-se com uma persona na medida em que ela é uma
verdadeira expressão da personalidade. (STEIN, 2001, P.109/110).
20
Quando um indivíduo se defronta com situações que não consegue
administrar conscientemente e, também, que sua persona não tem amplitude para
protegê-lo, os conteúdos que não podem ser assimilados pela consciência são dela
excluídos, passando a se localizar na sombra.
A sombra contém qualidades, os conteúdos não adaptados e também
os conteúdos desconhecidos do ego. Alguns desses conteúdos só podem ser
reconhecidos pelo ego por meio do mecanismo de projeção. O indivíduo sempre tem
uma parte sombria que necessita ser projetada para ser reconhecida.
A sombra refere-se à parte da personalidade que foi reprimida
simultaneamente em função da formação e estruturação do ego, e sua existência
está diretamente relacionada ao fator arquetípico, ou seja, a presença da sombra
não depende de um desejo ou querer consciente; ela é arquetípica e, como tudo que
é arquetípico, faz parte de um padrão humano, em geral.
Segundo Jung, arquétipos são considerados os “tipos arcaicos” que
permitem a orientação do homem no mundo. Jacobi (1957) descreve claramente
arquétipo:
Por essas “imagens originárias”, Jung compreendia naquele tempo,
todos os motivos oriundos da mitologia, das lendas e dos contos,
capazes de expressar, num retrato vivo, os comportamentos comuns
do homem, que sempre podemos encontrar de novo como motivos
típicos pela sua essência e que ocorrem no mundo inteiro; esses
“motivos”, na história do homem se apresentam sob formas
incontáveis, nas antigas imaginações dos povos primitivos, nas
idéias religiosas de todos os povos e culturas e até mesmo nos
sonhos, visões e fantasias dos indivíduos modernos. (JACOBI, 1957,
P.39).
Considerando que o arquétipo está presente no inconsciente coletivo e,
portanto, não pertence à consciência do indivíduo, Jacobi (1957) acrescenta que não
podemos ter acesso ao arquétipo em si, mas à sua manifestação, que se dá através
da imagem arquetípica.
“Só depois de ter recebido uma forma, manifestada pelo material
psíquico individual, é que ele se torna psíquico e penetra na esfera do consciente.”
(JACOBI, 1957, p.40). A autora enfatiza que os arquétipos representam uma
condição estrutural da psique, que, em função de uma dada constelação,
*
produzem
*
Constelação foi apresentada por Jolande Jacobi (1957) em “Complexos, arquétipos e símbolos”. Entende-se por
“constelação” o tipo de situação do consciente com a qual o inconsciente está em relação compensadora, o que
se manifesta por meio da distribuição da energia psíquica e da carga correspondente do arquétipo tocado e
evocado pelo problema do momento. (p. 55).
21
reações iguais ou parecidas com uma imagem originária, ou seja, com um modelo
básico, porém sem nenhuma relação com transmissão hereditária.
Jacobi apresenta uma relativização da idéia de hereditariedade,
destacando: [as imagens originárias] “são ‘herdadas’ apenas no sentido de que a
estrutura da psique, tal como é, representa um patrimônio humano geral e carrega
dentro de si a capacidade de manifestar-se em determinadas formas específicas.”
(JACOBI, 1957, p.54).
Desta forma, Jacobi (1957) define os arquétipos como princípios
reguladores, prontidões, que vão compor a rede psíquica e que são inevitáveis no
seu fundamento, porém em constante transformação na fenomenologia. Os
arquétipos se manifestam de diferentes formas, mas o dinamismo básico
permanece.
Outra maneira de abordar o conceito de arquétipo nos é apresentada
por Gruggembühl-Craig (1978). Para ele, o arquétipo deve ser entendido como uma
potencialidade inata de comportamento, que todos temos dentro de nós como pólos
a serem constelados: se um pólo se constela no mundo exterior, o oposto se
constela no mundo interno. Por exemplo, todos temos internamente o arquétipo do
curador ferido. Desta forma, quando necessitamos de cuidado, seja por uma doença
ou por um momento de crise na vida, este arquétipo é ativado, acionando na pessoa
que está vivendo concretamente a situação a busca por uma ajuda externa (um
médico ou um terapeuta) e, ao mesmo tempo, a própria capacidade de autoproteção
e cuidados internos (o médico ou terapeuta interior).
É necessário destacar que os arquétipos possuem uma natureza
ambivalente e aspectos diversos e antagônicos que atuam sobre a consciência.
Essa ambivalência é gerada pela tensão das polaridades, que pode se apresentar
com características tanto positivas quanto negativas.
1.2 O arquétipo do Pai e a relação com o pai pessoal
22
O arquétipo do Pai
, cujas características dizem respeito à
normatização, à uniformização, à lei, à valoração, à organização; encarna, pois, a
consciência, a razão e o conhecimento. Ele é um representante da discriminação, da
polarização e da força divina espiritual. As imagens arquetípicas do Pai portam as
abstrações dos muitos papéis paternais possíveis que um homem pode assumir
numa família. (COLMAN; COLMAN, 1995).
O pai pessoal ou os portadores dessa função na vida de uma pessoa
acabam sendo representantes parciais desta realidade arquetípica, cujo significado
pode ser muito maior, conforme refere Whitmont (1994).
Nossos relacionamentos com os arquétipos assim constelados e
representados afetam nossos relacionamentos não apenas com as
pessoas que carregam as imagens para nós, mas também com o
mundo todo. A amplitude dinâmica de seu funcionamento inclui:
como pai espírito, Logos, ordem, lei, atividade; como mãe vida,
emotividade, receptividade; como herói ousadia, iniciativa, etc
(WHITMONT, 1994, p.95).
Se partirmos da mitologia grega, podemos compreender algumas
dessas imagens por meio de seus representantes divinos: Urano, Crono e Zeus.
Existem muitos autores que abordam aspectos arquetípicos do Pai com base nas
representações míticas desses deuses: Stein (1979); Luz (1998); Colman e Colman
(1995), Cavalcanti (1996), para citar alguns.
Pela própria genealogia dos deuses gregos, Urano é o que inaugura a
era mitológica divina e, assim, tornou-se o mais arcaico dos deuses, na visão de
Stein (1979), uma vez que, na tentativa de preservar sua hegemonia, empurra os
filhos de volta para a Mãe. Psicologicamente falando, a consciência por ele
dominada está privada de sua individualidade: comporta-se de forma convencional,
não permitindo o acesso ao novo (conforme a representação dos filhos devolvidos à
mãe acabam representando). Luz (1998) destaca alguns aspectos do arquétipo
paterno, nesse sentido uraniano, como portadores de um princípio masculino que se
caracteriza por agressividade, penetração, fecundação e destruição.
Com a rebeldia de Crono, o tempo é instaurado a partir da castração
do pai Urano. Mas, Crono também não consegue permitir que os filhos cresçam. Ele
passa a repetir o mesmo caminho do pai: para impedir que seu lugar fosse tomado
por um filho, Crono passa a devorar seus filhos logo após o nascimento. Para Stein
A palavra pai aparecerá com letra inicial minúscula quando se referir ao pai pessoal e, em maiúscula, sempre
que formos nos referir ao arquétipo do Pai.
23
(1979), a consciência regida por Crono ajusta-se aos valores do coletivo externo;
conseqüentemente, os interesses e idéias espontâneas vão servir aos objetivos
conscientes, isto é, tudo o que é engolido está a serviço da própria vida egóica. Luz
(1998) destaca também aqui algumas das características deste aspecto do arquétipo
do Pai: o corte, a discriminação, a castração, a disciplina.
Com Zeus, uma nova era é estabelecida. Neste ponto, a consciência
sob a regência desse deus possui maior flexibilidade. A consciência é capaz de
conter, tolerar, de forma bem diversa daquela sob Crono.
O pai pessoal, portanto, será portador de algumas características
arquetípicas, presentes na dimensão inconsciente, em suas diferentes
manifestações, como Urano, Crono e Zeus.
Faria (2003) acrescenta que a relação com o pai pessoal constela o
arquétipo do Pai em suas polaridades, seja positiva, negativa ou em ambas. Os
arquétipos estão sempre presentes no inconsciente e são ativados (constelados) se
algo da experiência vivida fizer um “gancho” com o conteúdo arquetípico, de forma a
promover uma vivência que leve ao desenvolvimento psíquico, rumo ao processo de
individuação de cada um. Cavalcanti (1996) discorre sobre o mundo arquetípico do
Pai e destaca que o arquétipo do Pai precisa da existência do pai pessoal (ou
substituto) para que seja constelado.
De modo geral, há pouca bibliografia que aborde o tema do pai. Na
obra de Jung, existem poucas referências à figura paterna e à sua influência na
relação com os filhos. Há apenas um artigo que diz respeito à importância do pai
para o destino do indivíduo. As demais referências precisam ser vasculhadas em
toda a obra e são poucos os momentos em que se encontra um destaque para a
importância do pai, além dos já mencionados.
Lima Filho (2002) faz um levantamento da obra de Jung e ressalta que
ele fez uma avaliação da influência dos pais na constituição das atitudes dos filhos
como algo significativo. Destaca ainda que, com base na experiência clínica de
Jung, o que se observa é que o fator mais importante está diretamente relacionado
com a disposição interna da criança.
Em uma retomada da história da paternidade, Colman e Colman (1995)
relembram que o pai, por algumas décadas, era reconhecido por sua tendência de
representar seu papel familiar por meio do trabalho e das responsabilidades sociais.
Destacam que, a partir da década de 70, alguns destes referenciais ruíram, como o
24
do bom provedor. Reforçam, então, a necessidade de reconhecer o pai como
nutridor e também como aquele que favorece uma ligação criativa com o mundo
externo à família. A leitura desses autores enfatiza o que estudos atuais vêm
abordando: apesar de todas as mudanças ocorridas, decorrentes do movimento
feminista, ainda é difícil para o homem exercer, em seu papel de pai, uma atitude
mais afetiva. Apesar de hoje já existirem outras composições familiares, que não só
as nucleares pai-mãe-filhos, o pai ainda apresenta dificuldade em suas
manifestações afetivas.
Muitos estudos estão sendo feitos a respeito da paternidade, como o
de Faria (2003), em que o autor enfatiza, entre outros aspectos, a importância do pai
na formação e no desenvolvimento dos filhos.
Jung (1988) reforça que, além da influência dos pais pessoais, há
também a atuação dos arquétipos. Assim, não podemos deixar de abordar que a
relação pai-filho é composta pela dimensão pessoal e pela dimensão arquetípica,
sendo carregada de projeção de ambas as partes:[...] a representação de uma
pessoa é constituída, primeiramente, pela imagem que ela recebe da verdadeira
pessoa, e depois, de uma outra imagem resultante da elaboração subjetiva da
primeira imagem”. (JUNG,1988, § 37, p.16).
Jung (1998) destaca, neste artigo sobre a importância do pai, que é por
meio da relação com os pais que a humanização da imagem dos Pais arquetípicos
se torna possível. Em outras palavras, a constelação do arquétipo do Pai decorre a
partir de experiências pessoais nas quais esses aspectos pertencentes ao Pai
arquetípico serão vivenciados na dimensão real, pessoal da vida desse indivíduo.
Um dos primeiros aspectos significativos do pai pessoal é sua
capacidade para humanizar o arquétipo paterno. É pela humanização dos aspectos
arquetípicos do Pai, que se realiza na vivência com o pai pessoal, que os aspectos
arquetípicos serão estruturados na psique da (o) filha (o). Corneau (1991) destaca
que quanto mais ausente for o pai, menor é a chance de a humanização ocorrer,
permanecendo as referências das imagens culturais de pai. A ausência de referência
humanizada pode gerar falta de estrutura interna, isto é, como o arquétipo não foi
humanizado, as referências dos quais ele é portador não se estruturam
adequadamente na psique do indivíduo. Como conseqüência, a pessoa fica confusa,
apresentando dificuldade em traçar objetivos, em fazer escolhas, reconhecer o que é
bom para si mesma: sente-se insegura.
25
Outra função do pai pessoal no desenvolvimento dos filhos é a de atuar
na separação dos filhos em relação à mãe, rompendo a simbiose desta relação
primal, e introduzindo a noção do outro. Para Faria (2003b):
o pai é aquele que, primordialmente, veicula as funções arquetípicas
do Pai para o infante e introduz a criança no mundo da cultura, e ele,
de certo modo, cria um novo mundo em que o regresso à Mãe
simboliza o paraíso perdido, onde a criança se sentia completa. O
Pai realiza, desta maneira, uma interdição a uma volta total à mãe, o
que implica numa proibição do incesto simbólico. (FARIA, 2003b, p.3)
Além dessa função, o Pai arquetípico também se apresenta como
portador da Lei, das regras e dos limites; um representante da palavra.
O Logos, segundo esse mesmo autor, está ligado à capacidade
reflexiva que é instaurada pela função paterna. É ele o responsável simbólico da
nossa capacidade de separação; separação para permitir o distanciamento
necessário ao reconhecimento do mundo que nos rodeia e favorecer a reflexão
sobre ele. O autor reforça que o Logos também une, por meio do discernimento
daquilo que pertence à mesma categoria, e separa pela discriminação, pela
identificação das diferenças.
O pai, sendo portador do Logos, permite ao filho (a) viver a falta
instalada na psique, mas também proporciona o desejo de seguir em frente, de
forma a atingir o que está faltando.
Para Von der Heydt (1979), a criança vê no pai o mediador entre o
mundo externo e o lar.
Sua atitude para com o trabalho, a ambição, o sucesso e a
competição afeta e colore a atitude da criança e tanto pode fazê-la
desejar crescer como temê-lo. É a força do pai que dá segurança e
encoraja a autoconfiança, assim como é a sua autoridade que ajuda
a criança a descobrir seus limites. (VON DER HEYDT, 1979, p. 161).
1.3 A relação pai-filha: vínculos e aspectos específicos
Existem aspectos específicos que caracterizam a relação pai-filha.
Consideramos que o pai é a primeira conexão que a mulher tem em vida com um
homem. Desta forma, as referências de relações com homens, amores e a sua
forma de agir no mundo são influenciadas pela primeira relação masculina
26
estabelecida em sua vida, que é a relação pai-filha. Assim, o exemplo de
masculinidade oferecido pelo pai vai participar também do desenvolvimento das
qualidades internas masculinas da filha.
Segundo Stein (1979),
[...] é o pai que primeiro desperta a sexualidade da menina em
relação aos homens. O modo como irá reagir aos temores e desejos
da filha depende de sua atitude com seu lado feminino, do seu
relacionamento com a sua mulher e do relacionamento que teve com
a sua mãe. Sua reação influenciará a menina em sua atitude com a
vida emocional e em sua relação com os homens. (STEIN,1979,
p.164).
Scull (1992) apresenta a idéia de que a maneira como o pai reage no
mundo, sua fala e postura precisam estar de acordo com suas ações, para que a
filha possa compreender a mensagem passada. A forma como a masculinidade do
pai participa do desenvolvimento das próprias qualidades masculinas internas da
filha servirá de auxílio na sua formação como mulher.
Sendo assim, é possível compreender que o vínculo pai-filha tem
influência na sua relação com homens, em suas várias possibilidades, como
coleguismo, amizade, amor, e na forma como ela se coloca no mundo; e será
marcante ao longo da vida dessa filha, uma vez que influenciará a relação dela com
as pessoas, com o trabalho, com o sucesso e, principalmente, com outros homens.
Existem muitas formas de se abordar a influência do pai na vida da
filha. Leonard (1994) destaca a importância de o pai deixar-se idealizar pela filha,
mas também, permitir que suas limitações reais sejam vivenciadas por ela, sem que
para isso precise afastar-se dela concretamente. A dificuldade está em manter a
idealização que é necessária sem cair em uma idealização constante, uma vez que
é importante para a filha poder reconhecer os limites do pai. A relação com um pai
ausente pode gerar uma idealização elevada, uma vez que a ausência permite que
fantasias sejam criadas, povoem o imaginário da menina e perdurem ao longo da
vida adulta da mulher.
Carter (1992) afirma que as mulheres que possuem pais inadequados
ou ausentes apresentam alguma dificuldade no estabelecimento de intimidade no
casamento ou no que se refere ao desempenho sexual. Seu estudo sobre pais e
filhas destaca as conseqüências para as filhas de alguns tipos de vínculos com pais.
Sua ênfase recai sobre os conflitos decorrentes dessa relação: rompimento do
vínculo pai-filha em razão da morte ou do divórcio; a relação distante entre pai e
27
filha, a relação superenvolvida e a relação pervertida. Nesses quatro tipos
apresentados, os vínculos foram em algum momento prejudicados pela presença
excessiva ou pela ausência do pai.
No caso de ausência do pai, segundo Carter (1992), se decorrente de
morte, o pai torna-se uma figura idealizada, e a mãe fica com as projeções
negativas. Se decorrente de divórcio, pode haver uma interpretação da filha de que
o pai não se preocupa com ela. Por outro lado, a ausência do pai pode gerar
também sentimento de raiva, promovendo uma aproximação da filha em relação à
mãe e um afastamento ainda maior em relação ao pai. Esse sentimento acaba
levando a filha a aliar-se à mãe e a desprezar o pai e ter raiva dele.
Nos relacionamentos em que há um envolvimento excessivo entre pai
e filha, Carter (1992) destaca a existência de um controle subliminar, no qual o pai
dá tudo o que a filha deseja, desde que faça tudo o que ele quiser. No entanto, esse
“pacto” não é evidente, e pode impedir o amadurecimento da filha.
Já nas relações incestuosas concretas, a autora salienta que nenhuma
explicação esclarece a contento o que leva à existência desse tipo de relação. Há
muito preconceito em torno dessa questão. De acordo com a autora, há profissionais
de saúde que responsabilizam as mães ou acusam as filhas de sedutoras do pai. As
mães, por sua vez, se comportam como mulheres de alcoolistas: ou sentem
vergonha e tentam esconder o fato, ou tentam convencer-se de que esta situação
não se repetirá. Um dos sentimentos freqüentes na filha é achar que a união familiar
depende do seu silêncio, o que a faz manter o segredo por muitos anos. A autora
reforça que nenhuma mudança é possível se o pai não se conscientizar de que é o
responsável pela situação de sedução.
Uma outra autora, Bolen (1999) escreve sobre o Ciclo do Anel de
Wagner e considera as imagens do pai autoritário e do feminino subjugado,
realizando uma leitura da sociedade patriarcal e as conseqüências da ausência do
feminino. Seu foco recai sobre os aspectos arquetípicos e simbólicos.
A ópera está baseada na história de “O Anel dos Nibelungos”. Wotan é
o deus principal e Brunnhilde é a filha favorita. A história é subdividida em quatro
variações sobre o tema do poder em oposição ao amor, e o efeito do poder sobre as
pessoas e os relacionamentos “o ouro do Reno: a busca do poder e seu custo
psicológico”, “ a Valquíria o pai autoritário e a família deficiente”, “Siegfried o
28
herói como criança adulta” e, por fim, “crepúsculo dos deuses a verdade põe fim
ao ciclo do poder”.
Nessa obra, o anel é forjado por um nibelungo Alberich , cuja
posse permite dominar o mundo. Wotan, o deus autoritário, deseja ter o anel para
poder pagar uma dívida contraída em função de seu desejo de aumentar o poder e a
fama. Brunnhilde é a filha de Wotan cuja função é matar o irmão, porém desobedece
ao pai e é punida severamente. O neto de Wotan Siegfried nasce e é criado
por um anão sem sentimentos. Sendo assim, desconhece o medo, a culpa, o amor.
Mas são essas características que farão dele o herói, aquele que salvará Brunnhilde
do sono eterno. A história continua com a traição de Siegfried a Brunnhilde, após
manipulação dos fatos por Wotan. Brunnhilde se sacrifica então, no final, para
devolver a ordem e instaurar uma nova era.
A autora faz uma crítica à estrutura da sociedade patriarcal, focada em
valores e posturas masculinas. Também dá ênfase às transformações radicais que
estão prestes a acontecer. Assim, utiliza a história do Ciclo do Anel para ilustrar
comparativamente o que acontece no mundo atual em relação ao domínio do
masculino e à supremacia do patriarcado vigente em oposição à ausência do poder
feminino. A história demonstra também a força do Pai autoritário e o valor da
verdade (o que considera ser a resposta para a situação crítica representada na
ópera). E como o princípio da verdade emana das profundezas psíquicas, Brunhilde
é a legítima representante deste princípio. Ela se sacrifica em nome do amor.
Seja qual for a relação estabelecida entre pais e filhas, ela pode
resultar em feridas psíquicas. Leonard (1997) aborda o tema da ferida dessa
relação. Enfoca o abalo existente entre os princípios feminino e masculino e ressalta
as conseqüências decorrentes desse abalo. Assim, as diversas maneiras de o pai se
relacionar com a filha podem gerar a ferida: o pai ausente, o pai fraco, o pai
permissivo. Cada forma contribui para construir um tipo de ferida na mulher.
Seja qual for a causa, se o pai não estiver disponível para sua filha
de modo comprometido e responsável, estimulando o
desenvolvimento de suas dimensões intelectual, profissional e
espiritual, valorizando sua singularidade feminina, isso resultará em
dano ao espírito feminino da jovem. (LEONARD, 1997, p.31).
A autora acrescenta que, no decorrer do desenvolvimento da mulher,
alguns aspectos da relação estabelecida entre pai-filha reforçam a enorme influência
que o pai exerce sobre a filha. Desses aspectos, a autora dá ênfase aos parâmetros
29
construídos com base nessa relação, que norteiam as relações da filha com outros
homens e, também, a forma como o pai se relaciona com a feminilidade da filha, e
que irá afetar o modo de ela amadurecer até tornar-se uma mulher.
Sendo assim, consideramos que o pai tem como uma das funções,
auxiliar a filha a enfrentar seus conflitos. As atitudes dele referentes ao trabalho e ao
sucesso profissional auxiliarão nas atitudes da filha. Leonard não coloca todas as
responsabilidades de desempenho da vida da filha nas mãos do pai; destaca, sim,
as parcerias estabelecidas no casal parental e o quanto este par vai contribuir para o
crescimento da filha. Mas dá destaque especial a dois tipos de padrões opostos que
surgem de uma relação doentia com o pai: a eterna menina e a amazona de
couraça.
A eterna menina apresenta-se como uma filha dependente e que aceita
a identidade que os outros projetam nela. Sua grande dificuldade está em integrar as
qualidades de um pai positivo: consciência, disciplina, coragem, tomadas de
decisão, autovalorização e direção. Já a amazona de couraça refere-se àquelas
mulheres que se revoltam contra a relação inadequada com os pais, e tem o ego
identificado com as funções masculinas (ou paternas). No entanto, essa atitude
serve de proteção contra a dor da ferida e contra a suavidade, fraqueza e
vulnerabilidade. Tanto uma como outra apresentam grande sofrimento psíquico.
As mulheres que caem no padrão arquetípico da puella e se vêem
prisioneiras do desespero-fraqueza precisam tomar consciência da
própria força e se desvencilhar de sua identidade de vítimas. As que
estão nas malhas da tendência de controle da amazona de couraça
precisam enxergar como o controle pode ser uma falsa força, dando
o devido valor à receptividade para o que não pode ser controlado.
(LEONARD, 1997, p.44).
Em outro artigo, Leonard (1994) destaca que uma das possibilidades
de desenvolvimento da mulher, para as filhas feridas por aspectos deficientes do pai,
é reconhecer os valores que ele tem e aceitar as limitações que ele apresenta. Para
as filhas cuja ligação com o pai é muito positiva, é necessário que ocorra uma
desidealização da imagem do pai, para que ela possa se relacionar com o pai real.
Já a redenção do pai, assim denominada pela autora, promove a transformação da
crítica internalizada em uma figura mais amorosa. Conseqüentemente, permite
desenvolver um sentido interior próprio de valorização, em vez de buscá-la na
aprovação externa.
30
Murdock (1998) aborda a relação pai-filha sob o olhar da aliança
estabelecida entre eles e suas conseqüências para o desenvolvimento da mulher,
dando ênfase à relação entre as filhas prediletas e o pai. Sua leitura destaca que a
ausência do pai pode gerar na filha o sentimento de abandono, fazendo-a sentir-se
vulnerável e carente do seu amor. Assim, uma das características que a filha
costuma assumir diante deste tipo de pai é a culpa pela sua ausência, procurando
fazer o máximo para poder ser merecedora do seu amor, e também do amor de
outro homem.
Já os pais superprotetores e dominadores geram na filha um
sentimento de defesa como forma de reação à postura por ele adotada. Na visão do
autor, este tipo de pai promove a insegurança e a submissão da filha, levando-a a se
sentir amedrontada diante da vida.
Em outro artigo, Murdock (1992) destaca que as filhas prediletas do pai
referem-se àquelas mulheres que buscam a aprovação eterna de seu primeiro
modelo masculino o pai, em seu trabalho, competência, inteligência. Sendo
assim, elas muitas vezes apresentam dificuldade em aceitar sua sexualidade, suas
habilidades na relação com homens e com o mundo do trabalho.
Ressalta também que é muito importante para a menina sentir-se
aprovada e aceita por seu pai, pois isso irá facilitar o desenvolvimento mais positivo
de seu ego. As mulheres que tiveram uma boa aceitação do pai, desenvolvem maior
autoconfiança e um melhor relacionamento com o mundo e com a sua natureza
masculina, já que possuem uma natureza interna masculina acolhedora e
fornecedora de suporte para seus esforços criativos.
Desse modo, Murdock (1992) estabelece que a mulher precisa passar
por algumas etapas no seu desenvolvimento psíquico e que envolvem uma maior
aproximação com aspectos masculinos e um distanciamento, momentâneo, de
aspectos do feminino. Essa aprovação masculina saudável é considerada parte do
processo de independência do universo materno rumo a uma adaptação ao mundo
patriarcal. No entanto, há uma ressalva a ser feita: a mulher deve sentir-se capaz de
efetuar suas realizações independentemente da presença do pai. Ela precisa se
afastar do pai e sentir que a competência dela é plena mesmo na ausência do
masculino externo o pai ou substituto.
Quando a mulher estabelece um vínculo negativo com o pai ou
substituto, o registro existente está ferido, e pode transparecer na forma de excessos
31
como perfeccionismo, ausência de criatividade, excesso de trabalho, ocasionando
uma dificuldade em confiar na sua capacidade relacional ou emocional, sentindo-se
sempre insuficiente em tudo o que faz. Nestes casos, na tentativa de buscar a
aceitação deste masculino interior, a mulher faz a compensação pelo perfeccionismo
ou pelo mergulho excessivo no trabalho para igualar-se a este homem que tanto
almeja alcançar.
Apesar de serem recortes de aspectos diferentes da relação pai-filha,
os estudos são convergentes e próximos, quando tratam dos aspectos decorrentes
dos vínculos estabelecidos na relação pai-filha: quando um pai pessoal não
consegue humanizar o arquétipo paterno, seja por ausência ou por limitações
pessoais, a figura do pai acaba sendo portadora de alguns símbolos, que estarão
presentes ao longo da vida da mulher, como destacamos a seguir:
Se ele encoraja os esforços dela para atingir, inspira o crescimento
da autoconfiança e ensina suas habilidades, ela irá desenvolver mais
facilmente uma auto-estima. Se ele desencorajar seus esforços,
minar sua autoconfiança, envergonhar seu corpo ou diminuir suas
opiniões pessoais, sua auto-estima será frustrada e poderá levar
anos até ela aprender a acreditar em si mesma. (SCULL,1992, p.
99).
A relação com o pai, acrescentada da predisposição interna de cada
filha, pode vir a dificultar ou a facilitar a internalização do princípio paterno.
Da inter-relação da filha com o pai podem surgir complexos.
1.4 Os complexos
Foi Jung quem criou o termo complexo, introduzindo pela primeira vez
a noção de “complexo de acento emocional” para tratar dos fenômenos que ele
chamou de “agrupamentos de idéias de acento emocional inconsciente”,
posteriormente denominado apenas complexo. (Jacobi, 1957). Essa descoberta se
deve ao experimento de associação de palavras desenvolvido por Jung, quando
iniciava sua carreira como psiquiatra. Sua observação dizia respeito à existência de
núcleos associativos de conteúdos, com alta carga emocional, que quando
acionados produziam uma perturbação na consciência. Assim, as perturbações eram
os indicativos da existência do complexo.
32
Segundo Silveira (1981) podemos definir complexos como sendo:
agrupamentos de conteúdos psíquicos carregados de afetividade.
[...] São compostos por um núcleo possuidor de intensa carga afetiva
e também pelas associações com outros elementos cuja coesão é
mantida pelo afeto comum de seus elementos. Formam-se assim
verdadeiras unidades vivas, capazes de existência autônoma.
(SILVEIRA, 1981, p.35).
Quando atualizados, isto é, quando entram em ação na psique do
indivíduo, os complexos tornam-se capazes de fazer até oposição ao ego
consciente, comportando-se como um estranho.
Segundo Whitmont (1994), Jung via dois aspectos relacionados ao
complexo. O primeiro deles é conhecido como a “casca” do complexo; e o segundo é
o núcleo dele. Na casca estão as associações geradas, em parte, pelas disposições
da pessoa e, em parte, pelas vivências ambientais. Ao núcleo estão relacionados os
conteúdos mais primitivos, os arquétipos. Este núcleo é o possuidor do significado, e
como todo conteúdo arquetípico, é inconsciente.
Para Jung (1988b, § 179, p.75), “o complexo é que nos tem”. Esta sua
conhecida frase refere-se à autonomia que os complexos possuem em nossa
psique. Sendo assim, a compreensão puramente racional do complexo é ineficaz,
porque não promoverá a transformação psíquica.
Existem várias maneiras de o indivíduo reagir diante de um complexo.
Jacobi (1957) destaca quatro possibilidades de comportamento que se pode ter
diante do complexo: a total inconsciência, a identificação, a projeção ou a
confrontação, sendo que esta é a única que pode levar à dissolução do complexo.
Então, quando localizamos um complexo, na verdade, estamos localizando a
existência de um conflito não assimilado pela consciência.
Ter complexo [...] quer dizer apenas que existe algo incompatível,
não assimilado, conflitante ou talvez algum impedimento, mas
também um estímulo para esforços maiores e, dessa forma, talvez
até uma nova oportunidade para o sucesso. (JACOBI, 1957, p.29)
Consideramos que a assimilação do complexo não ocorre de forma
simples, pois a conscientização não é total, uma vez que, quando um complexo se
torna consciente, o que temos, na verdade, é uma parte dele que estava constelada.
Assim sendo haverá partes inconscientes no processo de assimilação do complexo.
Uma das maneiras que temos para nos relacionarmos com o complexo
é por meio da projeção. A projeção, na visão de Jung, não é apenas vista como um
33
mecanismo de defesa, mas o caminho pelo qual o complexo pode chegar à
consciência.
Whitmont (1994, p.54), acrescenta que a maneira como Jung faz uso
do termo não é vista como uma manobra deliberadamente defensiva, mas como um
estado original que permite que um complexo inconsciente possa chegar à
consciência. Para que a projeção aconteça, ela precisa de um “gancho” onde se
“pendurar”. Isto quer dizer que os conteúdos projetados são “colocados” no outro,
mas este também tem que ter algo que permita que esta projeção ocorra. “O
portador da projeção e o conteúdo projetado devem, é evidente, ter uma
correspondência intrínseca.” (Whitmont, 1994, p.57).
O que caracteriza a presença de um conteúdo projetado é a carga
emocional que se apresenta em uma determinada situação. “A experiência mostra
que o portador da projeção não é um objeto qualquer, mas sempre se ajusta à
natureza do conteúdo a ser projetado, isto é, oferece “gancho” adequado à coisa a
ser pendurada.” (Jung ,1988b,§ 499, p.276).
Existe uma dinâmica psíquica que descreve o que acontece quando
um complexo é ativado. Nas palavras de Stein, a seguir:
Na regressão, por outro lado, o fluxo de energia reingressa no
sistema psíquico e fica inacessível para a adaptação. Quando as
polaridades se fragmentam, desenvolve-se uma espécie severa de
ambivalência que paralisa a vida. [...] Quando a energia não é
consumida num processo de adaptação ao mundo nem está se
movimentando de forma progressiva, ela ativa os complexos e eleva
o potencial energético destes no mesmo grau em que o ego perde
energia ao seu dispor. [...] A energia não desaparece do sistema;
antes, ela desaparece da consciência. E isso resulta, tipicamente, em
estados de depressão, conflito interior, ambivalência incapacitadora,
incerteza, dúvida, questionamento e perda de motivação. (STEIN,
2001, p.76/77)
O complexo, ao ser ativado, e a energia fluindo para o inconsciente
carregam energeticamente ainda mais o complexo. Para se tornarem menos
autônomos, os complexos precisam se tornar conscientes, permitindo assim que
ocorra uma redistribuição de energia psíquica.
Kast (1997) apresenta uma compreensão peculiar sobre os complexos.
Considera que estes podem ser positivos ou negativos para uma pessoa,
dependendo da maneira como ela se relaciona com eles. Para Kast (1997), é
importante ocorrer uma diferenciação dos complexos materno e paterno na
juventude, para que a pessoa possa se relacionar com as tarefas de cada etapa do
34
desenvolvimento psíquico, perceber as exigências da vida e saber lidar com as
dificuldades de cada uma.
Essa autora faz uma diferenciação na forma de manifestação do
complexo na vida do indivíduo.
Quando falo de complexos originalmente positivos, quero dizer que
esses complexos tiveram originalmente uma influência positiva sobre
o sentimento de vida e, assim, sobre o desenvolvimento da
identidade da pessoa em questão e continuariam a tê-lo se ocorresse
um desligamento adequado à idade. (KAST, 1997, p.13)
Conforme esta concepção, podemos encontrar o complexo materno
originalmente positivo na mulher e originalmente positivo no homem, o complexo
materno originalmente negativo na mulher e originalmente negativo no homem.
Também temos, assim, o complexo paterno originalmente positivo na mulher e no
homem, e o inverso, o complexo paterno originalmente negativo na mulher e no
homem. Aqui daremos ênfase apenas ao complexo paterno relacionado à filha, em
seus aspectos mais marcantes.
O complexo paterno, segundo Kast (1997), manifesta-se na relação
com homens e com tudo aquilo que é considerado masculino em uma determinada
cultura. Faria complementa (2003):
[...] o complexo paterno se estrutura na relação com o pai pessoal ou
substituto entremeada de elementos da fantasia provenientes do
arquétipo paterno. Assim, se esta relação com o pai pessoal for
próxima e calorosa, na maioria das vezes constelará a figura do Pai
Bom; caso contrário, se essa relação for povoada pela ausência do
pai ou por seu caráter autoritário, a figura do Pai Terrível poderá ser
constelada.(FARIA, 2003, p. 102)
O complexo paterno originalmente positivo nas mulheres apresenta um
pai idealizado e uma relação com a mãe em segundo plano. Assim, uma das
características da filha é procurar satisfazer convenções e papéis convencionais,
agindo da forma padronizada. A mulher passa a adaptar-se ao mundo, atuando
cooperativamente, sempre que estiver diante de figuras masculinas ou de valores
masculinos.
Kast (1997) destaca que essas mulheres, quando “distanciadas” da
atuação do complexo paterno, conseguem ser independentes e inovadoras. Mas,
quando não o fazem, o sentimento de auto-estima fica associado diretamente à
admiração dos homens. Como conseqüência, começam a apresentar medo diante
da vida e diante da tomada de decisões, fato decorrente de terem sido poupadas de
35
assumir responsabilidades sobre si mesmas e de arcar com as conseqüências das
atitudes tomadas. Como os homens ficam idealizados, as mulheres movidas por um
complexo paterno originalmente positivo tornam-se mais dependentes do que
realmente necessitam ser, quando diante de figuras masculinas. Kast (1997)
acrescenta que essas mulheres se portam como “filhas atenciosas”, quando diante
de homens.
Para Kast, é possível ocorrer um desligamento do complexo, que é o
que considera ser o passo referente à diferenciação do ego em relação ao
complexo. Quando a mulher não consegue se desligar de seu complexo paterno
originalmente positivo, sua identidade fica dependente da visão que os homens têm
sobre ela mesma.
Acreditamos, para a compreensão deste estudo, que é possível
acontecer uma diferenciação do complexo para ocorrer o desenvolvimento psíquico.
Apesar de a compreensão de Kast ficar próxima desta que estamos aqui
apresentando, consideramos o uso do termo diferenciação mais apropriado para
descrever a relação entre ego e complexo.
No complexo paterno originalmente negativo, as mulheres buscam
mostrar-se à altura das exigências paternas, mas apresentam uma crítica muito
acentuada perante todas as atitudes que tomam diante da vida. “Ela tenta
desesperadamente se mostrar à altura dessas exigências, com a profunda
convicção de que nunca conseguirá isso e com a desatinada esperança de talvez
conseguir.” (Kast,1997, p.196).
As mulheres tomadas por este complexo vivem a experiência de terem
sido violentadas no desenvolvimento do feminino. As leis do pai têm grande valor e
as leis vitais da filha ficam em segundo plano. Assim, o sentimento fortemente
reconhecido é o da sua desvalorização como mulher e pessoa, de descrença em si
mesma.
Kast (1997) destaca que sua maneira de apresentar as características
dos complexos são marcadas pela unilateralidade. A autora procura salientar que
tais aspectos dificilmente são encontrados de forma pura nas mulheres, mas que,
em certos momentos na vida, os complexos podem ser constelados de maneira mais
acentuada.
Assim, a saída para se resolver esta relação com os complexos,
segundo Kast (1997), está na percepção de si mesmo e na percepção das
36
polaridades do complexo. A partir desta conscientização, a busca pelo próprio
caminho se faz pelo constante questionamento das atitudes habituais, que são
comuns na manifestação de nossos complexos. Assim,
[...] toda marca de complexo traz no bojo seus problemas e suas
possibilidades de vida e que o complexo do eu deve estar sempre se
libertando de toda marca do complexo, o que sempre corresponde a
passos de novas separações e novos vínculos que devem ser
assumidos. (KAST, 1997, p.207)
Consideramos que os complexos são agrupamentos de idéias, com
alta carga emocional, que estão presentes na psique de todos os indivíduos. Eles
podem entrar em ação na psique sem a intenção do ego, reforçando autonomia
sobre o indivíduo. Compartilhamos em parte com a idéia de Kast. Acreditamos que o
complexo possa ter aspectos positivos ou negativos, já que tem em seu núcleo um
arquétipo e este possui tais polaridades. Não adotaremos aqui, para fins de análise
nesta pesquisa, o ponto de vista da autora sobre o desligamento dos complexos.
Acreditamos que seja possível uma diferenciação do ego em relação ao complexo,
como já afirmamos. Essa diferenciação irá permitir que a mulher, foco deste estudo,
consiga se relacionar com aspectos referentes à normatização, à uniformização, à
organização e à discriminação, pertencentes ao arquétipo do Pai, de maneira
amadurecida e diferenciada. Ou seja, é possível buscar o próprio caminho,
desvinculando-o da imagem e das atitudes do pai.
O animus, que será posteriormente discutido, também se encontra
vinculado inicialmente ao complexo paterno.
A relação entre complexo paterno, animus e a mulher será discutida
posteriormente.
1.5 A Superação do Complexo de Édipo
Uma apresentação aprofundada sobre o tema do Édipo foge aos
propósitos deste estudo, mas não poderíamos deixar de destacar a importância da
superação desta ligação com o pai para o desenvolvimento psíquico da mulher.
Se, como Hillman (1995, p. 88) aponta, “sempre que idealizamos o pai
permanecemos filhos”, a filha, para tornar-se mulher, precisa desidealizar o pai.
37
Lima Filho (2002) salienta a dificuldade da elaboração edípica para a
menina. Destaca que a filha precisa curar a cisão mãe-filha para poder se religar
com o seu centro feminino. A aproximação com o pai leva a menina a um
afastamento da referência feminina inicial, para a qual deverá retornar
posteriormente, à sua referência de feminino proveniente do Self. Para isso, precisa
se afastar do pai, sacrificando sua relação erótica com ele e reaproximando-se da
mãe.
Este afastamento é útil para poder atingir autonomia. Ela precisa
romper com essa fidelidade incestuosa para poder se desenvolver como mulher, em
sua plenitude.
Enquanto a mulher ficar submetida ao pai, seja ele arquetípico ou
cultural, a autonomia estará limitada à correspondência de expectativas ditadas por
ele e seus representantes. O rompimento é necessário para construir sua referência
masculina com base em suas vivências pessoais.
1.6 A anima e o pai
Jung denominou anima ao componente contrassexual presente no
inconsciente do homem. Como tudo na teoria de Jung, a polaridade é sumamente
importante para o desenvolvimento psíquico da pessoa. A anima é a representante
arquetípica inconsciente do feminino no homem. Ela intensifica, exagera, falseia e
mitologiza todas as relações emocionais do homem com pessoas e situações.
(JUNG, 2000, § 144, p.82)
Segundo E. Jung (1967), a capacidade receptiva e a facilidade de
relação com as questões irracionais tornam a anima mensageira entre o
inconsciente e o consciente do homem. Desta forma, sua função é auxiliar o homem
no contato com as pessoas, a vida; tudo o que envolve o princípio da relação e da
ligação, já que é regida por Eros.
A incorporação da anima como elemento feminino da personalidade
também faz parte do processo de individuação. Esse aspecto auxilia o homem na
relação com as pessoas e na expressão de suas emoções. A anima, está muito
relacionada às referências que o homem adquiriu, ao longo de sua vida, com a mãe,
38
as mulheres em geral e também com a concepção que traz em si de feminino, ou
seja, o feminino arquetípico.
Segundo Whitmont,
como padrão de comportamento, o arquétipo da anima representa
os elementos impulsivos relacionados à vida como vida, como um
fenômeno natural, não premeditado, espontâneo, à vida dos
instintos, à vida da carne, à vida da concretude, da Terra, da
emotividade, dirigida para as pessoas e as coisas. É o impulso
para o envolvimento, a conexão instintiva com outras pessoas e a
comunidade ou grupo que as contém. [...] Como padrão de
emoção, a anima consiste nos anseios inconscientes do homem,
seus estados de espírito, aspirações emocionais, ansiedades,
medos, inflações e depressões, assim como seu potencial de
emoção e relacionamento. (WHITMONT, 1994, p.168)
A presença da anima é significativa para o homem, que é pai, por ser a
correspondente interna do Feminino, aqui tão importante na relação dele com a filha.
Esse Feminino o auxiliará na compreensão da filha e no seu apoio a ela, também no
que se refere aos aspectos femininos e aos aspectos masculinos, já anteriormente
apontados, referentes à peculiaridade dessa relação. Ou seja, como o pai vai se
relacionar com o feminino da filha depende, em parte, também da sua própria
relação com o seu aspecto Feminino sua anima.
É importante que o pai, como homem, conscientize-se dos aspectos
pessoais de sua anima, porque sua inconsciência pode levar a uma ação autônoma
desse componente feminino, que atua de forma perturbadora e dificultadora nos
relacionamentos. Um pai inconsciente de sua anima pode se relacionar com a filha
com intromissões em sua vida pessoal, fortemente contaminado por acessos de
emoções intensas e desproporcionais aos fatos reais.
Outra característica também presente quando a anima se encontra
demasiadamente inconsciente é a distorção dos sentimentos. Os fatos, as coisas,
idéias, de ordem impessoais, são influenciados pela anima de forma a se
apresentarem à consciência como conteúdos de ordem pessoais. A anima passa a
agir no homem na forma de intrigas.
Não nos cabe aqui aprofundar este tema, apenas gostaríamos de
ressaltar algumas características da anima para posterior compreensão da análise
realizada neste estudo.
39
O capítulo que segue trata das características da mulher jovem, no que
se refere ao seu desenvolvimento psíquico, sua relação com o feminino e com a
mãe.
40
2 A MULHER: A RELAÇÃO COM A MÃE E COM O FEMININO
Este capítulo aborda as características da mulher adulta jovem, do
feminino e a importância da relação com a mãe. Para isso, retomaremos alguns
conceitos já apresentados no capítulo anterior e destacaremos a realidade que essa
mulher enfrenta hoje, no mundo do trabalho, e os requisitos psíquicos que necessita
para essa atuação.
2.1 Sobre o Feminino
: características gerais
Jung (1993), em meados do século 19, já dizia que a mulher estava
assumindo profissões masculinas, tomando frente em atividades políticas, estando
pronta a romper com um padrão de inconsciência e passividade. Hoje, um século e
meio depois, a mulher, em geral, assume o trabalho profissional e tem presença na
cultura e na política.
Jung compreendeu a mulher diferentemente de muitos pesquisadores
de sua época, não a definindo pelo referencial do homem, mas conforme o
funcionamento psíquico dela mesma, baseado, segundo ele, no princípio de Eros.
Esse princípio tem como forma de manifestação a força de ligação e das relações.
Jung dizia (1993) que as mulheres costumam fazer tudo por amor a
uma pessoa e que os homens costumam fazer tudo por amor às coisas. Essa
característica masculina traduziria o princípio de Logos, típico da dinâmica
masculina, centrado na lógica, na focalização em objetivos.
Whitmont (1994) reforça a compreensão de Jung sobre os conceitos de
Logos e Eros, buscando utilizá-los como apoios para exemplificar que o consciente
da mulher, em geral, tem mais características do aspecto Eros e menos da
Sempre que mencionarmos a palavra Feminino em letra maiúscula, estaremos nos referindo ao princípio
arquetípico do Feminino e não ao gênero feminino. O mesmo procedimento será adotado para a palavra
masculino.
41
discriminação de Logos, acrescentando serem estes conceitos mais intuitivos que
exatos, em sua definição.
Uso os termos ‘Eros’ e ‘Logos’ meramente como meios nocionais
que auxiliam a descrever o fato de que o consciente da mulher é
caracterizado mais pela vinculação ao Eros do que pelo caráter
diferenciador e cognitivo do Logos. No homem, o Eros que é a
função de relacionamento, via de regra, aparece menos
desenvolvido do que o Logos. Na mulher, pelo contrário, o Eros é
expressão de sua natureza real, enquanto que o Logos muitas vezes
constitui um incidente deplorável. Ele provoca mal-entendidos e
interpretações aborrecidas no âmbito da família e dos amigos,
porque é constituído de opiniões e não de reflexões. (JUNG, 1988,
§29, p.12).
O que Jung chamou de Logos corresponderia ao princípio yang da
filosofia chinesa, manifestando-se, então, na forma de reflexão, consciência,
discernimento, objetividade. Associada a Eros encontra-se yin, como manifestação
de envolvimento, unidade e afinidade.
Willeford (1996) resgata também os conceitos de Logos e Eros e afirma
que a associação simbólica do Feminino está ligada ao maternal e criativo, enquanto
Logos relaciona-se à diferenciação e separação. O autor utiliza uma metáfora para
esclarecer a diferença entre o estilo Logos e o estilo Eros de consciência. O estilo
Logos é focal e direcionado, enquanto o estilo Eros é mais difuso. Sendo assim,
ambos são importantes e necessários para o indivíduo.
Para este estudo tomaremos por Masculino o princípio caracterizado
pelo: penetrante, focal, ativo, determinante, diferenciador, objetivo Logos- e, por
Feminino, o princípio representado pelo: conter, acolher, o envolvimento, a união
Eros.
Com base nesta compreensão, temos que a dinâmica da mulher
possui características predominantemente de Eros, que é uma força de ligação e de
relação. Segundo Whitmont (1994), Eros refere-se à função do relacionamento,
focalizado no desejo de unir, unificar, envolver-se com pessoas. Isso é por ele
considerado o pólo ativo deste princípio.
Esse autor destaca que tanto Eros quanto Logos correspondem a
apenas uma parte do arquétipo do Feminino e do Masculino, respectivamente. Para
ele, os conceitos chineses de yin e yang corresponderiam melhor ao que Jung quis
denominar de princípios do Feminino e do Masculino, o que os diferenciaria
42
claramente dos conceitos de masculinidade e feminilidade, facilmente motivos de
confusão e polêmicas.
Contudo, como Jung utiliza em sua obra os conceitos de Eros e Logos,
tomaremos aqui estas denominações, já mencionadas acima, para referenciar os
princípios de Feminino e Masculino.
Segundo Jung (1993), para a mulher viver conscientemente é preciso
estar a par da batalha entre as forças de sua natureza feminina, do princípio de
Eros, e da força de seu Masculino inconsciente (animus). A conscientização de que
a pessoa é composta também por aspectos inconscientes é necessária para que ela
se desenvolva psiquicamente e não tenda a agir com base em apenas uma das
polaridades: a consciente (ou egóica), ou a inconsciente (ou complementar).
Se a mulher não se relaciona com seus aspectos Masculinos internos
corre o risco de buscar essas características externamente em um homem. Isso a
tornará ainda mais frágil e insegura. Caso se identifique com seu Masculino, o risco
está em ela mesma desvalorizar tudo o que for referente à natureza feminina, o
cuidar, o acolher, o conter. Qualquer uma dessas polarizações não é saudável para
a mulher.
Por exemplo, segundo Muszkat (1985), o movimento feminista não
resultou na integração dos aspectos Femininos e Masculinos, pois provocou uma
identificação das mulheres com o animus, ocasionando, ao invés de uma
conscientização, a exacerbação do enrijecimento e a exaltação do princípio
masculino, o que chama de culto ao Pai.
2.1.2 A relação com o Feminino
O princípio Feminino é um padrão universal, arquetípico e que está
presente tanto em homens como em mulheres. Ele pode predominar na mulher, mas
não se restringir a ela.
