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TERESA BERLINCK
DESENHOS DO SONO
Dissertação apresentada ao Curso de
Mestrado em Artes Visuais da
Faculdade Santa Marcelina, como
requisito parcial para a obtenção do
Grau de Mestre em Artes Visuais.
COORDENADORA: Profª. Drª. MIRTES MARINS DE OLIVEIRA
ORIENTADOR: Profª. Drª. MIRTES MARINS DE OLIVEIRA
SÃO PAULO
2006
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2
Sumário
Introdução 2
Desenhos do sono 3
Imagens monotipias 15
Imagens do projeto Intimidade 21
Desenhos do sono I 24
Desenhos do sono II 26
Segredos 28
Desenhos do sono III 30
Imagens Desenhos do sono na parede 32
Referências 47
Anexo – Desenhos do Sono 50
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3
Introdução
O período do ingresso no mestrado coincidiu com a retomada, em meu
trabalho de artista, de um grupo de desenhos que chamei de Desenhos do
sono. Estes desenhos são a célula-mãe de uma série de obras e foram
definidos como objeto da pesquisa de mestrado, pois sua elaboração e
desdobramentos ocasionaram mudanças em minha maneira de ver e fazer
meu trabalho de arte.
A seguir apresento as imagens
1
e o texto que configuram esta
pesquisa. As imagens o o meio, o ponto de partida do trabalho; o texto
pode ser definido como relato que apresenta dois aspectos do processo de
sua elaboração: a descrição de procedimentos e alguma reflexão sobre esta
produção.
1
As reproduções dos Desenhos do sono encontram-se em volume anexo.
4
Desenhos do sono
No ano de 1998 fiz um conjunto de desenhos à maneira de um diário
noturno. Nesse período, observava sensação de fadiga constante, estado em
que a posição deitada parecia representar não somente repouso e descanso,
mas também a ideal. A gravidade se impunha com intensidade nova: gestos
e iniciativas destacavam-se na imobilidade densa, como se meu corpo
estivesse submerso em uma realidade turva e lodosa. Em movimento, e
principalmente em repouso, pequenos gestos ou deslocamentos, mudanças
de posição, extensões ou contrações musculares surgiam muito nítidos, em
contraste com a sensação de peso.
Deitada na cama e próxima do momento de adormecer comecei a
desenhar e, por meio do desenho, observar mais detidamente as sensações
do corpo e as imagens que surgiam. Roland Barthes
2
reflete sobre a fadiga
como ponto de partida para o trabalho:
Pode-se fazer uso de sua fadiga diante dos outros, mas pode-
se também representar sua própria fadiga. Como? Dizendo-a. A
fadiga pode ser observada enquanto trabalho, jogo, criação. (...)
A fadiga pode ser criativa talvez a partir do momento onde
aceitamos ouvir as ordens. Se eu aceito assumir as ordens da
fadiga, ela pode criar algo. Por conseguinte, o direito à fadiga
faz parte do novo. Coisas novas podem nascer da lassidão.
(...) A fadiga funciona então como simples metáfora. Ou seja,
um signo sem referente que provém do domínio do artista. É de
Blanchot: "Não quero que suprimam a fadiga; quero ser
conduzido a um lugar onde é possível ficar com fadiga". É então
a reivindicação ao repouso social. (p. A – 31)
2
Trecho de curso ministrado por Roland Barthes, em 1978, no Collège de France, publicado
na Folha de S. Paulo caderno Ilustrada, em 3 de outubro de 1987 (p. A 30 e A 31),
tradução e seleção: Lisette Lagnado.
5
Em relação à sensação de peso, imobilidade e cansaço, a posição
deitada poderia representar o estado físico limite, a postura ideal. Mas a partir
do momento em que os desenhos começaram a surgir, ela configurou uma
mudança de padrão. O desenho, em minha experiência, era geralmente
realizado na pose sentada ou de pé, com os braços livres, o corpo alerta e
atento. Mudar o local e a postura utilizados para essa atividade ocasionou
uma nova visão, que colaborou para a experiência da observação do corpo e
a busca por imagens. Manoel Tosta Berlinck (2005), observa:
O recolhimento e a lentificação das funções vitais próprios da
depressão solicitam um espaço acolhedor e provedor onde o
humano possa levar sua existência, uma vivência no tempo
onde importantes mutações podem ocorrer. Esse espaço
acolhedor e provedor, que alguns denominam de ambiente, é o
circundante inespecífico que assegura a vida. Trata-se de um
território, um espaço marcado por fronteiras, ou seja, com
limites entre o dentro e o fora. (p. 14 )
Muitos dos desenhos que surgiram nesse diário apresentam figuras
em poses de tensão e extensão corporal. Essas posições surgiram como
imagens que representavam a tentativa de me acomodar, me adaptar e
eliminar o desconforto de estar no mundo, observados juntamente com
sensação de deslocamento e inadequação. Ainda citando Roland Barthes
(1978): "O que me cansa é procurar (sem encontrar) meu lugar"
3
.
*
O desenho começou no meio de um processo, como anotação. A
3
Ibid.
6
partir da posição deitada, no estado de sonolência próximo ao instante de
adormecer, surgiu a série de trabalhos posteriormente intitulada Desenhos do
sono. O ato de desenhar funcionou inicialmente como observação e registro
de sensações e sentimentos que apareciam por meio do corpo. O corpo e o
desenho foram instrumentos de captação, funcionaram como imaginação:
processo de busca e formação de imagens. A cineasta argentina Lucrecia
Martel
4
explica seu cinema como sendo baseado na experiência física: "Meu
corpo é a única geografia sobre a qual posso assentar meu pensamento, o
único lugar que me serve de eixo. Mesmo que filmasse 'Alien 5' seria um
pouco autobiográfico".
