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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
SETOR DE CIÊNCIAS JURÍDICAS
FACULDADE DE DIREITO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO - MESTRADO
A CRISE DA SOCIEDADE DE NORMALIZAÇÃO E A DISPUTA JURÍDICA
PELO BIOPODER
o licenciamento compulsório de patentes de anti-retrovirais
Walter Guandalini Junior
CURITIBA, 2006
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WALTER GUANDALINI JUNIOR
A CRISE DA SOCIEDADE DE NORMALIZAÇÃO E A DISPUTA JURÍDICA
PELO BIOPODER
o licenciamento compulsório de patentes de anti-retrovirais
Dissertação apresentada como requisito parcial à
obtenção do grau de Mestre em Direito ao Programa
de Pós-Graduação em Direito Mestrado da
Faculdade de Direito, Setor de Ciências Jurídicas,
Universidade Federal do Paraná, sob a orientação do
Prof. Dr. Ricardo Marcelo Fonseca.
CURITIBA, 2006
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ii
TERMO DE APROVAÇÃO
A CRISE DA SOCIEDADE DE NORMALIZAÇÃO E A DISPUTA JURÍDICA
PELO BIOPODER
o licenciamento compulsório de patentes de anti-retrovirais
Walter Guandalini Junior
Orientador: Prof. Dr. Ricardo Marcelo Fonseca
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da
Universidade Federal do Paraná, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em
Direito.
Aprovada por:
______________________________________
Presidente, Prof. Dr. Ricardo Marcelo Fonseca
______________________________________
Prof. Dr. Oswaldo Giacóia Jr.
______________________________________
Prof. Dr. José Antônio Peres Gediel
Curitiba, Paraná
17 de Agosto de 2006
iii
Dedico este trabalho ao Mestre Arrais de Cabotagem
Heraclides Soares da Costa, que com seu sorriso maroto
e suas mãos calejadas ensinou que dignidade não é
sinônimo de sisudez, que sabedoria não é sinônimo de
erudição, e que o é preciso estudar para ser mestre; ao
vovô Heraque, que viveu e morreu com alegria.
Dedico também à Giselle, que me chamava para sair e
depois reclamava que eu havia escrito pouco Clio
exigente, além de inspirar apenas por sua presença,
jamais permitiu que eu me dedicasse menos que o
máximo.
iv
AGRADECIMENTOS
Em Tlön não se assinam livros. Não existe o conceito de plágio. Estabeleceu-se que
todas as obras pertencem a um único autor, atemporal e anônimo. “A crítica costuma
inventar autores: escolhe duas obras dissímiles o Tao Te King e as Mil e Uma Noites,
digamos –, atribui-as a um mesmo escritor e logo determina com probidade a psicologia
desse interessante homme de lettres [grifos no original]” (BORGES, 1999:484). No planeta
imaginário criado por Borges não tem qualquer importância o causador do ato físico, o
amontoado de células e feixes nervosos que esfregou a caneta no papel; todos sabem que o
segurador da pena é apenas um instrumento do espírito amorfo que rege as condições de
possibilidade da produção científica e literária. Se a obra pertencesse a alguém, seria a esse
espírito, e a ele apenas. Ou a ele, se existisse, ou a ninguém.
Foucault está certo, o autor não existe. Ou melhor, não existe apesar de existir, pois
não passa de uma construção política, uma realidade de transação, princípio de
agrupamento do discurso criado com o objetivo de lhe conferir alguma unidade e
coerência, de modo a tentar excluir o acaso do contínuo discursivo (FOUCAULT, OD:29).
Apesar de ser eu a apertar, com os meus próprios dedos, o conjunto de botões
confusamente dispostos sobre a estante em minha frente, apesar de estar sozinho
enxergando a seqüência de letras, palavras e frases que se organizam e adquirem sentido na
tela diante de meus olhos, a verdade é que no momento de falar uma voz sem nome me
precede. Apossando-me da caligrafia de um segurador de penas cujos dedos eram mais
firmes, o que desejo repetir é que sou apenas mais um elo na cadeia de raciocínio,
prosseguindo a frase, me alojando nos interstícios de uma continuidade sem começo nem
fim (FOUCAULT, OD:5). Apesar de ser meu o nome rabiscado na primeira dessas duzentas
e tantas folhas costuradas, não é de mim que parte o discurso. Eu não passo de uma estreita
lacuna que permite a sua reemergência, uma fissura na terra que permite ao contínuo fluxo
de lava brotar por um breve momento na superfície, impressionando-nos com a beleza de
seu brilho tépido. A rachadura não é o magma, a rachadura não cria o magma, a rachadura
não o desvela como verdade fundamental. A lava quente tem seus próprios desígnios, se
movimenta de acordo com sua própria vontade, e flui sob a superfície da Terra inteira.
Em primeiro lugar, se não agradecimentos, eu devo ao menos expressar
reconhecimento a este fluxo indeterminado de condições que me tornaram, no presente
v
momento, o ponto de emergência de uma determinada forma de discurso, rachadura pela
qual se entrevê o magma detentor de um vermelho específico, um brilho característico e
um calor peculiar. Aos livros que li, aos estilos que imitei, às frases que roubei, e até
mesmo às metáforas kitsch, o meu agradecimento por me escolherem como veículo para
atingirem novamente a superfície; aos amigos e às suas conversas de bar, aos professores e
às suas indicações bibliográficas, aos familiares e suas palavras de incentivo, a todos os
que de alguma forma fizeram parte da minha vida (a todas as canções, jogos, piadas,
discussões, almoços e sobremesas) agradeço por terem me constituído como resultado de
um discurso que inevitavelmente reproduzo, consciente de seu caráter inconsciente, nas
páginas que vêm a seguir. A todos os fantasmas da minha mente, aos co-autores anônimos
deste trabalho, o meu reconhecimento por sua indispensável participação na realização da
pesquisa.
Mas esse agradecimento não basta. Afinal, embora a lava circule indistintamente no
interior da Terra, ela apenas jorra em alguns lugares. É necessário reconhecer o trabalho
daqueles que permitiram a formação da rachadura, daqueles que criaram as condições de
possibilidade para a emergência do fluxo discursivo, e lhe deram alguma coerência e
sentido. Dentre todos os que contribuíram em minha formação acadêmica, três pessoas
a quem devo especial agradecimento: os professores Adriano Nervo Codato, Guilherme
Döering da Cunha Pereira, e Ricardo Marcelo Fonseca. Mais que professores, mestres,
mais que mestres, mentores, e mais que mentores, amigos, foram estes três brilhantes
pesquisadores que me guiaram, cada um pela estrada que melhor conhecia, em meus
primeiros passos nas trilhas da pesquisa científica. Professores, agradeço a vocês pela
paciência com os erros, pela disposição em ensinar, pela sinceridade nas críticas, pelo
incentivo em todas as etapas dessa caminhada, e pelo prazer que me ensinaram a obter da
pesquisa científica. Mais que isso, agradeço principalmente pela tolerância com que
aceitaram orientar um calouro da faculdade de Direito e por nunca deixarem de ser um
exemplo a ser seguido – como professores, pesquisadores e amigos.
Devo expressar também minha gratidão ao imenso grupo de pessoas que
participaram ativamente na confecção desse trabalho, que com suas pás e picaretas
ajudaram a aumentar a fenda e expor o magma, e cuja vontade ativa de colaboração precisa
ser especialmente reconhecida. Agradeço, portanto, novamente ao meu orientador, Ricardo
Marcelo Fonseca, por sua presença em todos os momentos de elaboração da pesquisa,
vi
inclusive quando se encontrava a um oceano de distância; ao professor Eroulths Cortiano
Jr., pelo convívio no PET-Direito e por aceitar me orientar no início desta pesquisa; a todos
os colegas do Núcleo de Pesquisa História, Direito e Subjetividade, vulcão de que
orgulhosamente faço parte, pelas intermináveis discussões sobre a natureza do biopoder e
as possibilidades de resistência; aos amigos Daniel Krüger Montoya, por nossas leituras
conjuntas de Michel Foucault, e Muriel Gonçalves Martynychen, pelas indicações
bibliográficas, por insistir na importância da parte jurídica da dissertação, e por me ajudar
quando eu estava levando uma surra do Windows; a ambos, além disso, pela amizade e
pela parceria intelectual e política que dura quase dez anos; agradeço também ao quase-
médico Gustavo Soares Guandalini, à quase-farmacêutica Letícia Soares Tavares Morais, e
à farmacêutica Maria de Fátima Soares Guandalini, meu irmão, minha prima e minha mãe,
pelo incentivo permanente e pelo indispensável auxílio com a parte médica e farmacêutica
da pesquisa; também por me deixarem monopolizar o computador nos últimos meses; ao
meu primo, o administrador Ernani Tavares Morais Jr., por me ajudar a compreender as
importantes transformações por que passam o trabalho e a empresa na atualidade, por me
apresentar o Alvin Toffler, e pela paciência em nossas cansativas conversas à distância; ao
amigo Thiago Andraus agradeço por perguntar sobre o Gleitzeit ao advogado alemão a
quem igualmente devoto gratidão. Devo também a todos aqueles que participaram na
realização desta pesquisa, mas que o cansaço e o horário me impedem de mencionar, as
minhas desculpas e o meu sincero agradecimento.
Por fim, agradeço especialmente à Giselle, cúmplice de vida, por ser impiedosa nas
críticas, generosa nos elogios, e pela torcida sempre presente, inclusive nos momentos
mais difíceis desses dois anos e meio de trabalho. Ah, também pela incansável paciência, e
por se deixar convencer a ler a dissertação na praia, durante as suas tão almejadas férias.
A todos vocês, muitíssimo obrigado; são todos partícipes desta dissertação.
Gostaria de produzir efeitos de verdade, de tal modo que eles
possam ser utilizados para uma possível batalha, conduzida por
aqueles que o desejam, nas formas a serem inventadas e em
organizações a serem definidas, [deixando] ao final de meu
discurso [essa liberdade] para qualquer um que queira ou não
fazer alguma coisa.
Michel Foucault.
viii
SUMÁRIO
LISTA DE ILUSTRAÇÕES................................................................................................x
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS........................................................................xi
RESUMO...........................................................................................................................xiv
ABSTRACT........................................................................................................................xv
1 INTRODUÇÃO..............................................................................................................1
2 DAS SOCIEDADES DE NORMALIZAÇÃO ÀS SOCIEDADES DE
CONTROLE.......................................................................................................................11
2.1 As Sociedades de Normalização I – genealogia da sociedade disciplinar...................13
2.1.1 Formação – a crise da sociedade de soberania.......................................................13
2.1.2 Funções – o poder disciplinar..................................................................................18
2.1.3 Os instrumentos do poder disciplinar e o diagrama panóptico...............................25
2.1.4 A Razão de Estado e a governamentalidade policial...............................................31
2.2 As Sociedades de Normalização II – genealogia da sociedade de segurança............40
2.2.1 Formação – inflexão da sociedade disciplinar........................................................40
2.2.2 Funções – o dispositivo de segurança e o biopoder................................................49
2.2.3 Os instrumentos do dispositivo de segurança..........................................................56
2.2.4 A governamentalidade liberal..................................................................................63
2.3 Crise das Sociedades de Normalização – as sociedades de controle...........................73
2.3.1 Formação – o regime de acumulação flexível.........................................................73
2.3.2 Funções – o controle................................................................................................81
2.3.3 Os instrumentos do controle e o diagrama da empresa modular............................90
2.2.4 O Império e a radicalização da governamentalidade liberal................................100
3 A DISPUTA JURÍDICA PELO BIOPODER..........................................................111
3.1 O Licenciamento Compulsório de Patentes de Anti-retrovirais................................113
ix
3.1.1 O Programa Nacional de DST e AIDS – situando o problema..............................113
3.1.2 A proteção de patentes de produtos farmacêuticos – breve cronologia................122
3.1.3 Ainda as patentes de produtos farmacêuticos – os termos do combate.................129
3.1.4 O licenciamento compulsório de patentes de anti-retrovirais...............................134
a) Licença compulsória como sanção por má utilização da patente..................................137
b) Licença compulsória para a proteção de interesses estratégicos nacionais...................139
c) Licença compulsória por necessidade pública...............................................................142
3.2 A Disputa Jurídica pelo Biopoder...............................................................................148
3.2.1 O dispositivo de sexualidade na sociedade de normalização................................148
3.2.2 A AIDS na Encruzilhada – entre a disciplina, o biopoder e o controle.................158
a) AIDS e Disciplina..........................................................................................................163
b) AIDS e Biopoder............................................................................................................169
c) AIDS e Controle.............................................................................................................178
3.2.3 O licenciamento compulsório de patentes de anti-retrovirais e a disputa jurídica
pelo biopoder......................................................................................................................182
3.2.4 AIDS e Resistência.................................................................................................191
4 CONCLUSÃO............................................................................................................201
5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.....................................................................206
x
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 – O Panóptico de Jeremy Bentham.......................................................................29
Figura 2 – A Empresa Flexível de Atkinson........................................................................98
Gráfico 1 – Custo médio anual da terapia anti-retroviral no Brasil por paciente/ano....120
xi
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
Em virtude da grande quantidade de obras de Michel Foucault mencionadas nesta
pesquisa, optamos por não citar os seus livros de acordo com o sistema autor-data, que
exigiria do leitor o trabalho permanente de consultar as referências bibliográficas ao final
da dissertação para descobrir qual teria sido a obra citada no texto. Em conjunto com o
orientador desta dissertação, portanto, chegamos à conclusão de que seria mais adequado
citar as obras de Michel Foucault pela sigla que indica o título do livro consultado, seguido
do número da página. Trata-se, em suma, de uma adaptação do sistema autor-data, que
apenas substitui a indicação da data de publicação pela indicação da sigla da obra citada,
de modo a evitar a confusão que geraria no leitor a constante referência a várias obras
diferentes com a mesma data de publicação. Estas e outras siglas são indicadas abaixo.
AIDS/SIDA: Acquired Immunodeficiency Syndrome/ Síndrome da Imunodeficiência
Adquirida.
CUP: Convenção da União de Paris.
DST: Doenças Sexualmente Transmissíveis.
Far-Manguinhos: Instituto de Tecnologia e Fármacos da Fundação Oswaldo Cruz
FIOCRUZ: Fundação Oswaldo Cruz.
GATT: General Agreement on Trades and Tariffs/ Acordo Geral sobre Tarifas e
Comércio.
HIV: Human Immunodeficiency Virus/ Vírus da Imunodeficiência Humana.
INPI: Instituto Nacional de Propriedade Industrial.
LPI: Lei de Propriedade Industrial.
MS: Ministério da Saúde.
OMC: Organização Mundial de Comércio.
OMS: Organização Mundial de Saúde.
ONU: Organização das Nações Unidas.
PN-DST/AIDS: Programa Nacional de DST/AIDS.
xii
SUS: Sistema Único de Saúde.
TRIPs: Trade-related Aspects of Intellectual Property Rights/ Acordo sobre Aspectos dos
Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio.
USAID: U. S. Agency for International Development/ Agência Estadunidense para o
Desenvolvimento Internacional.
Livros de Michel Foucault citados:
CS: História da Sexualidade vol. 3 – O Cuidado de Si. FOUCAULT, Michel (1999c).
História da Sexualidade vol. 3 O Cuidado de Si (trad. Maria Thereza da Costa
Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque). Rio de Janeiro: Graal.
DEIV: Ditos e Escritos, vol. IV. FOUCAULT, Michel (2003a). Ditos e Escritos IV:
estratégias, saber-poder (org. Manuel Barros da Motta; trad. Vera Lúcia Avellar Ribeiro).
Rio de Janeiro: Forense Universitária.
DEV: Ditos e Escritos, vol. V. FOUCAULT, Michel (2004a). Ditos e Escritos V: ética,
sexualidade, política (org. Manuel Barros da Motta; trad. Elisa Monteiro e Inês Autran
Dourado Barbosa). Rio de Janeiro: Forense Universitária.
EDS: Em Defesa da Sociedade. FOUCAULT, Michel (2000). Em Defesa da Sociedade
(Maria Ermantina Galvão). São Paulo: Martins Fontes.
HS: L’Heméneutique du Sujet. FOUCAULT, Michel (2001c). L’Herméneutique du Sujet.
Lonrai: Gallimard/Seuil.
MP: Microfísica do Poder. FOUCAULT, Michel (2004b). Microfísica do Poder (trad.
Roberto Machado). 14ª ed. Rio de Janeiro: Graal.
NB: Naissance de la Biopolitique. FOUCAULT, Michel (2004c). Naissance de la
Biopolitique. Lonrai: Gallimard/Seuil.
OA: Os Anormais. FOUCAULT, Michel (2002b). Os Anormais (trad. Eduardo Brandão).
São Paulo: Martins Fontes.
OD: A Ordem do Discurso. FOUCAULT, Michel (2001a). A Ordem do Discurso (trad.
Laura Fraga de Almeida Sampaio). 7ª ed. São Paulo: Loyola.
PC: As Palavras e as Coisas. FOUCAULT, Michel (2002a). As Palavras e as Coisas (trad.
Salma Tannus Muchail). 8ª ed. São Paulo: Martins Fontes.
PP: Le Pouvoir Psychiatrique. FOUCAULT, Michel (2003b). Le Pouvoir Psychiatrique.
Lonrai: Gallimard/Seuil.
xiii
RC: Resumo dos Cursos do Collège de France (1970-1982). Foucault, Michel (1997).
Resumo dos cursos do Collège de France (1970-1982) (trad. Andréa Daher). Rio de
Janeiro: Jorge Zahar.
STP: Sécurité, Territoire, Population. FOUCAULT, Michel (2004d). Securité, Territoire,
Population. Lonrai: Gallimard/Seuil.
UP: História da Sexualidade, vol. 2 O Uso dos Prazeres. FOUCAULT, Michel (1999b).
História da Sexualidade vol. 2 – O Uso dos Prazeres (trad. Maria Thereza da Costa
Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque). Rio de Janeiro: Graal.
VFJ: A Verdade e as Formas Jurídicas. FOUCAULT, Michel (2001b). A Verdade e as
Formas Jurídicas (trad. Roberto Cabral de Melo Machado e Eduardo Jardim Morais). Rio
de Janeiro: Nau.
VP: Vigiar e Punir. FOUCAULT, Michel (2002c). Vigiar e Punir (trad. Raquel Ramalhete).
28ª ed. Petrópolis: Vozes.
VS: A História da Sexualidade, vol. 1 A Vontade de Saber. FOUCAULT, Michel (1999a).
História da Sexualidade vol. 1 – A Vontade de Saber (trad. Maria Thereza da Costa
Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque). Rio de Janeiro: Graal.
xiv
RESUMO
O objetivo desta pesquisa é analisar as recentes ameaças realizadas pelo governo federal de
promover o licenciamento compulsório das patentes dos medicamentos utilizados no
tratamento da AIDS (anti-retrovirais), levando-se em consideração a crise da sociedade de
normalização e as transformações por que passam as práticas biopolíticas na atualidade.
Tratando essas ameaças jurídicas como acontecimento, e evitando as visões juridicista e
economicista do incidente, foi possível enxergá-las como resultado de uma disputa por
poder, na qual dois entes distintos, Estado-nação e empresa multinacional, se utilizaram
dos instrumentos jurídicos vigentes de modo a obter controle sobre as práticas que
transpassam o corpo vivo e administram suas forças visando à produtividade. Pôde-se
perceber que essa disputa é emblemática da crise da sociedade de normalização, que
alguns anos sofre o assédio de uma nova forma de gestão da vida, não mais organizada
segundo a racionalidade estatal, mas de acordo com uma lógica empresarial: a sociedade
de controle. Compreendido o significado político da batalha pelo controle das patentes de
anti-retrovirais, foram investigadas as possibilidades de resistência às práticas de sujeição
que se manifestam no tratamento da AIDS, afirmando-se a necessidade de criação de um
espaço liso no qual a vida não seja regulamentada, mas pura potência criadora.
xv
ABSTRACT
The objective of this research is to analyze the recent threats from the Brazilian federal
government of promoting the compulsory licensing of medicine used in treatment of AIDS
(anti-retroviral drugs), taking into account the normalization society crisis and the changes
suffered by biopolitical practices nowadays. Considering these juridical threats a
happening, and avoiding the juridicist and economicist views of the incident, we could see
them as the result of a struggle for power, in which two distinct beings, the State and
international companies, made use of established juridical tools in order to control the
practices that fall upon the living body and manage its forces, seeking productivity. That
view allowed the comprehension of this struggle as a symbol of the crisis of normalization
society, which has been harassed for a few years by a new way of life management, not
organized according to the State rationality, but according to a business logic: the control
society. Understood the political meaning of the struggle for the control of anti-retrovirals’
patents, the possibilities of resistance against the domination practices revealed in the
AIDS’ treatment were investigated, and after that we stand up for the need of creating a
plain space in which life is not ruled, but pure creative power.
1
1 INTRODUÇÃO

    
      
          

    ! "   
    ! ! #
!$%
 !  !     
!
&&'&'!

(!)%*+,--./012
Em seu Ensaio sobre a Lucidez José Saramago (2004) nos confronta com uma
situação inusitada: durante as eleições de um país incerto, em um dia de votação como
outro qualquer, sem qualquer espécie de acordo ou combinação, verifica-se entre a
população da capital uma opção radical pelo voto em branco. A despeito dos temores
iniciais de que a forte chuva que caía pudesse provocar o absenteísmo generalizado, o
pleito havia se realizado sem problemas em todo o país. No entanto, o término da
contagem de votos causou consternação entre a classe dirigente, ao constatar-se que os
votos válidos não chegavam a 25% do total, distribuídos em 13% do total para o
partido da direita, 9% para o partido do meio e 2,5% para o partido da esquerda. Entre
os votos restantes havia pouquíssimos nulos, pouquíssimas abstenções, e mais de 70%
de votos brancos. Ao que parece, apenas na capital havia ocorrido esse fenômeno
anormal, que os municípios do interior tinham obtido resultados que não se
diferenciavam dos de sempre.
Em conformidade com a legislação eleitoral, a capital repetiu as eleições na semana
seguinte. Os espiões infiltrados nas filas de votação e as exortações dos políticos para
que os cidadãos cumprissem seus deveres cívicos não impediram que os resultados
fossem novamente catastróficos: 8% dos votos para o partido da direita, 8% dos votos
para o partido do meio, e 1% dos votos para o partido da esquerda. Sequer houve
abstenções e votos nulos nesta segunda votação, que os 83% restantes da população
da capital votaram maciçamente em branco.
2
O acontecimento foi um golpe brutal contra a normalidade democrática, “uma
carga de profundidade lançada contra o sistema” – como gostava de dizer o ministro da
defesa, impressionado por um passeio de submarino em águas calmas (SARAMAGO,
2004:59). Não seria de grande importância se fossem apenas os votos em branco de
costume; mas o caso é que haviam sido muitos, quase todos, muito além do limite
considerado normal ou aceitável. E o que mais surpreendia, além de não ter havido
qualquer movimento ou combinação aparente entre a população, era o fato de que
apenas os moradores da capital haviam se distanciado da normalidade, já que os
eleitores do interior haviam se portado como bons cidadãos e votado como sempre.
Em desespero, e sem saber como lidar com a situação, o governo decide suspender
as garantias constitucionais e instaura o estado de exceção. Esperava, assim, fazer com
que os degenerados do voto em branco reconhecessem seus erros e implorassem por
um novo ato eleitoral, no qual poderiam purgar os pecados de uma loucura que não
tornariam a repetir. Efetuam-se prisões e interrogatórios, investigações e ameaças, e
chega-se ao extremo da utilização de torturas e detectores de mentiras para se tentar
descobrir a verdade. Mas os cidadãos parecem teimosamente dispostos a manter o
sigilo do voto, limitando-se a responder que “ninguém pode, sob qualquer pretexto, ser
obrigado a revelar o seu voto, nem ser perguntado sobre o mesmo por qualquer
autoridade” (SARAMAGO, 2004:50).
Tornava-se manifesto, na cúpula do governo, que o estado de exceção não havia
promovido qualquer mudança perceptível no ânimo da população talvez porque os
cidadãos, pouco acostumados a exigir o cumprimento de seus direitos, não dessem pela
sua falta. Impunha-se, portanto, acolher a sugestão do ministro da defesa e promover a
decretação de um “estado de sítio a sério” (SARAMAGO, 2004:50), com toque de
recolher, encerramento das salas de espetáculo, patrulhamento das ruas, proibição de
grupos de mais de cinco pessoas e interdição das entradas e saídas da cidade,
procedendo simultaneamente ao levantamento das medidas restritivas no restante do
país a fim de que a diferença de tratamento tornasse ainda mais pesada a humilhação
imposta à capital.
Nesse momento de crise, em meio à reunião ministerial que decidia os futuros da
nação e do governo, o ministro do interior considera conveniente apontar aos seus
colegas a ironia da situação, apresentando-lhes suas divagações sobre a transformação
3
semântica do vocábulo ‘estado de sítio’. Se a palavra ‘sítio’ tem o significado
tradicional de “cerco, assédio”, como é certo que o tem, afirma o ministro que a
expressão ‘estado de sítio’ pode significar que a capital do país se encontra sitiada,
cercada, assediada por um inimigo; no presente caso, porém, “a verdade é que esse
inimigo [...] não é fora que está, mas dentro” (SARAMAGO, 2004:61). Aliás, tão dentro
do país quanto é possível estar, já que é no seio da própria capital que ele se manifesta.
O Ensaio sobre a Lucidez, como qualquer obra literária, se presta às mais diversas
interpretações. Pelo próprio título, bem como pelo enredo da obra, percebe-se que se
trata de uma grande alegoria sobre a fragilidade da democracia e das relações entre
governantes e governados, opondo-se a lucidez do voto em branco ao desvario dos que
não são capazes de compreender o seu significado. A rejeição democrática (pois
efetuada através do voto) de todas as propostas eleitorais é o ponto de partida para se
comparar a repentina lucidez do povo com a cegueira permanente daqueles que
consideram necessário fazer-se governar de alguma forma, o que permite um
questionamento profundo das raízes e dos pressupostos do sistema democrático.
Mas não é essa a interpretação que interessa ao presente trabalho. Mais importante
que a alegoria central do livro é a intuição banal do ministro do interior, que com seu
comentário inoportuno toca num ponto essencial para a compreensão do modo de
funcionamento político das sociedades modernas: o fato da existência de um inimigo
interno, que de alguma forma deve ser combatido. Apesar de pouco arguta, a sua
divagação semântica revela muito sobre a nossa situação atual, e é o mote da presente
dissertação.
É com o advento da Modernidade que ocorre a descoberta do inimigo interno,
aparecendo também nesse momento o problema de se encontrar a maneira mais eficaz
de se lidar com ele. Não que a Idade Média ou a Antigüidade não conhecessem alguma
forma de ‘inimigos internos’, perigos que se encontrassem no interior da própria
comunidade para a qual representavam risco; no entanto, durante todo esse período a
relação com os inimigos sempre foi de exterioridade, de diferença, de exclusão e o-
pertencimento ao grupo para o qual representavam perigo.
Podemos extrair da obra de Giorgio Agamben (2002) alguns exemplos de ‘inimigos
internos’ pré-modernos. No direito romano, por exemplo, ele menciona a figura do
homo sacer, aquele indivíduo a quem o povo havia julgado por um delito e que
4
poderia, por isso, ser morto impunemente, sem que a sua morte fosse considerada
assassinato (AGAMBEN, 2002:81). Em situação similar se encontra o wargus, o homem-
lobo do direito germânico, que após cometer um crime contra a comunidade era
expulso dela e declarado friedlos, sem paz, podendo também ser morto sem que se
cometesse homicídio (AGAMBEN, 2002:111).
O homo sacer e o friedlos podem ser vistos, de certo modo, como inimigos
‘internos’. Afinal, o indivíduo nessa situação não é uma força externa, estrangeiro,
selvagem ou animal; é um membro da sociedade, que se manifesta em seu interior e é
por ela declarado inimigo. Contudo, ao se tornar homo sacer ele é expulso da
comunidade humana e deixa de fazer parte do grupo a que pertencia. Essa expulsão é
tão radical que, apesar de poder ser assassinado sem que se cometa crime, o homo
sacer jamais poderia ser oferecido em sacrifício. É claro, pois uma vez expulso da
sociedade humana, a ele não se aplicam nem o ius humanum nem o ius divinum; o
homo sacer se encontra nesse espaço de exterioridade e não-pertencimento no qual
tudo o que se faz contra ele é permitido, mas só porque para ele a vigência do
ordenamento é suspensa. Como afirma Agamben:
3       4  
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Percebe-se que o homo sacer e o friedlos deixam de fazer parte da sociedade
civilizada; após serem declarados inimigos públicos eles passam a viver no estado de
exceção, e para eles todas as leis são suspensas enquanto perdurar a guerra contra a
comunidade. Dessa forma, até o advento da Modernidade o inimigo público pode se
tornar ‘inimigo’ sob a condição de que deixe de ser ‘interno’ e seja expulso da
comunidade a que pertence; em outras palavras, durante a Antigüidade e a Idade Média
o inimigo da sociedade sempre foi um inimigo externo, na medida em que, ao se tornar
inimigo, era automaticamente excluído da comunidade e por ela abandonado.
Na Modernidade, porém, a exceção deixa de ser temporária para se tornar a forma
permanente de funcionamento da política. Nas palavras de Agamben (2002:121), se
hoje não existe mais uma figura predeterminável do homem sacro, é, talvez, porque
5
somos todos virtualmente homines sacri”. O inimigo da sociedade deixa de ser externo
para se tornar interno e, como na história de Saramago, qualquer um pode, a qualquer
momento, ser esse inimigo interno. Passa a ser impossível a mera exclusão do inimigo
interno da comunidade política, não porque os ‘anormais’ que votaram em branco
sejam maioria e tenham se tornado ‘normaisà força (situação-limite a que se chegou
apenas porque os governantes não souberam utilizar a tecnologia de poder adequada
para a sua sujeição à curva de normalidade), mas porque todos representam um risco,
todos são potencialmente inimigos, e ninguém sabe exatamente quem o pode ser.
É coerente que isso aconteça, pois é como parte da própria sociedade que eles se
tornam seus inimigos, e não mais se opondo a ela. O perigo que esses indivíduos
representam não é mais o da agressão aos membros da comunidade, mas o risco de
enfraquecimento da sociedade – que a sua exclusão apenas agravaria. Assim, da mesma
forma que a expulsão dos “brancos” emperraria definitivamente as engrenagens do
sistema democrático (pois a liberdade de voto e a participação popular são elementos
essenciais para a sua manutenção), o inimigo das sociedades modernas não pode
simplesmente ser excluído, pois suas ações são indispensáveis para o próprio
funcionamento da sociedade a que pertence. É inevitável, então, que se torne ‘inimigo
interno’. Os que votaram em branco não podem mais ser excluídos; é necessário que
sejam convertidos, que sejam curados. Eles devem ser sujeitados, tornados dóceis e
submissos, como o ‘tratamento moral’ fazia com os loucos do início do século XIX
(FOUCAULT, PP).
Conforme o inimigo público se transforma em “inimigo interno” e se torna
impossível a sua exclusão do corpo social, a sociedade passa a ter de encontrar novas
formas de se ocupar desse inimigo e combatê-lo. É preciso defender a sociedade
1
, e
com esse objetivo as sociedades modernas põem em funcionamento novas tecnologias
de poder, novas técnicas de controle e sujeição, capazes de reduzir o risco causado
pelos inimigos em potencial e compensá-lo de alguma forma. Afinal, as técnicas de
poder das sociedades anteriores não são mais tão eficazes, e o direito sozinho não é
capaz de lidar com essa situação.
1
Il faut défendre la société (“É preciso defender a sociedade”) é o título original do curso ministrado por
Foucault no Collège de France em 1975-1976, publicado no Brasil com o título Em Defesa da Sociedade
(FOUCAULT, EDS).
6
Os governantes do país imaginário de Saramago não se dão conta da necessidade
de novas tecnologias de poder; continuam atuando no registro da tecnologia da
exclusão, e continuam tendo o direito por instrumento. Como já era de se esperar,
embora pesado, o estado de sítio não gerou bons resultados. Certo dia as ruas da capital
apareceram invadidas por adesivos, cartazes e bandeiras que diziam “eu votei em
branco”, em letras negras sobre fundo vermelho. Como se não bastasse, violando
claramente o estado de sítio, os eleitores formaram um rio interminável de
manifestantes carregando bandeiras brancas, em defesa do voto em branco. Os alto-
falantes da polícia “[se] esgoelavam a berrar que não eram permitidos ajuntamentos de
mais de cinco pessoas, mas as pessoas eram cinqüenta, quinhentas, cinco mil,
cinqüenta mil, quem é que, numa situação destas, se vai pôr a contar de cinco em
cinco?” (SARAMAGO, 2004:74).
Estava a ponto de estourar a guerra civil quando o primeiro-ministro, ainda incapaz
de compreender quão antiquada era a tecnologia de poder escolhida para combater o
novo inimigo, revela o plano secreto que havia formulado para uma situação extrema
como essa a que se chegara: a retirada imediata do governo, das forças do exército e
das forças policiais para outra cidade, que seria a nova capital do país. Acreditava que
com esta ação a cidade ficaria entregue a si mesma, “segregada da sacrossanta unidade
nacional”, e quando não pudesse mais agüentar o isolamento, e a vida tivesse se
tornado um caos, seus habitantes culpados viriam de cabeça baixa implorar por perdão
(SARAMAGO, 2004:75).
Surpreendentemente, o primeiro-ministro toma a única decisão que parecia ser
impossível, não apenas pelas conseqüências políticas que acarretaria, mas
principalmente pela sua difícil operacionalidade: exclui o inimigo interno (uma cidade
inteira!) da comunidade política. O governo se muda da capital, expulsando todos os
seus habitantes da sociedade civilizada, e excluindo-os da unidade sagrada da Nação.
Infelizmente para os governantes, ninguém veio de cabeça baixa implorar perdão.
A ex-capital passa por graves dificuldades, é certo, como não poderia deixar de ocorrer
com uma cidade sob estado de sítio, sem qualquer comunicação com o exterior e
sofrendo os ataques constantes do governo. Não obstante, os cidadãos prosseguem com
suas vidas, desempenhando suas atividades cotidianas, e ainda convictos de terem
7
tomado a decisão correta. O inacreditável plano do primeiro-ministro, como tudo o
mais até então, falha.
Compreende-se que o combate contra o inimigo interno não possa mais ser
jurídico; a mera exclusão do outro se tornou ineficaz. É necessária uma nova tecnologia
de poder para controlar as condutas e sujeitar esses degenerados, esses insubmissos,
essas ameaças que representam um risco permanente para o bem-estar do Estado, o seu
desenvolvimento e o crescimento constante de suas forças. Desde o início da
Modernidade a luta contra o inimigo interno não se mais sob a forma de exclusão e
restrição de direitos, mas através de uma exclusão inclusiva que permite instaurar a
exceção no interior da sociedade, sujeitando o inimigo interno sem que seja necessária
a sua expulsão do grupo a que pertence. O direito deixa de ser a principal arma de
combate, pois a luta passa a ocorrer em seus interstícios, nas dobras e meandros das
normas e sanções legais, por meio de dispositivos de poder-saber que têm um
funcionamento específico e autônomo em relação ao mecanismo jurídico de
exclusão/repressão. Na Modernidade a soberania passa a exercer o poder sobre o corpo
e a vida dos indivíduos, não mais através do filtro do sujeito de direito, mas
diretamente sobre suas condutas como corpos vivos.
Todavia, embora o direito tenha perdido o seu tradicional privilégio como
instrumento de dominação, a sujeição ainda se relaciona com o direito, e passa através
dele. Como demonstra Ricardo Fonseca, o direito e as outras formas de sujeição podem
atuar conjuntamente, o direito pode veicular em seu bojo o poder da normalização, e
ambos podem ter uma relação de reciprocidade (R. FONSECA, 2002:122). A luta que a
Modernidade trava contra o inimigo interno pode não ser mais jurídica, mas o direito
continua a desempenhar um papel fundamental nesse combate, ao possibilitar a
veiculação de formas de sujeição e controle não-jurídicas nas entrelinhas dos textos
legais e nas próprias práticas jurídicas. Compreender de que modos o direito se
relaciona com algumas dessas formas de sujeição na atualidade é o objetivo da presente
dissertação.
A realização desse estudo no presente momento histórico é de fundamental
importância. Afinal, passamos por um período de transição, no qual as tecnologias de
sujeição sofrem uma intensa transformação. Quando ocorrem transformações
profundas como aquelas por que passamos na estrutura material da sociedade, o
8
modificadas também as práticas de poder que a conservam, as verdades e as formas
jurídicas
2
que a sustentam. Nesse contexto, o exame das imbricações entre o direito e
as técnicas de dominação o-jurídicas assume redobrado interesse, pois permite
compreender, simultaneamente, como as frestas do direito podem ser veículo de outras
formas de sujeição, e como o direito e essas formas de sujeição vêm se modificando no
presente.
Na atualidade há uma infinidade de aspectos do direito que têm sofrido essas
transformações, e que poderiam ser estudados de modo a possibilitar a sua melhor
compreensão; mas um fenômeno, especificamente, que pode atuar como um
mirante, um local privilegiado que nos permite ter uma visão panorâmica, tanto das
relações entre o direito e outras formas de dominação, quanto das mudanças na
tecnologia de dominação; esse local privilegiado é o recente debate a respeito do
licenciamento compulsório das patentes de anti-retrovirais (drogas utilizadas no
tratamento da AIDS).
É razoável que os sinais mais claros da crise das tecnologias de dominação
apareçam nas práticas de controle da AIDS. O vírus HIV atua como inimigo interno,
impossível de ser excluído da comunidade, pois não há como saber de antemão em que
corpos es aquartelado. Além disso, a exclusão dos portadores do vírus apenas
reduziria ainda mais as forças da sociedade, quando o objetivo é fortalecê-la contra o
vírus, e não antecipar a sua derrota. Desse modo, a batalha pela redução do risco
permanente de enfraquecimento põe em funcionamento tecnologias de poder que não
passam pelos sujeitos de direito, mas se exercem diretamente sobre o corpo e a vida
dos indivíduos, regulando suas condutas como corpos vivos.
Por outro lado, a terapêutica da doença indica uma transformação dessas
tecnologias de poder, ao substituir o disciplinamento do corpo individual e o governo
das populações pelo controle permanente de comportamentos de risco. No mesmo
sentido o debate sobre o licenciamento compulsório das patentes de anti-retrovirais,
pois a disputa jurídica entre o Estado e as multinacionais farmacêuticas pela gestão das
tecnologias de sujeição demonstra que a transformação no modo de funcionamento do
poder é conseqüência de uma transformação nas próprias funções que ele desempenha.
2
A Verdade e as Formas Jurídicas (FOUCAULT, VFJ) é o título sob o qual foram publicadas as conferências
proferidas por Foucault na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro entre 21 e 25 de maio de 1973.
9
Finalmente, deve-se ressaltar a importância assumida pelo sexo como foco de
disputa política, já que ele se encontra na articulação entre os dois eixos ao longo dos
quais se desenvolveu toda a tecnologia política da vida (FOUCAULT, VS:136).
Localizando-se no entrecruzamento entre as disciplinas do corpo e o governo das
populações, o estudo sobre o sexo pode funcionar como uma lente de aumento da
tecnologia de poder que incide sobre ele, o que facilita sobremaneira o trabalho de
desvendar as características dessa tecnologia e as transformações por que ela passa no
presente.
Dessa forma, tomando como objeto de estudo o debate acerca do licenciamento
compulsório das patentes de anti-retrovirais, e visando a uma melhor compreensão das
relações entre o direito e as tecnologias de sujeição do inimigo interno, bem como das
transformações que elas têm sofrido no presente, esta dissertação foi dividida em duas
partes: na primeira parte realizamos uma genealogia histórica do presente, em que
foram analisadas as principais transformações por que passam as tecnologias de poder
na atualidade. Essa primeira parte foi dividida em três capítulos, dedicados
respectivamente ao estudo da sociedade disciplinar, da sociedade de segurança e da
sociedade de controle. Em cada um dos capítulos foram examinados a formação
histórica, o modo de funcionamento, os instrumentos e a espécie de
governamentalidade típicos dessas formas de organização social, procurando-se obter
uma compreensão mais acurada do modo como nos tornamos aquilo que somos hoje.
A segunda parte foi dedicada a um exame detido da disputa jurídica pelo biopoder,
que se manifesta no debate contemporâneo sobre o licenciamento compulsório das
patentes de anti-retrovirais. Ela foi dividida em dois capítulos: no primeiro buscamos a
compreensão dos aspectos jurídicos da disputa, analisando questões como a disposição
estrutural do Programa Nacional de DST/AIDS, a importância das patentes de produtos
farmacêuticos para o seu funcionamento, e as possibilidades de utilização do
licenciamento compulsório de patentes para o controle das drogas anti-retrovirais. No
segundo capítulo procuramos examinar os aspectos biopolíticos da questão, analisando
a importância do dispositivo de sexualidade na atualidade, o papel da AIDS em seu
interior, e a função desempenhada pelo licenciamento compulsório das patentes de
anti-retrovirais na disputa jurídica pelo biopoder que tem ocorrido durante a crise da
sociedade de normalização. Na última seção deste capítulo tentamos também apontar
10
as possibilidades de resistência ao dispositivo de sujeição que se organiza nesse
contexto.
Dessa forma, o mapeamento político realizado na primeira parte serve como
pressuposto para a compreensão das funções desempenhadas pelo instrumento jurídico,
e o estudo do licenciamento compulsório como acontecimento, realizado na segunda
parte, contribui para ampliarmos o nosso conhecimento do período de crise e do modo
como as tecnologias de poder se relacionam com o direito, auxiliando na construção de
novas estratégias de combate. Este trabalho foi realizado com a intenção de construir
ferramentas úteis para aqueles que se interessem em lutar contra as práticas de sujeição,
estabelecendo novos pontos de apoio para novas estratégias de emancipação, e
apresentando enunciados de verdade que possam atuar como armas durante a batalha
por nossa auto-constituição como sujeitos morais ativos.
11
2 DAS SOCIEDADES DE NORMALIZAÇÃO ÀS SOCIEDADES DE
CONTROLE
Antes de iniciar o estudo sobre as relações entre o direito e a defesa da sociedade, é
necessário compreender o momento em que vivemos e a forma como se organiza a
tecnologia de combate ao inimigo interno na atualidade. Afinal, passamos por um
período de crise das tecnologias de poder, e sem compreender adequadamente como as
nossas sociedades se tornaram aquilo que são e como, pouco a pouco, vão deixando de
o ser, não poderemos entender o papel desempenhado pelo direito nesse contexto.
Há vários caminhos pelos quais se pode chegar a uma visão abrangente desse
período de transição; um deles, porém, parece especialmente atraente, pois nos permite
conceber a realidade histórica do presente como uma reconfiguração de um campo de
batalhas plural e imanente, dentro do qual se enfrentam diversas posições de força,
variáveis e intercambiantes. Trata-se da filosofia da guerra de Michel Foucault, que
proclama a necessidade de se abandonar qualquer critério de ‘interpretação’ unívoca,
causal e sistemática do real, em prol da utilização de uma lógica estratégica de conexão
do heterogêneo que seja capaz de, pelo método genealógico, estabelecer as conexões
possíveis entre termos sem relação entre si e que permanecem sem relações mesmo
após essas conexões, mantendo o acontecimento na dispersão que lhe é própria
(FOUCAULT, NB:44).
O método genealógico despreza gêneses lineares; ele se dedica a marcar a
singularidade dos acontecimentos, examinando seu retorno apenas para reencontrar os
episódios em que eles desempenharam papéis distintos, e não para traçar uma linha de
evolução que permita compreender causalmente a sua origem. A genealogia se opõe à
pesquisa da origem, pois procurar uma origem é “tomar por acidentais todas as
peripécias que puderam ter acontecido, [...] é querer tirar todas as máscaras para
desvelar uma identidade primeira e essencial” (FOUCAULT, MP:17), quando o
genealogista sabe que por trás das coisas não há o seu segredo essencial, mas o segredo
de que elas são sem essência, de que suas origens são baixas e absurdas, e de que suas
verdades são historicamente construídas.
A história realizada de acordo com o método genealógico protege o acaso do
acontecimento, impedindo a sua dissolução no interior de uma continuidade ideal;
assim, faz ressurgir o acontecimento em sua singularidade, reintroduzindo o
12
descontínuo em nosso próprio ser. Não se trata, porém, de um retorno à história
tradicional da travessia do Rubicão e da batalha de Waterloo, das datas que marcam o
início de uma era e o término da anterior; como ressalta o próprio Foucault (MP:28), o
acontecimento “não é uma decisão, um tratado, um reino ou uma batalha, mas uma
relação de forças que se inverte, um poder confiscado, um vocabulário retomado e
voltado contra seus utilizadores, uma dominação que se enfraquece [...] e outra que faz
sua entrada mascarada”. O acontecimento é o momento de ruptura, o acidente que
início a mais um dos inumeráveis começos, a emergência de um novo equilíbrio de
forças em um novo sistema de submissão. É um momento crucial de ruptura no tecido
histórico, impossível de ser compreendido em conexão com outros eventos, mas que,
apesar disso, compõe com eles seus efeitos de forma global e aleatória. Desse modo, o
acontecimento permite substituir a análise da ‘causalidade’ histórica pela compreensão
da ‘casualidade’ na história, revelando o presente como apenas mais uma das múltiplas
virtualidades e possibilidades do passado.
Portanto, a genealogia não tem por objetivo a interpretação da causalidade
histórica, mas a intelecção de acontecimentos casuais, construindo uma história que
pode prescindir de um critério essencial de explicação dos fenômenos e processos
estudados. A inteligibilidade da história não reside em lhe atribuir uma determinada
causa localizada em sua origem (a partir da qual poderíamos enfim compreender a
razão de todas as suas conseqüências no presente), mas em compreender como ocorre a
constituição e a composição de efeitos globais a partir de acontecimentos desconexos
entre si. Em suma, não partir da unidade, mas da multiplicidade de processos diversos
que estabelecem entre si relações de coesão, oposição, reforçamento recíproco,
integração, e dos efeitos globais gerados pelas relações entre esses elementos
essencialmente heterogêneos (FOUCAULT, STP:244), valorizando-se o papel do acaso
na constituição do presente.
Em razão de todas as vantagens proporcionadas pelo método genealógico, esta
primeira parte seguirá as trilhas percorridas por Michel Foucault em uma breve
genealogia da Modernidade. A partir de leituras de sua obra, buscaremos compreender
em primeiro lugar de que modo foi possível – não necessário, nem inevitável – que nos
tornássemos aquilo que somos; com esse objetivo realizaremos uma genealogia da
sociedade de normalização em seus dois aspectos (sociedade disciplinar e sociedade de
13
segurança), investigando os seus processos de formação, o seu modo de funcionamento
e os instrumentos de poder e tecnologias de governo que a caracterizam. Após,
verificaremos de que modo temos nos tornado algo diferente das sociedades de
normalização, uma forma de sociedade com tecnologias de poder e um modo de
funcionamento distintos, ainda não plenamente decifrada, e batizada por Gilles Deleuze
como “sociedade de controle” (DELEUZE, 1992b).
2.1 As Sociedades de Normalização I – genealogia da sociedade disciplinar
2.1.1 Formação – a crise da sociedade de soberania
Com a explosão demográfica e o crescimento do aparelho de produção no século
XVIII, resultado do período inicial de desenvolvimento do capitalismo na Europa, as
sociedades ocidentais se depararam com um novo problema, que a tecnologia de poder
característica do Antigo Regime não tinha mais condições de enfrentar.
A tecnologia de poder vigente ao século XVI se organizava de acordo com um
modelo jurídico, baseada em uma relação entre sujeitos de direito. Essa relação jurídica
se formava no equilíbrio de um jogo complexo entre direitos originários e privilégios
ancestrais conquistados por cada grupo, que conferiam às suas ações uma legitimidade
fundamental. O discurso e a técnica do direito funcionavam, nesse contexto, de modo a
dissolver o fato da dominação, fazendo aparecer em seu lugar os direitos legítimos da
soberania e a obrigação legal da obediência dos súditos estabelecendo uma relação
política de sujeito para sujeito, fundamentando a unidade do poder na figura do rei, e
demonstrando como um poder pode se constituir de acordo com uma legitimidade
fundamental superior a todas as leis (FOUCAULT, EDS:50).
Assim, a tecnologia de poder das sociedades de soberania funcionava segundo o
binômio jurídico ‘proibido x permitido’, cominando, pelo descumprimento da regra
legal, uma sanção repressora que se exercia diretamente sobre o corpo dos súditos.
Afinal, em um regime político cujo suporte eram essencialmente os direitos legítimos
do rei, a atrocidade de um crime era também a violência do desafio lançado ao
soberano, que devia provocar uma plica capaz de vencê-la por um excesso que a
anulasse (FOUCAULT, VP:48). De modo que, ao fazer do corpo do condenado o local de
aplicação da vingança do rei, a punição pelo espetáculo público do suplício assegurava
a ostentação da verdade e do poder do soberano, afirmando a absoluta dissimetria das
14
forças em conflito. Nas palavras de Foucault (EDS:43), a teoria da soberania é “o que
permite fundamentar o poder absoluto no dispêndio absoluto do poder”.
Desde a Idade Média o direito teve por função a elaboração teórica desse poder
soberano, e o pensamento jurídico sempre se desenvolveu em torno do poder real
tanto para demonstrar que o monarca era efetivamente o corpo vivo da soberania e seu
poder era adequado a um direito fundamental, quanto para afirmar a necessidade de
uma limitação ao poder do soberano de acordo com determinadas regras externas de
direito (FOUCAULT, EDS:30). Como afirma Foucault (EDS:41), a teoria da soberania
desempenhou, historicamente, quatro papéis: primeiro, se referiu a um mecanismo de
poder efetivo, o da monarquia feudal; além disso, serviu de instrumento para a
constituição das grandes monarquias administrativas; depois, a partir do século XVI,
foi uma arma utilizada pelas diversas forças em combate (aristocratas, parlamentares,
representantes do poder régio, senhores feudais) para limitar ou para fortalecer o poder
régio, conforme o interesse em disputa; finalmente, no século XVIII, foi a teoria da
soberania que permitiu a construção, contra as monarquias administrativas, de um
modelo alternativo de democracias parlamentares.
Essa tecnologia de poder é correlativa de um determinado regime de produção. A
riqueza dos séculos XVI e XVII era essencialmente constituída por grandes extensões
de terras, espécies monetárias e letras de câmbio passíveis de troca (FOUCAULT,
VFJ:100), de modo que era possível o controle dessas riquezas sob a forma menos
sofisticada da apropriação. Assim, a ação meramente interditória/repressora sobre as
condutas, a simples apropriação das riquezas (geralmente sob a forma do acúmulo de
metais e entesouramento) e o exercício direto do poder soberano sobre o corpo dos
súditos e o território eram já suficientes para garantir a sua segurança.
A teoria da soberania é vinculada a uma forma de poder que se exerce sobre a terra
e os produtos da terra, e diz respeito à apropriação pelo poder dos bens e da riqueza,
permitindo transcrever em termos jurídicos obrigações descontínuas e crônicas de
tributos e fundamentando o poder na existência física do soberano (FOUCAULT,
EDS:43). Desempenhando as funções de assenhoramento da produção e controle sobre
um território, a tecnologia de poder soberana constituía o rei como detentor de uma
série de direitos fiscais que lhe asseguravam o recebimento de parcela substancial da
15
produção e a obediência de seus súditos, garantindo o seu domínio sobre um
determinado território.
Enquanto durou a sociedade feudal, os problemas de que tratava a teoria da
soberania cobriam efetivamente a mecânica geral do poder e o modo como ele se
exercia, que podia ser transcrito, quanto ao essencial, nos termos da relação
soberano/súdito. Porém, essa tecnologia de poder, eficaz para reger o corpo econômico
e político de uma sociedade baseada na grande propriedade de terras e no
entesouramento, mostrou-se inadequada para reger o corpo econômico e político de
uma sociedade em vias de explosão demográfica e industrialização. Como percebe
Foucault (EDS:298), à velha mecânica do poder soberano escapavam muitas coisas, no
nível do detalhe e no nível da massa, e por isso foram necessárias duas acomodações
dos mecanismos de poder: sobre o corpo individual (já no final do século XVII, com o
surgimento das sociedades disciplinares), e sobre os fenômenos de população (apenas
mais tarde, no fim do século XVIII, com as sociedades de segurança que serão
examinadas no capítulo seguinte).
No Antigo Regime havia uma margem de ilegalismos
3
populares tolerada, que fazia
parte da vida política e econômica da sociedade. No entanto, com o aumento geral da
riqueza e o crescimento demográfico, os alvos principais desses ilegalismos tendem a
ser não mais direitos (forma que se torna privilégio exclusivo da classe dominante),
mas bens, e a pilhagem e o roubo tendem a substituir o contrabando e a luta contra os
agentes do fisco (FOUCAULT, VP:72).
Esses novos ilegalismos de bens são intoleráveis pela burguesia, principalmente na
propriedade comercial e industrial; afinal, com o desenvolvimento do modo de
produção capitalista, as riquezas deixam de ser investidas em terras e espécie monetária
para serem investidas em uma materialidade não-monetária, constituída por
mercadorias, estoques, máquinas e oficinas. A nova forma de acumulação faz com que
a riqueza permaneça diretamente exposta à depredação, pois toda a população de
gente pobre, de desempregados, de pessoas que procuram trabalho” (FOUCAULT,
3
A importância da noção de ilegalismo’ é ressaltada por Márcio Fonseca (2002:130), que a considera um
conceito fundamental para a compreensão do papel desempenhado por atos ilegais no interior de um sistema
punitivo, pois comporta a idéia de uma gestão diferencial de certas ilegalidades em relação a outras,
conforme a sua funcionalidade. O autor ainda critica as traduções brasileiras de Surveiller et Punir (Vigiar e
Punir), que, desrespeitando a novidade conceitual introduzida por Foucault, traduzem o termo erroneamente
como “ilegalidades” (M. FONSECA, 2002:138).
16
VFJ:100) passa a ter agora um contato direto, físico com a riqueza. Além disso,
também a propriedade de terras muda de forma, com a multiplicação da pequena
propriedade e a sua fragmentação, fator que, aliado ao fato de o haver mais terras
comuns sobre as quais todos podem viver, fecha a propriedade em si mesma e expõe
cada pequeno proprietário a depredações a que não estava sujeito anteriormente. As
novas formas de distribuição espacial e social da riqueza industrial e agrícola exigem
novas formas de controle social, e o grande problema do poder passa a ser justamente o
de instaurar mecanismos de controle que permitam a proteção dessa fortuna contra o
novo inimigo interno.
À medida que se concentram geograficamente as forças de produção, busca-se
encontrar meios de tirar delas o máximo de vantagens econômicas com a neutralização
de seus inconvenientes, dominando-se as forças de trabalho (evitando a preguiça e
quaisquer formas de agitação política) e protegendo-se os materiais e ferramentas do
roubo e da destruição. Como no modo de produção capitalista é absolutamente
necessário colocar nas mãos do proletariado essa riqueza investida em matérias-primas,
máquinas e instrumentos (pois é o seu trabalho que permite que se extraia lucro de
todos esses materiais), torna-se necessário também constituir o povo como sujeito
moral (FOUCAULT, MP:133), separando-o nitidamente do grupo dos delinqüentes e
estabelecendo a forma de conduta adequada às necessidades da produção através de um
controle minucioso de todas as suas atividades, no nível do detalhe do corpo individual.
O inimigo interno não pode mais simplesmente ser excluído, pois o modo de produção
capitalista depende de sua inclusão nos meios de produção para continuar se
reproduzindo. A exclusão dos indivíduos que representam uma ameaça de
enfraquecimento da sociedade (pelo risco de roubo ou destruição dos meios de
produção) apenas concretizaria essa ameaça, pois sem o proletariado para colocar em
movimento as máquinas e materiais da fábrica não seria possível promover a produção
de riquezas e a reprodução do modo de produção. O proletariado rebelde, inimigo
interno da sociedade capitalista, o pode simplesmente ser excluído; a partir de agora
ele deve ser convertido.
É nesse contexto que surgem as disciplinas, métodos que permitem o controle
minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e
lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade” (FOUCAULT, VP:118), reduzindo a
17
força do corpo como força política e maximizando-a como força econômica.
Dissociando o poder do corpo, de modo a tornar o exercício do poder o menos custoso
e mais efetivo possível, e ligando-o ao rendimento dos aparelhos no interior do qual se
exerce (de produção, escolar, militar, etc.) para fazer crescer a docilidade e utilidade
dos elementos do sistema, as disciplinas permitem colocar essa enorme quantidade de
riquezas o-monetárias nas mãos do proletariado, sem deixar de garantir a sua
segurança contra roubos e depredações.
É claro, porém, que a invenção dessa nova tecnologia de poder não pode ser
compreendida como uma descoberta súbita. Os novos sistemas de controle social
estabelecidos pela classe dos proprietários são, na verdade, resultado da transformação
de formas de controle existentes, cuja genealogia remete às comunidades religiosas
da Idade Média (FOUCAULT, PP:65), e às quais é dada uma versão autoritária e estatal.
Ao se tornar clara a nova utilidade desses antigos instrumentos existentes na
sociedade, o conjunto de mecanismos heterogêneos de controle social é
reterritorializado, reapropriado e reorganizado pela classe industrial e pelo Estado, que
estabelecem entre eles redes de reforçamento recíproco, em uma diversidade de
processos que se repetem e se apóiam uns sobre os outros, multiplicando seus efeitos e
formando um sistema convergente que permite vislumbrar o funcionamento de um
método geral (FOUCAULT, VP:119). Os efeitos globais decorrentes da combinação não
programada dos resultados dessas inúmeras formas de controle são as formas de
assujeitamento características da sociedade disciplinar.
Além disso, até então encontrados de forma difusa na sociedade, esses mecanismos
passam a ser investidos em um determinado conjunto de instituições (escola, fábrica,
hospital, prisão), formando uma rede institucional de seqüestro apta a exercer o poder
disciplinar de forma sistemática sobre os indivíduos. É com a institucionalização desses
mecanismos difusos de controle social e a formação de uma rede institucional de
seqüestro dos indivíduos que se formam as sociedades disciplinares; essas sociedades
que m por objetivo não mais a apropriação de riquezas e territórios, mas a
composição de uma força produtiva cujo efeito econômico possa ser superior ao das
forças elementares que dela fazem parte, e cuja força política esteja reduzida ao
mínimo, resguardando-se a riqueza não-monetária de toda forma de resistência.
18
Podemos perceber, então, que o desenvolvimento das sociedades disciplinares é a
resposta dada a uma série de novas necessidades, que surgem com o período inicial de
acumulação capitalista: em primeiro lugar, uma nova necessidade econômica, pois
quando a riqueza começa a se acumular em forma de estoque e máquinas se torna
necessário guardar, vigiar e garantir sua segurança; além disso, uma nova necessidade
demográfica, de organização das séries de corpos, decorrente do grande deslocamento
de populações do campo para as cidades; finalmente, uma nova necessidade política, as
novas formas de revoltas populares que, de origem essencialmente camponesa nos
séculos XVI e XVII, se tornam revoltas populares urbanas e, em seguida, revoltas
proletárias (FOUCAULT, VFJ:92).
2.1.2 Funções – o poder disciplinar
Ocorre, portanto, nos séculos XVII e XVIII, esse fenômeno de capital importância
para as sociedades ocidentais modernas: a criação de uma nova mecânica de poder,
com procedimentos particulares, instrumentos novos, e uma aparelhagem incompatível
com as relações jurídicas de soberania. Essa forma de poder que o se exerce sobre
um território, ou sobre suas riquezas, mas diretamente sobre os corpos dos indivíduos,
é o poder disciplinar. Nas palavras de Foucault:
% 7
    
