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Maria Cristina Fonseca de Almeida
COMPREENSÃO DO UNIVERSO DA FAMÍLIA BRASIL NA
PERSPECTIVA DO DIALOGISMO
Passo Fundo
2006
UNIVERSIDADE DE PASSO FUNDO
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS – MESTRADO EM LETRAS
Campus I – Prédio B3, sala 106 – Bairro São José – Cep. 99001-970 - Passo Fundo/RS
Fone (54) 3316-8341 – Fax (54) 3316-8330 – E-mail: mestradoletras@upf.br
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Maria Cristina Fonseca de Almeida
COMPREENSÃO DO UNIVERSO DA FAMÍLIA BRASIL NA
PERSPECTIVA DO DIALOGISMO
Dissertação apresentada ao curso de Letras, do
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, da
Universidade de Passo Fundo, como requisito para o
grau de Mestre em Estudos Lingüísticos, sob a
orientação da Profª. Dr. Telisa Furlanetto Graeff.
Passo Fundo
2006
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RESUMO
Este estudo consiste em uma compreensão das tiras da Família Brasil, reunidas em um álbum
intitulado Aventuras da Família Brasil, tendo como fundamento de base o dialogismo. Para a
presente análise, adotou-se a perspectiva de estudos do Círculo de Bakhtin, retomando conceitos
pertinentes para a construção de um caminho, com vistas à responsividade inerente ao processo de
produção de sentido. Nesse viés, assume-se, no enunciado, o centro de onde é possível estabelecer as
relações de sentido na e pela linguagem. Optou-se por recortar duas categorias, retiradas do vasto
legado bakhtiniano, consideradas, aqui, como constitutivas da perspectiva dialógica. A primeira
categoria retoma as reflexões do Círculo para a idéia de exotopia textual, constituindo-se no exterior
o elemento organizador dos sentidos e, paralelamente, o outro, como dimensão de completude e
acabamento para os atos de linguagem. Essa instância coloca os elementos extralingüísticos, o
contexto social e a intersubjetividade como organizadores do momento verbal, responsáveis por
determinar o sentido estabelecido em cada momento enunciativo. A outra categoria, índice social de
valor, acarreta para a compreensão a identificação do sentido estabelecido pelas palavras, no
momento em que cada personagem cada centro de valores - socialmente constituído, traz para o
momento verbal a diretriz volitivo-emocional e os valores verbo-axiológicos que emergem dos
objetos lingüísticos, pontos de refração de forças sociais vivas, característicos da arena em que se
constitui a negociação de sentidos na linguagem.
Palavras-chave: Dialogismo. Exotopia. Índice Social de Valor. Responsividade.
ALMEIDA, Maria Cristina Fonseca. Compreensão do universo da Família Brasil na perspectiva do dialogismo.
Dissertação (Mestrado em estudos Lingüísticos) – UPF, Passo Fundo, 2006. p. 148.
SUMÁRIO
LISTA DE TIRAS...........................................................................................................................7
INTRODUÇÃO...............................................................................................................................8
1 CONCEPÇÃO DIALÓGICA DA LINGUAGEM..................................................................13
1.1Círculo de Bakhtin: reflexões para os estudos lingüísticos..................................................14
1.2 Dialogismo: dimensões para o estudo do sentido.................................................................38
1.2.1 O eterno renascer da palavra – uma concepção de índole dialógica...............................45
1.2.2 Enunciado – entidade de atualização do discurso dialogizado........................................53
2 DISCURSO COMO GÊNERO ................................................................................................58
2.1Gêneros do discurso em Bakhtin............................................................................................59
2.2 A tira como gênero textual – um princípio de análise.........................................................68
3 CATEGORIAS PARA UMA ANÁLISE DIALÓGICA ........................................................74
3.1 Exotopia: a instância do eu e do outro – do tempo e do espaço..........................................76
3.2 Noção de valor: o eu, o outro e os sentidos............................................................................85
4 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS...........................................................................92
5 ANÁLISES DAS TIRAS DA FAMÍLIA BRASIL.................................................................95
6 DESDOBRAMENTO EXOTÓPICO OUTSIDENESS DO PESQUISADOR OU A
TÍTULO DE CONSIDERAÇÕES FINAIS...........................................................................140
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..................................................................................147
LISTA DE TIRAS
Quadro 1 Tira 1 – Interlocuções entre marido e mulher..............................................95
Quadro 2 Tira 2 – Interlocuções entre a filha e seu pai..............................................105
Quadro 3 Tira 3 – Interlocuções entre a filha, a mãe e o pai......................................113
Quadro 4 Tira 4 Interlocuções entre o pai, o filho, a filha e seu namorado, e o
neto.............................................................................................................121
Quadro 5 Tira 5 – Interlocuções entre patrão e empregada.......................................132
INTRODUÇÃO
Um aspecto importante da produção científica nas ciências humanas é o fato de ela ser
comprometida ideologicamente e veicular interesses e visões de mundo, historicamente
construídos. Por esse caminho, a visão de mundo do pesquisador encontra-se implicada no processo
de conhecimento, desde a concepção do objeto aos resultados da análise e à sua aplicação. Tendo
como parâmetro essa dimensão, com vistas a uma compreensão textual, importa, em princípio,
buscar uma organização centrada em uma teoria definida a partir da qual se estabeleçam limites que
ajudem no recorte estratégico objetivado.
Em vista disso, como referencial teórico-metodológico deste trabalho, adotou-se a
perspectiva de estudos realizados pelo Círculo de Bakhtin, tomando-se como caminho para as
reflexões que um texto é todo sistema de signos cuja unidade e coerência se deve à capacidade
de compreensão do homem na vida comunicativa e expressiva, desse modo determinada pelo
contexto comunicativo. Por mais que um texto seja o ponto de partida de uma prática
compreensiva da linguagem, somente com a percepção extra-verbal, organizadora da situação
enunciativa, pode-se avaliá-lo, marcado que é por uma tensão de pontos de vista sócio-
ideológicos, os quais se encontram inseridos nos vários gêneros de expressão da língua.
O presente estudo tem como objeto de análise as tiras de Luis Fernando Veríssimo,
reunidas em um álbum intitulado Aventuras da Família Brasil. O interesse por esses textos advém
do fato de constituírem um gênero textual indissoluvelmente ligado à compreensão dos discursos
cotidianos, onde cada personagem apresenta uma visão de mundo, com vozes sociais e pontos de
vista a serem identificados, portadores de atos que se operam em relação a um e a outro
personagem, como um diálogo potencial.
De resto, é importante saber que família é essa, de Luis Fernando Veríssimo, que
encanta leitores de várias faixas etárias e de diversos lugares do país. Cumpre referir que as tiras
fazem parte de um gênero textual utilizado na escola, além de representarem preferência de leitura
entre os jovens. Como suporte a essa situação, a necessidade de um olhar que considere as
relações dialógicas, restabelecendo, a partir do enunciado, o contexto social e os valores verbo-
axiológicos negociados pelos personagens, através de um olhar exotópico. Essa perspectiva pode
dar conta do fato de que a comunicação não existe isoladamente, pois parte do fluxo social, dando
sentido ao enunciado em relação ao meio social circundante. Finalmente, acredita-se na necessidade
de estudos que desenvolvam instrumentos práticos para demonstrar que, por meio dos signos e dos
textos, criam-se representações que refletem, refratam, constroem e desafiam os conhecimentos e
crenças existentes, além de organizarem o estabelecimento de relações sociais, nas quais se está
inserido e de que se é dependente.
Outro fator relevante para a escolha do gênero tiras deve-se ao fato de Luis Fernando
Veríssimo não ser um escritor muito lido em todo o país, conhecido pelos trabalhos com outros
gêneros textuais, mas também por apresentar a Família Brasil em situações típicas de famílias que
discutem, opinam, questionam e se questionam, remetem a fatos passados, acompanham os
acontecimentos atuais; enfim, uma família que pode ser comparada a uma família real, cujo
horizonte espacial e ideacional é compartilhado pelos leitores. Uma compreensão que considere o
enunciado como um fenômeno objetivo, desconsiderando o fato de os personagens pertencerem à
mesma família, grupo social, e o fato de serem contemporâneos, não apreendendo os julgamentos
de valores presumidos, aliás, reguladores dos atos sociais e essenciais, corre o risco de perder o seu
sentido.
O caminho inicial consiste na organização dos pressupostos teóricos que dão suporte à
análise. No primeiro capítulo, procura-se salientar algumas concepções em relação a considerações
feitas pelo Círculo, reportando-se a Volochínov e Medvedev sempre que suas afirmações são
nomeadas nos textos originais e constituem-se em complementaridade para o olhar que se pretende
focar na multifacetada obra de Bakhtin. Em seguida, percorre-se a noção de dialogismo,
entendendo-se essa concepção ampla com a ajuda de estudiosos do Círculo na grande e pequena
temporalidade. No momento seguinte, busca-se um recorte específico para os conceitos de palavra
e de enunciado, pois se acredita que as diferenças propostas pelo Círculo, para esses termos, são
fundamentais para a ruptura – ajustamento- de idéias da obra como um todo.
O capítulo dois detém-se num tema tratado por Bakhtin – gêneros do discurso –,
enfatizando a sua importância para a compreensão de textos e condicionando-o ao todo da obra
desse pensador. Nesse momento, ao se aproveitar a exposição teórica do estudo dos gêneros
textuais, faz-se um levantamento das tiras como gênero textual, vinculando-as diretamente à análise
das tiras da Família Brasil. Refere-se, ainda, o fato de as tiras analisadas terem como suporte, não
mais o jornal, mas um álbum.
A aplicabilidade teórica para o estudo do gênero textual definido, resultou na
focalização de alguns conceitos trabalhados, especialmente, por Bakhtin e por Volochínov, em
diferentes momentos. Assim, o capítulo três trata das categorias de análise: categoria exotópica e
categoria de índice social de valor, com o objetivo de agrupar idéias ou expressões, unindo
dialeticamente o método científico teórico e empírico, com fins de análise. Mesmo se tendo
consciência das diferenças propostas entre esses pensadores, ambos postularam a enunciação como
elemento centralizador dos sentidos que emanam de um evento verbal. A delimitação de categorias
justifica-se, quando se considera a amplidão dos temas trabalhados pelo Círculo pensadores que
não tiveram a preocupação de explicitar uma metodologia de análise, mas se preocuparam com
discussões essenciais às verdades inerentes à linguagem.
A seleção dessas categorias visa a dar conta da compreensão do enunciado, da
conversação comum presente nas tiras, na condição de que fique claro que se trata de universos
distintos da conversação face-a-face, que serão guardadas as devidas proporções e que a relação
com a linguagem cotidiana se dará por analogia, através do estabelecimento dos limites
essenciais do enunciado. Ao se entender a leitura da Família Brasil como representante da vida
real, a compreensão só se efetiva a partir de convenções que tornam verossímeis as situações
presentificadas, não podendo ser confundidas com o realismo cotidiano, mas como uma pseudo-
enunciação.
No quarto capítulo, organizado metodologicamente por meio de um protocolo de
categorias de análise, o qual serve de orientação ao leitor, encontra-se o objetivo principal do
trabalho, ou seja, a compreensão das tiras da Família Brasil. O olhar para o estudo dos enunciados
pode ser definido a priori como hermenêutico, pois se estabelece por meio de questionamentos de
aspectos que englobam o discurso em sua totalidade. Busca-se, com suporte nas coordenadas
contextuais, o sentido das palavras negociadas em cada acontecimento enunciativo, a partir do
evento comunicativo. Portanto, o estudo se sustenta na mudança de paradigma dos estudos
lingüísticos, proposta pelos pensadores do Círculo.
Optou-se, no capítulo seguinte, por um acabamento à análise, a fim de reafirmar, de
forma prática, a questão relacionada à dimensão do leitor, enquanto responsável pelos sentidos que
se constroem em um momento verbal a resposta ativa do leitor. Com base em um jogo dialógico,
construído a partir da co-enunciação da realidade investigada, esse olhar concludente, outsideness
desta pesquisadora, pretende reforçar a idéia de que o movimento exotópico torna o pesquisador
responsável por sua posição singular. Efetiva-se, desta forma, a idéia da exotopia constitutiva da
pesquisa no campo das ciências humanas.
Sabe-se que os textos do Círculo, e em especial os de Bakhtin - construídos com suporte
no campo da teoria literária e da filosofia da linguagem -, chegaram de forma fragmentada e não se
teve acesso aos textos originais. Em virtude desse problema, o arcabouço teórico-reflexivo sustenta-
se, também, com o auxílio das reflexões realizadas por estudiosos dessa corrente, devido à
complexidade, especificidade e diferenças impostas pelas dificuldades que os textos objetos
sociais - apresentam.
Pretende-se levar adiante, neste trabalho, um estudo da linguagem enquanto discurso,
explorando-se questões relevantes para a organização de um caminho de compreensão, na
perspectiva que coloca um aspecto constitutivo e inalienável da linguagem o fato de o enunciado
se dirigir a alguém, de estar voltado para um destinatário, concretamente definido, em seus atos
verbais irrepetíveis e em seus atos verbais enquanto atividade. Busca-se aquilo que é único e aquilo
que é comum e, portanto, repetível entre os vários atos de uma dada atividade lingüística, em
função da situação social e cultural dos personagens envolvidos.
O caráter de responsividade no processo de compreensão, ou seja, a posição assumida
frente à completude dos personagens de Veríssimo à interpretação o caráter de
imprevisibilidade, considerando-se que, diante de qualquer texto, não uma interpretação
homogênea. Segundo Bakhtin (apud Emerson, 2003, p.319), o trabalho com as ciências humanas é
científico na medida em que é internamente consistente em seu método, em que comunica suas
descobertas em termos de categorias que têm um certo sentido intuitivo, sendo compatível com a
totalidade de um texto original e comprometida com a preservação desse texto, quer dentro ou fora
do cânone.
Por fim, assumir uma posição frente à leitura das tiras numa perspectiva bakhtiniana,
configura um princípio organizador da metodologia a dialogia como fator constitutivo da
linguagem e a responsividade como característica inerente ao ato de compreensão.
1 CONCEPÇÃO DIALÓGICA DA LINGUAGEM
Para melhor entender a idéia de que o outro é presença fundamentalmente constitutiva
do discurso, dar-se-á ênfase, neste capítulo, à concepção de dialogismo proposta pelo Círculo de
Bakhtin, recorrendo-se, primeiramente, a abordagens que permitem compreender com maior
propriedade alguns posicionamentos essenciais, vertentes dessa reflexão. A retomada de alguns
momentos da discussão, a fim de delinear conceitos importantes para a compreensão de um texto na
perspectiva dialógica, não tem a pretensão de excluir da discussão elementos secundários, pois isso
seria incompatível com a riqueza dos princípios propostos por esse grupo de pensadores, mas de
salientar alguns posicionamentos do Círculo e de estudiosos recentes dessa corrente, para
organizar um arcabouço teórico que pretende colocar em prática um estudo responsivo do sentido.
Optou-se por fazer a leitura de algumas concepções do grupo no campo da filosofia da linguagem e
da lingüística, com o intuito de abarcar, nessas duas visões, a natureza teórico-literária, em resposta
axiológica à compreensão das tiras, e a natureza propriamente lingüística, enquanto conexão
indispensável à análise que aqui se propõe.
Igualmente importante à construção do referencial teórico, em um primeiro momento, é
cercar os conceitos relacionados à palavra como elemento fundamental do discurso. Essa retomada
quer esclarecer que as relações dialógicas não são somente possíveis entre enunciados, mas também
em relação a toda a parte significante do enunciado, por exemplo, em uma única palavra, desde que
se encontre em perspectiva enunciativa.
Passa-se, após, a uma reflexão sobre o enunciado como entidade de atualização do
discurso e, portanto, representante máximo da estrutura global do texto como unidade de
compreensão semântica
1
.
No discurso, a abordagem dialógica ultrapassa a questão puramente formal da língua e
instaura a complexidade constitutiva da enunciação, determinante para a apreensão do sentido.
Postula-se, nessa distinção, a inserção do contexto e a negociação dos valores que perpassam todo o
discurso, base de análise e limite para a construção de um sentido, que se sabe por coerência
teórica, inacabável e desprovido de gênese. Por conseqüência, o caráter dialógico de um enunciado
é um acontecimento não previsível, apenas analisável a posteriori.
Apesar de este primeiro capítulo se restringir a uma compreensão sintética de pontos
selecionados do vasto legado dos pensadores do Círculo, em especial de Bakhtin e de Volochínov,
no âmbito dessa abordagem, como se referiu antes, serão destacadas contribuições que sobressaem
nos diferentes olhares, fundamentais para a coerência do eixo central que sustentará e organizará o
trabalho como unidade significativa.
1.1 Círculo de Bakhtin: reflexões para os estudos lingüísticos
As várias considerações que têm sido feitas a respeito das contribuições de Bakhtin ao
estudo do texto e do discurso são unânimes em tecer comentários enaltecedores acerca da
abrangência do pensamento deste estudioso e da atualidade de suas reflexões.
Para o entendimento da complexidade de temas postulados por Bakhtin e seu grupo,
uma primeira questão se coloca, neste momento, em relação às atribuições teóricas. Refere-se a um
esclarecimento a respeito das autorias dos textos do conjunto de obras, hoje conhecido como
Círculo de Bakhtin. No estudo que aqui se desenvolve, as autorias serão tratadas conforme as
1
Em português, não existe adjetivo para o substantivo sentido, por isso Paulo Bezerra, na introdução de Estética da Criação Verbal
(2003), utiliza o termo semântico, termo relativo à significação e, portanto, vinculado a sentido.
nominações das edições originais, conseqüentemente, Mikhail M. Bakhtin tem seu nome nas obras
em que as edições publicadas assim o designam, do mesmo modo, Pavel N. Medvedev e Valentin
N. Volochínov recebem a autoria dos textos publicados em seus respectivos nomes. Um estudo
relativo às autorias pode ser encontrado na obra de Faraco
2
, estudioso que oferece uma extensa
bibliografia relativa ao Círculo e à cronologia em que as obras foram divulgadas, esclarecendo
dúvidas no tocante a essa questão. Outro estudo importante, que trata de diferenças fundamentais
entre o pensamento de Bakhtin e Volochínov, foi realizado por Teixeira
3
.
A despeito do garimpo das idéias do Círculo e da discussão que se colocou frente ao
problema das autorias, o conjunto da obra continua, ainda hoje, como um diamante a ser lapidado.
Cada vez que as idéias são trabalhadas por um novo estudioso, novas facetas se revelam, dando
mais brilho à sua filosofia. Talvez os textos também devessem ser vistos como diamantes, que a
cada nova leitura trazem novas facetas à compreensão, cabendo a cada leitor o merecimento pelo
trabalho realizado. Essa analogia serve para recuperar um aspecto importante do pensamento de
BAKHTIN (2003, p. 292):
[...] a emoção, o juízo de valor, a expressão são estranhos à palavra da língua e
surgem unicamente no processo de seu emprego vivo em um enunciado concreto.
Com essa afirmação, entende-se que todo o texto se revela através de um sujeito,
um autor vem de um sujeito-consciência e vai para um sujeito-consciência, sendo organizado
pelo sistema da linguagem, em um processo de construção sempre novo a cada interação,
momento em que o signo lingüístico assume seu sentido. Bakhtin não trabalha em nenhum
momento com o conceito lingüístico de significado (znatchénie), mas de sentido (smisl), ou
significado do sentido (znatchénie smisla). Para ele o sentido responde a perguntas; o
significado não responde e por isso está fora do diálogo. Conforme BAKHTIN (2003), de fato, é
2
FARACO, Carlos Alberto. Linguagem e Diálogo - as idéias lingüísticas do círculo de Bakhtin. Curitiba: Criar Edições, p. 88,
2003.
3
TEIXEIRA, Marlene. O Círculo de Bakhtin e a lingüística: o abstrato e o concreto. Desenredo: Revista do Programa de Pós-
Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo, v. 1, n.2, p.85 – 95, jul./dez. 2005.
nas relações entre sujeitos, relações pessoais, relações personalistas que se situam quaisquer
vínculos semânticos personificados; se estabelecem as relações de verdade, respeito, confiança,
desconfiança, amor, ódio etc.
Segundo essa concepção, o discurso não é jamais individual, pois se constrói pelo menos
entre dois interlocutores
4
, além de constituir a essência de relações que carrega com os outros
discursos ou textos. Colocando essa questão de outra forma, a construção do texto se configura, de
forma prática, em um processo de interlocução e interdiscurso observáveis, determinados pela
reflexão característica que confere ao outro a idéia de completude. Com isso, confirma-se que os
sujeitos do discurso constroem juntos os textos, prevêem o outro, localizam o outro em seus atos
reflexivos e são determinados pelo outro, em função da reflexão própria do ato de linguagem.
Na construção das idéias de BAKHTIN (2003), vê-se a enunciação em uma abordagem
na qual o signo é considerado ideológico, e por esse caminho, vinculam-se os conceitos de
heteroglossia dialogizada ou plurilingüismo dialogizado - formas que se expressam somente entre
os seres. Esse conceito nasce da preocupação com a dinamicidade semiótica, ou seja, para ele o
jogo que se estabelece na criação ideológica, a dinâmica das vozes sociais, é a sua verdadeira
preocupação. Graças a essa dimensão plurilíngüe, isto é, à coexistência, na mesma voz gramatical,
de pontos de vista (espacial, temporal e valorativo) distintos, anunciando a idéia da irrepetibilidade
do signo, enquanto enunciado, que seu olhar apresenta como conseqüência a noção de que todos os
gêneros literários são partes integrantes da visão estética em torno de um centro de valor. Nas
interações o que se faz são julgamentos de valor - faz-se sobre o mundo valorações que se dão nas
interações. Essa relação encontra-se vinculada ao contexto. Não é o item lexical que define a
escolha, mas é na interação que se determina a seleção das palavras. Se há valoração e critério de
seleção é por que os itens lexicais se revestem de valores. A valoração pela entonação ocorre
mediante a entonação, e como o signo é ideológico, reveste-se sempre de valorações.
4
BRAIT (2003, p. 14), no artigo intitulado Alteridade, dialogismo, heterogeneidade: nem sempre o outro é o mesmo: “[...] o texto e
o discurso o processos que implicam produção e recepção, ou seja, sujeitos envolvidos em uma interação, a perspectiva interessa-
se, também, pelo destinatário que, assim como seu parceiro, detém diferentes papéis, aparecendo como receptor, interlocutor,
ouvinte, enunciatário, leitor, e cuja função ativa no discurso será participar da dimensão significativa, na medida em que é o ponto
visado pelas estratégias elaboradas pelo produtor”.
Conforme as contribuições de FARACO (2003, p.57), os conceitos relacionados à
heteroglossia ou plurilingüismo tratam das fronteiras em que as vozes sociais se entrecruzam
continuamente de maneira multiforme, processo em que vão se formando novas vozes. Segundo
essa colocação, a todo o instante, a cada negociação entre falantes, a palavra torna-se
heteroglóssica ou plurilingüística, assumindo seu valor real. A questão unificadora de todos esses
valores se encontra na percepção dialógica – como uma mina de onde provêm os demais
conceitos -, fazendo-se presente em cada objeto de sua reflexão.
Entre as discussões propostas para a questão do sentido, uma das fontes do caminho
percorrido pelo Círculo, para a presença do dialogismo, se encontra na forma filosófica, e outra,
mais especificamente relacionada a Bakhtin, na análise teórico-literária. Ambas são caracterizadas,
aqui, como o suporte para as discussões sobre as relações dialógicas, estabelecidas na linguagem
em oposição ao monologismo, de forma estanque. Na filosofia da linguagem e nas divisões
metodológicas correspondentes à lingüística geral, VOLOCHÍNOV (2002) encontra as duas
orientações que servem à solução da delimitação da linguagem como seu objeto de estudo
específico. Para ele, a lingüística saussuriana (o objetivismo abstrato), que pensa estar afastada dos
procedimentos da filologia, apenas os perpetua. Advém da crítica implícita à noção de corpus,
prática reducionista que tende a “reificar” a linguagem. Ou seja, a lingüística se voltava para o
estudo da enunciação monológica isolada. Isso ocorria por meio da análise de documentos
históricos, em relação aos quais os estudiosos da época, estruturalistas, formalistas e sociologistas
(sociologismo dito vulgar), mantinham uma atitude de compreensão passiva, e, portanto, nos
limites da enunciação, excluindo-se todas as variantes que ultrapassassem o signo enquanto
sistema lingüístico. Como conseqüência, as análises linísticas desconsideravam as questões
ideológicas, colocando-as como parte dos fenômenos relacionados à natureza psicológica.
Segundo TEZZA (2003, p. 210),
[...] o dialogismo bakhtiniano é a expressão de uma falta, de uma carência inelutável do
sujeito único e monolítico que subjaz às concepções tradicionais de linguagem.
De acordo com essa orientação, o pressuposto, indispensável para a reflexão crítica,
pode ser idealizado conforme a filosofia da vida, que inclui o mundo teórico no interior da unidade
da vida-em-processo-de-devir, apesar de ser uma estetização da vida, do acordo com BAKHTIN
(2003). Por esse viés, para a obra estética, há uma categoria de acabamento; a vida só tem um devir
em cada um; assim, a vida é menor do que a teoria, mas se é mais do que a teoria prevê.
VOLOCHÍNOV (2002, p.44), enquanto filósofo da linguagem, percebe na lingüística da
época uma crise relacionada, em especial, à natureza real dos fenômenos lingüísticos, pois não se
pode separar o signo das formas concretas da comunicação social. O índice social é
interindividual. Ou seja, tanto Bakhtin quanto Volochínov, que buscavam suas respostas por
caminhos diversos, olhando para objetos diferentes, mantinham a atitude dialógica como
pressuposto para as suas reflexões. Para Bakhtin, as formas de uma enunciação literária, de obra
literária, só podem ser apreendidas na unicidade da vida literária e em conexão com outras obras
literárias; para Volochínov, existe um abismo entre a lingüística da língua e a lingüística do
discurso. Esses olhares inserem a dimensão de dialogismo.
Pensando-se sobre essas implicações, é preciso ressaltar o fato de que não existe palavra
que seja totalmente monológica, do mesmo modo que não existe palavra que seja totalmente
dialógica. de se levar em consideração um continuum entre o sentido estabelecido para os
conceitos de monologismo e dialogismo. Em um primeiro momento, isso se deve ao fato de que
esses conceitos carecem de determinação no que concerne à alteridade constitutiva real de um
enunciado. AMORIM (2004, p. 107) esclarece esse conceito de Bakhtin:
[...] uma análise da relação de alteridade, conceito trabalhado por Bakhtin, refere-
se ao modo como as vozes dos outros se misturam com a voz do sujeito no
enunciado.
É possível exemplificar que, ao escrever, tem-se no horizonte um interlocutor o outro
entende e pode fazer uma outra construção sobre o entendido, e retornar. No processo de dialogia,
os sujeitos do diálogo se alteram em processo (devir). O diálogo é uma corrente inserida na cadeia
infinita de enunciados (atos/eventos), em que a dúvida leva a outro ato, e este a outro,
infinitamente. O enunciado, afirmado por alguém, passa a fazer parte de todos os enunciados, numa
cadeia infinita. Isso corresponde à questão de um continuum. Fundamentalmente, o texto dialógico
permite examinar a questão da alteridade enquanto presença de um outro discurso no interior do
discurso.
Projeta-se, nessa concepção, a previsibilidade de que o manejo das relações de
alteridade e de sua inteligibilidade se produz diferentemente, conforme o lugar ocupado pelo
produtor do discurso. Conseqüentemente, a alteridade intervém sempre em todo o enunciado,
constituindo-se em um movimento em direção ao outro, um reconhecimento de si pelo outro, que
tanto pode ser a sociedade como a cultura - e o elo de ligação é linguagem. Nessa dimensão, a
identidade é dada pela alteridade, e o centro de valores – o centro axiológico - se dá fora do humano
e em toda a humanidade. Por esse caminho, a expressibilidade do valor se encontra no emprego da
palavra, por sua entonação, em virtude da atitude valorativa do falante. A palavra, mais do que
representar, contém uma atitude de valoração do objeto referido. Assim, uma verdade nada vale
sem o sentimento da verdade. Nada é mais vazio do que uma verdade sem esse sentimento
entonacional.
Em sua contraposição/posição teórica, BAKHTIN (2003) defende a idéia de que todo o
texto é heterogêneo
5
, pois a orientação para um destinatário se marca no tecido do discurso que
está sendo produzido, do mesmo modo que todo o texto se constituiu de uma multiplicidade de
vozes. Ou seja, surge da retomada consciente ou inconsciente de outros textos, os quais lhe servem
5
Authier-Revuz (2004), em seu trabalho “Entre a Transparência e a Opacidade Um Estudo Enunciativo do Sentido”, faz uma
abordagem desse fenômeno que permite “surpreender” no fio do “discurso”, na cena enunciativa a instituição do sujeito pelo outro.
de reflexão (adaptação oposição assimilação), traduzidos pela linguagem do sempre novo,
portanto, irrepetível, dado pelo momento da enunciação. Esse entendimento distingue-se do estudo
originado nas línguas mortas
6
e centra-se no efetivo ato de linguagem.
Dialogismo e alteridade são duas categorias essenciais em Bakhtin. Parafraseando
AMORIM (2001), com vistas a um esclarecimento para a dimensão dialógica da compreensão
textual, considera-se que um primeiro nível de alteridade concerne à relação do autor com ele
mesmo, ser socialmente constituído. o segundo nível opera na própria criação do personagem,
pois a criação é um processo de desapropriação de si, de perda de si num mundo exterior, no outro
socialmente constituído. Assim, monologismo e dialogismo devem ser observados em uma
gradação na representação da alteridade, pois a palavra do outro está sempre lá, mas ela pode ser
mais ou menos assimilada ou escondida.
BAKHTIN (2003) critica o estudo da língua, o objeto da lingüística, na forma como é
analisado, a qual não permite a existência de relações dialógicas. O movimento do ato verbal pode
ser demonstrado, de forma primária, com a seguinte colocação: entra-se na cadeia de enunciados
falando, e a palavra alheia pode transformar-se em palavra própria, assumindo-se-lhe como própria,
mas é dada para cada um (esquecimento da origem). O sujeito “se dá” com esse mundo, em cuja
cadeia infinita de enunciados há a noção da possibilidade de ruptura, de se mudar de direção. O
sujeito é participativo e se negar uma existência prévia, não pode “se dar” com o mundo. Na cadeia
infinita de enunciados, a cultura é objetiva, e a vida é concreta. Ou seja, a especificação das
relações dialógicas requer um estudo especial. A lingüística estuda apenas as relações entre os
elementos no interior do sistema, mas não a relação entre enunciados com a realidade e com a
pessoa falante. BAKHTIN (2003) questiona o conceito de língua, na medida em que esse conceito
não é articulável com a história, mas pré-determinado por um recorte que analisa por princípio a
língua morta e desconsidera a essência de elementos constitutivos do discurso. Não se quer com
isso dizer que as suas críticas anulem os fundamentos da razão teórica – o chamado teoreticismo, ao
contrário, reconhece sua validade. Sua oposição se dá quanto à desvinculação do ser humano de sua
6
BAKHTIN (2003) crê que os textos ultrapassam os limites da lingüística e da filologia. Essa concepção não está vinculada aos
elementos repetíveis do sistema das línguas - os signos, mas a outros textos com relações dialógicas peculiares. A idéia aqui é
remeter ao contraponto feito às línguas mortas.
vida concreta. Em consonância com essas determinações, propõe que a lingüística e a
metalingüística se completem, a fim de cercar o objeto língua proporcionando um estudo
reformador para a diferença presente em um objeto das ciências humanas em relação a um objeto
das ciências naturais
7
.
Bakhtin não rejeita as contribuições postas na época pelo grupo de críticos, lingüistas e
escritores, chamados formalistas
8
. Não critica a reflexão lingüística, até então realizada, pelo fato
de a mesma não ousar ir além dos problemas constitutivos, mais especificamente, da enunciação
monológica, a qual ignora o outro, transformando-o em apenas objeto da consciência e não em
outra consciência. No entanto, percebe, nesse enfoque, a desconsideração da enunciação como um
todo. Sua percepção inova o fato de se colocar o contexto de enunciação no interior do enunciado,
conseqüentemente, o extra-verbal não é causa exterior do enunciado, e sim constituinte do ato
verbal. Com esse posicionamento, defende o estudo da linguagem a partir da enunciação, a qual
incorpora a realidade concreta do acontecimento histórico, a fala como produto social, e insere o
outro como co-produtor do discurso. Para VOLOCHÍNOV (2002, p.107), a compreensão ativa tem
de buscar caracterizar os falantes num processo de comunicação verbal, pois os contextos
possíveis de uma única e mesma palavra são freqüentemente opostos. As réplicas de um diálogo
são o exemplo disso.
No campo da ciência, é possível inferir, em uma fórmula científica, para qualquer esfera,
que a ideologia pode ser encontrada com métodos sociológicos. Já, na esfera da ciência da
ideologia, é impossível a precisão das ciências humanas, apesar de o método sociológico tentar
atingir esse objetivo. Interessa compreender que as ciências da natureza dizem respeito também a
seres que estão fora do humano (corpos físicos e químicos). Os objetos das ciências da natureza
estão dentro e fora da sociedade humana (leis), mas essas ciências não podem ser deixadas às suas
leis imanentes. As leis chegam aos corpos de fora, por definição cognitiva dos corpos da natureza.
as ciências humanas justificam-se por e para a sociedade, dentro da sociedade. Assim, as
7
Bakhtin reflete sobre a ciência do espírito, colocando-a como condição para o ser. O espírito não pode ser dado como uma coisa
(objeto imediato das ciências naturais), mas apenas na realização em textos tanto para o um quanto para o outro. (“O problema do
texto na lingüística, na filologia e em outra ciências humanas”, 2003 ).
8
CARBONI (2005), em seu artigo Para além do espelho: os problemas das leituras do Círculo de Bakhtin situa Bakhtin e
Volochínov no contexto intelectual da época e quanto foram influenciados por esse contexto.
formações ideológicas são interna e imanentemente sociológicas, dentro do processo dialógico. A
divisão entre os métodos é sustentada pela diferença dos objetos: os objetos empíricos definem
métodos para si mesmos; a linguagem é o método das ciências humanas.
O problema que envolve as ciências humanas, para BAKHTIN (2003), parte da
separação entre cultura e vida para a relação estética a relação com o outro. Para exemplificar,
conforme ele, o objeto de arte não tem imanência própria, e pensa-se a arte no contexto da
comunicação estética. O método sociológico é adequado para estudar fenômenos ideológicos
humanos (por e para a sociedade), pois não se pode dar o mesmo rigor dos métodos científicos,
que a ciência parte da cultura, e não dos objetos. Nas ciências humanas, a maior exatidão é
atribuída à época e, do mesmo modo, para as ciências da natureza. Agora, se não se pode ter outro
método, que não o científico (sociológico), o conhecimento que se produz só existe como cognição
humana. Assim, todo conhecimento está subordinado à sociologia (primeiros rudimentos para
mostrar que as ciências exatas são humanas, incluindo a ciência como objeto da sociologia). Por
esse viés - que deixa entrever uma oposição, um ponto de partida pertinente para o olhar de Bakhtin
- encontra-se o problema da lingüística da época, 1920-1930, para o fato de ser considerada
reducionista. AMORIM (2004, p.172) refere essa mudança que, no seu dizer:
[...] identifica o movimento social e histórico que toma forma na palavra no fim da
Idade Média início do Renascimento: caracteriza-se pela ruptura do quadro
hierárquico estabelecido e pela construção de um novo mundo onde as coisas a as
noções transformam-se profundamente.