Esses desenhos foram iniciados como um movimento de auto-
observação: conduzia minha atenção para o corpo e reparava nos resíduos
do dia que passou, na lembrança dos acontecimentos que reverberavam por
meio de sensações como tensão, cansaço ou relaxamento. A partir do
surgimento destas lembranças e persistências de intensidades vividas,
procurava ficar disponível para o surgimento de imagens. Mário Perniola
(1993) explica o sentir como atividade que "implica um querer sentir". Para
ele, "a sensibilidade, a afectividade, a emoção (...) significa precisamente
exercício (...) Não existe nada de espontâneo neste processo (...) A atenção,
a vigilância, a aplicação constante são condições do sentir" (p. 103).
Uma das buscas presentes no processo de elaboração destes
desenhos é a atenção e sua manutenção para minha relação física com
acontecimentos, o mundo e as coisas. Desenhar, perguntando: – Qual a
ocorrência que reverbera aqui-e-agora, em meu corpo? Desenhar,
observando: qual poderia ser a imagem (que também reverbera em mim de
forma notável) para esta sensação e a partir desta ocorrência?
4
... e Deus criou a mulher - Reportagem de Silvana Arantes sobre o lançamento do filme A
Menina Santa, dirigido por Lucrecia Martel – Folha de S. Paulo, caderno Ilustrada, 11/8/2005.
7
O estado de fadiga e sonolência que ocorreu no gesto de fazer estes
desenhos, talvez possa ser comparado a características presentes no
desenho automático do programa dos surrealistas. A experiência de utilizar a
falta de nus como parte de um tipo de método, foi definida pela consciência
"de desenhista": eu procurava me disponibilizar para o surgimento de
imagens, também a partir desse estado. Rosalind Krauss (2002) define a
idéia do gesto automático presente no Surrealismo de André Breton:
O desdobramento cursivo da escrita ou do desenho automático
é para ele [Breton], (...) uma manifestação ou um registro,
semelhante às linhas traçadas no papel por um sismógrafo ou
um cardiógrafo. O que esta trama cursiva faz surgir ao ganhar
visibilidade é a percepção direta do que Breton chama de
"unidade rítmica", que define como "ausência de contradição, a
mobilidade dos investimentos emotivos devidos ao
recalcamento, a ausência de temporalidade e a substituição da
realidade exterior pela realidade psíquica, submetida
unicamente ao princípio do prazer ". (p. 112)
Alguns destes desenhos foram feitos apenas uma vez: são o resultado
do primeiro registro de uma cena, a nota tônica de uma lembrança ou de um
sonho. Outros ocorreram em etapas, como uma investigação: por meio do
redesenho na procura da imagem certa, experimentando diferentes
possibilidades com a pressão do lápis, a velocidade do gesto, a localização
da figura na folha branca.
A maneira como os desenhos foram realizados pode ser comparada à
definição para as palavras inglesas draw ou drawing, que aparece no texto
“Desenho e emancipação” (1973) de Flávio Motta: "... o draw ou drawing é
desenho entendido mais como esboço, croqui, delineação, isto é, 'tirar', atrair
para si, captar, puxar" (p. 1-2)
8
O que importava naquele momento e depois, quando os desenhos
configuraram um conjunto, eram as imagens que surgiam. Os sentimentos e
as sensações iniciaram alguma coisa, mas o que deu movimento ao
processo foi o ato de desenhar e as imagens que apareceram nos desenhos.
Considero estas imagens o resultado de um gesto investigativo e, de
certa forma, testemunhal. Testemunhal pois elas revelam e manifestam,
confirmam um fato, algo ocorrido, uma vivência. Fazem um tipo de relato – de
comunicação e, ao desenhar, revejo e revivo a experiência. Para Shoshana
Felman (2000), "Como uma forma de relação com os eventos, o testemunho
parece ser composto de pequenas partes de memória (...) uma prática
discursiva, em oposição à pura teoria. Testemunhar (...) é realizar um ato de
fala" (p. 18). Essa autora observa que, tanto na psicanálise como na literatura
[e aqui talvez possam ser incluídas as artes visuais], "o testemunho (...) será
compreendido não como uma modalidade de enunciado sobre, mas como
uma modalidade de acesso àquela verdade" (p. 27).
Desenhar figurando gestos e posições do corpo foi parte de uma
procura para entender e constituir imagens durante a experiência. Uma
tentativa de vivenciar e compreender algo por meio do desenho. O que foi
elaborado em meu trabalho, constituiu uma nova maneira de desenhar. Na
experiência de fazer esse tipo de diário, vejo meu olhar voltado de forma
sistemática (todas as noites), para mecanismos relativos ao espaço dos
devaneios, dos sonhos, do imaginar. Todas as noites pego as folhas em
branco e me proponho a entrar em contato com a sensação física daquele
momento para elaborar um tipo de imaginação que vai acontecendo no ato
do desenho.
O desejo de não esquecer, de não desviar-me do sentimento gerador
de cada imagem esteve presente o tempo todo no trabalho. Acreditar e me
esforçar para manter a conexão com o espaço interno. Os desenhos, de
9
alguma forma, deveriam ser portadores da mirada para dentro (no caso deste
trabalho), o meio do aparecimento da imagem, sua imaginação.
*
Ao mesmo tempo que observo (na busca de imagens para
sensações), a procura pela redução da distância entre uma impressão e sua
imagem, noto a impossibilidade de alcançar este objetivo. Os desenhos são
representações, e, assim, tentativas de formar imagens para algo não-visual.
E quando eles começaram a aparecer, iniciou-se uma fala do desenho, um a
partir do outro, noite após noite. Passei a me referir não somente às
sensações que estava procurando figurar, mas também às figuras que iam
surgindo.
No processo de fazer os desenhos formou-se um alfabeto, um
vocabulário que definiu um conjunto com características comuns, como as
formas arredondadas feitas com poucas e meio mal traçadas linhas ou as
imagens soltas na metade inferior do campo branco da folha, sempre na
posição vertical. Rudolf Arnheim (1971) considera que "o conhecimento
intelectual em si não influencia o caráter de uma imagem visual. imagens
podem influenciar imagens. (p. 66).
