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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA-UNESP
INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS E CIÊNCIAS EXATAS
CAMPUS RIO CLARO
“BROWNFIELDS” E ATORES SOCIAIS
NO MUNICÍPIO DE RIO CLARO (SP):
MEMÓRIAS E REFUNCIONALIZAÇÕES
Carla Patricia Hummel
Orientador: Prof. Dr. Auro Mendes
Dissertação de Mestrado elaborada junto
ao Programa de Pós-Graduação em
Geografia - área Organização do Espaço -
para obtenção do título de Mestre em
Geografia
Rio Claro, SP
2006
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SUMÁRIO
I –Introdução .......................................................................................
1
II – Objetivos gerais e específicos .................................................... 7
Capítulo 1- Embasamento Teórico e Metodológico ........................ 10
1.1 Reestruturações Produtivas na Atividade Industrial e
Globalização da economia .........................................................
10
1.1.1 O lugar no contexto global ....................................... 17
1.2
“Brownfields”: conceitos, experiências estrangeiras,
nacionais e refuncionalizações ..................................................
24
1.2.1 – O caso de Baltimore: benefícios e prejuízos .........
31
1.2.2 - “Brownfields” no Brasil ...........................................
32
1.2.3 – Refuncionalizações de “Brownfields” ................... 34
1.3 Espaço e Tempo na
s cidades: “Brownfields”, memórias
e espaços utópicos ....................................................................
42
1.4
A História Oral como ferramenta para entender a
importância dos “brownfields” ...................................................
55
1.4.1- O caso da herança industrial de Bufallo (EUA) .....
56
1.4.2- A Memória do Trabalho ..............................................
58
1.5- Método e Técnica ..................................................................
60
1.5.1
A Dialética Espaço / Tempo: Estruturas, Formas,
Funções e Processos .........................................................
61
1.5.2 – Procedimentos Metodológicos ................................
72
Capitulo 2 A Industrialização no Municí
pio de Rio Claro e
o Surgimento de “Brownfields” .......................................................
78
2.1 – A Fase Pioneira ................................................................... 82
2.1.1 – As Oficinas da Cia. Paulista de Estradas de Ferro 86
2.1.2 – Cervejaria Rio Claro (SKOL) ....................................
93
2.2 – A Fase Tradicional ...............................................................
97
2.2.1 – Tecelagem Matarazzo ...............................................
99
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2.3 – A Fase Dinâmica ...................................................................
106
2.3.1 – Gurgel Motores ..........................................................
108
Capítulo 3- Entrevistas com os antigos trabalhadores: Uma Lição
de Vida .................................................................................................
118
3.1 O saudosismo dos ferroviários .............................................
120
3.2 O orgulho de trabalhar na cervejaria ...................................
137
3.3 A mão-de-obra feminina na Tecelagem Matarazzo ..............
153
3.4-Gurgel Motores: há dez anos sem solução ..........................
174
Capítulo 4-
Propostas e iniciativas para a refuncionalização dos
“brownfields” de Rio Claro
184
4.1-
Prefeito defende instalação de empresas de alto valor
agregado para refuncionalizar os “brownfields” de Rio Claro .
185
4.2- Secretaria prioriza retomada da atividade industrial ..........
187
4.3- A situação da área da ferrovia na zon
a urbana do
município .......................................................................................
190
4.4-
Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias de
Alimentação analisa desativação da cervejaria .......................
192
4.5 O caso do Shopping Center Rio Claro ................................ 196
4.6-
A ação do Sindicato dos Metalúrgicos na trajetória da
Gurgel Motores ............................................................................
197
4.7- A criação da Cooperativa de Ex-
Funcionários da Gurgel:
uma tentativa de garantir o pagamento dos trabalhadores .....
200
4-8-
A participação da Anteag na formação da cooperativa de
ex-funcionários da Gurgel ...........................................................
207
Considerações finais ..........................................................................
212
Referências bibliográficas ..................................................................
220
ANEXOS
Agradecimentos
Esta pesquisa é o resultado do trabalho de muitas pessoas. A
começar pelas lideranças da comunidade que no momento do fechamento
das bricas que foram importantes para o desenvolvimento do município de
Rio Claro começaram a questionar os motivos da desativação, despertando
dúvidas em minha análise dos fatos na condição de jornalista.
A chegada à Geografia foi permeada por muitas dificuldades, que
puderam ser superadas mediante a colaboração do Professor Doutor Auro
Aparecido Mendes. Apoio que teve início ainda antes da seleção para o
Programa de Pós-Graduação, quando o professor resolveu dar crédito e
apostar num projeto ainda não desenvolvido, mas acalentado anos, por
uma profissional de outra área. Foram horas de orientação, indicações de
obras e correções de textos para apresentar esta “estrangeira” ao mundo da
Geografia. Ao professor, minha gratidão, respeito e admiração.
O projeto foi desenvolvido durante o ano de 2004 juntamente com
meu trabalho como repórter na TV Rio Claro. Essas atividades paralelas
foram possíveis com o apoio dos amigos de trabalho e da coordenadora
Silvia Venturolli, que teve a compreensão necessária para que eu pudesse
comparecer às aulas e a outros compromissos da Pós-Graduação.
No segundo ano da pesquisa um novo apoio foi necessário para
possibilitar a realização das entrevistas com os antigos operários da Cia.
Paulista de Estradas de Ferro, Cervejaria Rio Claro (Skol), Tecelagem
Matarazzo e Gurgel Motores. A etapa exigia dedicação integral para as
visitas aos entrevistados e o tempo disponível necessário para o bom
andamento dos trabalhos. Neste período, foi fundamental a bolsa Demanda
Social fornecida pela Capes.
Este agradecimento também se estende a outros professores da Pós-
Graduação e aos funcionários da biblioteca da universidade, sabedoria e
orientação que me guiaram nestes últimos meses.
Durante todo o projeto estive cercada por familiares e amigos que
tiveram a paciência e o carinho necessários para que eu pudesse realizar o
trabalho. Aos meus filhos, Tiago e Ivan, que mesmo ainda crianças
demonstraram compreensão nas minhas ausências, nas horas de
isolamento em frente ao computador, incluindo as noites e finais de semana.
Aos meus pais, Carlos e Jocelita, e aos meus irmãos, Fabiana, Ivan e
Marcos, pelo apoio para que eu voltasse a estudar depois de mais de dez
anos de concluída a graduação em Jornalismo. À Renata, prima e amiga de
mais de trinta anos de convivência, pelas valiosas aulas de Inglês. E ao
Carlos, companheiro sempre pronto a entender minhas ausências e a me
apoiar nos momentos importantes, desde a qualificação. Das tarefas simples
como me ajudar a desvendar o computador até o carinho necessário em
determinados momentos, todos foram fundamentais para que este projeto
chegasse à etapa que agora apresento.
Concluo este agradecimento a um grupo de trabalhadores nem
sempre valorizado, nem sempre consciente de sua importância na
construção da sociedade em que vivemos hoje. Aos homens e mulheres que
trabalharam nas linhas de produção da Cia. Paulista de Estradas de Ferro,
da Cervejaria Rio Claro (Skol), da Tecelagem Matarazzo e da Gurgel
Motores. Eles não tiveram a oportunidade de estudar, ainda crianças foram
para o trabalho. Mas tiveram a sabedoria de trabalhar, sem preguiça, para
erguer o que um dia foram as empresas em estudo. Talvez esse país,
atormentado por uma avalanche de denúncias sobre pessoas que passam o
dia de olho no dinheiro blico, estivesse um pouco melhor hoje se
tivéssemos mais gente trabalhando, apenas trabalhando.
Comissão Examinadora
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____________________________________
aluna- Carla Patricia Hummel
Rio Claro, _____ de _____________de______
Resultado______________________________________________
G330.981 Hummel, Carla Patricia
H925b Brownfields e atores sociais no município de Rio Claro
(SP) : memórias e refuncionalizações / Carla Patrícia
Hummel. – Rio Claro: [s.n.], 2006
234 f. : il., quadros, fots., mapas.
Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual
Paulista, Instituto de Geociências e Ciências Exatas
Orientador: Auro Aparecido Mendes
1. Brasil – Condições econômicas. 2. Indústrias
desativadas. 3. Operários. 4. Memórias do trabalho. I.
Título.
Ficha Catalográfica elaborada pela STATI – Biblioteca da UNESP
Campus de Rio Claro/SP
Abstract
The brownfields” cases represent a challenge to development. Many cities
discuss which is the suitable destination to old industrial, commercial and
service buildings that had importance to economy in the past, but nowadays,
being abandoned or underuselful, they can grow difficult to development . In
Rio Claro (SP), the old industrial abandoned real estate presence also
stimulate community´s attention, as in the cases of old factories of Cia.
Paulista de Estradas de Ferro; Cervejaria Rio Claro (Skol) and Gurgel
Motores. In the city there is also cases of old “brownfields”. These buildings
had already been refunctioned, as Shopping Center Rio Claro, installed in
Tecelagem Matarazzo. If in one hand, there is the necessity of retaking the
economical activity in these real estate, avoiding its degradation, it also is
needed to avoid destruction of these old patrimony, which represents a link
between citizen and his past, a way to preserve work memory. The search
for ideal city should consider its history preservation, so then the future will
have the past as base. In past, old industrial buildings are included, “forms”
inherited from many phases of industrialization process that nowadays need
new “function”.
Keywords: unactivation of industries/memory/workers
Resumo
Os casos de “brownfields” representam um desafio ao desenvolvimento.
Muitas cidades discutem qual a destinação adequada para antigos prédios
industriais, comerciais e de serviços que no passado tiveram relevância na
economia, mas que atualmente, estando abandonados ou sub-utilizados,
podem dificultar o desenvolvimento. Em Rio Claro (SP), a presença de
antigos imóveis industriais abandonados também desperta a atenção da
comunidade, como nos casos das antigas Oficinas da Cia. Paulista de
Estradas de Ferro; da Cervejaria Rio Claro (Skol) e da Gurgel Motores. O
município também abriga casos de antigos “brownfields” que foram
refuncionalizados, como o Shopping Center Rio Claro, instalado na antiga
Tecelagem Matarazzo. Se por um lado há a necessidade de retomar as
atividades econômicas nesses imóveis, evitando sua degradação, também é
preciso evitar a destruição desses antigos patrimônios, que representam um
elo de ligação do cidadão com seu passado, um meio para a preservação da
memória do trabalho. A busca pela cidade ideal deve considerar a
preservação de sua história, para que o futuro tenha o passado como base.
Passado onde estão também incluídos os antigos prédios industriais,
“formas” herdadas de várias fases do processo de industrialização e que
hoje carecem de novas “funções”.
Palavras-chave: desativação de indústrias/memória/operários
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA - UNESP
Instituto de Geociências e Ciências Exatas-Rio Claro
Programa de Pós-Graduação em Geografia
“BROWNFIELDS” E ATORES SOCIAIS NO
MUNICÍPIO DE RIO CLARO (SP):
MEMÓRIAS E REFUNCIONALIZAÇÕES
Carla Patricia Hummel
Orientador: Prof.Dr.Auro A. Mendes
Rio Claro – SP
2006
1
I- Introdução
O trabalho como repórter permite ao jornalista entrar em contato
diariamente com a comunidade. Nesse período de quatorze anos (1991-
2005) em que trabalhei nas redações do Jornal Cidade e da TV Rio Claro,
em Rio Claro-SP, várias reportagens sobre o fechamento de indústrias que
foram significativas para o desenvolvimento do municípo fizeram parte da
minha rotina. A abordagem dos fatos geralmente tendia para as
consequências econômicas da desativação das fábricas, e sempre ficava a
questão sobre os efeitos sociais dessas mudanças na comunidade. Faltam
aos meios de comunicação o espaço e o tempo necessários para entender
porque essas fábricas foram fechadas e qual o efeito desse fechamento na
vida dos homens e mulheres que trabalhavam nessas unidades e foram
surpreendidos pela perda do emprego. O mesmo se aplica às atividades que
entraram em decadência, como no caso da ferrovia.
Nas pesquisas sobre a história das fábricas consideradas mais
importantes para o município surgiam uma outra questão. A falta de
referências aos operários. Nas poucas obras sobre o tema, raramente são
feitas citações sobre os trabalhadores das linhas de produção. A galeria de
fotos e as biografias geralmente são dedicadas aos proprietários dos
empreendimentos.
Foi nas-Graduação em Geografia da Unesp que encontrei as
respostas para essas questões. No Mestrado descobri que meus
questionamentos, embora minha formação seja em Comunicação Social, na
verdade também é Geografia. Geografia na medida em que tratam da
relação do indivíduo não somente com o espaço da habitação, mas também
com o espaço do trabalho, onde passamos grande parte, senão a maior, do
tempo de nossas vidas. Geografia também enquanto relação que o homem
desenvolve com determinadas formas, e as consequências que ele sofre
quando essas formas mudam de função. Geografia quando através das
entrevistas com os ex-funcionários das fábricas é possível constatar o
2
quanto o abandono dos prédios pode afetar a análise que os trabalhadores
fazem de toda a sua vida de trabalho.
É certo que a Comunicação Social também pode explicar essa
relação do indivíduo com o trabalho. Nesta pesquisa, porém, como iniciante
na Geografia, preferi concentrar esforços em seu corpo teórico, para quem
sabe, no futuro, num outro trabalho, poder finalmente estar devidamente
embasada para desenvolver a interdisciplinaridade.
Nesse estudo, os antigos prédios industriais do município de Rio
Claro (SP) são abordados de acordo com o conceito de “brownfield”. O
desenvolvimento do espaço urbano e a busca por melhor qualidade de vida
para as populações implicam na necessidade de soluções para os possíveis
entraves a essas metas. As políticas blicas muitas vezes esbarram em
desafios gerados pelas mudanças econômicas e sociais ocorridas nas
cidades nas últimas décadas..
Os casos de “brownfields” representam um desses desafios ao
desenvolvimento. Em várias partes do mundo, muitas cidades discutem qual
a destinação mais adequada para antigos prédios industriais, comerciais e
de serviços que no passado tiveram relevância na economia dos municípios,
mas que atualmente, estando abandonados ou sub-utilizados, podem
dificultar os programas de desenvolvimento.
Os primeiros estudos de casos de “brownfields” foram realizados na
Europa, pioneira na industrialização, e nos Estados Unidos, onde as
iniciativas públicas e privadas demonstram resultados através da
retomada das atividades nesses espaços. Sanchez (2001, p.24) lembra que
a “obsolescência, o fechamento e a relocalização afetam todos os setores
industriais”. No Canadá, durante o período de 1984 e 1990, cerca de 20%
dos sítios industriais foram fechados. Hobsbawm (1996,p.299) destaca que
entre 1980 e 1984, durante os primeiros anos de governo de Margaret
Thatcher, a Grã-Bretanha perdeu 25% de sua indústria manufatureira.
O surgimento de “brownfields” é uma realidade nos países onde a
industrialização atravessa mudanças. Nos Estados Unidos, a indústria
siderúrgica concentrada em Pittsburgh, na Pensilvânia, no passado tornou a
3
cidade conhecida como a “capital mundial do aço”, uma posição dominante
mantida até a década de 1950. O processo de declínio da atividade na
cidade teve seu auge na década de 1980, quando oito das 14 aciarias
fecharam suas portas por motivos como o sucateamento da indústria, o alto
custo da mão-de-obra e a concorrência de produtos estrangeiros. Em todo o
país, a produção do aço passou de 132 milhões de toneladas em 1974 para
73 milhões em 1986. A decadência atingiu também as cidades de Buffalo e
Detroit, gerando conseqüências como problemas sociais e econômicos e
“uma coleção de edifícios e terrenos desocupados e freqüentemente
contaminados, conhecidos nos Estados Unidos como brownfields”
(SANCHEZ,2001,p.25).
Devido ao grande mero de imóveis carentes de refuncionalização,
os países onde o registro de “brownfields” é mais freqüente apresentam
algumas alternativas para a retomada das atividades. Na Alemanha, a
reestruturação da região siderúrgica do Vale do Ruhr foi promovida através
de um trabalho conjunto entre o poder público, empresas e outros atores. De
acordo com Sanchez (2002, p. 45), na França o poder blico teve
intervenção na reestruturação das regiões carboníferas.
No Brasil, de acordo com Vasques (2005, p.35), “a problemática dos
‘brownfields’ está presente em várias cidades, exigindo de órgãos
competentes políticas públicas capazes de intervir nestes espaços, dotando-
os de novas potencialidades”. De acordo com Sanchez, um levantamento
realizado pela Cetesb - Companhia Estadual de Tecnologia de Saneamento
Ambiental em 1976 apontava a existência de 3.800 estabelecimentos
industriais desativados na Região Metropolitana de São Paulo. Os exemplos
brasileiros de refuncionalização de “brownfields” também estão localizados
principalmente na capital paulista. Entre os exemplos citados por Vasques
(2005,p.63) está o Arquivo do Estado de São Paulo, inaugurado em 1997 no
bairro Santana, que foi instalado numa antiga fábrica.
A preocupação com as conseqüências geradas pelos “brownfields”
atualmente não é mais uma exclusividade das metrópoles. Em algumas
cidades de dio porte, prédios industriais, comerciais e de serviços que
4
tiveram relevância no desenvolvimento dos municípios estão hoje
abandonados, interferindo no entorno e deixando de gerar empregos e
arrecadação.
Em Rio Claro, município do Interior de São Paulo localizado a 170
quilômetros da capital, a presença de antigos imóveis industriais
abandonados também desperta a atenção da comunidade, da iniciativa
privada e do poder público. A atual administração municipal afirma estudar a
desapropriação do prédio da antiga Gurgel Motores, localizado às margens
da rodovia Washington Luiz, que foi levado à leilão em seis ocasiões
desde a falência da fábrica, em 1996, mas a venda não foi efetivada. Outros
casos de “brownfields” também podem ser encontrados no município, como
o das Oficinas da Cia. Paulista de Estradas de Ferro, que no passado
chegaram a empregar mais de 2 mil trabalhadores e m parte de seus
barracões em estado de abandono em plena área central do município e o
da Cervejaria Skol, também localizada na área central, que após o
fechamento da fábrica na década de 1990 foi dividida em barracões sub-
utililizados para atividades diversas como uma faculdade privada e um
depósito de alimentos.
O município de Rio Claro também abriga casos de antigos
“brownfields” que foram refuncionalizados, como o Shopping Center Rio
Claro, instalado na antiga Tecelagem Matarazzo, na Vila Paulista.
Os “brownfields” podem ser analisados como uma conseqüência da
modernidade. Se, por um lado, a necessidade de retomar as atividades
econômicas nesses imóveis, evitando sua degradação, também é preciso
evitar a destruição desses antigos patrimônios que representam um elo de
ligação do cidadão com seu passado.
Como um tema recente dentro da questão urbana brasileira, os
“brownfields” ainda carecem de uma definição que possa abranger a
realidade do país. O próprio termo “brownfield” utilizado para designar esses
edifícios foi importado dos Estados Unidos. Para os que estudam o tema, o
primeiro objetivo atualmente é definir as características dos “brownfields”
brasileiros, partindo da necessidade de se delimitar quais os prédios que
5
representam um desafio ao desenvolvimento no contexto da realidade
brasileira.
Vale destacar que os problemas causados por um “brownfield” não
são apenas de ordem econômica (desvalorização do entorno, espaço ocioso
que não gera empregos nem arrecadação) e de prejuízos à qualidade de
vida (transformação dos prédios em esconderijos para marginais e usuários
de drogas, depósito de lixo ou criadouro de insetos). Para os cidadãos que
acompanharam o auge do funcionamento dessas indústrias, o encerramento
das atividades e a degradação dos prédios representam ainda o fim de uma
época, o abandono de valores e projetos que um dia foram considerados
ideais para alavancar o desenvolvimento do município.
Essa “decepção” com o rumo dado às antigas indústrias pode ser
comprovada na tristeza com que os ferroviários analisam a situação atual
das Oficinas da antiga Cia. Paulista de Estradas de Ferro, concedidas desde
a década de 1990 à iniciativa privada. A mesma melancolia pode ser
percebida nos comentários de ex-funcionários da antiga Cervejaria Rio
Claro, mais tarde Skol, marca que a mão-de-obra empregada na fábrica
tratava com orgulho, numa época em que a relação entre o empregado e a
empresa também se revestia de convivência e lazer.
Num período bem diferente da época atual, onde muitos
trabalhadores permaneciam em seu primeiro emprego até a aposentadoria,
esses empreendimentos deixaram o um saldo econômico como
também uma dívida de nostalgia com os que ali trabalharam ou com os
vizinhos às fábricas. O anseio para que esses prédios sejam
refuncionalizados que encontramos no poder público e em toda a
comunidade parece ser mais intenso neste segmento da população. Como
se a volta do trabalho a esses prédios pudesse resgatar o orgulho pelas
atividades desenvolvidas no passado.
Para analisar os “brownfields” em Rio Claro, este trabalho está
estruturado em quatro capítulos. No primeiro capítulo, intitulado
“Embasamento Teórico e Metodológico” são apresentados os reflexos das
mudanças ocorridas na esfera global nos lugares; o processo brasileiro de
6
industrialização e as mudanças no lugar. O capítulo traz ainda os conceitos,
abordagens e experiências estrangeiras e nacionais de refuncionalização de
“brownfields”. Também estão nesse capítulo as discussões sobre espaço e
tempo nas cidades e a metodologia científica da pesquisa.
o segundo capítulo, intitulado “A Industrialização no município de
Rio Claro e o surgimento de brownfields” traz a história da implantação das
indústrias no município e o levantamento sobre os quatro empreendimentos
escolhidos para o estudo sobre os “brownfields” em Rio Claro inseridos nas
três fases do processo de industrialização identificadas pela Professora
Doutora Silvia Selingardi Sampaio.
No terceiro capítulo, intitulado “Entrevistas com os trabalhadores: uma
lição de vida” estão os depoimentos de ex-funcionários das oficinas da Cia.
Paulista, Cervejaria Rio Claro, Tecelagem Matarazzo e Gurgel Motores,
abordando como era a relação com a fábrica e com os colegas de trabalho,
e qual o saldo dessa época remanescente na memória dos trabalhadores.
No quarto capítulo, intitulado “Propostas e iniciativas para a
refuncionalização dos “brownfiedls” de Rio Claro” estão as entrevistas com
lideranças do poder público e entidades abordando propostas para que os
antigos prédios industriais possam voltar a abrigar uma atividade, que pode
ou não ser a sua função original, e ainda as conclusões finais.
7
II - Objetivos gerais e específicos
O objetivo geral deste trabalho é pesquisar os principais “brownfields”
no município de Rio Claro (SP) e demonstrar a relevância desses antigos
espaços industriais, seus significados e as possibilidades de
refuncionalizações. Mesmo em cidades médias, como no caso de Rio Claro,
os “brownfields” estão presentes e têm sido objeto de interesse e de
ações de diferentes segmentos sociais.
Foram escolhidos três casos de “brownfields” e um caso de espaço
industrial que deixou de ser “brownfield” ao passar por um processo de
refuncionalização no município em estudo. É importante destacar que cada
“brownfield” representa o saldo de uma fase do processo de industrialização
do município. Assim, da “fase pioneira” temos as Oficinas da Companhia
Paulista de Estradas de Ferro e a antiga Cervejaria Skol; da “fase
tradicional” foi pesquisado o prédio da antiga Tecelagem Matarazzo,
refuncionalizado através da implantação do Shopping Center Rio Claro e da
“fase dinâmica” foi escolhida a Gurgel Motores (Mapa 1- Página 9).
Esses “brownfields” também apresentam diferenças quanto à
natureza do empreendimento e ao seu estado atual. As oficinas da Cia.
Paulista são o exemplo de patrimônio público, que mesmo após a
concessão à iniciativa privada ocorrida na década de 1990 parte dos galpões
passou para a administração da Rede Ferroviária Federal. A ferrovia
também envolve a questão do patrimônio histórico porque parte de seu
percurso dentro da área central de Rio Claro (antiga estação ferroviária)
passou por processo de tombamento. A Cervejaria Skol é um exemplo de
patrimônio privado atualmente sub-utilizado. A antiga sede de lazer dos
trabalhadores da cervejaria passou por um processo de refuncionalização e
abriga hoje a sede do Senac - Serviço Nacional do Comércio, enquanto os
outros barracões foram divididos, estando alguns em estado de abandono e
outros utilizados por diferentes atividades.
Como objetivos específicos, a pesquisa mostra como os
trabalhadores desses antigos empreendimentos vivenciaram o auge das
8
indústrias e de que forma avaliam atualmente seu estado de abandono ou
sub-utilização. Esse levantamento foi realizado através de entrevistas com
os ex-funcionários. No caso dos trabalhadores da tecelagem Matarazzo, foi
possível verificar também como a refuncionalização da antiga fábrica é
avaliada pelos ex-funcionários da indústria.
Além de identificar os “brownfields” também é preciso levantar
alternativas para a refuncionalização. Nesse caso, foram ouvidos outros
“atores sociais”: os administradores públicos, sindicalistas e representantes
de entidades envolvidas nos projetos de refuncionalização dos “brownfields”.
9
10
Capítulo I- Embasamento Teórico e Metodológico
1.1- Reestruturações Produtivas na Atividade Industrial e Globalização
da Economia
O surgimento do modo de produção capitalista aconteceu na
Inglaterra durante a Revolução Industrial que culminou com a implantação
da produção fabril e a constituição do regime especificamente capitalista de
produção. De acordo com Mendes (1997, p.25), no final do século XV e ao
longo do século XVI, o rápido avanço da produção mercantil permitiu certa
diferenciação do capital comercial”. Com os monopólios das grandes
companhias, os diferenciais entre preços de compra e venda eram
ampliados, possibilitando o surgimento de pequenos comerciantes que não
gozavam de privilégios. Este novo capital foi o responsável pela
implantação no campo da produção artesanal, através do sistema
denominado “putting-out”.
Esta nova forma de organização através da divisão técnica do
trabalho e da progressiva especialização dos produtores permitiu às famílias
de camponeses combinar o trabalho agrícola com a atividade artesanal,
reduzindo custos de mão-de-obra em relação aos custos do artesanato
corporativo ou gremial. O “putting-out” permitiu o surgimento de artigos mais
acessíveis ao mercado consumidor de massa. Até meados do século XVII, a
pequena produção imperou na manufatura e na agricultura. “Ao longo do
século XVIII, vai sendo plasmada uma divisão internacional do trabalho, na
qual a Inglaterra se especializava nas atividades manufatureiras, e as
colônias se restringiam à produção primária” (MENDES,1997,p.26).
Para Bauman (2003, p.32), o marco do capitalismo moderno foi a
separação entre os negócios e lar. “Os homens e mulheres deviam primeiro
ser separados da teia de laços comunitários que tolhia seus movimentos,
para que pudessem ser mais tarde redispostos como equipes de fábrica”.
Com a criação do mais moderno sistema bancário da Europa, em
meados do século XVIII, através da proliferação dos bancos provinciais, foi
11
possível mobilizar capitais do comércio e da agricultura para serem
direcionados à indústria. Além de formar o capital industrial, esses recursos
também permitiram a implantação da infra-estrutura necessária ao setor,
como a abertura de estradas e portos.
O desenvolvimento da indústria trouxe a decadência para as
atividades artesanais e manufatureiras, que a mecanização barateou os
custos dos produtos. Sem opção, essa massa de trabalhadores acabou
sendo incorporada à indústria. A classe operária da Inglaterra surgiu dentro
de um sistema de reduzidos salários e aumento da jornada de trabalho.
“Findo o processo de Revolução Industrial, a partir da década 30 do século
XIX, o capitalismo torna-se uma realidade não somente para a Inglaterra,
mas para o mundo” (MENDES,1997,p.28). Até a Primeira Guerra Mundial,
os investimentos britânicos eram predominantes. Entre as regiões em
desenvolvimento que lideravam a atração desses capitais, a América Latina
era um dos destinos mais favoráveis.
A relevância das regiões em desenvolvimento resulta da importância dos
recursos naturais, das matérias-primas e produtos agrícolas existentes
nessas áreas. O fornecimento desses produtos evidencia a posição
subordinada dessas regiões na divisão internacional do trabalho e o
aprofundamento das relações de dependência entre o centro e a periferia
(MENDES, 1997,p.28)
O fortalecimento da indústria provocou mudanças mundiais. Os
Estados Unidos e demais países da Europa começaram a abandonar suas
políticas mercantilísticas, enquanto na América Latina os laços coloniais
eram eliminados com o surgimento de novas nações.Com as mudanças,
foram ampliados a área de concorrência em nível mundial e o livre fluxo de
mercadorias, de capital e de força de trabalho, porém com hegemonia do
capitalismo inglês.
Com a oferta de máquinas inglesas no mercado mundial, os países
considerados “atrasados” no processo de industrialização puderam iniciar
uma fase de crescimento. Nos Estados Unidos, França e Alemanha, o
artesanato e a manufatura foram substituídos pela produção industrial com
mão-de-obra especializada dos imigrantes ingleses. Em 1870, começa a
12
Segunda Revolução Industrial, baseada no surgimento de um novo padrão
tecnológico-aço, eletricidade e química, entre outros, substituindo o ferro, o
carvão e as máquinas a vapor.
Ao findar o século XIX, os países de industrialização atrasada contavam com
as condições exigidas (considerável infra-estrutura de transporte e
comunicações, mão-de-obra abundante e barata, recursos naturais, entre
outras) para uma nova etapa do modo de produção capitalista
(MENDES,1997,p.31)
Para Bauman (2003, p.36), duas tendências acompanharam o
capitalismo moderno ao longo de toda a sua história. A primeira atingiu seu
ápice no início do século XX, com a linha de montagem e o “estudo do
tempo e do movimento” e da “organização científica do trabalho de
Frederick Taylor, que pretendia separar o desempenho produtivo dos
motivos e sentimentos dos trabalhadores. No Taylorismo, segundo Bauman
(2003,p.37), “os produtores deveriam ser expostos ao ritmo impessoal da
máquina, que estabeleceria o ritmo do movimento e determinaria qualquer
gesto”.
A segunda tendência descrita por Bauman ocorreu nas “cidades
modelo realizadas pela iniciativa de alguns filantropos que associavam o
sucesso industrial à sensação de bem estar entre os trabalhadores. Nesse
modelo, a aposta estava nos padrões morais de trabalhadores, sua piedade
religiosa, na generosidade da vida familiar e sua confiança no chefe-patrão.
Além das moradias, as cidades-modelo também contavam com capelas,
escolas primárias, hospitais e outros confortos. Bauman (2003,p.37)
destaca que “a aposta era na recriação da comunidade em torno do lugar de
trabalho e, assim, na transformação do emprego na fábrica numa tarefa para
toda a vida”.
Com a crise econômica de 1929, os Estados Unidos assumiram a
posição de potência, enquanto a Inglaterra perdia o controle do equilíbrio do
poder europeu. No trabalho, a implementação do Fordismo, o sistema de
produção em massa, provoca mudanças profundas no paradigma de
produção de muitos países e no modo de vida da população.
13
De acordo com Bauman (2003, p.38), na década de 1930 ganharam
força as idéias de Elton Mayo fundamentadas em experimentos nas
Empresas Hawthorne. Para Mayo, o mais importante seria desenvolver
entre os trabalhadores o sentimento de que todos compartilhavam dos
mesmos objetivos, o conceito de “estamos todos no mesmo barco”.
A célebre “fábrica fordista” tentou a síntese das duas tendências, combinando
assim o melhor dos dois mundos, sacrificando o mínimo tanto da
“organização científica” quanto da união de tipo comunitário.(...) Durante
cerca de meio século, e particularmente nas “três gloriosas décadas” do
“acordo social” que acompanhou a reconstrução do pós-guerra, a “fábrica
fordista” serviu de modelo para o ideal perseguido, com graus variados de
sucesso, por todas as outras empresas capitalistas (BAUMAN, 2003, p.39)
Desde o final da Segunda Guerra Mundial, Mendes (1997, p.34)
destaca que “se verifica um movimento radical de transformações,
abarcando praticamente todas as órbitas da atividade econômica, não
apenas a produtiva e a tecnológica, mas também a comercial, a monetária e
a financeira”.
A partir da década de 1950 é intensificada a concorrência
intercapitalista sob a hegemonia americana, com o crescimento das filiais
das grandes corporações. Na cada de 1960, os padrões de
industrialização foram parecidos em todos os países, com a generalização
do padrão de produção e de consumo dos Estados Unidos nos demais
países centrais, que também se difundiu nos países do chamado “Terceiro
Mundo”. na década de 1970 a crise monetária internacional e o choque
do petróleo causam profundas mudanças na economia, com a
transnacionalização global do sistema capitalista e a perda progressiva da
hegemonia norte-americana. Foi também durante a década de 1970 que os
países de industrialização tiveram importante papel na nova divisão da
configuração internacional do trabalho e na atração de grandes capitais, mas
somente alguns conseguiram entrar na disputa competitiva internacional.
As mudanças ocorridas na economia mundial levaram as indústrias à
uma reestruturação produtiva, com os países avançados procurando
desenvolver tecnologia de ponta, capacitação para buscar novos mercados
14
e reestruturação das indústrias tradicionais. De acordo com Mendes
(1997,p.38), a reestruturação produtiva teve como elementos-chave o
aumento de gastos em pesquisa e desenvolvimento; a difusão de
progressos técnicos; mudanças nas relações comerciais com
aproveitamento de economias de escala e das economias de escopo;
processo de incorporação e fusão das empresas; centralização de capitais;
redefinição da divisão do trabalho entre e intra-empresas (integração,
concentração, desintegração vertical e horizontal da produção,
desconcentração) e racionalização de certas atividades através de políticas
de cooperação tecnológica e associação de empresas para grandes
projetos.
(...)a reestruturação do setor produtivo das economias avançadas coloca os
países de industrialização tardia (entre os quais o Brasil) diante de um
desafio: a necessidade de ganhar competitividade para manter ou ampliar sua
participação no mercado mundial (MENDES,1997,p.38)
Entre os fatores que ajudaram a consolidar o sistema capitalista
transnacional monopolista/oligopolista estão a internacionalização do
sistema de produção industrial, dispersão geográfica de grandes
corporações sediadas nos países desenvolvidos, emergência de uma nova
Divisão Internacional do Trabalho e/ou da produção e o surgimento de
países de industrialização recente, como o Brasil. A internacionalização do
sistema produtivo foi acompanhada por avanços simultâneos como os
ocorridos nos meios de comunicação e de transportes; deslocamento de
pessoal com funções executivas e de decisão; obtenção, processamento e
transmissão de informações e a disjunção espacial das atividades
produtivas.
O desenvolvimento das empresas, porém, não foi acompanhado pela
melhoria da qualidade de vida entre a população. De acordo com Harvey
(2004, p.65), o Relatório de Desenvolvimento Humano das Nações Unidas
de 1996 mostrou que entre 1960 e 1991 a parcela dos 20% mais ricos
passou a ter de 70 para 85% da renda global, enquanto a parcela dos mais
15
pobres teve a renda total reduzida de 2,3 para 1,4%. Em 1991, mais de 85%
da população mundial recebia apenas 15% da renda total.
Para Bauman (2003, p.45), a modernidade fez com que o trabalho,
antes tido como o eixo da vida, passasse a ser “frágil e quebradiço”.
De longe a mais dura das gaiolas de ferro em que a vida média costumava
ser inscrita era o quadro social em que se ganhava o sustento; o escritório ou
a planta industrial, os trabalhos ali realizados, as habilidades necessárias para
realizá-los e a rotina diária. Solidamente encapsulado nessa moldura, o
trabalho podia razoavelmente ser visto como uma vocação ou a missão de
uma vida: como o eixo em torno do qual o resto da vida se resolvia e ao longo
do qual se registravam as realizações. Agora, esse eixo está irreparavelmente
quebrado. Em lugar de ter ficado “flexível” como os porta-vozes do admirável
mundo novo gostariam que fosse percebido, ele se tornou frágil e quebradiço.
Nada pode (ou deveria) ser fixado a esse eixo com segurança (BAUMAN,
2003, p. 45-46)
Na avaliação do autor, a globalização trouxe uma rede de
dependências de âmbito mundial, enquanto as instituições passíveis de
controle político não conseguem acompanhar esse ritmo, assim como não
acontece o surgimento de algo que se assemelhe a uma cultura
verdadeiramente global.
Para Harvey (2004, p.7), os termos globalização e corpo são
dominantes conceituais na modernidade.
Globalização parece ter adquirido proeminência pela primeira vez quando a
American Express fez propaganda do alcance global de seu cartão na metade
dos anos 1970. O termo difundiu-se a partir disso como fogo em capim na
imprensa financeira e de negócios, principalmente como legitimação para a
desregulamentação dos mercados financeiros (HARVEY, 2004,p.27)
O autor destaca que a globalização também ajudou a fazer parecer
inevitável a redução dos poderes estatais em termos de regulamentação dos
fluxos de capital e se tornou um instrumento político extremamente potente
de privação de poder dos movimentos operários e sindicais nacionais e
internacionais. Na década de 1980 o termo colaborou para a formação de
uma pesada atmosfera de otimismo empresarial em torno do tema de
libertação dos mercados da tutela estatal. o interesse pelo corpo como
fundamento de todo tipo de investigação teórica nas últimas décadas, de
acordo com Harvey, tem uma dupla origem. A primeira seriam as questões
16
de gênero, de sexualidade, do poder das ordens simbólicas e da significação
da psicanálise. O segundo impulso veio dos movimentos de pós-
estruturalismo em geral e da desconstrução em particular. Com a perda da
confiança em todas as categorias de compreensão do mundo antes
estabelecidas, o efeito foi a volta ao corpo como base irredutível da
compreensão.
Harvey salienta que a globalização não é um fenômeno recente. Seu
início pode ter acontecido em 1492, ou antes, disso, porém com outra
roupagem. O conceito também foi objeto de estudo ade Marx e Engels
em seu “Manifesto”. “Impelida pela necessidade de mercados sempre novos,
a burguesia invade todo o globo. Necessita estabelecer-se em toda parte,
explorar em toda parte, criar nculos em toda parte” (MARX e
ENGELS,1952, p.46-47 apud HARVEY,2004,p. 41). Quanto à indústria, Marx
e Engels avaliavam que “as antigas indústrias nacionais são destruídas e
continuam a -lo diariamente. o suplantadas por novas indústrias (...)
que não empregam mais matérias-primas nacionais, mas sim matérias-
primas vindas das regiões mais distantes”.
O capitalismo produz uma paisagem geográfica (de relações espaciais, de
organização territorial e de sistemas de lugares ligados por meio de uma
divisão “global” do trabalho e de funções) apropriada à sua própria dinâmica
de acumulação num momento particular de sua história, simplesmente para
ter de reduzir a escombros e reconstruir essa paisagem geográfica a fim de
acomodar a acumulação num estágio ulterior (HARVEY, 2004, p.86-87)
Nesse processo, Harvey distingue aspectos como as frequentes
reduções do custo e do tempo de deslocamento no espaço que têm sido um
foco contínuo de inovação tecnológica; a construção de infra-estruturas
físicas fixas destinadas a facilitar esses deslocamentos, assim como a dar
suporte a atividades de produção, de troca, de distribuição e de consumo,
exerce uma força bem distinta sobre a paisagem geográfica. “Há cada vez
mais capital embutido no espaço como capital-terreno, capital fixo na terra,
criando uma “segunda natureza” e uma estrutura de recursos
geograficamente organizada que inibe cada vez mais a trajetória do
desenvolvimento capitalista” completa Harvey (2004, p. 87). O terceiro
17
elemento é a construção da organização territorial primordialmente (mas não
de modo exclusivo) por meio do poder estatal de regular o dinheiro, a lei e a
política, bem como de monopolizar os meios de coerção e de violência de
acordo com uma vontade territorial soberana.
Dentro desse contexto, a globalização passa a ser explicada, de
acordo com Harvey (2004, p. 89) como uma conseqüência de fatores como
a desregulamentação financeira iniciada nos Estados Unidos no começo dos
anos 1970; as ondas de profunda mudança tecnológica e de inovação e
melhorias de produtos; o sistema da mídia e das comunicações,
principalmente a chamada “revolução da informaçãoe a liberação de todo
gênero de atividades de restrições espaciais precedentes, permitindo
rápidos ajustes de localização da produção, do consumo e de populações,
que aflorou devido ao custo e ao tempo de transporte de mercadorias.
Entre as conseqüências da globalização apontadas por Harvey (2004,
p. 92-97) estão a alteração das formas de produção e de organização;
aumento da força de trabalho assalariada global (que mais que duplicou nos
últimos vinte anos); mudanças na população global; mudanças na
urbanização (que passou a assumir as raias de uma hiperurbanização;
alterações na territorialização do mundo e o surgimento de um novo conjunto
de problemas políticos e ambientais globais). Esta última conseqüência diz
respeito ao problema da preservação e produção de diversidades culturais,
de modos de vida distintivos, de circunstâncias lingüísticas, religiosas e
tecnológicas particulares de modos de produção, de troca e de consumo
não-capitalistas e capitalistas.
1.1.1- O lugar no contexto global
No mundo moderno, a nova realidade urbana gera uma nova
problemática espacial. Carlos (1996, p. 4) destaca que embora alguns
autores apontem na globalização a desterritorialização do homem e de suas
18
atividades, ao contrário, a autora entende que o espaço atualmente é o
resultado da convivência entre o local e o mundial.
(...) hoje, o processo de reprodução das relações sociais dá-se fora das
fronteiras do lugar específico até pouco vigentes. Novas atividades criam-
se no seio de profundas transformações do processo produtivo, novos
comportamentos se constróem sob novos olhares a partir da constituição do
cotidiano (CARLOS,1996,p.14)
Na avaliação da autora, as profundas transformações ocorridas na
modernidade não acarretam na anulação do espaço, mas sim em sua
reafirmação. Para Carlos (1996, p. 5), “no espaço se encontram a brecha
objetiva (sócio-econômica) e a brecha subjetiva (poética)”. Entre os fatores
que caracterizam o espaço atual estão a desigualdade e os obstáculos, o
que o torna “o lugar e o meio das diferenças”. o tempo se transformou,
comprimindo-se. “O tempo do percurso é outro, compactou-se de modo
impressionante, mas as distâncias continuam, necessariamente, a serem
percorridas - por mercadorias, fluxos de capitais, informações, etc” analisa
Carlos (1996,p.14).
Para Ribeiro (1988, p. 42-43), o controle do tempo é o grande
elemento detentor de poder da modernidade. “Na verdade, o que se verifica
é um setor de ponta, tecnológico, enraizado na indústria bélica, que é a
grande responsável pelas descobertas e avanços, principalmente na esfera
da comunicação, entendida como o transporte de mercadorias, pessoas e
informações”.
O autor explica que a redução do tempo na produção não teria
validade se não viesse acompanhada por uma redução no tempo de
circulação, seja de mercadorias ou de informações. “ A produção hoje possui
dois tempos, um deles vinculado ao tempo de circulação” (RIBEIRO, 1988,
p. 43).
Ao invés de ser abolido, o tempo passa por um processo de
“diminuição”, devido à aplicação do desenvolvimento da ciência e da
tecnologia no processo produtivo.
19
Por sua vez, a globalização materializa-se concretamente no lugar, aqui se
lê/percebe/entende o mundo moderno em suas múltiplas dimensões, numa
perspectiva mais ampla, o que significa dizer que no lugar se vive, se realiza o
cotidiano e é que ganha expressão o mundial. O mundial que existe no
local redefine seu conteúdo, sem, todavia anularem-se as particularidades
(CARLOS,1996,p.15)
Em sua concepção, o lugar permite entender a produção do espaço
atual, ao apontar a perspectiva de se pensar seu processo de
mundialização. É também através do lugar que se pode pensar o viver e o
habitar, o uso e o consumo, os processos de apropriação do espaço. Para
Carlos (1996, p. 5), “o lugar guarda em si e não fora dele o seu significado e
as dimensões do movimento da história em constituição enquanto
movimento da vida, possível de ser apreendido pela memória, através dos
sentidos e do corpo”.
Carlos lembra que atualmente um debate muito amplo sobre a
noção de lugar. A autora cita Milton Santos, que defende que além de
características como a densidade técnica, a densidade informacional, a
densidade comunicacional e a densidade normativa, há também a dimensão
do tempo em cada lugar, que poderia ser visto através do evento no
presente e no passado. Para Carlos, há também a dimensão da história, que
se realiza na prática cotidiana, estabelecendo nculo entre o interno e o
externo. Como base da reprodução da vida, o lugar pode ser analisado pela
tríade habitante-identidade-lugar.
As relações que os indivíduos mantêm com os espaços habitados se
exprimem todos os dias nos modos de uso, nas condições mais banais, no
secundário, no acidental. É o espaço passível de ser sentido, pensado,
apropriado e vivido através do corpo (CARLOS,1996, p .20)
A percepção do espaço pelo homem acontece através de seu corpo,
de seus sentidos, por isso o corpo precisa ser considerado na tríade
cidadão-identidade-lugar. É através do corpo que o homem habita e se
apropria do espaço.
São os lugares que o homem habita dentro da cidade que dizem respeito a
seu cotidiano e a seu modo de vida onde se locomove, trabalha, passeia,
20
flana, isto é, pelas formas através das quais o homem se apropria e que vão
ganhando o significado dado pelo uso (CARLOS, 1996, p.21)
Para Carlos (1996, p. 22), “o lugar pode ser compreendido em
suas referências, que não específicas de uma função ou de uma forma, mas
produzidas por um conjunto de sentidos, impresso pelo uso”. A autora
lembra ainda que “a história do indivíduo é aquela que produziu o espaço e
que a ele se imbrica, por isso que ela pode ser apropriada”
(CARLOS,1996,p.24). As formas e os conteúdos dos grandes processos
históricos raramente são visíveis na escala local, mas ganham sentido por
meio deles quase sempre ocultos e invisíveis. “É no âmbito local que a
história é vivida e é onde, pois tem sentido” (CARLOS,1996, p.26).
Com o desenvolvimento da cnica, o processo produtivo passa por
profundas transformações; as mudanças nos meios de comunicação
permitem ligar os espaços em redes de fluxos que ultrapassam fronteiras.
Esse novo quadro mundial provoca a necessidade de repensar a natureza
do espaço num momento em que uma relação espaço/tempo se transforma
de modo incontestável. Para Carlos (1996, p. 29), o lugar é o ponto de
articulação entre a mundialidade em constituição e o local enquanto
especifidade concreta. “É no lugar que se manifestam os desequilíbrios, as
situações de conflito e as tendências da sociedade que se volta para o
mundial”
O lugar é o produto das relações humanas, entre homem e natureza, tecido
por relações sociais que se realizam no plano do vivido, o que garante a
construção de uma rede de significados e sentidos que são tecidos pela
história e cultura civilizadora produzindo a identidade, posto que é que o
homem se reconhece porque é o lugar da vida (CARLOS, 1996, p.29).
Carlos (1996, p.30) destaca que as formas de apropriação do espaço
e o sentimento de pertencer ao lugar ligam-se aos lugares habitados,
“marcados pela presença, criados pela história fragmentária feita de
resíduos e detritos, pela acumulação dos tempos, marcados, remarcados,
nomeados, natureza transformada pela prática social”. Essa acumulação
cultural se inscreve no espaço e no tempo.
21
No mundo moderno, a integração de funções a partir de uma gestão
informatizada e a modernização do aparelho produtivo permitem a
racionalização do processo produtivo e com isso uma nova localização
industrial. A invasão do microprocessador implicou novos processos de
trabalho, uma nova divisão do trabalho na indústria, tanto interna quanto
para fora dela. Feita por computadores, a gestão da produção atual permite
realizar o trabalho em unidades distintas, entre firmas através da
subcontratação, produzindo no espaço o fenômeno da desintegração vertical
de grandes firmas em firmas especializadas, “numa rede de firmas
especializadas que trabalha por subcontratação para uma ou várias firmas
contratantes, mudando a relação do espaço, pois gera a desintegração
espacial das unidades produtivas” (CARLOS,1996, p. 36).
Para Harvey, toda materialização do utopismo do livre mercado
precisa assentar raízes num lugar Nesse processo, a formação do espaço
do livre mercado e sua maneira de produzir espaço “tornam-se facetas
essenciais de sua realização tangível”.
(...) compreender as formas pelas quais o capital constrói uma paisagem
geográfica à sua própria imagem, num dado momento do tempo,
simplesmente para ter de destruí-la adiante a fim de acomodar sua própria
dinâmica de interminável acumulação do capital, amplas mudanças
tecnológicas e implacáveis formas de luta de classes. A história da destruição
criativa e do desenvolvimento geográfico desigual na era burguesa é
simplesmente de estarrecer. Grande parcela da extraordinária transformação
da superfície da terra nos últimos duzentos anos reflete precisamente a
materialização da forma de utopismo do processo fundada no livre mercado e
suas incansáveis e perpétuas reorganizações de formas espaciais (HARVEY,
2004, p.233)
Nesse novo quadro da indústria com utilização maciça da técnica, os
investimentos em centros de pesquisa são uma exigência. Para os países
subdesenvolvidos, o resultado é a perda das vantagens locacionais
assentadas em matérias-primas e energia abundantes e o-de-obra
barata. Enquanto a matéria-prima passa por mudanças, a mão-de-obra é
necessária em menor escala e especializada, “por sua vez o ciclo de vida do
produto se encurtado e o grau de competitividade aumenta, por fim
necessidade maior de investimentos” (CARLOS, 1996, p.37). Na atualidade,
22
as localizações industriais obedecem a um novo padrão, passando a se
concentrar em tecnopólos e metrópoles policêntricas, enquanto o mercado é
cada vez mais mundial, dando ao produto nova mobilidade espacial.
A mudança no quadro geral da indústria não implica em alterações
nas bases dos elementos do crescimento. De acordo com Carlos (1996,
p.46), o cenário mundial apresenta uma nova relação entre o Estado e a
economia, “por meio de incentivos, subvenções, proteção, reestruturação de
indústrias maduras, acabam produzindo uma nova relação espacial”.
Nas áreas de industrialização antiga acontece fuga de capitais,
enquanto algumas são remodeladas com a introdução de novas tecnologias;
também os casos de implantação de um novo tipo de industrialização em
locais onde existiam indústrias e a concentração da expansão industrial
em novos complexos industriais, como na periferia das grandes áreas
metropolitanas. Muitas vezes, as novas atividades acompanham a antiga
concentração industrial.
Para Carlos (1996, p. 51), “o espaço intervém na produção e
organização do trabalho produtivo, ao mesmo tempo em que determina as
relações de produção é também produtor e produto”. Daí a importância do
espaço no processo de reprodução da sociedade, produção espacial que
aparece nas formas de apropriação, utilização e ocupação de um
determinado lugar.
(...) na realidade, o que se tende a eliminar não é o espaço que é cortado por
um complexo de redes e fluxos inúmeros, e que é fundamental para sua
materialização. O que se tende a eliminar é o tempo através de sua
compactação (CARLOS, 1996, p.51)
Carlos (1996, p.64) chama de “ausência de memória” o processo de
não-identificação em relação ao lugar, que seria uma conseqüência do
processo de reprodução espacial que tende a eliminar o que existe. A autora
defende, porém, que a memória pode também significar o resgate do lugar,
“revelando-o e dando uma outra dimensão para o tempo”.
A homogeneização da sociedade é uma das conseqüências do
estágio atual do capitalismo. Enquanto o tempo está associado ao ritmo do
23
processo de trabalho, o espaço segue dominado por fluxos de mercadorias,
capitais e informações. Essa reprodução destrói as diferenças na área
urbana, e como conseqüência sua memória social.
As formas que a sociedade produz guardam uma história, pois o tempo
implica duração e continuidade. As formas materiais arquitetônicas guardam
uma certa monumentalidade com seu conteúdo social que a memória ilumina,
torna-o presente e com isso lhe dá espessura (conteúdo ao presente). A
memória articula espaço e tempo, ela se constrói a partir de uma experiência
vivida num determinado lugar. Produz-se pela identidade em relação ao lugar,
assim lugar e identidade são indissociáveis. O histórico tem suas
conseqüências, o diacrônico, o que se passa modificando lugares,
inscrevendo-se de outra forma no espaço. O passado deixou traços,
inscrições, escritura do tempo (CARLOS, 1996, p.82)
Para Bauman, as mudanças no trabalho e na sociedade (como na
formação da família) representam a destruição dos pontos firmes que
caracterizavam a antiga situação social mais duradoura. Foi-se a certeza
de que nos veremos outra vez, de que nos encontraremos repetidamente e
por um longo porvir- e com ela a de que podemos supor que a sociedade
tem uma longa memória” (BAUMAN, 2003, p.47).
(...) nenhum agregado de seres humanos é sentido como “comunidade” a
menos que seja “bem tecido” de biografias compartilhadas ao longo de uma
história duradoura e uma expectativa ainda mais longa de interação freqüente
e intensa. É essa experiência que falta hoje em dia, e é sua ausência que é
referida como “decadência”, “desaparecimento” ou “eclipse” da comunidade
(BAUMAN, 2003, p.48)
Como resposta às conseqüências econômicas e sociais trazidas pelo
processo de globalização, surgem novas propostas de recuperação de
possíveis “elos” com o passado ainda existentes na sociedade, numa busca
por valores “antigos” como a identidade e a coletividade. Nesse contexto, os
“brownfields” deixam de ser um desafio apenas para a economia.
24
1.2- “Brownfields”: Conceitos, Experiências Estrangeiras, Nacionais e
Refuncionalizações
Realizados em vários países da Europa e nos Estados Unidos, os
estudos sobre “brownfields” merecem análise de autores de diversas áreas
do conhecimento como a Geografia, a Arquitetura, a Sociologia, a Psicologia
e a História, entre outras. Ao analisar os acontecimentos do século XX,
Hobsbawm (1996) faz referência ao que chama de “cinturões de ferrugem”.
Velhas áreas industriais tornaram-se “cinturões de ferrugem”- termo inventado
nos EUA na década de 1970- ou mesmo países inteiros identificados com
uma fase anterior da indústria, como a Grã-Bretanha, foram largamente
desindustrializados, transformando-se em museus vivos ou agonizantes de
um passado desaparecido, que empresários exploravam, com certo êxito,
como atrações turísticas (HOBSBAWM,1996,p.297)
A tradição da engenharia que atravessou o tempo e suas decorrentes
mudanças é a de projetar e construir aparelhos e objetos. Ao projetar e
construir, o engenheiro prepara sua obra para o uso, mas não se considera
que esse uso é limitado no tempo, já que construções e objetos estão
sujeitos à deterioração pelas intempéries ou podem ser ultrapassados por
outras construções e objetos mais compactos ou eficientes.
