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Juliana da Silva Nóbrega
As possibilidades de uma ecologia de
saberes: a negociação de sentidos no
processo de incubação
Mestrado em Psicologia Social
PUC/São Paulo -2006
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Juliana da Silva Nóbrega
As possibilidades de uma ecologia de saberes: a
negociação de sentidos no processo de incubação
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, como exigência
parcial para obtenção do título de Mestre
em Psicologia Social, sob orientação do
Professor Doutor Peter K. Spink.
PUC-SP
2006
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Banca Examinadora
_____________________________
_____________________________
_____________________________
4
A Pedro, meu avesso, meu amor, meu fotógrafo, minha lente.
Por tudo... Te amo.
5
Agradecimentos
Ao CNPq, pela bolsa que me possibilitou o desenvolvimento desse estudo.
Ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social, da PUC-SP, pelo rico espaço de
reflexão sobre as práticas e ações da Psicologia.
A Peter Spink, pelas “desorientações” ao longo desses dois anos e meio, que tanto me
provocaram e me angustiaram das mais diferentes formas.
Às grandes amigas e amigos do Núcleo de “Organização e Ação Social” (NOAS) pelas
conversas intrigantes sobre organização, conhecimentos, senso comum, sentidos, ações
sociais, intervenção, etc... que me são tão caros. Pelos momentos de debate que levarei
pra sempre em minha vida.
À Alejandra e Maíra por estarem sempre dispostas a uma conversinha depois do
Núcleo. Conversas em que dissertação, vida e coração se aproximavam tanto. Por essa
amizade tão bonita que nasceu desses encontros.
À Ricardo, Elaine, Camila, Ronaldo, Edwin, Leandro, pelas tantas conversas, debates
acalorados, pelos tensos e pelos bons momentos em que pensamos sobre a nossa prática.
Obrigada por confiarem em mim. Obrigada por terem me mostrado uma outra forma de
ver a incubação. Obrigada pela compreensão diante dos problemas dessa pesquisa.
Aos antigos companheiros da incubadora, por tudo que vivemos juntos naqueles anos.
À Associação das Cooperativas de Reciclagem (ACOOP) por terem permitido essa
pesquisa. À Maria do Carmo, Maria Conceição, Cícera, Néia, Isaura e Mary, e todos os
outros cooperad@s com quem conversei durante esse tempo.
À Mauro Amatuzzi, querido amigo e eterno professor, que se dispôs a ficar acordado
depois do almoço para ouvir uma jovem e suas preocupações éticas de fim de mestrado.
Obrigada pela escuta, atenção, disponibilidade e sensibilidade.
6
À família Oleski Amatuzzi, pelo acolhimento no fim de domingo. Amo vocês.
A Anita, caroneira-amiga, que traduziu tão bem meus dilemas. Obrigada pelo grande
encontro e pela escuta incansável.
À Lu, amiga antiga, cúmplice de sonhos e de sementes. À Ivie, pela força, coração e fé
que me deixam tão tranqüila.
À Anayê, Éderson e Clara, pelos almoços e encontros que me tiravam da teoria. Em
especial, à Anayê, por ser tão companheira.
À Teca, por estar junto nesse amadurecimento pessoal que foi o mestrado.
À Rê, irmã e amiga. Obrigada por tanta dedicação, apoio, leituras, comidinhas, etc. Que
sempre estejamos por perto uma da outra. A Lucas, irmão e companheiro de Psicologia,
música, poesia, coração. Obrigada pelas longas conversas ao telefone em que me
fizeram lembrar de mim mesma. Aprendo muito com vocês dois. Pessoas com as quais
cresço todos os dias.
A Sônia e Antônio. Sem palavras. Amo vocês demais. Sei que um dia estaremos perto
outra vez. Obrigada pela vida e por serem pessoas tão lindas.
Ao tempo que me ensina a ser gente a cada dia e me coloca em situações inesperadas e
surpreendentes, como essa dissertação.
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Índice Geral
Prefácio .........................................................................................................................
Introdução.....................................................................................................................
1.Considerações sobre a Metodologia.............................................................................
2.Cenários da Economia Solidária no Brasil......................................................................
3.Questões da Incubação...................................................................................................
4.Conhecimento e processos autogestionários: cotidiano como lugar de produção.........
5.Conversando nas reuniões: apresentação e discussão das questões sobre a incubação..
Incubadora: questões das reuniões de comitê........................................................
Empreendimentos: questões das outras reuniões...................................................
6. Considerações finais.....................................................................................................
7. Referências....................................................................................................................
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Resumo
Em razão das transformações no mercado de trabalho das últimas décadas, em especial,
do desemprego de grande parte da população brasileira, preocupações com a geração de
trabalho e renda e com a possibilidade de relações trabalhistas baseadas na autogestão
começaram a ser incluídas nas agendas de muitos grupos, entidades e órgãos públicos.
A economia solidária aparece como uma forma de criar espaços econômicos, sociais,
políticos e culturais baseados em relações igualitárias de consumo, trabalho, troca, etc.
Neste campo, a incubação de empreendimentos solidários é um tipo de intervenção
social cujo objetivo é apoiar e fortalecer cooperativas, associações e grupos populares, a
partir de assessorias técnicas e profissionais. Os processos de incubação se diferenciam
entre si, de acordo com as especificidades de cada incubadora, no entanto, a noção
circulante de incubação também se assemelha nesses diversos espaços. Acredita-se que
os conhecimentos provenientes dos campos profissionais e universitários podem
auxiliar os empreendimentos a se viabilizarem. A partir de uma discussão sobre o
conhecimento e os processos organizativos autogestionários no cotidiano, o presente
estudo teve como objetivo a identificação dos sentidos da incubação que circulam no
entorno de uma incubadora de empreendimentos solidários da região de Campinas, SP.
Através da participação em reuniões e em conversas sobre o tema com uma incubadora
e com membros de empreendimentos, foram apontados dilemas do processo de
incubação. A identificação dos sentidos da incubação, por duas vozes diferentes
presentes nesse universo, permitiu problematizar a noção geral circulante. A questão
que dirigiu o estudo diz respeito às possibilidades de construção de uma ecologia de
saberes dentro da economia solidária, a partir da incubação de empreendimentos. Por
ecologia de saberes, conceito utilizado por Boaventura de Souza Santos, compreende-se
um sistema de saberes, de origens diferentes e, portanto, não apenas científicos,
coexistindo na busca da construção de uma sociedade diferente.
PALAVRAS-CHAVE: INCUBAÇÃO, ECONOMIA SOLIDÁRIA, AUTOGESTÃO,
CONHECIMENTO, SENTIDOS E COTIDIANO.
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Abstract
Em razão das transformações no mercado de trabalho das últimas décadas, em especial,
do desemprego de grande parte da população brasileira, preocupações com a geração de
trabalho e renda e com a possibilidade de relações trabalhistas baseadas na autogestão
começaram a ser incluídas nas agendas de muitos grupos, entidades e órgãos públicos.
A economia solidária aparece como uma forma de criar espaços econômicos, sociais,
políticos e culturais baseados em relações igualitárias de consumo, trabalho, troca, etc.
Neste campo, a incubação de empreendimentos solidários é um tipo de intervenção
social cujo objetivo é apoiar e fortalecer cooperativas, associações e grupos populares, a
partir de assessorias técnicas e profissionais. Os processos de incubação se diferenciam
entre si, de acordo com as especificidades de cada incubadora, no entanto, a noção
circulante de incubação também se assemelha nesses diversos espaços. Acredita-se que
os conhecimentos provenientes dos campos profissionais e universitários podem
auxiliar os empreendimentos a se viabilizarem. A partir de uma discussão sobre o
conhecimento e os processos organizativos autogestionários no cotidiano, o presente
estudo teve como objetivo a identificação dos sentidos da incubação que circulam no
entorno de uma incubadora de empreendimentos solidários da região de Campinas, SP.
Através da participação em reuniões e em conversas sobre o tema com uma incubadora
e com membros de empreendimentos, foram apontados dilemas do processo de
incubação. A identificação dos sentidos da incubação, por duas vozes diferentes
presentes nesse universo, permitiu problematizar a noção geral circulante. A questão
que dirigiu o estudo diz respeito às possibilidades de construção de uma ecologia de
saberes dentro da economia solidária, a partir da incubação de empreendimentos. Por
ecologia de saberes, conceito utilizado por Boaventura de Souza Santos, compreende-se
um sistema de saberes, de origens diferentes e, portanto, não apenas científicos,
coexistindo na busca da construção de uma sociedade diferente.
PALAVRAS-CHAVE: INCUBAÇÃO, ECONOMIA SOLIDÁRIA, AUTOGESTÃO,
CONHECIMENTO, SENTIDOS E COTIDIANO.
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PREFÁCIO
Juliana, o que é essa tal de autogestão e economia solidária que eu não estou
entendendo nada?
(Tereza)
Perplexa. Foi assim que fiquei ao ouvir a pergunta de Tereza
1
. Estávamos no 2º
encontro municipal de economia solidária em Campinas, realizado em 2003. Na mesa,
profissionais ligados ao programa municipal de coleta seletiva e à prefeitura se
revezavam nas falas sobre a importância da economia solidária e da autogestão para as
cooperativas. Na platéia, cooperados e cooperadas, monitores das incubadoras de
cooperativas populares e grupos de apoio assistiam, desde o início da manhã, às
apresentações. Tereza era de uma cooperativa de triagem de materiais recicláveis. Eu
fazia parte da equipe de monitores da incubadora que acompanhava a cooperativa de
Tereza. Em reuniões semanais regulares conversávamos sobre a estruturação da
cooperativa e formas de tornar o trabalho autogestionário, em meio a conflitos
interpessoais. A autogestão e a economia solidária eram temas presentes nessas
reuniões. Daí meu susto com o questionamento de Tereza: falávamos tanto da
autogestão e ela não sabia o que era.
algum tempo me perguntava se o conteúdo que levávamos para as
cooperativas fazia sentido para eles e para elas ou não. Envolvida na elaboração do
caderno de metodologia da incubadora, refletia sobre os alcances da nossa ação no
cotidiano das cooperativas. Apesar disso, tinha muitas dificuldades para falar do assunto
na incubadora. Não conseguia abrir o debate sobre essas dúvidas, por insegurança,
inexperiências, etc. Não tinha completado nem um ano de formação em Psicologia.
Saíra da faculdade direto para a incubadora: um trabalho em que eu acreditava. A
economia solidária me mobilizava, me instigava reflexões sobre o mundo e sobre a
minha vida. Não sabia ainda se aquilo era o que eu desejava para mim, mas via o
impacto das ações da incubadora na vida cotidiana dos grupos que acompanhávamos.
Ao menos uma renda os cooperados e cooperadas conseguiam garantir no final de um
mês de árduo trabalho na triagem dos materiais.
No cotidiano de trabalho na incubadora, considerava importante que
praticássemos a autogestão, porém, por motivos maiores, isso não acontecia
1
Em toda a dissertação, por questões éticas, utilizarei apenas nomes fictícios para personagens reais.
11
oficialmente. Nunca havia trabalhado numa instituição, apenas estagiado. Não conhecia
as relações que se davam nesse universo e meu desejo era debater as idéias que me
acompanhavam desde a graduação. Tinha vontade de conversar sobre questões políticas,
sociais e sobre os efeitos de nossa intervenção. A incubadora acompanhava em torno de
seis grupos de triagem de materiais recicláveis. Minha participação na incubadora se
dava efetivamente em dois ou três grupos, mas o tema, o cotidiano e a construção
daquele projeto faziam parte da minha vida naquele momento de forma intensa. Passava
muito mais tempo na incubadora do que era necessário.
Além de não me sentir a vontade para expor minhas questões de modo mais
incisivo, pesava o fato de termos uma equipe composta basicamente por estagiários,
alguns recém-formados e uma profissional. Não havia alguém mais experiente no
assunto para fazer um acompanhamento mais sistemático e criterioso de nossa atuação
nos grupos. Reuníamos-nos uma vez por semana para planejar o trabalho nas
cooperativas e, em alguns momentos, estudar juntos os temas da economia solidária.
Nesses momentos de estudo, eram muitas as questões trazidas pelas diferentes áreas do
conhecimento científico ou profissional. Chamávamos as reuniões de interdisciplinares
e começamos a perceber que as especializações se misturavam. O psicólogo precisava
aprender sobre economia e assim sucessivamente. Todos precisavam conhecer
minimante as ferramentas de atuação das diferentes áreas. Isso nos levava a desgastes
internos, porque muitas vezes, havia confronto de posições dentro dessas áreas.
Entre conversas, silêncios e ações que às vezes davam certo, às vezes não, ora
me incomodava seguir prescrições ou receitas do melhor jeito de incubar, ora me
incomodava não ter parâmetro nenhum para seguir. Inexperiente tanto em relação ao
trabalho na incubadora quanto em relação ao trabalho como psicóloga, não me
posicionava veementemente sobre essas questões.
Meu envolvimento com a incubadora começou em 2001. Um dia, saindo de uma
aula na faculdade, me deparei com um cartaz que convidava alunos para participarem de
um programa para a constituição de cooperativas populares em Campinas. O cartaz
convocava para uma reunião e eu e mais duas amigas foram até lá ver o que era essa
idéia.
Participamos de um curso de cooperativismo, ministrado por um professor,
economista, que lecionava naquela universidade. Neste curso havia outros alunos (que
também foram convidados pelo cartaz), de diferentes áreas: engenharia ambiental,
12
economia, direito, serviço social, pedagogia, etc. O projeto tinha por objetivo a criação e
assessoria a grupos que se interessassem pela economia solidária. Questões sobre o
cooperativismo, sobre a economia solidária, sobre os efeitos do sistema capitalista nas
vidas das pessoas, eram apresentadas nesse curso. Enquanto se explicava tudo isso,
falava-se na necessidade da quebra do paradigma individualista da nossa sociedade e
que a economia solidária era um caminho para isso, pois se baseava na solidariedade, na
cooperação, nos bens coletivos, etc. Dentro dessa perspectiva, ia apontando possíveis
contribuições dos alunos, em suas diferentes áreas de atuação. Para a Psicologia cabia
trabalhar especificamente nessa quebra de paradigma e na construção de relações
sociais baseadas na solidariedade e não no individualismo.
No ano seguinte, 2002, apenas um grupo de alunos ficou interessado em dar
continuidade ao projeto. Lá estava eu, que àquela altura já me encontrava no último ano
da faculdade de Psicologia. O projeto era uma oportunidade de intervir de alguma forma
na realidade. Aquele mesmo professor do ano passado ainda acompanhava o grupo de
estagiários, como passamos a ser chamados. Colocou-nos em contato com uma entidade
que já auxiliava alguns grupos da região. Disse para acompanharmos o assistente social
dessa entidade nas visitas que fazia aos grupos que queriam virar cooperativa. Isso para
começarmos a nos inserir na prática da entidade. Lembro que fui com ele a alguns
lugares onde estavam sendo criadas cooperativas de triagem de materiais recicláveis. A
primeira que visitei foi uma cooperativa que havia sido formada pela comunidade local.
Começou a partir do desejo de alguns moradores de ajudar um vizinho adoecido,
vendendo latinhas para comprar remédio. Uma experiência muito interessante e que
depois pude conhecer mais de perto. Um exemplo de como um grupo se organizou para
resolver um problema localizado da comunidade: a existência de pessoas, aposentadas e
adoecidas, que não tinham como gerar renda.
A realidade dos grupos, em geral, era um pouco parecida com essa. Tinham sido
formados a partir de um curso de multiplicadores que ocorrera nessa entidade, pouco
tempo antes. Esse curso fora realizado por algumas pessoas que já conheciam o
cooperativismo e oferecido a outros que quisessem estimular a formação de
cooperativas nos seus bairros. Esses multiplicadores tinham por função falar sobre o
assunto, reunir pessoas que estivessem interessados em trabalhar nessa perspectiva e
formar os grupos. A entidade ofereceria apoio técnico, desde que estivesse ao seu
13
alcance. Nesse sentido, a união com a universidade tinha o intuito de fortalecer essa
assessoria, através dos estagiários.
Nesse período, na faculdade de Psicologia, precisava realizar um estágio em
Psicologia Organizacional, e unindo a necessidade de supervisão no trabalho que
iríamos iniciar na entidade, com o desejo de fazer esse estágio fora do campo
empresarial, propusemos (eu e minhas duas amigas) a uma professora que nos
acompanhasse e ela aceitou. Apenas no segundo semestre, depois de termos discutido o
projeto de atuação em dois grupos, conseguimos iniciar o trabalho. Elaboramos um
projeto que tinha como objetivo desenvolver habilidades para o trabalho cooperativo,
baseado nas experiências de trabalho da psicologia organizacional tradicional em
empresas. Apesar de tentarmos dar feições diferentes ao projeto, pensando-o a partir das
discussões dos trabalhos em comunidade, não tivemos condições de diferenciá-lo tanto
de um treinamento.
O contato com o grupo durante o projeto me impactava. Era um grupo da
periferia da cidade, que tinha sido formado há pouquíssimo tempo e já estava triando
seus materiais. Nossas reuniões eram semanais. Nestes dias levávamos atividades, como
dinâmicas de grupo, para trabalhar o que considerávamos as habilidades a serem
desenvolvidas num trabalho cooperativo. Em geral, me frustrava cada vez que ia lá. As
propostas não saíam do papel e quando saíam, nem sempre funcionavam. Mais do que a
nossa inexperiência, tinha a intuição de que não era na lógica empresarial dos recursos
humanos que encontraríamos o jeito de fazer aquele trabalho. Talvez a questão fosse
mais ampla do que a inexperiência pura e simples, que era um fato.
Hoje, depois de ter repensado toda essa história, penso que a questão realmente
era mais ampla: tanto no curso de cooperativismo inicial do qual eu fiz parte, quanto na
supervisão do estágio de psicologia, acredito que partíamos de uma base semelhante: a
crença na ausência de organização, de ferramentas para o trabalho em grupo e de
relações solidárias. Nesse sentido, tornavam-se quase óbvias as atuações de uma
psicóloga dentro de uma cooperativa, de uma psicóloga dentro de uma incubadora e a
própria existência de uma incubadora.
Ainda durante o estágio, resolvemos (a equipe) fazer um curso de economia
solidária em São Paulo, numa universidade. Ali, além de entender melhor o que
estávamos fazendo e onde estávamos entrando (no campo da economia solidária),
também tive a possibilidade de conhecer o debate da Profª Leny Sato e de seus alunos
14
sobre a autogestão no cotidiano. Eles nos apresentavam uma perspectiva que se
diferenciava daquela que havíamos adotado: a de que a autogestão é um processo
organizativo peculiar e que se dá no cotidiano das cooperativas. A implicação daquela
visão era grande. Significava olhar para as pessoas das cooperativas não mais com o
olhar das ausências e sim das presenças: da presença de capacidades de gestão e de
organização. Além disso, eles nos mostravam que os conflitos interpessoais que tanto
apareciam nos grupos com os quais lidávamos eram parte constituinte da autogestão e
não um problema a ser resolvido necessariamente. Um outro professor desse curso
também nos trouxe o debate acerca da “cultura solidária”, que segundo ele, já está
presente nos empreendimentos, nas pequenas práticas cotidianas. Enfatizava-se o
cotidiano e suas relações. E essas idéias começaram a me fazer refletir bastante sobre a
nossa postura.
Aos poucos, o trabalho do projeto se fortaleceu, mais grupos foram aparecendo e
em 2002, nos oficializamos como organização não governamental (ONG), nos
desvinculamos dessa entidade inicial, que continuaria a atuar em seus outros projetos.
Nosso papel seria o mesmo: acompanhar mais de perto os grupos, estimular a formação
de outros, fomentando o cooperativismo na cidade. Às visitas que fazíamos aos grupos
chamávamos de incubação. Faríamos o papel de uma incubadora de cooperativas
populares, mesmo sem adotar esse como a única via de atuação.
Depois disso, muitas coisas aconteceram na incubadora (e serão relatadas, na
medida do possível, mais a frente) e chegamos a 2003, no encontro municipal de
economia solidária, no momento da pergunta de Tereza. Em meio a tudo que relatei
acima, aquela pergunta me colocou mais e mais perguntas ao longo do tempo. Naquele
momento, reproduzi o papel de monitora de incubação e a respondi. Mas essa pergunta
sempre retorna às minhas reflexões. O que ela queria dizer com sua indagação? Será
que não tinha entendido nada do que estávamos falando na sua cooperativa? Não era
possível. Penso que é uma pergunta que quero levar comigo até o fim dessa dissertação,
quando apresentarei a conclusão de Tereza, que finalizou nossa conversa. Por enquanto,
apenas aponto que foi uma pergunta que me fez pensar na incubação, no que estávamos
fazendo, no que gostaríamos de fazer, no que acreditávamos e em como
concretizávamos isso tudo no cotidiano das cooperativas.
E foi assim que me inseri no campo da incubação na economia solidária, que
pretendo problematizar com essa dissertação. Quero dizer que o que contarei aqui é uma
15
história, vista a partir dos meus olhos. É, de certa forma, uma história confusa, porque a
experiência de trabalho na incubadora foi confusa mesmo. Confusa e contraditória, mas
que me trouxe por caminhos que eu não esperava, especialmente com a reflexão que o
mestrado me proporcionou. Nesse sentido, peço ao leitor cuidado ao ler esse texto.
Além de ser uma pesquisa, acredito que sua grande ênfase é a reflexão sobre caminhos,
sobre inseguranças, sobre o nada saber e o saber tudo. O tema maior em que pretendo
entrar é a incubação de empreendimentos solidários. A intenção não é avaliar, dar
respostas e muito menos propor soluções. Se eu soubesse a solução para os problemas
da incubação já teria a revelado antes, sem precisar viver tudo que vivi. Como diz meu
orientador: “Se você é parte da solução, você também é parte do problema”. E é aí que
me incluo em tudo que escrever aqui.
Falar de incubação em pesquisa não foi uma tarefa muito tranqüila. O tema é
polêmico e capaz de gerar debates acalorados. Essa é uma pesquisa modesta: quer se
inserir no debate a partir de sentidos do entorno de uma única incubadora. Por
questões éticas nem incubadora nem seu entorno serão identificados. É um relato da
maneira como compreendi os debates acerca da incubação nesse entorno. Estaremos
agora entrando numa trincheira de sentidos do incubar
16
INTRODUÇÃO
17
Nós contamos histórias e nós nos tornamos as histórias que
contamos” (SPINK, P. 2003, p.22).
Se, como diz Peter Spink (2003), pesquisar é contar uma ou mais histórias, quem
escreve transforma-se num contador de histórias que procura, de alguma maneira,
redescrever o que viu e viveu durante o tempo em que se dispôs a conhecer a história.
Narradores narram de maneiras diferentes e imprimem nas histórias seus pontos de
vista, sentimentos, entonações, fazendo, eles próprios, parte importante da história que
contam e para contá-la nem sempre é preciso um começo, meio e fim.
A história que pretendo contar é uma história da qual participei. Como já
apresentei no prefácio, minha primeira experiência de trabalho foi numa incubadora de
cooperativas populares. Falo de um tempo que passou, mas que deixou marcas de
aprendizado em mim e, acredito, na incubadora. Relembrar essa história, nesse
momento do texto, é procurar entender de onde surge minha pergunta. O que me
motivou a fazer essa pesquisa foram as minhas dúvidas nesse trabalho. Acredito que a
falta de experiência com o trabalho proposto pela incubadora e o abandono de uma
equipe de estagiários diante dos problemas presentes nas cooperativas, tenham
contribuído para que eu quisesse problematizar o papel da incubação. No entanto,
também me pergunto se o que vivi teve a ver unicamente com as circunstâncias da
incubadora naquele momento ou se seriam fruto de sentidos de incubação
compartilhados socialmente, que remetem a dimensões maiores.
A idéia de incubar empreendimentos solidários não é recente. É algo que se
construiu no tempo. Compartilhar sentidos, construí-los e reconstruí-los é o que
fazemos todos os dias. Sentidos como construções sociais interativas, por meio dos
quais, nas nossas relações sociais, datadas e localizadas, construímos e damos nomes ao
mundo e, através deles, compreendemos e lidamos com as situações a nossa volta
(SPINK, M. J, 2005). Sentidos que se constroem em tempos: tempos de uma cultura, de
socializações e o tempo do aqui agora.
O conceito de incubação circulante, mais geral, diz respeito a um apoio técnico
ou teórico - que é feito por um grupo de pessoas a outro grupo de pessoas. No caso da
economia solidária, esse apoio é feito a partir dos conteúdos da mesma. No entanto, é
importante lembrar que a palavra incubar é mais antiga do que imaginamos. Apesar do
18
surgimento das incubadoras de cooperativas ter se intensificado a partir do início desse
século, a incubação, enquanto conceito, palavra, tem origens muito antigas.
Por economia solidária, refiro-me a um conjunto de práticas e teorias - cujas
origens remetem a uma história mais longa que se baseiam nos princípios da
autogestão, do cooperativismo. Esta pode se concretizar de diferentes maneiras: clubes
de troca, moeda social, compras coletivas, cooperativismo/associativismo, etc. Nessa
última, a partir de cooperativas de consumo, de prestação de serviço, de trabalho, entre
outras. Esta pesquisa se insere no campo dos empreendimentos solidários de trabalho,
onde pessoas se agrupam para coletivamente gerir a sua produção.
No prefácio, falo de como se deu minha chegada na economia solidária: a partir
de uma formação que me levou a crer na presença de um cotidiano vazio, de
racionalidade (no sentido das capacidades que fazem parte do local). Quando não era
vazio, o cotidiano era feito de um senso comum ao qual precisávamos acrescentar novos
conteúdos e novas práticas. Mesmo que não tivéssemos consciência disso, era uma
forma de pensar que fazia parte das versões que se encontraram para compor a
incubadora. Foi um ponto de partida: concepções acerca do que era educação, do que
era o trabalho social, do que era uma intervenção e do que era a economia solidária. Isso
não significa que, com o passar do tempo, todas essas noções não foram revistas e
reformuladas, a partir da realidade e das contradições que a própria atuação da equipe
permitia ver
2
.
Então, aí está uma primeira pergunta: quais os pressupostos de uma incubação
de empreendimentos solidários?
Ao mesmo tempo, há também o debate da economia solidária dentro da
academia. Ela tornou-se um fenômeno importante para pesquisas em diversas áreas do
conhecimento, inclusive para a Psicologia Social. Neste campo, as produções são bem
heterogêneas: há pesquisas que têm como foco relações interpessoais, conflitos,
formação política, práticas de solidariedade, cultura solidária, processos de decisão na
autogestão, sofrimento ético-político na cooperativa, laço social, estratégia de
sobrevivência, entre outros.
3
São estudos voltados para os empreendimentos e as
2
Mais a frente, farei um recorte histórico dessa experiência de incubação, no entanto, não mais para me
referir a mim, e sim, para tentar entender as origens dela.
3
Sobre o assunto, ver: ESTEVES (2004); ANDRADA (2005); KEMP ( 2001), BARBOSA (1999), IDE
(2004), LEÓN-CEDEÑO (1999; 2006); SOUZA ( 2006); SOLANGE (2005);
19
conseqüências dessa vivência no cotidiano e que trazem importantes contribuições para
o debate da incubação enquanto um processo relacional. A variedade é grande e não
caberia citar todas aqui. Quero apenas referenciar algumas que considerei importantes
para a linha argumentativa desse trabalho.
Destaco três dissertações que me interessaram nessa busca. A primeira delas é a
de Esteves (2004), que vai conhecer o trabalhador no cotidiano de uma cooperativa
industrial de São Paulo, a partir das dimensões “sócio”, “trabalhador” e “pessoa”. Sendo
um estudo de caso, o autor ressalta que ao conhecer o cotidiano desses trabalhadores,
teve a oportunidade de entrar em contato com a variedade de compreensões acerca de
inúmeras questões, concluindo, a partir disso a onipresença dos aspectos pessoais no
dia-a-dia da cooperativa, uma vez que são eles que “informam uma enorme diversidade
de entendimentos e práticas dos cooperados” (p.172). Além disso, aponta para as
experiências de formação política dos cooperados (ao lutarem pela recuperação da
empresa antiga) como o alicerce simbólico da vivencia da autogestão; apresenta que os
momentos de “esperança e desesperança” em relação ao trabalho fazem parte desse
cotidiano; dá-se conta da astúcia dos mesmos no lidar com os processos produtivos e a
base técnica herdada da antiga empresa, onde se recriam possibilidades. Segundo o
autor, há diversas maneiras de entender a cooperativa e elas são negociadas de acordo
com os interesses, num “método coletivo de produção de entendimentos” (p.173), onde
a alternância de posições (sócio, trabalhador e pessoa) é fundamental.
Numa linha semelhante, encontra-se o trabalho de Andrada (2005), que ao tomar
contato com o cotidiano de mulheres de uma cooperativa em Porto Alegre pôde refletir
sobre as repercussões, pessoais e no trabalho, da vivência da autogestão. Uma das
constatações desse processo é que dentro da cooperativa coabitam várias experiências
de autogestão, do ponto de vista psicossocial, a partir das posições que cada cooperada
ocupa. Segundo a autora,
Ainda que se encontrem nos limites físicos e simbólicos do mesmo
empreendimento, experimenta-se ali dentro, cotidianos micropolíticos
distintos, como ocorre entre quem trabalha em casa e na sede, ou mesmo
entre quem trabalha na seção do corte ou da serigrafia. As diferenças entre
esses cotidianos, como vimos, advêm de aspectos relacionados à maneira de
organizar o trabalho, a questões micropolíticas e sociotécnicas, que incidem
sobre os modos de perceber e interpretar o que se vive ali. (ANDRADA,
2005, p. 231).
Entre as principais repercussões (que não são idênticas) estão a questão do
direito ao trabalho, do pertencimento ao grupo da cooperativa e do enraizamento como
20
sujeitos tanto no bairro onde moram como no seu trabalho. Andrada considera essas
repercussões como condições simbólicas que permitiram que as trabalhadoras agissem
politicamente, momentaneamente, através de um afastamento das questões da
sobrevivência. A experiência de participação no Orçamento Participativo foi um dos
canais que possibilitou que essa ação política acontecesse.
Uma outra contribuição para essa discussão é a dissertação sobre práticas
solidárias numa ocupação de Campinas, de Souza (2006). A autora se propõe a falar
sobre a solidariedade a partir do cotidiano das pessoas dessa comunidade. Interessada
em compreender como se dá a construção do “nós” neste lugar, aponta uma dica para se
pensar a solidariedade: a existência de uma identidade social como condição para as
práticas solidárias, afirmando que estas se dão a partir do senso de igualdade e de
pertencimento.
Os dois primeiros estudos têm em comum o reconhecimento de que o impacto
da autogestão na vida dos trabalhadores da economia solidária é heterogêneo, variado.
Não é possível falar em uma “autogestão”, mas em várias experiências de autogestão
que são negociadas no cotidiano. Por sua vez, juntando-se ao último estudo, esse
cotidiano não é um vazio, nem um pano de fundo. Ele é onde as coisas acontecem, onde
a autogestão e a solidariedade são criadas e recriadas.
Em relação à Psicologia Social, essas questões podem sugerir perguntas acerca
de como os sentidos de incubação estão sendo produzidos. Que lugar tem o cotidiano
nessa produção? De acordo com P. Spink (2003): “Precisamos de uma psicologia social
capaz de respeitar as capacidades coletivas expressas em saberes, práticas e ações
organizativas, com a disposição e a competência de entrar na luta pelas utopias, capaz
de compreender as redes solidárias, a autogestão e a solidariedade...” (p. 68).
Por outro lado, no campo da educação, há os debates trazidos por autores como
Paulo Freire (1987), Carlos Rodrigues Brandão (1999), Francisco Gutiérrez (1993), dão
visibilidade à importância do processo educacional ser encarado a partir da
dialogicidade. Freire a entende como a essência da educação como prática de liberdade.
Mas, se dizer a palavra verdadeira, que é trabalho, que é práxis, é transformar o
mundo, dizer a palavra não é privilégio de alguns homens, mas direito de todos
os homens. Precisamente por isto, ninguém pode dizer a palavra verdadeira
sozinho, ou dizê-la para outros, num ato de prescrição, com o qual rouba a
palavra dos demais (1987, p. 78).
21
Essa preocupação com o diálogo tem a ver com uma compreensão de que o
conhecimento não é algo que se transmite, mas que se constrói na relação. O educador é
também educando no processo criado na educação. Não desconsidera a existência de
saberes, mas fala de sua superação, que se dará pela educação. Uma preocupação que
tem a ver com a luta por igualdade e contra a opressão, perpetuada por um modo de vida
baseado na produção de mercadorias e no consumo. A partir dessas reflexões,
atualmente há um grande número de profissionais das mais diversas áreas do
conhecimento buscando em suas práticas a não separação entre sujeito e objeto da
educação, entre quem educa e quem é educado. A educação é um processo histórico
compreendido como uma relação de troca entre diferentes conhecimentos, posições.
Essa é uma preocupação muito presente nos documentos e relatórios sobre os processos
de incubação elaborados pelas incubadoras, como abordarei adiante.
Um outro motivo que leva à preocupação com a incubação diz respeito às
maneiras como as idéias de empregabilidade e de formação do trabalhador são
construídas socialmente. É comum ouvir que o fracasso do trabalhador desempregado
está relacionado à má formação profissional, a uma não-qualificação para determinado
posto de trabalho. Empregabilidade é a qualidade de ser empregável e em tempos de
desemprego, o trabalhador deve buscar incremen-la. Diz respeito a um conjunto de
habilidades que, por si só, dariam à pessoa a capacidade de conseguir conquistar um
posto de trabalho. Ignora-se a maneira como o livre comércio, os processos de
globalização e reestruturações produtivas produzem situações precárias de trabalho. A
presente discussão também parte de uma reflexão sobre o discurso “desqualificante” da
qualificação e da empregabilidade que, em vez de abrir portas para a transformação, as
fecha, encobrindo assim noções sobre o homem e sobre o mundo que não servem senão
para perpetuar a desigualdade (TANGUY, 1997; BRUTIN, 2003).
Dentro da economia solidária, esta é uma temática importante e que, no debate,
poderá levantar questões para a elaboração dos objetivos da incubação, e
consequentemente, das metodologias de cada incubadora. Questões a respeito dos
sentidos da formação do trabalhador autogestionado e do conteúdo da mesma. Aqui, o
tema ilustra parte do problema da busca dos sentidos da incubação e de sua inevitável
negociação.
Ao mesmo tempo, é crescente o número de programas e projetos de redução da
pobreza, em geral financiados por empresas de porte que visam combater a
22
desigualdade a partir da geração de renda para populações em situações de pobreza, e
para isso, um dos nortes é, mais uma vez, a formação e a capacitação. Em muitos casos,
idéias como a do empoderamento são pontos de partida para o trabalho. Há diversas
maneiras de pensar o empoderamento dessas populações, porém a que é mais
comumente utilizada refere-se ao fortalecimento de características individuais dos
atores sociais envolvidos em tais projetos e assim, localizando mais uma vez o
problema social no indivíduo.
Um último ponto fica faltando para explicar a necessidade dessa
problematização: para a própria economia solidária, os processos de formação do
trabalhador são importantes. Essa é uma idéia muito presente na literatura sobre o tema
e concretizada, de diferentes maneiras, em quase todos os lugares onde há experiências
acontecendo. Em um volume especialmente dedicado ao Programa Nacional de
Incubadoras de Cooperativas Populares PRONINC, diz-se que: “É inevitável falar da
importância da educação para o cooperativismo, único caminho viável para aumentar a
participação. O indivíduo que conhece suas capacidades, e as desenvolve, é mais apto a
fazer valer suas idéias, defende seus pontos de vista, não se acomoda sob diretorias com
as quais não concorda” (CADERNOS DA OFICINA SOCIAL, 2002, p.21).
Singer (2002) acredita que, pelo fato da maioria das pessoas ter passado muitos
anos trabalhando em organizações em que a gestão não era coletivas, a prática da
autogestão não é comum. Essas pessoas que hoje entram nos empreendimentos estão
acostumadas ao sistema anterior e por isso, têm tantas dificuldades nesse processo. A
idéia da existência das incubadoras de empreendimentos solidários justifica-se, em
parte, por essa afirmação.
Aos poucos, vai ficando claro para o leitor de que perspectiva pretendo encarar
os sentidos da incubação. Incomodada com o vazio do cotidiano, fui em busca dos
motivos que me levaram a acreditar nele, mesmo que momentaneamente. Me deparei
com leituras sobre os processos de colonização de saberes, de Boaventura de Souza
Santos, que me levam a refletir sobre “uma” formação acadêmica que vê o cotidiano e o
senso comum como, pano de fundo e não saber, respectivamente. E aí, me perguntei se
a incubação, feita por nós, estudantes, professores ou profissionais, entraria ou não
nesse campo. O que consideramos como conhecimento é uma outra pergunta que me
faço nessa dissertação. Para completar o rol de autores que me guiaram, me encontrei
também com uma outra perspectiva, a feminista:
23
As feministas têm interesse num projeto de ciência sucessora que ofereça
uma explicação mais adequada, mais rica, melhor do mundo, de modo a viver
bem nele, e na relação crítica, reflexiva em relação às nossas próprias e às
práticas de dominação de outros e nas partes desiguais de privilégio e
opressão que todas as posições contêm (HARAWAY, 1995, p. 15).
A ciência que se faz na academia é situada tanto quanto o conhecimento que se
produz em outros espaços. E é assim que comecei a pensar na incubação: como um
corpo de conhecimentos, reflexões e práticas que é situado. Para a autora, a produção do
conhecimento é sempre de alguém em algum lugar e num tempo. Assim é essa
dissertação e assim tentarei olhar para a incubação: enquanto uma produção socialmente
localizada. Para essas autoras e autores, tornar o conhecimento científico “no” único
conhecimento válido é impor aos outros, uma universalização que, em última análise,
não deixa de ser localizada também.
Como ressalta Balasch (2004), na perspectiva dos conhecimentos situados, a
produção do conhecimento é sempre relacional e longe de representar a realidade
externa, são frutos das interações, conexões parciais entre as posições ocupadas.
Parciais porque as posições diferem entre si e não se conectam a partir de sua
identidade, mas na tensão entre semelhanças e diferenças entre elas.
Enfim, diante disso, a proposta é focalizar a incubação no seu sentido mais
amplo, enquanto noção que circula com facilidade pela economia solidária. No entanto,
entendo que, ainda assim, esse sentido mais geral se dá sempre de forma específica em
cada lugar, nas relações de cada empreendimento solidário com cada incubadora.
Quando algum grupo adota como referência de trabalho a expressão “incubação de
empreendimentos solidários” este está se situando numa comunidade de sentido mais
ampla, conhecendo ou não a noção. Obviamente que só se faz a “incubação” em algum
lugar e no caso dessa pesquisa, numa incubadora de Campinas.
Diante disso, mas não apenas, o processo que pretendo compreender é o da
negociação dos sentidos do incubar empreendimentos solidários, a partir de conversas
no entorno de uma incubadora de cooperativas em Campinas, SP. A princípio, me dividi
entre os de dentro da incubadora e os de fora, o que foi tornando-se inviável conforme
olhava para as conversas que havia tido com as pessoas e tentava delimitar um campo
de pesquisa. Meu campo vai além do lugar incubadora, ele é um campo-tema, um tema
no qual eu entro, ora de forma central ora perifericamente. O meu campo-tema é esse
universo da incubação, ao qual me remeterei tanto a partir de textos e reflexões teóricas,
24
quanto a partir de textos vivos, conversas com pessoas (não apenas pessoas da
incubadora) a esse respeito.
Não significa colocá-los em igualdade de poder, pois são posições e papéis
distintos. É perceber se há lugares de confronto, conflito e negociações dos sentidos do
incubar. Antes de continuar na próxima seção, uma inspiração, proposta por Boaventura
de Souza Santos, em que fala sobre a ecologia dos saberes:
(...) garantir igualdade de oportunidades aos diferentes conhecimentos em
disputas epistemológicas cada vez mais amplas com o objetivo de maximizar
o contributo de cada um deles na construção de uma sociedade mais
democrática e justa e também mais equilibrada em sua relação com a
natureza. Não se trata de atribuir igual validade a todos os conhecimentos,
mas antes de permitir uma discussão pragmática entre critérios alternativos
de validade que não desqualifique à partida tudo o que não cabe no cânone
epistemológico da ciência moderna (2005, p.10) .
Mais uma vez sinto necessidade de afirmar que essa não foi a busca por uma
melhor maneira de fazer a incubação, assim como também não tem a intenção de
avaliar, julgar ou mesmo denunciar uma prática existente. A única proposta aqui
presente é a da problematização do tema. Se essa problematização levará a outros
questionamentos, é uma outra história.
O que é educação para a economia solidária, na prática? Como os saberes são
pensados e discutidos? Há articulação de “certos” e “errados” na incubação ou a
aceitação da coexistência e convivência (não necessariamente pacífica) de diferentes
perspectivas? Acredito que o conhecimento dos sentidos da incubação por diferentes
vozes permitirá refletir, para além da experiência de uma única incubadora, sobre as
possibilidades de uma incubação que seja mais parecida com uma ecologia de saberes
do que com uma transferência do saber científico ou organizacional para os
empreendimentos sem agregar o que existe de conhecimento preparado e construído no
cotidiano.
Essa dissertação buscou responder às perguntas: como se dá a construção da
idéia de incubação para essa incubadora? Existiriam diferentes sentidos de incubação
circulando nesse cotidiano? Que sentidos são esses e quais são as vozes presentes nessa
construção?
O texto está organizado da seguinte maneira: o primeiro capítulo introduzirá o
leitor nas questões mais amplas da economia solidária e dos seus diferentes sentidos no
Brasil, acreditando ser importante identificar também as versões existentes para o
cooperativismo, para a autogestão e para a economia solidária. Em seguida, optei por
25
apresentar um pouco do que circula teoricamente sobre a incubação de
empreendimentos solidários neste país e vincula-la a uma breve discussão sobre a
desigualdade social e pobreza, questão muito presente no trabalho das incubadoras. No
terceiro capítulo apresentarei o aporte teórico da psicologia social no qual me baseio
para o desenvolvimento da pesquisa, apresentando mais claramente os caminhos que
percorri. Já no quarto capítulo, uma parada para reflexão sobre a diversidade
epistemológica e os processos autogestionários na economia solidária. Por fim,
apresento algumas conversas que aconteceram e possíveis considerações finais.