Segundo Stein (1994), a mulher precisa estar consciente do papel do
Feminino interior, isto é, arquetípico, para não se identificar com ele em sua forma
43
primitiva, e então ser tomada pela inconsciência. Isso acarretaria uma vivência
unilateral, não permitindo o acesso ao princípio Masculino.
Se isso acontecer, a mulher estando mais inconsciente de si mesma e
identificada com o princípio Feminino se sentirá mais dependente de um homem
para poder se sentir inteira. Para a compreensão de Stein (1994, p.71): “quanto mais
‘feminina’ for uma mulher, mais inconsciente será de suas próprias qualidades
Masculinas e mais as sentirá como alheias à sua natureza.” Por isso, é preciso uma
consciência também das características fálicas da natureza da mulher, de seu
Masculino interior.
A sociedade contemporânea reforçou e favoreceu, na mulher, o
desenvolvimento da perspectiva masculina no que se refere à exaltação da razão,
da objetividade, proporcionando quase uma negação das emoções e da
subjetividade. Essa realidade dificulta a relação da mulher consigo mesma
plenamente, pois tende a polarizar suas atitudes: ou identifica-se na consciência
com o Feminino, ou polariza para a identificação com o princípio Masculino interior,
favorecendo a atuação na sociedade masculina e de orientação patriarcal. O
caminho não pode ser nem um, nem outro, exclusivamente.
Enquanto a mulher não distinguir e diferenciar-se ela mesma do
Feminino, continuará a ver os homens como os salvadores ou os
opressores. Qualquer que seja o caso, continuará dependente de um
homem para conectá-la com sua própria natureza fálica e continuará
inconsciente das dimensões psíquicas de sua opressão, que são
muito mais importantes e têm uma necessidade mais urgente de
atenção. (STEIN, 1994, p.79)
O mundo necessita tanto do acolhimento e da proteção quanto da
razão, da lógica, do direcionamento. Se houver polarização de um dos lados, um
não conseguirá existir por muito tempo sem o outro.
Essa mesma consideração vale para a psique da mulher. Ela não
conseguirá se sentir inteira, plena, se apenas considerar um dos lados: o princípio
Feminino ou Masculino. Se a identificação ocorrer com apenas um deles, haverá
uma polarização, que poderá contribuir para a formação de um complexo.
Enquanto uma mulher se mantiver amedrontada, irada e continuar a
rejeitar o Masculino que há dentro dela, enquanto ela continuar a
participar principalmente da luta “lá fora” em lugar da luta dentro de
sua própria alma, ela jamais se tornará, na realidade, livre de sua
opressiva dependência dos homens, pois ela essencialmente
decepou a fonte fálica de seu próprio poder e potência. (STEIN,
1994, p.79)
44
2.2 A relação mãe-filha
A participação da mãe na vida de um filho é provavelmente mais
intensa que a do pai, se tomarmos como referência o processo gestacional e o parto.
Considerando esse papel da mãe na vida de uma filha, sabemos que algumas
representações ficam marcadas na psique, decorrentes da intensa relação
estabelecida já intra-útero.
Sabemos que a mãe, arquetipicamente, é portadora de características
tanto positivas como negativas. Quando uma determinada experiência pessoal ativa
um arquétipo, uma das polaridades é constelada. Ao arquétipo materno são
atribuídos os símbolos referentes ao “maternal”: o cuidar, sustentar, o que
representa a fertilidade e o alimento, o oculto, o devorador e o sedutor. Essas seriam
algumas das características da qual o arquétipo materno é portador e que podem ser
consteladas no contato com a mãe pessoal.
A forma como ocorre o vínculo entre mãe-filha contribuirá para a
relação da filha com as imagens das quais sua mãe será portadora. Assim,
não é apenas da mãe pessoal que provêm todas as influências
sobre a psique infantil descrita na literatura, mas é muito mais o
arquétipo projetado na mãe que outorga à mesma um caráter
mitológico e com isso lhe confere autoridade e até mesmo
numinosidade. (JUNG, 2000, §159, p.93).
Isso reforça a importância da mãe pessoal no que se refere à maneira
como o arquétipo materno irá se manifestar na vida da filha.
Conforme dissemos, o arquétipo é a base do complexo.
2.2.3 O complexo
O complexo materno na filha, segundo Jung (2000, §163, p.95), ocorre
de forma mais pura e sem complicações, já que pode se apresentar como uma
intensificação dos instintos femininos ou, ao contrário, como uma extinção destes. O
45
complexo poderá se manifestar de quatro maneiras na vida da filha: hipertrofia do
materno, exaltação do eros, identificação com a mãe e defesa contra a mãe.
O complexo materno com características de hipertrofia do materno
gera na filha uma hipertrofia do feminino ou então uma atrofia dele (JUNG, 2000,
§167, p.97). Essa característica pode ocorrer por uma intensificação de todos os
instintos femininos, inclusive o materno, apresentando como aspecto negativo o foco
na procriação; o homem e ela mesma têm importância secundária já que a vida é
vivida através dos outros. Positivamente, expressa-se por meio da imagem do amor
incondicional materno. O princípio de Eros, neste caso, é exclusivamente maternal,
apresentando inconsciência como relação pessoal; o instinto materno guiado desta
maneira inconsciente atua sob a forma de poder.
No caso da exacerbação do eros, o que ocorre na filha é uma extinção
do instinto materno, que leva a uma compensação pelo aumento dos instintos
eróticos. O aspecto negativo também é caracterizado por uma notável inconsciência.
As mulheres tomadas por esse complexo costumam agir cegamente, não se
importando com o outro, mas apenas com seus objetivos.
Essas mulheres costumam desenvolver um relacionamento incestuoso
com o pai. É comum, também, mulheres com esse complexo buscarem
relacionamentos com homens casados ou comprometidos. São mulheres que têm
dificuldade em estabelecer vínculos com homens, em razão da falta de instinto
materno para dar continuidade ao afeto. Essas mulheres mantêm o relacionamento
com homens comprometidos não por eles mesmos, mas “pela oportunidade de
perturbar o casamento, objetivo principal de sua manobra”. (JUNG, 2000, § 168,
p.98).
Caso ocorra uma identificação com a mãe, o problema vivenciado pela
filha é da ordem da paralisação dos instintos femininos, tanto o instinto materno
quanto o instinto erótico, o que acarreta uma projeção da sua personalidade sobre a
mãe. A filha admira intensamente a mãe e se sente inferiorizada em relação a ela,
permanecendo à sua sombra. Com isso, tudo o que se refere à maternidade, vínculo
pessoal, necessidade erótica, causa sentimentos de inferioridade na filha,
ocasionando-lhe uma dependência inconsciente da mãe; vive uma existência à
sombra da mãe, correndo riscos de não seguir seu próprio caminho.
46
O complexo materno do tipo defesa contra a mãe é considerado por
Jung um típico complexo materno negativo, já que a característica base é: “tudo
menos ser como a mãe!”.
Seu lema é: qualquer coisa menos ser como a mãe! Trata-se, por um
lado, de um fascínio que, no entanto, nunca se torna uma
identificação, e, por outro, de uma exacerbação do eros que se
esgota, porém, numa resistência ciumenta contra a mãe. (JUNG,
2000, § 170, p.100)
Neste caso, não há uma exacerbação ou extinção de uma determinada
característica, mas puramente uma defesa contra tudo da ordem da mãe.
Essa filha sabe tudo o que não quer, mas, muitas vezes, desconhece o
seu próprio caminho. Características fisiológicas que denunciam esse mecanismo
estão relacionadas aos distúrbios da menstruação, dificuldades em engravidar,
hemorragias e vômitos na gravidez, etc. Além dessas características, qualquer
referência à mãe, no que diz respeito à esfera familiar, gera desinteresse, que se
estende por tudo o que lembre família.
2.2.4 O animus da mãe
A filha também sofre influências do Masculino inconsciente da mãe,
seu animus.
A maneira como a mãe se articula com o seu Feminino e com o
Masculino, seu animus, irá influenciar também o modo como a filha se relacionará
com o seu próprio Feminino. Se a mãe valoriza as atividades provenientes do mundo
do Pai em detrimento das atividades provenientes do mundo da Grande Mãe, a filha
irá se relacionar primeiramente com essa apresentação do mundo. A maneira como
a mãe valoriza as qualidades Femininas, a forma de agir e pensar desta natureza irá
auxiliar a filha na assimilação do princípio Feminino e na adequação de sua persona.
A mãe (ou representante) é a primeira figura com a qual a filha tem
contato no mundo, ela é a figura responsável por transmitir à filha as características
da natureza feminina. Logicamente, assim como a filha apreende características do
Masculino da mãe, ela também apreende características do Feminino do pai, a
47
anima. No entanto, aqui cabe apenas destacar as referências ao animus da mãe e a
esta relação com a filha.
A relação com o animus da mãe também irá contribuir para a
constituição do animus da filha, que terá como auxiliar desta constituição a relação
com o pai e com demais representantes do princípio Masculino.
Se o animus da mãe encontra-se na dominância, isto é, se ele está no
poder, o ego feminino pode se sentir oprimido diante da vida e a ação poderá ser
predominantemente da ordem do Masculino; isso será assim percebido pela filha.
A maneira como a mãe apresenta o universo Feminino à filha, aliada à
maneira como o pai apresenta o mundo a sua filha, irá contribuir para a forma como
essa filha irá se relacionar, no mundo patriarcal, com sua natureza feminina e com
seu animus.
2.2 Características da mulher adulta jovem
Com base na compreensão teórica que apresentamos referente à
relação da mulher com o Feminino e o Masculino, cabe-nos agora situar a mulher
adulta jovem nesta dinâmica e dentro do mundo contemporâneo.
A mulher vem buscando um lugar no mundo, mas ainda não encontrou
a medida de sua ação. Até a década de 50, em geral, era esperado que a mulher
saísse da casa dos pais em direção à casa do marido. Todos os cuidados
domésticos ficavam destinados apenas a ela: a educação dos filhos e os cuidados
com a casa. A condição da mulher era definida pelo relacionamento com o homem:
a condição de solteira, de esposa, de divorciada e de dona de casa.
De alguns anos pra cá, a mulher tem se casado mais tarde, gerado
menos filhos e buscado uma condição profissional independente da condição
afetiva: casada, solteira ou separada. Para ela hoje é importante também a atuação
no mercado de trabalho. Contudo, apesar das vitórias sociais e profissionais, a
mulher ainda vive conflitos internos na relação com o trabalho, no tratamento com
seus superiores e subordinados.
Até poucas décadas atrás, era esperado que as mulheres em idade
adulta estivessem direcionando sua vida para o casamento e para a relação com o
48
companheiro, deixando de lado a sua própria vida, no que se refere a desejos e
sonhos que fossem diversos do projeto de casamento e constituição de família.
Segundo McGoldrick (2001), as abordagens sobre jovens adultos
sempre tomavam como referência o mundo dos rapazes. A mulher jovem não tinha
essa etapa da vida assim delimitada, pois, como afirmamos acima, apenas deixava a
casa dos pais para a casa do marido.
Segundo Meirelles (2001), o trabalho extra-domiciliar remunerado é um
dos aspectos que contribuíram para a emancipação e transformação da mulher na
sociedade.
Apesar de o trabalho ter entrado na vida das mulheres sustentado pelo
preconceito e diferença salarial, a mulher continuou em busca de seu espaço. Essa
busca pelo lugar ao sol foi importante, mas a forma como foi realizada precisa ser
revista hoje.
As mulheres contemporâneas que já construíram uma relação com o
mundo do trabalho ainda se preocupam com a opinião da família de origem,
principalmente se o caminho que elas escolheram diverge daquele que a família
considerava adequado para uma mulher. (McGoldrick, 2001)
É importante as mulheres terem consciência deste mecanismo para
que possam resgatar a sua identidade, tão machucada nos dias atuais. Esses
fatores são percebidos pelo grande número de mulheres com problemas para
engravidar, ou dificuldades durante a gravidez, complicações pós-parto, em número
muito superior ao que seria comum acontecer. A identidade feminina está
contaminada pela busca de igualdade.
Meirelles (2001) faz um resgate, em sua dissertação, da obra de
Levinson (1996), em que ele destaca fases do desenvolvimento feminino.
Considerando interessante o apontamento que faz, faremos uso de uma das suas
categorias, para explicitar melhor em que fase da vida essa mulher se encontra.
Nossa população de estudo centra-se na faixa entre 28 e 35 anos. O
autor delimita uma fase entre 28 e 33 anos. Tomaremos por base a descrição desta
fase, a título de exemplificação.
Segundo o autor, a mulher, nesta fase, encontra-se diante de muitos
questionamentos referentes às decisões já tomadas até esse momento da vida e
também em relação ao futuro. A família, a carreira, casamentos e outros aspectos de
suas vidas passam por uma reavaliação. Aquelas que continuam solteiras, apesar
49
do direcionamento da carreira, não descartam a importância e a necessidade de um
relacionamento afetivo.
A mulher jovem adulta encontra-se em uma fase diferente da de sua
mãe, apesar de sofrer grande influência da educação e do modelo materno. E com
isso, muitos questionamentos e conflitos se fazem presentes no discurso dessa
mulher, conforme já apresentamos. Qual o papel da mulher na sociedade e no
trabalho, dificuldades nos seus relacionamentos afetivos, de se colocar no mundo,
de buscar trabalho, de acreditar em si mesmas profissionalmente.
Após essa breve discussão sobre a mulher que estamos considerando
neste estudo, abordaremos a relação dessa mulher com o animus.
50
3 O ANIMUS
Neste capítulo, abordaremos a concepção de animus.
3.1 O Animus abordagem do animus na dinâmica psíquica da mulher
3.1.1 A concepção de C.Jung
A primeira referência ao arquétipo do animus, na obra de Jung,
posterior às formulações conceituais da anima, data de 1912. Nesse ano, ele
escreveu o primeiro artigo especificamente sobre o animus. Nesse mesmo artigo,
que se encontra no volume VII “Estudos sobre a Psicologia Analítica” (1991), Jung
aborda separadamente as características singulares do animus e da anima.
É importante ressaltar que, em 1950, publicou um outro artigo no
volume IX/2 “Aion” (1988), em que trata mais profundamente da dinâmica da
sigízia anima/animus.
Esses artigos são historicamente importantes na Psicologia Analítica
porque é a partir deles que Jung aponta alguns aspectos da dinâmica da psique do
homem e da mulher, respectivamente. Apesar das muitas referências de autores
junguianos à idéia de que Jung considerava o pensamento da mulher inferior ao do
homem, neste primeiro artigo Jung esclarece: “não se pode afirmar ipso facto que a
mulher tem uma consciência inferior à do homem: sua consciência simplesmente é
diversa da masculina.” (JUNG, 1991, § 330, p.196). Mais adiante, no mesmo artigo,
reforça a diferença existente entre o inconsciente feminino e o inconsciente
masculino.
Em certo ponto desse artigo, Jung (1991) destaca o perigo de a
identificação com o animus tornar a mulher menos feminina. “A mulher tomada pelo
animus corre sempre o risco de perder sua feminilidade, sua persona
adequadamente feminina [...] Tais transformações psíquicas do sexo explicam-se
pelo fato de que uma função interior se volta para fora.” (JUNG, 1991, § 337, p.199).
51
Já em “Aion” (1988), Jung parece considerar a existência do animus
com base em sua dedução a respeito da anima. “Como a anima é um arquétipo que
se manifesta no homem, é de se supor que na mulher há um correlato, porque do
mesmo modo que o homem é compensado pelo feminino, assim também a mulher é
pelo masculino.” (JUNG, 1988, § 27, p. 12).
Para Jung: “A mulher é compensada por sua natureza masculina e por
isso seu inconsciente tem, por assim dizer, um sinal masculino.” (JUNG, 1988, § 29,
p.12). Acrescenta que tais estruturas psíquicas, tanto no homem quanto na mulher,
possuem um caráter animoso, mas que, na mulher, a característica presente se
expressa por meio de conceitos, interpretações, opiniões e insinuações.
Jung (1988) destaca, por outro lado, aspectos positivos do animus e,
principalmente, sua função de psicopompo, isto é, aquele que serve de intermediário
entre a consciência e o inconsciente. (JUNG, 1988, § 33, p.14). Assim, o que Jung
pretende é enfatizar que este arquétipo tem a função de fornecer uma ponte entre o
ego e o inconsciente e também reforçar a importância dele para o desenvolvimento
da psique feminina.
Da mesma forma que a anima se transforma em um Eros da
consciência, mediante a integração, assim também o animus se
transforma em um Logos; da mesma forma que a anima imprime
uma relação e uma polaridade na consciência do homem, assim
também o animus confere um caráter meditativo, uma capacidade de
reflexão e conhecimento à consciência feminina. (JUNG, 1988, § 33,
p.14).
Jung, ainda neste artigo, refere-se à importância desses arquétipos
como expressão do inconsciente coletivo, isto é, por meio deles, os conteúdos do
inconsciente coletivo são personificados e podem, então, ser integrados à
consciência. Este é o sentido de psicopompo, pois esses arquétipos acabam
constituindo funções que transmitem conteúdos do inconsciente coletivo para a
consciência.
No “Seminário sobre Visões” ([1931], 1962), Jung exemplifica a função
de ponte do animus, citando uma das visões de sua paciente.
Estávamos correndo de mãos dadas até que chegamos a uma
grande fenda e não sabíamos como atravessar. O jovem fixou suas
pernas em ambos os lados da fenda e me disse para ir através dele
para o outro lado. E assim eu fiz [...]. (JUNG, [1931]1962, p.48).
Jung dá continuidade explicando o que essa visão significava em
termos de animus.
52
Aqui o animus está no seu lugar certo. Funciona como uma ponte,
ajudando-a a passar para uma nova área no inconsciente. Está
naquele lado da paciente que é o inconsciente coletivo, e não em
frente dela, não no lado do mundo óbvio, assim chamado material.
(...) O animus é como uma ponte móvel, ancorada no inconsciente.
Quando levantada, fecha a porta ao inconsciente coletivo. (JUNG,
[1931], 1962, p.48).
Apesar de, neste aspecto, Jung enfocar um papel positivo do animus,
suas afirmações, em geral, apontavam para o aspecto negativo da atuação do
animus na mulher. No mesmo “Seminário sobre Visões” ([1931], 1962), Jung, ao
exemplificar a atuação do animus em sua paciente, destaca os aspectos negativos
do animus, como podemos ver: “O animus é uma figura que personifica a atitude
opinadora de uma mulher. Não posso colocá-lo melhor. São opiniões já prontas mas
não vividas e pronunciadas com autoridade.” (p. 3) Concordamos que o animus
costuma, se pouco conscientizado, atuar na psique por meio de pressupostos
inconscientes que acabam por direcionar algumas posturas das mulheres, podendo
ter uma atuação talvez mais negativa.
Ainda na visão de Jung, é preciso considerar e enfatizar o caráter
inconsciente desse arquétipo. Por ser um arquétipo, por mais que a mulher trabalhe
psiquicamente sobre ele, nunca poderá ser completamente integrado a sua
consciência.
[...] a própria anima e o próprio animus não o podem [ser integrados],
porque são arquétipos; conseqüentemente, a pedra fundamental da
totalidade psíquica que transcende as fronteiras da consciência
jamais poderá constituir-se em objeto da consciência reflexa. As
atuações da anima e do animus podem tornar-se conscientes, mas,
em si, são fatores que transcendem o âmbito da consciência,
escapando à observação direta e ao arbítrio do indivíduo. Por isso
ficam autônomos, apesar da integração de seus conteúdos, razão
pela qual não se deve perdê-los de vista. (JUNG, 1988, § 40, p.18).
3.1.2 A visão de Emma Jung
A primeira mulher a escrever sobre o animus foi Emma Jung, esposa
de Jung. Em 1967 fez um estudo sobre o animus, tendo também como base sua
própria experiência, apresentando uma compreensão mais positiva desse aspecto
psíquico da mulher.
53
Considerando alguns apontamentos de Jung, E. Jung (2003) retoma a
idéia dele sobre a função desses arquétipos, anima e animus, como psicopompos,
enfatizando o duplo aspecto de pertencerem, por um lado, a características pessoais
da psique e, por outro, de estarem enraizados no inconsciente coletivo. Com isso,
ressalta a maneira compensatória desse arquétipo:
[...] de certo modo uma personalidade interna que apresenta
aquelas propriedades que faltam à personalidade externa,
consciente e manifesta. São características femininas no homem e
masculinas na mulher que normalmente estão presentes em
determinada medida, mas que são incômodas para a adaptação
externa ou para o ideal existente, não encontrando espaço algum no
ser voltado para o exterior. (JUNG, E., 2003, p.15/16).
A autora destaca que essas imagens não são determinadas apenas
pela caracterização biológica do sexo oposto, mas também, pela relação do
indivíduo com as pessoas do sexo oposto, isto é, pela relação com os homens e,
ainda, pela experiência que cada mulher tem da imagem coletiva de homem. Em
outras palavras, precisamos da imagem arquetípica, isto é, coletiva do que é ser
homem, bem como da experiência das relações com o sexo oposto.
E. Jung (2003, p.16) define animus como “um ser masculino, cujo rastro
pode ser seguido e que deve ser representado.”
A autora enfatiza que a projeção do animus pode conduzir ao
estabelecimento de uma relação idealizada, uma vez que o conflito não se faz
presente. Desta forma, na relação apenas com a projeção, a mulher acaba não se
relacionando com o homem real e, portanto, não vivencia conflitos. E assim, por
meio da atuação da dinâmica da psique, a mulher se torna mais consciente de suas
atitudes. Quando ela não se torna consciente, o animus torna-se autônomo e
negativo, atuando sobre a mulher e sobre os outros de maneira destrutiva. Essa
dinâmica acontece como tantas outras na psique:
[...] quando a necessidade de função espiritual não é assumida pela
consciência, então a libido determinada para isso cai no
inconsciente e lá ativa o arquétipo do animus. Através desta libido
que escapou para o inconsciente aquela figura torna-se autônoma e
tão poderosa que pode subjugar o eu consciente e, finalmente,
dominar toda a personalidade. (JUNG, E., 2003, p.19/20).
Nesse momento, a mulher corre o risco de ser dominada pelo seu
animus e, inconscientemente, deixar-se levar por esse lado e se afastar de seus
aspectos femininos. Segundo E. Jung (2003), uma das compreensões equivocadas
da mulher, na busca por seu espaço na sociedade, foi acreditar que para essa
54
conquista deveria agir como o homem. Quando isso acontece, a mulher está sujeita
a ser possuída pelo animus e a desenvolver algumas patologias, como a depressão,
ou outros males físicos, tais como dores de cabeça, perturbações de visão ou
distúrbios pulmonares. Isso é justificado, como já afirmamos, por meio da dinâmica
da psique. A libido, não encontrando nenhuma aplicação adequada, acaba sendo
reprimida e atacando algum ponto fraco ou órgão.
A mulher necessita, portanto, tomar consciência de seu Logos, de
maneira a estabelecer uma ação harmônica entre ela e seu lado masculino.
Através desta retirada da projeção, reconhecemos que não temos
que lidar com algo que está fora de nós, mas com uma grandeza
interior, e nos vemos diante da tarefa de aprender a conhecer a
natureza e a atuação dessa grandeza, deste ‘homem em nós’, para
depois podermos novamente diferenciá-lo de nós mesmas. Quando
não se faz isso, tornamo-nos iguais ao animus ou somos possuídas
por ele, um estado que produz os efeitos mais funestos. Pois quando
o feminino é assim dominado pelo animus e forçado para o segundo
plano, surgem facilmente depressões, insatisfação geral, perda da
sensação de vida, sintomas compreensíveis para o fato de que uma
metade da personalidade tem sua vida quase roubada pela
usurpação do animus. (JUNG, E., 2003, p.26/27).
E. Jung enfatiza a necessidade da tomada de consciência, uma vez
que as realidades internas e externas podem se confundir quando se vive
inconsciente de alguns aspectos psíquicos. Assim, a imaginação ganha poder de
forma a gerar convencimento tal que fatos imaginados chegam a ser confundidos e
acreditados como fatos reais. Com isso, a autora acrescenta que um dos pontos
mais difíceis referentes ao animus diz respeito à auto-imagem da mulher, uma vez
que o animus participa intensamente da criação de imagens e pode apresentá-las à
consciência feminina como o desejo que a mulher gostaria de já ter realizado, no
que se refere à sua imagem social de mulher: a amante, a criança indefesa, a
vencedora, entre outras.
Além dessa maneira de se tornar presente, o animus, a atividade
espiritual feminina, pode vir por meio de opiniões discordantes que enfocam uma
maneira de agir que deveria ter sido diferente daquela executada. É neste sentido
que a autora ressalta que o pensamento feminino pode se tornar improdutivo e
imaturo, pois está mais conectado a fantasias e imaginações que à realidade
propriamente dita. Talvez fosse esse aspecto que Jung gostaria de ter esclarecido e
que foi pouco compreendido e muito criticado ao longo dos anos.
55
Um outro aspecto relevante da representação do animus para a mulher
está relacionado ao poder da palavra. A autora focaliza tal representação e destaca
que a palavra, para o espírito não diferenciado - animus pouco desenvolvido - acaba
agindo como realidade, ou seja, a palavra, neste caso, na figura do animus, pode
exercer forte poder sobre a psique da mulher.
Quando a palavra assume forte presença na psique da mulher, ela
pode apresentar-se de duas maneiras, segundo E.Jung (2003): num primeiro caso,
pode manifestar-se por uma voz interna, em que o animus é porta-voz de
comentários de comportamentos, normalmente, críticos e negativos, bloqueando
muitas vezes a ação criativa da mulher, por reforçar o sentimento de inferioridade e
de incapacidade, devido à característica de forte julgamento que ele proporciona.
Uma segunda maneira apresenta-se na forma de julgamentos, proibições,
concepções generalistas e que criam uma verdade absoluta a ser seguida por todos,
isto é, pela mulher que os cria e pelas pessoas que com ela se relacionam.
A autora destaca, no entanto, que o aspecto criativo do animus na
mulher aparece mais relacionado a todas as suas situações de vida do que com
realizações de obras. Desta forma, compreende-se, segundo E. Jung, que a área em
que a mulher se apresenta mais criativa é nas relações humanas, uma vez que
estas são fruto de Eros e não de Logos. A autora alerta para as fantasias geradas
pelo animus, quando deixa de agir pela conexão Eros e passa a atuar pela conexão
Logos. O perigo reside na interferência do animus nas relações, com sua forma
intelectual, pois favorece a formação de fantasias, que vão se avolumando ao ponto
de destruir uma situação. A autora justifica que a supervalorização do universo
masculino em detrimento do feminino, que ocorre na sociedade, contribui ainda mais
para uma desvalorização da postura feminino-sentimental e um reforço da condição
acima citada.
A autora atenta também para a diferença de função entre anima e
animus, no que se refere à função de psicopompo. Para ela, o animus tem como
função essencial transmitir o sentido das coisas e isso está fortemente ligado à
criação das fantasias, uma vez que a mulher tem esta capacidade. O animus só está
a serviço da mulher quando traduz o sentido das situações, empregando realidade e
não fantasia, por meio da objetividade e racionalidade que o animus impõe sobre as
situações.
56
Contudo, cabe a ressalva da autora sobre as mulheres nos dias atuais:
é preciso manter a consciência da própria individualidade na aplicação dessa
energia espiritual o animus inclusive na relação com outras pessoas, a fim de
que haja suporte e orientação nas atitudes da mulher em relação ao seu próprio
animus. A saída proposta por E. Jung está na valorização do feminino, na afirmação
dos valores femininos, que considera a condição necessária para resistir ao poder
do princípio Masculino, tão valorizado na sociedade atual. Assim, ter o animus como
parceiro, isto é, conseguir diferenciar-se dele, é permitir à mulher ter acesso à
energia criativa que ele representa, pois somente quando incorporado, este ser
masculino que habita a alma da mulher poderá exercer a sua função e a mulher
poderá vir a ser mulher em sua plenitude.
3.1.3 Outras concepções a respeito do animus
Ainda dando seqüência a uma breve revisão bibliográfica sobre o
conceito do animus, apresentaremos algumas outras concepções, de forma a
reafirmar a complexidade deste conceito.
Wheelwright (1984), em seu livro “For women growing older”
2
, faz uma
análise sobre o conceito do animus. Seu trabalho centra-se nas mulheres já em fase
de amadurecimento, ou seja, após a segunda metade da vida. Uma das primeiras
questões que a autora destaca refere-se à associação dos princípios masculino e
feminino a uma visão sexista. Para ela, essa relação está ligada à postura que o
próprio Jung apresentava quando iniciou seus estudos sobre o animus. No entanto,
diferentemente de muitas outras mulheres que escrevem sobre este aspecto da
psique feminina, a autora não desaprova os estudos iniciais de Jung, uma vez que
os considera essenciais para os fundamentos atuais.
A autora apresenta uma visão contemporânea e sem preconceitos
sobre o animus, reforçando a importância de valorizarmos o princípio feminino e
cuidando para não cair em rótulos disfarçados, como por exemplo, de que mulheres
bem-sucedidas teriam, necessariamente, um ego masculino. Conforme sua
2
Mulheres em fase de amadurecimento, tradução livre.
57
concepção, tanto o arquétipo da anima quanto o arquétipo do animus podem ser
consistentemente integrados, mas apenas em idade avançada.
Por esta razão, é preciso ter consciência do papel que o animus exerce
ao longo da vida da mulher, para, assim, evitar a identificação da mulher com ele e a
atuação preconceituosa dele sobre ela, decorrente dessa identificação.
Para realizar esse trabalho, Wheelwright faz uma apresentação
histórica sobre o animus. Discorre sobre o seu funcionamento, sobre as imagens a
ele relacionadas no passado e no presente e, segundo nossa compreensão,
apresenta a dinâmica do animus de maneira clara e interessante para a mulher
poder compreender melhor esse aspecto de sua psique sem se deixar sucumbir por
ele.
A autora resgata historicamente a participação das mulheres na
sociedade com base nas relações com os homens, mostrando, então, que as
mulheres se dividiam em dois grupos: as que dependiam exclusivamente dos
homens e as que buscavam ser independentes.
O mecanismo de funcionamento do animus da época em que a mulher
ainda não havia conquistado seu espaço acontecia pela projeção nos homens, já
que o aspecto interno estava pouco desenvolvido, segundo a autora. O primeiro
grupo de mulheres agia de acordo com as normas e valores de uma época, pela
plena submissão ao homem e repressão da manifestação do animus. No entanto,
quando algo nesta projeção era rompido, surgia então o animus pouco desenvolvido,
que poderia se apresentar também na forma de sentimentos de tristeza, lamento e
pesar, na fase da meia idade. Quando a mulher não tinha como realizar suas
projeções, por alguma razão, então a saída encontrada para esta energia era
regredir, e a mulher apresentava-se negativista e até mesmo autoritária.
O segundo grupo era composto por mulheres que buscavam de alguma
forma ser independentes dos homens. Essas viviam na correria por excesso de
trabalho. Mesmo no caso de apresentarem mais independência, também
demonstravam problemas, como a agressividade.
Wheelwright afirma que quando a atuação primitiva do animus acontece
a mulher pode se tornar abusiva, desbocada e grosseira. Desta forma, mesmo as
mulheres mais independentes, apesar de evocarem o animus positivamente para
atuação no mundo, podem também apresentar, diante de uma situação de exigência
58
e sobrevivência, posturas agressivas e hostis, que chegam a causar afastamento
das pessoas.
Para a autora, o fato de hoje em dia as mulheres terem mais
possibilidades de crescimento pessoal é um facilitador, mas também exige delas
mais força de vontade, pois a energia do animus quando bem utilizada, é grande
companheira da mulher. Com isso, a autora corrobora as idéias de E. Jung ao
enfatizar a necessidade de a mulher ter grande identificação com o ego feminino,
utilizando a energia do animus como aliada para seu desenvolvimento. Mais uma
vez, a mulher precisa não se identificar com seu lado masculino, mas utilizá-lo como
parceiro.
Concordamos com a autora no que se refere à criatividade, que é uma
forma de utilizar a energia do animus como ferramenta de auxílio para atingir os
objetivos que a mulher deseja. Quando a mulher se identifica com este instrumento
de auxílio, porém, acaba perdendo parte de sua identificação com seu ego feminino.
No caso das mulheres, o trabalho criativo seria a expressão de todo
o potencial do animus. Essa criatividade, seja de ordem artística ou
intelectual, emerge das camadas mais profundas do inconsciente e
ela deve ser expressa por meio do animus, independentemente de a
mulher desejar ou não, independentemente da extensão do
conteúdo, independentemente de ser fato aceito ou não, satisfatório
ou não para a mulher. (WHEELWRIGHT, 1984, p.20)
3
.
Para a autora, já na infância, o animus é uma habilidade especial que
permite filtrar o que existe de superficial na sociedade coletiva e buscar o que é
necessário para a individualidade, para o crescimento pessoal da mulher.
O animus, segundo Wheelwright, deve separar-se de suas funções
primitivas, para poder servir de ferramenta para o desenvolvimento e crescimento da
mulher. Quando isso não ocorre, a mulher fica escrava dele.
O apego demasiado ao trabalho é movido pelo animus quando a
mulher está sobrecarregada, apressada, ou quando exige muito de si
mesma. Sua receptividade instintiva de observação se perde, assim
como sua receptividade feminina de compreensão. Perde também
sua consciência feminina. Ela não consegue enxergar o que se
passa ao seu redor, e não percebe quais são as reações internas de
sua psique. (WHEELWRIGHT, 1984, p.27).
Para Wheelwright, assim como para E. Jung, a mulher não deve
entender que a igualdade com os homens traduz-se em ser como eles. Mas, para a
mulher não trocar a dominação externa masculina pela dominação interna do seu
3
tradução livre, J. Wheelwright, 1984.
59
próprio animus é preciso manter sua condição de mulher, isto é, é preciso criar um
período de descanso das atividades que requisitem demais a atuação do animus e
criar um espaço para si mesma, para suas próprias raízes femininas. Uma das
opções por ela apresentada é alternar trabalhos intelectuais, que solicitem o animus,
com trabalhos mais domésticos, e assim criar um espaço de equilíbrio entre mente e
corpo. Conforme a autora, [...] “uma atividade ligada à expressão do ego feminino
biológico tem de estar no mesmo plano de cuidados e exigências que são
requeridas por outras atividades criativas que necessitem da cooperação do
animus.” (1984, p.34)
4
.
Além desse aspecto, Wheelwright acrescenta que, para que a mulher
mantenha um equilíbrio diante do desenvolvimento de um trabalho criativo, é preciso
não perder de vista outros pontos importantes: desenvolver o trabalho com prazer ou
por satisfação pessoal ou realizá-lo em função de uma exigência maior. O alerta vem
para jamais fazê-lo com o objetivo de impressionar o outro ou de obter um ganho
pessoal; tais aspectos reforçam a identificação com o animus.
Wheelwright aponta também a necessidade de a mulher desenvolver
seu animus, mas sem sucumbir a ele, por meio da vivência de situações e
características tipicamente femininas, de forma a facilitar e manter o contato com o
ego feminino. O animus é um arquétipo importante na vida psíquica da mulher, mas
não resume a mulher. A identidade feminina é mais ampla que seu arquétipo
masculino e, por isso, é necessária a sua conscientização e distanciamento. A
autora defende o trabalho profissional como instrumento de auxílio para a mulher
encontrar um amadurecimento psíquico e tornar-se mais consciente e centrada em
si mesma.
Além desse posicionamento em relação ao animus, iremos apresentar
outros autores que destacam algumas características deste arquétipo e cuja
interpretação é um pouco diferente das acima mencionadas.
Biswanger (1963) ressalta aspectos positivos do animus, focalizando a
importância da compreensão dos conceitos da teoria de Jung, na inter-relação deles.
Assim, para falarmos de masculinidade ou feminilidade precisamos do contato de
um com o outro, pois o masculino não existe sem o feminino. Sua visão reforça a
diferença de funcionamento psíquico tanto do feminino quanto do masculino,
4
A autora fala do ego biológico como referência à natureza biológica feminina.
60
explicitando claramente a maneira de agir e a importância de cada um para o
desenvolvimento psíquico e o processo de individuação.
A autora destaca a função que o animus exerce para a mulher.
[...] como a imagem do homem, o animus atende o propósito natural
de Eros em âmbito natural e, como o lado masculino da mulher, ele
promove os propósitos de Eros a um nível mais elevado, mais
especificamente humano, que inclui a consciência e a compreensão.
(BISWANGER, 1963, p.6)
5
Desta forma, reitera a importância do animus e do masculino na mulher
como questões arquetípicas e não como uma visão sexista, como muitas vezes foi
compreendido.
Mattoon e Jones (1993) também fazem uma leitura do conceito de
animus, observando os aspectos comumente criticados e apontando uma
concepção de animus que acreditam ser a mais adequada. Para isso, apresentam
estudos antropológicos a respeito do papel masculino e feminino, discutem a visão
de Jung sobre o animus e apresentam as críticas a ele associadas, feitas até por
seguidores junguianos, bem como outras compreensões.
Um dos pontos que as autoras destacam refere-se ao fato de Jung não
ter reconhecido que as diferenças individuais existem e que, portanto, há “graus” de
femininos e masculinos em cada indivíduo, que são variáveis. Outro aspecto
analisado sobre a obra de Jung diz respeito à atribuição dos problemas das
mulheres ao excesso
6
de animus, fato este que traz conseqüências negativas para a
mulher. Jung parece ressaltar apenas o lado negativo do animus e esquecer que,
sendo um arquétipo, possui polaridades positivas e negativas na sua forma de
atuação na psique. No entanto, ao que parece, o aspecto positivo é destacado por
Jung e pelas autoras no que se refere ao importante papel do animus no processo
de individuação.
Nesse aspecto, Mattoon e Jones consideram relevante a postura de
Jung. Todavia, não deixaram de registrar que Jung considerava as manifestações do
animus como negativas para a mulher, o que deu margem à elaboração de fortes
críticas.
De qualquer modo, as autoras, com o levantamento dos aspectos
negativos do animus, apresentam sua visão sobre o conceito, cujo foco parece recair
5
Tradução livre.
6
Excesso palavra usada pelas autoras. Na nossa compreensão, buscam ressaltar a predominância de
características do animus em detrimento das qualidades femininas da psique da mulher.
61
sobre características reprimidas. Embora existam muitas divergências a respeito,
Mattoon e Jones consideram o animus útil e viável e acreditam que:
Seja qual for a definição de masculino e feminino, as qualidades
femininas são exigidas das mulheres; nelas, as qualidades
masculinas são reprovadas e, conseqüentemente, tendem a ser
reprimidas. Essas qualidades reprimidas numa determinada mulher
tornam-se seu animus. Não são necessariamente indesejáveis, muito
embora sejam consideradas inadequadas para mulheres. Assim, o
animus pode ter qualidades positivas (úteis individual e socialmente)
e também negativas. (MATTOON; JONES, 1993, p.172)
As autoras concordam com E. Jung no que se refere à conscientização
do animus, ao considerar este aspecto um dos passos essenciais para o
desenvolvimento da mulher rumo à totalidade. Assim, tornar-se consciente do
animus é poder se relacionar com as qualidades positivas masculinas, que
normalmente são projetadas nos homens, e poder lidar com os aspectos negativos
desse lado interno, de maneira a reconhecê-lo como parte da mulher e não projetá-
lo sobre o sexo masculino, como fazem muitas feministas.
Vicalvi (1987) destaca também a questão da consciência tanto dos
aspectos femininos como dos masculinos como necessários ao desenvolvimento da
mulher.
[...] quanto mais a mulher identificar-se com traços ‘femininos’ e
considerar inadequada a expressão de características ‘masculinas’
mais inconsciente estará, para ela seu animus e mais incompleta
estará sua personalidade. Quando, ao contrário, a mulher começa a
tornar consciente seu animus, começa a expressar qualidades tidas
como masculinas’: auto-afirmação, independência, vigor e
capacidade para o pensamento lógico e analítico, tornando-se um
ser integrado, psicologicamente desenvolvido. (VICALVI, 1987, p.17)
Willeford (1996) também faz outros apontamentos sobre a integração
masculino-feminino, ao estabelecer uma conexão das idéias de autoras feministas
com a teoria de Jung. Um dos aspectos abordados pelo autor é a referência, de
Beauvoir, sobre a mulher como Outro do homem. A idéia dos opostos de Jung
aparece também nesta visão. Entretanto, Beauvoir acaba literalizando e não
conseguindo abordar a questão pelo olhar simbólico. Ao literalizar, ocorre a
unilateralização do conceito e a posição assumida fica extremada. Beauvoir, na
tentativa de resgatar a mulher, acaba reforçando a polarização dos opostos, ao
invés de promover a integração e a complementaridade desses opostos. Pela visão
de Jung, resgatada por Willeford (1996), este Outro do homem é o que chamamos
62
de anima. E então, na mulher, teríamos o Outro, que corresponde ao que Jung
denominou animus.
Esta complementaridade se faz pela presença de opostos. Tanto o
homem como a mulher necessitam de seu oposto para seu desenvolvimento. Esse
ponto é significativo na teoria de Jung e importantíssimo para se abordar a questão
das diferenças de gênero nos dias atuais. A compreensão pelo olhar da
complementaridade amplia a visão das relações humanas para além dos pólos da
superioridade-inferioridade, tão destacados pelas feministas.
Willeford (1996) realça a necessidade da integração como parte do
desenvolvimento psíquico. Esclarece, enfaticamente, sua visão contrária à de
Beauvoir, destacando que a diversidade masculino-feminino é necessária ao
crescimento psíquico. A exclusão desta diversidade acaba reduzindo o conceito
[oposição] a meras palavras e negligenciando o que ele chama de mistério psíquico
o casamento psíquico. Tanto a polarização para o feminino, excluindo o
masculino, quanto a polarização para o masculino, excluindo o feminino, conduzem
a um desequilíbrio psíquico.
Em nosso ponto de vista, esse parece ser um dos pontos mais difíceis
para a mulher nos dias de hoje diferenciar-se do coletivo viver sob as leis da
sociedade patriarcal e crescer como mulher, sobretudo no campo profissional, sem
sucumbir aos valores e normas sociais patriarcais. E, além de tudo, sem
menosprezar a consciência de Eros referente aos aspectos de relação, podendo
transitar pelo mundo, tendo seus aspectos masculinos integrados e a serviço de sua
jornada.
Após esta breve revisão bibliográfica sobre o conceito,
consideraremos, para efeito deste trabalho, animus como a contraparte masculina
na mulher, cujas características costumam aparecer como criação de imagens,
opiniões, comentários críticos, forte julgamento, tanto representados pela voz interna
como em juízos e proibições, concepções generalistas e verdades absolutas em
relação às coisas e às pessoas com quem a mulher se relaciona. Outro aspecto
significativo do animus que consideramos neste trabalho é o da criatividade. A
maneira como a criatividade aparece em relação ao animus é pela vida e não tanto
em obras, como faz o homem. Consideramos aqui a capacidade de a mulher
organizar sua vida toda.
63
Acreditamos que o animus tenha uma função significativa na vida da
mulher, como E. Jung destacou, na transmissão dos sentidos das coisas,
fornecendo base de realidade e diminuindo o poder da fantasia, pela objetividade,
típica do animus. Também partilhamos da opinião de Wheelwright, de que, apesar
de as mulheres independentes usarem a energia positiva do animus para ação no
mundo, como parceira da mulher, é preciso um cuidado ainda maior para não
ocorrer uma identificação do ego feminino com este aspecto da psique da mulher,
que está bastante requisitado. Entendemos que o animus seja um auxiliar do
desenvolvimento da mulher. A mulher só será realmente independente quando
puder seguir seu próprio caminho. E que ele sirva de parceiro neste caminho.
3.1.4 As dimensões do animus
E. Jung (2003) cita quatro possibilidades de representação do
animus: a força, a ação, o verbo e o sentido.
A força, aqui, refere-se à força dirigida, isto é, diz respeito mais à
vontade que propriamente à força física. Assim, a autora caracteriza esse aspecto
como uma representação projetada comumente sobre os heróis físicos, ídolos do
esporte. Seria correspondente a um aspecto mais primitivo do lado inconsciente da
mulher.
A dimensão seguinte, a ação, está freqüentemente associada à força,
pois também tem como portadores dessas imagens os heróis. No entanto, aqui o
foco recai sobre a iniciativa e o planejamento. As imagens atualizadas dessas
dimensões poderiam ser de homens fortes, atletas, profissionais como bombeiros,
policiais, entre outros; aqueles que inspirem a imagem de ação, iniciativa e
planejamento.
Já os representantes tanto do verbo quanto do sentido correspondem a
um nível mais espiritual de animus. Esses podem ser portadores das dimensões de
referências mais intelectuais e de mestres, considerados sábios, que carregarão
esta projeção. São os professores, padres, advogados, médicos, engenheiros,
publicitários, artistas, entre outros, todos que, de alguma forma, atualizam essas
representações na psique da mulher. Em relação aos representantes do sentido,
64
que são portadores da sabedoria, sua função anímica permite à mulher, que o tem
internalizado, uma relação mais receptiva com idéias criativas.
E. Jung (2003) acrescenta que essas quatro dimensões correspondem
ao respectivo grau ou aptidão da mulher, isto é, dependem do grau de
conscientização que a mulher tem desenvolvido para ocorrer a representação. Von
Franz (1995) também aborda a questão do animus, mas sob o enfoque de estágios,
e defende a idéia de que o animus passaria por um desenvolvimento. Nossa
maneira de compreender assemelha-se mais à idéia de E. Jung que considera que
tais dimensões podem ocorrer simultaneamente umas com as outras,
independentemente de uma idéia de desenvolvimento.
Como já afirmamos anteriormente, essas representações internas só
podem ser vivenciadas pela projeção das imagens em figuras reais, no caso,
homens, e às vezes, também em mulheres, que funcionam como mediadores ou
guias dessa relação. As imagens podem ser atualizadas por qualquer pessoa que
exerça as funções das representações, como por exemplo: pai, amigos, namorados,
professores, chefes, entre outros. Sabemos que o primeiro homem com quem a
mulher se relaciona e sobre o qual deposita suas projeções é o pai. É por esta razão
que este estudo está centrado na relação pai-filha.
Segundo E. Jung (2003), o encontro com o animus acontece quase
sempre por meio do pai ou de qualquer outro homem que tenha assumido este lugar
na vida da mulher, num primeiro momento, sendo posteriormente revivido nas
figuras de professores, amigos homens, marido, e em tudo o mais que representa o
universo masculino, seja no âmbito cultural das instituições como a Igreja e o
Estado, seja nas manifestações artísticas através da arte.
Segundo Penna (1989), a maneira como a mulher se relaciona com o
seu animus pode auxiliá-la positivamente ou negativamente. Assim, as figuras que
representam seu aspecto masculino inconsciente mudam também de acordo com a
consciência que ela tem.
As figuras inconscientes do animus mudam conforme a mulher aceite
sua condição corporal e a desenvolva. (...) Diante do seu homem
interno que não foi ainda reconhecido e assimilado, o ego feminino
só pode fugir como quem corre de um verdadeiro ladrão. A mulher
teme ser roubada, violentada, subjugada. (PENNA, 1989, p.206)
O conhecimento e a consciência deste aspecto inconsciente do animus
é o caminho para a diferenciação e o desenvolvimento da mulher. Além da vivência
65
real, o animus pode aparecer personificado em sonhos e fantasias, normalmente, na
forma de um homem real - pai, amante, irmão, monge, piloto, motorista, um
estranho, entre outros.
Wehr (1998) reitera essas idéias e ressalta a importância da
conscientização do animus para a mulher:
Cada mulher pode examinar suas próprias imagens do animus, que
devem vir representadas por figuras masculinas nos sonhos, ou estar
contidas nos homens com os quais se relaciona, e ainda investigar
seus sentimentos e percepções a respeito das instituições
tipicamente ‘masculinas’, observando de que maneira ela internalizou
as definições da sociedade, o seu próprio detrimento ou benefício.
(WEHR, 1998, p.58).
3.2 O Complexo paterno e o animus
O pai, conforme já dissemos, tem uma participação importante na
dinâmica psíquica da filha. Como o pai pessoal ou seu representante é o primeiro
outro com quem ela tem contato, é ele que irá contribuir para a formação das
características de seu animus. Luz (1998) destaca: “como a pessoa do pai equivale
ao primeiro representante masculino em geral, o impulso interior do animus encontra
nele algum tipo de eco ou forma de expressão iniciais [...] a atração do pai real
imprime sua marca também na expressão do animus.” (p.91).
Tanto o animus quanto o complexo paterno estão relacionados ao
masculino e são decorrentes das vivências também com o pai. Na relação pai-filha a
idealização está presente, num primeiro momento. Com o passar dos anos, é
preciso ocorrer uma desidealização da filha em relação ao pai para que ela consiga
desenvolver aspectos de seu masculino internalizado. Se persistir um estado de
identificação da filha com o pai, este a influenciará no que se refere aos conteúdos
do arquétipo paterno.
Cabe ressaltar que a mulher precisa se diferenciar de seu pai para que
possa se desenvolver como mulher em sua plenitude. Isso porque uma dependência
interna do pai faz com que a mulher fique presa ao complexo paterno e não integre
aspectos de seu animus.
66
Conforme as posturas que o pai assume em relação à filha, ele pode
auxiliar o desligamento dela de seu complexo paterno ou favorecer o seu
aprisionamento nele. A filha passa a ter uma independência do complexo paterno
quando as dimensões paternas são integradas à consciência. A mulher aprisionada
não consegue desenvolver seu animus, pois continua vinculada ao complexo
paterno. As posturas da mulher submetida ao complexo paterno acabam sendo de
submissão à ordem, com uma crítica muito acentuada de si mesma. A mulher busca
uma aprovação da exigência paterna, tem uma dependência da visão masculina
sobre ela mesma ou uma super adaptação ao mundo, quando diante de
representantes masculinos.
