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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LÍNGUA INGLESA E
LITERATURAS INGLESA E NORTE-AMERICANA
VIRGINIA WOOLF E SEUS ENSAIOS:
EM BUSCA DE UMA ESTÉTICA LITERÁRIA
Mônica Hermini de Camargo
Tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Língua Inglesa e
Literaturas Inglesa e Norte-Americana,
do Departamento de Letras Modernas
da Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade de
São Paulo, para obtenção do título de
Doutor em Letras.
Orientadora: Profa. Dra. Sandra G. T. Vasconcelos
São Paulo
2006
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ii
A minha mãe,
sempre.
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iii
Agradeço a todos que discutiram Virginia Woolf
comigo pela ponderação, pelo carinho e pela confiança que
depositam em mim, Regina Pontieri e Maria Elisa Cevasco
pela argüição sempre objetiva e elucidativa há muitos anos,
e, especialmente, Sandra Vasconcelos pela presença
incansável e pela orientação minuciosa e infalível.
iv
RESUMO
O objetivo deste trabalho é analisar a relação de Virginia Woolf com as
influências do modernismo e a interpretação que ela fazia dos processos artísticos e
literários do início do século XX.
A princípio, nosso objetivo era demonstrar como Woolf definiria e como seria a
organização de uma estética literária que fosse abrangente o bastante para inserir todos
os movimentos sócio-culturais, artísticos e político-econômicos que eclodiram no
período de 1895 a 1945 e que, certamente, marcaram todas as obras literárias
produzidas naqueles cinqüenta anos.
Ao longo de nossa pesquisa, percebemos que a fragmentação do mundo então
conhecido, aparentemente estável, e as novas exigências que isso impunha à natureza
humana – em termos de relações interpessoais, sociais e político-econômicas – aliadas
ao golpe da Primeira Grande Guerra impossibilitaram qualquer definição. Além disso,
mais do que nunca ficou demonstrada a dificuldade de se explicar o momento histórico
em que se vive e as estratégias das quais a arte faz uso para representá-lo.
Apresentamos Woolf sob a luz de alguns de seus ensaios críticos mais
importantes e tentamos explicar por que ela sempre parecia deixar o campo de batalha
sem exaurir todas as possibilidades das discussões que propunha. Incapaz de
compreender a realidade a sua volta como um todo, mesmo diante de seu grande
preparo intelectual, elaborou cartas de intenções não muito comprometedoras. Sendo
assim, pôde concentrar mais energia em seus experimentos de ficção modernistas em
favor da revitalização do romance e na busca de explicações e referências para sua
própria atividade literária.
PALAVRAS-CHAVE: Virginia Woolf
Estética
Século XX
Modernismo
Busca
v
ABSTRACT
This paper aims at analyzing Virginia Woolf's relationship with modernist
influences and her interpretation of the early twentieth-century artistic and literary
processes.
At first, our goal was to show how Woolf would define and organize a literary
aesthetics comprehensive enough to embrace all the social, cultural, artistic, political
and economic movements that took place from 1895 to 1945 and which certainly
marked all the literary works produced in those fifty years.
Throughout our research, we have realized that the fragmentation of the
apparently stable world known at the time, the new demands that fragmentation
imposed on human nature – as to interpersonal, social, political and economic
relationships – and the crisis brought about by the First World War made any definition
impossible. In addition, more than ever before, the difficulty of explaining a historical
moment while one is part of it and the strategies art makes use of to represent such
moment were clearly shown.
We have introduced Woolf in the light of some of her most important essays and
tried to explain why she always seemed to leave the battlefield without exhausting all
the possibilities raised by the discussions she proposed. Unable to understand reality
around her in spite of her great intellectual background, she wrote fairly
uncompromising intention letters. Thus, she could concentrate more energy on her
modernist fictional experiments in favor of the revitalization of the novel and the search
for explanations and references for her own literary activity.