26
1. CONSIDERAÇÕES SOBRE A METODOLOGIA
27
Escolhi uma estrada dentre as muitas possíveis para falar da incubação. A princípio
não sabia onde gostaria de chegar e muito menos como fazer. Aos poucos, percebia que
a própria pesquisa já estava acontecendo e me mobilizando para uma direção. Que eu
não precisaria pensar em ir a um campo de pesquisa, pois eu já estava dentro dele.
Resolvi participar de reuniões tanto dentro da incubadora quanto fora, nos seus
arredores.
Em meio a minha presença nas reuniões de equipe da incubadora, nas reuniões com
os empreendimentos e encontros e fóruns municipais, plenária estadual de economia
solidária, já me vi decidindo por um caminho ao invés de outros. Os objetivos, que não
estavam claros no início, foram se criando conforme me debruçava sobre o tema e
refletia. O método é sempre a decisão por um caminho ou outro. E certamente está
embasado em perspectivas e formas de compreender os fenômenos que se quer
conhecer.
No Núcleo de Organização e Ação Social da Psicologia Social, na PUC-SP, tomei
contato com uma perspectiva que ainda não conhecia e com a qual me identifiquei,
especialmente no que diz respeito à discussão epistemológica e metodológica. Há algum
tempo, os pesquisadores do núcleo vinham refletindo sobre o pesquisar em psicologia
social. Havia um entendimento de que o núcleo não produzia pesquisas da maneira
tradicional, com objetivos e métodos bem delimitados desde o início. “Ao contrário, a
pesquisa tendia a se dar a partir da identificação de um ponto de partida, a partir do
qual: ‘iria se caminhando sem saber direito como e onde’ ” (SPINK, 2003, p. 1).
apenas um ponto de partida, uma questão, um incômodo que localiza o pesquisador
dentro de um tema, e que, ao se posicionar dentro dele, abre espaços para que o
caminho, os objetivos, os métodos se mostrem aos poucos.
Essa discussão teve como pontos de partida, cinco grandes eixos, que Peter Spink
(2003), coordenador do núcleo, relata num artigo: 1. preocupação com a relação de
pesquisa (“pesquisador” e “pesquisado”), que engloba a pesquisa colaborativa, a
pesquisa participante, a pesquisa ação e a ética na pesquisa, seja ela qual for; 2. a
experiência do núcleo com o uso de múltiplos métodos dentro de uma mesma
investigação; 3. aproximação com uma abordagem construcionista dos processos
sociais; 4. reconhecimento de que os estudos do núcleo não partiam de um
planejamento prévio e sistemático de pesquisa e 5. a importância de refletir sobre o
como “contar” essas histórias.
28
Depois de retomar o conceito de campo de Kurt Lewin, que diz respeito à
“totalidade de fatos psicológicos que não são reais em sim, mas são reais porque tem
efeitos” (p. 2), o núcleo chegou à reflexão construcionista da linguagem e à
intersubjetividade, o que ampliou os horizontes e permitiu compreender o campo não
como lugar específico, já que o próprio lugar começou a ser visto como produto social.
Agora o campo passa a ser o assunto. Campo, portanto é o argumento no qual
estamos inseridos; argumento que tem múltiplas faces e materialidades, que
acontece em muitos lugares diferentes” (SPINK, 2003, p.6)(grifo meu).
Para designar essa nova versão de campo de pesquisa, adotou-se o termo campo-
tema, que diz respeito a tudo que remete ao tema e que muitas vezes é anterior ao
próprio local geográfico. A partir daí, a noção de matriz (Hacking, 1999) permite pensar
as construções sociais num campo composto por vários aspectos: as materialidades e
socialidades. Assim, àquelas coisas que denominamos objetos são também produtos
sociais lingüísticos, portanto chamadas de materialidades e às relações sociais,
socialidades. De acordo com o autor,
As idéias não existem no vácuo, habitam situações sociais. Vamos chamar
isto a matriz dentro da qual uma idéia ou conceito são criados. A matriz
dentro da qual a idéia de mulher refugiada é formada é um complexo de
instituições, ativistas, artigos de revista, advogados, decisões jurídicas,
procedimentos imigratórios. Para não falar da infra-estrutura material,
barreiras, passaportes, uniformes, balcões de aeroporto, centros de detenção,
tribunais e os campos para crianças refugiadas. Você pode querer considerar
estes como sociais porque são seus sentidos que são importantes para nós,
mas são materiais e sua materialidade faz uma diferença substantiva para as
pessoas. Igualmente, as idéias sobre mulheres refugiadas afetam o ambiente
material (porque mulheres refugiadas não são violentas e não há necessidade
de armas, mas há uma grande necessidade de papel, papel, papel)...
(HACKING, 1999, p. 10)
Nesse sentido, ao optar por essa perspectiva, o pesquisador sai do campo da
pesquisa tradicional e se orienta em direção de algo distinto, tanto nos seus objetivos, no
seu método e na sua maneira de trabalhar com os sentidos que aparecem na pesquisa. É
preciso encará-la com outro olhar, senão as conclusões parecerão frágeis e sem
validade.
Não há dados, mas há, ao contrário, pedaços e fragmentos de conversas:
conversas no presente, conversas no passado; conversas presentes nas
materialidades; conversas que já viraram eventos, artefatos e instituições;
conversas ainda em formação; e, mais importante ainda, conversas sobre
conversas. Não há múltiplas formas de coleta de dados, e sim, múltiplas
maneiras de conversar com socialidades e materialidades em que buscamos
entrecruzá-las, juntando os fragmentos para ampliar as vozes, argumentos e
possibilidades presentes (SPINK, 2003, p.61).
29
De acordo com o autor, o campo-tema “... é um processo contínuo e multi-
temático no qual as pessoas e os eventos entram e saem dos lugares, transformando-se
em versões e produtos que também são feitos por pessoas e utilizados por pessoas em
diálogos que podem ser lentos e distantes, mas mesmo assim acontecem.”(SPINK,
2003, p. 4). Como eventos e produtos, conversas, o pesquisador deve estar atento a
aspectos que antes não estaria:
Em qualquer lugar podem aparecer formas de fazer que se conectem, de uma
ou outra forma, com o campo-tema: mídia impressa ou áudio-visual, dança,
poesia, conversas no cotidiano, documentos de domínio público, debater com
as pessoas e fazer junto com elas. Isso porque, tal como dito anteriormente,
estamos dentro de redes de poder/dominação/controle e emancipação que se
interconectam, redes de materialidades e socialidades cujos pontos se
constituem mutuamente sem ter um centro único ou imutável (LÉON-
CEDEÑO, 2006, p. 83)
O objetivo que foi aparecendo no processo da pesquisa foi o de buscar os
sentidos circulantes de incubação que vêm sendo negociados cotidianamente, tanto
nas práticas discursivas de uma incubadora da cidade de Campinas quanto nos
encontros entre incubadora, cooperativas e gestão pública. Mais especificamente,
pretendi:
1. Caracterizar os diferentes sentidos de incubação, apresentando as diferentes
vozes presentes na construção cotidiana destes: a fala da equipe da incubadora
bem como dos membros dos empreendimentos, e por vezes, da gestão pública.
1. Compreender como se dá o processo de negociação desses sentidos nos espaços
de discussão presentes nesse cotidiano.
A composição de um quadro onde diversos fragmentos de conversa formarão um
conjunto, conectados ou não, poderá permitir a interação com os dilemas e os pontos
fortes da construção da noção do incubar. Este trabalho é uma coletânea de pedaços
vindos de lugares e posições diferentes, narrativas que vão se configurar numa espécie
de mosaico.
Já que sentidos são empreendimentos coletivos, que se constroem numa matriz,
por materialidades e socialidades, fica evidente a impossibilidade de pensar em uma
única versão para incubação e tampouco que essa versão é construída unicamente pela
incubadora, mas também pelos outros atores da economia solidária. A produção de
sentidos implica a existência de outros interlocutores.
30
Isto significa que, para alcançá-los, precisei ir ao encontro dessa multidão de
sentidos e versões presentes no universo da incubação na economia solidária,
entendendo a importância de inicialmente visibilizar as diferentes versões dadas a uma
ação. Dessa forma, evitar-se-á a possibilidade de hegemonia de um discurso que, apesar
de estar em pleno amadurecimento, corre o risco de se tornar rígido e cristalizado,
incapaz de dialogar com outros canais de compreensão sobre a prática do incubar.
A partir disso, tentei responder a essas perguntas: há diferentes sentidos de
incubação circulando e produzindo a própria incubação? Se há, quais são os diferentes
sentidos de incubação presentes no cotidiano dessa incubadora de empreendimentos
populares solidários? Como se dá o processo de construção desses sentidos para que a
incubação aconteça?
Pesquisar é conversar: a questão da autoria da dissertação
Toda essa nova forma de pensar a pesquisa implica em encará-la dentro de uma
variedade de conversas: pesquisar é mais uma conversa ou mais algumas conversas
(SPINK, 1999). A dissertação é um texto que diz alguma coisa, seja importante ou não,
mas diz. O pesquisar é recolocado no lugar de comum, deixa de ser algo que centraliza e
impõe autoridade aquela fala e passa a ser mais uma voz dizendo algo, dentro de um
universo de conversas, de debates, de disputas. Assim, falar em sentidos de incubação e
problematizá-los dessa maneira, é argumentar, a partir de um lugar e de um tempo,
com outras pessoas que também estão falando sobre o assunto, que têm seus pontos de
vista sobre incubação.
Olhar para o campo como o argumento dentro do qual se insere uma pesquisa
implica estar posicionado e ocupar algum lugar dentro dele, algo que seja maior do que
o papel de um observador (e mesmo o pesquisador que opte por observar, estará
posicionado também), algo que permita uma participação, uma relação de debate, de
conversa. A participação de quem faz a pesquisa, seja como for, também produzirá
sentidos. Assim, compreendo o processo de pesquisar como um momento de diálogo
com as inúmeras pessoas, materialidades, artefatos que participam contando suas
histórias, suas versões, para assim, tentar transformar as práticas (SPINK, 2003).
Portanto, pesquisar não é ser neutro. O relativismo, um dos grandes norteadores
desse enfoque, muitas vezes atemoriza algumas pessoas, que argumentam que então
31
tudo é possível e considerável. No entanto, ainda que o risco de cair nesse absolutismo
exista, necessariamente perceberá que a reflexão ética aconteça. O seu lugar nessa
discussão aparece quando se olha para os sentidos que estão sendo construídos e se
reflete sobre seus efeitos no cotidiano das relações. M. J. Spink resume isso da seguinte
maneira:
Não há como negar esses medos. Mas preocupações que suscitam abre mais
uma janela para a reflexão ética. Para afirmar que X não precisaria ter
existido ou que X poderia ter sido diferente, tenho que me situar no campo da
ética. Por isso, para mim, as coisas andam juntas. O relativismo suscita a
necessidade de reflexão sobre os efeitos daquilo que a gente produz; suscita,
portanto, uma reflexão ética. O mérito de acatar tão abertamente uma postura
relativista face aos fatos sócias é que ela abre o debate; força a reflexão sobre
os efeitos de nossas práticas em pesquisa. (2004, p.28)
De acordo com Spink (2003, p.55), “investigar é uma forma de relatar o mundo
e a pesquisa social é tanto um produto social para relatar quanto um produtor de relatos,
uma maneira de contar o mundo.” Todos os saberes são processos sociais construídos
coletivamente, inclusive a pesquisa científica. O que, por outro lado, não significa que
então tudo é possível e deve acontecer sem ninguém se preocupar. Escrever uma
dissertação implica numa responsabilidade de estar produzindo um texto dentro de um
espaço social a universidade que, por muito tempo e ainda hoje, tem um status e
legitimidade diferentes dos outros. O risco de transformar um texto, localizado, em
universal, não é pequeno.
Por sua capacidade de produção de sentidos, aquele que a escreve deve estar
desde o início, imbuído da responsabilidade pelos efeitos que produzirá. Assumindo sua
postura diante do que estudou e apontando dicas sobre o caminho. Ao dizer que fui
conversar com muitas pessoas sobre a incubação, não quero aqui dizer que foram todas
conversas amigáveis, harmônicas e coloridas. Pelo contrário, me vi, em vários
momentos, diante de situações desconfortáveis e delicadas, inclusive com relação ao
texto que escrevia, a forma como escrevia, aos meus objetivos iniciais, etc. Entrar no
campo de debate sobre a incubação não é entrar tranquilamente, ainda mais quando se
entra a partir da universidade, redigindo um texto sobre isso.
A dissertação é um texto que, querendo ou não, é protegido pelo aparato da
academia, pelo discurso científico, que, caso seja aprovada, me garantirá alguma
legitimidade de falar sobre o assunto. No entanto, há sim múltiplas conversas
produzindo os sentidos, e sim, uma delas será o meu texto, o que não significa que essa
relação de produção de sentidos sobre o incubar se dá de forma coerente e tranqüila,
32
mas nas lutas pela hegemonia do discurso. Este texto entra nessa corrente de debates e
busca mais do que dar respostas, provocar reflexões, sabendo que corre o risco de ser
aceita inadvertidamente sem que as reflexões que propõe sejam feitas.
A pesquisa em Psicologia Social, e por que não em todos os campos da ciência,
não tem direito algum de se colocar acima dos outros saberes existentes no mundo, pois
não acredita-se na existência de saberes universais. “Se o processo de pesquisa não é um
processo de achar o real ou uma investigação para descobrir a verdade, mas, ao
contrário, é uma tentativa de confrontar, entrecruzar e ampliar os saberes, precisamos
também buscar meios e formas de narrar e veicular nossos estudos que incluem e não
excluem; que apóiam os debates e não afastam e excluem os debatedores” (SPINK,
1999: 61). A partir daí, reafirmar o compromisso ético com aquele campo-tema e com
as pessoas que o constroem cotidianamente, buscando formas de dialogar a partir da
pesquisa.
Considerações sobre os sentidos e a linguagem em uso:
O olhar para a produção de sentidos na perspectiva da linguagem em ação, é
uma visão compartilhada por diversos autores e está baseada na compreensão da
linguagem a partir do giro lingüístico, nos anos 1970 e 1980, em um momento das
ciências humanas, sociais e da filosofia, onde a natureza da linguagem foi repensada.
Esse movimento transformou a maneira de conceber os fenômenos sociais.
Ibañez (2004) levanta quatro grandes influências deste movimento nessas
disciplinas. O primeiro diz respeito à crítica a uma concepção de linguagem
representativa e designativa de uma realidade externa. Isso se estendeu às concepções
representacionistas do conhecimento e aos critérios de verdade que os acompanhavam,
já que a linguagem teria uma forte relação com a produção do conhecimento. Sendo
assim, não há um conhecimento que se possa considerar verdadeiro em relação aos
demais. A segunda influência do giro lingüístico, segundo o autor, se dá na concepção
da linguagem como atividade, ação. A linguagem não representa “a” verdade e “a”
realidade, ela é compreendida como produtora de sentidos. É o caráter performativo da
mesma, onde se compreende que o “dizer é, também e sempre, fazer” (IBAÑEZ, 2004,
p.39). Mais do que descrever as coisas, a linguagem as cria, as constrói, constitui.
33
O terceiro ponto é que, além de ação no mundo, a linguagem é também ação
sobre os demais. Posicionando-nos e re-posicionando-nos nas relações, no diálogo. Isso
permitiu demonstrar também os usos retóricos e argumentativos de vários tipos de
discurso e seus efeitos de poder ocultos pela estrutura discursiva. Por último, “ocorre
que, se a linguagem é constitutiva de realidades e é um instrumento para atuarmos sobre
o mundo, inclusive sobre nossos semelhantes, devemos esperar que ela incida também
sobre a conformação e o desenvolvimento das relações sociais e das práticas sociais”
(2004, p. 41). A linguagem produz sentidos cotidianos, estabelece formas de conceber o
mundo, o trabalho, a vida, etc.
Mary Jane Spink adota a noção de práticas discursivas para se referir à
característica de ação própria da linguagem. A linguagem é prática social. A noção de
práticas discursivas tem a ver com os momentos em que se produzem sentidos,
ressignificações ou rupturas, com os momentos do uso da linguagem. São as formas
como as pessoas produzem sentidos, posicionam-se e são posicionadas nas relações
sociais cotidianas.
A linguagem em uso é tomada como prática social e isso implica trabalhar a
interface entre os aspectos performáticos da linguagem (quando, em que
condições, com que intenção, de que modo) e as condições de produção
(entendidas tanto como contexto social e interacional, quanto no sentido
foucaultino de construções históricas) (SPINK, M.J. 2004, p. 39).
A linguagem em uso ou práticas discursivas também necessita ser olhada a partir
de sua matriz de construção de sentidos. A autora diz que as práticas discursivas se
caracterizam tanto pela sua dinâmica, pelo seu processo, quanto pelo seu conteúdo. Os
Repertórios Lingüísticos seriam os conteúdos da produção de sentido e, de acordo com
ela, seriam entidades mais fluidas que as Representações Sociais, que são trabalhadas
enquanto teorias. A diferença entre essas duas noções também está no fato de que quem
trabalha com Representações Sociais atua num nível mais estrutural enquanto que os
Repertórios Lingüísticos são mais flexíveis, podendo mudar de acordo com as
circunstâncias.
Os repertórios têm uma história de construção, longa. Por isso, a questão do
tempo e da história tornam-se importantes para quem opta por essa perspectiva. A
produção dos sentidos não se dá num tempo cronológico ou linear. Quando se pensa em
produção de sentidos, adota-se a noção de um passado presentificado. Para a autora, um
esquema fácil de compreender essa idéia é pensar em tempos: tempo longo, tempo
34
vivido e o tempo curto. O primeiro deles, o tempo longo, é uma tentativa de atentar
para a longa história de circulação de sentidos, de repertórios lingüísticos na sociedade.
Esses repertórios não desaparecem, mesmo que o tempo em que foram produzidos tenha
passado. Estão presentes nas manifestações culturais e muitas vezes são reativados,
como acredito ser a noção de incubação. Já o tempo vivido diz respeito ao tempo da
socialização, onde aprendemos a usar os repertórios lingüísticos a partir das nossas
vivências sociais: família, escola, etc. Acabam tornando-se nossas matrizes de
percepção e apreciação e ação no mundo. Por sua vez, o tempo curto refere-se ao tempo
das interações no aqui e agora. É onde se produzem os sentidos.
O tempo curto é o tempo da interanimação dialógica e da dinâmica da
produção de sentidos. É nesse tempo que se presentificam as diferentes vozes
ativadas pela memória cultural do tempo longo ou pela memória pessoal do
tempo vivido (SPINK, M.J, 2004, p. 48).
As implicações que essa forma de olhar os sentidos e a linguagem têm para a
pesquisa sobre a incubação são grandes. Trata-se de olhar para esses sentidos como
produtos sociais, coletivos, situados num tempo (ou em tempos) e num espaço. Sentidos
que se constroem nas conversas que acontecem no dia-a-dia, nas materialidades e nas
socialidades. Conversar produz sentido, saber e conhecimento no cotidiano. Assim,
nada é natural, tudo é construído socialmente, e não há justificativa para a hegemonia de
um conhecimento sobre o outro, de uma versão sobre a outra. Se tudo se constrói nas
relações, há de se explicitar que as relações são datadas e localizadas, são de um lugar.
Posso dizer que conversar com as pessoas tenha sido um método utilizado nesse
trabalho, mas conversar não é de forma alguma uma ação extraordinária. Pode ser que a
conversa aconteça a duas, três, quatro, vinte ou mais pessoas, pode ser que aconteça
com uma só ... ela pode começar e terminar ali, ou pode começar e terminar dias depois.
De acordo com Peter Spink, “Quando falamos em negociar falamos em processos que
são multidirecionais. Processos que podem ser iniciados em qualquer momento e por
qualquer parte, pessoa ou acontecimento”(1999, p. 57).
Ao considerar a pesquisa enquanto um meio de produção de sentidos, a opção
por um método qualitativo não é um mero recurso técnico. Nessa perspectiva, tanto os
sujeitos quanto os objetos são construções sócio-históricas, datadas e localizadas. A
realidade não tem uma independência das pessoas, constituindo-se no modo como é
processada pelos atores sociais, na dialogia.
35
Sendo assim, pesquisar conversas, conversando, não é apenas um método,
porque uma vez conversando, dizendo, o pesquisador está já fazendo algo, já está
produzindo sentidos na relação. O dizer é fazer também.
Uma reunião leva às outras:
Começo então a participar de reuniões na incubadora e a partir desta, de outras
também. A partir porque foi nas reuniões de equipe da incubadora que percebi a
importância de ir para as outras reuniões, ver o que circulava sobre a incubação. Na
realidade, nunca cheguei a me afastar por muito tempo das reuniões de equipe da
incubadora. Mesmo quando, em 2004, optei por sair do trabalho, alguns meses depois
voltara a estar com as pessoas nas reuniões, não tão frequentemente como antes. É
apenas no segundo semestre de 2005 que volto a freqüentar, quase que semanalmente a
reunião de equipe e as outras. Essas reuniões serão melhores descritas no capítulo que
apresenta as questões que surgiram.
Para conhecer os sentidos, bastava estar nas reuniões, conversando, pensando,
debatendo. Os registros, em geral, foram feitos a partir das minhas anotações das
reuniões. Escrevia tanto que, em alguns momentos, fui solicitada para fazer a ata das
reuniões da associação. No entanto, algumas reuniões eram tão complexas, do ponto de
vista do debate, que não conseguia registrar senão alguns apontamentos que para mim
fizeram sentido. Optei por apresentar trechos desses registros ao leitor. Na sua
totalidade, são registros da minha impressão na reunião e não falas das pessoas nas
reuniões. Em alguns momentos até tento apresentar alguns diálogos, mas, como não
estive interessada em retratar realidade nenhuma e sim seus efeitos, a forma como os
debates pareciam afetar as pessoas, não me preocupei com essa rigorosidade.
No início, quando me propus a adentrar esse universo da incubação, o incômodo
que sentia e que, depois foi se transformando em outros incômodos, tinha muito a ver
com a separação entre quem incuba e quem é incubado, ou seja, entre a incubadora e os
empreendimentos. Isso se traduzia na dicotomia entre quem tem poder e quem não tem
poder, numa oposição que se aproximava muito da idéia de opressores e oprimidos, de
Paulo Freire e outros autores. Era como se houvesse um vilão e uma vítima na história
do incubar.
36
A dicotomia entre incubadora e empreendimento estava presente de maneira
muito forte em mim (que me baseava muito na experiência negativa de ter sido da
incubadora) e dificultou o processo de garimpar os sentidos da incubação. Quando
percebi que eles já estavam se mostrando a mim nas reuniões que participava com a
presença de vários outros atores encontrei o fio que precisava desenrolar. Um fio
emaranhado que compunha uma rede que construía nos seus cotidianos
4
os sentidos da
incubação: cooperativas, associações, prefeitura, incubadoras, grupos de apoio, entre
outros.
Aos poucos, quanto mais se participava das reuniões, encontros, conversas, mais
se desfazia esse esquema e se construía outro cenário para a pesquisa. Um cenário que
se formava pela multiplicidade de vozes construindo a noção de incubar: agora não
apenas incubadoras e empreendimentos, mas também gestores públicos, grupos de
apoio. E mais: tal cenário, que mais parece um mosaico do que um quadro que se pinta
coerentemente, se conformava de forma dinâmica, pelas contradições e pelos acertos
das práticas. A despeito do que trazem as teorias sobre incubação (se é possível falar em
uma teoria), a vivência da incubação é algo extremamente contraditório, especialmente
na relação que se estabelece na ação social da incubadora e tudo que abrange esse
universo.
Optei por acompanhar as reuniões mais do que estar presente nas incubações
feitas, por dois motivos: já estava presente nessas reuniões como participante autônoma
que queria contribuir e fui percebendo a riqueza que a presença das diversas e diferentes
vozes reunidas proporcionava. Riqueza, no sentido de trazer à tona as várias construções
da idéia do incubar empreendimentos solidários e, junto com isso, os conflitos e as
negociações que vão se dando nesse diálogo.
Em segundo lugar porque sentia que a idéia de acompanhar a incubadora no seu
cotidiano de incubar, nas visitas às cooperativas, poderia me colocar numa postura de
“avaliadora” do momento da incubação, já que, a uma certa altura da pesquisa, eu ainda
estava muito centrada naquilo que não gostava da minha experiência como monitora.
Fiquei preocupada em acabar adotando uma postura diante da incubação que não
gostaria de adotar. E já que nas reuniões eu participava abertamente, como alguém que
podia contribuir à minha maneira, e já que os sentidos da incubação estavam sempre
4
pois para cada um dos atores que compunham a rede era possível imaginar sentidos diferentes e
portanto, cotidianos igualmente diferentes mas que compartilhavam algumas coisas: momentos,
expectativas e interesses.
37
presentes, resolvi ficar ali. Assim, até o fim da pesquisa, até as últimas negociações de
como escreveria o texto, das questões éticas, meu interesse foi deixando de ser um
“encostar a incubadora contra a parede” para ir se traduzindo numa busca dos diversos
sentidos da incubação pelas diversas vozes.
A opção pela noção de campo-tema permitiu ampliar o meu olhar para algo que
vai muito além do lugar incubadora enquanto espaço em que os sentidos de incubação
circulam. Certamente, ali a produção de sentidos de incubação é constante, mas campo-
tema, não diz respeito a um lugar geográfico, mas à situação de um tema, de um
assunto. Não se trata mais de ir ao “habitat natural” das pessoas e observar as interações
que ali se dão, inclusive com o pesquisador. Trata-se de estar junto com as pessoas
conversando sobre o tema investigado e produzindo sentidos dele, possibilitando
possíveis contribuições.
38
1. SENTIDOS DA ECONOMIA SOLIDÁRIA NO BRASIL
39
Neste capítulo pretendo trazer as discussões presentes no campo da economia
solidária, desde os elementos que possibilitaram que ela ganhasse força no Brasil,
passando brevemente por um recorte histórico de suas origens até as diferentes versões
e tensões presentes em torno das terminologias usadas para se referir a ela. Tudo isso
com a intenção de além de localizar o leitor, tornar visível que o campo da economia
solidária é heterogêneo de sentidos, assim como a incubação dos seus
empreendimentos.
Situando o momento de ressurgimento da economia solidária no Brasil:
A partir de 1980, o mercado de trabalho em diversos lugares do mundo, em um
momento ou outro, transformou-se. Por razões diferentes - modelos de política
macroeconômica, mudança nas matrizes norteadoras de organização do trabalho,
concepções mais globalizadas de produção industrial, crescente sofisticação dos postos
de trabalho -, os sinais indicavam o fim de um modelo ortodoxo de pleno emprego de
base majoritariamente industrial.
As conseqüências dessas transformações, em termos globais, podem ser vistas
nos altos índices de desemprego e no crescimento intenso dos trabalhos informais em
diversos países, de acordo com suas especificidades. No Brasil não é diferente
(ANTUNES, 1999, 2005; SINGER & SOUZA, 2003, ESTEVES, 2004). De acordo
com Esteves (2004), nos anos noventa, o mercado, que até então havia se fortalecido
com a organização do vínculo de trabalho assalariado, sofre uma reversão. Com uma
abertura comercial mal realizada, esse panorama se modifica e as taxas de desemprego
crescem consideravelmente no Brasil. Os vínculos empregatícios, baseados na CLT
(Consolidação das Leis do Trabalho), são onerosos para os que contratam e, assim,
muitos trabalhadores encontram-se desempregados, ocupados voluntariamente ou
trabalhando como autônomos, ou seja, fora desse regime.
Antunes (2005) enumera algumas das mais graves conseqüências que tais
mudanças provocaram no mundo do trabalho. São elas: redução do proletariado fabril
estável por conta da reestruturação produtiva; flexibilização e desconcentração do
espaço físico produtivo (toyotismo); surgimento de uma grande parcela de trabalhadores
em atividades precarizadas: tercerizados, subcontratados, part-time etc.; grande
exclusão de jovens e idosos do mercado de trabalho; inclusão precoce e “criminosa” de
40
crianças no mesmo mercado nos países em desenvolvimento, mas também em países
como a Itália; aumento significativo do trabalho feminino, porém com contratos
precarizados também, em funções não-intelectuais (destinadas em geral aos homens),
com média salarial inferior, condições de trabalho e direitos desiguais também em
relação ao que é oferecido aos homens; crescimento do trabalho do “Terceiro Setor”, em
função do desemprego estrutural, mas muito baseado no voluntariado portanto,
incapaz de solucionar o problema; expansão do trabalho em domicílio (e em se tratando
das mulheres, mescla-se com o trabalho doméstico); e, por fim, a transnacionalização do
capital e do sistema produtivo, fazendo com que também o mundo do trabalho se
transnacionalize.
Segundo a última pesquisa do DIEESE (Departamento Intersindical de
Estatísticas e Estudos Socioeconômicos) sobre as taxas de desemprego na cidade de São
Paulo (região metropolitana), realizada em julho de 2006, 16,8% da população
encontra-se desempregada. A média de tempo despendida para se conseguir um
emprego fica em torno de 50 semanas, mais ou menos 1 ano.
Por um lado, devido à dificuldade em delinear políticas econômicas mais
apropriadas e, por outro, à própria heterogeneidade do fenômeno, que se enraíza de
maneiras diferentes, a questão do emprego e da renda começa a ser colocada na agenda
- seja por governos progressistas preocupados com o desenvolvimento político, social e
econômico, seja por grupos e movimentos buscando contribuir para a transformação de
uma situação cada vez mais difícil. Além do desassalariamento
5
, a crescente
flexibilização das relações trabalhistas contribuiu para que, em determinados locais, o
trabalho se precarizasse.
Alguns trabalhadores começaram a buscar outras maneiras de dar conta de sua
sustentabilidade. Uma das formas encontradas para isso foi a organização coletiva de
trabalhadores em cooperativas ou associações de trabalho, serviços ou produção e a
recuperação de empresas falidas, todas elas com caráter organizativo autogestionário.
Segundo Leite (2003), apesar das políticas de governo adotadas no país e das
formas de inserção da economia brasileira na globalização serem de caráter
extremamente excludentes, ainda assim, nem tudo que acontece no país se define por
isso. “(...) pelo contrário, reagindo às conseqüências nocivas desse processo, a
sociedade vem se movimentando em direção a modos alternativos de produção, criando
5
Termo utilizado por Esteves (2004).
41
novas formas de subsistência, novas institucionalidades e novas formas de governance”
(2003, p.19).
Gestões públicas, tanto progressistas quanto conservadoras, começaram a
assumir a economia solidária como política de governo e, mesmo que mais raramente,
até como política pública. Na mesma linha, muitos setores da sociedade civil e
organizações sociais, como grupos de jovens católicos, cáritas, movimentos sociais e
universidades, optaram e viram na economia solidária a possibilidade tanto de gerar
renda quanto de promover uma sociedade mais justa e igualitária.
Ainda que se estejam traçando rumos alternativos, não significa que estão já
determinados a se impor futuramente. Para a autora, tudo dependerá da capacidade de
tais movimentos e práticas de quebrarem com a hegemonia de um caminho (o sistema
capitalista de sociedade), por meio da atuação dos diferentes atores sociais envolvidos
no processo de transformação social, e do debate e difusão de experiências que, de fato,
concretizem um modo de viver diferente, mais sustentável social e ambientalmente.
Entre os que têm renda e, principalmente, entre os que não têm, a economia
solidária já conquistou muitos adeptos ao longo do tempo. A economia solidária,
compreendida num sentido mais amplo como um modo de produção autogestionária e
cooperativa, não é recente na nossa história. Enquanto projeto de sociedade, surge no
Brasil, no fim do século XIX, durante a vinda de imigrantes para o país que traziam
consigo a noção de cooperativismo. Depois de passar por um período de latência e de
acúmulo de experiências, novamente, no fim da década de 80, a economia solidária
ressurge com novos formatos, redesenhada, despontando esperanças entre os que vivem
a crise do emprego. São criadas muitas cooperativas, associações, oscips e constrói-se a
Secretaria Nacional de Economia Solidária (SENAES) ligada ao Ministério do
Trabalho. Ganha força, apoio estatal e legitimidade entre os que a praticam.
Resistências às formas de viver no capitalismo também levaram muitos grupos a
se organizarem em torno da economia solidária, nesse caso, a partir de um
questionamento mais ideológico do sistema, anterior à necessidade de gerar renda.
Dessa maneira, economia solidária vai se produzindo de formas heterogêneas, de acordo
com especificidades locais e sociais.
Diferentes terminologias para definir diferentes “economias solidárias”?
42
No debate, circulam diferentes noções e termos que, apesar de aparentemente
designarem a mesma idéia, diferenciam posições e marcos conceituais. Para essa “outra
economia”, foram dados nomes, no Brasil, na América Latina e na Europa, de
“economia solidária”, “economia popular solidária”, “economia social”, entre outros
(CATTANI, 2003; QUIJANO, 2005; SINGER, 2001). As diferenças entre os nomes
são, muitas vezes, sutis, mas refletem a riqueza das experiências e dos sentidos
construídos ao longo do tempo.
Assim como existem diversos sentidos de “cooperativismo” (IDE, 2004),
diversos sentidos de “autogestão” (LEÓN - CEDEÑO,1999), podemos arriscar dizer
que existem também diversos sentidos de “economia solidária”, ou melhor, diversas
formas de compreendê-la, como sugere pesquisa realizada pela autora no site “Google”
(GOOGLE.COM, 2005) da internet, em que aparecem mais de 2.420.000 de páginas
sob o nome de “solidarity economy”. Há também inúmeras outras páginas sob o nome
de “economia social”, “fairtrade” (comércio justo), “socioeconomia solidária”,
“coletivização”, “clubes de troca” etc. Cada palavra desta designa uma prática que
caminha por trechos parecidos que, no entanto, se distinguem em termos de propostas,
de concepções, etc. A esses, podemos ainda acrescentar: economia alternativa,
economia da dádiva, economia da simplicidade, economia autogestionária, projetos
alternativos comunitários, entre outros (LECHAT, 2004).
Lechat (2004) propõe pensar na economia solidária enquanto um campo em
construção e repleto de sentidos. Enfatiza que os fenômenos sociais devem ser
encarados a partir de uma visão dialética e processual da história e pensar na economia
solidária é pensar em processos demorados, que recobrem fenômenos antigos que são
reinterpretados na atualidade. A autora retoma a partir do que denomina “ondas” de
economia solidária, algumas experiências e princípios que hoje fazem parte da realidade
dos empreendimentos solidários.
É essa autora, juntamente com alguns outros, que me auxiliará nessa discussão, a
partir de sua tese de doutorado, onde buscou traçar três diferentes trajetórias intelectuais
na economia solidária brasileira: a de Paul Singer, Marcos Arruda e Luiz Inácio Gaiger.
A partir das três histórias, destaca três construções da “economia solidária” que mais
têm repercussão no Brasil. A autora traça uma arqueologia dos sentidos da economia
solidária ao longo dessas três trajetórias intelectuais, que marcadamente contribuíram
para que, atualmente, as experiências de produção associada sejam opção (entendendo a
43
necessidade de gerar renda urgente como algo que poderá levar a essa escolha ou não)
para muitos trabalhadores brasileiros. A seguir, justifica a necessidade de buscar os
sentidos circulantes no país sobre a economia solidária:
Há realidades e categorias usadas para expressá-las e elas recobrem uma série
de noções mais ou menos explícitas, guardando sentidos internos, ‘êmicos’ e
plurívocos. Uma mesma categoria pode possuir vários significados,
dependendo do lugar ou da época. Certas categorias são neologismos e, com
alguma chance, podemos identificar seus inspiradores; algumas, mais antigas,
deixaram registros o que facilita para clarear alguns episódios de sua história.
Todas elas vêm marcadas pela historicidade e o sentido que lhes é atribuído
se modifica com a transformação das análises e das realidades investigadas.
Por isso, a reflexão sobre seu uso e sua circulação é importante. Ela esclarece
um conjunto de significados latentes, e permite assim a compreensão das suas
implicações contemporâneas (p.105).
Da mesma maneira, Tiriba (2001) diz que:
Muitas têm sido as propostas e análises políticas e econômicas sobre os
efeitos da pobreza; entretanto, ainda são poucos os estudos sobre a
diversidade e complexidade da dinâmica interna dos empreendimentos
populares. Os conceitos e denominações utilizadas para fazer referência às
experiências de pequena escala têm sido os mais diversos, dependendo das
diferentes perspectivas políticas e enfoques teóricos e da diversidade de
práticas econômicas populares: além de economia informal, subterrânea,
invisível, submergida, surgem novos termos, como economia popular,
economia solidária, economia de solidariedade e trabalho, socioeconomia
solidária e cooperativismo popular (p. 104).
A economia solidária, como contam as autoras acima, é heterogênea, múltipla,
conectada a vários enredos diferentes. Aníbal Quijano (2005), ao escrever o capítulo de
conclusão do livro organizado por Boaventura de Souza Santos (2005) “Produzir para
viver”, separa-as em duas correntes, que vão refletir, logicamente, duas posições ou
correntes de pensamento distintas. São eles: os que denominam essas experiências de
“economia solidária” e os que as denominam de “economia popular”.
Para este, o termo economia solidária é fortemente marcada pela constituição de
cooperativas: de trabalho, serviços, consumo, etc. O que a diferencia de uma economia
capitalista é a autogestão, um posicionamento político e ideológico, que busca a
transformação do sistema em todas as suas dimensões. Tem como um dos principais
autores, Paul Singer.
Por outro lado, a noção de economia popular é de origem especificamente latino-
americana, tendo seu principal autor na figura de Luis Razeto, pesquisador chileno. O
que a diferencia da economia solidária é o fato de tentar dar conta de um universo de
atividades econômicas muito heterogêneas, tanto de produção quanto de distribuição e,
talvez, o aspecto mais importante seja não ter como pré-requisito que os seus atores se
44
identifiquem ideológica e politicamente entre si, baseando-se numa visão revolucionária
de sociedade. Nessa perspectiva, o que importa é que as relações, em geral, estão
organizadas em torno da comunidade dos membros.
Economia popular: diversos sentidos
Tiriba também retoma a mesma discussão, de forma mais aprofundada: do
debate da economia formal e informal e as condições de pobreza de uma parte da
população, surge a noção de economia popular. Para dar início à sua reflexão, a autora
se pergunta,
Hoje, entendendo a pobreza como uma pobreza ativa na qual os sujeitos
desenvolvem capacidades, energias e forças reais para satisfazer suas
necessidades básicas, é preciso perguntar: frente à crise do emprego, como se
organizam os excluídos do mercado formal de trabalho? Como enfrentam
seus problemas e necessidades? (2001, p. 98).
A partir daí, entendendo as estratégias de sobrevivência como mais que
informais, já que o conceito de informalidade remete a uma falta, apresenta três
concepções de economia popular na América Latina. A primeira é a concepção descrita
por Nuñes, que baseia-se na experiência da Nicarágua. Adota a perspectiva de uma
economia popular associativa e autogestionária, que deve ser concebida dentro de um
contexto revolucionário. Segundo a autora, nessa lógica, não é necessário tomar o poder
para ter avanços mais significativos, já que encara os empreendimentos populares como
parte da tomada de poder político. “Assim, será necessário ‘incubar novas formas de
produção; madurar sua superioridade no seio da velha sociedade, até que a tomada do
poder político seja um resultado que permita completar sua tarefa’ ”(NUÑES, 1997, p.
50 apud TIRIBA, 2001, p. 111).
Uma outra corrente de pensamento sobre a economia popular é a argentina,
proposta por Coraggio. Para este autor, o sistema econômico não se divide apenas em
formal e informal, mas em três subsistemas: economia empresarial, economia pública e
economia popular. Esta última designa um conjunto de práticas, recursos e relações
econômicas composta por organizações econômicas domésticas, feitas por agentes
populares. Sua lógica não é a acumulação nem a legitimação do poder, mas a não
exploração do trabalho do outro, a não acumulação de riquezas. Seus membros
trabalham para realizar suas expectativas de vida, e podem, mesmo assim, fazer parte
dos outros subsistemas. Por não considerar essas relações como isoladas do resto do
45
sistema econômico, sendo a economia popular dependente desta totalidade, não pode
considerar um projeto de desenvolvimento totalmente independente, a não ser que as
condições do sistema maior sejam modificadas.
Por último, a idéia caracterizada por Luiz Razeto. Para este, a economia popular
é heterogênea, composta por cinco tipos de atividades e empreendimentos: soluções
assistenciais (mendicância, filantropia), atividades ilegais (pequenos delitos, p. ex.),
iniciativas individuais informais (ambulantes, serviços domésticos), microempresas e
pequenos negócios de caráter familiar e as organizações econômicas populares (OEPs).
As OEPs seriam organizações de pequenos grupos que buscam de forma associativa e
solidária, maneiras de resolver seus problemas econômicos, sociais e culturais. Alerta
que nem toda economia popular é solidária, pela ausência do “fator C” (cooperação,
companheirismo, colaboração, comunidade, coletividade, etc.).
A autora parece adotar a última perspectiva para falar em economia popular e
compreender os processos de educação que se dão.
Economia solidária no Brasil: heterogeneidade
Já o termo economia solidária começou a ser utilizado nos escritos brasileiros
em 1996, mas as realidades que vêm nomear são anteriores a ela. A princípio (década de
60), falava-se em economia informal para designar as práticas econômicas coletivas e
populares. Entre estes estavam os setores da economia familiar, os micro-empresários,
as associações de trabalhadores para a produção e prestação de serviço, etc. Aos poucos,
o interesse por essas práticas foi surgindo nas universidades, nos partidos e essas foram
sendo retiradas do anonimato.
Esses empreendimentos econômicos que foram colocados em evidência por
possuírem algumas características específicas que podem ser resumidas pela
solidariedade existente entre seus sócios, para com a sociedade e com a
natureza a sua volta vão receber novas nomeações; isto não os impede de
continuar fazendo parte da economia informal ou da chamada economia
popular. (LECHAT, 2004, p. 108).
Nomeadas das mais diferentes maneiras, essas experiências econômicas
alternativas remetem a uma dimensão diferente da economia capitalista, como já
mencionei anteriormente. Em sua grande maioria, são práticas inspiradas em correntes
filosóficas que fizeram parte de momentos da história distintos e que estão em
circulação pelo mundo há algum tempo. No Brasil, a expressão economia solidária é
46
mais genericamente utilizada, no entanto, é forte também as correntes da socioeconomia
solidária e da economia popular solidária.
No Brasil, para a economia solidária tornar-se uma problemática, ela teve que
aparecer como um setor próprio e digno de interesse específico. Essa decisão
é, a nosso ver, de ordem teórico-político-ideológica. O que hoje é
denominado de economia solidária ficou por décadas imerso, e ainda o é em
muitos casos, no que a literatura científica chama de autogestão,
cooperativismo, economia informal ou economia popular. Uma prova disto é
a polêmica, ainda existente, a respeito do atributo popular acrescido à
economia solidária ou ao cooperativismo, denominados então de economia
popular solidária, ou cooperativismo popular (LECHAT, 2002, p. 9).
