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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
ROSELI FIGUEIREDO MARTINS
A IDENTIDADE DE MENINAS NEGRAS: O MUNDO DO
FAZ DE CONTAS
Presidente Prudente
2006
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ROSELI FIGUEIREDO MARTINS
IDENTIDADE DE MENINAS NEGRAS: O MUNDO DO FAZ
DE CONTAS
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Educação
da Faculdade de Ciências e Tecnologia,
UNESP/Campus de Presidente Prudente
como exigência parcial para obtenção do
título de Mestre em Educação.
Orientadora: Profª Drª Gislene Aparecida
dos Santos
PRESIDENTE PRUDENTE
2006
2
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AGRADECIMENTOS
Em um trabalho de pesquisa são muitas as pessoas que acabam envolvidas,
e sem as quais a sua realização não seria possível.
Esta pesquisa teve a ajuda de algumas pessoas que foram muito
importantes nesta trajetória.
Em primeiro lugar agradeço a minha mãe que me apoiou em todos
momentos.
Uma pessoa imprescindível nesta caminhada foi sem dúvida minha
orientadora a professora Drª Gislene Ap.dos Santos com quem aprendi muito nesses
anos de convivência, pessoa por quem tenho a maior estima, gratidão e admiração.
Agradeço à Fapesp pela bolsa à qual resultou essa dissertação.
Agradeço a professora Tânia Macedo que me recebeu em sua casa e
emprestou- me alguns livros de autores africanos, e as professoras que participaram
da minha Banca de Qualificação Claude Lepine e Renata Libório e que deram
valorosa contribuição a esse trabalho.
Agradeço ao senhor Jorge pela ajuda em momentos decisivos.
Agradeço as duas professoras da série do CEU que me deixaram
trabalhar com suas salas e as meninas que participaram dessa pesquisa.
Agradeço ao meu sobrinho Ivan pela ajuda com o computador quando este
apresentava algum problema.
Obrigada à Maria Letícia por sua colaboração valiosa.
Duas outras pessoas que o posso deixar de mencionar é o casal de
amigos Angélica e André que me abriram a porta de sua casa e de seu coração e de
quem sempre recebi muita força, desde os anos de graduação.
São muitas as pessoas que me auxiliaram de alguma forma neste trabalho e
a todas sou grata do fundo do meu coração.
3
RESUMO
Neste trabalho discuto uma fantasia. Não a fantasia vinculada ao faz-de-
conta das histórias narradas às crianças, mas, a fantasia expressa por um desejo
aparentemente incorporado por grande parte dos habitantes de um país, no qual as
pessoas fazem de conta” que não discriminação quando há, que o racismo
quando há. Neste país o “faz de contas” é vivido por adultos e crianças. Tento
observar mais de perto, como meninas negras se inserem neste mundo de fantasias e,
a partir delas e por meio delas constroem sua identidade.
O trabalho foi realizado com meninas que, no ano de 2005, estavam
cursando a série do Ensino Fundamental, em escolas públicas da periferia da
cidade de São Paulo. Minha hipótese é a de que as meninas negras teriam dificuldade
para a aceitação dos traços estéticos de seu corpo que as identificariam como negras
(cabelos,tom de pele ou cor) e que isso se relacionaria diretamente a um padrão
feminino construído como o mais bonito e o mais aceitável com os quais não se
identificariam, por natureza.
Usei como instrumentos para minha pesquisa contos de fadas, desenhos e
dramatizações por entender que esse seria o caminho mais adequado para chegar às
fantasias das meninas. Através dos contos tentei descobrir como negociavam com as
personagens das histórias narradas de modo a resolverem suas próprias fantasias em
relação à imagem dos príncipes, das princesas e delas mesmas.
Palavras-chave: identidade, menina negra, educação.
4
ABSTRACT
In this work, I discuss a fantasy. It is not the fantasy about fairy tales
narrated in stories for children, but the fantasy that manifests the apparently
incorporated desire of the big part of the country’s inhabitants; a country where
people pretend that discrimination does not happen, but it does, that there is not
racism, but there is. In this country, this situation is experienced by adults and
children. I try to closely observe how the black girls participated in this world of
fantasies and how they build their identity from them and among them.
The work has been realized with girls that were studying at stage four
classes, in public fundamental schools of the São Paulo city peripheral area. My
hypothesis is that the black girls would have difficulties to accept their physical
characteristics, mainly those characteristics that identify them as African descendent
people (hair, skin color or tonality), and that this fact would be related to the social
feminine standard that they cannot reach, because of their nature.
I used fairy tales, draws and dramas as research’s frameworks because I
believe that those are the best ways to contact with the girls’ fantasies. Through the
fairy tales I tried to discover how the girls were negotiating with the stories
characters, to solve their own fantasies related to the prince’ image, princess’ image
and themselves.
Key words: identity, black girl, education.
5
SUMÁRIO
RESUMO------------------------------------------------------------------------------------04
INTRODUÇÃO-----------------------------------------------------------------------------07
CAPÍTULO I
1. Identidade: Em busca de conceitos----------------------------------------------------11
1.1 - Identidade Legitimadora no Brasil-------------------------------------------------16
1.2 – Preconceito, Racismo e Discriminação--------------------------------------------26
1.3 - Identidade Negra----------------------------------------------------------------------33
CAPÍTULO II
2. Fantasias e “Faz-de-Contas” – Sobre raças e cores---------------------------------39
CAPÍTULO III
3. Meninas Negras-------------------------------------------------------------------------45
CAPÍTULO IV
4. Construindo o Cenário para a Pesquisa----------------------------------------------50
4.1 O Mundo das Fadas-------------------------------------------------------------------54
CAPÍTULO V
5. As Fantasias na Construção da Identidade das Meninas Negras: Entre a Resistência
e a Legitimação----------------------------------------------------------------------------83
CONCLUSÃO----------------------------------------------------------------------------114
REFERÊNCIAS -------------------------------------------------------------------------116
ANEXOS--------------------------------------------------------------------------------122
6
INTRODUÇÃO
Era uma vez um país, no qual as pessoas não se discriminavam pela sua
cor, nem pela sua raça, nem quando pobres ou quando ricas, nem por sua aparência.
Todos se esforçavam o tempo todo para tratar o outro com respeito e generosidade.
As pessoas eram alegres e felizes... Quase ninguém chorava e, quando o fazia, era
somente pela emoção diante de alguma coisa muito boa que teria acontecido. Era uma
vez um país no qual todos viveram felizes para sempre.
Neste trabalho, discuto uma fantasia. Não a fantasia vinculada ao faz-de-
conta das histórias narradas às crianças, mas, a fantasia expressa por um desejo
aparentemente incorporado por grande parte dos habitantes de um país, no qual as
pessoas “fazem de conta” que não discriminação, quando há; que não racismo,
quando há.
Não se trata de ironia ou de hipocrisia, mas de algo que pode ser tomado (e
é tomado) como o sugerido por Maggie (2001), ou seja, como mostras de uma
ambigüidade brasileira que pode ser sinal de ausência de ódio racial” (p.21), ou
como mostras de um legítimo desejo de harmonia. Um desejo que encontra inúmeras
barreiras para realizar-se, mas, que nem por isso deixa de existir, mesmo que como
em um “faz de contas”.
Tento observar, mais de perto, como meninas negras se inserem nesse
mundo de fantasias e, a partir dele, constroem sua identidade. O trabalho foi realizado
com meninas que, no ano de 2005, estavam cursavam a série do Ensino
Fundamental, em escolas públicas da periferia da cidade de São Paulo. Embora meu
foco não fosse a avaliação do impacto do mundo escolar na construção da imagem
dessas crianças, optei por delimitar a investigação pelo recorte escolar, porque
acreditava que o mundo da escola e seus conteúdos, transmitidos tanto por
professores, quanto por livros didáticos e afins, se ampliam e se fazem presentes de
forma marcante na elaboração da imagem que toda criança faz de si própria. Escolhi
adentrar o mundo das crianças (o mundo da infância) a partir de contos infantis, como
um estímulo para que elas pudessem falar de si, por meio de comentários acerca das
7
histórias, desenhos e dramatizações, conteúdos gerados após as narrativas dos contos
europeus e africanos, com personagens brancas e negras; criei espaço no qual as
meninas ficaram livres para representar, interpretar e falar sobre as histórias ouvidas e
das quais participaram.
A escolha do foco sobre crianças do sexo feminino decorreu do desejo de
saber como as meninas negras estariam construindo sua identidade, para além do
preconceito que poderia circundar suas vidas.
Minha hipótese inicial era a de que as meninas negras teriam dificuldade
para a aceitação dos traços estéticos de seu corpo, que as identificariam como negras
(cabelos, tom de pele ou cor), e que isso se relacionaria diretamente a um padrão
feminino construído como o mais bonito e o mais aceitável, com o qual essas meninas
não se identificariam, num primeiro momento.
E foi com esse intuito que fui a campo e iniciei minhas leituras. Visitei o
CEU
1
, onde escolhi realizar o trabalho empírico e coletei todo o material necessário
para o teste de minhas hipóteses. Comecei esse percurso circunscrevendo o conceito
de identidade, apoiando-me na definição em que Castells (1999) oferece as bases para
a construção de identidades coletivas: podem ser identidades legitimadoras,
identidades de resistência e identidades de projeto. Também fiz uso das considerações
tecidas por Stuart Hall (2000), no que tange aos conflitos inerentes ao uso do termo
identidade e à busca por uma identidade, nos tempos modernos.
Reconheço que Castells e Hall se situam em campos teóricos distintos e
não pretendo associá-los de maneira indiferenciada. Castells opera com conteúdos da
Sociologia, os quais permitem analisar o entrelaçamento entre a construção histórica e
social das identidades em oposição dos grupos ou atores sociais, em face do poder dos
grupos hegemônicos.
Hall opera com uma perspectiva que possibilita analisar as inter-
relações de diferentes culturas, formando uma composição brida, na maioria das
sociedades modernas.
1
A sigla CEU significa Centro Educacional Unificado, e foi em uma dessas instituições que realizei a
pesquisa.
8
Nesse sentido, Hall nos é vital para pensarmos uma das facetas mais
valorizadas na construção do Brasil como nação, que é a da mistura entre culturas
diversas. Por sua vez, Castells nos auxilia a entender as tensões que perpassam as
relações entre os desiguais que buscam formas de organização coletivas, na procura
de sua identidade contra uma identidade legitimadora.
Mostro como, no Brasil, a identidade legitimadora se vincula à construção
da idéia de um país mestiço, no qual as três raças formadoras da nação conviveriam
de maneira harmoniosa, não havendo preconceito ou discriminação, na medida em
que o povo brasileiro seria uma composição das qualidades e defeitos oriundos do
português, do africano e do indígena. Contudo, no mesmo momento em que se afirma
essa identidade nacional mestiça, constroem-se teorias capazes de mostrar como
haveria uma diferença racial que hierarquizaria os tipos diferentes. Da mesma forma,
quando se pretende que o país adentre o mundo mais civilizado e moderno da
sociedade industrial, passa-se a valorizar o branco europeu, o branqueamento dos não
europeus, e a afirmar que as qualidades atribuídas aos negros e indígenas seriam fonte
de atraso.
Como os negros poderiam construir uma identidade positiva, vivendo numa
sociedade que os apresenta vinculados a valores negativos? A construção de uma
identidade negra positiva só pode ser feita em oposição a uma identidade legitimadora
nacional que os nega.
Considero que essa identidade nacional harmoniosa, apoiando-se na idéia
de um país onde não violência nem discriminação, é uma fantasia nacional. Faço
menção à discussão elaborada por Otávio de Souza (1994), segundo a qual haveria
uma fantasia do Brasil como um país paraíso.
Pergunto como meninas negras tão jovens e que, por serem meninas e
negras, são definidas pela inter-relação entre sua condição de crianças, seu gênero e
sua raça poderiam se opor aos valores difundidos pela identidade legitimadora, de
modo a construir uma auto-imagem positiva?
9
Por meio do trabalho de campo, procurava compreender se as meninas
negras incorporariam ou rejeitariam os ditames da identidade legitimadora ou da
cultura hegemônica e como, por meio de sua ação, construiriam suas identidades.
Procuro investigar como esse ideal de branqueamento do negro (ou mestiçagem) se
faria presente e até que ponto elas fantasiavam ser diferentes do que são, para
atenderem a esse ideal.
Usei o mundo da fantasia com o objetivo de permitir que cada uma delas
falasse sobre as suas fantasias e mostrassem suas representações sobre raça, cor e
identidade. Esse momento pôde indicar que uma retórica sobre as raças e cores, no
Brasil, acompanhando o desenvolvimento da identidade dos negros, e que tal retórica
se vincula a fantasias especificamente ligadas à raça e à cor.
É isso que pretendo demonstrar, a partir de agora.
10
1. IDENTIDADE: EM BUSCA DE CONCEITOS
Definir identidade é uma das tarefas mais árduas, em nossos dias, porque
identidade pode ter significados múltiplos, tanto para um indivíduo quanto para um
coletivo de indivíduos encerrados em uma mesma cultura ou territorialidade. Também
porque como define Hall, esse é um conceito que deve operar “sob rasura” (HALL,
2000, p. 104). É um conceito que continua operando no intervalo entre sua inversão e
a emergência de um novo que o substitua adequadamente. Sem eles, algumas
questões não podem ser pensadas; entretanto, a sua utilização também pode gerar
complicações.
Hall considera que esse conceito ainda é preciso, por exemplo, para se
pensar a questão da agência (elemento ativo de ação individual) e de política
(movimentos políticos, política de localização e de identidade).
Parece que é na tentativa de rearticular a relação entre sujeitos e práticas
discursivas que a questão da identidade ou melhor, a questão da identificação
caso se prefira enfatizar o processo de subjetivação (em vez das práticas
discursivas) e a política de exclusão que essa subjetivação parece implicar – volta
a aparecer (id., ibid., p.105)
Mas, o autor diz que recorrer a essa explicação não facilita ou resolve os
problemas que giram em torno do conceito de identidade. Falar em identificações os
amplia, inserindo no campo político questões oriundas da psicologia e da psicanálise,
por meio de um termo tão ou mais ambivalente que o próprio termo identidade.
O mesmo autor afirma que a identificação é ambivalente desde o início. É
um processo de articulação, saturação, sobre determinação. “[...] Ela está fundada na
fantasia, na projeção e na idealização.“[...] Seu objeto tanto pode ser aquele que é
odiado quanto aquele que é adorado” (HALL, 2000, p.107).
Tal conceito de identidade não nos remete a uma perspectiva de identidade
fixa, “essencialista”, que não se altera por interferência do tempo e da história. Ao
contrário, trata-se de um processo de constantes mudanças e transformações, de
11
relações quase sempre conflituosas, por meio das quais os sujeitos vão definindo seus
níveis de pertencimento.
“[...] elas emergem no interior do jogo de modalidades específicas de poder e são,
assim, o produto da marcação da diferença e da exclusão do que o signo de uma
unidade idêntica, naturalmente constituída, de uma “identidade” em seu
significado tradicional isto é, uma mesmidade que tudo inclui, uma identidade
sem costuras, inteiriça, sem diferenciação interna (id., ibid., p.109).
Acrescenta que, exatamente em função do caráter movediço que a
identidade possuiria, não se pode afirmar que ela nos remeta a algo que permaneça
sempre e o mesmo, a um eu coletivo (comum a um mesmo povo, cultura,
ancestralidade partilhada). As identidades, afirma Hall, são construídas por meio da
diferença e não fora dela. Apenas na relação com o outro é que podem ser pensadas.
As identidades podem funcionar, ao longo de toda a sua história, como pontos de
identificação e apego apenas por causa de sua capacidade para excluir, para
deixar de fora, para transformar o diferente em “exterior”, em abjeto...as
unidades que as identidades proclama são, na verdade, construídas no interior do
poder e da exclusão (id., p.110).
Contudo, quem melhor explora esse jogo de poder e exclusão não é Hall,
mas Castells.
Por isso, cremos que a forma como Castells (1999) define identidade seja
fundamental para recortarmos, neste trabalho, o momento de embate entre poder,
identificação, exclusão e resistência.
Castells (op. cit.) discute a construção de identidades coletivas. Para ele,
também qualquer identidade é uma construção, de sorte que pergunta: a partir de que,
por quem e para que essa construção ocorreria?
A construção de identidade vale-se da matéria-prima fornecida pela história,
geografia, biologia, instituições produtivas e reprodutivas, pela memória coletiva
e por fantasias pessoais, pelos aparatos de poder e revelações de cunho religioso.
Porém, todos esses materiais são processados pelos indivíduos, grupos sociais e
sociedades, que reorganizam seu significado em função de tendências sociais e
projetos culturais enraizados em sua estrutura social, bem como em uma visão de
tempo/espaço (p.23).
12
A hipótese do autor é que quem constrói a identidade coletiva são os
mesmos atores responsáveis pela diferenciação do conteúdo simbólico sobre o qual
essa identidade é construída, remetendo-nos às relações de poder envolvidas nas
definições de identidades coletivas e na construção de exclusão.
Por isso, Castells (1999) define três formas e origens para a construção de
identidades coletivas:
Identidade Legitimadora: introduzida pelas instituições dominantes no intuito de
expandir e racionalizar sua dominação em relação aos autores sociais...
Identidade de Resistência: criada por atores que se encontram em posições/
condições desvalorizadas e/ou estigmatizadas pela lógica da dominação,
construindo, assim, trincheiras de resistência e sobrevivência com base em
princípios diferentes dos que permeiam as instituições da sociedade, ou mesmo
opostos a estes últimos.
Identidade de Projeto: quando os atores sociais utilizam-se de qualquer tipo de
material cultural ao seu alcance, constroem uma nova identidade capaz de
redefinir sua posição na sociedade, e ao fazê-lo, de buscar a transformação de
toda a estrutura social. Esse é o caso por exemplo, do feminismo que abandona as
trincheiras de resistência da identidade e dos direitos da mulher para fazer frente
ao patriarcalismo, à família patriarcal e assim de toda a estrutura de produção,
reprodução, sexualidade e personalidade sobre a qual as sociedades
historicamente se estabeleceram (p.24).
As identidades de resistência e as identidades de projeto são aquelas que se
articulam e o construídas pelos movimentos sociais, e que outros autores entendem
como a construção de uma política de identidade associada a uma política da
diferença. Cada uma pressupõe uma forma de negociação/aceitação/negação dos
valores da cultura da classe dominante. Isso significa dizer que pensar a identidade é
pensar a inter-relação entre o indivíduo com a cultura na qual vive e nos referenciais
que ela oferece, para que se possa construir modos de vida próprios. Para o autor, é
interessante apontar para a impossibilidade de essencializar identidades (a identidade
decorre de processos dinâmicos). Todavia, também é fundamental considerar os
resultados decorrentes das três formas apontadas por ele, por meio das quais os atores
sociais e os sujeitos sociais constroem identidades.
No caso da identidade legitimadora, o resultado poderá ser a formação de
uma sociedade civil com suas organizações e instituições. No caso da identidade de
resistência, o resultado poderá ser a formação de comunidades que se organizam para
13
reagir à opressão. no caso das identidades de projeto, seriam produzidos sujeitos
sociais que construiriam um projeto de vida diferente (com base em sua identidade
oprimida) que lhes permitiria a transformação da sociedade.
Nesse sentido, os grupos que se consideram oprimidos e/ou excluídos
buscarão elementos os quais lhes possibilitem construir uma identidade de resistência,
ou de projeto, em oposição àquela identidade determinante da sociedade civil, das
organizações e das instituições responsáveis por sua exclusão.
Nascimento enfatiza que reivindicar uma identidade é construir poder. De
que maneira isso ocorre?
uma batalha ininterrupta pelos códigos culturais da sociedade que são eles
“os códigos da informação e as imagens de representação em torno dos quais as
sociedades organizam suas instituições e as pessoas constroem suas vidas”
(NASCIMENTO, 2003, p.41).
Para os grupos negros, no Brasil, a construção da identidade de resistência
tem uma especificidade e uma urgência que se inscrevem na maneira de inserção
desses indivíduos em nossa sociedade, de modo a alterar os efeitos da identidade
legitimadora.
Essa identidade também seria construída por meio de identificações com
símbolos da história, geografia, língua etc., que, ao contrário de legitimar os
valores/símbolos que compõem a sociedade que os excluiria, construiriam valores
afins com as identificações que os indivíduos, como grupo e pessoalmente,
considerariam ser o melhor para si.
Assim, os grupos excluídos buscam elementos na história, ou no passado
remoto, em que sua exclusão não teria ocorrido ou que justificasse a construção de
uma sociedade na qual houvesse eqüidade.
Castells (1999) trata dos valores que fundamentam a construção da
identidade Islâmica, por exemplo, em oposição a uma identidade do Ocidente. E eu
aponto para os símbolos aos quais recorrem os ativistas negros (Zumbi, enquanto líder
guerreiro, a tradição e histórias africanas, nomes, idiomas), como formas de
14
elaboração de uma identidade de resistência e de um projeto identitário que vise, a
longo prazo, a sua inclusão ou total transformação social.
As idéias trazidas por Castells nos levam a crer que não se pode abordar a
construção de uma identidade negra, no Brasil, sem considerar: a) a construção de
uma identidade legitimadora, em relação à qual a identidade negra se oporia; e b) os
símbolos que serão mobilizados pela agência negra, para a construção dessa
identidade de resistência.
No entanto, também não se pode desconsiderar todo o processo de
identificações e fantasias que permeia a forma como os indivíduos incorporam ou não
esses símbolos. E, nesse tópico, é Hall que nos auxilia a pensar. Ou seja, a construção
da identidade negra, ao atuar como projeto de resistência, não pode descartar os
conflitos decorrentes das identificações vividas por cada sujeito negro. Como projeto
político, ela deve se construir como política de identidade e de inclusão; no campo
subjetivo, ela deve contemplar os processos de fantasias, idealizações e negações,
vividos por cada um, de sorte a legitimar, muitas vezes, aquilo que, por outro lado, se
desejaria contestar. Compreender tudo isso significa entender um pouco mais a
construção do imaginário brasileiro.
15
1.1 Identidade Legitimadora no Brasil
Discutir a identidade legitimadora, no Brasil, é discutir a construção do
próprio imaginário nacional sobre raças e cores. Obviamente, não pretendo
aprofundar essa discussão, neste trabalho, que tal tema foi objeto de reflexões que
datam desde o século XIX a nossos dias. Pretendo, apenas, resgatar algumas idéias
que, depois, verifico, repetem-se no discurso das crianças negras. Começo
apresentando o vínculo entre o Brasil e a idéia da existência de um paraíso terrestre.
Essa idéia, muito presente até os dias atuais, leva as pessoas, em nosso país, a crerem
que, de alguma forma e apesar das dificuldades que o povo enfrenta, vivemos num
país melhor, livre de preconceitos, que somos predestinados a dar certo e que, se
ainda não deu, é apenas uma questão de tempo.
Chauí (2000) discute a relação entre a idéia de fundação do Brasil
atrelada ao mito do paraíso, segundo o qual o país teria se constituído de maneira
harmônica pela junção entre povos fundadores. Muito embora Chauí diferencie a
ideologia da identidade nacional da construção de um caráter nacional brasileiro
2
, ao
apresentar os traços que diferentes intérpretes do Brasil definiram como a
característica do povo brasileiro, o que se observa é que eles se apóiam no trajeto que
o mito das três raças percorreu.
Vejamos
3
:
2
O foco de meu trabalho não é o estudo da teoria do caráter nacional brasileiro, tal como foi abordado por
Dante Moreira Leite, em seu texto “O caráter nacional brasileiro”. Entretanto, a apresentação simplificada do
que se pensou, em algum momento, serem as características do povo brasileiro pode reforçar a exposição de
outras idéias. A teoria da existência de um caráter nacional, abandonada como “científica”, na atualidade, é
resgatada por Chauí como uma poderosa ideologia que esteve presente na construção da idéia de uma nação
brasileira e, para essa autora, de certa forma se articula com a ideologia de uma identidade nacional.
3
As informações que compõem os quadros abaixo foram retiradas do livro de Marilena Chauí. Brasil. Mito
Fundador e Sociedade Autoritária. São Paulo: Perseu Abramo, 2000, p.22-25.
16
17
18
19
20
Para que se possa ter uma idéia da diferença entre as duas ideologias tomemos
um exemplo. Na ideologia do “caráter nacional”, a nação é formada pela mistura
de três raças índios, negros e brancos a sociedade mestiça desconhece o
preconceito racial. Nessa perspectiva o negro é visto pelo olhar do paternalismo
branco, que a afeição natural e o carinho com que brancos e negros se
relacionam, completando-se uns aos outros, num trânsito contínuo entre casa-
grande e senzala. Na ideologia da “identidade nacional”, o negro é visto como
classe social, a dos escravos, e sob a perspectiva da escravidão como instituição
violenta que coisifica o negro, cuja consciência fica alienada e escapa
fugazmente da alienação nos momentos de grande revolta. Na primeira, o caráter
brasileiro é formado pelas relações entre o branco bom e o negro bom (se nosso
caráter for louvado), ou entre o branco ignorante e o negro indolente como
violência branca e alienação negra, isto é, como duas formas de consciência
definidas por uma instituição, a escravidão. Como observa Silva Lara, no livro
Campos da Violência, a primeira imagem é a da escravidão benevolente,
enquanto a segunda é a da escravidão como violência, mas nos dois casos os
negros não são percebidos como o que realmente foram, tirando desses homens e
mulheres “sua capacidade de criar, de agenciar e ter consciências políticas
diferenciadas”, numa palavra, despojando-os da condição de sujeitos sociais e
políticos.
Enquanto ideologia do “caráter nacional” apresenta a nação totalizada é assim
que por exemplo,a mestiçagem permite construir a imagem de uma totalidade
social homogênea -, a da “identidade nacional” a concebe como totalidade
incompleta e lacunar é assim que, por exemplo, escravos e homens livres,
pobres, no período colonial, ou os operários, no período republicano, são
descritos como categoria da consciência alienada, que os impediria de agir de
maneira adequada. A primeira opera com o pleno ou o completo, enquanto que a
segunda opera com a falta, a privação, o desvio. E não poderia ser de outra
maneira. Aidentidade nacional” pressupõe a relação com o diferente. No caso
brasileiro, o diferente ou outro, com relação a qual a identidade é definida, são
os países capitalistas desenvolvidos, tomados como se fossem uma unidade e
uma totalidade completamente realizadas. É pela imagem do desenvolvimento
21
completo do outro que a nossa “identidade” definida como subdesenvolvida,
surge lacunar e feita de faltas e privações (CHAUÍ, 2000 p.26,27).
Ao fundo, o que se observa é o mito das três raças operando de modo a
oferecer a imagem de uma homogeneidade considerada necessária à ordem social e à
formação da nação brasileira, em si mesma.
A identidade brasileira seria composta pela mescla das características
desses três povos. Se variações nas definições mais negativas, oferecidas para os
brasileiros por autores como Silvio Romero, ou menos negativas (ou mescladas entre
negatividades e supostas positividades), em autores com Gilberto Freyre, em todos os
casos, mantém-se a idéia da mestiçagem como raiz da composição do povo brasileiro.
Assim, as especificidades de negros e índios foram sendo apagadas em
prol de uma identidade nacional, que se caracterizaria não pela diferença, mas pela
homogeneidade.
A construção de uma identidade nacional mestiça deixa ainda mais difícil o dis-
cernimento entre as fronteiras de cor. Ao se promover o samba a título de música
nacional, o que efetivamente ele é hoje, esvazia-se sua especificidade de origem,
que era ser uma música negra (ORTIZ, 1994, p.43).
O nacional, em detrimento das especificidades de cada um, torna invisível
o que acontece de real em uma nação. No caso brasileiro, o preconceito racial e a
exclusão social. “[...] O mito das três raças é neste sentido exemplar, ele não somente
encobre os conflitos raciais como possibilita a todos se reconhecerem como
nacionais” (Idem, p.44).
assim, a crença generalizada de que o Brasil: 1) é um dom de Deus e da
natureza; 2) tem um povo pacífico, ordeiro, generoso, alegre e sensual, mesmo
quando sofredor; 3) é um país sem preconceitos raro a expressão mais
sofisticada “democracia racial”), desconhecendo discriminação de raça e de
credo, e praticando a mestiçagem como padrão fortificador da raça; 4) é um país
acolhedor para todos que nele deseje trabalhar, e, aqui, não melhora e não
progride, quem não trabalha, não havendo pois, discriminação de classe e sim
repúdio da vagabundagem, que, como se sabe é a mãe da delinqüência e da
violência; 5) é um “país dos contrastes regionais”, destinado por isso à
pluralidade econômica e cultural (CHAUÍ, 2000, p.8)
22
O Brasil também é pensado como a terra da bem-aventurança, das belezas
naturais e da exuberância.
[...] é interessante nos voltarmos para um mito presente no Brasil (e que se
desdobra entre muitos outros, como o da democracia racial, tão bem estudada por
diferentes autores, incluindo-se os presentes no livro organizado por Guimarães e
Huntley), que é o mito do paraíso terrestre.
Narra o mito que haveria, no Oriente, uma terra abençoada, cercada por rios
caudalosos e recoberta por riquezas infindáveis. O Brasil seria esse local, teria a
forma da terra da bem-aventurança ou do paraíso descrito nos livros sagrados, o
que seria facilmente atestado por sua localização geográfica, por suas belezas
naturais, por sua exuberância, pela ausência de catástrofes naturais, pela nudez de
seu povo originário (SANTOS, 2004, p.29).
