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UNIVERSIDADE SEVERINO SOMBRA
PROGRAMA DE MESTRADO EM HISTÓRIA SOCIAL
A FREGUESIA DE SÃO DOMINGOS DO PRATA (MG):
BATISMO E COMPADRIO DE ESCRAVOS NO SÉCULO XIX
LUZIA HENRIQUE DA CRUZ
Vassouras
Junho de 2006
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LUZIA HENRIQUE DA CRUZ
A FREGUESIA DE SÃO DOMINGOS DO PRATA (MG):
BATISMO E COMPADRIO DE ESCRAVOS NO SÉCULO XIX
Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Mestrado em
História Social da Universidade Severino Sombra, para a obtenção
do título de Mestre em História, elaborada sob a orientação da
Profª Drª Miridan Britto Knox Falci.
Linha de Pesquisa: História Cultural
Vassouras
Junho de 2006
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Dissertação defendida e aprovada, em 20 de junho de 2006, pela seguinte
banca examinadora:
____________________________________________________________
Profª. Drª. Miridan Britto Knox Falci (Orientadora)
____________________________________________________________
Prof. Dr. Carlos Alberto Medeiros Lima
____________________________________________________________
Profª. Drª. Ana Maria Silva Moura
Vassouras, RJ, 20/06/2006
AGRADECIMENTOS
A Miridan Britto Knox Falci, pela interlocução competente, pelo
apoio e pelo carinho dispensado nos momentos em que os rumos não
estavam bem definidos.
A José Carlos, companheiro de caminhada e de vida, amigo. Sem a
sua ajuda, cumplicidade e compreensão este projeto não teria sido
concluído.
A minha família, que ao longo de meu percurso é peça propulsora
para todas as minhas realizações e soube entender as minhas ausências
e silêncios.
Aos professores do mestrado da USS, por terem incentivado e
mostrado a importância desta pesquisa.
A meus colegas do CSFX e do mestrado, que participaram ativamente
de discussões e da criação desta obra, através de sugestões, correções
e estímulos nos momentos mais difíceis.
Ao Colégio São Francisco Xavier, por ter fornecido condições para
que esta pesquisa fosse realizada.
A Diolina, que profissionalmente e gentilmente me atendeu na Cúria
Diocesana de Itabira – Coronel Fabriciano, fornecendo os documentos
necessários à efetivação deste trabalho.
A Vitória Andrade, pelo desprendimento e amabilidade em me enviar
bibliografias fundamentais para a elaboração desta dissertação.
Não acabarei de decifrar as antigas línguas do Norte,
não afundarei as mãos ávidas no ouro de Sigurd;
a tarefa que empreendo é ilimitada
e há de acompanhar-me até o fim,
não menos misteriosa que o universo
e que eu, o aprendiz.
(Borges, Elogio da Sombra)
RESUMO
Com vistas à investigação da instituição escravista brasileira, o presente trabalho
apresenta uma análise sobre aspectos considerados relevantes para a sociabilidade escrava no
seu cotidiano, a saber: a constituição de relações familiares e sócio-parentais a partir de
alianças originadas do batismo na freguesia de São Domingos do Prata, Minas Gerais, no
século XIX.
O sacramento do batismo serviu como uma das formas encontradas pelos cativos para a
ampliação das relações familiares para além da consangüinidade e do matrimônio, gerando
ocasião para que eles atuassem como sujeitos de suas vidas. A família escrava, nuclear,
matrifocal ou ampliada com os parentes “espirituais”, por meio do compadrio, serviu ao
escravo para melhor enfrentar os choques da dura vida em cativeiro.
Palavras-chave: Escravidão - Compadrio - Laços familiares - São Domingos do Prata, MG –
Séc. XIX
ABSTRACT
In order to investigate the Brazilian slavery institution, the following work presents an
analysis of some crucial aspects of the slave life like the constitution of family relations and
parents starting from alliances originated from the baptism in the parish of São Domingos do
Prata – MG, century XIX.
The sacrament of the baptism was used as a way to widen the family relations for the
slaves beyond the blood relations and also wedding giving them the possibility of being
themselves. The slave family, nuclear, broadened with the spiritual relatives by means of the
protection was useful for the slaves to face a hard life in a prison.
Key words: Slavery - Protection - Family relations - São Domingos do Prata – MG, century
XIX
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO........................................................................................................................01
CAPÍTULO 1 – São Domingos do Prata ................................................................................ 15
1.1 – Considerações iniciais e fontes ...................................................................................... 15
1.2 – Minas Oitocentista ......................................................................................................... 19
1.3 – Formação do Distrito ..................................................................................................... 28
1.4 – Dinâmica sociodemográfica e econômica no século XIX.............................................. 32
1.5 – Elementos definidores da população escrava/livre no século XIX ................................ 37
CAPÍTULO 2 – As relações familiares e sócio-parentais escravas: questão em debate..........55
2.1 – Introdução .......................................................................................................................55
2.2 – Família escrava: conquista ou estratégia .........................................................................60
2.3 – Batismo e compadrio construindo e fortalecendo laços ..................................................66
2.4 – Fontes batismais: importância para a História Social .....................................................80
CAPÍTULO 3 – As relações parentais rituais escravas em São Domingos do Prata – 1845 a
1888 .........................................................................................................................................84
3.1 – Assentos batismais: lacunas e revelações........................................................................86
3.2 – Dos escolhidos para padrinhos.........................................................................................89
3.3 – O tempo do batismo e variações .....................................................................................98
3.4 – Posse parcial cativa a partir dos registros batismais .....................................................104
3.5 – Laços de compadrio refeitos .........................................................................................109
3.6 – Evidências paroquiais: cores, representações e alforria ................................................110
CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................................114
FONTES MANUSCRITAS....................................................................................................117
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................................117
ANEXO...................................................................................................................................121
Introdução
“A contradição entre ser coisa e ser pessoa é que constituiu a vivência do escravo:
uma contradição que a legislação, o Estado, os senhores não conseguiram anular, ora
tratando-o como mercadoria, ora como ser humano passível de produzir atração
sexual, de condenação às galés. Suprimida essa contradição, a escravidão deixa de
ser escravidão.”
1
Transformações metodológicas e temáticas introduzidas nos últimos anos chegaram
trazendo pluralidade e riqueza da produção historiográfica brasileira que aponta novos rumos
e tendências, ocasionando releituras dos grandes marcos históricos e a valorização de
abordagens que elegem como objetos de pesquisa temas que não eram considerados como
relevantes. Multiplicam-se estudos interessados em reconstituir aspectos que caracterizaram a
realidade histórica brasileira enfatizando, entre outros, objetos como o cotidiano, as mulheres,
os pobres, a criança, a cultura, os costumes, os alforriados, a violência coletiva, a família
escrava, e múltiplas dimensões do social que revelam uma sociedade de várias faces,
heterogênea e múltipla.
A utilização de documentação cartorial, paroquial, fiscal e de outros tipos, região por
região, localidade por localidade, facilita a ocorrência de estudos em profundidade de
inúmeras facetas e processos relativos à escravidão, resultando em abordagens de temas antes
negligenciados.
Júnia Ferreira Furtado
2
, em análise sobre a evolução historiográfica mineira das
últimas três décadas do século passado, assinala que foi a partir de meados dos anos 80 que a
influência das novas metodologias, já dominantes nos estudos europeus há muito tempo, se
fizeram sentir na historiografia referente às Minas. Segundo a autora, foi a partir de então que
a Escola dos Annales e a História Social Inglesa tornaram-se parâmetros metodológicos e
temáticos para as pesquisas. Dessa forma, surgiram interesses por novas abordagens
resultando num revisionismo histórico responsável por trazer estudos que, voltados não
apenas para o particular, o rotineiro, mas também para o específico, permitiram uma releitura
1
QUEIRÓZ, Suely Robles Reis de. Escravidão Negra em Debate. In: FREITAS, Marcos Cezar de.
Historiografia Brasileira em Perspectiva. São Paulo: Contexto, 2003, p. 110.
2
FURTADO, Júnia Ferreira. Historiografia mineira: tendências e contrastes. In: Varia História, Belo Horizonte,
nº 20, p. 45-59, Mar. 1999.
1
da história mineira à luz de sua própria especificidade captando as linhas de força que
caracterizavam sua realidade.
3
Referindo-se às novas abordagens, Furtado observa que uma conseqüência
significativa foi a ampliação do conceito de fontes. Para ela,
“Deixou-se de privilegiar os documentos escritos e oficiais, eminentemente
administrativos, para que praticamente qualquer vestígio da ação humana se tornasse
ferramenta para o historiador. Isso permitiu a reconstrução do dia-a-dia de seus
habitantes, utilizando cartas, diários, fotografias, plantas arquitetônicas, censos
populacionais, etc. (...) A demografia histórica, reunindo dados quantitativos,
promoveu uma leitura instigante de fontes testamentais, paroquiais, (...) demolindo
uma série de conceitos tradicionais.”
4
Conforme observado, com a ampliação dos estudos históricos brasileiros, muitos
ângulos da escravidão têm sido repensados, sob influência da nova linha interpretativa
5
e da
utilização de novas fontes, suscitando inúmeros debates sobre o sistema escravista, visto por
alguns como violento e cruel, sendo o cativeiro uma forma de organização social marcada por
relações sociais puramente antagônicas, e por outros como brando e benevolente, embora
estes também não neguem a existência da violência, caracterizada pela mediação; nele, o
cativo utilizava inúmeras estratégias, ora de resistência, ora de acomodação, numa adaptação
6
constante ao sistema.
Dentre os vários aspectos investigados sobre a escravidão brasileira, as tendências
acadêmicas atuais vêm dando uma atenção maior à família escrava e aos laços de
sociabilidade estabelecidos pelo mancípio no cotidiano para sobreviver.
Diversos estudiosos negaram a expressividade da família escrava, considerando que o
sistema escravista impunha vários obstáculos à sua existência como: a predominância de
escravos do sexo masculino na população cativa dificultando uniões estáveis; a baixa taxa de
fecundidade da mulher cativa, em decorrência de vários fatores como a resistência ao
cativeiro; limitações ao casamento entre escravos de proprietários diferentes; a falta de
privacidade nas senzalas; o desmembramento da família causado por separações forçadas em
função de vendas, de partilhas de heranças, de doações e outras.
3
FURTADO, 1999.
4
Ibidem. p. 48-9.
5
QUEIRÓZ, 2003. p. 111.
6
Sobre a idéia de adaptação escrava, ver nota na página 57 desta dissertação.
2
Entretanto, os dados demográficos têm revelado a existência de famílias escravas no
Brasil, evidenciando que as uniões, sancionadas ou não pela Igreja, não eram tão incomuns,
modificando a visão que a negava. Em busca de compreender a vida familiar dos escravos, a
produção historiográfica evolui no sentido de problematizar os interesses, senhoriais e cativos,
no estabelecimento dos vínculos familiares. Para autores como Sandra Lauderdale Graham, os
senhores acreditavam que os escravos casados ficariam menos inclinados a fugir ou a se
rebelar, estando mais propensos à obediência. Os laços familiares prenderiam e ligariam às
fazendas os escravos destinados a proteger sua família
7
. Um cativo com família teria mais
dificuldades para abandonar o proprietário ou ainda organizar rebeliões que pudessem colocar
em risco seus familiares.
Além de ser um caminho para a obtenção de obediência e de disciplina, a família
escrava contribuía também para o aumento da riqueza. Dotado de sentimentos, ser humano
que o cativeiro escravizou e coisificou, o escravo constituiu família e teve filhos, alargando a
propriedade de seu senhor.
As incertezas e inseguranças impostas pela escravidão fizeram com que os cativos
buscassem estratégias para sobreviverem. Para os africanos e os indivíduos de ascendência
africana, o parentesco e a família eram importantes mecanismos de ajuda mútua que
forneciam força moral e física, além de recursos financeiros, para lidarem com os sofrimentos
físicos e o desespero psicológico que uma pessoa sozinha dificilmente conseguiria agüentar.
8
Para o escravo, a formação de uma família representou um meio para criar laços
sociais e vínculos amenizadores das durezas da escravidão, funcionando como uma estratégia
para encarar o mundo cativo. É uma conquista que o tornava humano e demonstra que, apesar
das limitações, a escravidão não negou toda a possibilidade de ação e de escolha do cativo:
possuir uma família, apesar das incertezas quanto a sua longevidade.
Quando a análise da escravidão toma como objeto as relações sociais, as redes de
parentesco e de solidariedade sugerem ter havido ambiente para que os escravos atuassem
sem o direcionamento e o domínio dos senhores. Russel-Wood, por exemplo, considera que
os cativos exerceram capacidade de avaliação independente dos senhores ao formarem
irmandades católicas leigas (confrarias), selecionando líderes dentro de sua própria
comunidade e elegendo anualmente o presidente e a diretoria. As irmandades eram
importantes nas comunidades negras e davam a seus membros certo grau de segurança contra
7
GRAHAM, Sandra Lauderdale. Caetana diz não: História de mulheres da sociedade escravista brasileira. São
Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 54-5. (Tradução de: Pedro Maia Soares).
8
RUSSEL-WOOD, A. J. R. Escravos e libertos no Brasil Colonial. Trad. Maria Beatriz Medina.Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2005, p. 281.
3
as incertezas de uma sociedade escravista.
9
Enfatiza ainda, que o parentesco fictício,
originário do apadrinhamento, servia de base para que se organizasse uma rede de domínio e
subordinação dentro da comunidade negra e para a tomada de decisões independentes e sem a
sanção de seus donos.
10
O escravo criou um mundo no Brasil. Utilizando fontes cartoriais e paroquiais, os
estudiosos apresentam um cativo de rosto humano e demonstram como ele lidou com
condições de vida desfavoráveis e com o ambiente social e de trabalho hostis. Algumas partes
de sua vida estão sendo selecionadas e montadas e, à medida que elas vão sendo recortadas e
somadas a outras, elas exibem padrões que permitem ver alguns aspectos reveladores do seu
cotidiano. Alguns ficam bem nítidos. Outros ficam embaçados, na sombra.
11
Mas é evidente
que os cativos, tanto por seu número quanto por sua presença, não podem ser vistos
simplesmente do ponto de vista econômico, na relação dicotômica senhor-escravo, e sim
devem ser reconhecidos e investigados como agentes vivos e ativos, e não passivos, que
estabeleceram relações sociais dentro de um contexto marcado pelo escravismo.
Os escravos criaram processos de socialização para reduzirem o efeito destrutivo da
escravidão sobre a família. Isso era conseguido por meio do reforço do sistema de parentesco
e também pela formação de laços fictícios ou rituais. Dentre esses, um era expresso através do
compadrio, estabelecido pelo apadrinhamento, que produziu solidariedade e sociabilidade.
O rito do batismo inseriu os cativos no universo religioso do branco, integrando-os ao
mundo cristão no qual eles estabeleceram conexões pessoais com indivíduos de diferentes
estratos econômicos e de prestígio social, ampliando as relações familiares fundadas pela
consangüinidade e pelo matrimônio.
Através de um olhar que procurou enxergar o universo escravista a partir das relações
sociais construídas pelos escravos, o presente trabalho buscou investigar as relações de
compadrio estabelecidas por esses quando do batismo de seus filhos na freguesia de São
Domingos do Prata, distrito do município de Santa Bárbara - da Província de Minas Gerais -,
no século XIX
12
, procurando compreender os elementos básicos que moldaram tais relações.
Levantamos 979 registros batismais em que cativos figuraram como pais de
batizandos no período compreendido entre 1845 a 1888 e, a partir dos dados reunidos nos
documentos, procurou-se identificar e interpretar as relações sociais estabelecidas pelos
9
RUSSEL-WOOD, 2005 p. 272-3.
10
RUSSEL-WOOD, 2005. p. 269.
11
Ibidem. p. 346-7.
12
São Domingos do Prata localiza-se na região Metalúrgica-Mantiqueira na região do Rio Piracicaba, uma das
bacias secundárias do Rio Doce, e está a 136 km de Belo Horizonte.
4
mancípios envolvidos em batismos. Para tanto, fez-se necessário discutir o significado
religioso, assim como o jurídico e social do batismo, tanto para o escravo quanto para os
senhores, na busca de compreender o papel por ele desempenhado na sociedade escravista e
também para a sociabilidade escrava. Outrossim, procurou-se investigar, em especial, o
padrão de escolha de padrinhos e madrinhas pelos cativos, no intuito de entender o papel
desempenhado pelo compadrio na vida do escravo, os índices de legitimidade e de
ilegitimidade dos batizandos e as possíveis relações existentes entre o padrão de propriedade
escrava predominante na freguesia e a seleção de padrinhos para filhos de escravos.
As fontes que registraram essa dimensão da vida cativa foram os registros de batismo
pertencentes à Paróquia de São Domingos do Prata, sob a guarda do Arquivo Dom Marcos
Noronha – Cúria Diocesana de Itabira – Coronel Fabriciano. Eles dizem muita coisa,
deixando à mostra indícios sobre as solidariedades construídas pelos escravos que deram a sua
contribuição para edificar parte da história do distrito. Notou-se a formação de alianças com
senhores, com pessoas livres - algumas ocupando lugar de destaque na região e outros que
certamente ocupavam lugar inferior na escala social, já que não levam sobrenome -, e com
cativos.
As relações sócio-parentais escravas foram o critério fundamental para o tratamento
dos dados fornecidos pela documentação, a qual, dada a natureza deste estudo, consistiu
especialmente dos registros de batismos feitos em sete livros (1845 a 1851; 1853 a 1859; 1859
a 1868; 1869 a 1880; 1880 a 1883; 1884 a 1892; 1871 a 1887
13
).
Para os levantamentos dos batismos, utilizamos uma planilha na qual foram anotados
todos os dados fornecidos pelos registros batismais como: data do batizado e do nascimento
(quando aparece); nome e sexo do batizando; nome dos pais, dos padrinhos e dos
proprietários; cor do batizando e dos pais; origem (quando aparece) dos pais e dos padrinhos;
títulos de proprietários e de padrinhos; alforria concedida na pia batismal; observações feitas
pelo pároco. Os dados obtidos foram computados, analisados e confrontados a fim de
13
O último livro é exclusivo de registros de batismos de escravos e foi feito em atendimento à exigência do
governo provincial devido à Lei do Ventre Livre de 1871. Ele tem 51 folhas e tem um termo de abertura que
diz o seguinte: “Este livro há de servir para apontamento dos termos de nascimento dos filhos de mulher
escrava, que tiverem lugar, desde a data da lei n° 2040 de 28 de setembro de 1871, na freguesia de S.
Domingos do Prata, do Município de Santa Bárbara, na conformidade do § 5º do artigo 8º da mesma lei. Em
virtude da designação feita pelo Illmº e Exmº Dr. Joaquim Pires Machado Portella, Presidente da Província de
Minas Gerais, foi todo numerado, por mim rubricado e com termo de encerramento. Secretaria do governo, 21
de Fevereiro de 1872. Fernando Teixeira de Souza”. Arquivo Dom Marcos Noronha - Cúria Diocesana de
Itabira-Coronel Fabriciano.
Observa-se que apesar da determinação explícita quanto aos registros de batismos de filhos de escravas em
livro separado a partir de 1871, alguns foram registrados no mesmo livro em que eram realizados os registros
de batismos de livres.
5
identificar a condição jurídico-social dos padrinhos e dos proprietários dos escravos, a
incidência de proprietários (as) como padrinhos/madrinhas, os nomes dados aos batizandos (a
repetição e os nomes raros), a legitimidade e a ilegitimidade dos filhos de escravos, a presença
da família escrava na região, os movimentos sazonais dos batismos, o índice de batismos de
escravos no período proposto para o estudo, o gênero dos batizandos e dos proprietários de
escravos, dentre outros.
No início da pesquisa, as questões fundamentais que se colocavam eram as seguintes:
qual padrão de compadrio escravo predominou na freguesia? Teriam os escravos da região
criado laços com grupos superiores da sociedade pratiana, estabelecendo alianças com
homens livres e de posses, ou teriam reforçado alianças na horizontalidade, selecionando
entre os escravos os padrinhos para seus filhos? Seriam os senhores escolhidos como
padrinhos ou repetiu na região o que Stephen Gudeman e Stuart Schwartz
14
encontraram no
Recôncavo Baiano? Quem eram os padrinhos escolhidos? E as madrinhas? Qual o significado
do batismo na vida do escravo?
Na busca de respostas para as perguntas colocadas acima acreditou-se que seria
importante um estudo do compadrio escravo na região, pois, conforme sugere Maria Yedda
Linhares, “a história regional (...) remete a totalidades mais amplas e nos leva a rever e a
valorizar, a revalorizar e a reavaliar o conjunto da historiografia brasileira, ao mesmo tempo
em que somos inspirados a comparar diferentes realidades e experiências históricas”.
15
Perseguir a trajetória de escravos não é das tarefas mais fáceis. Eles possuíam
prenomes comuns e não tinham nomes de família que possibilitassem acompanhá-los. De
modo geral, os cativos foram identificados pelo nome cristão, seu senhor e, em alguns casos,
pela sua origem ou “nação”. Dessa forma, o caminho mais fácil que foi encontrado e,
certamente um dos únicos possíveis, foi buscá-los através de seus senhores. Nesse sentido,
para segui-los de perto, cruzamos os dados arrolados e localizamos os proprietários que
14
GUDEMAN, S e SCHWARTZ, S. Purgando o pecado original: compadrio e batismo de escravos na Bahia no
século XVIII. In: REIS, J.J. (org.) Escravidão e invenção da liberdade. Estudos sobre o negro no Brasil. São
Paulo: Brasiliense, 1988. A respeito da escolha dos padrinhos de batismos no Recôncavo Baiano do século
XVIII, os autores não encontraram nos registros levantados nenhum senhor apadrinhando seus próprios escravos.
Para eles, tal comportamento provavelmente resultava de escolhas e estratégias individuais e da
incompatibilidade do batismo com a escravidão. Para os autores “a Igreja sem dúvida fez sua própria conciliação
com a escravidão, mas sugerimos que a não escolha dos senhores é resultado direto de um conflito entre dois
idiomas e instituições: a Igreja e a escravidão. Cada uma destas implica um tipo diferente de relações, quando as
duas se encontram no singular evento do batismo, só pode haver silêncio e estranhamento, não superposição. O
batismo cria, acima de tudo, uma relação espiritual; (...) assinala ou marca algo oposto à escravidão: igualdade,
humanidade, libertação do pecado”. (P.41, 42) Os autores viram, assim, uma clara oposição entre a escravidão e
o batismo, havendo contradição entre a igualdade que supostamente advinha do parentesco ritual e a sociedade
escravista de desigualdades exageradas, marcada por uma relação de dominação entre senhor e escravo.
15
LINHARES, Maria Yedda. Historiografia & Práticas. Revista Brasileira de História – Órgão da Associação
Nacional de História. São Paulo, ANPUH/ Contexto, vol. 15, nº 30, 1995.
6
tiveram escravos batizando filhos no período recortado para análise. As situações encontradas
e que serviram também de objeto de análise, mostraram que muitas escravas levaram mais de
um filho à pia batismal, ocasionando o aumento da propriedade de seu senhor, muitos
padrinhos compareceram mais de uma vez testemunhando a cerimônia de batismo, alguns
escravos refizeram laços de compadrio com alguns padrinhos e muitos membros da família do
proprietário participaram como padrinhos no ato batismal, mostrando ter havido situações de
aproximação do escravo com pessoas do círculo de relações do senhor.
As informações contidas nos livros batismais são relevantes e deixam frestas que nos
permitem transpor algumas barreiras e aproximar um pouco da vivência escrava. Os registros
evidenciam relações construídas no interior de escravarias e também com a comunidade
cativa e livre mais ampla, multiplicando nossos conhecimentos a respeito do mundo e do
universo cativo. Por meio do levantamento dos registros e da análise minuciosa dos dados
neles contidos, foi possível construir parte da vida social que envolvia os escravos da região,
percebendo as alianças por eles edificadas.
Os registros de batismo como fonte de investigação possibilitam análises que revelam
parte do cotidiano das relações escravistas. Eles demonstram que por meio dos laços de
compadrio foram estabelecidos vínculos que ligaram escravos entre si, numa relação
horizontal (re)forçando ligações entre escravos do mesmo proprietário ou de proprietários
diferentes, uniram escravos a livres numa relação vertical com o proprietário ou seus parentes,
e ainda com outros livres da freguesia, dando a conhecer a complexidade que marcou a
escravidão, não podendo, portanto, ser esta pensada apenas do ponto de vista da divisão
senhor e escravo. O universo da escravidão não dizia respeito apenas ao senhor e ao escravo.
Ele permeava a sociedade toda e criou relações sociais diversas que abrigavam em seu interior
conflito e aproximação, resistências e alianças.
Ao construir aliança com pessoas da mesma condição, os escravos poderiam estar em
busca de formar a comunidade escrava o que, certamente, contribuía para a manutenção de
elementos culturais africanos e para o estabelecimento de solidariedades. Nesse caso, pode-se
dizer que o compadrio não foi uma estratégia para reforçar a ligação senhor-escravo
16
assumindo diversas formas em virtude das pessoas que dele participavam e da realidade
histórico-social por elas vividas no mundo do cativeiro, sendo construído através da seleção
que respondia a necessidades inúmeras. Ao longo dos capítulos 1 e 2 procurou-se discutir e
pontuar tais necessidades.
16
GUDEMAN, e SCHWARTZ. 1988. p.34 e RIOS, Ana Lugão. Família e Compadrio Entre Escravos das
Fazendas de Café: Paraíba do Sul, 1871-1888. In: Estudos sobre a escravidão. Niterói: UFF/ICHF, 2000. p. 110.
7
Pode-se partir do pressuposto teórico de que o compadrio entre cativos do mesmo
plantel, originando o compadrio endogâmico, desempenhou o papel de contribuir para gerar a
paz entre os escravos, assim como Florentino e Góes sugerem para o casamento.
17
Ao
promover o parentesco fictício, aproximando cativos, o apadrinhamento poderia amenizar
conflitos ao mesmo tempo em que gerava segurança.
Os resultados encontrados ajudaram a ver o escravo como agente de sua vida, o qual
contou com possibilidades para construir laços que ligavam a sua família a redes familiares
mais amplas, gerando vínculos com grupos sociais distintos, muitas vezes pessoas de posses,
como pudemos perceber na leitura das fontes. Os vínculos foram, desse modo, facilitados
pelas redes de relações dos senhores, que tornaram viável aos escravos (re) criarem vínculos.
Diversas situações do cotidiano colocaram em contatos escravos de propriedades
diferentes, viabilizando oportunidades para criação de laços de amizade e de socialização
entre companheiros do cativeiro. Relações certamente foram proporcionadas em decorrência
das ligações estabelecidas pelos senhores com parentes, amigos, vizinhos etc, além das
obrigações que faziam o escravo deslocar-se para cumpri-las. Podemos dizer que o universo
do cativo não se reduziu aos limites estreitos das fronteiras da propriedade à qual pertencia,
existindo um mundo além das relações sociais entre o proprietário, o feitor e o escravo
construídas sob a marca da dominação e do controle pessoal. Este também lembrado no ato do
batismo que deixa à mostra a propriedade escrava: os pais do batizando são identificados
vinculados ao nome do proprietário.
Embora essa relação de dominação apareça claramente nos registros batismais, esses
não ocultam que a escolha dos padrinhos ia além do domínio do cativeiro, limitador e
cerceador de liberdades. Quando fez escolhas de padrinhos, o cativo não se restringiu em
fazer alianças apenas com pessoas da mesma propriedade que a dele ou de sua classe social.
As diferenciações sociais não impediram aproximações físicas que propiciaram contatos entre
homens diferentes no momento singular do sacramento batismal o qual não eliminou e nem
amenizou as diferenças sociais existentes na sociedade escravista, mas criou condições para a
transposição das fronteiras sociais, colocando lado a lado senhores e escravos, forjando
aproximação entre eles na pia batismal, em que livres e cativos eram libertados do pecado
original.
17
FLORENTINO, Manolo & GÓES, José Roberto. A Paz nas Senzalas: Famílias Escravas e Tráfico Atlântico
(Rio de Janeiro, 1790-1850). RJ: Civilização Brasileira, 1997.
8
Os registros paroquiais nos ajudam a compreender o universo dos escravos a partir dos
laços de compadrio construídos na busca de criar sociabilidades já que a escravidão não
significou apenas o uso do trabalho forçado, mas implicou também a formação de alianças
pelos cativos na sua luta pela sobrevivência. A esse respeito, Miridan Britto Knox Falci diz
que
“Todos aqueles que estudaram o compadrio mostraram a sua importância na
extensão de laços de solidariedade no mundo cão que os escravos tiveram, pois foi
na pia batismal que, entregando seus filhos a padrinhos livres, forros ou escravos,
ricos ou pobres, e a madrinhas livres ou escravas, ricas ou pobres, que os escravos
ampliaram a família escrava e criaram um grupo social definido e solidário nas suas
lutas diárias.”
18
A família escrava foi encontrada em São Domingos do Prata. Os registros de batismo
exibem a reprodução natural dos escravos, deixando à mostra os filhos legítimos, além dos
filhos naturais. O escravo, que tem como condição jurídico-social ser propriedade de outro,
constituiu família apresentando a versão complexa da vida cativa. Se por um lado, a formação
da família expressa a existência da capacidade do escravo de conduzir a sua vida dentro dos
limites do cativeiro, representando o esforço para conseguir concessões e auferir ganhos, por
outro, manifesta também um lado cruel da instituição escravista. O proprietário do escravo é
também senhor de sua família.
Embora o objeto deste trabalho seja a relação de compadrio, visto como forma de
parentesco que oportunizou aos escravos estenderem laços e “ampliar a família”, o estudo
sobre São Domingos do Prata surgiu também a partir do desejo de encontrar respostas para
outras indagações relativas à sua população escrava. A existência escrava na região despertou
a curiosidade de compreender o perfil de sua população cativa. Sabendo que regiões
brasileiras e, especificamente, mineiras fizeram uso em grande escala do africano, estando
vinculadas direta ou indiretamente ao tráfico atlântico, uma questão que surgiu é se a
freguesia
19
tinha acesso à linha mercantil e, em caso positivo, qual seria o percentual de
africanos em sua população.
18
FALCI, Miridan Britto Knox. Escravos do Sertão, Demografia Trabalho e Relações Sociais – Piauí, 1826-
1888. Teresina: Fundação Cultural Mons. Chaves, 1995. p. 97-8.
19
Ao longo deste trabalho empregaremos o termo paróquia, região, freguesia ou distrito para nos referirmos a
São Domingos do Prata, mesmo antes do mesmo ter sido considerado como freguesia e distrito, no ano de 1843,
pois é essa a denominação encontrada nos documentos.
9
Outras questões como o tipo predominante da posse escrava bem como a existência de
família escrava também moveram a investigação que resultou no trabalho que está sendo
apresentado.
As fontes consultadas para esclarecerem as questões acima, o mapa de população de
1832
20
e o censo de 1872 bem como os registros batismais de 1845 a 1888 deram uma
resposta para a pesquisa: a freguesia era uma região agrícola, que fez uso da mão-de-obra
escrava no século XIX, tendo predominado pequenas posses escravas. As primeiras
constatações fizeram crer que havia unidades rurais com propriedade escrava, sendo a maioria
constituída de mão-de-obra nativa, não estando a região amplamente atrelada às linhas
mercantis fornecedoras do elemento africano.
Os mapas de população, fonte primária manuscrita semelhante a pequenos censos e
confeccionada por juízes de paz, permitiram observar o perfil social daquela sociedade
podendo delinear contornos a partir das informações coletadas e exploradas. O mapa de 1832,
bastante completo, traz o nome, o sexo, a qualidade (entendida como sendo a cor ou a origem
da pessoa, se africana ou nativa), a condição social (especificada no caso dos cativos e dos
forros, africanos, crioulos, pardos ou cabras) a idade, o estado civil e, em alguns casos, a
ocupação na qual a pessoa estava envolvida.
Compreendendo que estudos regionais são importantes para caracterizar diferenças e
similaridades que permitirão traçar o perfil do compadrio escravo no Brasil no decorrer dos
mais de 300 anos em que o escravo constituiu parte integrante da família de seu proprietário,
optou-se por trabalhar com a abordagem de História regional. A história cresce a partir dos
estudos regionais, não há uma única realidade. Tais estudos mostram que as relações sociais
são moldadas de acordo com as particularidades regionais. Ao estudar uma região ao longo do
tempo, é possível perceber as permanências e rupturas nos processos econômico e social
construídos, fornecendo as evidências que possibilitam a comparação e a construção e/ou a
revisão de teorias.
20
O Mapa de 1832 de São Domingos do Prata faz parte de um acervo composto por uma coleção de documentos
manuscritos relativos a inquéritos populacionais de distritos de paz, elaborados em 1831/1832, e que estão sob a
guarda do Arquivo Público Mineiro. Clotilde Andrade Paiva, juntamente com outros pesquisadores do
CEDEPLAR/FACE/UFMG, fez o levantamento do acervo desses documentos e de outros da década de 1830
mineira e, a partir da análise minuciosa dos dados, apresentou resultados econômicos e demográficos inéditos
sobre o século XIX mineiro. Cf. PAIVA, Clotilde Andrade. População e economia nas Minas Gerais do século
XIX. São Paulo, FFLCH/USP, 1996 (tese de doutorado). Paiva supõe que o conjunto de 242 Listas Nominativas
de 1831/1832 constitui fragmentos de uma tentativa do Governo Provincial de realizar um censo para mapear a
população. Idem, p. 54-5. Nós utilizamos o documento manuscrito do acervo do Arquivo Público Mineiro –
MP1 CX 14/01.
10
Entendemos por região, em história, o espaço socialmente construído, historicamente
vivenciado dentro de determinados limites administrativos num delimitado tempo histórico.
História regional é a abordagem regional sobre qualquer assunto em uma determinada
periodicidade, dentro de uma conjuntura (movimento) econômica e social, sem efetuar um
corte artificial entre o aspecto analisado e o contexto histórico-social total em que se insere.
A multiplicação dos cursos de pós-graduação e dos estudos históricos de caráter
monográfico pelo país ocasiona um crescente interesse dos pesquisadores pela análise
histórica, baseada na história regional, evidenciando a importância de estudos dessa natureza
uma vez que
“O estudo da História deve admitir diferentes modos de abordagem, sob pena de se
perder parte da riqueza de aspectos de convivência humana, que variam de lugar
para lugar, de época para época. O regionalismo justifica-se como uma entre outras
perspectivas possíveis de análise da economia, da sociedade e da política. Não
exclui e nem se opõe a outros enfoques de estudo. Nem é melhor ou pior que outros
métodos de abordagem da História.”
21
Embora trabalhando com uma abordagem regional, sabemos que essa não deve
limitar-se à análise dos processos específicos da região selecionada para estudo, dissociados
da dinâmica global do sistema. Como a região está integrada a um conjunto global de relações
do qual foi recortada, é preciso que seja estabelecida comparação com outras áreas e isso
representa um eficaz instrumento para testar teorias formuladas a partir de alguns casos
utilizados como modelos.
22
As paróquias contribuíram para a preservação de dados importantes sobre as regiões, a
população brasileira e suas relações sociais em virtude dos registros realizados sobre
batismos, matrimônio e óbitos, ou seja, o nascer, o casar e o morrer. Como ressalta Miridan
Britto,
“Todos os atos religiosos do batismo, eucaristia e casamento ainda que
confirmassem as relações do indivíduo com Deus, passam a traduzir em suas
cerimônias a participação do cristão na comunidade paroquial e na comunidade
invisível da Igreja Universal.”
23
21
SILVA, Vera Alice Cardoso. Regionalismo: O Enfoque Metodológico e a Concepção Histórica. In: SILVA,
Marcos A. da. República em Migalhas: história regional e local. São Paulo: Marco Zero/CNPq, 1990, p. 43.
22
AMADO, Janaína. História e Região: Reconhecendo e Construindo Espaços. In: SILVA, Marcos A. da.
República em Migalhas: história regional e local. São Paulo: Marco Zero/CNPq, 1990, p. 13.
23
FALCI, 1995. p.84.
11
Dada a importância da freguesia, consideramos que é nela ou sobre ela e nos
documentos por ela produzidos que devemos buscar fontes no intuito de reconstruir a História
sociodemográfica da escravidão.
Construir o objeto de pesquisa a partir da análise local levou em conta a importância
histórica da freguesia e também porque consideramos que a história local pode conduzir a
análises significativas, pois, conforme sugere Pierre Goubert,
“a prática meticulosa da História local e a multiplicação de monografias sobre
regiões específicas podem nos conduzir muito mais longe; podem servir para
destruir muitas das concepções gerais que em tempos passados pareceram tão
vigorosas e foram incorporadas em tantos livros, comunicações, conferências.”
24
A partir do estudo regional podemos desenvolver idéias, modificando algumas visões
“gerais”, preconceitos e alterar nossas percepções sobre o passado, marcado por uma variada
realidade. A análise das relações estabelecidas através do batismo de escravos na região,
utilizando fontes locais - os registros paroquiais de batismo - que não foram analisadas pelos
historiadores, ajudou a perceber suas características, suas semelhanças e/ou diferenças com o
contexto nacional. Dessa forma, acreditamos possibilitar a inserção da região de São
Domingos do Prata em estudos mais amplos sobre as relações sociais construídas na província
mineira na 2ª metade do século XIX, bem como contribuir para as novas maneiras de pensar a
realidade de Minas imperial e, mais especificamente, para os estudos de relações de
compadrio. Colaborar com o conjunto de estudos historiográficos sobre a História social da
escravidão na região Metalúrgica-Mantiqueira, na província e no país, é a contribuição que
imaginamos oferecer.
O desenvolvimento dessa pesquisa está organizado em três capítulos. No primeiro
procurou-se apresentar genericamente aspectos a respeito do perfil social, econômico e
político da Freguesia de São Domingos do Prata no século XIX e sobre o sistema escravista
mineiro.
Para a construção desse capítulo, fez-se necessário buscar compreender a escravidão e
a economia das Minas Gerais no século XIX, que apresentou um comportamento
marcadamente dinâmico, e, para tanto, utilizamos e apresentamos estudos e análises
produzidos por estudiosos que investigam minuciosamente esse passado. Segundo as novas
24
GOUBERT, Pierre. “História Local”. In: Revista Arrebaldes. Petrópolis, ano I, nº 1, maio/ago. 1988. p. 51.
12
evidências mostradas por pesquisadores como Libby, Martins, Paiva, Godoy, dentre outros, o
comportamento dinâmico do sistema escravista mineiro não era gerado para mercados
externos. Perceber como estava organizada a província mineira, que não se assemelhava à
tradicional economia exportadora, é essencial para entender alguns traços da sociedade como
a estrutura da posse de escravos, as ocupações que mais empregavam o braço escravo, os
aspectos definidores de sua economia e de sua sociedade, bem como suas variáveis.
Para delinearmos alguns traços do perfil sociodemográfico e econômico da região de
São Domingos do Prata, utilizamo-nos da leitura e da análise de dados censitários. Essas
foram realizadas tendo como base empírica os dados extraídos de arrolamentos populacionais
realizados em 1820, 1832 e 1834 e os resultados do recenseamento de 1872 – que serviram
para fazermos comparações possíveis. Esboçamos os principais traços definidores do
surgimento do distrito e, a seguir, levantamos elementos de sua população e de sua economia,
tendo como objetivo perceber o perfil escravista da região, para estabelecermos comparação
com o universo provincial e o da região Metalúrgica-Mantiqueira.
Uma característica observada a partir da análise comparativa entre os três momentos
fornecidos pela documentação foi o crescimento da participação dos cativos nativos na
composição do segmento escravo, ao mesmo tempo em que houve o crescimento da camada
livre. As análises dos comportamentos demográficos mostraram um crescimento das crianças
cativas no decorrer do século XIX, revelando a existência da reprodução natural.
O segundo capítulo voltou-se para o estudo da importância da família escrava como
uma dimensão que deve ser considerada no estudo da escravidão. As incertezas e
inseguranças do cativeiro fizeram com que os cativos buscassem estratégias para
sobreviverem. Procuramos mostrar que a constituição da família seria uma das formas
encontradas para aliviar as tensões cotidianas tanto por parte dos senhores quanto dos
escravos, ressaltando a importância da constituição de vínculos familiares e de parentesco
para os cativos. Novos estudos conseguiram combater, por exemplo, o argumento até então
recorrente de que os escravos quase não constituíam famílias, já que mostraram que a
população cativa formou, sim, famílias estáveis. Mostram, inclusive, uma das formas de
estabelecimento de relações familiares: o compadrio, que, criando vínculos entre os padrinhos
e as famílias dos batizandos, ampliou as relações sociais entre pessoas de classes distintas.
Buscamos também discutir a importância do sacramento do batismo, procurando
entender o seu papel social, político e religioso na sociedade da época. Através do batismo os
cativos não só se inseriram no universo religioso do branco como também, por meio da
seleção de padrinhos, devido ao compadrio, ampliaram os laços sociais, inclusive com grupos
13
de maior prestígio social e, dessa forma, acreditamos que os estudos sobre os batismos dos
cativos podem fornecer preciosas informações a respeito da vida social dos mesmos.
No terceiro capítulo trouxemos a discussão sobre o nosso tema central, batismo &
compadrio de escravos na freguesia de São Domingos do Prata – 1845 a 1888, a partir da
análise dos dados coletados nos livros de batismos correspondentes ao período definido.
Procuramos explicar as evidências empíricas encontradas acerca das relações sócio-parentais
estabelecidas por ocasião do batismo, buscando compreender os padrões que o compadrio
adquiriu na sociedade em estudo, e que originou vínculos familiares importantes para as
relações sociais dos mancípios. Nesse sentido, valorizamos perceber o escravo como agente
histórico que construiu vínculos no seu cotidiano marcado pela dominação, e que esses podem
ter servido como estratégia de adaptação ao cativeiro.
Tendo como propósito a ampliação do conhecimento da sociedade escravista a partir
do compadrio, utilizamos vários estudos sobre o batismo e o apadrinhamento de escravos para
comparar com o nosso estudo a fim de perceber as semelhanças e as diferenças que os
vínculos de compadrio, envolvendo escravos, assumiram no tempo e no espaço.
14
Capítulo 1
São Domingos do Prata
1.1. Considerações iniciais e fontes
Neste capítulo, através da análise de dados censitários, buscamos reconstituir alguns
traços da sociedade e da economia de São Domingos do Prata no século XIX, a fim de
compreender as especificidades que permearam a organização do distrito e de perceber as
suas características sociais através de dados populacionais. É pertinente lembrar que não se
trata de um quadro completo, e sim de uma seleção de informações que nos ajudará a entender
um pouco a dinâmica do comportamento sociodemográfico e econômico da região a partir de
aproximações feitas com os levantamentos realizados. A análise foi realizada tendo como
base empírica os dados extraídos de mapas populacionais de 1820, de 1832 e de 1834
25
e do
censo de 1872 relativos a São Domingos do Prata. Os resultados obtidos nos forneceram
várias indicações, cobrindo um período de 52 anos, de 1820 a 1872 e, através delas, pudemos
perceber as variações relativas à sua formação social, aspectos importantes sobre a presença
escrava e outros elementos populacionais significativos.
As fontes utilizadas apresentaram problemas relativos à grafia, à soma dos dados,
dentre outros; é bom lembrar, entretanto, que os mapas de população, utilizados como
documento principal para a elaboração deste capítulo, são fontes de grande valor para os
estudiosos, pois fornecem informações sobre a população contribuindo para o estudo em
profundidade da demografia.
Neles constam o nome do distrito, da freguesia, o município (ou termo) ao qual
pertencia, a data em que foram preenchidos, o número de fogos
26
existentes, o total dos
habitantes por fogo discriminados por condição jurídica (livre ou escrava), as idades da
25
Os mapas de 1820 e de 1834 foram analisados por LIBBY, Douglas Cole & GRIMALDI, Márcia. Equilíbrio e
estabilidade: economia e comportamento demográfico num regime escravista, Minas Gerais no século XIX. IV
Anais da ABEP, 1998. Os autores observam que ambos os mapas não possuem data, mas que eles estão usando
datas aproximadas em virtude de algumas características observadas nos dois documentos. De acordo com
nossas análises, feitas a partir do mapa de 1832, pudemos perceber que há um crescimento da população escrava
no período compreendido pelos três mapas. Assim, utilizamos os dados fornecidos pelos autores para a
construção dos aspectos sociais e econômicos, quando possível, da localidade em estudo.
26
Empregaremos fogo como é definido por GRAF, Márcia Elisa de Campos. Fontes para o Estudo da Família
Escrava no Brasil. Anais do V Encontro da ABEP, 1986. A autora diz que até o final do século XIX, “... as
designações família, domicílio e fogo podem ser utilizadas indistintamente para caracterizar um conjunto de
pessoas residentes em uma mesma propriedade e sujeitos à autoridade do chefe, entendido esse como o nome a
encabeçar a relação de habitantes de cada fogo.” p.19.
15
população, o estado civil, as ocupações (nesse aspecto existe lacuna, pois de acordo com os
pesquisadores são poucos os mapas que incluem a ocupação de todos os habitantes do fogo) e
a cor das pessoas. A elaboração dos inquéritos populacionais não foi tarefa simples. Algumas
limitações existiram e elas muitas vezes são evidenciadas, mas outras vezes certamente não
foram. Confirmando isso, podemos perceber dificuldades para a confecção do mapa do
distrito de São Domingos do Prata, em 1832, conforme explicitado no comentário feito pelo
juiz de paz
27
no registro que acompanha o mapa do referido distrito, que foi enviado ao
Presidente da Província.
Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor,
Tenho a honra de levar à Presença da V. Exª a rellação dos habitantes do Distrito de São
Domingos da Prata: tive alguma demora na prontificação da mesma, proveniente pela oscilação de
alguns chefes de famílias negarem-se a dar o número de seus domiciliários a título de não
pertencerem ao Distrito. Igualmente forneço a V. Exª a rellação das fábricas de assucar e aguardente,
e tecidos de algodão, únicas que há neste Distrito.
Distrito de São Domingos da Prata, 28 de Julho de 1832.
Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Presidente da Província Manoel Ignácio de Souza Mello
Manuel José Vieira
Juiz de Paz
É pertinente lembrar que a primeira metade do século XIX foi um período
caracterizado por agitação na vida política brasileira. A elevação do País a Reino Unido, a
Independência, a instabilidade da fase regencial, somadas às revoltas que se fizeram presentes
em diversas províncias, refletiram em Minas. A ação do governo imperial e dos governos
provinciais na busca do conhecimento da realidade socioeconômica brasileira por meio de
informações empíricas gerou a realização de inquéritos populacionais no Brasil.
28
27
Como ressalta MARTINS, Maria do Carmo Salazar. Revisitando a Província: comarcas, termos, distritos e
população de Minas Gerais em 1833-1835. IV Seminário sobre a Economia Mineira, Anais. Belo Horizonte:
CEDEPLAR/FACE/UFMG, 1990. p. 13-29, o juiz de paz “(...) era a autoridade judiciária máxima de cada
distrito. Apesar de ocupar um cargo eletivo, o juiz de paz era subordinado ao controle do ministro da justiça,
podendo este convocar novas eleições quando e se assim lhe conviesse. Diante disso, é bem possível que
existisse alguma resistência em prestar informações, retardando-as, e até mesmo sonegando-as, o que dificultava
o trabalho dos funcionários burocráticos contemporâneos.” Apesar disso a autora na página 15 destaca que “(...)
a década de 1830 é uma das mais férteis para o estudo da província quando se leva em conta o rico acervo do
Arquivo Público Mineiro.” P. 14-15.
28
O governo de Portugal também realizou na colônia - Brasil - uma seqüência de levantamentos censitários.
Muitos ainda são encontrados na Torre do Tombo ou em arquivos brasileiros. Ver FALCI, Miridan Britto Knox
e MARCÍLIO, Maria Luíza. O Piauí na 1ª metade do século XIX. Teresina, Comepi, 1986. Ver nessa tese página
29.
16
Havia necessidade de informação sobre a população brasileira e provincial levando o
governo imperial a decretar ofícios e portarias exigindo inquéritos populacionais
29
e, pela Lei
Imperial de 20 de outubro de 1823, foi determinado que cada presidente de província
realizasse censo e estatística da Província. De acordo com Libby, vários arrolamentos
populacionais foram realizados em Minas, constituindo minicensos, em atendimento “à
circular de 25 de agosto de 1831 enviada a todos os juízes de paz da província”
30
determinando que
“Convindo muito ao Serviço Nacional e ao bem dos povos, o exacto e detalhado
conhecimento do estado da população e da Indústria de cada um dos districtos da
Província, o Presidente da mesma ordena ao Sr. Juiz de Paz (...) que com a maior
brevidade envie uma relação conforme o exemplo seguinte dos habitantes do
mencionado Districto, pela ordem dos respectivos quarteirões, ou quando estes não
se acharem divididos, pela dos fogos, ou famílias, com os nomes de cada um dos
indivíduos deles, e declarações marginaes das idades, condições, estados e
ocupações em que se empregam, e dos que são libertos ou cativos...”.
31
Apesar das determinações governamentais, Robert Slenes
32
lembra que poucas
províncias foram muito zelosas no recenseamento da população e que muitos governos não
agiram com cuidado em relação à preservação de manuscritos censitários. Parece que esse não
foi o caso de Minas, como notam Maria do Carmo Salazar Martins, Maurício Antônio de
Castro Lima e Helenice Carvalho Cruz da Silva, ao reconhecerem que
“a província mineira sempre se mostrou zelosa e diligente no cumprimento das
repetidas ordens oriundas do executivo e do legislativo e procurou conhecer sua
população, sua produção econômica, suas escolas, os limites geográficos entre
municípios e distritos, etc. Prova deste esforço de recenseamento se revela diante do
enorme acervo de material manuscrito e impresso relativo a inquéritos populacionais
que está hoje sob a guarda dos Arquivos Municipais, especialmente do Arquivo
Público Mineiro (APM).”
33
29
Maria do Carmo Salazar Martins lembra que durante a década de 1830 a Presidência da província mineira
exigiu listas nominativas da população, mapas de população, listas de eleitores, listas de indivíduos aptos para o
recrutamento militar, listas de vendas e engenhos existentes nos diversos distritos etc. MARTINS, 1990. p. 14.
30
LIBBY, Douglas Cole. Transformação e Trabalho em uma economia escravista, Minas Gerais no século XIX.
São Paulo: Brasiliense, 1988. p. 29.
31
Arquivo Público Mineiro, Seção Provincial, Códice 81, p. 146, manuscrito. In: LIBBY, 1988. p. 29-30.
32
SLENES, Robert. O que Rui Barbosa não Queimou: Novas Fontes para o Estudo da Escravidão no Século
XIX. São Paulo: FIPE, V. 13, n.1, janeiro-abril, 1983, p. 118.
33
MARTINS, Maria do Carmo Salazar; LIMA, Maurício Antônio de Castro; SILVA, Helenice Carvalho Cruz
da. População de Minas Gerais na Segunda Metade do Séc. XIX: Novas Evidências. X Seminário sobre a
Economia Mineira. (S.l) (S.d.), p.1.
17
A observância das regras determinadas pelo governo provincial por parte do juiz de paz
de São Domingos do Prata, enviando em 1832 o mapa de população do distrito, deu-nos
condições de ter em mãos uma fonte rica no que diz respeito à população do distrito. Essa traz
informações que possibilitam visitar a região e recompor o perfil demográfico apresentado no
mapa.
Em relação aos mapas de população alusivos à Província de Minas Gerais, referentes à
década de 1830 e do ano de 1840, que estão disponíveis no Arquivo Público Mineiro, Libby
34
chama a atenção para algumas dificuldades que o pesquisador enfrenta ao utilizar essa fonte
que é rica em informações sobre a população de um modo geral. Ele lembra que como a
documentação é manuscrita a sua qualidade às vezes está comprometida em virtude do tempo,
da grafia e da má conservação. Alerta também para a questão da produção do documento que
apresenta sérios problemas, visto que, por ter sido decorrência do pedido do governo provincial
que queria informações sobre a população, muitas vezes a sistematização dos dados pelos
juízes de paz que confeccionavam os mapas está incompleta devido à interpretação dada ao
pedido do governo, ao senso de responsabilidade e ao método de trabalho utilizado. Nesse
sentido, lembra, ainda, que alguns juízes deixaram de dar informações solicitadas pelo governo
imperial ou as respostas não são uniformes, originando lacunas que impedem a plena
reconstituição de uma determinada sociedade.
Apesar disso, ele ressalta que “quando os juízes de paz seguiram à risca o modelo e
preencheram todas as casas para cada indivíduo, o resultado é de uma riqueza singular para
estudos que ambicionavam se aproximar de uma reconstituição da sociedade mineira
oitocentista.”
35
Cientes dos limites que as fontes utilizadas apresentam, buscamos retratar e interpretar a
demografia pratiana no século XIX, formulando alguns índices gerais, relativos a proporções
de livres e escravos na população, analisando a distribuição da propriedade de escravos e a
composição das camadas proprietárias desse bem, as faixas etárias da população livre e cativa,
dentre outros. Quando possível, fizemos comparações com estudos que foram realizados
utilizando mapas populacionais para outras regiões de Minas. Esperamos com este trabalho
contribuir para os estudos da sociedade mineira no oitocentos.
Antes de entrarmos no tema central proposto neste capítulo, abordaremos alguns
aspectos econômicos e do sistema escravista em Minas no século XIX a partir de
34
LIBBY, 1988.
35
Ibidem. p.30.
18
interpretações que vêm sendo produzidas pela historiografia nos últimos anos. Acreditamos
que o estudo desses justifica-se por ser encadeador de interpretações que orientam o nosso
trabalho sobre os aspectos sociodemográficos do distrito de São Domingos do Prata.
1.2. Minas Oitocentista
A partir da década de 1980, estudos relativos a Minas Gerais no século XIX têm
repensado algumas questões defendidas pelos autores clássicos, como Celso Furtado e Emília
Viotti
36
, que viram na decadência da mineração aurífera ocorrida na segunda metade do
século XVIII um processo de lenta e progressiva estagnação econômica. Para eles, o
esgotamento das minas de ouro não foi acompanhado de uma atividade capaz de promover
um dinamismo econômico que fosse responsável por gerar estímulos à importação de
escravos, bem como impedir a transferência de cativos para áreas economicamente dinâmicas.
Nessa perspectiva, acreditam que somente o surto cafeeiro do século XIX, ocorrido
principalmente na Zona da Mata Mineira, teria constituído atividade econômica capaz de
dinamizar a economia provincial.
Em busca de caracterizar a economia mineira do século XIX e como essa teria afetado
a demografia escrava, as tendências revisionistas desenvolvem argumentos enfatizando não
ser mais possível aceitar a tese da paralisação de Minas Gerais após a crise mineradora. Tal
tese tem sido contestada por pesquisadores que comprovam que as áreas não-cafeeiras da
província não foram desprovidas da força de trabalho servil em benefício da grande lavoura,
utilizando largamente o trabalho cativo e contribuindo para a sua reiteração no tempo, tendo
Minas constituído em grande importadora de escravos, participando do tráfico internacional e
do interprovincial no século XIX.
37
O quadro apresentado mostra um comportamento
dinâmico do sistema escravista mineiro no século XIX, trazendo resultados indicando que,
apesar desse sistema não ser o mais ativo do Brasil, ele não foi caracterizado por
atrofiamento
38
.
36
FURTADO, Celso. Formação Econômica do Brasil. São Paulo: Nacional, 1970. COSTA, Emília Viotti. Da
Senzala à Colônia. São Paulo: Ciências Humanas Ltda, 1982.
37
SLENES, Robert W. Os Múltiplos de Porcos e Diamantes: a economia escrava de Minas Gerais no século
XIX. Estudos Econômicos. São Paulo, v. 18, nº 3, IPE/USP, p. 450, 1988, apresenta índices mostrados pelos
irmãos Martins, evidenciando que a população escrava de aproximadamente 169.000 em 1819, passa para
382.000 em 1873, chegando a província a reunir um quarto dos cativos no Brasil, constituindo no maior sistema
escravista do Brasil.
38
PAIVA, Clotilde Andrade e LIBBY, Douglas Cole. Caminhos alternativos: escravidão e reprodução em Minas
Gerais no século XIX. Revista de Estudos Econômicos. São Paulo, v. 25, n. 2, 1995, p. 210.
19
A decadência da mineração, ocorrida no século XVIII, não desorganizou a economia
mineira, que continuou absorvendo escravos oriundos do tráfico atlântico enquanto esse
durou, e desenvolveu um leque diversificado de atividades econômicas surgidas desde o início
da atividade aurífera. Essa atividade, desde o seu alvorecer, estimulou a agricultura mercantil
e uma rede comercial destinadas a abastecerem os crescentes mercados dos centros urbanos
mineradores. Dessa forma, desenvolveu-se uma tradição agrícola na região das Minas, bem
como uma diversidade econômica. Essa se constituiu como solução para a crise surgida com a
decadência da mineração e deu à economia mineira um dinamismo que, ao contrário do
suposto atrofiamento, fomentou uma realidade capaz de sustentar e suscitar importações de
cativos.
A verificação de que a província mantinha o maior plantel de escravos do país, pelo
censo de 1872, acarretou uma série de conseqüências para as teses anteriormente defendidas.
Os debates acerca da grande população escrava mineira no século XIX geraram polarizações
em torno das explicações sobre as razões do seu dinamismo econômico, responsável pela
manutenção e pelo crescimento do plantel mancípio. Se Minas não era exportadora líquida de
escravos no século XIX, como afirmou Martins, e sim importadora, como caracterizar a sua
economia? Que atividades econômicas foram responsáveis pela manutenção do seu enorme
contingente de escravos? Enquanto para alguns estudiosos a razão estaria em uma economia
orientada à produção para o consumo local e para mercados locais, para outros, estaria em
uma estrutura econômica fortemente articulada com os mercados externos à província.
39
Foi a partir da tese de Roberto Borges Martins
40
, considerando que o comportamento
dinâmico do “sistema escravista” mineiro não era gerado pela produção para mercados
externos no século XIX, que surgiram controvérsias colocando Minas oitocentista como
objeto de pesquisa, pois foi a primeira contestação aberta e frontal à interpretação
dominante. Sua análise suscitou uma onda revisionista que passou a utilizar fontes
localizáveis no nível local (municipal) de natureza arquivista (inventários, contas de tutelas,
escrituras diversas, mapas populacionais), dos registros de terra, dos registros paroquiais,
dentre outros, iniciando a construção da historiografia mineira que busca contribuições que
venham acrescentar dados e também ajudar a preencher lacunas que se encontram abertas.
Como lembra Maria do Carmo Martins,
39
Ver MARTINS, Roberto Borges. A Economia Escravista de Minas Gerais no XIX. Belo Horizonte,
CEDEPLAR-UFMG, 1982. Mimeografado. SLENES, 1988, e LIBBY, 1988.
40
MARTINS, 1982.
20
Buscar compreender a Minas que se foi, tentar vivenciar e evidenciar seu contexto
oitocentista é tarefa importante o bastante para que o mineiro ponha de lado sua
reserva e contribua para desvendar os segredos escondidos pelas montanhas das
Gerais durante mais de cem anos.”
41
Martins, trabalhando com dados populacionais, contrapõe-se ao velho modelo
explicativo que vincula a escravidão moderna às economias exportadoras e defende que o
vasto plantel mancípio mineiro do século XIX teve seu crescimento dependente do tráfico
atlântico. Assim, enfatiza que Minas foi importadora líquida de escravos enquanto o tráfico
durou, refutando a idéia de que ela se tornou grande fornecedora de cativos para regiões
cafeeiras. Segundo o autor, a explicação para a grande demanda de cativos reside no fato de
Minas ter desenvolvido uma economia baseada na agropecuária de subsistência, fornecendo
produtos para mercados locais e regionais, tendo uma economia de base escravista que
exigia a importação de mão-de-obra. A esse respeito, eis o que ele diz.
“Mesmo dentro de Minas Gerais, a demanda do setor cafeeiro não provocou
realocações perceptíveis da mão-de-obra cativa, sendo atendida, com folga pelas
importações internacionais. Aparentemente todas as regiões da província foram
importadoras e tudo indica que a atividade cafeeira não foi sequer a principal fonte
de demanda por escravos nesse período. (...) longe de se tornar um fornecedor de
escravos para outras províncias, Minas foi, pelo menos até o início dos ano 70, a
província que mais escravos importou. (...) a população escrava da antiga região
mineradora de ouro (a região Metalúrgica-Mantiqueira) não foi drenada para a área
cafeeira.”
42
Apesar da colocação acima, Martins
43
reconhece que houve migração de famílias, com
seus escravos, das áreas mineradoras decadentes, no final do século dezoito e início do século
dezenove, para zonas de fronteira no Vale do Paraíba fluminense, paulista e mineiro. Porém,
ele alerta para o fato de que falta evidência que comprove transferências significativas de
escravos, mesmo porque, na primeira metade do século dezenove, houve grande crescimento
da população cativa da província. A respeito desse crescimento, ele diz que, “em 1808, Minas
tinha 148.772 escravos, contingente esse que cresceu para 168.543 em 1819, constituindo-se
na maior população cativa do Brasil e representando 15,2% do total.”
44
41
MARTINS, 1990. p. 13.
42
MARTINS, Roberto Borges. Minas e o Tráfico de Escravos no Século XIX, Outra Vez. História &
Perspectivas. Uberlândia, Minas Gerais, nº 11, Jul-dez., 1994, p. 128-129.
43
MARTINS, Roberto Borges. Minas Gerais, Século XIX: Tráfico e Apego à Escravidão numa Economia
Não-Exportadora. In: Estudos Econômicos. Nº 13, Jan./Abr. 1983, p. 187.
44
MARTINS, 1983. p. 187.
21
Para o autor, a economia provincial (com exceção do setor cafeeiro) estava voltada
quase que totalmente para o autoconsumo e o comércio local, não estando vinculada à
plantation e nem empregada para fins exportadores. Dessa maneira, o setor exportador não
seria o responsável pelo dinamismo do sistema escravista mineiro, não sendo o maior
empregador de cativos. Especificamente, ele ressalta que a província caracterizou-se por
desenvolver uma economia diversificada e auto-suficiente (com exceção do setor cafeeiro),
tendendo a um isolamento frente aos mercados externos, o que a tornava independente das
flutuações dos mercados de exportação. Com efeito, ele sugere que um grande sistema
escravista podia sustentar-se na base de uma economia direcionada para o mercado interno,
fora da tradicional economia de plantation (ou de mineração)
45
. Segundo ele,
o grosso da economia mineira, onde trabalhava a maior parte dos escravos, não era
constituído por plantations nem era orientado para a exportação. Isolamento de
mercados externos à província, diversificação interna e auto-suficiência eram suas
características principais. Minas tinha o mais baixo nível de exportações per capita
no país e, fora da região cafeeira, este vel declinou em termos reais no decorrer do
século. A grande lavoura exportadora ficou confinada a uma área reduzida e não
teve praticamente nenhuma influência sobre a vida econômica do resto da Província.
A economia provincial era formada basicamente por unidades agrícolas
diversificadas internamente – fazendas, sítios e roças – produzindo para auto-
consumo e para venda em mercados locais.”
46
Se a economia de Minas não era tão voltada para fora, e não era tão mercantilizada
conforme disse Martins, de onde partia, então, o grande impulso para importar escravos?
Robert Slenes
47
procurou demonstrar que a província não estava tão desvinculada da
mercantilização de seus produtos e apontou para certos setores dinâmicos da economia
mineira ligados, direta ou indiretamente, à economia exportadora, considerando que Martins
não avalia corretamente a importância da exportação mineira.
“Acredito que os Martins subestimam em muito a importância do setor exportador
de Minas e de seu impacto na economia interna da província. As atividades de
exportação não só permitiam um grande tráfico de escravos, mas também
constituíam o centro dinâmico da economia mineira. É a importância desse centro
dinâmico – e de seus efeitos multiplicadores sobre o resto da economia – que explica
o apego dos mineiros à escravidão durante boa parte do século. Por outro lado, a
retração desse centro e de seus efeitos multiplicadores é responsável pelo declínio do
45
PAIVA e LIBBY, 1995. p. 211.
46
MARTINS, 1980. p. 4-5.
47
SLENES, 1988.
22
sistema escravista, que se evidencia (ao contrário do que dizem os Martins) em
grande parte do interior de Minas nas últimas décadas do Império.”
48
Esse centro dinâmico da economia escravista na primeira metade do século XIX,
segundo Slenes, estava ligado a uma economia exportadora bastante significativa, enviando
produtos para fora da província, mesmo que destinados ao mercado brasileiro. Para ele, o
setor de exportação gerava efeitos multiplicadores sobre o setor interno, estimulando
atividades que participavam indiretamente da economia agroexportadora, dinamizando o
aparecimento de outras áreas produtoras na província e incidindo sobre o seu sistema
escravista. O cultivo de gêneros alimentícios, a criação bovina e a produção de laticínios
figuram entre os setores apontados como produtores de excedentes comercializáveis. Esses
propiciavam uma renda monetária responsável por incentivar, além da procura de escravos na
economia de exportação, maior demanda dentro da província por mantimentos, bens de
consumo e matérias-primas necessários ao setor exportador e às atividades internas ligadas a
ele. Haveria, assim, o desenvolvimento de atividades paralelas ao setor exportador,
fomentando maior necessidade e utilização da mão-de-obra escrava.
49
Em síntese, o que o autor procura salientar é a importância que a produção voltada
para fora exerceu sobre a economia interna gerando efeitos multiplicadores sobre essa e que
não eram visíveis nos dados sobre exportação. Para ele, não importa o percentual de
trabalhadores diretamente engajados no setor de exportação, e sim o tamanho do efeito
multiplicador desse setor sobre o resto da economia.
50
Outra explicação dada para o
crescimento da economia mineira oitocentista está ligada aos custos de transporte de
mercadorias vindas do litoral. Ele argumenta que os custos funcionavam como tarifas
protecionistas, possibilitando que a agricultura e a manufatura doméstica de produtos
metalúrgicos e de pano de algodão ampliassem sua produção para o mercado atendendo, ao
mesmo tempo, a necessidade do setor exportador e das atividades internas ligadas a esse.
51
O trabalho de Douglas Cole Libby
52
considera ter sido a produção de alimentos
básicos direcionados ao autoconsumo ou ao mercado interno, dentro e fora da província, o
grande sustentáculo da economia mineira do século XIX.
53
Apresenta também como
48
SLENES, 1988. p. 453.
49
Ibidem. p. 480-1.
50
Ibidem. p. 485.
51
Ibidem. p. 485-8.
52
LIBBY, 1988.
53
Libby chama de agricultura mercantil de subsistência o setor produtivo de alimentos para o autoconsumo ou
para o mercado interno. Ver LIBBY, 1988. p. 14.
23
explicação o fato da economia mineira ter desenvolvido atividades manufatureiras -
destacando o setor têxtil - e siderúrgicas, ramos necessários para o abastecimento da
província, ajudando na sua auto-suficiência e custeando os gastos produtivos. Assim, ao
mesmo tempo em que evitou seu desmoronamento econômico, essas atividades produtivas de
transformação geravam demanda por cativos e expandia a base produtiva mineira.
Segundo o autor, Minas produzia boa parte de bens manufaturados dos quais
necessitava, sendo quase auto-suficiente em ferro e derivados devido às inúmeras fundições
de pequena escala que começaram a proliferar nas primeiras décadas do século XIX.
54
Afonso de Alencastro e Libby
55
também mostram que a crise pela qual passou a
mineração não implicou o término da atividade aurífera em Minas Gerais. Demonstram que a
extração do ouro permaneceu com os faiscadores, além de atrair os interesses de associações
nacionais e estrangeiras. Dessas, as companhias inglesas constituíram as que mais buscaram
concessões para a exploração de lavras, e operaram em Minas Gerais aplicando técnicas de
mineração subterrânea até então desconhecidas no país. Dentre as concessionárias britânicas,
a que mais se destacou foi a Saint John d’El Rey Mining Company, instalada na Mina de
Morro Velho, que foi o maior empreendimento do setor.
Para os autores, as companhias de mineração foram grandes consumidoras de mão-de-
obra escrava, muitas vezes alugadas de proprietários privados da região onde estavam
explorando lavras. Além da mineração, a siderurgia e a extração diamantífera, outrossim,
contribuíram para o dinamismo econômico mineiro ao longo do século XIX, ampliando
também a sua capacidade de reposição da escravaria.
Em seu estudo sobre a Mina de Morro Velho, Libby mostra que a grande utilização
do trabalho escravo no processo industrial demonstrou ser o mesmo compatível e adaptável
ao progresso técnico, apresentando vantagens em termos de custos e lucros frente ao trabalho
livre utilizado e gerando alta lucratividade à companhia. Ao defender que o trabalho escravo
possuía capacidade de ascensão técnica o autor refuta preconceitos criados pela
historiografia brasileira acerca da escravidão vista como ineficiente e não compatível com a
modernização e dá uma grande contribuição para a historiografia da escravidão e da
Província de Minas Gerais, alertando para o fato de que existem lacunas na historiografia
brasileira quanto à utilização do trabalho escravo em atividades não-agrícolas.
56
54
Ibidem. Capítulos 4 e 5.
55
FILHO, Afonso de Alencastro Graça, LIBBY, Douglas Cole. A Economia do Império Brasileiro. São Paulo:
Atual, 2004.
56
Dentre os brasileiros que consideram que o trabalho escravo era ineficiente e incompatível com a indústria,
Libby cita Emília Viotti que ao analisar o beneficiamento da lavoura do café no Vale do Paraíba em comparação
24
Conforme mencionado acima, além da mineração, houve também desenvolvimento
da siderurgia e da produção têxtil em Minas no século XIX, contribuindo para o bom
desempenho da economia da Província e gerando a necessidade da importação e da
reprodução natural da mão-de-obra escrava. Marcelo Magalhães Godoy
57
, trabalhando com
dados das listas nominativas de 1831/1832, faz um minucioso levantamento das atividades
artesanais presentes na província mineira. Para ele, tais atividades constituíram a base de
sobrevivência dos indivíduos de um quarto das regiões da Província, “superando em quase
20% a população que trabalhava nas atividades agrícolas”
58
e que elas estavam disseminadas
por todas as regiões ocupadas, sendo a “Mineradora Central Oeste, a mais populosa e,
provavelmente, dinâmica região da província, os artífices perfaziam quase 50% da
população”
59
. Sendo assim, pode-se afirmar que o setor artesanal, destinado ao
abastecimento do mercado interno provincial, destacou-se como atividade econômica de
grande representatividade em Minas, vindo a confirmar o que Libby
60
apontou acerca da
dinâmica econômica mineira como responsável pela manufaturação de artefatos que
tornavam Minas auto-suficiente em alguns setores.
Os dados levantados por Godoy demonstram que as atividades manuais e mecânicas
eram diversificadas e agregavam as artes e os ofícios em geral reunindo a fiação, a
tecelagem, a cerâmica, as fibras, o trabalho com a madeira, com o couro e peles, com metais
e em edificações. Enquanto a fiação e a tecelagem, responsáveis por quase dois terços dos
artífices, desenvolveram com predomínio no meio rural e constituíram-se em atividades
femininas ligadas ao setor agropecuário, os trabalhos com o couro, a madeira e com os
metais eram quase que exclusivamente masculinos e estavam mais associados à mineração,
com predomínio do couro no espaço urbano.
O trabalho de Marcelo Godoy é uma referência para quem trabalha com Minas do
século XIX, sobretudo para aqueles que estudam os aspectos econômicos, demográficos e
sociais da mesma. O autor consegue mostrar um perfil significativo das várias atividades
manuais e mecânicas presentes na província e apresenta as diversas variáveis relativas ao
com o Oeste Paulista culpa, em parte, a utilização predominante do trabalho escravo no primeiro como inibidor
da implantação de técnicas avançadas por considerar que a utilização de máquinas era pouco compatível com o
trabalho escravo pois faltava interesse e responsabilidade ao mesmo tornando-o ineficiente. Utiliza também de
passagem de O Escravismo Colonial de Jacob Gorender que qualifica o trabalho escravo como deficiente e
inadaptável ao desenvolvimento técnico, visto como mau trabalhador e que estava apto a desempenhar apenas
tarefas simples devido a sua incapacidade de ascensão técnica quando considerado em massa.
57
GODOY, Marcelo Magalhães.Uma província artesã: o universo social, econômico e demográfico dos artífices
das Minas do oitocentos. S/l. S/d.
58
Ibidem. p.34.
59
GODOY, S/d. p.34.
60
LIBBY, 1988.
25
setor no que se refere a grupos ocupacionais, matéria-prima e mão-de-obra distribuídas por
condição, gênero, faixa etária, espaço urbano e rural e por região. O autor revelou que, no
conjunto, os artífices mineiros eram na maioria livres e de cor, oriundos das camadas médias
da população, com participação feminina majoritária devido ao setor de fiação e de
tecelagem e, que na maioria, os artífices eram adultos, tendo uma concentração regional
proporcional ao padrão de desenvolvimento das regiões, destacando a Mineradora Central
Oeste conforme mencionado acima.
O grande interesse no conhecimento do século XIX mineiro, despertado pelas
pesquisas da década de 1980, estimulou a busca por dados sobre as características
demográficas da população aprofundando as discussões, principalmente, sobre o segmento
cativo. A dimensão e a distribuição espacial, a origem nacional ou africana, a distribuição
segundo o tamanho das posses e os tipos de atividades em que estavam envolvidos os
cativos, são algumas das questões mais investigadas. O crescimento demográfico da
província necessitava de melhores explicações. Sem negar a importância do tráfico atlântico
para o crescimento da escravaria, pesquisadores mostram que a reprodução natural também
foi importante fator.
61
Paiva e Libby, analisando as listas nominativas de habitantes de 1831/1832 e as
matrículas de escravos de 1873 e de 1875 de três municípios do Oeste Mineiro - região bem
representativa da economia diversificada voltada para o mercado interno - e de Paracatu,
apontam a importância da reprodução natural no meio cativo para assegurar o crescimento
da população escrava. Os autores argumentam que em Minas existiram condições favoráveis
à reprodução natural escrava durante as décadas de 1830 e 1870 e consideram que tais
condições eram decorrentes da natureza da economia mineira, especialmente devido a sua
orientação para o mercado interno, mas com vínculos comerciais externos importantes, em
contraste com as economias de sistemas escravistas dependentes de agroexportação.
62
Botelho, em estudo sobre a região de Montes Claros - norte de Minas -, entre 1810 e
1888, utilizando-se de listas nominativas de habitantes, registros paroquiais, inventários
post-mortem, contas de tutela e ações de liberdade, mostra que a região teve o seu plantel
mantido, ou mesmo ampliado, durante o século XIX, principalmente por causa da
61
PAIVA e LIBBY, 1995. p. 205-9, apresentam pesquisas realizadas sobre a demografia escrava em outras
regiões do Brasil (Bahia, Paraná, Bananal e Lorena) mostrando que a manutenção e/ou aumento das populações
escravas brasileiras, durante períodos específicos e em determinadas regiões, de uma forma ou outra
marginalmente ligadas ao setor exportador, foi assegurada pelo crescimento natural, ligado ou não à compra via
tráfico.
62
Ibidem, p. 227.
26
reprodução natural.
63
Para construir seu argumento, o autor mostra que a grande presença de
escravos crioulos e o elevado percentual de crianças na população cativa, bem como as
razões de sexo relativamente equilibradas e as taxas brutas de natalidade são evidências da
contribuição da reprodução natural para o sistema escravista da região.
Sem desconsiderar a importância que a grande lavoura cafeeira adquiriu na Zona da
Mata, com o uso intenso do trabalho servil, as evidências empíricas que têm sido apresentadas
pelos pesquisadores de Minas do século XIX mostram que a maior importação de escravos,
ocorrida na época em que o tráfico atlântico estava aberto, corresponde a um período em que
o setor cafeeiro estava engatinhando não sendo, portanto, o setor responsável pela absorção
dos maiores contingentes escravos. Dessa forma, evidenciam que a grande população servil
não era constituída da herança do período da mineração e não foi decorrência, principalmente,
da necessidade gerada pela expansão cafeeira, não podendo, assim, servir para explicar a
sobrevivência do sistema escravista mineiro. Por meio da releitura das fontes e da
incorporação de várias outras como inventários post-mortem, testamentos, listas nominativas
ou mapas populacionais, relatos de viajantes, censos populacionais, matrículas de escravos,
novas evidências sobre a história de Minas têm sido apresentadas e problematizadas. Elas
mostram que a província caracterizou-se por uma economia escravista diversificada e
dinâmica, marcada por singularidades regionais e locais que viabilizaram a manutenção e a
reprodução do seu sistema escravista, com reposições por meio do tráfico, combinadas com a
reprodução positiva em determinados períodos e regiões.
As novas análises, surgidas a partir das recentes pesquisas, servirão de referência para
as abordagens que iremos desenvolver a seguir sobre São Domingos do Prata e seus aspectos
populacionais e econômicos no século XIX. Conhecer a região é importante para
compreender o seu perfil sociodemográfico, o seu papel no cenário provincial e como ela se
articulava na complexa economia mineira oitocentista, constituída por ampla diversidade
regional.
63
Cf. PAIVA, 1996. p. 22-3.
27
1.3. Formação do Distrito
São Domingos do Prata localiza-se na região Metalúrgica-Mantiqueira
64
na área do
Rio Piracicaba, uma das bacias secundárias do Rio Doce, e está a 136 km de Belo Horizonte.
A região (ver anexo I, pág. 121) começa a ser citada em documentos por volta de 1713,
quando o paulista Capitão-Mor João dos Reis Cabral descobre terrenos auríferos a que
denominou de São Miguel – em memória do grande Arcanjo -, região do atual Município de
Rio Piracicaba, que fica a 30 quilômetros de São Domingos do Prata (ver mapas 1 e 2). Fez
excursões, descendo o Piracicaba, que invadia extensa floresta virgem, chegando a uma
emergente povoação, fundada por um outro paulista – Antônio Dias – que, do Rio Doce,
subiu o Piracicaba e descobriu ouro.
Para estabelecer comunicações entre as duas nascentes povoações – São Miguel e
Antônio Dias, - era necessário atravessar um rio, afluente da margem direita do Piracicaba,
cujas águas, muito brancas, pareciam prata, e por isso o rio foi denominado rio Prata, servindo
como referência para dar nome ao nascente povoado que surgiu às suas margens e do qual
tratamos a seguir.
64
Neste estudo utilizamos a regionalização para Minas, no século XIX, presente em Libby, que estuda os
aspectos econômicos e sociais da província. Nesta perspectiva, a freguesia de São Domingos do Prata se localiza
na chamada Metalúrgica-Mantiqueira, onde está o munipio de Santa Bárbara, antigo centro minerador.
Trabalhando com mapas de população de 1831/40, com dados censitários de 1854 e de 1857 e o censo de 1872,
Douglas Cole Libby (Transformação e Trabalho) apresenta a região Metalúrgica-Mantiqueira – que foi o núcleo
de mineração original da Capitania – como a que, ao longo do século XIX, permaneceu como a mais urbanizada
e populosa, detendo o maior plantel de escravos de todas as regiões da Província na década de 1830 e o segundo
em 1872, quando a Zona da Mata ocupa o 1º lugar. Durante o século XIX, a região apresenta um
desenvolvimento diversificado das atividades produtivas, havendo destaque para a mineração, a agricultura
mercantil de subsistência e para o setor de transformação, principalmente o têxtil. Essa diversidade foi
apresentada, em parte, na abordagem sobre Minas no século XIX.
28
MAPA 1
Região Metalúrgica-Mantiqueira – Minas Gerais, século XIX
ME
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A
L
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R
G
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M
A
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E
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R
A
SANTA BÁRBARA
ITABIRA
S. D. PRATA
Fonte: adaptado de LIBBY, Douglas Cole. Transformação e Trabalho em uma economia escravista, Minas
Gerais no século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1988. p.33.
MAPA 2
Município de São Domingos do Prata – configuração atual
Fonte: www.cidadesmineiras.com.br/prata/mapa%20cidades%20limites.jpg
29
Como ocorreu em várias regiões do país no período colonial, São Domingos do Prata
surgiu em volta de uma capela, construída em terreno doado para patrimônio de São
Domingos de Gusmão pelo português Domingos Marques Afonso, um dos primeiros a
receber sesmaria na região, na freguesia de São Miguel do Piracicaba, em cumprimento à
promessa feita quando se perdeu nas matas para caçar. O despacho que autorizou a provisão
para a criação da capela de São Domingos, no rio da Prata, tem a data de 3 de junho de 1766 e
diz o seguinte:
Fazemos saber que, atendendo nós ao que, por sua petição, nos enviaram a dizer
Domingos Marques Afonso e Antônio Alves Passos e mais moradores da freguesia
de São Miguel do Piracicaba, havemos por bem conceder-lhes licença pela presente
nossa provisão para que possam erigir uma capela com a invocação de São
Domingos, na freguesia de São Miguel, no lugar que lhes destinar o Revmo. pároco,
visto terem feito termo de sujeição na nossa Câmara, em o qual se sujeitam à nossa
jurisdição e de nossos sucessores, a qual será fabricada de materiais perduráveis,
com boa proporção e arquitetura e, depois de feita e decentemente paramentada com
os ornamentos das quatro cores que mandam as rubricas do missal e de que usa a
igreja e mais coisas necessárias, e feito o patrimônio suficiente, recorrerão a nós,
para a mandarmos visitar e benzer na forma do ritual romano, e nela se pode
celebrar sem prejuízo dos direitos paroquiais e Cruz da Fábrica da Matriz; e terão
um livro, em que estarão encadernados todos os documentos pertencentes à mesma
capela e será registrada esta, no livro de registro geral. Dada e passada nesta cidade
de Mariana, sob nosso sinal e selo da mesa Capitular, aos 5 de julho de 1766”.
65
A escritura do patrimônio doado por Domingos Marques Afonso e seu irmão José
Marques Vilas, para a construção da capela mencionada, foi passada no cartório do Arraial de
Nossa Senhora da Conceição de Catas Altas, termo da cidade de Mariana, em 3 de outubro de
1768. O arraial foi crescendo e, a 13 de junho de 1820, foi concedida provisão pela Mesa da
Consciência e Ordem para que se construísse a Igreja do Rosário. A capela, que pertenceu à
freguesia de São Miguel do Mato Dentro (Termo de Santa Bárbara) até 1840, passou para a
freguesia de Sant’Ana de Alfié até 1841, ano em que voltou para São Miguel, e em 1843 o
curato foi elevado a freguesia, denominada de Freguesia de São Domingos da Prata, de
acordo com a Lei Mineira nº 247, artigo 9, registrada em 6 de setembro do mesmo ano,
pertencente ao município de Santa Bárbara.
66
65
BARBOSA, Waldemar de Almeida. Dicionário Histórico-Geográfico de Minas Gerais. Belo Horizonte, 1971.
p.448-9.
66
Maria do Carmo Salazar Martins nos alerta sobre questões relativas a divisões administrativas mineiras na
primeira metade do século XIX, período em que Minas conheceu “uma política administrativa dinâmica (para
não dizer confusa), em que as divisões política, administrativa, eclesiástica e judiciária se sobrepunham, fazendo
com que distritos, vilas e comarcas fossem constantemente desmembrados, reagrupados, suprimidos e
reinstalados.” MARTINS, Maria do Carmo Salazar. Revisitando a Província: comarcas, termos, distritos e
população de Minas Gerais em 1833-35. V Seminário sobre a economia mineira. Diamantina: 1990. p. 16
30
São poucos os documentos conhecidos sobre a origem do arraial e, segundo Luís
Prisco de Braga,
Conhecem-se duas cartas de sesmarias; uma datada de 6 de novembro de 1758,
concedendo a Domingos Marques meia légua de terra em quadra no Ribeirão da
Prata, freguesia de Catas Altas, acima da cachoeira de um córrego à mão direita do
referido ribeirão, município da Vila Nova da Rainha, comarca do Rio das Velhas
(...). A outra carta é datada de 23 de novembro de 1771, concedendo a José Marques
Vilas, por sesmaria, meia légua de terra em quadra, no Ribeirão da Prata, freguesia
de São Miguel, termo da Vila Nova da Rainha, comarca do Rio das Velhas.”
67
O nome do povoado origina-se da alusão ao padroeiro local, homônimo do fundador,
Domingos Marques Afonso, e também ao ribeirão da Prata - o qual mencionamos
anteriormente -, que banha o município e é assim chamado porque tinha águas brancas que
pareciam prata na época do descobrimento, diferente das do rio Piracicaba, do qual é afluente,
e que tinha suas águas turvas e barrentas, em decorrência da mineração. O nome prata,
portanto, não provém da existência de prata na região, como alguns podem pensar. Em
documentos existentes no Arquivo Público Mineiro (APM) aparece “São Domingos da
Prata”, isto é, da água prata.
O município, que atualmente possui 749,1 quilômetros quadrados de extensão
territorial, por ser beneficiado pela sua localização geográfica, serve-se com vantagens de
importantes mercados vizinhos como o Vale do Aço, Belo Horizonte, Vitória, dentre outros,
contribuindo para o seu desenvolvimento; tem na pecuária bovina e na lavoura suas principais
atividades econômicas, como também ocorreu no século XIX.
Atualmente formado por seis distritos - a Cidade, Cônego João Pio (ex-Teixeiras),
Ilhéus do Prata, Juiraçu (ex-Santa Isabel), Santana do Alfié e Vargem Linda - São Domingos
do Prata, que pertenceu ao município de Santa Bárbara, foi elevado a paróquia pela lei nº 247
de 20 de julho de 1843, como referido anteriormente. Foi incorporado ao município de Itabira
por lei nº 623 de 30 de maio de 1853, revogada pela de nº 717 de 16 de maio de 1855.
Elevado a vila, com a criação do município pelo decreto nº 23 de 1º de março de 1890, e
através do decreto nº 401, de 3 de março de 1891, foi a vila elevada à categoria de cidade,
instalando-se a comarca em 10 de março de 1892.
Na época da sua criação, o município contava com 4 distritos, a saber, a sede – com a
denominação de São Domingos até 7 de setembro de 1923, quando teve o nome alterado para
São Domingos do Prata -, Alfié e Dionísio, desmembrados do município de Itabira, e Santo
67
BRAGA, Luís Prisco. Narrativa Histórica do Município de São Domingos do Prata, 2001, (s.l), (s. ed.). p.23.
31
Antônio de Vargem Alegre, desmembrado do município de Mariana. Posteriormente outros
distritos foram criados, como o de São José do Goiabal, Marliéria e Jaguaraçu, já
emancipados juntamente com Dionísio.
Como falamos anteriormente, Minas Gerais não entrou em decadência no século XIX.
A prova disso foi o surgimento e o desenvolvimento de vários povoados com conseqüente
elevação a freguesia. O potencial econômico (lavoura e pecuária) e a sua posição geográfica
contribuíram para o surgimento da Freguesia de São Domingos da Prata.
1.4. Dinâmica sociodemográfica e econômica no século XIX
Quando da bênção da capela em 10 de novembro de 1768, o povoado contava com
aproximadamente 100 pessoas e por volta de 1820 já somava 583 escravos. Isso sugere,
portanto, que a ocupação da região foi rápida nesse período. Douglas Cole Libby e Márcia
Grimaldi
68
, em estudo realizado sobre o comportamento demográfico da população escrava
em Minas Gerais no século XIX, apresentam algumas características sobre a região de São
Domingos do Prata que são bastante significativas. Os pesquisadores, utilizando dois mapas
de população relativos ao distrito, mostram que, de acordo com o primeiro mapa que seria
provavelmente de 1820
69
, havia um setor agropecuário diversificado conjugado com um setor
de transformação que estava sob comando feminino. De acordo com os autores,
“No verso do mapa encontra-se um resumo do comércio anual, mostrando que
importavam-se sal, fazendas secas, vinho, farinha de trigo e ferro e ‘exportavam-se’
açúcar, aguardente, café, rapadura, toucinho, milho e feijão, sendo que o valor destas
era mais de quatro vezes maior do que daquelas. (...) o quadro da estrutura
ocupacional denuncia uma florescente indústria caseira de panos e fios, uma
concentração de mão-de-obra masculina na agricultura, um contingente dos
costumeiros artesãos e comerciantes e nenhum mineiro.”
70
Pelo exposto acima, percebe-se que a região era marcadamente agrícola, com uma
economia diversificada e que mantinha relações comerciais com outras, abastecendo-as,
desenvolvendo, portanto, a mercantilização, tendo uma “exportação” expressiva, pois os
valores obtidos por meio dela eram maiores do que os pagos pela “importação”. Sendo assim,
pode-se sugerir que a região estava integrada ao mercado, auferindo divisas e participando do
68
LIBBY, & GRIMALDI, 1998.
69
Ibidem. p. 432. Os autores dizem que não há data no mapa, mas que, por pertencer à Seção Colonial, o mapa
certamente antecede 1822, mas que não é possível ainda saber a data certa.
70
LIBBY, & GRIMALDI, 1988. p.432.
32
que Libby e Grimaldi chamam de sedimentação econômica
71
, com uma produção que
acompanhou os rumos da economia provincial, voltada para atender o mercado interno,
compondo o quadro de diversificação e estabilidade econômica que foram características das
Minas no século XIX.
A partir do mapa analisado, os autores levantaram dados relativos aos escravos
brasileiros e aos africanos por faixa etária e sexo, e a proporção de brasileiros por africanos na
região. O que eles mostram é que, em relação à faixa etária e ao sexo, os escravos brasileiros
apresentam índices muito próximos, gerando equilíbrio. De trezentos e setenta e três escravos
brasileiros, cento e oitenta e seis são homens e cento e oitenta e sete são mulheres,
distribuídos por faixa etária, da seguinte maneira: dos homens, 31,2% na faixa etária de um a
dez, 33,3% de dez a vinte, 21,5% de vinte a trinta, 7,5% de trinta a quarenta, 3,8% de
quarenta a cinqüenta e 2,7% de sessenta anos a mais; das mulheres, 33,2% de zero a dez,
32,6% de dez a vinte, 20,3% de vinte a trinta, 8,8% de trinta a quarenta, 3,7% de quarenta a
cinqüenta e 2,1% de sessenta anos e mais. Havia, portanto, predomínio de uma população
escrava nacional com até vinte anos, representando 64,5% para os homens e 65,8% para as
mulheres apresentando, para ambos os sexos, um índice com até dez anos que é revelador da
reprodução natural
72
no meio escravo. Sobre os cativos brasileiros, os autores observaram
que,
“configura-se uma pirâmide etária da população escrava nativa com uma base
alargada. O equilíbrio entre os sexos dos cativos brasileiros é virtualmente perfeito.
O corolário é (...) o esboço de um núcleo equilibrado entre os mancípios nativos em
meio à estabilidade da diversidade produtiva. (...) fica patente, neste exemplo de São
Domingos do Prata, o potencial para reposição e/ou reprodução demográfica da
população escrava como um todo.”
73
O equilíbrio entre os sexos e o elevado percentual de crianças na população cativa
crioula demonstra que a manutenção e a expansão da mão-de-obra escrava na região sentiram
o efeito da reprodução positiva. Pesquisas têm mostrado que regiões do Brasil fora do eixo
71
Ibidem. p. 427 e 439. Para os autores, a predominância de uma agricultura não monocultural, da pecuária e das
indústrias caseiras e manufatureiras sugere uma considerável estabilidade que eles consideram como certa
sedimentação econômica. Para eles, a estabilidade da agricultura diversificada era propícia à reprodução da
população cativa.
72
LIBBY, Douglas Cole, PAIVA, Eduardo França. A Escravidão no Brasil: relações sociais, acordos e
conflitos. São Paulo: Moderna, 2000, p.75-6. Para os autores, a reprodução natural, em algumas regiões
escravistas na América, serviu para renovar e também para ampliar o número de escravos, evitando ter que
recorrer ao tráfico para comprar cativos. Sendo assim, acreditam que muitos senhores podem ter estimulado a
formação da família escrava para ampliar a propriedade cativa através dos nascimentos que poderiam ser
intensificados.
73
LIBBY, & GRIMALDI, 1998. p.434.
33
principal do tráfico internacional tiveram sua população escrava ampliada devido ao
crescimento natural, combinado ou não à compra através do tráfico.
74
Em relação aos escravos africanos, Libby e Grimaldi mostram a existência de grande
desequilíbrio entre os sexos, pois, de um total de duzentos e dez, cento e setenta e dois eram
do sexo masculino e trinta e oito do feminino, com uma razão de masculinidade de 4,5
homens por mulher
75
. Tal discrepância é sinal de que os efeitos do tráfico atlântico também se
fizeram presentes no distrito, já que durante o período em que o tráfico negreiro internacional
foi praticado houve maior oferta de homens que de mulheres, com reduzida participação de
crianças de até doze anos
76
. A racionalidade do sistema escravista levou a maior investimento
no escravo adulto do sexo masculino, considerado um bem de mais fácil comercialização e
adequado para as inúmeras atividades que deveriam ser realizadas em uma economia que se
organizava dependente da incorporação de braços para a sua reprodução.
77
Como a empresa escravista levou a uma seleção do africano de acordo com o sexo e a
idade, esse modelo refletiu no perfil etário dos africanos do distrito; num total de cento e
setenta e dois homens, há uma pequena porcentagem de cativos com menos de dez anos de
idade (0,6%), havendo uma concentração na faixa de dez a quarenta anos (73,2%), e para as
faixas de quarenta a cinqüenta e mais de sessenta anos os índices são, respectivamente, 13,4%
e 12,8%. Para as mulheres africanas os dados levantados revelam um predomínio das adultas
com os seguintes índices: 5,3% de zero a dez, 42,1% de dez a vinte, 31,6% de vinte a trinta,
7,9% de trinta a quarenta, 10,5% de quarenta a cinqüenta e 2,6% de 60 anos e mais.
Os escravos brasileiros eram maioria na região. De quinhentos e oitenta e três cativos,
trezentos e setenta e três eram brasileiros e duzentos e dez eram africanos, o que equivale a
63,97% para os primeiros e 36,03% para os segundos. Os escravos africanos correspondiam a
mais de 1/3 da população cativa na região por volta de 1820, demonstrando que a
contribuição do tráfico não era desprezível e que pode ter sido importante, juntamente com a
reprodução natural, para a reposição da mão-de-obra, apesar de não ser predominante. Não
tivemos acesso a fontes que indicam a origem dos cativos africanos da região, mas é possível
que a proximidade com a área do núcleo central da mineração tenha propiciado transferência
de escravos para o distrito.
74
PAIVA, 1996. p. 14-19.
75
PAIVA, 1996. p. 434.
76
LIBBY e PAIVA, 1995. p.15.
77
FLORENTINO, Manolo, GÓES, José Roberto. A Paz das Senzalas: Famílias escravas e tráfico atlântico, Rio
de Janeiro, c.1790 – c.1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997.
34
O índice de criança escrava brasileira de 31,2% encontrada na região é indicativo de
que a reprodução da população escrava era importante fonte para a reposição de mão-de-obra
e de que, certamente, houve um crescimento natural da mesma. Já a presença insignificante de
criança entre os escravos africanos coincide com o que a historiografia mostra para todo o
país, pois era baixo o índice de importação de crianças africanas, uma vez que a prioridade era
dada a adultos do sexo masculino, considerados essenciais para desempenharem as tarefas
necessárias na economia escravista.
78
Em 1832, de acordo com os registros feitos em um mapa de população que se encontra
no APM
79
, os habitantes do distrito chegavam a 2160 pessoas. Dessas, 1254 eram livres e 906
eram cativos, correspondendo os livres a 58,06% da população e os escravos a 41,94%. Como
a população escrava representa bem mais de 1/3 da população, vale indagar em que ocupações
estariam esses escravos sendo utilizados. Os dados registrados no mapa fornecem
informações acerca da existência de fábricas de assucar (mantivemos a grafia como aparece
no documento), de aguardente e de tecidos de algodão como únicas do distrito. Das 37
fábricas relacionadas, todas produzem açúcar e 29 produzem também aguardente, e todas
fabricam algodão “para o seu gosto”, conforme se diz no mapa. O número de escravos
arrolados em relação a cada fábrica varia de 2 a 37, sendo dezenove proprietários com menos
de 10 cativos, treze de 10 a 20 e cinco acima de 20. Dos 37 proprietários listados, doze são
mulheres, representando 32,44%, e vinte e cinco são homens, correspondendo a 67,56%,
sendo, portanto, significativa a representação feminina como proprietária de escravos.
Segundo encontramos no mapa, não havia estrangeiros no distrito, os jornaleiros não
trabalhavam em lugar certo, ora trabalhavam em uma fazenda, ora em outra, onde fosse
melhor para eles, e não existia prática da mineração. O quadro abaixo fornece-nos uma visão
acerca das fábricas e dos respectivos proprietários com a relação do número de escravos
utilizados.
78
FLORENTINO, GÓES, 1997. p.28.
79
O documento mencionado, intitulado Relação dos habitantes do Distrito da Capella de São Domingos da
Prata, Freguesia de São Miguel, Termo da Villa Nova da Rainha de Caethe, Câmara de Saba, está arquivado
na MP1 CX 14/01. Nele estão relacionadas algumas informações a respeito de atividades econômicas
desenvolvidas na região e o número de escravos ligados a cada proprietário de fábrica. Traz também a relação de
habitantes, discriminados por sexo, nome, qualidade, estado civil, ocupação – em relação a alguns -, idade,
condição, a quantidade de pessoas por fogo, o número de fogos que foram arrolados constando a cabeça do fogo
e o número de escravos existentes no mesmo. Tais informações são de grande validade, pois evidenciam
aspectos que nos mostram dados relativos à população da região, possibilitando o resgate do perfil da sua
composição demográfica, ocupacional, escravista, dentre outras. Além disso, nomeia os proprietários de fábricas
com o número de escravos relativos a cada fábrica, revelando um índice representativo da presença escrava na
região.
35
QUADRO 1
Relação de fábricas do Distrito da Capela de São Domingos do Prata, 1832
Nomes Engenhos Alambiques Escravos
D. Marianna Reis Leal Assucar Alambique 19
Cap. Manoel José Vieira Assucar 21
Antônio Pereira de Miranda Assucar 6
Francisco Domingues Gomes Assucar Alambique 8
Joaquim Gomes Lima Assucar Dº 37
D. Albina Maria de Jesus Assucar 15
Anna Maria de S. José Assucar S 7
Felicidade Emília Assucar S 6
José Vieira Servas Assucar Alambique 14
Cap. Franco de Paula Reis da S. Assucar 36
Antônio José Vieira Assucar 23
Maria Eugênia da Cunha Assucar S 15
Alferes Ângelo Florêncio de Toledo Assucar Alambique 8
Pedro Domingues Gomes Assucar S 7
Miguel Pereira Lopes Assucar Alambique 10
Franco da Costa Guimaraens Assucar 3
José Vieira de Castro Assucar 7
Antônio Reiz Frade Assucar 12
Maria Justina Assucar S 6
Miguel Soares Assucar Alambique 5
D. Josefa Victoria Assucar 17
Felisberto José Dias Assucar Alambique 6
José Ferreira da Costa Assucar 14
Francisco de Campos Assucar 2
D. Francisca do Livramento Assucar 12
Antônio José Teixeira Assucar S 8
Antônio José de Castro Assucar S 4
José Antônio Castro Assucar Alambique 9
José Dias Torres Amorim Assucar S 10
Ignacia Gomes de Jesus Assucar Alambique 3
D. Lucianna Guerra Assucar Alambique 22
Manoel Joaquim Domingues Assucar 8
Antônio Gomes Domingues Assucar 9
João Rodrigues Frade Assucar 16
José da Silva Perdigão Assucar 11
36
D. Josefa Assumpção Assucar 13
Maria Angélica Assucar Alambique 8
Total 437
Fonte: Arquivo Público Mineiro, Mapa de População de 1832. MP1 CX 14/01
Por ser o mapa bem completo possibilita saber se os dados relativos aos escravos
arrolados para cada fábrica, diz respeito a adultos ou não, viabilizando perceber, através dele,
o número de escravos em idade adulta e, portanto, aptos para o trabalho. Deixa evidente que
os escravos que aparecem em relação às fábricas com os respectivos proprietários
representam, para alguns, parte da posse de escravos em idade de serem utilizados como mão-
de-obra na fábrica. Dos 906 escravos existentes na região, conforme apresentado no mapa,
437, ou seja, 48,23% aparecem na relação dos proprietários de fábricas, o que nos leva a
levantar a hipótese de que a maior parte dos escravos existentes no distrito estava diretamente
ligada a atividades agrícolas, com destaque para a cultura da cana-de-açúcar e do algodão,
bem como de seus beneficiamentos, reforçando o que as pesquisas sobre Minas no século
XIX apontam como sendo característica marcante na sua economia, a agricultura mercantil de
subsistência, conjugada ao setor de transformação.
São Domingos do Prata, arraial em pleno desenvolvimento e que já tinha 2160 pessoas
em 1832, detinha um significativo número de escravos (41%) ligados à produção agrícola da
região e com reprodução interna (64% tinham até 20 anos). É o que veremos a seguir.
1.5. Elementos definidores da população escrava/livre no século XIX
Considerando este trabalho um passo importante para que, através do estudo da
população de São Domingos do Prata, no século XIX, possamos compreender o seu papel
econômico e sociodemográfico no contexto regional e provincial, buscamos investigar as
características de sua população. Acreditamos que o enfoque regional, em escala mais
reduzida, ao propiciar a verificação da dinâmica demográfica existente no âmbito do distrito,
pode ajudar a responder a questão da permanência de grandes contingentes de escravos em
Minas. As informações sobre a composição do plantel dos proprietários pratianos, que teve
uma participação predominante de crioulos na década de 1830, são úteis para a discussão
sobre a reposição de escravos via reprodução natural. Para tanto, analisaremos, a seguir, o
perfil dos seus habitantes a partir da leitura dos dados fornecidos pelo mapa de 1832 e de suas
37
variáveis, começando pela apresentação da população, de acordo com a sua distribuição por
condição livre/escrava.
É pertinente ressaltar que Minas Gerais, no século XIX, foi intensamente marcada pelo
escravismo, conforme afirmamos anteriormente, produzindo para o seu consumo e, à exceção
do setor cafeeiro, não tinha a exportação como regra definidora de sua economia, não sendo
seu traço marcante a plantation exportadora. Apesar disso, é importante lembrar que a
província desenvolveu uma lógica própria, combinando a economia destinada ao mercado
interno - local ou regional - com setores orientados para a exportação. Partindo desse
pressuposto, acreditamos que, para analisar qualquer aspecto da história mineira no
oitocentos, é preciso levar em conta que a ordem econômica e social foi altamente
influenciada pelo regime escravista então predominante que dava o tom nas relações sociais.
Sendo assim, para compreender como estava organizada a sociedade de São Domingos no
século XIX, optamos por iniciar retratando a sua composição social segundo a condição,
conforme pode ser visto no gráfico a seguir.
GRÁFICO 1
População segundo condição, Distrito de São Domingos do Prata - 1832
58,06%
41,94%
100,00%
0,00%
10,00%
20,00%
30,00%
40,00%
50,00%
60,00%
70,00%
80,00%
90,00%
100,00%
Quantidade
Li
v
r
e
s
Esc
ra
v
os
To
ta
l
Condição
Fonte: Arquivo Público Mineiro, Mapa de População de 1832. MP1 CX 14/01
Os dados acima demonstram claramente que era significativa a presença escrava na
região, representando 41,94% da população, enquanto os livres somavam 58,06%, conforme
dito anteriormente. O percentual de escravos encontrados permite-nos dizer que era maior do
que o encontrado por Libby
80
para a região Metalúrgica-Mantiqueira - na qual São Domingos
está inserida -, para o período de 1831-40 que apresentou índice de 36,48%. Sendo a
80
LIBBY, 1988.
38
população cativa de São Domingos tão representativa, é interessante levantarmos algumas
questões. Por que essa região detinha um percentual de escravoso significativo? Esses
cativos estariam ocupados em que atividades? Qual a origem desses escravos? Africana ou
brasileira? Como seria a posse de escravos na região? Qual a faixa etária e qual predomínio
sexual desses escravos? Essas questões serão discutidas nas páginas seguintes.
Considerando a ocupação, vimos que havia predomínio da utilização dos cativos em
atividades agrícolas ou a elas ligadas, sobressaindo a cana-de-açúcar e o algodão e o
beneficiamento de ambos, que empregavam 48,23% da mão-de-obra cativa, conforme
mostrado no mapa.
Analisando as características da população escrava existente em 1832, notamos que o
índice total dos africanos era de 35,10% enquanto o dos brasileiros correspondia a 64,90%. Os
cativos africanos do sexo masculino no conjunto da população escrava não chegaram a ser
majoritários na escravaria do Prata, mas era bastante marcante, atingindo um percentual de
45,09% (gráfico 2) dentre os 581 escravos encontrados na região, enquanto os brasileiros
somavam 54,91%.
81
Tal índice mostra que São Domingos do Prata teve participação na
importação de escravos oriundos do tráfico externo e interno, contribuindo para a formação da
sua mão-de-obra, coincidindo com o que é recorrente na historiografia quanto à preferência
pela importação de escravos do sexo masculino, para atender os interesses econômicos.
Apesar disso, o número de escravos nascidos no Brasil era superior ao número de africanos
(gráficos 2 e 3), com predomínio na faixa etária de um a quinze anos, como veremos adiante,
evidenciando que os padrões reprodutivos foram positivos para garantir o estoque de mão-de-
obra na região, coexistindo com a importação.
81
Estamos considerando como africanos os cativos discriminados como tal no item relativo à qualidade no mapa
analisado. Foram considerados como brasileiros aqueles que aparecem como crioulos, cabra e pardo.
Procedimento parecido foi utilizado por BOTELHO, Tarcísio Rodrigues. Famílias e escravarias: demografia e
família escrava no norte de Minas Gerais. Revista População e Família, nº 1, jan.-jun., São Paulo. 1998.
39
GRÁFICO 2 GRÁFICO 3
45,09%
54,91%
100,00%
0,00%
10,00%
20,00%
30,00%
40,00%
50,00%
60,00%
70,00%
80,00%
90,00%
100,00%
Quantidade
Africanos
Brasileiros
Total
Origem
Distribuição da população cativa masculina
segundo origem, São Domingos do Prata - 1832
17,23%
82,77%
100,00%
0,00%
10,00%
20,00%
30,00%
40,00%
50,00%
60,00%
70,00%
80,00%
90,00%
100,00%
Quantidade
Afric
a
nas
B
ra
s
ile
ira
s
To
ta
l
Origem
Distribuão da população cativa feminina
segundo origem, São Domingos do Prata -
1832
Fonte: Arquivo Público Mineiro, Mapa de População de 1832. MP1 CX 14/01
O número de escravos africanos em uma sociedade escravista serve como medida de
integração ao tráfico. Quanto maior o número de africanos, maior a ligação desse sistema com
o tráfico. Não conseguimos evidências diretas sobre o tráfico de escravos para a freguesia,
mas os dados fornecidos pelo mapa nos mostram a presença do elemento africano entre a
população escrava da mesma. Em relação às mulheres cativas, encontramos um percentual de
africanidade bem menor que o encontrado para os homens, atingindo um índice de 17,23%
(vide gráfico 3), num total de trezentas e vinte e cinco escravas, enquanto as brasileiras
alcançaram índice de 82,77%. A população escrava feminina era menor do que a masculina
nos dois grupos, o de brasileiros e o de africanos, gerando desequilíbrio entre os sexos.
Sobre a preferência pelos cativos africanos do sexo masculino, Kátia Mattoso
82
diz
que nos carregamentos vindos da África, no século XVII, é evidente a maior presença de
homens, chegando à proporção de dois homens para uma mulher. Segundo ela, essa
proporção se manteve durante os três séculos da escravidão, aumentando a preferência pela
mão-de-obra servil masculina com a descoberta do ouro. Manolo Florentino e José Roberto
Góes
83
, analisando o desembarque de africanos no mercado do Valongo, na cidade do Rio de
Janeiro, na primeira metade do século XIX, afirmam que três em cada quatro desembarcados
eram homens, na maioria adultos (de 15 a quarenta anos de idade). Essa preferência pelos
82
MATTOSO, Kátia. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 3 ed., 1990.
83
FLORENTINO, & GÓES, 1997.
40
homens foi conseqüência do fundamento econômico da escravidão, causando desequilíbrio
entre os sexos dos africanos, no mundo do cativeiro.
Referindo-se à incidência de homens numa certa sociedade, Douglas Cole Libby
84
observou que serve como indicador de determinadas tendências demográficas. No caso dos
escravos, ele lembra que a maior procura por homens era usual por parte dos senhores, num
período em que a sociedade escravista conseguisse manter sua capacidade de participar do
tráfico negreiro, estando engajada como compradora, o que refletiria em um maior índice de
masculinidade da população escrava. Em caso de perda da capacidade de participação no
tráfico, haveria uma tendência a um certo equilíbrio sexual no grupo de cativos. A grande
predominância masculina para os cativos africanos, encontrados em São Domingos do Prata
em 1832, pode ser sinal de que havia participação do distrito no comércio de cativos. Estaria
São Domingos participando do tráfico negreiro como comprador de mão-de-obra? É
pertinente lembrar que, como evidencia Libby
85
, entre 1830 e 1852 houve uma grande
elevação da entrada de africanos no Brasil, devido à pressão britânica para que cessasse o
comércio de cativos. Tal fato levou os comerciantes negreiros a aumentar o desembarque de
africanos nas praias brasileiras, em vista do temor pelo fim inevitável do tráfico. De acordo
com Libby, a maioria dos cativos era desembarcada no Rio de Janeiro, e Minas Gerais
constituía uma das Províncias receptoras de parte da grande oferta de escravos, mesmo tendo
uma economia marcada por uma baixa mercantilização. Certamente São Domingos do Prata
foi beneficiado por essa oferta que contribuiu para a ampliação de sua escravaria de origem
africana.
No tocante à distribuição da posse de escravos em São Domingos do Prata, notamos
que ela estava relacionada ao predomínio da pequena propriedade
86
, havendo maior
distribuição entre os proprietários (ver gráfico a seguir). Dos duzentos e oitenta fogos
arrolados no mapa, cento e cinqüenta e oito não possuíam escravos (56,43%), e dos cento e
vinte e dois que possuíam cativos, 54,92% tinham posse de um a cinco escravos e 39,35%, de
seis a vinte. O gráfico a seguir ilustra o que queremos demonstrar. Apenas 43,57% dos fogos
eram possuidores de escravos, enquanto 56,43% não possuíam um escravo sequer. Com isso,
podemos afirmar que havia muitas propriedades na região que provavelmente não
participavam ativamente da economia regional ou que poderiam empregar o braço do
84
LIBBY, 1988. p. 56-7.
85
Ibidem. p. 61.
86
Sobre a propriedade de escravos, estamos considerando como pequena propriedade a posse de 1 a 5 e de 6 a
10, como média a de 11 a 20 e como grande a com mais de 20.
41
jornaleiro, ou mesmo escravos de aluguel. Os dados de que dispomos não nos fornecem essa
dimensão, impossibilitando conclusões definitivas.
GRÁFICO 4
Estrutura da posse de escravos, Distrito de São Domingos do Prata - 1832
158
67
28
14
6
2
3
00
11
0
20
40
60
80
100
120
140
160
180
0
1 a 5
6 a 1
0
1
1
a
1
5
16 a 20
2
1 a
2
5
2
6
a
3
0
31 a 35
3
6 a
4
0
4
1
a
4
5
46 a
5
0
Escravos
Fogo
Fonte: Arquivo Público Mineiro, Mapa de População de 1832. MP1 CX 14/01
Como pode ser visto no gráfico acima, construído a partir da amostra analisada,
encontramos somente sete domicílios com contingentes mancípios compostos por mais de
vinte escravos, representando 5,73% do total. Desses, apenas dois contavam com mais de
quarenta. Assim, fica evidente que a grande propriedade escrava não era característica da
região. Certamente o tamanho da posse em que o escravo estava incluído influenciou em seu
modo de vida. Os laços familiares estabelecidos por ele, como as relações de compadrio e de
matrimônio, recebem influência do tamanho da posse e, em nossa análise sobre os batismos
de escravos em São Domingos do Prata nos capítulos 2 e 3, buscaremos examinar essa
relação.
O fato de ter ocorrido predomínio de fogos com pequena posse escrava nos leva a
sugerir uma ligação maior dos pequenos proprietários com mercados locais, pois a aquisição
de escravos não estava presa unicamente à vinculação direta com o mercado externo. Pode ser
que muitos escravos de pequenas posses estivessem sendo utilizados em serviços domésticos,
exercendo atividades não lucrativas. Por outro lado, a presença de plantéis grandes pode estar
demonstrando a existência de atividades que necessitavam de mão-de-obra cativa em maior
42
escala, mantendo relações com setores mais dinâmicos da economia mineira, abastecendo
outras regiões e gerando no distrito os “efeitos multiplicadores” defendidos por Slenes
87
.
Os dados encontrados em relação à posse escrava corroboram o estudo de Libby
88
sobre a distribuição da propriedade de escravos por região, na Província, para o período de
1831-1840. Segundo ele,
“o maior grupo de proprietários, em termos do tamanho da posse, são os donos de
entre 3 e 5 cativos. Eles representam nada menos do que 28,0% dos senhores de
escravos da Província.(...) De acordo com nossa amostra, pouco mais de dois terços
dos proprietários possuíam cinco escravos ou menos.”
89
Para o autor, tal resultado mostra que o escravismo mineiro foi caracterizado por uma
expressiva desconcentração da propriedade de escravos. Considera que um regime fundado na
exploração de um determinado tipo de propriedade que conta com uma numerosa camada de
pequenos proprietários tem sua base de sustentação política e social bastante alargada, e isso
pode ter contribuído para a lentidão do processo abolicionista.
90
A propriedade escrava feminina em São Domingos do Prata atingiu um índice de
31,79%, pois se constatou que dos duzentos e oitenta fogos discriminados no mapa, cento e
vinte e dois detinham posse escrava – representando 43,57% -, e desses, trinta e nove eram
chefiados por mulheres, distribuídos da seguinte maneira: vinte com posse de um a cinco
cativos, dezessete apresentando de seis a vinte cativos e dois de vinte a trinta. Podemos inferir
que esta participação das mulheres controlando propriedades detentoras de escravos pode
servir para mostrar que no período imperial, muitas mulheres da sociedade da Capela de São
Domingos do Prata podem ter desempenhado papel importante. Embora as mulheres que
controlavam fogos com posse escrava constituísse um exemplo do papel feminino, elas
tendiam, enquanto grupo, a possuir contingentes cativos menores do que os homens,
conforme pode ser percebido no gráfico a seguir, à exceção do grupo de dezesseis a vinte e
cinco escravos em que encontramos o mesmo número de homens e mulheres como cabeça de
fogo.
87
SLENES, 1985.
88
LIBBY, 1988.
89
Ibidem, p. 98.
90
Ibidem, p. 98-104.
43
GRÁFICO 5
Propriedade escrava quanto ao sexo do proprietário, São Domingos do Prata - 1832
108
1
1
191
0
0
2
1
3
11
17
47
5
0
8
9
0
0
0
0
1
1
3
3
11
2
0
0
50
100
150
200
250
0
1 a 5
6 a 10
11 a 15
16 a 20
21 a 25
26 a 30
31 a 35
36 a 40
41 a 45
46 a 50
Total
Escravos
Quantidade
Homens
Mulheres
Fonte: Arquivo Público Mineiro, Mapa de População de 1832. MP1 CX 14/01
Dos oitenta e nove fogos chefiados por mulheres, em 43,82% deles havia a
propriedade escrava, ou seja, em trinta e nove, predominando posses de um a dez. Dos cento e
noventa e um fogos sob chefia masculina, em cento e oito nenhum escravo foi identificado e
nos que possuem população escrava, ou seja, oitenta e três, há maior incidência de posses de
um a dez. Destarte, podemos dizer, que havia maior presença de pequenas propriedades
escravas na região, com a maioria dos fogos não possuindo um escravo sequer, tendo uma
minoria controlando a posse de cativos, mesmo não predominando grandes posses. O fato de
ter predominado a participação das pequenas posses no total de propriedades escravistas pode
demonstrar a orientação da economia para o mercado interno.
Analisando a população escrava africana por faixa etária percebe-se que o maior
percentual, 52,84% dos trezentos e dezoito cativos africanos, estava no grupo de dezesseis a
44
trinta anos, e 29,87% no grupo de trinta e um a cinqüenta anos
91
. Para os homens, que
totalizavam duzentos e sessenta e dois, o índice é, respectivamente, de 49,62% e 30,92%, e
para as mulheres, que somavam cinqüenta e seis, o índice encontrado é de 67,86% para a
primeira faixa e de 25,00% para a segunda. Mais uma vez encontramos evidências de que o
tráfico teve efeito na região, característica que nos permite imaginar que a mesma pode ter
desenvolvido atividades econômicas ligadas ao abastecimento de regiões dentro ou fora da
província, uma vez que estamos lidando com uma população que sofre os efeitos do tráfico,
pois detém em seu plantel 36% de cativos africanos. No grupo de um a sete anos, não há
registro de nenhum africano, nem do sexo masculino e nem do feminino, demonstrando a
seletividade do tráfico que dava preferência ao africano em idade propícia para o trabalho.
GRÁFICO 6
Distribuição etária da população cativa africana, São Domingos do Prata - 1832
-
14
168
95
41
318
-
50
100
150
200
250
300
350
Escravos
1
a
7
8 a 15
16 a 30
31 a
5
0
+50
T
o
t
al
Faixa Etária
Fonte: Arquivo Público Mineiro, Mapa de População de 1832. MP1 CX 14/01
A estrutura etária da população africana, concentrando um maior número de
indivíduos nas idades de 16 aos 50 anos, com predomínio para a faixa que vai dos 16 aos 30
anos, constitui um indicador sugestivo da importação do elemento servil pela região.
91
Ver LUNA, Francisco Vidal. Casamento de Escravos em São Paulo: 1776, 1804, 1829. In: História População
Estudos Sobre a América Latina, p.230. Estudando as características demográficas da população escrava em São
Paulo, o autor observa que a preferência pela importação de escravos adultos refletiu na composição etária da
população africana, que teve uma estrutura diferente da apresentada pelo conjunto dos escravos nascidos no
Brasil. No grupo dos primeiros, houve predomínio na faixa etária de 15-49 anos em mais de 80% entre os
cativos, enquanto no segundo grupo houve uma estrutura de certa forma equilibrada, com 45% de crianças, cerca
de 50% na faixa de 15-49 anos.
45
A população escrava brasileira apresentou diferenças em relação aos africanos. É
interessante notar que a concentração na idade adulta ocorreu de maneira menos intensa que
no grupo de africanos, enquanto na faixa etária de um a quinze supera significativamente
esses, demonstrando a existência de forte contingente de origem brasileira, decorrência da
reprodução natural positiva. Não há como sabermos, através da análise do mapa, se esses
escravos foram adquiridos via compra ou se eram originários da reprodução no próprio
plantel
92
ou no distrito. Sobre essa questão, Paiva sugere que o grupo etário abaixo de
quatorze anos é sinal de nascimentos de crianças no local.
93
Para darmos conta dessa
dimensão, necessitamos de outras fontes como, por exemplo, registros de batismos, de
matrícula e de compra de escravos. Através dos gráficos 7 e 8 percebe-se a dimensão etária da
população cativa nativa existente em São Domingos em 1832.
GRÁFICO 7 GRÁFICO 8
29,78%
20,06%
35,11%
10,66%
4,39%
100,00%
0,00%
10,00%
20,00%
30,00%
40,00%
50,00%
60,00%
70,00%
80,00%
90,00%
100,00%
Quantidade
1 a
7
8
a15
16 a 30
3
1
a
5
0
+50
T
o
t
a
l
Faixa Etária
Distribuição etária população cativa masculina
brasileira, São Domingos do Prata - 1832
23,05%
18,96%
36,43%
16,73%
4,83%
100,00%
0,00%
10,00%
20,00%
30,00%
40,00%
50,00%
60,00%
70,00%
80,00%
90,00%
100,00%
Quantidade
1
a
7
8
a15
16
a 30
3
1
a 50
+50
Total
Faixa Etária
Distribuição etária da população cativa
feminina brasileira,o Domin
g
os do Prata -
1832
Fonte: Arquivo Público Mineiro, Mapa de População de 1832. MP1 CX 14/01
Considerando a população cativa brasileira mostrada nos dados acima, podemos
perceber que havia grande concentração de indivíduos nas idades de 1 a 30 anos, destacando a
faixa de 1 a 15, seguindo a estrutura da pirâmide, com menor número de pessoas nas faixas de
92
Os registros de batismos de escravos da paróquia de São Domingos do Prata que cobrem o período de 1845 a
1888, analisados nos capítulos 2 e 3, mostram a presença da reprodução natural durante a vigência do tráfico
internacional e após o seu término.
93
PAIVA, 1996. p.101.
46
idade mais avançadas, tanto no grupo masculino quanto no feminino, e inchaço na faixa
menor. O maior índice nas duas primeiras faixas sugere a existência de condições favoráveis
ao nascimento de cativos, que tanto pode ter resultado de condições de trabalho propícias à
procriação, quanto do desejo dos proprietários para aumentarem a posse.
Focalizando os fogos segundo a ocupação dos “chefes de fogos”, percebemos que o
maior grupo está ligado à agropecuária, já que sobressaía a ocupação de lavrador/lavradora,
com destaque para o primeiro, uma vez que havia preponderância da chefia masculina,
perfazendo um total de 68,21%, conforme já observado. Assim, podemos afirmar que o setor
agropecuário era a base econômica da sociedade em estudo, utilizando a maior parte dos
cativos, e estaria participando de relações econômicas com outras regiões como mostrado por
Libby e Grimaldi
94
e apresentado anteriormente. É interessante notar que o setor de atividades
manuais e mecânicas – tecido, fiação, carpinteiro – quando somado, ocupa um lugar
importante, destacando o setor de fiação, que certamente desempenhou papel significativo na
sociedade de São Domingos do Prata, atendendo a demanda de sua população.
94
LIBBY, & GRIMALDI, 1998. p. 432.
47
GRÁFICO 9
Ocupação dos "chefes de fogos", Distrito de São Domingos do Prata - 1832
7
1
11
12
6
18
35
4
103
36
2
15
2
1
20
4
2
1
0
20
40
60
80
100
120
Nº de Fogos
Alfaiate
Caldereiro
Carpinteiro
Costureira
Ferreiro
Fiadeira
Jornaleiro
Lavadeira
Lavrador
Lavradora
Ilegível
Negociante
Ourives
Pintor
S/Ocupação
Sapateiro
Tropeiro
Violeiro
Ocupação
Fonte: Arquivo Público Mineiro, Mapa de População de 1832. MP1 CX 14/01
Não aparece nenhum caso de chefe minerador, fazendo com que acreditemos que não
havia mineração no distrito, pois, segundo sugere Cláudia Eliane “os estudiosos das listas
nominativas entendem que a atividade preponderante da família do ‘fogo’ gravitava em torno
do ‘chefe’, caracterizando e definindo o perfil econômico da unidade.”
95
Ela lembra que isso
não exclui a existência de outras atividades econômicas dentro do mesmo “fogo”, mas que
certamente a ocupação do “chefe” constituía a mais importante.
A partir da análise dos dados coletados verificamos que em meio à população livre
residente no distrito de São Domingos do Prata, o número de mulheres era superior ao de
homens, com uma proporção de 52,23% para as primeiras e de 47,77% para os segundos na
população livre
96
, e que a diferença estava concentrada na faixa etária de dezesseis a
95
MARQUES, Cláudia Eliane Parreiras. Repensando a Historiografia Mineira: aspectos demográficos,
econômicos e sociais no século XIX. XIII Encontro da Associação Brasileira de Estudos Populacionais. Ouro
Preto, 4 a 8 de novembro de 2002. p. 13.
96
Douglas Cole Libby, em análise sobre a proporção de homens na população livre para a região Metalúrgica-
Mantiqueira, para o período de 1831-1840, encontrou um índice de 50,4% para os homens na região e de 43,3%
48
cinqüenta anos, o que pode ter dificultado uniões matrimoniais no período (ver gráficos 10 e
11). Na faixa com mais de cinqüenta anos, o número era idêntico para homem e para mulher.
Dentre as mulheres, que somavam seiscentas e cinqüenta e cinco, representando 30,32% da
população do distrito, trinta e uma eram forras, correspondendo a 1,44% da população total e
a 4,73% no grupo feminino livre, e entre os homens, de um total de quinhentos e noventa e
nove, que correspondia a 27,73% da população discriminada no mapa, quarenta e quatro eram
forros, representando 2,04% no conjunto e 7,35% no grupo masculino livre. O número de
forros supera o de forras o que pode ser decorrência do maior índice de homens que de
mulheres no universo cativo da sociedade da região.
GRÁFICO 10 GRÁFICO 11
132
102
210
131
80
655
0
100
200
300
400
500
600
700
Mulheres Livres
1 a 7
8
a 15
16
a 3
0
31 a 50
+
50
Tota
l
Faixa Etária
Distribuição das mulheres livres
do Distrito da Capela de São
Domingos do Prata - 1832
162
106
151
100
80
599
0
100
200
300
400
500
600
Homens Livres
1 a 7
8 a 15
16 a 30
31 a 50
+50
Total
Faixa Etária
Distribuição dos homens livres
do Distrito da Capela de São
Domingos do Prata - 1832
Fonte: Arquivo Público Mineiro, Mapa de População de 1832. MP1 CX 14/01
Em relação à população livre, Libby
97
lembra que um desequilíbrio entre os sexos, em
tempos de paz, com predomínio do sexo feminino, pode ser resultado de movimentos
migratórios que geram a saída dos homens em busca de oportunidades econômicas, muitas
vezes dificultando uniões matrimoniais ou deixando a família para trás. Essa pode ter sido a
razão para o maior índice feminino encontrado na localidade pesquisada, na faixa etária
mencionada anteriormente, bem como para o significativo percentual de mulheres ocupando a
chefia de “fogo”, conforme já demonstrado.
no município de Santa Bárbara, ao qual pertencia São Domingos do Prata. Índice próximo ao que encontramos
em nossa amostra.
97
LIBBY, 1988. p.57.
49
Comparando a população livre feminina com a escrava, percebemos que o oposto
acontece com a população escrava feminina que é menor do que a masculina, tanto no grupo
de africanos quanto no de brasileiros. No primeiro elas somam cinqüenta e seis de trezentos e
dezoito, e no segundo duzentos e sessenta e nove de quinhentos e oitenta e oito, com uma
diferença bem menor nesse grupo do que no primeiro. A grande diferença no primeiro grupo
certamente era decorrência da seletividade do tráfico, conforme já analisado, pois os senhores
preferiam os homens por os mesmos corresponderem às exigências econômicas.
A população de São Domingos do Prata, em 1832, com idade de dezesseis a trinta
anos, é superior a quase todas as demais faixas etárias em todos os grupos analisados por
condição e por sexo, exceto no grupo de homens livres em que há uma maior incidência na
faixa etária de zero a sete anos. A tabela abaixo reúne, detalhadamente, registros bastante
significativos no que diz respeito à distribuição etária da população e podemos constatar que
no grupo de 16 a 30 anos havia maior concentração.
TABELA 1
Distribuição etária da população por sexo e condição, Distrito de
São Domingos do Prata - 1832
Livres Escravos
Idade
Homens Mulheres Homens Mulheres
Total
0 a 7
162 132 95 62 451
8 a 15
106 102 76 53 337
16 a 30
151 210 242 136 739
31 a 50
100 131 115 59 405
+ de 50
80 80 53 15 228
Total
599 655 581 325 2.160
Fonte: Arquivo Público Mineiro, Mapa de População de 1832. MP1 CX 14/01
Percebemos nos dados acima o predomínio de uma população jovem no distrito
durante o período analisado. Somente 29,31% da população atinge, em 1832, mais de trinta e
um anos, sendo 18,75% de trinta e um a cinqüenta anos e 10,56% com mais de cinqüenta. Da
população com mais de trinta e um anos, 18,10% eram livres e 11,20% eram escravos. É
interessante ainda observar que, para o distrito, a distribuição dos grupos populacionais se
fazia de maneira preponderante no grupo em idade produtiva, ou seja, 68,56% da população
tinha de oito a cinqüenta anos, com um maior índice registrado para os escravos na faixa
etária de dezesseis a trinta anos. A população infantil reunia 20,89%, exceto no grupo de
africanos em que, conforme demonstrado anteriormente, não há nenhum registro de criança.
A partir de outro levantamento realizado em mais um mapa de população de São
Domingos do Prata, para o ano de cerca de 1834, novamente pelos pesquisadores Libby &
50
Grimaldi
98
, o resultado encontrado apresenta um total de 942 cativos, sendo trezentos e
cinqüenta do sexo feminino e quinhentos e noventa e dois do masculino. O número de
crianças (até 14 anos) era bem alto, com cento e quarenta e cinco do sexo masculino (24,5%)
e cento e doze do feminino (32,0%), evidenciando uma elevada taxa de nascimento, o que
certamente foi responsável, em parte, pelo aumento dos cativos, de 583 para 942 no período
de 1820 a 1834, percebido a partir da comparação entre os mapas populacionais analisados.
Confrontando os dados e índices obtidos a partir dos três mapas populacionais de São
Domingos do Prata, parcialmente apresentados nesse capítulo e que são reveladores de
características específicas do distrito, podemos afirmar que houve um aumento do número de
escravos na região entre os anos de 1820 e 1834. De 583 cativos em 1820, o número salta
para 906 em 1832, e para 942 em 1834, significando um aumento de 359 escravos no período,
o que evidencia um crescimento de 61,88% em um intervalo de 14 anos, representando uma
média de crescimento de 4,42% ao ano. Tal elevação pode ser indicativa de que a região
estava passando por uma fase de crescimento econômico, acompanhada por crescimento
natural da população cativa e pelo aumento da aquisição de escravos de origem africana, pois
houve um aumento do número desses em meio à população escrava, de 1820 para 1832. Para
o primeiro ano, eles eram 210 e para o segundo, 318. Para o ano de 1834, não se pode saber
qual o contingente de africanos, pois conforme Libby e Grimaldi, o mapa por eles analisado
não separa os escravos segundo a origem, não identificando, portanto, os africanos.
TABELA 2
População do Distrito de São Domingos do Prata, segundo Sexo, Idade e Condição Social, 1832
LIVRES ESCRAVOS
HOMENS MULHERES TOTAL HOMENS MULHERES TOTAL
IDADE
N % N % N N % N % N
TOTAL GERAL
0 a 15 268
21,37%
234
18,66%
502
171
18,87%
115
12,69%
286
788
16 a 30 151
12,04%
210
16,75%
361
242
26,71%
136
15,01%
378
739
31 a 50 100
7,97%
131
10,45%
231
115
12,69%
59
6,51%
174
405
+ de 50 80
6,38%
80
6,38%
160
53
5,85%
15
1,66%
68
228
TOTAL 599
47,77%
655
52,23%
1.254
581
64,13%
325
35,87%
906
2.160
Fonte: Arquivo Público Mineiro, Mapa de População de 1832. MP1 CX 14/01
98
LIBBY & GRIMALDI, 1998. p.434-5. Os autores acreditam que o mapa (que não tem data) pode ter sido
feito entre 1833 e 1835, pois o mesmo foi preenchido à tinta e pertence a um conjunto em que os componentes
datados são na maioria de 1834 e 1835. Dizem que é um mapa que tem “informações sobre sexo, cor, condição
e estado civil com a população dividida em quatro faixas etárias”, e que não existe referência a africanos.
51
TABELA 3
População do Distrito de São Domingos do Prata, segundo Sexo, Idade e Condição Social, 1872
LIVRES ESCRAVOS
HOMENS MULHERES TOTAL HOMENS MULHERES TOTAL
IDADE
N % N % N N % N % N
TOTAL GERAL
0 a 15 599
14,78%
573
14,13%
1.172
108
9,76%
108
9,76%
216
1.388
16 a 30 750
18,50%
781
19,26%
1.531
234
21,16%
204
18,44%
438
1.969
31 a 50 453
11,17%
415
10,24%
868
157
14,20%
148
13,38%
305
1.173
+ de 50 299
7,38%
184
4,54%
483
84
7,59%
63
5,70%
147
630
TOTAL 2.101
51,83%
1.953
48,17%
4.054
583
52,71%
523
47,29%
1.106
5.160
Fonte: Arquivo Público Mineiro, Recenseamento da População do Brasil de 1872 – MG. G-7
As tabelas 2 e 3 apresentam a distribuição da população pratiana por sexo, idade e
condição social. Elas mostram que, de 1832 para 1872, na população livre houve um aumento
das crianças (0 a 15 anos) e dos que se situam acima de 50 anos. Os últimos ampliaram
também no grupo de escravos. O aumento da camada de escravos na idade adulta sugere um
melhor tratamento e melhores condições de vida possibilitadas pelos senhores após a
paralisação do tráfico internacional. A população cativa de 0 a 15 anos apresentou redução na
população total escrava da década de 1830 para a de 1870 e essa queda pode ter sido resultado
do envelhecimento feminino ocorrido no grupo cativo.
Percebeu-se um aumento da população masculina livre em relação à feminina, que era
maior na década de 1830, enquanto se manteve entre os cativos maior índice masculino
durante todo o período. A maior proporção masculina na população servil confirma as teses
existentes na historiografia sobre a escravidão em Minas Gerais no que diz respeito à maior
presença de homens na população escrava. É interessante notar que entre os escravos houve
um inchaço significativo na faixa etária que vai dos 16 aos 30 anos, principalmente no que diz
respeito aos escravos do sexo masculino. Como é um grupo em idade plenamente produtiva
teve papel importante para a economia da região.
Quanto à origem, os cativos sofreram variação no período. Em 1832, os africanos
representavam 35,10% do total de cativos, reduzindo-se, em 1872 para 7,14%, o que
naturalmente é decorrência da extinção do tráfico negreiro em 1850, que impôs a diminuição
do índice de africanidade entre a população escrava na segunda metade do século XIX em
todo o país.
52
TABELA 4
Crescimento da População Escrava no Distrito de São Domingos do
Prata
Africanos Brasileiros
ANO
N % N %
Total
1820 210
36,02%
373
63,98%
583
1832 318
35,10%
588
64,90%
906
1834 942
1872 79
7,14%
1.027
92,86%
1.106
Fonte: Arquivo Público Mineiro, Mapa de População de 1832. MP1 CX 14/01.
Recenseamento da População do Brasil de 1872 – MG. G-7
Os dados de 1820 e de 1834 foram retirados de LIBBY & GRIMALDI. Equilíbrio e estabilidade:
economia e comportamento demográfico num regime escravista, Minas Gerais no século XIX.
IV Anais da ABEP, 1998.
Comparando os indicadores apresentados pelo censo de 1872 respectivo à parochia de
S. Domingos do Prata
99
, observamos que da década de 1820 para a de 1870, registrou-se um
aumento da população escrava na freguesia, mas em comparação com a população livre os
índices escravistas apresentaram queda, diminuindo a incidência do percentual dos cativos em
meio à população do distrito. A proporção do contingente mancípio frente à população total
passou de 41,94% em 1832, para 21,43% em 1872. Talvez a explicação esteja numa
transferência de cativos para regiões em crescimento e mais dependentes da mão-de-obra num
contexto posterior à extinção do tráfico atlântico. Só a pesquisa mais apurada poderá dar conta
dessa questão. Mesmo tendo decrescido, os escravos ainda compunham um quinto da
população em 1872, e isso pode estar a demonstrar a importância da mão-de-obra cativa para
a sociedade pratiana o que, provavelmente, deve ter mobilizado grupo de opositores à
abolição.
Temos evidências empíricas sobre as atividades econômicas e sobre os aspectos sociais
da região de São Domingos no século XIX, e os dados apresentados até então mostram que
será importante coletar e analisar outros documentos sobre os escravos que participaram da
construção da sociedade pratiana.
A população escrava praticamente dobrou em 50 anos na nossa região de estudo.
Verificamos que era de 583 em 1820 e passou a 1106 em 1872, ou seja, houve um
crescimento de 89,71%. Com base nessas observações sociodemográficas poderemos passar a
analisar os registros de batismos dos filhos de escravas. Acreditamos que os registros
99
Grafia conforme aparece no documento que se encontra sob guarda do Arquivo Público Mineiro.
Recenseamento da População do Brasil de 1872 – MG. G-7.
53
batismais dos filhos de escravas poderão nos ajudar a compreender o universo social e
cultural por eles construídos a partir das relações familiares e de compadrio, para assim
reconstituir parte da vida social que envolvia os cativos da região, percebendo aspectos
importantes sobre a história das Minas Gerais oitocentista. Tal abordagem, baseada na história
regional, poderá contribuir para a discussão dos aspectos sociais da escravidão na Província
mineira.
54
Capítulo 2
As relações familiares e sócio-parentais escravas: questão em debate
2.1 - Introdução
Recentemente os historiadores têm valorizado a investigação sobre aspectos do
cotidiano dos cativos, vendo-os como sujeitos reais que contribuíram para a formação
histórica brasileira e que agiram de forma ativa buscando conquistar espaços e direitos dentro
do sistema escravista. O argumento de que o escravo possuía humanidade, não sendo simples
instrumentum vocale, suscita um debate histórico legítimo. Ao afirmar que o cativeiro, como
forma de organização social, foi também o lugar onde atitudes concretas dos escravos
originaram padrões de comportamentos muitas vezes marcados por conquistas e aproximação
com os senhores, não implica negar a existência da violência intrínseca ao sistema escravista.
Mas esse não foi fundado apenas na violência e no castigo, no conflito e na dominação, não
sendo, pois, seus únicos atributos, apesar de terem sido incorporados perfeitamente a ele. Nele
também houve lugar para a iniciativa escrava e para acordos entre cativos e senhores,
constituindo o espaço para que outras manifestações humanas se fizessem presentes e
originassem uma lógica em que alguns direitos eram admitidos aos escravos, como, por
exemplo, ter família. Essa discussão pode ser melhor pensada partindo do trecho que abre a
introdução desta dissertação, no qual Suely Queiroz diz ter sido a vivência do escravo
constituída pela contradição entre ser coisa e ser pessoa.
100
João José Reis e Eduardo Silva
101
questionam argumentos construídos pela
historiografia, tanto aqueles que vêem a escravidão como um sistema em que o escravo só
aparece como vítima absoluta, sendo um mero objeto da engrenagem escravista, quanto
aqueles que dão ênfase à rebeldia escrava entendida como mostra de agressividade e de
heroísmo.
100
QUEIRÓZ, 2003. p. 110.
101
REIS, João José e SILVA, Eduardo. Negociação e Conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São
Paulo: Companhia das Letras, 1989.
55
Procurando abordar a escravidão principalmente a partir da perspectiva do cativo, os
autores consideram que o escravo real não pode ser analisado apenas como força de trabalho.
Para eles, os escravos fizeram história forçando padrões de relacionamento e de negociação,
vivendo como podiam e não como gostavam, negociando mais do que lutando abertamente
contra o sistema
102
, no limite das relações de dominação e de resistência.
“Os escravos não foram vítimas nem heróis o tempo todo, se situando na sua maioria
e a maior parte do tempo numa zona de indefinição entre um e outro pólo. O escravo
aparentemente acomodado e até submisso de um dia podia tornar-se o rebelde do dia
seguinte, a depender da oportunidade e das circunstâncias. Vencido no campo de
batalha, o rebelde retornava ao trabalho disciplinado dos campos de cana ou café e a
partir dali forcejava os limites da escravidão em negociações sem fim, às vezes bem,
às vezes malsucedidas.”
103
Reconhecer que houve negociações entre senhor e escravo não implica dizer que as
relações entre eles foram harmoniosas. Reis e Silva entendem que houve a construção de um
espaço social caracterizado por barganhas e por conflitos, ao lado da sempre marcante
violência, e quando a negociação falhava, ou nem chegava a se realizar, as rupturas
aconteciam. Algumas concessões feitas pelos senhores aos seus escravos muitas vezes foram
resultado das barganhas em que os senhores cediam para melhor controlar e os escravos
pediam e aceitavam para melhor viverem.
Os escravos recorreram a várias manobras para obrigarem os senhores a lhes conceder
alguns direitos, pois a necessidade da mão-de-obra escrava tornava o senhor, de certa forma,
dependente do cativo, embora suas estratégias servissem para reforçar a própria escravidão
provocando o recurso à violência por parte do proprietário. A escravidão produziu ligações
complexas pautadas por uma realidade em que senhores e escravos viviam uma relação tensa
que exigia o recurso à negociação. Ela foi construída e vivida por homens que deram a
medida de suas relações criando e recriando lugares onde houve a sua negação e a
necessidade de entendimento entre as partes sobre aspectos básicos da vida em cativeiro,
como diz Góes.
104
“A história dos escravos é a história da escravidão: se não é possível aceitar que o
cativeiro tenha tido feições híbridas, se é impossível que o escravo tenha sido co-
102
REIS e SILVA, 1989. p. 14.
103
Ibidem. p. 7.
104
GOÉS, José Roberto. O cativeiro imperfeito: um estudo sobre a escravidão no Rio de Janeiro da primeira
metade do século XIX. Vitória: Secretaria de Estado da Educação, 1993. p. 180-181.
56
autor da sociedade em que viveu, então não há como concebê-los sujeitos da história
(e mais uma vez não há também como concebê-los homens).”
105
Pensar a relação social escravista torna necessário reconhecer que o escravo produziu
a sua história, sendo também responsável por construir a sociedade em que ele viveu ora
forçando relacionamentos, quebrando alguns limites do sistema, ora reagindo lutando contra
ele, pois não era possível viver dentro do sistema e não questioná-lo. Formar família,
participar da economia, comprar ou conquistar a liberdade, fugir, praticar crime, fazer
revoltas, formar irmandades etc, são evidências da iniciativa escrava que denotam a sua
capacidade de agir de forma ativa, como sujeitos de sua vida. Os cativos não foram simples
instrumentos sobre os quais operaram as forças transformadoras da história, eles foram
capazes de manifestar os seus interesses por meio de reivindicações e exerceram pressões
sobre o regime que os oprimia, obrigando-o ao reconhecimento de um certo espaço e de
direitos à comunidade escrava.
106
Com o propósito de perceber a existência de padrões de comportamento em que os
cativos e seus senhores negociavam os termos do cativeiro e as formas de solidariedade
encontradas pela massa escrava, novos objetos e novas dimensões da escravidão vêm sendo
pesquisados e analisados. Nessa perspectiva, estudos sobre a vida familiar e cotidiana escrava
aumentaram nos últimos anos, na busca de reconstituir os laços que foram estabelecidos pelos
cativos como forma de adaptação
107
e de sociabilidade, de compreender os tipos de famílias
que foram constituídas bem como a importância que elas alcançaram tanto para os senhores
quanto para os escravos.
Embora utilizando fontes diversas e metodologias distintas, a renovação dos estudos
sobre o escravismo brasileiro traz como ponto comum, dentre outros, um reexame dos
argumentos presentes em parcela expressiva da historiografia acerca da vida familiar dos
escravos
108
, deslocando a atenção para um lado da escravidão que não era considerado. Até
bem pouco tempo, era recorrente a interpretação de que a família escrava não se fez presente,
105
GÓES, 1993. p. 182.
106
REIS e SILVA, 1989. p.20.
107
Aludimos a Kátia Mattoso que diz ter ocorrido a adaptação do negro através de um ajustamento tático ao
modelo branco e às exigências de seus senhores. Sem negar a ocorrência de resistências como a fuga, o suicídio,
a revolta, dentre outras, a autora entende que a maioria dos escravos, para serem aceitos por seus senhores,
acabou por aprender a rezar, a obedecer e a trabalhar. Para ela, as tensões decorrentes da integração obrigaram o
escravo a adaptar-se às relações de tipo escravista, pois, “é aparentemente inimaginável que seres humanos
possam subsistir sem maior ou menor adaptação entre eles”. Nesse sentido, o negro, em busca de conquistar sua
parcela de vida privada, fez uso dos valores da sociedade branca de adoção e buscou formar solidariedades
através da vida familiar, de grupo, da religião e de comunidades. Cf. MATTOSO, 2003. p. 102-123.
108
Dentre os novos estudos podem ser destacados os realizados por METCALF, 1990; SLENES, 1987; LUNA,
1989; FLORENTINO & GÓES, 1997; MATTOSO, 2003; dentre outros.
57
já que, as dificuldades impostas pelo desequilíbrio entre os sexos, as proibições dos senhores
quanto ao matrimônio entre seus escravos e com escravos de outros donos e a escravidão,
responsável pela destruição dos valores familiares entre os negros, separando casais e filhos,
impuseram um desregramento moral gerador de promiscuidade e inibidor da constituição de
famílias.
A partir da análise de novas fontes como mapas de população, inventários
post-
mortem, registros paroquiais, dentre outros, constatou-se a existência de laços familiares entre
os escravos, demonstrando que as populações cativas formaram famílias estáveis, com
variações regionais e temporais, consolidadas ou não pela Igreja.
109
Além disso, dão a
conhecer que uma das formas utilizadas para o estabelecimento de relações familiares foi o
compadrio. Entendido como “parentesco espiritual” e ritual, ele criou vínculos entre pais,
padrinhos e batizando, constituindo um importante elemento de formação e/ou consolidação
das relações sociais entre pessoas das mais variadas classes, e que, por meio da seleção que
unia o divino e o profano, foi utilizado pelos mancípios para ampliar as redes familiares além
dos limites da consangüinidade, do matrimônio e até da afinidade.
Vínculos familiares foram importantes na vida dos escravos para o estabelecimento da
cooperação entre eles. Construir laços de solidariedade e de auxílio mútuo deve ter sido
fundamental para ajudar a sobreviver no cativeiro e estabelecer as bases para uma convivência
mais amena, desempenhando assim um papel político no estabelecimento da ordem no mundo
escravo. Aqueles que eram desprovidos de laços parentais poderiam ficar desprotegidos nas
difíceis situações da vida em escravidão.
Jacob Gorender
110
enfatiza que apesar da sociedade coisificar o escravo que era tratado
como animal de trabalho e como propriedade, era vendido, marcado com ferro em brasa,
surrado, alugado, emprestado, doado, transmitido por herança, penhorado, hipotecado, sujeito a
todo tipo de transação mercantil, ela não retirou dele, do ponto de vista jurídico, todo vestígio
de pessoa humana, uma vez que pelo direito escravista brasileiro ele era reconhecido como ser
humano à medida que devia responder pelos atos que cometia.
“O primeiro ato humano do escravo é o crime, desde o atentado contra o senhor à
fuga do cativeiro. Em contrapartida, ao reconhecer a responsabilidade penal dos
escravos, a sociedade os reconhecia como homens: além de incluí-los no direito das
coisas, submetia-os à legislação penal. Essa espécie de reconhecimento tinha, está
claro, alto preço. Os escravos sempre sofreram as penas mais pesadas e infamantes.
109
BRÜGGER, 2004. p. 2
110
GORENDER, Jacob. O Escravismo Colonial. São Paulo, Ática, 1978.
58
As mutilações não só foram previstas pelo direito romano como também pelo
Código Filipino português e pelas várias legislações penais das colônias americanas,
num momento ou noutro, inclusive o Brasil. Mas a pena mais cruel, justamente por
ser uma pena, implicava o reconhecimento de que se punia um ser humano.”
111
O trabalho imposto ao escravo o transformava em coisa, recaindo sobre ele um forte
controle exercido pela coerção, pelo emprego da violência instituída pelo aparelho do Estado
e pelo chicote do capataz. Em mais de 300 anos de escravidão seria impossível o cativo se
subordinar totalmente à condição imposta, sem resistir. Se o senhor agia com dureza, criando
uma relação conflituosa, o negro não deixou de resistir e procurar romper com a dominação.
Ele reagia de inúmeras maneiras às normas e castigos impostos, por meio de atentados, fugas,
suicídios, criação de quilombos, conspirações e revoltas insurrecionais, dentre outras,
demonstrando a sua humanidade. A repulsa ao trabalho recuperava a humanidade do cativo
indicando que ele tomava consciência de si como ser humano.
A lei, como lembra Gorender, reconheceu o escravo como humano. Mas não foi
apenas por ocasião da reação ou do crime que a sua humanidade se fez presente. Ela foi
manifestada através das relações familiares, tanto as consangüíneas ou matrimoniais, quanto
as originadas do parentesco ritual, reconhecidas pelos senhores e pela sociedade que não só
testemunharam como ajudaram a promovê-las, participando como padrinhos. A racionalidade
do sistema escravista não negou toda a humanidade do cativo, mesmo porque ela era
necessária para a sua perpetuação e, como sugerem Florentino e Góes, “o movimento
incessante de criação e recriação de parentesco cativo era um elemento chave no processo
pelo qual se produzia o escravo.”
112
2.2 - Família escrava: conquista ou estratégia
Manolo Florentino e José Roberto Góes, em A paz das senzalas, recente trabalho sobre
o agro fluminense no período de 1790 a 1830
113
, estudaram a família escrava na região
buscando ver a peculiaridade da sociedade escravista examinada a partir de suas relações com
o tráfico atlântico. Para eles, esse movimento interferia no comportamento familiar dos
escravos influenciando na criação de redes de parentesco que flutuavam ao sabor das suas
variações. Nas conjunturas de tráfico intenso, em que ocorria maior potencialização de
111
GORENDER, 1978. p. 51.
112
FLORENTINO & GÓES. 1997. p.37.
113
Nesse período, a região estudada era marcada por uma economia escravista caracterizada por grande
integração ao mercado atlântico, responsável pela reposição da mão-de-obra escrava, e pela agroexportação
açucareira baseada nas plantations.
59
conflitos entre os cativos
114
e entre os senhores e seus escravos, houve necessidade de formar
a família escrava que assumiu o papel fundamental de estabelecer a “paz”, e nas conjunturas
de desaquecimento do mercado de cativos houve maior estabilidade das relações familiares,
com mais chance das famílias permanecerem unidas após a partilha dos bens.
115
Os autores utilizaram documentos como correspondências, arquivos eclesiásticos,
processos-crimes, testamentos e como fonte principal inventários
post-mortem – que
constituem documentos de grande importância para a História Social, pois permitem perceber
padrões de comportamento existentes em uma dada sociedade e revelar aspectos da realidade
humana não perceptíveis ou aceitas nas fontes oficiais.
A obra dos autores acima, além de evidenciar que a família escrava era uma realidade
construída a partir de necessidades da comunidade cativa, contribui também para derrubar o
mito de que a promiscuidade nas senzalas impediu a sua existência mostrando que não eram
variáveis excludentes a socialização familiar e o tráfico. Os autores compreendem que os
vínculos familiares foram importantes na vida dos escravos e que teriam um aspecto funcional
dentro de uma sociedade escravista marcada por uma grande integração ao tráfico atlântico. A
família escrava seria um meio para se estabelecer a paz entre os cativos, acobertando o estado
de animosidade constante.
Segundo os autores, nos grandes plantéis era comum a existência do conflito e da
dissenção entre cativos, já que neles era normal a pluralidade de nações africanas levando à
animosidade e à desunião, o que tornava difícil a convivência entre africanos e crioulos e
entre africanos de etnias diversas. Acreditam que a escravidão gerou o ambiente propício à
discórdia, pois a escravaria, formada constantemente pela entrada de novos escravos,
“forasteiros” e sem laços parentais, forçava a reunião de diferentes levando ao “desarraigo
social”, responsável por originar dificuldades de convivência. A esse respeito, dizem que
Na documentação reunida para o presente livro, (...) foram encontrados elementos
que confirmam a existência de dificuldades na convivência entre os escravos, como,
por exemplo, a preferência pelas uniões matrimoniais endogâmicas por naturalidade.
A seletividade na escolha dos parceiros significava uma opção preferencial por
iguais, isto é, exprimia um duplo e simultâneo movimento de recusa do outro. Sob a
reiteração deste arranjo matrimonial é possível perceber a produção recorrente do
dessemelhante, do estrangeiro. O status comum de escravos não era suficiente para
aparar as arestas entre uns e outros. Ao contrário, é provável até que o cativeiro
muito contribuísse para exasperar as diferenças que o constituíam, em mais de um
114
FLORENTINO & GÓES, 1997. p.16 e 151.
115
Ibidem. p. 121.
60
sentido. Por que não? A escravidão, afinal, não devia ser um meio muito propício ao
acalanto de sentimentos mais tolerantes.”
116
Em vista do estado constante de guerra, os autores consideram que a organização
familiar era a saída encontrada para constituir um pacto de paz entre os negros cativos. Por ter
papel pacificador e organizador, o parentesco era necessário nos espaços onde havia maior
potencialização do estado de guerra de todos contra todos, isto é, nos grandes plantéis. As
relações parentais seriam responsáveis por introduzir a
paz na senzala, instituindo uma nova
sociabilidade que era de grande significado para a organização e a pacificação dos escravos,
criando pilares que viabilizariam a “construção e a reconstrução de padrões mentais e de
comportamento
próprios de uma cultura afro-brasileira.”
117
A família escrava seria então um mecanismo para o estabelecimento da paz social e
para o domínio político senhorial. O matrimônio consistiria numa estratégia para integrar os
estrangeiros - indivíduos sem parentesco introduzidos pelo incessante tráfico -, à sociedade
escravista e desempenharia grande importância na criação do escravo.
Florentino e Góes mostram que a socialização familiar escrava fora e dentro das
normas coloniais - segundo as regras da Igreja pós-tridentina – encaixou-se nos mecanismos
necessários para a estabilidade política da sociedade escravista. O africano aprisionado
desembarcava como estrangeiro e era transformado em escravo. O matrimônio legal
constituía um meio para integrá-lo e torná-lo escravo, pois servia para modificar hábitos e
atitudes, “civilizando” e “humanizando” os negros. Era uma forma de buscar garantir a
estabilidade e mascarar os conflitos uma vez que por meio do matrimônio e do parentesco,
surgia uma comunidade atenuadora de conflitos.
Os autores encontraram, como tipos predominantes de famílias, núcleos primários,
formados pelo matrimônio e pela consangüinidade, divididos em nuclear e matrifocal. O
primeiro corresponde à vida familiar reconhecida pela lei, legalmente sancionada pela Igreja,
formada por casais com ou sem filhos e que teve maior incidência e predomínio em
conjuntura de estabilidade de desembarque de africanos. O segundo refere-se à família
formada apenas pela mãe e seus filhos, mãe solteira fundamentalmente - mesmo que viúva ou
que o marido foi vendido -, formada por arranjos consensuais, predominou em pequenos
plantéis e crescia em época de incremento do tráfico, período em que havia maior necessidade
de criar socialização para evitar recrudescimento de conflito.
116
FLORENTINO & GÓES, 1997. p.35.
117
Ibidem. p. 45.
61
O cativeiro dotou-se de dispositivos, além daqueles ligados ao uso da violência, para
assegurar a sua reprodução e incorporar a si a mão-de-obra escrava. Os autores consideram
que o matrimônio foi útil para o controle de conflitos e não era necessário que atingisse a
todos, mesmo porque era impossibilitado em virtude da distribuição imperfeita dos sexos
entre os cativos. Segundo o modelo de Florentino e Góes, bastava que atingisse alguns para
gerar a socialização escrava através do parentesco, tornando o estrangeiro um escravo, para o
estabelecimento da paz nas senzalas.
Os senhores certamente selecionavam negros para seus plantéis buscando quebrar
solidariedades anteriormente constituídas, tendo como intuito evitar que essas ocasionassem o
fortalecimento e a organização dos cativos. Isso originou a necessidade do estabelecimento de
uniões conjugais para gerar novos laços e criar nova identidade no fazer escravo por meio da
aculturação regada a normas que buscavam assegurar a obediência e a paz através de uma
política que, dentre outras, incentivou a família nuclear, que compôs parte do próprio sistema
escravista, criador de alicerces para garantir o controle e a paz através das relações parentais.
A família escrava, portanto, foi estimulada e permitida, servindo aos interesses do
senhor que obtinha uma renda política por meio da promoção das relações familiares,
auxiliares na inibição de maiores conflitos no interior do plantel. Servia assim, de instrumento
e pilar do próprio escravismo, sendo uma estratégia a mais a se somar ao rol das clássicas
táticas de controle e dominação. Pacificava, regrava e socializava.
De um modo geral, os estudiosos da família cativa, fundamentados em dados
empíricos presentes em fontes de cunho demográfico, têm revelado que nos grandes e médios
plantéis era mais comum a existência de famílias legalmente sancionadas ou não,
demonstrando o engano daqueles que consideravam como sendo predominante uma realidade
de relações promíscuas e de anomia social que o negro teria vivido no sistema escravista.
Citando J. Blassingame e H. Gutman, Ana Maria Lugão Rios
118
expõe a importância
que a família adquiriu na vida do escravo, desde a sua infância, desempenhando papel de
destaque para a socialização das crianças e para a formação de valores próprios, distintos dos
do mundo branco e livre. A família ajudou o escravo a desenvolver métodos para lidar com as
situações inerentes ao cativeiro, métodos esses que serviram tanto de refúgio contra os rigores
da escravidão quanto de mecanismo de sobrevivência, além de contribuírem para a
preservação de tradições africanas
119
.
118
RIOS, Ana Lugão. Família e compadrio entre escravos das fazendas de café: Paraíba do Sul, 1871-1888. In:
Estudos sobre a escravidão. Niterói: UFF/ICHF, 2000.
119
Ibidem. p. 105-6.
62
Os laços familiares escravos são pensados em termos de convívio familiar e
comunidade escrava em que arranjos diversos são levados em conta. Miridan Britto Knox
Falci lembra que existiram três tipos de famílias escravas: a família nuclear (composta por
pai, mãe e filhos), a família matrifocal (mais comum entre os pequenos plantéis, formada por
mães solteiras com pais desconhecidos) e a família solitária.
120
A matrifocalidade pode ter
sido resultado de uniões consensuais dentro da posse ou fora dela, com livres, forros ou
escravos, mas isso não quer dizer que vigorava uma realidade marcada pela ausência de regras
na vida familiar das senzalas.
A família escrava também foi encontrada na freguesia de São Domingos do Prata, e os
registros de batismo mostram a reprodução natural dos escravos exibindo os seus filhos
legítimos e também os filhos naturais. Ao longo da leitura dos registros batismais,
constatamos que a omissão do nome do pai aparece em muitos registros e que, nesse caso, a
criança era registrada como natural, não sendo feita nenhuma menção a filho ilegítimo. Ana
Luíza de Castro Pereira lembra que “a legitimação dos filhos tem início com a declaração, em
instrumento público, da paternidade, sendo o primeiro desses instrumentos o assento de
batismo, por ser o sacramento que insere o indivíduo na vida legal”
121
.
Partindo das questões colocadas acima e das informações colhidas nos registros de
batismo, que ao serem manuseados mostram a existência da família escrava, identificamos
que a família matrifocal apareceu mais que a nuclear na freguesia. Para tanto, vale lembrar
que nos casos em que o pai não foi identificado na documentação analisada, consideramos
como família matrifocal e, por conseguinte, a criança como ilegítima. Ter uma mãe, mesmo
sendo escrava, pode ter ajudado as crianças a conseguirem sobreviver às duras condições de
vida impostas pelo cativeiro.
Referindo-se à questão da legitimidade, Libby e Botelho
122
assinalam que a criança
era considerada como legítima quando os pais eram casados em uma união reconhecida pela
Igreja, atendendo às exigências colocadas pela legislação. As crianças naturais eram
originárias de várias uniões não sancionadas ou reconhecidas pela Igreja. Segundo eles, nos
registros de batizados legítimos o nome do pai era sempre anotado.
Roberto Guedes Ferreira igualmente nos fala sobre a questão da legitimidade,
ressaltando também que eram considerados como legítimos os filhos de pais casados perante a
120
FALCI, 1995. p.106.
121
PEREIRA, Ana Luíza de Castro. Boletim de História Demográfica. (S. l.)., nº 33, (S/p.), (s. d).
122
BOTELHO, Tarcísio Rodrigues e LIBBY, Douglas Cole. Filhos de Deus – Batismos de crianças legítimas e
naturais na Paróquia de Nossa Senhora do Pilar de Ouro Preto, 1712-1810. In Varia História/ Departamento de
História, Programa de Pós-Graduação em História - Fafich -UFMG. Belo Horizonte, nº31, jan. 2004. p.72-3.
63
Igreja, contrariamente aos naturais, e que os registros de batismo revelam as famílias
constituídas aos olhos da Igreja Católica, ou seja, os padres só registravam como legítimas as
uniões sacramentadas pela Igreja.
123
Góes, que estudou a freguesia de Inhaúma, considera que
um inocente dito natural não é uma criança sem pai, exceto aos olhos da Igreja. Segundo ele,
é uma criança de cujo pai a fonte batismal não fala.
124
Como percebemos na tabela 5, as crianças escravas naturais representaram 53,63% dos
registros de batismos na Paróquia de São Domingos do Prata, e pode ter influenciado o padrão
de compadrio que marcou a região, onde houve maior preferência por padrinhos livres. Falci diz
que a questão da ilegitimidade influenciou na escolha de compadres levando as mães solteiras a
buscarem mais padrinhos livres, que poderiam dar assistência material e talvez proteção ao
batizando e à sua mãe.
125
Pelo que foi possível reconstituir, a partir dos registros de batismos, encontramos o
predomínio de pequenas posses em São Domingos, confirmando o que foi constatado com a
pesquisa realizada a partir dos mapas populacionais e apresentada no capítulo 1, tendo o
tamanho do plantel influenciado nas relações de compadrio. A historiografia tem mostrado que
nas menores escravarias houve uma tendência maior de padrinho livre
126
.
Quanto às crianças legítimas filhas de escravos, é surpreendente constatar que elas
representaram 45,15% de todos inocentes escravos batizados, deixando à mostra uma
sociedade na qual as uniões entre escravos, aprovadas pela Igreja, tiveram presença bastante
significativa, uma vez que os filhos foram batizados e registrados como legítimos. Essa
constatação contraria a nossa hipótese inicial de que haveria um índice muito elevado de
filhos ilegítimos de escravos na região, em decorrência do predomínio da pequena posse de
cativos, e ao mesmo tempo reforça as reflexões que mostram a existência de famílias escravas
onde a escravidão foi praticada, comprovando que a história cresce a partir de estudos
regionais. Esses ajudam a perceber que não há uma única realidade, sendo “preciso trabalho
minucioso regional, local para ver em profundidade as inúmeras facetas da escravidão.”
127
Se
os escravos construíram seus vínculos afetivos com tamanha freqüência é sinal de que a
família escrava encontrou espaço na sociedade escravista aqui analisada.
123
FERREIRA, Roberto Guedes. Notas sobre fontes paroquiais de batismo. In: Cadernos de Estudos e
Pesquisas/ Universidade Salgado de Oliveira. Pró-reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa. Ano VIII, nº 19
(janeiro/abril 2004). (São Gonçalo, RJ): Universo, 2004. p. 117.
124
GÓES, 1993. p. 118.
125
FALCI, 1995. p. 102 e 104.
126
Ver entre outros, GÓES, NEVES, KNOX, GUDEMAN & SCHWARTZ, BOTELHO.
127
CARDOSO, Ciro Flamarion. In: MATTOSO, 1982. p. 7-8.
64
TABELA 5
Sexo dos batizandos e origem da filiação, Freguesia de São Domingos do Prata, 1845-1888
Origem da Filiação Masculino % Feminino % Total Geral %
Legítimo 224 43,92% 218 46,48% 442 45,15%
Natural 280 54,90% 245 52,24% 525 53,63%
Pai 2 0,39% 4 0,85% 6 0,61%
Não consta pai ou mãe 4 0,78% 2 0,43% 6 0,61%
Total Geral 510 100,00% 469 100,00% 979 100,00%
Fonte: Livros de batismo da freguesia de São Domingos do Prata, 1845-1888
Arquivo Dom Marcos Noronha – Cúria Diocesana de Itabira – Coronel Fabriciano
Em nossa compreensão da sociedade escravista entendemos que o cativo figurou, na
maioria das vezes, como ser social submetido a várias formas de violência e limitações, mas
que noutras, ele foi capaz de obter direitos dentro das frestas do sistema escravista, sendo
sujeito de sua vida. O mundo construído pela escravidão foi povoado por pessoas que se
relacionavam, se encontravam, viviam de forma conflituosa, mas especialmente conviveram e
sobreviveram.
Robert Slenes
128
, em vista da constatação da existência de laços familiares entre os
escravos em São Paulo, problematiza o porquê dos observadores do século XIX terem dado
destaque à promiscuidade sexual e à ausência de estabilidade familiar entre os cativos como
sendo uma realidade e até mesmo uma norma. Para ele, os olhares preconceituosos sobre os
negros e a cultura africana, levaram a uma explicação errônea a respeito das uniões
consensuais, não confirmadas pela Igreja, tidas como evidência de falta de moralidade. Um
outro fator seria a existência marcante de pequenas posses de cativos, como os estudos
recentes têm demonstrado, ocasionando uma realidade marcada por um comportamento
sexual e familiar dos escravos, distinto daquele característico das grandes e médias posses
levando às interpretações generalizadas dadas pelos contemporâneos da época que
descreveram um quadro de pouca expressão ou mesmo ausência da família escrava.
Em estudo da família escrava na vila de Santana de Parnaíba, São Paulo, no final do
século XVIII e início do século XIX, Alida Metcalf
129
utilizando mapas de população,
inventários e registros paroquiais, mostra que os escravos, apesar das limitações da
escravidão, construíram e preservaram vidas familiares, casaram sem limites da Igreja e com a
128
SLENES, Robert. Escravidão e família: padrões de casamento e estabilidade familiar numa comunidade
escrava (Campinas, século XIX). In: Estudos econômicos. São Paulo: IPE/USP, 1987.
129
METALCAF, Alida C. A Família Escrava No Brasil Colonial: um estudo de caso em São Paulo. In:
NADALIN, Sérgio O., MARCILIO, Maria L. & BALHAMA, Altiva. P. (Org.). História e População: estudos
sobre a América Latina. São Paulo: Abep, 1990.
65
anuência de seus senhores e que, na maioria, os casamentos foram entre escravos do mesmo
senhor - 94% -. Ela sugere que certamente os senhores com poucos escravos desestimulavam
os casamentos de seus cativos, isolando-os dos cativos de outros donos, o que explicaria a
pequena proporção de matrimônios entre escravos de proprietários diferentes.
130
Semelhante ao padrão encontrado por Florentino e Góes, os tipos de família
encontrados em Santana de Parnaíba foram o nuclear, o matrifocal e o solitário, sendo que o
primeiro se fez predominante seguido do segundo. Assim como em outras regiões, a autora
mostra que nas grandes e médias propriedades escravas havia maior facilidade para a
formação de famílias nucleares, pois a proximidade entre os escravos criava oportunidades
para o matrimônio, enquanto que nas pequenas propriedades o que era comum era a família
matrifocal, constituída pela mãe e seus filhos.
A autora chama atenção para o fato dos cativos terem buscado ampliar suas famílias
através do estabelecimento de relações de compadrio forjando elos através de uma opção que
os vinculava, pela via horizontal, a outros escravos, ou pela via vertical, a homens livres
inclusive da classe senhorial. Ao optar por padrinhos cativos os pais estariam buscando unir
seus filhos à comunidade escrava, reforçando os laços que os escravos possuíam entre eles e,
ao escolher padrinhos livres, os pais talvez pretendessem conseguir acesso a pessoas que
poderiam ter maior poder na comunidade.
131
Partindo do modelo de vida familiar sugerido por Florentino e Góes de que a família
escrava foi importante para a organização social em torno do mundo cativo e de que a sua
existência contribuía para um ordenamento social, podemos aplicar esse raciocínio na análise
dos laços construídos pelos escravos por meio do compadrio. Esse é de grande valor para a
percepção sobre a família escrava e suas sociabilidades, pois, unindo-se a pessoas por meio da
seleção de padrinhos, os cativos não só ampliaram as relações familiares como também
construíram outras.
2.3 - Batismo e compadrio construindo e fortalecendo laços
Certamente, os laços estabelecidos por meio do compadrio desempenharam importante
papel na vida dos mancípios, pois implicaram na ampliação da relação parental, indo além dos
130
Ibidem. p. 206-7.
131
Ibidem. p. 209.
66
limites da Igreja e penetrando no corpo social
132
. Dessa forma, ao estudar os batismos de
escravos e as relações de compadrio por eles construídas é possível investigar o seu universo,
a sua estrutura familiar e ao mesmo tempo compreender aspectos que provavelmente foram de
grande valor em suas vidas e ajudaram na construção de sua identidade.
O manejo dos registros paroquiais nos coloca em contato com um mundo social dos
escravos que pode ser vislumbrado por entre as páginas preenchidas pelas escritas do pároco
que anotou os batismos. O exame dos padrinhos escolhidos para as crianças escravas traz
algumas contribuições, mostrando que houve contato entre escravos pertencentes a
proprietários diferentes. Por conseqüência, aparecem escravos selecionando como padrinhos
para seu filho batizando cativos pertencentes, por exemplo, a filhos, a irmão e outros
membros da família extensa de seu proprietário. Os vínculos de parentesco que ligavam
senhores serviram de ponte para a criação de laços entre seus escravos. Outrossim, uma
variedade de situações diárias colocaram cativos de proprietários diversos em contato,
produzindo circunstâncias favoráveis ao desenvolvimento da sociabilidade escrava. Embora
houvesse limites a certos deslocamentos dos escravos, está claro que o mundo social do cativo
não se limitou unicamente à propriedade à qual estava vinculado e nem a uma relação de
solidariedade exclusiva com pessoas da mesma condição social que ele. Isso está muito bem
demonstrado na seleção dos padrinhos das crianças escravas, que muitas vezes pertenciam a
outras propriedades ou a outro grupo social.
Através do rito do batismo - obrigação legal, religiosa e social - os cativos se
inseriam e foram inseridos no universo religioso do branco, integrando-se ao mundo cristão e
estabelecendo conexões pessoais com indivíduos de diferentes estratos econômicos e de
prestígio social por meio do compadrio. Esse criou solidariedade e sociabilidade, e por meio
do levantamento dos registros paroquiais de batismo, da análise minuciosa dos dados neles
contidos, é possível recuperar e desvendar parte da vida social que envolvia os escravos
percebendo as relações por eles construídas na sociedade da qual faziam parte.
O inocente cativo batizado é um ser vivo, humano e socializado por meio do
apadrinhamento que as fontes paroquiais registraram. Não há diferença da cerimônia de
batismo do inocente cativo e de uma criança livre, a não ser o registro que identifica a
condição social de escravo, especificando o nome de seu proprietário. Em São Domingos do
Prata identificamos que os livros em que foram feitos os registros de batismos eram os
mesmos para livres e cativos até 1871
133
.
132
GÓES, 1993.
133
Sobre essa questão ver página 5 desta dissertação.
67
O termo batizar, vem do grego
bábtô, baptizô e significa imergir, submergir.
134
O
batismo é considerado o responsável pela purificação do pecado original, por perdoar as
faltas pessoais, infundindo graça e virtudes espirituais e absolvendo as penas. Sendo o
primeiro dos sacramentos católicos, dotado de grande simbolismo, é responsável por
introduzir o indivíduo no seio cristão. A Igreja Católica determinava que as crianças fossem
batizadas imediatamente após o nascimento, para garantir a salvação da alma e, no Brasil, as
Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia determinaram que o sacramento do
batismo deveria ser ministrado num prazo de oito dias a partir do nascimento e caso tal
prescrição não fosse cumprida haveria punição com multa para o responsável pelo inocente.
Pelas regras tridentinas, adaptadas no Brasil pelas Constituições Primeiras do
Arcebispado da Bahia, elaboradas pelo Sínodo diocesano de 1707, ficou estabelecido que no
batismo não deveria haver mais de um padrinho e de uma madrinha e que o padrinho não
deveria ser menor de quatorze anos nem a madrinha menor de doze anos, que não seria
permitido como padrinho qualquer religioso professo na religião aprovada, e que não se
admitiriam duas madrinhas ou dois padrinhos, sendo vedado aos pais serem padrinhos de
seus próprios filhos.
135
Apesar das regulamentações eclesiásticas, os estudos realizados
indicam que muitas normas eram burladas ou ignoradas como, por exemplo, no que diz
respeito aos padrinhos. Realizou-se batismo com a falta do padrinho ou da madrinha, essa
mais freqüentemente que aquele
136
, ou ainda a presença de dois padrinhos sem a madrinha.
O manuseio das fontes batismais da paróquia de São Domingos do Prata revelou a
presença de tal comportamento. Regras eclesiásticas muitas vezes não eram seguidas à risca
pelos párocos e pela sociedade, sendo negligenciadas. Houve batismos em que o padrinho ou
a madrinha estavam ausentes. Identificamos também casos em que não havia madrinha, mas
duas pessoas do sexo masculino como padrinhos dos inocentes, ausência do casal de
padrinhos e outros desvios das leis estabelecidas pelo código canônico.
Em alguns registros, em que falta um dos padrinhos do batismo, verificamos que existe
diferença em relação ao sexo do ausente, com maior incidência quando se tratou das madrinhas.
No grupo de padrinhos escravos registrou-se a falta da madrinha duas vezes e do padrinho uma
vez, representando, respectivamente 0,20% e 0,10% no total dos casos (79) em que houve
134
SARTORE, Domenico; TRIACCA; Achille M. (orgs.). Dicionário de Liturgia. São Paulo: Edições Paulinas,
1992. p.109.
135
NEVES, 1989. p. 240. GUDEMAN e SCHWARTZ. 1988. FALCI, 1995. p. 97.
136
GUDEMAN, Stephen & SCHWARTZ, Stuart. Purgando o Pecado Original: Compadrio e Batismo de
escravos na Bahia no século XVIII. In: REIS, João José (org). Escravidão e invenção da liberdade. Estudos
sobre o negro no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1988. p.55.
68
identificação dos padrinhos, ou de um deles, como escravos. Já no grupo de padrinhos
considerados como livres - aqueles que não foram nomeados como escravos, cativos ou
“captivos” nos registros batismais - de um total de 887 batismos, em dois o padrinho esteve
ausente e em sete a madrinha, correspondendo respectivamente a 0,23% e 0,79%. A ausência de
madrinhas foi maior no caso das madrinhas livres. O padrinho esteve mais presente no batismo
dos cativos da freguesia. Essa constatação leva a acreditar que havia uma maior valorização do
padrinho que da madrinha e sugere que, ao escolher os padrinhos mais vezes que as madrinhas,
os pais estariam pensando na proteção de que os filhos precisariam e que os homens teriam
maiores condições de dar, havendo por trás da seleção o desejo de ganho social para o
batizando e, por extensão, para sua família. A maior presença do padrinho que da madrinha,
principalmente no grupo dos padrinhos livres, pode também ter sido decorrência das
dificuldades colocadas para percorrer a distância entre a residência e a paróquia, já que para o
padrinho isso seria menos custoso que para a madrinha.
Pesquisas ressaltam que o padrinho ocupou papel de maior destaque que a madrinha e
que isso aconteceu independente da condição jurídica de ambos. Em algumas vezes os
padrinhos foram representados por meio de procuração. Nesse caso, foram identificados cinco
batismos em que o sacramento foi oficializado com a presença de procuradores. Vale lembrar
que isso só aconteceu para casos de padrinhos livres. Encontramos também nove batismos nos
quais se nota a ausência do casal de padrinhos, correspondendo a 0,92%.
Não há registro de madrinhas e padrinhos não-carnais, ou seja, santas e santos,
significando que para os cativos da freguesia de São Domingos do Prata o interessante era selar
alianças com homens e mulheres que pudessem intermediar suas relações e até possibilitar
alguns ganhos materiais. Não houve, portanto, como Ferreira encontrou em São José, a busca de
proteção por meio da escolha de divindades para assumirem o lugar de padrinho ou madrinha
dos inocentes.
Ferreira afirma ter sido a escolha de madrinhas espirituais - as diversas Nossa Senhora -
a evidência religiosa mais clara do batismo na busca de proteção e que os pais, ao escolherem
madrinhas incorpóreas, demonstravam a dimensão simbólica que o batismo possuía.
137
A respeito de padrinhos espirituais, Donald Ramos em estudo sobre o batismo e o
compadrio em Vila Rica no século XVIII, ressalta que a escolha de compadres representava
algo de grande importância porque juntava aspectos sagrados e sociais, sendo a seleção de um
santo para padrinho ou de uma santa para madrinha a forma mais fácil de realizar essa junção.
137
FERREIRA, 1993. p. 187.
69
Ele lembra que, ao proceder-se dessa maneira, era criada a oportunidade para introduzir-se o
sagrado dentro da família, mas que isto não estava previsto nas regras da Igreja Católica.
138
Pelo batismo, eram criados laços fortes que muitas vezes poderiam servir para
assegurar a sobrevivência do cativo por meio de ajuda material e espiritual. A esse respeito,
em seu estudo sobre o compadrio em São Paulo do século XIX, Maria de Fátima Rodrigues
das Neves assinala que
“era de extrema importância o status jurídico-social do padrinho para o segmento
escravo da população. A escolha desses indivíduos revela a preocupação do cativo
em ampliar sua rede de parentesco a estratos ‘superiores’ da sociedade, como
estratégia de sobrevivência. Por esse motivo, em geral, era na camada livre que
selecionavam os padrinhos para si ou para seus filhos, uma vez que o parentesco
espiritual era estendido aos pais do batizando.”
139
Os vários estudos relativos a esse tema mostram alguns padrões que marcaram o
batismo de escravos no Brasil e a formação do parentesco fictício, e os resultados encontrados
demonstram que os mesmos variaram em função do tamanho da posse escrava, contrariando,
em parte, a interpretação de Neves que diz ter sido, em geral, membros da camada livre
escolhidos para padrinhos de filhos de escravos. Enquanto nos grandes plantéis, em que havia
maior possibilidade de contato entre um número maior de cativos, houve maior incidência de
compadrio entre os escravos, nos pequenos plantéis ocorreu o contrário, com uma tendência
maior de compadrio dos escravos com livres e forros, em decorrência da menor possibilidade
de conseguir alianças com cativos.
Onde o escravo encontrou condições que possibilitaram a formação de famílias com
alguma estabilidade, nos maiores e médios plantéis, o compadrio foi um meio para o
estabelecimento de relações com iguais, que adquiriram significados semelhantes ao do
parentesco e constituíram em instrumento para a formação da comunidade escrava, essencial
para a manutenção de elementos culturais africanos. Onde houve maiores dificuldades para a
formação de família, nos menores plantéis, ocorreu o contrário, tendo os escravos constituído
mais alianças, por meio do apadrinhamento, com livres. Os cativos brasileiros criaram várias
opções de compadrio, e os historiadores interessados em recuperar o processo histórico
138
RAMOS, Donald. Teias Sagradas e Profanas – O lugar do batismo e compadrio na sociedade de Vila Rica
durante o século do ouro. In: Varia História/ Departamento de História, Programa de Pós-Graduação em História
– Fafich -UFMG. Belo Horizonte, nº31, jan. 2004.
139
NEVES, Maria de Fátima Rodrigues das. Ampliando a família escrava: compadrio de escravos em São Paulo
do século XIX. In: História e População. São Paulo: ABEP/IUSSP/CELADE, 1989. p.243.
70
multifacetado da instituição escravista ajudam a ampliar o conhecimento acerca das relações
de parentesco forjadas na pia batismal em vários momentos e regiões.
Ana Lugão Rios demonstrou que na região de Paraíba do Sul, em finais do século
XIX, a escolha dos padrinhos por condição social estava relacionada aos tamanhos das
escravarias, sendo que nos menores plantéis, 26,9% dos batizandos tiveram padrinhos
escravos, enquanto que 42,3% tiveram padrinhos livres. Já nos maiores, ocorreu uma situação
inversa, com predomínio de padrinhos escravos - 69,8% - contra 9,9% de padrinhos livres.
140
Por ser o batismo um sacramento que serve de ponte para o estabelecimento de
relações sociais, é interessante observar que por meio dele foram criadas novas estruturas
hierárquicas dentro da sociedade, originando uma trama social que ligou indivíduos e
famílias. Como rito de iniciação dentro da comunidade cristã, ao absolver do pecado original
e substituí-lo pela graça divina, os pais espirituais tornavam-se responsáveis por desempenhar
funções sagradas que os pais biológicos não poderiam cumprir, ficando aqueles incumbidos
da função de zelar pela educação religiosa do batizando.
141
Para Donald Ramos a análise do batismo e do compadrio é de grande validade para a
compreensão do “mapa social” em que as relações foram tecidas e “pode-se usar a história
social dos batismos e a instituição do compadrio para descrever uma sociedade organizada
ao redor de um complexo de teias invisíveis (mas reais) ligando indivíduos e famílias.”
142
Considerado um dever de todos os segmentos sociais: livres, forros e escravos, que
deveriam ser integrados à sociedade através do batismo, sendo que o dos últimos constituía
uma obrigação dos senhores
143
, o ritual do batismo, que assumiu um lugar de destaque na
sociedade brasileira, tinha, além da dimensão religiosa, representada pela iniciação cristã e
pela busca da segurança espiritual, uma dimensão social, na busca de segurança material e
afetiva da criança pelos pais que, provavelmente, como hoje, viam nos padrinhos aqueles
que poderiam assumir seus lugares em caso de necessidade. O papel social do padrinho era,
portanto, de grande relevância e destaque nas relações, constituindo ponto de apoio para a
família do batizando. Ao assumir o papel daquele que deveria cuidar da orientação espiritual
do recém-iniciado no mundo cristão, o padrinho estabelecia vínculos duradouros que iam
além dos aspectos religiosos. O compadre muitas vezes era quem socorria o batizando e sua
família nos momentos de vulnerabilidades sócio-econômicas. Representando, no imaginário,
140
RIOS, 2000. p. 118.
141
RAMOS, Donald. Teias Sagradas e Profanas – O lugar do batismo e compadrio na sociedade de Vila Rica
durante o século do ouro. In: Varia História/ Departamento de História, Programa de Pós-Graduação em História
– Fafich -UFMG. Belo Horizonte, nº31, jan. 2004. p. 51.
142
Ibidem. p.67.
143
PEREIRA, nº 33. p.2.
71
a porta de entrada para a salvação da alma, o ritual católico que assegurava o direito ao
sacramento da crisma, do matrimônio etc.
144
, também significava o caminho para benefícios
materiais.
Sabemos que o negro foi “dominado”, “violentado” pela cultura do branco e não é
absurdo supor que o batismo foi utilizado também como instrumento do sistema escravista
na constituição da ordem social, servindo como elemento para a coesão social, imprimindo
limites e padrões de comportamento. Como lembra muito bem Miridan Britto Knox, “dentro
do projeto escravista que a Igreja e o Estado forjaram no Brasil, o batismo terá o significado
de moldar o escravo cristão em escravo obediente”.
145
Em relação a essa questão, Vera
Alice Cardoso Silva ressalta que:
“O registro oficial do batismo era o documento inicial e essencial para a aquisição
de dois tipos de ‘cidadania’: a civil e a religiosa. Por meio dele, o indivíduo passava
a ser socialmente reconhecido como participante da ‘cidade dos homens’ e da
‘cidade de Deus’, ambas indissoluvelmente ligadas no mundo cultural e político
português (...) pode-se dizer que o batismo era quase como que uma exigência
formal do Estado português imposta a seus súditos e aos que quisessem qualificar-se
como tal, não sendo visto, portanto, como parte da esfera de livre escolha do
indivíduo. Nessa perspectiva, o batismo tinha tanto valor religioso, quanto civil.”
146
Com a instituição do padroado, o Estado português e, no século XIX, o Estado
brasileiro revestiram a Igreja de inúmeras funções ficando essa incumbida de desempenhar
papéis religioso e civil na sociedade. Ao realizar o batismo, oficializado através do assento
em livro específico, a instituição prestava um serviço aos proprietários de escravos, pois os
nomes desses constavam nos registros, assegurando, dessa forma, a propriedade, já que não
havia documento que comprovasse a posse dos que haviam nascido na propriedade do
senhor. A esse respeito, Neves esclarece que,
“Quando um escravo era comprado, havia uma matrícula que servia como
‘comprovante’ da posse. Porém, o inocente nascido de uma escrava não era
matriculado, já que não tinha ocorrido uma transação comercial. Dessa maneira, o
registro de batismo era a única forma de que dispunha o proprietário para comprovar
que alguns dos escravos, nascidos em seus plantéis eram efetivamente seus.”
147
144
FREIRE, Jonis. Compadrio em uma freguesia escravista: Senhor Bom Jesus do Rio Pardo (MG) (1838-
1888). XIV Encontro Nacional de Estudos Populacionais (ABEP), Caxambu – MG, 20 a 24 de setembro de
2004. ABEP.
145
FALCI, 1995, p.85.
146
SILVA, Vera Alice Cardoso. Aspectos da função política das elites na sociedade colonial brasileira: o
‘parentesco espiritual’ como elemento de coesão social. In: Varia História/ Departamento de História, Programa
de Pós-Graduação em História - Fafich -UFMG. Belo Horizonte, nº31, jan. 2004, p.105.
147
NEVES, 1990. p. 238.
72
A questão levantada pela autora leva-nos a pensar que talvez seja também por isso
que a “salvação” e a “conversão” das almas dos cativos foram viabilizadas pelos senhores
desejosos de assegurar seus interesses, enquanto os mancípios poderiam pensar na própria
humanização e na extensão de relações que iriam contribuir para a suavização da vida em
cativeiro. Numa sociedade em que os valores cristãos estavam fortemente presentes é
possível que o sacramento do batismo adquirisse para o negro, dominado, aculturado e
“domesticado” a mesma importância que tinha para o branco, ainda mais que precisavam
dele para se inserir na sociedade civil, mas a sua função pode ter tido significados diferentes.
A escolha dos padrinhos é reveladora das opções e possíveis intenções dos escravos.
Ao escolherem entre livres os padrinhos para seus filhos, os pais poderiam buscar formar
alianças com pessoas que pudessem dar segurança e proteção ao batizando e, por extensão, à
própria família. Seria um mecanismo inconsciente, ou não, de busca por amparo, uma vez que
as incertezas geradas pelo cativeiro eram múltiplas. Dessa forma, foi comum pensar que os
senhores seriam os mais escolhidos para apadrinhar os filhos de seus escravos, o que
implicaria em garantia para a obtenção de benefícios como a alforria ou tratamento
diferenciado, dentre outros. Nesse sentido, o compadrio reforçaria na sociedade o
patriarcalismo e a própria escravidão, não sendo gerador de laços de solidariedade. A escolha
do padrinho para a criança teria um caráter estratégico, pois podia determinar a escala de
‘oportunidade de vida’ que se abria para ela em uma ordem social rigidamente
estratificada
148
, assumindo papel político e social, na medida em que o padrinho era visto
como protetor, – como é usual ainda hoje na cultura política brasileira. Através do compadrio
estaria buscando-se a garantia da proteção mínima dentro da ordem de dominação vigente,
para ser obtido o ‘passaporte social’
149
.
A discussão realizada em relação ao apadrinhamento de escravos é fértil. Alida C.
Metcalf, que considera os laços extra-familiares estabelecidos pelos escravos como parte
fundamental da vida familiar, explica que
“As relações de compadrio seriam uma instância de tais laços que os historiadores
poderiam estudar para obter informações acerca da família escrava e a vida em suas
comunidades. Ao batizar seus filhos, os pais escolhiam padrinhos para o nascido. A
identificação do indivíduo escolhido para este fim seria um exercício conducente a
proveitosas revelações acerca da maneira mediante a qual os escravos forjavam elos
no meio comunitário. A estratégia encaminhada pelos cativos consistia,
aparentemente, em uma opção entre a vinculação horizontal de seus filhos a outros
escravos, ou a vertical a indivíduos da classe senhorial. Cada estratégia comportava
sua própria lógica: ao escolherem pessoas livres, e possivelmente senhores, para ser
148
SILVA, 2004. p. 106.
149
SILVA, 2004. p. 105.
73
os padrinhos de seus filhos, os pais esperavam providenciar para estes acesso a
indivíduos de maior poder na comunidade. Ao escolherem padrinhos escravos, por
outro lado uniam seus filhos à comunidade escrava. Estes vínculos serviam para
reforçar os laços que os escravos tinham entre si.”
150
A autora sugere que ao estabelecer o parentesco espiritual, vínculo especial que era
fruto de uma escolha, como já observado, abria-se caminho para que os escravos
selecionassem como parentes grupos pertencentes a estratos superiores da sociedade. Dessa
forma, a escolha de compadres criava oportunidade para que relações entre grupos sociais
distintos fossem estabelecidas sem, contudo, ameaçar o patrimônio familiar.
151
Havia
também a oportunidade para escolher em meio à comunidade escrava aqueles que seriam os
padrinhos, criando condições para o estabelecimento de vínculos entre os escravos e o
reforço de alianças. Dessa forma, o compadrio possibilitava a aproximação e, quem sabe, o
fortalecimento dos cativos.
Kátia Mattoso sugere que os laços estabelecidos através do compadrio combinaram
perfeitamente com a sociedade brasileira marcada pela “família extensiva, ampliada,
patriarcal”
152
, ligando padrinho, sua família, o afilhado e os pais da criança batizada, criando
vínculos sutis de afeição. Para ela, foi entre pessoas do mesmo grupo social que se firmaram
as solidariedades mais pessoais e mais sólidas e, entre essas, os vínculos compadrescos
complementaram e foram adaptados, ampliando a família.
Para a estudiosa, “os vínculos pessoais entre o escravo e o senhor pesarão menos,
para o equilíbrio afetivo e promoção pessoal do negro, do que os traços de união forjados no
interior do próprio grupo de escravos.”
153
Apesar disso, ela sugere ter ocorrido o
estabelecimento de solidariedades sinceras entre um senhor e um escravo, e, para o primeiro
seria interessante apadrinhar os filhos de seus escravos para conseguir obediência e
humildade. Para o escravo, a obediência e a humildade serviriam para conseguir benefícios
que, para Mattoso, funcionariam como instrumentos de troca.
Contrariando interpretações sobre o compadrio escravo, Stephen Gudeman e Stuart
Schwartz
154
, considerados como pioneiros no estudo do batismo e das relações de parentesco
fictício, em análises dos registros de batismos de quatro paróquias do Recôncavo Baiano no
150
METALCAF, 1990. p.209.
151
VENÂNCIO, Renato Pinto. Compadrio e Rede Familiar entre Forras de Vila Rica, 1713-1804. In: Anais da V
Jornada Setecentista. Curitiba, 26 a 28 de novembro de 2003.
152
MATTOSO, 1990. p.132.
153
MATTOSO, 1990. p.133-4. A autora lembra que o padrinho assumia várias obrigações para com o afilhado,
como dar assistência espiritual e material, e que a maioria levou a sério suas responsabilidades.
154
GUDEMAN & SCHWARTZ, 1988.
74
século XVIII, mostram que os senhores não apadrinhavam os filhos de seus escravos e que os
escravos procuraram preferencialmente pessoas livres para padrinhos. Com isso eles refutam
a tese de um suposto clientelismo nas relações senhor-escravo, assinalada anteriormente,
ressaltando que o compadrio e a escravidão eram incompatíveis, porque o primeiro representa
igualdade, humanidade e fraternidade e a segunda, relação de dominação, daí os proprietários
evitarem construir vínculo baseado na espiritualidade para não revogarem algo de seu próprio
poder. A esse respeito, eles argumentam que “o batismo de escravos representa uma ameaça à
escravidão, enquanto a escravização do batizando é uma contradição potencial para a
Igreja”
155
.
Além do exposto, os pesquisadores ressaltaram que 70% dos padrinhos eram livres,
20% eram escravos e 10% eram libertos. O predomínio de livres seria evidência de os
escravos buscarem proteção e possível aliado através do compadrio. Comparando a presença
do padrinho e da madrinha, foi detectado que as madrinhas estavam ausentes 14 vezes mais
do que os padrinhos mostrando que os últimos eram considerados mais importantes,
coincidindo com o padrão encontrado por Góes
156
em Inhaúma.
Tarcísio Rodrigues Botelho
157
, estudando o batismo e o compadrio de escravos na
freguesia de Montes Claros - Minas Gerais -, região em que se destacou a agropecuária, nos
períodos de 1815-19, 1840-44 e 1872-76, mostra que houve um predomínio de padrinhos
livres de ambos os sexos, chegando a até 80% em alguns momentos, e que os padrinhos
escravos, com predomínio de indivíduos de outros plantéis, ficaram em torno de 10%.
Quanto à participação dos senhores como padrinhos, o índice encontrado é muito baixo,
apresentando uma variação entre 1 e 2%.
158
Para explicar o padrão de apadrinhamento na região, o autor sugere que a maior
presença de padrinhos cativos de plantéis distintos daqueles dos batizandos pode ter sido
decorrência do pequeno tamanho dos plantéis já que, em 1832, apenas 12% dos cativos se
encontravam em propriedades com quinze ou mais cativos. Acredita-se que a maior liberdade
de locomoção dos cativos da região, favorecendo maior acesso a pessoas livres e a cativos
pertencentes a senhorios diferentes, influenciou na escolha de padrinhos.
155
Ibidem. p.43.
156
GÓES, 1993.
157
BOTELHO, Tarcisio Rodrigues. Batismo Compadrio de Escravos: Montes Claros (MG), século XIX. In
Lócus: Revista de História. Vol. 3. Juiz de Fora: EDUFJF, 1997.
158
BOTELHO, Tarcisio Rodrigues. Batismo Compadrio de Escravos: Montes Claros (MG), século XIX. In
Lócus: Revista de História. Vol. 3. Juiz de Fora: EDUFJF, 1997. p. 108-115.
75
Para Botelho,
“O peso que apadrinhamento e compadrio possuíam na sociedade brasileira católica
e tradicional os transforma em instrumento privilegiado para se perceber as redes
construídas pelo cativo ao longo de sua vida, das quais ocasionalmente lança
mão.”
159
Diferente do que Botelho encontrou, José Roberto Góes
160
, em pesquisa referente à
freguesia de Inhaúma, Rio de Janeiro - localizada em área de
plantation -, durante o período
de 1817 a 1842, identificou que a escolha de padrinhos escravos pelos cativos foi de 66,7%.
Para ele, nos maiores plantéis, o compadrio tendeu a ser entre cativos do próprio plantel e nos
menores entre cativos de plantéis distintos originando, respectivamente, segundo Góes, o
compadrio endogâmico e o exogâmico. Nos menores plantéis houve uma tendência maior de
padrinho livre ou liberto, embora não tenha ultrapassado a fração de 1/3 dos padrinhos,
enquanto nos maiores - com 8 ou mais batizandos – os índices de padrinhos escravos ficaram
acima do percentual global de 66,7% padrinhos escravos.
Para Góes, “o compadrio significava mais que tudo, a consecução de um laço de
aliança que atava, à beira da pia batismal, os pais de uma criança e seus padrinhos”
161
e que
levou ao estabelecimento de uma intricada rede de relações sociais marcada por um
emaranhado de ligações horizontais em muitos plantéis, criando a comunidade escrava.
Comparando a presença de madrinhas e de padrinhos na ocasião do batismo, Góes
constatou que os segundos exerceram um papel de maior importância que as primeiras.
“Independentemente de suas respectivas condições jurídicas, os homens tendiam a
se fazer presentes quase duas vezes e meio mais que as mulheres – a despeito das
normas eclesiásticas ditadas pelo Concílio de Trento que dispunham a necessidade
do casal de padrinhos no ato do batismo.”
162
O compadrio chegou a ser alvo de política do governo de Minas do início do século
XVIII, segundo nos informa Renato Pinto Venâncio
163
, tendo o governador proibido que os
forros se tornassem padrinhos de outros escravos. Para Venâncio, tal proibição decorria do
temor de que os escravos desviassem para os padrinhos o respeito que deviam aos senhores.
159
Ibidem. p. 109.
160
GÓÉS, 1993.
161
Ibidem.
162
GÓES, 1993. Ibidem. p. 56.
163
VENÂNCIO, 2003.
76
Deveria existir também o receio de que os padrinhos pudessem incitar os parentes rituais à
fuga ou à revolta e a proibição oficial pode ser indicativa de que a prática de apadrinhamento
pelos negros era generalizada.
Fica cada vez mais evidente que as relações sociais costuradas através do compadrio,
deixando à mostra parte da realidade cotidiana escrava, foi marcada por certas escolhas que
levaram à necessidade de novas normas além daquelas já instituídas pelo sistema escravista,
tornando ainda mais instigante o estudo sobre as práticas e os comportamentos escravos. A
tolerância de senhores para com seus escravos por certo variou de acordo com as
circunstâncias e com o estilo pessoal de cada senhor, e também com as estratégias de
controle, ora mais sutis, ora mais incisivas. A proibição ao compadrio entre forros e escravos
é indício de controle, mas também denuncia a existência da capacidade do escravo de
estabelecer sociabilidade dentro do sistema.
Venâncio estudou as relações de compadrio entre as forras de Vila Rica no período de
1713-1804, utilizando os dados dos registros batismais da igreja de
Nossa Senhora do Pilar, e
concluiu que entre 92,3% e 93,4% das forras escolhiam padrinhos livres, 28,7% escolhiam
madrinhas forras e 44,5% escolhiam madrinhas livres. Esse padrão de escolha teria resultado
da busca de conseguir um possível intermediário para negociações em situações de conflito
com o senhor, bem como aliança que pudesse assegurar auxílio material que servisse de
amparo para a sobrevivência no cativeiro.
Para o autor, os pesquisadores fizeram uma adaptação do modelo que foi proposto por
Manolo Florentino e José Roberto Góes
164
no estudo da família escrava, para o estudo do
compadrio. Já vimos que esses historiadores afirmam que havia uma relação entre o tráfico e
a intensificação de alianças entre os cativos. Como o tráfico gerava tensão no mundo das
senzalas, os laços familiares entre os cativos fizeram-se imprescindíveis em época de chegada
intensa de mancípios, e a família escrava funcionava como uma espécie de mecanismo para
os cativos viverem em paz. Para Venâncio, algo parecido ocorreu com o compadrio e “as
regiões de compadrio intenso entre escravos seriam aquelas de tráfico também intenso e que,
por isso mesmo, estariam vivendo um período de expansão econômica.”
165
Dessa forma,
haveria maior probabilidade de existir plantéis maiores, graças à maior entrada de escravos, o
que tornaria mais propícia uma maior incidência de padrinhos entre os escravos do mesmo
164
Ibidem.
165
VENÂNCIO, 2003. p. 4.
77
proprietário, corroborando os estudos de Rios
166
, que identificou maior incidência de
padrinhos escravos nas escravarias maiores.
O ambiente influenciou na escolha de padrinhos e a maior possibilidade de relação
entre escravos nos maiores plantéis, além de gerar situações favoráveis para o conflito, como
reconhecem Venâncio, Florentino e Góes, originava também condições para a ocorrência de
aproximações e a formação de vínculos no meio cativo. Como o potencial de conflito seria
menor nas pequenas posses de escravos, esses seriam, de certa forma, liberados para
constituir laços de apadrinhamento com cativos de outros senhores ou com livres. O laço de
compadrio seria, pois, criado onde era necessário instituir a paz, ligando cativos de um
mesmo plantel e de plantéis diferentes.
Em estudo sobre a cidade de São Paulo entre 1801 e 1810, Maria de Fátima R. das
Neves
167
encontrou uma pequena parcela de senhores apadrinhando seus escravos,
representando apenas 1,8% do total de batizandos. Na maioria, os padrinhos de crianças
escravas eram livres, mas não eram pessoas de posses ou influentes, e os padrinhos escravos
eram em grande parte de plantéis diferentes.
Falci
168
, estudando o batizado de escravos na província do Piauí, assinala que a
cerimônia do batismo possui caráter religioso e social, sendo responsável por introduzir o
indivíduo no mundo cristão e na comunidade dos homens. Como salienta, “foi o batismo o
primeiro sacramento instado pelos jesuítas para ser administrado pelos senhores a seus
escravos e foi, também, uma definição da existência da vida humana numa época em que não
existia o Registro Civil”.
169
Nota-se, portanto, que o registro paroquial, ao inserir o indivíduo
na vida legal, não tinha apenas valor religioso, mas também civil, e, ainda, de desempenhar
papel de censo populacional.
A autora assinala que o batismo ocorreu muitas vezes em conjunto, ocasionando
concentração em alguns meses e ausência ou número pequeno em outros, por várias razões
166
RIOS, 2000.
167
NEVES, 1989. A autora trabalhou com registros de batismo de escravos da paróquia da Sé, na busca de
perceber a importância do sacramento batismal na sociedade da época, avaliando o seu caráter religioso e o seu
aspecto social na vida do escravo. Segundo a pesquisadora, “os registros paroquiais de batismo são de extrema
importância para a reconstituição demográfica da história brasileira” (p. 238), pois sendo uma sociedade
dominada pelos valores cristãos, o sacramento do batismo era cumprido com um certo rigor e adquiriu
importância e valor tanto para o negro quanto para o branco. Some-se a isso o desejo do senhor já que “aos
proprietários de escravos era interessante batizar os filhos de escravas e assentar esse batismo sob forma de
registro, pois, ao ser declarado o nome do proprietário do escravo batizado, garantia-se a posse do mesmo, uma
vez que o senhor não tinha documento nenhum que comprovasse a propriedade de um escravo nascido no
Brasil”. (p.238) O fato de não possuir a matrícula correspondente à compra do inocente nascido no plantel,
tornava o registro de batismo um importante documento para comprovação de posse.
168
FALCI, 1995.
169
FALCI, 1995. p. 85.
78
como as dificuldades decorrentes de distâncias que deveriam ser percorridas das fazendas até
a paróquia, a ausência de padres, além de festividades religiosas. Considerando que os
deslocamentos impostos pelas distâncias implicariam em perda de dia de trabalho e também
em gastos, para muitos proprietários certamente era mais econômico e prático promover o
batismo simultâneo de várias crianças escravas.
Sobre os padrões de compadrio escravo no Piauí, Knox concluiu que não foi comum
os senhores apadrinharem seus escravos, havendo predomínio de padrinhos livres - com
quase 70% de homens e madrinhas livres em grande número -, com poucas madrinhas forras
ou libertas. Em aproximadamente 10% e 15% de casos, aparecem padrinhos livres com
madrinha escrava, sendo significativo o número de escravos como padrinhos e madrinhas
atingindo, em Picos, 40% dos casos analisados.
O apadrinhamento de escravo tem, para a pesquisadora, ligação com a ilegitimidade,
com a estrutura de posse escrava e com a formação da família escrava. Segundo ela, “a alta
taxa de ilegitimidade entre os escravos do Piauí poderia explicar o grande número de pessoas
livres que foram padrinhos dos batizandos.”
170
As mães em busca de proteção para os filhos
tendiam a se aproximar de livres e a alta taxa de ilegitimidade devia resultar da existência de
pequenos plantéis dificultando laços entre os escravos, como tem mostrado a historiografia.
Quanto à estrutura de posse e a formação da família escrava, argumenta que nos grandes
plantéis, onde os escravos constituíram famílias nucleares, foi comum o compadrio entre os
escravos, e que muitas vezes os padrinhos de crianças escravas eram escravos pertencentes à
família extensa do senhor.
As pesquisas apresentadas evidenciam a importância do estudo do batismo e do
compadrio escravo para se compreender melhor a escravidão brasileira, perceber a
complexidade de suas relações e entender a sociabilidade do cativo através do
estabelecimento de laços sociais por meio do apadrinhamento e do compadrio.
Esse foi útil aos escravos para “ampliarem a família” instituindo compromissos de
solidariedade. Os padrinhos, como pais “espirituais” do batizando, assumiam dupla função
sendo responsáveis por cuidar da formação religiosa do afilhado e desempenhar papel social,
associando famílias e indivíduos. Ao conectar grupos diferentes, criando laços e reforçando
outros, o compadrio foi útil como mecanismo de relação social originando vínculos que
alcançaram maior ou menor abrangência tanto social quanto geográfica, atravessando as
fronteiras estabelecidas socialmente.
170
Ibidem. p. 102-3.
79
Instituição produzida pela Igreja e por ela simbolicamente oficializada, que aproximou
e aproxima indivíduos, conforme sugerem Gudeman e Schwartz
171
, o compadrio foi
transportado pelos escravos para o corpo da sociedade, aproximando pessoas de posição
social desigual. Ricos e pobres, brancos e negros, livres e cativos, homens e mulheres, não
importando os laços de sangue, mas as escolhas pessoais, criaram uma rede de relações que,
estendendo-se pela sociedade, atravessaram as divisões sociais. Muitas vezes, as relações
criadas pelo compadrio perpassavam vários níveis e ligavam indivíduos e famílias a uma
família central, integrando as hierarquias escravistas
172
, conectando grupos diferentes e
reforçando outros laços já existentes.
Ferreira
173
considera que participando do ritual do batismo os escravos tinham a
oportunidade de ingressarem em complexos laços parentais com outros escravos, livres e
forros para além da condição jurídica, o que significava algo muito diferente de uma
sociedade rigidamente dividida em dois pólos antagônicos. Por meio do parentesco espiritual,
muitos desiguais e iguais foram vinculados socialmente dentro da estratificação social. Dessa
maneira é importante ressaltar, mais uma vez, que a escravidão não deve ser vista e
interpretada apenas a partir de seu viés econômico, sendo necessário considerar os demais
aspectos que fizeram dela uma instituição complexa que vem sendo desvendada pelos
pesquisadores através das análises de vários documentos como, por exemplo, os registros
batismais.
2.4 – Fontes batismais: importância para a História Social
As paróquias contribuíram para a preservação de dados importantes sobre a
população brasileira e suas relações sociais em virtude dos registros realizados sobre
batismos, matrimônio e óbitos, ou seja, o nascer, o casar e o morrer. Como ressalta Miridan
Britto Knox Falci,
“Todos os atos religiosos do batismo, eucaristia e casamento ainda que
confirmassem as relações do indivíduo com Deus, passam a traduzir em suas
cerimônias a participação do cristão na comunidade paroquial e na comunidade
invisível da Igreja Universal.”
174
171
GUDEMAN & SCHWARTZ, 1988. p.37.
172
RAMOS, 2004. p. 58-59.
173
FERREIRA, Roberto Guedes. Na pia batismal. Família e compadrio entre escravos na Freguesia de São
José do Rio de Janeiro (Primeira Metade do Século XIX). Niterói: UFF/PPGHIS, 2000. p. 183-187.
174
FALCI, 1995. p.84.
80
Os registros paroquiais podem nos ajudar a aprofundar a compreensão do universo dos
mancípios a partir das relações de compadrio por eles construídas na busca de criar vínculos
sociais, haja vista que a escravidão não significou apenas o uso do trabalho forçado, mas
implicou também a criação de laços pelos cativos na sua luta pela sobrevivência. A esse
respeito, Knox diz que
“Todos aqueles que estudaram o compadrio mostraram a sua importância na
extensão de laços de solidariedade no mundo cão que os escravos tiveram, pois foi
na pia batismal que, entregando seus filhos a padrinhos livres, forros ou escravos,
ricos ou pobres, e a madrinhas livres ou escravas, ricas ou pobres, que os escravos
ampliaram a família escrava e criaram um grupo social definido e solidário nas suas
lutas diárias.”
175
Por meio dos registros batismais - importantes fontes para o estudo da sociedade e
para pesquisas demográficas -, vislumbramos padrões de comportamento e encontramos
informações que contribuem para a percepção de hierarquias e classificações presentes na
época de sua produção. As informações neles contidas seguem um padrão de acordo com as
determinações da Igreja e por isso podemos dizer que constituem documentação serial
176
de
grande significado para o conhecimento dos comportamentos, das mentalidades, de
características das pessoas, possibilitando chegar às populações e às sociedades do passado,
fornecendo traços culturais das mesmas, como a variação de nomes, o índice de filhos
naturais, a alforria concedida na pia batismal, aspecto importante em termos sociais e
culturais. Tais informações são de grande valor para a compreensão da história social uma
vez que através delas é possível observar e analisar o indivíduo construindo sua vida
cotidiana e espiritual,
177
estabelecendo ligação entre o mundo secular e o sagrado.
175
Ibidem. p. 97-8.
176
FERREIRA, Roberto Guedes. Notas sobre fontes paroquiais de batismo. In: Cadernos de Estudos e
Pesquisas/ Universidade Salgado de Oliveira. Pró-reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa. Ano VIII, nº 19
(janeiro/abril 2004). (São Gonçalo, RJ): Universo, 2004. p. 102. Como afirma BARROS, José D’Assunção. O
Projeto de Pesquisa em História, Da Escolha do Tema ao Quadro Teórico. Rio de Janeiro: CELA, 2002, p. 63-
66. “A História Serial constitui-se necessariamente de uma leitura da realidade social através da série que foi
construída pelo historiador em função de um determinado problema. (...) o historiador estabelece uma ‘série’, e é
esta série que particularmente o interessa.” Para ele, o historiador “serializa” o fato histórico buscando vê-lo em
sua repetição e variação dentro de um período para poder recriar o tempo e perceber os padrões. Diversos tipos
de fontes podem ser serializadas como as cartoriais, as administrativas, as comerciais, as paroquiais, as
testamentárias, etc. O autor considera que a História Serial diz respeito “(...) ao uso de um determinado tipo de
fontes (homogêneas, do mesmo tipo, referentes a um período coerente com o problema a ser examinado), e que
permitam uma determinada forma de tratamento (a serialização de dados, a identificação de elementos ou
ocorrências comuns que permitam a identificação de um padrão e, na contrapartida, uma atenção às diferenças,
às vezes graduais, para se medir variações).” Ibidem. p. 149.
177
RAMOS, 2004. p. 42.
81
É importante ressaltar que através do registro oficial da Igreja o indivíduo adquiria a
cidadania civil, já que os registros de nascimento ficavam a cargo da instituição religiosa, e a
cidadania religiosa, sendo inserido no mundo dos homens e de Deus.
178
Os dados contidos
em tais registros nos permitem vislumbrar, perceber e analisar não apenas um recenseamento
de indivíduos ou de famílias, mas também um todo social marcado por um emaranhado de
teias que ligavam livres, escravos e forros, originando um tecido social de relações cruzadas
e sobrepostas a outras,
179
que se alastravam pela comunidade e pelos vários níveis nela
contidos.
Maria de Fátima Neves ressalta que os registros batismais são de grande importância
para a recomposição demográfica histórica brasileira. Ao serem elaborados no Brasil,
seguindo as determinações do Concílio de Trento, os assentos de batismo foram
regulamentados nas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, de 1707, e dão uma
cobertura quase completa da população brasileira até a República, ficando excluídos
basicamente os protestantes, os índios e africanos pagãos não batizados
180
. Com o Concílio
de Trento ficou determinado que o registro era obrigatório e universal para todos os
católicos, pois a Igreja sentiu necessidade de exercer controle sobre cada um de seus
membros, o que se tornou viável através dos registros individuais de cada católico.
181
Analisando a importância dos registros paroquiais, Maria Luíza Marcílio nos chama a
atenção:
“Pobres e ricos, plebeus e nobres, brancos, negros e índios, homens e mulheres,
todos sem exceção, quando batizados, casados ou falecidos tinham esses fatos vitais
registrados em livros especiais, que eram conservados pela Igreja. A vida estava
assim marcada como uma ata individual, com dados pessoais, nos seus momentos
vitais: do nascimento, do casamento e da morte. (...) Uma característica especial e
única é o seu caráter individual e coletivo a um tempo. Cada indivíduo é registrado
com suas características pessoais e em cada momento vital de sua existência; e cada
um deles integra uma série cronológica de eventos, guardados em livros especiais e
que cobrem uma localidade fisicamente bem demarcada – a paróquia. Constituíram
assim, em documentação serial, tendo os registros sido feitos no momento mesmo
do evento, guardando um caráter serial e cronológico.”
182
178
SILVA, 2004. p. 105.
179
RAMOS, op. cit. p.67.
180
NEVES, 1989. p.238.
181
MARCÍLIO, Maria Luíza. Os registros paroquiais e a História do Brasil. . In: Varia História/ Departamento
de História, Programa de Pós-Graduação em História, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, UFMG. Belo
Horizonte, nº31, jan. 2004. p.14-16.
182
MARCÍLIO, 2004. p. 16.
82
Percebe-se que como os registros foram feitos de forma nominativa eles permitem
identificar cada indivíduo em sua família, com algumas características pessoais, sendo fontes
essenciais para aproximarmos das populações e das sociedades do passado, revelando seus
traços culturais particulares. Através deles, a sociedade é mostrada como num filme nos
permitindo retratar vários aspectos da realidade do período observado na tela,
183
criando
condições para a reconstituição de parte da vida dos escravos. E é em busca da dimensão
acerca das relações sócio-parentais construídas pelos cativos da paróquia de São Domingos
do Prata no século XIX, que buscamos analisar a seguir os registros batismais e reconstituir
parte dos laços estabelecidos pelos escravos por ocasião do sacramento batismal.
É na paróquia onde os escravos foram batizados, em cada livro paroquial, em cada
assento, que determinadas características e alianças foram regularmente manifestadas,
classificando, distinguindo, combinando, destacando e mesmo encobrindo variações da
escravaria pratiana. Vamos em busca delas.
183
BOTELHO e LIBBY, 2004. p. 71.
83
Capítulo 3
As relações parentais rituais escravas em São Domingos do Prata - 1845 a 1888
Apesar de se tratar de um estudo local, a pesquisa das relações de parentesco
espiritual estabelecidas pelos cativos da freguesia de São Domingos do Prata, permite
perceber o que os documentos paroquiais revelam sobre as escolhas feitas quando da seleção
de compadres por ocasião do batismo dos seus filhos, e estudar as relações sociais
estabelecidas através do compadrio, destacando as formas assumidas, suas características e
suas funções. Reconstituir, mesmo que parcialmente, alguns aspectos significativos do
mundo cativo, ajuda a construir o conhecimento mais aprofundado da escravidão brasileira.
A importância da análise local reside no fato de ela propiciar condições para a
verificação de determinadas proposições consagradas na historiografia e a ampliação do
conhecimento do passado através da assimilação das variedades locais e seus confrontos com
outras realidades distintas de uma nação. A relevância das pesquisas em documentos
referentes a uma determinada região está bem evidenciada nas palavras de Ciro Flamarion
Cardoso ao dizer ser preciso trabalho minucioso “região por região, localidade por
localidade, para dilucidação em profundidade de inúmeras facetas e processos relativos à
escravidão.”
184
Estudos e pesquisas, apoiados em fontes primárias locais, sem dar ênfase à
plantation, são relevantes para o desenvolvimento de produções que tratam da história
regional e ajudam a resgatar a dinâmica da prática social dos homens.
185
Analisando
diferentes vestígios encontrados nos documentos e procurando relacioná-los entre si, é que
se pode chegar a formar uma imagem acerca dos sujeitos históricos no seu tempo e lugar,
reconhecendo o papel social que desempenharam e as peculiaridades presentes nas escolhas
realizadas. Sem proceder dessa maneira só podemos produzir especulações sobre o cotidiano
escravo e suas sociabilidades.
A abordagem da escravidão a partir das relações sociais originadas no seu interior
busca observar o cativo enquanto sujeito de sua vida, capaz de encontrar meios a fim de
184
CARDOSO, Ciro Flamarion. In: MATTOSO, 1990. p. 8.
185
PESAVENTO, Sandra Jatahy. “História Regional e Transformação Social”. In: SILVA, Marcos A. da.
República em migalhas: história regional e local. São Paulo: Ed. Marco Zero/CNPq, 1990. p. 67.
84
construir vínculos de parentesco para a sua vida em sociedade. Essa foi necessária e
encontrou lugar por ocasião do batismo, deixando em evidência um mundo social em que as
diferenças existentes na sociedade escravista não barraram a aproximação física gerada pelo
apadrinhamento. Os cativos atuaram em busca de construir formas de convivência
ocasionando o estreitamento de laços como os que tiveram origem no sacramento batismal.
Analisando os livros de batismos da paróquia de São Domingos percebemos um
significativo momento da iniciativa escrava e a existência de espaços sociais marcados por
escolhas que levam a pensar na autonomia escrava para a seleção do padrinho.
Detectar os padrões de compadrio e outras evidências presentes nos registros
batismais como o índice de batismos escravos, bem como o sexo dos batizandos, pode
contribuir para os estudos que buscam levantar estatísticas populacionais escravas referentes
a Minas no século XIX, além de revelar peculiaridades regionais que compõem a sociedade
escravista mineira e brasileira, ajudando na análise da complexa realidade social de Minas
imperial. Nessa perspectiva, corroboramos a idéia de Maria Yedda Linhares, que diz ser
necessário construir a história microscópica
a partir da exploração sistemática de novos e
velhos corpos documentais e da busca de séries quantificáveis, de modo a acrescentar
informações ou a ‘revelar’ a tão decantada realidade que os sedutores esquemas lógicos mal
chegam a sugerir.”
186
Vimos no capítulo 2 que o batismo cristão assumiu um lugar de grande destaque na
sociedade brasileira sendo uma instituição desejada por todos os segmentos da população, ao
representar, no imaginário, a porta de entrada para a salvação da alma. Caracterizado por um
grande simbolismo, o ritual foi responsável por introduzir vários inocentes cativos no
ambiente católico assegurando-lhes o direito ao sacramento do matrimônio e da crisma, além
de oportunizar o estabelecimento de laços que invadiram a sociedade e se alastraram por ela.
Os livros de registros de batismos da paróquia de São Domingos do Prata trazem
marcas, segredos e indícios que falam de sua sociedade. Se não era essa a preocupação ou
intenção dos párocos ao fazerem as anotações, é inegável que eles legaram uma variedade de
informações que são de grande utilidade para o estudo que ora apresentamos. O resultado
das interrogações feitas em busca de apreender, compreender e mesmo recompor parte das
relações que foram construídas pelos mancípios no seu fazer histórico na freguesia, foi
obtido a partir da leitura dos livros de registros de batismos. Esses possibilitaram recuperar o
186
LINHARES, Maria Yedda Leite. O Brasil no Século XVIII e a idade do ouro: a propósito da problemática da
decadência. Belo Horizonte: Conselho Estadual de cultura de Minas Gerais. Seminário sobre a cultura mineira
no período colonial. 1979. p.148.
85
indivíduo, a família e algumas relações tecidas dentro daquela comunidade, o que é singular
e representativo no período histórico estudado. Sem dar prioridade aos grandes eventos,
seguindo um determinado padrão, ricos e pobres, livres e cativos, brancos, mestiços e
negros, sem distinção de gênero, de condição social ou jurídica tiveram seus nomes gravados
nos livros que nos deixam à mostra a sociedade e nos possibilitam recuperar parte de sua
memória, do vivido e do construído.
Por terem sido feitos em livros especiais que dizem respeito a uma região fisicamente
definida – a paróquia – os registros nos levam à população e à sociedade da mesma,
percebendo parte de seus traços culturais e de seus indivíduos. Eles foram realizados no
momento do evento, em ordem cronológica – na maioria – e deixam à mostra características
do individual e do coletivo ao mesmo tempo.
É evidente que o olhar de quem fez o registro foi transferido, de certa forma, para o
livro que traz a sua percepção acerca dos lugares sociais ocupados pelas pessoas,
manifestando valores e classificações contemporâneas aos registros e indicando uma maneira
de ver e perceber os atores sociais daquele momento.
187
Por meio do filtro dos párocos, a
sociedade foi identificada e registrada com suas hierarquias e traços reveladores de seu
ordenamento social, sendo o batismo a razão para a realização dos assentamentos que
constituíram nossa fonte documental da investigação realizada.
3.1 - Assentos batismais: lacunas e revelações
Uma fonte tão rica como os registros batismais certamente não podia ser isenta de
problemas. Algumas falhas são identificadas com muita facilidade, como por exemplo,
registros que não foram efetuados ficando espaços vazios como de padrinhos, de pais ou de
proprietários dos pais da criança escrava. Como os registros eram feitos em ordem seqüencial
e cronológica, em livros com páginas numeradas, foi possível constatar que alguns assentos
fogem à regularidade. Às vezes assentos eram feitos atrasados, pois nos registros aparecem
meses e anos anteriores à seqüência dos assentamentos, o que pode ser decorrência de
batismos que não foram registrados no livro oficial no momento do batizado, por descuido ou
por terem sido realizados fora da capela, ficando esquecidos ou deixados para outro momento.
Tal fato leva a imaginar que os padres, em suas múltiplas tarefas, deixavam de realizar
alguns assentamentos no ato do rito de iniciação no seio cristão e o faziam quando outros já
187
FERREIRA, 2004. p. 98.
86
haviam sido apontados, gerando a volta a meses e anos anteriores. Como ressalta Falci, muitas
vezes batizados eram realizados fora da paróquia e os nomes das crianças, dos padrinhos, dos
pais e demais anotações eram feitos em papéis avulsos e depois passados a limpo pelo padre,
sendo registrados nos livros.
188
Não seria pertinente pensar que alguns casos de registros atrasados podem ter sido
fruto do desejo de senhores que, interessados em assegurar a posse de seu cativo batizado,
tenham “exigido” a regulamentação do assento?
189
Já foi objeto de análise nesta dissertação o
papel que o registro de batismo possuía no sistema escravista, servindo de comprovação de
posse, pelos proprietários, sobre aqueles nascidos na sua propriedade, cujos pais pertenciam à
sua escravaria.
Quando cruzamentos com os dados foram feitos, vieram à tona outras variáveis que
tornam problemáticas as análises dos registros como, por exemplo, nomes de proprietários,
pais e padrinhos grafados de várias maneiras, com sobrenome e sem sobrenome, dificultando
identificações como o número de filhos que uma determinada escrava chegou a levar à pia
batismal no período em estudo. Os assentamentos deixam à mostra tamm que havia
diferença entre um padre e outro na feitura das anotações na freguesia em estudo.
Nem sempre os párocos se importaram em registrar algumas características pessoais
dos batizandos, dos padrinhos, dos pais e dos proprietários que poderiam ajudar muito na
análise e compreensão de aspectos da sociedade da época.
Apesar da conservação de alguns livros estar comprometida devido ao tempo e outros
fatores, e dos problemas derivados das irregularidades apontadas, vale destacar que fazendo
vários cruzamentos a partir dos dados colhidos, foi possível recompor inúmeros laços
construídos pela comunidade escrava, agente de suas relações no fazer cotidiano sendo,
portanto, pertinente lembrar que, como afirma Mariza de Carvalho Soares,
“A razoável regularidade das informações fornecidas pelos assentos, (...), permite
uma comparação entre eles, tanto no que se aproximam, o que viabiliza a
quantificação, quanto no que se distinguem. Neste caso eles possibilitam análises
mais detidas, como, por exemplo, sobre as peculiaridades dos responsáveis pelos
livros, geralmente os párocos, vigários e curas. É em função desta regularidade que
vejo os livros de batismo como um dos lugares onde a sociedade (...) constrói a
identidade escrava”
190
.
188
FALCI, 1995. p.80.
189
Já foi dito no capítulo 2 que o registro batismal era o documento que comprovava a posse do escravo nascido
na propriedade do senhor já que não havia documento de compra que a comprovasse. Para o proprietário o
registro paroquial assegurava o direito de posse.
190
SOARES, Mariza de Carvalho. Devotos da Cor. Identidade étnica, religiosidade e escravidão no Rio de
Janeiro, século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. p.22.
87
Ao ler os livros de batismo foi possível identificar várias situações ocultas em suas
páginas e reconstituir um pouco as tramas que foram tecidas pelos cativos na freguesia de São
Domingos do Prata, por meio de sociabilidades construídas que ligaram pessoas e famílias,
aproximando-nos um pouco do cativeiro. Os escravos construíram redes de solidariedade ao
escolherem como padrinhos para seus filhos tanto cativos em meio à escravaria da mesma
propriedade que ele ou de outras propriedades, quanto livres, pobres ou de posses e senhores
proprietários. As fontes consultadas evidenciam parte do mundo social do escravo que se
aproximou fisicamente de pessoas diversas no solene momento do batismo, não sendo tal
aproximação impedida pelas diferenças sociais da sociedade escravista.
As relações sociais escravistas alimentadas no controle pessoal e nos estratagemas de
expansão das bases sociais de dominação estão inscritas nos apontamentos de batismo. Esses
deixam em evidência todos os escravos que foram identificados sob tal condição e
vinculados ao nome de seu proprietário, deixando à mostra as ligações de propriedade. Se a
marca do cativeiro ficou explícita nos assentos batismais mostrando os traços das diferenças
e das divisões existentes dentro da sociedade escravista, essas, no entanto, não foram
impeditivas de relacionamentos que colocaram em contato direto homens escravos, livres,
senhores e outros. O apadrinhamento tornou possível ao escravo desenvolver múltiplos
convívios, paralelamente às limitações inerentes à sua condição de propriedade demonstrada
no registro paroquial, oferecendo oportunidade para que ele construísse sua vida social,
agindo para ampliar contatos.
Sendo legalmente incapacitados para agir judicialmente, já que não tinham direitos
civis, os cativos precisavam do auxílio de homens livres em sua luta por legalidades,
dependendo da presença de um curador
191
– indivíduo encarregado judicialmente de
administrar ou fiscalizar bens ou interesses de outrem – para tentar conseguir interesses na
justiça. E pode ter sido em busca desse amparo que foi indispensável proceder segundo
lógicas ou racionalidades próprias, firmando vínculos com livres por meio do batismo.
Sidney Chalhoub nota que os escravos tinham percepção a respeito de seus direitos,
“percepções essas que fundamentavam ações firmes no sentido de impor certos limites à
ciranda de negócios da escravidão”
192
, levando senhores a agirem de acordo com
determinados parâmetros para não desagradar o escravo. Como as experiências e informações
191
CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade: Uma História das Últimas Décadas da Escravidão na Corte. 5
ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 108-9.
192
Ibidem, 2003. p. 53.
88
circulavam entre os cativos, é provável que conquistas obtidas no cativeiro servissem para
estimular o escravo a fazer algumas alianças, fundadoras do parentesco fictício, com o intuito
de auferir ganhos no amplo terreno de relações e conflitos que foi a escravidão.
Pensando o batismo cristão a partir das várias utilidades a ele atribuídas, das relações
por ele construídas e das interpretações produzidas, é que são apresentados os resultados
obtidos a partir da leitura dos livros de batismo do distrito em estudo.
3.2 - Dos escolhidos para padrinhos
Na freguesia de São Domingos do Prata, das 979 cerimônias de batismo de crianças
nascidas de mulher escrava que fizeram de um inocente cativo um cristão, libertando-o do
pecado original, ocorridas no período de 1845 a 1888, 90,71% dos casos foram realizados
pelas mãos de casais de padrinhos livres
193
, 5,72% por casais de padrinhos escravos e 3,57%
por padrinhos livres e escravos, sem padrinho e/ou madrinha, sem registro de padrinhos ou
estão ilegíveis (ver Tabela 7).
A grande presença de padrinhos livres sinaliza a existência de um padrão de
compadrio escravo que nos instigou a querer verificar alguns elementos que marcaram as
escolhas feitas pelos cativos para o apadrinhamento dos seus filhos na referida freguesia,
buscando entender como essas se deram e qual papel político e social podem ter
desempenhado naquela comunidade.
As pesquisas indicam que as principais questões, colocadas pelos pesquisadores que
se debruçaram sobre o estudo do compadrio no meio cativo brasileiro, têm sido buscar
compreender as várias formas que ele assumiu e analisar as suas funções na sociedade
escravista para procurar verificar qual a natureza específica dos laços por ele criado
(conforme demonstrado no cap. 2). Ao estabelecer mais relações com pessoas livres do que
com seus pares, os escravos da freguesia de São Domingos do Prata, no período em estudo,
podem estar a confirmar que havia pequenas posses escravas na região criando a necessidade
de formar alianças com pessoas livres ou que eles estavam em busca de possíveis benefícios
que tal ligação poderia propiciar
194
. A escolha do padrinho para o inocente era uma
oportunidade estratégica para “formalizar vínculos que poderiam reverter em ‘oportunidades
193
Os padrinhos que aparecem sem sobrenome e sem nenhuma referência com relação à condição jurídico-
social, foram considerados como livres.
194
No capítulo 1 mostramos que na freguesia houve predomínio de pequena propriedade escrava.
89
de vida’ que se abririam para ele numa ordem social rigidamente estratificada e não
competitiva.”
195
A relação entre o tamanho do plantel e o compadrio é uma variável importante que
deve ser observada considerando que a lógica escravista possibilitava contato entre os
escravos nas grandes escravarias, havendo maior possibilidade de escolha de padrinhos no
meio cativo, enquanto que as dificuldades ou menor possibilidade de tal contato nos
pequenos plantéis geraram a necessidade de buscar entre os livres ou cativos de outros
senhores aqueles que deveriam zelar pela educação religiosa do batizando.
196
Em São Domingos do Prata, nos batismos de filhos de escravos no período em estudo,
padrinhos cativos foram escolhidos no interior ou fora da escravaria dos pais do batizando e
as combinações encontradas variavam havendo uma certa simetria entre os padrinhos cativos
de dentro e de fora de uma unidade escravista. Também havia casais de padrinhos formados
entre escravos de escravarias diferentes, padrinho de outra com madrinha da mesma, padrinho
da mesma com madrinha de outra, padrinho de outra com madrinha de outra. Em um batismo
a madrinha pertencente a outro proprietário, esteve presente sem o padrinho e também em
outro o padrinho da mesma escravaria que o afilhado esteve presente sem a madrinha.
Ocorreu também uma vez do padrinho escravo, de proprietário diferente da mãe do batizando,
comparecer sem a madrinha à pia batismal.
Dentre as várias associações de condição social dos casais de padrinhos, aquelas em
que ambos são escravos ocorrem em 5,72% dos casos, conforme observado. Foram
identificados vinte e quatro casais de padrinhos escravos do mesmo proprietário da mãe do
batizando, sendo quinze para batismos do sexo masculino e nove do sexo feminino, e vinte e
oito casais de padrinhos de outros proprietários, quinze para batismos masculinos e treze para
femininos. Apesar dos registros paroquiais mostrarem que, entre os escravos que serviram de
padrinhos, o número dos que pertenciam a proprietários distintos do da mãe e da criança
batizada era pouco maior que o de pertencentes ao mesmo proprietário, revelaram ainda que
os escravos expandiram seus laços de parentesco para fora da propriedade à qual estavam
ligados, tendo como meio os laços de compadrio.
Muitas situações podem ter contribuído para o estabelecimento de contatos entre
escravos de escravarias distintas como os afazeres do dia-a-dia que obrigavam a
deslocamentos para a entrega ou transporte de mercadorias, a mudança de animais de uma
propriedade para outra, o empréstimo ou aluguel de escravos, dentre outras. Não havia o
195
SILVA, 2004. p. 106.
196
GÓES, 1993. p. 101-2.
90
isolamento dos cativos e estes por certo souberam tirar proveito da situação alargando
relações, não as deixando reduzidas aos limites estreitos das fronteiras das propriedades às
quais se encontravam presos sob a marca da dominação e do controle pessoal.
Os registros batismais deixam à mostra a condição de propriedade do escravo ao
identificar os pais do batizando vinculados ao nome de seu proprietário, mas ao mesmo
tempo tornam evidentes que quando fez escolhas de padrinhos, o cativo não se limitou em
fazer alianças apenas com pessoas da mesma propriedade que ele, alargando as relações via
constituição de laços tanto verticais quanto horizontais. O batismo não foi capaz de eliminar
ou amenizar as diferenças sociais existentes na sociedade escravista, mas serviu de ponte
para a transposição de suas fronteiras.
Podemos exemplificar as combinações de compadrio entre escravos com casos como:
Sebastiana, filha de Joaquim e Ritta, escravos de Joaquina Rosa de Trindade, batizada em 22
de agosto de 1851, teve como padrinhos Marcelino Antonio e Joaquina, escravos da mesma
Joaquina; em 29 de setembro de 1855, Maria Paula, mãe de Maria, escolheu como compadres
os escravos Luis e Francelina, ambos da mesma escravaria que ela, de Manoel Vilela; por
duas vezes, Thomé e Anna, escravos de José Vieira Marques, escolheram como padrinhos
para Miguel e Martha, escravos da propriedade de Francisco Vieira Marques, respectivamente
os casais Justino e Margarida e Victoria e Irineu. Neste caso, a escravaria dos padrinhos era
de propriedade de um parente do senhor, mostrando que laços de compadrio entre escravos
foram construídos integrando escravos que pertenciam à família do senhor, numa rede de
relações que gerava o entrecruzamento das famílias tanto na horizontalidade como na
verticalidade como destaca Falci.
197
A combinação em que um dos padrinhos é escravo ocorreu em vinte batismos, o que
equivale a 2,04% dos batismos analisados, tendo sido a combinação padrinho livre e madrinha
escrava e madrinha livre e padrinho escravo uma opção também encontrada, sendo onze para
a primeira e nove para a segunda. Nesse caso, o maior número de padrinhos livres que de
madrinhas livres, embora com diferença mínima, pode significar a importância maior
atribuída ao papel social do padrinho. Por mais vezes, era o padrinho, e não a madrinha, que
vivia em lugar diferente daquele do inocente batizado.
Os dados colocados acima permitem dizer que as relações de compadrio poderiam
resultar de escolhas dos escravos, pois certamente não seria interessante para os senhores
indicarem como padrinhos de seus cativos escravos de outros donos. O batismo fornece
197
FALCI, 1995. p.108.
91
algumas pistas – instigantes – sobre as relações sociais escravas, indicando, por meio das
relações de apadrinhamento, que o escravo teve um cotidiano marcado por algumas
possibilidades de construir sua própria vida, ao lado das restrições inerentes ao sistema
escravista.
Desejamos destacar, aqui, não apenas o alcance social do apadrinhamento, como já tem
sido ressaltado, mas sua função enquanto mecanismo da engrenagem do sistema escravista. A
autonomia escrava para a escolha dos compadres pode ter cumprido um papel como parte das
estratégias utilizadas para controle da força de trabalho, dentro das normas impostas e
permitidas pelo sistema escravista e pelos senhores. O sistema escravista não poderia,
evidentemente, pautar-se apenas pela força. Ele não funcionou e se reproduziu baseado
unicamente na exploração da mão-de-obra. É certo que senhores e autoridades escravistas em
toda parte do Brasil usaram da violência como método de controle dos escravos sem, contudo,
deixar de negociar alguns aspectos que pudessem contribuir para estabelecer alguma
conciliação escrava. A escolha dos padrinhos pelos cativos pode ter sido uma brecha a mais que
proporcionou uma dimensão da vida do escravo em que esse pôde agir criando laços num
processo gerador de (re) socialização.
O apadrinhamento entre cativos por certo cumpria funções. As duras condições impostas
pela escravidão geravam problemas ocasionando a busca, pelos escravos, por formar alianças
com seus pares para tornar a vida em cativeiro menos difícil. Pode também ter sido suscitado
onde a probabilidade de conflitos criava a necessidade de promover a paz para a família, mesmo
não sendo em grandes plantéis como demonstraram Florentino e Góes
198
, e o melhor meio
encontrado foi a formação de vínculos através do parentesco espiritual.
199
Foi importante
também porque permitia que os escravos desenvolvessem e mantivessem a sua própria
hierarquia social, criando ou reforçando lugares de autoridade dentro de sua comunidade
200
, o
que talvez não fosse bem visto por setores da classe senhorial e dominante, temerosos de
alianças que pudessem fortalecer a comunidade escrava e desafiar a ordem, como analisado no
capítulo 2.
A tabela abaixo deixa evidentes os vínculos que foram construídos entre escravos por
ocasião do batismo, bem como a pertinência do plantel dos padrinhos.
198
GÓES, 1993.
199
Ibidem. p. 102.
200
RAMOS, 2004. p.65.
92
TABELA 6
Escravos que batizaram crianças de mães escravas, freguesia de São Domingos do Prata,
1845-1888
Plantel Casal
padrinho
madrinha
Padrinho
c/livre
Madrinha
c/livre
Padrinho de
outro/madrinha
do mesmo
Padrinho do
mesmo/madrinha
de outro
Padrinho de
outro/madrinha
de outro
Total
Mesmo 24 1 0 3 4 0 0 0 32
Outro 28 1 1 6 7 0 0 0 43
Demais 0 0 0 0 0 2 2 0 4
Total 52 2 1 9 11 2 2 0 79
Fonte: Livros de batismo da freguesia de São Domingos do Prata, 1845-1888
Arquivo Dom Marcos Noronha – Cúria Diocesana de Itabira – Coronel Fabriciano
Já notamos que a documentação batismal nos fornece inúmeras características de
cada indivíduo batizado em sua família, como aspectos demográficos, a presença de filhos
ilegítimos, a variação de alianças construídas por ocasião do batismo, o sexo das crianças
batizadas, dentre outros
201
. No que diz respeito ao sexo percebemos que houve um equilíbrio
em relação ao número de meninos e de meninas que foram introduzidos no mundo cristão,
ingressando na comunidade de fiéis, através do rito que substitui o pecado original pela
graça divina
202
e torna o indivíduo apto a receber os demais sacramentos cristãos.
Do total dos batizados, eram do sexo feminino 469, enquanto que do sexo masculino
figuraram 510. Esses inocentes foram responsáveis pelo aumento da propriedade escrava na
freguesia e foram inseridos no mundo cristão e na sociedade em um momento que certamente
foi sagrado para eles e suas famílias.
Em São Domingos do Prata do século XIX, verificamos que eram livres (tabela 7), em
sua maioria, os padrinhos escolhidos para os nascidos de ventre escravo e isso pode ser sinal do
desejo dos cativos em busca de criar oportunidades para ampliar a rede de parentesco e obter
solidariedade. Podem ter ocorrido escolhas de determinados padrinhos para defender as crianças
de possíveis quebras das famílias que pudessem acontecer já que “as feridas dos açoites
provavelmente cicatrizavam com o tempo; as separações afetivas, ou a constante ameaça de
separação, eram as chagas eternamente abertas no cativeiro.”
203
Como os escravos enfrentavam
instabilidade em suas vidas familiares era prudente buscar uma força protetora para lidar com as
201
MARCÍLIO, 2004.
202
RAMOS, 2004. p.49-50 e 67.
203
CHALHOUB, 1990. p. 244.
93
pressões sociais, econômicas e pessoais produzidas e realçadas pelo cativeiro. Entretanto, não
podemos dizer que os padrinhos livres escolhidos eram todos pessoas de posse ou influentes,
que pudessem assegurar ganhos ao batizando.
TABELA 7
Condição Jurídico-Social dos Padrinhos da criança escrava, Fre
g
uesia de São
Domingos do Prata, 1845-1888
Padrinhos e Madrinhas Qtde. %
Padrinho escravo e Madrinha escrava 56 5,72%
Padrinho escravo e sem Madrinha 2 0,20%
Madrinha escrava e Padrinho Livre 11 1,12%
Sem registro de padrinhos 9 0,92%
Ilegível 3 0,31%
Padrinho e Madrinha livres 888 90,71%
Padrinho escravo e Madrinha Livre 9 0,92%
Madrinha escrava e sem Padrinho 1 0,10%
Total 979 100,00%
Fonte: Livros de batismo da freguesia de São Domingos do Prata, 1845-1888
Arquivo Dom Marcos Noronha – Cúria Diocesana de Itabira – Coronel Fabriciano
Nos 979 registros de batismos de crianças escravas localizados e levantados, em apenas
34 (3,47%) os proprietários figuraram como padrinhos. Não havia ausência absoluta, como
Gudeman e Schwartz encontraram no Recôncavo Baiano onde não houve nenhum batismo de
escravos em que o proprietário fosse padrinho
204
, mas não foi comum o compadrio entre os
senhores e seus escravos, sendo raras as vezes em que o proprietário serviu como padrinho dos
próprios cativos.
Ao estabelecer parentesco com pessoas de condição jurídico-social diferente, por meio
de relações verticais, os cativos estariam buscando criar e ampliar a rede de solidariedade e de
cooperação para garantir espaço de sociabilidade e de familiaridade, sendo, pois, um
mecanismo para a sobrevivência.
205
Os escravos da região mostraram preferência por buscar
aproximações com pessoas que não eram do seu meio, criando mais vínculos de compadrio com
livres, numa possível (re) adaptação dentro do sistema escravista.
A pesquisa ora apresentada, apesar de apresentar índice maior, aproxima-se dos
resultados encontrados por Gudeman e Schwartz, Rios, Neves e Botelho, para quem foram raras
204
GUDEMAN & SCHWARTZ. 1988.
205
FREIRE, 2004. p. 6.
94
as vezes, ou nenhuma, que os proprietários aparecem como padrinhos, respectivamente,
nenhum, 0,32%, 0,3%, 1,8% e de 1 a 2%. A pouca incidência de laços de compadrio entre os
escravos e seus senhores geram inúmeros questionamentos. As atitudes dos escravos frente ao
compadrio foram profundamente marcadas pela escravidão e a pouca escolha dos donos para
padrinhos é um dos indicadores.
Assim, como Kjerfve e Brugger encontraram em Campos (RJ)
206
padrinhos livres com
títulos ou designações que traduzem prestígio social, também em São Domingos do Prata foram
identificados alguns casos como tenentes, capitães, padres, vigários, alferes e donas (D.).
Falci lembra que os padrinhos que eram pessoas importantes, tinham registrados seus
sobrenomes e títulos como coronel, tenente, etc
207
, apesar de, segundo ela, terem sido poucos os
senhores de categoria “elevada” registrados como padrinhos de escravos.
Quais seriam as razões que levaram os escravos a não se unirem mais vezes a seus
proprietários, através do apadrinhamento de seus filhos? Quais sinais eles nos deixaram? Seria
uma forma de resistir ao regime escravista? Afinal, não criando vínculos espirituais com os
senhores, os cativos estariam mais “livres” para se rebelarem e não terem de se subordinar ainda
mais ao senhor em virtude dos laços constituídos. Ou seriam os proprietários que não aceitavam
assumir o papel de padrinhos para não ter de diminuir seu poder e reduzir a dominação e
exigências sobre o afilhado e até mesmo sobre sua família? A idéia de construir laços que
prendiam o padrinho e o afilhado, mas também o padrinho, sua família e os pais da criança
batizada pode ter dificultado a aproximação dos proprietários com seus escravos, pois para
esses, aqueles eram sinônimo de poder e dominação e os laços de compadrio, que são
sinônimos de relação de solidariedade, poderiam negá-los.
O pequeno número de proprietários escolhidos como padrinhos vem de encontro à idéia
de que havia uma incompatibilidade entre compadrio e escravidão, não havendo desta forma, o
reforço dos vínculos entre senhores e escravos por meio dos laços originados através do
parentesco fictício. Não serviria, portanto, para realçar os aspectos paternalistas entre senhor e
escravos, como ressaltam Gudeman e Schwartz.
208
Os estudos que abordaram o assunto chegaram a diferentes resultados, e interpretações.
187
BRÜGGER, S. M. J. & KJERFVE, T. M. G. N. Compadrio: Relação Social de Libertação Espiritual em
Sociedades Escravistas (Campos, 1754-1766). Estudos Afro-Asiáticos, nº 20. RJ: Centro de Estudos Afro-
Asiáticos da Universidade Cândido Mendes, Junho de 1991.
207
FALCI, 1995. p.94.
208
GUDEMAN & SCHWARTZ. 1988.
95
Neves assinalou que, “pode-se (...) questionar se não eram os escravos que não queriam
o próprio dono como padrinho do filho e, dessa maneira, mostrarem-se descontentes com o
regime escravista. Esta é uma possibilidade que não deve ser descartada.”
209
De acordo com Rios, era usual pensar que os senhores apadrinhavam seus escravos e
que essa prática reforçava a família patriarcal e junto dela a submissão do escravo que, por sua
vez, via em tal relação possibilidade de auferir benefícios como a alforria.
210
Mattoso chega a dizer que
“ser afilhado de um senhor é gozar de uma situação privilegiada e de proteção
especial no grupo dos escravos; a obediência e a humildade tornam-se mais fáceis
(...). O padrinho tem obrigação de dar assistência ao afilhado: ajuda espiritual, sem
dúvida, mas também material e são raros no Brasil os padrinhos que não levam a
sério suas responsabilidades”.
211
Gudeman e Schwartz discordaram da argumentação de Mattoso, ressaltando que a
escravidão e o compadrio eram instituições opostas, sendo a primeira uma instituição social de
dominação, de relação produtiva, de propriedade e subserviência, enquanto o segundo era uma
relação espiritual de proteção que representava socorro. Assim, o vínculo senhor-escravo
constituía algo que era o contraste daquilo que o vínculo do apadrinhamento representava e,
para os autores, a saída para essa incompatibilidade não foi abolir o batismo ou a escravidão,
mas mantê-los separados na pia batismal. Contrariando dessa forma os que defenderam que o
batismo serviu para reforçar os aspectos paternalistas entre senhor e escravos, eles concluíram
que no Recôncavo Baiano o compadrio não foi responsável por criar vínculo ou reforço entre
senhor e escravo.
Usando como estratégia metodológica o cruzamento dos dados coletados, foi possível
identificar que, apesar do índice reduzido do apadrinhamento escravo pelos proprietários,
alguns padrinhos de escravos levam o mesmo sobrenome do(a) proprietário(a) do inocente e
foram aqui considerados como seus parentes. Para melhor análise, foi feito o (re) agrupamento
dos dados, levando em conta o batizando, pais, padrinhos e proprietários. O resultado
encontrado mostra que houve sessenta e seis casos registrados em que o padrinho é membro da
família do senhor, sendo 30 para crianças do sexo feminino e 36 para as do masculino. O que
percebemos, portanto, é que por meio do compadrio – forma de parentesco proveniente de um
ato de escolha – foram construídas várias alianças que se entrecruzavam unindo diversas
209
NEVES, 1989. p. 240.
210
RIOS, 2000. p. 190.
211
MATTOSO, 1982. p. 132.
96
famílias na trama social. Nessa perspectiva, Falci diz que várias vezes membros da família do
senhor foram padrinhos dos escravos
212
, passando tanto pela família nuclear quanto pela
ampliada
213
.
A escolha de membros, tanto da família nuclear quanto da ampliada do senhor para o
apadrinhamento de filhos de escravas, pode ter sido decorrência de dificuldades de contato entre
os cativos por causa de distâncias ou outras dificuldades colocadas pelo cativeiro. Pode ainda
ter resultado das relações sociais estabelecidas pelos senhores e estendidas até a escravaria,
tornando viáveis contatos de seus familiares com os escravos, demonstrando que a escravidão
não se limitou às relações de produção.
Assim, a criança Maria, batizada em 19 de janeiro de 1856, filha de Rita, escrava de
Antonio Reiz Frade, teve como padrinhos Antonio Reiz Frade Júnior e Leonarda Arcanjo. Em
21 de março de 1877, Caridade, filha de Pio e Aguêda, escravos de Francisco Vieira Marques,
foi batizada e teve como padrinhos João Vieira Marques Filho e D. Maria José da Fonseca.
Interessante é o caso de João Vieira Marques que no período de 27 anos (de 1858 a 1885),
assistiu ao batismo de 23 crianças de escravas de sua propriedade. Dos 23 batismos, ele aparece
como padrinho em um, seu filho João Vieira Marques Júnior em outro, e mais três membros de
sua família em outros três batismos.
Esses dados e outros sugerem que, muitas vezes, pode ter sido o proprietário quem
indicava o padrinho para oficializar a cerimônia do batismo, e assim garantir a sua propriedade,
ou que era o escravo quem selecionava os compadres em sua busca de ligação com pessoas
livres que pudessem interceder por ele em qualquer divergência ou dificuldade com seu senhor,
conforme apontam Mattoso e Gudeman e o comportamento da escravaria de João Vieira
Marques na seleção de padrinhos.
Os exemplos mostrados evidenciam redes de solidariedade construídas a partir do
compadrio que vinculou pessoas de diferentes condições num “complexo global do sagrado e
do secular”
214
e que, somado a outros tipos de alianças, foi selecionando pessoas para
integrarem as relações sancionadas pela Igreja. A busca pela ampliação do parentesco dentro da
sociedade católica escravocrata foi parte das estratégias dos escravos, que forjaram vínculos
diversos através das “solidariedades procuradas: o compadrio”
215
, que iriam ajudar a
redimensionar o seu dia-a-dia, garantindo espaço de sociabilidade e de convivência.
212
FALCI, 1995. p.100.
213
RIOS, 2000. p.125.
214
GUDEMAN e SCHWARTZ, 1988. p. 58.
215
MATTOSO,1990. p.131.
97
3.3 - O tempo do batismo e variações
Ao agregar os dados extraídos de todos os registros de batismos entre 1845 e 1888, foi
possível observar a variação dos índices demográficos dos batismos encontrados.
Analisando a variação anual de batismos de crianças filhas de mulheres escravas, foi
identificada uma tendência irregular, tendo sido registrado índice mais alto em 1858, ano em
que foram batizadas 51 crianças. Com exceção dos anos de 1846, 1847, 1848, 1853, 1865,
1868, 1869, 1887 e 1888, o número de batizados foi superior a 10. Para o ano de 1852 não foi
encontrado o livro de registros
216
, daí não constar nenhum batismo para esse ano. O livro
pode ter desaparecido por inúmeras razões derivadas do tempo, do desmembramento da
Diocese ou de alguma ação humana.
Como pode ser observado no gráfico 12, os anos em que mais se batizou escravos na
freguesia foram 1855, 1856, 1858, 1860, 1864, 1870, 1871, 1873 e 1877. Em todos esses
anos, registraram-se mais de 30 batismos em cada. No período de 1856 a 1870, totalizaram
390 batismos, enquanto que de 1871 a 1888, 429, sendo que, no primeiro período que
corresponde a 14 anos a média de casos anuais foi de 27,86 batismos e no segundo que
engloba 17 anos, a média anual foi de 25,24, com números mais baixos registrados em 1887 e
1888, anos derradeiros da escravidão. Não houve aumento de batismo com tendência
crescente após a Lei do Ventre Livre, conforme foi verificado em outras regiões como em
Senhor Bom Jesus do Rio Pardo
217
, onde antes de 1871, o número de batizados por ano não
havia ultrapassado 50, tendo ocorrido somente a partir de 1871 com exceção do ano de 1887.
Para Jonis Freire, o crescimento verificado em Bom Jesus pode ter sido efeito da Lei do
Ventre Livre que incentivou mais mães a buscarem batizar seus filhos, pois a referida lei
determinava que a partir dela, todas as crianças nascidas de mulher escrava seriam
consideradas ingênuas, ou seja, livres. Aos senhores, interessados em fazer valer os direitos de
indenização ou de exploração do trabalho do nascido de ventre livre até os 21 anos de idade,
como previsto na lei, pode ter servido de incentivo para promoverem e/ou estimularem o
batismo dos nascidos do ventre escravo.
216
Já foi dito que constatamos o fato de que na paróquia de São Domingos do Prata os registros de batismos de
livres e de escravos eram feitos no mesmo livro, não havendo livro separado. Somente a partir da Lei do Ventre
Livre de 28 de setembro de 1871 é que, em obediência à determinação do governador da Província, os registros
de filhos de mulher escrava passaram a ser realizados em livro separado. Apesar da norma, alguns registros de
filhos de mães escravas foram localizados também em livros em que eram registrados filhos de mães livres.
Apresentamos o termo de abertura do livro especial de batismos para filhos de mulher escrava após a Lei do
Ventre Livre na introdução desta dissertação.
217
FREIRE, 2004. p. 10.
98
O fato de não ter ocorrido aumento significativo de batismos em São Domingos do
Prata após a Lei do Ventre Livre leva a pensar que os registros na Paróquia eram realizados
com regularidade antes de 1871, não havendo uma corrida após a publicação da referida Lei.
Caso isso tivesse acontecido, a disparidade entre o período anterior e o posterior à Lei seria
evidenciada nos registros. Isso leva a crer que na freguesia a adesão dos cativos e dos
senhores às normas católicas, no que diz respeito ao batismo, era realizada com alguma
uniformidade, atendendo interesses e necessidades de ambos os grupos, como já discutimos.
GRÁFICO 12
Variação anual de batismo de crianças de mães escravas, freguesia de São Domingos do Prata, 1845-1888
0
10
20
30
40
50
60
1845
1847
1849
1851
1853
1855
1857
1859
1861
1863
1865
1867
1869
1871
1873
1875
1877
1879
1881
1883
1885
1887
s/data
Ano do batismo
Nº de batizados
Fonte: Livros de batismo da freguesia de São Domingos do Prata, 1845-1888
Arquivo Dom Marcos Noronha – Cúria Diocesana de Itabira – Coronel Fabriciano
Em alguns meses houve maior incidência de cerimônias de batismo de crianças do que
em outros, com maior concentração nos meses de maio, agosto e outubro, sendo 93, 100 e 92
respectivamente. Os meses com menores índices registrados foram dezembro, fevereiro e
setembro sendo, na ordem 57, 60 e 66. Janeiro, maio, junho, julho e outubro tiveram números
99
muito aproximados, não havendo nenhum mês com ausência de batizados e nem com número
abaixo de 57. No período analisado a média mensal de batismos variou de 57 (5,82%) a 100
(10,21%), não havendo momentos de grandes picos ou grandes quedas, tendo predominado
uma certa regularidade, com menores concentrações nos meses já assinalados.
Falci afirma que alguns fatores influenciavam na distribuição sazonal dos batismos
como distância da paróquia que poderia exigir deslocamentos longos de propriedades rurais e
que às vezes eram dificultados em decorrência de adversidades climáticas, a ausência de
padres ou épocas litúrgicas pré-determinadas poderiam também influenciar na data da
realização do primeiro sacramento religioso
218
. Ao que parece, essas limitações não foram
responsáveis pela concentração de batismos em alguns meses em detrimento de outros na
freguesia de São Domingos do Prata, à exceção do mês de dezembro, com menor número de
batismos registrados, certamente prejudicado por ser época de mais chuva e, portanto, de
maiores dificuldades para deslocamentos. Lendo os livros de batismo, nota-se que, no
período, a freqüência dos padres na paróquia foi regular o que contribuiu também para a
regularidade dos batismos observada.
Como São Domingos era uma freguesia em que desenvolveu, de forma
predominante, a agricultura mercantil de subsistência, os menores índices de batismos
registrados em fevereiro e setembro, podem ter ligações com as questões relativas à
agricultura. Setembro é mês de preparar a terra para o cultivo e fevereiro é mês de colheita.
Essas particularidades da região certamente influenciaram no menor comparecimento de
alguns escravos à pia batismal, nos meses mencionados, para a celebração do sacramento
cristão, já que os deslocamentos necessários para chegar à Paróquia podiam afetar a
economia, transferindo para o mês subseqüente a solenidade.
No gráfico a seguir temos a variação dos batismos em relação aos meses.
218
FALCI, 1995. p. 86.
100
GRÁFICO 13
Distribuição dos batismos por meses, freguesia de São Domingos do Prata, 1845-1888
0
20
40
60
80
100
120
Jan
Fev
Mar
Abr
Mai
Jun
Jul
Ago
Set
Out
Nov
Dez
S/Data
Mês do batismo
Nº de bastimos
Escravos
Fonte: Livros de batismo da freguesia de São Domingos do Prata, 1845-1888
Arquivo Dom Marcos Noronha – Cúria Diocesana de Itabira – Coronel Fabriciano
Ao escolherem os padrinhos para seus filhos e os nomes que seriam registrados no ato
batismal, e pelos quais seus filhos passariam a ser conhecidos, os escravos faziam escolhas.
Citando Gélis, Falci expõe-nos que a escolha de um nome não era uma ação casual, e sim
revestida de significados. Dar um nome representa reconhecimento e também propriedade,
transforma uma criança em um ser, fazendo com que ela seja conhecida, ao mesmo tempo em
que passa a fazer parte do mundo dos homens. Nesse mundo, permeado por simbolismos e
representações, o nome de batismo pelo qual a criança passa a ser identificada e reconhecida é
resultado da ligação da criança e sua família. Costumes, crenças e devoções religiosas seriam
razões para a repetição de determinados nomes em regiões e certas épocas
219
. Para a autora, a
predominância de alguns nomes na família pode resultar da sucessão das gerações, e a família,
quando repete periodicamente “dois ou três nomes faz a própria representação do ciclo vital, da
sucessão das gerações.”
220
Os registros de batismo não possibilitam análises aprofundadas sobre possíveis valores
dados aos nomes das crianças escravas e que possam provar a relação com a memória
geracional do grupo escravo. Como eles permitem chegar apenas a uma geração formada pelas
219
FALCI, 1995. p. 91.
220
Ibidem. p. 91.
101
mães e/ou pais e filhos, não dá para saber o nome de parentes consangüíneos como avós, tios,
tias, dentre outros, o que impede que seja confirmada a importância da referida memória
genealógica para as famílias escravas. Certamente ela foi de grande valor para suas vidas, o que
talvez seja possível verificar através do cruzamento de outras fontes.
Recorrendo à genealogia, Falci
221
atribui ao nome dado no ato do batismo um sentido de
socialização que possibilita o ingresso no mundo dos homens. Analisando os nomes dados aos
escravos, constatou que os nomes comuns eram quase os mesmos dos livres, vários nomes só
repetiram uma vez, muitos escravos possuíam nomes mais complexos, incomuns (64% da
amostra) em comparação com os dos livres, havia poucos nomes compostos, não ocorreu
repetição de nomes do pai ou da mãe e que sobrenome era raridade (de 5036 nomes, somente
3). Para ela, alguns nomes bizarros foram dados aos escravos e esta seria uma forma encontrada
para identificá-los na sociedade, pois os escravos não tinham, como os livres, o nome de família
para fazê-lo.
Ao falar sobre as práticas nominativas dos escravos, Florentino e Góes
222
dizem ser de
Ginsburg o alerta para o caráter universal do nome dado ou assumido pelos indivíduos,
chamando atenção para o fato de que é o nome que distingue uma pessoa da outra em todas as
sociedades. Recorrendo a Gutman, os autores assinalam, assim como Falci, que a nomeação dos
filhos de uma maneira e não de outra não é algo necessariamente aleatório e que por trás dela
certamente estão experiências pessoais, acontecimentos importantes, visões de mundo, idéias e
valores culturais. Assim, pode-se afirmar que o nome é dotado de diversos significados ligados
a padrões sociais e culturais.
Em São Domingos do Prata, encontramos alguns nomes de batizandos escravos que se
repetiram com freqüência. Usando como referência os nomes que aparecem 8 ou mais vezes,
percebemos, uma maior incidência de nomes para os meninos, 14 vezes, enquanto no caso das
meninas 10 vezes. Os nomes de batismo mais citados alcançaram 45,25% e os mais comuns são
apresentados a seguir.
221
FALCI, 1995. p. 92.
222
FLORENTINO & GÓES, 1997. p. 81-2.
102
TABELA 8
Repetição dos nomes dos batizandos escravos, Freguesia de São
Domingos do Prata, 1845-1888
Nomes Repetição Nomes Repetição
Anna 8 Sebastião 12
Ignácia 8 Vicente 12
Luisa 8 Francisco 15
Luiza 8 Antonia 17
Sebastiana 8 Domingos 19
Thereza 8 Raimundo 19
Agostinho 9 Joaquim 21
Joanna 9 Antonio 23
Rita 9 João 25
Luis 10 Manoel 25
Raymundo 11 José 32
Jerônimo 12 Maria 115
Fonte: Livros de batismo da freguesia de São Domingos do Prata, 1845-1888 - Arquivo Dom
Marcos Noronha – Cúria Diocesana de Itabira – Coronel Fabriciano
Nota-se uma repetição de nomes cristãos e a incidência de Domingos certamente é por
causa do nome da freguesia, do seu fundador e do seu padroeiro.
Em nossa amostra, vários nomes só foram registrados uma vez, assim como foi
encontrado por Falci, sendo alguns desses notados por nós como não usuais, a saber: Antão,
Arcelina, Augustina, Baldoina, Balduíno, Barbina, Belduíno, Benevuto, Bernadita, Bernadeta,
Bernardita, Bertholina, Caridade, Cleto, Davio, Delphino, Domingas, Emetherio, Esmenia,
Evencio, Fé, Heliadoro, Itelvino, Juvita, Liberio, Lindario, Lisardo, Luminato, Marice,
Minelvina, Nasária, Pantaleão, Perciliana, Perciliano, Pulsina, Purcina, Quintiliano, Reduzinda,
Roldão, Salvio, Ricardica, Senhorinha, Umbelina, Victerino, Victorina, Virgelina.
Problemas referentes à grafia de nomes de proprietários, que aparecem de formas
variadas nos livros, podem também ter ocorrido com alguns desses nomes mencionados como
incomuns, tendo sido registrados de forma incorreta e sendo assim transformados nos nomes
pelos quais os indivíduos ficariam conhecidos. Às vezes eles nem chegariam a saber que os
nomes estavam registrados de maneira tão exótica como aconteceu com alguns.
Poderia ser também, como nota Falci, uma necessidade, colocada pela ausência de
sobrenome, de dar nomes bizarros aos filhos para garantir um elemento diferenciador e
103
identificador naquela sociedade em que o escravo era uma propriedade, não tinha nome de
família e era objeto de transações econômicas variadas
223
.
Escravos com sobrenome ou com nome composto aparecem raramente e quando esses
ocorrem são relativos a pais, pois nenhum nome composto de criança escrava ou com
sobrenome foi detectado.
Alguns desses nomes são:
Antonio Ângelo, Luiz Dias, Maria Carolina, Antonio Gonçalves Lima, Antonio Firmino,
Manoel Ponciano, José Bicalho, José Pinto, Joaquim da Costa, Rita da Costa, Maria do Carmo,
Maria Susana, Maria Joana, Manoel Ângelo, Maria do Espírito Santo, Antonio Pedro, Antonio
José, Joaquim Gonçalves, Maria Francisca, Maria Angélica, Manoel Gomes, Maria Claudina,
Maria da Conceição, Antonio Felício, Maria Claudina, Maria Theresa, Maria Gomes, Maria das
Chagas, João Pinto, Maria Rozalina, Maria do Rosario, Antonio Menino, Maria do Nascimento,
José dos Anjos, José Pereira, Efigenia Clara, Maria Theodora, Ignacia Antonia, Maria Rosalina,
Manoel Joaquim, Maria Magdalena, Maria Ignacia, Maria Porcina, Maria Joaquina, Antonio da
Cunha, Maria Vicencia, Maria das Chagas, Theresa Gomes, Raimundo Pio, Raimundo Teixeira,
Manoel Alves, Maria Teixeira, Maria Barbara, Manoel Antonio, Manoel Joaquim, Maria Izabel,
Maria do Carmo, José de Sousa.
Encontramos também alguns escravos designados de acordo com a origem como “João
Africano”, “Joaquim Africano”, “José Africano”, “Beatriz Africana”, “Catarina Africana”,
“Francisco de Nação”, “Refina de Nação”, “Camilla Benguella”, “José Benguello”, “João
Moçambique”, “Francisco Angola”, evidenciando a africanidade de alguns cativos. Notamos
que essas identificações só aparecem até 1870, depois dessa data, não aparecem mais.
3.4 - Posse parcial cativa a partir dos registros batismais
Uma das possibilidades encontradas a partir da análise de nossa fonte documental
básica foi a de reconstituir de forma parcial a posse de escravos na freguesia, fazendo uso do
método de (re) agrupar os batismos de crianças pertencentes a um mesmo proprietário, assim
como Libby e Botelho
224
fizeram em Vila Rica.
Para tanto, foi montada uma planilha com a relação dos proprietários que aparecem
nos registros como donos da mãe e/ou do pai - quando aparece - e da criança batizada,
223
FALCI, 1995. p. 92.
224
BOTELHO, e LIBBY, 2004.
104
agrupando-os pelo número de escravos que levaram a batizar no período em estudo, como o
exemplo já citado no caso dos laços de compadrio com parentes do proprietário.
Algumas dificuldades foram encontradas, decorrentes da forma como os registros
foram feitos, como a não regularidade na ortografia dos nomes, percebida a partir do
cruzamento dos dados obtidos através dos registros, abreviaturas, prenome e nome, um ou
dois sobrenomes e várias formas na grafia. Além disso, houve outros problemas como a
ilegibilidade de alguns documentos originais, bem como a incidência de homônimos. O
proprietário José da Silva Perdigão, por exemplo, aparece também como José da Sª Perdigão
e, ao identificar seus escravos, encontramos casais com o mesmo nome e assim ele foi
considerado como um único proprietário. O mesmo procedimento foi usado em outros casos
parecidos. Nas situações em que não foi possível fazer aproximações e comparações, por falta
de nomes de escravos que viabilizassem o uso do método empregado, mesmo imaginando que
proprietários registrados poderiam ser uma mesma pessoa, consideramos como duas. É
importante ressaltar que a existência de homônimos foi um fator limitador da identificação
mais precisa do tamanho dos plantéis, mas quando aparece o casal de pais da(s) criança(s)
batizada(s) fica mais fácil aproximar do plantel e dos cativos.
Apesar desses limites, foi possível localizar 143 proprietários que tiveram sua(s)
cativa(s) batizando duas ou mais crianças ao longo do período estudado e analisado e 207 que
tiveram batizando uma. Embora o registro paroquial não seja a melhor fonte para ver a
estrutura de posse de escravos, já que o número de batismos não dá conta de mostrar o
tamanho verdadeiro da propriedade escrava, pois revela apenas a quantidade de escravos que
um proprietário teve num certo período de tempo, e, ainda assim, apenas caso esses cativos
tenham sido levados ao batismo, deve ser um indicador a ser considerado e valer como uma
amostra representativa da propriedade escravista da freguesia na 2ª metade do século XIX.
Através do número de inocentes batizados tendo o registro dos pais, da mãe e/ou do pai, é
possível ter uma idéia aproximada da posse cativa.
Constatamos que 59,96% dos casos analisados são de um a seis batismos por
proprietário, com predomínio de um batismo em 21,14% o que sugere uma realidade na qual
não havia grande concentração da propriedade de cativos, o que é característica marcante da
posse mineira no século XIX, como discutido no capítulo 1 dessa dissertação.
Para chegar a dados aproximados, os senhores foram classificados e agrupados a partir
dos nomes. Com o objetivo de evitar ou reduzir as dificuldades geradas pelos homônimos e
também aquelas irregularidades da ortografia acima mencionadas, os nomes dos proprietários
foram atrelados aos de seus cônjuges, quando foi possível identificar, a seus títulos e aos
105
nomes de seus escravos que aparecem batizando filhos
225
. A partir desse método, usando a
mãe escrava e/ou o pai da criança batizada, foi construída a dimensão aproximada do plantel.
Os plantéis cuja posse total, somando pais e filhos, é igual ou superior a dez, possível de (re)
agrupar a partir dos dados fornecidos pelos registros batismais, podem ser vistos na tabela
abaixo. As mães e/ou pais que, sendo do mesmo proprietário, levaram à pia batismal várias
crianças, só foram contados 1 vez, e como aparecem registros de pais livres (com mães
escravas), esses não foram considerados como parte da propriedade escrava.
TABELA 9
Maiores Proprietários de escravos, freguesia de São Domingos do
Prata, 1845-1888
Proprietários
Nº de pais de
escravos
Nº de filhos
batizados
Total
D.Anna Maria de Jesus 19 18 37
Antonio Caetano dos Santos 5 5 10
Antonio Fernandes da Silva 7 5 12
Antonio Joaquim Vieira Servas 8 6 14
Antonio Manoel de Abreu 7 7 14
Antonio Manoel de Freitas Drumond 5 7 12
Antonio Pereira da Costa 5 5 10
Bento Jose de Araujo 13 13 26
Cap.Antonio Justiniano Carneiro 8 12 20
Cap. Jose da Silva Perdigão 22 22 44
Cap. Luis Carlos da Cunha Athayde 39 44 83
D. Custodia Rodrigues Leal 6 7 13
D.Maria Eulalia da Cunha Athayde 12 14 26
Emilio Alves Ferreira 6 5 11
Fortunato Jose Bento 7 9 16
Francisco Alves Ferreira 4 9 13
Francisco de Paula Lobo 5 5 10
Francisco Gomes da Pas 5 7 12
Antonio Fernandes de Castro 7 9 16
Francisco Inocencio Gomes de Lima 9 17 26
Francisco Vieira Marques 7 10 17
João Vieira Marques 9 23 32
Joaquim Jose Vieira 4 13 17
Joaquim Zeferino dos Santos Bicalho 8 17 25
Jose Cornelio da Silva Perdigão 4 7 11
Jose Felippe dos Anjos 5 14 19
Jose Gomes da Crus Lima 6 7 13
Jose Martins Vieira 11 12 23
Jose Pinto Coelho 9 8 17
Jose Vieira Marques 19 25 44
Joaquim Gomes Lima 8 5 13
Manoel Gonçalves de Oliveira 3 8 11
Manoel Ribeiro da Torre 15 23 38
225
Procedimento descrito em FERREIRA, 2000 e RAMOS, 2004.
106
Manoel Vieira Guimarães 4 7 11
Reginaldo de Souza Reis 8 12 20
João Gomes Domingues 2 10 12
Jose Gomes Lima 10 11 21
Capitão Manoel Gomes de Lima 5 5 10
38 334 443 777
Fonte: Livros de batismo da freguesia de São Domingos do Prata, 1845-1888
Arquivo Dom Marcos Noronha – Cúria Diocesana de Itabira – Coronel Fabriciano
Algumas recomposições são reveladoras de situações em que vários batismos foram
registrados tendo um único proprietário. D. Anna Maria de Jesus aparece como proprietária
em dezoito batismos que foram realizados entre 5 de maio de 1857 e 15 de julho de 1884.
Vinte e cinco crianças filhas de escravas que pertenciam a José Vieira Marques foram
batizadas no período de 08 de maio de 1860 a 05 de agosto de 1880. Vinte e três crianças de
escravas de Manoel Ribeiro da Torre foram introduzidas no mundo cristão através do
sacramento de batismo no intervalo de quarenta anos (de 1845 a 1885). Também João Vieira
Marques levou à pia batismal mais de vinte crianças nascidas dentro de sua escravaria, num
total de vinte e três batismos realizados entre 08 de maio de 1858 a 28 de maio de 1885. O
capitão Luis Carlos da Cunha Athayde é o nosso recordista em número de crianças levadas à
pia batismal. De acordo com os registros paroquiais, ele teve 44 crianças de sua propriedade
recebendo o sacramento católico entre dezenove de março de 1848 e quinze de fevereiro de
1874, correspondendo, a maior parte do período, ao momento posterior ao fim do tráfico
atlântico. Dentre todos os batismos realizados entre sua escravaria, o capitão foi padrinho em
dois, vários batismos foram realizados em conjunto e, dos 44 pais identificados, figuram 16
casais, sendo um formado por uma escrava com livre. No intervalo analisado conseguimos
reconstituir a posse do capitão e encontrar 83 cativos, mas não podemos afirmar que todos
continuaram como parte de sua propriedade a partir do momento em que foram registrados
nos livros, pois podem ter ocorrido transferências e mortes, impossíveis de se identificar a
partir de nossa fonte. Dos casais que fazem parte de sua propriedade, Deodato e Maria Joana
foram pais de seis filhos batizados de 02/09/1856 a 15/02/1874, constituindo exemplo da
existência da família escrava na região, bem como de sua duração.
Constatamos que a reprodução natural (vide tabela 10) foi uma variável que marcou as
propriedades escravas de alguns senhores da freguesia, no período posterior ao fim do tráfico,
sugerindo que havia um ambiente favorável, ou mesmo estimulador, à procriação escrava
confirmando o que as pesquisas para Minas oitocentista têm mostrado. Essa reprodução foi
responsável pelo aumento de determinadas posses, visto que algumas mães chegaram a dar à
107
luz a várias crianças, que aparecem nos registros, como as escravas de Joaquim José Vieira,
que aparece batizando treze crianças, mas que tinha como escravas apenas quatro, uma delas
batizou oito filhos; Gomes José d`Araújo, proprietário de apenas uma escrava, Anna crioula,
que batizou seis crianças; João Gomes Domingues, proprietário das escravas Manoela e
Bárbara que aumentaram a sua propriedade para doze escravos, Manoela contribuiu com nove
filhos e Bárbara com um; ou ainda João Vieira Marques, mencionado acima, que tinha uma
propriedade de nove escravos e teve a mesma aumentada para trinta e dois em decorrência dos
nascimentos ocorridos. É certo que esses dados não evidenciam se alguns dos nascidos
morreram em um pequeno espaço de tempo, se houve transações comerciais de alguns dos
pais ou mesmo dos nascidos, mostrando os limites que possuímos ao lidar com esse tipo de
fonte. Para chegar a um entendimento mais completo, a análise de outras fontes, como o
inventário
post-mortem, é necessária. Do mesmo modo, é bom lembrar que os registros só
mostram os nascimentos daqueles que foram batizados.
Tabela 10
Família escrava, freguesia de São Domingos do Prata – século XIX
Pais
Filhos Ano Batismo
Pais
Filhos Ano Batismo
Ricardo 1872 Antão 1862
Sebastiana 1875 Antonia 1862
Sebastião 1876 Lucio 1863
Luzia 1878 Antonia 1871
Maria 1880 Venceslau 1872
Agostinho 1882 Manoel 1874
Vicente 1885 Jorge 1877
Maria Theodora
Elias 1886
Zacharias/Ambrósia
Lutero 1879
Ritta 1861 Barbina 1856
Maria 1863 Fernando 1858
Domingos 1870 Balbina 1860
Luzia 1873 Avelino 1870
Roque 1876 Luduvina 1872
Anna Crioula
Antonio 1880
Deodato/ Maria Joanna
Ludovico 1874
Maria 1864
Leandro 1871
Maria 1873 Maria 1858
Maria 1875 Theresa 1860
Narciza 1877 Raymundo 1864
Jose 1879 Benedicta 1866
Joaquim 1881 Moises 1868
Domingos 1884
Manoela
Marculino 1886
Flávia
Fonte: Livros de batismo da freguesia de São Domingos do Prata, 1845-1888
Arquivo Dom Marcos Noronha – Cúria Diocesana de Itabira – Coronel Fabriciano
Os resultados de São Domingos do Prata apontam a família escrava como uma variável
significativa da experiência cativa no distrito. Embora tenha poucos dados na tabela acima,
108
podemos verificar que predominou um intervalo genético da mulher escrava de 2 anos. A
ocorrência de intervalos maiores, evidenciados nos registros, nos leva a pensar na interrupção
da gestação ou mesmo na morte de recém-nascido antes do batismo, não aparecendo assim
nos registros.
3.5 - Laços de compadrio refeitos
Diversos padrões interessantes emergiram dos dados, mas há um que é curioso.
Algumas mães com mais de um filho refizeram vínculos com seus compadres, ou com um
deles, demonstrando que uniões fictícias, originadas do parentesco espiritual construído pelos
cativos se fortaleciam ao longo de anos quando uma mesma pessoa apadrinhara mais de um
filho de uma mesma escrava. Esse exame do compadrio leva-nos a dizer que as solidariedades
procuradas chegaram a formar vínculos afetivos e parentais fortes, forjados pelos escravos
através do compadrio.
Vínculos refeitos podem estar a indicar a importância que a pessoa escolhida tinha na
freguesia ou até mesmo representava para a mãe do batizando, a obrigatoriedade do
sacramento batismal acompanhada da imposição ou escolha de padrinhos pelo proprietário,
bem como sinalizar o que Gudeman e Schwartz denominam geografia do compadrio, que
impunha limites para a escolha de padrinhos e “obrigava” os escravos a repetirem vínculos
porque dificuldades inerentes a distâncias e poucos contatos pessoais impediam novos laços.
Nesta perspectiva os autores dizem que
“para os escravos, as distâncias envolvidas na seleção de padrinhos eram mais
limitadas. Quase que invariavelmente os padrinhos viviam na mesma freguesia dos
afilhados, e geralmente no mesmo local. (...) A pouca disponibilidade dos senhores
em servir de padrinhos para seus próprios escravos e o desejo dos escravos de
encontrar padrinhos mais claros e de status superior, por vezes fora dos limites
geográficos convencionais, buscando apoio em virtude de seu status de escravo,
parecem ter combinado para produzir o padrão (...) observado.”
226
Entre as mães que refizeram vínculos com seus compadres, de um total de dezessete
batismos, dez eram de filhos naturais e sete de legítimos; doze laços refeitos foram com o
casal de padrinhos, três somente com a madrinha e dois somente com os padrinhos. Tomemos
com exemplo Theodoro e Narcisa, pertencentes a Francisco Inocêncio Gomes de Lima,
batizaram Albina em 12 de junho de 1860, Agostinho em 11 de março de 1877 e Maria em 27
226
GUDEMAN & SCHWARTZ, 1988. p. 57.
109
de março de 1882, e escolheram para padrinhos dos três o mesmo casal Joaquim Vieira
Guimarães e D. Cândida Amélia Guimarães. Antônia crioula, escrava de Antônio Pessoa da
Costa, refez laços de compadrio com Paulo Domingues e Cândida Maria de Jesus. Esse
também foi o caso de Maria Theodora, de propriedade de Joaquim José Vieira, que por duas
vezes estabeleceu laços de compadrio com Manoel Gomes da Silva e Hermiliana de Souza.
3.6 – Evidências paroquiais: cores, representações e alforria
A partir do levantamento realizado nos livros batismais é possível, ainda, identificar
quem são os batizandos, pois, conforme afirma Ferreira
227
, os registros são também
documentos sociais, estando neles hierarquias e valores. Uma das marcas que a sociedade
escravista imprimiu nos corpos dos escravizados é evidenciada na referência à cor feita por
alguns contemporâneos responsáveis pelos registros. Para Guedes, as cores eram utilizadas
para servirem de critério identificador de um grupo social, sendo útil, portanto, como
elemento de distinção social.
Relacionando os registros em que se identificam os inocentes pela cor, na freguesia de
São Domingos do Prata, constatamos que foram esporádicas as nomeações relativas à cor do
batizando nas décadas de 1840, 1850, e 1860. Já a partir de 10/12/1871 de 394 batismos
registrados, somente vinte e cinco batizandos, ou seja, 6,35% não foram identificados pela cor
(ver Tabela 11). Quanto aos pais ocorre algo inverso, pois nas décadas de 1840 e de 1850, a
designação da cor tem uma incidência maior, apesar de também baixa, enquanto que nas
décadas de 1860 e 1870 são raros os casos, tendo o último sido localizado em 07/10/1873
relativo ao batizado da inocente Luzia parda, filha natural de Anna crioula escrava de Gomes
José de Araújo e que teve como padrinhos Bras José de Meneses e Anna Ritta de Jesus.
O que percebemos é que registrar a cor e a origem da mãe e/ou do pai do batizando
não era considerado importante para os párocos de São Domingos do Prata, bastando
evidenciar a condição jurídica, acompanhada da presença dos proprietários nos registros, tido
como suficiente para conhecer a esfera social a que pertenciam aqueles(as) homens e
mulheres. Os registros mostram ou escondem informações e isso dependeu do olhar e da
percepção de cada padre ou responsável pela confecção dos assentos, que filtrou a sociedade e
transpôs para os livros, sem talvez imaginar que estava prestando um grande serviço aos
estudiosos da História Social.
227
FERREIRA, 2004.
110
TABELA 11
Cor atribuída aos batizandos, Paróquia de São Domingos do Prata, 1845-1888
Cor Masculino % Feminino % Total Geral %
Pardo 80 15,69% 65 13,86% 145 14,81%
Cabra 12 2,35% 13 2,77% 25 2,55%
Crioulo 9 1,76% 15 3,20% 24 2,45%
Preto 121 23,73% 105 22,39% 226 23,08%
Vazias 288 56,47% 271 57,78% 559 57,10%
Total Geral 510 100,00% 469 100,00% 979 100,00%
Fonte: Livros de batismo da freguesia de São Domingos do Prata, 1845-1888
Arquivo Dom Marcos Noronha – Cúria Diocesana de Itabira – Coronel Fabriciano
A partir da tabela acima, evidencia-se que os batizandos foram descritos como cabras,
crioulos, pardos e pretos. Em vinte e cinco vezes foram registrados como cabras, vinte e
quatro como crioulos, cento e quarenta e cinco como pardo e duzentas e vinte e seis como
preto. Dos 979 registros localizados, em quinhentos e cinqüenta e nove batismos a cor não foi
mencionada. Diferente do encontrado por Ferreira
228
na Freguesia de São José do Rio de
Janeiro (primeira metade do século XIX), onde somente um inocente foi registrado como
preto e ele era africano, vimos que na maioria dos registros o termo preto é que foi usado para
designar os batizados na freguesia.
Hebe Mattos diz ter sido o termo ‘preto’ usado como sinônimo de africano em muitas
áreas e épocas durante todo o período colonial e até bem avançado do século XIX
229
. Pelo que
constatamos, não foi essa a característica que predominou na freguesia de São Domingos do
Prata no período em estudo, pois a incidência de registros relativos à cor é de crianças
nascidas após a Lei do Ventre Livre e não de africanos. Essa constatação nos leva a pensar
que a referida lei refletiu no comportamento dos párocos ou responsáveis pelas anotações nos
livros batismais levando-os a fazer registros mais cuidadosos a partir da publicação da
mesma, identificando os batizandos também pela cor. Talvez essa tenha sido a forma
encontrada para buscar assegurar os direitos dos proprietários de escravos, previstos na lei,
quanto à indenização do governo ou utilização dos serviços dos nascituros até os 21 anos. Em
relação ao maior emprego do termo “preto” nos registros, pode-se considerar que resultou de
228
FERREIRA, 2004. p.102.
229
CASTRO, Hebe. In: FERREIRA, 2004. p. 101-102.
111
uma característica cultural da região que generalizava o uso de tal termo para fazer referência
aos filhos de mulher escrava. Ferreira alerta para a necessidade de “atentar para as variações
locais dos significados das expressões referentes à cor,”
230
mostrando assim que é preciso
relativizar as categorias classificatórias expressas na cor e ter o cuidado de partir dos termos
utilizados pelos contemporâneos nas fontes para classificar os batizandos como tais.
As cores pelas quais os pais de batizandos foram identificados são as seguintes: vinte e
cinco crioulos e noventa crioulas, duas mães cabras e quatorze pardas, um pai pardo e duas
mães pretas. Como fica evidente, houve maior denominação para os crioulos e as crioulas do
que para outros. Alguns pais e mães tiveram o nome registrado acompanhado da cor como
critério classificatório e organizador, mas muitos foram anotados simplesmente como
escravo(s), escrava(s) de fulano ou cativo(s) de sicrano ou ainda simplesmente, captivos,
escravos, ou cativos. É certo que os registros são lacunares, e isso foi comprovado na questão
da cor, e não dá para saber se a atribuição “cor” foi decorrência da percepção de determinadas
pessoas, contemporâneas à produção das fontes.
No que tange aos pais dos batizandos, os padres registraram algumas vezes as
naturalidades, as prováveis regiões africanas de procedência
231
e as cores. Alguns registros
evidenciam a procedência africana de alguns e, apesar de baixa, a africanidade encontrada é
também uma marca deixada pelos párocos que fizeram as anotações nos livros. Dentre as
naturalidades e origens encontradas, de um total de vinte e cinco, dezesseis são referentes a
pais, sendo onze designados como africanos, um como de nação, um como benguela, dois
como angola e um como moçambique. Para as mães, sete foram identificadas como africanas,
uma como de nação e uma como benguela.
Para esse levantamento, os nomes dos pais foram considerados tendo como referência
o proprietário para evitar que uma mesma pessoa fosse contada duas vezes ou mais, o que fez
com que se percebesse, mais uma vez, que na feitura dos registros, as pessoas foram
discriminadas de forma variada, pois, em um mesmo casal de um mesmo proprietário,
encontramos identificação de cor em um ano e em outro não, o que torna mais difícil e, ao
mesmo tempo, desafiante a pesquisa. Daí a grande importância e necessidade de realizar o
cruzamento dos registros batismais a partir do proprietário – esse também, em alguns casos,
230
FERREIRA, 2004. p.102.
231
Góes diz que a verificação da procedência regional dos africanos apresenta dificuldades em virtude do grau
de generalidade (e mesmo ignorância) como eram descritos nos documentos. Para ele, “um escravo quando dito
ser de ‘Angola’ pode ter sido um indivíduo arrancado a grupos étnicos que habitavam o território do atual Estado
angolano, como pode ter sido apresado em algum local do interior do continente e sido embarcado ao Brasil por
algum porto da região (Cabinda e Benguela são os mais freqüentes).” GÓES, 1993. p.59.
112
registrado de maneiras variadas –, levando em conta o nome de seus escravos que conduziram
crianças até a pia batismal para receberem os santos óleos e a absolvição do pecado original.
Tal procedimento ocorreu, pois, sabemos que, quando possível, o ideal é realizar
cruzamentos de dados, conforme lembram pesquisadores.
Dentre as várias possibilidades de análises colocadas pelos registros batismais, uma é
a evidência de alforria concedida na pia batismal. Libby e Botelho lembram que nos registros
estão poucos indícios sobre as motivações que conduziam às alforrias. Segundo eles, não há
um padrão claro para a concessão de alforrias na pia batismal e que elas tanto podem ser
decorrência da bondade de proprietários ou proprietárias libertos, quanto do parentesco de
crianças com pessoas livres ou forras o que aumentaria a chance de obtenção da alforria.
232
Embora reduzidas, foram registradas a concessão de 4 alforrias por ocasião do
batismo. No dia 21 de setembro de 1856, foi batizada e alforriada a inocente Eliza, filha
natural de Maria Joana de Jesus, escrava de Raymundo e Francisco, porque assim quis um dos
proprietários e o tutor do outro. Em 31 de janeiro de 1857, Francisco, filho natural de
Margarida, escrava de D. Anna Joaquina da Piedade, foi alforriado na pia batismal. Da mesma
forma, em 17 de junho de 1860, o sacramento do batismo foi acompanhado da libertação de
Francisco pardo, filho natural de Maria Paula, escrava de Manoel Vilella de Magalhães.
Houve também, em 09 de outubro de 1864, a concessão da alforria a Antônio, filho natural de
Joanna, escrava de Francisco Caetano dos Santos. No livro ficou registrado que o inocente
Antonio foi batizado como forro e como se houvesse nascido de ventre livre, porque assim
determinou o dito Francisco.
Não resta dúvida de que é uma amostra mínima, mas não deixa de ser curioso notar
que nos quatro casos os filhos são naturais, não constando, portanto, referência aos pais. Além
do mais, os quatro proprietários não aparecem no nosso levantamento de maiores
proprietários – com posse de 10 ou mais escravos – realizado de acordo com método já
discutido. Sendo pequena a posse, a possibilidade de maior contato entre senhores e cativos
pode ter gerado maior proximidade resultando em concessões por parte dos senhores. Como
não há registro dos pais das crianças alforriadas, não seria o caso de pensar que algumas delas
fossem, na verdade, bastardas dos proprietários?
Através do apadrinhamento a população servil construiu laços ampliando as relações
familiares num sistema escravista que, se não eliminou a sua condição de propriedade
também não lhe impediu de estreitar vínculos criando formas de sociabilidades.
232
BOTELHO e LIBBY, 2004. p. 78-9.
113
Considerações finais
Tendo como objeto de reflexão o batismo e o compadrio de escravos no distrito de São
Domingos do Prata no século XIX, o presente trabalho consistiu em um esforço de buscar
compreender a importância e o papel que o sacramento batismal desempenhou na vida dos
cativos. Com a finalidade de investigar as relações sociais estabelecidas por meio do
apadrinhamento, procuramos analisar o significado religioso do batismo, bem como o alcance
político e social por ele adquirido. Para tanto, foi necessário falarmos das relações familiares
escravas, vistas como parte integrante do universo escravista, que não as negou, e sim, delas
fez uso para a sua própria reprodução e sobrevivência.
Nosso ponto de partida foi o estudo da formação do distrito e a sua caracterização
sociodemográfica e econômica, no século XIX, a partir de dados fornecidos por
documentação primária - mapas de população e censo -, produzida no século XIX.
Constatamos que a região fez uso do trabalho escravo e teve como base econômica o setor
agropecuário, desenvolvendo também o setor de atividades manuais e mecânicas – tecido,
fiação, carpintaria – que ocupou um lugar importante naquela sociedade.
Encontramos, nos registros paroquiais, evidências que forneceram elementos para a
reconstituição de parte dos laços sócio-parentais construídos pelos cativos que levaram filhos
à pia batismal. Ficou clara a construção de redes de solidariedades quando da escolha de
padrinhos, possibilitando aos escravos desenvolverem múltiplos convívios, oferecendo
oportunidade para que eles construíssem sua vida social.
As análises, realizadas a partir dos registros de batismos e das produções
historiográficas, levaram-nos a pensar na importância que as relações sociais estabelecidas
através do apadrinhamento e do compadrio adquiriram na vida dos cativos e na sociedade
brasileira escravocrata. Ao ser escolhido para padrinho do filho de um escravo, o cativo
estava sendo reconhecido como ser humano. A Igreja, ao reconhecer os padrinhos cativos,
admitia que eles tinham condições de desempenhar o papel que cabia aos padrinhos de guiar
espiritualmente os afilhados, e a sociedade demonstrava aceitar essa condição.
Por meio do apadrinhamento os padrinhos passavam a ser respeitados pelo afilhado e sua
família adquirindo uma posição de superioridade na relação estabelecida, criando assim,
114
novas hierarquias na sociedade. Nessa sociedade em que os valores cristãos do respeito, da
submissão e da obediência atravessavam os vínculos existentes, seja o servil, o consangüíneo,
o matrimonial, o fictício, dentre outros, o batismo serviu como um elemento a mais a unir
pessoas e gerar novas dependências.
O apadrinhamento tornava um escravo subordinado a outro e esse passava a ter poder na
relação estabelecida. Conseguir o respeito do escravo compadre e do afilhado fazia parte da
trama construída na pia batismal e da qual a Igreja era a testemunha maior. Como não ver
nessa relação uma oportunidade que deu aos escravos um lugar em que eles se constituíram
atores de suas vidas? Como não reconhecer a sua humanidade no momento singular do
batismo, sacramento que liberta do pecado original o ser humano e o integra ao mundo
cristão?
Os resultados de estudos e pesquisas recentes, baseados em uma grande variedade e
quantidade de documentos, alargam os debates sobre a escravidão, trazendo novos problemas
e considerações sobre o tema. Essas oferecem interpretação de que o cativo era dotado de
humanidade, promovendo um debate histórico legítimo e o resgate de elementos
comprovadores dessa condição. Ao escolher padrinhos para os filhos os cativos tinham
oportunidade de tomar decisões e fazer opções, agindo de forma ativa, construindo parte de
suas vidas, mesmo no contexto da sociedade escravocrata.
É sempre interessante perceber o ângulo sob o qual o historiador interpreta as relações
escravistas. Novos olhares sobre a escravidão procuram enxergar o escravo como
responsável por construir a sociedade em que ele viveu e, como ressalta Góes,
“A história dos escravos é a história da escravidão; se não é possível aceitar que o
cativeiro tenha tido feições híbridas, se é impensável que o escravo tenha sido co-
autor da sociedade em que viveu, então não há como concebê-los sujeitos da história
(e mais uma vez não há também como concebê-los homens). E, no entanto, era
preciso apenas abrir as janelas para as ruas para se dar conta de que o passado do
qual é fruto o nosso presente teve no negro africano um poderosíssimo artífice.”
233
Com sua dimensão simbólica, o batismo constituiu importante acontecimento na
sociedade brasileira colonial e imperial. O desejo de colocar o filho sob a proteção do
padrinho fez com que os escravos se aproximassem de livres ou de cativos, estabelecendo
com eles vínculos e reforçando outros, úteis como mecanismo de ligação pessoal que
233
GÓES, 1993. p. 182.
115
alcançou maior ou menor abrangência tanto social quanto geográfica, atravessando as
fronteiras sociais.
Ao estudar os batismos de escravos e os laços sociais por eles construídos, foi possível
investigar o seu sentido e parte das estratégias cativas que ajudaram a redimensionar o seu
cotidiano, assegurando espaço de sociabilidade e de convivência. Assim, reconstituímos
parte do universo social cativo, especialmente a questão do compadrio enquanto gerador de
aproximações, procurando compreendê-lo como um elemento que tornou possível aos
mancípios relacionarem-se com pessoas de condições sociais distintas.
As relações sociais escravistas, alimentadas no controle pessoal e nos estratagemas de
expansão das bases sociais de dominação, estão inscritas nos apontamentos de batismo, úteis
para assegurar o direito de posse, fazendo constar no registro o nome do proprietário. Os
batismos colocaram ainda em evidência todos os escravos que foram identificados sob tal
condição e vinculados ao nome de seu proprietário, deixando à mostra as ligações de
propriedade.
116
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VAINFAS, Ronaldo.
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VENÂNCIO, Renato Pinto. Compadrio e Rede Familiar entre Forras de Vila Rica, 1713-
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