Diante do que a autora apresenta, parece que a adoção do termo economia
solidária se deu mediante uma questão de criar legitimidade, de dar visibilidade a
fenômenos heterogêneos mas semelhantes em alguns aspectos de sua organização.
Portanto, também utilizarei a terminologia para me referir a esse conjunto de práticas e
ações econômicas, sociais e culturais.
A socioeconomia solidária, por sua vez, foi lançada, enquanto designação dessas
experiências, Porto Alegre, em 1998, no Encontro Latino de Cultura e Socioeconomia
Solidárias (LECHAT, 2004). Para estes, a socioeconomia tem uma preocupação maior
com os aspectos sociais do que a economia solidária, porém, não chegam a se opor uma
à outra. Marcos Arruda, um dos responsáveis pela divulgação do termo no país,
reivindica as mesmas origens históricas enunciadas por Singer: “as origens socialistas,
marxistas, anarquistas, solidaristas, principalmente francesas e inglesas, acrescentando
algumas à lista: Gramsci e contemporâneos como Landauer e Vanek” (LECHAT, 2004,
p. 145). Ao que parece, Marcos Arruda esteve na Nicarágua por algum tempo e foi
influenciado pela primeira perspectiva exposta acima.
Com relação ao termo “economia popular solidária”, cunhado por Luiz Gaiger
em seus escritos e pesquisas que fazia para a Cáritas do RS. Parece ter sido em 1997, no
Encontro Estadual de Economia Popular Solidária que o termo é debatido e adotado,
indicando “ uma vontade de partir da base, da periferia e para dar a esta economia um
caráter de classe” (LECHAT, 2004, p. 265). Gaiger baseia-se, por sua vez, nas idéias do
chileno Luiz Razeto e inclui em seus escritos questões como a exclusão e o sentido
desta na produção dos empreendimentos. Segundo a autora, Gaiger aponta duas origens
distintas para a heterogeneidade das experiências em economia solidária: uma economia
popular de base doméstica e familiar e uma origem operária, que acredita na
socialização dos meios de produção no trabalho e de democratização econômica.
Salienta a necessidade de o intelectual ter claro para si a diferença entre o que é um
47
projeto e o que é a realidade dos empreendimentos, para não reificar o conceito,
tornando-o expressão “da” realidade.
No que diz respeito à economia solidária, no seu sentido específico, a trajetória
de Singer explica em grande parte sua adoção. No entanto, antes de falar mais do autor,
a autora aponta duas possíveis hipóteses para o uso do termo economia solidária no
Brasil: no decorrer de sua pesquisa histórica sobre o termo no Brasil, chegou a outros
países latino americanos e europeus. Uma das hipóteses é que a categoria “economia
solidária” tenha migrado da Europa para América Latina a partir de pesquisadores
latinos que foram ou trabalhar ou fazer seus estudos lá. Pode também haver duas
correntes teóricas que matizam a economia solidária: a européia e a latino-americana.
“O que é certo é que esta categoria foi utilizada em vários países da América Latina
como o Chile, a Bolívia, o México, a Colômbia, a Nicarágua e são essas experiências
que ficaram conhecidas no Brasil antes das européias.” (2004, p. 28).
O qualitativo “popular” é um dos aspectos que diferencia as propostas de Singer
e Gaiger. A idéia da economia solidária foi primeiramente divulgada por Singer e
adotado pela CUT, ANTEAG, ADS e incubadoras filiadas a UNITRABALHO. O autor
faz uma crítica ao adjetivo popular na economia solidária, perguntando-se quais os
critérios que definem esse grupo chamado “popular”. Apresenta experiências de
economia solidária que não necessariamente se enquadrariam dentro do critério do
“popular”. O aspecto autogestionário é o que define melhor, para ele, o que é a
economia solidária. Esse apreço pela autogestão é antigo, já que Singer participou, na
segunda metade da década de 40, de um grupo que se reunia em torno do jornal
“Vanguarda Socialista”, elaborado e dirigido por membros egressos do trotskismo e do
movimento anarquista libertário (LECHAT, 2004, p. 169).
A adoção do termo economia solidária para esta pesquisa tem a ver com o fato
de esse remeter ao conjunto geral das experiências existentes, já que a grande maioria
delas está ligada, de alguma maneira, à Secretaria Nacional de Economia Solidária
(SENAES). Não significa, portanto, que desconsidero a existência das diferenças entre
os termos e as experiências e as posturas que eles nomeiam. Como mostra Lechat, esse
campo é repleto de tensões: “Trata-se de um equilíbrio frágil. A unidade é dada pela
oposição a um inimigo comum, o neoliberalismo, pelo compartilhamento de uma
esperança: uma outra economia é possível.” (2004, p. 312). Apesar de apresentar as
diferentes terminologias e sentidos usados para definir esse conjunto heterogêneo de
48
experiências, acredito também na importância do uso do termo economia solidária como
estratégia política de buscar visibilizar, encontrar espaços políticos para essas
experiências diferentes mas que se convergem em muitos pontos. Ao entrar nessa
questão, estou querendo apontar para uma reflexão que muitas vezes, não é feita: a de
que, como apontam os autores, os fenômenos acontecem de forma heterogênea, sem que
haja algo que seja naturalmente encarado como “autêntico”, “verdadeiro”. Assim, tomo
por base o que P. Spink diz a esse respeito:
Redes solidárias, autogestão e solidariedade podem formar parte de uma
frente libertária de pensamento transformadora, mas podem igualmente
formar parte de uma frente liberal de desublimação repressiva e reprodutiva
que, ao mesmo tempo em que aparentemente abre, reprime e aliena (2004, p.
66 redes solidárias).
Para Santos (2002), tanto a economia solidária como outros movimentos sociais
contemporâneos são experiências que se caracterizam pela busca de sociabilidades e
práticas anticapitalistas, que ao criticarem e buscarem a superação das características
desse sistema, “têm em comum o fato de, ainda que não pretendam substituir o
capitalismo de um só golpe, procurarem (com resultados díspares) tornar mais
incômoda sua reprodução e hegemonia.” (p.29). Nesse sentido, as práticas de
associativismo e cooperativismo pela autogestão poderiam ser caracterizadas como
contra-hegemônicas, pois vão na corrente contrária do modelo econômico, político,
cultural dominante. No mapeamento que vem sendo realizado pela SENAES, constatou-
se, até 2005, a existência de 14.954 empreendimentos solidários no país. Desses, são
600 mil trabalhadores envolvidos em associações ou cooperativos autogestionárias,
mais 100 mil famílias desenvolvendo atividades de crédito solidário, clubes de troca,
etc. Espera-se que até o fim do mapeamento, esse número chegue a 20 mil
empreendimentos, o que representaria um total de quase 2 milhões de pessoas
participantes de alguma maneira da economia solidária no país. (SILVA, 2005, p. 1;
MTE/ SENAES, 2006).
De acordo com Singer, o cooperativismo, o movimento que mais influenciou a
retomada do conceito de economia solidária pelo autor, tem suas origens no início do
séc. XIX, no período da 1ª revolução industrial, na Inglaterra. Ela nasce pouco tempo
depois do capitalismo industrial, em reação à pobreza da população, provocada pelo
advento das máquinas e fábricas, desempregando muitos trabalhadores. Quando não
eram descartados, era necessário submeterem-se às regras impostas pelos patrões.
A exploração do trabalho nas fábricas não tinha limites legais e ameaçava a
reprodução biológica do proletariado. As crianças começavam a trabalhar tão
49
logo podiam ficar de pé, e as jornadas de trabalho eram tão longas que o
debilitamento físico dos trabalhadores e sua elevada morbidade e mortalidade
impediam que a produtividade do trabalho pudesse se elevar. (2002, p.24).
Inspirado no socialismo utópico, um movimento que vinha se fortalecendo em
diversos lugares da Europa, um industrial inglês chamado Robert Owen, “pregava a
formação de aldeias cooperativas ao redor das fábricas existentes na época, para que os
trabalhadores fossem proprietários e gerissem os meios de produção coletivamente.”
(SOUZA, 2003, p. 35). Nesse período, como relata Singer (2002), Owen propôs ao
governo britânico que as verbas do fundo de sustento para os pobres fossem revertidas
para a implantação de Aldeias Cooperativas para essas pessoas. O governo britânico
percebeu que, mais que filantropia, Owen buscava o que o autor chama de “uma
mudança completa no sistema social e a abolição da empresa lucrativa capitalista”. Seu
pedido foi negado, e em 1825, partiu para os EUA, onde fundou algumas dessas aldeias,
ainda acreditando que a transformação seria possível. Essas experiências, infelizmente
não lograram muito sucesso, nem nos EUA nem na Inglaterra.
Owen retornou à Inglaterra, onde o owenismo já se tornara um grande
movimento de massas nos anos 30 daquele século. Seus seguidores punham em prática
suas idéias e, não por acaso, surgiram também, no mesmo período, os primeiros
sindicatos dos proletários. Com a proximidade de lutas, as cooperativas de trabalhadores
começaram a ser grandes armas não para forçar o aumento dos salários, mas para
eliminar a condição de assalariamento e substituí-la pela autogestão. Em 1832, Owen
criou o Labour Exchange (Bolsa de Trabalho), cujo objetivo era fazer o intercâmbio dos
produtos das cooperativas, a preços justos, que eram estipulados conforme as horas de
trabalho despendidas em sua produção. Emitia-se uma moeda própria, que valiam horas
de trabalho. A experiência foi muito bem sucedida e outras bolsas como essa foram
criadas, no mesmo formato, em Birmingham, Liverpool e Glasgow. (SINGER, 2003).
Essa mesma estrutura de cambio é praticada desde 1980 no Canadá Local
Employment and Trade Systems e na Argentina, pelos famosos Clubes de Troca. Além
das aldeias e da bolsa, Owen dedicou-se também ao movimento das comunas agrícolas,
onde se buscava o princípio da repartição: “a cada um conforme suas necessidades, de
cada um conforme suas capacidades”, este era o lema. O patrimônio era coletivo e as
decisões, tomadas em assembléia. Além disso, havia um fundo em que os ganhos dos
membros eram depositados e retirados conforme as necessidades de cada um. O
50
igualitarismo era praticado intensamente, diferentemente das outras organizações
criadas pelo movimento da economia solidária da época.
No entanto, a experiência que teve maior destaque nesse período e que mais uma
vez foi inspirada nas idéias socialistas de Owen foi a cooperativa de consumo
“Pioneiros Eqüitativos de Rochdale”, criada em 1844 por um grupo de operários do
setor têxtil. Como naquela época os alimentos que eram comercializados para consumo
estavam vindo deteriorados, de baixa qualidade, estes resolveram montar um grande
armazém, cujo objetivo era redução de custos dos alimentos e melhoria da qualidade do
que consumiam. Naquele tempo, apesar dos inúmeros grupos cooperados existentes,
ainda não havia um modelo comum para o funcionamento das mesmas.
Por isso, os pioneiros criaram oito princípios básicos para o funcionamento da
cooperativa e estes se espalharam para diversos lugares do mundo. Os princípios são: 1)
democracia na sociedade, sendo para cada sócio reservado o direito a um voto nas
assembléias gerais; 2) abertura para quem desejar participar da sociedade, desde que
integrasse a quota capital mínima igual para todos; 3) qualquer dinheiro investido na
cooperativa seria remunerado por uma taxa de juro, mas não daria a quem o investiu
nenhum direito adicional; 4) as sobras de dinheiro seriam distribuídas entre os sócios
em proporção às compras que fizessem na cooperativa; 5)vendas, apenas a vista; 6) os
produtos vendidos seriam puros e de qualidade; 7) a cooperativa deveria promover a
educação de seus sócios nos princípios do cooperativismo e 8) a cooperativa seria
neutra religiosa e politicamente (SOUZA, 2003, p. 36). Segundo Singer (2003b), alguns
desses princípios talvez os mais importantes permanecem até hoje como os
princípios do cooperativismo, e os outros, com o tempo, foram tornando-se obsoletos e
desnecessários, como o pagamento à vista, por exemplo.
Com seu crescimento vultuoso e multiplicação de filiais por diversos países, a
Cooperativa de Rochdale cada vez mais necessitava de novos membros para trabalhar e
foi aí que se iniciou sua degeneração: desde o início, os dirigentes da cooperativa,
eleitos pelos membros, foram profissionalizados e a partir do momento em que se
necessitou de um contingente maior de pessoas trabalhando, a direção começou a
escolher novos funcionários, sem que essa escolha passasse pelos outros membros,
como estava em seus princípios. Além disso, esses funcionários não entravam como
sócios da cooperativa e a divisão entre os dirigentes eleitos e empregados foi se
aprofundando a tal ponto que se criou uma grande controvérsia entre os sócios. Estes
51
optaram por abandonar os princípios de repartição dos dividendos e das sobras e
também a autogestão. As cooperativas então formadas continuaram funcionando, porém
no formato tradicional capitalista, ainda que a propriedade fosse dos sócios dirigentes.
Singer considera a origem da economia solidária um “cooperativismo
revolucionário” e diz que o que aconteceu naquele tempo jamais se repetiu na história
com aquela dimensão. (2002, p.35). Para ele, esta é a aproximação mais nítida da
economia solidária com as lutas da classe trabalhadora. Com o tempo, a situação do
trabalhador assalariado começou a mudar, tanto em termos do salário, que aumentava
conforme o mercado, quanto pelas conquistas dos direitos dos sindicatos de se
organizarem. As primeiras bases do estado de Bem Estar Social, que começavam a ser
construídas. Ter um salário era algo desejável por todos e a autogestão foi perdendo sua
força. “Reconciliados com o assalariamento, os trabalhadores em sua grande maioria
perderam o entusiasmo e o interesse pela autogestão. O cooperativismo passou a ser
avaliado, pelos seus membros, somente pelos serviços que ele lhes pudesse prestar
(SINGER, 2003, p. 122)”.
Dos anos que sucederam desde o fracasso dos Pioneiros até o período posterior à
segunda guerra mundial, o movimento operário cada vez mais cresceu e conquistou
direitos que proporcionaram uma mudança inclusive de padrão de vida de classe média
para os trabalhadores. Naquele momento, ao contrário de quando o movimento
cooperativista eclodiu, a questão não era mais se o trabalho assalariado “alienava” ou
não o trabalhador, mas a necessidade de se buscar continuamente a ampliação dos
direitos, mantendo assim o sistema econômico patronal vigente, já que este estava
favorecendo os que dele dependiam. O autor defende a tese de que o desinteresse pela
economia solidária e pela autogestão aumenta gradativamente devido ao conformismo
generalizado da classe operária e à crescente necessidade de se conservar o emprego. Os
sindicatos tornaram-se organizações poderosas, cujo objetivo central era o da
preservação desse modo de relação de trabalho. “Surgiu uma classe operária que se
acostumou ao pleno emprego [que vigorou nos países centrais entre as décadas de 1940
e 1970] e se acomodou ao assalariamento ” (SINGER, 2002, p.110).
A história do cooperativismo e da economia solidária no Brasil:
52
Na região sul do país a tradição associativista data do século XIX. Segundo
Lechat (2004), ela surgiu da colonização de alemães, autríacos, poloneses, entre outros.
Os jesuítas souberam explorar essa tendência para fins católicos, no período de 1870.
No entanto, deve-se a um grupo de intelectuais e políticos alemães (os Brummer) que
haviam participado em 1845, das revoluções liberais na Europa, o impulso inicial para o
associativismo entre os imigrantes. Além disso, também a tradição anarcossindicalista
intervinha sobre os operários urbanos, naquele período. Lechat (2004) cita também a
importância das práticas de economia popular entre os índios e os caboclos da região. A
região sul do país foi uma das primeiras a apresentar experiências em cooperativismo e
autogestão, na década de 80, 90, tendo sido referência para outros estados do país
durante algum tempo.
Já no século XX, nas décadas de 1940 e 1970, o crescimento e incentivo ao
cooperativismo pelo governo brasileiro, que buscava transformar essas cooperativas em
propagandistas da “Revolução Verde” (latifúndio), estas começaram a implantar em seu
seio o patronato, desvinculado dos princípios iniciais da economia solidária. Em geral,
eram cooperativas agrícolas, laticínios ou pecuária, ou seja, de grandes produções. Com
a chegada da década de 70, inicia-se uma nova crise do sistema capitalista, marcada
principalmente por um grande contingente de trabalhadores desempregados. Por toda a
Europa e também pela América Latina, criaram-se cooperativas de trabalhadores
buscando uma nova alternativa diante da situação que lhes prejudicava. Seus direitos
foram sendo paulatinamente flexibilizados e seus salários reduzidos, e a luta diminuiu,
tamanho o medo do desemprego. “Floresceu, então, a partir de 1977 e até 84, uma série
de iniciativas para salvar ou criar empregos, através de empresas autogeridas pelos
próprios trabalhadores e isto com o apoio de alguns sindicatos progressistas”
(LECHAT, 2002, p.3). Diferentemente do que havia restado das experiências anteriores
cooperativas funcionando, porém organizadas pela heterogestão, com assalariamento
, esse reviver da economia solidária no Brasil veio carregado de princípios éticos,
igualitarismo, democracia e de retomada da autogestão (SINGER, 2002, LECHAT,
2002).
Nas décadas de 80 e 90, depois da ditadura militar no Brasil, palco de repressão
e efervescência de movimentos sociais e da esquerda no país, mas também de
implantação de políticas econômicas que desfavoreciam o crescimento nacional e a
reestruturação produtiva, a crise salarial chegou fortemente e as conseqüências foram
53
visíveis: aumento da desigualdade, pobreza e desemprego. A economia solidária
apareceu como uma das maneiras para contornar a situação. Assim como no cenário
internacional, trouxe consigo, dessa vez, os antigos princípios e a autogestão. Começa-
se então, uma multiplicação de cooperativas e associações produtivas, cada vez maiores.
Nas grandes cidades, a pobreza cresce gradativamente e as alternativas para sobreviver
diante da crise vão aparecendo em diversos espaços como micro-resistências à estrutura
que se impõe. Em alguns casos, a economia solidária se faz presente como possibilidade
de sobrevivência de muitos e é fomentada também pela sociedade civil, universidades e
grupos religiosos.
No período entre 1981 e 1983, muitas indústrias pedem concordata e entram em
processo falimentar, deixando seus funcionários à deriva. Algumas dessas empresas são
assumidas por trabalhadores, em forma de cooperativa autogestionária. A legislação do
Brasil oferece aos trabalhadores a possibilidade de arrendar ou adquirir a massa falida
ou o patrimônio dos ex-proprietários, preservando seus postos de trabalho. De acordo
com Singer,
A questão crucial do processo está em levar aos trabalhadores os princípios
da economia solidária, convencendo-os a se unirem numa empresa em que
todos são donos por igual, cada um com direito a um voto, empenhados em
transformar um patrimônio sucateado num novo empreendimento solvável
(2002, p. 87).
As diversas experiências de recuperação das empresas falidas permitiram, ao
longo do tempo, que uma metodologia de transferência de empresas capitalistas a seus
empregados fosse elaborada. Mas, especialmente a experiência de uma fábrica de
sapatos em Franca, a Makerli, permitiu essa reflexão.
Esta entra em crise com a abertura do mercado brasileiro para a importação,
desempregando 482 trabalhadores. Em 1991, o Sindicato dos Trabalhadores Calçadistas
de Franca procurou o DIEESE, que contava com uma equipe experiente em apoiar os
trabalhadores acerca da necessidade do trabalho coletivo e participativo (NAKANO,
2000). Os trabalhadores consideraram a proposta viável e compraram dos proprietários
da fábrica todo o maquinário. O crédito necessário para a compra da empresa foi
conseguido com a ocupação do prédio do Banespa pelos trabalhadores. A Makerli
funcionou durante alguns anos com bastante sucesso. Em 1995, o governo federal
interveio no banco suspendendo a linha de crédito destinada aos trabalhadores, dando
fim a essa experiência (SINGER, 2002).
54
Em 1994, foi realizado o 1º Encontro dos Trabalhadores em Empresas de
Autogestão, em São Paulo. Nesse momento, optou-se por criar a ANTEAG
Associação Nacional dos Trabalhadores em Empresas de Autogestão e Participação
Acionária, cujo objetivo era auxiliar os trabalhadores na luta pelos postos de trabalho,
por meio da recuperação de empresas falidas. A ANTEAG foi se consolidando cada vez
mais, com o sucesso das empresas solidárias, sendo atualmente uma das agências que
fazem o trabalho de formação de cooperativas, porém não criando novos
empreendimentos como as outras, e sim resgatando os que já existem. De acordo com
Nakano,
Essa ação pró-ativa de trabalhadores buscando uma saída para o desemprego,
é o primeiro elemento explicativo do surgimento da Anteag, uma ação que
não deve ser interpretada única e exclusivamente como uma tentativa
desesperada de manter os postos de trabalho. Ela precisa e deve ser entendida
no âmbito de um determinado setor sindical que buscava, de maneira
autônoma, novas formas de agir e enfrentar as questões do mundo do
trabalho, ultrapassando os limites da reivindicação por melhores salários e
das relações patrão e empregado (2000, p. 67).
Um outro grupo que se destaca como pioneiro da economia solidária no país é o
sindicato dos metalúrgicos do ABC paulista, por ser, assim como o sindicato dos
químicos, bastante propositivo e interventor nas políticas públicas e empresariais, da
própria fábrica. Em 1996, o sindicato, no seu 2º Congresso, resolve discutir com seus
trabalhadores a possibilidade da formação de cooperativas autogestionárias, tendo em
vista o desemprego que se agravava cada vez mais. Com a aceitação dos trabalhadores e
com o objetivo de ampliar os conhecimentos sobre o cooperativismo, o sindicato faz
acordos para troca de informações com as entidades sindicais italianas e com a
federação de cooperativas da península, agências com grande acúmulo de
conhecimentos em cooperativismo.
Como aconteceu na Anteag, em 1996 o sindicato é convidado a operar na luta
pela recuperação de postos de trabalho da maior forja do país, localizada em Diadema
SP, a Conforja. Seqüencialmente, o sindicato se engaja em outras ações para a
formação de cooperativas em outras empresas falidas. Porém, a cada operação ficava
patente a necessidade de formar os novos cooperados em gestão de negócios, já que,
mesmo depois de recuperada e formada a cooperativa, havia ainda uma “mentalidade”
remanescente da gestão autoritária das fábricas, baseadas na gestão patronal e, com ela,
dificuldades em implantar a autogestão junto aos trabalhadores, que desacreditavam
desse sistema.
55
Diante disso, no 3º Congresso dos Metalúrgicos, em 1999, o sindicato resolve
constituir uma associação, a União e Solidariedade das Cooperativas e
Empreendimentos de Economia Social do Brasil (Unisol Cooperativas). Assim como a
Anteag, a Unisol tem propostas semelhantes de formação dos trabalhadores e
congregação das cooperativas do ABC paulista, com pretensões de abranger todo o
estado de São Paulo.
A constituição de uma associação de cooperativas, como no caso da Unisol
Cooperativas, insere-se num projeto político mais amplo, confirmando a
crença deste sindicato na geração de uma economia solidária que cumpra seu
papel em termos de democratização da economia e das relações de trabalho e
que possibilite dar um novo significado político e econômico ao
desenvolvimento do cooperativismo, bem como da própria trajetória do
sindicalismo (ODA, 2003, p. 104).
A associação conta com o apoio da incubadora de cooperativas populares de
Santo André, ligada a uma universidade local. A idéia é que as cooperativas
capacitadas pela incubadora passem a fazer parte da Unisol. Com o tempo, a Unisol
cresceu e expandiu seus trabalhos e, atualmente, é um dos grandes grupos que
fomentam a economia solidária no país.
A Cáritas Brasileira é uma organização da Igreja Católica e tem por objetivo
desenvolver projetos de ação social, desde os anos 70, com apoio de outras Cáritas
internacionais. Na década de 80, inaugurou os Projetos de Ação Comunitários, os
PACs. O intuito desses projetos era o de apoiar pequenas iniciativas associativas que
possibilitassem a transformação da vida das pessoas por meio da solidariedade. “Os
PACs tem sua história ligada à busca de alternativas de sobrevivência a partir de
atividades produtivas e de consumo na perspectiva de organização de grupos que,
solidariamente, perseguem sua autonomia e dignidade e lutam contra a dependência
criada pelo assistencialismo.” (BERTUCCI & SILVA, 2003:13). Em cada canto do
Brasil, projetos alternativos comunitários foram criados de acordo com as necessidades
e demandas locais, sempre tendo em vista a sustentabilidade das comunidades.
O termo alternativo destinado a esses projetos tem a ver com uma concepção de
organização libertadora, por estarem buscando o fortalecimento dos setores populares,
mudanças sociais, um novo projeto de desenvolvimento para o país e o surgimento de
novas relações sociais baseadas na solidariedade. (SINGER, 2002; BERTUCCI &
SILVA, 2003).
56
Ainda na década de 80, logo no início dos projetos, a atuação era mais
assistencialista, voltada ao atendimento das necessidades básicas da população. O
financiamento desses projetos era feito na forma de fundo perdido, cabendo à
comunidade apenas o compromisso de desenvolver o modelo organizativo coletivo e
solidário. Não havia uma sistematização de acompanhamento aos grupos. Já na
transição para a década seguinte, algumas regionais da Cáritas no país se abriram para
reflexões sobre a criação de um fundo de apoio aos PACs. Dessas reflexões, decidiu-se
que todo o dinheiro emprestado seria quitado e retornaria ao fundo para que pudesse ser
emprestado para um outro projeto, criando-se assim a contínua sustentabilidade dos
projetos.
O acompanhamento sistemático dos grupos começou a se tornar necessário e as
experiências com os grupos permitem à Cáritas se assumir como capacitadora em
planejamento participativo, e aos poucos os projetos foram se fortalecendo. No fim
desse período e diante da força que as discussões acerca de alternativas econômicas
vinham ganhando, uma aproximação entre a economia solidária e os PACs foi possível.
“Do debate resultou uma percepção inicial de que os PACs são parte de algo maior, de
um movimento que ocorre no seio da sociedade, de construção de alternativas
econômicas solidárias articuladas às concepções sustentáveis de desenvolvimento”
(BERTUCCI & SILVA, 2003, p. 91).
Logo, a economia solidária passou a ser uma das linhas de ação da organização
para o período de 2000 a 2003, com objetivos de fomentá-la. E assim continua ainda
hoje, num âmbito muito maior, uma vez que a demanda dos grupos só aumenta a cada
dia.
Numa corrente parecida está a Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e
pela Vida (ACCFMV), que, em 1994, influenciados por Hebert de Souza, o Betinho,
resolveu atuar não mais na mera distribuição de alimentos para pessoas com fome, e sim
no estímulo e fomento da geração de trabalho e renda para as mesmas. Passa-se do
assistencialismo para uma ação, segundo Singer (2002:119), de “solidariedade
libertadora”. Mais conhecida nacionalmente que a Cáritas, principalmente, por ter sido
fruto de um grande movimento da sociedade civil da década de 90 e por agregar outros
segmentos como a OAB, a CNBB, entre outros, a ACCFMV alcançou resultados com
mais facilidade que outros movimentos.
57
Integrante do Comitê de Entidades no Combate à Fome e pela Vida (Coep), foi
na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), mais especificamente na Faculdade Nacional de
Saúde Pública, no Rio de Janeiro RJ, que as primeiras sementes da campanha
começaram a brotar. Localizada próximo à favela da Maré, onde o narcotráfico
começava a empregar os jovens desempregados e pobres e onde a luta por pontos de
tráfico gerava tiroteios, a universidade acabava sendo atingida por balas perdidas e pela
violência da região.
Diante da criminalidade local, que até então vinha sendo tratada de maneira
repressora pela polícia, o que impedia a emersão do conflito provocado pela
desigualdade, o corpo docente e discente se mobilizou numa tentativa de solucionar o
problema, abrindo-se para a comunidade. Como o problema identificado era a falta de
emprego, a Universidade de Santa Maria/RS foi convidada pelo Coep a auxiliar no
processo de criação de uma cooperativa de trabalho para a região, pois a mesma era a
única que possuía, na época, um curso de cooperativismo. Com isso, criou-se a
Cooperativa de Trabalho de Manguinhos (Cootram), prestadora dos serviços de
jardinagem e limpeza dos prédios da universidade(SINGER,2002, 2003, BOCAYUVA,
2001,GUIMARÃES, 2003).
Com o funcionamento da cooperativa, a universidade obteve uma redução de até
15% nos gastos com limpeza e jardinagem e, o mais importante, o cooperado passou a
receber por seu trabalho o dobro do que recebiam os trabalhadores anteriormente
contratados por empresas privadas para a execução do mesmo. Dados de 2003 mostram
que Cootram congrega hoje cerca de 1200 famílias na região e seu ramo de atividade é a
produção industrial de louças sanitárias. (SINGER, 2002).
Foi a primeira vez que universidades se envolveram num projeto de economia
solidária tanto a Fiocruz quanto a Universidade de Santa Maria. A partir desse
momento, outras universidades foram se interessando pelo fomento à economia
solidária. Surgiu então, em 1995, a primeira Incubadora Tecnológica de Cooperativas
Populares (ITCP), no Rio de Janeiro, na UFRJ. É importante destacar que a primeira
incubadora nasce no centro de pós-graduação em engenharia desta universidade, a
exemplo da incubadora de empresas já existente lá, porém com ideais políticos
diferentes. Seu primeiro trabalho foi auxiliar na criação da Cootram, citada no parágrafo
acima. Em 1996, iniciou um projeto na Baixada Fluminense.
58
Diante do sucesso da mesma, os financiadores do projeto de incubadora Finep,
Banco do Brasil e Coep resolvem investir na criação de outras incubadoras
universitárias. Começam a nascer incubadoras desse estilo nas diversas regiões do país.
Todas elas são formadas pela incubadora da UFRJ, a pioneira. Com o tempo e o número
de incubadoras aumentado, cria-se, em 1999, uma rede nacional das incubadoras
universitárias, responsável por congregá-las para a troca de experiências e ajuda mútua
(SINGER, 2003; GUIMARÃES, 2003). Segundo dados da Rede Universitária de
Incubadoras de Cooperativas, 12 universidades compõem essa rede atualmente.
Alguns dos papéis das incubadoras universitárias são: a prestação de assessoria
aos empreendimentos solidários, auxílio na organização de suas atividades produtivas,
legalização das cooperativas, pesquisa de mercado e financiadores e divulgação dos
princípios do cooperativismo. De acordo com Gonçalo Guimarães, coordenador da
incubadora tecnológica de cooperativas populares da UFRJ, o “objetivo dessa iniciativa
tem sido utilizar os recursos humanos e conhecimentos da universidade na formação,
qualificação e assessoria de trabalhadores para a construção de atividades
autogestionárias, visando sua inclusão no mercado de trabalho.” (2003, p.111).
Por outro lado, no campo, a economia solidária vai se construindo juntamente
com movimentos sociais os mais diversos. O maior exemplo disso é a luta pela terra no
Brasil, impulsionada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o MST. O
movimento, que tem início no fim da década de 70 e inicio dos anos 80, vai se
consolidando na medida em que novas alternativas de produção campesina vão sendo
necessárias, tendo em vista o fracasso das experiências iniciais. Segundo a Concrab
(apud SINGER, 2002), as reivindicações que deram início ao movimento estavam
baseadas na crença de que o problema da falta de terra se resolveria num nível
individual. Quando o trabalhador recebesse sua terra, o problema teria se resolvido.
Porém a agricultura de subsistência praticada pelas famílias não conseguiu melhorar o
padrão de vida das mesmas e muitos desistiram de sua conquista. O camponês estava
reproduzindo em seu cotidiano a sociedade patriarcal e a lógica do latifúndio, a que
tanto o movimento lutava contra.
Com a realização do I Encontro Nacional dos Assentados, em 1986, percebe-se a
necessidade de uma organização mais coletiva da produção e do assentamento. Segundo
Singer, apesar da resistência ao modelo cooperativista tradicional (amplamente
praticado por grandes agricultores, donos de laticínios, em geral, latifundiários) que
59
nada tem a ver com uma proposta de transformação social, começa então uma discussão
sobre o que hoje chamamos de economia solidária.
Em 1988 é organizado um Manual de Cooperação Agrícola e no ano seguinte,
forma criados os Laboratórios Organizacionais, uma metodologia de organização
autogestionária da produção nos assentamentos desenvolvida por Clodomir de Morais,
baseado na experiência das Ligas Camponesas. A mesma é aplicada e começam a surgir
as primeiras CPAs ( Cooperativas de Produção Agropecuária) no Rio Grande do Sul. A
preocupação do movimento, a essa altura, era com a viabilidade econômica dos
pequenos agricultores e não apenas com a ocupação das terras como antes. De nada
adiantava conquistar a terra e não ter como torná-la sustentável.
Em 1991/1992, cria-se o Sistema Cooperativista dos Assentados, formado por
cooperativas agropecuárias, de comercialização regional, grupos coletivos e
associações. No âmbito nacional, estabeleceu-se a Concrab (Confederação das
Cooperativas da Reforma Agrária). Há a unificação dos lotes e a produção coletiva nas
cooperativas agropecuárias. “Passou-se, assim, de um modelo bastante individualista,
em que o pequeno agricultor tem toda a autonomia e se expõe a todos os riscos, para um
modelo totalmente coletivista, em que cada cooperado participa de um trabalho
socializado, de acordo com uma divisão de trabalho previamente planejada.” (SINGER,
2002, p. 104).
O projeto havia sido inspirado no modelo cubano de cooperativismo e neste
caso, as cooperativas tinham pouca autonomia perante o Estado. No caso do MST,
parece que a mesma lógica não poderia dar certo, pois tais aspirações eram
incompatíveis com as aspirações da maioria dos assentados. As CPAs foram sendo cada
vez mais abandonadas por seus cooperados. Um outro agravante para o fracasso dessa
idéia era a pouca formação técnica e administrativa dos assentados, o que gerou a
criação do Curso Técnico em Administração de Cooperativas, em 1993, em um dos
assentamentos. Aos poucos, esses que se formavam foram sendo incorporados à
administração e o desempenho das cooperativas de produção e comercialização foi
melhorando.
Um ponto importante quanto ao fracasso das CPAs e que interessa ao projeto
político que se tenta firmar via esse movimento, mas também, como já foi dito, via
sindicatos e outros que serão abordados a seguir, tem a ver com a distância entre o que o
movimento deseja e o que as pessoas desejam do movimento. Isso se aplica à economia
60
solidária no geral, mas o MST soube perceber e respeitar os assentados e suas formas de
encarar o movimento.
O fracasso das CPAs foi causado possivelmente porque a maioria dos
assentados prefere a pequena produção de mercadorias, mesmo que ela resulte em
menor padrão de vida e maior risco, dada a grande oscilação dos preços dos produtos
agrícolas” (SINGER, 2002, p. 105). Mais adiante, o autor comenta que, nesse sentido,
não deve ser surpresa que a primeira tentativa de se implementar a economia solidária
tenha dado errado, uma vez que tal característica da produção agrícola e das concepções
acerca do trabalho na terra não tenham sido observadas.
Mesmo diante da dificuldade, o movimento insiste em uma produção alternativa,
porém agora sem impor nem priorizá-la. Começa a fomentar outras formas de
cooperação entre os assentados, como as compras coletivas de equipamentos etc. Não se
distingue mais entre os que são cooperados e os que não são, o que criava um certo
constrangimento no assentamento. Aos poucos, por meio de uma participação mais
democrática, o movimento conquista mais adeptos do cooperativismo, na medida em
que estes vão percebendo que sozinhos correm mais riscos do que juntos. A cooperação
é vista como arma para o desenvolvimento da produção mais sustentável para todos,
porém se entende que esta só acontecerá se for um desejo daqueles que participam do
movimento.
E mais, de acordo com Ferreira,
As cooperativas, associações, grupos coletivos e agrovilas possibilitaram
maior convivência social. E maior convivência social implica maior troca de
idéias e de informações. A conscientização implica experimentação. A
execução de pequenas tarefas, como a organização do local para realização
de uma assembléia, já contribui para uma tomada de consciência (2003, p.
90).
Nesse sentido, a economia solidária ou as práticas de economia solidária no
MST (já que estes não denominam o que fazem por economia solidária) se diferem um
pouco das que acontecem nas cidades, no meio urbano, onde a pressão provocada pelas
altas taxas de desemprego e a desigualdade faz do cooperativismo e da economia
solidária um projeto de geração de renda a qualquer custo, ficando os ideais distantes do
que é vivido pelas pessoas. Para Singer,
O contínuo de solidariedade, construído desta forma, é um modelo que o
movimento popular poderá desenvolver nas cidades. Cada modalidade de
cooperação combina em graus diferentes autonomia individual com trabalho
coletivo e depende tanto da vontade dos membros quanto das características
da produção (2002, p.106).
61
Esses são alguns dos lugares de destaque do fervilhar da economia solidária no
Brasil. Seria reduzir a riqueza das experiências acreditarmos que apenas nesses espaços
surgem alternativas de economia divergentes do capitalismo. Sabe-se também que hoje
outras experiências estão acontecendo e que estas que narro acima, continuam se
processando.
Atualmente, outro movimento social do país, o Movimento Nacional dos
Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR) tem o cooperativismo e a autogestão como
forma de garantir uma maior renda para si e para sua família. É um dos maiores
movimentos sociais brasileiros (assim se auto-denominam) e como o MST, parecem
não terem a economia solidária como luta maior, mas como estratégia. Sua luta é por
melhores condições e por respeito ao seu trabalho. Nos dizeres do jornal “De catador
para catador”:
O catador de materiais recicláveis tem em seu dia-a-dia o desafio de manter
seu sustento e de sua família em um ramo de trabalho que a sociedade em
geral ainda vê com grande preconceito. Retrato de anos de exclusão social, o
catador luta pela sobrevivência e pela valorização da sua categoria. (...)
Muitos companheiros catadores ainda enfrentam o drama das ruas e precisam
vencer o trabalho individual e buscar força nos grupos. Aqueles que já estão
organizados têm na união e na solidariedade de classe seu ponto forte. São
aqueles que conciliam a atividade militante com a de um organizador. São
esses que compõem o Movimento Nacional dos Catadores, o MNCR (2005,
p. 4).
Assim como essas, muitas outras experiências em economia solidária ou
cooperativismo foram emergindo nesses anos.
62
A INCUBAÇÃO DE EMPREENDIMENTOS SOLIDÁRIOS
63
Se os termos e as palavras usadas cotidianamente são sentidos construídos
socialmente (Spink M.J. e Medrado, B, 2004), a incubação é também uma palavra que
pode ser transformada de acordo com os usos que as pessoas fazem dela, dentro da
riqueza e diversidade de experiências existentes. Nesse sentido, devem ser consideradas
também as diferentes construções ou versões do termo que são historicamente datadas e
localizadas. Ao falar sobre a psicologia social, Spink P. diz:
É preciso refletir sobre os textos em que essas práticas vêm sendo escritas, ou
seja, onde, como, quando, por quais razões surge a idéia de incubar cooperativas
inseridas no projeto da economia solidária e por fim, que sentidos são construídos a
partir dos usos. Este capítulo tem por objetivo mapear o que está sendo produzido
teoricamente acerca da incubação, focalizando dois aspectos: suas relações com a
temática da educação e da pobreza. Para tanto, recorri ao material teórico proveniente,
especialmente, das ITCPs, uma vez que são elas que fazem maior uso da noção. Outras
agências são apresentadas em menor grau.
Sentidos da incubação de empreendimentos solidários na literatura:
Sendo a educação um processo indispensável à construção da economia
solidária, as incubadoras de empreendimentos solidários apresentam-se como novos
espaços pedagógicos responsáveis pelo apoio aos empreendimentos solidários. É
também resposta a uma demanda prática vivenciada no cotidiano daqueles que optam
por esta forma de organização: a dificuldade de promover um empreendimento
autogestionário e solidário que seja capaz de gerar renda (GUIMARÃES, 2003,
SINGER, 2003).
Ao longo das últimas décadas, “incubar” tornou-se um verbo muito utilizado no
espaço de ação da economia solidária. Remete a uma série de processos de apoio a
empreendimentos solidários, desenvolvidos em diversos lugares e que, longe de serem
homogêneos e padronizados, se diferenciam tanto nos planos ideológicos e políticos
quanto tecnicamente. Mesmo diante de processos heterogêneos, a incubação é uma
noção que parece unir alguns pontos essenciais. Por mais locais que sejam as produções
de cada incubadora, parece haver um consenso mínimo sobre o que significa incubar um
empreendimento.
64
Sabe-se da existência de incubadoras de empresas em universidades e, de acordo
com a história de algumas incubadoras de cooperativas, como é o caso da UFRJ e da
UNICAMP, é possível concluir que o termo “incubadora” tenha migrado do meio
empresarial para a economia solidária. No caso do Rio de Janeiro, já havia na
universidade a experiência de uma incubadora de empresas na engenharia que tinha
ampla atuação junto às empresas.
De acordo com Oliveira (2006), as primeiras experiências mais parecidas
com o que hoje se convencionou chamar de incubadoras de empresas aconteceram há
50 anos, nos Estados Unidos, na região do Vale do Silício. Mas foi nos anos de 1970
que a noção começou a circular nos formatos atuais, ou seja, com a intenção de designar
um processo em que se desenvolve o dinamismo econômico e tecnológico nas empresas
que começavam a ser formadas. No Brasil, a idéia chegou às universidades em 1980,
através do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq),
da agencia Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP) e da Organização dos Estados
Americanos. Em 1987 foi criada a Associação Nacional de Entidades Promotoras de
Empreendimentos de Tecnologia Avançada (ANPROTEC), cujos objetivos eram a
constituição de incubadoras e parques tecnológicos no país.
Quando o termo migra para a economia solidária, conserva antigos sentidos e
ganha novos, tanto relativos ao seu uso quanto ao seu papel, prático e político: a
incubação deixa de se dirigir a empresas capitalistas e passa a atender as necessidades
de empresas solidárias. Conseqüentemente a atuação dessa incubadora também se
difere, tendo em vista tanto a população que se beneficiará da proposta quanto os
conteúdos que serão trabalhados. Diante dos processos que cada vez mais desencadeiam
fenômenos como o desemprego e a precarização das condições de trabalho, a idéia da
incubadora de cooperativas populares surge, em meados da década de 90, como um
instrumento necessário para consolidação da economia solidária, uma vez que,
acreditava-se que os trabalhadores desempregados careciam de determinados
conhecimentos para saírem das situações de marginalização, através do cooperativismo.
