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(FOUCAULT, CS). Na classificação que é tradicionalmente imposta à produção
foucaultiana, essas obras já pertencem ao que seria a ‘terceira fase’ de seu pensamento,
dedicada não mais à arqueologia dos discursos ou à genealogia dos poderes, mas ao
estudo sobre as práticas que tornam possível a auto-constituição do sujeito por si
mesmo
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. Logo, não abordam mais a temática do biopoder, de modo que os escritos de
Foucault sobre esse assunto se resumiriam a pouco mais de vinte páginas de A Vontade
de Saber, nas quais o filósofo expõe sinteticamente a hipótese de que o biopoder
atuaria como um complemento da disciplina nas sociedades de normalização. Contudo,
quando se analisa os cursos de Michel Foucault no Collège de France se percebe que
esses oito anos de aparente silêncio foram na verdade um período de intensa atividade
intelectual, e é nesse percurso que Foucault produz os seus trabalhos mais ricos sobre o
biopoder e a sociedade de segurança.
O primeiro dos cursos a ser publicado, em 1997, foi Em Defesa da Sociedade
(EDS), ministrado de janeiro a março de 1976. Essa é uma das primeiras vezes que se
tem notícia da utilização, por Michel Foucault, do conceito de biopoder, já que o curso
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Sem acesso aos cursos que Foucault ministrou no Collège de France, essa classificação trinária do
pensamento foucaultiano em ‘fases’ até faria algum sentido. Afinal, depois de passar quase vinte anos
estudando o discurso em uma arqueologia dos saberes (em obras como As Palavras e as Coisas (PC) e A
Ordem do Discurso (OD)), em 1975 ele parece mudar radicalmente o seu foco de preocupações para realizar
uma genealogia do poder disciplinar em Vigiar e Punir (VP). Em 1976 continua estudando o poder, agora
verificando de que formas ele incide sobre a sexualidade, e descobre o biopoder atuando ao lado da disciplina
para regular os fenômenos da vida. Então, após oito anos de reclusão, meditando como um eremita no topo
da montanha, Foucault teria retornado com suas longas barbas prateadas e seu profundo olhar de sabedoria
para nos presentear a todos com a verdade fundamental de que, apesar de tudo, “o sujeito existe”, e é disso
que se tratava o tempo todo – ergo, a Modernidade está salva. Surpreendentemente, o próprio Foucault
encorajava essa forma de pensamento, atribuindo uma autoria como foco de coerência de suas obras, que,
segundo ele, teriam desde sempre o sujeito como tema central. Contudo, se Foucault declarou que o alvo do
seu trabalho “durante os últimos vinte anos [...] tem sido criar uma história dos diferentes modos pelos quais
os seres humanos em nossa cultura se tornam sujeitos” (apud RABINOW, 2002:31), não se pode esquecer que
o mesmo Foucault também sustentou que o princípio de autoria desempenha um papel político, não se
referindo ao “indivíduo falante que pronunciou ou escreveu um texto, mas [atuando] como princípio de
agrupamento do discurso, como unidade e origem de suas significações, como foco de sua coerência”, de
modo a excluir o acaso da ordem discursiva (FOUCAULT, OD:26). Cabe ao intérprete de suas obras escolher,
entre os dois ‘autores’, o que lhe seja mais útil como ferramenta de trabalho. Todavia, atribuir um princípio
unificador global ou princípios unificadores parciais para cada fase ao pensamento de Foucault parece reduzir
a originalidade de seu pensamento, ao mesmo tempo em que lhe atribui uma sistematicidade que claramente
não possui. Na verdade, como percebe Márcio Fonseca (2002:22), os deslocamentos representam apenas
“aquilo mesmo que são: deslocamentos, resultados de hesitações, de começos e recomeços, de
experimentações”, sem quaisquer significados ocultos a serem descobertos pelo hermeneuta. As supostas
‘fases’ são apenas “momentos em que a recorrência a certos temas e a determinadas formas de abordagem
permite a identificação de algumas regularidades, nunca se constituindo em momentos estanques e
independentes entre si” (M. FONSECA, 2002:94). Afinal, Foucault é como o caranguejo, e se desloca
lateralmente – “vous le savez, je suis comme l’écrevisse, je me déplace lateralement” (FOUCAULT, NB:80).