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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA E ANTROPOLOGIA
Vívian Ferreira Paes
A POLÍCIA CIVIL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO:
ANÁLISE DE UMA (RE) FORMA DE GOVERNO NA POLÍCIA JUDICIÁRIA.
Rio de Janeiro, 10 de fevereiro de 2006.
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II
Vívian Ferreira Paes
A POLÍCIA CIVIL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO:
ANÁLISE DE UMA (RE) FORMA DE GOVERNO NA POLÍCIA JUDICIÁRIA.
Dissertação desenvolvida sob orientação do Prof. Michel
Misse e apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Sociologia e Antropologia, do Instituto de Filosofia e
Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(PPGSA-IFCS-UFRJ), como parte dos requisitos
necessários à obtenção do grau de Mestre em Sociologia
(com concentração em Antropologia).
Rio de Janeiro, 10 de fevereiro de 2006.
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P126 PAES, Vívian Ferreira.
A Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro: análise de uma
(re) forma de governo na Polícia Judiciária / Vívian Ferreira
Paes. Rio de Janeiro, 2006.
x, 164 f.
Dissertação (Mestrado em Sociologia com concentração
em Antropologia) – Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, 2006.
Orientador: Michel Misse.
1. Polícia Judiciária. 2. Rio de Janeiro (Estado) 3. Reforma. 4.
Registros 5. Controle. 6. Informação. 7. Sociologia e Antropologia –
Teses.
I. MISSE, Michel (Orient.). II. Universidade Federal do Rio de
Janeiro. Instituto de Filosofia e Ciências Sociais. Programa de Pós-
Graduação em Sociologia e Antropologia. III. A Polícia Civil do Estado
do Rio de Janeiro: análise de uma (re) forma de governo na Polícia
Judiciária.
CDD: 363.2098153
III
Vívian Ferreira Paes
A POLÍCIA CIVIL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO:
ANÁLISE DE UMA (RE) FORMA DE GOVERNO NA POLÍCIA JUDICIÁRIA.
Dissertação aprovada em 10/02/2006, como parte das exigências para a obtenção do título
de Mestre em Sociologia (com concentração em Antropologia) na Universidade Federal do
Rio de Janeiro, pela banca examinadora formada pelos professores:
___________________________________
Prof. Dr. Michel Misse, PPGSA-IFCS-UFRJ (Orientador)
____________________________________
Prof. Dr. Luiz Antônio Machado da Silva PPGSA-IFCS-UFRJ (Examinador)
_____________________________________
Prof. Dr. Roberto Kant de Lima PPGA-IFCH-UFF (Examinador)
_____________________________________
Profª Drª Ana Paula Mendes de Miranda UCAM/ ISP-SESP/RJ (Examinadora)
Rio de Janeiro, 10 de fevereiro de 2006.
IV
À minha família dedico.
De tanto amar, a distância faz doer.
V
AGRADECIMENTOS
Devo a realização deste trabalho aos que me foram próximos e partícipes nessa
caminhada. Ao longo dos cinco anos de dedicação a este objeto de estudo - a reforma da
Polícia Civil - pude reconhecer várias pessoas e instituições como fontes de sabedoria,
propriedade e afeição.
Primeiramente, agradeço pela disponibilidade de acesso e pela cooperação dos agentes
e delegados da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro. Confesso que ao longo do trabalho
de pesquisa, desconstruí muitos de meus preconceitos e, hoje, reconheço em alguns de seus
integrantes, interlocutores qualificados que muito me revelaram sobre suas atividades. Sem a
colaboração necessária, o trabalho não seria possível. Obrigada pela acolhida.
Academicamente, reconheço a importância de um primeiro contato com a temática
estudada na Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF), onde fiz a Graduação em
Ciências Sociais. Agradeço enormemente a orientação das queridas Profas. Laura Dorotea
von Mandach e Lana Lage da Gama Lima. Elas serão sempre lembradas, pois me guiaram em
um primeiro desafio e ainda se fazem presentes com grande carinho, amizade e incentivo às
minhas realizações.
A partir de 2004, realizo meus estudos de mestrado no Programa de Pós-Graduação
em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGSA-IFCS-
UFRJ). No PPGSA, reconheço a Jornada de Pós-Graduação como um espaço de discussão
muito importante, pois a troca e o diálogo de experiências com os colegas e professores nesse
evento teve suma importância nos referenciais que agora trago.
Tenho grande apreço pelo Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência
Urbana (NECVU-IFCS-UFRJ), o espaço onde me senti abraçada nesta instituição. Agradeço a
generosidade e a orientação do Prof. Michel Misse, a quem dedico grande amizade, respeito e
admiração. A ele, devo por ter-me feito pesquisadora e por me servir de exemplo com sua
VI
vocação. No NECVU, a secretária Heloísa Duarte foi grande fonte de confiança e conforto.
Por ela, tenho muito carinho e sou grata pela amizade e auxílio em ocasiões imediatas.
Com efeito, o estudo só pode ser realizado com bolsa concedida pelo Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ). A tal instituição, agradeço
pelo empenho que garantiu a continuidade dos meus estudos e o desenvolvimento do trabalho.
Outras instituições também foram importantes. Apesar de nunca ter estudado na UFF,
creio que o diálogo travado com esta instituição através do Núcleo Fluminense de Estudos e
Pesquisas (NUFEP-UFF) foi de grande importância nos referenciais que agora trago, pois
como tomo por referência direta para o presente trabalho o estudo desenvolvido pelo Prof.
Roberto Kant de Lima (1995), as sugestões dadas por esse professor sempre me foram de
grande inspiração e serventia. Com admiração, a ele agradeço as oportunidades de
interlocução.
No Instituto de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro (ISP – SESP/RJ) sou
grata, em especial, a Profa. Ana Paula Mendes de Miranda por ter-me confiado grandes
responsabilidades. Dedico enorme consideração às ponderações, ao cuidado dispensado e às
estimulantes discussões que ela me proporcionou.
Apesar de menor convívio, os comentários que os profs. Luis Antonio Machado e José
Ricardo Ramalho (PPGSA-IFCS-UFRJ) teceram sobre meu trabalho, também foram incisivos
e de muito proveito para a orientação atual de minha discussão. A eles agradeço pelos
comentários e pela atenção dedicada.
Gostaria de estender meus agradecimentos ao Prof. Marco Antonio da Silva Mello. Ao
se dispor para o diálogo, este me recomendou algumas literaturas importantes e por
entrelinhas me indicou algumas preocupações, por isso sou grata e tenho grande interesse por
suas considerações.
VII
Em muito também aprendi com alguns colegas de trabalho ao partilhar com eles
algumas preocupações. Agradeço pelo compartilhar de experiências a: Brígida Renoldi,
Bruno Cardoso, Fábio Mota, Gláucia Mouzinho, Lênin Pires, Lucía Eilbaum, Marcella
Beraldo e Thiago Brum. Além da troca acadêmica, carrego comigo a lembrança do rico
convívio que tive com os grandes amigos que pude reconhecer.
Agradeço o apoio sempre necessário da “confraria campista” em terras estrangeiras:
Amazona dos Santos, Carlos Abraão Valpassos, Felipe Dezerto, Leonardo Carvalho,
Ludmilla Marinho, Nina Freitas, Paulo Terra e Sunshine Pessanha. Também agradeço à
acolhida da “família carioca” que fez, em momentos de esmorecimento, que eu me sentisse
mais em casa.
Devo um agradecimento especial ao incentivo de Frederico Alvim, pois apesar da
grande distância, nós sempre zelamos pelo cuidado um com o outro. Obrigada pelo carinho,
amizade e paciência.
À minha família dedico imenso amor e gratidão. Mais uma vez o apoio deles me
incentiva a prosseguir. Foi imprescindível voltar a ser filhote em minha fortaleza enquanto
concluía a redação da dissertação. Em momento conturbado, creio que estar em casa
assegurou minha sanidade.
Como se pode notar, este trabalho é tributário de uma série de preocupações que
partilhei com algumas pessoas e instituições. Apoio que forneceu grande alento para que eu
almejasse cumprir a minha parte. A todos que me foram próximos nessa empreitada, “muito
obrigada”, pois de forma alguma eu poderia ter conseguido concluí-la sozinha.
Responsabilizo-me, porém, pelas imprecisões que houver.
VIII
Desconfiai do mais trivial,
na aparência singelo.
E examinai, sobretudo, o que parece habitual.
Suplicamos expressamente:
não aceiteis o que é de hábito como coisa natural,
pois em tempo de desordem sangrenta,
de confusão organizada, de arbitrariedade consciente,
de humanidade desumanizada,
nada deve parecer natural que possa parecer impossível de mudar.
(Bertold Brecht)
IX
SUMÁRIO
Resumo ............................................................................................................................ 11
Abstract............................................................................................................................ 12
Résumé ............................................................................................................................. 13
Introdução........................................................................................................................ 14
Pela análise de uma política pública ............................................................................. 16
Pela tentativa de gestão dos procedimentos de uma Polícia Judiciária ............................ 20
Distintas Inserções ............................................................................................................ 25
Controle de Impressões .................................................................................................... 30
Capítulo 1. A Consagração de Práticas Institucionais ................................................ 36
1.1. Histórico Institucional ............................................................................................... 36
Capítulo 2. Convencionando Modelos .......................................................................... 57
2.1. Delegacias Convencionais ......................................................................................... 58
2.2. Sessão de Acervo Cartorário ..................................................................................... 67
2.3. Casas de Custódia ...................................................................................................... 71
Capítulo 3. A Introdução de Novos Referenciais ......................................................... 75
3.1. Antecedentes do projeto ............................................................................................ 76
3.2. O Programa Delegacia Legal ..................................................................................... 81
3.3. Conformação de uma arena de disputas .................................................................... 94
Capítulo 4. Apreensão do Modelo Legal ...................................................................... 99
4.1. Práticas policiais em Delegacias Legais .................................................................... 100
4.2. Tipos de adaptação à reforma .................................................................................... 123
Capítulo 5. Gramáticas de Controle ............................................................................. 126
5.1. Grupo Executivo ........................................................................................................ 127
X
5.2. Corregedoria .............................................................................................................. 131
5.3. Quanto à disposição de informação............................................................................ 134
5.4. Quanto ao arranjo das relações internas .................................................................... 141
5.5. Quanto à busca incessante da ‘verdade real’.............................................................. 147
Considerações Finais ...................................................................................................... 150
Bibliografia ...................................................................................................................... 153
Documentos ..................................................................................................................... 162
Outras fontes citadas ...................................................................................................... 163
11
RESUMO
PAES, Vívian Ferreira Paes. A Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro: análise de
uma (re) forma de governo na Polícia Judiciária. Rio de Janeiro, 2006. Dissertação (Mestrado
em Sociologia com concentração em Antropologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro, 2006).
Neste trabalho, tenho por foco de análise uma política pública, denominada Programa
Delegacia Legal, dirigida a implementar uma forma de gestão dos recursos da Polícia
Judiciária do Estado do Rio de Janeiro. Em específico, objetivo estudar as formas de
organização dos policiais em relação com uma reforma que interfere nos produtos de seu
trabalho ao dispor informação.
Através de uma nova tecnologia de gestão e da informatização dos serviços policiais, o
Programa busca alterar o potencial dos registros policiais para dar conta das atividades e
tentar governar as condutas dos policiais. Se por um lado observo que as práticas das
delegacias consolidam movimentos de criatividade situada pelas regras de registro, por outro,
considero que os agentes relacionam-se de forma a manter a autonomia de dizer o direito
como uma ética interna e disponível à instituição. Uma norma que visa preservar os agentes
das formas de controle que os tornam vulneráveis à punição.
Assim, a justificativa para a não-internalização das regras prescritas pelo Programa
Delegacia Legal seria o fato de que a disputa pela autonomia de dizer o direito impossibilita
qualquer tentativa de accountability das ações policiais.
PALAVRAS-CHAVE
Polícia Judiciária; Reforma; Registros; Controle; Informação.
12
ABSTRACT
PAES, Vívian Ferreira Paes. A Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro: análise de
uma (re) forma de governo na Polícia Judiciária. Rio de Janeiro, 2006. Dissertação (Mestrado
em Sociologia com concentração em Antropologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro, 2006).
In this work, I have for focus of analysis one public policy, called “Programa
Delegacia Legal” (Legal Police Station Program), directed to implement a form of resource
management of the Judiciary Police of Rio de Janeiro State. In specific, I have the objective
of studying the forms of organization of policemen in relation to a reform that intervenes in
the products of their work when giving information.
Through a new technology of management and the computerization of the police
services, the Program searchs to modify the potential of the police registers to give account of
the activities and to try to govern the policemen behaviors. If, on one hand, I observe that the
practice of the police stations consolidates movements of situated creativity by the rules of
register, on the other hand, I consider that the agents become related to each other to keep the
autonomy to say the right as internal and available ethics to the institution. Such norm aims to
preserve the control form agents that become them vulnerable to punishment.
Thus, the justification for not internalization of the prescribed rules by “Legal Police
Station Program” would be the fact that the dispute for autonomy to say the right disables any
attempt of accountability of the police actions.
KEY-WORDS
Judiciary Police; The Reformation; Registers; Control; Information.
13
RÉSUMÉ
PAES, Vívian Ferreira Paes. A Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro: análise de
uma (re) forma de governo na Polícia Judiciária. Rio de Janeiro, 2006. Dissertação (Mestrado
em Sociologia com concentração em Antropologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro, 2006).
Dans ce travail, j'ai pour alle d'analyse une politique publique, appelée “Programa
Delegacia Legal” (Programme Commissariat de Police Legal), chargée de mettre en oeuvre
une forme de gestion des ressources de la Police Juridique de l'État de Rio de Janeiro.
Specifiálement, j’ai comme but objectif étudier les formes d'organisation des policiers en
relation avec une réforme qui intervient dans les produits de leur travail en disposant des
informations.
À travers une nouvelle technologie de gestion et de l'informatisation des services
policiers, le Programme cherche à modifier le potentiel des registres policiers pour être plus
efficace en ce qui concerne les activités et essayer de gouverner les conduites des policiers. Si
d'un côte j’observe que les pratiques des commissariats de police consolident des mouvements
de créativité située par les règles de registre, de l’autre, je considère que les agents se
rapportent avec l'objectif de maintenir l'autonomie de dire le droit comme une morale interne
et disponible à l'institution. Une norme que vise à la préservation des agents par rapport les
formes de controle qui font les agents vulnérable à la punition.
Ainsi, la justification pour la non-internalisation des règles prescrites par le
“Programme Commissariat de Police Légal”, s’attribu au fait que la dispute par l'autonomie
de dire le droit rend impossible n’importe quelle tentative d'accountability des actions
policières.
MOTS-CLÉ
Police Juridique ; Réforme ; Registres ; Contrôle ; Informations.
14
INTRODUÇÃO
Neste trabalho, tenho por foco de análise uma política pública dirigida a implementar
uma forma de gestão dos recursos da Polícia Judiciária do Estado do Rio de Janeiro.
Denominada Programa Delegacia Legal, essa política, em vigor desde 1999, abrange um
conjunto de medidas que visam impor uma tentativa de governo das atividades da Polícia
Civil. Em específico, objetivo estudar as formas de organização dos policiais em relação com
uma reforma que interfere nos produtos de seu trabalho ao dispor informação.
As últimas décadas do século XX e o início do século XXI têm sido profundamente
marcadas por uma crescente demanda de modernização e de reforma do aparelho de Estado.
A exigência de mudanças na forma de gestão das instituições estatais tem sido acompanhada
de tão grande relevância que a opinião pública tem dedicado aos temas da segurança pública e
violência.
Conjuntamente a essas situações de violência, a percepção de que os aparelhos de
Estado estão estagnados e não conseguem gerir igualitariamente seus recursos - e assim
administrar justiça - é uma representação que é comumente associada às desigualdades
estruturais experimentadas pela sociedade brasileira. Por conseqüência, estas são percebidas
como um dos principais entraves para o aprofundamento do processo de democratização
brasileiro. A demanda de modernização democrática que é dirigida às instituições políticas
tem se orientado do mesmo modo às instituições policiais. A partir da redemocratização do
país as atividades da Polícia Civil têm cada vez mais recebido atenção por parte de estudiosos,
da mídia e interventores governamentais. A imagem da polícia do Rio de Janeiro há muito
havia sido construída pela falta de credibilidade do trabalho policial em função de sua
ineficiência, do estilo personalizado e truculento dos agentes e do tratamento diferenciado que
concede às ocorrências e ao público. Em um quadro de reordenação do Estado, as práticas
15
levadas a cabo por suas instituições passam a ser questionadas como não haviam sido até
então.
Segundo compilação de bibliografia referente à temática na BIB, os estudos
sociológicos sobre a organização policial remontam à década de 80, tornando-se a atividade
policial uma problemática obrigatória a partir dos anos 90. Emergência essa, convencionada
pela tardia institucionalização da disciplina no Brasil, mas influenciada sobremaneira pela
conjuntura política e jurídica pela qual passou o país. O livre trânsito entre pesquisadores
nessas instituições, a partir da década de 80, devido às transformações políticas e jurídicas
advindas da redemocratização, fez com que o estudo da organização policial passasse então a
ter suma importância para se pensar o modelo de atuação das autoridades públicas (Kant de
Lima, Misse e Miranda, 2000). Nesse contexto, a demanda por modernização das instituições
e burocracias estatais e, principalmente, o reconhecimento da necessidade de reformas na
polícia por parte do próprio Estado apontam para a não conformidade a um modelo já
esgotado.
A partir da redemocratização do país, os diferentes governos do Estado do Rio de
Janeiro submeteram a polícia estadual a algumas adaptações em seus quadros administrativos.
Essas mudanças implicaram em algumas modificações no organograma das secretarias, bem
como na alteração da competência de cargos e na estrutura da carreira de polícia. Políticas
imediatistas obedeciam a preceitos ora humanitaristas, ora repressivistas, mas nenhuma delas
se dirigia a uma demanda de “modernização democrática” ou buscava afetar a estrutura
organizacional da polícia. A história da polícia estadual é profundamente marcada por
inúmeras transições e especulações governamentais que incidem sobre a instituição policial.
Nenhuma, no entanto, foi tão revolucionária quanto a reforma que atualmente tem lugar na
Polícia Civil fluminense.
16
Este trabalho busca analisar a experiência de modernização da Polícia Civil do Estado
do Rio de Janeiro a partir de uma reforma que foi intitulada de Programa Delegacia Legal.
Programa de reforma em curso no Estado, desde 1999, o Programa Delegacia Legal se propõe
a “dotar as delegacias policiais dos meios necessários para que elas possam atender os
pressupostos de objetividade, celeridade e eficácia nas investigações
1
”. A partir disso, o
Programa busca fazer com que todas as delegacias disponham de nova infra-estrutura física,
tenham suas rotinas internas reorganizadas e todos os procedimentos e sistemas de
informações policiais padronizados e informatizados. Além de modernizar seus serviços e
democratizar suas informações, visa submeter os policiais a um treinamento constante, para
que eles possam saber utilizar os novos instrumentos disponíveis.
Orientado por princípios de funcionalidade, transparência e valorização dos
profissionais, o Programa Delegacia Legal se insere em um conjunto de propostas que
propõem a criação de um novo modelo de segurança pública que esteja apoiado no paradigma
prevencionista, que resgate a função investigativa da polícia, que proponha transformar a
delegacia em um serviço público à disposição da população, e que vise o controle sobre as
atividades policiais com fins gerenciais. Então por mais que a reforma se apresente a partir de
uma roupagem ideológica que preconiza uma reforma intelectual e moral na Polícia Civil, o
que ela propõe enquanto prática é uma reforma administrativa que busca intervir na forma de
atuação da polícia para os demandantes de seus serviços e na forma como são produzidos e
gerenciados os procedimentos policiais.
Pela análise de uma Política Pública
A primeira questão que orienta minha análise é: o que quer dizer uma intervenção
burocrática do Estado em uma unidade administrativa? Com base nesse questionamento,
1
Texto extraído da homepage da Polícia Civil: (http://www.policiacivil.rj.gov.br)
17
buscarei entender a política pública como uma forma de intervenção nas práticas. Considero,
porém, que a intervenção burocrática do aparelho de Estado é uma ação que igualmente
encontra certas limitações em se fazer valer por parte dos agentes da instituição que a ela se
submete. Por esses aspectos, cumpre analisar a efetividade de uma política pública sob as
formas que assumem as práticas levadas a cabo pelos agentes.
Longe de colocar em discussão a natureza do poder político e de pensar que a
heterogeneidade do grupo só se garante através do conflito e através da recusa do Estado e de
qualquer forma de autoridade, como o faz Clastres (1998 e 2003) ao falar de sociedades
contra ou sem Estado, o que eu procuro é analisar sobre qual Estado e governo podemos falar,
já que, de fato, ao dispor sobre as coisas, eles influem sobre as relações das pessoas e
instituições. Assim, tento compreender a atuação do aparelho estatal a partir de uma política
pública e práticas de suas instituições, ou seja, através das “táticas de governo que permitem
definir a cada instante o que deve ou não competir ao Estado, o que é público ou privado, o
que é ou não estatal, etc.; portanto, o Estado (...) deve ser compreendido a partir das táticas
gerais da governamentalidade” (Foucault, 1979, p. 292).
Aparece-me, como uma salutar ferramenta de análise, a teoria de governo, tal como
proposta por Foucault, para entender a atuação do Estado sob a forma de governo de uma de
suas instituições, já que analiso uma política pública que dispõe, acima de tudo, sobre os
procedimentos e controle disciplinar de uma instituição. Para esse autor, “no caso de uma
teoria do governo não se trata de impor uma lei aos homens, mas de dispor sobre as coisas,
isto é, utilizar mais táticas do que leis ou utilizar ao máximo as leis como táticas. Fazer, por
vários meios, que determinados fins sejam atingidos” (Foucault, 1979, p. 284). Assim, o
governo teria um poder operatório em regular o funcionamento de seus mecanismos e impor
uma forma de disciplina, que se faz valer acima de tudo através da tentativa de
institucionalização, padronização e controle sobre as ações dos indivíduos. Quer dizer, a
18
finalidade do governo está no aperfeiçoamento das coisas que ele dirige, o que só se faz valer
através de uma racionalidade política em que o saber acerca de como os homens se
relacionam com as coisas determinaria a forma de gestão de suas condutas. Assim, o poder do
Estado tem através das formas de governo uma questão normativa, não no sentido de ter
poder de dispor sobre leis, já que nessa concepção não é através das leis que se atinge os fins
do governo, mas sim usar esse poder como uma estratégia de gestão de suas próprias
instituições.
Pretendo partir de uma questão normativa e pensar a forma como o Programa coloca
que as coisas deveriam ser (Geertz, 1997), para compreender a atividade da Polícia Civil a
partir da atuação de seus agentes; de como os policiais se relacionam com os anteriores e
novos referenciais, porque o efeito de uma determinada política pública sobre as atividades
práticas da polícia depende, sobretudo, da diversidade de interpretação dessas normas e de
como os agentes dela fazem uso.
Assim, eu parto do pressuposto de que nenhuma intervenção política é rotinizada
inteiramente, porque na realidade lidamos com um conjunto de práticas e estratégias que não
dizem respeito nem ao velho e nem ao novo, mas a um outro quadro administrativo que não é
nem o que os policiais faziam antes, nem o que o Programa visa que eles façam, mas o que
eles estão fazendo para poder atuar nesse contexto.
Nesse sentido, as resistências que podem encontrar uma política pública podem ser
elas mesmas um signo de mudança, na medida em que explicita uma reação a esta. A
resistência, da mesma forma que o conflito em Simmel (1983), é um símbolo constitutivo da
mudança, já que torna explícito no plano empírico que a realidade é muito mais suja e
complexa que os modelos conceituais, ela é resultante de modelos em relação.
19
O que deve ser ressaltado, é que em termos de políticas públicas, a reforma
preconizada pelo Programa representa grande avanço ao tentar intervir em uma lógica
institucional, o que certamente provocou resistências.
Nada normal reordenar objetivamente o curso de uma ação, pois as pessoas reagem ou
não da forma que se espera. É neste momento que me aparece salutar como ferramenta de
análise a idéia de contexto tal como trabalhada por Hughes (1996), pois por mais que a
reforma tenha um caráter normativo e possa ser considerada em sua forma objetiva, para
entendermos como ela se faz operar, devemos sem negligenciar a ordem estabelecida, atentar,
no plano empírico, para a diversidade de interpretação das normas por parte dos agentes
dentro do contexto no qual eles estão inseridos.
Como o Programa abrange uma questão normativa e propositiva, além de considerá-lo
em sua forma objetiva, pretendo considerar ainda as formas de apreensão do Programa por
parte dos agentes e as reações que ele tem produzido no cotidiano das delegacias. Pretendo
analisar a reforma não só no sentido de ilustrar a existência de uma lógica institucional, mas
também pensá-la através das formas como os policiais produzem seus procedimentos e
interagem com os seus pares e o público na delegacia, já que “a análise dos procedimentos
pelos quais os atores sociais se entendem ou se articulam entre si mostra que eles sabem
precisamente reconhecer e julgar as situações para definir condutas apropriadas (Joseph,
2000, p. 10)”.
Apesar dos agentes disporem de autonomia necessária para realizarem suas
atribuições, há entre eles todo um corpus comum de conhecimento partilhado que lhes
permite “definir a situação” no contexto que se inserem. É com base nos referenciais da
instituição e do grupo do qual fazem parte, que os agentes, ao representarem a instituição,
orientam-se em suas escolhas. Assim, também há uma certa estruturação nos papéis que eles
desempenham (Goffman, 1985 e Douglas, 1998).
20
Convém notar que, além das atividades policiais estarem estruturadas por sobre um
ordenamento jurídico que as define e sobre formas de atuar já convencionadas e atuantes
como uma “ética policial” (Kant de Lima, 1995), um terceiro elemento agora é incorporado a
estas atividades, um novo modelo de polícia que conforma o Programa Delegacia Legal. É
neste momento que a observação dos diferentes usos dos procedimentos policiais pode ser
considerada uma salutar ferramenta de análise, pois são esses produtos que dão significado à
atuação da polícia.
Pela tentativa de gestão dos procedimentos de uma Polícia Judiciária
As atividades policiais efetivam-se na administração institucionalizada dos conflitos
sociais. O conceito de drama social, desenvolvido por Victor Turner (1980 e 1996), auxilia na
compreensão da ação encenada durante a administração ritual do conflito uma vez que ele
vem à tona. O que Turner propõe com a análise do drama social é entender como o conflito
pode ser reconhecido a partir de quatro fases rituais: 1) a ruptura com alguma norma em
alguma arena pública; 2) a crise caracterizada pela tensão inerente ao conflito, que leva a uma
decisão sobre a administração ou não institucionalizada desses conflitos; 3) os mecanismos
reparatórios de atenuação da crise que visam conter a escalada da crise e implicam um
sacrifício literal ou moral das partes envolvidas e, por último; 4) a reintegração, que ocorre
quando os conflitos são temporariamente apaziguados, embora não resolvidos, ou o
reconhecimento do cisma, que ocorre quando não é encontrada uma solução para o conflito.
Apenas foi originada uma nova narrativa, uma nova forma de sistematizar esses fatos. Grosso
modo, os conflitos não são solucionados, mas sim reconhecidos através de algumas formas
rituais. Interpretando Turner, poderíamos argumentar que a polícia seria uma das instituições
encarregadas de administrar ritualmente o caráter polissêmico da realidade.
21
Dado o exposto, não pretendo reduzir a atividade de administrar conflitos, somente ao
exame de suas expressões nas leis, mas analisar como se tornam manifestos os conflitos
através dos produtos do trabalho policial. Objetivo considerar o processo de construção da
verdade nessas fases rituais para verificar como a polícia lê e imputa significado aos seus
produtos e a partir disso pauta sua atuação.
Neste momento, uma particularidade ao nosso contexto faz-se imperiosa ser
ressaltada: a administração dos conflitos por parte da polícia brasileira consiste justamente na
capacidade de arbitrar, na prática, quando um fato se transforma em um fato jurídico, o que se
vincula à própria natureza da atividade policial:
“... a atividade policial é e não é definida como devendo se ajustar à estrutura
oficial, legal e judicial não-discricionária. Em suas funções administrativas, a polícia
precisa exercer seu arbítrio em matéria de segurança pública, vigiando a população,
a fim de evitar ocorrências criminosas; em suas atribuições judiciais a polícia auxilia
o Judiciário na investigação de fatos criminosos reais, usando o arbítrio, mas
obedecendo a dispositivos legais, a fim de tornar válidas suas ações”. (Kant de Lima,
1995, p. 121)
Conforme o trecho supracitado, a polícia está imersa em um paradoxo criado pelo
próprio sistema legal que a criou. Suas atividades estão estreitamente atreladas ao Executivo e
ao Judiciário, já que é outorgada à instituição a função de apurar crimes ao mesmo tempo em
que lhe é cobrada a manutenção da ordem pública. Assim, “em suas atividades
administrativas, a polícia precisa agir segundo suas próprias categorias e regras – a ética
policial; em suas funções judiciais, a polícia precisa agir de acordo com as categorias judiciais
e com a lei” (Kant de Lima, 1995, p. 121). Como resultado desse paradoxo, aponta o autor
que a polícia contamina as funções de investigação com as funções de vigilância que exerce.
22
O sistema legal oferece oportunidades para que a polícia transforme de forma nem sempre
arbitrária, suas suposições em fatos. Algo como: “prenda-se os suspeitos habituais”.
Apesar de estarem geralmente entranhados nos processos judiciais, os Inquéritos
Policiais são de natureza meramente administrativa e estão vinculados a um sistema
inquisitorial baseado em coligir indícios e provas que possam fornecer ao juiz elementos
suficientes para que ele se convença a culpabilizar um suspeito presumido culpado, sistema no
qual métodos de instrução escrita e secreta são sumamente valorados. Um sistema que
também se caracteriza repressivo, posto que a aplicação das regras é percebida antes como
uma ameaça do que uma proteção, estando estreitamente vulnerável à interpretação
particularizada do agente do Estado que a aplica. Do ponto de vista do agente, ao mesmo
tempo em que ele está orientado pelo princípio da obrigatoriedade em agir, instaurando o
Inquérito Policial, seu trabalho é controlado através da verificação de suas ações, erros e
omissões, ou seja, da atribuição de culpa. Por um lado, são dadas oportunidades de arbitrar
aos agentes, por outro, eles podem ser punidos ou premiados, caso suas ações tenham ou não
alcançado fins desejados por um modelo hierárquico que eles reproduzem. É essa
responsabilização direta por suas escolhas que acaba deixando-os extremamente vulneráveis,
o que fomenta a formação de lealdades pessoais que neutralizem as ameaças de punição (Kant
de Lima, 2004).
Dados estes referenciais, uma segunda questão é merecedora de esforços: o que
significa uma reforma administrativa em uma polícia que é judiciária?
A reforma que atualmente experencia a Polícia Civil do Rio de Janeiro objetiva,
principalmente, a criação de novos mecanismos de gestão dos recursos da delegacia para que
as atividades da Polícia Civil possam ser mais bem otimizadas. A introdução de
procedimentos informatizados em conjunto com a publicização das informações e a
responsabilização individual dos agentes pelo andamento da ocorrência que eles atendem,
23
propiciaria a criação de novas formas de controle do trabalho policial - baseadas em últimas
prescrições nas teorias de administração de empresas – cujo fundamento reside na
possibilidade de acompanhamento, avaliação e responsabilização dos agentes públicos sobre
seus resultados - accountability, em inglês – para que seja feito um monitoramento
disciplinar. Entretanto, para que seja feito o devido controle nesse modelo, uma pressuposição
necessária é que as regras sejam internalizadas pelos indivíduos (Kant de Lima, 2004).
No discurso do Programa de reforma da polícia, o acompanhamento do trabalho
policial é entendido antes como monitoramento para otimização das atividades da própria
polícia e estabelecimento de novos rumos na gestão dos recursos para também verificar
déficits na formação dos agentes do que a realização de uma forma de controle repressivo
sobre as atividades dos agentes, o que contrasta de forma significativa com a racionalidade
burocrática que orienta as funções policiais anteriormente descritas.
Não há democracia sem controle, não há funcionamento do Estado sem controle. Um
dos principais princípios do Programa Delegacia Legal baseia-se na criação de mecanismos
de controle da ação policial, e é neste momento que um problema nos é imposto, pois o
problema é como se controla. A forma de controle preconizada pela reforma baseia-se em
uma forma de racionalidade burocrática outra, que tem um significado dissonante do que rege
o controle social sempre exercido pelas instituições públicas brasileiras, já que a tradição
inquisitorial afeta sobremaneira a Polícia Judiciária.
No Brasil, a segurança pública sempre foi entendida como tutela, já que as regras são
externas aos sujeitos e a eles são aplicadas conforme a discricionariedade dos agentes do
Estado, encarregados de fazê-la cumprir. Nesse modelo de controle social, a desigualdade
entre os cidadãos é institucionalmente reconhecida e a justiça é sempre aplicada de forma
particularizada. Já que as regras não são aplicadas de forma universal, esse modelo cria
estreita dependência dos cidadãos à discrição dos agentes do Estado.
24
Por meio do controle dos procedimentos policiais, preconiza a reforma que o policial
seja um prestador de serviço público, mas as instituições públicas brasileiras (não é uma
questão de polícia somente) nunca se identificaram como tal. Isso porque o que é público no
Brasil significa antes uma propriedade do Estado do que produto coletivo. O Estado brasileiro
outorga a seus servidores a prerrogativa de utilizar seus instrumentos em ameaça aos que
romperem com a ordem social e, assim, a administração do conflito é sempre manifestado em
nosso contexto de forma hierárquica.
Com base nos argumentos expostos acima, percebe-se que o principal significado da
reforma seria a prescrição de novas formas de gerenciar a atividade policial, no entanto, o que
prescreve o Programa tem uma racionalidade distinta da forma de produção de verdade do
nosso sistema judicial.
Creio que a partir da tentativa de ingerência de informações padronizadas,
informatizadas e democratizadas, o Programa Delegacia Legal é re-significado pelos agentes
nas delegacias, pois as atividades policiais baseiam-se em um sistema de controle
juridicamente rígido, obrigatório e que responsabiliza automaticamente os policiais. Assim,
emergem nas delegacias algumas alternativas práticas por meio das quais os policiais se
deslocam entre essa nova forma controladora de suas ações e os usos que dos registros podem
fazer visando uma forma de escapar a esse tipo de controle punitivo.
A hipótese que norteia este trabalho é que essas atividades estão submetidas ainda a
outras formas de controle baseadas no reconhecimento de pertença a um grupo, que derivam
principalmente da prerrogativa deles terem domínio sobre suas próprias condutas.
Deve-se ressaltar que mesmo nesse modelo, os agentes não dispõem de tanta
autonomia, já que não é o princípio da escolha racional que rege as escolhas e decisões. Os
agentes escolhem e agem com base em um referencial minimamente compartilhado e em
relação no contexto que integra, e são essas escolhas que permitem a perpetuação do grupo.
25
Tem-se assim, um dever ser do novo registro negado por outro(s) dever ser(s) que serve de
uma forma alternativa ao novo.
Assim delimitam-se os problemas de que irei tratar:
Como se efetiva uma política pública que busca impor novas de gestão dos
procedimentos e atividades institucionais?
