Download PDF
ads:
JUCIMEIRE RAMOS DE SOUZA ENDO
A POETIZAÇÃO DO COTIDIANO NA POESIA
DE MANUEL BANDEIRA
PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS
EM LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA
PUC-SP
SÃO PAULO
2006
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
JUCIMEIRE RAMOS DE SOUZA ENDO
Dissertação apresentada como exigência parcial
para obtenção do grau de Mestre em Literatura e
Crítica Literária à Comissão Julgadora da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob
a orientação da Prof.
a
Dr.
a
Maria Aparecida
Junqueira.
SÃO PAULO
2006
ads:
Presidente e orientador ____________________________
_______________________________________________
_______________________________________________
_______________________________________________
A Deus, pela realização de mais um sonho.
À minha princesinha, Isadora, razão do meu viver.
Ao meu esposo, Rinaldo, amigo e companheiro de
todas as horas.
Agradecimentos
À Prof.
a
Dr.
a
Maria Aparecida Junqueira, minha orientadora, pela
oportunidade e confiança, que me possibilitaram realizar este trabalho.
Agradeço não só sua orientação sempre amiga e o exemplo de conduta
acadêmica, que me ensinaram a olhar a pesquisa sempre com humildade, mas
também, e sobretudo, por sempre ter me revelado a faceta mais bonita dos
seres humanos, mesmo nos momentos dos meus grandes equívocos.
Permanecerá em mim para sempre o exemplo de sua enorme paciência,
atenção e compreensão diante da minha inconstância. A sua sempre presente
solidariedade diante dos meus descaminhos é, em grande parte, responsável
pela concretização deste trabalho.
Aos professores Viviana Bosi (USP) e Fernando Segolin (PUC-SP), pelas
leituras atentas e pelas sugestões críticas feitas no exame de qualificação, as
quais foram de grande valor para a recomposição deste trabalho. E, ainda, ao
Prof. Fernando Segolin, pelas aulas de Teoria da Literatura, que me
conduziram pelo mundo da poesia e me ensinaram os primeiros passos na arte
poética.
Às Prof.
as
Dr.
as
Vera Lúcia Bastazin, Maria José Palo e Olga de Sá, pelos
ensinamentos, pela leitura, pelas correções e pelos comentários em uma série
de trabalhos, que só me fizeram amadurecer.
À Prof.ª Dr.ª Maira Inês B. Campos, que acompanhou com interesse o
desenvolvimento de minha dissertação.
À minha amiga Luciane Hidalgo, pela companhia sempre amiga, pela
força, pelo estímulo e pelo convívio fraterno.
Ao amigo Eduardo Araújo Teixeira, pela cuidadosa atenção com que leu
os originais dos meus textos e, também, por suas observações e pela sempre
presente solidariedade nos momentos difíceis.
Aos meus colegas da E. E. Caramuru, pelo tempo que trabalhamos juntos
e por tudo o que me ensinaram. Cito em especial aqueles que acompanharam
a minha trajetória: Aleixina, Zilda, Elizabete, Léia, Taís, Odete, Núbia, Paulo,
Cláudio, Maricy, Silvia, Flávia, Marcelo, Roseli, Anita e Sandra.
Aos meus colegas da pós-graduação, que também ocupariam uma lista
enorme. Por isso, peço licença para citar alguns nomes que participaram mais
de perto da minha pesquisa: Ana Paula, Débora, Celina, Maria das Dores,
Élcio, Telma, Marion, Nelma, Nailton, Gilda e Regina.
Ao Programa Bolsa Mestrado, da Secretaria da Educação, pela
concessão da bolsa que me ajudou a realizar este trabalho.
Aos meus familiares, que mesmo distantes sempre acompanharam o meu
trabalho, e em especial aos meus pais, que não mediram esforços para que eu
chegasse aqui, com destaque para minha mãe, que, mesmo não estando mais
entre nós, tenho certeza que está me abençoando por esta conquista.
À minha irmã, Jaci, amiga sincera, de quem sempre recebi apoio em
tantos anos de convivência e cumplicidade, agradeço pelo afeto e pela
companhia.
À minha pequenina, Isadora, que mesmo sem compreender bem as
coisas, soube aceitar e respeitar os meus momentos de ausência; agradeço a
Deus por ter me dado uma filha carinhosa e companheira.
Ao meu esposo Rinaldo, que nunca mediu esforços para ajudar-me na
realização do curso de mestrado; agradeço sua companhia sempre amiga, os
instantes de pura confidência, e sua compreensão, principalmente nos
momentos em que precisei me dedicar dia e noite a esta pesquisa.
Enfim, agradeço a todas as pessoas que passaram pela minha vida e
deixaram um pouquinho de suas experiências dentro de mim, contribuindo para
que meu olhar sobre a vida seja sempre renovado.
Un hombre se propone la tarea de dibujar el mundo. A lo largo de los años
puebla un espacio con imágenes de provincias, de reinos, de montanãs, de
bahias, de naves, de islas, de peces, de habitaciones, de instrumentos, de
astros, de caballos y de personas. Poco antes de morir, descubre que ese
paciente laberinto de líneas traza la imagen de su cara.
Jorge Luis Borges
Resumo
O propósito desta dissertação é apreender como se dá o processo de
construção poética em poemas de Libertinagem (1930), de Manuel Bandeira.
Foram selecionados os poemas “Evocação do Recife”, “Poema tirado de uma
notícia de jornal” e “Poema de Finados”, nos quais se encontram marcas
prosaicas na exploração de imagens brasileiras. Os poemas foram agrupados
em torno de três núcleos temáticos: a infância, a consciência social e a morte.
Procura-se explorar, na análise, os elementos composicionais que constroem a
simplicidade lírica, a temática do coloquialismo, do prosaico, das
reminiscências infantis e da morte. Partindo da recorrência da temática do
cotidiano, em que o eu lírico extrai do lugar-comum, das situações concretas da
vida, o seu mais rico elemento poético, perguntou-se: que elementos formais
ou estruturais operam como recursos poéticos para traduzir o cotidiano? como
a hibridização do gênero lírico produz, na poesia de Manuel Bandeira, um
efeito que se caracteriza como tratamento peculiar de sua poesia? Para tentar
responder a essa proposta poética, foram utilizadas, como fundamentação
teórica, as concepções de Victor Chklovski, Roman Jakobson, Iuri Tynianov,
Octavio Paz e Hugo Friedrich. Entre outros aspectos, refletiu-se sobre cadência
rítmica irregular, rimas aleatórias ou ausentes, multiplicidade de tom, corte
arbitrário, aproximação da prosa, geração de imagens, enfim, sobre
particularidades da linguagem poética. Concluiu-se que Manuel Bandeira, ao
introduzir em sua poesia elementos do cotidiano, a linguagem coloquial e
características do gênero narrativo, por exemplo, rompeu com as leis da forma
poética tradicional e produziu uma poética transgressora e híbrida, que o
libertou e o enveredou para a construção de uma nova forma poética: a
poetização do cotidiano.
PALAVRAS-CHAVE: Manuel Bandeira, Libertinagem, modernismo,
poesia, cotidiano.
Abstract
The purpose of this Master dissertation is to apprehend the process of
poetic construction in Manuel Bandeira’s Libertinagem’s poems. The selected
poems are “Evocação do Recife”, “Poema tirado de um notícia de jornal” and
“Poema de Finados”, which were put together, rounded up in three thematic
nucleus: childhood, social conscience and death. In its analysis, this study tries
to explore the elements that led to lyric simplicity, the thematic of colloquialism,
the prosaic, childhood reminiscences and death. It starts with the everyday life
thematic, in which the self lyric retrieves its richest poetic element from
commonplace and real life situations. Then it asks the questions: What formal
or structural elements work as poetic resources to translate everyday life? How
the hybridization of the lyric gender produce in Manuel Bandeira’s poetry an
effect that describes a peculiar treatment of his poetry?
Trying to meet this poetic proposal, it was used as theoretical bases,
Victor Chklovski, Roman Jakobson, Iuri Tynianov, Octavio Paz and Hugo
Friedrich’s conceptions.
Among other aspects, were studied the irregular rhythmic movements,
random or absent rhymes, multiplicity of sounds, arbitrary cut, proselike
approach, generation of images — particularities of poetic language. As a
conclusion, the study suggests that when Manuel Bandeira introduced in his
poetry everyday life elements, colloquial language and characteristics of
narrative gender, for example, he broke the laws of the traditional poetic form
and produced an hybrid poetic, which allowed him to go free and led him to a
new form of poetic: the everyday life poetic.
KEY WORDS: Manuel Bandeira, Libertinagem, Modernism, poetry,
everyday life.
1
Sumário
INTRODUÇÃO................................................................................................... 2
CAPÍTULO 1 — CONCEPÇÕES TEÓRICAS EM TORNO DA POESIA........... 9
1.1 Os gêneros literários .................................................................................... 9
1.2 O gênero lírico............................................................................................ 14
1.3 Os formalistas russos................................................................................. 17
1.4 A lírica moderna ......................................................................................... 25
CAPÍTULO 2 — DIÁLOGO DA POÉTICA BANDEIRIANA COM OS
MODERNISTAS............................................................................................... 31
2.1 Bandeira e a Semana de Arte Moderna: uma ausência presente.............. 31
2.2 As vozes da crítica ..................................................................................... 34
CAPÍTULO 3 — O COTIDIANO EM POEMAS DE LIBERTINAGEM.............. 47
3.1 A infância: memória e presença em “Evocação do Recife”........................ 48
3.1.1 Transgressão estilística: a liberdade poética ...................................... 51
3.1.2 Transgressão temática: imagens memorialísticas .............................. 57
3.2 O cotidiano social: linguagem jornalística em “Poema tirado de uma notícia
de jornal .......................................................................................................... 75
3.2.1 Transgressão estilística: do prosaico ao poético................................. 77
3.2.2 Transgressão temática: a tragédia brasileira ...................................... 78
3.3 Memento morti: evocação do ausente em “Poema de Finados” ................ 84
3.3.1 Transgressão estilística: figuração da audiência................................. 87
3.3.2 Transgressão temática: ambigüidade poemática................................ 91
CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................. 96
BIBLIOGRAFIA ............................................................................................. 102
Do autor ......................................................................................................... 102
Sobre o autor.................................................................................................. 102
Geral .............................................................................................................. 103
Internet ........................................................................................................... 105
2
Introdução
A poesia de Manuel Carneiro de Souza Bandeira (1886-1968) desperta,
com sua simplicidade lírica, o interesse de leitores e de críticos. Foi um dos
primeiros autores a usar o verso livre e a incorporar a linguagem coloquial em
seus textos, e a recuperar o prosaico e as reminiscências infantis em sua
expressão poética. Esses procedimentos marcaram uma poesia inovadora e
são, ainda hoje, um desafio para a análise e a interpretação de seus textos.
Tido como um dos maiores poetas do modernismo, Manuel Bandeira é
também considerado um clássico da literatura brasileira no século XX,
ocupando há muito um capítulo substancioso na história literária nacional. Sem
esse poeta “não haveria no Brasil poesia moderna, ou então, ela não seria o
que ela é”.
1
Sua obra caracterizou-se por uma naturalidade peculiar, graças a
um esforço de redução às essências, quer no plano temático, quer no da
linguagem.
Considerado por Mário de Andrade o “São João Batista do Modernismo”,
Bandeira teve papel fundamental em nossa modernidade literária tanto do
ponto de vista estético como do histórico. Em toda sua trajetória poética, ele já
nos mostra uma preocupação com a busca de novas formas de expressão. No
seu livro de estréia, A cinza das horas (1917), temos poemas classificados
como parnasiano-simbolistas. Em Carnaval (1919) e O ritmo dissoluto (1924),
percebemos que o poeta vai se engajando mais e mais com os ideais
modernistas, revelando um espírito renovador.
A obra Carnaval apresenta o início da libertação das formas fixas e a
opção pela liberdade formal, que se tornaria uma das marcas registradas de
sua poesia. Em O ritmo dissoluto, o prosaísmo começa a emergir com mais
freqüência, aproximando-se dos procedimentos da estética modernista. Nessas
primeiras obras, estão presentes poemas de cunho melancólico, relacionados à
1
Nota escrita por Otto Maria Carpeaux, para a orelha da primeira edição de Estrela da vida
inteira. Rio de Janeiro, 1966.
3
doença que o acometera — a tuberculose — e à solidão, e às privações
financeiras a que esteve submetido.
Em 1930, a primeira edição de Libertinagem, com quinhentos exemplares,
foi custeada pelo próprio autor. Nela está presente o registro definitivo de sua
“afinação poética”, como ele mesmo explica:
[...] tanto no verso livre como nos versos metrificados e rimados, isso do ponto
de vista da forma; e na expressão das minhas idéias e dos meus sentimentos,
do ponto de vista do fundo, à completa liberdade de movimentos, liberdade de
que cheguei a abusar [...], a que por isso mesmo chamei de Libertinagem.
[Bandeira,1957, p. 67]
A partir de Libertinagem, consolida-se a poesia de Bandeira. Quando da
publicação dessa obra, Bandeira (1957, p. 82) confessa:
Libertinagem contém os poemas que escrevi de 1924 a 1930 — os anos de
maior força e calor do movimento modernista. Não admira pois que seja entre os
meus livros o que está mais dentro da técnica e da estética do modernismo.
A incorporação da linguagem coloquial, popular, e a temática do dia-a-dia
estão presentes nos diferentes poemas dessa obra, que trazem uma mudança
radical na técnica do verso tradicional. Assim, a poesia ganha uma liberdade
estética. Rosenbaum (1993, p. 31) caracteriza a importância do movimento
modernista para a vida do poeta:
[...] é pela fenda modernista que o poeta escapa da vivência de uma dor
enclausurada para largar-se no descampado dos telegrafismos, do humor, da
ironia, dos sonhos e da vivacidade de, afinal, ter sobrevivido.
A obra bandeiriana é um rico exemplo para entender os ideais
modernistas, que, em oposição ao rigor gramatical e ao preciosismo lingüístico
dos parnasianos, valorizavam a incorporação de gírias e da sintaxe irregular, e
também a aproximação com a linguagem oral de vários segmentos da
sociedade brasileira. No plano formal, o verso livre, a concisão e a objetividade
são características marcantes desse movimento.
Ao ampliar sua poética nas fronteiras da forma e do conteúdo, Bandeira
não abandona algumas das características da poesia tradicional, como certo
sentimentalismo de gosto romântico e uma semântica, às vezes, obscura. A
isso, soma uma nova tendência modernista, a descoberta do cotidiano,
4
cultivada com a mesma profundidade com que se aproximara da herança
parnasiana, simbolista e crepuscular.
Entre os vários críticos literários que se debruçaram sobre a poética de
Bandeira, dois enfatizam a presença da experiência cotidiana: Yudith
Rosenbaum e Davi Arrigucci Jr.
Para a crítica literária Yudith Rosenbaum (1993, p. 31), o espírito
modernista proporcionou ao poeta “o instrumental necessário para livrar-se de
um encerramento de caráter melancólico, servindo-se dos elementos mais
libertadores para anistiar a si mesmo”.
Segundo o crítico literário Arrigucci (2003, p. 15), com o advento do
modernismo, a poética de Bandeira alcançou um ideal inovador:
[...] o ideal da poética de Bandeira é o de uma mescla estilística inovadora e
moderna, uma vez que persegue uma elevada emoção poética através das
palavras mais simples de todo o dia. Para o poeta, o alumbramento, revelação
simbólica da poesia, pode dar-se no chão do mais “humilde cotidiano”, de onde o
poético pode ser desentranhado, à força da depuração e condensação da
linguagem, na forma simples e natural do poema.
Arrigucci (2003, p. 91) esclarece a importância de Libertinagem, uma obra
que foi “o momento de adesão mais clara de Manuel Bandeira ao ideário
estético do modernismo”. Os escritores modernistas desejavam ser atuais,
exprimir a vida diária. Nesse sentido, não celebravam apenas as máquinas,
como os futuristas italianos, mas tomavam como tema as coisas do cotidiano,
descrevendo-o com palavras “de todo o dia”, um combate à literatura discursiva
e pomposa, ao estilo retórico com que seus antecessores abordavam as coisas
mais simples.
Os poemas de Libertinagem trazem versos impregnados de lirismo, em
que o eu poético transfigura as descobertas do cotidiano: o amor como
experiência direta do corpo, o desejo erótico iluminando a carne e tornando-a
sagrada, a ternura das “coisas mais simples e menos intencionais”, a
humanidade dos humildes e dos marginais, a evocação da infância e da morte,
sendo esta última sempre presente, tida como sua velha confidente. Os versos
brotam de fontes heterogêneas: da experiência mais íntima da leitura da
tradução de grandes poetas, de uma notícia de jornal, de bulas de remédio, de
propagandas, de homenagens a amigos, de pregões populares, de frases
avulsas escutadas em conversas, dentre muitas outras, posto que a “poesia
5
existe tanto nos amores como nos chinelos, tanto nas coisas lógicas como nas
disparadas” (Bandeira,1985, p. 41).
A trajetória de vida do poeta foi permeada pela tragédia e pela
tuberculose, refletindo-se em obras nitidamente modernas, como Libertinagem.
Imprime-se nessa obra a marca de sua melancolia, de sua paixão pela vida,
das imagens brasileiras. Nesse momento, por meio dessa produção, Bandeira
atinge o ponto culminante da escola moderna, quando envolve plenamente
uma linguagem coloquial e irônica. Desse modo, alcança a característica
principal das propostas da Semana de Arte Moderna: a desvinculação das
técnicas clássicas e a utilização do linguajar popular nas construções da
poesia.
O novo que a proposta de Manuel Bandeira traz molda-se aos valores
modernos, tornando possível a conciliação de duas forças em eterno conflito na
vida: tradição e renovação. O crítico e poeta Carlos Drummond de Andrade
(1985, p. 5) faz elogios à habilidade de Bandeira em adaptar-se às várias
formas literárias:
Bandeira tinha uma variedade de interesses literários e foi um mestre em todas
as formas de poesia. Assim, através de sua poesia, podemos, inclusive,
entender melhor o percurso da própria poesia brasileira.
Manuel Bandeira encarnou como ninguém o academismo da poesia
modernista. Desbastando seus excessos e provocações, enraizou-a na
tradição dos grandes mestres da língua e de outras línguas: ao provincianismo
modernista, contrapôs o universalismo da poesia. Foi com grande sensibilidade
que o poeta recuperou a tradição e renovou a modernidade.
O crítico Mário de Andrade, amigo de Manuel Bandeira, declara na obra
Aspectos da literatura brasileira, que o modernismo brasileiro se caracteriza
pelo sentido da experiência coletiva, pela confiança no presente, pela coragem
intelectual, pela ousadia da experimentação, pelo próprio apego à realidade
prosaica/cotidiana e pela preocupação social. Essas tendências modernistas
estimularam Bandeira a buscar sua completa liberdade poética, que resultou na
obra Libertinagem:
Libertinagem é um livro de cristalização. Não da poesia de Manuel Bandeira,
pois que este livro confirma a grandeza dum dos nossos maiores poetas, mas da
6
psicologia dele. É o livro mais indivíduo Manuel Bandeira de quantos o poeta já
publicou. [Mário de Andrade, 1972, p. 28]
Dentro do escopo da obra de Manuel Bandeira, o objetivo desta
dissertação é analisar o processo de construção poética em poemas de
Libertinagem como: “Evocação do Recife”, “Poema tirado de uma notícia de
jornal” e “Poema de Finados”. Nesses poemas, há marcas prosaicas de
exploração de imagens brasileiras, e procuraremos identificar os elementos
composicionais que constroem a simplicidade lírica e a temática do
coloquialismo, do prosaico, das reminiscências infantis e da morte. A
descoberta do cotidiano é um tema recorrente em vários poemas, em que o eu
poético extrai do lugar-comum, das situações concretas da vida, o seu mais
rico elemento poético.
Tendo como tema uma das obras mais significativas da literatura
brasileira, cuja configuração está sempre a desafiar seus receptores, a
presente dissertação propõe abordar os seguintes aspectos nos poemas
escolhidos: a cadência rítmica irregular, as rimas aleatórias ou ausentes, sua
multiplicidade de tom, seu corte arbitrário e sua aproximação à prosa (tudo isso
associado aos elementos do cotidiano).
Quanto ao estilo de Bandeira, procuraremos analisar as várias figuras de
linguagem que permeiam os poemas de Libertinagem: “O poeta muitas vezes
se delicia em criar poesia, não tirando-a de si, dos seus sentimentos, dos seus
sonhos, das suas experiências, mas ‘desgangarizando-a’ ” (Marcondes Moura,
1973, p. 44).
Nessa análise, duas questões são norteadoras: que elementos formais ou
estruturais encontrados em Libertinagem operam como recursos poéticos para
traduzir o cotidiano? como a hibridização do gênero lírico produz, na poesia de
Manuel Bandeira, um efeito que se caracteriza como tratamento peculiar de
sua poesia?
Diante da problemática e dos objetivos propostos, selecionamos as
seguintes hipóteses:
o coloquial e o prosaico, ao marcarem o paradigma da poética
modernista, evidenciam uma outra arquitetura poética;
a linguagem cotidiana é um dos elementos constitutivos do poema de
Bandeira, traduzindo-se pela hibridização do gênero lírico.
7
Para tentar responder à proposta poética de Bandeira, utilizaremos
algumas concepções teóricas de autores como Victor Chklovski, Roman
Jakobson, Iuri Tynianov, Octavio Paz e Hugo Friedrich, que nos proporcionarão
suporte para analisar os poemas selecionados ao refletirem sobre
estranhamento, função poética, ritmo, imagem, verso e particularidades da
linguagem poética.
No primeiro capítulo, “Concepções teóricas em torno da poesia”, o
objetivo é abordar transformações do gênero lírico, para então entendermos o
conceito de linguagem poética na lírica moderna e, conseqüentemente, na
lírica bandeiriana. As propriedades fundamentais da poesia lírica serão
estudadas à luz dos estudiosos mencionados. Tal escolha teórica permitirá
uma leitura da poética bandeiriana e dos estudos da poesia lírica moderna
brasileira, em especial. Tentaremos, dessa maneira, conduzir o leitor pelos
caminhos bandeirianos construídos a partir de cada dia, de cada momento, de
cada experiência vividos intensamente.
No segundo capítulo, “Diálogo da poética bandeiriana com os
modernistas”, o objetivo é contextualizar a importância da poesia de Manuel
Bandeira e de sua presença no modernismo da primeira fase, assim como sua
participação na Semana de Arte Moderna. Também recuperaremos diferentes
vozes da crítica, que enfatizam as características de vanguarda presente nos
poemas de Libertinagem.
No terceiro capítulo, “O cotidiano em poemas de Libertinagem”, a
proposta é analisar poemas que apresentam o tema da infância (“Evocação do
Recife”), da consciência social (“Poema tirado de uma notícia de jornal”) e da
morte (“Poema de Finados”), na fase de sua maturidade profissional e de vida.
O foco interpretativo é percorrer a ruptura entre prosa e poesia. Essa análise
procurará recuperar, na linguagem poética, o potencial expressivo de
vocábulos e frases da fala cotidiana com recursos como espaçamentos,
pontuação e simulação do ouvinte, para criar uma impressão de oralidade no
texto literário. Ou seja, investigar o estilo poético bandeiriano, sua
transgressão, observando como o poeta realiza, em sua obra, uma ruptura com
a lírica tradicional.
A proposta desta dissertação é percorrer os caminhos de uma linguagem
coloquial e ir ao encontro de uma obra de vanguarda que causa, à primeira
8
vista, estranhamento. Para isso, os poemas escolhidos estão agrupados em
torno de três núcleos temáticos (a infância, a consciência social e a morte), que
articulam paradigmas teóricos relevantes e fecundos para o estudo do texto
poético bandeiriano. Assim, pretende-se chegar à configuração prosaica e
cotidiana da poesia manuelina por meio dos recursos poéticos.
9
Capítulo 1 — Concepções teóricas em torno da poesia
Apliquei o coração a esquadrinhar, e a informar-me com
sabedoria de tudo quanto sucede debaixo do céu; este
enfadonho trabalho impôs Deus aos filhos dos homens,
para nele os afligir. Atentei para todas as obras que se
fazem debaixo do sol, e eis que tudo era vaidade e correr
atrás do vento. [...] Porque na muita sabedoria há muito
enfado; e quem aumenta ciência, aumenta tristeza.
Eclesiastes 1, 12-18.
Neste capítulo, abordaremos algumas transformações do gênero lírico,
certos aspectos que servem de fundamento à proposta poética do formalismo
russo, e também enfocaremos a concepção de lírica moderna à luz de Hugo
Friedrich e Octavio Paz. Alertamos, entretanto, que nossa preocupação, aqui, é
a de sistematizar concepções teóricas que sejam esteios para nossa leitura de
poemas de Bandeira.
1.1 Os gêneros literários
Em uma tentativa primeira de definição de gênero literário, podemos nos
guiar por aquilo que é criado pela imaginação, por aquilo que não existe na
realidade, portanto, pelo imaginário, pelo fabuloso. Essa concepção pode ser
aplicada à literatura em geral, uma vez que o universo ficcional é regido pela
imaginação e composto de uma realidade virtual.
Ao longo da história literária, houve muitas discussões em torno das
diferentes posturas teóricas diante da diversidade de gêneros modernos, e uma
delas relaciona-se com a classificação rígida conhecida como clássica: o lírico,
o épico e o dramático; e outra, como moderna: o romance, a novela, o conto, o
drama etc.
Em Os gêneros do discurso, Tzvetan Todorov (1980) dá uma contribuição
valiosa à discussão dos gêneros textuais, porque acrescenta mais um dado ao
10
tema: o caráter histórico. No capítulo intitulado “A origem dos gêneros”, o autor
descreve a linha histórica pela qual se desenvolveram os gêneros, da Grécia
antiga até o século XX, além de estudar as variações e os motivos das
variações nesse período.
Todorov (1980, p. 46) define gênero como uma codificação de
propriedades discursivas e diz que “um gênero é sempre a transformação de
um ou de vários gêneros antigos: por inversão, por deslocamento, por
combinação”. Ainda afirma que os gêneros evidenciam os aspectos
constitutivos da sociedade a que pertencem.
Muitos foram os autores depois de Platão e Aristóteles que, aceitando-a
ou não, retomaram a divisão triádica dos gêneros, para só então terem uma
compreensão desta e, a partir daí, poderem propor uma reestruturação que se
adapte à época vigente. Dentre os autores que se dedicaram à teoria dos
gêneros, temos Horácio e Quintiliano (na Roma antiga), Goethe, Friedrich
Schlegel, Hegel, W. Benjamim, Novalis, Lukács, para citarmos alguns dos mais
importantes.
O gênero é de suma importância para a literatura. Não se pode pensar a
literatura sem gêneros, até porque ela é um “sistema em contínua
transformação e a questão das origens não pode abandonar, historicamente, o
terreno dos próprios gêneros: no tempo, nada há de ‘anterior’ aos gêneros”
(Todorov, 1980, p. 46).
Nos séculos XVI e XVII, a doutrina clássica dos gêneros literários
defendida pela poética do classicismo renascentista e do classicismo francês
não se impôs de modo geral, o que fez aumentar as polêmicas em torno dos
problemas da existência e da natureza dos gêneros literários, provocadas por
autores maneiristas, pré-barrocos e barrocos, que envolviam problemas tanto
dos gêneros como das regras, já que esses dois problemas estéticos são
indissociáveis.
Foi após a redescoberta e a fusão da Poética de Aristóteles, no século
XVII, da Renascença até o Barroco, que a classificação tripartida dos gêneros
literários foi tida como uma verdade inquestionável, com a inclusão da lírica no
sistema dos gêneros, ao lado do drama e da narrativa, já que esta compartilha
com as outras artes a representação, a expressão, a ação sobre o receptor.
11
Somente então procuraram uma teoria para a lírica, que se tornou um dos
gêneros literários fundamentais.
No século XVIII, estabeleceu-se de um modo rigoroso a tríade da
literatura dramática, épica e lírica. Goethe denominou esses gêneros de
“formas naturais de poesia”, o que aponta para a indistinção, na época, entre
história e definição ontológica dos gêneros.
Na virada do século XVIII para o XIX, Friedrich Schlegel e Novalis
utilizaram os gêneros de um ponto de vista muito mais livre e criativo, e
transformaram-nos em tons: em cada obra poderia haver mais do que um
desses tons atuando em sua estrutura. Com esses autores a poética deixou de
ser uma prescritora de regras para o autor e este se viu livre para compor
conforme o seu “gênio”. Não devemos esquecer que foram os românticos que
introduziram uma teoria e uma concepção forte do romance como gênero por
excelência da modernidade. Ele representaria justamente a mistura e a
superação dos demais gêneros literários. Ou seja, na modernidade, o gênero é
dissolvido por força da individualidade e do estilo de cada texto.