Ao não mais servir, os aparelhos e objetos são jogados fora, as instalações
desmontadas e as obras demolidas. Em certas circunstâncias, porém, alguns
poucos aparelhos e objetos são guardados em museus, arquivos ou
bibliotecas, alguns edifícios preservados e algumas instalações mantidas.
Assim, velhas minas subterrâneas tornam-se atração turística, velhos edifícios
industriais são transformados em centros culturais e antigas residências
burguesas tornam-se hotéis ou agências bancárias. Mas tudo isso são
exceções, a maior parte dos velhos objetos vai parar no lixo, os velhos
edifícios são demolidos, as instalações desfeitas e o entulho também é jogado
fora. (SANCHEZ, 2001,p.15)
Para Harvey (2004, p.110-111), a geografia histórica da ocupação
humana da superfície da terra e da evolução distintiva de formas sociais
(línguas, instituições políticas e valores e crenças religiosos) produz um
“mosaico geográfico” de ambientes e modos de vida socioecológicos.
25
Esse mosaico é ele mesmo um “palimpsesto”- composto de acréscimos
históricos de legados parciais sobrepostos em múltiplas camadas uns sobre
os outros, tal como ocorre com as diferentes contribuições arquitetônicas de
diferentes períodos que se distribuem em camadas nos ambientes
construídos de cidades contemporâneas de origem antiga (...) Esse mosaico
geográfico é uma criação, aprofundada pelo tempo, de múltiplas atividades
humanas (HARVEY, 2004, p.110-111)
O autor destaca que mesmo que as variações geográficas reflitam e
incorporem legados materiais, históricos, culturais e políticos do passado,
isso não significa que sejam estáticas ou imutáveis. O mosaico geográfico
sempre esteve em movimento em toda e qualquer escala” (HARVEY, 2004,
p.112).
De acordo com Sanchez, o advento da sociedade de consumo
acelerou a prática de descartar prédios, objetos e aparelhos. Fatores como o
barateamento das matérias-primas e a valorização do aumento do consumo,
sem que sejam contabilizados os custos ambientais decorrentes do
abandono dos resíduos, levam à aceleração da prática de descartar prédios.
Juntamente com essa mentalidade, a preocupação ambiental conseguiu
ganhar espaço, mas de forma mais lenta e não na mesma proporção.
A análise do ciclo de vida foi a resposta criada pelo setor industrial
para uma avaliação dos impactos ambientais dos produtos industriais,
juntamente com o “design for the environment”, que é o desenvolvimento de
procedimentos para conceber e projetar produtos menos agressivos ao meio
ambiente. Através dessas ferramentas, o projeto leva em conta o meio
ambiente durante toda a vida útil do produto.
A análise do ciclo de vida pode fundamentar um novo paradigma de gestão
ambiental na indústria. O conceito foi desenvolvido visando o produto, mas
também pode ser estendido à produção industrial, pois as instalações
industriais têm igualmente um ciclo de vida. (SANCHEZ, 2001, p.16)
Embora seja recente nas indústrias, a aplicação do conceito de ciclo
de vida acontece mais de uma década nos setores de mineração e
disposição de resíduos sólidos. Atualmente, muitas empresas preparam
planos de fechamento anos antes do encerramento das atividades nas
26
minas, muitas vezes mesmo antes de sua própria abertura. Este
procedimento atende às normas da legislação, da comunidade ou dos
mercados financeiros. Assim como no setor de disposição de resíduos
sólidos, já se sabe de antemão que a capacidade é finita.
(..).o fato é que indústrias fecham, seja por razões econômicas, comerciais,
sociais ou ambientais, em outras palavras, perdem competitividade,
mercado, sua localização torna-se desvantajosa ou precisam ser
modernizadas, ou ainda o valor imobiliário do terreno é tal que se torna
mais rentável fechar a indústria e reutilizar o terreno para outra finalidade
(SANCHEZ, 2001, p.18).
O termo passivo ambiental, utilizado inicialmente para descrever o
acúmulo de danos ambientais que devem ser reparados para manter a
qualidade ambiental passou também a ser empregado sem sentido
monetário, “para conotar o acúmulo de danos infligidos ao meio natural por
uma determinada atividade ou pelo conjunto de ações humanas, danos
esses que muitas vezes não podem ser avaliados economicamente”
(SANCHEZ,2001,p.19). Nesse caso, o passivo ambiental representaria uma
“dívida” para com as próximas gerações.
Sanchez destaca que o conceito de empreendimento utilizado nos
estudos sobre desativação inclui não só indústrias manufatureiras como
também os ramos das indústrias extrativas, da construção civil, da produção
de energia, do tratamento e disposição de resíduos. Entre as atividades
terciárias, somente são consideradas as de transporte e armazenamento de
matérias-primas e produtos. O autor entende a desativação como “conjunto
de medidas de caráter gerencial, técnico e legal necessárias para encerrar
total ou parcialmente as atividades produtivas em um determinado sítio”
(SANCHEZ, 2001,p.20).
Harvey destaca que os processos de desindustrialização e relocação
de atividades produtivas, ocorridos desde a década de 1960, mostram a
velocidade com que atualmente são configuradas as diferenciações
geográficas da produção e do emprego. “Logo, é importante avaliar a
volatilidade e o dinamismo das formas geográficas contemporâneas” explica
Harvey (2004, p. 112). De acordo com o autor, cidades e regiões
27
metropolitanas inteiras, como Seul ou Barcelona, foram reconfiguradas no
espaço de uma geração.
Para Sanchez, é preciso enfatizar a necessidade de prevenir os
prejuízos das desativações, através de meios como as diretrizes
governamentais, as normas cnicas, as garantias financeiras, os seguros e
as técnicas de contabilização do passivo ambiental.
O final do culo XX é marcado pela perda do poder da produção
industrial para o setor de serviços como gerador de riquezas e empregos.
Em muitos países, já se pode constatar a era pós-industrial, onde valoriza-se
a produção de informação, conhecimento e tecnologia. Os investimentos
industriais deixam de ser rentáveis por motivos como a marcha da História, a
política econômica de um país ou por má gestão empresarial. Assim como
as empresas perdem competitividade, “produtos perdem mercado, minas
fecham, caminhões e automóveis substituem os trens” (SANCHEZ, 2001,
p.21).
Para Sanchez, o abandono das atividades que deixaram de ser
rentáveis é ambientalmente perigoso, socialmente injusto e,
economicamente, pode representar um desperdício de recursos. Por isso é
preciso desativar de forma ordenada, com a mesma atenção utilizada para a
construção. Sanchez defende que a mentalidade da sociedade atravessa
atualmente um período de mudanças, o que gera como conseqüência maior
atenção ao problema do ciclo de vida dos objetos, aparelhos, instalações e
obras, no que o autor chama de “novo paradigma na engenharia”.
Sanchez defende que o processo de industrialização tem uma
dinâmica própria, que exige pesquisas contínuas e a busca por formas de
produção mais eficientes e produtivas. Acompanhando a dinâmica da
indústria, as economias modernas levaram ao aumento no ritmo do consumo
de bens e serviços, obrigando as empresas ao desenvolvimento de novos
produtos para a manutenção da competitividade, garantir a expansão ou
aumentar suas partes do mercado. “Mais recentemente, o processo de
globalização da economia e liberalização do comércio mundial tem alterado
radicalmente os mercados de produtos industriais” destaca o autor,
28
lembrando que essa mudança leva a relocalização de muitas empresas e
até de setores industriais inteiros.
Juntamente com o surgimento de novos setores industriais dinâmicos
e do declínio de outros ramos, acontece também um processo de
obsolescência de indústrias de todos os setores, aumentando o número de
estabelecimentos desativados. No caso da indústria têxtil, o processo de
fechamento de estabelecimentos acontece várias décadas. O
problema, porém, não é exclusivo do setor têxtil. De acordo com Sanchez,
entre 1984 e 1990 cerca de 20% dos sítios industriais canadenses foram
fechados, enquanto a Grã-Bretanha perdia 25% de sua indústria
manufatureira entre 1980 e 1984. Outro exemplo significativo é o da indústria
siderúrgica nos Estados Unidos, concentrada principalmente na cidade de
Pittsburgh, na Pensilvânia, que no passado ficou conhecida como a “capital
do aço”. Durante a década de 1980, oito das catorze aciarias fecharam suas
portas, enquanto outras quatro reduziram sua produção.
Segundo Sanchez, o processo de declínio industrial também afeta
países onde a implantação da industrialização é mais recente. Um dos casos
mais conhecidos é o das regiões carboníferas européias, “devido aos
grandes problemas sociais causados e à importância que teve a extração e
o uso desse recurso mineral na própria estruturação dessas regiões”
(SANCHEZ, 2001, p.25). A maioria das minas subterrâneas de países como
o Reino Unido, França, Alemanha e Espanha foi fechada ao longo dos anos
de 1970 ou de 1980, tendo como motivos os altos custos de produção e a
produtividade do trabalho relativamente baixa.
Além da concorrência internacional, da concorrência entre cidades e
regiões e do declínio de certos setores industriais também existem fatores
como a questão ambiental entre os motivos que levam ao fechamento das
indústrias. De acordo com Sanchez, muitas empresas, diante da
necessidade de investir em equipamentos para reduzir a poluição ou de
adotar tecnologias mais limpas, optam pela transferência de suas unidades
para outros locais, onde as autoridades podem ser mais complacentes
quanto à degradação ambiental. Bruyelle destaca que existem dois
29
mecanismos inerentes ao processo de desindustrialização: a transferência
ou exurbanização e a mortalidade (BRUYELLE,1992 apud SANCHEZ,2001).
O fator mortalidade é considerado como uma decorrência do próprio
dinamismo industrial e pode ser compensada pela criação de empresas em
outros ramos de atividade. Nas economias mais avançadas, o setor
secundário tem dado espaço para o terciário. Sanchez lembra, porém, que a
mortalidade pode se tornar uma questão grave quando atinge um setor
inteiro da indústria em regiões de economia pouco diversificada.
No caso das transferências, Sanchez (2001, p. 28) identifica os
motivos de ordem econômica, ambiental ou devido à políticas públicas:
- a localização torna-se inadequada porque a empresa não dispõe
de espaço físico para se expandir e o custo de aquisição dos imóveis
vizinhos é muito alto, porque passa a necessitar de nova infra-
estrutura de transporte ou porque o acesso torna-se difícil, ou
congestionado;
- como suas atividades são incompatíveis com os usos do solo no
entorno, a indústria demasiado incômoda para a vizinhança ou novas
regras em matéria de meio ambiente impõem custos adicionais;
- porque taxas ou impostos locais podem se tornar desestimulantes
e mais atrativos em outras localidades;
- porque o valor do solo aumentou e, em conseqüência, o custo dos
aluguéis, ou, sendo a empresa a proprietária do terreno, torna-se
mais rentável vendê-lo;
- certas políticas de uso do solo urbano estimulam a
desindustrialização de determinados bairros, visando transformar seu
uso, ou ainda estimulam a instalação de indústrias em novos distritos
industriais;
- porque concorrência entre cidades, regiões e até países para
atrair novos investimentos industriais, doação de terrenos, isenções
fiscais e diversos subsídios indiretos estimulam a transferência de
indústrias ou a abertura de novas fábricas de uma empresa
instalada em outro local. O que muitas vezes acaba acarretando a
30
redução dos investimentos em modernização das velhas unidades de
produção, até seu fechamento.
Para Sanchez, um dos resultados mais visíveis da desindustrialização
é a produção de imóveis disfuncionais localizados em zonas urbanas. De
acordo com o autor, na língua francesa é utilizado o termo “friche
industrielle” para designar esses imóveis. A palavra tem origem nos ramos
de atividade agrícola, significando terra deixada sem cultivar (“friche”). Em
inglês foi adotado o termo “derelict land”. o termo “brownfield” é
empregado principalmente nos Estados Unidos. Na Alemanha, o termo mais
aceito é “altlasten”, que significa carga ou peso do passado, herdada. Para
Bruyelle, essas áreas são:
terrenos ou edifícios (ou ambos) anteriormente utilizados para finalidades
industriais e hoje total ou parcialmente abandonados por seu utilizador, e
degradados de tal maneira que todo novo uso somente é possível após um
reordenamento notável (BRUYELLE,1992, apud SANCHEZ, 2001).
De modo generalizado, Bruyelle também define estas áreas como
“espaço econômico tornado obsoleto e abandonado”. De acordo com Kivell
(1992), para o Departamento de Meio Ambiente do governo britânico,
“derelict land” pode ser definida como “terreno degradado pelo
desenvolvimento industrial, ou por outra causa, a ponto de não poder ser
utilizado sem tratamento(KIVELL,1992, apud SANCHEZ, 2001). Somente
na Grã-Bretanha um levantamento realizado na década de 1980 encontrou
45.683 hectares de terrenos abandonados, juntamente com 37.150 hectares
de terrenos desocupados, sendo que cerca de um terço da superfície total
de terrenos abandonados se refere às áreas industriais ou assemelhadas,
como no caso das zonas portuárias.
De acordo com Sanchez, o resultado do primeiro levantamento oficial
francês sobre “friches industrielles” identificou cerca de 20 mil hectares
afetados. Além de contribuir para a desvalorização do entorno, esses
imóveis também favorecem o depósito clandestino de resíduos, podem ser
31
objeto de ocupação irregular e podem representar riscos à segurança, à
saúde pública e aos ecossistemas.
Em zonas urbanas consideradas dinâmicas, a reutilização de terrenos
e edifícios de localização central anteriormente ocupados por indústrias é
considerada mais fácil que nas cidades onde a produção é especializada. A
maioria dessas cidades tem, aliás, programas que estimulam a
exurbanização industrial. Em Madri, na Espanha, a reutilização dos antigos
edifícios industriais teve início na década de 1950, e em 80% dos casos o
novo uso é residencial. O bairro Soho, de Nova Iorque, nos Estados Unidos,
também é um exemplo de transformação de oficinas e pequenas indústrias
em escritórios, ateliês e residências.
1.2.1-O caso de Baltimore: benefícios e prejuízos
Analisando o caso de Baltimore, nos Estados Unidos, Harvey (2004,
p.187) lembra que no início da década de 1970 houve um esforço conjunto
entre o poder público e a iniciativa privada para investir na revitalização do
centro da cidade e da região de Inner Harbor com o objetivo de atrair
serviços financeiros e turismo. O autor destaca que foram necessários
muitos gastos públicos para manter o projeto em andamento. Como a
região dispunha de hotéis, foi preciso construir um centro de convenções
para atrair spedes e conseguir parte da indústria de eventos que hoje é
avaliada em 83 bilhões de dólares.
Para manter o conjunto competitivo, foram necessários mais 150
milhões de dólares para construir um centro de convenções ainda maior. O
temor agora, segundo Harvey, é de que todos esses investimentos não
sejam lucrativos sem a construção de um grande hotel central, que também
vai requerer cerca de 50 milhões de dólares. para “melhorar” a imagem
da cidade foram investidos quase meio bilhão de dólares na construção de
um ginásio de esportes, equipes e altos salários para atletas.
Para Harvey (2004, p.190), esse caso ilustra a expressão “alimentar o
monstro do centro da cidade”. “A parceria entre o poder público e a iniciativa
32
privada significa que o poder público entra com os riscos e a iniciativa
privada fica com os lucros”. O autor contesta o argumento dos defensores da
refuncionalização de Baltimore de que o projeto cria empregos e gera renda.
De acordo com Harvey (2004, p.191), uma análise feita por economistas
(HAMILTON, KAHN, 1997) mostrou que a perda líquida do investimento
no estádio de beisebol era da ordem de 24 milhões de dólares por ano.
“Entrementes, fecharam-se bibliotecas, reduziram-se os serviços urbanos e
investiu-se o mínimo em escolas municipais” argumenta o autor.
Harvey ressalta que a revitalização promovida em Baltimore também
tem um lado positivo, que é o do convívio entre as pessoas que visitam a
área revitalizada. O centro também se tornou local de moradia para jovens
profissionais que ainda não têm filhos. Até mesmo o processo de
“gentrificação” (expulsão de populações de baixa renda) ocorrido na cidade
acabou trazendo pelo menos um aspecto positivo. De acordo com Harvey
(2004, p.192) “ao menos houve a contrapartida de revitalização física de
partes da cidade que estavam em lento processo de morte por abandono”.
1.2.2- “Brownfields” no Brasil
Entre os fatores que determinam a localização das indústrias, os
meios de transporte sempre foram considerados importantes. Sanchez
lembra que na cidade de o Paulo a indústria desenvolveu-se inicialmente
no centro e no bairro do Brás, no começo do século XX, espalhando-se
depois para os bairros Mooca e Barra Funda, ao longo do eixo ferroviário. A
localização passou a ser determinada pelos eixos rodoviários a partir de
1950. O cadastro da Companhia Estadual de Tecnologia de Saneamento
Ambiental (CETESB) apontava que em 1996 existiam 3.800
estabelecimentos industriais desativados na região metropolitana de São
Paulo. O número poderia ser ainda maior, que no levantamento constam
apenas as empresas cujos processos foram formalmente encerrados junto à
agência.
33
De acordo com Vasques (2005, p.91), levantamentos da Fiesp/Ciesp
Zona Leste feitos na década de 2000 apontam a existência de 4.500
galpões desocupados na área que abrange os bairros do Brás, Mooca e
Belém. Nestes balcões funcionaram micro, pequenas e grandes empresas.
Entre os ramos industriais, destacavam-se o têxtil, alimentício, metalúrgico e
eletroeletrônico. “As fábricas fecharam e migraram, mas os prédios,
armazéns, depósitos e terrenos continuam existindo até os dias atuais”,
destaca Vasques.
No estado de São Paulo, os “brownfields” não estão somente na
capital. No município de Americana, Interior do Estado, Iaochite (2004, p.51)
destaca que o setor têxtil, considerado fundamental para o desenvolvimento
da cidade, acabou recebendo as influências do conflito local/global,
causando “o fechamento de bricas, a perda de empregos, instaurando a
incerteza econômica”. Com a abertura comercial implantada durante o
governo Collor, em 1990, 30 mil trabalhadores foram demitidos do pólo xtil
de Americana, com o fechamento de várias empresas, redução da produção
em relação à capacidade instalada e queda de 50% nas vendas.
Sanchez enfatiza que a reutilização de um imóvel industrial pode
acontecer de diversas maneiras, mas no caso do edifício industrial ter valor
histórico, sua demolição pode ser mesmo proibida. “Nessas situações, os
novos usos deverão respeitar as características do edifício e mesmo seu
entorno poderá ser passível de poucas modificações” (SANCHEZ, 2001,
p.33). Na cidade de São Paulo existem alguns exemplos de reutilização de
edifícios e terrenos industriais para novas finalidades. O SESC Pompéia está
instalado numa antiga fábrica transformada em centro cultural e de lazer. No
Brás, os prédios da antiga brica têxtil da São Paulo Alpargatas foram
transformados em faculdades particulares. “O antigo matadouro municipal da
Vila Mariana tornou-se sede da Cinemateca Brasileira e o antigo entreposto
de carne da Lapa, junto à ferrovia, foi transformado no espaço educativo-a
Estação Ciência da Universidade de São Paulo - e cultural - o Tendal da
Lapa” exemplifica Sanchez (2001, p. 40). No Interior do Estado de São
34
Paulo, o autor cita como exemplos de reutilização o caso do antigo engenho
de açúcar de Piracicaba, convertido em centro de cultura e lazer.
1.2.3- Refuncionalizações de “brownfields”
Como um tema recente dentro das discussões sobre o espaço
urbano, os “brownfields” também dividem opiniões sobre quais as
intervenções adequadas para o retorno das atividades nesses imóveis. Ao
analisar o caso da cidade de Baltimore, Harvey (2004, p. 95) usa o termo
“revitalização” quando o espaço em discussão é o antigo porto da cidade.
Quando aborda os antigos prédios industriais, Harvey (2004, p. 96) fala em
“reciclagem” e no caso das moradias do bairro de Canton, que após o
processo de “gentrificação” foram ocupadas por pessoas de alta renda, o
processo é definido como redesenvolvimento.
Ao abordar o processo de “desindustrialização” de Baltimore, Harvey
(2004,p.200) explica que “o único sinal residual dessa atividade é hoje a
manutenção de uns poucos navios foram do serviço ativo”. O autor também
completa que “instalações industriais degradadas estragam a paisagem, à
espera de reutilização”.
Del Rio (2005, p. 1) destaca que hoje integrado ao paradigma do
desenvolvimento sustentável, as grandes cidades passaram a buscar o
renascimento dos centros urbanos, através da revitalização de suas áreas
centrais através da reutilização dos patrimônios”. O autor lembra que o
modelo atual de revitalização é “integrador e abrangente”.
Na Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Rio Claro, o
Grupo de Análise Territorial com Suporte de Geotecnologias adota desde
2003 como definição para um “brownfield” brasileiro o seguinte enunciado:
Arcabouço físico-territorial abandonado, contaminado ou não, de uma
atividade sócio - econômica relevante em um determinado período de tempo,
porém passível de refuncionalização.
35
Entre os desafios do Grupo de Análise Territorial com Suporte de
Geotecnologias também está a definição de um termo da língua portuguesa
para definir um “brownfield”. Quando se estuda um “brownfield”, um dos
principais objetivos é buscar alternativas de refuncionalização desse prédio
ou área. Juntamente com a busca por essas alternativas, começa uma
outra discussão, sobre qual exatamente seria o processo buscado para que
esse “brownfield” volte à atividade ou função.
Nos primeiros debates sobre o tema, o termo mais utilizado era o
redesenvolvimento. Contudo, esse termo, importado dos Estados Unidos, foi
considerado inadequado para a realidade brasileira, que implica no
“melhoramento de uma área através da renovação de edifícios, fazendo
melhor uso do solo improdutivo e encorajando novos investimentos nestes
locais” Vasques (2005,p.6). O termo revitalizar também o é considerado
adequado, por ser utilizado amplamente pela Arquitetura para tratar do
patrimônio histórico.
O uso do termo “volta da atividade” pode ser questionado que em
muitos empreendimentos a atividade industrial foi cessada, mas deu lugar à
atividades ilegais ou existentes às margens da sociedade, como no caso da
marginalidade e da prostituição. Nestes casos, não se pode afirmar que não
há atividade nestes prédios.
Emerge então o termo refuncionalização, considerado atualmente o
mais adequado quando se trata das propostas de novas atividades para os
“brownfields”. De acordo com Evaso (1999,p.34-35 apud VASQUES,
2005,p.36), o ato de refuncionalizar implica na alteração da função de uma
determinada coisa/elemento, atribuindo-lhe um novo valor de uso.
Entre os problemas apontados por Sanchez para a conversão de
terrenos ou edifícios industriais estão os de ordem econômica, quando o
mercado não é bastante dinâmico para absorver a oferta, e os problemas de
ordem legal, porque em muitos casos o zoneamento do município não
permite usos não-industriais, havendo necessidade, muitas vezes, de
modificar o zoneamento. Existem também as razões de ordem ambiental,
quando o imóvel apresenta algum tipo de contaminação. O autor destaca
36
que se contaminação do solo, alguns usos podem ser incompatíveis. Em
casos de contaminação considerada “leve”, a conversão para novo uso
industrial é mais compatível que a reutilização para residência ou lazer, mas
se a degradação ambiental for muito significativa, até o uso industrial pode
ser restrito (Quadro 1) e (Quadro 2).
Quadro 1- Reutilização de Instalações Industriais
Categoria Tratamento Forma de Utilização Novo Uso
-Terrenos
Edifícios
-Abandono
-Reutilização após
limpeza limitada
-Reutilização após
limpeza e rearranjo
-Demolição
-Reutilização após
rearranjo
-Em bloco
-Loteamento
-Em bloco
-Condomínio
-Industrial
-Comercial
-Institucional
-Recreativo
-Agrícola
-Industrial
-Comercial
-Institucional
-Residencial
-Misto
-Industrial
-Comercial
-Institucional
-Recreativo
-Cultural
-Misto
-Industrial
-Escritórios
-Comercial
-Residencial
37
-Misto
Fonte: SANCHEZ (2001, p.35)
Quadro 2- Algumas características na desativação de
empreendimentos
Empreendimento Vida Útil Principais razões
para fechamento
Principais
passivos
ambientais
Indústrias Indeterminada -obsolescência
-mercado
-impactos
ambientais
-solos
contaminados
-aqüíferos
poluídos
-resíduos tóxicos
Minas Determinada, mas
variável
-exaustão
-obsolescência
-mercado
-impactos
ambientais
-escavações
-áreas de
subsidência
-áreas alagadas
-pilhas de estéreis
-barragens de
rejeitos
Depósitos de
resíduos
Determinada, mas
variável
-exaustão
-mercado
-impactos
ambientais
-riscos de
migração de
poluentes e de
exposições de gás
-solos
contaminados
Infra-estrutura de
transportes
Indeterminada -obsolescência
-incompatibilidade
com o tecido
urbano
-solos
contaminados
-aqüíferos
poluídos
-resíduos tóxicos
Usinas termelétricas Indeterminada -obsolescência
-mercado
-impactos
ambientais
-solos
contaminados
-aqüíferos
poluídos
-resíduos tóxicos
Instalações
nucleares
Determinada -obsolescência -materiais
radiativos
Barragens Indeterminada -obsolescência
-riscos de rupturas
-estrutura obsoleta
-sedimentos
acumulados
-grande superfície
degradada
Fonte: SANCHEZ (2001, p.78)
Sanchez lembra que a reutilização de instalações industriais pode
exigir estratégias diversas e complementares, envolvendo ações de ordem
38
técnica e comercial. Em muitas indústrias antigas, a comercialização direta
de todo o imóvel pode ser difícil, o que leva alguns proprietários a realizar a
comercialização em partes. No caso do poder público, a intervenção pode
acontecer através da compra ou desapropriação do terreno ou por meio de
investimentos em infra-estrutura (arruamento, iluminação, transportes e
outros) para valorizar o entorno. Também existe a possibilidade de
concessão de incentivos como subsídios ou isenções fiscais.
A infra-estrutura de transportes também gera um número significativo
de imóveis desocupados. “O transporte ferroviário também passou por
diversas fases de desenvolvimento tecnológico e tem enfrentado a
concorrência de outros meios de transporte, principalmente o rodoviário”
(SANCHEZ, 2001, p.63). Assim como na indústria manufatureira, muitas
instalações ferroviárias foram convertidas para novos usos. Em Paris, o
“Musée d´Orsay” está instalado na estação desativada do mesmo nome. Em
São Paulo, a estação Júlio Prestes foi transformada numa sofisticada sala
de concertos.
O setor de energia elétrica também apresenta instalações
desativadas. Equipamentos de produção, transmissão e transformação de
energia tornaram-se obsoletos. No Estado de São Paulo, Sanchez destaca
que algumas pequenas barragens construídas no início do século XX foram
preservadas:
(...) como Corumbataí (município de Rio Claro), que funcionou de 1895 a
1970, São Valentim (município de Santa Rita do Passa Quatro), que
funcionou de 1910 a 1976, e Salesópolis, no município do mesmo nome,
usada para geração de eletricidade entre 1914 e 1988, todas elas
atualmente pertencentes ao acervo da Fundação Patrimônio Histórico da
Energia de São Paulo ( SANCHEZ, 2001, p.73)
As áreas contaminadas exigem atenção especial no processo de
reconversão. No Brasil, segundo Sanchez, não existe um inventário de áreas
contaminadas ou potencialmente contaminadas à exceção de um trabalho
iniciado em 1992 na região metropolitana de São Paulo, com apoio da
agência alemã de cooperação GTZ. Segundo a publicação Saneamento
39
Ambiental (1996), existem cerca de 2.300 áreas potenciais identificadas até
aquele momento só naquela região.
Sanchez explica que as práticas industriais do passado deixaram
como herança um passivo ambiental que começou a ser resgatado nas
décadas de 1970 e 1980.
Da mesma forma que as dívidas financeiras, essa dívida ambiental está
sendo paga com juros nos países que estabeleceram legislações sobre
solos contaminados e está se acumulando nos que sequer reconheceram
publicamente o problema (SANCHEZ, 2001, p.109)
Nos Estados Unidos, a lista nacional de prioridades do programa
“Superfund”, criado pelo governo federal para garantir a recuperação das
áreas degradadas, aponta que nos sítios mais contaminados a média de
gastos para a recuperação é de US$ 29 milhões por sítio.
A desativação de empreendimentos engloba diferentes setores da
produção, mas apresenta diversos problemas comuns, que levaram à
criação de instrumentos de gestão para garantir a adequada desativação de
instalações industriais. O sucesso da adoção desses instrumentos depende
da existência de políticas e da aplicação de ações corretas de prevenção
dos riscos e de gestão ambiental. Sanchez destaca que da mesma forma
que todo novo projeto industrial é concebido para atender a determinados
objetivos empresariais, assim também um projeto de desativação deve ter
seus objetivos previamente definidos. Geralmente, esses projetos de
desativação incluem os objetivos de reduzir os riscos de ações judiciais
visando a reparação de danos ambientais e agregação de valor aos imóveis
ou instalações desativadas, visando à sua comercialização (Quadro 3).
Quadro 3- Tipos de abordagem adotadas face à questão dos sitios
contaminados
Abordagem dominante Características Exemplos
Negligência -não fazer nada, esperar
que o problema se
manifeste ou não seja
Postura amplamente
difundida
40
descoberto
Reativa -ação desarticulada e
resposta caso a caso
Love Canal (EUA), sítio
Mercier (Quebec),
Lekkerkirk (Holanda),
Dortmund (Alemanha),
áreas contaminadas na
Rhodia na Baixada
Santista
Corretiva -adoção, de forma
planejada e sistemática, de
medidas visando remediar
um problema, após
identificação e diagnóstico
-estudo e eventual
recuperação quando há
mudança no uso do solo
Estados Unidos (1),
Holanda (2), Quebec (3),
Reino Unido (4),
Queensland (Austrália)
(5), Victoria (Austrália) (6),
Toronto (7), Flandres
(Bélgica) (8), Pensilvânia
(EUA) (9), Dinamarca
(10), Alemanha (11),
Áustria (12)
Preventiva -planejar o fechamento de
empreendimentos em
atividade que possam
causar contaminação do
solo
-adoção de instrumentos
que garantem a
desativação adequada (por
exemplo, garantias
financeiras)
Planos de recuperação
ambiental na mineração
(vários países) previsões
legais na Holanda, Nova
Jersey (13), França (14),
Ontário (15), EUA (16)
Proativa -planejamento e gestão
ambiental de todas as
etapas do ciclo de vida de
um empreendimento
Aplicação eficaz da
avaliação de impacto
ambiental e dos sistemas
de gestão ambiental
Fonte: SANCHEZ (2001, p.17)
LEGENDAS (QUADRO 3)
(1) Superfund 1980
(2) Soil Clean-Up (Ínterim) Act 1982, Act for Soil Protection 1987, Soil Protection
Act 1994
(3) Politique de Réhabilitation des Terrains Contaminés 1988, Politique de
protection des sols et de réhabilitation des terrains contaminés 1988
(4) Environmental Protection Act 1990, Environment Act 1995
(5) Contamined Land Act 1991
(6) Environmental Protection (Amendment) Act 1988
(7) By-law no.698-82, 1992
(8) Decreto de 22 de fevereiro de 1995
(9) Land Recycling and Environmental Remediation Standards Act 1995
(10) Lei de Depósitos de Resíduos de 1983, Lei de Sítios Contaminados de 1990
(11) Diversas leis estaduais e municipais e Lei Federal de Proteção de Solo de
1998
(12) Altlanstensanierungsgesetz (Lei de Saneamento de Terrenos
Contaminados) 1989
41
(13) Environmental Cleanup Responsability Act 1983
(14) Lei n. 93-3 de 4 de janeiro de 1993 e decreto n. 94-484 de 9 de junho de 1994
(15) Environmental Protection Act
(16) Resource Conservation and Recovery Act 1976
Segundo o Conselho Canadense de Ministros do Meio Ambiente, um
programa de desativação deve incluir os seguintes objetivos:
- o local não deve constituir um perigo para a saúde e a segurança
públicas;
- o programa não deve ocasionar impactos ambientais inaceitáveis;
- estar conforme todas as leis e os regulamentos aplicáveis;
- ser adequado à nova utilização proposta para o solo;
- o expor os proprietários presentes e futuros à ações judiciais;
- ser esteticamente aceitável.
A estes fatores, Sanchez acrescenta que o programa também deve
“assegurar a estabilidade física, química e biológica da área, de maneira a
viabilizar novos usos do solo” (SANCHEZ, 2001, p.65).
Para Sanchez, o fechamento de instalações industriais é inevitável,
pois faz parte da própria dinâmica sócio-econômica.
Indústrias encerram suas atividades por perderem competitividade ou
ficarem ultrapassadas tecnologicamente. Suas fábricas são transferidas
para outros locais, em decorrência de políticas urbanas, políticas fiscais ou
por razões econômicas ou ainda ambientais, num processo que vem se
intensificando cada vez mais. Apesar disso, na concepção e projeto da
maioria dos empreendimentos industriais ainda não se leva em conta a sua
desativação. Essa postura tem sido questionada por razões diversas,
principalmente de ordem ambiental (SANCHEZ, 2001, p.203)
Na avaliação de Sanchez, as demandas sociais, os imperativos
econômicos e o ordenamento jurídico apontam para a necessidade de um
novo enfoque do projeto de engenharia, que devem passar a abordar o ciclo
de vida de um empreendimento. Esse enfoque tem como precedente a
análise do ciclo de vida de produtos. Atualmente, também se torna
42
importante pensar o ciclo de vida de indústrias, barragens, portos e edifícios,
daí o conceito de “desengenharia” defendido por Sanchez. “É preciso
aprender a desfazer, desmontar, desativar, sem deixar dívida. E é preciso
ensinar a fazê-lo” (SANCHEZ, 2001, p.206)
1.3- Espaço e Tempo nas cidades: “brownfields”, memórias e espaços
utópicos
Para Carlos (2001, p. 32), “o processo de constituição da sociedade
urbana produz transformações radicais nas relações espaço-tempo que
podem ser entendidas, em toda a sua extensão, no lugar, nos atos da vida
cotidiana”. A autora destaca que a sensação de tempo se acelera, enquanto
as formas como as pessoas se identificam com o lugar onde moram são
alteradas pelas mudanças nas possibilidades de uso do lugar e nos modos
de vida desse lugar. A autora defende a contradição entre o tempo da vida e
o tempo das transformações na morfologia urbana. Na avaliação de Carlos
(2001, p.32), essa contradição produz o “estranhamento”, num lugar onde as
marcas da vida de relações e dos referenciais “se esfumaçam, ou se perdem
para sempre”.
O sentido dos “lugares” é criado pelas relações. Nesse sentido, o
lugar pode ser compreendido em suas referências, “que não são
específicas de uma função ou de uma forma, mas produzidos por um
conjunto de sentidos, impressos pelo uso” (CARLOS, 2001, p. 36). A base
da reprodução da vida acontece, então, pela relação habitante-lugar, que
produz a identidade do indivíduo. O processo de construção da cidade tem
como características conflitantes a busca pela modernidade no espaço e as
condições de possibilidade, referentes à realização da vida, “revelando uma
luta intensa em torno dos modos de apropriação do espaço e do tempo na
metrópole- um processo que ocorre de modo profundamente desigual”
(CARLOS, 2001,p.36).
43
O espaço ganha materialidade através da prática social, como modo
de apropriação do lugar, num momento de exterioridade-interioridade. Dessa
maneira a forma, que pode ser o mais exterior, também aparece como
interior.
A existência concreta liga o vivido e o percebido àquilo que permite/impede
atos e ações pela existência das normas, como parte integrante da prática
social, povoa o mundo das representações que as pessoas, que habitam o
espaço, criam dele. Todavia, as formas da cidade têm um código para os
habitantes que se estabelece acima das normas. Aqui, a forma está
intimamente ligada ao uso, à identidade e à memória (CARLOS, 2001, p. 51)
Nesse contexto, os lugares ganham dimensão pela vida de relações,
materializada em uma forma passível de apreensão pelos sentidos. Para
Carlos (2001, p.51), a forma da cidade, que se concretiza como produto do
trabalho da sociedade, está associada ao uso do espaço em uma relação
que se torna concreta nos atos da vida cotidiana. O corpo e os sentidos
concedem aos atos mais banais um conteúdo, “criando uma referência,
produzindo uma identidade que é o suporte da memória”. No lugar estão o
passado e o presente, além de possibilidades futuras, todos impressos nas
formas, que revelam um conteúdo dado pela prática social. Para Carlos
(2001, p. 51), dessa maneira a forma é imediatamente conteúdo.
De acordo com Jodelet (2002, p. 31), quando se pensa em
desenvolvimento, a temporalidade é mais “a de um presente voltado para o
futuro e, nesse movimento, o futuro será construído da memória do
passado”. A autora defende a busca por um progresso não destrutivo,
solução que não pode ignorar a tensão entre a temporalidade do
desenvolvimento e a que é igualmente implicável na idéia de durabilidade -
“o que pressupõe a abordagem das transformações de estados naturais,
materiais, econômicos e sociais, sob a espécie da preservação, da duração,
da perenidade das formas naturais, materiais e sociais existentes”.
Para Carlos, o cenário da atualidade é permeado por continuidades e
descontinuidades, que se combinam como conseqüência do espaço/tempo
urbanos.
44
Movimentos, construções, transformações; uma história que, do ponto de
vista espacial, produz uma morfologia, que se realiza em continuidades- como
justaposição de formas históricas, de momentos diversos- e
descontinuidades- momentos de transformações e/ou rupturas. É que a
presença da acumulação de tempos diferenciados na metrópole, como
suporte material, justapõe tempos, marca uma temporalidade diferenciada e
desigual dos processos reprodutores da metrópole (CARLOS, 2001, p.51)
Carlos (2001, p.55) destaca que “as formas revelam a história da
civilização na acumulação, no espaço, dos tempos; na metrópole, o espaço
justapõe tempos em sua dimensão material, do mesmo modo que aponta
uma temporalidade diferenciada”. Para a autora, a eliminação substancial
das formas sustenta e referencia a vida, produzindo o processo de
“estranhamento” que é revelado na relação do indivíduo com o lugar. Na
sociedade moderna, há um novo sentido de tempo, cada vez mais marcado
pela técnica. Com isso, há uma defasagem entre o tempo humano e o tempo
da sociedade produtivista. Carlos cita Baudelaire, “a forma de uma cidade
muda mais rápido que o coração de um mortal” para demonstrar a
defasagem entre os tempos do indivíduo e da sociedade. Esse processo de
transformação da cidade acarreta mudanças nos modos de perceber, sentir
e viver o lugar.
Ocorre segundo Gracq, a cidade vai ganhando, por suas recordações, novos
contornos, ao mesmo tempo em que a vida, ela própria, se transforma em
função de seus ciclos próprios (aqui os ciclos da vida da cidade se associam
àqueles da vida do poeta), que cimentam, por suas transformações, um
conjunto fechado de lembranças (CARLOS, 2001, p.59)
A autora também destaca que o setor da população ativa, diretamente
ligada ao setor produtivo, vive numa “tendência à diminuição”. Com o
desenvolvimento do setor de serviços, o setor industrial reduz o número de
pessoas empregadas, o que exige novas áreas em novos espaços para a
implantação dessas mudanças. “Isto significa que, em grandes áreas da
metrópole, o uso do solo vem-se transformando e, com isso,
redimensionando as funções dos lugares na hierarquia espacial” (CARLOS,
2001, p.136).
45
As formas que a sociedade produz guardam uma história, na medida em que
o tempo implica duração e continuidade. As formas materiais arquitetônicas
guardam um conteúdo social que a memória ilumina, tornando-as presente e,
com isso, dando-lhes espessura, pois lhes é conferido um conteúdo no
presente-fato ignorado pelas propostas de realização de operações urbanas
na metrópole. A memória articula espaço e tempo com base em uma
experiência vivida em um determinado lugar. Nesse sentido, a construção do
lugar se revela, fundamentalmente, como construção de uma identidade. A
memória liga-se, decididamente, a um lugar, ao uso e a um ritmo, logo, a uma
relação espaço-temporal, e não apenas a uma incursão no tempo - lugar e
memória são indissociáveis (CARLOS, 2001, p.217)
Para Carlos (2001, p.118), espaço e tempo o indissociáveis, e
caberia à memória revelar essa indissociabilidade. A memória pode
aproximar, mover e retroceder o tempo. “Enquanto o que recordar, o
passado se enlaça no atual e conserva a vivacidade cambiante, que significa
uma ausência em presença. Assim, a vida ganha sentido em uma relação
espaço-temporal”.
Nesse contexto, a questão da memória se torna pertinente porque ao
permitir a união dialética do passado, do presente e do futuro, pode servir
para estabelecer formas de vida sem ruptura brutal, com respeito ao
presente fundamentado no passado. Para Jodelet (2002, p.31) “esse
objetivo vale, especialmente, para o estudo do modo como os indivíduos e
os grupos se situam dentro de seus espaços de vida e como se ligam a eles
- aqui, na cidade”.
A autora defende a estreita relação entre memória e espaço. Citando
a obra de Halbwachs, “A Memória Coletiva”, Jodelet (2002, p.32) lembra que
os grupos de seres humanos “desenham” sua forma sobre o solo e
reencontram suas lembranças coletivas no quadro espacial assim definido.
Até os objetos com os quais convivemos em nosso cotidiano colaboram para
a sensação de estabilidade. “A memória coletiva se apóia em imagens
espaciais e o existe memória coletiva que não se desenvolva num quadro
espacial” enfatiza Jodelet. A modernidade está caracterizada hoje como um
desafio à criação dos laços sociais.
A supramodernidade, por sua vez, é a experiência da aceleração da história,
do fechamento do espaço e da individualização no interior do espaço. Esse
duplo processo modifica as relações que mantemos com nosso entorno físico
e com nosso meio social. Assim, a cidade - que favorece o individualismo e a
46
abstração coletiva - dificulta a criação dos laços sociais e o estabelecimento
de relações simbólicas com os outros, ao menos em sua forma atual
(JODELET, 2002, p.33).
O que a autora busca é definir em que condições a cidade pode
aparecer como um lugar que possa ser definido por seu caráter identificador.
Nesse lugar, seria permitido aos habitantes se reconhecer e se definir.
Nessa cidade identificadora seria possível fazer a leitura das relações entre
os habitantes e por seu caráter histórico, possibilitar que os habitantes
encontrem os seus sinais de filiação.
a relação do sujeito individual ou coletivo com seu espaço de vida passa por
construções de sentido e de significado que se baseiam não somente na
experiência direta e na prática funcional ou subversiva que se desdobra,
como veremos adiante, mas também no valor simbólico conferido ao
ambiente construído pela cultura, pelas relações sociais, pelo jogo do poder
(JODELET, 2002, p.34)
Para a autora, a ligação entre memória e cidade passa sempre pela
identidade, tanto na identificação com o lugar como nas afirmações
identiárias que são estabelecidas como respostas às imposições dos
espaços coletivos pelos planos de urbanização.
Jodelet (2002, p.38) afirma que o desenvolvimento moderno das
cidades coincidia com o desaparecimento dos efeitos de memória, o que
pode ser entendido de maneira positiva ou negativa. Como portadora da
História, a cidade carrega três tipos de memória. Na primeira forma,
chamada por Jodelet de eventual, alguns lugares são emblemáticos pelos
acontecimentos de que foram palco. O segundo tipo de memória urbana é a
memória coletiva dos grupos, que foram objeto de estudo de Maurice
Halbwachs. Nesse caso, os ocupantes de uma zona urbana, que são
definidos por suas atividades e por seus traços sociais, culturais e étnicos,
marcam socialmente o espaço. Os vestígios desses povos são deixados nas
edificações e nos lugares urbanos. O terceiro tipo de memória é a
monumental, quando as construções guardam em si os vestígios do
passado e estabelecem uma ligação com ele. Esse tipo de memória, que foi
objeto de estudo de Nietzsche, corresponde a uma visão de antiquário de
47
conservação estática do passado, e segundo alguns autores, não permitiria
carregar um sentido verdadeiramente urbano.
Para ser completa, a memória dos lugares precisa também das vozes
e do trabalho daqueles que a buscam, nelas se encontram ou a constroem.
“O estilo e a história de uma época se exprimem por meio das formas da
arquitetura e da organização urbana. O espírito de um tempo se torna,
assim, aquele espírito dos lugares onde ele desenvolveu sua ordem ética,
estética e funcional” (JODELET, 2002, p.40).
Para concluir, gostaria de insistir que defendo a valorização dos fenômenos
da memória como mecanismo de defesa das identidades, mas também que
existe aí uma grandeza que se abre para favorecer um desenvolvimento
durável e que não seria apenas a memória dos lugares, mas também a
memória dos costumes, a memória do modo de vida, a memória das técnicas,
que poderiam fazer o papel de algo que reforça e estabiliza, no sentido da
duração e da proteção, a evolução social e material (JODELET, 2003, p.42).
No prefácio do livro Memória e Sociedade - Lembranças de Velhos
(BOSI, 1979), João Alexandre Barbosa destaca que “fundada em Walter
Benjamin, Ecléa Bosi sabe que a memória é a faculdade épica par
excellence” (1979, p XIV). Mas Benjamin vai ainda mais longe: “O narrador
conta o que ele extrai da experiência - sua própria ou aquela contada por
outros. E, de volta, ela a torna experiência daqueles que ouvem a sua
história”. Barbosa também ressalta que “caminhar e ver confundem-se nos
confins da lembrança: o tempo de lembrar traduz-se, enfim, pelo tempo de
trabalhar. Por isso, sem a memória do trabalho a narração perderia a sua
qualidade épica” (1979, pXV).
Na apresentação do mesmo livro, Chauí questiona:
Por que temos que lutar pelos velhos? Porque são a fonte de onde jorra a
essência da cultura, ponto onde o passado se conserva e o presente se
prepara, pois, como escrevera Benjamin, perde o sentido aquilo que no
presente não é percebido como visado pelo passado. O que foi não é uma
coisa revista por nosso olhar, nem é uma idéia inspecionada por nosso
espírito - é alargamento das fronteiras do presente, lembrança de
promessas não cumpridas (1979,p.XVIII)
Na sociedade atual, o idoso estaria sendo privado de seus papéis na
comunidade:
48
a função social do velho é lembrar e aconselhar- menimi, moneo- unir o
começo e o fim, ligando o que foi e o por vir. Mas a sociedade capitalista
impede a lembrança, usa o braço servil do velho e recusa seus conselhos.
Sociedade que, diria Espinosa, “não merece o nome de Cidade, mas o de
servidão, solidão e barbárie”, a sociedade capitalista desarma o velho
mobilizando mecanismos pelos quais oprime a velhice, destrói os apoios da
memória e substitui a lembrança pela história oficial celebrativa (1979,
p.XVIII)
“Destruindo os suportes materiais da memória, a sociedade capitalista
bloqueou os caminhos da lembrança, arrancou seus marcos e apagou seus
rastros destaca Chauí (1979,p.19). A memória das sociedades antigas se
apoiava na estabilidade espacial e na confiança em que os seres de nossa
convivência o se perderiam, não se afastariam. Constituem-se valores
ligados à práxis coletiva como a vizinhança (versus mobilidade), a família
larga, extensa (versus ilhamento da família restrita), apego a certas coisas, a
certos objetos biográficos (versus objetos de consumo). Eis, aí, alguns
arrimos em que a memória se apoiava. Chauí mostra também a importância
da frase repetida várias vezes no livro de Bosi, “já não existe mais”.
Essa frase dilacera as lembranças como um punhal e, cheios de temor,
ficamos esperando que cada um dos lembradores o realize o projeto de
buscar uma rua, uma casa, uma árvore guardada na memória, pois
sabemos que não irão encontrá-las nessa cidade (CHAUÍ, 1979, p.XIX).
A destruição da memória também pode afetar de maneira diversa os
atores sociais, de acordo com o seu papel na sociedade:
Todavia, a memória não é oprimida apenas porque lhe foram roubados
suportes materiais, nem porque o velho foi reduzido à monotonia da
repetição, mas também porque uma outra ação, mais daninha e sinistra,
sufoca a lembrança: a história oficial celebrativa cujo triunfalismo é a vitória do
vencedor a pisotear a tradição dos vencidos (CHAUÍ,1979, p.XIX).
E mais adiante Chauí (1979, p.XX) cita Bosi:
49
Entre as famílias mais pobres, a mobilidade extrema impede a
sedimentação do passado, perde-se a crônica da família e o indivíduo em
seu percurso errante. Eis um dos mais cruéis exercícios da opressão
econômica sobre o sujeito: a espoliação das lembranças (BOSI, 1979,
p.XX).
Chauí (1979, pXX) lembra ainda que “os recordadores são, no
presente, trabalhadores, pois lembrar não é reviver, mas re-fazer. É reflexão,
compreensão do agora a partir do outrora; é sentimento, reaparição do feito
e do ido, não sua mera repetição”
A autora defende que o trabalho é a relação com o ausente e com o
possível, momento de exteriorização e de interiorização, negação do
imediato, mediação criadora. Diz a autora sobre o livro de Bosi:
repondo a memória como trabalho você escreve: Não evolução sem
uma inteligência do presente, um homem não sabe o que ele é se não for
capaz de sair das determinações atuais. Acurada reflexão pode preceder e
acompanhar a evocação. Uma lembrança é um diamante bruto que precisa
ser lapidado pelo espírito. Sem o trabalho da reflexão e da localização, ela
seria uma imagem fugidia. O sentimento também precisa acompanhá-la
para que ela não seja uma repetição do estado antigo, mas uma
reaparição.(...) Mas o ancião não sonha quando rememora: desempenha
uma função para a qual está maduro, a religiosa função de unir o começo e
o fim, de tranquilizar as águas revoltas do presente alargando suas
margens (...) O vínculo com outra época, a consciência de ter suportado,
compreendido muita coisa, traz para o ancião alegria e uma ocasião de
mostrar sua competência. Sua vida ganha uma finalidade se encontrar
ouvidos atentos, ressonância” (CHAUÍ, 1979, p.XXI)
Na apresentação do livro de Bosi, Chauí lembra que a autora escreve
que “a sociedade industrial é maléfica à velhice”, pois nela todo sentimento
de continuidade é destroçado, o pai sabe que o filho não continuará sua obra
e que o neto nem mesmo dela terá notícia. “Destruirão amanhã o que
construímos hoje”.
o modo de lembrar é individual tanto quanto social: o grupo transmite,
retém e reforça as lembranças, mas o recordador, ao trabalhá-las, vai
paulatinamente individualizando a memória comunitária e, no que lembra e
no como lembra, faz com que fique o que signifique. O tempo da memória é
social, não só porque é o calendário do trabalho e da festa, do evento
político e do fato insólito, mas também porque repercute no modo de
lembrar (CHAUÍ, 1979, p. XXX).
50
No livro Memória e Sociedade - Lembranças de Velhos, Bosi destaca
que ”a memória é um cabedal infinito do qual registramos um fragmento”
(1979, p.3). Baseada em Henri Bérgson (Matière et mémoire), Bosi ressalta
que
a posição introspectiva de Bérgson em face do seu tema leva-o a começar a
indagação pela auto-análise voltada para a experiência da percepção: - O que
percebo em mim quando vejo as imagens do presente ou evoco as do
passado? Percebo, em todos os casos, que cada imagem formada em mim
está mediada pela imagem, sempre presente, do meu corpo (BOSI,1979, p.6).
Para Bérgson “a percepção dispõe do espaço na exata proporção em
que a ação dispõe do tempo”. Como enfrentar o problema da vida
psicológica já atualizada se, em termos de percepção pura, existe o
presente do corpo, ou, mais rigorosamente, a imagem aqui e agora do
corpo? Questiona Bosi (1979, p.8) que se formulando a questão no contexto
de razões acima, rgson vai opor vigorosamente a percepção atual àquilo
que, logo adiante, chamará de lembrança.
(...) para Bérgson, o universo das lembranças não se constitui do mesmo
modo que o universo das percepções e das idéias. Todo o esforço científico
e especulativo de Bérgson está centrado no princípio da diferença: de um
lado, o par percepção-idéia, par nascido no coração de um presente
corporal contínuo; de outro, o fenômeno da lembrança, cujo aparecimento é
descrito e explicado por outros meios. Essa oposição entre o perceber e o
lembrar é o eixo do livro, que já traz no título o selo da diferença:
matéria/memória (BOSI, 1979, p.8)
“Na realidade, não percepção que o esteja impregnada de
lembranças” (BERGSON apud BOSI, 1979). Antes de ser atualizada pela
consciência, toda lembrança “vive” em estado latente, potencial. Esse
estado, porque está abaixo da consciência atual (“abaixo” metaforicamente)
é qualificado de “inconsciente”. Para Bosi (1979, p.15), “importa, porém,
reter o seu princípio central da memória como “conservação do passado”;
este sobrevive, quer chamado pelo presente sob as formas da lembrança,
quer em si mesmo, em estado inconsciente. “Segundo Bosi, Bérgson
avaliava que a lembrança é a sobrevivência do passado. O passado,
51
conservando-se no espírito de cada ser humano, aflora à consciência na
forma de imagens-lembrança.
Entre os pesquisadores que se dedicaram aos estudos sobre a
lembrança Bosi também destaca Maurice Halbwachs, autor de “Les cadres
sociaux de la mémoire e “La moire collective”. Bosi (1979, p.7) explica
que “Halbwachs não vai estudar a memória, como tal, mas os “quadros
sociais da memória”. Nessa linha de pesquisa, as relações a serem
determinadas não ficarão adstritas ao mundo da pessoa (relações entre o
corpo e o espírito, por exemplo), mas perseguirão a realidade interpessoal
das instituições sociais. A memória do indivíduo depende do seu
relacionamento com a família, com a classe social, com a escola, com a
Igreja, com a profissão; enfim, com os grupos de convívio e os grupos de
referência peculiares a esse indivíduo.
“Na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer,
reconstruir, repensar, com imagens e idéias de hoje, as experiências do
passado. A memória não é sonho, é trabalho” destaca Bosi.
A lembrança é uma imagem construída pelos materiais que estão, agora, à
nossa disposição, no conjunto de representações que povoam nossa
consciência atual. Por mais nítida que nos pareça a lembrança de um fato
antigo, ela não é a mesma imagem que experimentamos na infância,
porque nós não somos os mesmos de então e porque nossa percepção
alterou-se e, com ela, nossas idéias, nossos juízos de realidade e de valor.