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+?3@#6@*A%B)/.,2
Trata-se, nesse momento, de se obter um sistema de controle social capaz de
proteger os meios de produção dos novos ilegalismos populares (que passam a atingir
bens, em vez de direitos) e, simultaneamente, inserir essa população de gente pobre e
indisciplinada no interior da fábrica, para sua utilização como força de trabalho.
Enquanto a tecnologia de poder das sociedades de soberania procurava fundar o poder
absoluto no dispêndio absoluto de poder, com a implantação do capitalismo industrial e
o surgimento das sociedades disciplinares o objetivo da tecnologia de poder passa a ser
“calcular o poder com o mínimo de dispêndio e o máximo de eficácia” (FOUCAULT,
19
EDS:43), permitindo a eficiente inserção dos corpos no aparelho de produção com o
mínimo de desgaste político e de gastos econômicos.
A disciplina aumenta as forças do corpo em termos econômicos e de utilidade, e
reduz as forças do corpo em termos políticos de desobediência. Dissociando o poder do
corpo, faz dele por um lado um instrumento, um meio de produção, uma aptidão
passível de ser aumentada e aproveitada; por outro lado, a disciplina inverte em seu
favor o aumento de forças que poderia resultar desse procedimento e faz dessa relação
uma relação de sujeição estrita, tornando o exercício do poder menos custoso
economicamente e mais eficaz politicamente.
Assim como Marx havia percebido que a exploração econômica separa a força de
trabalho e o produto do trabalho, Foucault percebe que a coerção disciplinar estabelece
no corpo uma clivagem entre aptidão aumentada e dominação acentuada (FOUCAULT,
VP:119), pois no mesmo movimento em que desenvolve as forças úteis do corpo,
também as sujeita, tornando-as dóceis e domesticadas para um aproveitamento
eficiente. Em outras palavras, a disciplina separa força de trabalho e força política, o
que permite o aumento das forças economicamente úteis e a redução das forças
políticas de resistência. Com a formação das sociedades disciplinares nasce um
mecanismo que torna o corpo humano tanto mais obediente quanto é mais útil, e
inversamente, tanto mais útil quanto é mais obediente. Como afirma Foucault:
)>34
4  &    ! 
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+?3@#6@*AE/1;,2
Esta o é a primeira vez que o corpo é objeto de investimento político, mas a
sociedade disciplinar promove transformações na escala, no objeto e no modo como o
corpo é investido pelas relações de poder: em primeiro lugar, o se trata, agora, de
cuidar do corpo como unidade indissociável, mas de fracioná-lo para exercer sobre ele
uma coerção detalhada e infinitesimal; além disso, os objetos do controle não são mais
20
os elementos significativos do comportamento, mas a economia dos movimentos e sua
organização interna, de modo a se obter a seqüência de movimentos mais eficiente para
a atividade que se deve desempenhar; e finalmente, a disciplina implica numa coerção
constante, que se preocupa mais com os processos da atividade do que com seu
resultado, exercendo-se em uma codificação que esquadrinha ao máximo o tempo, o
espaço e os movimentos do indivíduo (FOUCAULT, VP:118).
Parece claro que o modo de funcionamento da tecnologia política das sociedades
disciplinares é bastante distinto do modo de funcionamento do mecanismo de poder
soberano. Enquanto a soberania manifesta a legitimidade fundamental do poder real
pelo domínio sobre um determinado território e pelo aumento de suas riquezas,
exercendo o poder sobre o corpo dos súditos de modo a manifestar a grandiosidade de
seu próprio poder, a disciplina arquitetura um espaço vazio artificial no interior do qual
promove uma distribuição funcional e eficiente dos indivíduos o mais vistos como
um conjunto de sujeitos de direitos capazes de ações voluntárias, mas como uma
multiplicidade de corpos capazes de performances aproveitáveis.
Para realizar essa distribuição funcional de corpos o dispositivo disciplinar o
pode mais funcionar segundo o regime de exclusão típico do dispositivo de soberania.
A partir do momento em que a intenção da sociedade disciplinar é transformar as
condutas individuais em algo útil para a coletividade, ela é obrigada a abandonar o
sistema de interdições das sociedades de soberania para se organizar em torno de um
sistema de prescrições que determine de forma codificada as condutas que se deve
desempenhar, estabelecendo uma proibição genérica de agir diversamente do prescrito.
Assim, a disciplina põe em funcionamento uma tecnologia de saber-poder que
analisa e decompõe os indivíduos e seus atos em elementos que podem ser conhecidos
e modificados, procurando estabelecer as melhores seqüências e coordenações dos atos
em função de objetivos determinados. A operação de normalização disciplinar consiste
em, após arquitetar um modelo ótimo para se obter o resultado almejado, prescrever os
gestos e atos que possam conformar os indivíduos a este modelo – caracterizando como
normal o indivíduo que é capaz de se conformar a esta prescrição, e como anormal
aquele que não é. Percebe-se que o fundamental na normalização disciplinar
não é o
normal ou o anormal, mas a própria norma, em seu aspecto de prescrição primária à
qual os indivíduos são constrangidos a se adaptar.
21
É nesse sentido que deve ser compreendida a sutil alteração conceitual proposta por
Foucault em 1978, mas que só passou a ser conhecida e debatida com a recente
publicação dos cursos ministrados pelo filósofo no Collège de France
4
. Contrariando
todos os trabalhos sobre o tema até então publicados, no curso Sécurité, Territoire,
Population Foucault afirma que o que se promove nas sociedades disciplinares não é
exatamente uma normalização (termo que prefere reservar para o resultado das práticas
biopolíticas das sociedades de segurança, por razões que veremos no próximo
capítulo
5
), mas uma normação. Afinal, na sociedade disciplinar não se trata de
determinar curvas de normalidade mais ou menos favoráveis em face da realidade, mas
de promover uma adequação estrita entre a conduta sobre a qual incide o poder e uma
determinada norma abstratamente construída em função de um objetivo específico. Nas
palavras do autor:
# F          
            
GGHGH 
  '  G G G   
GEG
F+?3@#6@*A)AE/I<2
0
Essa redução das condutas do indivíduo a uma norma ótima de comportamento é
realizada por meio de um conjunto de práticas que são mais detidamente analisadas em
Vigiar e Punir; nessa obra Foucault revela que a sociedade disciplinar cria para si, por
meio de técnicas disciplinares como a ‘construção de quadros’, a ‘prescrição de
manobras’, a ‘imposição de exercícios’, e a ‘organização de táticas’, uma
individualidade celular, orgânica, genética e combinatória. São essas as características
que permitem controlar o inimigo interno sem a necessidade de sua exclusão da
comunidade de que faz parte, assegurando a sua utilidade no interior da sociedade
capitalista. Como percebe Foucault, “enquanto os juristas procuravam no pacto um
4
Trata-se especificamente da discussão promovida na aula de 25 de janeiro de 1978 do curso Sécurité,
Territoire, Population, publicado pela primeira vez em 2004, após longas negociações entre os herdeiros de
Foucault e as editoras francesas Gallimard e Seuil (FOUCAULT, STP).
5
Ver infra, p. 50.
6
“Este caráter primeiro da norma em relação ao normal, o fato de que a normalização disciplinar parta da
norma à distinção final entre o normal e o anormal, é por essa razão que eu preferiria dizer, a propósito do
que se passa nas técnicas disciplinares, que se trata de uma normação, mais que de uma normalização.
Perdoem-me o barbarismo, enfim, é para sublinhar o caráter primeiro e fundamental da norma” (tradução
livre).
22
modelo primitivo para a construção ou a reconstrução do corpo social, os militares e
com eles os técnicos da disciplina elaboravam processos para a coerção individual e
coletiva dos corpos” (VP:142).
Em primeiro lugar, com a técnica da construção de quadros se trata de construir
uma individualidade celular, transformando as multidões inúteis e perigosas em
multiplicidades organizadas das quais se torna possível extrair o ximo de efeitos
úteis. O poder disciplinar liga o singular ao múltiplo, permitindo a caracterização do
indivíduo como indivíduo e a sua colocação na ordem de uma multiplicidade
organizada (FOUCAULT, VP:127). Para isso essa técnica se utiliza de várias ticas de
poder: a ‘cerca’, que permite a especificação de um local heterogêneo a todos os outros
e fechado em si mesmo, formando um encarceramento que permite controlar as massas
desorganizadas; o ‘quadriculamento’, que divide esse espaço fechado em tantas
parcelas quantos corpos a repartir, organizando um espaço analítico que, ao mesmo
tempo em que interrompe a circulação difusa e inútil, permite saber onde se encontra
cada indivíduo; a ‘regra das localizações funcionais’, com a qual se procura criar um
espaço útil em que se articulem a distribuição dos corpos, a arrumação especial do
aparelho de produção e as diversas formas de atividade útil na distribuição dos postos,
fazendo com que o espaço quadriculado possa indicar imediatamente a função de cada
elemento no sistema; e finalmente a tática da ‘posição na fila’, por meio da qual cada
indivíduo é definido pelo lugar que ocupa numa determinada classificação,
individualizando-se os corpos através de uma localização que os distribui e faz circular
numa rede de relações. Desse modo os indivíduos são organizados em quadros vivos
que transformam as multidões confusas em multiplicidades organizadas, passíveis de
serem utilizadas nas instituições do aparelho de produção (fábrica), do aparelho
educacional (escola), do aparelho de saúde (hospital), do aparelho militar (quartel), do
aparelho carcerário (prisão), etc.
Mas não basta organizar as multiplicidades e controlar a localização dos elementos
em uma multiplicidade; afinal, o corpo ‘mecânico’ é também um corpo ‘orgânico’,
cujo comportamento deve ser conhecido, controlado e utilizado. A decomposição
fracionada das atividades permite o controle cada vez mais preciso do comportamento
individual, e a técnica da prescrição de manobras constrói um corpo orgânico através
das seguintes táticas: o ‘controle do horário’ evita o desperdício do tempo, mas garante
23
também a qualidade do tempo empregado, constituindo um tempo integralmente útil; a
elaboração temporal do ato através de um ‘programa’ permite o controle a partir do
interior do próprio ato, em uma trama que organiza as fases dos movimentos ao longo
de todo o seu encadeamento; com a ‘articulação entre corpo e gesto’ se impõe a melhor
relação entre um gesto e a atitude global do corpo, condição de utilidade, eficácia e
rapidez; com a ‘articulação corpo-objeto’, se estabelece uma engrenagem que permite
articular o corpo ao aparelho de produção; e o ‘princípio da utilização exaustiva’
organiza uma economia positiva que busca utilizar cada vez mais o tempo, por um lado
vedando a ociosidade e o desperdício de tempo, e por outro extraindo dele cada vez
mais instantes disponíveis e forças úteis, através de seu infinito fracionamento. Assim,
o poder disciplinar prescreve manobras de modo a obter controle sobre o mínimo
movimento do indivíduo, microscopicamente fracionado.
Além do espaço e do comportamento dos indivíduos, o poder disciplinar controla
também o seu tempo. A disciplina constitui uma individualidade genética através do
exercício, que impõe ao corpo tarefas repetitivas, mas sempre graduadas, permitindo
uma perpétua caracterização do indivíduo quanto ao seu termo final, em relação aos
outros indivíduos, e em relação a um determinado tipo de percurso, observando-o e
qualificando-o nesse continuum. Isso por quatro processos: com a ‘decomposição do
tempo’, que é dividido em segmentos nos quais cada indivíduo deve chegar a um termo
específico; com a ‘organização analítica’ dos segmentos em que o tempo é dividido,
em uma sucessão de elementos simples combinados segundo uma complexidade
crescente; com a ‘prova’, que representa a finalização de cada segmento temporal, e
tem a tríplice função de indicar se o indivíduo atingiu o nível estatutário, garantir que
sua aprendizagem está em conformidade com a dos outros e diferenciar as capacidades
de cada indivíduo; estabelecendo ‘séries de séries’, de modo que cada indivíduo se
encontre numa série temporal, que define especificamente seu nível ou categoria.
Trata-se de uma nova técnica de apropriação das forças, que transforma o passar do
tempo em oportunidade de capitalização e aumento de utilidade dos indivíduos. Nas
palavras de Foucault, “recolhe-se a dispersão temporal para lucrar com isso e conserva-
se o domínio de uma duração que escapa. O poder se articula diretamente sobre o
tempo; realiza o controle dele e garante a sua utilização” (VP:136). Com o controle do
tempo pela imposição de exercícios se constitui uma individualidade genética, que
24
permite caracterizar os indivíduos de acordo com o nível em que se encontram em uma
série e os utilizar de acordo com esse nível, que aumenta continuamente.
Finalmente, além de repartir os corpos, controlar suas atividades, extrair e acumular
o seu tempo, a disciplina busca criar individualidades combinatórias, cujas forças
possam ser compostas em um aparelho eficiente. O objetivo é constituir uma força
produtiva cujo efeito seja superior à soma das forças elementares que a compõem, o
que se faz por meio da tática – “arte de construir, com os corpos localizados, atividades
codificadas e aptidões formadas, aparelhos em que o produto das diferentes forças se
encontra majorado por sua combinação calculada” (FOUCAULT, VP:141). Assim, o
corpo se torna um ‘elemento em articulação’, e o que o define não o suas
características individuais, mas o lugar que ele ocupa na ordem da multiplicidade, o
que o torna peça de uma máquina multissegmentar; também o tempo passa a ser visto
como ‘elemento em articulação’, com a disciplina combinando as várias séries
cronológicas para formar um tempo composto, de maneira a se poder extrair a xima
quantidade de forças de cada indivíduo no tempo adequado, combinando-as num
resultado ótimo; ainda, a combinação eficiente das forças exige um ‘sistema preciso de
comando’, de modo a não se desperdiçar tempo e forças explicando ordens, que devem
apenas provocar o comportamento desejado. Gera-se assim o efeito de obediência
necessário para a melhor organização das forças produtivas, o que põe à disposição do
empresário trabalhadores sóbrios e eficientes, que enxergam o trabalho como dever
moral.
Fica claro, após todo esse estudo, que nas sociedades disciplinares o corpo do
indivíduo se encontra completamente mergulhado no campo político. Este investimento
político do corpo está ligado à sua utilização econômica, pois é principalmente como
força de produção que o corpo é investido por relações de poder. Por outro lado, a
constituição do corpo do indivíduo como força de trabalho se torna possível se o
próprio indivíduo estiver preso num sistema de dominação que o sujeite, pois o corpo
pode se tornar força útil sob a condição de que ele se torne, ao mesmo tempo, corpo
produtivo e corpo submisso. Sob o efeito das técnicas de sujeição disciplinar, os
inimigos internos em potencial são organizados em multiplicidades ordenadas, têm os
seus movimentos controlados detalhadamente, são classificados de acordo com níveis
de eficiência, e são adestrados para se tornarem cada vez mais obedientes; assim se
25
fabricam corpos produtivos e dóceis o suficiente para a sua utilização como forças de
produção.
Entretanto, como ressalta Foucault (VP:26), essa tecnologia de sujeição do corpo
não pode ser compreendida como um sistema coerente de dominação. Apesar da
harmonia de seus resultados, ela não passa de uma instrumentação multiforme de
dispositivos de poder desconexos e assistemáticos. Além disso, ela não pode ser
localizada numa instituição ou num aparelho de Estado. Instituições e Estado recorrem
à tecnologia de poder disciplinar, utilizam-na; ela mesma, porém, se situa num nível
completamente diferente, difusa no seio da sociedade, em uma microfísica do poder
que se coloca como elo de ligação entre essas grandes estruturas e os próprios corpos
em sua materialidade, sendo empregada para transformar a matéria-prima de forças em
estado bruto (e rebeldes em potencial) em corpos úteis e dóceis que possam ser
inseridos no aparelho produtivo. Essas transformações, bem como as técnicas políticas
analisadas nos parágrafos anteriores, dependem de instrumentos de saber-poder que
serão analisados na próxima seção: a vigilância hierárquica, a sanção normalizadora, e
o exame.
2.1.3 Os instrumentos do poder disciplinar e o diagrama panóptico
Do que foi exposto na seção anterior se depreende que o poder disciplinar
individualiza, ‘fabricando’ um determinado tipo de sujeito. Através de uma rie de
táticas que se exercem diretamente sobre o corpo dos indivíduos, a disciplina os torna
parte de um mecanismo complexo, aumenta a sua eficiência e suas forças produtivas, e
os faz dóceis com a redução de suas forças de resistência. A disciplina é uma espécie
de poder que, nas palavras de Foucault, “em vez de se apropriar e de retirar, tem como
função maior ‘adestrar’, [...] sem dúvida para retirar e se apropriar ainda mais e melhor.
Ele não amarra as forças para reduzi-las; ele procura ligá-las para multiplicá-las e
utilizá-las num todo” (VP:143).
Apesar de sua eficácia, porém, o poder disciplinar é um poder modesto. Ele o
funciona como as grandes estruturas de poder, mas de modo singelo, através de
instrumentos simples que atuam de forma calculada e permanente; uma série de
procedimentos menores, que invadem e colonizam aos poucos as grandes instituições
sociais como o aparelho de Estado e o aparelho judiciário, modificando seus
26
mecanismos e impondo suas formas específicas de funcionamento. Estes instrumentos
de sujeição disciplinar são a vigilância hierárquica, a sanção normalizadora e o exame.
A vigilância hierárquica cria um aparelho cujas técnicas que permitem ver
induzem a efeitos de poder. À medida que o aparelho de produção se torna cada vez
mais complexo, promovendo a articulação controlada e organizada de múltiplos
indivíduos como forma de majorar as forças de produção, o exercício da disciplina
passa a depender de um dispositivo de vigilância que permita o controle permanente do
processo de produção. Aliás, o apenas do processo de produção, mas de todos os
aspectos da vida que sejam relevantes para a sujeição do indivíduo e a sua constituição
como corpo útil e dócil o que torna a vigilância hierárquica necessária não apenas na
fábrica, mas também em instituições como a escola, a família, o hospital, o exército,
etc.
Assim, no decorrer da época clássica se desenvolve lentamente uma “arquitetura da
vigilância” (FOUCAULT, VP:144), cuja função deixa de ser exibir a majestade do poder
(como os palácios) ou proteger o soberano do inimigo externo (como as fortalezas), e
passa a ser fiscalizar as condutas dos indivíduos que se encontram em seu interior,
tornando-os visíveis para o poder que, todavia, permanece invisível a eles. Graças à
vigilância hierárquica o poder disciplinar se torna um sistema integrado” (FOUCAULT,
VP:148), ligado do interior à economia e aos fins do dispositivo onde é exercido,
organizando um poder múltiplo, automático e anônimo sobre os indivíduos.
Com a sanção normalizadora, por sua vez, as disciplinas estabelecem uma infra-
penalidade, tornando penalizáveis as condutas mais insignificantes, e dando uma
função punitiva a elementos aparentemente irrelevantes do aparelho disciplinar
estabelecendo um sistema no qual cada elemento da instituição possa servir para punir
a menor falta de comportamento. Dessa forma, a sociedade disciplinar se torna capaz
de controlar uma série de condutas que por sua pequenez escapavam aos grandes
sistemas de castigo das sociedades de soberania, funcionando como repressora de uma
micropenalidade do tempo, da atividade, da maneira de ser, dos discursos, do corpo, da
sexualidade, etc.
O que pertence à penalidade disciplinar é o desvio da norma, o ‘não-conforme’. Os
castigos disciplinares devem fazer respeitar uma ordem artificial, (explicitada por um
programa ou regulamento), mas que é definida a partir de processos naturais e
27
observáveis, com referência a uma regularidade. Assim, a sanção normalizadora tem
por função reduzir os desvios de conduta em relação a essa ordem artificial-natural,
operando por um mecanismo de punição cujo objetivo é essencialmente de correção
pois o que se espera é que o castigo atue como um exercício, adestrando o indivíduo
para que ele aja da forma prescrita.
Além disso, ao mesmo tempo em que adestra, o mecanismo de gratificação-sanção
estabelecido pela sanção normalizadora permite a qualificação e quantificação dos
comportamentos individuais e a hierarquização dos indivíduos na escala de ‘maus’ a
‘bons’, marcando o lugar que é devido a cada um na multiplicidade organizada. A arte
de punir no regime do poder disciplinar o visa à expiação nem à repressão, mas põe
em funcionamento cinco operações distintas:
J  '   
! 444
 B 4
4K
 !   "     '
 5      '   
  LM   ?  !
4 %
44 44
6!
   4=   
'' %
4 +?3@#6@*AE/1I,&1IN2
O
Ao sancionar os atos dos indivíduos, a disciplina simultaneamente os avalia e
produz uma determinada verdade sobre eles, marcando os desvios e hierarquizando as
qualidades. Assim se atribui um caráter punitivo à organização (o próprio sistema de
classificação funciona como punição ou gratificação) e um caráter ordinatório à sanção
(a punição aplicada ao indivíduo lhe determina um lugar e um papel na multiplicidade).
Se por um lado a sanção normalizadora do poder disciplinar obriga à homogeneidade,
7
A numeração foi incluída para a dissertação, e a expressão “para que todos se pareçam” pertence ao próprio
Foucault (VP:152). Percebe-se que nesse momento Foucault ainda o havia efetuado a distinção conceitual
entre ‘normalização’ e ‘normação’ (ver supra, p. 20). Na verdade essa distinção não tem grande relevância
teórica, uma vez que ela foi estabelecida apenas como forma de se ressaltar a diferença existente entre os
objetivos do poder disciplinar e os objetivos do biopoder que ambos promovem, cada um de uma forma
específica, a ‘normalização’ em sentido amplo. Por essa razão, na presente dissertação tratamos a sociedade
disciplinar e a sociedade de segurança como ‘fases’ da sociedade de normalização, genericamente
compreendida.
28
conformando os indivíduos à norma estabelecida, por outro lado ela individualiza, pois
permite medir os desvios e tornar úteis as diferenças, ajustando-as umas às outras.
Finalmente, o terceiro instrumento de disciplinamento analisado por Foucault é o
exame, que combina vigilância hierárquica e sanção normalizadora para inserir os
indivíduos num campo de registro e acumulação documentária, situando-os em uma
rede de anotações escritas que os constitui como objeto do saber. Utilizando-se dos
resultados produzidos pela vigilância hierárquica e pela sanção normalizadora, o exame
constrói um arquivo com dados sobre a vida de cada indivíduo. Isso possibilita, por um
lado, a constituição do indivíduo como objeto descritível em sua singularidade,
gerando-se informações detalhadas sobre suas aptidões e capacidades próprias; por
outro lado, torna-se possível a constituição de um sistema comparativo de exame dos
fenômenos globais, no qual se pode medir os desvios dos indivíduos entre si e a sua
distribuição e localização na multiplicidade.
É assim que o exame faz de cada indivíduo um caso, na medida em que, tornando-o
um objeto singularmente descritível e cujo desvio em relação à norma pode ser
mensurado, o torna simultaneamente um objeto para o conhecimento e um ponto
estratégico de incidência para o poder. Segundo Foucault:
3 
7'4
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+?3@#6@*AE/10-2
Percebe-se que esse conjunto de instrumentos e práticas concretas torna possível a
incidência direta do poder disciplinar sobre os corpos dos indivíduos, sem a utilização
de qualquer espécie de violência física real. Através deles um determinado tipo de
sujeito é construído, modificado e convertido na medida do necessário para que deixe
de ser um ‘inimigo interno’ em potencial e possa se tornar útil à sociedade de que faz
parte. Mas o próprio Foucault se questiona sobre a amplitude dos efeitos atribuídos a
procedimentos e mecanismos tão sutis, e se pergunta: “emprestar tal poderio às astúcias
muitas vezes minúsculas da disciplina, não seria lhes conceder muito?” (VP:161).
29
A resposta a esta questão es na estrutura do Panóptico. Idealizado por Jeremy
Bentham
8
, o Panóptico é um edifício descrito por Foucault da seguinte forma, a partir
do projeto original de Bentham:
:4CC!
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'+?3@#6@*AE/10I2
Figura 1 - O Panóptico de Jeremy Bentham (apud FOUCAULT, VP)
Estabelecendo uma estrutura de vigilância como essa, o Panóptico permite que a
vigilância seja permanente em seus efeitos, mesmo que seu modo de ação seja
descontínuo. Aquele que essubmetido a um campo de vigilância permanente retoma
de forma autônoma as limitações do poder, fazendo com que os efeitos da vigilância
8
Citado por Foucault (VP:165): BENTHAM, Panopticon, Works, ed. Bowring, t. IV, p. 60-64.
30
funcionem ininterruptamente sobre si mesmo de forma espontânea, mesmo que a
própria ação de vigilância se efetue de forma intermitente – afinal, o vigiado nunca tem
certeza de estar ou não sendo vigiado em um determinado momento.
Como ressalta Foucault, o Panóptico não é apenas uma peça de arquitetura, mas o
“diagrama de um mecanismo de poder levado à sua forma ideal” (VP:170). Ele é um
aperfeiçoador para qualquer aparelho de poder, pois permite reduzir o número dos que
exercem poder e multiplicar o número daqueles sobre os quais o poder é exercido,
fazendo, além disso, com que a pressão constante aja sobre aqueles que são vigiados
antes mesmo que os desvios de conduta ocorram assegurando dessa forma a
economia e a eficácia do dispositivo disciplinar.
O Panóptico, ao organizar as táticas e instrumentos do poder disciplinar em sua
estrutura, desempenha um papel de amplificação, arranjando o poder de modo a
assegurar a eficiência das instituições sociais que dele se apropriam (escola, fábrica,
quartel, família, hospital, prisão), aumentando a produção, desenvolvendo a economia,
melhorando a saúde dos indivíduos, etc. Assim, ele é uma figura de tecnologia política
que tende a se tornar uma função generalizada e a se difundir no corpo social, pois
pode ser utilizado para majorar a eficiência em qualquer situação em que se busque
impor um comportamento a uma multiplicidade de indivíduos.
Com a difusão do panoptismo pela sociedade disciplinar se desenvolve um
dispositivo funcional que melhora o exercício do poder, tornando-o mais rápido, leve e
eficaz, e potencializando os efeitos da vigilância hierárquica, da sanção normalizadora
e do exame. Desse modo aqueles ‘procedimentos e mecanismos sutis’ característicos
do poder disciplinar se espalham pela sociedade em uma microfísica do poder,
tornando-se capazes de produzir efeitos aptos a modificar o corpo social como um
todo.
31
2.1.4 A Razão de Estado e a governamentalidade policial
A ‘razão de Estado’ é a forma de governamentalidade
9
típica da sociedade
disciplinar. Na verdade, as pesquisas de Foucault a respeito da governamentalidade
disciplinar não são contemporâneas de suas pesquisas sobre a sociedade disciplinar. É
compreensível que isso ocorra, pois para o estudo da sociedade disciplinar o
importam tanto as formas mais gerais de governo dos homens, mas principalmente as
formas de disciplinamento individual organizadas nos interstícios das grandes
instituições de sujeição.
Dessa forma, os estudos sobre a governamentalidade disciplinar e o Estado de
polícia são realizados apenas em 1978, para o curso do Collège de France intitulado
Sécurité, Territoire, Population cinco anos após a realização do curso O Poder
Psiquiátrico (1973), quando Foucault inicia a discussão sobre o poder disciplinar, e três
anos após a publicação de Vigiar e Punir (1975), principal livro de Foucault sobre o
tema. Nesse momento a governamentalidade disciplinar adquire relevância, não tanto
para a compreensão do modo de funcionamento das sociedades disciplinares, mas
como parte de uma genealogia da governamentalidade que é pressuposto para o exame
das sociedades de segurança e do modo como o Estado se constitui como realidade
histórica. O próprio Foucault o afirma:
#             
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!  F       
 G!
'     !  BF 
L!M G      
G3 G !       
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 / !    ! G  
9
Para uma análise aprofundada do conceito, e mais críticas aos tradutores brasileiros (que novamente o se
atêm ao rigor conceitual de Foucault e traduzem o neologismo gouvernementalitépor governabilidade”),
o artigo Coisas do governo..., de Alfredo Veiga-Neto (VEIGA-NETO, 2002:13). o obstante as corretas
ponderações do autor, e apesar de utilizarmos na presente dissertação a expressão “governamentalidade”, por
ele sugerida, optamos por traduzir “gouvernement” como “governo”, em vez de governamento”. Isso
porque, além de gouvernementser uma palavra dicionarizada, na ngua portuguesa a expressão “governo”
abrange tanto a “instituição de Estado” quanto a ação de governar”, de forma que, mesmo que de maneira
algo ambígua, acreditamos que a expressão seja capaz de dar conta satisfatoriamente do significado
pretendido por Foucault.
32
!    ! G !   
G   !    !    %
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F   G !  H 
L!M+?3@#6@*A)AE/1112
1-
Desse modo, o Estado de polícia será analisado nesta seção não apenas para
complementar o presente capítulo, voltado ao exame da sociedade disciplinar, mas
principalmente como pressuposto para a compreensão do capítulo seguinte, dedicado
integralmente ao estudo das sociedades de segurança.
A origem remota da noção de ‘governo dos homens’ é o pastorado do Oriente pré-
cristão. É principalmente entre os hebreus que aparece pela primeira vez a noção de
que o que se governa são homens, a partir da metáfora do rei como pastor dos
governados. No Ocidente greco-romano os indivíduos, na qualidade de cidadãos livres,
jamais poderiam ser ‘objeto’ de governo; para agir de uma forma determinada os
cidadãos deveriam ser retoricamente convencidos, em uma disputa política entre iguais,
a fazê-lo. Entre os gregos o homem governa a sua casa, a sua mulher, os seus escravos,
os seus filhos, mas o rei não governa os cidadãos. A metáfora aplicada aos governantes
não é a do ‘pastor’, mas a do ‘timoneiro’, sendo a cidade-pólis o navio que ele governa
o que indica claramente que no Ocidente o objeto do governo não o os indivíduos,
mas a cidade em sua realidade substancial (FOUCAULT, STP:127).
No Oriente, por sua vez, a relação entre o governante e os homens é apenas uma
reprodução da relação entre Deus e os homens: se Deus é o pastor dos homens, o rei
atua como um pastor subalterno a quem Deus confia seu rebanho, e que ao fim de seu
reinado deve restituir a Deus o rebanho que lhe foi confiado. A relação pastoral é
10
meros inseridos para a dissertação. A tradução de Roberto Machado publicada em Microfísica do Poder
(FOUCAULT, MP:291) não é totalmente fiel ao original, mas mantém o sentido geral: “o que eu pretendo fazer
nos próximos anos é uma história da governamentalidade. E com esta palavra quero dizer três coisas:
1 o conjunto constituído pelas instituições, procedimentos, análises e reflexões, cálculos e táticas que
permitem exercer esta forma bastante específica e complexa de poder, que tem por alvo a população, por
forma principal de saber a economia política e por instrumentos técnicos essenciais os dispositivos de
segurança.
2 a tendência que em todo o Ocidente conduziu incessantemente, durante muito tempo, à preeminência
deste tipo de poder, que se pode chamar de governo, sobre todos os outros soberania, disciplina, etc. e
levou ao desenvolvimento de uma série de aparelhos específicos de governo e de um conjunto de saberes.
3 – o resultado do processo através do qual o Estado de justiça da Idade Média, que se tornou nos séculos XV
e XVI Estado administrativo, foi pouco a pouco governamentalizado”.
33
essencialmente essa relação entre Deus e os homens
11
, e ela é dotada das seguintes
características: em primeiro lugar, o poder pastoral não se exerce sobre um território,
mas sobre o rebanho, que é uma multiplicidade em movimento; além disso, o poder
pastoral não se caracteriza por sua própria potência nem trata o poder como um fim em
si mesmo, sendo um instrumento intermediário para a consecução de um objetivo
maior: fazer o bem e zelar pela salvação do rebanho; trata-se, ainda, de um poder que
não se manifesta como ‘direito’, mas como tarefa, caracterizando-se pelo devotamento
total do condutor aos outros (o pastor jamais se preocupa consigo mesmo, ele se dedica
inteiramente ao seu rebanho); finalmente, trata-se de um poder individualizante, que
concede, paradoxalmente, tanto valor a cada uma de suas ovelhas quanto ao rebanho
inteiro, e que deve se sacrificar e sacrificar todo o rebanho, se necessário, para salvar a
ovelha desgarrada (FOUCAULT, STP:133).
Essa idéia de poder pastoral, completamente estranha à reflexão política grega e
romana, é introduzida no Ocidente através da Igreja cristã, e a história do pastorado é
indissociável da própria história do cristianismo. Ao organizar a religião sob a forma de
uma Igreja, o cristianismo origem a um processo único na história da humanidade,
formando um dispositivo de poder inédito através do qual se pretende governar não
um grupo definido de homens, mas toda a humanidade, em todos os aspectos da
existência, sob o pretexto de conduzir todos à vida eterna (FOUCAULT, STP:151).
Apesar disso, durante esse período o governo pastoral dos homens permanece restrito
ao interior da Igreja, pois o poder político continuava se organizando segundo a
tecnologia de poder própria das sociedades de soberania. No transcorrer da Idade
Média, no Ocidente, o poder político e o poder pastoral não se confundem, e a relação
do soberano com os seus súditos não é de ‘governo’.
No final da Idade Média, porém, uma série de transformações religiosas (a
institucionalização rigorosa do pastorado e de seus procedimentos, a formação de um
dimorfismo que passa a opor clérigos e leigos, a atribuição do poder sacramentar aos
clérigos) e políticas (a ligação do pastorado com o governo civil, a feudalização da
11
Foucault ressalta que mesmo esse modo de relação entre Deus e os homens é específico do Oriente
mediterrâneo, e diferente do modo como os gregos se relacionavam com seus deuses. Afinal, não existe,
entre os gregos, essa idéia de que os deuses conduzem os homens como um rebanho. O deus grego funda a
cidade, indica a sua localização, auxilia na construção de seus muros, lhe confere seu nome, conselhos
através de seus oráculos, etc. Ele protege, auxilia, intervém, mas jamais conduz os homens da cidade como
um pastor conduziria seus cordeiros (FOUCAULT, STP:129).
34
Igreja, a introdução do modelo judiciário na prática pastoral) tornam o pastorado objeto
de novas formas de resistência, que provocam a sua crise e a sua dispersão pela
sociedade (FOUCAULT, STP:206). No culo XVI, ponto de cruzamento entre o
processo de concentração do Estado e o movimento de dissidência religiosa da
Reforma, ocorre uma proliferação das técnicas de conduta dos homens: o apenas
uma intensificação do pastorado em suas dimensões espirituais, mas também o
desenvolvimento da condução dos homens fora do ambiente religioso, no mundo
secular (FOUCAULT, STP:235). O problema de como governar os homens deixa de ser
exclusivamente um problema da religião e se torna, também, um problema político.
Na mesma época em que ocorre uma desgovernamentalização do cosmos e o
mundo deixa de ser governado diretamente por Deus para ser regido por um conjunto
de leis naturais, ocorre também a emergência da especificidade do governo político em
relação a Deus e à ordem natural: o governo passa a ser percebido como algo mais que
a soberania de legitimidade divina, mas também como algo distinto do poder pastoral
religioso. O pastorado se dispersa pela sociedade, mas se transforma em outra coisa:
torna-se ‘governamentalidade’, surgindo então a questão de se descobrir a forma de
governo adequada para o âmbito político o governo e sua especificidade em relação
ao pastorado, a razão de Estado e o seu suplemento em relação à soberania. De acordo
com Foucault:
3G!
'F3F
F G          B  
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     G G  ST  ST
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! H  ' H     '  !  G
     ! H   F  H  P 
!' G 
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+?3@#6@*A)AE/,.N2
1,
12
“Temos, portanto, de um lado, um nível em que se pode afirmar que a natureza se desprende do tema
governamental. Teremos agora uma natureza que não tolera mais qualquer governo, que não tolera nada além
do reino de uma razão que é, finalmente, em comum, a razão de Deus e a dos homens. É uma natureza que
não tolera nada além do reino de uma razão que lhe fixou, de uma vez por todas, [...] isso que o se
chamam, ainda, ‘leis’, mas princípios’, principia naturae. E de outro lado temos uma soberania sobre os
homens que é chamada a se ocupar de algo de específico que não é diretamente contido por ela, que obedece
a um outro modelo e a um outro tipo de racionalidade, e esse algo mais é o governo, o governo que deve
35
O próprio Foucault ressalta que o que ocorre nesse momento não é meramente uma
transferência do poder pastoral para o interior do poder soberano, que tornaria a arte de
governar apenas mais um de seus atributos (FOUCAULT, STP:293); o rei não se torna
pastor dos corpos, como o pastor espiritual era o pastor das almas. Na verdade, o é o
próprio poder pastoral que se expande e se difunde pela sociedade, mas a noção de
‘governo dos homens’ que, quando alcança o âmbito secular, se reveste de
características específicas e distintas do poder pastoral. Desenvolve-se, assim, uma arte
absolutamente específica de governar, com sua própria racionalidade e seus próprios
modos de funcionamento: a razão de Estado.
A razão de Estado foi imediatamente percebida, no momento de sua criação,
como uma forma inovadora de se portar em relação aos assuntos do governo:
primeiramente porque ela só se refere ao próprio Estado, sem aludir à ordem natural, às
leis fundamentais, ou à ordem divina; além disso, é considerada não só a própria
essência do Estado, mas também o conhecimento que permite seguir e obedecer ao seu
modo específico de funcionamento. Não se trata, porém, de um princípio de
transformação ou evolução do Estado; a razão de Estado visa exclusivamente à sua
conservação, tendo por função obter o necessário e suficiente para que o Estado exista
e se mantenha em sua integridade na razão de Estado não finalidade anterior,
exterior ou ulterior ao próprio Estado, o seu fim é apenas a manutenção do próprio
Estado (FOUCAULT, STP:263).
Percebe-se que sob o signo da razão de Estado a governamentalidade se transforma.
Se por um lado o aparecimento da noção de ‘governo dos homens’ no âmbito político
havia descartado definitivamente a tecnologia de poder soberana, por outro lado ele
também representou uma transformação do poder pastoral, que se reveste de
características distintas da forma de governo dos homens no âmbito religioso. Em
primeiro lugar, a salvação do Estado se torna mais importante que todo o resto, o que
faz com que a legitimidade abandone o foco das discussões políticas e ceda espaço ao
problema da necessidade – os atos de governo deixam de ser legitimados pelos direitos
originários do soberano, e o seu fundamento passa a ser a estrita necessidade do
Estado. Além disso, a defesa do Estado deixa de ser pensada como proteção contra os
procurar sua razão. Principia naturae de uma parte, de outro [...] ratio status[grifos no original] (tradução
livre).
36
príncipes inimigos e passa a ser pensada em termos de perigos internos; o inimigo
agora é o povo, e o risco de sedição passa a fazer parte da vida cotidiana do Estado, um
‘fenômeno natural’ com causas e sinais que podem ser interpretados e modificados
para garantir a segurança do Estado (FOUCAULT, STP:273). Finalmente, o objeto de
saber do governante também é transformado: a partir de agora, o que o bom governante
deve conhecer não são as leis (naturais ou divinas), mas as forças e recursos que
caracterizam o Estado em um dado momento o que torna necessários um saber como
a estatística e um aparelho administrativo capaz de lidar com os dados obtidos e agir
sobre a realidade.
A transformação na forma de governamentalidade provoca também uma
transformação nas formas de temporalidade e espacialidade européias. Os problemas
de origem da dinastia e a escatologia do Império universal que produziria o retorno de
Cristo desaparecem, pois se es desde sempre dentro do Estado e da razão de
Estado, e não se prevê termo final para a governamentalidade. Trata-se, agora, de um
tempo indefinido no qual se encontra um governo perpétuo e conservador, de modo
que o problema da necessidade presente substitui a questão da legitimidade originária,
e a historicidade aberta substitui o sonho do Império final (FOUCAULT, STP:265).
A Europa passa a viver em uma temporalidade aberta e uma espacialidade múltipla,
e a tendência medieval unificadora, permanentemente ameaçada por revoluções
essenciais, é substituída por um tempo aberto e concorrencial ameaçado por revoluções
reais no nível dos mecanismos que asseguram a riqueza e a potência das nações. Com o
desenvolvimento da razão de Estado, esses mecanismos de riqueza são inseridos em
um prisma reflexivo capaz de organizá-los em estratégias, o que torna possível o seu
constante aperfeiçoamento e a contenção das revoluções. Assim, a partir do final do
século XVI as relações entre Estados deixam de ser percebidas sob a forma de
rivalidade e passam a ser percebidas sob a forma da concorrência, ocorrendo também
uma transformação nas preocupações dos governantes (FOUCAULT, STP:302): da
riqueza do príncipe (metais entesourados e recursos fiscais) para a riqueza do Estado;
das posses do príncipe (territoriais) para os recursos do Estado (recursos naturais,
localização geográfica, balança comercial); das alianças familiares para as
combinações provisórias de interesses.
37
Com essas transformações, o problema principal da nova racionalidade
governamental passa a ser a utilização e o cálculo de forças, com o objetivo de
conservar uma determinada relação de forças entre os Estados concorrentes. E para pôr
em funcionamento a razão política definida a partir da dinâmica das forças, as
sociedades ocidentais organizaram dois grandes conjuntos tecnológicos: para a
manutenção da relação de forças entre os Estados, o dispositivo diplomático-militar; e
para o desenvolvimento das forças internas sem a ruptura do conjunto, o dispositivo de
polícia.
Se os Estados agora se encontram em relação de concorrência, deve-se criar um
sistema que permita limitar o máximo possível a mobilidade e o crescimento dos outros
Estados, mas deixando aberturas o suficiente para que cada Estado possa maximizar o
seu crescimento sem provocar seus adversários, evitando o seu próprio
enfraquecimento (FOUCAULT, STP:304): é o dispositivo diplomático-militar que
desempenha essa função, criado logo após a Guerra dos 30 Anos para pôr fim aos
conflitos entre os Estados europeus. Graças a esse dispositivo a Europa se torna um
espaço geográfico limitado e sem universalidade, composto por uma pluralidade de
Estados sem unidade culminante, e no qual a diferença entre os Estados grandes e
pequenos não é suficiente para permitir a dominação de uns sobre os outros, formando-
se uma aristocracia igualitária de Estados capaz de dominar o restante do mundo
econômica e politicamente. Para assegurar esse equilíbrio o dispositivo diplomático-
militar se utiliza de instrumentos como a guerra de razão de Estado (cujo fundamento
não é mais o direito violado do soberano, mas a necessidade política do Estado), a
diplomacia, o exército permanente e um aparelho de informação que mantém o
governante atualizado sobre a situação de suas próprias forças e a sua relação com as
forças de seus concorrentes (FOUCAULT, STP:313).
Além do dispositivo diplomático-militar, organiza-se também um dispositivo que
assegura o bom emprego das forças do Estado, estabelecendo uma relação móvel, mas
controlável, entre a ordem interior do Estado e o crescimento de suas forças: o
dispositivo de polícia. O objetivo da polícia é fazer com que, mantendo-se o equilíbrio
e a ordem do Estado, suas forças cresçam o máximo possível (FOUCAULT, STP:329).
Enquanto na sociedade de soberania o que importava era o ‘ser’ dos homens, o que eles
eram por seu estatuto ou suas virtudes e qualidades intrínsecas, na sociedade de polícia
38
o que importa é o ‘fazer’ dos homens, e o objetivo da polícia é justamente o controle
das suas atividades como elemento constitutivo das forças do Estado, orientando-as de
uma forma que as torne efetivamente úteis.
O Estado de polícia é, portanto, esse Estado em que a governamentalidade se
exerce diretamente sobre os corpos dos indivíduos, organizando suas atividades de
modo a aumentar a sua utilidade para o próprio Estado. Com o objetivo de criar a
utilidade estatal a partir da atividade dos homens, a polícia se ocupa de objetos como o
número dos homens (a força de um Estado depende do desenvolvimento quantitativo
da população em relação aos recursos e possibilidades do território), as necessidades da
vida, (pois os homens que são a força do Estado devem poder viver), a saúde dos
indivíduos (condição necessária para que possam desenvolver uma atividade), etc.,
atuando diretamente sobre os seus corpos para organizar esses fatores em favor do
Estado.
A organização das atividades dos indivíduos para o aumento das forças do Estado
se por meio do poder regulamentar, que atua como uma generalização da disciplina.
O Estado de polícia é o mundo do regulamento indefinido, permanente, perpetuamente
renovado, mais e mais detalhado, sobre as atividades dos indivíduos e sobre como elas
podem se tornar úteis para o Estado. O regulamento é o golpe de Estado permanente,
que permite que o soberano aja à revelia da lei e com fundamento apenas na
necessidade do Estado, determinando que as atividades dos indivíduos se organizem de
uma determinada forma, e o de outra, de acordo com um critério de conveniência.
Como afirma Foucault (STP:348), a grande proliferação das disciplinas locais e
regionais a que se pôde assistir desde o fim do século XVI até o século XVIII se
destaca do fundo de uma tentativa de disciplinarização geral, de regulamentação geral
dos indivíduos e do território do reino, sob a forma de uma polícia que teria um modelo
essencialmente urbano. Fazer da cidade um quase-convento, e do reino uma quase-
cidade, é esse o grande sonho disciplinar que se encontra como pano de fundo da
polícia”
13
.
13
Faire de la ville une sorte de quasi-couvent, et du royaume une sorte de quasi-ville, c’est bien ça l’espèce
de grand rêve disciplinaire qui se trouve à l’arrière-fond de la police” (FOUCAULT, STP:348 – tradução livre
para o português).
39
Durante esse período de quase três séculos o Estado de polícia se expandiu e
procurou concretizar a sua utopia de disciplinamento geral da sociedade. O poder
disciplinar passou a ser exercido no interior das mais diversas instituições sociais
(família, escola, exército, hospital, prisão), e a governamentalidade efetivamente agiu
no sentido de promover um aumento estável e duradouro das forças do Estado. A
‘cidade-mercado’ se tornou o modelo de intervenção estatal sobre a vida dos homens,
por meio de uma polícia que tinha por objetivo a organização das relações entre a
população e a produção de mercadorias (com todos os problemas de coabitação,
circulação, vigilância, etc.), atribuindo ao comércio a função de crescimento das forças
do Estado, no contexto de desenvolvimento do capitalismo comercial
14
.
A partir da primeira metade do século XVIII, porém, uma série de novas críticas
faz com que essa forma de governamentalidade entre em crise. Essas críticas não
partem mais dos registros teórico-políticos característicos da sociedade de soberania ou
do pastorado cristão, como as que se fazia no momento em que a razão de Estado
procurava se firmar como forma inovadora de governamentalidade; não se trata mais
das velhas críticas a respeito da malignidade ou do cinismo da razão de Estado. São
críticas novas, que se desenvolvem principalmente a partir de novos problemas
econômicos, e que implicam em um novo princípio de regulação interna da razão
governamental. Desenvolve-se outra tecnologia de governo dos homens, uma nova
forma de combate ao inimigo interno, com procedimentos e dispositivos de poder
específicos, distintos daqueles característicos da sociedade disciplinar: trata-se da
‘segurança’, que será examinada no capítulo seguinte.
14
O mercantilismo é a forma como se manifesta economicamente a governamentalidade da razão de Estado.
Segundo Foucault (NB:7 tradução livre), o mercantilismo não é uma doutrina econômica, mas uma certa
organização da produção e dos circuitos comerciais segundo o princípio de que, em primeiro lugar, o Estado
deve enriquecer pela acumulação monetária, em segundo lugar, ele deve se reforçar pelo crescimento da
população, em terceiro lugar ele deve se manter em um estado de concorrência permanente com as potências
estrangeiras” (“le mercantilisme n’est pas une doctrine économique [...]. C’est une certaine organisation de
la production et des circuits commerciaux selon le principe que, premièrement, l’État doit s’enrichir par
l’accumulation monétaire, deuxièmement, il doit se renforcer par l’accroissement de la population,
troisièmement, il doit se trouver et se maintenir dans un état de concurrence permanent avec les puissances
étrangères”).
40
2.2 A Sociedade de Normalização II – genealogia da sociedade de segurança
2.2.1 Formação – inflexão da sociedade disciplinar
A sociedade de segurança é outra novidade teórica do pensamento de Michel
Foucault, amplamente divulgada apenas em 2004, com a publicação de dois dos cursos
ministrados por ele nos anos 70, no Collège de France. Até pouco tempo atrás a única
referência escrita de Michel Foucault a aspectos do dispositivo de segurança estava no
livro A Vontade de Saber, primeiro volume da História da Sexualidade, publicado em
1976 (FOUCAULT, VS). No último capítulo dessa obra, intitulado Direito de Morte e
Poder sobre a Vida, Foucault se utiliza pela primeira vez dos conceitos de biopoder
“um poder cuja função mais elevada não é mais matar, mas investir sobre a vida, de
cima a baixo” (VS:131) e de biopolítica que designa “o que faz com que a vida e
seus mecanismos entrem no domínio dos cálculos explícitos, e faz do poder-saber um
agente de transformação da vida humana” (VS:134). Já nesse momento Foucault
insistia sobre as diferenças entre a disciplina e a regulação biopolítica, mas ainda os
considerava apenas como aspectos distintos de uma mesma realidade, formas
diferentes de atuação do poder em uma sociedade cuja política incidia diretamente
sobre a vida dos indivíduos. É o que se depreende da leitura do seguinte trecho:
# &  ! QRR
C!
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4=@ "    &
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7 "/4
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+?3@#6@*A)/1N12
Após a publicação desse livro Foucault permaneceu oito anos em aparente silêncio,
promovendo apenas em 1984 a publicação do segundo e do terceiro volumes da
História da Sexualidade O Uso dos Prazeres (FOUCAULT, UP) e O Cuidado de Si
41
(FOUCAULT, CS). Na classificação que é tradicionalmente imposta à produção
foucaultiana, essas obras já pertencem ao que seria a ‘terceira fase’ de seu pensamento,
dedicada não mais à arqueologia dos discursos ou à genealogia dos poderes, mas ao
estudo sobre as práticas que tornam possível a auto-constituição do sujeito por si
mesmo
15
. Logo, não abordam mais a temática do biopoder, de modo que os escritos de
Foucault sobre esse assunto se resumiriam a pouco mais de vinte páginas de A Vontade
de Saber, nas quais o filósofo expõe sinteticamente a hipótese de que o biopoder
atuaria como um complemento da disciplina nas sociedades de normalização. Contudo,
quando se analisa os cursos de Michel Foucault no Collège de France se percebe que
esses oito anos de aparente silêncio foram na verdade um período de intensa atividade
intelectual, e é nesse percurso que Foucault produz os seus trabalhos mais ricos sobre o
biopoder e a sociedade de segurança.
O primeiro dos cursos a ser publicado, em 1997, foi Em Defesa da Sociedade
(EDS), ministrado de janeiro a março de 1976. Essa é uma das primeiras vezes que se
tem notícia da utilização, por Michel Foucault, do conceito de biopoder, que o curso
15
Sem acesso aos cursos que Foucault ministrou no Collège de France, essa classificação trinária do
pensamento foucaultiano em ‘fases’ até faria algum sentido. Afinal, depois de passar quase vinte anos
estudando o discurso em uma arqueologia dos saberes (em obras como As Palavras e as Coisas (PC) e A
Ordem do Discurso (OD)), em 1975 ele parece mudar radicalmente o seu foco de preocupações para realizar
uma genealogia do poder disciplinar em Vigiar e Punir (VP). Em 1976 continua estudando o poder, agora
verificando de que formas ele incide sobre a sexualidade, e descobre o biopoder atuando ao lado da disciplina
para regular os fenômenos da vida. Então, após oito anos de reclusão, meditando como um eremita no topo
da montanha, Foucault teria retornado com suas longas barbas prateadas e seu profundo olhar de sabedoria
para nos presentear a todos com a verdade fundamental de que, apesar de tudo, “o sujeito existe”, e é disso
que se tratava o tempo todo ergo, a Modernidade está salva. Surpreendentemente, o próprio Foucault
encorajava essa forma de pensamento, atribuindo uma autoria como foco de coerência de suas obras, que,
segundo ele, teriam desde sempre o sujeito como tema central. Contudo, se Foucault declarou que o alvo do
seu trabalho “durante os últimos vinte anos [...] tem sido criar uma história dos diferentes modos pelos quais
os seres humanos em nossa cultura se tornam sujeitos” (apud RABINOW, 2002:31), não se pode esquecer que
o mesmo Foucault também sustentou que o princípio de autoria desempenha um papel político, o se
referindo ao “indivíduo falante que pronunciou ou escreveu um texto, mas [atuando] como princípio de
agrupamento do discurso, como unidade e origem de suas significações, como foco de sua coerência”, de
modo a excluir o acaso da ordem discursiva (FOUCAULT, OD:26). Cabe ao intérprete de suas obras escolher,
entre os dois ‘autores’, o que lhe seja mais útil como ferramenta de trabalho. Todavia, atribuir um princípio
unificador global ou princípios unificadores parciais para cada fase ao pensamento de Foucault parece reduzir
a originalidade de seu pensamento, ao mesmo tempo em que lhe atribui uma sistematicidade que claramente
não possui. Na verdade, como percebe Márcio Fonseca (2002:22), os deslocamentos representam apenas
“aquilo mesmo que são: deslocamentos, resultados de hesitações, de começos e recomeços, de
experimentações”, sem quaisquer significados ocultos a serem descobertos pelo hermeneuta. As supostas
‘fases’ são apenas momentos em que a recorrência a certos temas e a determinadas formas de abordagem
permite a identificação de algumas regularidades, nunca se constituindo em momentos estanques e
independentes entre si” (M. FONSECA, 2002:94). Afinal, Foucault é como o caranguejo, e se desloca
lateralmente – “vous le savez, je suis comme l’écrevisse, je me déplace lateralement” (FOUCAULT, NB:80).
42
foi ministrado alguns meses antes da publicação de A Vontade de Saber
16
. Mesmo
então Foucault frisava as diferenças entre a disciplina e o biopoder, ao proferir a
seguinte frase: “durante a segunda metade do século XVIII, eu creio que se vê aparecer
algo de novo, que é uma outra tecnologia de poder, não disciplinar dessa feita”
(EDS:288). Contudo, também nesse curso as enquadrava como aspectos de uma
mesma realidade, ao ressaltar que a tecnologia biopolítica é “uma tecnologia de poder
que não exclui [...] a técnica disciplinar, mas que a embute, que a integra, que a
modifica parcialmente e que, sobretudo, vai utilizá-la implantando-se de certo modo
nela, e incrustrando-se definitivamente graças a essa técnica disciplinar prévia”
(EDS:289). Apenas algumas páginas depois ele reitera essa opinião, definindo a
sociedade de normalização como “uma sociedade em que se cruzam, conforme uma
articulação ortogonal, a norma da disciplina e a norma da regulamentação” (EDS:302).
Nota-se, portanto, que no curso Em Defesa da Sociedade Foucault apresenta o
mesmo argumento defendido em A Vontade de Saber, sustentando que disciplina e
biopoder são técnicas distintas através das quais a sociedade de normalização incide
sobre a vida das pessoas (tornando-as indivíduos ou populações) com o objetivo de
promover o desenvolvimento do capitalismo. Contudo, não é essa a hipótese exposta
nos cursos Sécurité, Territoire, Population e Naissance de la Biopolitique, publicados
na França em 2004 e ainda inéditos no Brasil
17
. Dois anos após Em Defesa da
Sociedade, Foucault sofistica o argumento anterior e passa a compreender o biopoder
como parte de outra tecnologia, atuando distinta e separadamente da tecnologia de
poder disciplinar, com modo de funcionamento, instrumentos e forma de
governamentalidade próprios – a segurança
18
.
16
Conforme aponta Márcio Fonseca (2002:194), a expressão “biopolítica” havia sido utilizada por
Foucault mesmo antes desses dois trabalhos: na conferência proferida sobre a medicina social em 1974, no
Instituto de Medicina Social da UERJ, no Rio de Janeiro (FOUCAULT, MP:79); na conferência de 1976
intitulada Les Mailles du Pouvoir, também proferida no Brasil, publicada no volume 4 da coleção francesa
Dits et Écrits, mas sem tradução na edição brasileira da obra; e em uma resenha do livro De la biologie à la
culture, de Jacques Ruffié, publicada em 1976 no Le Monde e posteriormente no volume 3 da coleção Dits et
Écrits, também sem tradução na edição brasileira.
17
Sécurité, Territoire, Population foi realizado entre janeiro e abril de 1978, e Naissance de la Biopolitique
foi realizado de janeiro a março de 1979. Em 1977 Foucault não deu aulas no Collège de France, por ter sido
agraciado com um ano sabático pela instituição.
18
Michel Senellart, responsável pelas edições de ambos os cursos e autor dos comentários e referências que
acompanham as suas publicações, ressalta que a distinção entre mecanismos de segurança e mecanismos
disciplinares estava presente na última aula de Em Defesa da Sociedade, e que apesar disso o conceito de
segurança não é retomado em A Vontade de Saber obra em que Foucault o substitui pelo conceito de
43
Mas não se deve exagerar a distinção entre o dispositivo disciplinar e o dispositivo
de segurança. As diferenças entre eles devem ser enfatizadas porque os cursos
recentemente publicados contrariam mais de trinta anos de pesquisas, durante os quais
os principais estudiosos do pensamento foucaultiano concordaram em considerar o
biopoder como outro atributo da sociedade disciplinar. Não obstante, o próprio
Foucault não se cansa de ressaltar os inevitáveis pontos de contato entre disciplina e
segurança, afirmando que a formação da sociedade de segurança decorre, na verdade,
de uma transformação da razão de Estado, que passa a ter um princípio de regulação
interna, para além da limitação externa que era representada pelo direito.
Da análise realizada no capítulo precedente se percebe que na sociedade disciplinar
a razão de Estado era limitada externamente e ilimitada internamente. Se por um lado o
dispositivo diplomático-militar fazia com que os Estados se encontrassem em uma
relação de concorrência limitada entre iguais, por outro lado o dispositivo de polícia
tinha o objetivo explícito de fazer com que, internamente, as forças do Estado
crescessem o máximo possível inclusive como condição de possibilidade da
concorrência no âmbito externo. Nesse contexto, a única forma de limitação à
manifestação interna da razão de Estado era representada pelo direito, que de diversos
modos se opunha à necessidade de crescimento ilimitado do Estado de polícia. Como
observa Foucault (NB:9), a prática judiciária, que durante toda a Idade Média havia
sido o multiplicador do poder real (com a defesa dos direitos originários do soberano),
“controles reguladores” (FOUCAULT, STP:25 nota 5). Contudo, certamente essa substituição ocorre por não
haver ainda, em 1976, um desenvolvimento conceitual pleno da idéia de segurança, mas apenas noções
esparsas. Na tradução em português de Em Defesa da Sociedade a expressão aparece apenas duas vezes, em
contextos que o permitem que ela seja tratada, ainda, como conceito (o que faz com que sequer seja citada
no “índice das noções e dos conceitos”): em uma enumeração meramente exemplificativa dos mecanismos de
biopoder, traduzida como “seguridade” (“vamos ter mecanismos mais sutis, mais racionais, de seguros, de
poupança individual e coletiva, de seguridade, etc.” EDS:291), e na exposição das funções desempenhadas
pela regulamentação biopolítica (“é uma tecnologia que visa, portanto, não ao treinamento individual, mas,
pelo equilíbrio global, a algo como uma homeostase: a segurança do conjunto em relação aos perigos
internos” EDS:297). Segundo Márcio Fonseca (2002:212), na edição original francesa aparecem ainda as
expressões “mécanismes de sécurité” e “technologie de sécurité”, que foram mal traduzidas na edição
brasileira por “mecanismos de previdência” (EDS:294 “e trata-se sobretudo de estabelecer mecanismos
reguladores que, nessa população global com seu campo aleatório, vão poder fixar um equilíbrio, manter uma
média, estabelecer uma espécie de homeostase, assegurar compensações; em suma, de instalar mecanismos
de previdência em torno desse aleatório que é inerente a uma população de seres vivos”) e “tecnologia de
previdência” (EDS:297 “logo, uma tecnologia de treinamento oposta a, ou distinta de, uma tecnologia de
previdência”). Mas, ainda que seja grave o erro de tradução, a mera distinção entre ‘tecnologia de
treinamento’ e ‘tecnologia de segurança’ não parece ser suficiente para estabelecer o conceito de ‘segurança’
com a densidade teórica que ele assume no curso de 1978.
44
aparece a partir do século XVI como instrumento de limitação da expansão da razão de
Estado no Estado de polícia sob a forma do contrato social, dos direitos naturais dos
indivíduos, e dos direitos ancestrais da nobreza contra o soberano.
Mas no século XVIII a razão de Estado passa a sofrer severas críticas,
principalmente a partir dos problemas de economia política. O objetivo da crítica dos
juristas nos séculos XVI e XVII era apenas limitar um poder real que se tornava
exorbitante; não poderia, desse modo, provocar uma crise do Estado de polícia, pois era
com essa concepção de governamentalidade que dialogava. As críticas provenientes
dos economistas, por sua vez, embora não intentassem a substituição da razão de
Estado, forneceram a essa forma um novo conteúdo.
O fato de a economia política ter sido cultivada no interior da própria razão de
Estado, como instrumento para atingir os seus objetivos (o crescimento das forças e a
manutenção do equilíbrio), fez com que ela jamais se propusesse como objeção externa
à razão de Estado e à sua autonomia política, mas como reflexão realizada pela prática
governamental sobre si mesma e seus efeitos. Dessa forma, não perquiria sobre a
legitimidade dos atos de governo, preocupando-se apenas com sua eficácia. Conforme
essa reflexão sobre a eficácia da prática governamental se estabelece como ciência (o
que não havia ocorrido com a razão de Estado), passa-se a vislumbrar um campo de
naturalidade próprio da ação governamental, e se concebe a hipótese de que para ser
eficaz o governo deve respeitar essa naturalidade (FOUCAULT, NB:18). Esse raciocínio
provocou o surgimento de uma nova forma de contenção dos atos de governo,
exercida, a partir de agora, do interior da própria governamentalidade.
São claras as diferenças entre a limitação externa (jurídica) e a limitação interna
(econômica) da governamentalidade. A partir do momento em que se institui uma
regulação interna, ela deixa de ser uma limitação de direito e se transforma em uma
limitação de fato, o que torna o governo que ultrapasse os limites de ação por ela
fixados não apenas ilegítimo, mas inadaptado e inconveniente. Todavia, apesar de ser
arquitetada pela própria governamentalidade, a nova forma de limitação não é formada
apenas por ‘conselhos de prudência’ para o bom governante; ela se organiza como
limitação geral, traçada de modo uniforme e em função de princípios válidos em todas
as circunstâncias. Além disso, por serem formuladas ao lado dos objetivos do governo,
as demandas de limitação deixam de ser efetuadas a partir de um ambiente exterior à
45
razão de Estado para se apresentarem, do interior, como forma de atingir esses
objetivos. Logo, a divisão entre o que se deve fazer e o que não convém fazer o
ocorre mais através de uma clivagem nos sujeitos, com o estabelecimento formal de um
campo de liberdade e outro de obediência; as prescrições de conduta para o governante
se estabelecem no próprio domínio da prática governamental, em relação à sua
naturalidade específica.
Dessa forma, as limitações aos atos de governo não são impostas por um lado ou
por outro, sob a forma de transações, conflitos ou concessões; elas não são reclamadas
pelos governados nem concedidas pelos governantes, pois passam a fazer parte do
próprio modo de funcionamento da razão governamental. A partir do século XVIII o
que se opõe ao detentor do poder não é mais o abuso (ilegítimo) da soberania, mas o
excesso (em desacordo com a realidade) de governo (FOUCAULT, NB:14). Com o
advento das sociedades de segurança se institui um regime de verdade como princípio
de auto-limitação do governo, que passa a se submeter legitimamente à distinção
‘verdadeiro x falso’. A partir de agora, o maior mal do governante o é a tirania, mas
o engano, pois se ele for ignorante as leis naturais do Estado serão violadas, e isso
gerará efeitos indesejáveis e perniciosos para o próprio Estado. Segundo Foucault, o
que caracteriza a governamentalidade moderna é justamente o fato de que, em lugar de
esbarrar em limites exteriores formalizados pelas jurisdições, ela se limites
intrínsecos formulados em termos de veridicção (NB:23).
Após as críticas da economia política, a própria governamentalidade passa a se
estabelecer como auto-limitação, a partir da naturalidade econômica própria dos
objetos e práticas de governo: seja a naturalidade das riquezas e dos bens (circulação
dos meios de pagamento, efetiva utilização dos produtos, etc.), seja a naturalidade dos
indivíduos em sua ligação com a naturalidade econômica, pois o seu número,
longevidade, saúde, modo de se comportar, se encontram em relações complexas com
os processos econômicos (NB:24). se encontra o ponto de partida para a
organização de uma biopolítica, pois os sujeitos de direito sobre os quais se exercia a
soberania política e os indivíduos que a disciplina deveria tornar úteis e dóceis passam
a aparecer também como população, conjunto de fatores econômicos que deve ser
corretamente administrado pelo governo. Percebe-se que a biopolítica não é apenas
outra forma de manifestação da sociedade disciplinar, mas parte de uma nova razão
46
governamental, que insere a questão da verdade econômica como princípio de sua
auto-limitação.
Ao apontar as diferentes questões que se propõem ao governante nas sociedades de
soberania, disciplinar e de segurança, Foucault (NB:21) demonstra por metonímia as
radicais diferenças entre as práticas governamentais de tecnologias de poder distintas:
enquanto o governante soberano se questionava “eu governo bem, em conformidade às
leis morais, naturais, divinas?”, e o governante disciplinar se perguntava “eu governo
de forma suficientemente intensa, com suficiente atenção aos detalhes, para conduzir o
Estado ao seu máximo de força?”, a questão formulada pelo governante da sociedade
de segurança é: “eu governo bem no limite entre o máximo e o mínimo que me fixa a
natureza das coisas?”.
Ressaltadas as características que distinguem a sociedade disciplinar e a sociedade
de segurança, deve-se elaborar melhor o argumento para que se perceba que, apesar das
diferenças, essa nova forma de governamentalidade não é algo totalmente diferente da
razão de Estado; trata-se de “uma inflexão dela em seu desenvolvimento”, um novo
princípio de organização da razão de Estado a partir da noção de “governo frugal”,
resultado da ligação entre a razão de Estado e a economia política. Nas palavras de
Foucault:
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1<