KEY-WORDS: Virginia Woolf
Aesthetics
Twentieth Century
Modernism
Search
vi
ÍNDICE
Parte I
I. Introdução 1
II. O Século XX e os Modernistas 3
III. Em Busca de uma Estética Literária 15
IV. Há um Vazio entre 1895 e 1910 21
V. Bloomsbury 25
VI. E Tudo Mudou a Partir de 1910 41
VII. A Criação Artística de Virginia Woolf 44
VIII. Realidade, Ficção e Princípios Estéticos 48
IX. O Fluxo da Consciência – A Linguagem dos Modernistas 54
X. Virginia Woolf e os Ensaios 63
XI. Os Ensaios 81
XII. E a busca continua... 114
Parte II
XIII. O Ponto de Vista Russo 127
XIV. A Ficção Moderna 135
XV. Como se Atinge um Contemporâneo 142
XVI. O Senhor Bennett e a Senhora Brown 150
XVII. Fases da Ficção 168
XVIII. Bibliografia 211
vii
Ora, nos últimos anos, os progressistas parecem ter
perdido a confiança em seu próprio ideário. Talvez por
ressaca do sonho socialista (mas essa explicação começa
a cansar), os ideais libertários nascidos nos anos sessenta
e setenta não são mais vividos e promovidos como um
conjunto de valores positivos, capazes de dar forma a uma
sociedade.
O debate mudou de cara: aparentemente, os valores
tradicionais enfrentam não valores opostos, mas só sua
própria crise. Ou seja, o debate entre morais diferentes se
transformou em debate entre a moralidade tradicional e
seus fracassos.
Talvez a dita pós-modernidade seja isto: um
desânimo dos valores libertários, que não conseguem
mais se apresentar como valores. Com isso, cada vez
mais, os valores tradicionais encontram apenas, como
oposição, uma espécie de hedonismo envergonhado.
Contardo Calligaris, "O Aborto dos Outros",
Folha de São Paulo, 12 de janeiro de 2006.
Introdução
A relação de Virginia Woolf com o modernismo e a interpretação que ela fazia
dos processos artísticos e literários do início do século XX sempre foram contraditórias.
A artista não parecia capaz de definir o experimentalismo de sua geração pelo próprio
contexto em que estava inserida. Sua busca estética como romancista acompanhou a de
seus contemporâneos e, assim como a deles, não alcançou nenhum resultado concreto
no sentido de justificar os caminhos do modernismo e perceber aonde eles os levariam.
O escopo da produção ensaística de Woolf demonstra sua consciência da
necessidade de explicar os movimentos contemporâneos através do conhecimento
acumulado por centenas de anos de literatura e arte e de sua inserção na história
moderna. O problema encontrado nessa proposição não estava na utilização de seu
conhecimento prévio de filosofia, história, arte e literatura, mas na compreensão das
variáveis que colocavam as constantes de seu pensamento em cheque.
A princípio, nosso objetivo era demonstrar como Woolf teria definido e como
seria a organização de uma estética literária que fosse abrangente o bastante para inserir
todos os movimentos sócio-culturais, artísticos e político-econômicos que eclodiram no
período de 1895 a 1945 e que, certamente, marcaram todas as obras literárias
produzidas desde então.
Ao longo de nossa pesquisa, percebemos que a fragmentação do mundo
conhecido, aparentemente estável, e as novas exigências que isso impunha à natureza
humana – em termos de relações interpessoais, sociais e político-econômicas – aliadas
ao golpe da Primeira Grande Guerra impossibilitaram qualquer definição. Além disso,
mais do que nunca ficou demonstrada a dificuldade de se compreender o momento
histórico em que se vivia e as estratégias das quais a arte fez uso para representá-lo.
Pretendemos demonstrar a seguir que, independentemente de sua formação e da
bagagem literária com que enfrentou a modernidade, Virginia Woolf não teria
condições de estabelecer a estética literária do modernismo porque as mudanças que
diagnosticou por volta de 1910, em curso desde meados do século XIX, a envolviam e
não estavam nem perto de seu final. Sua formação intelectual e humanística parecia não
dar conta do conturbado momento histórico que destruiu as utopias e a crença na
natureza humana construtiva, civilizada e fértil.