Que procedimentos são esses e de que forma eles são produzidos?
De que formas manifestam-se os agentes em relação à possibilidade de controle que
lhes é imposta?
A fim de responder a essas questões, organizo o trabalho da seguinte maneira: no
primeiro capítulo, passo em revista os antecedentes históricos e os referenciais que
conformaram a polícia brasileira. No segundo capítulo, pretendo expor as formas de atuação
que foram consideradas como um problema a ser superado pela reforma. Em seguida,
exponho a forma como o programa comunica a idéia de modernização, baseada na
democratização da informação para melhor gestão dos recursos policiais (capítulo 3), para
então apresentar como a tentativa de governar a instituição policial se reproduz em termos das
práticas de registro e das formas de adaptação à reforma (capítulo 4), e da reação dos agentes
às formas de controle (capítulo 5).
Distintas Inserções
Meu primeiro contato com a temática da reforma da Polícia Civil se deu em 2001,
quando no terceiro período da Graduação em Ciências Sociais na Universidade Estadual do
Norte Fluminense comecei a estudá-la no âmbito do Projeto Mudança e Resistência na
Polícia Civil do Rio de Janeiro, coordenado pela Profª Laura Dorotea von Mandach. A partir
26
da inserção com o tema, elaborei uma monografia de conclusão de curso, sob a orientação da
Profª Lana Lage da Gama Lima.
No estudo anteriormente citado, apresentei uma análise comparativa entre o modelo
inovador (Programa Delegacia Legal) e o modelo convencional de administração de conflitos
na Polícia Civil a partir dos seus cenários de atuação policial, dos produtos decorrentes de
suas práticas e das interações resultantes das ações dos agentes em delegacias pertencentes a
cada um desses modelos.
Partindo da hipótese de que cada modelo apresenta um estilo de atuação policial
distinta, fiz uma etnografia do trabalho policial priorizando a abordagem comparativa das
práticas estabelecidas nos dois tipos de delegacias. Já hipótese alternativa que orientou o
trabalho, sugere que a ética tradicional e as regras costumeiras da Polícia Civil tendiam a
resistir à reforma.
De forma bastante resumida, concluí que a reforma pode ser identificada no âmbito da
nova infra-estrutura das Delegacias Legais, da nova rotina interna de preenchimento dos
dados imposta pela informatização dos procedimentos policiais e por último no que diz
respeito à unificação das carreiras profissionais que, por sua vez, acarreta na eliminação de
degraus da antiga carreira institucional.
Ao analisar o espaço das Delegacias, tomei como categoria de análise, a idéia de
cenário (Goffman, 1985, p.29), como uma forma simbólica sobre a qual a instituição
apresenta-se a si mesma e aos outros. Frente à realidade de delegacias sucateadas, onde a
presença de presos era uma constante por conta da carceragem e cuja estética operava
segundo a lógica da punição e do segredo (Lima, 1998), o Programa propõe a reforma física
das delegacias com a finalidade de valorizar atitudes positivas, tanto dos policiais quanto do
público em relação à polícia. O espaço de trabalho dos policiais na Delegacia Legal fica
aberto à observação, assemelhando-se à infra-estrutura panoptica proposta por Bentham
27
(Foucault, 1998 e 1999), o que confere maior transparência das atividades policiais ao público
que a demanda e submete os policiais à mútua vigilância, pretendendo também influir na
percepção que os policiais teriam de ver-se enquanto parte integrante de uma totalidade
integrada.
Atentei, por fim, para a análise de como se processam as relações intrainstitucionais
no âmbito dos dois modelos em questão. É em oposição a um modelo em que as tomadas de
decisão são unilaterais e as relações pautadas por interesses particulares, que o Programa
propõe uma nova forma de relacionamento entre os atores da Delegacia Legal, que seja
pautada em uma postura de parceria, no sentimento de responsabilidade e no trabalho em
conjunto. De fato, a Delegacia Legal eliminou os antigos degraus na hierarquia institucional,
porém, criou outras subdivisões na delegacia, propiciando a manutenção dos setores
privilegiados por administrar de forma particularizada a informação.
Se, por um lado, pude identificar neste trabalho, que o Programa Delegacia Legal
conseguiu implementar mudanças consideráveis na rotina da Polícia Civil, por outro, também
observei continuidades significativas do modelo convencional no cotidiano das novas
delegacias, o que acabou confirmando ambas as hipóteses. Expressando uma dialética de
readaptação de práticas convencionais aos trâmites que a nova delegacia inaugura, da mesma
forma como a reforma impõe práticas novas na rotina da Polícia Civil, o novo programa
demonstra grande plasticidade.
Traduzo como os “desafios da reforma”, o fato de seus objetivos serem implementados
através de um processo de adequação ao contexto político institucional e ao quadro legal
(administrativo e jurídico) que, por sua vez, refletem a particular cultura política e jurídica
brasileira (com todas as acepções que a palavra particular pode carregar).
Pode-se observar que no meu trabalho monográfico de conclusão de curso, a
organização dos capítulos foi feita em função da abertura que obtive no campo em relação aos
28
assuntos que se seguiram: os cenários das delegacias, os procedimentos policiais e relações
entre os agentes.
A pesquisa de campo acima descrita foi realizada principalmente nas delegacias de
Campos/RJ, entre 2001 e 2003. Feliz conveniência, tanto pelo lugar onde estávamos, quanto
pela peculiaridade de um local onde havia duas delegacias numa mesma cidade atuando de
forma diversa, uma já reformada desde junho de 2000 e outra que até julho de 2003
funcionava conforme o modelo convencional. Dada a ampla extensão territorial que apresenta
o município de Campos
2
, as duas delegacias apresentam larga circunscrição e, por
conseqüência, são delegacias que atendem a um grande volume de ocorrências. Para esta
pesquisa, também foram realizadas pesquisas de campo nas cidades de São Fidélis (que
também fica no norte-fluminense) e Rio de Janeiro, com vistas a poder complementar e
relativizar as conclusões levantadas pelo material coletado em Campos. Nota-se que em
virtude da reforma não atingir simultaneamente todas as delegacias do Estado, eu pude
comparar no tempo presente o modelo convencional que estava preste a ser extinto e o “novo”
que está sendo implementado.
Acompanhar a reforma em sua dimensão processual foi extremamente profícuo. Com
tal procedimento, me deparei com uma situação que a princípio se apresentava como uma
dificuldade para a pesquisa, mas que revelou as subseqüentes adaptações sofridas pelo
programa de reforma e algumas peculiaridades da própria Polícia Civil. O fato de termos de
nos apresentar a novos atores nas Delegacias a cada vez que havia uma transição
governamental, foi árduo e ao mesmo tempo revelador, pois torna evidente o quanto a
instituição policial e a carreira dos policiais está vinculada aos meandros políticos. Quando
digo política, não me restrinjo somente à atuação da instituição com o Estado, também
procuro discorrer sobre as delicadas relações internas que os policiais nutrem entre si.
2
Maior município com extensão territorial no Estado do Rio de Janeiro, com área de 4.040,6 Km
2
.
29
A partir de março de 2004, desenvolvo o presente trabalho no Programa de Pós
Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(PPGSA-IFCS-UFRJ) com Bolsa de Mestrado financiada pelo Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), e sob orientação do Prof. Michel Misse.
Com base nessa inserção, compus a equipe de pesquisa do projeto O Programa
Delegacia Legal no Rio de Janeiro: avaliação de uma experiência modernizadora na Polícia
Brasileira, coordenado pelo Prof. Michel Misse, meu atual orientador (NECVU-IFCS-UFRJ),
de forma que o material coletado nessa fase e as discussões travadas no âmbito desse projeto
também exerceram suma influência sobre meus atuais referenciais.
Com o objetivo de avaliar os resultados alcançados pelo Programa Delegacia Legal,
aplicamos um questionário a todos os policiais das Delegacias Legais visando detectar suas
representações e atitudes em relação ao Programa. Para a elaboração do questionário primeiro
passamos por uma revisão dos documentos e dados estatísticos da Polícia Civil e fizemos
entrevistas em seis delegacias da área metropolitana. Participei da fase de elaboração,
aplicação e análise dos questionários. Já a seleção da amostra das delegacias para a realização
de entrevistas com os delegados foi submetida aos seguintes critérios: selecionou-se entre as
Delegacias Legais, aquelas que recebem geralmente os casos mais graves e que suscitam
maior investigação. Dessas delegacias selecionadas, contamos com a colaboração dos
delegados da 77
a
DP (Icaraí), 14
a
DP (Leblon), 22
a
DP (Penha), 34
a
DP (Bangu), 9
a
DP
(Catete) e 23
a
DP (Méier).
Junto à equipe de pesquisadores do NECVU-IFCS-UFRJ, ainda participei do projeto
Desarmamento e Índices de Criminalidade envolvendo armas de fogo: um exame sistemático
dos dados oficiais, realizado de junho a outubro de 2005. Essa pesquisa tinha por objetivo
verificar e analisar os instrumentos e indicadores que poderiam ser utilizados para análise dos
resultados alcançados por iniciativas legislativas que visam o controle da venda e posse da
30
arma de fogo. Nessa pesquisa, trabalhou-se basicamente com um conjunto selecionado de
ocorrências criminais praticadas com uso da arma de fogo, registradas pela Polícia Civil em
delegacias geridas pelo Programa Delegacia Legal e inauguradas até abril de 2002.
De maio a dezembro de 2005, também estava inserida enquanto pesquisadora no
projeto Avaliação do Trabalho Policial nos Registros de Ocorrência e nos Inquéritos
referentes a Homicídios Dolosos em Áreas de Delegacias Legais desenvolvido pelo Instituto
de Segurança Pública (ISP) em convênio com a Secretaria Nacional de Segurança Pública do
Ministério da Justiça.
Para a realização desse projeto foram analisados os inquéritos e flagrantes de casos de
homicídios das seguintes delegacias: 6
a
DP (Cidade Nova), 12
a
DP (Copacabana), 20
a
DP
(Grajaú), 21
a
DP (Bonsucesso) e 34
a
DP (Bangu). Nestas, foram entrevistados delegados e
operadores objetivando verificar como esses agentes avaliam seu próprio trabalho.
Com base nos materiais de pesquisa de que fiz parte e no material que recolhi para
minha dissertação em específico, considero que disponho de fontes representativas para que
me permitam falar da experiência de reforma nas Delegacias Legais no Estado e não de
delegacias em específico.
Controle de Impressões
Apesar do ingresso de mulheres na Polícia Civil ter se iniciado na década de 80, o
efetivo de policiais do sexo feminino na polícia ainda é muito reduzido se comparado à
presença masculina. Quanto às funções desempenhadas, observa-se que as atividades que as
mulheres desempenham na instituição são predominantemente atividades técnicas,
burocráticas e/ou administrativas (Minayo e Souza, 2003, & Misse e Paes, 2005). Com
exceção das policiais, a presença de mulheres trabalhando nas delegacias de polícia está
geralmente vinculada à figura das atendentes, que são estudantes ou profissionais na área de
31
ciências humanas, em geral da área de psicologia e serviço social. Em face desse contexto,
seria interessante pensar em como me represento como uma entrevistadora mulher em um
universo que permanece tipicamente masculino.
Com vistas a considerar o “controle das impressões” e os constrangimentos impostos
pela minha presença em campo, analiso a forma como os policiais tornavam manifestas suas
representações acerca de minha presença no cotidiano de seus trabalhos e como eu mesma me
representava dentro do grupo (Berreman, 1980).
No início de minha pesquisa de campo, por ser uma mulher, com 18 anos de idade e
estudante da universidade, tive um pouco de dificuldade para ter acesso aos delegados. Por
um lado, acho que por eles estarem em mais alta hierarquia na delegacia da Polícia Civil,
percebiam que eu não era uma pessoa digna a perder tempo em conversa, por outro lado,
penso que eu não era percebida por eles como uma ameaça, pois era deixada de lado na
delegacia, o que me fez ter mais acesso à observação das atividades rotineiras desenvolvidas
pelos policiais na delegacia. Dada essa acessibilidade no campo, com os policiais eu pude
manter uma conversa mais informal sobre as atividades que eles estavam levando a cabo, mas
minha metodologia de trabalho com os delegados foi prioritariamente através de entrevistas
semi-estruturadas.
Levava comigo um roteiro para conversar com eles sobre questões mais pontuais, mas
não obedecia ao roteiro se a entrevista pendia para outras questões que não eram aquelas que
eu tinha pensado. Assim, eles também suscitaram outras problemáticas que foram
incorporadas.
A princípio, minha apresentação nas delegacias foi formal. Não recorri a
relacionamentos pessoais para ter acesso às atividades das delegacias. Eu me apresentava
32
como estudante da universidade
3
e sempre realizei as entrevistas nos locais de trabalho dos
policiais. Apesar de um delegado me informar que a delegacia não era um ambiente muito
propício para a entrevista porque ele sempre era interrompido, eu penso que, ao contrário,
eram as interrupções que mais me interessavam. Enquanto eu realizava as entrevistas havia
muita circulação na delegacia e várias vezes os policiais entravam na sala do delegado para
pedir orientação sobre o que estavam fazendo; essas observações sobre a rotina do trabalho
também me foram muito reveladoras.
Quando comecei a pesquisa de campo no Rio de Janeiro, uma outra problemática em
relação à minha apresentação no campo chamou minha atenção. Dada a minha inserção em
outras pesquisas que estavam vinculadas a instituições subordinadas à Secretaria de
Segurança Pública - uma pesquisa encomendada pelo Grupo Executivo do Programa
Delegacia Legal (GPDL) e outra pesquisa realizada no Instituto de Segurança Pública (ISP) –
a apresentação na delegacia através de um grupo da própria polícia representava uma posição,
vindo assim a demarcar de que lado eu estava (Becker,1984).
Com o objetivo de ressaltar que o campo não é construído somente pelos
constrangimentos que são impostos ao grupo, mas também pela interferência do pesquisador e
dos instrumentos que ele utiliza no campo, eu devo explicitar que, com base nessa inserção,
alguns policiais mostraram-se a princípio renitentes a me conceder a entrevista, mas depois de
explicitar-lhes meu interesse
4
, penso que eles acabavam por instaurar uma relação de
confiança na estudante. A princípio questionavam o critério de escolha das delegacias, porque
temiam que eu tivesse como objetivo espionar as atividades que eles desenvolviam, mas
depois de me apresentar como cientista social, eles me confundiam com uma assistente social
e me confiavam seus relatos, mas não sem antes ressaltar: “Vocês não vão me identificar não,
3
Essa apresentação formal influenciou sobremaneira na pesquisa, mas à medida em que a pesquisa progredia, eu
passava a ser “reconhecida” pelos policiais, a ponto de um delegado que eu tinha entrevistado em Campos, ao
me encontrar, por acaso cerca de três anos depois em uma delegacia na Zona Oeste do Rio de Janeiro, me
perguntar em tom de ironia se eu o estava “perseguindo”.
4
Ao contrário da valorização do sigilo das práticas inquisitoriais.
33
isso não vai parar lá no Itagiba
5
não, né. Um dos problemas da Polícia Civil é que o policial
não pode nem falar porque ele é transferido”.
Dada a vulnerabilidade de suas ações, era necessário comunicar claramente minhas
intenções para que os policiais admitissem minha presença na delegacia. Criando uma relação
de cumplicidade e não de autoridade, para eles passassem a me confidenciar informações
mais como dádiva, do que confessar algo como dívida (Miranda, 2001). Assuntos que eles
percebiam como segredos potenciais eram-me confidenciados, mas não sem antes eles me
advertirem apontando para o caderno de campo: “isso você não pode anotar aí não” ou ainda
“isso que eu estou te contando é para ficar em off...”. No entanto, à medida que ia
desenvolvendo a pesquisa de campo, percebi que certos segredos não eram tão segredos
assim, já que em outros momentos eles voltaram á tona. Assim, percebo que a advertência que
eles me faziam era mais com o intuito de não identificá-los.
Quando me confundiam como uma assistente social, eu era identificada como mais
uma das atendentes que na delegacia trabalham; mesmo que eu falasse que cursava Ciências
Sociais, eles pensavam que eu fazia Serviço Social e estava interessada em perceber como
eles prestam assistência.
Experimentei ainda utilizar o gravador em algumas das entrevistas, mas observei que
quando eles não negavam que a entrevista fosse gravada, eles ficavam com um discurso mais
lacônico, recostavam na cadeira, a afastavam para trás e ficavam de longe olhando vez em
quando para o gravador. Assim, a presença ou não do gravador também influenciou
sobremaneira na disposição dos delegados para com a entrevista que eles concediam.
Os entrevistados foram selecionados em função do cargo ou da função que
desempenhavam nas delegacias, não procurei fazer um recorte com base estatística do
universo pesquisado. Creio na importância desse tipo de análise, mas apesar de ter
5
Atual Secretário de Segurança Pública do Estado.
34
entrevistado também policiais e delegadas do sexo feminino, eu não procurei fazer um recorte
segundo o sexo dos entrevistados, por exemplo. Informo que apesar de ser questão de
destaque a perspectiva de gênero, neste trabalho, é a atenção às distintas gerações e o fazer ou
não parte de um grupo dentro da polícia
6
que mais me chamou atenção.
Não podemos objetar que no que concerne a este objeto de estudo, além de “investigar
os investigadores”, como Minayo retrata em sua pesquisa sobre a Polícia Civil (Minayo,
2003), estamos também nos tornando sujeitos à investigação, de forma que eles também
sabem com quem estão falando.
Cerca de dezoito anos depois do pioneiro trabalho realizado sobre a polícia
fluminense, a sensação que Kant de Lima descreve sobre sua receptividade no grupo
pesquisado permanece muito atual para os que se empreendem a estudar esse universo:
“pesquisar a polícia oferecia às vezes momentos difíceis. Por um lado, eu tinha a noção, muito
incômoda, de ser um investigador profissional cercado de pesquisadores profissionais que
usavam basicamente os mesmos métodos que eu” (Kant de Lima, 1995, p. 20).
Isso se tornou explícito durante minha banca de defesa de monografia, quando um dos
membros, então diretor do centro onde estudava, disse que quando foi fazer um registro na
Delegacia sobre os livros que tinham sido roubados da biblioteca, lhe perguntaram se ele nos
conhecia ou conhecia alguma coisa sobre a pesquisa de modo a se certificarem de que as
intenções da equipe de pesquisa realmente eram verdadeiras.
Em outro momento, em uma delegacia da zona sul do Rio de Janeiro, ao sair de uma
entrevista com um delegado, acompanhada de mais uma entrevistadora, o delegado nos
acompanhou até as escadas da delegacia, esperou a outra pesquisadora passar, me parou na
escada e perguntou se eu era freqüentadora do bairro, pois ele me conhecia de algum lugar.
Intimidada, o respondi que tinha amigos que moravam no bairro e que algumas vezes os
6
Objeto de análise no último capítulo.
35
visitava, mas que não residia ali, que ele deveria me conhecer de algum evento ou ambiente
que fosse ligado à polícia, já que há cinco anos os freqüento por estudar questões
relacionadas. Depois disso ele me deixou passar.
Em face dessas observações, é interessante ressalvar que, por conta da própria
natureza das atividades policiais, ao mesmo tempo em que eles suspeitavam de minhas
intenções, eu também me deparei com meus próprios preconceitos em relação às atividades
pelos policiais desempenhadas, de forma a superar os meus próprios medos e as preocupações
de minha família a cada vez que ia à delegacia. Ao decorrer da pesquisa, me deparei com
interlocutores que, na grande maioria das vezes consentiram, colaboraram e me auxiliaram na
realização de meu trabalho. Os constrangimentos por vezes impostos foram igualmente
construtivos, uma vez que me revelaram aspectos da organização que não teria acesso caso
não tivesse me deparado com eles.
36
Capítulo 1
A CONSAGRAÇAO DE PRÁTICAS INSTITUCIONAIS
“Quando observamos mais de perto a
construção do passado, verificamos que
o processo tem pouco a ver com o
passado e tudo a ver com o presente”
(Douglas, 1998, p. 75).
Pretendo, neste capítulo, expor alguns traços da formação da instituição policial no
Brasil, a fim de entender como a tradição burocrática que a conforma traduz-se em nosso
contexto em uma forma particular de processamento do conflito. A partir disso, verifico que a
ação dos policiais é orientada por uma cultura arraigada nas instituições e principalmente na
sociedade na qual exercem suas funções. Assim, argumento que o que poderia ser entendido
em termos de possíveis incongruências entre as leis e as práticas da instituição tem uma
função prática, pois respondem às formalidades de um código hierarquizado e socialmente
partilhado pelos que exercem o poder.
1.1. Histórico Institucional
Observa-se que à constituição histórica da burocracia brasileira é peculiar a formação
de um serviço público que não se identifica como tal. Ao relatar as origens de uma burocracia
judiciária no Brasil, Schwartz (1979) chama a atenção para o fato de que a burocracia
brasileira em suas origens (1609-1751) esteve mesclada à sociedade estamental, o que
fomentava práticas de corrupção das leis e normas burocráticas por parte da judicatura
brasileira.
37
A Corte portuguesa favoreceu o favoritismo institucionalizado como uma estratégia de
controle das instituições coloniais, estratégia que garantia recompensas para controlar o
desempenho dos magistrados dentro dos limites do comportamento aceitável:
“A coroa, ao controlar tanto os símbolos que legitimavam a ascensão social quanto
as recompensas internas da burocracia, conservava a magistratura amarrada aos
interesses reais. (...) a magistratura ... nunca foi uma entidade autônoma, com
objetivos próprios diferentes daqueles que eram prescritos pela Coroa.” (Schwarz,
1979, p. 243).
Esse sistema impunha uma forma de controle que fiscalizava e tolhia seus agentes a
atuarem conforme as regras que lhe eram atribuídas.
“Essa forma de controle gerava nos agentes da Coroa, de um lado, a propensão para
a inércia e, do outro, uma possibilidade permanente de culpabilização por parte das
autoridades fiscalizadoras, diante das inevitáveis omissões e erros dos agentes
burocráticos. Evidentemente, essa estratégia assegura a permanência de um estado
de fragilização permanente entre os quadros da burocracia e a crescente formação
de lealdades pessoais que neutralizem tais ameaças potenciais, mas permanentes, de
punição” (Kant de Lima, 2004).
Essa lógica estamentista e controladora das ações dos agentes produziu, na prática,
maiores oportunidades de corrupção, por meio da venda de justiça e formação de alianças
como garantia de proteção; o nepotismo lhes assegurou uma sensação de solidariedade
profissional para escapar a esse rígido controle.
Embora as Ordenações Filipinas balizassem a administração das coisas e pessoas da
Colônia, com o objetivo de reforçar o poder central, elas foram aos poucos sendo revogadas
na prática de nossas instituições. “Dos meados do século XVII em diante, existindo no país
uma vida administrativa, política e social regularmente desenvolvida, passam as Ordenações
Filipinas a vigorar com absoluta preponderância” (Thompson, 1976, p. 101). No entanto,
38
esses códigos foram constantemente reatualizados na prática de nossas instituições que
operavam mais conforme a conveniências impostas pelas situações do que de acordo com um
código positivista que balizava suas ações.
Nessas ordenações, estava prevista a organização dos Quadrilheiros, já existente em
Lisboa desde 1603, uma organização que não recebia remuneração dos cofres públicos e que
tinha por objetivo prender ladrões e malfeitores - uma instituição que estava, assim, a serviço
de grupos privados.
Com a invasão de Napoleão em Portugal, em 1807, a família real portuguesa e sua
comitiva se transferiram para a colônia brasileira, em especial para sua capital, o Rio de
Janeiro. Ao se defrontarem com uma população escrava e de pobres livres ocupando
ostensivamente o espaço público da cidade, foi criado um policiamento regular para fazer o
controle sobre o comportamento público de uma população “hostil e perigosa” e proteger a
propriedade dos que vieram aqui se instalar. Assim, é criada em 10 de maio de 1808, a
Intendência Geral da Polícia da Corte e do Estado do Brasil.
Apesar de alguns ideais liberais da nobreza começarem a encontrar alguma profusão
na Corte, ao defender a autoridade estatal através da aplicação dos mecanismos impessoais
aos mecanismos coercitivos do Estado em oposição a uma autoridade pessoal do monarca, no
Brasil, essa instituição - inspirada na instituição portuguesa que fora criada, em 1760, segundo
moldes franceses - foi criada em favor de um poder centralizado e contra a profusão das idéias
liberais. Formalmente, o controle social deixou de ser exercido pelos hierárcas privados para
ser exercido pela suposta autoridade impessoal das instituições estatais. Característica muito
diversa do processo de monopolização dos meios de coerção da violência por parte do Estado,
pois no Brasil, o personalismo perpassa as duas instituições, já que o controle social exercido
pela polícia estava consoante à forma de controle exercido pelos detentores de terra.
Destinado a manter o comportamento dentro de certos limites, toma fôrma uma política do
39
encarceramento que visa arregimentar mão-de-obra pelo Estado. No entanto, observa-se que a
proteção da propriedade através do controle sobre os escravos consistiu principalmente na
continuidade da estrutura da dominação pessoal, já que o domínio da autoridade estatal sobre
o comportamento dos escravos era realizado em negociação com as elites proprietárias locais.
Acumulando funções administrativas, judiciais e policiais, a Intendência
responsabilizava-se pela construção e fiscalização das obras públicas e dos caminhos que
garantiam o abastecimento da cidade com alimentos e água nos pontos de captação, bem
como cuidava da segurança pessoal e coletiva nas ruas e vielas da cidade vigiando a
população escrava, pobre e livre, investigando os crimes e capturando seus autores tão logo
identificados.
Disputando competência (e ao mesmo tempo subordinada à Intendência), surge em
maio de 1809 uma força policial de tempo integral e organizada militarmente para fazer o
policiamento ostensivo das ruas da cidade, a Guarda Real de Polícia. Observa-se assim, que o
surgimento da instituição policial no Brasil coincide com o reconhecimento de um espaço
público que deve ser controlado e vigiado, que não é de todos, mas que é do Estado. A polícia
como uma instituição estatal e jurídica responsável pelo controle social e pela manutenção da
ordem pública, passa a assumir o poder que era utilizado privadamente e que antes estava
somente nas mãos dos proprietários de escravos. Em oposição à “ordem do rei”, é a
manutenção da “ordem pública” que passa a ser altamente prezada.
Com práticas altamente contaminadas pelas estratégias de vigilância que a polícia
exercia, percebemos que “o domínio do público é assim o lugar apropriado
particularizadamente, seja pelo Estado, seja por outros membros da autoridade autorizados ou
não por ele” (Kant de Lima, 2000, p. 110). De tal modo, percebe-se que a noção de público
quer dizer que as regras “embora sejam as mesmas para todos, não se aplicam a todos da
mesma maneira, mas de maneira particular a cada um” (Kant de Lima, 2003, p. 247). No
40
contexto do Brasil Colônia, a polícia tinha uma eficácia: ela atuava conforme os ideais
centralizadores da elite política que criou e dirigia a polícia, já que orientava suas ações à
coerção e controle dos comportamentos da maioria da população que não possuía
propriedade. Toma forma uma burocracia estatal criada para controlar e manter a ordem
social, porém a instituição supostamente regida por um universalismo impessoal garantiu a
continuidade das relações hierárquicas tradicionais.
A apropriação particularizada dos recursos burocráticos das formas de produção de
verdade é explicitada através da forma de atuação das instituições judiciárias e estatais. Sobre
as formas autoritárias de usos do poder de polícia traduzidos em uma forma de atuação por
parte de seus agentes na época de constituição no Brasil Colonial, assim um trecho de Manuel
Antonio de Almeida (s/d, p. 52-53):
O Vidigal
O som daquela voz que dissera “abra a porta” lançara entre êles, como dissemos, o
espanto e o medo. E não foi sem razão; ele era o anuncio de um grande aperto, de
que por certo não podiam escapar. Nesse tempo ainda não estava organizada a
polícia na cidade, ou antes estava-o de modo em harmonia com as tendências e
ideais da época. O major Vidigal era o rei absoluto, o árbitro supremo de tudo o que
dizia respeito a esse ramo de administração; era o juiz que julgava e distribuía a
pena, e ao mesmo tempo era o guarda que dava caça aos criminosos; nas causas de
sua imensa alçada não haviam nem testemunhas, nem provas, nem processo; ele
resumia tudo em si; a sua justiça era infalível; não havia apelação das sentenças que
dava, fazia o que queria e ninguém lhe tomava contas. Exercia enfim uma espécie de
inquisição policial. Então façamo-lhe justiça, dados os descontos necessários às
idéias do tempo, em verdade não abusava ele muito de seu poder, e o empregava
muito bem empregado.
(...)
A sua sagacidade era proverbial, e por isso só o seu nome incutia grande terror em
todos os que não tinham a consciência muito pura a respeito de falcatruas.
Apesar do texto acima tratar de um romance, convém ressaltar que ele não se refere a
um personagem fictício, o Major Miguel Nunes Vidigal era segundo comandante da Guarda
41
Real de Polícia em 1809. Conforme nos informa Holloway (1997, p. 48-49), o famoso
Vidigal:
“... tornou-se o terror dos vadios e ociosos, que podiam encontrá-lo ao virar a
esquina à noite ou vê-lo aparecer de repente nos batuques que aconteciam com
freqüência nos arredores da cidade. (...) Sem ligar a mínima aos procedimentos
legais, nem mesmo pro forma, Vidigal e seus soldados, escolhidos a dedo em função
do tamanho e truculência, batiam em qualquer participante, vadios ou tratantes que
conseguissem capturar. Esses ataques brutais tornaram-se conhecidos no folclore da
cidade como “ceias de camarão”, alusão à necessidade de descascar o crustáceo
para chegar a sua carne cor-de-rosa. Em vez do sabre militar comum, o equipamento
formal de Vidigal e seus granadeiros era um chicote de haste longa e pesada, com
tiras de couro cru em uma das extremidades, o qual podia ser usado como cacete ou
chibata. Depois de aplicada perversa e indiscriminadamente em escravos e livres no
momento da prisão, os escravos eram devolvidos à custódia de seus proprietários ou
levados ao intendente ou a seus assistentes, os juizes de crime, para julgamento.”
Em muito coincide o relato literário com as asserções de Holloway sobre a atuação de
Vidigal. Mas, em que consiste a “justiça” como categoria representada por Manuel Antonio
de Almeida? A justiça consiste em um preceito e atitude de dar a cada um o que é seu.
Conforme o relato, ela é manipulada pelo Vidigal em virtude das circunstâncias e contexto em
que se encontra. Vidigal assim personifica a justiça. Ele é o “árbitro supremo” de todas as
situações que em sua alçada venham a ser julgada.
Nota-se o amplo poder de ação do agente Vidigal: além de reprimir e exercer o
controle sobre o comportamento da população que estava sujeitada a essa regra de aplicação,
ele sentenciava os acusados e ainda acompanhava a aplicação das penas menores, os delitos
mais graves ficavam sob a jurisdição do Imperador. Já que a coroa lhe fora outorgada por
Deus, as decisões do monarca correspondiam a uma revelação divina, todavia, era em nome
de el rey que as instituições judiciárias e estatais exerciam suas atribuições, suas asserções
estavam investidas de uma verdade teleológica. Sua justiça era infalível, estava consoante a
42
forma de autoridade que era exercida a partir da arbitrariedade dos relacionamentos entre os
pertencentes às diferentes categorias sociais, ou seja, suas atividades encontravam respaldo
social, pois cumpriam a função dos ideais conservadores da época.
Outro aspecto importante do relato supracitado é a percepção da polícia como uma
instituição que cause espanto e medo em grande parte da população, o que denota que desde
sua consolidação havia um grande distanciamento entre a polícia e o povo. A polícia visa,
nesse sentido, não a assegurar direitos, mas a combater qualquer tipo de desordem. Em termos
de pureza e perigo de Douglas (1976), à polícia compete, a função de imputar determinadas
normas a alguns comportamentos e atores considerados impuros, permitindo a perpetuação
das hierarquias sociais estabelecidas.
Além da herança escravocrata agindo sobre as formas de atuação, nota-se que esses
autores narram sobre uma forma específica de descoberta da verdade identificada como uma
inquisição policial, o que demonstra a combinação de ideais religiosos aos da instituição.
Independentemente da ordem política e jurídica em vigor, pela instituição se realizam toda
uma série de procedimentos eclesiásticos que eram levados a cabo pelo Tribunal do Santo
Ofício da Inquisição (Kant de Lima, 1992, p. 96).
Na jurisdição do Santo Ofício, “o funcionamento do processo inquisitorial parece
dirigir-se a comprovar uma espécie de tácita pressuposição de culpabilidade daquele contra
quem existem indícios de conduta delituosa” (Thomas e Valiente aput Lima, 1998, p. 175).
Segundo a autora, nesse processo construía-se uma verdade de antemão presumida: o suspeito
era o culpado.
Pensando nas formas de atuação da polícia a partir do relato sobre o Vidigal, observa-
se que os procedimentos adotados pela instituição policial pouco diferem da tradição
eclesiástica e inquisitorial de descoberta da verdade. Aplicando as regras de forma
particularizada e empregando seu próprio modelo de justiça que fora construído a partir das
43
interações que travam com as “classes perigosas”, exercia a polícia ampla autoridade e
liberdade de ação em conformidade com o que as elites achavam que deveria ser sanado.
Ressalta-se que a criação do Estado só se dá formalmente a partir do reconhecimento
da cisão entre o público e o privado. Através da polícia, o poder central concentrava em si os
meios de coerção para reprimir toda e qualquer “ofensa à ordem pública”, cujo significado
corresponde a uma transgressão ao padrão cultural dominante. A fim de cumprir as
expectativas da elite para a qual servia, que freqüentemente era exercida a arbitrariedade e
truculência policial. Entretanto, a intromissão na vida privada da população por parte da
autoridade pública foi imposta de cima para baixo e isso, claro, pode ter causado resistências.
Em Thomas Flory (1986), observamos que, frente a uma estrutura administrativa
demasiada concentrada que associavam ao regime colonial, as lideranças identificadas como
liberais começam a partilhar de um ideal descentralizante do governo civil. Começa a
delinear-se no Império uma importante arena de disputas em torno das estratégias de controle
social estatal. A discussão em torno do Processo Penal torna-se assim, uma das melhores
estratégias de fazer política e manipular o poder.
Em oposição à centralização do poder pelo rei, postulavam os liberais que a reforma
jurídica brasileira deveria ter um enfoque administrativo local. Em suas proposições
legislativas para o governo local, os liberais conseguiram através de aprovações graduais de
leis reformistas, a renovação da judicatura através da institucionalização em 1826, do Juiz de
Paz, um juiz não profissional e eleito localmente pelo povo na Freguesia. Representando uma
erosão à autoridade central e uma ameaça ao controle social do Império, a institucionalização
do Juiz de Paz, juntamente com um conjunto de reformas patrocinadas pelos liberais,
representavam a “independência” do sistema legal, desafiando a posição tradicional do
Imperador como árbitro supremo de Justiça e como fonte de autoridade policial, visto que o
Juiz de Paz não era parte dependente da justiça do rei. Privando o Imperador de um novo e
44
importante recurso burocrático, fizeram com que Dom Pedro abdicasse do trono em favor de
seu filho e retornasse para Portugal.