A importância do desenvolvimento do animus diz respeito à
independência da mulher no mundo. Nesse sentido, o papel do animus é
fundamental. O animus conduz à diferenciação do pai e é a sua integração que
permite a separação do complexo paterno, pois quando o animus é ativado são
acionados todos os aspectos masculinos do inconsciente feminino que
correspondem às representações da força, poder, verbo e sentido, como já
colocamos anteriormente.
O animus é o arquétipo da alteridade e é ele que irá atuar como
parceiro interior no processo de individuação feminino.
67
4 MÉTODO
4.1 Considerações Gerais
Segundo Minayo (1996), podemos entender a metodologia como o
caminho e o instrumental usados para abordar a realidade. A metodologia inclui “as
concepções teóricas de abordagens, o conjunto de técnicas que possibilitam a
apreensão da realidade e também o potencial criativo do pesquisador (p.22)”.
O método é um conceito que pode ser compreendido de várias
maneiras. Oliveira (2001) ressalta que o método assinala o percurso escolhido
dentre muitos outros possíveis.
E. Penna (2003) faz um estudo sobre o método de investigação da
psique na obra de Jung. Para a autora, “o processo de produção de conhecimento
decorre diretamente da concepção de mundo assumida pelo paradigma [junguiano]
e encaminha o método de investigação do paradigma” (p.140). Ressalta, então, que
para haver uma compreensão do ser, ou seja, uma compreensão na perspectiva
ontológica de um paradigma, é preciso considerar as concepções básicas relativas à
realidade, que incluem o ser humano e o mundo como um todo. Sendo assim, a
autora disserta que “a perspectiva ontológica do paradigma junguiano compreende
as concepções de mundo; de ser humano e psique; de realidade psíquica e
dimensão simbólica e a noção de inconsciente”. (p.121)
Por ser a Psicologia Analítica baseada na compreensão simbólica, a
escolha recaiu sobre a pesquisa qualitativa neste estudo. Por pesquisa qualitativa
entendemos a pesquisa que permite transitar pelos significados e pelos processos
encontrados, sem desconsiderar a influência do pesquisador.
Neste tipo de pesquisa, o investigador estabelece uma relação com os
participantes de aproximação e afastamento, uma relação dinâmica de trocas, que
possibilita a vivência de elementos conscientes e inconscientes, como também
vemos acontecer no encontro analítico. (FARIA, 2003)
68
Além disso, é importante numa investigação qualitativa que o
investigador demonstre uma atitude de abertura, flexibilidade, de capacidade de
observação e de interação em relação aos participantes da pesquisa.
4.2 - O problema
A proposta deste trabalho é analisar a relação pai-filha. A questão
primordial a ser respondida é de que forma determinadas peculiaridades da relação
pai-filha se refletem no posicionamento de mulheres adultas jovens no campo
profissional.
Paralelamente, nosso olhar estará voltado para: a importância do pai
no desenvolvimento do Masculino e do animus da mulher; a presença do complexo
paterno e como este afeta o posicionamento da filha no campo profissional; a
observação do desenvolvimento da mulher e as possibilidades de integração do
animus nas dimensões da vontade, do planejamento, do verbo e do sentido.
4.3 - Participantes
Participam desta pesquisa seis mulheres solteiras e independentes
financeiramente, formando um grupo etário entre 28 e 35 anos. Essas mulheres
foram escolhidas por indicação de outros profissionais da área da saúde e das
ciências humanas. A condição de ser solteira ou divorciada, sem filhos, é exigida
para a seleção, por indicar uma situação social relativamente nova na vida da mulher
dentro desta faixa etária. Esta condição diz respeito à situação social da mulher de
não ter passado da família de origem para a construção de sua própria família, ritual
comum ainda nos dias de hoje.
Consideramos esta faixa etária significativa na vida das mulheres, por
ser um momento em que ocupam um posicionamento profissional e têm
expectativas específicas por não ter construído suas próprias famílias. A escolha
69
dessas mulheres levou em consideração, então, a faixa etária, o estado civil
solteira ou divorciada e as condições socioeconômicas semelhantes.
As participantes receberam um nome fictício, mas foram mantidas as
idades e as profissões. Segue uma breve descrição de cada participante.
Antonia é arquiteta, 28 anos, separada, comunicativa. É a segunda
filha, tem um irmão mais velho e uma irmã mais nova. Chega ao consultório
descontraída, vestida de maneira clássica e discreta. Mostra-se disponível e
tranqüila para a entrevista. Apesar de se apresentar como uma pessoa tímida,
participa da entrevista com aparente desenvoltura e tranqüilidade, o que pode ser
percebido pela tonalidade clara e forte de sua voz. Este fato é de algum modo
revelador de como Antonia se coloca no mundo: com firmeza e direcionamento.
Permanece sorridente no decorrer de toda a entrevista.
Após a separação, passou a morar sozinha e a custear todos os seus
gastos. Sobre a profissão, relata gostar muito da escolha que fez e afirma ter certeza
de estar seguindo o seu caminho profissional.
Sua entrevista apresenta muitas informações e profundidade em sua
autopercepção.
Beatriz é médica, com mestrado, tem 33 anos, é solteira. É a filha mais
velha. Tem uma irmã mais nova. Aparentemente tranqüila durante a entrevista,
apresentou-se como uma pessoa tímida. A timidez é evidente no baixo tom de voz,
às vezes, quase inaudível. Logo de início se acomodou na ponta do sofá e ali
permaneceu perto do gravador, porque falava muito baixo. Essa maneira de se
colocar parece descrever sua maneira de encarar o mundo: com certa insegurança e
incertezas.
Carmem é auxiliar administrativa, cursa o último ano de Direito, é
solteira. Tem 30 anos e é a mais velha de três filhas. O irmão mais velho morreu. É
muito comunicativa e sorridente. Apresentou-se muito disposta ao responder a todas
as perguntas de maneira muito tranqüila. Parece não se contentar com as coisas
como elas são ou estão, pois está sempre em busca de novas possibilidades, como
é o caso do curso de Direito e também da revisão de algumas posturas em sua vida.
Apesar de se considerar pouco ousada, apresenta uma maneira de encarar a vida
diferente dos padrões familiares, aspecto este relatado por ela como sua eterna luta
contra a passividade e a introversão.
70
Seu tom de voz, firme e constante, parece demonstrar como se
posiciona diante da vida: de maneira firme, batalhadora e persistente.
Elisa é psicóloga, 33 anos, é solteira e mora sozinha. É a primogênita,
de três filhos. Veste-se de maneira elegante, com salto alto, decotes que valorizam o
colo e está maquiada. Responde às perguntas com voz baixa, mas de modo firme e
tranqüilo, mesmo quando emocionada. Costuma falar pausadamente. Sente-se
desamparada afetivamente pela família e alega que, com isso, tem que cuidar de si
sozinha, sem poder contar com ninguém. Isso talvez reforce seu jeito de encarar a
vida: de maneira organizada, planejada e decidida.
Sobre a profissão, diz que a escolha não foi um processo consciente,
mas decorrente de algumas influências de situações de vida.
Daniela, 30 anos é professora universitária com formação em dança,
solteira e mora sozinha. É a filha caçula e tem uma irmã mais velha. Veste-se de
maneira simples, uma blusa esportiva com um pequeno decote. Muito comunicativa,
responde a tudo de forma clara, num tom de voz mais alto e sem muitas pausas
entre uma colocação e outra. Considera-se uma “guerreira” e assim parece se
colocar diante da vida: com garra, com foco nos objetivos. Parece não se preocupar
muito com sua aparência ou maneira de vestir; sua preocupação ainda está em
vencer profissionalmente, pois sente que tem que provar para as pessoas que
consegue sobreviver com a opção profissional que fez. Recentemente, tem se
questionado sobre a escolha de um companheiro.
No que diz respeito à profissão, acredita ter feito a opção certa, apesar
de os pais transmitirem receio sobre sua escolha, no que se refere a conseguir
garantir sua sobrevivência.
Fabiana, 31 anos, é psicóloga, solteira e mora com os pais. É a caçula
de três filhos, sendo os outros dois homens. Fez sua escolha profissional no terceiro
colegial, com base na certeza de não querer seguir a carreira do pai. Sua certeza
era a de querer trabalhar com crianças. Muito comunicativa, com tom de voz firme e
claro, buscou responder a todas as perguntas com tranqüilidade, questionando
quando não compreendia alguma coisa. Veste-se de maneira clássica, mas simples
e sempre com salto alto, como faz questão de dizer. Extrovertida, apresenta um
olhar sobre a vida muito prático e objetivo e tem o senso de justiça como uma
grande característica sua.
71
Talvez por ser extrovertida, a maneira de se relacionar com os
problemas e dificuldades esteja marcada por essa característica, de tentar encontrar
saídas no distanciamento dos problemas e na busca de uma solução, que passam a
ser metas a serem conquistadas. Essa parece ser sua marca: desfocar o problema e
focalizar numa saída.
4.4- Procedimento
Para podermos trabalhar o problema, foi necessário escolher um
procedimento adequado para a pesquisa. Como a intenção não era trabalhar com
conteúdos advindos de sessões de psicoterapia, por implicar um outro tipo de
vínculo e de possíveis influências no processo psicoterapêutico da pessoa, a
escolha recaiu na realização de entrevistas. Para esta pesquisa, as entrevistas
foram gravadas e transcritas.
De acordo com Bleger (1995), “a entrevista é um campo de trabalho no
qual se investigam a conduta e a personalidade dos seres humanos [...] Uma
utilização correta da entrevista integra na mesma pessoa e no mesmo ato o
profissional e o pesquisador (p.21).
Existem várias maneiras de se realizar uma entrevista, e, para este
estudo, escolhemos a entrevista semidirigida. Neste tipo de entrevista, o investigador
tem a liberdade de seguir um roteiro de perguntas gerais, que permite ao
entrevistado realizar uma reflexão sobre o tema. No caso deste estudo, o roteiro de
perguntas foi centrado na relação pai-filha e na influência que essa relação exerce
na psique das mulheres, quanto ao desempenho profissional. (Ver Apêndice B).
A entrevista abarcou algumas circunstâncias da vida de cada uma
dessas mulheres:
I - Formas de agir e sentir no mundo do trabalho:
escolha profissional
atuação no mercado de trabalho
relação com as pessoas no ambiente de trabalho
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II - Reação a circunstâncias específicas:
crises no que se refere ao aspecto profissional
promoções
situações novas
III - Relação entre o pai e a profissão escolhida
As entrevistas foram realizadas em consultórios privados, nas cidades
de Campinas e São Paulo, após o contato com as participantes e agendamento.
Duraram, em média, de 1hora e 15 minutos.
O objetivo da pesquisa foi esclarecido a cada participante, no início da
entrevista, e também a possibilidade de desistência de participação. Em seguida, foi
entregue um termo de consentimento (Ver Apêndice A), onde as participantes
concordaram com os termos da pesquisa. A pesquisadora colocou-se à disposição,
logo no início da entrevista, para esclarecimentos e dúvidas que pudessem surgir às
voluntárias. Também acrescentou a possibilidade de necessitar de outra entrevista
para complementação dos dados.
A entrevista foi armazenada em gravador digital, para posterior
reprodução das falas. Foi utilizado um roteiro de entrevista, que se encontra no
Apêndice B, como norteador da mesma. O fato de ser uma entrevista semidirigida,
permitiu, muitas vezes, a elaboração de outras questões que fornecessem maiores
esclarecimentos sobre as participantes.
4.5 - Cuidados éticos
Alteramos os nomes das participantes, para evitar a possibilidade de
alguma identificação. Para fins de análise, a profissão das mulheres e dos pais
foram mantidas.
Também obedecemos à orientação do Comitê de Ética da PUCSP
(Vide Anexo A), garantindo às participantes os limites de suas participações neste
estudo. Para isso, foi elaborado um termo de consentimento (em posse da
73
pesquisadora), no qual as participantes se comprometeram a participar deste
estudo, conscientes de sua publicação. (Apêndice A).
4.6 - Procedimento de análise dos dados
O procedimento de análise dos dados foi baseado no método de
Análise de Conteúdo, de Bardin (1977). Segundo o autor, “a análise de conteúdo é
um conjunto de instrumentos metodológicos cada vez mais subtis em constante
aperfeiçoamento, que se aplicam a ‘discursos’ (conteúdos e continentes)
extremamente diversificados.” (p.9).
Optamos por este método de análise por permitir que o discurso seja
visto em seus aspectos conscientes e inconscientes. Por isso, julgamos ser este
método apropriado para uma pesquisa de leitura junguiana que também está
buscando a compreensão dos aspectos conscientes e inconscientes do fenômeno.
Cada entrevista foi realizada individualmente, transcrita pela
pesquisadora, que anotou os aspectos relevantes para o trabalho, numa escuta
inicialmente intuitiva. Posteriormente, foram agrupados os temas e construídas as
categorias. (Ver Apêndice C) As entrevistas foram analisadas à luz da Psicologia
Analítica, de forma a poder compreender a relação entre pai e filha e as
contribuições desta relação para o desenvolvimento da mulher, observadas em sua
atuação no mundo do trabalho.
Foram construídas cinco categorias, com temas a ela relacionados.
Na categoria sobre a relação com o pai, abordaremos a relação
afetiva de cada participante com o pai, o pai e a escolha profissional da filha, a visão
de cada uma dessas mulheres sobre o pai e sobre o posicionamento profissional
deles.
Sobre a relação com a mãe, focalizaremos a relação afetiva da filha
com a mãe e as contribuições desta relação para a assimilação de princípios
femininos.
Na categoria relação com a profissão, os temas serão: a relação de
cada mulher com a escolha profissional, considerando também a influência dos pais
74
nesse momento da vida e a relação de cada participante com a realização
profissional.
No que se refere à relação com o trabalho profissional,
analisaremos a ligação da mulher com a sua profissão, seu relacionamento com a
chefia ou com figuras representantes de autoridade, seu vínculo com os colegas de
profissão e a conexão com os momentos de crise e de promoção.
A última categoria a ser destacada é a da auto-imagem. Nessa
categoria procuraremos observar os aspectos relacionados à imagem que cada
mulher tem de si e do Feminino e de que formas essa imagem construída sobre si se
relaciona com o universo do trabalho profissional.
Destacamos que as categorias que nortearão nossa análise são
apresentadas na análise dos dados e os temas estarão subtendidos no corpo da
análise, sem aparecer em destaque. Os temas foram suprimidos do corpo do texto
para facilitar a leitura e a compreensão do leitor.
No capítulo seguinte, será realizada a análise dos dados colhidos
durante a pesquisa, seguindo o método apresentado e tomando por base o discurso
das entrevistadas e as categorias condizentes com o objetivo deste trabalho.
75
5 ANÁLISE DOS DADOS
Na análise dos dados apresentaremos cada entrevista separadamente
e, no capítulo seguinte, sobre a discussão, abordaremos os aspectos comuns e
divergentes em relação ao problema desta pesquisa.
5.1 Antonia: uma mulher de ação
O estilo clássico e discreto marca sua chegada à entrevista.
Descontraída, sempre rindo e comunicativa, Antonia, 28 anos, transmite segurança e
simpatia. Aborda as questões pessoais e de trabalho com tranqüilidade,
aparentando colocar-se no mundo com firmeza e direcionamento.
Sua maneira de se apresentar é bem feminina, apesar de se
considerar, muitas vezes, masculina. Possui uma entonação de voz forte, o que
parece sinalizar sua maneira de agir, de marcar presença na vida. Sempre em busca
de novos projetos e novas conquistas, Antonia demonstra não se contentar com as
coisas como estão.
A relação com o pai
Antonia se diz uma mulher independente e que mantém uma grande
admiração pelo pai. Sua entrevista traz um pouco dessa admiração que se iniciou na
infância percorrendo até a idade adulta.
Eu sempre o enxerguei, nessa época de infância, eu sempre o
enxerguei como uma pessoa ótima.
Tem várias fases. Na adolescência, eu era muito ligada a ele e não à
minha mãe. Então meu ídolo sempre foi meu pai, por isso que eu
sempre quis ser uma pessoa que trabalhasse, fosse independente.
76
Eu acho que era por essa admiração do meu pai, em trabalhar, de
sair. Eu queria ser igual a ele e não à minha mãe.
Apesar da admiração sempre presente, Antonia destaca as diversas
fases dessa relação, caracterizando os diferentes momentos de sua vida em relação
ao pai, dando ênfase às dificuldades enfrentadas. Segundo ela, foram essas
dificuldades que permitiram a alteração da imagem de pai, que tinha quando criança.
Mas, a gente enfrentou muitas crises. Meu pai perdeu muita coisa,
quebrou, foi problema de negócio de família; a gente chegou a
perder até a casa onde a gente morava. Tivemos uma queda de
padrão financeiro muito grande. E o meu pai sempre lutou pra
manter o máximo possível. Mas, a gente via muita coisa ir embora.
Então, isso criou uma crise, eu acho, não só em mim, mas eu vejo
isso nos meus irmãos. Aquela queda no nível foi muito cedo. Eu já vi
que meu pai não era assim como eu admirava, muito cedo. Então,
isso me causou uma crise muito grande, assim, na minha saída da
adolescência. Eu tive uma mistura de pena e ódio do meu pai.
Além de o fato de a crise financeira ter afetado a visão idealizada de
Antonia sobre seu pai, a bebida também contribuiu para que a idealização dele
fosse desconstruída e desse espaço para uma imagem mais humanizada desse
pai.
Ele também tinha problema com bebida, eu não gostava. Ele ficava
agressivo, ele era agressivo demais com a gente, com os filhos. [..]
Eu sofria muito, muito com isso. Mas, depois que eu me casei, esse
relacionamento voltou a ser ótimo. Só que não voltou a ser como era
quando eu era criança, porque hoje em dia eu enxergo meu pai
como uma pessoa que erra, mas que erra como todo mundo. Ele
cometeu erros que eu mesma posso cometer, e, então, eu tenho um
relacionamento assim, de gostar dele, ele é meu pai, mas eu sei que
ele não é o super-homem. Mas eu gosto dele mesmo assim, embora
eu tenha tido um relacionamento bem tenso.
Antonia diz conseguir, hoje, enxergar o pai como um ser humano
passível de cometer erros, com defeitos e qualidades. Parece que consegue se
relacionar hoje com um pai “mais inteiro”, possuidor de características tanto positivas
quanto negativas, entrando em contato com a imperfeição do pai e, também, com os
julgamentos dele.
Ela não demonstra criticá-lo, mas apenas enfatiza os pontos difíceis da
relação com o pai.
Tem coisas dele que são muito difíceis. Ele tem uma personalidade
difícil. Às vezes eu ainda sofro quando tenho que conversar algum
assunto com ele, mas, não é nada que me abale como me abalava
antes. Acho que já é uma relação mais fácil.
77
Eu fui vendo que ele devia ser uma pessoa muito difícil de lidar,
porque assim como em casa, quando você tem que conversar e
discutir, ele é totalmente fechado a outras opiniões.
Se ele estava sem dinheiro, se o negócio não estava bem, no
momento, porque as crises vinham desde antes dessa quebra total,
que a construção sempre teve. Então, a gente vivia aqueles altos e
baixos. Isso é uma coisa que a minha mãe na época achava que era
ótimo, mas hoje em dia ela vê que pode ter sido prejudicial pra gente,
a gente trouxe esse sofrimento, sabe?
A desidealização do pai parece ter espaço localizado em dois
momentos da vida de Antonia. O primeiro deles, que considera muito precoce, foi
aos 18 anos, quando sofreu as conseqüências dos erros do pai, na administração
dos negócios. Desta forma, a relação com o prover e a segurança financeira ficou
abalada. A insegurança financeira passou a ser vivenciada constantemente.
Eu tinha uns 18 anos, eu considero precoce, porque ainda é uma
fase que você depende, na nossa maneira de viver de brasileiros: o
pai que ainda paga a faculdade, o pai que dá isso, que dá carro, e eu
não tive isso, meu pai não me deu carro, ele pagava a minha
faculdade, mas ele financiava todo ano pra conseguir pagar...eu
admiro que ele conseguiu pagar, realmente foi ele que pagou; [mas]
eu vivia sempre a incerteza, não sabia se ia ter.
O segundo fator que diz ter contribuído para a desidealização do pai foi
a saída de casa, com o afastamento da relação diária com o pai, decorrente do
casamento de Antonia. Ao se casar, aos 25 anos, Antonia saiu de casa pela primeira
vez, o que possibilitou um distanciamento físico e também emocional do pai. Este
fator pode ter sido colaborador para o amadurecimento da relação e o
desprendimento da figura do pai, fato que favoreceu o relacionamento com ele.
Até os meus 25 anos, que foi o fato de eu me casar. Mais do que o
meu amadurecimento, foi o fato de eu ter saído de casa, sabe? Ter
me desprendido do meu pai pra viver a minha vida. Isso me fez
amadurecer e conseguir enxergar meu pai uma pessoa [...] e
[enxergar] o problema dele [de forma a] não me fazer sofrer tanto.
Hoje em dia, eu o vejo uma pessoa com muita garra, sabe? É uma
pessoa que o que eu admiro nele, que é uma característica que eu
procuro buscar dentro de mim também, é essa garra, de nunca
desistir, de tomar um tombo e levantar, continuar. Mas, ao mesmo
tempo, uma desorganização, não saber tocar essa garra, uma coisa
que realmente vale a pena, coisas que eu vejo muito nele, essa
maneira [...].
Ao falar de si mesma, Antonia diz se identificar mais com o pai do que
com a mãe, no que se refere às posturas diante da vida. Isto pode estar relacionado
78
ao significado do pai na vida da filha, no geral, como o representante de
características relacionadas à capacidade de organização, consciência,
discriminação, como destacam claramente alguns autores. (FARIA, 2003; SCULL,
1992)
Eu acho que [me assemelho com] meu pai, porque eu saí, eu fui pra
rua trabalhar, fui ganhar a minha vida. Eu não dependi, como ela
[mãe] dependeu sempre do meu pai. Então, é por isso que eu me
vejo muito diferente dela, apesar de eu admirar muito o lado mulher
dela, eu acho que a minha postura profissional é muito mais a garra
e essa vontade de ir atrás das coisas, do meu pai.
A impressão que passa é de que sua identificação está na esfera das
atitudes e da ação, como ela mesma destaca em relação ao trabalho fora de casa e
à sua garra que acredita ser semelhante à do pai. O distanciamento de Antonia
parece ter permitido maior maturidade da relação com o pai. Isso se deve, talvez, à
experiência do casamento e às crises vividas ao longo da vida. A relação com o pai
dá a impressão de ter proporcionado aprendizagem de valores muito presentes na
vida de Antonia.
Apesar das dificuldades do pai, Antonia conseguiu desenvolver
aspectos positivos em relação à organização e à força, necessários para impulsioná-
la para novos objetivos.
Eu acho que a principal coisa que meu pai passou, não só pra mim,
mas pros meus irmãos também, foi a honestidade. Porque é a
honestidade acima de tudo. Porque brasileiro tem muito aquilo de dar
um jeitinho, uma malandragem, de saber enganar. E meu pai fala “eu
sou muito trouxa.” Trabalhou no governo; e são aquelas
malandragens que todo mundo faz [...] Que mal tem? Todo mundo
faz! E meu pai nem esse “todo mundo faz” ele quis fazer. Ele preferiu
ganhar sempre o dinheiro dele de maneira honesta.
A percepção crítica que teve das posturas do pai no trabalho pode ter
contribuído para reconhecer atitudes e posturas semelhantes do pai em casa, com a
família. Antonia demonstra ter consciência de algumas características do pai, da
maneira como ele encarava as dificuldades e as crises na vida profissional.
Meu pai hoje, ele não chega a ter um trabalho fixo. Ele, depois que a
firma dele quebrou, ele tinha uma construtora, ele trabalhou no
escritório do governo também, foi superelogiado, admirado! Acabou
saindo por causa dessas trocas de governo. Mas saiu muito bem,
teve essa construtora, o ramo da construção tem altos e baixos.
[...] mas depois eu fui vendo que ele devia ser uma pessoa muito
difícil de lidar, porque assim como em casa, quando você tem que
conversar e discutir, ele, ele é totalmente fechado a outras opiniões,
ele tem aquela idéia dele e não pode ser contrariado, não aceita. Eu
79
o via no trabalho assim também, ele brigava com as pessoas (ri),
mas, mesmo assim, todos os funcionários gostavam dele. Apesar de
ele chegar lá e brigar, ele era muito generoso.
Ela descreve que a sinceridade do pai, em relação aos problemas que
passava no trabalho e dividia com a família, pode ter sido prejudicial a ela e aos
irmãos, por serem crianças e terem pouca condição para assimilar o que o pai dizia.
Ao que parece, o pai foi pouco protetor.
Quando ele tinha um problema no trabalho, mesmo quando a gente
era criança. Ele chegava e expunha aquilo. Pra gente, então, se ele
estava sem dinheiro, se o negócio não estava bem, no momento,
porque as crises vinham desde antes dessa quebra total, que a
construção sempre teve, então, a gente vivia aqueles altos e baixos.
Das lembranças que possui do pai no trabalho, destaca terem sido
marcantes, em sua vida, a falta de paciência ao lidar com as pessoas e com as
opiniões divergentes da dele, além de uma certa rigidez diante de novas
possibilidades profissionais. Diferentemente do que observa nele, Antonia diz ser
mais flexível com as opiniões divergentes da dela.
Era a falta de paciência, a falta de abertura pra escutar a opinião do
outro. Eu sinto que meu pai não tem, não tinha muito isso. Assim,
ele é uma pessoa que ele chega: “quero que faça isso, não
importa...” e todo mundo tem que. Ele não é flexível.
Ao mesmo tempo em que aponta uma rigidez do pai em relação a
novas possibilidades, Antonia tende a reconhecer o esforço pessoal dele em buscar
um novo caminho. Dá a impressão de que ela não consegue aceitar o fato de o pai
não ter conseguido restabelecer o padrão de vida que tinham até acontecer a queda,
com os riscos constantes e as incertezas.
[...] mas, a incapacidade dele de conseguir se recuperar. Eu acho
que essa agressividade dele, porque tem tanta gente que quebra e
se recupera! Não vou dizer que ele não se recuperou, poxa! Afinal de
contas, ele se manteve até hoje, né. [...] Ele está sempre atrás de
novos negócios, mas não é nada definitivo. Porque ele realmente, eu
acho que faltou, eu acho que falta mesmo essa organização. Essa
coisa de estar aberto, de estar aberto realmente a coisas novas, a
coisas que não são realmente da forma como você pensa, mas que
podem dar certo.
O pai, como vimos em Scull (1992), Von der Heydt (1979) e Stein
(1979), é significativo na maneira como vai auxiliar a filha na sua entrada para o
mundo, no caso do trabalho, mundo este onde atuará com outras pessoas e entrará
em contato com sucessos e fracassos. A maneira como o pai se relaciona com estas
questões também influencia a maneira como a filha se relaciona com elas, pois ele
80
irá fornecer as bases para a humanização do arquétipo paterno, cujas características
positivas, como já apontamos, dizem respeito à organização, discriminação. Esses
fatores facilitam os momentos de escolhas, de auto-reconhecimento e de segurança
da mulher.
Eu ainda converso muito, ainda consulto, não tanto, mas consulto
meu pai. E, às vezes, até consulto e ajo de uma maneira
completamente diferente. Não é com tudo que eu concordo, na
maneira dele ser. Mas ele ainda é um pai, um pai é aquela pessoa
que você vai sempre, como eu vejo hoje ele uma pessoa
competente, tem coisas dele que eu admiro, mesmo nas posturas
dele, ele é sempre uma referência pra mim. Então, eu vejo isso, eu
vejo ele como uma referência [...].
As características masculinas representadas por seu pai sugerem o
desenvolvimento de aspectos masculinos internos em Antonia, apesar de o pai
pessoal ter cometido falhas, que foram vivenciadas com sofrimento não assimiladas
como negativas. Além desse ponto, tanto pela característica de Antonia quanto pela
ação do pai, as experiências sofridas constelaram alguns aspectos negativos do
arquétipo paterno, mas foram poucos em relação às experiências positivas e não
configuraram uma relação negativa do complexo paterno em Antonia.
A relação com a profissão
A escolha da profissão para Antonia passou por uma reflexão
decorrente de um processo de orientação profissional. Nesse processo, pôde
perceber que a escolha vinculada ao seu sonho de infância não tinha relação com a
escolha baseada na sua vocação ou habilidades específicas.
Quando eu fui fazer o teste vocacional, o psicólogo falou para mim
que eu não tinha jeito para publicidade. Eu fiquei frustradíssima, mas
ele disse que eu tinha aptidão total para Arquitetura. [...] Prestei
Arquitetura mesmo sem gostar muito, porque eu acho que a gente
escolhe a profissão muito cedo mesmo, hoje eu vejo isso. Não
adianta a gente ter um sonho de infância, é difícil seu sonho de
infância, na minha opinião, ser realmente o que você vai fazer no
futuro, então, eu acabei prestando arquitetura.
Para ela, o aparecimento de uma nova opção foi visto, num primeiro
momento, como fator de frustração, mas, com a vivência profissional, passou a ter
81
certeza de que a opção que fez, em função da orientação profissional, era a mais
apropriada para a sua maneira de ser. Isso é reforçado, em sua fala, quando
destaca o interesse por trabalhos que utilizam a habilidade artística e quando
evidencia seu prazer pela atividade profissional que desempenha.
Eu gostava da coisa mais artística, de desenho. Aí acabei tocando
mais a arquitetura. Só comecei a gostar mesmo da profissão quando
eu comecei a trabalhar com isso; a pôr em prática.
E hoje em dia, eu tenho certeza que eu escolhi a profissão que eu
quero tocar o resto da minha vida. É um longo caminho, e não é o
meu sonho de infância! Engraçado, né? Eu nunca imaginei, criança,
que eu ia ser uma arquiteta. Não é uma coisa que veio da infância.
A figura da mãe foi importante no processo de escolha, por ter sido por
sugestão dela o processo de orientação. Nesse sentido, a mãe parece ter fornecido
à filha aspectos orientadores, provenientes, talvez, de seu animus. Além da
presença da mãe, o pai também entrou como colaborador na vivência da escolha
profissional, por ter apoiado e incentivado a arquitetura como opção decorrente da
orientação profissional.
A minha mãe que inventou que os filhos dela tinham que fazer teste
vocacional para poder escolher a profissão.
Meu pai sempre achou que eu devia fazer arquitetura. Meu pai é
quem me deu um empurrãozinho.
A fala de Antonia enfatiza o prazer de trabalhar em sua profissão de
escolha, nomeando esse aspecto como um privilégio em relação a muitas outras
pessoas. Será que foi uma escolha consciente ou a influência do pai foi mais
marcante? Será que Antonia tem um lado obediente que a fez seguir exatamente o
que a autoridade “psi” acreditou ser o melhor para ela? Cabe questionar, no entanto,
para onde foi o sonho de infância?
Antonia, contudo, mostra-se realizada e encorajada a buscar novas
possibilidades para crescer profissionalmente.
Bom, eu acho que eu atingi já uma segurança profissional, já tenho
certeza que é isso que eu quero, eu faço o que eu gosto. Então, é
um privilégio.
Eu ainda quero crescer muito, mas já estou num momento que eu
estou realizada e estou satisfeita com o que eu faço. Agora é só
continuar trilhando.
Eu estou com uma quantidade de trabalho, a gente que é profissional
liberal, a gente nunca sabe como é que vai ser o ano que vem, por
exemplo, mas esse ano pra mim foi um ano bom, eu tive uma
82
quantidade de trabalho, que é uma quantidade que eu pude fazer,
que eu fiz, não faltou trabalho. Então, não faltou dinheiro também, a
remuneração, pra mim este ano, foi boa.
A escolha aparenta estar centrada no desejo pela satisfação pessoal,
que passa pela satisfação financeira e talvez, também, pelo reconhecimento do pai,
que teve participação no processo de escolha, com o incentivo.
A relação com o trabalho
Antonia diz ter uma atitude de abertura, no sentido de ser flexível,
aceitar críticas e se permitir fazer críticas, quando no ambiente de trabalho.
No profissional, eu sou o mais aberta possível, ou seja, não que eu
vá abrir a minha vida pessoal, no profissional, mas acho que eu vou
chegar, a minha timidez, na hora do trabalho, eu tiro de lado.
Eu procuro criar menos atrito possível. Eu me considero uma pessoa
fácil, digamos assim. É difícil você me pegar num dia mal humorada.
Eu me considero uma pessoa que não levo e procuro não levar os
problemas pro escritório.
Eu sou uma pessoa, eu acho que eu aprendi a lidar bem com os
meus erros, sabe? Porque eu sei que ninguém é perfeito e eu
cometo erros. Então, de repente, às vezes tem um desenho que o
cara fala, assim não, mas isso não dá certo por causa de tal
posicionamento. Aí eu falo: eu errei, deixa eu arrumar, eu vou te
fazer certinho daí você retorna pra obra, entendeu? Ah, eu sou uma
pessoa superaberta a fazer isso [...] reconheço quando eu sei que eu
estou errada; eu só falo quando eu acho que o erro não foi meu, eu
também falo.
Essa postura mais flexível evidencia ser um facilitador para as
atitudes que ela tem de tomar tanto diante da chefia ou perante aos subordinados
ou aos colegas de trabalho. Este posicionamento parece transmitir a segurança
necessária para impor a autoridade.
E com os meus subordinados, os pedreiros, empreiteiros também eu
procuro ser o mais aberta possível, no campo profissional. Eu
procuro ser bem simpática. Chego na obra e falo com todo mundo,
lembro o nome de todo mundo, trato eles como pessoas. Eu procuro
ter o maior respeito com eles também. Mas sempre dessa maneira,
tentando me colocar como uma pessoa, tentando mostrar que eles
são meus subordinados, que eles vão ter que reconhecer minhas
ordens, mas sem ser dura demais também.
83
Esta atitude, aliada à autoconfiança, permite a Antonia lançar mão
de estratégias para lidar com as dificuldades que encontra no que se refere às
ordens aplicadas aos funcionários das obras.
Eu faço muita obra. Eu tenho que lidar com peão, eu tenho que dar
bronca no peão, sabe? Então, eu tenho que exercer também uma
força aí, ne´? Ah, eu procuro resgatar dessa minha personalidade,
que eu acho da minha adolescência, de querer ser independente, pra
eu poder me impor, porque eu sempre vi que as mulheres têm
realmente essa fragilidade. Se chega um homem lá falando é muito
diferente de eu falando, de eu chegar e dar bronca no peão. Então,
isso já é difícil. Quando meu cliente é um homem, eu peço: por favor,
dá uma chamada de atenção nele! Eu já falei, mas é legal você
frisar, pra ver se ele entende melhor! Muitas vezes eu sinto que só
eu falando, mesmo que falando duro, não é a mesma coisa que com
um homem falando. Então, nesse ponto eu acho que é a única
desvantagem do meu trabalho, na hora de você ter que se impor.
Apesar de Antonia precisar utilizar estratégias em alguns momentos,
no trabalho, para lidar com os homens, demonstra confiança no confronto com os
subordinados, confiança tal que permite o uso de manobras para lidar com as
dificuldades, sem que isso implique em sentimento de inferioridade. Antonia
aparenta não se abalar com a necessidade de usar uma estratégia, no que se refere
à condição de ser mulher.
No relacionamento com seu chefe, causa a impressão de não enfrentar
problemas com figuras representantes de autoridade. A chefia está relacionada com
admiração e não com ameaça.
Com esse meu chefe, eu me dou muito bem com ele. Ah, eu já saí
de lá, já voltei. Ele me chamou pra voltar. Então, a gente tem uma
relação de admiração muito grande, mas ao mesmo tempo, não é
uma intimidade, é uma relação profissional mesmo.
É superfácil, [sobre o relacionamento com o chefe e a mulher dele,
que também é arquiteta]. Porque o meu chefe, a mulher dele
também trabalha lá no escritório, que é uma coisa até difícil, né?
Você [ir pra lá] e ter que ficar falando com a mulher do chefe. Mas
até que me dei superbem com ela, a gente desenvolveu um projeto
todo, agora, juntas e foi legal.
Até no convívio profissional com a mulher do chefe, que também
podemos ver como uma representante de autoridade, Antonia aparenta ter um bom
relacionamento e encontrar saídas para as situações difíceis. Essas saídas parecem
estar vinculadas à postura mais flexível que adota diante das situações de
relacionamento tanto com chefia quanto com subordinados.
84
Apesar das vivências difíceis enfrentadas por Antonia, ao longo da
vida, na relação com o pai, elas serviram de base para a relação dela com o mundo,
com as dificuldades nele existentes e com as atitudes necessárias para o seu
enfrentamento.
Antonia aponta o chefe como responsável por seu gosto pela
arquitetura, fato que podemos entender como uma grande admiração pelo “pai”
profissional.
Comecei a estagiar em arquitetura, inclusive um arquiteto que até
hoje eu trabalho com ele. [...] foi ele que me ensinou a gostar, a me
apaixonar por esta profissão.
A minha relação é bem essa com esse meu chefe, eu me dou muito
bem com ele [...].
A relação com a chefia é uma referência positiva de exemplo de
atuação profissional que, ao mesmo tempo, permite que ela se desenvolva e não
fique presa ao modelo dele como única forma de atuação profissional. Esse
posicionamento de admiração, mas não de idealização, está relacionado à
desidealização do pai e, assim, tudo o que se refere ao universo masculino, do qual
o pai é representante, fica com um caráter mais real e com o qual se torna, portanto,
possível se relacionar. O chefe-modelo serve de referência de atuação profissional e
Antonia se mostra capaz de atuar profissionalmente independentemente da
aprovação desse pai profissional; ela assimilou internamente sua competência, o
que não significa que em alguns momentos não se sinta insegura.
A desidealização do “pai”, aqui o pai profissional, promove
internamente o desenvolvimento de um sentido próprio de valorização, não
necessitando da busca de aprovação externa, no caso, pelo chefe, ou pelo próprio
pai.
Ele é um mestre que eu considero, eu admiro o trabalho dele. Não
que eu queira ser igualzinha a ele, porque eu quero ser eu mesma,
mas ele tem uma maneira de trabalhar, de lidar com clientes, de ser,
que eu admiro.
A maneira reservada de ser de Antonia é vista pelas colegas de
trabalho, segundo ela, como algo aparentemente ruim, no que se refere à exposição
de aspectos da vida pessoal no ambiente e nas relações de trabalho.
[...] As meninas do escritório [em] que eu trabalho, é um escritório
pequeno, elas acham que eu sou muito fechada, porque eu não
exponho muito meu lado pessoal, eu separo bem na minha cabeça,
profissional, pessoal do trabalho é pessoal do trabalho. Não tenho
85
amizades. São minhas amigas, eu posso sair com elas almoçar e tal,
mas é o pessoal do trabalho, né? Eu procuro separar bastante isso,
pra não estressar demais, pra eu na hora que chegar no trabalho, eu
conseguir não ficar falando da minha vida, ficar ali trabalhando
mesmo [...].
Para Antonia, essa maneira distante de ser é entendida como uma
diferenciação entre as relações profissionais e as relações sociais e afetivas, como
vimos acima e podemos observar na fala que segue:
Então, são essas amigas, que eu digo: eu sou amiga delas, mas
converso, falo da vida pessoal. Mas muito pouco, por exemplo: eu
demorei muito pra contar da minha separação no escritório [...] foi o
lugar que eu contei por último. [...] O escritório foi o último lugar que
eu consegui expor isso, e ainda de uma maneira muito discreta, não
cheguei falando.
No entanto, cabe questionar se este distanciamento não está a serviço
de uma defesa em relação ao outro, no ambiente de trabalho, pois isto implicaria
maior exposição. Parece que Antonia não se sente bem em lidar com situações
“misturadas” no ambiente de trabalho, isto é, demonstra não ter muita habilidade em
lidar com problemas que possam surgir, decorrentes de uma maior intimidade entre
as pessoas. Talvez por isso Antonia mantenha distância das relações mais próximas
no trabalho, fazendo, assim, uma tentativa de se proteger de maiores intimidades e
conflitos delas decorrentes.
Ainda no que se refere ao relacionamento profissional, como já
afirmamos, Antonia se considera reservada. Essa defesa pode servir como seu
ponto de equilíbrio no espaço de trabalho. Isto é, como procura não expor seus
problemas pessoais no ambiente de trabalho, parece que isso lhe permite uma
relação distanciada das questões pessoais nesse, fato este que parece proporcionar
uma tranqüilidade interna para que ela consiga se relacionar profissionalmente, sem
se deixar envolver por seus problemas pessoais.
Essa característica pessoal de Antonia, no que diz respeito à sua
maneira de lidar com as pessoas e com as suas situações de vida, não pode ser
desconsiderada.
Ah, eu me dou bem com todas. Eu procuro criar menos atrito
possível, eu me considero uma pessoa fácil, digamos assim. É difícil
você me pegar num dia mal-humorada. Eu me considero uma
pessoa que não levo e procuro não levar os problemas pro escritório.
Por mais que seja um problema enorme, eu procuro chegar sempre
no escritório de uma maneira alegre, falando com todo mundo
superbem. Eu não sou uma pessoa que gosta de criar discórdia;
86
mesmo as pessoas que são mais difíceis, lá dentro, eu sei que são
difíceis de trabalhar, eu evito criar discussões, esse tipo de coisa. É
uma maneira minha [...].
Ao que se vê, ela revela bom relacionamento com as pessoas do
trabalho, com certo distanciamento das situações difíceis em sua vida, utilizando-se
de uma persona de pessoa sempre alegre.
Especificamente no que se refere aos momentos de crise, parece
adotar uma postura de enfrentamento diante das dificuldades. Para Antonia, a
maneira de se relacionar com a ambição, de crescer profissionalmente, passa pela
necessidade de novos desafios, fato este destacado por ela e temperado com o
sentimento de medo, natural em relação ao novo, o que mostra os estímulos para os
desafios.
Esse aspecto da ambição podemos entender como relacionado ao
vínculo inicial com o pai. Antonia viveu uma inconstância gerada por seu pai, fator
que pode ter proporcionado um desejo de vencer diferente do modelo exercido por
ele. O desejo grande de vencer e a forma de encarar os desafios, ainda que com
medo, parecem estar ligados a uma elaboração positiva da relação com o pai.
A impressão que fica é que Antonia se apropria do seu mundo do
trabalho, de suas posturas diante de dificuldades, de sua maneira de agir nas
relações de trabalho, de formas diferentes e, muitas vezes, opostas às de seu pai.
Talvez sua maneira de questionar e desejar fazer diferente deva-se ao
que vivenciou em sua casa, dificuldades, dúvidas constantes sobre a condição
financeira, fatos fortemente reforçados pela postura aberta do pai, em não esconder
todas as dificuldades pelas quais passavam. A postura de pôr pra fora de Antonia é
semelhante à de seu pai de pôr pra fora, não segurando para si as dificuldades;
ambos expõem à família, ou ao chefe, aquilo que está acontecendo.
Desde que eu entrei lá, eu já tive várias crises. A minha vontade é
sempre de mudar alguma coisa. Quando eu estou insatisfeita, eu
gosto de pôr isso pra fora, gosto de expor, tanto é que já me expus
com ele várias vezes. Todos os meus momentos de crise, eu procuro
uma mudança, eu procuro um desafio, eu procuro, eu ponho pra fora
pra poder me satisfazer, o que não está me satisfazendo.
Sobre os momentos de promoção, Antonia aparenta não ter muito claro
como deve reagir ou quanto significa o seu valor, isto é, relata não saber se o valor
que estipula como maior para seu salário corresponde a um valor digno para si
87
mesma. Ela demonstra sentir dúvidas sobre até onde pode exigir o valor que deseja
e até onde pode ceder.
Às vezes, a gente acha que não merece [promoção]. Mas, em
compensação, se a pessoa te dá o que você está querendo, você
acha que deveria ter pedido mais, por exemplo, no meu caso, se eu
vou pedir um aumento e ele me dá o que eu pedi, eu vou achar que
eu deveria ter pedido mais, mas se ele não deu tudo, eu fico
pensando que está bom. Mas a gente, não sei se a gente se
deprecia, mas a gente tem sempre medo, a gente se acomoda na
profissão; o novo é sempre um desafio! Acho que é por isso que dá
um pouco de medo. Mas eu gosto de sentir esse medo e eu gosto de
sentir, de enfrentar novos desafios.
Apesar da dúvida sobre como lidar com as promoções ou valorizações
de seu salário, Antonia parece transitar bem por esse terreno, pois não teme o novo
a ponto de ficar paralisada; as situações novas são enfrentadas por ela como um
desafio necessário. Segundo ela, tem uma postura diferente de seu pai, que não se
mostra aberto ao novo.
A relação com a mãe
Antonia menciona a presença de sua mãe, já no início da entrevista. A
importância da mãe na escolha da profissão deve-se ao fato de ter sido ela a
responsável pelo encaminhamento da filha à orientação profissional. Essa influência
pode ser considerada positiva, pois favoreceu uma escolha mais consciente.
Para Antonia, sua relação com a mãe foi positiva, no entanto, o fato de
a mãe não ter trabalhado fora de casa, de não ter vivenciado a profissão e de ter
assumido apenas a função de mãe e dona de casa, foi assimilado como um aspecto
negativo da mãe. Esse aspecto ficou vinculado ao Feminino. Ela passou a ter como
modelo de crescimento e de admiração o pai.
Eu abominava a minha mãe ser uma dona de casa. Porque a minha
mãe, apesar de ter feito faculdade, tudo, ela nunca exerceu a
profissão; nunca foi pra rua trabalhar. Mesmo tendo a minha que
falava, “ai, na sua época vai ser difícil, você vai ter que trabalhar” [...]
Na adolescência, tudo, eu era muito ligada a ele e não à minha mãe.
Com o amadurecimento, já vivenciado na relação com o pai, e o desejo
pela maternidade, Antonia aparenta ter se reconectado com aspectos do Feminino,
88
o que foi proporcionando uma reaproximação com a mãe, além de uma admiração
pela força por ela denominada de força feminina.
Eu procuro aprender muito com ela, e mesmo com a minha avó. Um
dia eu escrevi uma carta, uma declaração pra minha mãe e pra
minha avó, que pra mim elas eram minhas heroínas, nessa parte que
eu estava falando, que estou buscando a minha feminilidade, que eu
admirava, eu acho que ela tem uma força de mulher; do emocional.
Apesar de ela ser dependente do meu pai, ela sempre foi uma
mulher companheira, forte, de dar força pro meu pai. Então, isso é
uma coisa que eu admiro, essa força emocional dela, de apoiar, de
enxergar as coisas de uma maneira positiva; de não se desanimar
com qualquer coisa. Isso é uma coisa que eu admiro.
No entanto, apesar dessa reconexão com a mãe, fica a impressão de
que dentro de Antonia, uma ambigüidade, no que se refere à admiração e à
rejeição desse modelo de mulher: a rejeição da mãe e do Feminino simultâneamente
com a supervalorização do Masculino e do pai.
Ela se dedicou totalmente ao lado dela mulher, cuidar da casa. Eu
enxergo isso totalmente como uma coisa ruim, mas ao mesmo
tempo, eu me enxergo uma pessoa mais experiente que ela, em
certos aspectos. Porque eu saí, eu fui pra rua trabalhar, fui ganhar a
minha vida. Eu não dependi, como ela dependeu sempre do meu pai,
do pai dela e depois do meu pai. Então, é por isso que eu me vejo
muito diferente dela, apesar de eu admirar muito o lado mulher dela.
Ao longo da vida de Antonia, a imagem da mãe ficou associada ao
papel desempenhado em casa e não ao Feminino. Hoje, o sentimento de admiração
pela mãe-mulher parece estar surgindo, como já apontamos. Para Antonia, o ser
mulher, o Feminino, está ainda muito vinculado ao ato de ser mãe; como sinônimo
de ser mãe.
Eu tenho hoje em dia um respeito muito grande pela minha mãe,
ainda mais porque hoje eu busco essa minha feminilidade, eu quero
ser mãe. E hoje em dia eu vejo “puxa que legal, né?”
O vínculo aparentemente positivo com a mãe pode ter proporcionado
uma interação positiva com o cuidar, com o acolher, com o conter e também com a
referência de maternidade. A atitude da mãe de cuidar dos filhos, de favorecer a
escolha profissional com o incentivo a procurar um espaço para reflexão, reflexão
esta que está conectada a um retorno ao mundo interno das vocações, pode ter sido
significativa para Antonia, pois é da força do Feminino, ao qual ela faz referência a
todo momento, que ela aponta aspectos positivos da mãe.
Eu admiro a força dela também, por ter suportado tudo, por ter
amado demais meu pai, por ter vivido tudo isso sempre defendendo
89
ele. Mesmo quando eu e meus irmãos estávamos até com razão de
criticar o meu pai, mas minha mãe vinha: “não, vocês têm que olhar
que ele também tem qualidades [...]”. Ela queria mostrar pra gente
que ele é um bom pai apesar de tudo.
Auto-imagem
A imagem que Antonia tem de si mesma recebe influência das idéias
de Feminino e de Masculino. Sua fala traz o confronto entre sua maneira de ser/agir
com a de sua mãe. Em sua vida, procurou uma maneira de ser diferente daquela de
sua mãe, no que se refere à atuação profissional; a imagem que tem de si parece se
resumir apenas a este aspecto, como ela mesma colocou. Talvez o registro interno
materno tenha sido mais negativo, algo na esfera do complexo materno negativo. É
provável que sua admiração por seu pai e a rejeição ao modelo materno tenha
favorecido a identificação com os aspectos mais masculinos:
Eu sempre me achei uma pessoa muito masculina, no ponto de
querer ser independente. Isso é uma vontade, eu sempre fui, eu
sempre quis ser independente, desde adolescente. Eu falava que eu
não queria mais depender do meu pai.