Apresentamos Woolf sob a luz de alguns de seus ensaios críticos mais
importantes e tentamos explicitar por que ela sempre parecia deixar o campo de batalha
2
sem exaurir todas as possibilidades das discussões que propunha. Incapaz de
compreender a realidade a sua volta como um todo, mesmo em face de seu grande
preparo intelectual, elaborou cartas de intenções não muito comprometedoras em forma
de ensaios críticos. Sendo assim, pôde concentrar mais energia em seus experimentos
modernistas com a ficção em favor da revitalização do romance, e na busca de
explicações e referências para sua própria atividade literária.
Em suma, utilizando uma metáfora que parece explicitar a relação de Woolf com
o começo do século XX e o modernismo, poderíamos imaginar que ela fosse uma
especialista em fenômenos naturais presa dentro do olho de um furacão poderoso e
assustador. Em outras palavras, Woolf estava aparentemente a salvo, consciente de que
tudo ao seu redor mudava violentamente de lugar, não conseguia enxergar claramente
além da massa conturbada e nebulosa, embora soubesse que além do turbilhão também
havia especialistas em busca de soluções para os mesmos problemas.
Assim como só conseguimos estabelecer a amplitude de um furacão e o que é
preciso para restabelecer a vida cotidiana após sua passagem, os modernistas só
poderiam compreender e explicar o conturbado período histórico-literário em questão
quando tivessem distanciamento suficiente para enxergá-lo na totalidade.
Portanto, Virginia Woolf só poderia elaborar obras críticas que estabelecessem a
relação do passado com seu presente e discutir seus contemporâneos em relação ao seu
próprio trabalho e ao da geração anterior. Mais do que isso, ela só poderia projetar seus
objetivos na compreensão das experiências além de seu escopo limitado de visão,
usufruindo do distanciamento geográfico e cultural que lhe permitiu, mesmo sem
entender o porquê, perceber a grandiosidade de Proust ou Dostoievski, por exemplo.
3
O Século XX e os Modernistas
Se eu tivesse de resumir o século XX, diria que despertou as
maiores esperanças já concebidas pela humanidade e destruiu
todas as ilusões e os ideais.
Yehudi Menuhin
1
Diz Eric Hobsbawm que o século XIX foi muito longo e que o caótico século
XX, muito breve. O primeiro assistiu ao desenrolar das conquistas dos grandes impérios
e à longa vida de seus monarcas, como a rainha Vitória, por exemplo. O segundo
testemunhou desde seu início a ruptura da estabilidade tradicional e das tendências
estabelecidas por ela em todas as áreas do desenvolvimento humano. A ilusão de que os
seres humanos detinham a civilidade e o controle do progresso e a pretensão de que
aquela ordem estabelecida jamais seria questionada foram por água abaixo quando a
Primeira Grande Guerra eclodiu, levando milhares de pessoas à morte física e muitas
outras milhares à morte do espírito, da expectativa e da ética da sobrevivência.
Havia sinais de crise econômica, social e moral em gestação desde o século XIX,
quando o status quo parecia estável e nenhum questionamento forte o suficiente para
derrotá-lo. As diferenças mal resolvidas durante o século XIX culminaram na crise das
teorias racionalistas e humanistas abraçadas tanto pelo capitalismo liberal quanto pelo
comunismo utópico do início do século XX, polemizando todas as posturas e
favorecendo primeiramente o amadurecimento do fascismo que as rejeitava e, mais
tarde, a formação da aliança contra ele, que revitalizava o ideal da luta maniqueísta
entre o bem e o mal, como se um lado ou outro de qualquer guerra ou ser humano
detivesse essas qualidades absolutas.
(...) a crise moral não dizia respeito apenas aos supostos da
civilização moderna, mas também às estruturas históricas das
relações humanas que a sociedade moderna herdara de um
passado pré-industrial e pré-capitalista e que, agora vemos,
1
Em HOBSBAWM, E. Era dos Extremos. O Breve Século XX. 1914 – 1991. trad. Marcos Santarrita. São
Paulo: Editora Companhia das Letras, 2000. p.12.