Nas inúmeras experiências já relatadas anteriormente, a idéia da incubação vai
se criando e se fortalecendo, conforme a necessidade se impõe a cada organização. No
início desse mestrado (2004), ainda havia pouco material para uma revisão da literatura,
no entanto, mais recentemente, esse quadro parece ter se modificado. A produção
acadêmica em torno do tema da incubação aponta para o fato de que o conceito e as
65
práticas estão em debate, tanto no interior das incubadoras quanto no campo mais amplo
da economia solidária.
Dessa forma, toma-se a iniciativa de tentar formular um conceito a partir de
um empreendimento que dispõe de uma equipe técnica para fornecer apoio,
durante um determinado período de tempo, visando contribuir para o
processo de aprendizagem de pessoas e grupos dispostos a montar e gerir
uma cooperativa de forma sustentada, sem relação de dependência. (2006, p.
75).
Apesar da conceituação acima se referir às incubadoras universitárias, é
necessário esclarecer que o conceito de incubadora que adotado nesse estudo engloba
não apenas estas, mas também outras organizações que se autodenominam assim ou que
consideram que desenvolvem um trabalho de incubação. Esse esclarecimento deve-se
ao fato de que, em alguns textos referentes às incubadoras universitárias, pode-se ter a
impressão de que o processo de incubação é feito exclusivamente por elas. Isso é
reforçado constantemente pelos autores da economia solidária, como Singer (2004), no
capítulo para o livro ‘Produzir e Viver’, de Boaventura de Souza Santos. Neste artigo o
autor separa, em grupos distintos, a atuação de formação da Cáritas, das incubadoras
universitárias, do MST etc., dando a entender que o processo de incubação está presente
apenas nas incubadoras universitárias, apesar de relatar experiências de incubação em
todos os outros espaços. Apesar dessas entidades ou movimentos sociais não utilizarem
do termo incubação para se referirem a uma ação semelhante não significa que a noção
do apoio técnico não faça parte das ações. O autor diz, referindo-se à formação da
primeira incubadora universitária do país:
A Incubadora de Cooperativas Populares veio preencher uma lacuna vital no
processo de formação de cooperativas e grupos de produção associada,
iniciada pela Cáritas e expandida pela ACCMV: a de prestar assessoria
contínua aos empreendimentos solidários, divulgando os princípios do
cooperativismo entre grupos interessados, ajudando-os a organizarem
atividades produtivas ou de prestação de serviços, a apurarem as técnicas
empregadas, a legalizarem as cooperativas, a buscarem mercados e
financiamento, etc. (2004, p. 122).
Termos como “assessoria”, “atuação”, “apoio” também são utilizados para
designar os processos de incubação. A diferença pode estar no nome que se dá a essas
ações e na forma de fazer, nos conteúdos. Mas a ação é de apoio a pequenos
empreendimentos solidários. Um exemplo claro disso foi quando, no Encontro
Internacional de Economia Solidária, realizado pelo NESOL (Núcleo de estudos de
economia solidária), em julho de 2006, numa mesa formada para debater metodologias
de ensino estavam presentes tanto uma incubadora universitária quanto duas ONGs,
uma da Argentina e uma do Brasil. Ainda que os dois últimos não tenham referido suas
66
ações como incubação, compunham a mesa para falar dos processos de apoio aos
grupos que acompanham. Um outro motivo para a compreensão da noção incubação
não limitada a um espaço universitário é o fato de que, nessa pesquisa, busquei os
sentidos da incubação numa instituição que não é universitária e, no entanto, utiliza a
palavra incubação para denominar um de seus trabalhos (talvez o maior) junto aos
empreendimentos. Ao que tudo indica, a noção de incubação na economia solidária
nasceu nas universidades, mas não permaneceu por muito tempo restrita a esse âmbito.
Ainda assim são incubadoras universitárias que dispõem da possibilidade de
discussões mais contínuas sobre o trabalho que desenvolvem, em função da existência
da Rede de Incubadoras Universitárias e dos encontros anuais realizados pela mesma. A
rede foi criada com o objetivo da troca de experiências, do debate, o que não acontece
fora do campo universitário, a não ser quando acontecem encontros maiores sobre o
assunto, que congregam todas as experiências existentes. Por esse motivo, a maior parte
dos textos encontrados na revisão da literatura sobre incubação são produções das
incubadoras universitárias.
No que diz respeito a esse grupo, existem vários exemplos daquilo é considerado
uma Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares (ITCP). As incubadoras
universitárias têm por característica a integração entre ensino, pesquisa e extensão e
dessa forma, a participação de alunos da graduação e da pós-graduação é constante, via
iniciação científica, mestrado ou doutorado. Nas publicações oriundas dessa
experiência, é comum a explicitação dos objetivos de cada incubadora e do que se
considera como importante no processo de formação.
Ao falar sobre a existência da primeira ITCP (ITCP/UFRJ) a ser formada no
país, Bocayuva (2001) apresenta alguns motivos para que a educação seja considerada
importante ferramenta:
O acesso ao mercado de trabalho exige um instrumento de caráter
sociotécnico como a Incubadora, para romper o quadro de fragmentação
social e de precarização do mercado de trabalho, com seus correlatos
culturais de marginalização e criminalização das populações faveladas. O
cooperativismo apresenta-se como o instrumento mais próximo dessa
abordagem política, com uma definição precisa do seu sentido e do seu limite
como empresa de trabalhadores (p. 239).
As dificuldades de acesso ao mercado de trabalho e a situação precária em que
muitos desses trabalhadores se encontram faz com que a incubadora tenha como
67
objetivo a superação dessas condições. Por ser um instrumento “sociotécnico” é capaz
de apoiar tanto tecnicamente quanto politicamente, a partir do cooperativismo.
Em geral, diferentemente das incubadoras de empresas, o público-alvo dessas
incubadoras é a população de baixa renda que tem interesse em desenvolver uma
atividade produtiva coletivamente. Isso implica na adoção de parâmetros de
desenvolvimento diferentes, adequados às necessidades locais. “As ITCPs necessitam
de uma tecnologia adaptada ao tamanho físico e financeiro pequeno; - As ITCPs
necessitam de uma tecnologia voltada para o mercado interno de massa;- As ITCPs
necessitam de uma tecnologia adaptada ao contexto socioeconômico de seu público-
alvo.” (OLIVEIRA, 2006, p. 78).
A UNITRABALHO é uma organização que foi criada em 1996 e congrega,
atualmente, 92 universidades no país, com o objetivo de “contribuir para o resgate da
dívida social que as universidades brasileiras têm com os trabalhadores” (Rede
Unitrabalho, disponível em: http://www.unitrabalho.org.br//paginas/institucional.html,
2006). A Rede de Incubadoras Universitária é filiada a essa organização. A Rede, por
sua vez foi oficializada em 1999, é composta por 17 incubadoras universitárias e tem o
intuito de desenvolver e disseminar conhecimentos sobre cooperativismo e auto-
gestão, contribuindo para o desenvolvimento da Economia Solidária. Ela surge para
integrar de forma dinâmica as incubadoras e favorecer a transferência de tecnologias e
conhecimentos” (disponível em: http://www.itcp.coppe.ufrj.br/, 2006).
Criada Recentemente foi publicado um artigo em que se apresentou a concepção de
incubação sugerida para os trabalhos nas incubadoras. De acordo com Eid (2004), no
artigo “Análise sobre os processos de formação de incubadoras universitárias da
Unitrabalho e metodologias de incubação de empreendimentos de economia solidária”,
a metodologia de incubação necessita compreender a educação como um processo
unitário e interativo (educadores e educandos), que busque a superação da
compartimentalização do conhecimento. A idéia é que se trabalhe a partir do que o
autor chama de “transdisciplinariedade” - que ultrapassa a divisão de disciplinas.
De fato, nos artigos publicados por algumas incubadoras universitárias essa
concepção está presente de diferentes formas nos objetivos e em algumas atividades. A
extensão universitária prioriza que a comunidade tenha acesso ao conhecimento que é
produzido dentro da universidade. É uma postura que visa democratizar o conhecimento
científico e é o que permite que tais considerações sejam feitas:
68
A estrutura organizacional da ITCP Unicamp é voltada para a práxis da
extensão universitária, isto é, para promover a interação direta entre
universidade e comunidade, através da troca de saberes, na medida que
sistematiza e (re)elabora o conhecimento tanto acadêmico quanto popular e
concretiza a troca mútua de conhecimentos e experiências diferenciadas entre
cooperados e alunos no trabalho conjunto para a construção das
cooperativas(ITCP/UNICAMP, 2003, p. 3).
A incubadora é compreendida enquanto uma ferramenta de “(re) elaboração”
dos conhecimentos disponíveis na relação cooperativa/universidade para que, a partir
disso, ocorra a troca mútua, em favor da construção do empreendimento.
(...)todo o projeto de incubação visa: (i) acompanhar e assessorar a formação
de cooperativas populares autogestionárias e outras iniciativas de economia
solidária, disponibilizando aos grupos atendidos o conhecimento técnico e
científico produzido pela Unicamp e ajudando na consolidação das
iniciativas; (ii) permitir aos professores e estudantes vinculados ao programa
um campo permanente de observação e aprendizado em relação à sociedade e
suas demandas sociais mais urgentes ( 2003, p. 3).
Por sua vez, a ANTEAG também desenvolve ações junto aos trabalhadores das
fábricas recuperadas e, para isso, estão partindo de uma perspectiva diferente dessas
duas acima, já que foi constituída nas experiências de luta nas empresas recuperadas.
Também utilizam o termo “incubação” para designar o apoio que oferecem aos
trabalhadores. De acordo com a entidade,
Podemos dizer que a base do processo de formação está na adoção de
situações e preocupações concretas capazes de dialogar com a realidade do
trabalhador, para só então despertar preocupações mais universais e abstratas
que se estendam a todos os trabalhadores e, até mesmo à humanidade.
Estabelecer essa ponte do concreto ao universal, da situação particular
daquele trabalhador e daquela empresa/empreendimento à situação do
trabalho e dos trabalhadores em geral, é condição necessária para ajudar cada
trabalhador individual a reconhecer-se no coletivo, ampliar o sentido de seu
trabalho compreendendo as profundas implicações da escolha de um modelo
autogestionário para a sua vida (2005, p. 21).
Por incubação estão compreendendo:
- acompanhamento cotidiano (com visitas regulares ou de acordo com a
demanda) de caráter interdisciplinar. Realização de formação permanente a
partir da identificação das demandas ou o seu encaminhamento a partir da
articulação de parcerias. Desenvolvimento ou articulação de suporte
tecnológico. Disponibilização de espaço físico ou de infra-estrutura quando
necessário (2005, p. 24).
Por outro lado, no livro “25 anos de Economia Popular Solidária”, elaborado
pela Cáritas Brasileira (SÉRIE CARTILHAS, 2006), conta-se a história a partir dos
PACs até a adoção da economia solidária como linha de ação da entidade.
A Cáritas reconhece que sua intervenção não deve estar restrita nem
centralizada no fortalecimento do crédito ou assistência técnica nas
iniciativas produtivas. A sua grande contribuição deve ser formativa dos
69
sujeitos para uma nova forma de construir relações solidárias. Cabe a Cáritas
animar e estimular a prática da solidariedade coerente com uma alternativa de
desenvolvimento humano, sustentável e solidário (p. 27).
A perspectiva do apoio é outra. Não deixa de lado questões da técnica e dos
financiamentos, dando ênfase a uma reflexão sobre as relações sociais na comunidade.
Não há essa valorização da transferência de um saber científico, organizacional ou
administrativo quanto o que se observa nos textos das ITCPs. A Cáritas, enquanto
entidade religiosa, atua a partir de seus princípios valorativos maiores.
A incubação como um processo de educação
A discussão sobre a pedagogia da incubação vem ganhando espaço
gradativamente, na medida em que as experiências de economia solidária se consolidam
(positiva ou negativamente) e as agências de fomento (incubadoras) se permitem
debater sobre o cotidiano desse agir desde o trabalho desenvolvido até a definição do
que é ser um trabalhador de incubadora de cooperativas dentro da economia solidária.
De acordo com Candeias, Lima e Silva (2005), há uma necessidade crescente de
reflexão acerca da relação dialética entre o processo de incubação e o incubador. Este
último é encarado enquanto um profissional que atua pela construção de relações
econômicas mais igualitárias, a partir da economia solidária, e que, para isso, deve
dispor de ferramentas para a ação que se propõe: a de junto com o grupo, criar uma
nova cultura organizacional, a autogestão. Ressaltam que o processo pedagógico vivido
numa incubação é social, uma relação de troca mútua entre o incubador e os incubados:
Parece-nos assim, que esse processo, que se revela como um genuíno
processo de educação popular, é também um processo de construção de
novas culturas organizacionais baseadas não mais na heterogestão, mas sim
na autogestão, demandando novas dinâmicas que para além da importante
viabilidade econômica, precisa ser também de viabilidade social e política
(2005, p. 1).
Para os autores, a incubação é uma pedagogia social e o incubador, um etnógrafo
e um animador sociocultural. Pedagogia social porque é inevitável que essa relação seja
de construção coletiva, feita pelos diversos atores envolvidos no empreendimento
solidário. Ao mesmo tempo, a atividade do que incuba pressupõe adotar uma postura
etnográfica diante da realidade em que se mergulha, lidando com essa realidade não
como mero observador, mas como parte do mesmo processo, implicado com aquele
universo. Assim, ele é capaz de propor alternativas viáveis localmente. Animador sócio-
70
cultural no sentido de que se aproxima de um grupo ou comunidade, com o propósito de
promover nas pessoas uma atitude de participação ativa diante do seu desenvolvimento
social e cultural. (CANDEIAS; LIMA; SILVA, 2005).
Por outro lado, apesar da palavra “incubador” designar uma pessoa específica
que relacionar-se-á com o grupo, parece representar mais uma presença da participação
ativa da incubadora (composta por outras pessoas em debate) na construção de algo
diferente naquele lugar. Ao trazer para o artigo essa idéia, os autores esclarecem que a
relação que o incubador estabelece com o grupo não é originada apenas nele, mas no
coletivo da incubadora com suas idéias, fundamentações, concepções.
Isso permite pensar num conhecimento que é construído nas reuniões, na prática
da incubadora, nos debates, etc. Um corpo de conhecimento que é elaborado no
cotidiano da incubação, que tenta integrar as diferentes disciplinas para quando, no
contato com os grupos, seja aplicável àquela realidade.
A idéia da presença, aliada ao fato de que este é um campo profissional
interdisciplinar, impactado pela realidade dos grupos, remete a uma dimensão
importante do trabalho daquele que incuba: a reflexão sobre a base de conhecimentos,
princípios, valores, práticas em que a incubação é feita e no quanto essa base se abre
para o reconhecimento de que outros saberes também fazem parte da construção do
empreendimento econômico.
Não é raro encontrar profissionais ou estudantes universitários que realmente
acreditam que o conhecimento que se produz dentro das universidades vale mais que os
outros. Também não é difícil que pessoas pensem que o senso comum é crendice, é sem
valor, não deve ser considerado. Como a economia solidária percebe esses outros
saberes e, como cada incubadora, especificamente, atua a partir disso?
A troca de conhecimentos, a participação, o reconhecimento dos saberes
cotidianos fazem parte das discussões na literatura. Parece haver uma necessidade de
atuar a partir de processos educacionais que se pautam por modelos diferentes da
educação formal: educação popular, pedagogia social, pesquisa participante, pesquisa-
ação, etc.
No caso acima, apesar de fazerem apontamentos importantes, os mesmos autores
apresentam no texto uma concepção de profissão que parece se contrapor à própria idéia
de pedagogia social e coletivização do processo de incubação. Segundo eles, é
necessário que o incubador seja visto como um profissional especialista no incubar.
71
Adotam duas conceituações sobre profissão: a primeira se caracteriza por ser um saber
sistemático global (profissional), ter poder sobre o cliente (a disposição deste em acatar
suas decisões), atitude e serviço ante seus clientes, autonomia ou controle profissional
independente, prestígio social e reconhecimento público do seu status e subcultura
profissional especial. A segunda definição diz que a constituição de uma profissão se dá
por ser uma espécie de trabalho específico e teoricamente fundamentado, que conforma
um conhecimento delimitado, complexo e institucionalizado. A conclusão que os
autores chegam é de que:
Todas as duas observações acima colocadas lançam para o campo da
incubação e em especial na consolidação desse ator social que é o incubador,
demandas que estão vinculadas a uma dimensão que poderíamos dizer mais
interna, a qual faz referência ao procedimento de concretização e
fundamentação de uma metodologia e de uma teoria da incubação; e uma
outra demanda de caráter externo, a qual está ligada ao reconhecimento
público desse profissional como agente detentor de autoridade nesse campo
(2005, p. 6).
A noção de incubadora pressupõe a existência de pessoas que possuem um
conhecimento que pode ser destinado ao auxílio de grupos interessados em compor a
própria cooperativa ou mais além, a grupos interessados em praticar a economia
solidária em empreendimentos ou em comunidades (ainda que as experiências de
atuação das incubadoras em comunidades sejam mais raras). Acredita-se na
possibilidade de ajuda a partir dos conhecimentos da universidade, das organizações
não governamentais, de profissionais especialistas, seja qual for o tipo de incubadora. A
idéia é disponibilizar um saber ou saberes para outros.
No entanto, a contradição que parece existir entre a idéia de uma pedagogia mais
participativa dentro dos processos de incubação e a idéia de que há profissionais
especializados nesse processo, é a de que numa relação de troca, a delimitação de papéis
parece importante, mas as relações que podem se estabelecer a partir dessa delimitação
podem não condizer com a idéia de educação mais libertária. Reconhecendo-se, como
sugerem os autores, que o incubador é um profissional especialista em incubar, caberia
perguntar que capacitação é essa e o que envolve essa especialização em incubar? Seria
a capacidade de construir coletivamente um corpo de ações, estratégias e
conhecimentos? Ou seria a capacidade de, a partir de seu campo profissional, elaborar
complexas estratégias, mecanismos e formas organizativas para os cooperados? Por
exemplo, a importância da engenharia de produção numa cooperativa de triagem de
materiais recicláveis é uma questão interessante. O engenheiro(a) poderá elaborar, ele
72
próprio, a partir do seu conhecimento sobre processos produtivos, uma forma de
trabalhar que considere aspectos que para ele são importantes. Ou ele poderá sentar-se
junto com o grupo da cooperativa para investigar os aspectos que têm relevância para
aquele processo e, também junto com o grupo, construí-lo. As diferenças nos resultados
podem ser grandes. A engenharia é construção de materialidades e socialidades. A partir
dos modos escolhidos para a produção, formas de relação se estabelecerão naquele
cotidiano.
O fato é que o que delimita a profissão “incubador” é um conhecimento
particular, em geral oriundo dos meios acadêmicos a que tiveram acesso essas pessoas.
A questão é como tornar esse conhecimento válido, interessante, útil para a cooperativa,
no sentido de que, a partir dele, novas materialidades e socialidades possam ser
construídas, para que, de fato, essas cooperativas sejam, no mínimo, empreendimentos
que permitam que as pessoas saiam de situações precárias de trabalho e vida.
A economia solidária é um campo interdisciplinar, que engloba diversas áreas do
conhecimento científico e também diversos saberes. Hoje em dia, a economia solidária
no Brasil caracteriza-se por ser uma opção alternativa dentro de um quadro de poucas
saídas para o trabalhador. A relação que se estabelece entre aquele que incuba e aquele
que é incubado é, fundamentalmente, uma relação de conflito de sentidos, exatamente
porque existe uma diferença gritante entre as posições que um profissional de
incubadora pode ocupar e os que um trabalhador de cooperativa popular pode ocupar
(SATO, 1999). Isso não significa naturalizar o conflito, mas indicar que o processo de
incubação é construído a partir de particularidades, de diferenças, que podem, muitas
vezes, levar a desigualdades na relação.
Há inevitavelmente, uma série de indagações que circulam nesse campo:
sobre as diferentes concepções de cooperativismo, sobre a autogestão e a co-
gestão, sobre as diferentes territorialidades da ação urbana e rural, e sobre os
horizontes possíveis dessas intervenções. Entretanto há um consenso mínimo
sobre as possibilidades de construir relações mais solidárias, de criar
emprego e renda a partir de outros princípios e de recuperar o sonho da
dignidade e da igualdade. O problema levantado por aquelas indagações,
como também pelas muitas experiências em curso que não são
necessariamente exitosas, é o ‘como’? (SPINK, A PERDA.., p. 73).
É, em parte, a base orientadora das pessoas que desenvolvem a incubação que
dará sustentação ao como de cada incubadora. São advogados(a) com as leis do
cooperativismo, são economistas com teorias de economia, cientistas sociais, assistentes
sociais, psicólogos(a), pedagogos(a), técnicos(a) em contabilidade, administradores,
73
engenheiros(a), entre outros, todos munidos de um conjunto de conhecimentos, visões
de mundo e posicionados em algum lugar no terreno da economia solidária.
Ao mesmo tempo, colocar o incubador como um especialista no incubar remete
a uma dimensão muito comentada na literatura sobre a incubação: a formação dos
formadores. Sobre o assunto, fala-se em conteúdos da economia solidária, autogestão, e
outros temas que serão trabalhados junto aos grupos, como também no papel dos
formadores. Vou me deter mais sobre esse segundo aspecto, por considerá-lo
interessante ao debate sobre os processos pedagógicos na incubação. A educação
popular e a pesquisa-ação aparecem como formas de promover um processo de
educação diferenciado, político e construído coletivamente.
Cruz (2004) afirma que um dos desafios das incubadoras universitárias está no
seu aspecto pedagógico:
Como capacitar este tipo de trabalhador, que não compartilhou a cultura da
educação formal, a criar, gerir e consolidar um negócio, fazendo-o mais
difícil ainda! de forma coletiva? Como lograr que esses trabalhadores,
coletivamente, sejam capazes de acessar e manejar conhecimentos de (a)
gestão econômica, de (b) qualidade do produto, de (c) mecanismos de
decisão democrática, de (d) permanente busca de tecnologias alternativas, e
finalmente, de (e) preservação da saúde e do meio ambiente? (p. 47).
O que permitirá que o trabalhador acesse conhecimentos que são estratégicos
para seu cotidiano no seu empreendimento? A incubadora deve refletir sobre as
melhores formas de fazer com que esse conhecimento seja apropriado pelas pessoas.
Para o autor, a incubação se dá num espaço social e pedagógico onde as diferenças de
acesso estão marcadas, entre aquele que possui um conhecimento científico e aquele
que possui outros conhecimentos, baseado nas experiências e histórias de vida dos
trabalhadores. A articulação entre esses saberes é apontada como um desafio da
incubação. O mesmo aspecto também é tratado na incubadora da UFF. Estes dizem que
na incubação,
Mais do que prestar assessoria na estruturação do negócio, oferecendo aporte
técnico e físico, as incubadoras devem ter como missão a condução de um
processo pedagógico amplo, mobilizador de um espaço propício ao
desenvolvimento da consciência crítica, isto é, um espaço favorável ao
resgate do papel social por todos os atores envolvidos. Educadores e
educandos estabelecem uma relação horizontal de parceria, de
complementaridade e de crescimento mútuo (sem data, p. 4).
A incubação é, portanto, uma prática que político-dialógica, que se faz no
exercício do diálogo entre educadores e educandos, de problematização e discussão para
que o conhecimento seja construído e novas formas de ação e resolução sejam possíveis.
74
“Nesse sentido, o papel do incubador, ora visto como impositor de idéias, deve ser o de
coordenador de debates, conduzindo à roda elementos que enriqueçam a discussão.”
(VIEIRA, ANDRADE, FIGUEIREDO, DUARTE, p. 4).
Para Kirsch (s/ data), são os agentes (incubadoras, assessores) que constroem o
discurso da economia solidária, mas é o cotidiano dos empreendimentos que dá
concretude ao projeto. Se o agente é hábil, consegue construir o projeto junto com os
trabalhadores, não precisará se esforçar para que estes se apropriem dele, pois o projeto
já será propriedade coletiva do grupo. “A opção político-metodológica pela educação
popular tenderia à superação desta simulação entre quem é o ator e o agente da
economia solidária.” (p. 11). Mesmo diante das demandas emergenciais dos grupos, é
possível traçar caminhos mais dialogados.
Para a ANTEAG, a questão da formação dos agentes é importante porque, da
mesma forma que exige-se dos grupos um olhar total dos processos, o técnico também
necessita ter essa visão do empreendimento. Isso leva a uma postura no grupo que
possibilita o diálogo para a construção de soluções. Por isso, os técnicos devem:
(...) questionar em primeiro lugar a visão clássica de que são
portadores de um saber e que o processo formativo baseia-se na transmissão
desse saber aos trabalhadores que, nesse processo, seriam meros receptores.
Devemos consideram que cada empresa é única e que seus trabalhadores
conhecem, melhor do que ninguém, a realidade de seu ambiente de trabalho.
Por isso, é importante considerar também que todo trabalhador é capaz de
contribuir na busca de soluções quando instigados e ajudados a faze-lo. O
saber do técnico/formador/ assessor em diálogo com o trabalhador é o meio
mais eficiente para a construção de soluções adequadas. Mesmo porque se
esse saber não dialoga com os trabalhadores, dificilmente será incorporado ao
dia a dia da empresa ( ANTEAG, 2005, p. 151).
Se encarada a partir de uma ótica mais libertária, a incubação deve eliminar a
distância entre quem incuba e quem é incubado, ao invés de assegurá-la,
fundamentando-se a partir da idéia de profissões, especializações, que só servem para
enrijecer as desigualdades existentes. Quando se senta para conversar sobre as
possibilidades de ação coletivamente, através da problematização do cotidiano, dos
temas e necessidades que preocupam as pessoas, as possibilidades da ação ser bem
sucedida parecem ser melhores. Além de estarem considerando a construção de
conhecimentos como um processo que não se faz sozinho, mas em relação, fica claro
que a importância de construção tem a ver com a propriedade do conhecimento, com o
como ele vai ser apropriado pelas pessoas no cotidiano.
Algumas incubadoras apontam a pesquisa-ação como meio de chegar a essa
construção. Para a INCOOP/UFSCAR, esta forma de pesquisar está necessariamente
75
imbricada com o agir. Não há pesquisa sem ação. Para Eid e Gallo (2001), seu valor
está em possibilitar aos participantes (pesquisadores e grupos) formas de responder aos
problemas cotidianos com maior eficácia, porque está conectada com o lugar. A
incubação é um processo de pesquisa-ação que permite o nascimento de
empreendimentos a partir das demandas tanto do grupo quanto dos assessores, que
trabalham em conjunto. Para Spink (1976), antes de qualquer coisa, “a pesquisa-ação é
uma fusão de pesquisa com assessoria” (p.1). Implica numa aproximação aos problemas
reais dos grupos e no reconhecimento de sua capacidade de propor soluções. Não é,
entretanto, uma tarefa fácil, simples. Demanda que cada opinião seja escutada e
debatida. Os múltiplos interesses estão em negociação para a construção de
possibilidades.
Enfim, os textos apontam para a importância de tornar a incubação um processo
negociado, ainda que necessidades emergenciais se apresentem. Atores - compreendidos
como as pessoas dos empreendimentos - e agentes - como as pessoas das incubadoras
estão, na relação propiciada pela incubação, buscando construir um empreendimento
solidário. Para isso, é preciso que as distâncias diminuam e que os saberes estejam
disponíveis para essa construção.
A incubação e a pobreza
Como já foi dito, a população foco dos trabalhos das incubadoras é de baixa
renda, muitas vezes há bastante tempo em situação de desemprego, residindo nas
periferias das cidades. O trabalho na “informalidade” é um dos caminhos possíveis para
a geração de renda. Coraggio (2000) define a informalidade como o conjunto de
atividades econômicas de sujeitos considerados excluídos da sociedade, que se dá na
justaposição de alguns critérios (já mencionados na discussão sobre economia solidária
no capítulo anterior) e que não obedece a nenhuma lógica específica. É, no entanto, um
conjunto de atividades que tem uma importância que é desvalorizada pelos estudos
estatísticos, apesar de constituir mais da metade das ocupações e uma parte significativa
do produto interno. Aplica-se a trabalhadores independentes ou individuais e a
empreendimentos de pequeno porte que participam do mercado. “Esta visão caótica
complementa-se com a idéia de que estes agentes atuam nos interstícios, fora da lógica
da economia “formal”/ moderna privada ou pública e que se expandem ou contraem
para compensar o movimento do setor moderno” (CORAGGIO, 2000, p. 182).
76
Na economia solidária, quando um grupo resolve se organizar de forma
autogestionária para produzir algo e a partir dessa produção, gerar uma renda que seja
capaz de fornecer uma sustentabilidade para si e para sua família, em geral, se depara
com dificuldades de entrar no mercado de maneira mais incisiva e justa (sem ser
explorado por “atravessadores”, por exemplo): dificuldades de obter recursos para
legalização do empreendimento; muitas vezes necessitam de equipamentos de trabalho,
como maquinários; dificuldade de alugar ou comprar um espaço para instalar o prédio
onde se trabalhará; dificuldades para conseguir recursos para construir o prédio; entre
muitos outros aspectos. A renda é pequena e não supre as necessidades dos membros, o
que leva a desistência de muitos.
A incubação aparece como estratégia de apoio a esses pequenos grupos. Um
apoio que é técnico, administrativo, financeiro e, muitas vezes, político. A literatura
sobre os processos de incubação sempre apontam para esses problemas. A pobreza é um
tema que provoca reflexões sobre como agir. As discussões sobre a economia solidária,
autogestão e posicionamentos mais políticos mesclam-se as circunstâncias de uma
realidade de poucos acessos e muitos problemas. Assim, a necessidade de trabalhar com
esses aspectos da realidade dos grupos também acabam fazendo parte dos objetivos da
incubação.
Num texto escrito para um dos encontros da ANPROTEC sobre políticas
públicas de crédito, Gonçalo Guimarães (1999) apresenta a ITCP/UFRJ como um
elemento importante de apoio às pessoas socialmente marginalizadas, no sentido de
proporcionar uma maior participação no mercado, tendo em vista os obstáculos
existentes para que essa inserção ocorra por si só. Diz que, quando o projeto se iniciou
as incubadoras tinham a função de atuar junto aos trabalhadores oprimidos que se
encontravam na condição de não - cidadãos por estarem sem trabalho, vivendo
precariamente. Em um outro momento, 2002, sobre o público-alvo das incubadoras,
Gonçalo Guimarães diz:
Então, o que seria excluir? Qual seria o nosso papel? Mudar a renda? Se a
gente mudar a renda estará realmente mudando a exclusão? Será que pelo
fato de termos conseguido que o patamar de renda subisse de 1 para 2
salários mínimos podemos chegar à conclusão que nós conseguimos inserir
aquele grupo? Temos que discutir o que é inserção e o que é exclusão. O que
diferenciaria um favelado com renda familiar de 10 salários mínimos de uma
família de classe média com renda de 10 salários mínimos? Não é a renda. É
o meio ambiente. Eu diria então que a exclusão não se dá pela renda e pelo
poder de consumo, mas ela se dá, prioritariamente, pelos direitos. O que
diferencia a classe média da classe popular, ao meu ver, está muito mais
77
centrado na exclusão aos direitos: educação, saúde, saneamento, transporte,
meio ambiente e riqueza produzida no país. Então, na realidade, o que está
diferenciando os cidadãos do mesmo território e do mesmo país é o direito de
cidadão, extremamente diferenciado (Gonçalo Guimarães, ITCP/UFRJ,
exposição em reuniões regionais, apud KRUPPA e SANCHEZ, 2002, p. 9).
Os processos de exclusão e inclusão são trazidos para o debate da incubação, em
contraste com a necessidade econômica. Ainda, o que parece estar presente na primeira
fala, em 1999, é uma noção de cidadania baseada na luta por direitos sociais negados às
pessoas de baixa renda. Guimarães traz essa discussão: estamos falando em cidadania a
partir da renda ou a partir dos direitos sociais? E assim, como qual seria o papel da
incubadora? Trata-se apenas de ajudar o empreendimento a gerar a própria renda?
Já em 2001, um outro texto dessa mesma incubadora reflete a posição em
relação ao trabalho desenvolvido:
Essa abrangência e vocação para um trabalho integrado permanente faz da
incubadora um meio sociotécnico de novo tipo. O transplante de linguagem,
do terreno acadêmico e da tecnologia de ponta para o terreno do setor popular
da economia exige a construção de novas estratégias de formação e
capacitação dos incubados, de metodologias de educação e de aprendizagem,
de elementos de cidadania, e de aspectos culturais e antropológicos presentes
nesse novo público com o qual a universidade não está acostumada a
trabalhar. (BOCAYUVA, 2001, p. 245).
O trabalho desenvolvido pelas incubadoras está implicado com uma série de
noções que necessitam de discussão. A relação da pobreza com a incubação é uma
delas. Este debate pode ser feito de diversas maneiras, cada uma delas com
conseqüências para a ação. Um dos critérios da UNITRABALHO para definição da
demanda das incubadoras universitárias é que os grupos sejam compostos por “pessoas
pobres, desempregados (as) a vários meses, trabalho precário, intermitente, itinerante e
com dificuldades de inserção no mercado formal de trabalho e quando evidencia
potencial para o desenvolvimento de empreendimentos de economia solidária, na
perspectiva da autogestão;” (EID, 2004, p. 4). Pensar programas que visem reduzir ou
amenizar algumas dessas condições é uma tarefa delicada, uma vez que significa entrar
num campo de sentidos muito polêmico, que envolve concepções diversas acerca do
popular, do humano, do social, etc. A incubação, ao que parece, está inevitavelmente
diante dessas questões, portanto, problematizar essas noções parece importante.
De acordo com Gaiger (2005), as condições para o surgimento da economia
solidária são múltiplas e se interconectam, sendo difícil defini-la apenas a partir de um
78
aspecto. Para este, a diversidade com que esse conjunto de atividades econômicas se
expressa é muito grande, tanto na busca de soluções para os problemas enfrentados
quanto nos sentidos que são produzidos por seus atores. De acordo com uma pesquisa
realizada por sua equipe em diversas regiões do país, foram elencadas algumas
considerações sobre a emergência dos empreendimentos solidários. São elas,
resumidamente:
a) A economia solidária se dá pela presença histórica de setores populares com
experiência em práticas associativas, comunitárias, relacionadas tanto a um tempo
passado quanto a uma vivência atual de mobilizações e lutas por ações coletivas;
b) pela existência de organizações populares genuínas presentes nas ações
diretas como também nos sistemas de representação coletiva dos segmentos da
economia solidária. Segundo o autor, a importância deste item está no fato de que, por
serem organizações da “base”, permanecem ligadas aos interesses dos grupos que
representam, assim como devido à facilidade das mesmas em se conectar com agentes
externos. Conseguem transitar por diversos espaços;
c) A possibilidade das práticas econômicas associativas serem compatíveis com
a economia popular dos trabalhadores. A economia solidária se aproxima da economia
popular informal, já praticada por algumas pessoas anteriormente. A economia solidária
se adeqüa às necessidades individuais, familiares ou coletivas. Não consegue substituir
a economia popular que já existe, mas é capaz de potencializar as práticas inscritas nas
experiências cotidianas desses grupos.
d) É, em parte, resultado da presença de mediadores do processo de construção
do empreendimento com papel de fomentar, a partir da demanda dos trabalhadores, as
alternativas econômicas e sociais, permitindo que essas experiências transitem de uma
lógica de sobrevivência para uma lógica de emancipação social e econômica. Segundo o
autor, essa presença “(...) implica uma ruptura progressiva com a condição subalterna,
ao lado da remodelação gradual das aspirações, dos padrões materiais de subsistência e
da lógica econômica de reprodução simples” (GAIGER, 2005, p.376). A pesquisa
demonstra que o desafio é justamente esse: não acabar tutelando a experiência que se
pretende impulsionar. Se a intenção é romper com uma condição subalterna, pode-se
cair no mito de que há algumas pessoas preparadas para provocar isso nas outras.
79
e) É efeito concreto da redução de empregos formais, ou melhor, o desemprego.
Segundo ele, apesar deste ser o argumento explicativo do surgimento da economia
solidária, não pode explicar tudo sozinho. Ele de fato tem um papel relevante, mas não
determinante, caso contrário, haveria muito mais iniciativas do que as que de fato
existem.
f) A formação de um cenário político e ideológico favorável ao reconhecimento
dessas experiências e de suas demandas, passando a penetrar tanto movimentos sociais
quanto os poderes públicos.
Segundo o autor, nenhuma dessas condições, por si só, é capaz de fazer emergir
um empreendimento econômico solidário, apenas a interconexão destas. A economia
solidária é um processo heterogêneo que se faz, se conforma e se refaz em rede. As
forças de cada condição se impõem diferentemente. Nada há de trivial nesse processo
que é lento e complexo. A partir disso, Gaiger afirma que:
Tais experiências, imersas em histórias individuais e coletivas, não obedecem
a leis de geração espontânea, não germinam artificialmente e apenas em
casos especiais podem ter o seu nascimento abreviado. A formação de
sujeitos populares ativos e organizados misto de necessidades e de vontades
conhece poucos atalhos e muitos desvios (2005, p.378).
Nesse sentido, a economia solidária se constitui num movimento de ir e vir, sem
uma ordem cronológica que evolui de um estado para o outro, em rede e permeada pelas
diversas condições sociais, políticas e culturais, por saberes e em conhecimentos, por
intervenções que potencializam e em informações. As ações dentro desse campo
parecem se dar na justaposição dos atores e das contribuições que são possíveis, no
encontro dos saberes e dos conhecimentos. Ação remete-nos a um contínuo, ao tempo e
aos diferentes sentidos produzidos cotidianamente pelas pessoas. De acordo com Spink
(1999), nós estamos dentro de um fluxo contínuo de eventos e também produzimos
sentidos em uma intervenção.
A incubação de empreendimentos solidários, como uma intervenção que se constrói no
seio da economia solidária, precisa ser refletida a partir desse sistema que a constrói,
que a localiza e a situa. De que modelo pedagógico se parte e como a incubadora se
posiciona na relação com os empreendimentos? Enquanto agência de fomento intervém
no empreendimento. O empreendimento, por sua vez, não depende apenas da
intervenção da incubadora para existir, mas dessas outras forças, mencionadas acima, e
também necessita de alguma forma, de conhecimentos e estratégias que os viabilize.
80
Como articular essas duas faces da moeda? Como ser útil sem atrapalhar? (SPINK,
1999). Útil, não no sentido do utilitarismo, mas no sentido de ser uma atuação coerente
com a demanda e capaz de gerar transformações significativas no local.
Atuar na pobreza é ter que lidar com uma realidade que se impõe e que, muitas
vezes, não oferece nem respostas, nem soluções. As pessoas que compõem uma
incubadora, em geral (com possíveis exceções), não vivem em situação de pobreza
como acontece com quem está nos empreendimentos populares. Ainda assim, pode-se
argüir que a incubadora participa do movimento tanto quanto os empreendimentos, que
são atores sociais que também fazem a economia solidária se consolidar. Mas, a
integração na rede não significa que os lugares ocupados sejam iguais. Ao contrário, as
diferenças existem e podem ou não levar a processos desiguais. É um encontro (ou não)
entre diferentes, em que se confronta e esbarra nas desigualdades e nas igualdades
existentes. O simples fato de alguns terem acesso a universidade e outros não, já
demonstra parte da complexidade da relação de incubação. Há outros vieses que
apontam para o mesmo caminho. A valorização do conhecimento científico, por ser
socialmente legítimo e aceito, em relação a outros conhecimentos, já em si, um motivo
para a reflexão sobre as posições ocupadas pelos técnicos, monitores, agentes da
incubação na economia solidária.
Sen (2000), diz que há duas formas de abordar a problemática da pobreza: a
pobreza como privação de renda e a pobreza como privação de capacidades. Pobreza de
renda seria usar o critério da renda para definir quem é pobre e quem não é. Para o
autor, tal perspectiva fundamenta-se numa ótica instrumental. Com renda, a pessoa
consegue sair da pobreza. A afirmativa é inadequada, uma vez que a abordagem
baseada na renda ignora aspectos que são, também, indicativos de uma situação de
pobreza. Sen compreende “capacidades” de uma pessoa como sendo as “combinações
alternativas de funcionamentos cuja realização é factível para ela” (p. 95). Nesse
sentido, a capacidade é uma espécie de liberdade para realizar as mais diversas escolhas,
alternativas de funcionamento, ou como o próprio autor indica, “estilos de vida
diversos” (p. 95). Ser pobre é estar privado da capacidade de fazer essas combinações
de acordo com o que se considera mais importante. Defende que uma renda inadequada
é sim uma condição para a pobreza, mas não é a maior. Existiriam outras influências
que levariam a isso, e isso varia de uma família ou comunidade para outra. Para ele,
questões como idade da pessoa, papel sexual e social, localização, condições
81
epidemiológicas podem afetar tanto quanto a baixa renda. Em geral, pode haver
acomplamento de desvantagens entre a renda e o uso que se pode fazer dela, ou seja, um
idoso poderia receber a mesma quantidade de renda que outra pessoa não idosa e ainda
assim, gastaria mais com remédios, aparelhos, etc.
O que a perspectiva da capacidade faz na análise da pobreza é
melhorar o entendimento da natureza e das causas da pobreza e privação
desviando a atenção principal dos meios (e de um meio específico que
geralmente recebe atenção exclusiva, ou seja, a renda) para os fins que as
pessoas têm razão para buscar e, correspondentemente, para as liberdades de
poder alcançar esses fins (2000, p. 112)
O que não significa abrir mão das estratégias de geração de renda, uma vez que
ainda é através da renda que se garantem os mínimos de sobrevivência. A proposta é
ampliar o debate sobre a pobreza para os acessos, as formas de alcançar e utilizar os
recursos que existem. A incubadora enfrenta o problema dos acessos cotidianamente,
quando, por exemplo, se depara com situações em que um membro da cooperativa
precisa urgentemente de um médico e ao chegar em um posto de saúde, entra numa lista
de espera enorme, que não permite que seu problema seja resolvido a tempo. As
preocupações com moradia, saúde, educação, trabalho digno fazem parte desse
cotidiano do incubar, ainda que teoricamente, incubar designe apenas apoio técnico.
Para P. Spink,
Apesar da aparente amplitude da conceituação da pobreza enquanto exclusão
e desigualdade social, muitas vezes assimiladas pelas ausências de dinheiro,
educação, saúde, alimentação, integração, liberdade, dignidade ela
contempla realidades extremamente diversas, às vezes mensuráveis, às vezes,
não. Desta maneira, a noção de pobreza está diretamente ligada à questão
fundamental da cidadania, da democratização da sociedade, da construção de
laços sociais e da falta de proteção aos direitos individuais e coletivos
(SPINK, 199 ..., p. 37).
