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Em interessante artigo em que busca analisar a correlação entre folclore e educação
na obra de Cecília Meireles, Joana C. Abreu identifica
dois pólos opostos e complementares, que orientam todo o pensamento de Cecília
no campo do folclore: o “mundo da máquina”, a que estão associados os valores
negativos, e o “mundo da magia”, que encerra os valores positivos. O mundo da
máquina é associado à lógica, à ciência, à indústria. O mundo da magia, por sua
vez, é recorrentemente relacionado à inspiração, à sabedoria, à autenticidade, à
liberdade e à ingenuidade (Abreu, 2001: 220).
Ao mundo da magia estão associados os objetos artesanais que, segundo Cecília, o
público consumidor urbano já não mais via – àquela época – como bens a serem
consumidos e, por extensão, preservados. Cecília critica esse tipo de mudança e tece as
seguintes considerações a respeito:
Ora, o mercado certo é um dos obstáculos ao estímulo da cerâmica popular dos
nossos dias. Mesmo as peças utilitárias estão sendo todas pouco a pouco
abandonadas. As moringas que refrescam a água são substituídas por
geladeiras; o vasilhame de barro, com todas as virtudes que possa ter, encontra
inimigos invencíveis em louças mais duráveis, ou em caixas e latas que oferecem
outras vantagens; a não ser por moda, ou num outro caso, ninguém quer saber
de comida em caçoletas nem em pratos de barro; os alguidares arranham os
mármores das cozinhas, e as salgadeiras e travessas de barro tornaram-se
incômodas. O mundo feito à máquina não compreende os bordos irregulares do
barro, não gosta dos vidrados escorridos desigualmente, não aprecia a boniteza
torta das canecas, das jarrinhas sem equilíbrio total, e não há mais palitos para
os paliteiros nem moedas para os cofres de barro (Meireles, 1953: 53-54).
Em outra obra, ainda escrevendo sobre os objetos de cerâmica, observa:
Entre as primitivas louças de barro e a cerâmica utilitária atual vai uma grande
distância, na qualidade da pasta. Quanto à parte decorativa não se pode dizer
que tenha havido um desenvolvimento tradicional de valor artístico, sobretudo
no que se refere à grande indústria, que não se comove com a Arte (Meireles,
1968: 62).
A autora reclama da hegemonia do “tudo igual”, da mesmice, da regularidade de
uma estética uniforme que a indústria propicia. No novo mundo criado pela máquina, não
há lugar para a imaginação, a verdadeira expressão do espírito humano, porque o objeto
industrial não suscita em nós a força criadora, mas paralisa as forças imaginantes, os
sonhos e os devaneios, nas palavras de Gaston Bachelard (op. cit.). Com a indústria, tudo
tenderia à horizontalidade da estética, ao empobrecimento do espírito.
E, ainda, acrescenta Cecília:
Desconexa, perdida na imensidade da terra, dividida por circunstâncias
inerentes à formação da própria nacionalidade, a Arte Popular desponta no
Brasil daqui e dali, sufocada ainda, em seu desenvolvimento, pelo
cosmopolitismo nivelador, e pelo industrialismo, que tudo desorienta. A História
não permite lamentações sobre o passado. E em vão se pretenderia reconquistar
o que ficou perdido. Nem o que está vivo no presente podemos dizer até quando,
até onde pode ser acautelado (id., ibid.: 154-155).