4
havia possibilitado seu funcionamento. (...) Os estranhos apelos
em favor de uma “sociedade civil” não especificada, de uma
“comunidade”, eram as vozes de gerações perdidas e à deriva.
Elas se faziam ouvir numa era em que tais palavras, tendo
perdido seus sentidos tradicionais, se haviam tornado frases
insípidas. Não restava outra maneira de definir identidade de
grupo senão definir os que nele não estavam.
2
O início do século XX foi um momento histórico em que muitas redefinições se
tornaram explícitas. Por que a definição de modernidade deixou de ser meramente a
explicação para a contemporaneidade de qualquer época? O novo sempre foi
denominado moderno em relação ao tradicional, considerado feio quando comparado ao
belo clássico, e fértil e vivo diante da esterilidade dos movimentos artísticos exauridos.
A exaustão das técnicas e dos estilos naturalmente nos encaminha para a novidade, e as
exigências da arte são proporcionais às modificações na maneira de enxergarmos o
mundo. O modernismo, mais do que um movimento literário, foi a possibilidade de as
pessoas definirem, ou a tentativa de estabelecerem, uma filosofia própria do século
vindouro, em que preceitos iluministas como a construção de uma sociedade melhor
através da razão e do conhecimento, por exemplo, colidiam com a crença na revelação
das verdades absolutas por grupos de indivíduos com formações semelhantes e
objetivos comuns, protegidos em suas comunidades bem educadas e civilizadas.
Como manter-se na vanguarda da modernidade sem reinventar o próprio
pensamento? Não é difícil perceber que o movimento cíclico da história e do
comportamento existe quando observamos as diferenças acirradas e as guerras críticas
entre gerações imediatas – como pais e filhos em geral, românticos e realistas ou
modernistas como Virginia Woolf e seus antecessores materialistas, segundo ela
mesma, como Arnold Bennett
3
, por exemplo. Contudo, definir os parâmetros e os
objetivos de um novo movimento sendo parte dele é muito complicado. Assim como o
crítico, o filósofo e o historiador precisam de distanciamento para analisar qualquer
2
Id ibidem, p. 21.
3
O ensaio "O Senhor Bennett e a Senhora Brown", traduzido na parte II deste trabalho, apresenta uma
longa discussão de Virginia Woolf sobre a guerra entre modernistas e materialistas, ou, como ela mesma
definiu, georgianos e eduardianos (definição dos grupos em relação aos nomes dos reis ingleses das
épocas produtivas de cada um deles).
5
evento, o artista também depende dele para compreender sua própria obra e a de seus
contemporâneos.
Aparentemente, Virginia Woolf acreditava no senso de comunidade, convivia
com um grupo fechado de artistas, pensadores e críticos que tinham sua formação
praticamente comum na elite intelectual da Universidade de Cambridge e no
pensamento filosófico de Platão, Immanuel Kant e na Principia Ethica (1903) de G E
Moore. O conhecimento compartilhado pelo grupo e exposto em suas obras individuais
gerou diversos manifestos modernos em várias áreas, principalmente nas artes plásticas,
na literatura, na economia e no pensamento filosófico, sócio-econômico e cultural. O
grupo de amigos de Virginia Woolf ficou conhecido como Bloomsbury
4
porque se
encontravam semanalmente para conversar e discutir o mundo na residência dos irmãos
Stephen – Virginia, Adrian, Vanessa – num bairro de Londres com esse nome, próximo
ao British Museum. Os integrantes desse grupo jamais se apresentaram como um grupo
fechado, e suas obras são independentes, embora fossem seus maiores críticos entre si.
A postura conturbada de ser parte integrante de uma comunidade, mas buscar refúgio na
individualidade do pensamento, não parece ser exclusiva dos bloomsburianos, porém
com certeza contribui para nossa maneira de analisá-los. Toda a conjuntura do começo
do século XX é propícia para que os indivíduos se recusem a abalizar este ou aquele
movimento formal, em vista do declínio das instituições sociais, econômicas e políticas
daquele momento; o comportamento do indivíduo civilizado está em cheque, portanto
ele tende a procurar seu equilíbrio interior e as respostas para o caos externo em si
mesmo.