O mito das três raças é revelador do que quero discutir.
Quem primeiro cunhou a idéia do mito das três raças foi o alemão Von
Martius, no século XIX.
A problemática da mescla cultural na história do Brasil foi colocada em nossos
horizontes de investigação desde os começos da historiografia nacional.
Apareceu pela primeira vez, sob o rótulo da miscigenação racial”, como
proposta vencedora do concurso promovido na década de 1840, pelo recém
fundado Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Formulou-a o alemão Karl
von Martius, naturalista, botânico, viajante que deixou preciosos registros sobre
a natureza e as gentes do Brasil, no século XIX. Em Como se deve escrever a
história do Brasil, Martius afirmou que a chave para se compreender a história
brasileira residia no estudo do cruzamento das três raças formadoras de nossa
nacionalidade a branca, a indígena, a negra, esboçando a questão da mescla
cultural sem contudo desenvolvê-la (VAINFAS, 1999, p.2).
Alguns intelectuais passaram a ver a mistura entre as raças como a única
possibilidade de o país estar entre nações mais evoluídas. O sangue branco, português,
poderia dosar as características negativas, atribuídas a índios e negros.
O Brasil passa a ser entendido a partir de alguns mitos que serviram de
base para que a unidade da nação fosse assegurada. O país, no final do século XIX,
com grande quantidade de escravos, ex-escravos, negros e indígenas, poucos brancos,
e que desejava, apesar da escravidão, entrar nos trilhos da modernidade.
Renato Ortiz também discute a construção do mito das três raças.
23
O conceito de mito sugere um ponto de origem, um centro a partir do qual se
irradia a história mítica. A ideologia do Brasil-cadinho relata a epopéia das três
raças que se fundem nos laboratórios das selvas tropicais. Como nas sociedades
primitivas, ela é um mito cosmológico, e conta a origem do moderno estado
brasileiro (ORTIZ, 1994, p.38).
Ortiz avalia a difícil tarefa para a interpretação do Brasil que, por um
lado, elabora para si a “mitologia do cruzamento harmonioso” entre as raças, ao mes-
mo tempo em que a realidade denunciava o oposto.
O desejo de colocar o Brasil entre as nações evoluídas e iniciar o processo
de industrialização gera o desconforto de ter de pensar nas conseqüências de anos de
presença negra e escrava.
A crença na inferioridade dos negros e índios era consenso absoluto, só ha-
vendo uma saída para o país: livrar-se dos negros ou branquear a nação, através da
miscigenação, como condição “sine qua non” para civilizar o Brasil.
Dessa forma, criou-se uma identidade brasileira alicerçada na idéia de que,
por meio da mestiçagem, teriam sido eliminadas todas as possibilidades de
discriminação racial, que se configurou no que ficou conhecido como mito da
“democracia racial”. Ou seja, o Brasil seria um país que, em função de sua história,
teria constituído uma relação harmoniosa entre todas as raças que formam a nação. A
identidade brasileira se alicerçaria em torno desse mito (ou dessa ideologia, nos
dizeres de Chauí).
Embora o mito da democracia racial brasileira tenha sido contestado por
diversos autores, nas últimas décadas, e a construção de um racismo tipicamente bra-
sileiro, fundamentado nesse mito, tenha sido demonstrado
4
, ainda se faz necessário
perguntar: por que, para o brasileiro, a questão identitária é tão importante e, princi-
palmente, por que, para os negros, ela tem sido considerada essencial?
4
Vide Roger Bastide e Florestan Fernandes, que, na década de 1950, desdobraram-se para demonstrar as
características da sociedade brasileira, desvelando, por meio de projeto financiado pela UNESCO, a
composição do mito da democracia racial. Seus alunos e outros intelectuais, como João Batista Borges
Pereira, Octávio Ianni, Oracy Nogueira e, mais recentemente, Antonio Sérgio Guimarães, Peter Fry, Lilia
Schwarcz, Marilena Chauí, Renato Ortiz, entre outros, continuam esse trabalho.
24
O que podemos perceber é que temos dificuldades de nos desvencilhar
desses mitos, que ainda nos rondam, porque, eles, de alguma forma, nos trazem algum
conforto, mesmo que ilusório. Ou se trata da ilusão de que vivemos em um país justo,
no qual todos têm as mesmas possibilidades de alcançarem seus objetivos, mesmo que
saibamos que essa justiça - que queremos acreditar real - contraste de modo
contundente com a realidade. Em conseqüência, tornamo-nos cegos e insensíveis
diante das injustiças que nos cercam. Esses são os efeitos que a identidade
legitimadora nos traz. Assim:
O racismo no Brasil gera uma sociedade que não pode ver a si mesma eo quer
fazê-lo para não se enxergar desarmônica. E esse olhar é interdito pelo profundo
quê assustador que ele revela. A máscara do racismo nos impede de reconhecer
que, sob o paraíso de uns, há o inferno de tantos outros (SANTOS, 2004, p.32).
Por isso, a luta pela identidade de resistência é apresentada aos grupos
excluídos, em oposição à identidade legitimadora, como pressuposto para a cidadania.
Quando, por exemplo, os negros lutam por marcar identidades, estão querendo, na
verdade, que suas diferenças e especificidades sejam aceitas e não negadas, em
função da identidade legitimadora.
Não à toa, a luta pela identidade (ou a defesa de políticas de identidade)
tem sido bandeira dos grupos minoritários. Não que outros não minoritários não
tenham, eles, também direitos à identidade. Obviamente têm, mas, a questão se
complica, na medida em que um único modelo de ser é considerado o normal, natural
e aceitável.
No Brasil, a construção de uma identidade nacional, apoiada na idéia da
mestiçagem e do branqueamento, torna o outro não mestiço um exótico (veremos,
adiante, o que isso quer dizer). Antes disso, é fundamental compreender como o
recurso à identidade legitimadora pode resultar na formação de preconceitos.
25
1.2 Preconceito, Racismo e Discriminação
A formulação de preconceitos ou de discursos preconceituosos é
impensável sem o apoio em algum juízo de valor e, no caso do preconceito racial, sem
o apoio de discursos sobre raças.
Quero discutir esse conceito, com o apoio do pensamento de Agnes Heller.
Agnes Heller foi uma pensadora influenciada pelo pensamento marxista e
isso nos levaria a supor que, para ela, seria fundamental considerar a macroestrutura
como produtora da infra-estrutura, ou mais simplesmente, considerar que são os
meios de produção que determinam o “homem” dentro da história. Contudo, Heller
elaborou uma forma de analisar a sociedade incluindo não as leis e as estruturas
econômicas de produção, mas também os sujeitos/ou indivíduos. Ela se ocupou da
produção do homem dentro e a partir dos processos históricos, considerando,
entretanto, aspectos da subjetividade humana, efetivamente.
Essa subjetividade é formada no e pelo cotidiano, com suas repetições,
reproduções e pelo espaço que contém para a superação do que é dado (social e
economicamente). O cotidiano é o espaço da repetição do senso comum, da ideologia,
mas também é o espaço da consciência ou da superação da ideologia.
Para Heller, “[...] o preconceito é a categoria do pensamento e do
comportamento cotidianos...” (1972, p.43). Ou seja, no cotidiano, uma fixação
repetitiva do ritmo, e uma rigidez que fazem com que o pensamento se cole na
experiência, no vivido, no empírico. Heller entende que esse aspecto faz do
pensamento cotidiano (que para ela são idéias somadas a comportamentos) algo
bastante concreto. Pensamos o que vivemos e vivemos o que nos é impingido pelas
relações cotidianas. Por isso, assumimos estereótipos generalizados, na vida cotidiana.
O cotidiano é o nosso fazer diário, a forma como nos inserimos e somos
inseridos no mundo; e os preconceitos são as formas mais gerais de reprodução ou de
expressão dos valores desse mundo do qual queremos tomar parte.
As ações que realizamos, no cotidiano, não precisam ser pensadas em
todos os detalhes, porque muitos dos atos que fazemos, no dia-a-dia, estão tão
26
impregnados em nós que não necessitamos e não devemos parar para pensar neles.
São hábitos repetidos e automatizados e que o senso comum acaba por definir como
naturais.
Porém, quando se trata de ações intelectuais, é exigido que pensemos de
forma mais detalhada e crítica, para podermos sair do senso comum. Ou seja, é
preciso perceber que todas as ações e idéias que temos, na vida cotidiana, fazem parte
de um contexto histórico que, de certa forma, nos determinou e continuará a nos
determinar, até que possamos inventar um novo contexto. Sendo assim, é de dentro
desse cotidiano que o que pensamos pode ser caracterizado como preconceito ou
como idéias e valores adotados sem que se tenha elaborado qualquer reflexão ou
pensamento sobre eles, mas é também de dentro no cotidiano (pensado e repensado)
que encontramos elementos para superar os preconceitos.
Na vida cotidiana, agimos mediante o imediato, o concreto. Esse
imediatismo é o que muitas vezes suporte a nossos preconceitos, sem sequer
sabermos, em essência, o seu porquê. Mas, como então entendermos os preconceitos,
tendo como pano de fundo o entendimento do cotidiano, ainda, segundo nossa autora?
Heller considera o preconceito como sendo um “[...] pensamento
fixado na experiência, empírico e, ao mesmo tempo ultrageneralizador. Quando
falamos aqui em ‘[...] pensamento’, o queremos nos referir a teoria. O pensamento
cotidiano implica também em comportamento” (HELLER, 1972, p.43).
Para chegarmos à ultrageneralização, nós nos valemos de estereótipos,
analogias e esquemas elaborados.
A ultrageneralização é inevitável na vida cotidiana. Cada uma de nossas atitudes
baseia-se numa avaliação probabilística. Em breves lapsos de tempo, somos
obrigados a realizar atividades tão heterogêneas que não poderíamos viver se nos
empenhássemos em fazer com que nossa atividade dependesse de conceitos
fundados cientificamente.
Mas o grau de ultrageneralização nem sempre é o mesmo. A rigidez das formas
de pensamento e comportamento cotidianos é apenas relativa, ou seja, pode se
modificar lentamente na atividade permanente e, com efeito, se modifica.
(HELLER,1972, p.44).
27
Vemos que os preconceitos, tomados como uma ultrageneralização, não
precisam ser estáticos e podem e devem ser questionados, quanto a sua validade. O
que presenciamos, no entanto, é que, por esse tipo de comportamento ser muitas vezes
considerado como natural, não o revemos ou sequer o percebemos, na maioria de
nossas ações cotidianas.
Crochik (2002) ressalta que o preconceito pode se vincular à tentativa
de manutenção de um modelo universal de identificações ou à defesa de um certo tipo
de experiência, fazendo com que conceitos sejam gerados sem a possibilidade de
serem testados empiricamente. Para ele, o “preconceito é entendido, em geral, como
uma atitude hostil em relação a um grupo de indivíduos considerados inferiores sob
determinados aspectos – morais, cognitivos, estéticos – em relação ao grupo ao qual o
preconceituoso pertence ou almeja pertencer (CROCHIK, 2002, p.284).
Para esse autor, o preconceito é um impeditivo da experiência, pois a
impossibilita, paralisando a ação. Dessa maneira, Crochik resgata o sentido mais
convencional da palavra preconceito, definindo-a como um juízo formulado antes da
experiência ou reflexão (sentido também atribuído ao termo por Renato Queiroz,
1997).
Quer atrelado à experiência cotidiana, pré-reflexiva, quer afastado da
possibilidade de testar empiricamente as idéias concebidas, o preconceito se vincula,
para os três autores, a generalizações.
Contudo, para compreendermos como o preconceito pode alicerçar
experiências de discriminação e, no caso específico de nosso estudo, discriminações
raciais, é necessário compreender como algumas idéias sobre raça foram
naturalizadas, no Brasil, de modo a alimentar preconceitos.
Sabemos como o conceito de raça foi construído, inicialmente, por meio
das teorias racialistas dos pensadores do século XVIII, mas somente foi consolidado
pelos pensadores dos séculos XIX e início do século XX (cf. SCHWARCZ, 1993, e
28
SANTOS, 2002). Também é sabido que raça, enquanto uma verdade biológica, não
existe. A correspondência entre raças biológicas e agrupamentos humanos específicos
vem sendo contestada desde o final da Segunda Guerra Mundial. Biologicamente,
raça não existe, mas, socialmente e ideologicamente, ela pode existir. Para Antonio
Sérgio Guimarães:
[...] é impossível definir geneticamente raças humanas que correspondam às
fronteiras edificadas pela noção vulgar, nativa, de raça. Dito ainda de outra
maneira: a construção baseada em traços fisionômicos, de fenótipo ou de
genótipo, é algo que não tem o menor respaldo científico. Ou seja, as raças são,
cientificamente, uma construção social e devem ser estudadas por um ramo
próprio da sociologia ou das ciências sociais, que trata das identidades sociais.
Estamos, assim, no campo da cultura, e da cultura simbólica. Podemos dizer que
as “raças” o efeitos de discursos; fazem parte desses discursos sobre origem.
As sociedades humanas constroem discursos sobre suas origens e sobre a
transmissão de essências entre gerações. Esse é o terreno próprio às identidades
sociais e o seu estudo trata desses discursos sobre origem. Usando essa idéia,
podemos dizer o seguinte: certos discursos falam de essências que são
basicamente traços fisionômicos e qualidades morais e intelectuais; nesse
campo a idéia de raça faz sentido. O que são raças para a sociologia, portanto?
São discursos sobre as origens de um grupo, que usam termos que remetem à
transmissão de traços fisionômicos, qualidades morais, intelectuais, psicológicas,
etc., pelo sangue (conceito fundamental para entender raças e certas essências).
(2003, p.96).
Entretanto, tomar a noção de raça como não científica o exime a
existência de uma efetiva discriminação por categorias raciais.
Para a noção de raça falta a realidade biológica, mas esta se encontra
fortemente presente na hierarquia social, exercendo forte impacto sobre a realidade,
ou seja, raça é um fenômeno construído socialmente. Mesmo que socialmente a
palavra raça tenha sido excluída do imaginário e do vocábulo popular, continua a
ocupar o imaginário popular como categoria “normativa e simbólica”
(NASCIMENTO, 2003).
Ou seja, se, na realidade, a idéia de raças é impensável, o discurso sobre
raças diferentes não pode ser tomado como ponto de análise e compreensão da
forma simbólica por meio da qual as identificações sociais são construídas, como
também nos auxilia a compreender a base de uma série de preconceitos referentes à
população negra (e entre grupos inferiorizados, em função das teorias do racismo
biológico). Os preconceitos, neste caso, ocorrem quando os discursos gerados para a
29
explicação da forma como a sociedade se originou são tomados como verdades
incontestáveis. Dito de outro modo, as ideologias geradas para justificar a existência
da desigualdade social e econômica (desde o fim na escravidão) entre brancos e
negros, no Brasil, são tomadas como verdadeiras. As diferenças são naturalizadas e o
preconceito ratifica, cotidianamente, essa naturalização. Nesse sentido, podemos dizer
que o preconceito racial é o primeiro passo para a discriminação racial,
compreendendo discriminação como a efetivação, prática e concreta, das
representações ou generalizações adquiridas, quer pela experiência irrefletida (para
usarmos a terminologia de Heller), quer pelos juízos não testados (no sentido que
Crochik atribui ao termo preconceito). Preconceito estaria no campo dos julgamentos
e idéias e discriminação (neste caso), no campo da prática e da ação.
o racismo é mais do que uma experiência individual ou isolada de
discriminação ou a “formulação” de preconceitos. O racismo é uma ideologia
construída com base em teorias raciais, com o objetivo explícito de manter o poder de
um grupo sobre o outro, valendo-se dessas teorias como justificativas. E, como toda
ideologia, nega-se a si mesma, ou seja, mantém-se por meio da negação de sua
existência. Racismo diz respeito ao campo da política e da dominação política, da
exclusão, da discriminação sistemática e, em casos como os ocorridos em diferentes
momentos ao longo do século XX, em extermínio de grupos inteiros como política de
Estado. Nesse sentido, podemos considerar que os preconceitos raciais se nutrem (ao
mesmo tempo em que nutrem) das ideologias racistas e que as discriminações são a
efetivação delas. A ideologia faz com que o preconceito seja naturalizado e a
discriminação não percebida. Isso ocorre porque o senso comum as toma como
decorrências naturais da forma como o mundo foi ordenado.
O senso comum está continuamente sendo criado e re-criado em nossas
sociedades, especialmente onde o conhecimento científico e tecnológico
está popularizado. Seu conteúdo, as imagens simbólicas derivadas da
ciência em que ele está baseado e que, enraizadas no olho da mente,
conformam a imagem e comportamento usual, estão constantemente
sendo retocadas. No processo a estocagem de representações sociais, sem
a qual a sociedade não pode se comunicar ou se relacionar e definir a
realidade, é realimentada. Ainda mais: essas representações adquirem
30
uma autoridade ainda maior, na medida em que recebemos mais e mais
material através de sua mediação analogias, descrições implícitas e
explicações dos fenômenos, personalidades, a economia etc, juntamente
com as categorias necessárias para compreender o comportamento de
uma criança, por exemplo, ou de um amigo. Aquilo que, a longo prazo,
adquire, a validade de algo que nossos sentidos ou nossa compreensão
percebem diretamente, passa a ser sempre um produto secundário e
transformado de pesquisa científica. Em outras palavras, o senso comum
não circula mais de baixo para cima, mas de cima para baixo; ele não é
mais o ponto de partida, mas o ponto de chegada. (MOSCOVICI, 2003,
p.95).
O senso comum também se alimenta de “resquícios de teorias e
concepções científicas”, porém sem recorrer à lógica e ao encadeamento das idéias
que, em algum momento, alicerçaram as teorias científicas e sem se interrogar sobre
elas. O senso comum faz uso, muitas vezes, daquilo que, em um determinado
momento histórico, pode ter sido considerado por alguns como ciência (a teoria das
diferenças raciais, por exemplo), mas que, em função das constantes investigações e
interrogações, passaram a não ser mais corroboradas. Para o senso comum, essas
teorias cientificamente desacreditadas permanecem como uma aparência convincente
de verdade.
Em tal ótica, podemos pressupor que tenha sido utilizada uma síntese de
representações acerca dos negros, as quais nos orientam e realimentam outras
representações formadas e vinculadas como válidas pelo senso comum, de modo a
cristalizar e naturalizar a discriminação racial, já que um mundo de idéias criadas e
recriadas e passadas de geração a geração, sem que houvesse questionamentos, havia
se tornado “verdade”.
É nessa perspectiva que compreendemos a seguinte afirmação de Taylor:
Assim, algumas feministas afirmaram que, nas sociedades patriarcais, as
mulheres eram induzidas a adoptar uma opinião depreciativa delas próprias.
Interiorizavam uma imagem da sua inferioridade, de tal maneira que, quando
determinados obstáculos reais à sua prosperidade desapareciam, elas chegavam a
demonstrar uma incapacidade de aproveitarem as novas oportunidades. E, além
disso, estavam condenadas a sofrer pela sua debilitada auto-estima. Também
surgiram argumentos semelhantes em relação aos negros: que a sociedade
branca projectou durante gerações uma imagem de inferioridade da raça negra,
imagem essa que alguns dos seus membros acabaram por adaptar. Nesta
perspectiva, a sua auto-depreciação torna-se um dos instrumentos mais
poderosos da sua própria opressão. (TAYLOR, 1998, p. 46).
31
Vimos como, no Brasil, alicerçou-se a idéia de que, em função da
miscigenação (da mescla inicial entre as três raças formadoras), as possibilidades de
discriminação racial teriam sido afastadas. A discriminação racial torna-se invisível,
em função da própria invisibilidade da ideologia racista que se oculta para se
reproduzir e se manter. Por isso, a desigualdade entre negros e brancos não pode ser
explicada ou compreendida em função da discriminação que operaria na sociedade,
mas em função das próprias competências e incompetências de cada um, em função
de seus atributos individuais e pessoais. Dessa forma, o preconceito racial funciona
como uma mola propulsora para a manutenção do racismo, pois conduz à avaliação
de que a desigualdade não é fruto de uma construção histórica e social, porém
decorrente de valores e características inerentes a indivíduos ou a grupos específicos.
É nesse emaranhado formado por conceitos e preconceitos que a
identidade negra se constitui.
32
1.3 Identidade Negra
Quero iniciar esta discussão fazendo menção a autores que estudam a
questão do reconhecimento. Taylor (1998), por exemplo, constrói todo um arcabouço
teórico para justificar a edificação de uma política de reconhecimento das diferenças
existentes nas sociedades contemporâneas, que são necessariamente pluriétnicas e
multiculturais.
Taylor argumenta que a única forma de construção de sociedades
democráticas, na atualidade, seria por meio do reconhecimento das diversidades entre
as culturas e das diferenças entre povos que residem num mesmo território. Muitos
autores têm discutido essa temática, em vários países, buscando construir políticas
que permitam a convivência e o reconhecimento dos direitos de grupos historicamente
discriminados, excluídos de alguns direitos de cidadania.
Contudo, a questão do reconhecimento das diferenças e das diversas
identidades, que reivindicam participação na sociedade e na construção de seus
valores, implica uma série de fatores, os quais nem sempre constituem objeto de
consenso.
Vimos que Hall, mesmo afirmando que o conceito de identidade opera sob
rasura, considera importante pensá-lo, em questões como as da agência e da política
por meio das quais os movimentos políticos e os atores sociais criam maneiras de
participação no poder, enquanto Castells havia afirmado que construir uma identidade
é buscar poder.
Ricardo Franklin Ferreira defende sua tese de sentido de autoria na
construção da identidade. Seu trabalho busca demonstrar como se constrói a
identidade de um afro-descendente militante e aponta para uma mútua construção:
“[...] a inter-relação entre o desenvolvimento das identidades individuais dos atores
sociais e o meio social que vai sendo transformado” (FERREIRA, apud
NASCIMENTO, 2003, p. 35), por meio da ação do sujeito, que, ao tentar mudar o
mundo, muda a si mesmo. A idéia da construção conjunta, da autoria sobre o mundo,
das escolhas e do desejo (volição), parecem se unir.
33
Se o conceito de identidade é questionado por ser considerado
essencialista, Hall e Ferreira destacam sua importância, ao associá-lo à idéia de
agência como garantia da construção de sociedades menos excludentes. Assim, não
cabe relembrar o conceito de identidade como algo efetivamente fixo, mas, pensar em
processos de identificações que permitiriam a constante construção da subjetividade
do sujeito, por meio de sua ação na sociedade, por meio da inter-relação com outros
sujeitos e com outras subjetividades.
Porém, se, por um lado, essa idéia parece ser fluida demais para que possa
ser alicerce de qualquer política ou ação política, por outro lado, a construção de uma
identidade auxilia na organização de demandas, num mundo globalizado, no qual
cada vez mais se espera que as pessoas não se fixem em tradições para aderirem a um
movimento de mudanças constantes. Para essas pessoas, ter identidade é defender seu
lugar, seus espaços de poder. E, nesse sentido, pensar em identidade é pensar na luta
constante entre os projetos de resistência (identidade de resistência), em um mundo no
qual, talvez, não encontrem espaço. É pensar em projetos de construção de um mundo
novo (identidade de projeto) contra aquilo que buscaria homogeneizá-los. Dar voz,
portanto, a esses outros silenciados, ou seja, reconhecer sua existência história e o
processo pelo qual foram silenciados é uma forma de desmascarar a estrutura de
poder que os silenciou.
Hall pondera que, para que uma identidade se afirme, é preciso que
reprima aquilo que a ameaça. Essa idéia, cara a atores como Derrida, Laclau e Bhabha
(citados por Hall), evidencia que o ato de construir uma identidade se baseia no ato de
excluir algo e de estabelecer hierarquia entre pólos diferentes, resultado da
constituição dessa identidade.
Aquilo que é peculiar ao segundo termo é assim reduzido em oposição, à
essencialidade do primeiro à função de um acidente. Ocorre a mesma coisa
com a relação negro/branco, na qual o branco é, obviamente, equivalente a ser
humano. “Mulher” e “Negro”, o assim, “marcas” (isto é termos marcados) em
contraste com os termos não marcados “homem” e “branco”. (LACLAU,1990,
p.33, apud HALL, 2000, p.110).
Percebe-se que as identidades são construídas dentro do jogo de poder.
São construções, naturalizações para legitimar a exclusão. As identidades são algo
34
construído na diferença e na diferenciação, considerando-se sempre aquilo que
deixam de fora e que constantemente tentam desestabilizar.
Essa forma de construção do conceito de identidade, apresentada por Hall,
coincide com o conceito de identidade descrito por Castells (2002). Nesse sentido, as
identidades de resistência e de projeto, por meio da agência e da política, estariam
constantemente tentando desestabilizar a identidade legitimadora.
Retomando os apontamentos de Castells (op. cit.), vemos que, para os
grupos excluídos, a construção de uma identidade de projeto é essencial, se quiserem
ampliar os espaços de poder, no qual estão sub-representados ou mesmo, em muitos
lugares, sem representação alguma. Tal identidade de projeto se inicia quando os
grupos sociais têm consciência de que, somente organizados, conseguirão a inserção
de suas demandas na sociedade. Isso começa a partir da construção de uma identidade
de resistência (mesmo que individual) contra aquilo que é imposto e que pode ser
pensado como uma violência. A identidade de resistência pode, sem muitos
problemas, ser associada à apropriação de traços físicos ou culturais que possam ser
considerados positivos ou em oposição a estigmas e estereótipos. No caso específico
do Brasil, a identidade de resistência implicaria o reconhecimento e a retirada das
máscaras que o racismo impõe a negros e brancos. Essa questão é realmente muito
complicada, em nosso país, pois não brancos portam as máscaras do racismo, mas,
também, os próprios negros. Segundo Gislene Santos:
O negro que usa a máscara racista não pode ver nem a si mesmo nem ao outro.
Vive num mundo de mascarados e são somente as máscaras que ele pode
enxergar. E como os valores racistas em relação aos negros são os da negação,
da criação de estereótipos, da violência física e psíquica, o negro mascarado,
perpetua a negação, a violência, a estereotipia contra si e contra os outros. O que
atrai nela é exatamente a promessa de indiferenciação que faz do negro o branco.
Quando portando a máscara do racismo, o negro é o branco (não fisicamente,
mas pelo porte dos valores e de todas as formas de indentificações). Isso nos
remete ao mais cruel de todos os conflitos, quando o negro se torna incapaz de
amar a outro negro e vive a dor de não poder amar sequer a si próprio.
(SANTOS, 2004, p.34).
Assim, a construção da identidade de resistência dos negros significa,
antes de tudo, a superação dos preconceitos raciais introjetados.
35
Desse modo, Neusa Santos Souza, afirma que ser negro é
[...] tomar consciência do processo ideológico que, através de um discurso
mítico acerca de si, engendra uma estrutura de desconhecimento que o aprisiona
numa imagem alienada, na qual se reconhece. Ser negro é tomar posse dessa
consciência é criar uma nova consciência que reassegure o respeito às diferenças
e que reafirme uma dignidade alheia a qualquer nível de exploração. Assim, ser
negro, não é uma condição dada a priore. É um vir a ser. Ser negro é tornar-se
negro. (SOUZA, 1983, p.77).
Pensar a construção da identidade negra implica, portanto, considerar os
aspectos vinculados à forma como o racismo se manifesta entre nós e seus efeitos
sobre a população negra.
O preconceito racial pode acarretar sérios danos ao psiquismo da pessoa
que sofre a discriminação, chegando a levá-la a não se aceitar, devido a uma imagem
negativa que passa a ter de si.
Cavalleiro (2003), em sua tese de doutorado, entrevistou mulheres de três
gerações de famílias negras, constatando que não é costume haver conversas sobre
esse assunto, no seio dessas famílias. A princípio, nas entrevistas, essas mulheres
insistiam em dizer que nunca sofreram qualquer tipo de constrangimentos por serem
negras e que o racismo é coisa do passado, pois, na atualidade, não existe mais (mito
da democracia racial). Porém, quando começavam a vasculhar suas memórias, logo
confirmavam que esse é um problema que ainda se faz presente no dia-a-dia .
E, sempre com profunda goa e tristeza, relatavam a não aceitação, o
desejo de querer ser ou parecer brancas, muitas vezes com a mutilação de seus
próprios corpos, como tomar vários banhos por dia, lavar-se com água sanitária, para
livrar-se da cor que tanto sofrimento lhes traz. Também relatos sobre como tratam
seus cabelos com ferro quente e produtos químicos fortíssimos, a ponto de quase
perderem os fios, com o objetivo de alisá-los (CAVALLEIRO, 2003).
Autores, como Villares, discutem o quanto a “racialização” dos negros
recobre a sua humanidade, tornando-os invisíveis.
Apesar de negros serem invisíveis para a sociedade enquanto indivíduos,
cidadãos, a negritude, enquanto marca racial é ostensivamente visível. Enquanto
a branquitude é vista como normal, a negritude é vista como diferente, anormal.
36
Como Richard Dyer explica, uma das características da branquitude é o fato de
não ser etnicamente marcada; é um sinônimo de normalidade, não precisa ser
mencionada. “Enquanto raça for algo aplicável apenas para pessoas não brancas,
enquanto pessoas brancas não forem racialmente vistas nem nomeadas, elas/nós
funcionaremos como uma norma humana. Outras pessoas o racializadas
(raced), nós somos apenas pessoas. " [...] Não há posição mais poderosa que esta
de ser apenas humano”. (VILLARES, 2003, p.86).