Não se trata de vitimizar as pessoas, mas apontar para as dificuldades presentes
quando estas buscam acessar seus direitos sociais. Friedman (1992) discute sobre a
inclusão social dessa população e um dos aspectos que considera importante é a questão
do acesso a conhecimentos, habilidades e a informações relevantes, claras, honestas
e de confiança sobre métodos, práticas e oportunidades. Nesse sentido, a idéia da
incubadora torna-se importante pela possibilidade de potencializar os meios de acesso a
recursos disponíveis na sociedade, para que o empreendimento se viabilize social,
política e economicamente. Um de seus papéis é levar e trazer informações, pesquisar
meios de se fazer algo de maneira a se ajustar às demandas dos empreendimentos. É,
nesse sentido, um veículo de informações, estratégias e oportunidades.
82
Alinsky (1965) aborda a pobreza a partir da perspectiva do poder. Segundo o
autor, é comum que estratégias de combate à pobreza tornem-se oportunidades políticas
para muitos governos. Em algumas situações, pode haver a manipulação das
comunidades e o enfraquecimento das organizações comunitárias independentes,
através do consenso, usado para abafar os conflitos nas relações em que se definem as
prioridades dos programas.
Pobreza significa não apenas falta de dinheiro, mas falta de poder. Um
negro economicamente estável em Mississipi é pobre. Quando se vive em
uma sociedade onde pobreza e poder impedem de usufruir de igualdade de
proteção, igualdade de justiça nos tribunais e igualdade participativa na vida
econômica e social da sociedade, você é pobre. O sentido do dinheiro está no
que se pode comprar, e em como pode ser usado. Então, um programa de
combate à pobreza precisa reconhecer que precisa fazer algo não só sobre a
pobreza econômica, mas sobre a pobreza política (1965, p. 6).
O terreno da pobreza é heterogêneo, cheio de portas que se abrem e se fecham a
todo o momento. Trabalhar dentro dela exige atuar numa via de mão dupla, tripla e
assim sucessivamente. A pobreza não é algo de um lugar, individual e de
responsabilidade de algumas pessoas. Ela é produto de um social que se pauta pela
desigualdade em quase, para não dizer, em todo o tempo.
Trabalhar com pobreza, especialmente dentro da ótica da desigualdade
e da exclusão social requer a capacidade de ler e agir em eventos-no-mundo
produzidos por cadeias diferentes de ação. Cadeias onde os porteiros podem
às vezes compreender, às vezes ser explicitamente hostis e frequentemente
estarão reproduzindo, sem perceber, elementos da dinâmica complexa que
produz a discriminação e a marginalização no cotidiano.” (SPINK, 1999, p. .
A pobreza só começa a ter visibilidade no Brasil quando a esquerda se propõe a
pensar sobre ela. No entanto, a desigualdade econômica é legado de nossa longa história
de colonização. Obviamente que não se trata de dizer que a renda não é um fator
importante. É importante, mas não resolve o problema da pobreza. A situação é
complexa demais para se acreditar que gerando renda se gera igualdade social, bem
estar, qualidade de vida. A renda é um indicador dessa desigualdade, como são também
as desigualdades de gênero, raciais e de conhecimento.
Segundo Camarotti e P. Spink, a necessidade atual é pensar a pobreza numa
ótica mais interativa, onde são considerados não apenas as “capacidades e os recursos
individuais ou sociais, ou as estratégias de estímulo ao desenvolvimento econômico
socialmente sustentável, mas também a provisão e o acesso aos serviços e bens
necessários para uma vida mais digna, menos desigual e com o exercício pleno da
cidadania” (2000, p. 1). Ainda de acordo com os autores, pensar em estratégias para a
83
redução da pobreza significa pensar em como coletivizar os processos decisórios e de
fato realizar uma gestão mais democrática das prioridades e ações públicas. É abordar a
condição da pobreza a partir dos poderes e das “capacidades”, no sentido proposto por
Sen (2000). A decisão sobre os programas de redução da pobreza e o que priorizar como
ação não é algo que se faz num gabinete da prefeitura, com técnicos refletindo sobre o
assunto. Assim como, na incubadora, a reflexão sobre esses processos deve ser feita na
negociação do que os diferentes atores entendem serem as prioridades de ação.
Diversas ações sociais que são desenvolvidas atualmente têm como metas, como
problemas, como objetivos, como desafios, a pobreza, ou melhor, sua redução ou
erradicação. A partir dos sentidos de pobreza de cada um desses projetos, constroem-se
formas de atuação correlatas.
“Pobreza é uma característica da sociedade como um todo, produto de suas
políticas e ações; não é algo que pode ser individualizado no ‘pobre’ visto como fraco,
culpado ou incompetente”( SPINK, 35, HETEROGENEIDADE). Culpabilizar um
indivíduo ou um grupo por sua situação é uma forma de reproduzir a desigualdade. Não
significa que as incubadoras façam isso, apenas que a possibilidade de cair no limbo da
culpabilização do outro existe.
Muitos projetos sociais atuam a partir da idéia de que, pelo fato de as pessoas
serem pobres, necessitam de educação, qualificação e organização. Para Spink (2003),
essa é uma maneira de lidar com a pobreza que se baseia na crença de que há uma
incapacidade ou inabilidade do popular para a organização coletiva. Isso leva a uma
outra crença: a da existência de indivíduos pré-sociais, que em determinado momento
resolvem participar da sociedade, mas não sabem como. Não se considera que pessoas
nascem em comunidades e vivem dessa forma, e que é lá, nessa convivência que a
organização acontece. “Portanto, qualquer explicação de comunidade que tente mostrá-
la como o produto do acordo de indivíduos pré-sociais será incoerente, porque a tais
pessoas acabará por faltar a capacidade para deliberar, refletir, escolher” (SPINK,
2003a, p.13).
Por outro lado, recolocar a questão da pobreza nas dificuldades de acesso a
recursos, bens, informações, etc., significa perceber a complexidade que a ação da
incubadora exige no cotidiano do empreendimento. Não se trata de considerar a falta de
organização, a falta de capacidade de gestão, mas a dificuldade tornar o
84
empreendimento viável. As razões para “incubar” e a forma de fazer isso se modificam.
Os fracassos não estão ligados às pessoas, mas a uma totalidade maior.
Etimologia da palavra incubar: sentidos no tempo longo
Para finalizar, pretendo voltar aos sentidos da palavra incubar. Nenhum termo
nasce no vazio. São nomes que são dados para aquilo que as pessoas fazem no seu dia a
dia. Esse dia a dia dos empreendimentos, ao longo da história que se conta, não é
repleto de certezas sobre as melhores formas de se fazer a autogestão. As diversas
maneiras de ser incubadora na literatura sobre o tema demonstram que esse é um dos
grandes desafios do movimento. Entre os autores, não há quem discorde da relevância
do processo de formação no cooperativismo, porém há quem aponte que este ainda é um
caminho a ser construído ou até mesmo que questione o caminho construído até agora.
A noção do incubar não está apenas conectada com a economia solidária, mas
também com outras esferas de produção de sentido da sociedade. Na etimologia da
palavra “incubação” pode-se encontrar sentidos muito próximos da maneira como
compreendemos o termo/ação hoje. Uma breve consulta realizada em dois dicionários
etimológicos da língua portuguesa permitiu a reflexão sobre a possibilidade das palavras
perpetuarem seus sentidos ao longo dos tempos. Por exemplo, de acordo com o
Dicionário Nova Fronteira da Língua Portuguesa, em 1844, incubar dizia respeito a
chocar (ovos), predispor, premeditar, projetar. No latim, incubãre quer dizer estar
deitado em, atirar-se sobre, chocar, guardar com cuidado. Em outro dicionário do
mesmo gênero, uma outra informação sobre incubar: estar deitado num templo sobre a
pele das vítimas a espera dos sonhos divinos para obter uma interpretação deles ou para
curar uma doença; e mais: chocar qualquer coisa, vigiá-la ciosamente, estar deitado
sobre, isto é, não largar a presa, permanecer, habitar um lugar, ser contíguo a(CUNHA,
1986; MACHADO, 1977).
Liga-se a uma noção de cuidado, de espera porque dali há de nascer algo, ou há
de acontecer algo. Aguardar a aparição de algo, como o ovo que se choca, como o
sonho divino que curará ou iluminará alguém com a interpretação. Esse é outro aspecto
do termo: alguém guarda, cuida ou deita sobre algo, o que pressupõe que esse algo
precisa sofrer essa ação. É bem próximo do que hoje se chama de incubadora.
85
No decorrer do tempo, o sentido se amplia e alcança outros universos de ação,
como está demonstrado no dicionário de língua portuguesa contemporânea
(CASTELEIRO, 2001): incubação ação de chocar ovos, desenvolvimento do embrião
no ovo choco; média de espaço de tempo entre a introdução de um agente patológico no
organismo e a manifestação sintomática dos seus efeitos; processo que permite
assegurar a manutenção das funções vitais de um recém-nascido numa temperatura
semelhante a do organismo materno; ação de preparar, desenvolver ou formar sem que
haja uma manifestação concreta.
A noção se mistura os conceitos mais científicos da biologia e da medicina,
como o vírus que fica incubado no organismo ou como o embrião que precisa ser
chocado para se desenvolver, assim como os bebês prematuros que, quando nascem,
necessitam de um lugar mais aconchegante e saudável, pois não conseguem se manter
vivos sozinhos ainda. Ao mesmo tempo, a última definição nos remete, talvez, à prática
da incubadora enquanto uma agência de formação mesmo, como são as incubadoras de
empresas, por exemplo. Preparar para a ação que ocorrerá, ou seja, um lugar onde se
forma, informa, desenvolve algo, no caso dessas, tecnologias de ponta vindas da
universidade e que serão vendidas para empresas.
É interessante notar como malha de sentidos se amarra na história remota do
termo: o chocar, preparar algo para. E mais, a noção circula por diversos universos ao
longo da história, criando práticas ou sendo criada por elas. Pode-se argumentar que ela
passa por alguns lugares: crenças religiosas, biologia, hospitais/medicina, empresas e o
mais atual, economia solidária cooperativas, universidades, prefeituras, ongs. Liga-se
a doenças, recém-nascidos, animais e pessoas. Pode ser uma oferta de tecnologia de
ponta para empresas como uma tecnologia de ponta na luta contra a pobreza. Pode ser
para empresários ou para pessoas pobres, desempregadas. O espaço por onde navega
essa noção é muito amplo e repleto de concepções sobre saúde/doença, vida/morte,
realidade, pobreza/riqueza, modelos de desenvolvimento, certo/errado,
universidade/sociedade, saberes/competências/conhecimento, entre outras.
Problematizar a incubação não é sugerir o fim da pedagogia ou algo assim. É
argüir que é urgente retomar o respeito à competência do outro, como caracterizava a
noção de educação apoiada nas relações dialógicas de Freire (1999). A incubação
compreendida como um ato pedagógico pode ou não se tornar um problema, de acordo
com o que existir por trás da sua prática. Para Cruz (2002), membro da incubadora de
86
Pelotas/RS, atualmente, um dos desafios das incubadoras de cooperativas é questionar a
maneira como se concebe a incubação de cooperativas populares, uma vez que essa é
uma prática que remete a relações entre diferentes experiências e saberes: o do chamado
senso comum e do acadêmico ou científico. “A incubação refere-se, antes de quaisquer
outras coisas, a uma relação social de trocas entre diferentes saberes acumulados, sob
condições sociais e históricas, diferentes.” (CRUZ, 2002, p.2). Nesse sentido, incubar
deixa de ser transmissão de conhecimentos para se transformar em troca, construção de
conhecimentos.
Na relação pedagógica existem saberes e experiências diferentes que precisam se
conectar para que os sentidos da vivência sejam construídos coletivamente, numa
relação que tem por base a dialogia e a horizontalidade. A educação pode tanto ser um
atalho para a liberdade quanto para a dominação. Ao relatar sua experiência como
educador em “Pedagogia da Esperança”, Paulo Freire reflete sobre a importância do
diálogo com os participantes e não para os participantes.
Este foi um aprendizado longo, que implicou numa caminhada, nem toda vez
fácil, quase sempre sofrida, até que me convencesse de que, ainda quando
minha tese, minha proposta fossem certas e em torno delas eu não tivesse
dúvida, era imperioso, primeiro, saber se elas coincidiam com a leitura de
mundo dos grupos ou da classe social a quem falava; segundo, se impunha a
mim estar mais ou menos a par, familiarizado, com sua leitura de mundo,
pois que, somente a partir do saber nela contido ou nela implícito me seria
possível discutir a minha leitura de mundo, que igualmente guarda e se funda
num outro tipo de saber (FREIRE,1999, p. 24)
O sentido mais remoto atribuído a palavra incubar diz respeito aos templos
gregos de incubação. Estes eram lugares ermos para onde as pessoas iam deitar e
sonhar. Havia sacerdotes que acompanhavam esse momento, preparavam o leito para o
sono da pessoa. Acreditava-se que depois do sonho ali, a pessoa estaria curada ou teria
seus problemas resolvidos. O importante de ressaltar aqui é que, apesar da existência do
templo e da presença dos sacerdotes, quem sonhava e se curava era a pessoa.
87
CONHECIMENTO E PROCESSOS ORGANIZATIVOS NO
COTIDIANO
88
O conhecimento no cotidiano
Para Boaventura de Souza Santos (2005), é imprescindível que o mundo seja
visto enquanto diversidade epistemológica. O advento do capitalismo optou por
privilegiar um tipo de conhecimento que possibilitasse inovações tecnológicas, cujos
interesses eram econômicos e políticos. No entanto, conhecimentos ou saberes que
perseguem objetivos diferentes e informam outras práticas sociais sempre existiram.
Para que o conhecimento científico se legitimasse enquanto “o” conhecimento, foi
preciso transformar os critérios de validade do conhecimento em critérios de
cientificidade do conhecimento. “A partir de então a ciência moderna conquistou o
privilégio de definir não só o que é ciência, mas, muito mais do que isso, o que é
conhecimento válido” (SANTOS, 2005, p.22). A idéia se fortaleceu no século XIX: o
conhecimento científico tornou-se a-histórico e eliminou a existência social dos outros,
processo este que o autor denomina epistemicídio. “A morte de conhecimentos
alternativos acarretou a liquidação ou a subalternização dos grupos sociais cujas práticas
assentavam em tais conhecimentos.” (2005, p.22).
Entretanto, ainda que tente negar a existência de outros saberes, o conhecimento
científico não consegue, e, por isso, conhecimentos produzidos fora da ciência são
tratados por locais ou mesmo etnociências. Busca-se circunscrever tais conhecimentos
para assim, tirar deles sua importância. De acordo com P. Spink, o uso desses adjetivos
para caracterizar os demais saberes existentes pode ser uma maneira de hierarquizar e
subordinar espaços construídos num processo que é socioeconômico, que é produto da
desigualdade dessa forma de pensar o mundo (Spink, 2000). Assim, é comum
pensarmos em “global”, “nacional”, “regional” e por fim, o “local”. É uma maneira de
valorizar o global, desvalorizando o local.
De acordo com Souza Santos (2005), nessa forma de tratar os conhecimentos
não científicos, existe a compreensão de que, por nascerem em lugares comuns, são
restritos, ou seja, não têm aplicação para além dele, não são universais. No entanto,
entre os que defendem a idéia da diversidade de conhecimentos, falar em universalidade
de um sobre o outro é uma invenção para a conquista de hegemonia. Propõem pensar o
conhecimento científico enquanto uma forma de “localismo globalizado”: um
conhecimento que se produz num tempo e num espaço, datado e localizado, mas que
adquire sucesso ao ser tratado como global (SOUZA SANTOS, 2005).
89
Vandana Shiva é outra autora que compartilha dessa visão sobre os
conhecimentos. Pouco conhecida na Psicologia, suas contribuições em torno das
questões dos conhecimentos são muito valiosas. Física e filósofa indiana, Shiva é
feminista e ativista da biodiversidade. Tem algumas obras publicadas no Brasil e atua
junto à luta pela preservação da biodiversidade no mundo e, em especial, junto aos
povos habitantes das florestas indianas. Tem uma posição bastante parecida com a de
Boaventura de Souza Santos, dando um enfoque maior às questões de gênero e dos
conhecimentos tradicionais. Sobre a tentativa de universalização do conhecimento
científico diz:
No entanto, o sistema dominante também é um sistema local, com sua base
social em determinada cultura, classe e gênero. Não é universal em sentido
epistemológico. É apenas a versão globalizada de uma tradição extremamente
provinciana. Nascidos de uma cultura dominadora e colonizadora, os
sistemas modernos de saber são, eles próprios colonizadores(SHIVA, 2003,
p. 21).
A autora trabalha com a perspectiva da oposição entre biodiversidade e
monoculturas. Tenta demonstrar, por meios de sua participação nos movimentos
camponeses indianos, como as práticas de administração científica da agricultura e das
florestas foram dizimando não apenas a floresta e a agricultura, mas também os saberes
e os sistemas de vida existentes naqueles espaços. “A biodiversidade foi sempre um
recurso local comunitário. Um recurso é propriedade comunitária quando existem
sistemas sociais que o utilizam segundo princípios de justiça e sustentabilidade” (2001,
p. 93). Em alguns lugares, as pessoas dependem dos recursos naturais para garantir sua
sobrevivência, portanto, a relação da comunidade com a biodiversidade é íntima. Esta
não é uma forma de acumular, mas uma necessidade. Tampouco se trata de explorar
esses recursos, mas de se ver como parte do sistema, como parte da biodiversidade.O
respeito à noção de diversidade é o que permite a sustentabilidade, porque esta última é
retornável, não acaba, pois é vida e nutre as vidas.
Aparentemente, podemos pensar que biodiversidade, economia solidária,
incubação e conhecimentos não se conectam. No entanto, para a autora, a
biodiversidade está intimamente ligada à possibilidade da autogestão, da auto-
organização, uma vez que é a descentralização e o controle democrático local que
permitem a sua existência. Processos como os da globalização destroem as condições
para a autogestão ao impor regras, ordens e maneiras a serem seguidas por todos.
Existem maneiras de transformar um saber num não-saber. A ciência moderna,
na tentativa de se tornar suprema (e isso não tem início agora, mas já no período onde se
90
deram as grandes navegações), invisibilizando os outros saberes. Este, segundo ela, é o
primeiro motivo que leva grandes sistemas locais a entrarem em colapso, mesmo antes
de serem confrontados com o saber ‘dominante’. Porém, quando os conhecimentos não
científicos confrontam a ciência, lhes é logo negado um status de validade: é
anticientífico ou primitivo. Além disso, uma outra estratégia usada é a de não apenas
tornar invisível o saber, mas também a realidade na qual se sustenta aquele saber,
fazendo desaparecer espaços de alternativas locais e sustentáveis (SHIVA, 2003).
A metáfora das “Monoculturas da Mente”, sugerida por Shiva como título de um
de seus livros, pode ser exemplificada a partir dos saberes e práticas da silvicultura e da
agricultura. Para as comunidades das florestas ou camponesas, o mundo vegetal não é
dividido entre a floresta que fornece madeiras comerciais e a terra que fornece
mercadorias em forma de alimentos. Já o projeto de ciência moderna está comprometido
com o desenvolvimento tecnológico que, por conseguinte está comprometido não com o
bem estar social, mas com a acumulação de riquezas para alguns e, portanto, com a
madeira como mercadoria.
O saber (silvicultura/agricultura) se descola da prática, do lugar que o produz e o
que importa é tratar a natureza como recurso a ser explorado. Para autora, estas são
práticas baseadas nas concepções da administração científica, que retiram da população
local a condição de administrar a própria sustentabilidade. “Em vez de a sociedade
tomar a floresta como modelo, como acontece nas culturas florestais, é a fábrica que
serve de modelo para a floresta” (2003, p.32). Para uma monocultura acontecer é
preciso que se destrua tudo aquilo que é menor que ela, tudo aquilo que permite que ela
se renove.
Tanto para Vandana Shiva quanto para Boaventura de Souza Santos, os
processos de colonização começaram há muito tempo e ainda não acabaram. “É hoje
evidente que, para além das dimensões econômicas e políticas, o colonialismo teve uma
forte dimensão epistemológica, e que, em parte por isso, não terminou com o fim dos
impérios coloniais” (SANTOS, 2005, p.27). O que implica pensar na possibilidade de
reprodução dessas formas de relação baseadas não nos saberes, mas nos poderes e na
desigualdade entre os mesmos, também dentro da relação incubadora e
empreendimentos, especialmente no que diz respeito à relação entre os conhecimentos
existentes.
91
O autor aborda a questão de como o colonialismo, que certos grupos sociais
viveram ao longo de sua história, produziu (des)conhecimentos. Mesmo quando em
nome de projetos de civilização, libertação de alguns povos, as experiências de
colonização, que tiveram início no século XV, buscavam tornar hegemônica a
compreensão ocidental do mundo. São inúmeros os exemplos de experiências em que
um estrangeiro chega a uma terra desconhecida e interpreta as práticas que ali existem
como superstições, crendices, etc. A colonização teve força para construir ou destruir
epistemologias, uma vez que a negação do diferente, do estranho era inerente a essas
práticas. O fim dos impérios coloniais não resulta, necessariamente, no fim do
colonialismo do poder e do saber, ou seja, no fim do colonialismo nas relações sociais.
Ao se produzir o Ocidente como a forma de conhecimento hegemônico,
produziu-se também o Outro, desqualificado em relação aos poderes ocidentais. Nas
sociedades coloniais produziram-se o civilizado e o selvagem, objetificando-se o
colonizado. Assim foi feito com a natureza, que foi exteriorizada, não mais
compreendida enquanto igual ao homem. Muitas vidas foram destruídas, bem como, os
sistemas que as agregavam. A natureza foi convertida em recurso natural a poderia ser
usada e apropriada, assim como as formas de saber dos selvagens. Nesse sentido, torna-
se imperativo pensar na ciência de outra maneira:
A ciência é uma expressão da criatividade humana, tanto a individual quanto
a coletiva. Uma vez que a criatividade tem diversas expressões, considero a
ciência como uma iniciativa pluralista que engloba diferentes ‘maneiras de
conhecer’. Para mim, ela não se restringe à ciência ocidental moderna, mas
inclui os sistemas de conhecimento de diversas culturas em diferentes
períodos da história (SHIVA, 2001, p. 30).
A ciência é expressão de criatividade e, por isso, diversas também são as
maneiras de expressá-la. Logo, não há uma única ciência, mas múltiplas. P. Spink diz
isso de outra maneira, ao afirmar que todos têm curiosidade, não apenas os cientistas.
Nesse sentido, não haveria uma distinção valorativa entre a ciência ocidental e outras
ciências, mas sim uma distinção hierárquica.
resistências que negam essa lógica e buscam construir e reconstruir tudo
aquilo que se tenta destruir. A ciência ocidental que se nomeia universal, pois substitui a
natureza por tecnologia, reproduz essa lógica de colonização ao tentar se sobrepor as
outras formas de conhecer o mundo e outras tecnologias desenvolvidas para se viver.
Desqualifica o discurso do outro ao colocá-lo no lugar de não científico, local, apesar de
ela própria ser situada também. “Nesse sentido, conhecimento é sempre autóctone,
92
acontece porque é necessário; conseqüentemente, precisamos aceitar que os saberes têm
múltiplas origens e que a academia é somente um deles” (SPINK, P., 2003, p. 124).
Portanto, aquilo que se denomina global não é mais que uma mera tentativa de
universalizar algo que não é de todo mundo, mas de um grupo. Seu poder é definir os
outros conhecimentos como locais, particulares.
No livro organizado por Santos (2005), são elencadas teses que podem servir de
base para o debate sobre projetos sociais que busquem a emancipação social. Para os
autores, a diversidade epistemológica do mundo é infinita e é preciso reconhecer que
todas as práticas sociais produzem conhecimentos. Em segundo lugar, é preciso
reconhecer que os conhecimentos são parcelares e que as práticas sociais não envolvem
apenas um tipo de conhecimento, mas uma pluralidade destes. O que se deve perguntar
é sobre as hierarquias entre os tipos de conhecimentos e suas conseqüências. Um outro
ponto é que o pluralismo epistemológico passa, necessariamente, pela democratização
interna da ciência. Isso significa que precisam ser considerados dois aspectos: a ciência
precisa reconhecer que, internamente, ela é plural em tradições, em disciplinas, em
estratégias analíticas, etc. Por outro lado, é preciso também considerar que a
democratização tem a ver com:
“a relação entre a comunidade científica e os cidadãos, entre o conhecimento
científico e as capacidades cognitivas exigidas para sustentar a cidadania
ativa, quer individual, quer coletiva, em sociedades que concebem o seu bem
estar como estando crescentemente dependente da qualidade e da quantidade
dos conhecimentos que nela circulam.” (p. 100)
Para que haja justiça social global é preciso haver justiça cognitiva global e isso
só se atinge pela substituição das monoculturas de saber pela ecologia de saberes. Essa
última seria uma posição epistemológica que pressupõe uma nova relação entre o saber
científico com os outros saberes. Uma relação baseada na igualdade de oportunidades
no debate, para que cada vez mais, aumente o poder de contribuição de cada saber na
construção de um mundo diferente. Implica na não desqualificação de um pelo outro.
Segundo os autores, essa transição não será fácil, pois envolve questões que não se
detém apenas em aspectos epistemológicos, mas econômicos, sociais e políticos. A
ecologia de saberes permitirá o surgimento do “conhecimento-emancipação”. Este se
liga ao saber, concebido como solidariedade e não como ordem. A ciência moderna
deve recuperar o seu potencial emancipatório ao se posicionar como parte da
constelação de saberes existente no mundo.
93
A economia solidária, como já foi discutido, é também um desejo de
transformação das situações de exclusão e desigualdades, criadas ao longo desses
muitos anos de colonização pelos padrões ocidentais (norte-americanos e europeus) de
vida, de economia, de política. A idéia não é substituir radicalmente as formas de
produção capitalistas, e sim, ir aos poucos se concretizando, como pequenos espaços de
convivência e de produção que vão se multiplicando continuamente, e se transformando
numa opção. De acordo com Singer: “Em todos esses sentidos, é possível considerar a
organização de empreendimentos solidários o início de revoluções locais, que mudam o
relacionamento entre os cooperadores e destes com a família, vizinhos, autoridades
públicas, religiosas, intelectuais, etc. Trata-se de revoluções tanto no nível individual
como no social” (SINGER, 2000, p. 28). Nesse sentido, nada mais coerente do que se
perguntar se dentro desse campo há disposição para pensar os processos de educação na
perspectiva da diversidade.
Um empreendimento solidário e autogestionário se desenvolve numa densa
malha de interações diárias, de ir fazendo e ir aprendendo o que é ser autogestionário.
Nessa convivência se dão conversas, conversas que planejam, decidem, executam e que
transformam as pessoas, o trabalho, a vida. Constroem materialidades e socialidades.
Muitas vezes, as formas ali criadas para resolver problemas podem ser desprezadas pela
incubadora, que vai com seu corpo de conhecimentos sobre gestão, administração,
relações humanas, pronta para colocá-lo em prática.
O que os autores que falam sobre o conhecimento parecem estar apontando é a
necessidade de reconhecimento de que a academia produz um conhecimento tão local
quanto os outros, apesar de se guiarem, em geral, por objetivos opostos. No caso dos
conhecimentos e saberes que se dão fora desse âmbito universitário, sua produção é
fecundada por questões e demandas das práticas sociais. É através das conversas,
negociações, confrontos de posições e sentidos que se criam os conhecimentos. No
cotidiano, no lugar.
94
Organização como processos organizativos
O segundo ponto importante para essa discussão diz respeito às formas de
compreender o conceito de organização, e, a partir daí, a própria noção de autogestão.
Em geral, costuma-se encarar a noção “organização como um pressuposto óbvio, que
não necessita de reflexão sobre sua existência. Trabalhar numa organização é óbvio, não
carece de explicações sobre o que se está dizendo. Organização é quase como o lugar
onde as pessoas trabalham. No entanto, é preciso voltar a reflexão para os sentidos da
palavra e pensar em como ela se tornou óbvia. A palavra diz respeito a ações que
indicam ou dão ordem a algum lugar (de trabalho, em geral). Administrar significa
organizar e envolve uma série de ações como: planejar, liderar, controlar, decidir, etc.
“Organização também sempre foi uma palavra pertencente ao vocabulário de todas as
pessoas e diz respeito a ações que estão ao alcance de qualquer um.
Com a consolidação do campo profissional da gerência, enquanto um campo que
necessitava de legitimidade e autoridade, a palavra organização ganhou mais um
sentido, passando a ser objeto de estudos de muitos cientistas sociais e um lugar onde se
vai desenvolver um trabalho. “Agora ela passa a ser um objeto a ser estudado, uma
espécie de baú dentro do qual comportamentos podem ser observados, e sobre o qual se
pode discutir suas características e seu gerenciamento” (SPINK, P, 1996, p.185).
Rapidamente, o conceito se reifica e se naturaliza, tornando-se uma entidade concreta
com comportamento próprio.
Quando acontece isso, se fortalece a “subordinação simbólica da parte ao todo”.
A organização é algo que tem suas partes, pedaços dela mesma. Os comportamentos
acontecem dentro desse todo, mas não são o todo. O todo é diferente da parte, ele é
maior. “A estrutura do todo, da organização formalmente constituída, é diferente das
ações do dia-a-dia; do mundo informal e mundano da parte. Segue, portanto, que o
primeiro é ‘obviamente’ a base do poder e o segundo da subserviência” (SPINK, P,
1996, p.185). No todo, não há lugar para o cotidiano, que faz parte da parte. O dia-a-dia
organizacional acaba tornando-se um “vazio de restos aleatoriamente espalhados pelo
chão”, ainda que não se trate disso e sim de um lugar de comunicação, de conversa, de
negociação e de confronto.
Esse cotidiano é onde o trabalhador, o gerente e o patrão trabalham. É um lugar
sócio-tecnicamente construído e onde as ordens não são impostas, mas negociadas,
95
porque embora sejam ordens vindas ‘de cima para baixo’, ao chegarem embaixo serão
redesenhadas, re-configuradas etc.
Ao transformar a organização em algo independente dos processos cotidianos de
negociação, também as pessoas tornam-se parte da coisa, como se fossem continuação
das máquinas e equipamentos, meros recursos, só que humanos.
“Assim, gerir a empresa torna-se organizar as peças, vivas ou inanimadas,
e organizar as peças vivas (as pessoas) torna-se convencê-las a fazer aquilo
que o gestor (diretor, administrador, patrão, supervisor, etc.) quer que elas
façam em função das ‘necessidades da fábrica’ ou do ‘empreendimento’”
(SATO & ESTEVES, 2002, p. 9).
Uma implicação dessa concepção de organização é o não reconhecimento da
existência de uma racionalidade cotidiana. Recursos, nessa perspectiva, não pensam,
devem ser pensados por outros. Recursos humanos pensam, mas não pensam o
melhor para a organização, sendo necessária à presença de um gerente que faça isso.
Por isso, justifica-se a ideologia gerencial, que se consolida quando a administração
torna-se um campo científico, de especialidade de alguns. Surge como forma de abafar
os conflitos existentes nas relações humanas (ainda mais se tratando de um emprego,
onde claramente se define a desigualdade entre o patrão e o empregado).
De acordo com Spink, P. (1996) há três formas de se compreender uma
organização e cada uma terá conseqüências. Uma primeira maneira é pensar o todo
(organização) como exterior à parte e a parte dentro do todo. As organizações são
separadas, externas, e as pessoas se comportam dentro dela, com suas regras, que
podem ser controladas. Daí as noções de: cultura, estrutura, ambiente, dentro das quais
as pessoas agirão. O autor a designa como “objetividade organizacional”.
Há também a possibilidade da “subjetividade organizacional”, onde ainda a
organização está separada das pessoas. Existe independentemente delas, porém
compreende-se que, na organização, as pessoas têm suas formas de ver peculiares e,
formas essas cujas origens estão nos seus mapas cognitivos ou nas suas subjetividades.
É aqui que se encontra boa parte das teorias de psicologia organizacional correntes: o
terreno dos estudos administrativos é separado dos estudos psicológicos das pessoas em
organizações.
A última possibilidade, adotada pelo autor, refere-se à inversão da idéia: o todo
está dentro da parte e não existe, a não ser a partir da parte. A organização-todo é
produto intersubjetivo dos sentidos que circulam no cotidiano onde as pessoas
trabalham, o concreto, o local. A tal ponto que não existe, de fato, algo que se possa
96
chamar de organização, e sim processos organizativos densos de sentidos que vão se
construindo no dia-a-dia do trabalho. Spink P. diz,
Se a organização enquanto um todo não é mais que um rastro de atividade
que já passou e uma sombra pálida de um fenômeno que desaparece quando a
luz é acesa, segue que estes empreendimentos diversos de todos os tipos
conseguem se manter enquanto empreendimentos não porque as pessoas são
corretamente administradas e direcionadas, mas porque a concentração de
processos cotidianos serve de imã para o uso das caixas coletivas de
ferramentas organizativas mundanas desenvolvidas ao longo da história
social. Em última análise, pessoas sabem se virar e ao se juntar com outras
em empreendimentos diversos é presumido que esta sabedoria será utilizada
(1996, p.188).
Logo, as diferentes formas de conhecer e de agir tornam-se relevantes. A adoção
da noção de processos organizativos traz à tona não apenas o respeito a essas diferentes
formas de saber, mas também a compreensão de que esses conhecimentos devem ser
adotados para a resolução de problemas do trabalho. Quando uma incubadora fala em
um empreendimento popular solidário, não está falando de um local apenas, mas de
processos cotidianos que podem ou não estar se tornando solidários ou autogestionários.
A perspectiva implica pensar na capacidade organizativa como humana e coletiva, que
está presente no dia a dia e que, por esse motivo, não tornam o gerente nem os técnicos,
assessores, imprescindíveis ao andamento do trabalho.
Processos organizativos autogestionários no cotidiano
No caso das incubadoras de cooperativas populares, é possível pensar que o
incubador, que se vê como um educador, numa perspectiva mais participativa, pode
estar partindo de uma concepção de empreendimento solidário como um local que
necessita de sua ajudar na organização cotidiana. Como a tradição é tratar a organização
como um fenômeno separado das pessoas, o técnico, o estudante, o profissional pode
acabar desenvolvendo sua ação de forma fragmentada também: “Essas são as regras e é
assim que precisa ser feito”, produzindo, dessa maneira, materialidades e socialidades
que pouco se aproximam da postura mais aberta de sua intenção inicial. A atuação pode
ocorrer num formato verticalizado, onde o técnico observa e pensa o que é melhor em
cada situação.
Assumir uma postura exterior ao movimento que acontece no grupo é uma
maneira de legitimar um papel gerencial. O gerente é exterior à lógica da organização.
O papel da gerência é olhar de fora e propor uma alternativa. Não se vê como um
97
participante da construção de sentidos em que está implicado, mesmo como gerente.
Uma outra característica é a de que baseando-se na crença de que apenas alguns podem
gerenciar (planejar, organizar e decidir), justificam-se as desigualdades no local de
trabalho (SATO, 2002).
São possibilidades a serem admitidas por quem trabalha nessa área. Assim como
é possível o contrário também.
O trabalho pode ser compreendido por um outro viés: como uma atividade
dialógico-discursiva, onde o diálogo, as conversas entre os trabalhadores permitem que
se discutam novas possibilidades do como fazer algo no trabalho. Compreende-se o
planejamento como escolhas feitas no processo de organizar o trabalho (SPINK, 1996).
Sato (2002) comenta alguns exemplos que mostram que os trabalhadores criam
estratégias para resistir à ideologia gerencial.
Eles o fazem individual ou coletivamente. Denunciam com essas práticas que
a divisão entre planejadores e executores é, de fato, uma ideologia. Podemos
observar diversas manifestações que mostram a existência de outras
racionalidades, outros modos de conceber e fazer o trabalho nos limites dados
pela tecnologia empregada e pela divisão de poderes no local de trabalho
(2002, p. 1148).
De acordo com Sato & Esteves, a diversidade de práticas, sentidos, significados
existente está posta às negociações, tanto em nível macro quanto micro entre as pessoas,
no dia-a-dia. São questões presentes no cotidiano, que no entanto, não aparecem
oficialmente, pois estão submersas, camufladas. Não significa que as pessoas as
desconheçam ou não estejam conscientes delas, e sim que passam despercebidas. São
negociações que se dão nas conversas cotidianas da convivência no trabalho, no horário
do café, do almoço, na esteira triando os materiais, na hora de ir pra casa, etc. Essas
negociações cotidianas (tácitas ou não) sustentam o que os autores chamam de “ponta
do iceberg”, os momentos oficiais, de decisão, como é o caso das assembléias. “A base
imersa e invisível trata dessas questões com que todos se deparam o tempo todo, tendo
de tomar diversas providencias a respeito delas de modo quase imediato e muitas vezes
automatizado” (2002, p. 19). O cotidiano vivido, mesmo que não se projete muito
oficialmente, é repleto de sentidos e conhecimentos.
A autogestão, princípio básico da economia solidária, não deve ser considerada
uma noção meramente técnica, passível de ser ensinada ou aprendida por outras pessoas
(LÉON-CEDEÑO, 1999; ESTEVES & SATO, 2002; ESTEVES, 2004). Teoricamente,
autogestão refere-se à gestão por todos, oposto de uma gestão de alguns,
98
hierarquicamente, definidos. No entanto, a teoria diz muito pouco sobre como se dá a
autogestão no cotidiano de uma cooperativa. Autogestão indica uma ação: “(...) a
pergunta acerca de ‘que tipo de autogestão é esta’ levaria a tentar entender sua forma de
uma maneira bem mais ampla do que a psicologia social costuma entender-se-ia a
forma como sendo ação e, portanto, indo além de ser um simples recipiente de
comportamento” (LEÓN-CEDEÑO,1999, p. 158).
Há diversos sentidos para a autogestão, como bem argumentou León-Cedeño, e
diferenças muito sutis em relação a eles, que dão lugar a mundos completamente
diferentes (1999). A definição utilizada aqui é a autogestão no trabalho, enquanto um
processo organizativo peculiar (SATO & ESTEVES, 2002).
Enquanto ação, a autogestão se dá em todos os momentos de decisão do grupo
em relação a qualquer caminho que se deseje seguir. Enfim, é a gestão por todos, sem
hierarquia. Segundo Sato & Esteves (2002, p.15), a autogestão também é um processo
organizativo e, como tal, se dá no cotidiano do grupo, sendo as decisões e assembléias
apenas a “ponta do iceberg” que, uma vez aprofundada, revelam a existência de uma
base de relações e acontecimentos diários que sustenta esses momentos oficiais. É nos
momentos informais, corriqueiros, que as decisões começam a ser feitas.
No dia-a-dia naqueles momentos que não são considerados memoráveis
também se gerencia coletivamente, a depender das exigências externas, o que
fazer e como, quando, de quais formas e sob quais condições o trabalho será
realizado. Também no dia-a-dia as pessoas planejam, replanejam e
organizam os rumos do empreendimento (SATO & ESTEVES, 2002, p.16).
Considerando o planejar e o organizar atributos humanos e não propriedades
intelectuais de algum profissional, e sendo a autogestão um processo organizativo de
gestão coletiva, pode-se dizer que o tempo todo de um empreendimento solidário é
marcado por negociações contínuas de sentido que vão conformando, construindo
aquele lugar. Autogestão significa que, sendo ela uma construção social, é também
negociação e conflito, pois se dá na argumentação das pessoas, a partir da qual os
sentidos dessa prática vão se construindo (LEÓN CEDEÑO, 1999).
Por lugar entende-se “um horizonte de ações e ligações, de produção de sentido
e de lutas” (SPINK, 2000, p.41). Assim, esse lugar chamado cooperativa, associação ou
qualquer outra formatação de economia solidária, não é um simples espaço físico para
onde pessoas se dirigem para trabalhar coletivamente. É onde se constrói esse trabalho
coletivo, onde se constrói o sistema produtivo, as formas de fazer ou não determinadas
ações, é onde se decide que rumo seguir, como resolver, com quem falar. É onde se
99
organizam movimentos de luta, contestação, ou mesmo que não se organizem. É onde
se pode protestar, ainda que esse protesto não seja declarado. É nesse lugar que as
incubadoras atuam, não como meras espectadoras ou interventoras, mas como
participantes de um processo organizativo que está sendo construído cotidianamente.
Negociar sentidos é uma prática dialógico-discursiva, na qual estão envolvidas
as múltiplas racionalidades existentes nas interações. Nessa prática, não há um melhor
modo de fazer, mas muitos e diferentes. O que se faz são escolhas organizacionais. O
cotidiano é o lugar onde os sentidos são criados e recriados, e nele, práticas e acordos
tácitos existem e facilitam a concretização do dia-a-dia (SATO, 2002).
O que está em foco é o reconhecimento da existência de uma racionalidade
cotidiana e também de múltiplas formas de conhecer, de múltiplos saberes construídos,
e que informam práticas sociais igualmente múltiplas. A autogestão, enquanto um
processo organizativo, quando praticada explicita a existência dessa racionalidade
prática cotidiana das pessoas e também os diversos saberes (os já existentes e os que
serão construídos a partir do processo autogestionário). A autogestão é em si uma forma
de fazer, de organizar, de construir um campo de ação, de reflexão que não precisa
necessariamente de um técnico ou profissional para mostrar como se faz.
O cotidiano das práticas autogestionárias é a construção de significados. Por
serem pessoas, as concepções e a conformação final de cada empreendimento
serão singulares, uma vez que se dão com aquelas pessoas e não com outras.
Enquanto parte da cultura dos povos, a especificidade dessa concepções e
dessas conformações é um processo social; sua racionalidade dá-se no
interior daquele grupo. Com isso, precisamos ainda mais a natureza dessas
negociações. São negociações de significados; e os significados não são
meros acessórios da realidade material, mas são também realidade (SATO &
ESTEVES, 2002, p.31).
Essa visão da autogestão enquanto um processo interativo e cotidiano de
organizar e que organiza, que se constrói coletivamente e que é datado e localizado
ainda se choca com visões que compreendem a autogestão apenas como um sistema
organizacional, como técnica que se aplica em empreendimentos, como a idéia do “baú
de comportamentos” (SPINK, 1996). Entre os grupos que buscam fomentar a economia
solidária e a autogestão em empreendimentos populares, é comum a presença dessa
maneira de pensar a autogestão como instrumento, ferramenta.