As regras clássicas reprimiam a espontaneidade do criador e da cultura
vigente, porém, essa postura radical não foi aceita por todos os românticos,
que reconheciam a multiplicidade e a diversidade das obras artísticas
existentes. O filósofo alemão Friedrich Schlegel (1962, p. 30), no seu Diálogo
sobre a poesia, salienta que a
fantasia do poeta não deve desintegrar-se em poesias caoticamente genéricas,
mas cada uma das suas obras deve possuir um caráter próprio e totalmente
definido, de acordo com a forma e o gênero a que pertence.
Dentro desse contexto, o filósofo idealista italiano Benedetto Croce (1866-
1956) — um dos grandes nomes da vasta renovação da filosofia e da
mentalidade européias — também discutiu as normas gerais impostas aos
gêneros literários, aceitando-as apenas no âmbito histórico, e não
exclusivamente no aspecto literário, pois a beleza artística, somente nesse
aspecto, deixaria de ter valor. A obra literária, tirada de seu contexto, perderia
sua essência artística, sendo levada a uma mera classificação de gêneros. Um
erro que “começa quando do conceito se pretende deduzir a expressão e
reencontrar no fato substituto as leis do fato substituído” (Croce, 1973, p. 121).
12
Também é desse filósofo a importante crítica à imposição das regras
literárias, a qual prega a distinção rígida dos gêneros:
Se pudessem representar num gráfico como [...] as regras literárias têm custado
aos poetas e aos escritores, ficar-se-ia estupefato ao ver-se quantos loucos se
deixam atormentar por outros homens por nada, e como docilmente se prestam
a flagelar-se a si mesmos, tornando-se heautontimoroumenoi ou, como traduzia
Alfieri, carrascos de si próprios. [Croce, 1946, p.183]
Essa abordagem influenciou a crítica formalista de raízes idealistas, ao
dar ênfase maior aos elementos técnico-formais do texto literário,
preocupando-se mais com a análise íntima de cada obra.
Da mesma maneira, um grupo de estudiosos de produção poética da
Universidade de Moscou, conhecidos como formalistas russos, acreditava que
a individualidade e a simplicidade de cada obra literária se davam justamente
por seu caráter generalista, ou seja, por suas características, afirmando assim
a aceitação tripartida dos gêneros.
O gênero é a base para a construção de uma obra literária, pois esta só é
compreendida em conexão com ele; por isso, os formalistas não aceitam
reduzir a classificação dos gêneros a uma mera classificação histórica
descritiva.
Essa compreensão histórica e sociológica vai ao encontro de um modelo
biológico contido na obra Teoria da literatura, na qual B. Tomachevski diz que
os gêneros vivem e se desenvolvem, podendo modificar-se lentamente, como
também sofrer bruscas e radicais mudanças, por vezes separando-se. Dessa
dissolução novos gêneros nascem ou desaparecem:
O gênero fica enriquecido de novas obras que unem-se às já existentes. A causa
que promoveu um gênero pode não agir mais; seus traços fundamentais podem
mudar lentamente, mas o gênero continua a viver, embora como espécie, isto é,
pelo encadeamento habitual de novas obras ao gênero já existentes. Ele sofre
uma evolução e, por vezes, uma brusca revolução. [1971, p. 201]
Essa modificação pode ser vista quando analisamos a transformação por
que passaram os gêneros literários, em especial o gênero lírico. Na literatura,
esse processo de transformação, que ocorre periodicamente na vida em
sociedade, pode ser observado quando comparamos as obras de autores de
épocas diversas.
13
Os gêneros do passado foram substituídos por outros. Não se fala mais
de poesia e prosa, de testemunho e ficção, mas do romance e da narrativa, do
narrativo e do discurso, do diálogo e do diário. Quanto aos questionamentos
sobre a origem dos gêneros, eles provêm de outros gêneros.
Os gêneros são unidades que podemos descrever sob dois pontos de
vista diferentes: o da observação empírica e o da análise abstrata. Numa
sociedade, institucionaliza-se a recorrência de certas propriedades discursivas,
e os textos individuais são produzidos e percebidos em relação à norma que
essa codificação constitui. Um gênero, literário ou não, é essa codificação das
propriedades discursivas.
Pelo viés da institucionalização, os gêneros se comunicam com a
sociedade em que ocorrem. Esse aspecto é o que mais interessará o etnólogo
ou o historiador. Com efeito, de um sistema de gêneros, o primeiro reterá as
categorias que o diferenciam daquele dos povos vizinhos, as quais serão
correlacionadas com outros elementos da mesma cultura. O mesmo ocorre
com o historiador, para quem cada época tem seu próprio sistema de gêneros,
que está em relação com a ideologia dominante. Como em qualquer instituição,
os gêneros evidenciam os aspectos constitutivos da sociedade a que
pertencem.
O gênero é o lugar de encontro da poética geral e da história literária
factual; é, por isso mesmo, um objeto privilegiado, o que lhe poderia valer a
honra de tornar-se personagem principal dos estudos literários. Foram as
teorias aristotélicas que, num primeiro momento, possibilitaram o pensar das
regras internas existentes nos textos poéticos. A cultura da humanidade é
formada pelos conhecimentos de cada época. O presente só existe porque o
passado colaborou na sua construção, e isso inclui também a literatura. Se
Aristóteles não pensou em hibridizão, nós, pelo conhecimento que
acumulamos e a partir de estudos realizados até nossos dias, não podemos
deixar de lado essa característica tão atual e paradoxalmente tão antiga.
Sabendo que, em certo sentido, a literatura é representação da realidade,
e que cada época produz um novo pensar, gerando uma transformação que
não se dá sem divergência de idéias, o caso dos três gêneros fundamentais
estabelecidos por Platão (o lírico, o dramático e o narrativo — entendidos como
uma tripartição perfeita e lógica na sua essência) pode tornar-se discutível e
14
sua prática, equivocada, quando aplicada rigidamente a determinadas obras. É
que, na criação artística, confluem as águas dessas três fontes, predominando,
em certas obras, um gênero sobre o outro. Não haverá, é certo, a expressão
pura de um só gênero.
Entre os críticos modernos, notadamente Todorov (1972) ensina que os
gêneros literários devem ser estudados indutivamente, a partir das
características da obra, e não a partir de nomes classificatórios. A
desobediência ao gênero não o torna inexistente, pelo contrário, para que
exista transgressão, faz-se necessário uma lei, para ser transgredida. “A norma
não se torna visível — não vive — senão graças às suas transgressões”
(Todorov, 1980, p. 45).
1.2 O gênero lírico
Ao longo da história literária, a poesia é um gênero em permanente
mudança: inova e/ou retoma tradições. Ela vincula-se à necessidade do
homem de imitar o mundo, pondo em palavras acontecimentos cotidianos. Ou
seja, o eu poético cria representações. Nesse sentido, a poesia caracteriza-se
pela materialização do signo, uma vez que apreende o real de forma sensorial.
Ao afastar-se da linguagem instrumento, o poeta passa a trabalhar as palavras
vendo-as como coisas.
A poesia rompe com a rotina da linguagem utilitária e propõe a vivência
profunda da realidade. Por apresentar uma natureza poética, o que provoca
certo estranhamento, não tem de imediato uma utilidade prática no contexto
social; entretanto, ao subverter o real, intervém no mundo.
A palavra lírica tem origem latina e significa “lira” — instrumento musical
usado para acompanhar as canções dos poetas da Grécia antiga —, e foi
retomada na Idade Média pelos trovadores. Pode-se dizer que o gênero lírico é
aquele que se preocupa demasiadamente com as sensações, com os estados
de alma do eu lírico. O universo exterior só é considerado quando existe uma
identificação ou é passível de ser interiorizado pelo poeta.
A poesia há muito atravessa os sentimentos humanos. Por esse motivo,
seu conceito e sua definição são bastante dificultados, adquirindo uma
15
concepção própria em cada época, para cada poeta, em cada período literário.
Para ter-se uma idéia, na Grécia antiga, a poesia era poiésis, do verbo poiein
que significa “fazer” e indica o ato que opera a passagem para o ser daquilo
que antes não existia. Entende-se que todo labor humano estava identificado
na arte poética.
Com o transcurso do tempo, os poetas líricos afastam de seu foco de
interesse as circunstâncias históricas e sociais imediatas, preferindo uma
elaboração mais voltada para a interioridade ou para a generalização de
experiências individuais. Forma-se, então, um conjunto de temas “universais”,
configurando o que se chama “tradição da lírica ocidental”, vigente até nossos
dias.
Entre tais assuntos (menos subordinados ao vaivém dos séculos), figuram
o canto amoroso, a interrogação sobre o sentido da vida e da morte, a
consciência da brevidade da existência, a meditação sobre o valor dos gestos
humanos, o questionamento religioso, a louvação da natureza etc.
Caracterizam o gênero lírico como aquele que sobreviveu durante 2700 anos,
estabelecendo uma cumplicidade emocional, primeiro com seus ouvintes,
depois com seus leitores. Outros gêneros não possuem a mesma resistência e
se transformam continuamente. O fato de a poesia resistir por cerca de três
milênios quase sem modificações atesta quão necessária ela foi e é para a
humanidade.
Com a invenção da imprensa na Renascença (século XV), a poesia lírica,
que entre os gregos era composta para ser cantada ou acompanhada por
música, tornou-se palavra escrita, para ser lida. A partir daí, houve a
necessidade de distinguir quais seriam, então, as qualidades próprias dessa
poesia, que faziam com que conseguisse reencontrar sua antiga tradição lírica.
A poesia lírica romana, que surgiu durante a época do imperador Augusto
(63 a.C.-14 d.C.), sofreu grande influência da lírica grega. Aquela trouxe
consigo o caráter imitativo desta. Ela conseguiu, mais do que a lírica grega,
desagregar-se das instituições sociais, econômicas, políticas, jurídicas, e da
criação de um mundo imaginário, via palavras.
Nos séculos XI e XII, surgiu o verso medieval, na região da Provença (Sul
da França), importantíssimo para a tradição da poesia ocidental. Ligado ainda à
música, mas já também à escrita, trabalhava a língua no esquema da
16
tonicidade e, ao mesmo tempo, fazia perdurar o aspecto da duração das
sílabas.
Essa poesia provou que a língua não precisava submeter-se a regras ou
gramáticas. O elemento musical passa a ser intrínseco ao próprio trato com as
palavras, enfatizando a musicalidade dos versos. A partir daí, a poesia se
rebelará contra a tirania da versificação silábica, notadamente a partir do
romantismo.
O romantismo não é apenas um movimento literário ou artístico exaurido
pelo advento do realismo, mas um estado de espírito, um projeto de vida que
caracteriza a primeira metade do século XIX e, intempestivamente, é flagrado
na ideologia do homem que anuncia ativamente o ano 2000. Oriundos de
radicais transformações socioeconômicas, a prática e o pensamento
românticos inauguraram uma nova cultura, contendo traços característicos e
contraditórios entre si. É nesse jogo de contradições que nasce a poesia lírica
romântica.
Esse movimento literário, que começa a instalar-se com o advento da
modernidade, reproduz, de certa forma, em sua própria poética, uma lírica que
oscila entre o encantamento da poesia anterior e a constatação do solo árido e
seco do qual nascerá a nova poesia. O poeta vê-se obrigado a buscar, no
próprio material verbal, expressões que pudessem dar um novo perfil à
linguagem poética.
O período romântico, segundo Salete de Almeida Cara (1998, p. 30), em
seu ensaio A poesia lírica, provoca uma mudança conceitual no sujeito lírico:
O período romântico, coincidindo com um agudo senso do indivíduo, altera o
conceito do sujeito clássico, submetido à convenção universalista do “logos” —
“penso, logo existo” — que definia o “ego” da tradição clássica.
Essa mudança já era percebida a partir do século XVII com a valorização
e o reconhecimento da individualidade no seu mais amplo sentido, ficando
perceptível a diferença entre a época grega e a contemporânea.
O romantismo trouxe consigo a idéia de poesia como expressão inspirada
de uma alma, e não mais como imitação, em concordância com o conceito
neoclássico da mimese aristotélica. O conceito de poesia lírica sofre uma
revolução de valores, principalmente no que diz respeito às produções e às
17
reflexões estéticas, tendo como conseqüência a revisão da divisão clássica dos
gêneros literários.
A multiplicidade de técnicas e as misturas de estilos favoreceram a
hibridização do gênero lírico. Para Todorov (1972, p. 45), isso seria “um signo
da modernidade autêntica, de um escritor já não mais obedecer à separação
dos gêneros”. Stalloni (2001, p. 129), por sua vez, afirma que “a poesia não
constitui um gênero”, e leva-nos a crer que o gênero lírico nunca poderia ser
considerado “puro”, pois, como a linguagem cotidiana, ele se contamina por
outros gêneros e está sempre em contínua mutação.
A discussão sobre gêneros literários e sobre poesia é pertinente numa
época fértil, em que as possibilidades criativas são infinitas e na qual a
reavaliação da classificação das obras já consagradas se torna necessária.
Nesse sentido é que precisamos ter novos olhares para as combinações e
inter-relações dos gêneros, embora sempre relacionados com as mais antigas
formas de expressão humana: contar histórias, metaforizar o mundo, os
sentimentos, e representar a vida.
Dentre os estudos contemporâneos voltados para a poética, destacamos
o da “Escola Formalista Russa”. Pensando na poesia inovadora de Bandeira e
em sua melhor compreensão, elegemos tratar — mesmo que de forma geral —
da teoria dos formalistas russos.
1.3 Os formalistas russos
No início do século XX, um grupo de estudiosos, poetas e escritores da
Universidade de Moscou, reunidos na Sociedade para os Estudos da Língua
Poética (OPOIAZ), propuseram-se a estudar a produção poética segundo
princípios da ciência. Dedicaram-se à análise da função poética da linguagem
proposta pelo Círculo Lingüístico de Moscou por volta de 1915. Depois da
Revolução Russa (1917), uma condenação pública e categórica ao formalismo
e sua virtual interdição obrigaram os estudiosos ao exílio, e suas obras foram
relegadas ao esquecimento. O estruturalismo francês, tempos depois,
redescobriu as obras dos formalistas russos e passou a utilizá-las largamente
para formular as teorias que perseguia.
18
Diferente da teoria grega de poesia concebida por Platão e Aristóteles,
que valorizava o texto a partir do efeito e da recepção, os formalistas tentaram
mostrar a funcionalidade da poesia, desenvolvendo estudos de poética e de
lingüística. Procuraram elaborar uma teoria interna da literatura, baseada na
análise do automatismo da percepção, e consideraram os aspectos
renovadores da arte poética. A questão central dos formalistas russos era: o
que faz de uma obra literária uma obra de arte?
Roman Ossipovitch Jakobson (1896-1982), Yuri Tinianov (1894-1943) e
Victor Chklovski (1893-1984) contribuíram para a elaboração de uma ciência da
poesia. Tinham como objetivo estudar o texto literário com métodos científicos,
dando ênfase mais à forma do que ao conteúdo. Não aceitaram a divisão
tradicional entre forma e conteúdo, uma vez que entendiam que havia uma
hierarquia de funções no poema, de modo que o som se vinculava ao sentido.
Por isso, davam uma ênfase maior ao tratamento dos elementos sonoros na
estrutura poética, propondo “a autonomia da função estética”.
Roman Jakobson, o mais importante formalista para a poesia e grande
discípulo de Saussure — portanto, de formação lingüística —, preocupou-se
com o uso especial da linguagem e formulou o conceito de função poética.
Para ele, essa função é resultado da projeção do princípio de similaridade do
paradigma sobre o sintagma, dando uma dupla função de sentido — a
linguagem prismática. Essa perspectiva teórica tem relação com as
manifestações da arte de vanguarda, notadamente o cubismo e o futurismo
russo. O lingüista manteve vínculo com poetas de sua época como Vladimir
Maiakovski (1893-1930) e Velimir Khlebnikov (1885-1922), os quais exerceram
forte influência em suas idéias sobre a comunicação e a linguagem, e juntos
fundaram o Círculo Lingüístico de Moscou, um espaço privilegiado para a
discussão da arte literária e dos mecanismos da poesia e do som.
Em 1920, Jakobson foi viver na Tchecoslováquia, onde desenvolveu
importantes estudos sobre fonologia e fonética, sobre poesia comparada e
estruturas narrativas, e fundou ali um novo e importante núcleo de estudo, o
Círculo Lingüístico de Praga. Quando as tropas nazistas invadiram Praga,
Jakobson foi para a Escandinávia, onde escreveu sua obra fundamental, na
qual analisa os distúrbios de afasia e conclui pela classificação dos dois eixos
da linguagem — paradigmático e sintagmático —, base para o
19
desenvolvimento das pesquisas que o levaram a formular as funções da
linguagem.
Nas suas ocupações intelectuais, decifrava mecanismos de uma magia
tão antiga quanto o homem, a competência de articular artisticamente as
diversas linguagens que interagem na comunicação humana, desafiando as
potencialidades das linguagens. Foi também autor do famoso trecho que se
tornaria quase um manifesto do movimento: “A poesia é linguagem em sua
função estética. Desse modo, o objeto do estudo literário não é a literatura,
mas a literariedade, isto é, aquilo que torna determinada obra uma obra
literária” (1971, p. 9-10).
Um conceito igualmente importante para a concepção de poesia é a teoria
do estranhamento, concebida por Viktor Chklovski, autor do mais antigo
documento (1914) do movimento formalista: A ressurreição da palavra. Para
ele, a arte deve ser entendida em sua funcionalidade e não em seu aspecto
biográfico ou sociológico. Preocupa-se, assim como todo o grupo, em estudar o
específico, ou seja, fazer uma análise imanentista da literatura, uma análise
dos sons e ritmos dos versos, das estruturas narrativas da prosa, enfim, dos
aspectos estritamente literários.
Os formalistas adotaram posições combativas em relação às teorias
críticas vigentes, e com ardileza chegaram muitas vezes a declarar a
independência da obra literária em oposição às demais formas de
manifestação social. Por isso, foram acusados de tentar isolar a obra literária
da história que a produz.
Pretendemos abordar somente as idéias originárias como pressupostos
de uma estética focalizada na linguagem, ou seja, que parte da noção de signo
e de forma. É sob a dominância do ponto de vista formal, em suas
preocupações com a linguagem, que os formalistas se distinguem de seus
predecessores. Para eles, a obra não pode ser explicada a partir da biografia
de um escritor nem a palavra poética a partir das tendências filosóficas e
religiosas, cada vez mais preponderantes entre os simbolistas. Tal concepção
era a palavra de ordem que reunia o primeiro grupo dos formalistas.
Em 1917, Chklovski publicou o artigo “A arte como procedimento”, em que
analisa a importância da ação de estranhar o objeto representado, o que leva o
receptor a buscar novas percepções, distante do peso do rotineiro, do habitual,
20
do já experimentado, do já visto, do já lido. Esse artigo traz uma idéia central a
esse respeito, na medida em que, rejeitando todo tipo de misticismo — que só
pode “encobrir o ato da criação” e a própria obra —, privilegia o enfoque
técnico de sua “fabricação”.
Essa postulação é contrária à idéia de que a imagem constitui a essência
da poesia, preconizada por Potebnia e que tão bem serviu aos propósitos
simbolistas. Chegou-se, portanto, via Eikeinbaum, à conclusão de que aquela,
assim como as outras figuras da linguagem, é apenas meio de que o poeta ou
o artista podem se servir, mas não caracteriza essencialmente a poesia. Em
vez disso, a singularização passa a ser considerada a característica
fundamental da obra poética. O objetivo da arte, portanto, seria gerar a
sensação do objeto como visão sensorial e como reconhecimento; o
procedimento da arte é o procedimento da singularização dos objetos, que
obscurece a forma e aumenta a dificuldade e a duração da percepção.
No século XX, o conceito de literatura se transformou com o
desenvolvimento de obras elaboradas com novas possibilidades do código
verbal e de seus limites, marcando o fim da obra de representação. A
percepção desautomatizante fez com que o leitor saísse do marasmo
perceptivo para apreender realidades não desgastadas. Essa produção de
obra, de acesso estranhável, induziu a novas descobertas de linguagem e,
conseqüentemente, à renovação do próprio código.
Essa descoberta de linguagem, como organização, levou o formalismo
russo a olhar o texto como obra literária, com suas funções e sua articulação
sistemática do todo. Seu olhar volta-se para a natureza poética, cujo problema
é descobrir como o objeto funciona artisticamente, como ela é, como se
constrói, como se organiza em si mesma. Preocupa-se com o enigma da
linguagem poética, o próprio texto. Para ele, o que importa é a literariedade.
Essa função da consciência das formas é, pois, a função por excelência a
permitir, no limite, transformar a mensagem em seu próprio objeto e então
refletir o deslizamento intencional da matéria para a maneira — o “como” se
constrói o objeto real em arte. O texto é uma defesa da arte compreendida
como linguagem em seu amplo sentido, o que significa considerar a obra de
arte como signo e forma, situando-a na primeiridade.
21
Boris Schnaiderman (1971, p. 12) nos esclarece o verdadeiro idealismo
do formalismo russo:
[...] o assim chamado formalismo russo procurou na literatura viva e não apenas
nos monumentos do passado aquilo que podia caracterizar a linguagem da obra
literária. Ele estudou o específico, o inerente à literatura. Mas, ao mesmo tempo,
as novas correntes artísticas afirmavam a necessidade de fundir a arte na vida
cotidiana.
Os artistas modernos foram buscar na realidade da vida cotidiana a
inspiração necessária para a produção literária. Essa fusão da arte com a vida
cotidiana foi uma das tendências mais marcantes da poesia moderna. Os
formalistas deram um importante destaque à relação dialética entre diacronia e
sincronia. Para eles, a língua é tida como um fenômeno social, por isso, seus
estudos se voltaram para o estudo histórico tanto da linguagem como de sua
expressão literária.
Roman Jakobson (1971, p. 17) declarou, numa sessão do Círculo
Lingüístico de Copenhague, em 1936, a verdadeira tarefa da escola formalista
russa:
Dominar no plano lingüístico a construção da obra em poesia, [...] não se trata de
soma mecânica, mas de um sistema de processos: estes se relacionam entre si
segundo leis e formam uma hierarquia característica. A transformação poética
consiste nos deslocamentos desta hierarquia: o que muda é a hierarquia dos
processos no quadro de um gênero poético dado, a hierarquia dos gêneros, a
hierarquia das diferentes artes e a relação da arte com os domínios vizinhos da
cultura, e em particular a relação da arte verbal com outros tipos de enunciado
[...]
Com essa citação de Jakobson, podemos entender claramente não só o
princípio construtivo de toda poesia moderna, mas também sua
importantíssima ajuda para novas análises poéticas.
Esses conceitos influenciaram várias gerações de estudiosos no mundo
inteiro. No Brasil, o escritor e crítico literário Cristóvão Tezza (2003, p. 100)
recuperou a importância dessa perspectiva teórica, explicando que é difícil
delimitar o termo formalista, assim como a definição de poesia. A nova escola
formalista “chamava a atenção justamente para os aspectos ‘formais’, o
material da obra de arte, descartando o resto — isto é, tudo que esteja no
terreno genérico dos ‘conteúdos’ — como não relevante para definir a
especificidade da literatura”.
22
Para responder a essa questão, Osip Brik, jornalista russo e um dos
principais organizadores do formalismo, caracteriza um dos elementos poéticos
fundamentais: o ritmo. A construção poética não se dá somente pela
alternância regular dos sons ou pela repetição periódica dos elementos no
tempo ou no espaço — mas pelo verso, que determina, ao mesmo tempo, uma
unidade rítmica e sintática. Brik separa, portanto, a visão metafórica do “ritmo”,
unicamente intuitiva, de sua intencionalidade e especificidade poéticas. Para
ele, o ritmo aparece também na combinação das palavras segundo qualidades
tanto semânticas como fônicas. Esse valor semântico transporta a um conceito
abstrato que leva o leitor a considerar o significado do verso; caso contrário,
deixará de ser parte da língua.
Significativa é a comparação que Brik faz entre a visão tradicional e a
moderna, no que diz respeito à criação poética. Ele critica certos estudiosos
que possuem uma visão tradicional dessa criação, pois acreditam que a
perfeição da arte poética consiste em inscrever as palavras no verso sem
alterar a estrutura da língua. Defende a visão modernista, que entende a
“imagem inversa à criação poética”, uma imagem indefinida do complexo lírico,
de estrutura transracional, que se articula em palavras significantes,
transformando as inspirações do poeta em palavras acessíveis aos leitores.
Para Brik (2003, p. 123), “é preciso compreender a língua poética naquilo que a
une à língua falada e naquilo que a distingue; é preciso compreender a sua
natureza propriamente lingüística”.
A poesia sempre apresentou regras múltiplas com componentes que a
governaram por muito tempo, as quais o poeta/operário era obrigado a seguir,
reprimindo assim sua criação mais sublime. Dentro dessa complexidade
estética, o crítico literário Stalloni (2001) defende a idéia de que o poeta não
pode ficar preso a esses recursos estéticos, pois estão carregados de
incertezas. O autor parte, então, para outra descrição tipológica, levando em
conta a natureza profunda da poesia (sua essência), seu campo de aplicação
(suas formas) e suas extensões (os domínios vizinhos), para tentar definir que
a poesia é um gênero aberto, e que por isso outros procedimentos devem ser
levados em conta, como novas prioridades de natureza estilística e lingüística.
Para Stalloni (2001, p. 158), “a poesia não se confunde com a arte de
fazer versos” e “o talento do versificador não é suficiente para se fazer um bom
23
poeta”. O que prova que o artista precisa dominar tanto o engenho como a
técnica, caso contrário não se tem poesia.
Um outro conceito central na teoria da poesia é o verso. O crítico
formalista Yuri Tinianov desenvolveu importantes trabalhos de teoria literária;
dentre eles, destaca-se O problema da linguagem poética (1924), no qual
analisa o conceito concreto do verso e as particularidades da linguagem
poética. Ao escrever um prefácio para o ensaio, assinala um progresso
significativo dos estudos da poesia como “ciência”, a partir da década de 1920.
Enfatiza a necessidade de manter a poesia como uma ciência de rigor, assim
como a psicologia, a filosofia, a matemática, entre outras.
Para ele, a linguagem e o estilo da poesia estão separados do verso, e
faz pensar que ambos não se ligam ao verso e não dependem dele. A
linguagem poética se faz a partir da violentação das normas gramaticais,
sintáticas etc. Afinal, transgredir a linguagem é transgredir a própria realidade.
O trabalho de criação da linguagem poética é o de desestruturar essas
normas, rompê-las. Na poesia, esse fato aconteceu tardiamente, mas de forma
avassaladora, pois o verso era a marca principal que a contrapunha à prosa.
Essa transgressão deu-se ao introduzir na poesia o verso branco, a prosa
poética ou o poema em prosa.
Para Tinianov, a característica principal da linguagem poética é o ritmo.
Na tradição, esse elemento era marcado pela métrica, mas, no poema
moderno, é marcado pela combinação da palavra. Ao discutir a linguagem
poética, o crítico limita seu estudo a dois aspectos: o ritmo como elemento
construtivo do verso e o sentido da palavra poética. Ao analisar o conceito
concreto do verso e as particularidades da linguagem poética, observou o
verso como construção em que todos os elementos subsistem numa relação
mútua, tentando, assim, relacionar o estudo dos elementos lingüísticos no que
diz respeito ao significado e sentido da palavra poética. O conceito de verso
aparece em oposição ao conceito de prosa, tendo o ritmo como princípio de
construção do verso, o qual será o fator principal e subordinante deste. Para
ele, a noção de ritmo tornou-se muito mais complexa e multíplice, em
conseqüência da concepção do verso em termos acústicos.
Em seu estudo, Tinianov classifica duas categorias: o material e a
construção. Sendo o material igualmente formal, agirá sobre ele o “princípio da
24
construção”, em que velhos modelos, já automatizados, serão reformados e
reciclados. O conceito de material “não transcende os limites da forma;
confundi-lo com momentos estranhos à construção é errôneo”. A história da
literatura, nessa perspectiva, será “a história das novas possibilidades
construtivas, a história dos procedimentos construtivos” (Tezza, 2003, p. 124).