Se o branco é simplesmente humano, os negros, dentro dessa lógica,
acabam sentindo-se à parte da humanidade, por serem diferentes daquele “modelo”
humano.
Quando Taylor discute políticas de reconhecimento, entende que o tema
do reconhecimento das diferenças é um dos mais importantes de nossa época. Não
pode ser pensado separadamente da questão da cidadania e, como afirma,
pontualmente, trata-se de reconhecer o outro negro, mulher e todos os excluídos.
O reconhecimento recairia sobre as identidades de resistência (sobre os
símbolos usados/criados por ela), mas, também, recairia sobre o próprio corpo, pela
linguagem gestual e por tudo que, em função de um padrão, teria sido considerado o
“outro” , estranho e discriminado por ter esses atributos.
Contudo, uma questão inquietante nesse processo de identificações
entre negros e brancos, quando se leva em conta que o grupo, em princípio, que seria
beneficiado pela política da diferença (ou pelo reconhecimento), não identifica isso
como um benefício. Visto de outra forma: se toda lógica da construção da identidade
negra opera por meio da valorização do que seria o corpo negro, a estética negra, a
cultura de origem africana, o que fazer (ou como explicar) as identidades negras que
se constroem por meio da negação de tudo isso?
Parte desse processo pode ser explicada pelo recurso aos próprios valores
criados e difundidos pela identidade legitimadora (o ideal de mestiçagem) e parte
pelas fantasias criadas em torno do ser negro, no Brasil.
O branqueamento se configura como uma forma de escape, para que os
negros, através dele, possam adquirir maior respaldo social, buscando não apenas se
moldarem a um padrão de beleza branco, mas, ideologicamente, terem os mesmos
37
valores, demonstrando isso na dificuldade que encontram em se auto-classificarem
como negros, muitas vezes preferindo serem chamados de morenos a serem definidos
como negros.
Porém, segundo Ferreira, a questão da construção da identidade não é um
problema só dos negros, mas do brasileiro em geral.
Assim, a sociedade brasileira cria mecanismos desfavoráveis ao
desenvolvimento de uma identidade articulada em torno de valores
positivamente afirmados, não apenas para os afro-descendentes, mas, para todo e
qualquer cidadão, incluindo os brancos e indígenas pois, na verdade, trata-se
de um problema de constituição da identidade do brasileiro. (FERREIRA, 2000,
p.43).
No entanto, no caso dos negros, a situação pode se tornar mais conflituosa,
por tratar-se, muitas vezes, de um repúdio ao que são fisicamente, visto que os
atributos negros não são valorizados. Assim:
O “ser negro” corresponde a uma categoria incluída num código social, que se
expressa dentro de um campo semântico onde o significante, ”cor negra” encerra
vários significados. O signo negro remete não só a posições inferiores, mas
também á características biológicas atribuídas aos brancos. Não se trata está
claro de significados explicitamente assumidos, mas de sentimentos presentes,
restos de um processo histórico-ideológico que persistem numa zona de
associações possíveis e que podem, a qualquer momento emergir de forma
explícita. (NOGUEIRA, 1998, p.104).
Uma sociedade que produz homens com tamanhos conflitos psicológicos
poderia ser considerada justa ou saudável?
38
2. FANTASIAS E “FAZ DE CONTAS”. SOBRE RAÇAS E CORES
foi dito que, no Brasil, o racismo e as discriminações raciais são
mascaradas, como se fosse vetado o reconhecimento dessas ações por parte dos
sujeitos. Gislene Santos salienta:
A impossibilidade do reconhecimento do autoritarismo e das desigualdades, a
percepção das injustiças, a invisibilidade da violência se devem à camuflagem
contínua que o mito do paraíso coloca. Vendo por meio do mito e revivendo o
mito é impossível perceber que o Brasil não é o paraíso já que a cada aparência
das violências, das discriminações, das desigualdades, equivaleriam (ou se
antecipariam) visões do paraíso, memórias (atávica?) de que o Brasil seria um
país abençoado por Deus, tropical, sem guerras e bonito em toda a protuberância
de sua natureza. (SANTOS, 2004, p.30)
Também discuti o quanto está idéia se faz presente na construção da
identidade nacional (ou na identidade legitimadora, no Brasil), de modo que a idéia de
harmonia e pacificidade do brasileiro ganha destaque. Interessa acrescentar que, por
um lado, essa forma de construção da imagem do Brasil e dos brasileiros se articula
com o que foi definido por Renato Ortiz como ideologia nacional, ou seja, como
repertório engendrado para ocultar a face violenta, discriminatória e racista que o
Brasil teria, ao não reconhecer as desigualdades sociais vinculadas estreitamente com
as questões de raça e cor. Por outro lado, essa mesma identidade nacional, que
legitima essas mesmas representações, entranha-se de maneira inconsciente em todos
os seus cidadãos, fazendo com que a ruptura com esse “pensamento” somente seja
alcançada por meio de grande esforço de conhecimento, auto-conhecimento e auto-
afirmação.
Não me cabe descrever por que esse processo é tão doloroso para a população
negra (Santos o faz), mas tentar compreender como isso se articula com a idéia de fantasia,
em um duplo sentido do termo, que nos remete, simultaneamente, para a discussão
psicanalítica e para os sentidos mais comuns que a palavra pode assumir.
A psicanálise define fantasia como “[...] encenação imaginária em que o
indivíduo está presente e que figura de modo mais ou menos deformado pelos
39
processos defensivos, a realização de um desejo e, em última análise, de um desejo
inconsciente” (LAPLANCHE; PONTALIS, 1988, p. 228).
Octávio de Souza associa a idéia de fantasia com a construção de uma
identidade brasileira. Apoiado em Edward Said, Souza considera que “[...] adotamos a
‘visão do paraíso’ do descobridor europeu para nos olharmos a nós mesmos” (1994,
p. 120). Esse europeu que projetava o paraíso em algum lugar e que nele depositava
seus desejos e anseios.
Contudo, Souza acrescenta que, no caso brasileiro, não se poderia falar da
existência de uma cultura preexistente que permanece latente, inalterada por trás da
imagem que se projeta dela por meio do olhar europeu (como no caso da invenção do
Oriente pelo Ocidente). No caso brasileiro, é como se a cultura fosse amalgamada em
conjunto, sendo re-significada a cada apropriação, definindo o que costumeiramente é
tomado como uma única cultura brasileira, forjada por meio do sincretismo e da
mistura de vários elementos fundadores. Nesse sentido, o diferente é subsumido do
caldeirão da igualdade e, quando insiste em permanecer, ou em aparecer, é proscrito,
olhado com estranheza. Em conseqüência, se, para a identidade legitimadora, o que
deve ser considerado é a identificação com os valores nacionais da miscigenação, da
harmonia, da pacificidade, tudo que resulta diferente disso é compreendido como
estranho a nós, como estranho ao Brasil, como se não fosse próprio do brasileiro.
Santos afirma:
Por isso, é necessário destacar a idéia de harmonia como alicerce e sustentáculo
do mito do paraíso. Sustentar o racismo na idéia da harmonia nos faz ter a
sensação de que todas as partes estão postas da melhor maneira possível, da
forma mais natural e perfeita de modo a manter o equilíbrio, a ordem e a paz.
Essa é a imagem que permanece na crença de que aqui não discriminações, ou
se há uma outra, certamente ela não é tão grave assim.
Perder a harmonia é vivido como o se lançar no mais profundo caos, na total
desintegração. Essa idéia é re-atualizada diante de manifestações de determinados
grupos da sociedade civil (sem-terra, trabalhadores rurais, operários, sem-teto,
professores, militantes dos diferentes movimentos negros) que são tomadas como
desordem insuflando à população a se colocarem contra eles. As manifestações
poderiam destruir a pacificidade da sociedade brasileira. Quer a pensemos como
alienação ou recurso da ideologia da classe dominante ou como uso do poder de
um grupo a ser reproduzido em cada espaço microfísico, o que se delineia é que a
idéia da harmonia (nosso paraíso), é ritualisticamente reiterada no nosso
cotidiano sempre que se faz necessário. ( SANTOS, 2004, p. 32).
40
Para lidar com a estranheza atribuída a este diferente e desarmônico, inventa-se
o exótico.
Olhar como exótico seria uma forma de lidarmos com aquilo que instintivamente
consideramos desarmônico e estranho sem colocar em risco a nossa própria
harmonia e equilíbrio. Também é uma forma de estabelecer diferenças que
haverá um a olhar o outro como exótico e a se excluir desse exotismo e da
possibilidade de ser observado dessa forma. (idem, p.33)
É como se o outro, o diferente, o exótico, não fosse como nós e fizesse
parte de um outro conjunto de códigos de decodificações, que somente poderiam ser
utilizadas para compreendê-lo e não a nós mesmos.
Dessa forma, não é concebida como estranha a afirmação de identidades
de resistência contra a identidade legitimadora, tidas como exóticas: um cabelo
exótico, um corpo exótico, uma roupa exótica, um tipo exótico. E é nesse sentido que
a idéia de fantasia pode ser empregada. Ao fantasiar, inventar o outro como exótico,
permite-se uma aproximação daquilo que se desejaria ter, mas que não se pode
admitir que se deseja ter.
Esta discussão é bastante complexa e nosso foco procura apenas delineá-la,
para compreender como se pode pensar em uma fantasia de Brasil (nos dizeres de
Octávio de Souza), como um país do exotismo e da mistura, no mesmo sentido que
Yvonne Maggie e Robin Sheriff definem a existência de uma retórica racial brasileira.
Vejamos.
Ao relatar seu estudo sobre as cores e racismo, no Brasil, Robin Sheriff (2001)
apresenta as inúmeras expressões que os moradores do “Morro do Sangue Bom”
utilizam para definir a sua cor e a cor dos outros, indicando um jeito de falar sobre
cores muito típico.
Aprendi rapidamente o que todo brasileiro sabe: muitos termos relativos à
raça/cor são considerados pejorativos. Significativamente, contudo, muitos
informantes, ao comentar diretamente essa questão, disseram-me que depende
do “jeito de falar”. Assim, o significado de uma determinada palavra não é
totalmente definido pela dimensão semântico-referencial, mas pode ser
estrategicamente manipulado nas conversas.
41
Durante meu estudo na comunidade, também aprendi que alguns faziam
distinção entre o que pareciam perceber como a “verdadeira cor” da pessoa e as
palavras convencionalmente usadas para falar da cor de uma determinada
pessoa. Quando perguntei a uma moça qual era sua cor, ela riu e disse: “As
pessoas me chamam de branca, mas eu não sou mesmo. Eu sou, não sei,
morena?”. De maneira semelhante, um homem disse-me que sua mulher era
branca. Então riu e acrescentou: “Ela não é, mas a gente fala assim”. (SHERIFF,
2001 p. 221).
A retórica sobre a raça demonstra a importância dessa questão na
sociedade brasileira, o cuidado em descrever o detalhe da aparência de cada pessoa, o
tom de sua pele e, principalmente, a dissimulação em torno da importância de cada
detalhe. Também mostra a fantasia presente na fala de cada um, como atestou Sheriff:
“[...] fala-se moreno para não chamar de negro” (SHERIFF, 2001, p. 225), para não
ofender. Fantasia no sentido de faz de conta... faz de conta que o sujeito, que eu sei
que é negro, não é negro, e sim moreno. Faz de conta que é branco, a cor verdadeira é
o que as pessoas dizem. Até que ponto esse faz de conta sobre as raças e as cores,
apontado por Sheriff, não pode ser pensado como uma fantasia no sentido da
realização de um desejo inconsciente e/ou inconfesso de que se pudesse,
efetivamente, transcender a raça e a cor? Não como uma manipulação consciente da
realidade, mas como a simples manifestação de um desejo.
Maggie pergunta:
[...] Por que não tomar como legítimo o desejo de harmonia? Diante de um
mundo onde os conflitos étnicos dilaceram pessoas e grupos de forma tão
desumana, por que o Brasil não pode ser, apesar de tudo, um exemplo de uma
utopia humanista desejada? (MAGGIE, 2001 p. 21).
Em que medida essa inversão da realidade, apontada por Sheriff e Maggie,
e esse desejo de harmonia que transcende a raça podem ser verificados, de maneira
explícita, na fala das crianças com os quais realizei minha pesquisa? Em que medida
esse desejo se alicerçaria, para infortúnio deles próprios, sobre a fantasia de que essa
harmonia exista onde talvez ela seja somente uma intenção, a qual se efetiva por
meio da negação de parcelas da realidade que “devem” ser “apagadas”, para que a
fantasia possa ser mantida? Partes do que deve ser apagado, nesse caso, são traços do
42
que poderia constituir a identidade de resistência de crianças negras contra a
identidade legitimadora que as negaria, negando suas especificidades e sua diferença.
Em outro lugar, analisei a relação entre professores e crianças negras, em
que uma das tarefas era dramatizar e fazer desenhos sobre uma música cantada nas
escolas, cujo conteúdo foi analisado por João Batista Borges Pereira
5
. Observei e
agora cito a mim mesma:
Se o cotidiano das crianças nas escolas estudadas é de negação do negro, da
temática do negro, da cultura negra (não discutidas em suas salas de aula), seus
desenhos nada mais refletem do que isso: elas não sabem como representar aquilo
que não vivenciam. Daí que também não pudessem perceber o teor preconceituoso
da música apresentada. Seria natural ou mais complicado ainda, seria algo sobre o
queo podiam pensar a não ser relacionando a contos de fadas, lendas ou a pura
fantasia. Se a música, em si, traz um elemento de fantasia”: “nascer uma pessoa de
uma cebola”, também traria um elemento de violência: “bater para forçar alguém a
fazer algo que não quer fazer”. (MARTINS, 2001).
A fantasia, o campo do imaginário, mesclava-se com a representação
social. Seria possível para uma criança negra imaginar-se branca, mesmo que fosse
somente de faz de conta, mesmo que assumisse essa identidade negra apenas no
campo do imaginário? Ou, quando no mundo do faz de conta, sempre optaria pela
negação de si própria, preferindo se imaginar como brancas?
Podemos dizer, no que diz respeito aos negros, que essa identidade
poderia ser perpassada por uma outra mitologia em torno da raça e da cor, ou, nos
dizeres de Yvone Maggie, por toda uma retórica sobre a raça, mesmo que
inconsciente? Ainda que assumindo que raça seja uma construção social e o
biológica (vide GUIMARÃES, 2003), crianças indicariam o desejo de transcender
tanto os traços biológicos referentes à cor quanto os limites socialmente construídos
referentes à raça? Seriam esses os contornos da fantasia resgatada por elas, por meio
de suas intervenções nas histórias narradas por mim, nas dramatizações e nos
5
A letra da música era essa: "Plantei uma cebola no meu quintal. Nasceu uma negrinha de avental Dança
negrinha ! Eu não sei dançar .Eu pego no chicote você dança já!Essa canção foi analisada por João Baptista
Borges Pereira. Segundo apontou Pereira em texto intitulado "A criança negra: Identidade, Etnia e
Socialização", esta canção era ensinada nas escolas, que demonstravam "receber sem maiores críticas, as
estereotipias existentes na sociedade brasileira (Pereira, 1987, p. 44).
43
desenhos que fizeram? Seria esse o desejo manifesto por meio das fantasias, nas
roupas que vestiram, perucas e maquiagens para desfilarem diante do espelho?
Sarmento afirma que
[...] o mundo do faz de conta faz parte da construção da visão de mundo da
criança e da sua atribuição do significado às coisas. Essa transposição imaginária
de situações, pessoas, objetos ou acontecimentos está na base da constituição da
especificidade dos mundos da criança, e é um elemento central da capacidade de
resistência que as crianças possuem diante das situações mais dolorosas da
existência. É por isso que “fazer de conta” é processual, permite continuar o jogo
da vida em condições aceitáveis para a criança. (SARMENTO, 2005, p.28, 29,
apud DELGADO; MÜLLER, 2005, p.174).
Para mim, é importante compreender em que medida as meninas
entrevistadas “brincam de ser branco” como uma fantasia que faz eco à retórica racial
brasileira, ao mesmo tempo em que a nega. Um faz de conta sobre raças e cores, no
Brasil, que se apresenta como um jogo no qual é preciso não dizer ser o que se é para
ser aceito; um jogo de faz de conta e máscaras, de mitos e ideologias, de exotismo e
fantasias vestidas e vivenciadas.
Várias pesquisas destacaram o quanto é complicado, para as crianças
negras, lidarem com os estereótipos e situações racistas.
No capítulo a seguir, discutiremos o quanto essa situação é complexa. Se,
para um adulto, a construção de uma identidade de resistência exige um percurso
doloroso, como podemos esperar que esse processo seja feito por crianças que estão
sujeitas aos valores da identidade legitimadora encontrados nas escolas, livros
didáticos, programas televisivos e tantos outros meios com os quais deveriam
negociar, para que pudessem construir a sua identidade? Elas teriam condições de
realizar essa negociação?
44
3. MENINAS NEGRAS
As identidades se constroem por meio da inter-relação entre o sujeito e outros
sujeitos, entre o indivíduo e o meio, a cultura e a sociedade. Nesse processo, os
grupos/sujeitos pertencentes aos grupos discriminados e sobre os quais estereótipos
negativos m que, para construir uma imagem positiva de si, fazer constantes mediações
com a identidade legitimadora, vinculada pela sociedade e pela cultura como formas de
manutenção e dominação.
Se as representações sociais são, em si mesmas, signos de valores construídos e
disseminados pela sociedade e seus grupos/atores sociais, as representações que cada
sujeito constrói de si mesmo são elaboradas considerando-se, além de todos esses
aspectos, questões emocionais profundamente complexas. No caso de meninas negras, a
complexidade se liga à identidade que articula questões de raça e gênero.
Alguns autores consideram que, a partir dos anos 80, as discussões sobre
feminismo foram alteradas pela introdução do conceito definido como gênero.
O próprio conceito de feminino ou feminilidade foi revisto e as pesquisas
passaram a pensar o feminino a partir de um campo simbólico que permitisse a interface
entre cultura e história.
Ann Oakley é apontada como pioneira nesse campo, já que, desde a década de
70, introduziu essa discussão no campo da sociologia, tendo sido seguida pela historiadora
Joan Scott.
Os conceitos que reduziram as questões entre homens e mulheres a um
determinismo e reducionismo biológico (lutas entre os sexos, papeis sexuais) foram
alterados pela introdução no campo teórico que enfatiza o aspecto relacional:
Gênero tem sido [...] o termo usado para teorizar a diferença sexual [...] A
palavra indicava uma rejeição ao determinismo biológico implícito no uso dos
termos como “sexo” ou “diferença sexual”. Ou seja, nenhuma compreensão de
qualquer um dos dois pode existir através de um estudo que os considere
totalmente em separado (SOIHET, 1997 p.101).
Benhabib demonstra que, fora dessa perspectiva relacional, a discussão
sobre gênero é uma abstração/essencialização.
45
As mulheres do Terceiro Mundo questionaram precisamente o pressuposto de que
haja uma experiência de ser - mulher generalizável, identificável e
coletivamente consensual. Ser negro e ser mulher, é ser uma mulher negra, uma
mulher cuja identidade é constituída diferentemente de ser mulher branca. O
questionamento das feministas do Terceiro Mundo traz à tona a complexa
natureza da identificação do gênero, ao mesmo tempo esclarecendo a identidade
feminino/feminista. Esse dilema é expresso pela questão: como pode a teoria
feminista basear-se na peculiaridade da experiência feminina sem com isso
reificar uma definição isolada de feminilidade como a paradigmática sem
sucumbir, pois, a um discurso essencialista sobre gênero? (BENHABIB;
CORNELL, 1987, p.20).
Tendo em vista esse aspecto, faria sentido falar em processo de construção
da identidade de gênero para mulheres negras, considerando-se simultaneamente e de
maneira indissociável a questão de gênero e raça?
Vimos que o termo “raça” nos remete a uma outra gama de construções
socioculturais.
O que se percebe é que, em todos esses casos, falamos de relação de poder
e dominação. Nada é natural, tudo depende do olhar que se constrói acerca das coisas,
ou melhor, o olhar que usamos para construí-las.
Criou-se o conceito de gênero para pensar as masculinidades e
feminilidades. Hoje, os homossexuais reclamam o uso desse conceito para discutir a
realidade deles também. Falar em gênero, de maneira geral, não seria também uma
forma de encobrir a realidade tal e qual ela é? Passamos do conceito de raça biológica
para raça socialmente construída. Contudo, o uso de tal conceito per si não é capaz de
explicar a realidade de todos aqueles que são racializados. Ou seja, nenhum desses
conceitos, sozinho, é capaz de explicar a complexidade da realidade humana. Usá-los
de maneira isolada certamente implica alguma forma de reducionismo.
Tendo em vista todos esses aspectos, meu trabalho com as meninas negras
deve focalizar o momento no qual se intercalam raça, gênero e infância, na construção
de suas identidades. Parto do pressuposto de que somente o cruzamento de todos
esses dados pode oferecer uma possível compreensão de como são construídas
identidades, numa perspectiva relacional.
46
Por infância, entendo não somente um período cronológico específico, mas
um conceito que designa uma situação sociocultural na qual o indivíduo está sendo
preparado para assumir as responsabilidades do mundo adulto. No entanto, que
também contém características próprias que permitem uma reflexão dessa fase do
desenvolvimento humano em si mesma.
Alguns autores (entre os quais Delgado e Muller) criticam o
adultocentrismo, ou seja, o ato de pensar as crianças a partir de uma perspectiva
adulta e não relacional. Outros teóricos contestam o reducionismo biológico que
acorrenta a infância aos limites etários (entre o mundo adulto e infantil) e que pode
variar de cultura para cultura, de tempos para tempos e, muitas vezes, entre as
famílias.
Longe de ser meramente constituída por factores biológicos, correspondentes ao
facto de ser integrada por um grupo de pessoas que têm em comum estarem nos
seus primeiros anos de vida, a infância deve a sua natureza sociológica, isto é, o
constituir-se como grupo com um estatuto social diferenciado e não conjunto de
prescrições e interdições, de formas de entendimento e modos de actuação, que
se inscrevem na definição do que é admissível e do que é inadmissível fazer com
as crianças ou o que as crianças façam. (SARMENTO, 2005, p.367).
Assim, as sociedades criaram leis visando a proteger as crianças dos
abusos do mundo adulto, pois se entende que elas não são completamente capazes de
se defender das dificuldades e prejuízos que nosso mundo possa lhes impor.
No caso do Brasil, tivemos a criação do Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA), Lei 8069, de 13 de julho de 1990, objetivando a proteção integral
de crianças e adolescentes. Essa lei foi importante, porque, em nosso país, os direitos
das crianças e dos adolescentes ainda não são postos totalmente em prática.
Delgado & Muller (2005, p.353) chamam a atenção para o fato de que as
crianças não devem ser tratadas como mero receptáculo do mundo adulto. Elas, como
atores sociais, negociam e reinventam o que lhes é apresentado. As autoras também
ressaltam que não deve haver um reducionismo biológico e sociológico, em relação
ao que seja a infância. Assim como os adultos, as crianças são seres em constante
47
processo de formação. Essa formação é dependente dos adultos com os quais se
relacionam e com seus próprios pares, ou seja, de todo o seu processo de socialização.
Nesse sentido, a socialização de meninas negras, em espaços e entre
pessoas que têm uma perspectiva racista, certamente trará conseqüências para a forma
de cada qual pensar a si mesma. Mesmo não sendo passivas e receptoras do racismo
do mundo adulto, escolar, não se pode dizer que sejam alheias a ele.
Santos (2004) avalia os aspectos da convivência, em sociedades racistas,
para mulheres negras que desenvolveriam, como forma de proteção, um sentimento
negativo que comporia arquétipos, como os apresentados nas histórias de Cinderela e
do Patinho Feio. A autora discute o quanto mulheres negras são levadas a construir
uma identidade negativa para si mesmas, criando fantasias em torno dos arquétipos da
Cinderela (em que seriam salvas por príncipes encantados, brancos) ou do Patinho
Feio (rejeitadas e sem lugar, em função do racismo).
A mulher negra “borralheira”, que espera que alguém a salve das
opressões da sociedade racista, opta, inconscientemente, por renegar seus traços para
tornar-se menos negra, menos ”suja” e poder ser reconhecida pelo príncipe encantado,
branco, como alguém que pode pertencer ao grupo dele. A mulher negra “patinho
feio” é aceita por descobrir nela própria, tal como ela é, suas belezas, sem que nada
seja negado, sem que nada seja retirado, sem nenhuma mutilação. Contudo, não se
sente aceita.
Esta pesquisa foi realizada com crianças. Obviamente, elas ainda não
têm as mesmas preocupações que as mulheres adultas em relação a seus príncipes
encantados. No entanto, elas convivem com mulheres que são suas cuidadoras e que,
de alguma forma, podem apresentar esse comportamento de Cinderela ou Patinhas
Feias. Também podem viver esse conflito, ao serem introduzidas em um mundo
escolar, no qual os livros didáticos podem ser preconceituosos tanto em relação às
mulheres, quanto em relação aos negros (e, por que não dizer, em relação à própria
infância?), ou ao terem que conviver com professores e colegas que as discriminam.
48
Em outro lugar, afirmei que os professores, por não acreditarem que possa
existir preconceito racial nas escolas, não se dão conta da subjetividade de seus
alunos e, principalmente, das dificuldades do aluno negro na procura de afeto.
Descaso, ausência de consolo, afeto, preconceito – se levarmos em consideração
a teoria, segundo a qual a maioria de nossos preconceitos são sociais, antes de serem
individuais, e que determinam a forma de produção ou reprodução das sociedades,
podemos deduzir que o tratamento dado às crianças negras, nas escolas, não é e não será
diferente daquele recebido por elas, fora do espaço escolar. Assim, podemos inferir que as
professoras reproduzem o mesmo descaso, ausência de consolo e afeto, os preconceitos
que o entorno oferece às crianças. A violência se reproduz no espaço da escola, como se
não houvesse o dentro e o fora. Contudo, nas escolas, esse descaso, essa ausência de
consolo e de afeto e o preconceito aparecem “tutelados” pelo saber dos professores.
Acredito que todos esses elementos, de uma maneira ou de outra, possam influir na vida
dessas meninas.
Podemos reconhecer, como faz Sarmento, que a sociedade moderna criou uma
separação entre o mundo da infância e o mundo do adulto, com o objetivo de protegê-la e
garantir a segurança. Todavia, o mesmo autor salienta:
As condições sociais em que vivem as crianças são o fator principal de
diversidade dentro do grupo geracional. As crianças são indivíduos com a sua
diversidade biopsicológica: ao longo da sua infância percorrem diversos
subgrupos etários e varia a sua capacidade de locomoção, da expressão, de
autonomia de movimentos de ação etc. Mas, as crianças são também seres sociais
e, como tais, distribuem-se pelos diversos modos de estratificação social: a classe
social, a etnia a que pertencem, a raça, o gênero, a região do globo em que vivem.
Os diferentes espaços estruturais diferenciam profundamente as crianças.
(SARMENTO, 2005, p.370).
Assim, para compreender como meninas negras constroem sua identidade,
precisamos olhar para elas em suas especificidades de gênero, raça, cor, condição social,
ou seja, observar suas particularidades.
Foi isso que eu tentei construir e observar, por meio de minhas investigações de
campo, as quais passo, agora, a descrever.
49
4. CONSTRUINDO O CENÁRIO PARA A PESQUISA
Carecemos de trabalhos, na área da educação, nos quais as vozes das
crianças sejam consideradas, pois o poucos aqueles em que as crianças sejam
realmente os atores principais (cf. DELGADO; MÜLLER, 2005), porque o trabalho
que realmente envolva o mundo das crianças e a sua forma de socialização não é
tarefa fácil.
O trabalho de pesquisa que realizei com meninas estudantes buscou,
dentro do possível, recorrendo ao aspecto lúdico, captar como as crianças constroem
suas identidades, na medida em que se relacionavam com seus pares, tentando
reconhecer a capacidade simbólica e a influência da cultura em seus modos de vida e
na forma de como percebiam a sociedade. Admitimos o seguinte pressuposto:
A identidade das crianças é também a identidade cultural, ou capacidade de
construírem culturas não totalmente redutíveis, às culturas dos adultos. Todavia
as crianças não produzem culturas no vazio, assim como o tem completa
autonomia no processo de socialização. Isso significa considerar que elas têm
uma autonomia relativa, ou seja, as respostas e reações, os jogos sócio-
dramáticos, as brincadeiras e as interpretações da realidade o também produtos
das interações com adultos e crianças. É necessário considerar as condições
sociais nas quais vivem, com quem interagem e como produzem sentido sobre o
que fazem (DELGADO; MÜLLER, 2005, p.164).
A tarefa do pesquisador, nesse sentido, deve ser pautada pela perspicácia
em verificar todos esses elementos presentes na cultura das crianças e, ao mesmo
tempo, entendê-las como alguém ativo na interpretação particular do mundo que as
cerca. O pesquisador te que fazer o esforço de interpretar a ação e a fala das
crianças, a partir do significado dessa ação e dessa fala delas. “É necessário deixar
que a criança explique a sua resposta, revelando, dessa forma, o raciocínio envolvido
em sua decisão” (FAZZI, 2004, p.21).
Num trabalho que busca interpretar a construção da identidade racial de
crianças (meninas) da classe popular, é importante atentarmos à forma como essas
crianças entendem o seu meio.