A postura do grupo de Bloomsbury ao manter-se como grupo diante da negação
da própria existência parece coerente com o comportamento necessariamente defensivo
da geração de pensadores do período anterior à Primeira Guerra. Como é que um
período em que as pessoas conseguiram acesso facilitado a tudo em função do
desenvolvimento tecnológico e diminuíram as diferenças de oportunidades que haviam
assolado a Inglaterra rural do século XIX e transformado a Inglaterra urbana na fonte da
sobrevivência moderna pôde culminar num conflito tão irracional e sangrento como a
Primeira Guerra? Por que tantos cérebros brilhantes do pensamento moderno não
conseguiram, mesmo propondo alguns dos manifestos mais conscientes da realidade
4
O item V da parte I deste trabalho discute mais amiúde a formação do grupo de Bloomsbury e sua
atuação na sociedade inglesa e no modernismo.
6
possível, evitar que a natureza humana se mostrasse no auge de sua mesquinhez e
ambição?
Ao contrário do longo século XIX, que pareceu, e na verdade
foi, um período de progresso material, intelectual e moral quase
ininterrupto, quer dizer, de melhoria nas condições de vida
civilizada, houve, a partir de 1914, uma acentuada regressão
dos padrões então tidos como normais nos países desenvolvidos
e nos ambientes de classe média e que todos acreditavam
piamente estivessem se espalhando para as regiões mais
atrasadas e para as camadas menos esclarecidas da
população.
5
Todas as pessoas que acreditavam na civilidade enquanto objetivo da natureza
humana e na modernidade enquanto representação do comportamento ético e consciente
começaram a perceber, horrorizadas, que os seres humanos teorizavam uma vida e
punham em prática uma outra bem menos nobre e muito mais radical. Mas as
sociedades sobreviveram para dar continuidade a um período de guerra latente que
eclodiu novamente em 1939 principalmente nas cores do anti-semitismo e do racismo
nazista e do excessivo retrocesso do comportamento e dos ideais dos fascistas.
Os fascistas denunciavam a emancipação liberal – as mulheres
deviam ficar em casa e ter muitos filhos – e desconfiavam da
corrosiva influência da cultura moderna, sobretudo das artes
modernistas, que os nacional-socialistas alemães descreviam
como “bolchevismo cultural” e degeneradas.
6
A natureza humana foi posta em cheque, demonstrando suas facetas mais
díspares: uma delas, tendo experimentado os campos sangrentos da guerra, tornara-se
completamente avessa ao embate armado; uma outra, desenvolveu uma consideração
imensurável pela própria sobrevivência e passou a hostilizar todos aqueles que se
levantavam contra a iminência de outro conflito. A falta de empregos e de condições de
5
Id ibidem, p. 22.
6
Id ibidem, p. 24.
7
sobrevivência decente dos trabalhadores do pós-guerra, a ruptura da classe pensante e
sua frustração em relação à fraqueza da formação moral, ética e filosófica dos
antepassados, que não lhes servira de apoio para enfrentar a crise de seu tempo, e o
comportamento tanto de uma faceta da natureza humana quanto da outra facilitaram
muito a ação da poderosa propaganda fascista, que tinha em seus alicerces a promessa
de estabilidade e de valorização daqueles menos favorecidos que haviam lutado para
estabelecer a nova ordem e estavam sendo massacrados por ela.
Utilizando-se dos mesmos argumentos, todas as lideranças revolucionárias
daquele período – a francesa, a espanhola, a portuguesa e principalmente a russa –
perceberam que deveriam se unir ao laissez-faire inglês contra o crescente poderio
alemão e italiano e mais tarde o japonês. Essa situação foi construída ao longo do
período de 1918 a 1939, com o agravante de que o resto do mundo vivia a grande crise
econômica desencadeada pela Depressão de 1929 nos Estados Unidos.