Ela manifesta não se apropriar de sua maneira feminina de ser, já que,
na sua visão, o Feminino está muito associado à sua mãe e ao ser mãe. Apesar de
ter uma maneira feminina de se vestir, isso pode estar associado apenas à sua
forma de se apresentar ao mundo, a sua persona. Não quer dizer que não seja uma
mulher feminina, mas que talvez ainda tenha que desenvolver um pouco mais o seu
Feminino, procurando desvinculá-lo de sua mãe e da maternidade.
O casamento de Antonia, segundo ela, terminou por dificuldades na
administração do marido em relação a assumir mais as responsabilidades da casa,
para que ela pudesse assumir o desejo de ser mãe e reduzir a jornada de trabalho.
Desta forma, Antonia não aparenta ter dificuldades em estabelecer vínculos. A
relação de amizade no trabalho é que levanta uma suspeita sobre este aspecto do
Feminino acolher, união como algo defensivo para ela; uma dificuldade de
integração do Feminino no trabalho.
É importante destacar que algumas características que apresenta em
sua vida, como seu desejo por conquistar espaço no trabalho e sua atitude objetiva
90
diante daquilo que deseja, dizem respeito ao que considera ser a garra. Talvez
esses aspectos tenham sido influenciados pelas atitudes de garra do pai, em
procurar se restabelecer depois da quebra de sua empresa.
No entanto, apesar de Antonia acreditar que deve sua garra a este
exemplo de seu pai, parece que a maneira como ela usa essa característica é muito
pessoal. Antonia demonstra se apropriar desta “garra”, enfrentando seus medos e
buscando novos desafios, sempre que se encontra insatisfeita e desejosa por
mudanças. Ela aparenta não se acomodar com a condição estabilizada já
conquistada em seu trabalho. Antonia diz querer crescer e enfrentar novos desafios.
Mas eu gosto de sentir esse medo e eu gosto de sentir, de enfrentar
novos desafios. Eu sou jovem, eu tenho possibilidade de arriscar; eu
não tenho filhos, eu não tenho nada. A única coisa que eu tenho é
que me sustentar.
A visão que tem de si mesma está muito ligada ao pai, no que se refere
às atitudes no trabalho e à fragilidade. Podemos perceber isso, quando a
questionamos sobre a força feminina, em que fala de sua mãe. Sua resposta
destaca a fragilidade emocional que ela associa com a mesma fragilidade do pai.
Antonia não considera ter a força de sua mãe e, sim, as fraquezas do pai.
Eu não me considero tão forte emocionalmente quanto ela. Eu me
abalo bastante. Isso é uma coisa muito do meu pai. Quando eu sofro
com alguma coisa, como eu sofri com a minha separação, de se
abalar emocionalmente, eu sinto que minha mãe não [se abala], ela
é uma fortaleza. É uma característica que eu admiro nela e que eu
acho que não tenho, porque eu me identifico mais com o meu pai.
Podemos considerar, assim, que sua visão geral de si mesma
demonstra estar muito associada ao pai, tanto em atitudes quanto em aprendizados
de valores de vida.
Uma observação que eu posso fazer é que o meu profissional está
totalmente ligado com a história da minha vida. Eu considero que
talvez se não tivesse acontecido tudo o que aconteceu com o meu
pai. As nossas dificuldades, eu não teria tido tanta garra e tanta
vontade de ir atrás, como eu tive. Talvez, se eu tivesse sido uma
menina mimada, que estaria aí, como outras amigas, com o
escritório que o pai montou pra elas, continuaria sustentada pelo pai.
Então, hoje em dia eu acho que há males que vêm para o bem. Isso
me deu força pra eu conquistar o que eu conquistei hoje.
A relação com a mãe e com o referencial feminino parece estar sendo
assimilada como aspectos possíveis de serem utilizados no âmbito do trabalho.
91
Antonia acredita que possui características mais masculinas, tanto em seus objetivos
na vida quanto nas assimilações de valores, posturas no seu dia-a-dia profissional.
Esses aspectos podem ser observados na maneira de agir de Antonia,
no trabalho, na busca de novos desafios, na focalização de objetivos para
desenvolver-se profissionalmente.
Conforme ressaltamos, a diferenciação do pai é essencial para que a
filha consiga se desligar de seu complexo paterno e assumir suas qualidades
masculinas, já mais conscientizadas.
Antonia parece ter conseguido essa desvinculação paterna, pois
aparenta estar consciente de que algumas características masculinas de seu pai,
como a garra, a vontade de vencer, o foco em objetivos pertencem a ela também.
Por algum tempo, Antonia demonstrou certa desvalorização da mãe e
do Femninino, reforçando a hipótese de ter desenvolvido um padrão da “amazona
de couraça” (LEONARD,1997). Contudo, esta maneira de ser pode estar passando
por um processo de transformação. O resgate do Feminino pode permitir um
crescimento psíquico e fornecer à Antonia referências diferentes da identificação
com a persona de mulher trabalhadora, independente e moderna.
Com a ocorrência desse resgate, ela aparenta maior consciência de
sua identidade de mulher e pode ter a referência masculina como parceira no seu
dia-a-dia.
Desta forma, uma das representações do animus que parece ser
constelada é a da ação. Esse aspecto pode ser observado em sua fala, quando
aponta a falta de ação como uma falha nas atitudes de seu pai. A ação é algo que
traz como significativo na sua maneira de se relacionar com o mundo. Talvez
possamos supor que esse é também um dos fatores que desperta sua admiração
pelo seu chefe, já que ele personifica a atitude que ela admira: a ação no mundo do
trabalho.
5.2 Beatriz: uma vida voltada para o trabalho e o conhecimento
A voz baixa, quase inaudível, é um traço marcante de Beatriz, 33 anos.
A timidez se apresenta no seu modo discreto de se vestir, de maneira a ficar quase
92
imperceptível. O peso, acima da média, parece um motivo para afastá-la do contato
com as pessoas. Veste-se com roupas largas e pouco femininas, que não valorizam
a mulher e o rosto bonito que tem. As cores são apagadas, assim como o tom de
sua voz; é preciso esforço para escutá-la. Esses aspectos reforçam a impressão de
não ser notada. É provável que não se ressinta profissionalmente de sua postura,
pela adequação do timbre de sua voz às crianças, no trabalho de Pediatria. Mas,
para impor autoridade, é provável que surja alguma dificuldade! Aparentemente
tranqüila durante a entrevista, apresentou-se como uma pessoa tímida; logo de início
sentou na ponta do sofá, transparecendo ser essa a sua a maneira de encarar o
mundo: na borda, defensivamente, com certa insegurança.
Sua entrevista não traz muitas informações e demonstra uma visão
mais superficial sobre os temas, o que acabou dificultando a análise.
A relação com o pai:
Para Beatriz, o pai demonstra ser a pessoa de referência em sua vida.
Embora more sozinha, ele permanece muito presente, e a relação entre eles
aparenta ser “positiva”, sobretudo na esfera intelectual. São suas as palavras:
Eu diria que é uma boa relação, a gente se dá muito bem, tem
afinidade intelectual, eu gosto muito dele. Mas, como a gente está
morando em cidades diferentes, desde que eu tinha 17 anos, então
está uma relação um pouco distante. Mas ele é a pessoa que eu
confio numa emergência.
O pai é a pessoa a quem recorre quando passa por algum tipo de
dificuldade; mesmo separados, por residirem em cidades diferentes, tudo leva a crer
que ele exerça um papel muito significativo na vida de Beatriz. Ainda que ela procure
se preservar de emitir as opiniões sobre o pai, sempre justificando a distância
geográfica, aparenta ter consciência da postura do pai diante da vida: ‘meio tirânico’.
Contudo, demonstra escolher as palavras para melhor descrevê-lo. Fica claro que o
pai não é uma pessoa de muito diálogo.
[...] moderadamente autoritário. Esse é o jeito dele, no trabalho,[e]
em casa também. Mas no trabalho ele se destaca: ele é o chefe dele,
o chefe do escritório e todos têm que se adaptar.
93
Ao defini-lo como pessoa “moderadamente” autoritária, denota
preocupação em preservá-lo de colocações que possam desmerecê-lo. Ao tentar
atenuar a maneira de ser do pai, deixa a impressão de que procura preservá-lo do
julgamento do outro. Como podemos observar, ao ouvi-la falar da pouca abertura do
pai ao diálogo:
Olha, a impressão que eu tenho é que não [é muito aberto a
diálogos]. E sei que ele conversa, não é aquela pessoa assim fria, é
até aberto ao diálogo, mas acho que o que acaba prevalecendo é a
opinião dele, a menos que a pessoa consiga convencê-lo.
Ao que deixa transparecer, o pai é uma pessoa exigente, que cobrava
desempenho escolar, notas e estudo das filhas. Essa postura demonstra ter se
modificado quando ela se mudou de cidade para cursar Medicina. Este fato pode ter
contribuído para transformar a cobrança pelo bom desempenho escolar em
estímulos e palavras de apoio. Essa modificação do vínculo pai-filha parece dever-se
mais à postura do pai do que à maneira de Beatriz lidar com essa relação. A
transcrição abaixo, o mais literal possível, permite perceber a mudança de
comportamento do pai, da qual ela, a filha, até o momento da entrevista, não parecia
ter-se dado conta.
Em toda a minha vida até o colegial [tinha cobrança], na faculdade foi
uma coisa mais distante, porque eu saí da minha cidade e vim
estudar pra cá. Aí ele não tinha acesso ao meu dia-a-dia. [...] Acho
que essa cobrança, pela distância, esmoreceu um pouquinho. [De lá
pra cá ele parou de agir assim] realmente não tinha essa cobrança.
Era eu que ligava “ai, não consigo fazer”, e ele: calma, você vai
conseguir, você sempre conseguiu, se tranqüiliza um pouquinho,
estuda um pouquinho mais, se organiza.
Ao ser indagada sobre essa transformação, Beatriz não hesitou em
admitir que somente a percebera no momento da entrevista.
Ainda que demonstrasse cautela em suas palavras, ao falar do pai, não
deixou de colocar a maneira autoritária dele de agir em relação às pessoas de seu
ambiente de trabalho.
Olha, eu não tive muita chance de observar ele trabalhando, mas vou
contar da época da minha adolescência, da época que eu morava na
casa deles, né? Ele é meio tirânico, ele é o chefe. Então as coisas
giram em torno dele, ele é uma pessoa que impõe autoridade.
[...] moderadamente autoritário. Esse é o jeito dele no trabalho, em
casa também, mas no trabalho ele se destaca. Ele é o chefe dele, o
chefe do escritório e todos têm que se adaptar.
94
Apesar de reconhecer essa característica do pai, suas palavras
procuram sempre amenizar a visão que ela tem dele. Constantemente utiliza
expressões que marcam uma falta de certeza pessoal, como se percebe nas falas:
“eu não tive muita chance” e “moderadamente”. Talvez o modo de dizer
“moderadamente” para se referir à maneira autoritária do pai caracterize o receio de
Beatriz em julgá-lo, fato que pode ser observado quando emite opiniões que trazem
algum julgamento em seu conteúdo. Essa característica receosa de Beatriz, na sua
maneira de se colocar, de opinar sobre as coisas e as pessoas, demonstra ser um
traço marcante em sua vida, em outras esferas e outras relações além da relação
com o pai.
Em relação à atuação profissional do pai, destacam-se a convivência
com os superiores e com os subordinados e a relação dele com a ambição por
crescer.
Olha, acho que com os funcionários dele, com os sócios, ele
geralmente se impõe. Com os chefes, que dele seriam os clientes,
eu acho que ele é um pouco mais flexível. Ele sempre fala que
negociou uma coisa ou outra. Ele acaba sendo a cara do escritório.
Acho que às vezes, pra não perder cliente, ele acaba cedendo, de
acordo com essas pessoas.
Eu acho que ele é mais ambicioso que eu; por ele eu estava
trabalhando por conta própria, no consultório, ia ser chefe de tudo o
que eu conseguisse pegar.
A impressão que fica é que ela não corresponde integralmente à
expectativa do pai, porque não exerce a profissão como liberal, em consultório.
Talvez esse sonho do pai esteja relacionado à sua maneira de enfrentar o mundo,
ou seja, para ele o caminho para o sucesso está em ter uma independência total de
chefes, horário, circunstâncias favorecidas pelas profissões liberais, que é a opção
profissional dele. (Ver Apêndice D).
Para Beatriz, inicialmente, esses fatores citados pelo pai como
essenciais para o sucesso liberdade de horário e remuneração, foram
favorecedores da escolha profissional dela. No entanto, parece que nem ela tem
consciência de que sua escolha não está ligada ao que inicialmente a atraíra: a
profissão liberal. Ela acaba preferindo ser contratada, ter um chefe a quem se
submeter, a ter seu consultório particular.
95
De certa forma ambígua, ela parece não se importar com a visão
idealizada do pai sobre ela na esfera profissional, mantendo com ele uma relação de
proximidade e trocas.
A gente se dá bem, conversamos muito; é uma espécie de
conselheiro: quando eu tenho algum problema no trabalho, não que
envolva as coisas da rotina do trabalho, avaliar paciente, e tal. Mas,
quando eu tenho algum conflito no trabalho, geralmente eu converso
com ele alguma coisa que está me incomodando. Quando é coisa
pequena, eu resolvo por mim mesma. Então, quando tem essas
situações de crise, que tem que tomar uma decisão mais importante
que não envolve só o trabalho, mas a minha vida, eu geralmente
converso com ele. Ele é uma pessoa de referência pra pedir ajuda,
seja num problema mais sério, seja burocrático, sentimental,
qualquer coisa, é com ele que eu converso.
Entretanto, Beatriz passa a impressão de ainda estar muito ligada a
ele, no que se refere à tomada de decisões significativas. Talvez ela não tenha
autoconfiança suficiente para decidir sem a consulta ao pai; esse aspecto é ainda
reforçado, quando se relembra a maneira como foi feita a escolha profissional e as
demais posturas que Beatriz assume na vida, como se poderá ver mais adiante.
A relação com a profissão
A escolha profissional de Beatriz demonstra não ter sido uma opção
refletida, ao contrário, dá a impressão de que foi feita de maneira meio aleatória. Os
critérios de escolha utilizados foram a necessidade de estudar e a importância da
intelectualidade. Tem-se a impressão de que ela fez a opção profissional sem a
participação direta dos pais em conversas específicas ou orientações.
Aparentemente foi uma escolha inconsciente, podendo ser medicina ou outra
profissão de estudo continuado.
Olha, no terceiro colegial, comecei a pensar no que eu ia fazer, e eu
resolvi ser médica. Não era nem um sonho de infância nem nada,
não tinha assim nenhuma vocação especial. Eu sempre quis
trabalhar em alguma coisa que pudesse estar sempre estudando. Eu
gosto de estudar e acabei escolhendo Medicina, mas sem conhecer
a profissão.
96
Ela acredita que sua opção deveu-se à influência do pai, fato que
reforça, de certa maneira, a falta de consciência de algumas atitudes que teve ao
longo de sua vida.
O vínculo de Beatriz inicialmente positivo com o pai, talvez tenha se
tornado negativo, uma vez que a relação entre eles demonstra dificuldade em
permitir à filha desenvolver-se e crescer com instrumentos para a vida. Beatriz
demonstra não se sentir “pronta” para enfrentar alguns aspectos da vida. Este
aspecto causa a suspeita de um complexo paterno positivo.
Observa-se que, em nenhum momento, ela se refere à mãe em seu
processo de escolha profissional.
Teve a influência do meu pai, porque ele é advogado. Então, assim,
a influência foi de escolher um campo de profissão liberal. Apesar do
campo da profissão liberal não ser tão bom assim, mas acho que
teve essa influência.
A entrevista denota que o pai não a auxiliou no processo de escolha
em si, ou seja, sobre as profissões, mas a orientou, segundo sua visão, no que seria
essencial na vida profissional.
Ele sempre me falou assim: “olha, procure uma profissão, uma
faculdade que te dê a possibilidade de você ter independência, não
ficar dependendo de patrão e de salário fixo, nem nada.” Então, acho
que isso influiu na escolha.
Beatriz aparenta estar ligada demais à representação do pai, pois
apresenta como característica a satisfação pelas convenções do universo Masculino,
tendo a profissão como meta e o conhecimento como base em sua vida.
A escolha profissional está relacionada à realização pessoal e também
ao sentimento de realização profissional, em termos de atuação no mercado,
rendimento econômico, ritmo de vida. Como já apontamos, a forma como ocorreu a
escolha de Beatriz passa a impressão de que ela não tem consciência de que o fator
que considera ter influenciado na escolha profissional a profissão liberal não
tem relação com sua vocação pessoal de trabalhar com vínculo empregatício.
Sendo assim, fica o questionamento: o que a teria, realmente, movido a esta escolha
profissional?
[...] acho que eu me sinto mais segura com um emprego, que me
pague, do que como profissional liberal. E eu também não tenho o
menor tino comercial, tenho assim, de cuidar da casa, carro. Acho
que por ele eu trabalharia de uma forma diferente [...].
97
A entrevista não esclarece se a opção profissional decorre de vocação
ou do prestígio que a Medicina desfruta na sociedade, pois a ênfase dada não é à
relevância do médico, mas à intelectualidade; poderia ser Medicina ou qualquer
outra profissão.
No âmbito da realização profissional, Beatriz destaca o excesso de
trabalho como um aspecto negativo do seu momento.
Não sei como responder essa pergunta, porque eu me sinto bem
situada, tenho um emprego, trabalho no que eu gosto. Meu problema
com o trabalho é que eu estou trabalhando muito. Estou mudando
um pouquinho a minha rotina pra daqui alguns anos eu poder
trabalhar menos de fim de semana, de noite, pra poder melhorar um
pouquinho a qualidade de vida. Minha a vida pessoal não está
adequada também por conta de excesso de trabalho.
Pode-se perceber, mais uma vez, a maneira cautelosa de Beatriz para
responder às perguntas. Também pode-se destacar o excesso de trabalho como
uma característica que, para ela, atrapalha sua vida pessoal. Apesar de direcionar
sua fala para o prazer profissional, parece que ainda está passando por um
processo de construção de seu caminho, mas cujo ponto não se restringe à esfera
financeira, mas também à maneira de estabelecer a rotina de trabalho.
Talvez, a relação com a figura do pai possa ter contribuído para a
maneira como ela reage no mundo do trabalho. O pai demonstra ter sido um modelo
de exigência e perfeccionismo muito presente e isso pode ter constelado esses
aspectos internamente em Beatriz. Ela apresenta o perfeccionismo e a maneira
intensa de trabalhar semelhantes ao pai. Apesar de ter consciência de que são
aspectos que estão sendo prejudiciais em sua vida pessoal, ainda não conseguiu
transformar essas atitudes. Isso talvez esteja a serviço de algo mais profundo; de um
mecanismo inconsciente.
A relação dela com o pai apresenta características de uma relação
idealizada, de forma que ele ocupe um lugar de modelo em sua vida. Assim, a
alusão ao workaholic pode ser considerada uma referência a um modelo positivo de
trabalho, apesar das críticas pessoais.
Beatriz parece não ter muita consciência de que sua opção profissional
está aprisionada ao paradigma do pai: apesar de demonstrar interesse profissional,
essa vinculação ao modelo do pai pode futuramente comprometer seu devotamento
à medicina, notadamente quanto à ambição de se projetar, como resultado de uma
opção sem muita consciência.
98
O pai de Beatriz parece ter constelado aspectos mais rígidos do
arquétipo paterno, reforçando a exigência e o perfeccionismo dela. A aparente não
percepção dos limites e defeitos do pai contribui para a fixação dela no complexo
paterno.
A relação com o trabalho
No que se refere ao posicionamento profissional, Beatriz diz adotar
uma postura democrática, relacionando-se muito bem com os colegas de profissão;
diz adotar uma postura mais democrática diante das pessoas de seu trabalho.
Eu nunca tive dificuldade de me relacionar nem com os iguais, nem
com os superiores e nem com os inferiores. Com os outros médicos
a relação é tranqüila com os da mesma especialidade; com os de
fora, às vezes a gente tem algum conflito, mas é mais pro lado
profissional, quando a gente discorda de alguma conduta com algum
paciente.
Mesmo procurando agir de maneira democrática, inclusive com os
profissionais e funcionários hierarquicamente inferiores, Beatriz diz que muitas vezes
precisa ser mais firme, necessitando enfatizar suas atitudes, às vezes, de forma
mais ríspida.
É perceptível que Beatriz se coloca para o outro de maneira receosa, o
que se sente no tom de voz e na escolha das palavras. Esse aspecto até pode
interferir na sua relação com os subordinados, justificando a necessidade de se ver
obrigada a enfatizar sua autoridade.
[...] eu particularmente, não gosto muito de impor autoridade. Então,
eu prefiro conversar e esclarecer as coisas, mesmo que eu tenha
que falar assim um pouquinho mais grosso: eu quero isso agora, é
prioridade, eu sei que vai prejudicar o paciente, então pra andar
direito tem que fazer assim.
No contexto geral da entrevista, Beatriz dá a impressão de certo
desconforto diante das questões que envolvem autoridade, que pode ser sintetizado
no dilema: ceder em demasia e correr o risco de ser desautorizada, ou agir com
rigor, podendo ser interpretada como autoritária. Seu posicionamento diante dessas
situações, principalmente de confronto com uma figura representante de autoridade,
parece contribuir para as posturas que assume, aceitar tudo ou agir de forma muito
99
severa. Tais posturas indicam um mecanismo mais próximo da “eterna menina”.
(LEONARD, 1997)
É bem provável que tal modo de ser e de agir decorra da relação
estabelecida com o pai: moderadamente autoritário e tirânico.
Normalmente, quando eles tentam impor alguma coisa que é
passível de discussão, e eu tenho uma opinião diferente, eu tento
conversar, poderia ser diferente, fazer de outro jeito. A gente tem
uma questão de vagas, às vezes tem dois chefes no pronto socorro e
você é obrigado a atender de qualquer jeito e você é obrigado a dar
uma alta que não deveria dar.
Às vezes, a gente acaba tendo que ceder. Eu não me sinto muito
confortável, às vezes, que isso aconteceu, não é um problema meu,
aconteceu com vários colegas.
Acabo ficando brava em ter que ceder em uma coisa que eu não
acho certo só porque a outra pessoa tem crachá vermelho, que é a
cor dos docentes. Então, só porque ela tem crachá vermelho ela
acha que a gente tem que fazer o que ela quer.
Nas atitudes com superiores, Beatriz não aborda muito esse aspecto,
talvez porque em seu cotidiano de trabalho, por ser médica, não exista uma relação
de chefia tão estabelecida. Nesse aspecto, o que denota certa tensão é o
relacionamento com a orientadora do mestrado, acerca do qual aparece alguma
dificuldade em enfrentar as divergências.
Voltando à relação com os colegas de trabalho e com os subordinados,
Beatriz tem muito nítida a situação particular de seu ambiente de trabalho, no
sentido de não considerar inferiores os profissionais cujo exercício estejam
submetidos aos médicos, tais como enfermeiros e outros profissionais da saúde:
trata-os como colegas. Subordinados, seriam os responsáveis pela limpeza e
técnicos de serviços em geral.
Seja como for, ela mostra-se segura no tratamento com igualdade e
respeito:
Com a equipe de enfermagem, o pessoal dos paramédicos, as
equipes de nutrição e limpeza, eu trato as pessoas, eu procuro tratar
com respeito, né? Mas costuma ser uma relação um pouco mais
distante. Mas nas relações um pouco mais próximas,
hierarquicamente inferiores, que seriam as enfermeiras, que na
verdade, elas não são inferiores, é outro tipo de trabalho, então, eu
não acabo sendo chefe das enfermeiras, chefe em relação à conduta
do paciente, no trabalho delas eu não interfiro, é uma relação um
pouquinho mais distante, mas mais próximo com as enfermeiras, as
fisioterapeutas, psicólogas, a gente acaba tendo uma relação bem
amistosa, exceto quando tem algum conflito de você achar que
100
alguma coisa tem que ser feita com o paciente e que eu não
concordo.
Em relação às crises, Beatriz apresenta divergências de atitudes e
sentimentos: não é dada ao enfrentamento para resolvê-las; algumas vezes, limita-
se a protestar; usualmente, porém, refugia-se no choro.
Eu choro em casa, não na frente de paciente e nem de chefe. Com a
minha orientadora de mestrado, aconteceu uma vez [...] crises que
são quando me aborrecem, [quando] as coisas não estão indo bem.
Geralmente eu choro quando eu estou com muita raiva. Então,
quando eu estou com raiva ou descontrolada, eu não gosto de
conversar. Mas situações extremas, assim, foram só no mestrado
mesmo e algumas vezes com meu chefe, mas não é algo pessoal
meu, mais coisa do serviço. Primeiro, eu tenho que me acalmar,
pensar direitinho o que eu vou fazer, pra depois que eu tiver mais
calma, poder conversar, porque eu não gosto de conversar quando
eu estou com raiva, porque a gente acaba sempre falando coisa que
não deve, acaba brigando, piora a situação e não resolve.
A reação de choro diante das situações de crise demonstra dificuldade
em enfrentar objetivamente os acontecimentos. O choro tanto pode ser uma válvula
de escape como uma forma mais imatura de enfrentamento da situação, diante de
medo do outro; medo em geral. Talvez a atitude autoritária do pai, que ela observa
no trabalho e também em casa, haja concorrido para inibir a postura de
enfrentamento. Sua característica marcante acaba sendo a de fuga e de não-
enfrentamento: fuga da opinião do outro; da reação das pessoas; da manifestação
de seus sentimentos.
Apesar de o choro vir associado à raiva, não parece expressá-la
positivamente, senão é provável relacionamento com o sentimento de impotência ou
de incapacidade; ao contrário, indica certa dificuldade em utilizar a agressividade de
forma positiva.
Eu não gosto de perder o controle e de estourar na frente de
ninguém, das pessoas. Às vezes, já aconteceu, de no momento, as
coisas não estavam totalmente no ponto que eu queria, de eu falar
um pouco mais ríspida. É difícil eu gritar, eu demonstrar muita
emoção. Às vezes, quando as coisas não estão muito bem, eu fico
de cara mais fechada, mas é difícil eu descontar em cima de alguém.
Eu procuro sair de perto, dar uma controlada, pra depois falar.
Só entro numa briga por uma questão profissional, só se for alguma
coisa muito importante mesmo. Na maioria das coisas menores do
dia-a-dia, eu não brigo; acabo ou relevando, mesmo não
concordando, acabo deixando de lado.
101
Beatriz não soube responder sobre como costuma se sentir diante de
promoções ou situações novas:
Olha, não sei se eu consigo responder essa pergunta, assim,
promoção, na forma como eu trabalho, não tem muita. Ser médico,
às vezes, você assume algum cargo administrativo, não tem muito
como subir de posto, de hierarquia. No caso de contratação,
geralmente é indicação pessoal ou é concurso público.
O outro trabalho eu consegui por indicação também, quando eu
trabalhei num outro hospital, nos hospitais foi sempre por indicação;
de estar eu e mais um colega. Teve um colega que a gente se
formou junto e tem muita gente que prefere ele a mim. Eu acho
engraçado isso, né? Será que ele é tão melhor que eu assim!
No que se refere à ambição profissional, diz estar buscando uma
acomodação no plano da melhoria da qualidade de vida pessoal e não demonstra
desejo de crescimento profissional muito além do que já conquistou. Esse aspecto
da ambição, como já referido, também pode estar relacionado ao modelo do pai,
presente em sua vida.
Ao que tudo indica, Beatriz ainda não desidealizou o pai. Essa
idealização ainda presente concorre para ela permanecer fortemente vinculada a ele
e quanto mais vinculada fica, mais filha permance e menos se desenvolve como
mulher adulta. A sensação é de que, apesar dos 33 anos, sente-se fortemente presa
ao pai, como se não tivesse trilhado um caminho sozinha, em outra cidade e com
atuações profissionais próprias, diferentemente do que o pai desejou para ela.
Denota possuir um complexo paterno, com grande idealização, talvez
em decorrência da postura dominadora do pai. Isso favorece a filha a permanecer
mais filha”, no que se refere às ambições na vida. O fato de ela considerar
importante o conhecimento já obtido, expressado na conquista profissional, não
enfraquece a suposição inicial, pois tais objetivos sempre foram fortemente
enfatizados pelo pai.
Meu pai sempre me falou uma coisa, o que você sabe e o que você
é, ninguém tira de você. Então, eu sempre procurei conseguir o
máximo que eu pudesse de conhecimento. Na minha profissão
conhecimento, não que seja poder, mas permite que você trabalhe
melhor e que você se destaque. Então, eu sempre procurei me
destacar com isso, foi uma influência do meu pai.
Além do modelo paterno, Beatriz alia ao conhecimento - como caminho
para o crescimento profissional - a concorrência com os demais, como parâmetro
para valorizar o êxito obtido. É o parâmetro que o pai sempre exigiu dela.
102
Como a gente foi contratada pelo hospital, a gente era em três
pessoas, duas mulheres e um homem, em igualdade de condição, e
acabou decidindo por sorteio. E aí, eu fui sorteada, não tive
problemas com isso.[...] Eu senti muita ambigüidade, fiquei super
contente porque eu queria trabalhar lá, por outro lado, fiquei
morrendo de raiva porque foi sorteio.Tanto fazia pra quem tava
contratando, sendo eu ou ele, não me contratou porque ele me quis,
mas porque eu ganhei na história de tirar o papelzinho.
[concurso] Eu passei a valorizar mais, não por diferença de
atendimento, passei a valorizar porque eu lutei e foi uma coisa que
eu passei. Fiz a prova e passei e fui melhor do que os outros.
Além do conhecimento, que várias vezes Beatriz se refere como o
caminho para superar os concorrentes, ela parece reproduzir o modelo workaholic
de seu pai, o que de certa forma pode estar criando dificuldades em sua vida
pessoal, como já foi dito.
Ele [pai] sempre valorizou essa coisa de você ser boa aluna, saber
bastante coisas, conseguir chegar na frente dos outros. Acho que
isso, de competitividade e de ser assim meio workaholic, de nunca
tirar férias, isso eu peguei um pouco dele, de ser perfeccionista, ele
cobrava muito da gente: nota, estudar, fazer tudo certinho.
Murdock (1998) destaca que o vínculo com o pai, apesar de
inicialmente positivo, como anteriormente já anotado, pode se tornar prejudicial à
filha, algumas maneiras de agir podem expressar conseqüências negativas do
acentuado vínculo com o pai. Assim, o perfeccionismo e o excesso de trabalho que
se observa em Beatriz.
A relação com a mãe
A relação com a mãe é um tema que pouco aparece na entrevista com
Beatriz. Espontaneamente, não faz referências à mãe. Quando questionada,
destaca apenas aspectos negativos do modelo que ela [mãe] forneceu em relação
às posturas diante da vida, tais como: ser dona de casa e apreciar futilidades. Outro
ponto negativo enfatizado por Beatriz, é a falta de competência intelectual que ela
atribui à mãe. Dos aspectos positivos, destaca apenas a simpatia como ponto forte
da mãe. Nas vezes em que falou dela, Beatriz usou o tempo verbal no passado. No
momento da entrevista, não foi questionado o porquê da referência ao passado.
103
Ficou a dúvida, mas consideramos a possibilidade da mãe já haver falecido, o que
poderia ter ocorrido na época da escolha profissional.
Ela era uma pessoa sem muito estudo. Então, eu acho que ela era
uma pessoa mais grosseira, ela era muito alegre, então ela sempre
ria, era uma pessoa que se relacionava fácil com todo mundo. Mas,
eu acho que ela era uma pessoa que intelectualmente era meio
limitada. Ela não conseguia se expressar muito bem, não conseguia
conversar com alguém com nível superior ao dela, precisava ser
igual a ela ou inferior intelectualmente. Aí, ela tinha esse lado da
simpatia que compensava isso, e todo mundo acabava gostando
dela. Mas era meio difícil as pessoas que tinham um pouco mais de
estudo acharem algum assunto pra conversar com ela que não fosse
novela ou coisas banais. Ela era o lado sociável do casal; meu pai é
mais anti-social.
Sempre tive um pouco de aversão aos serviços domésticos, para o
desgosto de todas as mulheres da família.
A relação de Beatriz com a mãe demonstra ter sido vivida de maneira
mais distante e negativa. Sua interação com o universo Feminino é restrita, pois
aparenta não valorizar as atitudes significativas de sua mãe, de ser sociável e
agradável. Para Beatriz, o importante está relacionado ao conhecimento e à
intelectualidade; esferas representantes do universo do Pai. Ao que tudo indica, a
desvalorização da figura materna não permitiu uma assimilação de aspectos
positivos dessa relação. Será que essas características da mãe também eram
desvalorizadas pelo pai, figura muito presente na casa?
Apesar de se considerar fisicamente parecida com a mãe e de também
ter consciência de possuir algumas posturas semelhantes às dela, em relação à
vida, como a generosidade, Beatriz, como já relatado, não valoriza a mãe.
A gente é fisicamente parecida. Sou mais parecida com ela do que
com meu pai. De personalidade, sou uma pessoa muito generosa e
acho que isso eu herdei um pouquinho dela. Só que pra mim ela
sempre foi um modelo negativo: profissionalmente, ela era tudo o
que eu não quis ser, ela sempre foi dona de casa, ela sempre tentou
a vida inteira ensinar a gente a fazer as coisas de casa, cuidar de
roupa, essas coisas que eu nunca quis aprender e tinha bastante
esse antagonismo com ela.
Mesmo quando questionada, Beatriz não apresenta sua relação com a
mãe de maneira mais profunda. Pode-se supor que esta relação mãe-filha não
proporcionou uma assimilação de aspectos positivos do universo Feminino, fato que
podemos perceber pelo discurso, que contém grande valorização do universo
Masculino, representado por seu pai e pelo campo profissional.
104
Como aspectos positivos representantes deste universo simbólico
destacamos a dinâmica de conter e de acolher. Interessante que estes aspectos tão
significativos para a profissão médica não são mencionados por ela como
importantes para sua atuação profissional. Por que não dizer, essenciais para sua
atuação profissional.
Sempre achei que aquilo não era pra mim, não era isso que eu
queria, e sempre tive assim, desde que comecei a estudar, no
colegial e na oitava série, que alguma profissão eu ia ter, que eu não
tinha que ficar dependendo de ninguém. A minha profissão pra mim
é uma conquista importante.
Apesar de Beatriz ter feito uma opção na vida de não seguir o caminho
da mãe, parece que para ela isso quase significou abolir todas as referências do
universo Feminino. Em alguns momentos, fica a impressão de que determinadas
características ou funções do universo Feminino são por ela consideradas
desprezíveis.
A relação com o Feminino demonstra se resumir ao universo das
atividades domésticas, e consideradas sem importância. Mesmo quando aponta a
maternidade não demonstra nenhum aspecto positivo, apenas destaca os
incômodos que são gerados no ambiente de trabalho como decorrência da
gestação. Ao ouvi-la, chega-se a esquecer que é uma mulher falando de outra
mulher; a gestação parece uma realidade muito distante. É fato que a mulher tem a
opção de escolha de não ser mãe, mas para Beatriz a relação com a maternidade é
muito distanciada.
Auto-imagem
Quando questionada sobre qual era a visão dela em relação à
feminilidade e à profissão, sua resposta foi semelhante a de tantas outras: “Não sei
como responder essa pergunta”. Era sua saída para muitas perguntas.
Aparentemente, a visão de Beatriz sobre a feminilidade está vinculada
diretamente ao preconceito. Ao ser questionada sobre ser mulher no trabalho, sua
resposta sempre tendia para uma explicação referente às discriminações.
105
Não sei como responder essa pergunta, porque eu me sinto bem
situada, tenho um emprego [...]
Também eu nunca sofri discriminação por ser mulher, eu nunca, pro
meu trabalho especificamente. Talvez se fosse cirurgião, uma
neurocirurgiã, ortopedista, que são áreas que a mulher ainda é vista,
dentro da medicina, ainda é vista com algum preconceito [...]
Então, eu nunca me senti desconfortável por ser mulher e médica.
Às vezes, a rotina dos plantões atrapalha um pouco a rotina da vida
pessoal.
Em momento algum, Beatriz refere-se às questões femininas como
algo passível de interesse, nem sobre o cuidar, a maternidade, o acolher. A menção
ao Feminino está sempre atrelada ao preconceito ou discriminação, fatores esses
que ela mesma demonstra diante do trabalho, quando da contratação de um novo
profissional. Sua postura é diferente diante da contratação de novas mulheres.
[...] por causa da questão de você engravidar e todo mundo ter que
cobrir a escala de plantão. Esse preconceito existe até por parte das
mulheres, inclusive eu quando estava lá, vamos ver bem, pois tinha
uma outra situação em que eu já trabalhava lá e tinha que contratar
uma outra pessoa. Porque tinha uma moça recém-casada, que
estava planejando engravidar, então, a gente preferiu chamar o
rapaz; uma questão de divisão de trabalho. Isso existe mesmo, essa
questão de preconceito. Se você tem uma escala de plantão e você
tem que escolher entre um homem e uma mulher, acho que o
homem leva vantagem nessa questão da gravidez, que durante seis
meses de licença maternidade, todo mundo acaba sendo penalizado
pra cobrir a jornada de trabalho daquela pessoa que vai ter que sair.
Mulher é mais provável de ter que sair de licença, porque de doença
é os dois, mas mulher é mais provável de engravidar e ter que sair
[...].
Essa questão de o Feminino ficar vinculado às tarefas da casa parece
ter servido de modelo negativo para Beatriz e reforçam seu apoio aos aspectos do
universo Masculino. Beatriz aparenta viver inconsciente de si mesma: age no mundo
movida para a profissão, aparentemente desconectada de desejos e buscas
pessoais, como mulher. A persona pode estar construída sobre a base profissional,
já que o universo do Feminino demonstra ser negado o tempo todo.
É provável que Beatriz esteja buscando maior aprovação do pai
cultural do que do pai pessoal, e isso pode estar contribuindo para suas atitudes de
supervalorização do universo Masculino em detrimento do Feminino.
Esta valorização do Masculino pode ser percebida na descrição da
relação afetiva com a mãe, em que Beatriz, praticamente, não a faz presente em sua
vida.
106
Ainda no âmbito do Feminino, mesmo que sua profissão esteja
centrada no cuidado com o outro, os aspectos destacados por ela na sua atuação
médica referem-se ao conhecimento, à autoridade, ao respeito por procedimentos.
Em momento algum, Beatriz apresenta sua relação com o cuidar do outro, fato
essencial na profissão médica.
É provável, que sua imagem de animus esteja muito associada ao
verbo e ao saber, características fortemente valorizadas e reforçadas pelo pai.
5.3 Carmem: uma mulher em busca?
Carmem, 30 anos, solteira, é auxiliar administrativa e cursa o último
ano de Direito. É a segunda de cinco irmãos: um homem (mais velho) e três irmãs. O
irmão, mais velho, faleceu ainda jovem. É muito comunicativa e sorridente.
Apresentou-se muito disposta e tranqüila. Declara não se contentar com as coisas
como elas são ou estão, pois está sempre em busca de novas possibilidades.
Apesar de se considerar pouco ousada, apresenta um modo de encarar a vida
diferente dos padrões familiares, aspecto este relatado por ela como sua eterna luta
contra a passividade e a introversão.
Seu tom de voz, firme e constante, parece indicar como se posiciona
diante da vida: de maneira firme, batalhadora e persistente.
A relação com o pai
Diferentemente do modo como julga ser seu pai, Carmem aparenta ser
uma mulher que batalha e luta pelos seus objetivos.
Com a mesma convicção com que luta pelos objetivos, fala com
franqueza sobre a relação com seu pai.
Nisso eu acho que não me encaixo nos padrões normais. (ri). É uma
relação muito complicada. Eu costumo dizer que sou órfã de pai vivo.
Esta fala demonstra um pouco do sofrimento presente nessa relação:
107
O meu pai é uma pessoa assim: boa, tranqüila. Não é uma pessoa
que tenha um problema muito grave como a bebida. Nunca foi
violento, não chega a isso, mas é uma pessoa muito ausente, muito
na dele, muito com os problemas dele mesmo. Sei lá eu o que
acontece, mas ele teve uma vida bastante complicada, assim de ser
alguém muito recluso no mundinho dele, muito infeliz, muito
depressivo, muito reclamão. Então, ele não se envolveu muito com a
família mesmo, do tipo quero ser pai, quero ser parte desta família,
como se ele não fizesse parte. Ele vive lá no mundinho dele.
De acordo com Carmem, a relação estaria fora dos padrões de uma
relação afetiva convencional com o pai. Esta demonstra ser uma típica relação
ausente com o pai. Diz ser “órfã de pai vivo”, o que indica a presença de uma grande
ferida, nesse vínculo.
Aparentemente, contorna bem essa ferida. A idealização, tão presente
na relação pai-filha em alguma fase da vida, não teve espaço. Carmem conviveu,
desde sempre, com uma imagem puramente desidealizada do pai; uma imagem
negativa e sem fantasias.
Carmem demonstra ter consciência de que a ausência de vínculos com
o pai se deve à maneira como ele estabelece as relações em sua vida e ao modo
como ele constrói barreiras dificultadoras. Esse padrão talvez seja comum na
família, não só com as filhas, mas também com a esposa.
Como eu cresci com um pai assim, que sempre foi alguém que
esteve longe, então eu nunca consegui estabelecer vínculos afetivos
de realmente ter um pai. E aí é difícil conseguir quebrar isso, de ter
uma proximidade. Em alguns pequenos momentos eu até consegui,
mas muito poucos, muito poucos, porque ele é alguém que é muito
distante mesmo. Apesar dos meus pais serem casados há quase 34
anos, é como se não fossem casados. Eles vivem debaixo do
mesmo teto; cada um na sua vidinha [...].
Por causa desse jeito do meu pai, muito depressivo mesmo, muito
cheio de problemas. [Esses problemas] que não são problemas que
eu consiga perceber claramente, como a bebida, [ou] se usasse
drogas, [ou] se fosse alguém agressivo, que batesse na minha mãe.
Então eu perceberia que é uma pessoa que tem problemas e que
são problemas visíveis. Mas [no caso], não são problemas tão
visíveis assim. É alguém que se fecha no seu mundo, que é um
mundo muito triste. Por exemplo, quando ele não está trabalhando,
ele não faz nada, nada na vida dele: [ele] entra, sai, senta na praça,
senta, assiste à televisão. Não é alguém que tenha uma ocupação,
um lazer.
O fato de o pai ter essa característica de personalidade tornou mais
difícil para ela a compreensão dos acontecimentos. Não tendo um nome concreto
para o problema, como uma doença diagnosticada, um vício ou uma atitude violenta,
108
a maneira de se relacionar com ele ficou sem um enquadramento, na visão de
Carmem. Fica a impressão de que uma explicação sobre a maneira de ser do pai
tornaria mais fácil a relação com ele, ou talvez, com os sentimentos gerados nela,
por ele.
Apesar dessa relação pai-flha se apresentar mais negativamente,
Carmem demonstra ter conseguido construir as bases para sua própria vida, bases
essas que costumam ser apresentadas pelo pai ou por seu representante. Em
decorrência da ausência do pai, Carmem buscou tais estruturas no pai cultural ou
social. Isso pode ser percebido no emprego que a mantém, que é uma função
pública. O ‘pai’ a quem Carmem consegue recorrer é o pai “órgão público aquele
que fornece as regras e a forma de agir e determina o quanto irá ganhar. E isso é
algo garantido e seguro!
A ausência do pai costuma gerar um sentimento de abandono e tal
sentimento pode favorecer a sensação de carência e de vulnerabilidade na filha. Ela
precisa encontrar conforto em algum lugar. No caso, Carmem busca este conforto na
segurança profissional e, por isso, traça a sua vida em cima de solos concretos,
sempre procurando dar um passo atrás do outro; sempre com a certeza suficiente de
que as coisas sairão mais ou menos como pensou. Por isso, não ousa fazer nada
além do que consegue sustentar sozinha, já que não tem com quem contar nem
financeiramente e nem afetivamente.
Eu vou, mas eu vou dentro da minha coisa mais trabalhada. Eu fui
me estabilizando no trabalho, pra depois fazer a faculdade. Saí de
casa, fui morar com uma amiga. Depois passei um bom tempo e fui
morar sozinha. Então, eu faço as coisas muito planejadinhas; eu não
tenho aquela ousadia.
A percepção do pai no trabalho é semelhante àquela que Carmem tem
dele em casa: passivo e distante. Como o pai não é uma pessoa presente nas
relações familiares, também não se tem muitas informações sobre a maneira como
ele atua no trabalho. As impressões de Carmem são tomadas a partir de suposições
e da experiência que ela tem com ele como pai.
É meio difícil porque eu não tenho relatos, mas eu imagino que ele
seja muito na dele, não que ele seja alguém briguento, eu imagino
que ele seja alguém que fique muito na dele, eu imagino que como
ele tem um padrão meio de passividade, meio depressivo, eu
imagino que ele também leve isso para o trabalho dele. Mas, como
eu não tenho relatos.
109
A postura do pai em relação à vida é um ponto significativo para
Carmem. A forma como ele passivamente aceita a condição em que está imprime
para ela a sensação de que ele pouco questiona.
É, acho que essa coisa dele não buscar, não procurar, de não
procurar um novo trabalho, achar que tudo está bom. Acho que a
frase perfeita pra ele seria essa “tudo está bom, tudo está bom”.
Essa maneira aponta para o modo como ele reage às pessoas e às
situações: com passividade. O fato de ser pedreiro nos faz pressupor que receba
ordens de quem o contrata. Ao que parece, o pai de Carmem não questiona ou se
incomoda com nenhuma situação: tudo para ele, aos olhos dela, parece estar bom.
Fica a impressão de ser uma pessoa apática, depressiva, indiferente ao mundo.
É, não vejo meu pai querendo melhorar, eu imagino que ele viva lá
fazendo o servicinho dele, mas isso também é uma suposição.
Carmem fala do pai como alguém de fora de sua vida; a impressão é
de que existe, realmente, muito pouco afeto entre eles. Ele é para ela um estranho!
Talvez ela o seja para ele também!
A maneira como o pai se relaciona com o mundo, com as pessoas e
com a profissão ausente e passivo, parece ser um ponto contra o qual Carmem
luta dentro de si, para fazer diferente. Aparenta uma luta constante para alcançar
novas possibilidades, como acontece com a faculdade de Direito.
A relação com a profissão
Carmem, de todas as mulheres deste estudo, é a única que atua em
uma função diferente daquela em que está em formação.
A maneira como se deu a escolha profissional de Carmem o Direito
está relacionada com a vida que tem: sem apoio familiar, solitária. Como já
trabalhava, começou a questionar a vida que estava levando e a desejar mudanças,
crescimento! Parece não se contentar com as coisas como estão.
Então, eu pensava no Direito, mas não muito especificamente nele.
Porque eu tinha aquela coisa de que era meio uma ilusão, e querer
estudar em uma universidade pública. Eu sabia que eu queria
estudar algo dentro de humanas. Ah, queria estudar na universidade
pública, que a minha irmã estudava e que eu achava um negócio
110
assim, muito bonito. (ri) Mas, nesta universidade, os cursos de
humanas são muito restritos e não tinha nada que era muito a minha
cara. Era assim, ah, economia era o mais próximo do que eu quero.
Aí eu fiquei tentando prestar vestibular, aí passava na primeira fase e
não passava na segunda.
Com a dificuldade de ter que estudar e trabalhar e pensar em qual
carreira seguir, Carmem nos transmite a idéia de que sua vida é construída passo-a-
passo, solitariamente, sem o apoio ou a participação de alguma pessoa de sua
família. Nem mesmo a irmã mais nova, que já fazia faculdade, parece não ter
participado em nada. Também fica a dúvida se Carmem permite que alguém
participe de sua vida! Será que diante da introversão, que diz ter, ela também não
criou um distanciamento das pessoas que poderiam com ela compartilhar? Isso é
semelhante à atitude do pai diante das pessoas e da vida!
Por outro lado, pensando nessa família como um conjunto de pessoas
que vivem sob o mesmo teto mas não compartilham dos momentos, talvez seja
possível que ela não tivesse oportunidade e nem abertura para desejar dividir
alguma coisa com alguém.
Por ter que tocar a vida sozinha, financeiramente, a escolha da
profissão foi sendo construída ano a ano, com conversas no ambiente de trabalho e
reflexões individuais sobre o caminho que desejava seguir.
Aí teve um ano que eu prestei Direito em uma universidade
particular, mas aí eu não tinha condição de pagar ainda. Mas aí eu
fui construindo esse meu gosto pelo Direito. Aí, as coisas foram meio
que coincidindo, pois eu consegui passar no vestibular, ao mesmo
tempo que consegui uma promoção no emprego. E aí, quando entrei
no curso eu vi que era aquilo mesmo que eu queria. Eu me encaixei
na cara do curso e vi que Economia tinha muita matemática e eu não
ia gostar mesmo. Eu acho que eu encontrei o meu caminho.
Não, acho que teve mais influência do pessoal do trabalho mesmo.
Na época eu conversava com algumas pessoas, porque daí eu
passei em letras na universidade pública, direito na particular, aqui, e
em outra pública, em Direito, fora daqui. Aí eu fiquei sem saber pra
onde eu ir! (ri) Aí, fui conversar com algumas pessoas, com alguns
procuradores da prefeitura e aí eu vi que realmente, vou fazer aqui e
vou fazer Direito. Mas acho que a influência foi mais do pessoal do
trabalho mesmo.
