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deixa a seu cargo o seu si mesmo e a sua identidade. O que não significa que, antes dessa
entrega, já houvesse algo da ordem de uma identidade do sujeito, ou, o ser-para-si do sujeito.
A identidade só vem pelo fato da entrega, do assujeitamento ao Outro.
Antes dessa entrega ao Outro, antes dessa descarga no Outro, não há nada, não há
sujeito. O sujeito começa cometendo-se ao Outro. Fórmula pleonástica, já que em
latim comittere significa, ao mesmo tempo, cometer-se e começar. Dizer a
propósito do sujeito que ele comete-se ao Outro é, então, dizer também que ele
começa nessa entrega ao Outro. (BAAS; ZALOSZIC, 1996, p. 68).
No momento em que Descartes duvida, pensa e afirma sua existência, que é o instante
do dubito-cogito, é o momento do aparecimento do sujeito para si mesmo em sua finitude,
mas percebendo a infinitude do Outro. O sujeito cartesiano reconhece que ele próprio sempre
procedeu da infinitude. Desde seu início, sempre houve uma busca da infinitude, do Outro.
Desde o começo, o sujeito cartesiano acredita estar compreendendo o Outro, mas na
verdade, o que ele faz é apenas começar a partir desse Outro. “Cometendo-se
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ao Outro, o
sujeito entra em falência, pois ele perde o ser-para-si que ele pretendia retirar daí”. (BAAS;
ZALOSZIC, 1996, p. 69). O fracasso do encontro no cogito e no ego sum do sujeito
cartesiano é o de apenas encontrar uma inacessível infinitude que o designa como uma falta,
uma falha cometida pela finitude.
O cogito, a princípio, apontava ao sujeito o seu ser absoluto, mas em seguida ele não
foi capaz de absolver o sujeito pela falta de sua finitude, pois, sem ela, o sujeito não seria
nada. Foi preciso entregar-se ao Outro, permitindo-lhe que fosse confiscado o que ele
pretendia obter nesse lugar. Para ser alguma coisa, mesmo ser nada, ele compromete sua
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O termo cometer é apresentado pelos autores Baas e Zalozic (1996), primeiro, num sentido antigo do verbo
cometer, que tem como sentido: confiar alguma coisa a alguém. Confirma assim uma das significações do verbo
latino “comittere” que é confiar, remeter ao encargo de alguém, deixar alguma coisa aos cuidados de alguém, ou
mesmo, incubir alguém de alguma tarefa. Segundo, num sentido etimológico do verbo comittere, que é unir, pôr
junto, reunir, juntar. Assim, o substantivo comissura significa inicialmente – a juntura, junção. “Cometendo-se
ao Outro, o sujeito, com efeito, junta-se a esse lugar, conjunta-se”. (BAAS e ZALOSZIC, 1996, p. 70).