Em 1920, John Maynard Keynes, integrante do grupo de Bloomsbury, fez parte
da delegação britânica na conferência de Versalhes, sobre a qual escreveu As
Conseqüências Econômicas da Paz, em que criticava veementemente a tendência
francesa de manter a economia da Alemanha sob controle. Uma das características de
Bloomsbury era manifestar-se sempre que eventos domésticos ou internacionais
parecessem injustos a qualquer um de seus elementos. Uma das influências mais fortes
exercida pelo grupo era sua defesa dos direitos humanos e seu pacifismo. Ao criticar a
postura francesa, Keynes parecia prever que o domínio virtualmente financeiro seria,
num futuro próximo, uma arma ainda mais assoladora do que o imperialismo real, ou
seja, o colonialismo também estava sendo redefinido naquele momento. Para os
franceses, as dívidas de guerra da Alemanha deveriam ser pagas em dinheiro vivo e não
em bens de produção corrente, o que seria mais sensato. A Alemanha recorreu aos
empréstimos da emergente potência norte-americana, aumentou sua dívida externa e
seus problemas, desestabilizou ainda mais sua balança comercial. Seus credores, por sua
vez, também potencializaram seus problemas, pois, com a quebra dos Estados Unidos
na Crise de 1929, não receberam mais nada.
A Grande Depressão confirmou a crença de intelectuais,
ativistas e cidadãos comuns de que havia alguma coisa
8
fundamentalmente errada no mundo em que viviam. Quem sabia
o que se podia fazer a respeito?
7
A descontinuidade da evolução humana marcada pela crise transformou o
público. As mesmas pessoas que vaiaram a exposição pós-impressionista de 1910
viram-se obrigadas a calar diante das provocações modernistas, pois não tinham mais
estruturas nas quais se apoiarem no desacreditado mundo pós-guerra para continuarem
a clamar pela manutenção daquela ordem. Todas as tendências modernistas se debatiam
com as incertezas do momento, não encontravam nenhuma referência anterior que
reforçasse suas tentativas e enfrentavam críticas tanto profissionais quanto de leitores
comuns que ainda se predispunham a analisar a arte em relação a um mundo que não
existia mais, nem em termos concretos nem ficcionais.
Os poderes contra-revolucionários, instituições tradicionais que se apropriavam
da verdade – os governos estabelecidos, a Igreja, as potências imperialistas em geral, a
burguesia – utilizavam a necessidade das pessoas de acreditarem que o mundo como o
conheceram não havia desaparecido por completo. O ressentimento do homem comum e
sua incerteza quanto ao futuro conduziram o mundo à ordem bélica constante, mas não
parece que ele tinha plena consciência de todas as implicações de sua atitude. A
manutenção do status quo dependia da rejeição do moderno, ou seja, as tendências
individualistas do modernismo eram politicamente contrárias à necessidade do
sentimento tradicional de comunidade e de sociedade. Mais tarde, os nazistas e
fascistas não utilizaram os ícones de poder do antigo século XIX, como os monarcas
absolutistas ou a Igreja, para reforçar os parâmetros da sobrevivência humana.
Utilizaram a forte tendência de valorização do indivíduo em detrimento do todo, que se
mostrara ineficiente diante das agruras da humanidade. Reforçaram, com muita
propaganda, a figura do homem que se faz por si só utilizando conhecimento e razão,
que estava nas bases da ideologia iluminista secular, e as tendências modernas da
psicologia, principalmente depois da publicação dos trabalhos de Freud sobre o
inconsciente e das experiências artísticas modernas que culminaram em todos os
movimentos de vanguarda, do impressionismo de Cézanne ao experimentalismo de
Henry James e dos jovens eduardianos da literatura inglesa – Joyce, Lawrence, Woolf –
com o fluxo de consciência.
7
Id ibidem, p.113.