Ao adotarmos a noção de baú, corremos o risco de termos como meta um
melhor jeito de fazer em geral, retirado de nossa experiência de trabalho nas
organizações existentes. Por outro lado, ao adotarmos a noção de processos
sociais, temos algumas outras dicas: em primeiro lugar, a de que organização
é interação, sempre. E, nesse sentido, as mudanças, as situações
problemáticas, as soluções, que no momento seguinte transformam-se em
100
problemas, serão o normal e não uma disfunção. Em segundo lugar, a
organização sempre será aquilo que aquelas pessoas envolvidas farão, não
havendo um melhor jeito de fazer. Em terceiro lugar, por serem processos
movidos por pessoas, grande diversidade de interesses estará presente. São
interesses subjetivos, sociais, econômicos e políticos (SATO, 1999, p. 220).
Muito do que se pontua como imprescindível na educação tem base na
psicologia e principalmente na psicologia social (talvez seja melhor dizer, nas ciências
humanas em geral). Há uma dificuldade em aceitar que nem tudo que parece
desorganizado é de fato assim. Essa “desorganização” pode estar exprimindo uma outra
racionalidade, outras formas de organizar diferentes das formas costumeiramente
difundidas. Em seu artigo “A forma do informal”, Peter Spink aponta para a
importância de atentarmos para a variedade de formas organizativas existentes entre as
idéias de rede social e de grupo, noções muito utilizadas na Psicologia Social que, no
entanto, ao invés de ampliarem as possibilidades de formas, as restringem. Pergunta
sobre a possibilidade de alguém se declarar preocupado com a ação social sem buscar
compreender a sua forma, com respeito pelo que ali existe. “Quantos psicólogos,
quantas psicólogas, se colocadas dentro dessa situação como agentes de
desenvolvimento teriam trilhado a trilha da forma mais comum? Quantos e quantas, ao
contrário, teriam coragem de responder a uma pergunta sobre ‘ qual o grau de
organização necessária? ’ com a resposta ‘muito menos do que você pensa’. (SPINK,
1989, p. 106).
Há uma outra categoria das práticas da autogestão, comentada brevemente por
León-Cedeño, que também interessa a esse estudo: a da autogestão agente externo,
que diz respeito às formas de autogestão promovidas e comandadas por agentes
externos, ou melhor, pelos “de fora” do grupo (que podem ser incubadora, padres,
irmãs, grupos de apoio, que venham de fora para “ajudar”). Segundo a autora, este
agente não é simplesmente alguém que não é da comunidade, mas sim, uma construção
social: “Fala-se de autogestão agente externo, quando a experiência autogestora é
promovida e comandada por pessoa(s) de fora de outra classe social, nacionalidade
ou profissão, ou as três características juntas que usualmente gere(m) obtenção de
recursos para o empreendimento, e com quem se configuram relações encobertas de
poder” (LEÓN-CEDEÑO, 1999, p. 173).
A autora relaciona a idéia da vanguarda leninista com a legitimação dessas
práticas. Estas caracterizam-se pela verticalidade na tomada de decisões e pela liderança
dessas pessoas de “fora” junto ao grupo. Esse dilema é muito presente na realidade da
101
economia solidária e, principalmente, para os que atuam junto aos grupos. Em geral,
quando um grupo surge procurando orientação de alguma incubadora, já está de alguma
maneira organizado para tal. É comum, logo depois que a incubadora adentra o universo
do empreendimento para realizar a formação, que encontre ali pessoa(s) que já fazem
um trabalho parecido, que estão com o grupo desde o início, que levaram a idéia do
cooperativismo ao bairro e, por isso, sentem-se não apenas responsáveis, mas líderes
daquelas pessoas. Esse é um momento de choque com a incubadora, onde muitas vezes,
ou a pessoa pára de participar ou a incubadora retira seu trabalho (quando não se
consegue negociar a intervenção). Acreditando que um grupo de economia solidária
deve ser gerido coletivamente, a incubadora e essas pessoas entram em conflito, uma
vez que a autogestão pode não estar presente ainda. O que pode, muitas vezes, acontecer
é a incubadora ocupar o lugar desocupado pela liderança de fora e continuar
reproduzindo, sem querer, a mesma lógica, dependendo de como estiver percebendo o
movimento.
O dinamismo da relação entre o agente externo e o grupo se dá na medida em
que, uma hora a pessoa que está ali, por exemplo, a incubadora, consegue favorecer um
processo de autogestão mais libertária, e logo depois, adota a postura “de fora”, de
agente externo, comandando as ações do grupo. A autora aponta que a forma de contra-
argumentar o dilema é o próprio conceito de autogestão, que remete a uma construção
empreendida pelos próprios interessados, com práticas autóctones de organização.
Nesse sentido, tornar a presença do agente externo imprescindível para o
desenvolvimento da autogestão deve ser vista com “especial senso crítico” (LEÓN-
CEDEÑO, 1999, p. 175).
Aqui, o exemplo diz respeito à presença de “apoios” externos ao grupo e das
incubadoras, mas, da mesma forma, outros profissionais (o psicólogo, por exemplo)
que, em outras ocasiões, também entram numa prática com comunidades, podem estar
agindo a partir da idéia de que esta necessita de alguém para lhes “ajudar” a praticar a
autogestão.
Por um lado, se a naturalização da ação do agente externo como boa não deve
ser vista com bons olhos, naturalizar a separação entre os “de dentro” e os “de fora”
também não, uma vez que, ambas idéias são socialmente construídas. Um segundo
ponto nos remete à cisão da sociedade em classes sociais e em grupos dominantes e
dominados, o que cria ações do tipo: aqueles que trabalham junto à elite e aqueles que
102
trabalham junto aos marginalizados, ambas posturas presas à idéia de que alguém “de
fora” têm melhores condições de olhar para a situação-problema, resquícios de uma
postura positivista de conhecimento.
No entanto, a autogestão não é herança desse modelo de sociedade e nem de
ciência, e sim, pelo contrário, nasce das experiências de movimentos anarquistas em
diversos lugares do mundo. Portanto, na autogestão, a ação é feita coletivamente,
superando a divisão entre os que estão fora e os que estão dentro. O trabalho é
distribuído eqüitativamente entre os presentes, sejam eles quem forem. Assim, a autora
conclui: “A adoção de uma idéia de alguém de fora, ou do mesmo termo autogestão
para denominar o trabalho, não é o que afeta o empreendimento, e sim o é a forma como
a adoção é feita. Se for imposta, mesmo que sutilmente, as conseqüências são sentidas”
(1999, p.176).
Spink P., levanta uma questão que pode estar por trás de ações que acreditam
na necessidade da presença do agente externo na comunidade: a própria concepção de
comunidade. O conceito é polêmico e não vem ao caso discuti-lo exaustivamente,
porém, há um detalhe importante da discussão que, independente da concepção adotada,
deve ser refletido: a de que a comunidade não é um organismo pré-social, que não tem
sua própria dinâmica cotidiana e que só a terá depois que começar a ser suscitada para
isso. Comunidade como produto da associação de pessoas independentes umas das
outras ou o contrário: comunidade como o lugar em que as pessoas nascem e crescem?
A existência de pessoas capazes de se associarem pressupõe a existência de uma
comunidade. Na primeira assertiva, torna-se natural acreditar que as pessoas necessitam
aprender a viver em comunidade, de um Estado que as governe, etc. Na segunda, dá-se
importância para o fato de que, ao nascer em comunidade, as pessoas estão construindo
materialidades e socialidades cotidianas e que a presença de palavras organizativas é
constante. “Nascer em comunidade é presumir uma capacidade coletiva de autogestão,
que antecede e prescinde de um governo ou um Estado” (SPINK, 2004, p. 66).
Diante disso, ouso dizer que as incubadoras de cooperativas populares
encontram-se num terreno bastante irregular e perigoso, podendo cair facilmente em
práticas que contradizem a noção de autogestão. São projetos de assessoria aos
“autoconstrutores” (León-Cedeño, 1999), o que por si já parece uma contradição, e
dependendo da forma adotada pela incubadora na relação com estes, haverá ou não a
presença da autogestão. Autogestão, não como mero recurso de gestão, mas como
103
experiência histórica de fazeres coletivos, que antecedem a própria economia solidária e
vão muito além dela.
Empreendimentos e incubadoras como processos organizativos:
Até o presente momento, as incubadoras de empreendimentos solidários foram
apresentadas por sua teoria, por seus ideais e seus diferentes princípios. No entanto, a
noção de processo organizativo, comentada anteriormente, serve não apenas aos
empreendimentos solidários, mas também às incubadoras. Ao encará-las sob esse
prisma, a noção “incubadora” vai deixando de ser uma estrutura estática, para se tornar
tão cotidiana quanto o empreendimento solidário. E, a partir, do reconhecimento da
presença da incubadora num cotidiano, ou do cotidiano na incubadora, reconhece-se
também que ali há debate, conflitos e negociações acontecendo o tempo todo, que
permitem as diversas construções de sentidos de incubação existentes hoje.
Referindo-se aos desafios sentidos pelas ITCPs, Sato (1999) ressalta dois: o
primeiro é o desafio de criar novas relações sociais que operem a partir de uma
racionalidade não instrumental e a busca de condições materiais de sobrevivência e, o
segundo, diz respeito à preocupação da universidade em não colonizar a população,
tendo em vista que a incubadora também é parte da sociedade, e é composta por
diferentes histórias de vida e diferentes expectativas, interesses. “Temos ainda nossas
próprias concepções sobre o que é um processo organizativo cooperativo” (p.224).
Apesar de estar se referindo ao projeto das universidades, a idéia de que a
incubadora é composta por gente e, por isso, por debate acerca dos diferentes sentidos
construídos ao longo de cada história, também diz respeito a outros grupos que incubam
empreendimentos solidários. A idéia parece óbvia: organizações são produções sociais
de pessoas. No entanto, parece que, ao ser descrita em livros, congressos, documentos, a
noção é distanciada de seus processos de negociação cotidianos, sendo apresentada
como algo pronto e consensual. Ao tratar a incubação enquanto uma simples ação ou
um método de aproximação e apoio aos grupos interessados, temos a impressão de não
haver mais nada do lado de lá da incubadora. É como se houvesse uma separação entre
o fazer a incubação no empreendimento e a vida da incubadora antes, durante e depois
da incubação. Por isso, dizer que incubadoras também são produções sociais, isto é,
104
socialidades e materialidades que vão se construindo ao longo das experiências de cada
lugar, em debate, não é tão óbvio como pode parecer.
Trabalhar numa incubadora é estar o tempo todo debatendo sobre como fazer
algo, como resolver tais e quais problemas, como falar, como ouvir, avaliando os
pedidos de auxílio, definindo critérios para trabalhar, argumentando e contra-
argumentando em reuniões, incomodando-se com os desafios de construir a economia
solidária e, ao mesmo tempo, gerar renda urgentemente etc. Mais uma vez Sato ajuda a
pensar sobre o assunto:
Por outro lado, ao adotarmos a noção de processos sociais, temos algumas
outras dicas: em primeiro lugar, a de que organizações é interação, sempre. E,
nesse sentido, as mudanças, as situações problemáticas, as soluções, que no
momento seguinte transformam-se em problemas, serão o normal e não uma
‘disfunção’. Em segundo lugar, a organização sempre será aquilo que aquelas
pessoas envolvidas farão, não havendo ‘um melhor jeito de fazer’. Em
terceiro lugar, por serem processos movidos por pessoas, grande diversidade
de interesses estará presente. São interesses subjetivos, sociais, econômicos e
políticos. Chamo de interesse aquilo que importa às pessoas (Morgan, 1986).
E esses interesses conformam os objetivos e informam a direção e o sentido
das práticas (1999: 220).
Quando colocados lado a lado como dois processos organizativos peculiares,
empreendimentos solidários e incubadoras assemelham-se, por mais diferentes que
sejam um do outro. O que na teoria parece muito distante: “a incubadora vai até a
cooperativa ajudá-la, pode ser aproximado agora, uma vez que, ambos os lugares são
produções sociais de pessoas em negociações constantes, e que esse ir e vir, da
incubadora e da cooperativa, é uma relação que se estabelece e que permite a construção
de novos sentidos de ambas as ações.
O que não implica dizer que a relação estabelecida é harmônica. Acreditar na
harmonia entre incubadoras e empreendimentos populares é ingênuo, pois significa
desconsiderar que, por serem construções sociais, ambas são localizadas num tempo e
num espaço e, portanto, posicionadas de formas diferentes em termos de poder de ação
no mundo.
Autogestão e solidariedade: por uma ecologia de saberes na economia solidária
E nesse terreno, é preciso reconhecer de fato a autogestão como uma
possibilidade possível e diferente das que vêm sendo praticadas. Que a autogestão sirva
não apenas às pessoas em situação de pobrezas envolvidas nas cooperativas de materiais
105
recicláveis, costura, artesanato, alimentação, mas que valha também para os estudantes
universitários, para os profissionais, professores, gestores públicos, e quem mais estiver
engajado no movimento por uma economia solidária. De nada adianta trabalhar numa
incubadora de cooperativas populares se esta não reconhecer a autogestão enquanto uma
prática possível para si mesma. A prática da autogestão é para todas as pessoas que
quiserem, e é produto de saberes diversos e experiências que vão se consolidando
cotidianamente no agir coletivo.
Nasce em formas de vida coletiva de pessoas “comuns” que, por inúmeros
motivos, decidem ou vão decidindo por uma economia que se difere da hegemônica.
Práticas vinculadas, muitas vezes, ao pertencimento a uma comunidade, movimento
social, ou seja, de relações sociais afetivas e políticas, de contestação ou não. Mas que
estão profundamente imbricadas na vida comunitária, em formas de organização
coletiva muitas vezes desconhecidas, tácitas, processos organizativos localizados,
situados num tempo, numa história e num espaço.
Solidariedade nesse sentido estaria ligada à noção de tornar algo sólido
coletivamente, como diz Spink, P. Nesse sentido, a incubadora tem a contribuir no
momento em que se dispuser a estar junto com as pessoas, pensando, fazendo, ouvindo
e falando, sempre em conjunto. Produzindo outra maneira de se relacionar com as
pessoas e compreendendo o conhecimento produzido ali como legítimo, válido, porque
ele é enraizado, porque ele nasce da resistência desses trabalhadores a uma situação
política, social, econômica muito desigual. Vale lembrar o que Boaventura de Souza
Santos sugere para essa questão: a busca de uma ecologia de saberes.
A resposta a essa situação de crise epistemológica passa por um duplo
processo de debate interno no próprio campo da ciência e de abertura de um
diálogo entre formas de conhecimento e de saber que permita a emergência
de ecologias de saberes em que a ciência possa dialogar e articular-se com
outras formas de saber, evitando a desqualificação mútua e procurando novas
configurações de conhecimentos.” (SANTOS, 2005, p. 24).
E uma ecologia de saberes implica em considerar o cotidiano como lugar onde
se produzem os sentidos de mundo, e por sua vez, os saberes. A contribuição dos
autores trazidos para essa discussão é a de mostrar que conhecimento não é algo que se
prepara num laboratório ou dentro de sala de aula apenas, mas onde existem pessoas
vivendo e resolvendo seus problemas. Da mesma maneira, a autogestão é muito mais do
que um conceito teórico elaborado ou um simples modo de gestão organizacional.
Autogestão é um processo organizativo que se faz cotidianamente, nas conversas
106
travadas no fazer coletivo, em que se comenta, reflete, conflita, delibera, planeja,
organiza, etc. É um processo rico cuja base são as práticas discursivas do dia-a-dia, que
informam o que é esse lugar chamado “empreendimento solidário”.
Não se trata, por outro lado, de dizer que a incubadora adota posturas autoritárias
em relação aos grupos com os quais trabalha. Acredito que essa é uma reflexão que já
vem sendo feita em muitas equipes de incubação. Da mesma maneira, a única forma de
pensar na incubação é a partir do cotidiano. Nesse sentido, incubadora não é um lugar
estático, parado, onde as pessoas vão incubar. É igualmente um processo organizativo,
em alguns casos, autogestionário, em outros, não. Mas isso não retira a importância do
processo de construção de sentidos que o trabalhar numa equipe de incubação propicia.
Acredito que falar em ecologia de saberes é falar em sentidos. Dependendo dos sentidos
que estiverem sendo construídos, os saberes poderão ou não circular, conectar-se a
outros, interagir e se reconstruir. O cotidiano não é um vazio onde os eventos acontecem
ou o pano de fundo que os acompanha, mas o lugar onde se dão as relações sociais, as
produções de conhecimento e de sentidos.
107
6. A INCUBAÇÃO NAS DIFERENTES CONVERSAS:
APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS DILEMAS
108
Não houve um dia determinado em que esta pesquisa começou e, creio eu, ainda
não acabou. O que aqui apresento é parte de uma reflexão que não é só minha, mas de
um grande grupo de pessoas envolvidas com a economia solidária, e em especial, com a
incubação.
Adotei as conversas como forma de entrar em contato com o que as pessoas
estavam falando sobre o processo de incubação. Em si, só o fato de estar conversando
sobre o assunto já me fez repensar muitas vezes o meu próprio conceito de incubação.
Compor essa dissertação, alinhavar os fios (quando foi preciso) me permitiu olhar, a
partir de outros ângulos a mesma questão. A princípio, apenas conversar parecia vago
demais para uma pesquisa de mestrado. No entanto, as conversas foram acontecendo e
me mostrando questões que eram relevantes. Precisei me afastar para escrever, mas
tenho certeza absoluta que elas continuam acontecendo entre as pessoas. Conversar é
pensar no assunto, é elaborar, resolver, propor. E isso significa dizer que a noção é
produzida o tempo todo e que, portanto, este trabalho contribui na medida em que puder
falar de um momento, como uma fotografia que registra um olhar possível sobre algo.
Não tive a pretensão de retratar fielmente “a” realidade, portanto, alguns
registros foram feitos ou de memória ou baseadas em anotações de reunião (a grande
maioria). Nem sempre consegui escrever exatamente o que a pessoa quis dizer. Preferi
fazer anotações do processo de estar no campo-tema, de minhas compreensões e minhas
conversas. Queria contar dos processos que a produzem, dos processos em que eu estive
presente, não como mera observadora, mas como produtora de sentidos também.
Relembrando aqui o que ouvi, no início dessa pesquisa, de uma pessoa da
incubadora, que me disse que essa era a minha maneira de ver, de compreender o que
acontecia na incubadora (quando conversávamos sobre o meu receio em apresentar para
a equipe minhas idéias, minhas críticas), mas que certamente, haveria outras formas de
entender. Faço questão de enfatizar que essa pesquisa é também uma produção
localizada, datada e aberta a discussões. Talvez um pouco provocativa, polêmica, mas
aberta.
Apresentarei as conversas da seguinte maneira: na primeira parte, as reuniões
que participei na incubadora e minhas reflexões a partir das questões que identifiquei.
Tentarei localizar o autor no processo de criação da incubadora, a partir de uma
conversa com uma das primeiras pessoas que a idealizou, em 2000. Em seguida, falarei
109
da incubadora no momento em que começo a participar das reuniões, apontando um
pouco da dinâmica interna, equipe e preocupações presentes.
A próxima etapa é me dedicar às outras conversas, que se deram no entorno da
incubadora, em espaços diferentes das reuniões exclusivas de incubação. Explicarei
cada uma delas, apresentando, da mesma forma, sua história, momento em que inicio a
minha participação e questões principais da incubação presentes.
Economia solidária em Campinas
A economia solidária parece surgir em Campinas ligada a questões de geração
de trabalho e renda. Assim como nos outros lugares, a mesma se configura a partir de
diferentes atores que a compõem. No caso desta cidade, considero como atores
principais dessa construção as pessoas que estão nos empreendimentos trabalhando, as
entidades de apoio desses empreendimentos e a prefeitura, a partir de seus programas
para a geração de renda nos bairros. As formas de organização em cooperativas,
associações ou grupos autogestionários certamente já existiam na cidade antes mesmo
de a discussão da economia solidária se tornar pública. Mas é no começo dessa década
que o tema se amplia e alcança mais participantes.
Um marco desse momento foi a decisão da prefeitura de implantar o programa
de coleta seletiva no município e estimular a formação de cooperativas de triagem de
materiais recicláveis, aliando um serviço público (a coleta seletiva) à necessidade de
gerar renda para uma parte da população desempregada. Os materiais eram entregues
nos bairros, em espaços para triagem do mesmo. A idéia de formar cooperativas
baseava-se em duas experiências de cooperativas desse tipo bem sucedidas na região.
Para tanto, a prefeitura solicitou que as entidades que já desenvolviam algum tipo de
apoio a pequenos grupos econômicos se organizassem para atender a demanda que
surgiria. Mais tarde, é feito um convênio da prefeitura com uma incubadora
universitária recém formada e duas entidades independentes que também ofereciam
apoio aos grupos. Em documento da Secretaria Municipal de Assistência Social,
encontra-se a seguinte descrição da idéia que começava a surgir: Outra forma de
enfrentamento tem sido depositada no fomento a iniciativas de grupos associativos e de
trabalho autônomo como forma de obtenção de renda pelas famílias excluídas do
mercado de trabalho.” (Relatório gestão 2001, janeiro de 2002, p. 9).
110
Ao longo do tempo, a relação entre prefeitura, entidades e empreendimentos só
cresceu, no sentido do envolvimento dos participantes e da abrangência que essas ações
foram tendo. O número de cooperativas de triagem aumentou e os problemas passaram
a ser discutidos permanentemente. Formou-se um Grupo de Trabalho de Resíduos
Sólidos (GTRS), onde membros das entidades de apoio, dos empreendimentos e da
prefeitura se reuniam para pensar as questões da reciclagem, da venda dos materiais, da
organização da coleta seletiva e das necessidades das cooperativas, etc. Esse grupo
existe ainda hoje, sendo orientado pelo responsável pela Coordenadoria de Apoio à
Economia Solidária (CAES), da Secretaria Municipal de Cidadania, Trabalho,
Assistência e Inclusão Social (SMCTAIS). Essa coordenadoria comporta uma equipe
de profissionais responsáveis por pensar a economia solidária no âmbito das políticas
públicas (e não de governo), não se restringindo ao segmento da reciclagem. Em
destaque estão as técnicas de referência em cooperativismo, que são assistentes sociais
que se dedicam exclusivamente ao apoio e estímulo ao cooperativismo nos bairros onde
atuam.
A incubadora
No prefácio localizei o porquê de minhas perguntas em relação a incubação,
contando um pouco da minha história na incubadora. Agora é preciso apresentar a
história de criação desta incubadora, com uma amplitude maior. Sua origem remete a
experiências de uma entidade religiosa da região, que em meados dos anos 90, investia
recursos financeiros em pequenas experiências de geração de renda. Essa entidade
financiou projetos de trabalhadores com costura, artesanato, fábrica de velas,
restaurante, carrinho de cachorro-quente, farmácia popular, catação de materiais
recicláveis, etc. As pessoas que procuravam o apoio da entidade vinham a partir da
comunidade religiosa de seus bairros e em geral, eram pessoas com baixa renda familiar
ou em situação de desemprego. Organizavam-se em grupos de poucas pessoas ou
individualmente. Para fazer a doação do recurso, a entidade fazia algumas reuniões com
essas pessoas e as deixava livres para desenvolver o que estavam se propondo. Em
geral, alguns meses depois, essas pessoas voltavam para comunicar que a experiência
não tinha dado certo e entregar as máquinas, os equipamentos que compraram com o
dinheiro. Apenas uma ou outra experiência foram bem sucedidas.
111
A entidade começou a perceber que talvez fosse importante um
acompanhamento mais constante das experiências, mas não tinha como oferecer esse
apoio, uma vez que não contava com essa estrutura e tempo. Os financiamentos foram
suspensos para que uma reflexão sobre isso fosse feita.
No mesmo período houve um curso de cooperativismo oferecido pelo governo
estadual, em conjunto com o Ministério do Trabalho, em São Paulo. Dois membros da
equipe participaram do mesmo e, a partir dali, decidiram realizar cursos de
cooperativismo nos bairros de Campinas. Entre 2000/2001 foram realizados oito cursos
de cooperativismo, cada um com cerca de 30 pessoas, totalizando cerca de 300 pessoas
das comunidades. A demanda pelo cooperativismo cresceu e a entidade não tinha como
atender.
Quando, em 2001, foi implantado o programa de coleta seletiva municipal, a
entidade foi convidada a realizar um curso para as assistentes sociais da secretaria da
promoção social, que trabalhariam diretamente nos bairros, fortalecendo e estimulando
a idéia do cooperativismo para a geração de renda. Além desses profissionais, outras
assistentes sociais da cidade participaram do “1º Curso de Multiplicadores”. Depois
desse vieram mais cinco cursos de multiplicadores. A idéia de criar um curso de
multiplicadores era a de que as pessoas que desejassem formar cooperativas fossem
reunidas ou por um agente da própria comunidade ou pelas assistentes sociais da
secretaria de assistência social, que tinham um contato mais direto com os bairros e seus
problemas. Essas pessoas, os “multiplicadores” conheciam um pouco mais do
cooperativismo e o levavam para o bairro, agrupando as pessoas para iniciar o trabalho
e com o apoio da entidade, caso fosse necessário. A partir desses cursos a demanda pelo
apoio aos grupos aumentou consideravelmente para a entidade.
Decidida a não apenas fornecer o recurso financeiro, mas também um
acompanhamento mais sistemático, em 2002, a entidade busca apoio de uma
universidade da região, solicitando estagiários de diferentes campos profissionais para
auxiliar o trabalho do assistente social que acompanhava os grupos pela entidade. No
fim desse ano, algumas pessoas dessa entidade constituem uma ONG para realizar a
incubação dos empreendimentos, independente da entidade. A opção pela idéia de
incubação se deu no sentido de enfatizar a necessidade do acompanhamento sistemático
aos grupos, no entanto, tentando diferenciar-se da outra incubadora universitária já
existente. Essa equipe opta por não trabalhar apenas com o cooperativismo, mas com o
112
associativismo também, tendo em vista as dificuldades da época em cumprir a lei do
cooperativismo que exigia um mínimo de 20 pessoas por cooperativa. Segundo a
responsável pelo projeto na época, o curso do Ministério do Trabalho não previa a
incubação dos grupos.
Inicialmente os acompanhamentos eram de duas vezes por semana a cada grupo,
passando em seguida a se dar semanalmente. A idéia era formar e “na prática ver
aplicadas as noções dos cursos” (fala da responsável). O grupo queria fazer uma
incubação comprometida com o “povo”, mesmo sem muito recurso. Mesmo
voluntariamente, os profissionais que incubavam não deveriam deixar de acompanhar o
grupo, caso faltasse recursos. O cooperativismo era visto como ferramenta para a
geração de renda. Alguns grupos que atualmente são incubados tiveram início nesse
momento, através dos cursos de multiplicadores e cursos básicos.
A equipe de incubação era formada por uma assistente social, três estagiárias de
psicologia, um de economia, um de direito e uma de turismo. A equipe fixa mesmo era
composta pela assistente social e pelo estagiário de economia, que se dedicava
integralmente à incubadora. Os demais estagiários se alternavam dentro de suas
possibilidades. Em 2002, as estagiárias de psicologia (eu era uma delas), desenvolvem o
estágio de psicologia organizacional em duas cooperativas de triagem de materiais
recicláveis: uma que já estava formada e outra, recém-formada.
No primeiro grupo, já no estágio de Psicologia Organizacional, em 2002, nota-se
uma grande resistência por parte da cooperativa na incubação que era proposta pela
estagiária. Em 2003, uma nova tentativa de incubação é feita. Inicia-se um trabalho cujo
objetivo é atuar com a motivação, perspectiva de futuro, elaboração de projetos para os
cooperados, já que a queixa era a de que estes não se comprometiam com a cooperativa.
No entanto, no decorrer do processo, se percebeu que a incubação, nos moldes da
economia solidária, que buscava a autogestão, não cabia naquele empreendimento. A
direção do mesmo era centralizada e não havia espaço para a discussão. O que ficou
claro era que o problema não estava tanto nos membros da cooperativa, mas na gestão
da mesma.
O segundo grupo fora formado a partir do presidente da associação de bairro,
que procurou a responsável pela entidade para contar das famílias que haviam sido
retiradas do aterro e instaladas no bairro. Como estas viviam de catar os materiais no
aterro, o presidente pensou organiza-las para inseri-las no programa de coleta seletiva
113
da prefeitura. Para isso precisava que a incubadora os acompanhasse. Foi feito um curso
inicialmente e depois se passou ao acompanhamento semanal, que era feito pelas
estagiárias de psicologia em conjunto com o estagiário de economia. Essa incubação
durou cerca de 2 anos, tempo acordado entre a incubadora e o grupo, no início do
processo. Foi uma incubação que resultou na confecção do estatuto, do regimento
interno, na organização administrativa e financeira, na prática das assembléias, etc. O
processo de desincubação aconteceu em 2004 e ainda hoje a cooperativa é assessorada
pela incubadora, porém com menos freqüência que antes.
No fim de 2002, um curso promovido pela entidade num bairro inicia a
formação de um terceiro grupo. Em 2003, já formadas, as psicólogas iniciam um projeto
nesse último grupo para trabalhar os problemas de relacionamento interpessoal que já
existiam. Durante quatro meses desenvolvem o projeto. Depois disso, a incubação
continua acontecendo semanalmente. O grupo, instalado no galpão do Departamento de
Limpeza Urbana (DLU), passou por momentos difíceis de definição do lugar em
2003/2004. A equipe de incubação percebia que um dos problemas era estar ocupando
um espaço que não era do grupo, e sim, da prefeitura.
Depois desses, outros grupos de triagem que faziam parte do Programa de
Coleta Seletiva começaram a solicitar incubação da Ong. No fim de 2003, a prefeitura
municipal optou por financiar essas incubações, no entanto, solicitava que a incubadora
fizesse um projeto explicando como seriam as incubações, o tempo, entre outras coisas.
A presidência da Ong muda nesse mesmo ano, assim como a equipe é reestruturada.
Nesse mesmo ano, inicia-se, dentro da equipe, uma preocupação com a
elaboração da metodologia de incubação que seria adotada. Até aquele momento, a
incubação era feita baseada nos conhecimentos de cada estagiário e da profissional que
acompanhava. Era necessário se debruçar sobre essa prática e elaborar parâmetros para
a atuação nos grupos. Essa necessidade apresentava-se de algumas maneiras: 1. na
relação da incubadora com os grupos, isto é, na demanda trazida do cotidiano de
trabalho, que carecia de um aprofundamento maior teórico e metodológico; 2. em
virtude do financiamento da prefeitura; 3. na relação da equipe com outras entidades de
economia solidária, especialmente, as de São Paulo. Nos cursos e encontros que a
equipe começou a freqüentar, ficava clara a necessidade de elaborar uma metodologia
de incubação.
114
O processo que se seguiu foi, inicialmente, o reconhecimento do acúmulo de
experiências práticas da incubadora nos anos anteriores. A partir daí, a equipe iniciou
um trabalho de descrição dessas atividades cotidianas que eram realizadas junto com os
grupos. Foi um momento de trabalho intenso sobre o material prático da equipe, uma
espécie de coletânea dos pedaços de cada área do conhecimento presente na incubadora.
A idéia era que, descritas as práticas, a equipe encontraria seu caminho. Esse foi um
trabalho feito exclusivamente pelos estagiários, que não eram supervisionados por
ninguém para a tarefa proposta. A equipe não sabia como deveria fazer essa elaboração
e optou por esse caminho, que, diga-se de passagem, não foi nada fácil.
Diante da dificuldade de elaboração da metodologia (primeira frente de
atuação), a Ong resolveu convidar uma pessoa especialista no assunto para assessorar a
equipe. Esta sugeriu como base para a metodologia uma perspectiva pedagógica
específica, perspectiva esta completamente desconhecida da equipe de incubação, mas
que segundo ela, eram importantes. Um texto base foi dado para a leitura e passou-se a
discussão. Essa pessoa trouxe para a equipe uma forma de fazer metodologia de
processos educacionais que partia da definição inicial de pilares, habilidades e bases
tecnológicas. Os pilares que a profissional sugerira eram os recomendados pela Unesco:
aprender a ser, aprender a aprender, aprender a conhecer e aprender a fazer. A partir da
definição dos pilares, adaptada para a incubação, a equipe começou a pensar em que
habilidades faziam parte de cada pilar. E, por sua vez, definidas as habilidades, as bases
tecnológicas seriam as técnicas para trabalhar aquelas habilidades.
Era um primeiro caminho. O movimento inicial de descrição das atividades da
incubadora fora suspenso para elaboração desse material. O processo, no entanto, foi
ficando cada vez mais complicado. Além da complexidade exigida para a proposta, a
equipe se questionava também se aqueles pilares eram válidos para o que a incubadora
se propunha fazer. O resultado foi que a incubação continuou acontecendo,
(independentemente da escolha metodológica) e, ao longo do tempo, esses pilares foram
sendo abandonados. Preparou-se um caderno em que a Ong apresentava sua missão,
visão, os objetivos e as linhas de atuação (que não diziam respeito apenas à incubação,
mas ao fomento da economia solidária e outros). Os pilares, abandonados na prática da
incubadora algum tempo depois, também entraram nesse caderno, compondo uma
complexa proposta metodológica.
115
O ano seguinte foi um ano em que a equipe foi mais uma vez modificada,
entrando então, novos estagiários da universidade. Foi um ano em que teve início uma
parceria mais constante com a universidade e maior presença de estagiários em
supervisão. A demanda de grupos aumentou um pouco mais. A Ong intensificou sua
participação nas reuniões externas de economia solidária no município, como o GTRS
(Grupo de Trabalho de Resíduos Sólidos) e as reuniões para preparação dos fóruns e
encontros municipais de economia solidária. Uma maior aproximação com as outras
duas entidades de apoio a empreendimentos solidários acontece.
É o ano de eleições municipais e a preocupação, de todos os envolvidos com a
economia solidária em Campinas, é de que o novo governo não dê tanto apoio aos
empreendimentos, como já vinha acontecendo anteriormente. Para solucionar o
problema, são feitas inúmeras reuniões com os candidatos a prefeitura para falar da
necessidade do apoio. Quando tem início a nova gestão, a economia solidária continua
sendo frente de atuação. No entanto, o programa de economia solidária é realocado para
uma nova secretaria, que une a assistência social com a secretaria de desenvolvimento
econômico, dando origem a Secretaria Municipal de Cidadania, Trabalho, Assistência e
Inclusão Social (SMCTAIS).
No fim de 2004, a equipe resolve fazer um encontro de planejamento das ações
para o ano seguinte. Nesse encontro, com duração de dois dias, fala-se sobre as linhas
de atuação da incubadora, o recente projeto de patrocínio aceito por uma empresa
brasileira, discute-se o conceito de incubação e se faz uma auto-avaliação da equipe pela
equipe e do trabalho da equipe pelos empreendimentos e gestão pública. Nessa
avaliação, fica claro que a necessidade de definição de uma metodologia permanece. Os
empreendimentos avaliam positivamente o trabalho da Ong, mas apontam falhas em
alguns momentos. A prefeitura também avalia positivamente e a equipe, por sua vez,
sente necessidade de elaborar um novo acordo com os empreendimentos, baseando-se
nas discussões sobre os problemas cotidianos da incubação. O Plano Personalizado de
Incubação (PPI), elaborado por parte da equipe, é apresentado e decide-se levá-lo para
discussão com os grupos.
Em 2005, com a equipe novamente modificada restando apenas duas pessoas
da fase inicial/ 2001 inicia-se uma série de encontros entre a equipe para discussão de
textos sobre educação. Os autores escolhidos para pensar a incubação são Paulo Freire e
Edgar Morin. Nessas reuniões, que se dão no primeiro semestre, a incubadora decide
116
que a avaliação dos grupos deve ser feita semanalmente e que o PPI é um instrumento
que deve ser planejado com antecedência, mas não deve ser rígido. Temas como
paciência, coerência, participação, autogestão, economia solidária, etc., são abordados
nesses encontros, porém de forma muito incipiente ainda. O processo de reflexão sobre
a incubação se inicia, em forma de debate sobre o cotidiano. Em função do patrocínio
da empresa, a estrutura organizacional da incubadora é reformulada. Até aquele
momento, havia uma equipe que fazia a incubação, e dentro da equipe, algumas pessoas
faziam mais que a incubação, como a administração e a comunicação da incubadora. No
entanto, todos eram chamados “agentes de campo”. A reformulação prevê uma
delimitação de papéis: um setor de comunicação, um setor administrativo e um grupo
que faria a incubação, formado pelos agentes de campo.
A discussão sobre a incubação também começa a fazer parte dos debates nas
reuniões de preparação do fórum municipal (COMEX). Com representação nessa
reunião, a incubadora começa a trazer as discussões que são feitas para dentro da
equipe. Ao mesmo tempo, uma maior aproximação com as outras duas incubadoras da
região começa a acontecer e propicia o conhecimento de novas formas de fazer a
incubação, o que fornece, minimamente, um critério de comparação e de definição da
busca por um modelo próprio de fazer. Além disso, uma outra reunião começa a
acontecer: a reunião da associação das cooperativas de triagem de materiais recicláveis
(ACOOP). Ambas serão abordadas mais especificamente à frente.
No segundo semestre de 2005, nas “reuniões do comitê”, que acontecem desde o
início da incubadora, na qual a equipe comenta os acontecimentos da semana e reflete
sobre as ações seguintes, inicia-se um processo de profunda reflexão sobre o papel da
incubação, os objetivos da incubadora, os dilemas que a equipe vive no cotidiano, etc. É
nesse momento que começo a participar das reuniões, como pesquisadora, para
conversar sobre a incubação.
Reunião de “Formação de agentes”:
Essa reunião surgiu na incubadora e tinha por objetivo criar um espaço de
conversa entre cooperados, de diferentes cooperativas, para pensar no papel do
representante nas grandes reuniões. Percebia-se que os empreendimentos participavam
dessas grandes reuniões semanalmente, mas tinham dificuldade de representar os
117
interesses do seu grupo nelas. Portanto, a formação de agentes acontecia uma hora antes
de cada reunião geral dos empreendimentos. Eram compostas apenas por membros de
cooperativas em processo de incubação pelo CRCA e por um membro da equipe, que
coordenava. Havia uma hipótese de que dessa reunião poderia se criar um encontro para
discussão da incubação e por isso, a incubadora me sugeriu a participação.
Desde o início, a adesão não foi muito grande, mas a participação dos que se
dispuseram foi muito interessante. Quase não era necessário falar nada. E aos poucos, os
objetivos, inicialmente traçados, foram concretamente se transformando. O espaço
tornou-se mais de troca de experiências em economia solidária do que de discussão
sobre a representação. Ao mesmo tempo, a idéia não era a de discutir a
representatividade superficialmente, mas a partir do quanto cada um dos que estava lá,
sentia que representava seu grupo. Isso possibilitou que as pessoas falassem do
cotidiano da cooperativa e, consequentemente, a troca, a ajuda, os conselhos etc, foi
acontecendo. Durou aproximadamente um semestre. Em 2006, por falta de presença, a
incubadora decidiu finalizar as reuniões.
Depois de um tempo, descobri que a proposta de discutir a representação
passava pela troca entre as pessoas. Como não sabia disso durante o processo, tinha a
sensação de que o que estávamos conversando não era representação nas reuniões, e sim
um compartilhamento de experiências muito rico.
Associação das Cooperativas de Triagem de Materiais Recicláveis ACOOP
Durante algum tempo, freqüentei a reunião da ACOOP, numa das salas da Casa
Santana, lugar onde fica o CRCA. O lugar foi oferecido à associação, uma vez que sua
localização era central e o acesso ao transporte coletivo era fácil. A associação foi
criada a partir de uma reunião, que acontecia a cada quinze dias, chamada de “reuniões
de rede”, das quais eu não participei, mas que buscava pensar em estratégias de venda e
compra em rede para as cooperativas de triagem. Em 2005, diante da necessidade das
mesmas de saírem da mão dos atravessadores e da precariedade em que se encontravam,
o coletivo dessa reunião de rede optou por reunir as cooperativas presentes no sistema
de coleta seletiva, para tentar a venda coletiva dos materiais e, consequentemente,
aumentar seu preço no mercado e poder frente às grandes recicladoras.
118
A associação foi impulsionada por algumas pessoas de fora das cooperativas,
mas que participavam da reunião de rede. Inicialmente, a participação efetiva dos
cooperados era pequena, mas aos poucos foi se ampliando para hoje ser composta,
exclusivamente, por cooperativas de triagem. Em cada reunião, há pelo menos um
representante de cada cooperativa. As reuniões de que participei ocorriam a cada quinze
dias nas segundas feiras, intercaladas com as reuniões do grupo de trabalho de resíduos
sólidos. Um grande círculo de cadeiras era aberto conforme a quantidade de pessoas
presente e, o presidente da associação coordenava o debate, a secretária redigia a ata.
Presentes na reunião eram também representantes das incubadoras (um de cada uma,
pelo menos), agentes externos ou grupos de apoio das cooperativas. Nunca houve
participação de membros da secretaria/prefeitura nessa reunião, a não ser do diretor da
coleta seletiva que atuava no Departamento de Limpeza Urbana.
Geralmente, o encontro começava com a escolha ou sugestão das pautas, que se
referiam aos acontecimentos da semana que eram do interesse dos empreendimentos. A
partir daí, iniciava-se a reunião e as pessoas debatiam o assunto. Em 2005, um assunto
que tomou boa parte das reuniões foi o edital para a licitação do novo contrato de
limpeza pública municipal, que incluía os empreendimentos como parte do programa de
coleta seletiva. O edital, elaborado sem a participação direta dos empreendimentos, era
polêmico. Propunha definições que levavam os empreendimentos a se preocuparem
com o que iria acontecer. Ao longo do ano, eventos foram realizados com o objetivo de
discutir o assunto, como foi o caso do Seminário de Meio Ambiente, em que, pela
primeira vez, a proposta do edital foi apresentada para o município. Um outro momento
foi a audiência pública sobre o edital, em que as cooperativas também estiveram
presentes para tentar debate-lo.
Além dessas preocupações, a associação conversava sobre a queda dos preços
dos materiais, a situação precária das cooperativas de triagem, os problemas com a
coleta seletiva e com a prefeitura, formas de viabilizar uma venda coletiva dos materiais
para aumentar o valor, a grande quantidade de rejeito que vinha junto com o material, e,
por vezes, falava-se na incubação. A incubação aparecia, em geral, por conta da
presença de membros das incubadoras nessas reuniões. Estes propunham formas de
agir, cursos a fazer, etc.