50
Baseando-se em estudos prévios, como o de Aboud (1987), Hirschfeld (1996)
afirma que a discussão sobre auto-identificações incorretas de crianças fornece
um suporte para o padrão de desenvolvimento do conceito de raça, proposto por
ele, na medida que a identificação incorreta é rara, quando são usados rótulos
raciais verbais: as crianças parecem saber muito bem a quais grupos elas
pertencem. O que elas não compreendem bem é qual correlato físico é mais
relevante para sua identidade (idem, ibidem, p.138).O entendimento inicial de
raça da criança envolve tipos ontológicos, mais que tipos visuais, portanto, não é
derivado de diferenças observadas, mas da informação discursiva. Para
Hirschfeld (1996, p.137), a ênfase sobre a informação perceptiva no processo de
categorização racial inicial dada por outros pesquisadores pode ser devida ao foco
dado pela convergência do “conhecimento orientado pela percepção” e “o
conhecimento orientado pelo domínio” e não aos processos de formação dos
conceitos raciais. (FAZZI, 2004, p.63).
Quando pensamos em discutir como meninas negras estão construindo sua
identidade, vimos logo que a melhor abordagem seria a qualitativa, segundo as
normas de uma pesquisa etnográfica. Visto que iríamos trabalhar com meninas
estudantes da série do Ensino Fundamental de escolas públicas, queríamos a
flexibilidade para analisar o tema proposto. Consideramos também essencial analisar
o contexto social, no qual essas meninas viviam. “As metodologias qualitativas
parecem ser as mais adequadas para se tentar penetrar nas construções infantis
relativas à vida política e a ação no espaço público em geral” (RAYOU, 2005, p,
472).
As meninas que participaram da pesquisa são moradoras de um bairro da
periferia da cidade de São Paulo, oriundas de uma classe social menos favorecida. O
local onde elas estudam é também a única possibilidade de lazer. Assim, a escola
tornou-se um lugar importante, em suas vidas.
foi dito, na “Introdução”, que esta pesquisa foi realizada no CEU.
Queria conhecer a receptividade das crianças em relação àquele espaço novo, no lugar
onde residem, e das variadas opções (por exemplo, freqüentar a piscina e ter aulas de
teatro), como motivos para freqüentá-lo, para além das possibilidades de receberem a
educação formal.
Esse CEU se situa em um o local cercado por várias favelas. Fica em
frente a uma delas, na qual moram muitas das crianças que lá estudam. Foi construído
onde antes havia uma mata de eucaliptos, muitos dos quais foram derrubados para a
51
construção do prédio. Essa construção, no entanto, trouxe uma beleza arquitetônica
para o local, que contrasta com a paisagem caótica do entorno.
Para começar a realizar o trabalho, fui conversar com a diretora geral desse
CEU. Disse-lhe que estava fazendo Mestrado na área de Educação e que gostaria de
realizar ali a parte empírica da pesquisa. Mostrei-lhe, então, meu projeto, para que ela
o lesse e se informasse de modo mais pormenorizado sobre o assunto.
Falei que gostaria de trabalhar com meninas da série, para investigar a
questão da identidade racial e que, para tal investigação, usaria contos infantis. Disse
que poderia trabalhar com meninas de todas as raças/cores, mas que meu foco de
investigação se concentraria nas meninas negras. A diretora me informou que,
realmente, não seria possível o trabalho, se fosse para realizá-lo somente com
meninas negras, pois isso poderia soar como preconceito.
Ela se mostrou interessada e me disse que, por ela, não haveria problemas,
mas que eu precisaria conversar com a coordenadora pedagógica do Ensino
Fundamental, a fim de obter permissão para realizar a pesquisa. Fui então procurar a
coordenadora pedagógica, que se encontrava em licença médica, por razões de saúde.
Comecei a procurar um local para a pesquisa, em fevereiro de 2005. No
entanto, foi somente a partir da segunda semana de março que consegui falar com a
coordenadora e obter a autorização para realizar o trabalho.
Os CEUs foram criados na gestão da prefeita Marta Suplicy. Na cidade de
São Paulo, na época da inauguração desse CEU onde a pesquisa foi efetivada, havia
15 unidades. Este, em que trabalhei, foi inaugurado em 2003.
O local possui teatro, cinema, biblioteca, tele-centro, quadra poli-
esportiva, pista de skate, sala de oficinas, sala de ginástica, piscinas etc. Fica aberto a
toda a comunidade. No entanto, para muitas das atividades oferecidas, as pessoas
precisam fazer inscrição. Na instituição há, também, Pré-Escola e Ensino
Fundamental (EMEI e EMEF), além de Supletivo e Educação para Adultos (EJA). O
Centro também oferece escola de Iniciação Artística (EMIA), com cursos de música,
teatro, arte plástica e dança, além de oficinas: malabares, foto, vídeo e circo. Todos
52
esses cursos são oferecidos a toda a comunidade, gratuitamente. As peças teatrais, o
cinema e os saraus também são abertos a todos os que tenham interesse em assistir.
Enfim, o local é amplo, agradável e trouxe um novo ânimo para os moradores da
periferia. Em função disso, acreditei que seria um espaço agradável para conversar
com as meninas, que ali se sentiriam à vontade e descontraídas.
A investigação empírica foi dividida em dois momentos. No primeiro
momento, contei histórias, após as quais abria rodas de conversa. Eu propunha que os
ouvintes fizessem desenhos sobre as histórias narradas. No segundo momento, fiz
algumas dramatizações e um desfile de modas, com o intuito de saber como era, para
as meninas, colocarem-se na pele das personagens encenadas e, a partir daí, captar,
observar suas opções, na escolha dos personagens.
Optei por fazer esse trabalho fora das escolas formais, um local que as
crianças freqüentassem em busca de lazer. Pretendia diminuir a rigidez da sala de
aula, porém, não foi possível juntar, fora do horário escolar, todas as meninas na faixa
etária dos dez anos, cursando a 4ª série do Ensino Fundamental.
Assim, a pesquisa foi realizada dentro do horário escolar, com duas salas
de série do Ensino Fundamental. As professoras das classes com as quais trabalhei
me cederam uma hora do tempo de suas aulas, para que eu desenvolvesse as
atividades. O trabalho foi feito na sala de leitura, local amplo e confortável, com
muitos livros, cadeiras, mesas, almofadas, uma bancada, onde elas podiam sentar-se
lado a lado. As idades das meninas variaram entre 9 e 12 anos. Trabalhei com 26
meninas, das quais 12 eram pretas e pardas (de acordo com os critérios do IBGE).
Ao ir a campo, tinha em mente alguns pontos que iriam nortear a
investigação. Esses foram:
- Qual o padrão estético de beleza preferido por elas, tanto em
relação às princesas dos contos, quanto em relação aos
príncipes? Buscava compreender a percepção das crianças
53
sobre sua cor de pele e traços estéticos (e a cor e traços
desejados por elas).
- Quero saber, por meio do trabalho com os contos de fadas, se
as crianças negras revelam informações que podem ser
indicativas da maneira como lidam com sua cor e traços
estéticos que compõem a sua identidade, tendo os contos
como motivo para que falem (mostrem) suas representações
sobre raça, cor, identidade.
Esses momentos podem indicar queuma retórica sobre as raças e cores,
no Brasil, acompanhando o desenvolvimento da identidade dos negros e que elas se
vinculam a algumas fantasias, especificamente ligadas à raça e à cor.
4.1 O Mundo das Fadas
No meu primeiro dia, na instituição, as crianças chegaram eufóricas e
sorridentes. Sentamo-nos em círculo, apresentei-me a elas e disse que viria uma vez
por semana, para lhes contar algumas histórias que elas talvez conhecessem e
outras que, possivelmente, não conheciam.
Formamos uma roda e perguntei o nome e a idade de todas. Perguntei
também se gostavam de estudar ali, ao que elas responderam que sim, que gostavam
muito de freqüentar também a piscina e o teatro.
Antes de começar a narrar a primeira história, mostrei-lhes uma cópia
colorida do livro angolano de Maria Celestina Fernandez, intitulado A Borboleta Cor
de Ouro. Deixei a cópia passar de mão em mão, perguntei-lhes se já haviam tido
contato com algum livro africano, ao que todas responderam que não. Falei também
que, do mesmo modo que as crianças brasileiras gostam de ouvir histórias e têm seus
livros preferidos, com as africanas acontecia o mesmo. A primeira história contada
serviu apenas de ambientação, relatando como surgiu a inimizade entre o gato e o
54
rato, segundo a literatura oral de Uganda. A história intitula-se Amigos mas não para
sempre
6
.
Amigos, mas não para sempre
(dia 15/03)
Em Uganda, no coração da África, os contadores de histórias dizem que,
antigamente, o gato e o rato viviam juntos e eram muito amigos.
Os dois parceiros plantavam, colhiam e, depois, armazenavam os
produtos de seu trabalho em pequenos celeiros, de barro coberto de
palhas.
Um dia, o rato resolveu que iriam guardar o leite também, da mesma
foram como os homens faziam para não passar fome durante a estação
seca.
De que jeito? – questionou o gato .- em poucos dias, o leite estará azedo.
Deixe comigo – respondeu o rato. – Eu aprendi como as mulheres
preparam um tipo de manteiga que eu adoro, a qual elas chamam de
ghee.
Para a ambientação dessa história, fiz uma fita cassete, com batucadas
tiradas de introduções de algumas músicas de Maria Bethânia e Marisa Monte
7
.
Tentei contar a história da forma mais natural possível, concentrando-me
na entonação de minha voz. Apesar disso, as crianças mantiveram o tumulto, gritos e
discussões.
Durante todo o tempo, precisei interromper a história para pedir silêncio
e a atenção delas, o que era respeitado por uns minutos, mas não durava muito, pois
logo perdiam a concentração. Numa dessas vezes, duas meninas, uma branca e uma
negra, começaram a discutir. A branca começou a xingar a negra desta forma:
6
Ver, nos anexos, essa história aqui resumida.
7
Não pretendo deixar a impressão de que isso deva ser entendido como a cultura africana em si. No entanto, a
percussão está ligada às formas musicais, quando se trata do Continente Africano. Não estou, igualmente,
querendo resumir a cultura africana a batucadas. Afinal, a África é um continente cheio de especificidades
culturais, e até mesmo porque as músicas por mim usadas são de cantoras e compositores brasileiros, mas, de
inegável herança africana, em seus modos musicais.
55
- Sua cabelo de bombril, eu pelo menos não tenho esse cabelo de
bombril.
Em meio a tudo isso, as batucadas trazidas por mim ao fundo. Parei e
disse que o cabelo de ninguém é igual: cada pessoa é de um tipo e nem por isso elas
deixam de ser melhores ou piores. Um silêncio enorme se fez, algumas meninas
disseram:
- Viu, bem feito!!!
Pedi silêncio e voltei a contar a história. De repente, um comentário:
- Professora, a menina tal falou que essa música da senhora é música de
macumba!
Algumas meninas começaram a rir. Respondi-lhes que isso não é música
de macumba, é música legítima brasileira! Uma menina negra olha para mim,
concorda com a cabeça e se restabelece o silêncio.
Ao término da história, propus uma brincadeira, que foi “adivinhe o
bicho”, na qual eu me afastava com uma das meninas, pedia para que ela pensasse em
um animal e fizesse uma mímica, para que as outras meninas tentassem adivinhar de
que bicho se tratava.
Terminei assim meu primeiro dia de pesquisa de campo.
***
Bruna e a Galinha D’Angola
8
. História II
(dia 22/03)
9
Bruna é uma menina negra muito solitária, pois na vila em que mora
nenhuma das meninas de sua idade quer brincar com ela.
Mas essa garota tem uma avó que veio da África e todos os dias Bruna vai
até a casa da avó para ouvir histórias de seu povo no continente africano.
No dia de seu aniversário tudo mudou na vida de Bruna, pois ela ganhou
uma galinha d’angola de sua avó e a partir daí as meninas que antes a
8
ALMEIDA, Gercilga de. Bruna e a Galinha D’Angola. Ilustrações de Valéria Saraiva. Rio de Janeiro: EDC;
Pallas, 2000.
9
Ver, nos anexos, todas as histórias aqui resumidas.
56
desprezavam passaram a querer brincar com ela e a se interessar pelas
histórias contadas por sua avó. Bruna tornou-se popular e ganhou muitas
amigas.
***
Chegou outro dia de trabalho com as meninas e me perguntava o que
fazer, para que elas se interessassem pela atividade que fora ali realizar. Contei, nesse
dia, a história aqui resumida, Bruna e a Galinha D’Angola. Como o livro que contém
essa história é muito bem ilustrado, usei a técnica da simples narrativa, porque “há
textos que requerem, indispensavelmente, a apresentação do livro, pois a ilustração os
complementa” (COELHO, 2000, p.32).
Dessa vez não levei nenhuma música para servir de cenário. Recorri
apenas à força da história e das ilustrações que o livro continha. As meninas até que
me deram um pouco mais de atenção. Chegaram correndo e se sentaram numa espécie
de bancada que na sala. Mostrei-lhes o livro que havia trazido. Disse-lhes que a
história que iriam ouvir era africana e que metade de nós, brasileiros, somos seus
descendentes.
Uma menina negra diz:
- Professora, eu sou descendente de índio.
Perguntei: “E de negro, não? Ao que ela balançou a cabeça,
afirmativamente.
***
Os Dezesseis Príncipes e as Histórias do Destino
10
- História III
(dia 05/04)
Segundo a lenda Iorubá, todos nós temos um príncipe que rege nosso
destino e, na vida, tudo que nos acontece é uma repetição de
acontecimentos passados.
10
PRANDI, Reginaldo. Os dezesseis príncipes e as histórias do destino. In: Os príncipes do destino história
da mitologia afro-brasileira. Ilustração Paulo Monteiro. São Paulo: Cosac & Naify, 2001, p.7-13.
57
Assim, o que acontece e acontecerá na vida de alguém aconteceu muito
antes a outra pessoa.
Na língua Iorubá dos nossos dezesseis príncipes, havia uma palavra para
se referir a eles. Eles eram chamados de Odus.
Quando uma criança Iorubá nascia, um dos dezesseis príncipes Odus
passava a cuidar do seu destino.
Acima desses dezesseis príncipes Odus estava o Senhor do Destino, o deus
que os Iorubás chamavam de Ifá.
Os antigos Iorubás cultuavam muitos deuses, que eles chamavam Orixás,
e cada Orixá cuidava de um diferente aspecto do mundo.
Entre os dezesseis príncipes do destino, Ejila-Xeborá talvez fosse o Odu
mais invejado, pois aqueles que tinham a vida regida por ele estavam
fadados a agir com justiça e conhecer o sucesso, desde que não fizessem
nenhuma besteira, é claro.
Já o Odu Obará só sabia falar de coisas tristes, como as histórias dos que
são roubados, dos que perdem bens materiais, dos que não conseguem
realizar até o fim nada de bom, sempre envolvidos em fracasso e
frustração.
Por isso ninguém gostava de conversar com Obará, pois ia ele
contando aquelas histórias infelizes, e por isso o chamavam de príncipe
infeliz.
***
A narrativa dessa história foi feita com o uso de gravuras. Reproduzi numa
cartolina desenhos que aparecem no livro do qual a história foi tirada, onde os rostos
dos príncipes não são nítidos, visto se tratarem de deuses. Optei por essa técnica em
virtude de o livro ser bem volumoso e num formato que não favorece muito contar
história com o seu uso. As histórias que aparecem nesse livro são seqüências. Para a
atividade, porém, usei apenas a primeira.
58
Ao começar as atividades na primeira turma daquele dia, algumas meninas
estavam mais dispostas a ouvir, enquanto outras ficaram dispersas pela sala,
folheando gibis e livros. Entretanto, não chamei a atenção delas, mas contei a história
para aquelas que permaneceram ali sentadas em cadeiras que coloquei em forma de
círculo. Terminada a história dos dezesseis príncipes, perguntei às meninas o que elas
acharam. Elas disseram que acharam “legal”.
Pedi então para que me dissessem como elas imaginavam esses príncipes.
Mesmo tendo enfatizado o tempo todo que essa era uma história africana, quis fazer
essa pergunta
11
.
Suas respostas foram:
- Ele é alto, tem olhos azuis e é muito bonito.
- Não, ele tem olhos verdes e cabelos pretos.
Pergunto-lhes, então: mas como é esse cabelo preto: liso, cacheado?
Elas dizem, em sua maioria:
- Liso, cabelos lisos e pretinhos.
Uma menina negra assim o descreveu:
- Ele tem cabelo cacheado.
Perguntei, então: é moreno ou branco? Ao que ela respondeu:
- Moreno.
Uma outra menina negra disse:
- Ele parece o Reynaldo Gianechinni.
No geral, as meninas disseram que o príncipe ideal teria que ser loiro e de
olhos azuis.
***
11
Aqui se misturam as falas tanto das meninas negras como das brancas, pois, apesar de o meu alvo ser as
meninas negras, o fato é trabalhei com as duas etnias. Quando fizer comentários acerca da preferência
estética de meninas brancas, é porque tanto umas como as outras são influenciadas igualmente pelo tipo de
padrão estético europeu.
59
Os desenhos de seu príncipe ideal
Pedi para as meninas desenharem como seria um príncipe ideal
Observando os desenhos das meninas negras, o que se percebe é que a
maioria delas fez o príncipe de cabelos lisos e pretos. Apenas uma menina o desenhou
em forma de palito, com cabelos enrolados e castanhos. Na descrição e análise, incluí
apenas os desenhos das meninas negras e mestiças.
Quando chamei as turmas para que fossem comigo para a sala de leitura,
pedi para que elas levassem lápis de cor e canetinhas coloridas.
Elas fizeram os desenhos em folhas de papel sulfite brancas.
Apesar de, em suas falas, a maioria das meninas mestiças e negras ter
sempre externado a preferência por um príncipe que fosse loiro e de olhos claros, em
seus desenhos apenas duas meninas o desenharam de cabelos amarelos. As outras o
desenharam com cabelos castanhos ou pretos. Contudo, analisando-os, vemos que o
padrão desses príncipes é o branco.
1.O príncipe tem cabelos castanhos e arrepiados, a pele é rosada, os olhos
são verdes.
60
2.O príncipe tem cabelos amarelos e pele rosada, os olhos são verdes.
3.A garota que fez o desenho três não colocou cabelos nos príncipe, ele, porém tem
olhos azuis; ao lado dele, ela desenhou uma princesa de cabelos pretos e lisos.
61
4.Nesse desenho, o príncipe também não tem cabelos, porém os seus olhos são
verdes. Essa garota também fez uma princesa ao lado dele, de olhos verdes e cabelos
cacheados; como a pele da princesa não foi pintada, isso pode sugerir que ela seja
branca.
5.O quinto príncipe desenhado tem cabelos amarelos e pele rosada.
6.Essa garota fez um príncipe de pele marrom e cabelos pretos cacheados, tendo sido
a única, no meu entender, que fez o príncipe negro.
62
7.Nesse desenho, a menina retratou um príncipe de cabelos pretos lisos e olhos azuis.
8.Nesse desenho, a menina o fez com uma capa numa postura como se o mesmo fosse
um super-herói; o príncipe tem cabelos lisos e castanhos e olhos pretos.
9.No desenho nove, o príncipe tem a pele rosada e cabelos lisos pretos. Os olhos estão
fechados e há um largo sorriso em seu rosto.
63
10.No nosso último desenho, a garota usou o lápis de escrever, ela não o
coloriu; seu príncipe tem cabelos pretos lisos, um largo sorriso e ele não possui
nariz.
64
***
Branca de Neve
12
- História IV
(dia 12/04)
Essa é a história de uma princesa órfã, Branca de Neve, que, com a morte
da mãe e o novo casamento do pai, é alvo de inveja por parte da madras-
ta, ao ver que a princesa crescia muito bela, mais bela que ela. Isso era
algo insuportável para a Rainha Má, que passa então a planejar a morte
da princesa, assim que completasse 15 anos, para que ela fosse a Mulher
mais bela de todo aquele reino.
Em uma das tentativas de assassinato, da qual Branca de Neve escapa,
ela vai parar na casa de Sete Anões que lhe dão abrigo e proteção contra
as maldades de sua madrasta. A história acaba com um final feliz entre
Branca de Neve e o príncipe que a salvou da morte.
12
CHAIB, Lidia (adaptação). Branca de Neve. In: As melhores histórias de princesas. Ilustrações Maria
Eugenia. São Paulo: Publifolha, 2000 p.7-30.
65
***
Como de costume, cheguei ao CEU e fui à primeira sala, reuni as meninas
e nos dirigimos para a sala de leitura. Elas, como sempre, entraram correndo e foram
sentar-se na bancada ao fundo. Nesse dia, elas descobriram, dentro da bancada,
folhetos sobre a doença dengue. Cada uma pegou uma quantidade deles e me pediu
para que eu as deixasse ficar com eles.
Disse-lhes que o podia permitir, pois não sabia como os folhetos seriam
usados, talvez fosse para distribuir para a comunidade de um modo geral, pela
direção, e que elas teriam que falar com a professora delas. Peguei os folhetos e os
retornei para o lugar.
De repente, duas meninas começam a brigar. Segui na direção delas, para
separá-las. Elas se chutavam e se xingavam. Perguntei a razão daquela briga. Uma
menina disse:
- Ela fica falando de mim professora, diz que eu tava beijando um menino,
mas é mentira, vou quebrar a cara dela.
Digo a elas que se acalmem e que não permitiria brigas ali, e que, se elas
continuassem, as duas teriam que voltar para sala. Elas se acalmam.
Enquanto uma das garotas vai sentar-se, nervosa, na arquibancada, para
ouvir a história, a outra me puxa e diz baixinho:
- É verdade, professora, ela tava sim beijando meu vizinho, agarrada na
viela perto de casa.
Fiz sinal de silêncio para ela e fomos nos sentar, para eu começar a
história.
Na intervenção do dia 15/03, uma menina havia encontrado um livro que
trata de sexo. Todas as outras meninas ficaram muito agitadas, querendo pegar no
livro, curiosíssimas pelo assunto. Por outro lado, ao mesmo tempo em que isso
ocorria, havia a insistência delas em me pedir para brincar. Por essa razão, na outra
etapa da pesquisa, optei por fazer dinâmicas com as meninas, que abordassem mais a
questão do namoro.
66
Na segunda sala de aula trabalhada, os problemas não foram os panfletos,
mas alguns livros de pano que elas descobriram, além de blocos lógicos de
matemática. Esperei que elas folheassem tais livros e explorassem um pouco os
objetos. Passados uns dez minutos, recolhi o material e comecei a contar a história.
Essa história também foi contada com a estratégia da simples narrativa.
Terminada a narração, perguntei se elas haviam gostado da história e se a
conheciam. Elas disseram que conheciam e que gostaram.
Continuando e persistindo na idéia de ambientação das histórias, levei um
CD de música clássica para ouvirmos, enquanto eu contava a história; as meninas, no
entanto, não fizeram nenhum comentário sobre a música ao fundo, mostrando-se
indiferentes a ela.
Para esse terceiro dia, levei também gravuras de duas modelos, uma
branca e outra negra. Terminada a narração da história, perguntei-lhes:
- Se vocês fossem inventar uma história com príncipe e princesa, qual das
duas moças seria a princesa dessa história?
A maioria das meninas, em ambas as salas, escolheu a gravura com a moça
loira.
Em uma das salas, apenas uma menina escolheu a moça negra. Perguntei a
razão pela qual ela havia preferido a negra, e ela argumentou:
- Escolho a morena, porque ela é mais bonita.
Uma outra menina negra, da outra classe, declarou:
- Eu escolho a negra, porque ela tem mais vontade de ser princesa.
A gravura com a figura das duas modelos passou pelas mãos de todas as
meninas das duas salas. Quando perguntei por que a maioria havia escolhido a loira,
elas responderam:
- Porque sim.
-Ela parece mais com princesa.
- Ela é mais delicada.
67
As meninas, tanto as negras como as brancas (nesse caso, as opiniões de
umas e de outras convergem) disseram que uma princesa, para ser princesa, tem que
ser branca.
A Menina Mestiça-Flor
13
- História V
(dia 19/04)
Conta essa história que uma menina sem cor vivia em um reino também
sem cor e pediu para que os elementos da natureza fizessem daquele lugar
um lugar com mais brilho e mais bonito.
Certo dia, ela acordou e notou que seu reino estava todo colorido. Então,
ela desejou também ter cor. Até que um dia ela conhece um lindo príncipe
negro, que se apaixona por ela. Eles se casam e acabam formando a terra
da gente mestiça.
***
A técnica que usei para contar a história foi o uso de gravuras. Recortei de
revistas uma figura de uma moça branca, loira, e de um rapaz negro. Colori a
cartolina, colei a história digitada em letras grandes, ao centro. Fui contando a
história, porém sem me apegar ao que estava escrito: fui narrando como quem conta
um caso. Ao terminar, perguntei para as meninas o que haviam entendido. Elas
responderam:
- Tinha uma menina bela e sem cor e seu reino era belo!
- Ela era transparente e não tinha cor.
- Tava triste.
- Chegou um príncipe negro.
- Ele era muito bonito e eles se casaram.
13
NETO, Eugenia (Adaptação da História). A Lenda das Asas e da Mestiça Flor. União Dos Escritores
Angolanos, 1981.
68
E como era a filha que nasceu da união deles?
- Ela era metade branca. metade preta.
- Ela era transparente!
Uma outra garota (negra)
14
diz que a filha do casal era transparente. A mãe
era transparente, o pai era negro.
A seguir, mostrei para as meninas uma gravura contendo quatro
bonequinhas sentadas num sofá: um menino, uma boneca negra, uma branca de
cabelos compridos e a última, branca de cabelos curtos. Falei para elas fazerem de
conta que foram a uma loja com a mãe e viram essas bonecas, dentre as quais elas
precisariam escolher apenas uma para comprar. Desse modo, qual daquelas bonecas
elas comprariam?
Isso foi feito com as duas salas.
Na primeira sala, duas meninas negras e duas brancas
15
escolheram a
boneca negra.
Uma menina escolheu o boneco, e todas as outras escolheram a boneca
branca, que tinha os cabelos mais compridos.
Na outra sala, em que fiz a mesma dinâmica, três meninas escolheram o
boneco, uma menina branca escolheu a boneca negra, e todas as outras meninas
escolheram a boneca branca com os cabelos mais compridos.
Em apenas uma sala, meninas negras escolheram bonecas negras,
enquanto todas as outras escolheram bonecas brancas, tendo, a maioria, optado por
aquela com os cabelos compridos. Depois, pedi para que as meninas escrevessem para
mim como é que era a filha do casal.
Transcrevo, a seguir, apenas o que as meninas negras escreveram:
14
A ênfase que estou dando, ao longo destas análises, ao fato de as meninas serem negras deve-se, conforme
destaquei, à circunstância de também ter trabalhado com crianças brancas. Porém, a minha atenção está,
em especial, nas falas e gestos das meninas negras, que são o foco deste estudo.
15
Destaco, nesse episódio, falas de meninas brancas, porque achei significativo que elas tenham escolhido a
boneca negra. No meu entender, isso se deu porque elas a acharam esteticamente mais bonita, mostrando o
gosto por um outro tipo de beleza. Só me reportarei, dentro do texto, às meninas brancas, quando acreditar ser
bem significativo que se ressalte as falas delas.
69
Criança I - O menino era preto e o cabelo era sem cor. Ele era bonito,
mas os olhos dele era estranho, porque o olho dele era sem cor e o outro era preto,
ele queria ter os cabelos ruivos mais era sem cor.
Criança II - A mestiça-flor era morena com os cabelos castanhos e uma
boca bem vermelhinha, bem clarinha, magra.
Criança III - Para mim o filho a mãe dela se chama Raíssa e o pai chama
Paulo, a menina é loira, olhos azuis, boca vermelhinha, magra e linda como uma
esmeralda. Fim…
Criança IV - Eu acho que a filha deles seria metade preto e metade da
cabeça transparente e uma perna transparente.
Criança V - Quando a menina nasceu, parece com a cara do pai, cabelos
pretos, olhos azuis, morena.
Criança VI - O menino é alto maravilhoso, cara da mãe.
Essa garota destaca logo o que seria realmente melhor para a criança que
nasceu: já que ela era a “cara da mãe”, era branca, então.
Criança VII - Eu acho que ela era alta, morena, olhos pretos, cabelos
castanhos claros!
Criança VIII - O menino nasceu com aparência se chama transparente e o
filho do negro fica reparando.
Criança IX - O menino era meio a meio. Era uma vez…
70
Um menino que era diferente ele era transparente e negro, ele puxou o pai
e a mãe ao mesmo tempo, eles se amavam e foi para o circo com o pai e para a
floresta com a mãe.
***
Rapunzel
16
(dia 26/04)
17
Essa é a história de um casal muito pobre, cuja esposa está grávida. Eles
eram vizinhos de uma mulher muito estranha, que tinha em seu quintal
uma grande plantação de rabanetes.
A mulher grávida ficou com desejo de comer os rabanetes. Como a
vizinha era muito estranha, o marido resolveu roubar os rabanetes.
Ele fez isso diversas vezes, até que um dia foi pego pela mulher, que
pediu, como pagamento pelos rabanetes roubados, a filha que sua mulher
estava esperando.
Quando a menina nasceu, a bruxa a roubou.
Quando a menina ficou moça, a bruxa a prendeu em uma torre e deixou
seus cabelos crescerem, para lhe servir de corda e poder subir até a torre.
A menina passou seus dias cantando e conversando com passarinhos. Um
dia, um príncipe ouviu sua voz e se apaixonou.