9
A sensação de terra de ninguém desse período se expandiu dos campos de
batalha propriamente ditos para todas as áreas de relacionamento humano. E tudo
mudou porque não havia mais parâmetros convencionados para absolutamente nada: o
emblema de uma geração era um movimento dito modernista que não estabelecia
parâmetros, buscava-os. Ao mesmo tempo o mundo conhecia ou revitalizava e
precisava digerir muitos ismos
8
o comunismo, o marxismo, o impressionismo
(Cézanne), o pós-impressionismo (1910), o simbolismo (1923) de W.B. Yeats (1865-
1939), o cubismo (1913) de Guilhaume Apollinaire (1880-1918), o surrealismo (1924)
de André Breton (1896-1966), o futurismo (1909) de Filippo Marinetti (1876-1944), o
imagismo (1915) idealizado por Richard Aldington, Ezra Pound, Hilda Doolittle, Amy
Lowell, W.C. Williams, D.H. Lawrence e F.S. Flint, o vorticismo (1914) idealizado por
Ezra Pound e Wyndham Lewis na Revista Blast, o dadaísmo (1918) de Tristan Tzara
(1896-1963), nascido na România e publicando na França, o construtivismo (1922)
idealizado na Rússia por Aleksei Gan (1823-1942), o anarquismo (1929) definido por
Alexander (Sasha) Berkman (1870-1936), nos Estados Unidos, quando publicou The
ABC of Anarchism, o sensacionismo (1916) explicado por Fernando Pessoa (1888-
1935) em seu Notas sobre o Sensacionismo, o individualismo, o feminismo (dentre
outros manifestos, o de Mina Loy (1882-1966), publicado em 1914, contribuiu para a
discussão). Além de todos esses exemplos, havia a arquitetura Bauhaus, que passara a
ser reconhecida em todo o mundo depois que Walter Gropius (1883-1969) fundou, em
1919, seu escritório, que mais tarde seria ocupado pela máquina de propaganda nazista.
A fase germinal da estética moderna e da avant-garde teve inúmeros
representantes além dos idealizadores dos movimentos acima. Na seqüência, citamos
alguns deles, à guisa de localizarmos, de modo um pouco mais claro, quem participava
do debate cultural entre 1895 e 1930
9
. Podemos distribuí-los em pelo menos três
gerações: nascidos nos primeiros quarenta anos do século XIX – Edgar Allan Poe e
Walt Whitman, nos Estados Unidos; Gustave Courbet (publicou o Manifesto Realista
em 1855), Gustave Flaubert, Émile Zola (publicou Naturalism on the Stage em 1880) e
Charles Baudelaire, na França; Matthew Arnold (poeta e crítico que analisou os dilemas
de seu tempo, sugerindo o estudo da cultura na busca pela perfeição como antídoto para
8
Para informações específicas sobre cada um dos movimentos, consultar KOLOCOTRONI, V., Jane
Goldman e Olga Taxidou, ed. Modernism: An Anthology of Sources and Documents. Chicago, The
Chicago University Press, 1998.
9
Também incluímos informações como publicações importantes ou explicações quando forem
especialmente relevantes para o assunto deste trabalho.
10
a falta de padrões da sociedade vitoriana), John Ruskin, Walter Pater, na Inglaterra;
entre 1841 e 1875 – Arthur Rimbaud, Stéphane Mallarmé, Paul Valery, Erik Satie e
Marcel Proust, na França; Thomas Hardy, Oscar Wilde (dramaturgo que discutiu os
padrões da sociedade inglesa, sua vilanices e a importância das personagens), Joseph
Conrad (nascido na Polônia), Henry James (nascido nos Estados Unidos, romancista
precursor dos romances do fluxo de consciência), Roger Fry, na Inglaterra, W.B. Yeats
e George Bernard Shaw (dramaturgo que mostrou os primeiros sinais da transformação
da sociedade e de suas instituições; publicou The Sanity of Art em 1908), na Irlanda; e
de 1875 a 1900 – Isadora Duncan e John Reed (jornalista norte-americano que cobriu a
Revolução Russa de 1917 e publicou Dez Dias que Abalaram o Mundo em 1917), nos
Estados Unidos; Desmond MacCarthy (publicou The Post-Impressionists em 1910),
Clive Bell e Percy Wyndham Lewis, na Inglaterra; Guilhaume Apollinaire (participou
com Picasso e Erik Satie da produção do balé Parade em 1917, em que usou pela
primeira vez o termo surrealismo) na França; Antonio Gramsci (publicou Marinetti the
Revolutionary em 1916, em que explica o posicionamento tanto dele quanto de
Lampedusa, em O Leopardo, diante de muito barulho por nada, ou seja, tudo saíra do
lugar para poder voltar ao mesmo lugar), na Itália; Leon Trotski (publicou Literatura e
Revolução em 1923) e Victor Shklovski (publicou Art as Technique em 1917, em que
discute a obra e a importância de Tolstoi), na Rússia; Georg Lúkacs (publicou Soul and
Form em 1910 e Teoria do Romance em 1920), na Hungria e Walter Benjamin (1892-
1940), na Alemanha. Todos eles, bailarinos, artistas plásticos, poetas, críticos,
pensadores, filósofos, dramaturgos ou romancistas, eram pessoas de educação cunhada
na estabilidade do século XIX, vivenciando a ruptura de todas as instituições que
aprenderam a considerar sólidas – sem necessariamente concordar com elas – e
inerentes ao mundo em que viviam.