O aparecimento repetido de características dos desenhos como as
linhas arredondadas ou a mesma imagem um pouco modificada é,
igualmente, a tentativa de ajuste, a procura para encontrar uma forma
satisfatória. Assim, o conjunto de desenhos representa também seu processo
de elaboração. À medida que as imagens apareciam elas ingressavam em
um movimento de redefinição contínua (durante o período de elaboração do
diário e depois, quando fiz outros trabalhos a partir deste grupo de
desenhos).
10
Alguns dos Desenhos do sono têm a linha clara revelando a pressão
leve do lápis que apenas toca o papel. Este gesto cuidadoso é resultado da
procura por um movimento que não seja ruidoso, que o desvie a atenção
do processo de imaginar desenhando. Comparo este cuidado com o que
preciso ter ao acordar de manhã, quando desejo manter um sonho vívido
para sua rememoração completa: a concentração está voltada para as
imagens que se dispersam no meio dos estímulos, sons e solicitações do dia
que se inicia.
Ao fazer estes desenhos, minha atenção se dirigia para dentro, para
um lugar do silêncio e que foi acessado por meio dele. Roland Barthes (1978)
investiga o silêncio:
O silêncio: vamos primeiro fazer uma exploração de palavras
latinas. "Sileo" e "taceo" significam calar-se, ficar quieto.
Antigamente, havia uma nuança muito interessante. "Tacere"
remetia ao silêncio verbal: é um estado de alguém que não fala.
"Silere" denotava mais amplamente uma tranqüilidade, uma
ausência de movimento e de barulho. "Silere" era empregado
para objetos (por exemplo: a noite, a lua, se calam) remetendo
a uma virgindade intemporal das coisas, antes que elas nasçam
ou depois de sumirem. Fala-se do "silere" dos botões antes de
brotar. "Silere" implicava no silêncio da natureza. (p. A – 31)
Observo que a posição deitada também caracteriza estes desenhos: a
mão e o braço têm o eixo de seu peso a pressão da gravidade
deslocados, pois o gesto é realizado com o suporte (a folha de papel) na
vertical. O movimento não tem o mesmo apoio que ocorre quando desenho
sentada numa cadeira, com o desenho sobre uma mesa. Quando trabalho
deitada as diferentes pressões do lápis sobre o papel dependem de uma
opção nítida, um gesto com intenção definida, talvez mais próximo à
11
experiência de desenhar em pé, quando o papel também pode ser colocado
na posição vertical.
O coreógrafo Klauss Vianna (1990), fala sobre a experiência de
observação do corpo pelo contraste da gravidade:
Duas Forças Opostas geram um Conflito, que gera o
Movimento. Este, ao surgir, se sustenta, reflete e projeta sua
intenção para o exterior, no espaço. (...) quando descubro a
gravidade, o chão, abre-se espaço para que o movimento crie
raízes, seja mais profundo (...) À medida que vou sentindo o
solo, empurrando o chão, abro espaço para minhas projeções
internas, individuais, que, à medida que se expandem, me
obrigam a uma projeção para o exterior. (p. 78)
*
A opção pelo lápis grafite e pela folha no tamanho A4 surgiram,
durante este processo, como parte do movimento da busca por imagens. O
formato do papel foi utilizado como suporte acessível, comum a todas as
pessoas, um tipo de espaço neutro: a folha que pode ser encontrada em
qualquer papelaria. Esta idéia de disponibilidade atribuída ao A4 combinou
com a da elaboração de um tipo de diário, de anotação. O importante era
manter a atenção voltada para a escuta das sensações e para o surgimento
das imagens relacionadas a elas.
O grafite, mais do que material de registro, representou um
instrumento sensível que de responder às mudanças de intensidade do
gesto, suas interrupções, aos diferentes níveis de pressão ou oscilações na
velocidade do traçado. Pensar sobre o movimento comparado à escuta e seu
registro por meio do lápis remete ao mesmo tipo de atenção demandada em
12
minha experiência com o desenho de observação. A mão acompanha o
percurso do olhar, atento às intensidades da luz, ao peso das linhas. O olho,
que guia o movimento da mão fixo no modelo vai rapidamente para o
desenho para retornar ao objeto ou pessoa observada. O corpo todo fica
concentrado e conectado nesta operação. Paul Valéry (2003) nota, na
atividade do desenho de observação, que "o artista avança, recua, debruça-
se, franze os olhos, comporta-se com todo o corpo como um acessório de
seu olho, torna-se por inteiro órgão de mira, de pontaria, de regulagem, de
focalização” (p. 71).
A cnica e o material utilizados são aspectos que motivam meu
trabalho em arte: processos podem ser iniciados pela curiosidade despertada
pelos meios. Idéias e imagens surgem relacionadas a diferentes
procedimentos e a questionamentos acerca de sua elaboração e resolução
física. Meu interesse por obras de arte também surge, muitas vezes,
relacionado aos procedimentos, antes mesmo do que às idéias contidas
nestas. A pergunta que surge primeiro é: ! Como isso foi feito? ! Qual o
material e a técnica utilizados?
O artista Robert Gober (2002) comenta sua relação com o fazer:
I get very frustrated when people ask me, “What does your
sculpture mean?” I respond by talking about what it's made of
and they get impatient, as though I'm avoiding the question. But
I feel that unless you know what it's physically made off, you
can't begin to understand it. A lot of times the metaphors are
embedded right in the medium and the way that you work.
5
(p.
96)
5
"Fico muito frustrado quando as pessoas me perguntam “O que a sua escultura significa?”
Eu respondo dizendo do que ela é feita e as pessoas ficam impacientes, como se eu
estivesse evitando a questão. Mas eu sinto que a não ser que você saiba do que a escultura
é feita, você não consegue entendê-la. Muitas vezes as metáforas estão embutidas
exatamente no meio (o material de que é feita a obra) e na maneira de trabalhar" (p. 96).
Tradução: Regina Gomes de Sousa.
