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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL
CÍNTIA TERESINHA BURHALDE MUA
ACESSO MATERIAL À JURISDIÇÃO: DA LEGITIMIDADE
MINISTERIAL NA DEFESA DOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS
Porto Alegre
2006
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1
CÍNTIA TERESINHA BURHALDE MUA
ACESSO MATERIAL À JURISDIÇÃO: DA LEGITIMIDADE
MINISTERIAL NA DEFESA DOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS
Dissertação apresentada como
requisito parcial à obtenção de grau
de Mestre, pelo Programa de Pós-
Graduação da Faculdade de Direito
da Pontifícia Universidade Católica
do Rio Grande do Sul.
Orientador: Prof. Dr. Thadeu Weber
Porto Alegre
2006
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2
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE DIREITO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
MESTRADO EM INSTITUIÇÕES DE DIREITO DO ESTADO
CÍNTIA TERESINHA BURHALDE MUA
ACESSO MATERIAL À JURISDIÇÃO: DA LEGITIMIDADE
MINISTERIAL NA DEFESA DOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS
Dissertação apresentada como requisito
parcial à obtenção de grau de Mestre,
pelo Programa de Pós-Graduação da
Faculdade de Direito da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do
Sul.
Aprovada em 13 de setembro de 2006 pela Banca Examinadora.
BANCA EXAMINADORA:
________________________________
Professor Doutor Thadeu Weber
________________________________
Professor Doutor Ingo Wolfgang Sarlet
________________________________
Professor Doutor Darci Guimarães Ribeiro
3
A Bruna
4
Agradeço
aos meus pais, Sônia e Aurélio, pelos primeiros passos;
à minha filha, Bruna, pelo amor e pelo desvelo;
ao meu esposo, Giuseppe, pela vigília e invariável compreensão;
ao professor Thadeu Weber, pela orientação;
ao professor Sérgio Gilberto Porto, pela abnegada e gentil co-orientação;
aos amigos, pela colaboração;
ao Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, pela licença que me foi concedida.
5
“A filosofia do egoísmo, que impregnou a atmosfera
cultural nos últimos tempos, não concebe que alguém se
possa deixar mover por outra força que o interesse pessoal.
Nem faltou quem ousasse enxergar aí a regra de ouro: a
melhor maneira de colaborar na promoção do bem comum
consistiria, para cada indivíduo, em cuidar exclusivamente
de seus próprios interesses. O compreensível entusiasmo
com que se lhe acolheu há dois séculos e se cultua até hoje,
em determinados círculos, essa lição de Adam Smith explica
o malogro da sociedade moderna em preservar de modo
satisfatório bens e valores que, por não pertencerem
individualmente a quem quer que seja, nem sempre se
vêem bem representados e ponderados ao longo do
processo decisório político-administrativo, em geral mais
sensível à influência de outros fatores.”
José Carlos Barbosa Moreira
6
RESUMO
Este trabalho pretende contribuir para a compreensão da
legitimidade ministerial na defesa dos direitos individuais homogêneos,
propondo uma concepção ampliada a todas as situações em que a defesa
mediata dos direitos individuais homogêneos represente a defesa
imediata do Estado democrático de direito, papel institucional precípuo do
Ministério Público, vez que somente pela efetivação dos direitos
fundamentais alcançar-se-á a democracia substancial. Contextualiza-se o
problema no tema do acesso à Justiça; define-se o papel do Ministério
Público na Constituição brasileira de 1988; perfila-se a defesa coletiva
dos individuais homogêneos, tangenciando aspectos da racionalidade do
processo coletivo, do Código Modelo de Processo Coletivo Ibero-
americano, do histórico do processo coletivo no Brasil. Estuda-se a
legitimação ordinária, a extraordinária e a substituição processual.
Investiga-se a natureza jurídica da legitimação do Órgão-Agente sob as
perspectivas genérica e específica, perpassando-se pela conceituação
corrente dos individuais homogêneos e pela proposta de compreensão
deste ensaio, à luz da bidimensionalidade dos direitos fundamentais.
Verifica-se a ação civil pública com instrumento para a tutela coletiva dos
individuais homogêneos. Busca-se a superação da seara consumerista e
das demais áreas de interpolação legislativa, norte na relevância social
como critério de sindicabilidade. Exemplifica-se as estirpes tributária,
previdenciária e das omissões administrativas como zonas de plena
densidade da dignidade da pessoa humana e, por isso, suscetíveis da
atuação ministerial legítima. Explicita-se a ratio essendi da legitimação na
seara consumerista como fonte de reverberação. Adentra-se no controle
jurisdicional da legitimidade ativa do Ministério Público para a defesa
mediata dos individuais homogêneos. Aborda-se tópicos de direitos
comparado. Ingressa-se numa leitura filosófica da legitimação, tendo por
referencial a escola hegeliana.
Palavras-chave: Ministério Público – legitimidade – individuais
homogêneos – acesso à justiça - direitos fundamentais
7
ABSTRACT
This work intends to contribute for the understanding of the
legitimation of the Public Attorney in the defense of the homogeneous
individual rights, proposing an extended conception to all the situations in
which the mediate defense of the homogeneous individual rights
represents the immediate defense of the State of the Rule of Law, main
institutional role of the Public Prosecution Service, inasmuch as only by
accomplishment of the fundamental rights is that the substantial
democracy will be achieved. This research puts in context the problem of
the access to justice; it describes the role of the Public Prosecution Service
in the Brazilian Constitution of 1988; it defines the collective defense of
the homogeneous individual rights, passing by the rationality aspects of
the collective process, of the “Processo Coletivo Ibero-Americano”, and
the historical of the collective process in Brazil. It studies the ordinary and
extraordinary legitimation and procedural substitution (party
replacement). It investigates the legal nature of the legitimation of the
prosecutor under broad and narrow perspectives, passing by the actual
idea of the homogeneous individual rights and by the intended
comprehension of this paper, in the light of the dual dimensions of the
fundamental rights. This investigation identifies the “ação civil pública”
(class action) as an instrument to protect the homogeneous individual
rights. It tries to overcome the consumer domain and the others
legislative connected areas, regarding to social relevance as a revision
criterion. It exemplifies the tax law, social security law and administrative
law default areas as full density zones of the human dignity and,
therefore, susceptible of the legitimate prosecutor performance. This
essay explains the ratio essendi of the legitimation in the consumer
domain as a reflection source. It goes through the judicial control of the
Public Prosecution Service legitimation for mediate defense of the
homogeneous individual rights. It discusses comparative law topics. It
boards in a philosophical view of the legitimation, having the Hegel school
as reference.
Key words: Public Prosecution Service - Prosecutor – legitimation –
homogeneous individual rights – judicial access – fundamental rights
8
ÍNDICE
INTRODUÇÃO ..............................................................................11
1 ACESSO À JURISDIÇÃO, BARREIRAS E TRANSPOSIÇÃO: CONTEX-
TUALIZAÇÃO DO PROBLEMA DOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS ..21
1.1 DO ACESSO À JUSTIÇA DO ESTADO LIBERAL AO ESTADO DE-
MOCRÁTICO ................................................................................21
1.2 BARREIRAS DO ACESSO À JUSTIÇA .......................................29
1.3 DA SUPERAÇÃO DA INACESSIBILIDADE À JURISDIÇÃO ........30
1.3.1 Barreiras Econômico-técnicas ............................................30
1.3.2 Das Barreiras Sócio-culturais .............................................36
1.3.3 Dos Interesses Transindividuais ........................................36
2 O PAPEL DO MINISTÉRIO PÚBLICO NA ATUAL CONSTITUIÇÃO DA
REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL ..........................................39
2.1 RAZÃO DE SER DO CAPÍTULO ................................................39
2.2 DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO ...............................39
2.3 DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DO HOMEM ..........................42
2.4 A CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL, O
ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E OS DIREITOS FUNDAMEN-
TAIS DO HOMEM .........................................................................50
2.5 A FUNÇÃO MINISTERIAL NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA
FEDERATIVA DO BRASIL..............................................................62
3 DA DEFESA COLETIVA DOS INTERESSES INDIVIDUAIS HOMOGÊ-
NEOS ...........................................................................................71
3.1 DA RACIONALIDADE DO PROCESSO COLETIVO .....................71
3.2 DO CÓDIGO MODELO DE PROCESSO COLETIVO IBERO-AMERI-
CANO ..........................................................................................73
3.3 DA TUTELA COLETIVA NO BRASIL – ESCORÇO HISTÓRI-
CO................................................................................................75
3.4 DA LEGITIMIDADE MINISTERIAL NA DEFESA DOS DIREITOS
INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS ......................................................78
3.4.1 Da Legitimação Ordinária. Crítica À Doutrina Eclética Da A-
ção ..............................................................................................78
3.4.2 Da Legitimação Extraordinária ...........................................86
3.4.3 Da Substituição Processual ................................................89
3.4.4 Da Natureza Da Legitimação Ministerial, Enquanto Órgão-
Agente: Uma Investigação Genérica ...........................................94
3.4.5 Direito Individual Homogêneo: Sua Conceituação ..............98
3.4.6 Proposta Para A Compreensão Do Conceito De Direito Indivi-
dual Homogêneo .......................................................................102
3.4.7 Da Natureza Jurídica Da Intervenção Ministerial Na Defesa
Coletiva Mediata Dos Individuais Homogêneos: Uma Investigação
Específica ..................................................................................110
3.5 DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA COMO INSTRUMENTO DE CONCRE-
9
TIZAÇÃO DA MISSÃO INSTITUCIONAL DO ÓRGÃO AGENTE NA
DEFESA DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E SEUS REFLEXOS
NA DEFESA MEDIATA DOS DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGÊ-
NEOS .........................................................................................120
3.6 DA SUPERAÇÃO DA SEARA ESTRITAMENTE CONSUMERIS-
TA..............................................................................................146
3.6.1 Rejeição Às Amarras Temáticas – A Falácia Da Única
Resposta Jurídica Correta .........................................................146
3.6.2 Da Legitimidade Ministerial Na Seara Tributária ...............162
3.6.3 Da Legitimidade Ministerial Na Seara Previdenciária ........174
3.6.4 Da Legitimidade Ministerial Para A Defesa Coletiva Dos
Individuais Homogêneos Nas Omissões Administrativas ...........190
3.7 DA RATIO ESSENDI DA LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO
PÚBLICO NA SEARA DO CONSUMIDOR E SUA REVERBERAÇÃO
COMO CRITÉRIO OBJETIVO DE AFERIÇÃO DA RELEVÂNCIA SOCIAL
DA DEFESA COLETIVA DOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS ..........197
3.8 CONTROLE JURISDICIONAL DA LEGITIMAÇÃO MINISTERIAL
PARA A DEFESA COLETIVA DOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS ...222
3.8.1 Apontamentos Iniciais .....................................................222
3.8.2 Da Relevância Social ........................................................224
3.8.2.1 Da Proporcionalidade No Exame Da Relevância Social No Caso dos
Direitos Prestacionais Em Sentido Estrito – Um Diálogo Entre a
Preservação Do Mínimo Existencial e a Reserva do Possível à Luz Da
Dignidade Da Pessoa Humana .......................................................236
3.8.3 Utilidade Da Tutela Coletiva .............................................246
3.8.4 Predominância Do Interesse Coletivo Sobre O Individual .247
3.8.5 Da Representação Adequada ............................................247
4 TÓPICOS DE DIREITO COMPARADO .......................................252
4.1 INEXISTÊNCIA DE PARALELISMO NECESSÁRIO ENTRE AS
CLASS ACTIONS ESTADUNIDENSES E A TUTELA COLETIVA NO
BRASIL ......................................................................................252
4.2 DIVERGÊNCIA DOS PERFIS DOS MINISTÉRIOS PÚBLICOS BRA-
SILEIRO E ITALIANO .................................................................256
4.3 PONTO DE CONFLUÊNCIA ENTRE A NATUREZA JURÍDICA DA
LEGITIMATIO AD CAUSAM SUSTENTADA NESTE ENSAIO E AS
AÇÕES ASSOCIATIVAS DO DIREITO ALEMÃO ............................258
4.4 INFORMES SOBRE A LEGITIMIDADE MINISTERIAL ATIVA NA
AÇÃO POPULAR PORTUGUESA ...................................................259
5 O MINISTÉRIO PÚBLICO E O APARECER DO ESTADO ÉTICO NO
CONTEXTO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL .................262
5.1 O MINISTÉRIO PÚBLICO, A JUSTICIALIDADE DOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS E OS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS ..................262
5.2 RACIONALISMO KANTIANO .................................................264
5.3 A CRÍTICA HEGELIANA ........................................................275
5.4 A CRITICA POPPERIANA .....................................................278
5.5 A LEGITIMIDADE MINISTERIAL NA REALIZAÇÃO DO ESTADO
10
ÉTICO ........................................................................................288
CONCLUSÃO ..............................................................................304
REFERÊNCIAS E OBRAS CONSULTADAS .....................................313
ANEXOS ....................................................................................323
11
INTRODUÇÃO
À sociedade de massas não mais serve a concepção individualista
com que foram modelados institutos processuais de peso, como a
legitimidade para agir e a substituição processual, sem se falar na coisa
julgada, entre muitos.
Os estudiosos do Direito, atentos às novas necessidades
emergentes, de há muito são unânimes em visualizar este quadro que,
flagrantemente, gera descompasso entre o processo e a sociedade.
O caráter instrumental do processo motivou inúmeras modificações
legislativas, proporcionando o rompimento de muitos obstáculos à
efetividade de novéis direitos subjetivos, nascidos da nova conjuntura
sócio-econômica.
Contudo, ainda restou muito espaço para a inefetividade, quer pela
ausência, ainda, de instrumentos capazes de demovê-la em certas áreas,
quer pela utilização -- equivocada -- do instrumental existente e
potencialmente eficaz, como conseqüência da manutenção de concepções
arraigadas a paradigmas que não mais se identificam com as
necessidades sociais.
O prejuízo, de toda a sociedade.
A conseqüência, imediata, a subjugação do direito material pelo
processo
1
; a superação irrazoável do conteúdo pelo instrumento; situação
1
Não queremos adentrar no embate entre monismo e dualismo, muito menos nos aventurar nas alamedas do
substancialismo e do procedimentalismo. Contudo, vale referir, como acentua Adalberto Narciso Hommerding,
Constituição, Poder Judiciário e Estado Democrático de Direito: a Necessidade do Debate “Procedimentalismo
Versus Substancialismo”, Revista do Ministério Público do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, n. 57, jan-
abr/2006, p. 23-44: “ (...)A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 inaugurou o paradigma do
Estado Democrático de Direito, que veio agregar um plus normativo às facetas ordenadora (Estado Liberal de
Direito) e promovedora (Estado Social de Direito), fazendo com que o Direito passasse a ser transformador.(....)
12
que quer significar, numa visão macroscópica, o impedimento à
transposição da democracia formal, pelo inacesso material à jurisdição
como instância mediadora da idéia fundamental da liberdade e, por isso,
responsável pela conformação do núcleo essencial dos direitos
fundamentais.
Dentre os diversos temas que compõem a constelação de hipóteses
que desnudam a inadequação do processo, ou a sua má utilização, a
questão da legitimidade ministerial para a defesa dos interesses
individuais homogêneos ocupa posição de destaque.
Alguns a refutam, incondicionalmente; outros a admitem, em
variáveis graus, e por diferentes razões.
Há inquietude acerca o tema, que precisa de desenlace.
A proposta deste trabalho, sem a pretensão de atingir foros de tese,
objetiva rever conceitos já enraizados, no intuito de buscar, pela nova
síntese, um berço mais tranqüilo para a questão da legitimação ministerial
na defesa dos individuais homogêneos.
No curso deste ensaio, buscar-se-á demonstrar que tal legitimação
tem assento em nosso sistema jurídico-constitucional, porque decorrente
da inscrição do Estado brasileiro como um Estado democrático de direito.
Ver-se-á, também, que a legitimação ministerial para a defesa dos
interesses individuais homogêneos tem íntima e necessária inter-relação
com a efetividade dos direitos fundamentais do Homem, pilar-centro da
democracia substancial, mormente a brasileira, cujo ápice axiológico-
normativo assenta-se na dignidade da pessoa humana.
Objetivar-se-á, por igual, desnudar que a legitimidade do Órgão, no
âmbito de que se ocupa esta dissertação, é mediata, reflexa, porque o
agir ministerial tem outro fator de ignição: a defesa da dimensão jurídico-
objetiva dos direitos fundamentais, que produz efeitos jurídicos
autônomos e transcendentes à perspectiva subjetiva.
Nesse sentido, é preciso entender a Constituição do Brasil como algo substantivo, uma vez que contém valores
(...) que o pacto constituinte estabeleceu como passíveis de realização. (...) A postura substancialista leva em
consideração a mudança de visão que se deve ter em relação à Constituição, ao Poder Judiciário e, nessa
perspectiva, ao processo como instrumento para o exercício da jurisdição.(...)”
13
Desta feita, o dimensionamento da controvertida questão não mais
poderá ser atingido, com firmeza, sem que se abandone o equívoco de
buscar, em terreno alheio (a circunscrição da esfera subjetiva dos direitos
fundamentais), legitimidade que tem nascedouro noutra seara, mais
ampla e supravalente, inerente e invariavelmente de titularidade difusa.
A sociedade hodierna não está mais afeta a concepções
individualistas: demonstram as tendências nas mais diferentes áreas do
conhecimento; destarte, conceber o agir ministerial subsumido no
indivíduo é um contra-senso irrazoável.
Nesta modesta contribuição, procura-se aclarar que, ao se
vislumbrar a mera defesa do indivíduo, obscurece-se a verdadeira ratio
da atuação do Órgão, que encontra respaldo na decisão política
fundamental, lançada pelo Poder Constituinte Originário.
Bem se vê, a dimensão do problema tem espectro que ultrapassa o
campo da processualística, pois finca raízes no terreno constitucional e na
idéia reguladora que o antecede, deixando descortinar o seu viés
filosófico.
Contudo, ao parecer, as soluções majoritárias até aqui veiculadas
prendem-se a centro magnético que não tem, na visão dos titulares do
Poder, s.m.j., idoneidade para tanto, verbalizando repulsa sob o
apanágio da disponibilidade dos direitos subjetivos em causa.
A subjugação do real epicentro da vexata quaestio fragiliza,
imediata e primariamente, o sistema constitucional de implementação e
proteção da democracia material, que é um processo vivo, alimentado
pelas sucessivas mediações sociais à efetividade dos direitos
fundamentais, notadamente seus núcleos intangíveis, embebidos pelo
valor-fonte.
Corolariamente, o desvirtuamento cêntrico ilumina o
enfraquecimento do sentimento de cidadania
2
, engrandece a relativização
2
Aqui o termo não é utilizado em sentido restrito (como relativo aos nacionais em pleno exercício dos direitos
políticos), mas numa acepção ampliada, para englobar aqueles que aspiram cidadania, concebida como o “direito
a ter direitos intangíveis”, na feliz elaboração do eminente Prof. Juarez Freitas, no prefácio da obra de
SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998,
14
da segurança jurídica, contribui, numa visão macroscópica, para a
lentidão da prestação jurisdicional, o que se hipertrofia em face da
garantia da celeridade processual, introduzida pela EC 45/2004, que já
era cognata ao acesso, mas agora veio explicitada, calando os adeptos da
legolatria, e amordaça, em larga medida, o guardião da democracia
substancial, em prejuízo sistêmico aos direitos fundamentais do Homem.
Assim equacionado, o fascínio que o tema exerce sobre os
estudiosos é incomensurável.
Com o intuito de concretizar a proposta deste trabalho, sem se
olvidar a singeleza que o guarnece, dividir-se-á o estudo em cinco
capítulos.
No primeiro, de índole nitidamente preparatória, proceder-se-á a
contextualização do problema dos individuais homogêneos à luz da
temática do acesso à Justiça. Por intermédio de uma incursão histórica
do Estado liberal ao Estado democrático, buscar-se-á identificar os
obstáculos à plena acessibilidade, trazendo à baila algumas iniciativas de
transposição, culminando com a apresentação da tutela coletiva dos
interesses transindividuais – foco nos individuais homogêneos -- como
ferramenta idônea à racionalidade da provocação do Estado-Juiz, à vista
do fenômeno da massificação das relações sociais como uma constante
da realidade contemporânea.
O segundo, tangenciando o cerne, visa definir o papel do Ministério
Público na atual Carta Constitucional, priorizando a análise da concepção
de Estado democrático de Direito e sua correlação com a efetividade dos
direitos fundamentais do Homem.
No âmbito destes últimos, analisar-se-á o fenômeno da
bidimensionalidade, com o intuito --- olhos postos no tema-centro deste
estudo ---- de angariar poderoso ferramental para a concreção do
objetivo inicialmente acenado.
Ultrapassados estes estágios, o item seguinte investigará a
positivação dos direitos fundamentais na Constituição da República
p. 18. Este será o tratamento corrente do vocábulo ao longo do texto, à exceção do que será estudado no item 2.4.
15
Federativa do Brasil, promulgada a 10 de outubro de 1988, para, em
prosseguimento, descortinar o papel do Ministério Público no seu
contexto.
O terceiro capítulo concerne à defesa coletiva dos individuais
homogêneos. Adentra-se, em primeiro plano, no estudo da racionalidade
do processo coletivo como inerência do hodierno perfil das relações em
sociedade, perpassando pela visualização do Código Modelo de Processo
Coletivo Ibero-Americano e por escorço histórico da tutela coletiva no
Brasil. Ao depois, ingressa-se na questão da legitimidade ministerial na
defesa coletiva dos individuais homogêneos, procedendo-se um breve
estudo acerca da legitimidade processual e suas múltiplas nuances,
interligando-o ao do tormentoso instituto da substituição processual.
No bojo deste capítulo (item 3.4.1), aproveitar-se-á o ensejo para
tecer uma despretensiosa crítica à teoria eclética, a fim de demonstrar
que, ao contrário do pensamento reinante, as condições da ação não
atinem à ação processual, que é incondicionada, mas à ação de direito
material, registrando, brevemente, a lição ponteana acerca de direito
subjetivo, pretensão e ação de direito material.
Em prosseguimento, ter-se-á uma investigação genérica acerca da
natureza jurídica da legitimação do Órgão-Agente, em preparando a
similar, mas específica, atinente ao problema a ser desvelado, que a seu
turno será antecedida pelas seguintes questões circunferentes: o conceito
de interesse individual homogêneo sob a dicção corrente; a visão desta
ensaísta, paradigmada na bidimensionalidade dos Direitos Fundamentais.
Próximo item (3.5) veiculará a Ação Civil Pública como
instrumento da ação ministerial na defesa imediata do interesse difuso de
proteção do Estado democrático de direito e, conseqüentemente, mediata
dos direitos individuais homogêneos, ao lado dos essencialmente
coletivos. No contexto deste tópico, tomar-se-á a liberdade de criticar as
modificações introduzidas na seara da coisa julgada em sede da Ação
Civil Pública, pela Lei 9.494/97.
O capítulo terceiro contemplará, ademais: a falácia da única
16
resposta jurídica correta, placitada no aferramento da legitimidade
ministerial à esfera consumerista e às demais hipóteses de interpolação
legislativa, trazendo à tona algumas das situações de incidência da
legitimatio. Sob este viés, estudar-se-ão as searas tributária,
previdenciária e das omissões administrativas, sustentando-se a
inconstitucionalidade do parágrafo único do artigo 1º da Lei da Ação Civil
Pública, com a redação que lhe foi dada pela Medida Provisória 2180 e
rechaçando-se o argumento da invasão da competência do Supremo
Tribunal Federal, pela indigitada utilização do instrumento como
sucedâneo da Ação Direta de Inconstitucionalidade.
Perscrutar-se-á, em fecho à construção das bases teoréticas da
interpretação da legitimação do Órgão-Agente à luz da Constituição, a
ratio essendi da legitimidade do Ministério Público no contexto do direito
do consumidor e sua reverberação como critério objetivo de aferição da
relevância social na defesa coletiva dos individuais homogêneos.
Por derradeiro, enfrentar-se-á a temática do controle jurisdicional
da legitimação ministerial neste âmbito, presidido pela verificação
tópico-sistemática da relevância como vetor de sindicabilidade,
congregando, à luz da proporcionalidade, o diálogo entre o mínimo
existencial e a reserva do possível, no espectro dos direitos prestacionais
em sentido estrito. Co-atuam no escopo do exercício dos freios e
contrapesos à atuação do Órgão-Agente: a utilidade da tutela coletiva e a
predominância do interesse coletivo sobre o individual. A questão da
representação adequada será igualmente abordada, com os
temperamentos consentâneos às especificidades da legitimatio em
estudo.
O quarto capítulo encerra tópicos de direito comparado, em
esboço sumário e inexauriente. Serão vistos quatro temas, a saber:
inexistência de paralelismo necessário entre as class actions e a tutela
coletiva no Brasil, limitando-se a abordagem comparativa à estirpe
prevista na regra 23(b)(3) do modelo estadunidense e à defesa coletiva
dos individuais homogêneos, no que concerne ao sistema jurídico
17
nacional; cotejo das diferenças dos perfis dos Ministérios Públicos na
Itália e no Brasil como pré-compreensão à inatuação ministerial na
tutela coletiva daquele País peninsular; ponto de confluência entre a
natureza jurídica da legitimação de que se trata e as ações associativas
alemãs; informes sobre a legitimidade ministerial na ação popular
portuguesa.
À guisa de alargamento da cognitio que se trava, no quinto catulo
3
tem-se na berlinda a busca da fundamentação da legitimação ministerial
na defesa coletiva mediata dos individuais homogêneos à luz da filosofia
hegeliana. Principia-se pela exaltação da justicialidade dos direitos
fundamentais como condição primeira e inafastável para a efetivação do
Estado democrático de direito, anuncia-se a defesa coletiva -- em foco os
individuais homogêneos -- como instrumento à construção do Estado ideal
(ético). Ao depois, ingressa-se no racionalismo kantiano, em rudimentares
lineamentos, passando-se ao estudo sintético da crítica hegeliana.
Agrega-se, sumariamente, a crítica que Popper fez a Hegel, com a
colação de argumentos contrários às objeções popperianas, alcançando-se
a legitimidade ministerial na realização do Estado ético.
No desenvolver do presente estudo, a análise dos temas
constitucionais envolvidos será pontual, e logicamente incompleta,
fazendo-se limitar ao tanto quanto baste para a compreensão do
problema que desafia esta escritura. Hipertrofiado raciocínio estende-se à
filosofia: os colóquios inscritos neste ensaio têm circunscrição definida
pelos seus estreitos limites; a busca da fundamentação filosófica, sob a
ótica hegeliana, tem vocação complementar ao esteio constitucional, não
por padecer de importância, o que seria desassisado, mas por mera opção
metodológica.
O estudo casuístico será exemplificativo das diferentes tendências
que o tema ocupa nos ensaios doutrinários e, bem assim, nas
3
A inclusão da abordagem filosófica no derradeiro capítulo não ignora a fundamentação metafísica como
ontologicamente antecedente ao esteio constitucional. A opção estrutural teve por norte verbalizar que, in casu,
dada a formação ainda incipiente da ensaísta em filosofia, a abordagem assumiria caráter complementar-
sedimentador das idéias expostas nos capítulos precedentes.
18
manifestações jurisprudenciais coligidas.
A pesquisa acerca dos institutos processuais da legitimidade e da
substituição, dada a complexidade que lhes é peculiar, será bastante
objetiva, para guardar coerência com o caráter preparatório à
compreensão e sistematização do objeto deste trabalho.
No contexto da crítica à teoria liebmaniana da ação, não se
procederá a estudo detalhado das teorias da ação, que, inobstante, serão
mencionadas, por seus traços mais característicos, para o fim específico
de fornecer supedâneo para o que foi proposto a descortinar.
O estudo acerca dos direitos fundamentais do Homem será mais
informativo que formativo, assumido esta fisionomia, tão-somente, no que
concerne ao fenômeno da bidimensionalidade, consoante desenvolvido
pelo jurista português Canotilho
4
.
A exposição acerca da conceituação do Estado democrático de
direito será um tanto quanto singela, já que o tema, sem que se
necessite superdimensioná-lo, tem fôlego suficiente para ensejar
inúmeros escritos específicos.
No tópico em que se desenvolve a coalizão entre Constituição da
República Federativa do Brasil/Estado democrático de direito/direitos
fundamentais do Homem, o estudo alcança moldes meramente
informativos, na medida em que o seu aprofundamento transcende a
seara técnico-jurídica, para fincar raízes na sociologia, na antropologia, na
história, e nas mais diversas facetas da abordagem multidisciplinar,
superando, em muito, a perspectiva do presente ensaio.
Quando se estuda a função do Ministério Público na atual
Constituição da República Federativa do Brasil, deve-se firmar: a) primo,
a análise não comporta um estudo regressivo-comparativo, mas se fixa,
exclusivamente, na Carta Constitucional hodierna; b) secundo, não
contempla pesquisa histórica acerca da Instituição Ministerial e,
4
Eleito dentre os interlocutores de língua portuguesa da concepção normativa dos direitos fundamentais, que
tem origem na escola germânica, à luz das teorias institucional, axiológica, democrático-funcional e do Estado
Social acerca dos direitos fundamentais, as quais serão abordadas ao longo do estudo, sob a dicção de
Böckenförde.
19
conseqüentemente, e em reforço, não se ocupa da análise do papel deste
Órgão no sistema constitucional que precedeu a Carta de 1988; c) terzo,
parte-se da identificação do papel precípuo do Ministério Público enquanto
guardião do Estado democrático de direito (art. 127, caput, CF/88) como
diretriz normativa e princípio informador da exegese das atribuições
institucionais insculpidas no art. 129, II, III e IX da Carta Magna; d)
quarto, não examina as demais funções institucionais do Ministério
Público, tendo em vista os limites deste trabalho.
No que concerne ao direito comparado, o trabalho cinge-se aos
temas elencados no quarto capítulo, que são tratados de maneira
impercuciente, como esboço, com perfil meramente informativo, e ao
exame do Código Modelo do Código de Processo Coletivo Ibero-
americano. Outras abordagens encontram-se insertas, passim, mas
contextualizadas como etapas do apanhado histórico, como ocorre, v. g.,
quando da sedimentação do primeiro e do segundo capítulos.
Emprega-se, então, o método da pesquisa bibliográfica, com
nuances de estudo de direito comparado.
A escolha do tema teve por premissa conquistar, no seio da
academia, espaço para o diálogo, para a adequada crítica à proposta que
tem por escopo filiar-se às demais iniciativas pela busca incessante da
máxima eficiência possível da prestação jurisdicional, como resposta à
realidade – mundial, mas hipertrofiada no Brasil – da morosidade
irrazoável como rótulo demeritório no Poder da República que, qual Fênix,
precisa levantar-se das cinzas do descrédito, o que só se poderá placitar
por meio da auto-reflexão e de ações compatíveis com os vetores da
responsabilidade social e política do juiz, premissas que encorajam esta
ensaísta, enquanto integrante da magistratura nacional, a questionar a
legitimação democrática de decisões judiciais que estejam a co-atuar
como externalidades à conformação da lentidão e da ineficiência,
obrigando a pulverização de ações individuais quando uma única seria
mais razoável e condizente e vocacionada para um acesso material à
jurisdição.
20
Firmadas as premissas que estabelecem os necessários contornos
desta dissertação, passa-se a desenvolver o presente estudo que, em
síntese, propõe a sistematização das razões pelas quais a legitimidade
ministerial para a defesa dos interesses individuais homogêneos desponta
como uma inerência do Estado democrático de direito.
Seu reconhecimento, portanto, de assaz importância.
21
1 ACESSO À JURISDIÇÃO, BARREIRAS E TRANSPOSIÇÃO:
CONTEXTUALIZAÇÃO DO PROBLEMA DOS INDIVIDUAIS
HOMOGÊNEOS
1.1 DO ACESSO À JUSTIÇA DO ESTADO LIBERAL AO ESTADO
DEMOCRÁTICO
Ontológica e finalisticamente, o acesso universal à justiça visa à
produção de resultados individual e socialmente justos.
Neste diapasão, a concepção de justiça social é cognata ao acesso
efetivo à justiça, o que não necessariamente passa imbricado com a idéia do
monopólio da jurisdição pelo Estado
1
.
Apenas para que não passe in albis, calha registrar deste o pórtico que,
na seara capitalista, inclusive nos países desenvolvidos, o alto custo das
demandas judiciais é matéria recorrente
2
, mesmo considerada a altiva renda
per capita que permeia aqueles tecidos sociais.
Neste sentido, apenas a título ilustrativo, na Alemanha a litigação de
uma causa de valor mediano, até a 1ª na primeira instância recursal,
custaria cerca da metade do valor da causa. Na Inglaterra, verificou-se que,
em cerca de um terço dos litígios contestados, os custos globais foram
superiores ao valor da causa. Na Itália, as despesas processuais poderiam
atingir 8,4% do valor da causa, em demandas com vultoso valor econômico,
e 170% do valor das causas modestas, cerca de um terço do todo, o que
com maestria contextualiza Boaventura de Souza Santos, tomando os dados
trazidos por Cappelletti, como o fenômeno da “dupla vitimização das classes
populares face à administração da justiça”, aduzindo que “a justiça civil é
1
O estudo não comporta a análise das alternativas à solução estatal do conflito, como a arbitragem, salvo uma breve
crítica à formação da coisa julgada material nesta seara, o que será objeto da nota 17 deste capítulo.
2
Consoante denuncia CAPPELLETTI, Mauro. Acesso à Justiça. Trad.; Ellen Gracie Northfleet, Porto Alegre:
Sérgio Fabris, 1986, p. 15/17
22
cara para os cidadãos em geral mas (...) é proporcionalmente mais cara para
os cidadãos economicamente mais débeis”, enquanto “protagonistas e os
interessados nas ações de menor valor”
3
, reforçando que pragmaticamente
tal onda de vitimização é tripla, na medida em que
um dos outros obstáculos investigados, a lentidão dos
processos, pode ser facilmente convertido num custo econômico
adicional e este é proporcionalmente mais gravoso para os cidadãos
de menos recursos.
4
Sendo o fenômeno jurídico eminentemente histórico, passemos a
recuperá-lo, por meio dalgumas pinceladas da aquarela história, trazendo à
baila a concepção acesso à justiça nos diferentes estereótipos de Estado.
O Estado liberal e de direito, emergente da Revolução Francesa,
exerceu predomínio na constância do Século XIX, cunhando distinção
acentuada entre a atividade econômica e a atividade pública.
Por Norberto Bobbio
5
, o liberalismo é
um movimento de idéias que passa através de diversos
autores, diferentes entre si, como Locke, Montesquieu, Kant, Adam
Smith, Humboldt, Constant, John Stuart Mill e Tocqueville, entre
outros, que apresentam a doutrina liberal sob vários aspectos,
passando de autor a autor, com aspectos econômicos e políticos.
Como teoria econômica, é fator da economia de mercado; como teoria
política, fator do Estado que governe o menos possível, ou, como se
diz hoje, do Estado mínimo (reduzindo-o ao mínimo necessário)
O mestre insular agrega ainda que o liberalismo teve formação
binomial, porquanto teve nascedouro da emancipação do poder político em
relação ao poder religioso e, de outra parte, do poder econômico do poder
político; assim, o Estado deixa de ser o braço secular da Igreja e se torna o
3
Introdução à Sociologia da Administração da Justiça. In: FARIA, José Eduardo (org.). Direito e Justiça. A Função
Social do Judiciário. o Paulo: Ática, 1997, p. 46.
4
idem, p. 47
5
BOBBIO, Norberto. O Futuro da Democracia: Uma Defesa das Regras do Jogo. 5.ed. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1992, p.114.
23
braço da burguesia empresarial
6
, enfeixando-se como “a doutrina do Estado
mínimo”, que preconiza essencialmente a limitação estatal e torna a lei uma
ordem geral e abstrata, caracterizada pelo não impedimento, ou seja, o
cidadão é livre para fazer tudo o que a lei não proíbe, ao passo em que o
Estado não deve intervir nas relações econômicas que se auto-regulam.
7
.
O Estado liberal é concebido como um Estado protetor, porquanto
finaliza proteger as vidas e as propriedades de seus concidadãos, delineando
o paradigma da segurança jurídica como redutor de incertezas.
Neste cenário, ensina Elias Diaz
8
, o Estado liberal é marcado pelo
“império da lei”, conquista histórica inarredável, na medida que representa
um marco na juridicização do Estado e a eliminação da arbitrariedade: a lei
passou a ser exigida como produto de soberania de toda a nação
(democracia) e não apenas do Monarca soberano. Trouxe, ainda, outras
contribuições muito válidas, dentre as quais destaca-se o Estado de Direito,
informado pelo império da lei como expressão da vontade geral; pela divisão
de poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário, de forma independente, mas
inter-relacionados); pela legalidade da Administração, que deverá ter uma
atuação segundo a lei, mediante um sistema de controle judicial (sistema de
controle de leis e atos administrativos e o chamado judicial review) e
observância dos direitos e liberdades fundamentais, com garantia jurídico-
formal.
A história revelou que o Liberalismo, apesar de suas contribuições,
apresentava-se ainda insuficiente para resolver as mazelas sociais que se
acumularam como conseqüência da implementação de um capitalismo cru,
totalmente insensível ao surgimento de uma nova classe social: o
proletariado.
Não há dúvida que o Liberalismo tinha franco comprometimento
6
ob.cit.,p.115.
7
BOBBIO, “O Futuro da Democracia...”, p. 121.
8
Estado de Derecho y Sociedad Democrática, 9º ed. Madrid: Taurus, 1998.
24
ideológico com burguesia capitalista e seus primados de certeza e segurança,
aptos a perpetuar o status quo.
Não obstante a evolução da lei como produto da soberania da nação,
tal feição deixava ao largo os não proprietários, porquanto o voto era restrito
aos donos da propriedade imobiliárias e dos meios de produção, fazendo ver
que a ascensão do povo ao poder ainda era absolutamente intangível, não
havendo razão plausível para que o corpo eleito legislasse questões outras,
que não as representativas dos estritos interesses da classe econômica
dominante, a burguesia.
Destarte, no Estado liberal dos Séculos XVIII e XIX, prevalecia a
filosofia individualista dos direitos, nucleada pelos dogmas da autonomia da
vontade e da igualdade formal.
Neste contexto, o direito de acesso à justiça era eminentemente
formal, na medida em que, enquanto direito natural e, portanto, anterior ao
próprio Estado, não necessitava de proteção estatal. O Estado deveria
apenas não permitir que os direitos de um não subjugassem os de outrem,
mas sempre no plano intersubjetivo, fazendo exsurgir a sua total passividade
no tocante à efetividade do acesso à justiça e, corolariamente, dos direitos
postos em causa, denotando que a inclinação das pessoas em utilizar a
justiça e suas instituições não era preocupação do Estado.
Consoante Mauro Cappelletti, a justiça no sistema do Laissez-faire
só poderia ser obtida por aqueles que pudessem enfrentar seus
custos; aqueles que não pudessem fazê-lo eram considerados os
únicos responsáveis por sua sorte. O acesso formal, mas não efetivo
à justiça, correspondia à igualdade, apenas formal, mas não efetiva.
9
Prosseguindo nos ventos da história, colhe-se a lição de Darcy
Azambuja
10
no tocante à derrocada do Estado liberal:
o liberalismo econômico que, por extensão, veio caracterizar o
Estado até fins do século XIX, e daí a denominação, um tanto
arbitrária, de Estado liberal, constituiu um eufemismo enganador, a
cuja sombra se processou rapidamente a hipertrofia do Estado
9
CAPPELLETTI, Mauro. Acesso à Justiça. Trad.; Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1986.p. 9
10
AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. 40.ed. São Paulo: globo, 2000, p.145.
25
moderno. Premidos pelo advento do industrialismo, pelo
desenvolvimento formidável da técnica, dos transportes, das
comunicações, do comércio, empurrados irresistivelmente pela
complexidade da vida social, onde borbulhavam problemas novos, os
Estados modernos, aos reclamos mesmo dos mais ferrenhos
individualistas, foram gradualmente absorvendo o indivíduo,
entrosando-o na sua engrenagem cada vez mais vasta e complicada.
Debalde, as Constituições modernas aumentaram sem cessar as listas
dos direitos do homem; a simples enunciação deles não podia
entravar a marcha incoercível do Leviatã. Uma regulamentação
jurídica minuciosa e avassaladora, jorrando inexaurivelmente dos
Parlamentos, encerrou o homem moderno na teia inextricável, em
que todos os seus atos, todas as atitudes, toda sua vida dependia do
Estado. Onisciente, onipresente, onipotente, o Estado do século XX
realizou em proporções inimagináveis os mais audaciosos sonhos de
que seria capaz o gênio de Hobbes (...) o chamado Estado liberal,
exatamente por ser um regime popular, em que a vontade do povo
ditava a lei, absorveu o indivíduo e o povo. Porque o indivíduo e o
povo, diante dos novos problemas e das novas necessidades que iam
surgindo, incapazes de resolver aqueles e de suprir a estas, mesmo
de compreender uns e outras, imploravam e exigiam do Estado a
solução e o remédio para todas as dificuldades e males. E assim o
Estado se hipertrofiou exatamente para atender os reclamos dos que
mais tenazmente pretendiam defender os direitos do indivíduo contra
o poder do Estado. A cada necessidade, um novo serviço público,
para cada problema, uma lei ou um código; cada inovação, cada
progresso da técnica, determina uma regulamentação (...) como as
necessidades, os problemas, as invenções e o progresso material
cresceram num ritmo incessante, os serviços, as leis e as
regulamentações se multiplicaram. As rendas públicas aumentavam
sempre, mas as despesas centuplicavam-se. Um imenso exército de
funcionários de todas as categorias era necessário para pôr em
movimento a colossal maquinaria administrativa. Em verdade,
monarquia, aristocracia e democracia não traduzem a forma de
governo do Estado moderno; o termo burocrata é uma expressão
mais real do que qualquer outra.
Conclui, o mesmo autor, em outra passagem, que
Desgraçadamente, ele não poderia desempenhar com
eficiência a tremenda tarefa que lhe impunham, e entrou em crise
11
.
Da fissura do Estado liberal exsurgiu o Estado social, preocupado com
as questões sociais que restaram pujantes e marginalizadas no predecessor.
Neste passo, o cidadão passou a ser visto como sujeito do direito a
prestações estatais positivas e concretas, cunhadas em políticas públicas de
inclusão social dos menos favorecidos.
11
AZAMBUJA, 2000, p. 147.
26
Consoante leciona Paulo Luiz Netto Lôbo
12
,
Entende-se por Estado social, no plano do direito, todo aquele
que é regido por uma Constituição que regule a ordem econômica e
social. Neste sentido, substitui o Estado liberal, cuja constituição
voltava-se à delimitação do poder político ou à organização política e
à garantia dos direitos individuais, deixando a ordem econômica à
“mão invisível” do mercado. (...) Assim, o Estado social caracteriza-se
por estabelecer mecanismos jurídicos de intervenção nas relações
privadas econômicas, nas dimensões legislativa, administrativa e
judicial, para a tutela dos mais fracos, tendo por objetivo final a
realização da justiça social.
O modelo constitucional do Welfare State tem como marco a
Constituição de Weimar de 1919, posto que a outra referência histórica que
por vezes se lhe acomete, a Constituição Mexicana de 1917, não pode assim
ser tida porque, s.m.j., fruto da Revolução de 1910, de fôlego amplamente
socialista e não social. A solidificação do novo modelo, contudo, só
sobreveio no período do pós-guerra mundial.
No Welfare State, qualquer cidadão, independente de sua situação
social, teria o direito de ser protegido contra dependências de curta ou longa
duração. O Estado social deveria garantir tipos mínimos de renda,
alimentação, saúde, habitação, educação, assegurados a todos os cidadãos,
não como caridade, mas como direito político.
13
Os movimentos operários pela conquista da regulação, da garantização
e da promoção dos direitos relativos às relações de produção e seus
reflexos, como a previdência e a assistência sociais, o transporte, a
salubridade pública, a moradia, que vão impulsionar a passagem do
chamado Estado mínimo para o Estado social
14
, foram a força motriz deste
novo estágio.
Como se vê, sucessivas mediações sociais cunharam a fisionomia de
uma nova postura estatal, que se transmudou da inicial passividade para a
12
Paulo Luiz Netto Lobo, Direito do Estado Federado ante a Globalização Econômica, Revista de informação
Legislativa, Brasília, n. 151, p.95-108:99, ano XXXVIII, jul.-set. 2001.
13
STRECK, Lênio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan. Ciência Política e Teoria Geral do Estado. 2
a
.ed.rev.ampl.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p.142.
14
MORAIS, José Luis Bolzan de. As Crises do Estado e da Constituição e a Transformação Espacial dos Direitos
Humanos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p.34
27
ação pela efetividade, que passou a ser a epígrafe no Welfare State, com
enfoque ao acesso à justiça, enquanto instrumento à concreção material dos
direitos assegurados nas Constituições, “uma vez que a titularidade de
direitos é destituída de sentido, na ausência de mecanismos para sua efetiva
reivindicação.(...)”
15
A transmudação fisionômica do acesso trouxe à baila uma leitura
socializada do instituto jurídico, vale dizer que sua denegação a um indivíduo
acarretaria a de todos os demais, porquanto
destituídos de mecanismos que fizessem impor o seu respeito,
os novos direitos sociais e econômicos passariam a meras
declarações políticas, de conteúdo e função mistificadores. (...) a
organização da justiça civil e em particular a tramitação processual
não podiam ser reduzidas à sua dimensão técnica, socialmente
neutra, devendo investigar-se as funções sociais por elas
desempenhadas e em particular o modo como as opções técnicas no
seu seio veiculavam opções a favor ou contra interesses sociais
divergentes ou mesmos antagônicos (...).
16
O direito de acesso, então, passou a ser visto como ponto central da
processualística, que definitivamente assumiu a sua função social.
Sem embargo da nova coloração trazida pelo Welfare State, não foi ele
capaz de garantir a concreção dos direitos que cunhou, o que fez gestar o
Estado democrático.
O Estado democrático de direito pretende alcançar a substancialidade,
a realização material, concreta, efetiva da liberdade, da igualdade,
sobremeira da dignidade da pessoa humana, zelando pela efetiva
implementação de políticas públicas que as tornem plenas de significação e
eficácia.
Hodiernamente, as regras processuais, inclusive as alternativas ao
sistema judiciário
17
, permitem aferir o desempenho da lei substantiva, seja
15
MORAIS, 2002, p. 11
16
SANTOS, “Introdução à Sociologia da Administração da Justiça...”, p. 45
17
Neste mesmo diapasão insere-se a Lei de Arbitragem, s.m.j., numa ótica de acesso à justiça em seu amplo espectro
e não à atividade jurisdicional monopolizada pelo Estado. Para Nelson Nery Junior in O Juiz Natural do Direito
Civil Comunitário Europeu, Revista de Processo, São Paulo, n. 101, p. 01-132, o juízo arbitral não ofende o
princípio do juiz natural, pois a função jurisdicional não é exclusiva do Poder Judiciário em nosso sistema
28
pela freqüência com que é invocada ou por seu impacto social, viabilizando
meio de cultura para pesquisas multidisciplinares e qualitativas acerca dos
objetivos e da metodologia da moderna ciência jurídica.
A mutação da estatura estatal, de per se, não garantiu de forma
automática a efetividade do acesso, vez que situação da tal envergadura só
pode ser concebida como resultado de um processo, do qual podemos extrair
algumas agruras e identificar meios e modos de transposição.
constitucional, no que o acompanha Juliano Spagnolo. O próprio Supremo Tribunal Federal , embora por maioria,
rejeitou a tese de inconstitucionalidade da Lei 9.307/96, consoante relata Márcio Louzada Carpena, anotando que o
princípio da inafastabilidade estabelece que a lei não excluirá da apreciação do Judiciário lesão ou ameaça a direito, e
não que as partes interessadas não excluirão da apreciação judicial suas questões ou conflitos, ou, em outras palavras,
diz ele que o princípio não dispõe que os interessados devem sempre levar ao Judiciário as suas demandas, o que
vem corroborado por Demócrito Ramos Reinaldo Filho, invocando inclusive o magistério de nomes do porte de José
Frederico Marques, Pontes de Miranda e Clóvis do Couto e Silva. Não discordamos, em absoluto, posto que a
atividade jurisdicional é supletiva na composição de conflitos de interesses qualificados por uma pretensão resistida
(conceito de lide, na visão de Carnelutti), de molde que o monopólio da jurisdição não pode vedar a auto e a
heterocomposição da lide à mercê do Estado. Neste diapasão, insere-se a Lei de Arbitragem, s.m.j., numa ótica de
acesso à justiça lato senso e não ao Judiciário, nada havendo a objetar quanto à pertinência e à adequação do
instituto, em si. Não obstante, severas críticas se deve debitar à formação de coisa julgada material no juízo arbitral,
pelo malferimento a preceito constitucional inderrogável, qual seja, da inafastabilidade da jurisdição que, na dicção
de Rui Portanova é corolário do princípio do juiz natural, razão pela qual a matéria merece ser enfrentada, ainda que
an passant. Há que se ponderar que ao se agregar à decisão do juízo arbitral o manto consentâneo à coisa julgada
material está a se aviltar as garantias constitucionais do devido processo legal, pela infringência do juízo natural, do
duplo grau de jurisdição, da ampla defesa e do contraditório, apenas para referir alguns, posto que a autoridade da
coisa julgada material é indissociável do permeio de todas as garantias processuais insculpidas na Carta Maior,
percorridas todas as instâncias recursais. A coisa julgada é inerente à ação estatal, não havendo respaldo para
conferir a sua autoridade a decisões emanadas da justiça privada, pois, como afirma SÉRGIO GILBERTO PORTO,
A Segurança Jurídica dos Atos Jurisdicionais e Relativização da Coisa Julgada. Porto Alegre: PUCRS, inédito,
Monografia (Constituição e Direitos Fundamentais, Prof. Dr. Ingo Wolfang Sarlet), Faculdade de Direito,
Doutorado em Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, segundo semestre de 2004, com a
sua habitual maestria, “o instituto da coisa julgada goza de prestígio constitucional, eis que, como registrado,
inserto na Carta Magna na condição de garantia (5º, XXXVI,CF), ou seja, como cláusula assecurativa da
estabilidade das relações jurídico-sociais normadas por sentença de mérito trânsita em julgado, integrando, pois,
inclusive, o conceito de cidadania processual reconhecido pela Constituição Federal. O contrato existente entre o
cidadão e o Estado está assim definido e, portanto, induvidosamente, há uma garantia de ordem constitucional-
processual que, por opção política, determina que a partir de certo momento não é mais possível, no Estado
civilizado, prosseguir na discussão de determinado conflito.” Ademais, tal ensejo fere o princípio da isonomia
material, posto que aqueles que optaram pela arbitragem são jungidos ao arbítrio da instância única, enquanto que os
que percorrem as vias da justiça pública têm ampla possibilidade de rever as decisões que lhes forem desfavoráveis,
respeitados os limites do sistema. Agregue-se: malfere a ratio do instituto da coisa julgada, vocacionada a garantir a
segurança jurídica e a paz social, vez que não se pode conceber que tais valores sejam instrumentalizados pela
sentença arbitral, cujo subscritor está desguarnecido das prerrogativas inerentes à investidura da magistratura, as
quais são instituídas em benefício do cidadão, com o escopo de garantir a imparcialidade do julgador, um dos
vetores do princípio multicitado. Neste diapasão, e em reforço, há que se estabelecer um paralelo em relação às
demais formas de hetero e autocomposição dos conflitos (inclusive a novação e os títulos de crédito), em relação aos
quais a inafastabilidade da jurisdição é uma constante, para concluir pela franca inconstitucionalidade da norma, no
que concerne ao aspecto em cotejo.
29
1.2 BARREIRAS DO ACESSO À JUSTIÇA
Neste ensejo, indeclinável noticiar as barreiras do acesso à jurisdição,
principiando pela acessibilidade econômica.
Considerando as diversidades sócio-econômico-sociais que permeiam o
tecido social, é inerente à idéia de sociedade a existência de estamentos,
mormente nas capitalistas, onde há a conjuntural bipolarização entre os
donos dos meios de produção e o trabalho assalariado.
Neste cenário, a acessibilidade econômica à Justiça deve estar
correlacionada à efetividade da isonomia substancial, a fim de garantir esteio
democrático ao exercício da jurisdição.
Corolariamente ao primeiro aspecto, grassa a problemática da
acessibilidade técnica, de vez que o Estado deve prover meios para que a
defesa do interesse dos menos abastados seja qualitativamente eficiente,
como forma de realização do acesso material à jurisdição, não meramente
retórico, demagógico, formal.
Ainda que se considere transpostas ou, num realismo jurídico,
minoradas as barreiras prefaladas, há que se considerar os obstáculos
sócio-culturais.
Consoante observa Boaventura Souza Santos,
estudos revelam que a distância dos cidadãos em relação à
administração da justiça é tanto maior quanto mais baixo é estado
social a que pertencem e que essa distância tem como causas
próximas não apenas fatores econômicos, mas também fatores
sociais e culturais, ainda que uns e outros possam estar mais ou
menos remotamente relacionados com as desigualdades
econômicas. (...) os cidadãos de menores recursos tendem a
conhecer pior os seus direitos e, portanto, a ter mais dificuldades em
reconhecer um problema que os afeta como sendo um problema
jurídico.(...) em segundo lugar, mesmo reconhecendo o problema
como jurídico, como violação de um direito, é necessário que a pessoa
se disponha a interpor a ação. Os dados mostram que os indivíduos
das classes mais baixas hesitam muito mais que os outros em
recorrer aos tribunais (...)
18
A massificação das relações sociais hodiernas, bem como o
30
reconhecimento dos direitos fundamentais de terceira e quarta dimensões
19
traz em seu bojo a necessidade de uma tutela específica para os problemas
especiais dos interesses coletivos e difusos.
Considerando que o altruísmo não faz parte da essencialidade humana,
só em raras vezes um indivíduo sentir-se-ia estimulado a buscar em juízo
um interesse não necessariamente ligado a uma vantagem econômica
singular, enfrentando uma demanda complicada e onerosa.
O desinteresse individual pelo coletivo, em sua ampla acepção, leva,
então, à inarredável conclusão da indeclinabilidade de mecanismos especiais
para proteção dos diretos que suplantam a singela órbita do indivíduo, no
interesse da comuna, como antídoto à autofagia do sistema de proteção dos
direitos e garantias fundamentais.
1.3 DA SUPERAÇÃO DA INACESSIBILIDADE À JURISDIÇÃO
1.3.1 Barreiras Econômico-técnicas
Identificados os pontos de estrangulamento, passemos em revista os
mecanismos de superação, inclusive à luz do direito alienígena, numa
abordagem sumária.
Num primeiro estágio, verifica-se a tendência nucleada pela
transposição dos primeiro e segundo óbices antes epigrafados, através da
assistência judiciária
20
aos pobres
21
.
Na Inglaterra, o sistema judicare veio à baila concebendo a assistência
judiciária como direito de todos os que se enquadrem nos termos da lei. Os
jurisdicionados escolhiam os advogados habilitados, a la carte, e os eleitos
(a listagem era extensa, em face da condigna remuneração), percebiam a
18
“Introdução à Sociologia da Administração da Justiça...”, p. 48
19
inobstante a referência, nossa abordagem maneja a classificação trinária como opção metodológica, consoante se
observará ao longo do estudo.
20
na expressão de Cappelletti, na obra citada
21
CAPPELLETTI, Mauro. Acesso à Justiça. Trad. Ellen Gracie Northfleet Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1986.p. 31 e
31
contraprestação pecuniária paga pelo Estado.
As críticas mais veementes residiam na seleção restritiva dos
beneficiários, colmatando uma assistência jurídica objetivamente limitada.
Ademais, a assistência profissional não alcançava diversos Tribunais
especializados e não era integral, porquanto não atuava na informação do
cidadão acerca de seus direitos. O sistema era acionado exclusivamente
pelo indivíduo, quando ele elegesse a hipótese que quisesse trazer ao
conhecimento do Poder Judiciário, de molde que pouca valia tinha para a
prevenção de conflitos e para a sedimentação da cidadania materialmente
efetiva
22
.
A França adota o sistema inglês com as seguintes nuances de
diferenciação: não se restringe aos pobres, alcança pessoas acima da linha
de pobreza, com auxílio inversamente proporcional às condições financeiras
dos beneficiários, mas esbarra na inadequação da remuneração dos
profissionais.
No modelo estadunidense, nasce a figura do escritório da vizinhança.
Neste caso, advogados integrantes de dado escritório, sediado no seio da
comunidade à qual pertence o beneficiário, eram assalariados pelo Estado e
tornavam-se especialistas no trato da matéria objeto da assistência. O fio
condutor do paradigma ora telado era a promoção dos interesses dos
pobres enquanto classe e auxílio na defesa dos interesses individuais, por
meio dos denominados casos-teste, norte da ampliação dos direitos dos
assistidos. Ataca o obstáculo das custas judiciais (as ações são coletivas, os
custos diluem-se) e informa o cidadão, fazendo-o consciente dos seus
direitos e desejoso de fazê-los valer em juízo.
Na pragmática, entretanto, a projeção dos casos-teste de interesse
não-individual sufocaram o efetivo atendimento da demanda dos interesses
seguintes
22
A partir do modelo sueco e canadense, a Inglaterra implantou os “Centros de Atendimento Jurídico de
vizinhança”, superando a lacuna do sistema judicare, em seu nascedouro, ob. cit., p. 45
32
singulares. Ademais, os escritórios de vizinhança dependiam
economicamente do programa e recursos estatais, o que aniquilava as
iniciativas quanto a mazelas causadas por ações dos agentes políticos do
Estado.
O rompimento da influência governamental direta veio em 1974,
mitigando, mas não derruindo o problema. A par disso, o sistema não
garante o auxílio jurídico como um direito, porque não consegue efetivar um
atendimento universal e qualificado, em face do limitado número de
advogados assalariados para atender demanda sempre e sempre crescente.
A Suécia e a Província Canadense de Quebeque adotaram modelos
combinados, tendo por inspiração os vetores antes desenhados,
incrementando a possibilidade de escolha entre advogados servidores
públicos e particulares.
Contudo, tais sistemas tinham ênfases diversas. Enquanto o sueco
aproximava-se mais do judicare, privilegiando a defesa dos interesses
individuais, em Quebeque o governo mantinha escritórios de advocacia à
disposição da comunidade beneficiária e maximizava a defesa dos interesses
do grupo.
De todo modo, representou um avanço, vez que o modelo combinado
alcançava a assistência jurídica nos dois hemisférios (direitos individuais e
coletivos stricto sensu).
No Brasil, há que ser gizado que o tema do acesso à justiça já era
objeto de preocupação no bojo das Ordenações Filipinas (Livro III, título 84,
§ 10), passando a ser regulado pela Lei 261, 03/12/1841 (munus
honorificium da advocacia) e sucessivamente pelos Decretos n.º 1030 de
14/11/1897 (primórdio da assistência judiciária pública) e n.º 2457,
08/02/1897 (disciplina a justiça gratuita); artigo 113, II da CF de 1934;
artigos 68 e 69, CPC/39 (gratuidade da justiça); DL 3689, 03/10/41, artigos
225, §1º, I e 261; CF/1946, artigo 141, § 35; Lei 1060/50; CF/1967, art.
150, § 32; CF/1969, art. 153, § 32; Lei 7115/85; CF/ 88, artigo 5º, LXXIV;
33
LC 80/94 (Lei Orgânica da Defensoria Pública).
Não seria oportuna a dissecação minuciosa dos marcos legislativos
referidos, sob pena de desvirtuamento do foco da abordagem.
Contudo, calha coligir alguns apontamentos a leitura do artigo 4º da
Lei 1060/50 à luz da Constituição de 1988, vez que a discussão guarda
identidade com a temática do acesso material à jurisdição, que será tratado
sob o enfoque da legitimidade ministerial ativa na defesa dos individuais
homogêneos.
O artigo 4º da Lei 1060/50 nasceu com dicção mais restrita, conferindo
ao beneficiário o ônus de provar o estado alegado, em repetição ao que já
assentava o CPC/39.
Por influência da sistemática introduzida na Lei de Alimentos (L
5478/68), o legislador ordinário houve por bem transplantar a sistemática da
mera alegação, prevista com acerto para as peculiaridades da Lei especial
antes referida, para o regime da Lei 1060/50, o que ocorreu em 1986,
pouco mais de dois anos antes da aurora constitucional.
Araken de Assis (1998) pontua que ao contrário do que ocorre na Lei
de Alimentos, onde integra o objeto da contenda a prova dos recursos
financeiros das partes (pesquisa do equilíbrio do binômio necessidade-
possibilidade), a importação da técnica probatória ao sistema da Lei 1060/50
restringiu aparentemente a cognição judicial e dificultou enormemente o
sucesso da impugnação veiculada no artigo 7º do mesmo diploma, pela
dificuldade do impugnante em demonstrar, no mais das vezes, a suficiência
dos recursos do beneficiário para suportar as despesas do processo, pela
inacessibilidade dos dados que poderiam contrapor a presunção.
Se é admissível que a mens legis da introdução da presunção no
arcabouço da Lei 1060/50 esteja na facilitação do alcance do benefício e,
por corolário, do acesso à Justiça -- pela superação da barreira econômica e,
quiçá, técnica -- certo é que o fundamentalismo desta intenção não pode
transformar o juiz num autômato em face da declaração, inibindo o
34
cognoscere, afirmando que o ônus de afastar a indoneidade da declaração
cabe exclusivamente à contraparte, em incidente específico.
A singela leitura da própria legislação infraconstitucional em revista já
revela que a concessão do benefício submete-se ao controle jurisdicional,
cabendo ao julgador o exame de admissibilidade da benesse, deferindo-o de
plano se não tiver fundadas razões para indeferi-lo (artigo 5º, § 1º, Lei
1060/50).
A oração condicional supra destacada traz à liça que o juízo de
cognição é sumário, muito embora deva ser fundamentado (artigo 93, IX,
CF/88), em qualquer hipótese (deferimento ou não), bem como, de forma
eloqüente, que a declaração de per se não basta à concessão do benefício,
posto que o juiz pode suspeitar de sua idoneidade, determinando a produção
de provas que a ratifiquem ou a infirmem, tudo ab initio.
Inviável por certo é o indeferimento do benefício sem dar ao
requerente a oportunidade de demonstrar a veracidade da declaração,
abrindo-se-lhe prazo para a juntada dos documentos determinados pelo
Juízo ou outros que entender possam corroborar a necessidade afirmada.
O entendimento diverso – concessão automática do benefício, à luz da
singela declaração -- opera, s.m.j., pragmática transmudação da natureza
jurídica da declaração, fazendo-a assumir a feição jure et de jure.
Araken de Assis, que advoga que a lei infraconstitucional em cotejo
reclama urgente reforma legislativa, afirma que o deferimento se tornou
irreversível na maioria dos casos.
23
Neste passo, limitar a cognitio gera, sem base legislativa que a
sustente, verdadeira hipótese de isenção tributária incondicionada (a
suspensão da exigibilidade perpetua-se, mesmo alterada a situação
econômico-financeira do beneficiário, vez que são raras, para não dizer
inexistentes, as hipóteses de reversão por iniciativa do opositor do
23
Benefício da Gratuidade, Ajuris, Porto Alegre, n. 73, p. 162-200:177, julho de 1998.
35
beneficiário), enquanto que a mens legis a pretendeu sob condições.
Mas não é só. A viabilidade do controle judicial sobre a idoneidade da
declaração referida no artigo 4º da Lei em revista também deflui, verbi
gratia: a) da diversidade de tratamento que jurisprudência tem afirmado em
relação à concessão da benesse às pessoas físicas(basta declaração) e
jurídicas(têm que comprovar a situação de necessidade, mesmo firmas
individuais – mera abstração jurídica e microempresas), enquanto que a lei
não contempla tal discriminação; b) da franca infringência que tal leitura
(concessão automática ao autor à vista da declaração) traria à isonomia até
mesmo meramente formal, porquanto o requerido, que só pode postular o
benefício no curso do processo, deve comprovar os fatos que subsidiam o
pedido de gratuidade, consoante se colhe da dicção do artigo 6º da Lei
multimencionada; c) da idéia de que inexistem direitos puramente negativos
e que, em verdade, todo e qualquer direito demanda prestação estatal
positiva, o que leva considerar os seus custos, denotando que tomar os
direitos a sério significa fazê-lo em relação à escassez dos recursos públicos
que lhes garantam, de molde que os custos influem sobre a própria
conceituação dos direitos, como sustentam Sunstein e Holmes
24
.
Singelas linhas postas, sinalo o posicionamento concorde com a
perfeita sintonia entre o comando constitucional (artigo 5º, LXXIV) –-- que
determina a comprovação da necessidade --- e o artigo 4º da Lei 1060/50,
como assentou o Pretório Excelso
25
, ressalva feita apenas à forma como
esta comprovação deve ser instrumentalizada, neste particular destoante o
respeitável entendimento do arcabouço sistêmico-constitucional, s.m.j.
Isto porque, na visão da ensaísta, a compatibilidade deve ser vista não
como impedimento ao controle jurisdicional, mas como a possibilidade,
inscrita no artigo 4º da norma infraconstitucional em cotejo, de se valer o
24
consoante ensina GALDINO, Flávio. O Custo dos Direitos. In: Legitimação dos Direitos Humanos. TORRES,
Ricardo Lobo (org.). Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
25
RE 205.029/RS, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 07/03/97
36
beneficiário da presunção como meio de prova, com a vantagem da inversão
do ônus probatório em relação ao seu contendor, mas não em relação ao
julgador, que deve conhecer de todas as questões que lhe são postas, não
sendo a assistência judiciária, quer a gratuidade da justiça, matérias imunes
ao preceito do artigo 5º, XXXV, da Magna Carta.
1.3.2 Das Barreiras Sócio-Culturais
Silenciadas ou abafadas as vozes das barreiras da inacessibilidade
econômica e técnica causas há em que a viabilização do acesso, pelo
inexpressivo conteúdo econômico que a causa encerra, deve ter tratamento
diferenciado
26
, sob pena dos direitos em voga serem relegados a meros
preceitos normativos, sem concretização prática, quer pela inércia do
interessado, quer pelo desinteresse do advogado que lhe poderia patrocinar,
ante a discrepância da relação custo/benefício.
De outra banda, o rompimento do profundo desconhecimento dos
direitos, como externalidade à inação do titular em acessar a jurisdição,
impõe ação efetiva e vivaz do Estado à promoção da consciência da
cidadania, o que guarda confluência com o objeto em estudo, estabelecendo
zonas de tangenciamento recíproco, consoante se pretenderá contextualizar,
muito embora em paralelo ao objeto cernal.
1.3.3 Dos Interesses Transindividuais
A peculiar fisionomia dos interesses difusos reclama instrumentos de
defesa concernentes, na medida em que, consoante acentua Cappelletti, “a
26
No caso brasileiro, pode-se vislumbrar tal tendência na formatação dos Juizados Especiais Cíveis e, mas
37
concepção tradicional do processo civil não deixava espaço para a proteção
dos direitos difusos. O processo era visto apenas como um assunto entre
duas partes...”
27,
o que se aplica aos interesses essencialmente ou
acidentalmente coletivos
28.
No caso brasileiro, a aurora constitucional trouxe equacionamento da
celeuma, conferindo ao Ministério Público a legitimidade para a defesa dos
interesses sociais, individuais indisponíveis (artigo 127, caput, CF/88), ao
lado dos coletivos e difusos (art. 129, III, CF/88)
29
.
Sob o enfoque da Constituição-Cidadã, o acesso à Justiça
30
é garantia
fundamental implícita, decorrente do princípio político-constitucional inserto
no artigo 1º, II, da Magna Carta, perfilando a cidadania processual.
Coligado umbilicalmente ao princípio da dignidade da pessoa humana e
consectário da inafastabilidade da jurisdição, funciona como garantia
instrumental para a efetividade de todos os demais direitos e garantias
fundamentais previstos na Constituição, provocando o controle jurisdicional
sobre as mazelas decorrentes da infringência às dimensões negativas e
positivas daqueles.
Em singelas palavras, o acesso à Justiça é instrumento para o exercício
recentemente, dos Juizados Especiais Federais.
27
GALDINO, p. 49-50
28
Conceitos que serão explicitados ao longo deste trabalho
29
Não se olvida, aqui, a precedente normatização da Ação Popular e da Ação Civil Pública como instrumentos do
processo coletivo. Contudo, quer-se demarcar a nascente constitucional da legitimidade ministerial para a defesa dos
interesses individuais homogêneos, foco deste estudo.
30
PORTANOVA, Rui. Princípios do Processo Civil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, o sustenta como
decorrência do princípio do juiz natural, ao lado dos seguintes similares: inércia da jurisdição, independência,
imparcialidade, inafastabilidade, gratuidade judiciária, investidura, aderência ao território, indelegabilidade,
indeclinabilidade, inevitabilidade, independência da jurisdição civil diante da criminal, perpetuatio jurisdictiones,
recursividade. Na verdade, tais princípios correlatos dão suporte e efetividade ao princípio do juiz natural – com as
seguintes dimensões (Canotilho apud Tucci, Rogério Lauria. Juiz Natural e Competência em Tribunal, Revista dos
Tribunais, São Paulo, n. 576, p.07-107:101, out. 1983): a) exigência de determinabilidade (prévia individualização
através de leis gerais); b) garantia da justiça material (neutralidade e independência do Juiz); c) principio da
fixação da competência (aplicação das regras decisivas para determinação do Juiz da causa); d) observância de
determinações do procedimento referentes à divisão funcional interna (distribuição de processos) -- reforçando o seu
significado, trançando o perfil pelo qual ele se concretiza no Estado Democrático de Direito. Ademais, a
coletividade de tais princípios dá forma à locução de conteúdo semântico indeterminado (devido processo legal),
qualificando-a com núcleo substancial, muito além e mais importante que mera diretriz procedimental, porquanto
impõem racionalidade e limites ao exercício do poder, em benefício das liberdades.
38
material da cidadania.
Hodiernamente, os atores sociais têm reclamado eficiência das
estruturas estatais, o que perpassa inexoravelmente pelo uso racional deste
arcabouço, espectro não muito difundido, porque é mais raso e imediato
desnudar-se da co-responsabilidade no agravamento da crise institucional;
contudo, a autocrítica desponta necessária como fator eficiente à superação
do status quo, vez que a racionalidade no acesso à jurisdição demandará,
paulatinamente, uma estrutura mais enxuta e eficaz.
Sem menoscabo de um trabalho na gênese – a educação da população
e dos operadores jurídicos, com a superação do paradigma da litigiosidade
(muitas vezes gratuita), que assoberba sobremaneira a jurisdição --
trabalho prospectivo que só projetará efeitos pragmáticos a médio longo
prazo – com estímulo à autocomposição e às diferentes formas de
heterocomposição de conflitos, o sistema jurídico nacional conta com uma
potente ferramenta para viabilizar, de pronto, importantes repercussões no
mundo sensível, trazendo à tona a efetividade dos direitos fundamentais.
Neste ensejo, a legitimidade do Ministério Público na defesa coletiva
dos interesses individuais homogêneos, objeto desta dissertação, eclode
como instrumento eficaz de superação das barreiras do acesso à jurisdição,
que deve ser prestada isonômica, racional e qualitativamente, norte na
busca incessante da implementação do Estado materialmente democrático.
À guisa de demonstração da hipótese de trabalho, pesquisemos em
primeiro plano a envergadura constitucional do Parquet.
2 O PAPEL DO MINISTÉRIO PÚBLICO NA ATUAL CONSTITUIÇÃO DA
REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL
2.1 RAZÃO DE SER DO CAPÍTULO
A perspectiva deste estudo assenta-se na análise da polêmica
questão da legitimidade ministerial para a defesa dos interesses
individuais homogêneos.
Dentre a multiplicidade teorética que cerca esta problemática, o
papel do Ministério Público na Constituição da República Federativa do
Brasil desponta como tema de verificação inarredável.
Para tanto, intransponível um antecedente estudo sobre o Estado
democrático de direito e sobre os direitos fundamentais, ainda que,
guardadas as proporções deste ensaio, cingido ao necessário para a
compreensão das idéias concernentes ao tema-objeto.
2.2 DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
O epicentro da caracterização do Estado democrático de direito está
na efetividade dos direitos fundamentais.
A teorização do Estado democrático de direito significou uma
revolução à vanguardista concepção de Estado de direito, de fisionomia
liberal, que, a par da submissão ao império da lei
1
e da separação dos
Poderes
2
, construía esta noção sobre a estruturante da generalidade da
1
Leciona NOVAIS, Jorge Reis. Contributo Para uma Teoria do Estado de Direito: Do Estado de Direito
Liberal ao Estado Social de Democrático de Direito. Coimbra: Gráfica de Coimbra, 1987, p. 88 : “(...)
obedecendo cada um “apenas a vontade geral e racional, ninguém estaria dependente de ninguém ou sujeito ao
arbítrio de quem quer que fosse. Daí que a liberdade estivesse em obedecer às leis e não aos homens, que a
democracia e a liberdade se identificassem com a exclusiva soberania da lei” .
2
Do mesmo autor: “Considera MONTESQUIEU que, perante a inevitável tendência para o titular do poder dele
abusar, a liberdade individual resulta protegida caso o poder não esteja concentrado; para que “ le pouvoir arrête
le pouvoir” propunha, então, a distribuição das funções do Estado pelo vários titulares, não em termos, porém,
de uma repartição-separação , mas antes de uma colaboração implicada nas “faculté de statue” e “faculté
d`empêcher” em que decompunha cada um dos poderes ( mais precisamente, o poder legislativo e o executivo,
pois os juízes eram tão só ‘a boca que pronuncia as palavras da lei, os seres inanimados que não lhe podem
moderar nem a força nem o rigor’ ”, ob. cit., p. 82
40
lei, pressupondo-a bastante para assegurar o valor-igualdade, mas, na
verdade, desvalor à efetividade dos direitos fundamentais
3
.
A amplitude da concepção liberal de Estado de direito,
posteriormente transformado em Estado de legalidade
4
, pela teoria
kelseniana, tornou-o suscetível de conformações diferentes, mutáveis
ao sabor da interpretação da noção de Direito, ante a ausência de um
qualificativo que lhe explicite o conteúdo material.
5
Na verdade, a inovação da proposta kelseniana do Estado liberal da
legalidade está na transmudação da hetero para a autolimitação dos
poderes políticos do Estado, fulcrada na teoria do Estado como pessoa
jurídica, como muito bem registra Jorge Reis Novais:
No fundo, como diz MARCELO REBELO DE SOUZA, o que
varia no trânsito do “Estado liberal de direito” para o “Estado
liberal de legalidade” é o fundamento filosófico da limitação
jurídica do poder político, no sentido da passagem de uma hetero-
limitação para uma auto-limitação do Estado de direito que vai
criando. O Estado liberal não prescindia dos direitos individuais
outrora proclamados, mas transformava os respectivos
3
concebidos com índole exclusivamente individual.
4
Acerca do aspecto, ensina NOVAIS, ob. cit., p. 123-7: “De facto, KELSEN apresenta um “Estado de Direito”
finalmente depurado dos valores que, explícita ou implicitamente, o acompanhavam desde a sua origem,
culminando um processo que, embora partindo da formalização do conceito originário, desemboca numa
construção teórica que, em nosso entender, justifica a designação autónoma de Estado de Legalidade. Se na
caracterização material o “Estado de Direito” era essencialmente um conceito de luta política por um tipo
particular de Estado fundado numa particular ideia de Direito; se na sua redução formalista o “Estado de Direito”
ocultava os valores que enformavam esta ideia para privilegia as técnicas formais que a garantiam, já que o
Estado de Legalidade só é de Direito porque actua na via do Direito (positiviscamente identificado com
legalidade) e não porque defenda ou se sustente numa particular ideia de Direito. Se o Estado de Direito
Formal deixara apenas de se interrogar pelos valores que, entretanto, garantia politicamente, o novo Estado de
Legalidade abre-se a quaisquer conteúdos, a quaisquer fins, desde que actuados na via da legalidade. O primado
da lei e o princípio da legalidade transmudam-se sucessivamente de meras técnicas formais de realização dos
valores liberais ( no Estado de Direito liberal, em sentido material) em valores autonomizáveis ( no Estado de
Direito Formal - onde uma intenção política liberal, de garantia, e nessa medida, ética, lhes estava implícita) e,
por último, no Estado de Legalidade, em quadros neutros abertos à realização de quaisquer fins.(...) De facto,
valores essenciais ao Estado de Legalidade são a certeza e a segurança jurídicas inerentes à observância do
princípio da legalidade, isto é, valores exigidos pela necessidade de estabilização de qualquer ordem estadual e
não apenas da particular ideia de direito liberal à qual, na origem, vinham intimamente associados.(....) o
reconhecimento da importância destes valores não pode justificar por si só a qualificação do Estado de
Legalidade como Estado de Direito (...)” porque “(...) a absolutização do princípio da legalidade como valor em
si e a proclamação incondicional do dever de obediência às leis positivas -- que, no fundo, constituem os traços
caracterizadores da ideologia do positivismo e formalismo jurídicos -- não podem deixar de ser entendidos
como cúmplices daquela perversão dos ideais de limitação jurídica do Estado, na medida em que funcionam
objectivamente como instrumentos de legitimação de toda a ordem vigente, enquanto ordem jurídica
estabelecida.”
5
Neste sentido, Carl Schimitt, na leitura de SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo.
São Paulo, 1997, p. 115: “(...) a expressão “Estado de Direito” pode ter tantos significados distintos como a
própria palavra “Direito” e designar tantas organizações quanto as que se aplica a palavra “Estado”. Assim,
acrescenta ele, há um Estado de Direito Feudal, outro estamental, outro burguês, outro nacional, outro social,
além de outros conformes dom o Direito natural, com o Direito racional e com o Direito histórico.”’
41
fundamentos teóricos, na medida em que os entendia, não já
como direitos naturais, mas como espaços deixados à livre
actuação dos indivíduos, em virtude de um processo de auto-
limitação
6
do poder político, de uma concessão que o próprio
Estado fazia através da lei positiva.
7
Juarez Freitas advoga a idéia da neutralidade kelseniana como
instrumento de defesa a pré-concepções
8
que poderiam engessar a busca
da melhor solução jurídica para cada caso em concreto: a mens legis
deve ser alcançada pela interpretação tópico sistemática, num
movimento de inter-relação entre o hermeneuta e o objeto, adotando
neste particular a circularidade defendida por Gadamer
9
.
À guisa de transposição deste cenário --- mas sem o transpor, em
verdade -- nasceu o Estado social de direito que, não obstante a
superação da concepção intrinsecamente individualista do Estado liberal
de direito, deformou-se pela imprecisão do seu conteúdo material, dada a
ambigüidade da locução que o denomina, servindo de meio de cultura
para o nazi-facismo
10
.
Sob nova veia interpretativa, o Estado de direito transmudou-se
para democrático de direito, com balizamento central na busca da
eficácia material -- e não mais mera afirmação -- dos direitos
fundamentais, agora ampliados, para compreender também os direitos
sociais, econômicos e culturais; nesta nova configuração de Estado a
implementação de condições de realizabilidade daqueles direitos é
premissa sine qua non.
O Estado democrático-constitucional, como o denomina J.J. Gomes
Canotilho:
(...) é um Estado alicerçado em normatividade
jurídica quanto aos direitos fundamentais, garantias,
definição de competências, controlo do poder, solução de
6
Tendo em vista, como esclarece o mesmo autor: “Considera Jhering que, apesar de deter o monopólio do poder
e a faculdade exclusiva de criação do Direito, o Estado tem um interesse egoísta na sua voluntária subordinação
ao Direito, por ele próprio estabelecido, através de um processo de auto-limitação; de facto, a experiência
mostra-lhe que essa submissão reforça a legitimidade do Estado e assegura a obediência dos
particulares.”[ob.cit., p.109/110, nota de rodapé n 247]
7
ob. cit., p. 109
8
A Interpretação Sistemática do Direito. 3.ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 39, nota 23.
9
A Interpretação Sistemática do Direito. 3.ed. São Paulo: Malheiros, p. 115, nota 5.
10
Conforme a atenta observação de Paulo Bonavides, oportunamente lembrada por José Afonso da Silva, ob.
cit., p. 116
42
conflitos (racionalidade do Estado de direito liberal); é um
Estado aberto a uma definição normativo-constitucional de
direitos sociais, econômicos e culturais, a uma fixação dos
fins e tarefas do Estado, a uma planificação (em sentido não
ideológico) dos problemas econômicos e sociais
(racionalidade do Estado de direito democrático). Na evolução
deste sentido “plúrimo” de racionalidade e na captação das
suas dimensões “materialmente legitimadoras” se devem
concentrar a dogmática e a teoria da constituição. Com isso
pretende-se introduzir “dialéctica na racionalidade” e
“racionalidade na dialética” do Estado de direito
democrático-constitucional.
11
Como se pode denotar, Estado democrático de direito e direitos
fundamentais sintonizam-se indissociavelmente dentro de um mesmo
contexto. A compreensão do primeiro, pois, imprescinde do estudo dos
segundos. Nosso próximo tópico.
2.3 DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DO HOMEM
Na esteira da compreensão do Estado democrático
12
de direito,
intransponível faz-se o estudo dos direitos fundamentais, para que se
identifique os diferentes matizes que o conteúdo material desta nova
proposta alcança dentro da sociedade.
Antes dos direitos fundamentais serem alçados a elemento
categorial do Estado de direito, de há muito já se acentuavam como
preocupação vivaz dos grupos sociais, como demonstra o
constitucionalismo inglês, que tem na Magna Carta de 1215 a sua
expressão mais significativa
13
. Este antecedente histórico, apesar de
11
Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador: Contributo para a Compreensão das Normas
Constitucionais Programáticas. Coimbra, 1994, p. 49
12
Democracia, longe de ser um conceito unânime entre os constitucionalistas, ora ocupa a posição de
lineamento da forma de Governo, como o é na autorizada opinião de Rosah Russomano, solidária com o
entendimento de Pedro Calmon, assumindo a feição de condição de realização do governo [Curso de Direito
Constitucional, São Paulo, 1978, p. 82]; ora como regime de governo, como a vê José Afonso da Silva, ob.
cit., p. 104, nota de rodapé n 13.
13
A contribuição da Carta de João Sem Terra para a teoria geral dos direitos fundamentais é muito bem
dimensionada por José Afonso da Silva “(...) Lembremos apenas que a Magna Carta, assinada em 1215 mas
tornada definitiva só em 1225, não é de natureza constitucional, “longe de ser a Carta das liberdades nacionais,
é , sobretudo, uma carta feudal, feita para proteger os privilégios dos barões e dos direitos os dos homens livres.
Ora, os homens livres, nesse tempo, ainda eram tão poucos que podiam contar-se, e nada de novo se fazia a
favor dos que não eram livres”[NOBLET, Albert. A Democracia Inglesa, p. 28, apud, ob. cit., p. 152]. Essa
observação de Noblet é verdadeira, mas não exclui o fato de que ela se tornasse um símbolo das liberdades
públicas, nela consubstanciando-se o esquema básico do desenvolvimento constitucional inglês e servindo de
base a que juristas, especialmente Edward Coke com seus comentários, extraíssem dela os fundamentos da
43
estamental, condicionou a formação de regras consuetudinárias que
ampliaram a proteção aos direitos fundamentais.
14
Ainda dentro do ciclo constitucional inglês, outros antecedentes
históricos são dignos de registro: Petition of Rights, 1628 --- documento
endereçado ao monarca para a observância dos direitos assegurados na
Magna Carta de 1215; Habeas Corpus Act --- para supressão de prisões
arbitrárias, pelos déspotas; e o Bill of Rights, 1628 --- marco da
transição da monarquia divina para a constitucional e fonte de inspiração
para a formação de democracias liberais, nos continentes europeu e
americano, dos séculos seguintes.
15
No ciclo constitucional estadunidense, a Declaração do Bom Povo da
Virgínia (1776) recebe encômios por inaugurar a base principiológica de
asseguração dos direitos fundamentais naquele País. A Constituição norte-
americana, ontologicamente, não contemplava uma declaração de
direitos, introduzida, posteriormente, por meio das dez primeiras emendas
à Constituição, como condição de ratificação imposta por alguns dos
Estados-membros da federação que se inaugurava. Esta dezena, acrescida
das emendas que lhe seguiram até 1975, formam, atualmente, o Bill of
Rights norte-americano.
No âmbito do constitucionalismo francês, a Declaração dos Direitos
do Homem e do Cidadão (1789) é o foco de todas as luzes,
diferenciando-se das iniciativas do continente americano do mesmo
século, pelo seu caráter universalizante e abstrato.
Consoante Jacques Robert
16
, a Declaração Francesa de 1789 tem os
seguintes contornos:
a) intelectualismo, porque afirmação de direitos
imprescritíveis do homem e a restauração de um poder
legítimo, baseado no consentimento popular, foi uma
operação de ordem puramente intelectual que se
desenrolaria no plano unicamente das idéias(...); b)
mundialismo, no sentido de que os princípios enunciados no
texto da Declaração pretendem um valor geral que
ordem jurídica democrática do povo inglês.”[ ob. cit., p. 152]
14
conforme José Afonso da Silva, ob. cit., p. 150
15
conforme José Afonso da Silva, ob. cit., p. 153
16
na leitura de José Afonso da Silva, ob. cit., p. 157
44
ultrapassa os indivíduos do país, para alcançar valor
universal; c) individualismo, porque só consagra as
liberdades dos indivíduos, não menciona a liberdade de
associação nem a liberdade de reunião; preocupa-se em
defender o indivíduo, contra o Estado.
Jorge Reis Novais dicotomiza as declarações francesa e norte-
americana dos seus antecedentes ingleses:
Quando as Constituições do liberalismo e as respectivas
declarações de direitos consagram as liberdades individuais tal não
significa que o poder soberano concede direitos aos particulares,
mas tão só reconhece juridicamente direitos originários dos
homens e os proclama solenemente, com a finalidade de melhor
os garantir. Daí o abismo que separa as Declarações Americanas
de 1776 ou a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de
1789 dos seus antecedentes britânicos (Magna Carta, Petição de
Direitos de 1672, Habeas Corpus de 1679, Declaração de Direitos
de 1689), pois, enquanto estes procuravam apenas limitar os
poderes do Rei, proteger o indivíduo e reconhecer a soberania do
Parlamento, aquelas, inspiradas na existência de direitos naturais
e imprescritíveis do homem, visavam limitar, através do Direito, os
poderes do Estado no seu conjunto.
17
A ideologia do Estado liberal fez com que, na separação Estado-
sociedade, os direitos fundamentais assumissem uma função
individualista-negativa, no sentido da exclusão da ingerência estatal na
orla privada dos indivíduos.
O individualismo exacerbado do Estado liberal foi posto à prova e
sucumbiu, em diversos flancos
18
, trazendo à tona que a concepção
preconizada pela revolução burguesa não passava do plano intelectivo-
normativo, porque no embate factual seus reflexos foram autofágicos.
A generalidade da lei demonstrou-se inócua para garantir a
igualdade material; a desmedida liberdade, associada ao processo de
implementação industrial, levou à exploração do Homem pelo Homem,
gerando mazelas sociais inenarráveis.
A prisão ao princípio do pacta sunt servanda
19
e a formação do
17
ob. cit., p. 72
18
Nelson Hungria, sobre o liberalismo econômico: "É uma doutrina que a experiência dos povos demonstrou
errônea, anárquica e contraproducente. Ela abstrai que, no livre jogo de suas competições e antagonismos, os
indivíduos entram com desiguais elementos de ação, resultando daí que os mais fracos acabam sobrepujados
pelos mais fortes, e como estes nem sempre são os mais dignos e honestos, senão os mais velhacos, prepotentes
e egoístas, a sua supremacia é alcançada com fatal detrimento do interesse social", in Os Crimes Contra a
Economia Popular e o Intervencionismo do Estado. Revista Forense, n. 79, Rio de Janeiro, p. 37-40, jun.1939.
19
E, porque o Estado deve compreender-se historicamente concreto, o dirigismo estatal, a partir da constatação
dos equívocos dos paradigmas do liberalismo, não se inseriu casuisticamente no âmbito do constitucionalismo
dos povos, mas foi tendência sistêmica, de todos aqueles que, buscando preservar o capitalismo, quiseram
45
proletariado explorado, subjugado pelo sistema das “liberdades”,
constituíram cenário para uma revisão estrutural da concepção do Estado
de direito, com a ampliação dos direitos fundamentais, antes restritos à
insuficiente orla privada.
José Afonso da Silva ilustra com primor:
O indivíduo era uma abstração. O homem era considerado
sem levar em conta sua inserção em grupos, família ou vida
econômica. Surgia, assim, o cidadão como um ente desvinculado
da realidade da vida. Estabelecia-se igualdade abstrata entre os
homens, visto que deles se despojavam as circunstâncias que
marcavam suas diferenças no plano social e vital. Por isso o
Estado teria que abster-se, apenas deveria vigiar, ser simples
gendarme.
20
O Manifesto Comunista, de Marx e Engels, --- equiparado, pela
influência, às Declarações norte-americana e francesa ---- e a
Declaração do Povo Trabalhador Explorado, aprovada em janeiro de
1918, pelo Terceiro Congresso Panrusso dos Sovietes
21
, foram tenazes
em demonstrar que de nada adianta a asseguração formal de direitos, se
o povo não tem condições materiais para desfrutá-los. Os direitos
fundamentais, como direitos de defesa político-formal à ingerência estatal
sobre a orla privada dos indivíduos não limitou o poder econômico da
classe burguesa que, através dele, objurgou todo um estamento, que
clamava por mudanças.
Contudo, a proposta não significou grandes avanços no terreno dos
direitos fundamentais, porque, em verdade, além de sufocar os direitos
individuais fundamentais, não deu efetividade à implementação dos
econômicos e sociais, vindo a equacionar a bancarrota do sistema
econômico, sem mesmo um século de existência.
Inobstante, o redimensionamento dos direitos fundamentais
também foi recepcionado pela Constituição Mexicana de 1917 e pela de
Weimar de 1919. Ambas inauguraram uma nova sistemática na
positivação dos direitos fundamentais, introduzindo capítulos de direitos
sociais do Homem, fazendo romper, no plano do direito constitucional
afastar a autodestruição do sistema.
20
ob. cit., p. 158
21
como noticia José Afonso da Silva, ob. cit., p. 160
46
positivo, os paradigmas do vetusto Estado liberal.
Abertos os portais do redimensionamento dos direitos humanos, a
nova meta passou a ser a difusão uniforme destes postulados a todos os
povos. A culminância deste objetivo veio com a Carta das Nações
Unidas, aprovada em Paris, em 10/12/48, que reconhece os direitos e
garantias individuais (artigos 1º a 21), os direitos sociais (artigos 22 a
28), proclama os deveres da pessoa para com a comunidade (artigo 29),
bem assim como estabelece o princípio da interpretação benéfica, em
prol dos direitos e liberdades nela proclamados.
22
Conforme ensina Dalmo de Abreu Dallari, a Carta das Nações Unidas
tem visão objetiva tridimensional: a certeza, a segurança e a
possibilidade dos direitos proclamados. Destarte, os direitos devem ser
positivados pela ordem jurídica dos países-membros do organismo
internacional, devem ser assegurados por remédios constitucionais, e ---
o diferencial --- o poder estatal deve proporcionar meios para o gozo
efetivo dos direitos pelos indivíduos e pelos grupos sociais, sob pena de
se repisar o cenário hipócrita vivenciado sob a égide da ideologia liberal.
23
Contudo, apesar do significativo avanço que representou, a Carta
das Nações Unidas não tinha, de per se, meios para garantir a efetividade
dos direitos e garantias nela afirmados. Os meios de controle eram
insuficientes e as mazelas sociais perpetravam-se, mormente, (mas não
exclusivamente), nos Estados “pseudodemocráticos”.
O que se tem observado, portanto, nestes últimos cinqüenta anos,
é que a disseminação da positivação dos direitos humanos entre os
povos não atingiu, materialmente, a revolução que se espera neste
âmbito
24
: há grupos sociais ao abandono; a discriminação, em suas
22
conforme José Afonso da Silva, ob. cit., p. 162/3
23
Elementos de Teoria Geral do Estado. 16 ed. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 179
24
E nem se diga que estas anomalias somente se projetam nos países eufemisticamente denominados “em
desenvolvimento”, pois, recentemente, a imprensa noticiou matéria jornalística que denunciou o comportamento
dos ativistas dos grupos anti-negros norte-americanos que, em nome da liberdade de expressão, praticam seus
rituais anti-raciais à plena luz do dia, sem qualquer pudor ou constrangimento. Outra não é a situação na
Alemanha, onde grupos ainda se empolgam com a ideologia nazista e ainda crêem em seus primados; na
Irlanda, ativistas de grupos radicais fizeram centenas de vítimas; no Japão, o terrorismo está em franca
evidência; na Inglaterra, jovens desajustados escandalizam o mundo; na França, as questões sociais afloram para
o Mundo com a marca da violência...
47
diferentes nuances ainda impera acintosamente; os níveis de desemprego
se agigantam, a mortalidade infantil alcança padrões absurdamente
elevados, o analfabetismo ainda é fator de entrave na democratização
dos povos.
Sobre o tema, incomparáveis as palavras de Juan Ferrando Badía:
A burguesia liberal aparenta conceder a todos a
liberdade de imprensa, a liberdade de associação, os direitos de
oposição política: mas, de fato, tais direitos e liberdades não
podem ser exercidos realmente senão pelos capitalistas, que são
os que têm os meios econômicos indispensáveis para que tais
liberdades sejam reais. E assim, no caso do direito do sufrágio,
este serve para camuflar diante dos olhos dos proletários uma
papeleta de voto, mas a propaganda eleitoral se encontra nas
mãos das forças do dinheiro. Simula-se conceder-lhes o direito de
formar sindicatos e partidos políticos, mas as oligarquias
capitalistas conservam, direita ou indiretamente, o controle.
25
Verte-se do supra exposto, que democracia efetiva não há, porque
os direitos fundamentais ainda se encontram, em larga escala, ultrajados.
Contudo, para se alcançar o objetivo traçado para este estudo,
penetre-se no terreno do dever-ser, para que se verifique as funções que
os direitos fundamentais desempenham dentro do Estado democrático de
direito.
Num primeiro plano, os direitos individuais fundamentais se
constituem como direitos de defesa
26
, porque assumem uma feição
negativa em relação aos poderes constituídos
27
, na medida em que
proporcionam a autonomia da esfera privada do indivíduo, com a
conseqüente abstenção da ingerência estatal sobre seu âmbito.
Diversamente, os direitos sociais, econômicos e culturais
28
. Estes
assumem a feição de direitos fundamentais como direitos a prestações
25
apud José Afonso da Silva, ob. cit., p. 158
26
Buscando desde logo aparar qualquer querela terminológica, sinala-se que não se está equiparando direitos
individuais a direitos de defesa (liberdade negativa), posto que tais direitos também assumem as conformações
da liberdade positiva, cunhando ao indivíduo o direito de exigir do Estado as omissões ou mesmo os
prestacionamentos necessários à efetivação dos direitos fundamentais. De outra banda, os direitos sociais,
econômicos, culturais concernem ao homem enquanto participante de uma coletividade, à liberdade concreta
(doutrina francesa), mas continuam a ser de titularidade subjetiva individual. Assim, não há que se confundir
direito sociais com direitos coletivos.
27
Não se olvida a temática da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais, bem como a polêmica que
encerra a natureza desta vinculação (se imediata ou mediata), o que será tratado, an passant, no item 3.7 deste
estudo.
28
Cuja titularidade subjetiva é individual.
48
estatais
29
, implicando um agir dos poderes constituídos para prover suas
eficácias.
Concernente ao primeiro grupo, o jurista português assevera:
Os direitos fundamentais cumprem a função de direitos de
defesa dos cidadãos sob uma dupla perspectiva: (1) constituem,
num plano jurídico-objetivo, normas de competência negativa para
os poderes públicos, proibindo fundamentalmente as ingerências
destes na esfera jurídica individual; (2) implicam, num plano
jurídico-subjetivo, o poder de exercer positivamente direitos
fundamentais (liberdade positiva) e de exigir omissões dos
poderes públicos, de forma a evitar agressões lesivas por parte
dos mesmos (liberdade negativa).
30
Quanto ao segundo grupo, novamente intercede o
constitucionalista:
Com a finalidade de se poder obter alguma clarificação, a
problemática dos direitos sociais, económicos e culturais, na sua
dimensão de direitos subjectivos e na sua dimensão jurídico-
objetiva, deve situar-se em dois planos:
- No plano subjectivo: os direitos sociais, económicos e
culturais, consideram-se inseridos no espaço existencial do
cidadão, independentemente da possibilidade da sua
exequibilidade imediata;
- No plano objectivo: (1) em muitos casos, as normas
consagradoras dos direitos fundamentais estabelecem imposições
legiferantes, no sentido de o legislador actuar positivamente,
criando as condições materiais institucionais para o exercício
desses direitos; (2) algumas das imposições constitucionais
traduzem-se na vinculação do legislador a fornecer prestações aos
cidadãos.
31
Compatibilizando esta estrutura teorética com o estudo de José
Afonso da Silva acerca da aplicabilidade das normas constitucionais
32
,
29
Muito embora possam assumir a feição de direitos de defesa como se abordará no item seguinte
30
Canotilho, Direito Constitucional, p. 552
31
Canotilho, Constituição Dirigente(...), p. 368
32
Na matéria atinente à eficácia dos comandos constitucionais, segundo José Afonso da Silva, in Aplicabilidade
das Normas Constitucionais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1968, p. 94 e seguintes, os preceitos estão
divididos em três grandes grupos: a) Normas Constitucionais de Eficácia Plena; b) Normas Constitucionais de
Eficácia Contida; c) Normas Constitucionais de Eficácia Limitada. O elemento definidor da controvérsia se
enquadrar os mandamentos em estudo, dentro das espécies supra elencadas, para que possamos traçar a
convicção almejada. Têm eficácia plena, as normas constitucionais “que, desde a entrada em vigor da
Constituição, produzem, ou têm possibilidade de produzir, todos os efeitos essenciais, relativamente aos
interesses, comportamentos e situações, que o legislador constituinte, direta e normativamente, quis regular”
(ob. cit., p.94). As dotadas de eficácia contida, por seu turno, “são aquelas em que o legislador constituinte
regulou suficientemente os interesses relativos a determinada matéria, mas deixou margem à atuação restritiva
da competência discricionária do poder público, nos termos que a lei estabelecer ou nos termos de conceitos
gerais nelas enunciados. São elas normas de aplicabilidade imediata e direta. Tendo eficácia independente da
interferência do legislador ordinário, sua aplicabilidade não fica condicionada a uma normação ulterior, mas fica
dependente (daí: eficácia contida) que ulteriormente se lhe estabeleçam mediante lei, ou de que as circunstâncias
restritivas, constitucionalmente admitidas, ocorram (atuação do poder público, para manter a ordem, a segurança
pública, a segurança nacional, a integridade nacional, etc., na forma permitida pelo direito objetivo”
(
ob.cit. p.