A partir daí, a diferença proposta pelo olhar bakhtiniano passa a refletir-se em uma
espécie de carnavalização da linguagem que acolhe os diferentes linguajares e diferentes pontos de
vista. No lugar do absoluto, encontra-se uma multiplicidade de pontos de vista, envolvendo
personagens e autor, sem que haja privilégios ou hierarquias. O monólogo se conclui e se mantém
como as respostas do outro, e, por isso, em certa medida, reifica a realidade. Contra essa posição, o
Círculo de Bakhtin levanta questões para resolver o problema dos limites entre uma lingüística da
língua e uma contestação desta lingüística reducionista, em nome de uma outra lingüística,
concebida como ciência, apresentando como objeto a linguagem de natureza dialógica.
Para a pesquisa lingüística como ciência da linguagem, o esclarecimento inicial consiste
em resolver o problema dos limites do objeto de estudo e a definição entre a interioridade e a
exterioridade da consciência, pois o homem exprime-se, em tudo, através da interação do eu com o
outro, entre pelo menos duas consciências. Com essa constatação já não há centro, mas uma
relatividade generalizada. Bakhtin assume um contra-método, que leva ao questionamento do que é
“conhecer” e de como dar conta do “conhecer”, diferentemente do “viver”. A história da ciência é
a história do método, e o questionamento leva à perda de garantias. Essa é a grande crise do
paradigma que se estabelece.
No projeto de Bakhtin, mais especificamente, é possível afirmar que as contra-
argumentações são organizadas em dois eixos principais, os quais tomarão conta de todos os seus
escritos, de uma ou outra forma, como construção das idéias em que acredita. Ele fala, analisando o
problema, em relação ao estudo das obras literárias. Primeiramente, não concede o lugar de
posição central dado à literatura - para ele o que importa são os laços que se tecem entre a
literatura e a cultura da época. Ou seja, com essa crítica reencontra a transtextualidade no sentido
de pertencer à história da cultura. Em segundo, critica a ruptura qualitativa entre o texto estudado e
o texto do estudo. Dito de outro modo, nessa concepção o texto se torna um objeto e o observador
se concentra nas relações materiais, formalizando-as – o que constitui um ideal das ciências naturais
e não das ciências humanas. Para BAKHTIN (2003), essas questões reduzem a natureza do discurso
humano e ignoram a sua característica principal o fato de se ter um sujeito, ou seja, alguém que
fala, alguém que se manifesta através de relações dialógicas. Com essa postura filosófica, lança um
novo paradigma cultural, conectando princípios subjacentes às ciências naturais
9
, com o cuidado
necessário, às ciências humanas.
Bakhtin mostra que a linguagem está presente tanto em uma grande elaboração
filosófica ou científica, quanto em um discurso cotidiano. Assim, a onipresença da linguagem
organiza todos os pensamentos e acontecimentos do ser humano e, por isso, pode ser analisada
9
BRAIT (2005),
em seu artigo intitulado Por uma arqueologia dos conceitos do Círculo de Bakhtin: ideologema,, signo
ideológico, dialogismo, faz uma leitura das teorias do círculo e seu vínculo com outros domínios, principalmente às ciências
naturais, desvendando os empréstimos conceituais assumidos pelo Círculo.
na imanência dos eventos por ela refletidos. Considerando-se a cultura como produto dos atos da
vida, a crise surge em decorrência do ato realizado e seu produto. Somente a responsabilidade pode
dar conta da cisão entre a vida e a cultura. Para ele, todo o enunciado universal não é essencial para
o momento da concretude, pois o universal não explica o singular ele valoriza a experiência
singular e única, indicando que a experiência de excluir-se a experiência, trouxe desencantamento.
Detalhando sua percepção, entre o discurso na vida e o discurso na arte, é possível
explicitar que, no discurso da vida, o falante e o ouvinte (contemplador) são co-participantes do
processo estético. No discurso da arte, tem-se o autor, o herói (ele) e o ouvinte contemplador, que é
a voz social incorporada pelo autor a si mesmo. Assim, na arte, o ouvinte não é trazido ao processo
estético, ele é do processo estético. Na literatura, a relação autor-herói-ouvinte se dá num sujeito
social só, o autor, exemplo da dispersão do sujeito. Cada indivíduo é o seu primeiro leitor, e
também, o primeiro contemplador. Portanto, há três grandes diferenças entre o discurso na vida e na
arte: a explicitação dos presumidos da arte; na parte formal, o processo de produção formal, de
estranhamento, através da escolha de um item lexical, por exemplo; e, a internalização do ouvinte
no autor estético.
Na literatura, produz-se um estranhamento, por explicitar demasiadamente a
naturalização cultural; ao escolher o item lexical que contradiz a valoração, produz-se o
estranhamento. Com isso se pode dizer que a linguagem estética é produtora de desnaturalização da
linguagem. Na literatura, os dêiticos, por exemplo, têm função de explicitar contextos, desvendar o
presumido. Na vida, quanto mais amplos os horizontes, mais permanentes e constantes são os
presumidos. Isso remete à idéia da naturalização cultural. Na arte se produz um estranhamento
cultural, quando se explicita um valor que parece óbvio. O processo literário participa da corrente
contínua da vida social, é sua característica; a diferença é que não se pode tomar o presumido como
totalmente presumido, que na vida o pressuposto é extra-verbal. A comunicação, dessa forma,
expõe o presumido, tem acabamento, mas não se fecha. Na arte, é preciso explicitar um conjunto de
valores toda e qualquer análise quer explicitar um conjunto de valores; assim não enunciado
estético sem explicitação de valores. Então, uma obra é estética quando há acabamento. O
acabamento é um princípio criador e produtivo.
Para BAKHTIN (2003), compreender o objeto é responder a ele. Não se pode, assim,
jamais fugir à exotopia textual e à responsividade de um evento, de um acontecimento verbal,
enquanto atividade ética ou estética. Em um primeiro momento, não interessa o todo da
personagem, mas os atos que se operam em relação a um e a outro personagem. Isso enquanto
construção, assim como na vida não interessa o todo do homem, mas apenas alguns de seus atos
com os quais se opera na prática. No entanto, o acabamento, enquanto resposta ao todo, não pode
ser ignorado, é um elemento essencial como forma do tratamento do acontecimento, como forma de
vivenciamento na totalidade da vida e da obra. O autor, por sua vez, é transgrediente
10
a cada
elemento particular da obra, ele é a outra consciência ativa.
Bakhtin, ao organizar seu pensamento a partir dos cânones literários estabelecidos para
a prosa (a realidade da prosa, pode-se dizer, representa o oposto da poesia como forma de arte), de
forma alguma rejeita a poesia
11
como forma de arte.
Conforme TEZZA (2000, p. 241) coloca em seus estudos sobre a prosa e a poesia:
[...] não nenhuma essência poética ou prosaica, mas diferentes intensidades na
relação do discurso na vida do momento verbal entre as diferenças vozes
participantes.
Como se pode constatar, essa observação confirma a crítica de Bakhtin à metodologia
poética da época e insere o signo ideológico como parte estruturante tanto da prosa como da poesia.
Convém observar que é a partir de um olhar exotópico - excedente de visão pelo lugar que ocupo -
conceito bakhtiniano que será discutido mais tarde, na categoria de exotopia, recortada em especial,
aqui, com fins de análise, que seu olhar para a literatura prosaica se mostra inseparável da cultura.
Considera que o processo literário de uma época, ao ser estudado isoladamente, reduz-se a um
embate superficial entre correntes literárias, reduzindo a profundidade que se estabelece entre uma
10
Transgrediente significa “fora do que está sendo pensado”. Transcendente significa “fora dos limites do possível”.
11
Um estudo completo sobre as fronteiras da prosa e da poesia pode ser encontrado em Cristóvão Tezza, Entre a prosa e poesia:
Bakhtin e o formalismo russo (2003).
e outra cultura. O diálogo, em seu entendimento, deve ultrapassar o sentido unilateral, pois, no
mundo contemporâneo, é impossível assumir uma verdade absoluta, mas é possível instaurar,
considerar, assumir a integridade de cada época, enquanto leitura aberta. Essa reflexão leva à
compreensão do signo ideológico e requisita para si a idéia de se colocar os fenômenos semânticos
de forma latente, podendo ser revelados apenas nos contextos dos sentidos culturais de épocas
posteriores, favoráveis a tal descoberta.
Além da prosaica e do diálogo, Bakhtin (apud EMERSON, 2003, p. 57) aprofunda um
terceiro conceito, o de inconclusibilidade nezavershennost, pensando na idéia do inacabado, do
sempre inconcluso da linguagem, que se renova de sentidos em todos os novos contextos. Sentido,
aqui, toma a dimensão profunda e complexa de sua essência sua antecipação com o contexto em
expansão, sua relação com o todo acabado e sua relação com o texto inacabado. É nesse sentido que
se pode pensar a construção de um texto/ a compreensão de um enunciado, pois todo o texto é um
ato de linguagem e se caracteriza pelas propriedades gerais do discurso. Todo o texto se inscreve,
assim, em uma continuidade, que é delimitada por uma abertura e por um fechamento. Nas palavras
de MACHADO (2004, p. 29), abertura e fechamento que as condições situacionais e discursivas
lhe dão, caracterizado por uma estrutura e existência mais ou menos autônoma.
Para BAKHTIN (2003), qualquer espécie de orientação prática da vida é impossível no
interior do mundo teórico. A verdade teórica é um processo no interior da teoria, com suas
características de validade. A teoria pode estabelecer verdades eternas universais, mas somente
naquela teoria, pois a vida prática interfere na teoria. Assim, ele não funda uma estética com base
analítica prévia, pois o ato concreto não é um reflexo, mas sim os fundamentos dos valores, e não o
oposto. Os valores são produtos históricos dos atos concretos. O ser humano é o centro real,
concreto, tanto espacial quanto temporal.
No contexto de sua abordagem, é importante salientar que BAKHTIN (2003) apresenta
uma preocupação em diferenciar o sentido diverso que o vocábulo texto assume em suas reflexões.
Seu posicionamento crítico faz uma oposição evidente face ao termo texto
12
como algo que não
corresponde à essência do conjunto do enunciado, portanto, não igual à obra em seu conjunto do
outro significado de texto, no sentido rigorosamente lingüístico, acabado, concluído, declarando que
o enunciado, no sentido lingüístico, apenas como texto [...] realmente não existe
13
.
Torna claro, com isso, que tem uma relação dual com esse conceito, além de deixá-lo, de
certa forma, com uma posição sistemática inacabada, termo referido anteriormente, ao se tratar do
conceito de inconclusibilidade, justificada conforme segue:
[...] o peculiar inacabamento interior inerente a concepção filológico-filosófica
inerente a tal concepção e a que se referia o próprio autor como peculiaridade de
seu pensamento. (Bakhtin, 2003, p. 451).
Observa-se que, em seus conceitos, não referências ou definições, nem preocupação
com a metodização de seu estudo, consideração coerente com a sua concepção metodológica. A
constituição de seu objeto, a técnica per si é o aspecto que menos ocupa a atenção do estudioso, por
ser variável, sutil e, muitas vezes, por depender do próprio objeto em virtude de suas
especificidades. No entanto, detalha que a análise, BAKHTIN (2003, p. 196), deve tomar cada
elemento da estrutura como ponto de vista da refração de forças. Para ele, a tarefa basilar é, antes
de tudo, definir o contexto, ou seja, aquele mundo axiológico em que se coloca e se realiza tal
desígnio. Com essas observações, Bakhtin vai delimitando sua posição, abordando, com o olhar de
um leitor atento, as variáveis des/consideradas pela literatura e pela lingüística da época.
BAKHTIN (2003) anuncia dois elementos que determinam o texto como enunciado: a
sua idéia (intenção) e a realização dessa intenção
14
. E, para essa determinação, lança vários
questionamentos possíveis às inter-relações desses dois elementos, que apresentam funções
específicas diferentes, com o intuito de revelar a fronteira do texto como enunciado. Revela, com
12
Para Bakhtin, a preocupação está na especificidade do pensamento das ciências humanas, voltado para pensamentos, sentidos e
significados dos outros, etc. , realizados e dados ao pesquisador apenas sob a forma de texto. O texto é o ponto de partida. (2003, p.
308).
13
BAKHTIN (2003, p.450). Notas publicadas sob o título “O problema do texto”, 1959 – 1961.
14
No capítulo em que trata O problema do texto na lingüística, na filologia e em outra ciência (p. 307).
essa posição, que, além da amplidão de intenções a que cada tipo de texto se propõe, conforme suas
especificidades, em comum para cada texto dois pólos determinativos de sua constituição: um
sistema universalmente aceito - por trás de cada texto está o sistema da linguagem, e uma
característica de individualidade, unicidade e singularidade - cada texto como enunciado é algo
individual e único, não vinculado aos elementos repetíveis da língua, mas a outros textos, momento
em que cada texto assume o seu sentido específico. A nova unidade real do mundo o texto,
entendido como categoria de acontecimento ético ou estético deixa de ser produto de mente
abstrata (mundo das idéias) para ser experimentado no concreto. A noção de acontecimento adquire
essencialidade única, unitária, geograficamente localizada, uma vez que o acontecimento é da
ordem do humano, interfere no humano e na natureza, justamente por ser geograficamente
localizado. Assim, vai demarcando os pontos de construção de um novo paradigma.
Cabe relembrar que Bakhtin é ideário de uma filosofia construída em torno do escopo
de diferentes posições, originadas de discussões com outras vozes
15
, algumas não identificadas, dos
clássicos russos e mundiais. Suas formulações teóricas entram em contato, de um lado, como se
disse, com as idéias dos formalistas e, de outro, com a corrente historicista. Ou seja, Bakhtin ora
confronta, ora assimila concepções de um outro, para organizar suas reflexões. Segundo FARACO
(2003, p. 18):
[...] é preciso [...] resistir à tentação de logo rotular Bakhtin como filósofo
neokantiano. [...], manteve sempre uma postura crítica frente àqueles
filósofos e, mais importante, avançou respostas bastante originais àqueles
problemas.
Ou seja, Bakhtin tinha como preocupação a busca pelo conhecimento e não a crítica
propriamente dita. A concepção presente nos pressupostos da heterogeneidade lingüística, ou seja,
na multiplicidade de vozes de todo o enunciado, é marca da extensa obra de Bakhtin, reforçando a
índole extralingüística da concepção de discurso, cujo objeto não é o enunciado, mas a
15
Bakhtin viveu em um tempo de vertiginosa mudança do marxismo-lenilismo centrípeto para as tendências do neo-humanismo, do
neonacionalismo e do pós-modernismo. (Caryl Emerson, em Os cem primeiros anos de Mikhail Bakhtin, 2003, p. 29).
enunciação, ou seja, a enunciação verbal
16
, determinada pela sua busca em formar uma ciência
denominada metalingüística ou translingüística
17
. Essa vertente revela sua natureza estritamente
filosófica. TEIXEIRA (2005, p. 96) aponta uma diferença, correspondente à discussão
abstrato/sistemático e concreto/mutável, entre Bakhtin e Volochínov:
[...] Voloshinov toma o estrutural como, no fundo de natureza histórico-social (e
até mesmo interjubjetiva /dialógica), ao passo que Bakhtin o considera como um
fenômeno diferente dos fenômenos discursivos e que, portanto, requer análise
diferente.
Na produção teórica do Círculo, nota-se a distinção que VOLOCHÍNOV (2002, p. 131)
faz entre a significação como um estágio inferior da capacidade de significar, e o sentido como
representante de um estágio superior:
[...] é o sentido que esses elementos historicamente assumem enquanto tema, em
virtude de seus usos reiterados, que os determinam em um enunciado.
Conforme ele, a investigação tem de direcionar-se a um estágio superior, tratando-se de
uma significação de sentido contextual, e não uma investigação de estágio inferior, que será uma
investigação da significação da palavra no sistema da língua. Esse é um ponto-chave para a obra do
Círculo, pois demonstra o cuidado que tem em relação à abstração teórica.
A singularidade na escolha do gênero romanesco, conforme BAKHTIN (2003), deve-se
à revelação da relação polêmica com o outro, à representação do interdiscurso e, assim, à simulação
do funcionamento real da linguagem. Para ele, o que caracteriza o romance são as diferentes vozes
sociais que se entrecruzam, se defrontam, manifestando diferentes pontos de vista sociais, sob um
16
Bakhtin em Estética da Criação Verbal, 2003, XXVII.
17
O texto em forma de enunciado como unidade da língua, entra em um campo inteiramente novo da comunicação discursiva, que
não se presta à descrição e à definição nos termos e métodos da lingüística e em termos mais amplos da semiótica. Bakhtin
(2003), Apontamentos de 1970-1971.
dado objeto. A polifonia, categoria que aqui não se abordará, na literatura, representa a estrutura, e
não o ser único em sua eventicidade, unicidade. O sujeito polifonicamente constituído é o que
sentido à arte, pois volta a si mesmo enriquecido. Assim, as vozes que constituem um leitor hoje,
não permitem que se leia Camões como um homem do século XVI o faria.
Retornando às vertentes do pensamento filosófico do Círculo, foram as contraposições
aos formalistas que legaram seu momento de reflexões para a dimensão histórica
18
, a qual remete a
compreensão do texto à covariação existente entre o estado histórico em que se situa o momento da
leitura e a significação do texto, inovando com essa reflexão
19
o conceito de distância
(unienakhodímost) e o de excedente de visão e de conhecimento (tópicos que serão abordados nas
categorias de análise, no capítulo três), o de horizonte do herói e seu ambiente. O termo “distância”
funciona na obra de Bakhtin em diferentes passagens, ora em torno da distância do eu e do outro no
acontecimento real da comunicação, ora em relação à distância do leitor contemporâneo e do
pesquisador em relação a épocas e culturas distantes. Quer com isto deixar definido que as
linguagens sociais não coexistem paralelamente, mas são atravessadas constantemente, no fio do
discurso, onde se busca uma posição a ser definida em relação à outra. Retomando a categoria de
acontecimento categoria central na estética de Bakhtin -, essa ganha o seu complemento original,
no contexto de sua interpretação ampla, pode-se dizer universal, no diálogo como acontecimento
decisivo da comunicação humana.
Nas considerações do Círculo, os fenômenos que cercam a vida das pessoas e das
personagens
20
estão fundidos como julgamentos de valor (categoria que será explicitada no capítulo
três), podendo ser expressos através da linguagem. O sentido, revelado em cada enunciado, é
potencialmente infinito; ele sempre contata com outros sentidos, para revelar os novos significados.
Os estudos que, até então, isolaram formas verbais para o estudo da linguagem, trabalharam
somente a índole-objetiva (no amplo sentido dessa palavra); as relações dialógicas são de índole
18
Sobre essa questão, Bakhtin deixa claro não ter a pretensão de atingir a plenitude histórica do material ou estabelecer todas as
relações e correlações históricas, ainda que sejam fundamentais. (Bakhtin, 2003 p. 223)
19
TEZZA, Cristóvão. Entre a prosa e a poesia: Bakhtin e o formalismo russo. Rio: Rocco, 2003, p.40. Na visão bakhtiniana, é
preciso refundar a noção de gênero literário, uma noção que ainda não saiu da descrição de formas acabadas, e refundar a própria
estilística tradicional, incapaz de trabalhar com uma noção pluriestilística da língua.
20
O termo personagem chega por Bakhtin refletindo a idéia galileana” em oposição a visão de mundo “ptolomaica”, onde o autor
se colocava como o centro das coisas. A idéia de delimitação refletida pelo termo personificar implica mais vulnerabilidade, pois
todos os participantes estão projetados para responder.
específica, pois não podem ser reduzidas a relações meramente lógicas nem meramente lingüísticas.
Elas são possíveis entre enunciados integrais de diferentes sujeitos do discurso. Uma análise
deve começar pela produção do discurso como realidade primeira da vida do discurso da réplica
do cotidiano ao romance ou a um tratado de ciências - de forma que duas produções de discurso,
enunciados confrontados entre si, entram em um tipo especial de relações semânticas, às quais
chama de dialogismo.
Para Bakhtin, a preocupação está na especificidade do pensamento das ciências
humanas, voltado para pensamentos, sentidos e significados dos outros, realizados e dados ao
pesquisador apenas sob a forma de texto. O texto é o ponto de partida. (2003, p. 308). As relações
de sentido, entre as palavras articuladas, encontram-se impregnadas de significados presumidos e,
portanto, não enunciados. Nas palavras de TEZZA (2003, p. 197), essa relação se estabelece com
um significado mais amplo:
[...] quando um conteúdo objetivo é expresso (dito ou escrito) pela fala viva, ele é
sempre acompanhado por um acento apreciativo determinado. Sem acento
apreciativo, não há palavra.
Esse aspecto contribui para confirmar que o ponto de vista lingüístico - que lida com as
palavras nuas, fora de seus contextos –, sem considerar a apreensão do conteúdo total do discurso e
seu valor ideológico, não pode constituir o objeto de análise. É importante salientar que na ótica de
BAKHTIN (2003), o texto está em toda a parte, seja este real ou eventual e para a sua compreensão
somente a interrogação e a conversa podem trazer respostas. Por essa via, suas reflexões conferem
ao texto a relatividade de que:
[...] nós não perguntamos à natureza e ela não nos responde. Colocamos as
perguntas para nós mesmos e de certo modo organizamos a observação ou a
experiência para obtermos a resposta. (Bakhtin, 2003, p. 135).
No tocante a essa questão, à vida concreta dos textos, a inter-relação e a interação
devem ser o interesse dos estudiosos, pois as relações de sentidos, entre os diferentes enunciados,
apresentam índole dialógica. A recepção de todo o enunciado não se de forma passiva, mas
como uma resposta ativa onde os valores vividos são repassados através das palavras. Coerente com
suas formulações, os textos, enunciados extra-literários, quando transferidos para a literatura, têm o
seu sentido absolutamente modificado por outras vozes, inevitavelmente em relações dialógicas
entre si, num contexto concreto determinado, e assim assumem voz própria, trazendo para as
produções de gêneros literários os valores da vida real.
Um dos pontos dessa relação demonstra a veracidade de se considerar, ao analisar
textos, a existência de elementos constitutivos do evento comunicativo. Uma análise, que configura
o texto como um todo globalizado, em que os elementos são inseparáveis e em que cada elemento
assume uma posição, definida em relação ao todo da enunciação, pode ser vista na dimensão
colocada por BAKHTIN (2003, p. 3), ao afirmar em seu texto “O autor e o personagem”:
[...] cada elemento de uma obra nos é dado na resposta que o autor lhe dá, a qual
engloba tanto o objeto quanto a resposta; neste sentido, o autor acentua cada
particularidade da sua personagem, cada traço seu, cada acontecimento e cada ato
de sua vida, os seus pensamentos e sentimentos, da mesma forma que nós na vida
respondemos axiologicamente a cada manifestação daqueles que nos rodeiam.
Retomando a direção apresentada por esse pensador, ela se mostra fundamental, na
medida em que se estabelece uma forma de completude do autor em relação à sua obra, e uma
forma de completude do leitor em relação à obra lida. Na verdade, é possível perceber que, na
relação com os textos, os autores abrem um caminho para a manifestação do outro, seus
personagens respondem de forma ativa aos acontecimentos do evento em que estão inseridos -
pensam, analisam a situação, como na vida concreta analisamos os acontecimentos em uma
ilusória crença de que se fecham determinados enunciados. O que de fato diferencia uma obra dos
discursos cotidianos é que, na vida, as respostas a cada manifestação são precisamente respostas a
manifestações particulares e não ao todo do homem. Já, um texto, organiza-se para dar uma
resposta ao todo, assim uma obra literária tem necessidade de um todo arquitetônico para se
organizar. Essa consideração, feita para a obra estética, reforça a primazia bakhtiniana que postula o
homem inserido em um sistema de valores, e sua consciência a desempenhar o papel central de
atração e de força unificante na arquitetura da obra.
BAKHTIN (2003), ao centralizar, em seu campo de estudo, as práticas literárias e torná-
las meta de suas pesquisas para o estudo das ciências humanas, revela a afinidade que elas contêm
com a vida. Nessa concepção de linguagem, percebe-se tanto a inexistência de fronteira entre a
língua e a expressão da vida que ela realmente quer revelar, quanto à existência de uma negociação
sempre atual do sentido que se quer transmitir.
É o que se lê na citação que segue:
Não pode haver um sentido único (um). Por isso não pode haver o primeiro nem o
último sentido, ele está sempre situado entre os sentidos, é um elo na cadeia dos
sentidos, a única que pode existir realmente em sua totalidade. (Bakhtin, 2003, p.
382).
Para essa compreensão de sentido, voltada para a compreensão da enunciação
cotidiana e literária, a situação
21
de enunciação é a única capaz de colocar todas as variantes
envolvidas no processo do sentido vinculado. A situação representa o conjunto daquilo que é
preciso conhecer (os interlocutores, o contexto imediato, sua história anterior, etc.) para
compreender um enunciado. De forma simples, segundo BAKHTIN / VOLOCHÍNOV
22
, em sua
crítica à psicanálise, basta conhecer a situação de um enunciado para compreender seu sentido, o
que, na verdade, não tem sido tarefa fácil para os lingüistas e nem para a psicanálise, contrastando
efetivamente com a amplitude do termo situação enunciativa.
21
SERIOT, (2002) em seu artigo intitulado Bakhtin no contexto: diálogo de vozes e hibridação das línguas (O problema dos
limites).
22
BAKHTIN, Mikhail. O Freudismo. São Paulo: Editora Perspectiva, 2004.
Clarificando outro viés, percorrido filosoficamente pelo Círculo, segundo estudos
recentes acerca da obra desses pensadores, a expressão ar do tempo
23
confere, de um modo
particular, o legado de Bakhtin para o estudo da cultura (assunto que será tratado no capítulo três),
na medida em que sua abordagem dos estudos lingüísticos se utiliza dos modelos e das metáforas
próprias à sua época. Nesse sentido, BAKHTIN (2003) foi prisioneiro de sua própria época: o autor
é sempre prisioneiro de sua época. As épocas posteriores o liberam. Segundo suas convicções, a
noção das fronteiras possui um caráter muito convencional, pois serve, de forma breve, para ser
ultrapassada pelos fenômenos da cultura. Segundo ele, o domínio da cultura não tem fronteiras,
pois se situa em um vel que pode ser determinado como aberto, não resolvido, em formação
constante, capaz de desaparecer e voltar a surgir.
Como decorrência dessa breve localização dos pontos principais abordados, em especial
por Bakhtin, verifica-se que o diálogo, com diferentes correntes da época, resultou em uma riqueza
de conceitos para a ciência da linguagem. Talvez por isso, com as discussões geradas no Círculo,
nenhum outro estudioso tenha expressado melhor a idéia da pluralidade textual - entendida como
mecanismo dinâmico, do qual vocábulo algum pode ser compreendido em si mesmo, que todos
os termos de um texto vêm inseridos em múltiplas situações, em diferentes contextos lingüísticos,
históricos e culturais, mantendo vínculo com as influências extra-verbais
24
- como o fez Bakhtin.
TEIXEIRA (2005, p.96) afirma que a importância de Bakhtin e de Volochínov se
encontra em:
23
VELMEZOVA (2005, p. 73), em seu artigo intitulado Mikhail Bakhtin, o mecânico e as fronteiras, faz uma análise do
paradigma deixado por Bakhtin em relação ao tratamento dado para a leitura cultural.
24
Um ensaio feito por Bakhtin em meados dos anos 30, denominado inicialmente “Os fundamentos filosóficos das ciências
humanos”, hoje sob o título “Metodologia das ciências humanas”, traz uma concepção sob as influências extratextuais: “As
influências extratextuais têm um significado particularmente importante [ ... ]. Tais influências estão plasmadas nas palavras [...]
antes de tudo palavras da mãe.[...] ...de modo que as impressões da natureza entram no contexto da minha consciência. Elas são
prenhes de palavras, de palavra em potencial. (Bakhtin, 2003, p. 402).
[...] anunciar a fundação de uma lingüística seja ela “a” lingüística ou “uma”
lingüística do discurso articulada à formal que promove a enunciação como
centro de referência do sentido dos próprios fenômenos lingüísticos, vendo-a
como fenômeno renovado, pelo qual o locutor se institui na interação viva com as
vozes sociais.
Em consonância com o recorte que se pretende para esse trabalho, é possível afirmar que
Volochínov e Medvedev, em seu legado, deixaram no fio de seus projetos, contribuições para a
chamada criação ideológica, pretensões de uma teoria marxista para os produtos do espírito
humano. Suas reflexões, que tiveram origem nas críticas feitas às principais correntes de seu tempo,
descartaram o objetivismo abstrato, pois este não liga a excelência da língua na sua abstrata
dimensão sincrônica com a sua evolução.
Conforme VOLOCHÍNOV (2002, p. 108):
Esse sistema não pode servir de compreensão e explicação para os fatos
lingüísticos enquanto realidade e evolução.
Com as críticas ao subjetivismo individualista, contrapôs as idéias de que o falante
apresenta uma consciência puramente individual. O subjetivismo individualista se projeta,
inicialmente, como uma reação à palavra estrangeira e, em seguida, como reação à palavra
monológica. Para essa complexidade é necessário compreender a idéia de que:
Não é a atividade mental que organiza a expressão, mas, ao contrário, é a
expressão que organiza a atividade mental, que a modela e determina sua
orientação. (Volochínov, 2002, p. 112).
Com essa constatação é possível afirmar que toda a enunciação é determinada pelas
condições reais da enunciação, ou seja, primeiramente pela situação social mais imediata e pelos
participantes mais imediatos da enunciação.
Além dessa, e de outras importantes contribuições, Volochínov trouxe para os estudos
lingüísticos a preocupação com o conceito de signo. Ele fala, analisando os problemas da natureza
ideológica do signo. Sua posição se fixa na filosofia do signo ideológico. Para ele, o signo
representa a contradição mais cara à vida concreta da língua; a reprodução do signo configura uma
estrutura abstrata de sinais, que se desenvolve dentro das propostas lingüísticas formais, da fonética
à semântica. Para essa abstração, proposta nas análises estruturalistas, os estudos realizados
podem dar conta das línguas mortas. Sua contribuição decisiva, inacabada na perspectiva de seu
olhar, resolve-se, ao tentar transpor o abismo entre a representação abstrata do mundo, desprovido
de sujeito, e a vida concreta da palavra, inseparável do sujeito
25
. Confirmando suas reflexões,
VOLOCHÍNOV (2004) faz uma leitura dos textos freudianos, onde conclui que o inconsciente
seria a “consciência oficial”, que se opõe a consciência “não-oficial” dos sujeitos. Segundo ele,
todos os tipos de atividade mental geram enunciações correspondentes; e em todos os casos, a
situação social determina a forma de enunciação social, a expressão pessoal, conforme a
experiência individual e social. Por esse caminho contesta o idealismo que se servia da noção de
inconsciente.
Segundo a orientação proposta em THOUGOUNNIKOV (2005, p. 15) para a dimensão
axiológica, os formalistas deixaram de problematizar a dimensão axiológica da linguagem.
Qualquer elemento formal abstrato, ao entrar na literatura, já o faz como reflexo direto da vida; com
isso destrói a idéia de oposição presente entre a linguagem poética e a linguagem do dia-a-dia, entre
a prosa romanesca e a linguagem comum:
25
TEZZA, Cristóvão (2003, p. 30).
[...] a avaliação social torna-se, em Medvedev, um equivalente da linguagem
poética, segundo os formalistas. Para estes últimos, a palavra da linguagem
poética, diferentemente da linguagem prática ou cotidiana, onde se impõe
plenamente o arbitrário do signo, é motivada pela visão total da construção
poética. Medvedev critica essa tese formalista; entretanto ele próprio antecipa uma
conclusão de todo modo semelhante. [...] A palavra poética é para os formalistas,
uma palavra opaca ou coisificada, essencialmente a-histórica. Segundo Medvedev,
ocorre a metamorfose inversa. É pelo objetivo comunicativo com relação ao
Outro, pela transparência e pela historicidade integral do enunciado que a palavra
se reabilita e se reanima. Nos dois casos o dos formalistas e o do rculo de
Bakhtin é somente dentro da ordem de uma totalidade e em função da mesma
que a palavra ressuscita. Mas trata-se de realidades diferentes: totalidade do texto
poético e totalidade social e histórica, que definem a articulação de um enunciado.
Com esse aspecto tem-se como orientação o fato de que o trabalho poético apresenta
uma pré-seleção, uma definição anterior sustentada pelos valores ou avaliações sociais, assim como
os discursos cotidianos; entretanto, para a poética se observa uma totalidade de uma opacidade e de
um fechamento, a qual se opõe à totalidade de uma transparência e de uma abertura
26
, presente
nos discursos cotidianos.
O Círculo de Bakhtin responde a várias questões relacionadas ao estudo do texto e deixa
um legado ainda não explorado em relação a aspectos essenciais para o estudo compreensivo de
textos, através da leitura de significados presumíveis ou enunciados linisticamente. Suas críticas
apontam os problemas para que se possam vivenciar os estudos da linguagem inseridos em um
processo onde cada um de nós é peça fundamental para a organização e compreensão do todo e, em
qualquer que seja a perspectiva de estudo escolhida, a noção de dialogismo necessariamente deve
estar presente.
26
THOUGOUNNIKOV, Serguei (2005, p. 16).
1.2 Dialogismo: dimensões para o estudo do sentido
As reflexões do Círculo de Bakhtin, ou mais especificamente de Bakhtin ou de
Volochínov, freqüentemente citadas nos trabalhos de lingüística, apresentam em comum o
paradigma que pode ser caracterizado por conceitos que transmitem a idéia de oposição - polifonia,
pontos de vista, o outro, interação verbal, heterogêneo, inacabado -, a partir dos quais a idéia de
dialogismo se configura como a perspectiva do outro no discurso e torna-se o princípio fundador da
linguagem.
Nesta seção, pretende-se fazer um recorte mais aprofundado especificamente das idéias
que sustentam o dialogismo e suas dimensões para o estudo do sentido, em busca de uma
sustentação metodológica para a compreensão lingüística.
As formulações de Bakhtin acerca do dialogismo iniciam com a preocupação em ler, ao
contrário dos formalistas russos, a consciência humana. Sua contraposição/ posição crítica se dá em
relação ao plano de observações no que tange à visão de mundo ptolomaica, ou seja, momento em
que o autor se posta no centro das coisas como observador. Já, de modo diferente, os autores
polifônicos, conforme o entendimento de EMERSON (2003, p. 161):
[...] descem “à terra” para dar a suas criações um tratamento mais horizontal do
que vertical, projetam seus personagens para saber, potencialmente, tanto quanto
eles próprios sabem.