O simples fato de lembrar o passado, “no presente”, exclui a identidade
entre as imagens de um e de outro, e propõe a sua diferença em termos de
ponto de vista (BOSI, 1979, p.17)
A importância dada à lembrança varia de acordo com os valores
culturais de cada sociedade. Bosi (1979,p.24) distingue que “haveria,
portanto, para o velho uma espécie singular de obrigação social, que o
pesa sobre homens de outras idades: a obrigação de lembrar, e lembrar
bem”. A autora destaca que nem toda sociedade espera, ou exige, dos
velhos que se desencarreguem dessa função. Para Bosi, os graus de
expectativa ou de exigência não são os mesmos em toda parte. “O que se
poderia, no entanto, verificar, na sociedade em que vivemos, é a hipótese
52
mais geral de que o homem ativo (independenmente de sua idade) se ocupa
menos em lembrar, exerce menos frequentemente a atividade da memória”
Mesmo não sendo o alvo de sua pesquisa, no livro “Rio Claro- Uma
Cidade em Transformação”, Santos (2002,p.86) aborda a influência da
ferrovia e da cervejaria Rio Claro no cotidiano dos cidadãos e de sua
importância dentro da memória da cidade.
Com os trilhos, o cotidiano da população foi transformado. Sua chegada, num
meio inóspito e majoritariamente voltado às atividades rurais, representou a
introdução de um instrumento de largas proporções até então desconhecido,
onde o trem e seu apito passaram a compor e a alterar a paisagem urbana.
Instalava-se, assim, um novo símbolo de racionalidade burguesa, com o
tempo ditando os afazeres e alterando sobremaneira a vida do indivíduo
morador da cidade (SANTOS, 2002,p. 86-87)
Inicialmente marcado pelos apitos do trem, o tempo dos cidadãos em
Rio Claro passou a partir de 1892 a seguir o compasso do apito de entrada
dos trabalhadores nas oficinas da Cia. Paulista de Estradas de Ferro. O
mesmo aconteceu com o apito da Cervejaria Skol Caracu, onde a sirene
soava diariamente às 12 horas e às 18 horas, e era comum o acerto de
relógios por esse apito.
Detalhes como o do acerto dos relógios mostram que muitas
empresas desenvolveram uma relação além da empregador-empregado
com a comunidade. Quando essa atividade é encerrada ou passa por
decadência, os prejuízos não são somente econômicos.
Um edifício industrial não pode ser considerado um “brownfield”
somente pelo critério de um determinado período de abandono após o
encerramento das atividades de produção. Uma área industrial abandonada
deve merecer preocupação e intervenção da comunidade quando representa
ou representou um papel significativo no contexto histórico e geográfico do
município.
A importância de um determinado empreendimento para o
desenvolvimento do município pode ser analisada por dados como o
número de pessoas empregadas na antiga fábrica, sua capacidade de
produção ou a contribuição com arrecadação de impostos para o município.
Porém, existe uma outra maneira de se avaliar essa importância histórica.
53
Através das entrevistas com ex-funcionários das fábricas desativadas, é
possível constatar a importância que esses empreendimentos tiveram na
vida dos trabalhadores e o impacto que o estado de abandono dos prédios
provoca nos antigos operários, atualmente muitos idosos. Através da
coleta das lembranças por entrevistas, a importância das Oficinas da Cia.
Paulista, da Cervejaria Rio Claro, da Tecelagem Matarazzo e da Gurgel
Motores pode ser comprovada.
A atual organização espacial só poderá ser entendida quando se
considerar os testemunhos (“brownfields”) gerados em tempos pretéritos.
Conseqüentemente, a organização espacial futura (espaços utópicos) será
o resultado da soma dos elementos do passado e das intervenções
realizadas no espaço no momento presente.
As iniciativas para a refuncionalização dos “brownfields” não podem
ser simplificadas como apenas uma tentativa de voltar a obter resultados
econômicos nestes imóveis que um dia foram considerados lucrativos. A
mobilização pelo retorno das atividades também está ligada a um
comportamento característico da modernidade, como uma resposta à
globalização, que Bauman define como a busca pela comunidade.
Para nós em particular - que vivemos em tempos implacáveis, tempos de
competição e de desprezo pelos mais fracos, quando as pessoas em volta
escondem o jogo e poucos se interessam em ajudar-nos, quando em resposta
a nossos pedidos de ajuda ouvimos advertências para que fiquemos por
nossa própria conta, quando só os bancos ansiosos por hipotecar nossas
posses sorriem desejando dizer “sim”, e mesmo eles apenas nos comerciais e
nunca em seus escritórios - a palavra “comunidade” soa como música aos
nossos ouvidos. O que essa palavra evoca é tudo aquilo de que sentimos
falta e de que precisamos para viver seguros e confiantes (BAUMAN, 2003,
p.8)
O autor destaca que a comunidade não é um mundo que está a nosso
alcance, mas no qual todos gostariam de viver e esperam um dia conquistar.
“Comunidade é nos dias de hoje outro nome do paraíso perdido - mas a que
esperamos ansiosamente retornar, e assim buscamos febrilmente os
caminhos que podem levar-nos até lá” (BAUMAN, 2003,p. 9).
Nesse mundo de constantes mudanças, a busca dos homens em
pertencer a um determinado grupo parece ser uma conquista cada vez mais
54
distante. Em substituição à busca pela comunidade, surge então a pela
identidade. Para Bauman (2003,p.20), a identidade deve “invocar o
fantasma da mesmíssima comunidade a que deve substituir. A identidade
brota entre os túmulos das comunidades, mas floresce graças à promessa
da ressurreição dos mortos”.
(...) no entanto, a vulnerabilidade das identidades individuais e a precariedade
da solitária construção da identidade levam os construtores da identidade a
procurar cabides em que possam, em conjunto, pendurar seus medos e
ansiedades individualmente experimentados e, depois disso, realizar os ritos
de exorcismo em companhia de outros indivíduos também assustados e
ansiosos. É discutível se essas “comunidades-cabide” oferecem o que se
espera que ofereçam - um seguro coletivo contra certezas individualmente
enfrentadas; mas sem dúvida marchar ombro a ombro ao longo de uma ou
duas ruas, montar barricadas na companhia de outros ou roçar os cotovelos
em trincheiras lotadas, isso pode fornecer um momento de alívio da solidão
(BAUMAN, 2003, p.21)
Um dos resultados esperados nessa busca pela comunidade sería a
ligação com o passado. Citando a descrição feita por Benjamin, o autor fala
sobre o “Anjo da História”, que se movimenta com as costas voltadas para o
futuro e com os olhos postos no passado.
Sua face se volta para o passado. Onde percebemos uma seqüência de
eventos, ele uma única catástrofe que empilha destroços sobre destroços
e os lança a seus pés. O anjo gostaria de ficar, acordar os mortos e
reconstituir o que foi destruído. Mas do Paraíso sopra a tempestade; ela
tomou suas asas com tal violência que o anjo não as pode fechar. Essa
tempestade o empurra irresistivelmente para o futuro para o qual suas costas
estão voltadas, enquanto a pilha de escombros à sua frente sobe até o céu
(BENJAMIN, 1969, p.257 apud BAUMAN, 2003, p.22-23)
Enquanto Bauman fala em busca pela comunidade, Harvey (2004,
p.204-205) aborda os espaços de utopia. Diante de todos os interesses
corporativos e financeiros que promovem sua própria versão da política de
identidade, o autor destaca que “nós, o povo, não temos o direito de
escolher o tipo de cidade que vamos habitar”. Ao longo da história, as
figuras da cidade e de utopia sempre foram relacionadas. “É difícil distinguir
aqui as prosaicas práticas e dos discursos cotidianos que afetam a vida
urbana dos gradiosos sentidos metafóricos que se mesclam tão facilmente
com emoções e crenças acerca da boa vida urbana” explica Harvey (2004
55
p.208). Em sua análise, é também na vida em pequena escala da cidade
que se situam os ideais das organizações sociais utópicas. Harvey (2004,
p.210) destaca que “ao produzirmos coletivamente nossas cidades,
produzimos coletivamente a nós mesmos”. Citando Roberto Unger (1987), o
autor defende que se a “sociedade é construída e imaginada”, podemos
também crer que ela pode ser “reconstruída e reimaginada”.
1.4- A História Oral como ferramenta para entender a importância dos
“brownfields”
De acordo com François (2000, p.4), a história oral seria inovadora
primeiramente por seus objetos, pois dá atenção especial ao “dominados”,
aos silenciosos e aos excluídos da história (mulheres, proletários, marginais
etc), à história do cotidiano e da vida privada (numa ótica que é o oposto
da tradição francesa da história da vida cotidiana) e à história local e
enraizada.
Em segundo lugar, seria inovadora por suas abordagens, que dão
preferência a uma “história vista de baixo (...) atenta às maneiras de ver e de
sentir”. Joutard também compartilha da mesma concepção sobre a história
oral.
De fato, essa nova geração desenvolveu uma nova concepção muito mais
ambiciosa: não mais se trata apenas de uma simples fonte complementar
do material escrito, e sim de uma outra história”, afim da antropologia, que
voz aos “povos sem história”, iletrados, que valoriza os vencidos, os
marginais e as diversas minorias, operários, negros, mulheres (JOUTARD,
2000,p.45)
A história oral como espaço para as minorias também é defendida por
Meihy:
por meio da história oral, por exemplo, movimentos de minorias cullurais e
discriminadas, principalmente de mulheres, índios, homossexuais, negros,
desempregados, além de migrantes, imigrantes, exilados, têm encontrado
56
espaço para abrigar suas palavras, dando sentido social às experiências
vividas sob diferentes circunstâncias (MEIHY, 1996,p.9)
Na avaliação de Lozano, a história oral é o ponto de encontro entre a
história e as demais ciências sociais e de comportamento.
(...) a novidade que se percebe consiste principalmente em reconhcer que a
história oral constitui-se pela confluência multidisciplinar; tal como uma
encruzilhada de caminhos, a história oral é um ponto de contato e
intercâmbio entre a história e as demais ciências sociais e do
comportamento (...) (LOZANO, 2000, p.45)
Desde os primeiros autores que adotaram a história oral, o
procedimento provoca questionamentos sobre sua validade. Para Meihy:
(...) dúvidas comuns como a “representatividade” dos testemunhos, o
“alcance histórico” das impressões e a relatividade dos casos narrados
têm perdido a força na medida em que as virtudes e a popularidade da
história oral passam a integrar preferências indiscutíveis e a ganhar adeptos
de peso (MEIHY, 1996,p.10)
O autor (1996, p.14) defende ainda que “é desprezível discutir se a
história oral se compraz ou não em ser uma técnica, um todo ou uma
disciplina”. Para Meihy, a avaliação mais coerente sobre a história oral é a
de Louis Starr, um de seus fundadores. Mais do que uma ferramenta e
menos do que uma disciplina”, também mais apta a motivar reflexões do que
a esgotar-se em debates inócuos sobre seu sentido epistemológico.
(...) da mesma forma, é pobre manter a discussão sobre a cientificidade ou
não da história oral. Cabe, modestamente, reconhecê-la como instrumento
capaz de colocar novos elementos à disposição dos interessados na leitura
da sociedade. É válido também não considerar a história oral como mero
substitutivo para carências documentais, sejam qualitativas ou quantitativas.
Ela pode até vir a complementar algum conjunto documental para explicar
percepções de problemas, porém, é equivocado assumí-la fora da
especificidade do seu código (MEIHY, 1996, p.14)
1.4.1- O caso da “herança industrial” de Buffalo (EUA)
A história oral também é vista como um caminho que permite a
recuperação e a reapropriação do passado.
57
(...) uma última dimensão em que os campos da história e da memória
se entrelaçam, uma dimensão em que a história oral tem tido especial
importância, não tanto por seus produtos, mas sim por seus processos:
pelo envolvimento maior na recuperação e na reapropriação do passado
que a história oral possibilita. Aqui, a relação lança sombras na direção
oposta: não se trata apenas de entender as dimensões da memória coletiva
no contexto da história, mas, sobretudo de entender como a historicização
formal e autoconsciente vem se transformando numa dimensão cada vez
mais importante de como lembramos o passado e entendemos sua relação
com a vida e a cultura contemporâneas (FRISCH, 2000, p.78)
Frisch (2000, p.79) descreve seu trabalho desenvolvido em Buffalo,
num projeto regional cooperativo e num livro organizado por seus alunos de
graduação, denominado “Política de Herança Industrial”. O interesse dos
pesquisadores, segundo o autor, está nas diversas formas de mobilização
da história formal como parte do processo pelo qual as comunidades reagem
à reestruturação da economia industrial norte-americana.
Nas áreas que enfrentam a desintegração da base industrial, tanto da
economia quanto da comunidade, qual seria o papel, o significado e a
importância de preservar, celebrar e compartilhar a história de fábricas
fechadas, indústrias perdidas e comunidades industriais em decadência? O
que ocorreu- em Buffalo e em muitas outras comunidades semelhantes, o
que de maneira alguma se restringe ao Nordeste industrial_ foi que os usos,
o valor, a administração e a projeção da “herança industrial” converteram-se
em algo que pode ser descrito como uma área extremamente polêmica
de política pública (FRISCH, 2000, p.79).
Nessa etapa de reestruturação da economia, Frisch lembra que
uma convergência de grupos de interesses diversos, de historiadores a
empreendedores econômicos interessados em reutilizar os terrenos e
instalações industriais, além de entidades governamentais preocupadas com
locais históricos. Junto a estes grupos também está a própria comunidade,
com seus trabalhadores desempregados, suas famílias e sindicatos.
Em alguns casos, por exemplo, sindicalistas se insurgem contra projetos de
herança industrial porque apoiá-los é visto como a confirmação da sentença
da história de relegar empregos e comunidades industriais ao passado,
frustando esforços para preservar empregos e oportunidades industriais no
presente; em outros casos, celebrar a herança industrial constitui uma
importante dimensão da luta dos sindicatos pela sobrevivência, um fator
crucial para forjar um futuro que se fundamente na história vivida e levada
adiante pelos trabalhadores e suas famílias (FRISCH, 2000, p.80).
58
O autor também destaca a interligação entre passado, presente e
futuro:
(...) em todas essas instâncias, a história formal se envolveu nos processos
de memória coletiva e em como essa memória é vista como uma conexão
viva entre o passado celebrado, o presente conturbado e um futuro que
requer complexas escolhas políticas em todos os níveis, do individual e
familar ao comunitário, estadual e nacional (FRISCH, 2000, p.80)
1.4.2- A Memória do Trabalho
Dentro dos estudos sobre a história das comunidades, alguns autores
destacam a falta de relatos sobre a história do trabalho. Para Hamilton::
(...) a história do trabalho tende a ser fragmentada. Existem algumas
histórias orais de sindicatos ou locais de trabalho específicos, mas poucos
tiraram proveito do potencial da história oral para explorar a experiência da
cultura do trabalho e do local de trabalho (HAMILTON, 2000, p.83)
Hamilton também aborda a influência dos meios de comunicação na
questão da memória.
Teme-se que a cultura de massa empobreça “nossas memórias originais” e
que uma versão mais homogeneizada tome seu lugar. Teme-se também
perder a comunidade e a identidade, que a tecnologia de massa modifica
não só nosso sentido do temporal, mas também a natureza especificamente
espacial do lembrar (HAMILTON, 2000, p.90)
A autora destaca, porém, que o avanço da tecnologia não traz
somente prejuízos:
Em meio ao pessimismo generalizado, o historiador norte-americano Lipsitz
afirma que, embora a transcendência do tempo e do espaço gere
instabilidade, porque desconecta as pessoas das tradições passadas (...)
também as liberta, porque torna o passado menos determinante das
experiências do presente (HAMILTON, 2000, p.90)
O relato individual também pode ser útil para reconstruir a vida em um
determinado grupo:
59
(...) muitos trabalhos de história oral registram a trajetória de pessoas
idosas e, por meio delas recompõem aspectos da vida individual, do grupo
em que estão inseridas ou da conjuntura que os acolhe. Jovens, crianças
também mostram-se motivadores de registro e análise, particularmente
quando representam experiências coletivas (MEIHY,1996,p.9)
Ao relembrar fatos do passado com a experiência de vida acumulada
no presente, o depoente pode fazer uma análise sobre o seu papel na
sociedade:
(...) como pressuposto, a história oral implica numa percepção do passado
como algo que tem continuidade hoje e cujo processo histórico não está
acabado. A presença do passado no presente imediato das pessoas é
razão de ser da história oral. Nesta medida, a história oral não só oferece
uma mudança para o conceito de história mas, mais do que isto, garante
sentido social à vida de depoentes e leitores que passam a entender a
sequência histórica e a sentirem-se parte do conterxto em que
vivem(MEIHY,1996,p.10)
O autor também destaca que “além do mais, a história oral é uma
alternativa à história oficial, consagrada por expressar interpretações feitas,
quase sempre, com o auxílio exclusivo da documentação escrita e cartorial”
Para Rousso (2000, p.94) “a memória, no sentido básico do termo, é a
presença do passado”. O autor também destaca que:
(...) a memória (...) é uma reconstrução psíquica e intelectual que acarreta
de fato uma representação seletiva do passado, um passado que nunca é
aquele do indivíduo somente, mas de um indivíduo inserido num contexto
familiar, social, nacional. Portanto toda memória é, por definição, “coletiva”
como sugeriu Maurice Halbwachs. Seu atributo mais imediato é garantir a
continuidade do tempo e permitir resistir à alteridade, ao tempo que muda”
, às rupturas que são o destino de toda vida humana; em suma, ela
constitui- eis uma banalidade- um elemento essencial da identidade, da
percepção de si e dos outros (ROUSSO,2000,p.94)
Cruikshank defende a relação entre a memória e o lugar:
(...) os depoimentos orais, segundo Rosaldo (Social Analysis, 1980), devem
ser ouvidos no contexto específico em que são feitos. Não são documentos
a serem estocados para uma recuperação posterior. São formas culturais
que organizam a percepção, não recipientes de fatos em estado bruto”,
porque todos os fatos são culturamente mediados. Em seu próprio trabalho
com o povo ilongot, Rosaldo descobriu que a tradição oral está mapeada na
paisagem, de modo muito semelhante ao empregado pelos ocidentais com
o calendário. Os acontecimentos estão vinculados a lugares e as pessoas
60
usam localizações no espaço para falar de eventos ocorridos ao longo do
tempo” (CRUIKSHANK, 2000, p.157)
Essa importância do lugar na memória das comunidades varia de
acordo com a cultura:
(...) a tradição oral vincula a história ao lugar, mas também põe em xeque
nossa noção do que seja realmente lugar. Em geral, consideramos o lugar
simplesmente como uma localização - um cenário ou palco onde as
pessoas fazem coisas. As tradições indígenas tornam o lugar fundamental
para a compreensão do passado, e mapeiam os eventos ao longo de
montanhas, trilhas e rios que ligam territórios (Cruikshank, 2000, p.182).
Os depoimentos individuais reconstróem a trajetória do trabalhador,
mas estão sempre impregnados pela memória coletiva:
(...) não podemos compreender uma trajetória (isto é, o envelhecimento
social que, embora o acompanhe de forma inevitável, é independente do
envelhecimento biológico) sem que tenhamos previamente construído os
estados sucessivos do campo no qual ela se desenrolou e, logo, o conjunto
das relações objetivas que uniram o agente considerado - pelo menos em
certo número de estados pertinentes - ao conjunto dos outros agentes
envolvidos no mesmo campo e confrontados com o mesmo espaço dos
possíveis (BORDIEU, 2000, p.190)
Com base no arcabouço teórico apresentado, cabe explicita o método
empregado na realização da pesquisa.
1.5- Método e Técnica
A visão de conjunto necessária para entender a realidade é sempre
provisória e nunca conseguirá abarcar toda a complexidade. Embora essa
realidade seja mais abrangente que qualquer síntese que possa ser
elaborada, a síntese continua sendo necessária para entender melhor a
realidade.
61
A síntese é a visão de conjunto que permite ao homem descobrir a estrutura
significativa da realidade com que se defronta, numa situação dada. E é essa
estrutura significativa que a visão de conjunto proporciona que é chamada de
totalidade (KONDER; 1996, p.161)
O pensamento dialético obriga um trabalho de paciência. Para
identificar as totalidades onde a realidade está articulada, é preciso localizar
gradualmente as contradições concretas e as mediações específicas que
dão vida a cada totalidade.
A dialética também aparece nos estudos de Harvey (2004,p.30), que
aborda o “materialismo-histórico-geográfico”. Um dos pilares dessa
abordagem seria “a difícil relação entre particularidade e universalidade na
construção do conhecimento”.
Para Harvey (2004,p.81), a expressão “materialismo histórico” apaga
a importância da Geografia. Para reverter o quadro, o autor propõe
implantar a idéia do “materialismo-histórico-geográfico”, porque “a mudança
dessa terminologia nos prepara para olhar com mais flexibilidade e, espero,
mais coerência, a significação em termos de classes de processos como a
globalização e o desenvolvimento geográfico desigual”.
1.5.1- A Dialética Espaço/Tempo: Estruturas, Formas, Funções e
Processos
De acordo com Santos (1985, p.1), o espaço é “um fator da evolução
social, não apenas uma condição”. Na avaliação do autor, o espaço seria
uma instância da sociedade, assim como a economia e a cultura-ideologia.
“Como instância, ele contém e é contido pelas demais instâncias, assim
como cada uma delas o contém e é por ele contida”.
Na avaliação do autor, configuração geográfica (ou configuração
espacial) é um conjunto de objetos geográficos distribuídos sobre um
território. A maneira como esses objetos se dão aos nossos olhos é a
paisagem.O que vida a esses objetos, seu princípio ativo, são todos os
processos sociais representativos de uma sociedade em um dado
62
momento.Esses processos, resolvidos em funções, se realizam através de
formas. Estas podem não ser originariamente geográficas, mas terminam
por adquirir uma expressão territorial. Sem as formas, a sociedade, através
de funções e processos, não se realizaria. Daí porque o espaço contém as
demais instâncias.
Ao considerar espaço como a soma da paisagem e da sociedade,
Santos destaca que:
(...) como as formas geográficas contêm frações do social, elas não são
apenas formas, mas formas-conteúdo. Por isso, estão sempre mudando de
significação, na medida em que o movimento social lhes atribui, a cada
momento, frações diferentes do todo social. Pode-se dizer que a forma, em
sua qualidade de forma-conteúdo, está sendo permanentemente alterada e
que o conteúdo ganha uma nova dimensão ao encaixar-se na forma. A
ação, que é inerente à função, é condizente com a forma que a contém:
assim, os processos apenas ganham inteira significação quando
corporificados (SANTOS, 1985, p.2).
A significação de cada lugar pode variar segundo o momento de
movimento do mundo apreendido em um ponto geográfico, chamado por
Santos de um lugar, daí a variação dessa significação. A análise passa
então a exigir uma periodização para evitar erros na interpretação. “O
próprio processo direto da produção é afetado pelos demais (circulação,
distribuição e consumo) justificando as mudanças de localização dos
estabelecimentos produtivos” (SANTOS, 1985, p.3).
Para o autor, o espaço deve ser considerado como “uma totalidade, a
exemplo da própria sociedade que lhe vida” (SANTOS, 1985, p.5). Os
elementos do espaço são os homens, as firmas, as instituições, o chamado
meio ecológico e as infra-estruturas.
(...) os homens são elementos do espaço, seja na qualidade de fornecedores
de trabalho, seja na de candidatos a isso, trate-se de jovens, de
desempregados ou não-empregados. A verdade é que tanto os jovens quanto
os ocasionalmente sem emprego ou os aposentados não participam
diretamente da produção, mas o simples fato de estarem presentes no lugar
tem como conseqüência a demanda de um certo tipo de trabalho para
outros(SANTOS,1985, p.6)
As firmas m como função essencial a produção de bens, serviços e
idéias. As instituições por seu turno produzem normas, ordens e
63
legitimações. o meio ecológico é o conjunto de complexos territoriais que
constituem a base física do trabalho humano.As infra-estruturas são o
trabalho humano materializado e geografizado na forma de casas,
plantações, caminhos, etc. Os homens também podem ser tomados como
firmas (vendedor da força de trabalho), ou como instituições (caso do
cidadão, por exemplo), instituições aparecem como firmas e estas como
instituições, como no caso das transnacionais, que se tornam até
concorrentes do Estado. Santos destaca que, atualmente, acontece uma
espécie de troca de funções, na medida em que as firmas, diretamente ou
indiretamente, também produzem normas, e as instituições são, como o
Estado, produtoras de bens e serviços.
(...) na medida em que função é ão, a interação supõe interdependência
funcional entre os elementos. Através do estudo das interações, recuperamos
a totalidade social, isto é, o espaço como um todo e, igualmente, a sociedade
como um todo. Pois cada ação não constitui um dado independente, mas um
resultado do próprio processo social (SANTOS, 1985, p.7)
O autor avalia ainda que “o meio ecológico é o meio modificado e
cada vez mais é meio técnico” (SANTOS, 1985, p.8). O objetivo do autor é
esclarecer que o papel e a posição de cada elemento no sistema temporal
e no sistema espacial mudam segundo o momento histórico. Também é
preciso levar em conta o valor de cada elemento dentro do todo e sua
relação com os demais elementos.“Os elementos do espaço devem ser
considerados como variáveis. Isso significa, como o nome indica, que eles
variam e mudam de valor segundo o movimento da História” (SANTOS,
1985, p.10).
Dessa forma, cada lugar atribui a cada elemento constituinte do
espaço um valor particular. Em um mesmo lugar, cada elemento está
sempre variando de valor, porque, de uma forma ou de outra, cada elemento
do espaço entra em relação com os demais, e essas relações são em
grande parte ditadas pelas condições do lugar. Sua evolução num lugar
ganha, destarte, características próprias, ainda que subordinada ao
movimento do todo, isto é, do conjunto dos lugares.“Da mesma forma, em
cada momento histórico os valores atribuídos a uma profissão ou a uma
64
faixa de idade, a um nível de instrução ou a uma raça, não são os mesmos”
(SANTOS, 1985, p.12). Em cada época os elementos ou variáveis são
portadores (ou são conduzidos) por uma tecnologia específica e uma certa
combinação de componentes do capital e do trabalho. As técnicas são
também variáveis, porque elas mudam através do tempo. Só aparentemente
elas formam um contínuo.
Santos considera que “a organização se definiria como o conjunto de
normas que regem as relações de cada variável com as demais, dentro e
fora de uma área” (SANTOS, 1985, p.13)
O mais pequeno lugar, na mais distante fração do território, tem, hoje,
relações diretas ou indiretas com outros lugares de onde lhe vêm matéria-
prima, capital, mão-de-obra, recursos diversos e ordens. Desse modo, o
papel regulador das funções locais tende a escapar, parcialmente ou no
todo, menos ou mais, ao que ainda se poderia chamar de sociedade local,
para cair nas mãos de centros de decisão longínquos e estranhos às
finalidades próprias da sociedade local (Santos, 1985,p.13)
Os elementos do espaço estão sempre em relação uns com os
outros.Não são relações apenas bilaterais, uma a uma, mas relações
generalizadas. Por isso, e também pelo fato de que essas relações o são
entre as coisas em si ou por si próprias, mas entre suas qualidades e
atributos. Isso coloca de imediato o problema histórico.
Quando uma variável muda o seu movimento, isso remete
imediatamente ao todo, modificando-o, fazendo-o outro, ainda que, sempre e
sempre, ele constitua uma totalidade. Sai-se de uma totalidade para chegar
a outra, que, também, se modificará. É por isso que, a partir desse impacto
“individual” ou de uma série de impactos “individuais”, o todo termina por agir
sobre o conjunto dos elementos formadores, modificando-os. O valor real,
isto é, o significado dessa relação, é somente dado pelo todo. Assim como
as relações entre as partes são mediadas pelo todo, assim também o são as
relações entre os elementos do espaço.
(...) se os elementos do espaço são sistemas (tanto quanto o espaço), eles
são também verdadeiras estruturas. Nesse caso, o espaço é um sistema
complexo, um sistema de estruturas, submetido em sua evolução à evolução
das suas próprias estruturas (SANTOS,1985,p.16).
65
Na avaliação de Santos (1985, p. 6), “o espaço está em evolução
permanente. Tal evolução resulta da ação de fatores externos e de fatores
internos”. O desenvolvimento de projetos como o de uma nova estrada, a
chegada de novos capitais ou a imposição de novas regras (preço, moeda,
impostos, etc), levam a mudanças espaciais, do mesmo modo que a
evolução “normal” das próprias estruturas, isto é, sua evolução interna,
conduz igualmente a uma evolução.
Dentro de uma determinada área, cada edifício, loteamento ou outro
ponto geográfico muda de valor periodicamente, mudanças que podem
ser entendidas através do estudo da totalidade. É preciso destacar que a
análise deve ser sempre feita no tempo presente, sendo o passado apenas
uma maneira de compreender a realidade. A análise histórica deve ser vista
não como uma volta ao passado, mas como maneira de entender e definir o
presente. “O espaço, considerado como um mosaico de elementos de
diferentes eras, sintetiza, de um lado, a evolução da sociedade e explica, de
outro lado, situações que se apresentam na atualidade” (SANTOS, 1985,
p22).
Na avaliação de Santos, espaço e tempo não podem ser analisados
separadamente:
(...) a noção de espaço é assim inseparável da idéia de sistemas de tempo.
A cada momento da história local, regional, nacional ou mundial, a ação das
diversas variáveis depende das condições do correspondente sistema
temporal (SANTOS, 1985, p.22).
Permanentemente ligado ao tempo, o espaço acaba sendo o
resultado de diferentes fases do passado:
Mais ainda, o subespaço receptor é seletivo. Todas as variáveis “modernas”
não são recebidas e as variáveis recebidas não são necessariamente da
mesma geração. Aqui repousa o fundamento não somente da diferenciação
das paisagens na superfície do globo, mas também do comportamento dos
subespaços, de sua tendência a manter relações e, aqui também, está a
razão de sua individualidade e de sua definição particular (SANTOS, 1985,
p.34).
66
Na avaliação de Santos, a sociedade atual seria o resultado das
transformações no meio técnico:
(...) desde que a produção se tornou social, pode-se falar em meio técnico.
Esse meio técnico vem sofrendo transformações sucessivas e, segundo os
períodos, com diferente intensidade nas diversas partes do mundo.
Naqueles países ou regiões onde eram disponíveis técnicas mais
avançadas e elas podiam ser aplicadas à transformação da natureza,
encontraremos também um meio técnico mais complexo (SANTOS, 1985,
p.37)
Na fase atual o fator dominante é o trabalho intelectual universal,
enquanto, segundo Santos, são menos numerosos os possuidores dos
meios de produção.
Mas, agora, na fase atual, todos os espaços são espaços de produção e
de consumo e a economia industrial (“ou pós-industrial?”) ocupa
praticamente todo o espaço produtivo, urbano ou rural. Por outro lado,
atingido um novo patamar da divisão internacional do trabalho, todos os
lugares dela participam, seja pela produção, seja pelo consumo (SANTOS,
1985, p.40)
Fatores como a ciência e tecnologia permitem que atualmente o
espaço se torne “conhecido”. Na cidade ou no campo, antes da implantação
de atividades produtivas, são realizados estudos sobre as possibilidades
capitalistas de sua utilização. Antes de instalar empreendimentos como um
supermercado ou uma fábrica, os empreendedores encomendam estudos de
viabilidade que consideram não só a conjuntura econômica como também as
facilidades oferecidas por cada lugar dentro do espaço.
De acordo com Santos “o espaço constitui uma realidade objetiva,
um produto social em permanente processo de transformação. O espaço
impõe sua própria realidade; por isso a sociedade não pode operar fora dele”
(1985, p. 49). Dessa forma, o estudo do espaço exige a compreensão de
sua relação com a sociedade:
(...) pois é esta que dita a compreensão dos efeitos dos processos (tempo
e mudança) e especifica as noções de forma, função e estrutura, elementos
67
fundamentais para a nossa compreensão da produção de espaço
(SANTOS, 1985,p.49)
As mudanças sofridas pela sociedade têm implicações nas formas ou
objetos geográficos, sejam novos ou velhos, que passam a assumir novas
funções.
Em qualquer ponto do tempo, o modo de funcionamento da estrutura social
atribui determinados valores às formas. Todavia, se examinarmos apenas
uma fatia de tempo homogêneo, careceremos de um contexto em que
possamos basear nossas observações, uma vez que a estrutura varia
conforme os diferentes períodos históricos (SANTOS, 1985, p.49).
A história de uma sociedade pode ser vista através do espaço:
A sociedade só pode ser definida através do espaço, que o espaço é o
resultado da produção, uma decorrência de sua história - mais
precisamente, da história dos processos produtivos impostos ao espaço
pela sociedade (SANTOS,1985, p.49).
O resultado da acumulação de todos esses tempos e do uso de novas
técnicas é a paisagem, que decorre de adaptações no âmbito regional e
local, não só a diferentes velocidades como também em diferentes direções.
A paisagem é formada pelos fatos do passado e do presente. A
compreensão da organização espacial, bem como de sua evolução, se
torna possível mediante a acurada interpretação do processo dialético entre
formas, estrutura e funções através do tempo (SANTOS, 1985, p. 50)
Um dos elementos formadores da paisagem é a forma:
(...) forma é o aspecto visível de uma coisa. Refere-se, ademais, ao arranjo
ordenado de objetos, a um padrão. Tomada isoladamente, temos uma mera
descrição de fenômenos ou de um de seus aspectos num dado instante do
tempo (SANTOS, 1985, p. 50).
Função sugere uma tarefa ou atividade esperada de uma forma,
pessoa, instituição ou coisa.
68
Estrutura implica a inter-relação de todas as partes de um todo; o modo de
organização ou construção. Processo pode ser definido como uma ação
contínua, desenvolvendo-se em direção a um resultado qualquer,
implicando conceitos de tempo (continuidade) e mudança (SANTOS, 1985,
p.50)
De acordo com Santos, a forma seria uma estrutura técnica ou objeto
responsável pela execução de determinada função. Embora sejam
governadas pelo presente, as formas também são resultado do passado e
surgiram dotadas de contornos e finalidades-funções. A totalidade é um
conceito necessário para a análise dos fatores considerados na análise do
contexto espacial. Sendo abrangente, a totalidade deve ser fragmentada em
partes para um exame mais restrito e concreto. Em determinado momento,
esses ingredientes analíticos podem ser considerados como forma, função
e estrutura. Mas é preciso também acrescentar o conceito de processo,
agindo e reagindo sobre os conteúdos do espaço. Santos destaca que ”a
dimensão do tempo histórico, quando variados fatores têm uma maior ou
menor duração ou efeito sobre a área considerada, proporciona uma
compreensão evolutiva da organização espacial” (1985, p. 51). Para analisar
as contribuições de um conjunto de fatores é preciso considerar a ação e
reação que uns têm sobre os outros.
A discussão dos fenômenos sociais em sua totalidade pode ser feita
tendo como base teórica e metodológica o conjunto de forma, função,
estrutura e processo, que também se relacionam entre si:
Forma, função, processo e estrutura devem ser estudados
concomitantemente e vistos na maneira como interagem para criar e moldar o
espaço através do tempo.A contradição entre forma e estrutura é que produz
uma continuidade de sínteses. Se nos for permitida uma analogia gramatical,
podemos pretender que a estrutura seja vista como o sujeito, a função como o
verbo (ação através do processo) e a forma como o complemento (objeto do
verbo) (SANTOS, 1985, p. 53).
Quando dois ou mais objetos mantém uma relação para poder
funcionar caracterizam uma relação funcional. Já a relação estrutural é
referente às relações que permitem que objetos existam. Santos defende
que a forma se torna relevante quando a sociedade lhe confere um valor
69
social, que será estabelecido de acordo com a estrutura social inerente ao
período.
O tempo (processo) é uma propriedade fundamental na relação entre
forma, função e estrutura, pois é ele que indica o movimento do passado ao
presente. Cada forma sobre a paisagem é criada como resposta a certas
necessidades ou funções do presente. O tempo vai passando, mas a forma
continua a existir. Conseqüentemente, o passado técnico da forma é uma
realidade a ser levada em consideração quando se tenta analisar o espaço.
As mudanças estruturais não podem recriar todas as formas, por isso
somos obrigados a usar as formas do passado (SANTOS, 1985,p.54)
Para Santos, a paisagem é feita de camadas de formas provenientes
de tempos anteriores, que aparecem integrados ao sistema local presente
pelas funções e valores que podem ter sofrido mudanças drásticas.
Desse modo, as formas devem ser lidas horizontalmente como um sistema
que representa e serve às atuais estruturas e funções. Além disso, cumpre
efetuar uma leitura vertical para datar cada forma pela sua origem e
delinear na paisagem as diversas acumulações ao longo da história
(SANTOS, 1985, p.55)
De acordo com o autor, depois de desempenhar a função que lhe foi
designada, a forma freqüentemente permanece aguardando o próximo
movimento dinâmico da sociedade, quando terá toda a probabilidade de ser
chamada a cumprir uma nova função. ”As rugosidades - formas
remanescentes dos períodos anteriores - devem ser levadas em conta
quando uma sociedade procura impor novas funções” (SANTOS,1985, p.55).
Estrutura, processo, função e forma são categorias analíticas que
representam o verdadeiro movimento da totalidade. o essas categorias
que definem o espaço em relação à sociedade.
Na produção de bens materiais ou imateriais, segundo as condições dadas
de tecnologia, capital e tempo, o território tem de ser adequado ao uso
procurado e a produtividade do processo produtivo depende, em grande
parte, dessa adequação Historicamente, essa inter-relação e
interdependência vão aumentando (SANTOS, 1985, p.61).
70
O espaço também pode ser considerado um espaço-valor, na medida
em que a produção do valor começa antes que a mercadoria seja produzida.
No caso do espaço-valor, a mercadoria é aferida em função de sua
prestabilidade ao processo produtivo.”As diversas frações do território não
têm o mesmo valor e, igualmente, estão sempre mudando de valor”
(SANTOS, 1985, p.62).
Os fixos de épocas passadas, cuja instalação correspondeu a uma
lógica busca na rede de relações múltiplas (políticas, econômicas,
geográficas) exercem atualmente um papel de inércia.
Sua “velhice” em relação a novas formas técnicas, não é, obrigatoriamente,
um fator de perda relativa de seu valor produtivo ou de sua capacidade de
participar no processo de acumulação geral e dentro do ramo respectivo. É
a incidência, sobre essas formas envelhecidas, das relações sociais, que
lhes assegura um lugar na hierarquia dos papéis (SANTOS, 1985, p.67).
Dessa forma, o lugar é resultado da combinação de variáveis
diferentemente datadas. A diferença entre os lugares pode ser explicada
pela seletividade com que os diversos aspectos do moderno realizam o seu
impacto sobre um lugar determinado. A combinação particular de variáveis
diversamente datadas constitui o tempo espacial de um determinado lugar.
Nesse contexto, o velho, na região, são também os grupos sociais
preexistentes e as suas formas particulares de organização social,
econômica e do espaço. Eles constituem, desse modo, seja um obstáculo
natural, seja, às vezes, um dado da expansão capitalista e exigem, desse
modo, um tratamento especial, pois quando o velho não pode colaborar
para a expansão do novo, a lógica do capital manda que seja eliminado
(SANTOS, 1985, p.79).
Santos defende que “novo e velho se encontram ambos,
permanentemente, em estado de mudança, que é dialética”.
A sociedade atual também é marcada por uma mudança na técnica,
que de submetida passou a submeter, conduzida pelos grandes atores da
economia e da política. Santos defende que a aceleração contemporânea é
um resultado também da banalização da invenção, do perecimento rápido
71
dos engenhos e de sua sucessão alucinante. Para o autor, o que acontece
na realidade é uma superposição de acelerações, provocando “a sensação
de um presente que foge” (SANTOS, 1996, p. 30).
O meio técnico-científico da atualidade, na avaliação de Santos (1996,
p. 32) é formado pela tecnoesfera e pela psicoesfera. “A tecnosfera é o
resultado da crescente artificialização do meio ambiente. A esfera natural é
crescentemente substituída por uma esfera técnica, na cidade e no campo”
completa o autor. a psicoesfera é formada pelas crenças, desejos,
vontades e hábitos. São esses elementos que inspiram “comportamentos
filosóficos e práticos, as relações interpessoais e a comunhão com o
Universo”. Dentro desta realidade, o meio geográfico é técnico-científico.
Na avaliação de Santos (1996, p. 38), o espaço ganhou uma quinta
dimensão, o cotidiano: “a espessura, a profundidade do acontecer, graças
ao número e diversidade enormes dos objetos, isto é, fixos, de que, hoje, é
formado e o número exponencial de ações, isto é, fluxos, que o atravessam”.
Através do lugar e do cotidiano o tempo e o espaço, que contêm a variedade
das coisas e das ações, também incluem a multiplicidade infinita de
perspectivas.
Para Santos (1996, p.41), o tempo é a sucessão de eventos e sua
trama. o espaço é o meio, o lugar material da possibilidade dos eventos.
O mundo seria então a soma e a síntese de eventos e lugares.
Para o autor, os subespaços (aportes da ciência, da tecnologia e da
informação), do ponto de vista da composição quantitativa e qualitativa,
conteriam áreas de densidade (zonas “luminosas”) e áreas praticamente
vazias (zonas “opacas”) e uma infinidade de situações intermediárias
estando cada combinação à altura de suportar as diferentes modalidades de
funcionamento das sociedades em questão. O meio cnico-científico-
informacional está presente em toda a parte, mas com variações segundo
continentes, países ou regiões.
No conceito do autor, a estrutura é o Presente, enquanto a forma é o
resíduo de estruturas que foram presentes no passado.”Nos conjuntos que o
presente nos oferece, a configuração territorial, apresentada ou não em
72
forma de paisagem, é a soma de pedaços de realizações atuais e de
realizações do passado” (SANTOS,1996,p.69).
Para Santos (1996,p.90), “o espaço é hoje um sistema de objetos
cada vez mais artificiais, povoados por sistemas de ações igualmente
imbuídos de artificialidade, e cada vez mais tendentes a fins estranhos, ao
lugar e a seus habitantes”. Nesse contexto é estabelecido um novo sistema
de natureza, uma natureza que devido ao movimento ecológico, conhece o
ápice de sua desnaturalização.
O espaço é formado por um conjunto indissociável, solidário e também
contraditório, entre sistemas de objetos e sistemas de ações, não
considerados isoladamente, mas como o quadro único no qual a história se
dá. Sistemas de objetos e sistemas de ações interagem. De um lado, os
sistemas de objetos condicionam a forma como se dão as ações e, de outro
lado, o sistema de ões leva à criação de objetos novos ou se realiza sobre
objetos preexistentes. É assim que o espaço encontra sua dinâmica e se
transforma (SANTOS,1996,p.111).
1.5.2- Procedimentos Metodológicos
A caracterização de um “brownfield” não depende apenas das
dimensões do prédio ou o tempo de seu abandono. É preciso também
avaliar a importância que o empreendimento que funcionou anteriormente
neste imóvel obteve junto à comunidade. Nesta pesquisa, a relevância das
quatro indústrias escolhidas para o estudo foi comprovada através das
entrevistas com os antigos trabalhadores das Oficinas da Cia. Paulista de
Estradas de Ferro, da Cervejaria Skol, da Tecelagem Matarazzo e da Gurgel
Motores.
Neste levantamento sobre a “história” de cada operário com a fábrica
em que atuou, cada caso tem várias particularidades, não só devido a
quatros diferentes estabelecimentos como também entre os trabalhadores
de um mesmo empreendimento, o que inviabiliza a aplicação de um
questionário padrão para a realização das entrevistas.
73
Em se tratando de uma pesquisa com uso da história oral, o número
de entrevistados não foi baseado num cálculo exato que represente os
funcionários que um dia trabalharam numa das fábricas. Foram
entrevistados cerca de cinco trabalhadores por empreendimento, definidos
através de contatos com entidades representativas como a União dos
Ferroviários Aposentados (UFA); o Sindicato dos Empregados nas Indústrias
da Alimentação (ao qual eram associados os trabalhadores da Skol); a
associação de ex-funcionárias da Tecelagem Matarazzo e ao Sindicato dos
Metalúrgicos (para a definição dos ex-funcionários da Gurgel).
Diante da perspectiva de levantamento de depoimentos variados, a
opção foi por entrevistas abertas, onde cada entrevistado teve a liberdade
para resgatar das memórias a relação que mantinha com a brica, a
importância do trabalho na sua vida em comunidade e como avalia
atualmente o fato da indústria ter se transformado num “brownfield”. No caso
da Tecelagem Matarazzo, os ex-funcionários fizeram uma avaliação da
refuncionalização desse espaço onde funciona atualmente o Shopping
Center Rio Claro.
Não se trata de uma obra com proposta de amostragem: o intuito que me
levou a empreendê-la foi registrar a voz e, através dela, a vida e o
pensamento de seres que já trabalharam por seus contemporâneos e por nós.
Este registro alcança uma memória pessoal que, como se buscará mostrar, é
também uma memória social, familiar e grupal (BOSI; 1979,p.1)
As entrevistas foram gravadas e os trechos mais relevantes foram
citados na redação do trabalho. Na pesquisa também foram ouvidos
representantes do poder público (prefeito, secretário municipal de
Desenvolvimento Econômico), sindicalistas e representantes de entidades
ligadas aos quatro empreendimentos estudados.
Os conceitos que nortearam as entrevistas
As entrevistas com os antigos operários do município foram de grande
valia. Além da experiência de décadas de trabalho, os trabalhadores
74
também contribuiram com sua experiência de vida. De acordo com Tourtier-
Bonazzi:
De modo geral, deve-se dar prioridade a entrevistas com pessoas de certa
idade. Mas, nesse caso, é preciso levar em conta o cansaço da
testemunha, limitar o tempo das entrevistas e evitar perguntas
excessivamente meticulosas do ponto de vista cronológico. Pode acontecer
que, decepcionada por não poder responder, a testemunha se perturbe e
interrompa ou abrevie a entrevista (Tourtier-Bonazzi, 2000,p.233)
Toutier-Bonazzi (2000, p.234) também estabelece algumas
orientações que podem colaborar para o bom desenvolvimento das
entrevistas. Além de saber ouvir guardando silêncio, o entrevistador também
deve “adaptar-se à psicologia da testemunha, respeitá-la, estar disposto a
tomar pacientemente a conversa, suscitar a recordação através de um
questionamento discreto”. Cabe ainda ao entrevistador orientar o
entrevistado sem precipitação, repetir em voz alta as palavras do
entrevistado caso estas não sejam claramente audíveis e não insistir quando
o entrevistado evita uma recordação dolorosa. O autor considera
indispensável a relação de confiança entre informante e entrevistador, e a
entrevista individual pode contribuir para reforçar essa relação.
A conservação das entrevistas em sua íntegra é considerada um
procedimento importante para Toutier-Bonazzi, que entende que desta
forma, com a possibilidade de analisar o conteúdo total, é possível ter
melhores condições para selecionar os melhores trechos. O autor defende
as vantagens da entrevista semi-dirigida, forma adotada na pesquisa com os
ex-funcionários das fábricas e da ferrovia de Rio Claro.
Quando se elabora um questionário detalhado e preciso, é possível dirigir
passo a passo a testemunha, mas assim ela fica presa a um roteiro
preestabelecido que não lhe permite desenvolver seu próprio discurso. Se
ela for deixada totalmente livre, o risco de se afastar do tema tratado,
reduzindo-se o papel do entrevistador a tentar precisar uma data ou
esclarecer uma passagem confusa. A entrevista semi-dirigida é com
frequência um meio-termo entre um monólogo de uma testemunha e um
interrogatório direto (Toutier-Bonazzi,2000,p.233)
75
Para Meihy, a história oral começa ainda na elaboração do projeto:
História oral é um conjunto de procedimentos que se iniciam com a
elaboração de um projeto e continuam com a definição de um grupo de
pessoas(ou colônia) a serem entrevistadas, com o planejamento da
condução das gravações, com a transcrição, com a conferência do
depoimento, com a autorização para o uso, arquivamento e, sempre que
possível, com a publicação dos resultados que devem, em primeiro lugar,
voltar ao grupo que gerou as entrevistas(MEIHY,1996,p.15)
Meihy também defende o uso do termo colaborador nas entrevistas
de história oral:
As novas imposíções éticas exigem tratamentos diferenciados para quem
se compromete a fazer entrevistas. Em vez de usar termos consagrados em
outras tradições disciplinares que se valiam das entrevistas (referências
como ator, informante, objeto de pesquisa), a moderna história oral usa
deliberadamente a palavra colaborador (...) colaborador é um termo
importante na definição do relacionamento entre o entrevistador e o
entrevistado. É fundamental, sobretudo porque estabelece uma relação de
afinidade entre as partes (MEIHY,1996,p.28)
Ao entrevistar os antigos operários da Cia. Paulista de Estradas de
Ferro, da Cervejaria Rio Claro (Skol), da Tecelagem Matarazzo e da Gurgel
Motores, a opção foi por não divulgar a identidade dos entrevistados. Esse
procedimento foi adotado desde a primeira entrevista com o objetivo de
evitar constrangimentos posteriores caso o entrevistado mencionasse
aspectos negativos do trabalho ou fizesse referências críticas à
determinadas pessoas. Durante as entrevistas foi possível verificar, porém,
que na maioria dos casos não seria necessário ocultar a identidade, mas
como a opção foi informada a todos os entrevistados, os nomes foram
trocados na redação do trabalho.
A não-divulgação da identidade dos entrevistados é uma das opções
defendidas por Meihy.
uma forma de história oral que exige cuidados especiais. Em
determinados projetos, trabalha-se com o pressuposto da história oral de
pessoas anônimas. Isto ocorre quando, para evitar a identificação pública
de depoentes importantes ou para se evitar constrangimentos envolvendo
terceiros, muda-se o nome da pessoa e alteram-se as situações da história
76
ou da versão de algum fato capaz de possibilitar a precisão dos casos. O
mesmo acontece em relação à proteção de indivíduos que precisam do
anonimato para não exporem a si ou a sua família(...) projetos que
trabalham com situação de risco, de vexames, de impressões sobre outros,
podem valer-se da invisibilidade. Contudo, na apresentação do trabalho
devem ficar claras as razões do disfarce (MEIHY, 1996, p.29)
Nas entrevistas com os operários de Rio Claro apenas foi adotada a
troca de nomes para preservar a identidade. Os depoimentos e fatos
relatados foram mantidos, assim como a fala de cada entrevistado, incluindo
alguns erros de concordância e termos informais. De acordo com os autores
consultados, estabelecer o número de entrevistados é uma tarefa que cabe
ao pesquisador, pois esse número varia de acordo com o projeto e seus
objetivos.
Um dos pontos básicos do debate sobre história oral remete à
representatividade do depoente. Outro lado da mesma questão é o número
de pessoas envolvidas. Em face da representatividade deve-se ter em conta
que todos os testemunhos são válidos, dependendo do projeto. É
necessário evitar que sejam colhidos depoimentos de pessoas que não
sejam essenciais ao projeto. Da mesma maneira é importante estabelecer a
utilidade da entrevista pois deve-se recorrer a ela apenas quando se busca
algo específico e que não se pode encontrar em outras fontes. Cabe
lembrar que com a entrevista criam-se expectativas que precisam ter termos
finais. A existência de um projeto também evita que o número de
entrevistados seja maior que o necessário e que se proceda erroneamente
supondo que um testemunho é melhor que o outro ou que os argumentos
se saturem e por isto pode-se desprezar algumas entrevistas (MEIHY, 1996,
p.30)
A opção por registrar as lembranças dos antigos operários das
fábricas de Rio Claro tem o objetivo de ouvir um grupo que muitas vezes é
ignorado na história oficial sobre os empreendimentos que foram
importantes para o desenvolvimento do município. Meihy lembra que:
Tem sido comum pessoas desenvolverem projetos de história oral com a
finalidade de dar voz aos vencidos. Ainda que esta seja uma alternativa
bastante válida para a elaboração da história oral, outras preocupadas
em integrar vozes diferentes. Neste sentido é preciso reconhecer que em
vez de falar dicotomicamente em vencedores/vencidos, deve-se reconhecer
também a condição de silenciados. Uma crescente maioria de
pesquisadores têm considerado desprezível a discussão polarizada entre
história oral da elite x história oral de vencidos. Ao contrário, grupos
77
emergentes que valorizam projetos de história oral que conjugam vozes
contrárias (1996, p.32)
A história oral o pode ser considerada como verdade absoluta. As
circunstâncias que envolvem os depoimentos fazem com que sejam mais
um relato, um contraponto à chamada “história oficial”.
A história oral de vida é o retrato oficial do depoente. Nesta direção, a
verdade está na versão oferecida pelo narrador que é soberano para revelar
ou ocultar casos, situações e pessoas (MEIHY, 1996,p35)
Autores como Meihy defendem uma divisão entre a história oral e os
trabalhos sobre memória.
autores que fundem os trabalhos de história oral com os de memória.
Deve, porém, ficar claro que existem distinções relevantes. História oral e
memória se valem de depoimentos, mas não se confundem. Memórias são
lembranças e, como tais, dependem das condições físicas e clínicas dos
depoentes, bem como da circunstãncia em que são dadas. Sendo que a
memória é sempre dinâmica, muda e evolui de época para época, é
prudente que seu uso seja relativizado, posto que o objeto de análise, no
caso, não é a narrativa objetivamente falando nem sua relação contextual,
mas a interpretação do que ficou (ou não) registrado nas cabeças das
pessoas (MEIHY, 1996, p.35)
Com base no que foi exposto, nos capítulos seguintes serão
analisados os principais “brownfields” no município de Rio Claro e as
memórias dos atores sociais selecionados.
78
Capítulo II- A Industrialização no Município de Rio Claro e o Surgimento
de “Brownfields”
Localizado a 170 quilômetros de o Paulo (Capital), o município de
Rio Claro integra a região conhecida como Oeste Paulista, que de acordo
com Garcia (1992,p.4), “compreende uma vasta área que abre-se em forma
de um grande leque, desde Campinas até Ribeirão Preto”. O povoamento
das terras na região começou a se esboçar no século XVIII devido ao trajeto
que levava às minas em Mato Grosso e Goiás. Nesse percurso foram
formados diversos pousos para abastecer as tropas, que mais tarde se
transformariam em cidades. Assim aconteceu em São João Batista do Rio
Claro. Seus primeiros moradores foram os negociantes que abasteciam os
viajantes. Na seqüência, chegaram os sesmeiros no processo de ocupação
das terras e a manifestação espiritual com a construção da capela. Nas
grandes propriedades, inicialmente dedicadas ao plantio da cana-de-açúcar
viviam as famílias dos fazendeiros, escravos e agregados. Em 1830, São
João Batista do Ribeirão Claro era elevado à condição de freguesia através
do Decreto Imperial de 9 de dezembro de 1830, pertencendo à vila de
Constituição (atual Piracicaba).