19
“Essa arte de governar, eu creio que ela seja, claro, nova em seus mecanismos, nova em seus efeitos, nova
em seu princípio. No entanto, apenas o é até certo ponto, pois não se deve imaginar que essa arte de governar
constituiria a supressão, o desaparecimento, a abolição, a Aufhebung, como quiserem, dessa razão de Estado
47
A sociedade disciplinar e a sociedade de segurança não são dois sistemas que se
sucedem. Eles são, sim, heterogêneos, mas heterogeneidade não quer dizer contradição.
Como esclarece Foucault (NB:23), dizer que o mecanismo disciplinar e o mecanismo
de segurança são heterogêneos significa dizer que entre eles existem tensões, fricções,
incompatibilidades mútuas, misturas instáveis, mas o que eles não possam conviver
no mesmo tempo e no mesmo espaço. Na verdade, um ano antes ele já havia explicado,
no curso de 1978 (STP:9), que os três mecanismos (de soberania, de disciplina e de
segurança) se relacionam entre si, não apenas sob a forma de um acréscimo linear e
evolucionista, mas desde sempre, em uma relação de conflito e complemento. Não
existe uma série de elementos que se sucedem e fazem desaparecer os precedentes,
mas, de um lado, um conjunto de técnicas que coexistem, se aperfeiçoam e se
complicam com o passar do tempo, e de outro lado um sistema de correlação que as
organiza ao redor de um mecanismo principal. Não há sucessão: lei, disciplina e
segurança; a segurança é uma forma de unir os velhos instrumentos da lei e da
disciplina para fazê-los funcionar no interior dos mecanismos próprios da segurança.
Em outras palavras, há uma ‘história das técnicas’, que mostra como elas cada vez mais
se sofisticam, e uma ‘história das tecnologias’, que explica o modo como as técnicas se
organizam em função de um determinado objetivo. Novamente citando Foucault:
%!G!'
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  '   G'  ' G&H& G'
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da qual eu lhes havia falado da última vez. De fato, não se deve esquecer que essa nova arte de governar, ou
ainda essa arte de governar o mínimo possível, essa arte de governar entre um máximo e um mínimo, e mais
do lado do mínimo que do máximo, bem, essa arte, deve-se considerar que é uma espécie de desdobramento,
enfim, digamos, de refinamento interno da razão de Estado, é um princípio para a sua manutenção, para o seu
desenvolvimento mais completo, para o seu aperfeiçoamento. Digamos que não é outra coisa que a razão de
Estado, não é um elemento externo e negador em relação à razão de Estado, é mais o ponto de inflexão da
razão de Estado em sua curva de desenvolvimento. Eu diria [...] que é a razão do menor Estado no interior e
como princípio organizador da própria razão de Estado, ou ainda: é a razão do menor governo como princípio
de organização da própria razão de Estado” [grifos no original] (tradução livre).
48
!KG! $
'!!
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$+?3@#6@*A)AE/1-2
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
É em virtude dessa forma de pensamento, avessa a esquemas ou generalizações,
que Foucault insiste em afirmar que, mesmo com o desenvolvimento de uma nova
forma de governamentalidade, a sociedade de segurança ainda está na ordem da razão
de Estado (FOUCAULT, STP:356). Isto é, o objetivo permanece sendo o crescimento das
forças do Estado em um certo equilíbrio, exterior (entre os países da Europa) e interior
(ordem interna). Mas com a transformação do capitalismo mercantil em capitalismo
industrial, e a partir das críticas da economia política, desenvolve-se uma forma de
regulação interna da razão governamental que origem a uma completa
reestruturação do dispositivo político de assujeitamento.
Assim se formam as sociedades de segurança, que têm em sua origem um princípio
interno de auto-limitação da governamentalidade. O mecanismo jurídico-legal das
sociedades de soberania, predominante desde a Idade Média até o século XVII,
estabelecia uma distinção binária entre o permitido e o proibido, conectando uma
interdição a uma punição repressora; o mecanismo disciplinar das sociedades
disciplinares, por sua vez, predominante entre os séculos XVII e XVIII, estabelecia
mecanismos de vigilância e correção como modo de prescrição de uma ação positiva
útil; finalmente, o dispositivo de segurança das sociedades de segurança, predominante
nos séculos XIX e XX, trata um determinado fenômeno em sua naturalidade no interior
20
“De fato, uma série de edifícios complexos nos quais o que vai se modificar claro, são [também] as
técnicas em si que vão se aperfeiçoar, ou de todo modo se complicar – mas, sobretudo, o que vai se modificar
é a dominante, ou, mais precisamente, o sistema de correlação entre os mecanismos jurídico-legais, os
mecanismos disciplinares e os mecanismos de segurança. Em outras palavras, vocês terão uma história que
vai ser a história das técnicas propriamente ditas. Por exemplo: a técnica celular, a colocação em célula é uma
técnica disciplinar. Vocês podem perfeitamente fazer a sua história, e ela remonta a um passado muito
distante. [...] Mas há uma outra história, que seria a história das tecnologias, quer dizer, a história muito mais
global, mas igualmente mais imprecisa das correlações e dos sistemas de dominância que fazem com que, em
uma dada sociedade e para tal e tal setores dados pois não é necessariamente sempre no mesmo passo que
em tal ou tal setor as coisas o evoluir, em um dado momento, em uma dada sociedade, em um dado país
uma tecnologia de segurança, por exemplo, vai se desenvolver, retomando e fazendo funcionar, no interior de
sua tica própria, elementos jurídicos e elementos disciplinares, às vezes até mesmo os multiplicando”
(tradução livre).
49
de uma série de eventos prováveis, inserindo as reações do poder em um cálculo de
intervenção sobre o meio, conforme veremos na próxima seção.
2.2.2 Funções – o dispositivo de segurança e o biopoder
Com o estabelecimento de um regime de veridicção como princípio de limitação
interna da governamentalidade se institui uma nova forma de incidência do poder sobre
a materialidade da vida, baseada agora na naturalidade própria dos fenômenos que
regula. Embora o surgimento do dispositivo de segurança não implique no
desaparecimento do dispositivo disciplinar, ele tem uma mecânica própria e
características específicas, que fazem com que a espécie de poder por ele veiculada seja
bastante diferente das formas disciplinares de controle dos indivíduos.
Em primeiro lugar, os espaços sobre os quais se exerce a segurança são distintos
daqueles sobre os quais se exercem a soberania e a disciplina. Enquanto a soberania se
exerce nos limites de um território e a disciplina se exerce diretamente sobre os corpos
dos indivíduos, a segurança se exerce sobre o conjunto de uma população, buscando
controlar a série de eventos possíveis e aleatórios que se inscrevem em um espaço
dado. Não se trata, na sociedade de segurança, de estabelecer um espaço vazio e
artificial a partir do qual se buscaria o ponto de perfeição (como nas sociedades
disciplinares); a segurança se apóia em uma realidade dada, em uma materialidade
existente, organizando as diferentes funções dos elementos do espaço sobre o qual
incide para maximizar os seus fatores positivos e minimizar os riscos e inconveniências
com a consciência de que os males são compressíveis, mas o anuláveis. Assim, na
sociedade de segurança o espaço não é concebido em função de uma percepção estática
que asseguraria no instante a perfeição da função, mas se abre para um porvir não
controlado nem controlável, trabalhando sobre as probabilidades de um determinado
acontecimento no futuro (FOUCAULT, STP:21).
Enquanto a soberania capitaliza um território juridicamente compreendido
(colocando o problema da sede do governo, para marcar e conquistar o território) e a
disciplina arquitetura um espaço artificial (colocando o problema da distribuição
hierárquica e funcional dos elementos, para disciplinar os sujeitos e fazê-los produzir
riquezas), a segurança administra um meio natural em função da série de eventos que
se pretende regularizar (construindo para uma população um meio de vida). A
50
segurança lida com a série de eventos possíveis e aleatórios que se inscrevem em um
espaço dado, o meio conjunto de dados naturais (rios, colinas) e artificiais
(aglomeração dos indivíduos, circulação comercial) que agem sobre todos os que se
encontram em seu interior (FOUCAULT, STP:23). Com a noção de ‘meio’ se desenvolve
um campo de intervenção que, em lugar de tratar os indivíduos como um conjunto de
sujeitos de direito capazes de ações voluntárias, ou como uma multiplicidade de
organismos suscetíveis de performances, trata-os como uma multiplicidade que só
existe na medida em que está biologicamente ligada à materialidade no interior da qual
vive e assim se torna ‘população’. A partir da constituição do meio como espaço de
segurança, o poder deixa de incidir diretamente sobre os corpos dos indivíduos,
passando a atuar sobre aqueles fatores do meio capazes de influenciar as condutas e
tendências de uma dada população.
Além dos espaços sobre os quais se exerce, também o modo como a segurança se
relaciona com o evento é específico: em vez de interditar ou prescrever condutas
através de um sistema jurídico-disciplinar, a segurança responde à realidade por ões
que buscam compensar os seus efeitos, anulando-a e a equilibrando. Quando a
sociedade disciplinar se deparava com um evento como uma epidemia ou a escassez de
alimentos, ela se utilizava de um sistema de regulamentos e restrições destinado não
apenas a aliviar os efeitos desse evento, mas a impedi-lo, de modo que ele
absolutamente não pudesse ocorrer. O dispositivo de segurança, por sua vez, não se
preocupa em impedir a ocorrência do evento, mas em lidar de forma adequada com a
sua realidade uma vez que ele ocorra. No caso da escassez de alimentos, por exemplo,
as oscilações de abundância e preço não serão interditadas antecipadamente por um
sistema de restrições jurídico-disciplinar; em seu lugar será posto em funcionamento
um dispositivo que, apoiando-se sobre a realidade dessas oscilações, por uma rie de
relações com outros elementos da realidade vai fazer com que esse fenômeno, sem ser
impedido, seja pouco a pouco compensado, limitado e ao final, se possível, anulado.
Como ressalta Foucault (STP:39), é com base na própria realidade, e não tentando
impedir o seu avanço, que o dispositivo de segurança desempenha suas funções.
Pode-se compreender melhor, então, o motivo pelo qual o filósofo afirma que
apenas as sociedades de segurança efetuam verdadeiramente uma ‘normalização’,
51
enquanto as sociedades disciplinares realizam uma ‘normação’
21
. Como já explicamos
no capítulo anterior, a normalização disciplinar consiste em propor inicialmente um
modelo ótimo construído em função de um resultado a ser obtido, operando de modo a
tornar as pessoas e os seus atos conformes a este modelo o que faz com que o
fundamental o seja o normal ou o anormal, mas a norma em seu caráter
primariamente prescritivo. O dispositivo de segurança, por sua vez, não pretende
simplesmente impedir um determinado fenômeno, mas, a partir da realidade de sua
ocorrência, manipulá-lo em relação a outros elementos do real, para neutralizá-lo ou
regularizá-lo. Nas sociedades de segurança a norma é um jogo no interior das
normalidades diferenciais; deduz-se a norma do estudo das diferentes normalidades da
realidade e, a partir dela, cria-se uma curva que vai do mais ao menos normal,
procurando-se fazer com que as diferentes normalidades reais se aproximem o máximo
possível dessa curva geral extraída da realidade.
É possível compreender melhor a diferença entre a ‘normação disciplinar’ e a
‘normalização de segurança’ a partir do exemplo utilizado por Foucault na aula de 25
de janeiro de 1978 (FOUCAULT, STP:64), em que ele expõe os modos distintos como a
sociedade disciplinar e a sociedade de segurança tratam as epidemias. O mecanismo
disciplinar tratava a doença diretamente sobre o indivíduo, na medida em que ele
poderia ser curado, e anulava o contágio dos sadios pelo isolamento completo dos
doentes. Estabelecia, dessa forma, uma separação radical entre o normal e o anormal,
impondo a ambos prescrições de conduta com o objetivo de interditar a doença e
impedir o seu avanço.
O dispositivo de segurança, por sua vez, não depende da distinção radical entre
doentes e sãos efetuada pela sociedade disciplinar, pois toma em consideração o
conjunto sem descontinuidade ou ruptura da população, composta tanto por indivíduos
doentes quanto por indivíduos saudáveis, para verificar qual é o índice provável de
mortes ligadas à doença nessa população. Em seguida realiza, em relação ao
coeficiente de mortalidade normal’, uma análise mais fina que permitirá comparar as
diferentes normalidades umas em relação às outras tem-se, portanto, de um lado a
curva normal global, e de outro lado as curvas normais específicas de acordo com a
21
Ver supra, p. 21.
52
idade, sexo, região, hábitos, profissão, etc. A técnica de normalização das sociedades
de segurança consiste justamente em tratar a curva normal global como padrão de
comparação das curvas normais específicas, procurando regularizar as normalidades
mais desfavoráveis e desviantes em relação à normalidade global. Através dos
dispositivos de segurança o governo pode intervir sobre fatores do meio como a
circulação do ar e das águas, o acesso a medicamentos, a alimentação, a distribuição de
riquezas, etc., agindo indiretamente sobre a doença de modo a contrabalançar os seus
efeitos e submetê-la a uma regularidade natural o mais no corpo dos indivíduos,
mas no conjunto de uma população.
Percebe-se, portanto, que é a partir da própria realidade, e através de intervenções
na própria realidade, que o fenômeno será submetido a uma curva de normalidade. E
essa curva de normalidade é obtida da própria naturalidade do fenômeno, e não de
forma voluntarista a partir dos objetivos abstratos do soberano. O dispositivo de
segurança parte do normal e se serve de certas distribuições consideradas como mais
‘normais’ ou favoráveis que as outras para atuarem como ‘norma’, o que faz com que o
normal seja primeiro em relação à norma que é deduzida e fixada a partir do estudo
das normalidades, desempenhando seu papel operatório no interior de uma rie de
normalidades diferenciais. Logo, como as sociedades de segurança partem do normal
para a norma, pode-se afirmar que elas efetuam uma ‘normalização’, enquanto as
sociedades disciplinares, que partem da norma para o normal, agem por normação’.
Essas transformações no dispositivo de poder decorrem de uma série de novos
objetivos, como a necessidade de integrar a cidade aos mecanismos centrais de poder
após o seu desenvolvimento político e econômico, a preocupação em assegurar a
permanente circulação e anular os seus perigos, e a aspiração de poder intervir sobre os
fenômenos naturais; o principal deles, porém, que aparece junto com a descoberta de
um campo de naturalidade próprio do Estado, é o surgimento do problema da
população como elemento natural e fundamento das forças do Estado, e essa noção é
central para a compreensão do modo de funcionamento das sociedades de segurança.
Apesar de o conceito de população existir como tema de debate mesmo antes do
desenvolvimento das sociedades de segurança, é apenas nelas que o problema da
população é tratado em sua positividade (FOUCAULT, STP:70). Nas sociedades de
soberania a população era vista como o movimento pelo qual, após um grande desastre
53
(guerra, fome ou epidemia), repovoava-se um território que havia se tornado deserto
de modo que o problema não era posto em sua positividade, mas como o oposto de
uma mortalidade perigosa para o controle soberano sobre o território. O mesmo ocorre
nas sociedades disciplinares, em que a população é compreendida como um conjunto
de indivíduos relevante apenas na medida em que sejam obedientes e desempenhem
uma atividade útil para o Estado, aumentando suas forças. Contudo, com o
aparecimento das sociedades de segurança e a descoberta de um campo de naturalidade
próprio dos fenômenos estatais, a população deixa de ser vista como uma coleção de
sujeitos de direito ou indivíduos e passa a ser considerada como um conjunto de
processos naturais, que devem ser geridos a partir do que eles têm de natural. A
população aparece em sua naturalidade, como um fenômeno dependente de uma série
de variáveis (clima, recursos materiais, intensidade do comércio, valores morais, etc.)
que fazem com que ela não possa mais ser transparente à ação do soberano e
transformável por decreto.
É impraticável o exercício do poder diretamente sobre a população, pois ela é
composta por indivíduos que agem motivados pelo desejo (homo oeconomicus), e
contra a naturalidade desse desejo os regulamentos diretos do soberano são não
ineficazes, mas também inconvenientes uma vez que a realização individual dos
desejos conduz espontaneamente à realização do interesse geral. Logo, para intervir
sobre a população em sua naturalidade o poder deve incidir sobre elementos
aparentemente distantes dela, sobre o conjunto de fatores de que ela depende,
regulando-a de forma indireta. Essa ação indireta sobre a população se torna possível
com o desenvolvimento da estatística, que permite a descoberta de uma regularidade
em fenômenos aparentemente irregulares como acidentes, doenças, mortes,
nascimentos, etc., verificando-se que essa regularidade pode ser observada e alterada
através do manuseio de outros dados da realidade – como a circulação dos ares e águas,
a alimentação disponível, medidas de saneamento, a circulação das riquezas, etc.
Assim as sociedades de segurança não interditam ou prescrevem a respeito do desejo
da população, mas manipulam os objetos e condições desse desejo, conduzindo-o na
direção pretendida.
Desse modo entra no campo das técnicas de poder uma população cuja natureza
pode ser regulada indiretamente, através de dispositivos de segurança que incidem
54
sobre o meio em que ela se encontra, promovendo uma normalização a partir da
atuação sobre elementos da própria realidade, mas respeitando a sua natureza
específica. Com o desenvolvimento da noção de população, em vez de um conjunto de
indivíduos com suas condutas de obediência ou revolta, o objeto de incidência do poder
passa ser a espécie humana, de um lado, e o público, do outro: o homem passa a se
revelar para o campo político como população, não só em sua inserção biológica
primeira (como espécie), mas também na natureza menos biológica de suas opiniões,
comportamentos, hábitos, temores, exigências (como público), em uma biopolítica das
populações. Assim aparece o biopoder, forma específica por meio da qual o dispositivo
de segurança se torna capaz de regular a população em sua naturalidade, assegurando a
sobrevivência da espécie através de cuidados com o seu meio de vida, e obtendo do
público os comportamentos e opiniões esperados através de campanhas públicas e
programas de educação. Nas palavras de Foucault:
*GG!G
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GH
+?3@#6@*A)AE/OO2
,,
Compreende-se, então, como a formação das sociedades de segurança promove a
estruturação de uma forma de poder centrada o mais no corpo do indivíduo, mas no
corpo-espécie e no corpo-público das populações. Ou seja, não apenas no “corpo
transpassado pela mecânica do ser vivo e como suporte dos processos biológicos”,
como havia escrito Foucault em 1976 (VS:131), mas também no corpo como ponto de
origem de processos biológicos, comportamentos e opiniões que fazem com que a
população se conduza de uma determinada forma e não de outra, determinando as
curvas de normalidade dos fenômenos que se passam em seu interior. Esses processos
biológicos e formas de comportamento são assumidos mediante uma série de
intervenções e controles reguladores que os alteram a partir de outros elementos da
realidade, procurando obter, “pelo equilíbrio global, algo como uma homeostase: a
segurança do conjunto em relação aos seus perigos internos” (FOUCAULT, EDS:297).
22
“A população é, portanto, tudo o que se estende desde o enraizamento biológico da espécie até a superfície
de tomada pelo poder oferecida pelo público. Da espécie ao público se tem todo um campo de realidades
novas, realidades novas no sentido de que elas são, para os mecanismos de poder, os elementos pertinentes, o
espaço pertinente no interior do qual e a propósito do qual se deve agir” (tradução livre).
55
Percebe-se que se trata de uma nova forma de combate ao inimigo interno. Não
mais interdição e exclusão; não mais prescrição abstrata de condutas; a partir de agora
o combate ao inimigo interno se dá indiretamente, através de ações sobre a realidade do
meio em que ele se encontra e que, respeitando a naturalidade de seus processos vitais
e comportamentos espontâneos, manipulam os elementos que os condicionam de modo
a obter os resultados desejados. O dispositivo de poder da sociedade de segurança sabe
que o inimigo interno, fator de fraqueza do Estado e risco para a população como
espécie biológica (a fome, um vírus) e como público (comportamentos como o furto, o
voto em branco, o uso de drogas, determinadas práticas sexuais), jamais pode ser
totalmente eliminado. Até porque, mesmo que a eliminação total fosse possível, o seu
custo seria maior que o custo da tolerância. Entretanto, esse inimigo pode ser regulado,
equilibrado e reduzido a índices aceitáveis, de modo a garantir a segurança da
população e o permanente crescimento das forças do Estado. Como precisa Foucault:
6      '     
         
     %  
H'
   
      " 
    4 4 
+?3@#6@*A%B)/,;<2
Fica claro, agora, o motivo pelo qual o estado de sítio decretado pelo primeiro-
ministro do país imaginário de José Saramago estava, desde o início, fadado ao
fracasso
23
. O inimigo representado pelo voto em branco age como um ‘fenômeno
natural’, com seus próprios movimentos e leis de transformação, contra os quais a
vontade do soberano é impotente. Dessa forma, não pode ser combatido sob a forma
soberana da interdição ou sob a forma disciplinar da prescrição, mas apenas regulado
biopoliticamente, submetido a índices de normalidade que tornem possível a
convivência com esse fenômeno sem que o crescimento das forças do Estado seja por
ele afetado. A sociedade de segurança não deseja e nem precisa eliminar
completamente os seus inimigos internos; ela pode conviver com eles em homeostase,
submetendo-os a índices toleráveis de equilíbrio que conservem a segurança da
sociedade contra os perigos e riscos que eles representam. Para desempenhar essa
23
Ver supra, p. 2.
56
tarefa, utiliza-se de um conjunto de instrumentos que intensificam os seus resultados,
contribuindo para a prática da normalização biopolítica: trata-se dos ‘instrumentos de
segurança’, que serão analisados a seguir.
2.2.3 Os instrumentos do dispositivo de segurança
É preciso reconhecer que, na verdade, em nenhum momento Foucault se dedica a
analisar detalhadamente os instrumentos de que se utiliza o dispositivo de segurança
para promover a regulação biopolítica apesar do exame minucioso que havia feito
dos instrumentos de disciplina
24
. Certamente isso é conseqüência do deslocamento
metodológico que havia realizado ao iniciar o estudo sobre o biopoder: desde o curso
de 1978, Sécurité, Territoire, Population, o interesse primeiro de Foucault não era
mais fazer uma genealogia do poder, mas, através de uma genealogia da
governamentalidade, realizar uma história do Estado a partir de análises microscópicas
e locais. Através dessa experiência de método o filósofo pretendia escapar da ontologia
circular que faz a história do Estado sempre a partir do próprio Estado, procurando
compreendê-lo como um conjunto de práticas, estratégias e táticas esparsas a que se
um sentido geral e que produzem resultados globais. A sugestão de Foucault é que se
possa, no lugar de partir do universal do Estado para compreender um conjunto de
práticas concretas e locais, partir das práticas concretas e inserir o universal do Estado
em seu quadro de inteligibilidade pois o Estado o passa do efeito móvel de um
regime de governamentalidades múltiplas
25
. Esse objetivo é explicado por Foucault:
3G&'G!$ !H
  & $  G  ! !
   *G G   *G   $
!  G        G 
  F    F    F 
G+?3@#6@*A)AE/,;,2
,0

Desse modo, o estudo sobre a sociedade de segurança jamais chega a ser
propriamente uma genealogia do biopoder. Trata-se de uma genealogia da
24
Principalmente em Vigiar e Punir (FOUCAULT, VP) – ver supra, p. 25.
25
L’État, ce n’est rien d’autre que l’effet mobile d’un régime de gouvernementalités multiples” (FOUCAULT,
NB:79)
26
“Não se pode falar do Estado-coisa como se fosse um ser se desenvolvendo a partir de si mesmo e se
impondo por uma mecânica espontânea e automática aos indivíduos. O Estado é uma prática. O Estado não
pode ser dissociado do conjunto das práticas que fizeram efetivamente com que ele se tornasse um modo de
governar, um modo de fazer, um modo de se relacionar com o governo” (tradução livre).
57
governamentalidade moderna, no interior da qual o exame da sociedade de segurança e
da biopolítica não passa de um capítulo. Por esse motivo Foucault não se preocupa,
nesse curso, em exaurir o tema do biopoder, mas apenas em examinar o necessário para
compreender a forma de governamentalidade característica da sociedade de segurança.
É outra a situação em Naissance de la Biopolitique. Como indica o próprio título do
curso, a intenção era realizar, nele, uma genealogia da biopolítica, similar à que
havia sido feita para a sociedade disciplinar. Porém, para Foucault esse estudo
poderia ser feito sob a condição de que se compreendesse a biopolítica como parte de
algo maior, como um elemento no interior de uma forma de governamentalidade que
assume um critério de verdade como princípio de auto-limitação de suas ações o
liberalismo. Logo na primeira aula do curso Foucault deixa clara a sua estratégia de
abordagem do tema, que parte da governamentalidade moderna como pressuposto para
a compreensão da biopolítica:
(G!!(G
F G!
FP5 
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! !!
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Todavia, não é isso o que acontece. O próprio Foucault reconhece, no resumo
redigido para o Annuaire do Collège de France, que “o curso deste ano foi finalmente
dedicado, em sua totalidade, ao que devia constituir apenas a introdução” (FOUCAULT,
RC:89). O fato é que na aula de 7 de março de 1979, após passar dois terços do curso
falando apenas sobre o liberalismo, Foucault decide abandonar a genealogia da
biopolítica que pretendia fazer e resolve dedicar o curso inteiramente ao estudo da
27
“Eu havia pensado em fazer, este ano, um curso sobre a biopolítica. Eu tentaria lhes mostrar como todos os
problemas que eu tento assinalar atualmente, como todos esses problemas têm por núcleo central [...] a
população [...]. Mas me parece que a análise da biopolítica não pode ser feita aque se tenha compreendido
o regime geral dessa razão governamental de que eu lhes falo, esse regime geral que se pode denominar a
questão da verdade, primeiramente da verdade econômica no interior da razão governamental, e, por
conseguinte, se se compreende bem de quê se trata nesse regime que é o liberalismo [...]. Apenas após a
compreensão desse regime governamental denominado liberalismo é que será possível, me parece, saber o
que é a biopolítica” (tradução livre).
58
governamentalidade liberal (três aulas para o liberalismo, quatro aulas para o
neoliberalismo alemão, uma aula para o neoliberalismo francês, e outras quatro aulas
para o neoliberalismo americano):
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
Assim, também nesse curso a biopolítica acaba se tornando um tema apenas
incidental, o que torna necessário ler nas entrelinhas as relações entre a
governamentalidade liberal e a biopolítica, e o modo como se relacionam na sociedade
de segurança. Dessa forma, aliando-se as opções metodológicas realizadas por Foucault
nos dois cursos, a assistematicidade e falta de tempo características do magistério se
comparado com o ato de redigir um livro, e o caráter experimental inerente aos cursos
do Collège de France
29
, o fato é que em nenhuma das obras publicadas de Foucault
encontramos um estudo aprofundado sobre os instrumentos do biopoder na sociedade
de segurança. O máximo a que se chega são referências sobre a importância da
estatística e da noção de população para o desenvolvimento do dispositivo de
segurança, e alusões esparsas ao papel desempenhado pelas regulamentações e
28
“Eu desejo lhes assegurar, apesar de tudo, que eu realmente tinha a intenção, no início, de lhes falar de
biopolítica; mas depois, as coisas sendo como elas são, eis que eu acabei falando por muito tempo sobre o
neoliberalismo [...]. Se eu falei tão longamente sobre o neoliberalismo, e pior ainda, sobre o neoliberalismo
sob a forma alemã, é claro que a razão o era porque eu quisesse retraçar o background’ histórico ou
teórico da democracia cristã alemã [...]. Era antes de tudo por razões de método, porque eu queria [...] ver
qual o conteúdo concreto que se poderia dar à análise das relações de poder – subentendido, claro [...], que o
poder não pode de modo algum ser considerado nem como um princípio em si, nem como tendo um valor
explicativo a priori” (tradução livre).
29
Como observa Márcio Fonseca, esse caráter experimental se deve, em parte, ao tipo de ensino proposto
pelo Collège de France, em que o professor deve desenvolver uma pesquisa inédita durante o ano e
apresentar os seus resultados sob a forma de um curso ao final do período. Além disso, o próprio Foucault
“explora a fundo essa condição de pesquisador e faz dos cursos um ‘lugar de experimentação’, de elaboração
de hipóteses de trabalho, de elaboração de noções e até de conceitos que serão retomados, aprofundados ou
mesmo abandonados em outros momentos” (M. FONSECA, 2002:65).
59
políticas de seguridade social
30
na organização de um dispositivo de poder que incide
sobre a materialidade da vida.
A estatística e o conceito de população foram examinados nos itens anteriores
31
,
e não podem ser considerados instrumentos do dispositivo de segurança. Não porque
não sejam importantes, mas porque sua função não pode ser reduzida à de simples
instrumentos da regulação biopolítica. O desenvolvimento da estatística e a noção de
população são condições de possibilidade do desenvolvimento da sociedade de
segurança, são o que torna possível o exercício de uma biopolítica. É a estatística que
permite vislumbrar um campo de naturalidade próprio aos fenômenos do Estado e
compreender a sua regularidade, e é em função da noção de população que se torna
possível o desenvolvimento de uma forma completamente nova de exercício do poder
sobre a vida. Estatística e população não são instrumentos de segurança, mas táticas
das quais se serve o dispositivo de segurança para abordar de um modo específico a
realidade e exercer sobre ela a normalização biopolítica.
Tampouco as políticas de seguridade social podem ser consideradas instrumentos
de segurança. Os “mecanismos mais sutis” de seguros, poupança e seguridade
mencionados por Foucault o na verdade o substrato material através do qual se
exerce o biopoder, e apesar de contribuírem para a veiculação da biopolítica que os
coloniza, não passam de produtos do seu exercício. Tomá-los como instrumentos do
dispositivo de segurança seria equivalente a tomar instituições como a prisão, o
hospital e a fábrica como instrumentos do poder disciplinar, quando o que realmente
importa são as práticas de exame, sanção normalizadora e vigilância hierárquica que se
exercem em seu interior e as estruturam de acordo com o diagrama Panóptico.
É claro que as instituições também têm a sua importância. Afinal, se a sociedade
disciplinar depende da formação de uma ampla rede institucional de seqüestro para o
seu correto funcionamento
32
, também a sociedade de segurança depende de uma rede
de programas de seguridade para a manipulação do meio por práticas de normalização
30
Como no seguinte trecho: “É em relação a estes fenômenos que essa biopolítica vai introduzir não somente
instituições de assistência (que existem faz muito tempo), mas mecanismos muito mais sutis,
economicamente muito mais racionais do que a grande assistência, a um tempo maciça e lacunar, que era
essencialmente vinculada à Igreja. Vamos ter mecanismos mais sutis, mais racionais de seguros, de poupança
individual e coletiva, de seguridade, etc.” (FOUCAULT, EDS:291).
31
Ver supra, p. 51-53.
32
Ver supra, p. 17.
60
biopolítica. Contudo, como as instituições de seqüestro, também os programas de
seguridade o instrumentalizados, e não instrumentos ao menos não no sentido de
“práticas através das quais se torna possível o exercício do poder”, como são o exame,
a sanção normalizadora e a vigilância hierárquica. Mais importantes que as instituições
através das quais se manifesta o biopoder é o conjunto de elementos operatórios que
contribuem para a sua expansão e facilitam a normalização biopolítica; por essa razão,
se quisermos realmente compreender como se exerce o biopoder na sociedade de
segurança, é necessário aprofundar o estudo e descobrir, nas práticas que atravessam a
rede de seguridade social mas não se confundem com ela, os instrumentos da regulação
biopolítica.
Para fazer isso, porém, será necessário seguir o conselho de Foucault e “fazer
ranger” o seu pensamento, deformando-o para adequá-lo convenientemente aos
propósitos desta pesquisa
33
. Isso porque, por mais que se procure, mesmo nas
entrelinhas dos textos, o fato é que Foucault simplesmente não estudou os instrumentos
de segurança da mesma forma como estudou os instrumentos disciplinares, o que faz
com que qualquer afirmação a esse respeito lhe possa ser atribuída como
extrapolação de suas reflexões.
Não obstante, ao utilizar como exemplo as práticas de combate à varíola no século
XVIII para compreender as características específicas da normalização na sociedade de
segurança (FOUCAULT, STP:62), Foucault percebe que com a prática da vacinação se
desenvolve um conjunto de elementos operatórios que contribuem de forma decisiva
para a extensão dos dispositivos de segurança. É preciso ressaltar que, ao fazer
referência a esses elementos, Foucault está preocupado unicamente em examinar as
formas de combate a epidemias na sociedade de segurança, e apenas com o objetivo de
facilitar a compreensão das diferenças entre a normação disciplinar e a normalização de
33
Nesse sentido o comentário de Foucault a respeito de Nietzsche: “as pessoas de que eu gosto, eu as utilizo.
A única marca de reconhecimento que se pode testemunhar a um pensamento como o de Nietzsche é
precisamente utilizá-lo, deformá-lo, fazê-lo ranger, gritar. Agora, que os comentadores digam se somos ou
não fiéis, isso o tem nenhum interesse” (FOUCAULT, DEIV:174). Também este trecho, logo após uma
análise sobre a concepção de conhecimento de Nietzsche: “mas, antes, eu gostaria de responder a uma
possível objeção: ‘tudo isso é muito bonito mas não está em Nietzsche; foi seu delírio, sua obsessão de
encontrar em toda parte relações de poder, em introduzir essa dimensão do político até na história do
conhecimento ou na história da verdade, que lhe fez acreditar que Nietzsche dizia isso’. Eu responderia duas
coisas. Primeiramente, tomei este texto de Nietzsche em função de meus interesses, não para mostrar que era
essa a concepção nietzscheana do conhecimento [...]” (FOUCAULT, VFJ:23).
61
segurança
34
. No entanto, como a presente dissertação tem por objeto principal
justamente as formas de combate a epidemias na sociedade de segurança, os elementos
mencionados incidentalmente por Foucault assumem uma relevância que inicialmente
não tinham, pois passam a poder ser analisados como instrumentos operatórios da
segurança, nessas práticas. Desse modo, aproveitamos um parafuso solto do
pensamento foucaultiano para, com ele, encaixar outra engrenagem no mecanismo, o
que permitirá compreender mais precisamente o modo de funcionamento da sociedade
de segurança.
O primeiro elemento operatório analisado por Foucault é a noção de caso (STP:62).
No século XVII a medicina enxergava a doença como tendo uma relação substancial
com um país, uma região, um clima ou um grupo de pessoas, em uma relação massiva
e global entre o mal e um local determinado. Mas a partir do século XVIII, quando se
passa a fazer análises quantitativas de sucesso e insucesso, calculando-se as chances de
morte e contaminação para grupos sociais específicos, a doença deixa de aparecer
nessa relação massiva com um lugar e se torna uma distribuição de casos em uma
população circunscrita no tempo ou no espaço. A noção de caso permite tratar a doença
no nível da população, pois integra fenômenos individuais no interior de um campo
coletivo, coletivizando-os por meio da quantificação; graças a ela o dispositivo de
segurança se torna capaz de intervir indiretamente sobre a população, através da
manipulação direta dos casos individuais.
Além disso, se a noção de caso faz com que a doença seja acessível
simultaneamente no nível do indivíduo e no vel do grupo a que ele pertence, torna-se
possível verificar, a propósito de cada indivíduo ou grupo individualizado, qual é o
risco de ficar doente, de morrer ou de ser curado. Pela análise da distribuição dos casos
em uma população, e examinando as regularidades existentes nos casos de morbidade,
mortalidade e cura, pode-se descobrir quais são os ‘fatores de risco’ que aumentam ou
diminuem as chances de sucesso do indivíduo contra a doença. Este elemento
operatório permite estabelecer para cada indivíduo, dada a sua idade, o local onde
mora, profissão, comportamento, etc., a partir da comparação de suas características
pessoais com as regularidades observadas na população, a probabilidade de contrair a
34
Ver supra, p. 51.
62
doença ou se curar. Assim se torna possível estabelecer margens de segurança para a
doença, promovendo a normalização biopolítica na população, tomando em
consideração as características específicas de cada indivíduo ou grupo diferenciado.
Percebe-se, portanto, que o lculo dos riscos mostra que eles não são os mesmos
para todos os indivíduos. O risco de contrair a doença varia de acordo com as
características de cada indivíduo ou grupo, de acordo com a sua idade, com a sua
condição de saúde, com o local onde se encontra, com o seu comportamento. Em suma,
há riscos diferenciais que fazem aparecer zonas de risco mais ou menos elevado,
descobertas a partir das regularidades naturais observadas na população, o que dá
origem ao terceiro instrumento de manipulação biopolítica: a noção de perigo. Com a
noção de perigo a sociedade de segurança pode estabelecer níveis de risco aceitáveis e
inaceitáveis, e a partir deles agir sobre a realidade de modo a reduzir os veis de risco
inaceitáveis (perigosos). Para contrair o vírus da AIDS, por exemplo, várias formas
de conduta que geram um determinado risco: manter relações sexuais, receber
tratamento médico intra-venoso, e até mesmo beijos, caso haja contato com sangue
contaminado; estes, todavia, são riscos pequenos e aceitáveis, com os quais a sociedade
pode conviver tranqüilamente, e cujo custo de eliminação seria muito maior que o de
tolerância. Mas outras condutas que geram riscos inaceitáveis de contaminação,
condutas ‘perigosas’ como não utilizar preservativos, ser usuário de drogas injetáveis,
ter um comportamento promíscuo ou manter relações homossexuais
35
; é contra essas
condutas perigosas que o dispositivo de segurança se mobiliza, agindo sobre a
população como espécie e como público, de modo a regular suas condutas (por
exemplo com campanhas pela utilização de preservativos) e organismos (por exemplo
reduzindo a carga viral dos ‘casos’ e diminuindo as chances de contaminação),
promovendo a normalização biopolítica para conservar os riscos em um patamar
aceitável.
E finalmente, pode-se verificar sob a categoria mais geral da epidemia
determinados fenômenos de aceleração e multiplicação que fazem com que a
proliferação da doença, em um determinado momento e local, aumente os riscos de
35
Estes elementos serão mais bem analisados na parte dois desta dissertação, inclusive as transformações por
que tem passado a AIDS nos últimos vinte anos o que inclui o fato de ter deixado de ser uma ‘doença de
homossexuais’, por exemplo. Ver infra, p. 173 e p. 180.
63
multiplicar os casos, que irão se multiplicar em outros, e assim por diante, em uma
tendência incontrolável e impossível de ser interrompida. A crise é esse fenômeno de
aceleração circular que não se consegue interromper, tornando necessária uma
intervenção artificial sobre o meio que, regulando indiretamente um mecanismo
superior, natural e enigmático, possa promover o retorno a níveis aceitáveis de risco.
Trata-se de fenômenos que se produzem de maneira regular e se interrompem de
maneira regular, de acordo com mecanismos naturais que o inacessíveis à
manipulação direta pela governamentalidade. Mas embora sejam diretamente
inacessíveis, esses mecanismos podem sofrer uma intervenção indireta do dispositivo
de segurança, que ao jogar uns contra os outros os diversos elementos da realidade se
torna capaz de antecipar os fatores naturais aptos a interromper a crise, assegurando o
retorno à normalidade. A noção de crise diz respeito a esse risco de contaminação
global e desenfreada, exigindo uma ação rápida do governo para modificar os fatores
da realidade que a produzem.
Pode-se perceber, portanto, que todos esses conceitos, as noções de caso, risco,
perigo e crise, são elementos operatórios fundamentais para a intervenção do
dispositivo de segurança na realidade. Graças a esses instrumentos se desenvolve uma
nova forma de intervenção, que não tem como objetivo simplesmente anular um
fenômeno ou impedir o seu acontecimento, mas reduzi-lo a veis de risco aceitáveis,
fazendo com que as curvas de normalidades diferenciais se aproximem o máximo
possível da curva de normalidade global – promovendo a regulação biopolítica.
2.2.4 A governamentalidade liberal
Como vimos anteriormente, no ponto de origem da sociedade de segurança estão
as críticas realizadas pela economia política à governamentalidade policial e à razão de
Estado, a partir da metade do século XVIII; essas críticas não substituem a razão de
Estado por outra forma de relação política, mas fornecem ao governo dos homens um
novo conteúdo, instituindo um regime de verdade como princípio de sua auto-limitação
e o submetendo à distinção ‘verdadeiro x falso’
36
. A partir de então a
36
Ver supra, p. 45.
64
governamentalidade passa a ser limitada pela naturalidade própria de suas práticas e
objetos, o que promove uma série de transformações na razão de Estado.
Em primeiro lugar, a sociedade civil passa a aparecer como o campo específico de
naturalidade própria do homem, sendo função do Estado assegurar a sua gestão
adequada (FOUCAULT, STP:357). Nas sociedades de soberania o bom governo era o
que fazia parte de um mundo desejado por Deus e assegurava a naturalidade da ordem
divina; nas sociedades disciplinares, por sua vez, a governamentalidade policial
afirmava a artificialidade absoluta do Estado como ente detentor de uma racionalidade
própria, sendo papel do governante agir sobre essa realidade para aumentar ao ximo
as suas forças. Com o pensamento dos economistas do século XVIII, porém, nasce uma
outra naturalidade, que o é mais a naturalidade do cosmos divino nem a dos
processos da natureza, mas uma naturalidade específica das relações dos homens entre
si, que se revela na medida em que eles coabitam, trocam, trabalham, produzem: é a
naturalidade da sociedade civil, que aparece como o correlativo necessário do Estado e
objeto de que ele deve se ocupar. Essa sociedade civil não é maleável à ação do Estado
como eram os indivíduos da sociedade disciplinar, e o governante será capaz de
geri-la se respeitar a sua natureza, compensando e regulando os elementos da realidade.
Assim, o campo de intervenção da governamentalidade na sociedade de segurança
deixa de ser a ordem divina da natureza primitiva ou a série de sujeitos modeláveis de
acordo com as necessidades do Estado, e se torna a sociedade civil em sua
naturalidade.
Outra transformação importante da razão de Estado é a reivindicação de uma
racionalidade científica pela economia política, que se torna critério de verdade das
ações governamentais e passa a se considerar indispensável para um bom governo
(FOUCAULT, STP:358). A economia política faz com que a governamentalidade
abandone os lculos de força e de diplomacia utilizados pela razão de Estado no
século XVII, substituindo-os por um conhecimento científico com seus próprios
fundamentos, leis de desenvolvimento, todos de pesquisa e regras de prova. Esse
conhecimento científico é autônomo em relação à governamentalidade, o que faz com
que os seus resultados sejam acessíveis a todos, mesmo que não façam parte do
governo. Desse modo, a unidade difusa de uma arte de governar que era
simultaneamente saber e poder, interior à própria razão de Estado, passa a ter seus dois
65
pólos cada vez mais claramente definidos, dando lugar a uma cientificidade que
reclama sua exterioridade e pureza teórica (a economia) e, simultaneamente, reivindica
o direito de ser levada em consideração pelo governo.
Também é fundamental para a formação de uma nova forma de
governamentalidade o aparecimento da população em sua naturalidade intrínseca, com
suas próprias leis de transformação (FOUCAULT, STP:359). Conforme visto
anteriormente
37
, até o advento da sociedade de segurança o problema da população era
pensado apenas em termos de povoamento e despovoamento, ou como coleção de
sujeitos modeláveis pelo governante. A partir de agora a população passa a ser vista
como um conjunto de fenômenos naturais, detentora de uma realidade específica, em
dois sentidos: por um lado, ela tem suas próprias leis de transformação, submetendo-se
a processos naturais que condicionam o seu crescimento e suas movimentações; por
outro, ela é o resultado de conexões naturais estabelecidas entre os indivíduos,
interações não programadas que fazem com que os vínculos existentes entre eles não
sejam aqueles constituídos e desejados pelo Estado, mas ligações naturais, espontâneas
e incontroláveis.
Sendo a população dotada dessa naturalidade incontrolável, o papel do Estado o
pode mais ser o de submeter os indivíduos a sistemas regulamentares de interdições e
prescrições; torna-se necessária a criação de novas formas de intervenção, capazes de
dar conta da dinâmica dos processos naturais a que está sujeita a população. O Estado
passa a ter de respeitar esses processos naturais, manipulando-os indiretamente de
modo a pôr em funcionamento as próprias regulações naturais que lhes são inerentes,
ou, no máximo, criando regulações artificiais que estimulem as naturais sem as desviar
de sua própria natureza. Como afirma Foucault, a partir desse momento será necessário
manipular, suscitar, facilitar, deixar fazer... Em suma, gerir, e não mais regulamentar
38
.
Desse fator decorre uma importante transformação no estatuto da liberdade, que
deixa de ser um direito oponível ao poder e se torna um elemento indispensável à
própria governamentalidade. Afinal, se os mecanismos de segurança não têm por
função intervir sobre a população, mas deixar que os seus processos naturais se
37
Ver supra, p. 52.
38
Il va falloir manipuler, il va falloir susciter, il va falloir faciliter, il va falloir laisser faire, il va falloir,
autrement dit, gérer et non plus réglementer” (FOUCAULT, STP:360).
66
regulem espontaneamente, a integração das liberdades à prática governamental se torna
um imperativo. A partir desse momento, não respeitar a liberdade não é apenas um
abuso de direito em relação à lei, mas principalmente não saber governar como se deve.
A liberdade deixa de ser um direito dos indivíduos contra o soberano e se torna a
tecnologia de poder correlativa dos dispositivos de segurança, que só funcionarão sob a
condição de que se assegure a dinâmica espontânea dos eventos naturais e de seus
processos regulatórios.
Percebe-se que a governamentalidade policial, que nos séculos XVI e XVII havia
apresentado um projeto exaustivo e unitário de polícia, sofre um grande deslocamento.
O projeto unitário se desdobra em múltiplos aspectos, e a partir de agora ele deverá
também se referir a um domínio de naturalidade econômica, gerir as populações e
organizar um sistema jurídico de liberdades, dando ao seu instrumento de intervenção
direta (a polícia) uma função meramente negativa. O dispositivo diplomático-militar se
mantém sem modificações relevantes, mas ao seu lado o projeto clássico da polícia
multiplica suas funções e passa a ser exercido em instituições e mecanismos diferentes:
de um lado, os diversos mecanismos de incitação-regulação dos fenômenos, com a
função de fazer crescer as forças do Estado (economia, gestão das populações, etc.); do
outro, com funções meramente negativas de controle das desordens, a polícia no
sentido moderno – e mais restrito – do termo.
Essas transformações sofridas pela razão de Estado provocam o nascimento de uma
nova forma de governamentalidade. Afinal, a partir desse momento não é mais
possível exercer a governamentalidade diretamente sobre os corpos dos indivíduos,
simplesmente modelando-os em função do arbítrio do soberano e da necessidade do
Estado. A generalização da disciplina e o regulamento permanente do Estado de polícia
são táticas que não condizem com o novo projeto de governo, nem com o propósito de
instaurar uma forma de gestão da população que respeite a naturalidade dos seus
fenômenos e lhe organize um sistema de liberdades. Com a inclusão da questão da
verdade econômica no interior da razão governamental, a governamentalidade policial
é substituída por uma nova governamentalidade, que se impõe limites intrínsecos
formalizados em termos de veridicção. Trata-se do liberalismo, que deve ser
compreendido em sentido amplo, como:
1 *G   G  P      
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A governamentalidade liberal continua tendo o mesmo objetivo da
governamentalidade policial: o crescimento das forças do Estado e a manutenção do
equilíbrio. Contudo, a descoberta da naturalidade dos fenômenos sociais e a instituição
de uma auto-limitação com base nessa naturalidade fazem com que a nova arte de
governar tenha uma série de características específicas, e um modo de funcionamento
distinto da razão de Estado. A revelação do campo de naturalidade próprio do mercado
o transforma em âmbito de formação de verdade, e a partir dessa transformação se
estabelecem novas formas de limitação do exercício do poder político, e novas formas
de compreensão do problema do equilíbrio europeu.
nos séculos XVI e XVII o mercado havia sido constituído pela prática
governamental como objeto privilegiado de intervenção. Mas nesse período o mercado
era compreendido essencialmente como um local de justiça, na medida em que se
deveria assegurar, pelo jogo do mercado e pelas regulamentações do soberano, a
ausência de fraude e a proteção do comprador. O sistema ‘regulamentação - preço justo
- sanção da fraude’ fazia com que o mercado funcionasse, então, essencialmente como
local de jurisdição, devendo aparecer, na troca, a necessária justiça dos preços.
39
Trecho do manuscrito redigido por Foucault para a aula de 10 de janeiro de 1979. Este trecho não foi lido
durante a aula, provavelmente por falta de tempo: 1. [A] aceitação do princípio de que deve haver uma
limitação ao governo, e de que essa limitação não seja simplesmente um direito externo. 2. O liberalismo é
também uma prática: onde encontrar, exatamente, o princípio de limitação do governo e como calcular os
efeitos dessa limitação? 3. O liberalismo é, em um sentido mais estrito, a solução que consiste em limitar ao
máximo as formas e domínios da ão do governo. 4. Enfim, o liberalismo é a organização dos métodos de
transação próprios para definir a limitação das práticas de governo: constituição, parlamento, opinião,
imprensa, comissões, pesquisas” (tradução livre).
68
No século XVIII, porém, por uma série de motivos
40
, o mercado deixa de ser visto
como local de jurisdição, passando a aparecer como resultado de um conjunto de
mecanismos naturais e espontâneos através dos quais se obtém não mais o ‘preço
justo’, mas o ‘preço natural’ que exprime a relação adequada e verdadeira entre o
custo de produção e a extensão da demanda. Na medida em que o mercado é
reconhecido como detentor de uma naturalidade, em vez de se saturá-lo com uma
governamentalidade regulamentar indefinida que atrapalharia a espontaneidade de seus
mecanismos, afirma-se a necessidade de deixá-lo se desenvolver com o mínimo de
intervenções, para que possa formular livremente a sua verdade e a propor como norma
para a prática governamental.
Percebe-se, portanto, que a importância da economia política não está no fato de ela
ter se estabelecido como critério de verdade para a prática governamental, situação a
partir da qual poderia prescrever condutas ao governante; não é isso o que ocorre. A
importância da economia política decorre do fato de ela ter indicado o local onde o
governo deveria encontrar o princípio de verdade de sua prática, fixando o mercado
como espaço de veridicção. Como explica Foucault (NB:33), os preços, na medida em
que dependem dos mecanismos naturais do mercado, estabelecem um critério de
verdade que vai permitir discernir, dentre as práticas governamentais, as corretas e as
errôneas, as verdadeiras e as falsas. Assim, o mercado, que através da troca conecta
todos os fatores naturais de um fenômeno espontâneo (fatores como produção,
necessidade, oferta, demanda, valor, preço, etc.), se torna um local de verificação-
falsificação para a prática governamental. Em outras palavras, graças à economia
política o mecanismo natural do mercado e o preço natural se tornarão os critérios de
verdade da governamentalidade liberal.
40
Foucault não se dedica ao exame exaustivo dos motivos que fizeram com que o mercado se tornasse local
de veridicção, mas enfatiza que essa transformação não pode ser compreendida como mera conseqüência do
desenvolvimento de uma economia mercantil (NB:34). Na verdade, é exatamente nesse momento que
Foucault apresenta as considerações sobre a tarefa da história que foram analisadas no início desta primeira
parte da dissertação (ver supra, p. 11), afirmando que não se deve buscar ‘a’ causa dos fenômenos, mas
apenas mostrar os fatores que fizeram com que um determinado acontecimento fosse possível, tornando-o
inteligível. Seguindo essa recomendação de método, o autor enumera rapidamente alguns elementos que
permitiram a constituição do mercado como local de veridicção no século XVIII: a situação monetária nesse
período, um novo afluxo de ouro, uma relativa constância das moedas, um crescimento econômico e
demográfico contínuo, uma intensificação da produção agrícola, o acesso de técnicos portadores de novos
métodos de reflexão à prática governamental, e a organização teórica dos problemas econômicos
(FOUCAULT, NB:35).
69
Assume relevância, então, a questão de como limitar o exercício do poder político,
modo de assegurar que os mecanismos naturais do mercado e da sociedade civil
promovam espontaneamente a verificação da prática governamental. No regime da
razão de Estado a governamentalidade era, a princípio, ilimitada; tinha, todavia, um
contrapeso na existência de instituições judiciárias e discursos jurídicos que
delineavam os critérios de legitimidade das ações do soberano, e que acabavam
impondo um limite externo às ações regulamentares do Estado de polícia.
A arte liberal de governar do século XVIII funciona de forma diferente, instituindo
uma limitação interna à própria governamentalidade, formulada pela economia política.
Todavia, embora a economia política se desenvolva (a despeito da autonomia científica
que reclama) no interior da prática governamental, essa limitação precisa de uma
roupagem jurídica, o que põe o seguinte problema, percebido por Foucault (NB:39):
como traduzir os mandamentos da economia política em termos de direito público?
Dado que a governamentalidade deve se auto-limitar, como formular essa auto-
limitação em termos jurídicos sem que o governo seja paralisado e sufocado?
Percebe-se que o surgimento da governamentalidade liberal não implica no
desaparecimento do direito como forma de limitação das ações do Estado, mas em um
deslocamento do centro de gravidade do direito público. As limitações prescritas pelo
regime de verdade construído com base na naturalidade do mercado e da sociedade
civil ainda precisam de uma tradução jurídica, mas o problema fundamental do direito
deixa de ser o de encontrar o fundamento de legitimidade da soberania e se torna o de
transcrever em linguagem jurídica os limites naturais de exercício do poder político.
Segundo Foucault, duas vias pelas quais se procura resolver esse problema, no
final do século XVIII: a via jurídico-dedutiva e a via indutiva e residual (NB:41). A via
jurídico-dedutiva (“rousseauísta”, ou revolucionária francesa) consiste em estabelecer
de início os direitos naturais e originários de todo indivíduo para, em seguida, definir
em que condições uma limitação a esses direitos é aceitável. Desse pressuposto se pode
deduzir as fronteiras de competência do governo, estabelecendo o campo de ão do
soberano a partir das possibilidades de limitação dos direitos originários do indivíduo.
A via indutiva e residual (utilitária, ou radical inglesa), por sua vez, o parte do
direito, mas da própria prática governamental, verificando os limites de fato que lhe
podem ser impostos em função de seus objetivos e, a partir desses limites, fixando as
70
áreas em que a regulação do governo seria inútil ou contraditória. Ou seja, os limites da
ação governamental não são definidos a partir dos direitos do indivíduo, mas a partir da
utilidade da própria ação governamental.
Enquanto a via revolucionária concebe a lei como expressão da vontade popular,
em um sistema ‘vontade-lei’, a via radical concebe a lei como o efeito de uma
transação que estabelece uma clivagem entre a esfera de intervenção do poder público
e a esfera de liberdade dos indivíduos, em um sistema ‘independência-lei’. É claro que
essas duas vias distintas, apesar de terem origens diferentes, não se excluem
mutuamente. Não se trata de dois sistemas separados e incompatíveis, mas duas
coerências heterogêneas, que coexistem de forma conflituosa na governamentalidade
liberal, e essa ambigüidade caracteriza todo o liberalismo europeu dos séculos XIX e
XX. Apesar dessa ambigüidade, no entanto, com o passar do tempo o sistema radical se
fortaleceu e provocou uma regressão do sistema revolucionário, o que fez com que o
grande critério de limitação do poder público na sociedade de segurança acabasse
sendo o critério da utilidade individual e coletiva (FOUCAULT, NB:45).
Com a indexação da medida das intervenções do poder público ao princípio da
utilidade temos o segundo ponto de ancoragem da nova razão governamental, ao lado
do critério de veridicção dos processos econômicos. Como Foucault sinteticamente
explica:
 G!'  ! !   ! 
G!'
' !   / H  
       
+?3@#6@*A:9/.02
.1

E a categoria fundamental para manipular estes dois pontos de ancoragem da auto-
limitação da governamentalidade liberal (veridicção pelo mercado e critério utilitário
de limitação) é a noção de interesse, pois o interesse é simultaneamente princípio da
troca e critério de utilidade. Compreende-se, então, a enorme diferença entre a razão de
Estado e o liberalismo: no regime liberal das sociedades de segurança, o interesse que
importa não é mais o interesse do Estado em promover o crescimento constante de suas
41
“Valor de troca e veridicção espontânea dos processos econômicos, medidas de utilidade e jurisdição
interna dos atos do poder público. Troca para as riquezas, utilidade para o poder público: eis o modo como a
razão governamental articula os princípios fundamentais de sua auto-limitação” (tradução livre).
71
forças; trata-se agora de uma relação complexa entre os interesses individuais e
coletivos, que se encontram em um equilíbrio sempre precário e que, se violado, fará
com que as ações do Estado sejam automaticamente consideradas inúteis e ineficazes.
O governo liberal é essencialmente um governo sobre os interesses; ele não pode agir
diretamente sobre as pessoas e coisas, como o Estado de polícia, mas apenas
compensar e estabilizar o equilíbrio precário da relação entre os interesses do indivíduo
e os interesses da coletividade. De acordo com Foucault:
*G'!!G!$
  G   G   
    $  !!! H  ! !  
 *     ! G  
 '  G  H G      '  *
GG!
'!!!$+?3@#6@*A:9/.;2
.,
Finalmente, a razão governamental liberal também compreende de forma específica
o problema do equilíbrio europeu. Para o mercantilismo característico do Estado de
Polícia, a concorrência internacional entre Estados era marcada pela noção de que na
mesma medida em que um dos Estados enriquecia, os demais empobreciam, em um
jogo de soma zero
43
. É para evitar que apenas um ganhe que se decide estabelecer um
equilíbrio internacional, em uma proporção de forças que torna possível tanto aos
Estados mais fracos quanto aos mais fortes interromper esse jogo concorrencial e
reestabilizar a relação a qualquer momento.
Na governamentalidade liberal se pensa de forma diferente: os efeitos benéficos da
concorrência o são desigualmente repartidos entre os Estados, pois o jogo legítimo
da concorrência conduz necessariamente a um duplo ganho, e o enriquecimento de um
país só pode se manter a longo prazo pelo enriquecimento mútuo de todos os
envolvidos no jogo econômico. Logo, não se trata mais da Europa imperial herdeira de
Roma, nem da Europa clássica do equilíbrio de forças entre os Estados; trata-se de uma
42
“A inserção dessa película fenomenal do interesse como constituindo a única superfície de intervenção
possível do governo, é isso que explica essas mutações, que devem ser referidas à reorganização da razão
governamental. O governo em seu novo regime é, no fundo, algo que não se exerce mais sobre os sujeitos e
sobre as coisas. O governo vai se exercer sobre o que se pode denominar a república fenomenal dos
interesses” (tradução livre).
43
Ver supra, p. 37.
72
Europa do enriquecimento coletivo, que depende da concorrência permanente entre os
Estados para manter o seu progresso econômico ilimitado.
Mas essa nova noção de equilíbrio conduz à mundialização do mercado, pois é a
abertura do mercado mundial que vai permitir que o jogo econômico não seja finito, e
que os efeitos conflituosos de um mercado finito sejam evitados. Para assegurar o
desenvolvimento contínuo e ilimitado da Europa a concorrência deve ampliar cada vez
mais o mercado, abrangendo, no limite, o mundo inteiro. E, como percebe Foucault,
essa abertura do jogo econômico sobre o mundo implica em uma diferença de estatuto
entre a Europa e o resto do mundo, que se situa em uma posição de inferioridade em
relação aos países europeus. É o início de um novo tipo de cálculo planetário na prática
governamental européia. No trocadilho intraduzível de Foucault:
#    !     !  
!G%#G&H&
G!G%%!
'    G *    %  G G  
+?3@#6@*A:9/IO2
..
Em suma, a sociedade de segurança é conseqüência, entre inúmeros fatores,
também do surgimento de uma prática de governo que, na medida em que deve
respeitar a naturalidade própria dos fenômenos sobre os quais incide, é consumidora da
liberdade. A arte liberal de governar depende da liberdade dos fenômenos porque é a
própria liberdade que atua como seu regulador, como critério de veridicção dos atos de
governo. Logo, o liberalismo não é o regime governamental que respeita uma esfera de
liberdade preexistente; o liberalismo é um regime governamental que precisa fabricar a
liberdade, suscitando-a e produzindo-a incessantemente, para que possa, por fim,
consumi-la (FOUCAULT, NB:66).
Entretanto, a fabricação da liberdade gera novos riscos e custos secundários, de
modo que o governo é obrigado, ao mesmo tempo em que fabrica a liberdade, a reduzir
o custo da sua fabricação, e é nesse momento que o dispositivo de segurança cumpre
seu importante papel. A segurança consiste justamente no cálculo dos perigos da
liberdade, e os mecanismos de segurança são meios de redução e controle dos perigos
44
“Essa abertura do jogo econômico sobre o mundo implica, evidentemente, em uma diferença de natureza e
de estatuto entre a Europa e o resto do mundo. Quer dizer, de um lado haverá a Europa, os europeus, que
serão os jogadores, e o mundo, bem, o mundo será a aposta. O jogo é na Europa, mas a aposta é o mundo”
(tradução livre). No original em francês fica clara a relação entre jeu (jogo) e enjeu (aposta).
73
representados pela liberdade dos fenômenos naturais (físicos ou populacionais) para o
conjunto da sociedade. As regulamentações e políticas de seguridade social típicas da
sociedade de segurança têm a função de assegurar que os indivíduos e a coletividade
sejam apenas minimamente expostos ao perigo gerado pela liberdade, de modo que ela
possa ser ampliada e ter os seus riscos reduzidos a um nível aceitável não anulados,
mas mantidos em equilíbrio. Em outras palavras, o desenvolvimento da sociedade de
segurança é a resposta necessária a um regime governamental que depende da
liberdade para se manter em funcionamento.
2.3 Crise das Sociedades de Normalização – as sociedades de controle
2.3.1 Formação – o regime de acumulação flexível
Como já havíamos antecipado na introdução do presente trabalho, passamos por um
período de transformações do dispositivo de poder. As instituições típicas da sociedade
de normalização sofrem uma crise cada vez mais acentuada, e novas formas de sujeição
aos poucos substituem os antigos mecanismos disciplinares e biopolíticos de
constituição de sujeitos normalizados.
Foi Gilles Deleuze o primeiro a atentar para essas transformações, traduzindo
magistralmente as incertezas do momento de transição em seu Post-Scriptum sobre as
Sociedades de Controle (1992b): ao afirmar que sociedades disciplinares
45
são aquilo
que não somos, aquilo que estamos deixando para trás
46
, o filósofo francês teve a
habilidade de deixar claro que nos encontramos a meio caminho, na fronteira indistinta
entre duas realidades – uma delas prestes a ser abandonada, mas ainda não inteiramente
superada, e a outra visível no horizonte, mas ainda de forma dúbia e obscura. O
próprio Deleuze prefere atribuir a Michel Foucault a autoria dessa observação
47
, mas
45
Quando Deleuze redigiu esse texto ainda não haviam sido divulgados os cursos de Michel Foucault no
Collège de France. Assim, era desconhecido o refinamento teórico introduzido por Foucault nos anos 70,
quando estabeleceu a distinção entre ‘sociedade disciplinar’ e ‘sociedade de segurança’, como diferentes
formas assumidas pelo gênero ‘sociedade de normalização’. Por essa razão, Deleuze utiliza a expressão
‘sociedade disciplinar’ como sinônimo de ‘sociedade de normalização’.
46
A frase do Post-Scriptum é a seguinte: “as disciplinas, por sua vez, também conheceriam uma crise, em
favor de novas forças que se instalavam lentamente e que se precipitariam depois da Segunda Guerra
mundial: sociedades disciplinares é o que não éramos mais, o que deixávamos de ser” (DELEUZE,
1992b:219).
47
Em entrevista concedida a Antonio Negri, intitulada Controle e Devir, Deleuze afirma que Foucault é
com freqüência considerado como o pensador das sociedades de disciplina, e de sua técnica principal, o
confinamento (não o hospital e a prisão, mas a escola, a brica, a caserna). Porém, de fato, ele é um dos
74
como aponta Hardt, a verdade é que não se encontra em livros, artigos ou entrevistas de
Foucault uma formulação inequívoca sobre as conseqüências da crise da sociedade de
normalização (HARDT, 2000:357).
É claro que Foucault também não deixava de perceber a ocorrência de importantes
transformações nos mecanismos de sujeição. em 1975, em entrevista concedida a
uma revista francesa e publicada no Brasil na coletânea Microfísica do Poder,
observava modificações nas formas como a burguesia se relacionava com a riqueza,
fundamentais para a compreensão desse período de transição:
6 4H4
!QRQ6! 
64
  4      
4
4'
+?3@#6@*A5 E/1NI2
.;
Apenas três anos mais tarde, em 1978, Foucault volta a se pronunciar sobre o tema.
Durante uma entrevista realizada no Japão, publicada no volume IV da edição
brasileira de Ditos e Escritos sob o título A Sociedade Disciplinar em Crise, o filósofo
menciona expressamente a perda de eficácia da disciplina nos países industrializados, o
que poderia conduzir, em um futuro próximo, à crise da sociedade disciplinar. Em suas
palavras:
Y   ! &   
'4E
       