A principal atribuição do Juiz de Paz brasileiro era promover conciliações entre as
partes envolvidas em litígios potenciais, mas também tinha poderes policiais de impor a
ordem. Era encarregado de reunir provas em caso de crime, perseguir criminosos conhecidos,
interrogar os suspeitos e passar todos os suspeitos e provas do crime ao magistrado penal
competente. Também era o reformador social da comunidade: 1) responsável por encarcerar
bêbados e corrigir seus vícios; 2) obrigar os vagabundos a trabalhar; 3) e extrair “termos de
bem viver” das prostitutas que cometiam excessos.
Com a introdução do Código Penal (1830) e o posterior Código de Processo Penal do
Império (1832), os Juizes de Paz passam a estar integrados na estrutura de autoridade do
Governo Central, o que denota que o poder local continuou a se desenvolver às custas do
poder central. Assim, vemos que o liberalismo no Brasil se deu de forma, não de prática. O
Código de 1830 determina a abolição e substituição da Guarda Real de Polícia por Guardas
Municipais Civis como esteio da força policial em cada distrito judicial local. Os Juizes de
Paz perdem sua jurisdição civil, mas em 1832 adquirem mais poderes penais ao incumbir de
realizar a “formação da culpa” e apresentar as provas sob as quais os jurados posteriormente
julgariam. Ampliando a jurisdição dos juízes locais a partir de 1832, nessa instituição
começam a se delinear grandes contradições internas: os juizes eram funcionários eleitos com
poderes oficiais ilimitados a nível local, porém, não estavam sujeitos ao controle do Governo
que o criou.
No Código de 1832, também é extinto o cargo de Intendente de Polícia em favor do
Chefe de Polícia que era também Juiz de Direito em nome do governo central. Esses
magistrados podiam emitir mandatos de busca e prisão, presidir os juízos por jurado nas sedes
de condado de seu distrito e ainda aplicar os termos do Código Penal aos condenados pelo
45
membro do júri. Porém em seus primórdios tinham poder limitado, pois o sistema de jurado
representa na época a decisão popular, personifica os ideais de autonomia judicial, localismo e
constitui um ataque frontal à elite judicial da época.
Com os juízes atuando em conformidade e negociação com os potentados locais, e
com o envolvimento e dependência dos membros do júri com as autoridades locais, inicia-se
uma subversão política dessas instituições liberais, já que aplicavam parcial e seletivamente
seu poder, o que acabou tirando desse sistema o seu apoio local. A marca do liberalismo
brasileiro é que, na prática, ele em muito se diferia do que estava concebido em sua forma
ideal. Frente à crise enfrentada por essas instituições, a elite intelectual instável e mal
articulada dos liberais facilitava seu próprio predomínio no poder, o que pode ser explicitado
através da inversão da postura do Diogo Antonio Feijó, antes um liberal, mas para quem
desapareceu a atração prática por um universalismo descentralizador ao assumir o poder.
Assim, no século XIX instaura-se um consenso “pelos ‘conservadores’ e ‘liberais’
brasileiros contra a aplicabilidade do júri no Brasil (Flory, 1982). Os liberais brasileiros
deixavam transparecer a tendência elitista e excludente de seu liberalismo ao concordarem
que, devido ao “atraso cultural” da sociedade brasileira, o sistema de júri não poderia
funcionar eficazmente no Brasil” (Kant de Lima, 1995, p. 144).
Assim, em 29 de novembro de 1831, o Regente Feijó cria a Guarda Nacional, um
corpo militarizado delegado a Duque de Caxias, em substituição aos Guardas Municipais
Civis. Em 1832, Eusébio de Queiroz, então Chefe de Polícia, transforma a Polícia Civil em
uma instituição orientada por princípios hierárquicos, centralizadores e autoritários. As duas
polícias reforçam-se mutuamente e transformam-se assim em instrumentos de repressão dos
quais lançava mão o governo central. Começa a se delinear nova transição nessas instituições,
mas com esta nova estrutura de repressão, no período que abarca os anos de 1833 a 1841, as
46
funções da Guarda Nacional, Polícia Militar e das primeiras instâncias judiciais (Juizes de Paz
e Inspetores de Quarteirão) em conflito com o Chefe de Polícia ainda estão sobrepostas, e os
limites de autoridade imprecisos (Flory, 1986 e Holloway, 1997).
As freqüentes insatisfações com o sistema jurídico fizeram com que houvesse uma
inversão das tendências liberais durante a Regência. As freqüentes revoltas regionais que
ameaçavam a centralidade do poder do Estado, combinadas à incapacidade dos liberais em
manter a ordem, fizeram com que se formasse em torno de uma nova elite dos plantadores de
café, o núcleo de oposição ao governo liberal. Quem compunha essa classe conservadora
eram os magistrados, a elite rural dos fazendeiros que exerciam controle sobre o povo, os
senhores de engenho e a sociedade urbana produtiva dos grandes comerciantes (Justiniano
Rocha apud Flory, 1986). Temendo a rebelião dos escravos frente às idéias liberais, formava-
se então um grupo oligárquico que representava interesses particulares. Reivindicava-se um
maior controle social por parte dessa classe conservadora que se caracterizava como “partido
da ordem”. Em suas tentativas de insular os perturbadores e identificar os elementos
responsáveis pela desordem social, os pensadores do regresso elaboravam uma visão
fragmentada da sociedade brasileira que separava as classes, corporações e regiões,
descartando possíveis interesses comuns (Flory, 1986).
Com a lei de 3 de dezembro e com a reforma do Código Processual em 1841, os
conservadores conseguiram aprovar uma planilha para permanecer no poder político. Com o
Novo Código, os Chefes de Polícia nomeados pelos Juízes de Direito eram assistidos por dois
Delegados que mantinham jurisdição sobre toda a cidade; centralizando o poder, esses
funcionários passaram a ser responsáveis diretos pelo sistema policial e também a estarem
investidos de prerrogativas judiciais, centralizando todas as atribuições do Juiz de Paz. Assim,
foram para a alçada policial as atribuições de investigar caos de crime, reunir os autos e
47
indiciar os suspeitos, além de julgar e sentenciar aqueles considerados culpados e investigar
inquisitorialmente os crimes (Lopes, 2002).
A ambigüidade de suas atribuições só fora superada nas últimas décadas do Império, a
partir de setembro de 1871, quando se separa a polícia da judicatura. Ampliando o sistema
judicial, aos agentes da polícia é vedada a “formação da culpa”, que vai para a atribuição dos
Juízes de Direito ou Juízes do Tribunal de Relação (Holloway, 1997). A polícia perde o poder
de julgar e sentenciar as pessoas por ofensas menores, porém continua a desenvolver
determinadas práticas burocráticas baseadas no Inquérito (Lopes, 2002). “A divergência entre
a polícia, de um lado, o júri e magistrados eleitos, de outro, levou, na década de 1870, a um
interessante acordo: o sistema de duplo inquérito” (Kant de Lima, 1995, p. 31). Reforma que
acabou por dotar a polícia de um instrumento repressivo jurídico a serviço dos poderes
instituídos. “De acordo com a reforma, os chefes de polícia continuam responsáveis por unir
as provas para a formação da culpa do acusado, mas os autos do inquérito deveriam, agora,
ser encaminhados aos promotores públicos ou juízes para avaliação e decisão final” (Teixeira,
2004a, p. 61).
Assim, “o final do período imperial assistiu ao crescimento da polícia, mas com
poderes legais mais restritos, que marcaram sua atuação em todo o séc. XX. A partir de 1870,
o Rio passou a viver o rápido crescimento motivado pela imigração, ao mesmo tempo em que
se desorganizava o sistema produtivo e social escravista, que seria abolido em 1888. Essas
mudanças estruturais chegam ao seu auge com a queda da monarquia em 1889; o novo regime
republicano agiu prontamente para reformar a organização policial da capital” (Bretas, 1997,
p. 43). Essa reforma acontecia em um contexto republicano, que precisava dar legitimidade à
atuação policial, o que se fez acompanhar da ingerência de ideais da ciência positiva na
instituição. Passaram a estar integradas à instituição, o Gabinete de Identificação, que coligia
as estatísticas e fazia a identificação datiloscópica dos indiciados para os arquivos e o Serviço
48
Médico Legal. Logo no inicio da república a Polícia Civil passa por sérias reestruturações, a
partir de 1907, começou-se a estabelecer as bases de uma carreira policial, assim, aparecem as
figuras do Comissário, Escrivão, Oficial de Justiça e Escreventes atuando em delegacias de
polícia cujos delegados têm agora de ser formados em Direito. Também é dada importância,
nesse período, ao corpo de investigação que se fortalecerá em 1920, a partir da necessidade do
estabelecimento de uma polícia política em face à ameaça comunista. Dessa forma, já na
República Velha, a Polícia do Rio parecia estar bastante burocratizada (Bretas, 1997, p. 49-
79).
Segundo Bretas (1997, p. 93), as práticas levadas a cabo por esses agentes orientavam-
se muito pouco pelos códigos. A classificação que eles outorgavam aos casos lhes permitia
manipular os fatos, o que passava a ter um efeito crucial sobre a maneira pela qual a polícia
posteriormente ia proceder. Os policiais logo aprendem a evitar a sobrecarga de problemas
que julgam não serem capazes de resolver.
Essa nova estrutura policial montada a partir do início do período Republicano
permanece a mesma até a instalação dos Governos Ditatoriais. Foram criados novos
departamentos e cargos, mas a estrutura e ideologia da organização policial são conservadas.
A politização do trabalho policial, no entanto, ganha mais força a partir do Golpe de 1930 já
que fica a polícia identificada como o braço armado do Governo Varguista para combater um
inimigo interno (leia-se toda e qualquer manifestação popular) que ameaça o poder
7
. Em
1969, foi instituída uma força policial militarizada que unificou e subordinou ao jugo do
Exército, as policias estaduais. Sob a classificação de inimigos internos, agora passam a estar
subjugados não só os opositores políticos, mas também os criminosos comuns, em especial,
os assaltantes de bancos “com a utilização, pelas policias civis e militar, de táticas repressivas
7
Poucos são os estudos sobre a instituição policial no período que compreende 1945 ao início da Ditadura
Militar.
49
e técnicas violentas de interrogatório empregadas contra a oposição política ao regime
militar” (Teixeira, 2004a, p. 74).
Segundo Kant de Lima, o paradoxo perpetuado nas praticas institucionais tem,
entretanto, legitimidade jurídica, já que: “o Código de Processo Penal vigente, de 1941,
considera o processo propriamente dito, como orientado pelos princípios constitucionais da
ampla defesa e do contraditório, iniciando-se pela denúncia oferecida pelo promotor,
membro do Ministério Público, subordinado ao poder executivo. Entretanto, preliminarmente
a esta denúncia, que dá início ao processo judicial, atribui-se à polícia procedimentos não-
jurídicos – administrativos – não submetidos à exigência do contraditório e da ampla defesa,
no denominado inquérito policial, de caráter explicitamente inquisitorial (cf. Exposição de
Motivos do CPP), ou “um procedimento do estado contra tudo e contra todos para apurar a
verdade dos fatos”, nas narrativas de um delegado de polícia” (1992, p. 104). Um Código de
Processo Penal que confirma o sistema do duplo inquérito instituído em 1870. Vejamos, no
texto que segue, uma das estratégias de construção da verdade pela polícia republicana
(Carvalho, 1979, p. 17):
A verdade também apanha
Quando chegou em Pipeiras o delegado Nono Pestana, foi aquele zumzum, aquele
mal-estar. O delegado veio arrastando enorme palmatória. Era com muito orgulho
que dizia mostrando seu instrumento de trabalho:
- Comigo não tem esse negócio de confissão espontânea coisa nenhuma! Comigo todo
mundo entra no instrumental. É o único jeito da autoridade saber se o sujeito é
criminoso ou inocente.
E bem Nono não havia arregaçado as mangas apareceu um retinto dizendo ter dado
morte por esquartejamento a um tal de Chico Cabeção. Pelo que confessou estar
arrependido e pronto a purgar, nas malhas da lei, o crime de sua lavra:
- Matei e enterrei Chico Cabeção no quintal de minha casa.
De fato, o esquartejado lá estava mortinho da silva de nunca mais voltar a ser Chico
cabeção. Foi quando o delegado, dentro dos seus princípios justiceiros, passou o
confessante por uma palmatória braba e esperta. E o sujeitinho tanto apanhou que
50
acabou desconfessando tudo. Jurou de mãos dadas que era mentiroso e inventeiro.
Que outro tinha esquartejado Chico Cabeção. E Nonô orgulhoso:
- É o que eu digo e provo. Não tem como uma palmatória para o suspeito contar a
verdade. Se não ministro esse corretivo, o delegado Nono Pestana, que sou eu,
mandava para um cadeia de trinta anos um pobre inocente.
E soltou o homem.
Verifica-se no relato acima que o delegado Nonô Pestana era a lei, quando o retinto ao
confessar espontaneamente que cometera o crime e reivindica cidadania responsabilizando-se
pelo que fez para ser julgado conforme manda o ordenamento jurídico, a atitude do delegado
para com ele, foi reafirmar a assimetria e fazer com que ele ficasse moralmente desacreditado.
Se por um lado, o delegado impôs seus princípios justiceiros, um castigo dentro de sua
concepção particular de justiça, por outro firmou para o retinto algo como “mantenha-se no
seu devido lugar, você não tem direito”. A permanente suspeição policial com relação aos
demandantes de seus serviços torna-se manifesta, já que os policiais trabalham com a idéia de
que o autor do crime nunca irá se auto-acusar e se por acaso o fizer, tentará de alguma forma
se proteger (Ribeiro, 2005).
Como se pode ler neste texto, a continuidade da representação social das práticas das
instituições policiais aponta para resquícios de relações de poder próprias de sociedades
hierarquizadas, onde as instituições e as leis atuam como uma prerrogativa do Estado contra
cidadãos. Dessa forma, a legitimidade da polícia estará “associada a sua representação do que
deseja o Estado para a sociedade, não ao que a sociedade deseja para si mesma” (Kant de
Lima, 2003, p. 249). Dilemas da democracia brasileira em que as leis são apropriadas
particularizadamente pelos atores das instituições estatais para abafar conflitos, não para
administrá-los.
Eis um dos paradoxos da República: se por um lado a Constituição Republicana prega
um ideal igualitário e universalizante das relações sociais através do “todos somos iguais
perante a lei”, por outro, a desigualdade dos cidadãos é judicialmente reconhecida através do
51
Código de Processo Penal que vige desde então: “contrariando o disposto em todas as
constituições republicanas, de que não haverá diferenças no tratamento dos cidadãos perante a
lei, principio comumente denominado de isonomia do sistema legal, o Código Processual
Penal explicita pelo menos dois institutos em que certos cidadãos erigidos momentaneamente
ou definitivamente em pessoas especiais (cf. DaMatta, 1979), gozam de privilégios diante da
lei. São as disposições referentes à prisão especial e à competência por prerrogativa de
função” (Kant de Lima, 1992, p. 108). Nesse sentido, uns ainda são mais iguais do que outros
e cabe, portanto, aos agentes do Estado definir sentido às relações sociais.
Outra questão igualmente importante, diz respeito a atentar para que concepção de
verdade esteja nesse procedimento sendo construída. Observa-se assim como no outro relato,
tradições eclesiásticas e escravistas em atuação: não há hierarquia de provas, mas prepondera
a confissão como método de estabelecer a verdade. Como a confissão não parte de uma
vontade individual, pois o individuo não tem vontade, inicia-se a confissão forçada que se
torna manifesta através da tortura. “A manipulação autoritária, realizada pelo regime militar,
em relação aos órgãos policiais, transformando-os em agencias estatais diretamente
responsáveis pela prática da repressão ideológica, da prisão clandestina e ilegal, e da prática
de tortura como método de trabalho, contribuiu para uma cisão profunda entre a sociedade e a
polícia” (Teixeira, 2004a, p. 78).
Com a atuação da polícia pautada em uma referência inquisitorial justifica-se o “a
verdade também apanha”, pois a função da polícia se caracterizaria, assim, por aplicar as
regras de forma “eminentemente interpretativa, utilizando como referência a posição
específica de cada elemento – individuo ou grupo a quem a regra deve ser aplicada – na
sociedade como um todo e, em especial, em relação a uma dada estrutura burocrático-formal,
concebida como separada da sociedade, encarregada de aplicar a regra: o Estado” (Kant de
Lima, 2003, p. 247).
52
Com a redemocratização em 1982, a polícia estava ainda ocupada com o arcabouço
cultural anteriormente elaborado, mas não encontrava mais legitimidade pública os ideais e
objetivos sustentados pelo regime militar. Com a democratização, verificamos uma conversão
discursiva acerca da temática da segurança pública, de forma que a militarização da vigilância
policial passou a causar algumas dificuldades no interior das próprias instituições policiais.
“As Secretarias de Estado de Segurança Pública de todo o país eram dirigidas por oficiais do
Exército (...) O governador [do Estado do Rio] eleito resolveu parcialmente esses problemas
em 1983 criando duas secretarias de Estado, uma para a Polícia Civil e outra para a Polícia
Militar, secretarias que foram encarregadas de, independentemente, fixar o status e manter o
controle de cada uma das polícias” (Kant de Lima, 1995, p. 15).
O discurso político passa a estar agora voltado para a questão dos direitos humanos.
Como orientação do Governo Brizola: “agora todo mundo passa a ser chamado de cidadão”.
Ainda neste governo é editado um Plano de Desenvolvimento Econômico e Social do Rio de
Janeiro para o período de 1984 a 1987, “documento afirmando ser ‘necessário criar junto à
população a consciência do fim da arbitrariedade e da impunidade, no que diz respeito às
autoridades estaduais. O cidadão não deve temer a polícia, que será acionada para protegê-lo,
e não para reprimi-lo’. A diretriz governamental decretava, claramente, o fim da tolerância e
da cumplicidade do governo com a violência policial. (Nazareth Cerqueira, 1998, p. 1)”
Segundo esse mesmo autor, que era então Secretário de Estado e Comandante Geral da
Policia Militar nos dois governos do Brizola, “é bastante inovador, em termos de
administração pública o aparelho burocrático criado por este governo, principalmente porque
põe em pratica alguns princípios democráticos, tais como, a participação da comunidade, a
prestação de contas e a transparência da administração (op. cit, p. 4).” Com a Constituição de
1988, há a promulgação de uma série de direitos civis que garantam a liberdade de expressão
da população.
53
No entanto, a militarização ideológica da segurança pública vem se reproduzindo nos
governos democráticos, com a cristalização (no seio da sociedade e da instituição policial) de
uma concepção de segurança baseada na idéia de guerra contra um inimigo interno que
ameaça a ordem pública; inimigo este que não é mais identificado como subversivo como na
ditadura militar, mas definido através da eleição de suspeitos com base em estereótipos e
outros critérios subjetivos (Silva, 1996, p. 21).
Um delegado que tinha quinze anos de carreira policial e experiência anterior como
militar certa vez relatou que a demanda ao respeito dos direitos humanos, a partir de 82, teve
algumas conseqüências práticas para a atividade investigativa realizada pela organização.
Assim ele relata sua experiência atual em relação à anterior:
Delegado - A polícia naquela época era outra, a polícia tinha mais liberdade do que
tem hoje... Hoje tem grupo de direitos humanos em cima de você, grupo de tudo
quanto é direito. Não usa mais aquela identidade de policial de rua, não é. Então
tudo isso complica...
Entrevistadora – Em termos de investigação, então antigamente solucionava mais?
Delegado – É, solucionava mais. O vagabundo antigamente, quer dizer, o
delinqüente, ele tinha respeito à polícia, ele tinha medo do policial porque sabia que
se ele caísse ali, sabia que na situação dele, não ia ficar bem para ele. Às vezes a
lei... às vezes, na minha opinião particular, eu acho que venceu mais para o lado do
delinqüente. Aí o policial tem que andar de cabeça para baixo.
Apesar da temática do respeito aos direitos humanos fazer parte da agenda de debates
nesse contexto democrático, observa-se em contraponto, que a adoção desse discurso não se
fez acompanhar de reformas concretas na forma de atuação das instituições policiais. Apesar
da Polícia Civil não ser mais uma instituição subordinada a prescrições militares, segundo
observa um delegado, “depois de 82 a segurança pública foi tratada de forma idêntica a que os
54
governos militares trataram. Não tinha investimento em segurança pública, a não ser em
compras de arma e viatura”.
Em nome da suposta “verdade real”, são os argumentos de autoridade que ao fim
prevalecem sobre a autoridade dos argumentos, os policiais não estão isentos ao
procedimento, eles impõem a sua versão a partir das situações com que se deparam, mas suas
ações têm respaldo social. As representações da polícia refletem as representações da própria
sociedade: “assim, aqueles que estão explicitamente inseridos como interlocutores no espaço
público, vêem como legítima a apropriação particularizada e individual das regras e não lhe
conferem conteúdos universais e coletivos” (Kant de Lima, 2000, p. 10). Assim, um delegado
de polícia me relata:
Agora eu preciso saber também o que é que a sociedade quer também da polícia,
porque a mesma sociedade que nos recrimina, é a mesma que bate palma quando
você mata um traficante. A mesma sociedade que recrimina o policial que está no
transito, é a mesma que vai dar a ele dez, cinqüenta reais para não tomar uma multa
de quinhentos e sessenta e quatro reais. Então ou mudamos todos, ou então é aquele
velho ditado: vai ter a polícia que merece. Cada sociedade tem a polícia que merece.
Entendeu? Na Inglaterra, onde a gente tem o surgimento da polícia como polícia nos
moldes de hoje, ela foi criada para proteger o que? Os empresários na Revolução
Industrial! A polícia foi criada para que? Para proteger as industrias para que os
grevistas não entrassem, mas só que aquele povo, os ingleses, não queriam aquela
polícia: queriam a polícia voltada para o cidadão. Eles disseram: Olha, que bom
que veio a polícia, mas nós não queremos essa polícia, nós queremos uma polícia
que defenda o cidadão. Então aquela polícia que foi criada para defender os
poderosos, passou a defender o cidadão, e aqui a gente precisa saber o que é que a
nossa sociedade quer.
Desse modo, práticas institucionalizadas na polícia são produtos de tensões entre
preceitos hierárquicos e igualitários em disputa e complementação na sociedade e na
instituição. Dessa forma, no Brasil “o indivíduo é o sujeito normativo das situações. Assim,
para nós, a medida das situações e dos conflitos por elas engendrados é uma norma universal,
55
mas é dependente de quem está implicado na situação. Em outras palavras, no Brasil é muito
mais importante conhecer a pessoa implicada, do que a lei que governa uma dada situação”
(Prefácio de DaMatta em Barbosa, 1992).
De acordo com parâmetros igualitários, a cidadania moderna prescreve deveres e
garante direitos aos cidadãos através da administração dos conflitos por meio das instituições
estatais e jurídicas. Observamos, entretanto, que foi realizada uma transição formal de formas
de punição privada em favor das regras impessoais presentes nas instituições modernas,
porém a sociedade se manteve hierárquica. Considero, desse modo, que a atividade policial
reproduz a estrutura social brasileira e regula-se por meio do tratamento desigual que concede
às ocorrências. Um serviço público que se submete à manipulação particular dos recursos de
que dispõe seus agentes, o que também lhe permite a assim continuar existindo.
Nessa perspectiva, dois são os trabalhos brasileiros que analisam as práticas policiais.
Ao analisar alguns aspectos organizacionais da Polícia Civil, Paixão (1982) entende que
existe uma disjunção entre a formalização e a atividade prática da polícia, ou seja, entre a
atividade política, dominada por dimensões particularistas e personalizadas e a estrutura
formal burocrática que conforma a instituição. Ele afirma que apesar do desenho racional
permitir que a organização policial se apresente como uma instituição na qual impera uma
justiça igualitária, o que ocorre na prática é que a dimensão particularista a perpassa, o que
denota que essas lógicas se interpenetram.
Os estudos de Kant de Lima, por sua vez, introduzem a abordagem etnográfica da
questão. No seu livro A Polícia da Cidade do Rio de Janeiro: seus dilemas e paradoxos
(1995), o autor analisa a polícia judiciária e descreve todo o procedimento rotineiro desta,
mostrando como a concepção legal e judicial da atividade policial é insuficiente para justificar
práticas policiais que obedecem a um outro sistema de administração de conflitos próprio de
sociedades hierarquizadas.
56
O paradoxo legal brasileiro é que, outorgando à Polícia Civil tanto funções
administrativas como judiciárias, a polícia acaba por “contaminar” sua atividade judiciária
com seus critérios de vigilância através das técnicas de “reconhecimento” de tipos criminais.
Aplicando seus poderes discricionários na aplicação da lei – por exemplo, através de práticas
arbitrárias, punitivas e da “armação do processo” – os policiais acabam por desempenhar suas
atividades agindo conforme uma ética policial.
Por orientar suas atividades na ‘busca incessante da verdade real’ e realizar suas
investigações de acordo a seus critérios de vigilância, a polícia é forçada a utilizar
‘exclusivamente’ sua própria ética em seu processo de tomar decisões ao mesmo tempo em
que é responsabilizada pelas decisões que toma.
A ética policial se define, portanto, como um conjunto extra-oficial de regras que
servem para o exercício de uma interpretação semi-autônoma da lei, o que fragiliza
sobremaneira a instituição, porque “essas práticas policiais discricionárias permitem ao
sistema judicial permanecer ‘inocente’ de quaisquer práticas discriminatórias e injustas na
aplicação da legislação penal no Brasil” (Kant de Lima, 1995, p. 141). Segundo o autor, para
que os policiais utilizem poderes discricionários na aplicação de sua ética, desenvolveu-se
uma série de negociações internas e externas à instituição, que se sustentam através do
desenvolvimento de uma lógica coorporativa denominada de “malhas judiciais”.
Assim, para os dois autores, as lógicas igualitárias e hierárquicas são complementares
e respondem a uma necessidade prática. Para entender a lógica da instituição, portanto, são as
práticas levadas a cabo nas delegacias que terei de destrinchar. Deste modo, apresento com
base na pesquisa de campo feita em unidades policiais em 2001 e 2002, uma das formas de
organização do trabalho que o Programa Delegacia Legal objetiva intervir e que atualmente
ainda é exercida nas delegacias fluminenses.
57
Capítulo 2
CONVENCIONANDO MODELOS
“A Polícia Civil vem cada vez mais se
transformando em uma polícia judiciária
e cada vez menos em uma polícia
investigativa” (Zaverucha, 2004, p. 160).
Em razão da experiência atual do Programa Delegacia Legal no Estado do Rio de
Janeiro, dois modelos de delegacia passaram a ser nomeados com fins de distinguir as
delegacias que já haviam sido reformadas e as que ainda não foram submetidas à reforma. A
partir do projeto passou-se a delinear o que seriam os modelos e práticas de uma Delegacia
Legal e de uma Delegacia Tradicional, de tal forma que esses modelos passaram a
incorporar-se às representações e ao discurso dos policiais quando eles referem à suas
atividades antes e depois da experiência reformadora.
Mais recentemente percebo que tem sido utilizada a categoria Delegacias
Convencionais em contraposição à categoria Delegacias Tradicionais para referir-se à forma
habitual de organização policial. Essa conversão discursiva não é de menor importância,
porque a idéia que a sustenta é a de que há um modelo que está estagnado por conta da
negligência e descuido das autoridades estatais combinada à inércia dos agentes policiais;
uma realidade que é perpetuada mais por admitir a apatia e saturação do serviço público do
que através da transmissão de uma tradição que permite conservar uma memória institucional.
O que é importante neste momento ressaltar é que as práticas das Delegacias
Convencionais também foram re-significadas neste processo de mudança. Frente ao
programa, o que se faz nas Delegacias Convencionais não é o mesmo que a Polícia Civil fazia
antes de ser proposta a reforma, tanto que se sustentam no imaginário policial as
58
representações de uma delegacia legal frente a uma delegacia ilegal, de uma delegacia
mc’donalds frente a uma delegacia sucateada etc.
Dadas essas referências, apresento a seguir a forma de administração das delegacias de
polícia no modelo convencional, formas frente às quais o Programa Delegacia Legal se
apresenta.
2.1. Delegacias Convencionais
O trâmite dos procedimentos da delegacia convencional inicia-se por um policial que
fica no balcão, situado logo na entrada da delegacia, para atender ao público que demanda as
atividades policiais. Na delegacia na qual realizei a maior parte da pesquisa de campo, esse
policial estava responsável por atender as ocorrências policiais (principal função a ele
destinada), por atender a maior parte dos telefonemas que são dirigidos à delegacia ou alguém
que esteja necessitando de alguma informação e por dirigir essas pessoas aos setores que
deveriam procurar na delegacia caso fosse necessário. A chave da carceragem da delegacia
também ficava com esse policial do atendimento, de forma que eram inúmeras as funções que
ele acumulava.
Conforme a comunicação das partes envolvidas ou encaminhamento de casos pela
Polícia Militar, esse policial do atendimento elabora o Registro de Ocorrência
8
(R.O.) em um
formulário padrão preenchido em uma máquina de escrever. O policial irá fazer uma análise
inicial do ocorrido e qualificá-lo ou não como de atribuição da Polícia Civil e a partir disto,
fazer ou não o registro. A atividade que ele exerce, no entanto, é uma atividade puramente
formal destinada somente ao registro de informações que são a ele comunicadas na delegacia
e não à investigação. Depois de preenchidos em formulários já numerados, os registros são
depositados em uma caixa de papelão que fica abaixo da mesa de atendimento.
8
A partir deste ponto, quando me referir ao Registro de Ocorrência, colocarei RO.
59
Uma vez observei que o policial de outro setor da delegacia veio entregar ao policial
do atendimento duas carteiras de identidade para que ele, ao ligar para a Polinter, checasse se
os donos das carteiras, que estavam dando depoimento, tinham alguma anotação criminal. O
policial do atendimento pediu o número da matrícula do colega e este quis saber o número do
registro que seria aberto com as duas identidades; como o telefone da Polinter estava fora do
ar e não havia nenhum RO aberto, o policial do atendimento grampeou as carteiras a um RO
em branco.
Mais tarde, chegaram na delegacia dois jornalistas, uma mulher e um homem, este
último parecia íntimo do policial. Assim se travou o diálogo dele com a jornalista:
Jornalista - Oi, você tem algo pra mim?
Policial – Tenho, tenho um sorriso.
Jornalista – Ta bom, mas eu quero mais.
Depois dessa brincadeira, o inspetor puxou a caixa com os registros e entregou algum
à jornalista. Depois dela dar uma olhada, devolveu. Nesse caso, eram registros
desinteressantes para os fins desejados.
Depois que ela foi embora, o policial contou o caso do homem que veio depor (e ia ser
preso) ao outro jornalista que havia chegado. O jornalista pediu a identidade do homem, que
já estava grampeada ao RO, tirou o grampo e tirou a identidade do plástico para fotografar,
depois devolveu a identidade ao policial que a grampeou novamente no RO. Vale notar que
mesmo antes de ser aberto o RO e conferida a identidade no sistema de informações criminais
(que estava fora do ar), uma forma de punição já foi imposta ao suspeito em potencial.
Ao analisarmos o trâmite, é interessante observar que ao término do plantão, esses
registros elaborados no balcão são encaminhados para o Setor Administrativo (S.A.) para
serem protocolados e por ele distribuídos para os Setores de Investigação (S.I.) especializados
60
na delegacia, distribuição anteriormente autorizada pelo delegado. Há casos, porém, que se
encerram no RO.
Em geral, o contato do público com a delegacia resume-se ao balcão, porém,
encontramos também no hall de entrada, a sala do Setor Administrativo. A disposição física
desse setor justifica-se por sua atribuição de receber e protocolar os documentos enviados a
Polícia Civil, o que o caracteriza como uma porta de entrada dos documentos na delegacia,
enquanto o balcão é a porta de entrada das ocorrências.
A separação desse hall de entrada com os outros setores internos da delegacia se dá
por meio de uma porta que possui um anúncio que de pronto revela que o acesso a partir dali é
restrito. O público só terá acesso ao interior da delegacia se for prestar melhores
esclarecimentos sobre o registro efetuado no balcão. A tomada de depoimentos e
interrogatórios são feitos nas salas que ficam no interior da delegacia.
Quando os registros chegam ao S.I., são iniciadas as investigações preliminares e
elaborados relatórios preliminares, denominados VPI (Verificação de Procedência da
Informação), pelo policial responsável em algum desses setores especializados, tais como:
Setor de Homicídios, Setor de Roubos e Furtos, Setor de Entorpecentes, Setor para
investigação de crimes relacionados à violência doméstica etc.
Um fato logo me chamou a atenção no Setor de Investigação: a incorporação de três
Policiais Militares à equipe que investiga homicídios. Como a investigação de homicídios
desdobra-se necessariamente em um Inquérito, esses Policiais Militares auxiliavam as
investigações do Setor de Investigação e do Cartório trabalhando no serviço externo, ou seja,
suas funções eram exercidas “da porta pra fora” da delegacia, enquanto os inspetores que os
instruía nas investigações, realizavam o serviço “da porta pra dentro”.
61
Fruto da carência de pessoal para trabalhar na delegacia, esta solução foi adotada por
meio de um acordo entre o delegado da referida delegacia e o coronel da Polícia Militar para
que fossem cedidos três Policiais Militares para auxiliar o trabalho da Polícia Civil
9
.
Em termos de procedimento, há de se observar que, apesar de já institucionalizada na
Polícia Civil, a VPI produzida por esses setores especializados, é um procedimento informal e
não está prevista em qualquer lei ou código brasileiro
10
. A institucionalização desse
procedimento na rotina da Polícia Civil já foi notado em trabalho anterior, para Kant de Lima,
“a investigação preliminar... destinava-se a ‘poupar trabalho’ quando o caso ainda não estava
maduro para transformar-se em inquérito policial” (1995, p. 68). Essa prática destinava-se “a
alargar a área de ação do poder de polícia além da lei e contra a lei, usando como justificativa
a economia de papel e de trabalho” (op. cit., p. 69). Os policiais também alegam que ela seja
necessária, pois caso fossem instaurados inquéritos para todas as ocorrências, haveria uma
sobrecarga de processos no Judiciário.
Esse procedimento introduz um prazo administrativo que os policiais tem de
apresentar os resultados da investigação ao delegado, ampliando o prazo legal de 30 dias que
eles teriam de trabalhar caso fosse instaurado o inquérito, o que acaba permitindo que a
investigação das ocorrências seja feita sem a intervenção dos atores sociais representantes do
Judiciário e Ministério Público.
Um policial entrevistado no Setor de Investigação definiu que sua função na delegacia
é “filtrar um pouco o que virá a ser o inquérito”. Logo depois relatou um caso típico,
exemplificando assim o seu papel:
Uma mulher, por exemplo, que vem abrir um RO contra o marido, ela não vem à
delegacia se ela não tiver certeza de que ela vai prestar queixa contra ele, aí ela faz o
9
Nota-se que os policiais em questão não trabalhavam fardados.
10
Não tem valor legal, pois segundo entrevistados, é fruto de uma interpretação forçada do §3
o
do artigo 5
o
do
Código de Processo Penal: “Qualquer pessoa do povo que tiver conhecimento da existência de infração penal em
que caiba ação pública poderá, verbalmente ou por escrito, comunicá-la à autoridade policial, e esta, Verificada a
Procedência das Informações, mandará instaurar inquérito” (grifo meu).