Dois anos depois, os então homens que de rústicos nada tinham, criam na
freguesia uma sociedade liberal cujos objetivos eram concretizar as obras que
deveriam ser realizadas por Constituição. O argumento central da Sociedade
do Bem Comum- como ficou conhecida- se justificava na “impassbilidade dos
chefes de Constituição (...) porque Rio Claro crescera demais e Constituição
via, com descalabro egoísmo, na novel população uma futura e perigosa rival
(SANTOS, 2002,p.26)
Entre suas iniciativas, a Sociedade do Bem Comum implantou na
freguesia de Rio Claro um modelo de arruamento e ordenação urbana
baseado na ortogonalidade das quadras, como num tabuleiro de xadrez. O
desenvolvimento foi acelerado com chegada do café, no período entre 1836
e 1870.
79
Santos (2002,p.34) destaca que na cada de 1840 a condição de
“boca de sertão” fazia da freguesia de São João Batista do Ribeirão Claro
um ativo centro comercial, “fornecendo produtos aos rincões do sertão de
Araraquara”. Em 1845 a localidade tornava-se vila através da lei número 13
ou 273, datada de 07 de março.Em 1855, a Câmara Municipal apresentava o
projeto que alterava as denominações das ruas de nomes para números.
Em 1857, através da lei número 44 ou 595, Rio Claro passava à condição de
cidade.
De acordo com Santos (2002,p.15), a década de 1850 foi marcada
pelo fim do tráfico internacional de escravos e pela expansão dos cafezais
na região denominada “Oeste Velho”, onde Rio Claro está inserida. Na
época, segundo o autor, São João Batista do Rio Claro era o ponto limite
onde o plantio do ca era economicamente viável. Nos povoados que
vinham na seqüência do sentido São Paulo/interior, os custos do transporte
da produção através de tropas de mulas até o porto de Santos impediam a
lucratividade. Santos também lembra que nesse período foram realizadas as
primeiras experiências com trabalhadores livres nas lavouras da região.
.
Assim, antes de ter início o cultivo do café, Rio Claro era um povoado com
uma pequena infra-estrutura urbana para servir à região, porém, sem grande
expressão econômica. Seu desenvolvimento vai se acelerar quando as
plantações de café ganham importância econômica, transformando Rio Claro
num núcleo urbano próspero e dinâmico. Apesar de existir antes do café,
este vai torná-lo um grande centro produtor, vai ser responsável pelo seu
desenvolvimento, assim como provocará também, nas primeiras décadas do
século XX, a sua decadência (GARCIA,1992,p.26)
Para Santos (2002,p.5), as mudanças ocorridas em Rio Claro foram
marcadas pelas transformações econômico-sociais na esfera mundial, que
possibilitaram “nova inserção dos países exportadores de produtos primários
na divisão internacional do trabalho”.
Enquanto ganhava destaque o avanço tecnológico, ocorria uma
concentração de capital nos países centrais e o aumento da concorrência
entre eles. Esse processo intensificou o comércio internacional e ampliou o
80
mercado para países produtores de matérias-primas e alimentos, como no
caso do Brasil, devido a fatores como a navegação a vapor e a construção
ferroviária. Nas regiões agrícolas começavam a chegar os capitais dos
países centrais, além dos movimentos de imigração com destino às
Américas do Norte e do Sul. No Oeste Paulista, as plantações de café foram
ampliadas para atender o aumento do consumo, principalmente no mercado
norte-americano. Santos (2002,p.6) destaca que a riqueza gerada pelo ca
foi a responsável pelos alicerces para a futura industrialização de São Paulo.
De acordo com Santos (2002,p.40), com o fim do tráfico de escravos
começaram as experiências com trabalhadores livres. Na região, o Senador
Vergueiro utilizava a mão-de-obra dos imigrantes em suas lavouras nas
fazendas Ibicaba e Angélica desde a década de 1840. Na primeira fase da
imigração a São Paulo, os alemães formavam o grupo mais representativo.
Em 1855, existiam na fazenda Ibicaba cerca de 700 colonos. Inicialmente, a
contratação de imigrantes era feita por “parceria”, onde o trabalhador deveria
tratar de um determinado número de pés de café até a etapa da colheita e
cultivar gêneros para sua subsistência, mas após vários problemas
enfrentados nas fazendas, principalmente devido ao tratamento dispensado
aos imigrantes, passou-se a adotar o sistema misto de remuneração por
tarefa, chamado “colonato”.
Santos (2002,p.48) destaca que em 1870 o mero de imigrantes na
cidade era considerável, num percentual de 7,4% da população livre do
município. Desse total, 45,2% era composto por alemães. Nas décadas
seguintes, com a imigração em massa, os italianos passariam a ser maioria
entre os “estrangeiros”. Os imigrantes não vieram somente para a lavoura.
Instalados nas cidades, utilizaram o conhecimento trazido da Europa para
iniciar atividades no comércio e nas oficinas de Rio Claro.
Mesmo com a vinda dos imigrantes os escravos continuaram sendo
maioria entre os trabalhadores engajados na lavoura a1880. Por volta de
1882, de acordo com Dean (1977,p.64), somente 17,4% dos escravos se
encontravam nos serviços domésticos ou como diaristas: 76,4% ainda eram
81
destinados às lavouras, enquanto os demais estavam distribuídos em ofícios
como a carpintaria e a construção.
O comércio da cidade apresentava um expressivo número de
estabelecimentos, assim como diversas “indústrias”, marcadamente de
caráter doméstico, como os pequenos negócios dos alemães até os
estabelecimentos denominados como “fábricas” no almanaque para 1873. Da
mesma forma, na década de 1870 surgiram inúmeros jornais na cidade, ainda
que efêmeros (SANTOS, 2002,p.75)
Um dos principais problemas do mercado cafeeiro era o escoamento
da produção. O transporte do café nos lombos de mulas até o porto de
Santos encarecia o produto. Após vários impasses entre as companhias
interessadas em construir o prolongamento dos trilhos de São Paulo a Rio
Claro, em 1873 foram firmados a concessão e o contrato com a Companhia
Paulista de Estradas de Ferro. A inauguração da linha rrea aconteceu em
11 de agosto de 1876.
Em 1883, sete anos após a chegada dos trilhos, Rio Claro contava
com um comércio bastante ativo, com 34 estabelecimentos de secos e
molhados, 24 casas de ferragens, 22 de armarinhos, moda e chapéus, oito
sapatarias, duas ourivesarias e sete alfaiatarias, além de máquinas para
beneficiar grãos, fábricas de licores e de cerveja. Na estrutura de serviços a
cidade possuía cinco médicos, dois dentistas, dois professores de canto e
piano, quatro farmácias, seis colégios particulares, seis sociedades
recreativas, um teatro e dois jornais.
Embora a ferrovia tenha provocado um processo de esvaziamento da
cidade devido à decisão dos proprietários de fazendas de residir na Capital,
devido à facilidade do transporte através dos trens, foi também a ferrovia
que trouxe o desenvolvimento para o município. Como centro ferroviário, Rio
Claro se tornou residência dos ferroviários, “gerando uma demanda razoável
de bens, principalmente pelo fato de se considerar que a CPEF contava com
aproximadamente dois mil empregados em 1892” (GARCIA,1992,p.28).
No período de 1887 a 1900, o município passou a contar com mais 71
quarteirões e uma usina hidrelétrica. Além da iluminação com lâmpadas de
arco voltaico e rede telefônica, a cidade também tinha oficinas e pequenas
82
indústrias. no início do século XX, com a crise da economia cafeeira, Rio
Claro passa a sobreviver das pequenas indústrias e das oficinas da Cia.
Paulista. Garcia (1992,p29) destaca que as oficinas da Paulista não
incentivaram novas atividades industriais no município porque eram auto-
suficientes em produção, mas atuaram como fonte de demanda de um
grande contingente de mão-de-obra e de bens de consumo.
Na década de 1900, de acordo com Santos (2002,p.165), começaram
a se desenvolver na cidade uma rie de pequenas indústrias. Entre os
fatores externos que desencadearam esse desenvolvimento estão o fim do
escravismo, a instauração do federalismo na República e a imigração em
massa que consolidou o mercado de trabalho. os fatores internos
apontados pelo autor já mencionado são a luz elétrica, o saneamento básico
e as oficinas da Cia. Paulista. De acordo com o Almanaque para 1906 (um
livro publicado anualmente sobre a cidade) e livros de lançamentos de
impostos, existiam na cidade cerca de 24 fábricas de aguardente; sete
fábricas de cerveja; sete fábricas de carros (trolys); uma fábrica de cal; uma
fábrica de charutos; uma fábrica de gelo; duas fábricas de louças; duas
fábricas de máquinas e cinco fábricas de massas alimentícias.
No final de 1905 a cidade de o João Batista do Ribeirão Claro
passa a ser denominada Rio Claro. A seguir, com base nas fases da
industrialização no município de Rio Claro identificadas por Selingardi-
Sampaio (1987) serão abordados os principais “brownfields” existentes
2.1- A Fase Pioneira (1873/1929)
O desenvolvimento industrial brasileiro teve início na primeira metade
do século XIX, mas até 1930 o país continuava sendo sustentado pela
exportação do café. De acordo com Selingardi-Sampaio (1987,p.12), a
economia cafeeira foi o fator que viabilizou a instalação de indústrias, porque
além da acumulação de recursos também representava o desenvolvimento
nas relações capitalistas. Além de ser beneficiado pela economia cafeeira, o
83
estado de São Paulo também contou com fatores como a infra-estrutura
ferroviária e energética, um mercado consumidor urbano em expansão e
com um mercado livre de mão-de-obra para se consolidar como o principal
centro industrial do Brasil.
Selingardi-Sampaio (1987,p.12) defende que dentro do
desenvolvimento do estado paulista, “Rio Claro inseriu-se de maneira
relativamente harmoniosa, a julgar-se pelo quadro sócio-econômico local
existente das últimas décadas do século XIX às primeiras décadas do século
XX”. Entre 1850 e 1860, Rio Claro foi considerado o último limite da
cafeicultura rendosa; em 1886, era o quarto município produtor de café no
estado.
A partir de 1900, com a decadência da lavoura de café e a difusão do
trabalho assalariado, o centro urbano de Rio Claro apresentava
dinamismo próprio. De acordo com Selingardi-Sampaio (1987,p.13), a sede
do município contava com 31.891 habitantes, redes de telefone e energia
elétrica, casas comerciais e escolas. No setor industrial, a Cia. Paulista de
Estradas de Ferro possuía depósitos e oficinas de vagões, e a cidade
contava também com pequenas indústrias. Selingardi-Sampaio (1987,p.15),
aponta 1873 como a data mais remota em que podem ser encontradas
informações a respeito da atividade industrial em Rio Claro”. Utilizando
dados de fontes diversas existentes para 1906, 1922 e 1927, a autora definiu
a fase “pioneira” do processo industrial de Rio Claro, que vai de 1873 a
1929. Selingardi-Sampaio (1987,p.16) demonstra que durante o período da
fase pioneira o número de estabelecimentos evoluiu de 46 em 1873 para
142 em 1927, num crescimento de 208,69%. A autora ressalta que a fase é
longa e abrange surtos e declínios econômicos, mas existe uma unidade que
é domínio da economia cafeeira de exportação, “em plena atividade a
1890 ou em processo de decadência, a partir de 1900, até a total ruptura
do complexo cio-econômico-político-cultural cafeeiro em 1930”
(SELINGARDI-SAMPAIO, 1987,p.16).
Selingardi-Sampaio destaca que a denominação de atividade
artesanal/industrial durante a “fase pioneira” requer cautela porque não
84
existem informações completas sobre o setor industrial. Para a autora,
estabelecimentos como ourivessarias, unidades de produção de calçados e
chinelos ou de colchões, entre outras, não passavam de pequenas
empresas domésticas. Entre as maiores fábricas da fase pioneira estão as
Oficinas Mecânicas da Cia. Paulista de Estradas de Ferro, a brica de
cigarros Princeza D´Oeste, a Cia. Cervejaria Rio Claro, e a serraria Schmidt
& Meyer. Durante a fase pioneira, os ramos que mais se destacaram em
determinados períodos ou durante toda a fase foram os ligados à produção
de bens de consumo diretos da população (bebidas, pães) e à produção de
material de construção.
Durante o período da “fase pioneira” a estrutura industrial por gêneros
era definida por três ramificações, o beneficiamento e a transformação de
matérias-primas de origem agrícola e extrativa mineral e vegetal; a
elaboração de bens de consumo direto da população e a produção metalo-
mecânica. Com estes gêneros, a indústria rio-clarense manteve similaridade
com muitas cidades paulistas. Selingardi-Sampaio (1987,p.18) destaca que
a grande diferença entre a estrutura industrial de Rio Claro e os contextos
industriais nacional e regional foi a falta do setor têxtil no município a a
década de 1930. Em muitas cidades do Estado de o Paulo, o setor têxtil
liderou a industrialização.
A fase pioneira teve seu início em 1873, mas Selingardi-Sampaio
lembra que muitos estabelecimentos já estavam em plena atividade.
(..)em 1873 foram arrolados cerca de 46 “estabelecimentos” ou produtores
artesanais/industriais, certamente tais atividades haviam sido instaladas em
anos anteriores, embora não haja registros específicos; isto indicaria que a
pequena cidade herdara de fases precedentes um certo dinamismo urbano,
que se configurava, antes de 1873, a existência de demanda interna para a
instalação da pequena produção artesanal/industrial” (SELINGARDI-
SAMPAIO; 1987,p.19)
A origem do capital industrial em Rio Claro acompanhou os fatores
encontrados também em outras cidades: a burguesia cafeeira, os agentes
de importação e exportação, o imigrante estrangeiro (como trabalhador ou
pequeno capitalista), entre outros. Uma característica do processo foi a
pequena capacidade de acumulação de capital demonstrada pelo município.
85
Para Selingardi-Sampaio (1987,p.21), foram vários os fatores que
contribuíram para a reduzida acumulação de capital. A autora salienta que
grande parte dos recursos obtidos com o ca não foram reinvestidos
localmente, que alguns dos maiores proprietários rurais não residiam na
cidade, assim como os maiores empregadores, como a ferrovia. Além disso,
no setor bancário, a cidade permaneceu dependente da capital do Estado
até 1926, quando foi instalado o primeiro banco em Rio Claro.
No processo de industrialização do município, o imigrante estrangeiro
desempenhou importante papel, contribuindo com o investimento de
capitais, com a iniciativa empresarial e como detentor do conhecimento
técnico dos processos industriais trazidos dos países de origem ou
aprendidos com a família. Selingardi-Sampaio (1987,p.23) destaca ainda a
importância da relação café-indústria no município, lembrando porém que
essa relação aconteceu de modo contraditório. O café propiciou a
acumulação capitalista que deu início à industrialização, mas a
industrialização foi estimulada definitivamente com a decadência do café.
Diante desse quadro, a autora afirma que a industrialização rio-clarense teve
como características sicas a atuação dominante de fatores endógenos no
processo de implantação da quase totalidade das unidades
artesanais/industriais; uma estrutura industrial coerente, exceto quanto ao
ramo têxtil, com o padrão estrutural então vigente em muitas cidades do
Sudeste, do Estado de São Paulo e da região; uma relação de origem com a
economia cafeeira e a importante participação do imigrante.
Entre as principais bricas que estavam em atividade durante a fase
“pioneira” da industrialização, as oficinas da Cia. Paulista de Estradas de
Ferro e a Cia. Cervejaria Rio Claro ( que mais tarde passou a ser
denominada de Cervejaria Skol) estiveram entre as empresas de maior
destaque no setor industrial do município, mas atualmente, após um
processo de desativação (Skol) ou decadência (ferrovia), podem ser
classificadas entre os maiores “brownfields” encontrados no município de
Rio Claro.
86
2.1.1- As Oficinas da Cia. Paulista de Estradas de Ferro
A precariedade do sistema de transporte no Estado de São Paulo
tornou-se motivo de preocupação para cafeicultores e o governo ainda no
século XIX. Para ser exportada, a produção do ca tinha que ser
transportada por animais, num trilha precária que ligava a Capital ao Litoral,
a chama “Calçada do Lorena”. Além da lentidão, o transporte através de
animais também não permitia a locomoção de grandes quantidades de café.
De acordo com o Álbum publicado pela Ferrovia Paulista (1992,p.13), este
problema trouxe para os órgãos administrativos da Província e do Império a
discussão sobre qual o meio de transporte adequado, onde a ferrovia foi a
mais discutida”. Na década de 1830, houve a aprovação da chamada Lei
Feijó, de 31 de julho de 1833, que autorizava a concessão à qualquer
companhia que se organizasse para a construção de estrada de ferro que
ligasse a Capital às províncias da Bahia, Rio Grande do Sul e Minas Gerais,
concedendo direito de exclusividade por 40 anos.
A implantação da ferrovia na região Oeste do Estado de São Paulo, onde
está localizado o município de Rio Claro, está ligada às deficiências de
transporte para a produção agrícola cafeeira.
(...) uma série da fatores positivos, como por exemplo, a disponibilidade de
terras, excelentes condições de clima, de fertilidade de solo e de topografia
seriam um livre conduto à expansão do café no oeste paulista, porém de
imediato persistia o grave problema relacionado com o transporte e seus
custos elevados (GARCIA,1992,p.15)
Em 1836, seis anos depois da inauguração da primeira ferrovia do
mundo, que ligava Liverpool a Manchester, na Inglaterra, surge o primeiro
registro de uma proposta de ferrovia brasileira. A proposta foi apresentada
por uma casa comercial de Santos, chamada “Aguiar, Viúva, Filhos e
Companhia” e foi elaborada por um alemão, Frederico Fomm.
Segundo Garcia (1992,p.19), a Sociedade de Estradas de Ferro Pedro II
foi responsável pela construção da primeira estrada de ferro no Estado de
São Paulo, que entrou em atividade em 1859. Além da estrada pioneira,
87
merece também destaque a São Paulo Railway Co. Ltda., que ligava Santos
a Jundiaí.
Em maio de 1862, a província de São Paulo garantia 7% de juros para o
prolongamento da estrada de ferro de Jundiaí a Campinas, significando com
isso que São Paulo assumiria o total da garantia de juros, ganhando sua
autonomia do governo central (GARCIA; 1992,p.20).
A Companhia Paulista de Estradas de Ferro teve seu estatuto aprovado
em 30 de janeiro de 1868 em Campinas, quando ficou claro o interesse
em prolongar os trilhos aRio Claro. O contrato definitivo para a criação da
companhia foi assinado com o governo provincial em maio de 1869.
A construção da estrada foi iniciada em 15 de março de 1870. A
inauguração da linha aCampinas aconteceu em agosto de 1872. Um ano
depois, apresentando lucros, a Paulista iniciava sua expansão. Com a
chegada dos trilhos às margens do Rio Mogi Guaçu, foi criado um serviço de
navegação fluvial entre Porto Ferreira e Pontal, quando a empresa passou a
chamar-se Cia Paulista de Vias Férreas e Fluviais”.
De acordo com Garcia (1992,p.24), “em 1875 os trilhos chegaram a
Santa Bárbara, em 1876 a Limeira e a 11 de agosto do mesmo ano a Rio
Claro”. A chegada da ferrovia a Rio Claro provocou várias transformações na
paisagem urbana, porque o empreendimento também trouxe toda a estrutura
necessária para o seu funcionamento, como os armazéns, oficinas de
reparos e construção de carros, escritórios, ponto de cruzamento de trens e
local de baldeações.
Povoado sem grande importância econômica, Rio Claro acabou sendo
transformado pelo café, que chegou ao município no período de 1836 a
1870, quando o então povoado havia sido elevado à categoria de
freguesia. Em 1857 Rio Claro passa à condição de vila. Mais tarde, em
1859, conquista a sede de comarca.
Em 1876, Rio Claro começa a vivenciar uma nova fase de
transformações com a chegada da ferrovia (foto 1). Até por volta de 1884, a
cidade permanece como “ponta de trilho”, tornando-se um centro de
comércio. Segundo Selingardi-Sampaio e Pires (1992,p.13), as oficinas da
88
ferrovia surgiram em Rio Claro durante a fase pioneira de industrialização do
município e foram responsáveis pela sua caracterização como centro
ferroviário.
Com a chegada dos trilhos da CPEF a Rio Claro, a cidade tornou-se um
importante entroncamento ferroviário, pois daí também partiram os trilhos
da Companhia Rio Claro, que em 1884 chegam até São Carlos, em 1885 a
Araraquara e em 1887 até Jaú. Junto a esse complexo vão ser fundadas,
em 1892, as oficinas da CPEF (GARCIA, 1992,p.26)
FERROVIA chega à região na década de 1870- Arquivo do Município (sem data)
Em 1892, a Paulista adquiriu a Estrada de Ferro que ligava Rio Claro
à Araraquara, construída pelo Visconde de Pinhal e de propriedade de uma
companhia inglesa. Entre as iniciativas pioneiras da Paulista consta o
primeiro trem com tração elétrica da América do Sul, que circulou nas suas
linhas em 1922; o primeiro modelo de Previdência Social também foi
implantado na companhia, em 1923, com a fundação da Caixa de
Aposentadoria e Pensões dos Ferroviários.De acordo com o Álbum da
Ferrovia Paulista, a empresa também foi pioneira na área do
reflorestamento, com o cultivo do eucalipto para alimentar as locomotivas e a
via férrea implantado pelo engenheiro Edmundo Navarro de Andrade no
89
Horto Florestal de Rio Claro, atualmente Floresta Estadual Edmundo
Navarro de Andrade.
A ferrovia foi sendo ampliada gradativamente e preenchendo no
município o papel de promotora do desenvolvimento e criação de empregos
que caberia às indústrias, que a1940 Rio Claro ainda não contava com
parque industrial significativo. Em 1929, um relatório da companhia indicava
que seu patrimônio era de 6.065 vagões de mercadorias e 347 carros de
passageiros. Em 1950, a companhia empregava 2.391 operários, sendo que
1.650 somente nas oficinas, o que fazia da cidade o maior centro ferroviário
do Estado. A CPEF também tinha um papel social importante, que em
épocas de problemas de abastecimento fornecia água para a população e
energia elétrica para a Santa Casa de Misericórdia.
Segundo o Sindicato dos Ferroviários, uma característica importante da
ferrovia era o tempo de permanência dos funcionários, que entravam para a
Companhia Paulista de Estradas de Ferro ainda na adolescência, na escola
conhecida como Senai ferroviário, e continuavam na empresa por mais de
30 anos, até a aposentadoria. Em 1965, a companhia tinha 2,5 mil
funcionários em Rio Claro e um total de 32 mil funcionários em toda a
rede.No período de 1965 a 1970, a cada dia circulavam 19 trens no sentido
Capital/Interior e 19 trens no sentido Interior/Capital, além de 37 trens de
carga.
ESTAÇÃO ferroviária- Arquivo do Município- década 1970
90
Em 1971, a Companhia Paulista de Estradas de Ferro passa a ser a
estatal Fepasa. Para o sindicato, começa aí o período de declínio da
ferrovia, coincidindo com o aumento dos investimentos nas rodovias.
As oficinas da antiga Companhia Paulista reúnem um acervo de máquinas e
construções que certamente integra a história ferroviária do Estado de São
Paulo. Os prédios originais e suas ampliações estão situados entre a parte
central da cidade e a Vila Alemã, ao longo dos trilhos da Cia., que cortam a
cidade no sentido S-N. Com o crescimento da cidade, tanto a localização da
ferrovia como a das oficinas da Fepasa tornaram-se problemáticas
(SELINGARDI-SAMPAIO e PIRES; 1992,p.10)
Até a década de 1980, as oficinas da ferrovia constituíram a unidade
industrial com maior número de pessoas ocupadas em todo o município.
Segundo Selingardi-Sampaio e Pires (1992,p.10), em 1926 a ferrovia
empregava 2.250 pessoas; em 1960, eram 980 pessoas empregadas e em
1984, 750 trabalhadores estavam empregados. Em novembro de 1991, as
oficinas ocupavam 420 pessoas, e haviam caído para o 7º lugar entre os
estabelecimentos com maior número de empregados. Para os autores, o
“declínio reflete, genericamente, a obsolescência tecnológica e a decadência
do setor ferroviário, em nível nacional e, em particular, a lenta desativação
das oficinas, em nível local”.
Em 1998, a ferrovia é concedida pelo governo do Estado de São Paulo à
empresa Brasil Ferrovias, passando a ser administrada pela iniciativa
privada. Atualmente, a administração é feita pelo grupo Ferroban, Ferronorte
e Brasil Ferrovias. A ferrovia, que chegou a ter 2,5 mil funcionários em Rio
Claro, atualmente emprega somente 66 ferroviários no município. De acordo
com o Sindicato dos Ferroviários, a categoria tem em todo o Estado 53 mil
aposentados e pensionistas.
A partir de 2000, a administração municipal de Rio Claro, coordenada
pela coligação de partidos Frente Rio Claro, começou a ocupar alguns
prédios da ferrovia. Na antiga estação ferroviária foi instalada a Secretaria
Municipal de Turismo, além da realização de feiras, festas e exposições. Os
galpões da Rua 1-B sediam a Secretaria Municipal de Segurança, com a
Guarda Municipal e a Defesa Civil. os prédios localizados na avenida 8-A
passaram por reforma e estão ocupados pelo Departamento Municipal de
91
Parques e Jardins. O trecho da ferrovia entre as avenidas 7 e 8 foi
concedido ao município pela Rede Ferroviária Federal, responsável pelo
patrimônio histórico da ferrovia.
O estado de abandono de parte das antigas oficinas da Cia. Paulista é
motivo de freqüentes reclamações por parte dos vizinhos. No trecho da rua
6-A com a avenida 22-A, na Vila Alemã, os vizinhos temem o risco de
desabamento das fachadas próximas à calçada. Em 2004, a Defesa Civil do
município realizou um levantamento sobre pontos de risco na cidade, e este
trecho consta entre os pontos com risco de desabamento, mas a empresa
descarta o problema (anexo 1)
BARRACÕES das oficinas da ferrovia. Luiz Martellil, 2004
92
BARRACÕES da ferrovia na avenida 22-A, Vila Alemã. Luiz Martelli, 2004
93
2.1.2- Cervejaria Rio Claro (Skol)
A Cervejaria Rio Claro foi fundada em 1899 no município de Rio Claro
pelo major Carlos Pinho. De acordo com Dean (1977,p.56), a instalação da
cervejaria foi motivada pelo grande número de imigrantes de origem ale
que passaram a trabalhar no município com a chegada da ferrovia. Por volta
de 1900, a cervejaria vendia 600 mil litros de bebida, distribuídos em
várias cidades. Segundo o jornalista José dos Santos Ferro (1951,p.6), em
1902 o major arrendou a cervejaria para o alemão Júlio Stern. Ainda sob o
regime de arrendamento, em 1910 a empresa é transformada em sociedade
anônima, sob a denominação de Cervejaria Rio Claro- Companhia Industrial.
A fábrica localizada próxima à área central de Rio Claro ganhava
destaque desde 1906 nas publicações sobre a área industrial, de acordo
com o comentário que consta no Almanack, de Conrado L. Krettlis.
De acordo com Ferro (1951,p.6), o escritório da cervejaria, localizado
na rua 8 com a avenida 4, era um ponto de reunião para um grupo de
moradores da cidade, que experimentavam os produtos da fábrica. O
primeiro bloco foi construído na quadra entre as ruas 7 e 8 e avenidas 2 e 4,
um prédio de três pavimentos plantado no interior do terreno, de cujas
janelas os fabricantes miravam o panorama da cidade e em cujos beirais os
pombos arrulhavam as suas juras de amor” como destaca Ferro (1951,p.7).
Nessa época, a brica era gerenciada por Oscar Batista da Costa,
conhecido como Costinha, e produzia as cervejas Pilsen, Rio Claro, Caracu
e Extrato de Malte. Entre os refrigerantes estavam Maçã, Guarani, Café e
Limonada. Também era engarrafada a água Artezia.
Segundo o jornalista Ferro (1951,p.7), os vendedores da cerveja no início
enfrentavam restrições ao produto nas cidades paulistas, porque obito da
população era o de consumo do vinho, devido à influência dos imigrantes
italianos, mas aos poucos a cerveja também passou a ter seu mercado.
A crise econômica de 1929 atingiu a cervejaria, que assim como muitas
outras empresas passou por dificuldades financeiras, e em 1930 a fábrica foi
vendida para o empresário Nicolau Scarpa, proprietário de um grupo de
94
empresas de vários setores, incluindo os de alimentos, tecelagem e
calçados. Quando Nicolau Scarpa morreu, em 1942, a cervejaria contava
com 8.025 metros quadrados de construção. Entre os novos prédios
estavam os de escritório, gerência, diretoria, portaria, refeitório,
almoxarifado, escritório técnico, laboratório e tinturaria. Desde 1940, a
empresa contava com a máquina de engarrafamento e pasteurização vinda
da fábrica norte-americana Barry Wehmiler Machinery Co.
Após a morte de Nicolau Scarpa, a direção da fábrica foi assumida
por seus filhos, Francisco Scarpa e Nicolau Scarpa Junior, que trouxeram o
conhecimento adquirido em cursos de engenharia e química feitos na
Alemanha. Administrada pelos irmãos Scarpa, a fábrica ganhou a chaminé
mais alta do município, que segundo o jornalista Ferro (1951) tinha 40
metros de altura e até nos dias atuais é uma das referências no prédio
localizado na área central de Rio Claro. Nacada de 1940 a fábrica
empregava 307 pessoas, sendo quatro engenheiros, três químicos, um
arquiteto, 11 contadores, 12 datilógrafos, oito escriturários, dois professores,
três advogados, um farmacêutico, oito viajantes, três técnicos eletricistas,
dois cnicos mecânicos, dois chefes de fabricação, dois mestres de
construção, dois chefes de adega, dois mestres carpinteiros, 36 operários
especializados e 205 operários.
A produção da fábrica, com destaque para a cerveja Caracu, era
transportada para outras cidades e estados brasileiros através de trens e
caminhões, sendo que a empresa contava com nove caminhões próprios
para realizar o transporte.
95
CERVEJARIA funcionava na área central-Arquivo Público do Município- Rio Claro ( sem data)
A cervejaria permaneceu sob a administração da família Scarpa a
1967, quando foi vendida para o grupo Skol. Em 1980, passa a pertencer à
Cia. Cervejaria Brahma (controlada pelo grupo financeiro Garantia). Em
1992, o grupo decide encerrar a produção na unidade de Rio Claro, retirando
as máquinas e demitindo cerca de 500 funcionários.
De acordo com Selingardi-Sampaio e Pires (1992, p. 17), a
desativação da Skol em Rio Claro foi provocada por vários motivos, entre
eles a inadequada localização intra-urbana das instalações da cervejaria, o
que provocava problemas no trânsito da cidade; a falta de espaço para
ampliação da fábrica para uso de novas tecnologias; o alto custo de
manutenção da fábrica na área central devido ao valor do Imposto Predial e
Territorial Urbano e a reestruturação organizacional e produtiva da empresa.
Para competir no mercado, a Cia. Cervejaria Brahma teve que investir em
tecnologia, capacidade produtiva e aumento da produtividade. Segundo o
presidente do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Alimentação de
Rio Claro, José Ramos, os funcionários da Skol foram surpreendidos pela
notícia do fechamento da fábrica, porque nenhuma informação sobre a
intenção de se transferir a linha de produção foi transmitida
antecipadamente. Na época, o sindicato organizou protestos e tentou
mobilizar lideranças políticas para evitar a transferência, mas de acordo com
Ramos o grupo responsável pela fábrica tinha seus projetos bem
definidos, sem possibilidade de mudanças.
Após a desativação da unidade da Skol em 1992, os prédios da
empresa, que ocupavam áreas em três quadras da área central de Rio
Claro, passaram cerca de 4 anos desocupados. A antiga sede social dos
funcionários, localizada na avenida 2, passou por reforma e foi ocupada por
uma unidade do Senac, o Serviço Nacional do Comércio. No final da década
96
de 1990, parte dos prédios situados na avenida 7 com a rua 7 passou a
sediar o Colégio Anglo, mais tarde Phoenix, que também encerrou suas
atividades. Este conjunto de prédios voltou a sediar atividades educacionais
com a instalação das Faculdades Asser, que permanecem no local.
Atualmente, um barracão localizado na avenida Visconde do Rio Claro é
utilizado como depósito de alimentos. Os demais setores da fábrica
continuam desocupados.
ANTIGOS barracões da cervejaria abrigam uma faculdade (acima) e um depósito de
alimentos (abaixo), Luiz Martelli, 2004
97
2.2- A Fase Tradicional (1930/1968)
Selingardi-Sampaio (1987,p.24) define como a fase “tradicional” da
industrialização de Rio Claro o período compreendido entre 1930 e 1968.
A crise do comércio exterior, limitando drasticamente a capacidade de
importar, e os mecanismos acionados pelo Estado para a defesa do nível
de renda da cafeicultura provocariam o surgimento de uma nova forma de
crescimento industrial (CANO,1983,p.258 apud SELINGARDI-SAMPAIO,
1987,p.24)
Nesse período tem início a fase da industrialização por substituição de
importações. O Estado também teve sua participação para que a fase
“tradicional” fosse delineada. Com a consolidação do poder central em 1937,
o Estado passa a exercer o papel de agente orientador e normativo da
industrialização, além do papel de agente produtor, tornando-se empresário
das primeiras indústrias de base do país. SELINGARDI-SAMPAIO
(1987,p.24) destaca que não houve, porém, um planejamento nacional para
a localização das indústrias.
Sem a interferência do governo federal, o maior beneficiário do
processo de industrialização foi o estado de São Paulo, por possuir a melhor
estrutura. Para Selingardi-Sampaio, Rio Claro não acompanhou o
desenvolvimento industrial ocorrido no estado. Após a fase do auge do café,
a cidade entrou num período de estagnação econômica, e até a população
diminuiu de 50.416 habitantes em 1920 para 42.287 habitantes em 1940. Na
agricultura, as lavouras de caforam substituídas pela pequena produção e
pela policultura, que não atingiram mais a antiga lucratividade. Na área
urbana, as pequenas indústrias restringiram-se ao mercado interno durante
as décadas de 1930 e 1940.
Entre as características da fase “tradicional” da industrialização de Rio
Claro, Selingardi-Sampaio (1987,p.25-30) destaca a pequena expansão,
que apesar do crescimento no número de estabelecimentos (155 em 1940
para 358 em 1970), o número de pessoas ocupadas no setor teve modesto
crescimento, passando de 2.178 em 1940 para 3.963 em 1970. Em 30 anos,
houve um crescimento global de 81,95%, enquanto entre os anos de 1970 e
98
1980 a taxa chegou a 121,47%. A autora também aponta como
características da fase a introdução do gênero têxtil no município; a
supremacia dos gêneros tradicionais sobre os motrizes ou dinâmicos e a
estrutura dimensional marcada pelo domínio dos pequenos
estabelecimentos. Selingardi-Sampaio (1987,p.33) destaca ainda a relativa
importância que os capitais locais mantiveram no confronto com os capitais
de origem externa No conjunto, o gênero produtos alimentares foi o que
apresentou a maior expansão.
O fraco desempenho do município no setor industrial durante a fase
“tradicional” é explicado por Selingardi-Sampaio (1987,p.34) através de
fatores como a pequena capacidade de acumulação de capital, a tímida
iniciativa empresarial local, a existência de um reduzido número de
estabelecimentos motrizes, a existência das oficinas da Cia. Paulista e as
precárias condições de abastecimento em energia elétrica e água que
caracterizaram o município até meados dos anos 60. No caso das oficinas
da ferrovia, Selingardi-Sampaio explica que embora tenha sido a maior
empregadora (oscilando de 2.550 empregados em 1926 para 980 em 1960),
as oficinas não estabeleceram ligações funcionais de matéria-prima e de
produto com indústrias locais, “despojando-se, portanto, de qualquer efeito
multiplicador; também os operários que saíram não chegaram a se
estabelecer por conta própria, aplicando o conhecimento técnico adquirido”
(SELINGARDI-SAMPAIO, 1987,p35).Um fator secundário que também
contribuiu para o fraco desempenho industrial foi a falta de uma política
industrial ordenada e permanente pelo poder executivo local, o que
aconteceu a partir de 1969.
Entre os destaques da fase “tradicional” da industrialização de Rio
Claro está a implantação do setor têxtil, através da Tecelagem Matarazzo,
que durante o período tornou-se a maior empregadora da mão-de-obra
feminina no município. Após encerrar suas atividades, na década de 1990 o
prédio da fábrica passou por reformas e atualmente é ocupado pelo
Shopping Center Rio Claro.
99
2.2.1- Tecelagem Matarazzo
Embora a indústria têxtil seja uma das atividades fabris mais antigas
do Brasil, muitas foram as dificuldades enfrentadas por esta atividade
econômica. De acordo com Mendes (1997,p.5), a atividade foi iniciada no
país ainda no século XVIII.
No entanto, visando atender os interesses dos fabricantes portugueses, e
também para evitar o emprego de mão-de-obra fora da agricultura e da
mineração, a Coroa portuguesa proibiu, em 1785, todas as indústrias de
transformação na Colônia, com exceção dos tecidos grosseiros de algodão
usados para vestir os escravos e os pobres. Essa proibição deixou de existir
em 1808, quando a Coroa portuguesa se transferiu para o Brasil (MENDES,
1997, p.75)
O setor têxtil não contava com unidade de produção na Província de
São Paulo até 1866, segundo um relatório da comissão de inquérito
industrial de 1882, nomeada para proceder a um estudo sobre o estado das
indústrias e obter informações sobre as que careciam de proteção. De
acordo com Ribeiro (1988), em 1882 o Brasil contava com apenas nove
fábricas do setor em funcionamento, sendo localizadas na Província da
Bahia, Minas Gerais e Alagoas. Antes de 1866, aconteceram algumas
tentativas de implantar a produção de têxteis em São Paulo, mas todas
fracassaram.
Dessas tentativas, a que apresenta maiores registros é a de Manuel
Lopes de Oliveira, que em 1851, em Sorocaba, instalou uma fábrica junto às
senzalas dos escravos para descaroçar, cardar, fiar e tecer algodão. Os
produtos seriam destinados às roupas para os escravos, mas as atividades,
iniciadas em 1857, acabaram sendo interrompidas em 1861.
Durante a década de 1860, os altos preços do algodão no mercado
internacional inviabilizaram a instalação de indústrias têxteis no Brasil.
Somente em 1873 a matéria-prima atingiu maior abundância, com os preços
em declínio. A grande depressão e a concorrência entre as fábricas
européias levaram ao fechamento das indústrias na Europa, e a imigração
trouxe a mão-de-obra especializada necessária para o Brasil. Também
100
devido à crise econômica, os fabricantes europeus de máquinas têxteis
também começaram a buscar encomendas em outros países.
Em 1869 é instalada a Fábrica São Luís, em Itu, por um grupo de
fazendeiros de café e de algodão. A fábrica produzia tecido de algodão
denominado de “algodão grosso da terra”, destinado aos trabalhos da
lavoura, com o enfardamento, e ao vestuário de escravos e trabalhadores
agrícolas. Em 1907, um recenseamento apontou o emprego de 9.738
trabalhadores em 31 fábricas do setor têxtil na Província de São Paulo.
As fases de maior investimento e crescimento do setor têxtil
aconteceram em meados da cada de 1870; cada de 1890 e início da
década de 1890; entre 1907 e 1913; na cada de 1920 e na década de
1930. Alguns números podem comprovar esse desenvolvimento da indústria
têxtil. Em 1918, eram 200 fábricas, que empregavam 78 mil pessoas. Em
1920, o setor ocupava 115.519 pessoas, o que representava 41% do
emprego na indústria de transformação.
A liderança do setor da tecelagem será superada na década de
1950. De acordo com Mendes (1997, p.79), ganham peso as indústrias
mecânicas, metalúrgicas e químicas. Mendes destaca ainda que durante as
décadas de 1970 e 1980, a indústria xtil perdeu posição relativa na
estrutura industrial brasileira. Entre as características do setor estão a
concentração regional e a elevada heterogeneidade tecnológica,
“coexistindo empresas modernas (em equipamentos, instalações e
processos) com unidades muito antigas, estruturadas a partir de
equipamentos em fase de sucateamento e com trabalho à fação”
(MENDES,1997,p.79)
O setor de tecelagem recebeu os primeiros incentivos da Câmara
Municipal para a instalação em Rio Claro em 1890, mas se consolidou a
partir de 1930, na fase tradicional da industrialização do município, segundo
classificação feita por Selingardi-Sampaio (1987,p.28). Segundo Selingardi-
Sampaio e Pires (1992,p.39), os primeiros entendimentos para a instalação
de uma indústria têxtil em Rio Claro aconteceram na administração do
prefeito Irineu Penteado. “De acordo com a lei 153 de 1923” destacam os
101
autores eram concedidos incentivos à Sociedade Anônima Indústria de
Seda de Campinas para a instalação de uma unidade de produção no
município”.
Entre os incentivos estavam a isenção de impostos por vinte
anos e o
auxílio em dinheiro para a compra do terreno, com o compromisso de que o
concessionário instalaria uma estação de sericicultura, com curso gratuito de
treinamento de criação do bicho da seda, no período de um ano.
A construção da fábrica, porém, foi iniciada em 1933, na
administração do prefeito Benedito Pires Joly. Após vários impasses, a
empresa recebeu a doação de um lote de dois alqueires da Cia. Paulista de
Estradas de Ferro, além de uma cota diária de cinquenta mil litros de água.
Na área próxima ao então Horto Florestal foi construído um salão central de
52 metros por 10 metros, além de outros salões para caldeiras,
transformadores de energia elétrica, armazenagem e distribuição dos
casulos. Segundo Selingardi-Sampaio e Pires (1992,p.40), a edição de 14 de
setembro de 1933 do Diário do Rio Claro noticiava a intenção dos
empreendedores de construir a primeira chaminé da cidade, de 22 metros de
altura.
A inauguração da fábrica estava prevista para dezembro de 1933,
mas aconteceu em 1939, quando a empresa havia sido vendida para
as Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo, um grande grupo empresarial
paulistano, que iniciou a produção contratando 808 pessoas, a maioria
mulheres, e utilizando máquinas trazidas da Itália. De acordo com
Selingardi-Sampaio e Pires (1992,p.41), “durante toda a fase tradicional da
industrialização rio-clarense, esta grande indústria têxtil representou a maior
fonte de empregos para a mão de obra feminina local”
MULHERES eram maioria entre os funcionários da
tecelagem
Arquivo Público do Município-
Rio Claro (sem data)
102
A tecelagem permaneceu sob a administração do grupo Matarazzo
até o início da década de 1980, quando foi vendida para a Cianê,
Companhia Nacional de Estamparia, do grupo Severino Pereira da Silva,
com sede em Sorocaba. Nessa época, o grupo Matarazzo enfrentava
dificuldades financeiras. Em 1989, o grupo Pereira da Silva sofre divisão
entre membros da família, sendo delegado a um dos membros da família o
setor têxtil das empresas, que passam por uma reformulação. Na fábrica de
Rio Claro existia apenas o processo de tecelagem, dele se obtendo cerca de
2 milhões e 400 mil metros de tecido cru por mês, sendo que os processos
de fiação, alvejamento, tinturaria e estamparia ocorriam nas fábricas de
Ribeirão Preto e Sorocaba.
Durante a reformulação, os 626 teares da unidade de Rio Claro foram
transferidos para Ribeirão Preto e Sorocaba, permitindo à empresa a
integração dos processos de produção.Também deve ter influenciado tal
decisão o fato das instalações da fábrica rio-clarense serem antigas, assim
como considerável parte de seu equipamento, demandando pois vultuosos
investimentos (SELINGARDI-SAMPAIO e PIRES,1992,p.41).
Em 1994, os jornais diários de Rio Claro, Jornal Cidade e Diário do
Rio Claro, anunciavam o início da reforma do prédio da antiga tecelagem e a
construção de novos pavimentos para a instalação do Shopping Center Rio
Claro . Segundo reportagem publicada no Jornal Cidade em 27 de abril de
1994, o shopping terá uma área de 18.796,71 metros quadrados,
construída em terreno de 45.587,47, onde serão instaladas lojas,
lanchonetes, restaurantes e cinemas”. Entre os empreendedores
responsáveis pela refuncionalização do prédio estão a Pereira da Silva
Empreendimentos Imobiliários, Empreendimentos Imobiliários São Carlos,
Cimento Portland Paraíso e Itaipu Participações. Para iniciar a obra, foram
contratados 100 funcionários. Na reforma, foram mantidos dois prédios
históricos e as árvores centenárias, inclusive as palmeiras imperiais da
fachada, em projeto paisagístico de Burle Marx. A inauguração do Shopping
Center Rio Claro aconteceu em outubro de 1995 (anexo 2)
103
As ex-operárias da brica de tecidos iniciaram em janeiro de 2003 um
movimento para tentar reunir as operárias da Matarazzo em encontros
anuais, realizando um evento numa tarde de janeiro de 2004 que contou
com a presença de mais de 100 mulheres, a maioria na faixa dos 60 anos
aos 80 anos. Reunidas num salão de festas na área central de Rio Claro, as
ex-operárias, atualmente aposentadas ou donas-de-casa, aproveitaram o
encontro para relembrar os tempos da fábrica. As mulheres também
apresentaram documentos e fotografias da fábrica e das operárias, que
foram reunidas num painel de exposição.
104
ENCONTRO das ex-funcionárias da Matarazzo (acima e abaixo à direita), onde foram
expostos documentos antigos como uma folha de pagamento da década de 1940- Luiz
Martelli, janeiro 2004
FACHADA da antiga tecelagem durante o período de abandono -
Administração do Shopping Center Rio Claro- 1995
105
TECELAGEM desativada-Arquivo Município-sem data- e após refuncionalização-Luiz
Martelli- 2004
106
2.3- A Fase Dinâmica (1969 em diante)
Durante a fase dinâmica, definida por Selingardi-Sampaio a partir de
1969, Rio Claro se integrou plenamente aos processos que ocorriam nas
esferas mundial, nacional e regional, processos de internacionalização do
sistema industrial capitalista e a desconcentração espacial da indústria em
território paulista. Diante do processo de interiorização industrial, o poder
público local definiu uma política de estímulo à industrialização, através de
medidas como a concessão de incentivos às indústrias que viessem a se
localizar no município, com doação de terrenos, isenção de imposto predial e
territorial urbano, pagamento de parte do aluguel do prédio provisório, entre
outros benefícios. Selingardi-Sampaio (1987,p.38) também destaca a
criação de um distrito industrial, instalado ao norte do centro urbano;
concessão do direito de captação de águas e do direito de despejo de águas
utilizadas no rio Corumbataí a algumas indústrias químicas e compromisso
de intercessão do poder executivo local junto à empresas públicas para
agilização do processo de um serviço pretendido.
Em relação ao pessoal ocupado, a fase “dinâmica” registra expansão
no setor industrial. Em 1970, as empresas empregavam 3.963
trabalhadores; em 1984 eram 9.350 funcionários nas indústrias do
município.
A expansão do número de pessoal ocupado resultou essencialmente do
crescimento das grandes e médias unidades preexistentes e do surgimento
de novos estabelecimentos, dos quais uma parte expressiva tinha 6 ou mais
pessoas ocupadas e, destes, muitos eram de médio e grande porte (50 a
100 e mais de 100 pessoas ocupadas, respectivamente) (SELINGARDI-
SAMPAIO, 1987,p;38).
De acordo com Selingardi-Sampaio (1987, p.39) enquanto entre os
novos estabelecimentos da fase “dinâmica” encontrava-se alta proporção de
unidades médias e grandes, o período também foi marcado pelo
desaparecimento de muitos pequenos estabelecimentos, o que pode
explicar que no período de 1970 a 1984 a expansão do número de
estabelecimentos foi menos acelerada que a do número de pessoal
107
ocupado, resultando numa concentração técnica da produção. Durante a
fase os gêneros que apresentaram maiores taxas de crescimento foram os
de material de transporte, produtos de matérias plásticas, mecânica,
metalúrgica e mobiliário.
Selingardi-Sampaio (1987, p.39) avalia que os dados indicam que a
fase “dinâmica” não foi marcada somente pela aceleração do crescimento
industrial, como também por importantes alterações na estrutura. Na
estrutura por gêneros, os dinâmicos conquistaram posições. Nessa categoria
está o setor de material de transporte, fortalecido com a instalação da
Gurgel. o gênero de produtos de matérias plásticas, inexistente em 1970,
chegou em 1984 ao sexto lugar na hierarquia dos gêneros, totalizando 11
estabelecimentos e 753 pessoas empregadas. Enquanto isso o setor têxtil,
que desempenhou importante papel durante a fase “tradicional” começava a
entrar em decadência. Em 1970, Rio Claro contava com 11 indústrias
têxteis, em 1984 esse número havia sido reduzido para apenas três
estabelecimentos. Outro fator que caracteriza a fase “dinâmica”, de acordo
com Selingardi-Sampaio foi a mudança nos capitais.
Os capitais locais, dominantes durante a fase “tradicional”, tiveram reduzida
sua participação relativa no conjunto da indústria em virtude da vigorosa
afluência dos capitais externos ao município (de origem nacional e
estrangeira) durante a fase dinâmica: de 52 estabelecimentos com 6 ou
mais pessoas ocupadas surgidos durante a citada fase, 22 empregavam 50
ou mais pessoas e, destes, 15 eram controlados por capitais externos
(SELINGARDI-SAMPAIO, 1987,p.45)
Entre os estabelecimentos instalados durante a fase “dinâmica”, o
maior destaque foi a fábrica da Gurgel Motores, que acabou sendo
desativada na década de 1990. Desde então, o caso permanece na Justiça,
onde os cerca de 700 ex-funcionários reivindicam seus direitos trabalhistas.
O prédio da fábrica, localizado às margens da rodovia Washington Luiz, está
abandonado, caracterizando-se num dos maiores “brownfields” do município.
108
2.3.1- Gurgel Motores
O parque automotivo surge no Brasil no início do século XX, com
estabelecimentos destinados apenas à comercialização dos veículos. As
primeiras montadoras só foram instaladas no país durante a década de
1950. Desde 1930, o governo brasileiro procurava atrair indústrias
automobilísticas estrangeiras através de incentivos fiscais, conseguindo
porém somente linhas de montagem da Ford e da General Motors, que
utilizavam peças e componentes trazidos dos Estados Unidos.
O primeiro projeto de desenvolvimento do setor automobilístico no
Brasil surgiu na década de 1950 durante o governo de Getúlio Vargas, mas
a implantação das montadoras aconteceu no final da década, sob o
governo de Juscelino Kubitschek. Em Rio Claro, a montadora nacional de
veículos Gurgel Motores é instalada durante a fase dinâmica de
industrialização do município, segundo classificação feita por Selingardi-
Sampaio (1987,p.37).
É nessa fase que a industrialização rio-clarense se integra plenamente a
processos que ocorrem a nível mundial, nacional e regional, ou seja, a
internacionalização do sistema industrial capitalista, a integração brasileira
a este sistema e a desconcentração espacial da indústria em território
paulista (SELINGARDI-SAMPAIO, 1987,p.37)
Segundo Caldeira (2001, p.41), a Gurgel Indústria e Comércio de
Veículos foi fundada em São Paulo- SP em 1969, com um capital de 50 mil
dólares, sendo planejada com 20 anos de antecedência pelo engenheiro
João Augusto Conrado do Amaral Gurgel. O primeiro projeto de veículo foi
apresentado pelo engenheiro Gurgel ainda em 1949, quando finalizava o
curso de Engenharia Mecânica Eletricista na Escola Politécnica da
Universidade de São Paulo. Com a experiência adquirida como funcionário
de montadoras como a General Motors, o engenheiro Gurgel montou uma
fábrica com quatro funcionários, que no início produziam quatro unidades do
primeiro veículo, o Ipanema, a cada mês. Uma das novidades era o
109
“plasteel”, uma resistente estrutura formada por camadas de Fiberglas
Reinforced Plastic ( F. R. P.).
Em 1973, Gurgel adquiriu uma área de 360 mil metros quadrados em
Rio Claro- SP, às margens da rodovia Washington Luiz. Enquanto a fábrica
estava em construção, em 1974 o empresário apresenta o pioneiro projeto
do carro elétrico, o Itaipu. Viabilizada com financiamento do Banco Nacional
de Desenvolvimento Econômico e Social, o BNDES, com valor equivalente
atualmente a R$ 2.130.000,00, a fábrica de Rio Claro foi inaugurada com
uma área construída de 13 mil metros quadrados. No município, o anúncio
da instalação da fábrica era noticiado com otimismo nos jornais da época,
como no Diário do Rio Claro, um jornal diário que acompanhava dia-a-dia a
construção da fábrica (anexo 3).
Antes mesmo do início das atividades, a imprensa rio-clarense
dedicava suas manchetes à nova fábrica. A compra do terreno que pertencia
à família Pascon ganhou destaque em maio de 1973, quando o jornal Diário
do Rio Claro destacou que a empresa adquiriu o terreno sem apoio da
administração municipal, que na época tinha como prefeito Oreste Armando
Giovanni. Também foi destacado o apoio do então deputado Jo Felício
Castellano, o “Gijo”, para que Rio Claro fosse escolhida quando Gurgel
decidiu sair de São Paulo.
Ainda no ano de 1973, o Diário também noticiou a aprovação de um
projeto de incentivos fiscais para a Gurgel na Câmara Municipal. Segundo o
Diário, a Gurgel havia adquirido a área de 16 alqueires para construir a
fábrica em Rio Claro com o objetivo de dobrar a produção do veículo
Xavante. Em agosto do mesmo ano, o empresário entregou ao prefeito o
projeto de fabricação dos carros elétricos .
A possibilidade de Rio Claro sediar o pioneirismo do carro elétrico
levou a Prefeitura Municipal a enviar à Câmara Municipal um projeto de
criação de estacionamentos exclusivos para esses veículos, onde segundo
divulgou o jornal Diário seriam instaladas tomadas para abastecer os carros.
No dia 06
de janeiro de 1974, a manchete do jornal Diário do Rio Claro era “
Carro elétrico poderá colocar Gurgel e Rio Claro na história do automóvel” .
110
A vinda da Gurgel para Rio Claro era considerada pela imprensa
como uma conquista. Cada participação da empresa na mídia nacional
ganhava destaque nos jornais locais, como em fevereiro de 1974, quando o
Diário noticiou que os carros elétricos da Gurgel foram apresentados no
programa do apresentador de televisão Flávio Cavalcanti . A previsão de
Gurgel era fabricar 300 carros elétricos por s na fábrica de Rio Claro.
Segundo o Diário, foram gastos 4 milhões e 500 mil cruzeiros (moeda
vigente na época) para a construção da unidade.
