vinha fazendo, passei a investigar a interação entre o processo de abstração relacionado
às vistas aéreas e as dinâmicas psíquicas implicadas no confronto entre o olhar e essa
visualidade abstrata. Assim, a memória matérica, conforme definido anteriormente
como o registro na matéria do seu processo de pesquisa na formação e condução da
pintura, me apontava para configurações de tal maneira mutantes que passei a refletir
sobre as implicações psíquicas, tanto do ponto de vista da produção como da recepção,
no contato com essa visualidade. Conforme define ainda Dubois, muitos dos artistas do
segmento da pintura abstrata se aproximarem de uma visualidade no limite do
irrepresentável. De acordo com a Psicologia e a Psicanálise – e esta assertiva costuma
ser base da maioria dos testes psicológicos – diante de imagens visuais ambíguas e/ou
pouco definidas, aciona-se no psiquismo um mecanismo de associações inconscientes
ou latentes em relação ao estado da consciência, que podem ser além de projeções de
imagens psíquicas, reinvestimentos afetivos totais ou parciais (re-conexão entre o afeto
e a imagem da situação vivenciada que o gerou e ficou armazenada na memória)
4
.
Freud, que nunca usou o termo memória, chamou traço mnêmico ou mnésico
5
a esta
com Simônides de Ceos, cuja experiência teria sugerido os princípios da arte da memória, da qual se diz
ter sido ele seu inventor. A arte da memória foi transmitida por alguns grandes textos latinos e define um
conjunto de regras que permitia ao orador inscrever com facilidade, na memória, tudo o que necessitasse
para discorrer com eficácia sobre o assunto escolhido. Baseia-se no jogo de duas noções complementares
todo o tempo retomadas em todos os tratados : os lugares (loci) e as imagens (imagines). Os lugares são
estruturas múltiplas que devem formar uma série precisamente ordenada invariante, “superfícies virgens
suscetíveis de receber as imagines, que são plenas de sentido, mas transitórias”. As imagens vêm aí se
inscrever, se depositar, mas apenas por determinado tempo nesses loci, são signos simbólicos, colocadas
num lugar por certo tempo (só os lugares permanecem na memória). São necessárias imagens com
impacto emocional de maneira que elas se tornem imagens agentes, pois, do contrário, as imagens de que
não precisamos mais lembrar-nos, apagamo-las. Os loci, portanto, formam a estrutura do dispositivo da
memória. Desse modo, as formas mais comuns de arquitetura de loci, são as topografias que se podem
percorrer em pensamento com facilidade, porque são partes integrantes de nosso saber. In Frances A.
Yates, The Art of Memory, Chicago, University of Chicago Press, 1984.
4
Para um maior detalhamento das catexis afetivas, ver S.Freud, The Ego and The Id, The Satandard
Editions of The Psychological Work of Sigmund Freud, NY, Norton, 1986.
5
Esclarecem Laplanch e Pontalis, traço mnésico é a expressão utilizada por Freud para designar a forma
como os acontecimentos se inscrevem na memória. Os traços mnésicos são, segundo Freud, depostos em
diversos sistemas; subsistem de forma permanente mas só são reativados depois de investidos (de afeto).
Cf. LAPLANCHE, J., PONTALIS, J. B., Vocabulário de Psicanálise, SP, ed. Martins Fontes, 1983,
p.665.