62
RO. Mas quando eu chamo depois para colher o depoimento elas depois desistem,
dizem que já estão morando novamente com o marido, que agora está tudo bem e que
não querem mais continuar com isso. Olha, isso acontece muito, então o que eu faço
na verdade é uma triagem dos inquéritos que vão ser abertos no Cartório, porque
depois de ter sido feito lá eles não podem desistir não. A desistência é muito grande.
Até o JECRIM fica mandando a gente colher depoimento de testemunha para ver se
filtra um pouco o que vai para eles. A gente acaba fazendo o que eles tinham que
fazer, mas como o JECRIM estava mandando tudo de volta, agora a gente tá fazendo
isso. Havia muita desistência lá, então o que a gente faz é uma triagem. Tá vendo
essa pilha aqui, é tudo desistência, ou desistiu, ou não encontraram a pessoa, ou a
pessoa não tinha dinheiro para a passagem. Não tinha como se locomover.
Percebe-se que este policial justifica-se a não dar continuidade a uma série de casos
porque muitas pessoas que vão à delegacia desistem do seu prosseguimento. Outra vez
presenciei outra mulher perguntando ao policial do balcão se poderia retirar a queixa que ela
tinha registrado na semana anterior, ela entregou uma cópia do RO ao policial que a
respondeu que não teria como retirar a queixa, que só quando ela se apresentar ao juiz que ela
poderia retirar a queixa.
A partir da promulgação da Lei 9.099/95, que institui o JECRIM (Juizado Especial
Criminal), os delitos com pena de detenção prevista para até dois anos passaram a ser
administrados na polícia somente sob a forma de um registro circunstanciado que é
diretamente encaminhado para esse juizado tão logo apurada a autoria
11
. Dessa forma, este
registro demanda por parte da polícia uma investigação inicial. Assim, ele corresponde à
Verificação de Procedência da Informação, a VPI que podemos dizer que passa a ser
judicialmente institucionalizada. Observa-se, entretanto, que ainda há uma seleção das
ilegalidades a serem registradas e investigadas pela instituição policial, filtros através dos
quais se opera uma administração particular de justiça por parte dessa instituição.
11
Sobre a atuação dos Juizados Especiais Criminais, ver KANT DE LIMA, Roberto et al, 2003.
63
A informalidade do instrumento da VPI – que não é tão informal - que possibilita a
supressão do caso nesse momento, pois ela concede ao policial um amplo espaço de ação: ele
tanto pode dar prosseguimento ao caso, como engavetá-lo. Conforme Kant de Lima, o recurso
concedido pela VPI à Polícia Civil, em conjunto com outras instituições e práticas policiais, é
um instrumento que demonstra como no Brasil, a aplicação da lei geral é particularizada com
o efeito de, nesse contexto, abafar conflitos. Demonstra ainda a lógica burocrática
inquisitorial nas quais as ações policiais estão envoltas, pois com a verificação da procedência
das informações, os policiais começam por duvidar das pessoas que vão abrir o inquérito.
Esse relato ressalta ainda a tolerância de outras instituições do Sistema de Justiça Criminal
com a função de triagem exercida pela polícia.
Terminada a VPI pelos policiais do Setor de Investigação, esta é apresentada ao
delegado, que deverá analisá-la e determinar seu arquivamento ou prosseguimento caso seja
apurada a autoria, para ser instaurado o inquérito no Cartório. Salvo casos em flagrante, que
são diretamente direcionados para o Cartório, quase todos procedimentos obedecem a esse
trâmite. Responsabilizando-se pela movimentação e instauração dos inquéritos, o Cartório
corresponde à etapa final dos procedimentos na delegacia. Esse setor fica também responsável
por autuar e ouvir novamente todas as partes sobre o que estiver faltando para a investigação,
num prazo de 30 dias. Caso conclua o Inquérito, este o envia para a justiça; caso não o
conclua também tem de enviá-lo e pedir seu retorno e mais prazo para dar prosseguimento à
investigação.
Assim, as atividades investigativas da polícia estão extremamente ligadas às atividades
burocráticas demandadas por uma forma de construção judiciária em que prima o Cartório.
Além de serem reduzidos a escrito e feitos sob sigilo, os registros têm de ser consubstanciados
em documentos e autenticados para que tenham validade legal: “o que não está nos autos não
está no mundo”.
64
“A essência do estado cartorial consiste em que esse Estado se constituiu em
primeiro lugar em mantenedor e assegurador do status quo” (Araújo, 1982, p. 87).
Segundo essa autora, o cartório funciona, sobretudo, como um instrumento de poder,
os cartórios privatizam a função pública, atestando, testemunhando, registrando e cobrando
atos em nome do Estado (op. cit., p. 87-89). Nesse sistema cartorial, tem predomínio o
interesse do Estado do que o interesse público. Na prática, os cartórios “alteram o caráter
impessoal das regras públicas, introduzindo elementos personalistas e particularizantes ao
funcionamento do serviço” (Miranda, 2000, p. 59-60).
Observa-se que esse modo de elaboração do registro em inquérito, quer dizer, o
trâmite dos procedimentos nessa delegacia, parece estar organizado em torno dos próprios
procedimentos, o que faz com que a investigação demore a ser iniciada. Assim a percepção de
um policial na Delegacia Legal:
“... antes era tudo parcelado e as informações iam se perdendo. Nesse parcelamento,
o que às vezes era importante para quem estava no plantão, não era para quem estava
investigando, e aí iam se perdendo informações extremamente relevantes”.
Segundo entrevistados, nesse modelo, a relação que os policiais tem com os registros e
procedimentos é puramente formal. O trâmite nas delegacias é tripartido e em muito demora a
ser iniciada a investigação. Por conseqüência, a pouca vinculação do registro com a parte
investigativa, faz com que as informações sejam extremamente fragmentadas. A
fragmentação e a tramitação lenta que caracteriza esse modelo na percepção dos entrevistados
parecem basear-se numa lógica auto-referente, orientada pelos procedimentos característicos
do ritual burocrático de que decorre a atuação policial (Kant de Lima, 1995). Nesse modelo
convencional, a importância do registro é cartorial, os procedimentos têm de passar pela mão
de vários policiais e sempre ser registrado em livro tombo. Ao instaurar o inquérito, a policia
65
judiciária fica presa àquele procedimento que iniciou. Ainda que não desvende nada, não lhe
compete parar com seu andamento, pois os procedimentos têm de estar sempre tramitando até
que o juiz decida arquivá-lo, o que dá margem para a adoção das práticas informais de
administração de conflitos na Polícia Civil.
Essas práticas informais de guarda e suspensão das investigações combinadas à
seleção das ocorrências permitem à Polícia Civil “manipular as categorias de enquadramento
dos acusados, selecionando e incluindo ou não evidências cruciais para o resultado dos
julgamentos. Haja poder” (Zaverucha, 2004, p. 86).
É interessante ressaltar que, com a protocolar obrigatoriedade do envio dos
procedimentos em um prazo determinado para as outras instituições e outros setores, a polícia
parece destituir-se da informação a despeito dos casos que atende e, em regra, não informa
outras delegacias a respeito. Em função desses mecanismos informais de administração dos
conflitos há, em verdade, uma falta de transparência administrativa e intercâmbio de
informações entre a própria polícia e entre essa e outras instituições. As informações passam a
ser conservadas em âmbito privado, pois são de propriedade dos policiais e não da polícia.
Nesse sistema, a informação valorizada é aquela informação que não é pública, mas aquela
que é conservada em âmbito privado; daí a freqüente recorrência à idéia de feudos quando se
refere ao sistema de informações da Polícia Civil.
Formalmente, as informações dessa delegacia estão registradas em um Livro Tombo,
que fica no Cartório. Os policiais lançam neste livro a movimentação dos procedimentos e as
principais informações dos inquéritos. Ao presenciar os policiais recorrendo ao Livro Tombo,
percebi que muitas vezes não encontravam as informações procuradas por conta da falta de
informação nesses livros ou por conta do mau preenchimento das informações nele contidas.
Pela forma como se encontra representado, o arquivo pessoal mantido pelos policiais tem
informações mais relevantes que as que constam no Livro Tombo. Assim, é prática comum os
66
delegados carregarem essas informações junto a eles quando são transferidos de delegacia, o
que sinaliza que a instituição policial é destituída de informação.
Antes os policiais não tinham condições de fazer nada, o delegado tinha as coisas
dele, levava seu próprio computador, tinha suas pastas e depois quando saia da
delegacia levava todas as informações, que eram dele. (policial da Delegacia legal)
A organização das informações das delegacias vincula-se, entretanto, a uma
apropriação privada dos recursos burocráticos por parte dos policiais.
Como essas delegacias não tem suas informações bem consolidadas, quando os
policiais carecem de mais dados em alguma investigação, precisam solicitá-los a outros
órgãos da polícia ou ainda recorrer à sua rede de relações. Alternativa mais viável tem sido
fazer os dois concomitantemente, pois não despenderão de muito tempo aguardando as
informações que necessitam.
Assim pude verificar quando um policial queria conferir duas carteiras de identidade
na Polinter - para ver se seus donos tinham alguma anotação criminal - e a Polinter estava fora
do ar. Quando isso acontecia, a alternativa normalmente adotada pelo policial era a de ligar
para a Delegacia Legal e pedir para um colega checar no sistema da nova delegacia a
informação de que ele precisava.
Devemos observar que apesar do modelo de delegacia convencional caracterizar-se
por trabalhar quase exclusivamente com máquinas de escrever e com vários livros, nas
delegacias em que estive, a presença do computador era uma constante. Os computadores
eram pessoais e em um dos casos analisados, eram computadores velhos (sucatas) doados pela
receita federal.
Nesse caso, os computadores que ficavam no Cartório continham alguns modelos de
procedimento elaborado pelo Oficial de Cartório, além de algumas informações que ele
julgava importante ser lançada no computador. Esse policial nos disse que na sua delegacia
67
ele tinha todos os formulários no computador; eram 130 formulários confeccionados pela
própria equipe da delegacia. Certa vez o presenciei elaborando um modelo padrão de
memorando para solicitar perícia ao ICCE no computador, uma ferramenta supostamente
informal na delegacia.
Deve-se ressaltar que nessa delegacia, a informatização dos procedimentos não visava
a uma melhor forma de dispor as informações, estava a serviço cartorial.
2.2. Seção de Acervo Cartorário
Como no Estado do Rio de Janeiro o modelo das Delegacias Convencionais está
sendo substituído pelo modelo das Delegacias Legais, assim que a nova delegacia é
inaugurada, todos os procedimentos produzidos pelo modelo anterior passam a ser destinados
a uma Delegacia Especializada de Acervo Cartorário (DEAC) para que nesta, continuem a ter
andamento. Até o ano de 2005, dezesseis DEACs foram criadas no Estado do Rio de Janeiro.
Destas, onze funcionam na capital.
Em entrevista realizada em uma Delegacia Legal, foi-me relatado que: “os inquéritos
antigos [anteriores à reforma] estão parados, ninguém os acompanha, somente nas Delegacias
Convencionais que continuam a ter andamento. Pra fora a versão é outra, teria se constituído
uma equipe que acompanha esses casos, mas de fato ninguém quer mexer nos casos antigos”.
Segundo outro policial, quem trabalhava nesses casos “só relatavam prescrição”.
Curiosa com tal forma de administração, em fins de 2002 procurei empreender uma
pesquisa de campo junto a esse setor em Campos e percebi que a Delegacia Especializada de
Acervo Cartorário
12
não fora criada na cidade, mas apenas na capital e algumas regiões
12
Foram criadas 16 DEACs no Estado do Rio de Janeiro. Segundo o art. 2º do Decreto 26.325, de 17 de maio de
2000, “Incumbe às DELEGACIAS DE ACERVO CARTORÁRIO –DEAC, exclusivamente, concluir
68
metropolitanas. No norte-fluminense, o acervo foi destinado à Delegacia Regional, que por
sua vez, não é operacional. Por isso, instaurou-se uma cooperação administrativa e
operacional da Delegacia Legal, que funcionava no mesmo prédio que o acervo, na solução
do acervo junto à Delegacia Regional. Então em lugar das Delegacias Especializadas de
Acervo Cartorário (DEAC), tem-se no interior norte do Estado, uma Seção de Acervo
Cartorário (SAC) com cerca de quatro funcionários cuidando de um acervo de mais de 6.000
inquéritos policiais e 1.200 outros procedimentos de Polícia Judiciária em tramitação
13
.
Apesar de dispor sobre a colaboração da Delegacia Legal na solução do acervo, na
prática, os Inquéritos só eram encaminhados para os delegados da Delegacia Legal quando os
policiais que trabalhavam no acervo necessitavam de suas assinaturas para encaminhar o
Inquérito à Justiça. Eram distribuídos vinte inquéritos para cada delegado adjunto e o
delegado titular da referida delegacia analisar, mesmo assim, os delegados demoravam cerca
de um mês para devolver os inquéritos com as assinaturas necessárias e nesta dependência, os
policiais que trabalhavam no acervo nada podiam fazer.
Ao me apresentarem a seção, me mostraram uma sala com várias caixas de arquivo e
pastas empilhadas e me disseram que ali tinha inquérito desde 1981. Na sala onde estavam as
VPIs, me apresentaram como “essas são as investigações que estão paradas, ninguém trabalha
nesta sala, ela está trancada. Elas estão paradas porque a gente precisa dar andamento a todo
acervo que está na outra sala.” No Setor Administrativo, me disseram que aquele era o setor
de maior movimento, onde ficavam os livros e eram expedidos e recebidos alguns
documentos.
Perto da transição governamental que ocorreu em 2002 (Garotinho – Benedita), foi
propalado na Seção que a Chefia de Polícia ia cobrar das Delegacias Regionais, de forma que
procedimentos investigatórios, bem como encerrar livros, pastas e talonários das unidades de Polícia Judiciária
transformadas em Delegacia Legal.”
13
Portaria PCERJ., nº 0276, de 19 de janeiro de 2001
69
eles teriam que “apresentar serviço” à Secretaria de Segurança em um prazo de 30 dias. Nesse
ínterim, os policiais do acervo solicitaram mais dois policiais para ajudá-los a dar andamento
as VPIs que estavam na sala fechada – esses policiais vieram “emprestados” de uma
delegacia da região. A razão de tal cobrança, segundo os policiais, era a seguinte: “isso tudo
está acontecendo por causa de Petrópolis, da delegacia de Petrópolis, porque lá estava tudo
parado. Aí todo mundo acaba pagando o preço por isso”.
Ao perguntar aos policiais que trabalhavam naquela seção sobre a forma como eles
organizam suas atividades, eles me responderam que atendiam ao público ou aos advogados
que queriam saber sobre os procedimentos do acervo, mas a atividade principal era a de
separar os casos que estavam sob prescrição para serem operacionalizados e mandados para a
Justiça para arquivamento.
Ao preparar uma remessa de Inquéritos para o Ministério Público, um policial me
relatou que ele ia “segurar” (retardar) um pouco mais os procedimentos porque entre eles
havia um caso de homicídio doloso ocorrido em 1982 que faltava somente cinco dias para
prescrever. Assim o policial justifica sua atitude: “eu acabo desafogando não só a justiça, mas
também as pessoas que estavam envolvidas nestes crimes há 20 anos atrás”.
A eleição da prescrição como um procedimento prioritário e o próprio instituto da
prescrição
14
- prazo legal em que a justiça perde a prerrogativa de punir - revelam muito da
representação das instituições jurídicas brasileiras sobre o crime, a supressão do crime caso
não seja encontrado seu autor. Estas estão imersas em uma lógica jurídica muito mais
orientada às formalidades burocráticas do que de fato em administrar justiça. A prescrição
seria, assim, um signo de trabalho meramente burocrático de um sistema que está antes
preocupado com os ritos processuais do que com o resultado dos delitos.
14
A prescrição é uma extinção da pretensão punitiva do Estado.
70
Outro fato que explicita essa lógica é que um dia chegou à delegacia um ofício da
Vara de Execuções Penais (VEP), que solicitava ao setor, algumas informações de um
inquérito – neste, constava como autor um homem que já havia sido preso. O inspetor olhou o
documento e disse: “Isso foi assinado há três meses atrás. Eles não estão com tanta pressa
assim... vai esperar um pouquinho”.
No que concerne às formas de dispor as informações, o responsável pela Seção de
Acervo Cartorário também me mostrou uma máscara em que ele estava tentando organizar no
computador uma relação de todos os inquéritos referentes a essa sessão. Em um de seus
arquivos continha o número do procedimento, o nome da vítima e do acusado. Disse que
estava dessa forma organizando suas informações para facilitar o trabalho deles para quando
alguém ou algum advogado for pedir alguma informação sobre algum inquérito que esteja
tramitando lá. Assim, eles vão direto ao computador localizar o procedimento e não precisam
buscar em todo acervo. Eles estabeleceram um sistema de cor para organizar sua base de
dados, os inquéritos com letras em azul são os que já estão prescritos, os que estão em
vermelho são os que já foram encaminhados e em preto os que foram ou não concluídos e que
permanecem no acervo.
Dado o exposto, conclui-se o seguinte em termos de organização processual: se por
um lado, os casos devem estar sempre tramitando com a obrigatoriedade do envio dos
procedimentos para as outras instituições, por outro lado, os policiais dispõem de mecanismos
informais de guarda e de manipulação desses registros que assegurem o status quo da
instituição. Desse modo, observa-se que há nas delegacias um controle muito específico
acerca das informações. As estratégias adotadas pelos policiais correspondem, assim, a uma
forma dos policiais manipularem a justiça ao mesmo tempo em que faz com que se mantenha
encastelada nas delegacias grande parte de suas atividades e informações.
71
Assim, a informalidade aparece nesse modelo como uma forma de organizar os dados
e permitir a delegacia funcionando. Isso corrobora o que os policiais por vezes afirmam que
“cada delegacia funciona como um feudo” ou que “o computador aqui é cerebral mesmo”.
Baseadas na valorização do acesso restrito e do segredo, essa forma de dispor as informações
faz com que as atividades estejam encasteladas a uma unidade policial em específico. As
delegacias, nesse sentido, passam a ser importante fonte de poder, já que as informações
passam a ser apropriadas de forma privada por pertencer apenas aos policiais que dela fazem
uso.
Assim, observamos que o projeto de reforma não dedicou aos procedimentos antigos o
mesmo cuidado que dispensa aos novos procedimentos. Segundo entrevistados, até mesmo na
capital do Estado do Rio de Janeiro, os delegados que presidem os Inquéritos das DEACs tem
ampla oportunidade de manipular estes inquéritos por conta da ausência de controle. Por
oferecer amplo poder de barganha nas atividades policiais, através da manipulação do ritmo
processual, a DEAC por vezes foi referida como uma das “minas de ouro” da polícia. O que é
interessante notar é que a ausência de controle ou o controle pessoalizado sobre os
documentos muitas vezes é percebido como uma das principais fontes de poder na polícia.
2.3. Casas de Custódia
Outro assunto importante quando nos referimos às atividades nas delegacias de
polícia, diz respeito à presença de carceragens nas delegacias que compõem o modelo
convencional. Deve-se ressaltar que nas delegacias convencionais há a manutenção de presos
custodiados, ou seja, pessoas que ainda não foram julgadas pela justiça estão presas no
mesmo prédio onde são realizados os serviços burocráticos e de investigação da Polícia Civil.
No entanto, um dos pressupostos para que estas delegacias se transformem em Delegacias
Legais é a transferência de presos para Casas de Custódia. Objetiva-se assim, que a custódia
72
de presos seja de responsabilidade do sistema carcerário e não da polícia. Grosso modo,
espera-se que as instituições não sobreponham as suas responsabilidades e funções.
O principal argumento que veio a sustentar tal proposta é o de que os policiais acabam
por sobrepor suas funções de investigação ao cuidar da carceragem, além disto, a presença
destas no departamento de polícia teriam um impacto negativo para a forma como a sociedade
representa a instituição, pois as pessoas teriam receio de ir à delegacia. Assim, vemos
representados nestes discursos alguns princípios norteadores da reforma: a importância da
agilidade nas investigações e a transparência das ações policiais.
Entretanto, deve-se notar que apesar da reforma apontar para a necessidade da
construção das Casas de Custódia como um pressuposto para o redesenho de funções, “o
processo de implementação não foi concebido como um programa à parte, constituindo uma
simples decorrência prática da implantação das Delegacias Legais. Os princípios que
caracterizaram o projeto Delegacia Legal (modernização, agilidade, limpeza e novas práticas)
não foram estendidos para os que temporariamente ficam custodiados pelo Estado até as
respectivas decisões judiciais, ou seja, as mudanças estruturais foram desencadeadas apenas
na polícia, ficando excluída a carceragem” (Teixeira, 2004b, p. 9).
Teixeira identifica em seu trabalho que a construção de novas casas de custódia
fomentou grandes conflitos entre os Governos Municipais e Estadual. Se por um lado há a
demanda pela a construção das novas delegacias, por outro, há um atraso na construção das
delegacias, porque os municípios ficam embargando as obras das Casas de Detenção (2004b).
No entanto, há de se notar que os municípios já contam com carceragens em seu território,
porém, estas funcionam nos prédios das delegacias e não em uma unidade especifica para tal.
Como principais efeitos causados por essa disputa, temos a redução do ritmo de implantação
das Delegacias Legais e a superlotação de alguns locais de detenção já existentes, o que
agrava ainda mais a situação dos presos no Estado do Rio de Janeiro. Até 2005, foram
73
construídas 87 Delegacias Legais e foram reformadas ou construídas 11 Casas de Custódia: 5
em Bangu, 1 em Campos, 1 em Magé, 1 em Japeri, 1 em Itaperuna, 1 em Volta Redonda e 1
em Benfica
15
.
“Contudo, se por um lado há um estudo teórico elaborado em relação às
organizações policiais e sua reforma, não percebemos o mesmo em relação aos presos
que são custodiados pelo Governo do Estado. Houve uma priorização na alocação de
recursos para a construção de novas Delegacias Legais, mas as novas implantações
dependiam de novos locais para guardar os presos: as Casas de Custódia” (Teixeira,
2004b, p. 47).
De um lado, temos a modernização tecnológica e administrativa da polícia, de outro, a
improvisação de espaços já existentes e a utilização de Policiais Militares para fazerem a
guarda dos presos.
Em relação à forma como os policiais se manifestam em relação a esta proposta,
identifico dois argumentos. O argumento favorável foi identificado pelos policiais que
afirmam que a presença da carceragem atrapalhava as investigações, segundo este discurso,
como os policiais tinham que cuidar da guarda de presos, acabavam por não ter tempo para
fazer a investigação. Já o discurso contrário a tal proposta é sustentado pelos policiais que
percebem que a presença dos presos nas delegacias auxilia as investigações. Segundo este
argumento, os presos são uma importante fonte de informação.
As melhores informações que eu tenho são dos próprios bandidos, agora, você não
pode humilhar eles não, eles só vão falar se você der crédito, e eles vão falando
tudinho que você perguntar. O bandido é melhor informante do que qualquer
testemunha.
15
http://www.policiacivil.rj.gov.br/delegacialegal.
74
No entanto, a existência das carceragens nas delegacias aponta ainda para a
possibilidade de negociação de vantagens, já que este tipo de depoimento não é percebido e
nem tomado como denúncia, mas como uma delação para a obtenção de privilégios.
Não me prolonguei demasiado com o tema porque o objetivo principal do meu
trabalho diz respeito a analisar a forma como os policiais dão sentido e utilizam os registros
nos dois modelos de delegacia. O que vale notar nestes últimos tópicos é que o Programa
Delegacia Legal apresenta propostas no que diz respeito aos processos de trabalho, à gestão
dos recursos policiais e à reforma da infra-estrutura física das delegacias, mas isso não se faz
acompanhar de uma preocupação concreta com o legado anterior à construção das novas
unidades.
As DEACs e as Casas de Custódia se inserem no projeto enquanto pressupostos à
reforma, porém, a acumulação de problemas referentes à atuação sobre os inquéritos e a
improvisação no trato com os presos apontam para o fato de que o trabalho desenvolvido por
essas unidades não foi objeto de planejamento e reforma.
75
Capítulo 3
A INTRODUÇÃO DE NOVOS REFERENCIAIS
“A Delegacia Legal está para o
Governo Garotinho assim como os
CIEPs estão para o Governo Brizola.”
(Policial, 2002)
O Programa Delegacia Legal, levado a cabo pelo executivo estadual desde 1999,
caracteriza-se como uma das políticas prioritárias na área de segurança pública. Depois de três
anos de gestão no governo, o fomentador do Programa, o Governador Garotinho, se
candidatou à Presidência da República e Benedita da Silva, que era sua vice no Estado,
assumiu o cargo de Governadora. Seu Governo responsabilizou-se pela reforma durante nove
meses, porém as obras das delegacias cessaram no período em que ela governava. A partir de
janeiro de 2003 a nova Governadora eleita, Rosinha Garotinho, tem dado continuidade ao
Programa Delegacia Legal. Em novembro de 2005, 87 das 121 delegacias distritais e
especializadas do Estado, já estão funcionando conforme o modelo legal, o que significa que
72% do total de delegacias do Estado já atuam no novo modelo.
Segundo um dos idealizadores do Programa (Soares, 2001), a Delegacia Legal visa
melhorar a produtividade e a qualidade dos serviços policiais a fim de aumentar a confiança
popular na capacidade que essa instituição tem de exercer seu papel e restabelecer a imagem
da polícia para acabar com a desconfiança da população em entrar numa delegacia.
Como se pode verificar em um trecho de apresentação do Programa:
“As Delegacias Legais foram a experiência mais arrojada e moderna que já se viu na
área da segurança pública. Seu objetivo é aumentar a produtividade e a qualidade
dos serviços policiais, através do uso da tecnologia, do treinamento permanente dois
76
recursos humanos e da reestruturação dos processos de trabalho, para proporcionar
um melhor atendimento à população.
16
O projeto da Delegacia Legal foi desenvolvido por uma equipe multidisciplinar
formada por representantes da polícia e da universidade. Os técnicos que desenvolveram os
programas e sistemas da Delegacia Legal eram professores da Fundação Coordenação de
Projetos, Pesquisas e Estudos Tecnológicos (Coppetec-UFRJ), enquanto os sociólogos,
antropólogos e cientistas políticos que estavam comprometidos com a elaboração do projeto
pertenciam à UERJ. Cabe ressaltar que policiais e delegados também participaram na
elaboração do projeto, estando integrados à equipe de trabalho. Por possuir capital político,
porém, o projeto se destacou como um carro-chefe (uma propaganda) de governo, de forma
que até o ano de 2004 os gastos com o programa somavam mais de R$ 221,5 milhões
(Garotinho, 2005, p 18).
A seguir, tentarei reconstituir o ambiente em que se deu algum tipo de discussão que
forneceu as bases do Programa Delegacia Legal.
3.1. Antecedentes do projeto
Frente a uma forma de atuar que julgavam esgotada, os delegados que atuavam na 9
a
DP (Catete) em 1996, Dr. Carlos Alberto D’Oliveira e Dr. Walter Barros – que foram por
mim entrevistados – começaram a questionar algumas rotinas que, segundo eles, não mais
davam conta das demandas que eram feitas a essa unidade. Assim opina o Dr. Carlos Alberto:
“O Estado, o modelo do estado está esgotado. Tem que mudar tudo, tudo. Acontece o
seguinte, eu tinha esse discurso para a polícia. O discurso é: o modelo que esta sendo
usado hoje está esgotado; nós temos que mudar. Então, eu não sabia com quem falar,
mas eu sabia que não podia ficar. Aí o resultado esta ai, esta tudo acontecendo em
cima disso que a gente propôs. Mas na realidade, é o Estado que tem que mudar.
16
Texto retirado da Intranet do Programa Delegacia Legal em 12 de maio de 2004.
77
Tem que ter uma reforma política séria, tem que ter uma reforma judiciária séria,
senão a melhor polícia do mundo hoje não dá conta.”
Questionar as atividades da polícia não foi uma tarefa incólume. Assim que foram
propostas algumas modificações, os conflitos entre os policiais na delegacia logo se tornaram
manifestos, como vemos no diálogo do Dr. Carlos Alberto D’Oliveira e uma das policiais que
estavam na época com ele na delegacia quando nos contaram sobre as modificações que
estavam sendo levadas a cabo na 9
a
DP:
Carlos Alberto - Metade da delegacia era contra e a outra metade não queria ficar
(...) tinha briga todo dia, os colegas discutiram e questionaram tudo.
Policial – É, questionava tudo. O Dr. Walter falava: “Vamos acabar com o livro de
protocolo”, aí um agarrava o livro de protocolo e falava “Não, não vai acabar com
esse.” (...) Eu sentava em cima: “O senhor não vai acabar com o livro, só depois que
o computador tiver chegado”. (...) Eu achei que não fosse ir pra frente, entendeu?
Porque eu tinha 13 anos de polícia e ai falava: “A vida inteira na polícia e eu não via
grampo, caneta, como é que vai ter papel para a impressora?”
Carlos Alberto – É, ninguém acreditava.
Policial – Era difícil acreditar que o Estado fosse bancar essa estrutura que a gente
tem (referindo-se ao Programa Delegacia Legal).
Carlos Alberto – Eu dizia: Quem não quiser ficar pode ir embora, e [os policiais]
faziam fila na minha porta e eu só assinando memorando... No começo saiu, mas
depois eu não deixei mais sair.
Policial – Ele falou: “nem pedindo ao presidente da República!”
Segundo afirmou outra delegada que também estava lotada nessa delegacia, a Dr
a
Patrícia Palemany
17
, a primeira característica por eles questionada foi o fato de na delegacia
terem dois policiais que nada mais eram do que meros registradores atuando sem vinculação
nenhuma à parte investigativa, o que fazia demorar o início da investigação. A segunda
característica dizia respeito a compartimentalização da investigação, já que os procedimentos
tinham de passar por vários setores da delegacia.
17
Afirmado em palestra de apresentação do Programa Delegacia Legal para pesquisadores do NUFEP-UFF.
78
A partir disto, propuseram duas coisas que poderiam melhorar a situação: a primeira
consistia na imediatidade do início das investigações. Esta poderia contribui para a elucidação
dos crimes, já que “muita informação se perde se você for investigar muito tempo depois”, e a
segunda é a responsabilidade na investigação, pois se poderia vincular o policial com o
resultado do procedimento que atendeu, já que ele estaria responsável pelo caso do registro à
instauração do Inquérito.
O contexto da 9
a
DP na época, segundo Dr. Carlos Alberto:
“A mudança foi muito radical. Por exemplo, a delegacia esquematizada tem o
Cartório, tem o SI [Setor de Investigação]. Então o SI, nós tínhamos pensado que era
a primeira coisa que tinha que acabar. (...) Ia todo mundo para frente para dar
respaldo. (...)
Nós também fizemos também o seguinte: pegamos um salão, que tinha várias portas
e abrimos tudo. ‘Olha, aqui vai ser a área de pensar, o tempo todo do raciocínio’.
Acabamos com as salinhas. As baratas foram embora, as aranhas, quebramos
parede, quebramos tudo mesmo. O pessoal ficava brincando, fomos pegando pedaço
de madeira, jogando lá de cima e plá! Caía lá em baixo. Aí fomos descobrir .... nessa
brincadeira de tira tudo, nós achamos petição registrada a mais de quatro anos.
Tinha muito material largado. Então nós tivemos que organizar. Os colegas então
organizaram em ordem cronológica e por ano. Então como é que amarra isso? (...)
Aí as pessoas sentavam, cortavam câmara de pneu, amarravam e ficava tudo
arrumadinho, rusticamente, mas arrumado. E ai não se perdia nada, se achava.
Nós também queríamos fazer o seguinte: registra, aquele que registrou era o
encarregado do caso, não tem mais esse negócio de que um vai passar para o outro
não. Aí eu pedia a Chefe da SI: ‘Você vai ter que fazer esse auto’. ‘Mas eu nunca fiz
isso, eu nunca fiz um registro’, ela respondia. Ai eu falei para ela: ‘Guria, cada vez
que você abre a boca você se credencia mais’.
Logo quando eu cheguei na delegacia também, que eu fui transferido para lá, eu fui
ver a carceragem. A carceragem tinha um [preso] no chão, um em pé esperando, um
na grade (...) tinha rodízio para dormir, aí eu falei para o delegado que tava saindo:
‘olha a condição dos caras!’ Aí ele: ‘Pô, chefão, você ta certo, manda todo mundo
pra 14 pra desocupar a carceragem’
Aí no dia seguinte o astral da delegacia melhorou 100%.
79
Ainda não existia, porém, o Programa Delegacia Legal, não existia nenhum projeto de
reforma da polícia. Essas modificações só abrangiam essa unidade em específico e foi
encetada por iniciativa dos policiais que nela estavam. Em meados de 1998, essa experiência
de modificação estrutural dentro de uma unidade policial foi apresentada pelo delegado
Carlos Alberto de Oliveira ao sociólogo Luiz Eduardo Soares, que era então representante da
Polícia Civil
18
no Governo de Transição.
A proposta foi por eles levada adiante, para isso também chamaram um grupo de
profissionais de fora da polícia para desenvolver as idéias. Segundo o Dr. Walter Barros,
foram feitos uma série de encontros na FIRJAN para apresentação das idéias a um grupo de
profissionais reunidos na COPPETEC. A partir disto, os profissionais da COPPETEC vieram
ficar 8 meses na delegacia para entender como ela funcionava e propor o projeto piloto do
sistema
19
. “Como principal responsável pela área de sistemas do Projeto Delegacia Legal, (foi
convidado o) professor Luiz Felipe Magalhães de Moraes, que implantou a Internet no Brasil”
(Soares, 2000, p. 95).
Em fins de 1998 o projeto é apresentado ao então candidato a governador do Estado
do Rio de Janeiro, Anthony Garotinho. Assim seu relato: “O Programa Delegacia Legal
começou em 1999, mas sua origem remonta o ano anterior. Na disputa eleitoral de 98, em que
a segurança pública foi um dos temas principais, visitei a 9ª Delegacia Policial, no Catete,
Zona Sul do Rio, e fiquei indignado com o que vi: policiais mal instalados, ratos pelos
corredores, presos amontoados na cadeia. O ambiente era tenebroso. Minha indignação foi
tanta que disse aos meus companheiros de campanha: ‘Se eu for eleito, não vou querer esse
tipo de delegacia em meu governo’” (Garotinho, 2005, p. 11).
18
Coordenador de Segurança, Justiça, Cidadania e Defesa Civil.
19
“Os técnicos convidados a desenvolver os programas e o sistema foram alguns dos mais qualificados do país:
são professores da Coope, a Coordenação de Programas de Pós-Graduação e Engenharia da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, o maior centro em pós-graduação em Engenharia da América Latina.(Soares, 2000, p.
91)”
80
Em 29 de março de 1999, a primeira Delegacia Legal, a 5
a
DP (Gomes Freire) foi
então inaugurada
20
. O delegado Walter Barros assume a titularidade da delegacia piloto,
enquanto o delegado Carlos Alberto é nomeado Chefe de Polícia, o administrador César
Campos assume a gerência do Grupo Executivo do Programa Delegacia Legal e o sociólogo
Luiz Eduardo Soares, é designado Coordenador de Segurança do Estado.