Eu tinha essa vontade estudar e fazer faculdade, mas o Direito foi
uma coisa minha mesmo.
Essa questão familiar e a aparente solidão para a escolha não
demonstram ter sido um problema. Talvez em função de ter crescido em uma família
sem apoio, Carmem parece ter desenvolvido dentro de si o desejo de crescimento. É
111
muito presente em sua entrevista essa fala de: “não ficar sempre na mesma”, “de
querer crescer”. Assim, seu desejo fica expresso:
[...] era mais uma vontade de crescer mesmo, de crescer
profissionalmente, de não ficar sempre numa mesma situação. No
meu trabalho tem muito disso, as pessoas entram e sentem a
estabilidade e vão passando e as pessoas vão ficando. Lá fora o
mercado é muito complicado, então vou ficando por aqui mesmo; e
eu não queria ficar numa coisa só o resto da vida; eu quero buscar
um outro caminho.
O discurso de Carmem sobre a realização profissional transita pela
questão de ser mulher e as dificuldades no trabalho e pelo desejo de advogar e dar
aulas. No entanto, por ser essa uma carreira liberal, Carmem acredita que terá de
optar pelo caminho já conhecido, não podendo dar asas a esse sonho seu. Acaba
por não conseguir se arriscar em um caminho novo.
Eu gostaria muito de advogar. Eu acho a vida de advogado muito
interessante, muito legal. Mas eu acho que no começo, eu acho que
isso não seria possível por uma questão financeira. Para você
advogar, eu imagino assim, se eu fosse e abrisse uma portinha, um
escritoriozinho, é algo muito difícil de conseguir sobreviver, porque
você tem ‘troscentos’ advogados aqui, pessoas famosas. Então,
seria algo que deveria construir aos poucos. Não é algo que poderia
ser da noite para o dia. Então, eu prefiro uma carreira pública que me
dê algum sustento, até para eu fazer coisas pouco maiores. Tenho
um gosto por essa vida acadêmica, dar aulas.
Como já afirmamos anteriormente, a carreira pública consegue
fornecer as bases para sua vida. Conforme sua lógica, não é possível desconsiderar
a necessidade financeira e a estabilidade que a carreira pública oferece, já que não
pode contar com ninguém para auxiliá-la em sua jornada.
Assim, quero estudar pra um concurso, preciso estudar pra concurso
até para poder sair de onde eu estou. Pode até ser que eu passe
num concurso, fique superapaixonada trabalhando com aquilo. Mas,
eu tenho essa vontade de advogar, fazer um mestrado, dar aulas.
Acho que têm muitos caminhos pra seguir. O direito tem muitos
ramos. Só não gosto dessa coisa muito cômoda que as pessoas têm
dentro de carreiras públicas; acho isso meio desanimador.
O desejo de sair da condição em que está, da profissão de auxiliar de
Secretaria demonstra ser muito forte; um desejo grande de ousar por novos
caminhos. A impressão que fica é que se Carmem tivesse tido oportunidades, não
teria deixado passar nenhuma. Por outro lado, ela deixa claro seu receio e
dificuldades para ousar. Esse receio pode estar relacionado ao modelo, tanto do pai
quanto da mãe, de permanecer sempre na mesma situação, sem questionar nada e
112
sem buscar novos caminhos. Ao mesmo tempo em que o desejo por novas
possibilidades brota internamente em Carmem, fica a impressão de que ela parece
estar identificada inconscientemente com a passividade, tanto do pai quanto da mãe.
No entanto, sua fala aponta para uma explicação consciente sobre o
que acontece em sua vida, aparentemente, em função dessa situação familiar.
É lógico que eu acho que na minha vida as coisas são muito lentas,
muito demoradas; [é preciso] todo um investimento. Tem pessoas
que conseguem as coisas mais rápido; [isso] é o que eu consigo
fazer. Não consegui acelerar mais do que isso. É que tem pessoas
que estão dentro de uma outra condição. Deve ser gostoso também,
pessoas que começaram a estudar mais novas, [que] tiveram uma
estrutura de família, [que] não precisaram trabalhar, que já ganhou
um escritório do pai, que já fez vários intercâmbios no exterior.
Então, eu acho que isso é gostoso; ter todas essas facilidades.
Porque aí realmente você tem todo o incentivo para sua carreira. No
meu caso é mais trabalhoso, é bem mais trabalhoso.
Carmem parece contar apenas consigo mesma para atingir seus
objetivos, sem poder esperar pelo apoio afetivo da família. Mas fica a dúvida se
também ela não contribui para esta situação: ao não procurar apoio nas pessoas,
acaba vivendo a sensação de um percurso mais penoso e difícil. Mas, apesar de
tudo, demonstra não desistir diante de todas as dificuldades que tem pela frente. É
perceptível a seguinte ambivalência: por um lado, uma atitude conscientizada
sobre a situação; por outro, demonstra ter uma defesa psíquica inconsciente. A
defesa entra de forma a não permitir que Carmem perceba sua própria acomodação.
Os pais acabam ficando com a passividade dela, projetada neles.
É mais a persistência mesmo. No caso de passar no concurso, eu
sei que vai dar muito trabalho, que vou ter que estudar muito, me
disciplinar. Persistir.
A escolha profissional parece estar centrada na possibilidade de
transformação e crescimento e também numa realização profissional.
A relação com o trabalho
Na relação com a profissão, vamos enfatizar a função atual que está
exercendo auxiliar de secretaria, e alguns apontamentos que faz sobre o ramo em
que deseja atuar.
113
Na atuação como auxiliar de Secretaria, Carmem destaca que é
preciso uma postura equilibrada entre a ação e a submissão; um jogo de cintura.
No meu caso específico, de eu ter que secretariar, eu tenho que ser
uma pessoa educada, gentil, eu não posso bater de frente porque
isso não cabe na minha função. Mas, ao mesmo tempo, eu não
posso deixar a coisa virar uma bagunça. Então, eu tenho o tempo
todo que ficar tentando esse jogo de cintura, não ser muito rígida e,
ao mesmo tempo, não ser tão doce; tem que ficar naquele meio-
termo.
Mas, quando questionada sobre a atuação no ramo do Direito, destaca
outro posicionamento necessário.
É uma coisa interessante, eu vejo: ah, cada pessoa se coloca de
uma forma. O direito, ele tem uma posição muito masculina, tem uma
presença masculina muito grande.
Você tem que se colocar. É isso que eu entendo! Não pode ficar
assim muito suave, eu acho que é possível não virar uma cópia de
homem, porque não dá certo. (ri)
Porque no direito você precisa ter uma posição mais forte mesmo pra
contornar as situações. O direito busca a solução dos conflitos,
busca uma harmonia e resolver o problema. Tem problemas pra
resolver, não pode ser tão etérea, você tem que ser mais presente. É
possível você ficar presente sem ser masculino, eu acredito que sim.
Carmem faz sempre comparações entre o comportamento dos homens
e o das mulheres. Apesar de parecer ficar presa a uma persona de desempenho,
mostra desejar que a mulher assuma um caminho feminino. Isto é, diante de tarefas
que possam requisitar atitudes masculinas, Carmem costuma relevar a maneira de
fazer e agir femininas.
Dá pra ser feminina, eu acredito que é possível. A força feminina é
uma coisa diferente, não tem que ficar imitando o jeito de falar, o
padrão de voz.
Interessante o destaque de Carmem para a persona e para a alma da
mulher. Ela ressalta a confusão que muitas vezes ocorre no âmbito da ação entre
ser mulher, feminina, e o que é da esfera de ação do animus, autônoma, julgadora e
mais inconsciente.
Sobre sua postura com os subordinados, apesar de não ter alguém
diretamente subordinado a ela, Carmem se diz ser tranqüila nessas relações. Apesar
disso, aponta o desconforto diante da necessidade de fazer imposições. A
justificativa que lhe ocorre para isso é sua própria impaciência em lidar com a
limitação do outro.
114
Acho que é uma coisa tranqüila. Tento fazer de uma forma tranqüila,
mas eu não gosto muito das coisas muito impositivas. Talvez porque
eu tenha um pouco de [...] não muita paciência com algumas
limitações. Tem algumas pessoas que quando a gente fala alguma
coisa elas não entendem o que você está falando.
Às vezes eu percebo que a pessoa não fala a mesma linguagem que
eu. Aí, às vezes a comunicação fica um pouco complicadinha. Ah eu
não sei se eu deveria ter mais paciência, ter mais tolerância. Às
vezes fico meio incomodada de eu não ser muito paciente, de
explicar.
Carmem se diz sentir incomodada não com a limitação do outro,mas
com a sua própria impaciência para com o outro.
Tenho que trabalhar um pouco esse meu lado de tentar ser mais
paciente e compreensiva. Eu tenho uma cobrança desse meu lado,
do meu trabalho, e quando preciso que ela [funcionária] me ajude a
ajuda, dela [funcionária] é um pouco limitada. Tenho que ter um
pouco de tolerância para perceber que ela [funcionária] pode me
ajudar até certo ponto.
Parece que o incômodo é grande a ponto de gerar uma cobrança
interna. Temos a impressão de que Carmem apresenta uma natureza mais assertiva
no contato com as pessoas. Será que existe uma cobrança interna de ter que agir de
modo diferente de seu jeito mais assertivo, por não seguir o padrão vivido pelos
pais? Ou será que a maneira introvertida de ser a faz questionar, a todo o momento,
o seu modo de agir em relação ao outro?
Com os colegas de trabalho, Carmem diz ter uma boa relação. Com
alguns deles, chega a manter uma relação de amizade, além do relacionamento
profissional.
Bem, (ri) eu acho que eu me relaciono bem. Tem também alguns
conflitozinhos. Às vezes, tem as pessoas que são mais próximas que
tem uma identificação maior. Tem aquelas outras que não tem nada
a ver. Acho que dentro de um ambiente de trabalho é meio que
normal.
Faz uma observação interessante sobre a amizade:
Ah, tem algumas pessoas que até eu crio alguns vínculos de
amizade, mas são poucos. Não são a sua maioria. A maioria a gente
acaba tendo um relacionamento mais tranqüilo, porque tem um
pouco disso também. Porque quando são colegas em que você tem
um relacionamento superficial é mais fácil você manter um ambiente
tranqüilo, não entra muito nos conflitos, a não ser que seja uma
pessoa muito insuportável, mas se não, é possível conviver bem.
Agora, para se ter uma amizade, um vínculo mais forte, isso dá mais
trabalho. Isso, são poucas pessoas que eu consigo estabelecer este
vínculo.
115
Fica a impressão de que, apesar de dizer que se relaciona bem, e isso
transparece na entrevista por sua desenvoltura e simpatia, Carmem sente receio de
maior proximidade, de vínculos; soa como uma ameaça à segurança que ela
estabelece para si. Talvez se assemelhe ao pai, no que se refere ao distanciamento
das pessoas.
Com a chefia, ao que tudo indica, Carmem transita bem. O fato de ter
vivido muitas experiências com chefes parece ter-lhe fornecido jogo de cintura e
habilidade para lidar com as diferenças existentes entre as pessoas, no caso, as
figuras representantes de autoridade.
Ah, já mudei muito de chefe e aí cada chefe tem uma personalidade
e a gente vai meio que aprendendo a lidar com cada um deles. Hoje,
eu acho que eu estou mais tranqüila. O chefe que vier eu vou
conseguir trabalhar. Assim, hoje eu tenho um chefe muito legal,
muito bacana. Então, a gente não tem problemas. A maioria das
pessoas ali não tem problemas em relação a ele. Nós já tivemos
chefes bem chatinhos e é mais complicado. Mas, aí, a gente tem que
pegar o lado mais profissional mesmo. Quando se tem um chefe
muito complicado, autoritário, algo mais nessa linha é difícil. É difícil
lidar com chefe muito autoritário.
A dificuldade encontrada nessa relação demonstra ser com o
autoritarismo, o que a leva criar uma estratégia para se relacionar com o problema.
O incômodo relatado diz respeito à tensão gerada pelo clima no ambiente de
trabalho.
Não é agradável, é uma sensação de ficar o tempo todo em alerta,
atenta. É uma tensão porque tem que ficar o tempo todo em alerta,
porque, se eu fizer isso, se eu der uma escorregada, pode ser fatal.
É bastante incômodo, mas, aí, é aquela coisa de tentar não bater de
frente, dependendo da pessoa não tem condições mesmo e tentar
trabalhar da melhor forma possível, mas é um pouco de se viver com
um jogo de cintura também, de não se deixar desrespeitar
totalmente, mas que é uma tarefa bastante difícil quando assumida
por alguém muito autoritário. Você tem que se colocar de uma forma
com que a pessoa não te desrespeite completamente, porque se
você deixar passam por cima completamente, mas também não
pode ser tão submissa. Mas dependendo do chefe é melhor manter a
maior distância possível, pra não ficar batendo de frente.
Parece que a distância, muitas vezes, é adotada como melhor medida
diante do autoritarismo.
Era um mal-estar, porque quando você tem um chefe autoritário você
fica numa tensão. Eu ficava tensa e procurava me afastar o máximo
possível pra não entrar naquele mundo tenso.
116
Então, eu conviver com uma pessoa muito explosiva, eu não gosto,
eu tenho realmente muita dificuldade. Sobre isso eu prefiro ficar mais
afastada.
Em relação à chefia, seu maior problema foi relativo à desonestidade
de um chefe. Incomodava-lhe o fato de que, mesmo agindo honestamente em suas
funções, acabava por contribuir com a desonestidade dele.
Meu chefe de hoje procura fazer as coisas pra melhorar, coisas bem
feitas.
Mas, quando eu trabalhava com a pessoa desonesta, eu estava
trabalhando junto, mesmo que eu não trabalhasse com
desonestidade, meu trabalho estava ali junto.
Nas situações de crise, Carmem parece adotar a mesma postura de
quando se encontra diante de forte autoritarismo: a distância.
É até uma reação de não entrar em conflito mesmo. É até uma coisa
que eu me cobro, de não ser tão passiva. Mas, em alguns
momentos, acho que eu precisei ser um pouco assim. É que nem
nessa situação em que eu não ia brigar com o meu chefe, em que
ele tinha esse comportamento. Mas graças a Deus eu saí de lá
depois de algum tempo.
Ela considera esse distanciamento como uma forma de passividade,
que é sentida como uma reação negativa. Carmem parece desejar reagir aos
conflitos de maneira mais ativa. Esse aspecto da submissão pode estar relacionado
à identificação com seu pai, que também é passivo e aparenta reagir assim às
situações da vida. Talvez tenha faltado a Carmem uma referência segura, que
pudesse constelar tais características em sua psique. A diferença clara que existe
entre ela e o pai é que Carmem demonstra ter consciência de que poderia reagir
mais ativamente a seu favor em algumas situações.
Nos casos de promoção, Carmem relata um sentimento de prazer
relacionado à conquista de um novo lugar. Ainda que sinta alguma insegurança, este
sentimento não é abalado pela satisfação dessa conquista.
Ah, é muito gostoso, legal. É uma forma de reconhecimento, e as
pessoas são reconhecidas, às vezes, por outros valores [ali]; por
questões políticas. Ali é muito difícil crescer. Há exceções! Quando
consigo alguma espécie de promoção, eu acho legal, porque não sou
vinculada a ninguém; não consegui isso devido a interesses. É lógico
que no começo tem aquelas dificuldades normais, de ter um desafio
maior, de ter que se reorganizar, de perceber coisas que precisa
mudar. Por exemplo: estava acostumada dentro disso, agora vou
fazer uma coisa que me exige mais, então vou ter que buscar esse
algo mais, tenho que corresponder, tenho que fazer jus àquilo de ser
promovida.
117
Além desses aspectos apontados, Carmem enfatiza que no ambiente
de trabalho necessita de alguma formalidade, de regras claras de comportamento.
Em sua fala, fica evidente que existe um desconforto em relação a uma maior
proximidade como contato físico, beijinhos, entre os colegas e entre a chefia. Esta
proximidade, também se estende a intimidade de conversas.
Eu gosto de certa formalidade, digamos assim; não aquela
formalidade de ninguém poder conversar, aquela coisa exagerada de
que ninguém pode conversar. [...] Eu acho que deve existir um clima
gostoso, em que as pessoas devem conversar, dar risadas, contar
como foi o fim de semana, os homens contarem do jogo de futebol...
É gostoso tudo isso, tomar cafezinho, mas dentro de uma certa
formalidade de ambiente de trabalho. Quando fica aquela coisa muito
informal, as relações ficam complicadas. Eu imagino assim, se eu
pudesse falar tudo para o meu chefe, eu também teria que ouvir dele
tudo o que ele quisesse me falar.
Acho que tem de preservar esses limites, de procurar conviver bem
com o meu chefe, mas dentro de um tratamento mais respeitoso que
eu espero também que ele tenha comigo. São pequenas coisas, é o
estilo de cada um. Tem pessoas que adoram ficar dando beijinhos,
acho legal isso, mas não é algo meu, de ficar beijando as pessoas;
digo bom dia, tudo bom e fico mais na minha.
Que necessidade será essa de criar uma persona mais fortalecida?
A relação com a mãe
A relação de Carmem com a mãe quase não aparece em sua
entrevista. A impressão é que Carmem prefere não tratar dos laços familiares. Ela
fala bastante da mulher, dos papéis sociais a serem desempenhados, mas sobre os
laços afetivos, parece não desejar entrar em detalhes.
No meu caso, a minha mãe também, por ela ter os problemas dela,
ela acabou adotando essa postura mais de não brigar, de ser
tranqüila, de ser mais tolerante. Então, isso é muita tolerância para o
meu gosto. Eu acabo reproduzindo muito desses padrões de ser
passiva, de ser tolerante. Ao longo da minha vida, eu fico tentando
quebrar esse comportamento.
A percepção que diz ter de sua mãe causa um incômodo, talvez por ter
consciência da semelhança que acaba reproduzindo nos seus próprios padrões de
comportamento.
118
Talvez a ferida afetiva seja muito profunda e não tenha sido possível
abordar aspectos relacionados à família numa entrevista que se propunha a
investigar o mundo do trabalho. Em sua fala, é muito comunicativa, sorridente e
disponível, mas a impressão, ao final, é de que o mundo das relações mais íntimas é
difícil de ser abordado. Aparentemente, isso pode estar relacionado ao vínculo
distante com a mãe, com as irmãs e com o pai.
A relação com o Feminino parece ser ainda muito primitiva, no sentido
de estar relacionada a uma persona de mulher, cobrada pela sociedade e talvez
desejada por ela, em alguns aspectos.
Eu acho que cada mulher vai meio que buscando o caminho dela pra
ser reconhecida, tem aquelas que vão ficar batalhando mesmo,
procurando se empenhar, procurando fazer o melhor possível no seu
trabalho para que o seu trabalho seja reconhecido, mas tem também
essa outra vertente que talvez muitas mulheres acabam usando.
Tem algumas que eu olho e penso: nossa, essa usa uma
feminilidade não muito legal, assim, [de ter] até as roupas
infantilizadas, de usar uma roupa mais menininha, essa coisa de
mostrar a sedução sempre. Ah, não sei explicar.
A sedução é um dos aspectos do Feminino que chama muito a atenção
de Carmem; fato marcante em sua fala. A sedução é vista por ela de forma crítica,
talvez sob um olhar mais de seu animus. Ainda que tenha fundamento sua
colocação a respeito da sedução, é cabível questionar onde fica a sedução dela em
sua vida? Parece que não faz parte de sua vida!
Considerando a maneira como Carmem estava vestida para a
entrevista calça jeans, camiseta e uma jaqueta e tênis, não havia como aparecer
nenhuma característica mais feminina do seu corpo. Apesar de ser magra, o corpo
parecia ficar escondido por entre as roupas. Chama a atenção a repetição do tema,
quando questionada sobre a mulher e a feminilidade:
Eu acho que é cobrada uma estética feminina e, às vezes, quando
uma mulher, ela se impõe um pouco mais, fala um pouco mais alto,
tem uma presença um pouco mais forte, não tão dentro dessa
imagem de passividade que se espera dela, às vezes, a gente ouve
assim: ah! mas o que ela está se achando?
Eu acho que os homens, na maioria das vezes, não todos, eles
podem ocupar mais espaço nessa coisa de serem mais impositivos,
de terem uma liderança maior dentro da equipe. E as mulheres, às
vezes, tem essa dificuldade de se destacar pela competência. Eu sei
o que estou fazendo. Muitas vezes, eu, a gente tem que ter um
pouco esse jogo de cintura.
119
momentos em que fica a impressão de que Carmem talvez deseje
ser um pouco essa mulher mais feminina, mais sedutora. Pode ser que, em função
de ter que tocar a própria vida desde cedo e sozinha, Carmem não tenha tido a
oportunidade de explorar um pouco esta face da sua feminilidade.
Outro foco que ressalta sobre a mulher é em relação ao preconceito.
Sua fala sobre ser mulher fica restrita à sedução e ao preconceito ainda enfrentado
na sociedade. Interessante notar que, entre tantas possibilidades sobre o Feminino e
a mulher, Carmem destaca um pólo da fragilidade o preconceito, e um pólo da
força feminina a sedução.
É, eu acho que: nossa, existe um preconceito muito grande contra as
mulheres. Acho que nós já evoluímos muito, já crescemos muito
dentro desse conceito de feminino, da participação da mulher no
mercado. Acho que tem ainda muitos problemas, mas acho que é
possível administrá-los. Por exemplo, dizer que a mulher é
discriminada e não vai conseguir nunca naquele ambiente de
trabalho ser reconhecida? Tem muitas pessoas que são
reconhecidas, que são diretoras. Acho que é possível ser
reconhecida, com algumas dificuldades ainda, com certeza.
Focaliza boa parte da entrevista no apontamento da persona da mulher
sedutora, magra, arrumada, maquiada e em idéias ou visões que sugerem algo
diferente disso. Por exemplo:
[tinha] um email do Arnaldo Jabor, em que ele fazia umas críticas
horríveis àquele padrão da mulher siliconada, com aquele corpo
escultural, que ele colocava que aquilo era algo tão artificial, que
afastava as pessoas da realidade, e os próprios homens ficavam até
amedrontados diante daquele padrão feiticeira. Então, a sociedade
coloca isso de que você tem que ser máquina, com um corpo
maravilhoso e nós temos cabelos brancos, temos celulites. A gente
está num mundo concreto e a mídia, às vezes, nos coloca assim [...]
que a gente não pode envelhecer, então, a gente tem uma carga
pesada de discriminação.
É, tinha um desenhista de sapato que dizia que ele gostava de
desenhar sapatos bico fino, salto bem alto e bem fino, porque
quando uma mulher está numa reunião em salto altíssimo, ela está
dominando a situação. Mas, por exemplo, mocassim, ele não
desenha. Porque mocassim é pra aquelas mulheres que estão
sempre correndo e que precisam levar os filhos pra escola e que,
então, é muito sem graça. Mas, a nossa vida é do mocassim.
Imagina que a maioria das mulheres vai poder ficar andando pra lá e
pra cá com um salto superaltíssimo, participando de altas reuniões. A
nossa vida é mais terrena.
120
Em momento algum da entrevista, Carmem menciona se viveu
situações marcadamente preconceituosas ou sofreu estereotipias. Mas fica a
impressão de que isso é algo mais profundo que apenas um discurso da mídia.
A mulher tem que ser a sedutora, que está sempre bem. De repente,
é mulher que tem filho e ele está doente e tem que acudir. Ela tem os
problemas do dia-a-dia e, às vezes, a mídia exige um
comportamento que é muito difícil alcançar aquilo que está sendo
cobrado.
O que leva Carmem a questionar tanto a beleza, os papéis sexuais, o
corpo perfeito, a estética pura? Que mulher dentro dela questiona isso?
Ela parece não se conformar com algumas “exigências” da mídia e das
pessoas em relação às mulheres e à estética perfeita que é cobrada hoje. Faz ainda
algumas ponderações sobre diferenças de cobrança para homens e mulheres,
mesmo nos dias atuais.
Como se você não pudesse ficar descabelada, ter olheiras. Tem um
pouco dessa imagem na sociedade; tem que ser tudo perfeito. A boa
mãe, a boa esposa, a boa dona de casa, a boa profissional; muitas
tarefas pra uma pessoa só. Ser perfeita, dar conta de tudo. Talvez
para o homem essas cobranças não sejam tão fortes. Ele tem, sim,
muitas cobranças da sociedade, mas ele pode ter cabelo branco, ele
pode chegar em casa e ficar assistindo jogo largado no sofá. A
sociedade aceita mais esse homem mais largado. Mas nós não
podemos ficar largadas; a casa não pode ficar largada porque senão
“nossa!”, os filhos não podem ficar largados, porque senão “nossa!”
Eu acho que tem uma cobrança um pouco maior apesar de tudo o
que nós já crescemos e evoluímos.
Será que existe a diferença dessa forma ou é ela quem acaba sentindo
assim?
Auto-imagem
Carmem aparenta ter certa consciência sobre si mesma.
Eu acho que com o passar do tempo a gente vai aprendendo
algumas coisas. Então, eu acho que eu fui saindo um pouco mais do
meu mundinho, fui conseguindo me colocar mais. Até recentemente,
veio uma pessoa nova no trabalho e eu consegui falar algumas
coisas novas pra ele “ah, não é assim, é assado”.
É, hoje eu consigo me colocar mais, consigo mais dizer as coisas
que eu penso, as coisas que eu acredito.
121
Eu acho que eu fujo um pouco dos padrões. [...] Eu acabo
reproduzindo muito desses padrões de ser passiva, de ser tolerante.
Ao longo da minha vida eu fico tentando quebrar esse
comportamento. Hoje eu acho que eu melhorei bastante, que eu
consigo agir mais, consigo me decidir, consigo correr atrás das
coisas que eu quero, de bancar as minhas coisas. Até isso de morar
sozinha, assumir um risco, o que será que vai acontecer? Hoje eu
consigo! Porque na minha vida as coisas são assim, não são dadas.
Tem pessoas que ganham um carro do pai, ganham um apartamento
ou um apoio. No meu caso, eu não consegui nada de mão beijada.
Se eu quiser ter alguma coisa eu vou ter que buscar. Mas, eu preciso
ficar brigando com a minha passividade, com a minha tendência
mais introspectiva.
Aparentemente, percebe seus limites, contudo, não fica claro se ela
consegue ter consciência de que o padrão que desenvolve em sua vida se
assemelha ao de seus pais: introvertidos e mais passivos. Carmem assume isso
como algo somente seu. Logicamente, ela possui essa característica psíquica
introversão , mas até que ponto isso é apenas dela e até onde aprendeu a viver
sob este prisma? Será que não consegue ser mais ousada por ser algo que não tem
a ver consigo mesma ou porque não se permite fazer seu próprio caminho?
Às vezes eu penso que eu deveria ousar um pouco mais, para não
deixar a redoma de proteção ficar muito forte.
Carmem parece sentir esse modo de viver como defensivo. Talvez
comece a perceber que tal defesa não está mais agindo a serviço da proteção que
um dia possa ter tido. Questiona-se sobre fazer diferente, mas, ao mesmo tempo,
parece temer isso. Essa temeridade parece entrar no caminho de seus
questionamentos. É claro que ninguém deve caminhar para ser outra pessoa. O
processo de cada um se dá na busca de um desenvolvimento psíquico individual e
não coletivo. Fica a dúvida: até que ponto Carmem está deixando de ousar em nome
de si mesma, de seu processo, e está agindo a serviço de uma defesa que sente
não mais protegê-la?
Penso na minha vida afetiva e no profissional também. Se eu
pudesse pôr um pouco mais de pimenta, correr mais riscos. Ficar
cuidando, calculando, [por exemplo]. Eu não me imagino fazer uma
coisa dessas de sair do emprego sem nada, pra abrir por exemplo
meu escritório. Gostaria de ter mais ousadia no sentido de correr
mais riscos, de buscar um pouco mais.
Observamos que há uma tendência sua de voltar-se para o “porto
seguro” e não arriscar aquilo que estaria dentro de suas possibilidades. A dificuldade
parece estar em correr riscos.
122
É lógico que têm coisas que estão muito distantes de mim! Essa
coisa da faculdade, das meninas que vivem nas festas, nas baladas,
elas são, na maioria, bem mais jovens do que eu, mas elas têm um
outro comportamento, de ir com um superdecote. Às vezes, eu olho
essas coisas e acho que estou muito comportadinha.
É essa ousadia de buscar novos amigos, de sair mais, de ir pra
festas, eu acho que eu não conseguiria chegar a tanto.
Fica a impressão de haver um conflito: um desejo e um receio grandes;
uma crítica a suas atitudes e, ao mesmo tempo, uma percepção de limites. Apesar
dos conflitos internos que diz viver, as falas de Carmem resumem o modo como ela
se vê: ainda buscando mais ação, mas respeitando os limites de sua maneira de ser.
Tinha uma época na minha vida que eu achava que deveria mudar
muito. Aí fui percebendo que isso não é meu, que não dá pra me
transformar em outra pessoa. Que tem coisas minhas, da timidez, de
ser mais introspectiva, de ser mais organizada, de ser mais na
minha. Mas, também, o mundo que nós vivemos exige que as
pessoas sejam mais abertas, mais receptivas, que arrisquem mais.
Senão as conquistas são muito difíceis. É preciso, talvez, colocar um
pouco mais de ousadia, acreditar mais, que vai ser possível vencer
desafios.Talvez eu sinta um pouco de falta dessa ousadia maior.
Se eu fosse resumir, eu volto a pensar no padrão que a sociedade
nos cobra, em ser uma mulher assim a deusa, aquela Vera Fischer
que faz e acontece, até de uma forma escandalosa. E eu penso que
eu não estou esse furacão todo. Isso provoca esse questionamento:
como ser tranqüila, tímida, dentro dessa sociedade, ou dessa
imagem que é colocada pela mídia de alguém que é furacão?
Acho que essa coisa da ousadia seja um pouco disso, esse padrão
da mídia, de uma mulher a mil por hora, cheia de energia,
conquistas, ousadias e, de repente, como eu não estou nesse
padrão, eu fico me questionando em como conseguir essas coisas
até profissionalmente.
Carmem parece necessitar desenvolver mais alguns aspectos de seu
animus, principalmente aqueles relativos à ação. No seu caso, esses aspectos ainda
estão muito identificados com os complexos parentais, e o animus pode estar
impedido de se desenvolver e auxiliar a mulher na parceria de sua vida.
5.4 Daniela: uma mulher a serviço da criação
Daniela, 30 anos, segue um estilo esportivo na sua maneira de se
vestir para a entrevista: simples, uma blusa com um pequeno decote. Muito
123
comunicativa, responde a tudo de forma clara, num tom de voz mais alto e sem
muitas pausas entre uma colocação e outra. Considera-se uma “guerreira” e assim
parece se colocar diante da vida: com garra, focando os objetivos. Sua preocupação
se orienta para vencer profissionalmente. A necessidade de provar para os outros
sua capacidade de sobreviver parece ser muito presente. Aliada a essa questão,
hoje se diz preocupada também em buscar um companheiro, fato aparentemente
deixado de lado, por um tempo em sua vida.
Daniela passa a impressão de sentir-se segura sobre o caminho
profissional escolhido, ainda que os pais demonstrem receio quanto à sua escolha,
no que se refere à condição financeira.
A relação com o pai
A relação com o pai é marcada por grande identificação. Logo ao
início, Daniela relata os obstáculos dessa relação, o que indica, talvez, uma
aparente consciência dela de que a relação com o pai traz dificuldades quando
esbarra em atitudes e posturas semelhantes às suas.
Com o meu pai é engraçado que hoje em dia é muito boa. Na minha
adolescência, hoje eu até discordo, mas eu falava que eu queria ver
o diabo mas não queria ver meu pai na frente. Porque era uma
pessoa bastante autoritária, imperativa. Então, praticamente nós
somos idênticos. Então batia de frente.
Em relação ao pai, Daniela aparenta sentir muita mágoa, associada a
um sentimento de raiva.
Por exemplo, se ele não gosta de alguma coisa, ele não é de chegar
e falar, ele é de ação. Ele já vai virar a cara, e não conversa com
você: ele faz alguma coisa, ele bate porta, como eu também vou
[fazer]. E isso me irritava profundamente e me irrita até hoje. Ele faz
uma cara que me irrita, se eu pudesse esmurrar uma porta eu
esmurraria, mas é que eu me controlo.
A rigidez do pai também é uma característica mencionada, juntamente
com a imperatividade. Daniela acredita que talvez essa inflexibilidade tenha
dificultado a relação familiar.
[...] ele nunca encostou a mão dele em mim ou na minha irmã, mas
ele tinha atitudes assim: não podia assistir uma televisão, não podia
1
24
assistir uma novela! Ele passava por todos os canais de repórter! Eu
tinha 9/10 anos, eu queria assistir uma novela, um desenho. Não,
não podia. Então, acredito que um dos fatores que contribuiu para eu
querer ir embora da minha casa com 17 anos é de poder fazer o que
eu quero.
Além desse sentimento, Daniela diz ter criado uma couraça na relação
com o pai, que parece ter favorecido sua postura de distanciamento dele.
Depois que eu entrei em faculdade, peguei um distanciamento muito
grande da família, mas, ao mesmo tempo, os dois ali. Aí minha mãe
falou que meu pai mudou demais depois que eu me mudei pra cá;
porque ele foi vendo que a vida não é só aquilo que ele foi
construindo pra gente.
Essa postura de Daniela perante a família pode ter alguma relação
com o rigor do pai. Apesar da dificuldade no relacionamento direto com o pai e do
desejo de sair de casa, Daniela mantém uma relação muito “fiel” ao pai, no sentido
de procurar não transgredir regras por ele consideradas importantes.
Sempre fui muito regradinha, nunca fui de beber ou usar drogas.
Sempre na direção certa, porque o medo era de me arrepender e ter
que voltar pra casa.
É provável que a assimilação das regras e a não transgressão estejam
mais relacionadas ao medo do pai do que à conscientização sobre normas e limites.
A mãe pode ter contribuído bastante para a imagem assustadora do
pai. Na tentativa de amenizar o distanciamento que estabelecia com o marido, a mãe
parece ter acentuado as atitudes rígidas dele com as filhas. Daniela ressalta que a
mãe sempre a alertava para que não fizesse nada de errado, porque senão o pai
não perdoaria. Este rigor do pai servia talvez como artifício para manter a filha sob
controle; artifício este muito usado pela mãe.
Minha mãe querendo amenizar o sofrimento dele, falava: “pelo amor
de Deus, não vai fazer isso senão seu pai vai ficar bravo”. Ela
também, a forma como ela trazia o meu pai, ela trazia em forma de
monstro. Eu criei uma couraça muito grande com ele.
Apesar de Daniela considerar que o que a fazia seguir pelo caminho
regradinho era o medo do retorno a casa e às imposições do pai, fica a impressão
de que ela não conseguia enfrentá-lo e, para não ter que se submeter a ele, o
afastamento é visto como saída.
É difícil entender o que ela chama de “ovelhinha negra”. Em sua fala há
indicação de uma oposição ao modelo convencional de vida da mulher: aquela que
saía de casa para casar e ter filhos. Como Daniela saiu de casa para estudar e para
125
seguir o próprio percurso, parece que nem ela mesma tem consciência de que o que
está por trás é a escolha do seu caminho e que este é diferente do convencional.
Diferente não significa transgressor, como seria o caso da “ovelha negra”, pois
Daniela demonstra não conseguir transgredir.
Minha irmã não. Ela casou, teve filhos tudo por lá. E eu não, eu a
ovelhinha negra, eu saí fora, não quis dar trabalho. Então, hoje, a
gente [ela e o pai] consegue conversar, coisa que antes de jeito
algum.
A escolha do próprio caminho parece estar também a serviço de uma
defesa contra o modo imperativo do pai, com o qual se identifica. No entanto, por
não conseguir enfrentá-lo, precisa usar uma estratégia de afastamento como defesa,
seja o afastamento emocional ou o físico.
Por outro lado, Daniela relata que o distanciamento entre eles pode ter
promovido uma mudança no pai, e isso, segundo ela, contribuiu para a sua
reaproximação. A mudança inicial é dela, a partir do desejo de sair de casa e seguir
o próprio caminho. Ao mesmo tempo, o seguir o próprio caminho é sentido por ela
como algo aparentemente negativo, em função de ser diferente do que era talvez
esperado, em sua casa; em sua família.
Hoje, Daniela relata que muitas das atitudes do pai foram de chamar a
atenção da família para o desejo dele de, também, receber atenção. Daniela diz que
a mãe, durante muito tempo, dedicou sua vida às filhas e aos cuidados da avó. Ao
que parece, ele se sentia posto de lado e assumia mais fortemente as atitudes
autoritárias, que tanto faziam Daniela sofrer. A consciência que Daniela passou a ter
dessas circunstâncias, pode ter contribuído para, juntamente com a saída de casa,
ter modificado a relação entre pai e filha.
E na minha adolescência pegou uma fase muito de rebeldia [dele]
porque a minha mãe cuidava da minha avó, o tempo todo era pra ela
e pra gente. Ele ficava com muita raiva disso. O serviço dele sugava
demais e [ele] chegava em casa e tinha atitudes.
Hoje eu percebo que ele estava querendo falar: “olha, eu estou aqui”.
Hoje eu tenho uma admiração muito grande pelos dois,
principalmente pelo meu pai, porque eu consegui quebrar isso de
hoje, claro que ainda não sou uma pessoa de abraçar e nem ele,
porque ele também não é uma pessoa assim. Eu acho que nunca vi
meu pai dar um beijo na boca da minha mãe. Uma coisa muito
fechadinha e aí a gente não tem esse laço de pai, que chega,
abraça, faz carinho. A forma dele demonstrar carinho é assim: “pai,
preciso que você pinte essa porta”. Em dois dias ele está pintando.
126
Mas é uma pessoa de uma bondade: se tiver que comprar alguma
coisa, ele compra. Não consegue falar. Ele nunca chegou e falou eu
te amo. Meu pai é mais fechado. Ele tem o jeito das coisas terem
que ser do jeito dele.
Essa percepção do funcionamento do pai passa por uma
conscientização da maneira como ele funciona e também das semelhanças e
diferenças entre ela Daniela e o pai. Essa consciência parece ter permitido
uma reaproximação com ele; uma aceitação das diferenças e também das
semelhanças. É possível que o “resgate do pai” esteja permitindo a reconexão com
ela mesma, proporcionando reflexões sobre os caminhos traçados até então.
Sobre o posicionamento do pai no trabalho, Daniela destaca
primeiramente a admiração que tem por ele, pela inteligência e por seu percurso
vitorioso, principalmente, por ele ter cursado apenas até a quarta série primária.
Observamos no trecho a seguir, uma identificação dela com ele, no que diz respeito
à falta de confiança nas pessoas.
O meu pai, na parte de profissional, ele teve até a quarta série, ele
conseguiu um cargo de chefe de departamento de uma
multinacional. Então, eu falo que meu pai é de uma inteligência, uma
competência nas coisas. Só que ele, como eu, não confia nas
pessoas.
Outra característica que considera marcante no pai é o que chama de
“não confiar em ninguém”. Esse aspecto é relatado por ela como sempre presente
na dinâmica de trabalho do pai e também em casa.
Sabe aquela coisa de não confiar, então, ele tem isso também. Ele
tem uma mania que eu tenho raiva até hoje: “pode deixar que eu
faço”. Nossa, era a morte pra mim. Sabe que é como se eu não
tivesse competência para aquilo. Hoje eu vejo que não é assim!
Parece que eu não sou nada, parece que não consigo fazer
nada!!!Pode deixar que eu faço, o que é isso? Eu também quero
provar a ele que eu sei fazer. Então, ele tem muito isso, pode deixar
que eu faço, com todo mundo.
Apesar de ter consciência dessa característica do pai, esse aspecto é
fortemente assimilado na vida de Daniela. A raiva é um sentimento gerado nesta
circunstância. Parece que um complexo é ativado sempre que esse tipo de situação
ocorre: o tom de voz e a expressão de Daniela também se modificam, tornando-se
mais intensos e emocionais.
Daniela diz que o pai tem uma maneira imperativa de trabalhar e esta
indica ser uma percepção com base na vivência pessoal.
127
No serviço dele eu sei que ele era muito autoritário, não ao ponto das
pessoas não gostarem dele. Ele era ponta firme; era bom
administrador, tanto que ficou 25 anos no cargo, que era o cargo
máximo, porque não tinha mais escolaridade. Mas as pessoas
gostavam muito dele, até pela própria competência dele. Mas, para
falar com você ele é imperativo.
As pessoas se amedrontam um pouco, porque ele chega e assusta,
parece um pouco de falta de educação, mas não é não. É por causa
da imperatividade. Acredito que na fábrica ele era assim: “tem que
ser assim, porque assim qualidade”. Ele ia pela qualidade, tanto é
que ficou 35 anos na empresa. Ele é muito genioso, um dia ele está
bem, noutro não.
Além da identificação e da raiva, a admiração é outro sentimento muito
presente nessa relação. A impressão que Daniela passa é de que o pai, apesar de
todos os defeitos, é visto por ela como um herói; aquele que conseguiu construir a
vida apesar de não ter estudos; aquele que priorizou a qualidade no trabalho. Outra
característica que destacamos é que esse pai está sob o domínio da anima, fato
percebido pela manifestação de humores instáveis, como apresentou Daniela.
As características de vencer e fazer o mais perfeito, com qualidade,
também estão presentes na vida laboral de Daniela.
Em relação às posturas do pai diante de crises e promoções, Daniela
relata não ter presenciado crises em razão de sua saída de casa ainda na
adolescência. Ressalta que todas as crises das quais se recorda, sobre o pai,
sempre foram observadas e relatadas pela mãe, já que o pai não verbalizava o que
estava vivendo. No entanto, sempre que vai falar de uma postura do pai perante a
vida ou no trabalho, acaba relatando a postura dele em relação a ela e deixa
transparecer de seus sentimentos para com ele.
Olha, eu não sei, porque saí adolescente, então eu não prestava
muito atenção nisso. Crise, crise assim eu nunca vi. Ele agüentou
muito lá, um trabalho com muita exigência. Quando ele saiu, ele
passou por uma fase de ficar barbudo, tudo que na empresa ele
tinha que fazer, ele passou a fazer o avesso.
A crise eu percebia pela minha mãe, não por ele, porque a minha
mãe era de alvoroçar e falar que ele estava no bar. Minha mãe que é
de chegar pra mim e relatar o que está acontecendo.
Mais uma vez, tem-se a impressão de que um complexo foi constelado;
algo de uma natureza mais profunda e inconsciente.
128
A relação com a profissão
A escolha da profissão de Daniela já era um sonho de infância; algo de
que sempre gostou e que parece estar presente em sua vida desde sempre.
Minha escolha, eu fiz uma faculdade de dança, pública. E desde
pequena eu sempre gostei. Minha mãe sempre comentava que
mesmo no ventre, quando ela ouvia algum ballet na televisão, ela
falava que eu já me movimentava; era impressionante. Se tinha
alguma coisa com dança, eu me expressava de alguma forma.
,desde pequena, sempre foi assim com dança. A oportunidade que
eu tive a primeira vez foi quando eu tinha 9 anos, que eu entrei numa
academia, porque a minha irmã estava com problema de coluna e o
médico havia falado pra minha mãe que era interessante que ela
fizesse um alongamento, algum trabalho corporal e,, eu já entrei:
“eu também quero”; alguma coisa que lembrasse dança, movimento.
E a partir daí, minha mãe sempre falou que desde os meus 9 anos
eu já sabia o que eu queria.
Eu percebi que eu tinha esse feeling pra artes corporais. Eu saí do
terceiro colegial e prestei a universidade pública e acabei passando
em dança, também não era tão concorrido assim. Em nenhum
momento eu titubeei que eu queria outra formação.
O apoio, ainda que implícito, dos pais parece ter sido importante para
que Daniela seguisse o sonho.
Meus pais nunca foram pessoas que chegassem e me dissessem
que não queriam que eu fizesse dança. Eu percebia que eles tinham
um certo receio ou medo, porque as pessoas, principalmente
amigos, até mesmo parentes, falavam: dança! Você vai o tempo todo
sustentá-la, não vai conseguir. Então, eu lutei sempre pra criar minha
independência.
Eles nunca falaram não vá, mas ficavam receosos. Hoje eles
percebem realmente a minha luta, a força de vontade, foi a melhor
coisa que eu fiz mesmo. Então a minha profissão veio assim.,
depois, na faculdade, eu tive contato com algumas práticas
alternativas, tipo tai chi chuan, e uma ginástica que chama Lian Gong
que eu comecei a participar de estudos e acabei me
profissionalizando nesta área também.
Eu percebia o sofrimento deles porque eles achavam que não ia dar
em nada.
A preferência dos pais pelo trabalho convencional parece ficar
implícita, mas, mesmo assim, eles não se opuseram à realização do sonho da filha.
É possível que a percepção de Daniela, de que carregavam uma preocupação
quanto à sua capacidade de subsistência, tenha acentuado a busca do
perfeccionismo e a necessidade de sobreviver sem a ajuda dos pais.
129
Dentro dos aspectos de seu sonho, ainda está por realizar o retorno
aos palcos. O afastamento deste sonho profissional deve-se à necessidade de
buscar a estabilidade financeira, que, neste campo, é muito difícil e carregado de
incertezas.
Na área da dança, eu dançando no palco, ainda é uma coisa que eu
tive que deixar de lado, por causa de tentar poder ter mais uma
condição financeira até para poder depois trilhar este caminho.
Apesar de ter necessitado se afastar dos palcos, Daniela ressalta que
não se sente arrependida ou frustrada por isso, pois acredita que, a qualquer
momento, poderá retomar seu sonho. Ela parte do princípio de que sua dança, que
não é o ballet e, sim, a dança contemporânea, possibilita ao artista utilizar os
movimentos de acordo com a estrutura de seu corpo; levando em conta tipo físico e
idade.
Eu nunca me senti frustrada em ter que abandonar o palco, porque
eu sempre falei que eu vou voltar. Pra mim, não tem idade. Mas a
dança contemporânea, que é a que eu gosto, eu falo que até quando
eu tiver 90 anos eu vou estar dançando, porque ela me dá esta
estrutura por causa dos próprios movimentos, que é uma exploração
de movimentos e de limites do seu corpo, você vai até o seu limite
corporal. E dá fazer muita coisa com os movimentos em cima dos
seus limites. Então, eu tenho essa visão.
A motivação, presente em seu discurso de que é possível alcançar um
sonho, é muito forte. Daniela não demonstra desânimo ou frustração por ainda não
ter conseguido atingi-lo. Não se coloca como alguém longe da realização
profissional. Apesar de ainda não estar trabalhando com o palco, como deseja,
ressalta que o fato de ter desenvolvido um grupo de dança, para o qual leciona,
deixa-a muito realizada, não pela técnica trabalhada, mas pelos resultados
conquistados com essas pessoas. Daniela parece valorizar muito mais a
expressividade corporal e a criatividade do que puramente a técnica trabalhada.
Então, eu falo que não sou frustrada por essa parte da dança, mas
eu vou voltar. E eu sempre sonhei em ter um grupo de dança e por
meio da faculdade eu consegui um grupo de dança; são alunos da
faculdade, mas são pessoas que não conseguiam fazer dois pra
lá/dois pra cá, problemas de coordenação e pelo trabalho da dança
contemporânea a gente conseguiu ter muito sucesso.
Hoje é um grupo até conhecido na cidade, em outros locais, vai pra
festivais, às vezes, com premiações. Isso dá mais certeza de que eu
não necessito somente de técnica, mas de uma boa criatividade e
harmonia.
130
Daniela reafirma a certeza de realizar seu grande desejo de voltar a
dançar nos palcos.
É uma coisa que eu vou voltar, vou voltar a dançar. Assim que eu
perceber que eu estou bem, estabilizada, não preciso buscar, como
agora, o doutorado, conseguir um emprego mais perto, porque a
distância, viajar muito, isso cansa demais, é uma busca que quando
eu conseguir o que eu quero, o próximo passo é dançar. Entrar num
grupo de dança, mas que eu dance. Tem hora que eu sinto a
necessidade do palco; é algo que eu preciso.
A dança é vista como um alimento para a alma!
Também a carreira como professora universitária, trilhada para poder
construir uma vida mais estável, é marcada pela criação.
Trabalhei 4 anos em empresas, em ginástica laboral, com essas
práticas alternativas. Então, foi o primeiro momento que me deu
sustentação financeira, pelo menos para ter um canto, uma moradia.
E aí, comecei a trabalhar em faculdade. As disciplinas que eu dou
aula tem tudo a ver com a minha profissão. As pessoas falam: “ah,
mas você fez dança e não trabalha com isso”. Eu trabalho sim,
porque as disciplinas que eu dou são: dança, capoeira e práticas
corporais alternativas, que eu acabei fazendo mestrado nesta linha
de pesquisa. Então, se alguém me fala se eu me arrependo de
alguma coisa, eu digo que não. Eu faria tudo de novo, sei que é
difícil, é uma carreira em que você tem que lutar muito para
conseguir, às vezes, o mínimo, mas a paixão é tanta que talvez eu
não mudaria.
A veia da criação é muito significativa em sua vida. Temporariamente
impossibilitada de criar nos palcos, parece carregar este canal para suas aulas. Seu
discurso retrata a necessidade de, a cada novo ano, ainda que seja o mesmo
conteúdo, renovar e recriar o material a ser trabalhado.