Reuniões, encontros e fóruns de economia solidária:
119
Refere-se aos encontros de economia solidária, ocorridos em 2005, e nos quais
pude estar presente. Os encontros, fóruns e plenárias são realizados ou pela comissão
executiva de economia solidária (COMEX), constituída no fórum municipal, ou pela
comissão executiva do fórum estadual. As reuniões da COMEX são realizadas às
quintas-feiras, quinzenalmente. Participam delas representantes dos empreendimentos,
representantes do poder público e das incubadoras. Em 2005, a COMEX conseguiu
elaborar um planejamento de ações para a economia solidária em Campinas, baseado
nas demandas levantadas nos encontros e fóruns. É uma comissão que busca refletir
sobre o movimento de economia solidária ou a viabilidade da economia solidária no
município. Executa o que se delibera nos fóruns e encontros. Diferencia-se das outras
reuniões por ser um momento em que se busca pensar no movimento, sem separá-lo por
segmentos. As ações são para integrar as experiências. Discute-se também a criação de
um conselho de economia solidária e a lei dos 20%, que vai permitir que 20% dos
serviços prestados para a prefeitura sejam feitos por empreendimentos solidários.
A seguir, a forma como organizei as conversas. A divisão foi feita para
permitir uma melhor visualização dos diferentes espaços de produção de sentidos da
incubação:
LUGAR REUNIÕES PARTICIPANTES
INCUBADORA Reuniões de comitê da
incubadora
Membros da equipe de
incubação
EMPREENDIMENTOS
1.Reuniões de formação de
agentes
2. Reuniões da ACOOP
1. Alguns dos
empreendimentos
incubados pela
incubadora
2. Representantes dos
empreendimentos,
das incubadoras e do
DLU.
REDE DE ECONOMIA
SOLIDÁRIA
Encontros e fóruns de
economia solidária no
município e no estado de São
Paulo
Participantes da rede:
incubadoras,
empreendimentos, gestores
públicos e grupos de apoio.
120
INCUBADORA: QUESTÕES DAS REUNIÕES DE
COMITÊ
121
Apresento agora, já em forma de questões, temas ou dilemas, algumas das
conversas em reunião que participei durante a pesquisa. O período onde as reuniões
ocorrem e o cenário onde as conversas sobre os temas acontecem será explicitado no
decorrer do relato. As letras em negrito indicam a perspectiva adotada em relação ao
tema, do modo como a compreendi. Em itálico estão as minhas observações do
processo. Aparecem questões ligadas às ações da incubadora nos empreendimentos e,
por outro lado, questões ligadas ao processo organizativo da equipe, sua dinâmica. Essa
é uma separação meramente didática, já que se entende que a divisão entre dentro e fora
da incubadora é ilusória. O dentro e o fora são partes do mesmo processo social de
produção do que é o incubar.
Encontro de Planejamento da incubadora: onde se resolve que o planejamento da
incubação deveria ser feito junto com as cooperativas
Lembro-me de um encontro de planejamento da incubadora, que se deu no final
de 2004, um ano depois de ter iniciado o mestrado. Resolvi que queria apresentar para a
equipe meu tema de pesquisa e preparei um material falando de alguns pontos de vista
sobre a incubação. Sabia que seria uma tarefa complicada, porque já vinha sentindo que
havia dificuldades em falarmos sobre isso dentro da incubadora. Por outro lado, o
questionamento da incubação vinha sendo feito desde quando iniciamos o processo de
construção da metodologia, no início desse mesmo ano. Apresentei o que tinha
preparado e por alguns minutos, ninguém falava nada. Acredito que aquele momento
deve ter feito sentido para alguns, em função do que estávamos vivendo no nosso
cotidiano, mas ainda era difícil refletir mais criticamente sobre a incubação. Algumas
das falas foram algo como: “Mas nós não utilizamos a palavra incubadora para nos
referirmos a nos mesmos, só em apresentações para fora.”; “Precisamos
conceituar melhor nosso trabalho”,“ nosso trabalho nasceu de uma experiência de
trabalho com comunidades acumulada”. Por outro lado, também apareceram
questões como a importância da troca de saberes na educação; o que significa
quando não conseguimos atingir as cooperativas (não conseguimos instigá-los a
economia solidária como deveríamos); na sensibilidade para saber quando se deve
intervir e quando não se deve (se intervém ou se fica passivo diante da situação?),
etc. Sem conclusões, fechamos a discussão e passamos a outra, concordando apenas que
122
precisávamos rever nossa prática. E, na hora que fizemos o planejamento anual, foi
colocada a necessidade de que o planejamento da incubação fosse feito com as
cooperativas, num processo mais democrático, o que foi aceito por toda a equipe.
Esse foi um momento em que a incubadora, depois de ouvir a problematização
que eu propusera sobre a incubação e seu sentido etimológico bem como os efeitos de
sua prática no cotidiano do empreendimento, mas também depois de escutar a avaliação
dos empreendimentos e gestão pública sobre a sua atuação, decide começar o ano de
maneira mais aberta, levando aos grupos as propostas de trabalho para serem debatidas.
O “Plano Personalizado de Incubação”: início de uma organização da incubação a
partir das demandas específicas de cada grupo:
Como havia sido combinado no encontro de planejamento, era preciso se
debruçar sobre a revisão do caderno de metodologia. A equipe decidiu começar a traçar
os “Planos Personalizados de Incubação” (P.P.I.s), que eram um planejamento das
atividades de incubação específicas para cada empreendimento. Tal idéia nascera da
percepção, que acompanhava a incubadora desde o início dos trabalhos, da necessidade
de traçar um programa para os grupos, tendo em vista as particularidades de cada um.
Para explicar melhor o que seria um P.P.I, num dos seminários sobre a economia
solidária organizados pela incubadora, numa universidade da região, um dos integrantes
da equipe apresenta a idéia: “... falou de nossa metodologia de incubação,
apresentando o P.P.I. (Plano Personalizado de Incubação), que é um programa
elaborado para e com cada cooperativa especificamente para o semestre, sendo
avaliada continuamente. Disse também que a incubadora acredita na importância
de se avaliar sempre o processo de incubação e citou Paulo Freire, para dizer que a
incubadora se baseia nele.” (Diário de campo, 28 de maio de 2005).
O P.P.I traduzia um desejo de planejamento de atividades mais sistemático que
faltava à incubadora. A forma como é apresentado o PPI nesse encontro também traduz
o início de uma abertura da incubadora à possibilidade de abrir o debate sobre a
incubação com os empreendimentos, maiores interessados. Basear-se em Paulo Freire
significava essa abertura. Apesar de estarmos há pouco tempo lendo uma obra do autor,
ainda assim a incubadora quis levar a idéia para debate sobre a incubação com outras
incubadoras. O P.P.I. seria proposto, levado à discussão e, se fosse preciso, seria
123
novamente reformulado. A sua avaliação se daria semestralmente, de forma quantitativa
e qualitativa, para a partir daí, ser novamente, adaptado às demandas de cada grupo. No
entanto, a forma de avaliação ainda era complexa para que fosse aplicada. Ao longo do
tempo, o P.P.I foi deixando seu caráter institucional, para ir se fazendo no cotidiano da
equipe dos agentes de campo, que se reuniam mais de uma vez por semana para debater,
planejar e avaliar o trabalho nos grupos. Personalizar a incubação é uma forma de
atender às demandas específicas de cada grupo e não cair na universalização do
conteúdo.
A incubação
Falávamos sobre a o acordo da incubadora com as cooperativas, do contrato que
seria travado com cada grupo sobre o que iriam fazer juntos (incubadora e cooperativa),
que daria início a idéia do planejamento das ações da incubadora com os grupos. Um
dos membros da equipe estava redigindo um documento falando sobre a isto e pediu
que eu lesse, já me avisando que eu ficaria surpresa. Era um texto que falava que uma
das tarefas da incubadora era a de formação das pessoas, mediada pela equipe de
campo, para o cooperativismo, para a solidariedade, etc. É a lógica da incubação de
cooperativas: formar pessoas para trabalharem dentro da proposta da economia
solidária.
Enquanto lia pensava que ninguém perguntou para essas pessoas se é isso que
elas querem fazer ou se estão na economia solidária apenas por uma necessidade de
sobreviver. E ainda, mesmo que se admita que é possível formar para o cooperativismo
(no caso da incubadora acreditar nisso), como se faz essa formação se não for a partir
de uma construção coletiva, já que a economia solidária pressupõe a autogestão? O
conteúdo do que será essa formação é definido dentro da incubadora, em reuniões de
equipe, das quais só participam os trabalhadores da incubadora, mesmo que os agentes
de campo façam essa mediação entre o que o grupo quer e o que a incubadora quer.
Ainda assim, como fica o grupo e suas percepções dessa formação, onde ficam? O que
a incubadora vai fazer com tudo isto que está fora das reuniões de equipe?E a
avaliação da equipe sobre os conteúdos necessários se baseia em que critérios: nos
critérios da especialidade de cada monitor e do que acham que é o melhor ou na
perspectiva do que a cooperativa acha que é melhor, ou ainda, na negociação de
124
ambas as partes sobre o que é o melhor? Como é feita essa negociação?” Diário de
campo, 10 de junho de 2005).
Começamos a conversar sobre o texto e ele me disse que “não podíamos negar
nosso conhecimento, que era uma relação de troca, e que as reuniões de comitê
eram institucionais. Eu também disse que não estava propondo a anulação de um
conhecimento pelo outro, mas que se prestasse mais atenção ao cotidiano, e que
não apenas o levasse em consideração na hora de planejar, mas que ele fosse
incorporado à prática da incubadora... é bem diferente, no meu ponto de vista.
Durante o tempo em que trabalhei na incubadora, ouvi várias vezes que o
conhecimento das cooperativas era levado em consideração ou mesmo respeitado. O
que lhe disse era que respeitar apenas não é suficiente, é preciso apreendê-lo,
torna-lo útil aos momentos em que se planejam os passos da incubação.
Conversamos um tempo ainda e tive que ir embora”. (Diário de campo, 10 de junho
de 2005).
Sendo as relações de comitê institucionais, é preciso saber quem pode ou não
participar delas, delimitar os papéis. Não há a possibilidade dos papéis de quem incuba
e de quem é incubado se misturarem nessa incubadora. Senão, não seria mais uma
incubadora e sim, alguma outra coisa. O planejamento com os grupos deve ser feito,
mas deve-se levar em conta que existem profissionais que estudaram e que podem
ajudar o grupo a se consolidar.
As discussões sobre autores da educação, Paulo Freire e Edgar Morin,
acontecem, suavemente, na incubadora. É uma das primeiras tentativas de se debruçar
sobre autores para pensar a ação. Ainda assim, o processo de reflexão sobre o que é a
incubação para esta incubadora está fazendo com que surjam tentativas de produção do
início de uma metodologia. Aqui, as equipes de trabalho da incubadora já estão
subdivididas entre agentes de campo, comunicação e administração. As reuniões entre
os agentes de campo estão acontecendo semanalmente e parece que são momentos ricos
em que se debate o assunto. O que ele me mostra é resultado dessa discussão.
Infelizmente não pude participar desses momentos porque tinha aula no mestrado.
A troca é enfatizada nessa conversa, mas não apenas. Também em outros
momentos ela começa a aparecer como uma palavra importante. Troca enquanto
respeito ao conhecimento presente nas cooperativas. O cotidiano da incubação não se dá
apenas através de propostas de atividades levadas pela incubadora para o grupo. É
125
comum a equipe de incubação chegar na cooperativa e ter que, junto com o grupo,
trabalhar um outro aspecto, mais imediato, baseado em problemas ocorridos durante o
período entre uma incubação e outra. O processo é negociado.
Ao se referir à troca como característica da incubação parece importante saber
que conhecimentos, informações, afetos, sentidos estão implícitos nessa ação. A
incubadora troca o conhecimento dela com o grupo pelo quê? Troca implica em
negociar aspectos, sejam eles físicos, materiais ou sociais, como os conhecimentos.
Economia solidária ou geração de renda?
Uma outra questão que aparece em vários momentos é a maneira como a
incubadora lida com a possibilidade de que as pessoas estejam participando de
cooperativas para resolverem o problema emergencial, porém não menos importante, da
falta de empregos para todos, ou melhor, da imediata necessidade de geração de renda.
A equipe se depara com situações que indicam que as pessoas não estão nos
empreendimentos em função da autogestão e da solidariedade, e sim, da renda que
poderão extrair daquele trabalho. Ao mesmo tempo em que o cooperativismo é onde a
incubadora vai buscar, em seus primórdios, as ferramentas para sua atuação junto aos
grupos, este parece mais ligado a um projeto de geração de renda do que a um projeto
mais político. Não diria que o fato das cooperativas estarem preocupadas mais com a
renda do que com a economia solidária parecia algo frustrante para a equipe. O que
consegui perceber é que a confusão em torno do assunto era grande e, aos poucos, a
partir da constatação da precariedade dos empreendimentos, os aspectos que realmente
preocupam a incubadora começaram a aparecer. E não era a economia solidária que
aparece nessas preocupações, mas a possibilidade de vida mais digna para as pessoas
dos empreendimentos.
As cooperativas de triagem de materiais recicláveis são as que mais causam essa
preocupação. A maioria dos grupos já está em incubação há algum tempo, o que faria
supor que estariam bem estruturados, gerando renda e praticando a economia solidária.
No entanto, o que acontece é que os empreendimentos não estão estruturados, sua renda
não é considerada pela incubadora como suficiente e as dificuldades de administração,
gestão, etc. Isso não significa que a responsabilidade pela estruturação da cooperativa
seja da incubadora. Na verdade, quem se compromete a fornecer essa estrutura básica é
126
a prefeitura, através da secretaria. A princípio, o papel da estruturação não parece fazer
parte da incubação.
Uma pesquisa feita pela equipe revela que a renda dos cooperados, dependendo
da cooperativa e do processo produtivo de cada uma, não vai muito além dos 400 reais.
Há problemas sérios de estrutura e de produção que precisam ser solucionados.
Especialmente no que diz respeito ao lugar onde se faz a triagem dos materiais, ao baixo
preço que é pago nos materiais pelos atravessadores e às questões ligadas a saúde,
moradia, educação dos cooperados.
Numa das últimas reuniões que acompanhei na incubadora em 2005, reunião
tensa, a equipe começava a fazer uma autocrítica falávamos sobre a opção da
incubadora pela economia solidária. Uma pessoa nos pergunta algo parecido com isso:
“Há uma suposição de que a gente aceita (a economia solidária), mas o que as
pessoas (dos empreendimentos) aceitam: a ideologia ou a oportunidade?”.
Há uma suposição de que a incubadora adotou a economia solidária como eixo
de ação, não há uma certeza ainda de que é isso que a equipe deseja. A economia
solidária como ferramenta para geração de renda, sim. A economia solidária como
movimento político de transformação social, não era possível saber naquele momento.
A pergunta sugere que é necessário, antes de pensar no que se deseja para os
empreendimentos, pensar no que a incubadora acredita. O que é que a equipe quer
incubar: a economia solidária ou a geração de renda? (Diário de campo, 03 de outubro
de 2005).
Para outro membro da equipe, podemos estar colocando a vida dessas
pessoas em risco com nosso sonho, porque elas estão vivendo em situações muito
ruins. A construção da autonomia parece ser um desejo apenas da incubadora. É um
sonho da equipe que pode não estar permitindo um olhar mais aguçado para os grupos e
para os aspectos em que, realmente, é possível contribuir. As pessoas estão trabalhando
em condições muito precárias. O que importa agora não é a economia solidária, mas
essas condições. Isso não significa necessariamente uma atuação assistencialista,
dependendo de como for encaminhada.
“Há problemas concretos para resolver. É preciso ouvir para saber o que
estão solicitando e isso vai muito pelo lado material.” A incubadora parece estar se
inserindo num campo que tem questões que vão além da proposta da economia
solidária.
127
Ao mesmo tempo, outra pessoa pergunta:É ouvir os grupos ou ouvir a
gente? O que eu tenho de valores para trabalhar junto com as cooperativas?”.
Mais uma vez fica claro que é ilusória a separação entre o dentro e o fora da incubadora,
sua atuação e seus sentidos. É preciso refletir sobre os sentidos da economia solidária e
da incubação para a equipe. É preciso buscar uma definição de si próprio antes de
definir o que será a atuação. Reflexão e atuação se fazem uma à outra.
A incubadora pergunta-se sobre qual é a sua prioridade: a economia solidária ou
o empreendimento.
Articulação dos recursos existentes para auxiliar os empreendimentos:
Diante dos problemas de estruturação dos empreendimentos, a ação da
incubadora se volta muito para a articulação de recursos físicos e sociais. A necessidade
de ver os grupos numa situação melhor faz com que algumas reuniões sejam conversas
sobre como ir atrás de materiais e pessoas que possam ajudar nesse processo. Discute-se
quase tudo que é preciso para a estruturação do empreendimento: contato com pessoas
para ajudar na construção do barracão, onde arrumar telha, alambrado, pessoas para
ajudar a erguer o barracão, reuniões com empresas e prefeitura para financiamento
dessas construções, etc.
“Também estão tentando organizar a produção. Sobre a construção do
barracão, soubemos que a AR que ia oferecer a mão de obra, já não poderá mais.
O orçamento que virá da prefeitura para o barracão também não contempla a
mão de obra. Alguém diz que as pessoas lá estão com medo do que vai acontecer
quando começar a construção, pois não sabem fazer sozinhos. Foi sugerido que a
cooperativa de confecção de blocos ajudasse nessa construção.”(Diário de campo,
01 de agosto de 2005).
A equipe media a relação da cooperativa com outros grupos, como a cooperativa
de blocos, empresas que possam auxiliar na construção. Conhece engenheiros,
arquitetos e outros profissionais que se dispõem a estar junto com o grupo e pensar no
projeto. É um conhecimento que o empreendimento teria dificuldades de acessar por si
só.
Alguém fala sobre um grupo que ainda está indefinido. Parece que estão
querendo uma cooperativa de confecção de lingeries. Pensaram em ir atrás dos
128
atacadões de lingerie da cidade, dos preços de máquinas de costura. Ainda não se
inscreveram no curso de corte e costura do SESI com isenção de mensalidades.
Propuseram fazer mais reuniões por semana, mas estão com dificuldades para o
transporte de um lugar para o outro, que é caro” (Diário de campo, 01 de agosto de
2005).
A dificuldade de construir um empreendimento é grande e não passa apenas por
questões administrativas. Essas mulheres moram num lugar distante do centro da
cidade. Como não sabem costurar, a incubadora acessou uma outra cooperativa de
confecção para que elas fossem aprender o ofício. No entanto, essa cooperativa fica em
outro bairro e a dificuldade de se locomover até lá é o preço das passagens de ônibus, o
tempo que se gasta para fazer isso, etc. Quem está de fora e vê a situação, pode ter a
impressão de que a vontade de fazer o empreendimento não é muita, que as pessoas não
estão interessadas. A incubadora se divide nas opiniões a esse respeito. A incubação,
nesse caso, é um “ajudar” o grupo a pensar por onde poderiam começar o
empreendimento.
A equipe passa bastante tempo no mesmo assunto. Anotam telefones,
programam encontros, vão atrás das técnicas de referência em cooperativismo da
prefeitura, participam de reuniões da intersetorial, etc. De fato é uma grande articulação
de recursos para o empreendimento, que teria mais dificuldades de acesso caso tentasse
fazer sozinho essa busca. A incubadora parece ter mais facilidade de circular por esses
espaços do que os empreendimentos. Nem sempre a atuação da incubadora com o
empreendimento em busca de sua estruturação, dá certo.
Entre o respeito à autonomia do grupo e a intervenção:
O dilema entre o respeito à autonomia do grupo e a necessidade de intervir
aparecem nas reuniões, em vários momentos. O agente de campo vê possíveis soluções
para as dificuldades do empreendimento e sabe que, se as propusesse, poderia ajudar o
grupo. No entanto, sabe também que existe um limite na sua contribuição. A incubação
deve acontecer nas questões que o grupo não consegue fazer sozinho. Sabe que não
deve decidir pelo grupo, que tem sua autonomia e seus momentos de decisão próprios.
Este movimento pode ser lento, processual e, às vezes, pode não acontecer. Algumas
decisões devem ser tomadas com rapidez, senão o empreendimento pode acabar. A
129
opção por esperar ou não a decisão do grupo tem conseqüências para o empreendimento
e para a relação deste com a incubadora.
Durante um tempo, as reuniões do comitê se iniciavam com a leitura de uma
idéia, de um trecho de algum texto interessante ou qualquer outra idéia que pudesse ter a
ver com o cotidiano da incubadora. Num desses dias, lemos um texto sobre a paciência
e a pergunta.
A questão trazida era da importância da pergunta como elemento
estimulador da discussão nos grupos, sem que exista uma resposta certa ou errada.
O problema da legalização das cooperativas é algo que faz pensar no que é certo e
no que é errado. Legalmente, é preciso fazer tudo como é exigido. Ao mesmo
tempo, sabe-se das dificuldades de conseguir fazer dessa forma num
empreendimento que ainda não gera muita renda. Se não fizerem, terão que ficar
na informalidade, sem se legalizar e, portanto, sem conseguir alguns contratos que
exigem a documentação da cooperativa”.
Impor, exigir que o grupo se legalize é uma possibilidade comentada pela
equipe. Seria a “contra-partida” da incubação. Se a cooperativa não se legaliza, a
responsabilidade por isso é da incubadora: sim ou não? O que fazer diante dessas
questões?
Um outro ponto levantado na discussão é sobre a paciência necessária nas
relações com o grupo: deixar o empreendimento pensar suas próprias respostas e
não interferir pode nos levar aperder o mesmo. O grupo pode desistir no
caminho já que tem urgência em gerar renda. Alguém falou que a incubação é
estar no fio da navalha.”
É preciso encontrar o equilíbrio do tempo do grupo e o tempo da incubadora.
Perder o grupo significa um fracasso que ninguém deseja ver. A incubadora se
responsabiliza pelo sucesso ou não do empreendimento, de forma que faz o possível
para que ele não termine. Isso implica, algumas vezes, em ter que assumir posturas
decisórias, enfáticas com as pessoas. A incubar é estar no “fio da navalha” entre ser
autoritário e não ser autoritário. A frase reúne e descreve perfeitamente o problema.
Corre-se o risco, assume-se e reconhece-se a possibilidade de ter que intervir e ter que
impor uma ação em relação a ação escolhida pelo grupo. Isso tudo porque a prioridade é
que esse grupo não acabe.
130
“Como ter paciência na educação num mundo que tem respostas certas? Se
podemos ajudar, se temos algo a oferecer, o que faremos com isso? E a troca?
Muitas vezes, os empreendimentos não concordam com o que a incubadora diz.
Então por que não falam?”(Diário de campo, 01 de agosto de 2005).
Assume-se que algumas respostas já existem, a idéia de paciência faz sentido. É
preciso ter paciência, esperar, sem pressa, pelo grupo. Mas a incubadora pode se anular
ao esperar. Se existe uma saída, como falar dela para as pessoas parece ser a questão.
Não se trata de não falar, de se omitir, de negar uma possibilidade, mas do como
sugerir, do como indicar.
Uma outra questão aparece: a idéia de respeitar a autonomia do grupo dá a
impressão de que a ação da incubadora vai sempre no sentido de se impor sobre os
outros, de ocupar um lugar que não lhe pertence, etc. Nas reuniões, sempre que podia
levantava a questão da autonomia com a equipe, já que esse era um aspecto que me
incomodava. E, geralmente, a pergunta que me faziam era se essa idéia não levava a
crer que o grupo era um conjunto de pessoas que não reagia ou pensava a respeito da
proposta. Ora, se o grupo não concorda que expresse isso. Mas as pessoas não fazem
isso, pelo menos, não diretamente. O que quer dizer então, respeitar a autonomia do
grupo?
E novamente, a dúvida:
“O que é essa incubação? Assumir tudo do grupo ou é outra coisa? Temos
coisas para ensinar e para aprender. É hipócrita dizer que a B. (cooperativa) sabe
administrar um negócio. A cooperativa é uma coisa e a incubadora é outra:
cooperativa mais incubadora forma um sistema. Como é essa fronteira da
autonomia?” ( Diário de campo, 03 de outubro de 2005).
Seria a fronteira do “fio da navalha”? A fronteira do cotidiano, do pensar junto
sobre o problema? É possível acontecer isso na incubação?
A precariedade dos empreendimentos:
Diante da falta de estrutura das cooperativas, a dificuldade de incubar grupos é
grande e, em alguns casos, a incubadora começa a se perguntar sobre o quanto vale a
pena manter grupos nessas condições, baseando-se num sentimento de não querer mais
ser conivente com tais situações.
131
Saúde:
Um cooperado faleceu. Teve um enfarto. Alguns dias antes sentira os sintomas
típicos do problema e foi a um médico, que lhe disse para ficar de repouso, pois estava
estressado. Ele não seguiu as orientações do médico. Nessa cooperativa as condições de
trabalho e de vida das pessoas é preocupante. Na época, estudava-se uma maneira de
organizar melhor o processo produtivo das mulheres, que ficavam na triagem dos
materiais e dos homens, no carregamento dos bags de material. Além disso, o local onde
o pequeno barracão fora erguido era inadequado. Esse cooperado já reclamava desses
problemas de saúde antes disso, assim como outras pessoas. Após o falecimento, a
cooperativa ficou muito sensibilizada com a questão e com medo. A incubadora, da
mesma forma, teve como pauta de discussão o problema (que não se restringia apenas
àquela cooperativa).
Há uma preocupação com a saúde das pessoas lá. Alguém fala que seria
melhor se todos fizessem um check-up médico. Talvez fosse interessante
programar a ida de um cooperado por semana no médico. As condições de
trabalho na cooperativa podem estar gerando muito desgaste neles. É importante
irem ao médico. Não utilizam os equipamentos de segurança. Está muito difícil de
negociar isso com eles. Alguém sugere que se leve o programa “Saúde e cidadania”
para lá. No entanto, o agente responsável pelo grupo questiona o conceito de saúde
adotado nesse programa: de prevenção às doenças ou de qualidade de vida. Antes
de propor qualquer coisa é preciso pensar no que a incubadora acredita que é
melhor: se é prevenir e remediar as doenças ou se é buscar a qualidade de vida das
pessoas. Haverá uma atividade pós-falecimento dele na cooperativa. Alguém
sugere que por estarem mais suscetíveis ao cuidado agora, talvez seja a hora pra
falar dessas coisas (não das doenças, mas de uma reflexão em torno da vida).
(Diário de campo, 08 de agosto de 2005).
A questão do programa “Saúde e Cidadania” é que este foi um projeto elaborado
não por toda a equipe, mas parte dela. A pergunta do agente de campo se referia ao fato
de que, antes de qualquer proposta desse tipo, é preciso que a incubadora faça uma
discussão mais ampla do que entende por saúde. Caso o contrário, poderão levar uma
série de noções naturalizadas do que é ser “saudável”, como as questões de higiene, de
prevenção, de segurança no trabalho, etc, que podem não fazer sentido para as pessoas.
A sugestão sobre pensar em qualidade de vida tem implícita a possibilidade de que a
132
discussão sobre a saúde baseie-se em critérios locais, do que as pessoas consideram
importante considerar.
A morte do C. leva a equipe a refletir sobre possíveis ações diante dos outros
casos existentes. E leva mais adiante, a uma reflexão sobre o quanto a própria
incubadora está sendo conivente com as condições precárias de trabalho e de vida
nesses empreendimentos. A cooperativa está o tempo todo tendo que lidar com
problemas imediatos decorrentes das condições em que as pessoas vivem. Precisa
pensar na sua sobrevivência. A incubadora se depara com essas questões e vai
percebendo que não pode ficar passiva diante disso, que tem responsabilidades com o
grupo.
Assim, surgem medidas como levar as pessoas uma a uma no médico, já que por
conta própria isso não acontece. Não é apenas encaminhar para o médico, tem que
acompanhar porque as pessoas não entendem o que o médico diz!” Alguém fala
que não é por isso, mas sim pra poder estar próximo delas nesse momento”. E
começamos a falar sobre a linguagem que os médicos utilizam diante das pessoas.
(Diário de campo, 08 de agosto de 2005).
Novamente a questão do acesso aparece. As pessoas não vão sozinhas ao médico
por vários motivos, dentre eles a falta de compreensão do que os médicos dizem. É um
problema real. Além disso, outros como falta de tempo, fila de espera, impossibilidade
para fazer o que o médico solicita (como foi o caso do cooperado que precisava
repousar), transporte, problemas de abono de falta na cooperativa, etc. O que faz a
incubadora diante disso, a não ser tentar convencê-los da necessidade e ir junto, já que o
vínculo entre cooperados e agentes de campo é precioso?
Problemas de relacionamento interpessoal nos empreendimentos:
Os conflitos interpessoais nos empreendimentos tomam boa parte da conversa
da incubadora na reunião de equipe. As brigas acontecem com ou sem a presença do
agente de campo na cooperativa e, muitas vezes, tornam-se questão para a incubação: o
que fazer diante desses problemas? Ora a incubadora interfere, ora fica de fora. A
solicitação por parte dos empreendimentos de que esta os ajude, os acompanhe nos
momentos difíceis, não é recente. A história da incubadora sempre manteve a relação de
133
ajuda diante dos problemas interpessoais, ainda que houvesse controvérsias em relação
ao que fazer. No início, a interferência da incubadora era grande. Era muita confusão
por causa dos conflitos entre as pessoas. Fizemos grupos de conversa entre cooperados,
intervimos em brigas, elaboramos o regimento interno para tentar definir junto com os
grupos as regras de trabalho e convivência, etc.
Atualmente, a incubadora parece agir um pouco diferente, mas ainda preocupada
com os problemas. Numa reunião que falávamos sobre um caso desses, em que algumas
pessoas de um empreendimento gastava boa parte do seu tempo de trabalho brigando
entre si, a equipe resolve não dar tanta atenção ao caso, isolando o problema, não o
deixando permear a incubação. É uma maneira de não tornar o problema maior do que
já é. A expressão ‘blindar’ é usada no sentido de não deixar que o problema interfira na
incubação, não dando a atenção solicitada. Não significa reprimir, mas não se preocupar
tanto.
Ainda sobre os problemas de relacionamento por causa do trabalho, a equipe
decidiu “blindar”, não deixar que elas tomem uma dimensão muito maior nas
reuniões. Um outro problema é que a cooperativa quer trabalhar dois períodos,
mas poderia trabalhar apenas um, diante da quantidade de material que tem e
diante dos problemas de relacionamento, já que não gostam de ficar juntos.
Alguém diz que conflitos existem e que precisamos saber de onde eles vêm.”(
Diário de campo, 01 de agosto de 2005).
A decisão tem de não dar atenção ao conflito tem a ver com a percepção de que,
muitas vezes, quando a incubadora enfatiza o problema, ele aumenta, ao invés de
diminuir. Outro aspecto disso é o fato de que, mesmo que a cooperativa solicite ajuda
nesses casos, algumas coisas não são problemas da incubadora, mas do grupo. É comum
que as pessoas depositem na incubadora um papel de conciliação dos problemas. Muitas
vezes até esperam a presença da mesma na semana seguinte para resolver a questão.
Outras vezes já telefona para a incubadora solicitando visitas urgentes. Uma postura
adotada diante disso é não atender a solicitação, para que o grupo consiga resolver
sozinho o problema. Outras vezes, o problema é realmente grave e a incubadora
interfere.
Numa outra situação, um cooperado que briga com todo mundo no trabalho,
arruma confusão e atrapalha os outros. “A incubadora não sabe mais o que fazer com
isso. A cooperativa também não faz nada. Ninguém do grupo tem coragem de dizer
134
que ele provoca situações ruins e ninguém decide nada. A incubadora não pode
tomar a decisão pela cooperativa, mas tem que se posicionar já que o contrato feito
com a empresa onde eles coletam está assinado não pela cooperativa, mas pela
incubadora, que se coloca como responsável pelo trabalho deles. Assim, o
problema que é da cooperativa acabou virando o problema da incubadora. (Diário
de campo, 08 de agosto de 2005).
Momento de autocrítica da incubadora:
Em outubro de 2005, depois dos grandes problemas da organização serem
deflagrados e colocados em debate em reuniões incansáveis, reconhece-se que é preciso
repensar a atuação. Chega-se à conclusão de que era hora de falar menos dos
empreendimentos e passar a fazer a autocrítica, buscando novas possibilidades de ação.
Para começar, era preciso se redefinir enquanto organização. As reuniões do comitê não
eram suficientes para aprofundar os problemas trazidos pelos agentes de campo, muitos
desses problemas, diretamente ligados ao momento vivido pela incubadora. Em todas as
reuniões entrávamos em debates recorrentes a respeito da relação estabelecida com os
empreendimentos e de como os empreendimentos viam a incubadora e vice-versa. Ao
mesmo tempo em que emergiam questões imediatas dos empreendimentos e nem
sempre era possível resolvê-los, também a incubadora aparecia como um lugar que
refletia pouco sobre si mesmo. Essas reflexões se davam nos momentos informais da
equipe, mas não chegavam a ser, declaradamente, tema das reuniões. Havia uma
preocupação com problemas de organização interna da incubadora (que não adotava a
autogestão em sua estrutura organizacional) e parecia não ter muitos consensos a
respeito do que gostaria de ser, entre outros aspectos.
Em função da falta de tempo nas reuniões do comitê foi marcada, para o dia 03
de outubro, uma primeira e longa reunião com toda a equipe (inclusive a equipe de
finanças e de comunicação que não participavam das reuniões) para discutir essas
coisas. A equipe de campo estava extremamente incomodada com a incoerência do
trabalho dentro da incubadora.
Foi um momento muito importante porque as pessoas pararam para se escutar.
Inicialmente, a atenção se voltou aos empreendimentos e da dificuldade de trabalhar
com alguns grupos. Com o desenrolar da reunião, as atenções se voltaram para a própria
135
equipe e o que cada um desejava do CRCA. E aí começam a aparecer algumas questões
que dizem respeito aos dilemas internos da incubadora.
Os problemas vividos dentro da incubadora parecem ter uma relação muito
próxima aos problemas enfrentados pelos agentes de campo nas cooperativas (e não aos
problemas das cooperativas). Essa constatação foi se dando a partir dessa reunião,
quando as pessoas puderam expressar suas idéias a respeito do que acontecia. Se a
cooperativa está com problemas, a incubadora também. Era preciso parar e refletir sobre
os processos cotidianos daquele lugar. Infelizmente, não consegui registrar muito do
que aconteceu na reunião, porque estava muito envolvida com a discussão (já que
também me sentia confusa, desde antes, quando comecei a atuar na incubadora). Apenas
resgatei alguns pontos e algumas falas que mostram um pouco desse dia:
Alguns pontos surgiram no debate, que durou o dia inteiro: a incubadora tem
dificuldades “de falar do trabalho interno; de reconhecer que ali cada um tem uma
definição não compartilhada de economia solidária, de cooperativismo; de não ter
realmente um trabalho de construção em grupo e de não saber lidar com esses
problemas”. Perguntas como “Há solidariedade entre nós?”. Ou, então, frases do
tipo: s temos que acreditar em algo minimamente”, “É arrogante achar que
temos a verdade” fizeram parte desse momento, entre muitas outras.
2005).
Apesar de estar me referindo a um momento específico em que essas coisas
foram ditas, a equipe já vinha sinalizando o desejo de conversar sobre a dinâmica de
organização dentro da incubadora. Esse foi apenas um momento de elaboração dessa
questão, que não se resolveu ali, mas vem se resolvendo aos poucos. Este item é
apresentado aqui com a intenção de sugerir um olhar para a incubadora enquanto um
processo organizativo, como sugerido no capítulo quinto dessa dissertação. São os
momentos de debate da equipe que a levam a re-elaborar o sentido da incubação.
Refletir sobre os processos internos, olhar para si e para os valores e sentidos para as
diferentes pessoas envolvidas nessa construção, significa consequentemente, olhar para
os empreendimentos. Uma coisa não exclui a outra, mas obedece a uma ordem:
primeiro é preciso olhar para si e depois para o outro. Assim é possível negociar,
sabendo o que está em jogo nessa relação, tendo clareza dos próprios limites e das
possibilidades de contribuição, que não podem ser negadas.
136
Quando a incubadora tiver se definido minimamente, saberá por onde quer ir e o
que precisa fazer para alcançar isso. Naquele momento, não avançar em novas frentes
de trabalho, como deseja a prefeitura (que pediu que a incubadora incubasse outros
grupos) para que os que já estão em incubação sejam fortalecidos. É uma decisão
coerente com as discussões que se deram ao longo do semestre.
137
AS QUESTÕES DOS EMPREENDIMENTOS NAS REUNIÕES
138
2005 foi o ano da organização da Associação das cooperativas de triagem de
materiais recicláveis (ACOOP) e por isso, as reuniões eram quinzenais, na Casa
Santana. Participou dessas reuniões o grupo de pessoas eleitos para a diretoria da
associação e os demais representantes dos empreendimentos de triagem associados.
Além desse momento, a “Formação de agentes”, que acontecia antes de cada reunião da
associação ou do GT de resíduos sólidos, foi importante para que eu ouvisse os
empreendimentos sobre a incubação. Outros momentos em que os empreendimentos
puderam expressar o que pensavam sobre a incubação foram os encontros municipais e
o estadual de economia solidária. O tema dessas reuniões não era, necessariamente, a
incubação, como no caso da incubadora, portanto, em geral, o assunto era comentado
brevemente ou indiretamente. Tentei reunir alguns desses momentos.
Durante todo o ano, as cooperativas de materiais recicláveis viveram momentos
de indefinição sobre a sua relação com o poder público municipal. O novo contrato de
limpeza urbana estava sendo preparado e a participação das cooperativas na elaboração
do edital foi mínima, apesar dos esforços de pessoas da comissão organizadora em
dialogar sobre os problemas, para possivelmente, incluí-los no edital. Em maio foi
realizado um seminário onde se apresentou ao público em geral o novo edital. Nesse
encontro, representantes dos setores interessados no edital se manifestaram. O
presidente da associação das cooperativas de reciclagem foi um deles. Em sua fala
mencionou a incubação e o que significava para ele:
Para V., presidente da ACOOP, o papel da incubadora é dar continuidade à
educação das cooperativas” (Diário de campo, maio de 2005, Seminário de Meio
Ambiente, na prefeitura. Discussão do edital de licitação do limpeza urbana de
Campinas).
Uma cooperativa pode incubar a outra?
A comissão organizadora dos fóruns municipais iniciou, em suas reuniões, um
debate acerca do papel das incubadoras na economia solidária de Campinas. A partir
daí, começaram a levar o debate para âmbito geral, nos encontros, onde a presença dos
empreendimentos era maior. Num desses fóruns, apareceu uma idéia que já vinha sendo
comentada nas reuniões menores: a de que, quando fosse possível, uma cooperativa
139
poderia incubar a outra. Para falar isso, partia da idéia de que algumas coisas os
empreendimentos sabiam fazer melhor que a incubadora.
“O C. sugeriu, em meio ao debate sobre a incubação, que “uma cooperativa
deveria incubar a outra”, tendo em vista que algumas coisas a incubadora não
sabe fazer. As cooperativas podem se ajudar mutuamente ”(Diário de campo, dia 17
de maio de 2005. 2° Fórum municipal de economia solidária). Neste fórum, esse foi o
momento em que a idéia foi verbalizada publicamente pela primeira vez. Já no seguinte,
devido à elaboração do planejamento da comissão executiva de economia solidária
(COMEX), houve um momento em que se formou um subgrupo para conversar sobre o
item “maior capacitação para as incubadoras” presente no planejamento. Essa fora
uma solicitação que os empreendimentos fizeram no último fórum. A discussão sobre a
capacitação das incubadoras passou muito pela profissionalização ou especialização
para os segmentos dos empreendimentos.
Nesse subgrupo começa uma discussão sobre a reciclagem e a dificuldade que as
incubadoras têm de incubar em segmentos diferentes, como a confecção. A I. diz que
tem que ter um profissional da área da costura, design, moda na incubadora para poder
ajudá-las nesse aspecto que é o mais importante. “Não adianta dizer ‘eu estou
incubando’ e não saber costurar!”, diz ela. E diz mais: “nenhum universitário vai
querer aprender a costurar!”.
A incubação deve ser capaz de responder a uma necessidade de capacitação
dentro do campo profissional escolhido, como é o caso da costura, da confecção e da
reciclagem. Para aquelas pessoas, naquele momento, os universitários (que compõem as
incubadoras) não estariam dispostos a aprender a costurar. Um papel da incubação é dar
apoio a essas ações mais específicas do trabalho.
Todos concordam com ela e alguém diz que é a cooperativa que tem que
fazer essa parte da incubação: uma cooperativa pode ensinar a outra. Uma pessoa
de uma cooperativa de outra cidade da região diz que lá elas já fazem isso: vão
passando conhecimento que têm para outros”.
Em alguns lugares isso já é feito. A capacidade de incubar (nesse sentido de
fornecer uma capacitação profissional ao outro) existe nas próprias cooperativas, que
podem se ajudar também. Alguém diz que para quem não tem conhecimento de
costura é importante que aconteçam cursos, palestras, “é uma nova descoberta”.
140
Para esta pessoa, a incubadora tem que considerar que o que o cooperado
faz é um gesto de incubação.” (Diário de campo, 16 de agosto de 2005, 3° fórum de
economia solidária). Todos concordam com ela.
Numa reunião de formação de agentes em que conversávamos sobre a
organização de um encontro entre todos da economia solidária para debater a incubação,
novamente o tema retorna:
“Começamos a discutir o assunto da incubação e M. disse que a maioria das
cooperativas da incubadora é de reciclagem e que este é um ramo muito específico. Para
elas, a incubadora sabe as coisas, mas às vezes, quem sabe é a cooperativa que está
lá trabalhando e ela que deve ensinar à incubadora. Disse que tem vezes que ficam
acanhados de falar pra incubadora isso, mas que é assim que pensam. (Diário de
campo.
Os participantes do empreendimento também fazem gestos de incubação. Isso
significa que o incubar ultrapassa as barreiras da incubadora, que o sentido do incubar
está presente dentro dos empreendimentos, enquanto uma ação de apoio ao outro,
mesmo que seja um apoio em relação a atividade que está sendo desenvolvida.
Espaço para compartilhar experiências:
Foram inúmeros os momentos em que vi acontecer a troca de informações,
conselhos, conhecimentos, apoio, etc, entre os empreendimentos. Foram momentos
importantes, pois demonstraram a produção e circulação de conhecimentos, dentro dos
empreendimentos.