 ' )      
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Y 
 H
      6   
!5 !
'+?3@#6@*AB%R/,0;2
primeiros a dizer que as sociedades disciplinares o aquilo que estamos deixando para trás, o que não
somos” (DELEUZE, 1992a:215 – grifo no original).
48
Em sentido similar a intuição, em entrevista de 1973, de que hoje as pessoas não o mais enquadradas
pela miséria, mas pelo consumo. Tal como no século XIX, mesmo se é sob um outro modelo, elas continuam
capturadas em um sistema de crédito que as obriga (se compraram uma casa, móveis...) a trabalhar todo o
santo dia, a fazer hora extra, a permanecer ligadas” (FOUCAULT, DEIV:67).
75
Percebe-se que apesar de Foucault ter efetivamente indicado direções de pesquisa,
chamando a atenção para a existência de uma transformação em curso nos mecanismos
de poder, não há em sua obra nenhum desenvolvimento teórico consistente dessa
intuição. Logo, é possível afirmar que os escritos de Deleuze sobre a sociedade de
controle são na verdade uma extrapolação das reflexões de Foucault, a formulação
original de uma idéia que sequer havia sido esboçada no pensamento foucaultiano.
O próprio Deleuze, no entanto, também não elabora mais que um rascunho
rudimentar do novo diagrama de poder. Em um artigo que não chega a atingir dez
páginas (DELEUZE, 1992b), o filósofo se limita a constatar a crise das instituições de
confinamento da sociedade disciplinar, descrevendo a substituição do espaço estriado
da sociedade de normalização pelo espaço liso da sociedade de controle. Como
pondera Hardt, o que Deleuze propõe é apenas uma “imagem dessa passagem, uma
imagem sem dúvida bela e poética, mas não suficientemente articulada para nos
permitir compreender essa nova forma de sociedade” (2000:357). Por isso, no presente
capítulo será necessário recorrer a diversos autores, mesmo que não compartilhem das
premissas metodológicas de que parte esta pesquisa, de modo a tentar obter uma visão
mais abrangente da crise da sociedade de normalização. Seguindo a estrutura
estabelecida para os estudos sobre a sociedade disciplinar e a sociedade de segurança,
damos início ao exame da sociedade de controle pela análise do conjunto de fatores que
conduziram ao seu surgimento.
Em seu pequeno Post-Scriptum Deleuze enfatiza o papel desempenhado pelo
desenvolvimento do modo de produção capitalista na instalação da nova tecnologia
política de sujeição
49
(1992b:223). O capitalismo do século XIX era um capitalismo
tipicamente de concentração, para a produção, e de propriedade, e por isso ele erige a
49
A importância atribuída por Deleuze ao desenvolvimento capitalista não deve, contudo, ser vista como
uma determinação da infra-estrutura sobre a superestrutura”. O papel da economia em sua teoria deve ser
compreendido da mesma forma como o próprio Deleuze enxergava o papel da economia nos escritos
foucaultianos em suas palavras: “talvez seja possível fazer corresponder os grandes regimes punitivos a
sistemas de produção. [...] Mas é difícil ver aí uma determinação econômica ‘em última instância’, mesmo se
dotarmos a superestrutura de uma capacidade de reação ou de ação em retorno. Toda a economia, a oficina,
por exemplo, ou a fábrica, pressupõe esses mecanismos de poder agindo, de dentro, sobre os corpos e as
almas, agindo no interior do campo econômico sobre as forças produtivas e as relações de produção. [...] O
que ainda de piramidal na imagem marxista é substituído na micro-análise funcional por uma estreita
imanência na qual os focos de poder e as técnicas disciplinares formam um número equivalente de segmentos
que se articulam uns sobre os outros e através dos quais os indivíduos de uma massa passam ou permanecem,
corpos e almas (família, escola, quartel, fábrica e, se necessário, prisão)” (DELEUZE, 2005:36).
76
fábrica como meio de confinamento por excelência, modelo para espaços concebidos
por analogia como a casa familiar, a escola, a prisão, etc. Mas o desenvolvimento do
capitalismo, a partir de meados do século XX, faz com que os países centrais deixem
de lado as antigas preocupações com a produção, relegada a países de Terceiro Mundo,
e tenham como principal objetivo a formação de mercado consumidor para a sobre-
produção, resultado do sucesso de técnicas disciplinares de aumento da produtividade
como o fordismo e o taylorismo. Como percebe Sibilia, nos últimos cinqüenta anos o
capitalismo vem passando por uma aguda transição, de um regime industrial para um
regime de produção globalizado e s-industrial, e a sobreposição paulatina do capital
financeiro ao capital produtivo vem “impondo a circulação de fluxos ao redor do
planeta em uma tendência generalizada de abstração e virtualização de valores”
(SIBILIA, 2002:25).
Essas transformações tiveram início logo após o final da Segunda Guerra Mundial,
quando a economia retomou o seu ciclo de crescimento e um vasto processo de
internacionalização apresentou novas condições e possibilidades de reprodução ao
capital
50
. Nos vinte anos do pós-guerra a crescente internacionalização fez com que os
principais países capitalistas atravessassem um período de intenso desenvolvimento
econômico, mas no fim dos anos 60 esse crescimento sofria uma desaceleração.
Segundo Benko (2002:115), uma das principais explicações para o fenômeno atribui o
fim do ciclo de crescimento à crise da produção em massa: de acordo com essa
hipótese, o surgimento de uma demanda por maior diversificação e elaboração dos
bens de consumo, aliada ao saturamento dos mercados mais adiantados, provocou uma
estagnação da demanda pelos bens produzidos em série na indústria de massa,
reduzindo drasticamente as taxas de crescimento que haviam sido proporcionadas pelo
fordismo.
Com o declínio do fordismo, o curso da evolução do capitalismo foi modificado.
No final dos anos 70 tornou-se hegemônica a visão segundo a qual a saída da crise
exigia a desregulação, uma maior flexibilidade empresarial e mais confiança no
mercado. A crise da produção de massa gerou um contexto favorável ao
50
Todavia, como aponta Octavio Ianni, o processo de internacionalização se tornou ainda mais forte nos anos
90: com o fim da Guerra Fria as economias do ex-mundo socialista se transformam em novas fronteiras de
negócios, expressando a intensificação das formas de reprodução do capital em escala mundial (IANNI,
1999:56).
77
desenvolvimento de empresas menores e mais flexíveis, empregadoras de uma mão-de-
obra altamente qualificada, e aptas a oferecer bens e serviços diversificados a um
mercado consumidor cada vez mais exigente. A flexibilidade se tornou a principal
característica da era pós-fordista, batizada pelos analistas como um regime de
acumulação flexível” (BENKO, 2002:116).
Além disso, o desaparecimento (ou brutal downsizing) da indústria pesada
indicava a ascensão do capital financeiro como nova fração de classe economicamente
hegemônica. Como explica Benko (2002:120), a facilidade com que se pode reatribuir
ativos financeiros, em comparação com o risco representado pelos ativos corporais, faz
com que o capital que poderia ser reinvestido na indústria e no desenvolvimento seja
investido no próprio sistema financeiro, o que aumenta a participação do capital
financeiro no conjunto da mais-valia e fortalece cada vez mais a própria fração
financeira no seio da classe capitalista. No capitalismo contemporâneo as finanças
dominam a dinâmica econômica, e mesmo as corporações tipicamente industriais têm
suas aplicações financeiras como elemento indispensável no processo de acumulação
de riquezas.
O predomínio do capital financeiro aumenta a fluidez e a flexibilidade do capital, e
o surgimento de redes e circuitos informatizados intensifica ainda mais a velocidade e a
facilidade de sua circulação ao redor do mundo, colocando em crise também a noção
clássica de soberania. Afinal, como percebe Ianni (1999:66), com a moeda nacional se
tornando dependente das variações imprevisíveis da moeda mundial, as condições e
possibilidades da soberania passam a ser limitadas por exigências e interesses de
organizações e corporações transnacionais – únicas instituições capazes de exercer
alguma espécie de controle, ainda que difuso, sobre os movimentos do capital. O
filósofo americano Fredric Jameson desenha uma bela imagem dessa nova fase de
acumulação capitalista:
64D !
 +!2
 "4=K
        
 3 "  4  4  %  
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Ocorre, em suma, durante a segunda metade do século XX, uma rie de
transformações radicais no modo de produção capitalista, que impulsionam a passagem
de um capitalismo baseado na indústria pesada para um capitalismo muito mais flexível
e volátil, baseado no capital financeiro, na prestação de serviços e no manuseio de
informação. Ou, como diria Deleuze, o capitalismo de produção do século XIX
lugar a um capitalismo de sobre-produção, dirigido para o produto, para o consumo e
para o mercado (1992b:224).
Essa transformação, porém, não indica apenas um predomínio econômico do setor
de serviços e informações sobre o setor industrial para usar o jargão marxista, a
transformação não é meramente ‘quantitativa’. Como ressaltam Hardt e Negri
(2004:302), trata-se de uma transformação ‘qualitativa’ do modo de produção, que
altera radicalmente também os outros setores da economia (agricultura e produção
industrial), adaptando-os à predominância dos serviços, da produção informatizada e
do capital financeiro. Os processos de informatização da produção transformam e
redefinem todos os elementos do plano social, inserindo as outras formas de produção
nas redes do novo mercado mundial, sob o domínio da produção informatizada de
serviços. Nas palavras dos filósofos:
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79
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É claro que a transição para uma economia informacional envolve também,
necessariamente, importantes transformações nas formas de produção e trabalho, que
se revestem de novas qualidades e assumem natureza diversa da que até então
possuíam. Os próprios Hardt e Negri analisam essas transformações, mencionando
alguns de seus aspectos mais significantes: a organização toyotista da produção e o
desenvolvimento do trabalho imaterial.
O toyotismo representa uma inversão da estrutura fordista de comunicação entre a
produção e o consumo de mercadorias. O período fordista era marcado pela produção
em massa de bens padronizados para um amplo mercado consumidor, o que mantinha
em um patamar razoavelmente baixo o risco de não haver demanda adequada para as
mercadorias produzidas. Assim, a fábrica o tinha necessidade de manter uma troca
de informações constante com o mercado: um circuito de feedback do consumo para a
produção permitia que mudanças no mercado provocassem alterações na engenharia de
produção, mas devido às estruturas fixas e compartimentalizadas de planejamento e
design, e à rigidez característica das tecnologias e procedimentos das fábricas de
produção em massa, esse circuito de comunicação era restrito e lento (HARDT E NEGRI,
2004:310).
O toyotismo, por sua vez, inverte essa estrutura de comunicação entre a produção e
o consumo, fazendo com que o planejamento da produção se comunique com os
mercados de forma permanente e imediata. Um sistema marcado pela flexibilidade da
produção e pela necessidade de oferecer bens e serviços diversificados a um mercado
consumidor que recusa a ‘estandardização’ (padronização) e exige cada vez mais
‘customização’ (personalização) de produtos não pode ter a mesma confiança no
mercado que tinha o sistema fordista. As fábricas são obrigadas a manter estoque zero
e a produzir mercadorias na medida exata para a demanda dos mercados existentes, o
que se torna possível graças ao advento de novas tecnologias que flexibilizam a
produção, agilizam o transporte e permitem a comunicação global imediata entre as
diversas fases do processo produtivo.
Este modelo envolve não apenas um feedback mais rápido entre produção e
consumo, mas uma efetiva inversão da relação entre esses dois pólos, pois a decisão a
80
respeito da produção vem depois da decisão do mercado sobre o consumo e apenas
como reação a essa decisão. Hardt e Negri chegam a mencionar casos extremos em que
a mercadoria é produzida após ter sido escolhida e paga pelo consumidor
(2004:311). Trata-se, portanto, de um modelo de produção que busca uma
comunicação permanente entre produção e consumo, com a informação
desempenhando um papel central no processo produtivo.
O desenvolvimento do trabalho imaterial representa outro importante aspecto da
nova fase de desenvolvimento do capitalismo. A supremacia do terceiro setor na
economia informacional decorre justamente da relevância dos produtos por ele
fornecidos na atualidade bens imateriais como serviços, produtos culturais,
conhecimento e informação –, e da relevância desses bens imateriais decorre também o
alto valor atribuído ao trabalho imaterial nas sociedades contemporâneas. Contudo, a
revolução gerada no âmbito da produção pelas novas tecnologias de comunicação e
pela informática transformou radicalmente as práticas laborais, fazendo com que elas
se assemelhem cada vez mais ao modelo das tecnologias de informação e
comunicação. Com a crescente informatização de todos os setores da produção,
inclusive dos que produzem bens materiais, o trabalho tende cada vez mais a se tornar
trabalho abstrato.
Como percebem Hardt e Negri (2004:313), se é verdade que mesmo as ferramentas
mais rudimentares já economizavam força de trabalho, e se a apropriação da força de
trabalho pelo capitalista envolve necessariamente uma transformação do trabalho em
trabalho abstrato, é verdade também que os trabalhadores concretos e suas ferramentas
jamais deixaram de se relacionar, de forma pouco flexível, a determinados grupos de
tarefas incomunicáveis – as ferramentas do tecelão, as ferramentas do ferreiro, as
ferramentas do sapateiro, etc. Na atualidade, porém, na mesma medida em que o
computador passa a se apresentar como ferramenta universal para todas as tarefas, o
trabalho concreto se transforma, em todos os ramos de atividades, em mero manuseio
de símbolos abstratos, programação simbólica de instrumentos capazes de realizar a
produção de forma relativamente autônoma.
Surge, então, uma nova divisão do trabalho, não mais entre trabalho material e
trabalho imaterial, mas no interior da própria produção imaterial, entre o trabalho
simbólico criativo baseado na produção de conhecimento e informação (a que se atribui
81
alto valor), e o trabalho simbólico burocrático baseado no manuseio, arquivamento e
processamento de símbolos, dados e textos. E, em ambos os lados da equação, o
trabalho se torna mais e mais abstrato, tornando-se assim mais flexível e de fácil
remanejamento no interior da empresa
51
.
O surgimento desse novo ambiente de produção, radicalmente distinto do fordismo
característico da sociedade de normalização, simultaneamente exige e é possibilitado
por uma transformação nas antigas técnicas de poder. A adaptação da produção e do
trabalho à nova realidade econômica depende do desenvolvimento de uma forma
distinta de combate ao inimigo interno, uma nova tecnologia de sujeição, que substitua
o regime de prescrições pico da sociedade disciplinar por novas técnicas, mais
flexíveis e sutis, e mais aptas a constituir os sujeitos necessários à reorganização da
atividade econômica. ‘Controle’ é o nome do novo monstro (DELEUZE, 1992b:220), e
compreender a sua fisiologia é o objetivo do próximo item da pesquisa.
2.3.2 Funções – o controle
Como procuramos explicar no item anterior, os atributos da forma de poder típica
da sociedade de controle estão indissociavelmente ligados às peculiaridades do regime
de produção dessa sociedade. Os fluxos de controle contínuo que se exercem por
modulações e moldagens auto-deformantes apenas podem ser compreendidos no
contexto do regime de acumulação flexível que caracteriza o sistema de produção da
era pós-industrial.
Por essa razão, assim como Foucault analisou as práticas de poder no interior da
fábrica e da prisão para compreender o funcionamento da disciplina (FOUCAULT, VP),
51
Na verdade, Hardt e Negri subdividem o trabalho imaterial em ‘trabalho imaterial simbólico’ e ‘trabalho
imaterial afetivo’, este envolvendo contato e interações humanas, e gerando “redes, formas comunitárias,
biopoder”, pela produção de bens intangíveis como conforto, bem-estar e satisfação (2004:314). Como o
conceito de biopoder dos autores é bastante distinto do utilizado nesta pesquisa (baseada no conceito de
Michel Foucault), essa subdivisão do trabalho imaterial em ‘simbólico’ e ‘afetivo’ se torna, além de inútil,
confusa. Os autores a realizam apenas com o intuito de apresentar no trabalho afetivo o potencial para “um
tipo de comunismo espontâneo e elementar” (2004:315), construído a partir de um aspecto cooperativo que
lhe seria imanente. Com o respeito que merecem os autores, essa análise parece ser resultado daquele
otimismo ingênuo que, tributário de uma certa visão do marxismo, se obriga a enxergar abstratamente, nas
próprias condições de produção, os rudimentos de uma “cooperação entre os oprimidos” que conduziria
inevitavelmente à libertação do proletariado. O objetivo do presente item da pesquisa é apenas compreender
as características principais do capitalismo de sobre-produção, sendo suficiente para essa tarefa a análise do
trabalho imaterial simbólico, razão pela qual deixamos de lado, neste momento, um estudo mais aprofundado
e complexo sobre o trabalho afetivo e também sobre as possibilidades de resistência a essa forma de poder.
82
nesta seção da pesquisa utilizaremos a estrutura da empresa do final do culo XX
como arquétipo para compreender o modo de funcionamento do controle, que aos
poucos ocupa novos espaços e transforma as práticas de poder também em outras
instituições – o hospital, a escola, a prisão, a família, etc.
Segundo Georges Benko (2002:116), o regime de acumulação flexível se manifesta
na empresa sob três formas: como produção flexível, como estrutura industrial flexível,
e como trabalho flexível. Em todas as três formas percebe-se o gradativo recuo dos
mecanismos disciplinares e de segurança, e a sua progressiva substituição pelas táticas
do dispositivo de controle.
Na esfera das técnicas de produção, a utilização de novas tecnologias permite o
desenvolvimento e a difusão de máquinas e equipamentos mais flexíveis. Com o
desenvolvimento da eletrônica as máquinas especializadas da sociedade industrial
podem ser substituídas por computadores e robôs capazes de efetuar milhares de
operações distintas. Os instrumentos de produção se tornam máquinas inteligentes,
comandadas por computador e programáveis” [ grifos no original] (BENKO, 2002:116),
ferramentas universais aptas a serem utilizadas, com poucas adaptações, em qualquer
setor da produção. Além disso, o desenvolvimento tecnológico possibilita que a
produção seja controlada na medida de sua realização, e que a alocação do trabalho
(cada vez mais abstrato) seja gerida da mesma forma que os estoques e a cadência de
produção.
Isso torna o administrador capaz de modular as características da produção,
adaptando as suas ferramentas às flutuações do mercado consumidor. O ciclo de vida
das máquinas é dissociado do ciclo de vida das mercadorias, pois aquelas podem ser
remoduladas e reutilizadas para a fabricação de novos produtos; ao mesmo tempo, a
possibilidade de alocação imediata do trabalho permite aumentar a intensidade de
utilização das máquinas da oficina. Todos esses fatores reduzem significativamente os
riscos do investimento e aumentam, na mesma medida, o lucro da empresa.
Quanto à flexibilidade das estruturas industriais, trata-se de uma resposta à queda
de rentabilidade dos métodos da produção em massa. Até meados do século XX, os
métodos de produção em massa eram muito mais eficazes do que aqueles utilizados
para a produção de pequenos volumes. De acordo com Benko (2002:118), a maior
eficácia da produção em massa era assegurada tanto pela aceleração do ritmo da
83
produção, quanto pela economia de energia e de gastos fixos que deveriam ser
repetidos a cada etapa, se não fosse integrada a produção. Contudo, apesar de reduzir
os gastos fixos, a integração vertical da produção gera uma inflexibilidade
organizacional, limitando as possibilidades de combinação das diferentes etapas dos
processos de produção.
Essa inflexibilidade organizacional cria diversos problemas para a empresa, na
atualidade. Como afirma Toffler (1997:78), em um momento em que as questões
apresentadas à companhia não são mais limitadas e repetitivas, mas variadas e em
constante transformação, a rigidez estrutural gera uma permanente incompatibilidade
entre as estruturas organizativas existentes e as exigências apresentadas à companhia.
Além disso, a própria noção de produção em escala entra em crise, na medida em que
aumenta a demanda por customização e se identificam novos problemas gerados pela
grande escala, tanto para a sociedade quanto para os acionistas da empresa
(“deseconomias de escala” como problemas de transporte, altos impostos, danos
ambientais, reivindicações trabalhistas, piora na qualidade de vida dos funcionários,
etc. (BENKO, 2002:175)).
Essa conjuntura faz com que a partir dos anos 70 o porte médio dos
estabelecimentos sofra uma forte redução, com a desconcentração da produção em
proveito de empresas menores. Seguindo o conselho dado por Toffler no relatório
secreto sobre o desmembramento da AT&T (gigante americana do setor de
telecomunicações)
52
, as empresas abandonam a organização piramidal baseada na
integração vertical e se organizam sob a forma de “móbiles”: com um núcleo
administrativo atuando como centro de gravidade de uma constelação de pequenas
empresas, subsidiárias, terceirizadas ou franqueadas, que desempenham tarefas
secundárias com muito mais autonomia e mobilidade, podendo se recompor e
reorganizar de acordo com as necessidades e tendências do mercado (TOFFLER,
1997:81). Além disso, a informatização e a reestruturação empresarial permitem a
criação da “fábrica flexível” (BENKO, 2002:179), capaz de fornecer, a baixo custo,
produtos diversificados e especializados de acordo com os diferentes nichos de
52
O relatório, redigido por Toffler nos anos 70 como resultado de um serviço de consultoria prestado à
AT&T, acabou sendo publicado nos anos 80 sob o título A Empresa Flexível (TOFFLER, 1997), e hoje em dia
é um caso clássico para os estudiosos da área de administração de empresas.
84
mercado. O desenvolvimento da tecnologia de produção torna possível fabricar na
mesma linha de montagem diferentes versões do mesmo produto (e até outros
modelos), o que reduz os custos fixos ao distribuí-los por dez produtos diferentes.
A desintegração vertical externaliza os sistemas de produção da empresa e os torna
muito mais flexíveis: os diferentes departamentos organizacionais adquirem maior
independência, e as possibilidades de combinação entre as etapas e setores da produção
aumentam exponencialmente. A multiplicidade de combinações facilita a produção
customizada, reduzindo os seus custos e aumentando a eficiência da empresa.
Finalmente, Benko faz referência às tendências de flexibilidade na esfera do
trabalho, tanto no que se refere à organização do trabalho na empresa (flexibilidade
funcional), quanto no que se refere ao próprio mercado de trabalho (flexibilidade
numérica), ambas associadas a técnicas de modulação dos trabalhadores pela
flexibilidade salarial.
A flexibilidade funcional diz respeito à “capacidade de uma empresa de modular as
tarefas efetuadas por seus empregados em virtude de mudanças na demanda, na
tecnologia ou na política de marketing(BENKO, 2002:120 grifo no original). Para
deter essa capacidade a empresa deve recorrer a um grupo de trabalhadores
qualificados polivalentes, que operem de forma permanente e em tempo integral. Essa
polivalência é permitida pelo alto grau de informatização da produção, que substitui o
trabalho concreto pela manipulação de símbolos abstratos, possibilitando a ampla
movimentação dos trabalhadores entre os diversos setores do processo produtivo. Mas
além da mobilidade no sistema de produção, espera-se desses trabalhadores que sejam
também geograficamente móveis, e facilmente adaptáveis a novos contextos, para a sua
fácil relocação na estrutura da empresa.
a flexibilidade numérica se relaciona com a “facilidade e a rapidez com que as
empresas podem ajustar seus efetivos e o nível dos salários em virtude das flutuações
da demanda, e é também associada às variações de efetivos dos trabalhadores
periféricos” como empregados de subempempreiteiras, trabalhadores independentes
especializados, trabalhadores temporários, empregados com contratos de duração
limitada, e postos facilmente comprimíveis por uma política de não-substituição
(BENKO, 2002:121 grifo no original). Em suma, refere-se à facilidade de demissão e
contratação de empregados, bem como de aumento e redução de seus salários,
85
conforme as necessidades da empresa em um determinado período concreto. É claro
que essa forma de flexibilidade está intimamente relacionada à atual tendência de
flexibilização da legislação trabalhista, bem como a formas ‘não-trabalhistas’ de
obtenção de força de trabalho como terceirização, subcontratação, trabalho temporário,
etc.
Tanto a flexibilidade funcional quanto a flexibilidade numérica se encontram
associadas a estratégias de flexibilidade salarial, “tentativas de equacionamento que
levem em conta a quantidade, o tipo de trabalho e o desempenho de cada trabalhador”
(BENKO, 2002:122). Benko menciona, a título exemplificativo, a fórmula de um
“salário trinômio”, segundo o qual o salário do trabalhador poderia depender
simultaneamente de seu próprio desempenho, de um mínimo legal ou contratualmente
garantido, e dos resultados econômicos da empresa.
Com as diferentes formas de flexibilidade na esfera do trabalho (funcional,
numérica e salarial) a empresa estabelece uma mobilidade permanente que modula
cada trabalhador individualmente, em virtude de suas características pessoais e de sua
capacidade de adaptação às necessidades do processo produtivo. Assim se torna muito
mais fácil relocar a força de trabalho de acordo com as demandas do mercado e as
necessidades particulares da empresa, aumentando o grau de utilização dos
instrumentos de produção e otimizando o aproveitamento da força de trabalho, que
jamais se torna antiquada ou inútil ou, quando isso acontece, pode ser rapidamente
dispensada, ou recompensada apenas na medida da utilidade que tem para o processo
produtivo.
Percebe-se que nessa sociedade o poder disciplinar e o biopoder detêm outro
estatuto, diverso daquele que lhes concedeu a sociedade de normalização. É claro,
como o próprio Foucault observava
53
, que as técnicas disciplinares e de segurança
não desaparecem, simplesmente, da sociedade; contudo, são reterritorializadas,
obrigadas a ocupar novas posições, adequadas à estratégia da nova tecnologia de poder.
Se na sociedade de normalização a disciplina e o biopoder se articulavam
ortogonalmente, cada uma dessas formas de sujeição tendo um foco específico de ação,
na sociedade de controle elas ganham um complemento: com o controle, disciplina e
53
Ver discussão supra, p. 47.
86
biopoder estabelecem uma articulação tridimensional capaz de abranger, além do corpo
individual e do corpo-espécie, também a multiplicidade existente no interior de cada
indivíduo modulável.
Deve-se ressaltar, porém, que as diferentes formas de poder não se relacionam de
forma pacífica. As tendências de flexibilidade e livre movimentação características da
sociedade de controle muitas vezes conflitam com as práticas normalizadoras do
biopoder, e a individualidade disciplinada pode se tornar um empecilho para o regime
de produção pós-fordista
54
.
Aquela individualidade celular, orgânica, genética e combinatória produzida pela
sociedade disciplinar
55
é exatamente o oposto do que se busca produzir com as táticas
de controle. Enquanto a disciplina procura transformar as multidões inúteis e perigosas
em multiplicidades organizadas, o controle deseja criar no próprio sujeito a
multiplicidade. A idéia é que o indivíduo não se limite apenas a ocupar um local fixo
no espaço cercado e quadriculado da disciplina, mas que enxergue a realidade em que
vive como um espaço liso no interior do qual seja capaz de ocupar as mais variadas
posições.
Além disso, o controle não se preocupa com o comportamento dos indivíduos, não
deseja conhecer em detalhes os seus movimentos, nem pretende prescrever a seqüência
de manobras necessárias para se atingir um determinado resultado. Assim como as
máquinas especializadas do fordismo são substituídas pelas máquinas inteligentes e
universais da sociedade pós-industrial, também o indivíduo orgânico da sociedade
disciplinar é substituído por um indivíduo nômade, com liberdade para desempenhar
suas tarefas como desejar, contanto que atinja o resultado desejado. Dessa forma, em
vez de analisar o nimo movimento do indivíduo, o controle se preocupa apenas com
os resultados de suas tarefas, não importando o modo como eles foram obtidos. No
lugar do ‘sujeito-relógio’ da sociedade disciplinar, a sociedade de controle cria para si
54
É muito cedo, ainda, para levantar hipóteses sobre o relacionamento entre disciplina, segurança e controle
em um futuro próximo se o ou não essencialmente incompatíveis, se o controle tende a se espalhar por
toda a sociedade ou se deve permanecer apenas nos espaços que ocupa na atualidade, se ise manifestar de
forma diferente nos países centrais e nas regiões mais pobres, etc. Por ora, basta compreender que vivemos
em um regime de transição, em que essas várias formas de poder convivem e se relacionam, e que esse
relacionamento muitas vezes gera incompatibilidades e conflitos.
55
Para a discussão que se realiza a partir de agora, a respeito das diferenças entre a individualidade
disciplinar e a individualidade de controle, ver a discussão realizada supra – p. 22 e seguintes.
87
um ‘sujeito-computador’, capaz de criar para si os seus próprios atalhos, e alcançar
livremente, não importa por quais caminhos, o resultado desejado.
A sociedade de controle também abandona aquelas táticas de construção de uma
individualidade genética, que procuravam caracterizar os indivíduos de acordo com o
nível em que se encontrassem em uma série para utilizá-los de acordo com esse nível.
Para o controle não existe posição fixa na série, pois os seus vários componentes são
deslizantes e estão em constante movimentação. Enquanto a disciplina gradua as ações
dos indivíduos com tarefas repetitivas (que se desenvolvem em relação a um termo
final, a outros indivíduos e a um determinado percurso), o controle estabelece uma
modulação permanente do indivíduo por meio de tarefas variadas, que se relacionam a
possibilidades múltiplas (não apenas a um termo final), a outros desempenhos do
próprio indivíduo (ele compete consigo mesmo em múltiplas tarefas, o
necessariamente com outros indivíduos na mesma tarefa), e se desenvolvem em
diversos percursos paralelos e igualmente válidos (não se tem apenas um percurso
como padrão de comparação e localização do indivíduo). Assim, no lugar da
individualidade genética da sociedade disciplinar, a sociedade de controle constitui
uma individualidade modulável, de acordo com as diversas tarefas que desempenha e
com os resultados que obtém em cada uma delas.
Finalmente, o controle abandona também a individualidade combinatória da
sociedade disciplinar e a substitui por uma individualidade desarticulada e facilmente
recombinável. Para o regime flexível da sociedade de controle não é conveniente
estabelecer o indivíduo como elemento em uma articulação rígida, pois transformações
do contexto e das necessidades do aparelho em que ele se encontra podem exigir a
destruição dessa articulação e a rearticulação do indivíduo em outro aparelho distinto.
Logo, ele não é definido pelo lugar que ocupa na ordem da multiplicidade, mas pela
multiplicidade de funções que pode desempenhar em diferentes aparelhos e em
diferentes contextos, conforme a necessidade. O que caracteriza o indivíduo não é a sua
articulação em um determinado aparelho (de produção, de ensino, de saúde, etc.), nem
tampouco a sua combinação com outros indivíduos que fazem parte da mesma
articulação, mas justamente a sua capacidade de desarticulação e recombinação.
Em suma, em uma sociedade cuja palavra de ordem é flexibilidade, a
individualidade celular, orgânica, genética e combinatória construída pelo poder
88
disciplinar não tem mais lugar, e as práticas de controle progressivamente a substituem,
nos espaços em que se instalam, por uma nova forma de individualidade: múltipla,
nômade, modulável e desarticulada.
É por essas razões que Deleuze afirma que na sociedade de controle os indivíduos
se tornam dividuais” (1992b:222). As sociedades de normalização funcionavam com
base em dois pólos de incidência do poder o par ‘massa-indivíduo’; assim, o poder
normalizador se manifestava simultaneamente de forma massificante e
individualizante, moldando a individualidade de cada membro da massa e constituindo,
com essas individualidades, um corpo único sobre o qual podia se exercer. O controle
por sua vez, torna o próprio indivíduo divisível, o mais moldando uma
individualidade para cada membro da massa, mas modulando individualidades plurais
e adaptáveis aos mais diversos contextos e situações. Enquanto o homem disciplinado
era um produtor descontínuo de energia, o homem controlado é ondulatório, funciona
em órbita, em um feixe contínuo e incessante. Como diria Baudrillard (1992:36), na
sociedade de controle tudo se torna orbital, “nada mais transcende, mas também não
toca o chão, não tem ancoragem nem referente verdadeiros”. Apenas circula. Tudo o
que, nas sociedades anteriores, visava à superação e à transcendência, ou à
materialidade da vida, deixa de existir unicamente em benefício da circulação. E a
função principal do poder passa a ser manter o indivíduo circulando.
Logo, nas sociedades de controle as formas de sujeição do indivíduo não podem
mais ser interdições, prescrições ou regulações; os instrumentos do poder de controle
são variáveis inseparáveis, que formam um sistema de geometria variável e operam em
linguagem digital, plurívoca e matizada. As sociedades de controle não funcionam por
confinamento, mas por fluxos de controle contínuo e comunicação instantânea, de
modo que as formas de controle jamais terminam. A escola é substituída pela educação
permanente e pelo homeschooling
56
, o trabalho na brica pelo Gleitzeit
57
e pelo
56
O homeschooling, que vem se tornando a cada dia mais popular nos Estados Unidos (onde é legalmente
previsto), é a educação das crianças em casa e na comunidade, com o auxílio dos pais ou de professores
contratados, em substituição à educação formal em uma instituição escolar pública ou privada.
57
O Gleitzeit surgiu na Alemanha, e a expressão tem o significado literal de “tempo deslizante”. Diz respeito
à possibilidade conferida ao trabalhador de escolher o seu próprio horário de trabalho, dividindo-se a jornada
de trabalho em um “tempo medular”, durante o qual o empregado é obrigado a desempenhar o trabalho que
lhe é designado, e um “tempo flexível”, durante o qual o trabalhador escolhe as tarefas a serem
desempenhadas (TOFFLER, 1997:61).
89
trabalho à distância, o encarceramento pelas penas alternativas e pela transação penal, o
confinamento no hospital pelos doentes em potencial dos grupos de risco, etc.
Como ressalta Deleuze, as sociedades de normalização eram baseadas em meios de
confinamento, e os diferentes meios de confinamento por que passava o indivíduo no
decorrer de sua vida eram variáveis independentes. A cada mudança (da família para a
escola; da escola para a brica, ou o exército, ou a prisão; destes para o hospital, etc.)
recomeçava-se novamente do zero, e a linguagem comum a todos esses meios era
analógica. A sociedade de controle tende a deixar de lado os meios de confinamento e
substituí-los por “controlatos”, variações inseparáveis que formam um sistema de
geometria variável, cuja linguagem é numérica (DELEUZE, 1992b:221).
Enquanto os confinamentos são moldes de subjetividades, constituindo sujeitos
adequados à sua utilização como força de trabalho pela fábrica, os controlatos são
modulações, moldagens auto-deformantes que estão em perpétua reconstrução,
constituindo sujeitos facilmente mutáveis e permanentemente em mutação. Assim se
constroem formas de subjetividades mais adequadas à realidade atual, tanto por sua
característica versatilidade, cada vez mais exigida pela empresa contemporânea, quanto
por sua permanente insatisfação, que promove a constante substituição de seus objetos
de desejo e os constitui como sujeitos consumidores. É claro, pois não se deve perder
de vista o fato de que falamos, aqui, também de uma transformação no regime
econômico, da transição de um capitalismo de produção para um capitalismo de
consumo. Nas palavras de Deleuze:
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90
Nesse capitalismo de sobre-produção o é mais o importante disciplinar o
indivíduo ou regular a população. O fundamental não é mais organizar as multidões e
torná-las aproveitáveis no interior da fábrica, aumentar a força útil e reduzir a força
política, como nas sociedades de normalização – este problema já foi superado. O mais
importante é garantir a existência de mercado consumidor para a sobre-produção, e isso
modifica até mesmo as exigências que se faz ao próprio produtor. O sujeito deixa de
ser o ‘produtor confinado’ da sociedade de normalização e se torna, na sociedade de
controle, ‘consumidor endividado’.
Em suma, o controle deve ser compreendido como uma tecnologia que permite
simultaneamente criar consumidores e organizar a produção com base no consumo. De
um lado, diz respeito a essa modulação constante que mantém os indivíduos em
permanente mutação, sempre insatisfeitos, e sempre em busca de novos objetos de
consumo, de modo a criar a demanda necessária para a sobre-produção industrial. De
outro lado, diz respeito à maneira encontrada para reduzir o risco e o custo gerado pelas
novas formas de produção, sem enrijecer a flexibilidade de que a empresa necessita
para assegurar a permanente adaptação às demandas do mercado consumidor. Trata-se,
portanto, de uma forma de poder cuja função é manter a insatisfação do consumidor e
garantir a flexibilidade do trabalhador, sem reduzir os níveis de produtividade e
consumo. Para cumprir essa tarefa o controle é obrigado a se utilizar de novas táticas,
distintas daquelas da sociedade disciplinar e da sociedade de segurança novas formas
de assujeitamento, novos ‘instrumentos de controle’.
2.3.3 Os instrumentos do controle e o diagrama da empresa modular
Nesta seção continuaremos a adotar a estratégia proposta no início do capítulo para
o exame da sociedade de controle: tomar a empresa do final do século XX e início do
século XXI como modelo para a compreensão do funcionamento das novas formas de
assujeitamento e tentar enxergar, nas novas práticas empresariais, as características e
especificidades dos instrumentos de controle. Afinal, da mesma forma que os
instrumentos do poder disciplinar (vigilância hierárquica, sanção normalizadora e
exame) se concretizavam, na fábrica fordista, como ferramentas da organização
91
burocrática, também os instrumentos de controle se concretizam, na empresa flexível,
como ferramentas de uma nova forma de organização: a adhocracia
58
.
A burocracia foi, durante todo o período industrial, a forma dominante de
organização humana. Fundada em uma divisão mecânica de atividades rotineiras,
disciplinada por hierarquias verticais rigidamente escalonadas, era o modo mais
eficiente de se realizar um número limitado de funções repetitivas em um ambiente
previsível como o da sociedade disciplinar. Baseada em instrumentos como a vigilância
hierárquica, a sanção normalizadora e o exame, a organização burocrática era capaz de
manter o controle permanente sobre os indivíduos, normalizando-os em um sistema
comparativo que permitia medir os seus desvios em relação ao padrão fixado e situá-
los de forma adequada no interior da multiplicidade. Organizava, portanto, uma
estrutura piramidal, com um pequeno grupo supervisor no topo, tendo abaixo de si um
desdobramento de departamentos funcionais fixos sob constante vigilância e
normalização
59
.
Como ressalta Toffler, a eficiência desse sistema de hierarquia vertical depende de
dois fatores, sem os quais está fadado ao fracasso: a realimentação de informação densa
e precisa desde a base, e uma relativa homogeneidade nos tipos de decisão requeridos
(TOFFLER, 1997:79). Afinal, se os problemas não forem repetitivos e escassos, e se a
informação a seu respeito não atingir a cúpula que toma as decisões, os administradores
não poderão extrair experiência de seus erros e acertos anteriores. Logo, não serão
capazes de padronizar o sistema de respostas aos problemas existentes, condição
essencial para a eficiência da organização burocrática.
Na sociedade pós-industrial a burocracia tende a perder a eficácia, justamente
porque desaparecem as condições do seu êxito: de um lado, o aumento da
complexidade da sociedade torna necessárias decisões cada vez mais variadas, e os
administradores têm de suportar, ao lado da responsabilidade pelo crescente número de
decisões técnicas, uma sobrecarga de responsabilidades políticas, culturais e sociais
(pois todas elas dizem respeito ao funcionamento da empresa); de outro lado, a
58
Conceito criado por Alvin Toffler (no citado ensaio sobre A Empresa Flexível (1997:65)), que, por essa
razão, terá suas opiniões como principal fonte do estudo a ser realizado neste item.
59
Ou, para usarmos uma imagem mais conhecida dos leitores de Foucault, uma estrutura panóptica, com um
centro de comando circundado por departamentos funcionais periféricos sujeitos à sua vigilância hierárquica
e submetidos ao seu poder sancionador.
92
realimentação informativa da base à cúpula é cada vez mais inadequada, não por sua
baixa densidade, mas justamente porque a imensa variedade de problemas faz com que
o conteúdo que chega ao topo da estrutura seja muito maior do que o administrador é
capaz de assimilar.
Esses fatores, aliados às tendências de flexibilização da produção, da estrutura da
empresa e do trabalho, que por sua vez são conseqüência de transformações mais
profundas no regime de produção da sociedade de controle, exigem uma reformulação
radical da estrutura organizacional não da empresa, mas também de outras
instituições. Assim, a burocracia é aos poucos substituída por uma adhocracia, que se
organiza com um núcleo diretor coordenando o trabalho de numerosas unidades
laborais semi-autônomas e temporárias, capazes de tomar decisões independentemente
de autorização superior, e que existirão e deixarão de existir segundo o ritmo de
transformações no meio ambiente que rodeia a organização ou seja, ad hoc
(TOFFLER, 1997:65). Na organização adhocrática cada componente organizativo é
modular e prescindível, cada unidade troca ações recíprocas com muitas outras por vias
bilaterais não hierárquicas, e as decisões não são mais padronizadas, mas feitas sob
medida para cada um dos novos e variados problemas da sociedade pós-industrial
(TOFFLER, 1997:72).
O próprio Toffler percebia que a organização adhocrática depende, para o seu
funcionamento, da criação de novos tipos de sujeitos, com características muito
diferentes daquelas necessárias para inseri-los na burocracia industrial:
* '  \      '
     J '  P  
KPKP
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P
    "    E
\ P
P'
+A3??*%J1<<O/002
0-

60
“As adhocracias do amanhã irão requerer um conjunto de qualidades humanas totalmente distintas das
atuais. Irão requerer homens e mulheres capazes de aprender rapidamente para poder assimilar
circunstâncias e problemas novos e com grande imaginação para inventar soluções novas. Em suma, o
homem corporativo do amanhã não deverá atuar segundo o regulamento se quiser solucionar problemas que
se dêem pela primeira vez, ou apenas uma vez. Em seu lugar deverá se capacitar para emitir juízos e tomar
93
O sujeito que a sociedade de controle deve constituir para si não é mais aquele
indivíduo disciplinado e cumpridor de prescrições. A sociedade de controle deseja um
sujeito mais autônomo, capaz de resolver problemas com liberdade, e que apenas será
controlado com relação aos resultados de suas ações; deseja, também, um sujeito
modulável, flexível e adaptável, atuando em organizações criadas ad hoc para resolver
problemas locais e temporários; finalmente, a sociedade de controle precisa de um
sujeito que seja capaz de se ‘auto-customizar’, de se transformar de acordo com as
funções que precisa desempenhar em cada situação. E essa individualidade múltipla,
nômade, modulável e desarticulada não pode ser construída com os velhos
instrumentos da disciplina; a sociedade de controle depende de novos instrumentos de
assujeitamento, para a criação de novos tipos de sujeito.
Se a sociedade disicplinar criava os sujeitos de que necessitava através da
vigilância hierárquica, da sanção normalizadora e do exame, podemos iniciar uma
tentativa de análise dos instrumentos do controle, ao menos em caráter exemplificativo
e provisório, a partir de três tendências básicas da empresa adhocrática deste final de
século: o controle de resultados, a sanção moduladora, e a avaliação de desempenho
(que substituem, respectivamente, a vigilância hierárquica, a sanção normalizadora e o
exame).
Pelo controle de resultados se estabelece uma forma de vigilância que,
diferentemente da vigilância hierárquica do poder disciplinar, não é permanente, mas
intermitente. Não se interessa em fiscalizar as minúcias das condutas dos indivíduos
sobre os quais se exerce, preocupando-se apenas com a qualidade do resultado final
que se obtém. Paradoxalmente, essa forma de vigilância intermitente consegue ser
ainda mais contínua do que a vigilância hierárquica, pois embora se preocupe apenas
com os resultados das ações do indivíduo, deixa claro a todo instante que ao final eles
serão avaliados. E, sem prescrever a seqüência de condutas correta para se atingir uma
determinada finalidade, atribui ao próprio indivíduo a responsabilidade por encontrar o
melhor caminho para alcançá-la, obrigando-o a se auto-controlar a cada instante, e a se
questionar permanentemente sobre a eficiência da seqüência de ações por ele escolhida
decisões sobre valores complexos, mais que cumprir mecanicamente ordens provenientes do alto. Em
conseqüência, deve se mostrar disposto a navegar entre diversos cenários organizativos, e se habituar a
trabalhar com um grupo sempre cambiante de colegas” (tradução livre).
94
mesmo que o próprio poder de controle não se interesse pelas fases intermediárias da
tarefa.
Toffler, preocupado em adaptar a estrutura organizacional da AT&T à era pós-
industrial, também assegura a necessidade de se substituir a vigilância hierárquica por
novos instrumentos de controle. No jargão tipicamente otimista dos consultores
empresariais, estabelece entre os dogmas da nova administração pós-industrial que o
trabalho deve ser variado e o repetitivo para quase todos, implicando em sentido de
responsabilidade e estimulando a capacidade do indivíduo para atuar com
discricionariedade, perceptividade e bom senso”
61
.
O sistema de trabalho conhecido como Gleitzeit é um bom exemplo de como as
empresas tendem a substituir a vigilância hierárquica pelo controle de resultados.
Como explicamos anteriormente
62
, a expressão tem o significado literal de tempo
deslizante”, e se refere à possibilidade de o próprio trabalhador escolher o seu horário
de trabalho, dividindo-se a jornada em ‘tempo medular’, durante o qual o empregado
deve realizar o trabalho que lhe é designado, e ‘tempo flexível’, que o trabalhador
utiliza como melhor lhe parecer (TOFFLER, 1997:61). Além disso, nesse sistema o
empregado tem a liberdade de determinar a quantidade de horas que trabalha em cada
mês, ou de acumular horas trabalhadas em um mês e transferi-las ao mês seguinte
quando terá mais tempo livre à sua disposição (sistema de banco de horas).
É claro que essa liberdade de horários e procedimentos tem como contrapartida
rígidas exigências de resultado, com o estabelecimento de metas e níveis de
produtividade que os funcionários o obrigados a atingir mensal ou anualmente.
Com o controle de resultados se torna possível a constituição de um indivíduo muito
mais flexível, com mais autonomia para desempenhar suas tarefas, e com maior
liberdade de movimentação entre os diversos módulos criados ad hoc para a solução de
problemas concretos tudo isso sem que se perca o controle do processo de produção.
Em suma, o controle de resultados permite a combinação de flexibilidade e
produtividade, constituindo para o regime de produção pós-fordista um sujeito mais útil
que o sujeito disciplinado da sociedade de normalização.
61
“El trabajo debe ser variado e no repetitivo para casi toda la gente; además, debe implicar el sentido de la
responsabilidad y estimular la capacidad del individuo para actuar con discreción, perceptividad, e buen
juicio” (TOFFLER, 1997:72 – tradução livre para o português).
62
Ver supra, nota 57.
95
A sanção moduladora, por sua vez, diz respeito ao estabelecimento de premiações
moduladas, individualizadas de acordo com as características pessoais do indivíduo,
além de formas de motivação psicológicas e morais que, combinadas às motivações
econômicas, podem fazer com que a produtividade seja ajustada aos objetivos
estabelecidos para a empresa. Enquanto a sanção normalizadora estabelecia uma
micropenalidade do irrelevante, reduzindo os desvios de conduta em relação a uma
ordem artificialmente criada com o objetivo de restabelecer a homogeneidade entre os
indivíduos, a sanção moduladora desempenha uma função diametralmente oposta:
recompensar e punir os indivíduos de acordo com suas características pessoais,
mantendo a heterogeneidade entre eles.
Toffler também está atento a essa transformação nos instrumentos de poder à
disposição da empresa. O autor percebe que, enquanto os executivos da era fordista
podiam estimular os seus trabalhadores com recompensas econômicas relativamente
uniformes, na era pós-industrial entram em jogo recompensas mais complexas como
satisfação psicológica, crescimento pessoal, incentivos desafiadores, variedade de
atividades, e a sensação de estar fazendo um trabalho moral e socialmente proveitoso.
Por essas razões, afirma que a empresa deve conceber trabalhos feitos sob medida para
as diversas especificações individuais
63
.
O que Toffler não percebe, porém, é que os empregados não exigem essas novas
recompensas apenas por ter sido “ultrapassado o umbral básico da subsistência”
(TOFFLER, 1997:95), mas porque práticas concretas de poder constituíram uma espécie
de sujeito que deve se conduzir dessa forma. O autor, que trata a sanção moduladora
como uma evolução dos tipos de recompensa que a empresa é capaz de fornecer aos
seus funcionários, não enxerga que essa é apenas a contrapartida necessária de um
sistema de controle de resultados construído para assegurar a flexibilidade da produção.
Afinal, se o controle de resultados concede ao indivíduo liberdade na escolha dos
meios para atingir índices de produtividade pré-fixados, é necessário algum tipo de
63
“Mientras que los ejecutivos de la era Vail [Theodore Vail foi um dos fundadores da AT&T, responsável
pela adaptação da empresa ao regime de produção industrial da sociedade disciplinar] podían estimular a los
trabajadores con recompensas económicas relativamente módicas y uniformes, ahora entran en juego unas
motivaciones bastante más complejas. Una vez traspasado el umbral básico de la subsistencia, los empleados
exigen, con insistencia cada vez mayor, satisfacciones psicológicas, crecimiento, alicientes retadores,
variedad y la sensación de estar haciendo un trabajo que sea provechoso moral y socialmente. Por tal razón es
preciso ir concibiendo trabajos hechos a medida para las especificaciones individuales” (TOFFLER, 1997:95).
96
sanção que premie os que alcançaram essas metas e puna os que foram incapazes de
fazê-lo.
É importante que fique claro que o objetivo da sanção moduladora não é
restabelecer a homogeneidade da multiplicidade (como pretendia a sanção
normalizadora). A sanção moduladora não atua para tornar os indivíduos iguais, mas
justamente para, reconhecendo a heterogeneidade entre eles, premiá-los de forma
modulada na medida em que se aproximem das metas estabelecidas. A saão
moduladora não normaliza; ela apenas controla, atribuindo mais ou menos
recompensas para quem obtenha mais ou menos resultados, considerando cada
indivíduo responsável pelo seu próprio desempenho e pelos prêmios que recebe em
troca dele.
A forma mais comum de manifestação da sanção moduladora está na instituição de
salários flexíveis. mencionamos, anteriormente
64
, o exemplo sugerido por Benko de
um salário trinômio, baseado no desempenho individual do trabalhador, em um mínimo
legal ou contratualmente garantido, e nos resultados econômicos da empresa (BENKO,
2002:122). Um exemplo mais extremo é o caso da fabricante de bebidas brasileira
AmBev, citada em reportagem da revista Veja: segundo a repórter Daniela Pinheiro, o
sistema de bônus da empresa faz com que os funcionários disputem por uma
remuneração variável que pode chegar a até quatorze salários a mais por ano sendo
que, de acordo com as regras da empresa, apenas metade dos funcionários irá receber
algum bônus (PINHEIRO, 2006). Percebe-se que a própria estrutura da sanção
moduladora impede a homogeneização; apenas uma parcela dos empregados pode
receber os prêmios, que cumprem a função de estabelecer uma modulação
diferenciadora entre aqueles que atingiram as metas e aqueles que não as atingiram. E
se sabe de antemão que nem todos serão capazes de atingi-las. No mesmo sentido as
novas tendências de participação nos lucros e recebimento de porcentual das vendas,
que recompensam cada um dos trabalhadores na medida de sua produtividade
individual.
Finalmente, a avaliação de desempenho desempenha função paralela à do exame,
unindo o controle de resultados com as premiações moduladas, não para medir os
64
Ver supra, p. 85.
97
desvios dos indivíduos entre si e a sua distribuição na multiplicidade, mas para
classificar os indivíduos de acordo com a medida de sua flexibilidade. Aqueles capazes
de obter os melhores resultados através de métodos livremente escolhidos, além de
serem premiados pela sanção moduladora, são tidos como os mais flexíveis e, portanto,
os mais aptos à livre movimentação entre os diversos departamentos da empresa. Neste
regime de produção marcado pela flexibilidade, é claro que uma maior mobilidade se
tornará sinônimo de mais chances de promoção e, por conseguinte, maiores
recompensas financeiras, psicológicas e morais. A avaliação de desempenho permite a
aplicação da sanção moduladora, localiza o indivíduo nesse ‘índice de flexibilidade’, e
atua como mais um incentivo para que o trabalhador assuma as características de
flexibilidade e mobilidade tão caras ao regime de produção pós-industrial.
Se na sociedade de normalização o indivíduo era uma máquina simples capaz de
realizar mecanicamente uma determinada atividade, na sociedade de controle ele se
torna uma máquina complexa para a realização de tarefas inovadoras, e que deve ser
bem manipulada para que desempenhe suas funções com a maior produtividade
possível. O controle de resultados, a sanção moduladora e a avaliação de desempenho
são justamente as ferramentas necessárias para a manipulação dessas novas
subjetividades; enquanto a disciplina realizava uma divisão celular dos sujeitos
segundo capacidades fixas e permanentes, o controle estabelece uma divisão modular
segundo funções flexíveis e temporárias, em um constante movimento de adaptação
dos sujeitos às constantes transformações do ambiente empresarial.
Desse modo, como sugere Toffler (1997:81), a forma corporativa pós-industrial
deve abandonar a estrutura piramidal hierárquica para assumir uma organização
modular, com um arcabouço leve e semi-permanente responsável pelas funções
principais da empresa, do qual penderá uma grande variedade de módulos pequenos e
temporários, com a estrutura de um ‘móbile’. Esses módulos temporários devem ser
flexíveis, podendo ser movimentados, reduzidos, recompostos ou recombinados em
resposta a transformações eventuais do mundo exterior, o que deverá ser feito com o
auxílio dos instrumentos analisados neste item. E assim como Michel Foucault utilizou
o panóptico de Bentham como modelo do diagrama de poder da sociedade
98
disciplinar
65
, podemos utilizar o esquema da empresa flexível de Atkinson como
modelo do diagrama de poder da sociedade de controle:
Figura 2 - A Empresa Flexível de Atkinson (apud BENKO, 2002:121)
Este esquema nada mais é do que a transcrição, sob a forma de um diagrama, do
modelo da empresa modular descrita por Toffler e analisada nas páginas precedentes.
Em vez de definir um centro fixo a partir do qual se estabelece um campo de vigilância
permanente, como fazia o panóptico, o diagrama de poder da sociedade de controle
estabelece, com seus elementos flutuantes e móveis, uma modulação contínua que
impede a construção de uma estrutura fixa e permanente.
Procurando superar as limitações bidimensionais e estáticas do papel, podemos
tentar imaginar os elementos desconectados do ‘arcabouço nuclear’ (estruturas 1, 4, 5 e
12) como verdadeiramente flutuantes, em uma mobilidade constante, permanentemente
se ajustando às transformações da demanda e às novas formas de produção. Esses
elementos surgem e desaparecem, conectam-se à empresa e depois se desconectam,
movimentam-se livremente ao seu redor, ligam-se como módulos e ocupam os espaços
uns dos outros conforme as necessidades do mercado.
Mas também os elementos mais diretamente ligados ao núcleo central da empresa
não são fixos (estruturas 2, 6, 7, 8, 9, 10, 11); apesar de fundamentais para o seu
funcionamento, são essencialmente flexíveis, podendo ser livremente reduzidos e
65
Ver supra, p. 29.
99
adaptados às novas circunstâncias da realidade. Trata-se de estruturas relativamente
permanentes, na medida em que não podem simplesmente ser descartadas, sob pena de
comprometer o funcionamento da empresa; mas essa permanência o é um obstáculo
para a sua flexibilidade, pois apesar de constantes podem ter seu conteúdo alterado para
se acomodarem a novos contextos.
E, finalmente, tampouco o núcleo central da empresa (item 3) é imutável. Neste
núcleo central se desenvolvem aquelas atividades essenciais e indispensáveis para que
a empresa se mantenha em funcionamento (controle de qualidade, organização do
trabalho, ações sobre o entorno, planejamento, etc. (TOFFLER, 1997:91)), mas elas
também devem ser alteradas conforme as necessidades concretas de uma determinada
situação.
Percebe-se que os diversos departamentos são fechados, não têm ligação com o
núcleo central; essa ligação não é necessária, pois o núcleo não estabelece uma
vigilância contínua sobre suas atividades, como ocorria na estrutura do panóptico. O
núcleo se preocupa apenas com os resultados de cada um dos módulos, e caso eles o
sejam satisfatórios, essas estruturas flutuantes e semi-flutuantes serão simplesmente
extintas ou recombinadas em outras estruturas. Por outro lado, se os resultados forem
bons, a sanção moduladora irá premiar cada departamento na medida de sua
produtividade, e a avaliação de desempenho permitirá medir o índice de flexibilidade
de cada uma delas, aproximando-as ou afastando-as do núcleo central e uma das outras,
conforme as necessidades de mercado, e recompensando-as na mesma medida.
Em suma, no lugar de uma estrutura rígida como o panóptico, em que um ponto
central estabelece uma vigilância permanente sobre a periferia, sancionando cada um
de seus elementos de modo a assegurar a homogeneidade da multiplicidade, a
sociedade de controle estabelece como seu diagrama de poder uma estrutura flexível
como a empresa modular, em que o ponto central apenas controla os resultados de cada
um dos departamentos-módulos estanques, premiando-os de forma modulada na
medida de sua produtividade, com a intenção de manter a heterogeneidade entre eles,
assegurando a competitividade e a facilidade de adaptação às constantes
transformações da sociedade pós-industrial.
100
2.3.4 O Império e a radicalização da governamentalidade liberal
É claro que transformações tão profundas quanto essas que acabamos de analisar
modificam de forma radical também as formas de governo existentes na sociedade.
Michael Hardt
66
se empenha em compreender as transformações políticas relacionadas
à sociedade de controle, tendo em vista principalmente os processos de
enfraquecimento da sociedade civil e a formação do Império como nova ordem
mundial. Segundo o autor, as três principais características dessa nova forma de
organização político-social seriam o declínio do fora, o desenvolvimento de um novo
racismo imperial, e a intensificação dos processos de geração e corrupção de
subjetividades (HARDT, 2000:358).
Em primeiro lugar, Hardt afirma que a passagem da sociedade disciplinar para a
sociedade de controle se caracteriza pelo desmoronamento dos muros que definiam as
instituições, de modo que há cada vez menos distinções entre o dentro e o fora
(2000:358). Essa tendência de apagamento das linhas que separam o dentro e o fora se
manifesta igualmente no âmbito da soberania, pondo em questão a oposição entre
sociedade civil e ordem natural, no âmbito da política, extinguindo a distinção liberal
entre o público e o privado, e no âmbito militar, onde põe fim à era dos conflitos
principais e início a uma era de micro-conflitos que transformam a ação militar
nacional em ações da polícia imperial.
Assim, enquanto a sociedade moderna constrói para si um espaço estriado, fundado
em um jogo dialético entre o dentro e o fora a ele submetido, o espaço da soberania
imperial é liso, isento das divisões binárias das fronteiras modernas. Isso não o torna
isento de conflitos; pelo contrário, o espaço liso da sociedade de controle é atravessado
em todos os sentidos por múltiplas linhas de fissura que o tornam aparentemente
uniforme, substituindo a crise claramente definida da modernidade por uma oni-crise
na estrutura imperial marcada pela hegemonia incontestada de uma só nação
67
(HARDT,
2000:362).
66
Deve-se reconhecer também a participação de Antonio Negri no desenvolvimento dessas idéias, uma vez
que grande parte delas está contida na obra escrita a quatro mãos Império (HARDT E NEGRI, 2004).
67
Em obra inteiramente dedicada à compreensão da noção de Império, Hardt e Negri se esforçam em
ressaltar a especificidade desse conceito em relação à noção de imperialismo que marcou o século XX,
afirmando que o Império que vem se constituindo desde o fim da Guerra Fria, marcado pela posição
privilegiada dos Estados Unidos em relação às demais potências mundiais, se caracteriza “fundamentalmente
pela ausência de fronteiras: o poder exercido pelo Império não tem limites. [...] Em segundo lugar, o conceito
101
O fim do fora revela outra importante característica da sociedade de controle
enumerada por Hardt: a transformação das configurações de racismo e alteridade em
nossas sociedades. Segundo o autor, na sociedade de controle o racismo muda de forma
e estratégia, abandonando a teoria biológica tipicamente moderna em prol de uma
teoria culturalista, que não parte mais do pressuposto de uma diferença ontológica entre
as diversas raças.
O racismo imperial afirma que as raças não são unidades biológicas isoláveis,
considerando as diferenças como efeitos contingentes da história social. Contudo, ao
afirmar a inflexibilidade das culturas e apontar os perigos das misturas culturais,
estabelece uma teoria da segregação que torna impossível a convivência entre as
diferentes culturas. Logo, o ponto de partida não é a superioridade biológica de uma
raça com relação às outras, mas a essencial incompatibilidade entre as diferentes
culturas, que, portadoras de características específicas, tenderiam naturalmente a
assumir posições hierarquicamente distintas no interior da sociedade. “A hierarquia das
diferentes raças é determinada apenas a posteriori, como efeito de suas culturas ou
seja, com base em seu desempenho” (HARDT E NEGRI, 2004:213).
Assim, as noções fixas e biológicas das diferenças entre os povos tendem a se
dissolver em uma multiplicidade amorfa e fluida, atravessada por linhas de conflito e
antagonismo, mas sem que nenhuma delas apareça como fronteira fixa e externa, de
modo que o racismo imperial repousa “no jogo das diferenças e na gestão de
microconflitualidades em uma zona de contínua expansão” (HARDT, 2000:367).
O declínio do fora também modifica as formas de produção social de
subjetividades. A crise das instituições de confinamento faz com que os espaços
fechados em que se produziam subjetividades sejam abertos, estendendo-se a lógica
que funcionava em seu interior para todos os espaços da vida social. Desse modo, o
funcionamento das instituições se torna mais intensivo e disseminado, com a produção
de subjetividades não mais se limitando aos espaços específicos das instituições. E
de Império apresenta-se não como um regime histórico nascido da conquista, e sim como uma ordem que na
realidade suspende a história e dessa forma determina, pela eternidade, o estado de coisas existente. [...] Em
terceiro lugar, o poder de mando do Império funciona em todos os registros da ordem social, descendo às
profundezas do mundo social. [...] O objeto do seu governo é a vida social como um todo, e assim o Império
se apresenta como forma paradigmática do biopoder. Finalmente, apesar de a prática do Império banhar-se
continuamente em sangue, o conceito de Império é sempre dedicado à paz uma paz perpétua e universal
fora da História” (HARDT E NEGRI, 2004:14). Vale relembrar a hipótese de Hardt, segundo a qual a sociedade
de controle mundial seria a forma social assumida por esse novo Império (HARDT, 2000:358)
102
como percebe Hardt, quanto mais as instituições se desregram, melhor elas funcionam.
O controle passa a atuar como uma intensificação da disciplina, permitida pela
permeabilização das fronteiras das instituições, o que gera o fim da distinção entre o
fora e o dentro o sujeito está sempre na família, na escola, na prisão,
independentemente de se encontrar ou não confinado no interior dessas instituições
(HARDT, 2000:369).
Na verdade, esses novos modos de produção de subjetividades constituem o
aspecto mais importante do texto de Hardt, para o estudo que se quer fazer neste item.
Isso porque, embora a análise da forma de organização política da sociedade de
controle também seja importante para compreender a sua governamentalidade, o
essencial é compreender as formas de governo dos homens por ela criadas. O que
caracteriza a especificidade do conceito de governamentalidade no pensamento
foucaultiano é justamente o fato de que o que se governa são homens, e é apenas nesse
sentido que o conceito pode se revelar útil para os objetivos desta pesquisa:
3     ST   G  
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HG!FH
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  '      !  # G
'
0;
+?3@#6@*A)AE/1,02
68
“Percebe-se que essa palavra ‘governar’, antes de adquirir sua significação propriamente política a partir
do século XVI, cobre um imenso domínio semântico que se refere ao deslocamento no espaço, ao
movimento, que se refere à subsistência material, à alimentação, que se refere ao cuidado que se pode prestar
a um indivíduo e à salvação que se pode lhe assegurar, que se refere também ao exercício de um comando, de
uma atividade prescritiva, ao mesmo tempo incessante, zelosa, ativa, e sempre indulgente. Ela se refere ao
domínio que se pode exercer sobre si mesmo e sobre os outros, sobre seu corpo, mas também sobre sua alma
sua maneira de agir. E enfim ela se refere a um comércio, a um processo circular ou a um processo de troca
que passa de um indivíduo a um outro. De todo modo, em todos esses sentidos, uma coisa que aparece
claramente, é o fato de que o se governa jamais um Estado, não se governa jamais um território, o se
governa jamais uma estrutura política. O que se governa são pessoas, são homens, são indivíduos ou
coletividades. [...] O que se governa são os homens” (tradução livre).
103
Apesar de Deleuze não ter se preocupado em elaborar uma teoria sobre o governo
dos homens na sociedade de controle, e apesar de Hardt ter apenas resvalado o tema ao
mencionar as novas formas de produção social de subjetividades, talvez possamos
novamente “fazer ranger o pensamento foucaultiano para encontrar, em seu estudo
sobre a governamentalidade liberal das sociedades de segurança (FOUCAULT, NB),
indícios de características da governamentalidade da sociedade de controle. Partindo da
hipótese (talvez um pouco temerária) de Hardt e Negri de que a sociedade de controle é
a sociedade biopolítica por excelência
69
, podemos tentar precisar um pouco mais o
argumento para compreender a governamentalidade da sociedade de controle não
apenas como a permanência da antiga governamentalidade liberal no presente, mas
como o resultado de uma radicalização da governamentalidade neoliberal. Se essa
hipótese for verdadeira será possível deduzir, a partir da análise do neoliberalismo, um
esboço rudimentar da governamentalidade característica da sociedade de controle.
No capítulo anterior
70
vimos como a governamentalidade liberal se desenvolve com
a instituição de uma auto-limitação, formulada em termos de veridicção, à
governamentalidade policial da sociedade disciplinar. Foucault estuda o liberalismo do
século XVIII com a intenção de compreender a governamentalidade moderna,
verificando que na sociedade de segurança o governo dos homens não atua diretamente
sobre os sujeitos, mas apenas sobre o meio que os circunda. Contudo, no decorrer de
seu estudo sobre o liberalismo o autor decide dar um salto de dois séculos
71
para
69
Segundo os autores, “só a sociedade de controle está apta a adotar o contexto biopolítico como terreno
exclusivo de referência. Na passagem da sociedade disciplinar para a sociedade de controle, um novo
paradigma de poder é realizado, o qual é definido pelas tecnologias que reconhecem a sociedade como o
reino do biopoder” (HARDT E NEGRI, 2004:43). A afirmação é questionável, pois parte de um conceito
impreciso de biopoder, compreendido apenas como uma espécie de poder que se exerce sobre a vida. É claro
que essa definição é insuficiente; afinal, o poder soberano, o poder disciplinar e o poder de controle também
se exercem sobre a vida. O que os diferencia entre si, e o elemento a partir do qual Foucault cria esses
conceitos não é o objeto sobre o qual o poder incide (a vida), mas a maneira como o poder incide sobre esses
objetos. Afinal, o próprio Foucault afirma que o que de essencial em todo poder é que seu ponto de
aplicação é sempre, em última instância, o corpo. Todo poder é físico, e entre o corpo e o poder político
uma ligação direta” (tradução de Eduardo Brandão, na edição brasileira do curso O Poder Psiquiátrico
FOUCAULT, 2006:19) ce qu’il y a d’essentiel dans tout pouvoir, c’est que son point d’application, c’est
toujours, em dernière instance, le corps. Tout pouvoir est physique, et il y a entre le corps et le pouvoir
politique un branchement direct” (FOUCAULT, PP:15).
70
Ver supra, p. 63.
71
Je vous avais indiqué quelques-uns de ce qui me paraît être les caractères en qualquer sorte premiers de
la gouvernementalité libérale telle qu’elle apparaît au milieu du XVIII
e
siècle. Je vais donc faire un saut de
deux siècles, car je n’ai pas la prétention de vous faire bien sûr l’histoire globale, générale et continue du
liberalisme du XVIII
e
au XX
e
siècle. Je voudrais simplement, à partir même de la manière dont se programme
la gouvernementalité liberale actuellement, essayer de repérer et d’éclairer un certain nombre de problèmes
104
analisar, em meados do século XX, uma crise de governamentalidade que põe os
problemas do governo dos homens sob uma nova perspectiva:
_  'G  4 
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P'K'
` H QRRR
F PH G! G
G'  ' &$  ` %    
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+?3@#6@*A:9/O;2
O,