E como professora, eu não sou uma professora, por exemplo, faz 8
anos que estou lecionando e todo ano estou buscando coisas novas.
Eu não consigo fazer a mesma aula do ano passado para a turma
deste ano; eu sempre acabo mudando.
Eu sempre busco uma coisa que vai dar um pouco mais de trabalho,
mas talvez aí é que está minha motivação.
Eu sempre trago uma coisa nova, uma avaliação diferente, alguma
coisa que não é igual ao outro ano. Eu nunca ia ficar satisfeita. Às
vezes, acaba sendo um pouco doloroso, parece que nunca está
bom, mas outro momento, vejo que é interessante, pois criei ou
transformei alguma coisa que supera as minhas expectativas.
Nesta última fala, transparece uma das características de Daniela: o
perfeccionismo e a exigência.
Porque eu sempre ponho cem por cento de expectativas. E é claro,
não consigo agradar gregos e troianos numa sala de aula de 60
131
alunos. Então, eu tenho horas que, no início da minha carreira, eu
me estressava demais. Às vezes eu pensava: “nossa”
principalmente a dança que não é a disciplina, para os alunos, a
mais, vamos dizer, preocupante ou importante. [...] A dança é um
pouco secundária. A visão que eles têm da dança é a visão da mídia,
tipo o tchan, axé, bailes, hip hop, dança de rua. Você tem que trazer
outras formas, porque eles acham que isso, sim, é dança, e [acham
que], se não souberem a técnica disso, não sabem dançar.
Há momentos em que “criar” é como um alimento para a alma; uma
forma de acalmar o grau de cobranças que impõe a si própria. Em virtude da forte
necessidade de ação presente em sua vida, principalmente representada pelo pai,
que assim se relaciona com as pessoas, Daniela utiliza a ação como caminho para
traçar a própria vida. Algo muito inconsciente é sentido como semelhante ao pai,
como uma herança. Talvez isto esteja mais a serviço do animus que do ego.
Apesar de a criatividade ser algo presente em sua vida e de estar a
serviço da alma, Daniela demonstra, em alguns momentos, incomodar-se com a
necessidade que se coloca de sempre criar. Quando a criação entra a serviço do
ego e não da alma, o cansaço se torna presente, assinalando, talvez, que pode estar
ultrapassando os limites de seu corpo e de sua psique.
Eu tento trazer outra forma, que não precisa de técnica pra se
movimentar, você pode trabalhar com a criatividade. Então, tem hora
que eu fico um pouco desgostosa porque é muito trabalho. Se for
ver, o tempo todo, eu estou tentando criar uma coisa, estou sempre
correndo atrás. Tem hora que eu canso, não vou dizer que não.
A impressão é de que ela mesma se impõe tarefas e metas a cumprir
que, muitas vezes, podem estar aliadas à perfeição e à grande exigência que
estabelece para si mesma.
Ao falar das frustrações, Daniela destaca que o caminho acadêmico
não a frustra e que, se tivesse escolhido a interpretação como ramo de atuação
profissional, talvez aí se sentisse frustrada, em decorrência da alta competitividade e
do ambiente hostil.
Eu acho que é concorrido, na parte da dança, na área de intérprete,
é muito concorrido, mas como eu não fui pra essa área profissional,
tipo buscar um grupo, que eu atuasse dentro de um grupo, talvez eu
estivesse frustrada com a profissão que estaria exercendo. Porque é
uma profissão com concorrência demais, com puxadas de tapetes,
amigas que seguiram este caminho e que se frustraram e eu vejo
que não é isso que eu quero, não é esta dança, que eu quero fazer
uma coisa mais prazerosa. E aí eu vejo que eu fiz o caminho correto
pra mim, de buscar a área acadêmica, de pesquisa, que também me
apetece.
132
A relação com o trabalho
Daniela, ao falar de si no trabalho, acaba, muitas vezes, trazendo
aspectos de sua vida pessoal. Algumas de suas colocações estão associadas a
outras vivências pessoais, que não só as relacionadas ao ambiente de trabalho.
Como característica geral, Daniela declara ser muito fechada e até
anti-social. Tem-se a impressão de que esta sua característica é algo que vai além
do ambiente de trabalho; começou a perceber que poderia tentar um maior
entrosamento com os colegas e com amigos.
Eu não sou uma pessoa tão social. Por exemplo: eu chegava,
entrava na sala dos professores, falava boa noite, pegava minhas
coisinhas e ia pra sala de aula. No intervalo, eu não voltava, ficava
por lá, porque são apenas 15 minutos e resolvia ficar por lá mesmo.
Aí, eu dava a minha aula, chegava e boa noite e ia embora.
Até na faculdade, eu praticamente terminei a faculdade sem amigos.
Uma, que eu namorava, e eu focava demais no namorado. Mas eu
nunca fui muito de amigos. Há uns 5 anos atrás, comecei a observar
que a solidão pegava muito mais. Aí, eu comecei na parte pessoal,
não profissional, no profissional ainda continuava isso.
Com essa percepção, buscou maior proximidade com as pessoas.
Eu percebo assim, esse ano, eu percebi que estou mais sociável.
E eu comecei a ficar mais sociável e eu percebi que até neste ponto
profissional, as pessoas começaram a chamar pra alguma coisa. Eu
sou um pouco anti-social, agora é que estou tentando trabalhar isso,
pra parecer o lado mais comunicativo, Eu focava demais no trabalho.
Hoje, eu vejo que posso melhorar a qualidade do meu trabalho
conversando com outra pessoa.
É possível que Daniela tenha começado a perceber a importância das
trocas entre as pessoas, com outros profissionais. É interessante notar que, durante
toda a entrevista, mostrou-se muito comunicativa e expressiva, não aparentando
esta anti-sociabilidade que tanto ressalta.
Com os alunos, Daniela diz possuir uma boa relação, sem problemas.
Quando acontece algum “atrito” entre ela e os alunos, o que diz fazer é retornar ao
combinado. Parece que Daniela se relaciona bem com as regras e os limites,
colocando-os de maneira clara, e se reportando à direção da faculdade.
Nunca tive problemas com alunos, alguns reclamam porque deixei
em DP [dependência] por falta, mas a diretora fica do meu lado,
porque é algo que já estava combinado.
133
Com a direção, Daniela aparenta ter boa relação, mas, quando ocorre
alguma coisa com a qual não concorda, acaba reagindo com distanciamento; com
desejo de se afastar ou de desistir do que está fazendo.
Eu começo a observar até quando isso vai. Porque numa faculdade,
eu comecei a mandar projetos, mas, por ter muito projeto de
extensão, a dança acaba sendo descartada. São essas coisinhas
que eu me distancio [...]
Talvez, quando sinta desvalorizada como profissional, reage recuando
e as energias são canalizadas para outro fim: por exemplo, procurar um novo lugar
para atuar profissionalmente, outra faculdade.
Se a pessoa achou que o trabalho não serve mais, então é porque
eu não sirvo pra trabalhar mais ali. Como eu não posso sair de uma
vez, porque eu não tenho condições de me sustentar sozinha [...]
então, continuo, mas se depender de mim, não faço mais nada pra
dar um nome na faculdade. Se sinto que há incentivo eu faço tudo o
que é preciso; se tiver que ir amanhã eu estarei lá. Mas se não, eu
vou, dou minhas aulas e procuro outra coisa. Isso até mesmo na
parte da amizade, se está me reconhecendo eu vou e faço de tudo,
mas se me chateou, eu recuo. Então, aí, vou procurar outro
emprego. Aí, saio a partir do momento que acho outro emprego.
Apesar da apreensão gerada pelo novo e da forte autocrítica, Daniela
demonstra não temer novas situações. Mesmo porque chega a preferir enfrentar
uma sala de aula nova ou uma nova faculdade a ter que brigar ou ter que interagir a
seu favor, quando diante de uma situação de crise ou descontentamento. A ação,
tão marcante em sua vida pela presença e atitude dos pais, acaba sendo
direcionada para a fuga no momento de crise ou de necessidade de lutar em sua
defesa.
A impressão é de que Daniela filtra a situação profissional pelo canal
pessoal e faz a seguinte leitura: se seu trabalho não serve então, ela não é mais útil
ali. Essa atitude demonstra uma rigidez e uma inflexibilidade para lidar com as
circunstâncias políticas de uma universidade. A emoção e a frustração apoderam-se
dela, quando alguns dos seus projetos ou objetivos profissionais não podem ser
concretizados. Sua atitude de defesa acaba sendo o afastamento, o distanciamento.
Ao mesmo tempo em que se diz imperativa como o pai, parece não
usar esta imperatividade para o seu meio. Temos a impressão de que ela a usa
consigo mesma, por meio de forte cobrança e exigência e se coloca em relação ao
outro com certa submissão.
134
Eu não sou de chegar impondo as coisas. Eu tenho uma mania muito
presente, que quando eu chego, eu já vou dizendo: “dá licença,
desculpe atrapalhar.” Eu penso que a direção já tem tanta coisa e eu
vou lá encher o saco ainda; ainda falar as coisas que eu quero.
Por um lado, fica a impressão de que sente o seu querer como
pequeno e desprezível. Por outro, uma parte dela que reclama por esse
desprezo, que ela parece colocar em cena no trabalho e com os amigos.
Eu tenho essa coisa, até com professor mesmo, eu fico pedindo
desculpas. Até com amigos, eu falo: “desculpa em estar te
atrapalhando.” Eu tenho essa coisa de ser um pouco submissa
nessas coisas, de não querer atrapalhar como sempre. Talvez por
isso o isolamento. Agora já estou tirando um pouco isso, já estou
ligando mais e o máximo que vai acontecer é a pessoa falar que não
vai dar para falar comigo naquela hora.
Aparentemente, percebe que age com certa submissão, quando se
sente exposta. A impressão é que esta maneira de agir não é tão consciente; parece
algo automatizado em sua vida, como se sempre fizesse assim e nunca tivesse, de
fato, se questionado a respeito.
Com relação aos momentos de promoção, Daniela reage com
contentamento e apreensão. Este último sentimento demonstra estar relacionado à
alta cobrança que se impõe em qualquer ocupação que realiza. Quando a atividade
é nova e fruto de um reconhecimento, Daniela se coloca uma cobrança ainda maior.
Com tantas cobranças internas e intensas, diz ter dificuldades com a cobrança ou
crítica do outro. A sensação é de que ao ouvir tanta crítica sobre si mesma, carrega
um fardo pesadíssimo.
Porque eu não quero que alguém chegue e critique. Eu vou avaliar a
crítica, mas sofro demais. Por exemplo, a minha orientadora falou
que eu sou muito redundante e que tenho que ser mais objetiva e
tenho que mudar isso. E sei que isso eu tenho dificuldade mesmo
pra redigir; sei que é uma falha, que tenho que melhorar. Fico me
remoendo por dentro, mas tenho que melhorar. Então, eu vou e
melhoro. Então, se vem uma critica assim, eu vejo que por eu ser
muito autocrítica, dificilmente vem uma crítica destrutiva [do tipo] a
sua aula foi péssima. Mas me tira uma energia; praticamente eu
entro em estafa mesmo, fadiga.
A atitude de Daniela, nesse caso, é de ação, mas está relacionada à
fuga. A impressão é de que é mais difícil encarar a luta do que enfrentar o novo.
Talvez ela reproduza inconscientemente algumas estratégias do pai para lidar com a
crise. A ação era usada pelo pai como forma de chamar a atenção da família sobre
si por se sentir excluído; por desejar fazer parte. Daniela parece que, ao se sentir
135
excluída, como o pai se sentia, não toma a atitude de chamar a atenção para si,
como ele fazia, mas procura se afastar, procura o distanciamento e, se possível,
outro lugar de trabalho. A ação parece seguir para o distanciamento, diferentemente
do pai, que agia para chamar a atenção. Mas ela utiliza o mecanismo da ação,
quase sem palavras, para se defender.
A relação com a mãe
Daniela diz ter um relacionamento bom com a mãe, suficientemente
aberto ao ponto de comentar sobre a primeira relação sexual. Acrescenta que a
educação que recebeu, em razão da influência também imperativa da mãe, tem forte
“característica matriarcal”, por considerar muito presente a referência da mãe em
sua vida.
Temos a impressão de que a relação com a mãe não se caracteriza
como uma relação maternal. Quando aborda a relação da mãe com a avó, o cuidado
parece entrar na ordem da obrigação e não do afeto. Fica a impressão de que nessa
família o afeto está misturado com convenções do tipo: dizer “eu te amo”, ter que
dividir coisas íntimas. Aparentemente, não é o dividir movido pelo desejo de
compartilhar, mas algo do universo da obrigação, do cumprir, do papel a ser
desempenhado. Essa talvez seja a característica dessa relação mãe-filha. Uma
relação identificada com o animus da mãe.
Mas, por muitos anos, minha avó quando morava com a gente,
quebrou a bacia e não conseguia mais andar, e por 15 anos minha
mãe cuidou da minha avó. Depois que minha avó faleceu, ela ficou
trabalhando no SOS da cidade e agora está afastada por L.E.R. Ela
trabalhou e lutou. A vida dela sempre foi focada em mim e na minha
irmã.
Por exemplo, desde a minha primeira relação sexual, que pra
algumas amigas jamais contariam, eu falei. Claro que ela tomou um
susto e até hoje quando eu falo alguma coisa pra ela, ela fala que na
época dela não era assim, tipo você sai com uma pessoa aqui e não
dá certo; terminou começa outro relacionamento, e na época dela,
ela namorou meu pai e casou. A minha irmã namorou um e depois
namorou o marido. Eu, infelizmente, por causa da minha vida, fui
pulando um pouco, eu não tive [apenas] um namorado, mas pra ela
isso choca, mas eu chego e falo, porque é minha vida e ela tem que
136
saber; tudo o que acontece na minha vida eu falo pra ela. Então, eu
tenho talvez uma relação muito forte com a minha mãe.
É possível questionar o vínculo considerado forte: essa relação mãe-
filha apresenta mais características de obrigações do que afetivas. Com o
amadurecimento, Daniela passa refletir sobre as posturas que assume diante da
vida.
Eu sempre falei pra minha mãe: eu me sinto como se, parece que eu
tenho um pouco da parte do homem, de lutar, de querer ir atrás,
também não sou nada delicada, sou toda brusca nas coisas e no
jeito. Às vezes, até brinco com a minha mãe que eu nasci em corpo
errado, que deveria ter nascido homem, por causa das minhas
atitudes. Por exemplo, num grupo assim, eu acabo fazendo o papel
do homem. Por exemplo, na dança mesmo, dança de salão, todas as
vezes quando eu dava aulas de dança, eu sempre gostei mais do
movimento do homem do que da mulher. Porque, porque conduz.
Então, eu sei que eu conduzo a minha vida com virilidade, que pode
ser de uma mulher “guerreira”. Eu sou delicada sim, mas eu sou
muito mais viril, muito mais a parte de lutar. A capoeira [por exemplo]
vou por este lado, de coisa mais rústica; talvez seja o meu equilíbrio,
não sei.
A impressão é de que, num primeiro momento, os papéis ficam
identificados com a persona de homem e a persona de mulher. Parece que a
atenção de Daniela, quando questionada sobre a feminilidade no ambiente
profissional, fica centrada no que é esperado sobre desenvolvimento de papéis.
No entanto, Daniela demonstra tomar consciência de seu modo de
funcionar. Nas escolhas de atividades físicas que desenvolve, diz também escolher
aquelas que são mais retas e que forneçam intenção de movimento, como o caso do
lian gong.
[lian gong] É mais suave, mas é das artes marciais; as
movimentações se originam das artes marciais. São movimentações
mais retas, que tenha intenção. Coisas muito suaves, até faço, mas
não é algo que brilhe aos meus olhos.
Diz preferir atividades que exijam movimentos diretos, focalizados. Os
movimentos que mais suaves, ou aqueles que seriam representantes do Feminino,
mais leves, circulares, parecem não despertar, em Daniela, uma paixão.
Fica a dúvida, como fica o Feminino dentro dela?
É engraçado que parece que é como se eu quisesse fazer os dois
papéis: o papel do homem e o papel da mulher dentro da minha vida,
na minha casa. Às vezes eu brinco com as minhas amigas, assim, na
parte financeira: “nossa, lá em casa alguém tem que pagar as
contas, mas como eu moro sozinha, tem que ser eu mesma”.
137
Mais uma vez, fica a impressão de que o Feminino e o Masculino estão
apenas relacionados a papéis sociais. Ao mesmo tempo em que aparenta estar
consciente de que ser mulher vai além de realizar atividades referentes a ser dona
de casa, mostra-se confusa com o que realmente espera como mulher. Temos a
impressão de que dentro dela há um enorme conflito sobre o que é ser mulher, em
termos de papéis desenvolvidos, e do que é caracterizado como pertencente ao
universo feminino.
Parece que a educação recebida, centrada na independência, reforça
esse lado seu mais guerreiro, como ela própria menciona. Há uma predominância do
Masculino em detrimento do Feminino.
A gente foi criada dessa forma. Então, esse lado feminino que, às
vezes, eu coloco, tem muito da mulher guerreira. No paleolítico, eu
estaria com uma lança e iria caçar; não estaria na aldeia esperando
o marido, eu iria caçar. Então, eu me vejo um pouco assim.
Contudo, essa maneira “guerreira” é vista por ela como muito difícil de
lidar, porque acaba agindo de maneira muito independente e não aprende a dividir
com o outro. Isso pode dificultar o relacionamento a dois, como ela percebe. Cabe
lembrar que talvez esse aspecto de “fazer você mesmo” esteja mais relacionado à
maneira como o pai reage à vida e às pessoas e a como essa maneira incomoda
Daniela profundamente. Podemos supor que esteja mais relacionado a um
mecanismo de complexo que a um aprendizado ou um treino social.
A relação com a mãe, também considerada positiva, apresenta
algumas peculiaridades. Daniela não fala da mãe como cuidadora, acolhedora.
Parece que a mãe tratou da saúde da avó e das filhas, mas, apesar disso, a
impressão é de que o ato de cuidar não foi assimilado como positivo ou como uma
característica representada pelo universo Feminino. Daniela aparenta não ter
desenvolvido o cuidar como um acolhimento; as atitudes passam sempre pelo canal
da ação e de algo próximo a uma obrigação.
Será que sua relação com a mãe não está muito mais identificada com
o animus materno?
Auto-imagem
138
Um pouco da imagem que Daniela tem de si é fruto desse casamento,
desse pai com essa mãe.
Porque eu tenho um gênio muito forte e os dois têm. Minha mãe é
guerreira, vamos enfrentar. Aí é que eu sou muito mais com minha
mãe, porque eu converso; a gente não tem segredos.
Eu acho que é mais a minha mãe, porque eu reclamo, eu grito, eu
xingo, e meu pai, ele tem essas atitudes aí, mas é nas ações.
Eles são muito parecidos. Acho que a cumplicidade deles é tão
grande que se você falar pra mim, eu sou mesmo 50% deles. Se
você não me agradou, eu não vou falar pra você; ele é assim e ela,
não é que ela fale, mas ela atura. Mas, por exemplo, se uma pessoa
me ofende e eu fico chateada eu vou ficar chateada, mas se ela me
agradar um pouquinho eu já estou lá todo sorriso pra ela. Ela já é
assim; meu pai não.
Eu sou diferente da minha irmã, porque ela usa as palavras e eu já
não consigo usar pra me defender. É uma família muito forte, forte, é
uma cobrança onde cada um se cobra.
Sua fala demonstra ter consciência de sua postura de distanciamento
em relação ao outro, principalmente no que se refere a compartilhar aspectos da sua
vida.
A forma que você lida com a vida e até mesmo a forma como você
fala das coisas já causa medo; causa receio do parceiro. Foi
interessante isso. O que ele está fazendo ali, eu faço tudo!!! Ou
medo mesmo do homem, que tem hora que eu percebo, talvez uma
coisa que estou tentando; o homem gosta que a mulher venha e que
ele abarque.
Essa tendência de domínio ou de condução total da relação ainda é
muito presente, apesar da aparente consciência de seu modo de agir.
Agora, no lado pessoal, que é essa coisa mais de querer dominar
demais. Eu acho que o grande problema da minha vida é querer
fazer os dois papéis. É querer o tempo todo fazer os dois papéis:
tanto ser aquela mulher, que tem todos os traços femininos, delicada,
até mesmo frágil em alguns momentos, em perceber que não dou
conta disso. E, ao mesmo tempo, ser aquela mulher que falta pôr o
bigode mesmo, como eu comento algumas vezes.
Por outro lado, ressalta que, quando está num relacionamento afetivo,
tem a tendência de se fragilizar completamente, a ponto de entregar toda a sua vida
na mão do parceiro.
Mas eu não sei como que eu ia reagir com uma pessoa dentro da
minha casa, dentro do meu território. E é muito interessante, se você
falar se eu tenho sonho de casar, ter filhos e um marido do lado, vou
dizer claro! Mas ao mesmo tempo, eu tenho um outro lado, de olhar
que a minha vida me fez ou eu me fiz desta forma, de querer fazer os
139
dois papéis, que na própria dança eu fazia e faço ainda. Estou
regendo tanto de um lado quanto do outro. E quando tem uma
pessoa do sexo masculino, se estou namorando ou algo assim, eu
me fragilizo. Faz como que eu quisesse me apoiar demais na
pessoa.
É como se eu perdesse essa força do domínio ou de como se eu
quisesse que ele regesse um pouquinho da minha vida. [Que]
falasse vamos fazer isso ou vamos fazer aquilo; tirar um pouco da
responsabilidade da minha vida. Tanto é que as minhas frustrações
sempre foram muito isso e eu me sentia mal. Quando eu terminava e
colocava as responsabilidades na minha mão de novo, eu me sentia
melhor. Talvez eu ainda tenha, não sei como lidar, ainda, talvez pela
própria luta que eu venha de tentar uma emancipação econômica e
ter todos os desejos que eu sempre quis, sendo realizados, mas pra
isso é como se eu não tivesse tempo pra mais nada. Eu sempre
coloquei a minha profissão em primeiro lugar, depois família, agora
estou mais família do que a profissão. Namorado então, sempre
vinha a profissão em primeiro lugar, o tempo todo, por querer provar
pra mim mesma que eu era capaz. Mas traz conseqüências de
cansaço, de questionar se não tem um caminha mais fácil. Parece
que esta parte da mulher eu tenho os dois lados.
Esses dois lados, a fragilidade total ou a dominação total da vida,
parecem “mal” administrados dentro dela, o que resulta em muita confusão sobre
qual caminho seguir: se é ficar na submissão ou na ação! Parece que para ela não
cabe uma ação mais feminina, mais compartilhada.
É interessante, desde pequena eu sempre me via, eu com minha
casa, com um carrinho, a minha vidinha, com uma criança, mas
nunca o sexo masculino ao meu lado; nunca um companheiro. Eu
conseguia sempre me ver com uma criança, um menino, eu sempre
achei que eu fosse ter um menino, nunca uma menina e, claro, que a
gente vai amadurecendo e, hoje, eu gostaria de ter uma família.
A impressão é de que o companheiro não ocupa o lugar de
companheiro dentro dela. Restam somente polaridades: ou é aquele que cuida
totalmente de tudo, provendo a casa e resolvendo todos os problemas, ou é aquele
que não é necessário, que não tem nada a oferecer para o crescimento pessoal.
Em alguns momentos, fica ainda a impressão de que há medo em
relação à troca proporcionada pelo namoro. Não fica claro se o temor é referente a
não encontrar alguém tão guerreiro quanto os “homens” de sua família: o pai, ou o
lado masculino e batalhador de sua mãe!
A necessidade de provar a si mesma e aos outros é muito presente em
sua fala e denuncia o quanto parece estar movida pelo cumprir. Isso pode estar
representando a presença de um complexo patriarcal, em que o materno e o
Feminino estão também a ele associados, não favorecendo um equilíbrio interno.
140
Eu sempre quis provar. Talvez até isso tenha contribuído para surgir
alguns problemas até psicológicos, porque o tempo todo eu quis
provar, pra eles principalmente e pra mim também, porque eu sou
muito autocrítica. Eu sou perfeccionista demais, então eu sofro, às
vezes, por uma coisa pequena, faço uma tempestade em copo
d’água, porque não saiu do jeito que eu queria. Mas por que, pra
tentar provar pra eles, porque eu escolhi isso, mais eu venho lutando
e conquistando aquilo que eu queria fazer desde pequena. Então, o
tempo todo sempre teve, talvez pelo amadurecimento da idade e por
ajuda de terapia, eu estou deixando um pouco de lado isso e fazendo
com que a minha vida seja um pouco mais prazerosa.
E eu venho de uma família muito lutadora, e eles passavam isso pra
gente, não que eles falassem, mas a gente percebia a atitude deles.
Daniela diz ser muito decidida e parece enfrentar a vida com bastante
garra. Mas, aparentemente, na esfera pessoal/afetiva, ela se defronta com
dificuldades; talvez por não ter muita consciência do que é ser mulher; os papéis
sociais parecem confundi-la. Além disso, tem-se a suposição de que seja uma
mulher com um complexo paterno e um complexo materno muito fortes. Isso parece
atordoá-la e dificultar a conscientização de si mesma.
A representação do animus mais presente em Daniela é a ação,
visivelmente encontrada em diversos relatos de sua vida, tanto pessoais quanto
profissionais.
5.5 Elisa: uma mulher a procura de valor
Seu estilo de vestir é elegante: salto alto, decote e maquiagem.
Demonstrando disponibilidade, responde às perguntas com voz baixa, firme e
pausada. É emotiva, e se emocionou algumas vezes na entrevista. O sentimento de
desamparo toma conta de Elisa, 33 anos, quando aborda a questão familiar; sente
que precisa cuidar de si sozinha, sem poder contar com ninguém. Isso talvez reforce
sua maneira de encarar a vida: de forma organizada, planejada e decidida.
Sobre a profissão, diz que a escolha não foi um processo consciente,
mas decorrente de algumas influências de situações de vida.
A relação com o pai
141
Ainda que Elisa perceba que a relação entre ela e o pai passou por um
processo, a idealização ainda permanece como pano de fundo.
A minha relação [com meu pai] acho que é um processo. Eu sempre
tive meu pai como um herói, sempre fiquei contra a minha mãe e a
favor do meu pai. Sempre morri de ciúmes do meu pai, ficava
cuidando pra ver se ele estava olhando pra outra mulher; puxava os
cabelos dele, quando eu sentava no banco detrás do carro.
O ciúme, que deveria ser uma reação da mãe em relação ao marido,
foi assumido pela filha. Ainda hoje, Elisa declara ficar enciumada em relação ao pai.
Eu acho que pra baixo dos 17, até 17 anos eu fazia isso. Hoje, se eu
vejo isso, eu pergunto: vai encarar? Está encarando por quê? Mas
hoje isso é muito mais raro, porque eu não tenho tanto contato com
ele assim.
Apesar de demonstrar perceber que o pai não é um herói, que é uma
pessoa com qualidades e defeitos, Elisa aparenta ter dificuldade em aceitá-lo como
ele é.
Mas, hoje eu sinto ele mais frágil. Hoje eu vejo meu pai muito mais
fragilizado. Ele é um pai que eu não gostaria de ter. Eu queria aquele
herói, não queria esse. Eu queria olhar pra ele e me sentir protegida,
e hoje eu sinto que muitas vezes eu sinto que eu tenho que proteger.
[Chora]. Aí eu tenho que dar conta da minha vida, que nem ele dá
conta da vida dele. Aí eu me afasto da minha família, pra eu não ficar
sabendo dos problemas dele. Mas, se eu tenho dinheiro guardado e
ele precisa, eu digo pra ele pegar, quando ele puder ele me paga.
[...] ele é um pai muito prestativo, nunca deixou faltar nada. Ele
nunca conseguiu manter uma relação muito próxima; eu me sentia
meio afastada dele, um pouco, dele; eu não conseguia chegar e dar
um abraço nele. E aí, num desses momentos aí pra trás, eu me
aproximei dele e ele se aproximou e começou a dizer que me amava.
[Chora]. ficamos mais próximos; aquela figura assim deixou de
existir e. hoje. ele é um pato choco, não tem pata choca? Ele é um
pato choco. Eu sinto ele magoado, ferido.
O choro é uma constante nesta entrevista, sempre que o assunto
aborda o pai. A impressão é de que há uma ferida profunda nessa relação, que não
consegue ficar contida; quando tocada, manifesta-se na forma de choro, mágoa e
decepção. Apesar de demonstrar certa consciência das características do pai, a
idealização permanece, uma vez que existe um forte desejo de que ele fosse aquele
herói, imbatível, forte.
Talvez parte dessa dificuldade tenha a interferência da mãe. Esta
parece ter sempre defendido o pai perante os filhos, apresentando-o com uma força
142
que talvez não tivesse; ela não deixou que a fragilidade dele aparecesse para os
filhos. Quando Elisa percebe o pai como frágil, é algo muito difícil de ser aceito.
Aí, quando meu pai saía pra viajar, ele era caminhoneiro, quando eu
era pequena, e minha mãe nunca foi de falar mal do meu pai, ela
sempre dizia que ele estava trabalhando, que precisava trabalhar pra
ter dinheiro, pra gente comer, e quando ele chegava era festa, [a
gente] entrava e ia na boléia do caminhão.
As lembranças de infância permanecem fortes na memória de Elisa: o
pai como aquele que, quando retorna, espalha a alegria. Na vida atual, apesar de
não morar na casa dos pais, Elisa parece não ter desidealizado esse pai e ainda
buscar o pai-herói de sua infância.
Aí, com o tempo, teve uma subida muito grande. Meu pai, nós
tivemos uma situação financeira muito boa e, com o decorrer do
tempo, meu tio entrou pra política e um monte de coisas e caiu de
novo. Que caiu mesmo foi no penúltimo ano de minha faculdade, e
ele não conseguiu se levantar, até hoje, direito.
Essa queda no padrão de qualidade de vida, de muito boa para uma
realidade mais difícil, é uma das circunstâncias que Elisa não consegue aceitar. Ela
ainda espera que o pai-herói esteja por perto para ajudá-la; ainda permanece a
dificuldade de aceitá-lo como ele é: um homem frágil, que perdeu tudo e depende
muito mais dela para viver.
Meu pai é muito mais sentimental, ele é muito sentimento. Uma vez
ele caiu num conto de um estelionatário e perdeu muitos mil reais;
deu de bandeja para o ladrão. Meu pai é ganancioso, não
extremamente, mas o sonho dele é um dia ter uma fazenda. E eu
escrevi uma cartinha pra ele, um dia, de que eu iria ajudar ele a
comprar a fazenda. Não teve, ne´? Então, aquela figura forte que eu
via, hoje eu não vejo ele forte. Ele é mais frágil do que eu. [Chora].
Ele fala que eu estou no céu, porque estou trabalhando, tenho meu
carro, pago minhas contas, ele está me devendo uma boa quantia
[...]. Então, eu não sinto que meu pai é alguém que eu possa contar
financeiramente, ou se precisar de um remédio. Eu não vou poder
contar com ele.
Essa situação, de queda no padrão de vida e de não poder contar mais
com um pai provedor, parece ter proporcionado uma consciência do que Elisa
estava fazendo com sua vida: não guardando economias. Diante dessa realidade, a
mudança em relação às atitudes de economizar dinheiro e aceitar que não tem com
quem contar financeiramente na família foi muito sofrida.
E teve uma época que eu ganhava e eu torrava tudo; eu ganhava
menos, mas torrava tudo. Eu acho que tem a ver com isso, como eu
posso ter mais que meu pai? Como eu posso ganhar mais que ele?
143
Eu estou guardando dinheiro e meu pai está passando dificuldade!
Hoje eu não penso mais assim, eu tenho que escrever minha história
diferente da dele. Apesar de ter emprestado dinheiro... Hoje eu vejo
meu pai muito frágil, carente, desprotegido.
Elisa demonstra reconhecer que o pai é um ótimo trabalhador, mas que
deveria seguir ordens; ele não poderia ser o próprio administrador. A mãe é vista por
ela como aquela que conseguiria administrar muito bem, mas que foi sempre
diminuída pelo pai.
[...] Meu pai, alguém que não tinha cabeça para o comércio, mas ao
mesmo tempo ele conseguiu. Meu pai era mais braçal, minha mãe é
que seria mais cabeça intelectual, mais pensamento; ela é muito
mais organizada; eu tenho isso dela.
Elisa passa a impressão de carregar uma mágoa muito grande desse
pai.
Eu estou com o nome sujo por causa disso. Meu pai usou cheque
meu por anos, a loja dele está no meu nome, eu sirvo meio como
laranja na família.
Quando ele concordou com o meu irmão que eu não tinha direito aos
bens dele, porque eu não trabalhava lá com ele, eu me senti muito
traída por ele. Uma vez ele me acusou de ter feito uma coisa e me
deu um tapa na cara e eu não fiz aquilo que ele me acusou. Mas
hoje eu vejo ele frágil, e eu tenho que ter uma estrutura pra no futuro
eu talvez ter que dar conta dele. Então, tem essa história com o meu
pai.
A história dessa relação com o pai parece ser marcada pelo sentimento
de desvalorização. Ele demonstra ter dificuldades em reconhecer o empenho de
Elisa em ajudá-lo. Sua grande mágoa está relacionada ao não reconhecimento e
valorização pelo pai em relação ao seu empenho em fornecer a ele o conforto que
conquistou por si mesma. O fato de ter sido excluída da herança familiar só fez
aumentar a mágoa. O registro dessa relação é marcado por uma fala carregada de
muito choro e emoção. Para quem ouve seu relato sobre o pai, fica a impressão de
que ele apresenta alguma dificuldade em assumir escolhas próprias; parece que
acaba seguindo escolhas e decisões de outros.
Na esfera da organização, Elisa diz se identificar mais com a mãe.
Elisa transmite a impressão de que percebe a fragilidade do pai no
trabalho.
A primeira característica que Elisa aborda, referente ao pai no trabalho,
é sua incapacidade de dizer não. A primeira colocação sobre isso é feita como um
144
problema; depois, parece considerar que o pai possui grande dificuldade em dizer
não. Esse fato, segundo ela, pode ter contribuído para algumas dificuldades que o
pai enfrentou no trabalho.
Meu pai não sabe dizer não, ou não sabia, não sei. Porque hoje ele
não tem trabalhado como ele trabalhava por causa dos tratamentos
dos desmaios que ele teve.
Mas eu vejo que ele não sabe dizer não, tem uma necessidade muito
grande de agradar. Ele é sentimental, vem se tornando cada vez
mais sentimental. Tem chorado com muito mais facilidade, vendo
situações [como] homenagens.
Elisa relata que o pai não leva em conta a si mesmo, no ambiente de
trabalho.
Sempre acaba [se prejudicando] aquilo que é vendido, há sempre um
desvalor; nunca é vendido pelo que ele quer, sempre menos.
Ele parece não privilegiar o negócio e, sim, a relação com as pessoas
Todo mundo gosta dele e ele está sempre ajudando, fazendo um
favor, tem um coração muito bom, precisou dele ele está ali.
Reservado, muito fechado, não é de falar o que sentia. Em relação
ao trabalho, em casa ele não dividia com ninguém, só ficava irritado.
Em casa ele demonstrava o que sentia, mas lá fora, na loja, estava
tudo bem.
Esse jeito de “bom coração” do pai pode esconder os sentimentos que
ele tem em relação às pessoas, às coisas ou às situações. Segundo Elisa, ele
demonstrava a irritação gerada no trabalho somente quando chegava em casa. No
trabalho, ele a encobria das pessoas que a causavam. Quando diante das
dificuldades vividas, o pai não expressava os problemas. Acabava guardando para
si, demonstrando, diante da família, apenas muita irritação.
Elisa conta que, agindo desta maneira o pai costuma se relacionar
muito bem com os superiores e com os subordinados. Mas, ao final, ele se
subordina e acaba sempre sendo explorado.
Ele acaba sendo explorado pelos inferiores e pelos superiores, eu
vejo ele meio, parece bobo da corte.É como se ele chegasse numa
cerimônia muito requintada, onde tem que ter etiqueta e ele, por
exemplo, tem determinados lugares que você não pode ir de
bermuda, num velório. E ele vai! Minha mãe quer morrer e eu
também. Tudo bem que isso é bem persona. Tudo isso pra dizer que
ele é simples.
Eu vejo meu pai muito simplório. É muito boa a relação dele com as
pessoas, mas ele é muito simplório. Eu acho que a persona vai bem
em algumas situações. Meu pai é muito ingênuo.
145
Essa ingenuidade é sentida pela filha e pela mãe como algo causador
de vergonha. Elisa parece arriscar um palpite, ao dizer que falta uma persona mais
fortalecida ao pai, já que parece se expor demais aos outros.
A maneira de ser “boazinha” do pai, de não conseguir impor um limite e
de fazer valer sua vontade, acaba concorrendo para que seja manipulado pelas
pessoas.
Tanto é que um funcionário pedia pra faltar e ele concordava com a
falta do funcionário e depois ficava sobrecarregado. Ou quando tinha
que descarregar mercadoria, ele falava pra descarregar. Acho que
pra não sentir que não tinha dinheiro ou que não pode e pra que os
outros achassem ele legal. Talvez ele nunca tivesse percebido o
papel que ele fazia.
Segundo Elisa, essa atitude do pai de agradar o outro acaba
prejudicando a si mesmo e à família, que, muitas vezes, enfrentou dívidas e revoltas.
Ela diz que, por várias vezes, assumiu o papel de repreender o pai; papel que
parece estar invertido na família.
Eu falava pra ele: “Vamos lá com aquele tonto, que ele compra toda
a mercadoria”. E ele concorda comigo que fez muito disso, e disse
pra ele: “Então aprenda! Você não tem que comprar tudo pra
agradar. Você pode escolher!”.
Elisa diz perceber que sua revolta passava por inseguranças e
incertezas quanto ao futuro e até por desconfianças quanto à honestidade do pai.
Talvez tenha faltado a segurança necessária de provedor, que o pai transmite aos
filhos.
Aí vinha na minha cabeça que meu pai é muito enrolado [...]. Eu
pensava que ele era caloteiro. Que ele era caloteiro, que ele tinha
que honrar com os compromissos dele. Eu via minha mãe mal, ele
ficava desesperado, sem saber o que fazer, dizia que queria voltar
para o sítio. [...] Acabamos ficando na cidade por outros motivos,
mas a vontade dele era voltar para o sítio. Então, tudo isso foi
fazendo com que ele sofresse muito e fosse se desmontando.
Talvez todos esses sentimentos de insegurança e incerteza gerados
em Elisa podem ter favorecido muito do que ela é hoje: uma mulher batalhadora. A
fraqueza e a incerteza que o pai passou para ela, quando era adolescente, ainda
parecem presentes, como feridas profundas. Elisa dá a impressão de não aceitar a
realidade desse pai; o fato de que ele não é um herói. Ele é frágil e falível.
Apesar das dificuldades na vida, Elisa conta que o pai passou por
alguns momentos muito bons, profissionalmente; de algumas crises, ainda está se
recuperando. Quando passava por momentos melhores, ele demonstrava muito
146
contentamento, mas, segundo ela, não sabia aproveitar ou, talvez, em função da
dificuldade em dizer não e desagradar o outro, acabava não podendo desfrutar.
Em relação à promoção, sempre [reagiu ficando] muito feliz. Mas,
sempre teve meu tio que gastava muito e ele dizia pra gente não
gastar. Ele não chegava no meu tio e dizia que ele estava gastando
muito. Então, a nossa família acaba sendo prejudicada. Todo mundo
gostava do meu pai e do meu tio não, no trabalho.
Meu pai era a mão-de-obra. O meu tio era o bon vivant.
As crises graves, ele as demonstrava à família, pois ficava
desnorteado. Elisa acabava correndo ajudá-lo.
Ele fica desnorteado! Foi nessas vezes que nessa hora passei
dinheiro pra ele, porque minha mãe falava que ele ia ter um infarto, e
eu ia no banco e tirava e dava.
Ela parece perceber que o pai não aprendeu a viver a vida nem a
saborear outros paladares, diferentes do trabalho. Quando é para desfrutar, perde
tudo e tem de recomeçar.
[De uns 15 anos pra cá] Meu avô levava o meu tio pra negociar na
cidade e deixava meu pai na lavoura. Então, isso se manteve na
história de vida do meu pai. Eu soube disso há pouco tempo. Meu
pai ficava na plantação, meu pai é que dava fruto e sabia produzir; e
meu tio negociava. Ele sempre foi de trabalhar muito, feito aquele lá
da roça; ele não sabe desfrutar e perde.
A relação com a profissão
A escolha de Elisa não passou por um sonho de infância e nem foi
realizada de maneira muito consciente. O primeiro sinal que a levou a escolher a
Psicologia como profissão foi o fato de ser muito requisitada como conselheira no
colégio.
Não foi consciente. Não era uma coisa que eu queria desde
pequena. Mas, quando eu estava no colegial, os namorados das
minhas amigas, quando eles tinham uma discussão, vinham
conversar comigo; as amigas vinham conversar comigo. Então,
parece que eu sempre fui meio referência assim, principalmente,
quanto a relacionamentos. E aí, eu sempre quis fazer Arquitetura,
mas por causa da questão de decoração, eu gosto da decoração, do
belo, de organização, de harmonia de cores. Tudo isso. E a
psicologia, eu tive uma professora no colegial, que influenciou,
porque eu tive de certa forma, uma relação positiva com ela. E aí, eu
147
coloquei como opção Psicologia e depois Pedagogia. Acho que esse
foi um dos motivos. E entrei em Pedagogia, numa faculdade, fiz a
inscrição. [...], depois, veio a segunda chamada da faculdade [de
psicologia], aí eu fui lá e concluí.
A relação positiva com a professora pode ter contribuído para a
escolha, mas a comparação entre primas, que ocorria em sua família, também pode
ter tido influência.
Teve uma pessoa também, que é assim, a minha mãe, ela sempre
falava de uma sobrinha dela que estava fazendo psicologia. Então,
pode ser que tenha havido aí alguma coisa, porque ela sempre me
comparava a esta prima.
De que a minha prima era “O” e eu era “a”. Então, ela era a que fazia
tudo certinho. Só que ela tentou o suicídio, é superinfeliz. Tem “n”
questões. A vida dela acabou tomando um rumo e a minha, se for
pra ser igual, acabou tomando um outro rumo. Talvez tenha tido aí,
agora que estou pensando, um pouco de influência. Pela
comparação negativa que era atribuída a mim e superior a ela. Ela
sempre comparava, e nem mora na minha cidade, mora em outro
estado. Então, não tenho muita ligação.
Apesar da distância entre as primas, a necessidade de se sentir
valorizada e aceita pode ter marcado a escolha profissional. O destaque da mãe
para o valor da prima colocava uma possibilidade de também ser reconhecida em
seu valor.
O pai parece ter buscado influenciá-la para que cursasse Direito, por
considerar que poderia ser uma carreira promissora financeiramente, mas não por
achar que fosse do desejo de Elisa. Se formos considerar a influência familiar, o
único fator que parece ter tido peso foi o desejo da mãe de que Elisa não parasse de
estudar. Este foi seguido.
Meu pai queria que eu fizesse direito e minha mãe não queria que eu
parasse de estudar. Mas não teve assim “ai, que legal”.
Ele queria que eu fizesse direito porque um amigo dele que era
advogado estava se dando bem financeiramente, era por isso. Então,
ele achou que se eu fizesse direito, teria uma porta aberta. Não sei,
porque as minhas portas sou eu que tenho que abrir hoje. Não tem
ninguém que abra pra mim. Não tenho sobrenome, não tenho nada,
não tenho influência na minha cidade.
A mãe parece ter influenciado a filha a fazer escolhas diferentes das
suas, reforçando sempre que Elisa deveria continuar estudando e não seguir o
caminho que ela escolheu.
Minha mãe sempre trabalhou na roça e em casa. Ela sempre falou
pra eu não fazer da minha vida o que ela fez da dela.
148
Apesar de não falar explicitamente sobre sua realização profissional,
Elisa dá a impressão de se sentir satisfeita e realizada com a escolha que fez. A
satisfação financeira parece estar presente. Fica a impressão de que Elisa carrega
algum ressentimento por não ter a quem recorrer financeiramente, se precisar.
Talvez isso esteja relacionado a não poder contar com o pai, principalmente,
financeiramente.
A relação com o trabalho
Elisa aparenta assumir uma postura assertiva e de autoconfiança no
trabalho e com os profissionais que a cercam.
Quando eu sinto a necessidade, por exemplo, se o convênio paga
um “x”, eu fui até o dono e falei que estava me sentindo abusada, e
ele disse que não gostou do termo que usei, e eu disse que era
como eu me sentia.
[sobre a relação com as pessoas] Hoje não me pega mais. Antes me
pegava no sentido da baixa estima. Hoje eu falo de igual pra igual
com qualquer um.
Contudo, aliada a esta imagem, Elisa parece deslizar em algumas
atitudes e reações, quando algo parece atingi-la internamente, no que se refere ao
sentimento de desvalorização.
Mas, teve um dia que o médico disse assim: “Como você pode
ajudar os pacientes se você não é médica?” E eu disse que era
psicóloga. E ele continuou: “Mas, você não entende nada de cirurgia
[...], começou a falar um monte de nomes [de problemas relativos à
Medicina] e eu disse: “Você esquece que se eu não tivesse cuidando
da paciente do seu filho, ele teria que sair donde estivesse pra cuidar
dela? Então, meu trabalho é importante!” Ele disse: “Eu não falei
isso”. Mas, nesse sentido houve uma desvalorização.
Elisa demonstra caminhar bem na esfera das relações, desde que não
seja acionado um complexo de inferioridade. Nesta hora, a reação não é em defesa
da profissão, do papel do profissional e, sim, em defesa de si mesma; de sua
importância e de seu valor, como pessoa.
Sobre a relação com os profissionais, tanto chefia quanto subordinados
diz ser muito boa.
149
Apesar de trabalhar sozinha, eu atendo dentro de um ambulatório,
dentro de um hospital. Então, eu tenho contato direto com médicos,
anestesistas, fisioterapeutas, secretárias, enfermeiros; tenho este
contato duas vezes por semana. Minha relação com a chefia é ótima.
Essa coisa de hierarquia lá dentro, eu não sinto que tenha
problemas.
Lá eu não tenho contato com outros profissionais da minha área. A
relação com os médicos costuma ser boa, mas eu tenho contato
restrito com alguns médicos.
[Relação com subordinados] Ótimo, a gente dá muita risada,
pergunta-se muito, vem tirar as dúvidas, pedir sugestões.Tenho uma
relação muito positiva no ambulatório. No hospital também, já atendi
muito paciente do hospital, funcionários, o sigilo se manteve, pra mim
é muito tranqüilo. Graças a Deus.
Não encontro dificuldade. Tenho acesso livre ao centro cirúrgico, à
UTI. Se eu tenho alguma queixa vou direto para o dono ou pra um
funcionário.
Ainda que a relação seja boa, quando se sente desvalorizada, como,
por exemplo nos honorários, sai em defesa não tanto da profissional e, sim, da
mulher Elisa.
Houve dificuldade quando eles quiseram impor um valor, um preço
no meu trabalho. Aí eu fui e conversei com o dono do hospital, e
coloquei que não achava certo eles colocarem preço no meu
trabalho. Falei que ia cobrar quanto eu quisesse e quanto meu
paciente pudesse pagar e que não trabalharia por um valor de 30
reais a sessão. Falei que foi uma cartinha que chegou ao meu
consultório. A partir daí, a relação com ele ficou muito mais direta e
muito melhor, porque ele me escuta e sempre temos reuniões toda
semana pra discutir.
Como eu reajo? Eu falo que não é tudo louco, que todo mundo tem
problemas, todos nós temos as nossas dificuldades, temos as
nossas questões. Eu falo pra ele: “Você não é médico, não tem
problemas de saúde? Você sabe que não pode beber e você bebe.
O seu problema: fígado. “Está bom, tá bom pode parar!!!!”
Porque ainda existe aquilo de que psicóloga, fisioterapeuta,
enfermeira, recepcionista é tudo comida de médico. Ainda tem muito
esta conotação sexual. Mas eu me coloco no meu lugar. De não me
envolver, trabalho é trabalho e pronto.
Num primeiro momento, parece sair em defesa e saber se proteger; em
outro, deixa transparecer alguns ressentimentos em relação aos médicos.
Com pacientes, as dificuldades surgem na questão financeira; quando
há um “calote”, sua reação é enraivecida. Talvez Isso esteja relacionado à mesma
desvalorização que mencionou sobre os profissionais. Tudo leva a crer que quando
150
é “pega” por esse aspecto mais profundo, tende a reagir carregada de emoção; de
raiva.
Quando um paciente não paga, eu fico enfurecida. Eu ligo e dizem
que vão pagar! Normalmente, são pacientes que interromperam. Eu
sou chata. Usou? Não usufruiu? Nada mais justo do que pagar pelo
combinado. Então, muitas vezes, eu tenho que falar com muito
cuidado. Mas isso me deixa no mesmo estado de ansiedade do
baixo movimento.
Ao se ouvir esta fala, transparece muita raiva; em seguida, parece se
conter e retomar a voz mais baixa e firme, do início da entrevista.
Quando diante de crises, Elisa diz ter reações de ansiedade e
somatização, com quedas de resistência. Contudo, diz conseguir fazer uma auto-
avaliação diante da situação para poder ver se existe algo além de fatores
econômicos em jogo.