Essa inovação do herói plenivalente, o qual se encontra rivalizando com o próprio
criador, e a descoberta da constituição da palavra dialógica no interior de um desenho polifônico,
vem a constituir o plano maior do pensamento bakhtiniano a idéia de dialogismo. Plenivalente é
uma expressão usada por Bakhtin, que significa que o autor vivencia a vida da personagem em
categorias axiológicas inteiramente diversas daquelas em que vivencia sua própria vida e a vida de
outras pessoas. Com a aceitação do dialogismo nos estudos lingüísticos, redefine-se aos poucos o
lugar não de gênese ou consumação, mas de troca
27
, conforme EMERSON (2003, p. 299):
[...] as palavras [...] são totalmente expurgadas de pontos de partida e se tornam,
ao contrário, inspiradas estações de passagem, interseções que [...] nos incentivam
a olhar em volta, desassossegados, à escuta de uma próxima voz.
Ao mesmo tempo, com essa reflexão se revela um horizonte não exclusivamente
lingüístico, mas semiótico e literário, multiforme, e, portanto, capaz de se relacionar os muitos
campos de estudo. Para BAKHTIN (2003), a natureza dialógica da consciência se constitui na
natureza dialógica da própria vida humana, assim a vida é dialógica por natureza. A única forma de
expressão verbal autêntica na vida do homem é o diálogo inconcluso
28
. Conforme suas idéias, a
dialética é um produto abstrato do diálogo, configurando uma ação sobre a linguagem,
transformando-a em análise de um objeto, separando-a de sua essência. As palavras coisificadas
(reificadas) para representar a vida se mostram completamente inadequadas, pois, na realidade,
cada pensamento se funde no diálogo da inconclusibilidade. A natureza da palavra é dialógica em
essência.
Os trabalhos de Bakhtin, a princípio fundamentalmente inscritos no campo literário, em
um primeiro momento, não apresentam a preocupação da apreensão lingüística. Essa é uma
preocupação que se insere nos pressupostos teóricos de Volochínov e Medvedev. Para a reflexão de
BAKHTIN (2003), a linguagem, a língua, o discurso, o sujeito falante não são seu objeto – ou o são
parcialmente - mas constituem-se no material essencial à apreensão de seu objeto, a palavra no
enunciado
29
.
27
Emerson (2003) sobre o espírito de oportunidades múltiplas e opções disformes que constituem a essência do entendimento
maduro em Bakhtin.
28
Bakhtin, 2003, p. 348, na reformulação do livro sobre Dostoiévski: “Viver significa participar do diálogo: interrogar, ouvir,
responder, concordar etc. Nesse diálogo o homem participa inteiro e com toda a vida: com os olhos, os lábios, as mãos, a alma, o
espírito, todo o corpo, os atos”.
29
Bakhtin (2003, p. 356), em sua reformulação do livro sobre Dostoiévski: “A palavra, a palavra viva, indissolúvel do
convívio dialógico, por sua própria natureza quer ser ouvida e respondida. Por sua natureza dialógica, ela pressupõe
também a última instância dialógica. Receber a palavra, ser ouvido. É inadmissível a solução à revelia. Minha palavra
permanece no diálogo contínuo, no qual ela será ouvida, respondida e apreciada”.
Com essas considerações, para detalhar seu olhar sobre a língua numa perspectiva
dialógica, ele confirma a idéia de que o princípio fundamental da relação com o outro é uma
fronteira interior do signo constituído entre os sujeitos, e, a partir disso, constitui-se, tanto a lei do
discurso, quanto das formas nos gêneros literários.
Tanto o discurso quanto a semiótica literária estão inseridos em uma mesma teia de
reflexões com capacidades inerentes a um e ao outro, ligados ao meio histórico. A partir desse
ponto de vista, fundamentam-se as propriedades de compreensão do discurso, situando o signo para
além do terreno estritamente lingüístico, sob uma perspectiva inelutável com as concepções
tradicionais da linguagem.
Veja-se essa idéia nas palavras de AUTHIER-REVUZ (2004, p. 27):
A compreensão não renuncia a seu lugar no tempo, espaço e a sua cultura
aglutina-se, pois àquilo que quer compreender. A idéia de que o sentido não se
encontra jamais pronto, mas constitui-se nas relações dialógicas, passa a ser a lei
do discurso, da palavra, do enunciado, do sentido.
É preciso lembrar, com isso, que as relações dialógicas têm de se tornar discurso, ou
seja, receber um autor em uma dada enunciação. Como reflexo, toda a enunciação apresenta um
autor, ou co-autor, a quem se deve considerar uma posição definida. É com essa posição definida
que se pode reagir dialogicamente. Para que essa possibilidade se torne concreta, a questão do
dialogismo requer para si duas vozes, estilos, dialetos, percebidos como visões de mundo
posições semânticas, não limitadas ao campo exclusivo da investigação lingüística.
De modo insistente, por esse caminho, nas análises de Bakhtin, perpassa o lugar que é
dado ao outro na perspectiva da dialogicidade, outro esse que atravessa constitutivamente o um.
Conforme TEZZA (2003, p.236), muitos planos dialógicos na linguagem, participantes ativos
do momento verbal.
TEZZA (2003) esclarece essa concepção conceitual complexa em Bakhtin, reportando-
se tanto a uma relação dialógica qualitativa, quanto quantitativa. Nesse estudo a palavra nasce
sob múltiplas relações como uma resposta dirigindo-se a alguém (um centro de valores),
dirigindo-se a um objeto (que não é neutro), que já é um ponto de encontro de diferentes centros de
valores. Tem-se, assim, uma síntese dialógica.
Por outro lado, o homem se encontra sempre em uma fronteira, na qual ele pode se
ver através dos olhos do outro. Isso ocorre na natureza das palavras, através do emprego das
palavras, presente nas palavras do outro e na constituição do ser:
Cada homem é um eu para si, mas no acontecimento concreto e singular da vida o
eu para si é apenas um eu único, porque todos os demais são outros para mim.
(Bakhtin, 2003, 350).
Essa posição única e insubstituível no mundo não pode ser anulada através de uma
interpretação conceitual, e nem separada das formas do eu e do outro. O homem, ao entrar em
diálogo, ao pensar, o faz de maneira integral, com palavras inseridas no fio do discurso humano,
nas vozes do tecido global, prenhes de significado. A dialogicidade torna-se uma forma capaz de
circunscrever o objeto, prevendo o envolvimento, em cada acontecimento, como um núcleo
organizador da compreensão do enunciado. Esse envolvimento, partindo do excedente da visão
(categoria de exotopia textual de que se tratará mais adiante) que se dirige dialogicamente ao outro,
fundamenta-se por se destinar a alguém - em essência, dissolvida no diálogo - organizando o
diálogo, possibilitando alguns limites ao diálogo, prevendo o outro.
Em resumo, as constatações de BAKHTIN (2003) projetam claramente a idéia de que as
relações dialógicas se instauram sempre que a linguagem é vista como um fato concreto, quando
ultrapassa o limite do sinal e se torna um momento verbal. Do mesmo modo, VOLOCHÍNOV
(2002, p. 27), ao criticar a ciência lingüística, confirma essa idéia, definindo-a de forma mais
didática:
As reações dialógicas não são possíveis apenas entre enunciações completas
(relativamente completas); uma abordagem dialógica é possível diante de
qualquer parte significante de uma enunciação, mesmo diante de uma palavra
individual, se a palavra é percebida não como um vocábulo impessoal da língua,
mas como um signo da posição semântica de um outro, como representativo da
enunciação de uma outra pessoa; isto é, se nós ouvimos nela a voz de um outro.
Com essa observação, Volochínov requisita o outro como constitutivo do discurso e
denuncia que não uma diluição completa do discurso de outrem, pois sempre se ouve um
discurso outrem, perpassando qualquer marca lingüística no discurso posto.
Em sua reflexão, lembra que essa face dialógica não se confunde com o conceito
tradicional de “diálogo”, compreendido apenas como uma forma “composicional da construção do
discurso”. Aliás, a dialogicidade interna não aceita formas externas de composição, pois a
duplicidade de pontos de vista axiológicos, valorativos, é visível na mesma estrutura sintática,
gramaticalmente unilateral. O dialogismo é dado como condição de constituição do sentido, da
mesma forma que é em relação aos outros discursos que se constrói todo o discurso. O lugar do
outro discurso não é ao lado, mas no discurso, por isso as palavras recebem seu sentido na
formação do discurso.
Uma abordagem reflexiva pertinente à questão que está sendo tratada, segundo Tezza,
agora transposta à questão da dialogicidade, refere-se à incompletude do ser necessariamente
dialógico. Ele reafirma, segundo os postulados bakhtinianos, que uma limitação intransponível
no meu olhar que só o outro pode preencher - pois, em Bakhtin, toda a essência do discurso está por
ser acabada:
[...] cada um de nós daqui onde estamos, temos sempre apenas um horizonte;
estamos na fronteira do mundo que vivemos e o outro pode nos dar um
ambiente, completar o que desgraçadamente falta ao nosso próprio olhar. (Tezza,
2003, p. 45).
Esse comentário retoma e esclarece a abordagem dialógica em Bakhtin, a qual instancia
um dos princípios norteadores da constituição do fenômeno linguagem, apreendido em suas
reflexões para o enunciado literário. Reitera-se, segundo as reformulações detalhadas em TEZZA
(2003, p. 235), o princípio teórico sistematizado para o enunciado literário, como segue:
[...] o autor dá ao herói o que lhe é inacessível, a sua imagem
externa - negociando com a vida real a idéia de que o autor é para o
personagem o que o outro é para mim.
Assim se dá o esboço da arquitetura bakhiniana em sua sustentação máxima, quando se
refere à dialogização. Ou seja, conforme as palavras de TEZZA (2003, p.203) nós como
consciência, somos seres inacabados e somente os outros podem nos dar a dimensão de
completude. Na vida se está sem um álibi, em um eterno vir-a-ser. Todo o ato contém uma ética e
uma estética, revela uma cognição, um modo de ver o mundo. No ato de viver, define-se o mundo
pelo modo ontológico, e não processual (o que é “viver”?). As respostas que se ao mundo
concretizam o mundo da cultura. Pela idéia de memória do futuro, o passado está à frente, o futuro
está dentro de cada um e está por se realizar – dialogicamente.
Por esse viés da concepção dialógica, sobre a questão do acontecimento estético para o
enunciado literário, o envolvimento dialógico desse momento, conforme BAKHTIN (2003, p. 59),
necessita de que a consciência do autor não coincida com a consciência do personagem; para a
obra estética sempre deverá existir uma tensão entre as duas consciências. Essa concepção estética
abre um leque de possibilidades de leitura e produção de gêneros textuais que podem ser
conduzidas e examinadas através da relação, onde a não-coincidência produz a construção do
sentido que se pretende. Assim, é importante lembrar que nos textos, ao se relacionar a questão
dialógica, de forma prática, com a produção literária, os autores abrem também um caminho para a
manifestação do outro, seu personagem, que responde de forma ativa aos acontecimentos do evento
em que se encontra inserido. Os personagens pensam, analisam a situação como na vida concreta se
analisam os acontecimentos.
Finalmente, contornar o conceito de dialogia - centralizador do pensamento bakhtiniano
e paradigmático em relação às teorias da época parece transgrediente
30
às suas crenças. Por isso,
talvez o melhor caminho à compreensão do pensamento do Círculo, em especial de Bakhtin,
organizado pelo dialogismo como unidade central, encontre-se em uma análise. Na verdade, para
toda e qualquer compreensão, tem-se o limite do possível, que o conteúdo total do discurso e seu
valor ideológico não constituem objeto de análise simplesmente detectáveis no viés do próprio
discurso.
Sendo assim, a prática das reflexões propostas pelo rculo de Bakhtin, literárias ou
especificamente lingüísticas, retomadas mais especificamente para fins de análise textual, é
orientada para o que pode ser articulado à questão da compreensão das tiras da Família Brasil.
A partir desse ponto, aqui abordado de forma restrita, se esclarece uma das causas
determinantes para a natureza das relações estabelecidas na e pela linguagem: o lugar sócio-
ideológico do signo constituído entre os seres.
Conforme VOLOCHÍNOV (2002, p. 32):
[...] um signo não existe apenas como parte de uma realidade; ele também reflete e
refrata uma outra. Ele pode distorcer essa realidade, ser-lhe fiel, ou prendê-la de
um ponto de vista específico, etc. Todo o signo está sujeito aos critérios de
avaliação ideológica (isto é: se é verdadeiro, falso, correto, justificado, bom, etc.).
Segundo essa reflexão, proposta em Marxismo e Filosofia da Linguagem, a idéia de
signo se constrói, assumindo diferentes valores, dependentes do universo interacional. Essa visão se
sustenta pela afirmação de que um signo
31
somente pode se realizar, partindo da consciência, ou
30
O termo transgrediente aparece na obra Estética da criação verbal como um vivenciamento da própria vida, sob a condição de
completar a si mesmo com valores que a partir da própria vida são transgredientes à própria consciência.
31
Volochínov (2002), ao tratar da filosofia da linguagem e da psicologia objetiva, entende que o se percebe a
natureza específica do signo e, por conseqüência, perde-se o caráter social do signo.
seja, de uma compreensão, de uma resposta a um signo por meio de signos. Para VOLOCHÍNOV
(2002) o signo lingüístico (no sentido saussuriano) é ideologicamente neutro, e somente quando os
signos emergem no processo de interação entre pelo menos duas consciências, é que se pode pensar
no estudo da linguagem enquanto signos constituídos. Cabe ressaltar a questão de forma mais
detalhada - para Volochínov, o sinal (o signo saussuriano tomado fora do sistema) é material
lingüístico primário, desprovido de sentido. Já, BAKHTIN (2003) detalha de forma diferente - o
sinal representa um momento inseparável do signo, no entanto, também é desprovido de sentido
interacional. Conforme ele, o material da palavra o sinal - é neutro, incapaz de fundar um valor
sem que faça parte do signo ideologicamente constituído.
Dito isso, coloca-se o signo lingüístico no centro da percepção dialógica e percebe-se, de
forma clara, a profundidade das reflexões filosóficas propostas pelo grupo para o problema da
compreensão da linguagem.
1.2.1 - O eterno renascer da palavra – uma concepção de índole dialógica
A retomada do conceito da palavra, na forma concebida por Bakhtin, tem a intenção de
colocar no centro de seu estudo a historicidade em contrapartida aos estudos tradicionais que, de
forma simples, desvinculavam a palavra de seu uso concreto. Os valores que correspondem à
palavra, com fronteiras invencíveis, configuram uma palavra dicionarizada – desconstituem a
essência característica de ser sempre nova a cada enunciação. Já, a palavra no texto é toda
movimento, pois se desenvolve no momento da enunciação, exige adaptações, correções,
complementos, e encerra interpretações que somente adquirem sentido, quando percebidas na
realidade em que vivem seu momento de enunciação. É, portanto, a todo o momento negociável no
confronto característico que constitui a língua em uso - palavra viva, palavra em uso, com
possibilidades ilimitadas de combinações, jamais podendo se tornar réplica entre outras réplicas
isônomas (BAKHTIN, 2003, p. 368). Essa afirmação implica o conceito básico de Bakhtin, tratado
anteriormente o dialogismo. Para ele a palavra vive entre sujeitos socialmente organizados que,
no momento da enunciação, calculam o sentido dado pelo outro à palavra, ao mesmo tempo,
calculam seu próprio sentido em relação à palavra enunciada, prevendo o efeito que esta
desencadeará no discurso.
Considerações acerca da palavra foram tratadas pelo Círculo em diversos textos,
centrando-a como parte de um processo de interação entre os falantes. A escolha pelo sujeito, para a
idéia intencional que quer expressar, caracteriza-a sempre única e nova, escolhida especialmente
para aquela enunciação. Isso se deve aos valores prévios de conhecimento do sujeito,
intencionalmente previstos para o momento enunciativo.
A escolha da palavra, em decorrência da intenção prevista e do enunciatário a ser
considerado, reforça o fato de que um enunciado contém em si não a minha palavra, mas a
palavra do outro, incluindo-se nessa enunciação os valores presumíveis e os valores negociáveis ou
conflitantes, além de referir o universo presente em toda a palavra, os vários “outros” já enunciados
da palavra e seu universo de significados. A busca de uma interpretação da palavra no discurso
aponta vários fatores a serem previstos.
Através do enunciado, a língua insere a leitura na não-repetitividade histórica na
totalidade inacabada da vida do texto. Assim, deve-se observar o discurso como meio e o discurso
como compreensão. Aqui, interessa-nos o discurso como compreensão, o qual pertence à idéia
última da palavra, o objetivo maior a que se destina ou para que se destina, tornando-se o meio de
se poder chegar à proximidade da realidade do sentido, na intencionalidade momentaneamente
expressa.
Nesse recorte, pensando-se somente na essência da palavra, deve-se mencionar que
BAKHTIN (2003) contrapôs o pensamento formalista ao questionar o ponto de vista assumido pelo
observador em relação às ciências naturais e em relação ao ponto de vista lingüístico. Em suas
reflexões sobre o ponto de vista lingüístico, pontua que a forma estética estruturalista assume uma
posição em relação ao material dado isto significa que isola o eixo central da observação para
ficar em torno dela retirando do material a sua essência axiológica. E, assim, exclui a
possibilidade de vivenciar o sentido desejado pelo falante a essência da palavra - sempre nova,
possível somente em seu momento único e habitado por inúmeras vivências por onde circulou.
Assim, a palavra, como material, como forma, é constitutivamente neutra,
axiologicamente neutra. Não se pode determinar o valor credenciado à palavra quando desta se
retirou a vida; todas carregam valores vários, que nos diversos contextos de uso ativam a sua
característica de não-repetitividade. Para o encontro com o ato de compreensão ativa, frente a um
enunciado, a descoberta do valor do signo compreende, principalmente, a determinação do valor
ativado no momento em que a enunciação ocorre, dependente de fatores extra-textuais, sociais,
ideológicos e culturais. Esses são os fatores que determinam a escolha de uma e não de outra
palavra.
A distinção entre os elementos abstratos da língua, reiteráveis as palavras e as frases
as quais são portadoras de um significado no esquema do sistema lingüístico, é essencial e
fundadora da diferença entre lingüístico e translingüístico. Essa diferenciação mostra-se
fundamental para os enunciados concretos, acontecimentos únicos, produtos da interação da língua
e da situação. As palavras e frases são portadoras de um tema e de um acento apreciativo ou
julgamento de valor inscrito no sistema de apreciações sociais que o campo discursivo constitui
campo de apreciações sociais, heterogêneas em suas posições axiológicas e, portanto, sistema
contraditório de apreciações.
Para reforçar essa afirmação, VOLOCHÍNOV (2004, p. 17), ao deslocar o conceito
freudiano de inconsciente do enfoque meramente psicanalítico, para uma abordagem mais ampla à
luz da filosofia da linguagem, pondera que a resposta verbal é um fenômeno sumamente complexo.
Constitui-se de vários componentes, entre esses, conforme suas palavras:
[...] um grupo especial de fenômenos e processos, que correspondem ao
significado da palavra e à compreensão desse significado por outro (ou outros)
[...], esse terceiro componente da resposta verbal tem caráter sociológico. A
formação de significados verbais requer o estabelecimento de contatos entre
espectadores, respostas motoras e auditivas no processo de um convívio social
longo e organizado entre indivíduos.
Para ele, essa relação de respostas funciona até mesmo quando não se diz nada em voz
alta, mas, ao experimentar, refletir, tomar consciência “de si para si”, já se envolve um processo
onde as palavras são as organizadoras, determinando a esse processo uma constituição material, que
passa a ser o início da compreensão. Confirma-se, com essa reflexão, a idéia de que não há palavra
sem ouvinte, ou seja, a categoria de ouvinte é parte constitutiva de todo o enunciado entendendo-
se que o ouvinte não se refere a alguém concreto, mas à própria consciência, a qual se torna
consciência a partir da palavra.
Nesse caminho percorrido pelo Círculo, para a palavra escapar à orientação dialógica,
inevitável em relação ao já-dito da palavra do outro, segundo BAKHTIN (2003), tem-se a primazia
mitológica de Adão, quando somente este não teria feito uso da palavra do outro. Após esta idéia
conceptual de origem primeira, a palavra é sempre um já-dito, negociado a cada enunciação.
Com relação às considerações que agora são suscitadas, Bakhtin também criticou a visão
dada pelos estruturalistas – considera que a palavra, para os falantes de uma língua, não se
apresenta como retirada de um dicionário; ela é resultado de todas as forças estratificadoras,
constituindo-se na interação entre os falantes e carregando consigo o já-dito dos usos anteriores,
acionados sempre que o falante assim o pretender; para ela não existe neutralidade, e a cada uma,
corresponde uma infinidade de intenções, sempre pontuada por acentos apreciativos em seu uso.
Bakhtin, ao refletir sobre o caminho que a palavra percorre até o seu objeto, através da fala, da
escrita, ou simplesmente pensada como parte integrante do momento verbal, chama a esse
fenômeno de “dialogicidade interna”. TEZZA (2003, p. 263) esclarece o pensamento bakhtiniano
da seguinte forma:
[...] todas elas encontram um objeto, nos seus momentos verbais, saturado de
intenções multifacetadas, imersas na história concreta. O objeto não é um dado
morto, em si, virgem, à espera de minha palavra também virgem, ele já está
presente na minha voz, vivido e corroído pela pátina das idéias, das intenções, de
tudo que se disse direta e indiretamente sobre ele, e essa rede densa de espaço,
de tempo e de valor recobre cada um dos meus sons.
Para VOLOCHÍNOV (2002, p.93) que, em suas reflexões, contrapôs a idéia de signo
saussuriano, a palavra é considerada um signo lingüístico primário. Segundo ele, o elemento que
torna a forma um signo não é a sua identidade como sinal, mas a sua mobilidade específica.
32
Esse argumento coloca a questão da compreensão da palavra caracteristicamente como um
acontecimento negociável entre os falantes, remetendo a um contexto particular em que a
enunciação ocorre. Entende-se, com isso, o estatuto axiológico como a orientação capaz de colocar
o signo fora do esquema estruturalista e inserido em uma compreensão responsiva para o
enunciado.
Na verdade tanto Bakhtin quanto Volochínov concentram sua atenção para o estudo da
língua, mudando a perspectiva de um olhar abstrato da ngua para o acontecimento concreto da
palavra. Entretanto, nas palavras de TEZZA (2003, p.196), Volochínov e Bakhtin, embora
partilhando muitas concepções em comum, olhavam de fato para objetos diferentes. Volochínov
fala como lingüista e tenta buscar uma nova forma de fazer lingüística; já, o olhar que Bakhtin
lança vai de encontro à atividade social e cultural expressada pela literatura.
BAKHTIN (2003, p. 290) afirma que:
Se uma palavra isolada é pronunciada com entonação expressiva, não é uma
palavra, mas um enunciado acabado expresso por uma palavra.
Confirma-se a idéia de que, quando enunciada, uma palavra não está só, como uma
unidade da língua, mas a ela se confere um significado preciso, com sentido concreto, refletindo
uma determinada realidade, capaz de ter seus valores determinados pela situação que o produziu.
32
Bakhtin, M; Volochínov, V. Em Marxismo e Filosofia da Linguagem.(2002, p. 93).
Além dessa certeza, há a certeza do conjunto do enunciado como portador decisivo da escolha da
palavra – quando escolhemos as palavras, partimos do conjunto projetado do enunciado-, deixando
transparecer a possibilidade limite para uma compreensão, ao se levar em consideração o todo. Em
suas palavras:
[...] quando construímos o discurso, sempre trazemos de antemão o todo da
enunciação, na forma tanto de um determinado esquema de gênero, quanto de
projeto individual de discurso. [...] é como se completássemos com as devidas
palavras a totalidade. (Bakhtin, 2003, p. 292).
Essas mesmas constatações, que refletem a idéia de exterioridade, propostas por
Bakhtin, podem ser vistas por um outro ângulo. VOLOCHÍNOV (2002), ao analisar em seus
estudos a fetichização da obra artística enquanto artefato apresenta como conseqüência um ponto
de vista descentrado da realidade, desvinculado da situação concreta que a produziu. Na opinião
dele, tenta-se, através dessa atitude, descobrir o todo na parte, abstratamente divorciada do todo,
apresentando-a como a estrutura do todo. Essa afirmação transposta para os estudos da linguagem
demonstra que novas perspectivas de análise são necessárias, e que possibilidade de leitura e
compreensão enquanto vinculadas à vida em si, não podendo ser dela separadas. Qualquer
enunciado, por mais simples que aparentemente possa parecer, está envolvido em um todo
relacionado diretamente com um evento da vida.
Na compreensão de VOLOCHÍNOV (2002, p. 93):
O essencial na tarefa de decodificação não consiste em reconhecer a forma
utilizada, mas entendê–la num contexto concreto preciso, compreender sua
significação numa enunciação particular
.
A idéia primeira, então, constata que não linguagem sem um contexto possível.
Conseqüentemente, para que haja consciência lingüística, o outro é necessariamente parte do um.
Com isso é possível entender as questões centrais, envolvendo o pensamento do Círculo, e perceber
a necessidade premente de considerar a linguagem como evento único e irrepetível, jamais se
separando o evento da situação que o produziu.
Complementando essa linha de reflexões, conforme a esclarecedora interpretação de
TEZZA (2003, p. 237), os índices alcançados pela palavra vêm regidos pelos diversos valores:
[...] no plano estritamente individual, a palavra nasce já sob a sombra de múltiplas
relações; ela é, antes de tudo, uma resposta a uma palavra anterior, e ela se dirige
a alguém, a um cento de valor, diante do qual ela se posiciona. Ao mesmo tempo
ela se dirige a um objeto, um objeto que de algum modo é uma coisa neutra. Ao
contrário, esse objeto é o ponto de encontro prévio de diferentes centros de
valores, diante dos quais a palavra nascente também se posiciona valorativamente.
Nesse percurso, em que os pensadores do Círculo centraram sua atenção para o
signo lingüístico, pode-se resumir tais olhares confirmando que Bakhtin concentra seu olhar sobre a
passagem do sistema abstrato da língua para o acontecimento concreto da palavra, que segundo
VOLOCHÍNOV (2003), isto se constitui na passagem do sinal para o signo. Em BAKHTIN (2003),
o sistema é incapaz de acrescer valor, apesar de viver sob o pressuposto axiológico, prenhe de
significados valorativos, prontos para serem negociados a cada enunciação. Somente esse
posicionamento, frente à compreensão da língua, é capaz de dar conta dos valores negociados no
sentido de uma palavra em um enunciado.
A idéia de uma análise do discurso, em perspectiva dialógica, deve considerar a palavra
como a pista para se chegar a um contexto onde esta floresceu de modo mais vigoroso, pois, mesmo
a identificação evidenciável de um núcleo mais específico, deve não condizer com todas as
possibilidades de existência da palavra e contextos a que esta socialmente tenha sido subjugada.
Para um viés de compreensão responsiva, na tentativa de apreender o resultado dos valores postos
em jogo por um determinado enunciado, observa-se a ocupação de vários significados e intenções
capazes de fazer a palavra ser sempre habitada por significados infindáveis, recuperadas pelo leitor
em sua interação.
Sendo o dialogismo constitutivo do sentido, a idéia de representação da palavra
selecionada para a fala nas tiras, associada ao seu significado, não se via um núcleo estável, ao
qual vão sendo acrescidos significados novos, modificadores. Mas a este núcleo fundem-se novos
significados pelo cruzamento dos discursos entre os personagens, contrapondo idéias, tonalidades
de expressão, acentos próprios significativos, determinados a cada seqüência de quadros, em cada
novo evento. Essa “enformação” do significado acontece na atualização evêntica dos fragmentos,
quadro a quadro e em instância discursiva, localizada em determinado momento histórico e em
determinado meio social, através da posição lingüística assumida na fala de cada personagem da
tira.
Dessa forma, o momento histórico e o meio social interferem significativamente na
trama dialógica dos discursos proferidos nas tiras, e podem ser descobertos no processo inverso a
compreensão. Esse processo inverso, capaz de delimitar aspectos sociais e culturais em uma
enunciação, integra a busca pela compreensão da palavra viva, inserida em determinado contexto,
determinada pelos valores axiológicos evidenciáveis, orientada pelo enunciador em busca de uma
resposta previamente enclausurada pela perspicácia do enunciatário, previsível do ponto de vista da
dialogização enunciativa, na medida em que é o ponto visado pelas estratégias elaboradas pelo
produtor, no caso o autor.
1.2.2 Enunciado: entidade de atualização do discurso dialogizado
Os estudos tradicionais da lingüística colocavam a função comunicativa da linguagem
em segundo plano. O pensamento em torno do objeto língua refletia a idéia primeira de que a
essência da linguagem se resumia à expressão individual do falante - para este olhar considerava-se
a linguagem do ponto de vista do falante, sem considerar seus pares ou participantes da
comunicação discursiva, subestimando-se a função comunicativa da linguagem.
Essa perspectiva, adotada como a essência da língua, considera apenas o falante e o
objeto de sua fala, desconsiderando a orientação à qual todo o enunciado articula o aspecto
dialógico. Este esquema falante versus ouvinte ainda hoje é proposto por diversas gramáticas,
dando a errônea idéia do falante como ativo no processo da linguagem e o ouvinte como passivo no
processo de recepção do discurso. O ouvinte, leitor, percebido como sujeito passivo não
corresponde de forma alguma ao participante da comunicação discursiva. A lingüística do século
XIX, sem negar a função comunicativa da linguagem, colocou-a como algo secundário, relevando
sua essência à expressão individual do homem. Conforme aquela concepção, a língua necessita
apenas um falante e seu objeto de fala, não afetando, com isso, a definição de essência da língua.
Os esquemas, que analisam dessa forma a linguagem em uso, representam uma abstração do ato da
comunicação. Mas, jamais se pode entender esse fenômeno como real. As relações dialógicas
pressupõem uma unidade do objeto, da intenção.
No enfoque monológico, o outro permanece inteiramente apenas como objeto da
consciência e não outra consciência. Essa visão foge completamente do núcleo problemático que
recupera o processo comunicativo real, e desconsidera a gênese da linguagem o seu momento
sempre novo a cada enunciação e a importância dos pares envolvidos no processo.
A propósito, afirma BAKHTIN (2003, p. 278):
[...] o enunciado pode ser construído a partir de uma oração, de uma palavra, por
assim dizer, de uma unidade do discurso (predominantemente de uma réplica do
diálogo), mas isso não leva uma unidade da língua a transformar-se em unidade da
comunicação discursiva.
O privilégio dado ao estudo das palavras e das frases, desconsiderando a unidade real
da comunicação discursiva o enunciado acarreta o distanciamento da comunicação discursiva
real, suprimindo as questões mais substanciais para o entendimento dos processos que envolvem a
complexidade da comunicação. Reavaliado o esquema citado anteriormente, que colocava a função
comunicativa em segundo plano, estabelecido pela forma ouvinte versus receptor –, permite
crítica, na medida em que essa percepção de comunicação esquece de dar ao ouvinte o seu papel
fundamental como participante ativo do enunciado, enquanto momento sempre novo, instaurador da
não-repetitividade e da presença da negociação a cada enunciação, dependente dos parceiros e da
situação extra-verbal.
Um discurso só pode existir, de fato, na forma de enunciações completas de determinados
falantes, sujeitos do discurso. A idéia de ouvinte passivo pode ser considerada como forma de
abstração e atualização para uma subseqüente resposta. Mesmo assim, com a previsão do
enunciador em relação ao enunciatário, pois todo ouvinte, ao perceber um ato enunciativo dirigido
para ele ou para qualquer outra pessoa do discurso, passa a ocupar uma posição responsiva, que
pode ser de resposta oral ou não. Toda a compreensão da fala do enunciado, seja este verbal ou
escrito, é de natureza responsiva; à medida que o ouvinte toma consciência de um enunciado,
responde.
Nas palavras de BAKHTIN (2003, p. 271):
[...] essa posição responsiva do ouvinte se forma ao longo de todo o processo de
audição e compreensão desde o seu início, às vezes literalmente a partir da
primeira palavra do falante.
Essa natureza decorre do fato incontestável de ser a linguagem inerente ao ser humano,
não podendo deste ser desvinculada, pois representa a consciência individual e caracteriza-se como
de natureza ativamente responsiva. Para BAKHTIN (2003, 271), a compreensão passiva é apenas
um momento abstrato da compreensão ativamente responsiva real e plena. O caráter de
responsividade se instaura sempre que a linguagem é um fato concreto, momento da enunciação,
momento de percepção da constituição do ser individualmente.
A abordagem dos estudos que envolvem a compreensão da língua, a noção de que a
língua como fenômeno concreto e real trabalha com a idéia de discurso, e este pode existir na
forma de enunciados completos, confere determinada estabilidade aos enunciados proferidos. O
discurso somente existe em forma de enunciados, os quais se diferenciam quanto ao conteúdo,
construção composicional, volume, meio de circulação, e outros fatores que oportunizam
diferenças e implicam em semelhanças essa abordagem se revela profícua no estudo dos gêneros
textuais proposto por Bakhtin, que será visto no capítulo seguinte. Mas, de qualquer forma, todo o
enunciado, dito isso de forma restrita, apresenta seus limites precisos. Verifica-se que a alternância
dos sujeitos do discurso define um primeiro limite ao enunciado, que se representa como uma
unidade real. Para se ter idéia da natureza do enunciado, não se pode deixar de entendê-lo como
portador de um princípio absoluto, como se fosse uma réplica de outro ou de outros enunciados.
Na análise que objetiva a compreensão do discurso é fundamental a idéia de oração
como unidade da língua em relação à distinção presente no enunciado, que se refere à unidade da
comunicação discursiva. Essa diferença apresenta como elemento característico o fato de que a
oração, enquanto unidade da língua, nunca é limitada ou determinada pela alternância de sujeitos do
discurso. Já, um enunciado, emoldurando orações, acarreta novas qualidades à oração, assim como
uma perspectiva de análise de outra natureza. Uma análise que leve em conta a oração como
unidade linística deixará de lado o contexto extra-verbal, e não irá considerar as enunciações de
outros falantes. O processo de interlocução ultrapassa a noção da dupla emissor-receptor e coloca a
condição fundamental da justaposição e suas implicações para a produção e compreensão de um
enunciado; seu referente de análise passa a depender do todo enunciativo, requerendo enunciador e
enunciatário como peças indissolúveis no processo enunciativo.
A importância dos reflexos, que consideram a consciência um ato de responsividade
constitutiva, para o estudo do enunciado transforma a interlocução freqüentemente ligada a
diálogos externos em um ponto de vista a ser estudado como uma visão moderna e pouco explorada
na descrição lingüística. Por ora, o objetivo aqui proposto terá como relevância o enunciado
enquanto atualização do discurso e as variáveis detectadas na instância enunciativa.
VOLOCHÍNOV (2002, p. 121), ao tratar dos problemas do subjetivismo individualista,
coloca a questão da enunciação de forma esclarecedora para os estudos lingüísticos:
O centro organizador de toda a enunciação, de toda a expressão, não é interior,
mas exterior: está situado no meio social que envolve o indivíduo.
Certamente, com essa confirmação determinativa da enunciação, as variantes a serem
consideradas em um estudo enunciativo se encontram como puro produto da interação social. Esta
interação pode ser resultado de um olhar para a situação mais imediata, ou pode ser o resultado de
um contexto mais amplo, que constitui as condições de vida de uma determinada comunidade
lingüística. No entanto, de forma nenhuma se pode deixar de considerar essas duas instâncias
constitutivas do enunciado.