13
Gilo Dorfles (1992) reflete sobre o valor da cnica e do meio
expressivo:
a arte, além de simbólica, é essencialmente técnica (no sentido
geral da construção) e, (...) constitui uma coisa com o meio
técnico-expressivo em que se apóia e no qual se encarna (...)
impõe-se uma análise das diversas artes que leve em
consideração os seus media exatamente porque este é o único
meio honesto e lícito de estudar as suas características
'somáticas e psíquicas'. (p. 39)
*
Quando os desenhos começaram a somar-se formando um conjunto, sua
fala da esfera íntima apareceu como um ato de desnudamento. Olhar para
eles suscitou questões sobre o lugar que o material ocupava em meu
trabalho: poderia ficar com esses registros e considerá-los a justa tradução
das sensações que eles procuravam figurar? No momento de incerteza
(instante seguinte à sua configuração), aquelas imagens evocavam o
sentimento de exposição: ao olhar para os desenhos (falas de minha
intimidade) sentia-me, ao mesmo tempo, invadida e intrusa.
Para Mário Eduardo Costa Pereira (2003), o cansaço presente na hora
de dormir (estado de onde vem os Desenhos do sono), impõem um
desligamento do próprio eu: "Nesse momento erigido em hora da verdade,
o sujeito (p. 136) "estaria despido da roupagem vistosa com que se apresenta
ao mundo e a si próprio: "Trata-se de um encontro diário, marcado com a
verdade de si mesmo" (p. 140).
14
O grupo de aproximadamente 100 desenhos ficou guardado por mais de
dois anos após sua realização. Somente após transcorrido o tempo, pude
lançar um olhar afastado sobre eles.
No período de recolhimento dos desenhos ocorreu uma etapa em que a
elaboração do trabalho não dependia de ações conscientes: os controles da
mente passaram para um estado de espera que, nesse processo, durou
cerca de quatro anos. Essa espera porém, não excluiu uma condição de
alerta em relação às imagens engavetadas; um tipo de observação para
captar e anotar idéias que poderiam surgir e servir em futuras definições.
Paul Valéry (1999), explica como "espaços de dispersão iminente e
presságios", os aspectos que colaboram quase tanto como a própria
concentração – para a produção da obra:
A instabilidade, a incoerência, a inconseqüência de que eu
falava, que o para ele [o artista] dificuldades e limites no seu
trabalho de construção ou de composição contínua, são
também tesouros de possibilidades nos quais ele pressente a
riqueza nas proximidades do próprio momento em que se
consulta. (...) Ele sempre pode pressentir na penumbra a
verdade ou a decisão procurada, que sabe estar à mercê de um
nada, desse mesmo obstáculo insignificante que parecia distraí-
lo e distanciá-lo indefinitivamente. (...) Parece haver nessa
ordem das coisas mentais algumas relações muito misteriosas
entre o desejo e o acontecimento (...) esperamos simplesmente
que aquilo que desejamos produza-se, pois podemos
esperar. Não temos qualquer meio para atingir exatamente em
nós o que desejamos obter. (...) Sabe-se que freqüentemente
acontece de a solução desejada chegar após um tempo de
desinteresse no problema, como a recompensa da liberdade
dada a nosso espírito. (p. 187-88)
15
Esse tempo de latência está presente em notas de diferentes épocas,
é notável sempre. A produção é interrompida por períodos onde o trabalho
fica (sem ser considerado concluído) guardado, aguardando, minha atenção
estando voltada para outras tarefas. Os acontecimentos parecem
permanecer num espaço que fica ocultado.
As razões e movimentos que ocasionam os intervalos de espera
(períodos em que meus trabalhos inacabados ficam guardados para depois
serem retomados) podem ser variados, mas eles sempre aparecem. Podem
ser causados pela sensação de esgotamento, por vezes experimentada na
execução do trabalho, ou pelo simples desinteresse. A produção é então
colocada de lado e somente com o passar do tempo surgem motivações que
acabam legitimando sua continuidade (estas retomadas muitas vezes surgem
a partir de acontecimentos ocorridos fora do ateliê). É como se o próprio
trabalho exigisse um tempo de decantação para poder então ser retomado.
*
Quando fiz os desenhos que posteriormente foram chamados de
Desenhos do sono não havia expectativas ou fim definido para eles.
Transcorrido o período em que ficaram guardados e distante das
intensidades presentes no processo de seu surgimento, comecei a olhar para
o conjunto. Essa reaproximação ocorreu gradualmente. Primeiro, as imagens
serviram de ponto de partida para uma pequena série de monotipias
elaboradas a partir de posições de tensão e extensões do corpo que
aparecem em alguns Desenhos do sono e do desenho de observação da
figura humana.
16
Monotipias
17
18
19
20
21
Em seguida, as imagens do corpo presentes nas monotipias
suscitaram a necessidade de procurar e pesquisar técnicas de modelagem
da figura humana. Iniciei então o processo de elaboração de esculturas em
materiais como cerâmica, cera, massa biscuit
6
e gesso, entre outros, a partir
de imagens selecionadas dos Desenhos do sono e do espaço de
introspecção de onde eles vieram.
As esculturas iniciadas em 2002 ainda estão em elaboração. Foram
feitas a partir dos Desenhos do sono e passaram por um processo que inclui
a fotografia, desenho e modelagem da figura humana. Esses trabalhos não
serão comentados com maior profundidade aqui. O que importa é observar
que o movimento de produzi-los representou uma etapa na retomada dos
Desenhos do sono.
A experiência de guardar o trabalho para depois de um tempo poder
vê-lo como um pólo gerador de possibilidades direcionou meu olhar para
outras notas, estudos, desenhos e projetos registrados em cadernos e folhas
dispersas. A partir daí, iniciei uma nova relação com esse tipo de material.
Roland Barthes (1984) observa (sobre fotografias antigas): "A história (...)
se constitui se a olhamos e para olhá-la é preciso estar excluído dela" (p.
96-7).