A unidade da Gurgel em Rio Claro foi inaugurada em 1975. As vagas
de trabalho eram preenchidas através de anúncios nos jornais. O primeiro
veículo Xavante foi exposto no Paço Municipal, demonstrando o
relacionamento entre a Gurgel e a administração do município, e a empresa
iniciou atividades exportando veículos para países como a Bolívia, a
República Dominicana e Venezuela. Depois de instalada em Rio Claro, a
Gurgel também passou a ser fornecedora de veículos para o Exército
Brasileiro e a Polícia Militar de São Paulo, atraindo representantes do alto
comando militar , que na época governava o país, para visitas à cidade e à
fábrica. Os jipes X-15 e X-12 foram exportados para cerca de 40 países.
Em 1976, a imprensa aponta o carro elétrico como alternativa para
enfrentar a crise do petróleo, mas o veículo enfrenta problemas de
durabilidade, capacidade e peso das baterias. No mesmo ano, o governo
federal lança o programa Pró-Álcool de incentivo ao combustível, e a Gurgel
forneceu um veículo de sua frota para a viagem-propaganda do projeto.
O carro elétrico da Gurgel percorreu as ruas de Rio Claro em 1977.
Movido a 6 baterias, o Gurgel foi tema de reportagem na TV Cultura,
ganhando destaque na mídia. As visitas do militares à fábrica eram
freqüentes e sempre noticiadas pela imprensa. A fábrica também fornecia
veículos para a Polícia Militar. O comandante geral da PM, coronel Francisco
Torres de Mello esteve na Gurgel em 21 de junho de 1977 com outros
representantes do alto comando da corporação. Em 15 de outubro de 1977,
o Diário mostrava a visita do comandante da Região Militar, general de
111
divisão Geraldo Alvarenga Navarro, que veio conhecer a pick-up X-20M,
projetada especialmente para o Exército Brasileiro.
As publicações dos jornais sobre o dia-a-dia na Gurgel mostram a
relação entre a imprensa e a fábrica. Em julho de 1978, o jornal Diário do Rio
Claro mostrava a cobertura da festa de entrega do carro de número 5000,
um X-12, que foi adquirido pela administração municipal da época.
No início da década de 1980 a empresa apresentava seus melhores
rendimentos, com uma linha de produção de dez modelos de veículos.
Nessa época, o empresário Gurgel revê sua posição em relação ao Pró-
Álcool, e baseado na quantidade de cana-de-açúcar necessária para
abastecer cada veículo, começa a criticar o programa.
LINHA de produção da Gurgel- Jornal Cidade (sem data)
Em 1980 era lançada a pedra fundamental da fábrica de carros
elétricos. O primeiro foi apresentado ao então presidente da República,
general João Batista Figueiredo. Em 1981 as primeiras unidades do Itaipu E-
500 chegavam ao mercado. Nessa época, a Gurgel tinha 272 funcionários e
15 mil metros quadrados de construção na área de 360 mil metros
quadrados em Rio Claro.
112
A abertura de capital da empresa aconteceu em 1984, com a oferta
pública de 3,3 milhões de ações preferenciais. O objetivo era captar recursos
para a ampliação da fábrica, que contava com uma unidade de negócios
em São Paulo, denominada Gurgel Trade Center. Logo após da abertura de
capital surge a Gurgel Tec- Tecnologia de Veículos S. A. Entre os veículos
produzidos na fábrica está o Carajás, um jipe que foi precursor da linha de
veículos que poderiam ser utilizados em qualquer tipo de terreno, como
constava nas propagandas da empresa.
No ano seguinte, a empresa consegue um financiamento do
Ministério da Ciência e Tecnologia para produzir o Cena- Carro Econômico
Nacional, num projeto que previa a produção de duas mil unidades ao ano.
Sobre o projeto do Cena, Gurgel declarou ter sofrido pressões das grandes
montadoras do setor. No ano de 1986, a empresa conquista números
recordes de produção. Foram 2.156 veículos, num crescimento de 57,29%
em relação ao ano anterior.
Com o nome alterado para BR-800 após uma disputa judicial com o
piloto de Fórmula 1 Ayrton Senna, o carro popular foi lançado em 1987. A
área construída da fábrica foi ampliada de 13.697 metros quadrados para
19.597 metros quadrados. No quadro de funcionários, o número de pessoas
empregadas sobe de 700 para 1 mil. Em maio de 1988, foi constituída a
Gurgel Motores Sociedade Anônima, controlada pela Gurgel Sociedade
Anônima Indústria e Comércio de Veículos. De acordo com Caldeira
(2001,p.77) foram lançados 10 mil lotes de ações no mercado, e 90% foram
vendidas. Para os que adquiriam as ações concedia-se também o benefício
de comprar as 9 mil primeiras unidades do BR-800.
Com os recursos obtidos com a venda de ações foram construídos
mais seis prédios na unidade de Rio Claro, totalizando 40 mil metros
quadrados. Enquanto isso, o empresário Gurgel adquiria um terreno de 650
mil metros quadrados em Fortaleza, no Ceará, anunciando a intenção de
construir uma segunda unidade de produção, para fabricação de câmbios e
diferenciais, além de uma montadora para abastecer a região.
113
Na relação com os funcionários, porém, a fase indicava não
acompanhar o mesmo desenvolvimento da fábrica. Em 1989, segundo
Caldeira (2001:p79), foi registrada a primeira greve dos empregados da
Gurgel, que cobravam um restaurante e estabilidade no emprego. Em início
de carreira sindical na época, o atual assessor do Sindicato dos
Metalúrgicos, José Carlos Pereira, lembra que a luta dos trabalhadores não
tinha caráter salarial. O que se buscava na época era a garantia de direitos
trabalhistas, um movimento que começava a ganhar força no Interior do
Estado de São Paulo.
Em 1991, durante o governo do presidente da República Fernando
Collor de Mello, acontece uma ampliação na abertura do mercado brasileiro
para o exterior, mas o novo posicionamento do governo federal não abala os
planos de Gurgel, que continua construindo a fábrica no Ceará. Segundo
Caldeira (2001,p.88) em dezembro do mesmo ano, é assinado um protocolo
de intenções pelos governos estaduais do Ceará e de São Paulo com a
empresa. O sonho de Gurgel, na época, era produzir um carro popular
baseado no BR-800 que seria vendido a um valor equivalente a R$ 5 mil.
Denominado Delta, esse projeto da Gurgel aguardava um financiamento de
185 milhões de dólares que viriam dos governos estaduais, do BNDES e da
Sudene. Segundo declarações de Gurgel na época, o governador do Ceará,
Ciro Gomes, sem qualquer justificativa, teria se recusado a atender ao
protocolo assinado com a empresa. Sem recursos, as quinas adquiridas
da montadora Citroen, da França, permaneceram encaixotadas na fábrica
em Fortaleza (CE).
A crise da Gurgel começa a ganhar destaque nas páginas dos jornais
de Rio Claro em janeiro de 1993, quando a empresa estava em
concordata há seis meses e se cogitava sua falência. Uma reportagem
publicada no Jornal Cidade em 6 de janeiro de 93 informa que o promotor de
Justiça do Fórum de Rio Claro, Roberto Pinto dos Santos, pediu a falência
da Gurgel Motores, “não concordando com o pedido de alienação de um
avião e alguns carros da empresa, que seriam utilizados para cobrir o
114
pagamento da dívida trabalhista da Gurgel junto a seus funcionários, orçada
em US 4,5 milhões”.
No mesmo mês, a Procuradoria Regional do Trabalho de Campinas
entrou com ação na Justiça em Rio Claro para proibir a livre disposição dos
bens de Amaral Gurgel, com o objetivo de garantir o pagamento dos
funcionários, mas a liminar não foi concedida. Nesta época, 200 funcionários
ainda trabalhavam na fábrica, aguardando a retomada da produção. Nas
entrevistas aos jornais Diário e Jornal Cidade em 1993, o empresário Gurgel
afirmava que estava aguardando uma resposta do governo federal sobre o
protocolo de intenções enviado ao presidente Itamar Franco para a
fabricação do carro popular Delta.
Em 1993, a Gurgel requere sua concorda preventiva. No mesmo ano,
o empresário busca apoio junto ao governo federal, apoio que seria
novamente solicitado no início de 94, sem retorno. Em janeiro de 1994,
Gurgel foi à Brasília propor aos ministros do presidente mineiro Itamar
Franco a instalação de uma fábrica em Uberlândia (MG), e a transferência
da sede para Brasília. Em fevereiro de 1894, o juiz Theophilo Carlos de
Siqueira, da Terceira Vara Civel de Rio Claro, decreta a falência da Gurgel,
mas a empresa recorre e consegue voltar ao regime de concordata
preventiva.
Em fevereiro de 1994 é feita a negociação na Junta de Conciliação
para que a empresa pagasse sua dívida de US$ 4 milhões com os
trabalhadores. Ficou definido que o pagamento seria feito em 30 parcelas.
No dia 26 do mesmo mês, o juiz Theóphilo de Siqueira, que analisava o
pedido de falência da Gurgel, recebeu de Brasília um relatório do ministro da
Indústria e do Comércio, Élcio Álvares, informando que o governo federal
não iria aportar recursos à empresa. Participando do grupo que analisou o
projeto Delta, o Banco Nacional de Desenvolvimento, o BNDES, emitiu
parecer afirmando que “é grande o risco de apoiar empresas que possam
colocar em risco os recursos administrativos”.
No dia 2 de março de 1994, o Jornal Cidade noticiava a decretação da
falência da Gurgel Motores, determinada pela Justiça (anexos 4 e 5). A
115
fábrica foi lacrada e passou a ser vigiada pela polícia. Na época, a dívida
com trabalhadores, fornecedores e com os governos era avaliada em US$
40 milhões. Concordatária desde junho de 93, a empresa não teria honrado
seus compromissos com os trabalhadores. Teria contribuído para o
fechamento a paralisação das atividades, apesar da presença de 204
funcionários na fábrica. A falência também atingiu a Gurgel Brasil Indústria e
Comércio, instalada em Fortaleza (CE). Para o cargo de síndico da massa
falida foi nomeado o advogado Olair Villa Real.
Nas entrevistas concedidas em março de 1994, segundo o Jornal
Cidade, Gurgel afirmava que “a crise econômica do país e as pressões das
montadoras multinacionais e do Sindicato dos Metalúrgicos” colaboravam
para a crise enfrentada pela empresa. Logo após a falência, representantes
da Associação dos Revendedores de Veículos Gurgel e um grupo de
funcionários apresentaram ao vice-prefeito da época, Aldo Demarchi, a
proposta de assumir o controle da empresa, em regime de co-gestão, para
retomar a produção de veículos.
Contestada pelo advogado da Gurgel, Wilney de Almeida Prado, a
falência da empresa foi suspensa em 9 de março de 94 e a fábrica foi
reaberta, com a unidade voltando à condição de concordatária e contando
com apenas 20 funcionários. Após a suspensão da falência, o empresário
anuncia o projeto de criação da Phoenix Motores, uma empresa que seria
destinada à produção de veículos utilitários. Na administração, a Phoenix
seria composta por grupos formados por funcionários, revendedores,
fornecedores, proprietários de veículos e outros investidores.
A situação voltou a ser agravada no final de março de 1994, quando a
Gurgel não pagou a primeira parcela do acordo feito com os trabalhadores.
Em junho de 1994, o empresário procurou o Sindicato dos Metalúrgicos para
propor que os trabalhadores apresentassem um projeto que viabilizasse a
retomada da empresa. O diretor do sindicato condicionou o projeto ao
pagamento dos direitos trabalhistas e à participação dos trabalhadores na
gestão da empresa.
116
O saldo do fechamento da empresa permanece até o momento sem
solução. Avaliado em 20 milhões de reais, o patrimônio da Gurgel em Rio
Claro foi levado a leilão pela Justiça em quatro ocasiões, mas
apareceram compradores para alguns veículos e equipamentos, e a brica
continua fechada e sendo deteriorada pelo tempo.
Segundo o presidente da cooperativa dos trabalhadores, lio
Nascimento, parte dos recursos arrecadados nos leilões o gastos com
manutenção do serviço de vigilantes na fábrica, feito por uma empresa
terceirizada com custo de cerca de R$ 13 mil por s. De acordo com o
Sindicato dos Metalúrgicos, a dívida da empresa com os cerca de 700 ex-
funcionários gira em torno de R$ 14 milhões de reais. Segundo as
estimativas, com o fisco e os fornecedores, a dívida da Gurgel chegaria a
R$ 70 milhões.
FÁBRICA da Gurgel, aberta à visitação para realização de um leilão - Luiz Martelli, 2002
Sem solução nos leilões, os ex-funcionários tentam agora assumir o
prédio da fábrica através da formação de uma cooperativa. Presidida pelo
ex-funcionário Júlio Nascimento, a cooperativa fundada em 2003 pretende
primeiro conseguir a posse da fábrica na Justiça para depois discutir com
117
seus integrantes qual poderá ser o destino da antiga fábrica. Até o momento,
a posição da Promotoria de Justiça, segundo Nascimento, é contrária à
entrega do patrimônio para os trabalhadores, mas os ex-funcionários
cooperados continuam aguardando agora a posição da juíza da Vara
Cível, Cynthia Andraus Carreta. Iniciados em 2001, os leilões de bens da
Gurgel estão em sua quinta edição, mas até o momento foram
vendidas máquinas e veículos que ficaram na fábrica.
Dos 700 ex-funcionários, cerca de 400 são cooperados, e na
avaliação de Nascimento esse número reduzido de adesões diante do total
do quadro pode estar prejudicando a liberação dos bens. Vários funcionários
faleceram sem conseguir receber seus direitos, deixando a reivindicação
para suas famílias. Em entrevista coletiva à imprensa promovida na véspera
do último leilão, em maio de 2005, o advogado da cooperativa, Heitor
Valério, informou que o valor do patrimônio, estimado atualmente em 20
milhões de reais, o é suficiente para quitar nem os débitos com os
trabalhadores, que segundo o advogado estariam avaliados em 27
milhões de reais sem a atualização pelos anos de espera enfrentados pelos
trabalhadores. Vítima do Mal de Alzheimer, o empresário Gurgel deixou de
dar declarações sobre a situação da fábrica logo após seu fechamento e
vive atualmente em São Paulo.
118
Capítulo III- Entrevistas com antigos trabalhadores: Uma Lição de Vida
As entrevistas com operários que trabalharam nas Oficinas da Cia.
Paulista de Estradas de Ferro, na Cervejaria Rio Claro (Skol), na Tecelagem
Matarazzo (Cianê) e na Gurgel Motores tiveram o objetivo de demonstrar a
importância desses “brownfields” para o desenvolvimento do município de
Rio Claro (SP) e a relevância desses empreendimentos industriais (as
fábricas) em suas histórias de vida. A riqueza dessas histórias revela a
importância que o trabalho teve na vida dessas pessoas, hoje todas idosas,
e que iniciaram sua carreira numa época em que a relação empregador-
empregado parecia ser revestida de outras características.
Não queo houvesse problemas (excesso de trabalho, falta de
estrutura de segurança para o operário, excesso de horas extras, salários
baixos). Mas havia também um traço de prazer e alegria em sair para o
trabalho, na convivência com os colegas da linha de produção, um traço que
nem sempre encontramos nos trabalhadores da atualidade.
Num estudo sobre “brownfields” ainda se torna imprescindível ouvir a
opinião dos que ajudaram a construir essas empresas sobre como essas
formas do passado devem ser refuncionalizadas. Nos depoimentos dos ex-
funcionários da Matarazzo está a importância dada pelos trabalhadores para
a volta das atividades naquele local, mesmo que haja divergência sobre os
benefícios que o shopping center, que atualmente ocupa o prédio, possa ter
trazido para a comunidade. As antigas operárias gostam de voltar ao
shopping, olhar as lojas para lembrar qual setor da fábrica funcionava ali,
numa mistura de sentimentos como alegria, saudade e decepção pela
desativação da tecelagem. Esta consulta é importante para que se possa
saber o que a comunidade deseja em relação ao espaço onde vive.
Harvey (2004, p. 204 - 205) aborda os espaços de utopia. Diante de
todos os interesses corporativos e financeiros que promovem sua própria
versão da política de identidade, o autor destaca que “nós, o povo, não
temos o direito de escolher o tipo de cidade que vamos habitar”. Ao longo da
História, as figuras da cidade e de utopia sempre foram relacionadas. “É
119
difícil distinguir aqui as prosaicas práticas dos discursos cotidianos que
afetam a vida urbana dos grandiosos sentidos metafóricos que se mesclam
tão facilmente com emoções e crenças acerca da boa vida urbana” explica
Harvey (2004 p. 208). Em sua análise, é também na vida em pequena
escala da cidade que se situam os ideais das organizações sociais utópicas.
Harvey (2004, p. 210) destaca que “ao produzirmos coletivamente
nossas cidades, produzimos coletivamente a nós mesmos”. Citando
Roberto Unger (1987), o autor defende que se a “sociedade é construída e
imaginada”, podemos também crer que ela pode ser “reconstruída e
reimaginada”.
Cada trabalhador desenvolveu uma relação própria com a fábrica
onde passou anos de sua vida. Para respeitar essas diferenças, foram
ouvidos idosos através de pesquisa qualitativa (história oral). Segundo
Guarnica:
(...) história oral é uma expressão simplificada. Melhor seria dizermos: a
História (re)constituída a partir da oralidade, numa clara complementação
(alguns prefeririam aqui, “oposição”) àquele concepção de História pauta
somente em documentos escritos ou, mais radicalmente, em fontes
primárias. Não vejo escrita e oralidade em oposição, mas como
possibilidades complementares para a elaboração histórica (...) Negar os
arquivos escritos como recurso de pesquisa seria um equívoco tão
alarmante quanto negar a importância da oralidade para entender a
temporalidade e, nessa temporalidade, as circunstâncias humanas
(GUARNICA, 2000, p.78)
Esses relatos não o apenas História. Os depoimentos dos
trabalhadores mostram a maneira como os homens se apropriam do
espaço, imprimem nele suas marcas. Os operários não produziram somente
tecidos, cerveja, carros e peças para trens. Ajudaram também a construir as
empresas, desenvolver o município, alterando a paisagem da cidade.
Construíram suas casas ao redor das empresas, e atualmente estão ase
organizando para promover encontros com o objetivo de recordar os
momentos vividos juntos na fábrica.
A pesquisadora foi até as casas desses antigos trabalhadores, deixou
fluir seus relatos, conversas permeadas pela exibição de fotografias,
120
carteiras de trabalho e antigos jornais de fábrica, guardados anos como
relíquias. Foram nessas conversas que surgiram fatos importantes, tais
como o metalúrgico que era poeta, os casais que começaram o romance na
linha de produção, o ferroviário que passou seus 90 anos morando ao lado
ou trabalhando na ferrovia, entre outras histórias de vida. Para preservar a
autenticidade dos relatos, os trechos dos depoimentos que aparecem em
destaque foram transcritos sem a correção para a linguagem formal.
Eles gostam de contar suas histórias. E nós, deveríamos ter a
sabedoria de ouví-los.
3.1- O saudosismo dos ferroviários
3.1.1-Seu Osvaldo, 90 anos ao lado dos trens
É impossível contar a vida de Seu Osvaldo Araújo sem falar sobre a
ferrovia. Aos 90 anos, o ferroviário aposentado mora a poucos metros do
trecho que antes era cortado pelos trilhos e afirma que até hoje não entende
essa presença constante dos trens em sua vida.
Como quase todos os colegas de profissão, Seu Osvaldo conta que
começou a vida de ferroviário aos 18 anos, em 1933, no trabalho braçal.
“Estive no trecho Boa Vista, retocando a linha, trocando dormentes,
trocando a terra que estava embaixo”
Foi o pai, também ferroviário, quem conseguiu trazer o jovem Osvaldo
para Itirapina para trabalhar como apontador em 1937.
“Apontador é o que, por exemplo, os trens de carga que passa, tem que
apontar o número de vagão, o peso que está carregando, somar tudo para
ver a quantidade de tonelada que a locomotiva pode puxar”
Foi também como apontador que Seu Osvaldo foi transferido para
Araquarara, até finalmente voltar para casa em 1944, passando a trabalhar
como marceneiro nas antigas Oficinas da Cia. Paulista de Estradas de Ferro.
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“Não podia chegar aqui e entrar de “chofra” porque tinha nego bom, então
me puseram na carpintaria. Não era um serviço pesado não, porque
marceneiro trabalha com plaina, serrote, formão”.
Passados mais de cinqüenta anos, Seu Osvaldo ainda se lembra dos
detalhes do serviço.
“Trabalhava nos carros, preparava os carros e tirava o caixilho velho,
punha outro novo, fiz isso durante 20 anos, até aposentar em 64”.
Filho e neto de ferroviários, para Seu Osvaldo a escolha da profissão
foi uma seqüência natural da tradição familiar que ele exibe com orgulho.
Nós era respeitado, respeitava todo mundo, se você era empregado da
oficina da Paulista, a oficina da Paulista tinha uma fama espetacular, depois
foi morrendo, morrendo, agora nisso aí, nessa coisa, pra falar a verdade
eu nem sei se funciona, só sei porque cedo, quando vou chamar meu neto,
apita, toca a sirene, no meu tempo apitava, então o relógio de Rio Claro
era o apito da oficina da Paulista
Da garagem de casa, Seu Osvaldo consegue enxergar o trecho da
avenida 32 por onde passavam os trilhos, que agora está asfaltado.
“A gente sentia, eu tive trocando dormente nos trilhos onde o trem passava,
depois em Itirapina, Araraquara, e voltei e o trem passava na cara da gente,
mudei nessa casa em 1944, agora estamos em 2001, 2005, 47 anos que na
casa, então eu quando eu vim pra a satisfação era maior porque o trem
passava aqui”.
O processo de decadência da ferrovia iniciado na década de 1980 até
hoje deixa um rastro de tristeza nas conversas dos antigos ferroviários.
“O mais chato de tudo foi quando cortaram os trilhos aí, porque eu falei,
agora não passa mais mesmo, quando tinha os trilhos tinha aquela
esperança de que qualquer hora vai passar, agora depois que cortou os
trilhos e fez essa rampa aí eu falei agora não tem mais trem mesmo”.
Indagado sobre como se sentiu ao acompanhar a crise no setor
ferroviário, o aposentado explica:
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“a gente não sentiu assim como se fosse a morte de uma pessoa da
família, mas que a gente ficou transtornado ficou né, imagina, eu trabalhei
no trilho, onde o trem passa em cima, agora eles vêm cortar”.
A destruição das formas do passado é analisada por Chauí.
“Destruindo os suportes materiais da memória, a sociedade capitalista
bloqueou os caminhos da lembrança, arrancou seus marcos e apagou seus
rastros “ destaca a autora (1979,p.19). A memória das sociedades antigas se
apoiava na estabilidade espacial e na confiança em que os seres de nossa
convivência o se perderiam, não se afastariam. Constituem-se valores
ligados à práxis coletiva como a vizinhança (versus mobilidade), a família
larga, extensa (versus ilhamento da família restrita), apego a certas coisas, a
certos objetos biográficos (versus objetos de consumo). Eis, aí, alguns
arrimos em que a memória se apoiava. Chauí mostra também a importância
da frase repetida várias vezes no livro de Bosi, “já não existe mais”.
Essa frase dilacera as lembranças como um punhal e, cheios de temor,
ficamos esperando que cada um dos lembradores o realize o projeto de
buscar uma rua, uma casa, uma árvore guardadas na memória, pois
sabemos que não irão encontrá-las nessa cidade (CHAUÍ,1979,p.XIX).
Inconformado com o fato de que não seria mais vizinho dos trens,
dias depois que os trilhos foram removidos da avenida 32 o aposentado
ainda se negava a passar pelo local.
“Se eu tinha que ir pra cá, eu ia pra lá, eu não queria ver, depois que ficou
asfaltado eu falei agora tenho que passar ai, tem que ir na padaria, tem que
ir na venda, agora tenho que passar, mas no começo em senti, eu senti,
quando eu trabalhava na oficina, eu pegava a linha aqui, por dentro, onde
era a avenida 24, passava por cima dos trilhos, ia trabalhar”.
Para Carlos (2001, p.32), “o processo de constituição da sociedade
urbana produz transformações radicais nas relações espaço-tempo que
podem ser entendidas, em toda a sua extensão, no lugar, nos atos da vida
cotidiana”. A autora destaca que a sensação de tempo se acelera, enquanto
as formas como as pessoas se identificam com o lugar onde moram o
alteradas pelas mudanças nas possibilidades de uso do lugar e nos modos
de vida desse lugar. A autora defende a contradição entre o tempo da vida e
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o tempo das transformações na morfologia urbana. Na avaliação de Carlos
(2001,p.32), essa contradição produz o “estranhamento”, num lugar onde as
marcas da vida de relações e dos referenciais “se esfumaçam, ou se perdem
para sempre”. A recusa de Seu Osvaldo em aceitar o fim dos trilhos na sua
vizinhança é provocada por essa sensação de “estranhamento” definida por
Carlos, que permeia todos os depoimentos de funcionários das antigas
fábricas pesquisadas que atualmente estão na condição de “brownfields”. Ao
rever o prédio onde trabalhou agora em estado de abandono, o operário
não reconhece mais seu local de trabalho e de convivência com outros
trabalhadores. A forma está lá, mas perdeu a sua função.
Aos 90 anos, Seu Osvaldo ainda se pergunta por que sua vida seu foi
ligada à ferrovia. O ferroviário nasceu colado aos trilhos, numa casa
demolida que era localizada na área central, na Avenida 5 com a Rua 1.
“Quando em entrei, que eu fazia a via permanente, meu avô morava na
porteira da 22, aonde agora é a seção de solda, não tem mais agora
também, então tinha uma cabina que fazia sinal para os trens de manobra,
meu avô morava ali dentro da Paulista, numa casinha, o trem passava de
noite, eu dormia na sala, então a minha existência quase tudo dentro da
ferrovia, então a gente tem um pensamento de passado ligado a ela”
O barulho dos trens que embalava as noites do trabalhador continuou
depois que ele se tornara um chefe de família, vivendo na casa onde está
até hoje.
“Então eu morava com meus avô, e a minha cama era na porta da rua, o
trem passava (imita o barulho do trem), passava daqui a ali, pertinho
mesmo, quando eu mudei aqui, o trem passava, balançava a minha casa,
era janela guilhotina, sabe o que é , aquela que você levanta e abaixa, de
modo que sempre na beira da linha, não sei porque, quando eu fui para
Itirapina eu morava na colônia um pouco mais distante, em Araraquara
eu morava numa vila mas escutava o barulho do trem, sempre com o
barulho do trem no ouvido”.
Seu Osvaldo era ferroviário até nas horas de lazer, quando
freqüentava e até trabalhou no antigo “cineminha da Paulista”, que deixou de
funcionar na década de 1960.
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“Nem se baseia como é agora, era como irmão, era uma família só, nóis
tinha o cineminha da Paulista, o que passava no cineminha passava no
Tabajara (cinema da época), nós tinha o programador de filmes, os filmes
que eu mais lembro são os filmes argentinos, filme de bolero, e faroeste, eu
fui até guarda do cineminha, lanterna que chama, então o cineminha
terminou, eu aposentei em 64, aqui na oficina eu fiz 20 anos, logo que
aposentei parece que o cineminha aposentou junto, parou porque os
associados foram aposentando e não ia mais no cineminha, então ele
acabou fechando, agora parece que é uma escola”
Seu Osvaldo não deixa que as lembranças do passado atrapalhem
sua análise da situação atual da ferrovia.
“Agora a gente tem que conformar, se as autoridades fizeram, quem sou eu
para querer voltar, nada, depois que desmanchou uma coisa dessas não
volta nunca mais, talvez”.
Para o aposentado, a crise na ferrovia era inevitável
“Não é mal administrado, é a evolução, primeiro você ia na estação,
esperava o trem chegar, agora você pega o ônibus, pega a condução e está
em casa, que estas estaçõezinhas pequenas entre as grandes sumiram
tudo, daqui a Itirapina tinha Batovi, Camacuã, Graúna, Itapé, agora não tem
nada”.
Com a autoridade de quem acompanha a ferrovia de perto
décadas, Seu Osvaldo defende a preservação dos antigos prédios das
oficinas somente se houver o compromisso da manutenção.
“Eu acho que valeria a pena se eles mantivessem tudo direitinho como
estava antes, mas do jeito que está é melhor acabar, você passa ali na
avenida 22 telhado caindo, tudo em ruína, então isso não
produzindo nada pra ninguém, tudo parado, se desse uma limpada ali,
então emendava as ruas, dava mais movimento, mais ética, do que jeito
que está só tende a piorar”
Para o aposentado, a estação ferroviária é hoje uma referência sobre
a história da Cia. Paulista em Rio Claro.
“A estação eu acho que legal, pela estima de ferroviário, então
pelo prazer de ser ferroviário eu acho que a estação teria que ficar”.
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O sentido dos “lugares” é criado pelas relações. Nesse sentido, o
lugar pode ser compreendido em suas referências, “que não são
específicas de uma função ou de uma forma, mas produzidos por um
conjunto de sentidos, impressos pelo uso(CARLOS, 2001,p.36). Para Seu
Osvaldo, a ferrovia pode agora ser demolida, porque já não é mais a ferrovia
que tanto o orgulhou no passado, a estação seria preservada apenas como
um suporte para a memória, que não existe mais a esperança de retorno
dos trens, função primeira que não é mais encontrada nas formas residuais
do passado. A base da reprodução da vida acontece pela relação habitante-
lugar, que produz a identidade do indivíduo. O processo de construção da
cidade tem como características conflitantes a busca pela modernidade no
espaço e as condições de possibilidade, referentes à realização da vida,
“revelando uma luta intensa em torno dos modos de apropriação do espaço
e do tempo na metrópole- um processo que ocorre de modo profundamente
desigual” (CARLOS; 2001,p.36). Seu Osvaldo teve sua vida entrelaçada à
trajetória da ferrovia, estabelecendo uma relação com o lugar.O homem
que nasceu, viveu, trabalhou e até se divertiu ao lado dos trens hoje evita
ver a situação real da ferrovia.
“Eles fecharam de um jeito que a gente não olha muito né, ainda bem
porque enxergar o que ta dentro é difícil, mas logo de começo a gente
ficava chateado, porque foi coincidência que sempre perto de mim”.
3.1.2-A vontade de contar o passado para os netos
Vivendo numa casa localizada a apenas 100 metros dos trilhos da
ferrovia, o aposentado Raul não gosta nem de passar pela cancela.
“Quando vejo passar um carro desse como a gente via passar embaixo,
pra chorar, pra chorar porque a gente não era o dono, mas era um
dos responsáveis pelo bom andamento, cada um fazia a parte dele, não
tinha desleixo”.
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Nesse contexto, os lugares ganham dimensão pela vida de relações,
materializada em uma forma passível de apreensão pelos sentidos. Para
Carlos (2001,p.51), a forma da cidade, que se concretiza como produto do
trabalho da sociedade, está associada ao uso do espaço em uma relação
que se torna concreta nos atos da vida cotidiana. O corpo e os sentidos
concedem aos atos mais banais um conteúdo, “criando uma referência,
produzindo uma identidade que é o suporte da memória”. Para Seu Raul,
observar a passagem do trem ganha outro significado, o transporte é forma
que passou a ter mais de uma função para o aposentado. No lugar estão o
passado e o presente, além de possibilidades futuras, todos impressos nas
formas, que revelam um conteúdo dado pela prática social. Para Carlos
(2001,p.51), dessa maneira a forma é imediatamente conteúdo. Como a
ferrovia corta toda a parte central da cidade e Seu Raul mora na primeira rua
paralela aos trilhos, a visão da antiga Cia. Paulista acaba sendo inevitável
para o ferroviário.
“Na semana passada eu passei na avenida 22 ali, só a parede, aquilo ali
é a mesma coisa que cair uma pedra na sua cabeça duma altura mais ou
menos, se cair um “coisinho” de nada você não sente, mas é uma coisa que
você sente, você passa ali, vontade de chorar, emociona, ver aquilo ali
tudo foi arrumadinho, hoje não tem nada, não tinha nada de errado,hoje
não tem nada certo”
Seu Raul passou trinta anos de sua vida dentro das oficinas da Cia.
Paulista e lembra com saudade dos tempos em que a ferrovia estava em
plena atividade.
“Eu morei na avenida 12, bem na esquina, pegado com o muro ali, você
não agüentava, a noite inteira a casa tremendo por causa do trem de
carga, trem de passageiro, hoje se você deitar no meio da linha você dorme
gostoso que ninguém passa por cima de você”.
Aos 75 anos, Seu Raul ainda se lembra de todas as datas que
marcaram sua carreira dentro das Oficinas da Cia. Paulista. Ao ingressar na
escola mantida pela ferrovia, chamada de “Senai da Paulista” em 1946, Seu
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Raul nem imaginava que passaria sua vida nas oficinas, onde começou a
trabalhar em 1950. Contratado no cargo de aprendiz de terceira, fez carreira
dentro da ferrovia e ao se aposentar em 1976 era auxiliar de turma.Nas
lembranças, Seu Raul ainda carrega a imagem de uma ferrovia que era
modelo de organização. Entre as vantagens do transporte ferroviário, o
aposentado cita:
“o conforto que você tinha e a segurança. Porque na época não tinha muito
desastre, tanto movimento de estrada como tem hoje. Enquanto dava um
desastre aqui na ferrovia, dava duzentos lá”.
A preocupação com a limpeza também era permanente.
Aquele tempo nós tinha elementos que cuidava da linha, tinha a turma de
limpeza, qualquer lugar que fosse dentro do pátio, vonão via um mato,
não via nada, agora tudo coberto, tem lugar que tem vagão que o mato
tomou conta”
Durante a carreira como ferroviário, Seu Raul conta que fez amizades
em várias cidades do Estado de São Paulo.
“A gente que andou por esse “Brasilsão” afora na linha da Fepasa, hoje
você praticamaente está no deserto, você viu filme do deserto, é mato,
bicho., você não tem mais o que olhar. Antes a gente passava nas colônias,
olhava o pessoal das colônias, todo mundo cuidando do seu posto, limpa,
bem arrumadinha, hoje não tem mais nada, um “mataréu” , casa caindo,
então pra quem não viu, não teve oportunidade, não sabe o que é”
Com a ferrovia nestas condições, fica difícil para o aposentado
explicar aos netos a importância do empreendimento onde trabalhou a vida
toda.
“Tenho um neto com 17 anos e tenho outro do Joaquim, o “lemãozinho”, às
vezes a gente fica conversando, a gente começa tentar conversar, sabe o
que eles respondem, isso existia vô? Eles não tem noção, esses dias,
até pouco tempo, a gente foi em Campinas, tem uma estação de Campinas
até Jaguariúna, nós fomos outro dia para andar de trem, Maria Fumaça,
inclusive reclamaram, disseram vô, isso é do tempo que o senhor começou
a trabalhar, o vô, isso não prestava, hoje eles querem saber de
computador, se você sentar conversando com um neto, ele não fica 10
minutos, isso é do tempo do senhor, tempo quadrado”
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Chauí destaca os obstáculos que a sociedade impõe ao papel natural
que o idoso desempenharia na comunidade
(...) a função social do velho é lembrar e aconselhar- menimi, moneo- unir o
começo e o fim, ligando o que foi e o por vir. Mas a sociedade capitalista
impede a lembrança, usa o braço servil do velho e recusa seus conselhos.
Sociedade que, diria Espinosa, não merece o nome de Cidade, mas o de
servidão, solidão e barbárie”, a sociedade capitalista desarma o velho
mobilizando mecanismos pelos quais oprime a velhice, destrói os apoios da
memória e substitui a lembrança pela história oficial celebrativa
(CHAUÍ,1979,: p.XVIII)
Apesar de todos os problemas que a ferrovia apresenta atualmente,
Seu Raul defende a preservação dos prédios e dos trilhos.
“Derrubar eu acho que uma coisa histórica assim é outra punhalada, que
mesma coisa que seu pai deixou uma determinada coisa pra você, hoje ela
não tem mais serventia, você teria coragem de derrubar? É justamente que
nem a ferrovia”
Nesse mundo de recordações, a estação ferroviária, atualmente sob a
administração do município e utilizada para a realização de eventos, tem
lugar especial.
“Aquilo ali é mesma coisa que uma fotografia de uma pessoa da sua
família, a pessoa desaparece, vai embora, e você fica de vez em quando
dando uma olhada”.
Conhecedor do ramo, o aposentado não vê possibilidade de retomada
do transporte ferroviário a curto prazo.
“Eles tão querendo tirar daqui (da área central) pra fazer lá (no Jardim
Guanabara), mas daí é aquela coisa, se você não tem dinheiro para
almoçar, não tem dinheiro para dar festa, pra fazer um barracão desses aí,
se bem que vai ser menor, se você for tirar daqui, levar não é problema
porque hoje em dia com essas carregadeiras, mas gastar um dinheirão e
levar para lá, aqui é do governo, o governo vai vender pra quem isso daí,
pra prefeitura, a prefeitura vai comprar, não vai ter dinheiro, vai ser que nem
o campo da aviação”.
Aos 76 anos, o aposentado avalia que a retomada do transporte
implicaria na implantação de uma estrutura totalmente nova.
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“Tem que começar tudo de novo, porque, quem que garante , deve fazer
mais ou menos 15 anos que isso abandonado, jogaram terra por cima da
linha, dormente (...) retornar, eu acho que não vai ser no meu tempo, não
tenho esperança nenhuma”
3.1.3- Crédito na praça e com a família da namorada
A tradição de família ferroviária também levou Seu David a optar pela
profissão.
“Era tido como um dos melhores empregos da cidade, quando a família
dela (da esposa), quando comecei a namorar soube que eu trabalhava na
ferrovia, aí concordou”.
Seu David lembra que não era fácil ser ferroviário, mas a
recompensa era o respeito da comunidade.
“Ali eram enérgicos, aquele tempo não tinha essas leis trabalhistas que
protegem os empregados, praticamente, saia fora ali, mandava,” depois do
almoço você acerta a conta”, trabalhava-se mesmo, mas era bem visto, era
respeitado”
Filho de ferroviário, Seu David cursou o “Senai” da ferrovia e em
janeiro de 1949 começou a trabalhar nas Oficinas da Cia. Paulista de
Estradas de Ferro, onde permaneceu até a aposentadoria, em 1976.
“Entrava como aprendiz de ajustador, depois passava a oficial, artíficie, que
eles chamavam, depois no final passei a encarregado de seção, quando
aposentei. A profissão ajustador é conserto de máquinas, produção de
peças, é mais a metalurgia, sempre trabalhei com metais. Tinha um pouco
de trabalho pesado, mas eu , graças a Deus, era meio magro, tinha força,
dava conta da coisa”.
Anos depois, Seu David começava a rotina de viagens pela estrada
de ferro na função de metrologista.
“Depois fiz curso de metrologista, daí então fiscalizei aferição e conserto de
balanças, então viajava a linha toda com um ajudante (...) conheci a
Paulista de ponta a ponta, de um lado é Panorama, do outro é a margem do
rio Paraná, até Colômbia e para cá é Jundiaí (...) fiz muitas amizades nas
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estações, porque quando era mais longe você ficava dois, três dias num
lugar (...) eu gostava, apesar do serviço pesado, eu trabalhava, onde ia
levava uma dúzia de pesos de cinqüenta quilos, punha em cima da balança,
tirava, nunca senti canseira por isso, até no serviço pesado que outros
recusavam mas eu gostava, não tanto pelo peso, mas porque tava viajando
um pouco, isso uns seis anos, cada três, quatro meses num ano, depois
firmei de volta aqui, onde fiquei como encarregado de 70 a 76”.
A vida de viagens não tinha somente vantagens. Hoje Seu David
analisa que acabou se afastando um pouco da família.
“A esposa com duas meninas para criar e eu saía na segunda-feira e
voltava no sábado”.
Aos 75 anos Seu David ainda se recorda do auge da Cia. Paulista de
Estradas de Ferro.
“Meu pai criou seis filhos, educou seis filhos, casou seis filhos, sempre
trabalhando na Paulista”.
A saudade de Seu David não é apenas da organização da ferrovia.
“Se você chegasse dois minutos depois o trem tinha ido embora, tinha
perdido, o trem era um luxo, isso saudade, mas o é uma saudade
pessoal talvez, porque a coisa mudou, as coisas mudam, tem gente que
não concorda com isso, não concorda com aquilo, tem que concordar que o
mundo vai mudando. Para pegar o trem, a pessoa ia de terno para a
estação, era um luxo, mas era um costume na época né, meu pai para ir
pro centro da cidade tinha que ter gravata e chapéu na cabeça, pra
trabalhar nas oficinas, não quando eu cheguei, um pouquinho antes, todo
mundo ia de paletó, dentro da oficina, quando eu comecei a trabalhar, os
chefes iam de terno e gravata, o dia todo”
Para o aposentado, o tempo modificou até o comportamento dos
trabalhadores.
“O serviço tinha licença prêmio, cada cinco anos sem perder dia de serviço,
tinha três meses de licença prêmio, você podia tirar de folga ou em dinheiro,
nesse tempo eu peguei três, todas pegava em dinheiro, quando eu
aposentei tinha uma, veio mais três meses em dinheiro(...) naquela época,
se a pessoa tava doente,não dava pra ir trabalhar, não saia no portão, tinha
vergonha”
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Na década de 1970, quando caminhava para a aposentadoria, Seu
David começou a perceber os sinais de decadência da ferrovia.
“Eu lembro dos últimos tempos, quando eu estava lá, uma vez por semana
havia uma reunião com engenheiros, com a chefia, .um engenheiro disse
“tenho andado pelas oficinas e tenho visto um grupinho batendo papo aqui,
outro ali, eu penso, vou puní-los, mas não resolve, eu só tenho um
sentimento, se eles estão ali conversando, e não estão produzindo, eles
estão levando as oficinas à falência, e eles vão sofrer na carne as
conseqüências”.
Apesar de declarar ser muito grato à ferrovia, Seu David não acredita
que o transporte ferroviário possa ser desenvolvido.
“Acho que não volta não, naquele tempo não tinha as rodovias que você
pode correr 140, 160 por hora (...) hoje em dia, com a evolução, não ia ter,
dizem que o governo Lula tem projeto de revitalizar a ferrovia de um metro
e sessenta, tem muito por aí que é de um metro a bitola. Talvez para
transporte de carga, porque é uma aberração essas carretas por aí,
passando nos pontilhões, estragando tudo e ainda reclamando do
pedágio.Essa volta não geraria grandes lucros, talvez o trem de cargas”
Quando o assunto é o patrimônio da ferrovia em Rio Claro, a opinião
do aposentado é pela demolição.
“Eu sou meio contrário, aquele Condephaat, como é que é, eu sou meio
contrário, eu acho que a coisa deve modernizar, não na Paulista, até na
cidade, são esses prédios que não têm mais condições, ali onde pode ser
levantando coisa bonita, coisa moderna, talvez a estação, a fachada, possa
ficar, ainda pelo menos uma recordação, por enquanto”
Para Seu David, o estado de abandono da ferrovia compromete a
qualidade de vida na cidade.
“Há um desleixo que podia não existir né, isso sim, podia ter uma melhora
até pra uma nova vista pra cidade, certos muros podiam ser derrubados, a
avenida 6, abrir , promessa do Nevoeiro (prefeito Nevoeiro Junior), até
outras avenidas (...) parece até que não , mas a hora que desocupar vai dar
outra vista, aquele pontilhão da avenida 7 né, aquilo é do tempo que se
tinha transporte com carroças”.
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Como aposentado, Seu David acredita que o trabalho na ferrovia foi
recompensador porque garantiu o sustento da família e a tranquilidade
depois que o ferroviário se aposenta.
“O ferroviário que soube levar a vida, soube dirigir, tem a sua casinha,
casinha claro né, como nós temos a nossa, agora você chegou e parou no
asfalto, quando nós chegamos aqui era terra, era a última casa da rua que
tinha energia elétrica, a água não tinha força”.
Seu David também sabe que a estabilidade vivida hoje por ele e pela
esposa é fruto do esforço do casal.
“A maneira de viver naquela época outra, as despesas eram mínimas em
casa (...) a Fepasa pra nós foi uma benção e até hoje estamos , mais ou
menos tranqüilos, graças à Fepasa”
De todos os anos passados dentro das oficinas e nas viagens pela
estrada de ferro, restaram as amizades.
“A esposa pergunta, como é que você encontra na rua e o sujeito vem “oh,
seu David”, teve gente que no fim de ano ainda trazia presente pra mim,
passado alguns anos, que negócio é esse, falei é amizade, que a gente
curtiu lá e curte até hoje”
.
3.1.4- As fotos de “Zé Banana”
Os bons tempos da ferrovia também estão gravados na memória do
aposentado José, o Zé Banana.
“Sinto saudade do que fazia lá dentro, os trens R era todos com poltrona
marcada, um guarda para cada carro, restaurante, dormitório, na oficina tinha
mais de 2 mil homens dentro da oficina, a casa do chefe da estação era onde é
o Correio hoje, o chefe da estação era o terceiro homem da cidade”.
Filho e neto de ferroviários, Seu José foi admitido como trabalhador
da oficina em junho de 1953, depois de cursar a Escola Industrial.
“Entrei como trabalhador, depois foi passando, fui ajudante, artífice (...) o
trabalhador limpava as peças, ajudava a desmontar as máquinas (...) era o
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melhor emprego que tinha na época. Eu gostava de trabalhar lá, na época que
funcionava bem”.
A conversa com Seu José segue ilustrada por uma série de fotos
feitas no período em que esteve trabalhando com a equipe da oficina de Rio
Claro em Panorama, montando uma nova balsa.
“Em 64, 65, estive em Panorama montando a nova balsa, fiquei quase 4 anos
em Panorama, voltando de quinze em quinze, vinte em vinte dias (...) fui porque
ganhava mais, ganhava livre, fazia 14 horas por dia, não era puxado, dava pra
fazer sossegado, mas trabalhava bastante horas por dia, ganhava mais por isso
aí”.
As viagens não aconteceram somente no período em que esteve em
Panorama.
“Às vezes eu ia na parte de socorro, ia com vagão de socorro, tomava conta do
vagão, na hora do almoço eu ajudava os homens na cozinha, aprendia a
cozinhar, fiz amizade, conhecia muita gente nas cidades, eu trabalhei em
quase todas as cidades”.
O aposentado também lembra da ligação que a ferrovia tinha com a
comunidade em Rio Claro.
“A oficina era o bombeiro da cidade ainda, pegava fogo, qualquer coisa, avisava
na oficina, era o bombeiro. Socorria a Santa Casa, tinha empregado direto lá,
pintava, arrumava”.
A ferrovia que Seu Jo observa hoje é bem diferente daquela em
que passou 24 anos de sua vida.
“O governo não tocou ela pra frente, o governo fez a rodovia acompanhando a
ferrovia, daì matou a ferrovia, você tomava um trem em Bauru demorava oito
horas para chegar em São Paulo, tomava um ônibus um Bauru e levava seis
horas, era bem mais rápido, os viajante mudou. Foi se perdendo tudo as coisas,
acabou em nada, do jeito que está é nada”.
Diante da situação atual da ferrovia, Seu José defende a abertura das
ruas no trecho que é ocupado pelos barracões das oficinas.
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“Já era pra ter mudado pra lá, na estação nova lá, no Guanabara. Deve abrir a
cidade, porque o que faz aqueles barracão tudo parado, tem quantas pessoas
lá agora, perto do que foi não tem nada (...) a estação deveria preservar, porque
fica uma relíquia (..) deve abrir, porque daí libera o trânsito, não passa mais
nada, só para ver coisa parada, ficando a estação já relembra”.
Aposentado desde 1977, Seu José acredita que houve prejuízo para
os passageiros quando os trens deixaram de circular;
“A gente tomava o trem aí ia até o fim do estado de São Paulo, agora vai pra cá,
vai pra lá, muda, antes ia direto pro seu destino. É triste ver tudo parado. Ali
na mão do governo federal, o governo federal não ligando para nada. A sorte
é que aquilo ali é tudo fechado, senão iam roubar”
3.1.5- Seu Darci, o músico-ferroviário
Dez anos antes de Seu José se aposentar, em 1967, Darci Frolini
iniciava sua vida de ferroviário aos 20 anos.
“Eu entrei por intermédio de cunha, eu comecei a tocar instrumento na
corporação musical União dos Artistas Ferroviários e ali fui encaminhado pra
setor de empreiteira Sebastião Wiechmann, era dentro da oficina, tinha
uma noção do serviço de torneiro mecânico, eu sempre avisava o chefe de
seção que eu trabalhava que eu sabia trabalhar como torneiro, daí fiz um curso
na escola Senai, já tinha uma certa prática, então foi rápido”
Na ferrovia, segundo Seu Darci:
“o jovem entrava como ajudante geral, fazia de tudo um pouco, até limpar tijolo,
se hoje mandar essa turma fazer isso não trabalha mais, antes tinha que
fazer e fazia. Em 69 eu fui admitido pela companhia, comecei trabalhar em
torno mecânico, ali, na seção em que a gente trabalhava, trabalhava em várias
máquinas”.
Para Seu Darci, a participação na União dos Artistas Ferroviários
como trompetista foi fundamental para sua entrada na oficina e também o
auxiliou no desempenho no trabalho.
“O estudo da música, o verdadeiro estudo, ele disciplina pra pessoa,
porque mexe com matemática, você cria disciplina, mas música, não essa
“roqueira” de hoje. Por intermédio da corporação musical eles percebiam
135
que a gente era freqüente, então encaixou, a gente procurava não faltar do
serviço, por isso que a gente permaneceu”.
A admiração pela profissão começou muito antes de Seu Darci
começar a trabalhar na oficina.
“Eu lembro de antes de entrar na oficina, meu pai era maquinista, eu ajudei
meu pai descarregar até vagão de lenha naquela época, antes de entrar na
ferrovia eu fui engraxate, fui carregador de mala na cabeça, porque minha
mãe lavava roupa para ganhar, você menino hoje com mala de roupa na
cabeça?”
Ainda menino, Seu Darci já ficava encantado com os trens da Paulista
”meu pai, quando ele trabalhava, no tempo nas manobras da avenida 8,
não era cancela, era porteira, eu levava comida pra ele lá. Trem de
passageiro, muita cidade se desenvolveu por causa deles, tinha as colônias
na beira da estrada de ferro das pessoas que conservavam a estrada, tem
hoje? Tá tudo derrubado. Aquela época a gente acertava o relógio com o
apito dos trens, e hoje?”.
Para o aposentado, a época em que começou a trabalhar não era
melhor só para os ferroviários, mas para todos os trabalhadores.
“Era melhor aquele tempo porque era menos moderno mas tinha mais
vantagem de emprego pra pessoa, naquela época você trabalhava aqui, se
você não quisesse mais trabalhar aqui você dava o nome ali e já
conseguia, hoje é época de tudo automático, tudo botãozinho aqui e ali,
mas cadê o emprego pro pessoal, até nos livros, chegaria um tempo que
aumentaria o conforto mas também a tristeza, e qual a tristeza? O
desemprego”.
Trabalhando nas oficinas, Seu Darci começou a perceber problemas
administrativos.
“Tinha funcionário por duas leis, Estatuto e CLT, estatutário tinha certo
privilégio, porque era mais difícil mandar estatutário embora (...) tinha
empregado lá que trabalhava 15 dias e tirava quinze dias de atestado”.
Os casos de alcoolismo também estão entre as lembranças do
ferroviário.
136
“Tinha alcoólatra que entrava, antes de começar a trabalhar depois do
almoço, não tava trabalhando, então já encaminhava pro atestado. Por
isso que a Fepasa era chamada a mãe, pelos abusos que tinha”.
Assim como para a maioria dos ferroviários, a aposentadoria chegou
cedo para Seu Darci. Como começavam a trabalhar muito jovens, muitas
vezes ainda crianças, era comum a aposentadoria antes dos 50 anos.
“O setor que eu trabalhava tinha insalubridade,era um setor perigoso, tinha
ruídos, prensas, aquela que fazia o encaixe da roda dos trens, era um
serviço de precisão, são pesadas, “pauleira”, a cada cinco anos diminuía
um, por isso que eu aposentei logo”.
O aposentado acredita que a pressa hoje atrapalha a felicidade das
pessoas e também contribuiu para a decadência das ferrovias.
“Eu achei que o tempo passou rápido, na época dos trens, era gostoso,
pegava mais amizade que dentro de um ônibus, era muito bom, umas
vezes o trem atrasava, deixa que atrase, era muito divertido, o trem parava
no meio do caminho, você via a natureza, a televisão do pobre era a janela
do trem, parava perto do pomar de laranja, corria no pomar, pegava (...) eu
acho que é o modernismo, hoje o que que acontece, hoje as empresas de
ônibus começaram a mandar”
Na sociedade moderna, um novo sentido de tempo, cada vez mais
marcado pela técnica. Com isso, uma defasagem entre o tempo humano
e o tempo da sociedade produtivista. Carlos cita Baudelaire, “a forma de
uma cidade muda mais rápido que o coração de um mortal” para demonstrar
a defasagem entre os tempos do indivíduo e da sociedade. Esse processo
de transformação da cidade acarreta mudanças nos modos de perceber,
sentir e viver o lugar.
Seu Darci lembra que enquanto no Brasil a ferrovia enfrenta a crise,
na Europa os trens continuam sendo eficientes no transporte dos
passageiros, acompanhando a modernização dos veículos.
“Por que Europa, será que eles são inteligentes e a gente é burro?
Pra mim isso é burrice”
137
O aposentado não tem esperança de que a época do auge da ferrovia
seja retomada.
“Aquele paredão da avenida 22 com a rua 6-A estão esperando cair, vai
deixar cair pra tomar providência, esperaram as telhas começar a cair pra
depois desmanchar, esse barracões eles faziam manutenção de carro de
passageiro, depois que parou ficou tudo parado, devia abrir a avenida 22
(...) derrubar pra que, aquela escola que existe ali na rua 1
A com a
avenida 20, muito bom que conservaram, estão de parabéns, ali era o
cinema, aquela época o cinema era aquele banco comprido, era uma
correria pra pegar lugar, era divertido”.
Da época em que trabalhou nas oficinas, Seu Darci lembra com
saudade dos amigos conquistados.
“onde você vai, qualquer lugar, encontra na rua, na UFA (União dos
Ferroviários Aposentados), sou sócio lá, mas fico pouco, mas porque é
aquele negócio, você assentou, o corpo esfria, dou uma olhada nas
noticias, senão fica um tempão falando, e o ponteiro do relógio
virando.Tenho saudade dessa turma de Bauru, perde o contato (...) foi uma
época muito boa, que se tivesse hoje seria boa também, mas o que valeria
falar, eu falaria até pra eles lá, muitos ferroviários que gostavam disso faria
novamente, você pegava amizade mais fácil com a pessoa, você senta num
ônibus hoje, é frio, antes era muito gostoso”.