É justamente nesse contexto de crise da governamentalidade liberal, entre os anos
40 e 50, que tem início o lento processo de formação da sociedade de controle; por essa
razão, a sugestão de que talvez possamos encarar a governamentalidade neoliberal
como a manifestação embrionária de algumas das características de sua
governamentalidade não é totalmente desprovida de fundamento.
De acordo com Foucault, a crise por que passa a governamentalidade liberal desde
o final da Segunda Guerra Mundial diz respeito à necessidade de criação de um novo
princípio de legitimidade do Estado. Tanto em sua vertente alemã quanto em sua
vertente americana
73
, o neoliberalismo se desenvolve em um contexto de crise de
legitimidade do Estado, efetuando a crítica do keynesianismo e do intervencionismo
estatal que caracterizavam o nazismo alemão e o New Deal americano nos anos 20 e 30
(FOUCAULT, NB:80).
A situação alemã era mais grave. Com a derrota dos nazistas na Segunda Guerra, o
Estado alemão havia perdido os fundamentos de sua legitimidade política até então
assegurada por princípios históricos tradicionais e pela manutenção da ordem jurídica
qui ont été récurrents du XVIII
e
au XX
e
siècle(FOUCAULT, NB:80) “Eu lhes indiquei algumas das que me
parecem ser as principais características da governamentalidade liberal tal como ela aparece em meados do
século XVIII. Agora eu farei um salto de dois séculos, pois eu não tenho a pretensão de fazer a história
global, geral e contínua do liberalismo do século XVIII ao século XX. Eu desejo apenas, a partir da maneira
como se programa a governamentalidade liberal na atualidade, tentar esclarecer alguns problemas recorrentes
entre o século XVIII e o século XX” (tradução livre).
72
“Na verdade, essa fobia do Estado, eu o gostaria de falar dela de maneira direta e frontal, pois ela me
parece ser sobretudo um dos maiores sinais dessas crises de governamentalidade de que lhes falava na última
vez [...]. Bem, assim como houve a crítica do despotismo e a fobia do despotismo – enfim, fobia ambígua do
despotismo no final do século XVIII, também em relação ao Estado, hoje em dia, uma fobia talvez
igualmente ambígua. De todo modo, eu gostaria de retomar esse problema do Estado, ou da questão do
Estado, ou da fobia do Estado, a partir da análise dessa governamentalidade de que já lhes falei” (tradução
livre).
73
Os dois principais “pontos de ancoragem” da política neoliberal, segundo Foucault (NB:80).
105
vigente. Isso tornou necessária a busca por um novo princípio de legitimidade, um
elemento capaz de refundar a soberania do Estado, sem que fosse necessário recorrer
aos fundamentos de legitimidade do Estado Nazista. É a liberdade econômica que vai
desempenhar esse papel, de um lado, afirmando o respeito à liberdade individual como
condição de representatividade política do Estado, e de outro, afirmando a livre
participação no mercado como forma de adesão pessoal ao sistema político
(FOUCAULT, NB:85). Na Alemanha do pós-guerra a liberdade econômica se transforma
em fonte de legitimidade jurídica e consenso político; o neoliberalismo é o eixo dessa
nova consciência, acarretando a ruptura com o passado e promovendo a construção de
uma nova ordem política.
O contexto em que se desenvolveu o neoliberalismo americano não é muito
diferente daquele em que se desenvolveu o neoliberalismo alemão. A partir da crítica
do keynesianismo, do New Deal, do Plano Beveridge e dos programas sociais dos
governos Roosevelt, Truman e Johnson, buscava-se refundar a legitimidade política do
Estado baseando-a na liberdade econômica. Todavia, nos Estados Unidos o liberalismo
tem a especificidade de sempre ter sido, desde a sua independência no século XVIII, o
princípio fundador e legitimante da ordem política (FOUCAULT, NB:223).
Percebe-se que as duas vertentes compartilham características que as diferenciam
do liberalismo clássico do culo XVIII. Enquanto no século XVIII o problema do
liberalismo era assegurar a liberdade em um Estado cuja legitimidade não poderia ser
questionada, o problema do neoliberalismo no século XX é legitimar um Estado a ser
criado a partir da liberdade de mercado. Não se trata, mais, apenas de deixar a
economia livre da interferência do Estado, mas de tomá-la como princípio fundador de
sua legitimidade. Nas palavras de Foucault:
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106
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O.