108). As normas constitucionais de eficácia limitada, ou normas constitucionais de princípios são “aquelas que
49
pode-se aquilatar que as normas que asseguram direitos fundamentais
como direitos de defesa, por ter eficácia plena e imediata (ou, nalguns
casos específicos, eficácia contida[restringível]
33
), asseguram, desde
sempre, a liberdade positivo-negativa do indivíduo [e desafiam o
controle constitucional por ação estatal perniciosa]; contrário senso às
que definem os direitos à prestação, que, por serem de eficácia limitada
34
(ou, nalgumas vezes, programáticas
35
), ordinariamente imprescindem
36
,
para a implementação jurídico-objetiva de sua eficácia positiva, de
suplementação legislativa infraconstitucional, vinculada à constituição
dirigente
37
[desafiando o controle constitucional por omissão parcial ou
total ou por contrariedade da norma aos postulados normativos do
Documento Maior].
Fixados estes preceitos introdutórios, falta verificar como a Magna
Carta vigente os maneja. A correlação entre direitos fundamentais,
Estado democrático de direito e a Constituição da República Federativa do
dependem de outras providências normativas, para que possam surtir os feitos essenciais, colimados pelo
legislador constituinte”
(ob.cit., p 110). O autor prossegue em seu raciocínio, subdividindo em duas categorias,
as normas desta espécie: (1) as definidoras de princípio institutivo ou organizativo e (2) as definidoras de
princípio programático. As primeiras são as que contêm esquemas gerais, como que iniciadoras da estruturação
de instituições, órgãos ou entidades, por isso também denominadas de princípio orgânico ou organizativo. A
característica especial que as particulariza assenta-se “no fato de indicarem uma legislação futura que lhes
complete a eficácia e lhes dê efetiva aplicação” (ob.cit., p. 115). As programáticas são “aquelas normas
constitucionais, através das quais o constituinte, em vez de regular, direta e imediatamente, determinados
interesses, limitou-se a traçar-lhes os princípios para serem cumpridos pelos seus órgãos (legislativos,
executivos, jurisdicionais e administrativos), como programas das respectivas atividades, visando à realização
dos fins sociais do Estado”
(ob.cit., p. 132). Pelas idéias lançadas, podemos perceber que os dispositivos da
primeira subespécie (as de princípio institutivo ) são inseridos na Carta Maior para estabelecer as linhas mestras
que deverão guiar o legislador ordinário, quando da pormenorização dos preceitos básicos e irretocáveis por eles
instituídos. Faz-se mister, ainda, uma maior particularização das normas em questão: classificam-se em
impositivas ou facultativas. Nessas o legislador constituinte não determina peremptoriamente a emissão de
uma legislação integrativa, contrario sensu ao que faz com aquelas.
33
como, v. g., é o caso do art. 5º, inciso XIII, da Carta Magna brasileira de 1988.
34
A questão do significado e do alcance do artigo 5º, § 1º, CF/88 será abordada oportunamente, ainda que
sumariamente.
35
Não se adentrará aqui, por delimitação metodológica, à discussão da existência ou não de normas
programáticas em nossa Constituição. Contudo, as menções a esta estirpe ao longo do texto serão sempre
tomadas no sentido de normas estabelecedoras de programas, fins e tarefas aos poderes constituídos e não
como meras proclamações abstratas e inócuas.
36
Não se abordará, aqui, a temática dos direitos originários a prestações sociais, o que será visto, ainda que
restritamente, quando do estudo da relevância social como critério de controle jurisdicional da legitimidade
ministerial na defesa dos individuais homogêneos.
37
A vinculação do legislador ordinário na criação das leis “executivas” dos programas assentados na
Constituição dirigente, para a realização das ações estatais concretizadoras dos direitos fundamentais como
direitos à prestação, é veiculada, como tema-objeto, em base jurídico-teorética densa e elegante, pelo eminente
constitucionalista português J.J. Gomes Canotilho, in Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador,1994.
50
Brasil será visualizada em prosseguimento.
2.4 A CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL, O
ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E OS DIREITOS FUNDAMEN-
TAIS DO HOMEM.
Na Magna Carta de 1988, o Estado democrático de direito é princípio
político-constitucional, ex vi do artigo 1º, caput, fazendo parte da
decisão política fundamental, na concepção schmittiana de Constituição.
No plano material, é despiciendo um aprofundado estudo para se
concluir aquilo que empiricamente é denotado por todos: na República
Federativa do Brasil, fundamentada na dignidade da pessoa humana, o
acinte aos direitos fundamentais do Homem faz deste Estado uma
democracia meramente formal.
Neste âmbito, um estudo do Ministro Celso Antônio Bandeira de
Mello é eloqüentemente realista e antidemagógico:
Estados formalmente democráticos são os que,
inobstante acolham nominalmente em suas Constituições modelos
institucionais -- hauridos dos países política, econômica e
socialmente mais evoluídos -- teoricamente aptos a
desembocarem em resultados consonantes com os valores
democráticos, neles não aportam. (...)
É que carecem das condições objetivas indispensáveis
para que o instituído formalmente seja deveras levado a um plano
concreto da realidade empírica e cumpra sua razão de existir.
Biscaretti Di Ruffia, em frase singela, mas lapidar, anotou que “a
democracia exige, para seu funcionamento, um minimum de
cultura política”, que é precisamente o que falta nos países apenas
formalmente democráticos. As instituições que proclamam adotar
em suas Cartas Políticas não se viabilizam. Sucumbem ante a
irresistível força de fatores interferentes que entorpecem sua
presumida eficácia e lhes distorcem os resultados. Deveras, de
um lado, os segmentos sociais dominantes, que as controlam,
apenas buscam manipulá-las ao seu sabor, pois não valorizam as
instituições democráticas em si mesmas, isto é, não lhes votam
real apreço. Assim, não tendo qualquer empenho em seu
funcionamento regular, procuram, em função das próprias
conveniências, obstá-lo, ora por vias tortuosas, ora abertamente,
quando necessário, seja por iniciativa direta, seja apoiando ou
endossando quaisquer desvirtuamentos promovidos pelos
governantes, simples prepostos, meros gestores dos interesses
das camadas economicamente mais bem situadas. De outro lado,
como o restante do corpo social carece de consciência de
cidadania e correspondentes direitos, não oferece resistência
51
espontânea a essas manobras. Ademais, é presa fácil das
articulações, mobilizações e aliciamento da opinião pública, quando
necessária sua adesão ou pronunciamento, graças ao controle que
os segmentos dominantes detêm sobre a “mídia”, que não é senão
um de seus braços.
38
Este quadro, ao contrário de se afigurar desencorajador, fornece
fôlego ao estudo em causa e fortalece a proposta sob exame, já que o
Órgão Ministerial é a expressão mais concreta dos albores de um futuro
plena e materialmente democrático.
Pesquisemos, numa abordagem sumária e genérica, o tratamento
dos direitos fundamentais à luz da Constituição de 1988, pontuando que
a questão será retomada, topicamente, quando do estudo dos terceiro e
quinto capítulos.
Primeiramente, cumpre pontuar que a dignidade da pessoa
humana
39
(artigo 1º, III, CF/88) desponta como núcleo axiológico-
normativo do sistema constitucional pátrio, acompanhando as tendências
do constitucionalismo contemporâneo como reação pragmática às
atrocidades cometidas no decurso da Segunda Guerra Mundial.
A dignidade da pessoa humana é princípio regulador, tem matiz
jusfilosófico antecedente à Constituição. Sedimenta-se pela idéia de não-
equivalente, é atributo intrínseco à pessoa humana, valor supremo,
indisponível e insubstituível. Positivada, abriga-se no cerne das liberdades
negativa e positiva e lhes impõe as adequadas conformações. Vincula
imediatamente os Poderes constituídos, traçando os contornos de suas
legitimações democráticas. Irradia-se perante os particulares,
determinando observância e não-discriminação.
Por inerência à sua natureza, tem conteúdo fluido a ser densificado;
a sua evocação genérica e abstrata não satisfaz a sua efetividade. Neste
ensejo, a justicialidade dos direitos fundamentais figura como a pedra-de-
toque dos Estados democráticos, em substância voltados para ações
38
A Democracia e suas Dificuldades Contemporâneas, Revista de Informação Legislativa, Brasília, n. 137, p.
255/65: 256, jan.-mar.1998.
39
Cujas dimensões serão noticiadas e sumariamente abordadas no item 5.5 deste ensaio, quando se fará uma
singela análise da concepção kantiana de utilização do homem simplesmente como meio como a antítese da
dignidade da pessoa humana (em seu sentido concreto, real), que não pode ser confundida com a dignidade
humana(da humanidade, de conteúdo abstrato).
52
convergentes e dirigidas pelo sentimento de respeito a este valor-fonte,
que se torna vívido pela conformação jurídica, independentemente, para
além e até mesmo contrariamente à interpolação legislativa.
A racionalidade do Estado democrático de direito perpassa pela
busca incessante e efetiva de uma vida condigna aos seus cidadãos; por
isso, todos os direitos fundamentais contemplam dignidade como
essência, ainda que em maior ou menor latitude.
No caso brasileiro, a justicialidade dos direitos fundamentais, ou o
direito de exigi-los em juízo, vem estampada no artigo 5º, § 1º, CF/88. A
dicção em revista pode ser compreendida como esteio do princípio geral
da aplicabilidade imediata e da plena eficácia dos direitos fundamentais –
traço marcante de sua fundamentalidade
40
--, um mandado de otimização
que impõe aos “órgãos estatais a tarefa de maximizar a eficácia dos
direitos fundamentais”
41
, instituindo, v. g., o poder-dever ao Poder
Judiciário de lhes assegurar a maior efetividade possível, regra geral
que nem por isso fica à mercê de limites
4243
, numa leitura de freios e
contrapesos inerente ao regime democrático e à separação dos Poderes
em sua visão dinâmica.
40
Não se tratará da intricada questão da definição de critérios objetivos para a aferição constitucionalmente
adequada da fundamentalidade material dos direitos fundamentais, dadas as limitações deste estudo. Contudo,
vale referir a dignidade da pessoa humana como vetor precípuo, como ensina SARLET,1998, p. 134. Pode-se
afirmar, porém, que os direitos materialmente fundamentais são os vocacionados a erigirem posições subjetivas
que constituam exigências diretas, ou no mínimo indiretas da dignidade da pessoa humana (idem, nota 265, p.
115) ou, por outras palavras, possam ser reconduzidos, em menor ou maior grau, em conteúdo da dignidade da
pessoa humana. Inobstante, apenas para que não passe in albis, mesmo nos direitos fundamentais catalogados há
exemplos de mera fundamentalidade formal, mas não material, por não guardarem “relação direta com a
proteção da dignidade”, não decorrerem “de forma inequívoca dos princípios e do regime da nossa Constituição
como posições essenciais do indivíduo em sua dimensão individual ou social”, como ocorre, v.g., com o artigo
5º, XXVIII, ibidem, p. 134. Neste diapasão, não se poderá negar fundamentalidade material aos direitos
fundamentais revelados (“criação jurisprudencial do direito”) a partir dos princípios fundamentais (artigos 1º a
4º, CF/88), que são “exigências da dignidade do indivíduo” (idem,. p. 114) ou do regime da democracia social
que tem como núcleo cêntrico a dignidade da pessoa humana.
41
SARLET Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998,
p. 243
42
Como se mostra mais sensível no terreno dos direitos prestacionais, requerendo a interlocução da
proporcionalidade, o que será tangenciado ao longo dos capítulos terceiro e quinto
43
A atividade jurisdicional não tem por escopo substituir o Legislativo na sua tarefa precípua de criação do
direito; volta-se primariamente para a explicitação hermenêutica do que já existe (definindo ou redefinindo o
“campo de incidência de um direito já consagrado na Constituição”), muito embora não se negue uma atividade
criadora de cunho suplementar e ampliativo, e neste viés, “a construção jurisprudencial do direito” , quando a
atividade judicante reconhece direitos latentes decorrentes dos princípios fundamentais ou do regime da Carta
Constitucional de 1988 ( SARLET, ob. cit., p. 135/6).
53
Neste contexto, o parágrafo em epígrafe, para além de fins
meramente tautológicos, tem por escopo traduzir um reforço eficacial aos
direitos fundamentais, expondo clara e objetivamente a precedência dos
direitos fundamentais sobre as demais matérias constitucionais
44
. Não se
confunda, contudo, fundamentalidade com fundamentalismo dos direitos
fundamentais, posto que as antinomias por eles presididas deverão ser
solvidas sob o diálogo da proporcionalidade, preservando-se os seus
núcleos intangíveis, o que revela importante reconhecer que mesmo
direitos desta estirpe comportam graduações proporcionais à forma de
sua “positivação, do objeto e da função que cada preceito desempenha”.
45
Ademais, consubstancia a opção da liberdade política da cidadania
46
pelo “Estado jurisdicional”
47
, no qual cabe à jurisdição constitucional, em
concorrência
48
qualificada pela supremacia, o poder-dever de conformar
os conteúdos substanciais do ordenamento jurídico, realizando a
concreção jurídico-criativa, dando cor e forma à função criadora do
direito pela jurisdição, que assim abandona a vetusta e delimitadora
função de aplicação interpretativa do direito
49
.
Para além disso, traz em seu âmago a visualização dos direitos
fundamentais como “normas objetivas de princípio que atuam em todos
os âmbitos do direito”
50
, transpondo a conformação de meros “direitos
subjetivos da liberdade”
51
.
Sem a pretensão de albergar estudo preciso acerca da questão que
envolve as teorias dos direitos fundamentais, calha à fiveleta esboçá-las
44
Não se olvida que o STF tem assumido posição mais branda, entendendo que quando a norma instituidora dos
direitos fundamentais fizer expressa remissão ao legislador, mesmo em se tratando de direitos de defesa, a sua
eficácia imediata resume-se à determinação da interposição legislativa, como traz à baila SARLET, ob. cit., p.
247
45
idem
46
Aqui em seu sentido restrito, como a titularidade e o exercício de direitos políticos pelos nacionais
47
BÖCKENFÖRDE, Ernest-Wolfgang. Escritos sobre Derechos Fundamentales. Trad. de Juan Luis Requejo
Pagés e Ignacio Villaverde Menéndez. Baden-Baden: Nomos Verl.-Ges., 1993, p. 134
48
Como a função legislativa do Estado
49
BÖCKENFÖRDE, Ernest-Wolfgang. Escritos sobre Derechos Fundamentales. Trad. de Juan Luis Requejo
Pagés e Ignacio Villaverde Menéndez. Baden-Baden: Nomos Verl.-Ges., 1993, p. 130/138
50
BÖCKENFÖRDE, Ernest-Wolfgang. Escritos sobre Derechos Fundamentales. Trad. de Juan Luis Requejo
Pagés e Ignacio Villaverde Menéndez. Baden-Baden: Nomos Verl.-Ges., 1993, p. 137
51
BÖCKENFÖRDE, Ernest-Wolfgang. Escritos sobre Derechos Fundamentales. Trad. de Juan Luis Requejo
Pagés e Ignacio Villaverde Menéndez. Baden-Baden: Nomos Verl.-Ges., 1993, p. 134
54
em apertada síntese
52
.
A teoria liberal dos direitos fundamentais traz à liça a sua
configuração como direitos de defesa contra a ação perniciosa do Estado
sobre a liberdade subjetiva. Aborda os direitos fundamentais sob a ótica
da relação do Estado-indivíduo, partindo da pré-compreensão da idéia da
liberdade (em suas esferas individual e social) como vetor antecedente ao
Estado, cujo conteúdo substancial se encontra fora da esfera de sua
competência regulatória (e, por isso, figura como instituidora de normas
de competência negativa), só admitindo restrições jurídicas que viabilizem
a convivência harmônica de todos os co-titulares da liberdade-resistência,
denotando a que “a democracia liberal pretende constituir-se a partir da
liberdade e voluntariedade de seus cidadãos”.
53
A teoria institucional dos direitos fundamentais parte da idéia da
liberdade jurídica como um instituto, que “se opõe, de forma objetivada,
segundo a peculiaridade do correspondente âmbito vital, como algo dado
e objetivado”
54
deixando à mostra a perspectiva objetiva, que dá luz à
noção da lei como regulamentação jurídico-normativa que assume, além
da roupagem negativa (limitação da intervenção estatal à esfera da
liberdade), a figuração positiva, como uma garantia à realização
concreta do conteúdo “objetivo-institucional”
55
da liberdade, que
compreende a liberdade subjetiva
56
.
A teoria axiológica dos direitos fundamentais os erige como
“elementos e meios da criação do Estado”
57
, assumindo, a exemplo do
ocorrente com a teoria institucional, primariamente “caráter de normas
objetivas, não de pretensões subjetivas”
58
. Nesta senda, “recebem seu
conteúdo objetivo como emanação do fundamento axiológico da
52
Que não contempla a crítica a cada uma das estirpes, mas apenas uma apresentação informativa das mesmas
53
BÖCKENFÖRDE, 1993, p. 49
54
BÖCKENFÖRDE, 1993, p. 53
55
BÖCKENFÖRDE, 1993, p. 54
56
BÖCKENFÖRDE, 1993, p. 56
57
BÖCKENFÖRDE, 1993, p. 57
58
ibidem
55
comunidade estatal e como expressão de uma decisão axiológica”.
59
A teoria democrático-funcional dos direitos fundamentais os vê a
partir de sua função “pública e política”
60
, como “fatores constitutivos de
um livre processo de produção democrática”
61
, de molde que “a garantia
do âmbito de liberdade dos direitos fundamentais tem lugar para proteger
e facilitar estes processos (...) uma 'liberdade para'”
62
, uma liberdade
funcionalizada, reconhecida ao cidadão não para a sua singela disposição,
mas em atenção à sua posição subjetiva como membro de uma
comunidade que almeja o uso da liberdade de acordo com o interesse
público, convertendo a liberdade em uma “competência, um serviço
público, um dever”.
63
A teoria dos direitos fundamentais do Estado social estabelece a
ruptura com o embasamento dos direitos fundamentais à luz da liberdade
abstrata (tendência das teorias anteriores, respectivamente: liberdade-
resistência; liberdade institucional; liberdade axiológica; liberdade-
competência), evoluindo para a idéia da liberdade concreta, que instituia
obrigação do Estado derivada dos singulares direitos
fundamentais de procurar os pressupostos sociais necessários para
a realização da liberdade dos direitos fundamentais, uma espécie
de posição de garante para a implantação da liberdade na
realidade constitucional.
64
A teoria dos direitos fundamentais no Estado social erige uma
concepção de direitos a prestações sociais, os quais a seu turno exigem o
emprego de meios financeiros disponíveis, que em circularidade
estabelecem os limites à “incondicionalidade das prestações de direitos
fundamentais”
65
, transmudando o problema da esfera “da
discricionariedade política a uma questão de observância dos direitos
fundamentais”
66
, viabilizando a “justicialização das disputas políticas”
67
,
59
ibidem
60
BÖCKENFÖRDE, 1993, p. 60
61
ibidem
62
BÖCKENFÖRDE, 1993, p. 60/61
63
BÖCKENFÖRDE, 1993, p. 62
64
BÖCKENFÖRDE, 1993, p. 64
65
BÖCKENFÖRDE, 1993, p. 65
66
ibidem
67
ibidem
56
ampliando a competência do Poder Judiciário, mas apenas no que se
denomina “direitos fundamentais parâmetro”
68
; porque os direitos
fundamentais, em sua dimensão social, são reduzidos a “meros encargos
constitucionais”
69
, que “não fundamentam nenhuma pretensão
reclamável diretamente ante os tribunais, fora de uma defesa ante uma
inatividade abusiva ao extremo”.
70
Importante gizar que a teoria em voga não está radicada na mera
compreensão dos direitos fundamentais da liberdade, mas a suplanta, de
forma que, em tese, fornece meio de cultura para a incidência,
transformação e desenvolvimento de quaisquer das teorias anteriormente
apresentadas para a solução do caso concreto.
Contudo, norte na construção de uma “teoria dos direitos
fundamentais constitucionalmente adequada”
71
, que pretende estabelecer
as “idéias básicas sobre a relação de dependência do indivíduo com a
comunidade estatal; (...) uma determinada idéia de Constituição”
72
como
representação do “ordenamento jurídico fundamental do indivíduo e da
sociedade com o Estado”
73
, à luz da “Constituição concreta e vigente”
74
,
os modelos antes aludidos podem ser apenas adotados como ponto de
partida para a conformação a ser extraída do Documento Maior, não
como opções casuísticas e assistemáticas, descompromissadas com a
opção política vertida na Constituição.
No caso brasileiro, a construção de uma teoria dos direitos
fundamentais constitucionalmente adequada revela nuances das teorias
institucional-axiológica (o princípio da dignidade da pessoa humana como
ápice valorativo que conforma o núcleo intangível dos direitos
fundamentais, projetando efeitos jurídicos autônomos transcendentes à
esfera subjetiva – e por isso inerentes à dimensão objetivo-positiva, com
68
BÖCKENFÖRDE, 1993, p. 66
69
ibidem
70
ibidem
71
ibidem
72
BÖCKENFÖRDE, 1993, p. 68
73
ibidem
74
ibidem
57
nítido conteúdo normativo) congregadas com os delineamentos da teoria
do Estado social, agregada da especificidade de viabilizar a exigibilidade
de direitos originários à prestação como decorrência imediata do Texto,
vinculando os poderes estatais diretamente, superando a vinculação como
mero encargo sem a correspondente pretensão de exigibilidade.
Um passo adiante, registre-se que, em alargada catalogação, os
direitos fundamentais podem assumir três
75
dimensões
76
: a primeira,
contemplando os direitos civis e políticos; a segunda, os direitos
econômicos, sociais e culturais; a terceira, a solidariedade e a
fraternidade.
No primeiro grupo, também rotulado como direitos de resistência
(contra o Estado) e de participação (política), encontram-se
classicamente a vida, as liberdades (sob as perspectivas individual e
coletiva), a propriedade e a igualdade e suas consectárias garantias (como
e.g., o devido processo legal); o direito de voto, respectivamente.
Propugnam as liberdades imantadas e limitadas pela dignidade da pessoa
humana.
Os segundos contemplam as liberdades positivas, o “direito de
participar do bem-estar social”
77
, a “liberdade por intermédio do Estado”
78
que municia o indivíduo, enquanto titular de uma posição concreta na
sociedade, do direito de exigir prestações estatais convergentes à
assecuração dos direitos de segunda dimensão, dentre os quais
assistência social, saúde, educação, previdência social, trabalho,
atingindo as facetas do homem em sociedade, o que permite a
visualização do homem também em sua perspectiva econômico-cultural.
75
Não se esquece da posição de Paulo Bonavides in Curso de Direito Constitucional. 7ª ed. São Paulo:
Malheiros, 1997, p. 524/6, que incrementa o catálogo, agregando a quarta dimensão, como decorrência da
globalização política, constituída pelos direitos da democracia direta, à informação e ao pluralismo político.
Contudo, a abordagem exporá a classificação tripartite, porque recorrente, mormente em se considerando que a
tomada de posição quanto à classificação quaternária exigiria aprofundamento incompatível com o objeto deste
estudo.
76
Prefere-se adotar esta terminologia, em evitando os equívocos normalmente debitados ao uso do vocábulo
geração, que traz ínsita a idéia de substituição, o que confronta com a história da positivação dos direitos
fundamentais, que tem feição expansivo-cumulativa. Registra-se que, se houver remissão ao termo (geração) ao
longo do trabalho, será com denotação idêntica à dimensão.
77
C. LAFER apud SARLET, p. 49
58
Os direitos de segunda geração buscam placitar a justiça social,
concretizar o conteúdo da igualdade em seu sentido material.
Muito embora não se ignore a conformação predominantemente
positiva dos direitos de segunda dimensão, não se pode olvidar que as
liberdades sociais e os direitos fundamentais dos trabalhadores também a
integram
79
, deixando ver que os direitos em causa não podem ser
sinonimizados a direitos de cunho prestacional.
Os direitos de terceira geração têm por marco distintivo a
titularidade desprendida da figura do homem-indivíduo, dirigindo-se a
proteção de grupos humanos (a família, por exemplo) ou mesmo do
gênero humano (direito à paz, à qualidade de vida, o desenvolvimento, a
autodeterminação dos povos, ao meio ambiente), muito embora não
desprezem a perspectiva individual do diretamente lesado, vez que são
densificações do conteúdo normativo da dignidade da pessoa humana, “o
que pode ser bem exemplificado pelo direito ao meio ambiente. Este, em
que pese a habitual (embora não-cogente) presença do interesse coletivo
ou difuso, não deixa de objetivar a proteção da vida e da qualidade de
vida do homem da sua individualidade”
80
. A matriz dos direitos de terceira
geração é a dignidade da pessoa humana sob a perspectiva da
solidariedade.
A sistematização dos direitos fundamentais na Carta política
brasileira não atendeu a melhor técnica
81
, na medida em que, v.g.,
direitos marcados pela fundamentalidade, especificamente os de terceira
dimensão, não se encontram inscritos no título segundo do referido
Documento, mas em remissões esparsas, de molde que a descoberta dos
direitos fundamentais deverá atentar para o seu conteúdo e não para a
sua topografia dentro do contexto da Magna Carta.
Outrossim, a concretização do conteúdo dos direitos fundamentais
dever-se-á orientar pela diretriz da máxima efetividade no conflito com
78
SARLET, idem
79
SARLET, p. 50, espécies que não serão tratadas neste trabalho
80
SARLET, p. 55
81
Para maior aprofundamento do tema, veja-se SARLET, ob. cit., p. 65/72
59
seus pares e com as demais normas da Constituição originária,
instrumentalizada pelo diálogo da proporcionalidade, preservando-se a
unidade da Constituição; a hierarquia axiológica, cujo vetor é a dignidade
da pessoa humana, não se compraz com a técnica do tudo ou nada,
aplicável apenas a regras e não a princípios, que são os vetores da
solução das antinomias no seio do Documento Maior.
À guisa de atalho nesta exposição, que comporta fôlego
incompatível com o objetivo do presente estudo, necessárias algumas
ponderações sobre a classificação funcional dos direitos fundamentais,
que será a adotada ao longo do trabalho.
Minudenciando a clássica classificação funcional dos direitos
fundamentais [à defesa e a prestações], Sarlet
8283
estabelece a seguinte
taxinomia ao segundo grupo: direitos a prestação
84
em sentido amplo
(normativas) e estrito (materiais), contemplando a primeira estirpe duas
subclasses, os direitos à proteção e à participação na organização e no
procedimento.
O catálogo aberto
8586
do artigo 5º e seu extenso rol de incisos
contempla em grande parte os direitos de defesa, mas também congrega
direitos individuais com acentuada dimensão social, os direitos individuais
de expressão coletiva
87
(liberdades de reunião e de associação
88
) e,
82
A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p. 167
83
concebida a partir da teoria dos quatro status de Jellinek (status subjectionis, status negativus (ou libertatis),
status positivus(ou civitatis) e status activus), mas com a releitura do status negativus e com a inclusão das
subclasses do status activus processualis (Häberle) e do status positivus socialis, cf. ob. cit., p. 153/157, que
não será tratada . Contudo, apenas para situar o leitor, os direitos de defesa estariam compreendidos no status
negativus ou libertatis – em sua leitura remodelada, isto é, no sentido de que as liberdades individuais – ao
contrário do que previa a versão original da doutrina jellinekiana – não podem estar mais sujeitas à legislação
infraconsticucional (ob. cit., p. 156); os direitos a prestações, no status positivus (ou civitatis); “os direitos
sociais, econômicos e culturais de natureza prestacional (...) e as demais funções decorrentes da perspectiva
subjetiva e objetiva dos direitos fundamentais”(idem), no status positivus socialis .
84
Os direitos originários a prestações serão tratados no item 3.8.2.1 deste estudo
85
Algumas perspectivas da questão da abertura do catálogo – cognata à interpretação do conteúdo e da extensão
do artigo 5º, § 2º, CF será abordada, passim, e mais detidamente no item 5.5, muito embora ainda com o traço
da sumariedade compatível com os contornos deste ensaio.
86
Cumpre inscrever que o artigo 5º, § 2º conforma concepção materialmente aberta dos direitos fundamentais,
quer para o reconhecimento dos direitos fundamentais positivados esparsamente na Constituição, quer para o
garimpar dos direitos fundamentais implícitos, quer para identificar os direitos que sem embargo catalogados,
são apenas formalmente fundamentais, quer para albergar direitos fundamentais sedimentados em tratados
internacionais.
87
Os chamados direitos coletivos, que não podem ser confundidos com os direitos sociais, direitos fundamentais
de segunda dimensão
60
inclusive, a prestações
89
, como é o caso do acesso à Justiça
90
como
decorrência da inafastabilidade da jurisdição.
Acentuam-se os direitos de defesa não como protagonizadores de
intangibilidade absoluta, mas nos limites da proteção a interferências
iníquas, entendendo-se estas como contrastantes com o conteúdo
axiológico-normativo da Constituição.
Os direitos sociais, para além da fisionomia de direitos a prestações,
conformam “uma gama diversa de direitos de defesa”, como ocorre com
acentuada recorrência nos direitos dos trabalhadores, a positivar
sedimentações da liberdade e da igualdade, v.g., da igualdade entre os
trabalhadores com vínculo empregatício e os avulsos (artigo 7º, XXXIV).
91
Os direitos fundamentais da nacionalidade (vínculo jurídico entre
pessoa e Estado
92
) e da cidadania (possibilidade de ser titular de direitos
políticos
93
) podem ser insertos funcionalmente dentre os direitos de
defesa (como “espécie de status global de liberdade”
94
), muito embora
não se olvide que possam assumir perspectiva prestacional
9596
. Apartam-
se dos individuais e coletivos por restringirem-se ao grupo dos nacionais
e cidadãos, ao contrário dos individuais (direitos do homem-indivíduo) e
coletivos (direitos do homem-coletivo) que se estendem a todos os
brasileiros e estrangeiros residentes no Brasil. Como corolário, os direitos
políticos fundamentais são privativos dos nacionais, muito embora nem
todos os nacionais sejam titulares de direitos políticos
97
. Tomados como
direitos de participação, assumem natureza mista
98
de direitos de defesa
88
SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 192
89
SARLET, idem, p. 173
90
Como direito à prestação normativa, sem olvidar sua figuração como garantia instrumental decorrente do
artigo 1º, II, CF/88, conforme já aludido.
91
Ibidem, p. 174
92
SARLET, ob. cit., p. 175
93
idem
94
Como anuncia Klaus Stern, apud SARLET, p. 178
95
Mais especificamente na subclasse dos direitos à participação na organização e procedimento, como prefere
Alexy, consoante referência de SARLET, ibidem
96
A função prestacional não é preponderante, mas normalmente indireta, salvo na hipótese do artigo 17, § 3º
CF/88, como ensina SARLET, ibidem
97
Como ocorre na hipótese do artigo 15, CF/88
98
SARLET, p. 176-7
61
(abstenção de interferências sobre o exercício do direito de voto) e
direitos de prestação normativa – direitos de proteção
99
– e material
100
.
As garantias institucionais (família, propriedade, instituição do Júri)
e os direitos-garantia (garantias fundamentais, autênticos direitos
subjetivos), assim denominados por “outorgarem aos particulares
posições jurídico-subjetivas autônomas”
101
, guardadas as diferenciações
que as apartam, podem enquadrar-se na categoria dos direitos de
defesa, dados os contornos predominantes de sua funcionalidade, como
ensina Sarlet
102
, muito embora não se dispam de conteúdo prestacional.
Nas cercanias dos direitos-garantia, inscrevem-se os remédios
constitucionais, concebidos como
procedimentos de matriz constitucional (e, neste sentido,
ações constitucionais), que outorgam ao indivíduo, inclusive na
condição de integrante de uma coletividade, a possibilidade de se
defender de ingerências indevidas em sua esfera privada,
protegendo-se contra abusos de poder, agressões aos seus
direitos, além de viabilizar a efetivação dos direitos e garantias
fundamentais em geral.
103
Pretendemos aqui enaltecer a dimensão prestacional dos direitos-
garantia, em especial as ações constitucionais, conformando hipótese
classificatória no âmbito das prestações normativas (ou em sentido
amplo), mais especificamente na categoria dos direitos à participação na
organização e procedimento, na medida em que no exame da Ação Civil
Pública como ação de status constitucional, vamos revisitar este tema
para exibir as inconstitucionalidades das intervenções legislativas que,
primo, introduziram o § único do artigo 1º e, secundo, alteraram a
redação do seu artigo 16.
Paralelamente, pontuando a perspectiva dos direitos-garantia como
direitos de defesa, colhemos norte para o estudo da natureza da jurídica
da legitimação ministerial para a defesa que denominados mediata – e
oportunamente explicar-se-á o porquê – dos individuais homogêneos.
De outra banda e não menos importante, reverenciamos os direitos
99
Exigência de prestações estatais a garantir o exercício dos direitos políticos contra terceiros
100
Com o fornecimento dos meios materiais necessários ao exercício do direito de voto
101
SARLET, p. 185
102
idem
62
fundamentais de terceira dimensão (os direitos da solidariedade e da
fraternidade). Em exorbitando da esfera de titularidade do homem-
indivíduo e do homem-coletivo (âmbito das primeira e segunda
dimensões, antes visualizadas em sumário), são por inerência
pertencentes a uma titularidade subjetivamente difusa, sem olvidar a
dimensão individual superada e guardada no todo, o que projetará efeitos
sobre o descortinar a que nos propomos, especificamente na visualização
do telus da legitimidade ministerial e, ao depois, no exame da filosofia
de Hegel e a sua correlação com o problema que nos ocupa.
Neste escopo, trazemos à baila o direito à vida condigna como um
direito fundamental de titularidade difusa
104
que, embora não se
desagregue de sua dimensão individual (parte integra o todo, o todo
contempla o particular), a transcende. Verbaliza o valor em si a ser
protegido, porque pertence a cada um e a todos os seus titulares,
simultaneamente, deixando à mostra a solidariedade social como uma
declinação da dignidade da pessoa humana; neste contexto, reclama
técnicas adequadas de garantia e proteção, mormente sob o espectro da
sua dimensão cultural
105
.
Neste escopo, avançamos.
2.5 A FUNÇÃO MINISTERIAL NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA
FEDERATIVA DO BRASIL
Com a Constituição Cidadã, nasceu um novo Órgão Ministerial,
dotado de uma importante missão: a defesa da implementação efetiva do
Estado democrático de direito, a par da defesa da ordem jurídica e dos
interesses sociais e individuais indisponíveis.
A inscrição do poder constituinte originário fez do Ministério Público
103
SARLET, p. 180
104
Sem olvidar a multidimensionalidade do conteúdo da dignidade da pessoa humana, mormente seu viés
filosófico (idéia reguladora pressuposta à conformação constitucional) e critério precípuo (embora não
exclusivo) de aferição da fundamentalidade material dos direitos fundamentais.
105
Conceito que será abordado ao longo do estudo
63
sua longa manus na fiscalização do respeito, por parte dos poderes
constituídos, dos direitos fundamentais de defesa e da implementação
legislativa necessária para a consecução dos direitos fundamentais à
prestação.
Diante desta fisionomia do Órgão, uma reflexão se faz necessária:
se é bem verdade que a classe dominante vislumbra os estereótipos
constitucionais com caráter meramente figurativo, como conciliar esta
assertiva com a criação de um órgão que, ativa e permanentemente, é a
antítese desta ideologia, porque instrumento para a implementação da
democracia efetiva?
A resposta, sem a pretensão de esgotar o debate, talvez esteja na
autoconfiança da classe dominante na mantença do status quo,
projetando a inocuidade do Órgão para a consecução de um ambiente
substancialmente democrático, quiçá tendo por paradigma a realidade
italiana, em que a atuação da Instituição similar é tida como apática
106
.
Uma análise percuciente revelará o equívoco, já que uma
interpretação sistemática da Magna Carta denunciará a posição do
Ministério Público, como equipolente aos demais Órgãos do Poder.
O poder estatal é uno, indivisível e indelegável. Inobstante, desde
Montesquieu, isto não impediu que as funções do Poder fossem atribuídas
a órgãos diferentes, ontologicamente com competências estanques e
desproporcionais, vez que, na origem, a teoria da tripartição dos poderes
conferia ao Órgão Jurisdicional uma capitis diminutio em relação aos
demais, tornando-o a boca da lei, pressupondo que a justiça inata das
emanações legislativas dispensava qualquer adminículo interpretativo.
Atendendo ao ciclo evolutivo natural das ciências, hodiernamente
ninguém ousa atribuir ao Judiciário esta posição inferiorizada, sem se
submeter a acirradas críticas e sem ter que enfrentar um oceano
casuístico que demonstra exatamente o contrário.
E o Ministério Público? Será ele um quarto poder?
A divisão do poder em três funções típicas nunca foi óbice para a
64
quatripartição do poder. Naquele momento histórico, a tripartição fora
bastante. Mas, como conseqüência inevitável da evolução, a teoria de
Montesquieu envelheceu, e o poder estatal, mantendo-se hígido em sua
unidade, precisava de uma dimensão externa, mais dinâmica, na busca
da implementação efetiva do Estado democrático de direito.
Na Magna Carta de 1988, esta dimensão dinâmica do Poder
encontra-se fisionomizada pelo órgão ministerial, conforme a dicção do
artigo 127, caput: “O Ministério Público é instituição permanente,
essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da
ordem jurídica, do Regime Democrático
107
e dos interesses sociais e
individuais indisponíveis”.
108
Acentua Sérgio Gilberto Porto
109
:
A sociedade continua a reclamar a elaboração de lei:
tarefa da função legislativa do Estado. Reclama também a
aplicação da lei: tarefa da função judiciária deste mesmo Estado.
Reclama, ainda, que o administrador aja consoante determina a
lei. Mas, além disso tudo, o Estado contemporâneo também
reclama que, em pé de igualdade, se promova a defesa da ordem
jurídica, do regime democrático, das liberdades públicas
constitucionais e outras: tarefas atribuídas ao Ministério Público
(...)
110
O ilustre doutrinador, inobstante, não adota a concepção do Órgão
Ministerial como o quarto poder do Estado, tomando-o por Instituição,
como se pode denotar do seguinte excerto, onde dimensiona a natureza
jurídica do Órgão:
Em verdade é ele, e isto precisa ser bem compreendido,
uma instituição
, sem a qual, neste momento histórico, a sociedade
não saberia conviver. Esta a prova maior de que, assim como os
Poderes formalmente constituídos, também esta instituição, hoje,
integra a essência do Estado, pouco se tenha designação formal de
poder ou não, pois é certo que tais como aqueles, sob o ponto de
vista material, desempenha função essencial à existência do
Estado moderno, com independência e harmonia em relação aos
próprios poderes e demais instituições permanentes que
compõem o Estado. Exerce, portanto, parcela da soberania do
Estado e guindando seus órgãos à condição de agentes políticos,
106
A questão será vista nos tópicos de direito comparado, an passant.
107
grifou-se
108
grifou-se
109
Sobre o Ministério Público no Processo Não-Criminal. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 11/23.
110
ob. cit., p. 13
65
tais como os membros dos Poderes formalmente constituídos.
111
(grifou-se)
Com a devida vênia, se o Ministério Público integra
permanentemente a estrutura do Estado, com a independência que o
desvincula dos outros Órgãos do Poder, para o exercício das funções
específicas que lhes foram atribuídas pelo poder constituinte originário,
aplicando-se-lhe, inclusive, a técnica dos freios e contrapesos (que é
exclusiva para a equipolação dos Órgãos do Poder), porque discriminá-lo
desta fisionomia
112
?
Será que mais uma vez a forma superará o conteúdo?
Esta controvérsia, contudo, apresenta-se como um minus em
relação à essência do trabalho, tendo em vista que o reconhecimento, ou
não, do Órgão Ministerial como quarto poder do Estado, não
transfigurará, sob o aspecto material, a fisionomia e o papel a ele
reservados pelo poder constituinte originário.
Ainda, à guisa de desfecho quanto ao tópico, assevera Sérgio
Gilberto Porto:
Ao enfrentar a questão da essencialidade do Ministério
Público junto à atividade jurisdicional do Estado, Mazzilli faz
oportuna e curiosa observação, ao aduzir que o legislador
constituinte, a um só tempo, disse mais e menos do que devia.
Disse mais, exatamente porque não é em todos os feitos que se
tem identificado a necessidade de atuação ministerial, disse menos
exatamente porque não é apenas junto à função jurisdicional do
Estado que atua o Ministério Público, visto que este possui diversas
tarefas institucionais divorciadas da atividade jurisdicional.
113
Estabelecidos os contornos do perfil constitucional do Órgão,
sedimente-se a sua função dentro do Estado democrático de direito.
Repisando-se o que já se delineou no princípio deste capítulo, o
epicentro do Estado democrático de direito está na efetividade dos direitos
fundamentais.
111
ob. cit., p. 13
112
A consideração do Ministério Público como quarto Poder nos remete à perquirição acerca da responsabilidade
orçamentária do Órgão pelas despesas sucumbenciais havidas nas ações por ele propostas. O tema, polêmico,
não será tratado neste ensaio. Contudo, ponderamos que, por uma questão de coerência argumentativa, a
situação se perfilaria, em tese, razoável quando e apenas quando verificado o abuso do direito de litigar, por
analogia ao artigo 85, CPC, vez que se pode compreender que, neste caso, haveria uma quebra do dever de
probidade que há que se exigir das partes em juízo, desviando-se o Ministério Público do poder-dever de agir
como propulsor do acesso racional à jurisdição.
113
ob. cit., p. 16.
66
Conforme se estudou, com fulcro na teorização verbalizada por
Canotilho
114
, os direitos fundamentais são bidimensionais, contemplando
as dimensões jurídico-positiva e subjetiva. Esta bipolarização fornece o
meio de cultura para o entendimento do âmbito da atuação ministerial,
enquanto instrumento de defesa do Estado democrático de direito.
Dentre as funções institucionais, está a insculpida no inciso II, do
art. 129, da Carta Constitucional de 1988, com a seguinte dicção:
zelar pelo efetivo respeito dos poderes públicos e dos
serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta
Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia.
Dentro da ordem de idéias que se assentou neste trabalho,
compatibilizando-se o comando legislativo em epígrafe com as dimensões
dos direitos fundamentais, fácil ver que o terreno da atuação ministerial
é a dimensão jurídico-objetiva.
Na esfera dos direitos fundamentais como direitos de defesa, a
ação dos poderes públicos contra a liberdade negativa dos indivíduos
provocará o agir ministerial, que, neste passo, não se direcionará a
salvaguardar a orla jurídica do indivíduo, de per se [dimensão subjetiva],
mas, sim, a coibir a prática estatal proibida pela Constituição, que impõe o
dever de abstenção [dimensão jurídico-objetiva].
Na seara dos direitos fundamentais como direitos à prestação, a
omissão legislativa
115
relevante detonará a atuação ministerial para o
saneamento da lacuna que desafia o preceito constitucional determinante
de um facere para a implementação dos programas direcionados a dar
efetividade aos direitos fundamentais desta natureza.
A Constituição é dirigente e vinculativa da faceta legiferante do
Estado. “A não disponibilidade constitucional é o próprio fundamento
material da liberdade de conformação legislativa", como esclarece
Canotilho
116
.
114
Não se olvida que a gênese da concepção dos direitos fundamentais como normatividade advém da escola
germânica, à luz das teorias institucional, axiológica, democrático-funcional e do Estado Social acerca dos
direitos fundamentais.
115
lei, aqui, compreendida no seu aspecto amplo, porque, muita vez, a concretização de um direito depende da
exaração de uma norma legislativa de categoria inferior, como os Decretos Regulamentadores
116
“Constituição Dirigente...”, p. 64. Não olvidamos que Canotilho, perfilando as incertezas epistêmicas e as
67
Apenas a título de destaque, cumpre referir que, na conformação
legislativa à Constituição, têm importante função os princípios político-
constitucionais, que arquitetam o arcabouço estrutural do Estado,
definindo a sua forma, bem assim como a forma e o regime de Governo,
entre outros aspectos
117
; os princípios jurídico-constitucionais, que são
determinantes a permear todo o contexto constitucional, servindo de
norte para a interpretação das normas instituídas pelo poder constituinte
originário (como, v.g., o princípio da legalidade
118
e o da isonomia); e os
princípios-garantia (como são exemplos os princípios do juiz natural e da
anterioridade da lei).
A atuação ministerial, no âmbito específico de repercussão da
função legiferante do Estado, será detonada pelos vícios de
discricionariedade legislativa ou de excesso de poder legislativo.
119
Acerca da discricionariedade legislativa, leciona Canotilho:
A existir um caso típico de discricionariedade esse só pode
ser quando, no âmbito das imposições constitucionais, o
legislador, na eleição das determinantes autónomas (factores a
ponderar pelo legislador segundo critérios de valoração própria),
não obedece ao conteúdo directivo material das determinantes
heterónomas. Quer dizer: só no caso em que existem
incompreensões teorético-dogmáticas da idéia de Constituição dirigente, propôs uma revisão do conceito
original in Rever ou Romper Com a Constituição Dirigente? Defesa de Um Constitucionalismo Moralmente
Reflexivo, Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política, São Paulo, Revista dos Tribunais, n. 15,
abr.jun. 1996, p. 7-17, aduzindo que “a lei dirigente cede o lugar ao contrato, o espaço nacional alarga-se à
transnacionalização e globalização(...)”, de molde que “se assim for, a constituição dirigente fica ou ficará
menos espessa, menos regulativamente autoritária e menos estatizante, mas a mensagem subsisitirá, agora
enriquecida pela constitucionalização da responsabilidade, isto é, pela garantia das condições sob as quais
podem coexistir as diversas perspectivas de valor, conhecimento e ação.” A remodelação do conceito não
colide, em absoluto, com a linha argumentativa do trabalho, que concebe o dirigismo como uma variante dentro
de um caleidoscópio de recursos vocacionados para a busca incessante da eficácia dos direitos fundamentais,
norte na persecução de condições para a plena realizabilidade daqueles. Por isso, repelimos a compreensão das
normas programáticas como regras de conteúdo meramente enunciativo.
117
na Magna Carta de 1988, artigos 1º a 4º.
118
Oportuno registrar, aqui, a polêmica acerca da usurpação da função legislativa pelo executivo, editando
medidas provisórias em matéria tributária, sem a atenção ao princípio jurídico-constitucional em comento. Veja-
se a respeito do tema: ÁVILA, Humberto Bergmann. Medida Provisória na Constituição de 1988, Porto
Alegre: SAFE, 1ª ed., 1997, em especial p. 126-7. Contudo, a posição do STF é no sentido contrário.
Exemplificativamente. RE-AgR 286292 / PR – PARANÁ AG.REG.NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO
Relator(a): Min. GILMAR MENDES Julgamento: 06/08/2002, Órgão Julgador: Segunda Turma. Publicação:
DJ 23-08-2002 PP-00105: Recurso Extraordinário. Agravo Regimental. 2. Programa de Integração Social e de
Formação do Patrimônio do Servidor Público - PIS/PASEP. Lei Complementar n.º 7/70. Recepção pelo art. 239,
da Constituição Federal. 3. Medida provisória. Instrumento idôneo para a instituição e majoração de tributos.
Possibilidade de reedição no prazo de trinta dias. Anterioridade nonagesimal: contagem a partir da primeira
edição da medida provisória. 4. Agravo regimental desprovido.
119
ou desvios do poder legislativo como prefere Canotilho, identificáveis por ações legiferantes emanadas
para o atingimento de fins não plasmados na Constituição.
68
determinantes heterónomas e autónomas e aquelas "comandem"
ou "dirijam" positivo-materialmente estas últimas se poderá falar
de discricionariedade legislativa. Nestas hipóteses será então
possível falar-se de um controlo dos actos legislativos que diz
respeito não apenas à correspondência objectiva entre lei e
normas constitucionais, mas também à adequação teleológica, isto
é, conformidade das leis com os fins expressos na constituição.
120
Destarte, em havendo espaço para determinantes autônomas, se na
eleição destas o legislador infringir as determinantes heterônomas
(princípios político e jurídico constitucionais e princípios-garantia), a
atividade legiferante estará viciada, propiciando a atuação ministerial,
como agente-assegurador do Estado democrático de direito.
Este poder de iniciativa para a defesa da efetividade dos direitos
fundamentais, na sua dimensão jurídico-objetiva, é o diferencial da função
ministerial, em contrapartida à judicial, colorida pela inércia como primado
principiológico.
Ainda dimensionando a importância do Órgão, diga-se que estes
valores de que ele se ocupa são tão caros à sociedade que sua defesa não
poderia ser reservada, unicamente, ao bel prazer do particular que, ao
sabor das vicissitudes do processo, pode dela desistir ou prosseguir.
Ademais, este quadro, na sociedade brasileira hodierna, está
hipertrofiado, tendo em vista que as vítimas da pseudodemocracia ainda
vigorante não têm muito tempo para se preocupar, senão com a sua
própria sobrevivência, deixando de lado, no mais das vezes, a luta pelos
demais direitos que lhes assistem.
Neste passo, atualíssimos os ensinamentos de Rudolf Von Ihering:
(...) a nação nada é senão a soma dos indivíduos que a
compõem; sente, pensa e age da mesma forma que sentem,
pensam e agem os indivíduos. Quando o sentimento de justiça do
indivíduo se mostra embotado, acovardado, apático nas relações
de direito privado; quando, face às leis injustas ou às instituições
viciosas não encontra campo para realizar-se, para desenvolver-
se livre e vigorosamente; quando é perseguido nos momentos em
que mais precisa de apoio e estímulo; quando em virtude de tal
estado de coisas se habitua a tolerar a injustiça e a ver nela um
mal inevitável --- sempre que prevaleçam essas condições,
dificilmente haverá quem acredite que esse sentimento de justiça
subjugado, atrofiado, apático, possa subitamente virilizar-se
através de uma ação enérgica quando colocado diante de uma
lesão de direito que não atinja o indivíduo, mas toda a nação, tal
120
“Constituição Dirigente...”, p. 264
69
como um atentado à sua liberdade política, uma violação da
Constituição ou a subversão total da mesma, um ataque do
inimigo externo. Como esperar que um homem que nem mesmo
na defesa do seu próprio direito se mostra desassombrado, esteja
disposto empenhar a vida e a propriedade em prol da
comunidade? Quando o indivíduo não demonstra compreensão
pela lesão que sofre no plano ideal, na sua honra e na sua
personalidade, sempre que sacrifica o seu bom direito por covardia
ou comodismo, quando esteja habituado a mediar as questões de
direito apenas pelo padrão do interesse material, nesse caso não é
de se supor que use outro padrão ou entretenha sentimento
diferente quando o direito e a honra da nação estejam em
jogo.(...) Ninguém se atreverá a esbulhar dos seus valores
supremos um povo em cujo seio se generalizou o hábito de cada
um defender denotadamente o seu direito, mesmo nas menores
coisas.
121
Dessarte, se o indivíduo, no mais das vezes, desiste de lutar por
seus direitos por questões sócio-econômico-culturais, o abandono
voluntário da proteção imediata do seu direito [esfera subjetiva dos
direitos fundamentais] não pode, via reflexa, desguarnecer de proteção a
dimensão jurídico-objetiva destes mesmos direitos, pela falsa impressão
de impunidade que a inércia do indivíduo possa causar àqueles que
depuseram contra o Estado democrático de direito, encorajando-os a
novamente investir contra os direitos fundamentais e impedir a transição
da Democracia formal para a material.
Daí a essencialidade do Ministério Público, Órgão de ação para a
conformação do agir dos Poderes Constituídos de acordo e nos limites da
Carta Magna
122
.
Assim, o interesse na implementação efetiva do Estado democrático
de direito transpõe a orla privada do indivíduo diretamente lesado, para
atingir um sem-número de interessados. Neste passo, o órgão ministerial
age como substituto dos titulares do poder, defendendo um interesse
difusamente amalgmado na sociedade, contemplado na esfera objetiva
dos direitos fundamentais.
Por isso, quando os direitos fundamentais coletivizam-se ainda que
apenas acidentalmente
123
, a possibilidade de tutela coletiva destes
121
A luta pelo Direito. Rio de Janeiro: Liber Juris, 1987, p. 86/7
122
Sem prejuízo da vinculação mediata dos particulares aos direitos fundamentais, o que será abordado quanto
do exame da ratio essendi da legitimidade ministerial na seara consumerista
123
Ou seja, não são essencialmente coletivos, diferenciação que se verá com mais vagar, alhures
70
interesses individuais homogêneos despontará como instrumento concreto
de acesso material à jurisdição, protagonizador da isonomia, sempre
que atender, concomitantemente, a defesa mediata e parcial da orla
jurídica dos diretamente lesados e a defesa direta, precípua do interesse
social, difuso da coletividade
124
--- cujo locus é a dimensão objetiva dos
direitos fundamentais em causa -- de ver cumpridos os direitos e as
garantias previstos no Documento Maior.
124
o que nos remete à densificação do conceito de povo, à luz do ideário hegeliano, como comunidade ética que
se submete ao movimento dialético histórico infinito. Neste contexto, não se circunscreve aos titulares da
soberania do Estado, mas a todos aqueles que componham a sua compleição histórica. Sob este viés, todos os
membros da comunidade, politicamente organizada em estamentos, onde dar-se-ão as sucessivas mediações da
vontade, são sujeitos de direitos e deveres e, portanto, credores das mesmas a ações estatais e comunitárias para
a sua implementação, proteção e promoção. Sobre o assunto, remetemos o leitor ao quinto capítulo.
3 DA DEFESA COLETIVA DOS INTERESSES INDIVIDUAIS
HOMOGÊNEOS
3.1 DA RACIONALIDADE DO PROCESSO COLETIVO
O processo coletivo nasce como síntese da constatação científica da
insuficiência do processo civil calcado no individualismo para dar voz aos
conflitos da sociedade moderna, que não se cingem aos tradicionais
modelos, pautando-se pela transindividualidade.
Na superação do paradigma, hão de ser preservados na nova
estrutura os elementos constitutivos da antanha moldura, com os
temperamentos e as inovações consentâneos à novel
1
e efetiva
instrumentalização, corolário natural do movimento dialético.
Assim, a legitimatio ad causam, a coisa julgada (e também a
litispendência), bem como competência, enquanto institutos
estruturantes da ciência processual, devem amoldar-se às novas
exigências, desnudando-se de preconceitos, assumindo novas
especificidades.
O nosso estudo, como já referido, limita-se ao exame da primeira
categoria e em relação a um dos atores processuais concorrentemente
legitimados para a defesa plural, muito embora se possa pontuar
esporadicamente alguns tópicos das demais estirpes conformadoras antes
citadas, no intuito de exponenciar a abordagem que se incursiona.
A fisionomia instrumental do processo exige eficiência e
racionalidade em seu manejo. No processo coletivo, que encampa a
defesa dos interesses essencialmente coletivos (coletivos restrito senso e
difusos), a par da defesa coletiva dos interesses acidentalmente coletivos
--- os denominados interesses individuais homogêneos --- tal cenário
hipertrofia-se, uma vez que a penetração objetivo-subjetiva do conflito no
1
Digno de registro que a lesão a direitos transindividuais não é nova, sendo relativamente jovem a tentativa de
sistematização dos instrumentos processuais adequados, o que tem ocorrido de forma constante desde a década
de 1970, consoante se colhe da leitura da obra de MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Ações Coletivas no
Direito Comparado e Nacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, passim.
72
tecido social é deveras relevante.
Ademais, porquanto processo não pode sufocar o direito material,
não desponta possível imaginar que pessoas em posição equivalentes
recebam tratamento jurídico divergente, assumindo o processo caráter
determinante do malferimento da isonomia constitucional.
Dados os fenômenos da globalização e da massificação das relações
sociais, os interesses acidentalmente coletivos representam a
conformação mais comum da transindividualidade
2
: este viés aponta para
a hodierna indeclinabilidade da construção de ferramentas eficientes para
colmatar o crescente plexo das lesões impostas à multifacetária orla
jurídico-subjetiva dos integrantes do tecido social (enquanto
consumidores, contribuintes, aposentados, entre outras fisionomias).
Isto posto, sob a ótica dos individuais homogêneos, foi cunhado
para atender demandas massivas, que tornam a atividade jurisdicional
atômico-burocrática, refém de circunstâncias que comprometem a sua
qualidade; o processo coletivo tem por escopo racionalizar a ignição do
agir do Estado-Juiz, otimizando os meios para uma dicção coesa, útil e
econômica.
Godinho
3
traz à baila escólio de Antonio Gidi, o qual
afirma que o acesso à justiça é um dos objetivos da tutela
coletiva de direitos e, ilustrando sua assertiva, informa que foi
observado nos Estados Unidos que, se em determinado fato lesivo
envolvendo quarenta milhões de membros do grupo lesado,
apenas dez por cento resolvessem ir pessoalmente a juízo, ainda
que cada audiência durasse apenas dez minutos, seriam
necessários cem anos para que todos casos fossem decididos, o
que demonstra que o processo coletivo enseja economia
processual e possibilita maior acesso à justiça.
De outra banda, par e passo com a racionalização, tem por norte
suplantar as barreiras do acesso material à jurisdição, equacionando
principalmente as dificuldades oriundas dos entraves sócio-culturais
4
,
2
acidente da coletivização
3
GODINHO, Robson Renault. O Ministério Público e a Tutela Jurisdicional Coletiva dos Direitos dos
Idosos. Disponível na internet: http://jus2.uol.com.br/doutrina. Acesso em: 07/06/2006.., p. 05
4
Uma vez que os percalços das barreiras econômica e técnica, no Brasil, já se encontram parcialmente mitigados
pelos institutos da assistência jurídica e judiciária gratuitas, sem que se olvide a absurdidade ainda vigente no
Estado mais rico e populoso deste País, que ainda não conta com Defensoria Pública, sendo a assistência
jurídica aos carentes prestada pela Procuradoria do Estado, mas insatisfatoriamente, dada a sobreposição de
atribuições que assola os detentores do encargo.
73
ainda gigantescas em nosso País, sendo que a presente escritura não
contempla a análise sociológica do tema, que vai aqui ponderado como
uma constatação empírica.
Neste diapasão, a tutela coletiva verbaliza o equilíbrio processual
das partes, vez que
(...) a possibilidade dos interesses e direitos lesados serem
defendidos concomitantemente faz com que a correlação de forças
entre os litigantes seja redimensionada em benefício da parte
individualmente fraca, mas razoavelmente forte quando agrupada,
levando por terra, assim, a política maquiavélica da divisão para
reinar.
5
Laborar pela compreensão da tutela coletiva como uma necessidade
prático-corolária da neofisionomia da sociedade é contribuir para o
resgate da credibilidade do Judiciário, vilipendiada pela insegurança
jurídica que os múltiplos, divergentes e irrazoavelmente demorados
pronunciamentos sobre um mesmo tema têm gerado no seio da
comunidade. O processo coletivo significa, em ultima ratio, a válvula de
escape para a reconquista do reconhecimento popular da legitimidade do
Estado-Juiz na vida contemporânea.
3.2 DO CÓDIGO MODELO DE PROCESSO COLETIVO IBERO-
AMERICANO
Em breves linhas, cabe pontuar que a sistematização do estudo
acerca do ferramental adequado à defesa coletiva tem cunhado a edição
de documentos plurais que identificam a comunhão de interesses na
concepção discursiva de recomendações ou modelos que possam
contribuir para a implementação da tutela coletiva, para a sedimentação
dos instrumentos já disponíveis ou para a reflexão acerca da realidade
nacional de cada um dos partícipes deste processo dialógico.
Neste diapasão, as diretivas da União Européia e o Código-Modelo
de Processo Coletivo Ibero-Americano.
5
MENDES, 2002, p.38
74
Na jornada uruguaia
6
no Instituto Ibero-Americano
7
, foi apresentado
o projeto do instrumento predito, que passou por duas revisões, tendo
sido aprovado em Caracas, na Venezuela, no mês de outubro de 2004.
Referido documento (Anexo A) encontra-se estruturado em sete
capítulos, a saber: I – Disposições gerais; II – Dos provimentos
jurisdicionais; III – Dos processos coletivos em geral; IV – Da ação
coletiva para a defesa de interesses ou direitos individuais homogêneos; V
– Da conexão, da litispendência e da coisa julgada; VI – Da ação coletiva
passiva; e VII – Disposições finais.
Calha referir a destacada importância que o objeto do presente
estudo recebeu à luz do epigrafado documento, o que só recrudesce a
responsabilidade investigativa desta ensaísta.
Discorrendo sobre a importância do Código Modelo em tela, Mendes
apresenta lapidar síntese, que se passa a reproduzir, evitando fatigante
tautologia, verbis:
A proposição de Código Modelo para Processos Coletivos é
de salutar importância, não apenas para cumprir o que seria o
objetivo de qualquer Código-Tipo, ou seja, a busca da unificação e
harmonização de normas entre países que possuem razoáveis
semelhanças em termos de sistemas jurídicos, bem como o
fomento de modificações que estejam em sintonia com as
necessidades de inovações segundo o consenso ou a maioria da
doutrina destas nações. A idéia de Código Modelo contribuirá, por
certo, para romper com a ausência ou com o caráter secundário e
acessório em termos de normas voltadas para o processo coletivo
em geral. Poucos ou quase inexistentes são os países que
possuem, no seu respectivo Código de Processo Civil ou em
estatutos legais desvinculados de certas matérias específicas,
regras gerais para o processo coletivo. Os Estados Unidos, desde
1938, e, mais recentemente, o Canadá, a Austrália, Portugal e
Inglaterra compõem, junto com poucos outros países, a exceção.
No Brasil, embora haja previsão legal no sentido de aplicar as
normas previstas no Código de Defesa do Consumidor para todas
as ações civis públicas, há vários julgados que acabam firmando
posição em torno da incidência restrita às relações de consumo
para as regras ali previstas. Na própria União Européia, as
diretrizes pertinentes às ações coletivas associativas estão
relacionadas a determinadas matérias específicas, como o meio
ambiente ou o direito dos consumidores. No entanto, é chegada a
hora das normas do processo coletivo conquistarem a sua alforria
em relação ao direito material, alcançando posição de destaque
nos ordenamentos jurídicos ibero-americanos, fundamentais que
6
No ano de 2002
7
Criado em 1957
75
são para o incremento do acesso à justiça, da economia processual
e judicial, para a garantia do princípio da igualdade e da segurança
jurídica, bem como para a efetivação do equilíbrio entre as partes.
8
No que concerne ao capítulo IV, relativo à ação coletiva para a
defesa de interesses ou direitos individuais homogêneos, insta repisar que
foi expressa e genericamente admitida a legitimidade ministerial ativa
9
,
ao lado de diversos co-legitimados concorrentes, donde desponta
destacar a possibilidade da propositura da demanda por um indivíduo
singular, o que representa sem qualquer ressaibo de dúvidas, um avanço
consonante com o pluralismo inerente aos regimes democrático.
3.3 DA TUTELA COLETIVA NO BRASIL – ESCORÇO HISTÓRICO
No Brasil, em apertada síntese histórica
10
, a tutela coletiva teve por
termo a quo a Lei 1.134/50, que conferiu legitimidade ativa para as
associações das classes que enumera representarem os interesses de
seus associados, individual ou coletivamente. Na mesma senda, a Lei
4215/63, atribuindo similar legitimidade para a OAB na representação dos
interesses da categoria no exercício profissional. Ao depois, a Constituição
de 1934 fez inserir a ação popular, suprimida pela Constituição de 1937,
retomada em 1946, mantendo-se em todas a Cartas Constitucionais, a
partir de então. Contudo, a exteriorização dos efeitos da ação popular
constitucional só se fizeram sentir com a edição da Lei 4.717/65, que deu
corpo à sua regulamentação. Os novos ventos democratizantes
estenderam o acervo legislativo à disposição da tutela coletiva. Advieram
8
O Código Modelo de Processos Coletivos do Instituto Ibero-Americano de Direito Processual, disponível na
internet em <www.mundojuridico.adv.br>
, acesso em 09/06/2006, p. 3
9
Art. 3o. Legitimação ativa. São legitimados concorrentemente à ação coletiva: I – qualquer pessoa física, para a
defesa dos interesses ou direitos difusos de que seja titular um grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas por
circunstâncias de fato; II – o membro do grupo, categoria ou classe, para a defesa dos interesses ou direitos
difusos de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma
relação jurídica base e para a defesa de interesses ou direitos individuais homogêneos; III - o Ministério Público,
o Defensor do Povo e a Defensoria Pública; IV – as pessoas jurídicas de direito público interno; V - as entidades
e órgãos da Administração Pública, direta ou indireta, ainda que sem personalidade jurídica, especificamente
destinados à defesa dos interesses e direitos protegidos por este código; VI – as entidades sindicais, para a defesa
dos interesses e direitos da categoria; VII - as associações legalmente constituídas há pelo menos um ano e que
incluam entre seus fins institucionais a defesa dos interesses e direitos protegidos neste código, dispensada a
autorização assemblar; VIII - os partidos políticos, para a defesa de direitos e interesses ligados a seus fins
institucionais.
76
a Lei 6938/81, que disciplina a política nacional do meio ambiente e a Lei
Complementar 40/81, cognominada como lei orgânica do Ministério
Público, conferindo ao Órgão legitimidade para promover a ação de
responsabilidade por danos causados ao meio ambiente, inaugurando a
acepção da ação civil pública, em seu artigo 3º, VIII, legitimando o
Órgão-Agente para a sua propositura, nos termos da lei. A eficácia contida
do dispositivo aguçou juristas de escol à envergadura de um anteprojeto
de lei para a regulamentação desta novel modalidade. Comissão
capitaneada pela Professora Ada Grinover logrou apresentar e aprovar o
anteprojeto que foi submetido ao processo legislativo, culminando com a
edição da Lei 7.347, de 24 de julho de 1985, com alguns vetos, destaque
àquele que restringiu o cabimento da ação aos interesses por ela
expressamente mencionados, numerus clausus
11
. A Constituição de 1988
enfeixou significativa relevância social à tutela coletiva, podendo
mencionar-se o artigo 5º, XXI, LXXIII, LXIX, o artigo 8º e, no propósito do
tema que é objeto do presente estudo, o artigo 127, caput, e o artigo
129, III, que elevou a ação civil pública à categoria constitucional. Em
1989, três diplomas: as Leis 7797, 7853 e 7913, que dispõem,
respectivamente: sobre o fundo nacional de maio ambiente; sobre o apoio
às pessoas portadoras de deficiência, atribuindo ao Ministério Público (ao
lado de diversos co-legitimados), legitimidade para a propositura de ação
civil pública para a defesa dos interesses coletivos e difusos das pessoas
com necessidades especiais antes mencionadas; sobre a legitimidade
ministerial para o ajuizamento de ação civil pública para aplacar os
prejuízos aos titulares de valores mobiliários e aos investidores do
mercado. Em 1990 foi editado o Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei
8069/90, cujo artigo 210 novamente legitima o Ministério Público (e os
demais legitimados concorrentes) à defesa dos interesses individuais
homogêneos, difusos e coletivos da criança e do adolescente. No mesmo
10
MENDES, “Ações Coletivas no Direito...”,p. 191/199
11
A limitação foi superada com a edição do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8078/90), que ampliou o
espectro de incidência da Ação Civil Pública para qualquer outro interesse difuso ou coletivo, dando nova
redação ao artigo 1º, da Lei 7.347/85
77
ano, o Código de Defesa do Consumidor, que passou a ser o referencial
para o processo coletivo brasileiro, vez que seu regramento processual
não se restringe à órbita consumerista, mas alcança qualquer outro
interesse individual homogêneo, coletivo ou difuso posto em juízo,
alterando expressamente o artigo 21 da Lei 7347/85
12
, bem como
estrutura os pontos fundantes deste ramo específico da processualística,
como a competência, a legitimação para as fases cognitiva e executória,
coisa julgada e seus efeitos, a litispendência, definindo, outrossim, em
adotando magistral estudo de Barbosa Moreira
13
, a classificação dos
interesses transindividuais. Em complemento: Leis federais do Ministério
Público (Lei 8625/93 e Lei Complementar 75/93); Lei de Improbidade
Administrativa (Lei 8884/94); Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei
Complementar 101/2000); Estatuto das Cidades (Lei 10257/2001) e
Estatuto do Idoso (Lei 10.741/2003).
Consoante se pode denotar, a Lei da Ação Civil Pública representou
o marco inicial da virada de Copérnico da tutela jurisdicional, que se
abriu para a "vocação coletiva do processo contemporâneo".
14
O anteprojeto de código brasileiro de processo coletivo (Anexo B)
adotou, em linhas gerais, os ditames do Código Modelo supra-referido.
Contudo, inovou especialmente ao impor ao Estado-Juiz o dever de
instar o Ministério Público e, dentro dos limites do razoável, também os
concorrentemente legitimados, em caso da constatação do ingresso de
ações individuais repetitivas
15
, fisionomia que deixa entrever o feixe
axiológico que prioriza o manejo da defesa coletiva como critério de
acesso material à jurisdição.
Outrossim, não limitou os remédios a serviço da tutela coletiva,
12
Conforme artigo 117 do CDC
13
MENDES, “Ações Coletivas no Direito...”, p. 192
14
ARRUDA ALVIM. Tratado de Direito Processual Civil. Vol. 2. São Paulo: RT, 1996, p. 103.
15
Art. 10 Comunicação sobre processos repetitivos O juiz, tendo conhecimento da existência de diversos
processos individuais correndo contra o mesmo demandado, com idêntico fundamento, comunicará o fato ao
Ministério Público e, na medida do possível, a outros legitimados (art. 9
o
), a fim de que proponham, querendo,
ação coletiva. Parágrafo único – Caso o Ministério Público não promova a ação coletiva, no prazo de 90
(noventa) dias, fará a remessa do expediente recebido ao órgão com atribuição para a homologação ou rejeição
da promoção de arquivamento do inquérito civil, para que, do mesmo modo, delibere em relação à propositura
78
consoante se colhe da dicção de seu artigo 1º:
Da tutela jurisdicional coletiva para a defesa dos direitos e
interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos são
admissíveis, além das previstas neste Código, todas as espécies de
ações e provimentos capazes de propiciar sua adequada e efetiva
tutela.
Do arcabouço legislativo antes anunciado, analisaremos, no contexto
deste capítulo, alguns tópicos da Lei de Ação Civil Pública, instrumento de
mais largo alcance de que dispõe o Órgão-Agente para a proteção
mediata da dimensão subjetiva dos direitos fundamentais -- e, por
conseguinte, dos direitos individuais homogêneos, enquanto espécie.
3.4 DA LEGITIMIDADE MINISTERIAL NA DEFESA DOS DIREITOS
INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS
3.4.1 Da Legitimação Ordinária. Crítica À Doutrina Eclética Da Ação
Consoante Candiota Ferrara:
específica posição de um sujeito relativamente a
determinados bens e interesses, mediante a qual sua declaração
de vontade deve ser operante sobre estes, ou, em outras palavras,
uma particular relação do sujeito com o objeto do negócio ou de
outro ato jurídico.
16
Donaldo Armelin a conceitua como sendo a:
idoneidade do sujeito para a prática de determinado ato ou
para suportar seus efeitos, emergente em regra da titularidade de
uma relação jurídica ou de uma situação de fato com efeitos
jurígenos, asseguradora de plena eficácia desse mesmo ato, e,
pois, da responsabilidade pelos seus efeitos, relativamente àqueles
atingidos por estes.
17
Chiovenda, com seu magistral poder de síntese, retratado por Celso
Neves, visualiza a legitimação como a “identidade do autor e do réu com
as pessoas a favor e contra quem opera a vontade da lei”.
18
De diferentes formas, todos os conceitos mencionados explicitam
que a legitimidade para agir advém de uma relação prodômica à
processual, relação esta de cunho material.
Vejamos.
ou não da ação coletiva.
16
apud Armelin, Donaldo. Legitimidade para Agir no Direito Processual Brasileiro. São Paulo: Revista de
Tribunais, 1979, p. 11
17
ob. cit. p. 13
79
Quando Candiota Ferrara afirma que a legitimidade é uma
particular relação do sujeito com o objeto do negócio ou de outro ato
jurídico, está a reconhecer que a relação jurídica de direito material é o
nascedouro da legitimidade ordinária.
Donaldo Armelin explicitamente admite que a legitimidade é a
idoneidade do sujeito para a prática de determinado ato ou para suportar
seus efeitos, emergente em regra
19
da titularidade de uma relação jurídica
ou de uma situação de fato com efeitos jurígenos. Pois bem. Ao fazê-lo,
estabelece uma ligação indissociável entre a legitimidade e a relação
jurídica de direito material, concebendo-a como fonte primária daquela.
Chiovenda explicita que a legitimidade é a identidade da pessoa do
autor com a pessoa favorecida pela lei, e a da pessoa do réu com a
pessoa obrigada. Ao sinalar a correlação da legitimidade com a pessoa
favorecida pela lei, está a referir-se, s.m.j., à noção de direito subjetivo,
concebido como a vantagem decorrente da incidência de uma norma
jurídica sobre um suporte fático tido como suficiente
20
.
Estas nuances estão a denotar que a verificação da legitimidade
para agir envolve pesquisa acerca da relação jurídica material,
encerrando, indubitavelmente, análise meritória, ainda que inexauriente.
Contudo, esta constatação, que a nós floresce com clareza solar,
não inibiu os seguidores de Liebman de perfilarem a legitimidade, ao lado
da possibilidade jurídica
21
do pedido e do interesse de agir, como
condições da ação de direito processual(!), definindo-as à parte do
mérito, esquecendo-se que, ontologicamente, são partes integrantes
deste.
Enrico Tulio Liebman, apreciando a legitimidade, preconiza:
18
Neves, Celso. Estrutura Fundamental do Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 128
19
A expressão condicional “em regra” quis excepcionar a legitimidade extraordinária (espécie da qual nos
ocuparemos alhures), que não exsurge da relação jurídica de direito material, mas da lei, que permite a terceiro,
em situações especiais, o ingresso a juízo para, em nome próprio, defender interesse alheio.
20
Conforme a conhecida lição de Pontes de Miranda, Tratado das Ações. Tomo I. Campinas: Bookseller,
1998, p. 47 e seguintes.
21
esta excluída por Liebman dentre a condições da ação, desde a terceira edição de seu Manual, mas que,
inobstante, é mantida pela doutrina brasileira, até os dias hodiernos, com a sua fisionomia inicial.
80
La titolaritá (attiva e passiva) dell’azione. Il problema della
legittimazione consiste nell’individuare la persona cui spetta
l’interesse ad agire (e quindi l’azione) e la persona nei cui confronti
esso spetta; in altri termi, esso sorge dalla distinzione tra il quesito
sull’esistenza oggetiva dell’interesse ad agire ed il quesito sulla sua
appartenenza soggetiva.
22
Na seqüência de seu raciocínio, assim a concebe: “(...) La
legittimazione, come requisito dell’azione, é una condizione del
provvedimento di merito sulla domanda(...)”.
23
Alfredo Buzaid, discípulo do jurista italiano, introduziu no sistema
processual civil brasileiro, via reforma de 1973, a doutrina eclética da
ação.
A teoria eclética da ação constitui-se numa proposta conciliadora
das teorias do direito abstrato de agir e a do direito concreto de ação,
antecedidas, ainda, pela teoria civilista.
Analisamo-las, em breve.
Na concepção civilista, Savigny, fulcrando-se na definição romana,
exarada por Celso -- a ação nada mais é que o direito de pedir em juízo o
que nos é devido --, preconiza a ação como o próprio direito material,
numa visão dinâmica, a reagir contra a ameaça ou a violação.
24
Assim, a ação (processual) -- a visão da teoria civilista -- e o direito
material estariam irremediavelmente ligados; não havendo direito,
inexistiria a ação (processual), o que ensejou volumosas críticas a Savigny
e seus seguidores.
Quando ao aspecto, Fábio Luiz Gomes:
Na verdade, o conceito de Aqueu atribuído a Celso não
merece as críticas ainda hoje lançadas, já que elaborado para a
aplicação no campo do direito material, tão-somente. Devem elas
ser desviadas aos civilistas, por tentarem usar tal conceito para
explicar a ação processual.
25
A teoria do direito concreto de ação, preconizada por Wach,
partindo dos estudos de Windscheid, afirma que o direito de ação não se
confunde com o direito material. Neste contexto, prossegue o comentador
22
apud NEVES, Celso. Estrutura Fundamental do Processo Civil. Forense, RJ, 1995, 1ª ed., p. 122
23
idem, p. 123
24
SILVA, Ovídio A. Baptista; GOMES, Fábio Luiz. Teoria Geral do Processo Civil. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1997, p. 95.
81
em perspectiva:
Para Wach, entretanto, o direito de ação, embora não
nascendo junto com o direito subjetivo material, dele há de
decorrer, sempre e necessariamente, à exceção da hipótese da
ação declaratória negativa. (...) Na verdade, à exceção da
declaratória negativa, condicionava Wach a ação ao direito
subjetivo material, que só poderia conduzir a uma sentença
favorável.
26
Assim, só haveria exercício do direito de ação, se a sentença fosse
favorável, porque tal direito só compete aos titulares de interesses reais,
cuja existência foi reconhecida na sentença de procedência do pedido.
A teoria do direito abstrato de agir, -- cronologicamente antecedente
à do direito concreto de ação, ensejando o seu surgimento, como proposta
crítica -- inicializada por Degenkolb e Plósz e sedimentada pelo trabalho
de Büllow, que enaltece o processo como “(...) uma relação jurídica
dinâmica, de natureza pública, que se desenvolve gradualmente, não
decorrendo exclusivamente do direito subjetivo alegado pelo autor”
27
, vê o
direito de ação - conseqüência inafastável do monopólio da jurisdição
pelo Estado - como:
o direito subjetivo público que se exerce contra o Estado e
em razão do qual sempre se pode obrigar o réu a comparecer em
juízo. É o direito de agir, decorrente da própria personalidade,
nada tendo em comum com o direito privado argüido pelo autor;
pode ser concebido com abstração de qualquer outro direito(...)
28
Em conseqüência, para propor ou contestar a ação (processual) é
necessário ter-se interesse e legitimidade (art. 3º), e a ausência de
legitimidade (assim como o interesse ou a possibilidade jurídica do
pedido) enseja carência da ação de direito processual, ex vi do art. 267,
VI, CPC.
Celso Agrícola Barbi, contudo, ao comentar o dispositivo retro, sinala
que a interpretação sistemática do Codex revela discrepâncias com a
teoria de Liebman:
Pode parecer que, com esses dispositivos, tenha a lei
realmente adotado integralmente a teoria da ação do ilustre
mestre italiano. Todavia, numerosas disposições do Código
25
idem., p. 100
26
idem, p. 104
27
idem, p. 109
28
ibidem
82
contrariam essa conclusão. Realmente se a ação, segundo essa
teria, é um direito contra o Estado, para que este se manifeste
sobre o mérito da causa, ela caberá a qualquer pessoa que se
pretenda titular de um determinado direito, ainda que este direito
não exista na realidade.
No entanto, ao tratar dos procedimentos especiais, o
Código é expresso em só conceder ação àqueles que realmente
tenham o direito que alegam na inicial. Assim é que o art. 914
concede ação de prestação de contas “a quem tiver o direito de
exigi-las ou a obrigação de prestá-las”; o art. 926 concede ação de
manutenção e de reintegração de posse ao “possuidor direito ou
indireto, que tenha justo receio de ser molestado na posse”; o art.
934 dá ação de nunciação de obra nova “ao proprietário ou
possuidor”, “ao condômino” etc.
Em todos esses casos, verifica-se que a lei confere ação a
quem tem um direito, e não a quem simplesmente se afirme
titular de um direito.
29
Na doutrina, seus seguidores incorrem em contradições incontáveis.
Cite-se, exemplificativamente, Donaldo Armelin, que, na sua
excelente monografia, apesar de conceituar legitimidade como visto,
supra, relacionando-a com a relação jurídica material, define o tríduo
(legitimidade, interesse e possibilidade jurídica do pedido) como “(...)
condições para a admissibilidade de decisão sobre o mérito, escandindo-o
deste.”
30
Mas um pouco antes afirmara: “(...) a situação legitimante (da
legitimidade para agir) não pode se desprender do direito questionado,
cujo reconhecimento ou cumprimento se postula judicialmente.”
31
Tamanha a preocupação do autor em traçar um hiato entre a
legitimidade e o mérito
32
, que estudou o tema em item específico, para
concentrar as idéias lançadas difusamente, no decorrer de toda a sua
obra.
Assim principia seu estudo:
A legitimatio ad causam como mera condição de exercício
regular da ação, e, pois, como condição de apreciação do mérito
da ação pelo Poder Judicante, não pode se confundir com tal
mérito (...) o que logicamente a coloca na situação de um prius
em relação a este, gerando, de conseguinte, uma impossibilidade
de confusão.
33
Ao depois, confessa:
29
Comentários ao Código de Processo Civil. 8ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1993, p. 20, vol. I
30
Legitimidade para Agir no Direito Processual Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1979, p. 105
31
ob. cit., p. 97
32
não nos ocuparemos, aqui, com a conceituação de mérito, dadas as limitações metodológicas do estudo.
83
(...) A circunstância de a legitimidade ser apreciada bem
antes do mérito pode ser ocasional e depende da nitidez do seu
destaque deste e da robustez da prova produzida (...) há ocasiões
em que a legitimidade questionada está de tal modo vinculada à
prova a ser produzida, que somente após o encerramento da
dilação probatória poderá ser constatada, do que resulta dever a
legitimidade ser apreciada por ocasião da sentença que decidir o
mérito.(...)
34
Evidente a contradição!
Se o juiz analisa a prova para aferir a legitimidade, está a analisar
os fatos que subsidiam o pedido formulado em juízo, ingressando,
ineludivelmente, na órbita da relação jurídica travada entre as partes e,
portanto, no mérito da contenda.
Se ausência de legitimidade há, está afeta à ação de direito
material, nunca à de direito processual, porque abstrata e incondicionada,
como corolário da monopolização da solução dos litígios pelo Estado.
Nesse sentido, precisas as palavras de Ovídio Baptista:
Quando o juiz declara inexistente uma das “condições da
ação”, ele está em verdade declarando a inexistência de uma
pretensão acionável do autor contra o réu, estando, pois, a decidir
a respeito da pretensão posta em causa pelo autor, para declarar
que o agir deste contra o réu -- não contra o Estado -- é
improcedente. E tal sentença é sentença de mérito. A suposição de
que a rejeição da demanda por falta de alguma “condição da ação”
não constitua decisão sobre a lide, não fazendo coisa julgada e não
impedindo a reproposição da mesma ação, agora pelo verdadeiro
legitimado ou contra o réu verdadeiro, parte do falso pressuposto
de que a nova ação proposta por outra pessoa, ou pela mesma
que propusera a primeira, agora contra outrem, seria a mesma
ação que se frustrara no primeiro processo.
(...)
Ora, no segundo processo, nem sob o ponto de vista
processual, e muito menos em relação ao direito material, a ação
seria a mesma. Mudando-se as partes, transforma-se a demanda.
Afirmando o juiz que o autor não tem legítimo interesse para a
causa, sem dúvida estará afirmando que o conflito de interesses
por ele descrito na petição inicial não merece que o Estado lhe
outorgue proteção, o que significa declarar que tal conflito é
irrelevante para o direito. E, neste caso, igualmente lhe falta a
ação de direito material, ou esta seria ilegítima por falta de
interesse. Não a ação processual que jamais será ilegítima por
falta de interesse.
3536
A ação processual consiste no exercício do direito público subjetivo
33
ob. cit., p. 112-3
34
ob. cit., p. 114
35
Curso de Processo Civil. 3ª ed. Porto alegre: SAFE, 1996, p. 88-9
36
porque, acrescentamos nós, é necessário e útil que o Estado atue para resolver o conflito, desde o banimento
da resolução privada da lide.
84
de provocar a jurisdição para resolução do conflito de interesses,
qualificado por uma pretensão resistida -- conceito carneluttiano de lide --
ou para chancelar direitos que, sem a intervenção do Estado-Juiz, não
podem ser reconhecidos validamente.
A ação processual é imanente ao Estado democrático de direito,
porque instrumento garantidor dos direitos constitucionalmente
assegurados. É conseqüência inafastável do monopólio da jurisdição pelo
Estado.
Sinala Maria Berenice Dias:
(...) Desde o estabelecimento da ordem jurídica, é
impensável a existência de um Estado em que não haja o controle
estatal para o asseguramento dos interesses das partes e a
conseqüente preservação pacífica do convívio social. Pela vedação
da autotutela, resta ao Estado o dever de aplicação do direito, e a
impossibilidade de perseguição pessoal dos direitos, pretensões e
ações outorgadas pela lei.
Surge, desta forma, o direito público subjetivo à tutela
jurídica, que tem como sujeito passivo o Estado, com o correlato
dever de outorgar a prestação jurisdicional. No momento em que
se estabelece a vedação, surge a exigibilidade à tutela jurídica e a
obrigação contraposta de prestar justiça. A pretensão à tutela
jurídica é pré-processual, uma vez que é seu exercício que
determina o nascimento da pretensão processual. A pretensão
processual, só acionável através do remédio jurídico da “ação”,
gera a obrigação do Estado, de aplicar o direito, através da
sentença, de forma descomprometida com o seu resultado.
37
A teoria eclética, no afã de conciliar propostas inconciliáveis, deixa
entrever a sua profunda intimidade com a teoria do direito concreto de
agir.
Vejamos.
A teoria em pauta só reconhece direito de ação a quem preenche as
condições de seu exercício. Contrário senso, impinge aos jurisdicionados o
rótulo de carecedores de ação.
A terminologia da carência de ação está a mascarar a identidade
que referimos. Se o indivíduo preenche as “condições da ação” terá direito
a uma decisão de mérito, que poderá -- segundo os adeptos da escola do
jurisconsulto peninsular -- ser favorável ou desfavorável, aí residindo, no
plano teórico, o abismo que a separaria da teoria do direito concreto de
37
Observações sobre o Conceito de Pretensão, Ajuris, n. 35, p. 93
85
ação. Se não as satisfaz será taxado como carecedor da ação processual,
apesar de já estar em seu pleno exercício, inibindo-se um pronunciamento
meritório sobre a lide.
O raciocínio é sofismático e comporta, em verdade, uma confusão
entre os planos do direito material e processual, e, conseqüentemente,
uma absoluta vinculação da ação processual ao direito material, assim
como fizera Wach, ao só reconhecer direito de ação àqueles que
pudessem obter uma sentença de procedência.
Já advertira Pontes de Miranda, com a autoridade que lhe é peculiar:
O direito à tutela jurídica, de que se irradia a pretensão à
tutela jurídica, é pré-processual, proveniente de o Estado ter
chamado a si a função de justiça. No direito material, há direito,
pretensão e ação, mas tudo isto é objeto do pedido. A “ação” que
se propõe, remédio jurídico processual, dá ensejo ao processo, à
relação jurídico-processual, que começa com o despacho na
petição (autor e Estado) e se angulariza na citação (autor, Estado;
Estado, réu). A confusão que a respeito ocorre nos juristas
italianos leva a erros graves. É preciso que não se identifiquem a
ação, de direito material, e a “ação” de direito processual.
38
Separados os planos, a visão se torna clara e retilínea.
As condições da ação idealizadas por Liebman, para refrear a
democrática concepção da teoria da ação como direito abstrato de agir,
não se referem à ação processual, mas à material. Em assim sendo, uma
vez ausentes, o processo desaguará numa sentença de improcedência do
pedido; presentes, ensejarão o juízo de procedência do postulado.
Na mesma esteira, a ilustre Maria Berenice Dias:
(...)
Tal tendência histórica e jurídica, inclusive, determinou o
surgimento de uma teoria, chamada como eclética, que busca um
ponto de confluência entre o plano do direito material e o do
direito processual, impondo, afinal, condições existentes no direito
material ao exercício da ação processual, para vê-la sob forma
jurisdicional. Esse condicionamento, vislumbrado sob três ângulos:
legitimação, interesse e possibilidade jurídica do pedido, resume-
se, no entanto, exclusivamente ao direito material(...).
39
Reconhecer a “carência da ação” nada mais é que negar ação
processual a quem não tem ação de direito material, descortinando que,
ao fim e ao cabo, a teoria eclética é uma variação confusa da teoria do
direito concreto de ação.
38
apud Maria Berenice Dias, ob. cit., p. 96
86
Em complemento às nossas modestas palavras e à guisa de
conclusão desta singela explanação crítica, vale amealhar as palavras de
Fábio Luiz Gomes:
A construção formulada por Liebman padece de pelo
menos três vícios insuperáveis. O primeiro deles consistiu na
tentativa de conciliação do inconciliável, ou seja, postar-se em
uma posição intermediária entre a Doutrina Concreta e a Abstrata,
como que criando uma zona comum entre ambas. (...)
O segundo foi a redução do campo de atividade
jurisdicional. Para aceitar-se a posição de Liebman ter-se-ia que
criar uma atividade estatal de natureza diversa das três existentes
(executiva, legislativa e judiciária), para enquadrar aquela
exercida pelo Juiz ao decidir sobre as condições da ação.
E o terceiro consistiu em confundir ação com pretensão e,
por via de conseqüência, conferir o direito de ação também ao réu.
(...)
O maior e mais comum dos equívocos ensejados por esta
doutrina, que afinal restou insculpida no Código de Processo Civil,
é o de contrariar o bom senso, levando todos a aferir na real a
presença ou ausência das condições da ação, gerando, na prática,
sentenças de mérito com carência de ação!.
40
3.4.2 Da Legitimação Extraordinária
A par da legitimação ordinária, há a extraordinária, que se constitui
em forma excepcional, por não possuir, por fonte, a relação jurídica de
direito material, mas a lei, que outorga poderes para que outrem, atuando
em nome próprio, defenda interesse alheio.
Ao se pensar em discorrer sobre a legitimação extraordinária, leitura
obrigatória, multicitada pelos estudiosos da matéria, é o escrito de José
Carlos Barbosa Moreira
41
.
Ab initio, cumpre frisar o porquê de tal excepcionalidade:
(....) em atenção a motivos especiais de conveniência,
confere a lei eficácia legitimante a
42
situação subjetiva diversa
da que se submete como objeto do Juízo, à apreciação do órgão
judicial. Esses casos, que são excepcionais, fundam-se quase
sempre na existência de um vínculo entre as duas situações,
considerado suficientemente intenso, pelo legislador, para
justificar o fato de autorizar-se alguém, que nem sequer se afirma
titular da “res in iudicium deducta”, a exigir do juiz um
39
ob.cit., p. 96
40
ob. cit., p. 118
41
Apontamentos para um Estudo Sistemático da Legitimação Extraordinária, Revista dos Tribunais, São Paulo,
n. 404 , p. 9-18, jun.1969
42
“sic”
87
pronunciamento sobre o direito ou o estado alheio.
4344
O consagrado doutrinador sistematiza o instituto de forma ímpar,
classificando-o em duas principais espécies, posteriormente
pormenorizadas. A primeira, a legitimação extraordinária autônoma; a
segunda, a legitimação extraordinária subordinada.
Na primeira estirpe, o extraordinariamente legitimado tem plena
independência em relação àquele que ordinariamente seria o legitimado.
Nessa hipótese, “(...) o contraditório tem-se como regularmente
instaurado com a só presença, no processo, do legitimado
extraordinário”.
45
Na segunda espécie, o extraordinariamente legitimado não tem
direito de ação, porquanto só pode exercer a sua titularidade no curso de
ação iniciada pelo ordinariamente legitimado.
Nas palavras de Barbosa Moreira:
Noutros casos, apenas o titular da própria situação jurídica
objeto do Juízo pode ajuizar o pedido, ou só contra ele pode
dirigir-se a demanda. A presença do legitimado ordinário é, assim,
indispensável à regularidade do contraditório. Entretanto, uma vez
instaurado o processo, reconhece-se aos titulares de situações
subjetivas diversas a possibilidade de participarem dele,
assumindo posições acessórias, ao lado do autor ou do réu. Este
tipo de legitimação extraordinária, a que se pode chamar
subordinada, tem eficácia menos ampla que a anterior: não
habilita o respectivo titular nem a demandar nem a ser
demandado quanto à situação litigiosa, mas unicamente a deduzi-
la, ativa ou passivamente, junto com o legitimado ordinário, em
processo já instaurado por este ou em face deste, e no qual aquele
se limita a intervir.
46
A legitimação extraordinária autônoma subdivide-se. Pode ser
exclusiva ou concorrente. Esta última, ainda, dicotomiza-se em primária e
subsidiária.
A legitimação extraordinária autônoma exclusiva é aquela em que
somente o extraordinariamente legitimado pode agir em juízo como parte
43
ob. cit., p. 10
44
Donaldo Armelin sugere categorias genéricas de legitimidade extraordinária: a) a outorgada em função da
supremacia do interesse público sobre o individual; b) a deferida em razão de comunhão de direitos ou conexão
de interesses; c) a proveniente de vinculação entre o ordinariamente e o extraordinariamente legitimados,
estabelecida em razão do direito posto em causa [sucessão inter vivos, v. g.] e d) a decorrente de status jurídico
ocupado pelo terceiro que, por si só, impõe a guarda e conservação de direitos alheios. [ob. cit., p. 121/130]
45
ob. cit., p. 10
46
ob. cit., p. 10
88
principal, excluindo tal status do legitimado ordinário, ao qual caberá, tão-
somente, a intervenção como parte acessória
47
.
Contrário senso, a legitimação extraordinária autônoma concorrente,
pois,
(...) a legitimação extraordinária não cancela a legitimação
ordinária do titular da situação jurídica litigiosa, nem produz o
rebaixamento de nível que se explicou no parágrafo anterior. Tão-
somente concorre com ela, tornando indiferente, para a
verificação da regularidade do contraditório, que no processo
figure apenas o legitimado extraordinário, apenas o ordinário, ou
ambos.
48
Situações há, em que o titular da legitimação extraordinária só pode
exercer tal titularidade quando configurada a inação do ordinariamente
legitimado [legitimação extraordinária autônoma concorrente subsidiária].
Noutras, o exercício da titularidade independe de tal ocorrência
[legitimação extraordinária autônoma concorrente primária].
Exemplo da primeira hipótese, sinala Barbosa Moreira
49
, é a ação de
responsabilidade civil contra os diretores da sociedade por ações. A
sociedade é a legitimada ordinária. Se esta não propuser a demanda
dentro de seis meses, a contar da primeira assembléia geral ordinária,
qualquer acionista poderá fazê-lo
50
.
Caso de legitimidade extraordinária autônoma concorrente primária
é a ação de nulidade de casamento
51
, onde os legitimados extraordinários
concorrentes podem propor a ação, “(...) sem que lhes imponha esperar,
durante certo tempo, pela iniciativa do legitimado ordinário”.
52
Sumariando a classificação da legitimação extraordinária, por
Barbosa Moreira, temos:
1) Legitimação extraordinária autônoma.
1.1) Legitimação extraordinária autônoma exclusiva;
1.2) legitimação extraordinária autônoma concorrente.
1.2.1) Legitimação extraordinária autônoma concorrente primária;
47
como assistente, segundo Pontes de Miranda, conforme referência de Barbosa Moreira, ob. cit., p. 13
48
ob. cit., p. 11
49
idem
50
DL 2.627, 26/09/40
51
art. 208, § único, CC 1916; artigo 1549 CC 2002
52
ibidem
89
1.2.2) legitimação extraordinária autônoma concorrente subsidiária.
2) Legitimação extraordinária subordinada.
Concluído este singelo estudo sobre este elemento do tema em
debate, cumpre avançar mais um passo para investigar o vínculo
existente entre a legitimação extraordinária e a substituição processual.
Nosso próximo tópico.
3.4.3 Da Substituição Processual
O propósito deste capítulo não poderia ser atingido, em sua
completude, se não abríssemos espaço para uma sucinta análise acerca
da substituição processual, centrando a abordagem no estudo da sua
correlação com a legitimação extraordinária, antes estudada.
Ordinariamente, a doutrina entende que, no processo, a legitimação
extraordinária, em qualquer de suas modalidades, se instrumentaliza pela
substituição processual, quando, não raro, identifica os institutos,
tratando-os por sinônimos, como denuncia Donaldo Armelin
53
.
Ephraim de Campos Júnior cataloga inúmeros entendimentos desta
estirpe:
(...)
Pontes de Miranda diz que se tem dado o nome de sub-
rogação processual ou de substituição processual às espécies em
que se atribui a alguém, que não é o sujeito da relação jurídica
deduzida em juízo, o ser parte.
Edoardo Gabargnati assinala que o substituto processual
se apresenta precisamente como um sujeito legitimado, em via
extraordinária, para agir, em nome próprio, relativamente a uma
relação jurídica alheia.
(...)
José Frederico Marques afirma ocorrer substituição
processual quando alguém, em nome próprio, pleiteia direito
alheio; quando não coincide o sujeito da relação processual com o
da relação substancial, verifica-se caso de legitimação ad causam
extraordinária, a qual depende sempre de expressa previsão legal,
em face do art. 6º do CPC.
(...)
Adolfo Schönke assim se pronuncia: “é uma pessoa
distinta do titular, nos casos em que se dá a sub-rogação ou
substituição processual, nos quais a faculdade de promover o
53
ob.cit., p. 132
90
processo não pertence ao titular do direito controvertido, senão a
um terceiro.
54
Contudo, uma investigação percuciente revelará que a substituição
processual não pode ser tida como nuance processual da legitimação
extraordinária, porquanto esta poderá existir, sem que tenhamos a
configuração da substituição processual.
Vejamos.
Em linha de princípio, a substituição, na sua veia ontológica, é
incompatível com o litisconsórcio, por uma lógica razão: se figuram no
processo o legitimado ordinário e o extraordinário, o segundo obviamente
não substitui o primeiro, que participa do processo, como parte.