A interação com novos fatores fará com que “o princípio construtivo do
metro se fortaleça com a introdução de novos esquemas métricos” (1975,
p. 12), como o verso livre. Permanecendo invariáveis as categorias
fundamentais da forma poética, “o desenvolvimento histórico não confunde as
cartas, não anula a diversidade existente entre princípio construtivo e material,
mas, ao contrário, a acentua”.
Em Estruturalismo e semiologia, no texto “O que é poesia?”, Jakobson
(1978, p. 176) desmistifica a crítica de que a “Escola Formalista” não
compreende as relações da arte com a vida social:
Nem Tynianov, nem Mukarovsky, nem Chklovski, nem eu pregamos que a arte
se basta a si mesma; mostramos, ao contrário, que ela é uma parte do edifício
social, um componente variável, pois a esfera da arte e sua relação com os
outros setores da estrutura social se modificam sem cessar dialeticamente. O
que ressalta não é um separatismo da arte, mas a autonomia da função estética.
A literatura, nas idéias formalistas, procura apresentar, nas coisas mais
comuns, uma visão surpreendente, acomum. O leitor não vê de imediato a
utilidade dessa poesia e se questiona quanto à importância de textos iguais a
este no meio social: Para que servem? Qual sua função no contexto social?
Essas reflexões fazem parte da grande repercussão que a palavra exerce
no meio literário, buscando provocar no leitor um conjunto de sons e imagens
ao qual se refere. O poema, fruto concreto dessa poesia, é, segundo Octavio
Paz (1982, p. 37), o lugar onde os homens realmente reencontram seu estado
poético:
Objeto magnético, secreto lugar de encontro de forças contrárias, graças ao
poema podemos chegar à experiência poética. O poema é uma possibilidade
aberta a todos os homens, qualquer que seja seu temperamento, seu ânimo ou
sua disposição [...] é senão isto: possibilidade, algo que só se anima ao contato
de um leitor ou de um ouvinte. Há uma característica comum a todos os poemas,
sem a qual nunca seriam poesia: a participação.
A leitura da poesia moderna nos oferece desafios a todo momento, mercê
do seu estado plurissignificativo: ora a inversão de palavras com um tudo/nada
25
que nos deixa estupefatos, ora o uso dos espaços em branco na folha que nos
surpreende, ora uma imagem que encanta, ora um conjunto de signos que nos
coloca um pouco perdidos na busca de um sentido.
O poeta dialoga com a visualidade contemporânea e sai daí uma
intervenção que nos causa estranheza, que desautomatiza a leitura dessa
visualidade que procura dominar o mundo moderno. A poesia é alguma coisa
— apesar de aparentemente inútil, no sentido de não ter aplicação direta —
que move montanhas, percepções, compreensões e formas de estar no
mundo. Ela também problematiza e povoa o mundo, pelo menos o de nossa
imaginação.
1.4 A lírica moderna
Se voltarmos no tempo, veremos que a lírica moderna surge com os
primeiros românticos do século XVIII, atravessa o século XIX, passa por
sucessivas transformações e avança até o século XX. A partir da primeira
metade desse século, o lirismo deixou de representar a expressão de uma
individualidade privilegiada para esquadrinhar o território do outro,
caracterizando a modernidade já esboçada pela revolução estética do século
XIX. Se, desde a velha Grécia, a lírica era aceita como manifestação da
subjetividade e rito de ascensão do sujeito ao centro constelar do mundo
social, o conceito de despersonalização contribuiu para destruir a clareza das
fronteiras entre o lírico, o épico e o dramático.
A poesia lírica moderna constitui-se, então, numa linguagem “modificada”,
que contraria em suas bases o padrão clássico de linguagem. Moldada a partir
de valores como clareza e coerência, leva a efeito um processo radical de
desarticulação dos modelos de mundo e de homem em vigor no Ocidente
desde a Grécia antiga.
Esse processo de desarticulação operado pela poesia moderna reflete,
em nível explícito, a situação caótica de um mundo fragmentário e minado em
seus fundamentos. Por ser, no entanto, uma linguagem cujo centro de
articulação é o ritmo (impulso primário, visão da origem), a manifestação lírica
acaba por conferir sentido ao caos, estabelecendo o fragmento como
26
tendência. Daí que muitas vezes resulte, do ponto de vista lógico, absurda,
contraditória e obscura, tendo como conseqüência uma linguagem que é ao
mesmo tempo una e plural.
Em Estrutura da lírica moderna, o crítico alemão Hugo Friedrich (1991)
trata da poesia do século XX sem deixar de ir às suas fontes: Baudelaire —
considerado o iniciador desse modelo de lírica —, Rimbaud e Mallarmé, os
indicadores dos limites a que a poesia poderia chegar. Todos, entretanto,
antecedidos pelos ideais da literatura romântica, teorizados e explicitados por
Novalis e Edgar Allan Poe, mais anteriormente fundamentados por Rousseau e
Diderot. Para o autor, a literatura desse século é composta de uma lírica que,
por ser obscura, fascina na mesma medida em que desconcerta o leitor. Ao
processo de junção da incompreensibilidade com a fascinação, denomina
dissonância; ou seja, uma tensão que leva à inquietude, sendo esta um dos
objetivos da arte moderna.
Além da obscuridade, encontra outra tensão dissonante, em que formas
distintas coexistem, fixando uma arte cujos
traços de origem arcaica, mística e oculta contrastam com uma aguda
intelectualidade, a simplicidade da exposição com a complexidade, o
arredondamento lingüístico com a inextricabilidade do conteúdo, a precisão com
a absurdidade, a tenuidade do motivo com o mais impetuoso movimento
estilístico. [Friedrich, 1991, p. 16]
Traços entendidos como tensões formais, mas que podem ser
encontradas também nos conteúdos, já que a poesia não quer ser mais
construída como reflexo da realidade ambiente e, quando se volta para ela,
esta se completa com um significado diverso do que tinha na poesia de outros
tempos. A realidade na poesia, segundo Friedrich, libertou-se da ordem
espacial, temporal, objetiva e anímica, e fez diminuir as diferenças entre a
proximidade e a distância, entre o belo e o feio, entre a dor e a alegria, entre
terra e céu.
O poeta moderno, então, pode — não apenas no sentido de tornar viável,
mas de suportar e tornar suportável — lançar-se completamente ao
fragmentarismo. O resultado é uma linguagem tensa (tensão dissonante), que
encena de diversas formas e ângulos os conflitos básicos do nosso tempo.
Desvinculadas de todas as correntes ideológicas em vigor, sem no entanto
27
deixar de contemplar, à sua maneira, cada uma delas, a poesia moderna
comporta com muita freqüência a contradição explícita. Ou seja, não se deixa
prender pela “unilateralidade da época”.
A lírica moderna rompe com a perspectiva clássica e novos modelos são
estabelecidos. A poesia refugia-se na própria linguagem, alargando os
horizontes do eu poético. Ela expande sua própria abrangência e abre espaços
para elementos formais e semânticos de outras culturas, colocadas à margem
ao longo de séculos. Em sua estranha e definitiva maneira de ser, rompe com a
tradição até mesmo quando pretende recuperá-la. Linguagem voltada para si
mesma, em oposição a um mundo alienado e hostil.
Na grande maioria, os textos que visam tratar da modernidade tendem a
iniciar sua reflexão partindo de seu caráter de ruptura. Essa tendência explica-
se pelo rompimento de uma ordem preexistente e estabelece uma outra ordem,
sendo a ordem rompida, o passado, e a nova, o moderno. É possível, portanto,
perceber uma relação de paralelismo entre os termos moderno e novo, relação
para a qual o passado representava algo totalmente descartado. O poeta e
crítico mexicano Octavio Paz, em Os filhos do barro (1984), reflete sobre essa
questão, procurando rever e redimensionar a compreensão do que é e do que
representa o moderno. Afirma que o moderno, justamente por valer-se
continuamente da ruptura, constitui também uma tradição. Tradição singular,
que se afirma como ruptura de uma tradição imperante, que será substituída
por outra, a qual também será substituída, e assim sucessivamente. Ou seja, o
moderno só o é na sua atualidade, o futuro o transformará em uma tradição.
Por isso, prioriza o tempo presente como o seu “tempo ideal”, na tentativa de
escapar desse destino. Nas palavras de Paz (1984, p. 18), a
modernidade nunca é ela mesma: é sempre outra. O moderno não é
caracterizado unicamente por sua novidade, mas por sua heterogeneidade.
Tradição heterogênea ou do heterogêneo, a modernidade está condenada à
pluralidade: a antiga tradição era sempre a mesma, a moderna é sempre
diferente. A primeira postula a unidade entre o passado e o hoje; a segunda, não
satisfeita em ressaltar as diferenças entre ambos, afirma que esse passado não
é único, mas sim plural. Tradição do moderno: heterogeneidade, pluralidade de
passados, estranheza radical.
Cada vez que o moderno aparece, funda sua própria tradição, pois é
auto-suficiente. Desse ponto de vista, o fragmentarismo na lírica representa —
ante um mundo falseado pela idéia de progresso, pela promessa da máquina e
28
pela propaganda — uma quebra da hipocrisia. Sua incoerência nos níveis
formal e semântico é, a um só tempo, uma coerência como encenação em
profundidade do mundo moderno. A poesia lírica, em sua anormalidade
congênita, traz as marcas de um texto sempre novo e estranho, que inquieta e
fascina.
A dissonância ainda ocorre, porque ao poeta moderno cabe desfazer a
idéia generalizada de que a lírica é a linguagem do estado de ânimo, tomando
parte dela não mais como pessoa particular, mas como uma inteligência ativa e
transformadora, como um operador da linguagem, o qual, por meio de uma
linguagem perturbadora, de combinações insólitas, faz emergir de seus textos
significações que até então não podiam relacionar-se com o estético. A língua
poética cria um estranhamento, porquanto se funda em uma sintaxe
desconstrutiva reduzida, muitas vezes, a expressões nominais, aplicando de
maneira renovada os mais antigos instrumentos da poesia — a metáfora e a
comparação. Todos os processos renovadores provocam uma impressão de
anormalidade.
A função da poesia moderna seria, então, transformar o real pelo modo
de dizer, fazendo uso de elementos estranhadores. O estranhamento é fator de
iluminação que nos revela aquilo que as coisas, os fatos e os sentimentos
humanos têm e que não estamos habituados a ver. O tempo transforma esse
olhar automático num olhar iluminado via poesia.
Esse novo olhar é provocado pelo poeta ao utilizar palavras comuns e de
algum modo as transformar em incomuns. Roland Barthes (1971, p. 61-62), em
seu ensaio, Existe uma escritura poética?, declara que a palavra, na poesia
moderna, alcançou a liberdade máxima, chegando a ganhar a dimensão de
um discurso cheio de buracos e cheio de luz, cheio de ausências e de signos
supernutridos, sem previsão nem permanência de intenção e, por isso mesmo,
de tal modo oposto à função social da linguagem que o simples recurso a uma
fala descontínua abre caminho para todas as sobrenaturezas.
A introdução da linguagem do cotidiano foi também um fator considerável
para a transformação da poesia lírica. Atualmente, não podemos mais ficar
presos a determinadas ideologias que discriminam certos elementos, como
impróprios ou não para a produção artística. O poeta utiliza a palavra como
objeto de trabalho, segundo a dominância da função poética, que foi
29
introduzida por Roman Jakobson, e que se caracteriza pela desautomatização
convencional dos signos nos fatores determinantes da universalidade e da
variedade do espaço que desenha o verso.
A importância do trabalho do poeta pode ser entendida, segundo Jean-
Paul Sartre (2004, p. 13), da seguinte forma: “O poeta extrai instrumentos da
palavra, tornando-a coisa, não signo convencional”. O desvio e a transgressão
são a desverbalização das palavras. Portanto, o objetivo da poesia não é firmar
conhecimentos, e sim brincar com conhecimento, libertando o homem de
padrões e certezas automáticas e automatizantes. Poeta e poesia confundem-
se no indissociável amálgama da vida.
O trabalho da criação poética é desestruturar normas, rompê-las. Na
poesia, esse fato aconteceu tardiamente, mas foi avassalador. Friedrich (1991,
p. 16) destaca três comportamentos da composição lírica: sentir, observar e
transformar. Este último é o que domina a poesia moderna, tanto no mundo
como na linguagem: transformar o real a partir da linguagem poética.
Essa tensão dissonante da poesia moderna exprime-se ainda em outros
aspectos. Traços de origem arcaica, mística e oculta contrastam com uma
aguda intelectualidade; a simplicidade da exposição com a complexidade
daquilo que é expresso; o arredondamento lingüístico com a inextricabilidade
do conteúdo, a precisão com o absurdo; a tenuidade do motivo com o mais
impetuoso movimento estilístico. São, em parte, tensões formais e querem,
freqüentemente, ser entendidas apenas como tais.
As características que a lírica moderna sustenta transporta-nos ao
pensamento de Paz sobre a “tradição moderna”. O crítico nos coloca à frente
de um paradoxo que rompe com as tradicionais contradições, pois a era
moderna desfaz, quase por completo, o antagonismo entre o antigo e o atual, o
novo e o tradicional. Podemos dizer, então, que a poesia moderna apresenta
um múltiplo mosaico, uma fusão temporal. Para Paz (1984, p. 22-23),
[...] a tradição moderna, bem como as idéias e imagens contraditórias que esta
expressão suscita, não são mais que a conseqüência de um fenômeno ainda
mais perturbador: a época moderna é a da aceleração do tempo histórico [...]
Passam-se mais coisas e todas elas passam quase ao mesmo tempo, não uma
atrás da outra, mas simultaneamente. Aceleração e fusão: todos os tempos e
todos os espaços confluem em um aqui e um agora.
30
A lírica moderna traz consigo uma proposta de vivência profunda da
realidade, desestabilizando o congelamento das formas de pensar pela
contemplação crítica, e também uma tal proposta de transgressão que chega a
transgredir a própria transgressão. Deixa de aceitar o que é convencional, para
buscar a liberdade do pensamento, da palavra.
Esses fundamentos teóricos sobre a lírica nos ajudarão a entender a
poesia bandeiriana e seu valor no contexto modernista. De outro modo, assim
como apreendemos as transformações dessa lírica, recuperaremos a crítica
referente à poética de Manuel Bandeira e, em especial, à obra Libertinagem.
Ambas abrirão um leque de possibilidades de leitura aos poemas eleitos para a
análise.
31
Capítulo 2 — Diálogo da poética bandeiriana com os
modernistas
[...] o julgamento do estilo é resultado final de uma longa
experiência.
Longino, Do sublime
O objetivo deste capítulo é contextualizar a importância da poesia de
Manuel Bandeira e sua presença no modernismo da primeira fase. Vamos
considerar a superação da estética passadista e sua afirmação na
modernidade, procurando marcar o processo de ruptura com a poesia
tradicional. Também recuperaremos diferentes vozes da crítica, como Mário de
Andrade, Gilda de Mello e Souza, Antonio Candido, Sérgio Buarque de
Holanda, Haroldo de Campos, Leônidas Câmara, Otávio Faria, Ribeiro Couto,
Davi Arrigucci Jr., Yudith Rosenbaum, Murilo Marcondes Moura, que
enfatizaram as características de vanguarda presentes nos poemas.
Finalizaremos com a avaliação crítica feita pelo próprio poeta sobre seu fazer
poético.
2.1 Bandeira e a Semana de Arte Moderna: uma ausência
presente
O escritor inicia seu artigo falando da chegada a Natal da indígena
Tapuya, principal representante da antropofagia, com a qual realiza uma
entrevista. Nessa entrevista, a indígena se autodenomina “Miss Macunaíma”,
devido à sua relação com o estudioso Koch Grünbeg, ao qual forneceu
informações sobre as lendas de Macunaíma.
No primeiro quartel do século XX, novas correntes artísticas começaram a
circular em muitas cidades européias, que viviam várias transformações
sociais, políticas, econômicas, tecnológicas, culturais, que modificaram o
32
cotidiano com novas invenções tecnológicas, como o automóvel, o rádio, o
telefone e, principalmente, o cinema.
A industrialização alterou a economia das potências com os lucros
acumulados pela produção em larga escala de artigos manufaturados, o que
garantiu às classes dominantes a sensação de conforto, segurança e otimismo
em relação ao futuro. A capital da França, Paris, abrigava artistas brasileiros,
atraídos pelo dinamismo cultural e pelo ritmo eletrizante da vida social, com
seus cafés, bares e cabarés. Em meio a esse contexto surgiram as vanguardas
artísticas, como o futurismo, o cubismo, o dadaísmo, o expressionismo e o
surrealismo.
No Brasil da década de 1910, as estéticas parnasianas e simbolistas
ainda norteavam as criações poéticas, mas já demonstravam sinais de
esgotamento, e vários escritores procuravam renovar as formas de expressão
artística. O país também vivia grandes mudanças políticas, sociais e culturais,
inclusive com a urbanização e a chegada de novas tecnologias que
transformavam o ritmo de vida e o cenário de cidades como Rio de Janeiro e
São Paulo.
O progresso e o cosmopolitismo eram contrapostos ao
subdesenvolvimento e à miséria estrutural de vastas regiões nacionais, nem
sempre distantes dos centros populosos. A capital do país, o Rio de Janeiro,
vivia em péssimas condições de saneamento básico e sofreu uma ampla
urbanização, o que a modernizou. O novo planejamento urbano, contudo,
previa uma recolocação de moradias populares, excluindo do centro urbano os
pobres, massacrados pelo desemprego e pela carestia. Em 1904, o Governo
lançou uma campanha de vacinação obrigatória que fez explodir a insatisfação
popular, ocorrendo uma verdadeira batalha, que recebeu o nome de Revolta da
Vacina, violentamente reprimida. Em São Paulo, um grupo de trabalhadores
anarco-sindicalista organizou uma greve geral em 1917, reivindicando
melhores salários e condições de trabalho (redução de jornada, segurança
etc.). O país passava por um período histórico conturbado, que resultou no fim
da República Velha (1889-1930).
Foi nesse cenário tumultuado que os modernistas refletiram sobre a
realidade brasileira e procuraram renovar a cultura do país. A partir de meados
da década de 1910, começaram a organizar-se em grupos, principalmente no
33
Rio de Janeiro, no Recife e em São Paulo. Escritores e poetas, cujas obras e
eventos eram patrocinados pela aristocracia enriquecida com o café e a
industrialização, começaram a introduzir novas faces na literatura brasileira.
Eram artistas — músicos, arquitetos, literatos, escultores — que buscavam
algo novo. Era um pequeno grupo de jovens artistas ligados à elite paulistana,
que se voltou para questões literárias e culturais, irradiando e enriquecendo as
produções de arte divulgadas no meio intelectual.
O modernismo ganhava expressão, e São Paulo tornou-se palco de
manifestações de independência cultural contra a estagnação do resto do país.
Nesse contexto cultural, os escritores buscaram romper com a corrente
tradicional, e em 1920 começaram a preparar a Semana de Arte Moderna. No
ano seguinte, escritores paulistanos foram ao Rio de Janeiro para dialogar com
intelectuais como Ribeiro Couto, Renato Almeida, Villa-Lobos, Ronald de
Carvalho, Álvaro Moreira, Sérgio Buarque de Holanda e Manuel Bandeira. A
partir desse encontro, começou-se a trilhar o caminho para a realização da
Semana de Arte Moderna, considerada o marco inicial do movimento.
Nesse mesmo ano, Bandeira publicou seu livro A cinza das horas, que
ganhou ampla repercussão nas páginas da Revista do Brasil e tornou o poeta
conhecido como aquele “capaz de determinar correntes”. O poeta uniu-se,
prontamente, a esses jovens artistas, publicando seus poemas em outras
revistas paulistanas, como Klaxon, Terra Roxa e Revista de Antropofagia.
Sobre a relação de Bandeira com o movimento paulista, Wilson Martins
(1991, p. 77) analisa:
O modernismo foi não apenas uma ruptura com o passado, uma quebra brutal
na “direção” estética, mas, ainda, uma interrupção da história literária: seus doze
apóstolos começaram a contar de 1922 o ano I da literatura brasileira.
A Semana de Arte Moderna foi um grande acontecimento artístico, que
teve por objetivo mostrar as novas tendências da arte, que já vigoravam em
cidades da Europa. Entre as muitas atividades artísticas e culturais dessa
Semana, destaca-se a declamação feita por Ronald de Carvalho do poema “Os
sapos”, de Manuel Bandeira. O poeta carioca não veio pessoalmente a São
Paulo, mas participou de forma inusitada, logo na abertura, com a leitura de
seu poema — que, após ser declamado, foi imediatamente vaiado pela platéia.
34
Assim, Manuel Bandeira, que compartilhava do horror ao lirismo
comedido e erudito das gerações anteriores, criticou um sapo parnasiano
(Vede como primo/ Em comer os hiatos!), ao lado de “sonetos que não passam
de pastiches parnasianos”. Esse poema fora publicado em Carnaval (1919),
mas só depois da declamação ganhou o estatuto de manifesto modernista, pois
delimitou o fim de uma época cultural. Conforme Bandeira (1957, p. 54-55),
naturalmente a sátira dos “Sapos” estava a calhar como número de combate e,
com efeito, por ocasião da Semana de Arte Moderna, três anos depois, foi o meu
poema bravamente declamado no Teatro Municipal de São Paulo pela voz de
Ronald de Carvalho sob os apupos, os assobios, a gritaria de “foi não foi” da
maioria do público, adversa ao movimento.
Dessa maneira, Bandeira não esteve ausente dos eventos da Semana,
pois, além de ironizar o ritmo da poesia parnasiana, comparando seus autores
a sapos coachando, também teve seu poema “Debussy” posto em música por
Villa-Lobos, sob o título de “O novelozinho de linha”.
Bandeira tinha procurado transpor para o poema a maneira do autor de
La jeune fille aux cheveux de lin, em que o verso repetido: “Para cá, para lá...”
reproduzia a linha melódica inicial, que acabou sendo resgatada de forma
perfeita por Villa-Lobos:
[...] foi Villa-Lobos cem por cento e até suprimiu naquela música o nome inútil do
compositor francês, intitulando-a “O novelozinho de linha”. E ela foi cantada, não
sei se vaiada, num dos concertos de Semana de Arte Moderna. [Bandeira, 1957,
p. 77]
Depois da Semana, Bandeira caiu no gosto dos modernistas paulistanos.
E seu poema “Bonheur lyrique” foi publicado na primeira edição de Klaxon. Na
quinta edição da revista, apareceu “Poème”, futuramente incluído em
Libertinagem com o título de “Chambre vide”.
O envolvimento com o grupo paulista deu-se também em outros eventos,
como em sua participação, em 1925, no jornal A Noite, do Rio de Janeiro, cujo
organizador de colaboração era Mário de Andrade. O prestígio alcançado por
Manuel Bandeira poderá ser mais bem visualizado por intermédio da crítica da
época. Faz-se então necessário percorrermos as idéias de alguns críticos, para
vermos como receberam a obra bandeiriana.
2.2 As vozes da crítica
35
Nesse contexto modernista, Bandeira foi considerado o são João Batista
do modernismo. Receptivo a tudo o que era novo, não se filiou a nenhuma
escola, moda ou estilo, e era tido como exemplo de inovação técnica e dono de
uma escrita apurada. Aproveitando-se das revolucionárias técnicas
vanguardistas, adquiriu uma pluralidade artística marcada pelo desdobramento
de muitos recursos, combinados sempre de modo original e coerente. Ao
adotar essa liberdade artística, passou a elaborar obras de múltiplas formas
poéticas, encontradas principalmente em Libertinagem.
Bandeira descaracteriza o mundo real/comum para, em seguida,
recaracterizá-lo poeticamente. Sua poesia desafia qualquer tipo de
classificação por ser uma poesia de transgressão. O exame crítico desses
pontos tem por objetivo pôr em evidência certos aspectos da produção poética
de Manuel Bandeira e, conseqüentemente, de Libertinagem, ao longo das
décadas.
Em 1942, o escritor Mário de Andrade proferiu no Rio de Janeiro a
importante conferência sobre o movimento modernista. Para ele, a tendência
de Bandeira para o coloquial e o prosaico advém de um exercício de libertação
pessoal, responsável pelo caráter “tipográfico” dos poemas:
Raro na doçura franca de movimento. Ritmo todo de ângulos, incisivo, em versos
espetados, entradas bruscas, sentimentos em lascas, gestos quebrados,
nenhuma ondulação. A famosa cadência oratória da frase desapareceu. Nesse
sentido, Manuel Bandeira é o poeta mais civilizado do Brasil: não só pelo
abandono total do efeito gostoso, como por ser o mais [...] tipográfico de
quantos, bons,
possuímos. [Mário de Andrade,1972, p. 29]
Nos poemas de Libertinagem, sublinha Mário de Andrade, estão suas
qualidades inovadoras: “Por mais pessoais que sejam assuntos e detalhes,
mais o poeta se despersonaliza, mais é toda a gente e menos é
caracteristicamente ritmado” (1972, p. 30). O modernismo brasileiro, segundo
ele, caracteriza-se pelo sentido da experiência coletiva, a confiança no
presente, a coragem intelectual, a ousadia da experimentação, o próprio apego
à realidade prosaica e cotidiana, e a preocupação social.
Em Libertinagem, o poeta aventurou por experiências múltiplas, e, com
coragem intelectual, experimentou um novo ritmo, diferente dos caminhos até
36
então batidos, numa pesquisa de linguagem para transmitir sua interpretação
pessoal do mundo, por meio de um vocabulário, imagens e torneios que se
amoldassem às necessidades de uma expressão voltada para o cotidiano da
vida social. Essa obra traz marcas da hibridização do gênero lírico na
modernidade, transgredindo as leis da poética tradicional e as leis temáticas, o
que registra o amadurecimento do poeta para as tendências modernistas.
A formação do projeto poético de Bandeira dá-se pela constante busca de
uma poesia livre, cheia de ritmos e melodias. Ao dominar os mecanismos de
criação, alcança a liberdade, a graça, a leveza, o descompromisso, e busca o
seu próprio caminho. Anuncia-se como poeta que não se resigna à rotina
literária e faz da descoberta do cotidiano uma aventura possível.
Para Ribeiro Couto (1980, p. 49-50), em poemas de Libertinagem o
cotidiano presente “às vezes é comovente, às vezes é ridículo”, como em
“Pneumotórax”, em que recupera a “humanidade irônica de tísico”.
Mário de Andrade explica que essas características, percebidas em
Libertinagem, tiveram importância renovadora no contexto da década de 1930.
O livro revela que o bom versificador moderno não é aquele que somente tem
“a licença de não metrificar [...] imaginando que ninguém carece de ter ritmo
mais e basta ajuntar frases fantasiosamente enfileiradas pra fazer verso livre”
(Mário de Andrade,1972, p. 27).
Para Mário, Libertinagem é uma obra de “cristalização”, não da poesia,
mas da psicologia de Bandeira. Livro mais “indivíduo”, dentre os publicados
pelo poeta. Com ele, o poeta atingiu seus ideais estéticos, o que deixou bem
claro no poema “Poética”:
Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e
manifestações de apreço ao sr. diretor
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo
de um vocábulo
Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.
Libertinagem, segundo o crítico, apresenta poemas com total sonoridade,
materialização própria do som: “Manuel Bandeira é dentre os poetas vivos
nossos o que prescinde mais do som” (Mário de Andrade, 1967, p. 238).
37
O ritmo de Bandeira, para Mário (1967, p. 239), encontra-se numa poesia
que comove pela “simplicidade de expressões, acolhendo mil símbolos fiéis”, o
que pode ser visto no poema “O cacto”: belo, áspero, intratável. Esses
adjetivos reportam à “luta permanente entre essa essência ‘intratável’ do
indivíduo Manuel Bandeira e o lírico que tem nele”. Em “Poema de Finados” e
“Vou-me embora pra Pasárgada”, para o crítico (1967, p. 239), “o poeta se
generaliza tanto que volta aos ritmos menos individualistas da metrificação,
como já o fizera nas cantigas dos ‘Sinos’ e do ‘Berimbau’, no O ritmo dissoluto”.
Por ser um dos amigos próximo de Bandeira, Mário de Andrade, vinte
anos depois da Semana de Arte Moderna, analisou cuidadosamente essa obra,
tida como a cartilha dos poetas modernistas. Aí está uma poesia que transgride
para renovar, e ao renovar deixa um modelo inovador dentro da literatura
brasileira.
Como ninguém, Bandeira encarnou o academismo da poesia modernista,
desbastando-lhe os excessos e as provocações, enraizando-a na tradição dos
grandes mestres da língua e de outras línguas. Ao provincianismo modernista,
contrapôs o universalismo da poesia. Com grande sensibilidade, o poeta
recuperou a tradição e renovou a modernidade, avalia o escritor Mário de
Andrade.