Em entrevista que realizei com os idealizadores do Programa, insisti nos problemas
que foram por eles identificados no modelo anterior, problemas esses que lhes forneceu os
pilares da criação do projeto, e um deles de pronto manifestou-se no sentido de que a Polícia
Civil há mais de 60 anos não desempenhava sua atividade fim, que é investigar. Vejamos um
trecho da entrevista:
“Essa nova cultura consiste no compromisso com a sociedade, no compromisso com
a investigação, tem que tirar da cabeça da polícia que ele precisa ser um homem de
operação”.
Segundo outro idealizador:
“Tem que sair daquele perfil do super-homem que defende a sociedade, que luta
contra os bandidos, que sobe o morro, do tiro, da guerra, do confronto, da batalha,
que joga arma, bomba e não sei mais o que e entrar numa polícia mais voltada para
a observação, para a interpretação dos dados como um todo. Trabalhar com
segurança pública vai muito mais além do que apenas investigar um delito, mas tem
que saber as causas desse delito. Isso é o que se fala de inteligência policial.
Inteligência policial não tem nada a ver com escuta telefônica, esperando que alguém
fale alguma coisa de um crime, vai lá e prende. Isso não é inteligência, isso é
retardisse policial. É esperar que a coisa aconteça, ter um grampo de 40 a 50
telefones e todo mundo esperando que a coisa aconteça. Temos mais de milhares de
furtos que acontecem todo mês no Estado e a coisa é muito reativa. Tem que sair do
reatismo e ir para o proatismo, né.”
20
Esta delegacia ficou conhecida como a delegacia modelo da Polícia Civil.
81
Conforme essas observações, a Polícia Civil deveria priorizar não os trabalhos
ostensórios, atuando somente depois de cometidos os crimes, mas sim desenvolver
instrumentos para realizar as atividades investigativas de forma inteligente e preventiva.
Em seguida, apresento algumas das idéias de modernização positivante recomendadas
pelo Programa. Grosso modo, exponho a idéia de modernização que a reforma levanta.
3.2. O Programa Delegacia Legal
Três foram as bases que nortearam a construção de um novo modelo de polícia que
veio a conformar o Programa Delegacia Legal: “confiança (o que depende de resultados e
esforços visíveis de moralização institucional); coleta e processamento de informações (o que
exige tecnologia e a modernização do aparato policial); e a agilização das investigações (o
que requer uma nova forma de gestão)” (Soares, 2000, p. 85).
Conforme o que foi explicitado, o estabelecimento de uma relação de confiança entre a
polícia e a sociedade, foi percebido como um primeiro dispositivo disponível para assegurar a
eficácia da reforma. Essa confiança seria garantida principalmente através das reformas de
cunho estético, com vistas a garantir um melhor atendimento da delegacia ao público que
demanda suas atividades, mas também seria necessário empreender esforços de valorização e
treinamento permanente dos policiais.
Em relação ao primeiro aspecto, o discurso reformador coloca que: “as delegacias
podem ser cenários degradantes da auto-estima do policial e do público, ou ambientes
propícios à valorização de atitudes positivas de parte a parte. A estética é parte constitutiva da
política e tem efeitos muito mais concretos do que os céticos supõem. A estética, nesse
sentido, é indissociável de uma idéia positiva de ordem, em que liberdade e respeito se
combinam e se estimulam mutuamente. (...) a nova concepção do espaço, que criava um
82
ambiente inteiramente transparente, devassado, aberto à observação externa, em paredes e
cantos obscuros, sem salas para tortura ou negociações escusas” (Soares, 2000, p. 94-101).
Para tal, o projeto previa como um pressuposto necessário à reforma, a abolição da
carceragem nas delegacias de polícia. A alegação era que a manutenção de presos em
delegacias é uma rotina ilegal e que os policiais ocupam-se demasiado com essa atividade
oficiosa.
“Embora a legislação brasileira não trate o problema com a clareza necessária, ela
não prevê a guarda de presos provisórios (não-condenados) em delegacias. Ao
contrário, a Lei 7,210, de 11 de julho de 1984, que dispõe sobre as execuções penais,
prescreve que estes presos devem, como os demais, fazer parte do sistema de
administração penitenciária” (Garotinho, 2005, p. 12-13).
Segundo alguns policiais e delegados entrevistados, nas antigas delegacias, eles se
ocupavam demasiado dos presos provisórios e, por conta disso, não conseguiam despender
tempo para as investigações. Diante disso, a construção das Delegacias Legais se fez
acompanhar da construção de 11 Casas de Custódia que pudessem receber os presos que antes
estavam custodiados nas delegacias de polícia (Garotinho, 2005, p. 37).
“O nome de batismo do programa vem dessa mudança, que revolucionou o
funcionamento das delegacias fluminenses, ao quebrar o paradigma de que cuidar de
presos provisórios era função da polícia. O nome Delegacia Legal se refere,
portanto, a um novo modelo de unidade policial, que, em respeito à Lei de Execuções
Penais, não tem carceragem nem detentos. O Rio foi a primeira capital brasileira a
não ter presos em delegacias de atendimento ao público. O novo modelo de delegacia
é legal, também, na acepção popular desse adjetivo, tornando sinônimo do que é
positivo e benéfico pelo linguajar cotidiano do povo brasileiro” (Garotinho, 2005, p.
13).
É nesse momento que é oficialmente justificada a denominação das novas delegacias
como Delegacias Legais, pois esta não mais se ocupa da guarda de presos e mantém somente
83
duas salas de custódia (uma masculina, outra feminina) para casos de prisão em flagrante
21
.
Além de contrapor a rotina de encarceramento nas delegacias antes e depois da reforma, a
designação como legal também é utilizada como um trocadilho pelos policiais ao se referirem
à melhor infra-estrutura da Polícia Civil como uma coisa boa, que tem qualidades favoráveis à
função que se presta. Por outro lado, este conceito fez com que fosse consolidada a imagem
do modelo anterior à reforma como um modelo ilegal
22
.
A Delegacia Legal dispõe também de uma entrada distinta para os presos em flagrante
e o público em geral que vêm à delegacia. Os presos em flagrante seriam dirigidos
diretamente a uma entrada aos fundos da delegacia, onde estão dispostas as salas de custódia e
a sala de reconhecimento - instalações propostas na reforma. Segundo a proposta, com a
entrada separada para presos, o constrangimento causado pelo encontro dos autores,
testemunhas e vítimas seria evitado, já com as salas de reconhecimento, as vítimas poderiam,
protegidas por vidros espelhados, identificar os autores de crimes.
Voltadas para a garantia de um melhor conforto ao cidadão, as delegacias passariam a
dispor de acessos especiais para pessoas com deficiência, telefones públicos e banheiros
adaptados. Orientados por princípios de funcionalidade e transparência, os prédios foram
reformados e padronizados para que o público pudesse melhor identificar e ter acesso às
delegacias de polícia. A porta de vidro na entrada da delegacia representaria que, em oposição
à associação à idéia de punição e segredo, a delegacia de polícia passaria a ser identificada
com um serviço público à disposição da população, tornar-se-ia uma “verdadeira vidraça” e
seus clientes
23
“não precisam mais pedir licença”.
21
Refere-se a uma prisão temporária em que o preso perdura no máximo 10 dias na delegacia, prazo em que o
procedimento flagrante deve ser concluído.
22
Observei que os policiais se referiam informalmente ás delegacias convencionais pelo como delegacias ilegais,
em contraposição ao modelo legal.
23
Era lugar comum, no início da reforma, os policiais referirem-se à categoria “clientes” quando falavam do
público que comparecia à delegacia. Essa categoria está extremamente associada à idéia de serviço prestado e a
direitos que tem que ser assegurados e protegidos. Percebo, no entanto, a referência a essa categoria tem entrado
em desuso na rotina das delegacias.
84
Os serviços prestados pelos policiais estariam também acessíveis à visibilidade do
público desde a sua entrada na delegacia, pois a Delegacia Legal inaugura um espaço de
trabalho dividido apenas por divisórias baixas para que o atendimento ao público passe a estar
acessível à visibilidade pública. Segundo um delegado, “o visual da delegacia gera
confiança”. Abaixo, a forma como um policial entrevistado percebe o cenário anterior das
delegacias:
“O sistema da outra delegacia facilita a contravenção, devido cada pessoa ter uma
salinha específica onde ninguém sabe o que está se passando lá dentro”.
As Delegacias Legais também dispõem de uma dependência específica, localizada nos
fundos da delegacia, para a atividade do Setor de Inteligência Policial (SIP) - setor que realiza
entre outras atividades, a identificação dos presos em flagrante. Todavia, não são todos os
setores das Delegacias Legais que estão disponíveis à visibilidade pública. Uma vez que as
dependências que identificam as delegacias de polícia com o serviço de repreensão dos fatos
delituosos (SIP, Sala de Reconhecimento e as Salas de Custódia), foram dispostas nos fundos
da delegacia, as delegacias passaram a dispor também de um bastidor punitivo.
Assim, a rotina de trabalho dos policiais na delegacia tornar-se-ia pública, mas existem
certas atividades que deveriam ser mantidas em sigilo com o objetivo de evitar que hajam
constrangimentos impostos por um possível encontro entre as pessoas envolvidas no litígio na
delegacia e de permitir a continuidade do andamento das investigações. Segundo a opinião de
um policial entrevistado, a visibilidade do trabalho policial não seria favorável no que diz
respeito, por exemplo, à coleta de depoimento das testemunhas, pois elas ficam constrangidas
quando se encontram em um ambiente onde qualquer pessoa possa vê-las. Este mesmo
policial disse que ele costuma dirigir as testemunhas para uma sala, onde elas possam se sentir
mais à vontade para fornecer seu depoimento. A visibilidade do trabalho de rotina das
85
delegacias exerce, portanto, suma influencia nas ações que os policiais desempenham, visto
que:
“‘Sob o olhar de outrem é preciso agir e justificar a ação incensantemente. O
hospital é um lugar de observações intensas e cruzadas. Os que cuidam observam
clinicamente, situam socialmente, examinam o caráter e a psicologia do paciente,
mas, no hospital, o interessado ou seu grupo igualmente observam os profissionais
ao seu redor.’ Essa visibilidade tem conseqüência para as relações hierárquicas:
‘Para trabalhar em serviços de emergência, é preciso amar a vida coletiva em um
lugar confinado. Não se pode espaçar do olhar dos outros, o que de certo modo
contradiz o princípio hierárquico. Os atores não podem se isolar e evitar as opiniões
dos outros (...). Os que detêm a autoridade suprema se encontram lado a lado com os
executantes sem poder.’”(Peneff apud Joseph, 2000, p. 47)
A maior visibilidade das ações policiais influenciaria, sobretudo, em um novo desenho
das relações intra-institucionais, já que as atividades dos policiais estariam submetidas à
observação e controle mútuos dos próprios agentes, do público e dos delegados. A
visibilidade das ações policiais introduz uma nova estratégia de vigilância, já que as salas
(com janelas de vidro, porém com persianas) dos Delegados Titulares e Adjuntos encontram-
se próximas às mesas de atendimentos dos policiais. O cenário das Delegacias Legais em
muito se assemelha à infra-estrutura panóptica proposta por Bentham (Foucault, 1998 e
1999), na medida em que tudo o que os policiais fazem está submetido ao olhar do delegado
(vigilante), que observa tudo através das persianas sem que ao contrário, ninguém possa vê-lo.
Segundo esta teoria, esse mecanismo assegura que os policiais nunca saibam que estão sendo
observados, mas que são suscetíveis de sê-lo.
Por vezes, a transparência das atividades é apontada como um problema pelos
policiais. Segundo seus argumentos, muitas vezes as pessoas estão aguardando o atendimento
no balcão da delegacia e acham que os policiais que não estão fazendo registro não estão
fazendo nada. A justificativa dos policiais é que eles precisam de tempo para estudar as
86
ocorrências que atendem, porque o trabalho policial abrange outras coisas além do
atendimento ao público.
O Programa Delegacia Legal também empreendeu esforços de valorização dos
profissionais, através da criação de instalações como salas de repouso, copa e banheiros de
uso exclusivo dos policiais. As delegacias passaram a dispor ainda de auditórios onde possam
ser realizados treinamentos, reuniões entre as equipes de trabalho e com representantes da
comunidade. No que diz respeito ás novas condições de trabalho, assim o discurso de um
policial: “tem mudado a atitude do policial, ele passa a ter valor próprio, a delegacia passa a
dar valor a ele”.
O interessante é que até sobre a forma de apresentação dos policiais nas delegacias, o
Programa Delegacia Legal dispõe. Nas Delegacias Legais, os policiais devem vestir calça e
camisa social, mas uma vez fora da delegacia, vêem-se policiais com camisa de malha e calça
jeans. Tentando explicitar melhor a forma como se reproduziram essas representações do
projeto reformador, cito a fala de um policial que estava entrevistando e tinha que sair porque
foi convocado para uma operação. Na delegacia ele trajava roupas sociais, mas depois
colocou o uniforme preto da Polícia Civil, colete a prova de balas e armamento, mas antes me
disse: “desculpa, mas agora vou me travestir de policial ilegal”.
Assim, os paradigmas de eficiência, transparência e da valorização da delegacia como
um serviço público disponível ao cidadão sempre que necessário constroem-se em oposição à
identificação das práticas de polícia essencialmente punitivas. Abaixo, exponho a forma como
é representado o cenário das delegacias:
“A pessoa vê o que acontece no interior do prédio e percebe o clima de seriedade e
organização. Deixa, assim, de sentir medo e insegurança, como antigamente, na hora
de entrar numa delegacia” (Garotinho, 2005, p. 21).
87
Além das reformas de cunho estético, o Programa Delegacia Legal busca uma nova
forma de gestão dos recursos policiais. Além dos policiais, nesse modelo inovador, dois novos
agentes passam a integrar a rotina das delegacias: as atendentes e o síndico. Ao invés de se
apresentarem diretamente aos policiais, as pessoas que chegam nas Delegacias Legais
dirigem-se a um balcão de atendimentos, que é composto por profissionais e estudantes
universitários não policiais – civis que geralmente são das áreas de Psicologia, Comunicação
e Serviço Social. Estes realizam um primeiro atendimento e depois encaminham as pessoas
aos policiais. Como justificativa oficial para a introdução da figura dos atendentes não-
policiais, o fato de que o público geralmente vai à delegacia “com problemas que nada têm a
ver com o trabalho policial. Nessas situações, os esclarecimentos necessários são dados pelos
atendentes, que só encaminham aos agentes os casos que realmente são casos de polícia”
(Garotinho, 2005, p. 16).
Paula Poncioni (1995) relata em seu trabalho que a introdução de assistentes sociais
nas delegacias de polícia do Estado do Rio de Janeiro remonta à experiência anterior, pois de
1984 a 1990, foi firmado um convênio entre a Secretaria de Estado da Polícia Civil e a Escola
de Serviço Social-UFRJ. Em seu trabalho, essa autora relata que:
“O trabalho cotidiano da polícia, em diversos países do mundo consiste em intervir
em problemas ou dificuldades diversas que não se constituem necessariamente, em
problemas legais ou penais, para os quais nem a legislação, nem quaisquer outras
instituições da sociedade oferecem respostas satisfatórias para as demandas
desejadas. Na quase totalidade dos casos, a polícia é o único serviço ao qual
qualquer pessoa pode recorrer em caso de necessidade urgente, em particular o
segmento mais pobre da população. Ela é um serviço público, ou seja, é um serviço
gratuito e é ininterrupto, funcionando 24 horas por dia. Em países como o Brasil,
onde a pobreza e a inoperância das organizações de instituições de “bem-estar” e de
justiça são parte significativa da vida social ..., o trabalho diário da polícia volta-se
para suprir as carências existentes nos demais serviços públicos” (Poncioni, 1995, p.
25-26)
88
Esses atendentes seriam responsáveis, portanto, por recepcionar as pessoas nas
delegacias e encaminhá-las para outros órgãos competentes caso o fato relatado por elas
demandasse algum outro tipo de assistência ou não fosse de atribuição da polícia. Observa-se,
assim, o enorme poder que é manipulado no balcão da delegacia: decidir sobre quais fatos
merecem ser tratados como “casos de polícia” ou como um “possível fato ilícito” ou não.
Tratarei este assunto no próximo capítulo, ao descrever os trâmites dos procedimentos nas
Delegacias Legais.
Outro agente não-policial que passou a estar incorporado na rotina da delegacia que
compõe esse novo modelo é o síndico. “Formado na área de administração, ele é o
responsável pela conservação predial, pelo controle de materiais, pelo funcionamento e pela
limpeza da delegacia” (Garotinho, 2005, p. 25). Justifica-se a introdução da figura do síndico,
para retirar as atividades administrativas da responsabilidade do delegado, já que este deveria
se ocupar tão somente do gerenciamento das atividades investigativas.
Em relação à forma de gestão do trabalho policial, as rotinas dos procedimentos (RO,
VPI e Inquérito) foram reorganizadas para que a responsabilidade pelos resultados da
investigação pudesse ser identificada. Nessa nova organização do trabalho, os lugares antes
ocupados pelos Setores de Investigação e Cartórios nas delegacias foram abolidos, o único
setor encarregado em produzir as ocorrências criminais é o Grupo de Investigação (GI) - setor
encarregado do atendimento ao público e posteriores desdobramentos das ocorrências na
delegacia. No GI, o policial que recebe a comunicação e formaliza o registro deveria iniciar as
investigações tão logo tome conhecimento do fato, estaria também incumbido pelo
desdobramento desses procedimentos em Inquéritos e Flagrantes. Com a responsabilização
individual pelo resultado final dos procedimentos (accountability), a Delegacia Legal criaria
um vínculo entre o fato, o investigador e os resultados de seu trabalho para que as
89
investigações fossem mais otimizadas, não fosse despendido tempo excessivo com o rito
processual que é demandado pela atividade cartorária da delegacia e fosse possibilitado um
maior controle sobre as atividades policiais.
Vale notar que ao responsabilizar individualmente os policiais para que a investigação
fosse iniciada tão logo o conhecimento do fato pela polícia, o programa busca pôr fim ao
isolamento dos setores especializados que tinham lugar nas Delegacias Convencionais.
Segundo alguns entrevistados, a existência dos Setores de Investigação (SI) especializados
dava ampla margem de arbítrio aos policiais, pois nesses setores, eles administravam de forma
particularizada a informação, comumente identificada como uma das fontes de poder e
corrupção dos agentes. Há de se notar que a distribuição dos policiais nos setores
especializados das Delegacias Convencionais era muito mais um produto de barganha dos
policiais com os delegados, do que fruto da aquisição de um conhecimento específico para tal.
Por conta disto, o Programa Delegacia Legal pretendia abolir com as especializações nas
delegacias distritais
24
, para que os policiais do Grupo de Investigação (GI) não selecionassem
as ocorrências atendidas, mas que pudessem atender e investigar quaisquer ocorrências a eles
destinadas. Formalmente, o GI se dividiria em quatro equipes, os policiais que nele trabalham
obedeceriam a uma escala de vinte e quatro horas de trabalho por setenta e duas horas de
folga para que cada equipe de trabalho fosse de responsabilidade de um Delegado Adjunto.
Mais recentemente o projeto original foi alterado, foi criado um Grupo de Investigação
Continuada (GIC), composto por oito policiais, subordinados diretamente ao Delegado
Titular, que passariam a ir todos os dias nas delegacias. A existência desse grupo não constava
no projeto inicial, mas ele foi criado para atender à reivindicação (feita pelos policiais e
delegados) por um grupo que pudesse auxiliar e dar continuidade às investigações feitas pelo
24
O Programa não fomenta a especialização dos agentes nas delegacias distritais, mas sim a existência de
delegacias específicas que demandem uma qualificação específica para tal, de forma que existem unidades de
delegacias especializadas que funcionam no modelo legal, tais como a Delegacia de Proteção à Criança e ao
Adolescente, a Delegacia da Mulher e a Delegacia de Atendimento ao Turista.
90
GI, uma vez que esse setor não conseguiu acumular as funções de registro e investigação,
ocasionando assim um grande acúmulo de investigações sem andamento.
No que diz respeito à coleta e processamento de informações, os serviços policiais das
Delegacias Legais foi informatizado com vistas a possibilitar um melhor gerenciamento sobre
o andamento dos procedimentos policiais.
A partir da informatização, foram introduzidas novas normas institucionais, já que as
terminologias e procedimentos policiais se tornam uniformes a partir do uso das categorias
padronizadas que são fornecidas pelo próprio sistema.
A reforma também aboliu quase todos os 66 livros da Polícia Civil (apenas seis
permanecem) e fez com que todos os procedimentos ficassem disponíveis em um sistema que
interliga todas as delegacias. Além dos dados sobre as ocorrências policiais, esse sistema
oferece uma maior quantidade de informações que possam vir a auxiliar as investigações, tais
como: o acesso via Intranet
25
ao banco de dados do Instituto Félix Pacheco, a criação de um
banco de dados relativo às atividades das delegacias, e o mapeamento estatístico e
georeferencial dos crimes.
A democratização da informação, por um lado, acabaria por diminuir a burocracia na
forma de disposição e coleta dos dados com fins de auxiliar as investigações, mas, por outro,
permitiria que através de um controle administrativo, a falta de eficiência pudesse ser
publicizada. Essa lógica orienta-se pelo princípio de que informatizando os procedimentos
policiais, a informações tornar-se-iam mais transparentes e aumentaria a possibilidade de
vigilância e controle sobre as atividades policiais.
O acesso às informações das Delegacias Legais seria controlado com base nos níveis
de senhas distribuídas aos agentes. Assim, os policiais que elaboram os registros só têm
acesso aos procedimentos por eles produzidos; cada Delegado Adjunto teria acesso aos
25
Rede de Internet interna à polícia e que liga todas as delegacias a uma base comum de dados.
91
procedimentos sob sua responsabilidade; os Delegados Titulares, a todos os procedimentos da
sua delegacia; e a Seção de Inteligência Policial (SIP) teria acesso a todos os procedimentos
elaborados em Delegacias Legais. Qualquer pesquisa acerca de antecedentes ou outras
ocorrências nas delegacias tem, portanto, de ser solicitadas aos policiais que trabalham nesse
último setor. O procedimento policial passa a ser disponível também a analistas de
informação de outros setores internos à Secretaria de Segurança, mas a senha visa identificar e
limitar as pessoas que tem acesso às informações. Por exemplo, se eu tiver uma senha e for
tentar abrir alguma peça que não esteja disponível para mim, vai aparecer uma tela escrita
“Vívian Ferreira Paes não tem acesso a esta peça!”. Apesar dos registros de ocorrência e
aditamentos terem se tornado público, os policiais e delegados podem, também, limitar o
acesso de outros agentes em suas investigações quando achar necessário, marcando no glide
“peça sigilosa”.
A idéia do programa é a de que a democratização da informação poderia auxiliar, por
um lado, no esclarecimento dos crimes, pois a base de dados policiais é uma importante fonte
de investigação e, por outro, no controle mais severo sobre o andamento das investigações.
Para Luiz Eduardo Soares (2000, p. 85), “informação para valer, é aquela que funciona como
elemento automaticamente disponível sempre que necessário”. Nesse mesmo sentido, informa
uma delegada que atua no Grupo Executivo do Programa: “as delegacias deixam de trabalhar
em feudos para trabalhar em rede. A seção de inteligência não é do policial, é da polícia.
Informação é dinheiro, informação é poder. É a polícia, não o policial que tem informação”.
Assim, as informações referentes aos procedimentos seriam destituídas do policial e da
delegacia em sua unidade para estarem disponíveis para auxiliar o trabalho do conjunto das
Delegacias Legais, a informação se tornaria pública para todas as delegacias. Referindo-se à
informatização e controle sobre os procedimentos na Delegacia Legal, um policial que atuava
na Delegacia Convencional uma vez afirmou: “eu gosto de computador, mas não no estilo de
92
lá”. Essa oposição é importante, pois nos indica que a democratização da informação permite
que seja feito um maior controle sobre as atividades policiais, o banco de dados deixa de ser
do policial e isso, claro, gera resistências.
Isto é relevante, porque o Programa Delegacia Legal propõe-se a influir sobre a
apropriação particular por parte dos policiais dos recursos que são públicos. O Programa
Delegacia Legal propõe-se a mexer na rotina, na forma de produção do trabalho e de
tratamento das informações por parte da Polícia Civil. Em termos de proposta, o programa
dirige-se a uma tentativa de mudança consubstancial na Polícia Civil, não só estética.
Verifico que ao condensar as informações em sistema, o PDL impõe três modificações
cruciais na Polícia Civil: muda o potencial dos registros das delegacias - os registros de todas
as delegacias estão em uma base comum de dados e podem ser pelos policiais pesquisada -
integra as unidades policiais isoladas e, por último, confere novo desenho às relações de
poder.
Vale notar que o Programa Delegacia Legal não foi uma medida isolada, ele se fez
acompanhar de uma série de outras reformas no Sistema de Segurança Publica no Estado.
Além da criação das Delegacias Especializadas de Acervo Cartorário (DEAC) e das Casas de
Custódia, foram construídos Centros de Polícia Técnica (CPT), para a modernização e
melhora das estruturas dos órgãos técnicos (Instituto Médico Legal e Instituto de
Criminalística Carlos Éboli – IML e ICCE, respectivamente) e um Pátio Legal, para onde os
veículos roubados são encaminhados até serem devolvidos a seus respectivos donos,
propiciando que as delegacias não mais funcionem como um depósito de veículos:
“A medida visa a garantir o patrimônio privado, com a preservação da integridade
dos veículos recuperados, e agilizar sua devolução, por meio da centralização da
guarda em pátios próprios” (Marcelo Itagiba, Secretario de Segurança do Estado do
Rio de Janeiro)
26
.
26
In: Jornal da Polícia do Estado do Rio de Janeiro, nº 25, julho de 2005, p. 3.
93
No projeto inicial estava previsto um espaço dentro da delegacia para a atuação do
Ministério Público junto à polícia, isso garantiria que o Ministério Público atuasse como fiscal
da lei de uma forma mais próxima com os fatos e agilizaria a denúncia dos inquéritos
policiais. No entanto, tal medida não foi levada a cabo, pois os promotores não se dispuseram
a ocupar o espaço da delegacia. Os promotores justificaram a não aproximação com a polícia,
porque com a convivência, eles não poderiam exercer de forma adequada sua função de
fiscalizar as atividades policiais, já que poderia conformar inúmeras barganhas e
condescendência com práticas escusas. Diante disto, a solução encontrada pelos reformadores
foi disponibilizar o banco de dados do Programa Delegacia Legal para o Ministério Público,
pois assim essa instituição não poderia alegar a falta de transparência dos dados e da
administração das delegacias. Uma outra modificação que ocorreu neste período diz respeito à
estrutura do Ministério Público, que criou uma Central de Inquéritos para receber os
procedimentos de investigação da polícia – que, segundo entrevistas, passaram a ser
encaminhados em maior volume a partir da inauguração das Delegacias Legais - para depois
esses procedimentos serem distribuídos para as divisões do Ministério Público.
Duas hipóteses podem ser enumeradas para tentar explicar o maior volume de
ocorrências recebidas pelo Ministério Público: em primeiro lugar, o programa esperava que
aumentasse o número de registros de ocorrências de ação privada, já que procurou estabelecer
uma maior confiança da população nas atividades realizadas pelas delegacias de polícia, em
segundo lugar, porque com a informatização dos procedimentos, o programa permite que seja
feito um maior controle sobre o cumprimento de prazos na polícia, pois o sistema é capaz de
informar quais procedimentos estão fora do prazo legal e se não foi recebido um laudo
solicitado pela polícia, por exemplo.
94
No entanto, mexer com os procedimentos de uma Polícia Judiciária não é tão fácil
quanto parece. Apresento adiante que as propostas pela reforma inserem-se em uma
importante arena de disputas sobre a forma de gestão dos procedimentos da Polícia Civil.
3.3. Conformação de uma arena de disputas
Analisando uma experiência de reforma na polícia francesa, Dominique Monjardet
relata que: “se a polícia de proximidade deve ser outra coisa além de um slogan para
campanhas eleitorais, sua concretização será duradoura, suporá mudanças profundas no
aparelho de estado policial, e então produzirá, inevitavelmente, as múltiplas oposições
27
”.
Nesta parte, apresento as maneiras pelas quais foi produzido um dissenso acerca das formas
de operar a polícia, o que acabou consolidando discursos em oposição.
Ao impor uma nova forma de elaboração dos procedimentos policiais via recursos da
informática, o Programa Delegacia Legal confere uma nova potencialidade às ocorrências
policiais, já que passam a estar submetidas a uma nova sistemática de controle. As
informações acerca desses procedimentos passam a ser destituídas do policial para estarem
disponíveis on line; uma nova forma de gestão que altera ethos e poder, mas que também
produz oposições e resistências.
Modificações em termos da estrutura da Secretaria de Segurança Pública e da forma de
atuação das instituições policiais também foram impostas pelo Programa. A partir da
discussão e da efetivação da reforma na Polícia Civil, instaurou-se no âmbito das
“autoridades” policiais um conflito gerado, principalmente, pela disputa do poder de controle
e gestão do trabalho policial.
Apesar do controle acerca das ações policiais ser tradicionalmente de competência da
Chefia de Polícia e da Corregedoria da Polícia Civil, dois novos órgãos subordinados
27
“Si la police de proximité doit être autre chose qu’un slogan pour campagnes électorales, la mise en oeuvre
sera longue, supposera des changements profonds dans l’appareil d’État policier, et engendrera donc, tout aussi
inévitablement, de multiples oppositions” (Monjarder, 2000, p. 132).
95
diretamente à Secretaria de Segurança Pública passaram a monitorar as atividades policiais –
o Instituto de Segurança Pública (ISP) e o Grupo Executivo do Programa Delegacia Legal
(GPDL), órgãos cujos dirigentes não são policiais (respectivamente, uma antropóloga e um
administrador). Enquanto o primeiro é o órgão responsável pela divulgação mensal das
estatísticas criminais (atribuição antes exercida pela Assessoria de Planejamento da Polícia –
Asplan), dentre outras atividades, o segundo é o órgão responsável pela implementação e
gestão das atividades policiais.
O Grupo Executivo do Programa Delegacia Legal responsabiliza-se ainda em oferecer
cursos de aperfeiçoamento mensais a todos os policiais que atuam nas Delegacias Legais
(ultimamente tem oferecido cursos on-line, com provas presenciais), além dos que são
tradicionalmente oferecidos pela Academia de Polícia Silvio Terra (ACADEPOL).
De fato, a partir da reforma e desse novo desenho de atribuições das instituições na
Polícia Civil, as competências das instituições antes existentes passaram a ser objeto de
discussão e barganha.
Segundo as entrevistas realizadas, poder-se-ia aglutinar as seguintes instituições no
grupo cujas atribuições foram postas em cheque: a Corregedoria da Polícia Civil, a Chefia de
Polícia do Estado do Rio de Janeiro e a Academia de Polícia. Já as instituições que estão
diretamente comprometidas com a reforma são: o Grupo Executivo do Programa Delegacia
Legal, o Instituto de Segurança Pública e a Coordenação de Polícia Técnica. Vale ressaltar
que alguns membros desse segundo grupo fizeram parte da elaboração da reforma, o que fez
com que esses agentes ganhassem uma certa ascensão profissional quando ela ocorreu.
Apesar dessa cisão ter-me sido explicada como uma disputa pela próxima chefia de
polícia, o que deve ser ressaltado é que seja qual for essa disputa, ela envolve estratégias de
controle, envolve formas de poder.
96
Vejamos como se conforma essa arena de disputas, a partir dos distintos processos de
socialização profissional em vigor na Polícia Civil, porque ao inaugurar novas formas de
reprodução das atividades policiais, o Grupo Executivo faz frente ao monopólio da Academia
de Polícia em conformar uma identidade profissional aos policiais.
Enquanto a Academia de Polícia valoriza os cursos de especialização, que são
ministrados somente a policiais que forem indicados pelos Delegados Titulares das delegacias
nas quais trabalham, o Grupo Executivo do Programa Delegacia Legal dirige os cursos que
ministra a todos os seus agentes, que recebem uma gratificação de R$500,00 mensais em
troca de 12 horas de dedicação aos cursos oferecidos pelo Programa. Seguindo essa lógica, os
policiais deveriam ser capacitados a atender todo tipo de ocorrência que for encaminhada à
delegacia e suas habilidades deveriam ser desenvolvidas a partir de um processo contínuo de
formação, não poderiam ser produto de barganha entre os policiais e seus superiores.
Ao analisar as apostilas do treinamento oferecido pelo Programa Delegacia Legal,
verifiquei como é comunicada a idéia de modernização e de mudança:
“A Polícia Civil, pela clara visão das necessidades de mudanças que o novo cenário
socio-econômico mundial impunha, resolveu revisar suas premissas e fazer uma
verdadeira revolução organizacional, como forma de se preparar para os desafios do
futuro. O desafio abraçado foi o de evoluir da CULTURA DE EMPREGO para a
CULTURA DE COMPROMETIMENTO. Assim partiu para criar e desenvolver o seu
próprio modelo administrativo, uma nova forma de gestão. O apelido dado a essa
nova forma foi o de “Delegacia Legal”.” (Rosenail, Apostila do Curso de Formação e
Aperfeiçoamento do Programa Delegacia Legal. 2000)
Segundo prescreve essa apostila do curso de formação do programa, os policiais
deveriam ter plena noção de que o trabalho que realizam dizem respeito a um compromisso
quanto ao conjunto da instituição, eles não devem contribuir com esforços mínimos para
cumprir somente as tarefas estipuladas.
97
“Um dos fundamentos do modelo “Delegacia Legal” é a transparência, o “Jogo
Aberto”, a troca diária das informações entre os seus parceiros para que todos
possam contribuir para a solução dos problemas e a superação dos desafios. (...) A
comunicação é uma via de duas mãos. Ninguém pode se dar ao luxo de monopolizar
uma informação que deva ser do conhecimento de outras pessoas. Quando a
informação não vem, deve-se buscá-la onde estiver, com os canais que a D.P.
possuir. (...) Um bom sistema de informações se faz em rede, ou seja, através de
reuniões, onde tudo o que acontece é discutido” (Rosenail, Apostila do Curso de
Formação e Aperfeiçoamento do Programa Delegacia Legal. 2000, p. 7)
Os princípios orientadores dessa nova forma de atuar nas delegacias seriam a
responsabilização pelos resultados do trabalho e a transparência das atividades na delegacia
para fomentar o diálogo entre os policiais e evitar o monopólio da informação.
Entretanto, segundo a apostila de um dos cursos de especialização da Academia de
Polícia, ministrado pelo Corregedor da Polícia Civil, prescreve que:
“Exercer a nobre arte de investigar não é para muitos. Desenvolver um trabalho
lógico, metódico é exigido do investigador atributos ímpares inerentes ao seu perfil
psicológico. A inteligência, a paciência, o equilíbrio emocional e a precisão, são pré-
requisitos inefastáveis e essenciais ao bom profissional da investigação” (Silva,
Apostila do Curso Superior de Gestão em Segurança Pública, 2005, p. 13).