Essas características comuns o podem, porém, obscurecer o fato de que o
liberalismo americano nunca foi limitador do Estado, mas, desde o século XVIII, o seu
fundador. Esta pequena diferença deve ser ressaltada porque faz com que o
neoliberalismo americano, ao se manifestar com novas características no século XX,
gere conseqüências muito mais radicais para a governamentalidade dessa sociedade do
que as ocasionadas pela vertente alemã: é apenas com o neoliberalismo americano que
a idéia da economia como princípio fundador do Estado se manifesta em toda a sua
plenitude, passando a abranger inclusive aspectos não-econômicos da vida social.
Como observa Foucault (NB:224), nos Estados Unidos o liberalismo não é apenas uma
teoria econômica, mas toda uma maneira de ser e de pensar, um esquema de
interpretação não apenas da economia, mas de toda a sociedade; é uma reivindicação
global, multiforme e ambígua, formulada igualmente por setores da direita e da
esquerda, que o tratam não apenas como uma técnica de governo, mas como um modo
de relação entre governantes e governados.
75
O neoliberalismo americano promove, portanto, uma generalização muito mais
radical e ilimitada da forma econômica concorrencial, que se transforma em princípio
de inteligibilidade das relações sociais e dos comportamentos individuais. Assim,
marca o retorno do homo oeconomicus, mas não mais compreendido como aquele
homem que persegue seus interesses e por isso não pode ser tocado pelo poder (como
74
“O problema [proposto no século XVIII] era, com efeito: como, no interior de um Estado dado, e cuja
legitimidade [...] não podia ser questionada [...], era possível dar lugar a uma liberdade de mercado que era
historicamente, que era também juridicamente, algo novo? [...] A resposta dada pelo século XVIII [...]
consistia em dizer: [...] o que vai permitir inserir uma liberdade de mercado no interior da razão de Estado e
no interior do funcionamento do Estado de polícia [...] é simplesmente que [...] este mercado regido pelo
laissez-faire vai ser um princípio de enriquecimento, de crescimento, e por conseguinte de potência para o
Estado.
[...]
O problema proposto [...] em 1945 era: dado [...] um Estado que não existe. Dada a tarefa de fazer existir um
Estado. Como legitimar, de todo modo antecipadamente, este Estado futuro? Como torná-lo aceitável a partir
de uma liberdade econômica que vai, eventualmente, assegurar a sua limitação, e permitir a sua existência?”
(tradução livre).
75
“Le libéralisme, en Amérique, c’est toute une manière d’être et de penser. C’est un type de rapport entre
gouvernants et gouvernés, beaucoup plus qu’une technique des gouvernants à l’egard des gouvernés. [...] Le
libéralisme americain, actuellement, ne se présente pas seulement, ne se présente pas tellement comme une
alternative politique, mais disons que c’est une sorte de revendication globale, multiforme, ambiguë, avec
ancrage à droite et à gauche. C’est également une sorte de foyer utopique qui est toujours réactivé. C’est
aussi une méthode de pensée, une grille d’analyse économique et sociologique ” (FOUCAULT, NB:224).
107
no liberalismo clássico)
76
; o homo oeconomicus do neoliberalismo é aquele que aceita a
realidade e responde sistematicamente às variações do meio, escolhendo racionalmente
os meios necessários para atingir as suas finalidades (FOUCAULT, NB:274). A conduta
individual passa a ser compreendida em termos econômicos, como uma conduta
finalizada que implica a escolha estratégica dos meios necessários para a melhor
alocação possível de recursos raros.
A extensão do quadro de interpretação concorrencial à conduta individual permite
também a análise do trabalho como conduta econômica. De acordo com essa forma de
compreensão do trabalho humano, o salário não deve ser visto como o preço de venda
da força de trabalho, mas como uma renda, obtida pelo trabalhador como produto de
seu capital humano. Assim, o trabalho deixa de ser visto como mercadoria, força de
trabalho abstrata vendida ao capitalista por um determinado tempo, e passa a ser visto
como capital, a partir do qual o trabalhador extrai uma renda com que pode obter os
bens econômicos de que necessita (FOUCAULT, NB:230). A teoria do capital humano
decompõe o trabalho em dois fatores: de um lado, um capital composto pelo conjunto
de fatores físicos e psicológicos, aptidões e competências, que tornam o indivíduo útil;
de outro, uma renda, um fluxo de salários decorrente da utilização do capital de que o
indivíduo dispõe, e com o qual pode prover as suas necessidades.
A substituição da noção de ‘força de trabalho’ por essa noção de ‘capital-
competência’ faz com que o trabalhador deixe de ser visto como indivíduo para ser
visto como empresa; a economia e a sociedade não são mais compostas por indivíduos,
mas por unidades-empresas, detentoras de um capital a partir do qual podem auferir
uma determinada renda. O homo oeconomicus do neoliberalismo não é mais aquele
homem livre para realizar trocas do liberalismo clássico, mas um “empreendedor de si
mesmo” (FOUCAULT, NB:232), sendo ele mesmo seu próprio capital, seu próprio
produtor, e sua própria fonte de rendas. Até mesmo a atividade de consumo é
ressignificada neste contexto, passando a ser vista como a produção da própria
satisfação, o que torna o consumo uma das fases da produção fundamental para a
manutenção do funcionamento desse conjunto de unidades-empresas que compõem a
sociedade.
76
Ver supra, p. 53.
108
Estabelecida essa idéia de que o salário é a renda de um capital humano, e de que
cada indivíduo é, em si, uma unidade-empresa, coloca-se a questão de como fazer com
que esse capital individual seja capaz de produzir mais rendas; afinal, não cada
indivíduo deseja obter mais satisfação, mas também o próprio Estado deseja assegurar
o seu crescimento. Desse modo, através da genética, da educação para a formação de
uma competência-máquina (compreendendo investimentos em família, meio-ambiente,
saúde, etc.), e do investimento na mobilidade dos indivíduos (que aumenta a sua
utilidade), contribui-se para um desenvolvimento cada vez maior do capital humano e,
logo, de sua capacidade de gerar rendas para o indivíduo e para o Estado.
É claro, também para o Estado, pois para os teóricos neoliberais o crescimento das
forças do Estado é fruto da inovação, que pode ser promovida com a melhoria do
capital humano. Por essa razão, na sociedade de segurança era o próprio Estado que se
encarregava dessas tarefas (de investimento na genética, na educação, na mobilidade,
etc.), agindo biopoliticamente sobre o meio para influenciar as ações e estratégias do
homo oeconomicus. Buscava, dessa forma, o aumento do capital humano total da
sociedade, o aumento de suas rendas e, assim, o fortalecimento da sociedade e do
Estado. É por isso que Foucault trata a governamentalidade neoliberal como uma nova
manifestação da governamentalidade liberal da sociedade de segurança, ainda visando
ao crescimento das forças do Estado – apenas de formas diferentes.
A sociedade de controle, porém, parece se caracterizar por uma radicalização da
governamentalidade neoliberal americana e da teoria do capital humano, tratando o
próprio indivíduo como único administrador de sua unidade-empresa. Nessa sociedade
marcada pela lógica da empresa e do consumo cabe ao próprio indivíduo se manter em
um processo constante de melhoria e adaptação, modulando-se de modo a tornar o seu
capital humano mais útil, o que lhe permite obter mais renda para satisfazer suas
necessidades e desejos. Em outras palavras, cabe a cada indivíduo identificar de que
modo ele pode se tornar ‘inimigo’ da sociedade, e agir por conta própria para evitar que
isso aconteça sob pena de não receber a renda correspondente ao capital que possui.
O inimigo da sociedade de controle é o inútil, assim considerado não por ser
preguiçoso, indisciplinado ou algo semelhante, mas por não ter sabido investir o seu
capital humano da forma adequada para satisfazer as necessidades de sua comunidade
(que pode ser a empresa, a escola, a família, o Estado, etc.). E isso o torna incapaz de
109
prover para si mesmo e para o restante da comunidade a renda que poderia ser auferida
de seu capital pessoal.
Dessa forma, se Hardt (2000:369) afirma que o indivíduo nunca sai da escola, da
empresa, do hospital, etc., isso o acontece porque essas instituições o tenham
seqüestrado de forma permanente, nem apenas porque elas tenham se espalhado pelo
corpo social de maneira incontrolável, mas porque a governamentalidade atribui ao
indivíduo, pessoalmente, a responsabilidade pelo desenvolvimento de seu próprio
capital humano. Não é o indivíduo que nunca sai da escola, da empresa e do hospital,
mas a escola, a empresa e o hospital nunca saem do indivíduo, que, obrigado a manter
em constante desenvolvimento o seu capital humano, precisa investi-lo
ininterruptamente em todas essas instituições para obter mais renda. Assim, as formas
de conduta típicas dessas instituições não são mais impostas dentro de seus muros, mas
interiorizadas no comportamento do indivíduo, e a governamentalidade apenas se
ocupa da distribuição dos resultados dos investimentos realizados pelas unidades-
empresas. A avaliação de desempenho parece ser, realmente, o principal instrumento
de poder da sociedade de controle, que cria novas formas de assujeitamento sem
precisar recorrer ao controle minucioso de tarefas da sociedade disciplinar, nem à
interferência sobre o meio da sociedade de segurança.
Nesse contexto, todas as atividades de melhoramento do capital humano se tornam
atividades de consumo, pois o indivíduo é obrigado a consumir serviços de saúde,
educacionais, de desenvolvimento físico e emocional, etc., para manter o
desenvolvimento do grau de utilidade de seu capital humano. E depois, ao obter a renda
que lhe é fornecida por esse capital, utiliza-a para a produção de sua própria satisfação,
voltando a consumir produtos da sociedade pós-industrial. Logo, a sociedade de
controle é essencialmente uma sociedade de consumo, não apenas por causa do
aumento da produção de bens de consumo, mas porque o consumo se tornou um
aspecto fundamental do processo produtivo: seja como melhoramento do capital
humano, seja como produção da satisfação individual ambas atividades essenciais
para que o capital continue se reproduzindo e gerando rendas.
Parece o ser despropositada, portanto, a hipótese que sugerimos neste item, de
que a governamentalidade da sociedade de controle seria uma radicalização da
governamentalidade neoliberal americana (típica da sociedade de segurança). Mas,
110
enquanto na sociedade de segurança o intocável homo oeconomicus ainda era
manipulável por interferências sobre o meio, na sociedade de controle sequer isso
ocorre, e o homo oeconomicus é deixado a si mesmo, para regular constantemente e de
forma autônoma a sua unidade-empresa. A governamentalidade da sociedade de
controle se limita a controlar de forma difusa os resultados das opções de investimento
das unidades-empresa, atribuindo-lhes recompensas de acordo com os resultados de
suas performances segundo o modelo da avaliação de desempenho. Assim, cabe ao
indivíduo investir o seu capital humano da forma que lhe parecer mais rentável, e
manter-se em constante aperfeiçoamento para que o seu capital permaneça útil e capaz
de gerar renda. A imposição dessas obrigações faz com que as subjetividades tendam a
ser produzidas simultaneamente por numerosas instituições, em diferentes doses e
combinações, tornando-se híbridas e moduláveis – o sujeito “é operário fora da fábrica,
estudante fora da escola, detento fora da prisão, insano fora do asilo tudo ao mesmo
tempo. Não pertence a nenhuma identidade e pertence a todas” (HARDT E NEGRI,
2004:353).
111
3 A DISPUTA JURÍDICA PELO BIOPODER
Com a discussão realizada no capítulo anterior parece ter ficado evidente que
passamos, na atualidade, por um período de transição. O modo como se organiza a
nossa sociedade está em crise; já não somos mais o que costumávamos ser, mas
também ainda não fomos capazes de deixar de ser o que éramos para nos tornarmos
algo de diferente. A sociedade de normalização se encontra cercada por vidas e
incertezas, e as práticas normalizadoras de combate ao inimigo interno tendem a ser
gradativamente substituídas por outras mais maleáveis, principalmente naqueles setores
em que aos poucos se desenvolve o regime de acumulação flexível. A relação entre as
novas técnicas de controle e as antigas técnicas disciplinares e biopolíticas ainda é
ambígua, algumas vezes se distinguindo pela marca da complementaridade, outras se
caracterizando por uma oposição frontal que acaba por torná-las incompatíveis.
Incompatíveis ou complementares, originais ou antiquadas, o fato é que a crise da
sociedade de normalização promove uma reestruturação radical da microfísica do
assujeitamento, organizando essas técnicas em uma tecnologia de sujeição cuja
configuração final ainda não pode ser prevista. Não obstante, conquanto seja ainda
muito cedo para apostar com segurança no desfecho do embate, podemos continuar
assistindo ao confronto para tentar extrair, das táticas e estratégias empregadas pelos
contendores, informações que nos auxiliem a compreender a configuração da batalha
neste exato instante. Em outras palavras, o podemos conhecer de antemão o
resultado da luta, mas podemos observá-la de perto para entender o próprio processo de
transformação, renunciando à curiosidade que nos faz querer prever o futuro em troca
de uma compreensão mais acurada do presente em que vivemos. Até porque é isso o
que importa no final das contas: é apenas no presente que adquirem significado as
genealogias do passado e os projetos de futuro, meras tentativas de lhe atribuir novos
significados ou de lhe propor novos rumos de transformação.
E como o direito também faz parte dessa nova realidade, o fenômeno jurídico
apenas pode ser examinado sob a condição de que se decifre o contexto em que ele se
insere; se pode compreender o direito atual a partir da compreensão do processo de
transição que não apenas o modifica, mas também o utiliza como instrumento para
modificar a realidade. Portanto, o estudioso do direito não pode se limitar a analisá-lo
de maneira hipostasiada, como instância sem ligação com a realidade social que o
112
circunda enxergando-o como um conjunto de ‘normas que legitimam normas, que
justificam normas, que dão origem a novas normas’, em um processo infinito de
formação do direito a partir do próprio direito. O direito está irremediavelmente imerso
no tecido social, e apenas pode ser compreendido em relação com as outras formas de
manifestação de poder, que não apenas lhe atribuem uma posição específica na
sociedade de que faz parte como também o colonizam, instrumentalizando-o para o
cumprimento de funções que não estavam explicitamente previstas no texto jurídico.
Dessa forma, por um lado, o estudo sobre o licenciamento compulsório das patentes
de anti-retrovirais torna necessário o estudo realizado no capítulo anterior, sobre a crise
da sociedade de normalização. Sem compreender o contexto em que se situa a proposta
de licenciamento compulsório de anti-retrovirais se torna impossível compreender o
real significado dessa discussão jurídica, que acaba sendo reduzida novamente ao velho
esquema de ‘normas que legitimam normas e se relacionam com outras normas’,
tradicionalmente utilizado na pesquisa jurídica. Por outro lado, também o estudo sobre
a crise da sociedade de normalização exige um exame detido sobre o modo como essas
transformações se manifestam no universo jurídico, pois o direito é, além de preciso
termômetro do curso das transformações, instrumento estratégico que pode ser
utilizado por qualquer das forças em conflito para sobrepujar as demais. Assim, se é
imprescindível examinar o contexto de transição para compreender as transformações
no mundo jurídico, a análise do próprio direito também cumpre um papel essencial na
compreensão do processo de transição, de modo que se faz necessário examiná-lo nas
diversas facetas que ele pode vir a assumir durante os combates: como poder, como
instrumento, como veículo de outras formas de poder, como resistência, etc.
Foi com esse espírito que optamos por nos debruçar, nesta pesquisa, sobre as
recentes propostas de licenciamento compulsório das patentes de anti-retrovirais.
Acreditando na necessidade de se analisar o direito à luz da realidade social em que ele
se insere, e confiando no valor explicativo do direito para a interpretação da sociedade
que o constrói, esperamos que um instrumento jurídico simples como o licenciamento
compulsório possa vir a fornecer elementos úteis para a compreensão da crise da
sociedade de normalização, além de atuar como paradigma das transformações por que
vem passando o próprio direito no presente momento permitindo compreender os
113
diversos modos como o direito se relaciona com o poder e as diversas funções que ele é
capaz de cumprir em nossa sociedade.
Assim, nesta parte da dissertação tomaremos o estudo realizado na parte anterior
(que esclareceu as transformações sociais por que passamos) como pressuposto para
um estudo aprofundado sobre o licenciamento compulsório de anti-retrovirais o
apenas em seus aspectos jurídicos, mas levando-se em consideração também as suas
graves implicações políticas. Encarando as recentes propostas de licenciamento
compulsório de medicamentos através do prisma da crise da sociedade de
normalização, esperamos compreender melhor o papel desempenhado pelo direito
nessa crise, as transformações por que ele tem passado no presente, e os modos como
se relaciona com as forças de sujeição e resistência nesse contexto.
3.1 O Licenciamento Compulsório de Patentes de Anti-retrovirais
3.1.1 O Programa Nacional de DST e AIDS – situando o problema
Conforme o relatório anual do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre
HIV/AIDS, existem no mundo aproximadamente 40 milhões de pessoas vivendo com
HIV ou AIDS, e mais de 90% desse total se encontra em países em desenvolvimento
(UNAIDS, 2004). Desde 1980, quando foi identificado o primeiro caso no Brasil, até
junho de 2005, foram notificados ao Ministério da Saúde aproximadamente 371 mil
casos de AIDS, e estima-se que haja no país, atualmente, cerca de 593 mil pessoas
contaminadas pelo vírus HIV
77
. A despeito de avanços marcantes no tratamento
medicamentoso, a taxa de mortalidade real das pessoas infectadas pelo vírus se
aproxima de 100% (COTRAN, 2000:211).
A infecção por HIV pode ocorrer tanto no sistema imune quanto no sistema
nervoso central, tendo por conseqüência uma imunossupressão profunda que afeta
primariamente a imunidade celular. A imunodeficiência gerada pela infecção leva ao
aparecimento de outras doenças, como infecções oportunistas (protozoonoses,
helmintíases, infecções fúngicas, bacterianas e virais), neoplasias secundárias (como o
sarcoma de Kaposi, o linfoma não-Hodgkin de células B, o linfoma primário do
cérebro e o câncer invasivo do colo uterino) e diversas manifestações neurológicas,
77
Dados obtidos em 19 de abril de 2006, no website oficial do ministério da saúde sobre AIDS, situado no
endereço eletrônico <http://www.aids.gov.br/data/Pages/LUMIS13F4BF21PTBRIE.htm>.
114
clinicamente designadas como ‘complexo de demência da AIDS’. Todos esses
sintomas provocam graves alterações na vida do paciente, o que acarreta conseqüências
até mesmo econômicas: segundo o informe anual de 2004 do Programa das Nações
Unidas para o Desenvolvimento (UNDP, 2004), vinte países estão hoje menos
desenvolvidos do que em 1990 em razão da AIDS; como a doença afeta as pessoas em
seus anos mais produtivos, aqueles países que têm grande parte da população
contaminada são obrigados a tratar o combate à AIDS não apenas como uma questão
de saúde pública, mas também como parte da política de desenvolvimento econômico.
Apesar dos avanços na compreensão do distúrbio desde 1981, e da redução da taxa
de mortalidade pelo uso de combinações de anti-retrovirais, mesmo com a utilização
desses medicamentos o DNA viral permanece nos tecidos linfóides dos pacientes
tratados – ou seja, não há cura. Além disso, análises moleculares revelaram um elevado
grau de polimorfismo nos isolados virais de pacientes diferentes, fator que, aliado à
atual incompreensão da natureza da resposta imune do organismo, torna a criação de
uma vacina extremamente improvável em um futuro próximo (COTRAN, 2000:224).
Dessa maneira, a luta contra a AIDS continua sendo baseada principalmente na
prevenção e em medidas de saúde pública como campanhas educacionais, além da
utilização de drogas anti-retrovirais para a contenção dos efeitos da doença no nível
individual.
São justamente esses os focos de ação do governo brasileiro no combate à
epidemia. Com uma política que procura combinar prevenção, diagnóstico, tratamento
e manutenção da saúde, o Programa Nacional de DST e AIDS atua em diversos frontes,
realizando campanhas educativas de prevenção e mudança de comportamento,
distribuindo preservativos em postos de saúde, fornecendo material de redução de
danos para usuários de drogas injetáveis
78
, e assegurando o acesso a medicamentos. De
todas essas práticas, porém, o acesso universal e gratuito aos medicamentos anti-
retrovirais é a política prioritária do PN – DST/AIDS.
Tudo começou em 1988, quando a rede pública de saúde deu início à distribuição
de medicamentos para infecções oportunistas em pacientes com AIDS. Em 1991
78
O kit de redução de danos’ do Ministério da Saúde para usuários de drogas injetáveis contém duas
seringas, água destilada para injeção, sachê de álcool, um copo de medição e um folder explicativo sobre
redução de danos. Fonte: <http://www.aids.gov.br/data/Pages/LUMIS2472655FPTBRIE.htm>, acessado em
19 de abril de 2006.
115
tornou-se disponível a terapia anti-retroviral, mas apenas a partir de 1996 a distribuição
de medicamentos anti-HIV pelo sistema público de saúde se tornou obrigatória
(GALVÃO, 2002:215). Contrariando recomendações do Banco Mundial, a Lei 9313/96
estabeleceu, em seu art. 1º, o direito dos portadores do HIV e doentes de AIDS a
receber gratuitamente, através do Sistema Único de Saúde, toda a medicação necessária
ao seu tratamento
79
. A lei garante mais que o recomendado pela Organização Mundial
de Saúde, ao assegurar o acesso a medicamentos mesmo aos portadores do HIV que
ainda não tenham manifestado a AIDS clínica (isto é, sintomática) (WHO, 2003).
Apesar das advertências do Banco Mundial, esta estratégia se mostrou não apenas mais
eficaz, com a redução da taxa de mortalidade, mas também poupadora de recursos, pois
o tratamento dos estágios iniciais da AIDS produz muito menos despesas que as
repetidas internações de pacientes em estado grave
80
.
Todavia, mesmo com as inúmeras vantagens que o fornecimento gratuito de anti-
retrovirais gera para a política de saúde e para a política econômica, o custo desses
medicamentos ainda é muito alto. Em 1999 o governo federal gastou 336 milhões de
reais na aquisição de anti-retrovirais suficientes para o tratamento de 75 mil pacientes –
mesmo com a substituição de alguns dos medicamentos do coquetel por genéricos
nacionais, o que havia gerado, no período entre 1997 e 2001, uma economia de 300
milhões de reais. Nessa época, apenas dois dos produtos utilizados (Efavirenz e
Nelfinavir) consumiam sozinhos mais de um terço do total gasto com a compra do
coquetel, que era composto por 14 medicamentos.
Em 2000 o Efavirenz, produzido
pela Merck Sharp & Dohme, respondia por 11% da quantia gasta com o coquetel
antiviral, enquanto os gastos com o medicamento Nelfinavir, da Roche, representavam
28,15% do total dispendido
81
.
Assim, em fevereiro de 2001, buscando reduzir os altos preços dos medicamentos
importados para o coquetel antiviral, o governo federal encomendou ao Instituto de
79
Art. 1º. Os portadores do HIV (vírus da imunodeficiência humana) e doentes de AIDS (Síndrome da
Imunodeficiência Adquirida) receberão, gratuitamente, do Sistema Único de Saúde, toda a medicação
necessária para o seu tratamento”.
80
Entre 1995 e 1999 houve uma queda de aproximadamente 50% na taxa de óbito entre homens portadores
da AIDS no país, e o número de internações por doenças oportunistas sofreu uma redução de 80%, gerando,
apenas no período entre 1997 e 2001, uma economia de 1,1 bilhão de dólares a incidência de tuberculose
foi reduzida em 60%, a de citomegalovírus em 54%, e a de sarcoma de Kaposi em 38%. (MS, 2005).
81
Dados do Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), disponíveis em 15 de setembro de 2003 no
endereço da web <www.inpi.gov.br.htm>.
116
Tecnologia em Fármacos da Fundação Oswaldo Cruz (Far-Manguinhos) a realização
de pesquisas que possibilitassem a sua produção em território nacional.
Simultaneamente, com fundamento no art. 71 da Lei 9279/96
82
e no art. 2
o
do Decreto
3201/99
83
, e com o respaldo do art. 31 do acordo TRIPs
84
, ameaçou conceder a licença
compulsória das patentes desses medicamentos caso os laboratórios não aceitassem
reduzir os seus preços.
A Merck Sharp & Dohme, procurando evitar o licenciamento compulsório, reduziu
o preço do Efavirenz em aproximadamente 70%. Mas, nas palavras do então ministro
da saúde José Serra, “infelizmente o laboratório Roche não teve a mesma
compreensão” (SERRA, 2001c), o que levou a que o governo decidisse, em agosto de
2001, dar início ao processo de concessão de licença compulsória do Nelfinavir. O
Far-Manguinhos/Fiocruz já estava produzindo o medicamento com sucesso, faltando
apenas a realização de testes de bio-equivalência para que ele pudesse ser
comercializado, quando a Roche aceitou reduzir em 40% o seu preço, sendo suspensa a
82
Art. 71. Nos casos de emergência nacional ou interesse público, declarados em ato do Poder Executivo
Federal, desde que o titular da patente ou seu licenciado não atenda a essa necessidade, poderá ser concedida,
de ofício, licença compulsória, temporária e não exclusiva, para a exploração da patente, sem prejuízo dos
direitos do respectivo titular”.
83
Art. 2
o
. Poderá ser concedida, de ofício, licença compulsória de patente, para uso público não-comercial,
nos casos de emergência nacional ou interesse público, assim declarados pelo Poder Público, desde que
constatado que o titular da patente ou seu licenciado não atende a essas necessidades”. O parágrafo do
mesmo artigo considera de interesse público os fatos relacionados à saúde pública, à nutrição, à defesa do
meio ambiente e ao desenvolvimento tecnológico ou sócio-econômico do país.
84
Article 31. Where the law of a Member allows for other use of the subject matter of a patent without the
authorization of the right holder, including use by the government or third parties authorized by the
government, the following provisions shall be respected:
(…)
(b) such use may only be permitted if, prior to such use, the proposed user has made efforts to obtain
authorization from the right holder on reasonable commercial terms and conditions that such efforts have
not been successful within a reasonable period of time. This requirement may be waived by a Member in the
case of national emergency or other circumstances of extreme urgency or in cases of public non-commercial
use. In situations of national emergency or other circumstances of extreme urgency, the right holder shall,
nevertheless, be notified as soon as reasonably practicable. In the case of public non-commercial use, where
the government or contractor, without making a patent search, knows or has demonstrable grounds that a
valid patent is or will be used by or for the government, the right holder shall be informed promptly
(“Artigo 31. Quando a legislação de um Membro permite outro uso do objeto da patente sem a autorização
de seu titular, inclusive o uso pelo Governo ou por terceiros autorizados pelo governo, as seguintes
disposições serão respeitadas: (...) b) esse uso poderá ser permitido se o usuário proposto tiver
previamente buscado obter autorização do titular, em termos e condições comerciais razoáveis, e que esses
esforços não tenham sido bem sucedidos num prazo razoável. Essa condição pode ser dispensada por um
Membro em caso de emergência nacional ou outras circunstâncias de extrema urgência ou em casos de uso
público não-comercial. No caso de uso público não-comercial, quando o Governo ou o contratante sabe ou
tem base demonstrável para saber, sem proceder a uma busca, que uma patente vigente é ou será usada pelo
ou para o Governo, o titular será prontamente informado” – tradução oficial, pelo Decreto 1355/94).
117
produção pelo laboratório estatal segundo Serra, “economicamente saiu mais
vantajoso, porque se a Fiocruz fosse produzir teríamos que pagar royalties, entre 5% e
10% mais que o preço de custo” [grifos no original] (2001d). Após as negociações com
a indústria farmacêutica e o incremento da produção nacional de genéricos, passaram a
ser gastos apenas 250 milhões de reais para o atendimento anual de 110 mil pacientes
uma redução de custos que obviamente permitiu que mais pessoas fossem beneficiadas
pelo programa.
Todavia, os debates ocorridos em 2001 não solucionaram o problema de maneira
definitiva. Apenas quatro anos após as disputas com a Roche e a Merck, a questão do
licenciamento compulsório de patentes de anti-retrovirais retornou à pauta de
discussões, dessa vez em virtude dos altos preços praticados pela Abbott na venda do
medicamento Kaletra (associação dos princípios ativos ritonavir e lopinavir). Em
março de 2005 este medicamento sozinho era responsável pelo gasto de quase 30% do
orçamento anual de 945 milhões de reais de que dispunha o Ministério da Saúde para a
aquisição de anti-retrovirais, consumindo nada menos que 257 milhões desse total. A
persistência dessa situação fez com que o governo chegasse a anunciar, em junho de
2005, o que poderia ter sido o primeiro licenciamento compulsório da patente de um
medicamento na história do país, com o Ministério da Saúde editando portaria em que
declarava o Kaletra um medicamento de interesse público e determinava o seu
licenciamento compulsório. Acreditava-se que no final de 2005, quando fosse iniciada
a sua produção como genérico pelo Far-Manguinhos, o preço unitário do medicamento
seria reduzido de US$ 1,17 para US$ 0,68, acrescidos de royalties equivalentes a 3%
do preço do produto, o que poderia gerar uma economia anual de 130 milhões de reais
aos cofres públicos (CRISTINA, 2005a).
No entanto, as negociações foram retomadas em julho, e em outubro de 2005 o
governo acabou fechando um acordo com a Abbott, que reduziu o preço da cápsula do
Kaletra para 63 centavos de dólar. Nos termos desse acordo
85
, além de reduzir o preço
do medicamento, a Abbott se comprometeu a fornecer durante os seis anos seguintes a
sua versão pediátrica e a disponibilizar, até 2007, a nova formulação Kaletra-Meltrex,
85
O texto do acordo está disponível para consulta no website oficial do governo sobre AIDS, acessado em 19
de abril de 2006: <http://www.aids.gov.br/data/documents/storedDocuments/%7BB8EF5DAF-23AE-4891-
AD36-1903553A3174%7D/%7B132F255F-85A2-4939-8626-0BB7EE507C72%7D/AIDS.BR_.pdf>.
118
que deve reduzir os efeitos adversos para os usuários (NEMETZ, 2005). Em
contrapartida, o Ministério da Saúde se compromete a respeitar a propriedade
intelectual do laboratório sobre os compostos lopinavir e ritonavir princípios ativos
do Kaletra.
A decisão de voltar atrás na proposta de licenciamento compulsório desagradou as
organizações não-governamentais do movimento de combate à AIDS, que
consideraram o acordo um mau negócio; uma das principais críticas se refere ao fato de
o preço do remédio ter sido fixado para os próximos seis anos, sem levar em
consideração que a patente do Kaletra expira em 2011 e que, com a progressiva
aproximação dessa data, o preço seria reduzido de qualquer maneira. Afirmam, além
disso, que os laboratórios nacionais Far-Manguinhos (estatal) e Cristália (privado)
poderiam produzir o medicamento a um custo ainda menor, de apenas 41 centavos de
dólar por cápsula (CRISTINA, 2005b). Não bastasse, o acordo não prevê transferência de
tecnologia para os laboratórios brasileiros ao seu término, com a sua cláusula décima
dispondo expressamente que o laboratório não fornecerá qualquer assistência de
fabricação.
Por esse conjunto de razões, um grupo de oito organizações não-governamentais,
acompanhadas do Ministério Público Federal, decidiu ingressar em de dezembro de
2005 com uma ação civil pública em que requeriam o licenciamento compulsório do
medicamento. A ação ainda não foi julgada, mas o procurador da República Peterson
Pereira afirmou que pretende, caso ela gere bons resultados, propor novas ões
requerendo o licenciamento compulsório do Efavirenz (Merck Sharp & Dohme) e do
Tenofovir (Gilead Science Incorporation), que também já estavam sob a mira do
governo federal (RITTNER, 2005) em março de 2005 o Ministério da Saúde havia
ameaçado requerer a licença compulsória das patentes desses medicamentos, que então
consumiam 30% de seus recursos anuais, mas os laboratórios acabaram chegando a um
acordo sobre a redução dos preços.
Independente de qual venha a ser o resultado da ação civil pública, o fato é que
essas disputas não são questões isoladas, mas parte de uma queda de braço que vem
sendo travada entre o governo federal e as multinacionais farmacêuticas desde o final
dos anos 90, quando o Congresso Nacional deu início à discussão sobre a
patenteabilidade dos medicamentos utilizados no tratamento da AIDS. Em 1999 o
119
deputado Eduardo Jorge (PT/SP) apresentou o projeto de lei 1922/99, que propunha a
inclusão de um inciso IV no art. 18 da Lei de Propriedade Industrial
86
(9279/96),
elencando no rol das matérias o patenteáveis “o medicamento, assim como seu
respectivo processo de obtenção, específico para a prevenção e o tratamento da
Síndrome de Imunodeficiência Adquirida SIDA/AIDS”. O projeto de lei foi
reapresentado por mais duas vezes, em 2001 (PL 4678/01) pelo deputado Aldo Rebelo
(PCdoB/SP), e em 2003 (PL 22/03) pelo deputado Roberto Gouveia (PT/SP), mas
ainda não foi submetido à votação, apenas ateando fogo à infindável polêmica sobre a
patenteabilidade de anti-retrovirais.
E essa polêmica o deve acabar tão cedo, pois o preço dos medicamentos é um
fator essencial para a eficácia do programa nacional de combate à AIDS, e existe uma
tendência muito forte a se encarar a produção nacional de anti-retrovirais como a única
forma de se viabilizar a distribuição universal e gratuita de medicamentos para os
portadores de HIV. Desde o início da vigência do acordo TRIPs no território nacional,
quando o país passou a reconhecer as patentes de produtos farmacêuticos, a aquisição
de medicamentos tem onerado cada vez mais o orçamento destinado à aquisição de
anti-retrovirais, comprometendo a sustentabilidade do PN-DST/AIDS. O custo médio
anual da terapia anti-retroviral, que em 1997 era de 6240 dólares por paciente, e logo
após as negociações de 2001 havia chegado a quase 1300 dólares por paciente, enfrenta
em 2005 uma nova tendência de crescimento, atingindo o valor de 2500 dólares por
paciente em conseqüência da incorporação de novos medicamentos patenteados ao
consenso terapêutico.
86
Art. 18. Não são patenteáveis:
I – o que for contrários à moral, aos bons costumes e à segurança, à ordem e saúde públicas;
II as substâncias, matérias, misturas, elementos ou produtos de qualquer espécie, bem como a modificação
usual de suas propriedades físico-químicas e os respectivos processos de obtenção ou modificação, quando
resultantes da transformação do núcleo atômico; e
III o todo ou parte de seres vivos, exceto os microorganismos transgênicos que atendam aos três requisitos
de patenteabilidade novidade, atividade inventiva e aplicação industrial previstos no art. e que não
sejam mera descoberta”.
120
6240
5486
4603
3464
2210
1500
1359 1336
2500
0
1000
2000
3000
4000
5000
6000
7000
1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005*
Thousands (US$)
Gráfico 1 - Custo médio anual da terapia anti-retroviral no Brasil por paciente/ano (MS, 2005:3)
De acordo com informações recentes do Ministério da Saúde (MS, 2005:4), cerca
de 80% do orçamento anual de 1 bilhão de reais destinados à compra de anti-retrovirais
é consumido com a importação de nove medicamentos patenteados, enquanto apenas
20% desse orçamento é suficiente para a compra dos sete medicamentos de
fabricação nacional
87
. E essa desproporção tende a se agravar: com a ampliação do
atendimento a novos portadores do HIV
88
, o documento citado prevê que o gasto total
para a aquisição universal de apenas três anti-retrovirais patenteados (Efavirenz,
Lopinavir e Tenofovir) deve se elevar substancialmente, passando de 144,57 milhões
de dólares, em 2006, para 247,96 milhões de dólares, em 2011 (MS, 2005:5). Se, além
disso, também for levada em consideração a eventual inclusão de novos medicamentos
ao consenso terapêutico, o custo anual do programa pode vir a se tornar incompatível
com o orçamento de que dispõe o Ministério da Saúde para o combate e o tratamento
da AIDS.
Por todos esses fatores, a estratégia de licenciamento compulsório das patentes dos
medicamentos anti-retrovirais tende a ser mais e mais utilizada, cada vez menos como
instrumento de chantagem e negociação, e cada vez mais com o objetivo real de obter a
87
o distribuídos gratuitamente na rede pública dezesseis anti-retrovirais, dos quais sete são produzidos no
Brasil como genéricos (não apenas pelo Far-Manguinhos/RJ, mas também pelos laboratórios estatais
FURP/SP, LAFEPE/PE, IQUEGO/GO, FUNED/MG e IVB/RJ, além das empresas privadas Nortec, Genvida
e Cristália): didanosina, lamivudina, zidovudina, estavudina, indinavir, ritonavir e nevirapina, além da
associação zidovudina + lamivudina em um mesmo comprimido. Fazem parte do coquetel também os
seguintes medicamentos, protegidos por patentes detidas por multinacionais: abacavir, amprenavir,
atazanavir, efavirenz, enfuvirtida, lopinavir, nelfinavir, saquinavir, tenofovir.
88
Cerca de 161 mil pessoas são beneficiadas, atualmente, pelo tratamento gratuito fornecido pelo Ministério
da Saúde (dados obtidos em 19 de abril de 2006, no endereço eletrônico <www.aids.gov.br>).
121
licença para a sua fabricação em território nacional. Não apenas em virtude da
economia de recursos, mas também porque a garantia de acesso universal à terapia
anti-retroviral reflete diretamente no aumento da qualidade de vida dos portadores do
HIV. A redução dos custos dos medicamentos está fortemente ligada ao
desenvolvimento da economia nacional, tanto diretamente, pela redução dos gastos
com a compra do coquetel, quanto indiretamente, pela redução das despesas em
internações e pela contenção dos efeitos da doença sobre a população economicamente
ativa
89
.
O leitor atento deve estar começando a perceber que a disputa em torno das
patentes não tem interesse apenas comercial. Na medida em que se relaciona
intimamente ao crescimento das forças do Estado, procurando reduzir a epidemia de
AIDS a uma curva de normalidade ótima, o Programa Nacional de DST/AIDS põe em
funcionamento uma tecnologia centrada na vida, controlando a série de eventos na
população para compensar os seus efeitos e assegurar a sua homeostase. Como
veremos adiante
90
, o PN-DST/AIDS é uma ferramenta do dispositivo de biopoder, pois
promove uma gestão biopolítica das populações com o objetivo de manter a sua
segurança contra os perigos internos.
Com a compreensão do significado político do PN-DST/AIDS, torna-se possível
compreender também o significado político da batalha em que estão engajados o
Estado e as multinacionais farmacêuticas pelo controle dos preços dos medicamentos.
No atual contexto de crise da sociedade de normalização, as seguidas ameaças de
licenciamento compulsório das patentes de anti-retrovirais representam uma disputa
por poder, em que estas personificações da sociedade de segurança e da sociedade de
controle respectivamente, ‘Estado’ e ‘empresa’ se utilizam dos instrumentos
jurídicos vigentes como forma de obter o controle sobre as práticas que transpassam o
corpo vivo e possibilitam a gestão de suas forças visando à produtividade. O
licenciamento compulsório de patentes tem, em suma, o significado de uma disputa
biopolítica: é a manifestação de superfície da profunda crise por que tem passado a
sociedade de normalização, vítima do assédio cada vez mais intenso de uma nova
89
Entre 1995 e 2001 houve uma redução de aproximadamente 50% do número de óbitos no Brasil, e uma
queda de 80% nas internações hospitalares por doenças oportunistas ou sintomas graves da AIDS ver nota
80, supra.
90
Ver infra, p. 158 e segs.
122
forma de combate ao inimigo interno, que gere a vida de acordo com uma lógica
modulável e flexível, com base no poder de controle.
Mas para que fique esclarecida a verdadeira função desempenhada pelo
licenciamento compulsório neste contexto, é necessário antes de tudo descobrir a forma
como esse instrumento pode ser utilizado, para então verificarmos de que modo o
Estado brasileiro pôde transformá-lo em trincheira de resistência da sociedade de
normalização contra a sociedade de controle. Por esse motivo, no presente capítulo o
licenciamento compulsório será abordado apenas em seus aspectos jurídicos, levando-
se em consideração as intermináveis disputas em torno da concessão de patentes para
produtos farmacêuticos, e analisando-se os instrumentos de que se armou o Estado para
o seu controle, quando foram concedidas. Este exame deve fornecer os pré-requisitos
de que necessitamos para decifrar o importante papel desempenhado pelas disputas em
torno do licenciamento compulsório de patentes de anti-retrovirais, na realidade de
crise da sociedade de normalização em que vivemos.
3.1.2 A Proteção de Patentes de Produtos Farmacêuticos – breve cronologia
O Brasil foi um dos pioneiros na proteção da propriedade industrial: com a invasão
de Lisboa pelo exército napoleônico, em novembro de 1807, a Corte portuguesa foi
obrigada a abandonar Portugal e estabelecer a sede do Império no Brasil. Apenas cinco
dias após o desembarque, em janeiro de 1808, D. João VI abria os nossos portos ao
comércio internacional e instaurava a liberdade de indústria no território brasileiro,
com o objetivo de promover o desenvolvimento do país que se tornaria, com o alvará
de 1
o
de abril de 1808, a sede do Império Português (GAMA CERQUEIRA, 1945:23).
no ano seguinte, o alvará de 28 de abril de 1809 estabelecia a concessão de privilégios
aos inventores e introdutores de novas quinas, inaugurando uma política de atração
de novas indústrias e tornando o Brasil o 4
o
país do mundo a instituir a proteção dos
direitos do inventor, após a Inglaterra (1623), os EUA (1790) e a França (1791).
Quase oitenta anos depois era celebrada a Convenção da União de Paris (1883),
primeiro tratado internacional sobre o tema, tendo como objetivo a formação de uma
união para a proteção dos direitos de propriedade industrial. O Brasil era um dos onze
signatários originais da Convenção, que entrou em vigor no país com o Decreto 9233
de 1884. Criada com o intuito de instituir um sistema internacional de proteção da
123
tecnologia, após a recusa do governo americano em participar da exposição
internacional de 1873, na Áustria – motivada pela ausência de proteção jurídica para as
criações de seus inventores –, a Convenção da União de Paris não procurava
uniformizar as regras nacionais de proteção à propriedade industrial, exigindo apenas a
paridade de tratamento entre nacionais e estrangeiros, e assegurando a ampla liberdade
legislativa de cada país no que se refere à matéria. Como afirma Barbosa (2003b:184),
dentro do espírito de cooperação recíproca e unidade de propósitos, a União de Paris
não previa qualquer aparelho repressor para sancionar países infratores do tratado,
ainda que pudesse ser objeto de ação junto à Corte de Haia. Talvez em virtude dessas
características, e certamente também por não buscar a padronização das normas
nacionais de propriedade industrial, a Convenção da União de Paris ainda permanece
vigente na atualidade, mais de cem anos após a sua elaboração, tendo passado por
sete revisões (a mais recente é a de Estocolmo, ocorrida em 1967, promulgada no
Brasil pelo Decreto 1263/94). Contando atualmente com 136 Estados signatários, é
considerada o mais importante instrumento internacional sobre propriedade industrial.
Quando terminaram as negociações da Convenção da União de Paris, o Brasil havia
editado duas novas legislações sobre propriedade industrial (em 1830 e 1882), sendo a
última tão moderna que sequer houve necessidade de adaptá-la após a assinatura do
tratado.
No entanto, apesar desse pioneirismo do país na proteção da propriedade industrial,
apenas recentemente foi admitido entre nós o patenteamento de produtos da área
farmacêutica. Isso porque até os anos oitenta era prática comum, na comunidade
internacional, que os países estabelecessem restrições à concessão de patentes nos
setores tecnológicos considerados de maior interesse econômico ou social, levando em
conta os interesses das indústrias nacionais o Japão, por exemplo, apenas após se
tornar o segundo maior fabricante mundial de produtos farmacêuticos reconheceu as
suas patentes, em 1976 (BARBOSA, 2003a:9). Com a política econômica
desenvolvimentista adotada por Getúlio Vargas ainda nos anos 30, visando à
modernização do setor industrial e à redução das deficiências de um processo de
industrialização incompleto, tardio e insuficientemente verticalizado, a legislação
nacional estabelecia várias restrições à concessão de patentes na área tecnológica,
vedando, entre outras, a concessão de patentes de produtos farmacêuticos. Essa
124
vedação foi recepcionada pelo Código de Propriedade Industrial de 1971 (lei 5772/71),
que vigorou até 1996
91
.
Com a revolução pós-industrial, porém, os bens imateriais (como direitos de
propriedade intelectual) passaram a assumir cada vez mais importância para o
desenvolvimento do capitalismo, principalmente naqueles países altamente
industrializados e detentores de tecnologia de ponta. Em meados dos anos 80 a
diplomacia dos EUA passou a sofrer a pressão de lobbies de empresas dos setores que
se sentiam ameaçados com o surgimento de novos pólos internacionais de produção
tecnológica principalmente nas áreas farmacêutica, de biotecnologia, software,
telecomunicações, aeroespacial e de entretenimentos e demandavam a abertura
agressiva de mercados externos e a criação de uma nova ordem econômica
internacional. Apesar de o país manter o superávit nas transações internacionais de
patentes e licenças, o aumento da competitividade dos países do leste asiático fez com
que sua participação no comércio internacional de alta tecnologia sofresse decréscimos
sucessivos desde a década de 70.
Essa situação levou o governo americano a optar por uma atitude agressiva na área
de propriedade intelectual, recorrendo à imposição de barreiras o-tarifárias e sanções
comerciais, com a utilização reiterada da Seção 301 do Trade Act, que conferia ao
Poder Executivo norte-americano a prerrogativa de estabelecer unilateralmente
retaliações econômicas aos países considerados violadores dos direitos de propriedade
intelectual (BARBOSA, 2003b:158). Dessa forma, a atuação americana se centrou em
duas atividades, principalmente a partir do governo Reagan: por um lado, buscava
legitimar o GATT (General Agreement on Trades and Tariffs) como fórum para a
regulamentação dos novos temas; por outro, procurava enfraquecê-lo pelo recurso
recorrente a medidas unilaterais (SILVEIRA, 1999:67), de modo a tornar interessante
para os países em desenvolvimento a criação de padrões internacionais uniformes de
proteção da propriedade industrial.
Apesar dos protestos do governo brasileiro (que afirmava que o não-
reconhecimento de patentes para produtos farmacêuticos, químicos e alimentícios era
91
O antigo Código de Propriedade Industrial considerava como “invenções não-privilegiáveis”, em seu art.
9º, as substâncias, matérias ou produtos obtidos por meios ou processos químicos, bem como as substâncias,
matérias, misturas ou produtos alimentícios, químico-farmacêuticos e medicamentos de qualquer espécie e os
respectivos processos de obtenção ou modificação.
125
uma opção autorizada pela Convenção da União de Paris), como se tratava de áreas
consideradas estratégicas pelos americanos, nossos produtos sofreram a aplicação de
uma série de sanções econômicas com fundamento no Trade Act. A pressão das
grandes potências era no sentido de se exigir dos membros da comunidade
internacional uma legislação nima para a propriedade industrial, que contemplasse
principalmente a proteção de produtos farmacêuticos, substituindo a liberdade nacional
de padrões de proteção prevista na Convenção de Paris pela observância de normas
rígidas de propriedade industrial por todos os países da comunidade internacional.
Com a transformação da política externa e da política econômica brasileiras,
decorrentes da eleição de Fernando Collor em 1990, mesmo tendo anteriormente
denunciado ao GATT as medidas retaliativas impostas pelos EUA, o governo brasileiro
passou a admitir a patenteabilidade de todos os setores, inclusive o farmacêutico, e a
defender a reforma da legislação brasileira de propriedade industrial. Embora o
objetivo declarado do governo fosse o de criar um clima favorável aos investimentos
externos (CLÉVE E RECK, 2002:45), o fato é que essa mudança de posição decorria do
projeto de modernização neoliberal e do objetivo de maior inserção da economia
brasileira no mercado internacional, em um contexto mundial mais amplo de transição
para um regime de produção pós-industrial.
A diplomacia brasileira passou a defender, então, o estabelecimento de um patamar
mínimo de regras sobre propriedade industrial, concretizado no Acordo TRIPs (Trade-
related Aspects of Intellectual Property Rights), que já vinha sendo discutido nas
reuniões do GATT. Afirmava-se que o acordo poderia trazer benefícios em setores em
que o Brasil apresentava grande potencial de competitividade (como a pesquisa
agrícola) e se houvesse, concomitantemente, uma política industrial voltada para a
capacitação tecnológica. Além disso, o acordo traria a possibilidade de recurso ao
sistema de soluções de controvérsias da OMC, jurisdicionalizado, o que reduziria a
possibilidade das ações unilaterais injustificadas que haviam se tornado comuns nos
anos 80 (LOUREIRO, 1999:74).
Foi nesse contexto que 123 países assinaram, em 15 de abril de 1994, durante uma
conferência realizada em Marrakesh, a Ata Final da Rodada Uruguai do GATT; junto
com ela assinaram também o acordo que criava a Organização Mundial do Comércio
(OMC) e uma série de anexos, inclusive o Anexo 1C, que continha o Acordo TRIPs.
126
Essa ata foi promulgada no Brasil pelo Decreto 1355/94, entrando em vigor em 1
o
de
janeiro de 1995.
O TRIPs fixava um patamar sico de defesa dos direitos intelectuais, abrangendo
patentes, marcas, nomes geográficos, desenhos industriais, direitos do autor, circuitos
integrados, segredos industriais e concorrência desleal, mas permitindo a cada país
estabelecer em suas leis internas uma proteção mais abrangente do que a exigida pelo
acordo, desde que não contrariasse os seus dispositivos
92
. É o mais abrangente acordo
de propriedade industrial celebrado até agora, instituindo um conjunto de normas
mínimas para a harmonização dos direitos nacionais, determinando prazos para a sua
implementação
93
e estabelecendo a obrigatoriedade de patenteamento em “todos os
campos de tecnologia”, incluindo os setores farmacêutico, de química fina e de
alimentos
94
. Dessa forma institui o princípio geral de que ‘tudo é patenteável’, exceto
aquelas matérias expressamente previstas nos itens 2 e 3 do artigo 27 invenções
contrárias à moral, à ordem pública, à saúde e ao meio-ambiente; métodos terapêuticos,
cirúrgicos ou diagnósticos; plantas, animais e processos biológicos.
Contudo, o TRIPs é um tratado-contrato, e não um tratado-lei, de modo que os seus
mandamentos se endereçam apenas aos Estados membros da OMC, não aos seus
cidadãos. Por isso, os seus efeitos se limitam à obrigação do governo federal de editar
normas para o seu cumprimento; em outras palavras, os dispositivos previstos no
TRIPs dependiam de sua incorporação pelo direito interno. Desse modo, embora o
Brasil possuísse um prazo de 5 anos para a realização dessa tarefa (e de 10 anos para a
concessão de patentes na área farmacêutica, como prevê o art. 65, 4, do TRIPs), em
1996 foi promulgada sob o n.
o
9279/96 a Lei de Propriedade Industrial, que entrou em
92
Article 1. 1. […] Members may, but shall not be obliged to, implement in their law more extensive
protection than is required by this Agreement, provided that such protection does not contravene the
provisions of this Agreement (Artigo 1. 1.[...] Os Membros poderão, mas não estarão obrigados a prover,
em sua legislação, proteção mais ampla que a exigida neste Acordo, desde que tal proteção não contrarie as
disposições deste Acordo” – tradução oficial, pelo Decreto 1355/94).
93
O acordo estabelece o prazo de cinco anos para sua implementação em países em desenvolvimento,
podendo ser prorrogado por mais cinco se houver a necessidade de estender a proteção patentária a áreas
tecnológicas não protegidas na data de aplicação do acordo – como a farmacêutica, no Brasil (artigo 65).
94
Article 27. 1. Subject to the provisions of paragraphs 2 and 3, patents shall be available for any
inventions, whether products or processes, in all fields of technology, provided that they are new, involve an
inventive step and are capable of industrial application (“Artigo 27. 1. Sem prejuízo do disposto nos
parágrafos 2 e 3 abaixo, qualquer invenção, de produto ou de processo, em todos os setores tecnológicos, será
patenteável, desde que seja nova, envolva um passo inventivo e seja passível de aplicação industrial”
tradução oficial, pelo Decreto 1355/94).
127
vigor em maio de 1997, e não vedava a concessão de patentes de produtos
farmacêuticos.
Surgiu, então, a discussão a respeito da proteção retroativa dos inventos industriais
não privilegiáveis no antigo regime legal, que não era imposta pelo TRIPs
95
(que exigia
apenas uma forma de transição para o novo regime), mas acabou sendo admitida pela
legislação brasileira sob a forma do pipeline, previsto nos arts. 230 e seguintes da Lei
de Propriedade Industrial. De acordo com esses dispositivos, após a publicação da lei
as empresas estrangeiras poderiam, no prazo de um ano, requerer a patente de matérias
não-privilegiáveis sob o regime anterior (farmacêuticos, alimentícios e químicos) junto
ao INPI, exceto se alguma empresa brasileira tivesse comercializado ou investido no
produto em questão. Nesse caso a patente não seria concedida, sendo mantida a
imunidade do usuário anterior, que alcançava não apenas quem houvesse
comercializado o produto, mas também quem houvesse realizado investimentos
significativos para a sua exploração. Além disso, não seria permitida a cobrança,
retroativa ou futura, de qualquer valor em razão dessa utilização em território nacional.
Assegurava-se ao requerente o prazo remanescente da proteção do país onde
houvesse sido concedido o primeiro pedido, limitado, porém, ao previsto no art. 40 da
LPI (20 anos) e sem a garantia do prazo mínimo de proteção de 10 anos contados da
concessão da patente. Como se tratava de lei de transição, foi concedido o prazo de
apenas 1 ano para a apresentação do requerimento, e esse prazo se extinguiu em 15 de
maio de 1997.
A pipeline representa uma exceção ao conceito básico de patenteabilidade,
funcionando como uma revalidação das patentes concedidas no exterior. É uma forma
de reconhecimento retroativo de patentes para as matérias não-privilegiáveis sob o
regime legal vigente antes da celebração do Acordo TRIPs e da promulgação da nova
Lei de Propriedade Industrial, um mecanismo excepcional e transitório para compensar
os inventores que não podiam patentear suas criações anteriormente. Com esse
mecanismo se tornava possível o patenteamento não daqueles produtos
farmacêuticos inventados após a promulgação da nova lei de propriedade industrial,
95
Article 70. 1. This Agreement does not give rise to obligations in respect of acts which occurred before
the date of application of the Agreement for the Member in question(“Artigo 70. 1. Este Acordo não gera
obrigações relativas a atos ocorridos antes de sua data de aplicação para o respectivo Membro” tradução
oficial, pelo Decreto 1355/94).
128
mas também dos produtos que houvessem sido inventados antes dessa promulgação e
ainda não tivessem sido explorados em território nacional.
O dispositivo foi objeto de muitas críticas pelas comunidades jurídica, política e
tecnológica, que afirmaram não haver qualquer razão, à época, para a concessão dessas
patentes retroativas. O então senador Ney Suassuna manifestou a sua opinião sobre o
assunto em parecer sobre o PLC 115/93, no qual afirmava expressamente que “a
proteção excepcional a essas invenções mediante o uso do ‘pipeline’ só pode ser
considerada como uma concessão adicional às empresas que as desenvolveram, e não
atende a qualquer interesse da economia nacional” (apud BARBOSA, 2003b:638). Não
bastassem as críticas políticas, o dispositivo foi considerado manifestamente
inconstitucional por grande parte dos juristas, que criticaram, além da sua redação
imprecisa, o caráter prejudicial do instituto ao desenvolvimento tecnológico e industrial
do Brasil (pois institui tratamento desigual em favor do estrangeiro sem que haja
reciprocidade), a violação que promove do princípio da soberania nacional (pois admite
a aplicação de lei estrangeira em território nacional sem fundamento em tratado
internacional no que se refere aos prazos das patentes), e o abandono do princípio
constitucional da novidade (pois assegura monopólio a invento lançado em domínio
público) (BARBOSA, 2003b:645).
Apesar das críticas, o fato é que a proteção retroativa das invenções o-
privilegiáveis sob o regime jurídico anterior acabou sendo incorporada ao ordenamento
jurídico brasileiro, e inclusive foi utilizada por multinacionais para a proteção de
patentes de anti-retrovirais. Segundo reportagem da Folha de São Paulo citada por
Barbosa
96
(2003b:639), as patentes dos medicamentos Efavirenz e Nelfinavir, que o
governo brasileiro pretendia “quebrar” em 2001 (rectius: “licenciar
compulsoriamente”), apenas puderam ser depositadas no Brasil em virtude dessas
concessões do governo brasileiro. Nas palavras do repórter, “a patente do Nelfinavir foi
depositada nos EUA em 1993, antes do Trips entrar em vigor no Brasil. No entanto, a
companhia Agouron, associada à Roche, usou o mecanismo do pipeline para ‘voar’ no
tempo e garantir a patente do medicamento em sete de março de 1997”.
96
A reportagem citada por Barbosa é de Marcio Aith, e foi publicada na edição de 12 de março de 2001 do
jornal Folha de São Paulo, sob o título “Patentes, a burrice estratégica brasileira”.
129
3.1.3 Ainda as Patentes de Produtos Farmacêuticos – os termos do combate
A instituição legal da proteção das patentes de produtos farmacêuticos contribuiu
para acirrar ainda mais a polêmica já existente em torno da sua concessão. De um lado
se considerava as patentes de produtos farmacêuticos um importante instrumento de
desenvolvimento tecnológico e industrial; de outro, afirmava-se que características
específicas da indústria farmacêutica e a necessidade de proteção da saúde humana
tornavam as patentes de medicamentos um entrave ao desenvolvimento econômico e
social do Brasil.
Assim, ao analisar os projetos de lei 1922/99 (dep. Eduardo Jorge) e 4678/01 (dep.
Aldo Rebelo), ambos propondo a não-patenteabilidade de medicamentos que sejam
necessários para o tratamento da AIDS, Paixão Frugulhetti afirma que “uma legislação
que interfira na descoberta e no patenteamento de drogas irá prejudicar,
irreversivelmente, as pesquisas relativas à melhoria de vida dos pacientes infectados
com HIV” (2003:2). A autora informa que o HIV é um dos mais variáveis vírus
conhecidos, e desenvolveu resistência a várias das drogas utilizadas no coquetel
antiviral; esse fator torna necessário o permanente investimento em pesquisas que
busquem a síntese de novas drogas com potencial antiviral, capazes de substituir os
medicamentos aos quais o vírus já desenvolveu resistência. A não-proteção patentária
dessas drogas provocaria uma redução dos investimentos das indústrias farmacêuticas
em pesquisa, o que levaria à migração de cientistas para áreas de maiores investimentos
e reconhecimento, prejudicando as pesquisas na área de AIDS e o tratamento dos
pacientes.
Além disso, a aprovação dessa legislação poderia levar a que novas substâncias
tivessem seus testes de atividade biológica direcionados para outras doenças para as
quais não houvesse restrições quanto ao patenteamento. Isso porque na prática clínica é
muito raro que medicamentos atuem apenas sobre uma doença, tendo na verdade
‘indicações terapêuticas’, o que se define como sendo a “capacidade apresentada por
um medicamento de tratar um quadro clínico causado por um determinado agente
patológico” (FRUGULHETTI, 2003:12). Como não existem, atualmente, drogas utilizadas
de forma específica para a prevenção e o tratamento da AIDS, mas medicamentos
utilizados também no tratamento de outras doenças, a sua não-patenteabilidade
conduziria as pesquisas para outras áreas, prejudicando o tratamento dos pacientes.
130
No mesmo sentido o artigo de Scholze, no qual a autora afirma que “os
investimentos necessários às pesquisas biotecnológicas e genômicas requerem a
intensificação da proteção da propriedade intelectual” (2001:32), tratando a
propriedade intelectual o como mera retribuição pela atividade do inventor, mas
como instrumento de política industrial.
O fundamento dos direitos de propriedade intelectual é que o inventor possa usar e
dispor do objeto de sua invenção, com exclusão de terceiros, de modo a recuperar o
investimento inicial realizado em pesquisa e obter lucro em troca da revelação de sua
criação para a sociedade. Se os cientistas engajados em pesquisas fossem forçados a
manter em sigilo os resultados de seus trabalhos, o público e a comunidade científica
seriam privados da ampla revelação de informações que o sistema de patentes assegura.
Além disso, a autora afirma que o sistema de patentes promove a renovação
tecnológica, estimulando a concorrência e levando as empresas a investir na obtenção
de novos produtos (SCHOLZE, 2001:40).
Portanto, de acordo com os defensores das patentes farmacêuticas, os investimentos
necessários à intensificação da pesquisa em biotecnologia exigem a proteção da
propriedade intelectual; a proteção das patentes dos medicamentos se justifica tanto
como instrumento de política industrial, quanto como instrumento de incentivo à
pesquisa farmacêutica.
Finalmente, em uma análise essencialmente jurídica da questão, Clève e Reck
afirmam que a vedação à patenteabilidade prevista no antigo Código de Propriedade
Industrial, revogado pela nova Lei de Propriedade Industrial, era incompatível com o
disposto no art. 5º, XXIX da Constituição de 88
97
. Segundo os autores, a harmonização
entre o direito à propriedade intelectual e outros direitos e valores fundamentais (como
o direito à saúde) não se resolve com a simples proibição da patente, mas mediante um
regime bem articulado de restrições a esse direito (2003:61).
Afirmam, ainda, que a mera proibição de patenteabilidade de produtos
farmacêuticos e químicos representava o sacrifício total do direito do inventor, da
indústria e da promoção da pesquisa técnica e científica, não realizando um adequado
97
Art. 5º. [...] XXIX a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua
utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e
outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do
País”.
131
balanceamento dos bens. O art. 5º, inciso XIX da Constituição, ao fazer menção ao
“interesse social” e ao “desenvolvimento tecnológico e econômico do País”,
efetivamente confere ao legislador a possibilidade de comprimir os direitos de
propriedade intelectual, a fim de assegurar esses objetivos e solucionar conflitos com
outros valores fundamentais. Contudo, o regime constitucional dos direitos
fundamentais exige que as restrições sejam limitadas ao necessário para salvaguardar
outros interesses constitucionalmente protegidos, segundo a máxima da
proporcionalidade (qualquer limitação deve ser adequada, necessária e proporcional), e
exige também que essas restrições não atinjam o núcleo essencial dos direitos
restringidos (CLÈVE E RECK, 2003:62). Logo, os autores consideram inconstitucional a
vedação da patenteabilidade de produtos farmacêuticos, afirmando que a sua
harmonização com outros valores fundamentais depende de um regime de restrições e
controle de abusos.
Outro é o ponto de vista de que parte Figueira Barbosa (2001), economista e ex-
diretor do INPI, ao examinar os efeitos perniciosos da concessão de patentes para
produtos da área farmacêutica. Justificando sua posição contrária ao patenteamento de
produtos farmacêuticos, sustenta a hipótese de que a estrutura produtiva e comercial
desse ramo específico da indústria, conjugada com o uso da propriedade industrial,
tende a gerar imperfeições de mercado e reduzir os benefícios sociais da atividade
(2001:90).
Segundo o autor, a indústria farmacêutica é a personificação do oligopólio
diferenciado (FIGUEIRA BARBOSA, 2001:91). Mas apesar da significativa concentração
da oferta (em 1996, no Brasil, 56% das vendas era realizado por apenas quinze
empresas), a competição entre as empresas é acirrada, pois são poucas as concorrentes
quando considerado o mercado de um medicamento específico. Isso é resultado das
rápidas e constantes renovações tecnológicas inerentes a esse tipo de indústria (o que
reduz o número dos potenciais concorrentes), mas também do fato de que quando os
medicamentos têm suas técnicas em domínio público são as próprias empresas que
definem o âmbito da concorrência, selecionando entre si os produtos a ofertar. Dessa
forma, um enorme dispêndio em publicidade promovendo a diferenciação dos
produtos mediante o uso de marcas.
132
Na indústria de produtos a existência da patente tende a conduzir a pesquisa e o
desenvolvimento à busca de novos produtos, em razão do monopólio absoluto de
mercado. Mas na indústria de processos, como é, predominantemente, a indústria
farmacêutica, a competição não é por novos produtos, mas pela diferenciação de
produtos similares. Nessa situação, ainda que os gastos em pesquisa sejam elevados,
este volume de recursos é inferior aos gastos de publicidade para informar ao
consumidor sobre a ‘melhor qualidade’ de um produto comparativamente a outro
produto idêntico (ambos fabricados com o mesmo princípio ativo) ou seja, o
investimento não é dirigido à obtenção de novas patentes ou produtos, mas à
diferenciação da marca. Dessa forma a função das patentes de promover o
desenvolvimento é restringida, podendo mesmo se tornar um obstáculo ao avanço do
estado de técnica (FIGUEIRA BARBOSA, 2001:92).
As marcas assumem, portanto, importância vital na indústria farmacêutica. A
estrutura do oligopólio diferenciado torna os signos mais importantes como barreira à
entrada ou ao domínio de mercado, pois a competição em mercado se faz pela
diferenciação de produtos absolutamente iguais. Este fator torna os gastos em
publicidade extremamente elevados, oscilando em cerca de 30% do preço de mercado,
enquanto os gastos em pesquisa e desenvolvimento alcançam no máximo 15% do preço
final (FIGUEIRA BARBOSA, 2001:99).
O autor demonstra, desse modo, a maior importância das marcas em relação às
patentes na indústria farmacêutica. A principal justificativa para a concessão de
patentes (fornecer recursos para o investimento na pesquisa científica) cai por terra,
uma vez que o dobro do que se gasta em pesquisa é gasto com a diferenciação de
produtos através da publicidade da marca. Mas apesar disso, qualquer política visando
a corrigir imperfeições no mercado farmacêutico o pode estar restrita à regulação do
uso de marcas, pois além de ter sido demonstrada em outros países a ineficiência de
ações como o licenciamento compulsório de marcas, procedimentos como esse
confundem o consumidor ao impossibilitar a distinção da origem do produtor, razão
pela qual são hoje vedados pelo TRIPs
98
(FIGUEIRA BARBOSA, 2001:101). Portanto,
98
Article 21. Licensing and Assignment. Members may determine conditions on the licensing and
assignment of trademarks, it being understood that the compulsory licensing of trademarks shall not be
permitted and that the owner of a registered trademark shall have the right to assign the trademark with or
133
qualquer política visando à correção das imperfeições do mercado farmacêutico deve
atuar em áreas de influência relacionadas, como as patentes.
Percebe-se que, mesmo após a formalização do acordo TRIPs e a promulgação da
Lei de Propriedade Industrial, que resolveram de forma definitiva a polêmica jurídica a
respeito da patenteabilidade de produtos farmacêuticos, as disputas pelo seu controle
real continuam. Ainda que não haja (ou que não houvesse) vinculação pessoal dos
autores citados nesta seção com quaisquer empresas farmacêuticas ou órgãos estatais
de controle da propriedade industrial ou de promoção da saúde, o fato é que os
argumentos por eles apresentados são representativos dos dois lados da disputa, e
podem ser classificados de acordo com os interesses concretos que favorecem, mesmo
que se apresentem de forma abstrata e genérica: de um lado, os defensores da
patenteabilidade de produtos farmacêuticos atendem aos interesses das multinacionais
farmacêuticas, de receber os lucros decorrentes da atividade de pesquisa, e de manter o
controle total sobre os produtos e medicamentos por elas criados; de outro lado, os
críticos desse ponto de vista atendem aos interesses do Estado, considerando o
patenteamento de produtos farmacêuticos pernicioso e julgando necessário um controle
firme do Estado sobre a propriedade intelectual, evitando abusos e assegurando a
proteção do interesse público.
Até o presente momento é o Estado que vem levando vantagem nesse combate.
Apesar de a proteção patentária dos produtos farmacêuticos ter sido finalmente
instituída pela lei de propriedade industrial, o Estado ainda tem conseguido manter o
controle sobre a forma de utilização dessas patentes, inclusive mantendo os seus preços
em um patamar aceitável. Esse controle apenas se tornou possível em virtude da
existência de um conjunto de conceitos, normas e categorias jurídicas que puderam ser
instrumentalizadas para a defesa dos seus interesses. E foi no campo do combate à
AIDS que essa resistência jurídica se tornou mais perceptível, por uma série de fatores
que serão melhor analisados oportunamente
99
, mas que já podemos adiantar que estão
without the transfer of the business to which the trademark belongs(“Artigo 21. Licenciamento e Cessão.
Os Membros poderão determinar as condições para a concessão de licenças de uso e cessão de marcas, no
entendimento de que não serão permitidas licenças compulsórias e que o titular de uma marca registrada terá
o direito de ceder a marca, com ou sem a transferência do negócio ao qual a marca pertença” tradução
oficial, pelo Decreto 1355/94).
99
Ver infra, p. 148 e segs.
134
relacionados com a importância da sexualidade como ponto de incidência do poder na
sociedade de normalização.
Em suma, o fato é que, se o Estado tem conseguido manter a dianteira na disputa
pelo controle dos medicamentos (e, de modo especial, dos medicamentos anti-
retrovirais), isso se deve em grande parte à existência de um conjunto de instrumentos
jurídicos que estavam à sua disposição e que puderam, quando se tornou necessário, ser
incorporados ao dispositivo biopolítico de sujeição. Uma vez incorporados ao
dispositivo de sujeição, esses instrumentos foram mobilizados estrategicamente para a
manutenção do predomínio do Estado em face das empresas farmacêuticas,
assegurando o seu comando sobre o biopoder e a resistência da sociedade de
normalização à sociedade de controle.
Assim, se desejamos compreender a crise da sociedade de normalização e a disputa
pelo controle do biopoder, é essencial realizarmos um estudo razoavelmente detido
sobre o instrumento jurídico que permitiu que o Estado exercesse esse controle, ainda
que parcial, sobre as patentes dos medicamentos utilizados no tratamento da AIDS.
Apenas dessa forma sepossível ter uma idéia clara da importância dos mecanismos
jurídicos nesse contexto da transição e interpretar de forma adequada as seguidas
ameaças de licenciamento compulsório de patentes de anti-retrovirais. Portanto, essa é
a tarefa a ser realizada na próxima seção deste capítulo.
3.1.4 O Licenciamento Compulsório de Patentes de Anti-retrovirais
Como ressalta Denis Borges Barbosa (2003b:499), o que caracteriza a patente
como forma de uso social da propriedade é o fato de se tratar de um direito limitado
por sua função ou seja, é protegido pelo ordenamento jurídico na medida em que
desempenha a função que por ele lhe é atribuída. Desse modo, a Constituição
estabelece duas limitações básicas à utilização da patente, ambas decorrentes do
mandamento constitucional que exige da propriedade industrial a proteção do interesse
social e a promoção do desenvolvimento tecnológico e econômico do país
100
: em
primeiro lugar, tratando-se de restrição excepcional à liberdade de concorrência, o
100
No art. 5º, inciso XXIX, da Constituição: a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio
temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos
nomes de empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento
tecnológico e econômico do País”.
135
privilégio não pode ser utilizado de forma abusiva, devendo respeitar os princípios
fundamentais da ordem econômica nacional
101
; em segundo lugar, ainda que utilizado
de acordo com a sua função social, o privilégio está sujeito aos imperativos do
interesse coletivo, limitando-se o direito individual em nome do bem da maioria,
quando for necessário em face do caso concreto, e sempre se atendendo ao princípio da
proporcionalidade – ou seja, o interesse coletivo deve prevalecer sobre o interesse
particular apenas na proporção necessária para a sua adequada satisfação.
A licença compulsória é um instrumento jurídico criado para assegurar o
cumprimento da função social da propriedade industrial, garantindo a sua utilização em
prol do interesse social e do desenvolvimento do país, e permitindo a proteção do
interesse público contra o privado, nos casos em que essa proteção se torne necessária.
Prevista no art. 31 do acordo TRIPs, no art. 71 da Lei 9279/96, e no art. do Decreto
3201/99 (alterado pelo Decreto 4830/03), a licença compulsória deve cumprir uma
série de requisitos gerais para poder ser utilizada, previstos nos próprios instrumentos
normativos que a instituem.
Assim, o TRIPs permite que a legislação dos Estados-membros autorize a
utilização do objeto de patente sem o consentimento do detentor do direito, pelo
governo ou por terceiros autorizados pelo governo, desde que aceitas uma série de
condições, previstas nos itens a) a l) do art. 31, sendo as principais: tentativas de
negociações com o titular do direito; situação de emergência nacional, de extrema
urgência ou casos de utilização pública não-comercial; duração limitada; uso não-
exclusivo; objetivo primordial de suprir as necessidades do mercado doméstico;
adequada remuneração ao detentor do direito por seu uso (royalties); possibilidade de
101
Mormente a soberania nacional, a função social da propriedade e a livre concorrência, previstos no art.
170 da Constituição: Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e da livre
iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados
os seguintes princípios:
I – soberania nacional;
II – propriedade privada;
III – função social da propriedade;
IV – livre concorrência;
V – defesa do consumidor;
VI defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental
dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação;
VII – redução das desigualdades regionais e sociais;
VIII – busca do pleno emprego;
IX tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que
tenham sua sede e administração no País.”
136
concessão em caso de patentes cruzadas; possibilidade de revisão judicial ou por
autoridade superior. Dessa forma, assegura aos Estados a possibilidade de oposição ao
interesse particular do titular da patente em nome do interesse público, superando sua
recusa ou incapacidade em suprir as necessidades do país, e concedendo a outra pessoa
o direito de explorá-la e fazê-la cumprir sua função social. É claro que essa limitação
do direito de propriedade não equivale à sua extinção, sendo resguardada a justa
remuneração ao titular do direito por sua utilização, além da propriedade da patente,
cuja exploração volta a ser exclusiva com a cessação da causa da concessão da licença
compulsória.
Este dispositivo é de fundamental importância no caso das patentes farmacêuticas,
por dois motivos: em primeiro lugar, grande parte das patentes de medicamentos
vigentes no Brasil é de titularidade de empresas multinacionais; dessa forma, a
possibilidade de concessão de licença compulsória resguarda o país da sujeição a
interesses estratégicos (políticos ou comerciais) estrangeiros, atribuindo ao Estado
brasileiro a decisão final sobre a utilização da patente para suprir as necessidades do
mercado doméstico ou em situações de urgência, possibilitando a defesa da
independência e do interesse nacional, como determina a Constituição
102
. Mas, além
disso, mesmo nos casos em que os titulares das patentes não são estrangeiros o Estado
pode intervir, não necessariamente para defender o interesse nacional, mas para
proteger o interesse público e assegurar o direito constitucional à saúde
103
.
A Lei de Propriedade Industrial incorpora todas as limitações previstas no TRIPs,
determinando que as licenças devem ser concedidas sem exclusividade (art. 72), e
assegurando a ampla defesa ao titular da patente (arts. 68, 69, 70, 74),
independentemente do fato motivador da concessão. Assim, em seus arts. 68 a 74 ela
regulamenta a utilização da licença compulsória, determinando a sua concessão em
102
Art. 4º. A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes
princípios: I- independência nacional [...]”. Também o art. 5º, inciso XXIX, da Constituição, já citado
anteriormente, estabelece o desenvolvimento tecnológico e econômico do país como finalidades precípuas da
propriedade industrial (ver supra, nota 100).
103
Art. 6º. São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a
previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta
Constituição”. Este dispositivo é complementado pelo art. 196 da Constituição, que estabelece a saúde como
direito de todos e dever do Estado, e assegura o acesso universal às ações para a sua proteção: Art. 196. A
saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à
redução do risco de doença e de outros agravos, e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para
sua promoção, proteção e recuperação”.
137
basicamente três situações concretas: como sanção pela utilização da patente; em
decorrência de necessidades de mercado ou desenvolvimento da economia brasileira; e
em situações de necessidade pública. Desse modo, pode ser concedida a licença
compulsória se o titular da patente exercer seus direitos de forma abusiva ou praticar
abuso de poder econômico (art. 68); se o objeto da patente não for explorado no
território brasileiro, a comercialização não satisfizer as necessidades do mercado, ou
existir uma situação de dependência de uma patente em relação à outra (art. 68, § e
art. 70); e em casos de emergência nacional ou interesse público, declarados por ato do
Poder Executivo Federal (art. 71).
Denis Borges Barbosa propõe uma outra classificação das licenças compulsórias
previstas na Lei de Propriedade Industrial. Tomando como critério classificatório a
motivação jurídica da licença, o autor subdivide as três situações sugeridas no
parágrafo anterior em cinco modalidades distintas: licença compulsória por abuso de
direitos; licença compulsória por abuso de poder econômico; licença compulsória por
falta de uso; licença compulsória por interesse público; e licença compulsória por
dependência (BARBOSA, 2003b:503-547). Em que pese a inquestionável autoridade do
autor em matéria de propriedade industrial, e a indiscutível utilidade da classificação
por ele proposta (bastante analítica, enfatizando as diferenças entre as várias
modalidades de licenciamento compulsório), parece ser mais adequado, para o exame
que se pretende fazer nesta dissertação, tomar como critério de distinção a situação real
a ensejar o licenciamento compulsório. O critério da situação real permite ressaltar os
elementos comuns existentes entre as diversas modalidades de licenciamento
compulsório, que passam a poder ser agrupadas de acordo com os motivos concretos
que tornam necessária a sua utilização ficando em segundo plano a sua motivação
jurídica. Portanto, é com base nesta classificação que serão estudadas, a seguir, as
hipóteses de concessão de licença compulsória de patentes:
a) Licença compulsória como sanção por má utilização da patente
Em primeiro lugar, como sanção pela utilização da patente (abuso de direitos e
abuso de poder econômico), o licenciamento compulsório tem por objetivo a defesa
tanto da ordem econômica quanto do ordenamento jurídico nacional. Se por um lado o
abuso de direitos deve ser punido em decorrência da transgressão da ordem jurídica
que veda a sua má-utilização, por outro lado o dispositivo visa a proteger também a
138
ordem econômica de atitudes lesivas à concorrência e prejudiciais ao funcionamento do
livre mercado, tanto por parte de estrangeiros quanto por parte de nacionais. Assim, nos
casos de licença compulsória por abuso de direitos ou por abuso de poder econômico
estará sempre presente algum elemento de punição ou retribuição, ao lado do
atendimento ao interesse coletivo e, mesmo que apenas mediatamente, do interesse
particular.
Como ressalta Barbosa (2003b:507), a doutrina do abuso de direitos de patente
parte do princípio de que a propriedade industrial, da mesma forma que a propriedade
em geral, tem uma finalidade que transcende o interesse egoístico do titular. A restrição
da liberdade de concorrência e o privilégio de exploração estabelecidos pela concessão
de uma patente são instituídos com a dupla finalidade de assegurar ao criador uma
retribuição pela atividade inventiva, e de promover o desenvolvimento econômico e
tecnológico do país. Dessa forma, abuso de direitos sempre que o titular de uma
patente, ainda que sem exceder os limites legais, exerça os seus direitos com desvio de
finalidade restringindo a concorrência além do estritamente necessário para obter a
retribuição adequada, ou deixando de contribuir para o desenvolvimento econômico e
tecnológico do Brasil.
Não seria possível enquadrar as patentes de anti-retrovirais na hipótese de abuso de
direitos para promover o seu licenciamento compulsório, pois, ao menos até o presente
momento, elas não têm sido utilizadas com desvio de sua finalidade jurídica.
Para se configurar o abuso de poder econômico, porém, não basta a mera análise
jurídica do cumprimento das finalidades constitucionais pelo titular da patente, sendo
necessária também uma análise de sua atuação no mercado. De acordo com Barbosa
(2003b:509), é na lei 8884/94 que se encontram as condutas consideradas
economicamente abusivas pelo ordenamento jurídico, que ela define, em seu art. 20,
as seguintes condutas como infrações à ordem econômica: prejudicar a livre
concorrência ou a livre iniciativa; dominar mercado relevante de bens e serviços;
aumentar arbitrariamente os lucros; ou exercer de forma abusiva posição dominante
(presumida nos casos em que a empresa ou grupo controle 20% do mercado relevante).
Logo, sempre que se configurar uma das situações previstas no art. 20 da lei 8884/94,
encontramo-nos diante de uma situação de abuso de poder econômico, passível de ser
139
punida com o licenciamento compulsório de patentes, conforme o art. 68 da Lei
9279/96.
Em tese, seria possível a utilização desse dispositivo para a concessão de licenças
compulsórias de medicamentos anti-retrovirais. Enquadrando as empresas
farmacêuticas que os produzem na hipótese de abuso de poder econômico, talvez por
aumento arbitrário dos lucros, teríamos uma justificativa plausível para conceder a
licença compulsória com fundamento no art. 68 da Lei de Propriedade Industrial.
Na prática, entretanto, seria extremamente difícil provar o abuso de poder
econômico das empresas farmacêuticas. Isso porque, embora os preços dos anti-
retrovirais realmente sejam muito elevados, a margem de lucros referente a esses
medicamentos o difere substancialmente das margens de lucros praticadas em outras
áreas da produção farmacêutica. Além disso, seria necessário comparar as margens de
lucro praticadas no Brasil com as margens de lucro praticadas em outros países, e se
verificaria que os lucros obtidos com a venda de anti-retrovirais no Brasil são, muitas
vezes, até mesmo inferiores aos lucros obtidos em outros países principalmente na
Europa e Estados Unidos, mas também em outros países em desenvolvimento.
Logo, que não abuso de direitos, e que o abuso de poder econômico exige a
difícil prova da atuação ilegal do titular da patente no mercado, a promoção do
licenciamento compulsório com base no art. 68 não é uma solução adequada para o
problema das patentes dos anti-retrovirais.
b) Licença compulsória para a proteção de interesses estratégicos nacionais
A licença compulsória pode também ser concedida por razões estratégicas, sendo o
objeto de uma determinada patente tratado como instrumento para o desenvolvimento
do país. É o que ocorre nos casos de licença compulsória por falta de uso, em que a
patente não é explorada (ou é explorada de forma insuficiente) no território brasileiro:
sendo a patente um direito de exploração exclusiva por um determinado período, em
não havendo a exploração do seu objeto deixa de haver sua razão de existir. A patente
deve ser vista como instrumento de política industrial, representando um incentivo ao
inventor para que ponha em prática as idéias que teve e inicie a exploração de sua
invenção, produzindo-a em território nacional. Caso o o faça, o Estado tem o direito
de, com o objetivo de promover o desenvolvimento econômico, atribuir a um terceiro,
de forma não-exclusiva, por período determinado, o direito de exploração.
140
A Lei 9279/96 prevê essa situação no § de seu art. 68, ao fixar como causas
ensejadoras do licenciamento compulsório a falta de fabricação ou fabricação
incompleta do produto patenteado em território brasileiro, ou a falta de uso integral do
processo patenteado, bem como a comercialização que não satisfizer as necessidades
de mercado exceto se o titular da patente justificar o desuso por razões legítimas, por
obstáculo legal, ou comprovar a realização de preparativos para a sua exploração (art.
69 da LPI).
De acordo com o § do art. 68, essa modalidade de licença compulsória apenas
pode ser requerida por pessoa com legítimo interesse e que tenha capacidade técnica e
econômica para explorar de forma eficiente o objeto da patente, devendo a sua
produção se destinar, predominantemente, ao mercado interno. É razoável a norma,
uma vez que o licenciamento compulsório, neste caso, tem como objetivo primordial a
utilização da patente no território nacional e o desenvolvimento econômico do país. É
claro que esses objetivos não poderiam ser atingidos se o requerente da licença o
tivesse capacidade de produzir o objeto da patente, ou se não pretendesse destiná-la ao
mercado interno. E, finalmente, o § 5º do mesmo artigo determina que a licença
compulsória por falta de uso pode ser requerida três anos após a concessão da
patente, fixando, desse modo, o prazo máximo de que dispõe o titular para iniciar a
exploração do seu objeto
104
.
Denis Barbosa chama a atenção para o fato de que as noções de ‘fabricação
completa’ e ‘uso integral’, previstas no dispositivo legal, podem ser compreendidas de
duas formas: como a fabricação ou uso que satisfaça as reivindicações da patente; ou
como a fabricação ou uso que complete o produto ou perfaça o processo do ponto de
vista econômico (BARBOSA, 2003b:525). É claro que os dois requisitos são
necessariamente complementares, o primeiro satisfazendo a essência jurídica do
privilégio, e o segundo satisfazendo a sua função econômica. Uma vez que a
Constituição estabelece o desenvolvimento tecnológico e econômico do país como
pressupostos do reconhecimento da propriedade industrial, é claro que a lei pretende
104
O art. 5º da Convenção da União de Paris estabelece, ainda, o prazo de quatro anos a contar da
apresentação do pedido de patente, para que essa modalidade de licença compulsória possa ser requerida.
Mas como percebe Denis Barbosa, é quase impossível, em virtude do lapso temporal existente entre a
apresentação do pedido e a concessão da patente, no Brasil, que essa hipótese prevista pela CUP venha a ser
suscitada na prática (BARBOSA, 2003b:523).
141
que a patente seja integralmente utilizada, tanto em seu aspecto jurídico quanto em seu
aspecto econômico.
A licença compulsória por falta de uso não seria uma solução adequada para o
problema dos anti-retrovirais, uma vez que a sua produção atende de forma satisfatória
as necessidades do mercado brasileiro. Aliás, vale a pena aproveitar a ocasião para
desfazer um mal-entendido causado pela imprecisão de informações veiculadas na
imprensa no ano de 2001. De acordo com a maioria absoluta dos meios de
comunicação, os Estados Unidos teriam aberto, em fevereiro de 2001, perante o Órgão
de Solução de Controvérsias da OMC, um panel em que se questionava o programa
brasileiro de combate à AIDS. Na verdade, o dispositivo que o painel arbitral
questionava
105
, em face do TRIPs, era justamente o art. 68, §1
o
, I da Lei de Propriedade
Industrial. Como vimos, este artigo prevê a concessão de licença compulsória de
patentes de produtos não fabricados no Brasil, ou fabricados de forma incompleta,
enquanto o governo ameaçava conceder licença compulsória com fundamento no art.
70 da Lei 9279/96, por motivo de necessidade pública.
Apesar de o panel ter sido requisitado quase um ano antes da proposta de
licenciamento compulsório (em maio de 2000), de o governo americano afirmar
105
Os termos da reclamação dos Estados Unidos perante a OMC são os seguintes: Brazil Measures
Affecting Patent Protection. Complaint by the United States (WT/DS199/1). This request, dated 30 May
2000, is in respect of those provisions of Brazil’s 1996 industrial property law (Law nº 9,279 of 14 May 1994
[sic]; effective May 1997) and other related measures, which establish a ‘local working’ requirement for the
enjoyability of exclusive patent rights. The United States asserts that the ‘local working’ requirement can
only be satisfied by the local production and not the importation of the patented subject matter. More
specifically, the United States notes that Brazil’s ‘local working’ requirement stipulates that a patent shall be
subject to compulsory licensing if the subject-matter of the patent is not worked’ in the territory of Brazil.
The United States further notes that Brazil explicitly defines ‘failure to be worked’ as ‘failure to manufacture
or incomplete manufacture of the product’ or ‘failure to make full use of the patented process’. The United
States considers that such requirement is inconsistent with Brazil’s obligations under articles 27 and 28 of
the Trips Agreement, and Article III of the GATT 1994. On 8 January 2001, the US requested that a panel be
established[grifos no original] (A. FONSECA, 2001:193) Brasil Medidas que Afetam a Proteção de
Patentes. Reclamação pelos Estados Unidos (WT/DS199/1). Esta reclamação, datada de 30 de maio de 2000,
se refere àquelas provisões da lei brasileira de propriedade industrial de 1996 (Lei 9279 de 14 de maio de
1994 [sic], eficaz a partir de maio de 1997) e outras medidas relacionadas, que estabelecem o requisito de
‘exploração local’ para que se possa gozar do direito de exclusividade concedido pela patente. Os Estados
Unidos afirmam que o requisito de ‘exploração local’ apenas pode ser satisfeito pela produção local e o
pela importação da matéria objeto de patente. Mais especificamente, os Estados Unidos notam que o
requisito de ‘exploração local’ estipula que a patente pode ser objeto de licenciamento compulsório se a
matéria objeto de patente não for ‘explorada’ no território do Brasil. Os Estados Unidos notam, ainda, que o
Brasil define explicitamente a ‘não exploração’ como a falta de fabricação ou fabricação incompleta do
produto’, ou a ‘falta de uso integral do processo patenteado’. Os Estados Unidos consideram que tal requisito
viola as obrigações do Brasil de acordo com os artigos 27 e 28 do Acordo Trips, e o Artigo III do GATT
1994. Em 8 de janeiro de 2001, os Estados Unidos requerem a instauração de um panel” [grifos no original]
(tradução livre).
142
reiteradamente que não questionava o programa brasileiro de combate à AIDS, e de o
próprio ministro José Serra reconhecer que era outra a questão debatida (SERRA,
2001a), os repórteres insistiam em enxergar nesse episódio um elemento crucial da
disputa pela redução dos preços de medicamentos erro que foi repetido por grande
parte da doutrina especializada no tema. De qualquer modo, o fato é que o Ministério
da Saúde divulgou nota oficial em que afirmava que o painel arbitral requerido pelos
EUA poderia “colocar em risco o futuro do Programa de Distribuição Gratuita e
Universal de Medicamentos para Aids” (MS, 2003a), o que acabou lhe granjeando o
apoio político de dezenas de organizações internacionais
106
, obrigando os Estados
Unidos a retirar o requerimento antes mesmo que ele fosse julgado.
O art. 70 da LPI tem a mesma motivação do seu art. 68, prevendo a concessão de
licença compulsória por dependência de patentes, nos casos em que haja dependência
de uma patente em relação à outra e substancial progresso técnico em relação à patente
anterior. Se os principais objetivos do sistema de patentes são a renovação tecnológica
e o desenvolvimento do estado de técnica, não faria nenhum sentido conferir ao
inventor um privilégio impeditivo do avanço tecnológico. Por isso, se o titular da
patente anterior se recusar a firmar acordo de exploração com o titular da patente
dependente, o Estado deve intervir para conceder, compulsoriamente e de forma
cruzada, a licença de exploração da patente anterior ao titular da patente dependente, e
da patente dependente ao titular da patente anterior
107
. A hipótese prevista no art. 70
também não é útil para a situação enfrentada pelo governo brasileiro em relação aos
anti-retrovirais, pois não há, atualmente, qualquer invento que precise utilizar as
patentes dos anti-retrovirais para a sua exploração.
c) Licença compulsória por necessidade pública
Finalmente, a última situação em que existe possibilidade de concessão de licença
compulsória é naqueles casos de emergência nacional ou interesse público, quando o
106
Apenas como exemplos, podem ser citadas a Acción Ciudadana Contra el SIDA, da Venezuela, a
Médecins sans Frontières, o Fórum Comunitário da América Latina e o Caribe em HIV-AIDS, a II
Conferência de Cooperação Técnica Horizontal da America Latina e do Caribe em HIV-AIDS, o EuroCASO
European Council of Community-based AIDS Service Organisations, a Treatment Action Campaign e a
Oxfam de Londres.
107
Conforme o § do art. 70 da LPI, “o titular da patente licenciada na forma deste artigo terá direito a
licença compulsória cruzada da patente dependente”.
143
titular da patente não for capaz de atender a essas necessidades. Nesses casos, previstos
no art. 71 da Lei 9279/96, não é o interesse do licenciado que prevalece, mas o
interesse da coletividade, que se utiliza da propriedade intelectual do particular para
satisfazer uma necessidade pública
108
.
De acordo com Denis Borges Barbosa (2003b:533), o licenciamento compulsório
por necessidade pública tem a natureza jurídica de uma requisição administrativa.
Afinal, nesse caso não correção de abuso ou adequação à finalidade do direito, mas
mera prevalência de uma necessidade pública sobre o interesse privado.
Quando o direito o é exercido de maneira adequada, a regra constitucional que
corrige o seu exercício é a da função social da propriedade, acompanhada da parte final
do art. 5º, XXIX, da Constituição, que determina a utilização da patente tendo em vista
o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do país ambas
analisadas
109
. Quando o licenciamento compulsório tem por objetivo apenas fazer
prevalecer o interesse público sobre o privado, encontramo-nos perante um caso
específico da situação prevista no art. 5º, XXV, da Constituição
110
. O licenciamento
compulsório não faz com que o titular do direito perca a sua propriedade, como
ocorreria com a desapropriação; o licenciado continua sendo titular da patente,
recebendo royalties, e obtendo novamente o privilégio ao término da situação de
emergência. Trata-se, portanto, apenas de uma utilização temporária, que deve ser
indenizada porque certamente irá causar dano econômico ao titular do direito, ao lhe
retirar o privilégio de exploração do objeto da patente. Caso claro de requisição
administrativa, que substitui, porém, a garantia constitucional de prévia indenização
pelo pagamento de royalties, na proporção da utilização da patente.
A licença compulsória por necessidade pública pode ser concedida em casos de
emergência nacional e interesse público. A emergência nacional implica em um
agravamento do interesse público, qualificado pela urgência no atendimento das
necessidades públicas. Trata-se daquelas situações emergenciais, catástrofes como
108
Segundo Denis Barbosa, essa modalidade de licença compulsória foi utilizada apenas uma vez, no regime
das legislações anteriores, para o combate a uma epidemia de febre aftosa (BARBOSA, 2003b:527). A verdade
é que o próprio instituto do licenciamento compulsório é muito pouco utilizado; de acordo com Antônio
Fonseca (2001:228), nos últimos 50 anos foram concedidas apenas seis licenças compulsórias, e, nos últimos
20 anos, duas.
109
Ver supra, p. 134 e segs.
110
Art. , XXV – no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade
particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houve dano”.
144
enchentes, epidemias, guerras, etc.; em suma, perigos iminentes a que o governo deve
dar uma resposta imediata, sob pena de causar graves danos à coletividade.
O interesse público, por sua vez, se refere àqueles casos de necessidade pública que
podem ser resolvidos sem a urgência exigida pelos casos de emergência nacional.
Trata-se de situações relevantes para a coletividade, que também exigem a intervenção
do governo, mas sem a necessidade de que essa intervenção seja imediata pois a
demora na resposta não irá causar danos irremediáveis à população. Importante
ressaltar também que a LPI determina expressamente que a emergência deve ser
nacional, qualificativo que não se exige ao interesse público no dispositivo legal.
Denis Barbosa identifica o interesse público com os casos de utilidade pública
(2003b:534), enumerados no art. do Decreto-Lei 3365/41 como sendo aqueles casos
que digam respeito à segurança nacional; à defesa do Estado; ao socorro público em
caso de calamidade; à salubridade pública; à criação, melhoramento e subsistência de
centros populacionais; ao aproveitamento de minas, jazidas naturais e energia
hidráulica; a questões relacionadas ao meio urbano, inclusive transporte coletivo e
aéreo; à preservação de monumentos e documentos históricos e artísticos; à divulgação
de obras artísticas, científicas e literárias; à construção de edifícios públicos; e demais
casos previstos em leis especiais.
Embora a identificação do interesse público com a previsão do art. do referido
decreto-lei seja útil para conferir maior segurança jurídica ao dispositivo legal, parece
pouco prudente elaborar uma enumeração exaustiva dos casos em que há interesse
público a ser protegido. Mais seguro para a coletividade é ressaltar o caráter meramente
exemplificativo dessa enumeração, deixando à autoridade pública avaliar se ou não
interesse público em face do caso concreto obviamente, assegurada a revisão
posterior dessa decisão pelo Poder Judiciário.
Segundo o art. 71 da LPI, a licença compulsória por necessidade pública pode ser
concedida de ofício, declarado o interesse público ou a emergência nacional em ato do
Poder Executivo. Essa concessão de ofício deve seguir as regras previstas o art. 37 da
Constituição, sendo necessária inclusive a realização de licitação, quando a situação
concreta se enquadrar nos casos previstos no inciso XXI desse artigo e na Lei 8666/93.
pensando na possibilidade de realização de licenciamentos compulsórios de anti-
retrovirais, o Governo Federal editou em outubro de 1999 o decreto 3201,
145
regulamentando a concessão de ofício de licença compulsória por emergência nacional
ou interesse público. Logo no art. o apresentados os conceitos de emergência
nacional e interesse público, definindo-se a emergência nacional, no inciso I, como “o
iminente perigo público, ainda que apenas em parte do território nacional”, e o
interesse público, no inciso II, como “os fatos relacionados, dentre outros, à saúde
pública, à nutrição, à defesa do meio ambiente, bem como aqueles de primordial
importância para o desenvolvimento tecnológico ou sócio-econômico do País”.
Ressalte-se, de início, o acerto nas definições, compreendendo-se, primeiramente, a
emergência nacional como o iminente perigo público, ainda que em parte do território
nacional. O dispositivo torna mais precisa a interpretação do art. 71, pois é evidente
que pode haver emergências que o compreendam a totalidade do território, mas que,
ainda assim, sejam de interesse de toda a nação. Pode-se citar, como exemplos, uma
epidemia que tenha início em um determinado estado e cujo alastramento por todo o
território nacional se deseja evitar; ou os recentes ataques de organizações criminosas a
autoridades no estado de São Paulo, que representam um perigo para todo o país, não
apenas para o local onde ocorrem. Além disso, tanto a definição de emergência
nacional como a de interesse público são feitas de maneira não-exaustiva, assegurando-
se a liberdade do poder público para avaliar, em face do caso concreto, a existência ou
não de interesse público a ser protegido.
Todavia, o decreto foi alvo de várias críticas, que afirmavam que, além de
impreciso, ele não assegurava de maneira adequada o interesse nacional. Nesse sentido
a opinião de Barbosa, inconformado com a afirmação de que a licença compulsória por
emergência nacional ou interesse público deveria se destinar ao uso “não-comercial”
(nos arts. e do decreto). Segundo o autor, essa precisão não tem fundamento legal
e “cria uma autolimitação contrária ao interesse público” (2003b:545), devendo ser
considerada ilegal. Sequer o acordo TRIPs estabelecia esse requisito, exigindo o uso
não-comercial apenas naqueles casos que não fossem emergenciais.
O autor critica também o art. 5º, II, do decreto, que determinava, de forma
inconstitucional, que o ato de concessão da licença compulsória estabeleceria de ofício
e liminarmente a remuneração do titular (2003b:546). Esse dispositivo violava o devido
processo legal, ao desconsiderar o procedimento estabelecido no art. 73 da LPI, que
atribui ao INPI a tarefa de arbitrar a remuneração, e somente depois de realizados o
146
pedido de licença, a apresentação de defesa pelo titular da patente, e a produção das
provas necessárias.
O art. 10 do decreto era igualmente criticado, pois determinava, nos casos de
inviabilidade de produção nacional do objeto da patente, a sua importação, “desde que
tenha sido colocado no mercado diretamente pelo titular ou com seu consentimento”.
Segundo Barbosa (2003b:547), o teor do dispositivo era frontalmente contrário ao texto
da lei em vigor, pois, uma vez verificada a necessidade pública, a importação pode ser
feita de qualquer fonte.
Por fim, Denis Barbosa critica também o art. 11 do decreto 3201/99, que
determinava a necessidade de licitação para a contratação de terceiros para a
exploração da patente. Na verdade, a contratação deve ser realizada com a aplicação
das normas sobre licitação, previstas no art. 37 da Constituição e na própria Lei
8666/93, mas os casos de dispensa e inexigibilidade de licitação permanecem
inteiramente aplicáveis também nos casos de licenciamento compulsório.
As críticas parecem ter sido ouvidas pelo Poder Executivo Federal, que editou, em
setembro de 2003, o decreto 4830, alterando a redação dos arts. 1º, 2º, 5º, e 10 do
decreto 3201/99. O decreto 4830/03 acolhe a maior parte das sugestões de Denis
Barbosa, afirmando que apenas as licenças compulsórias concedidas em caso de
interesse público estarão sujeitas ao uso público o-comercial (arts. e 2º),
estabelecendo a obrigatoriedade de respeito às normas sobre licitação (inclusive casos
de dispensa e inexigibilidade), em vez de exigir a própria licitação (art. 9º), e deixando
de exigir, para a importação, que o produto tenha sido colocado no mercado
diretamente pelo titular da patente conferindo-lhe, no lugar, apenas uma
“preferência” (art. 10).
A licença compulsória por necessidade pública é a modalidade mais adequada para
ser utilizada no controle das patentes de anti-retrovirais. Apesar de ser possível, em
tese, o licenciamento compulsório das patentes desses medicamentos com base em
outros fundamentos jurídicos, acertou o governo ao fundamentar a demanda no
interesse público em medicar os portadores do HIV. Isso porque, principalmente após o
Decreto 3201/99 (modificado pelo Decreto 4830/03) ter considerado de interesse
público fatos relacionados à saúde pública, seria muito mais fácil, no curso de uma
eventual ação judicial, provar o interesse público na redução do preço do coquetel
147
antiviral do que provar o abuso de poder econômico pelos titulares das patentes, ou a
incapacidade de suprir as necessidades nacionais, ou amesmo a emergência nacional
gerada pela pandemia. Além disso, esse dispositivo permite o licenciamento
compulsório das patentes inclusive nos casos em que o existe abuso de poder
econômico ou emergência, o que amplia sobremaneira a possibilidade de utilização do
instrumento. Por fim, o decreto dispõe de forma clara sobre a concessão de ofício da
licença nos casos de interesse público, sendo desnecessária a existência de decisão
judicial – a revisão judicial será realizada apenas a posteriori.
Desse modo, é plenamente possível a concessão de licença compulsória das
patentes de anti-retrovirais, com fundamento no art. 71 da Lei 9279/96 e no Decreto
3201/99. Como esses medicamentos são utilizados para o tratamento da AIDS, se
referem diretamente à proteção da saúde pública, matéria que o art. 2º, § do Decreto
3201/99 expressamente considera como sendo “de interesse público”. Bastaria,
portanto, a edição de um ato pelo governo federal que determinasse a concessão de
ofício da licença compulsória para solucionar o problema dos altos preços cobrados
pelos laboratórios. Seguido o procedimento estabelecido nos parágrafos do art. 71 da
LPI, o governo poderia conceder a licença compulsória dessas patentes com relativa
agilidade, de modo a atender o interesse público.
Como o laboratório que produziria os medicamentos seria o Far-
Manguinhos/Fiocruz, que é um laboratório estatal e sem fins lucrativos, seria
dispensável a realização de licitação, sendo possível a sua contratação direta, de acordo
com o art. 24, XIII, da Lei 8666/93
111
. Mas restaria à União a opção de realizar
licitação para a compra dos medicamentos, caso considerasse mais conveniente
conceder a empresas particulares a licença para a sua produção. Em ambos os casos, a
licença deveria ser concedida por um prazo determinado, apenas enquanto durasse a
situação de necessidade pública, e permaneceria a necessidade de remuneração do
titular da patente, através do pagamento de royalties. Em suma, a melhor modalidade
de licença compulsória à disposição do governo, caso deseje a redução dos preços das
111
Art. 24. É dispensável a licitação:
[...]
XIII na contratação de instituição brasileira incumbida regimental ou estatutariamente da pesquisa, do
ensino ou do desenvolvimento institucional, ou de instituição dedicada à recuperação social do preso, desde
que a contratada detenha inquestionável reputação ético-profissional e não tenha fins lucrativos”.
148
patentes de anti-retrovirais, parece ser a licença compulsória por necessidade pública,
cujos requisitos podem ser cumpridos com mais facilidade, e cujo resultado parece ser,
de todos, o mais eficaz.
3.2 A Disputa Jurídica pelo Biopoder
3.2.1 O dispositivo de sexualidade na sociedade de normalização
Analisado o instrumento jurídico empregado pelo governo para controlar os preços
dos medicamentos utilizados no tratamento da AIDS, podemos finalmente nos dedicar
a compreender o importante papel desempenhado por essa ferramenta no contexto de
crise da sociedade de normalização. Para nos desincumbirmos adequadamente dessa
tarefa, porém, é necessário primeiramente responder a uma questão inevitável: por que
somente a AIDS? Como reclama Theodoro, em sua tese de doutorado:
6!! 
H6RB) 44
 X:9OIa
 "0I   H   4=  
 &4
          