3.2- O orgulho de trabalhar na cervejaria
3.2.1-O filme da cervejaria
A atividade industrial foi considerada a “tábua de salvação” para
muitos trabalhadores que se achavam “predestinados” a enfrentar as
dificuldades do trabalho no campo. Dentro desse grupo está o aposentado
Aparecido, nascido no sítio do aem Jacutinga, um distrito de Rio Claro,
em 1934. Cansado do excesso de trabalho e da baixa remuneração que
recebia como empregado de fazenda, Seu Aparecido resolveu procurar
emprego na Cervejaria Rio Claro em 1965. Na época tinha 31 anos e
conseguiu uma vaga como servente geral.
“Servente geral trabalhava no engarrafamento, naquele tempo não tinha
lata e não tinha cerveja, Caracu, tinha engradado de madeira, então
138
quando tinha pouco serviço ia consertar engradado e descarregar caminhão
de cevada que vinha de tudo quando é lado, Chile , Urugai, Alemanha,
Argentina”
O trabalho na cervejaria não era fácil.
“Era pesado, eu entrei em 17 pessoas, ficou dez só, não agüentou o serviço
de carregar saco na cabeça, quem não era acostumado trabalhar com
sacaria, levava nas costas, ia almoçar não levantava mais, quebrado, e a
cevada, quem trabalhava com a cevada o dia inteiro, ela tinha um veneno
para não carunchar, e dava febre em tudo mundo, tinha que tomar leite e
tomar comprimido para cortar a febre de tarde. Não foi fácil, tinha que ter
brio, senão não agüentava”.
Mas para Seu Aparecido suportar as dificuldades era uma questão de
honra e falta de opção.
“Não tinha emprego, eu vim da roça, não tinha essas coisas de exigisse
coisa de escritura, então eu tinha que pegar o basquete mesmo (...) eu
morei na fazenda Santa Gertrudes, depois eu vim para cidade, eu tenho
até terceiro grau, não, terceiro ano, hoje eu vejo a molecada aí, o terceiro
ano, o que nós sabia, sabia as quatro operação, sabia mesmo, não era
querer enganar que nem agora não. Cortava cana de dia e de noite eu
vinha estudar, entrava às sete e saia às dez. No tempo de safra de cana,
você cortava cana, metade da família cortava cana e a outra metade ficava
no café. Saía cedo, 5 horas, com o almoço feito, ia comer 9 horas, aquilo
tava pilado, gelado”.
Diante das dificuldades enfrentadas no campo, a conquista da vaga
na cervejaria foi motivo de comemoração.
“Eu quando entrei na Skol, pra mim era jogar sapo na água. Aquilo era a
Companhia Cervejaria Caracu”.
A rotina na cervejaria ainda está na memória do aposentado.
“Trabalhei dezessete anos de noite, eu acostumei porque começou a
trabalhar uma semana de dia e uma semana de noite, ai começou a
atrapalhar tudo, a hora de comer, hora de dormir, começou a atrapalhar
tudo mundo, ai eu dei uma sugestão se puder trabalhar de noite, eu
trabalho de noite, daí conversaram os outros encarregados e deixaram
eu só de noite”
139
Para Seu Aparecido, um episódio marcante dentro da carreira foi sua
participação na linha de produção da cerveja Skol em lata. “A primeira do
Brasil” repete a frase que ficou famosa em todo o país.
“Já que começou a lata, fazia doze horas, então uma turma entrava ás seis
da manhã e saia às seis da tarde, na outra semana entrava seis da tarde e
saia às seis da manhã (...) era serviço corrido, naquele tempo que começou
a lata, a lata era correria, você fazer embalagem, vinha seis latas em cada
pacotinho, aquilo é uma correria, numa mesa grande , e tudo pedido,
quando começou foi um Deus nos acuda (...) valeu a pena, você fazia hora
extra, era 12 horas, você fazia hora extra e ganhava hora extra, e tinha
acréscimo de 10 por cento, quem trabalhava de noite”.
O trabalho era difícil, mas Seu Aparecido nunca pensou em desistir.
“O que eu ganhava num mês aí, se eu ficasse na roça demorava quatro,
cinco mês para ganhar, tinha mais fartura, mas não tinha dinheiro, aqui
eu tinha mais dinheiro e comprava o que eu queria”.
No meio da carreira, veio o convite para ser encarregado.
“Eu falei para eles, eu não tenho leitura para ser encarregado, conheço
linha de produção, eu conheço, mas é a tal escritura que eu não sei, ele
falou não, nós damos cobertura, porque falaram não adianta o cara que tem
faculdade mas chega aqui e não sabe”.
Ao descrever o trabalho, o aposentado fala com paixão sobre a
fabricação da cerveja.
“Só de olhar a cerveja eu sabia se tinha problema ou não, trabalhei quase
doze anos dentro como operador de enchedora, o serviço de tudo eu
sabia”.
A aposentadoria chegou em 1992, seis meses antes do fechamento
da fábrica da Skol.
“Acho que tive sorte, porque foi muito triste saber que a fábrica fechou, imagina
se eu estivesse lá”.
140
Para Seu Aparecido, o prédio da cervejaria, na área central da cidade,
precisa ser conservado. Questionado sobre qual seria a melhor atividade
para ocupar o local, o aposentado prefere não opinar.
“pra indústria no meio da cidade não dá, e não pode fazer barulho, vai
perturbar os vizinhos e vai criar causo, a indústria tem que ser fora da
cidade, na minha opinião é isso, porque quando tava ali, aqueles estouro
de garrafa, por exemplo, estourava uma garrafa, chegava a estourar dez , é
uma bomba, era dia e noite, não parava”.
Seu Aparecido é hoje um homem preocupado com a destruição da
memória dos operários que trabalharam na cervejaria.
“Eu gostava, por exemplo, quando começou a lata, filmaram a gente
dentro, ninguém falou mais nada desse filme, passou para nós ver lá, tava
tudo uniformizado, tudo de avental, esse documentário, isso eu gostava de
saber, podia fazer cópia, passar pra outros ver, pra escola, por exemplo,
falar olha isso aqui é uma indústria, Skol, olha quando começou a lata, foi a
primeira do Brasil, e passasse pra outros ver”.
3.2.2- Zé da Lata diz adeus às máquinas
Garoto bom de bola, Seu José Valdemar contou com o preparo físico
conquistado com o futebol para garantir uma vaga na Cervejaria Rio Claro
em 1961, quando tinha 18 anos.
“O que eu fazia era só serviço braçal, só que eu sou de família bem
humilde, meu pai é analfabeto, então eu sempre trabalhei em serviço
pesado, o meu serviço é pesado, e quando eu cheguei na Caracu em 61, lá
era meio radical, disciplina militar, o pessoal que tomava conta, no começo
eu culpava eles, mas depois entendi que não era chefe, supervisor, era
capataz, e a intenção era de que quando admitia um empregado era fazer
ele pular o muro, não aguentar até a hora do almoço”
Nascido em 1943 em Cordeirópolis, Seu José Valdemar veio para Rio
Claro em 1949, começou a trabalhar quando ainda era criança e acredita
que a história de dificuldades ajudou a suportar o trabalho pesado na
cervejaria.
“Hoje para você entrar num firma é tudo teórico, só no papel e na canetinha,
aquela época nâo existia, era na força, então quando chegou eu lembro
141
do primeiro dia, mas quando eu cheguei eu vinha de servente de
pedreiro, eu vinha de abrir valeta, carregar caminhão, era empurrar
carrinho, fazer concreto na pá, dezoito anos, eu jogava bola, eu não bebia,
não fumava, cheguei de manhã, me puseram no serviço pesado, pensei,
não vão dar serviço pesado?”
A vida na cervejaria não era de trabalho. Com o tempo, o lazer do
trabalhador também acaba vinculado à empresa. Seu José Valdemar conta
que era assíduo freqüentador do clube dos funcionários, que ficava no
prédio onde atualmente está a sede do Senac, anexo à fábrica.
“Então eu ia no cinema, no teatro, não ia em baile porque eu nunca
dancei (...) e depois no fundo do clube tinha serviço de bar e dois campo de
bocha (...) eu comecei a me entrosar com os colegas, a gente jogava bola
de domingo, pescava, eu sempre fui um cara que me dei bem com todo
mundo”.
A falta de escolaridade é um traço comum a todos os trabalhadores
entrevistados. Contudo, para Seu José Valdemar, isso não atrapalhou seu
desenvolvimento da carreira naquela época.
“Eu tinha quatro anos de escolaridade, que eu fiz escola de 52 a 55,
aquilo era em 61, fazia seis anos, mas fazer conta não errava uma.Eu
era bom em conta e também pra me relacionar com as pessoas, eu tava
nesse serviço pesado fazia dois meses, chegou um chefe lá e perguntou se
eu gostaria de aprender trabalhar em máquina”
Enquanto ia mudando de cargo dentro da cervejaria, o aposentado
conta que começou a ter consciência sobre a necessidade de lutar pelos
direitos dos trabalhadores, incluindo melhor tratamento por parte da
empresa.
“Pensei comigo isso aqui tem que mudar, não pode e graças a Deus foi ali
que começou a mudar, eu comecei a falar, a gente tem que saber quando
errado, a pessoa tem que saber falar com a gente e a gente tem que se
defender”
. Para Seu José, o fato de ser ainda solteiro na época o ajudou a ter
uma postura mais firme diante dos patrões.
142
“Aí que começou a segurança, o treinamento, ver o lado humano, um
espetáculo, o serviço social , integração, recrutamento, veio refeitório,
veio Unimed”
Para o aposentado, todos os benefícios eram merecidos.
”Teve dia que eu entrei 5 horas da madruga e s11 horas da noite, fiz sete
meses sem uma folga (...) você não esperava a empresa pedir, você via
que ela precisava”.
A sua dedicação permitiu também o crescimento dentro da empresa.
“Eu entrei varrendo o pátio e sai como gerente (...) eu nunca me arrependi,
embora eu sofri muito, prejudiquei minha família, porque essa garra minha
eu passei para minhas filhas, eu não sei qual das duas é mais trabalhadora,
e a mais responsável, e também com essa garra minha eu incentivei muita
gente lá dentro e mudou muita coisa lá dentro”.
Jodelet (2002, p.38) afirma que o desenvolvimento moderno das
cidades coincide com o desaparecimento dos efeitos de memória, o que
pode ser entendido de maneira positiva ou negativa. Como portadora da
História, a cidade carrega três tipos de memória. Na primeira forma,
chamada por Jodelet de eventual, alguns lugares são emblemáticos pelos
acontecimentos de que foram palco. O segundo tipo de memória urbana é a
memória coletiva dos grupos, que foram objeto de estudo de Maurice
Halbwachs. Nesse caso, os ocupantes de uma zona urbana, que são
definidos por suas atividades e por seus traços sociais, culturais e étnicos,
marcam socialmente o espaço. Os vestígios desses povos são deixados nas
edificações e nos lugares urbanos. O terceiro tipo de memória é a
monumental, quando as construções guardam em si os vestígios do
passado e estabelecem uma ligação com ele. Esse tipo de memória, que foi
objeto de estudo de Nietzsche, corresponde a uma visão de antiquário de
conservação estática do passado, e segundo alguns autores, não permitiria
carregar um sentido verdadeiramente urbano.
No caso da cervejaria, os depoimentos dos ex-funcionários acenam
para a presença do primeiro e do segundo tipo de memória citados por
Jodelet. Além de ser palco de vários acontecimentos importantes na vida
143
desses trabalhadores, a unidade também guarda as marcas do trabalho e da
dedicação destes cidadãos.
De sua vivência na cervejaria, Seu José Valdemar destaca apenas
um ressentimento.
“Infelizmente tem sempre oportunista, e às vezes ele não tem culpa, culpa é
quem ajeitou para ele, trouxeram um rapaz formado na Getúlio Vargas,
se formou na Getúlio Vargas mas nunca trabalhou na vida, trouxeram , Zé,
esse aqui vai ser seu chefe aqui na lata, mas eu tinha montado tudo, eu
tinha abrido o poço, tinha filtrado a água, e aí iam tomar”.
Nos 31 anos em que esteve na cervejaria, Seu José Valdemar
também percebeu mudanças na mão-de-obra. No início, ele lembra:
“tinha gente que vestia, veste a camisa, porque a Brahma no fim pregava,
você não tem que ser empregado, você tem que ser sócio da Brahma, eles
vinham pregar isso em 80 e pouco, que vocês estão pregando agora nos
éramos em 65, que a empresa desanimou nós de ser sócio, nós já era
sócio 20 anos, pregando esses sistema, nós tinha nego aqui que
deixava família, com brilho, com raça”
Na avaliação do aposentado, o tempo modificou as características do
quadro de funcionários.
“Uma outra coisa que tinha ali, era mais ou menos familiar, né, era a avó
que trabalhava ali, o neto, depois deu essa invasão dos caras de São
Paulo, começaram a construir viaduto, estrada, começou a vir pessoal de
fora, começou a mudar, já não achava, tinha, mas começou a diminuir
aquele amor por ali, começou a dar muito aventureiro, muito forasteiro,
muito entra e sai, antes não, mesmo quando eu entrei lá, era normal uma
pessoa com dez anos, às vezes não tinha dez anos porque naquele tempo
com nove anos a firma dispensava, porque com dez anos de empresa, se
dispensasse, tinha que pagar 20 anos, antes do fundo de garantia”.
Um aspecto destacado por Seu JoValdemar durante os anos em
que esteve na cervejaria foi a instalação da linha de produção da cerveja
Skol em lata.
“Quando veio a cerveja em lata em 72, veio um homem, esse português
então, doutor Cabral, engenheiro químico, e ele veio aí, e ele viu em mim,
ele gostou de mim, porque a Skol foi lançada em 69, era garrafinha de
144
meia, não tinha inteira, acho que um ano, mais ou menos, veio a linha da
Bélgica pra encher a garrafa inteira e em 72 veio a lata, a primeira cerveja
brasileira em lata”
Mesmo sem conhecer o processo de enlatar a cerveja, o aposentado
acabou na coordenação da nova linha.
“Eu não sei que plano eles tinham, que de última hora foram chamar eu pra
tomar conta da lata . Eu fui lá, não sabia nem de onde saia a lata, daí é que
eu falo pra você, na terra de cego, quem tem um olho é rei, e eu fui com um
olho pra lá, que o dr. Cabral falou assim pra mim, pega quem você
quiser da fábrica pra levar pra lá, que eu esqueci da minha mulher,
esqueci dos meus filhos”
A cerveja em lata deu trabalho, mas até hoje é motivo de orgulho para
Seu José.
“Tinha gente filmando, autoridades, filme, nós tinha uma roupa especial, que
nem um time de futebol para entrar em campo. Você via aquela fila. Parecia a
seleção brasileira entrando em campo”.
Até que a fabricação da cerveja em lata entrasse nos eixos, Seu José
passou por dias difíceis.
“Eu levava duas marmita, saía de casa às quatro e meia da madrugada, eu
levava uma marmita para comer dez, onze horas, e a outra pra comer seis,
sete hora da noite, aparecia em casa onze horas da noite, essa Silvia
minha, eu via ela dormindo, eu via ela dormindo, inclusive eu fui ser
padrinho de casamento da minha irmã, eu sai de uniforme, dr. Cabral ficou
lá pra eu vim, fui no cartório, assinei e voltei”.
Passado algum tempo, os problemas na linha de produção pioneira
estavam resolvidos.
“Você não via um jovem com uma cerveja, tinha a Toca, chamava Toca ali
onde era o Bradesco, começaram com as garrafinhas, depois com as
latinhas, a Skol formou (...) eu ficava orgulhoso de ver na caixa de
papelão “a primeira cerveja brasileira em lata”, eu me ponhava assim “o
primeiro cara a trabalhar na linha de lata do Brasil”, a gente se sentia assim,
e quando você via o cara tomando Skol, principalmente em lata, tinha a
certeza de que isso passou por mim”.
A cervejaria era como uma casa para Seu José.
145
“Sabe o que que é, pra você fazer uma idéia, eu entrei dentro dessa
casa, e eu aposentei dentro dessa casa, eu entrei numa seção eu aposentei
dentro dela, então eu dominava, sentia o que tinha na parede ali, que
quando eu entrei lá naquela seção, vamos supor, ela era do tamanho dessa
casa, ela ficou dez vezes maior que essa casa, mas não deixou de ser
essa casa, eu falo pro pessoal que na mesma porta que eu entrei no
primeiro dia eu saí no último, com lágrimas nos olhos, mas eu saí”.
O apego de Seu José ao prédio da antiga cervejaria é explicado por
Jodelet.
(...) a relação do sujeito individual ou coletivo com seu espaço de vida passa
por construções de sentido e de significado que se baseiam não somente na
experiência direta e na prática funcional ou subversiva que se desdobra (...)
mas também no valor simbólico conferido ao ambiente construído pela
cultura, pelas relações sociais, pelo jogo do poder (JODELET,2002,p.34)
Nos meses que antecederam o fechamento da fábrica, em maio de
1992, Seu José percebia mudanças e desconfiava que a unidade seria
desativada. Um mês antes do fechamento da brica, após recusar
propostas de acordo para deixar a unidade, Seu José recebeu a notícia de
que seria demitido.
“A hora que ele falou aquilo, eu fui na minha gaveta, peguei uns negócios
meu, nem sei como eu fui, olhei para máquinas, dei uma paradinha na
porta, não tem como se conter, porque eu entrei ali com 18 anos, solteiro,
fiz uma vida lá, tava com 50, os colegas você sabe que encontra por aí,
mas tem aquele hábito de todo dia você estar (...) foi difícil porque você
até a pessoa né, que é o chefe também chorando, mas daí a um mês foi
tudo mundo, talvez foi melhor pra mim não estar lá, porque a turma foi
entrar, tinha tudo que nem policial, segurança, aqui ninguém entra mais, o
cara saiu, foi jantar, não deixaram mais ele entrar, quer dizer, se o sujeito
tinha deixado documento lá dentro, teve uma certa dificuldade para pegar”
Longe da brica no dia do fechamento, Seu José Valdemar acabou
vivendo o momento mais triste dias depois da desativação da unidade,
quando passava pela avenida onde o prédio está localizado.
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“Quando em 69, 71, veio as máquina da Bélgica, eu tava ali na rua 7 com a
avenida 2, veio o guarda rodoviário na frente (imita barulhos) todo com
aquelas máquinas, aquelas carretas, a linha Skol, vi aquela linha zero da
Bélgica, era festa, rojões, tudo mais, alguém falou assim da Bélgica, é
linha pra sete anos de uso, daqui sete anos de uso tem que por outras (....)
Deus quis me mostrar alguma coisa, não lembro aonde eu ia indo, acho que
em algum laboratório, tô descendo a avenida 2, no mesmo lugar que em 69
tava entrando as máquinas, acho que, sabe esses filmes do tempo, a hora
que eu tava na esquina esperando o carro passar, saindo de dentro a linha
tudo sucata, agora aí, depois que fechou, saindo sucata, meu Deus do céu,
eu sei que dou um beliscão pra ver se não era sonho”.
Perplexo com a coincidência de estar presente na chegada da linha
em 69 e na sua saída em 92, o aposentado comenta:
“o coração parece que, deu um negócio, porque eu voltei em 69, aqueles
rojões, aquela sineta, o guarda rodoviário”.
Nos mais de 30 anos em que trabalhou na cervejaria, Seu José
lembra que ajudou até na construção de prédios e montagem das linhas de
produção. A quina que era moderna virou sucata, o prédio localizado na
área central, que era o orgulho dos trabalhadores, foi considerado obsoleto.
A modernidade surge modificando o presente e projetando o futuro, como
defende Bauman ao citar Benjamin e seu “Anjo da História”, que se
movimenta com as costas voltadas para o futuro e com os olhos postos no
passado.
(...) sua face se volta para o passado. Onde percebemos uma seqüência de
eventos, ele uma única catástrofe que empilha destroços sobre destroços
e os lança a seus pés. O anjo gostaria de ficar, acordar os mortos e
reconstituir o que foi destruído. Mas do Paraíso sopra a tempestade; ela
tomou suas asas com tal violência que o anjo não as pode fechar. Essa
tempestade o empurra irresistivelmente para o futuro para o qual suas costas
estão voltadas, enquanto a pilha de escombros à sua frente sobe até o céu
(BENJAMIN,1969,p.257 apud BAUMAN, 2003,p.22-23)
Aos 63 anos, Seu José Valdemar acredita que a maior herança que
pode deixar para seus filhos é a dignidade com que enfrentou o trabalho.
147
“Porque eu quero que meu neto um dia, que minhas filhas sai pra cidade,
porque é assim, ô Pelegrineti, é assim em tudo lugar, então a gente sente
orgulho disso, você adquiriu dentro de uma empresa, porque o pessoal
conhece eu por lá, pessoal não conhece político, eu era chamado da
Lata, aí mudou o meu nome”.
3.2.3- A preocupação com o futuro dos operários
O fechamento da cervejaria surpreendeu seus funcionários, mas
alguns carregavam a desconfiança de que algo não ia bem na fábrica.
Seu Waldomiro lembra que foi demitido juntamente com outros antigos
funcionários da casa cerca de um mês antes da desativação da unidade.
“Então nós saimos um pouquinho antes, acho que um, sei não, menos de um
mês antes, depois aí foi um dia já tinha fechado”
O fato de já ter sido demitido não diminuiu o impacto ao receber a
notícia de que a fábrica tinha sido fechada.
“fiquei muito sentido mesmo porque, não só por mim, mas todo aqueles colega
que eu tive lá dentro, tava tudo perto da aposentadoria, moço ficou
desempregado, era uma época dificil de emprego (...) foi doído, eu senti
bastante mesmo”
O aposentado conta que até hoje se emociona ao passar pelo prédio
da antiga fábrica e ver a chaminé conservada no local.
“eu sinto assim né, lá, tanta saudade, porque eu trabalhava na caldeira,
então a gente vê a chaminé, vivia olhando aquele chaminé, não podia sair
fumaça preta de jeito nenhum sabe, tinha que regular aquelas caldeira
direitinho, e no começo quando eu entrei era tudo manual, não tinha negócio
de automático que nem tinha ultimamente, tanto que tudo lá era a mão (...)”
O trabalho na caldeira exigia muita atenção.
“água na caldeira é uma coisa que não pode faltar de jeito nenhum, então a
gente ficava olhando aquele nível de água o dia inteiro, e a gente almoçava,
jantava, andando com a marmita na mão, olhando o nível de água”
Após o fechamento da fábrica, Waldomiro conta que só voltou a entrar
no prédio uma vez.
148
“ eu entrei uma vez mas não olhei muito, fiquei meio de longe, as caldeiras não
estavam mais lá, só tava o lugar delas, nem queria entrar muito lá, ver tudo
parado fica mais sentido”
O aposentado defende que o prédio deveria ter sido aproveitado para
a instalação de outra fábrica.
“eu acho que aquele prédio lá, devia ter vendido para outra cervejaria, uma
fábrica de refrigerante, porque tinha tudo (...) não podia começar a
desmanchar dentro, sabe, mexer no maquinário,deixar daquele jeito até outra
fábrica chegar ali (...) a cervejaria, antes de fechar, parece que eles alegava
muito negócio de água, que tava no centro, caminhão atrapalhando o trânsito,
que não podia mais ampliar a fábrica, entrar com máquina grande não podia
entrar, acabou juntando tanta coisa que acabou fechando”
O aposentado acredita que a antiga unidade da cervejaria poderia ser
mais útil à comunidade se abrigasse uma nova fábrica.
“a gente, em primeiro lugar, eu imaginava isso aí, porque dava mais emprego,
o estudo é bom, mas emprego, escola tem bastante por né, agora prédio
para montar uma fábrica, que já era uma fábrica, o mais interessante seria
uma outra fábrica ali”
A preservação do prédio é analisada pelo aposentado não como
uma forma de conservação do passado industrial do município. Para
Waldomiro, a estrutura da unidade ainda está em boas condições.
“a estrutura daquele prédio lá, em volta, não o maior, mas em volta, eu vi fazer
tudo aquele negócio lá, fazia com bate-estaca, enterrava aqueles postes de
concreto no fundo, era bem alicerçado mesmo (...) super bem feito, quanta
laje nós fizemos pra cima, ia a gente mesmo fazer, funcionários mesmo,
parava uma seção e ia tudo fazendo concreto, não tinha concreto pronto,
usinado, era tudo na mão, era aquela montoeira de gente, subindo concreto na
corda”
Do período em que trabalhou na cervejaria, Waldomiro lembra que
também herdou muitos amigos.
amigos, nossa, tenho, muito dificilmente encontro uma pessoa, às vezes
nem conheço a pessoa, há um tempo eu tava perto de casa, que eu moro perto
do Paulistão (campo de futebol), tava passeando com meu cachorro, passou
um rapaz de bicicleta, eu pensei, acho que é fulano de tal, ele voltou: você
não é o Cebola?”
149
Apesar de estar aposentado, Waldomiro afirma que ainda se
preocupa com o fechamento de fábricas em Rio Claro.
a gente tantas fábricas de Rio Claro que foi desativada, o Saad era uma
fábrica boa, tecelagem Matarazzo, fábrica muito boa, apesar que tem o
shopping já hoje, mas ficou uma época parada (....) a gente tanta gente
desempregada, o que corta o coração da gente é esse negócio, tem hora que a
gente fica escutando, vê uma fabrica dentro de Rio Claro dizendo que vai deixar
a cidade e vai não sei para onde, fica preocupado, será que vai acontecer de
novo, ao em vez de se preocuparem trazer mais fábrica, deixa ir as que
estão”
3.2.4-O orgulho do filho adotivo de Rio Claro
Seu João tem guardado na memória o número de dias em que
trabalhou na Cervejaria Rio Claro (Skol). “Faltou quatro dias para completar
20 anos” calcula o operário nascido em Tanabi. A carreira na cervejaria
começou em julho de 1972, 14 dias após chegar a Rio Claro com a esposa e
a filha mais velha, ainda bebê, para tentar uma vida melhor que a que
estavam levando trabalhando na lavoura em Novo Horizonte. Nas
lembranças ainda estão os detalhes do trabalho na cervejaria.
“Eu sempre trabalhei na fabricação como ajudante geral, era uma máquina
denominada filtração de mostro, era o malte moído, cozido, juntamente com
a quirela do milho, era um produto pouco mais grosso que a farinha do
milho, em outras cervejarias usava quirela do arroz, aqui usava a do milho.
Esse produto ia pra esse filtro”.
Para quem vinha do campo, o trabalho na linha de produção o
oferecia grandes obstáculos.
“Não, pesado até que ele não era, na época eu vim da lavoura das
fazendas, então tinha aqueles trabalho rústico, então tinha traquejo do
pesado, pessoas que eram da cidade e iam trabalhar na máquina não
sentia muito confortável e também tinha caloria, a máquina trabalhava com
temperatura interna de 76 graus, e a cada três horas essa máquina era
aberta, cada três horas passava uma fabricação, cada fabricação que
passava ela era aberta, então veja bem, esses 76 graus exalava, e depois a
gente fazia a limpeza da máquina com água fria, tinha choque térmico”
150
Tranqüilo nos relatos assim como no dia-a-dia na fábrica, Seu João foi
mudando de cargo e melhorando de vida:
“aí eu fui galgando, dentro do setor de fabricação eu comecei do rodapé e
eu fui até o máximo que dava para ir, na época eu era cozinheiro de cerveja
e além disso liderava grupo de pessoas. Pra mim foi excelente, porque
olha, eu não sou filho de Rio Claro, eu e esposa viemo da região de São
José do Rio Preto, cidade Tanabi, onde eu nasci, agora toda mudança a
gente faz quando não bem, a gente quando estabilizado não quer
mudar, nos não estávamos bem financeiramente, início de casamento,
uma filha de um ano, o dia que completou um ano viemo pra Rio Claro”.
O aposentado afirma que sempre procurou se empenhar no trabalho.
Mesmo trabalhando no período noturno e tendo estabilidade no emprego por
ser sindicalista, Seu João conta que procurava participar de todas as
palestras para os funcionários.
“Tinha muita palestra pros funcionários no clube, todas as palestras eu
participava, todo convite que fazia para mim participar eu tava lá, mesmo
sendo sindicalista (...) me deram um brinde, prêmio, como pessoa de boa
presença na seção”
Além de se preocupar em desempenhar bem suas funções, as
histórias contadas por Seu João mostram que o operário também queria
colaborar para a boa imagem da cervejaria na comunidade.
“a seção onde eu trabalhava era muito visitada, por ser incluída na área de
alimentação, era tudo roupa branca, você imagina uma pessoa trabalhando
com roupa branca que não sendo no escritório, tinha roupa branca graças à
esposa, roupa sempre limpinha”.
Orgulhosos do trabalho que desempenhavam, Seu João conta que os
trabalhadores não acreditavam que a fábrica pudesse um dia ser fechada,
apesar de algumas mudanças ocorridas na década de 1990.
“Surpresa total não foi porque o processo de fabricação de cerveja na
época nossa, onde eu trabalhava que era o inicio, até a cerveja entrar na
garrafa, ela levava em média de treze a quinze dias, e ela no dia 22 de
maio, quando engarrafou o último litro de cerveja é que fechou, ou seja, 15
dias antes nós não tava mais fabricando a cerveja, que era pra reformar
isso, reformar aquilo (...) em abril, algumas pessoas, vários trabalhadores
151
foram dispensados, então foi um alerta, começou de novo fabricar,
mas daí antes do dia 22, uns quinze dias antes parou de fabricar”
Os detalhes do último dia de funcionamento da cervejaria ainda estão
nas lembranças de Seu João.
“No dia que a Skol fechou eu fazia o horário da noite, das 22 às 5 da
manhã, s de casa para ir entrar em serviço, cheguei estava fechada
com batalhão de agentes de segurança, não sei de onde apareceu, quer
dizer, já tava tudo esquematizado, eu não sabia (...) é o mesmo que
chegar em casa e a esposa ter ido embora, mas ou menos isso. Vinte anos
é vinte anos, não é vinte meses nem vinte dias”.
“ Na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer,
reconstruir, repensar, com imagens e idéias de hoje, as experiências do
passado. A memória não é sonho, é trabalho” destaca Bosi. Passados mais
de dez anos desde o fechamento da cervejaria, Seu João pode agora ter a
dimensão do acontecimento dentro de sua vida, quando afirma que vinte
anos não são vinte dias”.
A lembrança é uma imagem construída pelos materiais que estão, agora, à
nossa disposição, no conjunto de representações que povoam nossa
consciência atual. Por mais nítida que nos pareça a lembrança de um fato
antigo, ela não é a mesma imagem que experimentamos na infância,
porque nõs não somos os mesmos de então e porque nossa percepção
alterou-se e, com ela, nossas idéias, nossos juízos de realidade e de valor.
O simples fato de lembrar o passado, “no presente”, exclui a identidade
entre as imagens de um e de outro, e propõe a sua diferença em termos de
ponto de vista (BOSI, 1979, p17)
A mudança para Rio Claro é vista como uma decisão acertada por
Seu João.
“Eu gostava muito do que eu fazia, tinha orgulho de ser funcionário da
cervejaria Skol Caracu. Aqui nós fomos adquirindo aos poucos alguma
coisa que nós temos hoje, a casinha que estamos morando hoje, nossa,
graças a Deus. Os que ficaram que eu conheço, vou passear uma vez
por ano, não progrediu, estacionaram, envelheceram igual eu envelheci
que acho eu com uma desvantagem, é sol a sol, eu graças a Deus acho
que fiz boa mudança (...) ao longo dos 20 anos nos fomos economizando
também, como viemos da dificuldade, então tudo que nós ganhamos, não
foi assim, nós temos vontade de comer isso mas não vamos comer pra
guardar dinheiro, não foi assim, mas assim, se ganhar dez, acostumava
gastar só oito, pra ter uma reservinha”
152
A perda do emprego também acarretou na perda de uma série de
benefícios que o aposentado, como sindicalista, explica que foram obtidos
com muita luta por parte dos trabalhadores.
A cervejaria dava pra nós, dava quer dizer, através do sindicalismo, que
foi lutando, conquistando, o uniforme, tinha que usar bota de borracha, era
tudo gratuito, depois conseguimos restaurante, pagava-se um valor irrisório,
o que nós pagava era para pagar a água e o sabão para lavar os talheres,
para não dizer que era de graça, décimo terceiro todas as firmas têm,
nós tinha um a mais, tinha o décimo quarto salário, que também
conquistamos através do sindicato, e plano de saúde extensivo à família
toda”.
Depois que a fábrica fechou, a visão do prédio passou a trazer tristeza
para Seu João.
“uma tristeza, porque a gente queira ou não queria, não precisava
ninguém falar, tinha certeza que tava juntando rato, barata, pombos
fazendo ninho, e no coração de rio claro né? Era uma tristeza, eu sempre
passei e ainda passo nas ruas e avenidas em torno, será que vai acabar em
nada.”
Para o aposentado, a instalação de uma faculdade em parte dos
prédios da antiga cervejaria trouxe um certo alívio para o medo de que a
unidade acabasse completamente abandonada.
“Mediante o acontecimento que houve, que não tinha como voltar mais, foi
uma boa solução, pelo menos dá oportunidade de alguém estudar”.
Quando a fábrica fechou, Seu João ainda precisava de mais quatro
anos de trabalho para chegar à aposentadoria. Mas como era sindicalista,
contava com estabilidade no emprego por mais três anos. Com o dinheiro
que recebeu no acordo feito com a empresa, conseguiu se manter até
chegar à aposentadoria e hoje trabalha como voluntário para entidades de
Rio Claro. Sua preocupação agora é com a preservação do prédio e da
história da cervejaria.
“Pra ficar registrado na memória de Rio Claro e dos rio-clarenses tinha que
ser conservado, tinha que ser tombado para conservar para sempre, mas
153
conservar, e não deixar o prédio. Por não ser filho de Rio Claro, mas
tendo ficado 20 anos dentro, eu tenho orgulho de ter trabalhado lá dentro,
e os rio-clarenses também, nascido aqui, eu acredito que deve ter orgulho
de falar na minha cidade existiu uma cervejaria. Inclusive a minha netinha,
que tá fazendo um ano amanhã, olha, meu avô trabalhou na cervejaria aqui,
acho que vai ser um orgulho para ela”
Na apresentação do livro de Bosi, Chauí lembra que a autora escreve
que “a sociedade industrial é maléfica à velhice”, pois nela todo sentimento
de continuidade é destroçado, o pai sabe que o filho não continuará sua obra
e que o neto nem mesmo dela terá notícia. “Destruirão amanhã o que
construímos hoje”. Ciente do risco de que sua história seja apagada da
memória da cidade, Seu João defende a preservação do prédio para seus
descendentes um dia possam reconhecer a importância da cervejaria para o
desenvolvimento do município.
3.3- A mão-de-obra feminina na Tecelagem Matarazzo
3.3.1- Dona Arlinda, a pioneira
Dona Arlinda é do tempo em que a Tecelagem Matarazzo nem era
ainda tecelagem. Ela e a irmã, Dona Carolina, trabalharam em diferentes
períodos na fábrica e hoje dividem as recordações morando juntas e
passando o dia juntas numa instituição de Rio Claro que atende idosos. Aos
89 anos, Dona Arlinda ainda se recorda dos detalhes do trabalho na fábrica.
Nascida em 1916, a aposentada começou a trabalhar na Tecelagem
Matarazzo em 1934, logo após a inauguração da fábrica, quando na unidade
ainda nem eram produzidos tecidos, apenas funcionavam no local os setores
de fiação e torção. A conquista do emprego foi comemorada na época pela
família.
“Muito contente, um salão enorme, aqueles maquinário, fomo pegando
amizade, é que na minha memória não pra lembrar dos nomes das
amigas, foi apagando tudo.Lá não era tecelagem, era somente fiação,
torção, os fios vinha pronto, torcia ali (...) era bom, sessenta mil réis por
154
mês,era um dinheirão pra quem nunca ganhou aquilo, ajudava minha mãe,
meu pai era cego, tinha os filho,tudo, meus irmãos, eu sou a terceira filha,
somos cinco, seis filhos, tinha que ajudar (...) era um orgulho a gente
chegar assim, tinha que a gente trabalhou, quantas horas a gente
trabalhou, e aquele envelope com sessenta real, isso me lembro muito bem,
era uma alegria”.
Antes de começar na Matarazzo, Dona Arlinda trabalhava como
empregada doméstica.
“Eu fazia tudo que desse certo na minha vida pra defender o pão de cada
dia, a vida era difícil”
Na fábrica, começou logo a fazer amizades com as outras jovens.
“Cada um tinha sua tropinha né, ficava conhecendo e se, é questão de
simpatia das pessoas, mas se dava com todos, oi, oi , bom dia, bom dia,
mas conversar mesmo, palestra sim não tinha porque não dava tempo, era
corrido, trabalho e nós ia em casa almoçar em casa correndo e voltava
correndo pra entrar às duas horas (...) era puxado, ônibus não tinha, tudo a
pé. Era muito gostoso, de manhã cedo nóis ia correndo, brincando sabe,
querendo bater nas portas, era tudo menina, um dia batemo numa porta, no
outro dia o véio esperando nóis na porta, não bater, era na campainha,
porque campainha era novidade”
Muitas amigas de fábrica já faleceram.
“Eu ia com a Maria Alves, que felizmente ou infeliz ela não existe mais,
faleceu, aquela era amiga, pedaço do meu coração. E era bom demais né,
ia correndo brincando pra rua de manhã cedo, na hora de almoçar vinha
mais correndo que andando, sabe, uma loucura, tava com tuda aquela
vitalidade da vida, contente, alegre, pensando em ser feliz na vida, e graças
a Deus não fui infeliz, fui feliz, criei cinco filhos, perdi três de doença,
faleceu, meu marido, mas tenho dois filhos ainda, sou feliz, tenho dez netos
e nove bisnetos”
A idade hoje impede que Dona Arlinda se lembre dos cargos em que
atuou na fábrica, sabe apenas que trabalhou na torção dos fios. Mas, para
ela, o mais importante permanece na memória e pode ser compartilhado
com a irmã Carolina.
“Minha cidade, onde eu nasci, me criei, voltar pra casa, as lembranças, a
noite nós perde o sono começa a conversar você lembra de fulano da rua
155
tal, lembra de ciclano ali em tal lugar, e vamos renovando tudo, porque o
velho acho que não tem novidade pra contar, mas gravado
verdadeiramente é o passado, porque aqui no presente, às vezes acontece
hoje, depois de amanhã você não sabe, já apagou os neurônios da gente
né”
Na apresentação do livro Memória e Sociedade- Lembranças de
Velhos, Chauí questiona:
Por que temos que lutar pelos velhos? Porque são a fonte de onde jorra a
essência da cultura, ponto onde o passado se conserva e o presente se
prepara, pois, como escrevera Benjamin, perde o sentido aquilo que no
presente não é percebido como visado pelo passado (CHAUÍ, 1979,p.XVIII).
Dona Arlinda só pôde ficar na fábrica durante dois anos, porque
quando se casou o marido, que era ferroviário, foi transferido para
Araraquara. Mesmo que o casal tivesse permanecido em Rio Claro, ela
acredita que não teria continuado a trabalhar porque o marido, falecido,
não permitiria. Depois a aposentada foi para São Paulo, e o acompanhou
o auge e a decadência da Matarazzo em Rio Claro. Quando voltou à cidade,
idosa, afirma que ficou triste ao saber que a fábrica tinha sido desativada
e estava abandonada.
“Acho que deveria permanecer ali aquela coisa maravilhosa que Rio Claro
conseguiu, era a única fábrica, acho que naquela época não tinha fábrica
de nada, tinha as tipografia”.
Para a aposentada, a instalação do Shopping Center Rio Claro na
antiga fábrica foi uma boa solução para evitar o abandono.
“Há quem acha né, precisa, de qualquer maneira, tem que ter evolução, não
podia ficar abandonado, tanto tempo ficou né? No shopping eu fui duas
vezes, mas nós lembramos, eu e a Carolina, nós lembra, aqui era tal coisa,
ali era tal coisa, ainda temos na memória”
A importância dada à lembrança varia de acordo com os valores
culturais de cada sociedade. Bosi (1979, p.24) distingue que “haveria,
portanto, para o velho uma espécie singular de obrigação social, que o
pesa sobre homens de outras idades: a obrigação de lembrar, e lembrar
156
bem”. A autora destaca que nem toda sociedade espera, ou exige, dos
velhos que se desencarreguem dessa função. Para BOSI, os graus de
expectativa ou de exigência não são os mesmos em toda parte. “O que se
poderia,, no entanto, verificar, na sociedade em que vivemos, é a hipótese
mais geral de que o homem ativo (independentemente de sua idade) se
ocupa menos em lembrar, exerce menos frequentemente a atividade da
memória”. Nos depoimentos, os ferroviários mais velhos, juntamente com
Dona Arlinda e sua irmã, Dona Carolina, estão entre os que mais se
recordam dos detalhes de como era o trabalho nas oficinas e na fábrica na
hora de fazer os relatos. Durante as conversas são também freqüentes as
queixas de que atualmente os mais jovens já não se interessam pelas
histórias da época em que eram operários.
Em 2004, Dona Arlinda participou do primeiro encontro de ex-
funcionárias da Matarazzo. A veterana não conseguiu encontrar suas
amigas, porque muitas faleceram ou estão doentes, sem possibilidade de
sair de casa, mas mesmo assim acha importante a iniciativa do reencontro e
pretende participar dos próximos.
“Eu acho bonito, apesar de não encontrar nenhuma colega minha mais,
acho , penso eu, que só existe eu daquela época”.
Na conversa Dona Arlinda afirma que às vezes se esquece dos
detalhes da juventude, mas seus relatos mostram que muitas coisas ainda
estão vivas na memória desta pioneira da Tecelagem Matarazzo.
“tá gravadissimo, não se esquece nada, desde criança, tudo que aconteceu
no passado, na nossa memória, a gente aquela rua da Samambaia,
aquele areião, tinha muita areia, os moleque ajuntava areia, e como a
enxurrada levava muito, as calçadas ficava muito alta, tinha degrau pra
subir nas casas, e a gente pegava vara verde de bambu e saltava de vara
de cima da calçada no meio daquele monte de areia, nossa era lindo,
quando chegava de noite eu sonhava que meu vestido era bem rodado, eu
ia pular e saía voando, sonhei isso até os 65 anos de idade, não tinha
apagado da minha mente aquele sonho, tão gostoso que a vida era, era
feliz e não sabia”.
157
Jodelet defende a estreita relação entre memória e espaço. Citando a
obra de Halbwachs, “A Memória Coletiva”, Jodelet (2002,p:32) lembra que
os grupos de seres humanos “desenham sua forma sobre o solo e
reencontram suas lembranças coletivas no quadro espacial assim definido.
Até os objetos com os quais convivemos em nosso cotidiano colaboram para
a sensação de estabilidade. “A memória coletiva se apóia em imagens
espaciais e o existe memória coletiva que não se desenvolva num quadro
espacial” enfatiza Jodelet. A modernidade está caracterizada hoje como um
desafio à criação dos laços sociais.
3.3.2- Dona Carolina, a ex-funcionária que preservou a Matarazzo nos
sonhos
Dona Carolina conseguiu um emprego na brica da Matarazzo em
1936, quando sua irmã Arlinda tinha deixado o trabalho para se casar.
Nascida em 1921, começou na linha de produção aos 15 anos como
espuladeira.
“Era um tubinho pequenininho, trabalhava nas máquinas, trabalhava
detravessado, não pode mostrar, se pudesse mostrar hoje em dia as
máquina, depois eu passei pra, trabalhei em todos os serviços, bobina,
hastes”.
Nessa época, a tecelagem ainda não tinha teares.
“Quando eu saí tava montando as máquinas, eu sai em 15 de dezembro de
43, tava começando a montar as máquinas pra tecido. Eu gostava sim,
muito bom, era um serviço limpo, a gente podia ir arrumadinha, era quase
que um passeio, era um serviço leve, tinha a esperteza, tinha que a pessoa
ser esperta, porque principalmente na espula, a pessoa tem que ser mais
esperta, então eles escolhiam porque era, os tubinho era muito
pequenininho, não podia bobear, olhava aqui, enchia e ia mudando
de espula vazia”.
Para Dona Carolina, o emprego na Matarazzo também foi visto como
uma conquista.
158
“Foi muito bom porque o único lugar que tinha um salário melhor era a
Matarazzo, a gente trabalhar de empregada era diferente, não tinha horário
para entrar, horário pra sair, ali não, eu entrava, eu entrava seis horas da
manhâ, saia às dez, entrava às duas e saia às seis, e outra semana entrava
às dez, saia às duas, entrava as seis e saia às dez da noite, pra poder ter
um tempo bom pro almoço”
Para muitas meninas de famílias humildes, a Matarazzo significava a
chance de um futuro melhor.
”Eu, o maior prazer, quando eu peguei o serviço na Matarazzo eu falei
graças a Deus, agora não vou ficar com a barriga molhada de lavar roupa,
porque eu com quinze anos eu lavava, eu passava, limpava a casa,
somente cozinhar eu não cozinhava, até serviço de quintal ela dava pra eu
fazer”;
A correria na fábrica não assustava Dona Carolina.
“A gente é pobre, nasceu no serviço, está acostumada com o serviço
pesado, a gente ia buscar lenha, às vezes a gente ia cortar bambu pra fazer
cerca, e eu gostava de limpar os bambus. na Matarazzo era levinho, era
corrido, corrido era, era por produção”.
Destino comum a muitas mulheres de sua época, Dona Carolina
também teve que deixar o emprego sete anos depois para casar.
“Eu fiquei triste de deixar minhas amigas, fiz um caderno, cada uma
escreveu um versinho, deixou uma lembrança pra mim (...) a gente
fazia amizade bastante, só que não tinha tempo, era na hora da entrada,
que entrava um pouquinho mais cedo, dava tempo de conversar, e na hora
que a gente saia a tarde, ia encontrando as amigas, ia conversando”.
Se o marido tivesse permitido, Dona Carolina afirma que continuaria
na Matarazzo.
“Eu continuava, procurava não ter filhos pra poder continuar trabalhando,
gostava de ter meu dinheiro, sempre tive meu dinheiro, porque mesmo em
casa eu bordava, eu costurava (...) o bordado é como coisa que a gente
tivesse imaginando outras coisas, tempo de sonhar enquanto está
bordando”
Mãe de cinco filhos, Dona Carolina hoje é viúva, mas conta ainda
com16 netos e 17 bisnetos.Quando soube que a fábrica tinha sido fechada,
Dona Carolina lembra que ficou muito triste.
159
“Eu fiquei sim porque muitos operário ficou sem serviço né, ficou porque
tinha bastante, bastante mesmo”
Na década de 1990, a ex-funcionária acompanhava o abandono do
prédio.
“aí, ia ver, ficava triste, ver onde a gente trabalhou e hoje tudo
abandonado né, a gente ficava triste, e a noite que a gente dormia e
sonhava que tava trabalhando, muitos e muitos anos eu tava na Matarazzo,
mesmo depois de casada, tinha filhos tudo, mas eu não esquecia do
Matarazzo”.
Como alternativa para resolver o problema do abandono do prédio,
Dona Carolina acredita que a instalação do Shopping Center Rio Claro foi
uma boa opção.
“Eu achei porque antes disso teve um supermercado lá, a gente ia fazer
compra lá, mas agora com o shopping é muito bom, porque eu tenho meus
bisnetos, de domingo eles vão brincar lá, porque hoje não pode brincar na
rua, como antigamente, então se não tivesse o shopping, um lugar de lazer,
não tinha divertimento pras crianças”.
As visitas ao shopping center são uma volta ao passado para Dona
Carolina.
“Tem bastante parte que era da fábrica, dentro não dá, porque modificou
muito, mas por fora dá pra ver bem a antiga Matarazzo”.
A ex-funcionária considera importante a preservação da história da
fábrica através da fachada do prédio, que foi mantida durante a reforma para
instalação do shopping.
“Eu achei sim, muito importante, a gente tem orgulho porque pelo menos
tinha uma indústria dentro da nossa cidade, já tinha a cervejaria, mas o
Matarazzo era muito importante”.
Junto com a irmã Arlinda, Dona Carolina também esteve no primeiro
encontro das ex-funcionárias realizado em 2004, mas o conseguiu
reencontrar as amigas.
160
“Só quem entrou depois, quando a gente tava saindo, tem algumas, mas
do tempo que eu entrei mesmo, faleceram
Sem saber, as irmãs são hoje também parte do patrimônio da antiga
Tecelagem Matarazzo.
3.3.3- Vida permeada pela tecelagem
Quando o primo avisou a família que tinha conseguido emprego para
Dona Doraci, a notícia foi comemorada com festa no sítio próximo à
Corumbataí. O primo transportava madeira para a Matarazzo, e além de
conseguir emprego para a menina na tecelagem ainda hospedou Dona
Doraci na casa de sua família durante um mês, até que seus pais
concluíssem os preparativos para vir morar em Rio Claro. Aos 14 anos, ela
foi trabalhar no setor de fabricação de fitas de cetim e de gorgurão. Um ano
e meio depois, com a desativação do setor, Dona Doraci conta que passou
para os teares. Para a menina, não era fácil fazer tecidos.
“Não era muito fácil não, viu Carla, era bem puxado, enquanto foi
Matarazzo mesmo a gente trabalhava por produção, então quanto mais
produzia mais ganhava. Depois que passou para Cianê daí não, daí foi
salário fixo, mas no Matarazzo era por produção, e era uma imensidade de
teares, conforme o tecido era 26, 30 teares, era um horror, não podia
bobear”.
Naquela época, Dona Doraci não imaginava que passaria 25 anos de
sua vida trabalhando na fábrica, e depois ainda iria morar na casa localizada
dentro da Matarazzo. Foi também na unidade que conheceu muita gente e
ganhou algumas amigas.
“A gente tinha bastante amizade né, conhecia bastante, mas amizade
mesmo era poucas, uma, duas (...) a Maria do Carmo mora ali perto do
Pantoja (supermercado), então uma época a gente trabalhava no
Matarazzo e a gente fazia horário corrido, não tinha restaurante, porque o
restaurante foi feito pela Cianê, então a gente tinha que levar marmita e eu
almoçava sempre junto com ela sabe, almoçava, jantava, de vez em
quando eu comento com meu marido, da época que a gente almoçava e
jantava junto”
161
Na década de 1980 Dona Doraci foi surpreendida pela venda da
Matarazzo para a Cianê. Na época, faltava pouco para sua aposentadoria.
“Faltava quatro anos pra me aposentar quando fechou a Matarazzo, foi um,
Nossa Senhora, foi uma tristeza, você nem imagina.Foi assim, foi ficando
fraco nosso serviço, foi ficando assim começando a mandar as pessoas
embora, e daí não teve jeito, foi daí pra frente ficando cada vez pior, no
final tava triste, você saia pra vir embora às dez horas da noite, ai , aquele
monte ia tudo para seção pessoal, ia tudo dispensado sabe”
Dona Doraci ficou, mas sentiu a redução nos ganhos.
“Quando acabou a Matarazzo era um salário muito bom.... daí caiu muito
porque na Matarazzo trabalhava por produção, daí foi um salário fixo então
foi nossa, caiu, reduziu bem o salário, na época do Matarazzo era bom sim,
e como era bom e a pessoa era por produção, então a pessoa, queria
quanto mais fazia mais ganhava, então a pessoa, Nossa Senhora né”
Com a mudança na administração da unidade, Dona Doraci também
mudou de cargo.
“Quando passou pra Cianê eu saí dos teares, passei pra fazer o serviço de
passadeira, tudo que acontece de errado é a passadeira que vai consertar
sabe, dava aqueles rombo, arrebentava tudo o fio, então tinha uma pessoa
pra fazer esse serviço, se era defeitinho pequeno então tem que
desmanchar, quando era grande não, o chefe assinava e ia embora”
Em meio ao trabalho nos teares, Dona Doraci acabou conhecendo
também seu marido, Gilberto Silva dos Santos, que em 1978 veio para Rio
Claro, transferido da Matarazzo de São Paulo, para trabalhar como
segurança.
“Então o serviço dele, como era encarregado da segurança, geralmente
tava sempre na portaria, então conversava com tudo que entrava, saia (...)
ele passava assim pelo salão e eu trabalhava perto da porta, e de vez em
quando eu saia dar uma olhadinha pra fora, e ele tava entrando pelo
salão, saindo pela porta, quando ele falou assim, você não quer casar
comigo? Eu falei nossa, o que que é isso, assim tão de repente, eu falei
olha, isso é caso para se pensar, eu vou pensar no seu caso, depois a
gente ficou assim conversando, deu certo, eu marquei, ele foi na minha
casa”.
162
A conversa na linha de produção acabou em namoro, noivado e
casamento. Assim como Gilberto e Doraci, muitos outros casais se
conheceram trabalhando na Matarazzo. Em 1989, quando a Cianê fechou,
Dona Doraci estava aposentada após trabalhar 25 anos na Matarazzo,
mas continuava ligada à tecelagem. Depois de se casar com Gilberto, os
dois foram morar numa casa construída dentro da área da fábrica, onde hoje
se encontra um posto de combustíveis que fica ao lado do Shopping Center
Rio Claro.
“Foi uma tristeza, e nós, por incrível que pareça Carla, a gente morava ali
na casa da fábrica, cê é daqui de Rio Claro mesmo? A primeira casa, onde
é a primeira entrada aqui do shopping, tinha uma casa, tinha a esquina, o
alambrado, depois tinha uma casa, que é quase em frente onde tem
aquelas barraquinhas”.
Ter a fábrica abandonada como vizinha trouxe muita tristeza para
Dona Doraci e até ao fazer o relato, tantos anos depois, ela ainda não
consegue segurar o choro.
“Passado uns tempo, a gente tinha conformado mas no começo Carla,
dava uma tristeza, foi triste viu, porque você vê, trabalhar 25 anos, ver as
pessoas que trabalhavam, teve uma época que tinha nossa, mais de mil
funcionários. Sei que tinha nossa, era gente que trabalhava e depois
acontece isso né, a gente ficou triste, na época que fechou a gente, Nossa
Senhora, mas depois a gente foi se conformando, o que que ia fazer”.
Mesmo com o fim da fábrica, o casal, que já tinha uma filha, continuou
morando na casa localizada na área, porque Gilberto permaneceu como
segurança do patrimônio. Preocupada com o abandono do prédio, Dona
Doraci afirma que ficou feliz quando, em 1994, começaram as negociações
para instalar no local o Shopping Center Rio Claro.