Assim, ao contrário do que preconiza o discurso da reforma, a investigação seguiria
critérios mais pessoais do que institucionais, daí que sobressaltar as características específicas
dos agentes seria uma prática imprescindível:
“A prática tem nos ensinado que o investigador “clínico geral”, nos tempos de hoje
está em franca decadência. Quem de tudo faz um pouco, finda por não fazer nada
bem feito. A complexidade dos crimes e a inteligência do criminoso exigem que se
imponha a especialização. Que sejam ditadas regras de ter, de ser. As ações
investigatórias baseadas no empirismo estão irremediavelmente fadadas ao
fracasso”. (Silva, 2005, p. 68).
98
Assim, observamos que as mudanças que afetariam a forma como os policiais
produzem seus trabalhos para possibilitar maior controle sobre as atividades da delegacia,
estimulou bastante controvérsia. Foram delimitadas distintas concepções acerca das formas
de gestão dos recursos policiais, o que configura uma iminente situação de conflito, que pode
se desencadear em algumas conseqüências práticas.
“Mesmo quando [a oposição] tenha qualquer efeito prático, pode ainda conseguir
um equilíbrio interior (ás vezes até por parte de ambos os parceiros da relação),
pode exercer uma influência tranqüila, pode produzir um sentimento de poder virtual
e desse modo preservar relacionamentos, cuja continuidade muitas vezes atordoa o
observado” (Simmel, 1983, p. 127).
Assim, poder-se-ia caracterizar como uma das principais funções da oposição, o papel
de conservar as relações precedentes e as fazer ainda atuantes.
Em face disso, irei atentar para a produção dos registros na Delegacia Legal. No
próximo capítulo, procuro verificar como os policiais significam e se servem dessas formas de
atuação policial por meio das práticas por eles levadas a cabo nas Delegacias Legais.
99
Capítulo 4
APREENSÃO DO MODELO LEGAL
Ao analisar como os ideais reformadores são colocados em prática no cotidiano das
Delegacias, não tenho por referência o caráter ornamental ou impositivo de tais idéias, mas
dirijo minha atenção para como essas novas regras são internalizadas pelos policiais e para
como isso se reflete enquanto práticas de registro.
As ocorrências configuram-se como uma primeira tomada de conhecimento dos fatos
pela polícia. Ao serem formalizadas em documentos por parte dos agentes, através delas há
uma transformação dos fatos descritos em fatos jurídicos. O Registro de Ocorrência é a porta
de entrada dos fatos na polícia e é sobre esses registros que pode ser feito o acompanhamento
da atividade policial. Como a reforma esforça-se por modificar o potencial dos registros com
o fim de melhor gerenciar as atividades da instituição, a forma como os policiais percebem os
registros exerce suma influência na forma de agir pela instituição.
Kant de Lima chama a atenção para o fato de que os Registros de Ocorrências
constituem-se naquilo que a polícia quis registrar, conforme esse autor, “o registro de
ocorrência dependia muito da vontade da autoridade policial, vontade nem sempre exercida
em estrita obediência à lei” (1995, p. 48).
O Programa Delegacia Legal tenta impor uma forma de controle sobre os registros, ao
responsabilizar os agentes pelo andamento das ocorrências que atende, o que significa impor
novo controle e, com isso, uma vulnerabilidade às práticas policiais acima descritas. No
entanto, “se,..., a ocorrência é objeto constante do trabalho policial, concebe-se que tal
material, ao mesmo tempo que suscita problemas de tratamento muito complexos, também
100
confere àquele que deve tratar dele uma margem de manobra considerável e uma capacidade
de resistência (igualmente considerável) a tudo que poderia por em causa sua autonomia”
(Monjardet, 2003, p. 50).
Com base nesses referenciais, pretendo dar atenção aos trâmites e procedimentos
policiais para poder analisar as formas sob as quais se reproduzem as regras nas atividades
práticas de registro dos fatos na delegacia.
4.1. Práticas policiais em Delegacias Legais
Conforme foi relatado no capítulo anterior, na forma de organização do trabalho da
Delegacia Legal, a comunicação do fato se dá primeiramente no balcão composto por
estagiários universitários e profissionais não-policiais que, depois de realizar o primeiro
atendimento, irão encaminhar o caso relatado para o inspetor disponível para atendê-lo.
O policial pertencente ao Grupo de Investigação (GI) elabora o RO e fica também
responsável pelo andamento e resolução do caso que atende, o que permite a identificação da
responsabilidade pelas investigações e inquéritos policiais. O PDL cria uma ligação direta
entre o fato e o investigador para poder imputar a este uma responsabilidade pelos resultados
do trabalho realizado. Assim, o programa tenta implantar uma forma de acompanhamento
(accountability) das atividades policiais.
Em verdade, as atendentes funcionam como instância mediadora entre o público e os
policiais; segundo uma delegada, servem “para diminuir o atrito” antes manifesto entre esses
dois atores. O público ou os Policiais Militares, quando chegam à delegacia para “comunicar
a ocorrência”, descrevem inicialmente o fato aos atendentes que deverão primeiro formalizar
o atendimento na delegacia.
Os atendentes recebem as pessoas e realizam com elas uma pequena entrevista para
certificarem-se do que se trata, em seguida eles redigem no computador uma pequena
101
descrição do fato e do estado de ânimo que as pessoas chegam na delegacia. Também já
fazem uma pequena qualificação da pessoa que veio comunicar o fato, anotam seu nome,
número de documento, e fazem uma basilar anotação: “possível fato ilícito”. A partir disso,
entregam às pessoas um papel referente ao atendimento - no qual constam seus dados, o
número do atendimento, o nome do inspetor responsável e aquela classificação que foi
outorgada ao fato - e pede para que aguardem até o inspetor ficar disponível. Depois
encaminham as pessoas ao policial e este deverá fazer o registro caso interprete que o fato por
elas descrito seja crime. Caso o policial defina que “isto não é crime”, o evento fica registrado
somente na fase do atendimento.
É importante ressaltar que uma das fontes de atrito fomentadas pelo Programa surgiu
entre a figura dos atendentes e os policiais, visto que, inicialmente, o projeto relatava que os
atendentes deveriam ser da área jurídica. Segundo os policiais, esses atendentes ficavam se
intrometendo em seus trabalhos, dizendo como eles deveriam fazer o registro e qual
classificação era mais adequada aos procedimentos.
Não deu certo porque a pessoa de Direito tem a tendência de querer modificar a
classificação de crime, né? Tem um entendimento diferente, de querer instruir a
vítima ou os policiais. Então, por isso que escolheram pessoas de outras
áreas.(Delegado)
Por conta desse tipo de conflito, foi preciso ser feita uma alteração no projeto, para
que os novos atendentes fossem da área de humanas e estivessem mais voltados para realizar
uma assistência ao público do que para os tecnicismos demandados pela atividade jurídica e
policial. Em geral, os policiais percebem de forma positiva essa modificação, assim um
discurso:
Uma das melhores coisas que criaram na polícia, na minha opinião, foi o
atendimento. Ele filtra muito. As atendentes, pra mim, foram a melhor coisa que foi
102
criada no sistema de Delegacia Legal. Porque acaba que ela filtra muito. Porque as
pessoas, muitas vezes, chegam na delegacia desesperadas, nervosas e, muitas vezes,
vem pegar um policial que também, às vezes, fica no plantão, pelo sistema de
trabalho na polícia, que também está nervoso. Então, às vezes, podia ter algum tipo
de atrito. E a atendente está justamente ali pra filtrar isso aí, pra acalmar a pessoa.
Muitas vezes, chegam pessoas, às vezes, que não são boas da cabeça mesmo, pessoas
com problemas mentais é normal em delegacia, e as atendentes têm formação para
isso, têm cursos que tenham a ver com aquele assunto; sabem lidar com aquilo ali,
talvez melhor do que um policial, porque é profissional naquilo ali. Então, sabe
conduzir essa situação melhor, entendeu? Sabe tratar sempre de forma muito
educada, está entendendo como é que é? Muitas vezes, não é caso de polícia. Tudo
bem que, não é função delas dizer se é caso ou não de polícia, porque não é o
conhecimento delas. Mas, muitas vezes, elas ajudam. Elas passam direto para o
policial, já fazem uma pergunta.
Outro policial entrevistado manifesta seus argumentos na mesma direção:
Eu acho que é interessante a figura da atendente, justamente pra filtrar essas
ocorrências, porque nem tudo é ocorrência policial, às vezes, está com problema de
filho peque... criança pequena, a atendente é assistente social, ela sabe como lidar
com aquela situação, está entendendo? Tem mais tato que, às vezes, com polícia. Vai
pegar um polícia antigo, o polícia antigo já é um cara já cansado, trabalhou muito
tempo, já está meio estressado. A profissão de polícia é uma profissão estressante.
Então, é uma pessoa já mais estressada, mais cansada, que, talvez, não tenha uma
paciência que um atendente tem, está entendendo? E é bom essa paciência, porque é
importante esse tratamento, está entendendo?
Com base nesses argumentos, observa-se que entre o atendimento e o registro policial
há um filtro muitas vezes realizado com conhecimento e até estímulo dos policiais
28
. De fato,
uma vez o delegado fez questão de me apontar um homem idoso que costumava ir
constantemente à delegacia, segundo o delegado, ele tinha problemas mentais e síndrome de
perseguição, assim suas palavras: “é com isso que a gente lida todo dia”. No entanto, além do
28
Reitero o fato de que os filtros sempre foram prática comum nas delegacias de polícia.
103
trabalho de assistência realizado pelos atendentes, entendo que o filtro
29
muitas vezes pode
figurar como uma das estratégias de burlar o controle advindo da responsabilização individual
dos agentes, o que se tornou explícito através de um desestímulo ao registro por mim assistido
logo no balcão da delegacia. Penso que por meio da reprodução destas práticas, as atendentes
não prestam assistência, mas estão na delegacia a serviço policial.
Uma mulher chegou à delegacia e relatou constrangida à atendente no balcão que ela
foi ameaçada de morte pelo marido, que em outras ocasiões já tinha lhe batido. Ao invés de
registrar o atendimento e encaminhá-la para a mesa do inspetor, a atendente solicitou que este
viesse ao balcão conversar com a mulher. O inspetor lhe perguntou se ela tinha algum
hematoma ou testemunhas e ela respondeu que não. Ele então esclareceu a ela dos riscos que
estava correndo e lhe aconselhou a não fazer o registro, porque já que ela não tinha nenhuma
prova não ia dar em nada mesmo, e se seu marido recebesse depois uma intimação e soubesse
que ela tinha feito o registro contra ele, ia piorar a sua situação. Deixou a critério dela fazer
ou não o registro. Ela se retirou então da delegacia e disse que precisava pensar.
Observa-se com isso, que da mesma forma como nas delegacias convencionais, o
desestímulo ao registro de conflitos domésticos, segundo os agentes, justificam-se porque
muitas pessoas logo desistem do seu prosseguimento. Dessa forma, à polícia está incumbida a
“tarefa de identificar conflitos visando não a sua resolução, mas a sua supressão: inicialmente,
forçando a sua conciliação e, posteriormente, suprimindo-os. Sua legitimidade está associada
a sua interpretação do que deseja o Estado para a sociedade, não ao que a sociedade deseja
para si mesma” (Kant de Lima, 2003).
Outra vez observei chegar um homem de terno na delegacia, ele entregou um
documento à atendente para que ela, por sua vez, repassasse ao inspetor com quem ele tinha
falado em ocasião anterior. A atendente pediu que ele aguardasse no balcão e levou o
29
No jargão policial, este tipo de filtro é também conhecido como “chute” ou “bico de ocorrências”.
104
documento para o policial. Cerca de cinco minutos depois, o policial veio de dentro da
delegacia falar com o homem que lhe esperava no balcão. Em meio à conversa dos dois,
entendi que o homem tinha recebido o cheque sem fundo de uma mulher (que lhe deu o
endereço e telefone falso), repassou-o para alguém e estava sendo acusado de estelionatário.
Então o homem foi à delegacia com o cheque (que estava em meio à papelada entregue ao
policial) resolver o problema. No entanto, o que o policial lhe disse é que se ele quisesse
resolver o problema rapidamente, em três a quatro dias, ele deveria ir à agência bancária de
quem lhe passou o cheque e não fazer o registro na delegacia, o que levaria meses para chegar
a alguma solução. O policial deixou a cargo do homem decidir, mas lhe aconselhou a não
fazer o registro, porque corria o risco de desaparecer o cheque que ele estava entregando na
delegacia. O homem insistiu em fazer o registro porque em momento anterior ele tinha
conversado com o delegado e este tinha lhe ensinado que esse era o procedimento mais
correto a fazer. O policial então lhe falou que se o cheque sumisse, o delegado ia falar que
não sabia de nada e a responsabilidade da perda ia cair em cima dele (o policial) e não do
delegado, por isso não queria assumir a responsabilidade do cheque que lhe estava sendo
entregue. Mesmo assim, o homem disse que queria dar entrada no procedimento para poder
receber o dinheiro de volta. O policial então entrou na delegacia falando em tom de ironia
(que parecia também uma ameaça): “ah, se é isso que você quer eu vou dar entrada, hein. Mas
eu te avisei!”. O homem esperou mais uns quinze minutos o policial voltar, quando retornou,
o policial disse que já estava tudo certo. O homem então pediu ao inspetor o número do
protocolo. O inspetor lhe respondeu que não poderia fornecer porque o delegado ainda ia
protocolar.
O registro é entendido como se fosse algo que possa ser utilizado contra alguém, é
“um instrumento do Estado contra tudo e contra todos, para apurar a verdade dos fatos”
(Kant, 1995). O registro seria assim entendido muito mais como uma ameaça do que como
105
um direito. Essa asserção insere-se em uma lógica inquisitorial portuguesa, na qual a
sociedade está sempre sob suspeita e cabe ao Estado estabelecer uma versão sobre a verdade
dos fatos, verdade essa que não pode ser em momento algum é submetida à negociação.
Enquanto agente do Estado, ao policial é imputada a obrigação de manter a ordem social, mas
como ele é obrigado a agir, ele tem que prestar conta de suas atividades, apesar de
diretamente responsabilizado por quaisquer incorreções. Dessa forma, o registro também
pode ser usado contra o agente.
O uso do filtro não é um privilégio da polícia brasileira, os policiais geralmente têm
discricionariedade por serem responsáveis pela aplicação da lei.
“Todo trabalho organizado necessita de interpretação e adaptação das regras, no
caso, negociação e compromisso; e que ela nunca funciona portanto em
conformidade perfeita com as normas que supostamente a dirigem, mesmo quando
elas não são contraditórias” (Monjardet, 2003, p. 41).
No entanto, diferentemente da polícia francesa e americana, à Polícia Civil brasileira é
negada a capacidade de negociação legal do conflito; por ser também judiciária - trabalhando
somente com fatos crime - orienta-se pelo princípio da obrigatoriedade de agir. As práticas
descritas acima não dizem respeito a uma opção de escolha legítima que eles tenham
(discretion), mas representam uma oportunidade, o que obedece mais às conveniências de
fugir ao controle e cobrança que pode ser feita sobre suas ações e faz prevalecer à lógica
pública, a lógica corporativa.
Avocando o princípio da economia processual, freqüentemente os policiais orientam
suas ações ao que julgam ser melhor para eles e para a instituição, denotando uma política
institucional coorporativa e autocentrada na qual o abafamento dos conflitos ainda aparece
como uma boa resolução.
106
Através do software da Delegacia Legal, o Programa impôs uma nova burocracia,
substituindo a tradição cartorial de registro em livros e fazendo com que todos os
procedimentos fossem padronizados e registrados em rede. Segundo um responsável pelo
desenvolvimento do software entrevistado no Grupo Executivo, “o sistema é sistemático, ele
não deixa passar nada em branco”.
A partir do Programa, de fato, houve um maior controle sobre o conteúdo dos
registros, pois os policiais não mais os preenchem de forma livre. Certos campos, tais como a
tipificação do delito, a qualificação do comunicante e a descrição do fato passam a ser de
preenchimento obrigatório por parte dos policiais.
Assim que os policiais entram no sistema das Delegacias Legais devem, em regra,
informar o nome de usuário e senha em um login que garante o controle de acesso às
informações, conforme o nível de senha que foi disponibilizada ao policial. O procedimento já
vem com uma numeração própria, com a identificação da data e hora que foi aberto e com a
identificação do policial e da equipe que ele pertence.
Na tela do Registro de Ocorrência, os policiais devem preencher um campo
informando alguns dados básicos, tais como: o número do atendimento (que foi entregue no
balcão pelos atendentes), o nome da autoridade responsável pelo registro, as informações
sobre a origem do registro (se foi comunicado por Policiais Militares ou por populares e se é
ou não de atribuição da lei 9.099/95, que trata dos crimes de menor potencial ofensivo),
devem também descrever a dinâmica do fato e tipificar o delito segundo alguma categoria que
geralmente é prescrita pelo Código Penal.
É interessante dedicar um pouco mais de atenção sobre esse último item, porque no
próprio sistema da delegacia é fornecida a possível classificação do delito. Por exemplo, se o
policial for registrar algo relativo a menores, clica em um ícone sobre o Estatuto da Criança e
107
do Adolescente e então aparecem os delitos que nele se enquadram, é com vistas à
disponibilidade dessas possíveis categorias, que os policiais vão tipificar seus registros.
As Delegacias Convencionais davam ampla margem para que os policiais colocassem
quaisquer classificações aos procedimentos. Por vezes, os policiais colocavam o título
“remoção de cadáver” sendo que isso, na verdade, não era um delito e nem uma categoria
administrativa, mas sim um trabalho feito pela polícia assim que o corpo foi encontrado. Já o
PDL padroniza as categorias a serem utilizadas, dá um rol de possibilidades fixas dentre as
quais os policiais têm de escolher. O sistema impõe um esforço de tradução e padronização,
para que os policiais só possam classificar da forma como está disponível no sistema e não de
outra maneira. Se o policial não atribuir um título à ocorrência, o programa não vai fechar e o
policial não irá concluir o registro.
Apesar disso, a implantação das Delegacias Legais não implica uma mudança no
sistema classificatório, pois apesar do sistema disponibilizar a ferramenta, “a classificação é
muito relativa, é o policial quem vai classificar, ele só busca no sistema aquilo que ele quer”.
No entanto, há de se notar que o único critério para admissão na carreira policial é a
escolaridade de segundo grau completo e a admissão por meio de concurso público. Apesar de
muitos policiais cursarem ou já terem cursado faculdade de Direito, esse não é um critério
exigido para ingresso na carreira. Como só aos delegados é obrigatória a formação jurídica, é
atribuída a eles a responsabilidade pela adequada classificação penal do delito.
Uma vez estava entrevistando o delegado adjunto em sua sala, e na mesa ao lado um
policial estava tomando depoimento de um homem que foi levado por Policiais Militares à
delegacia. Tratava-se de um ex-presidiário e estuprador que respondia por outros inquéritos
que ainda não tinham sido denunciados na promotoria, por isso os policiais não poderiam
prendê-lo. O depoimento estava sendo assistido por toda a delegacia, os Policiais Militares, o
Delegado Titular, outros Policiais Civis, além do que colhia o depoimento, e eu e o Delegado
108
Adjunto observávamos o fato vez em quando. O homem que estava dando depoimento pediu
para dar alguns telefonemas e em um desses, relatou que estava sendo submetido à chantagem
e extorsão na delegacia. Nesse momento, todos os policiais se exaltaram, principalmente o
que estava formalizando o registro. O Delegado Adjunto então deu a seguinte orientação ao
policial: “Aproveita e coloca o máximo que você puder em cima do cara, porque se ele
continuar inventando essa história depois pode piorar para você. Será que daí a gente
consegue um flagrante?”.
Em seguida, outro policial entrou na sala e falou com o delegado que quando
trabalhava na Delegacia Especializada de Proteção à Criança e ao Adolescente em 2001, tinha
prendido o homem, disse ainda que viu pelo sistema da Delegacia Legal que tinham treze
procedimentos contra aquele, segundo ele: “tá no alvará, está vendo que o cara é problema,
né”. Nesse momento, o policial que estava formalizando o depoimento daquele homem entrou
na sala do Delegado Adjunto dizendo: “eu vou fazer um registro contra ele, doutor”. O
delegado o respondeu: “Pode fazer, eu sou o primeiro a bater palma. A gente empurra nele”.
Depois, o policial perguntou ao delegado sobre a tipificação mais adequada desse novo
registro, se ele poderia colocar como uma calúnia, mas o delegado lhe disse que a forma mais
adequada era colocar como desacato e assim parece que foi feito.
Como pude observar, é prática comum os policiais irem à sala do delegado pedir
orientação sobre a tipificação ou descrição dos casos que atendem. Esse tipo de
acompanhamento é sempre solicitado por parte dos policiais, que realizam suas atividades até
com relativa autonomia, o acompanhamento existe, mas não é uma prerrogativa da qual os
delegados lançam mão de forma persistente. Da mesma forma que Monjardet analisa a forma
como o saber policial é reproduzido, através do dilema entre a arte ou técnica (2003, p. 122-
130), percebi que os policiais mais velhos não levam tudo ao conhecimento do delegado,
porque acreditam que a necessidade de conhecimentos formais não é garantia de competência
109
profissional o que, para eles, está mais vinculado à prática subjetiva adquirida no exercício de
suas funções.
Outra vez, assisti outro policial pedir orientação ao delegado sobre a ocorrência que
atendia. O policial disse que estava fechando um registro de roubo e que a vítima já tinha
reconhecido um dos autores, perguntou então ao delegado se ele podia ver a dinâmica para
que pudesse fechar o registro. O delegado respondeu que não precisava, que ele confiava no
policial.
Quando o policial estava quase saindo da sala, o delegado chamou-o novamente e
perguntou se a vítima falou qual era a participação do indivíduo que reconheceu como autor
do crime, se ele estava portando ou não a arma e se foi ele quem rendeu a vítima. Pareceu-me
que o policial não tinha tomado esse tipo de declaração, pois ele não foi objetivo nas respostas
ao responder o delegado, depois de desistir argumentar disse, ao sair da sala, que o que ele
tinha colocado na dinâmica já tinha dado conta do que o delegado falou que precisava.
Considera-se a dinâmica do fato, o campo no qual é realizada uma primeira tradução
dos fatos pela instituição, é a partir dos dados que constariam em registro que todas as outras
providências seguintes seriam tomadas em direção à investigação e à identificação do autor.
No entanto, o que se observa é que, em primeiro lugar, os policiais realizam uma pequena
entrevista com as pessoas para saber de que se trata o evento (adequa o fato enquanto crime
ou não), depois, por meio de um processo de criminalização, procuram impor uma definição
legal ao crime, ver qual artigo do Código Penal pode ser atribuído ao fato - em caso de
suspeitas ou esteja sustada a existência do crime, são atribuídas algumas categorias
administrativas, tais como remoção de cadáver, fato atípico ou auto de resistência
30
- em
seguida, por meio de um processo de criminação, os policiais descrevem os fatos, orientados
30
Quando o agente do Estado mata no exercício da função em legítima defesa, a vítima é o agente do Estado e
não quem morreu, já que foi este quem provocou o crime.
110
pela classificação mais adequada com o fim de reconstruir o crime e incriminar seu autor
(Misse, 1999).
Em relação à descrição contida no registro, há de se notar que se a “dinâmica do fato”
não se reproduz a partir do depoimento dado pelas pessoas que vem comunicar o fato, na
maioria das vezes conta apenas com os relatos técnicos do trabalho demandado às instituições
envolvidas em tal empreendimento. Nesse sentido, essa descrição não é fruto de um resultado
investigativo, é um registro literal que exime de responsabilidade qualquer interpretação
errônea que possa ser feita pelo policial que o formaliza. Segundo Monjardet, “o serviço geral
se vê despojado das tarefas mais significativas, e, portanto, concentrado nas mais rotineiras,
nas menos valorizadas etc” (2003, 121).
Esse fato está extremamente relacionado ao valor excessivo que se dá aos registros
públicos no sistema inquisitorial e cartorial que orienta as ações da polícia. Como é exercida
uma suspeita sistemática sobre as pessoas; o cartório se responsabiliza por estabelecer a
veracidade da asserção. Como quem tem fé pública nesse sistema cartorial é quem atesta, não
quem simplesmente relata, uma importante estratégia para eximir o agente de
responsabilidade é expor apenas o mencionado. Entendo que a lógica do documento que tem
de ser registrado e protocolado precede a lógica do registro como um insumo para a
investigação.
Explicita-se o valor exagerado do registro na polícia, a partir das seguintes descrições.
Nelas, primeiro apresento o relato contido no registro, depois, o resultado das investigações
prestado ao delegado pelo policial:
1 - Dinâmica do Fato
De acordo com a informação contida na guia emitida pelo Hospital x, o bebê chegou
morto.
Relatório de Investigação
Dr. Delegado;
111
Trata-se de um falecimento em que o falecido apresentava um quadro doente, que
antes de ocorrer esse fato o falecido esteve internado no Hospital uns três dias, em
seguida recebendo alta, conforme declaração dos responsáveis, que continuando a
medicação em casa conforme prescreveu o médico, que mesmo sendo tratado em
casa o bebe passou mal, então a família retornou com ele para o Hospital e de
acordo com a médica que preencheu a Guia de Informações, disse que o bebe chegou
morto no Hospital.
Diante do exposto, segundo o quadro doentio do bebê, solicito, s. m. j., a suspensão
desta VPI até a chegada do laudo.
É o que me cumpri a informar.
2 - Dinâmica do Fato
x, comunicou o falecimento de morte natural de sua mãe em sua residência. A vítima
após sair do banho, sentou-se no sofá para pegar uma roupa, passou mal e faleceu.
Informação sobre a Investigação
Dr Delegado
Informo que o procedimento em tela trata-se de REMOÇÃO DE CADÁVER, segundo
o AEC, a causa morte foi Edema Pulmonar e Infarto Agudo do Miocárdio. Sugiro a
suspensão da investigação.
Através dos casos acima apresentados observa-se que a rotina da delegacia não se
restringe à atuação de casos de crime, observa-se ainda que a parca a descrição contida nos
registros conta apenas com a versão do comunicante da ocorrência. Esses casos estavam
tipificados como “encontro de cadáver” e os familiares e/ou o hospital (os próprios
comunicantes) estavam sob suspeita de contribuírem para o quadro.
Um outro exemplo pode ser dado, ao observarmos o relato contido em um tipo de
procedimento que, geralmente, conta com mais informação: o Flagrante. No momento que é
feito o registro em casos de Flagrante, além das pessoas que efetuaram a prisão, está presente
pelo menos um dos autores da infração. Abaixo, a dinâmica do fato de um Flagrante de
Homicídio, o crime fora praticado por dois autores, mas só um tinha sido preso.
112
Dinâmica do Fato
Relata o comunicante que no dia 17/08/2002, por volta das 03h, em PTR pela AV x
ouviu vários disparos vindos da direção da RUA y com AV x. Logo após ouvir os
disparos desembarcou da viatura com o seu parceiro CB PM w e foi a pé para o
local dos disparos. Lá chegando foi avisado por populares que dois indivíduos
haviam discutido, brigado e que um deles havia baleado o outro. Nesse momento
avistou dois elementos correndo em direção a um veículo. Foi em direção aos
mesmos e rendeu - os. Um dos elementos correu em direção ao carro e depois de
adentrar o mesmo, saiu em alta velocidade, com várias pessoas não identificadas
atirando em sua direção. O outro elemento não logrou êxito em evadir - se do local
sendo preso pelo comunicante, após revista pessoal, aonde foi encontrado um
revólver calibre 38 com a numeração raspada. Neste momento observou a vítima
baleada no chão e acionou o Corpo de Bombeiros (XXX YYY 000 comandada pelo
TEN z) para o local. Após esperar a chegada do socorro, veio a esta UPJ dar
ciência do fato à Autoridade Policial.
Com a descrição anterior, pode-se verificar que a “dinâmica do fato” está antes voltada
para o relato das atividades demandadas e realizadas pelos policiais em patrulha a partir do
momento que tomaram conhecimento do fato, do que o relato sobre o evento em si (Miranda
et al, 2005). Esse também é o caso de um registro literal, pois o modus operandi aparece
somente nos termos de declarações. Aparente imparcialidade que garante uma certa margem
de manobra para os policiais que fazem o registro eximirem-se das responsabilidades que
possam ser a eles cobradas. A seguir, a transcrição da declaração do segundo autor depois de
preso:
O delegado perguntou: Se já conhecia a vítima? Se já conhecia o indiciado? De
onde? Desde quando? Se são sócios em alguma empresa? Se portava outra arma de
fogo no momento do fato? Onde está? Se é registrada? Quem são as mulheres que
estavam no bar juntamente com o declarante na ocasião dos fatos? Quais são os seus
nomes? Aonde moram? Se elas presenciaram a discussão? Como foi a discussão?
Qual a motivação? Por qual motivo atirou na vítima? Em qual parte do corpo
atirou? Quantos disparos foram efetuados? Se já foi processado criminalmente? Se
houve participação do indiciado ou de outras pessoas no episódio? Se a arma de
fogo apreendida com o indiciado lhe pertence? Se emprestou a arma de fogo ao
indiciado? Quando foi o empréstimo? Antes, durante ou após o disparo que matou a
113
vítima? Quando adquiriu tal arma? De quem? Se observou que a numeração da
arma é raspada? Como ocorreram as lesões que ora apresenta? Em que arma são
utilizadas as munições apreendidas no carro de sua propriedade? Por qual motivo
fugiu do local? Se parou em algum lugar ou foi direto para o Hospital? Quando
colocou os jornais no banco dianteiro esquerdo do veículo? Se conhecia outras
pessoas que estavam no bar? Se a vítima portava arma de fogo? Em caso positivo, se
a vítima sacou a mesma? Se a vítima apontou a alguma arma de fogo na direção do
declarante? Qual era a posição do preso no momento do disparo efetuado? Se
conhece alguma pessoa de nome ou apelido "x"? De quem são os celulares
encontrados no veículo? Se identificou quem fez os disparos que o atingiram? Se
observou se no local existiam policiais ou bombeiros militares? Se o indiciado tentou
apartar alguma briga entre o declarante e a vítima? Se os seguranças do local
presenciaram os fatos? Se já foi ameaçado de morte? Por quem? Se registrou tais
companhias? Se já esteve envolvido como autor em algum outro homicídio? Se já foi
vítima de tentativa de homicídio? Se chegou a haver luta corporal entre o declarante
e a vítima? Se em algum momento após a discussão e o disparo que acertou a vítima,
o declarante passou o revólver calibre 38 apreendido, para o indiciado? Que informa
que "DEIXA DE RESPONDER AS PERGUNTAS FORMULADAS PELA
AUTORIDADE POLICIAL, TENDO EM VISTA ORIENTAÇÕES RECEBIDAS POR
SEU ADVOGADO, DR. x". E nada mais disse nem lhe foi perguntado.
Apesar do autor não se dispor a falar, foi necessário formalizar que a delegacia
empreendeu esforços para coletar o depoimento, ou seja, foi necessário apresentar uma versão
e mostrar trabalho.
Outra característica importante de ser notada em relação aos registros é a imprecisão
dos papéis atribuídos às pessoas, quando lhes é outorgada a categoria “envolvido”. Várias
vezes, ao justificarem o uso dessa categoria, os policiais diziam que o “envolvido”
correspondia ao suspeito de ter praticado ou colaborado para o cometimento do crime,
geralmente essa categoria é usada quando a polícia ainda não dispõe de provas para assegurar
quem seja o autor. Os policiais justificaram que classificar a pessoa como envolvido não teria
nenhuma implicação legal, porque a conotação que o programa dá para envolvido seria a de
uma autoria presumida antes de concluídas as investigações (Miranda et al, 2005).
114
A categoria “envolvido” é uma das categorias disponíveis nos procedimentos policiais.
Segundo os policiais, eles utilizam essa categoria somente na fase do Registro de Ocorrência,
não seria aberto um Registro de Aditamento para classificar alguém como envolvido. É ainda
uma categoria provisória que irá ser modificada, caso haja a comprovação da autoria. Os
policiais, assim, antecipam-se à incriminação através da sujeição criminal, melhor dizendo, da
sujeição de pessoas ao papel de suspeitas da autoria do crime (Misse, 1999). Mais uma vez a
suspeição sistemática aparece como uma prática amplamente perpetrada na rotina da
delegacia.
No entanto, um policial uma vez me relatou que quando quer forçar uma testemunha a
vir rápido na delegacia dar depoimento, coloca-a como envolvido também (Miranda et al,
2005). Assim, podemos observar que o uso dessa categoria dá ampla margem de manipulação
das ocorrências por parte dos policiais.
Isso é importante, porque chama a atenção para o fato de que o termo “envolvido”
abrange acima de tudo, um comprometimento das pessoas com o fato, o que é retificado pelo
tratamento legal dado às testemunhas, a testemunha responde ao crime de perjúrio, enquanto
ao réu é lícito mentir. Assim, as testemunhas passam a estar envolvidas, ou melhor,
comprometidas com o que falam muito mais do que os autores dos crimes sobre os quais vai
depor.
Um dos dispositivos propiciados pela informatização seria a maior quantidade de
informações que podem ser utilizadas para auxiliar as investigações, visto que o software
acumula todos os procedimentos em sua memória. É consensual entre os policiais que o PDL
por fornecer uma melhor infra-estrutura à polícia e um banco de dados que é importante fonte
de pesquisa sobre os procedimentos policiais, conseguiu superar a defasagem dos
instrumentos que antes serviam a instituição.
115
Um policial afirmou que pode, por exemplo, no momento em que está fazendo um
flagrante, procurar no banco de dados do IFP (que agora está integrado ao das Delegacias
Legais) a identificação civil daquela pessoa que foi presa – o que ajuda a saber inclusive se
alguém está dando o nome errado na hora do registro -, procuram no sistema das Delegacias
Legais alguma anotação criminal e procuram se a pessoa tem envolvimento com algum tipo
de crime a partir de alguma entrada dada em outra delegacia. Disse que “agora você pode
vasculhar a vida da pessoa todinha, até saber se ela passa cheque sem fundo você pode saber
pelo sistema. Aqui, você faz uma pesquisa, por exemplo, por tatuagem e você descobre até
pela tatuagem se o cara está mentindo ou não. O sistema te dá coisas que dê para investigar
amplamente”.
O sistema também solicita o preenchimento de certas informações que não ficam
disponíveis no registro impresso, tais como as características físicas dos autores. Um policial,
certa vez me relatou que prefere enquadrar o autor como “envolvido”, porque são abertas
menos telas para preenchimento no sistema:
“São tantas as observações que tenho que fazer para o caso de um autor conhecido,
tipo: cor dos olhos, cabelos, se tem tatuagens, onde tem tatuagens, cor da pele, altura
... aí eu tenho que ficar olhando o cara o tempo inteiro, eu olho de lado para ele e
calculo mais ou menos a altura, depois eu olho de novo para ver a cor dos olhos,
depois eu olho para ver se a sobrancelha é grossa ou fina, aí eu fico olhando tanto
para o cara que o cara pensa até que eu sou boiola. Eu fico olhando ele de cima
abaixo também... até saber se tem alguma deformação o sistema pede (risadas). Eu
prefiro colocar como envolvido para não ter esses problemas todos. Coloco alguns
dados e pronto. Eu qualifico como envolvido para evitar perda de tempo. Isso é um
atalho, com isso eu ganho tempo no atendimento”
.
Segundo um delegado, “o registro é demorado, mas vale a pena no final das contas,
porque o registro feito numa Delegacia Legal é um registro muito mais consubstanciado do
116
que o registro de uma delegacia antiga; tem muito mais dados, porque o policial é obrigado a
colher muito mais dados que, no futuro, vão ajudar muito mais na investigação”.