Numa reunião da “formação de agentes”, a conversa foi em torno da convivência
do grupo. Uma cooperada, diz que há uma pauta pendente da última reunião, a
convivência entre os seres humanos. Não quer bater de frente” com os colegas na
cooperativa. Começamos a conversar sobre isso e algumas idéias surgiram: não
podemos nos estressar muito nesse trabalho; “temos que ter pessoas que sejam de
fora da cooperativa para ajudar”; “o grupo, muitas vezes, tem dificuldade de se
ver como grupo e lá fora todo mundo já o vê assim, então é preciso tomar
cuidado”; as pessoas ficam falando por trás; “problema do grupo é do portão pra
dentro”; “tem cinco pessoas e ainda sai confusão, pensamentos diferentes. “Ser
141
cooperativa é difícil”; “o problema é que a gente trabalha por centavos”. (Diário de
campo, 28 de julho de 2005, reunião de formação de agentes).
As questões trazidas indicam que o trabalho nas cooperativas não é mais fácil que
em outros lugares, muito menos harmônico. A convivência com as pessoas é intensa e
as dificuldades das relações se dão a todo o momento. São poucas pessoas e ainda
assim, os conflitos existem. Questões como o valor da hora trabalhada, o preço dos
materiais, a baixa renda no fim do mês, entre outras coisas são conversadas numa
reunião cuja intenção era, a partir dessa troca, pensar a representação.
Meu conhecimento sobre os objetivos maiores da reunião era pouco. Apenas sabia
que a idéia era que a conversa entre as pessoas, sobre os problemas nos seus grupos,
poderia facilitar a reflexão sobre a presença das representantes nas grandes reuniões. O
que, ao longo do tempo, poderia ser uma estratégia para se chegar a algum lugar, foi se
revelando, ao meu ver, o próprio lugar a ser alcançado. Já não via mais as conversas
entre as pessoas como forma de refletir a representação, mas como fim em si mesmo.
As poucas pessoas que iam para a reunião, iam para falar dos problemas do grupo. O
tom das conversas não era de fofoca. Desde o início, conversamos sobre o sigilo e a
importância de falarmos apenas o que fosse importante para o assunto que se
conversava.
Numa outro dia, uma cooperada coordenou a reunião. Começou apresentando a
proposta e dando as boas vindas aos novos participantes. Alguém fala que está com
problemas em sua cooperativa, que não dá pra confiar nas pessoas e que não tem fé na
cooperativa. Diz que é como se estivessem “atravessando um rio e no meio do
caminho acha que não vale a pena e quer voltar.” Fala isso em relação às pessoas
que resolvem e depois não querem assumir. Outras pessoas presentes começaram a
falar que a cooperativa tem que se organizar como cooperativa, que tem que ter
regimento, regras: organizar a produção ou por meta ou por divisão; pensar nas
faltas, em como vão fazer as reuniões, separar o fundo de reserva, INSS, legalizar a
cooperativa, etc. Uma cooperada que já está trabalhando numa cooperativa há
mais tempo que a maioria conta como foi difícil para entenderem que era preciso
separar o fundo de reserva. Só depois de muita conversa é que fizeram isso. E
explica como foi. Isso ajuda outra cooperada a pensar em como poderia ser feito
no seu grupo (Diário de campo, 15 de agosto de 2005, reunião de formação de
agentes).
142
Esses e outros momentos que se seguiram indicavam uma necessidade de falar
sobre os problemas e de buscar soluções entre iguais. Não iguais em termos pessoais,
mas por viverem situações parecidas nas cooperativas. Eram momentos de compartilhar
experiências de trabalhador para trabalhador, buscar apoio e conselhos junto a esses.
Nessas reuniões, eu e um membro da equipe da incubadora, pouco falávamos. Um
espaço criado e pensado pela incubadora parecia útil para as pessoas que participaram
dela. Ainda que tenha durado pouco tempo, as reuniões que aconteceram foram muito
proveitosas.
Uma dos aspectos que sempre me chamavam atenção era a ausência de espaços de
encontro entre os empreendimentos. É comum que grupos se reúnam para conversar e
se fortalecer, como acontece, por exemplo, na ANTEAG, com os encontros entre os
trabalhadores das fábricas recuperadas do país, ou, no Movimento Nacional dos
Catadores de Materiais Recicláveis. Essas experiências parecem indicar que o estar
junto com outros, que vivenciam situações semelhantes, é base para o fortalecimento
coletivo do grupo, que passa a descobrir suas demandas e as formas de resolução dos
problemas numa amplitude maior. Em Campinas, nunca houve um encontro como esse.
No entanto, quando participam nas plenárias, nos fóruns, no encontro estadual e no
nacional, as pessoas demonstram necessidade de conversar mais, de conhecer um ao
outro, conhecer novas possibilidades de engajamento, de negociação, de estratégias.
Esse pequeno momento apontou na mesma direção. Há uma necessidade de encontro.
Os encontros podem, inclusive, ajudar na reformulação dos papéis da incubação.
A incubadora deve articular recursos
No 2º fórum, conversava com duas cooperadas. Uma delas me falou que tem um
problema, que é genético na sua família: ninguém aprende a ler e escrever. Disse até
que já tinha ido numa universidade local tomar remédio para a memória, mas não tinha
adiantado. A outra me contou que queria voltar a estudar, mas achava muito difícil e
que a incubadora havia prometido levar um curso de alfabetização para sua cooperativa,
mas que ainda não tinha tido o curso. Falou que sua filha mais velha também não
aprende matemática e que a professora disse que ela tinha problema. Ela levou a garota
na psicóloga, que não conseguiu resolver. Esperava pela alfabetização sem muitas
143
esperanças de conseguir aprender a ler” (Diário de campo, dia 17 de maio de 2005. 2°
Fórum municipal de economia solidária).
A cooperada entende que a incubadora deveria tentar organizar um grupo de
alfabetização na cooperativa, já que sugerira. De fato, nesta cooperativa, a discussão
sobre a alfabetização tem uma história anterior. Há algum tempo, a incubadora sugeriu
montar um grupo para alfabetização, mas não deu certo. Na época não havia ninguém
para acompanhar o grupo. Na incubadora ninguém estava preparado para isso. Por outro
lado, foram poucos os interessados, na época, em participar. Provavelmente, a idéia foi
abandonada e o grupo (ou apenas ela) ficou com a impressão de que a promessa não
fora cumprida A vontade de ser alfabetizada continuou, e segundo ela, esperam por esse
curso.
Ainda sobre a alfabetização, muitos acreditam que ela permitirá a o crescimento
dos membros das cooperativas dentro do processo de trabalho, maior compreensão do
que do que a incubadora fala, das regras, etc. No 3º fórum de economia solidária, a
questão da necessidade da alfabetização surge como pauta de discussão num subgrupo,
do qual eu participava: “V., de uma cooperativa de triagem, pergunta se precisa saber
ler pra separar material, pois ela acha que na sua cooperativa as pessoas não
aprendem a separar por causa disso. Ressalta que já pediu várias vezes para
incubadora levar a alfabetização para lá, mas que nunca aconteceu isso. Nessa
hora, todos falam que não é preciso saber ler, que separar se aprende separando.
Ela relaciona a experiência de alguém do seu grupo que não sabe ler e não separa
bem os materiais. As outras mulheres que estavam no subgrupo discordam. Para
elas, se a pessoa ainda não aprendeu a separar mesmo depois de estar há cinco
anos, então é porque não quer aprender. Eu disse que ler era importante pra outras
coisas mas separar o material dependia de uma prática de separação e não da leitura. A
discussão sobre a alfabetização foi muito boa. Todo mundo deu sua opinião, falando o
que achava da questão. Uma cooperada fala que as pessoas aprendem muitas coisas
na vida, sem precisar saber ler. Outros disseram que, no caso de alguém não
conseguir separar o material, o erro não é da pessoa, mas do grupo, pois quando
um erra todos erram junto (os problemas internos da produção da cooperativa)”
(Diário de campo, 16 de agosto de 2005, 3° fórum municipal de economia solidária).
Para essa pessoa, ler e escrever pode ajudar no trabalho dentro da cooperativa.
Para outras, ler e escrever tem uma outra importância. E que o problema da pessoa não
144
estar conseguindo trabalhar direito é do grupo e não deve ser pensado individualmente.
Apesar de ser importante, a alfabetização não é condição para que a pessoa aprenda as
coisas na vida.
O que se aprende nos cursos não é o que se vive no cotidiano: a romantização da
economia solidária
No 2º Fórum de Economia Solidária, nos subgrupo para discussão da incubação,
a discussão fica em torno dos cursos. Neste subgrupo estavam presentes algumas
cooperadas, eu e mais uma pessoa de uma outra incubadora da cidade. Como estávamos
num encontro municipal, as mulheres presentes eram incubadas por outras incubadoras
da cidade. Portanto, o que elas falaram diz respeito a cursos que acontecem em todas as
incubadoras e não apenas na que é pesquisada aqui. A orientação era para que as
pessoas falassem os pontos positivos e negativos da incubação. Depois de conversarmos
sobre experiências de incubação que tinham dado errado por conta de problemas
específicos, as pessoas começaram a falar que tinham dificuldade de “colocar em
prática” o que era falado nos cursos.
Fiquei com a impressão de que a teoria que se ensina nos cursos, que é levada
para os cursos, está mesmo muito distante da prática das cooperativas. Era como se os
cursos estivessem falando de um mundo que ainda não existe, idealizado. “Elas diziam
que no curso parece fácil ser solidário, mas que no cotidiano não é fácil.
Acreditando que os problemas poderiam ser resolvidos pela lógica da
solidariedade, retornam aos grupos e se deparam com dificuldades para colocar a
solidariedade em prática” (Diário de campo, dia 17 de maio de 2005. 2° Fórum
municipal de economia solidária).
Essas mulheres pareciam estar falando de cursos em que são passados conteúdos
da economia solidária sem que estes sejam problematizados a partir do cotidiano de
trabalho das cooperativas. A romantização da solidariedade piora a situação no grupo,
segundo elas, pois é quando vêem que os problemas são mais sérios do que a idéia do
“ser solidário” pode resolver. Esse ser solidário parece pressupor harmonia no lugar dos
conflitos, o que de fato, não existe num processo organizativo onde as pessoas têm
posições, interesses e relações de poder distintas.
145
Por outro lado, nas reuniões de comitê da incubadora, tive acesso a uma
informação importante: uma cooperativa solicitara que o curso básico de
cooperativismo fosse feito especialmente para eles, no espaço da própria cooperativa.
Em geral, a incubadora faz os cursos básicos de uma ou duas vezes no ano, com a
participação de membros de cooperativas diferentes, e na sede da incubadora. No
entanto, a nova proposta, aceita pela incubadora, aconteceu e teve bons frutos, segundo
os agentes de campo. O curso foi todo elaborado a partir da demanda do grupo, das
dificuldades que vinham sentindo em relação ao funcionamento da cooperativa, das
relações, etc.
A necessidade de aproximação entre teoria e prática
Quando fui convidada pela incubadora para participar das reuniões de formação
de agentes a intenção era a de organizarmos um encontro entre todos para falar sobre a
incubação. Eu apreciei muito a idéia e a propus para as pessoas, que, depois de algumas
conversas sobre o assunto, preferiram voltar a conversar sobre os problemas do trabalho
nas cooperativas. O grupo achou que era precipitado fazer isso e que estava querendo
discutir seus problemas antes, entre si. Abaixo, um dos encontros para discutir a
incubação:
“Conversando sobre o assunto, M.C. falou da linguagem da incubadora, que
gera conflitos de entendimento na cooperativa. Citou o caso da administração, de
que precisam tirar os 10% para o fundo de reserva e que, quando perguntaram para a
incubadora se dava pra comprar uniforme com esse dinheiro e ela disse que sim,
algumas pessoas acharam que dava pra comprar coisas de necessidades pessoais e isso
criou um problema porque o dinheiro foi gasto e na hora que precisa comprar algo pra
cooperativa não tem dinheiro no fundo. “A fala da incubadora é formal e a nossa
língua é direta!”, disse ela.
Apesar de a incubadora ter respondido, o grupo interpretou de outra maneira.
Isso gerou confusão entre eles, porque ela entendera o que a incubadora dissera, mas os
algumas pessoas não. Acha que a incubadora precisava ser mais clara na sua fala para
que esse tipo de situação não ocorra.
Uma outra participante interviu: “também não é assim, tem que comprar o
uniforme na hora certa, quando dá. Sugeriu que, nesse caso, eles precisariam fazer
146
uma reunião pra ver como vai ser usado o fundo de reserva. Disse que sua
cooperativa já teve muitos problemas com a incubadora, que no início cansou de
brigar com um monitor falando que ele chegava lá e dizia o que ele achava
importante, mas que no dia-a-dia era diferente do que ele via. Falou: “A teoria é
uma e a prática é outra!
Há momentos em que o grupo pode decidir o que quer fazer com o dinheiro,
coletivamente. É preciso se reunir e pensar nisso, diz essa cooperada, mais experiente.
Ser cooperativa é também saber avaliar as prioridades, coletivamente. Na sua
experiência percebe que há uma distancia entre o que a incubadora acha que é melhor
para a cooperativa e o que é possível. É como se a incubadora, por não ter acesso ao dia-
a-dia do grupo, tivesse dificuldade para dizer o que é melhor ou pior. O grupo até
concorda com o agente de campo, mas depois não consegue agir a partir do acordo
porque teoria e prática são diferentes.
M. disse que, para incubadora pode parecer que eles vivem brigando a
semana inteira, mas que na verdade, brigam na hora da reunião com a incubadora
porque durante a semana não acontece isso. Na hora da reunião, aqueles que não
entendem e não querem que a cooperativa cresça começam a fazer tumulto. A
incubadora fica com uma impressão negativa da cooperativa.Não é que o grupo
não tenha seus problemas cotidianos, brigas. No fundo, a hora da reunião com a
incubadora parece ser, para alguns, difícil de compreender. E aí as pessoas fazem
tumulto. Ela diz que o fato de as pessoas não estarem interessadas na reunião com a
incubadora tem a ver com o desejo de alguns de que o grupo não se desenvolva e
também com uma dificuldade de compreensão da linguagem usada.
A C. fala sobre a palavra: a incubadora usa uma palavra que as pessoas,
que são mais humildes, não entendem. A falta de estudo de muitos prejudica a
compreensão e que se não fosse assim, seria mais fácil”. Novamente, a questão do
estudo aparece como importante para a aprendizagem do que é ser cooperativa. É como
se, lendo e escrevendo, a pessoa pudesse alcançar a compreensão de outros processos,
que hoje não consegue. Quando ela disse isso, eu falei que achava que a incubadora
também precisa se “fazer compreender”. Parece que a responsabilidade por não
compreender o que é falado é da pessoa, unicamente. Mas numa conversa, sempre
precisamos nos esforçar para que um mínimo de comunicação aconteça. Mesmo assim,
a alfabetização continua sendo um aspecto importante.
147
Elas disseram que a incubadora tem a teoria e a cooperativa tem a prática e
que precisamos unir essas duas coisas. Falei que a teoria só era válida se fosse
coerente com a prática delas e elas me alertaram da importância da teoria, para eu não
desvalorizar o conhecimento da incubadora. Foi importante ter a incubadora por
perto no inicio, senão seriam só prática, não teriam barracão, não estariam na
coleta, seriam clandestinos e talvez nem existissem mais, pois a prefeitura teria
fechado seu lugar de trabalho.
Entendi como um alerta de que é importante essa aliança e que agora ela
precisava ser repensada. Para C., a prática é o dia a dia do trabalho na cooperativa.
Falamos um pouco mais sobre isso e ficamos de pensar em como organizar o nosso
encontro com os cooperados e com a incubadora para que todos se sintam à vontade
para falar sobre a teoria e a prática.
O alerta delas da importância do apoio da incubadora nos primeiros momentos é
interessante. Revela que, a partir de um impulso dado, foi possível um certo
reconhecimento, uma certa legitimação. Sozinhos eram clandestinos. Com a aliança
com a incubadora, isso foi revertido em uma existência. Têm o barracão, fazem parte do
programa de coleta seletiva, entre outras vantagens que a incubação oferece. Tem
grupos que não são incubados e logo acabam. Com elas foi diferente. A questão então,
não está em descobrir quem está certo e quem está errado: a incubadora ou a
cooperativa, mas em como fazer essa aproximação de forma que todos saiam ganhando.
É preciso se aproximar do cotidiano.
Incubar a Associação
Houve um momento nas reuniões da ACOOP que uma monitora de uma outra
incubadora foi apresentar aos cooperados o plano de incubação da associação que tinha
sido elaborado por eles. Seu objetivo era saber o que as pessoas tinham achado da
proposta, já dizendo que depois de legalizada, a associação teria que se reunir mais
vezes, de acordo com os conselhos fiscal e administrativo. Os participantes da reunião
se assustaram com a fala dela e começaram a se manifestar: uns contra, uns a favor e
outros sem entender o que estava acontecendo. Alguns não estavam sequer sabendo que
esta incubadora incubaria a associação (algo que já vinha sendo comentado brevemente
em outras reuniões). O grande problema foi quando ela disse que eles teriam que
148
incubar e que já tinham colocado a associação no plano de financiamento, e que,
portanto, receberiam bolsas para fazer aquele trabalho. As pessoas, que já vinham
sentindo a falta de investimento da prefeitura nas cooperativas, reclamaram, achando
que a secretaria a que ela se referia era a secretaria municipal e não a SENAES.
Ela precisou se explicar melhor, alguns cooperados não concordaram com a
idéia e diziam que sequer sabiam que a associação precisava ser incubada. Outras
explicavam que talvez fosse importante, já que as reclamações sobre a maneira da
associação funcionar estavam sendo constantes nas últimas reuniões. Enfim, depois de
muito conversar, a associação resolveu não decidir sobre a incubação naquele momento
e levar aos outros participantes que não estavam presentes na reunião, perguntar para os
cooperados das cooperativas (que eram representados por alguém na reunião da
associação) e pensar melhor. Alguém explicou que na verdade, no dia que a associação
começou, o presidente convidou as 3 incubadoras a ajudarem. A única que se preocupou
em oferecer algo mais concreto foi esta e, portanto, era a partir daquela proposta que
eles poderiam decidir.
Os questionamentos feitos podem parecer falta de informação, de atenção às
reuniões. No entanto, as pessoas realmente não pareciam estar entendendo o que estava
acontecendo. Tive a impressão de que esta incubadora não perguntou pra associação se
“ser incubada” era um desejo de todos, antes de solicitar as bolsas para a incubação. Até
aquele momento muitos não sabiam que, a partir do início da incubação, a associação
teria que se reunir mais vezes, que teria que dedicar mais tempo e, principalmente, que
havia uma quantia de dinheiro (que ninguém conseguia entender de onde vinha) para
alguém fazer aquilo. Entre a vontade de se reunir mais vezes, aprender mais algumas
coisas e a dificuldade de fazer isso, assim como a revolta em relação à postura da
incubadora, os associados resolveram não decidir nada naquele momento.
Essa discussão foi confusa. Eu mesma não sabia o que estava acontecendo, quais
eram os fatos em que a incubadora se baseara para planejar a incubação da associação.
A reação das pessoas foi de estranhamento. Não havia alguém que estivesse
completamente certo de que isso tinha sido combinado. Me perguntava porque o
processo estava ocorrendo daquela maneira. Mesmo que houvesse um acordo, como ele
tinha sido feito? Havia participantes que discordavam completamente da idéia, enquanto
outros achavam muito interessante. Mas parecia que era a primeira vez que se falava no
assunto.
149
A relação com a incubadora: tem certas coisas que não se deve falar
“No ônibus, a caminho da Plenária Paulista, em Cajamar, aproveitei para matar a
saudade de uma cooperada que não via há muito tempo. Fomos conversando sobre o
tempo que eu e uma outra monitora íamos incubar sua cooperativa (2002). Ela me
contou que, na época, eles achavam que a gente era um pouco “fora da realidade”,
que falávamos as coisas e depois íamos embora. Nas reuniões, cutucávamos o
grupo para que eles falassem sobre os problemas interpessoais que estavam tendo,
sendo que antes da gente chegar, eles combinavam que não era para falar pois
achavam que não tínhamos nada a ver com aquilo. Segundo ela, sempre dava briga
depois das reuniões, porque eles já não estavam bem e aí quando nós fazíamos
aquilo, algumas pessoas acabava “entregando” os problemas para a incubadora.
Depois ficavam zangados com essas pessoas por terem contado. E nós íamos
embora e mal sabíamos o que acontecia( Diário de campo, 13 de agosto de 2005, a
caminho da Plenária Paulista de Economia Solidária).
Nesse momento, a referência é a um passado da incubadora e não ao presente.
Naquele tempo, isso acontecia, diz ela. Entendi que há um limite na relação entre a
cooperativa e a incubadora. O limite é dado pelo grupo. É o limite da intimidade: o
quanto o grupo quer ou não quer que certos assuntos sejam conversados com a
incubadora. No relato dela, na percepção dela, nós não respeitávamos essa fronteira e
isso provocava um desgaste interno grande. É um típico caso de uma intervenção que
atrapalha ao invés de ajudar.
Parece que a intimidade é uma coisa que pode ser invadida quando se está diante
deles. O que ela diz é que isso não é permitido, a não ser que eles queiram. O que nos
dava o direito de fazer isso. Fico pensando nos inúmeros momentos em que nos
preocupamos com o outro, especialmente, quando esse outro é pobre, sem recursos,
vive em condições precárias, etc. Aos poucos entramos em contato com essa realidade e
queremos intervir, com boas intenções. Queremos chamar conselho tutelar, queremos
crianças na escola, queremos que se alimentem adequadamente, queremos que
economizem seu dinheiro. Quando ela fala isso, me vem à memória as vezes que fomos
ao seu grupo e eles estavam “mudos”, sem querer conversar, e aí, alguém de repente
falava algo. Era o estopim para a discussão, para a briga começar. Quantas vezes nos
alertaram que íamos lá uma vez por semana, de carro, conversar e depois voltávamos
150
pra casa enquanto eles ficavam lá? Quantas vezes duvidaram de nossa coragem para
trabalhar com o lixo junto com eles?
Em muitos momentos fomos alertadas dessa invasão superficial, dessa relação
de alguém que vai e volta, não fica lá, não vive as mesmas coisas. No fundo, o que ela
disse tem a ver com a desigualdade entre nós. Não diferenças, mas desigualdades.
Avaliação dos empreendimentos sobre a incubação:
Na realização do 4º fórum municipal de economia solidária, uma das propostas
era refletirmos sobre a incubação. Para isso, a comissão executiva do fórum solicitou
que, tanto os empreendimentos quanto as incubadoras e as técnicas de referência da
prefeitura ali presentes, falassem abertamente sobre como estão avaliando a incubação.
Infelizmente só deu tempo para os empreendimentos se posicionarem a respeito do
tema, pois já era tarde da noite e todos precisavam ir embora.
Sobre o papel da incubadora, uma cooperada, cuja cooperativa tinha sido
incubada, no princípio, por uma incubadora e que, recentemente, está sendo incubada
por outra, compara os dois processos vividos. “Sente que essa última tem mais ação.
Para ela, um dos papéis da incubadora é ‘fazer a roda girar’, dar continuidade no
projeto. E acredita que estão no caminho agora. Fala sobre a discussão do
pagamento do INSS com a antiga incubadora. Ficavam conversando sobre o assunto,
mas não pagaram. Agora, como a nova incubadora estão pagando. ‘Foi exigido que
fizessem o INSS. Não pesavam os rejeitos, agora pesam. Diz que tem fundamento,
que é incisivo: ‘É assim que tem que ser e a gente tem que fazer’. A incubação tem
que ser feita por quem tem experiência.” (Diário de campo, 25 de abril de 2006, 4º
fórum de economia solidária)
Uma outra cooperada disse que acha que a incubadora tem que ser mais rígida,
não pode deixar os trabalhadores confusos. Os monitores devem dizer: ‘A incubação é
isso, tem que ser feito isso’. Para ela, é como uma gestação: ‘vai demorar um ano pro
bebê nascer? Tem que nascer logo.’ Segundo ela, a última reunião com a incubadora
deixou as pessoas confusas. Fica preocupada se um dia aparecer a fiscalização por lá e
quiserem fechar o empreendimento.” (Diário de campo, 25 de abril de 2006, 4º fórum
de economia solidária).
151
“Uma outra pessoa fala de quando a cooperativa convidou a incubadora para atuar lá,
mas houve resistências ao processo que a incubadora queria instalar. Hoje, como
associada da ACOOP, que também está sendo incubada pela ITCP/Unicamp, acredita
que está sendo importante. ‘Eu era leiga em tudo e hoje estou aprendendo (falando
sobre leis, funcionamento da associação, etc). Mensalmente é preciso fazer reuniões
com as incubadoras. Precisamos saber como podemos melhorar a situação de cada
grupo!’” (Diário de campo, 25 de abril de 2006, 4º fórum de economia solidária).
Essas mulheres estão apontando, de formas diferentes, que a incubação tem que
ajudar de algum jeito, tem que ser efetiva. Para elas, em alguns momentos, é preciso ser
mais direto, incisivo e exigir condições do grupo. Não pode ficar apenas conversando
sobre o assunto, o grupo tem que sair diferente da incubação.
Um outro ponto levantado foi a alta rotatividade de monitores nas incubadoras:
Sobre a presença dos monitores, é unânime o questionamento a respeito da alta
rotatividade destes nas incubadoras. ‘Atrapalha, muda o ritmo quando vem uma
pessoa nova. Você tem que ensinar ela a incubar.’ Já outra cooperada, diz que
tiveram o mesmo problema: ‘Cada vez que começava algo, tinha que acabar. O
estatuto não ficou pronto. A menina levou e não trouxe de volta. Não chega no fim
de nada.’ Ela acha que as três incubadoras devem discutir e ter uma filosofia mais ou
menos igual de trabalho”.(Diário de campo, 25 de abril de 2006, 4º fórum de economia
solidária).
Além de quebrar o ritmo, a alta rotatividade impede que se construam caminhos
coletivamente. Não há um acompanhamento do processo todo, e sim de partes deles.
Esse questionamento parece se dirigir mais especificamente para as incubadoras
universitárias, que atuam através de bolsistas, estudantes, que não têm, necessariamente,
uma continuidade na incubadora.
O monitor, agente de campo, assessor, é a pessoa que acompanha o grupo nos
seus problemas. Por estar constantemente em contato com as pessoas, torna-se
referência e mediador dos interesses da cooperativa com a incubadora. A relação
estabelecida é de proximidade (não de intimidade).
Logo depois, alguém pede que um cooperado de um grupo que, por um tempo,
foi incubado por uma incubadora e que agora está sem incubação, fale sobre essa
experiência. Estão sem incubação, assistidos pela prefeitura e aguardando uma outra
incubadora para trabalhar com eles. Sobre isso ele diz: Porque hoje, se não é a
152
presença deles, a gente não existe. Infelizmente estamos sem.’ Para ele, cada
profissional é uma coisa. Havia um psicólogo. E ele pergunta: “o que pode passar
para cada cooperado na administração? Para cada função tem que ter uma pessoa
especializada naquilo dentro da incubadora. O psicólogo cuida das pessoas. Um
médico não sabe ensinar a fazer blocos!
Por outro lado, duas experiências de quem nunca foi incubado, apontam algumas
diferenças. Havia lá um membro de uma cooperativa bastante presente no movimento e
que nunca havia sido incubada. Ele diz que isso nunca aconteceu porque o processo
deles foi diferenciado. Os profissionais que montaram a cooperativa eram de grandes
empresas que estavam aposentados na época. Até tentaram ser incubados por uma
incubadora de empresas, mas não deu certo. Uma outra pessoa diz “fomos quebrando a
cabeça. Se precisa aprender a congelar, tem que descobrir quem ensina a congelar
e buscar parcerias com essas pessoas. Quem sabe o que? E assim fomos
aprendendo’ (Diário de campo, 25 de abril de 2006, 4º fórum de economia solidária).
A incubação é avaliada como importante para que o empreendimento consiga se
viabilizar de alguma maneira, mas não é indispensável. A incubação permite que os
esforços sejam outros.
153
8. CONSIDERAÇÕES FINAIS
154
Quando Tereza me fez aquela pergunta sobre o que era, afinal, a autogestão, tentei
responder de maneira simples. Falei que era o trabalho coletivo em que todos decidem
juntos os caminhos da cooperativa. Depois dessa resposta, ela me disse, aliviada: “Ah,
então é aquilo que a gente faz todo dia na nossa cooperativa!?”. Pensei muito nisso
depois. Me vi diante de uma situação que não imaginava, enquanto monitora. Ela sabia
o que era autogestão quando olhou para o cotidiano do seu grupo. A prática de fazer
todos os dias a cooperativa era a autogestão. Me perguntei sobre a maneira que
estávamos falando com as pessoas, sobre a forma como essas pessoas entraram nas
cooperativas (sem saber direito o que vai acontecer, o que é uma cooperativa e o que é a
autogestão) e sobre que autogestão é essa, que na teoria, parece desconectada do
cotidiano e do lugar.
Chegar ao final dessa dissertação é chegar também ao início de um novo olhar
sobre a incubação. Um olhar que foi amadurecendo durante todo o processo de
pesquisar. A pergunta sobre a ecologia de saberes me acompanha desde o início, porém
de modos distintos. A princípio, me baseava numa experiência de trabalho frustrante,
onde vi meus sonhos se desfazerem. Romanticamente acreditava que era possível uma
atuação sem conflitos. Quanto mais olhava para minha experiência, mais tinha uma
percepção negativa da incubação.
Não via que a história que originou a incubadora favorecia esse processo. Desde o
início, esteve presente a necessidade instrumental da geração de renda, mais do que o
projeto político da economia solidária. Isso parecia contraditório com a economia
solidária e com a autogestão: como alguém entra pode entrar num projeto desses a partir
de uma necessidade instrumental e não política?
Hoje, depois de todas essas conversas vejo que, realmente, a necessidade de gerar
renda num país em que a desigualdade é imensa, faz muito sentido. Não abandono a
crença na autogestão, enquanto uma opção política possível e igualitária. Mas vejo que,
de fato, nenhuma ação política caminha sem o mínimo de condições para isso. A busca
dos sentidos da incubação traduzia essa preocupação: o que é que está “em jogo” para
as pessoas que fazem a economia solidária?
E assim chego aos sentidos da incubação. Não sei até que ponto é possível
generaliza-los, já que são produções parciais, datadas e localizadas. Em julho de 2006,
apresentei esse trabalho num encontro de economia solidária. Falei dessas questões
todas que estava percebendo e senti que as pessoas ali, a maioria participantes de
155
incubadoras, se identificaram. Obviamente que as questões, da forma como são
apontadas, guardam suas especificidades de produção. No entanto, o incubar parece ser
uma ação cujos sentidos e práticas se assemelham nos diversos espaços em que é feita.
Dessa forma, com os devidos cuidados, acredito sim que é possível expandir essa
discussão para um nível maior, para uma discussão sobre a noção que circula em muitos
lugares.
Um outro aspecto importante é que considerações são apenas dicas, caminhos
possíveis, mas não certezas absolutas a respeito de algo. A contribuição que me ocorre é
a de problematizar o tema, a partir dos dilemas levantados nessas conversas. É assim
que encaro esse fim.
Há alguns caminhos que gostaria de trilhar aqui. O primeiro deles diz respeito à
incubação como construção social, que se dá em processos históricos. Seus sentidos não
se constroem do dia pra noite, mas no tempo. Como M.J. Spink (2004) afirma, há três
dimensões de tempo nas construções sociais dos sentidos: o tempo longo, o tempo
vivido e o tempo curto, podemos pensar que, nesse caso, o tempo longo diz respeito a
longa história dos sentidos da incubação que narramos brevemente. Estaria ligado a uma
noção de cuidado, de espera, de amadurecimento e até, por vezes, de incapacidade. O
tempo vivido é o tempo da socialização. Seria o como aprendemos e nos apropriamos
dessa terminologia a partir das nossas posições: acabamos usando, adotando a noção de
incubar para definir o que estávamos fazendo. Já o tempo curto é o tempo do agora, da
dialogia do presente, das conversas que produzirão sentidos, resignificarão os antigos.
No caso desta história, o tempo curto aparece nos debates, nas discussões sobre a
incubação, tanto dentro da incubadora quanto fora dela, que foram permitindo que essa
idéia se transformasse, incorporasse novas idéias, agregasse novas possibilidades de
ação.
Por ser social, a incubação é feita por pessoas, e não apenas por um grupo de
pessoas, como eu imaginava (a incubadora). Os empreendimentos parecem adotar a
palavra incubação para designar suas ações cotidianas de ajuda, de apoio a outros
grupos, pessoas. Essa adoção não aparece com o sentido da incapacidade do outro, mas
no reconhecimento da necessidade de que quem é “novo” nesse universo, precisa
aprender certas coisas.
Se antes eu acreditava que a incubação baseava-se na crença da incapacidade do
outro, tanto incubadora quanto empreendimentos me apresentam uma perspectiva
156
diferente: a de que a incubação não está pressupondo ausência de capacidade, mas
dificuldade de acesso aos diversos conhecimentos que a incubadora e o grupo tem a
oferecer aos novatos. Tal perspectiva não elimina a possibilidade de cair no mito da
incapacidade do outro, que não deixa de existir.
Esse perigo se refaz quando me é apresentada a segunda dica: a incubação já não
é tarefa exclusiva da incubadora. Seu conceito é ampliado. Nas reuniões em que estive
presente ficou evidente que, no esforço de trazer o tema da incubação para o debate
entre todos os atores da economia solidária, a incubação ganhou sentidos diferentes, se
ampliando para uma prática de educação, de aprendizagem que se pode fazer no
cotidiano, por pessoas que não estão na incubadora. A incubação não é uma construção
apenas da incubadora, mas de outros atores. Por isso, o debate se alarga e todos “sabem”
não apenas falar sobre ela, como fazê-la.
Aqui devo lembrar as discussões sobre incubação e educação em que alguns
autores apontam para a necessidade da diminuição da distância entre quem incuba e
quem é incubado, quem educa e quem é educado. No caso desse estudo, não acredito
que as fronteiras estejam tão dispersas a ponto de não haver distinção funcional entre
incubadora e empreendimentos. As pessoas ainda apontam quem é quem no processo.
Há um aqui (incubadora) e um lá (empreendimento) e vice versa. Talvez um estudo que
se aproxime mais das práticas de incubação seja capaz de explicitar se, no momento do
encontro, esses dois mundos se interpenetram mutuamente ou não. Estando nas
reuniões, o que pude perceber é que as pessoas falam de lugares sociais diferentes. Uma
coisa é falar sobre a incubação a partir da realidade da incubadora e outra, é falar da
incubação a partir da realidade do empreendimento. As reuniões na incubadora mostram
o quanto é impactante a precariedade dos empreendimentos. Há um choque, uma
preocupação, um desejo de não perpetuar aquilo por muito tempo. Para os
empreendimentos, a questão parece ser a dos acessos aos recursos, ao conhecimento,
como aumentar a renda, etc. O choque pertence ao universo da incubadora e não dos
empreendimentos. Ambos preocupam-se, de maneiras distintas, com como resolver o
problema.
Uma outra idéia que foi se desfazendo quando comecei a olhar para as reuniões,
como lugares de debate e de ebulição de sentidos, foi a minha própria definição do que
é uma incubadora. Apesar de ter trabalhado por um tempo como monitora, ainda a via
como um lugar para trabalhar, uma entidade, instituição. Conforme participava das
157
reuniões com outro foco, que me voltavam para as negociações, para a percepção dos
múltiplos sentidos circulantes, comecei a vê-la como um processo organizativo. Neste
lugar que se chama incubadora se produz cotidianamente indagações, soluções,
possibilidades, etc. Antes, a incubadora era um lugar para onde as pessoas iam incubar.
Esse algo, às vezes era algo prescrito, ou seja, já estava formatado, e outras vezes, era
algo que ninguém sabia o que era. Então ficávamos entre o saber tudo e o não saber
nada. Tanto uma postura quanto a outra me angustiavam. No entanto, a incubadora é
debate o tempo todo. Nem sempre os debates levam à conclusões, mas são debates em
que estão presentes as lutas, os confrontos de sentido, etc.
Tanto a equipe quanto os empreendimentos parecem apontar para uma
necessidade urgente: a aproximação com o cotidiano dos grupos e suas necessidades. O
que parece levar a incubadora a essas constatações é a condição em que se encontram os
empreendimentos. Isso levanta questões sobre o quanto a incubadora deseja que isso
aconteça. Uma auto-avaliação leva à percepção de que a incubação tem problemas que
precisam ser resolvidos. Assim, a partir dos empreendimentos, a incubadora se vê. Se vê
como uma possível geradora dos problemas nos grupos, se responsabiliza por alguns
caminhos que tomou na sua trajetória. Atualmente há algumas experiências em curso
dentro da incubadora que refletem essa problemática. São tentativas de construir
estratégias que tenham uma base mais coletiva, como é o caso dos “kits de
administração”, um instrumento criado dentro da incubadora para facilitar a
compreensão e os registros do empreendimento. Esse kit foi elaborado e colocado em
funcionamento em uma cooperativa piloto, que apontou para a incubadora algumas
possibilidades de mudança, tornando-o mais aplicável no cotidiano dos grupos. Depois,
o kit foi sendo levado aos outros grupos, que, da mesma forma, foram reformulando a
idéia, baseando-se nas dificuldades e necessidades sentidas com o uso do mesmo.
Com relação aos empreendimentos, a questão aparece sob forma de constatação
de que a incubação está distante do cotidiano. A incubadora fala de um jeito que as
pessoas não compreendem. Apontam que é necessário que a incubadora conheça o
trabalho que é feito na cooperativa tanto quanto os cooperados, que os cursos
romantizam a solidariedade. Isso parece indicar para o cotidiano, para uma disposição
de conhecimento e de presença nesse cotidiano.
Não se desconsidera o trabalho da incubadora, que é vista com respeito. Da
primeira vez que ouvi as cooperadas falarem que “a teoria é uma, a prática é outra”
158
pensei estar diante de duas teorias distintas: a da cooperativa e a da incubadora. No
entanto, percebo que todos fazem parte do mesmo problema: há uma necessidade de
aproximação do cotidiano para a elaboração de uma práxis e não de uma teoria ou uma
prática. Sem essa aproximação me parece que a incubação perpetua-se na perspectiva
do “amadurecimento”, da “espera” do momento em que o grupo poderá caminhar
sozinho. Continua sem reconhecer-se como um processo de encontro e tensão entre
versões semelhantes e diferentes. A aproximação não é no sentido de eliminar as
diferenças, mas de buscar algo em comum. E se outros atores fazem parte dessa
construção é legítimo que se perguntem, que proponham, que apontem limites e
vantagens nesse processo, afinal, também lá se incuba um ao outro.
Nesse sentido, acredito que olhar para a história de cada incubadora, encarando-
as como construções sociais e históricas, pode ajudar a entender porque chegaram onde
chegaram. Adotar prontamente algumas “prescrições” foi uma necessidade sentida num
determinado momento por essa incubadora. Adotar, inclusive o conceito de incubação,
foi uma necessidade de definição do nosso lugar na economia solidária. Talvez agora o
ela esteja vivendo um momento de poder olhar para isso e dizer: “é isso mesmo que a
gente quer ou não é?”. E isso vai levar a uma maior coerência, congruência na ação. Até
porque, conhecimento que não é apropriado é informação, não é conhecimento.
Obviamente que há inúmeras outras questões nessa história que valem a pena
voltar a serem discutidas, como por exemplo, a crença de que havia um saber que iria
transformar a vida dos outros e não as vidas dentro da incubadora. Adotar a economia
solidária e, principalmente, a autogestão, é mais que uma escolha por uma forma de
gerir um empreendimento, é uma escolha baseada num posicionamento político.
A adoção de prescrições (a receita) me lembra muito a idéia de “cristalização”,
como se o conceito estivesse pronto para ser colocado na prática. Atualmente se fala na
definição de uma “teoria da incubação”, que seria a busca de formas, parâmetros para a
incubação. Como fazer isso diante da variedade de dilemas, experiências e sentidos que
estão sendo construídos nos diferentes lugares? Cristalizar a noção é um risco que se
corre nessa busca.
A incubação como um processo social, permeado e construído por diversos
saberes e diferentes histórias de vida, parece envolver negociação. Longe de imposições
e submissões mecânicas, o que as conversas mostram é que há negociações acontecendo
159
entre interesses semelhantes e diferentes. E isso não é ruim, é condição para que a ação
seja colaborativa de ambos os lados.
A busca da ecologia de saberes, proposta por Boaventura de Souza Santos, não
significa igualdade de interesses, posições, desejos, ideologias e sentidos. Refere-se à
criação de um espaço de diálogo entre as diferenças, em iguais condições. O técnico e o
leigo são diferentes em muitos aspectos, mas devem ter iguais possibilidades de fala e
de escuta. Assim, segundo o autor, se potencializam as ações sociais. Do conhecimento
dado para o conhecimento apropriado, significativo, capaz de transformar o que é
preciso transformar.
Emancipação, segundo Ciampa
6
, não é algo concreto, mas uma busca constante.
É um sentido de emancipação atrás do qual se vai. Assim, a incubação é uma busca de
ver esse sentido nas práticas, mas não a alcançará se a procura não for coletivizada de
alguma maneira. É preciso que as incubadoras deixem de lado o papel de “olho” dos
empreendimentos, como se conseguisse ver além e reconheçam, como já está
acontecendo, o papel fundamental dos outros saberes históricos.
Por fim, queria lembrar um detalhe importante dessa história da incubação: seu
sentido mais original, da Grécia antiga, deve ser recordado. Lá havia os templos de
incubação, que eram lugares para onde as pessoas iam, quando estavam doentes ou com
problemas, para sonhar. Era um lugar propício para sonhar, preparado para que a pessoa
deitasse e sonhasse. Acreditava-se que esse sonho a curaria. Os sacerdotes até ajudavam
na preparação desse lugar, mas quem sonhava e se curava era a própria pessoa. Isso
pode nos levar a pensar, quem sabe, numa redefinição do que é a incubação. Quando
vemos que o seu sentido se incorpora nas ações dos cooperados, podemos pensar um
pouco nisso. A incubadora não é quem transmite um conhecimento. Mas é responsável
por um apoio que parece bom para quem o recebe, mas que tem limitações. As pessoas
se apropriam dos sentidos do apoio e o refazem sob outras formas. No processo de
educação, não tem como eu educar alguém, tem como eu me educar a partir da relação
com esse outro alguém. A incubação me parece um pouco com isso, valendo apenas
refletir sobre os efeitos da minha ação no outro.
6
Em aula, no 1º semestre de 2006, na PUC-SP.
160
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