R '=     4 ' 
  7  6'  EV  '
  $     

3H6RB)! !
      4   
        
4+AY%3B3J3,--I/1<N2
Apesar do tom convenientemente indignado e da ingenuidade tipicamente
bacharelesca, é relevante a questão formulada pelo autor: por que essa crise se
manifesta com tanta intensidade na disputa sobre as patentes de anti-retrovirais,
apenas? Ao menos à primeira vista parece injustificada a ferocidade da batalha neste
front específico, uma vez que a existência de doenças pelo menos tão graves e urgentes
quanto a AIDS deveria ser razão suficiente a ensejar atuação semelhante do governo
se não mais firme! – em relação aos medicamentos utilizados em enfermidades como a
hanseníase, tuberculose, diabetes, câncer, etc. (para ficarmos somente naquelas
mencionadas por Theodoro).
149
A diferença entre o tratamento dispensado pelo governo à AIDS e o tratamento
dispensado a outras doenças é um indício de que talvez seja inadequado abordar o
problema do licenciamento compulsório de patentes de anti-retrovirais a partir da
perspectiva da colisão de direitos fundamentais
112
. Essa abordagem essencialmente
jurídica é insuficiente para dar conta da complexidade das questões envolvidas no
debate. Afinal, se a questão central a ser resolvida fosse mesmo essa da colisão de
princípios, não haveria qualquer diferença entre a política de controle de preços dos
anti-retrovirais e a política de controle de preços de quaisquer outros medicamentos
em todos os casos similares seria necessário resolver o conflito entre o direito
fundamental à propriedade e o direito fundamental à saúde.
A utilização (ou ameaça de utilização) de um instrumento jurídico considerado o
extremo e excepcional quanto o licenciamento compulsório apenas para o controle dos
preços dos anti-retrovirais parece sugerir a existência, nas práticas de combate à AIDS,
de um sentido mais profundo que o da mera defesa do direito à saúde em face do
direito de propriedade. Antes de examinarmos a função política desempenhada pelo
licenciamento compulsório de patentes de anti-retrovirais, é necessário desvelarmos
esse “sentido mais profundo”, de modo a compreendermos as características
específicas que fizeram com que a AIDS assumisse a importância fundamental de que
se revestiu nas sociedades contemporâneas. A constituição da AIDS como foco
privilegiado de incidência das práticas de saber-poder nos permite tratar a doença como
a ‘pedra de Roseta’ do período de transição; da mesma forma que, no bloco de granito
egípcio, o texto grego permitiu a decodificação da escrita demótica e da escrita
hieroglífica, situando-se entre elas como chave de interpretação, também a AIDS,
situando-se no entrecruzamento das práticas disciplinares, biopolíticas e de controle,
pode nos fornecer informações preciosas sobre o posicionamento das forças em
combate e sobre a função do direito neste conflito.
A tática que pretendemos utilizar, então, não é a preconizada pela abordagem
jurídica, que examina a política de licenciamento compulsório de patentes de anti-
retrovirais da perspectiva da colisão de direitos fundamentais seguida da ingênua
reivindicação de sua extensão a outros casos semelhantes. Em vez disso, desejamos
112
Como faz, por exemplo, a já citada tese de Theodoro (2005).
150
identificar este instrumento legal como parte de um dispositivo político, esclarecendo a
especificidade da AIDS em relação às outras enfermidades e verificando de que
maneira o poder normalizador coloniza o poder jurídico e o instrumentaliza para os
seus próprios objetivos. Para isso é necessário compreender o processo de constituição
do dispositivo de sexualidade e o papel da AIDS em seu interior. Essa é a tarefa que
pretendem realizar as próximas seções desta dissertação, partindo principalmente da
primeira parte dos estudos de Michel Foucault sobre a história da sexualidade (VS,
DEV).
O filósofo inicia os seus estudos sobre a sexualidade com uma intenção bastante
clara: desmistificar a hipótese de que a sexualidade teria sido, desde o século XVIII,
submetida a um regime de repressão. De acordo com a “hipótese repressiva” (VS:9), o
desenvolvimento do capitalismo teria exigido uma repressão e um encerramento da
sexualidade, condenada ao silêncio como condição necessária para que a energia a ser
empregada na produção não se dissipasse em prazeres inúteis reduzidos ao mínimo
necessário para a reprodução da força de trabalho. Assim, se desejamos a liberdade em
relação a essa interdição seria indispensável a transgressão das leis repressoras e a
irrupção de um discurso sobre a sexualidade; esse discurso finalmente franquearia à
humanidade o livre acesso aos prazeres, por tanto tempo interditado pelo poder.
Foucault questiona a hipótese repressiva, sugerindo que no século XVII o teria
ocorrido uma restrição do discurso sobre o sexo, mas a formação de um mecanismo de
crescente incitação e de colocação do sexo em discurso. Em vez de uma repressão, o
século XVII conhece uma explosão discursiva e uma incitação geral a falar sobre o
próprio sexo. Mesmo a idéia de ‘repressão do sexo’ desempenha uma função de
incitação nessa economia discursiva, pois ao identificar o discurso sobre o sexo como
uma prática de liberdade em face das interdições do poder, forma à permanente
exigência de enunciação de uma verdade sobre o próprio sexo. A condição de
possibilidade de um discurso que exige a descoberta de nossa sexualidade é a
existência de um discurso contrário, que se apresenta como obstáculo ao conhecimento
da verdade, e do qual deveríamos nos libertar falando sobre o sexo. Nas palavras de
Foucault:
64 
!'"!'
$
151
3
     4 & C 4 &
+?3@#6@*A)/1N2
Percebe-se que os elementos negativos que a hipótese repressiva agrupa num
mecanismo central destinado a interditar a verdade sobre o sexo têm uma função tática,
são parte de uma técnica de saber-poder que tem por objetivo a incitação do discurso
da sexualidade. Não repressão, portanto, mas incitação a falar sobre o sexo, desde o
final do século XVII. E essa incitação está intimamente ligada às importantes
transformações sociais, políticas e econômicas por que passavam as sociedades
ocidentais neste momento de transição.
Desde a Idade Média a Europa convivia com um discurso unitário sobre a carne e a
sexualidade: as práticas sexuais se situavam no registro da dicotomia ‘lícito x ilícito’, e
as práticas de poder que as regulavam apenas levavam em conta a possibilidade de
violação da lei. Até o século XVIII as proibições relativas ao sexo eram de natureza
essencialmente jurídica, e a sexualidade era baseada em um sistema de alianças que
constituía a relação matrimonial como o principal foco de constrições (FOUCAULT,
VS:38).
No início do século XVIII, porém, a unidade discursiva é decomposta, ocorrendo
uma multiplicação dos focos da sexualidade e uma incitação cada vez maior à
descoberta da verdade sobre o próprio sexo. Essa explosão discursiva gera duas
importantes modificações no dispositivo de sexualidade (FOUCAULT, VS:39): provoca
o surgimento das sexualidades periféricas como principal objeto das práticas de saber-
poder o discurso sobre a sexualidade regular do casal legítimo é substituído por um
discurso que enfoca preferencialmente o sexo das crianças, dos loucos, dos criminosos,
etc. –, e cria uma distinção entre o âmbito das regras jurídicas de aliança e o campo de
uma sexualidade natural separando as infrações à lei do matrimônio dos danos à
regularidade de um funcionamento natural. A difusão do sexo no seio da sociedade é
resultado da transição de um “dispositivo de aliança”, essencialmente jurídico, para um
“dispositivo de sexualidade”, essencialmente normalizador (FOUCAULT, VS:101).
O dispositivo de aliança é composto pelo conjunto de práticas de saber-poder que
se organizou desde a Idade Média, estruturando o sexo em torno de um sistema de
regras de acordo com o binômio ‘permitido x proibido’, visando à manutenção da lei
que rege as práticas sexuais, e se preocupando com a estabilidade do vínculo entre
152
parceiros com status definido principalmente na relação matrimonial. Ele é típico da
sociedade de soberania, pois se articula a um regime de poder essencialmente jurídico,
fundamentado na restrição codificada de determinadas condutas sexuais, de acordo
com sua licitude. Desempenhou, assim, uma importante função na circulação de
riquezas, acoplando-se a uma série de normas sobre herança e sucessão familiar que
estabeleciam as regras de transmissão de bens para aquela sociedade.
Esse dispositivo perdeu a importância, na medida em que os processos econômicos
e as estruturas políticas da sociedade que se desenvolvia no século XVIII deixaram de
encontrar nele o seu suporte adequado, exigindo a formação de novas estratégias de
administração das práticas sexuais. Forma-se, então, o dispositivo de sexualidade,
baseado em técnicas móveis, polimorfas e conjunturais de poder, que incidem não mais
para assegurar o registro da licitude, mas para regular de maneira adequada o regime de
sensações e prazeres, com base no binômio ‘natural x antinatural’. Ele também se
articula à economia, mas por intermédio de uma incidência direta do poder sobre o
corpo dos indivíduos, assegurando sua utilidade e reduzindo os riscos para o conjunto
da sociedade.
Não obstante, como percebe Foucault (VS:102), seria inexato afirmar que o
dispositivo de sexualidade substituiu o dispositivo de aliança, até porque foi a partir da
aliança que se desenvolveu e se instalou o dispositivo de sexualidade. De fato, apesar
da prevalência do dispositivo de sexualidade, que aos poucos abandonou a periferia
onde havia se originado e se tornou central em nossas sociedades, os dois dispositivos
convivem na atualidade, tendo na instituição familiar o seu principal permutador: a
família transporta a lei e a dimensão do jurídico para o dispositivo de sexualidade, ao
estabelecer as regras de aliança matrimonial, e simultaneamente transporta a economia
das sensações para o regime da aliança, ao permitir que o poder sobre o prazer também
seja exercido sobre a intimidade do casal regular. Tudo isso faz com que a família se
torne um relé essencial para o funcionamento dos dispositivos de sexualidade e de
aliança no interior da sociedade de normalização. De acordo com Foucault:
:!QRQ /
$4
%&   ! QRQ    
4"= 
&
   6  !    / 
153
E
     !    
+?3@#6@*A)/1-I2
Todo este conjunto de modificações traduz uma transformação mais ampla do
modo como o poder se exerce nas sociedades ocidentais. Após a transição da sociedade
de soberania para a sociedade de normalização
113
o poder sobre o sexo o pode
mais ser exercido de acordo com o antiquado esquema da interdição/repressão, que é
substituído, então, por um programa de produção de subjetividades através de práticas
de saber-poder que incidem positivamente sobre a sexualidade. Torna-se necessária
uma organização do poder sob a forma de incitação, que vai procurar espalhar a
sexualidade pelo campo social de modo a aumentar o âmbito de incidência do poder,
constituir a verdade dos sujeitos a partir de suas sexualidades, promover uma
colonização das práticas de prazer pelo poder, e construir dispositivos de saturação
sexual capazes de aumentar as linhas de penetração do poder (FOUCAULT, VS:42).
Desenvolve-se uma incitação técnica a falar do próprio sexo, que, transmutado em
elemento para a constituição da verdade do indivíduo, se torna uma peça essencial para
o funcionamento dos mecanismos de poder. No século XVIII o sexo é reterritorializado
pelo poder normalizador, e a partir desse momento “cumpre falar do sexo como de uma
coisa que não se deve simplesmente condenar ou tolerar, mas gerir, inserir em sistemas
de utilidade, regular para o bem de todos, fazer funcionar segundo um padrão ótimo. O
sexo não se julga; administra-se” (FOUCAULT, VS:27).
Percebe-se, portanto, que a proliferação do discurso sobre o sexo no século XVIII
não é acompanhada de uma proibição jurídico-soberana que pretenda restringi-lo às
suas manifestações lícitas; pelo contrário, ele se estabelece paralelamente a um regime
de poder normalizador que se propõe a geri-lo positivamente em função de sua
utilidade. Nas sociedades de normalização o sexo não é reprimido, mas incitado e
administrado, buscando-se a regulação das práticas sexuais de modo a assegurar a
manutenção da norma e a constituição de sujeitos úteis. É com base nessas
constatações que Foucault formula a hipótese geral de pesquisa de que parte em A
Vontade de Saber de que o sexo se tornou, na sociedade de normalização, a chave de
interpretação daquilo que somos:
113
Ver supra, p. 13.
154
6!QRRRK'&
 K     '$& 6 
'  :
4  !
4     #     
#4B
  LM       
D$/ " '  ' 

$:"
C+?3@#6@*A)/0;2
Analisando historicamente a formação do dispositivo da sexualidade, Foucault se
depara com o fato de que a atribuição de uma função de verdade ao sexo ocorreu com
mais força, inicialmente, apenas entre as classes economicamente privilegiadas e
politicamente dirigentes. Segundo o autor, os mecanismos de sexualização penetraram
muito lentamente nas camadas mais pobres, em três etapas sucessivas: primeiramente,
no fim do século XVIII, em torno dos problemas da natalidade; em seguida, em
meados do século XIX, quando a organização da família canônica se tornou um
instrumento de controle político do proletariado urbano; e enfim, já no final do século
XIX, quando se desenvolveu o controle judiciário e médico das perversões em nome de
uma proteção geral da sociedade e da raça (FOUCAULT, VS:115). O fato é que o
dispositivo de sexualidade, embora tenha eventualmente se difundido por todo o corpo
social, foi inicialmente criado pelas classes privilegiadas, para regular as condutas de
seus próprios membros. Uma vez que não se dirigia inicialmente às classes inferiores,
torna-se definitivamente insustentável a hipótese de que a finalidade do dispositivo de
sexualidade seria de repressão, devendo-se encontrar, nas formas como as práticas de
poder-saber incidem sobre os corpos das classes dominantes, a sua verdadeira função
política o que permitirá compreender de maneira mais acurada a função
desempenhada pela AIDS no contexto de crise da sociedade de normalização.
O surgimento inicial das técnicas de sexualidade no interior da burguesia, e não no
proletariado, parece sugerir que a sua função não é de sujeição, tratando-se mais de
uma forma de proteção, de defesa da própria burguesia contra alguma espécie de
inimigo. Afinal, já verificamos exaustivamente que o dispositivo de sexualidade não
instaura uma renúncia ao prazer ou uma desqualificação da carne; pelo contrário, as
155
práticas de saber-poder que incidem sobre o sexo têm outros objetivos: trata-se,
segundo Foucault, de novas técnicas para maximizar a vida.
@44D4=
C&!6!
     & 
$
L M?7
4
B&&4 
4/ 444
    K H     4= K
 >4 3
! !
 43!
>'

 
       4  
+?3@#6@*A)/1102
O discurso sobre o sexo, o poder sobre o sexo, e o cuidado com o sexo não
assumem, nas sociedades modernas, a forma de uma repressão ou de uma proibição. O
dispositivo de sexualidade age positivamente sobre o sexo, de modo a constituir
subjetividades úteis e assegurar a proteção do corpo social. Surgindo no interior da
burguesia dominante, não representava uma castração simbólica a servir de exemplo
para o proletariado dominado, com a intenção oculta de facilitar a repressão de sua
sexualidade (FOUCAULT, VS:117); deve-se enxergar o dispositivo de sexualidade de
outra forma, como o resultado do empenho da burguesia, a partir do século XVIII, em
se atribuir uma sexualidade e constituir para si um “corpo de classe”, a ser higienizado
e protegido contra a variedade de perigos existentes assegurando, através do sexo, o
vigor da descendência, a saúde mental, o desenvolvimento das forças físicas, etc.
Dessa forma, o dispositivo de sexualidade acaba desempenhando uma função de
auto-afirmação, podendo ser visto como uma transposição dos procedimentos
utilizados pela nobreza para ressaltar a sua distinção de casta. Enquanto a aristocracia
nobiliárquica se afirmava pela pureza do sangue, assegurada pelo valor das alianças e
pela genealogia das ascendências, a burguesia garantiu a pureza de seu grupo social
pela utilização dos preceitos médicos do século XIX, preocupando-se com o seu sexo e
com as ameaças que ele poderia representar para a hereditariedade caso não se
156
obedecesse a determinadas prescrições. Como afirma Foucault, “o ‘sangue’ da
burguesia foi o seu próprio sexo” (VS:117). E se esse dispositivo chegou a ser
exportado para o proletariado, apenas o foi sob a condição de sua submissão a um
aparato administrativo e a uma tecnologia de controle que asseguraram que
permanecesse instrumento da hegemonia burguesa. As classes dominadas se tornaram
objeto do dispositivo de sexualidade, não para a constituição de seu próprio corpo em
uma atitude de afirmação perante a burguesia, mas como representante de uma série de
riscos (econômicos, comportamentais, epidêmicos) que deveriam ser anulados para
tornar ainda mais segura a proteção da burguesia contra o inimigo interno.
Mas essa preocupação das classes dominantes com o seu corpo sexual também tem
relação com o projeto de uma expansão infinita da vida. A incidência do poder sobre a
sexualidade constitui um corpo específico para a burguesia, estabelecendo regras
específicas de higiene que permitem o aumento de suas forças, a sua longevidade, a sua
proliferação secular, a saúde de sua descendência e a perenidade da própria classe
burguesa. A preocupação com o sexo se situa, portanto, no mesmo contexto em que
ocorre a inserção da vida humana no campo das técnicas políticas, que passam a reger a
vida e assegurar a sua proteção contra os perigos internos. Ela é um elemento
fundamental para o funcionamento da sociedade de normalização, pois o sexo se
encontra na articulação entre os dois eixos ao longo dos quais se desenvolveu a
tecnologia política da vida: o eixo do corpo individual (sobre o qual incidem as
disciplinas) e o eixo do corpo-espécie das populações (sobre o qual incide o biopoder).
As quatro linhas de ataque do dispositivo da sexualidade estudadas por Foucault
(VS:137) demonstram claramente a importância do sexo como ponto de articulação
entre disciplina e biopoder: de um lado, a sexualização das crianças e a histerização
das mulheres incidem sobre os corpos com base em exigências de regulação, e acabam
obtendo efeitos no nível da disciplina. Afinal, é em nome da saúde da raça que tem
início a sexualização da criança, com a caracterização da sexualidade precoce e da
masturbação como ameaças à saúde futura dos adultos e de toda a espécie humana; no
mesmo sentido, é em nome da responsabilidade pela criação dos filhos que se
desenvolve a minuciosa medicalização dos corpos das mulheres através dos estudos
sobre a histeria, considerada um risco para a solidez da família logo, de toda a
sociedade. E, em nome desses riscos sociais, o poder disciplinar esquadrinha
157
minuciosamente o sexo das mulheres e crianças, de modo a obter suas verdades,
constituí-las como sujeitos, e prescrever um conjunto de condutas necessárias no
âmbito individual para a proteção da saúde da espécie.
Do outro lado, o controle de natalidade e a psiquiatrização das perversões são
táticas de ataque que incidem sobre os corpos com base em exigências de disciplinas e
adestramentos individuais, e acabam obtendo efeitos no nível da regulação das
populações. Em nome de necessidades individuais referentes à economia doméstica, ou
a condutas sexuais consideradas antinaturais ou doentias, os corpos são submetidos a
práticas biopolíticas que geram efeitos de segurança para as populações controlando
as taxas de natalidade e reduzindo os riscos populacionais de contágio ou doença
mental, de modo a assegurar o controle biopolítico da sociedade.
Partindo da disciplina ou partindo do biopoder, a incidência do poder sobre o sexo
permite a obtenção de efeitos tanto no nível do indivíduo quanto no nível da população,
fazendo com que ele se torne o alvo central desse poder que se organiza em torno da
gestão da vida. É o que afirma Michel Foucault:
)& 7
 4
 B
/44
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4 4=      3  !
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44=+)/1N02
Em suma, nossas sociedades atribuíram ao sexo um papel central para o
funcionamento do dispositivo político. Situando-se exatamente no local em que
biopoder e disciplina se articulam ortogonalmente, foi constituído como ponto de
convergência para as práticas de saber-poder, que incidem sobre ele intensamente, em
decorrência de sua aptidão privilegiada à produção de efeitos simultâneos no nível da
anátomo-política do indivíduo e no da biopolítica das populações.
158
3.2.2 A AIDS na Encruzilhada – entre a disciplina, o biopoder e o controle
Compreendido o papel desempenhado pelo sexo e pelo dispositivo de sexualidade
na sociedade de normalização, fica mais fácil a tarefa de examinar a importância da
AIDS no contexto da crise que vivenciamos. Sendo uma doença sexualmente
transmissível, parece claro que a importância de que se reveste perante as práticas de
saber-poder da sociedade de normalização é incomparável com a importância de todas
as outras doenças anteriormente citadas. Aliás, não apenas por ser sexualmente
transmissível, mas também por se tratar de uma doença fortemente associada a certas
maneiras de se conduzir sexualmente, a AIDS se apresenta como ponto privilegiado de
incidência do poder sobre a vida na sociedade de normalização, em suas manifestações
disciplinares e biopolíticas.
Não bastassem a centralidade da sexualidade para o funcionamento das práticas de
saber-poder e a fixação da AIDS como elemento do dispositivo de sexualidade, deve-se
observar que a doença ocupa uma posição central também no interior do próprio
dispositivo de sexualidade, apresentando-se como objeto para o exercício das mais
diversas formas de incidência do poder sobre o sexo.
Em primeiro lugar, o tratamento da AIDS se inscreve simultaneamente no registro
do corpo e da população, apresentando tanto exigências de natureza disciplinar quanto
de caráter biopolítico
114
. Nesse sentido, trata-se de uma tática de poder muito mais
versátil do que aquelas estudadas por Foucault (VS:137). Enquanto a sexualização da
criança e a histerização das mulheres obtêm efeitos preponderantemente disciplinares,
e o controle de natalidade e a psiquiatrização das perversões obtêm efeitos
essencialmente reguladores
115
, o controle da AIDS permite a incidência sincrônica do
poder disciplinar e do biopoder, de modo a assegurar de maneira concomitante a
obtenção de efeitos disciplinares e reguladores.
Além disso, a AIDS também se encontra a meio caminho entre a simbólica do
sangue e a analítica da sexualidade. vimos
116
como Foucault estabelece uma
distinção entre o dispositivo de aliança, baseado na simbólica do sangue, e o
dispositivo de sexualidade, baseado em uma analítica do sexo, relacionando-os
114
Como veremos a seguir – ver infra, p. 163.
115
Ver supra, p. 156.
116
Ver supra, p. 151 e segs.
159
respectivamente ao regime de leis e interdições da soberania, e ao regime de
regulamentações e incitações da normalização. No entanto, o próprio Foucault
reconhece que a definição da analítica da sexualidade e da simbólica do sangue como
pertencentes a regimes de poder distintos não significa que essas duas estratégias
tenham se sucedido sem justaposições e interações, citando os casos do racismo de
Estado (em que o sangue é chamado a desempenhar a mesma função política da
sexualidade, assegurando-se a expansão da vida com base no sangue de uma raça) e da
psicanálise (em que o sexo é chamado a desempenhar a mesma função política do
sangue, sendo submetido a um regime de interdições e alianças familiares) como
exemplos dessas interações (VS:118).
Pode-se afirmar, em relação a este ponto, que as políticas que incidem sobre a
AIDS promovem uma interação entre essas duas interações, utilizando-se livremente
da simbólica do sangue e da analítica da sexualidade, e lhes atribuindo funções de
interdição e de normalização de acordo com os efeitos pretendidos pelo poder. A AIDS
convive com uma forte simbólica do sangue e do sexo, que se constituem como
suportes das práticas político-discursivas de combate à doença tanto em sentido
denotativo quanto em sentido figurado. Tomado em sua realidade, o sangue é o local
onde se encontra o vírus, risco objetivo que representa perigo de contágio e de
enfraquecimento do indivíduo e da população; o sexo não é um risco objetivo, mas,
decorrendo das opções do próprio sujeito, se constitui como comportamento de risco
capaz de contaminar o indivíduo saudável, associando-se o prazer sexual ou o prazer
pseudo-erótico de práticas não-sexuais ao temor representado pelo perigo real de
contaminação sangüínea.
Também em sentido conotativo a AIDS se encontra na articulação entre o sangue e
o sexo ou, de modo conceitualmente mais preciso, na articulação entre o dispositivo
de aliança e o dispositivo de sexualidade. Se Foucault mencionou casos distintos em
que o sangue (a aliança) pode desempenhar a função política do sexo (poder sobre a
vida), ou em que o sexo (a sexualidade) pode desempenhar a função política do sangue
(interdição e proibição), a AIDS contém, em si, ambas as possibilidades.
Podemos enxergar o sangue desempenhando a função política do sexo, por
exemplo, quando são designadas como comportamentos de risco todas aquelas
condutas de violação da aliança familiar-matrimonial, como o adultério e a
160
promiscuidade. No interior do dispositivo criado para o controle da AIDS, essas
violações das regras de aliança não são reprovadas em virtude de seu caráter ilícito,
mas por representarem um risco para a saúde do indivíduo, de sua família e, em última
instância, da sociedade como um todo. No dispositivo da AIDS o adultério não é
submetido a uma interdição jurídica nos termos da soberania, mas a uma regulação que
avalia e procura reduzir os riscos de contaminação por ele gerados a ponto de se
realizarem campanhas pela utilização de preservativos mesmo no interior de relações
monogâmicas, ou como forma de protegê-las do contágio
117
. Percebe-se, neste
exemplo, o dispositivo de aliança desempenhando funções típicas do dispositivo de
sexualidade – o sangue agindo como sexo.
No entanto, o combate à AIDS também pode tornar o sexo um elemento do
dispositivo de aliança, fazendo com que ele desempenhe funções de interdição e
repressão, a partir do registro da licitude ou ilicitude da conduta sexual. É o caso das
polêmicas campanhas de abstinência sexual, exigidas pelo governo republicano dos
Estados Unidos como requisitos para a concessão dos auxílios financeiros
disponibilizados pelo USAID (U.S. Agency for International Development) para o
combate à AIDS em países em desenvolvimento
118
. Ao pregar a abstinência sexual
como forma de se evitar o contágio pelo HIV, essas campanhas fazem com que o sexo
desempenhe a função política do sangue, deslocando a liberdade sexual do dispositivo
de sexualidade para o interior da aliança matrimonial. Assim, estabelecem uma forma
de comportamento que não é considerada apenas mais ‘segura’ que a promiscuidade e
117
É o caso da campanha realizada pelo Governo Federal no ano de 2000, em comemoração ao dia mundial
da AIDS, intitulada Não leve aids para casa. Segundo o Ministério da Saúde, a campanha tinha como foco “a
responsabilidade do homem sobre a sua própria saúde e a de seus parceiros”, procurando transmitir a idéia de
que “o homem deve considerar que a aids pode atingir a sua família” (informações e campanha disponíveis
no site <http://www.aids.gov.br/data/Pages/LUMIS7FA9F211EZTSTARTAT10PTBRIE.htm>, em 29 de
junho de 2006).
118
Um exemplo é o programa Mobilizing Youth for Life (Mobilizando a Juventude para a Vida), realizado no
Quênia pelo USAID, que estabelece como seus principais objetivos fazer com que mais de 1,8 milhões de
jovens entre 10 e 24 anos escolham a abstinência e a fé no casamento como as melhores formas de prevenção
contra o HIV e outras DST, e ajudar 200.000 “influenciadoresda juventude a guiá-los em suas escolhas
sobre comportamento sexual. (“One of its major goals is to challenge and equip more than 1.8 million youth
ages 10-24 to choose abstinence before marriage and faithfulness in marriage as the best prevention for the
spread of HIV and other sexually transmitted diseases. Another goal is to help 200,000 ‘influencers’ of youth
parents, guardians, pastors, teachers, and youth leaders to guide youth to make and sustain wise life
choices about their sexual behavior”). Informações obtidas em 29 de junho de 2006 no endereço eletrônico
<http://www.usaid.gov/our_work/global_health/aids/News/successpdfs/kenyastory4.pdf> relatório
publicado pelo USAID em abril de 2005. Campanhas similares foram propostas pelo governo americano aos
países da América Latina, que recusaram o auxílio.
161
o sexo casual, mas principalmente mais ‘lícita’ e ‘moral’ do que as outras formas de
comportamento. A regulação das condutas e a redução dos riscos são resultados
secundários, em face do comando jurídico que interdita o sexo não-matrimonial e
submete novamente as práticas sexuais ao dispositivo de aliança típico das sociedades
de soberania – fazendo com que o sexo aja como sangue.
Percebe-se, em suma, que além de se encontrar no ponto de articulação entre poder
disciplinar e biopoder, por fazer parte do dispositivo de sexualidade, a AIDS se
encontra também no ponto de articulação entre as diversas táticas e estratégias através
das quais o poder incide sobre o sexo. Sexo antinatural e sexo ilícito são igualmente
considerados riscos para a saúde do indivíduo e da população, o que permite a
transformação da AIDS em ponto de incidência do poder em suas mais variadas
formas. Em outras palavras, se sugerimos, anteriormente, que as práticas de combate à
AIDS poderiam ser encaradas como a ‘pedra de Roseta’ do período de transição, isso
ocorre em virtude da multiplicidade de facetas a partir das quais pode ser encarada, e
da imensa variedade de pontos de apoio que disponibiliza para o exercício do poder. A
AIDS é um ponto de articulação no interior do principal ponto de articulação das
sociedades de normalização, e é essa a característica que faz com que o licenciamento
compulsório de patentes de anti-retrovirais possa ser considerado um mirante para o
exame da crise e do papel do direito neste contexto.
Contudo, para que essa afirmação seja compreendida em toda a sua complexidade,
é necessário ter em mente um pressuposto de método: a AIDS não existe em si, de
maneira independente das práticas de poder; o poder soberano, o poder disciplinar e o
biopoder não devem ser vistos como incidindo sobre um fenômeno cuja existência
natural pode ser pressuposta como realidade a priori, modificando as suas
características essenciais em virtude das necessidades e objetivos do poder. A AIDS
não existe. Ou melhor, moderemos a retórica polemista em nome da precisão teórica: é
claro que o vírus é real (embora até mesmo isso seja questionado na atualidade
119
); é
claro que as alterações provocadas no corpo humano pela sua presença são reais;
contudo, a compreensão que temos da AIDS não se limita à presença do vírus e a seus
sintomas. A AIDS é o resultado de uma infecção viral, a AIDS é um conjunto de
119
Ver infra, p. 197.
162
sintomas, mas ela é também uma forma específica de relacionamento com outras
pessoas, uma forma específica de relação consigo mesmo, uma determinada
compreensão da realidade que nos cerca, um modo de submissão a instituições
(médicas, governamentais, morais) destinadas a expressar a verdade sobre o indivíduo
e determinar a sua conduta. Em suas manifestações político-discursivas sobre o corpo
humano a AIDS pode criar ‘aidéticos’, ‘soropositivos’, ‘portadores do HIV’, ‘gays’,
‘prostitutas’, ‘adúlteros’, viciados’, ‘hemofílicos’, ‘vítimas’, ‘culpados’, ‘condenados
à morte’, além de uma série de outras modalidades de sujeitos que se relacionam de
maneiras diferentes consigo, com os outros e com as formas de governo que incidem
sobre eles.
Não se trata, portanto, de afirmar peremptoriamente (e de maneira um tanto surreal,
sejamos sinceros) a inexistência da AIDS e a sua construção arbitrária pelas práticas de
poder-saber. A questão é não tratar a AIDS como um incondicionado modificado pelo
poder, ou como limitada à realidade fática do vírus e seus sintomas. A AIDS não é uma
ilusão, mas também não é verdadeira em si, devendo ser compreendida como um
exemplar daqueles fenômenos que Foucault denominou “realidades de transação”:
#GG!!G&H&G
!!!'G
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!G!
G!GG
!+?3@#6@*A:9/N-12
1,-

Assim como Foucault utilizou esse conceito para analisar o Estado e a sociedade
civil, podemos partir da noção de realidade de transação para compreender a AIDS
como conjunto de práticas (discursivas, políticas, de si) que constituem uma espécie
determinada de sujeito, atribuindo-lhe um conjunto de papéis necessários para o
funcionamento adequado da sociedade. Assim, a AIDS o tem uma essência
ontológica, mas também não é uma ilusão, justamente porque é resultado de um
conjunto de práticas reais que a estabeleceram no mundo real. É do resultado de
relações de poder, do jogo de resistência entre os governantes e os governados, que se
120
“É o que eu denominaria realidades de transação, quer dizer que é no próprio jogo entre as relações de
poder e aquilo que escapa delas sem cessar, é d que nascem, de qualquer modo, na interface entre os
governantes e os governados, essas figuras transacionais e transitórias que, mesmo que não tenham existido o
tempo todo, não são menos reais, e que se pode denominar, quando ocorrem, a sociedade civil, a loucura,
etc.” (tradução livre).
163
origina a AIDS como fenômeno existente, fazendo com que ela produza certos efeitos
no real. E compreender esse jogo de poder é essencial para compreender a função
política desempenhada pela AIDS no presente contexto.
Se a AIDS se constitui como ponto de múltiplas articulações, isso apenas acontece
porque o próprio poder a constituiu como ponto de articulação, atribuindo-lhe uma
localização estratégica no interior do dispositivo de sexualidade e na sociedade de
normalização. Compreendidas estas questões, podemos iniciar um exame um pouco
mais detido das relações existentes entre a AIDS e as formas de poder existentes em
nossa sociedade (disciplina, biopoder e controle).
a) AIDS e Disciplina
Na verdade, os programas de tratamento e prevenção da AIDS já surgem, no início
dos anos 80, como parte integrante do dispositivo de segurança, submetidos a práticas
biopolíticas. Em nenhum momento o combate à AIDS chega a se organizar a partir das
táticas de esquadrinhamento típicas da sociedade disciplinar, como aquelas utilizadas
para a luta contra a peste bubônica durante os séculos XVI e XVII. Como explica
Foucault, o combate à peste se organizava com base em um esquema disciplinar de
internamento que, baseado no modelo da quarentena, não excluía os doentes do
convívio social (como o dispositivo de soberania fazia com os leprosos), mas os
distribuía, isolava, individualizava, vigiava, verificava permanentemente o seu estado
de saúde, e fixava um espaço quadriculado que permitia a obtenção de um registro
completo e centralizado dos fenômenos referentes à doença na comunidade (MP:88).
Em suas palavras:
R G  F   !  ! 
 H G   P   !  
H'G
'PGP
H!HH
 3   G H  PF     P 
+?3@#6@*A)AE/1,2
1,1

121
“Trata-se, nesses regulamentos sobre a peste, de quadricular, literalmente, as regiões, as cidades no
interior das quais existe a peste, com uma regulamentação indicando às pessoas quando elas podem sair,
como, a que horas, o que elas devem fazer em suas residências, que tipo de alimentação devem receber, lhes
proibindo tal e tal tipo de contato, lhes obrigando a se apresentar aos inspetores, a abrir suas casas aos
inspetores. Pode-se dizer que temos, nesse caso, um sistema que é de tipo disciplinar” (tradução livre).
164
De fato, as práticas de combate à AIDS se assemelham mais às práticas instauradas
no século XVIII para o combate da varíola. Em vez de estabelecer um sistema de
internamento através do qual seria possível a vigilância ininterrupta dos doentes e a
prescrição de uma série de condutas capazes de evitar completamente o contágio, a luta
contra a AIDS se preocupa essencialmente em estabelecer zonas diferenciais de risco,
regulando-as de modo a obter uma curva normal que possa reduzi-lo ao mínimo, sem,
contudo, anulá-lo. Foucault o explica da seguinte forma:
*F G
!HF4
$!H7
!!!
H!
  G$    ! G    
!!FG
G FG
$F!!!
     '!F  !! 
!+?3@#6@*A)AE/1,2
1,,

No entanto, o enquadramento das práticas de combate à AIDS como parte do
dispositivo biopolítico das sociedades de segurança não significa que não possam ser
utilizadas também as técnicas disciplinares para a sua contenção. verificamos,
anteriormente
123
, que a história das técnicas não se confunde com a história das
tecnologias, e mesmo no combate à varíola Foucault reconhece a permanência de
certas técnicas disciplinares secundando o biopoder. O combate à AIDS é uma prática
essencialmente biopolítica, mas a disciplina acorre em seu auxílio, desempenhando
certas funções estratégicas para o funcionamento adequado do dispositivo de
segurança.
Ao menos como hipótese inicial, indicação de pesquisa a ser desenvolvida em outra
ocasião, parece ser possível pressentir uma incidência mais firme do poder disciplinar
122
“O problema se apresenta de outra forma, não mais pela imposição de uma disciplina, embora a disciplina
seja chamada em auxílio, mas o problema fundamental será o de saber quantas pessoas foram atacadas pela
varíola, em que idade, com quais efeitos, qual mortalidade, quais lesões ou quais seqüelas, quais riscos
existem na vacinação, qual é a probabilidade de um indivíduo morrer ou a contrair a varíola apesar da
vacinação, quais são os efeitos estatísticos sobre a população em geral, em suma, todo um problema que não
é mais aquele da exclusão, como na lepra, que não é mais aquele da quarentena, como na peste, que será o
problema das epidemias e das campanhas médicas pelas quais se tenta interromper os fenômenos, sejam eles
epidêmicos ou endêmicos” (tradução livre).
123
Ver supra, p. 47.
165
sobre os indivíduos contaminados pelo HIV, enquanto as práticas biopolíticas se
manifestam com igual intensidade sobre as populações portadoras do vírus e sobre as
populações não-contaminadas
124
. Independentemente dessas intuições, que
necessitariam de um estudo mais aprofundado para serem justificadas, comprovadas ou
refutadas, o fato é que as técnicas disciplinares são também colonizadas pelo
dispositivo de segurança, incidindo diretamente sobre os corpos dos indivíduos para
que o risco de contágio seja mantido em um patamar considerado aceitável.
É o que ocorre, por exemplo, nas campanhas para a utilização de preservativos
durante as relações sexuais. É interessante perceber que a questão da utilização de
preservativos o é encarada da mesma forma para os portadores de vírus e para os
não-portadores
125
. Quando se trata de indivíduos saudáveis, as práticas de combate à
AIDS tendem a enfatizar a importância do preservativo principalmente em grupos,
situações ou comportamentos de risco
126
, procurando reduzir, biopoliticamente, a curva
de normalidade que descreve os índices de contaminação, mas aceitando uma margem
de tolerância e permitindo a sua não-utilização em relações que apresentem baixo risco
de contágio.
Quando se trata de indivíduos contaminados, porém, as estratégias de segurança
não são consideradas suficientes para a redução dos riscos; é necessário um controle
124
É claro que situações em que o poder disciplinar incide sobre populações saudáveis. É o caso das
campanhas de abstinência promovidas pelo governo dos Estados Unidos. Mas as principais críticas a esses
programas incidem justamente sobre o seu caráter disciplinar: a sua eficácia é questionada em virtude da
impossibilidade de anulação do sexo extra-matrimonial nas sociedades ocidentais contemporâneas. No fundo,
essas críticas partem do pressuposto de que os riscos de contágio jamais poderão ser completamente extintos,
mas apenas reduzidos a uma curva de normalidade passível de ser gerida pelo poder. Assim, ao propor a
abstinência como forma de combate à AIDS, o governo americano estaria incorrendo no mesmo erro em que
incorreram os governantes do país imaginário de Saramago: aplicar uma técnica de poder inadequada à
realidade que se pretende controlar. Quer-me parecer, então, que este exemplo apenas reforça a hipótese
provisória de que o poder disciplinar se manifestaria preferencialmente sobre os indivíduos contaminados.
125
Deixando de lado a interessantíssima questão das diferenças entre as relações lícitas e ilícitas, e entre as
relações naturais e antinaturais, no que se refere à utilização de preservativos ( examinada, en passant,
quando tratamos das funções desempenhadas pelo dispositivo de aliança e pelo dispositivo de sexualidade no
interior das práticas de combate à AIDS – ver supra, p. 151).
126
É o caso das diversas campanhas realizadas para a utilização de preservativos durante o Carnaval
(Carnaval 2006 Camisinha, não saia sem ela; Carnaval 2004 Pela camisinha não passa nada, use e
confie; Carnaval 2003 Campanha de carnaval estimula adolescentes a usarem camisinha; Carnaval 2002
Sem camisinha nem pensar, etc.) ou para a proteção de populações consideradas de alto risco ou
vulnerabilidade como mulheres, travestis, homossexuais masculinos, caminhoneiros, etc. (Dia Mundial 2004
Mulher, sua história é você quem faz; Travesti e Respeito; Respeitar as diferenças é tão importante quanto
usar camisinha; Camisinha: a melhor amiga da estrada, etc.). Campanhas disponíveis no endereço
eletrônico <http://www.aids.gov.br/data/Pages/LUMIS7FA9F211PTBRIE.htm>, acessado em 29 de junho de
2006.
166
mais fino, a ser exercido sobre cada detalhe das condutas sexuais, e o poder disciplinar
entra em ação incidindo diretamente sobre os corpos dos indivíduos. Para os portadores
do HIV o uso de preservativos é considerado imprescindível, em todas as relações
sexuais, mesmo com outros indivíduos contaminados (pois o contato com uma cepa de
vírus mais agressiva pode agravar a infecção). Manifestando-se de forma disciplinar,
porém, o poder não se limita a exigir o comportamento de maneira absoluta, mas
prescreve uma seqüência de manobras que assegura a eficácia do preservativo
(ensinando as técnicas e movimentos necessários para a sua colocação), e chega
inclusive a sugerir exercícios para a sua utilização sem prejuízo para a economia de
sensações e prazeres. Afinal, assim como o coitus interruptus do século XIX era uma
forma de se permitir a economia do prazer sem violar a realidade das necessidades
econômicas que exigiam o controle de natalidade, a utilização do preservativo no
século XXI também “representa o ponto em que a instância do real obriga a pôr termo
ao prazer e em que o prazer ainda consegue se manifestar, apesar da economia prescrita
pelo real” (FOUCAULT, VS:144).
Mesmo essas prescrições não são suficientes. O poder disciplinar se insere nos
interstícios do poder jurídico e criminaliza aquele indivíduo que, sabendo-se portador
do vírus HIV, mantém relações sexuais sem preservativo com quem não esteja
contaminado. É esse o conteúdo dos artigos 130 e 131 do Código Penal, que
estabelecem os crimes de “perigo de contágio venéreo” e de “perigo de contágio de
moléstia grave” – sendo que o art. 131 prescreve uma sanção mais grave em virtude da
maior gravidade da doença (caso da AIDS), exigindo, porém, a especial intenção de
transmitir a moléstia à vítima, nem sempre presente
127
.
Percebe-se, portanto, que o poder que determina a utilização de preservativos por
indivíduos contaminados pelo HIV não é de natureza biopolítica, mas disciplinar.
Diferentemente do que acontece em relação às populações saudáveis, a disciplina exige
de maneira absoluta a adequação do comportamento à norma abstrata, prescrevendo
manobras e exercícios de modo a assegurar a eficácia da conduta, e classificando os
127
Art. 130. Expor alguém, por meio de relações sexuais ou qualquer ato libidinoso, a contágio de moléstia
venérea, de que sabe ou deve saber que está contaminado:
Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa”.
Art. 131. Praticar, com o fim de transmitir a outrem moléstia grave de que está contaminado, ato capaz de
produzir o contágio.
Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa”.
167
indivíduos de acordo com a sua capacidade de se ajustar ao comando da norma
tornando criminosos (ou, como talvez preferisse Foucault, anormais) aqueles que não
se adaptam à prescrição.
O poder disciplinar também se manifesta com intensidade na discussão a respeito
da adesão do portador de HIV ao tratamento que lhe é ministrado. A adesão é
conceituada da seguinte forma:
3!
4= !
 4    ! )    
#!'
       !
  +  2      
+RAbJR6,--0/12
Segundo o infectologista Clóvis Arns da Cunha, o principal fator para a obtenção
da supressão máxima do HIV (objetivo de todo o tratamento, pois dessa forma o vírus
terá baixa possibilidade de sofrer seleção que gere resistência, e não haverá progressão
da infecção) é a adesão do paciente ao tratamento (ARNS DA CUNHA, 2005:1). No
mesmo sentido a opinião de Vitória, que ressalta que a não adesão ao tratamento anti-
retroviral está diretamente relacionada com o desenvolvimento da resistência viral,
permitindo o surgimento de cepas virais multi-resistentes, e conduzindo à falência
terapêutica. Todo o investimento no desenvolvimento de drogas anti-retrovirais e na
tecnologia de acompanhamento da terapia podem ser perdidos pela não-adesão, o que
torna necessária a elaboração de certas estratégias padronizadas de aumento da adesão
do portador de HIV ao tratamento (VITÓRIA, 2006:1).
Apesar da relevância atribuída à liberdade e à responsabilidade pessoal do paciente
na elaboração dessas estratégias de adesão, elas traduzem fundamentalmente um
regime de disciplinamento do indivíduo. Nesse regime, cabe ao médico criar para o
paciente escalas diárias de tomada dos medicamentos, associar as suas atividades
cotidianas aos horários de ingestão dos comprimidos, e até mesmo exigir a
apresentação semanal de registros escritos referentes ao cumprimento ou não das
prescrições terapêuticas. Qualquer interrupção da medicação deve ser prontamente
comunicada ao médico, e é proibida a substituição de drogas sem a sua aprovação.
Considera-se fundamental o monitoramento constante do indivíduo pelo serviço de
saúde, de modo a avaliar a condição de seu sistema imunológico, permitindo verificar a
168
necessidade de modificação do tratamento anti-retroviral. Trata-se, portanto, de um
regime de poder disciplinar que, utilizando-se de prescrições de comportamento e de
uma rede de acumulação documentária, transforma o indivíduo em um caso para o
exame, procurando constituí-lo como sujeito dócil para, determinando a melhor forma
de utilização de seu tempo e de suas condutas, assegurar a eficácia do tratamento.
Por fim, as mesmas intenções disciplinares se manifestam em relação ao
comportamento cotidiano do portador do HIV, havendo uma forte preocupação com
condutas que não têm qualquer relação imediata com a transmissão ou o controle da
doença, mas que asseguram a manutenção das forças do indivíduo e, desse modo, a sua
utilidade geral para a sociedade. Assim, no website mantido pelo governo com
informações a respeito da AIDS encontra-se uma sessão com “dicas para o dia-a-
dia”
128
do soropositivo, estabelecendo prescrições referentes à alimentação, exercícios
físicos, higiene bucal, relacionamento pessoal e social, etc.
Em suma, o dispositivo de combate à AIDS estabelece um regime disciplinar que
sujeita os portadores do HIV, determinando as suas condutas exaustivamente,
abordando questões relativas à possibilidade de contaminação de populações saudáveis
(e redução das forças úteis da sociedade), ao controle da carga viral no organismo (e
administração da taxa de progressão da doença), e à manutenção das forças do
indivíduo no convívio com a AIDS (garantia de sua utilidade no interior da sociedade).
Trata-se de uma série de prescrições que incidem diretamente sobre o comportamento
individual dos soropositivos, procurando assegurar, com a utilização de táticas
tipicamente disciplinares, o aumento de sua utilidade geral. O próprio governo
reconhece esses objetivos explicitamente, ao afirmar que a definição de políticas
públicas de combate à AIDS “exige mudanças individuais de comportamentos”,
considerando-as diretamente vinculadas às estratégias globais de diminuição dos riscos
individuais e dos grupos
129
. As técnicas disciplinares acabam sendo instrumentalizadas
pela tecnologia biopolítica, pois incidem sobre os comportamentos individuais,
prescrevendo novas formas de conduta de modo a reduzir os riscos de enfraquecimento
128
Acessado em 29 de junho de 2006, no endereço eletrônico
<http://www.aids.gov.br/data/Pages/LUMIS214A7A57ITEMID1423F26EA3744409AAAA1734A167D380
PTBRIE.htm>.
129
Informações obtidas em 29 de junho de 2006, no endereço eletrônico
<http://www.aids.gov.br/data/Pages/LUMIS7A1D4F9DITEMID1427587640EB43AFA238CCA9E9552E2C
PTBRIE.htm>.
169
da sociedade e do próprio indivíduo – em uma estratégia de proteção de ambos em face
do inimigo interno representado pelo vírus.
b) AIDS e Biopoder
Mas é claro que, desempenhando uma função eminentemente biopolítica, as
práticas de prevenção e tratamento da AIDS também se utilizam de técnicas de
segurança para a redução dos riscos gerados pela doença. Afinal, essas práticas não
visam a impedir o contágio de forma absoluta, nem a anular o risco de contaminação
no interior da sociedade. Pelo contrário, atuando sobre o meio em que se encontra uma
determinada população (em vez de diretamente sobre os corpos dos indivíduos), as
técnicas de segurança estabelecem zonas de perigo diferenciais que são administradas
de modo a se obter um resultado regulatório ótimo, reduzindo-se ao máximo os riscos
de propagação do vírus, com o mínimo possível de custos.
Diferentemente do que ocorre com as doenças submetidas à tecnologia disciplinar,
a AIDS o se organiza sob a forma de uma epidemia, caracterizando-se como
endemia. A tecnologia de segurança não trata as doenças sobre as quais incide como a
irrupção momentânea de um fenômeno a ser completamente anulado por prescrições
dirigidas ao indivíduo; as doenças de segurança são preferencialmente encaradas como
fatores constantes de subtração das forças úteis, permanentemente presentes no interior
da população, constituindo-se, não como anormalidade a ser combatida, mas como uma
série de riscos normais que devem ser regulados por ações sobre o meio, reduzindo-se
a sua incidência a níveis considerados seguros para o conjunto da sociedade. Trata-se,
em suma, de uma nova forma de combate ao inimigo interno – nesse caso, o vírus HIV.
É o que afirma Foucault, ao explicar a formação das sociedades biopolíticas:
:!
!QRRR/' 
   4  4 
 4 B4         
        Z
  K !   K  4 4
4'4
 %4
>4/ 
K !  K     
   "     
+?3@#6@*A%B)/,<-2
170
O Programa Nacional de DST/AIDS é um exemplo típico de exercício do biopoder
nas sociedades de segurança. Garantindo o tratamento gratuito e universal aos
portadores de HIV e doentes de AIDS, o governo põe em prática uma tecnologia
centrada na vida:
@ "4
  !       
C      + 2
        
 
'/44
+?3@#6@*A%B)/,<O2
Essa tecnologia é vital para a proteção e o aumento das forças do Estado, no
contexto de desenvolvimento do capitalismo industrial, uma vez que é ela que garante a
inserção controlada dos corpos no aparelho de produção, o ajustamento dos fenômenos
de população aos processos econômicos e, em última instância, a própria reprodução da
força de trabalho. Fica mais clara a importância destes aspectos quando se analisa os
documentos editados pela Organização Mundial de Saúde e pela ONU a respeito da
AIDS: a Organização Mundial de Saúde manifesta preocupação com a possibilidade de
redução das forças úteis da população, ao afirmar que without access to antiretroviral
therapy, people living with HIV/AIDS cannot attain the fullest possible physical and
mental health and cannot play their roles as actors in the fight against the epidemic,
because their life expectancy will be too short
130
(WHO, 2003); também a ONU
demonstra interesse no problema, ao indicar a AIDS como um obstáculo relevante para
o desenvolvimento econômico de vinte países ao redor do mundo conseqüência do
fato de a doea afetar as pessoas em seus anos mais produtivos
131
(UNDP, 2004).
O Ministério da Saúde do governo federal brasileiro se expressa no mesmo sentido
das organizações internacionais, ao proclamar como principais objetivos da terapia
anti-retroviral “retardar a progressão da imunodeficiência e/ou restaurar, tanto quanto
possível, a imunidade, aumentando o tempo e a qualidade de vida da pessoa infectada”
(MS, 2000b); objetivo similar se torna explícito quando o Ministério da Saúde ressalta
a eficiência do fornecimento gratuito e universal de anti-retrovirais na redução da taxa
130
“Sem acesso à terapia anti-retroviral, as pessoas vivendo com HIV/AIDS se tornam incapazes de atingir o
ponto máximo de sua saúde física e mental, e não podem desempenhar seus papéis como atores na luta contra
a epidemia, pois a sua expectativa de vida será muito curta” (tradução livre).
131
Assunto já abordado supra, p. 114.
171
de mortalidade, na diminuição da quantidade de internações, e na contenção dos efeitos
da doença sobre a população economicamente ativa
132
(MS, 2005).
Percebe-se, em suma, em todos os documentos analisados, sempre as mesmas
preocupações: reduzir os riscos de contágio, prolongar a vida dos indivíduos, diminuir
os custos diretos e indiretos da doença, produzir e conservar as forças da população,
preservar a saúde dos indivíduos “tanto quanto possível”, e assegurar a sua utilidade
durante a maior parte de sua existência. E é claro que para cumprir esses objetivos as
práticas de combate à AIDS se utilizam daquelas técnicas que são típicas do dispositivo
de segurança, e incidem sobre o meio de modo a regular os efeitos da doença sobre a
população: a quantificação dos casos, o cálculo dos riscos, a localização das zonas de
perigo, e o gerenciamento das crises
133
.
Em primeiro lugar, o Programa Nacional de DST e AIDS busca quantificar os
casos da doença e calcular os seus índices de ocorrência na população. Para realizar
essa tarefa, cria em todas as unidades da federação “sistemas de informação” cujos
resultados são centralizados no Plano Nacional de Monitoramento e Avaliação, a que
se atribui a responsabilidade por coletar e tabular dados sobre a AIDS, sobre a conduta
de vida dos pacientes tratados, sobre os efeitos dos medicamentos ministrados, estudos
de opinião sobre as campanhas nacionais de prevenção, etc. (MOREIRA DOS SANTOS,
2005). A tarefa de monitoramento é considerada tão importante pelo governo federal,
que inclusive cursos de pós-graduação sobre monitoramento e avaliação, com o
Ministério da Saúde oferecendo bolsas de estudo para os interessados em se
especializar na atividade.
O Plano Nacional de Monitoramento e Avaliação é uma peça fundamental no
interior do dispositivo de segurança, pois, ao organizar de maneira quantificada os
dados obtidos pelos sistemas de informação, torna possível a integração do conjunto de
fenômenos individuais no campo coletivo, permitindo que a AIDS seja tratada no nível
da população. A quantificação dos casos possibilita que a doença seja encarada como
uma distribuição de eventos em uma população circunscrita no tempo e no espaço,
integrando o conjunto de fenômenos individuais no campo coletivo, e capacitando o
132
Este tema também já foi abordado, na p. 115 desta dissertação.
133
Ver análise detalhada deste conjunto de táticas supra, a partir da p. 56.
172
dispositivo de segurança para a intervenção indireta sobre a população através da
manipulação direta dos casos individuais.
E, assim como a disciplina, também o biopoder coloniza o poder jurídico,
atribuindo à lei uma importante função na tecnologia de segurança: desde 1986 a AIDS
faz parte da lista de doenças cuja notificação às autoridades governamentais é
compulsória, conforme determinado pela lei 6259/75
134
. A última atualização dessa
lista foi promovida pela Portaria GM/MS nº 5, de 21 de fevereiro de 2006, que
determina ser dever dos profissionais de saúde comunicar aos gestores do SUS todos os
casos de AIDS sintomática, bem como os casos de infecção por HIV que ocorram em
gestantes ou crianças
135
. Caso não seja realizada a notificação, além da possibilidade de
aplicação de sanções pelo conselho da entidade de classe a que pertence o profissional
em questão, caracteriza-se o crime de omissão de notificação de doença”, previsto no
art. 269 do Código Penal
136
e sancionado com a pena de seis meses a dois anos de
detenção e multa.
A notificação dos casos de AIDS adquire toda essa importância porque é apenas
através da sua quantificação que se torna possível o cálculo dos riscos de contaminação
134
Art. 7º. São de notificação compulsória às autoridades sanitárias os casos suspeitos ou confirmados:
I - de doenças que podem implicar medidas de isolamento ou quarentena, de acordo com o Regulamento
Sanitário Internacional.
II - de doenças constantes de relação elaborada pelo Ministério da Saúde, para cada Unidade da Federação, a
ser atualizada periodicamente.
[...]
Art. 8º. É dever de todo cidadão comunicar à autoridade sanitária local a ocorrência de fato, comprovado ou
presumível, de caso de doença transmissível, sendo obrigatória a dicos e outros profissionais de saúde no
exercício da profissão, bem como aos responsáveis por organizações e estabelecimentos públicos e
particulares de saúde e ensino a notificação de casos suspeitos ou confirmados das doenças relacionadas em
conformidade com o artigo 7º”.
135
Art. 5º. Os profissionais de saúde no exercício da profissão, bem como os responsáveis por organizações
e estabelecimentos blicos e particulares de saúde e ensino, em conformidade com a Lei 6259 de 30 de
outubro de 1975, são obrigados a comunicar aos gestores do Sistema Único de Saúde SUS a ocorrência de
casos suspeitos ou confirmados das doenças relacionadas nos anexos I, II e III desta portaria.
Parágrafo único. O não cumprimento desta obrigatoriedade será comunicado aos conselhos de entidades de
Classe e ao Ministério Público, para que sejam tomadas as medidas cabíveis.
[...]
ANEXO I
Lista Nacional de Doenças e Agravos de Notificação Compulsória:
[...]
XIX. Infecção pelo vírus da imunodeficiência humana - HIV em gestantes e crianças expostas ao risco de
transmissão vertical;
[...]
XXXV. Síndrome da Imunodeficiência Adquirida – AIDS.
136
Art. 269. Deixar o médico de denunciar à autoridade pública doença cuja notificação é compulsória:
Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa”.
173
existentes no interior de cada grupo social. É a partir da análise da distribuição dos
casos em uma população determinada que se pode verificar quais são os fatores que
tornam um indivíduo ou grupo de indivíduos mais suscetível de ser contaminado pelo
HIV, pois, comparando-se as características próprias de cada indivíduo ou grupo com
as regularidades observadas na população, torna-se possível identificar um maior ou
menor risco de contrair a doença. Graças a esse cálculo de probabilidade o biopoder se
torna capaz de agir sobre a população e promover a normalização biopolítica,
estabelecendo margens de segurança para a doença e incidindo preferencialmente sobre
os grupos e indivíduos em que se constata a existência de riscos mais elevados.
Foi essa técnica de cálculo de riscos que fez com que a AIDS fosse por algum
tempo identificada, logo após a sua descoberta, como a “doença dos 5 H”
137
. Os “5 H”
faziam justamente referência aos grupos de risco em que se percebia a ocorrência mais
acentuada da doença, cujo agente etiológico ainda não havia sido identificado:
homossexuais, hemofílicos, haitianos, heroinômanos e hookers (prostitutas). É claro
que essa classificação também cumpria a função, principalmente no período inicial de
descoberta da AIDS, de constituição da anormalidade desses grupos sociais, muitas
vezes considerados culpados dos males que sobre eles recaíam exceto, talvez, os
hemofílicos, que em vez de se constituírem como ‘sujeitos-culpados’, eram tornados
‘sujeitos-vítimas’ da anormalidade alheia. Contudo, apesar do efeito colateral de
constituição desses grupos como vítimas de sua própria culpa e imoralidade, a função
principal cumprida pela denominação provisória da doença era exatamente identificar
os setores da população em que havia um maior risco de contaminação, permitindo
uma incidência seletiva das técnicas biopolíticas e, assim, aumentando a eficácia do
dispositivo de segurança.
Tanto que, mesmo com a redução da discriminação e da estigmatização dos
membros desses grupos sociais como portadores do vírus, a atribuição de um maior
grau de risco a certos grupos, condutas e situações permanece desempenhando uma
importante função assecuratória, constituindo-os como ponto de incidência privilegiado
das práticas biopolíticas. O próprio Ministério da Saúde afirma que as políticas
públicas de prevenção da AIDS se dirigem preferencialmente a segmentos
137
Além de outras denominações como a pejorativa ‘peste gay ou a pretensamente descritiva sigla GRID
(gay-related immune deficiency), que enfatizavam apenas um dos grupos de risco mencionados.
174
populacionais definidos segundo suas características de vulnerabilidade e risco para a
epidemia
138
. Na nova fase da AIDS, não-estigmatizadora, o risco é definido como:
64   
   4       
4 H 4  4   
 
HD
1N<

E a vulnerabilidade tem o seguinte conceito:
6!' 
    4      4 
4  4 H 4  $ 4   4= &
>4D !
"
1.-

