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cansaço, sem desfalecimento prepara o freguês como se não
tivesse feito outra coisa na vida.
― Venha, Lião, venha ver. Ah, como ela está ficando bonita. Ajoelhada
na cabeceira da cama, Lorena está sombreando de verde a
pálpebra de Ana Clara. Às vezes se afasta um pouco para ver
melhor o efeito. Parece satisfeita, o pincel na mão esquerda e a
caixinha na direita, é canhota. Luminosa sob a base rosada,a face me
parece agora mais distante. Desinteressada. Será só impressão minha
ou a meia-lua dos olhos diminuiu? Está ligeiramente encoberta, como
se a névoa da noite tivesse chegado até ali. Não me lembro de tê-la
visto tão bem vestida e tão bem maquiada como nesta hora. Na
poltrona, as correntes de prata.
― e os colares? ― pergunto.
― O vestido já tem muito bordado, fica mais fino assim (...) Os
cabelos. Atenção especial para os cabelos. Vou buscar o frasco de
perfume, faço questão de trazer o perfume. (...) não me seguro mais.
Respiro bem fundo antes de falar: ― Você está exagerando, entende.
Você sabe que está exagerando, não sabe? Estamos aqui feito duas
dementes completas, presta atenção, Lena: vão botar ela numa
padiola ou sei lá o que e daqui vai reto pra autópsia, sabe o que é
autópsia? O médico vem e retalha tudo e depois costura. Fim. Tudo
isso que você está fazendo vai ser desfeito na mesa de mármore, não
tem sentido, Lena. Não tem sentido!
― tem sentido sim. Me solta, querida, estamos atrasadas.
― Mas ela não vai pra festa!
Apanhou no chão os sapatos de fivela e delicadamente calçou-os
na morta (...)
― Lena, daqui a pouco amanhece, tenho que ir embora antes que
amanheça, certo? Mas não quero te deixar sozinha, diga logo qual é
essa sua idéia e eu ajudo mas depressa, depressinha que no seu
relógio já passa das três!
― Sim, vamos imediatamente ― murmurou ela entrando no banheiro, o
chambre vermelho apertado contra o peito.
― Vamos, Lena. Essa bolsa atrapalha, você leva depois. Mas a bolsa
tem que estar com ela, querida.
― Na cama?
― Mas ela não vai ficar na cama ― disse Lorena. Encarou a amiga: ―
Ana Clara não vai ficar na cama.
― Não?
― Lógico que não. Ela não vai ser encontrada no quarto, ela não
morreu no quarto, morreu noutro lugar.
―Onde?
― Numa pracinha. Mas por que você pensa que fiz esses preparativos
todos? Vai ficar numa pracinha, tem um banco debaixo de uma árvore,
é a praça mais linda que existe (...) ― veja que as coisas todas vão se
ajustando, o carro, a neblina. Nunca vi uma neblina tão
providencial, a noite estava claríssima, lembra?. (AM, p.248-9).