Não custa refletir, a tulo de síntese e em conclusão a este capítulo, que um enunciado
sempre pressupõe enunciados que o antecedem e o sucedem. Desse modo, nenhum enunciado pode
ser o primeiro ou o último. Em uma interpretação, o termo texto não pode corresponder de maneira
nenhuma ao todo do enunciado. Nessa direção, retomando sinteticamente o item anterior, visualizar
o todo representa a consciência de que nenhum enunciado pode ser o primeiro ou o último.
Conseqüentemente, uma análise que leve em conta somente categorias linísticas, desvinculadas
da situação enunciativa, tira a palavra da vida que a constitui e que lhe sentido, tornando-a
objeto, portanto, descentralizando a sua natureza. Para um enunciado não existe apenas uma
consciência, existem pelo menos duas consciências que apresentam seus próprios pontos de vista e
posições axiológicas. Talvez por isso a língua seja sempre lugar de conflito, uma réplica ao já-dito e
também um condicionamento sob a réplica do ainda não dito. A compreensão acarreta não uma
vivência da ação dos outros, mas uma atividade caracterizada como dialógica, uma réplica ativa,
uma tomada de posição, uma resposta.
Nessa perspectiva, na resposta sempre ativa do ato de compreensão, a fonte importante
para esse estudo se encontra na enunciação. Conforme a metodização proposta por VOLOCHÍNOV
(2002, p. 112), qualquer que seja o aspecto da expressão-enunciação considerado, ele é determinado
pela situação social mais imediata, onde dois indivíduos socialmente organizados interagem.
Lógico que sua concepção não descarta a possibilidade de um interlocutor não-real. Isso
ocasionaria, com vistas à compreensão, um representante médio do grupo social ao qual pertence o
locutor, inserido na fronteira de uma classe média de uma época bem definida. Por esse viés, a
realização do signo social concreto é determinada inteiramente pelas relações sociais, e toda a
enunciação é socialmente dirigida, determinada de maneira mais imediata pelos participantes do ato
de fala, seguida pelo contexto social mais amplo.
A importância dessas reflexões, com fins de análise lingüística, encontra-se, em
princípio, no fato de que é a situação que forma à enunciação, sendo, portanto, esse o ponto de
partida para uma compreensão enunciativa. A expressão exterior, que pode mostrar matizes muito
perceptíveis ou sutis, dependendo da situação, jamais dispensa uma expressão ideológica, através
de uma expressão de caráter apreciativo. Assim, o uso da língua parte de uma situação social
determinada, organizando um enunciado determinado, definido em função de um contexto social
mais imediato, a partir de um horizonte social mais amplo, de onde se estrutura a personalidade de
um indivíduo, e através do qual se pode prever a real situação enunciativa dos participantes
envolvidos em um processo interacional.
2 O DISCURSO COMO GÊNERO
Um dos principais objetivos de se tratar do estudo de gênero textual, neste trabalho,
como Bakhtin o concebera - em um fragmento de texto, que os estudiosos acreditam ter ficado em
processo de desenvolvimento -, deve-se ao fato de se ter a pretensão de contemplar concepções que
atravessam as obras do Círculo, para uma prática de compreensão responsiva. Mesmo concebendo a
leitura do gênero textual tira estável em seu aspecto formal, em graus variados, a compreensão
sempre exige do usuário desafio. É, pois, sintomático dos estudos relacionados aos gêneros textuais
o fato de se considerar, de forma simplificada, que a questão dos gêneros resulta da maneira como
uma sociedade estrutura, institucionalmente, a prática social, em grandes setores de atividade: o
religioso, o político, o jurídico, o científico, o jornalístico etc.
Aqui, em consonância com os objetivos deste estudo, interessa, particularmente, expor
algumas idéias trabalhadas por Bakhtin, necessariamente relacionadas à impossibilidade de existir
comunicação verbal a não ser por meio de algum gênero textual, ou seja, por meio de algum texto,
expressão de um gênero, tomando-se o devido cuidado para, ao estudar os discursos que se
manifestam e circulam nos lugares sociais, considerá-los na sua totalidade. Essas são considerações
básicas para a interpretação de um enunciado e, conseqüentemente, ponto de sustentação para a
leitura das tiras da Família Brasil.
2.1 Gêneros do discurso em Bakhtin
O Círculo de Bakhtin debateu o conceito de gênero textual
33
com uma crítica, aqui
resumida, no fato de os formalistas adotarem, como pressuposto para o estudo dos gêneros, um
conjunto específico e constante de dispositivos para um objetivo específico de atividades. Essa
noção, conforme MARCUSCHI (2002, p. 21):
[...] estanca a mobilidade própria dos gêneros, que, a cada atividade, pode sugerir
adaptações próprias para a realização de atividades recorrentes, ou mesmo
readaptações lingüísticas, decorrentes da época e dos participantes envolvidos.
Os gêneros são desenvolvidos em função da complexidade da sociedade. Assim, quanto
mais complexas as sociedades, mais gêneros . O gênero primário é o discurso face a face. O
gênero secundário é a escrita.
Conforme BAKHTIN (2003, p. 262):
A riqueza e diversidade dos gêneros são infinitas porque são inesgotáveis as
possibilidades da multiforme atividade humana e porque em cada campo dessa
atividade é integral o repertório de gêneros do discurso, que cresce e se diferencia
à medida que se desenvolve e se complexifica um determinado campo.
33
Gêneros textuais e gêneros discursos serão usados, aqui, como sinônimos.
Pode-se afirmar como o pensador em foco, que diante dessa complexidade, imposta pela
diversidade dos gêneros do discurso, é difícil traçar um plano único para seu estudo, resultando na
abstração da realidade concreta de cada gênero individualmente. Com isso, postula-se a
especificidade de alguns poucos gêneros, num recorte que privilegia algumas diferenças de ordem
factual, mas na qual se desconsidera a natureza verbal comum a todos os gêneros e, portanto,
individual a cada gênero, produzido como enunciado verbo-axiológico.
Nas palavras de FARACO (2003, p.111), esclarece-se uma idéia em relação aos
gêneros, através da concepção bakhtiniana:
Os gêneros não são enfocados apenas pelo viés estático do produto (das formas),
mas principalmente pelo viés dinâmico da produção. Isso significa dizer que a
teoria do Círculo assevera axiomaticamente uma estreita correlação entre os tipos
de enunciados (gêneros) e suas funções na interação socioverbal; entre os tipos e o
que fazemos com eles no interior de uma determinada atividade social.
Assim, a identificação em tipos específicos ocorre no momento em que um enunciado
se materializa no interior de um gênero, determinado, antes de tudo, pelo fator sociohistórico,
constitutivo da linguagem. Para Bakhtin, o emprego da língua se efetua em forma de enunciados
orais ou escritos, e é dessa forma que se devem observar os eventos e as interferências em cada
evento recorrido nos diversos campos da atividade humana.
A noção presente na concepção de gênero textual, de acordo com BAKHTIN (2003, p.
264), evento recorrente de comunicação em que uma determinada atividade humana, envolvendo
papéis e relações sociais, mediada pela linguagem, alerta para a responsabilidade formal do
desenvolvimento da consciência sobre como a linguagem se articula em ação humana, na
materialidade textual, em uma determinada interação, em um dado tempo e espaço. Bakhtin quer
com isso estabelecer um vínculo orgânico entre a utilização da linguagem e a atividade humana,
pois, em todas as esferas, a linguagem atua como organizadora entre os integrantes do processo
comunicativo.
BAKHTIN (2003, p. 254), em suas constatações acerca do entendimento dos gêneros,
busca sempre firmar o compromisso de se compreender os textos vinculados aos acontecimentos
circundantes, tendo como ponto de partida à natureza verbal da linguagem. De outro modo, todo o
dito se refere à atividade verbal em que os sujeitos participantes se encontram envolvidos. Decorre
daí um aspecto importante, relacionado aos gêneros do discurso: pela sua estabilidade eles são
elementos organizadores de atividades, permitindo uma orientação sociocognitiva para a
compreensão que se estabelece através do emprego dos mesmos; seu vínculo entre os indivíduos e
através dos usos que se faz, orienta para o reconhecimento do desconhecido, pelas semelhanças que
apresentam, além do reconhecimento da dinâmica da tipificação de determinados gêneros,
recorrentes em determinadas atividades mais específicas. Os enunciados e seus tipos, conforme
BAKHTIN (2003, p. 266), o correias de transmissão entre a história da sociedade e a história
da linguagem. De acordo com esse entendimento, todos os fenômenos lingüísticos, que
caracterizam uma eventicidade recorrente em determinada atividade humana, passam a integrar a
língua somente após ter percorrido um longo caminho de experimentações.
Os gêneros do discurso, conforme BAKHTIN (2003, p. 287) os definiu, fazem parte de:
[...] uma rede complexa que relaciona o conteúdo temático, o estilo e a construção
composicional, determinadas pela especificidade de um determinado campo da
enunciação.
Esse entendimento defendido por Bakhtin, adotado por diversos autores que tratam a
língua em seus aspectos discursivos e enunciativos, e não apenas em suas peculiaridades formais,
revela uma preocupação com a idéia de não se poder, jamais, separar o estudo dos gêneros, da
enunciação de ocorrência. Com isso, alerta para a dificuldade de se definir a natureza da língua
enquanto enunciado.
MARCUSCHI (2002, p.22), em consonância com
Bakhtin,
concebe os gêneros como
entidades altamente maleáveis, dinâmicas e plásticas, que surgem emparelhadas a necessidades
sócio-culturais. Conforme suas palavras:
[...] caracterizam-se muito mais por suas funções comunicativas, cognitivas e
institucionais do que por suas peculiaridades lingüísticas e estruturais. São de
difícil definição formal, devendo ser contemplados em seus usos e
condicionamentos sócio-pragmáticos caracterizados como práticas sociais
discursivas. (p.20).
Esclarece o referido autor que os gêneros não se definem por seus aspectos formais,
sejam eles estruturais ou lingüísticos, uma vez que a forma não deixa entrever as reais funções de
comunicabilidade. Além disso, destaca o surgimento dos gêneros engajados às necessidades e
atividades cio-culturais. O conceito de gênero, pode-se dizer, ainda está longe de representar
padrões de categorizações rigorosos, ou mesmo explicações teóricas razoáveis para tudo aquilo que
constitui a atividade de linguagem em uma sociedade.
Para BAKHTIN (2003), não os diálogos reais, formas mais simples e mais clássicas
da comunicação verbal, mas as obras de construção mais complexa, pertencem aos vários gêneros
das ciências e das artes, também alternados pelo diálogo. Em suas palavras:
[...] esses enunciados refletem as condições específicas e as finalidades de cada
referido campo, não só por seu conteúdo temático, e pelo estilo de linguagem, ou
seja, pela seleção dos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua,
mas acima de tudo, por sua construção composicional. (p.262)
Muitos aspectos da compreensão de um texto devem estar delineados, considerando-
se o conjunto das práticas discursivas relativamente estáveis em uma sociedade. O conteúdo
temático, o estilo e a construção composicional, como já se disse, encontram-se indissoluvelmente
ligados no todo do enunciado e são determinados pelas propriedades típicas de cada campo da
comunicação. Para a extrema heterogeneidade dos gêneros do discurso (orais e escritos), segundo
ele, cabe salientar as breves réplicas dos discursos cotidianos - muito bem representadas pelo
gênero textual tiras, quanto à interação face a face entre os participantes. Salienta-se esse
comentário, pois os discursos cotidianos apresentam uma diversidade muito grande, em virtude dos
vários temas, situações e diversidades de participantes. De qualquer modo, para BAKHTIN (2003),
nas várias situações onde circulam os gêneros textuais, só um centro de valor – um centro temporal,
espacial axiológico é capaz de produzir um evento comunicativo, formado sobre um material
neutro, com a presença inseparável da relação com o outro.
É necessário, no entanto, enfatizar o gênero, atrelando-o às questões de sentido, de
forma mais determinante. Nessa perspectiva, todos os gêneros presentes em uma sociedade, que se
repetem e se reproduzem, sinalizando a existência de contratos tácitos entre produtores e receptores,
fazem parte de práticas comuns a determinados grupos, nos diferentes níveis de organização de uma
sociedade. A percepção da palavra no enunciado pode esclarecer essa organização. TEZZA (2003,
p. 252), ao comentar sobre o gênero literário, pontua que:
[...] a palavra dialógica nasce e expande-se, plurilíngüe, em todas as direções,
usos, contatos, cruzamentos e destinos. É nessa realidade formalmente e
valorativamente multifacetada (às vezes mais, às vezes menos, mas sempre
multifacetada) que vive a literatura, e é apenas com relação a ela que podemos
desenhar seus gêneros.
Esse aspecto é indicativo de que não se podem moldar os diversos neros sem,
primeiramente, considerar a palavra dialógica e sua função. A importância da percepção do gênero,
a partir de um dispositivo-de-sentido, é possibilitar agrupamentos de recursos lingüísticos que não
são, isoladamente, pré-determinados para o engendramento de nenhum gênero particular, mas que,
em conjunto, delineiam possibilidades para a sua existência. A construção do enunciado gera a
informação necessária para a compreensão de suas especificidades, pois requer condições histórico-
culturais para ser ativada, muitas dependentes do usuário, no momento da construção da leitura de
um texto.
Bakhtin entende gênero não como um conjunto neutro de formas semelhantes e
recorrentes, à margem da história, mas como estratificações sociais, concretas, dos usos da
linguagem na vida cotidiana. Segundo ele, antes de ser uma categoria estética, ele é uma face
inseparável de qualquer momento verbal. Em sua discussão, a recorrência específica e obrigatória
da informação, em um conjunto de textos, utiliza-se de diferentes gêneros textuais, que operam
dentro de diferentes contextos, possibilitando a compreensão da dinâmica da linguagem. A
presença constante e determinantemente característica, mesmo com as diferenças presentes nos
tipos de enunciados, se quanto à natureza verbal, como ponto unificador e, portanto, prática
comum, base para o entendimento dos vários enunciados lingüísticos.
As diferenças essenciais propostas por Bakhtin, entre os gêneros primários (simples) e
secundários (complexos), não devem ser minimizadas, mas postas em evidência, pois não se trata
apenas de diferenças funcionais.
Para BAKHTIN (2003, p.263):
[...] os gêneros discursivos secundários surgem nas condições de um convívio
cultural mais complexo, relativamente muito desenvolvido e organizado [...] no
processo de sua formação eles incorporam e reelaboram diversos gêneros
primários que se formaram nas condições da comunicação discursiva imediata.
Esses gêneros primários, que se integram aos gêneros secundários, adquirem uma
complexidade tal, que perdem o vínculo imediato com a realidade concreta e com os enunciados
reais alheios, mantendo, muitas vezes, somente o plano de conteúdo, como característica de
discurso primário. Para a compreensão do funcionamento característico dialógico da linguagem,
essa diferença, entre os gêneros primários e secundários, é fundamental, organizadora da natureza
do enunciado, pois a análise deve levar em consideração ambas as modalidades gênero primário,
gênero secundário sob pena de não se adequar à natureza complexa do enunciado. A relação dos
gêneros simples com os complexos, e a formação histórica dos últimos, esclarece a natureza do
enunciado e a relação entre linguagem e ideologia. Partindo-se desse ponto de vista é possível
enfocar a leitura dos gêneros para as múltiplas interpretações.
A propósito do estilo, BAKHTIN (2003, p.265) afirma que o enunciado é um cleo
problemático de importância excepcional. Ao explorar a questão do estilo, revela que:
[...] todo o enunciado – oral e escrito, primário e secundário [...] é individual e por
isso pode refletir a individualidade do falante.
Para ele, os gêneros mais favoráveis do reflexo da individualidade são os de temática
ficcional, e os que apresentam menos condições para esse reflexo são os que requerem uma forma
mais padronizada. As reflexões terminam por acrescentar:
No fundo, os estilos de gêneros de determinadas esferas da atividade humana e da
comunicação. [...] Em cada campo existem e são empregados gêneros que
correspondem às condições específicas de dado campo; é a esses gêneros que
correspondem determinados estilos. (Bakhtin, 2004, p. 266).
Os gêneros se relacionam a diferentes campos da atividade humana. O desconhecimento
da natureza do enunciado e suas peculiaridades, em qualquer investigação lingüística, resultam em
formalismo e abstração, desviando a historicidade presente na linguagem e a relação íntima da
língua com a vida real. Uma obra, gênero complexo secundário, como réplica do diálogo, busca a
resposta do outro, uma compreensão responsiva ativa. A totalidade acabada do enunciado, ou seja,
o momento em que ocorre a possibilidade de uma compreensão responsiva ativa, segundo
BAKHTIN (2003, p. 268), é determinado por três fatores, na forma como segue: o entendimento
exaustivo do objeto, o querer dizer do locutor (determinação da escolha do objeto com suas
fronteiras), e a estruturação do acabamento do gênero em uma de suas formas típicas (gênero em
que este enunciado será estruturado). A escolha do gênero se deve à especificidade de uma dada
esfera de comunicação verbal, levando-se em consideração a temática e uma finalidade
reconhecida.
Para esse ponto de vista, que abrange a totalidade da compreensão do gênero, trata-se o
estilo de forma especial. Nas palavras de BAKHTIN (2003, p.266):
O estilo é indissolúvel de determinadas unidades temáticas e o que é de especial
importância – de determinadas unidades composicionais: de determinados tipos de
construção do conjunto, de tipos do seu acabamento, de tipos de relação do falante
com os outros participantes da comunicação discursiva, [...]. O estilo integra a
unidade de gênero do enunciado como seu elemento.
O pensador russo se coloca completamente contrário à separação dos estilos, em relação
aos gêneros, pois prejudica a elaboração do vínculo histórico. As mudanças históricas dos estilos de
linguagem estão indissoluvelmente ligadas; os enunciados e seus tipos, isto é, os gêneros
discursivos, são a sustentabilidade entre a história da sociedade e a história da linguagem; em cada
época, as vivências são determinadas por diferentes modos dos gêneros do discurso, e isto não se
refere exclusivamente aos gêneros tidos como complexos, mas aos gêneros simples, refletidos nas
mudanças, construções e reconstruções dos gêneros do discurso.
BAKHTIN (2003, p.186) chama a atenção, de forma especial, para a construção do
estilo no capítulo intitulado “O problema do autor”, como sendo um procedimento de enformação e
acabamento da personagem e do seu mundo e dos procedimentos, por estes determinados, de
elaboração e adaptação do material. As implicações relativas a essas constatações são
surpreendentemente amplas, na medida em que todo o texto reflete a tradição axiológica dos
personagens e de seu autor, acarretando enunciados organizados, conforme as especificidades do
momento. Uma condição impreterível ocorre quanto ao estilo e à condição de ser do estilo visão
de mundo, estilo de época e estilo individual. Num primeiro momento, refere-se à própria visão de
mundo, para depois tornar-se elaboração do material, pois tudo o que é esteticamente
significativo engloba não o vazio, mas a orientação semântica da vida em andamento.
Nas palavras de FARACO (2003, p. 119):
A discussão dos fenômenos estilísticos se faz pelo viés do falante que usa ou cria
a língua. Por outra parte e por conseqüência, é difícil os estudos estilísticos
fugirem de um pressuposto geral de que a atividade estilística do falante envolve
gestos de escolha, de seleção,seja entre as alternativas oferecidas no sistema como
tal, seja entre diferentes possibilidades de criação expressiva.
Assim, o estilo deve ser entendido como expressão individual, a partir das dimensões
sociointeracionais da linguagem. Esse reflexo pode ser visto na dimensão que une o ser
individualmente com o ser inteiramente social; com sua escolha individual, mas de natureza
sociológica. Conseqüentemente, a vida dos gêneros se encontra estreitamente ligada à experiência.
No que se refere ao processo comunicacional, a leitura de um texto literário difere,
substancialmente, de uma conversa cotidiana. Bakhtin questiona, assim, o modo de fazer ciência,
admitindo verdades particulares, e não universais, pois cada um reescreve a vida em cada ato.
Assim, como texto e leitor estão distanciados um do outro no tempo e no espaço, o texto literário se
apresenta fora de sua situação de origem, cabendo ao leitor a reconstituição do cotexto e do
contexto, necessários para a compreensão.
O estudo dos gêneros pressupõe o dialogismo, em especial àqueles gêneros formados em
seu complexo ato de criação, apoiados no dialogismo interno, como os romances, os quais não
nascem em uma sociedade imóvel, sem vida. Ao contrário, sua sustentação está na reconfiguração
social, sendo parte constituinte no nível ideológico. Por outro lado, quando se recorre às respectivas
camadas não literárias da língua, também se está recorrendo inevitavelmente aos gêneros do
discurso, onde se realizam estas camadas. Posto desse modo, tanto os estilos individuais quanto os
das línguas, satisfazem aos gêneros dos discursos.
2.2 A tira como gênero textual – um princípio de análise
É importante retomar que o objetivo deste trabalho é a leitura de tiras, para a
compreensão do universo da Família Brasil, com suporte na perspectiva dialógica, auxiliada pelo
recorte em categorias de análise, sem incorrer no aprofundamento da caracterização desse gênero.
Ainda assim é relevante que se trace um perfil, pois todos os enunciados apresentam certa
estabilidade, a qual permite reconhecê-los como pertencentes a um gênero. Esse reconhecimento,
sem dúvida, auxilia na compreensão.
Visualmente, a tira é facilmente identificável, devido à seqüência dos quadros, desenhos,
ou balões. Atualmente, permanece nos jornais, mas se encontra em diversos outros suportes
discursivos, tais como gibis, boletins informativos, revistas, álbuns etc. Apresenta uma diversidade
expressiva quanto aos temas tratados, personagens, composição, linguagem entre outras diferenças.
Sobretudo a recorrência de determinadas características quanto à estrutura externa, tem se mostrado
fator determinante para a especificação, podendo considerar-se a tira, de modo geral, como um
gênero icônico ou icônico-verbal. É certamente um gênero elaborado, pois demanda, no momento
de sua produção, cuidados especiais, diferentemente dos gêneros primários, conforme se
mencionou no capítulo anterior.
A chamada arte seqüencial teve seu início nas pinturas rupestres, e hoje, na forma como
a conhecemos, seu surgimento teve origem na Europa, em meados do culo XIX. No século XX,
as tiras se consolidaram em jornais, revistas e outros meios de comunicação.
A tira, caracteristicamente, é determinada pela seqüência de quadros, apresentando
diálogos, recuperando, segundo Bakhtin (2003, p. 279), a dimensão entre o locutor e os outros
parceiros da comunicação verbal. No entanto, não se pode esquecer o fato de não ser marcada
temporalmente, a não ser com dêiticos específicos da própria narrativa.
Um outro aspecto distintivo da tira refere-se à sua veiculação em revistas e jornais.
Segundo MENDONÇA (2002, p. 201):
[...] a localização parece ser aleatória nas revistas, mas a seleção das temáticas e
personagens é influenciada pelos leitores prováveis. Tiras veiculadas nas
publicações, que atendem a segmentos diferentes, como crianças, garotas, e
mulheres, por exemplo, têm personagens e temáticas relacionadas aos interesses
de cada público-leitor.
A distribuição do material textual nas seções de jornais – os cadernos – parece obedecer
a um esquema pré-definido quanto à temática. Via de regra, o caderno destinado ao lazer é o local
de publicação das tiras, fato justificável pelo caráter humorístico que tem assumido esse gênero,
envolvendo a estrutura interna.
Em uma visão ampla, a tira se enquadra no padrão de texto de tipo narrativo, dada a
predominância dos casos, apesar de não estar isenta de argumentação ou injunção. A realização, no
meio escrito, busca a reprodução das falas com uma semelhança à língua falada, trazendo para o
contexto interrogações, exclamações, respostas, interjeições e outras manifestações típicas da
oralidade, em uma conversa cotidiana. Em linhas gerais, esse gênero, apresenta conteúdo temático
bastante diversificado e maleável, com um estilo que se aproxima muitas vezes da linguagem
coloquial ou gírias dependendo das características dos personagens. Favorece, assim, a emergência
de estratégias discursivas, em termos de um trabalho de manipulação das determinações sócio-
históricas e lingüístico-enunciativas, que incidem sobre a construção textual e a produção de
sentido.
Outra característica, própria do gênero, é o seu caráter sintético, com linguagem concisa,
apesar de que as seqüências podem aparecer em capítulos narrativos maiores (seqüências dando
continuidade à narração em edições diferentes) ou fechadas (encerram o episódio numa única
edição), com um único capítulo por dia. Cabe salientar que a temática, pertinente à produção de
cada tira, mantém a caracterização individual do personagem, delineando sempre o mesmo perfil, a
cada nova seqüência lançada.
A relação, que se estabelece entre as semioses envolvidas, linguagem verbal e
linguagem não-verbal, importa para o leitor, que muitas vezes precisa do recurso não-verbal para
recuperar o sentido do texto. Assim, texto e figuras desempenham um papel organizador do sentido
para a seqüência da narrativa. Auxilia, nessa compreensão, o recurso de se trabalhar
necessariamente com personagens fixos, situando melhor o leitor assíduo. Salienta-se, na
consideração de seus aspectos externos, a pré-definição em relação à forma seqüencial, relacionada
à ordem de exposição das seqüências de falas e os elementos constitutivos do contexto físico, como
o lugar, o locutor, o destinatário, posição social dos personagens, elementos que integram o
contexto extralingüístico, para a completude do enunciado.
A tira não vem com um contexto atrelado exclusivamente à estrutura específica do
suporte de circulação. No caso das tiras de Veríssimo, inicialmente, foram divulgadas em jornais de
circulação nacional, para, posteriormente, serem reunida em um álbum, descaracterizando qualquer
vínculo com o suporte inicial. Não se tem conhecimento de como se realizou a seleção para a
organização do álbum, podendo ou não ter sido pela ordem de edição nos jornais. No entanto,
algumas tiras, que se encontram nessa coletânea, apresentam uma relação direta com o contexto
imediato o jornal de circulação e a época de divulgação-, tornando-se praticamente impossível
recuperar seu sentido quando deslocadas do suporte de origem. De todo o modo, as tiras revelam
uma autonomia cada vez maior em relação ao domínio discursivo, no caso, jornalístico, ou seja, em
relação ao suporte.
Um dos objetivos da organização de um texto, em perspectiva discursiva, é colocar em
jogo, através da fala dos personagens, perspectivas, pontos de vista ideológicos diferenciados. A
escolha do assunto remete a diferentes pontos de vista sobre o mundo, relacionando-os a
acontecimentos próximos ou distantes da realidade. Evidentemente isso ocorre com uma intenção
comunicativa global, a qual pode utilizar livremente diversos artifícios, como a transgressão, a
ironia, ou outros tantos recursos pretendidos pelo autor-criador. Tendo-se o dialogismo como
fundamentação de todo o enunciado, a leitura das tiras não escapa à regra comum da enunciação
face a face, mas tem condições de produção específicas, analisáveis como qualquer outro objeto,
visto que é o produto de uma enunciação, supõe um momento e um lugar particular, e é composto,
incontestavelmente, de receptor.
Para a interpretação de tiras, o aspecto de atrelamento a um contexto mais próximo
deixa entrever um situação pré-determinada para a leitura, justificada na medida em que as tiras
inseridas em um jornal, estão automaticamente atreladas à situação comunicativa mais próxima. As
tiras retiradas de seu contexto de origem, isto é, atemporais, não situadas, como no caso, a
passagem das tiras da Família Brasil para um álbum, acarreta um olhar do leitor, movido pela
busca dos elementos dialógicos constitutivos da linguagem, pela bivocalidade, pelo plurilingüismo
das palavras, movidos também por outros fatores extra-verbais e culturais, pertinentes à
compreensão axiológica da linguagem. Nesse caso, o olhar do leitor se dá através de um continuum,
com a ressignificação da tira a cada momento enunciado, dialogicamente constituído a cada evento.
A contextualização relaciona diferentes ocorrências situacionais, envolvendo crenças,
cultura, valores, tomando-se como pressuposto básico o fato de que toda a língua carrega consigo
valores pré-determinados pela sociedade, postos em evidência em uma dada enunciação através da
linguagem. Isso requer a observação de que, para toda a compreensão, deve-se considerar que o
conhecimento de mundo varia de leitor para leitor, ou pode variar para o mesmo leitor, de acordo
com o momento histórico em que ele está vivendo e de acordo com a bagagem cultural que ele
acumulou em sua vida.
A concepção bakhtiniana de linguagem, como interação, especifica que todo o
enunciado é uma resposta a um já-dito, seja numa situação imediata, seja em um contexto mais
amplo, estabelecendo relações dialógicas e determinando a heteroglossia como concepção
axiologicamente estratificada da linguagem. Na produção de tiras, o escritor expõe o ponto de vista
de seus personagens, organizando-os a partir de um evento cotidiano, estruturado para dar forma ao
todo, acarretando a percepção de diferentes enfoques, na determinação de seu funcionamento
discursivo, a cada leitura realizada.
Um dos principais objetivos na construção da tira é o humor, perpassado de críticas à
situação vivencial dos personagens. A categoria que se traduz pelo humor é complexa, discutida em
vasta bibliografia, que, aqui, não será contemplada, porque não constitui o objeto central deste
texto, embora não se ignore a sua importância para a recuperação da intenção de determinadas
falas. As formas de construção, manifestação e recepção do humor, configuradas pela ironia ou pela
crítica, podem auxiliar o desvendamento de momentos ou aspectos de uma dada cultura, de uma
dada sociedade, tendo o reconhecimento da enunciação como fundamento essencial à compreensão.
O tom crítico poderá ser um bom ingrediente para conduzir o leitor a uma reflexão das práticas
sociais, postas em jogo no enunciado. Mesmo sendo um gênero tão despretensioso, que tem como
finalidade divertir o leitor, a tira veicula, explícita ou implicitamente, sua visão sobre as relações
estabelecidas entre as pessoas, em maior ou menor grau.
Em vista disso, questões controversas, que despertam polêmica em determinados
círculos sociais, algumas vezes constituem a razão de ser de seu sentido. Assim, é comum o autor
antecipar as posições do interlocutor, uma vez que a compreensão responsiva está prevista na
atividade de produção. Quando o público leitor é heterogêneo, cabe ao escritor imaginar um leitor
ideal, com quem vai partilhar certas informações Como a interação verbal constitui-se em uma
atividade fundamentalmente cooperativa, o autor prevê constantemente o tipo de conhecimento de
que seu interlocutor dispõe. Antecipa, desse modo, uma relação dialógica.
A produção das tiras, em geral, se baseia na vida social viva, com a inter-relação de
diversos mundos ideológicos e sociais, pois as linguagens sociais não coexistem justapostas. São
atravessadas ou confrontadas a todo o momento por novos estratos de língua, dando origem a
falares novos, a novas expressões, ressignificando vocábulos, complementando-se mutuamente, e,
com isso, caracterizando social e culturalmente os indivíduos, os personagens enquanto expressão
de uma dada cultura. A língua é uma concepção de mundo concreto, inseparável das práticas
cotidianas e do sistema de apreciações individuais e culturais. Esse é o reflexo que tem de ser
entrevisto, através das escolhas que o falante / personagem faz, quando inserido em determinado
contexto, em contato com o interlocutor. Sob esse enfoque, o jogo de escolhas, característica do
relativismo inerente ao dialogismo, integra, no campo do lingüístico, as relações instáveis e
conflitantes do “plurilingüismo”, assim como Bakhtin o concebera.
Por isso, compreender a leitura do gênero textual tira é deixar explícito que estudar a
língua representa muito mais do que vê-la como um sistema de regras, posto que signifique
entendê-la em seu uso dialógico, nas práticas de uma comunidade. Conforme BAKHTIN (2003,
p.193):
[...] a ngua penetra na vida das pessoas através de enunciados concretos que a
realizam, e é também através dos enunciados concretos que a vida penetra na
língua, que se define lingüisticamente e socialmente, com seus valores
axiológicos.
Constituiu objetivo de este capítulo explicitar, em linhas gerais, as condições de
produção e recepção do gênero textual tira. Evidentemente, a consciência plena de não se terem
abordado todas as questões. Ainda assim, tratar da compreensão desse gênero, enquanto enunciado,
contribui para uma resposta mais adequada à leitura que se pretende fazer.
3 CATEGORIAS PARA UMA ANÁLISE DIALÓGICA DE TEXTO
O Círculo de Bakhtin lançou raízes para olhares em direção ao estudo do texto, tendo
como eixo basilar o dialogismo e as diversas implicações que este olhar requer para se sustentar
como tal. Um exame atento, em torno dessas idéias, permitiu o recorte de algumas considerações,
com o propósito de buscar sustentação para a compreensão das tiras da Família Brasil.
Na fonte bakhtiniana, a ideologia circundante apresenta como fundamento a
exterioridade, constitutiva do interior; assim, o dialogismo é condição sica para a formação do
plano interior do valor assumido pelo signo. Os conceitos bakhtinianos, cronotopos, exotopia e
índice social de valores, vão ao encontro da disposição das estruturas externas, reguladoras do valor
interno, assumido pela palavra a cada enunciação.
Interessa, neste momento, transferir alguns termos-mestres, que perpassam o projeto de
Bakhtin, aqui denominados categorias, aproximando-os das fronteiras do discurso, da enunciação
completa, já que nenhuma categoria lingüística, propriamente, convém à determinação da definição
única do ato enunciativo. Busca-se uma composição coerente, um ajustamento às reações previstas
no enunciado, a fim de se traçar um viés, em concordância com o objetivo final deste trabalho
mesmo se tendo consciência da dificuldade e das perdas que a delimitação em categorias representa
para a essência da linguagem, enquanto discurso.
A seguir, serão detalhadas as duas categorias basilares, com o propósito de uma antever
a compreensão que se fará logo a seguir. O elemento constitutivo da primeira categoria de análise, a
exotopia textual, em uma palavra-chave, é o outro, aquele que nos completa e nos dá a dimensão do
eu. Essa característica, constitutiva da linguagem e do ser, permite a observação das relações
estabelecidas entre os personagens e da relação de acabamento, conferida ao enunciado. A
aceitação da intersubjetividade, identificada através da relação que se estabelece entre os
personagens, deixa entrever o modo como o outro, ao interagir, influencia no comportamento do
parceiro da enunciação. Aqui, quer-se colocar a singularidade do indivíduo, seu lugar único e
insubstituível, na medida em que cada um responde às suas condições objetivas de modo diferente,
em função do outro da interação verbal, em função do contexto social concreto e do horizonte
social mais amplo.
Nessa categoria, insere-se o cronotopos, o qual gira em torno do pressuposto
hermenêutico de que os personagens sempre estão respondendo a algo ou a alguma situação, ou
seja, a que ou a quem os personagens respondem no contexto da grande ou pequena temporalidade,
no vínculo profundo que se estabelece com a cultura de uma época. Por este viés, a ação responsiva
de cada personagem se em um determinado tempo e espaço, e as ações verbais são sempre
originadas em resposta a um já-dito, devendo o enunciado ser articulado com a história, em função
dos fatores cio-culturais que impregnam os discursos. A compreensão de uma leitura pressupõe
um lugar definido, pois esse ato não pode abstrair a singularidade concreta do lugar ocupado no ato
dialógico.