*
Em 1998 (ano da elaboração do diário noturno), como parte de
exercício proposto em um curso de cenografia, elaborei um projeto de
performance a partir dos desenhos. Com o título de Intimidade (esse trabalho
não foi apresentado ao público), a ação ! com duração de aproximadamente
30 minutos !, se passa num "ambiente-cama", cenário forrado de colchões e
6
Massa obtida a partir da mistura de fécula de milho e cola PVA
22
lençóis brancos e cor da pele, onde os desenhos em sulfite A4 estão
espalhados. Os mesmos desenhos que aparecem nas folhas aparecem
ampliados, impressos ou projetados em tecidos que descem do alto e
formam os fechamentos, divisórias e rotundas do ambiente.
Nesse projeto, a performance é realizada por uma atriz careca e com
roupas de dormir que se move pelo espaço alternando atividades como
desenhar, ler e se movimentar pelo cenário. Sua voz aparece em off por meio
da gravação de falas sobrepostas em diferentes ritmos e volumes. O texto
das falas reproduz pensamentos sobre acontecimentos do dia que passou,
músicas cantaroladas, diálogos internos, narração de sonhos, entre outros.
Esse projeto constava de memorial descritivo, desenhos do ambiente
e dos figurinos e de uma fita de vídeo com imagens da maquete do cenário.
O trabalho foi arquivado após sua apresentação na escola e somente a partir
do ano de 2003, comecei a elaborar e apresentar outros trabalhos com os
Desenhos do sono.
23
24
25
Desenhos do sono I
Na exposição coletiva Bola de Fogo na Galeria SESC Paulista, em
2004, o espectador encontrava fotocópias dos Desenhos do sono sobre um
colchão colocado no piso e forrado com lençol cor da pele. Na parede de
cabeceira do colchão via-se duas fileiras verticais de imagens dos Desenhos
do sono, transferidas por meio de papel carbono. Ao do colchão, letras
adesivadas no piso ofereciam: ESCOLHA UM DESENHO PARA VOCÊ.
Durante o período da exposição os espectadores escolhiam e levavam
suas cópias e o colchão ia ficando vazio. Quando terminadas, as cópias eram
repostas para serem escolhidas e levadas por outros visitantes. Além das
cópias A4 e das imagens na parede de cabeceira do colchão, transferi (por
meio do papel carbono) imagens dos Desenhos do sono para diversos
pontos do espaço expositivo. Esses locais foram pensados como
inesperados: lugares onde os desenhos surgiriam "de surpresa" como na
superfície de uma porta fechada; no degrau de uma escada; próximo ao
trabalho de outro artista ou no pedestal do livro de assinaturas.
26
27
Desenhos do sono II
Apresentado na exposição Bola de Fogo no Museu de Arte
Contemporânea de Americana, em 2005. Esse trabalho foi elaborado com as
imagens dos Desenhos do sono transferidas por meio de papel carbono para
uma das paredes da sala de exposições. Além das imagens decalcadas, a
parede recebeu uma das monotipias (emoldurada) da série de 2003 que
mostra a figura humana em posições de tensão e extensão do corpo. A
parede com os desenhos foi iluminada com uma quantidade de luz maior do
que a do resto da mostra, destacando sua superfície branca. Pelo tamanho
pequeno e a delicadeza de suas linhas, os desenhos e a monotipia se
tornavam visíveis apenas com a aproximação física do observador.
Como em Desenhos do sono I, outras imagens dos Desenhos do sono
foram decalcadas/transferidas para locais diversos do museu: uma lateral de
parede, junto à obra de outro artista; no corredor de acesso à sala de
exposições.
28
29
Segredos
Trabalho em colaboração com o público na exposição com um dia de
duração no Estrela do Pari Futebol Clube, em São Paulo, 2005.
O trabalho Segredos foi elaborado a partir da seguinte proposição para
o blico: fazer um desenho que tenha uma imagem, apenas uma figura.
Essa figura deve ser um elemento uma parte de um segredo seu. Esse
segredo não é revelado, ele continua guardado: continua sendo um segredo,
pois apenas uma parte dele aparece no desenho e não o segredo completo.
Os participantes do público que se dispuseram a fazer o desenho de
uma parte de seu segredo realizaram o trabalho numa parede previamente
indicada, por meio da transferência com papel carbono. Assim, as imagens
dos segredos ficaram impressas na parede e desenhadas nas folhas de
papel branco, que foram guardadas.
Com esta proposta procurei aproximar o observador de seu espaço
interno. Sugerindo a busca por imagens para vivências pessoais e a
elaboração de um tipo de registro da intimidade, relacionei esse movimento
ao meu processo com os Desenhos do sono.
30
31
Desenhos do sono III
Apresentado na exposição Bola de Fogo gravura, no Instituto de Arte
Contemporânea da Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2006. No
trabalho apresentado em Recife transferi quatro imagens de Desenhos do
sono para uma das paredes do espaço expositivo, além de outras duas, para
paredes diferentes.
Nesse período, havia retomado o trabalho com o diário noturno
(deitada na cama antes de dormir). As imagens que apareceram então,
revelaram diferenças em relação às dos Desenho do sono de 1998/99: os
novos desenhos mostram cenas relacionadas a acontecimentos do dia que
passou e imagens de sonhos. Neste novo grupo, as figuras que mostram
posições, movimentos para sensações do corpo não estão presentes.
Em Desenhos do sono III utilizei imagens dos Desenhos do sono junto
com os da nova série.
32
33
Imagens
Desenhos do sono na parede, julho de 2006
(ateliê de Teresa Berlinck)
34
35
36
37
38
Nesses trabalhos utilizo a parede pensando-a como divisão de
ambientes, espaço de passagem e superfície de projeção espaço a ser
impregnado por tudo que não é palpável (como as imagens da representação
que ela acolhe). Assim, a parede se torna suporte para os Desenhos do
sono.