Foi até a torre para conhecer sua amada. A bruxa descobriu o romance e
feriu o príncipe, que ficou cego.
A princesa chorou sobre os olhos do príncipe, que se recuperou e os dois
viveram felizes para sempre.
16
CHAIB, Lidia (Adaptação). Rapunzel. In: As Melhores Histórias de Princesas. São Paulo: Publifolha,
2000 p.23-46. Ilustração Maria Eugenia.
17
Na versão original o legume é chamado raponços, daí o nome Rapunzel. Eu troquei o nome por rabanete,
também no livro de onde tirei a história o conto começa na festa de casamento de Rapunzel com a mãe do
príncipe contando aos convidados a história do casal. Eu, no entanto, contei a história direto nos
acontecimentos da vida de Rapunzel com o príncipe para encurtá-la, visto que as crianças se dispersam muito
com uma história muito longa.
71
***
No dia em que contei essa história, aconteceu o seguinte. Segui com a
primeira classe para sala onde a atividade se realizaria. Elas foram correndo se sentar
nos fundos da sala, onde uma arquibancada. Levei um cartaz, em que estava
transcrita a história. Os recursos usados foram: fiz a leitura da primeira página,
enquanto as outras três meninas se dispuseram a ler as três páginas seguintes.
Transcrevi o texto em um papel pardo, colei as folhas e ia folheando, como
se estivesse passando as páginas de um livro. Colori o papel com canetinhas glitter,
usei colagens e desenhos dos personagens.
Depois de contada a história, as meninas começaram a se alvoroçar e, na
maior algazarra, como de costume, pedi para que me descrevessem Rapunzel:
- Rapunzel tinham tranças longas,
- O cabelo dela era bem grande e claro.
- Ela tinha tranças enormes.
Pergunto então: vocês acham que Rapunzel poderia ter outra aparência que
não fosse branca e loira?
- Podia.
- Não podia.
Ela poderia ter outra cor? Poderia ter cabelos pretos? E vocês iriam gostar
da história mesmo assim?
- Podia.
- Ia gostar, sim.
Ela poderia ser uma menina negra?
- Uma garota negra, não! - diz uma menina.
As outras dizem:
- Podia, sim.
- Ela podia ser uma parda, uma parda, uma morena, podia ser negra
também - diz uma menina mestiça.
72
Quando perguntei se Rapunzel poderia ser negra, uma garota fez uma cara
de assustada, dizendo que não. As outras foram contra ela, dizendo que ela poderia ser
negra.
Por que vocês acham que ela poderia ser uma menina negra?
- Porque os negros, professora…
- Todo mundo fica com injustiça com eles.
- Ninguém tem de ficar humilhando eles.
Elas então começam a narrar as seguintes histórias:
- Quando a gente no supermercado, quando eles a cor assim, da
gente, se é morena, eles ficam seguindo para ver se a pessoa cata.
- A gente de cor eles ficam seguindo no shopping.
Eles ficam pensando que os negros podem roubar, não é?
- É.
- Eu tava no supermercado, o guarda começou a seguir a gente. A
gente não tinha feito nada, aí a minha mãe foi reclamar com a gerente!
- Professora, uma menina bem moreninha, ela ia comprar um
chocolate, aí quando ela ia saindo, o alarme disparou.
- Ela falou assim:
- Pára, pára tudo, que ninguém vai tocar em mim, quando a polícia
chegar, quero ver se roubei alguma coisa.
A polícia chegou, revistou ela toda e não encontrou nada.
E por que você acha que aconteceu isso com ela? - perguntei. Uma menina
diz:
- Porque ela é negra.
A maioria diz:
- Porque ela é morena!!
- Eles tavam praticando racismo! - diz outra.
Nesses relatos, as meninas deixam claro que têm percepção de como a
sociedade os negros: como alguém pré-disposto para o roubo, como alguém que
não é visto nem respeitado como cidadão.
73
Elas demonstram também a dificuldade que têm de classificar alguém ou
de se auto-classificarem como negro(a)s, optando pelos termos morena, moreninha ou
bem morena.
Esses termos servem quase como uma compensação ou um pedido de
desculpas pelo fato de alguém ser afro-descendente.
As histórias continuam:
- Professora, eu fui numa loja com a minha mãe, e todo mundo era
branco, né, eu fiquei olhando assim. E falei: mãe, vou sair:
Minha mãe disse:
- Não, fica aí!
- Você vai comigo!
Aí, quando cheguei lá no fundo, eu falei:
- Mãe, não tem gente preta aqui!
- Ahh! Fia, a única morena que tem aqui é você!
As meninas todas começam rir. Pergunto se a mãe dela é branca e ela
responde:
- Sim, minha mãe é branca.
Outras histórias:
- Professora, tinha duas meninas, mais moreninha do que eu, parece meu
pai!
Ela foi no mercado com o pai dela. Eu fui com o meu.
A mulher falou:
- Esse é seu pai? - com o meu.
A menina falou:
- Não.
Por causa que o pai dela é bem branquinho, e a menina era bem
moreninha. A mulher falou:
- Aquele ali não é seu pai não, pode ir para onde está seu pai!
Aí a menina falou:
- Você é meu pai?
Ele falou:
74
- Não.
A menina falou:
- Olha meu pai ali!
A mulher falou:
- Não, não é.
Aí, quando ela chegou perto do caixa, ela viu um monte de doce, a
menina foi lá e pegou um. O guardinha foi atrás dela e falou:
- Você tá roubando?
Ela falou:
- Não.
- Eu não mandei você ficar com o seu pai, por que você está olhando
esses doces?!
Aí chegou o pai dela e falou:
- Não, essa é minha filha mesmo, ela não tá roubando.
- Professora, ninguém acha que sou filha da minha mãe, porque ela é
branquinha e eu sou moreninha.
Todo mundo diz:
- Você não se parece com ela.
Aí, quando tô com meu pai, todo mundo diz:
- É sua filha!? Parece com você!!
Ai, que ódio - diz a menina ao final.
No trabalho com a outra sala, não obtive a mesma receptividade. As
meninas chegaram eufóricas, correndo e pulando, pedindo para brincar. Deixei então
elas brincarem, contei a história e, depois que terminei de narrar, fiz a mesma roda de
conversa.
Perguntei como era a Rapunzel, fisicamente:
- Ela era loira alta!
- Tinha tranças enormes.
- Vestido grande rodado!
Se a Rapunzel fosse de outra cor, vocês iriam gostar da história?
75
- Sim, claro.
Se vocês fossem inventar uma história com uma Rapunzel diferente, como
ela seria?
- Cabelos pretos.
- Cabelos longos.
- Pretos e cacheados.
- Morena, cabelos pretos, longos, enrolados.
E se Rapunzel fosse negra, a história ia dar certo?
- Ia dar certo, porque o amor fala mais alto.
- Ia dar certo sim, professora!
Vocês iriam gostar da história?
- Iria!!
Uma menina mestiça diz:
- A minha Rapunzel teria cabelos pretos cacheados e olhos azuis.
****
Para o segundo momento do processo de intervenção, que realizei no
CEU, com estudantes da série, organizei algumas dramatizações. Foram realizadas
três intervenções com duas salas de aulas de série. O local que me foi concedido
para tais atividades foi um anexo ao teatro que nos CEUS, chamado “sala de
multiuso”.
Não houve problemas em relação às professoras, pois, quando manifestei
minha intenção de fazer essas dramatizações, elas de imediato aceitaram que eu
pusesse em prática o trabalho. Porém, disseram que eu teria que conversar com a
coordenadora da série, a fim de lhe explicar a próxima fase das intervenções. Eu
assim fiz, conversei com a coordenadora e ela deu a competente autorização.
Quando contei às meninas que realizaria uma espécie de teatrinho, nessa
sala de multiuso, elas se mostraram bastante empolgadas para que essas atividades
76
começassem o mais depressa possível. As intervenções foram realizadas nos seguintes
dias: 30/08, 6/09 e 13/09 do ano de 2005.
***
Materiais utilizados para as intervenções
Utilizei perucas, sendo duas de cabelos longos de cor preta, duas loiras
igualmente de cabelos compridos e duas perucas blacks, com cabelos curtos.
Levei maquiagem para que as meninas se pintassem e pedi para que elas
também trouxessem o que tivessem. Essas maquiagens foram batons e sombra para os
olhos. Providenciei, ainda, vários colares compridos de pedrinhas, a fim de que elas se
enfeitassem.
Atividades do dia 30/08
Antes de começar as encenações, fiz uma espécie de preparação com as
meninas.
Comecei por um exercício de relaxamento, cujo objetivo era trazer as
meninas para a história e assim fazer com que elas se concentrassem nas atividades.
Depois disso, escolhi as meninas que fariam os papéis das princesas e do
príncipe. Todas, a princípio, queriam ser princesa loira. Ninguém queria ser o
príncipe, possivelmente por se tratar de um personagem masculino, mas ali havia
meninas. Enfim, uma menina negra se ofereceu para ser o príncipe.
Depois dessa preparação, iniciei as representações da história. A história
narrada, nesse dia, para que as meninas dramatizassem, foi a seguinte:
77
Amigas para sempre
Era uma vez duas princesas muito bonitas. Elas eram amigas desde a
infância; uma era branca, a outra negra. Moravam em reinos vizinhos e os pais de
ambas eram muito amigos. Foram criadas brincando juntas e uma tornou-se
confidente da outra.
Elas foram crescendo e sempre cultivando essa amizade. A cada ano que
passava, a beleza de ambas também aumentava. Mas elas não eram apenas lindas.
Eram consideradas, por todos, moças meigas e de um coração sempre pronto a
ajudar quem precisasse.
Certo dia, no entanto, um convite chegou ao castelo daquelas princesas.
Era o convite de um rei que morava por aquelas redondezas e estava convidando
todas as moças solteiras dos reinos vizinhos ao dele, para participarem de um baile,
pois ele queria casar seu filho e aquele baile serviria para que o príncipe
encontrasse aquela que seria possivelmente sua futura esposa. Todas as moças
entraram em polvorosa, cada uma querendo parecer mais bela que a outra, para ver
se conquistaria o coração do príncipe.
O dia do tão esperado baile enfim chegou e todas as princesas de todos os
reinos vizinhos ao do príncipe compareceram. As moças estavam todas enfileiradas,
esperando a hora em que o príncipe adentraria o salão. Todas eram realmente muito
bonitas, mas, entre todas, a beleza daquelas duas princesinhas amigas se destacava.
Quando o príncipe entrou no salão, seus olhos foram capturados para
aquelas duas princesas em especial, que também sentiram seus corações
balançarem, assim que avistaram o príncipe. Porém, qual das duas escolher, se ele
havia gostado de ambas
18
?
***
A história pára e o final quem daria seriam as meninas que encenaram
essa história. Na primeira sala em que realizei as intervenções, foram feitas três
dramatizações. Nas duas primeiras, tanto a princesa negra como a branca foram
interpretadas por meninas brancas. As meninas negras dessa sala não se manifestaram
em querer participar, nesse primeiro momento.
18
Essa história foi criada por mim.
78
Ninguém também queria ser o príncipe. No entanto, quem acabou se
candidatando para ser o príncipe foi uma menina negra. Na terceira encenação, o
príncipe foi uma menina branca, e as princesas foram representadas por uma menina
negra e outra branca.
Nas duas primeiras encenações, em que o príncipe foi uma menina negra e
tanto a princesa negra como a branca eram meninas brancas, o príncipe escolheu, na
primeira, a princesa branca e, na segunda, a negra. E, nas encenações em que o
príncipe foi uma menina branca e as princesas foram representadas por uma garota
branca e outra negra, o príncipe escolheu a princesa branca.
Todas as meninas queriam ser a princesa branca. Houve uma disputa
acirrada pela peruca loira. A peruca preta de cabelos lisos compridos também foi bem
disputada. Em compensação, a peruca black foi ignorada por praticamente todas as
meninas.
Na segunda sala de aula, realizei apenas duas intervenções, pois havia
usado muito tempo com as meninas, na primeira sala, e havia uma hora determinada
para eu entregar o espaço. Na primeira e na segunda encenação, tanto a princesa
branca como a negra foram alunas brancas e, mais uma vez, o príncipe foi
representado por uma menina negra. Nessa primeira encenação, o príncipe escolheu a
menina que representava a princesa branca. E, na segunda, também.
Organizei as encenações do seguinte modo:
CENA I - As princesas abrem os convites e se mostram eufóricas.
CENA II - As princesas se movimentam para lá e para cá, se arrumando.
CENA III - As princesas já estão no baile, paradas umas do lado da outra e
ansiosas pelo momento em que o príncipe adentrará o salão.
CENA IV - O príncipe chega ao salão, olha para as moças, cada uma mais
linda que a outra, mas ele teria que escolher apenas uma.
79
Nas duas salas, quando perguntei como as meninas se sentiram
representando a história, todas disseram que foi “legal”, que foi bom representar as
princesas. Todavia, quando perguntei, às meninas que haviam representado a princesa
negra, como elas se sentiram, uma declarou:
- Não me senti muito bem, porque não sou. Não tem nada a ver comigo.
A outra menina disse:
- Ah, foi legal representar a nêga!
Uma outra pergunta que fiz foi: “Vocês acham que o príncipe fez uma boa
escolha?”
Nas duas salas, todos disseram que fez. Então, perguntei: “E na vida real,
vocês acham que o príncipe ficaria mesmo com a branca ou com a negra?”. A
maioria, nas duas salas, respondeu que ficaria com a branca. Uma ou outra garota
negra ou parda afirmaram que ele poderia ficar com a negra.
Apresentação do dia 06/09
Nesse dia, poucos alunos compareceram, de maneira que juntei as salas e contei
a história.
As princesas prendadas
Era uma vez duas princesas que viviam em reinos vizinhos. Os pais delas
eram muito amigos. As duas princesas tinham a mesma idade e cresceram juntas.
Elas eram muito belas, uma era branca e a outra era negra.
As duas, porém, não eram só belas, elas também eram muito prendadas e
gostavam de ajudar a todos que passavam por dificuldades. Elas gostavam de ler,
aprender, eram muito curiosas e possuíam grandes talentos.
A princesa negra, por exemplo, era imbatível na matemática, além de ser
excelente pintora. A branca tinha uma voz maravilhosa e sempre cantava nas festas
do castelo, além de ser excelente pianista.
80
Certo dia, enquanto estavam passeando por uma praia próxima do reino
da princesa negra, notaram um rapaz muito bonito, que se aproximou das duas. Ele
estava muito impressionado com a beleza e simpatia de ambas. Elas, por sua vez,
nunca tinham visto um jovem tão belo.
Elas descobriram que ele era um príncipe de um reino bem distante e
estava naquela região passando férias, na casa de alguns familiares.
Surgiu então uma grande amizade entre os três. Porém, as duas jovens
estavam apaixonadas pelo rapaz; elas também notaram que ele estava muito
interessado por elas, porém, seu coração estava dividido.
As duas, no entanto, conversaram e decidiram que sua amizade estava
acima de qualquer coisa, independente da decisão do príncipe a respeito de qual
delas ele iria namorar.
As férias do príncipe estavam chegando ao fim. Ele teria que escolher
uma das duas para namorar. Depois de muito consultar seu coração, ele tomou a
decisão.
***
O final ficou por conta das meninas que dramatizaram essa história.
A organização da dramatização ficou assim:
CENA 1 - As princesas movimentam-se, fazendo várias tarefas (imitar
pintando um quadro, arrumando o cabelo, lendo um livro, tocando piano).
CENA 2 - As duas alegremente estão brincando pela praia.
CENA 3 - Ambas vêem o príncipe e ficam admiradas pela sua beleza.
CENA 4 - O príncipe se aproxima das duas e as cumprimenta.
CENA 5 - O príncipe finalmente faz sua escolha.
Fizemos quatro encenações.
Na primeira, a princesa branca foi uma menina branca e a negra, uma
negra. O príncipe foi uma menina negra. O “príncipe” escolhe a princesa branca.
81
Na segunda encenação, a princesa branca foi uma menina negra e a negra,
uma menina branca. O príncipe foi uma menina negra, que escolheu a princesa negra.
Na terceira encenação, a princesa branca foi uma menina branca e a negra,
uma menina negra; o príncipe também foi uma negra, que escolheu a princesa branca.
Na quarta encenação, a princesa negra foi uma menina negra, que, porém,
se recusou a usar a peruca black, optando por usar a peruca preta de cabelos lisos e
compridos, enquanto a princesa branca também foi uma menina negra, que usou a
peruca loira.
Perguntei para as meninas que haviam feito as princesas como elas haviam
se sentido com a representação. Elas disseram que se sentiram muito bem. Às
meninas que fizeram a negra, indaguei:
- E vocês como se sentiram, fazendo a princesa negra?
- Eu gostei, foi legal, me senti bem.
Uma menina negra que representou a princesa branca disse:
- Eu me senti ótima, sou bonita de qualquer jeito.
Pergunto ainda para as meninas que participaram da encenação:
- Se fosse na vida real, quem vocês acham que o príncipe iria escolher?
As meninas responderam:
- Ah, ele escolheria a branca.
- Ficaria com a loira.
Uma menina negra diz:
- Ele podia escolher a negra também, todo mundo é igual!
Uma outra menina negra acrescenta:
- Ele casaria com a loira e ficaria com a outra como amante.
Uma menina pardadeclara:
- Ele escolheria a loira, porque tem muito preconceito.
Apresentação do dia 13/09
82
Nesse dia, não realizei dramatizações de histórias com as crianças, mas um
desfile de modas. Levei papel crepom, para que as meninas confeccionassem suas
roupas, maquiagem e as mesmas perucas que foram usadas nas histórias
dramatizadas. Trabalhei com as salas separadas.
Elas se organizaram da seguinte forma: algumas meninas fizeram o papel
de modelo e outras das figurinistas e maquiadoras. Todas elas ficaram muito
envolvidas nessa apresentação, no trabalho de confecção das “roupas” e na
maquiagem. Havia, no local onde o “desfile” foi realizado, um tapete vermelho, que
foi forrado para representar a passarela na qual as “modelos” se apresentariam.
Nas duas salas em que promovi essas apresentações, as meninas se
recusaram a usar a peruca black e houve disputa acirrada pela peruca loira. Essa
escolha acontecera desde as histórias encenadas. De todas as perucas usadas, a de
cabelos claros e compridos foi a que ficou em condições mais precárias, enquanto a
peruca black ficou intacta. Era a mais conservada de todas, devido ao desprezo das
meninas por ela, desde o princípio das dramatizações.
Entre as meninas negras, houve um especial fascínio pelo uso da peruca
loira, o que gerou inclusive briga entre elas, para ver quem ia usar a tal peruca.
Uma menina negra da primeira sala trabalhada, todas as vezes que acabava
mais um dia de apresentação, ficava o tempo todo me pedindo que eu a deixasse subir
para a sala de aula usando a peruca loira. Houve um dia em que eu lhe dei permissão
e era visível a satisfação dela em subir as escadas a caminho de sua sala com a
peruca na cabeça. Ela subiu as escadas toda “rebolativa” e jogando os cabelos.
5. AS FANTASIAS NA CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DAS
MENINAS NEGRAS: ENTRE A RESISTÊNCIA E A LEGITIMAÇÃO
83
Em minha pesquisa, lancei mão de algumas técnicas cujo objetivo
era verificar em que medida poderiam corroborar ou não minha hipótese inicial,
qual seja, a de que as meninas negras teriam dificuldade para a aceitação dos
traços estéticos de seu corpo que as identificariam como negras e que isso se
relacionaria diretamente a um padrão de beleza construído como o mais bonito
e o mais aceitável, em nossa sociedade.
Ao longo deste trabalho, demonstrei que, no Brasil, o se pode
falar em construção de identidade negra sem levar-se em conta os seguintes
fatores: a construção de uma identidade legitimadora, em relação à qual a
identidade negra se oporia; os símbolos que são mobilizados pela agência negra
para a construção dessa identidade de resistência; o processo de identificações e
fantasias que permeiam a forma como os indivíduos incorporam ou não esses
símbolos. Tratando-se de meninas negras, não se pode desconsiderar as
construções identitárias ligadas ao gênero, à raça, à cor e à infância.
Vimos que parte da identidade legitimadora do Brasil é construída
em torno da mestiçagem ou do branqueamento da população negra, para que
atinja tons e traços mais próximos do branco. A história da construção da
identidade nacional brasileira é também a história da construção dessa tópica da
mestiçagem, da mistura que clareie.
Esse discurso sobre o belo brasileiro, pautado na mestiçagem que
branqueie e que é desejada, poderia estar presente nas falas das meninas negras
que, de modo inconsciente, poderiam repetir esse ideal ou desejá-lo para si.
Criei uma série de situações que permitiriam a essas meninas
falarem sobre como representam alguns traços estéticos relacionados ao negro
(cabelo, tom de pele ou cor), ou ao padrão de beleza desejado por elas. Como
também parti do pressuposto de que haveria, no Brasil, uma fantasia em torno
de raças e cores, segundo a qual a mestiçagem inibiria a existência de racismo e
discriminações, acreditei que estimular a expressão da fantasia, por meio de
contos de fadas, histórias para crianças, brincadeiras e fantasias (no sentido
84
concreto do termo), ou seja, pelo uso de trajes que possibilitassem a criação e
recriação de novas personagens, poderiam ser instrumentos úteis para
incentivar a expressão de minhas colaboradoras.
Considerei que todos os dados brutos obtidos por meio dessas
técnicas poderiam ser tomados como conteúdos a serem analisados segundo as
técnicas de Laurence Bardin (1979). Nesse sentido, muito embora alguns
autores levem em conta a diversidade de técnicas necessárias para a análise dos
desenhos que representam a figura humana
19
ou requeiram uma técnica
especial, para a interpretação de dramatizações ou entrevistas, pressupus que
todos os instrumentos utilizados me ofereceriam núcleos de sentidos, os quais
poderiam ser alcançados por meio de um mesmo método de análise, desde que
ele fosse suficientemente abrangente, a fim de incorporar diferentes formas de
comunicação e de linguagens, como o é o método de análise de conteúdos,
definidos por Bardin como
[...] um conjunto de técnicas de análise de comunicação visando a obter,
por procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das
mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência
de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção destas
mensagens. (BARDIN, 1979, p.42).
Ainda, para Bardin, podemos examinar os dados brutos coletados de
acordo com a técnica de avaliação ou representacional, segundo a qual é possível
encontrar “medidas” das atitudes do entrevistado em relação aos objetos sobre os
quais se pronuncia (pessoas, coisas, acontecimentos). O fundamento dessa técnica é a
de que a linguagem representa e reflete diretamente a pessoa que a utiliza.
[...] Neste caso, os indicadores utilizados para se fazer inferências acerca
da fonte de emissão estão explicitamente contidos na comunicação. A
análise de avaliação atém-se à direção e à intensidade dos juízos, atendo-
se, basicamente, à atitude, ou predisposição do emissor da mensagem
para reagir sob a forma de opiniões (nível verbal), ou de atos (nível
comportamental), em presença de objetos, de uma maneira determinada.
(BARDIN, 1979, p. 229).
A partir disso, fui em busca, nos dados brutos coletados, de
elementos que permitissem a criação de “indicadores” ou de categorias úteis
19
Vide Van Kolck, O.L. Interpretação psicológica de desenhos. São Paulo: Pioneira, 1981; Derdyk E.
Formas de pensar o desenho: desenvolvimento do grafismo infantil. São Paulo: Scipione, 1989. Debienne,
M.C. O desenho e a criança. Lisboa: Moraes, 1977.
85
para a organização desses conteúdos, de modo a poder interpretá-los. A
freqüência no uso de alguns termos ou a insistência em uma determinada
avaliação foi um dos indicadores que nortearam a composição de minhas
categorias. Outros foram: a escolha entre tipos físicos/estéticos e o contexto no
qual se manifestavam situações vinculadas ao negro/branco/outros.
A- Freqüência/escolhas
A.1- Escolha pelo uso dos termos negro, preto, pardo e moreno.
QUADRO 1
Freqüência de Palavras Usadas para
Designar Raça/Cor
Negro 4
Preto 1
Pardo 1
Moreno 10
TOTAL 16
O termo preferido pelas meninas para classificar um indivíduo não branco
ou para se auto-classificarem é moreno/a.
A.2- Escolha do tipo de cabelo
QUADRO 2
86
Tipos Preferidos de Cabelos
Cabelos Enrolados ou Cacheados 6
Cabelos Lisos 7
Cabelos Crespos 0
TOTAL 13
As meninas demonstraram preferência por cabelos lisos ou cacheados,
durante as dramatizações e desenhos. Contudo, as atividades realizadas mostram que
a preferência pelo cabelo cacheado não indica o cabelo crespo, típico dos indivíduos
negros.
A.3- Escolha pela cor dos cabelos demonstrando preferência
QUADRO 3
Cor de Cabelos Preferidos
Loiros/ruivos 4
Castanhos/claros/escuro 2
Pretos 13
TOTAL 19
É interessante observar que, no total, as meninas demonstraram predileção
por cabelos pretos. Entretanto, quando a opção entre tipos de cabelo se materializa
diante de seus olhos, disputam de maneira mais acirrada os cabelos loiros e lisos,
como ocorreu nas dramatizações. (essa questão será abordada mais adiante).
Todavia, podemos salientar que, se puderem escolher, preferem o cabelo loiro, mas o
87
que importa, antes de qualquer coisa, é que sejam lisos independentemente de
serem claros ou escuros.
Quando perguntei como imaginavam um príncipe ideal, a maioria optou
por alguém de cabelos lisos.
A. 4- Escolha pela cor dos olhos
QUADRO 4
Cor de Olhos Preferidos
Olhos Azuis 5
Olhos Verdes 4
Olhos Castanhos 1
Olhos Pretos 0
TOTAL 10
Observa-se que, diferentemente do que aconteceu com os cabelos,
quando se verificou a freqüência com que as meninas usaram a palavra cabelos
pretos, para se referir a um atributo que elas apreciariam, no caso dos olhos,
elas preferiram, majoritariamente, olhos claros. Um exemplo se encontra
quando descreveram seu príncipe ideal; Ele é alto, tem olhos azuis e é muito
bonito”.
A.5- Escolha pelo tom de pele
QUADRO 5
88
Tipo de Tom de Pele Preferido
Claro 9
Escuro 3
Neutro 2
TOTAL 14
As meninas demonstraram uma maior predileção por tons de pele
claros.
Observamos tal predileção pelos tons de pele mais claros,
principalmente no momento em que as meninas desenharam seus príncipes
20
.
Uma menina descreve seu príncipe ideal; É loiro, olhos azuis, boca
vermelhinha, magra e linda como uma esmeralda. Fim”.
B-Contexto
B.1- Escolhas e vínculos com situações que designam valores positivos e
desejados.
Quanto a verificar valores positivos que foram vinculados ao uso
dos termos e escolhas estéticas indicadas pelas meninas (negros, pretos,
brancos, loiros e morenos), observa-se que, de um modo geral, houve uma
valorização do tipo estético branco. As escolhas por personagens negro(a)s
ocorriam com mais freqüência no sentido de redimi-los de seu lugar de
abandono e de serem sempre preteridos em relação a outras raças/etnias, como
se fosse uma compensação. Destaco, no exemplo a seguir, quando tiveram que
indicar uma princesa, o que uma menina diz: Eu escolho a negra, porque ela
tem mais vontade de ser princesa”.
Em contrapartida, a escolha pelos padrões vinculados ao branco (ou
ao tipo físico branco) é isenta de qualquer compensação e aparece como mostra
de um desejo, como quando disputam a peruca loira, desenham os seus
20
Ver páginas 60-64.
89
príncipes ideais com olhos claros e descrevem suas princesas como possuidoras
de cabelos lisos ou cacheados.
B. 2- Escolhas e vínculos com situações que designam valores negativos e
não desejados
A palavra negro ou o tipo estético negro são referidos em situações
nas quais ocorrem discriminações, sofrimentos, constrangimentos, deboche ou
dor. Destaco o dia em que as meninas, cientes do preconceito racial que os
negros sofrem, em nossa sociedade, começaram a relatar fatos que aconteceram
com familiares e amigos. Dizem:
“Porque os negros, professora…. Todo mundo fica com injustiça
com eles. Ninguém tem de ficar humilhando eles. Quando a gente no
supermercado, quando eles a cor assim, da gente, se é morena, eles ficam
seguindo para ver se a pessoa cata. A gente de cor eles ficam seguindo no
shopping.”
“Eu tava no supermercado. o guarda começou a seguir a gente.
A gente não tinha feito nada, aí a minha mãe foi reclamar com a gerente!”
“Professora, uma menina bem moreninha, ela ia comprar um
chocolate, aí, quando ela ia saindo, o alarme disparou. Ela falou assim: ‘Pára,
pára tudo, que ninguém vai tocar em mim, quando a polícia chegar, quero
ver se roubei alguma coisa.’ A polícia chegou, revistou ela toda e não
encontrou nada”.
- E por que você acha que aconteceu isso com ela? Perguntei.
- Porque ela é negra.
A maioria diz: “Porque ela é morena!!”
Eles tavam praticando racismo! - diz outra.
A menção ao negro surge associada a racismo e preconceito, e
distanciada daquilo que seria desejado, positivo, apreciado, como também fica
patente, na fala da garota que diz: Sua cabelo de bombril. Eu pelo menos não
tenho esse cabelo de bombril”. Ou em outra afirmação, após ouvir uma música
90
na qual havia batuque: “Professora, a menina tal falou que essa música da
senhora é música de macumba!” A fala é seguida por risos.