No entanto, identifico que, embora esse sistema seja rígido, no sentido de exigir
inúmeras informações dos policiais sem as quais eles não irão conseguir concluir o registro,
ele também é passível de ser contornado, como vai ser descrito através do procedimento dos
agentes em um caso de maus tratos que presenciamos
31
na primeira semana de pesquisa de
campo.
Depois de ouvir uma mulher, que lhe relatou que sua sobrinha, menor de idade, teria
sido espancada pela mãe, a atendente anotou o nome da denunciante e o termo “maus tratos”
em um papelzinho ao lado do computador e pediu que elas aguardassem. Em seguida
procurou identificar um inspetor disponível para atender o caso. Após o consentimento de um
dos inspetores, chamou as duas mulheres e formalizou a etapa “atendimento”: abriu uma tela
no computador, formulou algumas perguntas, digitando em seguida o nome do inspetor que
se encarregaria do caso. Finalizada a digitação dos dados, a atendente pediu as duas, a
senhora e a menina, para aguardarem. Um pouco mais tarde, quando o inspetor ficou
disponível, a atendente convidou as duas mulheres para passar para a parte de trás da
delegacia. Sentada diante do inspetor a tia relatou a violência sofrida pela sobrinha. A mãe
teria lhe aplicado várias varadas de bambu. O inspetor procurou então o delegado adjunto.
Alegou: “Isto não é crime”. E pediu ao delegado para concordar que o caso não fosse
registrado.
O delegado perguntou diretamente à menina o que tinha acontecido. Ela repetiu a
história e disse que a mãe tinha batido nela. Ele então a perguntou: muito ou pouco? Deixou
marca? Deixa eu ver. Ela bateu com o que? A menina respondeu: Deu seis varadas de bambu
na minha irmã de dez anos e sete em mim. Sabendo que nós queríamos presenciar um caso de
31
Como eu e a Prof. Laura presenciamos este registro, devo ressaltar que a descrição a seguir conta com suas
impressões e contribuições.
117
“flagrante”, pois havia um homem preso por porte de arma na sala reservada para o
depoimento das pessoas presas em flagrante, o delegado adjunto nos acompanhou até a mesa
do inspetor renitente e exigiu do inspetor que registrasse o caso.
A desmotivação do inspetor contrariado fez com que ele “qualificasse” as duas
mulheres a contragosto. Quando a tia da menina disse que não tinha documento, o inspetor
disse que não dava para prosseguir, se levantou e foi falar com o delegado. Voltou satisfeito.
Nesse momento a tia já tinha encontrado uma carta que mencionava seus documentos e disse
ao inspetor que tinha encontrado algo, mas este não se interessou e comentou: “já dei um
jeito”. Depois de uma hora de depoimento da tia e da sobrinha, demonstrando pouca
intimidade com o software – duas vezes teve de voltar à sala do delegado adjunto para
perguntar como prosseguir, pois lhes faltavam informações exigidas pelo sistema,
conseguindo em seguida “dar um jeito”. A atuação do delegado adjunto exigindo que o
inspetor fizesse esse registro certamente foi influenciada pela nossa presença.
Desde o início do registro ficou evidente que aquele caso estava sendo registrado para
nós, constituindo uma exceção, a exceção que comprova a regra, tal como o caso observado
por Kant de Lima (1995). Nas situações posteriores, quando o computador exigia mais
informações essenciais, o endereço, o nome dos pais, o endereço do coleio, o inspetor “dava
um jeito” sem ter de consultar o delegado. A descrição da agressora foi feita através das
categorias estabelecidas pelo programa. O corpo e o rosto tiveram de ser descritos pelas
categorias pequeno/grande, alto/baixo e por uma série de sinais diferenciadores: manchas,
cicatrizes, tatuagens e se falta um pedaço do corpo. Outras categorias do programa buscam
descrever o caráter da pessoa, perguntam se a pessoa tem tiques e que tipo de voz (se é alta ou
estridente). Para facilitar, a tia e a menor, querendo simplificar disse ao inspetor que a mãe
era idêntica a filha, só que era mais magra. O inspetor aceitou a dica e para preencher as
últimas quinze categorias, olhava para a menina e colocava os dados no computador.
118
Em um terceiro momento a tia foi ouvida pelo inspetor, ele a perguntou sobre o
ocorrido e o que ela achava da mãe. A tia disse que ambos os pais são extremamente
agressivos e batem nos filhos para atingir outras pessoas. O inspetor leu a declaração para a
tia e em seguida ouviu a menina, que disse que o pai queria dar a guarda das filhas à avó e a
mãe delas não concordou; disse que quando foi dormir a mãe a agrediu. Depois de “traduzir”
o depoimento para a linguagem indireta, o tradicional estilo cartorial, “que no dia tal e tal
teria batido...”, ele disse que somente ia registrar poucas frases, pois no fórum, diante do juiz,
ela ia ter de repetir tudo e ainda complementar as informações já colocadas. Em seguida o
inspetor preencheu uma solicitação de exame de corpo de delito, explicou que elas tinham
que ir ao IML e encerrou o registro. Disse que o RO, por conter a qualificação e os
depoimentos, ia diretamente para o Juizado Especial Criminal e que ele não se ocuparia mais
do caso.
Observa-se com a inicial negativa do inspetor em formalizar o registro, que os
policiais ainda orientam suas práticas segundo as formas particularizadas de administração de
conflitos. Apesar do Programa Delegacia Legal implementar um sistema cujo objetivo dirige-
se a conferir maior transparência e uma nova forma de atuação policial, não invalidou o uso e
apropriação particularizada por parte dos agentes das informações a serem disponibilizadas
no sistema.
Seguramente, há coisas que não transparecem, pois a apropriação da informação não
está sujeita somente à suas técnicas de armazenamento, ela depende, sobretudo, da cultura
que está imersa. Dessa forma, a informatização dos procedimentos policiais mostra-se
ineficaz para alterar essa lógica privatizadora. É necessário que essas práticas sejam
explicitadas e questionadas (Miranda, 2000).
Fora as formas do não-registro e do “dar um jeito”, presenciamos também casos em
que o inspetor impôs uma outra versão ao fato para lhe poupar posteriores empenhos, assim
119
“simplificando o procedimento”. Explicita-se isso com a elaboração do registro por um
inspetor:
“Ao chegar à delegacia, um jovem foi encaminhado pela atendente até a mesa do
inspetor. Ele relatou que possuía uma bicicleta, e que há cerca de um ano atrás ela
foi roubada. Fora até a delegacia, que já funcionava enquanto delegacia legal, e fez
o RO. A bicicleta, porém, não foi encontrada, e o RO aparentemente arquivado. O
homem já não tinha mais esperanças de reencontrar a tal bicicleta, quando, dias
atrás, estava saindo de um supermercado, e reconheceu a bicicleta que fora dele.
Como tinha guardado a nota fiscal da bicicleta, ele a pegou a segurou e ficou
esperando que o “novo dono”da bicicleta saísse do mercado. Quando este apareceu,
ele mostrou então a nota fiscal e perguntou onde ele tinha comprado a bicicleta e de
quem. O “novo dono” disse-lhe então que havia comprado a bicicleta de uma pessoa,
que morava na favela M. os dois foram ao local para conversar com a pessoa que
havia vendido a bicicleta. Identificado, o vendedor da bicicleta confirmou que a
bicicleta era roubada, e a pessoa que havia comprado, não querendo maiores
complicações, a devolveu ao seu verdadeiro dono.
Após este relato, o inspetor ficou impressionado com o fato, primeiro dele ter
conseguido reencontrar a bicicleta, e segundo pela coragem que teve em ir até a
favela para confirmar o que havia ocorrido. Não obstante, disse-lhe então que esta
versão não podia constar no Registro de Aditamento onde as alterações dos RO são
registradas. Se o inspetor colocasse o que acabara de ouvir, ele seria obrigado a
tomar o depoimento da pessoa que havia comprado a bicicleta e também da pessoa
que a vendeu para ele, “e isso seria complicado”, justificou. Para “simplificar” o
procedimento, o inspetor sugeriu então uma nova versão. Segundo este, seria melhor
que fosse colocado que o jovem, ao sair do supermercado, havia reconhecido a
bicicleta. Teria esperado a pessoa que estava com a bicicleta para que
conversassem, mas esta, percebendo que ele a esperava, com medo, teria
desaparecido. O jovem então teria certeza que a bicicleta era sua. Com a nota fiscal
em mãos teria conferido o número da série da bicicleta, a levado sem ter contato ou
conversar com a pessoa que estava em posse da mesma. A partir dessa versão, assim
o inspetor, não teria de tomar nenhum outro depoimento, “tudo” terminaria mais
rápido e sem “complicações (Brum, 2002)”.
Verifica-se com isso que, apesar da tentativa do programa em impor um sistema rígido
e padronizado, os policiais ainda desfrutam nesse modelo de um amplo espaço de ação e
interpretação, exemplificadas pela manutenção da cultura do desestímulo ao registro e pela
120
possibilidade de manipulação do que vão inserir no sistema, realizando assim, a “armação do
processo” (Kant de Lima, 1995). As informações não são isentas à sua manipulação por parte
dos policiais, a autoridade das interpretações e traduções dos procedimentos é assim
exemplificada.
A responsabilização individual pelo procedimento pode ser contornada, ou pelo menos
tenta ser contornada pelos policiais em virtude dos problemas que essa responsabilização
pode suscitar quando combinada com o esquema de plantões vigente na Delegacia Legal.
Conforme os críticos desse sistema, a troca de agentes a cada 24h para que retorne somente
72h depois obstaculiza a investigação. Uma vez que o trabalho de investigação realizado pelo
policial não é contínuo, muita informação se perde quando só irá retornar 72 horas depois.
Imagino que esse ritmo de trabalho se dá conforme interesses corporativistas, para permitir
que o policial tenha um “bico”. Os policiais freqüentemente reclamam que estão
sobrecarregados, não tendo como dar tratamento adequado a todos os procedimentos que
atende.
Em entrevista realizada com os delegados um deles deixou claro que não registrava
Autos de Resistência quando só tinha PM como testemunha, disse que não gostava que os
PMs ficassem passeando em sua delegacia. Outro relatou que costumava suspender os furtos,
já que não tinha informações suficientes para dar andamento à investigação. A
desqualificação do registro dos conflitos domésticos também pode ser afirmada com base nas
informações anteriormente oferecidas.
Importa notar que a transparência proclamada pelo PDL está estreitamente vinculada a
um maior controle sobre as atividades policiais. Exemplifico isso pela própria forma de
disponibilização do espaço físico das delegacias, pois a transparência que é veiculada através
do espaço de trabalho vazado implica, sobretudo, uma nova técnica de gestão dos recursos
policiais. O que confirma a proposição de uma delegada que apontando de sua própria sala a
121
janela de vidro que dividia sua sala com o setor pelo qual ela é responsável, disse que: “tá
vendo, todos os meus setores estão aqui. Não tem mais caixa preta que nem avião. Você
visualiza tudo mais fácil quando o ambiente é aberto. Você dá uma ordem e todo mundo
escuta”.
O público que vem à delegacia também visualiza desde o balcão de atendimento, o
espaço de trabalho policial. Essa visibilidade implicaria, portanto, em determinadas posturas.
Assim um delegado relata:
Vemos que esvaziar o balcão é mais importante do que investigar porque se tem um
monte de gente esperando vai atrapalhar a visão que o público tem da polícia. Eles
então começam a investigar só quando o balcão está vazio. As pessoas que estão
esperando dizem que tem um monte de policial ali sem fazer nada e ela está ali
esperando. Mas na verdade esses policiais estão lendo os processos, dando
andamento na investigação, eles não estão parados fazendo nada como as pessoas
que estão no balcão pensam, o policial precisa estudar o registro. E se elas ficam
muito tempo esperando já vão ligar pra corregedoria para reclamar ‘Ah! Fiquei três
horas esperando lá na delegacia e ninguém me atendeu! E tinha um monte de policial
sem atender ninguém’.
Segundo alguns entrevistados, os policiais do GI fazem a investigação basicamente
ouvindo as pessoas. Alegam, portanto, que nem sempre só ouvindo as pessoas eles têm
condição de fechar uma investigação. Como os policiais têm de ir para rua fazer diligencias,
procurar indícios, buscar alguma testemunha e também estar na delegacia zelando pelo
atendimento, acabam não dispondo de muito tempo para as atividades externas. O que,
segundo eles, gera grande acúmulo de procedimentos inconclusos.
Dada a reivindicação dos delegados titulares por uma equipe de policiais que
pudessem vir todos os dias à delegacia e ficar a eles diretamente subordinados, o Programa
Delegacia Legal recentemente criou mais um setor na delegacia que ficasse responsável para
dar continuidade às investigações iniciadas pelo policial do GI. Todavia, a atuação do Grupo
122
de Investigação Continuada (GIC), segundo entrevistados, está sendo ineficiente. Ao cumprir
uma grade de horário diversa dos outros policiais e acompanhar o cotidiano das delegacias,
esses grupos estariam fortemente sendo identificados como o “grupo dos delegados titulares”,
“os amigos do rei”, e sendo utilizados somente para blitz, casos de disque-denúncia e entrega
de intimação, já que os policiais do Grupo de Investigação não podem atender a essa
demanda. Os policiais do GIC são alocados para as atividades externas que não dizem
respeito, necessariamente, ao auxílio nas investigações.
A lógica cartorária mantida na Delegacia Legal evidencia o valor que tem as
formalidades do registro na Polícia Civil, de uma lógica inquisitorial que precede uma lógica
investigativa. A Delegacia Legal estaria, dessa forma, criando enorme acervo por causa das
investigações não encerradas, pois os policiais não têm como investigar todas as ocorrências
que registra no curso das 24 horas, por isso selecionam quais as ocorrências atendem e
estabelecem uma hierarquia de prioridade dos casos.
É nesse sentido que é avocada a necessidade da especialização, para dar tratamento
diferenciado às ocorrências. Os policiais e delegados geralmente criticam que não dá para
todas as ocorrências terem tratamento igualitário, segundo seus argumentos, a rotina de
trabalho das Delegacias Convencionais era mais producente que a rotina estabelecida pela
Delegacia Legal, porque as ocorrências eram destinadas para um grupo especializado em
investigá-las e depois eram encaminhadas para o Cartório. No entanto, o que se pode notar é
que os setores especializados de investigação funcionavam muito mais no sentido de
administrar de forma particularizada as investigações do que, de fato, realizar um trabalho que
demanda uma dedicação e uma competência especial para tratamento das ocorrências segundo
seus tipos. Não é um trabalho dedicado a um tratamento especializado, mas sim destinado a
tratar de forma diferenciada as ocorrências.
123
4.2. Tipos de adaptação à reforma
Algumas alternativas particulares de organização do trabalho estão sendo adotadas nas
delegacias fazendo cair por terra a tentativa de governabilidade e gestão através da
padronização das delegacias inseridas no modelo legal.
Dessa forma, existem Delegacias Legais que reproduzem de forma idêntica o modelo
convencional de organização do trabalho, com policiais dedicados ao registro e outros à
investigação. Quando há essa separação, há que se notar que é o policial do registro que
realiza todas as providências logo quando a polícia tome conhecimento acerca do fato. Por
exemplo, no caso de um homicídio, é esse policial que vai ao local, tenta arrolar testemunhas,
formaliza o registro e repassa o documento para outro policial que vai dar andamento àquela
ocorrência que ele formalizou. Restaria ao segundo policial “da investigação”, ouvir as
testemunhas que foram arroladas pelo primeiro policial, chamar outras pessoas a depor, se
necessário, acompanhar o trabalho pericial e tomar outras providências que sejam necessárias
à instauração do Inquérito Policial e seu envio à Justiça.
Há delegacias em que os grupos especializados ainda são uma constante e os
procedimentos são posteriormente distribuídos conforme as especializações entre os policiais.
Nesse caso, a figura do policial “do registro” é mantida, mas com uma peculiaridade, pois os
únicos registros que são encaminhados para os “grupos especializados” são aqueles registros
com informações suficientes que garantam um bom andamento na investigação do setor
especializado ou ainda os “casos importantes” que a opinião pública ou outros órgãos
dedicam mais atenção, a estes, é dedicado um atendimento preferencial, pois “a imagem da
delegacia está em risco”. Abaixo, a conversa com os delegados em uma delegacia localizada
na Zona Sul do Rio de Janeiro:
Delegado Titular: O que está registrado eu vejo. E aí é que surgem os problemas. O
meu feeling para ver ..., Você tem que sacar se aquela ocorrência vai se desdobrar,
vai ganhar uma importância, vai ter repercussão, enfim. Isso é que é a palavra-
124
chave, hoje, na polícia: repercussão. Até porque nós vivemos numa era em que a
mídia dita as normas de comportamento e de atuação, de reação, de tudo. E,
particularmente, nesse governo. Está gravando, aí, né?
Pesquisadora: Quer que eu desligue?
Delegado Titular: Não, não! É um governo que é muito sensível à mídia.
Delegados Adjuntos: É verdade (em coro).
Delegado Titular: Então, você tem que ter um feeling para saber. É aquele negócio
do assalto que eu tava querendo ver na televisão, eu quero ver como eles tão
tratando esse negócio que aconteceu aqui, porque porra, é na zona sul. (com vistas à
não identificação dos meus entrevistados, substitui o nome do bairro pela zona sul).
As “ocorrências de rotina”, que não foram selecionadas pelo grupo especializado para
terem tratamento diferenciado, ficam sob os cuidados do policial do registro, que só irá fazer
todos os procedimentos formais de praxe. Em casos excepcionais, caso venha à tona mais
alguma informação que pode ajudar a elucidar um procedimento que está sob sua
responsabilidade, o procedimento é avocado pelo grupo especializado.
Também fui a uma delegacia que tinha quatro policiais (um por plantão) para cuidar
de todos os inquéritos, outros dois policiais para tratar de VPI. Nesse caso, havia a figura do
policial “do registro”, que atendia a quaisquer ocorrências, para que depois estas fossem
encaminhadas a quem competia cuidar de seu desdobramento. Ao me mostrar um inquérito de
um homicídio que ocorrera em 2002 e que estava sob sua responsabilidade, a policial
encarregada dos Inquéritos nesta delegacia me disse que, como esse fato ocorreu em 2002 e
até hoje (2005) não foi encontrado o autor, a única possibilidade de manusear o Inquérito,
segundo a policial, é ficar cumprindo os prazos para sua remessa ao Ministério Público: “Aí
fica indo e voltando. Vai e volta, vai e volta. Assim fica difícil terminar tudo. A gente não tem
essa facilidade de estar o tempo inteiro na rua porque também tem que tratar desses casos. A
gente não encontra ninguém, não aparece ninguém. Aí o Ministério Público acha que a gente
não fez nada, porque o Inquérito vai para lá do mesmo jeito que chegou”. Disse-me ainda que
tinha uma pilha enorme de Inquéritos em seu armário para dar andamento e que ela organiza
125
seu trabalho em função dos prazos que tem de ser cumpridos, trabalha os Inquéritos perto de
vencer o prazo que eles tem de ser encaminhados para o Ministério Público.
Essas alternativas respondem a uma forma de atuar que os delegados titulares, que
nestas delegacias trabalham, acham mais conveniente nelas desenvolver. Com a
especialização, a divisão das atribuições dos policiais nas delegacias passa a ser objeto de
barganha e negociação destes com os delegados titulares e adjuntos. A seguir, apresento o
relato de um delegado que atribui grande relevância à possibilidade que ele dispõe de
“administrar” as características pessoais dos agentes:
“Você vai ter sempre um policial que é melhor numa coisa, um policial que é melhor
em outra, e isso aí você vai ter; você vai ter que aprender a administrar isso aí. Vai
ter um policial que é melhor na rua; vai ter um policial que já é melhor no papel. Tem
que saber administrar e conduzir da melhor forma possível”(delegado).
Fica a cargo dos delegados demarcar a partir das características pessoais de seus
agentes, quem são os policiais “especialistas da investigação” e os policiais que “cuidam do
atendimento e do registro de tudo”, dotam os primeiros de mais prestígio, enquanto aos
últimos são desprestigiados, pois “trabalham no setor que só tem profilaxia”.
Apesar de alguns agentes considerarem que o modelo de trabalho da Delegacia Legal
só investiu em formalização, o que veio a deixar as delegacias inoperantes, observa-se que
essas formas de trabalho também estão extremamente vinculadas à burocracia demandada ao
trabalho policial. Ao transplantarem o modelo de trabalho da Delegacia Convencional para o
aparato informatizado da Delegacia Legal, a organização se adapta à reforma através de
movimentos de criatividade situada pelas regras de registro, com o fim de garantir a
manutenção da autonomia das escolhas e decisões coletivas e não a identificação das
responsabilidades individuais.
126
Capítulo 5
GRAMÁTICAS DE CONTROLE
“Há resistências às tentativas de o expor
[o laço social] à luz do dia e de o
investigar. Ele, no entanto, precisa ser
examinado. Toda pessoa é afetada pelo
grau de confiança que a cerca”
(Douglas, 1998, p. 15).
As transformações empreendidas no âmbito das Delegacias Legais ecoam para
transformações na estrutura da Polícia Civil. Como as informações registradas pelos policiais
ficam disponíveis para as delegacias, todas as alterações que eles fazem nos procedimentos
ficam agora armazenadas na memória do PDL. Isso contribui para o acompanhamento e
verificação dos resultados dos trabalhos desenvolvidos nas delegacias, o que, por conseguinte,
exerce sobre os policiais, influência.
Por essas razões, atentar para a problemática levantada por Monjardet passa a ser
crucial:
“A indeterminação da responsabilidade interna bem como a involução dos objetivos
colocam uma questão prévia, acima da accountability, que se poderia chamar a
“governabilidade”. Em que medida uma polícia é governável ex ante e não só
controlável ex post?” (Monjardet, 2003, p. 226-227).
Com o propósito de melhor gerenciar as atividades das unidades policiais, foi criado
um Grupo Executivo do Programa Delegacia Legal para monitorar as atividades das
delegacias, uma Central de Inquéritos para que o Ministério Público fizesse o controle externo
das atividades policiais e as funções da Corregedoria da Polícia Civil e dos delegados de
127
polícia foram também redefinidas. É exclusivamente sobre as formas que se reveste o controle
interno da polícia que estarei tratando nesta ocasião.
5.1. Grupo Executivo
Oficialmente, o Grupo Executivo não ocupa uma posição consolidada na estrutura da
Polícia Civil, ele somente assessora a Secretaria de Segurança Pública.
Entre as principais funções do Grupo Executivo do Programa Delegacia Legal (GPDL)
estão
32
: a) a realização da reforma física dos prédios, a reestruturação administrativa e dos
serviços técnicos e operacionais da polícia; b) o acompanhamento, monitoramento e
disponibilização de manutenção técnico-operacional às atividades policiais e c) a aferição e
fiscalização da qualidade dos serviços policiais.
Sobre esse último tópico, um dos entrevistados no Grupo Executivo esclarece que no
grupo, eles buscam mapear tudo o que o policial faz a fim de avaliar quais são os erros mais
comuns que são cometidos pelos policiais e se há alguma iniciativa da delegacia em ocultar os
problemas de determinada região. Segundo ele, a atuação policial regida por interesses
escusos poderia ser identificada pelo monitoramento. O Grupo Executivo seria assim, mais
“uma pedra no sapato da Policia Civil”, já que está implementando uma reforma a qual a
própria polícia apresenta uma série de restrições.
O grupo atua basicamente a partir do sistema informatizado das Delegacias Legais.
Um dos trabalhos realizados pelo grupo é o monitoramento das atividades policiais: uma
pesquisa realizada através de um padrão sistêmico e de uma metodologia comparada para
verificar o que é conforme e o que não é, trabalham com uma planilha em excel pontuando os
pontos mais gritantes de não-conformidades.
32
Decreto Estadual n. 25.599 de 22 de setembro de 1999.
128
Perguntei então a uma policial que trabalha no Grupo Executivo, o que eles
classificam como não-conformidades, e ela me respondeu que são os erros de conteúdo e de
forma, como os erros de gramática, se a capitulação está divergindo do delito, etc. No manual
do monitor, podem ser identificados os possíveis erros em cada campo do Registro de
Ocorrência. Se através das informações disponíveis na “dinâmica dos fatos” fica evidente que
alguém deve ser qualificado e ninguém foi qualificado, isso resulta em um grave erro de
conteúdo, essencial. Conforme sua observação, as outras peças, tais como os Registros de
Aditamento ou as diligências não são avaliadas em detalhe. Disse que com base nos próprios
registros, eles têm a possibilidade de apresentar uma estatística de qualidade, já que “na
polícia tudo é número, que é o que vai para a mídia”.
Já que esses números referem-se aos registros, o controle sobre o preenchimento
adequado deles garantiria a fiabilidade das informações policiais.
O Grupo Executivo tem um setor chamado Central de Atendimento ao Usuário
(CAU), neste, é monitorado se os computadores e a rede que liga as delegacias estão com
problemas, para que, em caso positivo, seja realizado um suporte técnico-operacional. Por
exemplo, se a delegacia está parada ou o sistema está demasiadamente lento há umas 4 horas
por conta de problema da energia que está fraca, os policiais da delegacia contatam a CAU e
esta chama a light (empresa de energia) para ir até a delegacia. Da CAU os monitores têm a
capacidade de identificar através da rede todas as máquinas da delegacia e verificar se elas
estão com problema ou não. Como para entrar no sistema da delegacia os policiais tem de, a
priori, entrar com sua senha no computador, a partir desses sistemas de senhas também se
pode verificar quais os policiais estão trabalhando nas máquinas e quais não.
Os monitores da CAU também tiram dúvidas dos policiais em relação ao uso do
sistema e dos recursos computacionais, pois várias dúvidas dizem respeito a algumas
peculiaridades do próprio formato em que a Delegacia Legal foi montada. Em entrevista, uma
129
policial informa que: “Com a entrada do Programa Delegacia Legal, perceberam que o
policial não sabia operar nada. Era até uma forma do Grupo Executivo trabalhar melhor. No
início, a dificuldade que tinha era mesmo a mudança”. Eles fazem esse acompanhamento para
propiciar aos policiais um melhor uso das ferramentas de trabalho:
“Quero ter a possibilidade de registrar, procurar soluções viáveis e encaminhar para
alguém, aqui a gente produz relatórios, números para a área poder manter a
delegacia funcionando. (...) Involuntariamente, a gente está contribuindo para que o
policial atenda o público melhor. Na outra delegacia convencional você não tem
acesso a esse tipo de recurso de gerenciamento”.
Perguntei a um outro membro do Grupo Executivo, se haveria a possibilidade de
ingerência sobre as práticas que não transparecem através do sistema. E ele me respondeu que
o não registro também transparece bastante, porque se nós vemos que as atividades não têm
alcançado nenhum resultado e começamos a buscar as causas desse não resultado, podemos
claramente perceber o que acontece. Assim suas palavras:
“Quando você tem um sistema informatizado quando você chega e introduz a sua
senha para fazer alguma coisa, você vai ver um numero significativo de policiais que
nada fazem. Você vê que a delegacia produz uma montanha de papel sem qualquer
tipo de objetividade. Hoje você põe um raio-x e produz uma série de relatórios para
dizer se a delegacia produz, como produz, quem produz, hoje você tem tudo isso....”
Pelo seu relato, pode-se ensaiar que a polícia saiu de uma situação em que não se sabia
o que acontecia dentro das delegacias para uma em que se pode saber tudo.
Em 2000, o GPDL apresentou um relatório que objetivava avaliar o primeiro ano de
funcionamento da delegacia modelo
33
, a 5ª DP. Neste, são analisadas as principais
33
A 5ª DP ficou conhecida como delegacia modelo, por ser a primeira delegacia inaugurada enquanto Delegacia
Legal.
130
características da circunscrição, o trabalho realizado na delegacia e a produtividade
investigativa dos policiais.
“Trata-se, antes de mais nada, de uma catalogação de dados para exemplificar o
trabalho de polícia investigativa, e não meramente uma enxurrada de números sobre
a quantidade e a modalidade de infrações penais e fatos administrativos” (Governo
do Estado do Rio de Janeiro, 2001, p. v)
Vale notar que esse modelo de controle (accountability), o modelo estatístico é
pensado a partir de suas potencialidades para dar conta das atividades institucionais a fim de
que seus agentes possam estabelecer metas objetivas de produtividade e de gestão. Segundo
Monjardet,
“Interrogar-se sobre a accountability, é examinar a capacidade, ou os dispositivos
que produzem a capacidade de uma polícia, de contar o que ela faz, de levar em
conta o “que alguém” lhe pede, de prestar conta de suas atividades, também até
onde “alguém” pode contar com ela” (2003, p. 226)
Assim, o monitoramento feito pelo Grupo Executivo não tem como objetivo o controle
punitivo, mas sim o de trazer subsídios às necessidades da unidade policial. O tipo de
monitoramento realizado pelo GPDL visa, acima de tudo, perpetuar a existência do programa
para que os policiais utilizem, de forma mais adequada e otimizada, os novos instrumentos
disponíveis, ou seja, visa à criação de uma normalização de sujeitos que se não se criarem,
não poderão existir. O recurso estatístico é encarado, portanto, como uma biopolítica, como
um auxílio ao estabelecimento de formas mais hábeis de gestão das ações policiais, como uma
estratégia de garantia de governabilidade da instituição.
O acompanhamento das rotinas da delegacia funcionaria tal como o panopticon de
Geremy Bentham, ou ainda como o grande irmão, concebido no 1984 de George Orwell, pois
visa impor disciplina às condutas policiais.
131
Segundo me afirma um outro policial: “A central não é para repreender, é o gerente da
delegacia que tem que fazer o controle. O titular tem instrumentos para avaliar a
produtividade da delegacia, pode avaliar uma série de itens, em vários níveis, inclusive
individual. A questão é que os delegados se formaram em direito e não em administração. Os
delegados é que são os gargalos do sistema”.
Insisti perguntando se com o monitoramento, o grupo tem a faculdade de controlar o
trabalho policial e ele me respondeu que isso é atividade da corregedoria, “a gente aponta, a
corregedoria toma a medida, o Grupo avalia somente a qualidade. O Grupo Executivo não
tem nenhuma ingerência sobre o trabalho policial”.
5.2. Corregedoria
Conhecida como “a polícia da polícia”, à Corregedoria está outorgado o controle para
conter dentro de certos limites as atividades policiais. A corregedoria preocupa-se com a parte
administrativa e disciplinar. As principais funções da corregedoria são a de fiscalizar a
atuação policial e monitorar o servidor. Mais recentemente, a Corregedoria recebeu uma nova
atribuição concedida pelo Instituto de Segurança Pública (ISP): a de comparar a dinâmica
narrada nos Registros de Ocorrência com o título dado ao evento pelas autoridades policiais;
em caso de constatar grandes incongruências, a corregedoria deve impor correições para ter a
estatística o mais transparente possível.
Em entrevista realizada com o Corregedor da Polícia Civil, este me disse que eles
identificam vários casos em que a titulação diverge bastante do que está escrito na dinâmica e
que eles corrigem isso sugerindo à delegacia que produziu o registro com erro, a elaboração
de um Registro de Aditamento para corrigi-los. Caso não considerem a sugestão, então
obrigam a autoridade a fazê-lo. Disse que com base nos aditamentos que são feitos, corrigem
a cada seis meses as estatísticas que são produzidas no Estado.
132
Questionado acerca das modificações trazidas pelo PDL às atividades da corregedoria,
o corregedor nos disse que o PDL tem duas vantagens: o controle da polícia e do policial é
exercido mais facilmente já que está em rede, e o local de trabalho do policial é mais
agradável, o que se dúvida representa algo para a melhoria do trabalho. Com o PDL eles têm
acesso a todos os procedimentos elaborados pela Polícia Civil já que estão armazenados no
sistema, eles tem acesso a todos os procedimentos do Inquérito ou do Flagrante. Isso não
acontece com as delegacias ainda pertencentes ao modelo convencional, pois estas são
obrigadas a enviar somente a cópia dos registros para a Corregedoria, o que faz com que a
corregedoria não tenha acesso aos Termos de Declaração, nem aos despachos dos
procedimentos
34
.
Completou dizendo que, em verdade, não muda muita coisa com o PDL. Em sua
perspectiva, o PDL é somente mais uma forma de fiscalização.
“Para a corregedoria é mais uma ferramenta, para a gente é mais uma ferramenta de
fiscalização porque hoje com o Setor de Monitoramento, se chegar agora uma denúncia
para mim, eu te dou um exemplo: um delegado cancelou um flagrante porque vai receber
um dinheiro, o inspetor daqui na hora entra na tela e vê se o flagrante foi cancelado ou não
e ai imediatamente sai uma equipe da corregedoria para lá. Então hoje a gente ... é mais
uma ferramenta de fiscalização, nós vemos em tempo real o que está ocorrendo em uma
Delegacia Legal, nós sabemos a duração do atendimento... vai que uma pessoa liga para a
corregedoria e diz: ‘olha, eu estou aqui na delegacia desde uma hora da tarde e ainda não
fui atendido.’ Eu falo: “Inspetor x, vai lá e vê como está o atendimento nesta delegacia’ Ele
vai lá [no computador dele] e diz ‘olha Dr., de oito horas da manha até as 9:15 foi o
primeiro RO no computador tal, no segundo computador atendeu fulano, no terceiro foi
beltrano’. Ou então: ‘Olha a pessoa tá falando isso, mas ela tá com razão porque desde
tantas horas não foi feito o RO, olha ele tá falando errado, porque não parou a delegacia
de fazer RO, ele tem que realmente aguardar.’ O custo beneficio é excelente...”.
Custo beneficio entendido em termos de uma menor relação de dependência na
disponibilização dos dados pelo delegado, já que “não preciso incomodar o delegado para
34
Vale notar que, a partir de 2005, a corregedoria deu início a um processo de digitação dos dados dos registros
das delegacias convencionais, em um sistema elaborado especialmente para isso.
133
saber se está tendo falha no plantão dele”, e em termos de economia de serviço da
corregedoria, pois “não precisa deslocar uma viatura para irem lá policiais para verificar o que
é que está lá acontecendo”.
As delegacias passam então a estar sendo vigiadas on-line pela corregedoria. “Mas na
verdade não é on-line e em tempo real. Eles pensam que sim, porque algumas vezes ele havia
acabado de preencher o registro, eu vi um erro e já enviei para ele alterar, e ele ficou louco!
‘Nossa! Mas vocês têm acesso a tudo isso?’ O policial ficou bobo!” (um policial da
corregedoria disse isso rindo).
A Corregedoria da Polícia Civil assim como a Corregedoria da Polícia Militar também
recebe comunicações de incongruências procedimentais da Ouvidoria da Polícia do Estado do
Rio de Janeiro, um dos órgãos responsáveis pelo controle externo das atividades policiais
35
.
Dentre as principais preocupações da Ouvidoria, estão: ouvir as reclamações dos cidadãos
contra os abusos de autoridades e agentes policiais; receber denúncias contra os atos
arbitrários, ilegais e de improbidade administrativa praticados por servidores públicos
vinculados à Secretaria de Segurança Pública; e promover as ações necessárias para a
apuração de veracidade das reclamações e denúncias e, sendo o caso, tomar as medidas
necessárias ao saneamento das irregularidades, ilegalidades e arbitrariedades constatadas, bem
como a responsabilização civil, administrativa e criminal dos imputados
36
.