*
A parede como superfície que divide dois ambientes. Neste momento,
aqui e no ambiente vizinho, ocorrem acontecimentos diferentes. Estando aqui
não sei o que está acontecendo do outro lado. O que define essa separação,
essa distância, é a parede. E dentro, ou durante esta separação ! neste
"entre", eu incluo uma idéia de tempo: a parede definindo o espaço e também
funcionando como o tempo que divide dois acontecimentos. Pode ser um
tempo imenso ou uma simultaneidade. Nessa idéia a parede é um lugar de
passagem, de transição, como o espelho ou a toca do coelho onde Alice, de
Lewis Carrol (1996), cai sem fim, local em que a experiência temporal do
relógio, que precisa do dia depois da noite e outro dia depois, é substituída
por algo diferente:
... and then dipped suddenly down, so sudenly that Alice had
not a moment to think about stopping herself before she found
herself falling down what seemed to be a very deep well.
Either the well was very deep, or she fell very slowly, for
she had planty of time as she went down to look about her, and
to wonder what was going to happen next.
7
(p. 16)
7
“... e então caiu de repente, tão de repente que Alice nem teve tempo de pensar em parar e
já se viu escorregando pelo que parecia ser um poço muito fundo. Ou o poço era muito fundo
39
A parede funcionando como lugar de passagem, um tipo de túnel do
tempo e do espaço, um veículo para instâncias ocultas e misteriosas. Ao
transferir as imagens dos Desenhos do sono para a parede é como se elas
passassem a fazer parte desse outro mundo, um lugar da imaginação.
A parede se transforma numa superfície de projeção para
pensamentos, fantasias e sonhos. Um local onde as coisas podem acontecer
livremente e onde podemos observá-las enquanto acontecem. Nesse espaço
comparado com o dos sonhos, somos os autores e atores das histórias que
inventamos e com as quais nos surpreendemos. Jorge Luis Borges (1983)
reflete sobre o funcionamento dos sonhos:
Também podemos sonhar que nos perguntam algo e o
sabemos o que responder; quando nos dão a resposta, ficamos
atônitos. A resposta pode ser absurda, mas exata, dentro do
sonho. tínhamos preparado tudo, antecipadamente. Chego à
conclusão que não sei se é científica ou o de que os
sonhos são a atividade estética mais antiga. (p. 58-9)
Imagino a parede de minha cabeceira (no aposento em que os
desenhos foram feitos), ficando impregnada pela persistência de algumas
dessas imagens: como se as linhas leves dos desenhos deixados ao lado da
cama tivessem se soltado da folha de papel e vagado pelo quarto enquanto
eu dormia, para, atraídas pela brancura disponível, aderir à superfície da
parede.
Assim, a parede seria comparável ao lugar psíquico, a imaginação, o
mundo das lembranças e da memória. Phillipe Dubois (2004) explica as
ou ela caiu muito devagar, pois, à medida que caía, teve tempo de olhar em torno e de
imaginar o que iria acontecer em seguida” (p. 16). Tradução: Regina Gomes de Sousa.
40
”artes da memória” (Ars Memoriae) segundo a tradição da Antiguidade grega
transmitida pelos latinos:
... a arte da memória baseia-se de fato no jogo de duas noções
completamente fundamentais todo o tempo retomadas em
todos os tratados: os lugares (loci) e as imagens (imagines). (...)
Enquanto as imagens, que na maioria das vezes são signos
simbólicos, alegóricos, compósitos, são colocados num lugar
por um tempo, os lugares permanecem na memória. As
imagens que nele depusemos, na medida em que não
precisamos mais lembrar-nos delas, apagamo-las. E os
mesmos lugares podem ser reativados para receber um outro
conjunto de imagens destinado a um outro trabalho da
memória. (p. 314-15)
Neste trabalho, a parede funciona como receptáculo da memória ou
como esse lugar (loci) que pode ser reativado quando recebe imagens. Uma
superfície de projeção; vazia, branca, onde penduram-se quadros e abrem-se
janelas para a ficção e também para o mundo externo, de onde vem ar e luz.
A parede, neste contexto, possui as possibilidades de uma superfície que
acolhe: tem uma disponibilidade, a princípio.
*
O papel carbono utilizado na transferência das imagens dos Desenhos
do sono para a parede é o da cor preta. Segundo Ralph Mayer (1996), o
carbono puro é o Negro-de-fumo: "Um pó fino, leve e macio obtido pela coleta
da fuligem dos óleos queimados etc. O mais conhecido do grupo de negro-
de-carbono-puro. (...) Em uso desde os tempos pré-históricos, é o pigmento
mais antigo conhecido pelo homem" (p. 112).
41
Um desenho feito na parede com a tinta do papel carbono fica
exposto: pode ser desgastado pelo tempo, desbotando até sumir, ou
simplesmente ser coberto pelo rolo de tinta branca de um pintor de paredes.
Assim, estes desenhos têm também uma qualidade de impermanência:
fugidios, tornam-se próximos da idéia de memória como superfície, lugar de
projeção: o imagens que se apagam, são esquecidas e depois
relembradas de outra maneira, depois esquecidas novamente...
*
No processo de transferência ocorreram modificações em algumas
características dos desenhos. Uma delas é que o pigmento preto do papel
carbono não proporciona a obtenção do mesmo tipo de variação de valores
tonais do grafite utilizado no desenho sobre papel. O que obtive foram
diferentes espessuras, diferentes pesos das linhas, por meio do controle da
pressão da mão (a mesma pressão que com o grafite obtém-se diferentes
valores de cinza), no momento de transferir os desenhos. E se no papel
essas linhas eram um pouco oscilantes, na superfície de alvenaria elas
sofreram também com os acidentes e asperezas.
Estes aspectos, que podem acentuar características de instabilidade e
fragilidade nos desenhos da parede, parecem ser compensados pelo
contraste total na relação do negro do carbono com a superfície branca e fria
do espaço arquitetônico. Talvez porque, feitos com o pigmento preto, os
desenhos tenham perdido um tanto do caráter de anotação que o grafite
pode sugerir e ganhado um aspecto "acabado" próximo à visualidade da
imagem impressa.