A segunda categoria retirada do vasto legado do Círculo índice social de valor - trata
da noção de valores. Em todo o evento enunciativo, a cada envolvimento entre os personagens, há
os valores presumíveis e, portanto, não enunciados da comunicação verbal, bem como os valores
explicitados, os quais se refletem através das palavras enunciadas. Ao se sustentar o embasamento
teórico de que as palavras se encontram carregadas de índices sociais de valores - refletem e
refratam sentidos e, a cada enunciação, encontram-se abertas para serem renegociadas -, busca-se
flagrar a reflexão das palavras, o sentido que assumem no enunciado através da interação verbal,
como estratificação social, lutas de classes, rebaixamento de vozes, vozes de autoridade, vozes
persuasivas. Valores trazidos à tona pelo sentido das palavras, nas negociações realizadas na
linguagem. Firma-se a idéia de que toda a consciência é social, flagrando-se os personagens na
perspectiva de suas relações sociointeracionais. O que sustenta essa categoria é a percepção de que
o universo sócio-ideológico e o mundo interior não remetem a estruturas monolíticas e centrípetas,
mas a realidades infinitamente múltiplas e centrífugas, negociadas nos eventos comunicativos, de
acordo com a situação concreta, momento em que os indivíduos são co-participantes.
Assim, para o entendimento dialógico do universo da Família Brasil delinear uma
trajetória, torna este recorte coerente com a compreensão posterior. Essa consideração quer
esclarecer o vínculo ininterrupto com a metodologia científica e respaldar as condições de produção
da análise, em decorrência das leituras realizadas e da leitura dialógica objetivada, como forma de
produção responsiva a um enunciado.
3.1 Exotopia: a instância do eu e do outro – do tempo e do espaço
Dentre os enfoques, do amplo espectro de assuntos tratados por Bakhtin, a exterioridade
representa o núcleo problemático mais elevado de abstração. Para o falante, leitor, interlocutor, o
trabalho de compreensão pode ser realizado quando em instância exotópica, o que pressupõe um
olhar ao mesmo tempo distante, ao mesmo tempo ativo em busca de sentidos em si e no outro. Essa
abordagem é importante porque, conforme os pressupostos teóricos de Bakhtin, conduz à idéia de
elemento transgrediente, distância, completude, acabamento, cronotopo, elementos incompletos a
priori, que podem ser compreendidos em “relação ao outro”; somente podem ser vivenciados,
quando submetidos ao excedente de visão no tempo, no espaço e nos valores.
Segundo BAKHTIN (2003), em seus estudos para a obra literária, mas não menos
importante para os estudos lingüísticos, a noção de excedente de um centro de valor com relação a
outro, ou seja, a relação de duas consciências, que se estabelece entre sujeitos, é indispensável para
a completude de um evento lingüístico. O que parece transgrediente para Bakhtin, é não haver
finalização estética para uma obra, assim como na vida. Como se percebe, em instância exotópica,
confirma-se a realidade de que nenhum sujeito é um uno, monolítico, mas sempre se constitui em
uma atitude de valores, tanto na vida quanto na arte, em relação a um outro. Então, a estética é parte
integrante do momento da vida, pois toda a vez que, por se estar fora, excede-se ao outro, percebe-
se o que ao outro é transgrediente; assim, finaliza-se o outro, concluí-se o outro. Mantém-se, em
relação a esse outro, uma atitude estética, uma posição exotópica, permitindo-se o acontecimento
entre duas consciências que se completam. Nas palavras de Bakhtin:
[...] não se trata de fundir-se com o outro, mas de manter posição própria na
distância e no excedente de visão e na compreensão a este relacionada. (Bakhtin,
2003, p. 355).
A necessária exterioridade, segundo seus postulados, representa um denominador
comum entre ética e estética. Embora constituam esferas distintas, o ético e o estético são
indispensáveis um ao outro. Segundo BAKHTIN (2003, p. 265):
[...] uma atitude estética é uma atitude responsiva – ao aceitarmos o mundo,
aumentando nossa responsividade em face dos outros reais a partir de nossa
posição exterior a seus mundos e, desse modo, participamos da máxima
quantidade de relações – em suma reconciliamo-nos com o diálogo.
Talvez, por Bakhtin permanecer um outsider dos termos estabelecidos e aprovados em
sua própria época, conforme as palavras de EMERSON (2003, p. 255), atingiu uma liberdade e
responsividade distanciada de seu objeto, o que lhe favoreceu pensar de forma tão coerente sobre
essa questão.
De acordo com as formulações iniciais de Bakhtin, estar exteriormente situado
34
, em
suas análises para as obras de arte, não significa isolamento, segurança nem abstração do eu.
Bakhtin age em relação à exterioridade, penetrando a visão de mundo do outro e depois, com a
lembrança desse outro, retorna a seu lugar; e somente assim, recupera o excesso, ou excedente, de
visão que o distingue, em face do outro. Com essa prática, Bakhtin atinge o caminho para a
plenitude dessa categoria e de seu potencial estético. O vínculo entre exterioridade e estética
justifica-se, segundo uma releitura de EMERSON (2003, p. 255), conforme segue:
[...] somente uma posição exterior fornece a possibilidade de acabamento de
concluir um evento, e o ato de concluir ou consumar, é o momento estético
crucial.
A transposição desse exercício para as interações cotidianas, exemplifica as relações que
são estabelecidas a cada encontro entre os falantes. A interação ocorre com a atribuição de imagens,
parcialmente concludentes todo o tempo ao julgar-se, ao se concluir uma tarefa, ao se
cumprimentar alguém -, apesar de, nesses instantes, perceberem-se apenas aspectos parciais desse
contexto, pois não é possível ver alguém em sua totalidade na vida cotidiana.
Para essa relação, determinante do potencial estético, adota-se a primazia de que,
somente uma posição exterior fornece a posição de concluir um evento, e o ato de concluir ou
consumar um evento representa o momento estético crucial. Em BAKHTIN (2003), percebe-se que
é importante não tanto o trabalho do artista com a formação do material, mas a conclusão, ou ao
menos a estabilização de uma posição valorativa, conforme explicitada anteriormente. A totalidade
de qualquer coisa pode ser observada de uma posição que lhe é exterior no espaço e posterior no
tempo, além da infinidade de ângulos diferentes em suas posições várias.
A categoria exotópica, restrita em um primeiro momento à arte, ao ser transposta para os
estudos lingüísticos, torna-se o centro do olhar de BAKHTIN (2003), em relação às palavras e a
seus atributos interiores e exteriores. Nessa consideração, que se acredita ser um dos princípios
34
EMERSON, Caryl (2003, p. 255). Em um artigo crítico de Volkova a Bakhtin a respeito da exterioridade.
norteadores para o entendimento do fenômeno linguagem, BAKHTIN (2003) discute o princípio
teórico que organiza suas reflexões para o enunciado literário - o autor ao herói o que lhe é
inacessível, a sua imagem externa -, negociando, com a vida real, a idéia de que o autor é para o
personagem o que o outro é para mim.
Conforme BAKHTIN (2003, p. 190) coloca em Autor e o Herói:
[...] todo tipo de visualização artística opera entre dois parâmetros criados, desde o
começo, pelo artista: um mundo espacial cujo centro valorativo é um corpo vivo e
um mundo temporal, cujo centro valorativo é a alma.
Ou seja, s, o homem, o leitor, como consciência, somos seres inacabados, e somente
os outros podem dar a dimensão de completude. Essa condição da linguagem demonstra um
pressuposto da visão de mundo bakhtiniana, tido como princípio básico das ciências humanas: a
exotopia, entendida de forma simples, como a conseqüência de que um outro pode nos dar
acabamento, assim como nós podemos dar acabamento a um outro. BAKHTIN (2003, p. 83)
mostra que relacionar ao outro o vivenciamento é condição obrigatória de uma compenetração
eficaz do conhecimento, tanto ético quanto estético, pois a atividade estética começa propriamente
quando retornamos a nós mesmos.
Para o elemento compenetração (abstração dos elementos transgressores ao outro) e para
o acabamento (enforme do material de compenetração), a percepção temporal não ocorre de
maneira uniforme. Com a palavra, o paralelo se dá com ambos os elementos, em dupla orientação,
tendo o leitor a tarefa de examinar os valores que são transgredientes à consciência e ao mundo da
personagem, sua diretriz ético–cognitiva, concluindo-o com a consciência do autor-contemplador.
BAKHTIN (2003, p. 60) propõe que para o acontecimento estético é necessário que a
consciência do autor não coincida com a consciência do personagem; para a obra estética sempre
deverá existir uma
tensão entre essas duas consciências. Em suas reflexões, pontua que ver e
compreender o autor de uma obra significa ver e compreender outra consciência, a consciência do
outro e seu mundo, isto é, outro sujeito.
Os conceitos de distância, de excedente de visão e de conhecimento funcionam em
torno da distância do eu e do outro no acontecimento real da comunicação, do autor e da
personagem no acontecimento estético, na distância do leitor contemporâneo e do pesquisador em
relação a épocas e culturas distantes. Essa concepção de estética abre um leque de possibilidades de
leitura para os gêneros textuais, que pode ser conduzida e examinada através da relação por ela
estabelecida.
Uma das referências relacionadas ao legado do Círculo de Bakhtin, encontra-se na
afirmação de que Bakhtin desenvolveu sua concepção filosófica e lingüística sem qualquer ligação
com seus antecessores intelectuais. Todavia, com os estudos recentes acerca de seu pensamento,
tem se revelado que o programa filosófico de Bakhtin estava intimamente relacionado às maiores
tendências filosóficas continentais, como o Neokantismo, a fenomenologia e Lebenphilosophie
35
,
além de paralelos com outros estudiosos europeus. Essas descobertas recentes refletem, de forma
clara, um pressuposto que determina a questão da linguagem vinculada à história e,
conseqüentemente, indiciam um centro organizador do pensamento bakhtiniano o cronotopos,
concepção, neste recorte, em relação direta com o excedente de visão.
Para essa categoria, que se conduz através de um olhar exotópico, tem-se como
referência a capacidade de:
[...] ler os indícios do curso do tempo em tudo, começando pela natureza e
terminando pelas regras e idéias humanas (até conceitos abstratos). (Bakhtin,
2003, p.226).
35
LÄHTEENMÄKÏ, Mika (2005). Trecho de um ensaio escrito na obra Mikhail Bakhtin. Contribuições para a filosofia da
linguagem e estudos discursivos, organizado por Zandwais (2005).
Na perspectiva adotada pelo Círculo, o signo não existe sem ideologia e a linguagem
deve ocupar um lugar de destaque no estudo das ideologias, pois somente a linguagem apresenta
condições de detectar a ideologia como forma de historicização. Conforme BAKHTIN (2003), as
ideologias não devem derivar da consciência, mas ser vistas através de um estudo, que conta de
como a consciência adquire forma de existência e expressão, a partir de uma dada conjuntura
econômica e social; a partir das práticas sociais; a partir de seu modo de representar as formas de
inscrição dos sujeitos em uma ordem histórico-simbólica determinada. Isso leva ZANDWAIS
(2005, p.88) a concluir que:
[..] os estudos sobre as consciências humanas deveriam tomar como fundamento
as condições históricas de determinação que explicariam modos de apropriação
das contradições vividas, em um dado momento histórico, por um corpo social,
materializadas, pela expressão em outro corpo reflexivo/refratário daquele: a
linguagem.
Com o intuito de revelar a questão premente que se coloca quanto ao tempo anterior,
diálogo com o passado, para a idéia de cronotopos, a observação inicial parte do fato de que
Bakhtin acredita na compreensão como correlacionamento com outros textos e reapreciação em um
novo contexto. A índole cronotópica se faz presente em todas as formas de expressão da língua,
pois o ponto de vista abrange tanto o elemento espacial quanto o temporal, vinculados diretamente
com o ponto de vista axiológico.
Nesse caso, para a categoria que se busca delinear, o ponto de vista cronotópico, que
instaura tanto espaço quanto tempo, abre as várias instâncias do ato de enunciação, podendo chegar
ao contexto antecipável do futuro e a relação com textos do passado, em um movimento
retrospectivo. Somente no ponto de contato entre dois textos se instaura a compreensão, prospectiva
e retrospectivamente, permitindo-se o diálogo.
Por uma outra via, BAKHTIN (2003, p. 364) antecipa a importância de se compreender
um texto na totalidade cultural de uma época e alerta para o perigo de se encerrar esta leitura na
contemporaneidade, limitando-se à época de criação. Para toda a compreensão, suas observações
indicam um olhar para além das fronteiras do seu tempo, ao que define como a grande
temporalidade.
BAKHTIN (2003, p. 225), posiciona-se frente a esta categoria, na literatura, como:
[...] a capacidade de ver o tempo, de ler o tempo no todo espacial do mundo e, por
outro lado, de perceber o preenchimento do espaço não como um fundo imóvel e
um dado acabado de uma vez por todas, mas como um todo em formação, como
acontecimento; é a capacidade de ler os indivíduos do curso do tempo em tudo,
começando pela natureza e terminando pelas regras e idéias humanas (até
conceitos abstratos).
Essa concepção, a assimilação do cronotopos, a questão do tempo e da formação
histórica, atingiu um dos pontos culminantes da visão do tempo histórico na literatura, pois,
conforme BAKHTIN (2003, p. 230) é necessário:
[...] entrever os laços necessários do passado com o presente vivo, compreender o
lugar necessário desse passado na série contínua do desenvolvimento histórico.
A característica de exeqüibilidade do uso lingüístico acarreta a supressão de um
elemento caracteristicamente aberto e inacabado, o conceito base que perpassa todas as reflexões
propostas, a dialogia. A cultura sem a leitura dialógica ainda não encontrou uma fórmula aberta à
descrição. Para o estudo da cultura, o termo “texto” não apresenta condições para abordar a
essência do conjunto todo do enunciado. A limitação do aspecto temporal, bem como a restrição ao
evento e o não uso do processo de empatia para a compreensão responsiva, leva a um enfoque
limitado da realidade. Na medida em que o objeto é o texto, há sempre por trás um sujeito,
conseqüentemente uma visão de mundo e inúmeros valores que interagem entre si, os quais se
devem sentir e vivenciar para, assim, apreenderem-se os sentidos emanados. Essa noção ampla
acarreta, conseqüentemente, a condição material da evolução da língua no tempo. Assim, para o
fato de inexistirem fronteiras, a forma convencional, mecânica, de análise do signo lingüístico
somente poderá ser considerada enquanto unidade de sentido.
Para o entendimento das colocações a seguir, relevantes para o entendimento que se
pretende, o termo texto será utilizado para referir à manifestação de diferentes gêneros textuais
literários ou não. Busca-se chamar a atenção para o fato de que os textos devem ser analisados,
levando-se em consideração a cultura.
É preciso resgatar o vínculo profundo que se estabelece entre os vários gêneros
(abordaremos esse assunto no capítulo dois) com a cultura da época, determinados por relações
dialógicas, além da ciência do não fechamento de uma compreensão em seu próprio tempo, ou seja,
com a cultura própria ao período de criação. Uma das questões relevantes para esse entendimento
se refere à distância, condição para novas facetas relacionadas à compreensão. Essa colocação,
condicionada à grande temporalidade, serve para esclarecer outro aspecto importante do
pensamento de BAKHTIN (2003, p. 292):
No campo da cultura, a distância é a alavanca mais poderosa da compreensão. A
cultura do outro se revela com plenitude e profundidade aos olhos de outra
cultura.
Essa afirmação relaciona-se à idéia de que um falante ou escritor se utiliza, consciente
ou inconscientemente, das correntes poderosas e profundas da cultura, as quais refletem
efetivamente parte da criação, parte das escolhas lingüísticas, parte dos aspectos que envolvem os
valores axiológicos naquele determinado momento sócio-histórico. A tarefa relacionada, então, com
a compreensão apresenta vínculo profundo com a situação e com os valores intrínsecos à sociedade.
A esse respeito, assim se expressa BAKHTIN (2003, p. 316):
Um sentido revela as suas profundidades encontrando-se e contatando com
outro, com o sentido do outro: entre eles começa uma espécie de diálogo que
supera o fechamento e a unilateralidade desses sentidos, dessas culturas.
Em síntese, todo o texto se revela através de um sujeito, um autor vem de um sujeito-
consciência e vai para um sujeito-consciência, sendo organizado pelo sistema da linguagem,
refletindo a base cultural, ou dialogando com outras culturas, com que mantém responsividade.
Nessa concepção, o texto não é jamais individual, pois se constrói pelo menos entre dois
interlocutores, além de constituir-se na essência de relações que carrega com os outros discursos ou
textos. Sua construção configura-se, de forma prática, em um processo observável, determinado
pela reflexão característica, que confere ao outro a idéia de incompletude, onde os produtores
constroem juntos o texto, prevêem o outro, localizam o outro em seus atos reflexivos e são
determinados pelo outro, em função da reflexão própria do ato de linguagem e dos valores
refletidos pela linguagem. Essas características estão presentes tanto em uma grande obra literária
quanto em um discurso cotidiano. Entretanto, a desconsideração imediata dos fatores que
envolvem um texto, acarreta o obscurantismo de sua compreensão responsiva, apagado pela
contemporaneidade. Assim, épocas posteriores determinam outros fatores como o distanciamento,
favorável a uma análise de amplo espectro. A complexidade aumenta ao se considerar que não se
pode analisar um texto isolado da cultura de uma época e mostra-se ainda mais prejudicial colocar-
lhe estanque ao período de sua criação. Esse viés sinaliza um isolamento e um recorte estreito, feito
tanto pela lingüística, quanto pela literatura, ao analisar um texto.
Para que a leitura de textos, literários ou não-literários, encontre sua significação, deve-
se considerar o fato de que:
[...] uma obra não pode viver nos culos futuros se não reúne em si, de certo
modo, os séculos passados. Se ela nascesse toda e integralmente hoje, não desse
continuidade ao passado e não mantivesse com ele um vínculo substancial, não
poderia viver no futuro. Tudo o que pertence apenas ao presente morre juntamente
com ele. (Bakhtin, 2003, p. 363).
Assim, é inaceitável separar os textos da cultura de uma época, ligando-os somente a
fatores socioeconômicos. Esses fatores agem sobre a cultura e a influenciam de modo a se ter um
texto impregnado de fatores socioculturais, baseados, porém, naquilo que culturalmente impregnava
as relações estabelecidas. A vida dos textos no processo de sua vida post mortem se enriquece com
novos sentidos e novos significados. Mas, com certeza, seu grau de respeitabilidade nasce em sua
época de criação, apesar de que muitas vezes, principalmente com textos literários, esta consciência
venha a aparecer em culturas posteriores. A exemplo, Bakhtin
36
, ao comparar a obra de
Shakespeare com a leitura que se faz “hoje”, confirma a idéia de que nem os seus contemporâneos
conheciam o “grande Shakespeare” de que hoje se tem conhecimento.
As críticas do Círculo apontaram os problemas, para vivenciar os estudos da linguagem,
inseridos em um processo, onde cada um é peça fundamental para a organização e compreensão do
todo, e para qualquer que seja a perspectiva de estudo escolhida, a busca pelo outro, ser social,
ideológico temporal ou espacial, a noção de dialogismo necessariamente deverá estar presente.
3.2 Noção de valor: eu, o outro e os sentidos
Nas considerações do Círculo, os fenômenos que cercam a vida das pessoas e das
personagens estão fundidos como julgamentos de valor, podendo ser expressos através da
linguagem. O sentido da palavra, revelado a cada texto, é potencialmente infinito. O signo
36
BAKHTIN (2005, p. 363) em Os estudos literários hoje (Resposta a uma pergunta à revista Novi Mir).
bakhtiniano, segundo TEZZA (2003, p. 213):
[...] não é um instrumento técnico que realiza operações semânticas; ele tem uma
dimensão inseparável que só pode se realizar como ato ou atitude.
Assim, a palavra, em seu enunciado, contata com outro sentido para revelar os novos
significados, determinados culturalmente. O sentido, entendido como relação dialógica entre
sujeitos, também traz um pressuposto em relação à categoria anterior; trata-se agora, no entanto, de
uma exotopia valorativa.
Para a concepção da categoria, que visa a explicitar a noção de valor em Bakhtin, torna-
se fundamental reunir a tríade eu e o outro e o sentido que se estabelece, na seleção das palavras, e
que reflete uma negociação de valores em cada enunciação.
Nas palavras de VOLOCHÍNOV (2002, p. 107):
[...] os contextos possíveis de uma única e mesma palavra são freqüentemente
opostos. As réplicas de um diálogo são o exemplo clássico disso. Ali, uma única e,
a mesma palavra, pode figurar em dois contextos mutuamente conflitantes. [...]
Pode-se, no entanto, dizer que toda a enunciação efetiva, seja qual for a sua forma,
contém sempre, em maior ou menor nitidez, a indicação de um acordo ou de um
desacordo com alguma coisa.
Mencionar essa questão, de forma tão clara, quanto aos valores assumidos pela palavra
em todos os contextos, refletindo sempre uma negociação a cada uso, confere sempre uma
diferença para o sentido assumido pela palavra, ou seja, os diferentes contextos em que aparece
uma palavra jamais podem ser vistos como um único e mesmo plano. Isso alerta, também, para a
pluriacentuação da palavra, que, parafraseando Volochínov, sugere um relacionamento estreito com
o estudo da polissemia, na busca por uma qualificação justa para o fato da mudança do acento
avaliativo da palavra, em função do contexto.
Bakhtin e Volochínov trataram particularmente da noção de valor, afirmando que a
palavra se encontra indissoluvelmente impregnada de um complexo de valores. Isto é, encontra-se
impregnada de significados sociais concretos prévios, portanto toda a enunciação compreende uma
orientação apreciativa, que se constitui no ato concreto no ser-evento. A idéia que se organiza, a
partir desse ponto de vista, em conformidade com o pensamento bakhtiniano, pode ser considerada
tanto para o universo da estética quanto da linguagem.
Para todo e qualquer enunciado a ser considerado, a observação intuitiva primeira a ser
considerada, encontra-se no valor imprimido à palavra, selecionada no momento da enunciação,
entre os sujeitos do discurso. Desse modo, revelam-se os valores que perpassam as crenças de cada
indivíduo ou grupos de indivíduos, ou escondem-se determinados valores, quando assim o falante o
deseja. Toma-se, como referência de uso da palavra, a realidade concreta, cuja seleção pelos
sujeitos falantes deve-se às crenças, aos desejos, às formas e expressões mais íntimas, e revela os
valores de cada indivíduo ou grupo. Uma palavra somente é enunciada, quando um valor é ou está
determinado. A palavra é prevista pelo falante naquele momento, pois busca com ela a objetivação
de suas intenções. Para VOLOCHÍNOV (2002, p. 131):
A multiplicidade das significações é que faz de uma palavra [...], sua
significação é inseparável da enunciação concreta em que se realiza. Sua
significação é diferente a cada vez, de acordo com a situação [...]. Toda a
palavra é sempre acompanhada de um acento ou valor apreciativo.
O mesmo se dá em relação ao texto. É essencial à sua índole axiológica, pois a
personagem e seu mundo constituem o centro axiológico do universo textual. Qualquer redução na
natureza dos valores relacionados à vida da personagem, transforma-se, segundo BAKHTIN (2003,
p. 423), em mera atividade técnica.
Bakhtin percebe em suas críticas aos formalistas uma definição para a poética
completamente exaurida de um complexo de valores e, portanto, neutra. Trata-se da análise
estrutural da dimensão poética, quando esta se volta para si mesma em função das rimas,
paralelismos, assonâncias, etc., a qual desconstitui a alma da palavra, empalhando-a como a um ser
sem vida. Acredita-se que o signo se revela ideologicamente neutro, axiologicamente neutro, não
podendo ser caracterizado como linguagem.
O credenciamento da palavra se encontra no fato de estar sempre carregada de um
sentido vivencial concernente à vida, pois na verdade tudo o que se fala ou se ouve são os valores
impregnados às palavras, selecionados para o evento enunciativo, em dado momento, carregados de
acento apreciativos tanto nos discursos primários ou em formas mais elaboradas, os discursos
secundários.
Uma proposição de mesma natureza pode ser claramente observável nas colocações de
Medvedev, segundo o qual, o poeta trabalha não com o material da linguagem, material lingüístico
sob suas formas fonética, gramatical, lexical, mas com avaliações sociais. Para Medvedev, segundo
as palavras de TCHOUGOUNNIKOV (2005, p. 17):
[...] a avaliação é social, ela organiza a comunicação. Nos limites de um
organismo e de um psiquismo individual, ela não chegaria jamais à criação do
signo, quer dizer, do corpo ideológico. Mesmo um enunciado interior (palavra
interior) é social, ele se dirige a um auditório possível, a uma resposta possível e é
somente no processo desta orientação que ele pode compor-se e formar-se.
Segundo estas colocações, a avaliação social surge como uma força formadora do que
se pode chamar de corpo ideológico, instaurado a cada época e a cada grupo social o signo se
forma sempre entre homens socialmente organizados, no processo de sua interação.
Nessa mesma linha de reflexão, na análise de TCHOUGOUNNIKOV (2005, p.37),
conforme os postulados em Medvedev a avaliação social é sempre extra-textual, reside na
entonação, no extra-texto:
[...] é ela que, sendo transmitida do exterior do texto, dá-lhe a vida, torna-o
socialmente ativo, dinâmico, ideológico, intertextual
.
Com essas verdades inerentes à linguagem, percebe-se a inexistência de fronteiras entre
a língua e a expressão da vida a que ela realmente quer revelar, e a existência de um diálogo sempre
atual, no sentido transmitido nos textos. Não se pode esquecer um termo determinante característico
do valor do signo, da instância da enunciação a irrepetibilidade. Para essa distinção, conforme
Bakhtin (2003, p.369):
[...] cada elemento do discurso é percebido em dois planos: no plano da
repetitividade da língua e no plano da não-repetitividade do enunciado.
Com isso, quer ele referir-se ao fato de que o enunciado pertence à não repetitividade
histórica. Mas, o discurso posto, o discurso como interpretação, pertence à idéia do acabamento.
Entre dois sujeitos socialmente constituídos, entre duas consciências, entre dois textos, em relações
necessariamente dialógicas, o índice social de valor se reflete em cada posição assumida.
A imprescindível consideração da mudança por culturas e épocas, referida na categoria
anterior, serve de caminho para rastrear algumas esferas por onde essa palavra alcança um maior
filão de sentidos, no garimpo de seus significados; remete a palavra a outros contextos, onde esta
teve seu momento de realidade concreta, entre falantes negociadores de valores pertinentes às suas
realidades contemporâneas, adjacentes da cultura onde conviveram e contrataram valores para o
que se queria comunicar.
Para essa compreensão é decisivo o entendimento do acontecimento da palavra; a
atribuição de que o signo vive não como forma de nominar as coisas do mundo, na cabeça do
falante, nem do ouvinte, mas como uma forma de negociação entre os falantes. Toda a palavra
caminha pelos vários espaços de uso lingüístico e refrata, a cada uso, novas variantes de
significado, sendo negociada a cada nova situação de uso.
Quando um julgamento é condicionado pela existência de uma dada comunidade, ele se
torna de valor indiscutível, tido como normal entre o grupo, não havendo, portanto, necessidade de
enunciá-lo. Para esta reflexão, é fundamental ter-se presente a noção de VOLOCHÍNOV (2002, p.
107), de que:
Quando avaliações básicas não são enunciadas, pressupõe-se que elas já fazem
parte da organização do comportamento e das ações, não necessitando de uma
formulação verbal especial.
Avaliações presumidas são avaliações básicas de um grupo social dado, portanto um
julgamento de valor é um fato condicionado pela existência de uma dada comunidade, não
submetido a discussões.
No momento em que um julgamento básico de valor é verbalizado e
justificado, significa que foi posto em dúvida, podendo tornar-se tal enunciado uma forma
transparente de manifestação do campo de batalha que a língua representa, quando os falantes
negociam posições ideologicamente constituídas. O enunciado que permite questionamentos de
valor para aquilo que se sabia inquestionável, deixa transparecer, de forma explícita, a questão do
outro no discurso, situado social e politicamente. Esse julgamento de valor - determinante da
seleção verbal e do entendimento do todo da forma verbal expressa, serve de garantia na
manutenção da linguagem, enquanto processo interacional verbo-axiológico.
Para a análise do inacabado, inconcluso, mas passível de interpretação, como pode ser
caracterizada a palavra em discurso, o ponto de vista abrange o todo do enunciado, vinculando
diretamente o ponto de vista axiológico. Pode-se tomar, como organizador do pressuposto que
sustenta o enunciado, a crença de que toda a palavra concreta, falada, dita, pensada, escrita,
sonhada, identifica o valor credenciado pelo falante, para manifestar seus mais íntimos reflexos de
personalidade, ações, crenças, atitudes, discordâncias, sentimentos manifestos ou não, advindos da
certeza de se estar, ao enunciar, “apreciando” algo, pensando, refletindo, manifestando algo.
A palavra enunciada é a instância material que possibilita consciência interna ou
externa, dando sentido a ações acontecidas na e pela linguagem, em função dos valores formadores
das consciências envolvidas.
Finalmente, observa-se que Bakhtin coloca a questão da compreensão como fator
determinante, não desvinculando dessa aquilo a que chama de atitude valorativa. Para a síntese da
categoria de valor, pode-se afirmar a percepção de linguagem em processo acontecimento em
relação ao qual me posiciono tomando a palavra, como posicionamento ativo, atitude sempre
presente em qualquer acontecimento lingüístico que pressupõe tomada de posição - resposta,
atitude -, de acordo com os valores postos em jogo no momento enunciativo, detectáveis por cada
participante deste processo. Cumpre, ainda, reforçar que, para os pensadores do Círculo, a palavra
vem carregada por valores anteriores, por acentos apreciativos dados pela entonação alheia, mas
sempre nova a cada enunciação.
4 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
Os procedimentos da análise, com vistas a uma abordagem sociohistórica, tendo
por base as formulações teóricas do rculo de Bakhtin, situam-se numa lingüística da
enunciação
37
, que orienta este trabalho desde o seu início. Em conformidade com a orientação
proposta em Bakhtin, assumir uma posição frente à leitura das tiras da Família Brasil constitui um
ato singular e concreto, pois se sustenta em um de seus principais conceitos - a responsividade
inerente ao momento verbal.
O corpus que constitui a análise é formado por cinco tiras, retiradas de um álbum
intitulado Aventuras da Família Brasil. As cinco tiras recuperam eixos fundamentais do universo
da Família Brasil, no sentido de mobilizar, no espaço de sua estrutura verbo-visual, valores
negociados entre os diferentes membros da família, em cada evento enunciativo. Com o objetivo de
facilitar a compreensão dialógica, categoria de base para o presente trabalho, optou-se por seguir o
viés selecionado no recorte de categorias – exotopia textual e noção de valor - anteriormente
definidas. O olhar inicial, sustentado pela categoria de exotopia textual, descreve o contexto social
mais imediato e o contexto social mais amplo de cada personagem, aqui denominados também
37
Termo utilizado por TEIXEIRA (2005, p. 86), para designar um conjunto de abordagens enunciativas, que têm em
comum a busca pela singularidade da ocorrência contextual.
como centros de valor, em função da nomenclatura utilizada pelo Círculo. Essa categoria serve
como elemento organizador da análise, estabelecendo a estratificação histórica e social da natureza
dialógica da linguagem, determinante para a natureza do enunciado. Em seguida, com base na
categoria de índice social de valor, busca-se detectar no nível lingüístico, através da interação entre
os centros de valor, a diretriz volitivo-emocional dos personagens e os valores verbo-axiológico,
negociados na situação enunciativa concreta, ou seja, o sentido negociado para cada expressão no
evento verbal.
Através desse procedimento metodológico, uma ação responsiva vem sendo perseguida,
especialmente quanto aos valores verbo-axiológico, que são identificados através das negociações
lingüísticas, determinadas em consonância com a leitura do enunciado. Isso requer uma leitura
dialética das tiras, identificadas metodologicamente como a parte, na busca pela compreensão e
pela relação que estabelecem com o todo social e histórico. Nessa perspectiva, a análise do um
enunciado envolve a compreensão do centro de valores de cada participante, através da influência
do contexto e da percepção do objeto linguagem, no movimento dialógico constitutivo do ato
verbal. As variantes de contexto são consideradas como partes organizadoras da estratificação da
linguagem, enquanto interações verbo-axiológicas, na ordem do social, inscritas em um cronotopo
de dimensões variáveis. Assim sendo, uma vez que se tem como parâmetro que o discurso é lugar
de manifestação de tensões, de negociações, de desvendamento de sentidos e valores originários do
exterior da linguagem, o método de análise transita por um percurso de dimensões hermenêuticas,
em torno dos personagens do autor-criador Veríssimo.
Por se tratar de uma pesquisa qualitativa, a presença exclusiva da troca verbal nas tiras,
característica dos discursos face a face, cria um terreno favorável para o desenvolvimento amplo de
outras variantes, presunção para um estudo de tantas particularidades quanto as que envolvem a
enunciação. No entanto, as unidades categóricas estabelecidas fornecem um mínimo de
compatibilidade, para que não se corra o risco de incoerência na compreensão.
Descrever e explicar o envolvimento dos personagens, relativamente às representações
sociais, evidencia que, nos discursos, os indivíduos reconstroem a natureza social da linguagem,
desafiam as estruturas e as práticas sociais em que se inserem, produzem e reproduzem eventos
essencialmente de natureza humana, determinam a implicação da linguagem diretamente nos
eventos por ela refletidos.
De acordo com a abordagem bakhtiniana, em relação à análise do enunciado concreto,
este compreende duas partes: a parte presumida e a parte percebida realizada em palavras, sobre as
quais se organiza a compreensão e se instaura a questão do dialogismo como organizador dos
discursos. As avaliações presumidas no contexto da Família Brasil adquirem, nessa perspectiva,
uma importância especial. Reportando-se a VOLOCHÍNOV (2002, p. 122), para sustentar a força
que se pretende com a compreensão realizada: todas as avaliações sociais básicas que derivam
diretamente das características distintivas da vida econômica de um grupo social dado, usualmente
não são enunciadas: elas estão na carne e sangue de todos os representantes do grupo.
No caso de cada um dos personagens da Família, essa caracterização remete ao fato de
que o autor-criador não necessita esclarecer os valores sociais. Transparecem, em todos os
enunciados, as avaliações presumidas, suportes para as escolhas verbais. Esses valores presumíveis
organizam o amplo contexto axiológico, são determinados em função do contexto social.
Em resumo, o método de análise circunscreve o envolvimento geral dos personagens
com a situação extra-verbal da enunciação, dando sustentação a três fatores em especial: o
horizonte espacial comum dos interlocutores; o conhecimento e a compreensão comum da situação
por parte dos interlocutores; e a análise da situação, pelo rastreamento das diversas e possíveis
conclusões avaliativas verbo-axiológica permitidas para o contexto enunciativo, marcadas pelo uso
da língua. A prática metodológica pretende reiterar a idéia de um conceito bastante específico - o
dialogismo.
Após a compreensão de cada uma das tiras selecionadas, optou-se por um acabamento à
análise, no capítulo seis, com base em um jogo dialógico, construído a partir da co-enunciação da
realidade investigada. Esse olhar concludente, outsideness desta pesquisadora, pretende reforçar a
idéia de que o movimento exotópico torna o pesquisador responsável por sua posição singular.