Em vários poemas, como em “Evocação do Recife”, “Profundamente” e
“Poema de Finados”, a angústia da vida cheia de mazelas e o saudosismo da
infância estão presentes nas figuras familiares recuperadas pela memória. No
conjunto da obra do poeta, todavia, é possível apreender a gênese de sua
poesia. O modo de articular o aspecto social com o formal torna-se o ponto
decisivo para a interpretação de sua lírica, aspecto essencial da produção
poética marcada de “circunstâncias e desabafos”, surgida de um poeta “tão
intratavelmente individualista”, como definiu Mário de Andrade.
Uma outra importante crítica literária foi feita em nota introdutória para a
obra Estrela da vida inteira, realizada por Gilda de Mello e Souza e Antonio
Candido, em comemoração ao octogésimo aniversário de Bandeira. Sem
dúvida, um documento importante para avaliar a receptividade da crítica
brasileira à obra do poeta. Caracterizam-no como “o grande clássico da nossa
poesia contemporânea”, que, como os clássicos,
38
possui a virtude de descrever diretamente os atos e os fatos sem os tornar
prosaicos. O caráter acolhedor do seu verso importa em atrair o leitor para essa
despojada comunhão lírica no quotidiano e, depois de adquirida a sua confiança,
em arrastá-lo para o mundo das mensagens oníricas [...] [Candido; Souza, 1993,
p. 5]
Para os críticos, esse acessório retirado da realidade é despido dos
“adornos coloridos e melodiosos” dos primeiros livros, provando, assim, o
amadurecimento da poética bandeiriana, que com o tempo superou a
característica impressionista existente até então em sua obra, aprendendo “a
dissecar o elemento decisivo, para construir uma poesia ‘desentranhada’ que,
como o minerador, ‘lava o minério para isolar o metal fino’ ”.
Outras análises aludem à capacidade do poeta de adequar-se às
influências modernistas do prosaísmo, do folclore e do nivelamento dos temas.
Essas novas maneiras estão explicadas nos poemas de Libertinagem, ao
caracterizar “os objetos perdidos na fluidez crepuscular, definir os sentimentos
por um contorno nítido e ordenar uns e outros em espaços inventados ou
observados com arbítrio muito mais poderoso” (Candido; Souza, 1993, p. 6-7).
Para Souza e Candido (1993, p. 7), essa evolução “permitiu
conseqüências aparentemente contraditórias: de um lado, a adesão mais firme
ao real, reforçando a naturalidade ameaçada pela deliqüescência pós-
simbolista; de outro lado, a criação de contextos insólitos, libérrimos, parecidos
com os mundos imaginados, mas rigorosos, da arte moderna”.
Os críticos explicam que, enquanto o cotidiano é tratado de forma
sublime, na sua mais simbólica verdade, o mistério é tratado com familiaridade
minuciosa e objetiva, que o aproxima da sensibilidade cotidiana, ou seja, “o
poeta conquistou a posição-chave que lhe permite compor o espaço poético de
maneira a exprimir a realidade do mundo e as suas mais desvairadas
projeções”.
Em 1967, a partir da obra Poesia completa e prosa, Sérgio Buarque de
Holanda trata da singularidade poética de Bandeira, que advém da não-
obediência a nenhum programa definido e não se prende a nenhum
compromisso estético, ainda que atraído pelo movimento modernista. Para
Holanda (1967, p. 13), a poesia bandeiriana percorreu um longo caminho até
chegar à concretude modernista:
39
A popularidade atual de sua poesia não se fez, aliás, rapidamente, pois sujeita,
embora, a uma técnica extremamente cultivada, ela não visa ao efeito exterior, e
muitas vezes se dirige tanto ao sentimento, ao “coração”, como a regiões menos
exploradas da alma.
Holanda (1967, p. 14) declara também que o lirismo de Bandeira “não é
produto de laboratório, mas vem, como toda verdadeira poesia, de fontes
íntimas, exigindo, para realizar-se, condições que não se podem forjar
arbitrariamente”.
Sua obra é uma condensação da tradição clássica com a moderna, em
busca de novos ritmos e de total liberdade de criação. Para o crítico, essa
ambição libertadora de Bandeira “não conhece as fronteiras do ‘bom gosto’ ”.
Ao contrário, ela o impulsiona a criar em profusão, associada ao domínio da
técnica. Ele não se prende a nenhuma regra, ao contrário, molda-se livremente
às tendências da época e, com sua experiência poética, cria de acordo com o
momento cultural e histórico.
Manuel Bandeira pertence à geração que se manifesta mais ativamente
no modernismo brasileiro. Holanda (1967, p. 16) define bem como é o poeta
Bandeira:
Ele é tudo menos um fotógrafo. O mundo visível pode fornecer as imagens que
hão de animar sua poesia, mas essas imagens combinam-se, justapõem-se, de
modo imprevisto, coordenadas às vezes por uma faculdade íntima cujo
mecanismo pode escapar-nos. E escaparia, não raro, ao próprio poeta. Essa
faculdade, resistente a qualquer análise meticulosa, ajuda-o a abordar os temas
vulgares e até prosaicos, conservando-se, no entanto, inconfundível e só
aparentemente imitável.
Em “Não sei dançar”, o poeta resume toda a sua evolução anterior: “Eu já
tomei tristeza, hoje tomo alegria”; e por isso declara, em poema posterior
(“Poética”): “— Não quero mais saber do lirismo que não é libertação”.
Suas poesias são de profunda evocação, subjetivas e íntimas, como em
“Evocação”, “Profundamente”, “Poema de Finados” e “Noite morta”. Holanda
acaba por definir a trajetória da poesia bandeiriana como uma insistente luta
para transcender-se. A mudança dos elementos do mundo visível para o
mundo poético permite um tom intimista, melancólico, dependendo do estado
de alma do poeta, o que Sérgio Buarque de Holanda (1976, p. 18) sagazmente
apreende:
40
Essa transfiguração dos acidentes do mundo visível nas imagens da vida íntima
e pessoal pode adquirir, não raro, um timbre monótono, e não é para admirar se
o poeta chegou quase a desenvolver um verdadeiro sistema de referências
simbólicas, cujo sentido se alterna segundo os estados de alma que procura
refletir.
Nos poemas, há uma assimilação dos acidentes do mundo exterior, no
início, associado ao seu próprio mundo íntimo. Esse esforço decisivo para
ultrapassar essa condição inicial termina, com efeito, com uma derrota: “O meu
carnaval sem nenhuma alegria!...” A palavra alegria conjuga-se, muitas vezes,
ao constante intento de superar a própria situação particular.
Holanda conclui que, dentre todas as propostas do modernismo, as
soluções libertárias foram as que lhe pareceram corresponder à sua forma de
expressão poética. Liberdade e objetividade tornaram-se termos rigorosamente
correlatos. Manuel Bandeira jamais se deixou seduzir pelos hermetismos e
estetismos, que constituem formas aristocráticas de reclusão, intoleráveis para
quem aspira a vencer, pela poesia, sua própria reclusão e confinamento. É a
partir dessa atitude precisa, de quem sabe o que busca, que a crítica apontou
Bandeira como aquele que traz consigo uma poesia original e, portanto, um
modelo a ser seguido.
Um outro estudioso da poesia bandeiriana é Murilo Marcondes Moura,
que recupera a divisão da obra de Bandeira em três grandes momentos: o
primeiro, obras de 1917 a 1924, com vínculo neoparnasiano e neosimbolista, já
com vínculos receptivos a procedimentos modernistas; o segundo, de 1930 a
1936, obras de “cristalização” modernista; e o terceiro, de 1948 a 1963, fase de
certa estabilidade criadora, de completa maturidade. Para o crítico, essa forma
de divisão permite visualizar os momentos principais da poesia brasileira do
século XX, do chamado pré-modernismo às vanguardas da década de 1950.
Para Moura, Libertinagem é a obra de “cristalização”, uma ponte de
passagem das três primeiras obras. A proposta modernista contida nos
poemas mescla o prosaico com o poético, sendo o verso livre uma das
manifestações, como em “Poema tirado de uma notícia de jornal”. Ainda
segundo Moura, o poeta, muitas vezes, delicia-se em criar poesia, não tirando-
a de si, dos seus sentimentos, dos seus sonhos, das suas experiências, e sim
“desgangarizando-a”. Esse estilo diferente de fazer poesia relaciona-se a um
41
projeto maior de nosso modernismo, ou seja, o de representar e compreender
a realidade brasileira.
Outra importante crítica, da década de 1970, é o ensaio de Haroldo de
Campos intitulado “Bandeira, o desconstelizador”. O destaque é para a função
desconstelizadora presente na poesia de Bandeira, que atua sob duas formas:
a primeira, “como geradora da particular ‘mockery’ do poeta, em poemas de
linha coloquial-irônica”; a segunda
como suporte de certa poesia de simplicidade emocional quase tocada pela
trivialidade, que no entanto se sustenta admiravelmente em tênues linhas de
força graças ao efeito de singularidade obtido pelo poeta com o arranjo novo
dessas aparentes banalidades sentimentais. [Haroldo de Campos,1970, p. 104]
Outro crítico imprescindível para entender a atitude humilde do poeta é
Davi Arrigucci Jr. No ensaio “O humilde cotidiano de Manuel Bandeira” (1983),
editado na obra Enigma e comentário (1987), o crítico ressalta que a
compreensão dessa “atitude humilde” é um problema complexo da obra de
Bandeira.
O primeiro aspecto abordado nesse ensaio é a reação de estranhamento
e de perplexidade diante dos poemas, o que leva a questionamentos diversos
devido ao estado de completa confusão em que se encontra o leitor, ao tentar
entender sua atitude humilde. Atitude que pode ser explicada pelo desejo que o
poeta tem de “despojamento e redução ao essencial”, tanto nos temas como na
linguagem. Essa questão poder ser encarada, segundo Arrigucci, pela
convivência do poeta com a pobreza. A partir daí, o poeta adquire serenidade,
o que o leva a conceber concretamente o poético, convertendo seu modo de
ser num modo de ver a vida e de fazer a poesia. Para Arrigucci (1987, p. 10),
essa concepção primeira que Bandeira tem do fazer poético origina-se de
[...] uma atividade do espírito, em momentos de súbita iluminação, concretizada
em obras feitas de palavras. E trata-se de uma poética centrada num paradoxo:
o da busca de uma simplicidade em que brilha oculto o sublime.
Para o crítico, a simplicidade existente na poesia bandeiriana não oculta o
sublime, e sim desnuda-se por meio dela. Sua poesia nasce no mais humilde
cotidiano. Devido a essa característica, Bandeira recebeu denominações
variadas. Davi Arrigucci Jr. trata de uma simplicidade “difícil de entender”;
42
Casais Monteiro, de uma “pobreza voluntária” do Bandeira maduro; e Álvaro
Lins, da “pobreza franciscana”.
A década de 1920, de acordo com Arrigucci (1987, p. 10), foi um período
decisivo para a constituição dessa atitude fundamental, fruto de um processo
de amadurecimento do poeta, ao longo de sua experiência de vida. Essa
postura “se assemelha à prática de um artesanato interior, que se processasse
como modelagem da subjetividade em sua relação com o mundo”.
Para Arrigucci, Bandeira abandona a marca da emotividade, encontrada
nas primeiras obras, como um ser marcado pelo sofrimento, um ser elevado,
sublime, e fixa-se junto ao chão do mais humilde cotidiano. É para o mundo e
para a vida que o poeta se entrega, para doar-se plenamente na forma poética,
na qual a poesia poderá captar e mostrar seus raros momentos. É nesse
movimento que “surge um sujeito evasivo que representa propriamente uma
objetivação do eu, uma ruptura das defesas e barreiras para o exterior” (1987,
p. 12), deixando o meio circundante penetrar com ousadia no seu eu.
O poeta, declara ainda o crítico, deixa-se envolver pela liberdade da
poesia moderna, e passa a dialogar com seres e coisas do mundo, numa
linguagem comum, realizando uma dança com o acaso, de verdadeira
libertinagem. Para Arrigucci (1987, p. 12), a poesia de Bandeira nasce
no mesmo plano da materialidade do corpo, como uma autêntica “iluminação
profana”, um alumbramento. É quando se subverte a banalidade da existência, o
lugar-comum se muda num insólito mais real do que o real e se produz o
estranhamento do novo [...]
Em um outro estudo, intitulado “Humildade, paixão e morte: a poesia de
Manuel Bandeira”, Davi Arrigucci (1990, p. 52-53) revela que a afinidade
profunda entre o poeta e o aspecto da realidade só foi possível de materializar-
se poeticamente com o advento do modernismo:
[...] esse modo de conceber a literatura não se desprende da direção tomada
pela literatura brasileira durante o modernismo. Uma das características
fundamentais do período modernista, quando se define, afirma e enriquece
extraordinariamente a obra de Bandeira, sobretudo a partir de Libertinagem, na
década de 30, é que a vida de relação, tal como se mostrava no dia-a-dia, se
torna matéria literária.
Em 1993, a crítica Yudith Rosenbaum publica um importante estudo
intitulado Manuel Bandeira: uma poesia da ausência. O estudo tem como foco
43
de interesse a ausência como um tópos maior do autor. Para a crítica, a poesia
de Bandeira, de modo geral, “tematiza expressivamente uma dificuldade em
superar as perdas que marcaram a sensibilidade poética de Manuel Bandeira”
(p. 22). Essas perdas, tidas como uma “experimentação particularmente sofrida
da vida” (tuberculose precoce, perdas sucessivas de mãe, irmã, pai e irmão),
teriam alimentado um “núcleo pulsional e criativo em que o fazer poético” se
tornou “uma possibilidade de recompor a integridade perdida”. É do convívio
solitário e das experiências vividas que o poeta extrai imagens que acabam por
materializar essa “ausência”.
A obra de Bandeira, segundo Rosenbaum, percorre várias vertentes
estilísticas: parnasianismo, simbolismo, penumbrismo, as vanguardas
européias e o modernismo brasileiro. Mas é na guinada modernista que o
poeta se impõe decisivamente, incorporando e superando traços anteriores.
Para ela, Bandeira soube “safar-se de todas as camisas-de-força das várias
escolas, forjando um caminho próprio inconfundível” (p. 24).
O poeta foi invadido por “ventos renovadores” a partir de Libertinagem, já
que os aspectos modernistas são evidentes. A geração modernista teria,
segundo Rosenbaum (1993, p. 29), impregnado
o poeta de mais de trinta anos com sua revolta contra a tirania métrica, sua
mensagem irônica, coloquial, prosaica, seus exercícios lúdicos e humorísticos,
recém-saídos da “libertinagem” das vanguardas européias.
Também a estética maior bandeiriana “sempre esteve marcada por uma
postura de combate à rigidez da forma e um constante ‘experimentalismo’
consciencioso das múltiplas possibilidades lingüísticas” (p. 30). São exemplos
dessa versatilidade as incursões do poeta pelos caminhos concretistas na
década de 1950.
A poética de Bandeira, segundo a autora, mesmo depois da fase heróica
do modernismo, não abandonou o compromisso maior entre arte e realidade.
Depois da primeira fase modernista, a progressão dessa obra “mostra uma
crescente impregnação da experiência na poesia, um voltar-se à realidade
cotidiana” (1993, p. 30), na qual a poesia se torna “cada vez cheia de tudo”.
1
Há “uma recriação dos traços circundantes de forma a torná-los bandeirianos”,
1
Expressão extraída da “Canção do vento e da minha vida” (Lira dos Cinqüent’anos, 1940).
44
dando-lhes nova vida, nova essência formal no corpo da poesia. Rosenbaum
afirma ainda (1993, p. 31) que
o espírito modernista deu o instrumental necessário para Bandeira livrar-se de
um encerramento de caráter melancólico, sevindo-se dos elementos mais
libertadores para anistiar a si mesmo.
Bandeira sempre foi, para a crítica, um poeta aberto a inovações
estéticas, mas “soube preservar — e resgatar quando assim ditasse sua arte —
as aprendizagens passadas” (p. 24).
O crítico Otávio Faria (1980, p. 122), no ensaio Estudos sobre Manuel
Bandeira, explica que, em Libertinagem, “tudo fala num mesmo sentido e esse
sentido, uma palavra o sintetiza: libertação. O poeta põe resolutamente de lado
o sofrimento, decide ser feliz, livre, inconseqüente”, como afirma em “Vou-me
embora pra Pasárgada”, lugar de “reino estranho”, “onde tudo é fácil e a
existência, uma aventura ‘inconseqüente’ ”. O eu poético deixa para trás a
tristeza, o sofrimento, com suas complicações e parte para um mundo com
inúmeras possibilidades de ser feliz.
Sob a perspectiva formal, o crítico Leônidas Câmara (1980, p. 166-67),
em A poesia de Manuel Bandeira: seu revestimento ideológico e formal, afirma
que Libertinagem tem a seguinte construção formal:
[...] movimentos bruscos, de assonâncias, sinestesias, imagens incorporadas ao
círculo fechado das ideações alógicas, torneios sintáticos de geometria própria,
desvios, tortuosidades intencionais, modulações de ritmo livre. Um abandono da
estrofe de versos enquadrados, de cadência medida numa simetria de linhas
laboriosamente arranjada.
Não podemos afirmar que o poeta tivesse consciência desse projeto
maior, que marca a obra de todo artista e a faz única em comparação com as
demais. No entanto, Bandeira só conseguiu conquistar notoriedade literária no
modernismo brasileiro porque tinha absoluto domínio da técnica do verso, o
que, segundo Câmara (1980, p. 167), o ajudou a eliminar “todos os recursos
tradicionalmente padronizados de uma candíssima arte poética”. Não é
possível dissociar a obra de Bandeira do conjunto das obras modernistas, ou
45
seja, negar qualquer semelhança, já que seu projeto se adapta ao projeto
modernista e com ele busca identificação.
Ao rasurar, corrigir, trocar, eliminar, o artista a princípio não sabe bem o
que quer. Só se sabe satisfeito quando sai em busca dessa perfeição. Por isso
vai lapidando seus poemas e dando-lhes nova forma, definindo-os no corpo do
seu texto, no ato da escritura, no fazer e refazer.
Para finalizar essa trajetória com a crítica em torno da produção poética
de Bandeira, voltemos a ele mesmo, declarando-se “um poeta de
circunstâncias e desabafos”, como escreve em crônica de 1956, publicada em
Andorinha, andorinha:
No fundo, sou, apenas, por força das circunstâncias, um simples poeta lírico, um
poeta menor, que há uns cinqüenta anos não faz senão esperar a morte,
cantando as grandes tristezas e as pequenas alegrias que a vida lhe tem
proporcionado. [1966, p. 17]
Em relação à obra Libertinagem, ele a vê como uma brincadeira que o
levou a libertar-se das amarras tanto pessoais como estéticas. A partir daí,
pôde brincar com as palavras, em plena libertinagem poética. Essa obra
representa a “dissolução de regras, de fórmulas; libertinagem de matéria. Total:
liberdade. A liberdade que é a primeira condição para a libertinagem” (Couto,
1980, p. 55).
46
47
Capítulo 3 — O cotidiano em poemas de Libertinagem
Assim, em círculos afins se desenvolve a busca
real e em níveis incoincidentes a espiral dialética
da linguagem encontra as materializações que se dizem
nos textos. Textos possíveis. Sinais de transgressão.
Afins do real. Acusadores e silenciosos. O ruído da
cristalização antiestática da voz de um homem/homens.
E. M. de Melo e Castro. Círculos afins, 1977
O objetivo deste capítulo é analisar os temas da infância, da consciência
social e da morte nos respectivos poemas de Libertinagem: “Evocação do
Recife”, “Poema tirado de uma notícia de jornal” e “Poema de Finados”, para
investigar o estilo poético bandeiriano e sua transgressão com a lírica
tradicional.
Para isso, estudaremos procedimentos estilísticos como a cadência
rítmica irregular, as rimas aleatórias ou ausentes, a multiplicidade de tom e a
aproximação com a prosa. Essa análise tem como fundamentação teórica os
conceitos de “função poética”, de Jakobson; o “estranhamento”, na perspectiva
de Chklovski; a concepção de “linguagem poética” desenvolvida por Tinianov; e
a estrutura da lírica moderna segundo Hugo Friedrich e Octavio Paz. Assim,
buscaremos responder às questões norteadoras desta pesquisa: que
elementos formais ou estruturais encontrados em Libertinagem operam como
recursos poéticos para traduzir o cotidiano? como o eu poético rompe com a
métrica e a linguagem tradicional?
48
3.1 A infância: memória e presença em “Evocação do Recife”
A visão tem o poder de reorganizar o mundo, conforme o
movimento do desejo [...]
Davi Arrigucci Jr.
Os poemas de Bandeira publicados em Libertinagem trazem, com
freqüência, o cotidiano como uma de suas principais fontes temáticas, em que
a parcela do real é sentida, meditada, vivenciada numa comunhão com a
realidade objetiva e com as pessoas que o rodeiam. O interesse pela existência
em sua concretude presentifica-se em versos prosaicos e simples.
Dentro desse cotidiano, o tema da infância está presente em “Evocação
do Recife”, escrito em 1925 a pedido do amigo e escritor Gilberto Freyre, para
representar o Recife da meninice do poeta. Nota-se a busca de um ideal de
vida centrado na simplicidade, no desprendimento, no contentamento com as
pequenas coisas da vida. Vamos transcrevê-lo para as etapas de análise.
1 Recife
2 Não a Veneza americana
3 Não a Mauritssatd dos armadores das Índias Ocidentais
4 Não o Recife dos Mascates
5 Nem mesmo o Recife que aprendi a amar depois
6 Recife das revoluções libertárias
7 Mas o Recife sem história nem literatura
8 Recife sem mais nada
9 Recife da minha infância
10 A Rua da União onde eu brincava de chicote-queimado e partia as vidraças da
casa de dona Aninhas Viegas
11 Totônio Rodrigues era muito velho e botava o pincenê na ponta do nariz
12 Depois do jantar as famílias tomavam a calçada com cadeiras, mexericos,
namoros, risadas
13 A gente brincava no meio da rua
14 Os meninos gritavam:
15 Coelho sai!
16 Não sai!
17 A distância as vozes macias das meninas politonavam:
18 Roseira dá-me uma rosa
19 Craveiro dá-me um botão
49
20 (Dessas rosas muita rosa
21 Terá morrido em botão...)
22 De repente
23 nos longes da noite
24 um sino
25 Uma pessoa grande dizia:
26 Fogo em Santo Antônio!
27 Outra contrariava: São José!
28 Totônio Rodrigues achava sempre que era São José.
29 Os homens punham o chapéu saíam fumando
30 E eu tinha raiva de ser menino porque não podia ir ver o fogo
31 Rua da União...
32 Como eram lindos os nomes das ruas da minha infância
33 Rua do Sol
34 (Tenho medo que hoje se chame do Dr. Fulano de Tal)
35 Atrás de casa ficava a Rua da Saudade...
36 ... onde se ia fumar escondido
37 Do lado de lá era o cais da Rua da Aurora...
38 ... onde se ia pescar escondido
39 Capiberibe
40 Capibaribe
41 Lá longe o sertãozinho de Caxangá
42 Banheiros de palha
43 Um dia eu vi uma moça nuinha no banho
44 Fiquei parado o coração batendo
45 Ela se riu
46 Foi meu primeiro alumbramento
47 Cheia! As cheias! Barro boi morto árvores destroços redemoinho sumiu
48 E nos pegões da ponte do trem de ferro os caboclos destemidos em jangadas de
bananeiras
49 Novenas
50 Cavalhadas
51 Eu me deitei no colo da menina e ela começou a passar a mão nos meus cabelos
52 Capiberibe
53 Capibaribe
54 Rua da União onde todas as tardes passava a preta das bananas
55 Com o xale vistoso de pano da Costa
56 E o vendedor de roletes de cana
57 O de amendoim
58 que se chamava midubim e não era torrado era cozido
59 Me lembro de todos os pregões:
60 Ovos frescos e baratos
61 Dez ovos por uma pataca
62 Foi há muito tempo...
63 A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros
64 Vinha da boca do povo na língua errada do povo
65 Língua certa do povo
66 Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil
67 Ao passo que nós
50
68 O que fazemos
69 É macaquear
70 A sintaxe lusíada
71 A vida com uma porção de coisas que eu não entendia bem
72 Terras que não sabia onde ficavam
73 Recife...
74 Rua da União...
75 A casa do meu avô...
76 Nunca pensei que ela acabasse!
77 Tudo lá parecia impregnado de eternidade
78 Recife...
79 Meu avô morto.
80 Recife morto, Recife bom, Recife brasileiro como a casa de meu avô.
Nesse poema, estão postas algumas características que revolucionaram
a prosa moderna: um olhar pautado na experiência de espaço/tempo que se
dissipou, convertendo-se em memória viva, do adulto que apreende o mundo.
O mundo da infância está estreitamente associado a um cenário simples e
provinciano, anterior a qualquer sofisticação imposta pelo progresso. O retorno
à inocência original, evocada pelas reminiscências do adulto e transfigurada
pela poesia, permite emergir uma emoção particular: o sentimento poético.
Portanto, é um poema altamente lírico, carregado de sentimentos puros e
espontâneos como os bêbados (“Poética”), e não tirados dos manuais de
cartas, mas da observação de fatos cotidianos brasileiros, como as
brincadeiras, as enchentes e os pregões dos ambulantes.
A análise do poema, para maior clareza, foi organizada em dois aspectos
centrais: a transgressão estilística e a temática. Quanto ao primeiro,
destacamos a estrutura fragmentária — na alternância de versos longos com
curtos, nos espacejamentos da página em branco, na ausência de pontuação,
nas enumerações; em seguida, recuperamos a seqüência textual dos versos
soltos e livres que remetem ao caráter vago e intuitivo da memória, espaço em
que as imagens brotam espontaneamente, sem controle rigoroso de seleção,
de ordenação e de organização.
Quanto ao aspecto temático, abordaremos a poesia de reminiscência, em
seis momentos memorialísticos: a abertura do poema; o exame do Recife; as
impressões pessoais mais patentes; em tom de crônica, o poeta mira o Brasil;
a consciência do homem em relação à poesia; o lamento e a reflexão sobre a
passagem do tempo.
51
Essa abordagem centra-se em duas perspectivas: a mítica, nostalgia da
origem, a saudade; e a memorialística, atualização — do eu poético que se
expressa na forma da coexistência entre o passado e o presente, entre o
menino e o adulto.
3.1.1 Transgressão estilística: a liberdade poética
“Evocação do Recife” é um exemplo de revolução contra a poesia
tradicional brasileira. Pode ser comprovada no uso da linguagem coloquial, na
valorização do cotidiano até então inadmissíveis na obra literária, sobretudo em
versos.
A introdução da língua falada na obra literária é um dos recursos mais
utilizados por Bandeira. A língua falada, por ser espontânea, não está sujeita à
racionalidade, o que a torna coerente com a ideologia romântica do século XIX,
que buscava a liberdade da expressão individual. Com o advento do
modernismo, essa transposição da língua falada para a escrita literária ganhou
lugar privilegiado entre os poetas brasileiros, e principalmente em Bandeira.
Essa forma de escrita poética provocou no leitor um certo estranhamento
em relação ao objeto representado. O eu poético transpõe o universo comum,
rotineiro, habitual, para uma esfera de novas percepções: um cotidiano recriado
a partir do olhar artístico. Para Chklovski (1971, p. 34), “a função do artista
moderno é de destruir os clichês e as associações estereotipadas, impondo
uma complexa percepção sensorial do universo”.
Temos um poema visivelmente transgressivo em relação à estética
tradicional, portanto, moderno. Na época de sua criação, alguns dos poetas
ainda seguiam o modelo parnasiano, criavam poemas metrificados, com
vocabulário castiço, cuja qualidade era medida pelas rimas ricas e raras. Hoje,
não parece tão moderno ou transgressivo, porque a forma prosaica de
Bandeira já está completamente assimilada pelos poetas contemporâneos,
como se reconhece, por exemplo, na música popular, e também na literatura
de hoje. O leitor vê-se diante de uma estrutura poética que conecta seus
elementos de forma fragmentada, rompendo com o automatismo receptivo da
linguagem comum, e chamando sua atenção para a função verdadeira da arte,
52
que é, usando as palavras do crítico Jakobson, a “deformação organizada” da
língua comum pela língua poética (apud Eikhenbaum, 1971, p. 58).
O uso de versos longos é freqüente na poesia de Manuel Bandeira. Com
esse procedimento, o poeta transfere para o texto literário uma propriedade da
fala, que se distancia com freqüência da linguagem formal pela flexibilidade
maior que apresenta em termos de organicidade. Além disso, o verso longo
reforça a noção de livre expressão do pensamento, pois o fluxo alonga-se
duplamente livre: primeiro, pela vazão “sem amarras” da subjetividade,
segundo, graficamente “livre”, pelo rompimento dos limites do verso
metrificado.