*
42
Com as transferências dos Desenho do sono, procuro criar um sentido
de continuidade entre o espaço de onde estas imagens vieram (a
introspecção), e o espaço físico onde o observador se encontra. Elas saem
da intimidade do quarto, da cama, para o espaço público, as pequenas
imagens e a precariedade de suas linhas contrastando com a amplidão e a
solidez das paredes que compõem e sustentam o edifício. Em O pensamento
selvagem (2005), Claude Lévi-Strauss reflete sobre a redução do tamanho do
modelo, na representação:
... todo o modelo reduzido tem vocação estética (...) a imensa
maioria das obras de arte é formada de modelos reduzidos, (...)
mesmo o "tamanho natural" supõe o modelo reduzido, pois que
a transposição gráfica ou plástica implica sempre uma renúncia
a certas dimensões do objeto (...) para conhecer o objeto real
em sua totalidade, sempre tivemos tendência a proceder
começando das partes. Dividindo-a, quebramos a resistência
que ela nos opõe (...) Inversamente do que se passa quando
procuramos conhecer uma coisa ou um ser em seu tamanho
real, com o modelo reduzido o conhecimento do todo precede o
das partes. E, mesmo que isso seja uma ilusão, a razão desse
procedimento é criar ou manter essa ilusão, que gratifica a
inteligência e a sensibilidade de um prazer que, nessa base
apenas, pode ser chamado de prazer estético. (...) Mas o
modelo reduzido possui um atributo suplementar: ele é
construído, man made, e mais que isso, "feito à o". Não é,
portanto, uma simples projeção, um homólogo passivo do
objeto: constitui uma verdadeira experiência sobre o objeto.
Ora, na medida em que o modelo é artificial, torna-se possível
compreender como ele é feito, e essa apreensão do modo de
fabricação acrescenta uma dimensão suplementar a seu ser.
(p. 38-9)
Com os desenhos na parede busco aproximar o observador pela
curiosidade. Como suporte pouco utilizado em nossos dias, creio que pelo
43
ligeiro estranhamento de elas estarem ali, as imagens retornam ao local que
era seu antigamente, quando elaboradas e vistas em murais, afrescos e
mosaicos. Assim, procuro um retorno do observador a algo superado, mas
familiar, algo que ficou no passado, mas que está na memória. Um antigo
olhar para uma antiga forma de mostrar imagens.
Acredito que desenhar na parede tem a ver com retomar essa língua
antiga que vem das cavernas, passa por todas as pinturas murais, mosaicos
e representações em trompe-l'oeil. Os Desenhos do sono, porém, em sua
escala íntima e diminuta, tem a ver com a pintura parietal doméstica e não
com os murais e afrescos elaborados em igrejas e palácios. São imagens
que talvez possam ser relacionadas com a pintura feita por artesãos em
paredes de residências ou, ainda, com o gesto infantil de ir desenhando além
do papel no movimento contínuo que contamina o piso, móveis e paredes e
que depois é removido pela limpeza ou coberto pela tinta branca. Assim,
neste trabalho, a parede funciona como um meio; um veículo para a procura
de algo oculto, guardado ou esquecido, como o passado.
Nota-se, na produção artística de nossos dias, o uso da parede como
suporte para a elaboração de imagens. Na esfera íntima dos espaços
internos, aparece o gesto de artistas que desenham ou realizam outros tipos
de intervenção (como a remoção do reboco ou o corte e remoção da massa
fina, entre outros), produzindo imagens nessa superfície.
O trabalho que reinaugura este movimento a partir dos anos 1980 no
Brasil, é o de Sandra Cinto. Em sua obra, a artista parece tecer um mundo
flutuante formado por linhas que crescem como vegetais enredando as
paredes. Moacir dos Anjos (2003) define este trabalho como "Um mundo de
sonhos, de um outro tempo e de um lugar afastado, como uma melodia nova
e estranha"
Jacinto Lageira (2000) compara esses desenhos com as plantas, a
antiga escrita o grafar e observa, na parede, um caráter de
44
disponibilidade para a projeção, comparando esta superfície ao papel
fotográfico:
(...) Even the architetural space is submitted to this lush growth
of objects and vegetables that parasitise it and fed on it
(...) Cinto’s drawings refer back mainly to a form of writing,
which would largely explain the stubborn will of fixating and
inscribing over every kind of materials and objects. The
byzantine painting did not estabilish a distinction between writing
and drawing, inscribing and representing, as one word
graphein – described both actions. The derivatives from this
suffix will be used to create words such as “photography” or
“autobiography”, procedures of registering or of writing of the
self. In this way it is not with an accidental or metaphorical
meaning that Sandra Cinto mixes the processes writing of the
drawing or drawing of the writing, since her graphemes try to tell
and fixate an existence. (...) Sandra Cinto’s walls invite the
spectator to project his imaginary, as most of the forms, apart
from a few elements, are not easily identifiable. There are signs
here and there, but it is up to us to unravel the storys line. (...)
As photografic paper, the white wall works as a support for their
image to appear.
7
7
" (...) Amesmo o espaço arquitetônico é submetido a esse luxuriante crescimento
de objetos e vegetais que nele parasitam e dele se alimentam (...) Os desenhos de
Cinto remetem principalmente a uma forma de escrita, o que explicaria a teimosa
vontade de fixar e inscrever sobre todo tipo de materiais e objetos. A pintura
bizantina não estabelecia distinção entre escrever e desenhar, inscrever e
representar – a palavra graphein descreve as duas ações. Os derivados desse sufixo
seriam usados para criar palavras como “fotografia” ou autobiografia”,
procedimentos do self de registrar e de escrever. Assim, não é com significado
acidental ou metafórico que Sandra Cinto mistura os processos a escrita do
desenho ou o desenho da escrita, pois seus grafemas tentam contar e fixar uma
existência. (...) As paredes de Sandra Cinto convidam o espectador a projetar seu
imaginário, pois a maior parte das formas, exceto alguns poucos elementos, não é
facilmente identificável. sinais aqui e ali, mas cabe a nós desenrolar o fio da
história. (...) Como o papel fotográfico, a parede funciona como o suporte para sua
imagem aparecer". Tradução: Regina Gomes de Sousa.