Confirma-se, desta forma, a idéia da exotopia constitutiva da pesquisa no campo das ciências
humanas.
5 ANÁLISES DAS TIRAS DA FAMÍLIA BRASIL
Nesta parte do trabalho, realiza-se uma compreensão responsiva das tiras relacionadas,
conforme as categorias determinadas no referencial teórico. As categorias pré-determinadas servem
para conduzir a análise, oportunizando uma visão de horizontes amplos para o estabelecimento da
natureza da compreensão. É pertinente lembrar que cada enunciado vem de um centro de valores,
dirige-se a outro centro de valores, momento verbal que atualiza as relações dialógicas. Mesmo se
tendo ciência de que as categorias, determinadas para fins de análise, se entrecruzam para um ato
responsivo em qualquer gênero textual, tentar-se-á, aqui, empreender olhares distanciados e
específicos para cada categoria respectivamente, com o intuito de aplicar esses conceitos de
Bakhtin.
5.1 Tira 1 – Interlocuções entre o marido e a mulher
5.1.1 Compreensão extralingüística - categoria exotópica
Na perspectiva bakhtiniana não há abordagem fecunda para a compreensão de um
acontecimento enunciativo, sem o entendimento de que nós, leitores, co-participantes, temos acesso
ao todo. E, a partir desse todo evêntico, somos capazes de assumir uma posição em relação aos
personagens, “enformando-os”, vendo o que os personagens não podem ver cada um
individualmente, assim como o autor procedeu ao construí-los. Nessa mesma medida, os
personagens de LFV existem em função do que Bakhtin chama de exotopia textual, o olhar de fora,
que completa, que dá acabamento.
Numa análise em perspectiva dialógica, para avançar a compreensão não basta a
percepção da situação posta, a vivência volitivo-emocional de cada personagem, pois a volta ao
lugar de onde se instancia a leitura empiricamente, representa um posicionamento, um ato
responsivo entre o co-enunciador e seu texto. Ver axiologicamente o mundo do personagem,
colocar-se em seu lugar, voltar ao lugar inicial, para dar-lhe um olhar concludente, marca o início
da percepção dos centros axiológicos, que se refletem nas escolhas verbais de cada personagem. Ou
seja, a diretriz volitivo-emocional é individual, mas complexa, pré-estabelecida pelas condições de
cada um, em relação ao papel ocupado frente ao interlocutor – esposa e marido - na relação
familiar, como no papel assumido frente à sociedade ela, dona de casa; ele, pai de família, que
trabalha para o sustento da casa. Assim, cada personagem representa um centro de valor a ser
definido em relação a outro centro de valor socialmente constituído.
Na consideração do contexto social mais imediato, alguns elementos contribuem para
circunscrever a situação concreta, extralingüística. Primeiramente, a visualização da atitude-ação é
determinante para a compreensão em função de os personagens se encontrarem integrados na
unicidade da situação social do momento. A esposa chega em casa, com um pacote de compras
feitas no mercado. O marido se encontra sentado, lendo jornal. A observação do ato-ação revela a
aceitação social da idéia-ação de que a mulher se responsabiliza pelas compras do cotidiano. A
compreensão ideológica desse horizonte social forma-se em consonância com o de uma classe
social, em cujos ideais a mulher responsabiliza-se pelos afazeres do lar, enquanto o homem trabalha
para manter a família. Em segundo lugar, a delimitação do meio social concreto que os engloba – a
residência do casal - e a relação que mantêm entre si marido e mulher - pressupõe conhecimento
prévio dos valores e crenças entre eles; ciência das expectativas que cada um mantém em relação ao
outro; conseqüentemente, um caráter de informalidade e não necessidade da explicitação de valores
sociais para o desenvolvimento da interação verbal, pois o centro organizador e formador da
expressão se situa no exterior. A consciência dos personagens, suas vivências relacionadas ao
âmbito familiar são correlativas. Trata-se de dois indivíduos em que a criação ideológica é de
aparente concordância.
Também em relação ao contexto social mais imediato, o fato de a cena enunciativa se
passar em casa, aliado à forma como o casal está colocado, picturialmente, ajuda a identificar um
costume cultural contemporâneo: o marido não se levanta com a chegada da esposa, e não ocorre
entre eles um cumprimento formal. A informalidade, além de corresponder aos costumes da
contemporaneidade, é conseqüência da relação íntima e do espaço familiar. Na verdade, a imagem
da atitude-ação dos personagens não se sobrepõe ao discurso, mas reitera-o. Por exemplo, esse
mesmo, evento realizado por centros de valor desconhecidos um em relação ao outro - uma
senhora, chegando com as compras do mercado e um estranho à sua espera na sala de jantar -,
imporia uma outra ressonância, originaria um outro evento verbal, com outras características
volitivo-emocionais, devido ao desconhecimento entre esses centros de valor. Desse modo, a
palavra, ao se dirigir a um interlocutor, varia caso se trate de uma pessoa do mesmo grupo social, se
for inferior ou superior, se estiver ligada por laços mais estreitos ou não.
Outro fato, que define o momento concreto verbal, deve-se à relação de intimidade entre
o casal. E, somente neste plano, pode ser entendido o enunciado. Esse relacionamento libera-os de
diversas perguntas, devido aos dois centros de valor pertencer à mesma comunidade, perfeitamente
organizada. Por exemplo, em conformidade com o enunciado, dispensam-se perguntas como: “Que
compras foram feitas?”, “Em que mercado?”, “Qual o valor das compras?”, “Quais os produtos que
estão caros?”, “O que são considerados preços caros?”. A natureza do evento condiciona a ação de
fazer compras a um ato corriqueiro, para o qual se deve considerar os valores presumidos, que o
necessitam expressão lingüística, pois correspondem aos pressupostos do meio social mais
imediato.
Deve-se ressaltar que, como dois contextos de valor interagindo, dois centros de
referência concretos, duas consciências individuais para serem reconhecidas. O centro de valor
dela configura-se a partir do horizonte social de uma senhora, do lar, casada, de meia-idade, que
entra em contato direto com a realidade do comércio. Sua percepção volitivo-emocional, em relação
ao preço das compras do mercado, se estabelece a partir de um olhar diferente da posição volitivo-
emocional do centro de valor dele. O centro de valor dele organiza-se a partir do horizonte social de
um senhor casado, de meia-idade, cuja ideologia relacionada com a economia - a alta dos preços -
acontece através da leitura de jornal, que retrata os problemas econômicos por que o país passa. No
entanto, há uma relação gica de identidade entre os dois centros de valor - relações dialógicas são
impossíveis sem relaçõesgicas ou orientadas para um objeto referencial; compartilham uma visão
de mundo em consonância com a idéia de que a economia não está estável, como conseqüência, os
preços vêm aumentando. Mas, somente se pode afirmar que o marido, por ser leitor de jornal,
possui convicção das conseqüências negativas advindas da crise econômica. Apesar de o casal ter a
consciência de haver um estrato social pobre, diferente de sua realidade, que sofre com o aumento
dos preços, cada um apresenta juízo de valor diferente, para esta realidade e para a situação que os
circunda.
Cada centro de valor responde a um contexto social mais amplo, relativo a épocas
passadas. A questão cronotópica adquire, nessa perspectiva, seu antagonismo cultural pela
constatação de que, no passado, havia diferenças marcantes em relação aos costumes da atualidade:
em determinados períodos históricos, marido e esposa se tratavam com formalidade; o homem ou
trazia os mantimentos para casa ou a subsistência era familiar, com todos trabalhando no campo;
não havia a informação jornalística, a mulher era exclusivamente do lar. Ao ficar em casa, tinha
como tarefa determinar suas empregadas/escravas, ou seja, não havia necessidade de sair no dia-a-
dia, para fazer compras.
A percepção do tempo histórico real e do homem histórico nesse tempo é fundamental
para definir o excedente de visão, completude e arredondamento conclusivo da leitura da tira. O
homem histórico real o marido remete à cultura decorrente de mudanças ocorridas no contexto
familiar. A realidade do homem histórico - dele - pode ter suas origens em uma educação que
objetivava educar o homem como o único responsável pelo sustento da família, informado, não se
permitindo afazeres domésticos, tarefa que pertencia exclusivamente às mulheres da casa. O tempo
histórico real dela se justifica pela percepção da realidade da mulher histórica nesse tempo.
Percebe-se uma mudança relacionada à hierarquia entre o marido e mulher, em especial, para o
papel da mulher na sociedade, com atitudes que se revelam de ruptura com os costumes de outras
gerações, quando a mulher não se dirigia diretamente ao marido sem uma linguagem formal, sem
uma atitude-ação formal, e nem era responsável pelas compras do cotidiano.
O autor-criador LFV “enforma” o centro de valor dela, como o de alguém que
desconhece parte da realidade do cotidiano. Por meio do excedente de visão do marido, pode-se
afirmar que a mulher não possui a devida noção de sua inserção social. Aos olhos dele ela é
ingênua, e por que não dizer, ignorante, em relação aos assuntos econômicos. Possui conhecimento
da circunstância de vida da classe pobre, mas ignora a realidade responsável por esta situação as
alterações econômicas do país, e suas conseqüências. Ela sabe das dificuldades enfrentadas por esta
classe, mas não se identifica com essa vivência. Não tem consciência política, não se imagina,
mudando o orçamento da casa, passando para uma classe “inferior”. Essa colocação é importante
porque contrapõe a diretriz emocional-volitiva dele que, por ser leitor consciente dos problemas
econômicos, percebe a iminência de problemas mais sérios, que afetarão a renda familiar,
obrigando-os, conseqüentemente, a uma mudança de classe social.
Além dos fatos situacionais concretos, reguladores do enunciado verbal, uma conclusão
limitada, mas importante para a compreensão extra-lingüística, pode ser resumida da seguinte
forma: os personagens têm uma casa; nesta época jornal; comércio onde podem ser feitas
compras; os personagens utilizam uma linguagem contemporânea, com variação coloquial e
apresentam um comportamento que se identifica com uma sociedade de classe média. LFV
“enforma” seus personagens em função do contexto social, identificado como um dos fatores
responsável pelas atitudes e falas. Entre a relação que se estabelece no excedente de visão do
marido em relação à esposa, percebe-se que ele a como alguém que desconhece uma realidade
econômica óbvia. Já o excedente de visão da esposa em relação ao marido é pouco revelador, pois é
agravado pelo fato de que o grau de consciência dela, o acabamento de sua atividade mental é
proporcional ao seu grau de orientação social. Seu horizonte ideacional, na pequena temporalidade,
vem de uma cultura em que a mulher é “do lar”, não demonstra preocupação real quanto ao futuro,
apenas percebe uma mudança na economia que, devido à sua ignorância dos problemas
econômicos, não vai afetar a sua família substancialmente.
O fato que acarreta a motivação do diálogo surge da tomada de consciência da esposa,
em resposta ao aumento dos preços das mercadorias do mercado. Seu desagrado interior resulta na
expressão ideológica que organiza sua fala com o marido. A autoconsciência faz emergir diferentes
objetos lingüísticos, aos quais dirige sua expressão - esses, preços, pobre, viver. Conforme a
posição volitivo-emocional do interlocutor, daí resulta uma negociação de índices axiológicos
diferentes, que serão analisados na categoria logo a seguir.
5.1.2 Categoria de índice social de valor
A troca verbal que se estabelece entre os interlocutores acontece com dois turnos de fala
para a esposa e um turno de fala para o marido, na forma como segue:
(esposa) - Esses preços...
(esposa) - Eu não sei como é que pobre vive
(marido) - Breve saberemos
A partir do horizonte social, definido anteriormente pela situação extralingüística,
através da categoria exotópica, podem-se conferir os índices verbo-axiológico negociados por cada
falante ou por cada centro de valor, e, por conseqüência, o índice social de valor da palavra
estabelecido nas relações dialógicas, avaliando-se o seu sentido no momento enunciativo concreto.
Toda a palavra é, antes de tudo, uma resposta a uma palavra anterior. No evento de
atualização do enunciado, intensifica-se a dialogicidade interna da palavra, na medida em que os
signos carregam índices sociais e ativam certas memórias entre discursos, sentidos entre relações
dialógicas. “Esses preços...” emerge do centro de valor da esposa em resposta a uma idéia anterior
de que os preços estiveram acessíveis. A palavra se dirige tanto para o centro de valor do objeto
em si, quanto para o centro de valor do interlocutor. A descoberta da dialogicidade externa da
palavra “preços”, em relação ao objeto, também ponto de encontro prévio de diferentes valores,
aqui, se estabelece somente circunscrevendo mercadorias que podem ser compradas no mercado, ou
seja, o discurso é orientado diretamente para alguns objetos, como se ela afirmasse: “os preços das
mercadorias do mercado estão caros”. A dialogicidade externa estabelecida, em função de ser o
marido, e não outro o interlocutor, busca a adesão para a idéia de que os preços estão caros.
A posição volitivo-emocional dela prevê que o outroseu marido - aquele que regula a
sua fala, em conformidade com seu horizonte social, apresenta concordância com o índice social de
valor da expressão “Esses preços...”. Isso fica evidente pelo fato de a esposa não esperar dele uma
resposta: “Quais preços?” “De que produtos você fala?” “Onde você foi?”. Ela continuidade,
fazendo apenas uma pausa, a outro turno de fala, da forma como segue: “Eu não sei como é que
pobre vive” e, somente nesta frase, espera por uma resposta ativa dele, estabelecendo o “limite”
dialógico a partir da possibilidade de resposta.
Em relação a este momento verbal “Esses preços...” não há, em um primeiro momento, a
intenção de completar a frase, já que o grau de acabamento, que forma à atividade verbal, está
relacionado à sua orientação social mais imediata. Não há preocupação da personagem feminina
com uma resposta vinda do marido; o uso de reticências estabelece valores que não são enunciados
lingüisticamente, valores presumíveis, mas suporte para a situação enunciativa. Sustenta-se a idéia
de que os preços estão caros, sem que para isso seja necessário explicitar no enunciado, quanto se
gastou ou o que foi comprado. São valores aceitos pelo receptor, que não interrompe a enunciação
por ter concordância com o valor orientado pela palavra “preços”. O sentido assumido pela
expressão, conforme a vivência e as crenças que orientam o horizonte social dela, reflete uma
apreciação negativa para o valor das mercadorias e, também, uma orientação social de indignação,
desagrado, acentuando a palavra com uma idéia de desabafo, pois faz se depara freqüentemente
com a alta de preços. O marido compartilha a idéia de os preços das mercadorias estão caros.
Assim, o sentido negociado para a palavra “preços”, na arena em que se constituem os diálogos, é
de aparente concordância: preços altos demais. Esse sentido de tão repetido, nas vezes em que vai
ao mercado, assume quase uma função fática, de contato. Dizer “Esses preços”, aqui valeria dizer
“Oi, cheguei...”. Como ele nem olha para ela, continua “Eu não sei como é que pobre vive.Ao
dizer isso, também não pretende instaurar diálogo sobre o assunto, a fim de ficar sabendo como
“pobre vive”. A função de manter contato é que determina sua fala.
Em uma análise do emprego do pronome utilizado na frase “Estes preços”, é possível
afirmar que o emprego do pronome “Estes” conduz a uma aproximação com o valor dos produtos
comprados no mercado, ao mesmo tempo em que deixa em aberto o referente pretendido para a
frase, que tanto poderia se referir ao preço exclusivo dos produtos adquiridos, quanto aos preços das
mercadorias em geral. Sabe-se que a linguagem coloquial usa tanto o este quanto o esse, para se
referir ao que está próximo ou distante. Apesar disso, partindo-se dos valores refletidos pelo
excedente de visão, característica da exotopia textual, a personagem revela seu desagrado em
relação a qualquer produto do mercado. “Estes” reflete, portanto, um sentido de “todos os produtos
do mercado”. Do mesmo modo, essa palavra busca adesão com o centro de valor dele. Assim, a
dialogicidade externa apresenta a mesma referência “as mercadorias em geral”.
Quando a esposa afirma “Eu não sei como é que pobre vive” traz para a situação
enunciativa uma nova gama de valores que pressupõe outras negociações verbo-axiológicas,
reveladoras de valores ideológicos vivenciados dialogicamente de modo diferente, marcados pelo
sentido que cada centro de valor para as expressões, pobre” e “viver”. A seqüência parte,
também, do centro de valor da esposa. A personagem se coloca como responsável direta pelo seu
discurso, projetando na enunciação uma posição verbo-axiológica a ser compreendida, em um
primeiro momento, conforme a seguinte apreciação: “há pobres no mundo”, “pobres não podem
comprar”, “pobres não têm condições financeiras”, “como é que os pobres conseguem viver se não
têm dinheiro”, “eu não entendo como é os pobres podem viver se não têm dinheiro, e os preços das
mercadorias estão caros”.
A diretriz volitivo-emocional dela acarreta para o sentido da palavra “pobre” uma
realidade distante de suas vivências diárias, um mundo com o qual ela não se identifica. Para o
marido, sua diretriz volitivo-emocional revela um sentido de aproximação, conivência, aceitação,
empatia com a classe pobre, crença de uma vivência concreta com essa classe. Para ela, a
dialogicidade externa em relação ao objeto lingüístico “pobre” traz o sentido de “aquelas pessoas
não têm dinheiro para comprar”, “eles”, situados em um horizonte distante do seu; para ele, a
dialogicidade externa vem com o sentido de “aqueles que nós vamos nos tornar em breve”, “nós”.
Ou seja, o grau de firmeza ideológica dela, orientado para a palavra “pobre”, reflete um
sentido de “coitado”, “uma classe social distante da dela”, “sofredores”, “milagreiros”. A diretriz
volitivo-emocional dela conduz a uma incompreensão de como os pobres vivem ou como fazem
para se manter, fazer compras. De acordo com o centro de valor dela, a idéia de outro estrato social
se localiza distante de sua realidade. No entanto, mesmo se colocando distante, a personagem
compreende, identifica-se de certa forma com eles, pois percebe uma afinidade decorrente do
aumento dos preços das mercadorias – mas, definitivamente, não se considera da classe pobre.
A dialogicidade externa da palavra “viver” para ela traz um sentido marcado pelo
consumismo, no qual os valores para se poder “viver” refletem a idéia de “ter dinheiro para
comprar”. Na concepção de mundo dele, assume um valor diferente; “viver” implica “conseguir se
sustentar”, com a crise econômica que ele prevê; “viver” é, portanto, “sobreviver”. São dois pontos
de vista diferentes, que se dirigem a um mesmo objeto, cada qual com uma posição definida em
função de sua orientação social.
Para o entendimento da diferença de sentido, percebida através da diretriz volitivo-
emocional individual dos personagens, no que diz respeito às palavras “pobre” e “viver”, considera-
se a consciência comparativa de cada personagem, a relação que estabelecem com o corpo social,
pois isso é determinante para a compreensão, e totalmente diferente para cada um. A
autoconsciência presente no horizonte social da esposa é bem clara, tem em mente um corpo social
com o qual se identifica: uma classe social econômica que pode comprar, apesar do aumento de
preços. A autoconsciência do marido se identifica com um corpo social preocupado com a alta dos
preços e com o rumo da política econômica, sujeita a uma conseqüente mudança, dependendo dos
rumos da economia do país.
Por outro lado, partindo-se do horizonte social do marido, pré-estabelecido pelas
categorias anteriores, seu centro de valor o projeta, no enunciado, como leitor de jornal, conhecedor
dos problemas econômicos, ciente de que a situação econômica do país tende a piorar. E isso pode
levar a sua família a pertencer à classe pobre. Ou seja, o sentido negociado por ele leva à
compreensão de uma aproximação real com essa realidade.
Como não se pode jamais isolar a comunicação verbal da comunicação global em
perpétua evolução, a resposta do marido “Breve saberemos” relaciona o vínculo concreto da
situação imediata ao contexto social mais amplo, isto é, no quadro das relações sociais mais amplas.
O centro de valor dele empurra o diálogo de encontro à palavra do outro, entendido como o meio
social em que os personagens convivem.
“Breve saberemos”, parte do centro de valor dele, e nega a afirmação feita pelo centro
de valor dela. “Breve saberemos”, abre um devir à compreensão a mudança que irá se operar na
família, em virtude do centro de valores dele perceber as mudanças significativas que poderão
acontecer na economia familiar. Confirma-se que a linguagem sempre responde a algo e prevê uma
futura resposta – ativa ou passiva.
Para completar a análise desta tira, é possível resumir que, neste diálogo entre marido e
mulher, negociam-se diversos valores, de acordo com as posições ideológicas de cada centro de
valor:
- preços: índice social de valor de negativo para os dois personagens: diretriz volitivo-
emocional de contrariedade, indignação;
- pobre: ela é consciente da existência de uma classe social que sofre com os problemas
econômicos, no entanto, enxerga, essa classe social, em um horizonte ideacional distante do seu.
Em sua visão de mundo, seu espaço social não é o mesmo espaço social de pobres. Ele também é
consciente dessa classe social, mas vê-se na iminência de passar para a vivência dessa classe social,
ou seja, entrar em conformidade com a classe social pobre.
- viver: para ela, viver se firma a partir do poder aquisitivo, do poder de compra, do ter
dinheiro. Para ele, viver significa sobreviver, assim como a classe pobre o faz.
5.2 Tira 2 – Interlocuções entre a filha e seu pai
5.2.1 Compreensão extralingüística - categoria exotópica
A descrição do contexto social imediato, definidor do momento lingüístico, é de
natureza familiar. Os personagens da interação verbal são pai e filha, portanto a relação dialógica se
estabelece entre dois centros de valor, que possuem entre si um conhecimento prévio íntimo,
relacionado à convivência dentro do lar. Ambos conhecem seus modos de agir, suas manias, o
“gênio” propriamente dito, mas sua natureza social é individual e complexa e pré-determinada pelo
horizonte social de cada um. Por ser uma enunciação de natureza familiar, uma característica
extralingüística fundamental que norteia a organização verbal: os dois indivíduos pai e filha -
apresentam uma diferença de idade e, conseqüentemente, horizontes sociais de gerações diferentes.
O pai exerce, pela natureza da relação entre pais e filhos, uma hierarquia de conhecimentos e
vivências superiores, em determinados assuntos. Ela é jovem, pode-se dizer inexperiente, em
relação ao conhecimento de mundo dele.
O centro de valor dos personagens se estabelece em função do contexto social mais
imediato, do interlocutor real mais próximo e em função de um horizonte social mais amplo, tanto
em relação ao papel ocupado por cada um na família filha e pai - como em relação ao seu papel
na sociedade – uma jovem e um homem. Percebe-se, na leitura da tira, uma característica da
educação dos jovens em geral: a jovem é quem se posiciona e argumenta com seu pai. Sua atitude-
ação se revela sem nenhuma formalidade, chamando o pai por você tratamento que se define em
função da contemporaneidade cultural, o que significa a priori que a relação é de quase igualdade
de expressão, pois atualmente as relações hierárquicas deixam de ser hierárquicas, são entre pessoas
e não entre “status” na família, acontecendo com um diálogo aberto.
A filha caracteriza-se picturialmente pelo uso de cabelos longos e desgrenhados. A
característica de “enformação” da personagem remete a alguém rebelde, contrário aos valores da
classe média ou média alta, ou seja, aos valores econômicos de sua própria família. Em relação ao
contexto social mais amplo, o centro de valor dela se organiza de modo diferente do centro de valor
dele. Sua orientação se determina em consonância com a atitude de jovens de sua idade. Isso
denuncia, de forma bastante clara, uma característica dos jovens em geral: a atitude-ação de
rebeldia em relação a situações que envolvem as relações familiares do cotidiano. Por esse
caminho, a relação, que se estabelece entre pai e filha, deve ser vista de forma especial, pois revela
um confronto característico de gerações. Nem sempre os pais têm consciência do horizonte
ideológico com os quais os filhos se identificam, nem têm consciência dos valores que formam suas
aspirações. Portanto, há, nesse horizonte identidário, um desconhecimento natural por parte do pai.
Saber o que um jovem pensa, em que valores acredita, nem sempre é uma tarefa fácil. Mesmo numa
relação íntima, como a que ocorre entre dois centros de valor tão próximos, mas tão diferentes
culturalmente, a comunicação verbal implica conflitos, relações de dominações, de resistência ou de
adaptações.
O horizonte ideológico dele, de acordo com seu horizonte social mais imediato,
identifica-se com homens, pais de família, com experiências de vida, preocupados com o futuro dos
filhos. Ele tem como horizonte social de identificação grupos quem mantêm diálogo com seus
filhos. Nesse sentido, aceita a modernidade própria da idade dela, confirmada pela aceitação da
atitude-ação de abordá-lo com uma pergunta sem rodeios. Em função do contexto social mais
amplo, a atitude-ação dele reafirma a característica do personagem. Veste terno e gravata. Esse traje
remete à situação social em que este interlocutor está englobado, ou seja, pertence a uma sociedade
classe média ou média alta, indo ao encontro dos valores próprios de profissionais que ocupam um
bom posto de serviço, bem sucedidos, leitores e, portanto, homens conscientes de seu papel na
sociedade, com uma posição econômica de respeitabilidade. No entanto, a atitude-ação de usar
terno e gravata não implica a mesma respeitabilidade dentro do ambiente familiar. Essa posição de
respeitabilidade, característica do ambiente profissional, não é levada em conta no contexto
familiar, o que se comprova pela relação que se estabelece entre filha e pai. De forma oposta ao
esperado pelo pai, o excedente de visão da filha, em relação ao “status” que seu pai tem na
sociedade, faz com que ela se coloque em uma posição antagônica. Isso se deve ao fato de o pai se
identificar com valores ideológicos contrários aos de seu centro de valores, num enfrentamento
característico de gerações. Salienta-se que o que influencia as relações em contexto familiar é o
contexto mais imediato, portanto, o conhecimento prévio do outro, para depois estabelecer um
vínculo com o papel ocupado na sociedade.
Considerando o excedente de visão do pai (ver aquilo que sua filha não pode ver em si
mesma) a atitude-ação dela provoca nele uma mudança de comportamento, que o faz mudar seu
discurso, suas convicções. Ou seja, o outro, no caso a filha, como interlocutora, em sua relação de
dominação, leva o pai a suavizar um discurso, a uma mudança de valores, em virtude do elo
estabelecido entre eles, evidenciando a idéia de que o outro regula nossa fala, conforme mostrara
Bakhtin.
Para a categoria exotópica, deve-se considerar a leitura em sua relação de
responsividade frente à sociedade nesta época e em relação a épocas passadas. Os personagens
respondem claramente a um cronotopos anterior. A decepção da filha, por pertencer à burguesia,
pode, por exemplo, contrapor períodos da história em que as filhas deviam casar com alguém que
tivesse bens, ou seja, da classe burguesa. Mas isso as faria infelizes pela obrigatoriedade da relação.
Essa situação cultural do passado representava o “status”, adquirido pelo casamento que os pais
almejavam para as filhas, apesar de que muitas vezes elas vivessem infelizes. Como contraposição
à classe burguesa, o centro de valor dela contraria costumes relacionados com a ideologia e
costumes dessa classe. Ou seja, torna-se aí importante esclarecer a questão do homem histórico real.
A jovem assume um aspecto de resistência à ideologia de uma classe social definida a burguesia.
Assim, fica definido um outro horizonte social com o qual têm afinidade, indivíduos que não se
importam com ter dinheiro. A filha é muito jovem para ter a necessária compreensão do mundo,
pode-se apenas configurá-la como prototípica adolescente, rebelando-se contra sua inserção social.
Contribui para essa afirmação o acabamento picturial da personagem. Sua expressão não contradiz
suas convicções, mas traz à tona a questão do horizonte social dela, ligado à rebeldia característica
da idade.
A posição dele, como homem histórico real na sociedade, se estabelece, a partir da
informalidade do diálogo entre pai e filha. Ou seja, a forma direta como a filha indaga seu pai
evidencia um antagonismo com o homem histórico nesse tempo, dialogando com épocas passadas,
em que as filhas, ou as mulheres, de forma mais geral, não podiam manifestar suas opiniões. Nem
mesmo se ousava retrucar a autoridade paterna. Ele, em relação à grande temporalidade, mantém
dialogicidade com uma educação rígida de épocas passadas. Esse fato do passado deixa entrever um
momento contemporâneo da educação dos pais, em que os filhos, como se disse, vão “enfrentar”
os pais em qualquer situação. Em relação ao acabamento, o pai é enformado como alguém que sabe
de sua real situação social econômica, no entanto, para não arranjar briga com a filha, responde o
que acredita que vai agradá-la. Busca, com essa atitude-ação, amenizar o conflito de gerações que
se estabelece a partir do ponto de vista dela. Possivelmente, devido ao conhecimento prévio de que
dispõe, prefere não contrapor a opinião da jovem.
Resumindo, LFV coloca a personagem filha em situação de dominação, com relação ao
pai, que tenta mudar seu discurso em função das crenças da filha. A busca de adaptação aos valores
da filha, e não o contrário reflete relações hierárquicas da contemporaneidade, os valores da família,
sendo conduzidos pelos valores dos filhos, e não dos pais. Essa intimidação do pai decorre de uma
educação liberal. É dado à filha espaço de manifestação de igual para igual, numa família
constituída pelas relações entre pessoas, e não pelas relações de poder, oriundas do “status” de cada
um.
A motivação desse diálogo vem da tomada de consciência da filha de ser ou não
pertencente à classe burguesa. A dúvida surge decorrente de sua consciência ideológica para com
a classe burguesa, certamente advindas das semelhanças ou diferenças que encontra na vivência de
sua família, em comparação com essa classe.
5.2.2 Compreensão lingüística - categoria de índice social de valor
A troca verbal se estabelece com três turnos de fala para a filha e dois turnos de fala para
o pai:
(filha) - Pai, nós somos burguesia?
(pai) - Somos, minha filha
(filha) - Putz!
(pai) - Um pouco decadente, mas...
(filha) – Não adianta querer me agradar!
Em decorrência da situação extra-lingüística e do horizonte social e ideológico de cada
personagem, é possível definir os índices sociais de valores transmitidos na fala de cada um dos
personagens. A situação interacional se define em decorrência de ser a filha que conduz o diálogo.
Essa constatação ajuda a organizar a perspectiva de análise para a negociação dos valores verbo-
axiológico que se fará a seguir. Os dois personagens têm conhecimento lógico acerca do que é ser
burguês, pois, em nenhum momento, se discutiu o valor dessa palavra. Mas fica absolutamente
claro, na arena em que se constitui a linguagem, que cada personagem confere à palavra um acento
apreciativo diferente.
Esse momento verbal atualiza uma instância dialógica complexa de expressão social,
através da palavra “burguesia”. A pergunta “Pai, nós somos burguesia?”, feita pelo centro de valor
da filha, estabelece uma orientação dialógica externa, tanto para o objeto lingüístico quanto para o
interlocutor. Em relação à orientação para o objeto, pela leitura da categoria de exotopia textual, é
possível afirmar que a filha assume para essa expressão um conceito contrário à ideologia do pai.
Ser burguês, conforme o horizonte social de identificação da jovem é, possivelmente, ser rico, ter
poder de compra, ser “patrícia”, ser fútil. Então, ser burguês contraria os valores dos jovens para os
quais “ser burguês” é estar de acordo com o sistema, ser burguês é ser careta etc., contribuindo para
uma vivência social da qual ela discorda. Mesmo havendo entre filha e pai intimidade e
conhecimento prévio, ele desconhece a verdadeira diretriz volitivo-emocional que configura o
sentido desta palavra no horizonte social dela..
A orientação dialógica dessa palavra para o centro de valor dele busca a adesão da
negação do “ser burguês”. No entanto, na resposta do pai “Somos, minha filha”, o centro de valor
dele, em conformidade com o seu horizonte social, de acordo com seu conhecimento de mundo e
vivências, a dialogicidade externa da palavra burguesia apresenta um sentido positivo. Suas crenças
são de concordância com os diversos valores que a ideologia burguesa organiza no cotidiano das
pessoas. Como esses são os valores vivenciados pela família, acredita que ela quer viver como um
burguês vive. Ao responder, tem em mente que a filha considera positivamente a classe burguesa e
que, portanto, esta resposta deve concordar com os valores dela. na verdade, até este momento
verbal, dois juízos de valor contrários para o sentido de “burguesia”, reflexo da arena em que se
constituem os diálogos, traço característico do plurilingüismo do signo, constitutivamente habitado
por diferentes discursos.
No enunciado seguinte, partindo do centro de valor dela, a expressão “Putz!” traz uma
entonação de desagrado, decepção. Essa interjeição manifesta a emoção interior, que, após a
tomada de consciência, se expressa ideologicamente. Devido ao traço pluringüístico que se
estabelece, inicialmente em relação à palavra “burguesia”, essa expressão vem carregada de
ambigüidade: pode estar refletindo o desagrado dela em relação a ser burguesa, com também pode
refletir uma diretriz volitivo-emocional de desagrado, decepção em relação à postura do pai ao se
assumir burguês. Dito de outro modo, a expressão da filha determina uma diretriz volitivo-
emocional de inconformismo, indignação e desagrado, à sua crença em relação aos valores das
pessoas burguesas, podendo seu inconformismo dirigir-se a um grupo social, ou à própria figura do
pai. Mas o interessante é que, na luta de sentidos, o pai até então não percebera o valor negativo que
a filha atribuíra a essa classe. O grau de consciência e de clareza da atividade mental dela era
desconhecido pelo pai.
Durante todo o diálogo, o pai compreende a diretriz volitivo-emocional dessa expressão
“Putz”, de acordo com os seus valores. De acordo com a sua perspectiva, ele conduz a compreensão
do enunciado pelo valor que essa expressão tem em sua própria ideologia. Ou seja, ele acredita que
a filha quer ser burguesa, mas se decepciona por se constatar uma burguesa com problemas
financeiros. Assim, no horizonte social que norteia os pensamentos do pai, primeiramente ele
entende a indignação da filha da seguinte forma: “... se somos burguesia, que vida de pobre
levamos...”, “... se isto é ser burguesia, eu estava completamente enganada...”, “... se ser burguês é
viver como nós vivemos, então...que decepção...”. A dialogicidade externa e a entonação expressiva
da palavra “putz” oportunizam a percepção da negociação de valores que se estabelece na
linguagem, momento em que cada pessoa individualmente confere um sentido à palavra, de acordo
com o seu horizonte social. Até então, não houve uma compreensão ideológica adequada para os
sentidos refletidos nas palavras da filha.
Na fala seguinte, “Um pouco decadente”, o pai ainda não se deu conta do valor verbo-
axiológico da palavra “burguês”, nem da expressão “putz”, credenciado pela filha. O pai acredita
que a filha está desapontada por ser uma burguesa “pobre”. Ao se perceber exagerado em sua
convicção, refaz seu discurso, dando uma outra entonação ao sentido de burguês, além de pretender
uma adesão às idéias da filha. Com isso, o centro de valor dele busca amenizar o valor positivo,
exagerado, imprimido à idéia de “burguesia”. Reavalia a economia da família, seu modo de vida,
que não se configura propriamente com a vivência burguesa. Conforme a diretriz volitivo-
emocional dele, ser burguês significa uma vida despreocupada com relação a problemas
financeiros, portanto economicamente estável Assim, o pai apresenta, inicialmente, como horizonte
ideacional a classe burguesa, mas devido aos problemas políticos, sociais, econômicos, hoje, é um
burguês decadente. Até este momento enunciativo, cada centro de valores entende de modo
particular os sentidos enunciados pelo outro; cada qual mantém uma posição volitivo-emocional
oposta ao outro, cada um reflete índices sociais diferentes, de acordo com sua inserção no mundo.