Quando tem uma redução da demanda, eu fico extremamente
ansiosa, porque as contas chegam em casa e por isso que eu
aprendi a fazer reserva. Mas, ao mesmo tempo, eu passo a prestar
atenção ao que está acontecendo. Se eu estava sem horários, o que
está levando a ficar com horários vazios! Ou é pra eu me cuidar um
pouco melhor, me alimentar, ou porque alguma coisa aqui dentro não
está funcionando, que não está chegando paciente. Então, eu fico
extremamente ansiosa. Aí eu como, minha resistência cai, eu fico
irritada, acontece algumas reações físicas, jogo pro corpo, como a
herpes que saiu na minha boca esta semana.
Fica a impressão de que algumas reações contradizem a maneira
como ela se apresenta: calma, segura, assertiva. Em alguns momentos, Elisa
transparece uma tranqüilidade; em outros, parece tomada por uma emoção muito
forte. Muitas vezes, são reações distintas para questões semelhantes: o trato com
chefia, a valorização profissional. Parece que consegue permanecer em sua persona
até um determinado ponto. Quando esse ponto é invadido por uma profundidade de
emoções, Elisa transparece ser tomada pelos conteúdos mais profundos e, então,
sua persona se fragiliza.
Talvez isso tenha alguma relação com a dificuldade que o pai também
tem de se posicionar diante dos problemas. Parece que Elisa precisou desenvolver
essa proteção muito solitariamente; aprender a se defender e a cuidar de si mesma
sozinha.
Quanto às promoções, Elisa diz reagir com certa apreensão em
relação ao novo e com uma dose de insegurança, mas demonstra conseguir
desfrutar as conquistas.
151
Eu me sinto bem. Quando eu fui convidada a trabalhar com cirurgia
bariátrica, no início, eu fiquei um pouco apreensiva. Pensei em como
ia trabalhar com obesos? Mas, encarei isso, acompanho a cirurgia,
faço visitas para os pacientes.
O médico estava começando a atender pessoas para esta cirurgia e
eu questionei se ele já tinha uma equipe formada, e ele disse que
não e me perguntou se havia interesse da minha parte em estar
sendo a psicóloga da equipe dele, e eu disse que a princípio, sim,
mas que eu deveria estar lendo para estar por dentro do assunto. E
eu perguntei se poderia estar assistindo e ele concordou, e assim
começou a parceria. Eu encarei, eu assumi, e hoje eu sou a única
psicóloga que atende pacientes dele.
De insegurança, sim, porque eu não sabia. Eu me questionava se
daria conta. Porque são obesos, têm outra dinâmica e eu já vivi um
pouquinho disso sem ser obesa mórbida, mas não estando contente
com o meu corpo, mas havia uma identificação aí. Não da mesma
forma, mas eu tinha as minhas questões.
A relação com a mãe
A relação com a mãe é marcada por algumas identificações, na esfera
da organização e na maneira de elaborar os conflitos e crises.
Muito justa, anota tudo, muito organizada. A mesma ansiedade que
eu sinto quando não tenho paciente ou um paciente não me paga:
fico irritada, perco sono, aí dá infecção de urina, [é] como ela.
Apesar de dizer que tem consciência dessa identificação, que se refere
à ansiedade, ela relata que a mãe atribuiu a ela funções que não seriam dela
Elisa. A mãe parece ter aberto mão de algumas responsabilidades.
Mas a minha mãe, ela não gostava de cozinhar, então, ela me jogava
na cozinha e, se não fizesse, ela contava para o meu pai e eu levava
bronca. Fazer compra, eu que ia com meu pai. Assumi uma parte da
função de mãe; de mãe e mulher; assumi uma boa parte.
Essa percepção crítica da relação que a mãe estabelecia entre ela e o
pai pode ter contribuído para que o vínculo mãe-filha também sofresse
transformações. A crítica que Elisa faz à maneira de a mãe agir com ela, mostra uma
conscientização da dinâmica estabelecida na família entre pai-mãe-filha.
Essa “confusão” de papéis apoiada, autorizada e cobrada pela mãe
parece ter contribuído muito para a proximidade maior entre ela e o pai. A mãe pode
ter cooperado para impulsionar algumas atitudes na filha, no que se refere à vida de
152
Elisa. Talvez isso tenha relação com um complexo materno do tipo de exacerbação
do Eros, em que ocorre uma relação mais incestuosa com o pai, como o próprio
Jung (2000) descreveu.
A mãe aparenta encorajá-la a seguir o próprio caminho. Contudo, Elisa
diz não sentir desta maneira e critica essa atitude.
Quando eu tirei carta e bati o carro do meu pai, eu cheguei em casa
falando que eu nunca mais ia pegar aquele carro na mão, e ela falou
pra eu pegar, e ela me fez descer e pegar o carro de novo. De certa
forma, ela impulsiona.
Eu ainda sinto que é como se eu tivesse que provar pra ela que eu
consigo. Mas, no caso do carro, ela não dirige, e eu realizei o desejo
dela.
Parece que cabia a Elisa fazer um novo percurso. Ela (Elisa) diz sentir
que muitas coisas que faz ainda é para provar para a mãe que é capaz. Desta
forma, fica a questão, onde está a individualidade de Elisa? Até que ponto está
vivendo a sua história? Será que está seguindo o caminho (sonhado) da mãe?
A referência ao Feminino e à mulher, para Elisa, demosntra estar muito
relacionada à sensualidade e à sedução. Elisa tem uma maneira de se vestir muito
feminina, com decotes e roupas que valorizam o seu corpo, na medida, sem
excessos. A impressão que fica é que ela gosta de se sentir admirada e valorizada
pelas escolhas que faz da maneira de se apresentar. A roupa é elegante; usa salto
alto e maquiagem.
Eu sinto que quando eu entro, olham. No sentido de observar roupa,
porque depois vem o elogio: “Nossa, como a senhora se veste bem!”
Eu não vejo que é negativo.
Em alguns momentos, esse aspecto da sua maneira de se relacionar
com um Feminino sedutor parece interferir no ambiente de trabalho, causando-lhe
algum desconforto.
Muitas vezes, eu vejo como tendo uma linha muito tênue,
principalmente em relação ao feminino, por ser mulher. Aquela coisa
da transferência mesmo, aí existe um pouco de dificuldade minha em
lidar com o incômodo que acaba gerando, e que muitas vezes eles
acabam confundindo as coisas, o papel. Até pedir em namoro,
mandar flores vermelhas. Ir na sessão porque ficaram sabendo que é
gostosa. Dificuldades, assim, eu vejo essas, por ser mulher. Agora,
dentro do mercado de trabalho, não encontro dificuldade, problemas,
por ser mulher.
153
Auto-imagem
Um sentimento que marca o discurso de Elisa é inferioridade. Se ela
não diz explicitamente, implicitamente, esta parece ser a sua marca, de lutar a todo
o momento para vencer este registro interno.
A maneira como se coloca, na entrevista, dá a impressão de realçar o
percurso que já realizou no que se refere às descobertas pessoais. Elisa aparenta
ter consciência de que por muito tempo se espelhou nas mulheres ao seu redor:
mãe e amigas. Da mãe, “herdou” o estilo clássico, só recentemente revisado; e das
amigas, os copiou, sem se questionar se era correspondente à sua maneira de ser.
Hoje, parece ter construído uma imagem de si bem feminina, compatível com a sua
maneira de ser e pensar. Como ela mesma diz: “encontrei o meu estilo”.
Hoje é! [tranqüilo]. Eu não acreditava [nos elogios]. Eu não tinha
achado o meu estilo ainda. Eu era um pouquinho de cada amiga do
colegial. Aí eu me formei, é claro, eu tive que usar uma persona que
eu já adquiri ao longo da vida, porque a minha mãe também é muito
clássica. Hoje, eu estar de calça jeans pra mim é uma conquista,
porque eu nunca fui de usar calça jeans. E hoje não me sinto mal,
até trabalho de calça jeans de vez em quando, coisa que meu
guarda-roupa é todo social. Eu não tenho tênis!
A auto-estima um pouco baixa, associada à sua origem aquela que
vem do sítio” pode ter concorrido para Elisa sentir vergonha de suas bases. Hoje,
procura rever essa percepção e se esforça por valorizar o que vem da terra.
Então, eu sempre me achava muito inferior, na escola. E hoje eu vejo
que o que vem da terra é muito valorizado e isso me ajuda, de certa
forma.
E eu, uma vez, no colegial, comecei a ter falta de ar, falta de ar e
acabei indo pro cardiologista, e eu passava mal porque não queria ir
para o sítio, e queria continuar na cidade. Acabamos ficando na
cidade por outros motivos.
Sua identidade como pessoa e como mulher é relatada por ela como
heranças de pai e de mãe. A identificação com as figuras parentais é muito grande.
Será que Elisa sabe o que realmente é dela e o que pertence a essa “herança”
parental?
Eu sou organizada feito minha mãe; eu gosto de trequinho na minha
casa feito meu pai. Eu gosto de cozinhar feito meu pai.
Muita coisa do meu pai, a coisa da ingenuidade, de ser mal
interpretada, por fazer uma coisa e ter um objetivo com isso e ser
154
outro a ser entendido. Acho que isso tem algo do meu pai; acho que
a baixa auto-estima vem do meu pai.
Da minha mãe? Algumas manias de organização. Minha mãe é
muito querida, é muito acolhedora. Mas ela reclama muito, é meio
vítima. Acho que eu já me coloquei muito como vítima.
Meu pai é mais extrovertido e minha mãe é mais recolhida.
A conscientização das semelhanças e diferenças da herança dos pais
parece que a põe em contato maior consigo mesma. Fica a impressão de não se
permitir seguir seu próprio caminho. Resta a dúvida se Elisa sabe qual é o seu
caminho ou se muito do que faz está em relação direta com a oposição às ações
familiares.
Até hoje fica esquisito eu ter um carro zero e meu pai não ter. Ainda
fico sentindo o não merecimento.
Sua compreensão aparenta ficar restrita à baixa auto-estima e à
desvalorização, denunciando a presença marcante de complexos da ordem do
paterno e do materno. Apesar de parecer desenvolver com sucesso o seu trabalho,
que envolve o acolher e o cuidar, Elisa talvez encontre dificuldade de desenvolver
tais aspectos em sua própria vida, no que se refere a um companheiro, ao acolher
este outro em sua vida. Uma das falas do pai foi marcante.
Outra coisa quando ele falou: tenha a sua casa, porque se algum dia
o seu casamento não der certo, você tem pra onde voltar. Ao mesmo
tempo, eu entendi o que ele quis dizer. Mas eu entendi também o
que ele quis dizer por trás das palavras que ele não sabe
conscientemente, que é: seu casamento não vai dar certo. E aí, eu
não namoro sério com ninguém, porque se não vai dar certo mesmo,
eu fico sozinha, é uma atitude que eu tive.
Elisa apenas conseguiu ouvir que ela “falharia” na relação com o outro.
Talvez o pai quisesse alertá-la das dificuldades que ele encontrou por não ter um
lugar garantido. No entanto, a leitura de Elisa é de que ela não conseguirá, e assim
parece reagir a novas possibilidades afetivas. Nesse sentido, demonstra não possuir
um feminino positivo internalizado, pois sua relação com o outro é pela sedução. É
possível que a relação com a mãe tenha constelado aspectos negativos do
arquétipo materno, não fornecendo bases para aprofundar os vínculos. Na esfera
profissional, Elisa consegue suprir esta ferida materna, canalizando para a relação
paciente-profissional.
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A impressão que fica é que Elisa, apesar de não morar com os pais e
ter seu próprio espaço, ainda está muito ligada afetivamente a eles. A identificação é
muito presente, tanto com a mãe quanto com o pai.
No que se refere ao pai, a impressão é de que a identificação ocorre no
nível talvez da anima. Elisa está mais próxima da maneira afetiva do pai; com a mãe,
a identificação ocorre nas ações promovidas na vida da filha. Será que isso não está
mais relacionado a uma identificação com o animus da mãe? Talvez nessa interação
familiar, a mãe tenha exercido a função ordenadora, discriminatória mais fortemente
que o pai.
5.6 Fabiana: uma mulher de valor
Fabiana, 31 anos, psicóloga, é a única participante da pesquisa que
mora com os pais. Muito comunicativa, com tom de voz firme e claro, buscou
responder a todas as perguntas com tranqüilidade, questionando sempre quando
não compreendia alguma coisa. Sua maneira de se vestir é simples e clássica, mas
sempre com salto alto, como faz questão de mencionar. Extrovertida, apresenta um
olhar prático e objetivo sobre a vida e utiliza o senso de justiça como seu grande
aliado. Sua marca parece ser: para tudo há uma saída; basta tirar o foco do
problema e colocá-lo na sua resolução.
A relação com o pai
Durante toda a entrevista, em nenhum momento, Fabiana demonstrou
sinais de dificuldade na relação com o pai.
Com meu pai é tão boa; não tenho problema com meu pai. É que eu
mudei tanto de papel com o meu pai, do que era, que está tão legal.
Mas sempre foi, mesmo na época da adolescência em que tinha
conflito. Porque, assim, sou a única mulher e a caçula. Acabo por ter
uma afinidade muito grande com ele. Os desentendimentos que nós
tínhamos, foi na fase da adolescência e nunca foi conflito de frente;
ele nunca bateu de frente; eu batia de frente com ele, porque ele
156
adorava me provocar; nunca tivemos altas brigas e que depois que
você cresce você começa a perceber, que são coisas que depois
que você fica adulta você percebe, que ele pisca para sua mãe e fala
alguma coisa para te irritar. E que, quando era mais nova, eu não
percebia e gritava e esperneava e falava que ele estava me
provocando.
A primeira impressão é de que a relação é tranqüila, fincada na
realidade, com poucas idealizações. As reações diante das posturas e atitudes do
pai parecem ser baseadas em reflexões e novas construções.
Hoje, eu olho para ele e pisco do outro lado; eu sei que o objetivo
dele seria estar me enchendo o saco, e eu levo na esportiva e, então
não me irrita.
É possível que o relacionamento tranqüilo seja decorrente do
amadurecimento e da estratégia que diz ter encontrado, para lidar com as
provocações do pai. O pai também passou a respeitar a atuação profissional de
Fabiana. Esse respeito não é algo dito explicitamente, mas a admiração parece ficar
evidente.
No aspecto da profissão também. Eu sinto que ele tem um
superorgulho, embora no começo ele não quisesse, ele achava que
eu tinha que fazer direito, ele acha superlegal [ter a filha psicóloga],
ele enche a boca pra falar pra todo mundo.
Minha mãe reparou que uma vez, eles estavam num lugar que eu
não estava, e ela percebeu o quanto ele infla para falar de mim.
Podemos destacar que a identificação com o pai se faz presente no
que se refere às atitudes e ao gosto pelo estudo e pela leitura.
A gente tem uma coisa muito parecida, que os meus irmãos não têm
com eles, trabalhando juntos: ele gosta muito de estudar e de ler. Por
exemplo, meus irmãos, depois que se formaram, nunca fizeram
curso de atualização, e eu nem termino um estou fazendo outro; sou
ratazana de livraria e fiquei sabendo bem depois que ele também
era. Esta relação, eu vejo que ele incentiva. [...] Sempre teve muito
incentivo.
A admiração pelo pai é bastante presente em sua fala. No papel de
filha, demonstra preocupar-se bastante com o cuidado da saúde do pai.
E hoje meu papel com meu pai mudou, nessa relação profissional.
Porque acho que isso faz bem também enquanto filha,
principalmente, porque a gente também tem admiração pelo pai e [é
legal] saber que o pai também admira você. Então, acho que isso é
muito legal. Só que hoje, eu acabei entrando num papel meio que de
cuidadora. Eu passo a estar controlando questões de saúde e
cuidados e ele passa hoje a me ouvir.
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É preciso fazer uma observação de que algo ocorre uma inversão de
papéis no que se refere ao cuidar. Isso talvez pudesse ser considerado como
esperado se a esposa não estivesse presente! Fica um questionamento sobre o que
acontece nessa relação familiar, em que a filha assume a função de companheira de
cuidados do pai, função essa que poderia ser desempenhada pela esposa.
Tem uns dois anos, essa coisa do cuidador. Foi porque antes eu
levava ele e ficava com ele, mas ele estava sempre arredio e enchia
o saco, literalmente, pois eu estava levando e ele ficava
resmungando com você.
Agora falo que é para ele ligar. Têm profissionais que são difíceis de
falar, mas ele sempre quis que eu fizesse e eu conversasse com a
médica; quer que eu vá junto à consulta e converse com o médico.
Aliás, sou a única pessoa que ele deixa ir junto.
Talvez o pai esteja idealizando a filha, no sentido de colocar nela a
resolução dos seus problemas, como se ele pudesse abrir mão da responsabilidade
de se cuidar sozinho. A esposa, por ser dona de casa, talvez não transmita a ele a
mesma confiança, já que ele valoriza o estudo, o conhecimento, o saber.
Fabiana assume a função de cuidadora com bastante disponibilidade.
Ele não chega a não deixar ela ir [mãe], mas ele fala que não
precisa, e aí, ela acaba não insistindo muito e, quando ele fala que
não precisa, eu digo que vou. Dependendo do caso, ele chega a
brigar comigo porque eu conto para o médico as coisas que ele faz
que não pode, que ele fala que não faz e eu digo para o médico que
ele está mentindo e digo o que ele faz de fato.
A denúncia que Fabiana faz do pai, para o médico, dá a impressão de
que a mãe não o faria, e ele, também não. Ela assume o lugar da esposa em
relação ao pai.
Eu vejo que hoje, ele tem um movimento muito de precisar, de
querer que você esteja perto. Embora eu more com eles, estou muito
distante da convivência com eles: estou sempre fora, não tenho final
de semana, estou sempre estudando. Antes estava namorando e,
então, não encontrava. E um jeito que ele tinha de ter acesso, era eu
tendo esse acompanhamento. Eu acho que mudou nesse sentido,
não que eu não sinta que, sinto que preciso dele, você sempre
precisa de um pai e de uma mãe. Mas acho que mudou nesse
sentido, de ele me aceitar como a filha que cresceu e aceitar que eu
possa ajudá-lo e inclusive pedir.
A aceitação da filha como adulta, segundo Fabiana, pode ser o fator
desta maior proximidade entre pai-filha.
Fabiana dá a impressão de suspeitar de que a proximidade do pai com
ela tenha relação com o fato de ser mulher e caçula. Mas ela mesma parece ter
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consciência de que há algo mais. Sua hipótese é de que o pai, pela semelhança
com ela, desejasse alimentá-la para que crescesse como ele. Esse movimento de
alimentá-la intelectualmente acontece por meio de leituras e diálogos.
Não sei se é ser mulher, se é [ser] a caçula, não sei. Pode até ser.
Mas eu acho que é muito mais essa coisa do quanto a gente tem
essa coisa muito mais parecida, e é como se ele tivesse me
alimentando para que eu ficasse igual a ele. E, assim, como nossa
área é diferente, não tem como ele vir e bater de frente em uma área
em que ele não tem conhecimento, ele pode ler, conhecer, e eu
nunca fui pra cima dele, querendo destruir ele, porque eu sei disso e
ele não.
[...] inclusive comigo o movimento foi até de querer que eu aprenda,
que eu saiba! Se ele pega num jornal e tem um artigo que ele acha
que me interessa, ele vai lá, pega e quer que eu leia. A gente
conversa de várias coisas, comenta de várias coisas e ele nunca
teve um movimento de me destruir, mas eu já vi ele fazer isso com
meus irmãos.
Outro aspecto que caracteriza esse pai é o valor que ele dá ao
conhecimento que ele possui. O pai preza o aprendizado ensinado por ele.
Existe uma história que eles sempre contam: desde pequena, a
gente escrevia a redação, e meu pai corrigia a redação dos meus
irmãos, de fazer de novo, falava que estava ruim e que fazia de
novo, com as palavras dele! E quando eu comecei a escrever
redação, eles quiseram mexer na minha redação, e eu disse que era
para eles verem os erros de português e não para mexer na redação!
E eu disse que não havia pedido para mudar a redação e falei que
não era para mexer em nada, apenas ver se tinha erro, e puxei a
folha e nunca mais dei pra ele ver nenhuma redação minha.
A impressão é que esse pai não consegue passar a informação aos
filhos de forma a ensinar-lhes o caminho. O desejo por ensinar aparentemente está
presente, mas parece impedir que conheçam como fazer. O desconhecimento não
permite um percurso dos filhos independente do pai. É possível que este pai tema a
superação por seus filhos. Isso sugere que ele constela na família o arquétipo do pai
Crono. Contudo, Fabiana demonstra romper com esse domínio: faz o que o pai
gosta, mas finaliza à sua maneira; se o pai gosta de estudos e leituras, Fabiana
discute com ele, mas mantém seu posicionamento.
Fabiana aparenta perceber algumas características do pai referentes à
atuação dele no trabalho. Contudo, cai na armadilha de sua própria crítica: utiliza
justificativas que provavelmente façam parte do discurso do pai. É possível que a
idealização se mantenha presente nesta relação. A princípio, Fabiana demonstra ter
consciência das qualidades e defeitos do pai. Mas, fica a impressão de que ainda
159
existam várias esferas inconscientes para ela. Por exemplo, têm momentos, procura
justificar a atitude do pai, no sentido de achar uma razão para a maneira como ele
age.
Meu pai tem uma coisa interessante. Ele tem dois lados: ele adora
mandar, tanto é que ele não tem patrão: são todos subordinados a
ele e ele a ninguém. E isso ele sempre falou: não goste de ser
empregado; se você não puder nunca ser empregado não seja. E
isso ficou muito presente. Se você puder ser o patrão, é a melhor
coisa. E isso é uma coisa de registro mesmo. Tem essa coisa de não
gostar de ser empregado, de ele ter sido chefe dele mesmo [...] e aí
ele tem duas coisas interessantes. Primeiro, que ele acaba sendo o
centro que sabe mais e ele adora ensinar os outros.
Então, ele está sempre como aquele que está ensinando: ele está
ensinando meus irmãos, as estagiárias, a advogada, e o pior é que
tem, porque a qualidade da universidade hoje está cada vez pior.
Isso, pra ele, eu vejo que é alimento de ego, é pré-requisito. Se ele
não está muito bom, ele vai trabalhar e fica melhor. Só que, ao
mesmo tempo, é uma pessoa que não gosta de não ter razão. Está
sempre certo, é ele que tem razão. E isso foi uma coisa, que quando
eu era nova, de ficar no escritório dele e atender telefone, quando a
secretária estava de férias, por alguma razão, a maneira como ele
fazia me incomodava; ele não errava, só os outros; só ele tinha razão
[...] e isso me irritava muito. Esse jeito que ele lidava, pra mim não dá
certo trabalhar com alguém que me tratava daquele jeito. Então, por
outro lado, ele tem um lado super brincalhão, animado, ele brinca
com todo mundo, todo mundo gosta dele, todo mundo acha ele legal,
as pessoas principalmente, porque não convivem todo dia, acham
ele o máximo, porque acham que ele é super. E quando a gente
passa a conviver diariamente a gente sabe que não é bem isso.
O que Fabiana consegue observar é que o pai costuma ser muito
sociável, divertido, simpático com todas as pessoas, desde que o outro saiba como
se relacionar com ele. Se o outro souber compartilhar com ele idéias e posturas, irá
receber muito bem; mas se sentir que há desejo em superá-lo, ele assume uma
postura destrutiva, como a própria Fabiana diz. Ela reconhece esta característica do
pai como algo que dificulta o relacionamento.
Depende de com quem ele se relaciona. Porque é assim, se ele se
relaciona com alguém que chega perto dele com o objetivo ou
admirando ele, ou querendo aprender com ele, ele é o superlegal.
Mas, se alguém chega perto dele com uma atitude ou uma intenção
de querer mostrar que sabe muito ou mais, ele acaba com a pessoa;
ele detona a pessoa, ele deixa no chão. Isso é uma coisa que eu falo
pra ele: pra que você fez isso? Eu sinto como uma coisa destrutiva.
A gente sabe das qualidades que ele tem. Ele nunca fez isso comigo!
Essa postura mostra-se típica do pai, independente de ser com
subordinados ou colegas de trabalho. A regra parece ser sempre a mesma; se
160
respeitada, a relação é sempre muito boa; caso contrário, é destrutiva, da parte dele
para com os demais.
Fabiana coloca-se na posição de quem sofreu o julgamento do pai e o
questiona em defesa da pessoa. Ela demonstra não se conformar com esta atitude
do pai e a impressão que fica é que ela lhe mostra com a mesma autoridade com
que ele se coloca para os demais. Interessante observar que ele não ouve ninguém,
mas ao menos escuta o que Fabiana fala.
Aparentemente, o pai usa a estratégia do ensino como forma de
conseguir manter as coisas como ele quer.
Mas eu vi alguns movimentos que ele disse que era para os meus
irmãos aprenderem, mas não vou esquecer isso nunca! Meu irmão
fez algum documento desses da área do direito que eles fazem e
deu para o meu pai olhar, e ele falou para o meu irmão que estava
uma porcaria, rasgou e jogou no lixo. Aquilo na hora, meu irmão ficou
com cara de pateta, eu arrepiei. Falei que era um absurdo, onde já
se viu tratar ele daquele jeito; falei que ia embora e saí, e meu irmão
ficou lá.
Para Fabiana, o caminho para o relacionamento tranqüilo com o pai é
não contrariá-lo; caso contrário, ele reage com autoritarismo. Cabe ressaltar que a
submissão ao outro não permite conflitos e, portanto não ocorrem atritos. A situação
demonstra ser a seguinte: sempre quando há uma divergência com a possibilidade
de um conflito, o autoritarismo é a saída encontrada para fazer valer a ordem dele.
Aparentemente, Fabiana reconhece que esta é a dinâmica do pai, mas parece que
não tem consciência de que seu julgamento em relação ao pai tem o objetivo de
protegê-lo.
Ele só é autoritário quando ele é contrariado. Se a coisa estiver
fluindo, ele brinca com todo mundo, ele é legal com todo mundo; só
não contrariar.
O argumento que Fabiana utiliza para justificar sua compreensão da
dinâmica do pai é tomar por referência a história de vida dele, como ela diz. Procura
explicar a atitude autoritária dele a partir da vivência sofrida; parece acreditar que tal
história de vida justifique a postura dele.
[com os colegas] Da mesma forma, se chegar para ele querendo ser
mais que ele, se você chega e conversa numa boa, a conversa é
superlegal; se for com movimento de crescer, ele destrói. Pra mim,
tem muito a ver com a história de vida dele, de alguém que não tinha
nada, não tinha sapato, era o filho caçula e que trabalhava pra
sustentar os outros, mais velhos. Foi o único que trabalhou, fez
faculdade, de todos os irmãos. Ele veio de uma origem humilde e
161
precisou cavalgar muito. Essa coisa de alguém tentar diminuir ele,
ele não lida bem com isso.
É possível que Fabiana consiga assimilar a garra e a vontade de lutar,
desse pai, para conseguir chegar aos objetivos desejados.
A relação com a profissão
A escolha profissional de Fabiana demonstra ter ocorrido de forma
gradativa, até culminar com a escolha consciente dos caminhos que desejava
seguir, no terceiro colegial.
Quando iniciou o colegial (ensino médio), Fabiana buscou
primeiramente um curso técnico, por acreditar que seu caminho seria análise de
sistemas. Ao perceber que não era a carreira que queria seguir, começou a dizer,
em casa, que gostaria de desistir do curso e continuar um colegial regular.
A escolha profissional não foi muito assim, de querer ser psicóloga
desde criança não.
Mas é uma coisa que desde cedo eu sabia que não queria. A
escolha da psicologia foi bem no terceiro colegial mesmo, porque eu
tinha feito 2 anos de colégio técnico e, então, eu achava que queria
fazer análise de sistemas e eu fui fazer colégio técnico de
processamento de dados. Fiz o primeiro ano e já vi que não tinha
gostado muito. Aí quis sair, mas meu pai falou termina, vai. Aí, fiz o
segundo ano, e não agüentei, falava que eu não levo jeito pra isso;
ficava super irritada de passar o dia inteiro na frente do computador.
Eu sempre gostei dessa coisa de ficar falando, conversando, e tal. Aí
terminei o segundo ano e falei: estou saindo desse colegial e vou
terminar no colégio normal. Deu uma conturbação familiar; ele não
queria; ele falava que não, que eu poderia pelo menos terminar, que
faltava só um ano. Mas, eu falei que não e não terminei. Tranquei a
matrícula e mudei de escola. Aí, fui terminar o terceiro ano num
colégio normal e fazer cursinho à noite. E adorei.
Achei o máximo eu estar estudando num colégio normal e não estar
mais naquele estresse de estar estudando o dia todo, que era um
colégio integral, que a gente ficava das 7 da manhã às 6 da tarde,
todos os dias. E, assim, acabou esse estresse. E junto, veio a coisa
do terceiro colegial, que é muito assim, pré-vestibular. E os
professores são muito divertidos. Aí, deu uma aliviada e eu tive que
começar a escolher.
162
Assim, o tempo individual de escolha de Fabiana parece ter sido
respeitado. Encerraram-se as turbulências familiares geradas por suas decisões e
ela pôde se concentrar nos seus desejos, sonhos e em suas habilidades.
Aí, fiz uma orientação, bem mais ou menos no colégio, e dava muito
sempre área de humanas; humanas e saúde. Assim, mas sempre
com aquela coisa voltada para o contato com o outro. E saiu
algumas possibilidades e aí comecei a procurar naqueles guias: “ah,
o que quero fazer? [...] Aí, eu tinha feito, com 16 anos, a fono, e eu
tinha achado superbacana o trabalho dela, e a Fono era uma opção
de fazer, e aí, tinha uma outra coisa que eu tinha muita vontade de
fazer que era trabalhar com crianças, que eu sempre adorei. [...] Eu
gostava da coisa da criança. Aí, foi quando surgiu de eu fazer a
Psicologia ou ser Pediatra. Mas, pra ser pediatra eu ia ter que fazer
Medicina, e eu falava, mas nem morta que eu vou ficar 6 anos
estudando o dia inteiro e não ter vida! Porque eu tinha saído de uma
escola que eu vivia desse jeito. Automaticamente eu descartei a
Medicina. Aí, ficou assim: eu vou fazer Psicologia ou Fono. Sempre
pensando, desde o começo, que eu queria trabalhar com criança.
Tinha que ser alguma coisa que fosse na área da saúde, de eu estar
ajudando, de estar trabalhando direto com a criança. Essa coisa de
estar ajudando em algum aspecto. Foi quando eu decidi que ia fazer
Psicologia e Fono em segunda opção. E aí, que eu prestei vestibular
e pus em todos os lugares: Psicologia em primeira opção e Fono em
segunda. E aí teve aquela coisa do meu pai falar que, se eu não
entrar, o ano que vem vamos conversar sobre o que você vai fazer.
Apesar de a escolha não ter sido um sonho de infância e não ter
acontecido com a mesma antecedência com a qual as amigas o fizeram, é possível
que a escolha profissional de Fabiana tenha considerado seus limites, suas
habilidades e, principalmente, o seu desejo de trabalhar com crianças. Fabiana é
uma psicóloga infantil. Na entrevista, não nos demos conta de que talvez, em sua
adolescência, a intuição tenha lhe dado o caminho e que ela não tenha
compreendido plenamente: análise de sistemas foi sua primeira escolha profissional.
Ela acabou se tornando uma analista, sim, mas do ser humano, em especial, das
crianças.
No momento em que esta entrevista era realizada, Fabiana se
considerava passando por um momento de crise profissional. Apesar deste
momento, a impressão é que, no geral, Fabiana se sente realizada pessoal e
financeiramente com sua escolha.
A relação com o trabalho
163
Fabiana é psicóloga clínica, mas trabalha também na área de trânsito.
Sendo assim, abordaremos algumas questões referentes à área clínica, e outras, ao
trânsito.
Fabiana demonstra ser uma pessoa comunicativa e de fácil trato social.
Considera-se muito justa e diz não admitir desrespeitos, injustiças e falhas éticas.
A questão ética me incomoda muito, porque tem pessoas que não
são éticas. Tem pessoas no trânsito, inclusive, que não deveria nem
ser psicólogo; não tem postura, não tem atitude, não tem ética, não
tem profissionalismo, não tem nada. É alguém que está ali para
ganhar dinheiro e só. O trato social com pessoas é zero! Falo: como
que essa pessoa é psicólogo?
Muitas vezes, são pessoas simples, sem instrução, o que não
significa que se ela não tem instrução ela não tem capacidade de
dirigir! E aí, se percebe a diferença de tratamento que acaba
acontecendo entre os que têm um nível melhor e aqueles coitados
que chegam suados, supersimples. E isso é uma coisa que me deixa
revoltadíssima, porque eu vou colocar um do lado do outro, porque
eles têm o mesmo direito, pagaram o mesmo valor. Isso, à vezes,
tem coisas éticas que a gente vê que acontece que não aceito, brigo
mesmo.
Muitas vezes, eu cheguei a correr na frente de uma colega de
trabalho, pra eu atender antes dela, para que ela não atendesse,
porque eu não queria que ela tratasse mal as pessoas.
Essa postura de não aceitar desrespeitos, injustiças e falta de ética
parece definir Fabiana. Sua fala demonstra indignação diante dessas questões!
Sobre o relacionamento com chefias e subordinados, há diferenças nos
ambientes de trabalho. No caso do trabalho em clínica, tem apenas a secretária
como subordinada, admitindo não ter problemas; no trânsito, Fabiana faz uma
observação.
Não tenho chefes e nem empregados. Tenho um órgão que a gente
respeita como lei, que é o Detran. Então, a gente respeita o quê? A
questão do que tem portaria, o que tem que se cumprir. Então, não é
diretamente que eu tenho que lidar com uma pessoa que manda, é
órgão maior, como dentro da psicologia seria o CRP. Então, a gente
tem questões éticas e morais que a gente tem que respeitar, se a
gente tem dúvidas, a gente tem que estar consultando e se a gente
tem, vamos dizer, alguém tem que chamar nossa atenção por
alguma coisa que a gente não está fazendo corretamente, vem de
um órgão e não de uma pessoa [...] nunca tive nenhum confronto
com isso, aliás essas questões éticas, pra mim, são muito
importantes, sempre preso muito. Então, é assim, se tem que ser
assim é assim que eu vou fazer! Essa coisa de ficar burlando ou
aquele jeitinho, eu não gosto disso.
Na área clínica é mais tranqüilo ainda. Essa coisa de querer dar um
jeitinho, acontece no psicotécnico. Eu não gosto disso, não aceito
164
isso. Já criei muitos problemas com pessoas porque eu não aceito
isso.
Em consultório eu não vivo isso; até mesmo com secretária nunca
tive problemas.
Mais uma vez aparece a questão ética como ponto importantíssimo na
relação entre Fabiana e as pessoas.
Sobre o relacionamento com colegas, relata ter como postura o
diálogo, quando algo destoa do que imagina.
Assim, eu já posso ter tido problema, assim, se eu não gosto eu falo.
Com colegas de trabalho, de não concordar. De eu não achar certo a
pessoa agir daquela forma e de eu falar sobre a postura do outro em
relação à população que usa o serviço.
As pessoas que trabalho são amigas, que eu já era antes mesmo de
dividir consultório, quando surge algum problema, eu procuro
conversar e resolver.
Não sou o tipo de ficar empurrando um problema. Acho que tenho
que resolver e eu pego e falo. Eu não gosto de ficar com o incômodo.
No geral, na minha vida, se está com pedra no sapato, tiro o sapato
e tiro a pedra. Esse negócio de ficar andando com a pedra,
incomodada, não é comigo.
Essa parece ser uma atitude muito freqüente para Fabiana: conversar
sempre e não empurrar os problemas. Com isso, ela causa a impressão de que não
é o tipo de pessoa que “engole” situações “indigestas”, mas que está sempre
questionando e se colocando; demonstra sempre ter as rédeas da vida em suas
mãos. Assim, a postura diante dos colegas é de se colocar e dizer o que pensa,
mesmo que isso possa causar algum desconforto na outra pessoa. Parece que seu
lema é “preto no branco”. Diz não conseguir ver coisas com as quais não concorda e
não tomar atitude.
Com os problemas e situações de crise, Fabiana toma uma atitude
semelhante: não deixar de ver. Sendo assim, quando diante de um problema, diz
buscar o caminho de saída. Causa a impressão de não conseguir ficar muito tempo
com o problema sem solução.
Por exemplo, agora (ri) eu estou em crise profissional, se eu for
pensar, porque estou supercansada, sobrecarregada, então o nível
de estresse está lá em cima. Tem dia que eu tenho vontade de
sentar e chorar, mas isso não é meu. Eu não sou de sentar e chorar.
Eu levo muita coisa com senso de humor. A coisa está arrebentando
e eu estou dando risada. Mas não porque eu não ligo. Acho até que
em muitos momentos, eu tenho vontade de sentar e chorar. Como eu
queria poder sentar e chorar, pra aliviar! Mas eu não consigo.
165
Quando eu tenho um problema, uma crise, o meu objetivo é o
seguinte: eu preciso resolver e o mais rápido possível! Então, eu
quero acabar logo, quero resolver logo, quero mudar logo, quero que
o ano acabe logo, quero tudo logo.
Mas, é nessa hora que eu paro e penso: não adianta eu brigar
comigo e com o mundo, porque isso não resolve meu problema. Não
adianta sentar e ficar estática, porque ninguém vai resolver pra mim.
Então, está na mão de quem resolver? Na minha. Então, se eu tiver
que trabalhar eu vou trabalhar. Se eu tiver que sair, como vou para o
congresso, vou ter que abrir mão e isso vai ter um preço, eu vou
deixar de receber. Eu vou ter que escolher. [...] O fato de eu não me
desesperar, as soluções, às vezes, vão aparecendo. Eu já estava pra
mim que eu ia para o congresso e eu ia perder.
Buscar saídas define o modo de agir de Fabiana. Ela conta que desde
pequena, quando brincava num labirinto, sua atitude era de sair e olhar de cima para
ver onde estava a saída, para, em seguida, poder entrar. Assim mostra sua postura
diante dos conflitos, crises e problemas da vida: sai da situação, procura ver o que
está acontecendo e quais são as saídas, para, então, poder retornar para o
problema e resolvê-lo.
Eu nunca vejo um problema como uma coisa sem saída. Eu nunca
vejo o problema como um labirinto sem saída. Eu sempre vejo como
um labirinto com saída. Que é o outro dia, numa aula sobre o
labirinto, e ela falou que você conseguir sair do labirinto é você
conseguir chegar ao meio. Se você chegar no centro do labirinto,
depois para você achar a saída é mais fácil. Isso me lembrou, que
desde pequena quando eu fazia esses labirintos, duas coisas que eu
fazia: eu voltava do meio. Normalmente labirinto, você tem que
chegar ao lugar. Eu nunca fazia o caminho assim, eu começava pelo
contrário; eu fazia de trás pra frente e era muito mais fácil, porque
você não erra. [...] Porque isso já me mobiliza a achar a saída.
Mas eu acho que tem essa coisa de eu olhar meio que de fora, de
cima como de fora, para eu poder ver com clareza e não com
emoção, porque com emoção a gente não resolve nada. Mas, tem
uma coisa assim, de traçar uma meta: onde eu quero chegar? Ah, eu
quero chegar ali. Então, eu traçando essa meta e sabendo que eu
quero chegar ali, eu vou atrás daquela meta, eu corro atrás daquilo e
isso me tira o foco do problema. O meu foco passa a ser resolver o
problema e não o problema. Se eu fico presa no problema eu não
resolvo.
Ao considerar sua maneira de ser, Fabiana diz ter consciência de que
possui grande dificuldade em lidar com o desespero do outro, porque o desespero a
paralisa, e isso é algo que ela não consegue sentir; não consegue se ver paralisada
diante de uma situação. Isso é o oposto ao seu modo de reagir a um problema.
Tanto é que uma coisa que me imobiliza é quando alguém entra em
pânico e senta e chora pra mim. E eu falo: o que eu vou fazer pra
166
poder tirar essa dor ou esse desespero dessa pessoa? Porque eu
não entro nesse desespero e, às vezes, a minha situação está muito
pior. Sabe quando você vê que a sua situação está muito pior? E eu
falo que por muito menos a pessoa está aos prantos! E, assim,
aquilo me pára e todo o meu movimento é de tentar acalmar e
mostrar, e falar coisas e mostrar possibilidades para a pessoa ver
que tem uma saída.
Essa postura de se aproximar e tentar ajudar o outro a encontrar uma
saída a tranqüiliza. Apesar de aparentemente ter uma boa estratégia diante de
problemas, Fabiana diz ter consciência do mecanismo que acaba ficando por trás
das circunstâncias para uma solução. Essa atitude de não conseguir aguardar o
tempo de resolução das coisas, isto é, não ouvir o corpo ou não prestar atenção ao
que está ocorrendo em volta de si mesma, pode levar a psique a mandar sinais de
alerta. Fabiana tem consciência de sua tendência de passar por cima das situações
em busca de seu objetivo para resolver o problema e de que isso pode, muitas
vezes, trazer conseqüências físicas.
Isso tem às vezes algumas conseqüências: essa coisa de sair pra
fora, você dá uma negadinha boa no problema mais pesado, que eu
estou tão correndo atrás do objetivo que eu tenho que chegar, que
eu passo algumas coisas despercebidas e o corpo vem e mostra.
Mas, não mostra derrubando, não. Nunca me derrubou com
doenças. Ele me mostra com sinais do tipo alergias, coceiras;
quando começa assim, eu já sei, porque a coisa está feia mesmo e
meu corpo está avisando. Eu sei que no meio do caminho eu tinha
que ter dado uma paradinha e eu fui embora, porque queria resolver,
e aí o corpo começa a mostrar. Mas já é uma coisa que eu
reconheço e me faz eu prestar atenção e tentar desacelerar.
A maneira comunicativa de Fabiana parece contribuir para o convívio
com as pessoas e o desejo delas de tê-la por perto. Fabiana se considera muito
desejosa por novidades e demonstra lidar bem com isso. Um problema que surge
decorrente desse desejo pelo novo é o fato de não conseguir colocar limites para si
mesma. Diante dessa situação, parece ter desenvolvido uma consciência das
conseqüências de tentar abraçar o mundo e de não colocar limites para o seu
desejo.
Isso é uma coisa que eu tenho que tomar cuidado, porque adoro
coisa nova. Então, quando alguém vem com alguma possibilidade
nova, eu já quero de cara pegar! Então, teve uma época em que tudo
que era novo, eu queria pegar. Só que eu não dou conta e do
mesmo jeito que eu pego, eu largo! E isso não é legal, porque você
se compromete, fala que vai fazer uma coisa e acaba não fazendo.
Pra mim pode não ter tido tanta importância, mas para o outro pode
ter uma importância maior, e isso, às vezes, acaba ficando chato.
167
Hoje, se você me oferecer qualquer coisa eu vou te falar: que legal,
mas muito obrigada! Se fosse em outros tempos eu falaria assim:
nossa que legal, eu vou fazer!!! Hoje eu considero que ainda estou
cheia de coisas. Eu não tenho tempo de cuidar de mim e das coisas
que eu queria poder cuidar. E assim, como foram responsabilidades
que eu assumi muito grandes, eu não posso largar. Então, agora eu
falo não pra mim mesma.
As situações podem ter contribuído para Fabiana aprender a lidar com
seus próprios limites.
Não posso fazer uma coisa que depois não vou dar conta. Mas isso
estava muito ligado à coisa de não querer falar não para as pessoas,
de querer estar sempre disposta para tudo e fica sendo o ‘pau pra
toda obra’. Então, precisou de alguma coisa, tem pepino, era só me
procurar. Aí, chega uma hora que eu me sobrecarrego, me desgasto,
querendo fazer, ter de agradar, e a gente nunca agrada todo mundo;
é impossível agradar todo mundo. Para que que eu faço tudo isso,
pra mim? Então eu vi que tinha que aprender a falar não e foi quando
eu comecei.
A relação com a mãe
Fabiana descreve a mãe como alguém que sempre ressaltou a
submissão feminina como grande sofrimento de sua vida. Sua mãe parece ter se
submetido ao marido e ter demonstrado para a única filha o quanto é difícil ser
mulher. Fabiana aparenta ter consciência dos mecanismos que inconscientemente
regeram sua vida, da infância até agora. Deu-nos a impressão de que ela, hoje,
orgulha-se da mãe que tem; das referências positivas que assimilou como mulher.
Ela relata ter consciência de que as falas preconceituosas da mãe deixaram marcas
em sua vida, na sua forma de ver a mulher.
Da minha mãe? Nossa!!! Eu acho que o que eu assimilei da minha
mãe, que hoje eu sei que tem a ver com ela. Porque eu achava que
toda essa coisa minha de querer ser independente, tinha muito a ver
com meu pai. Mas, depois, com o tempo, minha mãe tinha uma coisa
assim: ela casou, parou de trabalhar depois que casou, como se a
vida de casada fosse uma vida sofrida, de abrir mão de desejos,
sonhos, frustração. Coisas de falar assim: que ser mulher não é bom,
porque ser mulher a gente sofre, porque mulher não é independente,
porque mulher não sei o quê!
168
Num primeiro momento, a mulher foi apresentada como um ser
sofredor e abnegado. Isso parece ter gerado em Fabiana um desejo por provar que
ela, como única filha, poderia fazer um percurso diferente, pautado na felicidade
pessoal e profissional.
Eu vivia querendo mostrar que eu poderia ser uma profissional
independente, que eu poderia fazer as coisas que eu quisesse, que
podia ter família, podia ter filhos e que eu podia tudo que ela achava
que não podia. E podia ser feliz desse jeito, falando o que eu penso
e o que eu sinto e não ter que viver uma vida de abrir mão das
coisas. E acho que não, acho que, às vezes, temos que abrir mão de
uma coisa por outra, mas não acho que temos que estar o tempo
todo num sacrifício. É possível fazer uma comunhão das coisas. E aí,
quando eu cresço e faço isso, e é quando você começa a perceber
essas pequenas falas.
Esse movimento de Fabiana por buscar fazer diferente, pode ter
fornecido aos pais novos parâmetros, até na maneira de olhar a própria filha.
Eu, ao mesmo tempo que eles me tratam como filha, em algumas
situações, eles me vêem de outro jeito; de um jeito que eu não sabia
que eles me viam. Ver meu pai falando de mim e eu falar que não
era tudo isso, e minha mãe também falando de atitudes [minhas].
Meu pai prioriza a questão do conhecimento, da profissão, do
intelectual; a minha mãe prioriza a coisa da atitude, do ir, que tem a
ver mais com o meu jeito de ser.
É possível que essa maneira de agir tenha sido assimilada com base
no animus de sua mãe. A forma de agir e enfrentar o mundo, segundo ela, é mais
associada à maneira de sua mãe que à atitude de seu pai.
E é esse movimento que ela preza: de querer fazer, ir e acontecer. E
eu vou, e aí eu vejo o quanto ela abriu mão, o quanto ela deixou de
fazer coisas, quantos sonhos ela deixou pra trás, por conta de ela
achar que não ia poder, que não é certo, que ela não poderia querer.
E isso eu acho triste! Tanto é que ela não me vê abrindo mão de
coisas assim. Isso é uma coisa, que pelo menos nas entrelinhas, ela
deixava que não era legal, que não a fazia feliz. E eu sempre
estimulo pra ela fazer e hoje ela está com um movimento muito
diferente de fazer, de ir, de se ocupar com outras coisas, de sair de
dentro de casa.
Ela hoje consegue lidar melhor com isso, e quando eu estou junto eu
apóio mesmo. Hoje ela sai e vai, pra ginástica, computação,
bordado; não pára em casa. E ele [pai] fala que ela é rueira e que é
influência minha.
Fica a impressão de que, com o amadurecimento, os papéis se
inverteram positivamente nessa relação mãe-filha: a filha passou a ensinar à mãe
novos caminhos para a vida. Fabiana demonstra ter desvinculado a imagem
169
negativa de ser mulher, que a mãe sempre forneceu, construindo dentro de si uma
imagem mais atualizada de mulher, batalhadora e que pode ser feliz.
Eu me vi numa época da minha vida, onde eu estava o tempo todo
tentando mostrar que mulher poderia ser tudo isso: mulher pode
trabalhar, pode! Embora eu não tenha casado e não tenha tido filhos,
eu acho que a mulher pode ter uma realidade de ter profissão; ela
pode ter junto com isso um marido e filhos; um não exclui o outro. E
nunca foi fala direta [da mãe]; isso é coisa que eu fui percebendo, e
com o tempo, em análise eu percebi.
A forma encontrada para lidar com esse pressuposto materno foi a
contestação por meio de atitudes: fazer diferente da mãe. Pode ser que tenha
constelado em Fabiana o complexo materno relativo à defesa contra a mãe. Parece
que ela conseguiu assimilar um jeito de agir e de enfrentar o mundo como uma
defesa contra o modelo de vida que sua mãe teve. Isso parece ter sido apoiado pela
mãe para não sofrer como ela.
A concepção de Feminino para Fabiana demonstra estar também
muito vinculada a um estereótipo de mulher: sensível, acessível, carinhosa.
Mas eu acho que o fato de ser mulher facilita um pouco, no sentido
da criança. Não quero generalizar de que toda mulher é mais
sensível do que o homem, mas existe uma tendência. Então, eu
acho que a gente acaba tendo um feeling maior na hora de ouvir,
receber e até no sentido de devolver. Já inclusive, como já passei
por isso, pois já fiz análise tanto com homem como com mulher, a
diferença até de algumas colocações; eu sei que fica tendencioso
falar que a mulher entende melhor; eu sei que não é isso. Eu acho
que essa coisa do feminino que traz uma sensibilidade maior, eu
acho que a gente escuta de outro jeito. A gente escuta de outro jeito
e devolve de outro jeito. E, sempre, nunca descartando que podem
ter homens fazendo isso, essa sensibilidade e tudo mais. Mas, eu
acho que isso facilita.