Definidos estes conceitos, e estabelecido o princípio geral de aplicação preferencial
das políticas públicas aos grupos em risco ou vulnerabilidade, basta identificar a
existência dessas situações para perceber a ação do biopoder buscando reduzir as
curvas de normalidade da contaminação por HIV. Assim, são consideradas de alto risco
e de alta vulnerabilidade as populações de pessoas presas, usuários de drogas
injetáveis, ‘profissionais do sexo’ (de acordo com o neologismo politicamente correto
do Ministério da Saúde), caminhoneiros e garimpeiros; são consideradas de alto risco e
vulnerabilidade variável as populações de homossexuais e bissexuais masculinos; e o
consideradas de alta vulnerabilidade e risco variável as populações de crianças e
adolescentes, mulheres, índios, segmentos populacionais de baixa renda, efetivos
militares e conscritos das Forças Armadas. E isso faz com que as campanhas de
prevenção organizadas pelo Estado se dirijam preferencialmente a esses grupos
141, 142,
138
Informações obtidas em 20 de maio de 2006, no endereço eletrônico
<http://www.aids.gov.br/data/Pages/LUMIS7A1D4F9DITEMID1427587640EB43AFA238CCA9E9552E2C
PTBRIE.htm>.
139
Informações obtidas em 20 de maio de 2006, no endereço eletrônico
<http://www.aids.gov.br/data/Pages/LUMIS7A1D4F9DITEMID1427587640EB43AFA238CCA9E9552E2C
PTBRIE.htm>.
140
Informações obtidas em 20 de maio de 2006, no endereço eletrônico
<http://www.aids.gov.br/data/Pages/LUMIS7A1D4F9DITEMID1427587640EB43AFA238CCA9E9552E2C
PTBRIE.htm>.
141
Para as populações de alto risco e alta vulnerabilidade foram criadas campanhas como Sem vergonha,
garota, você tem profissão (voltada às profissionais do sexo); Camisinha: a melhor amiga da estrada
(voltada aos caminhoneiros) e Se fosse seringa você usava? (voltada aos usuários de drogas injetáveis).
Campanhas disponíveis em 3 de julho de 2006, no endereço eletrônico
<http://www.aids.gov.br/data/Pages/LUMIS7FA9F211PTBRIE.htm>.
175
143
, de modo a procurar reduzir o seu risco e vulnerabilidade a níveis aceitáveis mais
próximos daqueles do restante da população.
Paralelamente à identificação de determinados grupos sociais como portadores de
um maior risco ou de uma maior vulnerabilidade fatores que os tornam mais
propícios à propagação do vírus são também identificadas certas situações de risco
que devem ser objeto de um cuidado especial, seja para evitar o contágio, seja para
conhecê-lo com a maior antecipação possível
144
: relações sexuais com parceiros
eventuais sem o uso de preservativos, compartilhamento de seringas e agulhas,
transfusão de sangue contaminado, acidentes ocupacionais com objetos rfuro-
cortantes que contenham fluidos contaminados, e filhos nascidos de mães portadoras
do HIV
145
.
É possível perceber que o lculo dos riscos de contaminação por HIV identifica
zonas de risco diferenciais no interior da população. certos grupos sociais com
maior probabilidade de contrair o vírus, em virtude de sua situação ou comportamento
de maior risco ou vulnerabilidade. O risco de contrair a doença varia de acordo com as
características de cada grupo, percebendo-se a existência de zonas de risco mais
elevado, em grupos sociais para os quais existe um maior perigo de contágio. A
localização dessas zonas de perigo é uma tática essencial para o exercício do biopoder
nas práticas de combate à AIDS, pois permite distinguir os comportamentos e situações
de risco em ‘aceitáveis’ e ‘inaceitáveis’, agindo primordialmente sobre as zonas
perigosas, de modo a reduzir os veis do risco inaceitável. É por isso que os
142
Para as populações de alto risco e vulnerabilidade variável foram realizadas campanhas como Travesti e
Respeito (voltada aos travestis); Parceiros Fixos e Não importa com quem você transa, Não importa como
(voltadas aos homossexuais). Disponíveis em 3 de julho de 2006, no endereço eletrônico
<http://www.aids.gov.br/data/Pages/LUMIS7FA9F211PTBRIE.htm>.
143
As populações de alta vulnerabilidade e risco variável foram objeto de campanhas como Mulher sua
história é você quem faz (voltada às mulheres); Baba, Baby (voltada ao adolescente); Pais e Filhos (voltada a
crianças e jovens); Não importa de que lado você está, use camisinha e Camisinha: eu vivo com ela (voltadas
às populações de baixa renda). Disponíveis em 3 de julho de 2006, no endereço eletrônico
<http://www.aids.gov.br/data/Pages/LUMIS7FA9F211PTBRIE.htm>.
144
É o caso da campanha Fique Sabendo, que visa à “sensibilização da população sobre a importância do
teste de diagnóstico do HIV”, e da Campanha de Diagnóstico que relaciona comportamentos de risco ao peso
da dúvida sobre a contaminação. Campanhas disponíveis em 3 de julho de 2006 no endereço eletrônico
<http://www.aids.gov.br/data/Pages/LUMIS7FA9F211PTBRIE.htm>.
145
Situações abordadas por campanhas como Vista-se (promovendo a utilização de preservativos),
Transmissão vertical do HIV e da Sífilis (alertando para a necessidade de tratamento de grávidas
contaminadas) e Camisinha, não saia sem ela (promovendo a utilização de preservativos durante o
Carnaval). Campanhas disponíveis em 3 de julho de 2006, no endereço eletrônico
<http://www.aids.gov.br/data/Pages/LUMIS7FA9F211PTBRIE.htm>.
176
programas de prevenção e tratamento da AIDS privilegiam aqueles grupos
mencionados nos parágrafos anteriores; considerados portadores de riscos muito altos
para o conjunto da sociedade, são classificados como ‘zonas de perigo’, devendo,
portanto, sofrer a incidência do biopoder de modo a reduzir os seus riscos aos mesmos
níveis do restante da população. Desse modo, o dispositivo de segurança age sobre
grupos, condutas e situações perigosas como estar preso, ser usuário de drogas
injetáveis, ser homossexual, fazer parte de um segmento populacional de baixa renda,
trabalhar como ‘profissional do sexo’, praticar sexo sem preservativo, ser filho de
portadores do HIV, etc., promovendo a normalização biopolítica para fazer com que
esses setores populacionais deixem de ser perigosos e retornem a um nível de risco
considerado aceitável.
Deve-se ressaltar novamente, porém, as diferenças entre as técnicas disciplinares de
normação e as técnicas biopolíticas de normalização. Enquanto a disciplina visa à
anulação completa do fenômeno regulado, o biopoder convive com uma certa margem
de tolerância, não impedindo a ocorrência do fenômeno na realidade, mas submetendo-
o a uma regulação que seja capaz de reduzir o seu risco. Talvez o exemplo mais claro
dessa atuação regulatória do risco no combate à AIDS seja o polêmico Programa de
Redução de Danos do Ministério da Saúde. Este programa, criado em 1994 para
atender especificamente os usuários de drogas injetáveis, não pretende impedir que eles
permaneçam usando drogas; pelo contrário, partindo de estudos que demonstram que
muitos usuários não conseguem ou não querem deixar de usar drogas, toleram esse
comportamento de risco cuja anulação completa geraria mais gastos que a tolerância,
mas procuram reduzir o risco e a vulnerabilidade dessas populações, distribuindo
material de prevenção. Segundo informações do Ministério da Saúde, “os Programas
de Redução de Danos não incentivam nem distribuem drogas”
146
, mas orientam os
usuários quanto aos riscos do uso compartilhado de seringas e agulhas, aconselham e
encaminham para a testagem anti-HIV e hepatite, distribuem preservativos masculinos
e femininos e, mais impressionante, fazem a troca dos materiais relativos ao uso de
drogas injetáveis, fornecendo ‘kits de redução de danos’ que contêm duas seringas,
146
Informações extraídas em 4 de julho de 2006, no endereço eletrônico
<http://www.aids.gov.br/main.asp?ViewID=%7B10606C2A%2D406E%2D4022%2DB08B%2D3A7B89B5
F759%7D&params=itemID=%7BD780C473%2D84F9%2D4360%2DBCAC%2D29513C5A7BFD%7D;&U
IPartUID=%7BD90F22DB%2D05D4%2D4644%2DA8F2%2DFAD4803C8898%7D>.
177
água destilada para injeção, sachê de álcool, um copo de medição, e um folder
explicativo sobre redução de danos. Procuram, dessa forma, responder à realidade, não
sob a forma de uma interdição que pretenderia anular o fenômeno de forma absoluta,
mas sob a forma de uma ação sobre o meio que pretende compensar alguns efeitos dos
comportamentos de maior risco, reduzindo os riscos – e não os comportamentos – a um
nível considerado mais seguro e tolerável.
A análise probabilística dos casos no interior de uma população é essencial para
localizar com segurança os grupos e situações de risco existentes em uma dada
sociedade. Encontrados os grupos de risco, eles se tornam os principais pontos de
atuação do biopoder, que se contrapõe à ocorrência da doença através de ações sobre o
meio, buscando aproximar a sua curva de normalidade da curva de normalidade ótima
dos grupos que não se encontram em situação de risco. Não se pretende anular o HIV
ou os comportamentos de risco, mas mantê-los regulados, respondendo à sua realidade
e reduzindo-os a um patamar mínimo cujo custo para as forças da sociedade ainda seja
tolerável. A noção de risco desempenha um papel crucial nessa tarefa: permite localizar
as zonas de perigo, determinando os setores da população que o biopoder deve atacar
com mais força, e assegurando a homeostase da endemia.
Por fim, outra noção fundamental para a regulação da AIDS pelo dispositivo de
segurança é a noção de crise, aqueles fenômenos de aceleração circular e multiplicação
que fazem com que a proliferação da doença, em um determinado momento e local,
aumente os riscos de multiplicar os casos em uma tendência incontrolável e impossível
de ser interrompida. A crise não se interrompe naturalmente, ela exige uma intervenção
artificial sobre o meio que promova o retorno do risco a níveis aceitáveis. É em nome
da crise que se organizam as práticas biopolíticas de controle da AIDS, é em nome da
crise que o governo pode tomar decisões polêmicas como a distribuição dos ‘kits de
redução de danos’, e é em nome da crise que o governo propõe o licenciamento
compulsório de anti-retrovirais, pois ela representa um risco de contaminação global e
desenfreada que exige uma ação rápida do governo para modificar os fatores da
realidade que a produzem.
Neste ponto podemos perceber novamente a colonização do poder jurídico pelo
biopoder, quando o art. 71 da Lei de Propriedade Industrial permite a concessão de
licença compulsória por interesse público ou emergência nacional, e o art. do
178
Decreto 3201/99 define como sendo de interesse público os fatos relacionados à
saúde
147
. Ao criar esses diplomas normativos, o Estado se mune de um arsenal retórico-
jurídico de fundamental importância na caracterização da AIDS como situação de crise.
Constituindo a epidemia/endemia de AIDS como situação de crise, e localizando os
grupos contaminados pelo HIV como zonas de perigo, o governo pode exercer
livremente o biopoder para reduzir o risco no interior da população. Neste contexto, o
licenciamento compulsório das patentes de anti-retrovirais é apenas mais uma das
várias armas utilizadas pelo governo para combater a crise gerada pela AIDS,
submetendo a população a uma regulação biopolítica para assegurar a sua homeostase.
Fica claro o funcionamento biopolítico das estratégias de combate, prevenção e
tratamento da AIDS. Utilizando-se das técnicas de quantificação dos casos, cálculo dos
riscos, localização das zonas de perigo e gerenciamento das crises, o Estado desenvolve
uma forma de intervenção sobre a realidade que tem por objetivo a redução do
fenômeno da contaminação pelo HIV a riscos aceitáveis, fazendo com que as curvas de
normalidade diferenciais dos grupos de risco se aproximem o máximo possível da
curva de normalidade global, e promovendo, assim, a normalização biopolítica.
c) AIDS e Controle
Apesar do caráter predominantemente biopolítico das práticas de combate à AIDS,
sabemos que a sociedade de segurança está em um período de transição. E importantes
sinais dessa transição têm aparecido nas práticas de prevenção e tratamento da AIDS,
no interior das quais podemos entrever alguns indícios da manifestação do poder de
controle, que, conquistando aos poucos o seu espaço, se esforça por ocupar o lugar
atualmente pertencente ao biopoder.
Em primeiro lugar, a sociedade de controle promove uma nova mutação na forma
como a AIDS é compreendida, caracterizando-a como ‘pandemia’. Se a epidemia
representava a irrupção inesperada da anormalidade da morte em uma sociedade cujo
regime de disciplinamento buscava a anulação do fenômeno, e se a endemia é
compreendida como um processo patológico permanente que o dispositivo de
segurança busca reduzir a um vel considerado normal, a noção de pandemia designa
147
Ver supra, p. 145.
179
aquelas doenças com alto grau de infectabilidade e de fácil propagação que tendem a se
espalhar por todo o mundo, gerando uma contaminação de grandes proporções. O que
caracteriza a pandemia é justamente essa ampla movimentabilidade, a facilidade de sua
difusão no tecido social, e a dificuldade de sua submissão a um nível de normalidade.
A compreensão da AIDS como pandemia a insere em um novo regime de poder,
que não tem mais como principal objetivo o seu esquadrinhamento no interior da
sociedade, ou a sua regulação no interior da população, mas a compreensão das linhas
de movimentação que determinam a sua transmissibilidade e a manipulação dos
resultados provocados pelo contágio. Os altos graus de infectividade e a facilidade de
contaminação fazem com que o comportamento da doença na população seja
excessivamente imprevisível, dificultando as ações disciplinares e regulatórias da
sociedade de normalização. O tratamento da AIDS como pandemia exige uma nova
modalidade de poder, capaz de lidar com multiplicidades moduláveis e em constante
movimento – o controle.
Além disso, deve-se lembrar que o vírus HIV é altamente mutável, característica
que faz com que a infecção facilmente se torne resistente aos medicamentos do
coquetel antiviral ministrado aos pacientes. Essa mutabilidade exige que o tratamento
individual seja modulável, adaptando-se permanentemente as drogas utilizadas no
tratamento à história medicamentosa anti-retroviral do paciente e à genotipagem dos
vírus existentes em seu organismo (ARNS DA CUNHA, 2005:3). Não se prescreve,
portanto, um regime fixo de condutas a serem seguidas pelos portadores do vírus ou
seus médicos, mas um conjunto de práticas deslizantes e moduláveis que, sem
estabelecer um percurso padrão dos medicamentos utilizados, procura se adaptar de
forma customizada (personalizada) à realidade do vírus e mantê-lo em níveis de
normalidade.
E esse percurso customizado não possui um termo final, a partir do qual o
indivíduo se encontraria curado; ele se organiza sob a forma de uma modulação
permanente e indefinida, em um feixe contínuo e incessante de novas combinações de
medicamentos, até a morte do indivíduo. O controle dos portadores de HIV jamais
termina. Assim como a escola é substituída pela educação permanente e pelo
homeschooling, e o trabalho na fábrica é substituído pelo Gleitzeit e pelo trabalho à
180
distância
148
, aquele paciente que recebia um diagnóstico, era confinado no hospital, se
submetia a um tratamento e obtinha alta é substituído, na atualidade, por um indivíduo
que nunca cessa de ser tratado, que nunca deixa de estar doente, permanentemente
submetido ao poder médico em virtude da constante necessidade de adaptação do seu
tratamento às novas características apresentadas pelo vírus. Esse indivíduo não recebe
o status de ‘doente’ ou ‘são’, mas permanece orbitando entre essas duas classificações,
de forma crônica, sem jamais tocar qualquer uma delas. E, enquanto se encontra no
meio-termo, continua sujeito às práticas médicas, que sem ser capazes de conduzir o
individuo a um dos pólos da dicotomia, apenas asseguram a manutenção de sua
sujeição no interior do dispositivo de controle. Percebe-se que a crise dos meios de
confinamento não indica apenas o surgimento de novas liberdades, mas também a
possibilidade de formas ainda mais rígidas de sujeição.
Também no âmbito da regulação das populações ocorrem importantes
transformações no dispositivo de poder. O tratamento da AIDS é o representante por
excelência do que Deleuze denomina a “nova medicina” (DELEUZE, 1992b:225), que
substitui o disciplinamento do corpo individual nos hospitais pelo controle permanente
dos comportamentos de risco no interior das populações. A própria substituição do
conceito de ‘grupos de risco’ pelo conceito de ‘comportamentos de risco’ é um
importante indício do desenvolvimento de uma tecnologia de poder de controle nas
práticas de combate à AIDS. Afinal, se o que coloca um indivíduo em situação de risco
é o seu próprio comportamento, e não mais o seu pertencimento a um grupo
determinado, isso significa que qualquer indivíduo capaz de se conduzir de acordo com
o comportamento perigoso pode representar um risco para a população, devendo,
portanto, ser controlado. Conforme a AIDS deixa de estar associada a grupos de risco
(como foi no passado, com o grupo dos ‘5 H
149
), toda a humanidade passa a ser
repartida digitalmente em grupos de matizes variados e diversos graus de risco; a
própria população se torna ‘modulável’, sofrendo a incidência do controle de maneira
variável, conforme a variabilidade do risco representado pela pluralidade de elementos
existentes em seu interior. Não cabe mais a pergunta sobre o pertencimento ou não a
um grupo de risco, ou a localização do indivíduo em uma zona de perigo; mais
148
Ver supra, p. 88.
149
Ver supra, p. 173.
181
importante é verificar o grau de risco que ele corre em virtude de seus próprios
comportamentos, modulando-o no interior de um sistema de geometria variável
compreendido não mais de forma analógica (‘doente x são’; ‘alto risco x risco
inexistente’), mas no interior de uma escala degradée, numérica e não-binária.
Até mesmo nas campanhas organizadas pelo governo federal começamos a
perceber sutis alterações, provocadas pelo gradual desenvolvimento da sociedade de
controle. É o caso da campanha realizada em 1999, em parceria com os laboratórios
multinacionais Merck, Sharp & Dohme e Abbot, e intitulada Adesão de Pessoas
Vivendo com HIV/Aids. A campanha tinha por objetivo aumentar a adesão dos
pacientes de AIDS ao tratamento, com as empresas investindo quase 600 mil reais em
divulgação nos medicamentos e em treinamentos de “facilitadores”
150
. Esta campanha
é um modelo exemplar da crise da sociedade de normalização, pois nela podemos
observar o biopoder e o poder de controle atuando conjuntamente sobre a AIDS,
através de um mesmo instrumento.
Se do ponto de vista do Estado a campanha desempenhava uma função biopolítica,
aumentando a utilidade e prolongando a vida das populações contaminadas pelo HIV
ao incentivá-las a aderir ao tratamento, certamente as companhias farmacêuticas
tinham um outro ponto de vista a seu respeito, enxergando a campanha como um
instrumento para a formação de sujeitos consumidores. É claro, pois não se deve
esquecer que a transição para a sociedade de controle representa também uma
transformação no regime econômico: com a formação do capitalismo pós-industrial,
mais importante que organizar as multidões e aumentar a sua utilidade no interior da
fábrica é garantir a existência de mercado consumidor para a sobre-produção. Para os
laboratórios que financiaram a campanha, o dinheiro gasto na parceria não era uma
forma de auxiliar o Estado na regulação biopolítica, mas um investimento, uma ação
empresarial visando a assegurar a existência e a fidelidade do mercado consumidor
necessário para a absorção dos medicamentos por eles produzidos. Trata-se, em suma,
de criar consumidores e organizar a sociedade com base no consumo, como vimos
anteriormente
151
. Assim, esta campanha de adesão desempenha simultaneamente
150
Campanha e informações disponíveis em 4 de julho de 2006 no endereço eletrônico
<http://www.aids.gov.br/data/Pages/LUMIS7FA9F211EZTSTARTAT20PTBRIE.htm>.
151
Ver supra, p. 89.
182
funções biopolíticas e controladoras, promovendo a regulação biopolítica no interior da
população, mas também aumentando e fidelizando o mercado consumidor dos
medicamentos produzidos pelas multinacionais farmacêuticas.
Situação similar havia sido examinada por Foucault, que, ao analisar a Guerra
dos 30 Anos, observa que para a Áustria ainda se tratava de uma guerra de dinastia,
funcionando de acordo com as regras da sociedade de soberania, enquanto para a
Inglaterra se tratava de uma guerra de razão de Estado, funcionando no registro da
sociedade disciplinar. Afirmava, então, o autor: vous voyez qu’à l’interieur d’une
réalité historique unique vous pouvez très bien trouver deux types de rationalité et de
calcul politique entièrement différents
152
(FOUCAULT, NB:62). Também na campanha
pela adesão ao tratamento coexistem dois tipos diferentes de racionalidade e de cálculo
político; esta coexistência é um importante sinal das transformações que têm ocorrido
no modo de funcionamento da tecnologia de poder, que talvez indiquem uma crise da
sociedade de normalização e a eventual transição, no futuro, para uma sociedade de
controle.
No entanto, esses sinais aparecem muito mais claramente em outro acontecimento,
também relacionado às práticas de combate à AIDS, em que novamente se encontram a
racionalidade política do biopoder e a racionalidade política do controle; nesse outro
encontro, contudo, a convivência entre biopoder e controle não é tão pacífica,
ocorrendo uma verdadeira batalha entre o Estado e os laboratórios farmacêuticos pelo
domínio exclusivo sobre o conjunto das técnicas de poder que se exercem sobre a vida:
trata-se das disputas em torno do licenciamento compulsório das patentes de anti-
retrovirais, tema que será analisado no capítulo a seguir.
3.2.3 O Licenciamento Compulsório de Patentes de Anti-retrovirais e a disputa
jurídica pelo biopoder
Superados os estudos necessários para a compreensão da importância da AIDS no
contexto de crise da sociedade de normalização, torna-se possível dar início à análise
do objeto, propriamente dito, desta pesquisa: as seguidas ameaças realizadas pelo
152
“Percebe-se que no interior de uma realidade histórica única pode-se muito bem encontrar dois tipos de
racionalidade e de cálculo político inteiramente diferentes” (tradução livre).
183
governo federal de promover o licenciamento compulsório das patentes dos
medicamentos utilizados no tratamento da AIDS.
Compreende-se claramente, agora, os motivos por que a apreciação estritamente
jurídica da questão não é capaz de dar conta da complexidade dos problemas
envolvidos no debate. O exame da disputa pelas patentes dos anti-retrovirais em termos
de colisão de direitos fundamentais explica apenas o funcionamento das armas da
guerra, sem permitir que compreendamos as razões que deram início ao combate, nem
a localização estratégica das forças em batalha. Trata-se, portanto, de uma visão muito
limitada do acontecimento.
que iniciamos o capítulo com essa metáfora belicista, tão a gosto de Michel
Foucault (PP:18), podemos continuar a utilizá-la para afirmar que a análise jurídica do
licenciamento compulsório de patentes de anti-retrovirais nos fornece a visão restrita
do soldado da linha de frente: ele sabe que está em guerra, é hábil no manejo de suas
armas, está apto a identificar o inimigo contra quem luta, mas não compreende os
interesses políticos e econômicos que fizeram com que houvesse guerra, em primeiro
lugar. É claro que esse estudo também é muito importante, pois o é possível
compreender a dinâmica da batalha ou vencê-la sem um conhecimento preciso das
armas e dos instrumentos capazes de nos conduzir à vitória. Contudo, é um estudo
insuficiente, pois não nos permite enxergar os planos estratégicos que determinam os
rumos do conflito, nem compreender aquilo que é sempre o mais importante: por que é
que se luta, afinal?
O exame que pretendemos fazer nessa dissertação foi, portanto, de outra natureza:
nos esforçamos por enxergar a disputa sobre o licenciamento compulsório de anti-
retrovirais do ponto de vista dos generais que comandam os exércitos, procurando
desvendar os seus planos estratégicos mais gerais, as ticas de movimentação das
tropas, as razões para a utilização de algumas armas e não de outras, e os interesses
reais pelos quais lutam as forças em combate. Se desejamos esclarecer as funções reais
desempenhadas pelo licenciamento compulsório de anti-retrovirais em nossa
sociedade, é necessário privilegiar a parte final do título da dissertação e examinar com
mais atenção os motivos por que as tentativas de controle visam principalmente aos
‘anti-retrovirais’, em detrimento da compreensão jurídica do ‘licenciamento
compulsório’ em si. Afinal, é por ter como principal objetivo o controle do biopoder
184
envolvido no tratamento da AIDS que essa disputa jurídica se torna chave de
interpretação da crise da sociedade de normalização.
Trata-se, portanto, de não olhar o licenciamento compulsório das patentes de anti-
retrovirais como instituto jurídico. O principal não é compreender o funcionamento
jurídico do licenciamento compulsório, opinar a respeito da sua constitucionalidade,
decifrar a sua natureza jurídica ou apontar o procedimento necessário para que ele seja
concedido sem violação de lei. O licenciamento compulsório de patentes de anti-
retrovirais não é um instituto jurídico, pois como instituto jurídico não nada que o
diferencie do licenciamento compulsório das patentes de quaisquer outros
medicamentos e, deixadas de lado as questões relativas à proteção da saúde, não
nada que o diferencie sequer do licenciamento compulsório da patente de qualquer
outro produto. Como instituto jurídico o ‘licenciamento compulsório de patentes de
anti-retrovirais’ o existe; o que existe é o ‘licenciamento compulsório’ previsão
abstrata válida para quaisquer patentes, de quaisquer produtos.
Logo, o método que utilizamos neste trabalho foi tratar o licenciamento
compulsório de patentes de anti-retrovirais, ou melhor, a ameaça de licenciamento
compulsório das patentes de anti-retrovirais, essencialmente como acontecimento
153
.
Enxergar o licenciamento compulsório de patentes de anti-retrovirais como
acontecimento nos permite compreender as suas especificidades em relação aos
diversos outros casos de concessão de licença compulsória, começando pela mais
óbvia: ele existe enquanto possibilidade real, é uma questão efetivamente debatida em
nossa sociedade, é uma ameaça concreta realizada pelo Estado aos laboratórios
multinacionais; as outras possibilidades de licenciamento compulsório apenas existem
em potencial, como prescrição abstrata, mero dever-ser jurídico, sem qualquer
manifestação concreta no mundo real. Vistas como acontecimento, as ameaças de
licenciamento compulsório podem ser compreendidas como aquilo que efetivamente
são, como ponto de ruptura, “uma relação de forças que se inverte, um poder
confiscado, um vocabulário retomado e voltado contra seus utilizadores, uma
dominação que se enfraquece [...] e outra que faz sua entrada mascarada” (FOUCAULT,
MP:28). E parece bastante claro, agora, quais são as forças em combate nesse jogo de
153
Ver supra, p. 11.
185
poder: de um lado, o Estado-nação, atuando em defesa da sociedade de segurança e
procurando manter o controle sobre as patentes de anti-retrovirais para utilizá-las com
objetivos biopolíticos; do outro lado, as empresas multinacionais, agindo no registro da
sociedade de controle e procurando fazer com que o tratamento anti-retroviral se
submeta ao esquema de uma relação de consumo.
Se luta entre biopoder e controle, é porque nem a sociedade de segurança segue
incontestada, nem a sociedade de controle se instalou de forma definitiva em nosso
país. As transformações pelas quais tem passado o capitalismo contemporâneo não se
manifestam da mesma forma no centro e na periferia; enquanto os países desenvolvidos
mantêm uma produção informatizada de alta tecnologia, com alto grau de investimento
e altos níveis de retorno – como aquela examinada no capítulo 3 da primeira parte desta
pesquisa
154
–, os países situados na periferia do sistema econômico mundial ainda têm
suas economias baseadas nas fábricas tradicionais de meados do século XX, que
exigem mão-de-obra barata, disponibilidade de matéria-prima, e uma população
disciplinada para ser utilizada no interior da brica. E, embora Hardt e Negri tenham
razão ao afirmar que a fábrica de automóveis exportada para o Brasil na década de
1990 não é a mesma fábrica de automóveis da Detroit dos anos 30 (HARDT E NEGRI,
2004:308), isso o altera o fato de que a Ford paulista continua dependendo, como
dependia a Ford detroiter, da permanente constituição de ‘sujeitos-trabalhadores’ para
a manutenção de seus níveis de produtividade.
É importante compreender essa situação de forma adequada, para que possamos
entender com clareza o conflito que se manifesta no licenciamento compulsório de
anti-retrovirais. Hardt e Negri apontam com precisão as diferenças entre as fábricas
disciplinares dos anos 30 e aquelas que são exportadas para as regiões subordinadas na
virada do século: em primeiro lugar, elas são radicalmente desiguais em termos de
tecnologia e produtividade, pois as fábricas atuais incorporam as tecnologias de
informação mais avançadas e produtivas, o que faz com que a sua estrutura tecnológica
se enquadre no sistema de produção da economia informacional pós-moderna; além
disso, elas mantêm diferentes relações de dominação no contexto da economia global,
pois enquanto a fábrica dos anos 30 se encontrava no topo do sistema econômico
154
Ver supra, p. 73 e segs.
186
internacional, produzindo o mais alto valor possível, a fábrica dos anos 90 ocupa uma
posição subordinada em relação ao manejo de informação e à prestação de serviços.
Assim, afirmam os autores:
Y   >     
4      6 4
     &4  
 ''4
+Y6JBA%:%8JR,--./N-<2
Hardt e Negri têm razão quando evitam a interpretação evolucionista que tende a
enxergar a presença de fábricas tradicionais nos países periféricos como apenas uma
etapa de seu desenvolvimento, que naturalmente os conduziria ao estágio em que
atualmente se encontram os países avançados. De fato, elas são sinais da nova
hierarquia da produção mundial, no interior da qual se atribui aos países desenvolvidos
a responsabilidade pela produção considerada de alto valor na economia pós-industrial
(de informação e serviços), enquanto os países subdesenvolvidos permanecem tendo
suas economias baseadas nas fábricas tradicionais, produtoras de bens considerados de
baixo valor no mercado internacional, e geradoras de uma série de problemas urbanos
como poluição, concentração populacional, consumo exacerbado de recursos naturais e
matéria-prima, etc.
No entanto, a afirmação de que toda a atividade econômica tende a ser
transformada pela economia da informação deve ser relativizada: embora as fábricas
tradicionais efetivamente incorporem as novas tecnologias criadas na fase pós-
industrial, elas apenas o fazem na medida em que essa incorporação não influencie na
dinâmica do próprio processo produtivo ou seja, apenas se ela não exigir
transformações mais profundas e radicais no modo como é organizada a produção –, e
para aumentar e eficiência de uma produção que não perde o seu caráter industrial. Em
outras palavras, o emprego da tecnologia pós-industrial no capitalismo periférico dos
países subdesenvolvidos não interfere nas redes de poder que asseguram a continuidade
de seu funcionamento, de modo que, nesses países, as relações econômicas, políticas e
sociais continuam submetidas ao regime disciplinar e biopolítico das sociedades de
normalização.
Nesse contexto, um país como o Brasil obviamente está localizado na periferia do
capitalismo mundial, caracterizando-se como economia predominantemente industrial,
187
organizada no interior de uma sociedade de segurança que se utiliza de técnicas
disciplinares e biopolíticas de sujeição para assegurar a utilidade dos indivíduos e das
populações. Encontra-se, portanto, economicamente subordinado a um grupo de países
centrais, cuja economia privilegia os setores de informação e serviços, em um
capitalismo de sobre-produção que se utiliza das cnicas de controle para a
constituição de sujeitos-consumidores. Essa subordinação não implica na
transformação radical do dispositivo político de sujeição existente em nosso país em
um dispositivo de controle, até porque a própria relação de dominação internacional
exige, para que continuemos cumprindo a nossa função na divisão internacional do
trabalho, a organização de nossa economia nos moldes do dispositivo de segurança.
É normal que ocorram conflitos quando esses regimes distintos se encontram, pois
cada um deles tem um modo de funcionamento específico e visa a objetivos
específicos, conforme o dispositivo de poder em que se enquadre. E é exatamente isso
o que acontece em relação às patentes dos anti-retrovirais: o Estado e as empresas
multinacionais, constituídos por dispositivos de poder distintos, funcionando de
maneiras diferentes, e perseguindo objetivos incompatíveis, entram em conflito a
respeito da função que o Programa Nacional de DST/AIDS deve desempenhar, e
procuram resolver este conflito com todas as armas que têm à sua disposição – pressões
políticas internacionais, reclamações perante organismos de proteção da propriedade
industrial, busca de apoio junto a organizações não-governamentais, mobilização
popular, e até mesmo o direito positivo.
É nesses pontos de contato, portanto, na superfície da luta entre a sociedade de
segurança e a sociedade de controle, que aparece o problema do licenciamento
compulsório das patentes de anti-retrovirais. Para o Estado, o licenciamento
compulsório é um instrumento para a redução de um risco, a partir do momento em que
ele se torna intolerável: o risco de não possuir recursos em quantidade suficiente para
fazer com que o dispositivo de segurança alcance a totalidade da população. Para as
empresas multinacionais, é um obstáculo a ser superado na constituição de um mercado
consumidor para a sua produção intelectual.
188
O Programa Nacional de DST/AIDS desempenha uma função importantíssima para
o dispositivo de segurança; como já vimos anteriormente
155
, a redução dos riscos
representados pelo vírus HIV a um nível de normalidade ótimo é essencial para a
manutenção das forças da população e de sua utilidade para o desenvolvimento do
capitalismo industrial. Para que o programa cumpra a sua função de forma adequada é
necessário fornecer anti-retrovirais gratuitamente a todos os portadores do HIV, mas
esse fornecimento depende da existência de dinheiro para a aquisição dos
medicamentos. Assim, o Estado se utiliza do licenciamento compulsório de patentes
como forma de obter uma redução nos preços dos anti-retrovirais, seja
consensualmente, através da negociação quando o licenciamento compulsório é
utilizado como mera ameaça –, seja à força, através da concessão da licença
compulsória quando ela realmente se torna o braço armado do biopoder. Ainda o
foi necessário recorrer à concessão efetiva da licença compulsória porque ela tem se
mostrado, ao presente momento, um poderoso ‘argumento’ nas negociações com as
empresas farmacêuticas. Uma vez que elas consintam com a redução dos preços de
anti-retrovirais, a curva de normalidade dos gastos com o PN-DST/AIDS retorna a um
nível aceitável, o custo de intervenção sobre a realidade com a concessão da licença
passa a ser alto demais em comparação com os benefícios que serão obtidos, e o
governo recua, disposto a conviver com um grau tolerável de risco. O licenciamento
compulsório de patentes de anti-retrovirais desempenha, então, a função de condição
de viabilidade do programa de combate à AIDS, e garantia do funcionamento do
dispositivo de segurança.
Os laboratórios estrangeiros, por sua vez, em o problema dos anti-retrovirais de
outra forma. Enxergando a realidade através do prisma da sociedade de controle, não se
preocupam com o aumento das forças do Estado e a utilidade da população, mas
apenas com a criação de um mercado consumidor amplo o suficiente para absorver a
sobre-produção que resulta de seu trabalho intelectual. Novos anti-retrovirais o
criados com cada vez mais velocidade; segundo Arns da Cunha, existem atualmente
mais de 30 drogas em fase de pesquisa (2005:5), e é claro que existe uma preocupação,
da parte das empresas que as realizam, quanto ao retorno do investimento realizado.
155
Ver supra, p. 169.
189
Além disso, com a radicalização da governamentalidade neoliberal promovida pela
sociedade de controle, deixa de ser considerada função do governo a constituição dos
indivíduos como sujeitos produtores pelas práticas disciplinares e biopolíticas. Como já
explicamos
156
, no dispositivo de controle os indivíduos disciplinados e as populações
reguladas cedem espaço para uma nova versão do homo oeconomicus, concebido como
aquele homem capaz de responder sistematicamente às variações do ambiente pela
escolha racional dos meios necessários para atingir as suas finalidades. Dessa forma, a
conduta individual passa a ser compreendida em termos econômicos, como escolha
estratégica da melhor alocação possível de recursos raros. A força de trabalho se
transforma em capital, que, se bem administrado pelo indivíduo, pode lhe fornecer uma
renda capaz de permitir o consumo dos bens econômicos desejados. O trabalhador se
torna uma empresa, e o indivíduo, ‘empreendedor de si mesmo’, único responsável por
assegurar o crescimento de seu capital e aumentar a sua capacidade de gerar rendas.
Para isso, é sua tarefa se manter em constante adaptação, cuidando de seu capital
humano de modo a torná-lo mais útil e mais suscetível de lhe proporcionar satisfações
e prazeres. Em outras palavras, a sociedade de controle obriga o indivíduo a se
preocupar com o próprio melhoramento, atribuindo-lhe o encargo de fortalecer o seu
corpo e aguçar a sua mente, de modo a aumentar o valor agregado de seu capital e
torná-lo apto a produzir mais renda.
O dispositivo de controle também aplica a teoria do capital humano ao tratamento
antiviral. De acordo com essa forma de pensamento, não é função do Estado aumentar
a força e a utilidade dos indivíduos; cada indivíduo é administrador de seu próprio
capital, responsável por assegurar a manutenção de sua saúde se deseja que esse capital
continue sendo capaz de produzir rendas –traduzidas em satisfação. Assim, caberia
apenas ao indivíduo adquirir os medicamentos de que necessita, utilizá-los da maneira
correta, adaptar-se às práticas sugeridas para a manutenção da sua saúde (exercícios,
alimentação, higiene), etc., de modo a conservar a utilidade de seu capital humano pela
maior quantidade de tempo possível. Às práticas de governo cabe somente regular a
distribuição adequada dos resultados dessa auto-administração, permitindo que a
realidade atribua ‘naturalmente’ a cada indivíduo, de acordo com o modelo da
156
A discussão que será realizada a partir desse momento retoma os estudos realizados anteriormente, sobre a
governamentalidade da sociedade de controle – ver supra, p. 100.
190
avaliação de desempenho, a renda correspondente à qualidade do investimento
realizado em seu próprio capital.
Em suma, de acordo com a lógica da sociedade de controle, no interior da qual
transitam os laboratórios multinacionais, não parece fazer muito sentido a distribuição
gratuita de medicamentos. Pelo contrário, ela é até perniciosa, pois impede que os
indivíduos racionais administrem o seu capital humano da maneira que considerarem
mais adequada. A sua única preocupação é constituir um mercado consumidor capaz de
absorver em quantidade suficiente a sobre-produção de anti-retrovirais, fazendo com
que não apenas a aquisição dos medicamentos, mas o tratamento dispensado à AIDS
como um todo, seja estruturado em conformidade com a racionalidade do consumo.
É este, portanto, o real significado das ameaças de licenciamento compulsório de
patentes de anti-retrovirais. No contexto de transição da sociedade de normalização
para a sociedade de controle dois entes distintos, cada um atuando de acordo com
uma racionalidade específica, que entram em conflito em virtude das diferenças nos
modos como vêem a realidade. Enxergando o tratamento da AIDS como administração
individual do capital humano, as multinacionais farmacêuticas o submetem à lógica do
consumo, aumentando os preços dos medicamentos porque não consideram relevante
que o tratamento seja disponibilizado a toda a população basta que ele seja acessível
àqueles indivíduos que desejam realizar este investimento em seu próprio capital
humano. o que interessa é a constituição do indivíduo como sujeito consumidor da
sobre-produção de medicamentos, compreendendo-se este indivíduo como empresa
que investe para assegurar a rentabilidade de seu capital.
o Estado-nação, enxergando o tratamento da AIDS como instrumento para a
diminuição dos riscos e para a ampliação das forças úteis, considera o alto preço dos
medicamentos um grave perigo para a manutenção das forças da população, utilizando-
se do licenciamento compulsório para reduzir este perigo novamente aos veis de
normalidade. Assim, assegura o acesso universal aos anti-retrovirais, protegendo a
população do perigo interno representado pelo vírus HIV, e garantindo a constituição
dos sujeitos produtores necessários para o desenvolvimento do capitalismo e o aumento
das forças do Estado.
É dessa forma que deve ser compreendida toda a discussão em torno dos anti-
retrovirais: como uma disputa entre o dispositivo de normalização e o dispositivo de
191
controle, que se corporificam, respectivamente, na estrutura biopolítica do Estado-
nação e na estrutura de controle da empresa multinacional, e tentam enquadrar o
Programa Nacional de DST/AIDS no dispositivo de que fazem parte. O significado do
licenciamento compulsório de patentes de anti-retrovirais é muito mais amplo que o de
uma simples disputa comercial entre países em desenvolvimento e corporações
multinacionais de países desenvolvidos, ou o de uma tentativa de solucionar a colisão
entre o direito fundamental à propriedade e o direito fundamental à saúde. O episódio
representa uma disputa por poder, em que o Estado brasileiro e os laboratórios
multinacionais utilizam os instrumentos jurídicos à sua disposição, na tentativa de
submeter as práticas que transpassam o corpo vivo e administram as suas forças à sua
própria racionalidade – biopolítica ou de controle
157
.
3.2.4 AIDS e Resistência
Mesmo com a compreensão do significado político das ameaças de licenciamento
compulsório de patentes de anti-retrovirais, ainda resta uma questão a ser respondida: o
que fazer em face dessa disputa? De que lado devemos nos colocar? A resposta
imediata, mais fácil e comum, parece ser aquela que afirma a necessidade imperiosa de
se proteger a vida, contra os interesses econômicos dos laboratórios multinacionais,
resistindo-se ao advento da sociedade de controle com todas as armas que nos oferece o
dispositivo biopolítico da sociedade de segurança.
No entanto, se o dispositivo de controle cria formas de sujeição extremas, ao
transformar os indivíduos em unidades-empresas submetidas à lógica do consumo, não
se pode esquecer que também a sociedade de normalização organiza dispositivos de
sujeição, incidindo sobre a vida de modo a prolongá-la indefinidamente e maximizar as
suas forças, aumentando a utilidade dos indivíduos e da população em benefício da
produção capitalista. Apesar do que afirmam o político orgulhoso e o bacharel altivo, o
157
Talvez essa perda do poder do Estado sobre a vida se manifeste também em outros setores, na atualidade,
o que pode representar uma crise generalizada do domínio estatal sobre as práticas biopolíticas. Nesse
sentido, Oswaldo Giacóia interpreta as “recentes rebeliões em cárceres, casas correcionais e presídios vários,
que proliferam em diferentes estados brasileiros” como indícios da “perempção de um modelo de soberania
que é contrastado e contradito precisamente em seu fulcro a decisão soberana sobre o estado de exceção,
que, no caso em análise, implica no direito de morte sobre a vida nua, exercido à margem e em aberto
confronto com os aparatos normativos, criminológicos, legais, policiais e judiciários do Estado nacional”
(GIACÓIA, 2004:18). A hipótese do filósofo certamente ganha força com os recentíssimos ataques de
organizações criminosas a policiais e agentes penitenciários, principalmente no estado de São Paulo.
192
licenciamento compulsório das patentes de anti-retrovirais não representa a defesa dos
valores mais elevados do ser humano em face dos interesses mesquinhos do capital
internacional; trata-se apenas de outra forma de sujeição, que prolonga a vida e
aumenta a saúde das populações porque precisa delas para o fortalecimento do Estado e
para a defesa da sociedade contra os seus inimigos internos.
Percebe-se, então, as dificuldades existentes na busca de uma resposta adequada a
essa questão que sociedade devemos defender? Controle ou normalização? Ora, se
não existe resposta certa, talvez isso seja culpa da própria pergunta, que pressupõe a
necessidade de nos alistarmos em um dos exércitos em combate, ignorando a
multiplicidade de forças que também fazem parte desse campo de batalha que o é
binário, mas plural. Desse modo, a única resposta razoável à interpelação chantagista
que nos exige que pintemos no rosto a bandeira de uma das facções em guerra é a
recusa de qualquer resposta, a negação da própria pergunta, seguida da afirmação da
resistência inarredável em face de todas as formas de sujeição.
É inútil questionar se as sociedades de controle são mais ou menos liberadoras que
as sociedades de normalização, ou qual forma de sujeição é a mais suportável, pois
cada um dos dispositivos de poder é simultaneamente e indissociavelmente liberador e
opressor. Defender um deles contra os outros é defender tanto as suas possibilidades de
liberação quanto as suas possibilidades de opressão, o que torna essa estratégia
claramente inadequada. É em cada um dos regimes que se enfrentam as liberações e as
sujeições cotidianas, de modo que o se deve lutar a favor da segurança e contra o
controle, ou a favor do controle e contra a segurança, mas contra ambos, por outra
disposição de forças, que ainda não somos capazes de conceber. Como afirma Deleuze,
em frase que, por sua agudeza, já se tornou lugar-comum:
:! !
4=4=E
'    4 '&
  !
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  :       +B%*%@[%
1<<,/,,-2
Não cabe temer ou esperar, mas buscar novas armas, adequadas ao terreno sobre o
qual se desenrola a luta interminável. Assim, o fundamental não é a afirmação de
qualquer proposta, mas a negação, a rejeição das práticas de sujeição, a resistência em
193
face do poder, o repúdio das formas de dominação, e a recusa em permanecermos
sendo aquilo que somos. Nas palavras de Foucault:
A '         
A 
 L 4M   ! 7 4 
4A !
" %
 4= &  %   
4     A    
 !        
"!+?3@#6@*AJ69R:3c ,--,/.02
Mesmo esta resposta, porém, talvez ainda não seja satisfatória. Pois, se pode ser
razoavelmente fácil compreender a necessidade de se resistir às práticas de sujeição da
sociedade de controle, o parecem tão claros os motivos e as formas que assume a
resistência contra um poder que se exerce sobre a própria vida. Embora fosse possível
escapar da armadilha de um debate polêmico com a fácil resposta de que cabe à prática
“perfurar essa parede” e responder a esse conjunto de questões no campo da luta
política concreta, é preciso tomar coragem e enfrentar de peito aberto a pergunta que
foi motivo de angústia desde os primeiros passos da caminhada que culminou neste
trabalho
158
: como resistir a um poder que deseja fazer o bem? Como resistir à
manutenção de nossa própria vida?
É com base em Deleuze que poderíamos atribuir à prática essa função de solucionar
os problemas que a teoria não é capaz de resolver. Na ‘entrevista mútua’ que realizou
com Michel Foucault em 1972, o autor afirma que “a prática é um conjunto de relés de
um ponto teórico a outro, e a teoria, um relé de uma prática a outra. Nenhuma teoria
pode se desenvolver sem encontrar uma espécie de parede, e é preciso a prática para
perfurar a parede” (FOUCAULT, DEIV:37). Contudo, essa afirmação é logo a seguir
complementada por Foucault, que diz:
3    !   L  H 
MC!
!/
LMLML$MLM
158
Sou obrigado a violar a estrutura acadêmica formal da dissertação para agradecer expressamente, neste
momento, a todos os membros do Núcleo de Pesquisa História, Direito e Subjetividade, por terem fornecido
importantes contribuições a este trabalho em vários debates sobre o tema da resistência. Não havendo
bibliografia a ser citada, menciono nossas reuniões noturnas de 2005 como referência fundamental para a
discussão que segue.
194
!
  E!   ' /   *
$&&! 
* L$M
 
$& @ LM !     +?3@#6@*A
B%R/N<2
É função do pesquisador, portanto, contribuir na formulação das estratégias de luta.
Como advertem Foucault e Deleuze, não como vanguarda representante da consciência
coletiva, não em recuo para esclarecer os que lutam pela tomada do poder, mas no
interior da própria luta, construindo a teoria como uma caixa de ferramentas, um relé
capaz de fazer a ligação entre uma prática e outra, afirmando-se, ela mesma, como
prática regional e local. Desse modo, ainda que tenhamos consciência das limitações da
pesquisa científica quanto ao seu poder de modificar o equilíbrio de forças da luta
política, e ainda que saibamos que cabe primordialmente aos grupos sujeitados a tarefa
de construir, no decorrer de suas lutas, as estratégias de sua própria libertação,
assumimos a parcela de responsabilidade que cabe ao acadêmico e nos aventuramos na
missão de tentar compreender de que formas somos capazes de resistir a um poder que
apenas deseja o nosso bem manter-nos vivos! –, buscando a produção de efeitos de
verdade que possam ser utilizados por aqueles dispostos a travar a batalha.
Para isso, porém, é preciso antes de tudo ter em mente o que talvez tenha sido a
principal contribuição de Foucault para a teoria do poder: a idéia de que o poder
existe em ato, como relação de forças.
3"
3!444=
>   4 4 )
!444
& 44=4
& 
X+?3@#6@*A%B)/,12
Foucault não compreende o poder como uma substância, ou como um atributo
misterioso cujas origens devem ser descobertas, mas apenas como um tipo particular de
relações entre indivíduos, cujo traço distintivo é que alguns homens podem determinar
mais ou menos a conduta de outros homens (FOUCAULT, DEIV:384). Na medida em
que se compreende a natureza irrevogavelmente relacional do poder, percebe-se
imediatamente o fato de que todo exercício de poder é também possibilidade de
195
resistência ao poder. Não poder sem recusa em potencial; afinal, se o poder é um
enfrentamento de forças, a própria afirmação de que existe uma relação de poder
pressupõe o exercício da força em ambos os lados dessa relação. o faz sentido a
idéia de que uma das partes da relação ‘possui’ poder, enquanto a outra parte apenas
‘se submete’ ao poder exercido pela outra parte; o poder é relação de forças, o que
significa possibilidade semelhante de determinar a própria conduta e a dos outros para
todos os que participam dessa relação. Dessa forma, toda relação de poder contém,
em si, as suas possibilidades de resistência. Novamente, Foucault o explica com
precisão:
d        4 ! 
 /4=%4=
  "     # !  
!"! '4=
)H4
     $   
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5   4   !   
"
    H      D
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D  !   4 K  ' 
 4=   )   &  H
H =/L3
' M J/  ' 4=     !
'+?3@#6@*AB%/,OO2
A existência de relações de poder em toda a sociedade cria possibilidades de
resistência infinitas, na medida em que o equilíbrio provisório de forças vigente em um
determinado momento sempre pode ser desestabilizado, revertido em favor daqueles
que anteriormente se encontravam submetidos. Não relação de poder sem
resistências, e como percebe Foucault, elas são tão mais eficazes quanto mais se
formem ali mesmo onde o poder se exerce (DEIV:249). Se o mero exercício do poder
suscita uma perspectiva de resistência, como possibilidade de oposição estratégica às
forças de sujeição, devemos procurar nas próprias manifestações do poder sobre a vida
os interstícios e fraturas por meio dos quais pode ser possível alguma forma de
196
liberação. É na própria relação de poder que se encontram as formas de resistência a
ele.
Assim, se as práticas de prevenção e tratamento da AIDS veiculam formas de poder
que se exercem diretamente sobre a vida (seja de modo disciplinar, biopolítico ou de
controle), é na própria vida que deveremos encontrar o ponto de partida de toda
resistência. É o que Foucault já havia percebido:
%   !QRQ 4  
 K!' 
B!!H
=  !
$'4
 A 
/       !  
     & ?    
          D
!4=3LMHHDH
H4LM=
4=     !       LM 
  ! 
! 
+?3@#6@*A)/1N02
Mas não devemos nos enganar, acreditando que estamos resistindo ao poder sobre a
vida com a mera aceitação das técnicas e práticas que incidem sobre nosso corpo e nos
fazem permanecer vivo. Permanecer vivo não é resistir, mas consentir cegamente com
o exercício do poder e cumprir a função que nos é atribuída pelo dispositivo político.
Resistir é voltar a vida contra o poder, afirmando a liberdade da potência criadora da
multidão contra as regulamentações exercidas sobre o indivíduo e a população.
Submeter-se ao tratamento e às prescrições de conduta que asseguram a proteção da
vida em face dos riscos de contaminação é aceitar a sujeição imposta pelo dispositivo
de poder, e se tornar útil para os objetivos por ele estabelecidos (a inserção na
produção, o fortalecimento do Estado ou o incremento do consumo); no entanto,
arrancar do Estado aquilo de que necessitamos para a vida que desejamos é, sim, uma
forma de resistência, uma tentativa de reverter a relação de forças em nosso benefício,
de assegurar a obtenção de recursos que nos permitam nos auto-constituirmos como
sujeitos. Como afirma Foucault, o que se deve exigir da seguridade social é que ela
assegure “a cada um autonomia em relação a perigos e situações capazes de inferiorizá-
lo ou submetê-lo” (FOUCAULT, DEV:127).
197
Desse modo, um exemplo de resistência em face do dispositivo da AIDS é a ação
organizada dos movimentos de combate à AIDS, quando exigem ações governamentais
que eles próprios consideram necessárias para viverem suas vidas como obras de arte.
Quando esses grupos atuam requerendo a inclusão de medicamentos mais atuais ao
coquetel distribuído gratuitamente, exigindo o tratamento cirúrgico e medicamentoso
da lipodistrofia, postulando o tratamento de outros efeitos colaterais causados pelos
anti-retrovirais, etc., eles não estão aceitando a sujeição imposta pelo dispositivo de
segurança, mas usurpando o vocabulário desse dispositivo em nome da própria
resistência verdadeiramente “tomando a vida ao da letra e voltando-a contra o
sistema que tentava controlá-la”. Assim, reterritorializam as práticas discursivo-
políticas que prescreviam o prolongamento da vida e lhe atribuem uma função no
interior das práticas de resistência, transformando-as em instrumentos do cuidado de si.
Outro exemplo de resistência em face do dispositivo da AIDS é o caso do grupo
conhecido como os ‘rebeldes da AIDS’, surgido em 1991, que questiona a eficácia dos
anti-retrovirais por não acreditar que o vírus HIV seja o verdadeiro causador da doença
(SEGATTO, 2006:71). Tomando por base os argumentos do biólogo molecular Peter
Duesberg e do ganhador do prêmio Nobel de Química Kary Mullins, esse grupo
defende a hipótese de que a imunodeficiência não é causada pelo vírus, mas pelos
próprios medicamentos e pela desnutrição crônica, recusando-se, assim, a se submeter
ao tratamento antiviral. Segundo a reportagem de Segatto (2006:72), um dos maiores
símbolos da corrente foi a sul-africana Nozipho Bhengu, que abandonou o coquetel de
drogas por atender apenas ao interesse dos laboratórios multinacionais e passou a se
tratar com alho, extrato de batata, limão e espinafre, para combater a desnutrição.
Embora a sua contagem de leucócitos tenha aumentado no início do tratamento,
Benghu morreu de AIDS aos 32 anos, em maio de 2006.
É evidente que não pretendemos sugerir a ninguém que abandone o tratamento
médico tradicional para seguir a dieta de Nozipho Bhengu, até porque esta é uma
pesquisa de caráter jurídico, e não médico. No entanto, embora possa ser questionável a
decisão da sul-africana, e embora os resultados indiquem a ineficácia do tratamento por
ela escolhido, não como permanecer impassível quando a singularidade se insurge,
intransigente, em face do poder. Trata-se de situação semelhante à descrita por
198
Foucault, no artigo em que ele procura responder à pergunta sobre a utilidade da
revolta:
@ZC
 C R
         
:!!:!!
' ' 
$  9  ' 
$&4&
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A recusa de Nozipho Bengu em se submeter aos interesses dos laboratórios
farmacêuticos não a curou da AIDS, nem a manteve viva por mais tempo do que os
anti-retrovirais talvez pudessem fazer. No entanto, o movimento com que ela se
levanta, diz ‘Não obedeço mais!’, e joga na cara do poder o risco de sua própria vida, é
irredutível, pois nenhum poder é capaz de torná-lo absolutamente impossível
(FOUCAULT, DEV:77). É em casos como esse que a resistência ao poder sobre a vida
assume o seu caráter mais extremo, pois prefere o risco da morte à certeza de ter de
obedecer.
Deve-se ressaltar, porém, que não era a morte o objetivo da linha de fuga que
Nozipho Bhengu procurou traçar. A morte era apenas mais um de seus perigos, um
risco que ela optou por correr para escapar do espaço estriado do biopoder. Foi em
nome de uma vida mais saudável que ela abandonou os anti-retrovirais, foi para colocar
em prática um discurso que afirmava a possibilidade de cura que ela optou por outro
tratamento. Como esclarecem Deleuze e Guattari, a morte ocorre quando a linha de
fuga finalmente consegue atravessar o muro e escapar do espaço estriado, mas em vez
de alcançar seu objetivo, conectar-se com outras linhas e aumentar suas valências a
cada vez, transforma-se em “destruição, abolição pura e simples, paixão de abolição”
(DELEUZE E GUATTARI, 1999:109). As linhas de fuga sempre ameaçam abandonar suas
potencialidades criadoras para se transformarem em linha de morte, em linha de
destruição pura e simples.
As práticas de resistência que devemos buscar o se confundem com os seus
riscos; o objetivo não é a morte, mas a criação de um espaço liso no qual a vida não
199
seja estriada, regulamentada, mas pura potência criadora, resistindo ao poder sobre a
vida com o poder da própria vida, e opondo à biopolítica das populações uma
‘biopolítica da multidão’. Uma biopolítica da multidão significa a vontade de afirmar a
positividade de nossa resistência, a potência criadora da vida e da subjetividade, e o
poder como capacidade de criar o novo a partir da destruição total do antigo (REVEL,
2003:60). As linhas de fuga devem recuperar a potência criadora da multidão, que,
opondo sua vida em estado bruto à vida estratificada e regulada das sociedades
disciplinares, torna-se capaz de dissolver a ‘população’ e instaurar em seu lugar um
novo espaço liso, pleno de potências criadoras da vida.
Evidentemente, como afirmam Deleuze e Guattari, “os espaços lisos por si sós o
são liberadores. Mas é neles que a luta muda, se desloca, e que a vida reconstitui seus
desafios, afronta novos obstáculos, inventa novos andamentos, modifica os
adversários” (DELEUZE E GUATTARI, 2002c:214). É nos espaços lisos que se pode criar
e recriar a realidade em que vivemos.
Não é necessário, portanto, reproduzir a resistência extrema de Nozipho Bhengu
para recusar a incidência das práticas disciplinares, biopolíticas e de controle sobre a
vida. Basta substituir a série de prescrições e interdições codificadas imposta pelo
dispositivo de poder por um conjunto de práticas éticas que permitam ao sujeito se
auto-constituir como sujeito moral, transformando a sua vida em obra de arte pessoal.
É possível transformar o código de regras de comportamento estabelecido pelo
programa de combate à AIDS em uma estética da existência, no interior da qual o
sujeito não esteja submetido à incidência das práticas disciplinares, biopolíticas e de
controle, mas encare os cuidados necessários para evitar a contaminação e assegurar a
sua saúde como um olhar sobre si mesmo, um cuidado de si que o constitui como
sujeito responsável por suas opções éticas. A moral de renúncia encontrada nos
regimes alimentares, nos exercícios físicos e na série de cuidados prescritos de forma
disciplinar e biopolítica pelo dispositivo da AIDS deve ser transformada em uma
prática de auto-formação do sujeito, um exercício de si sobre si mesmo através do qual
o sujeito se torne capaz de se elaborar, se transformar, e atingir um certo modo de ser,
em uma prática refletida da liberdade.
Em suma, talvez o saibamos, quando afirmamos a necessidade de resistir ao
poder exercido pelo dispositivo da AIDS sobre nossos corpos, exatamente por quê
200
lutamos; é claro, todavia, o motivo pelo qual lutamos: lutamos contra as sujeições, e
lutamos pelas liberações. Sejam elas quais forem. Se com a resistência à invasão da
sociedade de controle nos recusamos a nos tornarmos aquilo que querem que sejamos,
certamente não é para permanecermos sendo o que éramos nas sociedades de
normalização. É apenas para continuarmos resistindo a todas as formas de sujeição,
buscando nos constituir como sujeitos através de práticas refletidas de liberdade, e
persistindo na recusa de ser aquilo que somos.
201
4 CONCLUSÃO
Esta pesquisa foi realizada tendo dois objetivos paralelos, e de igual grau de
importância: de um lado, decifrar o verdadeiro significado das seguidas ameaças do
governo federal de promover o licenciamento compulsório das patentes dos
medicamentos anti-retrovirais; do outro lado, compreender a crise por que passa a
sociedade de normalização, de que modo a nossa sociedade se situa nesse contexto, e
qual é a localização estratégica das forças no interior da batalha entre ela e a sociedade
de controle. A hipótese de pesquisa que relaciona esses dois fenômenos, aparentemente
desconexos, foi enunciada logo no título da dissertação: “a crise da sociedade de
normalização e a disputa jurídica pelo biopoder: o licenciamento compulsório de
patentes de anti-retrovirais”.
Partimos, portanto, da hipótese de que as ameaças de licenciamento compulsório de
patentes de anti-retrovirais são uma conseqüência da crise das tecnologias de sujeição,
durante a qual os dois principais grupos em combate na atualidade Estado-nação e
empresa multinacional entram em conflito para obter o domínio sobre o biopoder,
utilizando-se, para isso, de todos os instrumentos à sua disposição, inclusive jurídicos.
Em outras palavras, a crise da sociedade de normalização gera uma renhida disputa por
biopoder, e o direito é uma importante arma para se obter a vitória nessa disputa.
Contudo, para compreender o verdadeiro significado das ameaças de licenciamento
compulsório foi necessário realizar um deslocamento metodológico, em relação às
tradicionais pesquisas jurídicas: tratar o direito como acontecimento.
dois modos como tradicionalmente se organizam as pesquisas acadêmicas na
área do direito: o primeiro deles costuma se limitar a uma análise interna do próprio
direito, tomando como objeto de pesquisa um determinado instituto jurídico, para então
expor as várias teorias que o explicam, estabelecer a sua natureza jurídica, interpretar
as normas relacionadas ao tema, etc. em suma, o velho esquema das ‘normas que
criam normas que legitimam normas’. Essa explicação estritamente jurídica das
ameaças de licenciamento compulsório de patentes de anti-retrovirais não seria capaz
de chegar a outra conclusão, senão a da colisão e necessidade de ponderação entre os
direitos fundamentais à vida, à saúde e à propriedade, de acordo com o paradigma
predominante na teoria do direito atual. Apesar de sua importância, esse método o
seria adequado para atingir os objetivos a que nos propusemos, uma vez que limita o
202
campo de visão do pesquisador à essência jurídica do fenômeno, impedindo-o de
enxergar a imensa amplitude de aspectos econômicos, políticos e sociológicos
envolvidos na questão.
A outra maneira como se costuma realizar a pesquisa jurídica consiste em abordar o
direito a partir do exterior, evitando a preocupação com a coerência interna das teorias
e das normas, e privilegiando uma visão externa, mais abrangente, que permite
compreender as várias funções desempenhadas pelo direito em um determinado
contexto histórico. Esse é o método tradicional dos estudos críticos sobre o direito, que
ao analisar uma norma jurídica buscam compreender quais são as suas motivações
ocultas, quais são os seus reais objetivos econômicos, políticos e sociológicos. É um
método atraente, pois permite enxergar por trás da norma os interesses a que ela atende,
e tratar o direito como construto social. No entanto, também essa é uma visão
inadequada para os nossos objetivos, pois trata o direito como mera manifestação de
superfície (ideológica, superestrutural) de questões mais profundas, e assim acaba
deixando de lado o próprio direito para se preocupar apenas com os aspectos
econômicos, políticos e sociológicos do objeto de pesquisa. Esse método tende a
explicar as ameaças de licenciamento compulsório como parte de uma disputa
comercial entre países centrais e periféricos, ou como sinal das novas características do
sistema econômico mundial, que atribui alto valor à produção intelectual situada nos
países desenvolvidos. Assim, toma o direito apenas como motivo para uma análise
mais ampla, geralmente de caráter econômico, na qual se abandona o próprio direito
em prol de um exame ‘do que realmente importa’.
Nenhum desses métodos parecia adequado para abordar o objeto que nos
propusemos a estudar no início dessa dissertação. Afinal, a abordagem jurídica o
mostraria a relação do licenciamento compulsório com a crise da sociedade de
normalização, e a abordagem crítica obstruiria uma análise mais detida sobre a
importância do direito nesse contexto. Dessa forma, em vez de tratar o direito como
instância sem relação com o social, ou como manifestação superficial de problemas
políticos e econômicos, optamos por tratar o direito como acontecimento. Tratar o
direito como acontecimento significa não enxergá-lo de maneira hipostasiada, deixar
de lado as preocupações com a coerência interna do discurso teórico e examinar as
práticas concretas e a utilização real dos instrumentos jurídicos em nossa sociedade;
203
significa também não privilegiar a economia e a política, revalorizando a importância
do direito não como ferramenta, mas como campo de batalhas no interior do qual se
pode alterar o equilíbrio de forças, com importantes conseqüências políticas e
econômicas.
Para examinar o licenciamento compulsório de patentes de anti-retrovirais como
acontecimento é necessário não sobrevalorizar o conjunto de normas e teorias a
respeito de sua natureza jurídica ou fundamento constitucional; afinal, elas têm
importância na medida em que são instrumentalizadas pelas partes em combate em prol
de seus próprios objetivos. Não é preciso ser um expert em química ou física para
manobrar um canhão, basta conhecer as técnicas necessárias para utilizá-lo de maneira
eficiente. Por termos considerado o licenciamento compulsório como canhão, apenas o
exame das alavancas utilizadas pelo governo federal para apontá-lo em direção ao
inimigo foi suficiente, pois permitiu compreender de que modo e com que
finalidades ele foi utilizado. Assim, pudemos perceber que alguns elementos, como a
noção de interesse público e o discurso sobre a função da propriedade industrial, foram
firmes pontos de apoio para que o governo federal manobrasse essa peça de artilharia.
No entanto, o mais importante não é o discurso jurídico, político ou econômico a
respeito do licenciamento compulsório, mas a sua utilização concreta como arma.
Analisando essa utilização, vimos que as ameaças de licenciamento compulsório das
patentes de anti-retrovirais atuaram como elemento do dispositivo de segurança:
buscando reduzir o risco de o poder combater a AIDS a um nível tolerável,
desempenharam a função que lhe foi prescrita pela sociedade de normalização mesmo
que as ameaças de licenciamento jamais tenham se concretizado – pois obtiveram
sucesso na redução dos preços dos medicamentos. E essa redução de preços tem um
objetivo bastante específico: manter o controle sobre o programa de combate à AIDS,
aumentar o vigor e a utilidade das populações, e reduzir o risco de enfraquecimento
representado pelo vírus ao nimo possível, constituindo sujeitos-produtores de modo
a ampliar as forças do Estado e assegurar o seu permanente crescimento. Dessa forma,
as ameaças de licenciamento compulsório representaram uma resistência da sociedade
de normalização em face da sociedade de controle, em que o Estado buscou manter o
domínio sobre o biopoder para fazer com que ele continuasse desempenhando a sua
função normalizadora. Essa resistência ocorre em um contexto em que os laboratórios
204
farmacêuticos procuram impor uma outra lógica às práticas de combate à AIDS,
submetendo-as às estratégias do controle, de modo a constituir sujeitos-consumidores
para o excesso de produção das sociedades pós-industriais.
Durante a análise das funções desempenhadas pelas ameaças de licenciamento
compulsório percebemos que o episódio pode ser tomado como chave de interpretação
da crise da sociedade de normalização, pois ele tornou possível identificar as forças em
combate e compreender o andamento da batalha. Afinal, ficou claro que essas ameaças
são apenas a faceta jurídica de uma complexa disputa pelo biopoder, entre dois entes
que representam duas sociedades distintas o Estado representando a sociedade de
normalização, e as multinacionais representando a sociedade de controle. A mera
possibilidade de existência de um conflito como esse aponta para uma importante
diferença entre os países desenvolvidos e os países subdesenvolvidos na atualidade,
revelando que a crise da sociedade de normalização não se manifesta da mesma forma
em todo o mundo.
Enquanto os países desenvolvidos realizam a transição para uma sociedade pós-
industrial baseada em uma tecnologia de poder original, a nova divisão internacional
do trabalho compele os países periféricos a receberem em seus territórios a produção
industrial tradicional, baseada nas antigas técnicas disciplinares e biopolíticas de
normalização. Essa diferença é perceptível na disputa entre o Estado e os laboratórios
multinacionais pelo controle dos anti-retrovirais, pois podemos perceber claramente
neste episódio a oposição de interesses que caracteriza duas formas distintas de
sujeição: a sociedade de normalização e a sociedade de controle.
O exame minucioso das características da sociedade de normalização e da
sociedade de controle nos fez compreender que não se deve optar por uma delas em
detrimento da outra. Afinal, ambas são espécies de sujeição, diferentes na forma, mas
com um conteúdo igualmente opressor. O fundamental, portanto, não é tomar partido a
favor ou contra o licenciamento compulsório, mas compreender o seu significado para
que possamos criar novas formas de resistência, tanto em face da sociedade de
normalização quanto em face da sociedade de controle. É necessário resistir ao poder,
não importa a forma que ele assuma, já no momento em que ele incide sobre nós.
Ao lado de todos os objetivos teóricos que foram apresentados, esta dissertação
teve também um objetivo político. Assim como o licenciamento compulsório de
205
patentes foi uma arma de defesa da sociedade de normalização em face da sociedade de
controle, gostaríamos que esta dissertação fosse também uma arma, um instrumento de
resistência em face das tecnologias de sujeição quaisquer que sejam. Conhecendo as
limitações do discurso como agente transformador da realidade, e atribuindo àqueles
que se sentem sujeitados a responsabilidade por sua própria libertação, não deixamos
de exercer com esse trabalho alguma resistência pessoal em face do dispositivo de
poder, o que pode torná-lo um instrumento para todos aqueles que desejem distorcê-lo
e fazê-lo ranger em prol de seus próprios objetivos. Afinal, a função política de todo
pensamento é sempre a libertação.
206
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