Na seqüência de fala, a filha contra-argumenta “Não adianta querer me agradar”.
Somente neste momento, através da expressão “agradar”, os valores verbo-axiológicos da situação
enunciativa, como um todo, são compreendidos pelo centro de valor dele. Essa palavra desencadeia
toda a posição inicial do centro de valor dela. O pai recupera a idéia de que “burguesia” para a filha
representa valores de uma classe social com os quais ela não compactua. “Putz”, na verdade,
recupera a idéia de “que azar”, “que droga”, “não é possível ser burguesa”. Todo o conflito de
sentidos negociado, todas as resposta do pai à sua filha, giravam em torno de sua compreensão, na
dimensão dialógica da palavra burguesia”. Somente no momento em que se estabeleceu a
dimensão de valor que ela dava à expressão, é que foi possível desfazer o plurilingüísmo do
momento enunciativo. A descoberta da dialogicidade para o objeto referencial tem de ser
identificada pelos centros de valor, a fim de que não haja ambigüidade nas declarações.
Na mesma linha de reflexões, o fato de a filha acreditar que o pai refez seu discurso para
agradá-la, deixa transparecer uma tendência contemporânea, o fato de os pais fazerem tudo o que os
filhos querem para agradá-los, inclusive mudar seu próprio discurso, para não levantar uma
polêmica dentro da própria família. Em resumo, a palavra negociada por cada centro de valor é a
arena onde se confrontam os valores sociais contraditórios, pois os conflitos da língua refletem os
conflitos de classe, estabelecendo as menores variações entre as relações sociais.
Em resumo, burguesia para ela representa um objeto lingüístico com o qual ela mantém
uma idéia negativa. Para ele, ser burguês faz parte de seu horizonte social e ideológico, identifica
uma classe com a qual tem afinidade e, portanto, tem um valor positivo.
5.3 Tira 3 – Interlocuções entre a filha, a mãe e o pai
5.3.1 Compreensão extralingüística - categoria exotópica
Os personagens do momento verbal - a filha, o pai e a mãe – representam três centros de
valor interagindo, cada qual com uma posição a ser determinada, em relação aos interlocutores
reais. O aspecto relacionado à descrição do contexto social concreto, origina-se de uma prática de
vivências contemporâneas. Do mesmo modo, esse contexto responde a valores de famílias em que a
filha segue os ideais da mulher moderna e assume uma posição de defesa da mãe, a qual sofre as
conseqüências de uma sociedade, em que cabe ao homem prover o sustento da casa e, em
conseqüência disso, mandar em todos que, hierarquicamente, lhe são subordinados. Surge, também,
em decorrência dos valores típicos de homens com uma educação tradicional, em cujas crenças a
mulher deve ficar em casa trabalhando, cuidando dos filhos, sem exercer atividade fora de casa.
A descrição dos personagens, em função da atitude-ação de cada um, é determinada,
antes de tudo, pela situação mais imediata. O contexto implícito que dá forma a esta enunciação é a
residência da família. A filha se encontra ao lado da mãe, defendendo-a e posiciona-se com uma
atitude-ação de repreensão contra o pai. Seu descontentamento surge em resposta ao fato de o pai
não permitir que a mãe trabalhe fora. Mãe e filha se colocam em uma atitude contrária ao centro de
valor dele, cuja concepção ideológica antagoniza com a idéia de a esposa entrar para o mercado de
trabalho. Ambas mantêm uma aparente concordância ideológica, como se compartilhassem do
mesmo horizonte social. No entanto, o grupo social que determina a criação ideológica da filha e o
estabelecimento de seus valores não condiz com o horizonte social da mãe. A diferença de idade
contribui para que as divergências se acentuem, além do estabelecimento do cronotopos cultural em
que cada uma vivenciou sua formação. Percebe-se uma expressão de espanto, por parte do centro de
valor mãe, que se encontra ao lado da filha, assim como por parte do centro de valor do pai, em
relação ao discurso feminista, manifestado pela jovem num “tom” autoritário. Os dois centros de
valor ficam perplexos com o modo autoritário de a filha enfrentar a decisão do pai. Ela demonstra
convicção e conhecimento da causa feminista, enquanto o pai, que está à frente das duas
personagens, é o interlocutor desafiado na discussão.
A imagem picturial da jovem reitera seu discurso e confirma seu centro de valor: uma
jovem de cabelos longos, desgrenhados, rebelde e descontente com a atitude machista do pai. O
centro de valor dela, em um primeiro momento, se organiza de acordo com a ideologia que coloca a
mulher com direitos iguais aos do homem. Conforme suas convicções, a mulher deve trabalhar fora
e ser independente. Somente a filha faz uso da linguagem verbal, fato que revela uma situação de
controle, de resistência à hierarquia instituída, tanto sobre o pai quanto sobre a mãe, pois quem
toma a palavra tem o poder. Sua atitude-ação define seu grau de consciência a respeito do
movimento feminista, reagindo contra a atitude retrógrada dele. Não se mostra interessada em
discutir a situação real, ou em reverter a situação posta, seu discurso parece não admitir réplica. No
entanto, na última cena da tira, demonstra uma atitude-ação completamente contraditória ao
discurso realizado, o que caracteriza a jovem como demagoga. Esta incoerência é característica de
um horizonte social em concordância com jovens “filhinhos” de papai e mamãe, criados dispondo
de tudo, pedindo tudo o que querem, sem compromissos com as tarefas caseiras e, principalmente,
conseguindo aquilo que desejam, mas incapazes de fazer nada de forma independente. Sua atitude-
ação reflete o relacionamento de domínio afetivo que mantém em casa com sua mãe, responsável
por todas as tarefas, inclusive as que caberiam a ela, filha.
A autoconsciência do centro de valor da mãe se define proporcionalmente ao seu grau
de orientação social. Em resposta a este evento, primeiramente, deixa-se conduzir pelo marido,
pois, se, até então, não trabalhava fora, significa que suas idéias entravam em concordância com as
do marido. Por outro lado, é governada pelas idéias da filha aceita que a filha interceda em seu
favor, contrariando as determinações do marido. Ou seja, seu grau de consciência, de orientação
social, não é auto-determinado. Mostra-se insegura para tomar uma atitude sozinha, característica
própria de indivíduos que não têm autonomia, sempre governados pelos outros. A figura picturial
da mãe se apresenta em conformidade com suas atitudes-ações: alguém submisso, sem voz própria,
todo o tempo calada. Para a categoria de acabamento, a mãe representa um centro de valores com
consciência ideológica em mudança, conduzida pelos ideais dos outros, e desorientada, sem saber o
que fazer. Seu horizonte social mais amplo nada tem em comum com o horizonte social que
assegura as convicções da filha. A vivência da mãe, de outra geração, não condiz com as questões
ideológicas que a filha considera importantes liberdade da mulher. Além disso, não percebe a
incoerência nas atitudes-ações da filha, deixando-se seduzir, ideologicamente, pelo horizonte social
dela, em oposição ao horizonte social do marido.
A descrição do centro de valor do pai corresponde a uma geração em que o horizonte
social mais imediato remete aos pais da atualidade, surpresos com a revolta da filha adolescente e
com as questões feministas que permeiam o ideal das jovens. Ele parece intimidado pela posição
assumida pela filha, tanto em palavras quanto em gestos. Seu centro de valor, na hierarquia familiar
tradicional, representa a figura de maior respeito, e a mãe deveria ocupar uma posição ao lado do
marido na educação dos filhos. A filha não deveria se sobrepor à autoridade do pai. No entanto, em
nem um momento, o pai se manifesta verbalmente, o que caracteriza inicialmente a inversão de
valores familiares: somente a filha se constitui como falante, para se posicionar ideologicamente,
posicionando também o pai e a mãe, aos quais seu enunciado responde.
A questão do cronotopo, relacionada aos três centros de valor, em um contexto social
mais amplo, responde a uma cultura que opõe a liberdade da filha em relação à autoridade do pai.
As jovens não discutiam com os pais e, se questionavam suas decisões, faziam-no de forma
respeitosa. Essa leitura corresponde a uma inversão profunda na hierarquia familiar. O evento
dialoga com épocas históricas em que a mulher não podia trabalhar fora, ou melhor, nem se
cogitava a possibilidade de as mulheres serem independentes economicamente. As mães é que
normalmente tomavam a defesa das filhas contra atitudes opressivas dos pais.
O pai é “enformado” como alguém que toma as decisões em relação às atividades de sua
esposa, ou seja, exerce uma atitude-ação de autoridade de marido sobre a mulher, o que denuncia
uma educação opressora e machista. Mas está perplexo com as colocações que a filha faz. Ao
mesmo tempo, com ênfase na inversão de valores da contemporaneidade, não consegue se defender
das acusações que recebe. Seu centro de valor contrapõe o centro de valor da filha, mas se
submetido ao seu papel autoritário. Nesse tempo, a expressão denuncia um grande espanto, por dois
fatores: primeiramente, com relação à atitude feminista, e em segundo, pela incoerência que
identifica entre a atitude-ação de falar e a atitude de agir dela. Com esse envolvimento pode-se
estabelecer uma leitura cronotópica em relação ao ato-ação do pai: esse personagem contemporâneo
em relação ao homem histórico real carrega consigo as marcas de uma educação tradicional, mas
sofre as conseqüências da educação livre de opressões com relação às atitudes da filha.
LFV, na última fala da personagem filha, revela a contradição ideológica da jovem. Ela
não tem a necessária noção de seu acabamento, acha-se cheia de razão, feminista e boa filha, não se
percebe como alguém medíocre, que explora a posição da mãe, que fala uma coisa e age de forma
diferente. Acredita-se defensora do papel da mulher da sociedade - filha dedicada - defensora dos
problemas de sua mãe. A incoerência da enunciação se encontra em apresentar um horizonte social
que confirma a idéia de independência feminina. No entanto, no último quadro, faz uma série de
pedidos domésticos para a mãe executar, que são contrários à posição anteriormente assumida, de
uma mulher independente. Assume, neste momento, a relação que seu centro de valor estabelece
com a mãe, aquela que é responsável pelos afazeres domésticos, que sempre organizou as coisas de
todos em casa.
Ou seja, a filha, em seu horizonte social mais amplo, traz consigo uma ideologia de
mulher independente, mas, num contexto social mais imediato, no caso sua relação com a família,
seu horizonte social se firma a partir da dependência à mãe, inclusive demonstrando abuso em
relação às tarefas que pede para ela executar. É dentro deste centro organizador das relações que se
estabelece a enunciação da tira, a ser analisada, logo a seguir, em seu aspecto de índice social de
valor.
5.3.2 Compreensão lingüística - categoria de índice social de valor
Todas as falas deste enunciado vêm de um único centro de valor: o da filha. No entanto,
mesmo não havendo explicitação verbal por parte dos outros dois personagens, há um contexto de
valores implícitos, não enunciados lingüisticamente, que conduzem à compreensão do todo
evêntico e dos valores negociados pelos personagens.
São quatro os turnos de fala da filha:
(filha) – Por que a mãe não pode ter um emprego? Por quê?
(filha) – REPRESSOR!
(filha) – Vamos mãe
(filha) Enquanto você costura o meu vestido, prepara o meu nescau e banho no
nenê, a gente conversa
É importante esclarecer que os três centros de valor encontram respostas diferentes de
atitude-ação verbal de acordo com o interlocutor. Emerge nessa relação um vínculo entre marido e
mulher, uma relação entre mãe e filha e uma relação entre pai e filha. E, somente na intersecção dos
diferentes centros de valor é que se pode compreender o momento verbal. Assim, os laços de
família, o grau de intimidade e de conhecimento que os personagens têm entre si, e o ambiente onde
se passa a interação são determinantes para as escolhas verbais.
Apesar de haver identidade gica e, conseqüentemente, relações dialógicas em
decorrência do contexto social mais imediato e do contexto social mais amplo, os valores verbo-
axiológicos expressos nessa tira partem de um único centro de valor – o da filha.
A primeira frase “Por que a mãe não pode ter um emprego? Por quê?” se origina da
consciência da filha para o fato de o pai não permitir que a esposa trabalhe. A diretriz volitivo-
emocional da filha se produz dentro de um aspecto de cobrança comportamental e ideológica para
com a atitude do pai. O sentido da palavra “emprego” no enunciado dela vem como um valor
positivo, que eleva a posição da mulher, que a torna independente, moderna. Aliás, em decorrência
de toda a situação extra-lingüística, pode-se pensar que o dialogismo externo refletido pela
expressão emprego” vem ao encontro de um ideal social mulheres m de trabalhar fora. Mas,
apesar de a filha questionar a posição do pai, a diretriz volitivo-emocional da filha é buscar não
uma resposta, mas se mostrar principalmente contrária, indignada com a posição do pai. Seu
questionamento se define em oposição à ideologia do pai.
O enunciado seguinte, sem margem de resposta ao interlocutor, se através do
dialogismo interno da expressão “repressor”. No discurso da filha, esta palavra vem carregada de
uma tonalidade feminista, acusatória, imperdoável, de indignação. O sentido volitivo-emocional
dessa expressão deixa transparecer o desagrado da filha com relação à postura machista do pai.
Com certeza, o aspecto da expressão enunciada se deve ao fato de ser o pai o interlocutor, e não
outro. A ressonância dessa expressão atinge o centro de valor do pai com tanta força, que LFV faz
com que seu personagem desapareça do quadro.
Para essas duas seqüências de fala, o pai se mantém mudo. Mas, de acordo com o
desenvolvimento do texto, esse silêncio pode ser compreendido como uma forma de aceitação para
a negociação do valor indiciado pela filha para a palavra “emprego”. Do mesmo modo, o pai fica
em silêncio após o tom alto da expressão proferida pela filha - “repressor”. Este silêncio por parte
do pai pode ser compreendido como constrangimento, vergonha, ou mesmo suspensão da fala pelo
inesperado da situação.
A expressão, “vamos mãe”, vem carregada de uma diretriz volitivo-emocional que,
traduzida de acordo com o horizonte social da filha, reflete uma atitude de resignação, dever
cumprido: “nada mais há para fazer”, “deixa pra lá”, “com ele não dá falar”, “eu te apóio, mãe” etc.
A expressão que se revela esclarecedora do horizonte social da filha e dos valores
sociais, realmente praticados por ela, confirma-se na fala do último quadrinho “Enquanto você
costura o meu vestido, prepara o meu nescau e banho no nenê, a gente conversa”. Nesse
momento se percebe que as atitudes morais da filha não combinam com as suas ações. Suas
convicções sobre a mulher no mercado de trabalho são apenas demagógicas. Na verdade se mistura
nesta fala a contradição entre o agir e o pensar dos jovens. Todo esse discurso acoberta uma
“filhinha de papai”, não acostumada a trabalhar e incoerente. Duas são as diretrizes volitivo-
emocionais que conduzem à leitura deste último quadro. Primeiro, a filha retoma a sua postura de
protetora da mãe, conferindo ao seu discurso uma forma de apoio às atividades da mãe, um apoio à
sua situação de mulher do lar. Para essa leitura, os valores axiológicos, no enunciado, são voltados
para a compreensão da relação entre mãe e filha. Por outro lado, percebe-se a incoerência da atitude
da filha. Quando se posiciona como mulher e assume um discurso feminista, recrimina o trabalho
caseiro de forma implícita; e, quando assume o discurso de filha, contradiz seu discurso feminista e
confirma a atitude machista do pai.
Na última frase, toda a fala da filha tem o aceite da mãe, que não questiona nada do que
a filha cita: costurar, preparar o nescau, dar banho no neto, são orientações de sentido dialógico
para diversos objetos lingüísticos, aceitos como atividades normais. A seqüência de frases se inicia
pelas ações, que a mãe deve executar, para só depois aparecer o apoio da filha, através da expressão
“a gente conversa”. Com essa organização das frases no texto, pode-se perceber que o tópico
principal da diretriz volitivo-emocional da filha são as tarefas que a mãe deve executar em seu
lugar, ou seja, a filha, ideologicamente feminista frente a um contexto social mais amplo, na
prática, no contexto imediato, na relação que estabelece com a e, é uma filha educada dentro do
padrão de comportamento da mãe – dependente desta dentro do lar.
Em resumo, os sentidos que emanam desse acontecimento verbal, podem ser colocados
da seguinte forma:
- emprego: para a filha representa a independência da mulher; para o pai, mulher não
deve trabalhar fora de casa, ter emprego, significa uma atividade desnecessária, as tarefas da mulher
são outras; para a mãe, emprego talvez seja algo bom, talvez não.
- repressor: para a filha representa toda a sua postura ideológica contrária a de seu pai;
para o pai, motivo de vergonha; para a esposa, um susto, não entende por que tanta indignação por
parte da filha.
- costurar, preparar o nescau, dar banho no nenê, conversar: para a filha e para a mãe o
valor dessas expressões evocam sentidos semelhantes, apesar de a vivência de cada uma com
relação a estas tarefas ser diferente. Mas, a aceitação dialógica dessas expressões é de concordância,
são valores que não precisariam ser enunciados, pois são tidos como evidentes entre elas; para o
pai, essas expressões contrapõem todo o discurso anterior da filha, trazem a direção volitivo-
emocional de perplexidade.
5.4 Tira 4 – Interlocuções entre o pai, o filho, a filha e seu namorado, e o neto
5.4.1 Compreensão extralingüística - categoria exotópica
O contexto social concreto, organizador do enunciado verbal, é de natureza familiar. A
interação acontece com a alternância de vários centros de valor: pai, filho, filha, namorado e neto.
A descrição do contexto social é característica de vivências contemporâneas: o filho mais jovem é
estudante e mora na casa dos pais; o pai aceita que a filha resida em sua casa com o marido e o
neto; a filha e o genro devem procurar um emprego para ajudar no sustento da casa; a avó deve
cuidar do neto. A linguagem é expressa de forma direta, própria do grau de intimidade entre os
interlocutores. Esses reflexos permitem afirmar que a família está condicionada a valores de
famílias classe média.
A enunciação dos personagens em função da atitude-ação de cada um é determinada, em
especial, pela situação concreta mais imediata. O pai está colocado à frente dos componentes da
família e, nessa posição, inicia uma fala que denúncia uma postura autoritária, motivada pelo fato
de as férias chegarem ao final. Como o discurso se encontra indissoluvelmente ligado às condições
de produção, e estas às estruturas sociais, esse fato é inquestionável. A partir desse contexto mais
imediato se estabelece a diretriz volitivo-emocional de cada personagem. O pai se coloca no
enunciado com um grau de firmeza ideológica, confirmada através de sua imagem picturial, maior
do que a dos outros, como num primeiro plano, demonstrando uma atitude-ação derivada do seu
lugar nessa hierarquia. Os parceiros da interlocução ouvem apenas. Os julgamentos de valor, que
entram em relações dialógicas, revelam posições, as quais são, em um primeiro momento, de
concordância entre os diferentes interlocutores, à exceção do genro, que se manifesta verbalmente
na última fala do quadro, justamente por discordar dos valores ideológicos do sogro. Quando
manifestações verbais m à tona, indicam as posições axiológicas diferentes e a arena em que a
linguagem constitui. Em nenhum momento os filhos questionam a autoridade do pai, nem o fato de
ele determinar a atitude-ação que cada um deve tomar. Os ideais do pai e os valores da família são
pressupostos da enunciação, valores básicos da família, não necessitando serem enunciados. Por
fim, todos aceitam a autoridade paterna e concordam com uma nova atitude para a retomada da vida
normal, após as férias.
O excedente de visão do pai condiciona o seu ativismo, em função de seu grau de
consciência, estabelecido a partir do horizonte social mais imediato e mais amplo. Dessa forma,
dirige-se a cada um e organiza uma resposta axiológica diferente. Ele mantém, na unicidade do
evento, atitudes-ações verbais conforme o interlocutor. O tratamento diferenciado decorre da
familiaridade compartilhada. Essa atitude-ação é dependente do grau de conhecimento, do tipo de
interlocução, dos interlocutores, do ambiente da interlocução. Se o pai estivesse frente a um grupo
de funcionários, por exemplo, talvez devesse usar o mesmo discurso para todos. Os fatores
exteriores são responsáveis pelas relações verbo-axiológicas que se estabelecem na e pela
linguagem.
A autoconsciência do pai se organiza em conformidade com o horizonte social de um
pai preocupado, responsável pela condução das atividades da família, impondo coerência e
responsabilidade a todos. Com isso, busca orientar a diretriz axiológica dos filhos, que, por serem
jovens e despreocupados, não demonstram responsabilidade pelas atividades do cotidiano. Sua
ideologia encontra adesão no diálogo que trava com o filho menor e com a filha. Eles não
discordam de suas idéias, apesar de se saber uma concordância ideológica, a princípio, aparente,
pois os horizontes sociais entre eles são completamente diferentes. O filho é jovem, pré-
adolescente, organiza seu horizonte social em concordância com os jovens de sua idade. A filha
está casada, tem um filho, mora na casa do pai, organiza sua consciência ideológica a partir de
outro horizonte social, de acordo com a vivência de jovens de sua idade. Note-se a escolha do
parceiro, que nada tem de semelhante com os valores da família. Os filhos não verbalizam os
valores em que acreditam. No entanto, o mesmo não acontece em relação ao genro, que, por não
concordar com os valores do sogro e apresentar um horizonte social diferente, por não pertencer à
família desde o nascimento, não tem o mesmo respeito em relação aos valores seguidos por ele (o
sogro). A criação ideológica do genro se estabelece em conformidade com outro horizonte social.
O excedente de visão do pai em relação aos membros da família, devido ao
conhecimento prévio de que dispõe, permite afirmar, de acordo com a atitude tomada, que os
incapazes de se auto-organizarem. Em relação ao filho, responde à idéia de que por ser pré-
adolescente, deve ser responsável pelos seus estudos; a filha e o marido devem ser responsáveis
pelas suas vidas financeiramente, pois são casados, têm filho. No entanto, o casal se encontra
submetido à autoridade paterna, morando na casa dos pais dela. Se agissem de acordo com a
responsabilidade que um casamento requer, essa reunião envolvendo a eles seria desnecessária. É
preciso salientar que a esposa, um centro de valores fundamental da família, a qual assume diversas
posições em relação aos demais - mãe dos jovens, sogra, avó e esposa - não está presente, porque
este discurso não cabe a ela, que é uma pessoa responsável. Somente foram colocados nessa
situação enunciativa os personagens “enformados” como irresponsáveis, dependentes financeiro e
psicologicamente, do pai. A realização do discurso do pai se manifesta com uma atividade verbal
diferente, em decorrência do outro da interação, e do excedente que ele apresenta em relação a cada
um e a todos. Sua expressão decorre, conseqüentemente, da autoconsciência que apresenta em
relação a esses membros da família.
Em relação ao filho menor, pode-se determinar que, de acordo com o horizonte social,
em consonância com aqueles indivíduos conscientes da importância do estudo, vê na atitude-ação
de estudar a função mais importante para aquele período do filho. Conforme essa ideologia,
organizada a partir de um contexto social mais amplo, sua autoconsciência se estabelece com o de
pais cientes da importância da educação. O menino concorda com essa ideologia, pois seu horizonte
social, em conformidade com os meninos de sua idade, não se organiza a partir do horizonte social
de meninos de rua, por exemplo, meninos que o estudam, nem de meninos trabalhadores. Aceita
a determinação do pai, de acordo com o ambiente no qual vive, com os valores do contexto mais
imediato em que está inserido. Ou seja, o horizonte social do jovem se organiza a partir da
ideologia de meninos que reconhecem a importância de estudar.
O fato de a filha morar na casa dos pais, com seu marido e filho, revela-se um
componente crucial para o estabelecimento do excedente de visão do pai. Confirmam-se costumes
contemporâneos de famílias em que as jovens engravidam, casam ou simplesmente passam a viver
junto e, devido à falta de condições financeiras para se sustentar, acabam morando na casa dos pais.
Essa vivência social aponta os problemas sócio-econômicos da família uma classe média. O pai
sabe que a jovem não tem condições financeiras e nem psicológicas para se manter com o marido e
com o filho. Pela imaturidade da jovem, pelo conhecimento prévio de que dispõe, através de sua
exotopia, permite-se tomar uma atitude enérgica em relação ao seu comportamento
descompromissado, revelado pela escolha do parceiro, e por ter engravidado, contrariando os
princípios de famílias tradicionais, de famílias classe média, pois nenhuma família quer ver sua
filha, jovem, em tempos atuais, engravidar. Em relação a ela, propõe-lhe que vá arrumar um
emprego, pois a vê uma jovem que age de forma liberal, portanto, inclui-a no grupo de jovens
trabalhadoras, e quem sabe, no futuro, independente. O fato de ela ter um bebê demonstra sua
irresponsabilidade, pois engravidar, em tempos atuais, quando não é um ato de ignorância, é
irresponsabilidade. Por outro lado, seu pai aceita o marido / namorado, pai de seu neto, morando em
sua casa. Essa atitude se organiza em conformidade com o horizonte social de pais receptivos às
mudanças sociais e culturais. No entanto, em relação ao genro, sua atitude-ação é de distância, pois
não se dirige a ele para orientá-lo, como faz com os filhos, o que deixa ver que não o considera
como os demais.
O marido da filha também deve se submeter às regras, pois mora na casa. Pelo
excedente de visão do sogro, não se mostra alguém decido a trabalhar, responsável pela esposa e
pelo filho. Ou seja, o pai, além de sustentar a família, ainda precisa dizer o que ele deve fazer.
Note-se que o pai não se dirige a ele. Pergunta à filha sobre ele. Isso revela que não está sob a sua
esfera, que não quer o seu comando, que desconhece seus valores, e, com isso, não tem
conhecimento prévio para instaurar um diálogo, ou opinar sobre suas atitudes. A atitude-ação do
pai, frente ao marido da filha, é de desconhecimento. Talvez por não vê-lo como filho, como se
disse antes, ou porque ele não demonstra interesse por nada em especial. A atitude-ação de deixá-lo
viver na casa, seria mais em função da filha e do neto, em conformidade com sua consciência de pai
e avô, que se preocupa com o destino de sua filha e de seu neto.
O horizonte social da filha se organiza em consonância com a ideologia de jovens
liberais. Para ela, morar com os pais depois de casada, não representa um problema. Essa realidade
estabelece uma atitude típica da educação moderna: os jovens aceitam fazer sexo antes do
casamento, morar em casa com o marido/namorado, mas não se responsabilizam financeiramente
por suas vidas. Ou seja, ela organiza sua atividade mental de acordo com uma jovem independente,
que através de um olhar cronotópico, contrapõe às atitudes de outras gerações, tidas como
vergonhosas para determinadas famílias, pelo fato de ter engravidado. No entanto, ao morar na casa
do pai e da mãe, não trabalhar, e nem exigir isso de seu marido, denuncia a contradição ideológica
daqueles que querem ser independentes, autônomos, mas continuam sendo sustentados pelos pais.
Uma expressão interessante acontece, em relação ao olhar de espanto que a jovem ao seu
marido, no momento em que o pai pergunta-lhe o que ele (o marido) vai fazer para contribuir com o
andamento normal do cotidiano da família. Sua autoconsciência não sabe onde o marido pode vir a
trabalhar. Sua perplexidade, diante da possível resposta dele, advém do fato de conhecê-lo e saber
que ele nunca trabalhará, devido ao conhecimento prévio de que dispõe de seu horizonte social, de
seus valores. Ou, ainda é possível compreender esse contexto extra-verbal da seguinte forma: a
filha, como nunca viu seu namorado fazer nada, também está curiosa por saber qual a atividade que
ele sabe desenvolver. Esses registros ficam óbvios pela observação picturial dela, pois, em nenhum
momento, faz uso da linguagem verbal.
Ao sugerir que a filha deixe o neto sob os cuidados da avó, o pai revela um outro
horizonte ideológico, relacionado com a idéia da aceitação da avó de cuidar do neto. Ou seja, o
marido sua esposa como mãe / avó, responsável pelas atividades do lar. Conforme seu
excedente, o lugar de sua esposa é em casa, cuidando dos afazeres domésticos, criando os filhos e
os netos. Vê-a com atividades restritas aos afazeres de uma dona de casa. Afirmar que seu neto
pode ficar em sua casa, sendo cuidado pela avó, é possível a partir da exotopia que o que o
marido tem por ela ser “do lar”. Além disso, o marido faz essa sugestão baseado no conhecimento
prévio de que dispõe de seus valores, a partir do horizonte social com o qual se identifica: senhoras
donas de casa, mães e avós que assumem a casa, os filhos, os netos.
O marido da filha apresenta concordância com o horizonte social de indivíduos que
aceitam a liberdade da mulher, gravidez etc. Identifica-se com uma geração que acredita em “paz,
amor e liberdade”, que não se interessa em ganhar dinheiro para consumir, para o qual ser é mais
importante que ter, mas a quem ou qualquer um, no caso o sogro e mesmo a mulher, deve sustentar.
Sua imagem picturial contribui para confirmar seu horizonte social. Usa cabelos tão, ou mais
longos, do que a esposa. Esse visual e a sua atitude dialogam cronotopicamente com o movimento
hippie, que pregava uma postura contrária aos valores da vida burguesa, da sociedade de consumo e
era favorável à liberdade de expressão, à vida comunitária, em que reinasse a paz e o amor.
De modo geral, o horizonte cronotópico adquire seu maior potencial através da atitude-
ação da filha de morar na casa dos pais com o marido, ter um filho, e o genro submeter-se a essa
situação ser sustentado pelo sogro. Em virtude de outras leituras realizadas, sabe-se que a jovem
mora com o namorado, ou melhor, ele mora na casa ela, que ela engravidou. Confirma-se uma
época contemporânea, em relação a um cronotopos em que esse fato era inadmissível. Em épocas
passadas, engravidar uma jovem a colocaria fora de casa, expulsa pelo pai. Essa questão contrapõe
períodos históricos em que, para uma jovem casar, deveria estar com a casa montada, além de o pai
ter de dar um dote ao marido. Engravidar significa ser desonrada. A atitude dos jovens e a
aceitabilidade do pai, em relação a esse fato, revelam-se cruciais para pontuar o diálogo
cronotópico deste enunciado. Outro fator dialógico importante, diz respeito à vivência do genro,
que instaura valores de um cronotopos oposto à cultura atual. Hoje as pessoas têm valores
condizentes com a realidade contemporânea: preocupações em manter um padrão de vida
confortável, sustentar-se, manter uma posição respeitável na sociedade, trabalhar, estudar; enfim, os
valores do genro entram em relações dialógicas com os valores do sogro, e refletem a arena em que
as ações e os valores, que se realizam através das relações, indicam.
O diálogo emerge da autoconsciência do pai, personagem que conduz o discurso verbal,
para o fato de as férias terem chegado ao fim.
5.4.2 Compreensão lingüística - categoria de índice social de valor
(pai) – Acabaram as férias e todos nesta casa devem fazer a sua parte
(pai) – Você recomeçará os estudos
(pai) – Você pode deixar o bebê com sua mãe e procurar um emprego
(pai) – E o seu marido...
(genro) Eu assegurarei as condições para que todos cumpram o seu potencial.
Meditarei pela paz.
Após a descrição dos elementos extralingüísticos, que organizam o momento verbal, é
possível conferir, com clareza, o acento avaliativo das palavras, em função do contexto em que se
encontram inseridas. A enunciação parte exclusivamente do centro axiológico do pai, como
resposta ao fato de as férias chegarem ao final. Isso requer uma tomada de consciência e
obrigatoriedade de volta aos compromissos. No período de férias, cada um podia fazer as suas
atividades de forma livre, sem os compromissos próprios de um período de aula. Mas, conforme
suas convicções, todos os membros da família devem fazer a sua parte para que as atividades da
casa voltem ao normal. Com isso, ele prevê o retorno à vida normal. Do ponto de vista bakhtiniano,
no mundo da vida “calcula-se”, a todo o instante, com base na memória do futuro desejado, as
possibilidades de atitudes-ações verbais no presente, pois a palavra serve como indicador de
mudanças.
A situação interacional, que define o momento verbal, parte da referência dada pelo
centro de valores do pai, participante do ato de fala explícito, ao dizer: “Acabaram as férias e todos
nesta casa devem fazer a sua parte”. O pai busca adesão a sua autoridade, sua diretriz volitivo-
emocional vem com um tom de constatação e determinação. Suas palavras respondem ao fato
anterior de que os personagens da enunciação estavam em férias, e nesse período, podiam agir
livremente, sem responsabilidades maiores. Ou seja, esse enunciado, no centro de valores do pai
confere uma diretriz volitivo-emocional de “basta”, “as férias acabaram”, “chega de
irresponsabilidade”, “vamos rever as atividades de cada um”, “hora de acertarmos novas atitudes”.
Há, através de suas palavras, a confirmação de uma situação criada pelas circunstâncias, ou seja,
seu discurso é injuntivo. Essa frase aciona diversos objetos lingüísticos, encontro prévio de
diferentes valores, com os quais se mantêm relações dialógicas. São eles, em especial: “acabaram”,
“férias”, “todos”, nesta casa”, “fazer a sua parte”. A expressão verbal “acabaram” é aceita por todos
os participantes, desse momento verbal. Sua entonação, em um sentido mais amplo, reflete uma
tonalidade axiológica verdadeira. Ninguém questiona essa idéia-ação verbal, pois a palavra reflete
uma verdade inquestionável. A atualização do objeto lingüístico “férias” refrata inúmeros valores,
correspondentes a quem os enuncia e para quem. No entanto, independente de como essa palavra se
reflete no enunciado individual de cada um, os participantes do enunciado apresentam, como
referente axiológico para o objeto lingüístico “férias”, uma aparente concordância ideológica: “a
idéias de estar livre de compromissos nesse período”, “a idéia de que nas férias não se faz nada”,
“férias é não fazer nada de que não se goste, é fazer somente o que prazer”. Mas se sabe que
cada indivíduo, em sua autoconsciência, e, conseqüentemente, em sua atitude-ação, sente de forma
diferente a vivência, a diretriz volitivo-emocional em relação a esse ato real. Com isso, o mesmo
enunciado do pai, encaixado na autoconsciência dos personagens envolvidos no momento verbal,
significa coisas diferentes, conforme o sentido que cada qual estabelece com ele. No enunciado do
pai, a idéia refletida para “férias” vem com um valor de pouco positivo. Para ele esse objeto
lingüístico pressupõe um tempo determinado e temporário, mas negativo para a realização de
tarefas que considera importantes para os filhos e genro. Portanto, “férias” para o pai assume um
valor de “acabou a moleza”. Para os demais participantes, aparentemente, este objeto lingüístico é
positivo. “Todos” reflete, no enunciado do pai, uma entonação firme, autoritária, com uma diretriz
volitivo-emocional que circunda a todos os membros da família. Remete ao imperativo de que
ninguém escapará de suas obrigações. É possível que para a filha “todos” acarrete o sentido de
surpresa, entendido como “até o meu marido? Talvez para o marido, essa expressão, em sua diretriz
volitivo-emocional, não lhe pertença, pois pode não se achar realmente pertencente à família.