Uma outra situação, na qual uma menina teve oportunidade de
externalizar seu tipo racial, foi regada por dor e raiva:
Professora, ninguém acha que sou filha da minha mãe, porque ela é
branquinha e eu sou moreninha. Todo mundo diz: ‘Você não se parece com
ela’. Aí, quando com meu pai, todo mundo diz: ‘É sua filha!? Parece com
você!!’ Ai, que ódio!!!”
C - Escolha entre opções divergentes branco-negro
Quando eram apresentados a situações nas quais podiam escolher entre
modelos estéticos vinculados a algum padrão, escolhiam:
C.1- O branco
Levei gravuras de duas modelos: uma branca e outra negra. Terminada a
narração da história, perguntei-lhes:
- Se vocês fossem inventar uma história com príncipe e princesa, qual das
duas moças seria a princesa dessa história?
A maioria das meninas, em ambas as salas, escolheu a gravura com a moça
loira.
A gravura com a figura das duas modelos passou pelas mãos de todas as
meninas nas duas salas. Quando perguntei por que a maioria havia escolhido a loira,
elas responderam:
Porque sim.
Ela parece mais com princesa.
Ela é mais delicada.
Mostrei para as meninas uma gravura contendo quatro bonequinhos
sentados num sofá, sendo um menino, uma boneca negra, uma branca de cabelos
compridos e, a última, branca de cabelos curtos. Falei para elas fazerem de conta que
91
foram a uma loja com suas mães e viram essas bonecas. Elas precisariam escolher
apenas uma para comprar. Desse modo, qual daquelas bonecas elas comprariam?
Na primeira sala, duas meninas negras e duas brancas escolheram a boneca
negra. Uma menina escolheu o boneco, e todas as outras escolheram a boneca branca
que tinha os cabelos mais compridos. Na outra sala em que fiz a mesma dinâmica, três
meninas escolheram o boneco, uma menina branca escolheu a boneca negra, e todas
as outras escolheram a boneca branca com os cabelos mais compridos.
C.2- O negro
Ainda em referência à escolha entre as modelos branca e negra, em uma
das salas apenas uma menina escolheu a moça negra. Perguntei por que ela havia
preferido a negra, ao que ela disse: Escolho a morena, porque ela é mais bonita”. E
outra menina, como dito acima, escolheu a negra por acreditar que esta teria mais
vontade de ser princesa.
QUADRO 6
Escolhas por tipo físico
Negro(a)/Preto(a) 3
Branco(a)/loiro(a) 31
Moreno(a) 2
TOTAL 36
Conforme destacado em vários momentos da pesquisa, a predileção
das meninas foi pelo tipo físico branco.
Obviamente, as escolhas não eram totalmente livres. Havia uma
situação de controle entre as ofertas, para que fosse possível verificar em que
medida suas escolhas refletiam e se compatibilizavam com o ideário nacional
de branqueamento ou da opção pelo padrão mais claro.
O que se percebe é que, quanto à freqüência, as meninas negras com
quem realizei esta pesquisa utilizam mais o termo moreno para referir-se às
92
pessoas de cor/raça negra do que a própria palavra negro ou preto. Quando
apresentadas a modelos estéticos brancos e negros, preferem o modelo
vinculado ao padrão estético branco, identificando-o como ícone de beleza. O
termo negro, quando empregado, é associado a situações dolorosas, de
lembranças de discriminação ou em que haja uma expectativa de uma
valorização que não existe. Não se usa a palavra branca/branco com
freqüência, mas os traços fenotípicos ligados ao branco são os valorizados
(olhos azuis, cabelos longos e louros, cabelos lisos, assemelhar-se com
Reynaldo Gianechinni). As situações, nas quais a opção pelo padrão negro é
feita, são situações de deboche (malandragem) ou em que se busca valorizar
uma amizade (uma menina branca que aceita representar uma negra, para
demonstrar afeição ao negro). As meninas negras não aceitam representar o
papel de negras, não escolhem, em sua maioria, as bonecas negras, as perucas
com cabelos negros, não desenham príncipes negros, não usam a palavra negro.
***
Cabelos de bombril
Momentos atrás, narrei a opção de uma menina branca, para ofender uma
outra negra, chamando-a de “cabelo de bombril”. Por que chamar alguém de “cabelo
de bombril” pode ser ofensivo?
A idéia que subjaz à ofensa não é somente a da comparação do
cabelo negro com uma esponja de de aço, usada para limpeza doméstica. A
ofensa reside principalmente na desqualificação do cabelo que não seria liso,
sedoso, macio. O cabelo negro aparece associado à dureza do o, à aridez, à
falta de forma de uma esponja usada para limpeza.
uma cobrança estética para que todas as mulheres tenham
cabelos lisos, de modo que as negras estariam em situação desprivilegiada em
relação às pessoas brancas. Cavalleiro (2003), em sua tese de doutoramento,
recolheu o seguinte depoimento de uma mulher negra: “[...] eu tinha vergonha
da minha cor. Quando eu era pequena, eu tinha vergonha da minha cor [...]
Morria de vontade de ter aqueles cabelões... Queria que o meu balançasse, mas
93
ele era duro demais. Então, às vezes, não gostava muito de ir aos lugares”
(CAVALLEIRO, 2003, p.183).
Quando a menina branca diz “sua ‘cabelo de bombril’, eu pelo menos não
tenho esse ‘cabelo de bombril’ !!!”, sabia que tal ofensa iria desestruturar a garota
negra, iria desarmá-la e que ela ficaria sem ação e foi realmente o que aconteceu,
porque não houve uma resposta à altura da garota xingada (GONÇALVES, 1985;
CAVALLEIRO, 2003).
“[...] A rede de significações atribui ao corpo negro a significância daquilo que é
indesejável, inaceitável, por contraste com o corpo branco, parâmetro de auto-
representação dos indivíduos. Como diz Rodrigues, a cultura necessita do
negativo, do que recusado, para poder instaurar, positivamente, o desejável. Tal
processo inscreve os negros num paradigma de inferioridade em relação aos
brancos (NOGUEIRA, 1998, p.42).
O que se pode entender da cena descrita é que a menina ofendida parece
que realmente assimilou um sentimento de inferioridade sobre si, visto não ter tido
qualquer reação diante da ofensa que sofreu, por não estar adequada ao padrão
estético branco (CAVALLEIRO, 2003; DOMINGUES, 2002).
O cabelo é, para os indivíduos negros, uma referência que lhes traz
sentimentos muito conflituosos devido a toda a estigmatização que a sociedade lhes
impôs, no seu processo de identificação.
O cabelo negro é costumeiramente alvo de chacota tanto por parte dos
brancos como por parte dos próprios negros, de sorte que tanto a cor da pele como a
textura dos cabelos carregam para esses indivíduos elementos de muita tensão entre
aceitar ou rejeitar seus cabelos (GOMES, 2002).
Por isso, alguns negros alimentam o desejo de “consertar a raça” através
da manipulação de seus cabelos, tentando assim aproximar-se o máximo possível do
padrão branco de beleza.
A partir de momentos como o descrito aqui e que se apresenta como
corriqueiro, na vida de muitas crianças e adultos negros, pode-se tentar entender o
desejo de muitos negros em querer transcender a sua raça (MAGGIE, 2001).
Por isso é que se observa, em tantos negro(a)s, principalmente nas
mulheres e meninas, a necessidade de mudança de seu tipo de cabelo, no sentido de
94
torná-lo o mais próximo possível do considerado belo socialmente. Mas, o que
querem os negros?
Eles querem ser reconhecidos como humanos; querem também o poder
que sempre lhes foi negado, em relação às decisões sociais. Querem ser vistos como
alguém que pertence ao mundo da cultura valorizada, da educação. Assim, a questão
por trás desse desejo é muito mais complexa. Talvez para as meninas que
participaram desta pesquisa, todos esses elementos inseridos na rejeição de seus
cabelos não estejam assim tão claros, aparecendo-lhes apenas como uma questão
estética a respeito do bonito e do feio.
[...] por tudo que sabemos sobre a inserção dos negros em nossa sociedade,
desde a escravidão até os dias atuais, reconhecemos que estamos inseridos em
relações assimétricas e de poder em que os brancos dominam os meios de
produção, a mídia, os lugares de poder, a informação, a escolarização. Sendo
assim, por mais que a comunidade negra desenvolva historicamente, estratégias
de resistência e de combate ao racismo e á discriminação racial, tenho que
admitir que a formulação de um olhar “desencontrado” do negro em relação a si
mesmo, à sua raça, à sua cultura invade os espaços sociais freqüentados por
esses sujeitos, o que implica, muitas vezes, para o negro e para a negra, uma
aceitação parcial do conteúdo da proposição racista e a rejeição à história inscrita
em seus corpos. E mais, esse processo pode tomar proposições maiores e resultar
na rejeição de elementos do corpo que no decorrer da história e da cultura,
passaram a ser considerados com o que mais atestam o pertencimento à raça
negra. Destes ,o principais são a cor da pele e o cabelo. (GOMES, 2002, p.182).
Quando uma menina ou uma mulher negra rejeita sua cor ou seu cabelo,
ela não está rejeitando apenas seu corpo, mas, principalmente, toda uma história que
se construiu por meio da forma como os negros foram “inseridos”/“excluídos”, em
nosso país. Ou seja, subjaz à rejeição de si uma pesada carga que se inscreve num
passado escravista de negação de sua pessoa humana. Essa negação se relaciona com
lembranças dolorosas da infância. E esse é, a meu ver, o foco principal que temos que
considerar, quando se analisa a rejeição dos negros/as aos seus corpos, às suas
características físicas. Desse modo, é importante
[...] ponderar que, para o negro, o estético é indissociável do político. A efecácia
política desse debate está não naquilo que ele apresenta ser, mas, ao ele no
remete. A beleza negra nos remete ao enraizamento dos negros no seu grupo
social e racial. Ela coloca o negro e a negra no mesmo território do branco e da
branca, a saber, o da existência humana. A produção de um sentimento diante de
objetos que tocam a nossa sensibilidade faz parte da história de todos os grupos
étnico/raciais e, por isso, a busca da beleza e o sentimento do belo podem ser
considerados como dados universais do humano. (GOMES, 2002, p.184).
95
A condição de terem que rejeitar-se como negros para, em contrapartida,
serem aceitos socialmente, é de uma violência simbólica, psíquica e física brutal, com
as quais os indivíduos negros têm que lidar, cotidianamente (GOMES, 2002).
Percebo a fantasia em torno dos cabelos lisos, longos, loiros, na
dramatização realizada com perucas e nos desfiles que as meninas realizaram. As
meninas disputaram as perucas com cabelos longos e loiros, longos e pretos,
desprezando a de cabelos crespos como os dos negros. Brigam pela peruca loira, uma
sai rebolando feliz por ter sido permitido que ficasse com a peruca loira, ao final da
aula. O desprezo pela peruca black foi tamanho que, ao final do trabalho, as perucas
com cabelos longos estavam praticamente destruídas e, mesmo assim, eram desejadas,
ao passo que a de cabelos crespos, praticamente intacta, ficou lá, intocada. A peruca
black, mesmo para elas, estava associada à malandragem e à chacota. Quando uma
resolve usá-la, é para parodiar o malandro – e todas riem.
Gomes (2002), em sua tese de doutoramento, entrevistou proprietário(a)s e
clientes de salões de beleza destinados aos negros, na cidade Belo Horizonte, tendo
destacado, entre outras coisas, o seguinte: “[...] De um modo geral, os primeiros
esforços de transformação do corpo negro, sobretudo, na história das mulheres negras
entrevistadas, datam da infância e do desejo de mudar uma parte específica do corpo,
o cabelo crespo” (p.229).
As meninas que participaram desta pesquisa demonstraram verdadeiro
fascínio por cabelos longos e lisos. Sempre se pode dizer que este seria o padrão para
todas as mulheres ou meninas (cabelos lisos e longos, exibidos em anúncios de
xampu). Porém, o quanto estar profundamente distante desse padrão pode ser um
complicador, para a construção da identidade dessas meninas?
O que se observa é que as meninas têm todo um referencial de beleza,
principalmente, no tocante a cabelos, que está de acordo com a normalização, em
nossa sociedade, de ver um tipo específico de cabelos, o de mulheres brancas, como
aquele que deve ser desejado por todos.
96
Fixar uma determinada identidade como norma é uma das formas privilegiadas
de hierarquização das identidades e das diferenças. A normalização é um dos
processos mais sutis pelos quais o poder se manifesta no campo da identidade e
da diferença. Normalizar significa eleger arbitrariamente uma identidade
específica como parâmetro em relação ao qual as outras identidades são
avaliadas de forma negativa. A identidade normal énatural”, desejável e única.
(SILVA, 2001, p.83).
Em outro lugar e em outro momento, eu havia analisado esse
mesmo tipo de conduta, considerando tanto o barulho feito por estudantes dentro do
espaço da escola, quanto as ofensas e xingamentos desferidos contra crianças
negras, em virtude de seus cabelos e de sua cor de pele.
Durante minha pesquisa de Iniciação Científica, o mesmo foi observado
em outra cidade, com crianças da mesma idade, de maneira que eu dizia: “[...] no
mundo das crianças (ou no mundo das crianças negras) pude observar outro ponto
de fragilidade que é a exposição ao riso, ao deboche do outro”.
Observei a falta de reação da garota diante do menino que a xingava de
“cabelo de bombril”, a imobilidade do garoto negro ao ver toda a classe rindo do
instrumento que ele tocava (a timba) e, por outro lado, o desamparo que sentiam,
pois não recorriam à professora para auxiliá-los a lidar com o problema.
Autores, como Goffman (1963), afirmam que os indivíduos
estigmatizados podem adquirir mais capacidade de lidar com situações de
discriminação. Todavia, não podemos nos esquecer de que se tratava de crianças
que ainda estão construindo sua identidade.
O que significaria o riso diante do negro? Uma não aprovação, uma
ridicularização, um desprezo? O que haveria de risível, no ato de se humilhar a
colega, correndo por toda parte o chamado de “cabelo de bombril”?
Se, em alguns momentos, o riso pode ser uma estratégia de defesa ao
desarmar o outro diante de uma possível “simpatia”, também pode ser um recurso
de maldade e de sarcasmo; uma arma de humilhação, diante da impotência do outro.
Será que o garoto ria, porque sabia que a menina não poderia ou não teria a quem
recorrer? Nesse caso, o silêncio (não percepção), por parte da professora, nutriu a
ação violenta do discriminador.
97
O riso aqui é um instrumento de violência psíquica contra a criança
negra. Isso se constitui em mais um elemento negativo, na construção da identidade
das crianças negras: elas são aquelas de quem se pode rir sem punição.
O silêncio da escola em relação ao racismo e preconceito colabora para
que as crianças (tanto negras como brancas) tenham uma percepção de si e dos
outros totalmente distorcida. As brancas, por sentirem-se acima das negras, e as
negras, abaixo das brancas.
Entretanto, também constatei que alguns alunos negros procuravam
chamar a atenção das professoras, “[...] andando pelas salas de aula; indo diversas
vezes até a professora para “puxar conversa”, cantando e falando em voz alta com
seus colegas”. As professoras, por vezes, viam esses alunos como empecilhos às
suas aulas.
Apesar disso, os alunos prosseguiam (às vezes até a explosão), tentando
lembrar às professoras que eles estavam ali, que eles existiam, que eles mereciam
atenção.
Mesmo que saibamos que a auto-estima dessas crianças é profundamente
afetada pela exposição a estereótipos negativos, elas demonstraram uma enorme
capacidade de resistência, ao dizer: “estamos aqui!” Em outras palavras, fazem
barulho para romper o silêncio que a escola insiste em manter sobre elas.
21
Penso que voltei ao passado, porque exatamente o que houve ontem (na
pesquisa de Iniciação Científica) se repete hoje (na pesquisa de Mestrado). Por mais
que se pudesse pensar que fosse o meu olhar que visse as mesmas coisas, também se
poderia imaginar que, tanto como cá, estivéssemos em contato com as mesmas
representações sociais sobre negros, cor e cabelos.
As representações se perpetuam, porque passamos a acreditar na
inferioridade de certos indivíduos em relação a outros, para a sobrevivência de
nossa própria individualidade, que foi assim que fomos ensinados a não tolerar e
desprezar o chamado diferente; no entanto, ela ainda é mais poderosa, por conseguir
21
As referências que aqui faço foram extraídas de minha pesquisa de Iniciação Científica intitulada “A
relação professor/criança negra: a busca de uma identidade”, realizada entre os anos de 2000 a 2002, na
cidade de Presidente Prudente- SP.
98
fazer com que os próprios indivíduos que sofrem a discriminação acreditem que são
realmente inferiores (DOMINGUES, 2002).
Até que ponto, na medida em que o negro é atravessado pelas representações
depreciativas em relação ao seu corpo negro, é possível para ele, a construção de
uma imagem de corpo em que a condição genérica esteja preservada?
Penso que até mesmo o que por herança nos daria um sentimento de humanidade
e pertencimento fica abalada quando muitos negros rejeitam sua conformação
física, e se tornam desejantes de características físicas que os aproximem “do
branco”, que os “humanizem”. (NOGUEIRA, 1998, p.87).
O negro só é o outro desejável quando visto como exótico- sensual, que
nos atrai e dá prazer, mas que está sempre em segundo plano, seja no que diz respeito
à sua humanidade, seja com referência à sua cidadania (SANTOS, 2004).
***
Ser descendente de índio
Na construção da identidade negra, ao se lembrar das raízes africanas, são
muitas as influências que se amalgamaram, na maioria das vezes em situações muito
adversas, pois “[...] é assim que se entre o negro e a diáspora, o cabelo e a herança
cultural africana” (GOMES, 2002, p.234).
Nesse processo de enraizamento, os ciclos da infância e da adolescência são
momentos significativos. E é durante esse período que a relação negro/cabelo se
intensifica. O desejo manifesto pela criança negra de alterar o “estilo” do seu
cabelo é algo complexo. Ele diz respeito á construção dessa criança enquanto
sujeito em relação à própria imagem e também é resultado de relações sociais
assimétricas, baseadas na imposição de modelos de homens, de mulher, de
adulto, de raça e de etnia (idem, p.234).
Observa-se, em decorrência, um verdadeiro misto de amor, orgulho, ódio,
desprezo, valorização e desvalorização, saudades, lembranças, e será em meio a esse
verdadeiro turbilhão de sentimentos que os indivíduos negros terão que construir sua
identidade.
Por isso, a fantasia de ser outro de si mesmo pode ser tão freqüente quanto
a reprodução inconsciente de todos os elementos que legitimam a identidade nacional
como mestiça e branqueada. Assim, não gera estranheza que a menina negra (pele
99
escura, cabelos longos e lisos) afirme com orgulho ser descendente de índio, ao passo
que somente confirme (com um ligeiro aceno de cabeça) ser descendente de negro.
“Professora eu sou descendente de índio.
Perguntei: E de negro não? Ao que ela balançou a cabeça, em gesto
afirmativo, porém, de forma tímida”.
Nota-se que, dentro da estrutura de valorização e desvalorização de certos
povos, na sociedade brasileira, o índio apesar de também não ser muito reconhecido
e de ter sido igualmente escravizado por algum tempo –, ainda assim, é mais
valorizado que o negro.
A Igreja Católica via o índio como alguém passível de ter alma, logo, um
provável descendente da raça humana. Os negros, ao contrário, sempre foram tratados
como não humanos. Por conseguinte, para a menina foi mais fácil, menos dolorido
talvez, identificar-se com o índio do que com o negro (FERREIRA, 2000;
CONCEIÇÃO, 2005).
Tratando-os como seres inferiores, verdadeiros animais ou objetos, o grupo
dominante encontrou um pretexto para explorá-los com sua mão-de-obra
escrava. Eram ridicularizados por seus aspectos físicos ou por seus costumes e,
sob pretexto de que possuíam sangue impuro, estavam proibidos de exercer
cargos públicos, militares e religiosos. (CARNEIRO, 1998, p.10).
Talvez dentro da representação social que a sociedade construiu, em
relação às pessoas negras e indígenas, o índio seja mais valorizado por o levar em
sua história as desvalorizações que sempre pesaram em relação aos negros.
Lopes (2002), em sua dissertação de mestrado, ao analisar jornais do
movimento negro entre as décadas de 1920 a 1940, considera que os escritores negros
ajudaram a difundir uma visão altamente negativa do continente africano, devido à
colonização européia, além do fato de as histórias da África não serem publicadas,
pois eram passadas oralmente entre os negros.
Isso propiciou uma leitura permeada pelos valores da sociedade branca, ou seja,
os escritores dos três jornais analisados fizeram uma leitura estereotipada, em
termos de vestimenta, comportamentos e costumes, ao divulgar informações
relativas ao continente africano.
Deste modo, nem sempre a população negra desejou assemelhar-se
esteticamente as figuras africanas ou brancas. Falando sobre a trajetória desta
comunidade, nas primeiras décadas do século à Zeila Demartini, José Correia
100
Leite lembrou-se que índio era o preferido: “então todo mulato cabelo duro,
beiçudo queria ser descendente de índio, não queria ser descendente de negro
não. Quando o cabelo era muito duro mandava raspar a cabeça, para dizer que
era descendente de índio”. Tal preferência pela figura indígena era por causa do
romance, naquela época “ele era parecido como um herói, um ser diferente”.
(LOPES, 2002, p.43,44).
A elaboração de uma representação social menos desfavorável para com
os índios pode vincular-se tanto aos aspectos religiosos, mencionados acima, quanto
aos filosóficos (a teoria do bom selvagem). Contudo, é interessante refletir como os
povos indígenas são pensados como fora da sociedade e do Estado (mesmo não
estando fora). Talvez seja possível associá-los a um passado mítico, a valores
positivos, a uma grandeza que os negros (inseridos na história e no presente) não
teriam.
Na construção da sociedade brasileira, os elementos negros e indígenas se
intercruzaram e sofreram influências mútuas:
Se considerarmos que, no Brasil, elementos da cultura branca e indígena foram
incorporados pelos negros e vice-versa podemos pensar que, para o negro
brasileiro, a referência de cabelo liso vem também dos índios. Estes últimos,
tanto quanto os negros, sofreram com a colonização e tantos outros processos de
exploração e dominação branca. Dessa forma, o processo de recriação do padrão
estético do negro brasileiro se deu, também, a partir da negociação e troca
realizado sob a égide da escravidão e posteriormente, da desigualdade social.
(GOMES, 2002, p.282).
O índio pode ser tomado pelo senso comum como povo do passado,
praticamente exterminado. Não seria cidadão, que estaria fora das normas que
vinculariam cidadania, sociedade e Estado. Já o negro não é assim:
A cidadania negra no Brasil é de terceira classe. Nenhum povo de todos os que
contribuíram para a formação da sociedade brasileira é mais ultrajado no seu
direito mesmo de reivindicar a nova nacionalidade imposta com a “diáspora”
africana. Os números do censo e da PNAD constatam. Os negros são os mais
miseráveis no Brasil. No conjunto da população sua renda per capita mensal é de
2,5 vezes menor que a dos brancos (todos os não negros). (CONCEIÇÃO, 2005,
p.147).
O indígena poderia ser glorioso, de sorte que optar pela identidade
indígena seria trazer para si um pouco dessa glória.
101
***
Príncipe desejado, princesa querida
Nesta pesquisa, porém, os paralelos são feitos em relação à “preferência”
das meninas pelo tipo branco de beleza, que as histórias narradas faziam o
contraponto entre o tipo branco e o tipo negro.
Percebemos que a questão do cabelo e da cor da pele perpassa todas as
outras formas de escolhas, representações e auto-representações que as meninas
negras, colaboradoras em minha pesquisa, fizeram. Em todas as atividades sugeridas,
procuraram desassociar-se da imagem negra. Quando solicito que escolham bonecas
para formarem casais, não escolhem bonecas negras; quando peço para descreverem
imagens de princesas, descrevem princesas loiras e de olhos azuis, escolhidas por
príncipes que se assemelham, em alguns casos, a Reynaldo Gianechinni, o tipo
valorizado pela mídia, como se neste faz de contas pudessem inventar que não são
negras e, dessa forma, pudessem ser mais amadas e escolhidas pelo príncipe ideal.
O tipo ideal de príncipe das meninas, ao que me pareceu e segundo seus
próprios comentários, é alguém que se encaixa no padrão estético branco: ele pode ter
cabelos pretos, mas estes sempre serão lisos; pode ser “moreno”, porém essa
morenidade terá de se encaixar dentro do padrão branco. E aqui se percebe outra
ambigüidade, no uso do termo moreno, que também pode indicar a pessoa branca de
cabelos pretos e lisos.
No tempo em que estive nessa instituição, pude perceber que elas têm
dificuldades de usar o termo negro. Quando o fazem, falam baixo, e notei um certo
constrangimento em pronunciar a palavra negro. Dizer que uma pessoa é negra soa
como se fosse uma grande ofensa. Elas próprias, quando se classificam, nunca falam
que são negras, mas preferem dizer que são morenas, ou bem moreninhas, conforme
poderemos observar mais adiante, neste texto, e como discutimos, ao nos
referirmos aos estudos de Sheriff.
Por outro lado, ter cabelos cacheados pode nos fazer imaginar que esse
príncipe, se não for negro, pode ser ao menos um mestiço, o que representa um
102
certo ganho, uma vez que tal pessoa, não sendo inteiramente branca, pode mesmo
assim ser considerada bonita.
Entretanto, observando os desenhos das meninas negras, o que se percebe
é que a maioria delas fez o príncipe de cabelos lisos e pretos. Apenas uma menina,
que desenhou um príncipe em forma de palito, retratou-o de cabelos enrolados e
castanhos. Na descrição e análise, incluí apenas os desenhos das meninas negras e
mestiças.
O que constatei é que as crianças têm dificuldades em desenhar um
personagem que seja negro, de modo que eles têm sempre que ter cabelos, lisos ou
olhos claros. Em relação às expressões que usam, ao comentá-los, vi que elas nunca
empregam a palavra negra(o), sempre se referindo a tais personagens como morenos
(MAGGIE, 2001). Por outro lado, têm uma predileção toda especial por desenhar e
falar de personagens brancos de olhos claros, utilizando sempre expressões como
bonito, lindo.
Analisando os desenhos feitos por elas, vemos que uma padronização
por parte das meninas em confeccioná-los dentro de um tipo de beleza que é o mais
aceito socialmente, ou seja, os príncipes, em sua maioria, são realmente como os
príncipes dos contos que elas estão acostumadas a ouvir, alguém branco de cabelos
lisos e muitas vezes de olhos claros.
Ainda que eu tenha contado uma história que reporta às lendas africanas,
as meninas, ao desenharam os seus príncipes, fizeram-no segundo um padrão estético
branco.
Quando a menina diz Eu escolho a negra, porque ela tem mais vontade
de ser princesa”, ela nos faz perceber que a negação do negro vai além do aspecto
estético e se apresenta no uso dos termos que escolhem para falar de si. Negros
tornam-se morenos, como o Brasil, descrito em versos e prosas, como “mulato
inzoneiro”, “moreno de corpo queimado da cor do pecado...” Talvez tenha percebido
que, em nossa sociedade, as modelos, as atrizes de grande sucesso, as princesas dos
contos infantis sejam todas brancas. E visto ser assim que as coisas se processam,
uma moça ou menina negra poderia ter muita vontade de também ser uma princesa,
103
de ter um belo príncipe apaixonado por ela, enfim, de ser feliz no final da história.
Assim, se for para ela escolher uma princesa, ela escolheria a moça negra mas,
note-se, ela não usou a palavra negra, tendo preferido o termo morena.
Mais uma vez, recorremos a Sheriff (2001), que mostrou que o termo
moreno é muito usado, no Brasil, em preferência ao termo negro, que é tido como
forma muito negativa, em nossa sociedade.
Contudo, o voto que prevalece é pela modelo branca. Respondem:
“Ela parece mais com princesa. Ela é mais delicada”.
As meninas negras disseram que uma princesa, para ser princesa, tem que
ser branca. A delicadeza também passa a ser associada à brancura. Ser princesa é ser
delicada. As mulheres negras não seriam delicadas.
Santos (2004) também analisa esse aspecto, ao considerar a história de
Cinderela.
O desejo de aceitação da mulher negra no mundo branco implica em mutilação.
As irmãs de Borralheira se mutilam para tentar conquistar o príncipe. Uma corta
o dedão do pé e a outra, o calcanhar para tentar fazer caber o sapatinho, mas são
desmascaradas. Borralheira não se mutila. A mutilação é descrita por Bettelheim
como a busca de uma feminilidade que as irmãs de Borralheira não possuíam;
tinham pés grandes. O príncipe buscava uma mulher graciosa.
Contudo, foram os belos vestidos e sapatos de ouro os artifícios que fizeram com
que o príncipe olhasse para Borralheira. Foi a mágica da cosmética que
possibilitou que ela fosse vista. A mágica da cosmética a livrou de seus
borralhos e lhe deu uma aparência aceitável.
O conceito de “boa aparência”, no Brasil, significa brancura ou algo que é
restrito aos brancos.
[...] Sem a mutilação do corpo, a mulher negra “padeceria” de uma “má
aparência crônica”. A cosmética a tornaria mais aceitável ou diminuiria o grau
de rejeição de seu corpo negro, de seu cabelo crespo, seu nariz, sua boca... Seria
possível a uma mulher negra, sem a máscara da cosmética, almejar a menor
aceitação na sociedade branca? (SANTOS, 2004, p.46)”
Vemos, dessa forma, todo um mundo de significações em que a brancura
é símbolo de tudo o que é bom e belo.