Como um dos indicadores da atividade que desenvolve a Ouvidoria, exponho os dados
relativos ao primeiro trimestre de 2004 que foram divulgados em Diário Oficial, relativos às
reclamações recebidas sobre as atividades da Polícia Civil: 18% dos procedimentos
instaurados relacionam-se a comunicações contra delegados e 82% das comunicações contra
35
A Ouvidoria da Polícia é um órgão ligado à Secretaria de Direitos Humanos, criado através da lei estadual n.
3.168, de 12 de janeiro de 1999, para receber as comunicações de reclamações e elogios relacionados às polícias
civis e militares.
36
Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro. Ano XXX, nº 74, parte I. 26 de abril de 2004.
134
outros agentes policiais da instituição. No entanto, 97% do total de punições foram impostas a
agentes, enquanto 3% foram impostas a delegados de polícia.
Analisando os tipos de punições aplicadas aos Policiais Civis por parte da
corregedoria, observa-se que: foram instaurados 63 Inquéritos Policiais e 216 sindicâncias
sumárias, resultando em 29 punições para agentes e 1 (uma) contra delegado de polícia.
Assim observamos que no modelo de controle exercido pela Corregedoria, as
estatísticas são utilizadas como uma estratégia pela qual pode ser feito um controle punitivo.
A partir da constatação dos erros, visa infligir uma sanção pelas incorreções dos agentes, quer
dizer, a estatística passa a servir como um insumo à repressão dos agentes pelo mau uso do
poder público.
Com essa exposição, não objetivo discutir a eficácia das regras de produção estatística
na Polícia Civil, mas sim atentar para como estas estatísticas fornecem indicadores das
distintas gramáticas de controle operantes na reforma que estou estudando.
Para tanto, é necessário relativizar até que ponto as estatísticas são percebidas como
biopolítica, no sentido da qualidade e da prestação de insumo gerencial e até que ponto ela é
considerada como uma forma de punição. Procuro analisar tais exigências a partir da forma
como os agentes reagem às formas de controle que lhes são impostas.
5.3. Quanto à disposição de informação
Segundo os policiais, uma das características mais importantes proporcionadas pela
reforma é a maior quantidade de informações que podem ser utilizadas nas investigações. A
seguir, o discurso de um delegado:
Antigamente, batia alguém na tua delegacia, você, pra saber se a pessoa tinha
mandado de prisão ou não tinha, você tinha que falar com a POLINTER, e, na
POLINTER, muitas vezes tinha fichinha escrita, e é mais difícil você ter uma
fichinha, ter alguma organização nesse sentido. Porque no sistema aqui vai ser
135
nosso; já consulta um sistema, já, pum! Já sai ali, na Intranet. Ou se é menor, se tem
alguma coisa na DPCA, está entendendo? Carro, para ver se é roubado, se não é.
Traz as informações ali, na tua frente. Tem muito mais fonte de acesso, entendeu?
Não obstante, a disponibilização dos procedimentos em rede também se destina a
possibilitar um melhor acompanhamento dos procedimentos policiais para que os dados
pudessem ser trabalhados em prol de uma gestão dos procedimentos investigativos e da
própria instituição. Abaixo, a fala de um de seus idealizadores:
O Programa não se interessou em mexer nos registros de ocorrência, mas de
gerenciar a investigação a partir dele. O registro de ocorrência e uma comunicação
que se materializa na delegacia. Procedimento investigativo é uma coisa
completamente diferente de registro de ocorrência, todo mundo fala do registro de
ocorrência e esquece da investigação. O procedimento investigativo e o que
interessa, não só o registro, o registro é uma peça. O procedimento investigativo não
existe na policia desde 40 anos atrás. O tudo é: faz o registro de ocorrência,
embrulha e manda. A proposta do Programa Delegacia Legal e justamente e
retornar o procedimento investigativo, só que para isso é preciso uma série de
fatores que possibilitem que o policial trabalhe de forma investigativa. Um deles é a
estrutura que já esta montada, além do mais é necessário um gerenciamento forte em
cima dessa investigação.
O PDL cria em cada delegacia, um Setor de Inteligência Policial (SIP), setor pelo qual
se armazena as informações acerca das características dos autores e no qual são produzidas as
estatísticas da delegacia. Através dos recursos estatísticos disponíveis no SIP, os policiais
seriam capazes de saber em qual dia da semana, hora e local os delitos são mais cometidos. A
organização dos dados sobre os delitos registrados viria auxiliar as atividades investigativas,
mas também serviria de insumo às atividades preventivas. Entretanto, segundo um delegado:
“Os policiais do SIP trabalham coletando as informações e repassando aos setores
operacionais para eles fazerem diligências específicas. O SIP, eu coloco como o
coração da polícia, que deveria congregar especialistas em análise da informação,
só que não existe analista na polícia. A grande parte dos delitos você não consegue
136
fazer investigação individualizada. Tem que compor um cenário para dar conta do
mecanismo que ocasiona isso, o SIP dá condições para que se trabalhe
comparativamente, só que isso atualmente ainda é mal feito”.
Através do SIP, também seria possibilitado um acompanhamento georreferencial dos
crimes. Entretanto, um delegado me informou que utiliza esta ferramenta muito mais para
confirmar a competência circunscricional dos crimes do que para desenvolver formas
investigativas mais inteligentes. Assim seu argumento, quando perguntado sobre a forma
como utiliza o georreferenciamento:
“Pô! Aquela rua, ela é minha ou é deles, ou é parte minha ou parte deles?” Aí, você
vem e consulta, entendeu? Isso que é bastante usado; a gente usa muito aqui. Porque
as delegacias, elas são muito unidas, são divididas até por meio de rua; meio de rua
pra lá é seu... Subida do morro: a do lado direito é minha, a do lado esquerdo é sua.
Entendeu? Então, a gente tem que usar. E quando não é localizada a rua, no lotevia,
o policial põe lá... fica consignada a um registro: “Não, esse endereço não foi
localizado”. Por exemplo, um homicídio... A gente tem dúvida, nós mesmos vamos lá
consultar. Num homicídio, né, às vezes... a gente, às vezes, tem dúvida. Aí, ninguém
quer homicídio; cada um quer... querem empurrar pra ela, ela quer empurra pra cá,
entendeu? Aí, aqui não. Aqui, a gente tem... não tem jeito; mostra de quem é. E você
não pode fugir daquilo.
Ao atentar para os saberes e práticas reproduzidas no modelo legal, percebemos o mau
uso por parte dos policiais das informações que o sistema disponibiliza. Em regra, as
delegacias de polícia devem atender qualquer tipo de ocorrência que lhe é comunicada para só
depois de concluído o registro, encaminhar o procedimento para a delegacia em cuja
circunscrição o crime ocorreu. A publicidade das informações pelo sistema – ideal proposto
pelo programa – deve então ser ponderada pela forma como os policiais utilizam os
instrumentos disponíveis, pois claramente me deparei com práticas que vão contra ao que
propaga o PDL.
137
Exemplos já foram dados no que concerne ao preenchimento ou não do registro,
porém, um delegado me relatou que opta fazer alguns procedimentos no word (editor de
texto) e não incluí-los em sistema, para que ninguém tenha acesso e seja assegurado o sigilo
das investigações.
Assim ele exemplifica: “às vezes você faz uma escuta no telefone e todo mundo sabe
que naquele período qual o telefone que eu estou pesquisando. Isso é ruim. Atrapalha na
investigação, pois pode vazar alguma informação sobre isso. Não tem porque todo mundo ter
acesso”. Deve-se, porém, ressaltar que se ele faz alguns procedimentos em um editor de texto
que ninguém tenha acesso, ele particulariza as informações, o que vai contra a ideologia de
transparência e publicidade das informações em sistema.
Um policial afirmou ter uma postura bem diferenciada deste. Falou que acha que não
há problema nenhum colocar tudo no sistema porque a outra unidade só vai ter acesso a uma
peça, que é o Registro de Ocorrência.
“Se um policial de outro lugar estiver investigando alguma coisa que ele acha que
tem a ver com algum procedimento daqui, se ele quiser mais alguma informação ele
tem que pedir ao delegado daqui da delegacia, aí pergunta: ‘Você tá apurando?
Então eu te mando’. De outra delegacia ele não pode imprimir uma peça nossa não,
nem o RO. Aparece no sistema uma bronca assim ‘Você não tem autorização para
imprimir esta peça” (disse rindo). Então mesmo entre as unidades existe um sigilo no
sistema”.
O sistema então dá a possibilidade de que, caso exista algum procedimento sigiloso, o
policial que o confeccionou pode protegê-lo através de uma senha para que só ele e o
delegado responsável possam ter acesso. Vale ressaltar que a única coisa disponível para
todas as delegacias no sistema é o registro. No entanto,
138
“... mesmo quando a informação relevante está acessível (e em nível confortável de
generalidade), ainda permanece o problema da resistência à implementação de
recomendações dela derivadas. Essa é a antiga luta entre as forças da tradição
herdada e da prática rotineira, para não mencionar o interesse velado versus os
frutos da análise racional” (Bittner, 2003, p. 361-362).
Outra vez observei um Policial Militar entrar no SIP, pedindo para o policial do setor
verificar os antecedentes de um motoboy que estava envolvido em um acidente de trânsito, e
que o PM tinha encaminhado para a delegacia fazer o registro. O policial digitou o nome do
motoboy na página da Polinter, no sistema da Delegacia Legal e, por último, revelou uma base
de dados particular, abriu uma gaveta no armário ao lado e dela retirou uma pasta com os
dados de vários motoboys que atuavam e residiam na área.
É principalmente porque a atuação policial se orienta a partir de uma lógica de
suspeição, que a manutenção da guarda das informações de forma particular (arquivos
pessoais) conserva-se como uma regra. Apesar da transparência ser o discurso oficial do
programa, é o segredo e a importância atribuída às informações não-públicas que permanece
enquanto prática policial.
Ao analisar o papel assumido pelas estatísticas no sistema de justiça criminal
brasileiro, Lima (2004) chama a atenção para o fato de que apesar os registros podem servir
de ferramentas de accountability, mas:
“Neste processo, nota-se a força de um fenômeno crucial para a organização do
modelo de justiça criminal e que se opõe à incorporação da transparência e
publicidade dos atos burocráticos tomados no âmbito das instituições que compõem o
sistema acima citado. Trata-se do segredo embutido na “arte de governar” e
distribuir justiça” (p. 34-35).
Prossegue o autor em nota, esclarecendo que:
139
“Aqui, o segredo analisado é aquele que evita o conhecimento público da
administração da justiça, ou seja, todos os mecanismos que permitem que o
funcionamento do sistema de justiça seja uma arte para os ‘iniciados’ e, portanto,
algo que possa ser manipulado pelos jogos de poder existentes; pelo estoque de
informações disponível” (p. 35).
Responder se a reforma implicou em uma maior qualidade dos registros e
conseqüentemente, da investigação, implicaria em perguntar se mudou a forma de gestão
desses recursos. O que vale notar é que se no modelo anterior, os produtos da delegacia
direcionavam-se somente à sua divulgação, os recursos disponíveis pela Delegacia Legal
fazem com que as informações tenham mais facilidade em ser coligidas, reorganizadas e
trabalhadas em prol da própria instituição.
Pra você fazer uma estatística, hoje em dia, num sistema de Delegacia Legal, é muito
mais fácil. Você consulta ali, rapidinho você vê que tem todos os dados à sua
disposição. É útil, extremamente útil. Porque é o que eu estou te falando, você
consegue, através das estatísticas, muitas vezes, desbaratar uma quadrilha. Que, às
vezes, tem uma quadrilha atuando numa determinada área ali, e você sabendo que
aquele problema está naquela área, você atua naquela área, e, conseqüentemente,
consegue acabar com o problema, que, às vezes, não é nem uma quadrilha. A
estatística é importante; a estatística faz parte da polícia.
Assim discursa outro delegado:
Aqui, nós temos também, por exemplo, aqui tem o total de número de inquéritos em
abril, que nós relatamos com autoria, representando por prisão preventiva, flagrante,
veículo recuperado; os registros de ocorrências lavrados. Então, tem uma estatística
e eu estou com ela aqui. É muito bom, é excelente. Entendeu? Isso aqui é mapa de
inquérito de auto de prisão, sindicâncias instauradas. Então, isso aí é espetacular.
140
Assim, há uma mudança relativa no estatuto que adquirem os registros policiais a
partir do PDL, porque nesse sentido, as estatísticas desses registros são consideradas como
estratégia de gestão dos recursos da instituição.
Observa-se, porém, que apesar de discursar uma maior disponibilização dos dados, os
registros continuam pautados nas oportunidades de ação dos policiais, que em termos de
Douglas, executam em suas ações um ritual de limpeza que é publicamente manifestado. Sua
atuação é dirigida “a uma ordem ideal da sociedade guardada por perigos que ameaçam os
transgressores” (Douglas, 1976, p. 13).
Conforme descrevi acima, são várias as condicionantes culturais que incidem sobre as
práticas policiais. Essas práticas derivam principalmente da preocupação com o controle que
possa exercer sobre suas atividades, mas elas também têm uma natureza simbólica, uma vez
que traduzem uma concepção particular de fazer justiça, na qual as informações deveriam
permanecer implícitas a fim de assegurar a conservação da forma privada de poder.
Sobre as práticas de registros nas delegacias, mais uma vez é importante dizer que o
registro policial sempre foi e ainda é aquilo que a polícia quis registrar. Quando nos voltamos
então à transparência proclamada pelo Programa Delegacia Legal, devemos tratar não só com
o que está sendo mostrado, mas, sobretudo, com o que está sendo velado.
O programa orienta-se à idéia de que com o mecanismo de controle implantado, até a
não-informação (a não vinculação de alguma peça ao procedimento, a falta de preenchimento
de alguns campos importantes, etc) aparece. O acesso às informações daria conta das práticas
policiais, por serem também indicadores da eficácia da instituição.
Contudo, pode-se notar que se, por um lado, os dados não seriam somente um fetiche,
pois denotaria algumas práticas institucionais, por outro lado o que se pode observar através
dessas práticas, é que avocando algumas prerrogativas técnicas (especialização) ou jurídicas
141
(“segredo de justiça”), os policiais invocam uma outra gramática para tornar manifesto o
preceito de “que tudo mude, desde que continue a mesma coisa”.
5.4. Quanto ao arranjo das relações internas
Conforme vimos na seção anterior, é principalmente por conta da preocupação com o
controle que algumas práticas resistentes à implementação da reforma tem lugar nas
delegacias.
Já foi observado que, como o policial muitas vezes é obrigado a fazer alguma coisa
exigida pelo sistema, muitas vezes ele não faz nem o registro, assim escapando do controle e
da cobrança que a ele pode ser feita. Do ponto de vista do agente, ele agora fica mais
fragilizado porque com a responsabilização, ele pode ser punido por não fazer o registro, por
preencher de forma imprópria os procedimentos e pelo uso inadequado dos recursos públicos.
No entanto, fazendo os registros, o agente usufrui sua autoridade e pune, porque dentre suas
atribuições, também está a garantia da manutenção da ordem pública.
Por ser uma polícia judiciária, a natureza das atividades da Polícia Civil está voltada
para o controle repressivo dos crimes. Em nosso sistema jurídico, a polícia é obrigada a atuar
assim que toma conhecimento de uma infração criminosa - é negada a nossa polícia a
possibilidade de negociação –, correndo o risco dos agentes serem culpabilizados e
responsabilizados por sua omissão, o que faz com que:
“A possibilidade de ação, neste sistema, fica precipuamente incentivada nas
circunstâncias em que, ou se tem a proteção de uma autoridade, que se
responsabilizará pelas conseqüências da ação requerida e/ou se tem a pretensão de
obter vantagens particulares, que compensem, de uma forma ou de outra, os riscos
representados pelo agir” (Kant de Lima, 2004).
142
A partir da construção da idéia do risco e da vulnerabilidade de agir, os agentes optam
por soluções coletivas para orientar suas ações. Isso não implica, por sua vez, em uma
orientação por um interesse coletivo, pois a “ordem pública” é percebida em termos de tutela,
em termos do que o Estado deseja para os cidadãos. Assim, os policiais atuam de acordo com
uma ética corporativa, para uso particular dos procedimentos que dispõe a organização e para
manter o sistema de decisão interno à instituição.
“Por bem ou por mal os indivíduos compartilham seus pensamentos e eles, até certo
ponto, harmonizam suas preferências. Eles não têm outros meios de tomar as
grandes decisões a não ser na esfera das instituições que eles constróem” (Douglas,
1998, p. 130).
Por estarem de tal forma comprometidos com a lógica da instituição, são poucos os
que se percebem como indivíduos em uma instituição pública brasileira. É nesse momento
que se evidencia a importância que as malhas
37
e a construção de reciprocidades sempre
tiveram na Polícia Civil. É bom ressaltar que as malhas e microgrupos formaram até então na
Polícia Civil instituições importantes, já que grande parte dos agentes se orienta a um
subgrupo.
Como relatei anteriormente, uma figura central para a formação desses grupos na
Polícia Civil é o delegado, muitas vezes quando ele é transferido carrega a equipe junto. As
transferências, segundo observamos, são acarretadas no sentido da manutenção das malhas de
influência, fazendo com que os policiais recorram a estas para obter privilégios e vantagens
adicionais no exercício profissional e nas atividades particulares (Kant de Lima, 1995, p. 71).
O policial que pertence à malha de maior prestígio toma o lugar de outro policial que, por sua
37
Esse termo refere-se ao conjunto de “policiais que se articulam dissimuladamente para defesa de seus
princípios éticos” (Kant de Lima, 1995, p. 71). Como pressupõe uma relação entre desiguais, esse termo está
diretamente oposto à idéia de rede (networks), que concebe os indivíduos como iguais na relação.
143
vez, vai ter de ocupar seu cargo em outro lugar, gerando uma grande rotatividade dos agentes
policiais.
Uma situação reveladora foi quando, já em 2004, fui pessoalmente fazer minha
primeira entrevista com um Delegado no Rio de Janeiro. A entrevista já havia sido
previamente marcada e eu estava munida de autorização do Grupo Executivo do Programa
para fazê-la. Apresentei para o delegado o documento, os objetivos da pesquisa, e lhe pedi
autorização para que gravasse a entrevista, ele me ofereceu um papel para que eu pudesse
anotar o que ele falava! Contrariando minhas expectativas de que ele ia então desabafar, suas
respostas foram monossilábicas. Quando ele achava necessário, tecia longos elogios ao
Programa e esperava que eu fosse anotar. Na semana seguinte, porém, soube que ele tinha
sofrido uma punição geográfica, tendo sido transferido para aquela delegacia muito
recentemente. Por certo ele estava com receio de que eu tivesse ido lá inspecionar o que ele
estava fazendo.
Desse modo, a policia atua dentro de um contexto político e institucional, onde a
alocação dos policiais na delegacia é uma mercadoria política (Misse, 1999). Esta alocação
visa a tão logo estabelecer o modelo hierárquico e privado de regulação das relações. Foram
vários os policiais que disseram que “levaram o bico ontem”, que o “conhecido de um
poderoso veio tomar seu lugar”, que foi “mandado para outra delegacia” ou ainda que para
marcar a entrevista antes tinha que pedir a autorização do delegado titular. Temos também o
contrário, pois outros policiais fizeram questão de marcar a reunião em horário que o
delegado não estava, “porque o delegado que acabou de entrar é meio complicado”.
Dentro de um aparato burocrático que na prática não é tão transparente, as malhas
também orientam os operadores e permitem o estabelecimento de relações de confiança.
“É evidente que se os atores estão interessados em manter uma linha de ação
escolherão como companheiros aqueles em cuja representação concreta possam
confiar” (Goffman, 1985, p. 88).
144
A confiança abrange assim certa margem de segurança que os policiais têm diante do
risco e diante da imprevisibilidade futura de suas ações. Em troca de privilégios e vantagens
no exercício profissional, a disputa pela lealdade dos agentes nas delegacias também pode ser
entendida como um modo de restringir por parte de um grupo específico a atuação dos
policiais, o que está de acordo com a idéia de que:
“Qualquer pessoa que tenha aceito a confiança, solicitado sacrifícios ou tenha
praticado voluntariamente conhece o poder do laço social. (...) Há resistência às
tentativas de o expor à luz do dia e de o investigar. Ele, no entanto, precisa ser
examinado. Toda pessoa é afetada pela qualidade de confiança que a
cerca”(Douglas, 1998, p. 15).
Dadas as dificuldades institucionais para lidar com o conflito, os policiais organizam-
se em torno de parcerias e orientados a uma forma particular de trabalho. A confiança que
provêm dessas relações dirigem-se muito mais a um compartilhar de uma ética policial que
colide com a noção de cidadania e que está muito mais voltada ao trabalho que é levado a
cabo nas delegacias do que para os demandantes por direitos e consideração (Oliveira, 2002),
está antes voltada aos interesses corporativos que aos interesses públicos. Deve-se ressaltar
que a alocação das autoridades e policiais nas delegacias é definida por um critério
exclusivamente político. É por conta disto que os agentes consideram que a partir do
momento em que se inserem em um grupo que lhes ofereça proteção política, estão isentos de
qualquer forma de punição.
Por um lado, as transferências funcionam como um mecanismo tanto de punição
quanto de promoção, conforme as malhas a que pertençam os agentes, por outro lado, no
discurso dos policiais, as transferências estão sempre associadas a um obstáculo para a
continuidade da investigação. Em relação à segunda proposição, argumentam que quando os
policiais são transferidos, cessa a investigação que estava sob sua responsabilidade até outro
145
policial tomar seu lugar, reclamam ainda que quando há a troca de delegados titulares, a
delegacia passa a trabalhar sob novos critérios. Dado o exposto, eles percebem que as
investigações estão muito mais relacionadas a critérios pessoais do que institucionais.
A importância do reconhecimento enquanto “pessoa” na instituição, também pode ser
ressaltado a partir da observação dos discursos que procuram justificar as resistências à
reforma, como um produto da diferença de perfis das gerações de policiais.
De um lado, tem-se a geração “menudo” (jovens), de outro, a geração “cascudo”
(velhos). A oposição entre os policiais novos e antigos é uma referência constante no discurso
dos agentes. Segundo eles, a internalização dos ideais da reforma estaria diretamente ligada à
geração a que os policiais pertencem.
Eu acho que o polícia novo... Todos os meus amigos que passaram no meu concurso
de delegado, todos eles são extremamente satisfeitos com o projeto de Delegacia
Legal. Os policiais novos, eu acho que 90% deles gostam desse sistema de Delegacia
Legal. O polícia antigo tinha uma certa resistência; mas eu acho que, aos poucos,
vem sendo quebrada. Talvez nem tanto, porque o cara que se acostuma com uma
coisa, é difícil se adaptar à outra.
A seguir, o argumento de um delegado pertencente à geração de policiais mais antigos:
E dizem que computador é um negócio que chega até a viciar. Então, eu tenho um
medo dessas coisas. Se eu fosse homossexual eu já teria morrido de AIDS. Se eu
usasse tóxico, eu já tinha morrido de overdose, se eu bebesse... (eu não bebo uma
gota de álcool). Se eu bebesse, eu já tinha morrido de cirrose. Entendeu?!! Então, eu
tomo muito cuidado com essas coisas que podem viciar.
Nesse sentido, os argumentos estão muito mais vinculados à adequabilidade ou não
aos instrumentos de informática do que ao compartilhar de uma ética policial. No entanto,
outro policial argumenta que, em verdade, os policiais mais velhos trabalham menos porque já
tem um reconhecimento profissional e sabem que “é a questão da polícia, quer dizer do
146
funcionalismo público, não importa de você investiga mais ou menos, vai ganhar o mesmo
salário...”. Assim, os policiais mais novos trabalhariam mais, porque competem por prestígio
junto aos seus pares. Já que, na prática, a valorização profissional, está muito mais vinculada
às malhas a que os agentes pertencem do que, de fato, aos critérios de antiguidade ou
meritocráticos. Apesar de estarem veiculadas no imaginário de alguns policiais estas
representações, encontrei com policiais “da antiga” que, de fato, “compraram a reforma” e
com policiais novos que não só resistem, mas são contrários a ela. Assim, o que é importante
notar é que, na prática, estas representações não se reproduzem de forma tão fixa como a um
primeiro momento sugerem.
Apesar da tentativa de diminuir o espaço de manipulação do policial, o policial ainda
desfruta na Delegacia Legal, de uma ampla liberdade de ação. Embora tenha implementado
uma nova rotina que tem por objetivo conferir maior transparência e controle ao trabalho
policial, o programa não invalidou o uso e a apropriação particularizada por parte dos agentes
das informações a serem disponibilizadas no sistema, pois são suas atitudes que pautam o
conteúdo de suas atividades.
Parafraseando Kant de Lima (1995, p.48): “Isso é difícil de negar, por exemplo,
quando a polícia convence a vítima de não registrar o delito como ocorrência criminal. Os
policiais alegavam que com essa atitude estavam “poupando trabalho”, mas pareciam, na
realidade, bem mais preocupados em poder apresentar uma baixa estatística de casos não-
resolvidos.”
Com base no que foi descrito acima, observa-se que a ação policial orienta-se muito
mais às conveniências das situações dadas e asseguradas pelas relações travadas na
instituição, do que em estrita obediência a um ordenamento jurídico ou institucional.
147
Apesar do programa impor nova forma de gestão da organização policial, os policiais
relacionam-se com seus produtos avaliando os custos e benefícios que demandarão de seu
trabalho. Para Monjardet,
... toda reforma da polícia é aceita na medida em que ela aumenta os recursos da
organização e/ou reforça o estatuto profissional dos policiais; ela é desviada ou
rejeitada quando ameaça o equilíbrio precário estabelecido entre a organização e a
profissão, isto é, quando ameaça desestabilizar o sistema de decisão interna (2003,
p. 231).
Independentemente da imposição de novas formas de controle, as estratégias adotadas
pelos policiais que ainda se apropriam das informações das delegacias de forma particular se
traduzem, por fim, em uma imposição do que a instituição almeja para a população e para si
mesma.
5.5. Quanto à busca incessante da ‘verdade real’
Observa-se que os agentes têm tradução e terminologia própria sobre como se fazem
as coisas. A forma como os policiais percebem o registro abrange uma noção sobre o próprio
sistema de justiça, sobre a função que desempenha a instituição na construção de verdade
judiciária.
O trabalho de inspetor é um trabalho de convencimento. Eu tenho que convencer a
todo mundo que eu estou no caminho certo. Primeiro eu tenho que convencer a meu
delegado, porque ele vai fazer um relatório em cima do meu, do que eu lhe contei
para convencer o promotor que tem de estar convencido para oferecer a denúncia e
passar para o juiz. O inspetor é que começa tudo. Até para um pedido de prisão
cautelar ser aceito, tem que passar por essas três etapas de convencimento.
Segundo esse policial, o trabalho por ele realizado é um trabalho de convencimento. O
Inquérito Policial é um trabalho administrativo e sem valor judicial, mas que serve de fonte
148
para o convencimento do juiz. Assim, o policial deve produzir um sem número de provas e
lançar mão de todas as estratégias para persuadir o delegado, o promotor e ao juiz sobre a
verdade dos fatos presumidos que investiga.
Cabe à polícia instaurar inquéritos sempre que uma ação penal se torne necessária,
mas não pode pará-los ou interrompê-los. Todos os indícios produzidos pela polícia
devem ser reproduzidos na instrução criminal (Kant de Lima, 1995, p. 36).
Assim, a polícia é obrigada a agir quando toma conhecimento de uma conduta
criminosa. A partir disso, inicia uma forma inquisitorial de produção de verdade, toma alguém
como suspeito e busca todos os indícios que possam convencer ao juiz de que “o suspeito é o
culpado” (Lima, 1999). No entanto, a instituição assume uma posição vulnerável no sistema
de justiça, pois todos os procedimentos colhidos pelos policiais deveriam ser reproduzidos na
esfera judicial a fim de assegurar o princípio do contraditório e defesa do acusado, o que
segundo um policial, faz com que a polícia seja um bode expiatório do sistema de justiça.
Assim, suas observações:
Aqui a gente está mais em contato com o fato, com a pessoa, a gente ta aqui no calor
da situação, e a gente visualiza a situação, só que eu tenho cinco minutos para
resolver e ai é claro que eu fico muito mais propenso a tomar uma decisão errada,
deixo uma coisa para acertar depois... Mas no juiz já chega o processo encaminhado
e é só papel, você não tem contato com a parte, só tem em uma audiência... Ai já leu,
já releu o promotor, o juiz já pediu... E aqui a gente fica muito exposto porque a
gente tem um contato muito grande com a vítima, o lesado, o homicídio, uma
tentativa de homicídio, o parente, a gente tá em contato no dia a dia e é claro, quem
é que vai se indispor? É o policial. Quem está na rua trocando tiro e incomodando
gente dentro de casa em uma favela trocando tiro, o traficante dando tiro na polícia e
a polícia tendo que revidar, quem vai ficar incomodado? Morador. Com quem? O
traficante? Em quem ele vai tacar pedra? No policial, que o policial é arbitrário.
A historia está marcando que a corrupção não é privilégio da polícia, mas a gente
está de frente, a gente é a primeira pessoa a dar a cara a bater e a gente acaba
sempre pagando o pato, a gente tem menos força política, a gente é uma classe que
está sendo desmerecida a cada dia, nos policiais civis, os policiais militares
149
principalmente que estão na rua no dia a dia, eles eu sofrem mais até que a gente,
entendeu? E aí a gente fica desmotivado a trabalhar. E aí acaba refletindo na
desmotivação em trabalhar, o policial fica desmotivado. Porque qualquer coisa que
está errada, ele é culpado.
Em um ambiente que não lhe concede autonomia, não há a responsabilidade por
accountability, mas a identificação de um culpado. Assim, o papel assumido pela polícia no
processo de construção da verdade judiciária torna extremamente vulneráveis seus agentes,
pois é deles que se cobra a “obrigatoriedade de agir”. É por isso que ganharia espaço a
“desmotivação de agir” e a busca de proteção a partir das malhas, pois estas fazem com que as
práticas reproduzidas nas formas de dizer o direito estejam encasteladas à dinâmica interna da
própria organização.
150
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tendo por objeto de análise uma reforma de gestão dos procedimentos da Polícia Civil,
em primeiro lugar, devo ressaltar que as principais resistências apresentadas à implementação
da reforma não dizem respeito à polícia em específico, mas a qualquer instituição pública que
possa ser submetida à mudança e destituída de autonomia em suas decisões. Em segundo
lugar, vale notar que no caso específico da polícia judiciária, a reforma se faz operar em uma
instituição submetida a regulamentos rígidos e a regras de atuação há muito consolidadas. É
nesse quadro que o Programa Delegacia Legal impõe uma nova forma de governo das
atividades policiais.
Neste trabalho, apresento uma perspectiva crítica da reforma tomando por referência a
forma como os policiais produzem significados e se relacionam com um programa que incide
sobre suas atividades. Nesse sentido, é importante destacar que os policiais têm um
conhecimento próprio de como se devem fazer as coisas, o que merece sobremaneira nossa
atenção. Apesar de não ter adotado um parâmetro normativo de análise, busquei explicitar
que:
“...quem determina a gramática do poder serão as práticas microfísicas de um
quadro burocrático acostumado a regras não democráticas de governo” (Lima,
2004, p. 187).
Diante de um modelo que tende a ser re-significado até perder seu sentido original, são
perpetradas práticas que se justificam pelas lógicas burocrática e inquisitorial que sustentam o
produto penal e o produto policial.
Com vistas a tal problema, atentei para a natureza destes procedimentos e para as
formas como os policiais percebem e fazem uso dos registros policiais.
151
Esforçando-me em realizar uma revisão bibliográfica sobre o tema, no primeiro
capítulo, apresentei que estes estudos concordam em mencionar que as atividades policiais há
muito se regulam pelo tratamento diferenciado que concede às ocorrências, uma necessidade
prática que reflete as representações disponíveis pela própria sociedade em que se inserem.
Em seguida, explicitei as formas pelas quais a Polícia Civil do Rio de Janeiro vem
habitualmente realizando suas atividades. Frente a práticas que visam arregimentar uma
lógica baseada no segredo, na apropriação particularizada dos recursos públicos e em uma
sensibilidade jurídica mais orientada às formalidades burocráticas do que, de fato, em
administrar justiça, apresenta-se o Programa Delegacia Legal. Apresentado inicialmente como
uma reforma moral e intelectual, o programa tem por objetivo realizar uma reforma
administrativa na Polícia Civil fluminense.
Servindo-se de uma nova tecnologia de gestão e da informatização dos serviços
policiais, a reforma busca alterar o potencial dos registros policiais para dar conta das
atividades e tentar governar as condutas dos policiais.
A seguir, procurei testar a governabilidade policial a partir de como a organização se
adapta e de como a profissão reage à reforma pilotada do centro (Monjardet, 2003, p. 227). Se
por um lado analisei que as práticas das delegacias consolidam movimentos de criatividade
situada pelas regras de registro para garantir a manutenção da autonomia das escolhas e
decisões coletivas e não a identificação das responsabilidades individuais, por outro, analisei
que os agentes relacionam-se de forma a manter a autonomia de dizer o direito como uma
ética interna e disponível à instituição. Uma norma que também visa preservar os agentes das
formas de controle que os tornam vulneráveis à punição.
Assim, a justificativa para não internalização das regras prescritas pelo Programa
Delegacia Legal, seria o fato de que a disputa pela autonomia em dizer o direito impossibilita
qualquer tentativa de accountability das ações policiais. A existência de uma gramática de
152
controle baseada no controle punitivo combinada à falta de autonomia formal que os policiais
tem em tomar decisões faz com que se desenvolvam nas delegacias várias maneiras de evadir
ou manipular as novas regras. Diante do Programa Delegacia Legal, os policiais tiveram de
encontrar novas maneiras para fazer as mesmas coisas até que o programa perdesse seu
sentido original. Atualmente, algumas Delegacias Legais são as convencionais informatizadas
e, neste sentido, a criatividade em meio à reforma também serviu para conformar as formas de
trabalho já existentes. Como exemplo, os tipos de adaptação à reforma se apresentam como
formas de negar a reforma, pois nestas delegacias o programa não foi colocado em prática no
que diz respeito à gestão.
O Programa Delegacia Legal representa avanços por modificar o estatuto e o potencial
dos registros. No entanto, os diferentes usos dos registros por parte dos policiais denotam que
são eles que dominam as “regras do jogo”, quem deve ou não registrar, o que deve ou não ser
registrado, o que merece ser investigado e o que procede ou não virar inquérito. Combinada à
lógica corporativa, a tradição inquisitorial de produção de verdade faz com que os policiais
busquem formas de dizer o direito que não os tornem vulneráveis, já que encasteladas à
dinâmica interna da própria instituição.
O Programa Delegacia Legal procura empreender novas formas de produção e
controle sobre os procedimentos, mas a forma de construção judiciária baseada no cartório, na
inquisitorialidade, no segredo e no controle punitivo permanece inalterada. É por conta desses
critérios que os policiais organizam suas atividades de forma a continuar reproduzindo novas
maneiras de fazer a mesma coisa.
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