A fala inicial do pai, que se dirige a diferentes centros de valor, muda de intenção
dependendo do enunciatário, em função da plenitude e unicidade do enunciado. Assim, “nesta
casa”, no contexto verbal do pai, significa “que estão morando aqui”, “que vivem sob o mesmo
teto”. O pai não se sente responsável por manter sozinho o sustento da casa, em especial pelo fato
de a filha estar casada. “Casa” para ele, não é a sua casa, mas a casa em que todos estão morando. O
pai transmite a idéia de que todos têm uma responsabilidade, um papel, para que a família se
constitua uma família, na qual todos têm responsabilidades e possam, assim, permanecer uma
família. No contexto social da filha, “casa” representa a casa do pai, não exatamente a sua casa e de
seu marido. Com isso, sua autoconsciência não se sente responsável por “manter” a casa, mas
“ajudar a mantê-la”. Não cabe a ela preocupar-se coma as despesas no final do mês. É possível que
no horizonte ideacional do genro, “a casa” reflita um sentido de “um lugar em que ele está morando
agora”. Não há, em virtude de seu horizonte social, indícios de que veja o sustento da casa como
preocupação sua. Com a expressão seguinte, “fazer a sua parte”, o pai imprime uma diretriz
volitivo-emocional de obrigatoriedade, a cada um em especial. A reflexão de sentido dessa última
expressão, no contexto verbal de cada participante da enunciação, fica em aberto, até que o pai a
especifique individualmente.
A diretriz volitivo-emocional, em relação ao filho pré-adolescente, através da frase
“Você recomeçará os estudos”, reflete o sentido de que “nas férias vonão estudou, agora terá de
voltar a estudar”. Para o pai, a expressão “recomeçar os estudos” vem carregada de uma atitude
valorativa positiva. Como o filho não contra-argumenta, concordando com a atitude-ação
estabelecida pelo pai, esse enunciado encontra uma orientação social de concordância ideológica.
Apesar de não poder se estabelecer se o filho concorda com o valor positivo do objeto lingüístico
“estudar”, ou concorda com a autoridade manifesta do pai. Nessa idade, geralmente, os meninos
não gostam de estudar, e o valor desse objeto lingüístico, estudar”, vem com uma tonalidade
negativa, de obrigação. De todo o modo, indiscutível, devido ao grau de firmeza ideológica, o grau
de autoritarismo que acompanha a esse discurso. O pai não estabelece limite dialógico de resposta
verbal ativa em relação ao filho e não aceita réplica às suas palavras. A resposta que o pai espera é
de que o jovem retome os estudos.
A segunda frase dirige-se ao centro de valores da filha, com a frase “Você pode deixar
o bebê com sua mãe e procurar um emprego”. O centro organizador e formador deste enunciado,
que se situa no exterior, decorre do conhecimento prévio de que o pai dispõe sobre a filha, a qual
organiza a sua atividade mental, determinando sua orientação para a escolha das palavras. A frase
encontra diferentes objetos lingüísticos para os quais o pai dirige sua atitude volitivo-emocional,
“pode deixar”, “mãe”, “emprego”. Esses enunciados oferecem as seguintes tonalidades ao discurso
do pai: “pode deixar” reflete um procedimento de permissividade. No entanto, a filha não lhe pediu
para que a mãe cuidasse da criança. Mas a linguagem antecipa respostas, prevê ações futuras, ativa
memórias de um futuro, assim, o pai, antecipadamente, organiza uma resposta a uma futura
pergunta. Em relação à expressão “mãe”, objeto lingüístico complexo em seus usos, nesse
momento, reflete a criação ideológica do grupo social ao qual ele, o pai, pertence. Em seu horizonte
social é dever da mãe/avó cuidar do neto, enquanto a filha trabalha fora. A palavra “mãe”, no
contexto dele, ativa a idéia de “aquela cuida da casa, e conseqüentemente do neto”. No contexto
ideológico do pai, a filha é mãe, mas como é jovem, de outra geração, deve trabalhar fora. Ao
contrário da mãe (avó), que por pertencer à outra criação ideológica, à outra geração, deve cuidar
do neto. Pode-se ressaltar com a explicação do valor da palavra “mãe”, a questão do plurilingüismo
dialogizado. Possivelmente, “mãe”, de acordo com a diretriz volitivo-emocional da filha, também
estabeleça o sentido de “aquela que vai ficar em casa, portanto cabe a ela cuidar o bebê”.“Mãe” é
um objeto lingüístico que refrata incontáveis sentidos e estabelece, como todas as palavras, a sua
reflexão de acordo com a situação em que se encontra. É importante essa reflexão, porque coloca
em evidência o dialogismo bakhtiniano em sua instância máxima momento em que o discurso se
estabelece, negociado em função do contexto, do interlocutor específico, da autoconsciência etc..
Enfim, permite visualizar mais uma vez a importância dos estudos propostos pelo Círculo de
Bakhtin. A expressão “emprego”, para o centro de valor do pai, tem um valor positivo. Essa
posição reitera o horizonte ideacional do pai, a classe dia, onde todos têm de trabalhar para
ajudar no sustento da família, para manter e/ou melhorar as condições de vida, de aquisição de bens
de consumo. Ou seja, o grau de clareza, de consciência, de acabamento formal da atividade mental
é diretamente proporcional ao grau de orientação social dele.
A filha, assim como o filho, também se mantém silenciosa, ou seja, a resposta é de
concordância com a diretriz volitivo-emocional que o pai reflete para o sentido de seu enunciado. O
silêncio da filha pode ser compreendido como uma resposta ativa de aceitação ao discurso do pai,
pois no momento em que se ouve já se estabelecem as relações dialógicas, e conseqüentemente,
resposta. De certa forma, ela entende que deve arcar com as conseqüências de ter tido filho etc..
Deve trabalhar para sustentá-lo, embora sua diretriz volitivo-emocional seja outra, pois, pelo fato de
ainda submeter-se ao pai, cabe a ele a responsabilidade maior em manter as despesas da casa, dela,
de seu filho. É possível que “emprego” para ela signifique uma obrigação, frente ao comportamento
autoritário do pai, mas não seu ideal de vida.
A última fala do pai E o seu marido...” nasce como resposta à situação posta, para o
fato de a filha estar casada; no entanto, o pai não encontra no excedente de visão que possui em
relação ao genro, subsídio para formular uma resposta em relação ao seu centro de valores. Então, o
sentido refletido pela expressão “E o seu marido” assume a entonação de um discurso vago, sem
consistência axiológica, correspondendo aos valores que o pai apresenta dele, “alguém
desconhecido”, “alguém que pertence a horizonte social diferente do dele”, tanto que o pai não sabe
o que sugerir. Para exemplificar melhor a diretriz volitivo-emocional dessa expressão, que se
estabelece na exotopia constitutiva do excedente de visão que o pai apresenta em relação ao genro,
é como se ele fosse um estranho, pois seus valores são estranhos. O estranhamento é tanto, que
implica na ruptura da interação verbal. As respostas verbais que se organizam em relação ao centro
de valores dos filhos, não respondem a nenhuma espectativa em relação ao genro. Na verdade,
quanto mais numerosas e substanciais são as réplicas, as resposta ativas, mais profunda e real é a
compreensão, fato que não se confirma em relação ao genro. Abre-se, assim, o limite dialógico, a
possibilidade de resposta.
A última fala parte da autoconsciência do genro respondendo, em especial, à esposa e ao
sogro. O seu enunciado confirma, de certa forma, a dúvida que o sogro e a filha tinham. Conforme
suas palavras, a diretriz volitivo-emocional “fazer alguma coisa”, enunciado proferido pelo sogro
no início do diálogo, reflete-se de forma absolutamente diferente na autoconsciência do genro;
vincula-se a valores que entram no campo espiritual, e não a “trabalhar”, “sustentar-se”, “ajudar nas
despesas da casa”, “manter o sustento da esposa e do filho”, em consonância com o sentido
conferido pelo centro axiológico do sogro. O aspecto entonacional de seu discurso é pacífico,
conforme suas crenças. Emerge de suas palavras sentidos que ativam uma memória negativa para o
sogro. Com essa verbalização, constata a realidade dos valores do genro e, por conseqüência, o
problema que terá de “aguentar” pelo fato de a filha estar casada com ele. Fica evidente, na
seqüência desse enunciado, que relações dialógicas são relações de confronto, luta de contradições,
que envolvem desde a adesão ao dizer até a recusa, além de se poder afirmar que o sentido se
estabelece em relação.
5.5 Tira 5 – Interlocuções entre patrão e empregada
5.5.1 Compreensão extralingüística - categoria exotópica
A situação social que forma a esta enunciação origina-se de uma troca verbal entre
duas consciências, em que os horizontes sociais não se identificam, por pertencerem a diferentes
classes sociais. Os personagens em questão - a empregada doméstica e o patrão - possuem funções
sociais diferentes, tanto no contexto social mais próximo - no ambiente familiar - como em relação
a um horizonte social mais amplo classe pobre e classe média. O fato de a empregada requisitar
seus direitos determina um período contemporâneo para o contexto da tira, momento em que as
empregadas são conscientes de seus direitos e não têm medo de exigi-los dos patrões.
A descrição pictorial dos personagens revela que a empregada tem cabelos
encaracolados, lembrando o cabelo da raça negra e a estatura de uma pessoa gorda. Essa imagem
serve para manter uma diferença de estratificação social aos olhos do leitor. Ela se caracteriza
dentro de um padrão de raça que sempre sofreu discriminação social, além de a maior parte da
população com esse perfil pertencer à classe social pobre. Em relação ao patrão, chama a atenção,
quanto à sua forma picturial, a posição de seu corpo, que reflete um ar de surpresa, de espanto, de
retaguarda, diante do discurso da empregada. Outro detalhe importante para a compreensão da
situação extra-verbal, refere-se ao enquadramento dos dois personagens na tira. Ela, a empregada,
ocupa um espaço bem maior do que o espaço do patrão. Esse enquadramento se reflete diretamente
no perfil dos personagens. A empregada, que mora há muitos anos na casa, criou os filhos do
patrão, assume todo o serviço da casa, conhece o ritmo de cada um, ou seja, é “espaçosa” no
sentido do termo que lembra “participa da vida da família, dos problemas e das alegrias”. Nesse
sentido, sua figura, no enfoque da tira, ocupa mais espaço do que o próprio espaço do patrão. Além
disso, os personagens se encontram frente a frente, delineando uma situação de aproximação e
intimidade. Com essa posição pode-se pré-definir que a empregada não tem medo de “enfrentar” o
padrão e fazer suas revindicações. Entre os dois personagens, um grau de intimidade
característico de patrões que, de acordo com seu horizonte social, consideram os empregados como
“da família”. Aceita que a empregada se posicione e se coloca em situação de igualdade para
conversar com ela. A enunciação se sem rodeios; ela responde de forma direta, demonstrando
convicção em relação à posição assumida.
O horizonte social do patrão define-se de acordo com o de uma classe média. Pelo
contexto, sabe-se que a empregada trabalha há muitos anos e, portanto, é vista como uma pessoa da
família. O reconhecimento dessa vivência de anos e do afeto que por ela, faz com que ele pense
nela como um membro da família, sendo desnecessário o pagamento do salário É possível que se
discutisse, na época em que a tira foi publicada no jornal, a questão da participação dos empregados
das empresas nos lucros. Para o patrão, de acordo com a ideologia com a qual se identifica, o fato
de ela morar na casa e ter comida, significa vê-la como um membro da família, o que
descaracterizaria o vínculo empregatício. Sua atitude-ação vai ao encontro de idéias de grupos
sociais que sempre contaram com uma empregada para os afazeres domésticos e como estas “têm
casa e comida”, crêem que isso seja suficiente. O patrão vê na sua empregada de tantos anos
alguém que não tem necessidade de dinheiro, não tem outras necessidades, e, por fim, ignora as leis
trabalhistas que amparam as empregadas domésticas. Sua autoconsciência reconhece-a como
pessoa, mas não reconhece seus direitos trabalhistas. Assim, sua consciência se organiza em torno
de idéias antiquadas. Essa origem cronotópica remonta a época dos escravos, quando estes
trabalhavam somente pela sobrevivência. Sua consciência em relação aos direitos trabalhistas, o
torna um sujeito, neste momento, despreparado em relação à autoconsciência da empregada. A
autoconsciência dele não reconhece estar explorando a empregada. Para ele é uma surpresa a
empregada exigir o seu salário, pelo desconhecimento anterior que ele tinha da criação ideológica
dela. Não a via como alguém que considerasse a idéia de salário importante. Nem sabia que a
empregada era tão bem informada sobre os assuntos salariais. De certa forma, ela tem clareza de
que nunca será da família.
De forma completamente oposta à ideologia do patrão, o horizonte social e a atitude-
ação da empregada se organizam de acordo com as demais domésticas do país. Ou seja, requisita
seus direitos trabalhistas como os demais empregados. Ela é esclarecida, sabe o que quer e não
reluta em argumentar. Apesar de se sentir bem tratada, isso não exclui o patrão de cumprir com o
direito que lhe assiste. A consciência da hierarquia social, que se estabelece entre ela e o padrão,
deixa claro que se coloca em um lugar social diferente dele, apesar de ser tratada com intimidade. O
universo que envolve as empregadas “como alguém da família” decorre principalmente da
intimidade e familiaridade que a empregada passa a ter após anos de convívio com a mesma
família. Mas isso não significa, em momento algum, outros benefícios sociais, tais como: sair
quando quer, comprar o que quer, tirar férias, e outras questões que se relacionam aos direitos
trabalhistas por parte dos empregadores. Ela quer seus direitos assegurados.. Fica explícito que a
empregada tem consciência de seus direitos e é uma pessoa informada sobre as questões
trabalhistas, e do que se discutiu sobre participação nos lucros. Além disso, na posição que ocupa,
de excedente de visão em relação ao patrão, ela percebe o problema econômico por que passa a
família. No entanto, como não se sente da família, sabe que o seu lugar é outro o de empregada.
Justamente por enxergar o padrão, pertencente a uma classe social diferente da sua, requer dele o
pagamento de seu salário.
No acabamento do patrão uma “enformação” de alguém que acredita poder mudar a
atitude da empregada pela investida emocional. Justamente devido ao excedente da visão do patrão,
o reconhecimento de tantos anos, por ser ela pessoalmente a pedir o seu salário, o patrão conversa
evidenciando o caráter sentimental que tem por ela. Ele lida com a questão de forma emocional,
pois a empregada, querida por todos, responsável direta pela organização da fala do padrão, leva-o
a usar da fala sentimental. O fato de o patrão tentar convencê-la de que é um membro da família,
revela que ele apresenta desconhecimento dos valores dela..
A posição do homem histórico real, através da figura do patrão, carrega consigo traços
de uma mentalidade de muito tempo atrás, em que os empregados / escravos viviam exclusivamente
em função do alimento e da casa para morar. Essa questão cronotópica recupera um discurso antigo,
quando este teve seu momento de maior vivenciamento cultural, época em que os empregados eram
“agregados”, igualados no respeito que se tem por alguém da família, mas sem direito a salário.
De forma resumida, os dois personagens contracenam valores opostos, sendo que o
patrão acaba se caracterizando como alguém ingênuo e despreparado, pois se surpreende com as
colocações da empregada. A empregada, por sua vez, é “enformada” como alguém que tem
consciência da situação na família e de seus direitos enquanto tal. LFV revela uma situação
prototípica de famílias contemporâneas, que tratam bem suas empregadas domésticas, mas o
aceitam, ou ficam surpresos, quando estas requisitam seus direitos salariais.
A motivação do diálogo surge da autoconsciência da empregada pelo fato de não estar
recebendo salário. A partir daí, o enunciado se organiza em função da tomada de consciência do
patrão em relação aos anseios dela. É nessa atmosfera que se percebe o seu ar de surpresa, ao saber
um pouco mais sobre o horizonte social de identificação de sua empregada.
5.5.2 Compreensão lingüística - categoria de índice social de valor
Neste enunciado, ocorrem dois turnos de fala para o patrão, que responde ao limite
dialógico de a empregada requerer o salário que lhe cabe, e dois turnos de fala para a empregada a
essa situação. Os turnos iniciais pertencem à fala do patrão e os dois últimos para a fala da
empregada. Essa consideração é importante porque traz como conseqüência, ao final da enunciação,
o patrão responder ao enunciado somente com a consciência. Ou seja, após a argumentação da
empregada, que oportuniza um limite de resposta ao patrão, este responde ao enunciado com um ar
de perplexidade. A empregada encerra os turnos de fala e com isso encerra a sua decisão sobre o
assunto. Esse fato confirma a razão da empregada relativamente ao pedido que faz. As falas são as
seguintes:
(patrão) - Dora, voestá conosco muitos anos. Foi babá das crianças. Sempre nos
acompanhou...
(patrão) – Você faz parte da família, Dora
(empregada) – Eu sei, doutor
(empregada) – Mas ainda prefiro um salário à participação nos lucros
Em relação à diretriz volitivo-emocional do patrão, às duas primeiras frases enunciadas,
há um tom emocional que condiciona a fala do patrão a uma idéia de constatação de uma realidade,
com o objetivo de uma mudança de comportamento por parte da empregada. A constatação leva o
patrão ao intuito de condicionar a atitude da empregada. O fato de o patrão utilizar o vocativo
“Dora”, objeto lingüístico que se refere à pessoa da empregada, nas duas falas, revela o caráter de
intimidade com que o patrão a vê. Esse objeto lingüístico reflete não o nome dela, mas toda a
vivência que ele reconhece nela. É uma expressão que, ao ser enunciada, traz à tona, não a
reflexão própria ao enunciado, mas a refração da autoconsciência do patrão. O emprego direto
dessa expressão, sem que haja um acompanhamento, por exemplo, “Dona Dora”, “Senhora Dora”,
só é possível pela sua posição social e devido ao seu centro axiológico.
Os dois personagens têm consciência dos fatos citados pelo patrão, no entanto esses
fatos vieram emergiram como uma forma de negociação de valores. concordância nas
expressões “...está conosco muitos anos”, “...foi babá das crianças”, “sempre nos acompanhou”.
No entanto, não se pode esquecer que a diretriz volitivo-emocional para essas expressões é vista de
forma diferente por cada um individualmente. “... estar muitos anos”, conforme o horizonte
social dela, é “estar servindo à família há muitos anos”; possivelmente, conforme o horizonte social
do patrão significa “participar da família muitos anos”. A outra expressão, “...foi babá das
crianças”, para ela talvez signifique “...ter responsabilidade sobre as crianças”; para o patrão
“cuidou com carinho de meus filhos”, “...se afeiçoou aos meus filhos e as crianças a ela”, o que
para ela seria um privilégio. A expressão “sempre nos acompanhou” pode representar para ela
“sempre foi onde eles foram, mas como empregada, para servir”; já, para ele, talvez signifique
“...sempre tivemos consideração e a levamos junto”. Ou seja, estas são somente possibilidades da
forma como o valor dessas expressões podem ser vistas de acordo com a diretriz volitivo-emocional
de cada um dos personagens envolvidos.
Quando o patrão diz “Você faz parte da família”, percebe-se claramente que a posição
axiológica assumida por eles é completamente diferente. A necessidade de enunciar essa frase
caracteriza-a como pista para um valor não pressuposto para ela, somente para ele. Além disso, esta
expressão busca adesão para isentá-lo de pagar o salário, pois o benefício seria conceder-lhe essa
participação (afinal, ela é de outro mundo, não do daquela família). para ela, esse “fazer parte da
família” em nada justifica a falta de pagamento. Ou seja, ambos entendem de forma diferente o
“fazer parte da família”. A diretriz volitivo-emocional que condiciona os valores de cada um estão
atrelados aos diferentes horizontes sociais, e conseqüentemente, regulam cada sentido negociado. O
objeto lingüístico “família” para ela não é a dele; “família”, para ela, certamente é aquela em que
nasceu, o seu grupo social de origem etc.
A fala da empregada “Eu sei, doutor” reforça a leitura para a diferença social que a
empregada em relação ao patrão. A expressão “doutor” reflete uma diretriz volitivo-emocional
de distanciamento de classe social; com essa expressão há, de forma evidente, a idéia de
respeitabilidade, de submissão e de inferioridade. Além de estabelecer a hierarquia social, esta
expressão muitas vezes vem carregada de uma tonalidade volitivo-emocional própria de indivíduos
de pouca escolaridade, que costumam chamar as pessoas letradas de doutor, independentemente da
profissão que ocupem realmente. O objeto lingüístico “saber”, que denota uma atitude-ação,
estabelece um sentido de concordância para os dois centros de valores.
A frase final proferida pela empregada “...prefiro um salário à participação nos lucros”
confirma a identificação do horizonte ideacional da empregada: “não se considera da família,
apesar de ser bem tratada”. “Salário” representa para ela uma condição social para a qual ela quer
fazer parte, tem direito. “A participação nos lucros” para o centro de valores dela, significa “não
receber salário”. Essa expressão, participação nos lucros”, vem conotada de um valor irônico,
atípico para o discurso de uma empregada de antigamente, mas que pode ser entendido na fala dos
trabalhadores domésticos de hoje, em sua luta para obterem os benefícios de outros trabalhadores
como os da indústria, comércio etc. Ao final, quando a empregada abre a possibilidade de resposta
ao patrão, pode-se dizer que ele “salário” como um distanciamento em relação à empregada, da
seguinte forma: “ela prefere um salário à nossa consideração”. A expressão “à participação nos
lucros”, talvez no centro de valor dele signifique “ela sabe que as finanças da casa não estão bem”,
“ela sabe que estamos apertados financeiramente”, “ela descobriu a nossa real situação financeira”,
“ela tem consciência de que não está sobrando dinheiro para pagá-la”.
Nesse enunciado, em que os personagens pertencem a classes sociais diferentes, e por
que não dizer, opostas, torna-se explícita a negociação de valores e a diferença da diretriz volitivo-
emocional de cada personagem, que organiza o enunciado verbal em função da oposição evidente
de seu horizonte social.
6 DESDOBRAMENTO EXOTÓPICO - OUTSIDENESS DO
PESQUISADOR OU A TÍTULO DE CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise proposta neste trabalho, baseada na delimitação em categorias, buscou uma
compreensão das tiras da Família Brasil, tendo como preocupação o envolvimento dos personagens
em virtude da descrição do contexto social e da identificação dos valores verbo-axiológicos,
detectados através do processo enunciativo. Isso não significa que se considere esse percurso isento
de complementações, pois se acredita que uma compreensão implica, a cada leitura, novos
parceiros e, conseqüentemente, novas possibilidades de sentidos. Neste momento, quer se realizar
uma leitura que conduza, enquanto completude e acabamento em perspectiva dialógica, à
verificação geral da construção do universo da Família Brasil, com o intuito de dar uma resposta à
totalidade da criação do autor-criador Luis Fernando Veríssimo, por meio de um olhar para o objeto
analisado, aqui denominado outsideness do pesquisador.
As tiras, que se encontram reunidas no álbum intitulado Aventuras da Família Brasil,
foram, inicialmente, divulgadas em alguns jornais do país e, dessa forma, chegaram ao leitor como
fragmentos de pequenas situações cotidianas, envolvendo os personagens. O fato de se ter uma
divulgação semanal para cada tira revela a criação das personagens construídas com o objetivo de
apresentar cada qual um perfil, a ser mantido na seqüência dos textos e, portanto, um
comportamento axiológico até certo ponto previsível para as manifestações. Trata-se de uma
análise, conforme a abordagem bakhtiniana, em que não se pode reduzir os personagens aos
eventos de cada tira exclusivamente, devendo-se entendê-los, também, enquanto representações,
ações dotadas de um sentido maior, em conformidade com o contexto social do universo em que
estão inseridos. As manifestações isoladas se baseiam numa resposta única ao todo discursivo,
detectadas através da divulgação regular das tiras.
A Família Brasil é composta por pai, mãe, filha e seu namorado, filho, neto e
empregada doméstica. Os contornos de cada personagem são delineados quanto ao meio social no
qual se inserem - pertencem à classe média - com exceção da empregada que, mesmo sendo
considerada da família, pertence à classe pobre. Os membros trazem para o contexto da história
valores próprios de sua inserção social e, conseqüentemente, de seu horizonte social, de acordo com
a faixa etária e modos de vivência. Embora constituindo uma família, pertencentes à mesma
comunidade lingüística, em que os valores implícitos condicionam parte das ações verbais, não
entendem e não avaliam a situação de maneira igual. Com isso, apresentam uma diretriz volitivo-
emocional diferente para a determinação dos índices sociais de valor, refletidos através do sentido
negociado em cada momento verbal.
A visão geral da compreensão esclarece conceitos visivelmente ideológicos para o estilo
criado pelo autor-criador. Os assuntos tratados, no contexto familiar, revelam preocupações de
ordem econômica, social, educacional, sexual e cultural. Os acontecimentos cotidianos, fragmentos
de uma realidade maior, contínuos e passíveis de mudanças peremptórias, remetem a uma raiz
popular, onde vivências diárias, não oficiais, não detentoras de um olhar unilateral, trazem à tona os
problemas que se contrapõem a uma ideologia maior, centralizadora de normas sociais e de poder.
Por exemplo, algumas questões tratadas no âmbito da Família Brasil questionam a política
econômica do país, os direitos do trabalhador, os direitos da mulher, a educação etc.
de se ter em mente que os enunciados apresentam um percurso que faz com que
carreguem a memória de outros discursos, próprios das experiências individuais. Assim, a
manifestação verbal traz à superfície textual as pistas das crenças dos personagens, vinculadas à
pequena, ou à grande temporalidade cultural, responsáveis pela autoconsciência de cada um. Pode-
se confirmar um traço que se mantém na relação entre o pai e os filhos, o qual se caracteriza pelos
valores que o pai cultiva, em contrapartida aos valores tidos como referência de vida dos filhos. ,
o mesmo não acontece com relação à mãe, pois esta se caracteriza por ser um personagem sem uma
autoconsciência definida, apontando para um cronotopos cultural da época em que as mulheres
eram submissas, servis, sem vontade própria, conseqüentemente manipuladas por qualquer membro
da família. Com isso é possível perceber que, como na vida real, o confronto de gerações é
detectável a partir da atitude-ação de cada indivíduo, bem como a partir do embate ideológico
manifestado através da linguagem.
Todas as vozes presentes na fala dos personagens de Veríssimo são convicções ou
pontos de vista acerca do mundo, que os levam às diferentes reações, que os revela a cada nova
enunciação e à construção de uma representação da realidade, em função da interlocução do
momento. A autoconsciência dos personagens, enquanto ideólogos, integra o diálogo a cada
manifestação, combinada, na maioria das vezes, com a imagem externa e com a manifestação
lingüística, momento em que o texto assume a forma acabada A forma verbal dos diálogos faz
surgir a visão espacial comum aos interlocutores, refletindo o conhecimento e avaliação comum da
situação existente, enquanto capacidade de ler os indícios do espaço e do tempo no contexto da tira.
O diálogo, mantido pelos personagens, remete a um documento sociológico extremamente
interessante, ao se detectar que as manifestações da consciência pessoal, acabam sendo destituídas
de poder, dando lugar ao corpo-concreto social. É como se os personagens representassem o mundo
em uma totalidade, sem nenhuma instância intermediária, além do grupo social ao qual pertencem.
Por meio do estudo da interação, percebe-se que as tiras refletem as relações sociais de
poder. As relações dialógicas, de forma geral, estabelecem as relações de confronto, contradições,
que vão envolver desde a adesão ao dizer até a recusa, acreditando-se sempre em uma gradação.
Quando os personagens em seus diálogos discutem, põem à vista a arena em que se constitui a
reflexão da palavra, pois negociam, expressamente, alguma posição específica e denunciam a
transparência ideológica constitutiva da linguagem. Pode-se, nesse momento, falar em dialética
para a construção do universo da Família Brasil, ressaltando a vitória dessa ou daquela voz
ideológica, ou a combinação de vozes, quando estas se complementam.Um dos fatores
determinantes é a diferença de faixa etária dos personagens, além das relações hierárquicas pré-
estabelecidas nas relações familiares. Sob uma outra perspectiva, isso confirma a complexa rede de
valores em que a situação familiar está inserida e da qual é dependente, tendo em conta a hierarquia
e o envolvimento de horizontes ideológicos em que cada consciência se espelha.
As tiras apresentam limites para o discurso face-a face, assim como, apresentam limites
precisos de seus enunciados, sempre havendo alternância para cada situação enunciativa. Ou seja,
as réplicas, características dos discursos cotidianos, estabelecem o limite dialógico quando
instauram a possibilidade de resposta entre os personagens. E, por fim, estabelecem o limite
dialógico em relação ao leitor, co-enunciador ativo do processo de elaboração de sentido (não se
quer com esta expressão afirmar a completude do diálogo, apenas salientar uma característica), a
cada nova tira.
A compreensão da relação dinâmica entre os personagens ocorre em uma estrutura
arquitetonicamente elaborada, de forma geral, através da manutenção dos mesmos personagens na
continuidade da divulgação e, em particular, para cada personagem, a cada nova interação
construída, de acordo com o interlocutor da enunciação. Portanto, a fragmentação em “cenas” do
cotidiano faz parte da estrutura mais ampla de temas sócio-culturais discutidos pelo autor. É
preciso considerar que as manifestações particulares são importantes para caracterizar a imagem da
Família Brasil, em relação ao convívio da família real brasileira, além de delinear as forças que
atuam no acontecimento discursivo, envolvendo os personagens. Isto posto, esclarece a manutenção
dos relacionamentos em virtude de ser um e não outro o interlocutor presente, além de deixar
suficientemente clara a idéia de que o outro regula a nossa fala. Nessa direção, pode-se dizer que
essa família de classe média brasileira, no embate verbal cotidiano, antecipa, na própria linguagem,
valores dependentes das mudanças dos contextos sociais.
Para o texto escrito, acima de tudo para a leitura do gênero textual de que se está
tratando, representante dos discursos cotidianos com certa fidelidade, além de ter como suporte a
parte não verbal, representada pelos desenhos e expressões de cada membro da família, a
representação dos personagens deixa entrever índices de valores detectáveis através do acento
entonacional do enunciado. Esse organizador crucial do discurso, fonte para outros fatores dos
enunciados verbais, caminha sempre em duas direções: em relação ao interlocutor e em relação ao
objeto do enunciado. A presença da entonação se mostra de forma clara, pois a disposição dos
personagens nos quadrinhos e a forma de desenho articulado recuperam para o leitor um contexto
imaginário mais bem definido. O encaixe das falas às expressões picturiais deixam entrever a
entonação e o gesto como co-responsáveis pela manifestação individual do sentido que se quer
expressar, sendo estes, portanto, ativos no processo de compreensão.
O levantamento geral de idéias trabalhadas pelo autor, e as linhas de pensamento de
cada um dos personagens, na leitura das tiras, revela que as personagens de Veríssimo se desligam
do processo que as criou e passam a levar uma vida autônoma nos eventos de cada nova criação.
Essa idéia bakhtiniana, de que cada personagem leva uma vida autônoma em relação à sua criação,
ou seja, a personagem se apresenta um todo, na estrutura e na escolha dos elementos semânticos,
revela a imagem refletida e refratada por cada indivíduo, podendo desse encontro muitas
interpretações ser vivenciadas, a cada nova leitura. Interessou observar a que ou a quem cada
personagem respondeu nos fragmentos de cada tira, pois essa idéia só se efetiva através do
enunciado concreto. Para cada réplica, tal os elos de uma corrente, por mais simples que se
apresentassem os enunciados, ao exprimir a posição do falante, constituiu-se automaticamente o
caráter responsivo, detectável apenas no processo de comunicação discursiva, tendo-se em mente a
inconclusibilidade característica da linguagem. A partir desse pressuposto teórico, na análise
realizada, a responsividade mostra-se evidente a cada interação, pré-definida pelo interlocutor, de
modo que, na compreensão geral das tiras do álbum da Família Brasil, a cada leitura, dependendo
de quem interagia, já se previa o tom de seu discurso e a diretriz volitivo-emocional.
Bakhtin, em suas análises, inovou com a sua preocupação em relação à temporalidade.
Para a apreensão do sentido dos diálogos produzidos entre os personagens da Família Brasil, fez-se
importante a visão da totalidade cultural da época, e, também, a possibilidade de esses discursos
estarem além das fronteiras do seu tempo. Como característica geral, do tipo de discurso a que as
tiras remetem, tem-se como perspectiva a idéia de que tais falas se referem aos ideais
contemporâneos, pois trazem respostas a fatos do momento vivido pela sociedade real, instância em
que as tiras foram produzidas. Por esse caminho, verifica-se nas tiras um produto cultural de
significação estável, e sua reação se percebe no condicionamento da própria estrutura das tiras. Para
explicitar a maneira de conceber o estilo de LFV, dentre as constatações citadas anteriormente,
na maioria das construções uma forma combinatória de elementos. Contribui para a construção
dos sentidos a circulação de determinados discursos, os quais estabelecem princípios encontrados
na família brasileira.
A construção das tiras, enquanto gênero textual de divulgação semanal, é desprovida de
conclusibilidade, cabendo ao leitor o fechamento do tema tratado. Essas observações, que
conduzem à reflexão sobre a conclusibilidade / inconclusibilidade, ajudam a responder a verdadeira
diretriz axiológica, pretendida pelo autor-criador para o quadro geral das tiras - o diálogo que
pretende manter com os leitores sobre a Família Brasil. Cada tira criada realiza-se de forma ativa e
oportuniza uma leitura dos personagens, instaurando uma situação determinada e uma situação a ser
determinada pelo leitor, instância fundamental do discurso na interação entre consciências, que a
concepção dialógica da linguagem possibilita.
O delineamento dos contornos da Família Brasil revelou a prática de uma compreensão
à luz das reflexões do Círculo, em especial Bakhtin e Volochínov, estabelecida pela idéia do
dialogismo constitutivo da linguagem. Assumir a representação da realidade da linguagem nas tiras
significa uma (re)construção de conhecimentos, determinando práticas sociais e discursivas,
encontradas em nosso contexto, no dia-a-dia.
Conforme o pensador russo Bakhtin, qualquer que seja a espécie de enunciado concreto,
ele sempre e em relação os participantes de uma situação que, por ser comum, instaura-os como
co-participantes. Através das características individuais, atos, dizeres revelados por cada
personagem, percebeu-se que a realização de uma análise, em perspectiva dialógica, deve ser
conduzida por um caminho pertinente às condições de produção dos discursos, estabelecendo o
exterior como parte constitutiva de todo o momento verbal. O sentido revelado em cada evento,
parte de um pressuposto axiológico, constitutivo da enunciação, podendo ser percebido somente em
cada evento único e irrepetível do enunciado. A compreensão de um texto caminha para uma
lingüística da enunciação que antecipa novos olhares, os quais possibilitam tratar do estudo da
língua em seu habitat, nas inter-relações sociais.
O Círculo de Bakhtin deixou um legado, que se constitui em um caminho para um
ensino que privilegie a língua como ela é para o falante, negociável a cada instante, representante
de seus valores, indicativos dos laços culturais de que se é dependente. Com isso, o dialogismo da
linguagem se configura no estuda da língua, conforme as condições que lhe são inerentes,
apreendendo os valores que organizam a vida das pessoas e dos textos.
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