Observa-se, assim, que, para as meninas com quem trabalhei, com apenas
duas exceções, é impossível pensar uma princesa que não seja branca, loira. Quando
uma ou outra menina (negra) faz a opção pela modelo negra, é para, de alguma forma,
104
mesmo que seja provisoriamente, redimi-la de seu estado de insignificância, deixar
que ela sinta o gosto de ser princesa, pois a sociedade em que vive lhes ensina
diariamente que aquele não é o seu lugar natural. A negra pode ter mais vontade de
ser princesa, mas no geral, é o que ela não é.
***
Ou mestiço ou sem cor
Pode-se notar, portanto, o quanto deve ser complicado para elas se
situarem num mundo, no qual, de antemão, elas m consciência de que sempre
serão preteridas em relação às pessoas brancas.
Observa-se, desse modo, o quanto a identidade legitimadora está presente
na vida dessas garotas, de sorte que a parte que mais se sobressai dessa identidade é o
padrão branco, visto como símbolo de humanidade.
Nesse sentido, a história da Mestiça Flor faz todo o sentido para elas. Ou
se é mestiço ou não se tem cor. Como disse atrás, contei a história e, ao final,
perguntei o que tinham compreendido. Disseram:
- Tinha uma menina bela e sem cor e seu reino era belo!!
- Ela era transparente e não tinha cor.
- Tava triste.
- Chegou um príncipe negro.
- Ele era muito bonito e eles se casaram.
E como era a filha que nasceu da união deles?
- Ela era metade branca, metade preta.
- Ela era transparente!!
As meninas negras enfatizam os traços de transparência ou de mestiçagem
que poderiam, a partir da história, ser originados das misturas inter-raciais.
105
- O menino era preto e o cabelo era sem cor. Ele era bonito, mas os olhos
dele era estranho, porque o olho dele era sem cor e o outro era preto ele queria ter
os cabelos ruivos mais era sem cor.
- A mestiça-flor era morena com os cabelos castanhos e uma boca bem
vermelhinha, bem clarinha, magra.
- Para mim, o filho, a mãe dela se chama Raíssa e o pai chama Paulo, a
menina é loira, olhos azuis, boca vermelhinha, magra e linda como uma esmeralda.
Fim…
- Eu acho que a filha deles seria metade preto e metade da cabeça
transparente e uma perna transparente.
- Quando a menina nasceu, parece com a cara do pai, cabelos pretos,
olhos azuis, morena.
- O menino é alto, maravilhoso, cara da mãe.
- Eu acho que ela era alta, morena, olhos pretos, cabelos castanhos
claros!!!
- O menino era meio a meio.
- O menino nasceu com aparência se chama transparente e o filho do
negro fica reparando.
O filho do negro repara e olha aquilo que não é: transparente, sem cor. O
desejo da transparência é enigmático, porque o transparente é o que permite que todos
os olhares o recortem e o atravessem, sem se deter nele. É visto, mas o olhar não pára
sobre ele. O filho do negro repara aquele que não tem cor. E quem é sem cor?
Sabemos que chamar alguém de colorido (pessoa de cor, colored people)
é o mesmo que dizer que não é branco. Os não brancos são os coloridos, como se, por
extensão, os brancos não possuíssem cor. Como se, em contraposição à negritude de
uns ou à colorificação de outros, não houvesse nada, somente a transparência.
Quando falamos em branqueamento, vemos no sentido dessa palavra um
desejo ou necessidade apenas dos negros de se aproximarem de um ideal de beleza e
humanidade, inserido nas pessoas de cor branca, por estarem descontentes com sua
condição de negro.
106
[...] os estudos sobre branqueamento privilegiaram as estratégias psicossociais
desenvolvidas por grupos ou parcelas da população negra brasileira, para se
adequarem às demandas de embranquecimento da população brasileira, em
prática desde de meados do século XIX. O pressuposto dos estudos sobre
branqueamento, no sentido de adequação do negro a uma sociedade branca e
embranquecedora da população brasileira, sua parcela negra tenderia a
desenvolver a negação de sua racialidade e promover formas de
embranquecimento, tanto na busca de parceiros para a miscigenação, no desejo
de ascendência social através da “melhoria do sangue”, quanto no
comportamento, discreto e distanciado de sua comunidade de origem, visando
assemelhar-se ao branco. (PIZA, 2002, p.65).
mencionei os danos ao psiquismo que tal tentativa de diluição das
características negras pode causar ao indivíduo. O negro procurará “[...] identificar-se
como branco, miscigenar-se com ele e diluir suas características raciais” (BENTO,
2002, p.25).
É importante ressaltar que Isildinha Nogueira (1998) e Neusa Santos
Souza (1983) estudaram bem o que isso pode significar.
Um outro fator que corrobora a estigmatização dos negros é que esses são
vistos sempre enquanto grupo: quando um negro comete um erro, esse erro é
estendido a todo o seu coletivo. com o branco isso não acontece. Ele não é
racializado e, quando comete um erro, é julgado individualmente (PIZA, 2002).
Se o poder do branco é enorme, então, não surpreende o desejo do negro
em também querer estar nessa posição transcendental e humana, ao mesmo tempo.
Por trás dessa idéia de branqueamento vemos se configurar o
fortalecimento como grupo e a auto-estima individual dos brancos, e a destruição
individual da auto-estima dos indivíduos negros, bem como sua desmobilização como
grupo (BENTO, 2002).
Esses componentes, quando se somam, tomam uma força tal, a ponto de
serem os próprios indivíduos negros responsabilizados pela discriminação que sofrem
e por não gostarem de si próprios, como se o problema fosse do negro, que teria baixa
auto-estima. Essa é a imagem que fica não somente para negros que não conseguem
enxergar a dimensão do preconceito que sofrem, mas também para os brancos
(SANTOS, 2004).
107
É a força da identidade legitimadora que não nos deixa ver a realidade
como ela é, que nos torna insensíveis frente ao sofrimento alheio. É a força da
brancura (SANTOS, 2004; BENTO, 2002).
Evitar focalizar o branco é discutir as diferentes dimensões do privilegio.
Mesmo em situação de pobreza, o branco tem o privilégio simbólico da
brancura, o que não é pouca coisa. Assim, tentar diluir o debate sobre raça
analisando apenas a classe social é uma saída de emergência permanentemente
utilizada, embora todos os mapas que comparem a situação de trabalhadores
negros e brancos, nos últimos vinte anos, explicitem que entre os explorados,
entre os pobres, os negros encontram um fict muito maior em todas as
dimensões da vida, na saúde, na educação, no trabalho. A pobreza tem cor,
qualquer brasileiro minimamente informado foi exposto essa afirmação, mas não
é conveniente considerá-la. Assim, o jargão repetitivo é que o problema limita-se
á classe social. Com certeza esse dado é importante, mas não é só isso. (BENTO,
2002, p.27).
O prejuízo dos negros no “faz de contaque vivemos, no Brasil, vai muito além
do prejuízo social em relação à situação econômica e da busca por poder, na sociedade na
qual eles têm pouca representatividade.
A questão racial tem um componente psicológico, que se desdobra muitas
vezes naquilo que entendemos como apatia do negro frente ao preconceito. Os negros
passam a viver a fantasia de serem aquilo que jamais conseguirão ser, a saber,
brancos, pois só assim acreditam que terão um pouco de consolo psicológico.
Porém, esse consolo é ilusório, porque ninguém poderá viver com saúde
mental e física, tendo que negar, o tempo todo, aquilo que é, na realidade.
O negro, no processo de desvalorização em que está inserido, tornou-se o
perfeito depositário das fraquezas dos brancos, que não conseguem assumir em si. O
negro passa, pois, a ser o “outro” indesejável, aquele que o faz parte da
humanidade.
Outro ingrediente que ajudou para que as pessoas negras sejam vistas
como um “outro” indesejável é o medo que se passou a ter deles. Medo de sua revolta
por sua exclusão, e do ódio que essa exclusão poderia gerar.
Talvez possamos concluir que uma boa maneira de se compreender melhor a
branquitude e o processo de branquemento é entender a projeção do branco
sobre o negro, nascida do medo, cercada de silêncio, fiel quardião dos
privilégios.
108
O que se vê comprometido nesse processo é a própria capacidade de
identificação com o próximo, criando-se, desse modo, as bases de uma
intolerância generalizada contra tudo o que possa representar a diferença.
(BENTO, 2002, p.39-40).
Dessa forma, os negros passam a ser considerados como um próximo
distante, aqueles que conhecemos, mas de que fazemos questão de manter distância,
tornando-nos insensíveis a seus dramas.
A identidade legitimadora, dentro desse ideal de branqueamento,
transforma as pessoas em seres, que, mesmo sabendo-se diferentes, insistem na
igualdade, uma igualdade que os desumaniza.
Por isso, os grupos negros necessitarem tanto da identidade de resistência,
para mostrar à sociedade seus dramas, suas lutas e, a partir daí, construir um projeto
de identidade que torne a sociedade menos hipócrita, respeitando as diferenças, tendo
consciência das contribuições de todos os grupos que formam este país (CASTELLS,
2002). Afinal, o Brasil só é o que é, culturalmente, por conta da contribuição dos
grupos negros, indígenas e brancos.
As crianças negras reconstroem, portanto, em suas fantasias sobre si e
sobre o mundo de suas escolhas, as mesmas fantasias correntes no país e que podem
estar presentes no inconsciente de todos os brasileiros: um país mestiço, um país sem
cor (a menos que seja a morena); um país não racializado. Não obstante todo esse
desejo, essa fantasia tem cor, tem raça e é racializada.
***
A percepção da violência
Se, por um lado, as meninas negras demonstram o desejo de serem
brancas e poderem ser escolhidas e escolherem o padrão de beleza branco, por outro
lado, evidenciam uma profunda consciência acerca do lugar social que ocupam e do
que significa ocupá-lo. Creio que seja a partir dessa consciência que possam construir
traços que definam sua identidade de resistência. Esse traço de resistência surge após
109
a história de Rapunzel, quando pergunto se Rapunzel poderia ser uma menina negra,
ao que elas respondem que sim, que poderia ser negra.
“Ela podia ser uma parda, uma parda, uma morena, podia ser negra
também...
Porque vocês acham que ela poderia ser uma menina negra?
- Porque os negros, professora…
- Todo mundo fica com injustiça com eles.
- Ninguém tem de ficar humilhando eles.
- Quando a gente no supermercado, quando eles a cor assim, da
gente, se é morena, eles ficam seguindo para ver se a pessoa cata.
- A gente de cor eles ficam seguindo no shopping.
- Eu tava no supermercado, o guarda começou a seguir a gente. A
gente não tinha feito nada, aí a minha mãe foi reclamar com a gerente!
- Professora, uma menina bem moreninha, ela ia comprar um
chocolate, aí quando ela ia saindo, o alarme disparou.
Ela falou assim:
- Pára, pára tudo, que ninguém vai tocar em mim, quando a polícia
chegar, quero ver se roubei alguma coisa.
- A polícia chegou revistou ela toda e não encontrou nada.
E por que você acha que aconteceu isso com ela? - perguntei. Uma menina
diz:
-Porque ela é negra.
A maioria diz:
- Porque ela é morena!!
- Eles tavam praticando racismo! - diz outra.
Nesses relatos, as meninas deixam claro que têm percepção de como a
sociedade os negros como alguém pré-disposto para o roubo, como alguém que
não é visto nem respeitado como cidadão.
As histórias continuam:
110
- Professora, eu fui numa loja com a minha mãe, e todo mundo era
branco, né, eu fiquei olhando assim. E falei: mãe, vou sair:
Minha mãe disse:
- Não, fica aí!
- Você vai comigo!!
Aí, quando cheguei lá no fundo, eu falei:
- Mãe, não tem gente preta aqui!!
- Ahh! Fia, a única morena que tem aqui é você!!
As meninas todas começam a rir. Pergunto se a mãe dela é branca, ela diz:
- Sim, minha mãe é branca.
Outras histórias:
- Professora, tinha duas meninas, mais moreninha do que eu, parece meu
pai!
- Ela foi no mercado com o pai dela. Eu fui com o meu.
A mulher falou;
- Esse é seu pai? - com o meu.
A menina falou:
- Não. Por causa que o pai dela é bem branquinho, e a menina era bem
moreninha.
A mulher falou:
- Aquele ali não é seu pai, não, pode ir para onde está seu pai!
Aí a menina falou:
- Você é meu pai?
Ele falou:
- Não.
A menina falou:
- Olha meu pai ali!
A mulher falou:
- Não, não é.
111
Aí, quando ela chegou perto do caixa, ela viu um monte de doce, a
menina foi lá e pegou um. O guardinha foi atrás dela e falou:
- Você tá roubando?
Ela falou:
- Não.
- Eu não mandei você ficar com o seu pai, por que você está olhando
esses doces?!
Aí chegou o pai dela e falou:
- Não, essa é minha filha mesmo, ela não tá roubando.
- Professora, ninguém acha que sou filha da minha mãe, porque ela é
branquinha e eu sou moreninha.
Todo mundo diz:
- Você não se parece com ela.
Aí, quando tô com meu pai, todo mundo diz:
- É sua filha!? Parece com você!!
- Ai, que ódio! - diz a menina, ao final.
Observa-se que as meninas entendem as discriminações que sofrem os
negros; elas estão de alguma maneira conseguindo sobrepujar as barreiras racistas e,
na medida do possível, estão buscando formas para construir uma identidade positiva
para si.
Um dos pontos que, acredito, colabora para isso é o fato de que, na
periferia de São Paulo, movimentos musicais como o Rap e o Hip-Hop estão muito
presentes na vida de seus moradores. Estes são compostos majoritariamente por
jovens negros, que buscam no orgulho racial um contraponto para a opressão da qual
são vítimas, freqüentemente. Nesse local onde a pesquisa foi realizada, alguns desses
grupos se reúnem para lá ensaiarem e fazerem apresentações para a comunidade.
No entanto, não podemos deixar de destacar também que essa percepção
da violência não é totalmente clara, nem por parte delas, nem por parte de suas
famílias, haja vista a falta de reação que demonstram, quando em situações de
discriminação.
112
No Brasil, diz-se que um racismo cordial querendo nos fazer crer que até a
mais violenta forma de discriminação possa assumir aqui, um caráter mais
ameno, do que em outras partes do planeta.
O que ocorre, entretanto, é que essa falsa cordialidade faz com que as
manifestações discriminatórias ultrapassem a delimitação de espaços externos
para negros e brancos na sociedade, invadindo o espaço das relações de amor-
ódio; desejo-rejeição. É na esfera íntima e da subjetividade que encontramos os
suportes mais sólidos de sustentação das discriminações e delimitações dos
espaços “cordialmente” estabelecidos na sociedade brasileira. (SANTOS, 2004,
p.30).
Mesmo muito jovens, essas meninas também têm alguma percepção da
situação da mulher negra que serão um dia. Quando perguntei a elas como se
sentiram, após terem representado o papel de princesas escolhidas pelo príncipe de
seus sonhos, responderam que se sentiram muito bem. Às meninas que fizeram a
negra, perguntei como se sentiram, representando a personagem negra. Respondem:
- Eu gostei, foi legal, me senti bem.
Uma menina negra que representou a princesa branca disse:
Eu me senti ótima, sou bonita de qualquer jeito.
Pergunto ainda para as meninas que participaram da encenação:
- Se fosse na vida real, quem vocês acham que o príncipe iria escolher?
As meninas responderam:
- Ah, ele escolheria a branca.
- Ficaria com a loira.
Uma menina negra diz:
- Ele podia escolher a negra também, todo mundo é igual!
Uma outra menina negra diz:
- Ele casaria com a loira e ficaria com a outra como amante.
113
Uma menina negra diz:
- Ele escolheria a loira, porque tem muito preconceito.
As meninas negras sabem que, na vida real, o preconceito pode perpassar
as escolhas. Reconhecem que o príncipe se casaria com a mulher branca e teria a
negra como amante - fato que diferentes autores discutem, acerca do lugar
tradicionalmente associado às mulheres negras, nas relações com homens brancos e
negros, ao longo da história (vide Santos, 2004, e Frenette, 2001). As meninas não
deixam de perceber que a imposição de valores e de uma estética branca tem como
pano de fundo a discriminação das mulheres negras e dos negros, de uma forma geral.
O que é fantástico observar é que convivem com essa duplicidade como se pudessem,
ao mesmo tempo, brincar de faz de conta sem perderem o contato com a realidade que
lhes diz, o tempo todo, o que são. Poderíamos dizer que é coisa de crianças.
Entretanto, o que merece maior destaque é que, aqui, no Brasil, esse faz de conta é
coisa de adultos, também.
CONCLUSÃO
No trabalho que realizei com meninas negras moradoras da periferia da
cidade de São Paulo, observei que elas oscilam muito entre o aceitar-se como são e o
desejo de adquirirem alguns atributos muito valorizados, em nossa cultura, a saber: o
tipo de cabelo que possuem e o tipo que parecem desejar, manifestado principalmente
pelo fascínio que demonstraram quando fizemos algumas dramatizações usando
perucas.
Através das histórias contadas e das dinâmicas usadas, as meninas
puderam se colocar no lugar das personagens, dentro de uma aura de faz de contas e
fascínio, que tornou possível a elas falar sobre eles e escolher aqueles que queriam
incorporar, no momento das encenações das histórias.
114
Elas puderam escrever e desenhar o tipo de príncipe que consideram mais
bonito e atraente. Todos esses momentos serviram para que elas externassem, por
meio das suas “opções”, a percepção que têm de si mesmas.
A vivência da fantasia (de ser branca), evidenciada no fascínio das perucas
de cabelos lisos e compridos, e o desejo de harmonia mesmo sentindo na pele as
discriminações que vivenciam os negros fazem com que essas meninas continuem
na ilusão de que podem acrescentar a si elementos que as tornem mais aceitáveis.
Todavia, por outro lado, percebemos também que algumas meninas, como
mencionado, conseguem sobrepujar o desejo de embranquecer e estão se aceitando
como são, o que é muito interessante, visto que a sociedade, de um modo geral, e a
instituição escola, em particular, não têm feito muito para que essas meninas
construam uma identidade positiva. A pesquisa demonstra também que as crianças
não são simples receptáculos do mundo adulto. Elas são influenciadas por eles, mas
têm a sua própria forma de interpretar tudo que as cerca.
As meninas com quem trabalhei deram provas disso, quando, em suas
falas, mostraram como estão enfrentando o racismo e a discriminação, cada uma a seu
modo e influenciadas logicamente pela própria escola, por seus familiares e por outras
crianças, encontram formas de sobrevivência.
Elas estão construindo para si um modo de ser menina e negra que
ultrapassa muitas das barreiras que a sociedade lhes impõe, mesmo aquelas que
pareceram ser mais influenciáveis pelo padrão estético aceito e divulgado como o
normal, socialmente.
Essas meninas sabem que não é usando uma peruca que se transformarão,
como em um passe de mágica, da noite para o dia, em crianças brancas, mesmo que,
na fantasia, seja o que desejam. Elas sabem que são negras e é esse saber que é a base
de resistência à identidade legitimadora.
Um fator que pode contribuir para isso é a influência, na periferia, de
grupos de Rap e Hip Hop, os quais têm como um de seus principais carros-chefe,
além da denúncia da discriminação, o orgulho de pertencerem à raça negra. É comum
115
encontramos, nessas regiões, jovens usando camisas 100% negro” e penteados
típicos de pessoas que se orgulham de serem o que são. Essas pessoas estão, assim,
buscando a construção de um novo projeto de identidade, que leve a sociedade como
um todo a respeitar a conformação física de cada um.
Porém, esses fatos não diminuem os problemas pelos quais passam os
negros, em nossa sociedade, e não nos eximem de nossas responsabilidades para com
esse grupo.
As meninas são conscientes do quanto é difícil ser negro, em nossa
sociedade. Elas demonstraram isso, quando relataram situações de discriminações
vividas por colegas e familiares negros. E, dessa forma, algumas constroem uma
identidade positiva para si mesmas.
Nesse sentido, negociam à sua maneira, com os elementos da identidade
legitimadora, buscando símbolos para a construção de uma identidade de resistência.
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TAYLOR, Charles. A política de reconhecimento. In: TAYLOR, C.
Multiculturalismo. Lisboa: Instituto Piaget, 1998.
VAINFAS, Ronaldo. Colonização, miscigenação e questão racial: notas sobre equívocos
e tabus da historiografia brasileira 8. Tempo, Revista do Departamento de História da
121
UFF, , p.1-12 ago-1999. Disponível em http://www.historia.uff.br/tempo/textos/artg8-
1pdf . Acesso em 25 mai. 2006.
VILLARES, Lúcia. Que o fantasma seja bem vindo. In: Ethnos Brasil - Cultura e
Sociedade. Publicação Semestral do NUPE (Núcleo Negro da Unesp para Pesquisa e
Extensão). São Paulo: 2003, p.82-92.
As Histórias Usadas
Amigos, mas não para sempre dia 15/03
Em Uganda, no coração da África, os contadores de histórias dizem que,
antigamente, o gato e o rato viviam juntos e eram muito amigos.
Os dois parceiros plantavam, colhiam e, depois, armazenavam os produtos de
seu trabalho em pequenos celeiros, de barro coberto de palhas.
Um dia, o rato resolveu que iriam guardar o leite também, da mesma
foram como os homens faziam para não passar fome durante a estação seca.
De que jeito? – questionou o gato .- em poucos dias, o leite estará azedo.
Deixe comigo respondeu o rato. Eu aprendi como as mulheres
preparam um tipo de manteiga que eu adoro, a qual elas chamam de ghee.
122
Então, sob o comando do rato, os dois amigos deram início ao longo
processo. Assim que acabavam de ordenhar as vacas, de chifres enormes, punham o
leite numa sacola de couro, durante alguns dias, para fermentar. Depois balançavam a
bolsa, pendurada por uma corda no galho de uma árvore, para e para cá. Em
seguida, retiravam a espuma que ia formando-se no topo, colocavam-na numa panela
e ferviam até que a manteiga ficasse no ponto.
No fim da estação das colheitas, os compadres tinham um pote cheio de
ghee. Para que o gosto ficasse melhor, adicionaram nele uma série de temperos. Mas
ainda havia um problema para resolver.
- Onde guardar o ghee? perguntou o gato. Tem que ser num lugar
seguro, pois não confio muito em você- falou o felino, olhando com desconfiança
para o amigo. – Conheço bem suas fraquezas.
- Você tem razão. O simples cheiro do ghee me deixa com água na boca.
Vai ser difícil resistir – conformou-se o rato.
- Pra ser sincero, o ghee não estaria a salvo comigo também replicou o
gato, alisando os bigodes.
Depois de uma longa discussão, concordaram que o melhor lugar para
esconder o ghee seria no interior de uma velha igreja, construída pelos missionários
europeus.
- O templo é um lugar tão sagrado quanto as árvores cultuadas pelos povos
que habitavam a floresta. Ninguém vai ter coragem de mexer ali – opinou o rato.
- É mesmo – apoiou o gato. Além disso, o ghee ficará protegido contra a
ação de insetos e vermes.
Á noite, protegidos pela escuridão, o gato e rato esconderam o pote cheio
de ghee num canto da sacristia, onde o pastor guardava os documentos da igreja.
Quando a estação da seca chegou, o gato e o rato se alimentaram com os
produtos que haviam armazenado nos celeiros. Havia bastante comida para os dois.
Mas o rato não parava de pensar no ghee que ele ocultara na igreja.
- Será que não estragou? Como é que deve estar o gosto agora? pensava
o pequeno roedor.
123
Morrendo de vontade de provar um pouquinho do ghee, ele planejou uma
boa desculpa:
- Tenho que ir à igreja. A filha de minha irmã vai ser batizada e ela pediu
que eu fosse o padrinho.
- Está bem – disse o gato, sem desconfiar de nada.
O rato, tão logo chegou na igreja, pegou o pote, destampou-o e começou a
comer.
- Ai que delícia – elogiava, com a boca toda lambuzada de manteiga.
Antes de sair, ele cobriu a vasilha de barro e guardou-a cuidadosamente no
mesmo lugar.
- Como foi a festa? perguntou o gato, assim que o rato retornou com a
cara toda satisfeita.
- Foi ótima.
- Qual o nome que deram ao filho de sua irmã?
- Quase Cheio respondeu o roedor, lembrando-se de como havia deixado
o pote.
Dias depois, o rato, convencido de que o gato era mais fácil de enganar do
que ele imaginava, resolveu provar mais um pouco do ghee.
Fui convidado para outro batizado – mentiu ele.
Na volta, com a barriga estufada, disse que no nome do recém-batizado
tinha sido Metade.
- Que nomes estranhos sua família aos filhotes comentou o gato, sem
perceber que estava sendo passado para trás.
O rato decidiu continuar com suas incursões até que o ghee acabasse. Ele,
sempre que voltava da igreja, inventava novos nomes para os parentes batizados, de
acordo com o conteúdo do pote, que ia diminuindo a cada visita. O último nome,
lógico, só podia ser Vazio.
Quando a comida estocada no celeiro acabou, o gato chamou o rato e
disse:
- Agora podemos pegar o ghee que guardamos na igreja.
124
- Sinto muito, mas o posso acompanhá-lo. Estou me sentindo mal
desculpou-se o rato.
Então, o gato foi ao templo sozinho. Quando ele abriu o pote, levou o
maior susto.
- O quê? Não tem nada! Esbravejou. Isso não pode ser verdade
lamentou-se o bichano, rolando de raiva pelo chão.
Quando o gato chegou em casa, pronto pra dar anotícia, descobriu que
o rato tinha feito a trouxa e desaparecido no meio da floresta.
- pode ter sido esse traidor! Agora entendo os nomes esquisitos que ele
ia inventando: Quase Cheio, Metade, Um pouco, Pouquinho, Vazio...
Desde esse dia,o gato vive à procura do rato. Mas o roedor, assim que
escuta o miado do implacável perseguidor, foge correndo para sua toca.
Barbosa, Rogério Andrade. - Amigos, mas não para sempre In: Contos
Africanos para Crianças Brasileiras Ilustração: Veneza, Maurício. São Paulo:
Paulinas, 2004 p.5-14.
Bruna e a Galinha D’Angola. Dia 22/03
Bruna era uma menina que se sentia muito sozinha. Quando estava muito
triste ia para casa de sua avó nanã, que chegara de um país muito distante, e pedia-lhe
para lhe contar história de sua terra natal.
Uma que ela gostava muito era a do panô da galinha que sua avó trouxera
da áfrica. Ela sempre começava assim:
“Conta a lenda de minha aldeia africana que ósun era uma menina que se
sentia só. Para lhe fazer companhia resolveu criar o que ela chamava de ‘o seu povo’.
Foi assim que surgiu conquém, ou melhor, a galinha d’angola deste
panô
22
.”
22
Há na página seguinte a ilustração de um tecido com caracteres africanos nas cores bordô, amarelo e marron
com uma galinha d’angola pintada ao centro.
125
Certa noite, Bruna sonhou com a conquém descendo por uma corrente de
ouro. Ela era muito engraçada, trazia uma bolsa pendurada e, com suas patinhas,
espalhava a terra que caía do céu, na terra.
Bruna ficou tão contente com o sonho que pediu a seu tio, que era um bom
oleiro, que a ensinasse a trabalhar com barro.
Foi assim que Bruna modelou a galinha d’angola conquém. E passou a
brincar com ela. Assim não se sentia tão sozinha.
No dia de seu aniversário, Bruna, como de costume, foi à casa de sua avó.
Grande surpresa a esperava no quintal: era uma bela galinha d’angola que andava e
gritava:
__ Conquém! Conquém!
Era igualzinha à conquém de seu sonho, toda pretinha e cheia de pintinhas
brancas.
Bruna correu para sua avó e esta lhe disse:
__ Bruna, esta é a sua amiga, igualzinha à da história de ósún. Mandei vir
para você. Agora você não precisa mais perguntar “ com quem eu vou brincar?” Você
acaba de ganhar uma conquém de verdade.
Bruna vivia muito feliz com sua galinha d’angola, que a seguia por toda
aldeia. Enquanto ela fazia suas galinhas de barro, conquém ciscava por perto.
Para sua grande surpresa, as outras meninas da aldeia, que não brincavam
com Bruna, foram se aproximando e pedindo à ela que as deixasse também brincar
com conquém. Foi assim que Bruna arranjou muitas amigas. Não brincavam com
ela e a conquém, como, juntas, aprendiam a fazer vasilhas de barro e muitas galinhas
igualzinhas a conquém.
Quando as meninas ficavam cansadas, Bruna dançava com elas, imitando
a galinha d’angola e cantava uma canção que ouvia sua avó cantar quando contava a
história de ósún.
“Com quem vou brincar?
Me sinto sozinha!
Não fique triste menina.
Siga a conquém, que novas amigas fará!”
126
Certo dia a Conquém ciscou muito num terreno próximo à aldeia. As
meninas que estavam com ela perceberam que ela puxava, com seu bico, alguma
coisa e viram que era um botão muito bonito. Mais na frente ela ciscou e achou um
carretel, que as meninas ajudaram a desenterrar, logo a Conquém batia o bico numa
tampa de metal.