Apesar de Fabiana acreditar no estereótipo da mulher como facilitadora
da relação terapêutica, ela não consegue, de fato, explicar que diferença existiria
entre o homem e a mulher nesse trabalho. Pode ser que a visão que Fabiana tem
dos homens também seja contaminada por estereótipos. Parece que a questão diz
respeito à maneira como ela se relaciona com os homens e à concepção que ela
tem deles, mais do que ao comportamento ou desempenho deles!
Eu acho que a própria área da Psicologia é bem feminina. A gente vê
que é uma área que tem poucos homens, não que não tenha, tem!
Mas poucos. Acho que, eu não sei agora como! Por exemplo, acho
que tem coisas, que no meu trabalho, que eu gosto de trabalhar com
crianças, essa coisa do contato com criança. Eu acho que o fato de
eu ser mulher facilita o trabalho. Essa coisa do jeito de chegar, de
conversar, de brincar. Se eu tiver que sentar no chão eu vou sentar
170
no chão, vou brincar. Eu tiro o sapato e sento no chão e já estou lá.
E isso, se fosse do ponto de vista masculino, fica diferente. Não que
não pode acontecer, mas acho que cria uma coisa assim. Acho até
quando você vai para a própria análise adulto, se você vai para uma
análise com outra mulher você acaba tendo mais liberdade do que
com uma pessoa do sexo oposto. E assim, pode até ser que tenham
pessoas que tenham essa facilidade.
A impressão que fica é que ela tem dificuldades particulares no que diz
respeito ao relacionamento com o universo dos homens, e isso pode interferir na
concepção que ela tem da atuação deles no trabalho. Pode ser que esta impressão
sobre o trabalho dos homens em consultório tenha mais relação com a diferença de
concepções de trabalho dela em relação aos homens que conheceu
profissionalmente. Isto é, o que ela aponta como forma diferente de agir decorrente
de uma questão de gênero parece mais relacionada a uma visão particular de
atuação profissional diferente, do que a uma diferença de posturas relacionadas ao
gênero masculino. Mesmo em relação à análise pessoal com homem ou mulher,
indica uma questão pessoal dela, que pode estar relacionada com a forma como ela
estabelece vínculos com os homens.
Outro aspecto que aborda em relação ao Feminino é a questão do
assédio. Diz considerar o ambiente de trabalho sossegado em relação a isso.
Quando teve a vivencia dessa situação, disse conseguir colocar limites de maneira
clara e natural. Ela parece supor que o fato de ser comunicativa possa contribuir
para confundir as pessoas, levando a uma aproximação maior e assediante.
Às vezes, acontece, no consultório nunca ocorreu, mas na área do
psicotécnico, a coisa do assédio. No meu caso, como sou muito
extrovertida e comunicativa, as pessoas acham que podem ter
liberdade e vem com brincadeiras que você vê que pode ter uma
segunda intenção aí. Mas eu sempre lido muito bem com isso. Eu
falo que a liberdade terminou ali. [...] Já corto e a pessoa entende, e
pede desculpas e eu nunca tive problemas.
Talvez a tipologia de Fabiana contribua para sua postura diante das
situações que considera “erradas” ou inadequadas. Ao que parece, sua maneira
valorativa está sempre muito presente em todas as situações: familiares,
profissionais e pessoais. Causa a impressão de não admitir caminhos que não
estejam dentro do correto, justo, ético.
171
Auto-imagem
Como já afirmamos, Fabiana demonstra saber que carrega influências
tanto de sua mãe como de seu pai em sua maneira de ser e agir no mundo. Hoje diz
conseguir perceber em quais esferas “herda” características de um, e em quais, de
outro.
A maneira como fala sobre isso é muito poética:
É, acho que isso [do jeito de ser] é conseqüência desse casamento:
tem um lado de alguém que sai de uma vida muito humilde e quer
ser alguém e põe a coisa em movimento, o desejo, e realiza. De um
outro lado, da mãe, não é bom você abrir mão, você tem que se
realizar! Se você faz um casamento dessas duas características, e
não podendo deixar de lado a expectativa que colocam na gente,
que é muito grande, eu acho que resulta nisso, em mim!(ri). Um lado
me mostra que não devo abrir mão de tudo, senão não serei feliz, e o
outro, de que tenho que estudar, batalhar, se quiser ser alguém. Os
dois movimentos me impulsionaram pra ir e nenhum pra ficar,
embora eu ainda more com eles. Então, ninguém é perfeito (ri).
Essa visão caracteriza Fabiana: uma mulher fruto de um casamento
entre esse pai e essa mãe. Ela parece ter consciência de que ambos participam de
sua vida em porcentagens semelhantes e, assim, contribuem para o seu
crescimento e desenvolvimento pessoal.
Dessa relação com esses pais, Fabiana aparenta construir sua auto-
imagem.
Eu acho que essa coisa de estar sempre buscando coisas novas,
conhecimento, de autoconhecimento, apesar de que acho que isso é
meu; eu também gosto de estar aprendendo coisas novas. Eu não
vejo a profissão como algo que termina, eu sempre vejo como um
gráfico crescente. Sempre quando você chega num nível, você tem
possibilidade de chegar num outro, de crescimento. Meu pai tem que
estar em ação, atuando, não quer parar; ele já teria idade para parar,
mas não quer. E eu acho que tenho isso também. Essa questão das
coisas serem corretas, de respeitar a questão de ética, de lei e
ordem é muito dele também. A gente não tem tino para ser
desonesto, ele na área dele e eu na minha. Eu vejo a influência dele
aí.
Mais uma vez, os valores estão muito presentes em sua maneira de se
ver e se definir: sem tino para a desonestidade. A impressão é de que Fabiana tem
consciência das características do pai e da mãe que fazem parte de sua maneira de
172
ser, mas também, não deixa de considerar que existem formas de agir e de viver
que são particulares e pessoais.
Ainda que viva muito vinculada a eles, como diz, Fabiana parece estar
descobrindo muita coisa a respeito de si mesma. Diz ter consciência de que ser
mulher adulta, na presença dos pais, é algo difícil; os pais parecem conseguir
perceber a mulher adulta que há nela e valorizá-la.
E aí, quando eu cresço e faço isso e é quando você começa a
perceber essas pequenas falas. E aí eu ouvia ela falar de mim e eu
não sabia que ela me via daquela forma, como alguém que faz o que
diz que vai fazer!!! Porque a gente mantém um papel de filha. É difícil
quando eu estou com pai e mãe, eu sair de um papel de filha e entrar
num papel de mulher. Quando eu estou com meus pais eu sou filha,
não sou mulher. Mulher assim adulta, independente, profissional. Eu
sou filha.
Ao mesmo tempo, que eles me tratam como filha, em algumas
situações, eles me vêem de outro jeito, de um jeito que eu não sabia
que eles me viam. Ver meu pai falando de mim e eu falar que não
era tudo isso, e minha mãe também falando de atitudes [minhas].
Apesar de perceber que os pais a vêem como mulher adulta; apesar de
levar a vida independente deles, financeiramente, afetivamente ela demonstra
recorrer ao suporte deles. Ela relata que o que a move a permanecer na casa dos
pais é uma questão de comodidade. Não podemos descartar o fato de que este fator
contribui e muito para essa escolha. Mas não acreditamos que isso esteja vinculado
apenas a uma escolha racional. Ainda que ela reporte que quase se casou e não
teria tido dificuldades em deixar a casa dos pais, ficam questionamentos sobre as
escolhas afetivas que inconscientemente faz e que a impediram de seguir o seu
sonho (casar e ter filhos). Essas parcerias não permitiram que ela rompesse com
esse vínculo familiar.
Eu não vejo como um problema, morando lá, e nunca pensei em sair,
a não ser que fosse casada. De uns tempos pra cá, eu andei
pensando como seria se eu morasse sozinha. Mas assim, eu faço
tanta coisa ao mesmo tempo, que minha casa seria um caos. É mais
ou menos como eu me imagino morando sozinha. Talvez seja uma
razão de eu não querer ir também. E não vejo como um problema;
eu nunca vi isso como morar em casa por não conseguir sair da asa
dos meus pais, posso estar enganada, mas acho que isso não é
problema. Porque tudo o que tenho que fazer, sair, são movimentos
que vão pra fora; é uma questão de comodidade, e que se eu tivesse
me casado, como quase aconteceu, eu teria ido numa boa, não teria
deixado de ir por causa deles.
173
Apesar de estar próxima de seus pais, Fabiana relata características
de personalidade bem definidas desde pequena. Algumas dessas características,
Fabiana diz serem muito semelhantes às do pai, ao que ele espera das pessoas,
como ação diante das situações da vida. Por tais características, Fabiana demonstra
orgulhar-se de si mesma.
Acho que tinha mais ou menos 8 anos e nunca mais pedi; não pedia
ajuda porque eu sabia que ele fazia e não ajudava. E como a
professora falava que quem tinha que fazer era a gente e não os
pais, ela falava e era assim que tinha que ser. Era bem essa coisa
minha de seguir o padrão; bem a minha tipologia mesmo: o que é
certo é certo, e o que é errado é errado.
E minha mãe sempre conta isso, dizendo que eu sempre fui fogo.
Mas é porque é igualzinho a ele, mas ele, meio que resmungando,
parece que por trás disso tinha algo como que se ele achasse que
era dessa forma que tinha que ser.
Nunca pedi nada para ninguém, porque eu não gosto de ficar
devendo. Foi espontâneo. Mas, não deu nem tempo de chegar lá
fora e falar que não iria. E eu percebo, muitas vezes, ele cutuca
meus irmãos, porque ele quer que eles tenham uma reação, e eles
aceitam a condição, são mais passivos.
Esse pai parece usar da provocação ou da agressão verbal como
tentativa de instigar nos filhos uma reação, como ela acredita ter. Ela costuma reagir
às provocações do pai desde criança; talvez a reação que o pai gostaria que os
filhos homens tivessem. Pode ser que esta característica tenha sido estimulada pelo
pai, e Fabiana a tenha, com isso, desenvolvido dentro de si. Em alguns momentos,
fica a impressão de que ela acredita que muito do que possui é do pai; como se não
fosse algo dela, mas herdado!
No geral, a impressão é de que Fabiana, apesar de ter um pai
autoritário e que poderia ter dificultado a assimilação de determinados aspectos do
arquétipo do Pai, parece ter desenvolvido em si mesma uma segurança e atitudes
necessárias para atuar no mundo do trabalho e na vida. Talvez a aceitação e
aprovação do pai tenham auxiliado Fabiana no seu desenvolvimento e assimilação
da confiança, criatividade. No que se refere ao excesso de atividades, parece estar
mais relacionado à sua dificuldade de dizer não aos outros. Isso poderia estar
relacionado a algum aspecto do complexo paterno que ainda não está
conscientizado. Com a conscientização conquistada, Fabiana demonstra conseguir
estabelecer os limites necessários ao seu bem-estar e a sua saúde.
174
Desta forma, algumas das representações do animus que parecem ser
consteladas são da sabedoria e do verbo. Em menor intensidade, também, percebe-
se a representação da ação, que podem ser observadas, principalmente, nas falas
sobre a admiração que tem do pai.
175
6 DISCUSSÃO: AS FILHAS DO PAI
Cada mulher encontra seu tempo e sua maneira de
tratar da dor e a integração é um processo contínuo.
(MURDOCK, 1998, p.23)
Neste capítulo, submeteremos os dados observados na pesquisa para
uma discussão sobre as influências que o pai pode ter no posicionamento e na
atuação profissional da filha no mundo do trabalho, como havíamos proposto
inicialmente na introdução.
O padrão, mais freqüente, de relacionamento encontrado foi o que se
refere aos pais autoritários. Nas relações com esse paradigma, o vínculo familiar é
fortemente marcado pela presença do poder na relação pai-filha. Quando o poder
exerce o domínio, o espaço do diálogo se reduz e há falta de uma relação
democrática. Esse tipo de relacionamento detectamos em Beatriz, Daniela e
Fabiana.
Em Beatriz, se vê que a relação com o pai foi sempre foi marcada pelo
domínio dele, e, ao mesmo tempo, por sua admiração pelo pai. Beatriz demonstra
ser uma representante da “eterna menina”, em que a confiança, a coragem, a
tomada de decisões e a autovalorização são difíceis de serem assumidas; há
necessidade de que o outro a oriente. Ter o pai como modelo ressalta essa
característica de “eterna menina” (Leonard, 1997), que pode ter contribuído para
Beatriz ser como é: uma mulher voltada para o trabalho, como o pai. O pai exerce a
função de detentor da verdade, em que sua força parece muito presente na vida
dela.
Em Daniela, a relação com o pai é não só autoritária como rígida:
admira o genitor, mas ao se defrontar com a imagem autoritária e rígida, sente
mágoa.
Essa ambivalência é muito presente. O relacionamento de Daniela com
o pai parece orientado pela ordem e pelo domínio dele, transparecendo temor e
obediência às normas e a tudo o que for representante do universo do Pai, uma
típica ‘filha do pai’. A criatividade, que está a serviço de seu animus e que seria uma
saída saudável de sua psique, está fortemente vinculada ao universo patriarcal, de
cumprimento de leis; de obediência, em suma.
176
Daniela dá a impressão de não conseguir contrariar nada que se refira
ao mundo do Pai. Isso a coloca numa relação muito próxima com o pai pessoal e
com o universo paterno; mais do que ela mesma demonstra ter consciência. O pai,
por sua vez, parece não conseguir auxiliá-la no processo de separação psíquica,
dificultando o desenvolvimento psíquico da filha.
Fabiana também apresenta uma relação com pai autoritário e
idealizado. Relata perceber uma atitude autoritária do pai maior em relação aos
irmãos e no trabalho dele, fato que não percebe acontecer com ela. A admiração
talvez seja o ponto forte dessa relação. Contudo, é interessante que o poder (típico
de uma relação autoritária) fica com Fabiana, e não com o pai. Ela exterioriza uma
autonomia capaz de críticas e de atuação própria, sem sofrer as restrições do pai.
Deixa a impressão de uma relação muito próxima com o pai, o que pode contribuir
para a existência de um controle subliminar dele sobre a filha.
Apesar de o relacionamento ser com pai autoritário cuja imagem é
idealizada, Fabiana aparenta ter consciência das limitações que ele possui.
Acreditamos que este domínio se estabeleça inconscientemente na esfera do
conhecimento, possibilitando o controle disfarçado do pai sobre a filha. (Carter
1992).
A relação tipicamente ausente foi encontrada no caso de Carmem.
Esse tipo de vínculo costuma gerar nas filhas um sentimento de abandono e grande
vulnerabilidade em relação à vida, além de proporcionar dificuldades no
estabelecimento de vínculos mais íntimos e uma falta de estrutura interna, o que
favorece sentimentos de insegurança. A ausência pode acarretar, também, forte
idealização do pai e rejeição da mãe.
Tais deficiências são encontrados em Carmem, que procura supri-las,
por meio da estrutura fornecida pelo trabalho.
Carmem demonstra uma necessidade muito grande de regras
externamente definidas. Isso levanta a suspeita de que dentro dela as bases
fornecidas pelo arquétipo do Pai normatização, organização, discriminação
sejam frágeis e tênues. Carmem ilustra as idéias de Kast (1997) nas quais o mundo
do trabalho e as leis do pai social podem assumir um valor significativo na vida da
filha, quando essa apresenta o complexo paterno. A busca de Carmem por um pai
social nos parece uma saída criativa da psique para alcançar os instrumentos que
favoreçam o seu desenvolvimento psíquico.
177
Na vida de Carmem, o pai não teve uma imagem positiva; ao contrário,
a relação é negativa, a ponto de afirmar ser “órfã de pai vivo”. Isso pode ter
contribuído para uma maior dificuldade em humanizar as características referentes
ao arquétipo do Pai, ficando a imagem deste portadora de características negativas.
Relacionamos essa dificuldade ao fato de o pai pessoal apresentar limitações e esta
função ter ficado a cargo da instituição social.
Temos a percepção de que podem existir outros tipos de
relacionamentos com pais ausentes, não necessariamente estabelecidos sem afeto,
como naqueles em que a ausência decorra do excesso de trabalho do pai, de forma
a permanecerem ausentes da vivência familiar na maior parte da vida de suas filhas.
Acreditamos que as relações pai-filha, em que a idealização do pai é
muito presente, possam decorrer de relacionamento com pais ausentes, não pela
passividade deles, como no caso de Carmem, mas pelo excesso de trabalho, já que
nesses casos, o pai foi o único provedor da família. Nesse tipo de relação em que o
pai é uma pessoa presente, mas pouco participativa da vida dos filhos, é comum que
ocorra uma idealização do pai e uma negação da mãe e dos aspectos vinculados ao
Feminino.
Com base nesse tipo de relacionamento, parece-nos que Beatriz, além
do relacionamento com o pai autoritário, teve características de um relacionamento
ausente. Apesar de ela não ressaltar a ausência do pai, apresenta em sua dinâmica
psíquica algumas características que nos fazem supor que ela tenha uma imagem
idealizada de pai, ao mesmo tempo, que rejeita a figura da mãe: esta ficou apenas
com os aspectos negativos do Feminino. De modo semelhante à Beatriz, que
também buscou o ‘pai’ no trabalho e preferiu uma instituição que fornecesse os
horários e os limites, Carmem parece buscar no trabalho público o suprimento de
tais necessidades que não teve em casa.
Tal como Beatriz, Elisa e Fabiana também idealizaram os pais.
Diferentemente de Elisa que reage contra a mãe a partir de uma exacerbação de
Eros¸ Beatriz e Fabiana acabaram desenvolvendo defesas contra a mãe, talvez em
decorrência da idealização paterna, talvez pelo modelo de mãe de uma época ou
por ambos.
Apesar de Beatriz também buscar um pai social, ela possui em si as
referências internas do mundo do pai. Contudo, apresenta uma necessidade do pai
em sua concretude. Isso se manifesta de maneira mais perceptível nessa relação do
178
que na de Carmem, talvez em função de Beatriz também nutrir a imagem de um pai
herói. Dessa forma, talvez possamos dizer que o vínculo inicialmente positivo
estabelecido com o pai possa ter se tornado negativo para Beatriz, estruturando nela
mecanismos de perfeccionismo e exageros no trabalho - workaholic.
Essa relação pai-filha ausente pode ter contribuído para a dificuldade
aparente que Beatriz apresenta para estabelecer relações mais íntimas e
aprofundadas tanto com amigos, no trabalho, quanto afetivas.
Dessa forma, concordamos com Leonard (1998), ao afirmar que a
relação com pais ausentes pode provocar uma idealização acentuada decorrente
das fantasias geradas no imaginário infantil e que podem permanecer ao longo da
vida adulta.
Percebemos que muitos dos relacionamentos pai-filha apresentam
uma predominância principal de um tipo de vínculo e este, também, pode estar
associado à imagem de pai herói.
Elisa nutre a imagem de um pai herói, mas nesse caso, ele se
apresenta como um homem frágil e falível. A maneira como se relaciona com o pai
parece apresentar características erotizadas. Diferentemente de Antonia, que
também tem um pai que falhou na vida, no que se refere à segurança financeira,
Elisa carrega muita mágoa e parece ter consciência do desejo de que a imagem do
pai herói continue a existir como na sua infância.
Essa debilidade pode ter contribuído para fornecer bases também
frágeis de autoconfiança, uma vez que uma das características do arquétipo do Pai
é fornecer estruturas referentes à valoração, à consciência, à discriminação e
também à segurança. Von der Heydt (1978) enfatiza que a força do pai é
fornecedora da segurança e da autoconfiança. Talvez, a fragilidade dele possa ter
contribuído para a ausência dessas estruturas internas nela. Elisa parece constelar,
em si mesma, a fragilidade do pai, o que contribui para o sentimento de
desvalorização e inferioridade que ela demonstra.
Antonia, como as outras cinco, também teve um relacionamento com o
pai, repleto de admiração. Diferentemente das demais, ela conviveu, desde cedo,
com as quedas e dificuldades dele, fator que pode ter contribuído para que a
desidealização acontecesse, aos 18 anos. Talvez o fato de ter se casado tenha
contribuído para se relacionar com o pai concretamente, diminuindo as projeções e
expectativas sobre ele. No período em que permaneceu casada, Antonia relatou que
179
seu relacionamento com o pai sofreu modificações, facilitando o contato e o respeito
entre ambos. A rigidez do pai, muito presente nas posturas em casa e no trabalho,
foram sendo contornadas por Antonia a partir de quando se conscientizou dos
limites e dificuldades dele. É possível ver em Antonia uma representante da
“amazona de couraça”, por ter facilidade, em termos egóicos, no desempenho e na
identificação com as funções patriarcais; demonstra, também, dificuldades nas
relações interpessoais. Esta dificuldade pode servir para esconder suas limitações
em relação à fraqueza e vulnerabilidade, aspecto que diz se identificar com o pai.
Observamos, como Zoja (2005) destaca, que é necessário buscar o
pai, não importando se dentro de si ou fora de si. Algumas filhas, criativamente,
buscaram-no no trabalho, uma vez que em casa, a relação com os pais foi ausente
ou deficiente.
No que se refere às atitudes no trabalho, notamos que algumas das
filhas, às vezes, acabam agindo de forma semelhante aos pais.
Carmem, ainda que demonstre num primeiro momento agir
inversamente ao modo de ação do pai, aparenta apresentar uma defesa
inconsciente à passividade dos pais. Além disso, manifesta a mesma dificuldade do
pai na relação com as pessoas, ao agir com distanciamento das mesmas. Seu pai
demonstra ser passivo e não reagir às circunstâncias da vida. Isso pode ter
contribuído para não construir bases internas, no que se refere à ação e à reação
diante de crises. Ela aparenta a necessidade de definições, de normas e
formalidades claras para que se sinta segura. Isso reforça essa característica
decorrente da ausência do pai.
No caso de Daniela, suas atitudes referentes ao mundo do trabalho,
muitas vezes, são semelhantes às atitudes de seu pai, principalmente diante de
crises e conflitos. Demonstra estar aprisionada nessa relação e sua identificação
com o pai acaba se tornando mais intensa. Fica a impressão de que, nesse
relacionamento pai-filha, não ocorreu a desidealização, já que Daniela aparenta se
relacionar com o pai inconsciente da dinâmica estabelecida entre eles, o que denota
a presença de um complexo paterno.
Com Beatriz, a maneira de ela se relacionar com as pessoas é
diferente da forma autoritária do pai, uma vez que relata ter atitudes democráticas.
Contudo, pode ser que a maneira autoritária com que esta relação se estabeleceu
tenha contribuído para a dificuldade que ela demonstra para impor sua autoridade.
180
Por fim, segue o modelo do pai no que se refere à auto-exigência e ao excesso de
trabalho.
No caso de Antonia, Elisa e Fabiana, notamos que suas reações diante
das situações no mundo do trabalho divergiram das atitudes dos pais.
Em Antonia, percebemos que diferentemente do pai, que assume uma
postura autoritária, ela demonstra ser mais flexível com os colegas e subordinados.
Da mesma forma que desidealizou o pai pessoal, o faz com seu chefe o pai
profissional, com quem aprendeu o ofício de arquiteta e que é admirado e
considerado como modelo. Antonia demonstra ter com ele uma relação tranqüila no
que se refere à autoridade. O fato de o chefe valorizar o trabalho dela e dessa
relação não ser carregada de idealização pode ter fornecido a Antonia outra
referência de atuação no trabalho, diferente da quem tem o seu pai.
Elisa também assume uma postura diferente de seu pai: demonstra ser
assertiva e não aceitar circunstâncias desfavoráveis sem questioná-las. No
relacionamento com as pessoas parece não ter problemas com autoridade nem com
colegas ou subordinados, assumindo atitudes de diálogo. A insegurança não
acontece em relação ao novo, o que lhe possibilita enfrentar situações
desconhecidas e promoções. Mas, é possível perceber que sua insegurança é
acionada quando se sente ameaçada em relação à sua valorização como pessoa e
como profissional.
Levantamos a hipótese de que essa fragilidade interna que Elisa
apresenta promove a necessidade de “criar” uma persona forte o suficiente para
protegê-la do mundo. Essa característica de necessitar de uma persona mais
fortalecida, também é encontrada em Carmem. Ambas apresentam uma fragilidade
psíquica em relação à imagem do pai: Carmem, em função da completa ausência e
Elisa em função da fragilidade dele.
Ao que parece, as reações diante de crises são impregnadas de
ansiedade e de somatização, como Elisa descreve acontecer com sua mãe. Tais
características ela diz ter assimilado de sua mãe, já que o pai demonstrava
dificuldades na reação às crises, fato que promoveu a insegurança financeira na
família.
Fabiana relata que adota uma postura flexível com as pessoas, tanto
com figuras de autoridade quanto subordinados ou colegas, diferentemente de seu
pai, que assume uma postura destrutiva e autoritária no trabalho. Em relação às
181
crises, a atitude de Fabiana nos chamou a atenção, pois demonstra ser uma
característica individual, ressaltando sua maneira de enfrentar as dificuldades sem
temer situações novas. Relata que quando criança, uma brincadeira no labirinto já
caracterizava sua maneira de reagir às dificuldades: afastar-se do labirinto e buscar
a saída olhando de cima! Essa é a maneira que descreve sobre seu modo de agir
diante das crises: retira-se da situação e busca a saída.
No que se refere às escolhas profissionais, a influência do
relacionamento com o pai não foi visto como fator de relevância direta, tendo o
vínculo com a mãe se destacado nesse aspecto.
No caso de Antonia, a escolha profissional decorreu de reflexão
proporcionada pelo processo de orientação profissional, cujo direcionamento
materno foi essencial. Foi a partir do desejo da mãe, de que os filhos passassem por
um processo de orientação profissional, que Antonia pôde fazer sua escolha. A
profissão sugerida coincidia com o desejo do pai, mas era diversa de seu sonho de
infância. A função da relação materna foi essencial nesse momento da vida de
Antonia, por ter sido através da orientação profissional que ela escolheu seu
caminho e sentiu-se realizada, como relata.
Segundo Carmem, sua mãe é uma mulher passiva e submissa. O
relacionamento mãe-filha pouco aparece em sua entrevista, dando a sensação de
invisibilidade na vida da filha. A escolha profissional, no caso de Carmem, foi
realizada, passo-a-passo, sem a troca familiar, com o auxílio de colegas de trabalho.
A busca pelo próprio caminho, a escolha por cursar Direito e o desejo pela carreira
acadêmica dão a sensação de que Carmem cresce e se estrutura sozinha. Qualquer
alteração no mecanismo que buscou para se estruturar parece causar alguma
desordem interna ao ponto de ela desconsiderar a possibilidade de atingir seu
sonho.
Daniela foi a única a seguir profissão decorrente de um sonho de
infância. Em seu caso, a participação dos pais não influenciou na escolha. Se formos
destacar uma influência, ela aconteceu no momento da conquista da subsistência,
em que Daniela coloca seus objetivos voltados para conseguir se sustentar, e
também, provar para sua família que consegue sobreviver sozinha. Nessa pesquisa,
sua mãe foi a única que atuou profissionalmente. Segundo Daniela, a relação
estabelecida entre elas parecia mais relacionada ao mundo das ordens e das
182
obrigações. Isso talvez explique a dificuldade em estabelecer relações, no contato
com Eros.
A escolha profissional de Beatriz teve participação mais direta do
relacionamento com o pai, que pode ter contribuído para que ela ficasse presa ao
seu modelo do pai, no que se refere ao tipo de trabalho que deveria seguir. A
influência ocorreu na ordem da atuação profissional, em que a profissão liberal era
valorizada e reforçada pelo pai como caminho a ser seguido. Ela, de fato, fez a
opção por uma profissão que lhe permitisse atuar como autônoma. No entanto,
quando ingressou no mundo do trabalho, preferiu a contratação e horários fixos a ter
seu próprio consultório. Isso pode também estar relacionado com a maneira como
fez a escolha profissional: sem reflexão, seguindo o caminho do pai. A mãe não
aparece diretamente no processo de escolha.
Tanto Elisa quanto Fabiana parecem ter feito suas escolhas
profissionais sem uma influência direta dos pais, embora ambas tivessem tido deles
a sugestão de seguirem a carreira de Direito, não pela identificação das filhas com
essa carreira, mas pelas oportunidades que esta profissão traria a elas. Para Elisa, a
escolha sofreu influência de um relacionamento positivo com uma professora de
Psicologia, no ensino médio, bem como das comparações que sua mãe fazia dela
com uma prima, que era estudante de Psicologia. A mãe pode ter contribuído por
meio das comparações, que geravam em Elisa um sentimento de diminuição e
desvalor em relação à prima.
Fabiana, diferentemente, fez sua escolha de forma gradativa, a partir
de informações que foi colhendo das profissões e de seu único grande desejo que
era o de trabalhar com crianças.
Contudo, é possível acreditar que, nos casos de Beatriz, de Elisa e de
Fabiana, as mães parecem ter sido modelos de mulheres de uma época. A persona
de dona de casa e mulher do lar, frágil e submissa, foi fortemente contestada por
suas filhas.
A mãe de Beatriz, segundo seu relato, é vista como antimodelo de
mulher, portanto de vida, e muito pouco valorizada em suas atitudes e comentários.
Contudo, no caso de Elisa e Fabiana, as mães é que procuraram
estimular as filhas a seguirem um caminho diferente daqueles que elas seguiram.
Com isso, o estímulo por continuar os estudos e buscar um percurso diferente do de
dona-de-casa foi a grande influência dessas mulheres. Este aspecto contribuiu na
183
vida das filhas para a busca de seus próprios caminhos. Percebemos que as mães
tiveram participação importante na vida profissional das filhas.
Apesar de não se ter uma categoria diferenciada sobre o Masculino,
daremos destaque, a seguir, às características das mulheres referentes a esse
aspecto, nessa fase de vida em que elas se encontram.
O animus é o aspecto masculino inconsciente na mulher e que pode se
apresentar na psique por meio de imagens ou representações.
Percebemos que a masculinidade oferecida pelo pai participa do
desenvolvimento das qualidades masculinas internas da filha. Para isso, é preciso
que a mulher consiga uma separação parcial do complexo paterno.
Antonia demonstra ter a dimensão do animus referente à ação mais
fortemente desenvolvida. Fabiana também apresenta a imagem da ação, mas tem
destaque a esfera do planejamento e da palavra. Daniela, apesar de todas as
dificuldades que denotam o vínculo com seu pai, apresenta a dimensão da ação
também mais desenvolvida.
Em Carmem, o destaque está na dimensão animus relativa à vontade e
também, em menor escala, ao direcionamento, fato que podemos apontar como
conseqüente das relações vivenciadas em sua casa. Beatriz destaca-se pelo
aspecto do conhecimento. Elisa apresenta um animus relacionado ao planejamento
e direcionamento.
Algumas particularidades merecem destaque. Daniela parece
aprisionada ao mundo patriarcal como um todo; Elisa, no que se refere à afetividade
com o pai; Fabiana, quanto ao poder; Beatriz, um aprisionamento no perfeccionismo
e Carmem parece estar em busca de uma estrutura patriarcal.
A nosso ver, Antonia é a única das entrevistadas que aparenta elaborar
melhor o complexo paterno e, com isso, apresenta uma assimilação de aspectos do
animus no trabalho. O pai, aliado às características pessoais de Antonia, parece ter
fornecido as bases necessárias para o crescimento psíquico dela. Apesar de Antonia
apresentar algumas dificuldades no âmbito do Feminino, parece ter consciência de
seu caminho psíquico.
Segundo Wheelwright (1984), a mulher só consegue uma integração
mais consciente do animus em idade mais avançada, isto é, já na meia-idade. O que
observamos é que apesar desse aspecto da teoria, a mulher parece já apresentar,
de forma parcialmente integrada, algumas dimensões de seu animus. Notamos que
184
o animus, na sua dimensão da ação, já se apresenta nessa fase da jornada da
mulher.
A presença da ação, do direcionamento e do planejamento é
importante e tais aspectos foram observados nessas mulheres. O momento do
desenvolvimento da vida caracterizado pela construção de seu espaço profissional e
de sua carreira requisita da mulher um olhar para o seu mundo interior e uma
energia direcionada para o mundo exterior. O olhar para o interior refere-se à busca
de uma conscientização das influências psíquicas que regem a sua vida. A
consciência, na medida do possível, dos complexos que influenciam sua vida pode
proporcionar um crescimento psíquico.
Hoje, as exigências do mundo externo impõem à mulher a necessidade
de construção da vida e da profissão.
A função do animus é de servir como auxiliar no processo de
amadurecimento da filha e de atuação dela no mundo, em especial, no trabalho.
Percebe-se contudo, que dinâmicas familiares, em função das características que
cada pai porta e constela na filha, muitas vezes, transformam um relacionamento
positivo em negativo para a filha, exigindo dela maior desprendimento e
conscientização para desenvolver os aspectos masculinos necessários à sua vida.
Quando a mulher fica aprisionada em um complexo, todas as ações de
direcionamento ficam prejudicadas e acabam tendo forte ligação com o complexo.
A maioria das mulheres que participou deste estudo ainda está, de
alguma forma, aprisionada em algum complexo, embora se saiba que complexos
sempre estarão presentes na vida das pessoas. Destacamos aqui a maneira
marcante como eles atuam na psique da mulher, dificultando o desenvolvimento de
alguns aspectos do masculino.
Contudo, o que se verifica é que o animus atua em vários momentos
da primeira metade da vida da mulher, de forma a auxiliá-la no seu percurso. As
mulheres deste estudo apresentaram, em sua maioria, a dimensão da ação.
Podemos dizer que o animus apresenta algumas dimensões já parcialmente
integradas, na primeira metade da vida.
Como as mulheres dessa geração conseguiriam atuar nesse mundo,
sem este recurso essencial para a psique feminina?, é a pergunta que se faz.
Esse questionamento parece reforçar nossa constatação de que a
mulher já apresenta algumas dimensões do animus parcialmente integradas ao
185
longo de sua vida e de sua jornada psíquica. Cabe-nos refletir e questionar sobre as
idéias difundidas sobre o animus, de que este só seria possível ser integrado a partir
da segunda metade da vida.
A apropriação de uma persona feminina e não apenas materna parece
ser um dos conflitos mais presentes entre as mulheres deste estudo. Uma vez que a
maioria teve um modelo (persona feminina) relacionado apenas ao materno e à
dona de casa, podemos dizer que essas mulheres procuraram uma “nova maneira
de ser mulher”: uma persona diferente do referencial materno. Isso também parece
ter contribuído para que a dimensão da ação seja a mais presente. O estudo indica,
ainda, que o animus materno também forneceu referencial para as filhas. Se o
animus não teve representação significativa na vida profissional da maioria das
mães, no entanto, forneceu direcionamento para as filhas, principalmente no aspecto
profissional.
186
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao finalizarmos este trabalho, algumas apreciações são necessárias.
A primeira delas diz respeito às mulheres que, gentilmente, cederam
parte de suas histórias de vida para contribuir com esta pesquisa. Elas permitiram
ilustrar este estudo com seus relatos sobre a vida profissional e pessoal,
principalmente no que se refere ao relacionamento com o pai.
Nossa pesquisa procurou inicialmente observar a relação pai-filha e
suas peculiaridades no desenvolvimento psíquico da mulher, no que se refere ao
mundo profissional.
Percebemos que o pai é pessoa significativa na vida dessas mulheres,
seja em razão da presença ou da ausência. De alguma forma, ele marca a vida da
filha, sendo necessário que ela identifique as teias que regem o relacionamento
familiar, tanto com o pai como com a mãe.
A maior parte das mulheres deste estudo ainda se encontra vinculada
de alguma maneira ao pai. Muitas delas já se distanciaram do pai pessoal, mas
ainda estão muito próximas ao pai interior (complexo paterno). Sabemos que ter
complexo faz parte da vida psíquica de todas as pessoas. Contudo, ressaltamos a
força com que os complexos parentais podem ainda estar atuando na psique dessas
mulheres. Isso dificulta o seu desenvolvimento psíquico e acarreta uma maior
permanência na condição de filha que na condição de mulher. A mulher fica
aprisionada em complexos e tem como conseqüência a insegurança, a baixa auto-
estima, o exagero na dedicação ao trabalho (workaholic) e o perfeccionismo de sua
ação. Além disso, apesar da idade adulta, muitas delas ainda nutrem um pai herói e
idealizado, o que favorece a força do complexo.
Como Zoja (2005) enfatiza, procurar conhecer o “pai” que há dentro de
si é tornar-se adulto. Pudemos perceber o quanto este caminho tem sido difícil para
essas mulheres.
Embora elas tenham conseguido traçar caminhos pessoais e
individuais em relação aos laços familiares, a presença do pai é marca importante
em suas vidas. Seja pela admiração ou rejeição, pelo apoio ou pela crítica, pela
presença ou pela ausência, de alguma forma o pai se mantém fortemente presente
187
na vida dessas mulheres. Se ele consegue auxiliar o desenvolvimento da filha,
promovendo a segurança dela por meio de apoios, incentivos, respeito, limites e
valores, ela terá dentro de si as bases para construir e avançar em seus caminhos.
Se, ao contrário, ele não consegue promover esses aspectos na filha, o percurso
que ela irá traçar exigirá mais esforços criativos e, muitas vezes, exigirá a busca
dessas características em outro representante do Pai, como por exemplo, um pai
social ou cultural.
O pai e seus representantes servem como auxiliares para a mulher no
seu desenvolvimento psíquico. Observamos que os vínculos estabelecidos com o
pai podem contribuir positiva ou negativamente para a maneira como a mulher vai
atuar na vida. O que irá promover a diferença é a forma como ela estabelece sua
relação com o pai pessoal. Constatamos que a característica individual de cada
mulher lhe permite o filtro necessário para a separação do pai e para o seu
desenvolvimento pessoal.
Observamos, também, que os tipos de pais autoritários e rígidos foram
os mais presentes, o que pode ter contribuído para certas características
apresentadas por essas filhas, como a insegurança e a dificuldade com a força
interior (vontade).
Ressaltamos que as mulheres deste estudo encontram-se na primeira
metade da vida e buscam um espaço no mercado de trabalho; estão formando as
bases de suas vidas. Constatamos que alguns aspectos do animus já estão sendo
elaborados. Isso parece reforçar a idéia de Wheelwright de que o animus faz parte
da vida da mulher desde menina. A dimensão do animus mais presente nesta
pesquisa foi a da ação. Acreditamos que essa característica se deva ao momento de
vida em que ela se encontra na busca da construção do espaço profissional e da
sua vida como mulher adulta. Outra dimensão em destaque foi a do planejamento
(direcionamento), aspecto também necessário para auxiliar esse momento da vida.
Para a mulher ainda prisioneira de complexos parentais, a dificuldade
de crescimento psíquico é grande. A luta para a realização do próprio caminho é
árdua, pois além das metas necessárias para se traçar seu percurso, é preciso força
interna para romper com atitudes inconscientes, com pressupostos estabelecidos e
com heranças psíquicas familiares. A luta interna é necessária para romper com
padrões criados numa família, sejam eles positivos ou negativos.
188
É importante que se continue a pesquisar e estudar a mulher adulta de
hoje; suas relações com a mãe, considerando inclusive o foco relacionado ao mundo
profissional, para se verificar a participação mais profunda da influência da mãe e de
aspectos de seu animus na vida da filha. Os limites deste estudo não permitiram
observar tais influências, de forma mais aprofundada.
Ainda hoje, o mundo do trabalho tem exigido demais das mulheres.
Existe ainda grande confusão entre a liberdade de escolha de caminhos conquistada
pela mulher a partir do movimento feminista, e a atuação profissional. A mulher
precisa compreender que o trabalho não é sinônimo de espaço denominado
masculino e que sua atuação não precisa seguir esta forma de modelo. É preciso
encontrar uma maneira feminina de atuar no trabalho, respeitando as regras e as
necessidades do modo Feminino de ser, com o auxílio do instrumento interno o
animus.
Algumas mulheres demonstraram ter maior identificação com o
Masculino interior e maior dificuldade com os aspectos relacionados ao universo
Feminino.
Muitos dos questionamentos freqüentes na prática clínica, sobre
conflitos relacionados ao trabalho e atitudes, principalmente relativos ao universo
Feminino sedução, gravidez, menstruação, maternidade, atividades domésticas,
atenção aos filhos e também alguns sobre o universo Masculino trabalho,
limites, relacionamento com autoridade ou imposição de autoridade, respeito às
regras foram também relatados pelas mulheres da presente pesquisa.
Parece que essas mulheres vivem aprisionadas no universo
Masculino. Talvez algumas das razões para se sentirem prisioneiras desse mundo
seja decorrente da sociedade em que vivemos, em que o trabalho, o conhecimento,
a discriminação, a força e a razão são referenciais de sucesso. Tal modelo
discrimina muitas vezes o acolhimento, o relacionamento, a continência. Nesta
pesquisa, observou-se o quanto a mãe acaba reforçando este mesmo modelo.
É importante ressaltar que a mulher pode estar se sentindo aprisionada
também em si mesma, em seu aspecto masculino, possuída pelo seu animus.
Enquanto a mulher continuar polarizada ou no Masculino que a
sociedade reforça, ou no Feminino que é de sua natureza psíquica, ela correrá o
risco de se distanciar de si mesma e de buscar sua aceitação pessoal e profissional
no mundo, nas pessoas e, muitas vezes, nos homens. A tentativa de procurar a
189
aceitação e a valorização nos homens ou nos representantes masculinos
trabalhos públicos, com regras rígidas e pré-determinadas pode estar associada à
relação estabelecida e não diferenciada com o pai interno.
É preciso que a mulher esteja conectada consigo mesma, com seu
universo feminino para que consiga se diferenciar do Pai interno. É preciso também
ter consciência de aspectos do seu animus, tão valorizado pela sociedade, para que
não fique possuída por ele e se desenvolva como mulher.
Observamos, assim como a teoria nos apresentou, que o pai é
significativo na vida da filha e contribui para a relação dela com o mundo, no
trabalho, em suas relações e atuações, na sua segurança e auto-estima.
Percebemos que a mulher, no seu percurso psíquico, relaciona-se
constantemente com aspectos de seu complexo paterno, cuja relação acaba
permitindo seu caminho para a integração parcial de dimensões do animus. Não há
um momento exato da vida em que o animus passa a ser integrado e sim um
constante percurso entre o complexo paterno e o animus. Constatamos que as
dimensões do animus podem se apresentar, na psique das mulheres, como um
fluxo, isto é, mais de uma dimensão pode estar presente em um mesmo momento
da vida, contrariando a idéia da existência de desenvolvimento do animus.
Desta forma, esta pesquisa fornece subsídios para iniciar um debate
sobre o tema e repensar o animus. A revisão do conceito parece necessária e
urgente já que a teoria sofre as influências de sua época. Jung pertenceu a uma
geração em que mulheres eram privadas de participações mais ativas na sociedade,
no que se refere à profissão e aos estudos. Naquela época, de fato, a mulher só
começava a tomar consciência e a enfrentar as limitações socialmente impostas na
segunda metade da vida, com a maturidade. Hoje, vivemos uma realidade em que a
mulher compartilha do mesmo espaço social e cultural do homem, necessitando
então se confrontar com dificuldades nos vários espaços sociais, dentre eles o
trabalho, e buscar suas soluções. Para isso, precisa se conscientizar das teias
psíquicas que regem sua vida e das qualidades que possui para lutar por seu
espaço.
190
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196
ANEXO A CARTA À COMISSÃO DE ÉTICA
Prezados senhores,
Venho solicitar autorização para a realização de pesquisa intitulada:
“Da relação pai-filha à profissional mulherUm estudo qualitativo com
mulheres adultas jovens, numa abordagem junguiana”, utilizando entrevistas
com mulheres solteiras, que tenham entre 28 e 35 anos.
Para isso, será utilizado um Termo de Compromisso de Utilização de
Dados, que será preenchido pela pesquisadora e pelo orientador, envolvidos na
manipulação destes dados.
Todas as pessoas, pesquisadores ou colaboradores, comprometem-se
com a manutenção da privacidade e com a confidencialidade dos dados utilizados,
preservando integralmente o anonimato das entrevistadas.
Os dados obtidos somente serão utilizados para o projeto ao qual se
vinculam. Temos ciência de que todo e qualquer outro uso que venha a ser
planejado deverá ser objeto de novo projeto de pesquisa, que deverá ser submetido
à apreciação da Comissão de Pesquisa e Ética.
Pesquisador responsável
Ana Carolina Falcone Garcia
Orientador
Durval Luiz de Faria
197
ANEXO B TERMO DE COMPROMISSO DO PESQUISADOR
Pesquisa: Da relação pai-filha à profissional mulher Um estudo qualitativo
com mulheres adultas jovens, numa abordagem junguiana.
Os pesquisadores, abaixo assinados, se comprometem a:
Atender aos deveres institucionais básicos de honestidade, sinceridade,
competência e discrição.
Pesquisar de forma adequada e independente, além de buscar aprimorar e
promover o respeito à sua profissão.
Não fazer pesquisas que possam causar riscos não justificados às pessoas
envolvidas.
Não violar as normas do consentimento informado.
Não converter recursos públicos em benefícios pessoais.
Não prejudicar seriamente o meio ambiente ou conter erros previsíveis ou
evitáveis.
Comunicar ao possível sujeito todas as informações necessárias para um
adequado consentimento informado.
Propiciar ao possível sujeito plena oportunidade e encorajamento para fazer
perguntas.
Excluir a possibilidade de engano injustificado, influência indevida e
intimidação.
Solicitar o consentimento apenas quando o possível sujeito tenha
conhecimento adequado dos fatos relevantes e das conseqüências de sua
participação e tenha tido oportunidade suficiente para considerar se quer
participar.
Obter de cada possível sujeito um documento assinado como evidência do
consentimento informado, e
Renovar o consentimento informado de cada sujeito se houver alterações nas
condições ou procedimentos da pesquisa.
São Paulo, de de 2004.
Pesquisador responsável
Ana Carolina Falcone Garcia
Orientador
Durval Luiz de Faria
198
ANEXO C
199
APÊNDICE A TERMO DE CONSENTIMENTO
Eu, _______________________________R.G. __________________,
concordo em participar desta pesquisa, que será realizada pela psicóloga Ana
Carolina Falcone Garcia, para o fim específico de um estudo sobre a mulher e o
trabalho.
Estou ciente de que as entrevistas serão gravadas, para fins de
pesquisa e cujo material poderá ser utilizado para publicação.
Fui informada, ainda, que não serão colocados nome e nem dados de
identificação; o sigilo será mantido quando o trabalho for escrito.
Além dessas informações, ficou esclarecido também que tenho a
possibilidade de desistir de participar desta pesquisa, a qualquer momento, devendo
então comunicar à pesquisadora responsável, antes da conclusão da análise, para
não prejudicar o andamento da pesquisa.
A pesquisadora esclareceu também, que por ser uma entrevista de
pesquisa, com objetivo de coleta de material, não possui finalidade terapêutica e,
portanto, não será realizada entrevista devolutiva com as voluntárias. No entanto, a
pesquisadora se colocou à disposição para quaisquer esclarecimentos, após a
entrevista ou posteriormente a ela.
________________________________
assinatura
200
APÊNDICE B ROTEIRO PARA ENTREVISTAS
Dados Gerais:
Idade: Ordem de filiação:
Estado Civil:
Escolaridade:
Religiosidade:
Com quem mora na casa:
Renda mensal: Profissão:
Formas de agir e sentir no trabalho:
1-Como aconteceu a escolha profissional? (expectativas profissionais da mulher,
influências familiares- se teve algum dos genitores que mais influenciou)
2-Como você se vê profissionalmente e em relação à sua feminilidade? Como é
ser mulher no seu ambiente de trabalho?
3-Como se dão as suas relações no ambiente de trabalho: colegas, chefia e
subordinados?
Circunstâncias específicas da vida:
4-Como você reage aos momentos de crise profissional?
5-Como costumam ser suas reações diante de promoções ou novas
possibilidades dentro da profissão?
Relação entre o pai e a profissão:
6-Como que você analisa a relação com seu pai? Como ela é? Características.
7-O que você observa nas posturas de seu pai no que se refere ao
posicionamento dele no trabalho? Promoções, crises, relação com colegas de
trabalho, superiores e subordinados?
8-Em relação às posturas de enfrentamento da vida, você acha que se
assemelha mais com qual dos genitores?
9-De que forma sua relação com ele influenciou suas posturas na vida
profissional?
10-Em relação a sua mãe, que posturas, referentes ao posicionamento na vida,
você assimila da sua relação com ela?
Comentários, colocações.
201
APÊNDICE C TABELA FORMADA PELAS CATEGORIAS E
PELOS TEMAS
CATEGORIAS
Relacionamento
Com Pai
Relação com
a Profissão
Relação com
Trabalho
Relação
com a
mãe
Auto-
Imagem
Relação afetiva
com o pai
A escolha
profissional
Relação com o
posicionamento
profissional
Relação
afetiva
com a
mãe
Aspectos
femininos
relacionados
com a auto-
imagem
Posicionamento
do pai no
trabalho
A realização
profissional
A relação com
os
subordinados
Relação
com
aspectos
femininos
Relação com
chefia ou
figuras
representantes
de autoridade
Relação com
colegas de
profissão
Relação com
momentos de
crise
TEMAS
Relação diante
de promoção
202
APÊNDICE D TABELA: Relação entre as participantes e as
profissões dos pais
Antonia Beatriz Carmem
Elisa Daniela Fabiana
Profissão
pai
engenheiro
civil
advogado
pedreiro comerciante
Chefe de
departamento
de empresa
advogado
Profissão
mãe
Publicitária
sem
atuação;
dona de
casa
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enfermeira Dona de
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