A linguagem é simples, coloquial, pois, segundo o texto, o povo fala
gostoso o português do Brasil, que é empregado no poema. Não há
preocupação com rima ou métrica, apenas com a disposição gráfica dos versos
e com as expressões de um lirismo profundo, de modo a impregnar o presente
de seu Recife tão brasileiro e inesquecível.
O quadro histórico-literário, segundo o crítico Yuri Tinianov (1975, p. 11-
12), só pôde ser mudado com
uma nova interação, e não simplesmente a introdução de um fator qualquer por
si próprio. O uso de um metro gasto (desgastado em conseqüência de uma
associação marcada, habitual, com o sistema tônico da frase e com certos
elementos lexicais), em interação com novos fatores, renova aquele metro,
desperta nele novas possibilidades construtivas. Do mesmo modo o princípio
construtivo do metro se fortalece com a introdução de novos esquemas métricos.
Esses novos esquemas métricos são possivelmente encontráveis nos versos
dos poemas manuelinos. Ao usar o verso livre e elementos considerados até
então apoéticos, Bandeira renova a poesia brasileira.
“Evocação” é um poema gráfico-visual, portanto, concreto, com
movimentos cinematográficos. Um poema estruturado por estrofes-fotogramas,
no qual o leitor fixa o olhar simultâneo ao longo do recorte de versos, no
espaço da página. Nesse sentido, podemos dizer que Bandeira cria uma
poética de transgressão. O caráter vago e intuitivo das evocações é expresso
por uma linguagem em que predomina a organização paratática, na qual as
imagens não obedecem a uma conexão lógica. Nesse caso, o texto literário,
em sua aparente dispersão, assume os traços de um monólogo interior. Por
53
exemplo, do verso 10 ao 12, a atitude dispersiva do falante projeta-se na
estrutura fragmentária, constituída de imagens “soltas”:
10 A Rua da União onde eu brincava de chicote-queimado e partia as vidraças
da casa de dona Aninha Viegas
11 Totônio Rodrigues era muito velho e botava o pincenê na ponta do nariz
12 Depois do jantar as famílias tomavam a calçada com cadeiras, mexericos,
namoros, risadas
Pela extensão do enunciado sem pontuação — verso mais alongado —, o
poeta registra, no verso 10, com a espontaneidade da fala, episódios da
infância.
No verso 12, há o registro de antigos valores, que desapareceram. Essas
características também são encontradas em outros versos:
54 Rua da União onde todas as tardes passava a preta das bananas
55 Com o xale vistoso de pano da Costa
57 O de amendoim
58 que se chamava midubim e não era torrado era cozido
A fala presente que recupera os episódios infantis do eu poético acentua
a impressão de oralidade, principalmente, os versos longos contidos nesse
poema.
Encontramos, também, do verso 13 ao 16, o termo gente, que remete a
uma situação de fala no texto literário:
13 A gente brincava no meio da rua
14 Os meninos gritavam:
15 Coelho sai!
16 Não sai!
O mesmo ocorre com certas colocações pronominais, do tipo “onde se ia”
(versos 36 e 38), “ela se riu” (verso 45), “me lembro” (verso 59), características
do registro coloquial dessa linguagem.
Ao rememorar episódios da infância, o eu poético registra os gritos,
emitidos pelas crianças nas brincadeiras e nas cantigas, intercalados aos
pregões de rua:
17 A distância as vozes macias das meninas politonavam:
18 Roseira dá-me uma rosa
19 Craveiro dá-me um botão
20 (Dessas rosas muita rosa
21 Terá morrido em botão...)
54
59 Me lembro de todos os pregões:
60 Ovos frescos e baratos
61 Dez ovos por uma pataca
No verso 17, o uso do pretérito imperfeito reforça o desejo de interação
entre o passado e o presente. A organização sintática recupera o discurso
popular, trazendo a oralidade para o texto literário. O poeta também recorre a
uma ortografia própria, a fim de estabelecer um diálogo entre a linguagem
escrita e a oral, como na substituição de “amendoim” por “midubim”:
56 E o vendedor de roletes de cana
57 O de amendoim
58 que se chamava midubim e não era torrado era cozido
A entonação expressiva é marcada pela pontuação: os pontos de
exclamação registram as modulações melódicas da fala, decorrentes de
atitudes emotivas, como podemos notar no verso abaixo:
76 Nunca pensei que ela acabasse!
Outro sinal gráfico que assinala uma situação de fala são os parênteses,
que remetem à presença de uma voz no interior do texto, de um comentário, de
uma reflexão ou de uma observação. Com esse mecanismo, o poeta coloca em
destaque o processo de enunciação, recuperando a linguagem em seu
dinamismo, pressupondo uma situação real de fala.
20 (Dessas rosas muita rosa
21 Terá morrido em botão...)
34 (Tenho medo que hoje se chame do Dr. Fulano de Tal)
Processos enumerativos e repetitivos também são comuns na linguagem
poética de Manuel Bandeira. Trata-se de recursos freqüentemente utilizados
pelo falante, que recorre, muitas vezes, à simples repetição ou enumeração
dos signos lingüísticos, sem conectivos lógicos ou coesivos.
Por meio da elipse — de conectivos, verbos e substantivos —, o poeta
também recupera uma característica da fala. Vejamos nos versos abaixo:
25 Uma pessoa grande dizia:
26 Fogo em Santo Antônio!
27 Outra contrariava: São José!
28 Totônio Rodrigues achava sempre que era São José.
29 Os homens punham o chapéu saíam fumando
55
30 E eu tinha raiva de ser menino porque não podia ir ver o fogo
Os nomes próprios, por exemplo, aparecem em número expressivo.
1
Neles, o poeta procura o que há de sugestivo, de curioso, de inusitado. Os
nomes de ruas, por sua vez, estão, neste poema, associados às experiências
infantis, como revelam esses versos:
31 Rua da União...
32 Como eram lindos os nomes das ruas da minha infância
33 Rua do Sol
34 (Tenho medo que hoje se chame do Dr. Fulano de Tal)
Esse interesse de Bandeira por determinados vocábulos, que atraem
justamente por sua estranheza, pelo que comportam de sugestivo, de
impreciso, de misterioso, está presente ao longo de sua obra.
As expressões da linguagem popular são muitas na poesia de Manuel
Bandeira. Os efeitos irônicos e humorísticos da lírica bandeiriana são
resultantes do emprego de exemplos de gírias, trocadilhos, frases feitas,
tirados da oralidade. Trata-se de uma linguagem que, ao mesmo tempo, traduz,
no plano existencial, uma atitude de indiferença, de irreverência. No plano
lingüístico, constitui uma ironia com o gosto clássico, do purismo lingüístico, do
bom-tom parnasiano. Como salienta o próprio autor:
A mim sempre me agradou, ao lado da poesia de vocabulário gongorinamente
seleto, a que se encontra não raro na linguagem coloquial e até na do baixo
calão. Assim, a expressão “ficar safado da vida”, em que o adjetivo “safado” só
pode ser superado por outro que não se deve escrever, continua para mim
preservando, na sua condição de lugar-comum, a mesma virtude inicial.
[Bandeira, 1957, p. 92]
Esses exemplos mostram a consciência de Bandeira em relação à carga
lírica da linguagem cotidiana, que, em seu projeto poético, busca resgatar em
sua obra. Além disso, as expressões de cunho popular, eleitas por ele,
comportam algo de extravagante, de irreverente, contribuindo para a veia
humorística.
Um dos principais recursos estilísticos de que Manuel Bandeira se vale
para dar um tom de oralidade aos seus poemas provém da aproximação do
texto escrito com a fala popular, buscando a entonação dos falantes não
1
Dentre os nomes próprios podemos contar quinze: Recife, Veneza, Mauritssatd, Rua da União,
Totônio Rodrigues, Rua do Sol, Rua da Saudade, Rua da Aurora, Capibaribe, Caxangá, Novenas,
Cavalhada, Costa e Aninha Viegas.
56
letrados. Nesse sentido, o verso livre constitui o primeiro passo na busca dessa
representação da oralidade no texto literário. A partir de seu uso, diversas
experiências são mobilizadas em termos de ritmo e de linguagem, num
verdadeiro trabalho de estilização do coloquial. Os deslocamentos, os espaços
em branco, as fragmentações, são conscientemente utilizados e visam imitar,
no plano da expressão literária, o discurso fragmentado do falante, que
dispensa os nexos lógicos e coesivos, por contar com o auxílio da situação e
dos gestos. Além disso, privilegia-se o plano gráfico-visual do poema, ou seja,
a espacialidade da página.
Ao analisar o fragmentarismo da lírica moderna, Friedrich (1991, p. 153)
explica a estrutura fragmentada do poema como uma “hostilidade à frase”, o
que contribui para a originalidade da expressão poética:
Quanto menos tradicional a poesia queira ser, tanto mais se distancia da frase
como forma tradicional articulada pelo sujeito, objeto, predicado verbal,
preposição etc. Ante a lírica moderna pode-se até mesmo falar de uma
hostilidade à frase, cujos fenômenos, aliás, também se poderiam descrever do
ponto de vista do fragmentarismo.
Em “Evocação do Recife”, o deslocamento de segmentos rítmicos para o
canto da página remete a um gesto do falante, que é a confidência, a revelação
em segredo:
35 Atrás da casa ficava a Rua da Saudade...
36 ...onde se ia fumar escondido
37 Do lado de lá era o cais da Rua da Aurora...
38 ...onde se ia pescar escondido
Esse recurso também é utilizado, no verso 46, para a confissão da
primeira experiência erótica, no mesmo poema:
43 Um dia eu vi uma moça nuinha no banho
44 Fiquei parado o coração batendo
45 Ela se riu
46 Foi o meu primeiro alumbramento
Os vários recursos estilísticos usados, como versos longos e curtos,
espacejamentos, não-pontuação, expressões da linguagem popular, oralidade,
verso livre, parataxe, processos enumerativos e repetitivos, ajudam o eu
poético a transformar a linguagem cotidiana e as situações diárias em
elementos poéticos. Bandeira consegue, com maestria, atingir os objetivos
57
propostos pelos modernistas, criando uma poesia transgressora, que rompe
com a estética parnasiana.
A palavra escultória, de que Bandeira é exemplo, fala da verdadeira
essência da poesia, que é a corporação da palavra. Na tentativa de transformar
a palavra — que é signo por convenção — numa escultura, por meio do cinzel
do poeta, materializa-a num ser poético. Uma palavra que não representa, mas
que seja o máximo possível colocada ao ser. É o estranho encontro do homem
com o outro, encontro catártico, que ocorre em “Evocação do Recife”, como um
defragador epifânico.
3.1.2 Transgressão temática: imagens memorialísticas
Nas evocações do Recife, o eu poético traz a região do Nordeste por
intermédio das paisagens de outrora e das personagens, que compõem sua
mitologia pessoal. Essas evocações são marcadas pela recorrência de versos
fragmentados como “porções sensíveis do passado”.
O título, “Evocação do Recife”, antecipa ao leitor o tema do poema: o
resgate por meio da evocação da infância vivida na capital de Pernambuco; a
cidade que se preservou na memória do homem adulto. A palavra evocação
deriva do verbo evocar, do latim evocatione, que significa “chamar a si”,
“recordar”, “relembrar”. O eu poético inicia um processo mágico que o
transporta a um passado remoto, da “infância feliz” vivida nos primeiros anos
de vida, fundamentais para a formação do homem adulto que rememora. Ele
reconquista o tempo passado — infância —, por meio de grandes momentos
memorialísticos.
Nos oitenta versos, numa “correnteza de recordações”, as imagens e
vultos da infância retornam com força total, trazendo de volta um tempo bom da
vida. O eu poético recorda, assim, esses momentos com ternura, como se
fosse ainda o menino que brincava na rua. É no decurso dos versos,
agrupados em recortes memorialísticos, que tentaremos visualizar o mosaico
das reminiscências infantis, geradas na memória do poeta.
1.
o
recorte memorialístico: abertura do poema
58
No primeiro verso deste recorte memorialístico, o eu poético define para o
leitor o foco/tema do poema: a infância na cidade do Recife:
1 Recife
Esse verso inicial propõe uma definição, uma síntese, como a abertura de
um verbete. Mas, na verdade, são as reminiscências do poeta. Chama pelo
“seu Recife”, lugar inicial de sua meninice. Depois dessa evocação, nos versos
subseqüentes, elucida, por paralelismo semântico, indicado pelo advérbio de
negação — Não —, o que não quer evocar:
2 Não a Veneza Americana
O eu poético exclui, no verso acima, o lugar-comum (senso comum,
convencional) — “Veneza americana” —, cuja associação vem do fato de os
rios Capibaribe e Beberibe estarem incorporados à paisagem da cidade de
Recife, dividindo-a em três bairros, retirando a idéia de dependência de uma
imagem exterior, estrangeira, ou seja, ele nega o filtro europeu.
Nos versos:
3 Não a Mauritssatd dos armadores da Índias Ocidentais
4 Não o Recife dos mascates
novamente, há uma negação do estrangeirismo, mas aqui também a recusa é
ao sentido “histórico” — Mauritssatd, que significa “Cidade de Maurício”, é uma
alusão ao período de dominação holandesa no Recife, governado por Maurício
de Nassau. O “Recife dos mascates” é uma referência à Guerra dos Mascates,
ocorrida em Pernambuco no início do século XVIII, envolvendo os mascates
em luta pela independência de Recife e os senhores de engenho de Olinda —,
a História maior, do período de dominação estrangeira da cidade que ele ama,
justamente, por ser tão brasileira. E segue:
5 Nem mesmo o Recife que aprendi a amar depois
6 Recife das revoluções libertárias
O contexto histórico é retomado no verso 6, ao dirigir-se às “revoluções
libertárias”, alusão à Revolução Praieira (1848-49), de caráter liberal, quando o
povo se rebelou contra os latifundiários e os comerciantes portugueses. A
59
cidade é tida como um espaço de transformação, tanto que separa em dois
tempos (“aprendi a amar”/ “depois”). Essas transformações são vividas e
revividas pelo eu poético, nos versos a seguir:
7 Mas o Recife sem história nem literatura
8 Recife sem mais nada
9 Recife da minha infância
No verso 7, o eu poético se refere ao Recife inocente, como a infância,
sem impregnar-se de história e sentido “pensado”, “racional”, um Recife de
sensações, de primeiras impressões sobre o mundo, de formação. A expressão
— “sem mais nada” — do verso 8 não tem sentido pejorativo, mas está
esvaziada de todo conceito; isso para chegar à essência do que, para o poeta,
foi Recife, o Recife essencial da experiência empírica da criança e a rua das
cidades, das descobertas, das epifanias advindas das experiências sutis:
pessoais, subjetivas. O verso 9 fecha a abertura do poema com a definição
precisa de seu foco. Todos os versos anteriores seguem em negação, uma
afirmação precisa: “Recife da minha infância”. O pronome possessivo minha
particulariza a cidade, sua impressão é filtrada por uma forte subjetividade, e
não se faz “racionalmente”, mas por meio de instantâneos, impressões rápidas,
sempre envolvendo “pessoas” e sua relação com a “cidade”. O provinciano dá
a tônica da pureza da infância, um mundo ainda não tocado por uma
consciência crítica, mas dado pela apreensão dos sentidos.
Esse primeiro momento aproxima a abertura do poema de um prólogo,
semelhante ao processo épico, para anunciar o tema que será desenvolvido.
Após uma série de exclusões, o poeta acaba definindo o foco de seu poema:
trata-se de um olhar amoroso, não do Recife atual, moderno, mas do passado
provinciano. Será, portanto, alvo de seu canto, de sua “saudosa”
celebração/evocação, a cidade da sua infância. Para isso, primeiro
desmistifica-a para, em seguida, particularizá-la com uma série de imagens e
impressões tiradas da memória, de sua experiência “pessoal”, que,
contraditoriamente, singulariza e universaliza a experiência da infância.
Desde a abertura do poema, o eu poético enuncia o objeto de sua
exaltação, sem explicá-lo. A ele, não interessam os fatos históricos contidos
nos livros didáticos, mas o espaço das primeiras aventuras, das experiências
60
amorosas, das primeiras frustrações, primeiras descobertas, ou seja, o nada
que é tudo: Recife.
2.º momento memorialístico: exame do Recife
O eu poético segue para o segundo momento, do verso 10 ao 62,
descrevendo com pormenores os instantâneos da vida cotidiana da época da
infância. Esses versos podem ser entendidos como expressão que pressupõe
a reminiscência propriamente dita, invade o eu lírico no momento presente,
como se ele estivesse, pelo fluxo da consciência, caminhando pelas ruas de
sua meninice, palco das inesquecíveis brincadeiras. Ao relembrá-las,
associam-se a elas diversas figuras dessa fase de sua vida: Totônio Rodrigues,
Aninha Viegas, a preta das bananas, os vendedores de rolete de cana e de
amendoim, a rua da União, rua do Sol, o rio Capibaribe, o sertãozinho de
Caxangá e a casa do avô.
Como afirma Octavio Paz (1982), em O Arco e a Lira, a poesia também é
recordação. A partir do silêncio, da palavra em branco, a palavra poética nasce
e se reitera à criação. A fronteira do tempo — passado/presente — se rompe,
porque “o tempo da poesia é o tempo de antes do tempo, o da ‘vida’ anterior,
que reaparece no olhar da criança, o tempo sem datas” (Paz, 1984, p. 67).
Portanto, a enorme incidência do pretérito imperfeito (“brincava”, “botava”,
“tomavam” etc), contida nos versos 10 ao 12, indica ações passadas,
prolongando-se no tempo — efeito da atualização desses momentos alegres:
10 A Rua da União onde eu brincava de chicote-queimado e partia as vidraças
da casa de dona Aninhas Viegas
Manuel Bandeira (1957, p. 12-13) disserta, em Itinerário de Pasárgada,
sobre as figuras humanas citadas no poema:
Dos seis anos aos dez anos, nesses quatro anos de residência no Recife, com
pequenos veraneios nos arredores — Monteiro, Sertãozinho de Caxangá, Boa
Viagem, Usina do Cabo — construiu-se a minha mitologia, e digo mitologia
porque os seus tipos, um Totônio Rodrigues, uma Dona Aninha Viegas, a preta
Tomásia, velha cozinheira da casa de meu avô Costa Ribeiro, têm para mim a
mesma consistência heróica das personagens dos poemas homéricos.
A partir desse verso, inicia-se uma espécie de crônica da infância, em que
se recorda do espaço, das brincadeiras e das figuras humanas. O discurso
61
parece truncado, precisando ser completado, mas encontramos um rol de
impressões rápidas, descrições subjetivas, um rol memorialista:
11 Totônio Rodrigues era muito velho e botava o pincenê na ponta do nariz
12 Depois do jantar as famílias tomavam a calçada com cadeiras, mexericos,
namoros, risadas
Outra figura que simboliza o passado está marcada com o vocábulo
pincenê — verso 11. Uma certa identificação do eu poético com a velhice. O
verso distende-se como o anterior, sem ponto final, em aberto, mas não é
desconexo, funciona como uma “impressão“, um instantâneo da memória,
como uma fotografia.
O uso dos verbos no passado reforça o tom de
rememoração/reminiscência. No verso 12, novamente há uma crônica, o eu
poético examina um tempo, pontua os comportamentos, os hábitos, as
relações interpessoais:
13 A gente brincava no meio da rua
Esse verso coloquial, devido ao uso da expressão “a gente”, traz consigo
uma ambigüidade, que tanto mira os outros externamente — “a
gente”/“eles”/“as crianças” — como inclui o eu poético no grupo, “a gente”: nós,
“crianças”.
A rápida alternância de ritmo e andamento — versos longos, líricos
(flashes da memória), seguidos de afirmações curtas, deliberadamente
subentendidas —, juntamente com as orações coordenadas, indica a estrutura
fragmentada do poema, o que cria imagens das reminiscências infantis,
desentranhando-se a partir do cotidiano e que aflora na consciência do adulto.
14 Os meninos gritavam:
15 Coelho sai!
16 Não sai!
Nesses versos, a crônica e as brincadeiras infantis são inseridas com
verbos no presente, para introduzir uma celebração e recuperar uma
pluralidade de vozes. A estrutura fragmentada é representada pelas
brincadeiras infantis (“chicote-queimado”), pelas figuras humanas que povoam
o imaginário do poeta (“Aninha Viegas”, “Totônio Rodrigues”) e pelas situações
62
comuns da vida cotidiana, “cadeiras nas calçadas”, “mexericos”, “namoros”,
“risadas”.
17 A distância as vozes macias das meninas politonavam:
18 Roseira dá-me uma rosa
19 Craveiro dá-me um botão
A crônica ganha dimensões variadas, como se observa no verso 17. O
verbo politonar cria estranhamento, porque registra em léxico-padrão a idéia de
canto em vários tons. Em “vozes macias”, há a ocorrência da sinestesia, macia
é uma impressão tátil e não sonora. Os versos 18 e 19 inserem a cantiga
infantil, que hoje é considerada folclórica. Os versos 20 e 21:
20 (Dessas rosas muita rosa
21 Terá morrido em botão...)
postos entre parênteses e com uso de reticências, surgem como inserção de
um comentário do “homem já adulto”. O futuro reforça o comentário
endereçado ao “leitor”. A partir do comentário, a cantiga infantil ganha novo
significado. A rosa em botão são meninas que não envelheceram, que
morreram jovens, ou seja, diferentes do “eu poético”, que envelheceu, e
recorda o passado.
Uma característica temática importante são os pormenores históricos e
geográficos, que, arrolados, referem não só ao sujeito lírico, mas também ao
que o abrange. As personagens e os acontecimentos da cidade têm como
núcleo a vida do eu menino, mas possuem amplidão social, pois acabam
refletindo a própria vida na então província:
22 De repente
23 nos longes da noite
24 um sino
Os três versos acima, que poderíamos contar como um, porque
espacialmente fragmentados, mas conectados pela lógica textual, reconduzem
o discurso do eu poético para o passado, fazem com que retorne às
impressões da infância. Quebram igualmente a possível monotonia do
discurso, introduzindo um fragmento prosaico, ou melhor, inserem uma
narração breve, uma “cena” com direito ao discurso direto.
63
O jogo tipográfico desses mesmos versos remete-nos à poesia
concretista. O efeito de ruptura e retomada de atmosfera é alcançado por esse
jogo, ao dispor as palavras de modo a aproveitar o espaço em branco da
página. Esse aspecto acentua o fato de Bandeira ter sido um dos poucos
modernistas a apoiar a experiência dos poetas concretistas, na década de
1950.
O eu poético, nos versos 22, 23 e 24, chama a atenção do leitor para os
ecos do som do sino, espacialmente localizado no alto, como que ecoando pela
noite — memória. De maneira geral, os dois planos se fundem: o objetivo —
ligado à própria cidade — e o subjetivo — ligado às recordações de infância do
sujeito lírico. Da intersecção entre esses dois planos, surge o poético ou a
objetivação da reminiscência.
Uma “pessoa grande” reforça o coloquialismo do verso e também a idéia
de “visão infantil”, que chama o adulto/mais velho de “pessoa grande”:
25 Uma pessoa grande dizia:
26 Fogo em Santo Antônio!
27 Outra contrariava: São José!
28 Totônio Rodrigues achava sempre que era São José.
Novo comentário subjetivo reitera a importância de Totônio Rodrigues na
visão do menino. A importância dessa observação ficou registrada no Itinerário
de Pasárgada (1957, p. 87):
Na “Evocação” já havia mencionado o nome de Totônio Rodrigues, que “era
muito velho e botava o pince-nez na ponta do nariz”. Esse Totônio era sobrinho
de meu avô e me parecia muitíssimo mais velho do que ele. Não sei se foi isso
ou a maneira de usar o pince-nez, ou o jeito de falar que o marcou tão
profundamente na minha memória.
O eu poético segue o fluxo da memória. No verso 29, a presença de um
assíndeto aponta para a falta de conexão entre as frases, materializando o
fluxo da memória. No verso 30, surge o eu individualizado, confirmando sua
posição de menino, e a frustração de não poder gozar da liberdade completa
dos adultos.
O mundo da infância, evocado por esse incessante fluir da memória, fica
num plano intemporal, fora dos limites humanos e cronológicos, numa
dimensão interior e subjetiva, própria da fantasia poética. O uso do imperfeito,
em verbos com “brincava”, “ficava”, “passava” e outros, contribui para essa
64
penetração do passado no presente, permitindo que o poeta reviva, no plano
da interioridade, o que não pode no plano da experiência concreta. Cria uma
espécie de crônica, mirando uma infância precisa, até passível de ser
determinada:
29 Os homens punham o chapéu saíam fumando
30 E eu tinha raiva de ser menino porque não podia ir ver o fogo
3.
o
momento memorialístico: impressões pessoais mais patentes
Não foram somente pessoas que ficaram marcadas na memória do eu
poético, mas também nomes de rua de enorme expressividade, que aqui no
poema, do verso 31 ao 38, estão freqüentemente associados a momentos de
sutil felicidade:
31 Rua da União...
A rua da União é citada pela segunda vez, agora enfaticamente, graças
às reticências, que assumem o sentido de saudosismo, pois se dissolve como
um suspiro. A rua da “União” parece materializar a própria infância:
32 Como eram lindos os nomes das ruas da minha infância
Da crônica para a impressão pessoal, o comentário passa a revelar o
amor pelas palavras, nomear o mundo e as pessoas, trazendo-as de volta.
Perder/mudar o nome é assumir a passagem, perder o passado:
33 Rua do Sol
34 (Tenho medo que hoje se chame do Dr. Fulano de Tal)
Os nomes das ruas “União”, “Sol”, ”Saudade”, “Aurora” reforçam a idéia
de valores humanos e apontam para o princípio das coisas essenciais, não
contaminadas pela “história” e por isso puras, essenciais: “sol”, “aurora”. No
verso 34, o uso dos parênteses para um comentário pontual marca uma
impressão do presente, reforçado pelo “que foi”, já uma consciência crítica
sobre os eventos do passado. Os parênteses refletem a fala do homem adulto,
que revela seu distanciamento da cidade do Recife, pois já não sabe como
está, só a “geografia” reside na memória:
35 Atrás de casa ficava a Rua da Saudade...
65
36 ...onde se ia fumar escondido
37 Do lado de lá era o cais da Rua da Aurora...
38 ...onde se ia pescar escondido
Os versos anteriores são paralelísticos, pois seguem a mesma estrutura
sintática e podem ser “atados” aos versos que se fecham junto aos que se
abrem em reticências. O uso espacial da página determina o cadenciamento
mais pausado na leitura, a repetição reforça a noção de mundo “harmônico”,
pacífico, constante. As transgressões “fumar escondido”/“pescar escondido”
reforçam também a noção de permeio entre a ordem e a liberdade. Por usar
formas impessoais, o eu poético mostra que não há censura na transgressão,
elas são vistas como naturais, como “libertinagem”, no sentido de liberdade
ativa, para a descoberta do mundo.
Esses procedimentos poéticos despertam no leitor a impressão de
anormalidade, o que causa estranheza e lembra uma característica crônica dos
poetas modernos: a não-assimilabilidade. Os fenômenos da lírica
contemporânea, segundo Friedrich (1991, p. 18), devem ser qualificados de
anormais. Entende-se que “ ‘anormal’ não é um juízo de valor e não significa
‘degenerado’ ”.
A normalidade da lírica moderna se faz necessária, no caso deste poema,
para que as situações comuns da vida cotidiana — como os mexericos, os
namoros, as risadas, o comércio ambulante, os pregões, as comemorações
das festas típicas — possam constituir um exemplo de vida autêntica, cheia de
calor humano, de atitudes descontraídas e espontâneas, de gestos simples e
provincianos, opostos ao tempo presente, repleto de rigor, de subserviência às
convenções. A verdadeira função cardinal da poesia é, para Paz (1984, p. 75),
“nos mostrar o outro lado das coisas, o maravilhoso cotidiano: não a
irrealidade, mas a prodigiosa realidade do mundo”.
Nesse contexto, a alternância vocálica presente marca outra lembrança:
39 Capiberibe
40 — Capibaribe
No plano musical, corresponde a uma dissonância: “[...] Capiberibe, a
primeira vez com e, a segunda com a, me dava a impressão de um acidente,
66
como se a palavra fosse uma frase melódica dita na segunda vez com bemol
na terceira nota” (Bandeira, 1964, p. 64).