45
Nos desenhos elaborados em espaços internos, observo um tipo de
gesto que pode ser comparado ao do prisioneiro que conta os dias de sua
pena riscando diariamente pequenos traços paralelos nas paredes da cela.
Na falta do papel, a necessidade solitária de lembrar, anotar e marcar,
desenha o passado e o futuro em linhas que se expandem pelo ambiente.
*
A utilização do papel carbono na transferência dos Desenhos do sono
para a parede, caracteriza a imagem resultante como um tipo de marca, de
decalque, pois ela é obtida a partir do contato da contigüidade com o
desenho, seu referencial. Este gesto, porém, não parece determinar os
Desenhos do sono na parede como imagens do tipo indiciárias. Definindo a
fotografia como uma arte do índice, Rosalind Krauss (2002), explica uma
idéia de imagem indiciária:
... ligado aos objetos concretos a que se reporta por uma
relação de causalidade paralela à que existe para uma
impressão digital, um rastro de passo ou os círculos úmidos que
copos gelados deixam sobre uma mesa. A fotografia é portanto
geneticamente diferente da pintura, da escultura ou do
desenho. Na árvore genealógica das representações, ela se
situa do lado das impressões das mãos, das máscaras
mortuárias, do sudário de Turim ou das pequenas pegadas das
gaivotas na areia das praias. Isto porque de maneira técnica ou
semiológica, os desenhos e as pinturas são ícones, enquanto
as fotografias são índices. (p. 120)
No caso dos Desenhos do sono na parede o referencial é
representação: do ponto de vista da idéia acima, ícone. A imagem decalcada
46
vem de um desenho e não do objeto referencial que acaba por representar.
8
Assim, talvez estes desenhos estejam mais relacionados com a impressão
que produz imagens obtidas a partir de uma matriz. Minhas matrizes são as
fotocópias dos desenhos originais onde são anexadas folhas de papel
carbono e, como no processo da monotipia, por meio da pressão de uma
ponta sobre as linhas dos desenhos num gesto de redesenhar, as imagens
são impressas na parede.
*
Transferir com o papel carbono refazendo o percurso do lápis sobre as
linhas dessas imagens, foi um movimento que ocasionou um novo olhar, um
tipo de estudo dos Desenhos do sono. Com o objetivo de aproximar os
valores tonais das linhas feitas na parede às dos desenhos-matrizes, precisei
reduzir a velocidade do gesto, a atenção voltada para a comparação da cópia
com seu original. A necessidade de aumentar a pressão da mão (comparada
ao gesto de desenhar com lápis sobre papel) para transferir a imagem com o
papel carbono e a textura resistente das paredes, também contribuíram para
a lentificação do movimento de imprimir os desenhos. Neste processo, cada
trecho desenhado no estado de sonolência foi refeito com o corpo e a
atenção despertos.
*
A localização dos desenhos na parede foi feita em etapas: primeiro as
folhas foram fixadas temporariamente (com fita adesiva); experiências com
8
O interesse por idéias e reflexão sobre a imagem indiciária aparece junto ao surgimento de
trabalhos recentes de minha autoria, em que observo procedimentos que podem ser assim
classificados.
47
diferentes configurações foram elaboradas e, depois de definidas as
composições, as imagens foram transferidas com o papel carbono. A
elaboração dessas composições ocorreu como jogos de montar e produzir
imagens a partir da reunião de diferentes figuras dadas.
Se nas folhas de papel essas figuras apareciam solitárias, uma por
desenho, na parede elas ficaram lado-a-lado e criou-se um tipo de relação
entre elas, uma narrativa do grupo. Às vezes o olhar de uma figura se
direciona para outra; figuras deitadas foram colocadas próximas à linha
horizontal do piso (onde parecem apoiadas); figuras em queda ficaram mais
soltas e velozes, como que suscetíveis à força da gravidade.
Além das imagens agrupadas em uma parede, decalquei alguns
desenhos para diferentes pontos do espaço expositivo: próximo à obra de
outro artista, numa lateral de parede, no pedestal do livro de assinaturas,
sobre uma porta fechada. Minha intenção com as transferências isoladas é
que as imagens fossem vistas reunidas em uma parede e depois
reaparecessem como pensamentos involuntários, pequenas surpresas, como
algumas idéias, memórias, ou como uma impressão, durante o percurso de
deslocamento do observador pelo espaço.
*
A aparente infinitude de possibilidades que observei nas experiências
realizadas a partir do movimento de retomada dos Desenhos do sono trouxe
a meu trabalho uma noção de abertura; uma dimensão fluida que não era
nítida antes dessas experiências.
Os estudos proporcionados pela pesquisa no mestrado provocaram e
possibilitaram desdobramentos e aprofundamento na atividade de artista:
leituras e escrita executados sistematicamente foram motores de novas
idéias e caminhos para o trabalho com arte.
48
A partir da retomada dos Desenhos do sono e com o exercício de
reconhecimento desta produção, no mestrado, pude vislumbrar uma fala do
conjunto e uma comunicação interna em minha produção como um todo. A
meus olhos e na sua existência, o trabalho se transforma, toma corpo e nova
dimensão, ao mesmo tempo em que é absorvido e assumido como projeto
contínuo. O trabalho e sua reflexão parecem não ter início ou fim, mas se
mostram como parte de um movimento circular de retomadas, intervalos,
reflexões e mais trabalho, sempre.
49
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VIOLA, BILL. Catálogo Território do invisível. Rio de Janeiro: Centro Cultural
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52
ANEXO
Desenhos do Sono, 1998
Lápis grafite e papel
29 x 21 cm (aproximadamente)
(todos os desenhos)
53
54
55
56
57
58
59
60
61
62
63
64
65
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71
72
73
74
75
76
77
78
79
80
81
82
83
84
85
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89
90
91
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93
94
95
96
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99
100
101
102
103
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105
106
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108
109
110
111
112
113
114
115
116
117
118
119
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