Bruna e suas amigas resolveram ajudar a galinha e descobriram um baú,
igualzinho ao do quarto de sua avó. Com grande esforço, elas o desenterraram e
resolveram levá-lo para a casa dela. Quando vovó Nanã o viu, gritou cheia de alegria:
__ meu deus! Vocês acharam o meu baú, que os carregadores perderam
quando me mudei para esta aldeia.
As meninas, surpresas, viram a avó de Bruna abrir o baú e retirar dele um
grande panô, parecido com o da história de Ósún, que este, além da Conquém,
tinha um pombo e um lagarto. Bruna esperou que sua avó se acalmasse e perguntou-
lhe:
__ Vó, por que a Conquém está junto com o pombo e o lagarto neste
panô?
__ Bruna, minha querida, conta a lenda da minha aldeia africana que estes
foram os animais que vieram ajudar a conquém na criação do mundo e de meu povo.
Conquém espalhou a terra quando desceu do céu para a terra, o lagarto desceu para
ver se a terra estava firme e o pombo foi avisar aos outros animais que podiam
descer para habitar naquele lugar. Esta é a história da criação do mundo que minha
avó já me contava enquanto eu pintava panôs como este.
Bruna e suas amigas, depois da descoberta do baú, ficaram muito
conhecidas, porque todos da aldeia se juntavam na casa de sua avó para verem e
ouvirem a história do panô que as meninas encontraram.
Sua avó, muito contente, resolveu ensinar as meninas a pintarem tecidos
como os que ela fazia na áfrica.
Isto fez com que a aldeia de Bruna ficasse conhecida.
Foi assim que todas as pessoas da aldeia de Bruna decidiram torná-la mais
bonita e pintaram suas casas com as cores dos panôs da galinha d’angola.
127
Um dia a Conquém sumiu, e todas as meninas saíram a sua procura,
chamando:
__ Conquém, onde você está?
__ Com quem nós vamos brincar?
Tanto procuraram, que a acharam bem escondidinha no mato. As meninas
foram atrás dela e viram um ninho com um belo ovo que ela protegia e chocava.
Tempos depois, cada menina da aldeia tinha uma galinha d’angola.
E até hoje, o povo daquela aldeia conta a história de Bruna e da galinha
d’angola para aqueles que compram os belos tecidos pintados pelas meninas.
Almeida, Gercilga de Bruna e a Galinha D’Angola; ilustrações Saraiva,
Valéria.- Rio de Janeiro: Educ Ed. Didática e Científica e Pallas Editora, 2000.
Os dezesseis príncipes e as histórias do destino Dia 05/04
Há muito tempo,
Num antigo país da áfrica,
Dezesseis príncipes negros trabalhavam juntos numa missão da mais alta
importância para o seu povo, povo que chamamos de iorubá.
Seu ofício era colecionar e contar histórias.
O tradicional povo iorubá acreditava que tudo na vida se repete.
Assim, o que acontece e acontecerá na vida de alguém
Já aconteceu muito antes a outra pessoa.
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Saber as histórias acontecidas. As histórias do passado, significava para
eles saber o que acontece e o que vai acontecer na vida daqueles que vivem o
presente.
Pois eles acreditam que tudo na vida é repetição.
E as histórias tinham que ser aprendidas de cór e transmitidas de boca em
boca, de geração a geração, pois, como muitos outros povos do mundo, os iorubás
antigos não conheciam a palavra escrita.
Na língua iorubá dos nossos dezesseis príncipes havia uma palavra para se
referir a eles.
Eles eram chamados de Odus, que poderíamos traduzir como portadores
do destino.
Os príncipes Odus colecionavam histórias dos que viveram em tempos
passados, sendo cada um deles responsável por um determinado assunto.
Assim, o Odu chamado Oxé sabia todas as histórias de amor.
Odi sabia as histórias que falavam de viagens, negócios e guerras.
Ossá sabia tudo a respeito da vida em família e da maternidade. E assim
por diante.
As histórias falavam de tudo o que acontece na vida das pessoas, os
aspectos positivos e negativos, pois tudo tem o seu lado bom e o seu lado ruim.
Quando uma criança iorubá nascia, um dos dezesseis Odus passava a
cuidar de seu destino, de modo que na vida da criatura se repetiriam as histórias
contadas pelo príncipe que era o seu Odu, o padrinho de seu destino.
Sim, cada criança nascida naquele país tinha um Odu protetor e esse Odu a
acompanhava pela vida afora, era o seu destino.
E tudo o que lhes acontecia estava previsto nas histórias que o príncipe
protetor gostava de contar.
Não era incomum um menino dizer aos amiguinhos:
“Sou afilhado do príncipe Ejiobê e por isso vou ser muito inteligente e
equilibrado”.
“Meu Odu é o príncipe Ocanrã e por isso sou assim esperto”, gabava-se,
orgulhoso, outro moleque.
129
“O Odu que rege o meu destino é Odi e eu vou ser um guerreiro valente e
vitorioso”, falava um terceiro menino, sonhando com um destino venturoso, se
sentindo o maioral da criançada.
Por isso chamamos os Odus de príncipes do destino.
Bem, formavam o time completo dos odus os príncipes Ocaranrã, Ejiocô,
Etaogundá e Irossum, mais Oxé, Obará, Odi e Ejilê, além de Ossá, Ofum, Ouorim e
Ejila-Xeborá e também Ejiologbom, Icá, Oturá e Oturopom.
Fazendo um pequeno comentário, os tais príncipes tinham nomes bem
esquisitos não é?
Mas só porque são nomes africanos e nós somos brasileiros.
Sendo assim, nossos ouvidos não estão acostumados com eles.
Cada povo tem sua língua e cada língua tem seus sons e suas palavras.
Quem fala uma língua acha os sons da outra esquisitos.
Se contássemos uma história semelhante a esta para crianças africanas e
disséssemos que nossos heróis eram chamados de Francisco, Vinícius, Pedro e
Joaquim, elas iam achar os nomes bem estranhos, como nós achamos fora do comum
os deles.
Entre os dezesseis príncipes do destino, Ejila-Xeborá talvez fosse o odu
mais invejado, pois aqueles que tinham a vida regida por ele estavam fadados a agir
com justiça e conhecer o sucesso, desde que não fizessem nenhuma besteira, é claro.
o Odu Obará sabia falar de coisas tristes, como as histórias dos que
são roubados, dos que perdem bens materiais, dos que o conseguem realizar até o
fim nada de bom, sempre envolvidos em fracasso e frustração.
Por isso ninguém gostava de conversar com Obará, pois ia ele contando
aquelas histórias infelizes, e por isso o chamavam de príncipe infeliz.
E é claro que ninguém queria ter Obará, coitado, como padrinho de algum
filho seu.
Acima dos dezesseis príncipes Odus estava o senhor do destino, o deus
que os iorubás chamavam de Ifá.
Os antigos iorubás cultuavam muitos deuses, que eles chamavam Orixás,
e cada Orixá cuidava de um diferente aspecto do mundo. Ifá era o Orixá do destino,
130
o mestre do acontecer da vida, e os Odus trabalhavam para ele. Ifá vivia no Céu dos
Orixás, que era chamado os príncipes Odus.
Os Odus orientavam o destino dos seres humanas mas Ifá os vigiava com
muita atenção, para que, tudo saísse como deveria ser, na vida de cada Homem, na
vida de cada Mulher, fosse um velho, fosse um adulto, fosse uma criança.
PRANDI, Reginaldo Os dezesseis príncipes e as histórias do destino In:
Os Príncipes do Destino história da mitologia afro-brasileira ilustração- MONTEIRO,
Paulo São Paulo: Cosac & Naify 2002 p.7-13
Branca de Neve- História Dia 12/04
Numa tarde de inverno, a costureira da corte fazia os últimos acabamentos
no vestido que a rainha usaria no aniversário de branca de neve. A aniversariante
estava ali, a seu lado, brincando. A princesinha afeiçoara-se a mulher, sua única
companhia desde que perdera a mãe.
___ Como está crescida e bonita! __ Pensou a costureira.
Veio á memória da mulher a imagem da antiga rainha com o bebê no colo.
Seu pensamento foi mais longe, até os aposentos reais, quando a mãe da princesinha
bordava uma paisagem no linho branco perto da janela de ébano. A agulha espetou-
lhe o dedo, e três gotas de sangue mancharam o tecido. Nesse instante, ela disse que
131
queria ter uma filha de pele alva como a neve, lábios vermelhos como o sangue e
cabelos negros como o ébano.
Pena que a rainha morreu meses depois do nascimento de sua filha. No
ano seguinte o rei casou-se novamente.
Agora Branca de Neve ia fazer sete anos. O desejo de sua mãe se realizara.
A menina era muito alva, com os lábios vermelhos e os cabelos negros.
__Já terminou o trabalho? __ perguntou à madrasta, que entrara no salão
de costura. __ Faça um ótimo acabamento, pois quero ser a mulher mais bonita da
festa.
A rainha era tão vaidosa que não repetia uma roupa sequer. Ela
enxergava a si própria e pesquisava em livros secretos receitas da eterna juventude. O
mundo girava em torno de sua imagem.
A madrasta aproximou-se de Branca de Neve, e a costureira percebeu que
havia inveja em seu olhar. Dos verdes olhos perversos da madrasta parecia escorrer o
pior dos venenos.
Mais tarde, a costureira passou pelos aposentos da rainha e a ouviu
perguntar ao espelho:
__Meu espelho, espelho meu,
Há alguma mulher mais bela do que eu?
__ Não há mulher mais bela na face da terra,
Além de vossa majestade!
A costureira real passou a observar que a madrasta ficava transtornada na
presença de branca de neve, com a possibilidade de a menina se tornar uma mulher
mais bela do que ela.
Sem desconfiar de nada, a princesinha vivia com alegria, e isso a deixava
ainda mais bonita. Nas tardes de primavera, buscava água na fonte e admirava o canto
dos passarinhos. Brincava com eles, que vinham comer migalhas de pão em sua mão.
Branca de Neve crescia e tornava-se cada vez mais linda. Motivo para
tormento da madrasta, que morria de ciúmes da menina e estava obcecada por destruir
a princesinha.
Certo dia, a costureira ouviu a rainha chamar o caçador e ordenar:
132
__ Leve branca de neve para um lugar ermo da floresta e mate-a! Traga-
me seu fígado e seu coração para provar que cumpriu a ordem!
Como? Matar branca de neve?
A costureira, que a tudo escutara, ficou horrorizada e com pena da
pequena princesa. Pensou em procurar o caçador e implorar-lhe que não a matasse.
Mas soube que ele já havia levado a menina para o passeio.
Branca de Neve admirava as flores do caminho, quando, no interior da
floresta, o caçador pegou um punhal para matá-la.
__ Não me mate!___ pediu a princesa e começou a chorar, assustada.
O caçador comoveu-se com as lágrimas da menina e não teve coragem de
cumprir a ordem. Disse a branca de neve que fugisse e nunca mais voltasse.
Depois, atirou num filhote de alce, arrancou o fígado e o coração do
animal e voltou para o palácio.
Branca de Neve fugiu, embrenhando-se pela floresta. O medo crescia. As
sombras das árvores faziam caretas monstruosas. Os barulhos eram assustadores.
A menina sentia-se perseguida por animais ferozes e corria entre os galhos
espinhentos. Tropeçava nas raízes das árvores nas pedras pontiagudas. Estava
sozinha, exausta. Não havia ninguém para protegê-la. Parou. Seus pés não
agüentavam mais. Sentou-se um pouco e, ali mesmo, adormeceu de cansaço.
No dia seguinte, o sol ia alto, ela tornou a caminhar até que avistou uma
casa. Bateu à porta, mas ninguém respondeu. Decidiu entrar.
Que casa maravilhosa, com tudo arrumadinho, parecia de boneca!
Na mesa, estavam dispostos sete pratinhos, cada um acompanhado de
talheres e taça de vinho. Tudo em miniatura e muito bem cuidado.
Branca de Neve estava com fome. Sentiu um cheiro de sopa vindo do
fogão e foi experimentá-lo. Uma delícia, que ficou ainda melhor acompanhada de um
pedaço de pão que ela pegou de cima da mesa.
A menina bebeu um gole do vinho em uma das taças e depois foi conhecer
o outro aposento da casa.
Viu no quarto sete caminhas muitas bem esticadas. Experimentou cada
uma e preferiu a sétima. Deitou-se e adormeceu.
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Os setes anãos, dono da casa, retornaram das minas de ouro e pedras
preciosas onde trabalhavam. Assim que entraram na sala, notaram uma presença
estranha.
Primeiro anão disse:
__ Sentaram na minha cadeira!
O segundo falou:
__Comeram do nosso pão!
O terceiro comentou:
__ Alguém tomou sopa no meu prato.
O quarto perguntou:
__ Quem tomou vinho na minha taça?
O quinto disse:
__ Alguém usou minha colher!
O sexto falou:
__ Usaram meu guardanapo!
O sétimo anão dirigiu-se ao seu aposento. Admirado, chamou os
companheiros para ver Branca de Neve dormindo.
A garota estava num sono delicado que os anões não quiseram despertá-la.
Eles se acomodaram como puderam. O sétimo anão de hora em hora, levantava e ia
dormir do lado de um companheiro. Foi assim a noite inteira.
Quando Branca de Neve acordou, contou sua história aos anões que logo
quiseram ajudar a menina.
__ Pode ficar morando com a gente. Não lhe faltará nada se você cuidar da
casa, cozinhar, arrumar as camas, lavar a roupa, costurar, passar e deixar tudo
organizado.
A menina concordou feliz e agradecida aos anões.
Enquanto isso, no castelo, a madrasta sentou-se a mesa para comer o
fígado e o coração de branca de neve, especialmente preparado por ela.
A costureira, que viu a alegria da rainha, chorou pensando que a princesa
estivesse morta. Não sabia que a menina estava salva, morando com os anões.
134
O tempo passava. Todos os dias, bem cedo, os anões saíam pra o trabalho
na mina. Quando voltavam, havia comida quentinha e saborosa. Antes de dormir eles
contavam à menina histórias da floresta.
Branca de Neve crescia. Os anões recomendavam à princesa que não
abrisse a porta para ninguém. Pela fama de malvada da rainha, ela poderia mandar
alguém atrás de branca de neve se descobrisse que ela estava viva.
E estava a costureira terminando mais um vestido. A rainha
experimentou a nova roupa. A costureira ouviu quando ela perguntou ao espelho:
__ Meu espelho, espelho meu, reflita,
Quem é a mulher mais bonita?
__ Branca de Neve, ela vive em festa com os sete anões na floresta!
A costureira ouviu a resposta do espelho e ficou feliz em saber que a
princesinha estava viva. Saiu dali correndo, com medo da rainha, que estava alucinada
de ódio e quebrava o que via pela frente.
A madrasta consultou seus livros e preparou uma cesta com tiaras,
prendedores de cabelo e pentes de vários modelos, envenenou um pente, falando
palavras mágicas:
__Este veneno, de perfume angelical, exercerá seu efeito mortal!
A bruxa vestiu-se de camponesa e ficou irreconhecível. Chegando á casa
dos anões, bateu à porta, oferecendo produtos de beleza. Curiosa, Branca de Neve
deixou a mulher entrar.
__ Que lindo pente! __ Exclamou a princesa.
__ experimenta, menina, você vai ficar linda! __ disse a rainha disfarçada.
Branca de Neve passou o pente nos cabelos e caiu imediatamente no chão,
como se estivesse morta.
A rainha foi embora apressada.
Anoiteceu, e os anões voltaram da mina. Tão logo viram branca de neve
caída, deitaram a princesa na cama e tiraram o pente de seus cabelos. Ela voltou a si e
contou aos anões o que havia sucedido.
135
Os sete amigos pediram que Branca de Neve redobrasse a atenção e não
deixasse mais ninguém entrar em casa.
A costureira tentava adivinhar o que a madrasta havia feito com branca de
neve. Passou pelo quarto da bruxa e ouviu a rainha perguntar:
__ Meu espelho, diga, sem demora, quem é a mais bela senhora?
__ Só digo a verdade, é branca de neve, majestade!
Com as palavras do espelho, a costureira real ficou feliz por saber que
Branca de Neve estava salva.
Quanto à madrasta, gritava de ódio. Entendeu que precisava de outra
poção. Preparou um veneno mais forte, que levou dias para ficar pronto. Vestiu-se de
camponesa e saiu para vender jóias à princesa.
Ao ver aqueles colares e pulseiras, branca de neve o resistiu. Abriu a
porta e deixou a mulher entrar, queria experimentar tudo.
Entre as jóias, um anel maravilhoso atraiu sua atenção. Assim que a
princesa pôs o anel no dedo, caiu desmaiada.
A rainha saiu, sentindo-se vitoriosa dessa vez.
Ao voltar para casa, os anões desconfiaram do silêncio e viram Branca de
Neve caída no chão. Rapidamente descobriram o anel no dedo anular da princesa.
Assim que o tiraram, Branca de Neve despertou.
Os anões proibiram a princesa de abrir a porta para qualquer pessoa. A
rainha não teria clemência, e seria fatal se houvesse uma próxima vez.
No outro dia, a costureira escutou o espelho respondendo à rainha:
__ Senhora, um gênio nunca mente. Branca de neve e a mais bela das
princesas, com toda a certeza!
A costureira sentiu a fúria da rainha e saiu dali apressadamente.
A madrasta passou dias preparando um veneno letal e o colocou numa
maçã. Vestiu-se como uma velhinha e foi procurar branca de neve.
A princesa ouviu chamados à porta:
__ Maçãs deliciosas, as mais bonitas que existem, quem quer comprar?
136
Curiosa Branca de Neve foi á janela, desobedecendo à orientação dos
anões. A bruxa disse que queria se livrar das maçãs para esvaziar sua cesta. Pegou a
fruta envenenada e a partiu no meio.
Experimente! __ disse a bruxa, que comeu a parte sem veneno e deu o
pedaço envenenado a branca de neve.
Como a velha comeu e nada aconteceu, branca de neve provou a maça.
Depois de mordê-la caiu desfalecida.
Quando os anões chegaram e encontraram Branca de Neve no chão,
tentaram tudo, mas não conseguiram despertar a princesa.
Todos choraram muito. Era preciso enterrá-la. Mas branca de neve
permanecia linda e corada. Os anões fizeram um caixão de cristal transparente para
guardá-la. Os sete revezavam-se para velar o sono da princesa.
No outro dia, a costureira, triste, ouviu o espelho dizer à madrasta:
__ A senhora agora detém o poder da beleza, ele pertence somente a
vossa majestade!
Os dias passavam-se, e sempre um dos anões permanecia junto ao caixão
velando a princesinha, que continuava linda, parecendo dormir.
Certo dia apareceu um jovem príncipe e sua comitiva a procura de abrigo
contra a noite, que seria fria.
Os anões os acolheram. Contaram a história de branca de neve para o
príncipe e o levaram até a princesa.
O jovem olhou para branca de neve e se apaixonou. Não conseguia sair de
perto dela. Pediu para levar o caixão ao seu reino, onde Branca de Neve seria velada
com todas as honras. Os anões não permitiram.
Então o príncipe pediu que eles levantassem a tampa do caixão para que
pudesse dar um beijo de despedida na princesa.
Os anões concordaram e abriram o caixão de cristal.
O príncipe aproximou-se de branca de neve e deu-lhe um beijo
apaixonado.
Nesse momento, o feitiço se desfez, e ela abriu os olhos.
Branca de Neve olhou para o príncipe e também ficou apaixonada.
137
O príncipe pediu branca de neve em casamento.
A felicidade dos anões era igual à do jovem casal, e todos partiram para o
castelo do príncipe.
A família real organizou uma linda festa. A lista de convidados incluía reis
e rainhas dos reinos vizinhos. Entre eles, estava a madrasta.
É claro que ela não sabia que se tratava do casamento de branca de neve.
A rainha o podia faltar num evento tão importante e levou a costureira na viagem,
para que desse os últimos retoques em sua roupa. Queria ser a mais linda de todas as
mulheres.
Ao chegar ao palácio, a rainha má empalideceu, pois reconheceu branca de
neve. Mas era tarde demais.
Os soldados do rei esperavam a rainha com algemas. Para evitar ser
presa na masmorra, a madrasta saiu correndo do castelo e lançou-se num precipício
perto dali, um abismo no qual ninguém jamais conseguirá escapar. Branca de Neve
reconheceu a costureira, sua amiga, e pediu que ela ficasse morando lá.
Era uma noite estrelada, a lua repartia-se infinitamente refletida no
caleidoscópio celeste. A festa do casamento foi linda, e os anões estavam sempre
perto dos noivos.
Branca de Neve e o príncipe foram felizes para sempre.
A costureira passou a contar a história da nova rainha e vivia rodeada de
crianças.
Chaib, Lidia (adaptação) “Branca de Neve” In: As Melhores Histórias de
Princesas ilustrações Maria Eugenia, São Paulo, 2000 p.7-30.
A menina mestiça-flor história dia 19/04
Amanhecia mais um belo dia naquele reino na distante áfrica.
Bramia o mar no choque das ondas.
Alegrava-se a terra nos raios do sol.
Conversavam as árvores no seu farfalhar.
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Conversavam as conchas e os búzios do mar.
Tudo era bonito e tranqüilo naquele lugar.
Mas um dia...
As flores tiveram o desejo de ter as cores dos raios do sol.
E os peixes desejaram a copa das árvores...
Olhar o azul do céu, pois era escuro o fundo do mar.
Mas como avançar no ar e no espaço
Se não havia asas?
Mas como ter a luz no fundo do mar e no profundo dos rios, se o sol tinha a
luz?
Mas como as flores podiam ter cor, se o sol tinha a cor?
Foram então ter com o sol
Pediram-lhe a cor.
E pediram-lhe a luz
O sol então matutou, matutou e resolveu atender o pedido deles.
Resolveu então criar uma linhagem de peixes com asas.
Quanto ao desejo das flores o sol enviou então raios vermelhos,
violeta e laranja e todo aquele campo logo se coloriu.
Havia também naquele reino uma princesa sem cor, e quando num
belo dia ela acordou e viu o imenso colorido que aquilo tudo havia se transformado
desejou muito ter cor também!
Começou então a passear pelo bosque e notou ao longe um cavalo e
um cavaleiro, quando este chegou bem perto dela a menina se encantou ele era um
príncipe cor de ébano, seus olhares se cruzaram e a sinfonia do amor tocou em seus
corações.
A princesa nunca tinha conhecido alguém tão belo e tão negro, o
príncipe por sua vez não havia conhecido ninguém sem cor, mas mesmo assim acho-a
belíssima.
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Os dois apaixonaram-se e por fim se casaram numa linda festa cheia
de música e de muito cor.
Daquela união nasceu uma menina, a menina mestiça- flor.
Ela era bela e tinha a mistura da cor do pai e da cor da mãe.
A fama daquele reino de ser um lugar colorido e cheio de amor se
espalhou e muitas pessoas iam conhecer aquele belo lugar e se encantavam todos com
a mistura das cores. O reino cresceu e prosperou, tornou-se então o reino da gente
mestiça.
Neto, Eugenia Adaptação da História “A lenda das Asas e da
Mestiça Flor” (1981) União dos Escritores Angolanos.
Rapunzel dia 26/04
Quando a mãe de Rapunzel ficou grávida seus pais viviam uma vida
simples. Eram camponeses mas nada lhes faltava. Em frente a casa deles, morava uma
mulher estranha, numa propriedade que ninguém conseguia ver por causa dos muros
altos. Avistavam-se apenas o jardim e a horta de rabanetes.
A mulher do camponês, de tanto observar os rabanetes fresquinhos, teve
vontade de fazer uma salada com as verduras e revelou ao marido seu desejo.
Ele prontamente foi á feira. Voltando para casa, deu os rabanetes à mulher,
que o experimentou mas não ficou satisfeita. Ela disse:
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__ Os únicos rabanetes que satisfarão ao meu desejo são aqueles da casa
da vizinha.
__ Mas querida não conhecemos a proprietária.
__ Argumentou o marido __ ela é esquisita e não fala com ninguém.
__ Ora, não faria mal se você pegasse alguns rabanetes na horta dela. Ela
nem notaria.
Numa noite sem lua, o camponês pulou o muro da casa da vizinha e pegou
uns rabanetes. Voltou para casa entregou as verduras à esposa, e ela fez uma salada
maravilhosa.
Seu desejo aumentou depois desse momento. A camponesa cobiçava
cada vez mais os rabanetes da vizinha.
Ela tanto insistiu que o marido foi de novo e de novo furtar os rabanetes da
horta alheia. O pobre homem não teve sorte certa vez, pois a estranha criatura o pegou
em flagrante.
O camponês pediu desculpas por ter invadido a propriedade da velha e
explicou-lhe o que ocorria com sua mulher, que estava prestes a dar a luz à um bebê.
__ Não há problema __ disse a velha. Pode pegar quantos rabanetes quiser
e levar para sua mulher. Mas vocês terão de me pagar por isso.
O que quer? Quis saber o camponês.
Quero o bebê que sua esposa dará a luz.
Passado um tempo nasceu uma linda menina. Rapunzel tinha a pele alva e
cabelos dourados. O pai nem se lembrava da promessa que fizera à velha. Mas no dia
do batizado, a bruxa apareceu e exigiu o cumprimento do pacto. Disse que a menina,
pois nascera dos rabanetes de sua horta. Seu nome seria Rapunzel.
Sem que ninguém pudesse fazer nada, a velha arrancou Rapunzel do colo
da mãe e saiu apressada.
Mudou-se com a menina para bem longe dali. Os pais de Rapunzel nunca
mais viram a filha.
Rapunzel ficou feliz. A bruxa tratava a menina muito bem. não
permitia que a menina cortasse os cabelos. Ajudava a garota a se pentear e a fazer
tranças, que cresciam, cresciam e chegaram a ter seis côvados de comprimento.
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Quando Rapunzel tornou-se uma belíssima jovem a velha sentiu que corria
o risco de algum príncipe se apaixonar e levar a moça embora.
__ A bruxa então resolveu trancar Rapunzel numa torre sem portas nem
janelas. Havia apenas uma janelinha minúscula por onde o sol entrava. A torre ficava
num lugar deserto da floresta. Só a velha conhecia o caminho.
Rapunzel logo se conformou com seu destino. Passava as tardes cantando
com os pássaros, que lhe faziam coro, e cuidando de sua imensa cabeleira, que
arrumava nas duas tranças douradas.
Todos os dias, a velha senhora chegava à torre e gritava em direção à
janelinha:
__ Rapunzel jogue suas tranças que eu quero subir!
__ Já vou minha madrinha.
Certo dia um príncipe que caçava pela região ouviu alguém entoando uma
linda canção numa delicada voz.
Num desses dias ele viu uma velha chegar e gritar:
__ Rapunzel jogue suas tranças que eu quero subir!
__ Já vou minha madrinha __ Respondeu a menina.
O príncipe ficou surpreso ao ver a velha subir pelas tranças de Rapunzel.
Mal podia esperar a noite chegar.
Escureceu e a lua cheia fazia brilhar as folhas das árvores. O príncipe viu a
velha sair, foi para debaixo da janelinha e imitou a voz dela:
__ Rapunzel jogue suas tranças que eu quero subir.
__ Já vou minha madrinha __ respondeu a menina.
Ela jogou as tranças e o príncipe subiu ao alto da torre.
Rapunzel ficou assustada não sabia o que fazer.
Ele pediu desculpas e contou a Rapunzel que se apaixonara por sua voz e
não conseguiu conter a curiosidade.
Rapunzel gostou de ter alguém com quem pudesse conversar.
O príncipe visitava Rapunzel todos os dias, e os dois se apaixonaram um
pelo outro. Faziam planos de se casar, mas Rapunzel achava impossível obter o
consentimento da madrinha.
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A velha não deixava de visitar Rapunzel, até que um dia, enquanto as duas
conversavam, a jovem esqueceu-se do seu segredo e comentou que a velha senhora
era mais pesada que o príncipe.
__Ah! Então você recebe a visita de um príncipe! __ Gritou a velha, cheia
de ódio, desejando vingança.
Para impedir a união do casal, a bruxa cortou as tranças da garota. Tirou
Rapunzel imediatamente dali, abandonando-a numa floresta distante e disse que
nunca mais queria vê-la.
A velha ficou então esperando o príncipe na torre para sua vingar-se dele.
Quando o príncipe chegou ela soltou as tranças da moça e ele não desconfiou de nada.
no alto o príncipe percebeu que fora descoberto. Ele não conseguiu
fazer com que a malvada dissesse para onde levara Rapunzel. E quando se distraiu, a
velha atirou-o de cima. Ele caiu numa mata de espinhos, que lhe feriram os olhos.
Cego e triste o príncipe vagou pelo mundo por tempo, à procura de Rapunzel.
Por sua vez a jovem fazia a mesma coisa, buscava encontrar o príncipe em
todos os lugares, mas não conseguia sair da floresta labirinto onde a bruxa a deixara.
Quando estava exausta, para aliviar seu cansaço, Rapunzel parava e cantava as
canções preferidas do amado.
Em um desses momentos, o príncipe ouviu a voz de Rapunzel, e correu ao
eu encontro. A floresta parecia abrir caminho para os jovens apaixonados.
Ao se encontrarem Rapunzel ficou tão contente que chorou de emoção,
suas lágrimas escorreram e caíram nos olhos do príncipe, que recuperou a visão.
O príncipe levou Rapunzel para o seu castelo os dois casaram-se e viveram
felizes para sempre.
Chaib, Lidia (adaptação) Eugenia, Maria (ilustração) Rapunzel In: As
melhores histórias de princesas São Paulo: Publifolha 2000 p.23-46
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