A memória muda os nomes, o primeiro está incorreto, o segundo reafirma
a palavra (“travessão indica a fala”), quando o eu poético se corrige. As duas
formas de grafar o nome do rio devem-se, também, a um incidente de aula,
quando o poeta era aluno de José Veríssimo, professor de geografia no
Ginásio Nacional. Bandeira (1967, p. 64) declara:
José Veríssimo. Ótimo professor [...] sempre nos ensinava em cima do mapa e
de vara em punho. Certo dia perguntou à classe: “Qual é o maior rio de
Pernambuco?”. Não quis eu que ninguém se me antecipasse na resposta e gritei
imediatamente do fundo da sala: “Capibaribe”! Capibaribe com a, como sempre
tinha ouvido dizer no Recife. Fiquei perplexo quando Veríssimo comentou, para
grande divertimento da turma: “Bem se vê que o senhor é um pernambucano!”
(pronunciou “pernambucano” abrindo bem o e) e corrigiu: “Capiberibe”. Meti a
viola no saco, mas na “Evocação” me desforrei do professor...
Outra vez está presente a idéia de poema próximo da fala, pela repetição:
41 Lá longe o sertãozinho de Caxangá
A expressão “Lá longe” é prosaica, coloquial, imprecisa, e nos abre a
visão para o espaço do “sertãozinho” (observa-se o uso diminutivo não como a
demarcar proporção, e sim afetividade, outro uso comum do português “falado
no Brasil”).
No verso seguinte, o eu poético retoma, outra vez, um dado geográfico, e
uma relação do “homem” com esse meio:
42 Banheiros de palha
A palha serve ao menino como banheiro, ou seja, ele é livre (libertinagem)
no espaço que habita. A infância é, portanto, espaço privilegiado para
liberdade/libertinagem.
Entre as reminiscências da infância estão as brincadeiras, as cantigas de
roda, as molecagens, sobretudo a sensação da primeira experiência erótica, a
visão da mulher nua no banho:
43 Um dia eu vi uma moça nuinha no banho
44 Fiquei parado o coração batendo
45 Ela se riu
46 Foi o meu primeiro alumbramento...
67
Inserem-se quatro versos que, a exemplo do fogo anunciado (verso 26),
trazem igualmente um fragmento de narrativa. A abertura “um dia” é
particularmente prosaica e infantil; a visão da moça “nuinha” (novamente o
diminutivo usado como adjunto de intensidade, “muito, completamente nua”);
notam-se a ausência de conectivo no segundo verso (assíndeto) e a sintaxe
incomum de “Ela se riu,” próxima da fala. O termo alumbramento indica a
epifania, a descoberta do desejo, o prenúncio do crescimento e do fim da
infância. Fica ao canto da página, para singularizar, graficamente, a própria
ruptura com a ordem do texto poético.
Na expressão “vi uma moça nuinha no banho”, o eu poético iconiza o
desmascaramento de todo tipo de preconceito — que não deve haver na
inocência da experiência infantil —, ao revelar sua paixão pelos momentos de
verdadeira união com o outro. Depois desse alumbramento — “eu vi” —, vem a
concretização do contato físico, no verso 51 — “eu me deitei no colo da
menina”, mais concreto e denso. O eu poético reconstrói um “diagrama,
materializando a própria dispersão da memória, a desordem e a liberdade das
sensações” (Albuquerque, apud Silva Lino e Silva, 2004, p. 154).
Se a imaginação é a força dinâmica pela qual o homem consegue
imaginar mundos e dar sentido à vida por meio de imagens, a poesia é o vetor
de operacionalização dos instantes vividos, das transmutações da linguagem,
da valorização dos sentimentos e das coisas mais simples. É por intermédio da
imaginação e da concretização da poesia que o ser humano consegue dar
forma às coisas mais tênues, evanescentes, e auto-afirmar-se. Sendo assim, a
poesia é transcendência, contemplação, força que edifica e revigora o homem
ante às vicissitudes da vida. Ou, como afirma Paz (1984, p. 67), “a imaginação
não está no homem, ela é o espírito do lugar e do momento; não é apenas a
potência pela qual vemos a realidade visível e a oculta: é também o meio
através do qual a natureza nos fala e fala consigo mesma”.
Essa materialização desordenada da memória só foi possível com a
abolição das regras tradicionais, praticadas pela poesia clássica. A palavra
ganhou uma liberdade que proporcionou ao poeta mil relações incertas e
possíveis, um verdadeiro projeto vertical, no qual mergulhou “num total de
sentidos, de reflexos e remanências” (Barthes, 1971, p. 61).
68
4.
o
momento memorialístico: em tom de crônica, o poeta mira o Brasil
Em vários momentos do poema, as imagens ganham expressões, como
nos versos 47 e 48:
47 Cheia! As Cheias! Barro boi morto árvores destroços redemoinho sumiu
48 E nos pegões da ponte do trem de ferro os caboclos destemidos em jangadas
de bananeiras
O verso fragmentado (verso 47) retoma o “flash” rápido das impressões,
dadas de modo fragmentário mas que, no encadeamento, produzem sentido. A
palavra rio (cheia do rio) está subentendida, e as exclamações reforçam a idéia
de impressão viva, surpreendente, de evento extraordinário, seguido de cinco
substantivos, um adjetivo e um verbo, esse último posto sem sujeito no final do
verso. Sem vírgulas (conectivos), a seqüência de palavras provoca uma noção
de desordem, e o significado das cheias “do rio” se sobrepõe e se “mistura” a
diversos elementos: boi, árvores, destroços.
Uma seqüência de palavras baseia-se na associação livre de idéias,
aparentemente sem nenhuma causalidade lógica. Essa sucessão de palavras,
sem vírgulas, sugere imagens velozes das coisas arrastadas pela cheia,
tornando possível a visualização da cena pelo leitor. Imagens diferentes
arregimentam-se rapidamente umas às outras, condensando várias imagens
em tão pouco tempo. A função referencial é quase sempre deslocada em
benefício da função poética, na qual a referência é uma outra realidade,
cunhada e lapidada pelos caprichos transgressores da cultura.
Dentre os muitos nomes que teve essa nova linguagem, até mesmo por
ser descritiva, destaca-se o simultaneísmo, poética originária do cubismo e do
futurismo. Segundo Paz (1984, p. 157), é um método de composição em que
“há um centro secreto, um eixo de atração e repulsão, em torno do qual giram
as estrofes e imagens”. Sendo assim, para o crítico (1984, p. 159), “o poema se
reduz a uma série de blocos verbais sem nexos sintáticos, unidos uns aos
outros pela lei da atração da imagem”.
Dentro da fúria da natureza — verso 48 —, o eu poético contempla a
intervenção do homem (“ponte do trem de ferro”) e surpreende novamente o
homem brasileiro (“caboclos destemidos em jangadas de bananeiras”), o
69
homem comum e o extraordinário. A poética moderna obedece a uma
organização analógica, na qual as palavras se relacionam por similaridade.
O objetivo primeiro do poeta é introduzir no sintagma o princípio de
similaridade do paradigma. Segundo o crítico russo Jakobson (1983, p. 130), a
poesia se caracteriza pela inserção do princípio de similaridade do paradigma
no corpo do sintagma, ou seja, “ao projetar o princípio da equivalência do eixo
de seleção sobre o eixo da combinação”. A linguagem poética faz com que
todos os elementos de uma seqüência ajam por recorrência aos mesmos
princípios paradigmáticos, que não evoluem senão quando suavemente
combinados ou interrompidos pelo corte abrupto. O estranhamento, próprio da
linguagem poética, acontece toda vez que se insere, no mesmo espaço
funcional do sintagma, algum elemento de similaridade. A linguagem poética
aspira ao estabelecimento de relações de similaridade que são reações
paranomásticas, e as busca o tempo todo.
Nos versos seguintes, o eu poético traz memorialisticamente os fatos
culturais do estado de Pernambuco para, em seguida, centrar-se no espaço
das entrelinhas, a liberdade das sensações:
49 Novenas
50 Cavalhadas
51 Eu me deitei no colo da menina e ela começou a passar a mão nos meus
cabelos
No verso 49, a manifestação da fé cristã está presente nas novenas; no
verso 50, as comemorações típicas, como as Cavalhadas, comuns nessas
regiões, também aparecem; e no verso 51, a retomada gradual da descoberta
da afetividade e do desejo.
O refrão memorialístico dos versos é retomado:
52 Capiberibe
53 Capibaribe
Apresentam-se como correção e rememoração, por meio da evocação do
tempo e do fluxo do rio.
54 Rua da União onde todas as tardes passava a preta das bananas
55 Com o xale vistoso de pano da Costa
70
Nesses versos, o eu poético mapeia o que é específico no país, as frutas,
“as negras”, vendedoras de doces, vestidas ainda como escravas — “pano da
Costa”.
56 E o vendedor de roletes de cana
57 O de amendoim
58 que se chamava midubim e não era torrado era cozido
Crônicas e comidas típicas do Brasil são trazidas nesses versos,
marcando que uma nação se define também pelos seus hábitos e costumes
alimentares.
59 Me lembro de todos os pregões:
60 Ovos frescos e baratos
61 Dez ovos por uma pataca
62 Foi há muito tempo...
Os pregões parecem prenunciar o prazer dos versos do menino; a palavra
pataca reporta a um tempo em que a moeda brasileira tinha esse nome,
tempos de velhice como nos tempos de Totônio Rodrigues. No verso 62, as
imagens de felicidade fazem vibrar uma profunda melancolia.
Se retomarmos a idéia de Paz (1984, p. 160), veremos que
a imagem ocupa, dentro da economia do poema, o antigo lugar que tinham tido
o ritmo e a analogia. Ou mais exatamente: a imagem é a essência da analogia e
do ritmo, a forma mais perfeita e sintética da correspondência universal. No
sistema solar que é cada poema, a imagem é o sol.
Ou seja, imagem como a verdadeira realidade espiritual autônoma. Há uma
desautomatização da linguagem por meio da imagem. O espaço poético (do
poema) é o lugar onde a linguagem se desarticula e se faz imagem.
5.
o
momento memorialístico: consciência do homem em relação à poesia
Nos versos 63 a 71, a linguagem remete ao sentido de brasilidade
marcado nas palavras e expressões “a gente”, “nuinha”, “midubim”, “me
lembro”; no registro da fala em “coelho sai/não sai!”; no pregão em “ovos
frescos e baratos/ dez ovos por uma pataca”. Essa linguagem autenticamente
brasileira (“língua certa do povo”) opõe-se à linguagem acadêmica, de natureza
retórica e artificial, que não expressa os nossos valores e que insiste em
“macaquear”:
71
63 A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros
64 Vinha da boca do povo na língua errada do povo
65 Língua certa do povo
66 Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil
No verso 63, o eu poético reporta-se à vida que não sofria mediação, mas
que era vivida, vivenciada. Não se sujeita às normas e às interferências
externas. As palavras não seguiam regras e a vida não era normatizada, como
aparece em livros e jornais.
No verso 64, há a quebra do poema saudoso-memoralista, infantil. A voz
do eu poético revela uma postura crítica em relação ao país, atrelada à
linguagem e casada ao “povo”, ao homem comum, não subordinado a
“estéticas cerradas”, dogmas do bom gosto de jornais “da capital” e livros de
“versificação”. A fala do povo é reflexo de um jeito “singular” de viver, não mais
tributário da “Europa”. O Brasil como uma outra coisa. Não há antítese com a
língua errada do povo, pois há a reafirmação, por parte do poeta, de que é a
“língua certa do povo”. No verso seguinte (65), reafirma-se a separação entre o
“português” lusitano e o “português do Brasil”, com outra sinestesia: “fala
gostoso”, ou seja, com prazer, com naturalidade, sem imitar a sintaxe que, pela
passagem do tempo, se afastou daquela dos antigos colonizadores. Em
seguida, volta-se para o povo brasileiro, e para o poeta:
67 Ao passo que nós
68 O que fazemos
69 É macaquear
70 A sintaxe lusíada
No verso 67, o pronome pessoal nós refere-se ao “poeta brasileiro”, grupo
ao qual o eu poético pertence. Sua visão é crítica, pois já se rebela contra o
“macaquear” (imitar como um macaco) externo, o que o afastou da forma de
expressão brasileira (“A sintaxe lusíada” — de Os lusíadas, de Camões,
portanto, sintaxe portuguesa). Os quatro versos curtos destacam-se
graficamente, mobilizando a atenção do leitor. O eu poético constata, em tom
caçoísta, a submissão brasileira ao português gramaticado em Lisboa. No meio
dos versos livres, inicia uma dança repentina e organizada que, aos poucos, se
torna um verdadeiro refrão coreográfico e coral, que o leva diretamente ao
aspecto mais característico do ser brasileiro: o idioma que se fala no Brasil.
72
Assim, demonstra metaforicamente a posição brasileira numa época
tumultuada da formação cultural e nacional.
71 A vida com uma porção de coisas que eu não entendia bem
72 Terras que não sabia onde ficava
A inocência (a ignorância da ordem do mundo) e a liberdade de ser, agir,
pensar — verso 71 — são valores que o eu poético reconhece terem sido
dados na infância, valores que almeja recuperar. Ele o faz na abertura do
poema, quando recupera os valores mediados pela cultura formal (história,
literatura, universo intelectual). Pela infância, o poeta deseja se aproximar do
que é essencial: do universo dos afetos, do real e das pessoas que habitam
esse universo (o povo brasileiro).
No verso 72, o eu poético reforça a noção de que o exterior pouco
contribuiu, suas raízes estão no Recife, as “coisas” realmente formadoras e
importantes estão sintetizadas lá na rua da União, na casa do avô e na figura
do avô. À cidade pública (Recife) se juntam a particular, a vida privada e as
figuras humanas.
6.
o
momento memorialístico: lamento e reflexão sobre a passagem do
tempo
Na parte final do poema, revela-se a consciência da distância (“Foi há
muito tempo...”) desse passado em relação ao presente vivido. Não só da
distância, mas também da finitude da vida. O mundo da infância desaparece,
desfaz-se a ilusão de perenidade da vida e a ligação com a morte se torna
profunda. Com melancolia e tristeza, o eu poético retrata a passagem de todos
e as imagens da distância entre o passado e o presente:
73 Recife...
74 Rua da União...
75 A casa do meu avô...
76 Nunca pensei que ela acabasse!
77 Tudo lá parecia impregnado de eternidade
Do verso 73 ao 75, o eu poético fecha seu foco na geografia pelo uso das
reticências: a cidade, a rua, a casa. Em seguida, introduz um comentário
pessoal, enfático em sua exclamação, e reforça a idéia de passagem. O
espaço do poema torna-se mais melancólico. O poeta percebe-se necessitado
73
de valores mais consistentes, eternos. Mas toma consciência da passagem do
tempo, que não convém negar, mas impregnar-se nele, para extrair o
essencial: a visão do menino, que vê o mais prosaico do mundo com olhos
novos, olhos de “alumbramento” diante do cotidiano e do começinho da vida.
78 Recife...
79 Meu avô morto.
80 Recife morto, Recife bom, Recife brasileiro como a casa de meu avô.
A morte do avô, a perda do “Recife” da infância, da “Rua da União” e a
própria “casa do avô” (“Nunca pensei que ela acabasse!”) impõem ao eu
poético o presente transformado, não mais lúdico, não mais aberto aos
“alumbramentos”. Gera o choque que reaviva a reminiscência, mas que
também conduz à consciência da passagem do tempo, à consciência da
efemeridade da vida (“Tudo lá parecia impregnado de eternidade”), o que gera
o sentimento de grande melancolia com que o poema é encarado, melancolia
que se opõe à alegria da infância.
O crítico Alexandre Magnus Abrantes de Albuquerque (apud Silva Lino e
Silva, 2004, p. 158), ao término de sua análise desse mesmo poema, declara:
A vida do poeta absorve as sensações eternizadas no coração do menino, não
deixando de receber humildemente a morte. A perda maior, inerente ao processo
da existência humana, e que tão logo rondará a vida que poderia ter sido e não
foi, é imantada na imagem do avô morto. E o Recife do poeta passa a fluir na
consciência junto à paragem definitiva do avô, imobilizando, com a mesma força
estética, a casa que foi cenário de um caleidoscópio de sentimentos e ações.
O Recife morto é o Recife da infância, o Recife do seu passado. Seu
maior valor, que o torna singular, é ser brasileiro, como mostrou ao longo do
poema nos diversos modos de viver, agir, alimentar-se. Inserido nessa casa,
deseja ressaltar esse Brasil autêntico, expresso na fala e no modo de ser do
povo. Memória e realidade encontram-se para o último abraço, eternizado na
poesia.
Por intermédio da imagem poética, “cria uma percepção particular do
objeto, cria uma visão” (Chklovski, 1971, p. 50), na qual a arte é um
“procedimento” que liberta o objeto do “automatismo perceptivo”. O todo do
poema desloca as imagens do seu meio habitual e propõe ao leitor uma nova
maneira de ver o objeto artisticamente, causando estranhamento. É a poesia
que “nos protege contra a automatização, contra a ferrugem que ameaça a
74
nossa fórmula do amor e do ódio, da revolta e da reconciliação, da fé e da
negação” (Jakobson, 1978, p. 177).
Toda uma cartografia poética da territorialidade infantil está expressa
nesse poema. A evocação como um recurso memorialístico e a construção
poética baseada no uso do pretérito imperfeito, no monólogo interior, na
alternância de ritmo e andamento, na estrutura coordenativa criam a imagem
básica do retorno: por intermédio da vida aberta pela reminiscência, aceder aos
“núcleos” da infância, à “idade de ouro”.
Nesse “humilde cotidiano”, o poeta reencontra o mundo de sua infância,
podendo recordar e revivê-la, com um tom confessional que descreve a
geografia do Recife, especificamente, a rua do Curvelo, experiência que definiu
sua meninice na rua da União, no Recife:
Quanto ao morro do Curvelo, o meu apartamento, o andar mais alto de um velho
casarão em ruína, era pelo lado dos fundos, posto de observação da pobreza
mais dura e mais valente, e pelo lado da frente, ao nível da rua, zona de convívio
com a garotada sem lei nem rei que infestava as minhas janelas, quebrando-lhes
às vezes as vidraças, mas restituindo-me de certo
modo o meu clima de
meninice na rua da União em Pernambuco. Não sei se exagero dizendo que foi
na rua do Curvelo que reaprendi os caminhos da infância, [Bandeira, 1985,
p. 75]
O retorno à infância não é um recuo cronológico, mas subjetivo. O adulto
vai rememorar a experiência infantil no momento de sua criação, no instante do
“alumbramento” artístico, o que equivale a tentar presentificar a emoção de
outrora. Nesse instante, raro e singular, o adulto vê o mundo com o olhar da
criança, sente-o como uma fonte de novidades. Em outras palavras, é a
irrupção do menino no adulto.
O resgate dos acontecimentos e das figuras do passado é um motivo
recorrente nos poemas bandeirianos. A imagem da infância, lembrança do
tempo de outrora, vem acompanhada de uma intensa afetividade e aparece
transfigurada pelo trabalho poético, no presente.
Bandeira transforma sua vivência — passado e presente — assim como o
meio circundante em momentos etéreos. Oferece ao leitor imagens ilimitadas
desse seu meio, numa multiplicidade de olhares e experiências que
desautomatiza o corriqueiro, tornando-o objeto poético por um processo de
materialização que transforma o próprio ser dito no dito.
75
O discurso lógico, no ato de nomear, distancia-se das coisas do mundo.
Diferente desse, o poeta “quer o objeto, quer uma linguagem para entrar em
fusão com as coisas. A poesia constitui a linguagem do encontro, como se
dizer fosse o próprio ser, o objeto tocado pelo poema” (Segolin, em aula,
16 fev. 2005).
O papel do poema, então, seria traduzir o cotidiano numa linguagem
metaforizada, o que leva o leitor a descobrir um mundo de significações jamais
visto, graças à força materializadora da linguagem poética. Vale citar a
definição que Octavio Paz (1984, p. 144) dá ao tempo do poema:
O momento do poema é a dissolução de todos os momentos; não obstante, o
momento eterno do poema é este momento: um tempo único, irrepetível,
histórico. O poema não é um ato puro, é uma contingência, uma violação do
absoluto.
3.2 O cotidiano social: linguagem jornalística em “Poema tirado
de uma notícia de jornal”
Poesia se faz com palavras e não com idéias. O escritor,
homem livre que se dirige a homens livres, só pode ter
um tema: a liberdade.
Mallarmé
Nos poemas de Libertinagem, Bandeira apresenta uma versatilidade
poética que se liga à variedade de formas utilizadas, como o prosaísmo
presente em poemas que recuperam a vida cotidiana. Em linguagem simples,
de cunho popular, o autor mantém vivo o lirismo, a musicalidade, a singeleza, o
intimismo.
Entre os muitos poemas líricos, escreveu também aqueles que abordam o
social. “Poema tirado de uma notícia de jornal” é um deles, e foi publicado pela
primeira vez no jornal carioca A Noite (1925), como parte de uma crônica da
vida brasileira. O eu poético transforma uma notícia retirada do cotidiano
jornalístico (que relata a história trágica de um homem de classe humilde) e
converte-a em poema em prosa.
76
A expressão “poema em prosa” designa uma forma poemática que
prescinde dos versos e acolhe elementos narrativos. No plano formal, rompe os
limites estabelecidos entre a prosa e a poesia, na medida em que incorpora,
em sua estrutura, o caráter discursivo e linear da prosa.
Atualmente, definir o que é poesia é quase impossível. Diferente do
classicismo ou do romantismo, quando os temas poéticos eram limitados pelas
exigências tradicionais — tais como “noite”, “estrelas”, “lua”, “flores” etc —, na
modernidade os poetas buscam “inspiração poética” no mundo que os rodeia.
Tomam as coisas desse mundo como elemento passível de poeticidade,
independente de seu encanto ou feiúra. Para Jakobson (1978, p. 168), nada
mais está fora do domínio da poesia: “Não há natureza-morta ou ato, paisagem
ou pensamento, que esteja atualmente fora do domínio da poesia. Por
conseguinte, a questão do tema poético perdeu hoje a sua razão de ser”.
Desse modo, definir o conjunto de procedimentos poéticos é algo que
ultrapassa as possibilidades mentais, pois não conseguiríamos descortinar os
limites da poesia. Procedimentos que foram usados em épocas anteriores —
aliterações, assonâncias, paralelismos — são facilmente encontrados nos
poemas de hoje, e são ainda mais usados na linguagem falada cotidiana. Ainda
declara Jakobson (1978, p. 173):
Toda expressão verbal estiliza e transforma, num certo sentido, o acontecimento
que descreve. A orientação é dada pela tendência, pelo patos, pelo destinatário,
pela “censura” prévia, pela reserva de estereótipos.
A incorporação do caráter discursivo na estrutura poética só foi possível
com a introdução do verso livre na poesia moderna, que possibilitou a mistura
dos gêneros, com suas métricas “variáveis”, como explica Tinianov(1975,
p. 38):
[...] o ritmo do verso é dado pela combinação entre as palavras, por meio dos
sons (fonemas), que saem delas, as quais se tornam o próprio objeto
materializado. É a partir desse agrupamento de palavras no sistema que
podemos encontrar, não um discurso mecanizado, mas dinamizado, onde as
palavras adquirem autonomia para se transformar no próprio objeto mencionado,
e criar um ritmo livre, liberto das amarras da métrica tradicional.
Antes da análise, a transcrição do poema:
77
1 João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da Babilônia
num barracão sem número.
2 Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
3 Bebeu
4 Cantou
5 Dançou
6 Depois se atirou na Lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.
Para melhor entendermos o processo de construção desse poema, a
análise foi estruturada em duas subseções: na transgressão estilística, os
procedimentos usados na passagem do prosaico ao poético; na transgressão
temática, a partir do título do poema, a relação com o jornal e como o eu
poético transforma uma notícia de jornal em poesia.
Nesse poema, o cotidiano social assume, perante a sociedade, uma
funcionalidade indefinida, por apresentar um objeto estranho ao contexto
literário. Rompendo com os padrões da estética tradicional, o leitor está diante
de um texto que reflete o mistério da existência humana.
3.2.1 Transgressão estilística: do prosaico ao poético
No plano da forma composicional, três recursos poéticos marcam a prosa
poética: a distribuição do texto em seis versos, a não-pontuação e,
principalmente, a sugestiva combinação de versos longos com versos curtos,
levando a uma mobilidade rítmica que imita o clima de orgia em que se envolve
a figura de João Gostoso.
Aparentemente, há pouco trabalho na conversão da notícia em poesia. Os
versos, pelo menos o primeiro e o segundo, conservam a ênfase referencial (a
narração do acontecimento) e apresentam-se ainda prosaicos:
1 João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da Babilônia
num barracão sem número.
2 Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Depois da descrição da personagem “João Gostoso”, no primeiro verso, o
segundo principia com o adjunto adverbial “Uma noite”, para introduzir, como
nas narrativas tradicionais, a fórmula “Era uma vez”, marcando o início da
narração.
78
Poema curto, a composição mantém uma estrutura correspondente à
narrativa, com início (descida de João Gostoso do morro), ação (quando João
Gostoso entra no bar) e morte (queda de João Gostoso nas águas da lagoa
Rodrigo de Freitas). A personagem vive um trágico destino, contado pelo
narrador-observador que emprega os verbos no pretérito perfeito a partir do
segundo verso do poema; portanto, ações pretéritas, definitivas, pelo uso do
imperativo. Os versos, aparentemente “soltos”, fixam ações corriqueiras da
personagem João Gostoso em um determinado tempo.
3 Bebeu
4 Cantou
5 Dançou
Nesses versos, as ações já concluídas em pequenos cortes em close
aparecem como fotogramas. Construção semântica visual não apenas da
notícia de jornal, mas de um fato esculpido. Há um jogo melódico de
movimento entre os versos iniciais longuíssimos e os seguintes, curtíssimos,
que terminam no verso seguinte, com a dança de morte de João Gostoso.
É a partir do romantismo que se inicia a tendência para a irregularidade
métrica, a qual se estende no modernismo e na época contemporânea.
Segundo Paz (1984, p. 125), “o modernismo chega a ser moderno quando tem
consciência de sua mortalidade, isto é, quando não se leva a sério, injeta uma
dose de prosa no verso e faz poesia com a crítica da poesia”.
3.2.2 Transgressão temática: a tragédia brasileira
O longo título do poema contrasta com a forma condensada do texto: o eu
poético chama a atenção do leitor pela analogia que estabelece com o jornal,
sugerindo uma transformação do texto referencial em texto poético. Ao
empregar o particípio passado do verbo tirar, que significa fazer sair de algum
ponto ou lugar, o eu poético recria poeticamente a vida simples de um
brasileiro: João Gostoso.
Notícia de jornal tem como finalidade focalizar ocorrências pontuais,
efêmeras como a morte de um simples “carregador de feira livre”, mas esse
fato transforma-se em “poema”. A elaboração estética ressalta e aprofunda o
79
cotidiano, imortalizando-o. Esse ato inovador do trabalho de inversão foi tido
por Arrigucci (1991, p. 102) como um
choque da novidade, tão característico do jornal, vem materializado, assim, na
própria linguagem com que se anuncia de forma insólita o poema. É o que se vê,
sobretudo, pelo emprego de um particípio como “tirado”, corriqueiro e tão
próximo da materialidade banal do ato que exprime, que soa como um golpe
baixo em toda expectativa de elevada inspiração poética.
No verso inicial — o mais longo do poema — se flagra um plano
descritivo, pois apresenta a personagem pelos adjetivos: “Gostoso”,
“carregador”. São ecos semânticos que pontualmente vão modelando a
personagem:
1 João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da Babilônia
num barracão sem número.
O verso abre com o prenome e a alcunha do protagonista, sua atividade
profissional, definindo-o no espaço e no tempo em que vivia. “Gostoso” é um
uso coloquial brasileiro, que sugere tanto um sujeito leviano, sedutor, malandro,
como alguém que se julga superior. No poema, essa alcunha logo propõe certa
comicidade abandonada no modo como João age.
O nome da personagem sugere anulação, rompida pelo apelido que
particulariza sua curta “biografia”. Proveniente das camadas populares, João
Gostoso tem uma profissão e endereço, mas sua vida insignificante resume-se
a uma única linha do poema.