Partindo desta premissa, e a correlacionando com o que foi dito
acerca da legitimação extraordinária, podemos afirmar que, sempre que o
ordinariamente e o extraordinariamente legitimados figurarem no
processo, em igualdade de condições, apesar da legitimação
extraordinária, substituição processual não haverá.
Retomando a classificação de Barbosa Moreira, na legitimação
extraordinária autônoma exclusiva, que tem a característica de atribuir
somente ao extraordinariamente legitimado o direito de figurar na lide
para, em nome próprio, defender interesse alheio, a substituição
processual se materializa, porque somente um dos legitimados, à exclusão
do outro, poderá agir ou defender-se, o que inibe a ocorrência de
litisconsórcio, assegurada a assistência simples, não a litisconsorcial.
55
Na legitimação extraordinária autônoma concorrente, a doutrina
se divide quanto ao alcance da substituição processual.
Barbosa Moreira entende pela incompatibilidade:
No rigor da lógica, a denominação parece unicamente
adequada aos casos de legitimação extraordinária autônoma
exclusiva: só nesses, com efeito, é que a lei substitui o
legitimado ordinário pelo legitimado extraordinário, se por
substituir se entende retirar coisa ou pessoa de terminado lugar
para aí se colocar outra. Fora deles, pode até acontecer que, no
mesmo processo, figurem simultaneamente, em posições
54
Substituição Processual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1985, p. 17 e 18
55
porque o ordinariamente legitimado figura como parte acessória. A assistência litisconsorcial é incompatível
com a idéia de substituição, já que, nesta estirpe, o assistente é tido como litisconsorte da parte principal, ex vi do
art. 54, CPC, não havendo espaço para a substituição.
91
equivalentes, o legitimado ordinário e o extraordinário: pense-se,
v.g., na possibilidade de ser proposta a ação de responsabilidade
civil contra os diretores, após o decurso do prazo fixado no art.
123 do decreto-lei n. 2.627, pela sociedade e por um ou mais
sócios, em conjunto -- hipótese perfeitamente concebível, a supor-
se, como parece razoável, que a aquisição, por estes, da qualidade
para agir deixa subsistir íntegra, naquela, a mesma qualidade. Há
óbvio paradoxo em considerar, aí, substituída a sociedade pelo
sócio ou pelos sócios co-participantes. A tradição, porém, abona o
uso da expressão.
56
Ephraim de Campos Jr. discorda, entendendo que a legitimação
extraordinária autônoma concorrente também pode fundamentar a
substituição, verbis:
Ora, é óbvio que nos casos de legitimidade concorrente,
por não impedir esta que o titular da relação litigiosa assuma
posição de parte (principal) no processo, não se pode falar em
substituição processual, se ambos (o legitimado ordinário e o
extraordinário) figurarem simultaneamente, em posições
equivalentes, no processo. Se ambos, conjuntamente, (isto é, em
litisconsórcio), exercitaram a ação não se pode falar em
substituição processual, o que é evidente.
Porém, em casos de legitimação concorrente, nos quais
exista uma pluralidade de pessoas legitimadas, com autonomia, à
impugnação de um ato único e indivisível (incidibilidade do
objeto), se uma (ou algumas) delas não estiver presente no
processo, efetivamente ocorrerá uma substituição da atividade dos
ausentes pelos presentes.
Por exemplo, no caso da defesa da propriedade comum
por apenas um dos condôminos: como qualquer deles tem
legitimidade para, sozinho, como independência dos demais,
reivindicá-la de terceiro (CC, art. 623, II), a coisa julgada,
produzida na ação que propôs, atingirá os outros condôminos que
não agiram e não estavam presentes na ação, em face da
unitariedade da decisão, pois esta, obviamente, não pode
reconhecer (ou deixar de fazê-lo) a propriedade apenas em relação
ao condômino que agiu.
Em outras palavras, se a lei autoriza um dos legitimados a
agir individualmente, não pode deixar de atribuir eficácia ultra
partes a tal atividade, o que faz revestindo a sentença com a
autoridade de coisa julgada, para quem foi parte e para quem foi
substituído. Se o objeto do julgado é uno e indivisível, e vale o
julgado com a autoridade da res iudicata (eficácia), para poder
ter eficácia para o legitimado que agiu, também tem que ter para
os ausentes do processo(...)
É patente que o legitimado, que propôs a ação, defendeu,
não apenas seu próprio direito mas também o alheio, daqueles que
estiveram ausentes do processo.
57
Com efeito, apesar de, ontologicamente, a defesa da propriedade
comum encerrar hipótese de litisconsórcio necessário [já que a decisão há
de ser, obrigatoriamente, igual para todas as partes, dada a unidade e a
56
ob. cit., p. 12
92
indivisibilidade do objeto do litígio], a lei, para facilitar sua defesa,
excepciona a regra do litisconsórcio impositivo, como muito bem salienta
Celso Agrícola Barbi:
Algumas vezes, porém, é inconveniente exigir que uma
coisa, ou direito, só possa ser reclamada por todos os seus donos,
porque a dificuldade em obter a adesão de todos poderá
impossibilitar a reclamação de uma mais diligente, o que
sacrificaria o seu direito. Por isto, a lei abre exceções, admitindo a
reclamação, por uma só pessoa, de direito que pertença a ela e a
outras. Como exemplo, temos o art. 623, II, do Cód. Civil, que
permite a cada condômino reivindicar de terceiro toda a coisa; e o
art. 1580, parágrafo único, do mesmo Código, que legitima o co-
herdeiro a reclamar de terceiro a universalidade da herança.
Nesses casos, portanto, não há necessidade da formação do
litisconsórcio ativo. A legitimação de várias pessoas é legitimação
concorrente.
58
Dessa feita, a legitimação extraordinária autônoma concorrente
primária também poderá subsidiar a ocorrência da substituição
processual, mas a análise deste cabimento deverá ser criteriosa.
Em se tratando de situações jurídicas com objeto uno e indivisível,
aptas, em tese, a impor o litisconsórcio necessário, a lei deverá,
expressamente, conferir a um dos co-legitimados a possibilidade de
promoção de demanda, para, em nome próprio, também defender o
interesse dos co-legitimados, excepcionando a regra geral do litisconsórcio
inafastável. Assim agindo, o co-proprietário, no exemplo da reivindicatória
do art., 623, II, CC, atuará na defesa de interesse próprio [defesa mediata
da sua porção ideal da coisa indivisa], e de interesse alheio [defesa
mediata da porção ideal dos demais condôminos], ao mesmo tempo em
que defenderá a coisa, em sua integridade [defesa imediata], em relação
a terceiros, no interesse de todos. Na segunda parcela da defesa mediata
consubstancia-se a substituição processual.
Contudo, obviamente, o ingresso espontâneo de qualquer dos co-
legitimados excluirá a substituição processual em relação a ele, mas não
altera a situação dos demais titulares da coisa comum, deflagrando
hipótese de convivência harmônica entre litisconsórcio (entre os co-
titulares da coisa comum que figuram na lide, em igualdade de
57
ob.cit., p. 22
58
Comentários ao Código de Processo Civil.. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1993, vol.1, p. 163/4
93
condições) e substituição processual (dos co-titulares ausentes).
Discernida a compatibilidade da substituição com situações
peculiares que, em tese, obrigariam o litisconsórcio, o mesmo não se pode
dizer em relação ao litisconsórcio facultativo
59
, onde a autoridade da coisa
julgada não projeta efeitos ultra partes. Assim, ou os co-legitimados
formam litisconsórcio e atuam em juízo como partes equivalentes, ou
cada qual proporá sua demanda [totalmente independentes entre si], não
havendo como falar em substituição.
A legitimidade extraordinária autônoma concorrente subsidiária
também pode ensejar a ocorrência da substituição, se e enquanto o co-
legitimado principal não usar da faculdade de ingressar como litisconsorte
do co-legitimado subsidiário, porque a sua legitimação
60
não sucumbe por
não a ter exercido em dado tempo que, passado in albis, fez nascer a co-
legitimidade subsidiária.
De outra banda, e para finalizar, a substituição processual é
incompatível com a legitimação extraordinária subordinada, pela lógica
razão de que, nestes casos, o extraordinariamente legitimado só pode agir
no bojo de demanda proposta pelo ordinariamente legitimado, ou em face
dele dirigida, sendo incongruente falar-se em substituição.
Em sumário: a legitimação extraordinária autônoma exclusiva só se
manifesta através da substituição processual; a autônoma concorrente,
em regra não se presta a subsidiar o instituto, mas em algumas
hipóteses, peculiares, poderá ensejá-lo; a legitimação extraordinária
subordinada repele a idéia de substituição processual.
Buscando correlacionar o ideário exposto ao tema-centro deste
ensaio, prossigamos, agora num discurso mais específico.
59
hipótese de legitimidade extraordinária autônoma concorrente
60
[do co-legitimado principal]
94
3.4.4 Da Natureza Da Legitimação Ministerial, Enquanto Órgão-
Agente: Uma Investigação Genérica
Em judicioso estudo, Sérgio Gilberto Porto explicita, com acuidade,
as diferentes estirpes da legitimação ministerial, enquanto Órgão-
Agente
61
, dicotomizadas em parte pro populo e substituto processual.
O ponto nodal da diferenciação, consoante o jurisperito, está na
identificação dos direitos tutelados pelo agir ministerial: se
personalizados, a atuação processual do Órgão-Agente será feita na
figura do substituto processual; se não-personalizados, como pro populo.
Nesta última figura, elucida o Professor:
(...) o Ministério Público atua como órgão da própria
ordem jurídica, interpretando o interesse geral, pois em certos
casos, como já destacado, onde pode haver contraposição do
direito público ao privado, o Estado não tolera a inércia dos
titulares singulares deixe sem atuar a proteção legal e, por
conseguinte, age como Ministério Público, no ofício de fiscalizar e
estimular a incidência do ordenamento jurídico material.
Nesse sentido, propõe demandas, cuja finalidade é a de
fazer incidir o aparelho jurídico-legal na tutela dos interesses em
favor da sociedade, visando preservar exatamente os chamados
interesses públicos. São exemplos, dentre vários, a ação de
nulidade de casamento (art. 208, parágrafo único, inciso II, do
Código Civil); ação rescisória (art. 487, III, do CPC) e a ação de
extinção de fundações (art. 1204, CPC).
62
Em sendo caso de direitos personalizados, o órgão ministerial
estará, nos casos autorizados por lei, extraordinariamente legitimado a
agir, fazendo romper a regra da coincidência entre os sujeitos da relação
jurídica de direito material e os figurantes dos pólos ativo e passivo da
relação jurídico-processual.
A ratio da legitimação extraordinária em geral já se frisou
oportunamente. No que concerne à legitimação ministerial extraordinária,
arrazoa Francesco Carnelutti:
61
Sobre o Ministério Público no Processo Não-Criminal.2.ed. Rio de Janeiro: Aide, 1998. A respeito da ‘ratio’
da denominação “Órgão Agente”, do mesmo doutrinador: “(...) como conseqüência da inércia dos órgãos
judiciários frente à necessidade de o Estado agir em determinadas hipóteses, foi legitimado o Ministério Público
para fazê-lo ou, dito de outro modo, para exercer o direito de agir do Estado. Quando o Estado-Ministério
Público age, ou, mas precisamente, toma iniciativa de provocar a jurisdição está desenvolvendo atividade de
natureza processual na tutela de determinados interesses, e exatamente por estar tomando iniciativas de índole
processual se diz que está atuando como órgão agente.”[ ob. cit., p. 26/7]
62
ob. cit., p. 27/8
95
En conclusión: mientras la representación legal prova la
inidoneidad del interesado para desenvolver la ación, la
sustitución y la intervención tienden, en cambio, a constituir un
remedio contra la inercia o la insuficiencia de su ación. Ahora bien:
precisamente porque la sustitución obra para el impulso de un
interés del sustituto, es necessario tomar em cuenta la hipótesis
de que ni siquiera este otro interés baste para estimular la acción.
Estos casos se presentam cuando no se mueven ni el sustituído ni
el sustituto. Em semejante hipótesis, lo que decide es la
importancia social del interés público en cuanto a su tutela y, por
tanto, su conexión con un interés público trascendente. Cuando
ese presupuesto exista, la acción no puede confiarse o, por lo
menos, puede no confiarse exclusivamente a la parte o a sus
sustitutos. Por ello se ha creado un órgano adscrito a su ejercicio,
que ricibe el nombre de Ministerio Público.
63
Justapondo as idéias de Sérgio Porto às do jurista peninsular, vê-
se que a personalização dos direitos não os desnuda do interesse público
que os guarnece e autoriza, em virtude desta singularidade, a legitimação
ministerial extraordinária.
Tal legitimação pode ser classificada, dentro do esquema teorético
de Barbosa Moreira, como legitimação extraordinária autônoma (já que a
extraordinária subordinada fica, desde logo afastada, tendo em vista a
possibilidade ministerial de agir, sponte sua) exclusiva ou concorrente?
Parece indubitável que se trata de legitimação extraordinária
concorrente, tendo em vista que o Órgão Ministerial não detém a
exclusividade para a provocação do Judiciário, institucionalmente inerte.
Aos titulares dos direitos subjetivos em causa também se franqueia a
ignição do processo. Outra interpretação, salvo equívoco, deporia,
inclusive, contra a função do Ministério Público no Estado democrático de
direito, que é laborar pela sua implementação efetiva, ao lado do legítimo
titular do poder, e não, sufocá-lo quando em autêntico exercício de
cidadania.
Estabelecida esta premissa, a legitimação autônoma concorrente, no
caso em enfoque, seria primária ou subsidiária?
Repisando os conceitos já vistos, a análise das hipóteses legais que
subsidiam a legitimidade autônoma concorrente do Órgão Ministerial ora a
revelarão primária, --- tendo em vista que o agir ministerial não estará
63
CARNELUTTI, Francesco. Sistema de Derecho Procesal Civil, II. Buenos Aires: Uteha. Tradução Niceto
96
condicionado a qualquer anterior ação (ou omissão) do ordinariamente
legitimado; ora subsidiária, --- porque, contrário senso, a deflagração da
legitimidade ministerial estará condicionada a uma antecedente ação ou
omissão do titular do direito subjetivo em causa. Destarte, o respaldo
da ação ministerial, dar-se-á nos limites do fenômeno da subsunção,
deflagrador do interesse público transcendente. Assim, em reforço,
dependendo da configuração daquele, a legitimidade ministerial poderá
ser autônoma concorrente primária ou autônoma concorrente
subsidiária.
Compulsando-se os casos sistematicamente anotados por Sérgio
Gilberto Porto
64
para atuação do Órgão Ministerial como substituto
processual, vê-se o acerto das considerações supra explicitadas.
A título de amostragem, veja-se, primo, a hipótese do art. 68, CPP,
que encerra a seguinte dicção:
Quando o titular do direito à reparação do dano for pobre
(art. 32, §§ 1º e 2º), a execução da sentença condenatória (art.
63) ou a ação civil será promovida, a seu requerimento, pelo
Ministério Público.
Comentando o artigo em epígrafe, Júlio Fabrini Mirabete
65
leciona:
Diante da importância da reparação do dano para a ordem
jurídica, permite-se ao Ministério Público que promova a ação civil
ou a execução a fim de que não se frustre o ressarcimento devido
à vítima ou sucessores quando o ofendido ou seus sucessores não
puderem arcar com as despesas do processo. Trata-se de mais um
caso de substituição processual, defendendo o parquet direito
alheio, conforme o permite o art. 81 do CPC. É indispensável,
porém, que o interessado seja pobre, conforme o conceito jurídico
já estudado(itens 32.1 e 32.2). O artigo 68, que, segundo alguns,
fora revogado pelo Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil,
continua em vigor, amparado inclusive pelo artigo 129, IX, c.c. o
artigo 197 da CF. (Cf. GRINOVER, Ada Pellegrini. O Ministério
Público na reparação do dano às vítimas do crime. Tribuna de
Direito, 1994, p. 5).
A hipótese legitimante, portanto, é o interesse público na higidez da
efetividade da ação material de reparação de dano proveniente de crime
perpetrado contra vítima pobre, que, não havendo a alternativa da
legitimação ministerial autônoma concorrente, deixaria, no mais das
vezes, em virtude de uma conjuntura de vicissitudes, esvair-se a luta
Alcalá-Zamora Y Castillo Y Santiago Sentis Melendo, 1944, p. 49
64
ob. cit. p. 47/49
97
pelo seu direito, que, in casu, também interessa à sociedade como um
todo.
Mas, repare-se, a legitimação ministerial extraordinária
concorrente, in casu, é subsidiária, porque imprescinde de uma ação
anterior do ordinariamente legitimado, qual seja, o requerimento
mencionado no corpo do artigo em epígrafe.
Em contraponto, verifica-se a hipótese do artigo 127, CPP, verbis:
O juiz, de ofício, a requerimento do Ministério Público ou do
ofendido, ou mediante representação da autoridade policial,
poderá ordenar o seqüestro, em qualquer fase do processo ou
ainda antes de oferecida a denúncia ou a queixa.
Como se antevê, na espécie, hipótese do Processo Penal Cautelar, a
legitimação ministerial autônoma concorrente é primária, porque a
disposição legal separa os legitimados pela disjuntiva ou, fazendo a ação
ministerial imprescindir de qualquer ação ou omissão anterior do
ordinariamente legitimado.
A ratio está em que, aqui, o agir dos legitimados direciona-se à
segurança-para-execução
66
, antevendo a potencial condenação do réu e a
conseqüente obrigatoriedade de reparar o dano, observado o que dispõe o
art. 133 do Codex Processual Penal.
Nesta esteira, a legitimação ministerial é mais abrangente porque,
comparando o caso em estudo com o anterior, aqui o fenômeno da
subsunção não qualifica a vítima a ser substituída, podendo ser ela rica ou
pobre.
O fundamento parece estar na relevância do interesse em jogo, que
alcança a própria coerência do sistema jurídico-processual. Objetiva-se,
aqui, propiciar meios para a posterior reparação do dano, de nada
adiantando o sistema prever o direito, sem agregar a ele medidas que o
assegurem.
Acerca do artigo em comento, intercede novamente Júlio Fabrini
Mirabete:
65
Código de Processo Penal Interpretado. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1994, p. 127.
66
expressão difundida no meio processual por Ovídio Baptista.
98
O seqüestro dos bens imóveis pode ser ordenado pelo
juiz de oficio, ou a requerimento do Ministério Público ou
ofendido ou mediante representação da autoridade policial. Já
se entendeu que ao Ministério Público só cabe o pedido de
seqüestro quando a vítima é pobre, mas o art. 127 não faz
qualquer distinção e o seqüestro de imóvel não é mencionado
nos 134 e 137, que dizem respeito apenas ao ofendido. É ele
sempre parte legítima para requerê-lo. Não interfere, porém, o
Ministério Público, na qualidade de curador judicial de incapazes,
no procedimento para o seqüestro. O ofendido, mesmo que não
tenha sido admitido como assistente, pode também requerer o
seqüestro(...).
67
Insta sinalar que a análise dos subitens precedentes teve por
terreno o processo civil tradicional, que se ocupa das relações jurídicas
individuais, ainda não enfocando a temática da tutela coletiva.
Contudo, este estágio se nos parece indeclinável, posto que a tutela
coletiva, inobstante tenha lastro constitucional, consoante se aduzirá
alhures, deve ser regulada à luz do direto processual civil. Dessarte,
exsurge indeclinável o estudo da legitimatio ad causam em sua fisionomia
primeva para que se alimente o processo dialético que conformará a nova
síntese, fazendo eclodir uma legitimidade moldada tanto para a defesa
dos direitos essencialmente transindividuais quanto para a defesa coletiva
mediata dos direitos individuais acidentalmente coletivizados.
Investigado este tópico, alguns questionamentos aguçam a
escritura dos próximos itens: primo, o Ministério Público tem
legitimidade para a defesa coletiva dos interesses individuais
homogêneos? secundo, em caso positivo, qual a natureza jurídica
desta legitimatio? terzo, qual a ratio desta legitimação? quarto, tal
legitimidade pode receber limitação temática?
3.4.5 Direito Individual Homogêneo: Sua Conceituação
Para perfeita delimitação do tema proposto, precípuo se faz
explicitar o conceito de direito individual homogêneo.
Teori Albino Zavascki
68
, numa explanação bastante sistemática,
67
ob. cit., p. 195/6
68
Defesa de Direitos Coletivos e Defesa Coletiva de Direitos, Revista da Associação dos Juízes Federais do
Brasil, São Paulo, Ano 10, n 48, p. 7/21
99
apresenta o perfil dos individuais homogêneos, a partir do direito
consumerista
69
, que incorporou o ideário de José Carlos Barbosa
Moreira
70
.
Sob o aspecto subjetivo, leciona o douto, são individuais, porque
“há perfeita identificação do sujeito, assim da relação dele com o objeto
do seu direito. A ligação que existe com outros sujeitos decorre da
circunstância de serem titulares (individuais) de direitos com “origem
comum”
71
.
Sob o aspecto objetivo, são divisíveis, porque “podem ser
satisfeitos ou lesados em forma diferenciada, satisfazendo ou lesando um
ou alguns titulares sem afetar os demais”.
72
Como corolário à sua natureza, ensina o eminente Juiz, os direitos
desta estirpe são:
a) individuais e divisíveis, fazem parte do patrimônio
individual do seu titular.
b) transmissíveis por ato “inter vivos” (cessão) ou “mortis
causa”, salvo exceções (direitos extrapatrimoniais).
c) defendidos em juízo, geralmente, por seu próprio
titular. A defesa por terceiro o será por forma de representação
(com aquiescência do titular). O regime de substituição processual
dependerá de expressa autorização em Lei (CPC, art. 6º).
73
Em face da divisibilidade, afastam, em caso de tutela coletiva, o
tratamento unitário obrigatório dos interesses em causa. Neste passo,
sob a ótica da esfera subjetiva, tais direitos fundamentais são
essencialmente individuais. A coletivização é acidental e não imanente --
como ocorre com os direitos coletivos; a defesa transindividual será
pertinente quando configurada, sob o viés tópico-sistemático, a
relevância social da tutela coletiva, como externalidade da dimensão
objetiva destes mesmos direitos fundamentais.
Tal perfil dos individuais homogêneos tem sido recepcionado pela
jurisprudência, como exemplifica o seguinte aresto:
69
Lei 8.078/90, art. 81 e incisos.
70
Conforme referência de MENDES. Ações Coletivas no Direito Comparado e Nacional. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2002 (Coleção Temas Atuais de Direito Processual Civil; vol.4), p. 192
71
ob.cit., p. 8
72
idem
73
idem
100
PROCESSO CIVIL - AÇÃO CIVIL PÚBLICA -- LEGITIMIDADE
DO MPF -- CORREÇÃO MONETÁRIA DOS CONTRATOS RURAIS - TR
E TRD.
1- O MP está legitimado a defender os interesses
individuais homogêneos identificados como sendo de origem
comum, mas divisíveis.
(...).
74
No mesmo sentido: AC 97.01.009249-7, TRF 1ª Região, Juiz
Tourinho Neto; REO 92.01.25556-0, TRF 1ª Região, Rel. Juiz Amílcar
Machado, entre muitas outras referências.
Contudo, Mendes
75
salienta que os tribunais pátrios têm cometido
certos equívocos em vincular a indivisibilidade ao pedido comum
formulado nas tutelas coletivas, ao invés de verificá-la à luz da natureza
jurídica dos interesses em causa, fazendo com que direitos individuais
homogêneos sejam tratados como se coletivos fossem, como tem ocorrido
com as ações envolvendo a limitação de reajustes de mensalidades e
matrícula de alunos.
Os direitos individuais homogêneos, na dicção de Zavascki, são um
terceiro gênero em relação aos coletivos e aos difusos, por assumirem
fisionomia particular em relação àqueles.
Analisamo-los, com brevidade.
Difusos e coletivos são transindividuais, sob o prisma subjetivo. Os
primeiros, com indeterminação absoluta de seus titulares, ligados entre si
por mera circunstância fática; os segundos, com determinação relativa,
aferível a partir de uma relação jurídica-base
7677
.
Nesta esteira, Édis Milaré:
Embora a distinção entre interesses difusos e interesses
coletivos seja muito sutil - por se referirem a situações em
diversos aspectos análogos - tem-se que o principal divisor de
74
AC 96.01.38038-8, TRF 1ª Região, 4ª Turma, Rel., Juíza Eliana Calmon, j. 12/03/97, DJ 24/04/97, p. 26753
75
MENDES, ob. cit., p. 213/214
76
MENDES, ob. cit., p. 213/214
77
José Carlos Barbosa Moreira emprega as expressões difusos e coletivos por sinônimas, fazendo-as, entretanto,
englobar ambos os aspectos retratados por Teori: “A expressão interesses coletivos ou difusos tem sido
empregada pela doutrina moderna para indicar de maneira precípua, interesses comuns a uma coletividade de
pessoas não necessariamente ligadas por vínculo jurídico bem definido. Tal vínculo pode até inexistir ou ser
extremamente genérico, reduzindo-se eventualmente à pura e simples pertinência à mesma comunidade política;
e os interesses cuja proteção se cogita não surgem em função dele, mas antes se prendem a dados de fato, muitas
vezes acidentais e mutáveis (...)”. Tutela Jurisdicional dos Interesses Coletivos e Difusos. Temas de Direito
Processual, 3ª série, p. 194, apud Barral, Welber . Notas sobre a Ação Civil Pública em Matéria Tributária.
Revista de Processo, São Paulo, n. 80, p. 151-4:152.
101
águas está na titularidade, certo que os primeiros pertencem a
uma série indeterminada e indeterminável de sujeitos, enquanto
os últimos se relacionam a uma parcela também indeterminada
mas determinável de pessoas. Funda-se, também, no vínculo
associativo entre os diversos titulares, que é típico dos interesses
coletivos, ausente nos interesses difusos
78
.
No plano objetivo, essas espécies de direitos são paritárias,
assumindo a característica da indivisibilidade. Assim, “não podem ser
satisfeitos nem lesados senão em forma que afete a todos os possíveis
titulares”
79,
o que
traz à tona a marca da inarredável unitariedade no
tratamento dos interesses em causa.
O Ministro Maurício Corrêa, na Relatoria do Recurso Extraordinário
163231-3/SP
80
(Anexo C1), advogou uma verdadeira revolução à
fisionomia dos individuais homogêneos, classificando-os como subespécie
dos coletivos.
Após trazer à liça o escólio de diversos doutrinadores acerca dos
direitos coletivos e difusos e, com eles, no aspecto, solidarizar-se, ao se
referir aos individuais homogêneos, assim se posiciona:
(...) ao editar-se o Código de Defesa do Consumidor, pelo
seu artigo 81, III, uma outra subespécie de direitos coletivos
81
fora
instituída, dessa feita, com a denominação dos chamados
interesses ou direitos individuais homogêneos assim entendidos os
decorrentes de origem comum.
Por tal disposição vê-se que se cuida de uma nova
conceituação no terreno dos interesses coletivos, sendo certo que
esse é apenas um nomen iuris atípico da espécie direitos
coletivos. Donde se extrai que interesses homogêneos, em
verdade, não se constituem com um tertium genus
82
, mas sim
como uma mera modalidade peculiar, que tanto pode ser
encaixado na circunferência dos interesses difusos quanto na dos
coletivos.
Calha coligir que o Código Modelo Ibero-Americano
83
encampou a
diferenciação entre direitos individuais acidentalmente coletivos (direitos
individuais homogêneos) e interesses essencialmente coletivos (coletivos
e difusos), abandonando a tríplice moldura, consoante se colhe da leitura
78
A Ação Civil Pública na Nova Ordem Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1990, p. 27/28.
79
ZAVASCKI, ob. cit., p. 8
80
Supremo Tribunal Federal, Pleno, Relator: Ministro Maurício Corrêa, j. 26-02-1997, um. DJ 29-06-2001.
81
grifou-se
82
grifou-se
83
Noticia Mendes, em seu artigo O Código Modelo de Processos Coletivos do Instituto Ibero-Americano de
Direito Processual, disponível na internet em <www.mundojuridico.adv.br>, acesso em 09/06/2006, que a
primeira versão do então projeto de Código Modelo adotara para a classificação tripartite, seguindo a dicção do
102
de seu artigo 1º, II.
84
Na verdade, consoante pretender-se-á demonstrar alhures, os
direitos individuais homogêneos realmente representam, sob o ponto de
vista da dimensão subjetiva dos direitos fundamentais em voga, uma
categoria apartada da dos direitos imanentemente transindividuais. A
defesa coletiva mediata do grupo acidentalmente formado não
desnatura a divisibilidade que é inata aos interesses, subjetivamente
considerados. Desta feita, parece assistemático, s.m.j., catalogá-los como
subespécie de interesses essencialmente transindividuais, não se podendo
confundir a defesa de interesses genuinamente coletivos com a defesa
coletiva de interesses individuais (homogêneos). Contudo, sob o ponto de
vista da dimensão objetiva dos direitos fundamentais, locus do interesse
social que detona a legitimatio ad causam do Órgão-Agente, tal
controvérsia desponta inócua, posto que nesta esfera o interesse é
sempre e invariavelmente subjetivamente difuso.
A apresentação das idéias supra, neste momento prefacial, cumpre
finalidade didático-introdutória, seja para o pronto conhecimento da alta
indagação jurídica que acerca os individuais homogêneos, seja para a
fixação das mais expressivas concepções do delineamento de sua
fisionomia, seja para demonstração da dimensão do estudo ora
incursionado.
3.4.6 Proposta Para A Compreensão Do Conceito De Direito
Individual Homogêneo
Na concepção de Teori Zavascki, os interesses desta estirpe são um
terceiro gênero em relação aos difusos e aos coletivos. Esgrima-a sob
uma base teorética que espelha e aprimora a dicção do Código de Defesa
código consumerista brasileiro
84
Art. 1o. Cabimento da ação coletiva - A ação coletiva será exercida para a tutela de: (...) II - interesses ou
direitos individuais homogêneos, assim entendido o conjunto de direitos subjetivos individuais, decorrentes de
origem comum, de que sejam titulares os membros de um grupo, categoria ou classe.
103
do Consumidor
85
, diploma mundialmente reconhecido como um dos
melhores, quiçá o melhor, na regulação do direito consumerista.
O culto Juiz entende por excluir, em regra, a legitimidade
ministerial para as hipóteses de defesa de individuais homogêneos que
extrapolem as relações de consumo ou alcancem os investidores do
mercado de valores imobiliários (Lei 7.913/89) ou os credores de
instituições financeiras em regime de liquidação extrajudicial (Lei n.º
6.024, de 1974, art. 46), salvo se a lesão ao conjunto de direitos
fundamentais se transmudar em lesão a valores jurídico-sociais
relevantes.
Nas palavras do Magistrado, para uma melhor sedimentação de seu
raciocínio:
g) quanto ao Ministério Público: - não é da sua
natureza constitucional defender direitos subjetivos individuais
disponíveis; - nos casos em que o legislador o legitimou para tal
(tutela de consumidores, de credores de instituições financeiras
em regime de liquidação, e de investidores no mercado
financeiro), há substituição processual autônoma, para demandar
pretensão condenatória genérica, em carácter coletivo e
impessoal; - a compatibilidade constitucional dessa legitimação
está em que a lesão conjunta àqueles direitos individuais implica
também lesão a valores sociais especialmente privilegiados pelo
direito positivo, cuja tutela é encargo do Ministério Público; - afora
os casos expressamente previstos em Lei, a legitimação do
Ministério Público para a defesa de direitos individuais poderá ser
admitida apenas em situações especiais, quando a lesão ao
conjunto de direitos venha representar, à luz dos valores jurídicos
estabelecidos, não apenas soma dos interesses particulares, mas
sim o comprometimento de interesses relevantes da sociedade
como um todo.
86
A pedra-de-toque da teoria zavasckiana acerca dos direitos
individuais homogêneos está, ao parecer, na parte final do artigo 127,
caput, da Constituição-Cidadã, que prevê a legitimidade ministerial para
a defesa dos interesses sociais e individuais indisponíveis.
Destarte, estando perfeitamente delineados os limites da atuação
ministerial, na seara dos interesses individuais a legitimação do Órgão-
Agente circunscreve-se aos indisponíveis. E, porque na conceituação
firmada pelo doutrinador em tela, os individuais homogêneos são, em
85
art. 81 e incisos
86
ZAVASCKI, ob. cit., p. 20
104
regra
87
, disponíveis, a legitimação ministerial, também em regra, estará
afastada.
O respeitado jurista, contudo, além de reconhecer a legitimidade
ministerial nos casos ex vi legis, admite que a casuística poderá ensejar
novas hipóteses legitimantes, sempre que a lesão ao direito individual
possa atingir, reflexamente, “interesses relevantes da sociedade como um
todo”.
A dialética, essencial ao manejador do direito, nos encoraja a fazer
algumas reflexões.
A questão da legitimidade ministerial para a defesa dos interesses
individuais homogêneos não pode, data maxima venia, ser afastada pela
antítese da parte final do art. 127, caput, da Constituição da República
Federativa do Brasil.
Conforme se anotou no capítulo precedente, o Ministério Público
exerce a nobre função de defensor do Estado democrático de direito e,
como igualmente retro-salientado, somente a efetividade dos direitos
fundamentais garante a existência real daquele.
Repisando o que se disse alhures, os direitos fundamentais
comportam a esfera subjetiva e a jurídico-objetiva. A primeira consiste
no direito individual do cidadão de poder exigir a abstenção ou a ação,
conforme se tratem de direitos fundamentais como direitos de defesa
(idéia iluminista dos direitos fundamentais) ou direitos fundamentais como
direitos à prestação. A segunda, na vinculação da conduta dos poderes
constituídos e dos particulares
88
aos preceitos assentados pelo Poder
Constituinte, seja para se absterem da ingerência à esfera privada do
indivíduo --- quando e na medida em que tal ação lhe for vedada; seja
para agirem à implementação dos planos e princípios que foram
estabelecidos no Documento Maior.
Como não se pode deixar de ver, as dimensões subjetiva e
jurídico-objetiva dos direitos fundamentais encontram-se
87
afora os casos de direitos personalíssimos
88
o que será tratado, an passant, no item 3.7 deste estudo, com os comedimentos inerentes a este estudo.
105
indissociavelmente ligadas.
Assim, quando o indivíduo revolta-se contra a agressão à sua orla
jurídico-individual, defendendo imediatamente a dimensão subjetiva dos
referidos direitos, estará, também, sem qualquer adminículo de dúvida,
defendendo reflexamente a dimensão jurídico-objetiva: sua iniciativa fará
com que o Judiciário, na hipótese de procedência do pedido, em
normatizando o caso concreto, reconheça o agir ou o abster ilegítimo dos
Poderes constituídos e/ou dos particulares.
Neste diapasão, pode-se tranqüilamente identificar interesse público
até na mais comezinha ação patrimonial. Mesmo que seja inarredável a
prevalência, neste caso, do interesse individual, a relevância social
encontra-se presente, ainda que de maneira fluida, pelo manejo do
direito subjetivo público de ação processual.
Contudo, esta defesa --- direta da dimensão subjetiva e indireta da
dimensão objetiva dos direitos fundamentais --- apesar, quanto ao último
aspecto, de se constituir em valoroso exemplo de exercício de cidadania,
é insuficiente, numa visão macro, para inibir novos desalinhos às
determinações constitucionais, tendo em vista os limites subjetivos da
coisa julgada em sua acepção clássica.
A par da insuficiência deste agir individual, outra situação, mais
grave, enfeixa a questão: a possibilidade, rotineira na vida dos
subjugados pela pseudodemocracia, de renúncia à defesa da esfera
subjetiva dos Direitos Fundamentais, com o conseqüente vazio à proteção
da dimensão jurídico-objetiva dos mesmos Direitos. O resultado,
inevitável: a preservação do Estado formalmente democrático.
Neste diapasão, a tutela individual, pulverizada, atomizada, revela-
se insuficiente para a colmatação de lesões que superam a órbita
exclusiva do indivíduo, atingindo uma pluralidade subjetiva, fazendo
desnudar a indispensabilidade da defesa coletiva mediata de tais direitos,
como mecanismo de proteção da dimensão objetiva, que impõe a defesa
plural nos limites do necessário para a garantia do acesso material à
jurisdição.
106
Dessarte, como sói resta reconhecer
89
, o Ministério Público
90
é peça-
chave na transposição efetiva deste modelo hipócrita de democracia, já
que Órgão-Agente da sua implementação.
Como já sinalado, o âmbito da atuação ministerial é a dimensão
jurídico-objetiva.
Contudo -- e aqui o ponto fulcral -- quando o Ministério Público age
na defesa do Estado democrático de direito, v.g., zelando pelo efetivo
respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública
91
aos
direitos assegurados na Constituição de 1988, pode separar a dimensão
subjetiva, da jurídico-objetiva que defende imediatamente?
A resposta é negativa e, por isso, a legitimidade ministerial para a
defesa dos direitos individuais homogêneos decorre do próprio regime de
governo, instituído pela decisão jurídica fundamental, traduzida pelos
princípios político-constitucionais elencados nos artigos 1º a 4º, da Carta
da República, constituindo-se, inclusive em cláusula pétrea implícita,
porque corolária da combinação dos incisos II e IV, do artigo 60, § 4º, da
Magna Carta
92
e do conteúdo e alcance do artigo 5º, §§ 1º e 2º do
Texto
93
, da justicialidade dos direitos fundamentais para a conformação e
concretização de seus conteúdos materiais.
Neste diapasão, desnuda, sem pudor, as funções “dogmático-
jurídica”, “teorético-estatal” e “teorético-constitucional” dos direitos
fundamentais, locuções da lavra de Böckenförde
94
, que serão cotejadas a
seguir, respectiva e singelamente.
Os direitos fundamentais como normas-princípio vinculam todos os
poderes estatais, impondo um mandado de otimização à realização de
89
o que já foi dito alhures, mas não há tautologia na reafirmação, diante da importância do tema.
90
Sem menoscabo dos demais legitimados
91
obrigação que também se dirige aos particulares, consoante conhecida lição de Canaris, questão que se
estudada ao depois, quando da pertinência temática da legitimação ministerial na seara consumerista
92
o alcance dos poderes conferidos ao Ministério Público decorre dos preceitos da democracia representativa; a
sua mitigação atingiria, via reflexa, a própria concreção dos direitos fundamentais elencados no Documento
Maior, pela redução do feixe de freios e contrapesos postos à inibição do arbítrio dos Poderes constituídos,
manietando o ator social por excelência eleito para este fim, como primado institucional.
93
Esboçou-se, mesmo em lineamentos perfunctórios, o primeiro assunto (art. 5º, § 1º CF/88), no item 2.4; a
questão que envolve o artigo 5º, § 2º, CF/88 será vista, em singelo, no item 3.8.2.1.
94
Escritos Sobre Derechos Fundamentales. Trad. Juan Luis Requejo Pagés e Ignacio Villaverde Menéndez.
107
seus conteúdos, o que pressupõe a existência de reais condições de
realizabilidade
95
, o que perpassa pela maior justicialidade possível,
trazendo à tona a racionalidade do acesso como determinante: a atuação
ministerial na seara do processo coletivo, mormente dos individuais
homogêneos, espécie a miúde mais recorrente, está a serviço deste
primado.
Sob o prisma teorético estatal, os direitos fundamentais, como
normas de princípio, transmudam a Constituição de “ordenamento jurídico
fundamental do Estado para converter-se em ordenamento jurídico
fundamental da comunidade”
96
. A inter-relação da legitimidade ministerial
na defesa coletiva (mediata) dos individuais homogêneos e o ethos da
sociedade brasileira será investigada no quinto capítulo.
Os direitos fundamentais devem ser “jurídico-subjetivamente
exigíveis”
97
, o que traz conseqüências às cercanias da competência
criação do direito
98
, que continua a ser preferencialmente do legislador,
mas, inobstante, da jurisdição constitucional com supremacia, causando
a sua transmutação em “órgão político (não político-partidarista) mais
forte, um areópago da Constituição; o extremo da soberania (...) a
legitimação democrática do Tribunal Constitucional”.
99
Como visto, a justicialidade dos direitos fundamentais, nó górdio do
Estado democrático-social de direito, não se concretiza sem ignição: neste
viés, indeclinável a atuação do paladino público.
Desde logo se vê, a legitimidade ministerial para a defesa mediata
dos direitos individuais homogêneos [já que a imediata está atrelada ao
interesse difuso dos titulares do poder na observância, reta, da
Declaração dos Direitos Fundamentais positivada pelo Poder Constituinte
originário] tem lineamento definido.
Não se estende a qualquer hipótese de lesão a direitos individuais
Baden-Baden: Nomos Verl.-Ges., 1993, p. 126 a 130
95
BÖCKENFÖRDE, p. 126
96
BÖCKENFÖRDE, p. 129
97
Idem, p. 127
98
fazendo arrefecer o modelo estanque da divisão dos poderes estatais
99
Idem. p. 131
108
disponíveis que, por terem origem comum, se transmudam em
homogêneos, mas só haverá se tal lesão se constituir em afronta à
dimensão jurídico-objetiva dos Direitos Fundamentais - despontando o
interesse social vertido no artigo 127, caput -- e, secundária, conseqüente
e inevitavelmente, à dimensão subjetiva de tais direitos.
Neste passo, transparece cristalinamente que o locus da aferição da
legitimação ministerial ativa é a dimensão objetiva dos direitos
fundamentais, subjetivamente individualizados e divisíveis, no caso dos
individuais homogêneos.
De outra banda, vem à baila que é a dimensão jurídico-positiva dos
direitos fundamentais que deve informar a sistematização do processo
civil coletivo, posto que, em pretendendo constituir-se em ramo do direito
instrumental habilitado à defesa dos direitos essencialmente coletivos ou
para a defesa coletiva dos direitos individuais -- apto, pois, à
transindividualidade (material ou formal) -- não pode arraigar suas
raízes à dimensão subjetiva para perfilar a natureza inovadora de seus
institutos.
Evidentemente que o espectro subjetivo do alcance da lesão servirá
como co-fator de aferição da relevância social da tutela coletiva, mas não
é este o ponto nodal e indeclinável para o descortinamento da quaestio.
A tutela coletiva dos direitos individuais homogêneos despontará
necessária sempre que o interesse da coletividade enquanto organismo
(dimensão objetiva) a reclame como indeclinável à superação das mazelas
do individualismo.
Nesta veia, quando o Órgão Ministerial ajuíza uma Ação Civil
Pública não está, finalisticamente, defendendo os interesses restritos dos
titulares dos interesses que acidentalmente coletivizaram-se, mas está
colocando o grupo indeterminado na berlinda, como amostragem real dos
efeitos concretos que a infringência à dimensão jurídico-objetiva dos
direitos fundamentais causou, podendo-se-lhe denominá-lo de grupo-
amostragem do interesse da atuação ministerial e, nunca, grupo-fim.
Veja-se, portanto, e em reforço, que a atuação ministerial na
109
defesa do Estado democrático de direito, apesar de concorrente com a dos
indivíduos
100
do grupo social a que serve, é peculiar, na medida que
objetiva inversamente àqueles, a proteção imediata da dimensão
jurídico-objetiva e, mediatamente, a da dimensão subjetiva, onde
cabem os direitos individuais, dentre os quais os homogêneos.
Assim, bem se vê, a coletivização dos direitos individuais
homogêneos tem índole instrumental-estratégia, informada pela dimensão
objetiva dos direitos fundamentais. Sob o prisma subjetivo, contudo,
muito embora reunidos circunstancialmente, os interesses permanecem
divisíveis e, normalmente, disponíveis.
Digno de nota que os instrumentos folheados ao Órgão Ministerial,
em regra, não permitem uma satisfação exauriente da dimensão
subjetiva dos direitos fundamentais, que não é, nem nunca foi, repise-se,
o fim do atuar do Órgão-Agente.
Desta forma, nesta dimensão, em regra, o espaço prevalente é da
competente Advocacia.
Nesse passo, desmistifica-se, de uma vez por todas, a visão do
“Advogado-Ministério-Público”, invasor
101
das atribuições inerentes à
Advocacia (art. 133, CF/88).
Se, excepcionalmente, na esfera subjetiva o atuar ministerial for
exauriente
102
, o princípio da proporcionalidade o justificará, já que a
implementação efetiva do Estado democrático de direito pode, pela
100
Digno de nota que se está a pontuar, na comparação perfilada, a defesa indireta da dimensão objetiva que o
indivíduo realiza ao propor uma lide singular, mesmo com mero conteúdo patrimonial, em situação
diametralmente oposta à do Parquet; contudo, a questão da legitimidade do particular para a tutela coletiva de
interesses individuais homogêneos, inobstante admitida no direito comparado, não se encontra placitada em
nosso seio. Por ora, a legitimidade do singular encontra-se enfeixada na ação popular constitucional, com as
limitações temáticas nela contidas, excluindo, consabido, os interesses acidentalmente coletivos.
101
Há que sustente que o Ministério Público sequer teria jus postulandi em matéria civil, razão pela qual teria de
se fazer representar, em juízo, por advogado! Esta é a posição de Paula, Adriano Perácio. Sobre a Lei 8429, de
1992, e a atuação do Ministério Público nas ações de improbidade no processo civil. In: Improbidade
Administrativa, Cássio Scarpinella Bueno e Pedro Paulo de Rezende Porto Filho (coord.). São Paulo: Malheiros,
2001 apud Godinho, Robson Renault. O Ministério Público e a tutela jurisdicional coletiva dos direitos dos
idosos. Disponível na internet em http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7974&p=4,
acesso em 07/06/2006
102
como pode sugerir, v.g., a hipótese da Lei 7.913/89, que dispõe sobre a ação civil pública de
responsabilidade por danos causados aos investidores no mercado de valores mobiliários. Na nossa opinião,
porém, nem mesmo esta hipótese afigura-se exauriente da proteção da dimensão subjetiva dos Direitos
Fundamentais, tendo em vista que não contempla a possibilidade de indenização por dano moral, a ser defendida
pelos interessados em demandas próprias, onde a capacidade postulatória é exclusiva do advogado.
110
importância que ocupa dentro da estrutura do Estado, relativizar a
indispensabilidade da Advocacia à Administração da Justiça, como ocorre,
também, no caso do jus postulandi na Justiça do Trabalho, bem como
no terreno dos Juizados Especiais Cíveis e, principalmente, na
interposição de habeas corpus, no âmbito criminal.
3.4.7 Da Natureza Jurídica Da Intervenção Ministerial Na Defesa
Coletiva Mediata Dos Individuais Homogêneos: Uma Investigação
Específica
A fim de sistematizar o presente estudo, conveniente traçar a
natureza jurídica da atuação ministerial quando na defesa mediata dos
individuais homogêneos e imediata do interesse difuso dos titulares do
poder estatal.
Retomando o aduzindo na investigação genérica, a natureza jurídica
do atuar ministerial, enquanto Órgão-Agente, dicotomiza-se. No âmbito
do processo civil tradicional atuará como pro populo, se e enquanto os
interesses forem despersonalizados e, contrário senso, quando
personalizados, como substituto processual de pessoa determinada.
O Ministério Público, enquanto guardião do Estado democrático de
direito, não age em prol de pessoa determinada, já que no âmbito de sua
atuação -- a dimensão jurídico-objetiva dos direitos fundamentais -- há
indeterminação absoluta dos sujeitos, conformando a conceituação dos
direitos difusos.
Nesse passo, claro é ver que o Ministério Público age em prol dos
titulares do poder, como longa manus do Poder Constituinte Originário,
para fiscalizar e para garantir a observância dos primados firmados no
Documento Fundamental.
Para a execução deste papel, ao Ministério Público foi outorgado o
poder-dever de agir para a defesa da dimensão jurídico-objetiva dos
direitos fundamentais. A atuação do Órgão, nesse passo, fulcra-se na
satisfação da sua função institucional, delineada pelas mãos do Poder
111
Constituinte Ordinário. A ação ministerial, portanto, é indisponível.
Contudo, comporta temperamentos, como ensina Hugo Nigro Mazzilli
103
,
já que há espaço para a conveniência e a oportunidade na investigação
da hipótese detonadora do agir.
Na posse destas premissas, investigue-se em qual moldura se
encaixa a atuação ministerial no tema-centro do presente ensaio.
Como parte pro populo, age o Ministério Público
(...) por não tolerar o Estado eventuais ameaças ou
violações a certos direitos objetivos que, pela inércia da
jurisdição ou ausência de legitimados, resultariam órfãos e vítimas
da organização estatal. Daí nascer parcela da faixa de atuação
ministerial, através de uma legitimação ordinária para a tutela
destes interesses ou direitos cuja garantia é atribuição do próprio
Estado.
104
A natureza jurídica do agir ministerial no cumprimento da missão
institucional multicitada parece se aproximar da figura de parte pro
populo, mas com ela, em verdade, não se identifica, vez que não há
espaço para a figura da legitimação ordinária, consoante se verá adiante.
Ademais, não age no interesse do Estado, mas daqueles que o
antecedem, daqueles que formulam a sua configuração, na mesma
medida em que não defende, na seara que se estuda, direitos
despersonalizados, porque como já se declinou antecedentemente, o
interesse defendido pelo Órgão Ministerial pertence aos titulares do poder
que apenas são indetermináveis, individualizadamente.
Os interesses difusos, que pertencem a toda a sociedade e
simultaneamente a cada um de seus membros, corporificam o valor em si
mesmo a ser protegido; desta feita, são subjetivamente difusos em
ambas as dimensões (subjetiva e objetiva); contudo, tal cenário não
importa despersonalização.
Por isso, a dimensão objetiva (jurídico-positiva) dos direitos
fundamentais é una e indivisível, de molde que nesta seara a
unitariedade é uma constante
105
.
103
A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 23
104
PORTO, Sérgio Gilberto. ob. cit., p. 27
105
Neste cenário, o pronunciamento jurisdicional será procedente ou improcedente para todos os titulares dos
direitos individuais mediatamente protegidos e potencialmente exigíveis, cuja configuração subjetiva sequer é
112
Em arremate, diferentemente do que ocorre na fisionomia pro
populo, não raro a tutela coletiva dos direitos individuais homogêneos
patrocinada pelo Ministério Público dirige-se contra o Estado-
Administração ou contra o Estado-Legislação, com o objetivo de compelir
à abstenção da invasão ilegítima na orla subjetiva dos indivíduos ou
determinar a ação para a garantia de direitos e implementação de
políticas públicas à efetivação dos direitos fundamentais.
Identificar-se-ia, então, com a figura da substituição processual?
Numa visão ortodoxa, tomando-se, v.g., os ensinamentos de
Sérgio Gilberto Porto
106
, a hipótese estaria afastada, já que não haveria
tutela de interesse de pessoa determinada, mas de uma pluralidade
subjetiva.
Assim, denota-se, de plano, a insuficiência dos critérios ordinários
para a configuração da natureza jurídica da legitimidade do Órgão-
Agente, na seara que se estuda.
Busque-se os balizamentos.
As questões que entornam o agir do Ministério Público no tema de
que se ocupa este trabalho não terão bom equacionamento se a
premissa cognitiva fincar raízes no paradigma das relações individuais,
porque destas, definitivamente, não se ocupa o Órgão, enquanto
guardião da implementação da democracia substancial.
Consoante já se assentou, renovadas vezes, o agir ministerial tem
em mira o interesse difuso dos titulares do poder estatal na
consubstanciação da superação do status quo vigente, engajado em
fazer cumprir as abstenções e as ações determinadas pelo Poder
Constituinte aos Constituídos.
Repise-se que a legitimação ministerial para defesa mediata dos
conhecida na cognitio, sendo tratados como coletividade determinável, salvo no caso de improcedência por falta
de provas (coisa julgada secundum eventum litis). A divisibilidade é inerente apenas à esfera subjetiva e lá
proceder-se-ão as peculiaridades, caso a caso. Contudo, o tratamento da esfera objetiva, o pronunciamento sobre
a lesão, é uníssono, uniforme, vinculativo a todos os integrantes do grupamento acidental (e por evidente ao
figurante no pólo passivo da lide), enquanto coletividade genérica, mas passível de determinação, padecendo, ao
parecer, de inconsistência sistêmica o artigo 103, III, CDC em combinação com o seu § 2º, ao estabelecer a
eficácia erga omnes secundum eventum litis absoluta, o que será abordado no contexto deste capítulo, adiante.
106
Conforme ob.cit., excertos identificados quando da investigação genérica, retro
113
individuais homogêneos decorre da indissociabilidade da dimensão
subjetiva dos direitos fundamentais -- que encampa os individuais
homogêneos -- à dimensão jurídico-objetiva -- âmbito da atuação
ministerial.
Contudo, não há que se pesquisar a natureza da legitimação
ministerial na defesa do Estado democrático de direito, tomando-se por
fonte os interesses individuais homogêneos, porque, em verdade, a eles
não se dirige o agir ministerial, imediatamente.
Destarte, a legitimidade ministerial para a defesa mediata dos
individuais homogêneos só será descoberta pelo aquilatar da correlação
destes com outro interesse, difuso, contido nas eficácias irradiante,
dirigente e vinculativa da dimensão jurídico-objetiva dos direitos
fundamentais.
Assim, se os Poderes Constituídos, os serviços de relevância pública
ou os particulares atingirem, por uma ação ou omissão, a esfera jurídica
de um grupo determinável de indivíduos, acidentalmente formado, esta
invasão, dada a relevância que alcança, transcenderá a simples esfera
individual dos diretamente lesados e atingirá o interesse difuso
107
de
efetivação dos direitos fundamentais inscritos na Constituição,
configurando hipótese legitimante do agir ministerial.
O Processo coletivo tem dois escopos gerais: a defesa dos interesses
essencialmente incindíveis (coletivos e difusos); o manejo da tutela
coletiva de interesses subjetivamente individuais, acidentalmente
coletivos (homogêneos), que, como já dito, contemplam igualmente uma
dimensão objetiva
108
e, portanto, indivisível.
A exemplo do ocorrente no âmbito do processo civil tradicional, que
se ocupa das relações individuais, a lei, em hipóteses pontuais, no
intuito de otimizar a defesa judicial de objetos indivisíveis (que imporiam,
em regra, o litisconsórcio necessário), autoriza que qualquer dos
107
Veja-se bem: o interesse defendido pelo Órgão Ministerial não está individualizado. A potencialidade de
individuação é característica ínsita à dimensão subjetiva dos direitos fundamentais, não à objetiva, que a todos
interessa.
108
e subjetivamente difusa, por excelência
114
legitimados concorrentes autônomos primários possa defender a coisa em
juízo, substituindo os demais co-legitimados.
No caso do processo coletivo, a inviabilidade da imposição do
litisconsórcio necessário desnuda-se mais contundente, pondo à mostra a
razoabilidade da legitimação extraordinária.
Calha mencionar que são impertinentes as objeções lançadas
nalguns escritos, acerca desta conformação da legitimidade, sob o
argumento que padeceria de atecnia pela impossibilidade de determinação
dos ordinariamente legitimados
109
, bem como pelo fato de serem os
substitutos processuais os atores processuais ordinários no âmbito da
tutela coletiva
110
.
Consoante se tem pretendido demonstrar, a fluidez da titularidade
dos interesses em causa não extirpa a dimensão subjetiva que lhes é
inerente, ao lado da esfera jurídico-positiva (objetiva), que é sempre e
inarredavelmente subjetivamente difusa.
De outra banda, os princípios informadores da legitimatio ad causam
do processo coletivo têm esta última por fonte; a primeira atua como
coadjuvante na aferição tópico-sistemática da relevância social da tutela
coletiva, bem como conforma as peculiaridades que devem nortear o
tratamento processual isonômico em seu sentido material, projetando
efeitos sobre os limites da coisa julgada
111
e à litispendência entre ações
109
Conforme aduz Luiz Paulo da Silva Araújo Filho in Ações Coletivas: A Tutela Jurisdicional dos Direitos
Individuais Homogêneos, Revista Forense, Rio de Janeiro, 2000, 93/94: "a concepção da legitimação em ações
essencialmente coletivas como extraordinária suscita a questão básica de saber qual seria então a hipótese de
legitimação ordinária, que, as mais das vezes, não é apontada, mas que deve existir, porque é óbvio que não se
pode conceber a legitimação extraordinária sem antes definir qual seria a legitimação ordinária para as ações
relativas aos interesses difusos e coletivos". No mesmo sentido: ABELHA, Marcelo. Ação Civil Pública e Meio
Ambiente. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003, p. 59, apud GODINHO, ob. cit., nota 49
110
Araújo Filho instiga que, se a "substituição" dos titulares do direito é a regra, soaria excêntrico tratar essa
legitimidade como "extraordinária", idem
111
Conforme se observa da diversidade de tratamento dos efeitos da coisa julgada, no artigo 103, CDC. Acerca
do aspecto, importante gizar que a eficácia erga omnes do julgado está tecnicamente restrita aos direitos
fundamentais subjetivamente difusos em sua dúplice perspectiva (jurídico-subjetiva e objetiva), porquanto é o
valor em si que está sob proteção; a eficácia erga omnes, na defesa dos interesses coletivos em sentido restrito
e na defesa coletiva dos individuais homogêneos, não tem a mesma latitude: os efeitos do julgado operam
ultra partes (tecnicamente correta a dicção do artigo 103, II, CDC), porque a eficácia da coisa julgada alcança
os titulares da dimensão subjetiva presentes e ausentes, salvo no caso de improcedência por falta de provas e
observado o disposto no § 2º do mesmo artigo. Num esforço semântico, pode-se entendê-la como erga omnes
nos limites da dimensão subjetiva dos direitos fundamentais em causa. A extensão da inteligência do artigo 103,
II, CDC aos individuais homogêneos será tratada alhures.
115
coletivas
112
.
Os interesses difusos, como já perfilado, pertencem a toda a
sociedade e simultaneamente a cada um de seus membros; por isso,
corporificam o valor em si mesmo a ser protegido. Tal não significa
despersonalização, mas mera inindividuação. No caso dos coletivos, a
esfera subjetiva plural é composta por um grupo determinável, que tem
como lastro uma relação jurídica em comum, una e indivisível. Nos
individuais homogêneos, os interesses subjetivos são perfeitamente
individualizáveis, de molde que seus titulares podem ser, em regra
113
,
facilmente identificados.
Assim, enquanto a subjetividade difusa é uma constante na
dimensão objetiva de todas as estirpes antes mencionadas -- há,
diagramando-se uma pirâmide, uma gradual desconcentração (na
dimensão subjetiva) dos interesses no movimento ascendente dos
individuais homogêneos (base) aos difusos (ápice), tendo por estágio
intermediário, os coletivos.
De toda a sorte, em qualquer das hipóteses, o Ministério Público age
como autor ideológico
114
da vontade geral
115
(juízo normativo do dever-
ser) em ver implementado o Estado democrático de direito, pela
efetividade das garantias que redundarão na concretização dos direitos
112
Como ensina MENDES, As Ações Coletivas..., p. 260, nas ações coletivas, não se obterá bons resultados na
aferição da litispendência em se considerando apenas a parte formalmente presente no processo, mas os titulares
do direito material posto em juízo. A respeito do tema, vale referir a Medida Provisória n.º 2180-35, que
introduziu o § único ao artigo 2º da LACP, com a seguinte redação: “A propositura da ação prevenirá a
jurisdição do juízo para todas as ações posteriormente intentadas que possuam a mesma causa de pedir ou o
mesmo objeto.” Ademais, a matéria recebeu tratamento no Projeto de Código Modelo de Processos Coletivos
para Ibero-América, art. 30, bem como no Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos, art. 7º.
113
A expressão foi propositada, vez que não se pode ignorar que, por vezes, a identificação dos titulares dos
interesses coletivos pode se afigurar mais factível e exauriente, ante a relação jurídica base como o liame comum
dos integrantes do grupo.
114
A locução guarda pertinência com a nomenclatura corrente das ações coletivas (ideological plaintiff), no
sentido de não estar o extraordinariamente legitimado defendendo em juízo, principalmente, o seu próprio
interesse, mas o do grupo ou da classe à qual está vinculado. Tais especificações serão abordadas, em sumário,
quando do exame do item 3.8.5. Contudo, no caso do Ministério Público, sob o enfoque que se pretende
demonstrar, não defende sequer principalmente o interesse do grupo diretamente afetado, posto que sua ação
tem mira no interesse transcendente que os guarnece e legitima e que por óbvio exorbita das idiossincrasias dos
fragmentos sociais. Assim, não há defesa ideológica de grupos definidos, mas a defesa coletiva da ideologia
difusamente amalgamada na sociedade brasileira enquanto substrato comum da consciência coletiva,
explicitada pelo vetor axiológico da dignidade da pessoa humana e o seu diálogo com os demais princípios
político-constitucionais.
115
A explicitação semântica da locução virá alhures (5º capítulo)
116
fundamentais assegurados na Constituição, substituindo o titular
transcendente daquela.
Sua legitimidade, portanto, é extraordinária
116
autônoma (a)
concorrente(b) primária(c), porque, a um só tempo, (a) está munida do
direito de ação; (b) não exclui a legitimidade atribuída a outros
legitimados
117
; e (c) independe da ação do ordinariamente legitimado, o
que, inclusive, na espécie, seria inoperalizável, dada a sua indeterminação
subjetiva (defesa imediata da dimensão objetiva).
Assim, a natureza jurídica da intervenção ministerial para a defesa
coletiva mediata dos interesses individuais homogêneos veste a
roupagem da substituição processual, inobstante distanciar-se dos
silogismos que definem este instituto processual no âmbito do processo
civil tradicional, que não é vocacionado para o equacionamento do tema.
A atuação ordinária do Ministério Público (e dos demais co-
legitimados) não tem o condão de transmudar a natureza jurídica da
legitimação extraordinária autônoma concorrente primária em ordinária,
despontando o equívoco como falacioso, data maxima venia.
No caso do Órgão-Agente, paladino por excelência (mas não
exclusivo) da vontade geral, a atuação sistemática
118
está a demonstrar
em concreto o comprometimento com as funções institucionais que lhe
foram acometidas; na seara dos individuais homogêneos, denota que a
sua postura avança no rompimento das barreiras do acesso material à
jurisdição.
Em sumário: o Ministério Público, enquanto Órgão-Agente da
implementação efetiva do Estado democrático de direito, assume a figura
de substituto processual dos titulares do poder estatal, porque age
119
,
em nome próprio na defesa de interesse cuja titularidade não ostenta.
116
já que não é titular do direito subjetivo que defende
117
como ocorre, v. g., na Ação Civil Pública, ex vi do art. 5º, da Lei 7.347/85.
118
No cenário jurídico nacional o Ministério Público tem atuação efetiva, propondo a maior parte das ações
coletivas em tramitação, o que torna necessário o controle jurisdicional da legitimidade, num diálogo de freios
e contrapesos, coibindo eventuais abusos
119
por expressa autorização da Lex Maxima, como se pode denotar da clara dicção do artigo 127, caput, do
Diploma Fundamental.
117
A questão da legitimidade ministerial para a defesa dos individuais
homogêneos, como se assentou, encontra esteio na reflexividade que o
cumprimento da função institucional deste Órgão estatal alcança na seara
da dimensão subjetiva dos direitos fundamentais, cuja efetividade
consubstancia-se no epicentro da verificação de uma democracia
substancial.
Nesta senda, tal natureza jurídica da legitimação ministerial
arrefece, s.m.j., a crítica da inibição da liberdade individual de decidir
quando seria ou não conveniente defender em juízo o direito lesado
120
.
Primeiramente, vale gizar, não existem direitos absolutos, todos
são contrastáveis por juízos de ponderação. O Ministério Público, em
agindo em prol da defesa imediata da dimensão objetiva (jurídico-
positiva), preocupa-se com a relevância social da tutela coletiva como
critério de acesso racional à jurisdição, donde palpita a preponderância
do interesse difuso sobre o do particular que pretende ver-se excluído dos
limites da coisa julgada formal e material.
Ademais, preserva-se a esfera de intangibilidade da liberdade do
singular ao admitir-se a sua intervenção no processo coletivo (na
qualidade de litisconsorte
121
), participando ativamente da formação do
contraditório da prova; outrossim, os efeitos da sentença de procedência
com eficácia condenatória genérica só se concretizarão no espectro de
sua orla jurídica se, sponte sua, postular a execução dos seus haveres,
sem prejuízo da hipótese de atuação subsidiária dos legitimados
extraordinários concorrentes autônomos
122
com reversão dos haveres
para o fundo criado pela Lei 7347, de 24/07/1985.
Sempre pontuando que o presente estudo circunscreve-se à
fundamentação jurídico-filosófica da legitimatio ad causam do Parquet na
120
Conforme Araken de Assis, verbis: “Conceber a esfera legitimante do parquet diversamente levaria à
aniquilação de direitos privados, à alteração, por órgão do Estado, do objeto litigioso, em qualquer demanda;
bastaria autorizar a intervenção do Ministério Público num organismo com poderes ainda maiores do que a
Prokuradura soviética” (TJ-RS — Apelação 92.13468-8 — 1a Câmara Cível)
121
Artigo 94 da Lei 8078/90
122
Conforme artigos 100, caput e 82, ambos do CDC, que informam todo o processo coletivo, como se verá
oportunamente
118
tutela coletiva dos individuais homogêneos, à luz da realidade brasileira,
cumpre apenas referir que evidentemente existem alternativas ao
sistema da coisa julgada secundum eventus litis moderado, vigente entre
nós
123
, que podem fornecer outra coloração a este quadro, como os
sistemas de inclusão (opt-in), ocorrente na Inglaterra, ou de exclusão
(opt-out), verificado nos Estados Unidos da América, sendo que este
último será abordado, an passant, quando do estudo dos tópicos de direito
comparado.
De outra banda, não se está a defender a idéia de que o singular
não pode defender direitos essencialmente transindividuais ou encabeçar
a tutela coletiva de direitos individuais homogêneos, o que já se
materializa corrente em diversos ordenamentos alienígenas, com os
temperamentos que lhe são pertinentes
124
, bem como encontra esteio
constitucional em nosso seio
125
.
A legitimidade do singular para a defesa coletiva de interesses de
natureza indivisível (difusos e coletivos stricto sensu) e de direitos
instrumentalmente coletivos (individuais homogêneos) advém do princípio
da inafastabilidade da jurisdição em consonância com a singela
constatação de que os valores-fonte estruturantes do Documento Maior
têm por titulares a coletividade (enquanto universalidade) e,
simultaneamente, cada indivíduo que a compõe, em representando o
organismo social do qual faz parte.
Nesta senda o fragmento (indivíduo), porque indissociado do todo
(sociedade), pode, legitimamente e em nome próprio, representar a
universalidade, e assim o fazendo estará em pleno exercício de cidadania
ativa.
Nesta conformação, bem se vê, a omissão infraconstitucional não
tem o condão de inibir a legitimidade do particular, que lhe é inata,
porque co-titular da decisão política fundamental que deu corpo ao
123
A versão absoluta do artigo 103, III, CDC será analisada ao depois.
124
Como ocorrente nas class actions norte-americanas e com a ação popular portuguesa, verbi gratia, temas que
não serão aqui abordados.
125
Veja-se, no aspecto, MENDES, Asões Coletivas..., p. 253/257
119
Documento Maior.
Não se trata, outrossim, de ampliação da legitimidade concorrente,
porquanto se cuida de legitimatio in re ipsa, não se podendo contrastar,
também, que o espaço ao particular se encontra delineado na ação
popular constitucional que, aliás, tem espectro bem limitado se
comparada à ação popular constitucional portuguesa
126
.
Tal questão, embora não seja tema deste estudo, poderá ser objeto
de aprimoramento pelo direito nacional, mormente pelo texto do Código
Modelo de Processo Coletivo Ibero-Americano, que prevê tal possibilidade,
em seu artigo 3º, I
127
, o que inclusive já é cogitado à luz do anteprojeto
de Código brasileiro de processo coletivo
128
.
Digno noticiar que a doutrina e jurisprudência brasileiras, em se
deparando com o tema da legitimação no campo do processo coletivo,
dividem-se em três flancos, classificando-a como a) extraordinária; b)
ordinária; c) autônoma.
Acerca deste último viés, vale transcrever a posição de Godinho
129
que, em substância, converge para o que se pretende demonstrar neste
estudo:
(...) Outro ponto a ser destacado é o da natureza da
legitimidade das ações coletivas, havendo intenso debate
doutrinário se trataria de legitimação ordinária, extraordinária ou
um terceiro gênero. Entendemos que esse debate é equivocado
por pretender trabalhar com categorias do processo individual, já
que não há necessidade de se buscar um paralelo necessário entre
os institutos processuais. Estamos diante de um processo com
suas peculiaridades próprias, dentre as quais avulta a questão da
legitimidade. Uma nova realidade não tem que se prender a
classificações antigas, que foram elaboradas diante de outra
realidade.
(...)
Entendemos que se trata de uma legitimação autônoma,
portanto, em qualquer hipótese de tutela coletiva. Essa ressalva é
necessária em razão de ser opinião corrente de que a legitimação
seria ordinária em se tratando de direitos difusos ou coletivos e
126
Veja-se acerca do tema GRINOVER, Ada Pellegrini, A Ação Popular Portuguesa : Uma Análise
Comparativa.In:___________. A Marcha do Processo. Rio de Janeiro : Forense Universitária, 2000, p.. 49-61.
127
Art. 3o. Legitimação ativa. São legitimados concorrentemente à ação coletiva: Art. 3o. Legitimação ativa. São
legitimados concorrentemente à ação coletiva: I – qualquer pessoa física, para a defesa dos interesses ou direitos
difusos de que seja titular um grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas por circunstâncias de fato;(...)
128
Conforme art. 9
o
. Legitimação ativa. São legitimados concorrentemente à ação coletiva: I – qualquer pessoa
física, para a defesa dos direitos ou interesses difusos; (...)
129
ob. cit.. p. 08
120
seria extraordinária quando se relacionasse com direitos
individuais homogêneos, em razão de estes últimos serem em
essência individuais. Não podemos concordar com esse raciocínio.
Como já exposto, os direitos individuais homogêneos possuem um
caráter complexo por adquirirem uma dimensão social, de modo
que a individualidade perde importância para fins de tutela
coletiva, tanto assim que o pedido veiculado deve ser genérico.
Retornando à linha de pesquisa da presente investigação, os
contornos da legitimação ministerial não ensejam o monopólio da dicção
da vontade geral pelo Parquet, que não é o único legitimado, mais um
dos que concorrem, em igualdade de oportunidades, a esta feição -
exigência do pluralismo que caracteriza o ethos de uma sociedade que se
pretende democrática; outrossim, não se encontra indene ao controle
jurisdicional, consoante se verá alhures; posição diversa, aliás,
transmudaria a legitimidade ministerial em arbitrária.
Por derradeiro, há que ser mencionado que a legitimação
parquetária recebeu idêntica classificação no Código Modelo de Processo
Coletivo Ibero-Americano.
130-131
3.5 DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA COMO INSTRUMENTO DE CONCRE-
TIZAÇÃO DA MISSÃO INSTITUCIONAL DO ÓRGÃO-AGENTE NA
DEFESA DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E SEUS REFLEXOS
NA DEFESA MEDIATA DOS DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS
A princípio, convém gizar, a Ação Civil Pública está inserta no rol das
garantias constitucionais aos Direitos Fundamentais, ao lado dos demais
remédios arrolados nos artigos 5º e 8º da Constituição da República
Federativa do Brasil e das ações para o controle concentrado da
constitucionalidade das leis.
130
Conforme se estabelece pela leitura combinada dos artigos 1º e incisos e 3º, III, verbis: Art. 1o. Cabimento
da ação coletiva - A ação coletiva será exercida para a tutela de: I - interesses ou direitos difusos, assim
entendidos os transindividuais, de natureza indivisível, de que seja titular um grupo, categoria ou classe de
pessoas ligadas por circunstâncias de fato ou vinculadas, entre si ou com a parte contrária, por uma relação
jurídica base; II - interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendido o conjunto de direitos
subjetivos individuais, decorrentes de origem comum, de que sejam titulares os membros de um grupo, categoria
ou classe. Art. 3o. Legitimação ativa. São legitimados concorrentemente à ação coletiva:(...)III - o Ministério
Público, o Defensor do Povo e a Defensoria Pública;
131
As questões da representação adequada, da prevalência do interesse comum sobre o particular e da utilidade
da tutela coletiva no caso em concreto serão apreciadas ao depois, no capítulo que tratará da colmatação do uso
abusivo das ações coletivas.
121
A afirmativa encontra respaldo na determinação constitucional que o
Ministério Público promova a referida ação para a defesa do patrimônio
público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e
coletivos, ex vi do artigo 129, III.
No decorrer do presente estudo, pensa-se ter demonstrado que o
norte do agir ministerial, quando, via reflexa, atinge direitos individuais
homogêneos, está no cumprimento de seu papel no Estado democrático
de direito, enquanto guardião da sua implementação e preservação.
Nesse passo, como já acentuado inúmeras vezes, substitui os
titulares do Poder Estatal, objetivando a proteção da dimensão jurídico-
objetiva de tais direitos, que placita um agir ou um abster aos Poderes
Constituídos, aos serviços de relevância pública e aos particulares, para a
efetividade da positivação dos direitos fundamentais encartados no
Documento Maior.
Como igualmente sublinhado, o interesse propalado pelo Órgão-
Agente é subjetivamente difuso, na medida em que pertence a todos os
titulares do Poder e a cada um de seus membros, concomitantemente.
Nessa medida, em preconizando o Legislador Constituinte que a
Ação Civil Pública é instrumento hábil para a defesa de outros interesses
difusos e coletivos, que não os expressamente consignados, encampa,
também, o interesse difuso que decorre da própria decisão político-
fundamental, consolidadora da missão ministerial que ora se busca ver
aclarada.
Diante da indissociabilidade das dimensões dos direitos
fundamentais, o órgão ministerial, como já se viu, ao defender
diretamente o interesse difuso que se concentra na proteção da dimensão
jurídico-objetiva dos direitos fundamentais, defende, mediatamente, a
dimensão subjetiva dos mesmos direitos.
Assim, uma questão de enfoque, a Ação Civil Pública, será
instrumento de defesa mediata dos direitos individuais homogêneos ao
mesmo tempo em que, atendendo à interpretação sistemática da Carta
Maior, instrumentaliza o agir ministerial para o cumprimento de suas
122
funções institucionais.
Digno de nota que o instrumento pode ser utilizado com caráter
preventivo
132
ou represssivo, o que desnuda sem pudor que a mera
iminência de malferimento das diretivas impostas pela dimensão jurídico-
positiva dos direitos fundamentais (verbalizadas pelas eficácias irradiante,
dirigente e vinculante, combinada ou isoladamente, dependendo do caso
em concreto) funciona como fator idôneo de ignição do pronunciamento
judicial
133
.
A polêmica do desvirtuamento da ação civil pública como
sucedâneo da Ação Direta de Inconstitucionalidade será estuda ao ensejo
da sedimentação da legitimidade ministerial no âmbito do direito
tributário, por uma questão didática, uma vez que tal objeção é
recorrente naquela seara.
Destarte, ao manejar o instrumento, o Ministério Público e os
demais extraordinariamente legitimados
134
estarão trazendo à tona a
132
Neste sentido, estamos revendo a posição anterior, adotada em nosso O MP na Defesa dos Individuais
Homogêneos. Rio de Janeiro: Aide, 2003, p. 95
133
Situando a questão à luz do Código de Defesa do Consumidor, vale salientar que a possibilidade da tutela
preventiva pode ser depreendida da leitura do artigo 29, verbis: “Para os fins deste Capítulo e do seguinte
equiparam-se aos consumidores todas as pessoas determináveis ou não, expostas às práticas nele previstas.”
Antônio Herman de Vasconcelos e Benjamin, sobre o tema, assim se pronuncia: “Como já referido, no conceito
do art. 29, basta a mera exposição da pessoa às práticas comerciais ou contratuais para que se esteja diante de um
consumidor a merecer cobertura do Código. (...)Um tal conceito é importante, notadamente para fins de controle
preventivo e abstrato dessas práticas. O implementador - aí se incluindo o Juiz e o Ministério Público - não deve
esperar o exaurimento da relação de consumo, para, só então atuar. Exatamente por que estamos diante de
atividades que trazem um enorme potencial danoso, de caráter coletivo ou difuso, é mais econômico e justo
evitar que o gravame venha a se materializar.” Código Brasileiro de Defesa do Consumidor Comentado pelos
Autores do Anteprojeto. 3.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária,1993, p. 147. Ademais, há que se pontuar
que a tutela preventiva vem prescrita como direito básico do consumidor, conforme art. 6º, incisos VI e VII, a
seguir transcritos: VI- a efetiva PREVENÇÃO e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos
ou difusos; VII- o acesso aos órgãos judiciários e administrativos, com vistas à PREVENÇÃO ou reparação de
danos difusos, assegurada a proteção jurídica, administrativa e técnica aos necessitados;”
134
Kazuo Watanabe sustenta que as associações têm legitimidade ordinária para a defesa de interesses coletivos
e difusos, in Tutela Jurisdicional dos Interesses Difusos: Legitimação para Agir, Revista de Processo, São
Paulo, n. 34, p.197-206. Veja-se os seguintes excertos: “ A penetração no âmago da associação, criada com o
fim institucional de promover a defesa de algum interesse difuso, deixará evidente que a pessoa jurídica é um
mero instrumento para a veiculação dos interesses dos próprios associados (...) A pessoa jurídica é, em suma,
uma transparência, uma visibilidade, um veículo apenas, e seu objetivo estatutário é o dos próprios membros(...)
Os interesses e objetivos dos associados são os mesmos da associação e presença desta em Juízo, tal como
ocorre nos casos em que o sistema jurídico se vale da técnica da veiculação dos direitos e interesses por meio de
entes não-personificados, equivale à presença de todos os seus membros, e até de outros co-titulares dos
direitos e interesses indivisíveis. Tem-se, aí, o que Cappelletti denomina parte ideológica. A associação, que
evidentemente, poderá ter interesses e direitos próprios em relação a seus bens, quanto aos fins estatutários age
pelos interesses de um grupo ou de uma categoria ou mesmo de uma coletividade inteira, ideologicamente
representados. A legitimidade da associação, portanto, é ordinária, e não extraordinária.”
123
bidimensionalidade dos direitos fundamentais, com a peculiaridade de
que o agir ministerial estará sempre e inarredavelmente focado na
defesa imediata da dimensão jurídico-objetiva e mediata da
dimensão subjetiva, equação não peremptória para os co-substitutos
processuais.
No que concerne à Ação Civil Pública enquanto instrumento para a
defesa mediata dos interesses individuais homogêneos, compatível com o
enfoque que se lhe emprestou neste ensaio, as palavras do eminente Rui
Luiz Burim, nos estudos preludiares da Lei 7.347/85:
É evidente que a lei nova, trazendo uma atribuição nova,
através da ação civil pública, reforça o entendimento de que o
promotor é o advogado do povo. Sem dúvida será preocupação
importantíssima, a partir de agora, muito mais que até agora,
fazer com que este promotor do povo atraia a confiança do povo,
para que o povo vá até ele e ofereça a reclamação.(...)
135
A figura do “Advogado do Povo” denota, de per se, a estirpe de interesses que são agitados pela
atuação ministerial. Se estão fusionados a outros, ou se lhes contêm, por uma inerência sistêmica, a proteção
alcançada a estes últimos não deve assumir papel-centro, olvidando-se a que lhes sobrepuja.
Diante da fisionomia da Ação Civil Pública, enquanto instrumento
concorrentemente adequado para garantir a efetividade dos Direitos
Fundamentais inscritos na Constituição da República Federativa do Brasil,
alguns temperamentos hão de ser feitos à Lei 9.494/97, que modificou
os limites subjetivos da coisa julgada do remédio, transmudando-a de
erga omnes, para “erga omnes, nos limites da competência
territorial do órgão prolator, exceto se o pedido for julgado
improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer
legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-
se de nova prova(Nova redação do artigo 16 LACP).
A inserção da locução limitativa antes grifada padece de
inconstitucionalidade
136
.
A interpolação, a um só tempo, infringe o princípio político-
135
Revista do MP/RS, Porto Alegre, Ed. Especial, 1986, p. 60 [ in debates à conferência de Hugro Nigro
Mazzili, constante nestes anais]
136
e pode ser inserida na segunda onda de mitigação das garantias constitucionais e, reflexamente, dos direitos
fundamentais que estariam aptas a instrumentalizar (mitigação por lei infraconstitucional, em sentido formal e
material).
124
constitucional que estrutura o Estado brasileiro como Estado democrático
de direito, e malfere o princípio da reserva da lei, consoante se verá.
Os estudiosos dos Direitos Fundamentais asseguram que a divisão
dos Poderes é a mais efetiva das suas garantias.
No Brasil, ante a introdução do sistema proporcional para a escolha
dos representantes do povo, a força política do Casa Legislativa de
representação popular está repleta de mandatários da região nordeste,
mais numerosa em Estados, em detrimento da su-sudeste,
tradicionalmente mais politizada e, por isso, contestadora do status quo.
Esta realidade favorece a usurpação da função legislativa pelo
Poder Executivo, como está a demonstrar a regulação maciça das relações
sociais por meio de medidas provisórias, com a conseqüente ampliação
do terreno para normatizações casuísticas, e em muito contrapostas ao
interesse público.
Assim, medidas provisórias que, em tese, só poderiam ser editadas
mediante comprovada relevância e urgência da matéria, são exaradas
diuturnamente, sob o manto da discricionariedade presidencial na
avaliação do binômio.
Antes da Emenda Constitucional n.º 32/2001, que deu nova redação
ao artigo 62 do Texto Maior, sensível aos abusos cometidos diante da
maior flexibilidade do texto originário, o Supremo Tribunal Federal,
apreciando a questão em enfoque, firmou que haverá idoneidade na
reedição
137
, realizada dentro do prazo de vigência do ato quase-legislativo
de natureza cautelar, sempre que, por mora legislativa, a medida não
tenha sido objeto de apreciação no termo fixado pelo Legislador
Constituinte, tendo em vista o perigo que o vazio legislativo possa
trazer às relações sociais, erigidas a jurídicas, por meio do instrumento
legislativo vulgarizado, mas que deveria ser excepcional.
A pergunta é, por que há mora legislativa?
A Lei em comento teve nascedouro na medida provisória 1.570/97
que, nascida com três artigos, teve sustado, provisoriamente, o seu
125
artigo segundo em liminar concedida em Ação Direita de
Inconstitucionalidade
138
e seu artigo primeiro enfocado numa Ação Direta
de Constitucionalidade
139
. O terceiro, tornado segundo em vista da
suspensão noticiada, introduziu a modificação legislativa que enfeixa a
limitação à coisa julgada na Ação Civil Pública, como sobredito.
A sistemática dos limites subjetivos da coisa julgada implementada
pela Lei 7.347/85 sofreu remodelação pelo código Consumerista
140
, tendo
em vista a reciprocidade que os enlaça
141,
conforme a nova redação do
artigo 21 da LACP por aquele introduzida.
Em verdade, consoante já se aduziu, no âmbito do processo
coletivo, o Código Consumerista constitui-se no instrumento-fonte, vez
que estabelece os contornos dos institutos que lhe são caros, tratando-os
sistematicamente.
Nem se diga que o regramento seja estanque à tutela coletiva dos
direitos individuais homogêneos, tomando-se a especificação da epígrafe
do Capítulo II do Título III da Lei 8078/90 pelo todo, vez que tal
interpretação esbarra na sistematicidade orgânica da Lei 8078/90 no que
concerne ao traquejo dos institutos do processo coletivo.
Neste ensejo, vale colacionar a opinião esboçada por Mendes
142
, ao
perfilar o estudo das regras de competência do CDC em cotejo com as
havidas na Lei da Ação Civil Pública:
(...)Embora inserido no capítulo atinente às “ações
coletivas em defesa dos interesses individuais homogêneos”, o
137
Tribunal Pleno, ADI-MC 1610/UF , Relator Ministro Sydney Sanches, j. 28/05/97, DJ 21/11/97, p. 63948
138
ADIN 1576-1, Relator Ministro Marco Aurélio, apreciação da liminar em 16/04/97
139
ADC n 4, Relator Min. Sydney Sanches, cuja liminar, apreciada em 11/02/98, DJ 13/02/98, tem o
seguinte teor: “O Tribunal, por votação majoritária, deferiu, em parte, o pedido de medida cautelar, para
suspender, com eficácia ex nunc e com efeito vinculante, até final julgamento da ação, a prolação de qualquer
decisão sobre pedido de tutela antecipada, contra a Fazenda Pública, que tenha por pressuposto a
constitucionalidade ou a inconstitucionalidade do art. 1º da Lei 9.494, de 10/9/97, sustando, ainda, com a
mesma eficácia, os efeitos futuros dessas decisões anteciparias de tutela já proferidas contra a Fazenda Pública,
vencidos, em parte, o Ministro Néri da Silveira, que deferia o medida cautelar em menor extensão, e,
integralmente, os Ministros Ilmar Galvão e Marco Aurélio, que a indeferiam. Votou o Presidente.”
140
Desta feita, estamos revendo, in totum, a posição adotada em nosso O MP na Defesa dos Individuais
Homogêneos. Rio de Janeiro: Aide, 2003, p. 97/99
141
neste sentido, v.g., José Marcelo Menezes Vigliar, in A Lei 9.494, de 10 de setembro de 1997, e a Nova
Disciplina da Coisa Julgada nas Ações Coletivas: Inconstitucionalidade, Revista dos Tribunais, São Paulo, n.
745, p. 67-72, p. 69
142
As Ações Coletivas...,p. 213/232
126
artigo 93 do CDC rege todo e qualquer processo coletivo,
estendendo-se às ações em defesa de interesses difusos e
coletivos. Não há como não utilizar aqui, o método integrativo,
destinado ao preenchimento da lacuna da lei, tanto pela
interpretação extensiva (extensiva do significado da norma) como
pela analogia (extensiva da intenção do legislador).
(...)É necessária coerência interna do sistema jurídico que
exige a formulação de regras idênticas em que se verifica a
identidade de razão. Se o artigo 93 do CDC fosse aplicável apenas
aos interesses individuais homogêneos, o resultado seria a regra
da competência territorial de âmbito nacional ou regional só para
as ações em defesa dos aludidos direitos, enquanto nos processos
coletivos para a tutela de interesses difusos e coletivos a
competência nacional ou regional ficaria fora do alcance da lei. O
absurdo do resultado desta posição é evidente, levando a seu
repúdio pela razão e pelo bom senso, para o resguardo do
ordenamento.
A Ação Civil Pública, em seu nascedouro, restou circunscrita
143
à
tutela dos interesses essencialmente coletivos (coletivos em sentido
restrito e difusos
144)
nela encampados. O incremento internado pela Lei
8.078/90, em externalizando a dimensão jurídico-objetiva e, portanto,
subjetivamente difusa dos direitos do consumidor como exteriorização da
dignidade da pessoa humana no mercado, inaugurou instrumental para a
defesa coletiva dos direitos individuais homogêneos ao lado do
aprimoramento do acervo destinado à defesa dos direitos incindíveis
145
.
A explicitação do cabimento da tutela dos interesses coletivos em
sentido restrito, pela Lei da Ação Civil Pública, ultimada pela dicção do
Código Consumerista (artigo 117), visou ceifar improducentes
controvérsias quanto à incompreensão daqueles e dos difusos como
integrantes de uma mesma categoria (a dos essencialmente coletivos). A
par disso, dando corpo à complexidade que encerra a transindividualidade
143
Em face do veto ao inciso IV do artigo 1º, que traduzia a vocação do instrumento ao habilitá-lo para a tutela
coletiva de qualquer direito ou interesse coletivo ou difuso
144
expressão esta criticada por Galeno Lacerda, que, por ser diáfana, não bem explicitava que, em verdade, a
Lei 7.347/85 instrumentaliza a proteção dos interesses fundamentais da sociedade, ponto de tangenciamento
com a proposta deste ensaio, in ob. cit., p. 13. Veja-se: “ Adianto que não gosto desta expressão. Ela está
consagrada na doutrina, está consagrada na doutrina em vários textos, mas não me agrada, porque eu acho muito
vaga, muito vago este adjetivo “difuso”. Muito vago e inexpressivo. Que tipo de direitos seriam estes? Direitos
sem conteúdo, diáfanos. E na verdade nós estamos em presença de direitos fundamentais do homem enquanto
pessoa em sociedade, enquanto membro de uma comunidade que pode ser agredida a todo e qualquer momento
pela poluição, pelos atentados à ecologia, agressões contra o consumidor, uma preocupação muito importante da
nova lei. Esses interesses não são difusos, são interesses fundamentais, interesses eminentemente concretos,
muito mais importantes que os direitos subjetivos individuais.” [ Ação Civil Pública, in Revista do Ministério
Público do RS, Edição Especial, 1986, p. 13.
145
Acerca da diferença entre defesa coletiva de direitos individuais e defesa de direitos coletivos, veja-se a
127
inerente ao processo coletivo, despertou a inerte vocação do documento
também para a tutela dos individuais homogêneos
146
.
De outra banda, corrigiu-se o equívoco inicial em pretender dar à
ação civil pública amarras temáticas, placitando-a como instrumento hábil
à tutela coletiva de quaisquer direitos transindividuais, observada a
relevância social no exame aporético.
Renova-se que na Ação Civil Pública intentada pelo Ministério
Público, a defesa coletiva da esfera subjetiva dos interesses de titulares
identificáveis (coletivos em sentido estrito e individuais homogêneos), só
caberá porque mediata, em decorrência da impossibilidade de incisar a
bidimensionalidade do direitos fundamentais; inobstante, não descuidará
o Órgão do seu objetivo primeiro, a proteção da eficácia da dimensão
objetiva, enquanto vontade geral da qual emana a relevância social da
tutela coletiva, locus da legitimidade de seu agir.
Assim, bem se vê, desponta assistemático aduzir que o artigo 103
do Diploma Consumerista trataria exclusivamente da coisa julgada nas
ações coletivas nele previstas, de modo que o seu transporte dialógico
para a seara da Ação Civil Pública desponta natural.
Contudo, há que se ponderar que o artigo em exame (103, CDC)
padece de atecnia e inconsistência sistêmica ao estabelecer, em seu
inciso III
147
, eficácia erga omnes secundum eventum litis em sua
acepção absoluta, vez que só incidente em caso de procedência do
pedido, inaugurando discrimen irrazoável no manejo do instituto.
À guisa de compreensão da crítica proposta, cumpre inicialmente
coligir, em sumário esboço, a nomenclatura que acerca o fenômeno da
coisa julgada, apartando terminologicamente eficácia e efeitos.
A eficácia da coisa julgada pode ser compreendida como a
potencialidade do conteúdo da sentença, como algo que lhe é intrínseco
sempre esclarecedora lição de Teori Zavaski, no artigo multicitado neste trabalho
146
Nem se diga que tal interpretação estaria equivocada em se considerando a menção, no artigo 117 do CDC,
apenas a direitos individuais, sem a adjetivação homogêneos. Isto porque, como já foi cansativamente referido,
os interesses individuais homogêneos, enquanto acidentalmente coletivos (acidente de coletivização
instrumental) permanecem essencialmente individuais.
147
Que disciplina a matéria na seara dos individuais homogêneos
128
(interno), e que se exterioriza por meio de seus efeitos, descortinando os
limites objetivos (matéria decidida) e subjetivos (aqueles que estão
submetidos à autoridade da coisa julgada) da decisão qualificada pela
imutabilidade
148
.
A objeção à redação do artigo 103, III, CDC desdobra-se em dois
argumentos principais.
Primo, porquanto a eficácia erga omnes do julgado está
tecnicamente adstrita aos direitos fundamentais subjetivamente difusos
em suas duas dimensões (jurídico-subjetiva e objetiva), porquanto é o
valor em si (interesse subjetivamente difuso, que pertence a cada um e
simultaneamente a todos os cidadãos
149
) que está sob proteção
150
. A coisa
julgada na defesa dos interesses coletivos em sentido restrito não tem a
mesma latitude: os efeitos do julgado operam ultra partes
(tecnicamente correta a dicção do artigo 103, II, CDC), porque a eficácia
alcança os titulares da dimensão subjetiva presentes e ausentes
151
, salvo
no caso de improcedência por falta de provas e do constante no § 1º do
mesmo artigo. Num esforço semântico, pode-se entendê-la como erga
148
Não se tratará neste estudo da intrincada questão da relativização da coisa julgada, tema que tem redobrado
fôlego para diversos escritos e exorbita das cercanias metodológicas do problema em abordagem. Contudo,
podemos sinalar nossa posição favorável ao fenômeno quando e na medida em que, excepcionalissimamente, o
julgado constraste materialmente com a Constituição ou com a sua idéia reguladora antecedente. Ademais,
concordamos inteiramente com o Professor de todos nós, Sérgio Gilberto Porto, quando diz, parafraseando
Canotilho, que a relativização da coisa julgada dever-se-á dar em estrita consonância com Documento Maior,
em respeito à sua configuração (da coisa julgada) como um dos “conceitos fundamentais de estabilidade e
previsibilidade na convivência jurídica”, não sendo possível admitir a sua singela desconsideração e simultâneo
rejulgamento, sob pena de configuração de arbítrio, sendo necessária a prévia desconstituição da res judicata e,
ao depois, a submissão do conflito à nova apreciação. (Segurança Jurídica dos Atos Jurisdicionais e
Relativização da Coisa Julgada, inédito)
149
Aqui empregado no sentido de ter direitos intangíveis (acepção ampla) e não como a potencialidade de
aquisição e exercício de direitos políticos pelos nacionais (acepção restrita)
150
Insta registrar que, dada a bidimensionalidade dos direitos fundamentais, mesmo os interesses
subjetivamente difusos não ignoram a perspectiva subjetiva. Contudo, no mais das vezes o objeto da ação não
contempla espaço para titulações subjetivas, porquanto restringem-se a faceres ou non faceres ou a condenações
para fundos de natureza coletiva, vinculados à proteção ambiental. Sem embargo, se o pedido, para além do
predito, contemplasse uma condenação genérica para todos os lesados pelo dano ambiental verificado, a
eficácia da sentença que protege o valor em si (a salubridade do meio ambiente) contemplaria uma eficácia
objetiva, que atine à proteção da dimensão jurídico-positiva (direito fundamental como normatividade) ao
mesmo tempo em que encerraria uma potencialidade(eficácia) subjetiva (embora absolutamente indeterminada
na fase da cognitio), gerando a titulação para a execução de pretensão singular, por meio de prévia habilitação
na fase executória, individualmente e a tempo e modo.
151
Veja-se o caso das ações coletivas ajuizadas por Sindicatos: estarão submetidos aos efeitos da coisa julgada
não só os representados pelo ente sindical, mas todos os membros da categoria atingida.
129
omnes
152
nos limites da dimensão subjetiva dos direitos fundamentais em
causa.
Idêntico tratamento, ao parecer, merece a coisa julgada na defesa
coletiva dos individuais homogêneos, posto que a esfera subjetiva – a
exemplo dos coletivos stricto sensu -- é determinável, o autor ideológico
está qualificado para o encargo (o que torna a decisão sobre a pretensão
deduzida em juízo idônea para vincular todos os possíveis integrantes do
grupo acidentalmente formado
153
, presentes ou ausentes), a divisibilidade
da esfera subjetiva poderá ser competentemente defendida na fase
executória.
Não obstante, merece assento -- com fulcro na bidimensionalidade
versada por Canotilho - que na cognitio deve prevalecer a unitariedade
do tratamento da esfera objetiva dos direitos fundamentais, ou seja, o
Estado-Juiz deve dizer de maneira coesa, útil e econômica se a lesão
existiu, impondo a condenação genérica, hipótese mais comum; ou, em
atendendo os limites objetivos da postulação (que pode ter cunho
inibitório, numa visão mais altiva, alicerçada na prevenção, ter índole
cautelar, v.g.), dar o direcionamento requerido, podendo-se falar, neste
diapasão, em “eficácia objetiva”
154
do julgado, correlata à proteção da
dimensão jurídico-objetiva, ao direito fundamental enquanto
normatividade. Se o pedido da ação coletiva for improcedente, os
efeitos da coisa julgada não prejudicarão os direitos
155
dos titulares da
dimensão subjetiva dos interesses postos em causa (por simetria ao
artigo 103, § 1º) e, em caso de falta de provas, a ação poderá ser
proposta por qualquer dos legitimados.
Em reforço, ensina Ada Pellegrini Grinover que na ação coletiva para
a defesa de interesses individuais homogêneos, “(...) o objeto dos
processos é inquestionavelmente diverso, consistindo nas ações coletivas
na reparação ao bem indivisivelmente considerado, ou na obrigação de
152
dicção do artigo 16 LACP
153
muito embora não seja conhecido em sua extensão subjetiva, na fase da cognitio
154
Locução da lavra e responsabilidade da ensaísta, que não se confunde com os efeitos
155
já adquiridos
130
fazer ou não fazer, enquanto as ações pessoais tendem ao ressarcimento
pessoal”.
156
Neste diapasão, na tutela coletiva dos individuais homogêneos
157
a
“eficácia subjetiva”
158
da coisa julgada tem espaço na fase executiva,
âmbito do exercício das pretensões individuais certificadas genericamente
na cognitio.
Secundo, porquanto a eficácia da coisa julgada secundum eventum
litis absoluta é criticada por doutrinadores de escol, como Cappelletti
159
,
por ser contraproducente (não evita a reprodução processual do caso,
inobstante já decidido no âmbito da tutela coletiva contrariamente ao
defendido pelo autor ideológico), incompatível com os fins da
representação adequada
160
e precursora de situação antiisonômica,
impondo à contraparte do legitimado extraordinário a sujeição a novos
processos.
Evidente que houve hipervalorização da proteção à orla jurídico-
subjetiva dos membros ausentes que, em caso de improcedência (por
qualquer fundamento), poderão ajuizar as ações individuais que
entenderem cabíveis (§ 2º do artigo 103, CDC).
Corolariamente e em tese
161
, entendeu o legislador ordinário em
mitigar a utilidade bilateral do processo coletivo, posto que o demandado
na ação para a defesa coletiva de individuais homogêneos terá que se
sujeitar, em caso de improcedência, mesmo com o exame meritório, a
novas demandas a serem propostas pelos membros ausentes,
individualmente. Pragmaticamente, contudo, a utilidade pretensamente
relativizada mostrar-se-á hígida, posto que o julgado terá efeito
dissuasório sobre novas demandas; aqueles que permanecerem resolutos
156
Código Brasileiro de Defesa do Consumidor: Comentado pelos Autores do Anteprojeto. 6ªed., Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2000, p. 830
157
E também dos essencialmente coletivos
158
Locução sob a responsabilidade da ensaísta
159
Conforme MENDES, “As Ações Coletivas...”, p. 105/106
160
Os contornos da idéia de representação adequada serão ao depois vistos, ao exame do controle jurisdicional
da legitimação ministerial
161
MENDES, “As Ações Coletivas...”, p. 263/264, entende que tal diferenciação é irrazoável, malferindo o
princípio da isonomia
131
terão de enfrentar o poderio técnico-econômico daqueles contra os quais
irão litigar, quedando-se, no mais das vezes, sucumbentes.
Contudo, é pela irrazoável contraproducência no tocante ao acesso
material à jurisdição que a coisa julgada, assim equacionada, não atende
os preceitos que norteiam o escopo do processo coletivo, devendo-se
estender, numa leitura consoante, o tratamento verbalizado no inciso II
do artigo 103 para os individuais homogêneos, o que nos remete para a
higidez do artigo 16, da LACP, em sua redação original
162
, porque
compatível com os vetores estruturantes do processo coletivo, concebidos
no CDC
163
.
Assim, abertos os umbrais de pesquisa ao âmago do instrumento,
no âmbito da proteção da dimensão objetiva dos direitos fundamentais a
sentença da Ação Civil Pública tem, quer pela dicção singular do art. 16,
da retrocitada lei, quer pela sua combinação com o art. 103, II do CDC,
eficácia erga omnes (mas, no que concerne à dimensão subjetiva, incide
nos limites da configuração dos interesses postos em juízo).
Pois bem.
O Executivo, no bojo da referida medida provisória, posteriormente
convertida na Lei 9494/97, reduziu tal eficácia, ao torná-la estanque à
esfera da competência territorial do órgão prolator
164
.
162
Erga omnes, mas entendida sob duas nuances (para os coletivos estrito senso e individuais homogêneos): a)
nos limites da configuração subjetiva dos potenciais titulares das pretensões exigíveis na fase executória
(“eficácia subjetiva”) e b) erga omnes, propriamente dita, no que concerne à proteção da dimensão jurídico-
objetiva do direito fundamental em causa, titulando mediata e genericamente pretensões que poderão, mediante
prévia qualificação, ser exercidas na fase executória, mas impondo ações ou omissões aos destinatários do ato
sentencial, desde logo e independentemente da volição dos titulares das pretensões divisíveis e disponíveis, em
regra (“eficácia objetiva”).
163
Neste passo, discordamos, data maxima venia, do aludido por MENDES, “As Ações Coletivas...”,p. 264, no
sentido da revogação do artigo 16 da LACP pelo artigo 103 do CDC, aos auspícios do artigo 2º, § 1º, parte final
LICC. Se é bem verdade que o regramento instrumental introduzido pelo CDC não se circunscreve ao terreno
das ações coletivas da seara consumerista, não menos verdadeiro é que o artigo 117 do CDC determinou a sua
incidência à LACP, naquilo que fosse cabível, donde de deduz que os institutos por ela regulados, dentre os
quais os efeitos da coisa julgada, permaneceriam sem retoques, salvo se tivessem dicção mais restritiva que a do
novel instrumento, o que não se verifica, sendo mais um argumento em reforço da higidez técnico-sistemática da
redação original do artigo 16 da LACP.
164
MENDES, “As Ações Coletivas...”, p. 264, menciona que o texto em questão sofreu outra remodelação
restritiva por meio de sucessivas medidas provisórias, passando os efeitos da coisa julgada a vincular apenas os
substituídos que tivessem, na data da propositura da ação, domicílio no âmbito da competência territorial do
prolator. Contudo, consoante consulta ao site da Presidência da República,
http://www.presidenciadarepublica.gov.br/ccivil_03/Leis/principal_ano.htm, em 21/06/2006, a redação do artigo
16 da LACP continua sendo a determinado pela Lei 949497, verbis: Art. 16. A sentença civil fará coisa julgada
132
É bem verdade que cabe à lei federal regular matéria processual e
que a coisa julgada faz parte desta seara. Mas, como visto, a
discricionariedade legislativa não é ilimitada, mas refratária dos princípios
político e jurídico-constitucionais e dos princípios-garantia.
Uma análise pragmática revela que a inovação legislativa,
reflexamente, interfere nas atribuições ministeriais, fazendo com que seja
necessária uma porção de Ações Civis Públicas, para o efeito que uma
única ação desta estirpe produzia antes.
Assim, enquanto anteriormente um único Agente Ministerial poderia
propor a Ação Civil Pública, cuja sentença, enquanto comando concreto,
poder-se-ia impor a todos, agora, ante a prisão ao aspecto territorial, são
necessários inúmeros Agentes, tantos quanto suficiente para o
atingimento do mesmo efeito prático, qual seja, a universalização do
efeito da coisa julgada material.
Assim, introduzindo a nova lei redução das atribuições ministeriais,
está maculada pela inconstitucionalidade formal, vez que tal só se
poderia dar através de Lei Complementar, seja da União, seja dos
Estados, na forma preconizada pelo artigo 128, § 5º, da Carta
Constitucional de 1988.
Nesta esteira, valorosas as palavras de Cândido Alfredo da Silva
Leal Júnior:
A restrição que o art.2º da MP 1570-3/97 traz à
legitimidade do Ministério Público Federal (e à competência deste
Juízo) é inconstitucional frente ao que dispõe o art. 128-§ 5º e o
art. 129-III da CF/88. A inconstitucionalidade decorre de que as
atribuições do Ministério Público Federal, no tocante ao
ajuizamento de ação civil pública, têm previsão constitucional (art.
129, III), sendo que a organização e distribuição destas
atribuições entre os Membros da instituição é matéria que somente
pode ser tratada por lei complementar (art. 128-§5º da CF/88).
Desta forma, não poderia a medida provisória (MP 1.570-3/97)
limitar a competência territorial para conhecimento de ação civil
pública porque estaria, de forma indireta e em afronta ao texto
constitucional, restringindo a esfera de atribuições dos Membros
erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator, exceto se o pedido for julgado
improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com
idêntico fundamento, valendo-se de nova prova. (Redação dada pela Lei n.º 9.494, de 10.9.1997). A
s alterações
mencionadas por MENDES não constam no texto compilado da norma (Lei 7347/85), sendo que a MP 2180-33
e suas sucessivas reedições não placitam qualquer modificação à redação do artigo 16 da LACP, mas aos artigos
1º e 2º da mesma Lei, conforme artigo 6º da referida medida provisória, o que será tratado ao depois.
133
do Ministério Público Federal através de atos sem a necessária
força normativa (medida provisória não é a lei complementar
exigida no § 5º do art. 128 da CF/88).
165
Ademais, a alteração legislativa infringe o Estado democrático de
direito, na medida em que mitiga uma das garantias constitucionais
postas à defesa dos direitos fundamentais, fazendo eclodir a sua
inconstitucionalidade material.
Este o ponto nodal.
Ao forçar a pulverização de ações, reedita o colapso na segurança
jurídica, em vista da inevitável contraditoriedade que haverá de cercar as
inúmeras decisões judiciais em relação à mesma problemática.
Neste norte, impressiona como possa a Lei em referência ignorar
completamente a proteção à coisa julgada, um dos princípios-garantia
arrolados na Carta de Direitos Fundamentais positivada no Documento
Maior, na medida em que faz desabrochar hipótese em que, inobstante
a identidade de partes, objeto e causa de pedir, um juiz possa julgar
questão anteriormente decidida por outro, no mesmo sentido,
contrariamente, ou criando posição eclética.
Novamente é de alvitre trazer à baila que os preceitos do processo
civil tradicional não são adequados para o bom equacionamento da
celeuma.
Assim, mesmo a objeção da divergência de autores ideológicos em
cada uma das demandas coletivas não procede como argumento
contrastante à litispendência
166
e à coisa julgada entre ações coletivas,
vez que a tendência é considerar-se tal questão de somenos, já que é
caso de legitimação extraordinária, devendo o tema ser solvido pelo
exame do alcance da dimensão subjetiva em causa, verificando-se se a
demanda limita-se a atingir um grupo acidentalmente formado, um
grupamento onde seus componentes tenham entre si um vínculo comum
165
Juiz Federal da 5ª Vara Federal de Porto Alegre, liminar na ACP 97.0012192-5-RS, exarada em 11/07/97.
166
Acerca da litispendência, há que ser referida a crítica ferrenha de MENDES, “As Ações Coletivas...”, p. 261,
ao artigo 104, CDC. Após dizê-lo cabível apenas nas hipóteses dos individuais homogêneos, lamenta a omissão
quanto a um dos critérios de vinculação do indivíduo ao processo coletivo, admitindo ações individuais a ele
simultâneas, deixando de priorizar a tutela coletiva como critério de acesso racional à jurisdição, minando o seu
escopo. A questão foi revista no Anteprojeto de Código Brasileiro de Tutela Coletiva, artigo 33, parágrafos 1º,
134
ou uma coletividade difusamente considerada.
No caso do Órgão-Agente, dada a unidade e a indivisibilidade que
lhe são inerentes, verifica-se que a questão toma maior assento,
agredindo o bom senso.
Enfraquecendo-se a garantia, dissolve-se a efetividade dos direitos
fundamentais, corrompendo-se o pilar maestral da democracia
substancial.
Ainda, numa visão macro, não é de todo desassisado ponderar que
houve, corolariamente, ingerência ao princípio do juiz natural, na medida
em que as regras de competência receberam alteração casuística e sem
qualquer razoabilidade constitucional, alterando aquilo que o fenômeno
da recepção de leis ordinárias pela Constituição (dentre as quais, a Lei
7.347/85, e seu artigo 16), havia assentado.
Ademais, considerando que todos os juízes estão investidos na
jurisdição, una e indivisível, os critérios de competência não a mitigam se
a preservarem como externalidade autêntica do poder soberano, mas a
organizam funcionalmente a fim de otimizar o acesso daqueles que a
buscam. Neste passo, as limitações introduzidas no artigo 16 da LACP, por
não buscarem atingir a excelência, mas por restringirem o espectro de
incidência normativo-pragmática da sentença a ser proferida em processo
coletivo, de exponencial relevância social, falece por inconstitucionalidade,
por agredir frontalmente o princípio da inafastabilidade da jurisdição
167
,
que não pode ser mitigado por recursos escusos.
Nem se diga que a lacuna estaria suprida pelo princípio da
federação
168
, vez que a eficácia erga omnes da sentença exarada em ação
civil pública não o desafia. A Federação só pode sobreviver conforme os
primados fundamentais assentados pelo Poder Constituinte Originário; a
eficácia erga omnes do remédio constitucional, assim como ocorre com a
Ação Popular, está a serviço deste molde e a questão se resolve
2º e 3º.
167
Com reflexos sobre o princípio do juiz natural
168
Galeno Lacerda preocupa-se com a questão da compatibilização da eficácia erga omnes e o princípio
federativo, consoante expõe in Rev. do MP-RS, Ed. Especial, 1986, p. 28/29
135
sistematicamente à luz do artigo 93 do CDC.
Esta é a visão, s.m.j.
Em posição diametralmente oposta à defendida neste estudo, v.g.,
a interpretação que verte do caso colacionado por Justino Adriano Farias
da Silva
169
.
169
Ação Civil Pública - Interesses Individuais Homogêneos, Revista de Processo, n. 31, p. 330-343, out.-
dez.1996: (...)I- Das alegações da inicial.1) O Ministério Público estadual, representado por um de seus
membros, afora a presente ação civil pública contra a CESA, alegando que, contrariando a legislação em vigor,
especialmente o Código de Defesa do Consumidor, vem ela comercializando sobras de produtos armazenados
em seus depósitos localizados no interior do Estado.2) Alega que relatório circunstanciado do egrégio Tribunal
de Contas do Estado apontou irregularidades no procedimento adotado pela empresa, especialmente no que diz
respeito à referida comercialização, já que a mesma não pode ser objeto de suas atividades, lesando, com isso,
os interesses legítimos de seus depositantes.3) Inicialmente apoia-se em vários juristas integrantes do Ministério
Público brasileiro para mostrar a legitimidade do Parquet para a propositura de ações como a presente. O
fundamento é o tal interesse individual homogêneo, instituto ou concepção nova trazida pelo Código de Defesa
do Consumidor.4) (...) 5) (...) alinha suas pretensões que consistem na proibição de novas comercializações da
sobras pela Requerida, bem como a condenação da Companhia a ressarcir os danos sofridos pelos depositantes
que façam jus a distribuição de sobras, de forma genérica, nos termos do art. 95 desse Código tão
preferido.(...)II- Da ilegitimidade ativa do Ministério Público.1) O caso presente não trata de interesses difusos e
nem de direitos individuais indisponíveis, razão pela qual o Ministério Público é parte ilegítima ativa para
propor a demanda. Nem se argumente que, no caso presente, a situação é de postulação de interesses
individuais homogêneos. Miguel Reale, em parecer a que alude Ada Pellegrini Grinover, tratando da
legitimidade do Ministério Público para propor ação civil pública na defesa de direitos individuais homogêneos,
a única hipótese que se poderia cogitar no caso presente, afirma: “O que, porém, não tem cabimento é a
extensão da ação civil pública à proteção de direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes
de origem comum. Além de não se entender bem o que venha a ser origem comum, não há dúvidas que, em se
tratando de direitos individuais (ou, por outras palavras, de direitos subjetivos) não assiste ao Ministério Público
competência para substituir os indivíduos na defesa de seus direitos, numa totalização da ação civil pública
incompatível com o princípio da autonomia individual. Se um consumidor entende estar lesado em seu direito
individual homogêneo, a ele cabe defendê-lo em juízo, dispensada a ação tutelar do Ministério Público, o que
se revela, repito, a inconstitucionalidade do art. 117 do CDC ao ampliar a competência do Ministério Público,
no concernente à propositura de ação pública civil”. O argumento do mestre firma-se no fato de que, pela Lei
Maior, é atribuído ao Ministério Público a defesa de interesses individuais indisponíveis (art. 127) e direitos
difusos e coletivos (art. 129, In. III), não podendo, por óbvio, legislação infraconstitucional ampliar a
competência ditada pelo comando maior.2)(...)Cada vez são mais freqüentes as ações infundadas propostas pelo
Ministério Público, sob o manto da proteção dos interesses coletivos. Rogério Lauria Tucci, tratando da ação
civil pública e sua abusiva utilização pelo Ministério Público, afirma que esse comportamento “parece
pretender transformar o importante instituto jurídico processual em referência, numa autêntica ‘panacéia geral
para toda e qualquer situação’. Realmente, diz ele, “as diversificadas atuações dos membros do Parquet, tanto
no plano federal, como no estadual chegando a formular pedidos juridicamente impossíveis, a substituir, sem
legitimidade, entidades de classe, e a agir sem o imprescindível interesse processual, têm, segundo entendemos,
extravasado, consideravelmente, os limites estabelecidos na legislação em vigor, de sorte a tornar a ação em
estudo inadequada ao escopo perseguido pelo demandante”. Um acórdão proferido pela 4ª Câmara Cível do
Tribunal de Justiça de São Paulo, em 12.12.1991, coligido por esse autor, em apêndice a seu trabalho, bem
demonstra as firmações. Dito acórdão proclamou a ilegitimidade para a causa do Ministério Público Estadual,
a intentar a tutela de interesses, ditos difusos, de alunos e/ou seus genitores ou responsáveis, no tocante à
majoração de preços de serviços prestados por estabelecimentos de ensino. Disse o Des. Cunha de Abreu,
relator do recurso, que a afirmação de que os interesses em jogo serem “efetivamente difusos, na medida em
que não se restringem à esfera de interesses de número finito de indivíduos, senão a toda a coletividade,
alcançada pelo resultado a ser ditado, não se sabendo bem quais os segmentos desta coletividade”, esbarra na
mens legislatores; não podendo, por outro lado, o Parquet exercer munus concedido pela lei ao advogado, se
não usurpando a atividade profissional. Diz mais o relator: “Não parece ter sido essa em verdade a intenção do
legislador constituinte, que de uma penada teria assim erigido o Parquet em Curador e custus legis universal,
sem a oitiva dos beneficiados, dispensando o concurso ou ao menos a presença obrigatória do advogado, visto
que o alcance do posicionamento ministerial às suas culminâncias, todo e qualquer interesse pode ser tido e
136
Deixando de lado as questões menores que vertem das entrelinhas,
veja-se como se pode demover, data venia, os argumentos retro-
alinhados, fazendo-se um teste de validez das premissas desenvolvidas
no correr deste trabalho.
O ponto nodal a desate está no enfoque que se pretenda dar a
questões como a da estirpe em tela, potencializando-o no reinado das
relações individuais ou lhe dando a devida interpretação, da
transindividualidade.
Muito mais que elucubração corporativista
170
, a legitimidade
ministerial para a defesa mediata dos individuais homogêneos decorre
da interpretação sistemática do Texto Constitucional.
É bem de ver, em linha de princípio, que o caso em comento
envolve o descumprimento de determinação legal, acentuada pelo E.
Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul, conformando
hipótese de infringência ao princípio da legalidade, norte do agir dos
Órgãos da Administração Direta e Indireta, bem assim como dos serviços
públicos descentralizados sob a forma de concessão ou permissão.
Destarte, muito mais envolvente que o simples interesse dos
indivíduos diretamente lesados, componentes do grupo-amostragem e
não do grupo-fim da atuação ministerial, o instrumento em tela objetiva,
no caso, reprimir a violação da dimensão jurídico-objetiva dos direitos
fundamentais, sustentando-se no interesse difuso que o embasa, e, não,
no mero interesse individual daqueles.
O argumento de que a hipótese contempla indevida proteção de
interesses individuais disponíveis, bem se vê, não resiste.
Neste âmbito, oportuno frisar, para afastar a multiplicação dos
rotulado difuso, na esteira do que disse alguém alhures, que tudo que afeta o menor dos indivíduos a todos
afeta(...) Por outro lado não pode realmente o Parquet exercer o munus que a lei concedeu ao advogado, pena
de insuportável usurpação e virtual obsolência da nobre atividade, relegada que estaria ao rol das
excentricidades das partes, não se vislumbrando porque alguém -- refere-se aqui os não pobres no sentido da
lei --- iria procurar e pagar um advogado, se pode ter seus interesses superiormente e gratuitamente
defendidos por uma instituição do porte do Ministério Público, de indiscutível ascendência moral e festejável
nível intelectual.
170
como sugere o digno Professor, ao dizer que a sustentação doutrinal da legitimidade ministerial assentar-se-
ia em escritos de integrantes da carreira.
137
equívocos interpretativos que se tem tecido nesta esfera, os direitos
fundamentais não são disponíveis, em nenhuma de suas dimensões.
Pode-se falar, no entanto, na disponibilidade dalguns dos efeitos
concretos da dimensão subjetiva, que se consubstancia no exercício dos
direitos que compõe o patrimônio jurídico de cada um, sem se olvidar a
proteção ao patrimônio jurídico mínimo, garantidor da dignidade da
pessoa humana
171
. Assim, a dimensão subjetiva do direito fundamental
de propriedade pode garantir, por exemplo, o direito à herança, mas o
particular pode deixar de exercê-lo, renunciando ao seu quinhão. Em o
fazendo, diminui a extensão objetiva de seu patrimônio (agora despido do
quinhão a que renunciou), mas não abdica do direito à propriedade
172
como componente da circunferência de sua orla jurídica. Se um indivíduo
é ofendido em sua honra subjetiva ou objetiva, poderá ou não requerer
em juízo as providências cíveis e criminais cabíveis. Quedando-se inerte,
não está abrindo mão da honra como elemento da sua personalidade
173
,
mas apenas declinando, no caso em concreto, a oportunidade de buscar a
adequada reparação.
171
Consoante a festejada lição de FACHIN, Luiz Edson. Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo. Rio de
Janeiro: Renovar, 2001
172
Pode-se dizer então que o direito de propriedade (direito subjetivo disponível) é renunciável; contrário senso
ao direito à propriedade, que integra o patrimônio jurídico do singular como possibilidade inerente à sua
condição de partícipe de uma sociedade que apregoa a propriedade privada como um valor passível de
concretização.
173
Sobre o tema da disponibilidade de direitos da personalidade: Paulo Mota Pinto, Direitos de Personalidade no
Código Civil Português e no Código Civil Brasileiro, Revista da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul,
Porto Alegre, n. 96, dez.2004, p. 407/437, valendo citar os seguintes excertos: (...)Se a protecção da
personalidade humana é a missão primeira e mais importante de todo o jurista – arrancando de uma concepção
de Direito que tem o personalismo ético como seu epicentro -, e se a dignidade da pessoa humana se encontra
inscrita logo no “pórtico” de nossas Constituições, como fundamento de ambos os Estados, (...) a consagração no
Código Civil desses direitos marca, com a chancela do legislador, o acolhimento e a recepção dos “direitos do
Homem” no diploma fundamental do direito privado. (...) Aqueles direitos, que incidem sobre a personalidade
humana globalmente considerada ou em algumas das suas particulares refracções ou aspectos, têm, na verdade,
tendencialmente como objeto dimensões essenciais à pessoa humana, e, portanto, correspondem normalmente a
direitos fundamentais. (...) os direitos da personalidade desempenham uma função, de instrumento jurídico de
concretização dos direitos fundamentais no direito privado (...) Tal não significa que a sua previsão seja inútil,
ou redundante (...) numa perspectiva segundo a qual o direito civil, como todos os ramos do direito, é
necessariamente também “direito constitucional concretizado”. (...) Ora, para além das naturais diferenças de
sensibilidade a uma tutela paternalista que se verificam entre civilizações, e dentro de cada sistema jurídico,
cumpre notar que se vem verificando um crescente reconhecimento de uma dimensão patrimonial em muitos
direitos da personalidade – relacionados sobretudo com a informação pessoal--, em correspondência com uma
prática social corrente de seu aproveitamento (...)”, sendo possível “sua limitação voluntária com contrapartidas
econômicas” dentro “dos limites matérias impostos pela ordem pública, e com limites procedimentais,
destinados a assegurar a genuinidade do consentimento.”
138
Assim, em reforço, quando o indivíduo abandona a faculdade que
lhe assiste de lutar pela eliminação da conduta que atrita com a
consubstanciação de seu direito fundamental, através dos instrumentos
que lhe são alcançados pelo sistema, não renuncia ao próprio direito, que
é irrenunciável, mas abandona a possibilidade de pedir a sua imediata
proteção, pelo Estado-Jurisdição, coisa bastante diversa.
A efetividade do Estado democrático de direito, como
exaustivamente se frisou, é interesse de todos, não de indivíduos ou
grupos, em si mesmos considerados, mas como fragmentos do todo.
Dessarte, é natural que o sistema de autoproteção da democracia
substancial contemple outros meios condizentes com a macrotutela que
pretendeu o Poder Constituinte Originário. Nesta senda, se um indivíduo
sofreu um dano aos reflexos estritamente patrimoniais da dimensão
subjetiva de seu direito fundamental e nada fez, e se a ação ou a omissão
lesiva foi singular, este malferimento, apesar de importante, não moverá
o Órgão Ministerial
174
, tendo em vista a inexistência do interesse coletivo,
social, ou público primário.
175
A lesão à dimensão subjetiva dos direitos fundamentais atuará como
mola propulsora do agir ministerial quando o grupo-amostragem for
composto por um número plural de indivíduos, idôneo a demonstrar que
a conduta lesiva, longe de ser um caso particular, é generalizante,
devendo ser ceifada, em prol da implementação e preservação do
Estado democrático de direito, desnudando a relevância social da tutela
coletiva. A disponibilidade ou não do direito material, ínsita à diagramação
do perfil dos reflexos concretos da dimensão subjetiva, não rege a
legitimatio, que tem esteio na dimensão mais altiva, a jurídico-objetiva.
Bem se vê, assim, a Ação Civil Pública, devidamente visualizada,
longe está de ser a panacéia referida pelo ilustre processualista de origem
peninsular, porque não é todo e qualquer direito ou interesse que por ela
174
enquanto guardião do Estado Democrático de Direito; mas, poderá impulsioná-lo a agir pela configuração de
hipótese legitimante doutra função institucional, como a defesa dos incapazes, ou a promoção da Ação Penal
competente.
175
como ensina MAZZILLI, Hugo Nigro. A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo. 9ª ed. São Paulo: Saraiva,
139
se pretende defender, mas aqueles que assumam envergadura compatível
com o manejo do instrumento.
Ao contrário do que foi afirmado por TUCCI, o Órgão Ministerial,
assim atuando, não está a substituir entidades de classe, bastando, para
isso, beber-se um pouco da sabedoria do Poder Constituinte Originário.
O âmbito de atuação do sindicato vem gizado no artigo 8º, III,
cabendo-lhe “a defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da
categoria
176
”; o das associações, claramente posto pelo art. 5º, XXI,
estando legitimadas para “representar seus filiados
177
judicial ou
extrajudicialmente.”
178
O Ministério Público não guia o seu agir pelo interesse de grupos
restritos ou delimitados. Atendendo ao comando Constitucional
179
, prima
pela defesa do interesse social na promoção do bem comum, genuíno
interesse público, que transcende a mera reparação de lesões particulares
ou grupais, na medida em que objetiva que os Poderes Constituídos, os
serviços de relevância pública, e por extensão os particulares, observem a
Carta Maior e se abstenham de ingerir na órbita privada dos indivíduos,
quando e na medida em que tal lhes for vedado, e ajam para a
implementação dos programas asseguradores dos direitos fundamentais
enquanto direitos à prestação estatal.
Nesta linha, causa estranheza a menção à formulação, nesta seara,
de pedidos juridicamente impossíveis, e à ausência de legitimidade
ministerial, neste âmbito, já que o Órgão, a todas as luzes, está a agir
conforme desejam os titulares do Poder, e nos limites da legitimação
extraordinária que lhe foi franqueada.
A adequação da ação civil pública como instrumento para a defesa
coletiva dos individuais homogêneos perpassa pela interpretação
1997, p. 3.
176
grifou-se
177
grifou-se
178
Além destas hipóteses, como consabido e apenas para não passar in albis, tais entidades também se
encontram legitimadas a propor mandado de segurança coletivo [art. 5º, LXX, CF/88] e a ação direta de
inconstitucionalidade [ art. 103, IX, CF/88].
179
art. 127, caput, c/c art. 129, II, CF/88
140
constitucionalmente adequada do artigo 129, III, CF/88.
Primo, em estando vocacionada, sem qualquer ressaibo de
controvérsias, para tutelar os interesses difusos, por evidente é remédio
hábil para fazê-lo no intuito da proteção da dimensão jurídico-positiva
180
dos direitos fundamentais, inclusive dos que assumem conformação
subjetiva individual, mas coletivizam-se acidentalmente, atendendo ao
mandado de otimização que decorre da perspectiva objetiva, a presumir
juris tantum a tutela coletiva, e não a individualizada – estéril para a
magnitude das lesões massivas – como adequada e necessária ao acesso
racional à jurisdição constitucional, atendendo ao comando do artigo 5º,
parágrafo 1º, abrindo os umbrais para a concreção jurídico-criativa do
conteúdo material dos direitos fundamentais sob apreciação, em
observância ao artigo 5º, parágrafo 2º do Texto.
Sob este viés, tendo em conta a justicialidade dos direitos
fundamentais como a pedra-de-toque do Estado democrático de direito e
atentando-se para a bidimensionalidade que é imanente a tais direitos, sói
resta concluir pela idoneidade do instrumento para a tutela dos individuais
homogêneos, vez que a defesa da democracia é função ministerial
precípua e inderrogável (artigo 127, caput, CF/88).
Secundo, em sendo o Ministério Público guardião do Estado
democrático de direito, não se mostra consoante a Carta criar “guetos” de
legitimação, em detrimento, por exemplo, de searas em que exorbitem os
poderes constituídos, como ocorre nos excessos do poder de tributar, nas
omissões administrativas à implementação de direitos sociais indeclináveis
à proteção da dignidade da pessoa humana, o que inclusive afronta a
clara dicção do artigo 129, II, da Magna Carta, tornando confluente o uso
da ação civil pública, mesmo no caso dos individuais homogêneos, sob
pena de placitar-se descompasso com a volição política dos titulares do
poder soberano, que elegeram o Ministério Público como sua longa manus
na fiscalização e na observância dos direitos assegurados na Constituição.
180
que é subjetivamente difusa, na medida em que a cada um e simultaneamente a todos interessa que as
eficácias e as funções da normatividade dos direitos fundamentais sejam observadas.
141
Terzo, porquanto o artigo 129, III, CF/88 contempla conceitos
jurídicos indeterminados, vocacionando a ação civil pública para a defesa
do patrimônio cultural e social. A densificação de tais locuções
semanticamente abertas não pode olvidar, salvo melhor justiça, da
interpenetração da dimensão cultural dos direitos fundamentais e do
interesse social verbalizado no caput do artigo 127, respectivamente.
O dever de proteção do patrimônio social, aqui compreendido em
larga acepção, como o acervo de bens e valores pertencentes à sociedade
enquanto universalmente concreta, está por evidente ditado pelo
interesse de todos (o interesse social – leia-se da sociedade) em ver
erigida uma comunidade justa, igualitária, livre e solidária, a qual só
poderá ser avistada à luz da dignidade da pessoa humana, que permeia o
núcleo intangível de todos os direitos fundamentais, trazendo à tona, na
intersecção da bidimensionalidade que os caracteriza, a idoneidade do
remédio para a proteção da dimensão objetiva, independentemente da
conformação que assuma a perspectiva subjetiva; preterir os individuais
homogêneos é mitigar a garantia constitucional e, por corolário, os
direitos fundamentais que por ela poderiam ser verbalizados.
A dimensão cultural dos direitos fundamentais congrega a labuta
permanente da humanidade em dar concretude à dignidade da pessoa
humana, erigida como limite e fim do Estado, mormente o democrático de
direito, que tem a efetividade dos direitos fundamentais como vetor
dirigente. No caso brasileiro, a proteção à dignidade da pessoa humana
(em concreto, não como mera abstração) compõe a parte mais sensível
do ethos que, inobstante idéia pressuposta à noção do Estado que não
reclama qualquer teste de validez, veio positivada no seio da Constituição
como o núcleo axiológico que dá vida e coloração ao trânsito da ordem
social, cuja salvaguarda é dever peremptório dirigido aos poderes
constituídos e razão da existência da ordem jurídica.
Neste diapasão, barrar a tutela coletiva dos direitos individuais
homogêneos por meio da ação civil pública, instrumento ordinário da
atuação ministerial na provocação do Estado-Juiz, é ignorar a
142
intersubjetividade da dignidade da pessoa humana, inibindo que
desalinhos sejam coibidos eficientemente, e não apenas nos limites de
múltiplas ações individuais, a produzir mudos efeitos,
desproporcionalmente acanhados para colmatar lesões provenientes de
acidentes de coletivização, que imputam reverberações no tecido social
muito mais amplas que a mera afetação da órbita singular dos
diretamente envolvidos, que, aliás, sequer são conhecidos, e por isso são
tratados como coletividade abstrata, só cognoscíveis subjetivamente na
executio. Impor a pulverização de ações em hipóteses tais é assegurar
apenas formalmente o acesso à jurisdição, pressupondo que todos os
titulares das pretensões individuais estejam em condições de superar as
barreiras e lutar por seus direitos.
Quarto, se não bastasse, a abertura do catálogo das atribuições
ministeriais vem placitada na Magna Carta, sob a dicção do artigo 129, IX,
desde que compatível com a sua finalidade. Ora, a que veio o Ministério
Público no contexto da Constituição de 1988 senão à defesa precípua da
cidadania, aqui tomada como o direito de ter direitos intangíveis,
conforme lapidou Juarez Freitas? Se é assim, que finalidade pode ser mais
altiva que a provocação do Estado-Juiz para que exerça o poder-dever de
dar eficácia aos direitos fundamentais, independentemente da
configuração subjetiva que assumam?
Sob este viés, a limitação do uso da ação civil pública, jungida aos
essencialmente coletivos ou a cercanias dependentes da benevolência da
intervenção legislativa, inverte a lógica do Estado jurisdicional da justiça
constitucional, padecendo, data venia, de reluzente inconstitucionalidade.
A exegese empreendida é congruente à idéia segundo a qual o
Ministério Público não age, repise-se, na defesa de indivíduos ou grupos
determinados, mas em prol de interesse que é subjetivamente difuso, só
alcançando aqueles, mediatamente, tendo em vista a indissociabilidade
das dimensões que guarnecem os direitos fundamentais.
Ventilando a admissibilidade da Ação Civil Pública para a defesa
coletiva dos individuais homogêneos, sob outros enfoques, que não o
143
versado no presente ensaio, tem-se em primeiro plano Mazzilli
181
, a
ponderar o interesse finalístico como condutor da atuação do Ministério
Público nesta seara, o que estabelece ponto de confluência com esse
estudo no que concerne à relevância social como critério de
sindicabilidade em causa, o que será tratado no item 3.8:
(...) Assim, se a defesa de interesse coletivo ou individual
homogêneo convier à sociedade como um todo, deve o Ministério
Público assumir sua tutela. Nos casos de interesse de pequenos
grupos, sem características de indisponibilidade ou de suficiente
abrangência social não se justificará a iniciativa ou intervenção do
Ministério Público.
Como se vê, a divergência que se assenta entre a concepção do
renomado Douto e a desta ensaísta desemboca na visão que o
direcionamento do agir ministerial alcança, percebido por aquele como
firmado no grupo, e interpretado por esta como fulcrado imediatamente
num interesse maior e continente, e que só secundária, mediata e
inexaurivelmente se projeta para o grupo, o que afasta a disponibilidade
como delimitador da competência do Órgão-Agente.
Hugo de Brito Machado busca ponto de apoio no valor econômico
das “quotas individualizadas ou individualizáveis” dos individuais
homogêneos, para legitimar, em certos casos, o agir ministerial neste
âmbito:
Existem direitos individuais homogêneos nos quais as
quotas individualizadas ou individualizáveis são de valor
economicamente significativo. Os indivíduos, titulares dessas
quotas, por isto mesmo são motivados a defendê-las. No caso da
cobrança de um tributo inconstitucional isto geralmente acontece.
(...)
Existem, todavia, direitos individuais homogêneos que,
embora tenham, globalmente, considerados, expressão
econômica elevada, não são economicamente significativas as
parcelas ou quotas individuais. Os titulares desses direitos, por isto
mesmo, não são motivados a defendê-los individualmente.
(...)
O entendimento segundo o qual todos os direitos
individuais homogêneos podem ser defendidos pelo Ministério
Público leva a conclusão de que os membros do parquet podem
advogar, e tal conclusão conflita flagrantemente com a norma
constitucional que expressamente o proíbe. O entendimento
segundo o qual somente os direitos difusos ou coletivos podem ser
defendidos pelo Ministério Público deixa inúteis as normas da
181
A Defesa dos Interesse Difusos em Juízo. 9º. Ed. São Paulo: Saraiva, 1997, passim, mas especialmente na p.
48.
144
Constituição segundo as quais tem o parquet o dever de zelar
pelo efetivo respeito aos direitos nela assegurados, e nenhuma
lesão ou ameaça a direito pode ser excluída da apreciação do
Judiciário.
Penso que as normas de leis ordinárias que legitimam o
Ministério Público para a defesa dos direitos individuais
homogêneos nos casos aqui referidos, são meramente
explicitantes ou exemplificativas. Aliás, a não ser assim, seriam
inconstitucionais. Como a Constituição não deu, explicitamente, ao
Ministério Público, tal legitimação, de duas uma: ou se entende
que se trata de legitimação implícita na Constituição, e neste
caso não pode ser restrita aos casos indicados em leis ordinárias,
ou então ter-se-á de concluir que a mesma não está implícita na
Constituição, e neste caso as leis que a conferem , como fizeram
as de início referidas, são inconstitucionais.
Conclui-se, portanto, que o Ministério Público está
legitimado para a defesa dos direitos individuais homogêneos que
tenham duas características, a saber: a) sejam, em sua
globalidade, de grande expressão coletiva e b) em suas quotas, ou
parcelas, individualizadas, ou individualizáveis, sejam de valor
econômico não significativo. Não, porém, para a defesa daqueles
direitos cujas parcelas individualizadas ou individualizáveis sejam
de porte econômico capaz de estimular a defesa, individualmente,
por seus titulares. Ainda que tenham grande expressão coletiva.
182
O ponto de distanciamento entre a visão do nobre doutrinador e a
proposta deste estudo pode ser verificado pelos diferentes enfoques das
duas pesquisas. Aquela, a preconizar o Órgão-Agente como defensor
imediato de interesses individuais homogêneos, buscando balizamentos
para a fisionomia ministerial que emoldura; esta, por entendê-lo
invariavelmente, enquanto guardião do Estado democrático de direito,
como defensor de interesse subjetivamente difuso, e objetivamente
concentrado, pertencente aos titulares do Poder estatal: a preservação
da dimensão jurídico-objetiva dos direitos fundamentais, que impõe aos
Poderes Constituídos, aos serviços de relevância pública, aos particulares
abstenções ou ações para um só norte: a efetividade daqueles, e a
conseqüente implementação da democracia substancial.
Nesse norte, não há que se buscar descrimines para o agir
ministerial em seara que nele não interfere. O maior ou menor valor
econômico dos bens jurídicos, individualmente considerados, é inócuo
para este fim, já que, gigantes ou minúsculas as repercussões
pecuniárias, a infringência à dimensão jurídico-objetiva, pelo agir ou a
182
O Ministério Público e os Direitos Individuais Homogêneos, Repertório IOB, Caderno n. 3, artigo n.
145
abster proibidos, se revelará invariável, esteando o atuar ministerial.
Ademais, como muito bem pondera Godinho
183
:
Nem se argumente que o disposto no art. 25, I, a, da Lei
8625/93, haveria definitivamente limitado a atuação do Ministério
Público apenas aos direitos individuais homogêneos indisponíveis.
Tal interpretação não é possível pelas seguintes razões: a)
aplicação subsidiária ou integradora da Lei do Ministério Público
Federal (art. 6o, XII, da Lei Complementar 75/93 combinado com
o art. 80 da Lei 8625/93), sendo que o processo coletivo deve
formar um microssistema; b) a incompatibilidade dessa
interpretação da lei com o disposto no art. 127 da CF; c) a
equivocidade da linguagem legislativa. Devemos ler o dispositivo
mencionado com a disjuntiva ou substituindo a conjuntiva e, assim
como, por exemplo, devemos fazer com a nova redação do art.
515, §3o, do CPC e fazer o contrário na interpretação do art. 286,
CPC; d) se fossemos ler esse dispositivo como determinante de
uma simultaneidade entre a característica da indisponibilidade com
a homogeneidade, o Ministério Público só poderia defender
interesses de incapazes em ações coletivas, e não individualmente.
De tudo que foi dito, parece inderrogável que a Ação Civil Pública,
como instrumento do agir ministerial, enquanto guardião do Estado
democrático de direito:
a) realiza, in concreto, as funções institucionais do MP;
b) resgata o sentimento de cidadania;
c) desafoga a máquina judiciária;
d) otimiza a prestação jurisdicional.
Estes são motivos suficientes a imprimir ânimo para se enfrentar tão
intricada questão? Estes são motivos suficientes para se buscar
sistematização da vexata quaestio da legitimidade ministerial para a
defesa (que se viu: mediata) dos individuais homogêneos? Estes são
motivos suficientes para superar paradigmas de há tanto sedimentados
na nossa sociedade? Estes são motivos suficientes para reavaliar
conceitos e adaptá-los às novas necessidades sociais?
Ou será o direito processual um fim em si mesmo?
12437, p. 324-323, 2ª quinzena de setembro de 1996.
146
3.6 DA SUPERAÇÃO DA SEARA ESTRITAMENTE CONSUMERISTA
3.6.1 Rejeição Às Amarras Temáticas – A Falácia Da Única
Resposta Jurídica Correta
Diante da inauguração infraconstitucional da defesa coletiva dos
direitos acidentalmente coletivos pelo estatuto consumerista, existem
objeções ao uso universal da Ação Civil Pública, havendo tendências
concretas à imposição de amarras temáticas incompatíveis com a
envergadura constitucional do remédio.
Neste cenário, sobreveio a vinculação da idoneidade do instrumento
apenas para a defesa coletiva dos direitos individuais homogêneos dos
consumidores, consoante se pode colher da leitura do seguinte aresto:
(...) A LEI NR. 7.347/85 DISCIPLINA O PROCEDIMENTO
DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA DE RESPONSABILIDADE POR DANOS
CAUSADOS AO CONSUMIDOR (MEIO AMBIENTE, ETC), INCLUINDO
SOB A SUA ÉGIDE,OS INTERESSES E DIREITOS INDIVIDUAIS
HOMOGÊNEOS. A LEI DE REGÊNCIA, TODAVIA, SOMENTE TUTELA
OS "DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS", ATRAVÉS DA AÇÃO
COLETIVA, DE INICIATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO, QUANDO OS
SEUS TITULARES SOFREREM DANOS NA CONDIÇÃO DE
CONSUMIDORES. O MINISTÉRIO PÚBLICO NÃO TEM
LEGITIMIDADE PARA PROMOVER A AÇÃO CIVIL PÚBLICA NA
DEFESA DO CONTRIBUINTE DO IPTU, QUE NÃO SE EQUIPARA AO
CONSUMIDOR, NA EXPRESSÃO DA LEGISLAÇÃO PERTINENTE,
DESDE QUE, NEM ADQUIRE, NEM UTILIZA PRODUTO OU SERVIÇO
COMO DESTINATÁRIO FINAL E NÃO INTERVÉM, POR ISSO MESMO,
EM QUALQUER RELAÇÃO DE CONSUMO. IN CASU, AINDA QUE SE
TRATE DE TRIBUTO (IPTU) QUE ALCANÇA CONSIDERÁVEL
NÚMERO DE PESSOAS, INEXISTE A PRESENÇA DE MANIFESTO
INTERESSE SOCIAL, EVIDENCIADO PELA DIMENSÃO OU PELAS
CARACTERÍSTICAS DO DANO, PARA PERLAVRAR A LEGITIMAÇÃO
DO MINISTÉRIO PÚBLICO.
RECURSO A QUE SE NEGA PROVIMENTO. DECISÃO
INDISCREPANTE
184
.
A sustentação da tese restritiva ventilada no julgado supra
reproduzido, que exemplifica uma torrente jurisprudencial símile, põe em
discussão o tradicional questionamento:
183
ob. cit., p. 14/70
184
STJ , PRIMEIRA TURMA, DECISÃO:01-06-1995, DJ DATA:19/06/1995, PG:18643, RSTJ
VOL.:00078, PG:00106, RELATOR: MINISTRO DEMÓCRITO REINALDO
147
Existe uma única resposta jurídica correta?
A resposta à questão epigrafada traz em seu bojo a intrincada
pesquisa acerca do conceito de sistema jurídico -- se aberto ou fechado,
se multifacetado ou não -- bem como deita raízes acerca da descoberta da
relação que se estabelece entre o objeto a ser interpretado e o seu
intérprete, desnudando se a subsunção lógico-formal ainda é suficiente
para a garantia da unidade da ordem jurídica.
Pois bem: existe uma única resposta jurídica correta para um caso
em concreto?
Sobre o tema, respondem negativamente, entre outros, Kelsen,
Aarnio e Alexy.
Kelsen, em sua Teoria Pura do Direito, traz à liça conteúdo
democrático relevante, porquanto pretende demonstrar que o direito
positivo deve despir-se de todos os fatores que refujam à estrita técnica
jurídica, vez que o direito não pode servir como instrumento ideológico.
Nesta linha, a visão kelseniana repudia possa haver uma única
resposta jurídica correta para a solução de um caso em concreto,
porquanto tal revelaria indubitável comprometimento ideológico do
intérprete, já que a moldura legislativa é uma estrutura aberta a várias
interpretações.
Nesta esteira:
Se por “interpretação” se entende a fixação por via
cognoscitiva do sentido do objeto a interpretar, o resultado de
uma interpretação jurídica somente pode ser a fixação da moldura
que representa o Direito a interpretar e, conseqüentemente, o
conhecimento das várias possibilidades que dentro desta moldura
existem. Sendo assim, a interpretação de uma lei não deve
ncessariamente conduzir a uma única solução correta, mas
possivelmente a várias soluções que – na medida em que apenas
sejam aferidas pela lei a aplicar – têm igual valor, se bem que
apenas uma delas se torne Direito positivo no ato do órgão
aplicador do Direito - no ato do tribunal, especialmente
185
.
Aarnio veicula crítica a Dworkin, porquanto a interpretação deve ser
148
assentada em bases pragmáticas, não se podendo imaginar, em tal
contexto, a figura o super-juiz que pode erigir a única resposta correta
para o caso por dispor de conhecimento e tempo ilimitados para decidir.
Porquanto a existência do super-juiz Hércules só é compatível com
uma realidade ideal, necessária se faz a construção das bases teoréticas
para a descoberta da melhor interpretação possível, no que Aarnio
avançou um passo em relação a Kelsen, que nada discorreu sobre o tema.
Aarnio admite a única reposta correta como princípio regulador da
racionalidade jurídica, compatibilizando seu ideário com a Teoria da Ação
Comunicativa de Habermas.
A racionalidade jurídica é meio de combate ao arbítrio, porquanto o
intérprete judicial deverá fundamentar racionalmente a sua decisão para
que a mesma possa adquirir autoridade dentro da comunidade jurídica.
De outra banda, aduz que a fundamentação racional tem natureza
híbrida, porquanto jurídico-axiológica.
Neste sentido:
Em resumen, em uma sociedad moderna la certeza
jurídica cubre dos elementos diferentes (a) em el razonamiento
jurídico há de evitarse la arbitrariedad (principio del Estado de
Derecho) y (b) la decisón misma, el resultado final, debe ser
apropiado. De acuerdo con el punto (b), las decisiones jurídicas
deben estar de acuerdo no sólo com el Derecho (formal), sino que
también tienen que satisfacer critérios de certeza axiológica
(moral).Utilizando la terminologia de Max Weber, em uma
sociedad moderna el Derecho está materializado
186
.
Assim, enquanto ideal, a resposta correta será aquela que estiver
fulcrada nos melhores argumentos racionais, dentro do prisma da
racionalidade discursiva, porquanto assim os Tribunais se dão a conhecer
e abrem ensejo ao controle de suas ações pelo povo.
A fim de erigir-se a melhor argumentação possível, há que se ter em
conta duas ordens de justificação: a interna e a externa. A primeira
185
Teoria Pura do Direito. o Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 390
186
La Tesis de La Única Respuesta Correcta y El Princípio Regulativo Del Razonamiento Jurídico, Doxa:
Cuadernos de Filosofia Del Derecho, n. 8, 1990, p. 23/38:26
149
respeita à relação lógica entre a premissa maior (normativa) e a menor
(fática), cujo produto é a conclusão racional. A justificação externa, a seu
turno, decorre da necessidade da fundamentação da escolha de dada
premissa normativa, quando várias concorram à aplicação.
No entanto, se várias conclusões razoáveis estão em concurso, vez
que oriundas de silogismos racionalmente aceitáveis, há que se eleger
critérios para que uma resposta se sobressaia a outra.
Neste aspecto, a importância do critério da maioria, que traduz a
maior aceitação da resposta A, em dado momento histórico, em
detrimento das n resposta possíveis. Desta feita, sob o ponto de vista
social, no momento da eleição da resposta preponderante, a visão da
minoria é mais débil, o que não significa que sua racionalidade tenha sido
rejeitada.
Isto posto, vem à baila as seguintes perquirições: por que é
necessário comprometer-se com o critério da maioria? Há normas
alternativas de solução da dúvida?
Partindo-se do pressuposto de que Habermas, ao construir sua
teoria, baseou-se numa realidade ideal, na qual a comunidade-auditório
tivesse comprometimento com a racionalidade eminentemente discursiva,
bem como que o exercício do discurso significa a plena realização da
liberdade, o critério da maioria não representa, de modo algum, qualquer
tirania, porquanto todos os envolvidos na comunicação têm por foco o
bem estar comum.
Na prática, sustenta Aarnio que o critério da maioria foi adotado
porque as comunidades racionais não aceitariam, no mais das vezes e
para solução de problemas importantes, que o sorteio despontasse como
alternativa razoável.
Dessarte, a melhor interpretação possível para o caso em concreto
será aquela que eleita pela maioria, naquele momento histórico, como
sendo a racionalmente mais sólida, o que deixa implícita a idéia de que a
minoria de hoje poderá vir a ser a maioria de amanhã.
Neste contexto:
150
La mayoria simplesmente muestra la mayor aceptación
posible para la solución R. En otras palabras, la solución R sería
aceptable para la mayoria si R fuera discutida en este auditório.
Desde el punto de vista social, la outra solución es, como
propuesta minoritária, “mas débil” que R
187
.
Alexy parte do pressuposto que a figura dworkiana do super-juiz
Hércules nada mais é que um estratagema filosófico, a exemplo do
ocorrente em John Rawls com o “véu da ignorância”.
Feita tal observação, há que se trazer à liça que a melhor
interpretação possível, em Alexy, deve observar os seguintes sistemas: a)
condições de prioridade; b) estruturas de ponderação; c) prioridades
prima facie.
Estabelecido o conflito de valores, hão que ser disciplinadas
condições de prioridade para a resolução do tensionamento. Assim, as
condições de prioridade implicam a existência de regras:
Las condiciones de prioridad establecidas hasta el
momento em um sistema jurídico y las reglas que se corresponden
com ellas proporcionan información sobre el peso relativo de los
princípios.
188
Nas estruturas de ponderação tem-se o princípio da
proporcionalidade em sentido estrito, o que remete para a adequação e
necessidade da aplicação de dada regra no caso em concreto, mormente
para que tal não represente o malferimento de valor de grau superior.
Cuanto más alto sea el grado de incumplimiento o de
menoscabo de um princípio, tanto mayor debe ser la importância
del cumplimiento del outro. La ley de ponderación no formula
outra cosa que el princípio de la proporcionalidad me sentido
estricto.
189
As prioridades prima facie estabelecem cargas de argumentação,
ordenando a aplicação dos princípios. Contudo, não contêm determinações
definitivas, porquanto só o estudo casuístico confirmará a superioridade
do princípio a priori concedida. As cargas argumentativas estabelecem
187
idem, p. 35
188
Sistema Jurídico, Princípio Jurídicos y Razon Práctica, Doxa, n. 5, 1988, p. 147
189
idem
151
presunção juris tantum de preponderância de dados princípios em face
doutros, cedendo, pois, à prova em contrário:
Las prioridades prima facie establecen cargas de la
argumentación. De esta manera crean um cierto ordem en el
campo de los princípios. Desde luego, no contienen una
determinación definitiva. Si son más fuertes los argumentos en
favor de una prioridad de un princípio que juega em sentido
contrario, se cumple suficientemente com la carga de la prueba.
Com ello, el orden depende de nuevo de la argumentación
190
.
Os princípios e as regras formam um sistema incompleto para a
busca da única resposta correta, enquanto princípio regulador do sistema
jurídico.
A busca da única resposta correta, com a conotação antes ventilada,
imprescinde da argumentação jurídica; na medida que os princípios e as
regras não regulam por si mesmos as suas aplicações, iniludível que a
pragmática traga a lume valorações adicionais, desde que suscetíveis a
um controle racional.
Considerando a argumentação jurídica como argumentação prática,
fulcrada na racionalidade discursiva, bem se vê que o ideal da única
resposta correta não se concretiza; seu campo de incidência é
essencialmente normativo.
No seio dos fatos sociais, o melhor que se poderá obter, segundo
Alexy, é a resposta mais aproximada da correção, já que afirmar existir
a única resposta correta para o caso em concreto configuraria exercício de
arbitrariedade e prepotência, porquanto nenhum intérprete possui
tamanha latitude cognosciva, e todas as respostas obtidas a partir dos
princípios e das regras, como fruto da aplicação da razão prática, são ao
menos relativamente corretas:
No existe ningún procedimiento que permita, con una
seguridad intersubjetivamente necesaria, llegar en cada caso a
una única respuesta correcta. Esto último no obliga sin embargo a
190
ob. cit., p. 148
152
renunciar a la Idea de la única respuesta correcta (...) como Idea
regulativa
191
.
Outros argumentos formatam-se à sedimentação da
impossibilidade da hipótese suscitada no preâmbulo.
Primo, há que se ter em conta que, sob o prisma ontológico,
inexiste vinculação pura; a lei é obra humana permeada pela falibilidade.
Destarte, seria inimaginável que um sistema jurídico axiologicamente
equilibrado concebesse um intérprete-autômato que, independentemente
de qualquer diálogo aporético, pudesse traduzir a letra fria da lei como a
inderrogável interpretação dela decorrente; o contágio da disposição com
os valores materiais e históricos que cercam a atividade interpretativa no
momento em que ela está sendo erigida é indeclinável.
Secundo, porquanto o dogma da completude e da auto-suficiência
da normatividade sucumbe à constatação das antinomias que, muito
antes de corporificarem problemas, instrumentalizam a oxigenação
sistêmica, num processo ininterrupto que tem por foco o seu
aprimoramento teleológico.
Terzo, porque se o sistema jurídico é inexoravelmente aberto,
sensível a mudanças, o intérprete participa da produção da norma
atuando em circularidade com o objeto interpretando, modificando-o ao
mesmo tempo em que por ele é alterado, valendo a máxima de que
compreender é aplicar. Assim, o produto da interpretação não pode ser
uníssono, porquanto a gênese interpretativa é naturalmente
multifacetada; seria, pois, inconcebível um único resultado como produto
deste processo interativo.
Naturalmente que não se pode, com o escopo de arrefecer a
pujança da objetividade, hipertrofiar o subjetivismo, desguarnecendo o
sistema jurídico de mecanismos de proteção contra tal mazela.
Desta feita, não há que se emprestar integral razão a Guastini
quando vê o intérprete como produtor exclusivo da norma jurídica,
desprezando a autonomia do objeto, ao contrário do preconizado, v.g.,
191
ob. cit., p. 151
153
por Betti em seus cânones interpretativos
192
.
O intérprete participa, como efeito, da produção da norma jurídica,
estabelecendo com o objeto interpretando relação circular, integradora e
interativa.
Destarte, a subjetividade e a objetividade convivem em harmonia;
muito embora haja acentuada preponderância da primeira, a atuação do
intérprete não é ilimitada, mas encontra freio nas cláusulas de
intangibilidade que por ele não podem ser alteradas ou suprimidas.
Neste cenário, importante gizar a lição de Gadamer no tocante ao
círculo hermenêutico. Ensina o douto que
A regra hermenêutica de que tudo deve ser entendido a
partir do individual, e o individual desde o todo, procede da
retórica antiga e passou, através da hermenêutica moderna, da
arte de falar à arte de compreender. Em ambos os casos nos
encontramos como uma relação circular. A antecipação do
sentido, que envolve o todo, se faz compreensão explícita, quando
as partes, que se definem a partir do todo, definem por sua vez
esse todo.
193
Gadamer deixa claro que o preconceito da objetividade nua deve
ser superado, porquanto o intérprete deve ser consciente da contribuição
que realiza, já que a forma representativa não traz em si mesma toda a
imanência do objeto.
Contudo, o intérprete deve ser fraterno e humilde em relação ao
objeto; a correspondência hermenêutica que estabelece a relação de
circularidade sujeito-objeto é a antítese da equação matemática, porque
esta conduz a um único resultado, ao contrário da primeira.
O intérprete é condicionado pelo resultado que busca com a
operação interpretativa.
Quando se confronta com uma contradição, tenta aplicá-la a si
mesmo. Portanto, toda a interpretação também instrumentaliza auto-
conhecimento, de molde que não é dado ao intérprete ignorar-se neste
processo.
Sem que tal constatação signifique plena autonomia do exegeta em
192
que aqui não serão estudados
193
Hermenêutica Filosófica. Sobre o Círculo da Compreensão. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000 (Coleção
Filosofia, n.º 117), p. 141/150.
154
relação ao objeto, que deve ser respeitado -– muito embora o texto não
fale por si, denota que não é possível empreender interpretação
apartando os conceitos prévios que já integram o arcabouço do
conhecimento técnico-empírico-axiológico do realizador da exegese.
Calha à fiveleta trazer à baila o estudo empreendido por Tribe
194
acerca das falácias interpretativas, tendo por pano de fundo a Constituição
estadunidense.
O Documento Maior deve ser visto em sua integralidade; assim se
deve nortear a sua aplicação, sob pena de equívocos interpretativos a
franquearem aparente constitucionalidade a situações que, melhor
estudadas, refogem de seu âmbito.
A leitura desintegradora da Constituição traz à liça o fenômeno da
dis-integration, pelo qual a análise singularizada de uma parte da
Constituição, sem liame e sintonia com o restante da Magna Carta, faz
com que se obtenha a falácia interpretativa de entender dado fato como
constitucional quando flagrantemente não o é.
Dalguns dos casos estudados por Tribe, quadra trazer à liça a
vexata quaestio da constitucionalidade da pena de morte na seara
estadunidense; o embate entre as 5ª e 8ª Emendas constitucionais.
A quinta Emenda afirma que a pena capital pode ser aplicada desde
que respeitado o devido processo legal. A oitava emenda, a seu turno,
rechaça do terreno constitucional qualquer pena aflitiva, mormente a
capital, em qualquer circunstância, sendo de somenos a observância ou
não dos formulários.
Há que se ter em conta que este conflito entre as duas emendas
propiciou meio de cultura para a aceitação da pena capital em dados
Estados confederados, enquanto noutros é abominada, ceifada,
inadmitida, por inconstitucional.
Há que se gizar, de outra banda, a chamada hyper-integration.
Nesta modalidade falaciosa, o intérprete hipertrofia dado segmento
da Constituição ou da legislação infraconstitucional, deixando de
155
vislumbrar que inexistem direitos e deveres absolutos, vez que a
relativização é sempre possível, numa esfera de pesos e contrapesos,
norte no esteio constitucional.
Exemplo interessante deste caso é a contraposição entre a liberdade
de expressão e a proibição da queima de símbolos da pátria,
notadamente a bandeira estadunidense.
A Suprema Corte dos EUA já exarou entendimento pela
impossibilidade de aplicação de sanções criminais ao incendiário do
pendão, quando o ato praticado tenha exteriorizado a mais lídima
expressão de protesto; assim, basta que o ato, enfim, esteja justificado
em direito assentado na Constituição.
À guisa de conclusão, um questionamento sobrepaira: as falácias
supra referidas constituem-se, de fato, em duas modalidades ou
compreendem um só equívoco interpretativo?
Penso que a dis-integration e a hyper-integration revelem, em
verdade, duas facetas de uma mesma falácia, qual seja, o apelo pela
interpretação assistemática, corporificada pela não-observância da
unidade da Carta Maior.
Dessarte, ao intérprete que tem por diretriz a visão da Constituição
como sistema, nenhuma das falácias antes registradas teria curso; as
interpretações fragmentárias são desvalidas, só adquirem força quando
conciliadas e legitimadas pela e na Magna Carta.
Reaglutinando as premissas já expostas, há que se ter presente
que o sistema jurídico, como rede hierarquizada de normas, vivencia
historicidade, alimenta-se e consolida-se da e na conformação aporética,
bastando que se reflita, neste diapasão, acerca das diferentes matizes
interpretativas incidentes sobre os conteúdos jurídicos indeterminados ao
longo dos tempos.
O silogismo jurídico, portanto, não é lógico-formal, mas dialético,
persuasivo, compreendendo antagonismos que trazem à liça a
incontestável incapacidade do sistema em abarcar respostas singulares a
194
Tribe, L. How Not to Read The Constitution. 3.ed. New York: Foudation Press, 2000, p. 25-30
156
problematizações plurais em essência.
Assim, a complexidade da fenomenologia jurígena soçobra na
moldura restrita da norma, a qual, então, não se lhe pode servir como
amarra.
A idéia da única resposta jurídica correta traria morte à concepção
do sistema jurídico como concatenação vívida de princípios, regras e
valores, cuja harmonização pressupõe a constante e permanente
reelaboração dos entes fracionários, processo que passa ao largo do
engessamento acenado pela busca irrazoável de uma resposta cabal, um
desassisado pensar sob o prisma hermenêutico.
Estando placitada na Constituição da República Federativa do Brasil
a função ministerial de defesa do Estado democrático de direito e a
conseqüente legitimidade ministerial para a defesa mediata da dimensão
subjetiva dos Direitos Fundamentais, que comporta, a seu turno, os
direitos individuais homogêneos, como poderia o Legislador ordinário
eleger esta ou aquela hipótese em detrimento de todas as outras que
também configuram situações legitimantes da atuação ministerial?
Não é esta a interpretação, salvo melhor juízo, que se deve
emprestar às Leis 6.024/74
195
, 7.913/89 e 8.078/90
196
, que, muito antes
de restringir aspecto que não lhes compete, consoante orienta o princípio
jurídico-constitucional da supremacia da Constituição, estão a explicitar
195
Esta, especificamente, por força do fenômeno da recepção
196
A lei em epígrafe é multifacetada, dada a importância que os direitos do consumidor alcançam no contexto
de uma sociedade de massas. Prevê, num primeiro plano (art. 82), a legitimidade ministerial concorrente para a
interposição de demanda plúrima para a defesa de direitos individuais homogêneos, hipertrofiando a proteção à
dimensão subjetiva deste Direito Fundamental. A par disso, altera a redação da Lei 7.347/85 (artigos 110/117),
para remover ressaibos de dúvida acerca da sua idoneidade para proteção da dimensão jurídico-objetiva destes
Direitos Fundamentais, explicitando, como se vê, o comando constitucional expressado na dicção do art. 129, II,
CF/88 . E, ainda, para cristalizar esta estrutura, expressamente dispõe acerca do concurso de preferência entre os
créditos havidos em virtude dos dois instrumentos, manejados concomitantemente (art. 99, caput). Consoante se
observa, a inovação do Código Consumerista não está a depor contra o que se disse alhures, acerca da
indissociabilidade das dimensões subjetiva e jurídico-objetiva dos Direitos Fundamentais, dentre os quais os
inerentes ao consumidor. O que se vê, ao contrário, é a solidificação desta íntima coligação no instrumento
infraconstitucional, já que ambos os instrumentos -- o da defesa do interesse difuso e o da defesa dos interesses
individuais homogêneos --- fazem parte de um mesmo título, o da Defesa do Consumidor, entendido nas suas
dimensões individual e como ser político, titular do poder estatal, a quem o Ministério Público serve, no
desempenho do papel de Defensor do Estado Democrático de Direito. Destarte, ainda que num e noutro caso,
direita ou indiretamente, as dimensões subjetiva e jurídico-objetiva estejam sendo defendidas, não há que se
cogitar tenha instituído o código Consumerista uma sobreposição tautológica de instrumentos, tendo em vista
que a diversidade dos objetos a que visam permanece intacta, a ratificar o acerto da teorização de J. J.
157
conteúdo já definido na Carta Política, potencializando, por critério de
discricionariedade legislativa (que só se pode dar consoante a
Constituição), a defesa do Estado democrático de direito --- pelo
aprimoramento do instrumento --- nalgumas hipóteses singulares, que,
longe de significar o todo, são parte dele.
A questão aguça a crítica quando se analisa a matriz ideológica que
produziu o lampejo restritivo verbalizado pela introdução do parágrafo
único do artigo 1º, LACP, pela MP 2180: sequer a proteção coletiva da
liberdade-resistência (conformação do Estado liberal) pode ser veiculada
pela Ação Civil Pública, vez que o remédio foi apartado das reclamações
contra as exorbitâncias do poder de tributar do Estado. A ganância
arrecadatória, cultuada iterativamente por Estados administrativa e
gerencialmente incompetentes, está no seio da iniciativa, que não pode
prevalecer, sob pena de malferimento do núcleo duro dos direitos
fundamentais. Ou será que a aferição da capacidade tributária passa ao
largo da preservação do mínimo existencial, que deve restar infenso às
exações iníquas, ainda que economicamente suportáveis, em tese, pelo
sujeito passivo da obrigação?
Mitigando a consubstanciação dos preceitos do Estado liberal, em
restringindo a defesa da liberdade contra o Estado, o ato quase-
legislativo naturalmente não se conteve em ressaibos puritanos,
ceifando também do espectro do remédio a proteção dos direitos
fundamentais prestacionais, inclusive os decorrentes imediatamente da
Constituição (direitos originários à prestação) -- positivações da
igualdade inerentes ao Estado democrático e social -- impondo-lhes a
insólita via das ações individuais ou plúrimas, com todas as vicissitudes
do processo civil tradicional. Então, os reclamos da órbita previdenciária
igualmente não podem ser mais gestionados pela via da Ação Civil
Pública. Será que se quer continuar a meramente declarar a garantia do
acesso (formal) à Justiça ao invés de garantir a sua acessibilidade
material, efetiva, racional?
Canotilho utilizada neste trabalho.
158
Há que se pontuar que a restrição imposta pela interpolação
legislativa (vedando o manejo do instrumento, v. g., nas searas tributária
e previdenciária) traduz um contra-senso ao defendido por Kelsen, cujo
formalismo teve o mérito de apartar influências ideológicas da atividade
construtiva do direito. Outrossim, sob o escólio de Aarnio, não encontra
respaldo sistêmico porque a premissa normativa eleita (v.g., no âmbito
tributário: o interesse público está amalgmado à tributação e não no seu
oposto) colide com o vetor axiológico-normativo que legitima todas as
atividades dos poderes públicos – a dignidade da pessoa humana,
restando órfã de justificação externa. Em Alexy, pode ser igualmente
rejeitada, porquanto erigida sob a total ignorância da proporcionalidade, e
também defectível por malferir a prioridade prima facie da dignidade da
pessoa humana como ápice valorativo que não pode transigir com o
arrefecimento da garantia da justicialidade (não formal, mas concreta)
dos direitos fundamentais que orbitam no seu entorno. Ademais,
pressupõe um intérprete autômato, vocacionado a dar voz à vinculação
pura, reeditando a supervalorização do objeto da interpretação, num
desvario egoísta e ultrapassado da atividade legiferante do Estado (e aqui
o problema acentua-se, vez que se trata de ato – a medida provisória --
que não pode ser compreendido como lei em seu sentido formal-
material
197
, carecendo, de per se, de legitimação democrática), ignorando
o ideário gadameriano do círculo hermenêutico. Se não bastasse, incorre
nas falácias interpretativas verbalizadas por Tribe, inscrevendo a
restrição à luz de uma leitura desintegradora da Constituição
(desprezando o valor-fonte como diretiva de limitação do exercício do
poder estatal) e hipertrofiada do dever de tributar, que não é absoluto e
não decorre necessária e invariavelmente do interesse social.
Em vista das reflexões amealhadas no decorrer deste trabalho,
197
E, por isso, nos sentimos à vontade para incluí-la na quarta onda de relativização das garantias constitucionais
e dos direitos fundamentais que por elas seriam passíveis de instrumentalização (primeira onda: contextualidade
constitucional (v.g. garantia da liberdade individual e prisão cautelar como limitação à liberdade); segunda onda:
lei infraconstitucional em sentido formal e material (e.g., antecipação de efeitos da tutela (artigo 273, CPC) e
mitigação do contraditório, tido por postecipado); terceira onda: decisão judicial (relativização da coisa julgada
formal e material), conforme exemplifica (dois últimos casos) SÉRGIO PORTO, Segurança Jurídica..., inédito.
159
não é necessário negar a fisionomia peculiar dos direitos individuais
homogêneos --- como louvavelmente o fez o Ministro Maurício Corrêa ---
para explicar a legitimidade ministerial para a proteção mediata desta
categoria, enquanto guardião do Estado democrático de direito.
Já se aduziu, repetidas vezes, a dimensão objetiva (jurídico-
positiva) dos direitos fundamentais é subjetivamente difusa, porquanto
integra o interesse de todos e simultaneamente da cada um enquanto
integrante desta totalidade em ver concretizada a vontade geral, emanada
da decisão política fundamental, verbalizada nas eficácias irradiante,
vinculante e dirigente daqueles direitos.
No que concerne à dimensão subjetiva dos transindividuais, os
interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos estão relacionados
entre si em círculos concêntricos, imantados por um núcleo gravitacional:
os direitos fundamentais do Homem, em sua esfera jurídico-positiva.
Analisando-se os círculos concêntricos, do centro para a
extremidade, ver-se-á uma gradual despersonificação do interesse
subjetivo na remoção da mácula causada pelo desrespeito àquilo que
move o sistema e, por isso, o centraliza: nasce individualizado e se
pulveriza -- tornando-se diáfano, subjetivamente difuso -- no último
estágio.
Nos dois primeiros estágios, sob o prisma da subjetividade, os
interesses enfeixam um pólo determinável. No primeiro, um grupo de
indivíduos ligados pela homogênese de seus interesses; no segundo, um
grupo de indivíduos unidos por uma relação jurídica-base.
No terceiro estágio, impera a indeterminação subjetiva absoluta,
estando os detentores do interesse protegido ligados apenas por
circunstância fática.
O locus do interesse social que lastreia a legitimidade ministerial na
defesa dos interesses transindividuais é a dimensão jurídico-objetiva dos
direitos fundamentais [que é, em essência, subjetivamente difusa]. O
fato que interliga os sujeitos do interesse difuso pode ser visto em duas
160
nuances. A primeira, indissolúvel
198
, assenta-se no fato de que são os
titulares do poder soberano, ex vi do parágrafo único do artigo 1º, da
Magna Carta e reclama a proteção dos valores encampados no
Documento Maior, em catálogo aberto, que inadmitem restrições
desproporcionais. A segunda nuance sedimenta a conveniência da defesa
unitária dos interesses essencialmente coletivos e orienta tópico-
sistematicamente a necessidade da proteção coletiva dos interesses
individuais homogêneos.
Na feição comunitária de indivíduos determináveis, a lesão ao
núcleo gravitacional, por projetar efeitos para o além-mar da orla jurídica
dos titulares dos interesses subjetivamente considerados, configurará a
circunstância fática objetiva que detona a legitimatio ministerial,
enquanto substituto processual da universalidade que compõe a terceira
órbita subjetiva.
Contudo, ante a bipartição da esfera subjetiva dos coletivos em
essência (coletivos em sentido estrito) e aparência (individuais
homogêneos), aos primeiros o Poder Constituinte originário reconheceu,
ipso facto, a relevância social que pode ser afastada sistematicamente no
tocante aos da segunda estirpe: não é o acidente da coletivização que
definirá o interesse social da defesa coletiva dos individuais homogêneos,
de per se, devendo o seu descortinar concorrer com outras latitudes.
Assim, a tutela coletiva mediata dos interesses individuais
homogêneos será relevante e adequada se e enquanto atender a
conveniência da proteção da dimensão subjetivamente difusa, enquanto
inerência da dimensão jurídico-objetiva dos direitos fundamentais de cada
um dos subjetivamente afetados.
Destarte, o Ministério Público, enquanto guardião do Estado
democrático de direito, olhos postos no centro imanente da figura antes
declinada (dimensão jurídico-objetiva), move-se, na tutela coletiva, como
substituto processual dos titulares da vontade geral, alcançando
indiretamente, porque englobados no âmbito da proteção-fim do Órgão
198
já que cláusula pétrea implícita como se anotou alhures
161
Agente, as segunda e terceira órbitas subjetivas concêntricas,
justificando, como já se disse, a legitimação ministerial para a defesa
mediata, dos interesses individuais homogêneos.
A ratio da legitimação ministerial para a defesa dos interesses desta
última estirpe, encontrada por Teori Zavascki
199
nas hipóteses das Leis
6024/74, 7913/89 e 8078/90, ao fim e ao cabo confluencia, em certa
medida, para o que se assinalou dantes:
(...) a lesão é especialmente significativa, dado que, pela
natureza dos bens atingidos e pela dimensão coletiva alcançada,
houve também lesão a valores de especial relevância social (...)
Não se trata obviamente, da proteção individual, pessoal,
particular, deste ou daquele consumidor lesado, mas da proteção
coletiva dos consumidores, considerados em sua dimensão
comunitária e impessoal (...) Conquanto suas posições individuais
e particulares possam não ter relevância social, o certo é que,
quando consideradas em sua dimensão coletiva, passam a ter
relevância ampliada, de resultado maior que a simples soma de
posições individuais. É de interesse social a defesa desses direitos
individuais, não pelo significado particular de cada um, mas pelo
que a lesão deles, globalmente considerada, representa em
relação ao adequado funcionamento do sistema financeiro, que é,
segundo a própria Constituição, instrumento fundamental para
promover o desenvolvimento equilibrado do país e servir os
interesses da coletividade (art. 192).
200
Contudo, a magistral fundamentação não pode, como se viu, ser
compartimentalizada às três hipóteses que anuncia, a princípio, como
estanques à legitimação ministerial no campo dos individuais
homogêneos, sob pena de impedir a concretização do determinado pela
combinação dos artigos 127, caput, e 129, II, III e IX da CF/88.
Destarte, ao que parece, a cognição judicial acerca da legitimidade
ministerial para a promoção de ações que englobem a defesa, mediata,
dos interesses individuais homogêneos, deve ser feita com olhos postos
na intricada questão da defesa do Estado democrático de direito, sob
pena, no mais das vezes, de sacrifício da implementação da democracia
substancial.
Neste enfoque, a contextualidade constitucional informa que a
199
apesar da visão restrita que defende para a legitimidade ministerial neste âmbito, buscando fonte na
legislação infraconstitucional, combinada coma antítese da parte final do art. 127, caput, e, não, como aqui se
defende, na atribuição jurídico-constitucional do Órgão Ministerial enquanto guardião do Estado Democrático de
Direito, esteio que não manieta o agir ministerial.
200
ob. cit., p. 18
162
legitimidade ministerial para a defesa dos direitos individuais homogêneos
deverá ser a regra; a ilegitimidade, a exceção.
Por conseguinte, apenas e tão-somente a interpretação tópico-
sistemática poderá excepcionar, em concreto, a legitimidade ministerial in
re ipsa para a defesa coletiva dos direitos ou interesses individuais
homogêneos; neste passo, somente a cegueira dos postulados da
civilística tradicional, assaz insuficiente para o processo coletivo, explica a
postura da jurisprudência conservadora em estabelecer, a priori, um rol
taxativo de hipóteses legitimantes ao Parquet, numa reedição da
vinculação pura à letra fria da lei, em total descompasso com os vetores
da Carta Constitucional.
Calha referir, em prosseguimento, algumas cercanias em que a
legitimidade ministerial para a defesa mediata dos interesses individuais
homogêneos desponta patente, porque evidenciado o interesse social na
proteção imediata da dimensão objetiva dos direitos fundamentais em
causa, que acidentalmente coletivizaram-se, recomendando-se a tutela
coletiva como critério de racionalidade ao acesso à jurisdição e com vistas
à concreção da isonomia material; por corolário, a efetivação de toda a
teia de direitos e garantias que orbitam no entorno do vértice da
dignidade da pessoa humana.
3.6.2 Da Legitimidade Ministerial Na Seara Tributária
Linhas postas, asseverado o interesse social na proteção imediata da
dimensão objetiva dos direitos fundamentais em causa como divisor de
águas da legitimidade ministerial para a defesa mediata dos direitos
individuais homogêneos, insta inscrever inexistir ressaibo de dúvidas que
o Órgão poderá assim atuar em matéria tributária, porquanto
exteriorização do telus de seu papel constitucional.
Contudo, a atuação tem sido mitigada pelas tendências
conservadoras. Alardeia-se, à guisa de justificação para a glosa, que
“(...) a relação jurídico-tributária não constitui relação de consumo, de
163
modo a permitir a utilização dos mecanismos de defesa do consumidor
para se questionar a constitucionalidade de tributo(...)”
201
.
O Supremo Tribunal Federal, com fulcro no precedente do Recurso
Extraordinário 195056-1/PR (Anexo C3), da relatoria do Ministro Carlos
Velloso, também afirma a ilegitimidade ministerial na seara em cotejo,
foco na inexistência de uma relação de consumo, in casu.
Negar conteúdo social à matéria tributária é deixar entrever visão
por demais linear acerca do fenômeno jurígeno de que se ocupa,
olvidando que a legitimidade do poder de tributar perpassa pela realização
da justiça social, cujo conteúdo fluido pode ser visualizado pelas diretrizes
que norteiam República, em especial a dignidade da pessoa humana, a
erradicação da pobreza e a redução das desigualdades sociais e regionais,
todos informativos do arcabouço principiológico que rege tal seara do
conhecimento jurídico.
Welber Barral
202
, ao tecer comentários acerca da higidez da Ação
Civil Pública em matéria tributária, preconiza
O interesse econômico envolvido na ação civil pública [em
matéria tributária] liga-se via de regra, aos recursos econômicos
no âmbito de um território. Quer sejam detidos pela Unidade
Federativa, quer sejam operados por sujeitos privados, que ali
reinvestem, estes recursos importam melhorias globais nas
condições de vida da população.
A soma destes recursos transcende os valores pecuniários
que representa. Implica ainda inestimável importância para dado
grupo social, cujos projetos podem ser violados por taxação que
apresente o carácter de inconstitucional e confiscatório.
(...) é perceptível, na configuração sócio-institucional
contemporânea, a mescla de interesses entre o Ministério Público e
a população local. Inconcebível, a partir daí, imaginar-se que
poderia seu representante permanecer inerte face à violação de
interesses de toda a comunidade. Interesses que, embora, fluidos,
se substanciam numa ordem econômica estável.(...)
Assim, como tutor da economia local e do interesse de seus
cidadãos é que o Parquet se legitima ativamente(...).
Neste ensejo, até a edição da MP 2.180-35, de 24/08/2001, a qual
deu nova redação ao artigo 1º, parágrafo único, da Lei n.º 7.347, de
24.7.85, excluindo peremptoriamente a legitimatio ad causam do
201
STJ, 1ª Turma, REsp 521807/SC, j. 06-12-2005, DJ 01-02-2006 (unânime), Rel. Min. Denise Arruda,
conforme nota da pesquisa de jurisprudência consolidada, sob a chave: matéria: processo civil; título: ação civil
pública matéria tributária ou previdenciária; subtítulo: legitimidade ativa do Ministério Público.
202
Notas Sobre a Ação Civil Pública em Matéria Tributária, Revista de Processo, São Paulo, n. 80, out.-
164
Ministério Público para as lides de natureza tributária, era preponderante
o entendimento da 2ª Turma do Colendo STJ, pela admissibilidade de tal
legitimação, porquanto “(...)A soma dos interesses múltiplos dos
contribuintes constitui o interesse transindividual
203
, que possui dimensão
coletiva, tornando-se público e indisponível, apto a legitimar o Parquet a
velá-lo em juízo.(...)”
Em tal contexto, não se pode poderia deixar de colacionar o
seguinte aresto, lúcido, porque perfeitamente conforme com o sistema
constitucional vigente:
(...) Ainda que não exista expressa disposição legal para a
tutela pelo Ministério Público dos direitos e interesses individuais
homogêneos por via da ação coletiva (Ação Civil Pública), fora dos
casos previstos no Código de Defesa do Consumidor, consolidou-se
a jurisprudência no sentido de que se revestida a lide de relevante
significação social, justificada está a legitimidade do Parquet.
A relevante significação social da matéria está identificada
com situações em que a eventual lesão de direito atinge um grupo
de pessoas, que podem ser identificadas como titulares deste
direito violado, mas que por conveniência social, em razão da
hipossuficiência ou do clamor público que causa o ato inquinado,
justifica-se a demanda coletiva. Em princípio, todos poderiam
individualmente propor a demanda e efetivamente muitos o farão,
se o MP não tomar a iniciativa de propor a ação Civil Pública. Mas
outros tantos, por ignorância, por falta de recursos ou por
qualquer outro motivo, como o próprio descrédito no Poder
Judiciário, não irão propor a ação. Justifica-se, neste caso, a
atuação ministerial, quer seja para que a lesão de direito seja
corrigida mais uniformemente, quer seja para que o acesso à
Justiça seja democratizado. (TRF 4ª Região, AC
1999.04.01.023416-7/PR, 3ª Turma, Rel. Paulo Afonso Braum Vaz,
DJU 09-08-2000, Seção 2, p. 219).
Neste diapasão, transparece inócua a tentativa de aferrar a
legitimidade ministerial apenas aos direitos individuais homogêneos que a
legislação infraconstitucional expressamente reconheça como relevantes,
como sói concluir ocorrente no Código de Defesa do Consumidor, na
defesa dos investidores do mercado de valores imobiliários (Lei
7.913/89) ou dos credores de instituições financeiras em regime de
liquidação extrajudicial (Lei n.º 6.024, de 1974, art. 46), patente no
Estatuto da Criança e do Adolescente e, mais recentemente, no Estatuto
do Idoso.
dez.1995, p. 151-3.
203
REsp 478944/SP, Rel. Min. Luiz Fux, j. 02-09-2003, DJU 29-09-2003, unânime.
165
Manietar a ação do Órgão a este viés – autorização da legislação
infraconstitucional – subverte a ordem axiológica do sistema e esbarra na
sua conhecida e intrínseca incompletude. É a casuística, e não os
iluminados, que fará colorir a legitimidade do Parquet ora telada, sua
matriz estará sempre correlacionada ao precípuo papel que lhe confiou o
Constituinte originário --- guardião da democracia substancial. Por isso, a
fonte da legitimidade é mais altiva e independe da benevolência do
legislador ordinário.
Circunscrever os interesses sociais aos direitos essencialmente
coletivos
204
é, data venia, reduzir o alcance da norma constitucional,
ignorando que o Estado democrático de direito enfeixa, como cerne, a
eficácia dos direitos fundamentais, de molde que toda a gama de direitos
desta estirpe, mesmo em sua acepção individual, contempla a
bidimensionalidade como característica imanente, carregando sempre a
dimensão objetiva, independentemente de sua diagramação subjetiva,
como ordem impositiva de respeito à liberdade em seu sentido positivo-
negativo. Esta força decorre das eficácias irradiante, diretiva, vinculante,
que são ínsitas à dimensão objetiva, quer se encontre o indivíduo de per
se considerado, quer acidentalmente coletivizado com seus pares, quer
como partícipe de relações jurídicas-base, quer quando integra a
coletividade como um todo.
Outra ordem de objeção tem sido recorrente no âmbito que se
estudo: trata-se de saber se a ação pública, assim manejada, importaria
via oblíqua de controle concentrado de constitucionalidade.
No seio do Colendo Superior Tribunal de Justiça a questão
apresentava-se
205
dicotomizada.
Num primeiro flanco, o entendimento de que mesmo consolidada a
lesão aos interesses individuais homogêneos em matéria tributária, a ação
204
Conforme leciona ASSIS, Araken, precedente já mencionado no corpo do texto
205
Há que se ponderar que a posição atual do STJ inclina-se, à luz da introdução do parágrafo único do artigo
1º da LACP, à denegação irrestrita da legitimidade ministerial na seara tributária (após um prévio intervalo de
entendimento fracionário pela eficácia ex nunc da inovação vertida do ato quase-lesgislativo), conforme pesquisa
procedida para o exame do tema em matéria previdenciária, o que será visto com mais detalhe, infra, afetando
indiretamente a questão da utilização da ACP como via oblíqua de controle concentrado de constitucionalidade.
166
civil pública não poderá cotejar o exame da inconstitucionalidade da lei
instituidora, sequer incidentalmente, porquanto tal prática representaria
via obliqua de controle concentrado de constitucionalidade (REsp
169602/SP, 2ª Turma, Relator Ministro Francisco Peçanha Martins, j.
16/08/2001, DJU 08/10/2001, p. 191).
No pólo oposto, a consagração do remédio como idôneo para tal
fim, entendendo “(...)lícita a argüição incidental de inconstitucionalidade
de norma tributária em sede de Ação Civil Pública, porquanto nesses
casos a questão da ofensa à Carta Federal tem natureza “prejudicial”,
sobre a qual não repousa o manto da coisa julgada” (REsp 478944/SP, 1ª
Turma, Relator Ministro Luiz Fux, j. 02-09-2003, DJ 29-09-2003, p. 153,
unânime).
Com efeito, os fundamentos do decisum não são alcançados pela
imutabilidade do caso julgado, de forma que o controle difuso de
constitucionalidade havido em Ação Civil Pública em matéria tributária não
tem o alcance vergastado pela posição que rechaça a idoneidade do
remédio e – corolariamente – a legitimidade ministerial nesta seara, pelo
contrário, representa racionalidade do controle incidental, revitalizando-o
de sua apatia hodierna.
Consoante traz à baila Juliano Taveira Bernardes
206
NELSON NERY JÚNIOR e ROSA MARIA ANDRADE NERY,
diferenciando a declaração incidenter tantum, que serve de alvo da
causa de pedir, do verdadeiro objeto da ação civil pública –
consistente em uma obrigação de fazer ou de não fazer –,
entendem equivocada a tese da impossibilidade do uso da ACP no
controle difuso.
Defendem os autores, ainda, que os efeitos erga
omnes da sentença dizem respeito aos limites subjetivos do
provimento judicial, "dentro da especificidade do resultado da ação
coletiva",
motivo por que tais efeitos não devem ser confundidos
com a questão da jurisdição nem da competência do órgão
prolator.
De outra banda, ainda que se objete que os efeitos pragmáticos da
decisão de procedência sejam assemelhados aos da ação direta de
inconstitucionalidade, é possível vislumbrar a total improcedência da
206
Novas perspectivas de Utilização da Ação Civil Pública e da Ação Popular no Controle Concreto de
Constitucionalidade, disponível em http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4484 , acesso em 21/06/2006
167
alegação de usurpação da competência da Corte Constitucional, posto que
o julgado não estará infenso ao controle pelas instâncias superiores,
inclusive pelo STF, consoante já apreciado pelo Pretório Excelso, no bojo
da Reclamação 600/SP, verbis:
RECLAMAÇÃO. DECISÃO QUE, EM AÇÃO CIVIL PÚBLICA,
CONDENOU INSTITUIÇÃO BANCÁRIA A COMPLEMENTAR OS
RENDIMENTOS DE CADERNETA DE POUPANÇA DE SEUS
CORRENTISTAS, COM BASE EM ÍNDICE ATÉ ENTÃO VIGENTE,
APÓS AFASTAR A APLICAÇÃO DA NORMA QUE O HAVIA
REDUZIDO, POR CONSIDERÁ-LA INCOMPATÍVEL COM A
CONSTITUIÇÃO. ALEGADA USURPAÇÃO DA COMPETÊNCIA DO
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, PREVISTA NO ART. 102, I, A, DA
CF. Improcedência da alegação, tendo em vista tratar-se de ação
ajuizada, entre partes contratantes, na persecução de bem jurídico
concreto, individual e perfeitamente definido, de ordem
patrimonial, objetivo que jamais poderia ser alcançado pelo
reclamado em sede de controle in abstracto de ato normativo.
Quadro em que não sobra espaço para falar em invasão, pela
Corte reclamada, da jurisdição concentrada privativa do Supremo
Tribunal Federal. Improcedência da reclamação." (Relator Ministro
NÉRI DA SILVEIRA (designado),
,
DJU de 14/02/2003.)
Outrossim, verifica-se a mesma tendência argumentativa no
julgamento do RE 227.159/GO:
EMENTA: - Recurso extraordinário. Ação Civil Pública.
Ministério Público. Legitimidade. 2. Acórdão que deu como
inadequada a ação civil pública para declarar a
inconstitucionalidade de ato normativo municipal. 3. Entendimento
desta Corte no sentido de que "nas ações coletivas, não se nega, à
evidência, também, a possibilidade de declaração de
inconstitucionalidade, incidenter tantum, de lei ou ato normativo
federal ou local." 4. Reconhecida a legitimidade do Ministério
Público, em qualquer instância, de acordo com a respectiva
jurisdição, a propor ação civil pública(CF, arts. 127 e 129, III). 5.
Recurso extraordinário conhecido e provido para que se prossiga
na ação civil pública movida pelo Ministério Público.
(44)
Turma, Rel. Min. NÉRI DA SILVEIRA, DJU de 17/05/2002, p. 73.
207
Assim, pode-se dizer que após o julgamento da reclamação antes
mencionada a Suprema Corte vinha
208
admitindo o controle difuso de
constitucionalidade em ações civis públicas, alinhados os seguintes
fundamentos:
(a) a pretensão da ACP diz respeito a bem jurídico concreto,
individual e perfeitamente definido, daí por que inalcançável pela
207
No mesmo diapasão, a decisão monocrática do Min. CELSO DE MELLO, na Recl. 1.733/SP (medida
liminar), publicada no DJU de 1º/12/2000, conforme transcrição do Informativo STF, n. 212/2000.
208
ao menos até a Medida Provisória n 2180/2001
168
via do controle abstrato, não se podendo, então, falar em invasão
da competência privativa do STF; e (b) como a decisão da ACP
também se sujeita aos recursos em geral, especialmente o
extraordinário, podem conviver harmonicamente os dois modelos
de controle de constitucionalidade (abstrato e concentrado)
209
.
Parece inderrogável, neste contexto, a inconstitucionalidade da atual
redação do § único do artigo 1º da LACP
210
, introduzido pela Medida
Provisória n.º 2180/2001, afastando, peremptoriamente e in abstrato, a
possibilidade da utilização do instrumento na seara tributária.
Não é razoável conferir interpretação restritiva à dicção abrangente
do Constituinte originário, manietando o Órgão-Agente de seu mister,
ceifando garantias constitucionais
211
ao pleno exercício da cidadania, com
escopo na maior aproximação possível do Estado histórico ao Estado
idealizado no Documento Maior, que pressupõe e almeja a concreção da
democracia substancial.
Nem se diga que a vazão da tese da constitucionalidade traria em
seu âmago o arrefecimento dos já combalidos cofres públicos,
prejudicando contundentemente os haveres que seriam destinados ao
financiamento das políticas públicas à implementação e manutenção das
prestações determinadas no Documento Maior.
A ação ministerial necessariamente pautar-se-á pela
proporcionalidade
212
. Aqui uma vez mais se enaltece o critério da
209
BERNARDES, Juliano Taveira. Novas perspectivas de utilização da ação civil pública e da ação popular no
controle concreto de constitucionalidade, disponível na internet em http://jus2.uol.com.br/doutrina, acesso em
21/06/2006
210
com a seguinte dicção “Não será cabível ação civil pública para veicular pretensões que envolvam tributos,
contribuições previdenciárias, o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço –FGTS ou outros fundos de natureza
institucional cujos beneficiários podem ser individualmente determinados”
211
que se devem orientar pelo princípio da máxima eficácia, consoante alude Canotilho: “(...) a uma norma
constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe dê. (...) é hoje sobretudo invocado [o
princípio] no âmbito dos direitos fundamentais (no caso de dúvidas deve-se preferir a interpretação que
reconheça maior eficácia aos direitos fundamentais(...)”, in Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 1992,
p. 227
212
Humberto Ávila conceitua a proporcionalidade como um postulado estruturador da aplicação de princípios
que concretamente se imbricam em torno de uma relação de causalidade entre um meio e um fim(...)Ele se aplica
somente a situações em que há uma relação de causalidade entre dois elementos empiricamente discerníveis, um
meio e um fim, de tal sorte que se possa proceder aos três exames fundamentais: o da adequação (congruência
entre meio e fim), o da necessidade (utilização do meio menos gravoso aos direitos que se encontram sob
iminente restrição, no escopo da menor ingerência possível na orla jurídica dos titulares destes direitos) e o da
proporcionalidade em sentido estrito (as vantagens trazidas pela promoção do fim correspondem às
desvantagem provocadas pela adoção do meio, um mandado de ponderação orientado pela proteção e para a
promoção da dignidade da pessoa humana ). Teoria dos Princípios. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 112/3. Não
se ignora aqui a discussão acerca da classificação da proporcionalidade numa nova categoria jurídica – postulado
169
relevância como norte do caminhar do Parquet: se a iniqüidade,
inobstante verificada
213
, não interfere com monta na capacidade
contributiva do contribuinte e não engessa o crescimento econômico,
poder-se-á vislumbrá-la como um mal menor que poderá ser tolerado
para a promoção de um bem maior, por todos querido, o bem comum
214
.
Eclodida a relevância, assumindo a exação exemplificativamente
caráter discriminatório, confiscatório, malferindo, e.g., o mínimo
existencial do contribuinte (no caso dos impostos pessoais), não haverá
complacência possível, posto que o financiamento das políticas públicas
não poderá se dar à custa do ceifamento da idéia fundamental da
liberdade.
Isto posto, quadra referir que a agir do substituto processual em
epígrafe não subjuga o mesmo valor ontológico prefalado, posto que seu
fundamento está nas entranhas do acesso material à jurisdição, como
instrumento de superação dos obstáculos sócio-culturais
215
, sem prejuízo
da co-atuação
216
na transposição das mazelas decorrentes das
– ao lado dos princípios e das regras jurídicos, mas a questão não será abordada. Importante, por oportuno,
escandir proporcionalidade de razoabilidade, que não são expressões sinônimas como se poderia cogitar de
afogadilho. Muito embora se possa, no caso em concreto, obter-se resultados pragmáticos aproximados pelo uso
de uma ou outro recurso, é imperioso ter em vista que a proporcionalidade é técnica de argumentação jurídica
que só se consolida com a consubstanciação de seus pressupostos (supra aludidos), enquanto que a
razoabilidade verbaliza-se como um juízo de eqüidade que, para vir à tona, imprescinde das exigências perfiladas
à proporcionalidade.
213
como, v.g., a desconsideração de dadas despesas com a formação educacional holística como hábeis a
subsidiar descontos na base de cálculo do imposto de renda da pessoa física
214
o que atende a lógica da inexistência de direitos (subjetivos) absolutos, como decorrência da incidência da
proporcionalidade na solução de antinomias entre princípios.
215
Neste ensejo, magnânimo o voto (vencido) do Ministro Marco Aurélio, que funcionou como Relator, no RE
206.781-4 MS, j. em 06/02/2001, DJU 29/06/2001, p 56, verbis: “(...) Na espécie dos autos, temos interesse
individual homogêneo envolvido? A resposta, para mim, é desenganadamente positiva. E por que o é? A ação
foi intentada objetivando beneficiar todos os contribuintes de um município. O interesse social salta aos olhos,
considerada a globalidade dos que residem no Município. Reitero que, na espécie , temos um interesse social,
um predicado que direciona a conclusão do envolvimento de interesses individuais homogêneos, que é
justamente o aspecto social (...) Caminhamos nesse sentido dando uma interpretação, portanto, teleológica ao
inciso III do artigo 129 da Constituição Federal, considerada a repercussão do tema no tecido social, o
interesse, em si, dos cidadãos, o interesse abrangente desses cidadãos. (...) O Ministro Ilmar Galvão refere-se à
inibição, eu diria melhor, à acomodação dos contribuintes quanto ao acesso ao Judiciário para reclamar
lesão ou ameaça de lesão a direito. Isso é uma constante, porque o cidadão geralmente aquilata os aspectos
positivos e negativos do ajuizamento, quer quanto a aborrecimentos que tem, quer quanto às despesas, no que
precisa contratar um profissional da advocacia. Esperar-se que cada qual, residente no Município de
Umuarama, ajuíze a ação para impugnar a majoração tida como ilegal do tributo é simplesmente assentar-se
que não teremos o ajuizamento dessas ações.(....)” o grifo é nosso.
216
atuação principal da Defensoria Pública da União e dos Estados, sem olvidar que há Estados que ainda não a
tenham instituído, ao arrepio da Constituição.
170
inacessibilidades econômica e técnica.
Para a estapafúrdia hipótese de todos os diretamente lesados com a
tributação inconstitucional conformarem-se com a sua instituição,
enternecidos por altruísmo irrazoável, o Ministério Público representará
um momento de lucidez dentro da faina dialética: se sua apreciação for
equivocada, caberá ao Estado-Juiz dizê-lo; o apagar da ignição do
processo de mediação, tão caro ao Estado ético pensado por Hegel,
adotado como base teorética deste estudo e que depois será estudado
com vagar, não se justifica.
De outra banda, poder-se-ia argumentar que a ferramenta restaria
debalde, estudados os leading cases do Supremo Tribunal Federal em
matéria tributária dos últimos anos, que exteriorizam uma tendência
contrária ao contribuinte, individualmente considerado, pela constatação
da preponderância da constitucionalidade dos tributos vergastados, quer
pela via do controle difuso, quer concentrado.
O juízo final de improcedência não pode significar senão o óbvio: a
tese trazida à colação, segundo o entendimento majoritário dos que estão
a compor o Colegiado Maior quando do julgamento, que põe fim, por uma
necessária ficção jurídica, à controvérsia --- inter partes, tutela
individual; nos termos do artigo 103, CDC, tutela coletiva (controle difuso)
ou erga omnes (controle concentrado) ---, não mereceu guarida.
Agregar que tal resultado possa impor caráter tautológico a
demandas outras, com causas de pedir remotas e próximas diversas do
caso julgado, é por demais assisado, é como querer engessar a iniciativa
do acesso à jurisdição, ad cautelam adversa.
Neste cenário, precisa a opinião de PRUDENTE:
De ver-se, assim, que, em matéria tributária, os
interesses individuais homogêneos, legalmente definidos, como
aqueles decorrentes de origem comum, uma vez agredidos,
coletivamente, em seu núcleo originário (hipótese de incidência
tributária e conseqüente fato gerador, de natureza homogênea, a
gestar obrigações tributárias e resultantes interesses individuais
também homogêneos), sofrem, por força do impacto agressor, o
fenômeno da atomização processual, em defesa de interesse
coletivo e social, relevantes a legitimar a pronta atuação do
Ministério Público, na linha de determinação institucional dos arts.
171
127, caput e 129, III, da Constituição da República, traduzidos nas
disposições dos arts. 5º, II, a e 6º, incisos VII, a e d e XII, da Lei
Complementar n.º 75/93, mediante as garantias instrumentais da
Ação Civil Pública, evitando, assim, a pulverização dos litígios, com
o conseqüente acúmulo de feitos judiciais, nos Tribunais do País,
nessa seara histórica de abusos tributários, onde o contribuinte,
individualmente considerado, sem recursos e órfão da assistência
judiciária do Estado, queda-se inerte e vitimado, sem qualquer
defesa, ante a brutal arrogância do Fisco. (...) Com o devido
respeito às opiniões contrárias, entendo que a única interpretação
válida, nesse contexto, é aquela que brota do tecido constitucional
e se mantém fiel e conforme a Constituição, no corpo da
normativa legal, a ponto de não frustrar a vocação institucional do
Ministério Público, essencial à função jurisdicional do Estado, feito
guardião da ordem jurídica, do regime democrático, do sistema
tributário nacional e dos interesses individuais homogêneos,
coletivos e sociais, no espaço tributário. A hermenêutica gestada
nas entranhas da legislação ordinária, sem força bastante para
alcançar os comandos constitucionais em referência, afigura-se
insuficiente à garantia plena dos direitos do contribuinte e da
Justiça tributária, no Estado democrático de direito.
217
Ora, os interesses caros da sociedade não podem deixar de ser
apreciados pelo Poder Judiciário, até porque faz parte do processo
dialético a superação das posições anteriormente tomadas, à vista de
novos e profícuos argumentos; outrossim, ainda há que se considerar a
salubre oxigenação periódica dos quadros magistrais.
Por outro viés, não se pode olvidar que a interpretação formal da
Constituição, realizada por magistrados, não é a única possível, a não ser
que se despreze a inolvidável contribuição de Peter Häberle, que advoga a
adequação da hermenêutica constitucional à sociedade pluralista e
aberta, na qual todos os grupos e cidadãos encontram-se imiscuídos no
processo interpretativo, interagindo para a busca de uma síntese entre o
Documento Maior e a realidade constitucional, o que não suprime a
atuação magistral nem desafia a cogência da lei, mas confere caráter mais
democrático ao processo interpretativo, hipertrofiando a sua
legitimidade
218
.
A teoria de Häberle é coerente com o modelo de Constituição que
adota -- singularmente próxima da concepção hegeliana acerca do
217
PRUDENTE, Antônio Souza. Legitimação Constitucional Do Ministério Público Para Ação Civil Pública Em
Matéria Tributária, Na Defesa De Direitos Individuais Homogêneos, diponível
http://www.usinadeletras.com.br/exibelotexto.phtml?cod=91&cat=Artigos&vinda=S,
acesso em 06/06/2006
218
Consoante muito bem sintetiza RICHE, Flávio Elias, O Método Concretista da “Constituição Aberta” de
Peter Häberle, acessível em http://www.geocities. com/flavioriche/haberle.html, acesso em 04/07/2005
172
tema
219
--, segundo a leitura de RICHE
220
(...) o legado cultural de determinado povo, de sua tradição
e de sua experiência histórica, assim como o reflexo de suas
esperanças, de suas expectativas (...) constituindo ao mesmo
tempo um ser e um dever-ser. Seu resultado é, pois, obra de
todos os intérpretes da sociedade, que é aberta e pluralista. Desse
modo, a tarefa da exegese constitucional não está restringida ao
momento da interpretação dos textos normativos, ganhando
relevância o papel condicionador que os requisitos culturais
exercem sobre a pré-compreensão do intérprete (...)
Conseqüentemente, toda a modificação cultural termina por
implicar em uma transformação da própria exegese, configurando
a cultura o pano de fundo material no qual se move a
hermenêutica constitucional (...).
Neste cenário, o Ministério Público transparece mais uma vez como
o tutor da cidadania
221
, dando voz a uma expressiva parcela da população
que, inobstante vivendo o contexto da norma e a preconcebendo
ilegítima, não ousaria enfrentar as vicissitudes de um processo judicial
para provocar a atuação do intérprete que exerce parcela da soberania do
Estado, quedando-se silente, empobrecendo a democracia de suas luzes.
À medida que a maioridade da cidadania de desvele, não se olvida e
até se projeta que a atuação do Ministério Público na seara em foco reste
mitigada, como saudável conseqüência da aquisição da consciência
efetiva da idéia da liberdade e do seu concreto exercício por meio de
instâncias mediadoras atuantes e comprometidas, em essência, com o
processo dialético: o Ministério Público retirar-se-á de cena quando os
atores sociais aprenderem a exercer os seus papéis no escopo da busca
incessante da democracia.
À guisa de fecho, necessária faz-se uma reflexão, porquanto
indeclinavelmente associada ao tema em abordagem.
Afirmada a legitimidade ministerial para a defesa mediata dos
direitos individuais homogêneos, inclusive em matéria tributária, e a
corolária inconstitucionalidade do artigo 6º da Medida Provisória
2180/2001, que inaugurou a dicção restritiva do parágrafo único do artigo
1º da LACP, é inderrogável que o interesse público que placita o agir do
219
Constituição não-formal
220
ob. cit., nota de texto n.º 11
221
Não se olvide a explicitação semântica do uso deste termo como o “direito a ter direitos intangíveis” (Juarez
173
Parquet, olhos postos no interesse difuso da preservação e na
consolidação da liberdade negativa de quaisquer dos cidadãos da
República, estejam eles agrupados em feixes identificáveis ou não,
também poderá municiar ações ministeriais na busca de recursos
legítimos que, por omissão de dados agentes públicos, não estejam
aportando ao Erário, prejudicando o financiamento das políticas públicas
que colorirão de eficácia os direitos prestacionais.
Neste ensejo, a ação de improbidade administrativa por omissão
relevante, v.g., ausência de diligência na execução do ativo fiscal de dado
município, também viabilizará o manejo dos freios e contrapesos tão
caros à democracia, num franco e intercambiante diálogo com a Ação Civil
Pública, assunto para outro modesto ensaio.
Apenas para não deixar ao largo, retomando os argumentos já
lançados no item 3.5 acerca da inconstitucionalidade da alteração do
artigo 16, da LACP, introduzida pela Lei 9494/97, verifica-se que a
eficácia erga omnes da sentença exarada em ação civil pública não
desafia o princípio federativo.
Em matéria tributária, poder-se-ia cogitar um abrandamento,
admitindo que a limitação perfilada estará em consonância com o sistema
constitucional vigente no tocante a impugnações de exações emanadas do
poder tributante municipal, caso em que a eficácia erga omnes da
sentença de procedência, restrita à base territorial da competência do
Juízo prolator, atenderá à moldura objetivo-subjetiva reclamada na ação,
não corporificando qualquer prejuízo à acessibilidade material à jurisdição.
Contudo, no tocante aos tributos de natureza estadual ou federal, a
restrição afigura-se iníqua, pelos argumentos já estudados.
222
Propostas várias Ações Civis Públicas para o afastamento de dado
tributo estadual, v.g., a questão dever-se-á resolver pela reunião das
demandas, nos termos do artigo 103, CPC
223
, ante a flagrante conexão, e
Freitas, fonte já revelada no curso do trabalho)
222
Remetemos o leitor ao item 3.5 deste estudo
223
Ademais, a questão também pode ser resolvida à luz do artigo 93, II, CDC, reunindo-se os feitos conexos no
foro da Capital da unidade da Federação em que esteja a ocorrer o abuso do poder de tributar.
174
a eficácia erga omnes da sentença de procedência projetar-se-á em toda a
base territorial de incidência do imposto, qual seja, o Estado da Federação
instituidor da exação impugnada, tornando-a uniformemente inexigível,
evitando-se a insegurança jurídica decorrente de decisões conflitantes.
E não se poderia pensar em limitação subjetiva diversa, posto que o
Ministério Público atua na defesa imediata da dimensão objetiva do
direito fundamental malferido pela ilegítima exação, sem prejuízo da
defesa indireta da dimensão subjetiva de tal direito, tendo por grupo-
amostragem os titulares dos direitos individuais homogêneos da
comunidade onde o Agente que subscreve a inicial da Ação civil Pública é
promotor natural e, por isso, lá ingressou com a demanda.
Tal circunstância por óbvio não exclui a homogênese do direito de
todos os demais atingidos pela mesma iniqüidade, que não podem ficar
desguarnecidos de proteção, ao menos em um Estado que se pretende
materialmente democrático e que, portanto, deve colmatar desigualdades
irrazoáveis e patentes, valendo-se de instrumentos contundentes e
eficazes.
No âmbito dos tributos federais, a solução seria idêntica. O
julgamento proferido pelo Juízo federal prevento
224
teria eficácia erga
omnes para todo o território nacional, o que representa alargados
benefícios à economicidade e à qualidade da prestação jurisdicional, com
efeitos diretos sobre o resgate do prestígio do Poder Judiciário, que deve
retomar no imaginário popular a titulação de último baluarte de defesa da
ordem constitucional; para tanto, deve agir em consonância com tal
máxima.
3.6.3 Da Legitimidade Ministerial Na Seara Previdenciária
O rompimento de arcaicos paradigmas também se faz lento no
224
Poder-se-ia resolver a questão da competência não pela prevenção, mas pelo vertido no artigo 93, CDC, ou
seja, reunindo-se todas as demandas no foro da Justiça federal da Capital do País.
175
âmbito em epígrafe, tornando imprescindível a crítica da academia, na
assunção de sua co-responsabilidade social, uma vez que partícipe da
sociedade aberta que interpreta a Constituição material, lição de Peter
Häberle antes singelamente esboçada.
Neste arcabouço, verifica-se o nítido conservadorismo, incapaz da
humildade que há que se requerer do exegeta, em movimento de
circularidade com o objeto da interpretação, a embeber o julgado a seguir
reproduzido por excerto, que restringe a legitimidade ministerial sem
respaldo tópico-sistêmico, em frontal dissintonia com a moderna
tendência que preconiza a tutela coletiva dos individuais homogêneos
como recurso racional de acesso à jurisdição:
PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. LIMINAR.
REAJUSTE DE BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO. IMPOSSIBILIDADE. 1.
Preliminar de ilegitimidade do Ministério Público para defender
interesses individuais homogêneos, além de impropriedade da
ação civil pública. Seja porque o interesse coletivo, no caso, não se
restringe aos aposentados e pensionistas, mas ao segurado de
maneira geral, seja porque o pleito não interessa a todos os
beneficiários de aposentadorias e pensões previdenciárias, mas
somente aqueles cujos benefícios ultrapassam um salário mínimo,
deve-se entender que inexiste, na espécie, a "alma coletiva" de
que fala "Mancuso", que caracteriza o interesse a ser defendido
pela via da ação civil pública. Pode existir, "in casu", até um
interesse de um grupo de pessoas, ou a soma de interesses
individuais, ou, ainda, interesses individuais homogêneos, mas não
o "interesse coletivo" a ser protegido através da ação prevista na
Lei no. 7.347/85. Este só pode ser aquele que considera o
aposentado e pensionista de maneira global, e apenas naquilo que
a lesão tem de comum a todos os demais lesados, os quais devem
pertencer a uma categoria "indeterminada" de pessoas. No caso,
"os pretensos lesados são perfeitamente identificáveis”(...).
225
A linha de raciocínio ora vergastada agita a idéia da idoneidade do
instrumento apenas para os direitos essencialmente coletivos, apartando-
a como legítima a instrumentalizar a defesa coletiva dos direitos
individuais homogêneos, ignorando por completo a relevância social que
deflui da coletivização acidental de tais interesses em combinação com as
características predominantes do perfil médio do círculo dos titulares dos
direitos subjetivos lesados – em sua maioria idosos – os quais são
credores de prioridade especial, consoante a clara dicção da Carta
225
AG 91.01.18152-1, TRF1, PRIMEIRA TURMA, Relator JUIZ EUSTÁQUIO SILVEIRA, Data da decisão
30/06/92, DJU 17/08/92, p. 24204
176
Constitucional, artigo 230.
Assim, este discurso totalmente antidemocrático -- porque contrário
à vontade geral que legitimou a atuação parquetária para a defesa
coletiva dos interesses agrupados pelo acidente de coletivização,
mormente pelo alcance majoritário da tutela sob a orla jurídica de idosos
---- avilta a dignidade de um universo significativo de pessoas que
deveria receber dos Poderes do Estado tratamento condizente com a sua
condição especial, impelindo-as à litigiosidade atomística, sujeita às
vicissitudes do processo individual, inclusive a configuração de
malferimento à isonomia material, pela ocorrência de decisões
frontalmente opostas, inobstante se trate da mesma matéria de direito.
Franqueada a ação coletiva, ter-se-ia racionalidade no acesso à jurisdição,
utilidade do provimento jurisdicional proferido em tempo razoável,
economia processual e material, segurança jurídica, pela latitude dos
efeitos subjetivos da coisa julgada, efetividade do direito fundamental da
inafastabilidade da jurisdição e respeito à isonomia constitucional.
Nesta esteira, importante coligir a lição de OVÍDIO BAPTISTA:
(...) queremos mais uma vez insistir em nossa questão
fundamental: a petrificação do “mundo jurídico” conceitual e
alienado da História, só pode fornecer-nos um instrumental
construído para uma sociedade otimista e confiante no progresso
contínuo e indefinido de suas próprias idealizações políticas e
sociais, de que, agora, devemos servi-nos para a regulação do
convívio de uma sociedade apreensiva às vezes pessimista com
relação a seu próprio futuro; para a disciplina de nossa época que
alguém já denominou a 'era da incerteza'.
226
Compulsado o plexo argumentativo precedente, calha trazer à
colação julgado que concatena didaticamente fundamentação concernente
ao caleidoscópio axiológico que estrutura o nosso Documento Maior,
agraciando várias das hipóteses desenvolvidas neste ensaio
227
.
226
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Jurisdição e Execução na Tradição Romano- Canônica. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1996, 1ª ed., p. 210/1
227
PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO CIVIL
PÚBLICA. REAJUSTAMENTO DE BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO. LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO
PÚBLICO. 1. AGRAVO REGIMENTAL INTERPOSTO CONTRA NEGATIVA DE EFEITO SUSPENSIVO
A AGRAVO DE INSTRUMENTO MANEJADO CONTRA DECISÃO JUDICIAL QUE, NOS AUTOS DE
AÇÃO CIVIL PÚBLICA PROMOVIDA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO, DEFERIU LIMINAR,
DETERMINANDO O RECÁLCULO DE TODOS OS BENEFÍCIOS PREVIDENCIÁRIOS - CONCEDIDOS
OU MANTIDOS, NO TERRITÓRIO DE PERNAMBUCO, ENTRE FEVEREIRO DE 1994 E FEVEREIRO
DE 1997 - DOS SEGURADOS DA PREVIDÊNCIA SOCIAL, CUJA RENDA MENSAL INICIAL TIVER
177
SIDO OU HOUVER DE SER CALCULADA, COMPUTANDO-SE OS SALÁRIOS-DE-CONTRIBUIÇÃO
REFERENTES A FEVEREIRO DE 1994, CORRIGINDO-OS PELO VALOR INTEGRAL DO IRSM DE
FEVEREIRO DE 1994, NO PERCENTUAL DE 39,67%, BEM COMO A IMPLANTAÇÃO DAS
DIFERENÇAS POSITIVAS. DISCUSSÃO QUE SE ENCERRA, SOBRETUDO, NA LEGITIMIDADE DO
PARQUET PARA O AJUIZAMENTO DE AÇÕES CIVIS PÚBLICAS CONCERNENTES A
REAJUSTAMENTO DE BENEFÍCIOS PREVIDENCIÁRIOS. 2. EM QUE PESEM AS NOTÁVEIS
CONSIDERAÇÕES DEDUZIDAS EM PRECEDENTES DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (RESP
506.457, AGRESP 423.928, RESP 419.187), É DE SE RECONHECER A LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO
PÚBLICO. O OBJETO DA AÇÃO (CORREÇÃO DO BENEFÍCIO DA PREVIDÊNCIA SOCIAL) E OS
TITULARES DO INTERESSE (REPRESENTADOS NA MAIOR PARTE POR PESSOAS IDOSAS), AO
LADO DA DIMENSÃO SUBJETIVA (QUANTIDADE DE SUJEITOS DE DIREITO ENVOLVIDOS)
ATINGIDA PELOS EFEITOS DA NEGATIVA DA AUTARQUIA PREVIDENCIÁRIA, CONFIRMAM A
LEGITIMIDADE MINISTERIAL PARA O SEU AJUIZAMENTO. INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DOS
ARTS. 127 E 129, III E IX, DA CF/88, ART. 25, IV, "A", DA LEI N.º 8.625/93, E ARTS. 5O, I E III, "E", E
6O, VI, "A" À "D", E XII, DA LC N.º 75/93. 3. A NATUREZA DAS ATRIBUIÇÕES DETERMINADAS
COMO DE COMPETÊNCIA DO ÓRGÃO MINISTERIAL, A DIMENSÃO DE SUA RESPONSABILIDADE,
A PLURALIDADE DE CATEGORIAS E TEMÁTICAS EM RELAÇÃO ÀS QUAIS DETÉM
INCUMBÊNCIAS DE PARTICULAR SERIEDADE, O PODER INVESTIGATIVO, FISCALIZADOR E
DETERMINANTE DE QUE FOI DOTADO ESSE AGENTE - CONSTITUCIONALMENTE QUALIFICADO
PELA SUA ESSENCIALIDADE À FUNÇÃO JURISDICIONAL DO ESTADO - IMPÕEM SEJA
ADMITIDO, COM LARGUEZA, O EXERCÍCIO DE AÇÕES COLETIVAS PELO MINISTÉRIO PÚBLICO,
NÃO SENDO ACEITÁVEIS, EM SENTIDO OPOSTO, INTERPRETAÇÕES RESTRITIVAS OU
INIBIDORAS. 4. AO MINISTÉRIO PÚBLICO SE CONFERE O DEVER DE SALVAGUARDA, NÃO
APENAS DOS DIREITOS DITOS INDISPONÍVEIS, MAS TAMBÉM DOS INTERESSES SOCIALMENTE
RELEVANTES, INDEPENDENTEMENTE DA INDISPONIBILIDADE QUE OS GRAVE OU NÃO, OU
SEJA, DAS PRETENSÕES QUE SE RECONHEÇAM COM REPERCUSSÃO OU REFLEXÃO NA
COLETIVIDADE CONSIDERADA EM CONJUNTO. ASSIM, NESSE CONTEXTO, NÃO SE PODE
PERMITIR A ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO NA PROTEÇÃO DE INTERESSES MARCADOS
PELA INDIVIDUALIDADE, COM EXERCITAÇÃO CONFINADA NO CORRESPONDENTE TITULAR,
SEM REVERBERAÇÃO NO CAMPO DO SOCIAL. CONTUDO, DE OUTRO LADO, AO MINISTÉRIO
PÚBLICO NÃO SE PODE DEIXAR DE RECONHECER A SUA RESPONSABILIDADE NA PROMOÇÃO
DE DIREITOS E REIVINDICAÇÕES QUE, EMBORA COM TITULARES IDENTIFICADOS OU
IDENTIFICÁVEIS, TÊM ACENTUADA CONOTAÇÃO SOCIAL, SEJA PELA NATUREZA DO OBJETO
PRETENDIDO, SEJA PELA QUALIDADE DISTINTIVA DE CERTA CATEGORIA, CUJAS
NECESSIDADES SEJAM DISCERNIDAS PELA PRÓPRIA SOCIEDADE COMO PRECISÕES DE ÍNDOLE
COLETIVA OU ARRIMADAS EM CUIDADO ESPECIAL RESTAURADOR DE EQUILÍBRIO
INDISPENSÁVEL DIANTE DAS DIFICULDADES VIVENCIADAS EM RELAÇÃO À PRÓPRIA
INSERÇÃO SOCIAL. 5. A NORMA LEGAL QUE INSTITUIU A AÇÃO CIVIL PÚBLICA - LEI N.º 7.347/85
- NASCEU COMO "LEI DOS INTERESSES DIFUSOS". POSTERIORMENTE, EM DECORRÊNCIA
ESPECIALMENTE DO ALARGAMENTO PROVIDENCIADO PELO CÓDIGO DE DEFESA DO
CONSUMIDOR (LEI N.º 8.078, DE 11.09.1990), A AÇÃO CIVIL PÚBLICA PASSOU A SER ADMITIDA
PARA FINS DE PROTEÇÃO DE INTERESSES DIFUSOS, COLETIVOS E INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS,
DENOMINADOS, GENERICAMENTE, DE INTERESSES TRANSINDIVIDUAIS. A DOUTRINA TEM SE
REFERIDO AO FATO DE QUE PROMOÇÃO DE DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS
("ACIDENTALMENTE COLETIVOS") TERIA CABIMENTO APENAS QUANDO SE TRATASSE DE
MEIO AMBIENTE, CONSUMIDOR E PATRIMÔNIO ARTÍSTICO, ESTÉTICO, HISTÓRICO, TURÍSTICO
E PAISAGÍSTICO, NÃO HAVENDO, DE OUTRO LADO, LIMITAÇÃO MATERIAL, QUANDO SE
CUIDASSE DE DIREITOS COLETIVOS E DIFUSOS ("ESSENCIALMENTE COLETIVOS"). É DE SE
RESSALTAR, ENTRETANTO, QUE, A DESPEITO DESSA DIFERENCIAÇÃO, TEM-SE AGASALHADO,
EM OUTRAS OPORTUNIDADES, UMA COMPREENSÃO MAIS AMPLIADA DOS DIREITOS
INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS, REPUTADOS ESPÉCIES DO GÊNERO COLETIVO, APTOS A SEREM
DEFENDIDOS ATRAVÉS DA PROPOSITURA DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA, ESPECIALMENTE QUANDO
ELA É MANUSEADA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO. PASSOU-SE A SE CONCEBER A PROMOÇÃO DA
AÇÃO COLETIVA EM DEFESA DE DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS QUANDO
CONFIGURADO MANIFESTO INTERESSE SOCIAL, COMPATÍVEL COM A FINALIDADE DA
INSTITUIÇÃO MINISTERIAL. 6. IN CASU, ESTÃO EM LITÍGIO DIREITOS/INTERESSES QUE SE PODE
QUALIFICAR DE INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS. O MINISTÉRIO PÚBLICO POSTULA O RECÁLCULO
DOS BENEFÍCIOS PREVIDENCIÁRIOS PERCEBIDOS POR TODOS OS SEGURADOS DA
PREVIDÊNCIA SOCIAL NO ESTADO DE PERNAMBUCO, COM A APLICAÇÃO DO IRSM DE
178
A Juíza Federal Marciane Bonzanini, ao sentenciar Ação Civil Pública
proposta pelo órgão ministerial
228
, com o objetivo de afastar a incidência
das alíquotas de contribuição previdenciária sobre as remunerações dos
servidores públicos civis da União, suas autarquias e fundações, tendo
em vista a inconstitucionalidade da MP 560/94, preconizou:
FEVEREIRO DE 1994 AOS SALÁRIOS-DE-CONTRIBUIÇÃO. ESTÁ EM DISCUSSÃO O RELEVANTE
DIREITO SOCIAL À PREVIDÊNCIA SOCIAL, CONSTITUCIONALMENTE CONCEBIDO, EX VI DO
ART. 7O, CAPUT, DA CF/88, ENTENDENDO-SE POR DIREITO SOCIAL À PREVIDÊNCIA SOCIAL
TAMBÉM O DIREITO À PERCEPÇÃO DOS BENEFÍCIOS DEVIDAMENTE CALCULADOS E
CORRIGIDOS, SEGUNDOS OS DITAMES LEGAIS, DE FORMA CAPAZ A GARANTIR A SATISFAÇÃO
DE TODAS AS NECESSIDADES DE SUBSISTÊNCIA QUE SE ASSOCIAM A ESSES VALORES. OS
DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS "SE CARACTERIZAM POR SEREM UM FEIXE DE DIREITOS
SUBJETIVOS INDIVIDUAIS, MARCADO PELA NOTA DE DIVISIBILIDADE, DE QUE É TITULAR
UMA COMUNIDADE DE PESSOAS INDETERMINADAS MAS DETERMINÁVEIS, CUJA ORIGEM
ESTÁ EM QUESTÕES COMUNS DE FATO OU DE DIREITO" (GIDI). NO CASO CONCRETO, TÊM-SE
DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS, NA MEDIDA EM QUE, EMBORA ATRIBUÍDOS A CADA
SEGURADO/BENEFICIÁRIO, SEGUNDO A SUA SITUAÇÃO PARTICULARIZADA, ESTÃO
AGREGADOS - AS PARTICULARIDADES QUE INDIVIDUALIZAM SÃO JURIDICAMENTE
IRRELEVANTES, MANIFESTANDO-SE A DIVISIBILIDADE APENAS NO MOMENTO DA EXECUÇÃO
DO PROVIMENTO JUDICIAL COLETIVO, SE LHES FOR FAVORÁVEL - POR UMA ORIGEM COMUM
(RESULTANDO NA HOMOGENEIDADE), QUAL SEJA A RESISTÊNCIA DA AUTARQUIA
PREVIDENCIÁRIA NA CORREÇÃO DOS BENEFÍCIOS PELA APLICAÇÃO DO IRSM DE FEVEREIRO,
CORRESPONDENTE AO PERCENTUAL DE 39,67%. 7. ESTÁ SENDO POSTULADO DIREITO DE
PESSOAS QUE SE ENQUADRAM, EM SUA MAIORIA, NO CONCEITO DE IDOSO. A SITUAÇÃO
ETÁRIA, SE ASSIM SE PODE DENOMINAR, TEM RECEBIDO ATENÇÃO PARTICULARIZADA NOS
DIAS ATUAIS. A EDIÇÃO DA LEI QUE DETERMINOU A TRAMITAÇÃO PRIVILEGIADA DOS
PROCESSOS EM VIRTUDE DA IDADE DOS POSTULANTES (LEI N.º 10.173, DE 09.01.2001), ASSIM
COMO DO ESTATUTO DO IDOSO (LEI N.º 10.741, DE 01.10.2003), SÃO SINAIS DESSA
PREOCUPAÇÃO COM AS PECULIARIDADES DAS NECESSIDADES QUE PASSAM A INTEGRAR A
VIDA DAS PESSOAS COM IDADE AVANÇADA. NÃO PODERIA SER DIFERENTE. A ANCIANIDADE
TRAZ CONSIGO UM QUADRO ESPECIAL, ESPECIALIDADE QUE, COMO JÁ DITO, FAZ
ASSEMELHAR ESSA SITUAÇÃO ÀS QUE CARACTERIZAM OS QUE SE ENQUADRAM COMO
CRIANÇAS, ÍNDIOS, CONSUMIDORES. DIZ-SE QUE "NÃO SÓ SE FAZ NECESSÁRIA A LUTA PARA
IMPLEMENTAR OS 'NOVOS' DIREITOS DA TERCEIRA IDADE PREVISTOS NA CONSTITUIÇÃO
ATUAL, MAS, SOBRETUDO, PARA APOIAR O FORTALECIMENTO DE INSTITUIÇÕES COMO O
MINISTÉRIO PÚBLICO, A QUEM COMPETE UMA ATUAÇÃO MAIS EFETIVA NA CONSECUÇÃO DA
CIDADANIA DOS IDOSOS" (WOLKMER E LEITE). 8. NÃO SE MOSTRA CONFORME AOS
PRINCÍPIOS DA RAZOABILIDADE, DA ECONOMIA PROCESSUAL E TAMBÉM DA ISONOMIA
ENTENDER PELA ILEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO, IMPELINDO TODOS OS
SEGURADOS PREJUDICADOS A AJUIZAREM AÇÕES INDIVIDUAIS, GERANDO ACÚMULO DE
DEMANDAS QUE, PELA IDENTIDADE DE DISCUSSÃO, PODERIAM E DEVERIAM TER A MESMA
SOLUÇÃO. 9. PRECEDENTES DOS TRFS E DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (QUINTA
TURMA, RESP 413986/PR, REL. MIN. JOSÉ ARNALDO DA FONSECA): "O MINISTÉRIO PÚBLICO
ESTÁ LEGITIMADO A DEFENDER DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS QUANDO TAIS
DIREITOS TÊM REPERCUSSÃO NO INTERESSE PÚBLICO"./ "O EXERCÍCIO DAS AÇÕES
COLETIVAS PELO MINISTÉRIO PÚBLICO DEVE SER ADMITIDO COM LARGUEZA. EM VERDADE A
AÇÃO COLETIVA, AO TEMPO EM QUE PROPICIA SOLUÇÃO UNIFORME PARA TODOS OS
ENVOLVIDOS NO PROBLEMA, LIVRA O PODER JUDICIÁRIO DA MAIOR PRAGA QUE O AFLIGE, A
REPETIÇÃO DE PROCESSOS IDÊNTICOS". 10. PELO NÃO PROVIMENTO DO AGRAVO
REGIMENTAL TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL,5ª REGIÃO, AGTR - AGRAVO REGIMENTAL NO
AGRAVO DE INSTRUMENTO 2004.05.00.0000317
SEGUNDA TURMA, REL. DESEMBARGADOR
FEDERAL FRANCISCO CAVALCANTI, J. 16/03/2004
228
ACP 96.0017521-7, fls. 189/227
179
No caso, a discussão sobre a inexistência de base legal
válida para o desconto mensalmente feito dos vencimentos dos
servidores públicos federais civis a título de contribuição social
justifica, por si só, a relevância da matéria para a sociedade como
um todo. As verbas descontadas possuem caráter alimentar, só se
admitindo a incidência de descontos mediante autorização legal
válida ou determinação judicial. De outra parte, a atuação do
Poder Público só pode ocorrer em conformidade com base legal
válida, sob pena de admissão de comportamento arbitrário. Esses
valores têm dimensão social suficiente para justificar a atuação
do Ministério Público.
Dessa forma, seja por consideração do inc. II do art. 129
da C.F/88, seja por caracterização dos direitos discutidos neste
feito como individuais homogêneos com relevância social (art. 129,
inc. IX, da C.F/88 c/c o art. 6º, inc. XII, da L.C n.º 75/93), resta
induvidosa a legitimidade do Ministério Público Federal para propor
esta ação.
Além disso, tratando-se de lesões massivas, entendo que
a interpretação dos instrumentos processuais que possibilitam o
seu exame coletivo pelo Poder Judiciário deve ser feita sob uma
perspectiva da realidade. Ou seja: respeitando as determinações
constitucionais e legais atinentes ao processo, não se pode olvidar
que as ações coletivas hoje são a alternativa mais eficiente e
eficaz para a concretização do direito de irrestrito acesso ao
Judiciário (art. 5º, inc. XXXV, da C.F/88).
O problema das lesões massivas e de seu exame pelo
Judiciário deve ser resolvido na origem, fazendo com que todos
aqueles que tenham tido seus direitos violados,
independentemente de haverem ou não buscado pessoalmente
socorro na prestação jurisdicional, vejam concretizadas a
realização da justiça. De nada adianta a criação de mecanismos
coativos de uniformização das decisões sem que se pense em
afastar a possibilidade de surgimento de renovadas séries de
processos a cada lesão que venha a ser praticada e que atinja
um grupo social com um todo. São causas em que, pela extensão
do rol dos lesados e pela garantia constitucional básica e geral de
quebra da inércia da prestação jurisdicional, com certeza
envolvem interesses públicos ou, no mínimo, interesse de uma
coletividade, legitimando e eticamente obrigando o Ministério
Público e entidades representativas a agir, assim resgatando a
confiança dos jurisdicionados na instituição e no próprio Poder
Judiciário.
229
Inobstante tais luzes, a pertinência sistemática da defesa coletiva
de interesses individuais homogêneos não foi percebida pelo Poder
Executivo Federal que, parecendo tomar para si a decisão do que seja
mais ou menos conveniente para a cidadania material, trouxe à baila a
restrição do uso do remédio, ceifando a sua incidência às questões
previdenciárias, consoante a nova redação do artigo 1º da LACP, pela
malfadada MP 2180.
229
fls. 197/8 dos referidos autos
180
A iniciativa, a par de assumir um viés autoritário, que ignora a
eficácia vinculante dos direitos fundamentais, representa verdadeira
afronta à proibição de retrocesso, ao reduzir, sem qualquer legitimidade
constitucional, a vocação do instrumento e, por via reflexa, a legitimidade
dos autores ideológicos – dentre os quais por excelência o Ministério
Público, como paladino in re ipsa da coletividade.
Nesta linha, a restrição, repisados aqui como escritos todos os
argumentos já lançados para a crítica da mesma restrição à seara
tributária, soa agudamente inconstitucional.
Mais: faz ver escancaradamente a linha diretiva dos mandatários da
República que deram vida à abjeta restrição: a defesa coletiva pode ser
admitida, desde que não contraste, v.g., o poder de império de tributar,
ainda que isto seja feito à margem da Lei, para o que as tutelas
individuais servem para dar aparência de respeito ao acesso à jurisdição.
Neste diapasão, calha certeira a lição de CASTANHEIRA NEVES
230
:
Na perspectiva política, a lei deixa de ser uma norma
puramente jurídica e apenas suscetível, como tal, de uma mediata
função política – a função política que, como se acentuou atrás, ela
cumpriria com ser só uma norma jurídica -, para adquirir antes
uma imediata função política, pois que em si passou em si mesma
a ser um específico instrumento político, um instrumento de que o
poder político lança mão para realizar a sua política (...) A
funcionalística neutralidade jurídica da lei possibilitou que ela
adquirisse uma direta intenção política e desse modo se
transformasse num “processo de governo”. À tentativa iluminista
de reduzir o político a jurídico substitui-se hoje a
instrumentalização do jurídico pelo político.
Desta feita, a restrição tem que ser impiedosamente afastada,
porquanto contrária à decisão política fundamental e, portanto, eivada de
ilegitimidade representativa.
Inobstante, a consulta à jurisprudência consolidada do Superior
Tribunal de Justiça
231
demonstra que, após uma relativa mitigação da
restrição legislativa em comento (para entendê-la incidente ex nunc,
preservando as ações civis públicas ajuizadas antes de sua égide, mas
230
Apud SILVA, Ovídio Araújo Baptista da, “Jurisdição e Execução...”, p. 205
231
A questão ainda não extrapolou os movimentos intestinais do STJ, não alçando exame perante o STF,
portanto e por ora
181
rechaçando as iniciativas coletivas nascidas sob a sua vigência
232
), o
posicionamento atual inclina-se à denegação irrestrita da legitimidade
ministerial na seara de que se trata neste título, a exemplo do âmbito
tributário.
Neste sentido:
RECURSO ESPECIAL. DIREITO PROCESSUAL CIVIL.
REAJUSTE DE BENEFÍCIO. PREVIDENCIÁRIO. DIREITO
INDIVIDUAL DISPONÍVEL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA.INADEQUAÇÃO.
ILEGITIMIDADE ATIVA AD CAUSAM DO MINISTÉRIO PÚBLICO.
1. A ação civil pública não se presta à proteção de direitos
individuais disponíveis, salvo quando homogêneos e oriundos de
relação de consumo.
2. "Não será cabível ação civil pública para veicular
pretensões que envolvam tributos, contribuições previdenciárias, o
Fundo de Garantia do Tempo de Serviço - FGTS ou outros fundos
de natureza institucional cujos beneficiários podem ser
individualmente determinados." (parágrafo único do artigo 1º da
Lei n.º 7.347/85).
3. O Ministério Público não possui legitimidade para
ajuizar ação civil pública visando ao reajuste de benefício
previdenciário, por se tratar de interesse individual disponível
(Constituição da República, artigos 127 e 129, inciso III, e Lei
Complementar 75/93,artigo 6º, inciso VII).
4. Precedentes.
5. Recurso provido.
Acórdão
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes
as acima indicadas, acordam os Ministros da SEXTA TURMA do
Superior Tribunal de Justiça, prosseguindo o julgamento, após o
voto-vista do Sr. Ministro Paulo Gallotti que, ressalvando seu
entendimento, acompanhou o voto do Sr. Ministro-Relator, no que
foi seguido pelo Sr. Ministro Paulo Medina, por unanimidade, dar
provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr.
Ministro-Relator. Os Srs. Ministros Paulo Gallotti e Paulo Medina
votaram com o Sr. Ministro-Relator. Presidiu o julgamento o Sr.
Ministro Hamilton Carvalhido.
233
No mesmo sentido, conforme precedentes citados no corpo do
acórdão, com chave de pesquisa “ILEGITIMIDADE MINISTÉRIO PÚBLICO -
INEXISTÊNCIA RELAÇÃO DE CONSUMO”, os seguintes arestos RESP
417374-RS, AGRG NO RESP 610683-PR, AGRG NO RESP 502610-
SC, RESP 369822-PR, AGRG NO RESP 404656-RS, RESP 370957-SC,
RESP 423098-SC, RESP 143215-PB, RESP 143092-PE, AGRG NO RESP
232
A 1ª Turma do STJ entendia o Ministério Público como parte ativa legítima para propor ação civil
pública envolvendo matéria tributária, desde que a ação tivesse sido proposta antes da entrada em vigor da
Medida Provisória n.º 2.180-35/2001.
233
REsp 416962 / SC ; RECURSO ESPECIAL 2002/0023368-9, Relator(a)Ministro HAMILTON
CARVALHIDO, SEXTA TURMA, Data do Julgamento:16/12/2003,DJ 12.12.2005 p. 425 (Anexo C2).
182
333016-PR, RESP 248281-SP, RESP 506457-PR, RESP 419187-PR, RESP
463975-PR, RESP 381142-SC.
O voto do Relator (Anexo C2), após discorrer sobre a natureza
disponível do benefício previdenciário, trouxe à baila o argumento
tradicional, qual seja, que na seara dos direitos individuais homogêneos
a ação civil pública encontra-se restrita ao direito do consumidor.
Quadra perfilar que novamente a questão é vista sob as vendas do
processo civil tradicional, deixando de contemplar a lição canotilhana da
bidimensionalidade dos direitos fundamentais. Ignora-se que o acidente
de coletivização é instrumental, de índole pública -- porque se orienta
para a busca do acesso racional à jurisdição, valor por toda a coletividade
cultuado, tanto que inscrito no Documento Maior, como garantia
fundamental implícita, decorrente da inafastabilidade da jurisdição
efetiva, lúcida, ágil, útil, econômica. Neste cenário, a disponibilidade
234
ínsita à esfera subjetiva desponta totalmente inócua para a aferição da
relevância social da tutela coletiva, que obviamente não pode estar
aferrada, numerus clausus, aos limites consumeristas.
Compulsado o voto do Ministro Paulo Gallotti (Anexo C2), denota-
se a sua preocupação com o amordaçamento em epígrafe, valendo
colacionar os seguintes excertos:
Sem adentrar na discussão doutrinária sobre o alcance
das expressões "interesses difusos, coletivos ou individuais
homogêneos", tenho que o exercício das ações coletivas pelo
Ministério Público deve ser admitido com a amplitude necessária
com vistas ao efetivo cumprimento das relevantes atribuições que
lhe foram cometidas pela Carta Magna, principalmente, como na
hipótese dos autos, em que se discute direito de inquestionável
magnitude e alcance social, qual seja, a recomposição do valor
real dos benefícios previdenciários.
Assim, conforme já decidiu esta Corte, na linha do
entendimento firmado pelo hoje Ministro Teori Zavascki, "há certos
direitos e interesses individuais homogêneos que, quando
visualizados em seu conjunto, de forma coletiva e impessoal,
passam a representar mais que a soma de interesses dos
respectivos titulares, mas verdadeiros interesses sociais, sendo
cabível sua proteção pela ação civil pública" (REsp. n.º 95.347/SE,
Relator o Ministro Edson Vidigal, DJU de 1º/2/1999).
234
Ainda que mitigada, como já se viu, vez que a dimensão subjetiva, enquanto entorno da dignidade da pessoa
humana, é irrenunciável; neste passo, o titular renuncia o exercício do direito, expressa ou tacitamente, não à
aquisição dos direitos em tese, o que seria desassisado.
183
Contudo, conforme observou o Ministro Hamilton
Carvalhido, não é essa a compreensão que tem prevalecido na
Quinta Turma, que, ao apreciar hipóteses semelhantes à presente,
assentou orientação de que, "tratando-se de interesses individuais,
cujos titulares não pode ser enquadrados na definição de
consumidores, tampouco sua relação com o instituto previdenciário
considerada relação de consumo, é inviável a defesa de tais
direitos por intermédio da ação civil pública" (REsp. N.º
419.187/PR, relator p/ acórdão o Ministro Gilson Dipp, DJU de
8/9/2003).
(...)
No âmbito da Sexta Turma, embora não localizado
precedente colegiado, o Ministro Paulo Medina no REsp. n.º
419.519/SC, DJU de 26/6/2003, monocraticamente adotou
idêntica linha de pensamento.
Assim, na Terceira Seção, o tema pode ser dito pacificado.
Apenas para registrar, anoto que a matéria, em caso
assemelhado, está sendo levada à consideração da Corte Especial
nos Embargos de Divergência do Recurso Especial n.º 413.986/PR,
relator o Ministro Ari Pargendler.
Ante o exposto, ressalvando meu ponto de vista,
acompanho o relator para dar provimento ao recurso especial.
Contra tal decisão foram interpostos embargos de divergência,
admitido, conforme a ementa a seguir reproduzida, incluído para
julgamento na pauta dia 28/06/2006, 3ª Seção do STJ, conforme
informação obtida no sítio do referido Tribunal
235
:
EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM RESP N.º 448.684 - RS
(2006/0051122-7) RELATORA : MINISTRA LAURITA VAZ
EMBARGANTE : MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL EMBARGADO:
INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL – INSS PROCURADOR
: MÁRCIA PINHEIRO AMANTÉA E OUTROS
Vistos, etc. Trata-se de Embargos de Divergência opostos
pelo MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL em face de acórdão proferido
pela Sexta Turma deste Tribunal, nos autos do REsp 448.684/RS,
de relatoria do Min. Hamilton Carvalhido, que restou ementado nos
seguintes termos, in verbis: "RECURSO ESPECIAL. DIREITO
PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CONCESSÃO DE
BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO. DIREITO INDIVIDUAL DISPONÍVEL.
MINISTÉRIO PÚBLICO. ILEGITIMIDADE.1. O Ministério Público é
parte ilegítima para a propositura de ação civil pública relativa a
benefício previdenciário, objeto, em natureza, de interesses
individuais disponíveis, que em nada se confundem com
aqueloutros individuais homogêneos e oriundos de relação de
consumo, de proteção também deferida à Instituição Ministerial
235
Os embargos foram rejeitados à unanimidade, nos termos do voto da Ministra Relatora, DJ 02/08/2006, assim
ementado: PROCESSUAL CIVIL E PREVIDENCIÁRIO. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM RECURSO
ESPECIAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO. DIREITO PATRIMONIAL
DISPONÍVEL. INEXISTÊNCIA DE RELAÇÃO DE CONSUMO. MINISTÉRIO PÚBLICO.
ILEGITIMIDADE AD CAUSAM. 1. Tratando-se de benefício previdenciário, em que não há interesse
individual indisponível, mas sim, direito patrimonial disponível, suscetível de renúncia pelo respectivo titular,
bem como não sendo relação de consumo, o Ministério Público não detém legitimidade ativa ad causam para
propor ação civil pública em defesa de tal direito. Precedentes das Turmas que compõem esta Terceira Seção. 2.
Embargos rejeitados.
184
pelos artigos 81, inciso III, e 82, inciso I, da Lei 8.038/90. 2.
Precedentes. 3. Recurso provido." (fl. 155).
Nos presentes embargos de divergência, colaciona como
paradigma acórdão proferido pela Quinta Turma, no REsp
413.986/PR, de relatoria do Min. José Arnaldo da Fonseca, que
assim restou sumariado: "RECURSO ESPECIAL. PREVIDENCIÁRIO.
AÇÃO CIVIL PÚBLICA. MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. "O
Ministério Público está legitimado a defender direitos individuais
homogêneos, quando tais direitos têm repercussão no interesse
público." "O exercício das ações coletivas pelo Ministério Público
deve ser admitido com largueza. Em verdade a ação coletiva, ao
tempo em que propicia solução uniforme para todos os envolvidos
no problema, livra o Poder Judiciário da maior praga que o aflige, a
repetição de processos idênticos." Recurso conhecido, mas
desprovido."
Sustenta o Embargante que a lei conferiu legitimidade ao
Parquet para a utilização da Ação Civil Pública mesmo na hipótese
de agir na salvaguarda de interesses individuais homogêneos, na
condição de substituto processual autônomo, mormente quando
esses direitos sejam revestidos de grande interesse para a
coletividade. É o relatório. Decido.
Prima facie, ao que se me afigura, restou demonstrada a
alegada divergência, pelo que admito o processamento dos
presentes embargos, ao teor do art. 266, § 1º, do Regimento
Interno do Superior Tribunal de Justiça. Vista ao Embargado para
impugnação, no prazo de 15 (quinze) dias, nos termos do art. 267
do RISTJ. Publique-se. Intime-se. Brasília (DF), 27 de abril de
2006. MINISTRA LAURITA VAZ, Relatora.
Pontuo que o voto do Relator do Acórdão paradigma
236
referido na
236
Adoto, como razões de decidir, o parecer do Ministério Público Federal, da lavrada il. Subprocuradora-Geral
da República, Dra. Maria Caetana Cintra Santos, verbis (fls.172/183):
"Trata-se de recurso especial interposto pelo Instituto Nacional do Seguro Social, com amparo no artigo 105,
inciso III, alínea a, da Constituição Federal, insurgindo-se contra acórdão proferido pelo Egrégio Tribunal
Regional Federal da 4ª Região que, à unanimidade, negou provimento à apelação, mantendo a sentença
monocrática proferida em ação civil pública.
Os fundamentos do v. acórdão recorrido estão resumidos na seguinte ementa (fls. 131):
"PREVIDENCIÁRIO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CABIMENTO. ORDEM DE SERVIÇO N.º 59097.
PRINCÍPIO DE PROVA DOCUMENTAL DA ATIVIDADE RURAL.
O Ministério Público possui legitimidade para a propositura de ação coletiva visando proteger o interesse dos
segurados do INSS, que tiveram negada a concessão de benefícios por determinação administrativa, fato este que
estaria causando prejuízo grave a todos os beneficiários.
A produção em regime de economia familiar caracteriza-se pelo trabalho dos membros do núcleo familiar com
base em um única unidade produtiva, cuja documentação é expedida em nome de uma pessoa, geralmente o
maridopai ou outra pessoa que comande os negócios da família. Portanto, não é razoável a determinação contida
na Portaria 4.27397 (art. 24 § único) e na Ordem de Serviço 59097 no sentido de que não sejam aceitos como
início de prova material do exercício de atividade rural em regime de economia familiar documentos que não
façam referência direta ao requerente mas sim a outros membros da família (pais, cônjuge, etc.), pois contraria a
natureza do regime.
Apelação desprovida e remessa oficial provida em parte..."
Agora, na presente etapa processual, alega a autarquia recorrente que o decisum supra contraria os seguintes
diplomas legais: "Lei n. 7.34785, art. 21; Lei n. 8.07890, arts. 81, 82 e 92; Lei n. 8.21391, arts. 11, inciso VII e
§ 1º, 55, § 3º e 105 a 108", na medida em que reconhece a legitimidade ativa ad causam do Ministério Público
Federal para propor ação civil pública, na defesa de interesses de segurados da Previdência. Sustenta o caráter
disponível dos direitos previdenciários, que não são suscetíveis de tutela mediante ação civil pública, pois, em
que pese a natureza individual e homogênea que ostentem, não caracterizam relação de consumo.
Apresentadas as contra-razões, às fls. 149165.
Recurso admitido na origem consoante o despacho exarado pela Vice-Presidência da Corte a quo, às fls.
185
167168.
É o relatório.
O recurso merece conhecimento, sendo tempestivo, e atendido, quantum satis, o requisito legal do
prequestionamento, porquanto a matéria, regulada pelos dispositivos apontados como violados, foi objeto de
deliberação no v. acórdão hostilizado.
No mérito, sem razão o recorrente, senão vejamos.
A controvérsia envolve o reconhecimento da legitimidade do Ministério Público Federal para propor ação civil
pública "visando proteger o interesse dos segurados do INSS, que tiveram negada a concessão de benefícios por
determinação administrativa" , de modo a impor à autarquia previdenciária, a aceitação de documentos
expedidos em nome do genitor, ou do cônjuge do beneficiário, para comprovação do tempo de atividade rural,
em regime de economia familiar.
A hipótese sub oculis cuida de direitos individuais homogêneos, pois, embora atribuídos a cada beneficiário, na
conformidade de sua situação específica, possuem a mesma fonte originária - a recusa do INSS em reconhecer,
nos documentos expedidos em nome de terceiros, a prova de direito próprio, ou seja, de atividade rural
desenvolvida em regime de economia familiar. Alia-se a esse elemento, a caracterização como direitos que
dizem respeito a uma coletividade, porquanto, os eventuais titulares desses direitos, ainda não determinados no
momento da propositura da demanda, são determináveis, no sentido estrito da palavra.
Nessa perspectiva, não remanesce dúvida quanto à legitimidade do Ministério Público Federal para a adoção de
medidas concernentes à proteção desses direitos, desde que configurado relevante interesse social. Assim, a
Constituição Federal estabelece, no art. 129, III, entre as funções institucionais do Ministério Público: "promover
o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de
outros interesses difusos e coletivos" e , "a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses
sociais e individuais indisponíveis." (art. 127, caput)
A Lei n.º 7.34785, que disciplina a ação civil pública, explicita, em harmonia com o texto constitucional : "Art.
1º Regem-se pelas disposições desta Lei, sem prejuízo da ação popular, as ações de responsabilidade por danos
causados: IV - a qualquer interesse difuso ou coletivo".
A Lei Orgânica do Ministério Público Federal é expressa, no artigo 6º, inciso VII, d :
" Compete ao Ministério Público da União:
...
VII - promover o inquérito civil e a ação civil pública para:
...
d) outros interesses individuais indisponíveis, homogêneos, sociais, difusos e coletivos."
A jurisprudência dominante, nos tribunais do país, encaminha-se de acordo com a orientação legal, como se
pode verificar nos julgados a seguir colacionados, todos emanados dessa Colenda Corte:
"EMENTA. Ministério Público. Legitimidade ativa. Código de Defesa do Consumidor. Cooperativa
habitacional. Administração em detrimento dos cooperados apurada em inquérito civil.
Precedentes da Corte.
Tem o Ministério Público, na forma de vários precedentes da Corte, legitimidade ativa para defender interesses
individuais homogêneos, presente o relevante interesse social, assim, no caso, o direito à aquisição de casa
própria, obstado pela administração de cooperativa habitacional em detrimento dos cooperados, como apurado
em inquérito civil.
Recurso especial conhecido e provido."
"EMENTA. PROCESSO CIVIL - AÇÃO CIVIL PÚBLICA - MINISTÉRIO PÚBLICO - LEGITIMIDADE.
1. O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL está legitimado a recorrer à instância especial nas ações ajuizadas
pelo MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL.
2. O MP está legitimado a defender direitos individuais homogêneos, quando tais direitos têm repercussão no
interesse público.
3. Questão referente a contrato de locação, formulado como contrato de adesão pelas empresas locadoras, com
exigência da Taxa Imobiliária para inquilinos, é de interesse público pela repercussão das locações na sociedade.
4. Embargos de divergência conhecidos e recebidos."
Os interesses individuais homogêneos são espécie de interesses transindividuais, ensejando, para seu exercício e
proteção, a utilização dos instrumentos de tutela coletiva. Em acórdão memorável, a nossa Corte Constitucional
pronunciou-se nesse sentido:
"EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO
PÚBLICO PARA PROMOVER AÇÃO CIVIL PÚBLICA EM DEFESA DOS INTERESSES DIFUSOS,
COLETIVOS E HOMOGÊNEOS. MENSALIDADES ESCOLARES: CAPACIDADE POSTULATÓRIA DO
PARQUET PARA DISCUTI-LAS EM JUÍZO.
1. A Constituição Federal confere relevo ao Ministério Público como instituição permanente, essencial à função
jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses
186
sociais e individuais indisponíveis (CF, art. 127).
2. Por isso mesmo detém o Ministério Público capacidade postulatória, não só para a abertura do inquérito civil,
da ação penal pública e da ação civil pública para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente,
mas também de outros interesses difusos e coletivos (CF, art. 129, I e III).
3. Interesses difusos são aqueles que abrangem número indeterminado de pessoas unidas pelas mesmas
circunstâncias de fato e coletivos aqueles pertencentes a grupos, categorias ou classes de pessoas determináveis,
ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base.
3.1. A indeterminidade é a característica fundamental dos interesses difusos e a determinidade a daqueles
interesses que envolvem os coletivos.
4. Direitos ou interesses homogêneos são os que têm a mesma origem comum (art. 81, III, da Lei n 8.078, de 11
de setembro de 1990), constituindo-se em subespécie de direitos coletivos.
4.1. Quer se afirme interesses coletivos ou particularmente interesses homogêneos, stricto sensu, ambos estão
cingidos a uma mesma base jurídica, sendo coletivos, explicitamente dizendo, porque são relativos a grupos,
categorias ou classes de pessoas, que conquanto digam respeito às pessoas isoladamente, não se classificam
como direitos individuais para o fim de ser vedada a sua defesa em ação civil pública, porque sua concepção
finalística destina-se à proteção desses grupos, categorias ou classe de pessoas.
5. As chamadas mensalidades escolares, quando abusivas ou ilegais, podem ser impugnadas por via de ação civil
pública, a requerimento do Órgão do Ministério Público, pois ainda que sejam interesses homogêneos de origem
comum, são subespécies de interesses coletivos, tutelados pelo Estado por esse meio processual como dispõe o
artigo 129, inciso III, da Constituição Federal.
5.1. Cuidando-se de tema ligado à educação, amparada constitucionalmente como dever do Estado e obrigação
de todos (CF, art. 205), está o Ministério Público investido da capacidade postulatória, patente a legitimidade ad
causam, quando o bem que se busca resguardar se insere na órbita dos interesses coletivos, em segmento de
extrema delicadeza e de conteúdo social tal que, acima de tudo, recomenda-se o abrigo estatal.
Recurso extraordinário conhecido e provido para, afastada a alegada ilegitimidade do Ministério Público, com
vistas à defesa dos interesses de uma coletividade, determinar a remessa dos autos ao Tribunal de origem, para
prosseguir no julgamento da ação"RE-163231/SP. Relator Min. MAURÍCIO CORRÊA DJ DATA-29-06-01 PP-
00055 EMENT VOL-02037-04 PP-00737. Julgamento 26/02/1997 - TRIBUNAL PLENO. Votação Unânime.
A aposentadoria previdenciária de indivíduos que laboraram, durante longos anos, em regime de economia
familiar está assegurada no art. 201, § 7º, II, da Constituição Federal, com a alteração procedida pela EC n.º
2098, e no art. 11 da Lei n.º 8.21391. Trata-se de direito de extrema relevância para os trabalhadores rurais, na
maioria das vezes, único meio de subsistência que dispõem, ao final da vida dedicada às atividades no campo.
Entretanto, pela própria natureza da atividade, os campesinos enfrentam dificuldades para reunir registros e
documentos do tempo de serviço prestado, em nome próprio, visando sua comprovação perante o instituto
previdenciário.
Nesse diapasão, pertinente a ação civil pública proposta pelo Ministério Público Federal para compelir o INSS a
acatar documentos expedidos em nome de familiares dos rurícolas, tanto do ponto de vista formal, pois consiste
em via processual legítima e eficaz, para evitar desnecessário acúmulo de demandas individuais, com o mesmo e
idêntico objeto, como do ponto de vista substancial, porquanto contempla entendimento desse Colendo Tribunal
de Superposição, quanto à aceitação da prova do tempo de serviço em regime familiar, através de documentos
não especificamente expedidos em nome do beneficiário. Nessa esteira de intelecção, oportuno transcrever o
seguinte julgado:
"PROCESSO CIVIL – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – MEIO AMBIENTE DO TRABALHO - MINISTÉRIO
PÚBLICO ESTADUAL – LEGITIMIDADE.
I - O Ministério Público está legitimado para instaurar inquérito civil, no intuito de colher subsídios para
eventual ação civil pública em defesa do meio-ambiente.
II - O exercício das ações coletivas pelo Ministério Público deve ser admitido com largueza. Em verdade a ação
coletiva, ao tempo em que propicia solução uniforme para todos os envolvidos no problema, livra o Poder
Judiciário da maior praga que o aflige, a repetição de processos idênticos."
(RESP 265.358SP, 1ª Turma, Rel. Ministro Humberto Gomes de Barros , DJ de 18.02.2002)
Nesse passo, é legítima a atuação do Ministério Público Federal na defesa dos direitos individuais homogêneos,
especialmente quando configurado interesse social relevante, materializado no caso sub oculis, onde se tem
conhecimento de grande número de membros de grupos familiares que exerceram atividade rural, estando, agora,
sob a égide da ordem constitucional implantada em 1988, aptos a reivindicarem suas aposentadorias junto ao
INSS. Entretanto, a autarquia previdenciária vem, sistematicamente, indeferindo os benefícios, arrimada na tese
da prova documental insuficiente, ou deficiente, pois não contempla o titular específica e individualmente.
É certo que os trabalhadores rurais que vivem em regime de economia familiar, eventuais beneficiários da ação
proposta pelo Parquet Federal, podem postular, individualmente, os seus direitos. Entretanto, a origem única da
reivindicação, consubstanciada na recusa do órgão público, recomenda a defesa coletiva em um só processo,
187
ementa dos embargos de divergência supraditos, que foi decidido à
quer pela observância ao princípio da economia processual, quer pela própria relevância social atribuída aos
interesses individuais homogêneos, que, no caso, adquirem conotação coletiva.
Segundo destacado por essa Corte Superior de Justiça, "Há certos direitos e interesses individuais homogêneos
que, quando visualizados em seu conjunto, de forma coletiva e impessoal, passam a representar mais que a soma
de interesses dos respectivos titulares, mas verdadeiros interesses sociais, sendo cabível sua proteção pela ação
civil pública. REsp 95347/SE, 5ª Turma, Rel. Ministro Edson Vidigal, DJ de 01.02.1999.. Esclarecedor o trecho
do voto condutor ora transcrito:
"Tomando como argumento de indiscutível judiciosidade, os ensinamentos do Professor Zavascki, acerca da
ação civil pública como adequada à defesa de direitos individuais homogêneos, vale salientar: "há certos
interesses individuais homogêneos – de pessoas privadas e de pessoas públicas – que, quando visualizados em
seu conjunto, em forma coletiva e impessoal, têm força de transcender a esfera de interesses puramente
individuais e passar a representar, mais que a soma de interesses dos respectivos, verdadeiros interesses da
comunidade como um todo. É o que ocorre com os direitos individuais homogêneos, antes mencionados, dos
consumidores e dos poupadores, cuja defesa (sic) pelo Ministério Público para defendê-los é inegável,
independentemente de previsão normativa ordinária, pois que albergada no próprio Texto Constitucional."
Oportuno recordar o ensinamento da eminente processualista Ada Pellegrini Grinover, quanto à legitimidade
ativa do Ministério Público para propor ação civil pública para tutelar interesses individuais homogêneos:
"(...) a doutrina, internacional e nacional, já deixou claro que a tutela de direitos transindividuais não significa
propriamente defesa de interesse público, nem de interesses privados, pois os interesses privados são vistos e
tratados em sua dimensão social e coletiva, sendo de grande importância política a solução jurisdicional de
conflitos de massa.
Assim, foi exatamente a relevância social da tutela coletiva dos interesses ou direitos individuais homogêneos
que levou o legislador ordinário a conferir ao MP e a outros entes públicos a legitimação para agir nessa
modalidade de demanda, mesmo em se tratando de interesses ou direitos disponíveis". (grifo nosso)
Demais disso, verifica-se que o direito à aposentadoria rural encontra-se definido como direito social, a teor do
disposto no art. 7º, XXIV, da Constituição Federal, que trata dos "direitos dos trabalhadores urbanos e rurais,
além de outros que visem à melhoria de sua condição social", por conseguinte, não possui índole puramente
individual.
Outro aspecto relevante consiste na atuação do Ministério Público Federal para resguardar o interesse social dos
trabalhadores rurais, integrantes de categoria social que tem dificuldade de acesso ao Poder Judiciário, tanto
devido à falta de informação, como pela hipossuficiência econômica...
Assim, há de ser mantido o v. acórdão atacado, que preserva o espectro de atuação do Ministério Público,
delineado na Carta Política e na legislação ordinária, visando a tutela dos interesses da sociedade como um todo,
sobretudo dos interesses individuais homogêneos de relevância social."
Confiram-se, ainda, os seguintes precedentes:
"AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CONTRATO DE ABERTURA DE CRÉDITO (CHEQUE ESPECIAL).
RELAÇÃO DE CONSUMO. PRETENSÃO DE DECRETAR-SE A NULIDADE DE DETERMINADAS
CLÁUSULAS TIDAS COMO ABUSIVAS. INTERESSES OU DIREITOS COLETIVOS. LEGITIMAÇÃO
DO MINISTÉRIO PÚBLICO.
- O contrato bancário de abertura de crédito (cheque especial) submete-se à disciplina do Código de Defesa do
Consumidor.
- Tratando-se de ação que visa à proteção de interesses coletivos e apenas de modo secundário e conseqüencial, à
defesa de interesses individuais homogêneos, ressai clara a legitimação do Ministério Público para intentar a
ação civil pública. Precedentes do STJ.
Recurso especial não conhecido, prejudicada a Medida Cautelar n.º 2640-RJ."
(REsp 292.636RJ, Rel., Min. BARROS MONTEIRO, DJ de 16092002)
"Código de Defesa do Consumidor. Ação civil pública. Televisão por assinatura. Direitos individuais
homogêneos. Dissídio. Precedentes da Corte.
1. O Ministério Público está legitimado pelo Código de Defesa do Consumidor para ajuizar defesa coletiva
quando se tratar de interesses ou direitos individuais homogêneos.
2. A televisão por assinatura tem hoje importante presença como instrumento de lazer, contribuindo para a
qualidade de vida dos cidadãos, e alcançando significativas parcelas da população, não estando confinada aos
estratos mais abastados.
3. Há entre os assinantes direito individual homogêneo, decorrente de origem comum, que autoriza a intervenção
do Ministério Público.
4. Recurso especial não conhecido."
(RESP 308.486MG, Rel. Min. CARLOS ALBERTO MENEZES DIREITO, DJ de 02092002)
188
unanimidade, em 15 de outubro de 2002, trouxe em seu seio um rol de
precedentes que admitem a legitimação parquetária para a defesa dos
individuais homogêneos, em diversas áreas.
Como se observa, alguns dos arestos insertos no voto paradigma
são contemporâneos ao período anterior à introdução do § único do
artigo 1º, LACP, quando a legitimação ministerial em comento era mais
prestigiada na Corte que se rotula da cidadania
237
, o que não
corresponde à realidade hodierna.
De outra banda, a situação perfilada no Acórdão paradigma enfeixa
nítida configuração de interesses individuais homogêneos, posto que a
tutela coletiva dirige-se ao afastamento de iniqüidade que não atinge a
universalidade de aposentados, mas o grupo de jubilados que alcançaram
o benefício pelo cômputo da atividade rural exercida em regime de
economia familiar, sendo que o ato administrativo vergastado, cuja
extirpação é o objeto da tutela coletiva, confronta com a maciça
jurisprudência previdenciária que, ao interpretar a questão, já entendeu
idônea a prova documental em nome do genitor dos aposentandos, dadas
as peculiaridades sócio-culturais da vida campesina, fulcrando-se na
presunção pro homine.
Admitir-se a tutela coletiva na seara previdenciária significa dar
concretude à decisão do Poder Constituinte Ordinário, que declinou aos
idosos – perfil subjetivo dos efeitos mediatos da defesa coletiva –
proteção especial.
A posição conservadora de nossos Tribunais tem placitado
maquineísmos superiores ao ilegítimo cerceamento do acesso qualificado
à jurisdição --- o que evidentemente interessa a toda a coletividade -- no
caso dos direitos individuais homogêneos.
Sob o argumento do sumário afastamento da legitimidade
ministerial, por entendê-lo encilhado à seara consumerista, os Pretórios
têm olvidado de examinar com mais percuciência a natureza jurídica dos
À vista do exposto, conheço do recurso, mas lhe nego provimento.
237
Conforme chamada publicitária constante em seu sítio www.stj.gov.br
189
direitos transindividuais em voga, negando o manejo da tutela coletiva até
mesmo quando se trata da proteção de interesses essencialmente
coletivos, como ocorre quando a pretensão impessoal e genérica da ação
coletiva tem por norte a revisão geral dos benefícios de toda a
coletividade dos segurados da previdência social, situação que só pode ser
concebida sob o prisma da unitariedade, despontando o argumento da
disponibilidade individual como sofismática. A disponibilidade, ainda que
mitigada, refere-se ao exercício, pelo singular, do direito subjetivo
assegurado genérica e impessoalmente na cognitio. Assim, a
disponibilidade tem por locus a esfera subjetiva do direito material, que
não é o escopo imediato da tutela coletiva.
Como assinala Godinho
238
De todo modo, mesmo incidindo em lamentável erro ao
desprezar o objeto litigioso na análise da natureza do direito
tutelado, o Superior Tribunal de Justiça comete pior equívoco ao
negar legitimidade ao Ministério Público, desconsiderando o
disposto nos arts. 127 e 129, III e IX, da Constituição. Realmente,
o interesse social está intrínseco nas questões previdenciárias, o
que faz com que haja uma legitimidade in re ipsa do Ministério
Público para ajuizar ações coletivas em defesa dos direitos dos
segurados.
Muito embora a tutela coletiva dos individuais homogêneos seja uma
decorrência da Constituição, de molde que não se afina com a
benevolência do legislador infraconstitucional, a situação de descompasso
notabiliza-se com a edição do Estatuto do Idoso, que em seu artigo no
art. 74, I, conferiu atribuição ao Ministério Público para instaurar o
inquérito civil e a ação civil pública para a proteção dos direitos e
interesses difusos ou coletivos, individuais indisponíveis e individuais
homogêneos do idoso.
De outra banda, a redação em cotejo evidencia a desvinculação
entre indisponibilidade e homogeneidade, o que não inaugura novo
cenário hermenêutico, mas faz placitar as inconsistências sistêmicas antes
reproduzidas, tornando mais escorreita a tese ampliativa, vez que mais
clara à luz dos que teimam em vincular-se à legolatria.
Novamente intercede Godinho
239
com lúcida objeção ao aferramento
190
da legitimação ministerial para a defesa coletiva dos individuais
homogêneos às cercanias do direito consumerista:
Se já nos parecia plenamente possível o ajuizamento de
ações coletivas pelo Ministério Público em questões
previdenciárias, a edição do Estatuto do Idoso torna indiscutível a
matéria, já que, além de prever uma série de direitos
previdenciários, expressamente confere legitimidade ao Ministério
Público para a defesa dos direitos individuais homogêneos dos
idosos
240
. Aliás, se a partir do Estatuto do Idoso o Superior
Tribunal de Justiça continuar desprezando a Constituição e
mantiver seu entendimento de que os direitos individuais
homogêneos só podem ser tutelados quando houver lei expressa,
será obrigado a excluir do âmbito de eficácia subjetiva da decisão
coletiva todos os segurados da previdência que não forem idosos,
o que configurará uma situação no mínimo desarrazoada, para não
dizer esdrúxula.
(...)
Todos esses fatores demonstram que a questão deve ser
resolvida com maior simplicidade: o Ministério Público possui
legitimidade para o ajuizamento de ações que tutelem direitos
previdenciários porque está constitucionalmente autorizado para
tanto, seja porque se trata de direitos coletivos, seja em razão do
inegável interesse social legitimador da tutela de direitos
individuais homogêneos.
O Diploma em epígrafe deixa entrever a possibilidade da tutela
coletiva dos interesses individuais homogêneos no âmbito assistencial,
na hipótese do art. 34 do Estatuto do Idoso, que garante aos idosos, a
partir de sessenta e cinco anos, que não possuam meios para prover sua
subsistência, nem de tê-la provida por sua família, benefício mensal de
um salário-mínimo, se a Autarquia previdenciária exigir, sem respaldo
sistêmico, a comprovação de incapacidade para atos da vida cotidiana, o
que não encontra esteio na norma de regência.
3.6.4 Da Legitimidade Ministerial Para A Defesa Coletiva Dos
Individuais Homogêneos Nas Omissões Administrativas
A discricionariedade absoluta não encontra esteio em quaisquer das
teorias da argumentação jurídica nem em face das técnicas
interpretativas, mormente as que preconizam a hierarquização axiológica
238
ob. cit., p. 24
239
ob. cit., p. 24
240
Sempre lembrando que a tutela coletiva no âmbito do direito previdenciário não se limita à defesa coletiva
dos individuais homogêneos, podendo alcançar a defesa dos interesses essencialmente coletivos.
191
como primado exegético.
Ab initio, com o escopo de delimitar o espectro da
discricionariedade, há que se pontuar que está presente nas fases pré e
pós-legislativas, podendo ser colhida não só nos atos administrativos,
onde apenas é mais curial, mas nos legislativos e judiciais, posto que o
exercício do poder, nos casos delimitados pelo sistema jurídico,
pressupõe a existência de uma margem de apreciação do agente para o
exercício finalístico de suas funções típicas.
Sob o prisma do direito administrativo, a teoria da margem de
apreciação opera em face dos conceitos jurídicos indeterminados e
vocábulos plurissignificativos, de diversas etiologias, abarcados em
normas cuja aplicação cabe ao agente administrativo ou político.
A discricionariedade administrativa, consoante Hartmut Maurer
241
, é
concebida em duas projeções: como ato de decisão e de escolha da
melhor dentre as diversas conseqüências jurídicas previstas na norma
para o atendimento da finalidade prevista na lei.
Funciona, a discricionariedade administrativa, como abrandamento à
idéia da submissão irrestrita à lei, sem prejuízo da imaculação da órbita
dos atos administrativos vinculados, muito embora a vinculação pura não
mais se sustente, porquanto o agente não é um autômato obrigado a
executar, v.g., inclusive leis inconstitucionais, formal e materialmente;
este não é, contudo, o âmbito deste estudo.
Dentro espectro da discricionariedade como ato de decisão, há que
pontuar a posição de Celso Antônio Bandeira de Mello
242
acerca do desvio
de poder por omissão do agente, quando este, por sua abstenção, deixa
de atender o cunho teleológico da norma imperativa da conduta não
exercida.
O exercício do poder discricionário, em Maurer, é orientado pela lei,
sendo indeclinável que o agente fundamente seus atos, descortinando as
razões pragmático-jurídicas pelas quais agiu, vinculando-se aos motivos
241
Manuel Droit Administratif Allemand: Allgemeines Vewaltungsrecht. Paris: L.G.D.J, 1994, p. 125-155.
242
Discricionariedade e Controle Jurisdicional, 2ª edição, Malheiros Editores, São Paulo, 1996, p. 75
192
dados.
Maria Silvia di Pietro posiciona-se contrária ao controle judicial dos
atos administrativos nas hipóteses em que a lei confira expressamente ao
agente a prerrogativa da escolha, como ocorre com a nomeação e
exoneração de servidores ad nutum
243
.
Celso Antônio Bandeira de Mello, numa posição intermediária,
sustenta
244
que para a fundamentação, as razões adotadas pelo agente, a
sindicabilidade é ampla, posto que só é intangível ao exame jurisdicional
o que deita raízes em campo diverso, restrito, o qual qualifica como
mérito do ato administrativo. Sua conceituação, aliás, vem muito bem
lapidada por Seabra Fagundes
(...) o mérito se relaciona com a intimidade do ato
administrativo, concerne ao seu valor intrínseco, à sua valorização
sob critérios comparativos. Ao ângulo do merecimento, não se diz
que o ato é ilegal ou legal, senão que é ou não é que devia ser,
que é bom ou mau, que é pior ou melhor do que outro. E por isso
é que os administrativistas o conceituam, uniformemente, como o
aspecto do ato administrativo relativo à conveniência, à
oportunidade, à utilidade intrínseca do ato, à sua justiça, à
finalidade, aos princípios de boa gestão, à obtenção dos desígnios
genéricos e específicos, inspiradores da atividade estatal.
245
Num terceiro flanco, ao qual me filio, estão aqueles que defendem a
ausência da esfera de imunidade antes sinalada. Desta feita, todos os
aspectos do ato administrativo são sindicáveis, atuando o juiz como
administrador negativo, sempre que provocado; interpretação contrária
seria negar vigência ao princípio constitucional da inafastabilidade da
jurisdição. Tal entendimento é esposado, ad exemplum, por Eduardo
Garcia de Enterría
246
.
Não obstante ausente a esfera de intangibilidade, a margem de
apreciação do administrador estará resguardada, residindo o controle
jurisdicional sobre as razões que levaram ao agir em toda a sua plenitude.
Destarte, o juiz não irá substituir o administrador público na realização de
seus misteres, dentre os quais o exercício da discricionariedade
243
Direito Administrativo. 6.ed. São Paulo: Atlas, 1996, p. 177 e 180
244
ob. cit. 82.
245
Controle dos Atos Administrativos pelo Poder Judiciário, São Paulo, Saraiva, 1984, p. 131
246
Problemas del Derecho Público al Comienzo de Siglo. Madrid: Civitas, 2001, p. 59
193
administrativa, mas poderá afastar a eficácia de dado ato administrativo
que, inobstante tenha atendido, em tese, boa técnica de administração,
não laborou com economicidade no caso em concreto, lesando o interesse
público; outrossim, poderá julgar inválida nomeação que não tenha
observado critério da notoriedade do saber jurídico do nomeado, se tal
qualificação não se mostrar verdadeira no caso em concreto, inobstante
assim o tenha considerado o agente político legitimado a realizar a
indicação e, aprovada esta, a nomeação.
Consoante já afirmado, alhures, a discricionariedade não é
prerrogativa exclusiva do âmbito administrativo, vez que incide nos atos
legislativos e judiciais; seu exercício, igualmente limitado pelos mesmos
parâmetros antes declinados.
Uma lei que autoriza a permuta de bem público com particular,
malferindo o patrimônio histórico e cultural, ainda que o tombamento do
bem lhe seja posterior, pode ser tida por inconstitucional, posto que
tombamento tem eficácia meramente declaratória, com efeitos ex tunc.
Assim, o controle judicial enfrenta diretamente o juízo de conveniência e
oportunidade da autorização, afastando, em concreto, o exercício
pernicioso da discricionariedade legislativa.
Celso Antônio Bandeira de Mello colaciona exemplo
247
do mau
exercício da discricionariedade pelo julgador: num dado órgão fracionário
de um Tribunal, o juiz vencido adere ao voto vencedor, declinando que o
faz para evitar a postergação do trânsito em julgado da decisão. Segundo
Mello, o julgador não se houve com acerto no tocante à fundamentação da
qual se valeu, vinculando-se a esta, consabido, posto que declaradamente
frustou a possibilidade jurídica de eventual recurso do sucumbente, ante a
divergência inicial.
Neste passo, se o poder discricionário deve ser exercido,
fundamentadamente, conforme os deveres da função, inderrogável que
se retome os postulados das teorias da argumentação jurídica supra
247
“Discricionariedade...”, p. 75
194
explicitados
248
.
Calha agregar que a teoria da argumentação jurídica de Neil
MacCormick comunga de idéias símiles às esposadas por Alexy,
mormente naquilo que se assenta na lógica formal. Contudo, consoante
ensina Manuel Atienza
249
, partem de premissas distintas para a elaboração
da estrutura de seus primados interpretativos, posto que MacCormick os
constrói a partir da jurisprudência; Alexy, ao revés, projeta cânones da
teoria da argumentação prática geral para o campo do Direito.
Neste aspecto, excerto da obra de Manuel Atienza:
(...) a teoria padrão [da lógica-formal] se ocupa, quase com
exclusividade, de questões de tipo normativo. Com isso, contudo,
além de não se incluir no âmbito de estudo da maior parte das
argumentações produzidas fora dos tribunais superiores (...) não
se dá suficientemente conta da argumentação a propósito de
questões normativas, uma vez que, também com relação a esse
tipo de problema, surgem discussões sobre fatos que podem vir a
ter uma importância até mesmo decisiva. A construção de uma
teoria da argumentação jurídica que dê conta também desse tipo
de (ou desse aspecto do) raciocínio jurídico deveria levar, por um
lado, a uma aproximação maior com as teorias da argumentação
da vida ordinária. Por outro lado, obrigaria a considerar (...) não
apenas que se há de desenvolver em contato próximo com a
teoria moral (...), como também com a sociologia do direito,
entendida esta como teoria sociológica e como investigações do
tipo empírico.
250
Desta feita, a idoneidade da discricionariedade nas fases pré-
legislativa, legislativa propriamente dita e pós-legislativa, só será
reconhecida quando exercida em consonância com os princípios e regras
que orbitam no sistema jurídico que lhe cerca, sob pena de apologia ao
arbítrio.
Diante das limitações metodológicas deste estudo, analisaremos os
reflexos da lição supra colhida no âmbito da omissão administrativa, ante
a sua fertilidade para a incidência de meio de cultura à atuação
ministerial como autor ideológico.
Como consabido, a singela consagração dos direitos fundamentais à
prestação não lhes dá corpo vívido, para o que desponta inarredável zelar
pela implementação de uma gestão da coisa pública que os contemple
248
Item 3.6.1 deste ensaio
249
As Razões do Direito: Teorias da Argumentação Jurídica, Madrid, 2ª edição, 2002, p. 233/4.
195
enquanto imperatividades normativo-axiológicas.
Não se pode olvidar que o papel institucional do Ministério Público é,
por excelência, o de atuar como guardião do Estado democrático de
direito, de molde que lhe é impositiva a verificação em concreto das
hipóteses em que há relevância social na provocação do Estado-Juiz à
avaliação da idoneidade da discricionariedade administrativa em omitir-se
na implementação dos prestacionamentos determinados na
Constituição
251
, com ou sem irradiação na legislação
infraconstitucional
252
, o que se hipertrofia no processo coletivo, dada a
repercussão objetivo-subjetiva da lesão no tecido social.
Godinho
253
explicita algumas das situações de proteção coletiva,
no espectro de interesse do Estatuto do Idoso:
ação coletiva para que sejam construídas entidades
públicas de abrigo para idosos ; ação coletiva visando a um
adequado tratamento de doenças crônicas que atinjam idosos (art.
79, I e II, do Estatuto do Idoso); ação coletiva para fornecimento
de medicamentos ; ação coletiva para efetivar o direito à educação
do idoso ; ação coletiva para garantir adequada locomoção para os
idosos (acessibilidade), conforme art. 38, II e III, do Estatuto do
Idoso, etc.
Em todas as situações exemplificadas, o Ministério Público está a
defender a dimensão jurídico-objetiva dos direitos fundamentais à saúde,
à educação, à liberdade de locomoção, qual seja, a obrigação do Estado
de realizar as políticas públicas adequadas à implementação efetiva dos
direitos prestacionais, sendo que o perfil dos titulares da dimensão
subjetiva de tais direitos, in casu, hipertrofia a relevância social, vez que
o idoso é titular de proteção especial (artigo 230, CF/88), o que
estabelece certa prioridade das gestões públicas a eles destinadas (o que
também ocorre com relação à criança e ao adolescente, ex vi do artigo
227, caput, CF/88), mas não exaure a legitimidade do Ministério Público
para buscar tais prestacionamentos aos outros integrantes do seio social.
250
As Razões do Direito: Teorias da Argumentação Jurídica, Madrid, 2ª edição, 2002, p. 317
251
o que integra o que podemos denominar de quinta onda de relativização das garantias e dos direitos
fundamentais (mitigação por ato administrativo). Abordaremos apenas os omissivos.
252
O que nos remete para a eficácia das normas constitucionais, o que não é objeto deste trabalho, mas o tema
foi mencionado no bojo do capítulo 2.
253
ob. cit., p. 21
196
No mesmo ensejo encontra-se a hipótese de uma Ação Civil Pública
com conteúdo mandamental atinente à construção de uma creche pública,
constatada a necessidade de ampliação da estrutura disponível para o
atendimento de crianças de zero a seis anos, em dado Município, o que
incluiu a contratação de pessoal especializado, se o acervo humano
existente não for suficiente.
Apenas para que não passe in albis, não se objete que, nos casos
trazidos à apreciação, a questão da legitimidade não suscitaria dúvidas
porque os interesses em voga, em sua feição subjetiva, são indisponíveis.
O locus da legitimatio é a esfera jurídico-objetiva, estranha a qualquer
ressaibo de disponibilidade, porquanto una, indivisível, que tem por
titulares toda a sociedade e cada um de seus membros, em simultâneo.
Linhas postas, não se nega a imprescindibilidade da fixação de
critérios objetivos para a aferição da relevância social como reverberação
do interesse difuso da implementação do Estado democrático de direito,
concretizável pelo respeito às eficácias irradiante, vinculante e dirigente
contidas na dimensão jurídico-objetiva dos direitos fundamentais.
Neste passo, insta colacionar excerto do voto de vista do Ministro
Sepúlveda Pertence, no bojo do RE 195.056 (Anexo C3), verbis
254
:
Donde, de igual modo, ser de repelir que o
reconhecimento da presença de interesse social na tutela de
determinada pretensão de uma parcela da coletividade
possa ser confiada à livre avaliação subjetiva
inevitavelmente carregada de valores pessoais -, quer de
agente do Ministério Público que a veicule em juízo, quer do órgão
jurisdicional a que toque verificar-lhe a legitimação para a ação
coletiva: para obviar esse risco de arbitrariedade, a solução há de
fundar-se em critérios dotados de um mínimo de objetividade.
Penso, como visto, que a adstrição da legitimidade
do MP aos casos de previsão legal expressa, embora
razoavelmente objetiva, seria um critério insuficiente para a
identificação do interesse social na defesa de direitos
coletivos: dado que deriva da Constituição a legitimação do
MP para a hipótese, não se pode reputar exaustivo o critério
que delega ao legislador o poder de demarcar a função de
um órgão constitucional essencial à jurisdição.
Tal encaminhamento, a verificação tópico-sistemática da relevância
social que legitimará a atuação ministerial na defesa imediata da
254
Tribunal Pleno, Relator Ministro Carlos Velloso, j. 09/12/99, DJU 14/11/2003, p. 18
197
dimensão objetiva e apenas mediata, refratária e diáfana da dimensão
subjetiva dos direitos em voga, é proposta deste estudo, que inclusive
pretende sistematizar os balizamentos do controle judicial da legitimatio.
Pesquisemos onde há consenso: a seara consumerista.
3.7 DA RATIO ESSENDI DA LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO
PÚBLICO NA SEARA DO CONSUMIDOR E SUA REVERBERAÇÃO
COMO CRITÉRIO OBJETIVO DE AFERIÇÃO DA RELEVÂNCIA SOCIAL
DA DEFESA COLETIVA DOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS.
A dignidade da pessoa humana é princípio-fonte da teia dos direitos
da personalidade, estando estampada no artigo 1º da Declaração
Universal dos Direitos do Homem.
Orlando de Carvalho advoga que “se hoje há um sentido e um
futuro para a História, ele está no Homem, não o ideal, mas o de carne e
osso, que se faz a si próprio em um processo dialético: o Homem como
processo
255
.
Outrossim, ensina que os direitos humanos devem ser vistos como
instrumentos da luta pelo Direito (Ihering); os direitos fundamentais, a
seu turno, como positivação racional dos direitos humanos, aparando a
ambigüidade semântica que lhes é ínsita
256257
, viabilizando o exercício das
liberdades individuais enquanto faculdades resultantes destes direitos
fundamentais
258
.
A topografia da dignidade da pessoa humana no vértice da
hierarquia constitucional viabilizou uma releitura do indivíduo, não mais
como um instrumento do individualismo
259
egoístico e exacerbado, mas
255
apud ALVES, Gláucia. Sobre a Dignidade da Pessoa. In: MARTINS-COSTA, Judith (org.). A
Reconstrução do Direito Privado, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 243.
256
ibidem
257
Poder-se-ia objetar a restrição no tocante à realidade brasileira hodierna, aduzindo que na Carta Magna de
1988 não enfeixa catálogo fechado para os direitos fundamentais, por força do artigo 5º, § 2º. Contudo, há que
se lembrar que a codificação é apenas uma das formas de positivação de direitos, de molde que não podem ser
tomadas como sinônimas.
258
ibidem
259
NALIN, Paulo. Economia, Mercado e Dignidade do Sujeito. In RAMOS, Carmen Lúcia Silveira et al.
198
como ser coletivo, fraterno, solidário e personagem principal da
funcionalização da propriedade, da nova concepção do trânsito jurídico,
fulcrado na solidariedade e na boa-fé, e da família eudemonista.
Há que se pontuar que a dialética concreta de Orlando de Carvalho
sustenta inexistir standard para a dignidade, posto que a personalidade
não subsiste senão enquanto exista uma personalidade humana real
260
,
chave de leitura da dignidade da pessoa humana em Hegel, segundo o
qual se trata de um conceito geral concreto e não um conceito geral
abstrato.
A dignidade da pessoa humana, ápice da escala axiológica da
Constituição e núcleo essencial do direito comum do homem comum
261
,
imprime entre o direito público e o direito privado uma dialética da
complementaridade, consoante a leitura de Miguel Reale
262
.
Neste passo, recusa-se a fusão da esfera pública com a privada,
porque ambas as perspectivas, às vezes em tensão, às vezes em
coincidência, atuam complementarmente correlacionadas e mutuamente
implicadas no processo de ordenação jurídica da experiência social.
Sem que seja necessária a utilização do desgastado recurso da
dicotomia, há que se concordar com Lafer
263
, no sentido que a
“inexistência de limites entre o público e o privado é característica básica
do totalitarismo”, de molde que ao se apregoar a absorção do direito civil
pelo direito constitucional (visão antidicotômica extremada), estar-se-ia
viabilizando meio de cultura para a potencial subjugação dos valores
individuais pelos estamentais, lidos como sociais, sob os óculos de um
Estado totalitário.
Ademais, seria mesmo paradoxal fusionar tais esferas, fulcro na
dignidade da pessoa humana -- valor racional à positivação dos direitos
humanos que concernem à personalidade ---, porquanto tal interpretação
(org.). Diálogos Sobre Direito Civil – Construindo a Racionalidade Contemporânea. Rio de Janeiro: Renovar,
2002, p. 121.
260
apud Gláucia Alves, p. 244
261
como Orlando de Carvalho denomina o Direito Civil, apud Gláucia Alves, p. 245
262
O Projeto do Código Civil: Situação Atual e Problemas Fundamentais. o Paulo: Saraiva, 1986.
263
apud Gláucia Alves, p. 245
199
colocaria em xeque a garantia que todo o movimento dos direitos
humanos do pós–guerra quis infundir.
Nesta dialética da complementaridade, a relação entre Constituição
e Direito Privado apresenta por vezes coincidências (v.g. da dignidade
pessoa humana como centro irradiador), por vezes típica fisionomia de
instrumentalidade, como sucede com as normas infraconstitucionais
especificam, detalham a completa implementação dos princípios e
diretrizes constitucionais, consoante ensina Judith Martins-Costa
264
.
Na Magna Carta de 1988, a dignidade da pessoa humana está
inscrita dentre os princípios político-constitucionais, exsurgindo, por sua
natureza intrínseca, incontrastável ao poder constituinte derivado.
Não se esgota, contudo, em tal fisionomia, na medida em que
funciona como cânone interpretativo que inspira todo o Documento Maior,
bem como serve como fonte irradiadora à inscrição de inúmeros
dispositivos que exemplificam as suas facetas, sem pretensão de
exaurimento, uma vez que a dignidade da pessoa humana não pode estar
arraigada a standards, consoante a correta leitura da dialética concreta,
fulcrada na visão hegeliana acerca do tema.
São exemplos das irradiações da dignidade da pessoa humana, os
direitos e garantias fundamentais à igualdade, ao acesso à jurisdição, à
liberdade religiosa e de expressão, à intimidade e à inviolabilidade do
domicílio, ao sigilo de correspondência, aos direitos sociais, ao exercício
da atividade econômica com os condicionantes do artigo 170, CF, direito
à saúde (art. 196), entre muitos outros.
Essas especificações da dignidade da pessoa humana são
importantes porquanto lhe conferem precisão conceitual, mas não
exauriente, aparando a imprecisão semântica que é curial aos direitos
humanos.
Os valores de uma sociedade condicionam o erigir de princípios
estruturantes de cujos postulados advirão princípios fundamentais, gerais,
especiais, especialíssimos, regras e normas individuais de conduta
200
àqueles conformes.
No Estado liberal, o valor essencial é a própria liberdade; no Social,
a igualdade formal.
Para o Estado social e democrático de direito é indeclinável a
preservação da própria democracia, cuja enunciação pressupõe a
dignidade da pessoa humana como princípio fundamental, do qual
decorrem a liberdade e a igualdade (material) como princípios gerais,
sendo estes balizamentos condicionantes dos princípios especiais e
especialíssimos, bem como conformadores de todas as regras e normas
individuais de conduta, numa leitura consoante a Constituição.
Desta feita, a taxinomia do prefalado artigo não se concilia com a
leitura do exegeta contemporâneo, para quem os princípios, dentre os
quais o da dignidade da pessoa humana, são fontes do sistema jurídico e
não meros coadjuvantes interpretativos, que só entram em cena em caso
de lacunas, o que só atendia ao mito da completude do direito
codificado, hoje já superado.
Neste passo, ademais dos princípios e sua força normativa, a
legislação infraconstitucional deve ser espelho da concretização dos
princípios constitucionais, sob pena de ser ceifada pela força do controle
de constitucionalidade, seja para o caso em concreto (controle difuso)
sem com efeitos erga omnes (controle concentrado).
Assim, embora incontestável que a mera codificação não realizará a
transmudação necessária à implementação de uma sociedade mais justa e
solidária, que valorize a pessoa humana, tornando possível a efetiva
ascensão democrática à proteção da personalidade, representa a
corporificação de ato legislativo conforme o princípio estruturante da
República Federativa do Brasil, ao que não podem ser ceifados encômios,
v.g., na seara do direito do consumidor.
No Brasil, a década de 80 serviu de cenário para a retomada da
democracia, com as eleições indiretas para presidente, constituição da
assembléia nacional constituinte e promulgação da denominada
264
“Mercado e Solidariedade Social”, p. 627.
201
Constituição-Cidadã, propositiva de uma sociedade justa, humana e
solidária, centrada na proteção da dignidade da pessoa humana, na
erradicação da pobreza, na livre iniciativa, no livre exercício do trabalho.
Nas últimas décadas a importância político-econômica do Brasil tem
sido incrementada e sedimentada em ações que têm primado pelo
reequacionamento das forças no mercado internacional, propondo
alternativas para a redução das macrodesigualdades, aliando-se a outros
países com foco na competitividade (MERCOSUL) e envidando esforços
para o fortalecimento das Américas (ALCA), sem prejuízo das gestões
junto a OMC para fazer cessar obstáculos criados, v.g., pelo governo
estadunidense e algumas multinacionais européias (como nos casos da
quebra da patente dos medicamentos genéricos e exclusão de subsídios a
dados segmentos da agricultura daquele país) a produtos brasileiros nos
mercados interno e internacional.
Inobstante a alta carga tributária brasileira
265
, os serviços públicos,
mormente os de incumbência do Executivo, encontram-se sucateados,
sofrendo o povo brasileiro privações de toda ordem, salvo faixa da
população cada vez mais restrita, que paga por serviços públicos (que lhe
deveriam ser alcançados pelo Estado) sem utilizá-los e desassossega-se
com a proliferação da marginalização e da pobreza de seus concidadãos.
O direito muda a reboque das transformações sociais, inobstante
estas ocorram em espectro de dinamicidade e complexidade que o direito
não consegue alcançar.
Dentro desta perspectiva, o contrato evoluiu, funcionalizou-se; a
autonomia da vontade foi deposta pela prevalência da solidariedade
social, personalizando-se o trânsito jurídico com os escopos da boa-fé
objetiva e do equilíbrio contratual.
No contexto brasileiro atual, os contratos paritários quase não têm
relevância social prática, posto que na sociedade massificada os contratos
operam-se por adesão do consumidor. Os indivíduos são considerados
265
segundo reportagem do jornal Zero Hora do dia 20/03/2005, o Brasil ocupa o 7º lugar no ranking mundial,
representando a carga tributária 35,5% do PIB (fonte: Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário (IBPT)
202
apenas como grupos, despontando a despersonalização dos contraentes
(bilhetes, tickets, passes, cartões magnéticos).
Outrossim, há que se considerar a categoria dos contratos
obrigatórios (água, luz, telefone, gás) e dos pactos cativos de longa
duração
266
, tais como os de seguro, prestação de serviços educacionais,
assistência médica, os quais envolvem geralmente obrigações de fazer de
forma contínua e prometem segurança e qualidade
267
.
Segundo Paulo Nalin, “funcionalizar, na perspectiva da Carta de
1988, significa oxigenar as bases (estruturas) fundamentais do Direito
com elementos externos à sua própria ciência(...) é atribuir ao instituto
jurídico uma utilidade ou impor-lhe um papel social”.
268
Segundo Glauber Talavera, a função social instrumentaliza a
prevalência do interesse público em prol do proveito coletivo,
concretizando justiça distributiva e permitindo a inclusão social, a
erradicação da pobreza e da marginalização social e a redução das
desigualdades.
Função social do contrato é decorrência da própria funcionalização
do direito privado, consubstancia irradiação do primado da função social
da propriedade para o trânsito jurídico dos bens e direitos.
A função social, atenta às exigências ético-sociais, não comporta
standards, mas se amolda aos valores vigentes em cada sociedade, em
determinado momento histórico.
Apenas a título de exemplificação, há que se aduzir que, no
liberalismo, a função social consistia em possibilitar o equilíbrio formal e a
autonomia da vontade dos contratantes, divergindo diametralmente da
função social concebida pelo Estado social, que pugna pela solidariedade e
pela implementação da dignidade da pessoa humana em seus diversos
espectros, de modo que a função social atua “como estímulo ao
progresso material, mas sobretudo à valorização crescente do ser humano
266
expressão de Cláudia Lima Marques, citada por Eduardo Sens Santos, no seu artigo intitulado A função
Social do Contrato, Revista de Direito Privado, São Paulo, v.13, p. 99-111/ 103.
267
ibidem
268
Do contrato: Conceito Pós-moderno em Busca de Sua Formulação na Perspectiva Civil-Constitucional.
203
num quadro em que o Homem exercita a sua criatividade para crescer
como indivíduo e com a sociedade”.
269
Neste diapasão, há correlação necessária entre função social do
contrato e dignidade da pessoa humana.
Quando, v.g., os efeitos do contrato extrapolam os interesses dos
contratantes, porque interessam a toda a coletividade de forma difusa,
não se pode tratar o contrato como fenômeno isolado, mas
contextualizado em sua função social, o que faz ver que a relativização
dos efeitos dos contratos exclusivamente aos contratantes seria uma visão
reducionista do fenômeno contratual
270
que, em verdade, projeta seus
efeitos à sociedade, em efeito cascata ou dominó.
Nesta senda, o intérprete não pode ver o contrato como “um átomo,
algo que somente interessa às partes, desvinculado de tudo o mais, a
coexistência harmônica”
271
sendo cediço que a existência do pacto pode
impor-se de per se, podendo ser invocada contra terceiros e, nalgumas
hipóteses, por terceiros às próprias partes.
272
São reflexos da hipercomplexidade contratual compatíveis com a
nova fisionomia que o instituto ostenta.
De outra banda, vale registrar que o contrato, para além de sua
função econômica ordinariamente circulatória, pode funcionar como
agente criador de riquezas, mas a matéria não será abordada neste
ensaio.
Postos tais lineamentos, pode-se afirmar que o contrato justo
irradia benefícios ao tecido social, de molde que deve ser visto como
instituição social: os bons contratos, que promovem o desenvolvimento
econômico e social, são do interesse de toda a sociedade. Por isso, o
“princípio da relatividade simplesmente não existe no tratamento das
Curitiba: Juruá, 2001, p, 217
269
Cesar Luiz Pasold apud Eduardo Sens Santos, “A Função Social...”, p. 110
270
SANTOS, Eduardo Sens. O Novo Código Civil e as Cláusulas Gerais, Revista de Direito Privado, São
Paulo, v. 10, p. 9-37/ 25
271
“A Função Social...”, p. 119
272
idem
204
relações de consumo feito pelo direito brasileiro”
273
.
Em face do escopo da busca da justiça material (equilíbrio
substancial) como instrumentalização da função social do contrato,
surgem elementos categoriais tais como a boa-fé objetiva e suas funções
(infra) e as cláusulas gerais como instrumentos de conformação da
dialética concreta que preside a exegese dos direitos fundamentais,
trazendo a lume a imbricação da função social do contrato ao princípio da
dignidade da pessoa humana.
A função social é princípio do direito contratual que encerra um
mandado de otimização (Robert ALEXY). O contrato deve buscar atingir a
sua função social com excelência dentro das possibilidades fático-jurídicas
que o envolvem. É o ponto de partida para o exercício do direito de
contratar, verificável em determinada época ou sociedade, do qual se
podem extrair outras formulações, de modo a integrar e organizar o
sistema, necessariamente aberto, do direito contratual
274
.
O contrato não pode mais ser visto como uma relação de
débito/crédito, mas como um negócio onde deve existir múltipla
cooperação entre os sujeitos (importante aqui a boa-fé como fonte de
efeitos anexos do contrato), foco na concreção da idéia solidarista do
artigo 3º, I, CF/88.
À luz da Constituição de 1988, o contrato que possua unicamente
fim econômico estaria frustrando as premissas da justiça social inserida
em seu artigo 170. Assim, a codificação da cláusula geral da função social
do contrato, inobstante decorrência da função social da propriedade era
necessária para facilitar o seu reconhecimento pelo Poder Judiciário,
mormente ante a cultura da legolatria que permeia a cátedra e os
Pretórios.
Paulo Nalin cita o caso do entendimento do STJ sobre a
inaplicabilidade do CDC às relações imobiliárias, infligindo perda integral
ou de percentual significativo, em caso de desistência do negócio, pela
273
Fábio Ulhôa Coelho apud Santos, Eduardo Sens, O Novo Código Civil e as Cláusulas Gerais, Revista de
Direito Privado, v. 10, p. 9-37/ 25
205
incidência das regras do direito intertemporal, entendendo por inaplicáveis
as disposições do Código de Defesa do Consumidor aos contratos
celebrados antes da sua vigência.
Contudo, assevera, desde a promulgação da Magna Carta de 1988 o
Poder Judiciário já tinha condições de fazer a adequada defesa do
consumidor, significando o CDC mera ordinarização da tutela ao
consumidor (art. 170, V, CF/88).
Na visão da monografista, parafraseando Judith Martins-Costa,
recodificar não é reformar; codificar e positivar não são sinônimos, sendo
este fenômeno bem mais abrangente que aquele.
Paulo Nalin
275
traz à liça que a funcionalização do contrato importa
na constatação da tendência da despatrimonialização do direito privado,
aduzindo que o contrato contemporâneo não mais tem por função única
ou mesmo precípua a circulação de riquezas, muito embora inarredável
que tenha tal função econômica; a autonomia contratual, então, presta-
se ao livre desenvolvimento da pessoa do contratante
276
.
Por este viés, pode-se afirmar que o Documento Maior ocupa-se do
direito “antropocêntrico” em oposição ao direito “ecocêntrico” do Código
Civil de 1916, consoante ensina Paulo Nalin
277
.
A Constituição de 1988 preocupa-se com os valores existenciais do
Homem
(...) resgatar o homem (antropocentrismo) não se identifica
com a renovação daqueles valores egoísticos contidos no Código
Civil (de 1916), ou seja, não é o homem econômico que figura no
vértice constitucional, em que pese ser este, também, tutelado
pela Carta, todavia de forma casual, mas sim o homem existencial,
recepcionada a relação jurídica desde que tais experiências
individuais tenham uma projeção útil (existencial) para o titular
em si e para o coletivo
278
.
A Constituição garantiu a proteção ao consumidor, advindo o CDC
como ordinarização, instrumentalização desta máxima.
274
Eduardo Sens, O Novo Código Civil e as Cláusulas Gerais, Revista de Direito Privado, p. 34.
275
Do contrato: Conceito Pós-moderno em Busca de sua Formulação na Perspectiva Civil-Constitucional.
Curitiba: Juruá, 2001, p. 243 e ss.
276
ob. cit., p. 251
277
ob. cit., p. 246
278
idem, p. 246
206
Contudo, considerando que a Carta Constitucional preocupou-se em
mencionar apenas a novel espécie contratual, deixando de referir a
aplicação explícita de seus postulados às demais estirpes pactuais, os
conservadores passaram a asseverar que, se a relação não é de consumo,
a abordagem constitucional é praticamente nula, criando um “gueto
legislativo”, expressão de Gustavo Tepedino
279
, onde o CC de 1916
280
e
seus primados do direito privado clássico (liberdade da versão clássica-
liberal, intangibilidade e relatividade dos contratos) devem imperar.
Tal visão, contudo, é subversiva à ordem constitucional, “pois não
reconhece o homem o centro axiológico da relação jurídica” (idem, p.
248). Neste enfoque, “seja de consumo, civil ou comercial, a relação de
crédito estará nucleada no seu titular(artigo 1º, III c/c artigo 170, caput,
CF/88) e não no crédito”
281
.
A mesma senda percorrem decisões judiciais que desconsideram o
antropocentrismo, na medida em que não realizam os valores
constitucionais da dignidade e da solidariedade, sendo, portanto,
contrárias à Carta, como ocorre, ad exemplum, segundo Paulo Nalin
282
,
com a postura do STF quanto à não limitação dos juros nos contratos
bancários.
283
Nalin, citando Pietro Perlingieri
284
, assevera que a
despatrimonialização guarda relação com a mudança que vai ocorrendo no
sistema entre personalismo (superação do individualismo) e
patrimonialismo (superação da patrimonialidade voltada a si mesma,
primeiramente do “produtismo” e, mais atualmente, do consumismo),
com prevalência do sujeito face ao patrimônio.
Vale transcrever, in verbis:
O axioma proposto (contrato é relação complexa
solidária) leva em conta a compatibilidade do mercado com a
normativa constitucional soberana da solidariedade, um contrato
279
citada por Paulo Nalin, ob. cit. p. 248
280
a obra é de 2001
281
ibidem
282
e na posição pessoal da ensaísta
283
ob. cit. p. 249
284
ob. cit., p. 250
207
funcionalizado e destinado à realização de valores outros que não,
somente, os patrimoniais. Para tanto, é indispensável a superação
da clássica cultura do direito subjetivo de crédito versus o dever
jurídico de débito, estando a relação jurídica antes encimada na
sua complexidade, sendo o estado de crédito ou de débito uma
simples fração da relação contratual: o credor não é credor, mas
está credor em dado momento da relação, igualmente valendo tal
relatividade de posição para o devedor.
285
José Augusto Delgado pondera que
o mundo jurídico revela à humanidade (...) a
impossibilidade de a sociedade, em razão da necessidade cada vez
maior do homem ser valorizado na preservação de sua dignidade e
de sua cidadania, continuar sendo dirigida por normas de cunho
individualista e com objetivos de proteger, apenas o patrimônio.
286
Assim, a reconstrução do direito privado na atualidade exige a
atenta concreção das normas constitucionais, inclusive mediante a
percepção dos deveres que delas defluem
287
, cujo conteúdo deve ser
revelado pelos intérpretes da Constituição, mas não exclusivamente ao
seu alvedrio, vez que poderão estar contemplados na legislação
infraconstitucional, explicitamente, e ser concretizados em atos
administrativos; outrossim, a utilização da técnica legislativa das cláusulas
gerais auxilia na construção do conteúdo dos deveres impostos pelas
diretrizes constitucionais, não se podendo, no entanto, olvidar da
aplicação direta da Constituição, seja em sua feição negativa (controle
difuso), seja positivamente, no caso de preenchimento de lacuna
legislativa, atuando então a interpretação como importante processo da
concreção da diretriz. A aplicação do direito privado à luz da Constituição
impõe a sua reconstrução, pela transposição da individualidade, à guisa
da efetividade do paradigma da solidariedade social, recebendo o artigo
3º, I da CF (sociedade livre, justa e solidária), como princípio
constitucional impositivo (CANOTILHO), diretriz (DWORKIN), norma-
objetivo, imprimindo caráter constitucional conformador.
288
Num mercado massificado, o rompimento da vigilante preocupação
com a dignidade da pessoa humana, vértice da “rede hierarquizada de
285
ob. cit., p. 256
286
O Contrato no Código Civil e a sua Função Social, Revista Jurídica, 232, agosto/2004, p. 07-28/10
287
Martins-Costa, Judith, ob. cit., p. 627 e seguintes
288
idem
208
valores”
289
que fundam o Texto Maior, faria ruir o próprio mercado, que
padeceria autofagicamente ao ignorar o Homem como a própria causa do
mercado e não como mero agente das relações econômicas
290
, dando
vazão à fútil idolatria do consumo sem a contrapartida da proteção dos
interesses existenciais da pessoa humana, sufocada pelo seu inexpressivo
poder de barganha à frente do poderio econômico do fornecedor.
Em outras palavras, a proteção à pessoa humana enquanto
operador de mercado gera a corolária e indissociável proteção ao próprio
mercado, razão pela qual, inobstante não exista dicotomia possível entre
o direito civil e o direito comercial, posto que o operador das relações
jurídicas por eles reguladas é a pessoa humana, entremostram-se
insuficientes, ao menos sob a ótica das codificações de inspiração
oitocentista, baseadas na autonomia da vontade e na igualdade formal,
para reequilibrar os interesses em tensão.
Consoante ensina Judith Martins-Costa
291
, na visão naturalista o
mercado é concebido como locus da liberdade, onde se imprime o regime
natural das trocas econômicas à margem de quaisquer interferências
(política, normativa, administrativa), porquanto “mãos invisíveis” o
ordenam e o dirigem para o bem comum.
Tal concepção fulcra-se no mito da neutralidade, esteado no
dogma da economia apolítica; em realidade, porém, revela marcada
ideologia a serviço da preservação do status quo, servindo o mercado
como ferramenta para o alcance do bem estar de um estamento social,
que se autodenomina o seu todo e, por isso, faz a leitura da
desnecessidade de qualquer dirigismo, olhos postos na imutabilidade do
cenário econômico que lhe compraz.
No outro flanco, a concepção artificial ou normativa, a qual delineia
o mercado como locus no qual o direito constitui, orienta, governa e
controla.
289
a expressão é de Juarez Freitas, em sua A Interpretação Sistemática do Direito. São Paulo: Malheiros, 2003,
quando desenvolve o conceito de sistema jurídico
290
NALIN, “Economia, Mercado...”, p. 102.
291
Reconstrução do Direito Privado, São Paulo: RT, 2002, p. 614 e seguintes
209
Neste diapasão, o mercado é o produto das decisões políticas e das
opções legislativas de dada sociedade, podendo-se afirmar a existência
de um polimorfismo de mercados, consoante as escolhas políticas e dos
controles jurídicos de cada Estado.
No Estado social, os poderes constituídos, para além de produzir
normas, dirigem a coletividade para o alcance de metas determinadas,
fazendo exsurgir a dupla instrumentalidade do Direito (no aparelhamento
do desenvolver das relações de mercado e na atuação do próprio
Estado), consoante ensina Norbert Reich, citado por Eros Roberto
Grau
292
.
Neste passo, o mercado é visto como o regime normativo de trocas
econômicas, norteado pela ordem constitucional, que desenha as relações
econômicas privadas, antes concentradas nos Códigos Civil e Comercial,
fazendo esvair a dicotomia entre o público e o privado.
No Brasil, os artigos 1º, 3º e 170 da Magna Carta de 1988
desenham um modelo de mercado assentado na construção de uma
sociedade justa, fraterna e solidária.
Judith Martins-Costa leciona que, no direito pátrio, a solidariedade é
norma conformadora do mercado cujas interlocuções devem ultimar a
construção de uma sociedade que transcenda a ótica individualista,
resolvendo-se as aparentes antinomias que poderiam parecer intrínsecas
a certas categorias econômico-sociais, como, v. g., a livre iniciativa e da
valorização do trabalho.
Outrossim, que a vagueza semântica da expressão sociedade
solidária deva ser adequadamente densificada, calhando referir que a
apreensão e a aplicação da solidariedade, enquanto categoria sócio-ético-
política, importa reconhecê-la como “norma objetivo”
293
ou policy
294
, que
implementa não exclusivamente políticas públicas, mas deveres de
292
A Ordem Econômica da Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 1990, p. 30
293
expressão de Eros Roberto Grau in Interpretando o Código de Defesa do Consumidor :algumas notas, Revista
Direito do Consumidor, São Paulo, v. 5, p. 183
294
expressão de Ronald Dworkin, in Taking rights seriously, apud Judith Martins-Costa, ob. cit., p. 621/2, nota
41
210
solidariedade que “se impõem a todas as relações de mercado e
conformam o seu efetivo modelo.”
295
Neste senso, encampando a Carta de 1988 a concepção artificial de
mercado, restaram estabelecidos como diretrizes, nesta seara, os
parâmetros elencados no artigo 170, erigidos em consonância com o
assentado nos artigos 1º e 3º, frutos prodigiosos do fértil terreno da
proteção à dignidade humana.
No escopo de dar concretude aos primados que devem reger o
mercado (dignidade da pessoa humana, valor social do trabalho e da livre
iniciativa, sociedade justa e solidária, erradicação da pobreza,
marginalização e redução das desigualdades sociais e regionais) sobreveio
o Código de Defesa do Consumidor
296
que, para além de proteger o
operador das relações de consumo, veio a garantir a proteção do mercado
em si mesmo enquanto conformado pela justiça social.
O fenômeno da funcionalização dos três pilares do direito segue a
mesma tendência deste novo ritmo ideológico constitucional, consoante
ensina Paulo Nalin:
a propriedade rural e urbana, esta última no contexto das
cidades, (...) em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-
estar dos cidadãos, assim como do equilíbrio ambiental, o
contrato, que somente pode ser reputado válido, e quiçá
existente, se exercido em consonância com a solidariedade social e
em mútuo respeito dos operadores do negócio para com a boa-fé;
a família comprometida com a felicidade e dignidade de seus
membros, especialmente a dos filhos, em movimento
eudemonista
297
”.
Ensina, ainda, que a empresa abandona a sua função meramente
econômica para alçar vôo sobre uma função social que decorre da sua
importância dentro de um mercado socialmente funcionalizado, o que se
verifica agudamente desde que o direito civil, por intermédio do novel
Codex, abriu-se ao direito comercial
298
.
295
MARTINS-COSTA, Judith, 2002, p. 622
296
que no projeto original foi nominado como de proteção e defesa do consumidor, o que se me afigura como
mais próximo aos reais fins da legislação infraconstitucional em comento, cuja parcialização tem esteio na
Constituição, de molde que o ceifar do vocábulo proteção despontou como recurso pueril e sem qualquer efeito
pragmático verificável, vez que em absoluto atingiu a teleologia que o encerra.
297
“Economia, Mercado...”, p. 120.
298
Ibidem
211
Dessarte, somente a incessante vigília do mercado para a mantença
dos limites axiológicos impostos na Carta, numa ótica de supervalorização
dos sujeitos e seus interesses (patrimoniais e existenciais) poderá
conformar o mercado pela justiça social
299
.
A dignidade da pessoa humana é, a um só tempo, na realidade
pátria hodierna, o núcleo essencial em torno do qual orbitam os preceitos
inscritos pelo constituinte originário e a essência do direito civil (pessoa
humana como sujeito de direitos e deveres), imbricando relação de
coincidência entre as perspectivas do direito público e do direito privado,
fazendo ruir o dogma da dicotomia entre estas searas.
A diretriz da solidariedade social busca, como ensina Comparato
300
,
a energia que vem da densidade populacional fraternizando e não
afastando os homens uns dos outros”.
Neste cenário, a solidariedade social tem por núcleo axiológico
essencial a dignidade da pessoa humana, servindo como veículo para a
sua concreção no âmbito do mercado, aqui concebido em seu viés artificial
ou normativo.
A operacionalização da diretriz da solidariedade social no âmbito das
relações desta estirpe não tem outro escopo que não realizar em concreto
o próprio princípio da dignidade da pessoa humana, assumindo função
instrumental à efetividade do valor eleito como cernal ao Estado
democrático.
Solidariedade, como já se aduziu, é termo permeado por vagueza
semântica. Inobstante, pode ser compreendida e densificada como a
“superação de uma visão meramente individualista do papel de cada um
dos seus singulares membros e assim configurando elemento de coesão
da estrutura social”
301
.
A boa-fé objetiva, neste passo, serve à concreção da diretriz da
299
NALIN, “Economia, Mercado,...”, p. 122.
300
Ensaio Sobre o Juízo de Constitucionalidade de Políticas Públicas. In: MELLO, Celso Antônio Bandeira de
(org.). Estudos em Homenagem a Geraldo Ataliba: Direito Administrativo e Constitucional. São Paulo:
Malheiros, 1997, p. 353.
301
Judith Martins-Costa, p. 621
212
solidariedade social que, a seu turno, tem por matriz a dignidade da
pessoa humana, permitindo a sistematização de casos-tipo.
Outrossim, faz progredir o estudo da jurisprudência, até mesmo
como suporte ao próprio direito de acesso à jurisdição, pelo paulatino
rompimento dos obstáculos sócio-culturais e melhor aparelhamento da
acessibilidade técnica, aproximando os consumidores do conhecimento de
seus direitos, bem como viabilizando a ação da Administração Pública na
edição de portarias e resoluções que coíbam os reiterados abusos
apurados pelo estudo sistemático dos casos-tipo.
De outra banda, a sistematologia da boa-fé objetiva supera os
umbrais das relações tipicamente de consumo, vez que a solidariedade
social é diretriz do trânsito jurídico globalmente considerado, muito
embora possa despontar mais aguçadamente em dado segmento do
mercado, atuando mais incisivamente nos contratos em que a
comutatividade contratual seja mais sensível a rompimentos, como ocorre
nas relações de consumo.
Neste particular, vale referir a posição de Ruy Rosado de Aguiar
Júnior:
Penso, portanto, que essas novas exigências éticas feitas
para a regulação do tráfico comercial e que se estendem para
todos os ramos do Direito, inclusive para o campo do direito
processual, devem orientar o comportamento das partes. Não se
trata de simples preceito moral, porque sua exigibilidade decorre
da eficácia mediata da Constituição da República, pela teoria da
Drittwirkung, segundo a qual as regras asseguradoras dos direitos
fundamentais do cidadão estabelecem enunciados que devem
regular não apenas as suas relações com o Estado, mas orientam
todo o campo da autonomia privada, sobre o qual igualmente
incidem.
302
Estudando a eficácia externa dos direitos fundamentais, bem como
a correlação entre a Constituição e o Direito Privado, Canaris desenvolveu
um modelo dogmático que repousa, sobretudo, na função dos direitos
fundamentais como proibições de intervenção e como imperativos de
tutela (trazendo à liça os conceitos de proibição de excesso, dever de
suficiência e a corolária proibição de insuficiência, respectivamente).
Para Canaris, o conceito “eficácia de irradiação” empregado no
213
Direito alemão, ao tratar da eficácia indireta (indirekte Drittwirkung) dos
direitos fundamentais sobre o direito privado,
não é jurídico, mas uma formulação metafórica extraída de
uma linguagem coloquial; é um conceito vago, supérfluo, porque
todos os correspondentes problemas podem ser resolvidos de
forma mais correcta e precisa recorrendo às funções ‘normais’ dos
direitos fundamentais, como proibições de intervenção e como
imperativos de protecção.
303
Canaris sustenta, outrossim, que não apenas as leis, mas também
o exercício da jurisdição está vinculado aos direitos fundamentais, sob
pena de a proteção a tais direitos perder efetividade, posto que as leis só
poderem ser preenchidas com conteúdo concreto, pelo julgador. Os
direitos fundamentais devem ser aplicados a leis de Direito Privado como
direito imediatamente vigente, porque a Constituição, sem restrições,
possui o grau de lei superior; a vinculação do legislador é imediata, bem
assim as decisões judiciais, pois o julgador não pode adotar solução
diversa na sua aplicação e desenvolvimento, do que decorre que “a ratio
decidendi deve ser pensada como norma(...) sujeita à vinculação aos
direitos fundamentais (...) do mesmo modo que uma correspondente
proposição legal.”
304
Considerando que em regra os sujeitos de Direito Privado não são
destinatários dos direitos fundamentais, não estão, em princípio,
consoante ensina Canaris, sujeitos à vinculação imediata aos direitos
fundamentais
305306
; para Canaris, somente se deveria falar de eficácia
302
apud Judith Martins Costa, ob. cit., p. 654, nota 144
303
CANARIS, Claus- Wilhelm. Direitos Fundamentais e Direito Privado. Tradução de Ingo W. Sarlet e Paulo
Mota Pinto. Coimbra: Almedina, 2003, p. 132
304
ob. cit., p. 131
305
Neste passo, a teoria dos imperativos de tutela é uma variante da teoria da eficácia indireta (mediata), com
marco referencial na doutrina de Günther Düring, a verbalizar que, considerando que a autonomia privada
também tem proteção constitucional, é possível, no âmbito das relações privadas, falar-se em renúncia a
direitos fundamentais, o que não poderia ser cogitado nos liames verticais (Estado-indivíduo). Neste viés, os
direitos fundamentais podem orientar a interpretação dos conceitos jurídicos indeterminados e das cláusulas
gerais contidas na legislação infraconstitucional que estaria a reger a relação privatista, exteriorizando a
submissão do direito privado aos valores constitucionais. Tal teoria é hodiernamente a mais aceita na Alemanha,
tanto pela doutrina quanto pela jurisprudência, sendo emblemático o caso Lüth, quando Tribunal Constitucional
Federal, passou a entender que “uma vinculação do juiz aos direitos fundamentais na solução do litígio no campo
do direito privado não se verifica de modo directo, mas apenas na medida em que a Lei Fundamental, no seu
capítulo sobre os direitos fundamentais, simultaneamente erigiu uma rodem objectiva, que, como decisão
214
imediata em relação a terceiros quando os direitos fundamentais se
dirigem contra os sujeitos de Direito Privado como destinatários da
norma, o que não é a regra, mas a exceção
307
.
Contudo, os direitos fundamentais, enquanto imperativos de tutela,
podem afetar sujeitos do direito privado porquanto tal “função
308
carece,
em princípio, para a sua realização, da transposição pelo direito infra-
constitucional.
309
Assim,
a função dos direitos fundamentais de imperativo de tutela
também se aplica, em princípio, em relação à auto-vinculação por
contrato. Ela tem aqui relevância especial, por um lado, se, pelo
seu carácter personalíssimo, o bem protegido por direitos
fundamentais, cujo exercício é contratualmente limitado, não
estiver de todo à disposição do seu titular, ou se, pelo seu
conteúdo fortemente pessoal, for especialmente sensível em
relação a uma vinculação jurídica, e, por outro lado, se as
possibilidades fácticas de livre decisão de uma das partes
contraentes estiverem significativamente afectadas. O facto de
problemas deste tipo serem, em regra, resolvidos de modo
puramente privatístico não impede a sua dimensão jurídico–
constitucional, em caso de descida abaixo do mínimo de protecção
imposto pelos direitos fundamentais, não devendo excluir-se, à
partida, a possibilidade de uma queixa constitucional.
310
Há que se mencionar, em contraponto, a teoria da convergência
estatal, que tem, dentre seus expoentes, Jürgen Schwabe
311
. Segundo
tal concepção, a atuação dos particulares no exercício da autonomia
privada é sempre produto de uma autorização estatal. Disto decorre que
as ofensas aos direitos fundamentais seriam sempre oriundas do Estado,
uma vez que a ele incumbe o dever de proteger os direitos fundamentais
em geral. Assim, a problemática da vinculação de terceiros e a da eficácia
externa dos direitos fundamentais constitui um problema meramente
jurídico-constitucional fundamental, deve valer para todos os ramos do direito, influenciando, assim, também o
direito privado.” CANARIS, ob. cit., p. 43/4.
306
Assim, CANARIS se opõe ao absolutismo da teoria da eficácia direta dos direitos fundamentais às relações
privadas, que apregoa a utilização da Constituição como fonte normativa imediata para a solução de conflitos
entre particulares e tem, entre seus principais expoentes, Antonio-Enrique Perez Luño. Vale referir, ainda, que a
teoria da eficácia direta nasceu, a seu turno, como antítese à teoria da negação da eficácia (que tem em Konrad
Hesse um de seus principais protagonistas) e sua variante estadunidense denominada State Action, que também
reconhece a eficácia dos direitos fundamentais apenas no plano vertical (relações Estado-indivíduo) mas, ao
contrário da sua matriz, oferece um abrandamento, porque excetua a 13ª Emenda Constitucional (que proíbe a
escravidão).
307
ob. cit., p.133
308
enquanto imperativos de tutela
309
CANARIS, ob. cit., p. 138
310
CANARIS, ob. cit., p. 134/5
215
aparente, vez que se cuida essencialmente de um fato que envolve
sempre a vinculação direta do legislador privado e da jurisdição civil aos
direitos fundamentais.
Canaris critica tal ideário, dizendo-o “inaceitável como modelo geral
de pensamento, devido à sua contrariedade de princípio à liberdade, e é,
como razão, rejeitada pela doutrina dominante(...)”.
312
Cumpre coligir, ainda que em sumária síntese, a teoria dos três
níveis de Alexy (nível dos deveres do Estado, nível dos direitos frente ao
Estado e o nível da relação entre sujeitos privados), ou teoria
integradora, que não vê as outras três vertentes (eficácia direta, eficácia
indireta e convergência) como excludentes entre si, porque representam
diferentes facetas para a construção de uma teoria unitária, uma vez que
todas são equivalentes em resultados, o que afasta a idéia de
preponderância de um nível em relação ao outro.
Sarmento
313
explicita:
A teoria do efeito mediato estaria situada no primeiro
nível. Para Alexy os juízes, como órgãos do Estado, estão
obrigados a levar em consideração os Direitos Fundamentais,
como valores objetivos na interpretação e aplicação das normas
de Direito Privado, trata-se, portanto, de um dever do Estado. Já
no segundo nível operaria a teoria dos deveres de proteção.
Assim quando o Judiciário, ao dirimir conflitos interpretativos, não
leva em conta os Direitos Fundamentais, ele, de acordo com
Alexy, viola um direito fundamental do cidadão oponível frente ao
Estado. (...) E no terceiro nível, relativo às relações entre
particulares, incide a teoria da eficácia imediata. Para Alexy, esta
eficácia imediata não significa um câmbio entre os destinatários
de Direitos Fundamentais, com a substituição do Estado pelo
particular no pólo passivo do direito, mas sim que, “(...) por
razones jusfundamentales, em la relación ciudadano/ciudadado
existem determinados derechos y no-derechos, liberdades y no-
liberdades, competências y nocompetencias que, sin estas
razones, no existirian.
314
Postos tais lineamentos, fácil ver que a legitimação ministerial para
a defesa coletiva dos individuais homogêneos na seara consumerista
representa uma leitura correta da vontade geral
315
contida no
311
apud CANARIS, ob. cit., p. 62
312
ibidem
313
SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2004, p.
264/265
314
ALEXY, Robert Teoria de los Derechos Fundamentales. Madri: Centro de Estúdios Políticos, 2002, p. 521.
315
Acerca da explicitação do uso semântico desta locução, remeto o leitor ao capítulo deste trabalho
216
Documento Maior, que na sua feição dialética contempla a vontade
individual de todos os concidadãos, superada e guardada na
universalidade.
A dicção legislativa veio ao encontro do primado da
consubstanciação da dignidade da pessoa humana como vértice axiológico
do sistema, dando voz e concretude instrumental da defesa efetiva e
racional dos direitos decorrentes da pessoa humana, enquanto “causa do
mercado e não como mero agente das relações econômicas”, buscando a
efetividade da justiça social como diretriz do mercado normativo fulcrado
na solidariedade, o que não se poderia realizar sob a exigência da atuação
restrita dos legitimados ordinários, em demandas atomizadas e sem
reverberação social suficiente.
Então, por evidente, a legitimatio conferida ao Ministério Público e
aos concorrentemente legitimados, como conseqüência do pluralismo
político que há se que assentar em uma sociedade que preconiza a
democracia substancial como um dever-ser, encontra esteio na eficácia
vinculante dos direitos fundamentais, telada na órbita da dimensão
jurídico-objetiva.
Destarte, de somenos se os direitos subjetivos em causa tem
conteúdo patrimonial disponível, porquanto esta é uma externalidade
distante da consideração que enfeixa a legitimação de que se trata, que
orbita no entorno do núcleo essencial que lhes fornece vida.
O Min. Sepúlveda Pertence, no Recurso Extraordinário n.º 195.056-
1/PR (Anexo C3), visualizou a questão com a sapiência que lhe é peculiar:
o que reputo de maior relevo, no contexto do art. 127
[CF], não é o de incumbir a instituição [do Ministério Público] a
defesa dos interesses indisponíveis, mas, sim, a dos interesses
sociais"
, já que "a eventual disponibilidade pelo titular de seu
direito individual, malgrado sua homogeneidade com o de outros
sujeitos, não subtrai o interesse social acaso existente na sua
defesa coletiva.
316
Neste cenário, a conformação do Código Consumerista,
inobstante elogiável por ceifar improducentes controvérsias sob a
316
GODINHO, ob. cit., 20/70
217
legitimação ativa da tutela coletiva na seara em que preside, deve ser
vista pelo exegeta como prospectiva, informadora, exemplificativa,
inexauriente. A postura castradora claudica diante da dúplice infringência
à eficácia vinculante dos direitos fundamentais: pelo legislativo, ao impor
restrição irrazoável à órbita das declinações da dignidade da pessoa
humana; pelo Estado-Juiz que, ao interpretar a restrição como idônea,
cegando-se da luz constitucional, exerce ilegitimamente a parcela de
soberania que lhe foi acometida pelos titulares do Poder, deixando à
mingua de proteção aquilo que lhe era imperativo proteger.
Neste ensejo, ensina Böckenförde
317
:
El fundamento jurídico de la Sentencia expresa la idea de
uma forma aun menos encubierta: si al interpretar y aplicar el
derecho positivo el juez obvia los parámetros axiológicos de la
parte de derechos fundamentales, ello significa que lesiona al
mismo tiempo el auténtico derecho fundamental del ciudadano
frente al Estado. La no observancia del parámetro axiológico de los
derechos fundamentales se convierte en una verdadeira lesión de
derecho fundamental por parte del poder público.
Consoante ensina Kazuo Watanabe
318
,
essa relação jurídica nascida da lesão, ao contrário do que
acontece com os interesses ou direitos difusos ou coletivos, que
são de natureza indivisível, é individualizada na pessoa de cada
um dos prejudicados, pois ofende de modo diferente a esfera
jurídica de cada um deles, e isto permite a determinação ou ao
menos a determinabilidade das pessoas atingidas
Assevera Godinho
(...) tal determinabilidade se traduz em determinação
efetiva no momento do exercício do direito, seja por meio de ação
individual, seja por meio de habilitação na liquidação de sentença
prolatada em ação coletiva”
319
(...) as situações individuais são
tratadas coletivamente e, por isso, são desprezadas durante a fase
de conhecimento. Se assim não fosse, estaríamos diante de
litisconsórcio multitudinário e não de uma legítima ação coletiva
320
(...)
nunca estará o Ministério Público defendo direitos individuais
específicos, mas, sim, estará tutelando uma situação que, a partir
de lesões individuais, assume dimensão social, transcendendo a
posição individual de cada titular. A atuação do Ministério Público é
impessoal e genérica, desvinculada da situação pessoal de cada
titular. Tanto é assim, que o pedido formulado na defesa dos
direitos individuais homogêneos deve ser necessariamente
317
BÖCKENFÖRDE, Ernest-Wolfgang. Escritos sobre Derechos Fundamentales. Trad. de Juan Luis Requejo
Pagés e Ignacio Villaverde Menéndez. Baden-Baden: Nomos Verl.-Ges., 1993, p.119
318
GODINHO, ob. cit., p. 5/70
319
ibidem
320
ob. cit., p. 6/70
218
genérico, havendo posterior habilitação individual dos eventuais
titulares que desejarem. E essa habilitação forçosamente será por
meio de advogados, cessando a legitimidade do Ministério
Público
.
321
Ao parecer, compulsada a dicção do artigo 127, caput, da CF/88, a
legitimação ministerial na seara consumerista tem a função de viabilizar a
mediação tida por Canaris como indeclinável à imposição da eficácia
vinculante dos direitos fundamentais aos particulares (fornecedores de
produtos e serviços), enquanto partícipes do mercado normativo
concebido sob ótica da solidariedade social, o que se dará pela atuação
do Estado-Juiz que, ao dizer o direito aplicável ao caso concreto, imporá a
observância dos preceitos da eficácia jurídico-objetiva das declinações da
dignidade da pessoa humana àqueles.
A par desta configuração, a atuação do Órgão-Agente tem por
escopo compelir os Poderes Públicos, que se encontram imediatamente
vinculados ao conteúdo normativo dos direitos fundamentais, a realizar as
ações ou emendar as omissões à implementação da diretiva da
solidariedade social no âmbito do mercado, viabilizando meio de cultura
para a realização das latitudes da dignidade da pessoa humana, o que
pode ser traduzido pela imposição de uma eficaz fiscalização das
concessões de serviços públicos relevantes, pelo controle difuso de
constitucionalidade das leis, pelo extirpar de atos administrativos iníquos,
pelo dever de fundamentação das decisões judiciais, entre tantas figuras
integrantes de uma caleidoscópio de possibilidades, cuja
instrumentalização não se resume ao âmbito da Ação Civil Pública.
Tendo-se em conta que a conformação dos individuais homogêneos
é instrumental, a equação perfilada pode ser transposta para todas as
situações em que as ações ou omissões vergastadas estejam a inibir as
declinações da dignidade da pessoa humana.
Recomenda-se prima facie a tutela coletiva, na seara dos
individuais homogêneos, quando as condutas comissivas ou omissivas
tenham alcançado a transindividualidade estampada pelo acidente de
321
ob.cit., p. 14/70
219
coletivização que, por óbvio, não interfere na fisionomia dos direitos
subjetivos mediata e diferidamente enfocados, sendo de somenos, então,
o estudo da disponibilidade, inócua como vetor para o exame da
legitimidade, que tem por estruturante a proteção da dimensão jurídico-
objetiva dos direitos fundamentais lesados.
Godinho
322
cunha com maestria:
Note-se, portanto, que o tratamento coletivo dos direitos
individuais não se confunde com a satisfação pessoal do crédito daí
decorrente, este sim indiscutivelmente disponível e que deve ser
buscado por meio de advogado.
(...)
A idéia de que só em se tratando de direitos individuais
homogêneos indisponíveis é que haveria legitimidade do Ministério
Público também não merece prestígio, já que não se pode
confundir patrimonialidade com disponibilidade.
Como já afirmamos, a partir do momento em que a lesão
a direitos individuais homogêneos adquire dimensão social,
supera-se a disponibilidade do direito numa óptica individualizada,
em razão de um interesse maior da sociedade em ver essa lesão a
direitos tutelada coletiva e genericamente. É como se houvesse
uma suspensão da disponibilidade do direito durante a ação
coletiva, voltando essa característica no momento da habilitação
para a satisfação de um direito específico, a partir de uma
condenação genérica.
A prepotência do legislador infraconstitucional de pretender
amordaçar o Ministério Público no cumprimento da suas funções
institucionais, que não estão a serviço do Órgão, mas da sociedade como
um todo, não compactua com a tendência da instrumentalidade do
processo como norte deveras incidente no exame dos remédios à
disposição das relações interpessoais, questão que assume contornos
ainda mais ponderáveis no âmbito da transindividualidade.
Na verdade, representa uma reação à atuação expressiva deste
gestor da democracia substancial, que efetivamente age para que a
pretensão meramente figurativa dos direitos fundamentais torne-se
apenas um delírio distante e abjeto daqueles que os pretendem como uma
mera nota civilizatória formal.
Neste espectro, singulares as palavras do Ministro Marco Aurélio de
Mello, ao explicar as mazelas dos Estados formalmente democráticos:
322
ob. cit., p. 13/14-70
220
(...) esses padrões de organização não se impuseram à
conta de autêntica resposta a conflitos ou pressões sociais que os
tivessem inapelavelmente engendrado; antes, foram assumidos
porque a elite dirigente de sociedades menos evoluídas, de olhos
postos nas mais evoluídas, entendeu que se constituíam em um
modelo natural a ser incorporado como desejável estágio
civilizatório. Então, não lhes atribuem outra importância senão
figurativa. Daí que, não estando cerceadas por uma consciência
social democrática e correlata pressão, ou mesmo pelos eventuais
entusiasmos de uma “opinião pública”. já que as modela a seu
talante, aceitam as instituições democráticas apenas enquanto não
interferentes com os amplos privilégios que conservam ou com a
vigorosa dominação política que podem exercer nos bastidores,
por detrás de uma máscara democrática, graças justamente, ao
precário estágio de desenvolvimento econômico, político e social
de suas respectivas sociedades.
De outra parte, esta situação inferior em que vivem os
Estados apenas formalmente democráticos lhes confere, em todos
os planos, um caráter de natural subalternidade em face dos
países cêntricos (...) Sendo conveniente aos países desenvolvidos
a persistência desta mesma situação, que lhes propicia, em
estreita aliança com os segmentos dominantes de tais sociedades,
manejar mais comodamente os governos dos países
“pseudodemocráticos” em prol de suas conveniências econômicas
e políticas, é natural que existam entraves suplementares para
superação deste estágio primário de evolução.
323
Nesta esteira, houve irrazoável limitação de direitos fundamentais,
em sua dúplice envergadura (objetivo-subjetiva), pela mitigação do feixe
de incidência da precípua garantia à sua efetividade: o acesso à
jurisdição, decorrência da inafastabilidade da jurisdição, declinação do
princípio da dignidade da pessoa humana, fazendo desnudar a
ilegitimidade democrática que macula a inovação legislativa guerreada.
Quadra colacionar, neste escopo, a lição de Böckenförde
324
:
(...)la limitación de derecho fundametales, incluso alli
donde tal limitación está expressamente reservada al legislador
(derechos fundamentales con reserva de ley) sólo puede llevar-se
a cabo de acuerdo com el princípio de proporcionalidad; la
limitación de los derechos fundamentales sólo puede llegar hasta
donde resulte apropriado, necesario y proporcionado en sentido
estricto, en orden a la consecución de un fin justificable de interés
público formulado por la ley limitadora. Los derechos
fundamentales limitables também garantizan así no sólo el
residuo que resta tras la libre intervención del legislador, sino que,
por el contrario, la ley limitante debe dejar intacta la substancia
del derecho fundamental.
Assim, verbi gratia, quando o Ministério Público ajuíza uma Ação
323
A Democracia e suas Dificuldades Contemporâneas, Revista de Informação Legislativa n 137, p. 256/7
324
BÖCKENFÖRDE, Ernest-Wolfgang. Escritos sobre Derechos Fundamentales. Trad. de Juan Luis Requejo
Pagés e Ignacio Villaverde Menéndez. Baden-Baden: Nomos Verl.-Ges., 1993, p. 102
221
Civil Pública nas searas estudadas (tributária, previdenciária, em face de
omissões administrativas), estará protegendo as declinações normativas
da dignidade da pessoa humana, que obviamente não se encontram
presentes apenas no âmbito do indivíduo enquanto consumidor, atingindo
todo o plexo dos direitos fundamentais, em suas três grandezas.
325
Negar tal fisionomia seria o mesmo que aduzir que o indivíduo se
desnuda de sua dignidade ao adentrar em círculos sociais outros, que não
o protegido pelo Código Consumerista (v.g., como titular de bens sujeitos
à tributação, como obrigado tributário do pagamento de tributos pessoais,
como segurado da previdência social, como credor de prestações
estatais), o que placita a já estudada falácia argumentativa de tomar a
parte (a legislação infraconstitucional limitativa) como se fosse o todo (a
vontade geral insculpida na Magna Carta).
Ao revés, a missão constitucional do Órgão-Agente, nestas searas,
torna-se ainda mais aguda e indispensável, posto que está a patrocinar a
defesa da dimensão jurídico-positiva dos diretos fundamentais enquanto
normas de conduta impositivas aos Poderes do Estado; a vinculação
imediata do conteúdo normativo dos direitos fundamentais a que estão
sujeitos torna ainda mais execrável, à vista do interesse geral, os
descaminhos das más gestões públicas e das leis de sociedades parciais,
reclamando a pronta e aparelhada insurgência dos titulares do Poder
Constituinte originário, in casu por seu substituto por excelência,
enquanto guardião do Estado democrático de direito e paladino da busca
incessante da justiça social.
À configuração restritiva vergastada parecer cair como uma luva a
ácida crítica de Castanheira Neves
326
:
É já insustentável a sua imputação à vontade geral – ao
todo ou ao comum comunitário -, pois as leis não são mais do que
prescrições de particulares forças políticas, de forças políticas
parciais e mesmo partidárias, que no quadro do sistema político-
325
A referência a três grandezas e não a três dimensões (uso mais recorrente pela doutrina) tem por escopo evitar
a eventual confusão do leitor com as multirreferidas dimensões objetiva e subjetiva dos direitos fundamentais,
sejam eles individuais, sociais ou da solidariedade e da fraternidade (as três dimensões, grandezas, espécies de
exteriorizações dos direitos fundamentais, enquanto gênero).
326
Apud SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. “Jurisdição e Execução...”, p. 204
222
estatal (ou constitucional) adquiriram a legitimidade para tanto, a
partir de uma sociedade dividida (justamente em diferentes forças
sociais e políticas, actuantes e interventoras no nível do poder) e
plural (nos projetos ideológicos sobre essa mesma sociedade) (...)
sendo a expressão de uma vitória num conflito político, a lei invoca
e afirma uma vontade, mas apenas a vontade da força política
legislativamente dominante ou essa vontade transacionada com
outras vontades políticas também particulares.
Diante desta configuração, a postura conservadora de nossos
Tribunais consolida a antítese de uma interlocução social qualificada pela
legitimidade, uma vez que corporifica clara reverberação do abjeto
placitar do inacesso material à jurisdição, no contrafluxo do que por todos
é querido e almejado, renegando a função social da tutela coletiva.
3.8 CONTROLE JURISDICIONAL DA LEGITIMAÇÃO MINISTERIAL
PARA A DEFESA COLETIVA DOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS
327
3.8.1 Apontamentos Iniciais
Conforme já assinalado ao longo do ensaio, o fenômeno da
coletivização estabelece prima facie a legitimação ministerial in re ipsa
adequada para a defesa coletiva dos individuais homogêneos, em prol da
defesa imediata da dimensão jurídico-positiva dos direitos fundamentais
em causa, como declinações do conteúdo normativo da dignidade da
pessoa humana, vetor axiológico do sistema.
Considerando que a coletivização acidental tem índole meramente
instrumental, é o acesso à jurisdição, como decorrência da
inafastabilidade do controle jurisdicional, que a seu turno desponta como
garantia constitucional inerente ao valor-fonte, que está na berlinda da
sistematização da legitimatio ad causam do ator ideológico de que se
trata, o qual tem por função precípua a consubstanciação do Estado
democrático de direito.
Contudo, numa esteira de freios e contrapesos que norteiam o
327
Apesar de já termos sustentado uma posição moderada no nosso O MP na Defesa dos Individuais
Homogêneos, p. 83/4, não nos ocupamos com o estabelecer dos critérios de validade tópico-sistemática que
podem contrastar a legitimidade ministerial em concreto, o que ora empreendemos, em tentativa.
223
exercício do poder estatal num Estado fulcrado na democracia, os poderes
conferidos ao Órgão-Agente não são por evidente ilimitados, sujeitando-se
a conformações.
À guisa de sistematicidade, busquemos os balizamentos do Código
Modelo Ibero-Americano (Anexo A) e do Anteprojeto de Código Brasileiro
de Processo Coletivo (Anexo B).
A legitimidade ministerial ativa para a ação coletiva vem acolhida no
artigo 3º, III do Código Modelo e no artigo 9º, III do anteprojeto de
Código Brasileiro.
Os requisitos genéricos da ação coletiva são a adequada
representatividade do legitimado e a relevância social da tutela coletiva,
caracterizada pela natureza do bem jurídico, pelas características da lesão
ou pelo elevado número de pessoas atingidas (artigo 2º, II e II do Código
Modelo e artigo 8º, I e II do anteprojeto de Código Brasileiro,
respectivamente).
Para a tutela dos individuais homogêneos
328
, o Código Modelo, em
seu artigo 2º, § 1º, introduz requisitos específicos, que não foram
acolhidos no anteprojeto de Código Brasileiro, quais sejam, a aferição da
predominância das questões comuns sobre as individuais e da utilidade da
tutela coletiva no caso concreto.
A análise da representação adequada perpassa pelos requisitos
constantes no Anteprojeto de Código Brasileiro de Processo Coletivo, em
seu artigo 8º, §1º, e no Código Modelo Ibero-Americano de Processo
Coletivo, art.2º, §2º, os quais serão reproduzidos quando do estudo
mais específico.
O Anteprojeto de Código Brasileiro de Processo Coletivo repete o
paradigma ao verbalizar que, em caso de interesse social, o Ministério
Público, se não ajuizar a ação ou não intervier no processo como parte,
atuará obrigatoriamente como fiscal da lei (artigo 9º, § 2º do anteprojeto;
artigo 3º, § 3º do Código Modelo).
328
Classificados como direitos subjetivos decorrentes de origem comum, no artigo 2º, III do Anteprojeto e como
conjunto de direitos subjetivos individuais, decorrentes de origem comum, conforme artigo 1º, II do Código
224
De outra banda, prescreve (o Anteprojeto), no mesmo artigo (9º), §
3
o
,
que
em caso de inexistência inicial ou superveniente do requisito da
representatividade adequada, de desistência infundada ou abandono da
ação, o juiz notificará o Ministério Público, observado o disposto no inciso
III, e, na medida do possível, outros legitimados adequados para o caso, a
fim de que assumam, querendo, a titularidade da ação, a exemplo do
previsto no § 4º do artigo 3º do Código Modelo.
O artigo 10 sistematiza a comunicação dos processos repetitivos,
real inovação do anteprojeto. Preconiza que o juiz, tendo conhecimento
da existência de diversos processos individuais correndo contra o mesmo
demandado, com idêntico fundamento, comunicará o fato ao Ministério
Público e, na medida do possível, a outros legitimados (art. 9
o
), a fim de
que proponham, querendo, ação coletiva.
O parágrafo único do referido artigo disciplina que caso o Ministério
Público não promova a ação coletiva, no prazo de 90 (noventa) dias, fará
a remessa do expediente recebido ao órgão com atribuição para a
homologação ou rejeição da promoção de arquivamento do inquérito civil,
para que, do mesmo modo, delibere em relação à propositura ou não da
ação coletiva.
O disposto no parágrafo único do artigo 10 também se aplica em
caso de inércia do Ministério Público na hipótese prevista no artigo 9º, §
3º do anteprojeto (artigo 3º, § 4º do Código Modelo) .
3.8.2 Da Relevância Social
Na visão da ensaísta, os requisitos anunciados minudenciam, numa
interpretação contrário senso, as hipóteses de afastamento tópico-
sistemático da legitimatio ministerial ad causam, estabelecida prima facie
em razão do acidente de coletivização instrumental dos interesses
subjetivos, decorrente in re ipsa da função institucional do Órgão-Agente
na implementação do Estado democrático de direito, inconcebível sem a
Modelo Ibero-americano.
225
efetividade dos direitos fundamentais.
Assim, a legitimidade ministerial para a defesa coletiva dos
individuais homogêneos, presumida pelos vetores axiológico-
constitucionais, conforme já estudado, pode ser contrastada, em
concreto, pela ausência da relevância social, pela ausência da prevalência
dos interesses coletivos sobre os individuais, pela ausência da utilidade da
tutela coletiva no caso em cotejo, combinada ou isoladamente.
A relevância social placitar-se-á quando o recurso da tutela coletiva
servir para a preservação mais eficiente do núcleo intangível da dignidade
da pessoa humana em sua eficácia de norma de princípio, reverberando
declinações no ser humano em sua dimensão individual ou coletiva.
Consoante ensina Böckenförde
329
:
es, sin embargo, igualmente cierto que la Ley
Fundamental, que no quiere ser un orden neutral de valores, há
estabelecido también en la parte dedicada a los derechos
fundamentales un orden objetivo de valores y que precisamente
con ello se pone de manifesto un fortalecimento por princípio de la
pretensión de validez de los derechos fundamentales. Este sistema
de valores, que encuentra su núcleo en la personalidad humana
que se desarrolla libremente en el interior da comunidad social y
en su dignidad, debe regir en todos los ámbitos del Derecho como
decisión constitucional fundamental: la legislación, la
administración y la jurisdición reciben de él directrices e impulso.
Asi influye evidentemente también en el derecho civil; niguma
prescripción jurídico-civil puede estar en contradicción, todas
deben ser interpretadas en su espíritu.
Como já aludido exaustivamente ao longo deste estudo, a ratio
essendi da tutela coletiva dos individuais homogêneos tem índole
instrumental
330
: é conveniente e adequada à realização material da
garantia do acesso racional à jurisdição, que é decorrência da
inafastabilidade da jurisdição, uma das declinações normativas da
dignidade da pessoa humana. A tutela coletiva viabiliza, no terreno da
transindividualidade, a prestação jurisdicional célere, equânime, útil,
econômica, portadora da segurança jurídica.
Não se pode olvidar que acesso material à jurisdição deve ser
329
ob. cit., p. 106
330
Cumpre registrar que, no caso interesses essencialmente coletivos, a tutela coletiva, a par da sua vocação
instrumental como critério de racionalidade na provão do Estado-Juiz, é recomendada pela natureza
indivisível dos interesses em causa, que reclamam decisão unívoca, com eficácia unitária, erga omnes ou ultra
226
amplo e incondicionado
331
. Conformando a ação processual direito
subjetivo público por excelência, só pode ser exercido e limitado pelo
interesse comum, o que estabelece a indissociação do indivíduo à
coletividade a que pertence, num diálogo que leva à responsabilidade
comunitária dos indivíduos na conformação da eficácia dos direitos
fundamentais, o que placita um dos reflexos da sua dimensão jurídico-
objetiva, transpondo a mera posição singular de cada um dos
integrantes desta coletividade frente ao Estado, cujos Poderes devem ser
exercidos nos limites da legitimidade democrática.
Consoante a precisa lição de Sarlet
332
Como uma das implicações diretamente associadas à
dimensão axiológica da função objetiva dos direitos fundamentais,
uma vez que decorrentes da idéia de que estes incorporam e
expressam determinados valores objetivos fundamentais da
comunidade, está a constatação de que os direitos fundamentais
(mesmo os clássicos direitos de defesa) devem ter sua eficácia
valorada não só sob um ângulo individualista, isto é, com base no
ponto de vista da pessoa individual e sua posição perante o
Estado, mas também sob o ponto de vista da sociedade, da
comunidade sua totalidade, já que se cuida de valores e fins que
esta deve respeitar concretizar. (...) a perspectiva objetiva dos
direitos fundamentais constitui função axiologicamente vinculada,
demonstrando que o exercício dos direitos subjetivos
fundamentais está condicionado, de certa forma, ao seu
reconhecimento pela comunidade na qual se encontra inserido e
da qual não pode ser dissociado (....) a perspectiva objetiva dos
direitos fundamentais não só legitima restrições aos direitos
subjetivos individuais com base no interesse comunitário
prevalente, mas também (...) contribui para a limitação do
conteúdo e do alcance dos direitos fundamentais, ainda que se
deva sempre ficar preservado o núcleo essencial deste.
Sumariando a latitude da dimensão jurídico-positiva (perspectiva
objetiva) dos direitos fundamentais, colhe-se os seguintes
desdobramentos
333
, decorrentes da sua vocação funcional transcendente
à esfera subjetiva, que lhe cunham força jurídica autônoma: a) ordem
dirigida ao Estado à concretização e implementação dos direitos
fundamentais – a eficácia dirigente; b) preceito normativo para a
partes (em se tratando de interesses difusos e coletivos estrito senso, respectivamente).
331
As agitadas condições da ação, previstas no código de processo civil pátrio, são condições da ação de direito
material, como se aduziu, na crítica à doutrina eclética.
332
SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direito Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
1998, p. 143
333
Síntese vertida da leitura da obra de SARLET, em várias passagens, em especial p. 141/149 e 322 e ss.
227
aplicação e interpretação do direito infraconstitucional, desnudando a
eficácia irradiante; c) conformação do espaço de atuação estatal, o que
revela a eficácia vinculante como norma de competência negativa a
serviço da proteção da esfera de intangibilidade dos direitos fundamentais
e como determinante de ações positivas à implementação dos direitos
prestacionais; d) imputação de deveres de proteção dos direitos
fundamentais, pelo Estado, sob os prismas preventivo e repressivo,
contra agressões perpetradas pelos poderes públicos, por particulares ou
por outros Estados; e) condicionante do direito organizacional
procedimental destinado a instrumentalizar a efetividade da proteção dos
direitos fundamentais, evitando “a redução do significado do conteúdo
material deles”
334
.
Neste quadro, a relevância social da tutela coletiva deve ser buscada
na preservação do mínimo existencial do valor-fonte, ápice do sistema
axiológico dos direitos fundamentais, servindo como diretriz normativa à
interpretação tópico-sistemática, deixando entrever os contornos de sua
eficácia irradiante.
A dignidade da pessoa humana tem conteúdo fluido, o que é
adequado à magnitude de seu perfil no âmbito dos direitos fundamentais,
como núcleo da “unidade teleológica e axiológica”
335
das normas
constitucionais, do que não discrepa a Magna Carta brasileira.
Nas estirpes de individuais homogêneos estudadas (searas
tributária, previdenciária, omissões administrativas, consumidor), a
relevância desponta indelével, s.m.j., pelas razões já minudenciadas no
exame de cada um dos itens, o que não será repisado, abreviando
considerações tautológicas.
Inobstante e apenas por fins didáticos, examine-se, em breve, que a
cessação arbitrária de benefícios previdenciários malfere a proteção ao
mínimo existencial, ante o caráter alimentar dos proventos, normalmente
fonte única de renda de pessoas que, em seu perfil subjetivo, dadas as
334
ob. cit., p. 147
335
SARMENTO, Daniel. . Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000, p. 195
228
exigências cada vez mais severas da legislação previdenciária, são
predominantemente idosas, credoras de proteção especial, de molde que
as garantias constitucionais e por excelência, o acesso à jurisdição,
devem ser hipertrofiadas, sob pena de redução do conteúdo substancial
do direito fundamental em causa.
Interessa à sociedade como um todo, norte na solidariedade social,
princípio normativo e direito fundamental de terceira dimensão ou
grandeza, a proteção de seus idosos, que não podem ser premidos dos
meios necessários à sua mantença, imperativo que contempla o
compromisso de todos em agir de acordo em este vetor axiológico.
O princípio da inafastabilidade da jurisdição, em sua acepção
material, dialoga com a otimização das ferramentas processuais possíveis
para a prestação rápida, segura, útil, econômica do Estado-Juiz
336
, o que
certamente projeta efeitos pragmáticos mais efetivos em uma ação
coletiva na qual se imprima a urgência correlata ao perfil médio dos
titulares dos direitos subjetivos que, na tutela coletiva, estão sendo
defendidos em sua dimensão jurídico-positiva e, por isso, o tratamento na
cognitio é impessoal, o que placita a razoabilidade de uma condenação
genérica e as singularidades da posterior execução individual, em que
cada um deverá provar a sua qualidade como integrante do grupo
atingindo pelos efeitos subjetivos da coisa julgada.
Sarlet
337
sustenta que dos diretos fundamentais sociais inscritos no
caput do artigo 6º do Documento Maior, quatro deles assumem tamanha
imbricação com a proteção da dignidade da pessoa humana que se
revelam como indubitáveis espécies de direitos fundamentais sociais
originários (aqueles cuja eficácia vinculante decorre imediatamente da
Constituição). São os direitos ao salário-mínimo, à previdência social, à
assistência social e à saúde.
Registra-se que o último direito citado, enquanto pré-condição à
336
Condicionantes do direito procedimental como desdobramento da função autônoma da dimensão objetiva
dos direitos fundamentais
337
ob. cit., p. 283 e ss.
229
existência da dignidade da pessoa humana
338
, tem âmbito de proteção
ainda mais dilargado, justificando o uso da ação civil pública para a
defesa mediata de direito subjetivo individual. Muito embora não se possa
deixar de registrar que a legitimidade ministerial também nesta hipótese
está a serviço da proteção da dimensão objetiva do direito fundamental
que, em sua esfera subjetiva, encontra-se particularizado, a questão não
será abordada neste estudo.
O raciocínio pode ser estendido, s.m.j., a outros direitos
fundamentais sociais, tais como a educação básica, a moradia condigna,
que também se encontram intrinsecamente ligados à concretização do
conteúdo intangível da dignidade da pessoa humana, razão pela qual
podem ser classificados como originários, cuja eficácia vinculante decorre
da própria Constituição, independentemente da existência de norma
infraconstitucional. Desta feita, as omissões administrativas não poderão
apegar-se na ausência de regulamentação, podendo ser sindicadas pelo
Estado-Juiz, mediante a adequada provocação pelo Ministério Público
enquanto substituto processual dos titulares do Poder Constituinte
originário.
Digno pontuar – aparando eventuais descompassos interpretativos
– que não se está a sustentar que a legitimatio ministerial está interligada
apenas e tão-somente aos direitos fundamentais sociais originários, posto
que, como já se viu, a legitimatio tem por escopo dar vazão à
conformação concreta da função jurídica autônoma e transcendente da
dimensão objetiva dos diretos fundamentais, o que implica dizer que a)
não se limita aos direitos à prestação; b) alcança todos os
desdobramentos da dimensão objetiva antes estudados (as eficácias
vinculante, irradiante, dirigente; os deveres de proteção e as
condicionantes do direito organizacional e instrumental, escopo na
efetividade dos direitos fundamentais; as funções dogmático-jurídica,
teorético-estatal e teorético-constitucional).
De outra banda, considerando que na articulação do artigo 5º,
338
ob. cit., p. 296
230
CF/88, os direitos fundamentais e suas garantias recebem idêntica
envergadura constitucional
339
, há que ser pontuada a frontal discordância
desta ensaísta, à vista dos argumentos já amealhados ao longo deste
estudo: a) à desconsideração artigo 127, caput, da Magna Carta como
vetor concorrente para a dirimência da intricada quaestio da legitimidade
ministerial na defesa dos individuais homogêneos; b) à conformação da
legitimatio de que se trata à iniciativa do legislador ordinário, numa
leitura da eficácia limitada para parte final do artigo 129, III, do
Documento Maior.
Ambos os argumentos foram expostos no voto de vista do Ministro
Sepúlveda Pertence (Anexo C3), no leading case
340
já anunciado, quando
da abordagem do voto do Ministro Maurício Corrêa, caso em que Sua
Excelência não conheceu o recurso aforado pelo Ministério Público, aos
auspícios destes vetores (premissas (a) e (b) do parágrafo antecedente),
rechaçados pelo Ministro Pertence que, inobstante, por não reconhecer, in
casu, o interesse social, também não conheceu o recurso.
Primeiramente, penso que a dicção do artigo 127, caput, tem íntima
inter-relação com a fundamentação constitucional da legitimatio ad
causam que é objeto deste estudo, na medida em que o Ministério
Público é o guardião do Estado democrático que, sem a efetividade dos
direitos fundamentais, não passa de prescrição em abstrato.
Focando a defesa da dimensão jurídico-positiva, inerência de
qualquer direito fundamental, independente da conformação subjetiva que
alcance (podendo ser individualizados; acidental ou essencialmente
coletivizados) e a ela transcendente, o Ministério Público tem por escopo
atuar como o autor ideológico por excelência, mas não exclusivo
341
,
substituindo os titulares do Poder Constituinte Originário, provocando o
Estado-Juiz à auto e à hetero-imposição dos desdobramentos da
perspectiva objetiva, colhendo tópico-sistematicamente da vontade
339
Consoante lição de SARLET, ob. cit., p. 179
340
RE 195.056-1,Tribunal Pleno, Relator Mini. Carlos Velloso, j. 09/12/1999, DJ 30/05/2003, republicado no DJ
14/11/2003, p. 18, maioria
341
como conseqüência do pluralismo político tão caro às sociedades que buscam a democracia
231
universal sintetizada na esfera objetiva dos direitos fundamentais em jogo
a relevância social que recrudesce a legitimidade in re ipsa que
transparece, prima facie, do acidente de coletivização dos interesses
individuais, homogeneizando-os.
Atuando na defesa mediata, diferida, impessoal da esfera subjetiva,
como decorrência lógica da incindibilidade das bidimensões dos direitos
fundamentais, o Ministério Público labuta pela vontade geral, na qual a
vontade individual se encontra superada e guardada, à otimização das
ferramentas processuais vocacionadas a descortinar o acesso material à
jurisdição, como decorrência da inafastabilidade do controle judicial como
declinação do princípio da dignidade da pessoa humana, norte na defesa
do mínimo existencial em suas diferentes aparições à luz dos direitos
fundamentais postos em juízo.
Não se faz necessário, bem se vê, confundir as categorias dos
direitos essencialmente coletivos (coletivos estrito senso e difusos) e
instrumentalmente coletivos (os individuais homogêneos), para buscar a
racionalidade da legitimação ministerial para a defesa coletiva destes
últimos.
O segundo tópico confronta com toda a argumentação que se
procedeu. Não se pode impor amarras ideológicas à ação do paladino
público, ator qualificado da promoção da justiça social, ante o poder-
dever de ação que lhe foi concedido (e por isso a denominação de
magistratura de pé, que caminha na direção da justiça), posto que tal
interpretação colide com os primados da democracia, que só se compraz
com a cidadania ativa, exercida, no âmbito processual, pelos legitimados
ordinários ou, quando tal não se fizer factível, como ocorre no caso dos
interesses transindividuais, por seus substitutos processuais. Amordaçar a
ação dos legitimados extraordinários à benevolência do legislador
ordinário fere de morte a concepção do acesso material à jurisdição,
condenando o Estado-Juiz a um papel meramente burocrático dentro da
estrutura de freios e contrapesos, e submisso ao alvedrio do poder
político dominante. Seria placitar ao legislativo o arbítrio e não o poder,
232
que necessariamente deve ser compartido, na conformação do conteúdo
mínimo dos direitos fundamentais, numa leitura que desemboca na
ilegitimidade democrática pela deficiência dos deveres de proteção às
macrolesões às quais diuturnamente submetidos os direitos fundamentais
do homem-indivíduo e do homem-coletivo imersos em uma sociedade
massificada.
Calha colacionar, neste aspecto, excertos do voto de vista do
Ministro Sepúlveda Pertence (RE 195.056-1/PR, Pleno, Rel. Min. Carlos
Velloso, j. 09-12-1999, DJ 14-11-2003 – Anexo C3), que admitiu que a
inteligência dos individuais homogêneos possa inserir-se no âmbito de
compreensão dos interesses coletivos, mas dissentiu, como anunciado,
do Ministro Maurício Corrêa no que concerne ao afastamento da incidência
do artigo 127, caput, CF/88 ao equacionamento do tema, bem como no
que toca à alegada eficácia limitada da parte final do artigo 129, III, do
Documento Maior:
Por isso, “o fato de o art. 129,III, CF não se referir a
“interesses individuais homogêneos” -- acentua com razão Rodolfo
Mancuso(Sobre a Legitimação do MP em matéria de interesses
individuais homogêneos em Milaré(coord.), Ação Civil Pública, r.
RT, 1995, p. 438,444 – não autoriza, a nosso ver, a ilação de que
tal tipo de interesse metaindividual estaria excluído da esfera de
atuação do MP. Em primeiro lugar, tal nomenclatura é espécie do
gênero” interesses metaindividuais”, cabendo lembrar que o
dispositivo em questão tem um endereçamento visivelmente
voltado para a acepção mais genérica, e não para a conotação
restritiva: fala em “patrimônio público e social” e em outros
“interesses difusos e coletivos”; em segundo lugar, o inciso IX
desse art. 129 também apresenta uma dicção que sinaliza para
uma exegese ampliativa, já que legitima o MP a exercer “outras
funções (...) compatíveis com sua finalidade”; em terceiro lugar,
não se pode dizer, a rigor, que a CF foi omissa quanto aos
interesses “individuais homogêneos”, porque a Carta Magna é de
1988 e essa expressão aparece no CDC (art. 81), texto em vigor a
partir de 1990.
(...)
Daí não se pode extrair, contudo, como parece pretender
o recorrente, que qualquer feixe de pretensões individuais
homogêneas, seja qual for o seu objeto, possa ser tema de tutela
jurisdicional coletiva por iniciativa do Ministério Público.
(...)
A dificuldade está em encontrar o critério de demarcação
da área – consensualmente limitada, em que há de reconhecer
legitimação do Ministério Público para a tutela coletiva de tais
direitos individuais derivados de origem comum.
233
Opta o Ministro Maurício Corrêa por uma diretiva que tem
por si a vantagem da objetividade; a fonte constitucional da
questionada legitimação do MP para a defesa dos interesses
individuais homogêneos, malgrado contida na alusão genérica do
art. 129,III, aos interesses coletivos em geral, seria uma norma de
eficácia limitada, dependente de específica previsão legal.
A minha visão do problema – que parece mais afinada à
doutrina dominante – se dela perde em objetividade, é menos
restritiva que a proposta do Ministro Corrêa e não delega no
legislador ordinário o poder de dar maior ou menor efetividade a
uma norma da Constituição.
(...)
Não lhe reduzo, porém, a admissibilidade a tais previsões
legais explícitas: estou em que, da própria Constituição, é possível
derivar outras hipóteses.
E para isso, já neste ponto com o Ministro Velloso e a
doutrina mais afeita ao tema, considero adequado o apelo ao
artigo 127 da Constituição que, delineando em grandes traços o
seu papel junto à função jurisdicional do Estado, confia ao
Ministério blico “a defesa da ordem jurídica, do regime
democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”.
(...)
E, para orientar a demarcação, a partir do artigo 129,III,
da área de interesses individuais homogêneos em que admitida a
iniciativa do MP, o que reputo de maior relevo, no contexto do art.
127, não é o incumbir à instituição a defesa dos interesses
individuais indisponíveis mas, sim, a dos interesses sociais.
De um lado, a proteção aos interesses ou direitos
individuais indisponíveis(...)
De outro lado, a eventual disponibilidade pelo titular de
seu direito individual, malgrado sua homogeneidade com o de
outros sujeitos, não subtrai o interesse social acaso existente na
sua defesa coletiva.
Ao contrário, são de direitos disponíveis as hipóteses mais
notórias de indiscutida legitimação do MP para a ação civil pública
de defesa de interesses homogêneos, a começar daqueles dos
consumidores (...)
O problema é saber quando a defesa da pretensão de
direitos individuais homogêneos, posto que disponíveis, se
identifica com o interesse social ou se integra no que o próprio art.
129, III, da Constituição denomina patrimônio social. Não é fácil,
no ponto, a determinação do critério da legitimação do Ministério
Público.
(...)a estatura constitucional da questão não basta à
verificação do interesse social que qualifica o Ministério público
para a ação.
De outro lado, é preciso tem em conta que o interesse
social não é um conceito axiologicamente neutro, mas, ao
contrário – e dado o permanente conflito de interesses parciais
inerentes à vida em sociedade – e idéia carregada de ideologia e
valor, por isso, relativa e condicionada ao tempo e ao espaço em
que se deva afirmar.
Donde, de igual modo, ser de repelir que o
reconhecimento da presença de interesse social na tutela de
determinada pretensão de uma parcela da coletividade possa ser
confiada à livre avaliação subjetiva – inevitavelmente carregada de
valores pessoais – quer de agente do Ministério Público que a
234
veicule em juízo, quer do órgão jurisdicional a que toque verificar-
lhe a legitimação da ação coletiva: para obviar esse risco de
arbitrariedade, a solução há de fundar-se em critérios dotados de
um mínimo de objetividade.
Penso, como visto, que a adstrição da legitimidade do MP
aos casos de previsão legal expressa, embora razoavelmente
objetiva, seria um critério insuficiente para a identificação do
interesse social na defesa de direitos coletivos: dado que deriva da
Constituição a legitimação do MP para a hipótese, não se pode
reputar exaustivo o critério que delega ao legislador o poder de
demarcar a função de um órgão constitucional essencial à
jurisdição.
Creio, assim, que -- afora o caso de previsão legal
expressa – a afirmação do interesse social para o fim cogitado há
de partir da identificação de seu assentamento nos pilares da
ordem social projetada pela Constituição e na sua correspondência
à persecução dos objetivos fundamentais da República, nela
consagrados.
Afinal de contas – e malgrado as mutilações que lhe tem
imposto a onda das reformas neoliberais deste decênio – a
Constituição ainda aponta com metas da República “construir uma
sociedade livre, justa e solidária” e “erradicar a pobreza e a
marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”.
Esse critério – que se poderia denominar de interesse
social segundo a Constituição – ainda que nem sempre explicitado
em tese, parece estar subjacente a diversas decisões judiciais,
algumas já citadas, que têm reconhecido a legitimação do MP para
a defesa de direitos individuais homogêneos”
Inobstante os fragmentos reproduzidos convergirem, em larga
medida, ao que se sedimenta neste estudo para a sistematização da
legitimatio ministerial para a defesa coletiva dos individuais homogêneos,
restou relegada pelo insigne Ministro a legitimação do Órgão-Agente para
o objeto do recurso
342
, qual seja, a defesa coletiva de interesses
acidentalmente coletivos, na seara tributária, pontualmente as
singularidades da instituição da tributação sobre a propriedade territorial
urbana, no Município de Umuarama.
Neste passo, há que se reafirmar como se apresenta o interesse da
sociedade na defesa do Estado democrático de direito, pelo Ministério
Público, exemplificativamente no âmbito tributário, repisando o que já se
anotou no item 3.6.2.
Consoante a lição de Sarlet, os direitos prestacionais, quanto ao
objeto, dividem-se em dois grupos: os direitos prestacionais em sentido
restrito ou materiais (direitos sociais prestacionais) e os direitos
342
que não foi conhecido, por maioria, decisão à unanimidade afastada apenas por uma questão formal ventilada
235
prestacionais normativos ou jurídicos .
Os segundos englobam, em sua acepção, os direitos de proteção
no sentido de direitos a medidas ativas de proteção de
posições jurídicas fundamentais dos indivíduos por parte do
Estado, bem como os direitos à participação na organização e
procedimento. Assim, distingue-se entre os direitos à prestação
em sentido amplo (...) que, de certa forma, podem ser reportados
primordialmente ao Estado de direito na condição de garante da
liberdade e da igualdade do status negativus e os direitos a
prestações em sentido restrito (direitos a prestações materiais
sociais), vinculados prioritariamente às funções do Estado social.
343
Diante deste cenário, igualmente transparece tranqüila a legitimatio
ministerial para a defesa mediata do indivíduo frente ao poder de tributar
do Estado, que se deve ater à lição canotilhana das determinantes
autônomas e heterônomas, sob pena de desviar-se da legitimidade
democrática que placita espectros imaculáveis, questão que para o além-
mar da individualidade, interessa a toda a coletividade, cuja vontade
geral encontra-se guardada na esfera objetiva, explicando a sua
funcionalidade transcendente, objetivo imediato da proteção perseguida
na fase cognitiva da tutela coletiva, mormente no terreno dos individuais
homogêneos.
A relevância da tutela consolida-se quando necessária e
indispensável à preservação do mínimo existencial dos direitos
fundamentais do homem-indivíduo e do homem-coletivo, o que perpassa
pela indeclinabilidade do núcleo essencial da proteção à vida e à dignidade
da pessoa humana.
Não se circunscreve, pois, apesar de capitaneada pelo interesse
social, à proteção dos direitos prestacionais em sentido restrito. O
interesse social de que trata o artigo 127, caput, da CF/88, diretriz
concorrente ao exame da legitimidade em epígrafe, tem de ser
interpretado em latitude cognosciva ampliativa, compreendendo o
interesse da sociedade, enquanto universalidade, em ver atendidos os
preceitos contidos no Documento Maior e, por isso, acometeu ao
Ministério Público a função precípua de ação à consubstanciação do
no voto do Ministro Marco Aurélio, questão estranha ao tema a desate
236
Estado democrático de direito, o qual não se vivifica e sobrevive sem a
imanente efetividade dos direitos fundamentais, o que engloba o dever
de proteção às zonas de intangibilidade da liberdade negativa.
Neste panorama, fácil ver que não é possível aferrar a proteção da
dimensão objetiva, funcionalmente autônoma e transcendente, à esfera
da disponibilidade subjetiva do exercício do direito de ação processual,
mormente em se considerando que, no estágio atual
344
, tal iniciativa ---
atomizada, singularizada -- não será portadora da contundência
imprescindível à instrumentalização de uma defesa cabal, placitando, em
verdade, uma hipertrofia da infringência, que se tornará mais aguda pela
configuração concreta da desigualdade entre pessoas que se encontram
em posições subjetivas idênticas, tornando o fenômeno da coletivização
acidental um nada jurídico.
3.8.2.1 Da Proporcionalidade no Exame da Relevância Social no Caso dos
Direitos Prestacionais em Sentido Estrito – Um Diálogo Entre a
Preservação do Mínimo Existencial
345
e a Reserva Do Possível À Luz da
Dignidade Da Pessoa Humana
No cotejo de um conflito entre princípios, a lógica do tudo ou nada
se mostra inadequada e desvalida de sentido, entrando em cena o
princípio da proporcionalidade como técnica de resolução de antinomias.
A existência de tensões internas é salutar porque externaliza o
pluralismo político inerente aos Estados democráticos de direito e favorece
343
SARLET, ob. cit., p. 188
344
Em que existem limitações aparentes à legitimidade ativa de singulares para a promoção de ações coletivas,
exceção feita à ação popular constitucional, que não serve, a priori, para a defesa de individuais homogêneos.
345
Sobre o permeio da dignidade da pessoa humana na definição do mínimo vital e do mínimo existencial, vale
trazer à colação a dicção de SARLET, In: A eficácia dos direitos fundamentais. 6ª ed., Porto Alegre : Livraria
do Advogado, 2006, p. 455.: (...) a noção de mínimo existencial, compreendida, por sua vez, como abrangendo o
conjunto de prestações materiais que asseguram a cada indivíduo uma vida com dignidade, que
necessariamente só poderá ser uma vida saudável, que corresponda a padrões qualitativos mínimos, nos revela
que a dignidade da pessoa atua como diretriz jurídico-material tanto para a definição do núcleo essencial,
quanto para a definição do que constitui a garantia do mínimo existencial, que, na esteira de farta doutrina,
abrange bem mais do que a garantia da mera sobrevivência física, não podendo ser restringido, portanto, à
noção de um mínimo vital ou a uma noção estritamente liberal de um mínimo suficiente para assegurar o
exercício das liberdades fundamentais.
237
o aprimoramento sistêmico, que se constrói à luz de um processo
dialético-histórico, bem ao sabor da filosofia hegeliana. De outra banda,
placita a inocuidade do dogma da completude, o que só seria admissível
num sistema fechado e estático, terreno da articulação do superjuiz
Hércules, que muito se afasta – o que é alvissareiro – da realidade
cotidiana dos operadores do direito, especificamente os juízes, que são os
intérpretes que exercem a hermenêutica sob os óculos da parcela da
soberania do Estado ínsita à investidura de seus cargos.
No terreno dos direitos fundamentais, dada a fluidez que lhes é
imanente, o diálogo para a solução dos conflitos se trava por intermédio
da proporcionalidade, em sua tríplice dimensão: adequação, necessidade
e ponderação em sentido estrito.
O primeiro subprincípio, como ensina Sarmento
346
, trata do exame
“da idoneidade do ato para a consecução da finalidade perseguida pelo
Estado. A análise cinge-se, assim, à existência de uma relação congruente
entre meio e fim na medida examinada”.
O segundo
347
, a seu turno, obriga o exegeta a aplicar, para o
atingimento do fim colimado, o meio menos gravoso aos direitos e
interesses que se encontram sob iminente restrição, de sorte que “ na
promoção dos interesses coletivos, a menor ingerência possível nos
direitos fundamentais do cidadão”
348
consubstancia-se como um
imperativo de conduta.
O derradeiro, também denominado como mandado de ponderação
(ALEXY), concerne ao auscultar da relação custo-benefício, o que significa
equacionar que “o ônus imposto pela norma deve ser inferior ao benefício
por ela engendrado”
349
.
Sem olvidar o conteúdo normativo dos princípios em conflito, a
autêntica aplicação da proporcionalidade é concreta, de sorte que a sua
346
SARMENTO, Daniel, ob. cit., p. 87
347
Não adentraremos no detalhamento do subprincípio da necessidade, que é quatripartite: necessidade material,
exigibilidades temporal, especial e pessoal, anunciadas por Sarmento, na ob. Cit., p. 89.
348
SARMENTO, ob. cit., p. 88
349
SARMENTO, ob. cit., p. 89
238
incidência, em tese, merece reservas
350
.
Incidindo pelo menos dois princípios ao caso em concreto, há que se
estabelecer, à luz da proporcionalidade, “a demarcação do campo
normativo de cada princípio envolvido, para verificar se a hipótese está
realmente compreendida no âmbito da tutela de mais de um deles”
351
.
Na seara dos direitos fundamentais, desenhar a “topografia do
conflito”
352
é definir o núcleo intangível, os limites imanentes,
indevassáveis, o que só pode ser realizado a partir do caso sensível ao
qual a proporcionalidade irá fazer deduzir, à luz do sistema, a solução
jurídica mais adequada.
A ponderação de interesses, como terceira fase da dissecação da
proporcionalidade, dever-se-á orientar “no sentido da proteção e
promoção do princípio da dignidade da pessoa humana, que condensa e
sintetiza os valores fundamentais que esteiam a ordem constitucional
vigente.”
353
Alinhavadas tais considerações perfunctórias
354
, calha transpor a
problemática do conflito imanente à dimensão econômica dos direitos
sociais prestacionais em sentido restrito.
Reclamando prestações em sentido material, as circunstâncias
econômicas, consoante leciona Sarlet
355
, interagem na efetividade e na
eficácia dos direitos sociais prestacionais, exceto no caso dos chamados
direitos sociais prestacionais neutros, em que a realização dos
prestacionamentos é diretamente remunerada por taxas ou tarifas.
Como corolário a tal peculiaridade dos direitos em voga, entram em
cena as questões da limitação dos recursos públicos e do poder de
disposição do numerário pelo destinatário da norma, duas facetas do que
350
SARMENTO, ob. cit. p. 110
351
SARMENTO, ob. cit., p. 100
352
Expressão de Roberto Bin, apud Sarmento, p. 100
353
SARMENTO, ob. cit., p. 105
354
Evidentemente que o exame detido da proporcionalidade tem fôlego para estudo minudente, o que não é
objeto do presente trabalho
355
ob. cit., p. 259/260
239
passou a ser denominado reserva do possível
356
.
Diante deste quadro, torna-se imperioso delimitar o núcleo
intangível dos direitos sociais prestacionais que não podem sucumbir em
eficácia sob o apanágio da reserva do possível, sob pena de
esmaecimento do conteúdo normativo-impositivo da dignidade da pessoa
humana e a ruptura endêmica com os imperativos de conduta perfilados
nos objetivos estampados no artigo 3º do Documento Maior,
especialmente a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a
erradicação da pobreza e a marginalização, a redução das desigualdades
sociais e a promoção do bem comum.
A par das condicionantes socioeconômicas, os direitos em tela
normalmente são positivados em textualidade vaga e aberta, o que
concede ao legislador larga margem do cumprimento de seu mister
concretizador.
Ao positivar os direitos sociais, a Constituição não perfilou quais são
os prestacionamentos a eles correlatos, o que deixa transparecer o
conteúdo programático de tais direitos, no sentido do imperativo implícito
da necessidade de um planejamento perspectivo e continuado da gestão
pública para o atendimento das exigências que as diferentes posições
subjetivas que permeiam a coletividade reclamem no trato sucessivo das
relações sociais.
Por este raciocínio, pode-se dizer que os direitos sociais a
prestações diferenciam-se dos direitos de defesa porque, enquanto estes
se submetem predominantemente à concretude jurisdicional
357
, aqueles,
em linha de princípio, têm seu conteúdo definido pela interposição
legislativa, nos parâmetros traçados pela Constituição. Este viés explica
da classificação dos mesmos como direitos fundamentais relativamente
absolutos
358
e direitos fundamentais absolutamente relativos
359
,
356
SARLET, ob. cit., p. 261
357
SARLET ensina que a maior parte dos direitos de defesa tem plena eficácia e imediata aplicabilidade,
“dependendo sua efetivação virtualmente de sua aplicação aos casos concretos (operação de cunho meramente
jurídico)”, ob. Cit., p. 262
358
SARLET sinala que há certa tipologia de direitos de defesa que podem reclamar a interposição legislativa,
não só na sua clássica função de restrição ou regulamentação, idem, p. 263
240
respectivamente.
Há que se impor, então, indeclináveis limites à liberdade de
conformação legislativa, sob pena de, num raciocínio extremado,
relegar-se os direitos desta estirpe a um mero catálogo (embora aberto)
formal, sem qualquer concretude .
Tal questão perpassa pelo questionamento da possibilidade de
reconhecimento de direitos subjetivos individuais (ou coletivos) a
prestações, “para além da previsão legal ou mesmo contrariamente a
esta”
360
-- sem prejuízo das omissões legislativas -- diretamente da
Constituição, os denominados direitos originários
361
a prestações sociais.
Trata-se de definir
se há como compelir judicialmente os órgãos estatais, na
qualidade de destinatários de determinado direito fundamental, à
prestação que constitui o seu objeto (...) averiguar até que ponto
os direitos sociais prestacionais efetivamente carecem de uma
plena justiciabilidade(...)
362
.
Neste âmbito, a complexidade do tema faz tensionar a
competência legislativa precípua para a decisão sobre a destinação e
aplicação dos recursos públicos e o poder-dever do Estado-Juiz em definir,
provocado, o conteúdo e o alcance dos direitos prestacionais sociais,
valendo-se de critérios especificamente jurídicos, sem que isto gere “um
déficit de legitimidade democrática no processo decisório, uma vez que
os membros do Poder Judiciário não são eleitos.”
363
.
Há que se pontuar, com arrimo em Celso Antônio Bandeira de
Mello
364
, que a natureza aberta e a formulação vaga dos direitos sociais
não maculam a possibilidade de conferir-lhes aplicação imediata e plena
eficácia pela palavra dos tribunais acerca dos preceitos normativos deles
359
classificação com a qual não concordamos, pelas razões expostas neste item
360
SARLET, ob. cit., p. 274
361
O corte metodológico que se processa não tem o condão de ignorar que há direitos originários para além do
mínimo existencial e que direitos derivados a prestações também poderão integrar a proteção da orla existencial
do indivíduo..
362
SARLET, ob. cit., p. 279
363
SARMENTO, ob. cit., p. 142
364
Eficácia das Normas Constitucionais sobre Justiça Social. Revista de Direito Público, São Paulo, n. 57-8,
1981, p. 233 e seguintes, p. 244-5
241
defluentes. De outra banda, a norma constitucional será aplicável,
imediatamente, sempre que se possa identificar o seu significado central,
sob o qual não paire controvérsia; contrariamente, quando o Texto
“expressar em sua dicção apenas uma finalidade a ser cumprida
obrigatoriamente pelo Poder Público, sem, entretanto, apontar os meios a
serem adotados para atingi-la, isto é, sem indicar as condutas específicas
que satisfariam o bem jurídico consagrado na regra
365
, aduz o douto
366
que se terá a impossibilidade de conformação de direitos subjetivos sem a
ação legislativa concretizadora, porque, neste caso, não há fruição e nem
possibilidade de exigibilidade de fruição perante o Estado.
De outra banda, outro empecilho à formatação dos direitos sociais
originários ocorre nas hipóteses em que se verifica a delegação expressa
da Constituição ao legislador ordinário na tarefa de concretização do
conteúdo do direito previsto fluidamente, de molde a entender-se que
somente após a atuação do objeto da delegação (a conformação
legislativa) nasce pretensão exigível.
Por derradeiro, o argumento da vinculação dos direitos sociais
prestacionais à reserva do possível, cuja fisionomia se viu, supra,
também vem agitado como entrave à configuração dos direitos subjetivos
a prestações decorrentes imediatamente da Constituição.
No cenário pátrio, a maior parte dos direitos sociais foram objeto de
concreção legislativa. Contudo, como visto, tal circunstância não diminui a
importância do tema em pesquisa, posto que a configuração de direitos
originários à prestação pode orbitar como vetor interpretativo no exame
da constitucionalidade da conformação infraconstitucional, no que
concerne à proteção do mínimo existencial, garantidor da dignidade da
pessoa humana, núcleo intangível, com plena eficácia e aplicação
imediata, podendo ser exigido, independentemente de interpolação
legislativa, além dela e mesmo contrariamente à sua textualidade, se
confrontar com os ditames do Documento Maior.
365
idem, p. 243
366
posição que registramos, mas com a qual não concordamos, consoante exporemos ao longo deste item
242
Prefere-se adotar, pois, a posição da configuração dos direitos
sociais prestacionais, em seu cerne indevassável, como autênticos
direitos subjetivos originários da Constituição, ante o princípio da
inafastabilidade da jurisdição, como declinação do conteúdo normativo da
dignidade da pessoa humana. Assim, o espaço de conformação do núcleo
essencial dos direitos sociais deve receber o mesmo tratamento
dispensado aos direitos defesa, deve ser descortinado pelo Estado-Juiz,
tópico-sistematicamente.
Nesta linha, o revelar deste núcleo essencial dos direitos sociais
prestacionais como direitos originários e, portanto, imanentemente
exigíveis frente ao Estado, não implica a remoção sumária da barreira da
reserva do possível, posto que a fisionomia daqueles imprescinde do
diálogo sistêmico, o que nessariamente dar-se-á por intermédio da
proporcionalidade; no cenário democrático não existe espaço para direitos
absolutos.
Neste sentido, Sarlet
367
, parafraseando Alexy, ensina:
(...)apenas quando a garantia material do padrão mínimo
em direitos sociais puder ser tida como prioritária e se tiver como
conseqüência uma restrição proporcional (fundamentais, ou não)
colidentes, há como se admitir um direito subjetivo a
determinada prestação social. Com isso, traçou-se um claro limite
ao reconhecimento de direitos originários a prestações sociais, de
tal sorte que, mesmo em se tratando da garantia de um padrão
mínimo (no qual a perda absoluta da funcionalidade do direito
fundamental está em jogo), o sacrifício de outros direitos não
parece tolerável.
Traçados tais limites, a dicção do Estado-Juiz, como decorrência do
direito fundamental da inafastabilidade do controle judicial, estará sendo
exercida proporcionalmente, estabelecendo freios e contrapesos na
discricionariedade legislativa na destinação dos recursos públicos, que é
precípua mas não absoluta, contrastável pelas funções autônomas da
eficácia objetiva dos direitos fundamentais, cujo cerne principiológico
orbita sob a dignidade da pessoa humana.
Ademais, idéia da conformação dos núcleos essenciais dos direitos
fundamentais (sejam os de defesa, sejam os prestacionais) pela
367
ob. cit., p. 316
243
concretização jurisdicional atende a técnica que prioriza a
proporcionalidade como veículo dialético, trazendo à tona a pertinência
dos preceitos da teoria relativa
368
acerca da natureza do cerne intangível.
Como ensina Sarmento
369
, numa
democracia, a escolha dos valores e interesses
prevalecentes em cada caso deve, a princípio, ser da
responsabilidade de autoridades cuja legitimidade repouse no voto
popular. Por isso, o Judiciário tem, em linha geral, de acatar as
ponderações de interesses realizadas pelo legislador, só as
desconsiderando ou invalidando quando elas se revelarem
manifestamente desarrazoadas ou quando contrariarem a pauta
axiológica subjacente ao texto constitucional.
Para além do mínimo intangível, há que se reconhecer, como
projeta Canotilho
370
, direitos subjetivos (individuais ou coletivos) prima
facie, cuja fisionomia
371
deverá ser descortinada e dimensionada pela
ponderação legislativa em combinação com a concreção jurisdicional, com
a diferença sintomática que poderão sucumbir diante de vetores mais
elevados, ao contrário do standard mínimo, que tem por lastro a proteção
à vida e à dignidade humana como causas fundantes do próprio Estado
(e por este motivo é fonte de direitos subjetivos definitivos a prestações
372
), ao qual não são possíveis extirpações, mas concessões no limite do
necessário para a incidência da ponderação de interesses quando em
cotejo com outras declinações do valor-fonte (dignidade) ou do que lhe é
antecedente (vida) e tão-somente.
Neste cenário, sobreleva a temática da fundamentação das decisões
judiciais como garantia fundamental à sindicabilidade do exercício do juízo
de ponderação que, ao fim e ao cabo, irá definir, no caso em pauta e à luz
do sistema, o conteúdo do mínimo existencial. O dever de fundamentação
só se hipertrofia no caso da tutela coletiva, dada a sua vocação para a
resolução de conflitos transindividuais, formatando precedentes de
maior latitude.
Ponderável consignar, ainda, que o dever do Estado em proteger
368
SARMENTO, ob.cit., p. 112
369
ob. cit., p. 114
370
Conforme citado por SARLET, ob. cit., p. 320
371
Interpretação da ensaísta e não dicção do jurista português antes nominado
372
expressão de SARLET, ob. cit., p. 320
244
ativamente a vida e a dignidade humana também contempla a dirigente
do aperfeiçoamento sistêmico das garantias, ao lado de uma conduta
prospectiva na busca de um planejamento político-administrativo à
consecução de seus fins. Outrossim, não poderá labutar em retrocesso,
mitigando ou ceifando direitos ou garantias fundamentais reconhecidos
pela dicção do Poder Constituinte originário, processo do qual deverá de
todo modo restar imaculado o núcleo vital dos direitos fundamentais.
Na verdade, como ensina Sarlet
373
, é
pelo seu maior ou menor conteúdo em dignidade da pessoa
humana que um direito fundamental, de acordo com o direito
constitucional germânico, se encontra imune à ação erosiva ou
mesmo supressiva do poder de reforma da Constituição, de tal
sorte que intangível não é o direito fundamental em si, mas , sim,
o seu conteúdo em dignidade da pessoa humana.
A tipologia estudada neste ensaio, sem qualquer pretensão de
exaurimento, teve por norte a recorrência com que aparecem em nossos
pretórios e a relevância social que encapam, dados os argumentos já
expostos em cada tópico, só restando aglutinar, em reforço, que Sarlet,
em seu minucioso estudo, qualifica os direitos previdenciários e
assistenciais como, dentre outros
374
, garantes de uma existência
digna
375
, portadores de idoneidade indiscutível para a conformação de
direitos subjetivos (individuais ou coletivos ) originários à prestação
376
,
aduzindo que o “conteúdo essencial do sistema de previdência social
(incluindo o direito à aposentadoria), não poderia ser afetado, mesmo por
meio de emenda à Constituição”
377
.
No que concerne aos direitos assistenciais, menciona que
A comunidade estatal deve assegurar-lhes pelo menos as
condições mínimas para uma existência digna e envidar esforços
necessários para integrar estas pessoas na comunidade,
fomentando seu acompanhamento e apoio na família ou por
terceiros, bem como criando as indispensáveis instituições
373
ob.cit., p. 365
374
o direito ao salário mínimo e à saúde, educação básica e moradia simples são outros exemplos
375
fls. 283 e seguintes
376
Traz à liça exemplos de reconhecimento, pelo STF, de dispositivos constitucionais, na seara tributária, com
eficácia plena e imediata aplicação, citando os casos dos artigos 201, §§ 5º (vinculação do valor piso dos
benefícios ao salário mínimo) e 6º (valor-base para a gratificação natalina dos pensionistas e aposentados) e
202, I (que regulamente a aposentadoria por idade), ambos da CF/88 (no contexto do item 3.4.4.3.2., ob. cit.,
p.283 e seguintes).
377
ob. cit., p. 291/2
245
assistenciais.
378
.
Em arremate, calha coligir o escólio de Canotilho
379
:
O Estado, os poderes públicos, o legislador, estão
vinculados a proteger os direitos à vida, no domínio das prestações
existenciais mínimas, escolhendo um meio (ou diversos meios)
que tornem efectivo este direito, e, no caso de só existir um meio
de dar efectvidade pratica, devem escolher precisamente este
meio.
Neste passo, orienta-se toda a argumentação acerca da legitimação
ministerial no campo das omissões administrativas, terreno fértil aos
desatendimentos dos preceitos normativos da dignidade da pessoa
humana, consolidando desalinhos à proteção do mínimo existencial,
ceifando a cidadela dos prestacionamentos que estariam a serviço da sua
implementação.
No que concerne à seara tributária, a questão está
predominantemente afeta aos direitos de defesa, que em regra têm plena
eficácia e imediata aplicação, reclamando concreção jurídica, à luz do caso
em concreto, centrado nos vetores da dimensão axiológico-normativa do
valor-fonte.
Agrega-se, o tema envolve exemplo de um direito de defesa com
dimensão econômica, ao contrário da regra geral, vez que a abstenção
Estatal requerida gerará corolária redução do volume corrente da
arrecadação, inclusive com reflexos no acervo dos recursos a serem
disponibilizados, em tese, para o financiamento dos direitos prestacionais.
Contudo estes não podem ser realizados à luz do abuso da competência
tributária, justificando a extirpação da imposição estatal iníqua, ainda que
refratariamente tal postura cause prejuízo às gestões públicas
direcionadas à consecução dos direitos sociais. A justiça social, afinal,
deve ser construída sobre bases democráticas.
A legitimação ministerial para a tutela coletiva dos individuais
homogêneos tem fundamental importância na concretização jurisdicional
do conteúdo dos direitos fundamentais de defesa e dos direitos sociais
prestacionais, mormente no espectro da conformação da fisionomia dos
378
SARLET, 1998, ob. cit., p. 293
379
Tomemos a Sério os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Coimbra: Coimbra Editora, 1988, p. 34
246
seus núcleos intangíveis, enquanto fonte de direitos subjetivos originários
a prestações estatais, que podem ser exigidos independente, para além e
mesmo contra a interposição legislativa. Em assim agindo, não estará
velando, prima ratio, pela dimensão subjetiva dos direitos fundamentais,
mas tornando vívida a força motriz dos efeitos autônomos e
transcendentes da esfera objetiva dos direitos fundamentais, dando
concretude ao acesso material à jurisdição, como decorrência da
inafastabilidade da jurisdição, declinação do conteúdo normativo da
dignidade da pessoa humana.
Perseguirá, em juízo, a defesa da proteção da dimensão jurídico-
objetiva daqueles direitos fundamentais plenos de dignidade, como são
exemplos os direitos previdenciário e assistencial, os direitos
prestacionais em geral, submetidos a recorrentes omissões
administrativas, a liberdade negativa contra o abuso do Poder de tributar
do Estado, sem prejuízo de outras hipóteses acolhidas pela ponderação
legislativa, numa leitura conforme a Constituição (como ocorre com o
consumidor, o idoso, a criança e o adolescente – apenas para referir as
mais importantes); ou pela concreção jurisdicional tópico-sistemática.
3.8.3 Utilidade Da Tutela Coletiva
Circunscrevendo o título ao objeto em estudo – a tutela coletiva dos
individuais homogêneos, a utilidade, como visto, poderá ser aferida pela
a ampliação do acesso à Justiça, viabilizando, v.g., que causas de valor
individual insignificante, mas coletivamente vultosas, sejam submetidas
ao Estado-Juiz, instrumentalizando a proteção da dimensão jurídico-
objetiva dos direitos em voga, em seus efeitos jurídicos autônomos e
transcendentes e com titularidade subjetivamente difusa, representando
concreta racionalização da provocação do Estado-Juiz, reduzindo
quantitativamente as demandas, valorizando a prestação jurisdicional
célere, pautada pela igualdade formal e material, segura e econômica,
aniquilando o tempo de tramitação irrazoável, hoje vivenciado pelo jugo
247
da absurdidade quantitativa que assola os tribunais, promovendo o
resgate da confiabilidade no Poder Judiciário como baluarte da dicção do
bem comum, onde as fórmulas devem retomar o seu lugar na história,
instrumentalizando direitos, nunca podendo estar a serviço de qualquer
mitigação de seu objeto de instrumentalização.
Como argumenta Mendes
380
“sonhamos com o tempo em que
conflitos multitudinários, como o ocorrido em torno dos expurgos do
Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), possam ser resolvidos
mediante uma única demanda e um único processo”.
3.8.4 Predominância Do Interesse Coletivo Sobre O Individual
A exigência desponta como um corolário lógico da aferição do
interesse social que, no caso em concreto, qualifica o acidente de
coletivização dos interesses individuais, fazendo descortinar a legitimação
ministerial para agir com o escopo de dar concretude e densidade à
função autônoma e transcendente da dimensão jurídico-objetiva dos
direitos fundamentais. Por isso, a defesa dos interesses individuais
homogêneos, enquanto perfilamento da dimensão subjetiva dos direitos
fundamentais em pauta, é realizada apenas mediata, reflexamente,
permeada pela impessoalidade, reclamando provimentos jurisdicionais
com eficácia condenatória genérica.
3.8.5 Da Representação Adequada
A questão da representação adequada guarda pertinência com a
idoneidade do autor da demanda coletiva, cuja intervenção só se valida e
justifica quando exercida adequadamente, à luz do devido processo
380
O Código Modelo de Processos Coletivos do Instituto Ibero-Americano de Direito Processual, disponível em
248
legal. Em agindo no interesse de uma coletividade, recebe a
denominação de autor ideológico, devendo estar qualificado para o
encargo, na medida em que sua atuação terá potencialidade para gerar a
vinculação de posições subjetivas à decisão do Estado-Juiz, em maior ou
menor densidade, dependendo do sistema adotado, estando em voga, em
última ratio, a proteção de liberdade individual como vetor axiológico dos
sistemas democráticos contra os abusos que em tese possam ser
perpetrados pelo legitimado extraordinário.
Parafraseando Godinho, tem-se a referência de Antonio Gidi
381
,
para explicitar a representação adequada como decorrência do devido
processo legal, requisito por excelência das ações coletivas norte-
americanas, porque, naquele País,
o advogado do grupo é o verdadeiro dominus litis. Como o
advogado do grupo tem a expectativa de receber um alto valor em
dinheiro a título de honorários como remuneração pelos seus
serviços, ele vê a ação coletiva como um empreendimento, um
investimento pessoal.
Há que se consignar que o termo é adotado sem a precisão técnica
que aparta representação e substituição processuais, o que nada embaça
o que já foi dito a respeito da natureza jurídica da legitimatio para as
ações coletivas, posto que, como visto, a posição majoritária e recorrente
é a da legitimação extraordinária autônoma, concorrente e primária.
O substituto processual deve ser um bom paladino, eleito por uma
seleção natural no seio da comunidade que pretende defender, consoante
ensina Cappelletti
382
.
No caso da tutela coletiva brasileira, a legitimidade de que se trata
foi concedida ao Ministério Público pela dicção do Poder Constituinte
originário, notabilizando-o como paladino por excelência, mas não
exclusivo, do interesse da sociedade em ver atendidos os preceitos do
Estado democrático de direito, priorizando-se a efetividade dos direitos
fundamentais, notadamente dos seus núcleos intangíveis, como conteúdo
www.mundojuridico.adv.br, acesso em 09/06/2006
381
apud GODINHO, ob.cit., nota 43.
382
Appunti Sulla Tutela Giurisdizionale di Interessi Collettivi o Diffusi. In: Le Azioni a Tutela di Interessi
Collettivi: Atti Del Convegno di Studio. Pádua: Cedam, 1976, p. 201
249
imanente da sua implantação material.
Quanto ao tema, penso que seria proficuamente tautológico
novamente discorrer, haja vista o que já foi aludido acerca do papel do
Ministério Público no contexto da Constituição de 1988, capítulo ao qual
me reporto, como sucedâneo da fastidiosa repetição.
Sinalo, por importante, que o exame da quaestio encontra-se
topograficamente antecipada por uma opção didática, que pretendeu
principiar o estudo específico do objeto deste ensaio com a localização
tempo-espacial-funcional do Ministério Público em nosso sistema
constitucional.
Ademais, a questão será pontuada no capítulo final deste estudo,
quando se pretenderá erigir os alicerces da fundamentação filosófica da
legitimação ministerial para a defesa coletiva dos individuais homogêneos.
No que toca aos critérios para a aferição da representação
adequada do autor ideológico da ação coletiva, tratam o artigo 8º, § 1º
do Anteprojeto de Código Brasileiro de Processo Coletivo e o artigo 2º, §
2º do Código-Modelo Ibero-Americano de Processo Coletivo, conforme
ANTEPROJETO DE CÓDIGO BRASILEIRO
DE PROCESSO COLETIVO(art.8º, §1º)
1. A credibilidade, capacidade e experiência
do legitimado;
2. Seu histórico de proteção judicial e
extrajudicial dos interesses ou direitos
dos membros do grupo, categoria ou
classe;
3. Sua conduta em outros processos
coletivos;
4. A coincidência entre os interesses do
legitimado e o objeto da demanda;
5. O tempo de instituição da associação e a
representatividade desta ou da pessoa
física perante o grupo, categoria ou
classe.
CÓDIGO MODELO IBERO-AMERICANO DE
PROCESSO COLETIVO(art.2º,§2º)
a – a credibilidade, capacidade, prestígio e
experiência do legitimado;
b – seu histórico na proteção judicial e
extrajudicial dos interesses ou direitos dos
membros do grupo, categoria ou classe;
c – sua conduta em outros processos
coletivos;
d – a coincidência entre os interesses dos
membros do grupo, categoria ou classe
e o objeto da demanda;
e – o tempo de instituição da associação e
a representatividade desta ou da pessoa
física perante o grupo, categoria ou classe.
250
diagramados no quadro que segue, divergências textuais ressaltadas em
negrito.
No caso da legitimidade ministerial no cenário jurídico brasileiro, o
perfilamento da representação adequada em sede infraconstitucional
representa um minus, posto que a sua gênese tem envergadura
constitucional, configurando cláusula pétrea, como já se assentou.
De outra banda, aderimos, em reforço, à posição de Godinho
383
, a
entender inócua a aferição dos requisitos em voga, no que toca ao
Ministério Público, cuja atuação processual deve ser entendida como in re
ipsa adequada, à luz do Anteprojeto brasileiro, verbis:
Combinando-se o disposto nos parágrafos terceiro e
quarto do art. terceiro do referido anteprojeto, o Ministério Público
é um representante adequado por natureza, não havendo que
perquirir sua adequação no caso concreto. Trata-se, pois, de uma
representatividade adequada in re ipsa.
Ainda se não bastasse, o manejo dos requisitos elencados pelo
Código Modelo (e, por conseguinte, no Anteprojeto brasileiro) estão a
denotar total congruência ao perfil institucional do Órgão-Agente, até
mesmo no que concerne a uma visão dilargada da pertinência temática
384
,
cuja feição natural
385
é mais afeita aos co-legitimados, decorrência do
pluralismo político inerente ao Estado democrático de direito, objeto de
normatização constitucional, no âmbito pátrio, pelo artigo 1º, V da CF/88.
Por derradeiro, a vocação pluralista do Código Modelo deixa espaço
à sua conformação às especificidades dos sistemas ibero-americanos que
admitem ou renegam a legitimidade ministerial neste âmbito, o que se
383
Ob. cit., nota 41.
384
Compreendendo-se a defesa imediata dos interesses sociais (leia-se da sociedade) insertos na dimensão
jurídico-objetiva dos direitos fundamentais como sua função precípua enquanto guardião do Estado democrático
de direito, ter-se-á placitado o
nexo temático entre o legitimado e a matéria tutelada.
385
Neste sentido, recomendável o estudo analógico com a densificação da pertinência temática no âmbito da
Ação Direita de Constitucionalidade, caso reproduzido por GODINHO, ob. cit., nota 45, assim ementado:
"Ação direta de inconstitucionalidade: idoneidade do objeto: decreto não regulamentar. Tem-se objeto idôneo à
ação direta de inconstitucionalidade quando o decreto impugnado não é de caráter regulamentar de lei, mas
constitui ato normativo que pretende derivar o seu conteúdo diretamente da Constituição. II. Ação direta de
inconstitucionalidade: pertinência temática. 1. A pertinência temática, requisito implícito da legitimação das
entidades de classe para a ação direta de inconstitucionalidade, não depende de que a categoria respectiva seja
o único segmento social compreendido no âmbito normativo do diploma impugnado. 2. Há pertinência temática
entre a finalidade institucional da CNTI - Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria - e o decreto
questionado, que fixa limites à remuneração dos empregados das empresas estatais de determinado Estado,
entre os quais é notório haver industriários." (ADI 1282 QO / SP – Rel. Min. Sepúlveda Pertence - DJ DATA-
29-11-2002, p. 00017)
251
deve a peculiaridades várias que serão pontuadas an passant, no próximo
capítulo.
4 TÓPICOS DE DIREITO COMPARADO
4.1 INEXISTÊNCIA DE PARALELISMO NECESSÁRIO ENTRE AS
CLASS ACTIONS ESTADUNIDENSES E A TUTELA COLETIVA NO
BRASIL
Primeiramente, cumpre traçar a fisionomia da abordagem à qual
nos propomos, neste tópico.
Considerando a delimitação do tema em debate, iremos nos
debruçar, em breve, sobre alguns tópicos da class action relativa à
regra 23(b)(3), em razão de questão comum, tendo em vista ser a que
guarda maior inter-relação com o objeto do presente estudo, que enfeixa
da tutela dos individuais homogêneos.
A fisionomia da ação em comento está fulcrada no binômio da
prevalência das questões comuns da classe e a utilidade maiúscula da
ação coletiva no cotejo com as demais opções de acesso à jurisdição
disponíveis.
Mendes ensina que o termo classe é tomado em sua significação
ampla, não tendo conotação política, econômica ou social, podendo ser
“equiparada a um conjunto de pessoas interessadas, grupo ou categoria,
não se exigindo, inclusive, qualquer relação jurídica base entre os
mesmos”.
1
Outrossim, subjaz ao termo a exigência da devida definição dos
contornos da classe, a fim que de viabilizar, inclusive, o controle
jurisdicional da proteção aos membros ausentes, da exclusão daqueles
que não a integrem da lide e a incidência dos efeitos subjetivos da coisa
julgada.
O segundo aspecto tem por norte os seguintes lineamentos:
economia processual, racionalidade da utilização do aparelhamento
judicial, segurança jurídica decorrente da decisão una (relativa ao
processo coletivo, que se submete às instâncias recursais, não se
253
confundindo com instância única), isonomia material de pessoas que se
encontrem em posições subjetivas equivalentes e isonomia processual (o
grupo transmuda-se forte face ao seu adversário; sozinho, o indivíduo
torna-se uma vítima em potencial, pela impossibilidade lutar, em
igualdade de condições – materiais, técnicas – com seu adversário), no
escopo da concreção da ampla defesa e do devido processo legal.
Para verificar a superioridade da ação coletiva dentro do universo de
instrumentos que são viáveis, em tese, à veiculação da pretensão em
causa, o Estado-juiz irá recorrer ao método comparativo, como informa
Mendes
2
.
O equacionamento da prevalência do interesse comum do grupo
sobre os interesses particulares dos que o compõem rege-se pela
verificação, no caso concreto, de um espectro circunstancial uniforme que
justifique o ajuizamento do remédio, sob pena de malferimento do devido
processo legal, maculando a satisfação adequada e pertinente de
situações singulares, com especificidades comuns relevantes, que não
podem ser dirimidas senão a partir da solução da lide sob a ótica da
transindividualidade.
As dificuldades práticas na identificação deste requisito não tem sido
obstáculo para a constatação da
preocupação da jurisprudência no sentido de manter o
equilíbrio entre a busca de soluções céleres, econômicas e
ampliativas do acesso à Justiça, e a preservação do direito de
defesa, do devido processo legal e de soluções verdadeiramente
justas e harmônicas.
3
Classificam-se como ações coletivas espúrias (spurious class
actions
4
), caracterizadas pela pluralidade de interesses, que se inter-
relacionam pela idêntica origem, permitindo o manejo de um remédio
processual comum, pela sua superioridade na assecuração do acesso à
jurisdição.
Traçando-se um paralelo entre a modalidade ora abordada e a tutela
1
“Ações Coletivas...”, p. 74
2
“Ações Coletivas...” ob., cit., p. 91/2
3
MENDES, “Ações Coletivas...”ob. cit., p. 94
4
MENDES, “Ações Coletivas...”, p. 70
254
coletiva dos individuais homogêneos, observa-se: a) convergência
teleológica entre os dois instrumentos, vez que ambos têm por escopo
assegurar o acesso material à jurisdição, o que encampa a avaliação
acerca de sua adequação ao aparelhamento da racionalidade do manejo
do aparato público, da isonomia processual e material, da segurança
jurídica, da economia processual, da ampla defesa e do devido processo
legal; b) convergência ontológica – o acidente de coletivização, sem
exigência de relação-jurídica base entre os titulares dos direitos subjetivos
afetados.
Contudo, as aproximações entre os dois modelos não extrapolam
em muito tais considerações, posto divergirem diametralmente quanto à
legitimação ativa e ao sistema de vinculação da coisa julgada, o que
impõe refrear o ímpeto inicial de tomá-las por paralelas.
A legitimação ativa, em todas as estirpes de class actions, e não
apenas a concernente à regra em voga, é conferida a quem integra a
classe, o que equivale dizer que a parte representativa deve fazer parte
do conjunto de pessoas interessadas, formulando pretensões ou defesas
coincidentes ou típicas da classe.
Na tutela coletiva brasileira, o rol de legitimados extraordinários
concorrentes primários é plural, não sendo exigível a pertinência
temática, a não ser no que toca às associações. Não se pode olvidar que a
exigência vem veiculada no Anteprojeto de Código de Processo Coletivo,
mas ainda carece de concretização legislativa.
O sistema de vinculação à coisa julgada é o denominado opt-out, o
que significa que todos aqueles que participaram do processo, deixando
de requerer a sua exclusão, devidamente notificados, restarão adstritos
ao julgado, qualquer que seja o seu resultado.
No Brasil, a coisa julgada, na seara dos individuais homogêneos
incide secundum eventus litis, projetando eficácia erga omnes(sic)
apenas na hipótese de procedência, consoante a dicção do artigo 103, III,
255
CDC.
5
Diante da fisionomia excepcional das class actions (em quaisquer
de suas três modalidades – puras, híbridas ou espúrias), vez que as
possibilidades de representação restam, em regra, condicionadas à
manifestação de vontade do titular ou conferidas a terceiro, pela lei
6
, o
que inocorre na seara em estudo, há necessidade de um controle rígido
acerca da idoneidade do autor ideológico em realizar adequadamente a
representação da classe.
No âmbito da tutela coletiva nacional, ainda regulada esparsamente,
sem sistematização unificada –motivo do erigir do Anteprojeto multicitado
– a questão se encontra mitigada pela conformação legislativa do elenco
dos legitimados concorrentes, sem prejuízo da severa crítica à presente
ausência de extensão da legitimatio também ao singular, em atendendo
os ditames do pluralismo político tão ovacionado como premissa
indeclinável do Estado democrático de direito.
Sem embargo, o Anteprojeto referido traz em seu seio os critérios
para a aferição da representação adequada, o que, para além de
hipertrofiar os mecanismos de coibição de abusos, poderá servir à
reflexão acerca da atecnia do artigo 103, III, CDC em combinação com o
seu § 2º, ao verbalizar uma versão absoluta da coisa julgada secundum
eventum litis, matéria que já foi objeto de crítica ao longo deste estudo.
Há recrudescimento da importância da prevalência das questões em
comum sobre as individuais, na seara das class actions, onde a satisfação
dos interesses individuais não resta postergada para a fase executiva; por
isso, a pluralidade de direitos deverá ostentar uniformidade circunstancial
suficiente para viabilizar o manejo razoável do instrumento.
No caso da tutela coletiva no cenário pátrio, o processo encontra-se
dicotomizado em cognitio e executio
7
. Na primeira, incide a
5
Aqui não se retomará a crítica que se procedeu a este dispositivo, que verbaliza uma feição restrita deste
modelos de vinculação, agredindo a isonomia, entre outros entraves.
6
o que concretiza, em verdade, a possibilidade de substituição processual e não representação
7
perfilamos entendimento pela inaplicação das alterações introduzidas pela Lei 11232, de 22/12/2005, à tutela
coletiva, posto que veio a lume para dar mais efetividade ao cumprimento das sentenças dos processos
individuais, alterando o CPC de 1973, diploma inadequado para a normatização daquela, tanto que em gestação
256
impessoalidade que determina a condenação genérica. O terreno da
disponibilidade, da divisibilidade está restrito ao segundo momento (a
execução), quando a parte interessada, sponte sua e por intermédio de
advogado, deverá comprovar a sua qualidade enquanto parte integrante
do grupo acidentalmente formado e, portanto, atingido pelos efeitos do
caso julgado, a par de demonstrar o quantum debeatur daquilo que lhe é
devido.
4.2 DIVERGÊNCIA DOS PERFIS DOS MINISTÉRIOS PÚBLICOS BRA-
SILEIRO E ITALIANO
No estudo de direito comparado, desponta imprescindível referir os
motivos fundantes da coesa denegação de poderes similares aos
conferidos ao Ministério Público brasileiro, na seara da tutela coletiva em
geral e, em especial, dos individuais homogêneos, no cotejo da fisionomia
da Instituição italiana da mesma estirpe.
Vigoriti
8
objeta em dois flancos: primo, que o Estado só pode atuar
quando indispensável, o que não se revelaria consubstanciado no caso,
ante a natureza civil do processo, o plexo de legitimados para a ação
coletiva, bem como os entraves burocráticos decorrentes da atribuição;
secundo, a praxis revela a indisposição do Órgão em cumular novas
funções e uma atuação pálida, meramente formal, apenas diante das
hipóteses de intervenção obrigatória, inobstante esteja autorizado a
promover a tutela de “interesses de notável relevância social”.
um anteprojeto de Código Brasileiro de Processo Coletivo. Assim, muito embora haja unicidade do novo
conceito de sentença tanto para o processo individual como para o coletivo, a execução do título executivo
judicial representa, no primeiro (hoje), uma fase (somando-se à postulatória, à probatória, à decisória, à recursal),
despontando descontextualizada a idéia do processo sincrético para a ação coletiva, onde a executio não
comporta mera fase, porque há necessidade de comprovação da legitimidade do exeqüente individual, que
deverá demonstrar a sua pertinência temática com o grupo beneficiado pela coisa julgada coletiva. A sentença da
ação coletiva, ao contrário da individual, congrega uma titulação genérica, assumindo caráter normativo; na
cognitio não há identificação dos titulares das pretensões individuais, tornando necessária a prévia prova da
qualidade do beneficiado, o que nos remete para a instauração de nova relação processual (na executio), diversa
da ocorrente no processo de conhecimento, em que atuava no pólo ativo um dos co-legitimados extraordinários
na defesa mediata de uma coletividade indeterminada, mas determinável. Então prevalece, no processo coletivo,
a adequação da execução em processo autônomo, com a corolária possibilidade de arbitramento de honorários
advocatícios, afastando-se o sincretismo inaugurado pela Lei antes gizada.
257
Godinho
9
, parafraseando Osvaldo A. Gozaini, que também se diz
contundentemente contrário à atuação do Ministério Público nesta seara,
agrega
seus argumentos se resumem a uma eventual falta de
organização institucional específica, ausência de especialização e
de independência, o que, evidentemente, não se aplica à realidade
brasileira, por mais que o referido autor tenha pretendido
emprestar uma força axiomática à sua afirmação.
Com efeito, diante do papel do Ministério Público na Constituição de
1988, não há qualquer espaço para os entraves retromencionados. A
realidade hodierna denota que a maioria das ações coletivas ajuizadas em
nosso País é encabeçada pelo Órgão-Agente, o que o aparta,
definitivamente, do perfil do Pubblico Ministero, pondo à bancarrota os
argumentos que naquele País insular serviram para denegar ao Órgão os
poderes conferidos ao nosso guardião do Estado democrático de direito.
Não é sem senso, portanto, que Cappelletti
10
, numa postura altiva,
apesar de compactuar com seus patrícios no tocante à irrazoabilidade da
legitimação do Ministério Público italiano às ações coletivas,
ao colocar-se
a par da realidade brasileira, afirmou que
razões do escasso êxito dessa solução na Europa não se
aplicam ao Ministério Público brasileiro, sobretudo depois que sua
independência foi assegurada pela Constituição, e em
conseqüência também o fato de que em algumas cidades do Brasil
se criaram seções especializadas em matéria de interesses difusos,
nos quadros do Ministério Público. Fique bem claro, porém, que
essas são as duas condições – independência e especialização –
absolutamente indispensáveis ao êxito da solução aqui
considerada.
Os pudores à legitimação ministerial para a tutela coletiva no
cenário do País peninsular é reflexo do preconceito cultural corrente no
âmbito europeu
11
a atrelar o Órgão-Agente meramente às suas funções
tradicionais. A repulsa se mostra mais aguda na Itália pelo fato da
promiscuidade institucional entre o Ministério Público e a magistratura
stricto sensu, vez que carreiras de um mesmo Poder, sendo possível,
8
apud MENDES, “Ações Coletivas...”, p. 108
9
ob. cit., nota 54
10
Apud GODINHO, ob. cit., p. 08
11
Não se olvida as tentativas de rompimento do paradigma, como ocorrente na Ação Popular portuguesa, que
se passará em sumária revista, infra, e no tratamento dado pela Relator Action do direito inglês, em que o
Procurador-Geral (Attorney General) está autorizado pela regra 13, ordem 15, da Suprema Corte, a propor ação
258
inclusive, a alternância nos exercício dos cargos, o que estabelece, v.g.,
a inexistência de autonomia financeira, interferindo na ausência de
especialização do Ministério Público italiano e cria uma desconfiança sub-
reptícia sobre o efetivo controle jurisdicional da legitimatio.
4.3 PONTO DE CONFLUÊNCIA ENTRE A NATUREZA JURÍDICA DA
LEGITIMATIO AD CAUSAM SUSTENTADA NESTE ENSAIO E AS
AÇÕES ASSOCIATIVAS DO DIREITO ALEMÃO
Muito embora seja cediço que no cenário jurídico alemão a
legitimidade para as ações coletivas esteja concentrada, com
exclusividade, nas associações, uma das leituras da natureza jurídica a
ela atribuída em muito se aproxima com a que se pretende argumentar
neste estudo.
Mendes
12
traz à baila que, na opinião de Harald Koch, a posição
tedesca prevalente revela que, nas ações associativas (verbandsklagen),
as associações não estariam fazendo valer nem interesses
próprios, nem interesses dos seus associados, mas sim, a defesa
de interesses superindividuais e, com freqüência, públicos, em
termos de controle de eficácia e realização do direito, situação
essa que seria equivalente, em termos de discussão no direito
comparado (...) aos interesses difusos.
Sustenta-se, neste estudo, que o locus da aferição da legitimidade
ministerial na tutela coletiva dos direitos fundamentais acidentalmente
coletivizados é a dimensão jurídico-positiva, repositório do interesse social
(rectius da sociedade; portanto, subjetivamente difuso), por ser
portadora da idoneidade de produzir efeitos jurídicos autônomos e
transcendentes à dimensão subjetiva (sem prejuízo da incindibilidade
das perspectivas, sob a ótica da unidade dos direitos fundamentais),
direcionados à efetividade dos direitos substanciais, condição
inarredável da democracia em seu sentido vivo.
Neste enfoque, os argumentos que percorrem as veredas da
disponibilidade não interessam à busca da ratio da legitimação sub oculi,
coletiva para a defesa de interesses difusos, consoante noticia MENDES, Ações Coletivas..., p. 51/3
12
“Ações Coletivas...”,p. 131
259
na medida em que só encontram espaço na dimensão subjetiva dos
direitos fundamentais.
Quando o Ministério Público provoca a interlocução do Estado-Juiz,
não defende senão mediata, impessoal e reflexamente a perspectiva
subjetiva; está a realizar o poder-dever de zelar pela implementação do
Estado democrático de direito. Exerce seu munus, então, sem mira nas
posições subjetivas que possam ser atingidas pelos efeitos da coisa
julgada do pronunciamento buscado. Está gestionando, em verdade,
pela própria justicialidade dos direitos fundamentais, ponto mais
sensível da democracia fundada na dignidade da pessoa humana.
Trata-se, pois, de uma labuta pela concretização jurídica dos
direitos fundamentais, notadamente a conformação de seus núcleos
essenciais, que está a serviço do interesse supra-individual, sintetizado
na universalidade dos detentores do Poder constituinte originário, fonte da
legitimatio em causa.
4.4 INFORMES SOBRE A LEGITIMIDADE MINISTERIAL ATIVA NA
AÇÃO POPULAR PORTUGUESA
Observada rigorosamente a delimitação do objeto da pesquisa –
fundamentação da legitimação ministerial para a defesa coletiva da
perspectiva objetiva dos direitos fundamentais acidentalmente
coletivizados, restaria descontextualizado realizar o epigrafado, posto que
a nomenclatura “individuais homogêneos” é genuinamente brasileira.
Contudo, sendo incontestável que os individuais homogêneos,
independentemente da classificação (tertium gênero em relação aos
coletivos e aos difusos ou acidentalmente coletivos, ao lado dos
essencialmente coletivos – coletivos em sentido restrito e difusos), estão
englobados pela categoria dos interesses transindividuais, transparece
pertinente alocar espaço para uma visão geral e meramente informativa
acerca da legitimatio ministerial na tutela plural, no cenário da tutela
coletiva portuguesa.
260
Para tanto, passaremos em revista e em singelas pinceladas
13
a
ação popular, prevista no artigo 52.3 da Constituição daquele País .
O mencionado remédio, de amplo espectro, presta-se à defesa dos
interesses coletivos em geral, o que engloba, em sentido lato e na visão
de Mendes
14
, os interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos,
ao contrário da ação popular brasileira, que tem as limitações temáticas já
conhecidas, verbalizadas no artigo, 5º, LXXIII da CF/88, questão que
transborda os limites deste estudo.
Adota uma concepção pluralista, conferindo legitimação ativa
concorrente para diversos atores sociais, dentre os quais se destacam os
indivíduos, que podem agir como substitutos processuais da coletividade,
em sua ampla acepção.
As associações poderão manejar a ação popular para a defesa de
todo o universo de interessados no objeto do litígio, não se restringindo
ao protagonismo de seus associados. Haverão de respeitar, entretanto, o
critério da pertinência temática, posto que a possibilidade de atuação em
prol de interesses supra-individuais que extrapolem o contingente de seus
membros deverá constar expressamente em seus estatutos.
Entes públicos também receberam legitimatio ad causam, mas o
Ministério Público restou apenas agraciado com a legitimação
extraordinária subsidiária prevista no artigo 16.3 da Lei regulamentadora
(nº83/95), para a hipótese de “desistência da demanda, transação ou
comportamentos lesivos ao interesse da causa”
15
, sem prejuízo da função
peremptória de custus legis e, concomitantemente, de representação do
Estado, dos ausentes e dos incapazes.
A restrição à legitimação ministerial ativa a uma hipótese pontual e
subsidiária revela-se como uma externalidade cultural ainda recorrente
na Europa: o atrelamento precípuo da figura do Órgão às funções
eminentemente penais.
Como decorrência do pluralismo, relativizou o requisito subjetivo
13
Para tanto, partimos do aporte de MENDES, “Ações Coletivas...”, p. 133/144
14
“Ações Coletivas...”, p. 131
261
para a configuração de litispendência, fazendo incidir o instituto ainda
que diversos tenham sido os legitimados extraordinários a tomarem a
iniciativa da ignição dos processos que correm em paralelo, para o que
são classificados como idênticos, sob o espectro de sua qualidade
representativa.
Permite sentença liminar de improcedência, com oitiva preliminar
do Ministério Público, para os casos em que o julgador desde logo esteja
convencido do insucesso da causa e adota o sistema de exclusão (opt-
out), com a exigência da notificação preliminar dos interessados
identificáveis, autorizado o edital, para a hipótese de “interesses gerais
ou geograficamente localizados”
16
.
A sentença fará coisa julgada erga omnes, sujeitando todos os que
não requereram a exclusão, salvo na hipótese de improcedência por falta
de provas. No entanto, dependendo das peculiaridades do caso
pragmático, o juiz poderá deixar de aplicar atribuir a eficácia geral, o que
traz à baila relevante aumento dos poderes do juiz na ação coletiva de
que se trata.
Consoante ensina Mendes
17
, a regulamentação da ação popular
portuguesa aparou arestas terminológicas, substituindo a referência a
interesses legítimos por interesse legalmente protegidos, o que assegurou
constância à “aceitação e consolidação da legitimação extraordinária e da
existência de necessidades supra-individuais, que não devem ser vistas
como desprovidas de titular ou pertencentes, tão-somente ao Estado.”
15
MENDES, 2002, ob. cit., p. 142
16
ob. cit., p. 143
17
“Ações coletivas...”, p. 135
5 O MINISTÉRIO PÚBLICO E O APARECER
1
DO ESTADO ÉTICO NO
CONTEXTO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.
O objetivo deste capítulo é buscar, à luz da filosofia hegeliana, a
fundamentação ética da legitimação ministerial para a defesa dos
interesses individuais homogêneos.
5.1 O MINISTÉRIO PÚBLICO, A JUSTICIALIDADE DOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS E OS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS
A justicialidade dos direitos fundamentais é a pedra-de-toque do
Estado democrático de direito; integra a sua compleição genética. O
Estado democrático contemporâneo a concebe imanente porquanto
indeclinável à concretização do conteúdo dos direitos fundamentais,
mormente dos seus núcleos intangíveis, mesmo independente, paralela e
contrariamente à interposição legislativa, quando esta for exigível.
Somente pela efetividade dos direitos fundamentais que se pode conhecer
o Estado materialmente democrático.
No caso da Constituição brasileira, a consubstanciação da
democracia imprescinde, como condição primeva, indevassável,
pressuposta, o respeito pela dignidade da pessoa humana, o valor-fonte
que nucleia os direitos fundamentais em quaisquer de suas três
dimensões.
1
O termo aqui é empregado não no seu sentido epistemológico kantiano, contexto no qual representa o mundo
sensível (o que é, sujeito às leis da causalidade) que não esgota o intelegível (o que deve ser, a causalidade por
liberdade); mas segundo a leitura hegeliana, como porvir da consubstancialidade ética, da vontade geral, cujo
conteúdo só se revela a partir das suas concretizações (ou determinações). No mesmo diapasão, cumpre
explicitar que a locução “vontade geral” é utilizada na acepção de substrato coletivo, do que há de comum entre
as consciências (e não como soma das vontades individuais, nem como a vontade da maioria), ponto de
convergência da filosofia kantiana com Rousseau, muito embora não se olvide do hiato que se lhes aparta,
nucleado pela negação e pela afirmação da democracia direta como forma de atingimento deste substrato,
respectivamente. Em Rousseau, as vontades não se representam; em Hegel, apenas as mediações havidas no seio
do Estado estamental são idôneas a formatar as figurações da liberdade. Nesta quadra, não se está a rotular a
CF/88 como o pacto social de Rousseau, vez que o Documento é fruto da democracia indireta, inconcebida pelo
ideário rousseauniano, mas como conquista da história, como resultado do movimento dialético, que se expõe
pelas duas determinações. Sob esta ótica, transparece a dignidade da pessoa humana como o substrato comum
das vontades positivadas na Magna Carta. A vontade geral de que se trata legitima a dignidade da pessoa
humana como idéia pressuposta (a idéia reguladora do Estado ético), antecedente ao Estado positivado e, por
263
É ao fim e ao cabo o descortinar do conteúdo axiomático-normativo
da dignidade da pessoa humana, e a sua aplicação tópico-sistemática,
que a decisão política-fundamental de todos os titulares do poder
soberano nacional elegeram como diretriz normativa do desenvolvimento
de todas as ações estatais e comunitárias que se pretendam legitimadas à
luz da Constituição.
Nesta quadra, imprescindível um Estado-Juiz altivo e eficaz; um
Poder Judiciário amorfo, pálido no exercício da assecuração dos direitos e
garantias fundamentais placita uma Constituição prostrada, formal,
distante da realidade democrática.
Por primado princiológico, a função jurisdicional do Estado é inerte;
sua visibilidade no cenário democrático depende da provocação das forças
vivas da coletividade.
Inobstante o pluralismo político, inerente ao Estado da estirpe de
que se trata, o Poder constituinte originário atribuiu ao Ministério
Público a função precípua da defesa do Estado democrático, o que o
consolida como o paladino por excelência, mas não exclusivo da vontade
geral.
Nesta senda, a ignição da atividade judicial para conformação do
conteúdo dos direitos fundamentais, norte na colimação da efetividade
como critério objetivo de transposição da democracia formal, é tarefa
intrínseca do Ministério Público brasileiro, de molde que ceifá-lo de sua
função institucional fere de morte a conformação mínima do valor-fonte,
que tem na inafastabilidade da jurisdição declinação pujante.
A tutela coletiva representa opção racional de acesso à jurisdição,
atendendo ao dever de aprimoramento das garantias dos direitos
fundamentais, tornando a sua instrumentalização mais abrangente, ágil,
segura e eficiente.
Linhas postas, o Ministério Público tem legitimidade in re ipsa para
a defesa dos direitos fundamentais; com mais acento, a defesa coletiva
de tais direitos, sendo desimportante se, no plano subjetivo, ir-se-ão
isso, vetor axiológico-normativo de todo o sistema, núcleo duro dos direitos fundamentais.
264
configurar como essencialmente ou acidentalmente coletivos : a ratio da
legitimação correlaciona-se com as funções jurídicas autônomas e
transcendentes da dimensão jurídico-positiva.
Assim, o interesse na implementação efetiva do Estado democrático
de direito transpõe a orla privada do homem-indivíduo ou do homem-
coletivo diretamente lesado, atingindo um sem-número de interessados.
Neste passo, o órgão ministerial age como substituto dos titulares do
poder, defendendo um interesse difusamente amalgmado na sociedade,
no cumprimento da sua função institucional.
Esta fisionomia do Órgão-Agente o erige como propulsionador por
excelência (inobstante não exclusivo) do aparecer do Estado ético em
nossa realidade político-constitucional.
5.2 RACIONALISMO KANTIANO
Para que possamos esboçar a concepção hegeliana do Estado ético,
necessário incursionar, em breve, no estudo do racionalismo kantiano
como pré-compreensão da eticidade, sob a dicção de Hegel.
Kant aparta direito e moral por critérios explícitos e implícitos
2
.
Sob o ponto de vista estritamente formal, no direito as ações são
conforme o dever, sendo indiferente as inclinações ou os interesses que as
motivaram; no terreno da moralidade, as ações decorrem do dever pelo
dever, rejeitando qualquer outra vinculação que não o respeito à lei
moral, de per se. Por conseguinte, as ações jurídicas são externas
(decorrem de relações intersubjetivas de mim para com os outros) ,
porque regidas pela legislação externa (a conduta deve aderir
externamente àquilo que foi prescrito para a convivência social harmônica
de dois ou mais arbítrios
3
), que dá causa a deveres externos (a faculdade
dos outros titulares de arbítrios exigirem o cumprimento de minha ação
2
Consoante se colhe da leitura da Doutrina do Direito. Trad., Edson Bini. São Paulo: Ícone Editora, 1993,
passim, mas em especial p. 44/53 e 54/60
3
Kant usa arbítrio em seu sentido usual, como sinônimo de vontade. Não faz, portanto, a diferenciação que se
verá ao depois, ente vontade imediata (arbítrio) e vontade mediada (liberdade), linguagem hegeliana.
265
em conformidade com o dever); as ações morais são internas (de mim
para comigo mesmo), decorrentes das leis internas (autonomia da
vontade), que provocam deveres internos (de mim para comigo, sem
coação externa). Neste passo, Kant estabelece a esfera da consciência
como intangível à intervenção estatal.
Neste contexto, a liberdade moral consolida-se no fato do sujeito da
liberdade dar-se a si mesmo a própria lei sem os influxos de inclinações
ou interesses, o agir despido da faculdade de desejar; a liberdade jurídica
só é factível no mundo exterior, consolidando uma esfera de não-
interferência consonante com a liberdade dos outros.
A inter-relação entre liberdade interna e deveres internos não quer
significar que a esfera de reverberação da moral seja monológica, razão
pela qual Kant diferencia os deveres com relação à própria perfeição e
deveres com relação à felicidade dos outros, de índole indisfarçavelmente
intersubjetiva.
O critério de diferenciação entre legalidade e moralidade está na
interlocução entre a esfera da responsabilidade decorrente do dever e a
exigibilidade do seu cumprimento. Quando um dever (interno ou externo)
gera o direito de exigibilidade por um sujeito externo a mim, configura um
dever jurídico; quando um dever (interno ou externo) causa apenas a
responsabilidade de mim para comigo, consolida um dever moral.
Kant perfila quatro espécies de relações entre o homem e os outros
seres: com seres que não tenham nem direitos nem deveres (animais);
com seres que tenham direitos e deveres (outros homens); com seres que
só tem deveres e nenhum direito (escravos); com um Ser que só tem
direitos e nenhum dever (Deus). As relações jurídicas situam-se na
segunda estirpe; são caracterizadas pela reciprocidade entre direitos
(faculdade de exigir o cumprimento) e deveres (como cumprimento da
lei).
No âmbito dos critérios implícitos de diferenciação entre direito e
moral, temos a autonomia e a heteronomia e a conformação do
imperativo como categórico ou hipotético.
266
A autonomia, em Kant, nasce da determinação da vontade
imediatamente pela razão, sem interferências externas de qualquer
ordem; na heteronomia, a ação é impulsionada por fatores exógenos,
como o medo e o interesse. Neste contexto, pode-se deduzir do texto
kantiano a pertinência temática entre autonomia e moral e heteronomia e
direito, que tem na coação uma componente necessária.
Sabido que os imperativos de conduta, nucleados pelo verbo dever,
apartam-se em duas classes, os categóricos e os hipotéticos, Kant
placitou que os primeiros norteiam apenas as ações morais, porquanto
define as ações como boas por si mesmas. Ademais, classificou os do
segundo grupo -- conceituados como regentes de ações boas para um
certo fim -- em técnicos (relacionados à possibilidade e à habilidade) e
pragmáticos (ligados à prudência, também denominados reais). Sem
tomar partido pela inclusão das regras jurídicas entre os imperativos
hipotéticos técnicos ou pragmáticos, certo é que, na visão kantiana, não
estão dentre os imperativos categóricos, que não servem como critério
para julgar ações regidas pela heteronomia, cuja vontade é determinada
por um objeto externo e não pela autonomia do sujeito em dar a si
mesmo a sua própria lei.
Esta linha de raciocínio tem por escopo obviar que o descortinar do
direito como valor e não a validade do direito, deve socorrer-se da idéia
de justiça que lhe é pressuposta, em seu conteúdo metafísico e para
além do empírico: o direito positivo não veicula, de per se, o que é justo,
mas o que é lícito.
Na visão kantiana, o conceito do justo só pode ser atingido à luz da
razão pura, como fundamento de qualquer “legislação positiva possível” .
Na Crítica da Razão Pura, em sumário, Kant procede uma
investigação da limitação da capacidade do sujeito transcendental para o
conhecimento. Traça a competência da razão em seu uso teórico, que
transpõe o limite do que pode ser conhecido, afeto ao mundo da
experiência, sujeito às leis da causalidade. Apropria-se do sucesso
metodológico das ciências físicas, para afirmar a existência de juízos
267
sintéticos a priori a partir do incondicionado (a razão pura). Responde, em
essência, à pergunta: que posso conhecer? Explicita as condições de
possibilidade dos juízos sintéticos a priori e demonstra a validade
apriorística dos mesmos.
Kant trabalha com dois exemplos clássicos
4
: o suicídio e a falsa
promessa. Em ambos os casos, demonstra, por silogismos, que as
máximas não podem ser universalizadas; a primeira porque desafia a
idéia de humanidade em si; a segunda, porque destruiria a própria
verdade, transmudando o destinatário da falsa promessa em simples
meio da ação. Se fosse permitido mentir, as promessas ulteriormente
realizadas já não seriam tidas como sérias, verdadeiras, na medida em
que fácil seria desfazê-las ou descumpri-las.
Immanuel Kant parte do imperativo categórico, desprovido de
conteúdo empírico, como critério definidor do dever-ser.
Neste passo, se uma máxima individual puder ser universalizada, a
conduta que nela se baseia terá valor moral desde que a vontade do
indivíduo seja autônoma, decorra diretamente da razão, sem a
interferência de fatores externos, como inclinação natural ou o medo.
Desta feita, uma ação terá mérito moral quando decorrer
genuinamente do dever instrumentalizado no imperativo categórico.
O Homem deve agir com humanidade, tendo seus pares como
finalidade da ação e não como meio desta. Assim, a ação do autêntico
filantropo revela a preocupação com a caridade de per se e
exclusivamente, não podendo o móvel da conduta residir, v.g., na
expectativa de satisfação pelo prestígio conquistado pela realização do
ato assistencialista. Neste cenário, mérito moral terá a ação do operário
que, inobstante passar por reais dificuldades de toda a ordem, não
abandona a obra assistencial iniciada, pelo grandioso prazer de ajudar a
outrem, tão-só; diferentemente, uma rica senhora que, ao realizar
suntuosa doação, tem por companhia uma dezena de câmaras e
4
Kant, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes e Outros Escrito., Trad. Leopoldo Holzbach.
São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 60.
268
holofotes.
A dignidade da pessoa humana
5
em Kant vem alicerçada na terceira
formulação do imperativo categórico, assim enunciada “Age de tal
maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de
qualquer outro, sempre e simultaneamente, como fim e nunca
simplesmente como meio.”
6
Neste passo, o respeito à dignidade orbita em torno da vedação da
utilização de outrem simplesmente como meio, o que importa impedi-lo
de consentir com o meu modo de tratar, sem que saiba da minha
intenção, de molde que não teria como reconhecer o meu ato. Havendo
consentimento válido, contudo, posso usar o outro como meio para os
meus fins, sem que tal malfira a terceira formulação kantiana, como
ocorre, por exemplo, com o carteiro, que leva a carta até o seu destino
final, servindo de meio à comunicação à distância, consciente e
voluntariamente
7
, mas não simplesmente.
Muito embora o objetivo deste capítulo atina à fundamentação da
legitimidade ministerial na defesa coletiva dos individuais homogêneos à
luz da filosofia hegeliana, o diálogo da complementaridade entre Kant e
Hegel
8
, permite um debruçar um pouco mais agudo sobre o conceito
metafísico da dignidade da pessoa humana, à luz da ótica kantiana, sem o
perigo de fuga do problema de que se trata, mormente em se
considerando que tal valor
9
está no ápice axiológico do Estado
democrático de direito, cuja guarda compete ao Órgão-Agente, de forma
precípua.
A noção de dignidade em Kant está ligada à idéia de não-
5
Não se estudará, a fim de evitar refugir às opções metodológicas deste texto, a dignidade da pessoa humana à
luz da filosofia estóica e outras escolas
6
Kant, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes e Outros Escritos. Trad. Leopoldo Holzbach.
São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 59
7
Weber, Thadeu. Ética e Filosofia Política: Hegel e o Formalismo Kantiano. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999,
p. 30-40 (Coleção Filosofia n.º 87).
8
Conforme sustenta WEBER, na obra citada
9
insta gizar que a configuração dos direitos fundamentais como normas de princípio atendem de forma integral à
postulação kantiana da Justiça como valor. Neste sentido: “a qualificação adicional como normas fundamentais
objetivas ou decisões de valor faz com que os direitos fundamentais cubram por completo a definição kantina e
com isso o âmbito do direito.” BÖCKENFÖRDE, ob. cit., p. 129.
269
equivalente, que aparta as pessoas das coisas. É a negação da reificação,
é o reconhecer na dignidade do outro a minha própria dignidade e ver a
compenetração do singular e do universal. A dignidade é indissociável à
pessoa, é atributo de sua humanidade; é essência imanente ao ser
humano.
É conceito a priori, que para ser pensado e concebido como
irrenunciável, imprescinde de especulação empírica, terreno afeto às suas
densificações concretas, reais e objetivas, pena de quedar-se obscuro e
infértil, como uma declaração emoldurada mas sem vida, o que nos
remete à fundamental unidade da razão, em seu uso teórico e prático.
A liberdade foi eleita por Kant como vetor teorético da idéia de
justiça
10
. Pensamos que, para além da exegese mais imediata, da moral
kantiana a serviço da concepção do Estado liberal, o entrelaçamento da
idéia da autonomia e da heteronomia da vontade como áreas da
moralidade e da legalidade, respectivamente, com o conteúdo e o sentido
da dignidade da pessoa humana (e não da idéia abstrata da dignidade da
humanidade), conforma a liberdade nos limites da dignidade como a idéia
basilar do Estado ético kantiano, o que o enlaça com Hegel e estabelece
correlação com a proposta deste estudo
11
. Não há que se pensar em
liberdade sem o seu antecedente, a dignidade, como atributo da pessoa
humana que pretende autodeterminar-se em sua liberdade, mas
respeitando a liberdade dos seus pares enquanto norma universal.
Assim, a idéia da liberdade, também em Kant, na visão desta
ensaísta, pode ser vista na sua dúplice acepção: como direito subjetivo à
não intervenção (liberdade resistência), dirigida contra o Estado
(concepção liberal da liberdade), mas também como a liberdade através
do Estado, a quem incumbe assegurar a efetividade da dignidade da
10
Conforme pondera BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no Pensamento de Emanuel Kant. Trad. Alfredo
Fait. Brasília: Edunb, 1992., p. 73.
11
Sabe-se que Kant não limitou a sua filosofia aos seres humanos, mas aos seres racionais. Desta feita, não
percorreu o viés antropológico como limitador de sua abordagem. Contudo, pensa-se que esta singularidade não
confronte com a ordem de idéias em exposição, posto que de qualquer sorte os seres humanos estão
compreendidos no gênero seres racionais, de molde que a dignidade da pessoa humana aqui deve ser
compreendida como a dignidade de todos os seres racionais até aqui conhecidos, o que não inibe a sua extensão
a outros seres racionais, para além dos humanos, se sobrevierem.
270
pessoa humana, como valor supremo, “fundante da República, da
Federação, do País, da Democracia e do Direito”
12
, o direito, em suma, de
participar do bem-estar social, o que colore de sentido o Estado
democrático e social de direito.
Porque a dignidade da pessoa humana não tolera a discriminação, a
miséria, a incultura, há que se agir à suplantação da falácia naturalista
congregada pela realidade hodierna, que apenas mostra um aparecer
13
enganador -- ao sabor das idiossincrasias das classes dominantes,
integrantes de sociedades parciais --- norte na busca incessante da
concretização do valor-fonte como dever-ser.
Em Kant pode-se colher o sentimento de respeito
14
à lei moral, que
impele o agir pelo dever, a causalidade por liberdade
15
, da dignidade da
pessoa humana
16
, deixando entrever, na visão da ensaísta, que a ética
kantiana não cultua a egolatria, nem é monológica, porquanto o diálogo
de si para si tem por escopo atingir o ideal de dignidade como dever-ser
contido no imperativo categórico, o que o legitima como universal e
necessário. Nesta leitura, pode-se afirmar, então, que todo o exercício da
liberdade, em Kant, volve-se pela dignidade e para a sua afirmação.
Tal afirmação não se desvalida à luz da heteronomia da vontade,
campo de abrangência, em Kant, do direito (legalidade). A convivência
harmônica dos arbítrios
17
só se mostra factível com a incidência da coação
como meio de repulsão à não-liberdade (a liberdade que não respeita a
liberdade dos outros). A coação, neste particular, atua como negação da
negação, sendo, pois, uma afirmação da liberdade e do seu antecedente
imanente, a dignidade. A coação não é antitética à liberdade, mas à não-
liberdade, que se mostra abjeta e reprimível, por desconhecer a dignidade
intrínseca na liberdade dos outros; afinal, malferir a dignidade do
12
SILVA, José Afonso da. A Dignidade da Pessoa Humana como Valor Supremo da Democracia. Revista de
Direto Administrativo, Rio de Janeiro, n. 212, p. :89-94, 1988, p. 92.
13
aqui no sentido epistemológico do termo
14
O fato da razão será visto, em breves linhas, em prosseguimento
15
A questão do causado incausado, da razão determinando imediatamente a vontade, sem o influxo de co-fatores
externos, a autonomia (liberdade positiva)
16
Como pondera SILVA, José Afonso, “A Dignidade da Pessoa Humana...”, p. 93.
271
semelhante é malferir-se a si próprio e, por isso, injusto (e ilícito
18
).
Neste passo, a dignidade da pessoa humana
19
é o centro de aferão
da idéia do justo
20
, sobre o qual dever-se-ão erigir as bases de um Estado
ético
21
, a propalar a idéia de todos como iguais em dignidade.
Apenas para que não passe in albis, pensa-se oportuno colacionar,
em esboço, a questão das dimensões da dignidade da pessoa humana.
Ultrapassando a idéia da dignidade enquanto e tão-somente
qualidade inata do ser humano, transparece a sua dimensão cultural, cuja
vocação complementar surge como resultado do labor perseverante da
humanidade in totum em placitar a dignidade da pessoa humana como
limite e tarefa dos poderes estatais, simultaneamente
22
.
Intercede Sarlet, com a percuciência que lhe é peculiar:
Na condição de limite da atividade dos poderes públicos,
a dignidade necessariamente é algo que pertence a cada um e
que não pode ser perdido ou alienado, porquanto, deixando de
existir, não haveria mais limite a ser respeitado (considerando o
elemento fixo e imutável da dignidade). Como tarefa imposta ao
Estado, a dignidade da pessoa humana reclama que este guie as
suas ações tanto no sentido de preservar a dignidade existente ou
até mesmo de criar condições que possibilitem o pleno exercício da
dignidade, sendo, portanto, dependente (a dignidade) da ordem
comunitária, já que é de se perquirir até que ponto é possível ao
indivíduo realizar, ele próprio, parcial ou totalmente suas
necessidades existenciais básicas ou se necessita, para tanto, do
concurso do Estado ou da comunidade (este seria o elemento
mutável da dignidade)
23
Outrossim, a dimensão comunitária ou social, que dialoga em
certa medida com o que já foi visto, no sentido de explicitar que todos
17
Aqui usado como sinômino de liberdade, porquanto Kant não diferencia os conceitos, como já visto.
18
Não se adentrará aqui na celeuma do estado de necessidade, visto por Kant como excludente da punibilidade
(Doutrina do Direito, p. 53, verbis: “(...) Por conseguinte, o fato da conservação através da violência não deve
ser considerado como inocente (inculpable), é certo, mas, sim, unicamente como impunível (impunible), (...)” e
não da antijuridicidade (ilicitude) como tratado no sistema jurídico pátrio. De toda sorte, a ação em estado de
necessidade não seria uma negação à dignidade, mas uma negação à negação (a não-liberdade do outro em
agredir a minha dignidade), caracterizando-se como uma afirmação da própria dignidade e, por isso, impunível
(Kant) ou lícita (doutrina penal corrente).
19
Sem prejuízo de sua extensão aos demais seres racionais que por ventura se tornarem conhecidos.
20
Não se abordará neste estudo, evitando a superação das suas limitações metodológicas, a idéia da justiça em
Rawls e em Habermas, inobstante as aproximações que os enlaçam a Kant, mormente no que concerne à
adoção, muito embora sob outras perspectivas, da tradição do pensamento transcendental inaugurada na filosofia
kantiana.
21
Aqui se tem claramente, em Kant, a idéia da Justiça como valor, no sentido de que o direito positivo só
fornece o que é lícito ou ilícito, tornando indeclinável perscrutar-se o seu antecedente, o justo, que é dado pela
moralidade (eticidade em Kant)
22
SARLET, ob. cit., p. 105
272
são iguais em dignidade em suas relações com seus pares, o que
determina uma visão intersubjetiva da dignidade, e não centrada apenas
na órbita do singular, viabilizando a imposição de restrições ao exercício
da liberdade, desde que não deflagre o desnudar da dignidade pessoal, o
que não seria justificável nem em nome da coletividade
24
.
Calha ainda mencionar que a dignidade da pessoa humana pode ser
vislumbrada como “garantia de condições justas e adequadas de vida
para o indivíduo e sua família”
25
, donde deflui a importância dos direitos
fundamentais sociais, enquanto explicitações da igualdade. Outrossim,
transparece como garantia à identidade, donde defluem as liberdades
de expressão, de pensamento, de crença, à honra, à intimidade, entre
outros aspectos, restringíveis apenas com fulcro na lei e nos limites da
proporcionalidade
26
.
A leitura corrente do formalismo kantiano
27
aduz que são
inadmissíveis exceções particulares ao imperativo categórico, sob pena de
contradição, posto que a lei moral deve ser entendida a priori como
universal e necessária, restando indene a circunstâncias, decorrências do
mundo sensível.
Como ensina WEBER
28
Reconhecer objetivamente a validade de um princípio e
subjetivamente abrir exceções, para a satisfação de interesses
pessoais, é ferir a coerência entre o discurso e a ação. Ou seja,
ferimos a coerência universal. Daí a imoralidade.
Na Crítica da Razão Prática, Kant busca demonstrar a fundamental
unidade da razão, explicando como são possíveis juízos sintéticos a priori.
23
Idem, p. 105/6
24
Não procede, neste passo , a pretensa justificação ética da pena de morte, sob a alegação de ter o criminoso
despido-se voluntariamente de sua dignidade ao transgredir os limites de respeito à dignidade do outro, a quem
agrediu mortalmente. As limitações impostas pela dimensão intersubjetiva da dignidade não podem transformar
o homem simplesmente como meio, denegando-lhe a qualidade de sujeito de direitos, para o que indeclinável a
disposição de seu próprio organismo como substância viva. A dignidade é irrenunciável, embora comporte
limites, como estão a demonstrar as penas privativas de liberdade.
25
SARLET, p. 108
26
ibidem
27
Poder-se-ia argumentar que as circunstâncias universalizáveis, e não as que estiverem a serviço do mero
interesse pessoal , integram o imperativo categórico, como inerência de sua intelegibilidade. Partilhamos deste
entendimento, esboçado, v. g., por BARTOLOMEU M. Julia, apud, WEBER, p. 85, mas não adentraremos no
tema.
28
“Ética e Filosofia Política...”, p. 84
273
Porque, em última instância, a razão pura determina imediatamente a
vontade, trazendo à tona o “fato da razão”, a liberdade como ratio
essendi da lei moral e a lei moral como a ratio cognoscendi da liberdade, a
diferença entre fenômeno e coisa em si, o conceito do bem e do mal a
partir do imperativo categórico, entre diversos outros temas. Responde,
em essência, a questão: como são possíveis princípios (juízos sintéticos
em seu uso prático) a priori?
Sinala-se que os aspectos ora noticiados não serão tratados,
porquanto extrapolariam os restritos limites desta abordagem, que não
tem a expectativa nem a vocação para o incursionamento em matérias de
tal densidade, à exceção do infradito, apenas para evitar o tratamento
franciscano do assunto.
Neste diapasão, analisa-se, sumariamente: o “fato da razão”.
A liberdade consiste na autolegislação da vontade, na ação
autônoma que decorre imediatamente da razão, sem a interferência de
fatores exógenos. Representa o salto metafísico de interrompe a série
causal imanente às ciências, fazendo com que o incausado (a razão) dê
causa à ação moral. Tem por pressuposto a liberdade negativa, que é o
apartar de toda e qualquer avaliação decisória qualquer conteúdo
empírico, a ter a razão como único vetor de determinação da vontade
(liberdade positiva).
Como isto é possível, a razão determinar diretamente a vontade do
agente, é a questão precípua de que se ocupa Kant, ao estudar a razão
em seu uso prático, posto que o tema foi tratado de forma sumamente
vaga em sua primeira crítica. Pois bem: o que faz, em essência, o
indivíduo obedecer à formulação da lei moral como critério hábil para
julgar qualquer conteúdo?
Não poderia ser decorrente da liberdade negativa, que é um
conceito eminentemente metafísico, que não pode ser provado no mundo
sensível.
A resposta, o sentimento de respeito que o cumprimento da lei
moral de per se causa no agente, o fato da razão, na linguagem do
274
filósofo em epígrafe, cuja percepção refoge do domínio da experiência,
não é uma sensibilidade cognitiva, mas um sentimento produzido a priori,
é a forma como a lei moral se torna acessível ao agente, submetendo-o.
Não obstante “eu não me afasto de mim mesmo (...) eu sou eu mesmo,
pois, sujeitando-me à lei, eu me sujeito a mim mesmo como razão
pura(...) eu me determino como ente livre e digno de respeito.”
29
O fato da razão interliga-se com a própria consciência da lei moral e
vice-versa num diálogo de múltipla compreensão; é o dado que nos coage
a cumprir o imperativo categórico, que se impõe de per se, sem qualquer
outra explicação racional adicional
30
. É a explicitação da liberdade pela lei
moral, é o auto-reconhecimento por intermédio da razão.
Loparic fala em “feito” da razão
31
como designação mais adequada à
tese de que se ocupa, do sentimento de respeito como o terceiro
elemento do imperativo categórico, que liga
32
um conceito do sujeito (a
minha vontade) a um conceito do predicado (a universalidade da norma);
um “dado sensível, não cognitivo e a priori que possa conferir a
“realidade objetiva” e a “validade objetiva” da fórmula da lei”
33
,
conceituando-o como
(...) um tipo particular de consciência, a saber,
consciência de que uma certa forma das máximas é imposta a
nossa vontade. Essa consciência revela que a fórmula da lei moral
nos obriga. A obrigação em questão tem o caráter de necessitação
ou coação. O feito da razão é a consciência de que a fórmula
vigora porque a razão age em nós. (...) Neste caso, a atividade
da razão é imanente e não transcendente. Em virtude desse seu
“uso imanente”, a razão é “ela mesma, através de idéias, causa
eficiente no campo da experiência”. Sendo assim, a lei da razão
constitui “o começo” e determina “os objetos” da experiência
sensível prática aos quais unicamente ela se “refere”, se
aplica.(...) Esse sentimento positivo de origem não empírica,
produzindo a priori pelo fundamento intelectual da nossa vida, é
chamado por Kant de respeito pela lei moral.
34
O fato da razão prova a efetividade da lei moral porque o ser
humano, em a aceitando como válida, passará a adotá-la como critério de
29
LOPARIC, Zeljko. O Fato da Razão. Revista Analytica, volume 4, n.1, 1999, 13/55, p. 21
30
Idem, p. 34
31
Idem, p. 36
32
Ligação sensível, a priori, não-cognitiva (intuitiva), mas volitiva , conforme LOPARIC, p. 38
33
LOPARIC, p. 32
34
Idem, p. 36/7
275
aferição da moralidade de suas máximas, resolvendo os conflitos que a
dinamicidade do sentimento de respeito pela lei impõe aos prazeres, aos
desejos, às inclinações; assim, estará agindo em liberdade por intermédio
do imperativo categórico, cuja coação sobre a sua sensibilidade moral
impõe-se não como um resultado de persuasão argumentativa, mas ipso
fato, como decorrente imediatamente da razão. Por isso “o sentimento de
dever urge agir de acordo com a lei em oposição às injunções dos
sentimentos de prazer e desprazer (...) o respeito pela lei torna-se
constitutivo do nosso modo de viver”
35
, como traço marcante da nossa
autonomia em buscar a construção racional do sumo bem; em última
instância, só somos verdadeiramente livres quando realizamos o bem,
afinal “A lei moral é santa (inviolável). É verdade que o homem não é
muito santo, mas ele deve ter como santa a humanidade em sua pessoa.
(...) somente o homem e, com ele, toda criatura racional é um fim em si
(...)”
36
.
A idealização kantiana acerca do imperativo categórico representou
um ponto de partida para a moderna filosofia alemã; a crítica revelou que
a experiência não pode ser relegada, já que elemento essencial para o
estudo da moralidade e, conseqüentemente, da eticidade, tema não
integrante da teoria de Kant.
5.3 A CRÍTICA HEGELIANA
Dentre os críticos
37
do racionalismo puro, Hegel reconhece na
eticidade o desdobramento objetivo da liberdade, valor erigido a princípio-
orientador de sua teoria.
Hegel parte da premissa que a singela não-contradição ao
imperativo categórico não contém em si mesmo qualquer julgamento
sobre o que é moral ou não, precisamente porque o imperativo categórico
não encerra qualquer conteúdo moral; é imprescindível que a máxima,
35
Idem. p. 41
36
KANT, Immanuel. Crítica da Razão Prática. Trad. Rodolfo Shaffer. São Paulo: Martin Claret, 2004, p. 97
276
para ser aplicada, seja circunstacializada
38
.
A concepção kantiana de moralidade desponta, para Hegel, como
mero desdobramento subjetivo da liberdade (moralidade subjetiva) que,
para ascender ao ético (moralidade objetiva), imprescinde do
reconhecimento de outrem, através de sucessivas mediações das
vontades livres, processo realizado nos estamentos, aos quais o indivíduo,
enquanto ser social, inexoravelmente pertence
39
.
Neste passo, o Estado ético em Hegel não é constituído pelo
somatório dos indivíduos que o compõem (vulgus); é um Estado
nitidamente estamental, que repulsa a fisionomia de povo (populus)
atrelada a uma mera multidão atomística de indivíduos (Rph § 273).
Esclareça-se que a organização estamental do Estado hegeliano não
guarda qualquer simetria com classes sociais, sob um viés puramente
econômico; estamentos são os “momentos orgânicos” da sociedade civil.
O ideário do jusfilósofo parte da premissa de que a liberdade
natural (primeira natureza) é em si mesma uma abstração indeterminada,
egoísta, desprovida da eticidade.
Neste cenário, afirma que a pedagogia está a serviço da ética,
porquanto funciona como instrumento para a conversão da primeira
natureza (vontade natural) na segunda natureza (vontade substancial,
ética, que pressupõe o desdobramento objetivo da vontade livre na forma
de hábito ou costume
40
)
41
, o que só se pode dar por meio do processo
dialético, o qual é propulsionado não por corpo amorfo de indivíduos, mas
por aqueles que são membros de (mitglied) estruturas sociais
organizadas (os prefalados estamentos, que têm sentido político-
representativo
42
), no bojo das quais desvela-se a vontade concreta, que
se sujeitará sucessivamente à nova mediação, num movimento
37
Ao lado de, v. g., Hume e Appel, cujas objeções não serão tratadas neste estudo
38
Weber, Thadeu. Ética e Filosofia Política: Hegel e o Formalismo Kantiano, 1999, p. 112.
39
não se está, pela referência ao ideário de Hegel, a patrocinar-se a defesa da democracia indireta, tema que, pela
complexidade, comporta estudo apartado.
40
WEBER, Thadeu, . “Ética e Filosofia Política”., p. 113
41
Rph § 151, agregado
42
WEBER, . “Ética e Filosofia Política”, p. 135
277
intermitente de busca da substancialidade ética do Estado, quanto locus
da realidade efetiva da liberdade concreta (Rph § 260).
Desta feita, ensina Hegel, o conteúdo empírico é de assaz
importância, porquanto nele se traduz o conjunto de tradições, costumes,
idiossincrasias, o verdadeiro Espírito de um povo, o qual tem idoneidade
para aquilatar o ético com o abandono definitivo do exclusivo campo das
ilações formais e subjetivas.
Neste cenário, o imperativo categórico não foi desprezado como
instrumento de aferição da eticidade (moralidade objetiva); contudo, a
teoria hegeliana rejeita a sua aplicação apriorística, explicando o porquê
de determinada ação ser tida como ética por um povo, ao mesmo tempo
em que é repudiada por outro: um mesmo fato, à luz dos Espíritos de
diferentes povos pode assumir conotações divergentes.
A Constituição, não em seu sentido técnico-formal, mas como ponto
de partida para a escritura das bases axiológicas de uma dada sociedade,
é o ethos de um povo, de molde que cambia de acordo com as diferentes
graduações da cultura da autoconsciência da idéia fundamental de
liberdade.
Por isso, “cada povo tem a constituição que lhe convém e lhe
corresponde” (Rph § 273), podendo-se compreender porque certos povos
(sociedades patriarcais, de castas) estejam fora da história, segundo
Hegel, porquanto abominam a contradição, submetendo-se cegamente a
preceitos que são aplicados de forma vertical, sem qualquer contestação,
fulminando de morte qualquer aceno dialético, inviabilizando o movimento
para a concreção da vontade livre.
Há que se desprezar a possibilidade de servir o imperativo
categórico como supedâneo para Estados totalitários, porquanto os
espíritos dos povos devem ser indiscrepantes com o Espírito do Mundo,
sob pena de se afastarem do ético, o que se revelará patente pelo
oportuno julgamento da conduta errante pelo Tribunal da História.
278
5.4 A CRITICA POPPERIANA
Esta busca pela coerência universal também afasta o relativismo
que é apontado à filosofia hegeliana, por alguns de seus críticos, dentre
os quais, Popper.
Explica que Kant, em sua Crítica da Razão Pura, busca um ponto de
equilíbrio entre o racionalismo (intelectualismo, conforme prefere Popper),
segundo o qual qualquer proposição razoável para a construção de teorias
explicativas da ciência deve ser uma descrição verdadeira dos fatos; e o
empirismo, a sustentar que só a experiência permite determinar a
verdade ou a falsidade de uma teoria científica.
Para a leitura de Popper, Kant afirma que
o alcance de nosso conhecimento está limitado ao campo
da experiência possível e que mais além deste campo o
racionalismo especulativo – o intento de construir um sistema
metafísico por intermédio da razão pura – não tem justificação
alguma.
43
A crítica kantiana foi considerada um golpe terrível aos propósitos
da filosofia européia
4445
, provocando um levante que teve em Hegel o
maestral expoente, líder da escola idealista alemã, assim chamada por se
apartar da epistemologia de Kant.
Kant, ao responder o questionamento “Como nossas mentes podem
apreender o mundo?”, sustenta que a mente pode fazê-lo porque o
mundo (digerido, formado, moldado pela mente), tal como se nos
apresenta, é semelhante a ela; Hegel foi mais além, asseverando que tal
é factível porquanto a mente é o mundo ou, por outras palavras, porque a
razoável é o real.
Se recorrermos à racionalidade pura, afirma Popper, parafraseando
43
El Desarrollo Del Conocimento Cientifico – Conjecturas e Refutaciones. Buenos Aires: Paidos, 2ª ed., 1979,
p. 373, tradução livre, verbis: “el alcance de nuestro conocimiento está limitado al campo de la experiência
posible y que más allá de este campo el razonamiento especulativo – el intento de construir un sistema
metafisico mediante la razón pura – no tiene justificación alguna.”
44
Idem, p. 373
45
Popper está criticando a forma de tratamento da metafísica na Fundamentação da Metafísica dos Costumes e
na Crítica da Razão Pura, quando Kant a aparta das ciências (ao delimitar o conhecimento ao campo da
experiência). Contudo, a objeção não procede, s.m.j., no que concerne às pretensões de Kant na Crítica da
Razão Prática, onde efetivamente faz metafísica, resgatando-a como filosofia prática, que não pode ser
demonstrada empiricamente, mas à luz dos critérios da razão em seu uso teórico.
279
Kant, estaremos fadados a assistir a razão a contradizer a si mesma,
porquanto duas propostas, dissociadas da realidade possível, podem ser
igualmente razoáveis, de molde que a metafísica do razoável não conduz,
sem ambigüidade, a um só resultado ou a uma só teoria, o que só poderá
ser buscado por intermédio da conjugação da experiência.
Popper pergunta: como Hegel superou o entrave proposto? Eliminou
o princípio da contradição, enquanto fonte de extirpação do irrazoável,
afirmando as contradições como parte do processo dialético, que
pressupõe idéias e fatos em movimento. Aduziu que Kant refutou a
metafísica, mas não o racionalismo. Desta feita, Hegel inaugura a
dicotomia entre dialética e a metafísica, dizendo que esta pressupõe um
sistema estanque, estático, livre de contradições que, ao reverso, são o
âmago daquela.
Destarte, a primeira crítica é trazida a lume. Concerne à
denominada filosofia da identidade que, segundo Popper, seria a base da
dialética hegeliana: “se a razão e a realidade são idênticas e a razão se
desenvolve dialeticamente, então também a realidade deve desenvolver-
se dialeticamente.”
46
Assim, o mundo dever-se-á reger por regras da
lógica dialética, numa ótica nitidamente panlogista.
Isso deveria conduzir a encontrar-se no mundo empírico na mesma
natureza de contradições que é admitida pela dialética, mas não é o que
de fato ocorre. O princípio da contradição que naturalmente vige, e que
pretende ser descartado por Hegel, entende que nenhum par de
proposições contraditórias pode corresponder aos fatos verdadeiros, que
nunca se contradizem reciprocamente. Hegel, ao revés, afirma que tal
contradição pode suceder, posto que é admitida no plano das idéias.
Popper chega a perguntar como a dialética explicaria a impossibilidade
física, no campo da eletricidade
47
, de um corpo estar carregado
positivamente e ao mesmo tempo não o estar, o que é facilmente
46
“El Desarrollo Del Conocimento”, p. 378, tradução livre da ensaísta, verbis: “Si la razón y la realidad son
idênticas y la razon se desarrolla dialécticamente (...) entonces también la realidad debe desarrollarse
dialécticamente”.
47
ob. cit., p. 379
280
resolvido pelo princípio da contradição, pela eliminação de uma das duas
hipóteses, que certamente não corresponde ao plano fático. Neste passo,
afirma que o panlogismo hegeliano é meramente idealista, um singelo
idealismo dialético.
Num segundo estágio, Popper aduz que todas as ciências avaliam a
pertinência e a correção das teses por meio do método de ensaio e erro. A
comunidade científica admite uma dada teoria como provisoriamente
verdadeira, submetendo-a a uma bateria de testes, buscando comprovar
a sua validade. Arrefecida a cientificidade da teoria sob prova, esta é
eliminada por outra realidade tética, que lhe sucede no processo de
evolução da ciência, sujeitando-se a um novo ciclo.
Desta feita, não é a contradição, como sustentado por Hegel, que
movimenta a ciência, mas, ao revés, é a intolerância humana à
contradição que cumpre tal mister: quando uma tese não resiste aos
ensaios, ela é substituída pela que lhe desnudou os defeitos, não havendo
que se falar em superação e conservação dos momentos anteriores, mas
pura e simples eliminação, até porque a teoria que propulsiona o
abandono da anterior pode partir de outro ponto de investigação,
mostrando-se mais adequado que o eleito pela tese derrocada.
Ademais, Hegel, no afã de superar o apriorismo kantiano, caiu numa
contradição performativa, posto que recrudesceu o dogmatismo que
queria criticar. Isto porque afirmou que a simples contradição ao
imperativo categórico resume-se ao plano formal, mas nada traduz em
termos de conteúdo do dever-ser, porquanto a contradição é a essência
do processo dialético.
Popper sustenta que tal ideário surge na contramão de todo
movimento das ciências que se pretendem sérias, que não admitem a
contradição, refutam-na, como já se viu na singela digressão sobre o
método do ensaio e erro, fazendo exsurgir um dogmatismo perigoso, que
não necessita temer nenhum gênero de ataque
48
.
48
El Desarrollo Del Conocimento Cientifico – Conjecturas e Refutaciones. Buenos Aires: Paidos, 2ª ed., 1979,
p.376.
281
De outra banda, Hegel pretende demonstrar que a dialética é um
melhoramento da lógica, mas enfrenta um obstáculo relevante, posto que
o raciocínio tríade, segundo Popper, pressupõe o descarte do princípio da
contradição, imanente à lógica ordinária, que tem sido utilizada como
método seguro para a evolução do conhecimento científico, em diversas
searas, como já asseverado.
Desta feita, a dialética não pode pretender significar em si mesma o
progredir dos métodos de construção do conhecimento, uma superação da
lógica (que não teria sido eliminada, mas estaria guardada nalguns de
seus preceitos, apontadamente pela ambigüidade do uso da expressão
como “a razão” ou “as leis do pensamento”), posto que há um espectro
bastante significativo do saber científico que, para a aferição da validade
de suas teorias, permanece fiel aos parâmetros da lógica ordinária – que
não pode, então, ser tida como superada --- como ocorre com a
matemática ou qualquer filosofia verdadeiramente racional.
49
Popper, na crítica mais ferrenha a Hegel, chega a afirmá-lo defensor
do Estado absoluto, totalitário, por meio de sua filosofia da identidade (o
que existe é razoável), dando respaldo aos poderes existentes.
50
Ao parecer, Popper realizou leitura equivocada dos §§ 257 e
seguintes dos Princípios da Filosofia do Direito de Hegel.
O Estado absoluto imaginado por Hegel é o Estado ideal, pensado,
“é a idéia ética do espírito ético como vontade substancial revelada” (§
257), não tendo afirmado jamais que qualquer Estado histórico, concreto,
real, tenha conseguido realizar, de fato, a substancialidade ética
imaginada como dever-ser, visualizada como conceito, diretriz, móvel
para o aprimoramento sistêmico e intermitente do senso político dos
povos.
Não há espaço para o totalitarismo na concepção hegeliana,
porquanto tal não se compraz com a idéia fundamental de liberdade que é
o núcleo valorativo do sistema, razão de ser do Estado-movimento, o que
49
“El Desarrollo Del Conocimento...”., p.377
50
ob. cit., p. 385
282
aparta Hegel das concepções contratuais para a formação do Estado.
Hegel esclarece de forma cristalina que a vontade individual,
inobstante superada pelo universal, está nele guardada, conservada, não
havendo espaço para a sua eliminação, verbis:
(...) La consideración concreta, la idea, muestra que el
momento de la parcitularidad es igualmente esencial y que su
satisfación es por lo tanto absolutamente necesaria. Al cumplir
com su deber el individuo debe encontrar al mismo tiempo de
alguma manera su próprio interés, su satisfación y su provecho, y
de su situación en el estado debe nacer el derecho de que la cosa
pública devenga su propia cosa particular. El interés particular no
debe ser dejado de lado ni reprimido, sino que debe ser puesto en
concordancia com lo universal, com lo cual se conserva lo
universal mismo
51
. El individuo que se subordina a sus deberes
encuentra en su cumplimiento como ciudadano la protección de su
persona y propiedad la consideración de su bienestar particular y
la satisfación de su esencia substancial, la conciencia y el orgullo
de ser miembro de esa totalidad.(...)
52
Dessarte, o Estado funciona como garantidor da substancialidade
ética, da coerência e da universalidade dos preceitos assentados nas
instâncias mediadoras que o precederam, bem como atua ele próprio
neste viés, enquanto último locus para a objetivação da vontade,
assumindo a função de derradeiro resolutor de conflitos exsurgentes da
sociedade civil organizada, havidos no processo dialético e a ele
imanentes. Para o equacionamento de tais divergências, prima pelo
equilíbrio mais eficiente entre os interesses individuais e os coletivos.
Neste diapasão, aclara Hegel:
La esencia del nuevo estado es que lo universal esta unido
com la completa liberdad de la particularidad y con la prosperidad
de los individuos, que el interés de la familia y la sociedad civil
debe concentrarse, por lo tanto, en el estado, y que la
universalidade fin no debe progresar sin embargo el saber y
querer próprio de la particularidad que tiene que conservar su
derecho. Lo universal tiene pues que ser activo, pero por outro
lado la subjetividad debe desarrollarse en forma completa y
viviente. Sólo si ambos momentos se afirman en su furza, puede
considerar-se que el estado está articulado y verdadeiramente
organizado (RPH § 260, agregado).
Vale referir, podando a crítica popperiana à pretensa submissão da
lógica tradicional à dialética, que Hegel pretendeu construir uma ciência
filosófica do direito, de conteúdo predominantemente normativo (idéia do
51
grifo nosso
52
Rph § 261
283
direito), apartada, mas não divorciada, dos veios empíricos. Almejou
expor as estruturas do direito à luz do princípio organizador, a idéia
fundamental de liberdade, através sucessivas negações do dever-ser (que
se determina), pelo diálogo do ser (tese), do não-ser (antítese) e o devir
(síntese).
Desta feita, bem se vê, não pretendeu ceifar às ciências naturais os
prelúdios da lógica formal e seu tão caro princípio da contradição como
critério de eliminação da tese defeituosa.
Posto isto, avante.
A contradição é mesmo inerente ao raciocínio tríade e isto não
guarda qualquer contradição performática e nem placita o dogmatismo
reforçado que fez crer Popper, data vênia.
Para apreender a filosofia de Hegel
53
é preciso adentrar na
compreensão da relação de interferência entre o necessário e o
contingente, partindo-se da auto-exposição do absoluto, o ideal, o
pensado.
E por quê?
O sistema nada mais representa que determinações do idealizado,
do absoluto, do ético, consabido que em Hegel o início da filosofia é o ser
puro, o indeterminado, a liberdade natural, que é vazia de significado.
Desta feita, não há que se falar de condições a priori para o
conhecimento (Kant); o começo deve desnudar-se de pré-compreensões.
O absoluto, o pensamento em si, ao determinar-se, ao caracterizar-
se em máximas, nega-se em suas explicitações (o infinito revela sua
finitude); contudo, isto não quer dizer que o ideal tenha sido eliminado,
porquanto continuará a servir de norte, como diretriz do necessário e do
contingente, “é o todo que se expõe a si mesmo. Ou seja, a totalidade das
coisas existentes é uma explicitação (exteriorização) do absoluto”.
54
É neste contexto que se deve compreender a afirmação hegeliana
de que o racional é o real. O pensado caracteriza-se no mundo empírico,
53
As considerações aqui postas fulcram-se em WEBER, Thadeu. Hegel: Liberdade, Estado e História.
Petrópolis: Vozes, 1993
284
mas não se o faz em sua totalidade, mas em determinações que, num
movimento ontológico, buscam a razão de ser no imaginado como deve-
ser, que obviamente não é o que existe, mas o devir, o atingível, a meta,
aquilo que incessantemente deve ser buscado. As determinidades são
exteriorizações do absoluto, mas não o absoluto em si, que
conceitualmente é um preceito e não um fato.
Como se vê, a dialética hegeliana não se cinge ao dogmatismo
idealizado, tal qual vislumbrado por Popper; preocupa-se, em essência,
com a inter-relação entre o pensado e o real, não numa intersecção de
finitude (o pensado é o real), mas como matiz da paulatina aproximação
dos Estados históricos (contingentes) ao Estado absoluto (ético).
Neste cenário, o absoluto (o ético, o idealizável) é automovimento
55
,
porque é causa dos seus momentos exteriores (contingência, possibilidade
e necessidade) e simultaneamente autocausação, num movimento circular
e infinito.
Esta reciprocidade circular faz ver que o absoluto aparece num
primeiro momento como negação de todos os seus predicados (momentos
exteriores), consolidando-se no vazio imediato (sem mediação), uma
contradição sem conteúdo. A circularidade o impele à sua autoexplicação,
enquanto totalidade das coisas pensáveis e existentes
56
. Contudo, tal não
se pode dar apenas através de suas externalidades, pois se trata de um
processo que tem o absoluto por início e fim.
O absoluto (o ideal, o pensado) é a síntese do ser e da essência. O
ser é a primeira imediatidade (ausência de mediação); a essência, a
imediatidade refletida no ser, aqui tido como o existente, já submetido à
negação (mediação). Este diálogo entre o ser e a essência desenvolve-se
até se converter em relação do interior (essência como totalidade, que
constitui o ser de modo imediato) e do exterior (o ser determinado), em
absoluta unidade, como fundamento da relação essencial.
57
54
“Hegel: Liberdade, Estado...”., p. 18
55
“Hegel: Liberdade, Estado...”, p. 19
56
ob. cit., p. 20
57
“Hegel: Liberdade, Estado...”., p.20
285
Na dialética das modalidades, Hegel explica que o movimento de
exposição do absoluto revela a sua efetividade.
O efetivo é o normativo, é o que deve ser, não podendo ser
confundido com o existente, âmbito da contingência.
A filosofia da identidade proposta por Hegel guarda sintonia com a
reciprocidade entre o todo (que contém o particular) e a parte (que reflete
o todo) e com a noção de efetividade.
Destarte, não pretende significar que o racional é o que existe
(existência contingente). O racional é o efetivo (o dever-ser). Se a
realidade contingente é produto da mediação das vontades livres,
aproxima-se do racional, na medida em que exterioriza determinações do
ético, mas não significa o ético em sua completude, que só pode ser
imaginado como idealidade (dever-ser).
Pensar diversamente, manietaria o movimento dialético de busca
incessante da efetividade
58
, o que representaria o fim da história, nada
mais a evoluir, a buscar.
Nesta compreensão, o Estado ético determina-se, concretiza-se nos
Estados históricos, mas isto não significa que haja identidade entre estes
e aquele, que são meras aproximações do idealizado.
Estes Estados concretos, reais, a fim de refletir o ideal ético pensado
por Hegel, devem orientar-se pela consciência da idéia fundamental de
liberdade, a qual deve vir densificada pelas sucessivas mediações havidas
nos estamentos, trazendo a lume o espírito de um povo.
Então o contingente nasce da relação entre a efetividade e a
possibilidade. Se há impossibilidade real, não há contingência. O
contingente, o que é, pressupõe o possível. Desta feita, ao contrário do
que expõe Popper, a dialética hegeliana não desconsidera a
impossibilidade física de um corpo estar simultaneamente positiva e
negativamente carregado; ao revés, por adotá-la, aborta o processo
dialético em seu nascedouro. Se não há possibilidade, não há
58
Que, considerada em sua forma imediata, é a possibilidade; sob este viés, pode-se dizer que o contingente é de
certa forma o efetivo, porque o realizável dentro de um plexo de possibilidades admitidas
286
contingência, prejudicando o exame da efetividade.
Apenas para que não se passe in albis, há que se ponderar que a
possibilidade, além de reger a aparição da contingência, também faz
brotar a necessidade. Apartando os conceitos, Hegel expõe que o
necessário é, em certas circunstâncias, inevitável, equação inaplicável ao
contingente (acidental; pode ser ou pode não ser).
Assim, todo o efetivo é possível e todo possível pode ser necessário;
ainda que as condições sejam contingentes, o nexo é indeclinável; ou
seja, um determinado resultado poderá ser necessário, dentro de certas
circunstâncias
59
, ponto sobre o qual agudamente residem as críticas de
Hegel ao rígido apriorismo kantiano, mormente no âmbito do direito de
emergência
60
.
Neste norte, uma vez mais, não procede a crítica de Popper, posto
que a contradição performativa e o dogmatismo reforçado por ele
sinalados não passam de uma miragem teórica: a dialética hegeliana é
conseqüencialista, tendo a contradição como elemento essencial da
construção do espírito dos povos, pelas determinações da idealidade,
formadas pelas sucessivas relações dialéticas do necessário e do
contingente, enquanto momentos exteriores do absoluto (ideal), que
implicam a negação do infinito, colorindo as mediações da vontade livre
nos estamentos.
De outra banda, muito embora não se negue que Hegel tenha sido
um defensor do Estado Nacional, foco na garantia da sobrevivência da
dialética, os Espíritos dos povos transmudam-se pela ação do Espírito do
tempo, o que expõe a auto-reflexão do sistema hegeliano, também por
influência exógena.
O afluxo de novos fatos modifica a natureza das contradições que
servem à mediação das vontades-livres. O momento anterior, contudo,
59
“Hegel: Liberdade, Estado...” ob. cit., p. 28
60
Neste particular, pontua-se que perfilamos o entendimento da possibilidade do direito de emergência em Kant,
posto que a exceção não será contingente, mas poderá ser universalidade para todas as situações que preencham
o suporte fático da norma permissiva, tornando-se suscetível de validação à luz do imperativo categórico, pois,
afastando a idéia de contradição. Contudo, dada a complexidade do tema, apenas estamos a noticiá-lo, não
contemplando este estudo fôlego para a sua análise.
287
não é desprezado; resta conservado e superado no posterior.
A conservação do estágio anterior aparta a teoria hegeliana das
concepções revolucionárias, para as quais, em dado momento histórico,
nada do momento anterior pode ser preservado, instaurando-se, então,
um novo Estado histórico, situação inimaginada por Hegel, na medida em
que concebe o processo histórico como eminentemente dialético, formado
a partir das sucessivas mediações das contradições das vontades-livres,
com a manutenção das idéias em conflito como suporte da idéia
inovadora.
Dessarte, ocorrem sucessivos armazenamentos dos momentos
pretéritos, que se aprimoram no novo; a sumária eliminação do anterior
tornaria a dialética vã, posto que o movimento do raciocínio tríade requer
a necessidade e a contingência como momentos constitutivos.
Calha gizar que na dialética do necessário e do contingente, duas
leituras são possíveis: (I) a primazia da necessidade na síntese, o que
levaria a um determinismo lógico, necessidade dura, sem contingência – a
leitura clássica
61
de Hegel; (II) sopesadas em equilíbrio as duas
modalidades do absoluto, ter-se-ia uma necessidade fraca, resultado da
interação com o contingente, o que permitiria liberdade de escolha – a
releitura
62
do sistema hegeliano.
A tendência de Hegel é a transformação da necessidade em
liberdade, pela influência da ação recíproca:
A necessidade é dessa maneira a identidade interna; a
causalidade é sua manifestação, na qual sua aparência de ser-
outro substancial foi superada e guardada e a necessidade foi
elevada à liberdade (...) A necessidade não se converte em
liberdade, porque desaparece, mas somente porque ela manifesta
61
de alguns exegetas de Hegel, dentre os quais Popper, que criticam a filosofia hegeliana por entender que a
liberdade esvai-se nas sucessivas mediações, gerando um sistema duro, sem liberdade.
62
operada, v.g., por Sclelling e outros, que permite salvar a liberdade (suplantando as críticas da apontada
necessidade dura) pelas diferentes formas de concretização da dignidade da pessoa humana, perfilando suas
múltiplas configurações visíveis, vívidas. Veja-se que a releitura do sistema hegeliano não está a questionar a
validade do princípio regulador da dignidade da pessoa humana, que é figuração pressuposta, uma vez que
estabelecido pelas sucessivas autodeterminações da vontade. Contudo, o seu conteúdo só se revela a partir das
suas concretizações (ou determinações), o que estabelece íntima relação com a justicialidade dos direitos
fundamentais e, por conseguinte, com a legitimidade ministerial para a ignição da atuação do Estado como
instância mediadora, norte na consubstanciação do Estado democrático de direito, nucleado pelo valor-fonte,
como dever-ser.
288
sua identidade interior.
63
A liberdade, em Hegel, é a autodeterminação da vontade, é estar
consigo mesmo, é ter consciência da necessidade; a necessidade sabida é
a liberdade. O conceito, o normativo, o ideal é o locus da efetiva
realização da liberdade, porque é nele que há o reconhecimento da
necessidade
64
; a liberdade é a interiorização da necessidade, com o
enfraquecimento das contradições: “a contingência é apenas um não
saber da evolução necessária”
65
, então considerada apenas sob o aspecto
subjetivo.
A leitura que propõe a reconstrução do sistema hegeliano
6667
pretende abandonar o conceito de contingência epistêmica, partindo para
uma concepção objetiva. Segundo Wieland, a contradição pragmática
entre o ato elocutório (que diz o ser) e o conteúdo (o que é dito) é que
viabiliza a interpretação do sistema pela via da contingência, que concebe
a interpretação do absoluto como sendo também
contingente ou contendo contingência em si para resgatar a
possibilidade da liberdade. O absoluto, ao se determinar
(exteriorizar), se finitiza. O absoluto se concretiza na
particularidade contingente. Esta é aquele explicitado.
Possibilidade, contingência e efetividade são seus modos de
ser.
68
5.5 A LEGITIMIDADE MINISTERIAL NA REALIZAÇÃO DO ESTADO
ÉTICO
Neste passo, em sendo o Estado ético, consoante Hegel, “a
autoconsciência particular elevada a sua universalidade”
69
, desponta que a
legitimidade ministerial para a defesa dos interesses individuais
homogêneos é um dos instrumentos da realização, pelo Estado, da
substancialidade ética.
63
apud Webber, Tadeu. “Hegel: Liberdade, Estado...”., p. 31
64
WEBER, Hegel: “Hegel: Liberdade, Estado...”, p. 32
65
ob. cit., p. 34
66
Idem, p. 35/37
67
E que foi adotada neste ensaio
68
apud WEBER, “Hegel: Liberdade, Estado...”, p. 37
69
G.W.F. Hegel. Princípios de La Filosofía Del Derecho. Trad. Juan Luís Vermal. Barcelona: Edhasa, 1988, §
289
Explico.
À liberdade, princípio organizador da concepção hegeliana de
Estado, é imanente que conflitos vários que poderiam ser solvidos nas e
pelas instâncias mediadoras, sem a interferência do Estado, deixem de o
ser, culminando que os subjetivamente lesados, no exercício de nuance
de suas liberdades, deixem de agir no provocar a atuação do Estado-Juiz
para a resolução do conflito.
Casos há em que, pela natureza do bem jurídico atingido,
peculiaridades da pessoa diretamente lesada, entre outras causas, o
Estado, através do seu Órgão-Agente, enquanto guardião da democracia
substancial, necessite agir para buscar a superação do conflito,
inobstante a inação dos ordinariamente legitimados, porquanto a
salvaguarda da dimensão objetiva do direito em causa interessa
difusamente a todos; o Ministério Público atua na defesa imediata do
Estado democrático de direito, que só se realiza quando concretizado,
atingindo, mediatamente e indiretamente, o interesse subjetivamente
individualizado.
Vejamos, verbi gratia, que na ação civil pública o Ministério Público é
concorrentemente legitimado a agir, tendo ao seu lado a sociedade civil,
representada pelas corporações que a lei elenca.
A atuação parquetária, nesta seara, consabido, desdobra-se em dois
espectros: pré-processual e processual.
Nos casos de interesses tipicamente difusos, como a salubridade do
meio ambiente, fácil ver que o Órgão-Agente, ao propor termo de
ajustamento, atua na defesa do valor em si, pressupondo o interesse de
todos, da coletividade subjetivamente indefinida, à manutenção da
higidez dos ecossistemas e na corolária superação da contradição
instaurada pela agressão a tal interesse difuso.
Na fase processual, o Ministério Público, uma vez inexitosa a
tentativa preliminar ou inviável esta, de plano, provoca o Estado-Juiz a
dirimir o conflito, porquanto indeclinável à concreção da Democracia
258
290
substancial, que contempla o direito de cada um e simultaneamente de
todos ao meio ambiente saudável, o que nos remete à filosofia da
identidade de Hegel.
Quadra colacionar, neste espectro, a precisa lição de Sarlet
70
quanto à titularidade subjetiva dos direitos fundamentais:
(...) verifica-se que todos os direitos fundamentais
consagrados na nossa Constituição (mesmo os que não integram o
Título II) são, na verdade em última análise, direitos de
titularidade individual, ainda que alguns sejam de expressão
coletiva. É o indivíduo que tem assegurado o direito de voto, assim
como é o indivíduo que tem direito à saúde, assistência social,
aposentadoria, etc. Até mesmo o direito a um meio ambiente
saudável e equilibrado (artigo 225 da CF), em que pese seu
habitual enquadramento entre os diretos da terceira dimensão,
pode ser reconduzido a uma dimensão individual, pois mesmo um
dano ambiental que venha a atingir um grupo dificilmente
quantificável e delimitável de pessoas (indivíduos) geram um
direito à reparação para cada prejudicado(...) Os direitos e
garantias individuais referidos no artigo, 60, 4º, inc. IV, da nossa
Lei Fundamenta incluem, portanto, os direitos sociais e os direitos
da nacionalidade e cidadania (direitos políticos).
Idêntico raciocínio emprega-se no concernente aos direitos
coletivos; o diferencial, a determinabilidade subjetiva do grupo
diretamente lesado.
No concernente aos direitos individuais homogêneos, aqui
considerados como tertium gênero em relação aos difusos e coletivos, a
explanação, a fim de refugir da linear conclusão da invasão do Estado na
órbita da liberdade individual, deve partir da Constituição como síntese
das mediações realizadas na sociedade civil organizada.
Neste cenário, o individual está contido no universal, os interesses
particulares estão conservados e superados na substancialidade ética
instrumentalizada pela Constituição
71
, de molde que a lesão de um direito
fundamental de primeira, segunda ou terceira grandeza possibilita a ação
ministerial, enquanto extraordinariamente legitimado, porquanto a todos
interessa que a Constituição material tenha efetividade, de somenos o
número de indivíduos diretamente lesados.
Por suposto, o interesse na realização da substancialidade ética
70
ob. cit., p. 362
71
Não se olvida que a concepção hegeliana de Constituição é eminentemente não-formal, mas o aspecto não
291
contida na Constituição material e, corolariamente, a efetivação da
Democracia, é e sempre será subjetivamente difuso; por isso, a
legitimidade ministerial para a defesa mediata dos interesses individuais
homogêneos, grupo-amostragem da lesão à dimensão jurídico-objetiva
72
,
exsurge patente, na medida em que não há que se obstar o Estado ético
realizar a “unidade e compenetração da universalidade e da
individualidade”
73
, consubstanciando a “dialética da racionalidade”
74
do
Estado democrático de direito.
O cunhar dos poderes conferidos ao Órgão-Agente faz transparecer,
na visão da ensaísta, a graduação da autoconsciência da idéia
fundamental da liberdade no momento histórico em que a Carta Maior foi
erigida, revelando o Espírito do Povo brasileiro, às voltas com a
superação de um estágio anterior, permeado pela limitação dos direitos
civis, porquanto ungido pela arbitrariedade compatível com a ditadura que
assolou o País por quase duas décadas.
Como resultado de um processo dialético, porquanto a queda dos
governos militares não foi fruto de uma revolução, as mediações que
culminaram com a lavra do Texto Maior guardaram em seu seio a
experiência até então acumulada, sem eliminá-la, fazendo exsurgir uma
nova síntese da tábua axiológica dos deveres dos cidadãos e dos Poderes
Constituídos deste novo Estado, categoricamente idealizado como
democrático de direito.
Nesta senda, vale referir que os deveres, na dialética hegeliana,
não representam limitação da liberdade mas, ao revés, significam a sua
plena afirmação, a conquista da liberdade afirmativa.
Neste sentido, é importante trazer à baila que
o Estado, enquanto algo ético, enquanto compenetração do
substancial e do particular, implica que a minha obrigação de
respeito ao substancial seja ao mesmo tempo a existência da
minha liberdade particular, é dizer que o dever e o direito estão
arrefece a higidez da concatenação de idéias que aqui se pretende expor, s.m.j.
72
embora finito e determinado quanto à circunscrição subjetiva da lesão (dimensão subjetiva)
73
G.W.F. Hegel. Princípios de La Filosofía Del Derecho. Trad. Juan Luís Vermal. Barcelona: Edhasa, 1988, §
258
74
expressão canotilhana, já referida nesse estudo.
292
unidos numa mesma relação
75
(§ 261, observação).
Como ensina Weber, em sua leitura de Hegel,
não há liberdade natural, imediata. (...) Ora, a liberdade só
existe na mediação das vontades, ou seja, uma vontade só é livre
pela determinação. Isso se dá nas instituições sociais, na família,
nas corporações, nas leis do Estado, etc. É dentro delas que o
dever há que ser situado. Graças às instituições sociais, deixamos
de ser “sujeitos indeterminados”, isto é, incapazes de determinar
ou concretizar vontades. Nas instituições, porém, somos
obrigados a conviver. Isso implica adaptações e limitações de
nossas vontades. O Dever está acima de nossos interesses
pessoais imediatos. O dever limita a liberdade imediata, abstrata,
que, na verdade, não é liberdade. A “liberdade afirmativa” só se
alcança nas mediações, as quais incluem limitações.(...).
76
Transpondo a idéia dos deveres decorrentes na nova ordem de
valores estampada na Carta Constitucional para os Poderes constituídos,
que se dar a primazia à vinculação aos direitos fundamentais,
pilastra fulcral dos Estados que se pretendem democráticos.
Neste contexto, consoante ensina Sarlet, os direitos fundamentais
têm dúplice função: servem como delimitadores das ingerências do Estado
(e fonte de deveres de proteção) e como critério de legitimação do poder
estatal
77
.
A fundamentalidade que encerram os direitos desta estirpe pode ser
classificada em duas ordens
78
: a material que concerne ao
reconhecimento do conteúdo e da importância que emana do seu núcleo
essencial: a formal, que os retira da esfera de disponibilidade dos
poderes constituídos, tornando-os insuscetíveis de mitigação.
Há que ser pontuado que a fundamentalidade, em sua nuance
material, independe da inscrição exaustiva dos direitos da Carta Maior,
porquanto há que se conceber a abertura do catálogo da Constituição
escrita, que é meramente exemplificativo, a todas as categorias de
direitos que, pela homogeneidade de conteúdo, estejam a exigir a mesma
qualificação e, conseqüentemente, o mesmo aparato de proteção, lume à
efetividade.
Perguntar-se-á qual o critério eleito para a aferição desta
75
Tradução livre
76
“Ética e Filosofia Política”., p. 112
77
A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998
78
SARLET, ob. cit., p. 80/1
293
similaridade. A resposta advém da compreensão que os direitos
fundamentais representam densificação do conteúdo fluido do princípio
fundamental da dignidade da pessoa humana. Desta feita, todas as
exteriorizações que se abeberarem desta nascente deverão ter idêntico
tratamento, tornando inteligível a parte final do § 2º do artigo 5º, CF/88.
O referido comando normativo refere-se genericamente aos direitos
e garantias assegurados na Constituição como integrantes do acervo
intangível. Bem se vê, o comando em epígrafe (a) não atrofia a concepção
de direitos fundamentais como sinônimos de direitos individuais
(expandindo seu alcance para os direitos econômicos, sociais, culturais –
denominados como de segunda dimensão ou geração; para os de
fraternidade e solidariedade – terceira geração; e, quiçá, aos apontados
direitos à democracia e à informação, apontados por Paulo Bonavides
como componentes da quarta geração
79
); (b) não restringe aos direitos
anunciados o telus de conformação de fundamentalidade material
80
.
No tocante ao segundo aspecto, atinente à fundamentalidade
formal, sobredita, calha colacionar a natureza e o alcance que os direitos
fundamentais exercem sobre os Poderes constituídos
81
.
Trazendo à liça o escólio de PÉREZ LUÑO,
os direitos fundamentais passaram a apresentar-se no
âmbito do direito constitucional como um conjunto de valores
objetivos básicos e fins diretivos da ação positiva dos poderes
públicos, e não apenas garantias negativas de interesses
individuais.
82
Sarlet chega a denominar esta transposição da faceta meramente
subjetiva dos direitos fundamentais (a nuance objetiva e seus
desdobramentos) de mais-valia jurídica
83
, enquanto força jurídica
agregada
84
.
79
Como ensina SARLET, ob. cit., p. 53
80
O catálogo é aberto, sua concreção dar-se-á pelo contínuo processo dialético, informado pela conformação das
necessidades sociais, que não são estanques, mas se transmudam, evoluem, de acordo com circunstâncias
mutidisciplinares; contudo, sempre estarão orientadas na busca da efetividade da dignidade da pessoa humana.
81
A restrição da abordagem, corte metodológico, não ignora o efeito de irradiação dos direitos fundamentais
sobre os particulares. Aliás, a questão já foi tratada, ainda que sucintamente, quando do exame da ratio essendi
da legitimidade ministerial na seara consumerista.
82
Derechos Humanos, Estado de Derecho y Constitución. 5ª ed. Madrid: Editora Tecnos, 1995, p. 20-1
83
ob. cit., p. 141
84
E não no sentido negativo da teoria marxista
294
A pré-compreensão da faceta objetiva dos direitos da estirpe em
voga pode ser sedimentada em três aspectos: a) considerando a
Constituição como um sistema aberto de regras e princípios, ambos
podem consagrar direitos subjetivos fundamentais quanto descortinar
valores objetivos e fins diretivos à ação estatal, de molde que não há
paralelismo indeclinável entre regras e a perspectiva subjetiva; entre
princípios e a faceta objetiva; b) a dimensão objetiva agrega efeitos
jurídicos autônomos aos correlatos à fisionomia meramente subjetiva dos
direitos em tela (a mais-valia jurídica predita); c) tais efeitos explicitam
que, a par da função objetiva reflexa dos direitos fundamentais
subjetivos
85
, a dimensão objetiva dos mesmos direitos impõe limitações
aos Poderes constituídos, no sentido de que “o status fundamental de
liberdade e igualdade dos cidadãos se encontra subtraído da esfera de
competência dos órgãos estatais”.
86
Neste cenário, a perspectiva objetiva, porque representativa da
tábua axiológica plasmada na Constituição material, legitima restrições
aos direitos subjetivos fundamentais em prol do bem comum, orientando
o sentido e o alcance dos mesmos, fazendo exsurgir os contornos dos
seus núcleos essenciais (intangíveis), erigindo uma exegese não
meramente individualista na revelação do conteúdo que encerram
87
.
Tal contexto placita a existência de deveres fundamentais correlatos
aos direitos assegurados pelo regime democrático, o que nos remete à
idéia hegeliana acerca da conformação da liberdade natural (primeira
natureza) em liberdade mediata, ética, que pressupõe a existência de
deveres.
A eficácia da faceta objetiva dos direitos fundamentais pode ser
vista sob três aspectos
88
: dirige a ação estatal à concretização e à
realização dos direitos em voga (eficácia dirigente); irradia impulsos e
85
Que apenas noticiamos, com base em SARLET, ob. cit., p. 142/3, como corporificada na autonomia decisória
e de ação que eles alcançam ao indivíduo e simultaneamente retiram do Estado, mas não iremos tratar.
86
SARLET, ob. cit., p. 142
87
SARLET, p. 143
88
Idem, p. 141/149
295
diretrizes para a aplicação e interpretação do direito infraconstitucional
(eficácia irradiante), servindo como diretriz para (a) a extensão de seus
imperativos à esfera do direito privado – a chamada eficácia horizontal;
(b) a proteção de garantias constitucionais contra ação corrosiva do
legislador; (c) o reconhecimento de deveres de proteção do Estado contra
agressões aos direitos fundamentais perpetradas pelos poderes públicos,
pelos particulares e por outros Estados; (d) parametriza os direitos
organizacional e procedimental, evitando a redução pragmática do
conteúdo dos direitos fundamentais, pela inexistência de instrumentos
eficazes à competente defesa que exigem; vincula imediatamente os
poderes constituídos, obrigando-os a agir na efetivação dos direitos
fundamentais e a absterem-se de ingerências injustificadas no âmbito dos
preditos, que estão à margem de esfera de disponibilidade que lhes foi
concebida pelo Poder constituinte originário (eficácia vinculante)
89
.
Incursionando sobre a eficácia vinculante dos direitos fundamentais
em cada uma das esferas do poder, pesquisemos, num primeiro plano, a
questão no âmbito do poder Legislativo.
Consoante assevera Krüger, hodiernamente “não há mais falar em
direitos fundamentais na medida da lei, mas, sim, em leis apenas na
medida dos direitos fundamentais”.
90
Neste passo, a vinculação do legislador aos direitos fundamentais
significa “uma limitação material à sua liberdade de conformação no
âmbito de sua atividade regulamentadora e concretizadora.”
