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Talvez o único caminho para se ouvir esse grão da voz, seja o caminho da
escuta. Ouvir com sensibilidade esse canto que insiste em serpentear, esse canto
outro de um discurso que nada diz e no entanto não pára de nada dizer. Essa
erótica das margens que dá lugar ao ato amoroso da leitura. " A erogeneidade
respiratória está mal estudada, mas é evidentemente pelo espasmo que ela entra
em jogo",
diria Lacan
20
.
Colocar a linguagem em relação com o seu próprio limite, eis a perversão
maior do texto de gozo. Fazer com que um texto, que é linguagem, esteja ao
mesmo tempo dentro e fora da linguagem. Deslocar imagens, dissolver metáforas,
insiginificar. Trata-se de um "trabalho progressivo de extenuação", como nos
informa Barthes:
Primeiro o texto liquida toda metalinguagem, e é nisso que ele é
texto: nenhuma voz (Ciência, Causa, Instituição) encontra-se por
trás daquilo que é dito. Em seguida, o texto destrói até o fim, até a
contradição, sua própria categoria discursiva, sua referência
sociolingüística (seu "gênero"): é o "o cômico que não faz rir", a
ironia que não se sujeita, a jubilação sem alma, sem mística
(Sarduy), a citação sem aspas. Por fim, o texto pode, se tiver
gana, investir contra as estruturas canônicas da própria língua
(Sollers): o léxico (neologismos exuberantes, palavras-
gavetas,
transliterações), a sintaxe (acaba a célula lógica, acaba a frase).
Trata
-se, por transmutação (e não mais somente por
transformação), de fazer surgir um novo estado filosofal da matéria
linguareira; esse estado inaudito, esse metal incandescente, fora
da origem e fora da comunicação, é então coisa de linguagem e
não uma linguagem, fosse esta desligada, imitada, ironizada.
21
O texto de gozo, ao contrário do texto de prazer, é sempre incômodo,
inquietante, inanalisável pela crítica hermenêutica tradicional. Para Barthes, o
texto de gozo é sempre insuportável, sempre nos remetendo ao jogo da morte, da
20
A respeito do gozo e sua lógica da suplência, ver Lacan.
O Seminário. Livro 20: mais, ainda
.
21
Barthes, Roland. O Prazer do Texto
, pp. 42
-
3.