A geografia da cidade, marcada pelos nomes dos lugares — “morro da
Babilônia”, “bar Vinte de Novembro”, “Lagoa Rodrigo de Freitas” —, impõe-se
sobre a existência do sujeito, seu isolamento e, principalmente, sua solidão,
reforçando sua insignificância dentro da cidade do Rio de Janeiro. Essa solidão
apresenta-se na indicação do “barracão sem número”. A ausência de um lugar
preciso reforça a idéia de vida vazia, insignificante, de alguém totalmente à
margem da assistência do poder público; ironicamente contrasta com o bar
cujo nome é um número (Vinte de Novembro) e com a lagoa onde a
personagem morre afogada, que possui nome e sobrenome: Rodrigo de
Freitas.
Nesse jogo de nomes, apelidos, exclusões, o eu poético parece reforçar a
“insignificância” do personagem em que se centra a notícia, e ao percorrer as
80
ações desempenhadas no curso da noite derradeira, em que perambula pela
cidade, bêbado e solitário, parece solidarizar-se com ele e com seu próprio
entorpecimento na cidade.
João Gostoso, a personagem anônima do barracão sem número, bebe,
dança, canta e suicida-se na lagoa que embeleza a paisagem. Assim como
Macabéa, de Clarice Lispector, João Gostoso é o herói anônimo que sucumbe
à voracidade da cidade grande. Para o autor, não são necessárias muitas
palavras, metros ou rimas para compor uma tragédia; os fatos bastam por si
só. É um poema modernista em sua primeira fase: análise crítica da realidade
brasileira expressa por uma linguagem coloquial, sucinta, em que se restringem
os fatos, como em uma notícia de jornal.
Para Arrigucci (1990, p. 111), esse processo de caracterização vem
marcado por uma
ambigüidade contraditória: os traços singularizadores e localistas que
determinam o malandro carioca em seu espaço característico são ao mesmo
tempo fatores de indeterminação genérica e abstratizante do tipo social, não
deixando espaço para a diversidade individual.
O eu poético desautomatiza nossa forma de olhar as coisas corriqueiras
que perderam sentido na vida. Retirando a notícia do contexto jornalístico, ele a
transforma em um diagrama, ícone da queda ou do movimento da vida em
direção à morte. Não fala simplesmente de alguém que se embriagou e
morreu, mas de uma personagem que vive no morro e, repentinamente, desce
para encontrar-se com a morte.
O fato não é contado como uma notícia de jornal, mas em uma forma que
compõe um diagrama visual, perceptível no espaço da página, na escolha
vocabular, nos cortes das frases longas (versos) e, em outros momentos,
apenas nos verbos de ação. Com esses cortes, o eu poético constrói um ato a
cada movimento dessa queda. E nessa descensão define o caminhar para a
morte. Esse movimento não é apenas dito no poema, mas desenhado pela
forma de composição arquitetural, usada na página de modo que o leitor possa
experimentar esse caminhar gradativo, visível na tela da página em branco,
transformada em curiosa tela cinematográfica.
Os elementos rítmicos são importantes para a construção do poema
como instância inaugural. Bem como para Octavio Paz, o poema se configura
81
sob um encadeamento rítmico, sonoro. O som acompanha um sentido. A
sonoridade, o ritmo das palavras provocam-nos afeição diferente, de acordo
com o que venham a designar. As palavras, além de carregarem em si seu
silêncio, seu vir-a-ser, levam consigo a sonoridade que as define. Na
compreensão do poético, segundo a concepção de Paz, Bandeira coloca o
ritmo e a analogia como “faces da mesma moeda”. Isso pode ser notado
quando o eu lírico utiliza outro elemento que provoca estranhamento, como a
palavra morro. Analogicamente, esse vocábulo indica um ponto superior
localizado longe do ponto final (lagoa Rodrigo de Freitas). Essa relação de
altura e descida não se refere apenas ao morro da Babilônia, mas a um ponto
de partida para a descida e a morte. A palavra Babilônia, derivada de Babel,
cujo significado é “balbúrdia”, “confusão”, adquire múltiplos significados, o que
não aconteceria no jornal.
A expressão “barracão sem número” marca um espaço anônimo da
residência e do morador. Também não é apenas um barraco, mas se perde
entre os outros, o que exprime falta de identidade e ausência de valor do
homem “João”. Na multidão do morro, o ser humano se perde, entra no bar,
bebe, canta e dança. Esses verbos assinalam um plano de entrada e de saída
para a chegada de outro plano: a noite.
Esse tempo adquire outra dimensão, associada à chegada ao bar:
momento de prazer e de libertação de um simples carregador de feira livre,
morador do morro, barracão sem número. A noite representa um plano novo
que se abre para o indivíduo não mais anônimo. Portanto, o ápice de libertação
é registrado no último verso: “Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e
morreu afogado”.
O objetivo não é marcar o fato no tempo e espaço, mas mostrar, por meio
desse momento trágico do cotidiano de “João Gostoso”, uma metáfora do ser
humano em busca de algo. Um fato corriqueiro ganha dimensão metafórica,
estabelecendo uma relação entre um homem à procura de sua identidade e
liberdade.
Nos versos do poema, a vida e a morte se fundem numa rede de
sentidos. A solidão da vida parece ser somente um ensaio da “grande solidão”
de cada ser humano. Nesse sentido, a poesia é capaz de comunicar uma
profunda consciência do sentido da vida e de seus mistérios, pois, como afirma
82
Octavio Paz (1984, p. 177), “vida e morte são apenas dois movimentos,
antagônicos mas complementares, de uma mesma realidade”.
Os movimentos de vida e morte complementam-se na busca de João
Gostoso, na queda para a libertação. Ele mergulha na lagoa Rodrigo de
Freitas, fato trágico do registro jornalístico. Depois de experimentar a festa, ele,
no entanto, se joga na lagoa. Fim da festa que adquire valor positivo, luminoso;
a personagem se liberta da sua vida sinistra, difícil, miserável e desumana.
Esse mergulho desanimador, porque leva à morte, é visto como libertação. A
linguagem poética não é “fala de”, mas passa uma experiência sensorial, uma
possibilidade de experimentar sensorialmente certos aspectos do fato
(movimento, queda, imagem, purificação e libertação).
Arrigucci (1990, p. 110) define esse último ato do João Gostoso como
uma ação de dramaticidade:
A ação ganha em dramatismo ainda mais por efeito da brevidade, que aproxima,
secamente, a rápida seqüência de atos de João Gostoso (“Bebeu/ Cantou/
Dançou”), em sua aparente expressão da alegria de viver, manifestada num
crescendo da expansão efusiva, ao abrupto desfecho do último verso.
O poema termina tematizando a noção de fatalidade a que está sujeito
qualquer indivíduo, qualquer ser humano. Sob o homem simples, a existência
de uma complexidade humana que o singulariza. Trata-se do olhar sobre o
cotidiano, sobre o homem comum, sobre os desprovidos de voz, o sujeito
solitário que cotidianamente se perde, e passa despercebido nas páginas de
jornais das grandes metrópoles.
A eficiência do poema surge da ausência de drama no último gesto, que
(diferente do gênero notícia) não abarca a ação e o gesto que a notícia
normalmente visa pontuar. O não-sentido da morte (o lançar-se de modo
fortuito, gratuito, na lagoa) ou a “inferência” possível de um drama pessoal (sua
peripécia derradeira e exaltada, a culminar no suicídio) deixam o leitor atônito,
como diante de um enigma a exigir decifração. O poema resgata o gênero
notícia e rompe com ele ao explicitar o esqueleto de um “drama” que não é
desenvolvido e que a simples menção dos atos não consegue abarcar. João
Gostoso eterniza-se, porque convertido em poesia. É palavra não efêmera
como a nota de jornal.
83
Stefan Baciu (1966, p. 152), ao abordar o tema da morte nas poesias de
Manuel Bandeira, declara que a morte de João Gostoso
é de uma excepcional matéria-prima, que Bandeira soube poetizar com
simplicidade sem igual [...] O fato-diverso, reconstituído da coluna policial, se
reveste de profundo sentimento humano, e aqui a morte impressiona por sua
simplicidade, por sua nudez.
Bandeira é aquele que impulsiona à inovação. Retirou do cotidiano um
elemento inusitado, uma notícia de jornal, dando-lhe nova forma, uma nova
noção do poético. Para Arrigucci (1991, p. 100), essa atitude reformadora de
Bandeira definiu os rumos da poesia moderna, na década de 1920:
[...] a matéria nova e chocante, cujo caráter jornalístico e prosaico marcava o
deslocamento da noção de poético; o tratamento novo e também chocante
dessa matéria, que implicava a mescla de gêneros, a liga entre o épico e o lírico,
com a nova posição do sujeito, capaz de confidenciar emoções íntimas,
aparentemente desaparecendo do primeiro plano. Notícias de jornal, fragmentos
de conversa ou de escrita telegráfica constituíam os materiais preferenciais
dessa abrupta simplificação da matéria poética. O objetivismo lírico fundava um
modo paradoxal de dar forma, como se nota pela aparente contradição dos
termos que definia essa voluntária pobreza do tratamento artístico. Matéria e
forma novas, naqueles anos, que poderiam muito bem caracterizar o achado do
próprio Bandeira no “Poema tirado de uma notícia de jornal”.
A mistura dos gêneros já pode ser vista desde o romantismo. Dentro
dessa tradição, se sobressai o diálogo entre a prosa e a poesia. Mediante esse
diálogo, “perseguia-se, de um lado, vitalizar-se a primeira por sua imersão na
linguagem comum e, de outro, idealizar a prosa, dissolver a lógica do discurso
na lógica da imagem” (Paz, 1984, p. 84).
A partir dessa fusão, o poema em prosa e a periódica renovação da
linguagem poética acentuam — ao longo da século XIX e, precisamente, no
século XX — a introdução da fala popular no meio poético. Mesmo que em
1920 essa novidade não fosse a grande especulação dos poetas sobre prosa e
poesia, pelo fato de ter transbordado os limites da poética antiga, essa nova
poesia passa a expressar uma nova maneira de sentir e de viver. O poema,
então, segundo Paz (1984, p. 85), “não é apenas uma realidade verbal: é
também um ato. O poeta diz e, ao dizer, faz. Este fazer é sobretudo um fazer-
se a si mesmo: a poesia não é só autoconhecimento, mas também
autocriação”.
84
Desse modo, a observação do cotidiano não se desgarra
necessariamente da intenção artística, por ser um terreno perfeito para a
sondagem lírica. E é por isso que Bandeira se tornou um exemplo de poeta,
pois sua lírica e o mistério da simplicidade de sua forma poética, construída em
grande parte com palavras simples, fatos e imagens do dia-a-dia, são a prova
de uma poesia ”desentranhada”, “desconstelizada” do cotidiano.
A poesia provoca uma relação erótica de entrega total entre o texto, o
poeta e o seu receptor, eliminando a distância entre o sujeito e o objeto. Muitos
serão os receptores que se sentirão no texto, numa comunhão entre poema e
leitor. É no espaço da poesia que o eu poético desnuda essa tragédia
brasileira, e, por isso, a poesia é transgressora. Deixa de aceitar o que é
convencional e busca a liberdade da palavra e da vida. Nela, Bandeira
reencontrou o significado da vida. Uma vida permeada pela sombra da morte,
mas que soube vencê-la, e, por isso, ele escreve “como quem morre”.
3.3 Memento morti: evocação do ausente em “Poema de
Finados”
A vida inteira que podia ter sido e que não foi
Manuel Bandeira, “Pneumotórax”
Continuando o percurso poético bandeiriano, depois de passarmos pela
infância e percorrermos a maturidade poética de Bandeira em sua consciência
social, nos deteremos, ao final deste percurso, no tema da morte. Essa
temática é outra vertente que aparece em Libertinagem.
Caracteriza a poesia de Bandeira, como estamos vendo, a forma simples
e singela de repassar para o leitor o tom pessoal, o envolvimento sentimental, a
amargura e a melancolia; transmite a sensação de uma vida vazia, muito bem
definida em alguns versos, como: “A vida inteira que podia ter sido e que não
foi” (“Pneumotórax”), ou nos quartetos de “Poema de Finados”, em que a
sensação de morte que o poeta experimenta está associada à sensação de
perda dos parentes próximos.
85
No “Poema de Finados”, podemos perceber que quase não há abertura
para a elaboração do luto. O que temos é um momento que implica um longo
percurso do eu lírico para chegar a um elaborado nível de linguagem e a uma
atitude em relação ao mundo circundante. Transcrevemos o poema:
1 Amanhã que é dia dos mortos
2 Vai ao cemitério. Vai
3 E procura entre as sepulturas
4 A sepultura de meu pai.
5 Leva três rosas bem bonitas.
6 Ajoelha e reza uma oração.
7 Não pelo pai, mas pelo filho:
8 O filho tem mais precisão.
9 O que resta de mim na vida
10 É a amargura do que sofri.
11 Pois nada quero, nada espero.
12 E em verdade estou morto ali.
Manuel Bandeira caminhou por um longo itinerário para chegar ao seu
amadurecimento poético. Muitas influências recebeu, desde menino;
primeiramente nos contos da carochinha, nas histórias que Rosa vinha lhe
contar antes de dormir e até mesmo pela influência de seu pai, que tinha muito
apreço por poemas e considerava que a poesia estava em tudo: “Assim, na
companhia paterna ia-me eu embebendo dessa idéia que poesia está em tudo
— tanto nos amores como nos chinelos, tanto nas coisas lógicas como nas
coisas disparadas” (Bandeira, 1957, p. 11).
Bandeira bem sabia que o sentimento podia ajudar o poeta a escrever
seus poemas, porém, o sentimento não bastava para fazer poesia, esta
necessitava de palavras certas nos lugares exatos. Seu sonho de ser arquiteto
não foi realizado, pois, com a descoberta de sua enfermidade, Bandeira não
pôde mais estudar e começou a escrever para sentir-se menos inútil do que
realmente se achava: “No fim do ano letivo adoeci e tive de abandonar os
estudos [...] Sem saber que os versos, que eu fizera em menino por
divertimento, principiaria então a fazê-los por necessidade, por fatalidade”
(Bandeira, 1957, p. 20).
Nessa fase é que se inicia realmente a produção poética de Bandeira,
cuja obra lírica nasce diante da circunstância dramática da ameaça iminente da
86
morte. Nela, na qual percebemos uma situação de vazio, uma existência
condenada pela doença fatal,
pode-se avaliar a importância não só do aproveitamento de um tema como esse,
casado à condição básica da experiência poética bandeiriana, mas também de
toda a linha de reflexão que ele envolve como um fator essencial para a
compreensão do sentido mesmo da poesia na existência desse poeta. [Davi
Arrigucci Jr., 1990, p. 225]
Se essa poesia não tivesse essa verdade, esse sentimento impregnado em
cada palavra, talvez não fosse considerada uma obra literária, como hoje é.
A partir da descoberta da doença, Manuel Bandeira escreveu muitos
poemas em que a morte, o desalento e a tristeza eram tema ou subtema. A
morte tornou-se sua “companheira indesejável”. Prevendo que a qualquer
momento ela poderia chamá-lo, viveu à sua espera, sem saber que o destino
lhe pregaria grandes desafios e surpresas — como presenciar a morte de todos
os seus familiares. Aprendeu a viver com as ausências e a solidão. A crítica
Yudith Rosenbaum (1993, p. 73), em Manuel Bandeira: uma poesia da
ausência, no capítulo “A aprendizagem da morte”, declara a importância do
estudo desse tema para a compreensão da obra bandeiriana:
Presentificação da falta por excelência, o topos da morte se impõe
obrigatoriamente no estudo da poesia bandeiriana. Pelo seu domínio temático na
obra, poder-se-ia considerá-la uma verdadeira obsessão do poeta [...] A mesma
interação entre os elementos biográficos e poéticos que surpreendemos ao
abordar o topos da infância ocorrerá aqui novamente, dado o estreito convívio do
poeta com a morte, da adolescência até o fim da vida [...] Esses traços
biográficos, se não determinam sua obra, ampliam as possibilidades de
compreensão de sua poesia.
Os poemas, mesmo assim, aplicam-se no cultivo de uma resignação que
o poeta destitui de qualquer sentido derrotista. Incorporar a experiência do
sofrimento com aquele sinal positivo não é curvar-se ao fatalismo, mas
sobreviver a ele e contestá-lo com a experiência mesma do poético, objetivado
em palavras.
Mas o interessante é como Bandeira aborda esse assunto, pois a morte
não aparece da mesma forma em todos os poemas. Às vezes trata-a como a
“indesejada das gentes”, outras de maneira bem humorada, como em
“Pneumotórax”, ou, ainda, para resgatar a vida na morte, como uma tentativa
87
de preencher a ausência de um ente querido, no momento da evocação do
ausente (“Poema de Finados”).
A construção desse poema será mais bem interpretada se ele for lido sob
dois enfoques: a transgressão estilística, observando os recursos utilizados
para mostrar como o ritmo é elemento construtivo do poema, essencial para
seu processo de significação; e a transgressão temática, notando, a partir do
título, a ambigüidade em relação ao poema não “ao finado” pai, mas ao “pai e
filho”, como finados, o que leva o eu lírico a um estado de profunda melancolia.
3.3.1 Transgressão estilística: figuração da audiência
1
Diferente dos poemas analisados anteriormente, que não exibem uma
regularidade estrófica, este apresenta uma certa harmonia estrutural. Possui
doze versos, organizados em três quadras com versos octassílabos; em cada
uma delas, há rima entre o segundo verso e o verso final: vai/pai;
oração/precisão; sofri/ali — rimas ricas que não se observam nos demais
versos.
Podemos notar, também, rima interna no verso 3, entre os vocábulos
procura/sepulturas; e no verso 11: quero/espero. Esse paralelismo fônico, que
se repete no interior dos versos de todas as quadras, reforça a idéia de um eco
mórbido que se propaga em todo o poema. Com destaque para a rima interna
entre os vocábulos procura/sepulturas (o primeiro, um verbo no singular e o
segundo, um substantivo no plural), que amplia o clima de morbidez gerado
desde o primeiro verso.
O eu lírico parece ter lançado mão de todo arsenal de som e ruído de que
dispunha, combinando aliterações, assonâncias, rimas internas em eco, tudo
dinamicamente combinado no movimento do ritmo, que, no meio das estrofes,
junta as duas expressões mais poderosas como efeito sonoro e visual da cena
“tumular”. Esse clima mórbido se faz presente, porque o ritmo é inseparável do
conteúdo concreto do poema. Como observa Paz (1982, p. 71), no ritmo verbal,
1
Expressão extraída da primeira parte — “A retórica do coloquial” — do livro O coloquial na
poética de Manuel Bandeira (1986), de Maria Helena Camargo.
88
a frase ou “idéia poética” não vem antes do ritmo, nem este precede aquela.
Ambos são a mesma coisa. No verso já palpita a frase e sua possível
significação. Por isso há metros heróicos e ligeiros, dançantes e solenes, alegres
e fúnebres.
Essas figuras (aliteração, assonância) de som põem em evidência o
sentido poético do poema. Por serem criadoras de imagens, enriquecem o
texto lírico e sugerem significações novas. A pureza, a liberdade e a harmonia
constituem os mais importantes dados de perfeição da linguagem poética
moderna. Sendo assim, a harmonia exige uma plenitude de sons que seja
adequada à extensão do sentido.
A harmonia sonora une as palavras em grupos indizíveis. Determina a
escolha das palavras e quais imagens e comparações serão mais usadas. Por
isso sua função, ao unir uma palavra a outra, é unir também conceitos. Essa
extensão, para Tinianov, indica o efeito do ritmo sobre a semântica, ou seja, a
mudança de significado semântico de uma palavra se obtém em conseqüência
de seu significado rítmico.
As imagens, determinadas pela harmonia sonora, nos remetem a um
clima emocional, no qual podemos testemunhar, junto ao eu lírico, uma perda.
No capítulo “A imagem”, do livro O arco e a lira (1982), o crítico literário Octavio
Paz afirma que o vocábulo-imagem possui diversos significados. Quando
evocamos ou produzimos uma figura, seja ela real ou irreal, por meio da
imaginação, o vocábulo (imagem) possui um valor psicológico: as imagens são
produtos imaginários.
Paz designa imagem como toda forma verbal, frase ou conjunto de frases,
que o eu lírico diz e que, unidas, compõem um poema. Essas expressões
verbais têm em comum preservar a pluralidade de significados de uma palavra
sem quebrar a unidade sintática da frase ou do conjunto de frases. Ou seja,
para Paz (1986, p. 98-99),
[...] toda imagem aproxima ou conjuga realidades opostas, indiferentes ou
distanciadas entre si. Isto é, submete à unidade a pluralidade do real. Conceitos
e leis científicas não pretendem outra coisa. Graças a uma mesma redução
racional, indivíduos e objetos — plumas leves e pedras pesadas — convertem-
se em unidades homogêneas.
Portanto, a linguagem poética não se dá por mecanização de símbolos, mas
traz para a palavra o sentido (poético) não previsto em um sistema. A
89
linguagem configura o real, apesar de inutilizar parâmetros para a realidade. A
prática lógica está desconectada da poética. A construção, longe de
segmentar-se, surge do “impulso”, silêncio e palavra.
As imagens recorrentes recriam-se também por meio do texto da fala
coloquial, de forma crítica e renovadora. O eu lírico utiliza formas
estereotipadas da fala e da linguagem popular/utilitária, muito freqüente nos
poemas modernos, para modificá-las e revitalizá-las. Como podemos observar
no verso 5, por exemplo, quando o eu lírico serve-se do vocábulo bem: “Leva
três rosas bem bonitas”.
Outro aspecto marcante na poética bandeiriana são os procedimentos
que o eu lírico utiliza para representar a presença do ouvinte, característica
básica da língua falada. Ele dialoga o tempo todo com um receptor implícito, no
ato mesmo da escrita. Esse contato diminui o distanciamento comum entre o
eu lírico e a audiência, propiciando um tom próximo da conserva, como
podemos notar nos versos 1 e 2:
1 Amanhã que é dia dos mortos
2 Vai ao cemitério. Vai
Concretamente, essa aproximação se dá por meio do comentário: “Amanhã
que é dia dos mortos”, e do suposto diálogo com o intercolutor, do verso 2 ao
verso 8, marcado pelos verbos no imperativo: “Vai; procura; leva; ajoelha”, o
que cria um clima de cumplicidade com quem recebe a mensagem.
Nos versos 3 e 4: “E procura entre as sepulturas/ A sepultura de meu pai”;
e nos versos 7 e 8: “Não pelo pai, mas pelo filho:/ O filho tem mais precisão”, o
eu lírico utiliza uma técnica própria da comunicação oral, cuja finalidade é
diminuir os efeitos do ruído, no sentido lingüístico, conhecido como feed-back.
Essa técnica corresponderia ao que Jakobson (1975, p. 126) chama de “função
fática”. Seu objetivo é enfatizar o canal, um voltar atrás, para que a mensagem
possa ser feita de modo mais claro e mais compreensível ao receptor. Nesses
versos, como se trata de um texto poético, esse retomar corrige/esclarece o
que o eu lírico quer dizer. Tudo se estrutura obedecendo à retórica do texto em
verso, o que leva as palavras a rimarem.
90
Em O coloquial na poética de Manuel Bandeira (1986, p. 26), a crítica
literária Maria Helena C. Regis, ao trabalhar com os procedimentos usados por
Bandeira para representar a língua falada na escrita, declara que
quando o eu lírico comenta um verso anterior é um artifício para imitar o
alogismo do discurso oral, decuidado, aproximando-se, também, da imitação do
fluir do pensamento. Há o indício de que, aos poucos, o enfoque acentuado do
eu lírico da primeira fase se transfere, ora para o receptor [...] ora para a própria
linguagem, acentuando sua função metalingüística.
Além do recurso do feed-back, há também um ritmo entonacional e
durativo, que é pausado pela presença da pontuação, principalmente pela
presença da vírgula, no verso 7: “Não pelo pai, mas pelo filho”. Isso cria uma
dupla leitura. O foco se desdobra entre o eu e aquele do qual se fala. Em todo
o poema, notamos um tom de definição, bem marcado pela pontuação precisa,
com pontos finais e dois pontos. Somente duas vírgulas aparecem
distintamente, para marcar a anulação do sujeito.
O tom confidencial que se insinua no verso 7 e em toda estrofe que segue
(terceira quadra) modifica o ritmo, harmonizando a entonação com o nível do
significado: confidência feita em tom discreto. Podemos inferir, então, em
relação à série rítmica da poesia, que o ritmo não é somente um elemento
construtivo, mas também determinante no processo de sua significação
poética. Logo, só é possível notar uma mudança de ritmo, a partir do verso 7,
pela escolha lexical.
Esse procedimento rítmico, associado ao contexto semântico, ajuda-nos a
perceber um outro, o de intervenção do eu lírico para aproximar-se do receptor,
supostamente presente, que é imprescindível na poética bandeiriana. Podemos
considerar essa intervenção, entre outras, o gerador da simplicidade que
perpassa a grande maioria dos poemas de Libertinagem. Ela representa uma
tentativa de aproximar a literatura da língua oral. Conforme Paz (1982, p. 62),
todo aquele que pratica a escrita automática conhece os encantamentos das
associações da linguagem entregue à sua própria espontaneidade:
O sonho, o delírio, a hipnose e outros estados de relaxamento da consciência
favorecem o jorro das frases. A corrente parece não ter fim: uma frase nos leva a
outra. Arrastados pelo rio de imagens, roçamos as margens do puro existir e
adivinhamos um estado de unidade, de união final com nosso ser e com o ser do
mundo. Incapaz de opor diques à maré, a consciência vacila. E de repente tudo
desemboca numa imagem final.
91
3.3.2 Transgressão temática: ambigüidade poemática
O tema do “Poema de Finados” é o testemunho da perda do pai, casada à
sensação de aniquilamento individual, ou seja, morte do próprio eu. Ao clima
emocional soma-se uma súplica do eu lírico, órfão paterno, para que o leitor do
poema se compadeça dele, lhe dedique uma oração. O título indica não o
poema “ao finado” pai, mas encadeia “pai e filho”, como se ambos estivessem
“finados”. Finado é termo que se origina do particípio do verbo finar, para
indicar aquilo/aquele que teve fim, faleceu. Como sinônimo, finado serviu desde
sempre, com propriedade, como eufemismo para o termo morto, forma mais
agressiva.
O primeiro verso indica alusão ao “dia de Finados”, com a referência
direta: “Amanhã é dia dos mortos”. A data está presente na liturgia cristã,
oficialmente é o dia 2 de novembro, posterior ao Dia de Todos os Santos,
aproximando o celestial (santos) e o terreno (os mortos, a finitude).
2
O tom é
pessoal/confessional, de forte amargura e vida vazia.
Na primeira quadra, o eu lírico faz uso do imperativo (forma verbal
predominante nas duas primeiras quadras) na segunda pessoa (tu). O
vocábulo vai, por ser idêntico à forma do verbo ir no presente do indicativo
2
O culto aos mortos é muito antigo e esteve presente em quase todas as religiões,
principalmente nas mais antigas. Inicialmente era ligado aos cultos agrários e de fertilidade. Os
mais antigos acreditavam que, como as sementes, os mortos eram enterrados com vistas à
ressurreição. Na prática da Igreja católica, o Dia de Finados surgiu como um vínculo
suplementar entre vivos e mortos, destinado a todos. Os falecidos sempre estiveram presentes
nas celebrações da Igreja e no Memento dos mortos, no cânon da missa. Já no século I, os
cristãos rezavam pelos falecidos: visitavam os túmulos dos mártires para rezar pelos que
morreram. No século V, a Igreja dedicava um dia do ano para rezar por todos os mortos, pelos
quais ninguém rezava e dos quais ninguém lembrava.
No século X, a Igreja católica instituiu oficialmente o Dia de Finados. A partir do século
XI, os papas Silvestre II (1009), João XVII (1009) e Leão IX (1015) passaram a obrigar a
comunidade a dedicar um dia aos mortos. No século XIII, esse dia passou a ser comemorado
em 2 de novembro, porque 1.º de novembro é a Festa de Todos os Santos.
Com o passar do tempo, a comemoração ultrapassou seu aspecto exclusivamente
religioso, para revelar uma feição emotiva: a saudade de quem perdeu entes queridos. Hoje, o
Dia de Finados é um dos feriados mais universais. São cerca de mil anos de celebração pela fé
na ressurreição.
As pessoas costumam celebrar os mortos levando flores aos túmulos e rezando por eles.
Alguns preferem chamar a data de “Dia da Saudade” , retirando o peso do aspecto fúnebre e
enfatizando as melhores lembranças daqueles que se foram. (http://www.grupovila.com.br)
92
(idêntico em sua forma “vai”), ameniza e suaviza: a expressão atenua a ordem
e sugere um pedido, um clamor sutil:
1 Amanhã é dia dos mortos
2 Vai ao cemitério. Vai
3 E procura entre as sepulturas
4 A sepultura de meu pai.
O poema lírico, em primeira pessoa, assume um tom melancólico,
confessional, porque se dedica a uma terceira pessoa, que podemos identificar
como o “leitor potencial”.