91
Tal enunciação nos remete ao estudo das determinantes autônomas
e heterônomas, consoante os ensinamentos de Canotilho, abordado
alhures, supra.
O conteúdo dos direitos fundamentais, pois, deve ser descortinado
numa interpretação tópico-sistemática
92
, realizada pela jurisdição
89
Idem, p. 323
90
apud SARLET, ob. cit., p. 324
91
SARLET, idem, p.324
92
FREITAS, Juarez. A Interpretação Sistemática do Direito. São Paulo: Malheiros, 2002
296
constitucional
93
, à luz das normas constitucionais que os consagram, não
podendo a legislação infraconstitucional pretender encapsulá-lo.
A vinculação do legislador aos direitos fundamentais pode ser vista,
então, sob dois prismas: num sentido negativo, pelo qual proíbe-se a
edição de leis contrárias a normas de direitos constitucionais;
positivamente, na acepção do que denomina a doutrina alemã como
deveres ativos de proteção, “que englobam um dever de aperfeiçoamento
da legislação existente, no sentido de conformá-la às exigências das
normas de direitos fundamentais”.
94
Neste diapasão, a eficácia em cotejo faz também eclodir a
inconstitucionalidade por omissão, pela não realização do dever imposto
pela dimensão objetiva dos direitos fundamentais, arrefecendo a
efetividade dos mesmos, o que deveria nortear o agir do legislador.
O alcance do efeito vinculante da faceta objetiva dos direitos
fundamentais atinge todos os atos normativos oriundos de entidades
públicas, sejam típicas, sejam as que exerçam o poder por delegação
estatal, e não apenas sobre a lei em sentido formal e material, bem como
conforma o agir do poder constituinte derivado, conforme artigo 60, § 4º,
IV, CF/88.
No tocante ao poder executivo, a eficácia vinculante significa que os
órgãos administrativos devem executar as leis de forma constitucional,
aplicando-as e interpretando-as em conformidade com os direitos
fundamentais
95
, amálgama tanto do agir das pessoas jurídicas de direito
público propriamente ditas, quanto dos entes da administração indireta,
as empresas privadas delegatárias ou concessionárias que, na relação
jurídica de base, atuem com privilégios e prerrogativas de autoridade
96
.
O liame entre os direitos fundamentais e os órgãos administrativos
exterioriza-se pelo dever de tomar decisões (poder discricionário) que
93
Não se abordará, aqui, a concepção de Peter Häberle acerca da ausência do monopólio jurisdicional da
interpretação constitucional, asseverando que a sociedade civil, porque inserida no contexto da norma, também
está legitimada a interpretá-la. Contudo, o tema já foi anunciado no item 3.6.2., supra.
94
SARLET, idem, p. 325
95
SARLET, ob. cit., p. 327
96
Idem, p. 327
297
acolham a tábua axiológica contida no Documento Maior, com especial
destaque aos comportamentos que envolvam a aplicação e interpretação
de conceitos abertos; deste dever decorre a esfera de sindicabilidade
judicial dos atos administrativos.
Questiona-se a possibilidade de controle de constitucionalidade de
atos legislativos pela Administração, o que é visto com reservas pela
doutrina nacional e alienígena, consoante traz a liça Sarlet, em sua obra
multirreferida
97
; a problemática remonta o conflito entre vinculação
simultânea da Administração ao princípio da legalidade e a sua
subordinação aos ditames constitucionais.
Sem adentrar no tema, que requer análise percuciente e específica,
esclarece o constitucionalista por diversas vezes mencionado, hipóteses
há que legitimam a pronta negativa de aplicação de uma lei, pela
Administração: a) quando da aplicação decorra a configuração de um
crime, mormente se resultar ofensa à vida ou à integridade pessoal; b)
quando o comando legislativo rechaçado contenha uma evidente ofensa
ao núcleo essencial dos direitos fundamentais, em especial quando
represente desrespeito à vida e à integridade física, caso em que a lei
pode ser tida por inexistente
98
.
Mesmo no caso dos direitos sociais prestacionais, geralmente
regulado por normas de eficácia contida, o que torna mais diáfano o grau
de vinculação, que é proporcional ao grau de densidade normativa, a
Administração deverá pautar-se, no exercício da discricionariedade, pelas
diretrizes materiais contidas na dimensão objetiva dos direitos
fundamentais
99
.
Os juízes e tribunais estão igualmente vinculados aos direitos
fundamentais, o que vem desnudado de forma direta pela influência
daqueles na pré-compreesão que deve guarnecer a organização das
atribuições dos órgãos judiciais e a forma e a razão e pela qual os
97
SARLET, 328
98
SARLET, p. 329
99
SARLET, p. 330
298
procedimentos judiciais são instituídos e desvelam-se
100
.
A funcionalidade da eficácia vinculante, nesta seara, transborda da
afetação imediata do Poder Judiciário
101
, para a atingir, por seus agentes,
o controle da constitucionalidade dos atos dos demais Poderes,
despontando o “poder-dever dos tribunais de não aplicar atos contrários à
Constituição, de modo especial os ofensivos aos direitos fundamentais”
102
,
estando, por isso, legitimados a declarar a inconstitucionalidade dos
mesmos.
Neste diapasão, pode-se afirmar que cabe ao Poder Judiciário definir
o conteúdo mínimo dos direitos fundamentais, para si e para os demais
órgãos do poder; a interpretação, neste escopo, deverá sempre trilhar o
caminho da maior eficácia possível dos direitos fundamentais, no âmbito
do sistema jurídico, consoante ensina Jorge Miranda,
103
o que inclui o
dever de suprimento das lacunas, para o que se deverá dar primazia ao
princípio da constitucionalidade.
No tocante ao controle de constitucionalidade por omissão, há que
se repisar que os direitos sociais prestacionais (telus predominante desta
anomalia) vêm em regra consagrados em normas de eficácia limitada
(não quanto ao núcleo essencial do direito, que tem eficácia imediata), de
molde que o grau de sindicabilidade judicial resta diminuído, mas não
suprimido: a dimensão jurídico-objetiva do cerne, que tem aplicabilidade
imediata, está a irradiar diretrizes para a interpretação da legislação
infraconstitucional e para o exame da proporcionalidade, inclusive no
âmbito da discricionariedade administrativa.
Feitas estas considerações, verifica-se que o Ministério Público,
enquanto Órgão-Agente da conformação do agir dos poderes constituídos
à concreção dos valores estampados no Documento Maior, vem somar-se
a esta estrutura de freios e contrapesos, estereotipando nuance de assaz
100
Como já se disse, os diretos fundamentais são a razão de ser dos Poderes constituídos, constituindo-se em
critérios de aferição de legitimidade de seu exercício
101
Os atos judiciais que afrontem direitos fundamentais poderão ser afastados pelo sucessivo controle judicial,
exercido em última instância, pelo Supremo Tribunal Federal.
102
SARLET, p. 331
103
Manual de Direito Constitucional. Volume IV. 2ª ed. Coimbra: Ed. Coimbra, 1993, p. 283-4
299
importância, porquanto, seja como Instituição, seja como Poder da
República, representa a feição ativa do movimento dialético, atuando
como garante da cidadania, aqui entendida como o direito de ter direitos
intangíveis
104
, não sob um espectro individualista, mas nos limites do bem
comum.
A intangibilidade do núcleo essencial dos direitos subjetivos
fundamentais e a eficácia objetiva destes direitos e seus desdobramentos
constituem terreno fértil à compenetração do substancial e do particular,
servem de mote às instâncias mediadoras e transparecem como diretrizes
ao diálogo dos direitos e deveres, forte na construção de uma sociedade
verdadeiramente justa, humana, solidária e quiçá, materialmente
soberana
105
.
Nesse passo, não é demasiado sublinhar, agora nas palavras do
eminente Des. Manoel Carpena Amorim
106
, a importância que a
efetividade dos direitos fundamentais do Homem ocupa neste cenário:
(...) 2.4 As velhas polêmicas sobre os fundamentos dos
Direitos Humanos, sobre se é possível identificar-lhes um único
fundamento ou se este fundamento estaria num Direito Natural ou
em circunstâncias históricas determinadas, parecem, se não
ultrapassadas, ociosas, ante a realidade de um importante e
crescente consenso internacional quanto ao seu reconhecimento e
proteção.
2.5 Consenso que se tomou patente com a aprovação, em
1948, da Declaração dos Direitos do Homem (...) lembra-nos
Bobbio - não só “pode ser acolhida como a maior prova histórica
até hoje dada do consensus omnium gentium sobre um
determinado sistema de valores”, mas ainda instaurou a
perspectiva de uma afirmação de direitos “ao mesmo tempo
universal e positiva”. “Positiva” - diz ele - “no sentido de que põe
em movimento um processo em cujo final os Direitos do Homem
DEVERÃO SER NÃO MAIS APENAS PROCLAMADOS OU APENAS
IDEALMENTE RECONHECIDOS, PORÉM EFETIVAMENTE
PROTEGIDOS ATÉ MESMO CONTRA O ESTADO QUE OS TENHA
VIOLADO. AO FINAL DESTE PROCESSO, OS DIREITOS DO HOMEM
“SERÃO OS DIREITOS DO CIDADÃO DAQUELA CIDADE QUE NÃO
104
FREITAS, Juarez, Prefácio da obra de SARLET multicitada neste ensaio, p. 18
105
Neste ponto, poder-se-ia abrir nova hipótese investigativa do problema, pontuando a soberania como critério
de onicompetência do Estado Moderno, com espaço para a visualização da idéia de soberania à luz das
concepções de Rousseau e Bodin e uma abordagem do inacesso material à jurisdição como concausa à crise da
soberania nacional, num diálogo com Habermas e Toquenville, mas esta não é a proposta deste estudo, ficando
apenas o registro da possibilidade de tal (e futuro) encaminhamento do problema.
106
Diretor-Geral da Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro.
300
TEM FRONTEIRAS, PORQUE COMPREENDE TODA A
HUMANIDADE.
107108
O Ministério Público, enquanto substituto dos titulares do poder, é
agente desta transformação, funcionando como indelével catalisador deste
processo dialético, posto que tem a prerrogativa de por ignição a
discussões relevantes acerca do malferimento da faceta objetiva
multicitada, quer pelos mandatários dos Poderes da República, quer pelos
particulares, quer por outros Estados, viabilizando o aprimoramento
sistêmico das eficácias dirigente, irradiante e vinculante que encerra,
facilitando a colmatação de lacunas, a construção do conteúdo mínimo dos
direitos fundamentais, que a todos vincula e que circunscreve a esfera do
razoável no exercício dos poderes do Estado, servindo como critério de
aferição de sua legitimidade.
Neste diapasão, a conformação legislativa ou jurídica do núcleo
essencial de qualquer direito fundamental deve ser orientada pela
efetividade da dignidade da pessoa humana, critério unívoco de
legitimação, dever-ser que imanta o norte do contingente, enquanto
estágio do movimento contínuo de aproximação da racionalidade, dando
vida ao Estado democrático de direito, enquanto idealidade ética a ser
perseguida.
Não se olvida, neste contexto, a natureza jurídica da coisa julgada
como abstração à finitude da dicção estatal; ciências precisam de método
e resultado. Contudo, a concretização de que se trata é mais altiva,
transcendente ao objeto posto em causa, ao qual se agrega
indiscutibilidade, em respeito ao devido processo legal, garantia das
liberdades democráticas. No viés que se trata, a construção do justo e
não do meramente lícito, a força da jurisprudência é monológica, mas
interlocuciona com as vozes ativas do pluralismo político que garantem
as sucessivas mediações sociais, alimentando novas revelações da
vontade geral – sempre sob a bússola do ápice axiológico da dignidade
107
grifou-se.
108
Os Direitos Humanos à Vida e à Liberdade e Suas Garantias Constitucionais no Brasil, Revista da
ESMESC, ano 4, vol. 4, p. 93/111:94/5.
301
humana --, que passarão a integrar novos julgados, num processo de
circularidade entre essência e aparência, uma evolução que não se
compraz com o retrocesso.
Atuando como autor ideológico
109
por excelência, estará o Ministério
Público a garantir a consciência da liberdade que fundamenta e fornece
lastro para a Constituição formal, propiciando a defesa do espírito do povo
brasileiro que fez ascender a nossa história a padrões ainda neófitos, foco
na melhor aproximação possível com o Estado idealizado.
Nem se diga que tal fisionomia estaria a placitar a menoridade da
cidadania
110
ativa; a atuação ministerial não é paternalista. A sociedade
civil brasileira carece de organização suficiente às sucessivas mediações
da vontade livre, sendo inimaginável conceber que os milhões de
excluídos deste País possam lutar efetivamente por seus direitos
ultrajados massivamente, vez que expostos às mais diferentes vicissitudes
que os agridem em sua dignidade. A atuação ministerial na defesa
imediata da dimensão jurídico-objetiva dos direitos fundamentais, em
quaisquer de suas conformações subjetivas, mas no caso específico deste
estudo, a tutela coletiva dos individuais homogêneos, permite o acesso
material à jurisdição, que se espera racional, equânime, justa, eficiente:
reverberação da idealidade ética.
Em reforço, mas sem tautologia: o Ministério Público, porque
guardião da democracia, dever-se-á legitimar agindo em prol da
realização da substancialidade ética do Estado, cunhando, conjuntamente
com os demais atores sociais, espaço para o pleno exercício da vontade
109
Repisa-se, como visto, que a locução guarda pertinência com a nomenclatura corrente das ações coletivas
(ideological plaintiff), no sentido de não estar o extraordinariamente legitimado defendendo em juízo,
principalmente, o seu próprio interesse, mas o do grupo ou da classe à qual está vinculado. Contudo, no caso
do Ministério Público, sob o enfoque que se pretende demonstrar, não defende sequer principalmente o
interesse do grupo diretamente afetado, posto que sua ação tem mira no interesse transcendente que os guarnece
e legitima e que por óbvio exorbita das idiossincrasias dos fragmentos sociais. Assim, não há defesa ideológica
de grupos definidos, mas a defesa coletiva da ideologia difusamente amalgmada na sociedade brasileira
enquanto substrato comum da consciência coletiva, explicitada pelo vetor axiológico da dignidade da pessoa
humana e o seu diálogo com os demais princípios político-constitucionais.
110
Renova-se: aqui o termo não é utilizado em sentido restrito ( como relativo aos nacionais em pleno exercício
dos direitos políticos), mas numa acepção ampliada, sem adstrição ao rigor técnico, para englobar aqueles que
aspiram a cidadania, não na sua significação fechada, mas como o “direito de ter direitos intangíveis”, na feliz
elaboração do eminente Prof. Juarez Freitas, fonte já revelada ao longo do texto.
302
mediada, sem interferências estatais iníquas, bem como da igualdade
substancial, exigindo prestacionamentos estatais que estejam conforme a
tábua axiológica que lastreia a Carta Constitucional de 1988
111
.
A dignidade da pessoa humana representa o núcleo essencial das
liberdades negativas e positivas e, ao mesmo tempo, o princípio
normativo para a limitação das liberdades. É o princípio, o meio e o fim do
Estado democrático de direito, segundo o Espírito do povo
112
brasileiro.
O Ministério Público é o ator por excelência da busca incessante da
circularidade entre o pensado e o real, é o paladino público que provoca
o Estado como última instância mediadora da vontade livre, mas não
numa visão estática, finita, mas num processo histórico, fulcrado num
111
Relembra-se que houve, no que toca à fundamentação ética, opção expressa pela restrição da abordagem à
vinculação dos poderes públicos à eficácia dos direitos fundamentais, o queo significa de maneira alguma que
a vinculação dos particulares tenha sido ignorada; apenas finalizou-se estabelecer um foco, facilitando a
construção do raciocínio
112
reiteramos a densificação do conceito de povo, à luz do ideário hegeliano, como comunidade ética que se
submete ao movimento dialético histórico infinito. Neste contexto, não se circunscreve aos titulares da
soberania do Estado, mas a todos aqueles que componham a sua compleição histórica. Sob este viés, todos os
membros da comunidade, politicamente organizada em estamentos, onde dar-se-ão as sucessivas mediações da
vontade, são sujeitos de direitos e deveres e, portanto, credores das mesmas a ações estatais e comunitárias para
a sua implementação, proteção e promoção. Tal contexto nos remete à diferenciação, em Hegel, entre vulgus e
populus, conforme traz à liça Bobbio, ob. cit., p. 99: “ (....) o Estado de Hegel não é um estado de indivíduos,
mas um Estado estamental. (...) Basta recordar uma passagem famosa da Encyklopädie: “o agregado de
indivíduos privados costuma muitas vezes ser chamado de povo, mas considerado tal agregado com tal, tem-se
vulgus, não populus; sob este aspecto, o único escopo do Estado é que um povo não venha à existência, ao
poder e à ação, enquanto for agregado”, mas, precisamente, quando estiver articulado em estamentos, que são
os “momentos orgânicos” da sociedade civil.”
303
movimento contínuo da revelação da vontade geral
113
, da idéia
reguladora da liberdade e, por conseguinte e antecedentemente, do valor-
fonte que lhe é subjacente.
113
Reporta-se o leitor à explicitação semântica da locução ora empregada, o que foi procedido no início deste
capítulo
304
CONCLUSÃO
A forma pela qual a legitimidade ministerial para a defesa dos
direitos individuais homogêneos foi abordada no presente ensaio, mais
que mera idiossincrasia, procura, sem qualquer pretensão de formar
escol, questionar o ponto de encontro das correntes doutrinário-
jurisprudenciais que, de um lado negam, de outro admitem, mas
restritamente, esteja o Ministério Público legitimado.
A legitimidade ministerial para a defesa dos interesses individuais
homogêneos é mediata, e não imediata, como sinaliza o entendimento
majoritário.
A afirmação põe a questão num molde que, s.m.j., desfalece, no
desabrochar, as hoje renitentes críticas que, no ápice, preconizam o
Órgão Ministerial como usurpador de competências.
A assertiva tem por sucedâneo o fenômeno da bidimensionalidade
dos direitos fundamentais.
O Ministério Público, enquanto guardião do Estado democrático de
direito, labuta, imediatamente, pela proteção da dimensão jurídico-
objetiva dos direitos fundamentais, que contempla de um agir ou de um
abster dirigido aos Poderes Públicos e aos serviços de relevância pública,
em prol da sua efetividade, sem menoscabo da eficácia horizontal que
atinge os particulares.
Contudo, porque os direitos fundamentais não prescindem da sua
dimensão subjetiva -- o Homem-indivíduo ou o Homem-grupo --- a
305
atuação ministerial a atingirá, também, reflexa e mediatamente,
incidindo o patrocínio, sempre indireto, dos interesses individuais
homogêneos e/ou dos essencialmente coletivos, enquanto amostragem
dos efeitos concretos que o agir, quando proibido, e/ou o abster,
marcaram na perspectiva jurídico-positiva.
Nesse norte, o agir ministerial estará sempre voltado para a
defesa do interesse, subjetivamente difuso, que impõe o respeito aos
primados do Estado democrático de direito, só atingido pela efetividade
dos Direitos Fundamentais.
Diante desta fisionomia, os argumentos encapsulares, fulcrados na
disponibilidade e na divisibilidade dos direitos subjetivos, despontam
equivocados, data maxima venia, por procurar na perspectiva subjetiva
dos direitos fundamentais a fonte da legitimidade que tem telus no
interesse social inerente à protão da dimensão objetiva e seus efeitos
jurídicos autônomos e transcendentes. É nela que se encontrarão as
respostas.
A legitimidade ministerial, nesta instância, decorre do próprio
sistema constitucional que identifica o Órgão como guardião da
democracia substancial, assentada pelos princípios político-
constitucionais inscritos pelo Poder Constituinte Originário (artigo 127,
caput, em combinação com o 1º, da Magna Carta de 1988).
Dest’arte, o Ministério Público não defende interesses de grupos
de indivíduos, mas finaliza, numa visão mais altiva, proteger o
interesse de todos em ver os poderes constituídos agirem conforme as
determinações do Poder Constituinte, par e passo à vinculação mediata
dos particulares aos direitos fundamentais.
O mais são reflexos, inevitáveis, decorrentes da indissociabilidade
das dimensões dos direitos fundamentais. As rotulações impedem,
muitas vezes, a visualização do conteúdo.
A Ação Civil Pública, hoje --- porque redimensionada pela
306
constatação do equívoco que a dirigiu, inicialmente, a um universo
estanque de hipóteses de incidência --- serve à proteção de qualquer
interesse difuso ou coletivo, ex vi do artigo 1º, IV, da Lei de regência.
Consoante se pretendeu demonstrar no curso deste ensaio, a
atuação ministerial, enquanto guardião do Estado democrático de
direito, fulcra-se na defesa do interesse difuso do povo (genuínos
titulares do Poder Estatal) em ver concretizados os primados por ele
inseridos no Documento Fundamental.
Dessarte, inobstante e apesar da inevitável inter-relação que esse
assuma com o interesse subjetivo de um grupo acidental de indivíduos
ou de indivíduos organizados em grupos --- que, por fas ou nefas,
figuram como grupo-amostragem da infringência aos postulados da
democracia substancial, --- é aquele (o interesse difuso), e não este (o
interesse subjetivo), o fim, a meta, a razão de ser do agir do Órgão.
Assim, em exaustão, o que verdadeiramente move o Órgão
Ministerial é o interesse do povo, o interesse social previsto no caput
do artigo 127 do Documento Maior, enquanto tal e para a finalidade
supra; não, como querem fazer crer muitos, o inverso.
Nesta linha, o instrumento é perfeito.
Importante registrar, ainda, nos prelúdios das teorizações acerca
da Lei da Ação Civil Pública, afirmara Galeno Lacerda, depois de se
reportar ao ideário de Ada Grinover, acerca do projeto de sua lavra
1
,
seria o Ministério Público inadequado para assumir a legitimidade para a
defesa exclusiva
2
dos interesses difusos, não fosse pela sua inadequação
em defender interesses de grupos, nem pela sua estreita ligação com o
1
que restou vencido pelo apresentado pelo Ministério Público de São Paulo.
2
conforme cogitado por Ada, na seguinte passagem , colacionada por Galeno no bojo de sua Conferência:“(...)
‘As alternativas de legitimação para agir na tutela jurisdicional dos interesses difusos são as seguintes:
atribuir a legitimação a todos os membros da coletividade separadamente, ( nesse projeto que eu vou
apresentar, embora saiba das grandes restrições, eu ouso estender a ação popular também a todas as pessoas):
atribuí-la exclusivamente aos representantes de grupos e associações(...); atribuí-la ao Ministério Público
exclusivamente.(...)’. Revista do MP/RS, Ed. Especial, 1886, p. 18.
307
Executivo
3
, pela sua “falta de especialização em campos tão pouco
tradicionais”.
No que concerne ao primeiro enfoque, sua superação decore do
pluralismo político que acerca a questão, sendo o Ministério Público um
dos co-legitimados a agir, muito embora não se negue, como foi aludido
ao longo do trabalho que, ao contrário dos seus concorrentes, a
legitimação ministerial é in re ipsa adequada, presunção que só pode ser
afastada tópico-sistematicamente, à luz dos vetores vertidos no exame
da sindicabilidade, objeto do controle jurisdicional manejado no fecho do
terceiro capítulo.
Neste âmbito, seara do atuar ministerial, não há que se falar em
defesa de interesses de grupos, enquanto tal considerados. E,
buscando-se o centro do tema estudado, na defesa do Estado
democrático de direito, o interesse, além de não se restringir a grupos,
pertence todos.
No que respeita à estreita ligação que este agir possa manter com
os interesses singulares ou com os dos singulares em grupos, já se
anotou, inúmeras vezes neste trabalho, não influencia a tal ponto a
fisionomia do agire, porque este se mantém reto, sempre atento ao
interesse supravalente e continente àqueles, consoante se estudou.
A legitimação ministerial de que se trata, em objetivando a
proteção imediata da dimensão objetiva dos direitos fundamentais e
mediata da perspectiva subjetiva, guarda sintonia com a dimensão
cultural da dignidade da pessoa humana, em sua dúplice significação. O
Ministério Público age para a defesa do limite inalienável e irrenunciável
da dignitas frente a ingerências ou omissões iníquas, superando as
barreiras sócio-culturais que a fariam sucumbir às vicissitudes
individuais e, simultaneamente, cumpre a tarefa imposta a si e aos
3
veja-se que, à época --- 1985 --- o Ministério Público não tinha a fisionomia que tem hoje.
308
poderes do Estado de guiarem suas ações à efetividade do valor-fonte,
à viabilização do seu pleno exercício, implantando condutas concretas e
prospectivas orientadas por e para este escopo.
Outrossim, a legitimatio ad causam em revista verbaliza a defesa
do direito à vida condigna não como titularidade do ser humano de per
se considerado, mas como inserido numa comunidade ética em cada
um de seus membros vê a sua dignidade no outro e simultaneamente
em todos, de molde que o ultraje a cada um de seus pares projeta
reverberações na universalidade. Nesta quadra, a solidariedade, a
fraternidade, enquanto direitos fundamentais de terceira dimensão ou
geração, estão em última instância sendo defendidos em juízo quando
qualquer dos atores sociais –- e não poderia ser diferente em relação ao
paladino público por excelência -- reclama a proteção aos direitos
fundamentais, sustentáculo do Estado democrático e social de direito,
que tem na dignidade da pessoa humana o seu ápice axiológico-
normativo, tal qual o aspira a sociedade brasileira.
Neste diapasão, esta titularidade difusa, inerente aos direitos de
terceira geração, encontra-se superada e guardada na dimensão
jurídico-positiva dos direitos fundamentais de primeira e segunda
dimensões e, nesta perspectiva e por esta razão, é transcendente ao
interesse ou à repercussão individual, produzindo efeitos jurídicos
autônomos.
Quanto ao segundo óbice apontado pelo ilustre Professor, o
argumento envelheceu, tendo em vista a nova realidade constitucional
que acerca a Instituição, que a põe na berlinda com um perfil de aguda
crítica aos poderes constituídos, mormente ao Executivo. Tal atitude
inclusive semeou a cultura da mordaça e da pretensa limitação do
espectro de atuação, sob o apanágio do abuso, que deve ser
evidentemente combatido, mas não em prejuízo da cidadania, com a
restrição dos meios que são colocados à disposição da conformação
309
jurídica dos direitos fundamentais, notadamente os seus núcleos
essenciais.
No pertinente à ultima preocupação do respeitado doutrinador,
foi brilhantemente minorada porrgio Gilberto Porto, no contexto da
própria Conferência
4
. Ademais, a realidade hodierna demonstra
exatamente o contrário, porque a especialização funcional do Órgão-
Agente é uma constante em sua evolução histórica desde os albores da
Magna Carta de 1988. Tal circunstância, expressamente reconhecida por
Cappelletti – como visto nos tópicos de direito comparado -, apartou das
suas considerações de repúdio à legitimidade ministerial para a defesa
coletiva, a Instituição brasileira, porque altiva e racionalmente voltada
para a consecução das tarefas que lhe foram acometidas pela vontade
geral estampada no Documento Maior.
Diante deste contexto, quadra referir que a postura do Estado-
Juiz, no exercício do controle da legitimidade ministerial nesta seara,
deve ser responsável e adequada aos ditames constitucionais e à idéia
reguladora que lhe subjaz. Afinal, racionalizar o acesso à jurisdição é
tarefa acometida ao Poder Judiciário, não exclusiva, mas
precipuamente. Lapidar esta nova fisionomia obviará nova demanda
pela efetividade, cujo descompasso não mais poderá ser explicado sob o
apanágio do crescimento geométrico das demandas. Agir neste escopo
assegurará a conquista da maioridade no cenário democrático, pelo
cônscio exercício da responsabilidade social e política exigidas pela
4
“(...)O segundo registro que eu gostaria de fazer diz respeito à lição, ou a doutrina, trazida aqui, neste noite,
da doutora Ada Pelegrini Grinover, quando refere, vamos dizer assim, a inadequação do Ministério Público
para patrocinar, quem sabe com exclusividade, estas ações civis públicas agora instituídas para a tutela dos
chamados interesses difusos. Eu penso que a origem desta colocação da professora Ada esteja nas lições do
professor Mauro Cappelletti, que também se refere ao Ministério Público desta forma. (...) No entanto, o
professor Mauro Cappelletti, que me parece a fonte da professora Ada e que, nas suas manifestações, leva por
base esse estudo de Vogoritti, ele, no ano passado, quando esteve aqui, ao fazer a sua conferência sobre a
tutela dos interesses difusos, não sei se por cortesia, a verdade é que ele excepcionou o seu posicionamento
com relação ao Ministério Público brasileiro. E nessa conferência do professor Cappelletti, onde ele exclui
dessas suas considerações com base nos estudos de Vigoritti a posição do Ministério Público brasileiro, ele
diferencia o Ministério Público brasileiro, em especial o gaúcho, do italiano. Então, ele reconsidera, de certa
310
investidura; a participação maiúscula deste Poder na conformação dos
direitos fundamentais, para o que devem ser justicializados formal e
materialmente, conduzirá à superação da crise hoje assentada no
descrédito.
Importante pontuar que a posição conservadora hoje reinante em
nossos Pretórios – no que concerne à legitimatio de que se trata – se
me entremostra mais preocupante que a própria relativização da coisa
julgada, que tem sido admitida com reservas, somente em situações
excepcionalíssimas
5
.
Ao prestigiar as iniciativas de minoração despudorada do espectro
da legitimidade ministerial, internalizadas pelas segunda e quarta ondas
de relativização da garantia constitucional (artigo 16 e artigo 1º,
parágrafo 1º da LACP), verbalizadas por lei em sentido formal-material e
por ato quase-legislativo, respectivamente, o Estado-Juiz está a impedir
a discussão de fundo, inibindo a formação da coisa julgada em
contrariedade com a Constituição e com a idéia reguladora que lhe é
antecedente, arrefecendo a pacificação racional da ordem social, a que
serve a ordem jurídica.
Atentando-se para a racionalidade da tutela coletiva, a
vulgarização da ilegitimidade ministerial na seara dos individuais
homogêneos, espécie mais corriqueira de transindividualidade (ainda
que instrumental), conforma franco e ordinário descumprimento do
dever de proteção dos direitos fundamentais, mitiga a garantia da
justicialidade, pois diminui o alcance da concreção jurídico-criativa e,
por conseqüência, do Estado jurisdicional.
Nesta feita, a legitimidade ministerial para a defesa coletiva
mediata dos individuais homogêneos guarda íntima e indissociável
relação com a justiciabilidade dos direitos fundamentais; seu
forma, esse seu ponto de vista. (...)”. Revista do MP/RS, Ed. Especial, 1886, p. 26
5
sem olvidar que, na doutrina, já há escol pela larga utilização do fenômeno.
311
arrefecimento macula a implementação do Estado democrático e social
de direito, arranha a cidadania como “direito a ter direitos intangíveis”
6
e a própria soberania popular.
Por isso, é cláusula pétrea implícita, decorrente da combinação do
artigo 60, parágrafo 4º, II e IV e do artigo 5º, parágrafos 1º e 2º, da
Magna Carta.
Não se olvida que o ideário hegeliano, que serviu como referencial
teórico para a sinalização da fundamentação filosófica da legitimatio de
que se trata, tem por pano de fundo uma sociedade civil que respira a
cultura do associativismo.
A sociedade brasileira, ao revés, está em processo de organização
ainda incipiente, marcado pelas grandes discrepâncias sócio-econômico-
culturais vívidas em seu território continental, que congrega milhões de
excluídos, desassistidos em suas mais elementares necessidades, os
quais imprescindem da atuação do paladino público para acessar a
jurisdição e ver coloridos de efetividade os seus direitos fundamentais.
A questão é mais aguda na seara dos direitos individuais que, por
questões acidentais, coletivizam-se apenas e tão somente para o
escopo da tutela racional. É inerente a tal acidente a ausência de
organização social prévia à eleição de um articulador do grupo, gerando
a apatia da defesa coletiva e o recorrente abandono da defesa
individual da dimensão subjetiva dos direitos fundamentais em causa,
numa ótica da relação custo-benefício, placitando por via reversa a
desproteção à dimensão objetiva destes mesmos direitos, lesados
homogeneamente, o que não se pode admitir sob o pálio de um Estado
que tem a democracia fundamental, fulcrada na dignidade para pessoa
humana, como dever-ser.
A eleição foi, pois, proposital: uma autêntica opção dialética.
6
Dicção de Juarez Freitas, passagem já mencionada no texto.
312
Partindo-se da realidade alemã como tese e da brasileira como antítese,
procura-se demonstrar que a legitimidade ministerial é necessária --
mas não excludente a dos demais co-legitimados -- à transposição das
barreiras do acesso à jurisdição, norte na conformação da democracia
substancial.
Em alegoria, a tutela coletiva dos individuais homogêneos pelo
Ministério Público funciona como uma lanterna na escuridão, é
pedagógica: abre caminho para que o pluralismo político possa
avançar na mesma senda, fazendo com que no futuro, com a conquista
paulatina da idéia fundamental da liberdade, a própria sociedade
competentemente organizada, e até mesmo por apenas um dos seus
integrantes, num exemplo da excelência da filosofia da identidade,
possa reivindicar a proteção de seus mais caros valores, abrindo mão da
tutoria da cidadania
7
, hoje sob o encargo – de forma alguma exclusivo,
mas incisivo -- do Órgão-Agente, por inscrição constitucional.
Postas estas questões, espera-se que este ensaio, de forma ou
outra, contribua para o debate desta intrincada temática da legitimidade
ministerial para a defesa dos interesses individuais homogêneos.
7
Em sua acepção alargada, como “direito de ter direitos intangíveis” (Juarez Freitas), fonte já mencionada no
corpo do trabalho
313
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323
ANEXOS
324
ANEXO A - PROJETO DE CÓDIGO MODELO DE PROCESSOS COLETIVOS
PARA IBERO-AMÉRICA
325
INSTITUTO IBERO-AMERICANO DE DIREITO PROCESSUAL
INSTITUTO IBEROAMERICANO DE DERECHO PROCESAL
PROJETO DE CÓDIGO MODELO DE PROCESSOS COLETIVOS PARA IBERO-
AMÉRICA
Aprovado pela Comissão de Revisão:- Ada Pellegrini Grinover;Aluisio Gonçalves de
Castro Mendes; Anibal Quiroga León; Antonio Gidi; Enrique M. Falcon; José Luiz
Vázquez Sotelo; Kazuo Watanabe; Ramiro Bejarano Guzmán; Roberto Berizonce; Sergio
Artavia.
Revisão da Redação: Angel Landoni Sosa
Capítulo I – Disposições gerais
Art 1o. Cabimento da ação coletiva - A ação coletiva será exercida para a tutela de:
I - interesses ou direitos difusos, assim entendidos os transindividuais, de natureza
indivisível, de que seja titular um grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas por
circunstâncias de fato ou vinculadas, entre si ou com a parte contrária, por uma relação
jurídica base;
II - interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendido o conjunto de direitos
subjetivos individuais, decorrentes de origem comum, de que sejam titulares os membros
de um grupo, categoria ou classe.
Art 2o. Requisitos da ação coletiva - São requisitos da demanda coletiva:
I – a adequada representatividade do legitimado;
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II – a relevância social da tutela coletiva, caracterizada pela natureza do bem jurídico, pelas
características da lesão ou pelo elevado número de pessoas atingidas.
Par. 1o. Para a tutela dos interesses ou direitos individuais homogêneos, além dos requisitos
indicados nos n. I e II deste artigo, é também necessária a aferição da predominância das
questões comuns sobre as individuais e da utilidade da tutela coletiva no caso concreto.
Par.2o. Na análise da representatividade adequada o juiz deverá analisar dados como:
a – a credibilidade, capacidade, prestígio e experiência do legitimado;
b – seu histórico na proteção judicial e extrajudicial dos interesses ou direitos dos membros
do grupo, categoria ou classe;
c – sua conduta em outros processos coletivos;
(suprimir: d – sua capacidade financeira para a condução do processo coletivo;)
d – a coincidência entre os interesses dos membros do grupo, categoria ou classe e o objeto
da demanda;
e – o tempo de instituição da associação e a representatividade desta ou da pessoa física
perante o grupo, categoria ou classe.
Par. 3o – O juiz analisará a existência do requisito da representatividade adequada a
qualquer tempo e em qualquer grau do procedimento, aplicando, se for o caso, o disposto
no parágrafo 4o do artigo 3o.
Art. 3o. Legitimação ativa. São legitimados concorrentemente à ação coletiva:
I – qualquer pessoa física, para a defesa dos interesses ou direitos difusos de que seja titular
um grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas por circunstâncias de fato;
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II – o membro do grupo, categoria ou classe, para a defesa dos interesses ou direitos difusos
de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte
contrária por uma relação jurídica base e para a defesa de interesses ou direitos individuais
homogêneos;
III - o Ministério Público, o Defensor do Povo e a Defensoria Pública;
IV – as pessoas jurídicas de direito público interno;
V - as entidades e órgãos da Administração Pública, direta ou indireta, ainda
que sem personalidade jurídica, especificamente destinados à defesa dos
interesses e direitos protegidos por este código;
VI – as entidades sindicais, para a defesa dos interesses e direitos da categoria;
VII - as associações legalmente constituídas há pelo menos um ano e que incluam entre
seus fins institucionais a defesa dos interesses e direitos protegidos neste código,
dispensada a autorização assemblear.
VIII - os partidos políticos, para a defesa de direitos e interesses ligados a seus fins
institucionais.
Par. 1°. O requisito da pré-constituição pode ser dispensado pelo juiz, quando haja
manifesto interesse social evidenciado pela dimensão ou característica do dano, ou pela
relevância do bem jurídico a ser protegido.
Par. 2o. Será admitido o litisconsórcio facultativo entre os legitimados.
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Par. 3o. Em caso de relevante interesse social, o Ministério Público, se não ajuizar a ação
ou não intervier no processo como parte, atuará obrigatoriamente como fiscal da lei.
Par.4o. Em caso de inexistência do requisito da representatividade adequada, de desistência
infundada ou abandono da ação por pessoa física, entidade sindical ou associação
legitimada, o juiz notificará o Ministério Público e, na medida do possível, outros
legitimados adequados para o caso a fim de que assumam, querendo, a titularidade da ação.
Par.5o. O Ministério Público e os órgãos públicos legitimados poderão tomar dos
interessados compromisso administrativo de ajustamento de sua conduta às exigências
legais, mediante cominações, que terá eficácia de título executivo extrajudicial.
Capítulo II – Dos provimentos jurisdicionais
Art. 4o. Efetividade da tutela jurisdicional - Para a defesa dos direitos e interesses
protegidos por este código são admissíveis todas as espécies de ações capazes de propiciar
sua adequada e efetiva tutela.
Art. 5o. Tutela jurisdicional antecipada - O juiz poderá, a requerimento da parte, antecipar,
total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, desde que, com base
em prova consistente, se convença da verossimilhança da alegação e
I - haja fundado receio de ineficácia do provimento final ou
II – fique caracterizado o abuso de direito de defesa ou manifesto propósito protelatório do
demandado.
Par. 1o. Não se concederá a antecipação da tutela se houver perigo de irreversibilidade do
provimento antecipado, a menos que, num juízo de ponderação dos valores em jogo, a
denegação da medida signifique sacrifício irrazoável de bem jurídico relevante.
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Par. 2o. Na decisão que antecipar a tutela, o juiz indicará, de modo claro e preciso, as
razões de seu convencimento.
Par. 3o. A tutela antecipada poderá ser revogada ou modificada a qualquer tempo, em
decisão fundamentada.
Par. 4o. Se não houver controvérsia quanto à parte antecipada na decisão liminar, após a
oportunidade de contraditório esta se tornará definitiva e fará coisa julgada, prosseguindo o
processo, se for o caso, para julgamento dos demais pontos ou questões postos na demanda.
Art. 6o. Obrigações de fazer e não fazer - Na ação que tenha por objeto o cumprimento da
obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou
determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do
adimplemento.
Par. 1°. O juiz poderá, na hipótese de antecipação de tutela ou na sentença, impor multa
diária ao demandado, independentemente de pedido do autor, se for suficiente ou
compatível com a obrigação, fixando prazo razoável para o cumprimento do preceito.
Par. 2o. O juiz poderá, de ofício, modificar o valor ou a periodicidade da multa, caso
verifique que se tornou insuficiente ou excessiva.
Par. 3°. Para a tutela específica ou para a obtenção do resultado prático equivalente, poderá
o juiz determinar as medidas necessárias, tais como busca e apreensão, remoção de coisas e
pessoas, desfazimento de obra, impedimento de atividade nociva, além de requisição de
força policial.
Par. 4°. A conversão da obrigação em perdas e danos somente será admissível se por elas
optar o autor ou se impossível a tutela específica ou a obtenção do resultado prático
correspondente.
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Par. 5°. A indenização por perdas e danos se fará sem prejuízo da multa.
Art. 7o. Obrigações de dar - Na ação que tenha por objeto a obrigação de entregar coisa,
determinada ou indeterminada, aplicam-se, no que couber, as disposições do artigo anterior.
Art. 8o . Ação indenizatória - Na ação condenatória à reparação dos danos provocados ao
bem indivisivelmente considerado, a indenização reverterá ao Fundo dos Direitos Difusos e
Individuais Homogêneos, administrado por um Conselho Gestor governamental, de que
participarão necessariamente membros do Ministério Público, juízes e representantes da
comunidade, sendo seus recursos destinados à reconstituição dos bens lesados ou, não
sendo possível, à realização de atividades tendentes a minimizar a lesão ou a evitar que se
repita, dentre outras que beneficiem o bem jurídico prejudicado.
Par. 1o . O Fundo será notificado da propositura de toda ação coletiva e sobre as decisões
mais importantes do processo e poderá intervir nos processos coletivos em qualquer tempo
e grau de jurisdição para demonstrar a inadequação do representante ou auxiliá-lo na tutela
dos interesses ou direitos do grupo, categoria ou classe;
Par. 2o. O Fundo manterá registros que especifiquem a origem e a destinação dos recursos
e indicará a variedade dos bens jurídicos a serem tutelados e seu âmbito regional;
Par.3o . Dependendo da especificidade do bem jurídico afetado, da extensão territorial
abrangida e de outras circunstâncias consideradas relevantes, o juiz poderá especificar, em
decisão fundamentada, a destinação da indenização e as providências a serem tomadas para
a reconstituição dos bens lesados, podendo indicar a realização de atividades tendentes a
minimizar a lesão ou a evitar que se repita, dentre outras que beneficiem o bem jurídico
prejudicado;
Par. 4o. A decisão que especificar a destinação da indenização indicará, de modo claro e
preciso, as medidas a serem tomadas pelo Conselho Gestor do Fundo, bem como um prazo
razoável para que tais medidas sejam concretizadas;
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Par. 5o. Vencido o prazo fixado pelo juiz, o Conselho Gestor do Fundo apresentará
relatório das atividades realizadas, facultada, conforme o caso, a solicitação de sua
prorrogação, para complementar as medidas determinadas na decisão judicial.
.
Capítulo III – Dos processos coletivos em geral
Art. 9o . Competência territorial - É competente para a causa o foro:
I – do lugar onde ocorreu ou deva ocorrer o dano, quando de âmbito local;
II – da Capital, para os danos de âmbito regional ou nacional, aplicando-se as regras
pertinentes de organização judiciária.
Art. 10. Pedido e causa de pedir - Nas ações coletivas, o pedido e a causa de pedir serão
interpretados extensivamente.
Par. 1o. Ouvidas as partes, o juiz permitirá a emenda da inicial para alterar ou ampliar o
objeto da demanda ou a causa de pedir.
Par. 2o. O juiz permitirá a alteração do objeto do processo a qualquer tempo e em qualquer
grau de jurisdição, desde que seja realizada de boa-fé, não represente prejuízo injustificado
para a parte contrária e o contraditório seja preservado.
Art. 11. Audiência preliminar - Encerrada a fase postulatória, o juiz designará audiência
preliminar, à qual comparecerão as partes ou seus procuradores, habilitados a transigir.
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Par.1o. O juiz ouvirá as partes sobre os motivos e fundamentos da demanda e tentará a
conciliação, sem prejuízo de sugerir outras formas adequadas de solução do conflito, como
a mediação, a arbitragem e a avaliação neutra de terceiro.
Par. 2o - A avaliação neutra de terceiro, obtida no prazo fixado pelo juiz, é sigilosa,
inclusive para este, e não vinculante para as partes, sendo sua finalidade exclusiva a de
orientá-las na tentativa de composição amigável do conflito.
Par.3o. Preservada a indisponibilidade do bem jurídico coletivo, as partes poderão transigir
sobre o modo de cumprimento da obrigação.
Par. 4o. Obtida a transação, será homologada por sentença, que constituirá título executivo
judicial.
Par. 5o. Não obtida a conciliação, sendo ela parcial, ou quando, por qualquer motivo, não
for adotado outro meio de solução do conflito, o juiz, fundamentadamente:
I – decidirá se a ação tem condições de prosseguir na forma coletiva;
II - poderá separar os pedidos em ações coletivas distintas, voltadas à tutela,
respectivamente, dos interesses ou direitos difusos e individuais homogêneos, desde que a
separação represente economia processual ou facilite a condução do processo;
III - fixará os pontos controvertidos, decidirá as questões processuais pendentes e
determinará as provas a serem produzidas, designando audiência de instrução e julgamento,
se for o caso;
IV – esclarecerá os encargos das partes quanto à distribuição do ônus da prova, de acordo
com o disposto no parágrafo 1o do artigo 12.
Art. 12. Provas - São admissíveis em juízo todos os meios de prova, desde que obtidos por
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meios lícitos, incluindo a prova estatística ou por amostragem.
Par. 1o. O ônus da prova incumbe à parte que detiver conhecimentos técnicos ou
informações específicas sobre os fatos, ou maior facilidade em sua demonstração. Não
obstante, se por razões de ordem econômica ou técnica, o ônus da prova não puder ser
cumprido, o juiz determinará o que for necessário para suprir à deficiência e obter
elementos probatórios indispensáveis para a sentença de mérito, podendo requisitar perícias
à entidade pública cujo objeto estiver ligado à matéria em debate, condenado-se o
demandado sucumbente ao reembolso. Se assim mesmo a prova não puder ser obtida, o juiz
poderá ordenar sua realização, a cargo ao Fundo de Direitos Difusos e Individuais
Homogêneos.
Par. 2o – Durante a fase instrutória, surgindo modificação de fato ou de direito relevante
para o julgamento da causa, o juiz poderá rever, em decisão motivada, a distribuição do
ônus da prova, concedido à parte a quem for atribuída a incumbência prazo razoável para a
produção da prova, observado o contraditório em relação à parte contrária.
Par. 3o - O juiz poderá determinar de ofício a produção de provas, observado o
contraditório.
Art.13. Julgamento antecipado do mérito - O juiz decidirá desde logo a demanda pelo
mérito, quando não houver necessidade de produção de prova.
Parágrafo único. O juiz poderá decidir desde logo parte da demanda, quando não houver
necessidade de produção de prova, sempre que isso não importe em prejulgamento direto
ou indireto do litígio que continuar pendente de decisão, prosseguindo o processo para a
instrução e julgamento em relação aos demais pedidos nos autos principais e a parte
antecipada em autos complementares.
Art. 14. Legitimação à liqüidação e execução da sentença condenatória - Decorridos 60
(sessenta) dias da passagem em julgado da sentença de procedência, sem que o autor
promova a liquidação ou execução, deverá fazê-lo o Ministério Público, quando se tratar de
interesse público relevante, facultada igual iniciativa, em todos os casos, aos demais
legitimados.
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Art. 15. Custas e honorários - Nas ações coletivas de que trata este código, a sentença
condenará o demandado, se vencido, nas custas, emolumentos, honorários periciais e
quaisquer outras despesas, bem como em honorários de advogados.
Par. 1o. No cálculo dos honorários, o juiz levará em consideração a vantagem para o grupo,
categoria ou classe, a quantidade e qualidade do trabalho desenvolvido pelo advogado e a
complexidade da causa.
Par. 2o. Se o legitimado for pessoa física, sindicato ou associação, o juiz poderá fixar
gratificação financeira quando sua atuação tiver sido relevante na condução e êxito da ação
coletiva.
Par. 3o- Os autores da ação coletiva não adiantarão custas, emolumentos, honorários
periciais e quaisquer outras despesas, nem serão condenados, salvo comprovada má-fé, em
honorários de advogados, custas e despesas processuais.
Par. 4o. O litigante de má-fé e os responsáveis pelos respectivos atos serão solidariamente
condenados ao pagamento das despesas processuais, em honorários advocatícios e no
décuplo das custas, sem prejuízo da responsabilidade por perdas e danos.
Art. 16. Prioridade de processamento - O juiz deverá dar prioridade ao processamento da
ação coletiva, quando haja manifesto interesse social evidenciado pela dimensão do dano
ou pela relevância do bem jurídico a ser protegido.
Art. 17. Interrupção da prescrição - A citação valida para ação coletiva interrompe o prazo
de prescrição das pretensões individuais e transindividuais direta ou indiretamente
relacionadas com a controvérsia, retroagindo o efeito à data da propositura da demanda.
Art.18. Efeitos da apelação – A apelação da sentença definitiva tem efeito meramente
devolutivo, salvo quando a fundamentação for relevante e puder resultar à parte lesão grave
e de difícil reparação, hipótese em que o juiz pode atribuir ao recurso efeito suspensivo.
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Art.19. Execução definitiva e execuçaõ provisória – A execução é definitiva quando
passada em julgado a sentença; e provisória, na pendência dos recursos cabíveis.
Par.1o – A execução provisória corre por conta e risco do exeqüente, que responde pelos
prejuízos causados ao executado, em caso de reforma da sentença recorrida.
Par.2o – A execução provisória permite a prática de atos que importem em alienação do
domínio ou levantamento do depósito em dinheiro.
Par.3o – A pedido do executado, o juiz pode suspender a execução provisória quando dela
puder resultar lesão grave e de difícil reparação.
Capítulo IV – Da ação coletiva para a defesa
de interesses ou direitos individuais homogêneos
Art 20. Ação coletiva de responsabilidade civil - Os legitimados poderão propor, em nome
próprio e no interesse das vítimas ou seus sucessores, dentre outras (art.4o), ação civil
coletiva de responsabilidade pelos danos individualmente sofridos, de acordo com o
disposto nos artigos seguintes.
Parágrafo único. A determinação dos interessados poderá ocorrer no momento da
liquidação ou execução do julgado, não havendo necessidade de a petição inicial estar
acompanhada da relação de membros do grupo, classe ou categoria. Conforme o caso, o
juiz poderá determinar, ao réu ou a terceiro, a apresentação da relação e dados de pessoas
que se enquadram no grupo, categoria ou classe.
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Art. 21. Citação e notificações - Estando em termos a petição inicial, o juiz ordenará a
citação do réu e a publicação de edital no órgão oficial, a fim de que os interessados possam
intervir no processo como assistentes ou coadjuvantes.
Par. 1o – Sem prejuízo da publicação do edital, o juiz determinará sejam os órgãos e
entidades de defesa dos interesses ou direitos protegidos neste Código notificados da
existência da demanda coletiva e de seu trânsito em julgado a fim de que cumpram o
disposto no caput deste artigo.
Par. 2o – Quando for possível a execução do julgado, ainda que provisória, ou estiver
preclusa a decisão antecipatória dos efeitos da tutela pretendida, o juiz determinará a
publicação de edital no órgão oficial, às custas do demandado, impondo-lhe, também, o
dever de divulgar nova informação pelos meios de comunicação social, observado o critério
da modicidade do custo. Sem prejuízo das referidas providências, o juízo providenciará a
comunicação aos órgãos e entidades de defesa dos interesses ou direitos protegidos neste
código, para efeito do disposto no parágrafo anterior.
Par. 3o -. Os intervenientes não poderão discutir suas pretensões individuais no processo
coletivo de conhecimento.
Art. 22. Sentença condenatória - Em caso de procedência do pedido, a condenação poderá
ser genérica, fixando a responsabilidade do demandado pelos danos causados e o dever de
indenizar.
Par. 1o . Sempre que possível, o juiz calculao valor da indenização individual devida a
cada membro do grupo na própria ação coletiva
Par. 2o . Quando o valor dos danos individuais sofridos pelos membros do grupo for
uniforme, prevalentemente uniforme ou puder ser reduzido a uma fórmula matemática, a
sentença coletiva indicará o valor ou a fórmula de cálculo da indenização individual.
Par.3o - O membro do grupo que considerar que o valor da indenização individual ou a
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fórmula para seu cálculo diverso do estabelecido na sentença coletiva, poderá propor ação
individual de liquidação.
Art. 23. Liquidação e execução individuais - A liquidação e a execução de sentença
poderão ser promovidas pela vítima e seus sucessores, assim como pelos legitimados à ação
coletiva.
Parágrafo único. Na liquidação da sentença, que poderá ser promovida no foro do domicílio
do liquidante, caberá a este provar, tão só, o dano pessoal, o nexo de causalidade e o
montante da indenização.
Art 24. Execução coletiva - A execução poderá ser coletiva, sendo promovida pelos
legitimados à ação coletiva, abrangendo as vítimas cujas indenizações já tiverem sido
fixadas em liquidação, sem prejuízo do ajuizamento de outras execuções.
Parágrafo único. A execução coletiva far-se-á com base em certidão das decisões de
liquidação, da qual constará a ocorrência , ou não, do trânsito em julgado.
Art. 25. Do pagamento. O pagamento das indenizações ou o levantamento do depósito será
feito pessoalmente aos beneficiários.
Artigo 26. Competência para a execução. É competente para a execução o juízo:
I - da liquidação da sentença ou da ação condenatória, no caso de execução individual;
II - da ação condenatória, quando coletiva a execução.
Art 27. Liquidação e execução pelos danos globalmente causados - Decorrido o prazo de
um ano sem habilitação de interessados em número compatível com a gravidade do dano,
338
poderão os legitimados do artigo 3o promover a liquidação e execução coletiva da
indenização devida pelos danos causados.
Parágrafo único. O valor da indenização será fixado de acordo com o dano globalmente
causado, que será demonstrado por todas as provas admitidas em direito. Sendo a produção
de provas difícil ou impossível, em razão da extensão do dano ou de sua complexidade, o
valor da indenização será fixado por arbitramento.
(Suprimir - Par. 2o. Quando não for possível a identificação dos interessados, o produto da
indenização reverterá para o Fundo de Direitos Difusos e Individuais Homogêneos.)
Art 28. Concurso de créditos - Em caso de concurso de créditos decorrentes de condenação
de que trata o artigo 6o e de indenizações pelos prejuízos individuais resultantes do mesmo
evento danoso, estas terão preferência no pagamento.
Parágrafo único. Para efeito do disposto neste artigo, a destinação da
importância recolhida ao fundo ficará sustada enquanto pendentes de decisão de segundo
grau as ações de indenização pelos danos individuais, salvo na hipótese de o patrimônio do
devedor ser manifestamente suficiente para responder pela integralidade das dívidas.
Par. 2o. O produto da indenização reverterá para o fundo previsto no artigo 6o.
Capítulo V – Da conexão, da litispendência e da coisa julgada
Art. 29. Conexão - Se houver conexão entre as causas coletivas, ficará prevento o juízo que
conheceu da primeira ação, podendo ao juiz, de ofício ou a requerimento da parte,
determinar a reunião de todos os processos, mesmo que nestes não atuem integralmente os
mesmos sujeitos processuais.
339
Art. 30. Litispendência - A primeira ação coletiva induz litispendência para as demais ações
coletivas que tenham por objeto controvérsia sobre o mesmo bem jurídico, mesmo sendo
diferentes o legitimado ativo e a causa de pedir.
Art. 31. Relação entre ação coletiva e ações individuais - A ação coletiva não induz
litispendência para as ações individuais, mas os efeitos da coisa julgada coletiva (art. 33)
não beneficiarão os autores das ações individuais, se não for requerida sua suspensão no
prazo de 30 (trinta) dias, a contar da ciência efetiva da ação coletiva.
Parágrafo único – Cabe ao demandado informar o juízo da ação individual sobre a
existência de ação coletiva com o mesmo fundamento, sob pena de, não o fazendo, o autor
individual beneficiar-se da coisa julgada coletiva mesmo no caso da demanda individual ser
rejeitada.
Art. 32 . Conversão de ações individuais em ação coletiva. O juiz, tendo conhecimento da
existência de diversos processos individuais correndo contra o mesmo demandado, com o
mesmo fundamento, notificará o Ministério Público e, na medida do possível, outros
representantes adequados, a fim de que proponham, querendo, ação coletiva, ressalvada aos
autores individuais a faculdade prevista no artigo anterior.
Art. 33. Coisa julgada - Nas ações coletivas de que trata este código, a sentença fará coisa
julgada erga omnes, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de
provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação, com idêntico
fundamento valendo-se de nova prova.
Par. 1o. Mesmo na hipótese de improcedência fundada nas provas produzidas, qualquer
legitimado poderá intentar outra ação, com idêntico fundamento, quando surgir prova nova,
superveniente, que não poderia ter sido produzida no processo.
Par. 2° - Tratando-se de interesses ou direitos individuais homogêneos, em caso de
improcedência do pedido, os interessados poderão propor ação de indenização a título
individual.
340
Par. 3°. Os efeitos da coisa julgada nas ações em defesa de interesses ou direitos difusos
não prejudicarão as ações de indenização por danos pessoalmente sofridos, propostas
individualmente ou na forma prevista neste código, mas, se procedente o pedido,
beneficiarão as vítimas e seus sucessores, que poderão proceder à liquidação e à execução,
nos termos dos artigos 22 a 24.
Par. 4º. Aplica-se o disposto no parágrafo anterior à sentença penal condenatória.
Par. 5º. A competência territorial do órgão julgador não representará limitação para a coisa
julgada erga omnes.
Art. 34. Relações jurídicas continuativas - Nas relações jurídicas continuativas, se sobrevier
modificação no estado de fato ou de direito, a parte poderá pedir a revisão do que foi
estatuído por sentença.
Capítulo VI – Da ação coletiva passiva
Art. 35. Ações contra o grupo, categoria ou classe - Qualquer espécie de ação pode ser
proposta contra uma coletividade organizada ou que tenha representante adequado, nos
termos do parágrafo 2o do artigo 2o deste código, e desde que o bem jurídico a ser tutelado
seja transindividual (artigo 1o) e se revista de interesse social.
Art. 36 –Coisa julgada passiva: interesses ou direitos difusos - Quando se tratar de
interesses ou direitos difusos, a coisa julgada atuará erga omnes, vinculando os membros do
grupo, categoria ou classe.
341
Art. 37. Coisa julgada passiva: interesses ou direitos individuais homogêneos - Quando se
tratar de interesses ou direitos individuais homogêneos, a coisa julgada atuará erga omnes
no plano coletivo, mas a sentença de procedência não vinculará os membros do grupo,
categoria ou classe, que poderão mover ações próprias ou defender-se no processo de
execução para afastar a eficácia da decisão na sua esfera jurídica individual.
Parágrafo único – Quando a ação coletiva passiva for promovida contra o sindicato, como
substituto processual da categoria, a coisa julgada terá eficácia erga omnes, vinculando
individualmente todos os membros, mesmo em caso de procedência do pedido.
Art. 38 – Aplicação complementar às ações passivas – Aplica-se complementariamente às
ações coletivas passivas o disposto neste Código quanto às ações coletivas ativas, no que
não for incompatível.
Capítulo VII – Disposições finais
Art. 39. Princípios de interpretação - Este código será interpretado de forma aberta e
flexível, compatível com a tutela coletiva dos interesses e direitos de que trata.
Art. 40. Especialização dos magistrados - Sempre que possível, as ações coletivas serão
processadas e julgadas por magistrados especializados.
Art. 41. Aplicação subsidiárias das normas processuais gerais e especiais - Aplicam-se
subsidiariamente, no que não forem incompatíveis, as disposições do Código de Processo
Civil e legislação especial pertinente.
342
ANEXO B - ANTEPROJETO DE CÓDIGO BRASILEIRO DE PROCESSOS
COLETIVOS
343
ANTEPROJETO
DE
CÓDIGO BRASILEIRO DE PROCESSOS COLETIVOS
APRESENTAÇÃO DO ANTEPROJETO ELABORADO EM CONJUNTO NOS
PROGRAMAS DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU DA UNIVERSIDADE DO
ESTADO DO RIO DE JANEIRO (UERJ) E DA UNIVERSIDADE ESTÁCIO DE SÁ
(UNESA)
PARTE I – DAS AÇÕES COLETIVAS EM GERAL
Capítulo I – Da tutela coletiva
Art. 1
o
. Da tutela jurisdicional coletiva Para a defesa dos direitos e interesses difusos,
coletivos e individuais homogêneos são admissíveis, além das previstas neste Código, todas
as espécies de ações e provimentos capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela.
Art. 2
o
. Objeto da tutela coletiva A ação coletiva será exercida para a tutela de:
I – interesses ou direitos difusos, assim entendidos os transindividuais, de natureza
indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de
fato;
II – interesses ou direitos coletivos, assim entendidos os transindividuais, de natureza
indivisível, de que seja titular um grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou
com a parte contrária por uma relação jurídica base;
III – interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os direitos subjetivos
decorrentes de origem comum.
Parágrafo único - Não se admitirá ação coletiva que tenha como pedido a declaração de
inconstitucionalidade, mas esta poderá ser objeto de questão prejudicial, pela via do
controle difuso.
Capítulo II – Dos pressupostos processuais e das condições da ação
Seção I – Do órgão judiciário
Art. 3
o
. Competência territorial É competente para a causa o foro do lugar onde ocorreu ou
deva ocorrer o dano.
§1
o
. Em caso de abrangência de mais de um foro, determinar-se-á a competência pela
prevenção, aplicando-se as regras pertinentes de organização judiciária.
344
§ 2
o
. Em caso de dano de âmbito nacional, serão competentes os foros das capitais dos
estados e do distrito federal.
Redação aprovada na UNESA: Art. 3
o
. Competência territorial É competente para a
causa o foro do lugar onde ocorreu ou deva ocorrer o dano.
Parágrafo único. Em caso de abrangência de mais de um foro, determinar-se-á a
competência pela prevenção, aplicando-se as regras pertinentes de organização judiciária.
Art. 4
o
. Prioridade de processamento O juiz dará prioridade ao processamento da ação
coletiva.
Art. 5
o
. Juízos especializados As ações coletivas serão processadas e julgadas em juízos
especializados, quando existentes.
Art. 6
o
. Conexão Se houver conexão entre causas coletivas, de qualquer espécie, ficará
prevento o juízo perante o qual a demanda foi distribuída em primeiro lugar, devendo o
juiz, de ofício ou a requerimento da parte, determinar a reunião de todos os processos,
mesmo que nestes não atuem integralmente os mesmos sujeitos processuais.
Seção II – Da litispendência e da continência
Art. 7
o
. Litispendência e continência A primeira ação coletiva induz litispendência para as
demais ações coletivas que tenham o mesmo pedido, causa de pedir e interessados.
§ 1
o
. Estando o objeto da ação posteriormente proposta contido no da primeira, será extinto
o processo ulterior sem o julgamento do mérito.
§ 2
o
. Sendo o objeto da ação posteriormente proposta mais abrangente, o processo ulterior
prosseguirá tão somente para a apreciação do pedido não contido na primeira demanda,
devendo haver a reunião dos processos perante o juiz prevento em caso de conexão.
§ 3
o
. Ocorrendo qualquer das hipóteses previstas neste artigo, as partes poderão requerer a
extração ou remessa de peças processuais, com o objetivo de instruir o primeiro processo
instaurado.
Seção III – Das condições específicas da ação coletiva e da legitimação ativa
Art. 8
o
. Requisitos específicos da ação coletiva São requisitos específicos da ação coletiva,
a serem aferidos em decisão especificamente motivada pelo juiz:
I – a adequada representatividade do legitimado;
II – a relevância social da tutela coletiva, caracterizada pela natureza do bem jurídico, pelas
características da lesão ou pelo elevado número de pessoas atingidas.
345
§ 1
o
. Na análise da representatividade adequada o juiz deverá examinar dados como:
a) a credibilidade, capacidade e experiência do legitimado;
b) seu histórico de proteção judicial e extrajudicial dos interesses ou direitos dos
membros do grupo, categoria ou classe;
c) sua conduta em outros processos coletivos;
d) a coincidência entre os interesses do legitimado e o objeto da demanda;
e) o tempo de instituição da associação e a representatividade desta ou da pessoa física
perante o grupo, categoria ou classe.
§ 2
o
. O juiz analisará a existência do requisito da representatividade adequada a qualquer
tempo e em qualquer grau do procedimento, aplicando, se for o caso, o disposto no
parágrafo 3
o
. do artigo seguinte.
Art. 9
o
. Legitimação ativa São legitimados concorrentemente à ação coletiva:
I – qualquer pessoa física, para a defesa dos direitos ou interesses difusos;
II – o membro do grupo, categoria ou classe, para a defesa dos direitos ou interesses
coletivos e individuais homogêneos;
III – o Ministério Público, para a defesa dos direitos ou interesses difusos e coletivos, bem
como dos individuais homogêneos de interesse social;
IV – a Defensoria Pública, para a defesa dos direitos ou interesses difusos, coletivos e
individuais homogêneos, quando os interessados forem, predominantemente,
hipossuficientes;
V – as pessoas jurídicas de direito público interno, para a defesa dos direitos ou interesses
difusos e coletivos relacionados às suas funções;
VI – as entidades e órgãos da Administração Pública, direta ou indireta, ainda que sem
personalidade jurídica, especificamente destinados à defesa dos direitos ou interesses
protegidos por este código;
VII – as entidades sindicais, para a defesa dos direitos ou interesses difusos, coletivos e
individuais homogêneos ligados à categoria;
VIII – os partidos políticos com representação no Congresso Nacional, nas Assembléias
Legislativas ou nas Câmaras Municipais, conforme o âmbito do objeto da demanda, para a
defesa de direitos e interesses ligados a seus fins institucionais;
IX – as associações legalmente constituídas e que incluam entre seus fins institucionais a
defesa dos direitos ou interesses protegidos neste código, dispensada a autorização
assemblear.
346
§ 1
o
. Será admitido o litisconsórcio facultativo entre os legitimados.
§ 2
o
. Em caso de interesse social, o Ministério Público, se não ajuizar a ação ou não
intervier no processo como parte, atuará obrigatoriamente como fiscal da lei.
§ 3
o
. Em caso de inexistência inicial ou superveniente do requisito da representatividade
adequada, de desistência infundada ou abandono da ação, o juiz notificará o Ministério
Público, observado o disposto no inciso III, e, na medida do possível, outros legitimados
adequados para o caso, a fim de que assumam, querendo, a titularidade da ação. Havendo
inércia do Ministério Público, aplica-se o disposto no parágrafo único do artigo 10 deste
código.
Capítulo III – Da comunicação sobre processos repetitivos, do inquérito civil e do
compromisso de ajustamento de conduta
Art. 10 Comunicação sobre processos repetitivos
O juiz, tendo conhecimento da existência
de diversos processos individuais correndo contra o mesmo demandado, com idêntico
fundamento, comunicará o fato ao Ministério Público e, na medida do possível, a outros
legitimados (art. 9
o
), a fim de que proponham, querendo, ação coletiva.
Parágrafo único – Caso o Ministério Público não promova a ação coletiva, no prazo de 90
(noventa) dias, fará a remessa do expediente recebido ao órgão com atribuição para a
homologação ou rejeição da promoção de arquivamento do inquérito civil, para que, do
mesmo modo, delibere em relação à propositura ou não da ação coletiva.
Art.11 Inquérito civil
. O Ministério Público poderá instaurar, sob sua presidência, inquérito
civil, nos termos do disposto em sua Lei Orgânica.
§ 1
o
. Se o órgão do Ministério Público, esgotadas todas as diligências, se convencer da
inexistência de fundamento para a propositura da ação, promoverá o arquivamento dos
autos do inquérito civil ou das peças informativas, fazendo-o fundamentadamente.
§ 2
o
. Os autos do inquérito civil ou das peças informativas arquivadas serão remetidos, sob
pena de se incorrer em falta grave, no prazo de 10 (dez) dias, ao órgão com atribuição para
homologação, na forma da Lei Orgânica.
§ 3
o
. Até que, em sessão do órgão com atribuição para homologação, seja homologada ou
rejeitada a promoção, poderão os interessados apresentar razões escritas e documentos, que
serão juntados aos autos do inquérito ou anexados às peças de informação.
§ 4
o
. Deixando o órgão com atribuição de homologar a promoção de arquivamento,
designará, desde logo, outro membro do Ministério Público para o ajuizamento da ação.
Art. 12 Compromisso de ajustamento de conduta
O Ministério Público e os órgãos
públicos legitimados poderão tomar dos interessados compromisso de ajustamento de
conduta às exigências legais, mediante cominações, que terá eficácia de título executivo
extrajudicial, sem prejuízo da possibilidade de homologação judicial do compromisso, se
347
assim requererem as partes.
Parágrafo único – Quando o compromisso de ajustamento for tomado por legitimado que
não seja o Ministério Público, este deverá ser cientificado para que funcione como fiscal.
Capítulo IV – Da postulação
Art. 13 Custas e honorários
Os autores da ação coletiva não adiantarão custas,
emolumentos, honorários periciais e quaisquer outras despesas, nem serão condenados,
salvo comprovada má-fé, em honorários de advogados, custas e despesas processuais.
§ 1
o
. Nas ações coletivas de que trata este código, a sentença condenará o demandado, se
vencido, nas custas, emolumentos, honorários periciais e quaisquer outras despesas, bem
como em honorários de advogados.
§ 2
o
. No cálculo dos honorários, o juiz levará em consideração a vantagem para o grupo,
categoria ou classe, a quantidade e qualidade do trabalho desenvolvido pelo advogado e a
complexidade da causa.
§ 3
o
. Se o legitimado for pessoa física, sindicato ou associação, o juiz poderá fixar
gratificação financeira quando sua atuação tiver sido relevante na condução e êxito da ação
coletiva.
§ 4
o
O litigante de má-fé e os responsáveis pelos respectivos atos serão solidariamente
condenados ao pagamento das despesas processuais, em honorários advocatícios e até o
décuplo das custas, sem prejuízo da responsabilidade por perdas e danos.
Art. 14 Da instrução da inicial
Para instruir a inicial, o legitimado, sem prejuízo das
prerrogativas do Ministério Público, poderá requerer às autoridades competentes as
certidões e informações que julgar necessárias.
§ 1
o
. As certidões e informações deverão ser fornecidas dentro de 15 (quinze) dias da
entrega, sob recibo, dos respectivos requerimentos, e só poderão ser utilizadas para a
instrução da ação coletiva.
§ 2
o
. Somente nos casos em que o sigilo for exigido para a defesa da intimidade ou do
interesse social poderá ser negada a certidão ou informação.
§ 3
o
. Ocorrendo a hipótese do parágrafo anterior, a ação poderá ser proposta
desacompanhada das certidões ou informações negadas, cabendo ao juiz, após apreciar os
motivos do indeferimento, requisitá-las; feita a requisição, o processo correrá em segredo
de justiça.
Art. 15 Pedido
O juiz permitirá, até a decisão saneadora, a ampliação ou adaptação do
objeto do processo, desde que, realizada de boa-fé, não represente prejuízo injustificado à
parte contrária, à celeridade e ao bom andamento do processo e o contraditório seja
preservado.
348
Art 16 Contraditório para as medidas antecipatórias
Para a concessão de liminar ou de
tutela antecipada nas ações coletivas, o juiz poderá ouvir, se entender conveniente e não
houver prejuízo para a efetividade da medida, a parte contrária, que deverá se pronunciar no
prazo de 72 (setenta e duas) horas.
Art. 17 Efeitos da citação
A citação válida para a ação coletiva interrompe o prazo de
prescrição das pretensões individuais e transindividuais relacionadas com a controvérsia,
retroagindo o efeito à data da propositura da demanda.
Art. 18 Audiência preliminar
Encerrada a fase postulatória, o juiz designará audiência
preliminar, à qual comparecerão as partes ou seus procuradores, habilitados a transigir.
§ 1
o
. O juiz ouvirá as partes sobre os motivos e fundamentos da demanda e tentará a
conciliação, sem prejuízo de sugerir outras formas adequadas de solução do conflito, como
a mediação, a arbitragem e a avaliação neutra de terceiro.
§ 2
o
. A avaliação neutra de terceiro, de confiança das partes, obtida no prazo fixado pelo
juiz, é sigilosa, inclusive para esse, e não vinculante para as partes, sendo sua finalidade
exclusiva a de orientá-las na tentativa de composição amigável do conflito.
§ 3
o
. Preservada a indisponibilidade do bem jurídico coletivo, as partes poderão transigir
sobre o modo de cumprimento da obrigação.
§ 4
o
. Obtida a transação, será homologada por sentença, que constituirá título executivo
judicial.
§ 5
o
. Não obtida a conciliação, sendo ela parcial, ou quando, por qualquer motivo, não for
adotado outro meio de solução do conflito, o juiz, fundamentadamente:
I – decidirá se a ação tem condições de prosseguir na forma coletiva, certificando-a como
coletiva;
II – poderá separar os pedidos em ações coletivas distintas, voltadas à tutela,
respectivamente, dos interesses ou direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos,
desde que a separação represente economia processual ou facilite a condução do processo;
III – fixará os pontos controvertidos, decidirá as questões processuais pendentes e
determinará as provas a serem produzidas, designando audiência de instrução e julgamento,
se for o caso;
IV – esclarecerá os encargos das partes quanto à distribuição do ônus da prova, de acordo
com o disposto no parágrafo 1
o
. do artigo seguinte.
Capítulo V – Da prova
Art. 19 Provas
São admissíveis em juízo todos os meios de prova, desde que obtidos por
349
meios lícitos, incluindo a prova estatística ou por amostragem.
§ 1
o
. O ônus da prova incumbe à parte que detiver conhecimentos técnicos ou informações
específicas sobre os fatos, ou maior facilidade em sua demonstração, cabendo ao juiz
deliberar sobre a distribuição do ônus da prova por ocasião da decisão saneadora.
§ 2
o
. Durante a fase instrutória, surgindo modificação de fato ou de direito relevante para o
julgamento da causa, o juiz poderá rever, em decisão motivada, a distribuição do ônus da
prova, concedendo à parte a quem for atribuída a incumbência prazo razoável para a
produção da prova, observado o contraditório em relação à parte contrária.
§ 3
o
. O juiz poderá determinar de ofício a produção de provas, observado o contraditório.
Capítulo VI – Do julgamento, do recurso e da coisa julgada
Art. 20 Motivação das decisões judiciárias
Todas as decisões deverão ser especificamente
fundamentadas, especialmente quanto aos conceitos jurídicos indeterminados.
Parágrafo único Na sentença de improcedência, o juiz deverá explicitar, no dispositivo, se
rejeita a demanda por insuficiência de provas.
Art. 21 Efeitos do recurso da sentença
O recurso interposto contra a sentença tem efeito
meramente devolutivo, salvo quando a fundamentação for relevante e puder resultar à parte
lesão grave e de difícil reparação, hipótese em que o juiz pode atribuir ao recurso efeito
suspensivo.
Art. 22 Coisa julgada
Nas ações coletivas a sentença fará coisa julgada erga omnes, salvo
quando o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas.
§ 1
o
. Os efeitos da coisa julgada para a defesa de interesses difusos e coletivos em sentido
estrito ficam adstritos ao plano coletivo, não prejudicando interesses e direitos individuais
homogêneos reflexos.
§ 2
o
. Os efeitos da coisa julgada em relação aos interesses ou direitos difusos e coletivos
não prejudicarão as ações de indenização por danos pessoalmente sofridos, propostas
coletiva ou individualmente, mas, se procedente o pedido, beneficiarão as vítimas e seus
sucessores, que poderão proceder à liquidação e à execução, nos termos do art.37 e
seguintes.
§ 3
o
. Na hipótese dos interesses ou direitos individuais homogêneos, apenas não estarão
vinculados ao pronunciamento coletivo os titulares de interesses ou direitos que tiverem
exercido tempestiva e regularmente o direito de ação ou exclusão.
§ 4
o
. A competência territorial do órgão julgador não representará limitação para a coisa
julgada erga omnes.
350
Capítulo VII – Das obrigações específicas
Art. 23 Obrigações de fazer e não fazer
Na ação que tenha por objeto o cumprimento da
obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou
determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do
adimplemento.
§ 1
o
. O juiz poderá, na hipótese de antecipação de tutela ou na sentença, impor multa diária
ao demandado, independentemente de pedido do autor, se for suficiente ou compatível com
a obrigação, fixando prazo razoável para o cumprimento do preceito.
§ 2
o
. O juiz poderá, de ofício, modificar o valor ou a periodicidade da multa, caso verifique
que se tornou insuficiente ou excessiva.
§ 3
o
. Para a tutela específica ou para a obtenção do resultado prático equivalente, poderá o
juiz determinar as medidas necessárias, tais como busca e apreensão, remoção de coisas e
pessoas, desfazimento de obra, impedimento de atividade nociva, além da requisição de
força policial.
§4
o
. A conversão da obrigação em perdas e danos somente será admissível se por elas optar
o autor ou se impossível a tutela específica ou a obtenção do resultado prático
correspondente.
§ 5
o
. A indenização por perdas e danos se fará sem prejuízo da multa.
Art. 24 Obrigações de dar
Na ação que tenha por objeto a obrigação de entregar coisa,
determinada ou indeterminada, aplicam-se, no que couber, as disposições do artigo anterior.
Art. 25 Ação indenizatória
Na ação condenatória à reparação dos danos provocados ao bem
indivisivelmente considerado, a indenização reverterá ao Fundo dos Direitos Difusos,
Coletivos e Individuais Homogêneos, de natureza federal ou estadual, de acordo com o bem
ou interesse afetado.
§ 1
o
. Dependendo da especificidade do bem judico afetado, da extensão territorial
abrangida e de outras circunstâncias consideradas relevantes, o juiz poderá especificar, em
decisão fundamentada, a destinação da indenização e as providências a serem tomadas para
a reconstituição dos bens lesados, podendo indicar a realização de atividades tendentes a
minimizar a lesão ou a evitar que se repita, dentre outras que beneficiem o bem jurídico
prejudicado.
§ 2
o
. A decisão que especificar a destinação da indenização indicará, de modo claro e
preciso, as medidas a serem tomadas pelo Conselho Gestor do Fundo, bem como um prazo
razoável para que tais medidas sejam concretizadas.
§ 3
o
. Vencido o prazo fixado pelo juiz, o Conselho Gestor do Fundo apresentará relatório
351
das atividades realizadas, facultada, conforme o caso, a solicitação de sua prorrogação, para
completar as medidas determinadas na decisão judicial.
§ 4
o
. Aplica-se ao descumprimento injustificado dos parágrafos 2
o
. e 3
o
. o disposto no
parágrafo 2
o
. do artigo 29.
Capítulo VIII – Da liquidação e da execução
Art. 26 Legitimação à liquidação e execução da sentença condenatória
Decorridos 60
(sessenta) dias da passagem em julgado da sentença de procedência, sem que o autor da
ação coletiva promova a liquidação ou execução coletiva, deverá fazê-lo o Ministério
Público, quando se tratar de interesse público, facultada igual iniciativa, em todos os casos,
aos demais legitimados.
Art. 27 Execução definitiva e execução provisória
A execução é definitiva quando passada
em julgado a sentença; e provisória, na pendência dos recursos cabíveis.
§ 1
o
. A execução provisória corre por conta e risco do exeqüente, que responde pelos
prejuízos causados ao executado, em caso de reforma da sentença recorrida.
§ 2
o
. A execução provisória não impede a prática de atos que importem em alienação do
domínio ou levantamento do depósito em dinheiro.
§ 3
o
. A pedido do executado, o juiz pode suspender a execução provisória quando dela
puder resultar lesão grave e de difícil reparação.
Capítulo IX – Do cadastro nacional de processos coletivos e do Fundo de Direitos
Difusos, Coletivos e Individuais Homogêneos
Art. 28 Cadastro nacional de processos coletivos
O Conselho Nacional de Justiça
organizará e manterá o cadastro nacional de processos coletivos, com a finalidade de
permitir que todos os órgãos do Poder Judiciário e todos os interessados tenham
conhecimento da existência das ações coletivas, facilitando a sua publicidade e o exercício
do direito de exclusão.
§ 1°. Os órgãos judiciários aos quais forem distribuídas ações coletivas remeterão, no prazo
de dez dias, cópia da petição inicial ao cadastro nacional de processos coletivos.
§ 2°. O Conselho Nacional de Justiça editará regulamento dispondo sobre o funcionamento
do cadastro nacional de processos coletivos, em especial a forma de comunicação pelos
juízos quanto à existência das ações coletivas e aos atos processuais mais relevantes, como
a concessão de antecipação de tutela, a sentença e o trânsito em julgado; disciplinará, ainda,
sobre os meios adequados a viabilizar o acesso aos dados e o acompanhamento daquelas
por qualquer interessado.
Art. 29 Fundo dos Direitos Difusos, Coletivos e Individuais Homogêneos
O fundo será
administrado por um Conselho Federal ou por Conselhos Estaduais, de que participarão
352
necessariamente membros do Ministério Público, juízes e representantes da comunidade,
sendo seus recursos destinados à reconstituição dos bens lesados ou, não sendo possível, à
realização de atividades tendentes a minimizar a lesão ou a evitar que se repita, dentre
outras que beneficiem o bem jurídico prejudicado.
§ 1
o
. Além da indenização oriunda de sentença condenatória, nos termos do disposto no
caput do art. 25, constituem também receitas do Fundo o produto da arrecadação de multas
judiciais e da indenização devida quando não for possível o cumprimento da obrigação
pactuada em termo de ajustamento de conduta.
§ 2
o
. O representante legal do Fundo, considerado servidor público para efeitos legais,
responderá por sua atuação nas esferas administrativa, penal e civil.
§ 3
o
. O Fundo será notificado da propositura de toda ação coletiva e da decisão final do
processo.
§ 4
o
. O Fundo manterá e divulgará registros que especifiquem a origem e a destinação dos
recursos e indicará a variedade dos bens jurídicos a serem tutelados e seu âmbito regional.
§ 5
o
. Semestralmente, o Fundo dará publicidade às suas demonstrações financeiras e
atividades desenvolvidas.
PARTE II – DAS AÇÕES COLETIVAS PARA A DEFESA DOS DIREITOS OU
INTERESSES INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS
Art. 30 Da ação coletiva para a defesa dos direitos ou interesses individuais homogêneos
Para a tutela dos interesses ou direitos individuais homogêneos, além dos requisitos
indicados no art.8
o
. deste Código, é necessária a aferição da predominância das questões
comuns sobre as individuais e da utilidade da tutela coletiva no caso concreto.
Art. 31 Determinação dos interessados
A determinação dos interessados poderá ocorrer no
momento da liquidação ou execução do julgado, não havendo necessidade de a petição
inicial estar acompanhada da relação dos membros do grupo, classe ou categoria. Conforme
o caso, poderá o juiz determinar, ao réu ou a terceiro, a apresentação da relação e dados de
pessoas que se enquadram no grupo, categoria ou classe.
Art. 32 Citação e notificações
Estando em termos a petição inicial, o juiz ordenará a
citação do réu, a publicação de edital no órgão oficial e a comunicação dos interessados,
titulares dos direitos ou interesses individuais homogêneos objeto da ação coletiva, para
que possam exercer no prazo fixado seu direito de exclusão em relação ao processo
coletivo, sem prejuízo de ampla divulgação pelos meios de comunicação social.
§ 1
o
. Não sendo fixado pelo juiz o prazo acima mencionado, o direito de exclusão poderá
ser exercido até a publicação da sentença no processo coletivo.
§ 2
o
. A comunicação prevista no caput poderá ser feita pelo correio, por oficial de justiça,
353
por edital ou por inserção em outro meio de comunicação ou informação, como
contracheque, conta, fatura, extrato bancário e outros, sem obrigatoriedade de identificação
nominal dos destinatários, que poderão ser caracterizados enquanto titulares dos
mencionados interesses, fazendo-se referência à ação e às partes, bem como ao pedido e à
causa de pedir, observado o critério da modicidade do custo.
Art. 33 Relação entre ação coletiva e ações individuais O ajuizamento ou prosseguimento
da ação individual versando sobre direito ou interesse que esteja sendo objeto de ação
coletiva pressupõe a exclusão tempestiva e regular desta.
§ 1
o
. O ajuizamento da ação coletiva ensejará a suspensão, por trinta dias, a contar da
ciência efetiva desta, dos processos individuais em tramitação que versem sobre direito ou
interesse que esteja sendo objeto no processo coletivo.
§ 2
o
. Dentro do prazo previsto no parágrafo anterior, os autores das ações individuais
poderão requerer, nos autos do processo individual, sob pena de extinção sem julgamento
do mérito, que os efeitos das decisões proferidas na ação coletiva não lhes sejam aplicáveis,
optando, assim, pelo prosseguimento do processo individual.
§ 3
o
. Os interessados que, quando da comunicação, não possuírem ação individual ajuizada
e não desejarem ser alcançados pelos efeitos das decisões proferidas na ação coletiva
poderão optar entre o requerimento de exclusão ou o ajuizamento da ação individual no
prazo assinalado, hipótese que equivalerá à manifestação expressa de exclusão.
§ 4
o
. Não tendo o juiz deliberado acerca da forma de exclusão, esta ocorrerá mediante
simples manifestação dirigida ao juiz do respectivo processo coletivo ou ao órgão
incumbido de realizar a nível nacional o registro das ações coletivas, que poderão se utilizar
eventualmente de sistema integrado de protocolo.
§ 5
o
. O requerimento de exclusão, devida e tempestivamente protocolizado, consistirá em
documento indispensável para a propositura de ulterior demanda individual.
Art. 34 Assistência
Os titulares dos direitos ou interesses individuais homogêneos poderão
intervir no processo como assistentes, sendo-lhes vedado discutir suas pretensões
individuais no processo coletivo de conhecimento.
Art. 35 Efeitos da transação
As partes poderão transacionar, ressalvada aos membros do
grupo, categoria ou classe a faculdade de se desvincularem da transação, dentro do prazo
fixado pelo juiz.
Parágrafo único – Os titulares dos direitos ou interesses individuais homogêneos serão
comunicados, nos termos do art. 32, para que possam exercer o seu direito de exclusão, em
prazo não inferior a 60 (sessenta) dias.
Art. 36 Sentença condenatória
Sempre que possível, em caso de procedência do pedido, o
juiz fixará na sentença do processo coletivo o valor da indenização individual devida a cada
membro do grupo, categoria ou classe.
354
§ 1
o
. Quando o valor dos danos sofridos pelos membros do grupo, categoria ou classe for
uniforme, prevalentemente uniforme ou puder ser reduzido a uma fórmula matemática, a
sentença coletiva indicará o valor ou a fórmula do cálculo da indenização individual.
§ 2
o
. Não sendo possível a prolação de sentença coletiva líquida, a condenação poderá ser
genérica, fixando a responsabilidade do demandado pelos danos causados e o dever de
indenizar.
Art. 37 Competência para a liquidação e a execução
É competente para a liquidação e a
execução o juízo:
I – da ação condenatória, quando coletiva a liquidação ou a execução;
II – do domicílio do demandado ou do demandante individual, no caso de liquidação ou
execução individual.
Art. 38 Liquidação e execução coletivas
Sempre que possível, a liquidação e a execução
serão coletivas, sendo promovidas pelos legitimados à ação coletiva.
Art. 39 Pagamento
Quando a execução for coletiva, os valores destinados ao pagamento
das indenizações individuais serão depositados em instituição bancária oficial, abrindo-se
conta remunerada e individualizada para cada beneficiário; os respectivos saques, sem
expedição de alvará, reger-se-ão pelas normas aplicáveis aos depósitos bancários e estarão
sujeitos à retenção de imposto de renda na fonte, nos termos da lei.
Art. 40 Liquidação e execução individuais
Quando não for possível a liquidação coletiva, a
fixação dos danos e respectiva execução poderão ser promovidas individualmente.
§ 1
o
. Na liquidação de sentença, caberá ao liquidante provar, tão só, o dano pessoal, o nexo
de causalidade e o montante da indenização.
§ 2
o
. Decorrido o prazo de um ano sem que tenha sido promovido um número de
liquidações individuais compatível com a gravidade do dano, poderão os legitimados
coletivos promover a liquidação e a execução coletiva da indenização devida pelos danos
causados, hipótese em que:
I – O prazo previsto neste parágrafo prevalece sobre os prazos prescricionais aplicáveis à
execução da sentença;
II – O valor da indenização será fixado de acordo com o dano globalmente causado, que
será demonstrado por todas as provas admitidas em direito. Sendo a produção de provas
difícil ou impossível, em razão da extensão do dano ou de sua complexidade, o valor da
indenização será fixado por arbitramento;
III – Quando não for possível a identificação dos interessados, o produto da indenização
reverterá para o Fundo dos Direitos Difusos, Coletivos e Individuais Homogêneos.
355
Art. 41 Concurso de créditos
Em caso de concurso de créditos decorrentes de condenação
de que trata o artigo 25 e de indenizações pelos prejuízos individuais resultantes do mesmo
evento danoso, estes terão preferência no pagamento.
Parágrafo único – Para efeito do disposto neste artigo, a destinação da importância
recolhida ao Fundo ficará sustada enquanto pendentes de decisão de segundo grau as ações
de indenização pelos danos individuais, salvo na hipótese de o patrimônio do devedor ser
manifestamente suficiente para responder pela integralidade das dívidas.
PARTE III – DA AÇÃO COLETIVA PASSIVA
Art. 42 Ação contra o grupo, categoria ou classe
Qualquer espécie de ação pode ser
proposta contra uma coletividade organizada ou que tenha representante adequado, nos
termos do parágrafo 1
o
. do artigo 8
o
, e desde que o bem jurídico a ser tutelado seja
transindividual (art. 2
o
.) e se revista de interesse social.
Art. 43 Coisa julgada passiva A coisa julgada atuará erga omnes, vinculando os membros
do grupo, categoria ou classe.
Art. 44 Aplicação complementar à ação coletiva passiva
Aplica-se complementarmente à
ação coletiva passiva o disposto neste código quanto à ação coletiva ativa, no que não for
incompatível.
PARTE IV – PROCEDIMENTOS ESPECIAIS
Capítulo I – Do mandado de segurança coletivo
Art. 45 Cabimento
Conceder-se-á mandado de segurança coletivo, nos termos dos incisos
LXIX e LXX do artigo 5
o
. da Constituição Federal, para proteger direito líquido e certo
relativo a interesses ou direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos (art. 2
o
.).
Art. 46 Disposições aplicáveis
Aplica-se ao mandado de segurança coletivo o disposto
neste código, inclusive no tocante às custas e honorários (art. 16), e na lei 1533/51, no que
não for incompatível.
Capítulo II – Do mandado de injunção coletivo
Art. 47 Cabimento
Conceder-se-á mandado de injunção coletivo sempre que a falta de
norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais
e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania, à cidadania, relativamente a
direitos ou interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos.
Art. 48 Competência
É competente para processar e julgar o mandado de injunção coletivo:
I - o Supremo Tribunal Federal, quando a elaboração da norma regulamentadora for
356
atribuição do Presidente da República, do Congresso Nacional, da Câmara dos Deputados,
do Senado Federal, da Mesa de uma dessas Casas Legislativas, do Tribunal de Contas da
União, de um dos Tribunais Superiores, ou do próprio Supremo Tribunal Federal.
Parágrafo Único – Compete também ao Supremo Tribunal Federal julgar, em recurso
ordinário, o mandado de injunção decidido em única ou última instância pelos Tribunais
Superiores, se denegatória a decisão.
II - o Superior Tribunal de Justiça, quando a elaboração da norma regulamentadora for
atribuição de órgão, entidade ou autoridade federal, da administração direta ou indireta,
excetuados os casos de competência do Supremo Tribunal Federal e dos órgãos da Justiça
Militar, da Justiça Eleitoral, da Justiça do Trabalho e da Justiça Federal.
III - O Tribunal de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, quando a elaboração da norma
regulamentadora for atribuição de Governador, Assembléia Legislativa, Tribunal de Contas
local, do próprio Tribunal de Justiça, de órgão, entidade ou autoridades estadual ou distrital,
da administração direta ou indireta.
Art. 49 Legitimação passiva
O mandado de injunção coletivo será impetrado, em
litisconsórcio obrigatório, em face da autoridade ou órgão público competente para a edição
da norma regulamentadora; e ainda da pessoa física ou jurídica, de direito público ou
privado, que, por inexistência de norma regulamentadora, impossibilite o exercício dos
direitos e liberdades constitucionais relativos a interesses ou direitos difusos, coletivos ou
individuais homogêneos.
Art. 50 Edição superveniente da norma regulamentadora
Se a norma regulamentadora for
editada no curso do mandado de injunção coletivo, o órgão jurisdicional apurará acerca da
existência ainda de matéria não regulada, referente a efeitos pretéritos do dispositivo
constitucional tardiamente regulado, prosseguindo, se for a hipótese, para julgamento da
parte remanescente.
§ 1
o
Dispondo a norma regulamentadora editada no curso do mandado de injunção coletivo
inclusive quanto ao período em que se verificara a omissão legislativa constitucionalmente
relevante, o processo será extinto sem julgamento do mérito, nos termos do art. 267, VI do
Código de Processo Civil, ficando o autor coletivo dispensando do pagamento de custas,
despesas e honorários advocatícios.
§ 2
o
A norma regulamentadora, editada após o ajuizamento do mandado de injunção
coletivo, respeitará os efeitos de eventual decisão judicial provisória ou definitiva proferida,
mas será aplicada às projeções futuras da relação jurídica objeto de apreciação
jurisdicional.
Art. 51 Sentença A sentença que conceder o mandado de injunção coletivo:
I – comunicará a caracterização da mora legislativa constitucionalmente qualificada ao
Poder competente, para a adoção, no prazo que fixar, das providências necessárias;
357
II – formulará, com base na equidade, a norma regulamentadora e, no mesmo julgamento, a
aplicará ao caso concreto, determinando as obrigações a serem cumpridas pelo legitimado
passivo para o efetivo exercício das liberdades e prerrogativas constitucionais dos
integrantes do grupo, categoria ou classe.
§ 1
o
A parcela do dispositivo que se revista do conteúdo previsto no inciso II se prolata sob
condição suspensiva, a saber, transcurso in albis do prazo assinalado a teor do inciso I, para
superação da omissão legislativa constitucionalmente relevante reconhecida como havida.
§ 2
o
Na sentença, o juiz poderá fixar multa diária para o réu que incida, eventualmente, em
descumprimento da norma regulamentadora aplicada ao caso concreto, independentemente
do pedido do autor.
Art. 52 Disposições aplicáveis
Aplica-se ao mandado de injunção coletivo o disposto neste
código, inclusive no tocante às custas e honorários (art. 16), quando compatível.
Capítulo III – Da ação popular
Art. 53 Disposições aplicáveis
Aplica-se à ação popular o disposto na lei 4717/65, bem
como o previsto neste código, no que for compatível.
Capítulo IV – Da ação de improbidade administrativa
Art. 54 Disposições aplicáveis
Aplica-se à ação de improbidade administrativa o disposto
na lei 8429/92, bem como o previsto neste código, no que for compatível.
PARTE V – DISPOSIÇÕES FINAIS
Art. 55 Princípios de interpretação
Este código será interpretado de forma aberta e flexível,
compatível com a tutela coletiva dos interesses e direitos de que trata.
Art. 56 Aplicação subsidiária do Código de Processo Civil
Aplicam-se subsidiariamente às
ações coletivas, no que não forem incompatíveis, as disposições do Código de Processo
Civil.
Art. 57 Nova redação
Dê-se nova redação aos artigos de leis abaixo indicados:
a) o inciso VIII do artigo 6
o
. da lei 8078/90 passa a ter a seguinte redação:
art. 6
o
. inciso VIII – a facilitação da defesa dos seus direitos, incumbindo o ônus da prova à
parte que detiver conhecimentos técnicos ou informações sobre os fatos, ou maior
facilidade em sua demonstração.
b) o artigo 80 da lei 10741/2003 passa a ter a seguinte redação:
358
art. 80 – as ações individuais movidas pelo idoso poderão ser propostas no foro do seu
domicílio.
Art. 58 Revogação
Revogam-se a Lei 7347, de 24 de julho de 1985; os artigos 81 a 104 da
Lei 8078/90, de 11 de setembro de 1990; o parágrafo 3
o
do artigo 5
o
da Lei 4717, de 29 de
junho de 1965; os artigos 3
o
, 4
o
, 5
o
, 6
o
e 7
o
da Lei 7853, de 24 de outubro de 1989; o artigo
3
o
da Lei 7913, de 7 de dezembro de 1989; os artigos 210, 211, 212, 213, 215, 217, 218,
219, 222, 223 e 224 da Lei 8069, de 13 de junho de 1990; o artigo 2
o
A da Lei 9494, de 10
de setembro de 1997; e os artigos 81, 82, 83, 85, 91, 92 e 93 da Lei 10741, de 1
o
de outubro
de 2003.
Art. 59 Instalação dos órgãos especializados
A União, no prazo de um ano, a contar da
publicação deste código, e os Estados criarão e instalarão órgãos especializados, em
primeira e segunda instância, para o processamento e julgamento de ações coletivas.
Art. 60 Vigência
Este código entrará em vigor dentro de um ano a contar de sua
publicação.
359
ANEXO C – ARESTOS
360
ANEXO C1 – RECURSO EXTRAORDINÁRIO Nº 163231-3/SP
EMENTA E ACÓRDÃO
VOTO DO MINISTRO MAURÍCIO CORRÊA
361
362
363
364
365
366
367
368
369
370
371
372
373
374
ANEXO C2 – RECURSO ESPECIAL Nº 416962/SC
EMENTA E ACÓRDÃO
VOTO DO MINISTRO HAMILTON CARVALHIDO
VOTO-VISTA DO MINISTRO PAULO GALOTTI
375
376
377
378
379
380
381
382
383
384
385
386
387
388
389
390
391
ANEXO C3 – RECURSO EXTRAORDINÁRIO Nº 195.056-1/PR
EMENTA E ACÓRDÃO
VOTO-VISTA DO MINISTRO SEPÚLVEDA PERTENCE
392
393
394
395
396
397
398
399
400
401
402
403
404
405
406
407
408
409
410
411
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