“Bem melhor né, pelo menos deu emprego pra alguns, pra alguns, pra
muitas pessoas, na época que tava fechado não né, não tinha, tudo
parado fechado, e a gente lá, e ele segurança, nós morando e eles
fazendo os rolos deles pra comprar , pra construir o shopping, e a gente
torcendo pra que desse certo, pelo menos vai ter um shopping aqui, eu
senti que tinha que sair de lá, nós tinha o terreno aqui, tivemo que fazer
casa correndo, tivemos que sai de lá”.
163
A família permaneceu na casa ao lado da antiga fábrica até abril de
1995. Em outubro o shopping center foi inaugurado.
“Aposentei, saí do serviço, mas continuei lá, e a gente quando foi pra sair, o
shopping, tavam construindo o shopping e nóis lá, comendo poeira”
Seu Gilberto continuou trabalhando, depois, como segurança do
shopping, e está aposentado três anos, mas continua trabalhando no
local. Toda vez que vai ao shopping center, Dona Doraci não consegue
deixar de pensar na tecelagem com saudade, principalmente quando a
fachada que permanece igual aos tempos da fábrica.
“Acho que ficou bom, porque mais é a frente que você vê, o fundo não tinha
como ficar mais coisas (...) lembro, uma árvore da entrada, a gente entrava
na portaria, a portaria ali é a árvore que ficava na frente, na entrada do
shopping. É incrível que às vezes até agora que eu sonho com o
Matarazzo, sabe daqueles sonho que cê perdendo hora, procura o
uniforme e não acha, procura uma coisa e não acha?”.
Como segurança, Seu Gilberto acompanhou o auge, a decadência, o
abandono e a refuncionalização da antiga tecelagem com a instalação do
shopping.
“Foi difícil pra mim, mas eu sabia que era uma prosperidade, sabe, do jeito
que estava não podia ficar, porque aquilo ia deteriorando sabe, o tempo
consumiu aquele passado brilhante da Matarazzo
Para Seu Gilberto, porém, uma nova fábrica seria a refuncionalização
mais adequada para o prédio da Matarazzo.
“Tá melhor do que era quando tava desativada a fábrica. Com o patrimônio
desativado imaginou hoje como seria? Mas se viesse uma outra indústria,
como era pra vim, a indústria de bicicleta, na época do prefeito Azil
Brochini, faltou entendimento entre eles, não deu certo. Seria mais
interessante. Se tivesse uma fábrica onde era a fábrica, o shopping teria
instalado, mas em outro local, isso ai nós tem certeza que iria vim, quem
sabe na Skol, então teria o shopping e mais uma indústria, pra mim, como
operário, seria importante mais a indústria, porque era mais gente
trabalhando, mais família, tem gente no shopping, mas o número de
funcionário é pequeno”..
164
Dona Doraci destaca que os encontros das ex-funcionárias realizados
em 2004 e 2005 proporcionaram o contato com mulheres que foram suas
amigas durante anos. Após a aposentadoria, ela havia perdido o contato
com as outras funcionárias da tecelagem.
“Foi ótimo Carla, é meio difícil a gente ter contato, até por telefone, ir
na casa é mais difícil ainda, então foi ótimo, eu adorei, quando elas falaram
de fazer, nossa, fiquei feliz, eu falei pra Julia, todos que fizerem eu quero
ficar sabendo. Acho que precisava mesmo fazer esses encontros pra gente
ver a pessoa, porque de vez em quando você encontra numa loja, num
supermercado né, mas um pouquinho, não dá tempo da gente ficar
conversando”.
A dificuldade em conseguir se identificar com o lugar é destacada por
Bauman como uma característica da modernidade:
Para nós em particular- que vivemos em tempos implacáveis, tempos de
competição e de desprezo pelos mais fracos, quando as pessoas em volta
escondem o jogo e poucos se interessam em ajudar-nos, quando em resposta
a nossos pedidos de ajuda ouvimos advertências para que fiquemos por
nossa própria conta, quando só os bancos ansiosos por hipotecar nossas
posses sorriem desejando dizer “sim”, e mesmo eles apenas nos comerciais e
nunca em seus escritórios- a palavra “comunidade” soa como música aos
nossos ouvidos. O que essa palavra evoca é tudo aquilo de que sentimos
falta e de que precisamos para viver seguros e confiantes
(BAUMAN,2003,p.8)
O autor destaca que a comunidade não é um mundo que está a nosso
alcance, mas no qual todos gostariam de viver e esperam um dia conquistar.
“Comunidade é nos dias de hoje outro nome do paraíso perdido- mas a que
esperamos ansiosamente retornar, e assim buscamos febrilmente os
caminhos que podem levar-nos até lá” (BAUMAN, 2003, p. 9).
Nesse mundo de constantes mudanças, a busca dos homens em
pertencer a um determinado grupo parece ser uma conquista cada vez mais
distante. Em substituição à busca pela comunidade, surge então a pela
identidade. Para Bauman (2003,p.20), a identidade deve “invocar o
fantasma da mesmíssima comunidade a que deve substituir. A identidade
brota entre os túmulos das comunidades, mas floresce graças à promessa
da ressurreição dos mortos”. Muitas funcionárias da Matarazzo tiveram que
165
deixar a fábrica quando se casaram, ou mesmo as que prosseguiram no
trabalho acabaram perdendo contato com as amigas da indústria. Nos
depoimentos, fica clara a intenção de retomar o contato, muitas vezes na
esperança de voltar a ter a alegria e o entusiasmo que caracterizam as
lembranças da juventude.
A aposentada hoje sente falta de fotografias, vídeos e outros
documentos que pudessem ajuda-la a relembrar os tempos de fábrica. Para
ser completa, a memória dos lugares precisa também das vozes e do
trabalho daqueles que a buscam, nelas se encontram ou a constroem. “O
estilo e a história de uma época se exprimem por meio das formas da
arquitetura e da organização urbana. O espírito de um tempo se torna,
assim, aquele espírito dos lugares onde ele desenvolveu sua ordem ética,
estética e funcional” (JODELET, 2002, p. 40). Dona Doraci gostaria de ter
em mãos fotos da época em que ainda era uma funcionária da Matarazzo.
“A gente na época não lembra que um dia ia acabar isso, a gente teria as
fotos pra lembrar. Tudo foi bom, principalmente as amizades que a gente
fez”
3.3.4- A alegria de reunir as amigas de fábrica
Dona lia ainda o tinha nem 14 anos quando foi admitida como
aprendiz de tecelã na Matarazzo em 1956.
“Aquele tempo era Matarazzo, Saad, Paulista e a Caracu. Então quando
você conseguia um emprego assim era uma delícia, era tudo muito seguro.
E a população era menor também aquele tempo, então quer dizer que era
mais fácil arrumar emprego. Foi muito bom, eu acho assim eu tenho é muita
saudade, a gente às vez fala a gente era feliz e não sabia, a gente era feliz
e sabia sim, era uma idade gostosa (...) a gente passava uma fase
aprendendo, um tempo, depois pegava e começava a trabalhar, tecelã
mesmo, aprendia mesmo , com as próprias funcionárias, você que
diferente hoje, como modernizou, mesmo os mecânicos, entrava lá e
aprendia com os outros que estavam lá”.
Dona Júlia permaneceu como tecelã durante os dez anos em que
trabalhou na tecelagem.
166
“Só foi aumentando os teares, porque no começo trabalha com quatro, depois
trabalha com seis, depois ia aumentando, eu cheguei trabalhar com dez, doze
máquinas. Era bem puxado, porque eram 4 horas, depois você vinha embora,
descansava, depois mais quatro horas, voltava para trabalhar. Era dividido,
tinha também horário oficial, que eles chamava, era das 7 às 11 e da 1 às 5,
agora horário de turma, das 6 da manha até às 10, se ia embora, voltava às
duas e trabalha até às 6 da tarde, a outra turma entrava às dez e saia às
duas, entrava às seis e saia às dez da noite. Era gostoso”
O ambiente de trabalho encontrado na Matarazzo provoca saudade
até hoje em Dona Julia.
“Eu não lembro de eu ter inimizade, eu não lembro de puxar tapete, esse
negócio que hoje falam que tem muito, eu o sei porque eu não trabalho
hoje, mas hoje falam, é fulano gosta de puxar tapete, naquele tempo não
tinha, eu não lembro”
O salário na tecelagem era considerado muito bom para a época.
Dona Júlia, que começou a trabalhar cedo para ajudar a família, explica que:
“aquele tempo, e se você conversar com algumas das meninas, vai falar a
mesma coisa, era uma época que você não ficava com o dinheiro, pelo
menos no meu caso, entregava o dinheiro pra minha mãe, minha mãe tomava
conta, quando eu precisava de alguma coisa. Ainda eu peguei essa época, de
não ser muito independente não. “
Dona Júlia deixou a Matarazzo em 1966 porque estava casada e
não tinha com quem deixar a primeira filha.
”Parece que aquele tempo não é como hoje, hoje as mulheres são mais
independente, trabalham mesmo, coloca uma pessoa pra olhar a criança
né, porque no meu tempo pelo menos não tinha, mãe não olhava, ou você
deixava com o filho mais velho, ou você , a gente não deixava como hoje,
casa da avó, não, não , aquele tempo eu não lembro disso não. Era assim
mesmo, quando tinha filho a pessoa saia, várias amigas minhas aposentou
lá, os filhos cresceram, mas era assim, o filho mais velho que olhava, eu
achei melhor, mas a gente arrepende às vezes”.
Foi com tristeza que a aposentada recebeu em 1989 a notícia de que
a brica, agora Cianê, seria fechada. A fábrica onde teve orgulho de
trabalhar.
167
“Tinha sim, tinha orgulho.Eu não trabalhava mais muito anos, mas a
gente sente porque foi um lugar que eu não eu mas muitas falaram
que a casa que ela mora hoje foi construída com o serviço de lá. E eu
também ajudei muito minha família na época, então foi triste a gente saber,
eu fiquei triste quando eu soube que ia vender já, quando vendeu pra
Cianê, porque Matarazzo era um nome assim, porque não tinha só aqui”.
A tristeza também tomava conta quando a ex-funcionária passava
pela Vila Paulista no início da década de 90, quando a fábrica estava
abandonada.
“Triste né, Carla, fala a verdade, e até hoje eu passo e penso assim, aqui
era a entrada, quantos anos , quantos dias que você entrou por ali, porque
mudou mas você lembra direito onde que é, eu entro lá, eu entro no
Gimenez (supermercado instalado no shopping), eu fico, eu trabalhei muito
aqui, nesse espaço. Eu lembro, eu ficou pensando essas coisas, isso não
apaga da mente da gente não. (...) quando começou reformar pra fazer o
shopping eu fiquei feliz, quando inaugurou eu tinha que ir lá porque eu
queria ver onde trabalhei , é uma coisa gostosa”.
Carlos destaca a relação entre as formas arquitetônicas e a memória
das pessoas que viveram num determinado lugar:
As formas que a sociedade produz guardam uma história, na medida em que
o tempo implica duração e continuidade. As formas materiais arquitetônicas
guardam um conteúdo social que a memória ilumina, tornando-as presente e,
com isso, dando-lhes espessura, pois lhes é conferido um conteúdo no
presente-fato ignorado pelas propostas de realização de operações urbanas
na metrópole. A memória articula espaço e tempo com base em uma
experiência vivida em um determinado lugar. Nesse sentido a construção do
lugar se revela, fundamentalmente, como construção de uma identidade. A
memória liga-se, decididamente, a um lugar, ao uso e a um ritmo, logo, a uma
relação espaço-temporal, e não apenas a uma incursão no tempo- lugar e
memória são indissociáveis (CARLOS; 2001,p217)
Até hoje Dona Júlia consegue reconhecer no shopping onde ficava
cada setor da fábrica.
“Até o lugarzinho onde a gente paquerava. Era uma delícia, porque às
vezes, teve o horário corrido também, o que eles chamavam de horário
corrido era das 5 da manha à 1 da tarde, então eu não lembro direitinho se
era 10 horas que a gente saía pra almoçar, acho que era 10 horas, era
meia hora de almoço, mas essa meia hora de almoço era uma delícia, ia
almoçar, paquerar um pouquinho. Gozado que você não apaga da sua
mente, a gente lembra detalhes assim
168
Dona Júlia também sente falta de fotos que registrassem como era a
fábrica.
“Ah mudou, mudou porque existia na minha época dois salões que eles
chamavam, salões de baixo e salões de cima, eu trabalhei nos dois né,
então o meio era vago que entrava caminhão, sabe, você sabe Carla, eu
procurei tanto foto dessa época, mas naquela época a turma não tirava foto,
procurei tanto uma foto do jeito que eu vejo, aqueles caminhões entrar e ir
la pra baixo pra descarregar o material, não achei, fui no arquivo da
prefeitura, a única coisa que eu achei no arquivo são umas três folhas só,
só isso, escrito lá quando que os italianos comprar o prédio e fizeram”
A saudade dos tempos da Matarazzo levou Dona Julia, junto com
outras duas amigas, a organizar o primeiro encontro das ex-funcionárias da
Matarazzo, em janeiro de 2004.
“Sabe surgiu entre eu e mais uma num supermercado. Conversando assim
eu falei, ai gente, eu tenho uma vontade de encontrar as meninas lá, que
trabalhamos junto, tudo, e ela falou, então vamos fazer um chazinho, eu
vou fazer um chazinho na minha casa, eu vou convidar você, convida
mesmo que eu vou sim. E olha Carla isso foi dia 5, dia 6 de janeiro, quando
surgiu essa idéia eu comecei a falar pra uma, falar pra outra, aquela que eu
conversei no supermercado falou com outras e eu comecei a ligar, quando
eu vi tinha mais de trinta, umas trinta e cinco, eu falei nossa, na minha casa,
será que vai caber né? Mas Carla, olha, isso foi dia 6 até 10 janeiro, quando
foi dia 29 de janeiro nós fizemos esse encontro, que foi de 2004, que foi o
primeiro, e você sabe que nós conseguimos mais de 100 meninas, 104
parece que foi. Daí uma ofereceu o salão, lá, também trabalhou no
Matarazzo a dona do salão, e ela ligou pra mim, Julia sabendo que você
vai fazer um chá, tem que alugar cadeiras, aqui eu tenho um salão e eu
nem sabia que ela tinha salão, que ela era a dona do salão”.
A emoção do reencontro com as amigas está viva nas lembranças.
“Como foi gostoso, foi muito bom aquele reencontro das meninas, que eu
chamo todas de meninas, todas meninas. Foi lindo, todas gostaram, tem
meninas que falam pra mim que moram na mesma cidade, no mesmo
bairro, na Vila Alemã, e não encontravam a outra trinta anos.E nesse
encontro elas se encontraram. Foi um, eu não sei se você lembra, mas foi
um abraço daqueles”
A realização do encontro das ex-funcionárias pode ser analisado
como uma tentativa de impedir que o passado seja apagado. De acordo com
Jodelet (2002:p31), quando se pensa em desenvolvimento, a temporalidade
é mais “a de um presente voltado para o futuro e, nesse movimento, o futuro
169
será construído da memória do passado”. A autora defende a busca por um
progresso não destrutivo, solução que não pode ignorar a tensão entre a
temporalidade do desenvolvimento e a que é igualmente implicável na idéia
de durabilidade - “o que pressupõe a abordagem das transformações de
estados naturais, materiais, econômicos e sociais, sob a espécie da
preservação, da duração, da perenidade das formas naturais, materiais e
sociais existentes”.
O encontro foi repetido em 2005, com um jantar, e deve ser realizado
novamente em 2006.
”Eu até penso, até me cobram pra fazer um grupo de terceira idade, porque
as meninas aí, todas, olha tem, acho que a mais nova deve ter 47, 50 anos,
fazer um grupo de terceira idade, eu no momento acho que não tenho
tempo pra isso, não sei, eu acho porque eu já, não que eu participei de
grupo, mas eu converso com coordenadoras, eu vejo que um pouquinho
de trabalho, tem que correr atrás. Isso que nós fizemos nós vamos fazer de
novo agora em janeiro, pelo menos um por ano agora a gente faz, agora o
ano que vem nós vamos fazer que nem o primeiro, sem os maridos, porque
não deu certo, porque foi a noite, e as meninas então: ah, eu não vou,
porque meu marido não vai, então eu achei que vai valer mais a pena fazer
a tarde”.
3.3.5- Amores de fábrica
Seu Pedro e Dona Neusa também se conheceram dentro da
Tecelagem Matarazzo. O casamento aconteceu na década de 1960, e hoje
eles tem dois filhos adultos. Seu Pedro começou a vida na fábrica em
maio de 1958, como ajudante de máquina. O aposentado destaca que na
época um emprego na Matarazzo era um dos melhores da cidade.
“Você que tinha, nós temos uma colega que trabalhava no Banco do
Brasil, ela ficou na dúvida se ela entrava no Matarazzo ou no Banco do
Brasil. Ela optou certo, hoje ela bem, com aposentadoria que ela teve.
Mas naquela época o Matarazzo era uma das melhor firma aqui de Rio
Claro”
Seu Pedro lembra:
170
“entrei com 19 anos, entrei na época porque eu jogava bola. Naquela
época quem era jogador tinha privilégio de entrar no Matarazzo ou na
Paulista, porque tinha o time da fábrica e a Paulista tocava o time do Rio
Claro (...) então o Matarazzo soube que eu tava quase entrando na
Paulista, eu ia entrar no escritório, imagina, entrar no escritório, eu tinha
o quarto ano, então no sábado me chamaram aqui, eu joguei,na segunda-
feira eu entrei”
Além do trabalho na fábrica, Seu Pedro também passava as horas de
folga na Matarazzo.
“Todo domingo jogando bola, meio da semana treinando, ali onde termina
ali o alambrado ali era um morro, o campo era ali, tinha arquibancada,
iluminação pra jogar de noite, era bem moderno”.
Na mesma época Dona Neusa também começou a trabalhar na
fábrica. Aos 16 anos, a jovem primeiro foi designada para o setor de fita.
trazia experiência do trabalho na fábrica de calçados Codo, que ficava no
bairro Cidade Nova.
”Entrar no Matarazzo era uma coisa, era tempo de fita, então a gente fazia,
era um bolo de cetim, então punha numa roda, fazia a spulinha, tipo até um
carretelzinho pequeninho assim, pra por na lançadeira e a lançadeira fazer
a fita. Inclusive eu comecei paquerar ele quando eu entrei na fita e ia
buscar as coisas lá, em cima. De da fita eu passei pra limpa peça,
limpa peça a gente tirava aqueles fiozinhos que ficavam do lado com uma
tesoura, depois dali eu fui pra tecelagem, ser tecelã, então eu fui
aprendendo ali as coisas, então eu era uma tecelã muito caprichosa,
aprendi bem, que quando tinha aqueles tear tudo bagunçado, tudo sem.
Você conhece tear?”
Além de promover o encontro entre muitos casais, a Matarazzo
também lançou moda e quebrou tabus na cidade. No início da década de
1960, as mulheres trabalhavam de saia na fábrica. Quando surgiu a moda
das saias mais curtas, começaram os problemas.
“A gente tinha que se espichar para pegar o fio, com a saia era difícil,
aquele tempo chamava a atenção mais do que hoje, hoje em dia as
meninas, de primeiro não, a gente usava a roupa aqui, depois que foi
encurtando, então conforme você fazia assim, aparecia tudo a perna, os
mecânico ficavam olhando “
171
Seu Pedro lembra que, na época, o uso da calça era relacionado ao
comportamento dos jovens:
“Era interessante que naquela época quem usava calça comprida tomava o
nome que era biscate, mas teve que colocar calça comprida nas mulher
porque a saia encurtou e não tinha condição de trabalhar”
Hoje Dona Neusa se diverte com o constrangimento que passou ao
vestir a calça.
“Obrigaram a gente colocar uniforme, então era calça comprida e jaqueta,
deram uniforme pra s e nós entramos no vestiário, meu Deus do céu, e
agora, pra sair do vestiário foi uma luta, e os homens ficaram tudo de fila,
esperando nós sair do vestiário, ai que vergonha, olha que coisa, melhor
que a saia, depois daquilo começou pra fora também a usar calça
comprida”.
Dona Neusa lembra que o trabalho era corrido dentro da tecelagem
Era corrido porque você vê, uma spula era quatro tear, você ficava virando
quatro tear. Eu acho que quando nós trabalhava com Ribeiro (marca dos
teares mais antigos), tinha que trocar a spula, parava pra tocar a spula,
você tinha que ficar olhando porque se arrebantava o fio ele não parava,
mas era melhor do que quando veio as máquinas novas, meio quarteirão
você tinha que andar, eu falei pra ele, eu não vou tocar isso (...) depois que
passou os tear, quando começou a mecanizar, eles passaram a exigir muito
da gente, eles queriam produção, passaram a cobrar muito.Eu gostava,
tenho uma saudade de trabalhar em tear, era muito bom, muito gostoso“
Mesmo depois de se casar Dona Neusa continuou trabalhando,
permanecendo por 16 anos na fábrica.
“A gente ganhava bem, trabalhava sim, era muito bom, não era que nem
agora que a turma parece que um não conhece o outro, não, era uma
família, amizade, era muito gostoso”
Além do salário considerado bom para a época, Dona Neusa lembra
que os funcionários também contavam com outros benefícios.
“Começou pela bolacha, então eles tinham em São Paulo a fábrica de
bolacha, então eles mandavam pra sabe aquela bolacha que não pro
comércio, quebrada, assim, eles mandaram um monte de caixa, então eles
vendiam pros empregados aquela bolacha, era baratíssimo, inclusive uma
172
bolacha muito boa, que hoje você não encontra mais. Depois abriu a
cooperativa do lado, abriu assim uma porta que vendia tecido, tecido e
bolacha quebrada, depois eles aumentaram e montaram supermercado,
todos os produtos deles ali, então a gente fazia conta e descontava no
pagamento. No tecido também era barato, inclusive minha mãe costurava,
então todo sábado eu saia de roupa nova, eu comprava o pano ali, minha
mãe fazia, sempre tava de roupa nova, os outros falava nossa, mas não é,
é porque minha mãe costurava”.
Ser operária, mãe e dona-de-casa não era tarefa fácil para Dona
Neusa
“Teve uma época, quando nós tivemos nosso filho, o primeiro, daí ficava
difícil, filho, trabalhar os dois no mesmo horário, nunca tinha ninguém em
casa, nós fizemos assim, cada um trabalha num horário, então vamos
supor, quando eu entrava às cinco da manha e saia às duas, ele entrava às
duas e saia às dez, sempre tinha um em casa, ficava com menino”
Morando nos fundos da fábrica, na Vila Paulista, Dona Neusa
começou a enfrentar dificuldades para se manter no emprego.
”eu morava ali, atrás do Matarazzo, eu morava, pertinho, do vitrô do
Matarazzo eu via ele ali a tarde com o menino, até eu ficava triste, porque é
duro cê tá trabalhando, e eu levava janta pra ele a tarde, daí na outra
semana eu levava almoço”.
Quando nasceu o segundo filho do casal, Seu Pedro já havia mudado
de cargo e o novo salário permitiu que Dona Neusa deixasse de trabalhar.
”Depois que casei, trabalhei mais 8 anos, até nascer o segundo filho, o
primeiro ainda fiquei, mas o segundo, depois ele passou de chefe, falei
assim ah, mais um, a gente tem filho pra gente olhar”
. Em 1976, Dona Neusa deixava a fábrica onde havia trabalhado
durante 16 anos, mas continuou por perto, porque nessa época o casal
tinha construído sua própria casa na Vila Paulista.
Dentro da tecelagem, Seu Pedro conseguiu ir mudando de cargo e
fazendo carreira. Começou como ajudante de máquina, em 1962 passou
para mecânico, em 1975 a chefe. Primeiro teve que enfrentar a venda da
Matarazzo para a Cianê. Dona Neusa lembra que:
173
“no fim da Matarazzo, que ele não tava aposentado, foi duro, ele ficou até
doente,com a idade que tava, a fábrica fechando”
A fábrica não fechou e Seu Pedro continuou trabalhando na Cianê,
ajudando na implantação da chamada “quarta turma”. No começo da década
de 1990, começa outra crise, que culminou com o fechamento da fábrica.
“Já estava dispensando pessoas aos poucos, quando ficamos no fim, meia
dúzia de funcionários”.
Seu Pedro não esquece os últimos dias de trabalho.
Foi triste a saída de tudo aquilo lá, porque cada função de máquina que ia
trabalhando, rolo que ia terminando, então conforme terminava tinha até
cálculo de quando ia terminar e qual ia embora, era duro você ver os
amigos seus indo tudo embora, eu que dispensava, pode mandar esse,
pode mandar esse, então eu sabia, tudo gente boa, com família, inclusive
muitos deles eu botei pra ir para Skol, que acabou fechando também”.
De acordo com Seu Pedro, nem todos perceberam que a fábrica
estava em crise e ia fechar.
”Eu mandei pra lá (Skol) uns par deles, falei vai que aqui vai fechar...mandei
pra Brastemp que tava ajustando, foi dois mecânicos, até eles agradecem
eu, falei vai embora daqui que vai fechar, eles não acreditavam, você
acredita que com fábrica fechando, eles falavam mas o Matarazzo não
fecha, o Matarazzo é rico”.
Seu Pedro foi mantido depois do fechamento da fábrica porque na
época estava aposentado, e permaneceu para despachar as máquinas
juntamente com outros aposentados. A partir daí, sua preocupação passou a
ser o abandono do prédio.
“Eu pensei que a fábrica ali fosse um lugar que fosse ficar indigente, mas com o
tempo foi mudando, abriu o shopping, ficou fechado de 90 a 95, inclusive eu tava
trabalhando num fabriquinha aqui do lado, quando ela fechou, em 95 o shopping
abriu”.
Dona Neusa espera que outros encontros de ex-funcionárias sejam
realizados nos próximos anos.
174
“Foi muito bom,nossa, encontra tanta gente, lembra da fisionomia e
não lembra do nome.Muita gente, desde que eu sai que eu não via”
Para a aposentada, observar o shopping é como uma volta ao
passado, mas também motivo de preocupação.
“No Gimenes é onde ficava o tear que eu trabalhava. (...) ficou bonito o
lugar, mas você entrando de ver todas aquelas lojas fechada,
um medo que abandonem tudo lá, morro de medo”
Para Seu Pedro, “se viesse uma fabrica, seria muito melhor”. O
aposentado também aproveita as visitas ao shopping para se lembrar da
fábrica.
“Lembro, aquela árvore que dentro (na entrada do shopping) era na
minha passagem, quando saia da tecelagem e ia pra preparação,
engomadeira, tinha um banheirinho do lado da arvore, eu passava, sempre
lembro”.
Para Carlos (2001: p, 218), espaço e tempo são indissociáveis, e
caberia à memória revelar essa indissociabilidade.A memória pode
aproximar, mover e retroceder o tempo.
Enquanto o que recordar, o passado se enlaça no atual e conserva a
vivacidade cambiante, que significa uma ausência em presença. Assim a
vida ganha sentido em uma relação espaço-temporal.
3.4- Gurgel Motores: há dez anos sem solução
3.4.1-O orgulho de ver o “Gurgelzinho” pelas ruas
Seu José havia passado por vários empregos e profissões quando
conseguiu uma vaga na Gurgel, em 1989, aos 51 anos.
“Cheguei a assistente de produção, tomava conta daquela seção, era o
segundo, abaixo do encarregado, trabalhei sempre no acabamento de
painéis de carros de todos os modelos produzidos pela Gurgel”.
175
Antes de começar na fábrica o operário tinha sido, entre outros,
entregador e motorista.
“Trabalhei entregando Brahma, Antarctica e Skol, além da Caracu, mas
trabalhar com caminhão não tem valor, ganha pouco e trabalha muito.
Como eu tinha um colega, chama Zé Luis, era encarregado da pintura,
disse vou levar você para lá”.
Na Gurgel, Seu José começou o trabalho no setor de lixa, onde
permaneceu por um ano até ser promovido a assistente de produção. E até
hoje lembra de como era a convivência dentro da montadora.
“Era tudo unido, tinha amizade com todo mundo, principalmente na seção
de pintura, na linha de montagem, entendeu, tinha amizade com todo
mundo. Eu gostava muito, inclusive fazia muita hora extra, trabalhava de
sábado e domingo, tirava um dinheirinho bom naquela época”
Seu José afirma que sentia orgulho de trabalhar na fábrica.
“Eu sentia bem feliz porque sabia que a gente é que tava lá, fazia os
carros né, cada um fazia uma parte, tinha o mecânico que fazia a dele, o
lixador fazia a dele, tinha a preparação e a laminação, saía bruta a peça,
depois passava para outra seção e depois a última era a minha, a lixa era a
última, depois ia embora pra linha”.
Na década de 1990, porém, a situação na fábrica começou a mudar.
”Nós percebemos que estava em crise, mas nós tentemos segurar as
pontas, tentava ajudar, porque não adianta, o sindicato dizia pagamento
atrasado, mas o que cê vai fazer, tem que agüentar, vai resolver”
Nessa época os funcionários também começaram a enfrentar
dificuldades para receber os salários e outros direitos.
“Eu trabalhei vamos supor três férias, eu trabalhei quatro anos e ganhei
uma férias. Quando eu aposentei, porque eu aposentei lá, quando eu
percebi que a coisa tava meio ruim eu entrei com os papel, saiu minha
aposentadoria, fui fazer acerto lá, mas o rapaz do escritório falou ah não,
vai trabalhando aí, depois a gente acerta seus direito, e eu fui e entrei na
dele, fechou e não recebi nada até hoje”
176
Passados mais de dez anos, Seu José ainda espera pelo pagamento
de seus direitos.
“Eu com processo, entrei, tenho 22 mil, mas eu tenho depois mais sete
mês que voltamos fazer carro pro Paraná, tinha uns , uma turma que
tinha carro pago e tinha que fazer, trabalhamos mais 7 meses e fizemos
mais 400 carros, recebemos assim meio picado, mas pagamento atrasava”.
As cenas presenciadas no último dia de trabalho, quando a brica
fechou, ainda são recordadas pelo aposentado.
“O último dia foi triste, porque veio o síndico, veio lá, porque lacrou a
fábrica, daí os cara ficou com medo, quando vamos receber, não, vocês vai
receber, pode ficar sossegado, e deu aquela correria, daí fazer o que, ficou
nisso”.
Trabalhando oito anos como auxiliar de limpeza numa escola
municipal, Seu José ainda tem esperança de que a fábrica seja vendida e
ele possa finalmente receber seus direitos.
“Eu acompanho tudo, mas que eu digo pro cê, o negócio é o seguinte.
Nós fizemos cooperativa, nós semos em vinte, agora esperamos a Justiça
resolver, porque o advogado entrou com adjudicação, mas ela não aceitou,
agora (...) vende, mais acontece que tinha bastante comprador querendo
comprar, mas não sei porque o vende.Tem pessoa que acha, porque o
valor quando fechou era um, agora o valor é quase o mesmo, porque
tiraram todas as máquinas lá de dentro, então o valor tem que ser menos”.
Se um dia a fábrica for vendida, o aposentado planeja o que fará
com sua parte.
”Eu tenho, ah eu preciso, fazer uma, comprar uma casinha, eu pago
aluguel, se não tivesse trabalhando, passava apertado, não dá, aluguel hoje
tá na base de 300 o aluguel, qualquer casinha 250, 300”.
Quando passa pela antiga fábrica localizada na rodovia Washington
Luiz, Seu José ainda se recorda de como era a produção.
“Eu vou falar francamente pro cê, a gente se sente chateado pelo que era e
ver agora, tão roubando tudo, o sindicato que tinha por obrigação ele
administrar aquilo também, então vamos supor, a pessoa foi no leilão,
177
comprou máquina, comprou isso, comprou aquilo, o sindicato por obrigação
tinha que fazer levantamento do que saiu, que valor, pegar a relação das
máquinas que for sair, a gente que foi funcionário a gente tem essa noção,
não fizeram isso aí, o que acontece, quando fala roubou tal coisa (..) paga
guarda lá, pra que, tão roubando tudo lá, até vitrô, motor do portão
levaram. Bem dizendo o terreno, prédio mesmo o telhado tudo
destruindo, chuva de vento, e ninguém toma atitude”.
Na avaliação do ex-funcionário, o prédio da Gurgel deveria ser
utilizado para abrigar uma nova fábrica:
“lá seria bom para uma cerâmica, que nem vamos supor, pra depósito, que
tem umas cerâmica que produz bastante, vai chegar um tempo que vai ficar
apertado, inclusive tinha interessado, mas não sei porque, eu queria saber
o que segurando.Se pegasse como cooperativa, era mais fácil vender,
porque na mão, processo na mão lá, é difícil um comprador comprar”.
Para Seu José, bom seria se o prédio pudesse ser conservado.
”Eu gostaria sim, a gente fica orgulhoso de ver, se tivesse, vamos supor,
outra indústria que montasse lá, não seria bom, lugar bom, perto da pista,
isso uma vergonha, pra cidade é uma vergonha uma fabrica daquela
naquele estado”.
Para os operários, o fechamento da fábrica representou o início de
uma série de dificuldades.
“Tem muitos que foi difícil, passou necessidade, tem outros que comprou
casinha no Jardim Brasília, e necessitado do dinheiro para terminar de
pagar a casa (...) se você dever por governo, você tem que pagar, senão
você perde, se tiver uma casa e não pagar, você perde, por que o
trabalhador não tem direito, tem direito sim, você vê, eu aposentei e deu 42
anos de serviço, hoje tem nego que não paga INPS e quer aposentar”.
O fato de trabalhar numa fábrica de carros brasileira é até hoje motivo
de orgulho para o aposentado.
“Agora ver do jeito que ta lá, é uma tristeza, eu sinto saudades dos carros
dele, era muito bom, são carro econômico, até hoje eu vejo Gurgelzinho
rodando por ai, dá saudade”.
178
3.4.2- A única mulher da mecânica
Aos 47 anos, em 1977, Dona Lídia conseguiu seu emprego na Gurgel,
após anos de trabalho como empregada doméstica e em outras pequenas
fábricas da cidade. O curioso é que Dona Lídia foi trabalhar na seção de
mecânica, onde havia apenas duas mulheres, ela e uma amiga.
“Eu furava peça, trabalhava na prensa (...) eu gostava de trabalhar lá, era
sujo também, mas era melhor, ganhava melhor. Tinha mais mulher na
laminação. Tinha uma, que trabalhava comigo, mas ela foi mandada
embora”.
A partir daí, Dona Lídia passou a ser a única mulher no setor de
mecânica, mas afirma que não enfrentou preconceito.
“Eu tinha amizade com todo mundo, o dia que eu fiz sessenta anos levei um
bolo, na hora do lanche”.
Dona Lídia lembra que os funcionários da fábrica tinham uma relação
muito próxima com o engenheiro Gurgel e sua família.
“O filho do Gurgel, um dia de castigo, ele pôs ele pra trabalhar com nós
numa máquina, não sei o que ele fez, ele disse assim pra mim vai vim
uma máquina, esse tanto de peça que faz o dia inteiro, vai fazer em meia
hora e vai pronto, e foi dito e feito, e quem trabalhou na máquina? Eu, eu
aprendi, a gente nossa, ali num instantinho enchia o carrinho de peça, e foi
nessa máquina que eu cortei o dedo”.
Apesar de afirmar que existiam equipamentos de segurança na
fábrica, a aposentada acabou perdendo a ponta de um dos dedos da mão no
acidente.
“Tinha luva, aquele avental grosso, tinha óculos (...) depois que eu cortei o
dedo eles queriam me passar pra laminação, falei na laminação eu não vou,
e tinha bastante mulher, mas saía muita briga, e eu falei ah, eu não
quero”
Sobre o proprietário da fábrica, o engenheiro Gurgel, Dona Lídia
comenta:
179
”doutor Gurgel era uma maravilha, às vezes eu tava na máquina
trabalhando, quando eu via ele já estava do meu lado, porque tinha eu
na seção, porque a outra, ela foi mandada embora porque ela terminava o
serviço e cruzava os braços (...) o Gurgel deu uma festa, não tinha escolha
não, a separação, você ter que sentar aquela parte porque são
empregado nada, sentava visita, tudo, tinha mesa pra comer, pra todo
mundo, sem separação, o Gurgel era pessoa muito boa, disse que ele
doente né”
Dona Lídia lembra que não fazia o mesmo serviço que os homens
como também às vezes trabalhava mais que eles.
“Eu terminava meu serviço, eu pedia pro rapaz cortar as peças, e eu
deixava pronta pra noite”
Mãe de seis filhos, ela ainda cuidava da casa e saía para dançar com
as amigas nessa época. Em 1987, a aposentada acabou sendo demitida,
mas foi recontratada junto com mais duas funcionárias para trabalhar na
cozinha da fábrica.
“Por causa dessa lei aí, porque as mulher ficava grávida, mandou a
mulherada embora”
Hoje Dona dia acha que teve sorte por ser demitida, porque assim
conseguiu receber seus direitos antes do fechamento da fábrica. Três anos
depois, foi demitida novamente, e passou a trabalhar na Associação dos
Funcionários da Gurgel, e novamente teve a sorte de conseguir receber
seus direitos.
Embora estivesse aposentada, continuou trabalhando na
associação e lembra com tristeza do dia do fechamento da fábrica.
”Judiação ver aqueles homens chorando, ia lá, porque as mulheres não
queriam eles em casa, como voltar a trabalhar, se a carteira ainda não
estava acertada (...) foi difícil viu, é duro, ficava com dó daquele homem que
ia na associação, ele disse que não podia ficar em casa, a mulher tocava, a
sogra tocava”.
Dona Lídia guarda até hoje as boas recordações dos anos em que
trabalhou na fábrica.
180
“às vezes encontro né, eu fiz umas amizadona lá, quantos anos, quantos
me conhecem. Quando morre alguém, a gente vai no velório, ta todo mundo
lá. A Gurgel era uma maravilha, era uma amizade, você sabe que beleza”
O abandono do prédio é visto como uma decepção por Dona Lídia.
“Devia fazer outra fábrica. Aquele amigo da gente (um dos seguranças da
fábrica, assassinado enquanto fazia a guarda depois que o prédio ficou
abandonado), aquela pessoa maravilhosa, ele ia no banco receber o
pagamento da gente, mataram ele na Gurgel. Coitadinho, ele era uma
pessoa maravilhosa, a família dele mora aí na associação”
3.4.3- O poeta-metalúrgico
Nascido em Novo Horizonte, Seu Adelino estava em Rio Claro
dois anos, trabalhando em empregos temporários, quando em 1989
conseguiu uma vaga na Gurgel. Aos 53 anos, Seu Adelino passou a
trabalhar como soldador de assentos e encostos de bancos dos veículos.
“Era, era um ótimo emprego, uma das melhores firmas que eu trabalhei foi a
Gurgel, era o ambiente de trabalho, os colegas de trabalho era tudo
pessoas boas, tanto a chefia, tudo gente boa, foi uma firma muito boa e foi
importante porque quando vim pra não completei o tempo de
aposentadoria”.
Nos cinco anos em que permaneceu na fábrica, Seu Adelino tinha a
impressão de estar trabalhando numa empresa muito bem estruturada.
“Que ia fechar não desconfiava, tava meio difícil as coisas lá, foi diminuindo
a produção, mas chegar ao ponto de fechar ninguém suspeitava, porque
quando eu entrei em 89 tinha mais ou menos 1,2 mil funcionários e na
época que eu sai tnha 700, foi mandado 500 embora, aos poucos (...) era
uma firma boa porque tinha condução própria, tinha convênio médico bom
com a Unimed, tinha cesta básica, firma excelente. Era um emprego ótimo,
mas infelizmente durou pouco”
Experiente no setor de montadoras, Seu Adelino observava alguns
problemas na fábrica.
“Eu achava que a produção era pouca pra tantos funcionários, ninguém
produzia nada, acho que era cabide (...) parece que tinha, não economizava
as coisas assim por exemplo, material de segurança, eu achava estranho
181
porque uma luva que a gente pegava, uma luva de raspa pra trabalhar com
solda, então às vezes descosturava uma pequena costurava, eu pedia pra
pessoa passar uma cola para colar e ela dizia que não, joga no lixo e pega
uma nova, eu ficava com de jogar fora porque tava novinha (...) eu
trabalhei na Ford, em São Paulo, no tempo que da Willys, depois passou
pra Ford, trabalhei na Mercedes Benz, todo esse material de segurança
era reciclado, tudo era remendado e reutilizado(...) trabalhei na Ford seis
anos e meio, depois na Mercedes mais sete anos e meio”.
Apesar de toda a experiência nas grandes montadoras, Seu Adelino
afirma que tinha orgulho mesmo era de trabalhar na Gurgel.
”Era uma fabrica totalmente nacional, era uma coisa que fazia orgulho”.
O último dia na fábrica foi de muita tristeza para Seu Adelino.
”Foi lamentável, todo que trabalhava até hoje comenta foi uma coisa
triste. Fiquei até o fim, fechou, depois que fechou, nós fizemos, ficamos na
portaria um tempão com o pessoal do sindicato, ver se tinha uma solução
(...) tinha até conversando com o encarregado que eu ia aposentar e ia
continuar trabalhando, mas acontece que quando ela fechou, eu tinha dado
entrada um ano antes na aposentadoria, e justamente quando ela fechou
saiu a aposentadoria, a salvação da gente, porque naquela época todo
mundo saiu sem receber nada, trabalhamos o último mês, ninguém
recebeu o pagamento, tinha conta pra pagar.Os direitos trabalhistas não
foram recebidos, minha salvação foi aposentadoria, naquele tempo tava
difícil emprego, o sindicato até fez uma campanha pra angariar donativos
pros que estavam desempregados”.
Para o aposentado, o empresário Gurgel não parecia preocupado
com o fechamento.
“Parece que o Gurgel não administrava bem, não se importava com o que
tava acontecendo na fábrica, porque quando tava fechando a fabrica, tava
todo mundo parado já, nós ficava jogando baralho, esperava Gurgel vim
para dar uma palavra, falar o que tava acontecendo, esperamos vários
dias ele não apareceu, não falou nada, fizemos uma reunião, vamos ,
no, tinha área chamada protótipo, quando nós chegamos ele tava
mexendo com umas peças do novo carro que ele ia lançar, ele tava com
idéia que ia lançar novo carro (...) e falou que a fábrica ia funcionar, que ia
funcionar tudo normalmente, não precisava se preocupar, e nós voltamos
para nossa seção e ficamo aguardando, mas não funcionou coisa
nenhuma, todo mundo teve que sair, por força da lei nós saímos, sem
nenhuma audiência com ninguém, sem saber o que tinha conhecido (...) se
ele falasse pelos menos, viesse e falasse oh, assim, não vai funcionar
mais, daí dispersarva a turma, mas ele não falou nada”.
182
Seu Adelino também guarda boas recordações da convivência dentro
da fábrica.
“A gente sente saudade do tempo que trabalhava lá, porque eu gostava de
trabalhar lá, não eu como todos colegas que a gente conversa, que a
gente tem assim, encontra de vez em quando.Ela tinha assim um estado
de multinacinoal, porque até esse jornalzinho que eles faziam mensal eles
não entregavam na portaria, eles mandavam pelo correio individualmente”.
Depois de mais de dez anos de espera, o aposentado não espera
mais receber seus direitos.
“Eu não tenho mais esperança de receber nada, por mais que foi feito,
vários leilões, várias publicações no jornal que ia ser resolvido e nada
aconteceu, então eu não tenho esperança de receber os direitos. Os
cálculos dos advogados são meio errado, eles falaram que tava com 41 mil,
tinha duas férias para receber, ficou faltando fundo de garantia, que não
depositou”.
Para o ex-funcionário, o antigo prédio da Gurgel deveria ser ocupado
por uma nova fábrica:
“uma nova fábrica mesmo, ali é ponto estratégico bom par a qualquer
atividade, fábrica, cerâmica, depósito qualquer de indústria. Abandonado
dá pena, porque quando saímos de lá tava tudo impecável, tava tudo
funcionando direitinho, o restaurante nem tinha inaugurado, um restaurante
novinho, com todo aparelhamento, só faltava funcionar, foi tudo destruído”.
A proposta de adjudicação dos bens em favor dos trabalhadores é
vista com bons olhos por Seu Adelino.
“Disseram que foi feito acordo dos advogados e do sindicato pra então
adjudicar em favor do sindicato e dos funcionários, mas disse que não foi
aceito pelo procurador de Justiça (...) se caso passasse pros trabalhadores
podia vender por menos aquilo lá, dividia o dinheiro, nem que cada um
recebesse a metade do quem tem direito, pra quem tudo perdido receber
a metade é vantagem”
Homem acostumado ao trabalho pesado nas montadoras, Seu
Adelino cultivava um curioso talento junto com a mecânica. Gostava de
poesia.
183
“até uma vez eu ganhei o concurso para dar o nome do jornal ( da
associação dos funcionários), eles pediram para dar opinião sobre como
seria o nome do jornal, naquele tempo em ganhei um prêmio de cem
cruzeiros de compra no mercado, fui deu pra encher o carrinho. A minha
sugestão foi A Voz da Associação, eu até tenho o jornal guardado”.
Também está guardada a poesia escrita para um final de ano na
fábrica que impressionou o chefe e acabou ganhando destaque no mural.
Das recordações do metalúrgico, a poesia parece ser sua mais adorada
produção.
184
Capítulo 4- Propostas e iniciativas para a refuncionalização dos
“brownfields” de Rio Claro
A refuncionalização de “brownfields” é uma questão que mobiliza não
somente o poder público como também alguns setores da iniciativa privada.
Nos municípios, os antigos prédios industriais e comerciais que encontram-
se em estado de abandono são apontados como a causa de transtornos e
prejuízos nas cidades. Em Rio Claro (SP) são registradas algumas
iniciativas para promover a retomada das atividades nesses imóveis.Um dos
casos é o do Shopping Center Rio Claro, instalado na antiga Tecelagem
Matarazzo.
Além das entrevistas com os ex-funcionários dos quatro
empreendimentos em estudo (Oficinas da Cia. Paulista de Estradas de
Ferro, Cervejaria Rio Claro (Skol), Tecelagem Matarazzo e Gurgel Motores)
também foram entrevistadas lideranças da comunidade que acompanharam
a trajetória das empresas e a formação de “brownfields” após o
encerramento da atividade ou seu declínio.
A seguir são apresentadas as análises sobre os brownfields” de Rio
Claro feitas por representantes do poder blico, da iniciativa privada e de
sindicatos e entidades envolvidos com os empreendimentos em estudo.
185
4.1- Prefeito defende instalação de empresas de alto valor agregado
para refuncionalizar os “brownfields” de Rio Claro (SP)
Questionado sobre os problemas gerados pelos “brownfields” no
município, o prefeito Nevoeiro Junior (PFL) afirma que o governo municipal
tomou iniciativas em busca da refuncionalização não somente para o prédio
da Gurgel Motores como também para outras fábricas no município que
foram desativadas, como a Mecânica Alfa e a Concretubo, localizadas no
Distrito Industrial. Em seu segundo mandato, o prefeito destaca que como
administrador sempre se preocupou com a necessidade de se retomar a
atividade em prédios de antigas fábricas.
No meu primeiro mandato a fábrica da Matarazzo havia sido fechada. O
desenvolvimento tecnológico é muito veloz, e a tecelagem não conseguiu
acompanhar esse ritmo. Como o prédio e sua localização eram
incompatíveis com a instalação de uma nova indústria, desenvolvemos o
projeto do Shopping Center Rio Claro”
O prefeito destaca que em sua atual administração pretende
desenvolver trabalho semelhante junto aos prédios da Gurgel, Mecânica Alfa
e Concretubos (localizadas no Distrito Industrial). O prefeito lembra que a
Gurgel tem uma excelente localização.
“A primeira idéia era instalar na Gurgel um centro comercial para
atrair os consumidores que vão até São Paulo para comprar produtos nas
ruas de comércio popular. Depois, como o setor ferroviário começou a
receber investimentos e ganhar novas perspectivas de desenvolvimento, fui
até uma empresa fabricante de vagões de trens no município de Caxias do
Sul. Visitei também empresas fabricantes de ônibus, escavadeiras e outras
máquinas para ver a viabilidade de trazer essas atividades para o prédio da
Gurgel. Hoje avalio que não precisamos apenas trazer uma indústria para o
186
local. É preciso trazer uma empresa que fabrique produtos de alto valor
agregado. Já estamos fazendo contatos nesse sentido”
O prefeito informa que também um estudo para utilizar a unidade
da Gurgel para ampliar o projeto Nido, uma incubadora de empresas criada
durante sua primeira administração e que atualmente funciona no antigo
depósito da Cervejaria Skol, na avenida Presidente Kennedy. Ao assumir a
prefeitura em janeiro de 2005, o prefeito afirmou que iria desapropriar a área
da Gurgel. Questionado sobre os motivos que impedem a iniciativa, o
prefeito afirma que a proposta não está descartada. O objetivo seria
desapropriar a unidade fazendo o pagamento em cerca de 60 ou 70
parcelas. Nesse período, a área poderia ser vendida para a iniciativa
privada.
Quanto à preservação dos prédios industriais para que a cidade
conserve seu passado, o prefeito destaca:
“Na questão dos prédios históricos é preciso mudar o programa tributário,
oferecer benefícios para o proprietário que se propõe a preservar um imóvel
que tenha importância histórica (...) A história é o referencial do passado
que permite ao presente implementar o futuro”
187
4.2- Secretaria prioriza retomada da atividade industrial
De acordo com o secretário municipal de Desenvolvimento
Econômico, Ivan Hussni, a questão dos “brownfields” é um dos temas que
mobilizam esforços dentro do setor industrial de Rio Claro.
“É uma preocupação da secretaria agilizarmos alguma atividade ou a
ocupação desses imóveis que por algum motivo estão parados na cidade de
Rio Claro, seja por desativação da atividade ou outro processo qualquer, às
vezes, qualquer outro projeto, seja qual for. O nosso objetivo, num primeiro
momento, é tentar viabilizar um negócio naquele imóvel no mesmo ramo, no
mesmo segmento, porque você de certa forma está aproximando aquilo que
existia de um interesse para ser viabilizado naquele mesmo local. Então
uma indústria, por exemplo, metalúrgica, nós obviamente iremos tentar
buscar alguma coisa bem próxima, do mesmo segmento, pra que você
possa agilizar isso”
O secretário de Desenvolvimento enumera os problemas provocados
pelos “brownfields” existentes no município:
Não só esse problema (da falta de atividade), ele atrapalha às vezes a
segurança, a vizinhança, ele atrapalha às vezes a arrecadação de impostos
pro município, a imagem não é boa, você tem a cidade, verifica uma área
parada, não produtiva, então tem vários aspectos”
Para o secretário, a antiga fábrica da Gurgel Motores representa
atualmente o maior “brownfield” em Rio Claro. O secretário afirma que sua
equipe fez contatos com empresários para tentar viabilizar a volta da
atividade ao prédio. Durante a atual administração, iniciada em janeiro de
2005, o secretário afirma que a secretaria nunca foi procurada por empresas
interessadas em se instalar na Gurgel.
188
“A maior área hoje desativada em Rio Claro é a Gurgel. Não, nos não fomos
procurados, nós procuramos os empresários. Nós estamos visitando
semanalmente empresas, embaixadas, consulados, sindicatos, associações
de empresas em São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo, tivemos no Rio
Grande do Sul tentando e já apresentamos essa área inclusive pra um
grande investimento na área rodoviária, existe a possibilidade de ser
utilizado. Hoje o problema maior está no acordo dos funcionários, está na
massa falida que tem algumas dificuldades, mas o prefeito municipal tem
um projeto, tem uma idéia, que se algum empresário que queira vir pro
município, tem saída para ocupar esse imóvel”
O prédio da Gurgel não é o único do setor industrial em estado de
abandono. O secretário destaca que será possível promover a volta da
atividade no prédio da antiga indústria Saint Goban, localizado no Distrito
Industrial.
“Uma noticia extremamente recente é a do imóvel da Saint Goban, nós
acabamos de vender o imóvel da Saint Goban, foi vendido por uma ação
direta da Secretaria de Desenvolvimento Econômico, da participação do
prefeito e do deputado estadual Aldo Demarchi, nós conseguimos trazer uma
empresa para cá, e estamos em negociação com os outros imóveis que estão
desocupados. O outro que nós temos é o da Gates e o outro é a Mecânica
Alfa, esses dois imóveis, que estão parados, nós estamos negociando,
quase que finalmente essa negociação vai se fechar, a da Mecânica Alfa
bastante adiantada”
O secretário defende a viabilidade de refuncionalização de antigos
prédios industriais, comerciais e de serviços, lembrando que a própria
Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico está instalada num
antigo depósito na Avenida Presidente Kennedy.
“Era um depósito e a gerência de distribuição da Skol. Como essa área foi
doada, o município doou à Skol, tinha um contrato que ao término das
atividades da Skol eles devolveriam essa área para o município, quando
devolveu, alguns políticos na época quiseram fazer a transferência do
Quadrado (Departamento Municipal de Obras) para cá, e graças a Deus, o
Nevoeiro (Nevoeiro Junior, atual prefeito de Rio Claro), que era prefeito na
época, teve uma luz bastante grande, ele desenvolveu esse projeto de
incubadora de empresas, em parceria com a Fiesp e hoje é o sucesso que a
189
gente está aqui, acomodando a Incubadora de Empresas, a Secretaria e a
delegacia regional do Ciesp”
Apesar de afirmar que a secretaria realiza iniciativas para tentar
refuncionalizar os antigos prédios industriais do município, alguns imóveis
permanecem em estado de abandono. Hussni enumera alguns fatores que
estariam dificultando a retomada das atividades nas antigas fábricas, e
cogita a possibilidade de buscar outras atividades, fora do setor industrial,
para ocupar os prédios, como já aconteceu na antiga Tecelagem Matarazzo,
ocupada desde 1995 pelo Shopping Center Rio Claro.
“Se a gente sentir as dificuldades, sentir que não é uma coisa de procurar
o empresário, depende da economia em geral, diga-se de passagem vocês
sabem disso, que o dólar hoje atrapalha bastante o desenvolvimento da
economia interna, a nossa recessão, essas denúncias todas que estão
havendo (na política), o mercado es parado, a gente observa que o
empresário não está muito ativo, ele es bastante tranquilo. Se nós
sentirmos que não existe possibilidade por esse caminho, sim, como você
colocou, em outros paises até, podemos usar a área da Gurgel para
microdistritos industriais, outras opções de serviços, um shopping de atacado
de fábrica, um distribuidor da área agrícola Veja o caso da área do shopping
center, foi da nossa gestão anterior, inclusive eu era secretário também, nós
procuramos a família que era detentora da área, porque na realidade nós
queríamos fazer lá um grande projeto, e eles então falaram que na época que
se nós tínhamos um projeto pra aquilo , por que eles não viabilizariam o
projeto? Foi quando a gente apresentou então a idéia de se fazer o shopping
Na avaliação do secretário, a atividade industrial é a mais adequada à
refuncionalização da Gurgel devido à estrutura já existente na antiga fábrica.
“Ela bem voltada para a área da indústria porque são galpões bastante
altos, onde tinham pontes rolantes, que são mecanismos extremamente
industriais, os pisos são todos preparados para grandes prensas, então tem
todo um sistema de fixação, de peças, é uma área bastante voltada pra
industrial metalúrgica, mas nada impede de você fazer uma adaptação, os
galpões ainda estão em estado de boa utilização, o que não está mais é
toda a parte hidráulica e elétrica, isso foi totalmente perdido, o escritório está
totamente destruído, os refeitórios, os vestiários, tem mesmo a estrutura
básica, o restante tem que ser tudo refeito”
190
Apesar das dificuldades em promover a refuncionalização da área da
Gurgel, o secretário defende a necessidade da volta da atividade à antiga
fábrica:
“Eu diria que é a área principal da cidade, porque aqui na nossa porta de
entrada, na fachada da nossa cidade, são 470 mil metros quadrados, com
toda infra- esturtura, a rodovia Washington Luiz passando pela frente, a
ferrovia passando pelo fundo, tendo saída pela estrada Rio Claro-Piracicaba”
4.3- A situação da área da ferrovia na zona urbana do município
A área da ferrovia em Rio Claro é administrada desde a década de
1990 pela iniciativa privada, num contrato de concessão de 20 anos. A
concessionária Brasil Ferrovias tem como gerente geral de manutenção na
região Delcimar Souza. O gerente afirma que em todo o trecho administrado
pela concessionária, no trajeto entre os estados de São Paulo e Mato
Grosso, estão sendo investidos 1,3 bilhão de reais na via permanente. Os
trens de carga transportam principalmente soja, açúcar e minério de ferro.
De acordo com o gerente, na área urbana de Rio Claro a ferrovia
ocupa uma área de 200 mil metros quadrados, sendo que deste total as
construções ocupam 74 mil metros quadrados. Atualmente o quadro de
funcionários conta com 50 colaboradores da Brasil Ferrovias e 450
funcionários de empresas terceirizadas que prestam serviços para a
concessionária.
191
“Entre os investimentos, temos em Rio Claro a compra de locomotivas e a
recuperação de mais de 1.000 vagões. foram empenhados 33 milhões
de reais em processos de compra de vagões”
Delcimar afirma que as oficinas da ferrovia em Rio Claro, que são
responsáveis pela manutenção de vagões, podem passar a abrigar também
um setor de recuperação de locomotivas, serviço que atualmente é
realizado nas oficinas localizadas em Araraquara-SP.
Ao assumir a prefeitura de Rio Claro em janeiro de 2005, o prefeito
Nevoeiro Junior declarou que pretendia desapropriar toda a área ocupada
pela ferrovia na região central do município. Em contrapartida, novas oficinas
seriam construídas ao lado do trajeto da linha férrea que corta a região do
Jardim Guanabara. Questionado sobre a proposta, Delcimar afirma que a
empresa não é contrária, mas destaca que a mudança exigiria altos
investimentos para reproduzir no Jardim Guanabara toda a estrutura
existente hoje na área central, uma condição para que a Brasil Ferrovias
aceitasse a transferência.
A entrevista também abordou o problema do abandono de vários
trechos da ferrovia, com barracões parcialmente desabados e o mato alto.
Delcimar contesta as reclamações feitas por moradores vizinhos à ferrovia,
afirmando que gradativamente estão sendo promovidos reparos, limpeza
das áreas e pintura dos muros no trecho entre as avenidas 8-A e 24-A.
Quanto aos vagões abandonados na área da oficina que fica ao lado da rua
3-B, na Vila Indaiá, o gerente da Brasil Ferrovias afirma que os vagões o
patrimônio da Rede Ferroviária Federal.
192
Outro ponto levantado durante a entrevista foi a situação dos
barracões localizados na avenida 22-A com a rua 6-A, na Vila Alemã, onde
os moradores vizinhos encaminharam várias reclamações sobre o risco de
desabamento dos paredões que restaram das antigas oficinas. Para
responder à questão, Delcimar exibiu recortes de matéria publicada pelo
Jornal Cidade (Rio Claro-SP) na edição de 12 de novembro de 2005, onde
um laudo assinado pelos engenheiros da Secretaria Municipal de Obras
afirma que não há risco de desabamento dos paredões (anexo1).
4.4- Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias de Alimentação analisa
desativação da cervejaria
José Ramos é presidente do Sindicato dos Trabalhadores nas
Indústrias de Alimentação e Afins de Rio Claro 35 anos. Nesse período,
afirma que dois fatos marcaram a trajetória do sindicato: o fechamento da
Cervejaria Skol e o incêndio na brica de aguardente Vila Velha. Ramos
destaca a importância da cervejaria para os trabalhadores do setor de
alimentação:
“era a princpal empresa cujos trabalhadores eram representados pelo
sindicato (...) empregava mais gente, pagava melhor (...) nos
conquistamos restaurante, conquistamos décimo quarto salário,
conquistamos convênio médico, muita coisa a gente conseguiu (...) foi
uma perda total porque a empresa quando fechou tinha por volta de mil
funcionários, mas esses mil funcionários, eles compravam na cidade, então
foi uma quebra muito grande pra Rio Claro”
193
Ramos explica que as conquistas na área dos benefícios para os
trabalhadores exigiram a ação do sindicato na organização de movimentos
reivindicatórios:
“Nós tivemos greves sim, nós fizemos greve porque houve resistência
porque se tratava de uma empresa grande, muitas vezes quis experimentar,
mas o tratamento desde o Sérgio Hernani (coordenador Recursos Humanos
da Skol), falecido, que foi vereador, depois seu Elói que foi do
Departamento Pessoal, a negociação era sempre assim em clima de
sinceridade, honestidade e acolhimento”
Ao avaliar os motivos que levaram à desativação da unidade, o
presidente do sindicato dos trabalhadores tece críticas à administração
municipal da época:
“Havia muita crítica do local que a empresa estava instalada, principalmente
por parte de um ex-vereador radialista que metia a boca todo dia no
caminhões fazendo manobra e a gente percebeu, uns seis meses antes
de fechar, porque o gerente foi falar com o prefeito da época, Azil Brochini,
e tomou um chá de cadeira e recebeu um não quando ele queria que
baixasse a água. Uma cerveja que aqui em Rio Claro custava 900 para
vender por mil, em Jacareí, pra onde ela foi, gastava 500 e vendia por mil, e
lá tava ocioso”
O sindicalista defende que não houve empenho do governo municipal
da época para conceder benefícios que levassem à permanência da
cervejaria em Rio Claro:
“Eu acho, hoje, se tivesse prefeito com mais visão, porque é aquele caso,
você tem que ver as empresas que têm na cidade, aquela que é boa, tem
que conservar(...) infelizmente o prefeito da época, e o de antes também,
deveriam ter olhado um pouco mais pra Skol e ver o que era a Skol na
cidade, era uma das melhores empresas da cidade, então tinha que ter
segurado, não deixado ir embora, foi falha política”
194
Para o presidente do sindicato, o fechamento da empresa causou
impacto no município também pela forma como ocorreu o processo de
desativação:
“O jeito que eles fecharam foi chocante, foi chocante, eu tive duas coisas
chocantes recentemente, foi a queima da Vila Velha, quando pegou fogo
morreu um trabalhador, e quando fechou a Skol, chegou um pessoal
armado de escopeta, metralhadora, fuzil, sei o que tinha lá, tudo armado,
chegou e parou na porta, não deixou ninguem entrar, uma coisa assim,
parecia que os funcionários eram bandidos (...) muito chocante, não houve
nenhum aviso e houve pessoa armada (...). duas coisas que marca eu no
sindicato é a queima da Vila Velha, que era outra excelente empresa que
tava crescendo e o fechamento da Skol, eu vou fazer 35 anos que sou
presidente agora em 27 de dezembro (de 2005)”
Após o fechamento da fábrica da Skol, Ramos explica que
começaram a ser sentidas as consequências da desativação da unidade,
incluindo o aumento significativo do número de desempregados no
município.
“Nós temos que agradecer muito à Riclan (fabricante de balas e doces), na
época a Riclan pegou de 250 a 300 funcionários de (...) e outras
empresas pegaram mas teve muitos que precisaram mudar de Rio Claro
pra conseguir emprego e muitos ficaram muito tempo desempregados (...)
cada um que trabalhava ajudava a tratar de três, certo, três da família ou
pessoas que trabalhavam no comércio, o comércio perdeu muito porque o
pessoal era, da nossa categoria, era o lugar que pagava melhor,
principalmente no fim do ano, que recebia décimo terceiro e décimo quarto”
Após a desativação da unidade, o abandono do prédio também é
comentado pelo sindicalista:
“Eu confesso pra você Carla porque quando eu passava em frente os
olhos lacrimavam, lacrimavam porque eu era acostumado (...) então eu
passava lá, aquilo tudo parado, aquele patrimõnio parado, (...) era uma
tristeza total , não minha como de vários funcionários, eu muitas vezes,
se eu tinha que passar ali em frente eu dava a volta pra não ver o prédio
fechado (...) ficou muito tempo parado, agora hoje parece que tem uma
faculdade lá, que siga com Deus”
195
Entre o patrimônio da antiga cervejaria estava o prédio ocupado pelo
clube dos funcionários, localizado na avenida 2 entre as ruas 8 e 9, onde
atualmente está instalada a unidade do Senac- Serviço Nacional do
Comércio. Antes de receber o Senac, o prédio passou por uma ampla
reforma mas a fachada e algumas características internas foram
preservadas:
“Ali, Carla, era dos funcionários, eles tinham até uma ata que aquilo
pertencia a eles, mas não diziam que quando fechasse, qualquer coisa,
ficaria deles, até a gente tentou alguma coisa, consultar alguns juristas, mas
na ata já tava que era enquanto tinha a empresa, que era dos funcionários
e não era, agora o Senac pegou, construiu, que bom”
O sindicalista defende a preservação do prédio da cervejaria, mas
acredita que em alguns casos é preciso remover antigas estruturas para
resolver problemas que afetam o município, como seria o caso da ferrovia
que ainda tem trilhos que cortam a área central da cidade.
“Rio Claro tem umas coisas que eu às vezes respeito mas não concordo,
eu acho que deve conservar vários prédios, como aquele lá, se der para
conservar, agora você vem aqui na rua 1, nós tamo num sufoco aqui na
avenida 8 (cruzamento da ferrovia), tem hora que não para passar na
rua, e se abrisse a avenida 6, botando uma descer e uma subir, seria bem
melhor (...) agora nesse prédio da Skol, que tanto tempo funcionou como
clube, deve ser conservado, ali é uma construção muito sólida (...) indústria
ali não mais, é muito central, mas poderia botar comércio, eu não sou
religioso, mas a uma igreja (...) é um prédio sólido, pra aproveitar
muito, destruir é jogar dinheiro fora (...) a mentalidade de muita gente aqui
de Rio Claro precisa mudar, não criticando ninguém, é que a gente tem
que crescer, tem que ocupar os espaços e acompanhar o tempo, aqui em
Rio Claro as pessoas ocupam o espaço mas não acompanham o tempo ,
isso tá errado”
196
4.5- O caso do Shopping Center Rio Claro
O grupo de empreendedores que administra atualmente o Shopping
Center Rio Claro também participou da etapa de reforma do prédio da antiga
Tecelagem Matarazzo para a instalação do shopping center, em 1995. A
fachada da antiga fábrica foi preservada, mas o prédio passou por
mudanças na área interna para acomodar as lojas que atualmente
funcionam no local.
O questionário da pesquisa enviado à direção do Shopping Center Rio
Claro foi respondido através de correio eletrônico (e-mail) pelo diretor de
Marketing do shopping, Roberto Ruiz. As respostas não trouxeram muitas
informações sobre o processo de refuncionalização do prédio da antiga
tecelagem.
Questionado sobre o custo de preservar a fachada do prédio na
construção do shopping center, Ruiz respondeu:
“Aumentou bastante os custos, porém havia obrigação de manter a fachada
intacta, por estar tombada pelo município (...) o reaproveitamento realmente
exigiu um projeto especial para implantação do empreendimento”
Quanto à iniciativa de preservação da fachada, o diretor de Marketing
respondeu: “Mantida por estar tombada”. Apesar de afirmar que a fachada
só foi mantida devido ao “tombamento” Ruiz declarou que:
“A preservação é obrigatória e importante para o visual do Shopping”
197
No questionário também foram feitas perguntas sobre o movimento de
ex-funcionárias da tecelagem que estavam organizando uma associação.
O objetivo da questão era saber se a direção do shopping conhecia a
proposta da associação das ex-funcionárias e de que forma poderia
apoiar a iniciativa. Ruiz respondeu:
“O Shopping tendo espaço disponível, sempre pode apoiar as iniciativas”
4.6 - A ação do Sindicato dos Metalúrgicos na trajetória da Gurgel
Motores
Atual diretor do Sindicato dos Metalúrgicos - regional Limeira, José
Pereira dos Santos iniciava sua vida sindical enquanto a Gurgel Motores
começava a entrar em crise, na década de 1990. O sindicalista Pereira
acompanha a trajetória da Gurgel do início da crise até o momento atual, em
que passados mais de dez anos do fechamento da fábrica os cerca de 700
ex-funcionários ainda aguardam para receber os direitos trabalhistas que
não foram respeitados pela empresa.
A atuação do sindicato na Gurgel chegou a ser apontada como um
dos fatores que teriam levado ao fechamento da fábrica. Pereira nega
qualquer influência do sindicato no caso da Gurgel.
“O poder de influência da ação sindical sobre o poder econômico de uma
empresa, na verdade é quase zero, não na questão Gurgel como
198
qualquer uma outra, salvo raras exceções. O fechamento da empresa
Gurgel deu-se porque o empresário João Augusto Conrado do Amaral
Gurgel tinha um sonho ousado de ampliação de sua fábrica na esfera
nacional como internacional. Basta um olhar mais atento e vamos notar que
o Gurgel pretendia construir uma fábrica no Panamá, e também na cidade
de Eusébio, próximo à Fortaleza (CE)”
O sindicalista atribui o processo de falência da Gurgel a outros
fatores:
“O projeto de Fortaleza foi constituído mediante dois acordos financeiros: um
com Antonio Freury Filho (hoje deputado federal) e na época Governador do
Estado de São Paulo e com o Governador do Estado do Ceará, Ciro Gomes
(hoje ministro do governo federal). Ambos os acordos tinham investimento por
parte tanto de Freury como de Ciro no Nordeste. Acontece que tal Acordo de
Financiamento levou o empresário Gurgel a fezer grandes investimentos,
comprometendo a "vida" financeira da empresa com a expectativa de reaver
os investimentos com os acordos firmados. Acontece que os
então governadores na época não cumpriram os acordos financeiros e o
empresário ficou com dividas de grande monta, o que começou a levar a
empresa para uma crise. Ne mesma época (Governo Collor) houve um
bloqueio das contas da Gurgel com o confisco da poupança, que também
contribuiu muito para a crise da Gurgel. Somado a estes fatores, os salários
começaram a atrasar, a empresa deixou de pagar FGTS, deixou enfim de
cumprir os compromissos financeiros e que foi aumentando e ao final não
conseguiu mais controlar. Estas são as razões do fechamento da empresa
Gurgel”
De acordo com o diretor do sindicato, a relação entre a entidade e o
diretoria da Gurgel foi permeada por conflitos.
“O Senhor Gurgel sempre teve uma personalidade muito forte e era muito
resistente ao Sindicato. Fez várias investidas contra a direção de nossa
Entidade; como exemplo a proposta da criação de uma associação dos
empregados, desde que os empregados não fossem filiados ao Sindicato.
Até ai é compreensível, nunca imaginamos o Gurgel ou outro empresário
fazendo coro em defesa do Sindicato. Quando iniciamos nosso trabalho em
Rio Claro, começou comigo, era muito dificil, ele era resistente, partia para a
agressão e geralmente criava situações delicadas e complicadas; pois nós
não poderiamos arredar o pé senão estaríamos distante da defesa dos
empregados. No inicio do ano de 1987, na Gurgel, os empregados não
tinham refeitório, não tinham uniformes, não tinham onde guardar suas
bicicletas e não tinham transporte, além de uma série de outras
reivindicações. A primeira greve foi exatamente por estas questões e nós
conseguimos boa parte das reivindicações.A partir daí houve maior adesão
dos empregados ao sindicato, uma aproximação maior e começou todo um
199
processo de organização interna dos trabalhadores. mas nunca chegou ao
ponto de interferência econômica”
Quanto à demora na venda dos bens da Gurgel Motores, Pereira
aponta alguns acontecimentos e decisões que em sua avaliação estariam
dificultando a solução para o processo.
“Com relação à venda da Gurgel, acho importante não limitar a análise à
venda do prédio mas ao processo todo. Primeiro de se considerar que o
processo de falência é complexo por natureza, e é regido por uma lei que foi
constituida em 1943, não corresponde mais à realidade atual, esperamos
que a nove Lei de Falência melhore isto, mas a Gurgel ainda é regida pela
lei anterior. Especificamente muitas confusão no processo e situações
que nos deixam estarrecidos, por exemplo, a lei de falência expressa que o
síndico da massa falida deve morar na Comarca, e ainda diz que a função
do síndico é indelegável. para se ter uma ideia da situação, o síndico da
Gurgel mora em São Paulo, sendo nomeado como preposto o advogado
Jaime Marangoni. Acontece que na falência não existe preposto, (,,,) Os
leilões são mal elaborados, ao invés de colocar leiloeiros a Justiça
determina que o próprio oficial de Justiça o faça. Não é proibido, contudo
não mais indicado para venda de imóveis equivalente ao bem da Gurgel. O
ideal seria um leiloeiro. Os leilões são muito distante um do outro, a juíza
responsável pelo caso poderia de uma só vez determinar a realização de
mais leilões caso não arremate na primeira vez, mas não o faz”
Os cálculos feitos pelo sindicato indicam que os cerca de 700 ex-
funcionários da Gurgel Motores que aguardam receber os direitos que
deixaram de ser pagos pela empresa dificilmente conseguirão recuperar o
valor total da dívida.
“Acredito que pagará por volta de 70 a 80% dos valores de cada
empregado, muito dinheiro foi gasto sem solução e sem explicação. Você
entenderia a razão de termos porteiros na Gurgel ? Não são guardas, são
porteiros, que poderão ser inclusive mortos a qualquer momento, como
ocorreu com os outros dois que estavam (dois funcionários da
Segurança foram mortos na portaria da fábrica quando o prédio já estava
fechado. A autoria das mortes não foi apontada pelas investigações
policiais)”
200
Nas reuniões organizadas pelo sindicato onde estiveram presentes
ex-funcionários da fábrica, o diretor da entidade procura levantar como foi a
trajetória dos trabalhadores após a desativação da unidade da Gurgel.
Ainda não existem números sobre o destino dos operários. Pereira aponta
que nenhum trabalhador conseguiu receber qualquer valor da empresa até o
momento. Enquanto alguns conseguiram outro emprego formal, outros
deixaram a cidade. O sindicatlista também identifica entre os ex-funcionários
da Gurgel o grupo dos que até hoje sobrevivem na informalidade e outros
que ainda permanecem desempregados. Questionado sobre a atuação do
Sindicato dos Metalúrgicos na atual fase do processo da Gurgel, Pereira
finaliza:
“Está plena dentro dos limites possiveis, pressionando, sugerindo, intervindo
para que se resolva, mas esta muito difícil”.
4.7- A criação da cooperativa de ex-funcionários da Gurgel: uma
tentativa de garantir o pagamento dos direitos dos trabalhadores
Júlio Antonio Nascimento tem 56 anos e atualmente é funcionário
municipal, tendo como local de trabalho o Cemitério Municipal São João
Batista, em Rio Claro. Nas horas vagas, Nascimento se dedica à cooperativa
de ex-funcionários da Gurgel, uma iniciativa que em sua avaliação poderá no
futuro garantir o pagamento dos direitos aos cerca de 700 ex-funcionários da
empresa.
201
Nascimento começou a trabalhar na Gurgel em 1989 como pintor de
veículos, experiência que havia adquirido anteriormente trabalhando na
juventude com seu pai na oficina de funilaria da família. Depois da oficina,
Nascimento conta que também trabalhou nos Correios e na antiga Fepasa,
de onde teria saido por “divergências políticas” (sempre foi ligado aos
sindicatos de trabalhadores das categorias em que trabalhava). Na época,
Nascimento lembra que comemorou a conquista do emprego na Gurgel:
“pra quem saiu da parte pública e foi para era uma das melhores
empresas pra trabalhar’
Na fábrica da Gurgel Nascimento fazia a pintura de todos os modelos
de veículos fabricados na unidade:
“não era serviço puxado, era serviço que tinha prática e acabou fazendo, a
gente nasceu no meio disso, porque o pai também era, a gente trabalhou
com ele desde crianças (...) pra gente não era difícil, a gente saía bem,
especializando né, porque em 90 já tava especializado, era diferente da
do pai, mas não era um lugar péssimo para trabalhar, eu gostava de
trabalhar lá”
A ligação com o Sindicato dos Metalúrgicos, onde atuou como filiado
e diretor, também foi motivo de problemas na Gurgel:
“eu sempre fui uma pessoa que tive no meio político né, trabalhando no
sindicato, sempre defendi a classe trabalhadora. O Gurgel não deixava filiar
no sindicato, ele fez uma associação paralela pra que não fosse para o
sindicato, ele não gostava de sindicato, a gente teve várias divergências
que acabou vindo para o sindicato, ele mandou embora, depois a gente
ganhou na Justiça,voltou, reintegrou, voltou a mandar embora. Quando ele
fechou eu tava fora de novo, tinha mandado embora novamente”.
O pintor também tece críticas à visão empresarial do proprietário da
Gurgel Motores:
202
“O Gurgel, ele tinha uma idéia, ele achava que ele, ele era muito
nacionalista, ele tinha essa visão de sempre seguir sozinho, ele queria ter
uma empresa voltada pra ele em tudo, desde, até mandar nos funcionários,
então nessa parte eu chamava ele de nazista, porque ele decidia a vida dos
funcionários, da família dos funcionários”
Ex-diretor do Sindicato dos Metalúrgicos, Nascimento rebate as
críticas de que a entidade teria sido uma das responsáveis pelo fechamento
da fábrica.
“Não é porque eu tava dentro do sindicato que eu defendo o sindicato, eu
acho que o Sindicato dos Metalúrgicos é uma associação que mais defende
o trabalhador nos direitos dele, não deixar ser enganado pelo patrão. E
nessa parte o Sindicato dos Metalúrgicos não tem culpa de nada, os
trabalhadores não é uma classe unida, não têm a consciência do que é um
coletivo, e o sindicato sempre lutou pelo coletivo (...) quando você tem
união, você tranquilo tem força, se você não tem união, não tem força, por
isso que nós estamos passando por toda essa situação, a a nivel de
Justiça (...) nós poderia ter recebido, se nós tivesse união, tivesse força, a
Gurgel não taria na situação que tá”
O presidente da cooperativa destaca que um sinal da falta de união
entre os ex-funcionários da Gurgel é o grande mero de advogados que
representam o grupo:
“Você veja bem que o processo da Gurgel, com 760 funcionários, tem 32
advogados, então você que é uma discordância tremenda, cada cabeça
é uma sentença, e o Gurgel também trabalhou pra isso, bem no comecinho,
teve advogado aqui de Rio Claro que acabou recebendo algumas
prestações, nós tivemos no Tribunal de Campinas, nós tinha feito um
acordo com o Gurgel, foi dificil mas ele fez acordo para pagar a nossa
dívida em 30 vezes(...) tem um advogado aqui dentro da nossa cidade, que
acabou indo através da Justiça de Rio Claro e negociou quinze vezes,
então algumas pessoas receberam e outras não receberam
Nascimentoo sabe exatamente o quanto tem para receber da
Gurgel, mas faz planos sobre como utilizaria o dinheiro:
“A Justiça só fechou a minha carteira em 96, então não é muito, mas não é
pouco (...) hoje o valor taria na base de uns 26, 30 mil reais (...) eu tenho
planos, eu fiz financiamento da Caixa Econômica em 87 de uma casa,
fazendo isso para pagar ela, tô pagando 260 reais agora, depois que eu vim
pra prefeitura trabalhar conseguindo pagar mas com sacrifício porque a
203
gente tava atrapalhado trás, eu consegui sair de todos os meus rolos
agora no ano passado”
O trabalhador explica que enfrentou dificuldades para conseguir um
novo emprego após a desativação da fábrica:
fiquei em dificuldade, porque daí também como diretor de um sindicato
forte foi dificil arrumar serviço em outro lugar, fui pra um sítio, fiquei dois
anos no sitio, era o único lugar que eu podia trabalhar (...)eu acho que a
nossa lei trabalhista, muito a desejar, não sei como agora a nível de
falência, talvez agora seria melhor, nós poderiamos ter uma empresa, se
nos tivéssemos a lei que nós temos agora, de tocar empresa, nós
poderíamos ter os trabalhadores tocando uma empresa na Gurgel (...)
funcionando até hoje, nós lutamos pra isso, eu acreditava isso até por
formação da cooperativa, quando nós formamos a cooperativa (2001) nos
pensávamos nessa fábrica”
Nascimento afirma que o ideal seria que a fábrica tivesse sido
entregue aos trabalhadores logo após a desativação, como pagamento pelas
dívidas, para que os trabalhadores pudessem instalar uma nova empresa ou
até mesmo manter a montadora de veículos no local:
“na minha concepção era pra acontecer isso, gostaria que tivesse
acontecido isso, se nós conseguíssemos pegar a Gurgel, ainda nós
poderíamos, veja bem que foram vendidos os moldes do Carajás, do
Tocantins, tem uma empresa que comprou o nome da Gurgel para fazer
triciclo, fazendo em Araçatuba ou Catanduva, é coisa assim, e no
Mato Grosso ele montando uma fábrica pra isso, ele tem o molde pra
fazer o modelo Tocantis e o Carajás novamente (..) levei o jornal , porque
algumas pessoas passaram pra mim esse jornal (que noticia os projetos de
fabricação de veículos Gurgel), levei na semana passada e protocolei, tá na
Justiça. Na Internet, lá, as pessoas que lida com esse nomes, parece que tá
em aberto, ninguém tinha registrado esse nome, inclusive no jornal que a
famila Gurgel entrando porque é nome pessoal deles né, então não sei
como vai ficar isso, você que ainda tem alguém querendo tocar, tem
muito interesse nisso, imagine que o Gurgel estava montando um carro
inteiramente nacional quando ele fechou, teve essas dificuldades porque
alguns politicos também atrapalhou, o interesse da Autolatina que não
deixou ele prosseguir”
O pintor explica que a idéia de continuar fabricando os veículos
chegou a ser apresenta ao engenheiro Gurgel:
204
“É um trabalho que a gente poderia estar fazendo, o Gurgel, porque nós
oferecemos pra ele que ele ficaria no modelo, nas idéias, porque ele tinha
idéias, mas ele não aceitou, nós fizemos quatro reunião com ele, na época
ele precisava assinar embaixo passando, mas ele disse que os
trabalhadores não tinha capacidade para fazer isso, então ele se matou
porque quis”
A cooperativa formada em 2001 apresentou à Terceira Vara Cível do
Fórum de Rio Claro o pedido de adjudicação dos bens, com o objetivo de
que a fábrica fosse entregue aos trabalhadores como pagamento pela
dívida. De acordo com Nascimento, até o final de 2005, 430 trabalhadores já
haviam aderido à cooperativa mas a proposta foi rejeitada pela Promotoria
Pública. Segundo o presidente da cooperativa, o argumento da Justiça é de
que não há consenso dos trabalhadores em torno da entidade.
“Nem se vier todo mundo eu acredito que o promotor não dá, não sei qual é
a politica dele, porque ele fala que tem discordância para ele passar o
imóvel para nós, na verdade eu não acho discordância, agora, no último
leilão que nós tivemos, que nós com nossa dívida ofertamos pro juiz, foi
uma das melhores ofertas que nós fizemos, assim mesmo ele colocou que
ele não poderia dar porque tinha discordância(...) ele disse que ainda tinha
discordância e é pra todos, não sei qual que é pra todos, porque tão
acabando, tão vendendo e não tamos recebendo nada (...) esse dinheiro,
pelo que diz nosso advogado, entrando na massa falida, nós queríamos
uma coisa mais transparente, nós não queremos mais nada agora, não
adianta dar o barracão para nós, a não ser que for pra vender”
Nascimento defende que o dinheiro arrecadado nos leilões do
patrimônio da Gurgel com a venda de carros e equipamentos seja dividido
entre os trabalhadores, mesmo que os valores de cada parte sejam baixos
diante do total da dívida:
“Já que vendeu a parte do Ceará, vendeu outras empresas, vendeu
tudo, se o dinheiiro que lá, que eu não sei o quanto que esse dinheiro
(...) pegasse esse dinheiro, já que nós temos nossos nomes lá, abrisse uma
conta no nome de cada um, e fosse pondo proporcional a cada um, eu
acreditava, seria mais transparente, não importa o que vai receber (...) se
pagasse pelo menos alguma coisa, mesmo que receba dez, que receba
quinze (...) na minha casa, que eu já paguei dezesseis anos, eu fiz de vinte
e cinco, hoje taria no valor de 12 mil reais, se eu fosse receber (...) mas
esse dinheiro que eu já não conto com ele mais, não conto mais com ele,
então daria para mim ir jogando (...) que eu receba dez, doze mil, já seria
alguma coisa”
205
Nascimento comenta que os mais de dez anos de espera levaram os
trabalhadores a deixar de acreditar que um dia conseguirão receber seus
direitos, mas para o presidente da cooperativa ainda resta alguma
esperança:
“Enquanto eu ver ainda aquele prédio lá, do jeito que tá, embora acabando
com tudo, eu ainda tenho uma esperança de receber pelo menos uma
parte, não tenho esperança de receber tudo (...) mas a partir da hora que eu
não ver lá, e não ter nada na minha conta eu não tenho esperança mais (...)
eu vejo a Vigorelli, a Vigorelli tem vinte anos e se você conversar com o
pessoal da Vigorelli, ninguém recebeu nada, essa parte de falência eu
nunca ouvi falar que alguém recebeu, então não tenho esperança”
O presidente da cooperativa acredita que o pedido de adjudicação
dos bens da Gurgel não foi aceito pela Justiça porque foi feito
separadamente por cada advogado.
“Da outra vez foi separada a adjudicação, por isso que ele não deu , disse
que tinha discordância, agora possibilidade de fazer conjunto, pelo
menos nesse prédio a gente consiga fazer isso”
De acordo com Nascimento, o valor do prédio da antiga fábrica foi
avaliado em 17 milhões de reais pela Justiça, um valor considerado muito
alto em comparação aos preços do mercado pelo presidente da cooperativa:
“alto porque quando nós formamos a cooperativa, logo em seguida teve um
comprador ali de perto de Campinas, esqueço o nome, inclusive fomos ver
o projeto deles, chegaram a 8 milhões para nós, não era fábrica, era um
condominio de empresas de alto porte ( ...) tava dando certo e eles queriam
abrir uma aqui”
O ex-funcionário acredita que o valor de 17 milhões de reais é
suficiente para pagar todas as dívidas com os trabalhadores:
“Você conversa com a maioria do pessoal, falam Julio, o que vier pra nós
bem pago, se você conversar todo mundo disposto a aceitar isto, a gente
não revela muito pra outras pessoas porque nós sabemos, então, até o
206
governo de Rio Claro diz que ele vai fazer (a desapropriação do prédio),
então se souber disso”
O presidente ainda se lembra do período de crise e do fechamento da
fábrica:
“Quando fechou foi dificil, nós estávamos sete meses sem pagamento
(...) nós tinha feito toda aquela conversa e quando nós fizemos uma
assembléia no salão da prefeitura, o Gurgel veio para dar a posição e se
nós tivesse apertado ali nós tinha conseguido pegar a empresa naquele
momento, naquele momento tinha seiscentos carros semi-pronto dentro,
nos poderíamos negociar com os fornecedores, com as pessoas que
compraram os carros, mas infelizmente veio uma revendora de Salvador e
atrapalhou todo nosso trabalho, convidou algumas pessoas da Gurgel,
você naquele sufoco, falando que ia pagar o pessoal, foi lá, terminaram
os carros e ainda acabou ficando devendo para aqueles que trabalharam
mais cem dias (...) era um orgulho para nós trabalhar , mas infelizmente
não tinha condição (...) eu tenho lembrança, é uma lembrança que a
gente, fala assim, se o Gurgel tinha um sonho e acabou, principalmente pra
nós, nós também tinha um sonho, né, e acabou o sonho”
Nascimento afirma que sonhava com a fábrica novamente em
funcionamento, que sob o comando dos trabalhadores, mas atualmente
sabe que o prédio não tem mais condições para o projeto, mas ainda pode
abrigar outras atividades:
“É triste porque você vê, tem tanta gente falando que tá desempregada, que
um vai ajudar, o outro vai ajudar, se a própria Justiça nos ajuda, você
imagine uma situação daquela na nossa mão, um sonho que poderia ser
realizado, não vou dizer hoje, não vou dizer mais, poderia fabricar um carro,
não, mas poderia desmanchar, nós temos um projeto de cooperativa de
reciclagem, nós acabariamos com os atravessadores de ferro velho, que
tão dando margem para roubo, nós poderiamos centralizar tudo lá, a
Anteag tem um projeto de reciclagem de produto orgânico que é fabuloso”
207
4.8-A participação da ANTEAG na formação da cooperativa de ex-
funcionários da Gurgel
Na tentativa de agilizar a venda do patrimônio da Gurgel Motores para
que os cerca de 700 ex-funcionários consigam receber os direitos
trabalhistas aguardados mais de dez anos, um grupo de trabalhadores
organiza a formação da Cooperativa de Ex-Funcionários da Gurgel. A
formação da cooperativa exige a assessoria de uma entidade especializada
no setor. Durante o ano de 2004, um grupo de trabalhadores da Gurgel
recebeu a visita de uma equipe da Anteag- Associação Nacional dos
Trabalhadores e Empresas de Auto-Gestão.
De acordo com o diretor da entidade, Derly José de Carvalho, a
Associação Nacional dos Trabalhadores e Empresas de Autogestão
(ANTEAG) é uma entidade de representação dos trabalhadores e empresas
de autogestão e nasceu a partir de experiências que surgiram no contexto
da crise de desemprego e de falência das empresas como resultado das
políticas federais, dos anos 90, de abertura internacional dos mercados às
importações.
“Diante dessa situação, eles ousaram, de forma criativa, assumir as
empresas como credores prioritários dos empregadores falidos. Desde então,
foram surgindo, em grande número, cooperativas de produção, originárias de
negócios capitalistas falidos ou em vias de falir. É um imenso desafio para os
trabalhadores que não apenas carecem de cultura cooperativista e de
experiência na gestão de negócios, como assumem massas falidas ou o
patrimônio, geralmente deteriorado, da sua empregadora em processo
falimentar. Para encontrar respostas aos desafios, estes se associam, em
1994, apostando na capacidade coletiva para resolver problemas, e criam a
ANTEAG. Desde então, a ANTEAG pôde ter contato com mais de setecentas
208
empresas em situação falimentar e passou a trabalhar com muitas delas,
assessorando os trabalhadores no sentido de desenvolver uma nova forma
de gestão tendo como base as idéias de autonomia e democracia presentes
na autogestão”.
Segundo o diretor, a ANTEAG vem acompanhando e desenvolvendo
novas experiências com empresas de produção industrial nas cinco regiões
do país, representando mais de 32.000 postos de trabalho nos setores: têxtil,
agroindústria,alimentação, couro, calçados, metalúrgico, mineração,
serviços, confecção, plástico, coleta seletiva, cerâmica, mobiliário, papel e
papelão, vidro e cristal, tinta, borracha e artesanato.
“Em sua trajetória, a ANTEAG ampliou significativamente suas atividades
através do desenvolvimento de parcerias. Dentre elas, citamos o período de
1999 a 2001 quando atuou junto ao Governo do Estado do Rio Grande do Sul
e com o Governo do Estado do Amapá. No primeiro, em dois anos de
convênio com a SEDAI - Secretaria de Desenvolvimento Econômico e dos
Assuntos Internacionais - a ANTEAG organizou 420 empreendimentos
distribuídos em 129 municípios constituindo 18.519 postos de trabalho
diretos. No segundo, trabalhou novas dimensões do cooperativismo e
economia solidária associando-os à questão do meio ambiente e etnia. Mais
recentemente, dentre os contratos e parceiras com instituições públicas
destacam-se: a realização do Plano Nacional de Qualificação (PNQ) em
convênio com Ministério de Trabalho e Emprego, através da Secretaria de
Políticas Públicas de Emprego; as atividades realizadas com prefeituras com
mais presença nos Estados de Pernambuco, Santa Catarina e São Paulo.
O objetivo social das atividades da ANTEAG é recuperar e manter o trabalho
e renda, buscando o compromisso das pessoas com atividades produtivas,
envolvendo a vontade e a inteligência coletiva. Isto é, proporcionar aos
trabalhadores as condições de desenvolver práticas autogestionárias e
conhecer coletivamente a atividade produtiva, desenvolvendo instrumentos e
planos de melhoria contínua para a consolidação da empresa ou
empreendimento”.
Carvalho explica que os primeiros contatos entre a equipe da Anteag
e os trabalhadores da Gurgel aconteceram ainda na década de 1980:
“No inicio da década de 90 agravou a crise da Empresa e como na mesma
época alguns técnicos do DIEESE que também trabalhavam no Sindicato
dos Químicos de São Paulo entre eles Cido Farias e eu defendíamos a
recuperação dos postos de trabalhos perdidos pela Falência das empresas
ver Historia da ANTEAG o Sindicato dos Trabalhadores nas Industrias
209
Metalúrgicas, de Limeira e região nos contatou para uma conversa com os
trabalhadores e com a empresa como resultado destas atividades foi feito
um estudo de viabilidade econômico/financera e mercadológica em 16 de
Junho de 93 este foi um estudo realizado pelo Sindicato dos Trabalhadores
Metalúrgicos de Limeira e Região coordenado pelo Departamento
Intersindical de Estatisca e Estudos Sócio-Economico (DIEESE)”
De acordo com o diretor da Anteag, no estudo sobre a Gurgel foram
detectados problemas como o boicote do oligopólio automotivo; idealismo e
ingenuidade política; e má administração organizacional;
“Foi feita uma proposta para o proprietário da empresa de retomada da
produção com a participação dos trabalhadores e do Sindicato na gestão da
empresa, porém, ele foi acessível, a proposta no primeiro momento mas ele
não deu continuidade às negociações e nos meses seguintes a crise se
agravou até a falência da empresa”
O diretor da Anteag enumera trabalhadores de outras empresas que
também receberam a assessoria da entidade. De acordo com Carvalho, para
que uma empresa falida possa ser recuperada, é preciso contar com a
vontade dos trabalhadores.
“O caminho utilizado pela ANTEAG é a sensibilizão dos trabalhadores,
através de exemplos de outras empresas semelhantes, em seguida fazer
uma análise da viabilidade do negócio; a organização dos trabalhadores
em uma empresa coletiva de propriedade dos trabalhadores, que pode ser
uma cooperativa ou uma empresa de cotas participativa e a negociação
com os proprietários ou com o Juiz da massa falida para alugar a planta
produtiva até que se defina como os trabalhadores vão assumir a
propriedade da empresa. Também é preciso negociar com os fornecedores
e com os clientes”
O diretor cita os casos em que a Anteag atuou, como a “Nicola Rome
Máquinas e Equipamentos” em Mococa (SP) onde atualmente funciona a
Coopromem, cooperativa que reúne 300 trabalhadores. também o caso
210
da “Usina Catende” no município de Catende (PE), atual Cia. Harmonia e
futura Cooperativa Agro Industrial, projeto que envolve 3000 trabalhadores.
Em Diadema (SP), 450 trabalhadores trabalham na Uniforja Metalúrgica,
organizada a partir da antiga Conforja. Em Criciúma (SC), a Cooperminas
reúne 750 trabalhadores; a antiga Vila Romana, em Aracaju (SE) foi
transformada em Cooperveste Confecções, onde trabalham 750 pessoas,
entre outros casos citados pelo diretor da Anteag.
“Estas são algumas de nossas empresas, entre umas centenas de
empresas falidas, que se tornaram viáveis a partir do momento em que os
trabalhadores assumiram a empresa através da gestão e propriedade
coletiva; no início, em algumas empresas, não houve viabilidade em
conseqüência talvez da falta de experiência no setor como Makerli
Calçados, em Franca, e Sakai Moveleiro, na Grande São Paulo”.
O diretor da Anteag avalia que o saldo de patrimônio da Gurgel
atualmente não é mais suficiente para pagar todos os direitos devidos aos
seus cerca de 700 ex-funcionários.
“Em primeiro lugar a Gurgel como indústria automotiva nunca teve
viabilidade econômica, principalmente para romper a concorrência
internacional sem o apoio do governo. Acho que a empresa foi uma
aventura de um empresário com os milagres da ditadura militar. Em relação
ao pagamento da divida trabalhista total é impossível porque o patrimônio
que sobrou é menor que o montante da divida e está sendo destruído com o
tempo. A saída seria o Poder Judiciário entregar o patrimônio para a
cooperativa dos trabalhadores administrar um projeto que desenvolvesse
outros produtos”
Carvalho defende que a entrega do patrimônio aos trabalhadores
seria atualmente a única alternativa para que os ex-funcionários consigam
receber parte da dívida acumulada pela Gurgel.
211
“A partir de 2003 o Sindicato (dos Metalúrgicos) e a Cooperativa
(trabalhadores) fizeram novos contatos com a ANTEAG para buscar uma
nova saída para a Gurgel. Em assembléia com os trabalhadores, a proposta
da ANTEAG é que a Justiça entregue as instalações e o terreno para a
cooperativa dos trabalhadores pelo valor real do patrimônio, e no local
podemos montar um projeto capaz de gerar trabalho e renda para os
trabalhadores, explorando outros produtos, contribuindo para o
desenvolvimento local, através de uma mobilização da sociedade, do poder
público e de outras parcerias”
Carvalho exemplifica que no prédio da antiga fábrica da Gurgel poderia
ser desenvolvido um projeto na área imobiliária, com construções
habitacionais, ou o aluguel do local como condomínio industrial. O diretor da
Anteag também cogita a possibilidade de um projeto de incubadora
tecnológica para empresas de autogestão. Para financiar os projetos, o
diretor da Anteag defende a busca de investimento do BNDES e apoio do
poder público federal, estadual e municipal.
212
Considerações finais
Modernidade e tradição são temas que aparecem em conflito dentro das
discussões sobre a refuncionalização dos “brownfields”. O retorno da
atividade aos antigos prédios industriais é um anseio da comunidade, uma
iniciativa para ajudar a promover o desenvolvimento nos municípios. Mas
quando esse “desenvolvimento” é acompanhado pela descaracterização do
prédio surge o conflito com os anseios das pessoas que trabalharam ou de
alguma forma tiveram suas vidas ligadas às antigas fábricas. Para esses
trabalhadores hoje aposentados, a preservação da memória dos
empreendimentos está ligada à manutenção dos prédios antigos. Na dúvida
entre demolir ou preservar, muitos prédios acabam sendo destruídos com o
passar do tempo, enquanto não uma definição sobre a política que as
cidades devem adotar quanto ao seu passado industrial.
Um exemplo que ilustra essa dúvida sobre a refuncionalização dos
“brownfields” em Rio Claro é o da ferrovia. As antigas oficinas e a linha
férrea dividem a cidade em plena área central. Ferroviários aposentados e
profissionais como arqueólogos e historiadores defendem a preservação das
instalações e se manifestam na imprensa contra as modificações feitas nos
antigos barracões. Para as gerações nascidas após o auge da ferrovia no
município, porém, os prédios das oficinas (parte em estado de abandono),
antigos galpões e a linha férrea representam atualmente um obstáculo ao
desenvolvimento e a causa de transtornos no trânsito afunilado somente em
algumas passagens existentes na linha férrea. Várias o as propostas para
213
ocupar a área onde estão as oficinas caso elas sejam um dia transferidas,
como defende o atual governo municipal, que planeja a mudança de toda a
estrutura para o Jardim Guanabara, na periferia do município. Um exemplo
onde novamente tradição e modernidade estão em conflito. Preservar ou
demolir?
Quando se trata das iniciativas para a refuncionalização dos
“brownfields”, o objetivo não é apenas devolver a atividade a um
determinado prédio para que este não fique ocioso. A refuncionalização é
uma das iniciativas na busca pelo desenvolvimento das comunidades, na
medida em que permite a volta da geração de renda, empregos e a solução
dos problemas trazidos pelo abandono das áreas, incluindo os problemas
sociais e os vazios na paisagem da cidade.Souza lembra que:
(...)o usual, no tocante ao assunto, ainda é tomar desenvolvimento como
sinônimo de desenvolvimento econômico, e mesmo a maioria das tentativas
de tentar amenizar o economicismo (inclusive da parte de um ou outro
economista) não consegue ultrapassar o seguinte ponto: no limite, a
modernização da sociedade, em sentido capitalista e ocidental, é o que se
entende por desenvolvimento (SOUZA, 2002, p 60)
Para Souza (2002, p60), porém, o “desenvolvimento é entendido
como uma mudança social positiva”:
O conteúdo dessa mudança, todavia, é tido como não devendo ser definido
a priori, à revelia dos desejos e expectativas dos grupos sociais concretos,
com seus valores culturais próprios e suas particularidades histórico-
geográficas. Desenvolvimento é mudança, decerto: uma mudança para
melhor. Um “desenvolvimento” que traga efeitos colaterais sérios não é
legítimo e portanto, não merece ser chamado como tal (SOUZA, 2002,
p61).
214
Para que a refuncionalização dos “brownfields” possa ser considerada
desenvolvimento segundo o conceito de Souza é preciso considerar alguns
aspectos levantados nessa pesquisa. As entrevistas mostram queo basta
apenas atrair uma nova atividade para o prédio abandonado. Essa nova
função precisa ir de encontro aos anseios da comunidade que a cerca e dos
que participaram da história dos empreendimentos (como o caso dos ex-
funcionários).
(...) pode-se dizer que se está diante de um autêntico processo de
desenvolvimento sócio-espacial quando se constata uma melhoria da
qualidade de vida e um aumento da justiça social. A mudança social
positiva, no caso, precisa contemplar não apenas as relações sociais mas,
igualmente, a espacialidade (...) No que tange à melhoria da qualidade de
vida, ela corresponde à crescente satisfação das necessidades- tanto
básicas quanto não-básicas, tanto materiais quanto imateriais, de uma
parcela cada vez maior da população (SOUZA, 2002, p 62)
O processo de refuncionalização dos “brownfields” também envolve a
preservação do patrimônio industrial dos municípios. Em Rio Claro, de
acordo com a representante do Condephaat no município, a professora
doutora Mirna Vieira (Unesp-Rio Claro-Departamento de Geografia), dos
quatro empreendimentos em estudo nesta pesquisa apenas a ferrovia tem
uma parte tombada como patrimõnio histórico, a antiga estação ferroviária,
localizada na Rua 1 com a Avenida 1, no Centro(anexo 6).
De acordo com a ficha de identificação de bem tombado, elaborada
pelo Condephaat, a estação ferroviária foi declarada patrimônio histórico
tombado em 14/11/1985. A publicação no Diário Oficial foi em 19/11/1985.
Na ficha consta que o atual edifício da estação data de 1910, “em
substituição da estrada original, e insere-se no estilo eclético, apresentando
215
grande número de elementos de origem neoclássica, dispostos de maneira
bastante livre. Edificado em tijolo, com cobertura em telhas francesas e
telhas metálicas, possui elementos em ferro, consequência da própria
instalação da ferrovia, pela qual chegavam os novos materiais”.
A estação ferroviária está localizada fora da área das oficinas da
ferrovia, um dos empreendimentos analisados na pesquisa. Segundo a
representante do Condephaat, também são bens tombados em Rio Claro o
Horto Florestal e Museu Edmundo Navarro de Andrade (atual floresta
estadual); o sobrado de pedra da sede da fazenda Grão-Mogol; o sobrado
Barão de Dourados (atual Museu Histórico e Pedagógico Amador Bueno da
Veiga) e a Usina Hidrelétrica de Corumbataí. Neste último caso trata-se de
um “brownfield” que foi refuncionalizado, passando da função de produtor
de energia para a função educativa sob a administração da Fundação
Patrimônio Cesp .
Em alguns municípios, o poder público toma a iniciativa de apresentar
projetos de lei às maras municipais para preservar prédios que têm
importância histórica. No município de Araras (SP) está em atividade o
Conselho Municipal do Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural- COMPHAC,
(anexo 7) subordinado à Secretaria Municipal de Cultura. Criado em 1987, o
conselho foi regulamentado em dezembro de 1994 através de um decreto do
Poder Executivo.
O decreto da prefeitura de Araras estabelece que os conselheiros
serão nomeados pelo prefeito municipal. Entre as atividades previstas para o
COMPHAC está a fiscalização do limite de 50 metros de proteção no
216
entorno dos patrimônios tombados. Nesse raio, as novas construções não
poderão ultrapassar os dez metros de altura e qualquer construção ou
demolição precisa de autorização do conselho. De acordo com matéria
publicada no jornal Opinião de Araras, em agosto de 2005, o município
tinha um bem tombado pelo Condephaat, a Casa da Cultura. Com a criação
do conselho municipal, foram tombados mais 17 prédios e locais públicos,
entre igrejas, escolas e praças.
As entrevistas com os ex-funcionários das Oficinas da Cia. Paulista de
Estradas de Ferro, Cervejaria Rio Claro (Skol), Tecelagem Matarazzo e
Gurgel Motores pemitem avaliar uma outra dimensão da problemática dos
“brownfields” dentro dos municípios. Os prédios abandonados não são vistos
apenas como um problema econômico, mas também como provas do
descaso da cidade para com o seu passado e com a memória das pessoas
que ajudaram a construí-la. Ao serem convidados para as entrevistas,
muitos trabalhadores pediam que a pesquisadora fizesse contato com os
antigos chefes das fábricas, alegando que estes seriam as pessoas
indicadas para as entrevistas. Entre eles permanecia a idéia de que as
histórias dos operários o despertam interesse, que em nada poderiam
contribuir para o resgate da importância que essas fábricas tiveram na
história da cidade.
Os depoimentos mostraram exatamente o contrário. Trabalhando na
linha de produção, esses operários conheceram a fundo o dia-a-dia nas
empresas, se envolveram nas iniciativas para desenvolver os
empreendimentos e criaram relações com a fábrica que vão muito além da
217
prestação de serviços. O trabalho teve tanta influência em suas vidas que
alguns passaram a morar próximo aos prédios das fábricas, nas horas vagas
jogavam no time da empresa e frequentavam seu clube e até encontraram
maridos e esposas dentro do quadro de funcionários. Quando a fábrica
fechou, o impacto na vida desses trabalhadores foi muito além da perda do
emprego.
O objetivo específico da pesquisa foi exatamente esse. Registrar a
história dos que não aparecem nas publicações sobre as indústrias mas que
contribuiram com sua dedicação para o sucesso dos empreendimentos.
Contribuiram com muito mais que trabalho, como mostram os depoimentos,
principalmente os dos trabalhadores mais velhos, como nos casos da
ferrovia, da cervejaria e da tecelagem. Nas entrevistas é possível perceber a
relação de afeto que os trabalhadores desenvolveram em relação às
empresas, a maneira emocionada como descrevem o trabalho e a
constatação do encerramento das atividades e do abandono do imóvel.
Estes homens e mulheres são testemunhas de uma época que já não
existe mais no mundo do trabalho. São da época em que a estabilidade era
um fator comum dentro das empresas, em que era possível trabalhar
durante trinta anos ou mais na mesma fábrica, onde além do trabalho se
desenvolviam relações de amizade que o mantidas até os dias atuais. Em
alguns depoimentos foi possível detectar algumas consequências negativas
da antiga relação operário/fábrica, como a dependência em relação à
empresa não só para o trabalho como também para o lazer (times de
futebol, clubes) e até para o consumo (com as compras da família sendo
218
feitas nas cooperativas como a da ferrovia e a da tecelagem). Dentro dessa
relação de dominação, o impacto na vida do operário quando a fábrica foi
desativada acabou sendo ainda maior que somente a perda do emprego.
As mudanças no mercado de trabalho podem ser percebidas na
comparação entre os depoimentos dos ex-funcionários de fábricas que
tiveram seu auge no período entre 1940 e 1970, como a Matarazzo, e os da
Gurgel Motores, que começaram a ser contratados na cada de 1970. Na
pesquisa, não houve dificuldade em encontrar pessoas que trabalharam 20,
25 e a 30 anos na ferrovia e na cervejaria. No caso da montadora de
veículos, os contatos com os ex-funcionários mostraram que poucos
trabalharam mais de dez anos na fábrica. O caso da tecelagem merece
análise em separado já que várias mulheres afirmaram que pretendiam
trabalhar até a aposentadoria, mas na época era prática comum deixar o
emprego após o casamento.
A falta de uma definição para o caso da Gurgel também é um fator
que influencia nas lembranças que os ex-funcionários trazem sobre o tempo
em trabalharam na fábrica e a avaliação que fazem sobre o atual estado de
abandono das instalações da montadora. Após a desativação, muitos
enfrentaram dificuldades financeiras que não conseguiram receber seus
direitos. Os cerca de 700 ex-funcionários ainda aguardam a venda da
fábrica. No s de abril de 2006 foi realizado o sexto leilão dos bens da
Gurgel, promovido pela Justiça, mas novamente não houve comprador que
oferecesse os quinze milhões de reais ou um valor aproximado pelo prédio.
Proprietários de uma cerâmica que compareceram ao leilão afirmaram ter
219
interesse no prédio, mas que não poderiam oferecer mais que cinco milhões
de reais devido ao estado de abandono em que se encontra o imóvel. De
acordo com os empresários, um engenheiro que esteve no local para fazer
uma avaliação a pedido da cerâmica constatou que em muitos galpões até a
estrutura das paredes já está comprometida devido ao abandono. Sem
esperança de venda da fábrica, os advogados que representam os
funcionários apresentaram uma proposta de adjudicação dos bens. Caso a
proposta seja aceita pela Justiça, a fábrica seria entregue aos trabalhadores
em troca da dívida deixada pela Gurgel.
220
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