A segunda quadra inicia com o eu lírico, pedindo de forma coloquial — a
qual se apresenta, no verso 5, pelo advérbio de intensidade “bem” — que o
receptor leve rosas ao túmulo:
5 Leva três rosas bem bonitas.
6 Ajoelha e reza uma oração.
7 Não pelo pai, mas pelo filho:
Levar rosas é cumprir um ritual, prática católica para homenagear os
mortos. Essa oferta/oferenda soma-se à postura/posição de humildade
reverente e religiosa (genuflexão), e à prática da louvação solene (rezar uma
oração). Rezar ao filho e não ao pai indica uma quebra, marcada no “mas”
(conjunção adversativa central), da lógica natural do culto. Rezar ao filho (vivo),
voz enunciadora/emissora do poema (confirmado nos dois versos que fecham
a primeira quadra: “E procura entre as sepulturas/ A sepultura de meu pai”),
indica igualmente uma súplica dada de modo sutil, pois se deve dirigir a oração
ao “vivo”, e não “ao morto”. Súplica, no caso, não só porque ele sofre pela
ausência de seus “mortos”, mas pela dor, melancolia e solidão extrema que o
leva a desejar a morte.
A reza representaria, portanto, um reconhecimento dessa dor, um gesto
de “irmandade” que visaria à “graça” daquele que está na vida como um morto,
a própria expressão da “amargura”, da dor “encarnada” (“O que resta de mim
na vida/ É a amargura do que sofri”). Quebra-se o sentido do poema dedicado
ao outro (os mortos, os finados), pois, pela correspondência entre o eu lírico e
o “morto” (ou seja, entre pai e filho), a ambos se dedica o poema, um monólogo
confessional do eu, emocionalmente aniquilado.
93
Nessa segunda quadra, como no poema todo, o tema da morte
apresenta-se de forma ainda mais familiar (se compararmos com as obras
iniciais do poeta). Em Manuel Bandeira de corpo inteiro (1966, p. 159), Stefan
Baciu, ao comentar essa quadra, declara que, em tom simples, ela nos dá “a
impressão nítida de estar o filho-poeta visitando o pai para com ele manter uma
conversa aquém e além do tempo”. Esse pai, segundo Baciu, é o mesmo que,
“depois de haver lido seu primeiro livro de poemas, se limitaria a dizer: ‘Sim
senhor’, palavras aparentemente secas que ocultam, porém, uma admiração
contida pela emoção paterna e à qual o filho responde indiretamente”, como
vimos nessa quadra. Logo, o verso 8 apresenta-se sob a forma explicativa:
8 O filho tem mais precisão.
O termo precisão corresponde a uma expressão mais coloquial, a
necessidade do filho é maior que a necessidade de oração do pai morto. A
morte aplacaria o sofrimento do qual em vida ele padece melancolicamente.
Para Baciu (1966, p. 159), do “ ‘sim, senhor’, de Bandeira-pai, à ‘precisão’ de
uma oração do filho, vai um sentimento humano de amargura e tristeza”.
A visão é absolutamente pessimista, casa-se perfeitamente com a
mentalidade cristã: a vida como sofrimento, amargura. Tal pessimismo é
reforçado pelo “nada” duplamente reiterado, fim dos desejos e das expectativas
em relação à vida. Aqui, o desejo de morte faz parentesco com a dramaticidade
do “romantismo”, o que os diferencia é a ausência da “dor de amor”: no poema
é uma postura existencial. As perdas dos entes amados leva o eu lírico à
solidão, daí a evocar aos que estão de fora que se compadeçam de seu
sofrimento. Em Humildade, paixão e morte: a poesia de Manuel Bandeira,
Arigucci (1990, p. 228), ao analisar o tema da morte no poema
“Profundamente”, declara que, assim como em outros poemas de Bandeira, em
“Poema de Finados”,
a ruptura dos laços afetivos do Eu com o mundo de seu passado, determinada
pela perda dos entes queridos, é sentida como uma antecipação da morte do
próprio sujeito, identificado com seus mortos, ou apresentada como uma
sensação de morte em vida, até mesmo de inumação em vida, ou ainda, ao
contrário, experimentada sob a forma do sentimento de divisão do ser e de perda
de si mesmo.
94
Sendo assim, a identidade do eu lírico passa a ser a do pai morto, pois
ele também se julga morto. Na morte está o fim das possibilidades já reiteradas
no “nada” quero/espero:
9 O que resta de mim na vida
10 É a amargura do que sofri.
11 Pois nada quero, nada espero.
12 E em verdade estou morto ali.
Lembremos que o pai representa normalmente o modelo para o filho,
além de representar seu esteio, proteção. Perdê-lo é estar lançado por “si” no
mundo, desabrigado, desprotegido, caso não tenha ele próprio uma autonomia
individual (emocional/psicológica), como parece ser o do filho que fala no
poema. Conforme Baciu (1966, p. 160), o último verso vale por uma profissão
de fé, “uma completa identificação com o pai, sempre presente na vida do
poeta, ‘até pela morte’ ”. E Baciu completa, afirmando que esta é “uma maneira
muito sutil, se não completamente nova, de afirmar a presença do amor filial”.
Em Manuel Bandeira: uma poesia da ausência, Yudith Rosenbaum (1993)
— valendo-se, sobretudo, das ciências da linguagem, em especial a estilística
e a psicanálise —, ao buscar a compreensão da matéria-prima que plasmou
imagens poéticas tidas sem favorecimento algum como das mais expressivas
da língua portuguesa, soube traçar com maestria um perfil psicológico do
poeta, traçando um circuito a que chamou de psicopoético, já que poesia e
biografia convivem em estreita ligação em Manuel Bandeira. Poesia que se fez
de lembranças extremamente íntimas e da pulsão cotidiana. A arte manuelina,
como diz a ensaísta, universaliza, na materialidade simbólica, um discurso
particular.
Alcançado em seu vôo poético pela renovação modernista, o poeta nunca
deixou de lado uma certa “disposição melancólica”, típica do espírito simbolista,
encontrando no humor, na ironia, na paródia, no tom coloquial e na crueza
erótica uma maneira ímpar de fazer poesia.
Em “O canto da ausência”, quinto capítulo do mesmo livro, Rosenbaum
enfatiza a linha-mestra de sua vertente crítica. Dentre os poemas analisados,
encontramos o “Poema de Finados”. Ao abordar a questão da melancolia em
Bandeira, vetor de sua poesia, procura encontrar uma explicação para a
obsessão com que o eu lírico tenta reconstruir mentalmente um passado
95
impossível de recuperar. Ao analisar a última estrofe, a crítica declara que o eu
lírico se identificou com o pai morto e vive apenas a amargura de seus
sofrimentos, sem expectativa, sem objetivos, incapaz de desligar-se da imagem
paterna e reconstituir-se.
O eu lírico tenta buscar um sentido para a vida. Sendo a morte
indissociavelmente ligada à sua vida, ele a faz instrumento para o imaginário e
a prática poética. Em “O jovem octogenário”, edição comemorativa do
centenário de Manuel Bandeira, o crítico Tristão de Athayde (1969, p. liv)
afirma que o poeta foi de uma utilidade incomparavelmente maior do que teria
se seguisse a carreira de arquiteto, do que se a “Morte não o tivesse namorado
desde moço”, e que por isso foi
útil e continua a sê-lo como ninguém, ainda brincando com a vida e com as
palavras da vida, com que tem dado vida a mais de uma geração em nossa
terra. Sua poesia, com efeito, é um laço de união, ao mesmo tempo muito sábio
e muito espontâneo, entre esses dois tipos de humanidade, que os antigos
chamavam de Homo ludens e Homo faber: o homem que brinca e o homem que
faz. Bandeira brincou sempre com a vida e a morte, através da Palavra.
O eu lírico transporta, de forma mágica, a morte para o poema em
linguagem viva. O poema é o lugar da linguagem e a linguagem toma forma no
corpo do poema, ou seja, ela se torna propriamente linguagem no poema. A
poesia é ou busca se constituir sempre como uma utopia da linguagem. O
poema funda todo um complexo da subjetvidade do ser por meio do sistema
léxico, conjugando o som, o ritmo e o silêncio das palavras, e procura criar uma
festa dos possíveis da língua que ainda não é; e que apenas no ser do poema
se torna possível. Segundo Paz (1982, p. 345), é na modernidade que “o
poema assume a forma da interrogação. Não é o homem que pergunta: a
linguagem nos interroga”.
96
Considerações finais
Não quero mais saber do lirismo que não é libertação
Manuel Bandeira, “Poética”
Este trabalho ateve-se ao processo de poetização do cotidiano em
poemas de Libertinagem. Para chegar a esse processo de construção poética,
primeiramente, fez-se necessário recuperar, mesmo que sumariamente, a
tradição do gênero lírico e o conceito de lírica moderna, para mostrar as
rupturas que marcaram a renovação da poética brasileira, em especial, a
poesia de Manuel Bandeira. Da mesma forma, recuperamos a tradição crítica
para dialogar com ela e construir uma releitura de alguns poemas bandeirianos.
A delimitação do corpus foi realizada a partir de temas, fazendo um
percurso que envolveu infância, consciência social e morte. Os poemas
“Evocação do Recife”, “Poema tirado de uma notícia de jornal” e “Poema de
Finados” foram analisados. Nesses poemas, identificamos o estilo poético
bandeiriano, por meio dos elementos composicionais que constroem a
simplicidade lírica dos textos, e a temática do coloquialismo, do prosaico, das
reminiscências infantis e da morte. Quanto aos procedimentos estilísticos,
investigamos a cadência rítmica irregular, as rimas aleatórias ou ausentes, a
multiplicidade de tom e a aproximação com a prosa. Atentamos também para a
recorrência a determinados recursos: espacejamento, pontuação, simulação do
ouvinte, os quais o poeta utiliza para criar uma impressão de oralidade no texto
literário.
Dizer que Manuel Bandeira foi um grande divulgador das letras
brasileiras, isso todos já sabem. Os depoimentos de críticos da poesia de
Bandeira, ao longo dos tempos, comprovam sua importância no contexto
modernista. Percorrendo a fortuna crítica do poeta, constatamos, de forma
unânime, que Bandeira era tido como o revolucionador da poesia brasileira,
principalmente com sua obra Libertinagem, a qual transgride as leis da forma
97
poética tradicional e as leis temáticas, marcando o amadurecimento pleno do
poeta para as tendências modernistas.
A formação do projeto poético de Bandeira se dá pela busca constante de
uma poesia mais livre, cheia de ritmos e melodias. É a partir de seu
amadurecimento que o poeta mistura a poesia do verso livre com o rimado. Ao
dominar os mecanismos de criação, alcança a liberdade, a graça, a leveza, o
descompromisso, e busca o seu próprio caminho.
Tínhamos duas hipóteses: a primeira, se o coloquial e o prosaico, ao
marcarem o paradigma da poética modernista, evidenciavam uma outra
arquitetura poética; e a segunda aludia à linguagem do cotidiano como um dos
elementos constitutivos do poema de Bandeira, traduzindo-se pela hibridização
do gênero lírico. Apoiado nas análises, observamos que o poeta, sustentado
pelas reminiscências infantis, pelas leituras da vida cotidiana e pelas
evocações dos familiares ausentes, recriou um mundo perdido, atualizando, via
recordação e evocação, cenas e personagens já findas. Por esse caminho,
Bandeira encontrou forças para confrontar-se com suas perdas, insatisfações,
frustrações, conseguindo, assim, reconstruir sua história de vida por meio da
poesia.
Essas hipóteses foram testadas e comprovadas nos poemas analisados.
Em “Evocação do Recife”, pudemos destacar de que forma o eu lírico rompe
com a estética tradicional, diferenciando-se desta ao reproduzir diálogos, grafar
as palavras de acordo com a pronúncia popular e mesclá-las com os versos de
maneira inesperada. Vimos, no decorrer da análise, que há a preocupação com
a disposição gráfica. Tal preocupação não é revelada em relação à rima,
porém, sua maior expressão está na força da palavra. Esta é coloquial,
cotidiana, empregada com brilhantismo, não desprezando seu aspecto sonoro,
o que acaba por fornecer ao poema um ritmo pessoal e harmonioso que,
somado à emoção, assemelha-se a uma canção.
Em “Poema tirado de uma notícia de jornal”, temos uma notícia de jornal
que anuncia a morte de mais um favelado. A miséria anônima (vem do alto, no
morro da Babilônia, como o jardim suspenso da Babilônia) desce e chega à
lagoa Rodrigo de Freitas (lugar da classe alta no Rio de Janeiro). O drama e o
elemento narrativo unem-se ao ritmo: versos longos na introdução e no
desfecho. Versos curtos, dissílabos quando se trata do prazer. Para o eu lírico,
98
não são necessárias muitas palavras, metros ou rimas para compor uma
tragédia, os fatos bastam por si sós. Notamos, aí, o projeto maior do eu lírico
de hibridização textual, o poético dialogando com o prosaico.
Continuando o percurso analítico dos poemas, chegamos ao “Poema de
Finados”. Aqui, constatou-se como tema principal a morte, a autocomiseração.
Encontramos, na primeira estrofe, um eu lírico que se dirigia a um interlocutor
— tu —, referindo-se ao cemitério e à sepultura do pai; na segunda, ao ritual de
colocar flores na sepultura e orar, porém, o eu lírico alerta que o filho é quem
necessita de oração. Na terceira estrofe, a explicação: o sofrimento, a
amargura, já não há mais nada. Sente-se um morto-vivo. Nessa análise,
enfatizou-se a presença implícita de um interlocutor como uma inovação na
poética moderna brasileira.
Esses poemas trazem consigo marcas de novas formas poéticas, nas
quais o eu lírico encheu de cotidiano. Essa conquista de novas formas
proporcionou ao poeta, Bandeira, compor em muitos ritmos. A busca constante
no jogo da superação artística o fez, também, um sábio no jogo com as
palavras, as métricas, as rimas. Temperou a busca com a leitura de Rimbaud,
de Lautréamont e dos lúcidos Mallarmé e Valéry, com quem aprendeu as
técnicas de invenção verbal.
Logo no primeiro poema de Libertinagem, “Não sei dançar”, Bandeira
resume a sua evolução anterior: “Eu já tomei tristeza, hoje tomo alegria”; e por
isso declara em poema posterior, “Poética”, que “— Não quero mais saber do
lirismo que não é libertação”.
No poema “Poética”, temos claramente a proposta do lirismo bandeiriano,
ou seja, o verdadeiro ofício do poeta, segundo as leis modernistas. Esse
poema deve ser considerado um verdadeiro “hino de libertação modernista”.
Portanto, nega (“abaixo os puristas”) o parnasianismo, escola literária marcada
pelo rigor formal e pelo preciosismo vocabular (características repudiadas por
Bandeira nos versos em que defende o uso de “todas as palavras” e “todos os
ritmos”, na construção do poema). É um poema metalingüístico e também um
texto lírico, em que encontramos recursos rítmicos característicos desse
gênero literário, como a utilização sistemática de paralelismos sintáticos. Os
versos livres e a sintaxe simples e direta constituem alguns dos recursos que
aproximam o poema da linguagem coloquial, configurando-se esse
99
procedimento como uma das principais bandeiras da estética modernista e, em
especial, da proposta poética bandeiriana. Podemos perceber ainda um anseio
de liberdade vital, no qual o eu lírico (poeta melancólico, solitário e irônico)
extravasa seus ideais libertários, quer de sentimentos e desejos vitais, quer
estéticos.
“Poética” é uma espécie de plataforma teórica da poesia modernista. Um
texto de propostas e críticas. Propostas modernistas e críticas ao
tradicionalismo, representado pela estética parnasiana. Portanto, temos, nos
poemas de Libertinagem, a novidade, o erotismo, a musicalidade, a força de
imagens, o cunho biográfico, a paixão pela vida e a visão da morte, a infância,
a pureza, a liberdade, a saudade, o amor, a alegria, a tristeza e a evasão, a
solidão. De acordo com Faria (1980, p. 128), no livro Libertinagem, “tudo fala
num mesmo sentido e esse sentido, uma palavra o sintetiza: libertação. O
poeta põe resolutamente de lado o sofrimento, decide ser feliz, livre,
inconseqüente”, como afirma no poema “Vou-me embora pra Pasárgada”.
Pasárgada é tida como aquele lugar de “reino estranho”, “onde tudo é fácil e a
existência, uma aventura ‘inconseqüente’ ”. Deixa para trás a tristeza, o
sofrimento e suas complicações, e parte para um mundo com inúmeras
possibilidades de ser feliz.
O grito de Bandeira acontece, então, efetivamente em Libertinagem. O
poeta traz ainda a melancolia que marcou seus poemas, mas já vislumbra uma
cidade onde pode sonhar e deseja, melancolicamente, partir para Pasárgada,
resgatar uma infância — como resgatou em “Evocação do Recife”, por meio
das reminiscências infantis —, ter a mulher na cama de sua livre escolha.
Bandeira, enfim, com o ritmo dissolvido, sem máscaras, liberta-se e envereda
para a construção de um novo estilo literário: a poetização do cotidiano.
Ao lermos o poema “Poética”, encontramos a recusa de tudo o que não
seja o lirismo em si mesmo. Parte-se do insulamento (isolação) radical do ser
humano, para daí tentar voltar a fundar laços. Mas atenção, o poeta é mais
ardiloso do que parece. Lirismo, nele, não quer dizer poesia pura, separação,
não, define para o lirismo traços e momentos de intimidade verdadeira com a
linguagem, é o que podemos observar em “Poema tirado de uma notícia de
jornal”. Ao transformar uma notícia retirada do cotidiano jornalístico em poema
em prosa, ou ao utilizar formas estereotipadas da fala cotidiana e da linguagem
100
popular de maneira crítica e renovadora, introduz um novo modo de construir a
representação da realidade, por meio da transformação de elementos
considerados apoéticos em material poético, da hibridização dos gêneros
poéticos e narrativos.
Ao tentar conceituar essa poesia do cotidiano como transgressora,
percebeu-se que os procedimentos poéticos empregados por Manuel Bandeira
são experimentados tanto em poemas prosaicos como nas reminiscências
infantis, e até mesmo nas sensações de morte associadas à sensação de
perda dos parentes próximos.
Os procedimentos poéticos utilizados por Bandeira foram investigados
estilisticamente e tematicamente a partir das análises dos poemas escolhidos.
Ao final dessas análises, percebemos que os poemas retomam as idéias do
manifesto modernista defendido pelo poeta em “Poética”. São poemas que
apresentam características que revolucionaram a poesia moderna brasileira,
com sua estrutura fragmentária; seus versos soltos e livres; seus
espacejamentos; sua ausência de pontuação; sua liberdade temática; sua
versatilidade poética; seu poema em prosa; seu elaborado nível de linguagem
e com uma atitude poética em relação ao meio circundante. Essa liberdade
estética e temática ressalta e aprofunda o cotidiano na poética bandeiriana. Um
ato inovador, que levou a uma nova concepção de “linguagem poética”.
Manuel Bandeira transgride a lírica tradicional, pois, para ele, um poema
não deve seguir regras externas ao “eu interior” do poeta. Ele é contra as
normas sintáticas, semânticas ou poéticas impostas pelos conceitos clássicos.
Prefere o lirismo, isto é, a expressão livre e espontânea dos sentimentos do “eu
lírico”, como a dos “bêbados” e dos “clowns de Shakespeare”. O que Bandeira
queria e pelo que ele lutou era conquistar a liberdade de ir-e-vir, confluindo
estéticas variadas, fossem elas clássicas ou modernas.
Concluímos, assim, que a proposta de poesia do cotidiano de Manuel
Bandeira comprova que as condições do lirismo são, para ele, o transcender o
sentimento, objetivando-o, é a busca de pureza, a simplicidade no existir e no
dizer, é ser vivo e não ser conduzido como boi morto entre os destroços do
presente. É pensar a confluência entre a linguagem coloquial, a linguagem
prosaica e a linguagem poética, pois, nesse “poeta poesia”, evidencia-se uma
outra, ou seja, uma moderna arquitetura poética, uma identidade luminosa. Não
101
há rupturas, porque a palavra e a poesia são feitas dessas junções de temas,
de estilos e de tempos vários. Palavra e poesia encontram-se no cotidiano. Ao
introduzir o coloquial e o prosaico em sua poesia, Bandeira rompe com a
poética clássica, e produz uma poética que traz consigo marcas de hibridização
do gênero lírico na modernidade.
Dessa forma, Bandeira insere sua poesia entre aqueles que resistem ao
tempo. Embora fosse seu desejo “morrer completamente”: “Morrer mais
completamente ainda,/ — Sem deixar sequer esse nome...”, legou-nos uma
poesia valiosíssima, de rigor cotidiano, e deixou seu nome ligado aos grandes
nomes da nossa literatura.
102
Bibliografia
Do autor
BANDEIRA, Manuel. Andorinha, Andorinha. Rio de Janeiro: José Olympio,
1966.
______. Estrela da vida inteira. 20 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.
______. Itinerário de Pasárgada. Rio de Janeiro: São José, 1957.
______. Libertinagem. Rio de Janeiro: Aguilar, 1940.
______. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1967.
Sobre o autor
ANDRADE, Carlos Drummond de. Nota Preliminar. In: Manuel Bandeira.
Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1967.
ARRIGUCCI Jr., Davi. Enigma e comentário: ensaios sobre literatura e
experiência. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
______. Humildade, paixão e morte: a poesia de Manuel Bandeira. São
Paulo: Companhia das Letras, 1990.
BACIU, Stefan. Manuel Bandeira de corpo inteiro. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1966.
BRAYNER, Sônia (org.). Manuel Bandeira. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira; INL-MEC, 1980. (Coleção Fortuna Crítica; v. 5)
CAMPOS, Haroldo de. Bandeira, o desconstelizador. In: Metalinguagem. 3 ed.
São Paulo: Cultrix, 1970.
CANDIDO, Antonio. “Carrossel”. In: Na sala de aula. São Paulo: Ática, 1986.
______; SOUZA, Gilda de Mello e. Introdução. In: BANDEIRA, Manuel. Estrela
da vida inteira. Poesias reunidas. 20 ed. Rio de Janeiro: José Olympio,
1993.
GARDEL, André. O encontro entre Bandeira e Sinhô. Rio de Janeiro: Divisão
de Editoração, 1995.
103
GUIMARÃES, Júlio Castañon. Manuel Bandeira. São Paulo: Brasiliense,1984.
HOLANDA, Ségio Buarque de. Trajetória de uma poesia. In: Manuel Bandeira.
Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1967.
KOSHIYAMA, Jorge. O lirismo em si mesmo: leitura de “Poética” de Manuel
Bandeira. In: BOSI, Alfredo (org.). Leitura de poesia. São Paulo: Ática,
1996.
MORAES, Marcos Antonio de. Correspondência: Mário de Andrade & Manuel
Bandeira. São Paulo: Edusp, 2000.
MOURA, Murilo Marcondes de. Manuel Bandeira. São Paulo: Publifolha, 2001.
(Série Folha explica)
REGIS, Maria Helena Camargo. O coloquial na poética de Manuel Bandeira.
Florianópolis: Ed. da UFSC, 1986.
YUDITH, Rosenbaum. Manuel Bandeira: uma poesia da ausência. São
Paulo: Edusp; Rio de Janeiro: Imago, 1993.
Geral
ANDRADE, Mário de. Aspectos da literatura brasileira. São Paulo: Martins,
1972.
ARISTÓTELES. Poética. São Paulo: Ars Poetica, 1992.
BARTHES, Roland. Existe uma escritura poética?. In: O grau zero da
escritura. Tradução de Anne Arnichand e Alvaro Lorencini. São Paulo:
Cultrix, 1971.
BOSI, Alfredo. Pré-modernismo e modernismo. In: História concisa da
literatura brasileira. 41 ed. São Paulo: Cultrix, 1994.
BRITO, Mário da Silva. História do modernismo brasileiro. 3 ed. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1971.
BRANDÃO, Roberto de Oliveira. A tradição sempre nova. São Paulo: Ática,
1976.
CARA, Salete de Almeida. A poesia lírica. São Paulo: Ática, 1985.
CARPEAUX, Otto Maria. Pequena bibliografia crítica da literatura brasileira.
São Paulo: Ministério da Educação e Cultura, 1955.
CHALHUB, Samira. Funções da linguagem. São Paulo: Ática, 1993.
104
CIDADE, Hernâni. O conceito de poesia como expressão da cultura. São
Paulo: Livraria Acadêmica Saraiva & C.a Editores, 1946.
COUTINHO, Afrânio et al. A literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Sul
Americana S. A., 1970.
CROCE, Benedetto. Estética como ciencia de la expresión y Lingüística
general. 11 ed. Buenos Aires: Gius, Laterza & Figli, 1969.
_______. La poesia: introduzione alla critica e storia della poesia e della
letteratura. 4 ed. Bari: Gius, 1946.
DAICHES, David. O dilema de Platão e A solução de Aristóteles. In: Posições
da crítica em face da literatura. Rio de Janeiro: Acadêmica, 1967.
D’ONOFRIO, Salvatore. “Teoria da lírica”. Teoria da lírica e do drama — 2.
São Paulo: Ática, 1995.
EULALIO, Alexandre. A aventura brasileira de Blaise Cendrars. São Paulo;
Brasília: Quíron/INL/MEC, 1978.
FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna. São Paulo: Duas Cidades,
1978.
GOLDSTEIN, Norma. Versos, sons e ritmos. São Paulo: Ática, 1995.
JAKOBSON, Roman. Dois aspectos da linguagem e dois tipos de afasia;
Lingüística e poética; e À procura da essência da linguagem. In:
Lingüística e comunicação. São Paulo: Cultrix, 1975.
LAFETÁ, João Luiz (1930). A crítica e o modernismo. São Paulo: Duas
Cidades,1974.
LIMA, Alceu Amoroso; CORRÊA, Roberto Alvim. “Manuel Bandeira: poesia”. In:
Nossos clássicos. Rio de Janeiro: Agir, 1970.
LINO, Joselita Bezerra da Silva; SILVA, Francisco Ivan da (org.). Múltipla
palavra: ensaios de literatura. João Pessoa: Idéia, 2004.
LONGINO. “Do sublime” em ARISTÓTELES, HORÁCIO & LONGINO. A
poética clássica. Trad. J. Bruna. São Paulo: Cultrix, 1997.
MARTINS, Wilson. Pontos de vista: crítica literária. V. 3. São Paulo: T. A.
Queiroz, 1991.
MEDAUAR, Jorge Emílio. Ensaios brasileiros. Ilhéus: Editus, 2000.
PAZ, Octávio. O arco e a lira. Trad. Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1982.
PLATÃO. Diálogos — A República (Livro X). Rio de Janeiro: Ediouro, 1998.
105
REIS, Carlos. A poesia lírica. In: O conhecimento da literatura: introdução
aos estudos literários. Coimbra: Almerinda, 2001.
SARTRE, Jean-Paul. O que é a literatura? Trad. Carlos Filipe Moisés. São
Paulo: Ática, 2004.
SILVA, Vítor Manuel de Aguiar e. Teoria da literatura. 3 ed. Coimbra:
Almedina, 1973.
SOARES, Angélica. Gêneros literários. São Paulo: Ática, 1993.
SOUZA, Antonio Candido de Mello e. Literatura e sociedade. 5 ed. São Paulo:
Nacional, 1976.
STALLONI, Yves. A poesia e o gênero lírico. In: Os gêneros literários. São
Paulo: Difel, 2001.
TODOROV, Tzvetan. “Gêneros do discurso”. In: Os formalistas russos.
Petrópolis: Vozes, 1972.
_______ (org.) Teoria da literatura: textos dos formalistas russos
apresentados por Tzvetan Todorov. 2 v. Lisboa: Edições 70,1971.
TOLEDO, Dionísio. Círculo Lingüístico de Praga: estruturalismo e semiologia.
Porto Alegre: Globo, 1978.
TEZZA, Cristovão. Entre a prosa e a poesia: Bakhtin e o formalismo russo.
Rio de Janeiro: Rocco, 2003.
TINIANOV, Iuri. O problema da linguagem poética I: o ritmo como elemento
construtivo do verso. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975.
VALÉRY, Paul. Variedades. Trad. Maiza Martins de Siqueira. São Paulo:
Iluminuras. 1991.
WELLEK, René. História de la crítica moderna (1750-1950): El romanticismo.
Madri: Gredos, 1962.
Internet
<http://www.grupovila.com.br>
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo