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sentimentos que se opõem à impessoalidade de números e sons. Parece, na verdade, que
ignora e reprime seus sentimentos naturais, força-os a um plano que chamamos, com
certo ressentimento, artificial, embora provavelmente não sejamos tolos o suficiente
para ressentir o uso de artifícios na arte. Henry James, por timidez, puritanismo ou falta
de audácia imaginativa, diminui o interesse e a importância de sua personagem para
deixar aflorar a simetria que tanto lhe agrada. Seu leitor ressente. Nós o pressentimos,
como um apresentador sutil, manipulando suas personagens habilmente, cerceando,
reprimindo, evitando e ignorando sagazmente aquilo que um escritor de mais
profundidade ou disposição natural teria arriscado, navegado a todo vapor e, talvez,
alcançado simetria e padrão, em si mesmos tão aprazíveis, do mesmo modo.
Mas é a medida da grandeza de Henry James que nos oferece um mundo tão
definido, uma beleza tão distinta e peculiar. Não descansamos satisfeitos até
experimentarmos mais com essa percepção extraordinária, para entendermos mais e
mais, porém livres da tutela permanente do autor, seus arranjos e ansiedades. Para
agraciar nosso desejo, naturalmente, nos voltamos para a obra de Proust, em que
encontramos imediatamente tamanha expansão de simpatia que quase invalidamos o
objeto. Se formos conscientes de tudo, como perceberemos qualquer coisa? Mesmo
assim, se o mundo de Henry James, depois dos mundos de George Eliot e Dickens,
parecia sem fronteiras materiais, se tudo era tão impermeável ao pensamento e
suscetível a vinte interpretações diferentes, a luz e a análise são levadas bem além
dessas amarras. Por um lado, Henry James, o norte-americano, constrangido por sua
urbanidade magnífica numa civilização estrangeira, foi um obstáculo jamais assimilado
completamente, nem pela essência de sua própria arte. De outro, Proust, produto da
civilização que descreve, é poroso, maleável, tão perfeitamente receptivo que o
percebemos como um envelope, fino e elástico, que se estica mais e mais e serve para
envolver o mundo e não para forçar um ponto de vista. Seu universo é todo impregnado
pela luz da inteligência. O objeto mais comum, como o telefone, perde sua
simplicidade, sua solidez, e se torna transparente e parte da vida. As ações mais comuns,
como entrar num elevador ou comer bolo, em vez de serem descartadas
automaticamente, aglutinam uma série de pensamentos, sensações, idéias, lembranças
que, aparentemente, estavam esquecidas nas paredes da memória.
Que fazemos com isso tudo? Não conseguimos evitar a pergunta enquanto esses
troféus se amontoam a nossa volta. A mente não se contenta em manter as sensações
passivamente em si mesmas, algo deve ser feito com elas, sua abundância deve ser