Qualquer que fosse a linhagem local de modernismo, entre
guerras ele se tornou o emblema dos que queriam provar que
eram cultos e atualizados. Se se gostava ou não, ou mesmo se se
tinha ou não lido, visto ou ouvido obras dos nomes aprovados e
reconhecidos – (...)T.S. Eliot, Ezra Pound, James Joyce e D.H.
Lawrence – era inconcebível não falar deles com conhecimento.
(...) O mais influente crítico britânico da época, F.R. Leavis, de
Cambridge, chegou mesmo a idealizar um cânone, ou “grande
11
tradição”, de romances ingleses que era o exato oposto de uma
verdadeira tradição pois omitia da sucessão histórica qualquer
coisa que o crítico não gostasse, como tudo de Dickens, com
exceção de um romance até então tido como uma das obras
menores do mestre, Hard Times.
10
O que conhecemos como modernidade data de muito antes da explosão da maior
parte dos movimentos ditos modernistas e houve muitos pensadores que, embora não
sejam apontados como agentes desse debate, tiveram uma participação imprescindível
na elaboração das questões mais problemáticas do século XX.
Todavia, um estudo minucioso dos preâmbulos do debate envolveria uma análise
mais demorada de cada passagem de um movimento artístico para o seguinte desde a
primeira vez em que o termo moderno foi utilizado. Vamos nos restringir, então, aos
pensadores e romancistas que contribuíram para a discussão da vida e de sua
representação numa fase tão controvertida e difícil quanto o final do século XIX e o
início do XX. A referência mais longínqua em nosso recorte data de 1850, quando o
Manifesto Comunista dos alemães Karl Marx e Friedrich Engels foi publicado. O
desenrolar da história baseado na crença utópica na igualdade dos homens envolvidos
na administração e na produção de bens de consumo levou grande parte do mundo a
tentar revolucionar a ordem estável dos Estados e conduzir as classes menos favorecidas
e de menos tradição ao poder.
A filosofia e a psicologia ofereceram muitos elementos para que os modernistas
construíssem suas teorias. Friedrich Nietzsche (filósofo alemão, 1844-1900), Gustave
Le Bon (psicólogo francês, 1841-1931), Henry Adams (historiador norte-americano,
1838-1918), Sigmund Freud (psicanalista austríaco, 1856-1939), Henri Bergson
(filósofo francês, 1859-1941) afirmaram, de um modo ou de outro, que uma necessidade
criativa resistente, um élan vital, em oposição à seleção natural, era responsável pela
evolução das espécies. Seus pensamentos filosóficos foram muito influentes e populares
entre os modernistas e os ajudaram na tentativa de dar forma mais concreta ao princípio
de dinâmica interna do tempo, memória e experiência.
Em seu Decline of the West, publicado entre 1918 e 1922, o filósofo alemão
Oswald Spengler (1880-1936) descreve o pensador do Ocidente como agente de seu
10
Em HOBSBAWM, E. Era dos Extremos. O Breve Século XX. 1914 – 1991. trad. Marcos Santarrita.
São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2000. p.183.
12
próprio declínio, personagem de seu tempo, que não foi capaz de se libertar da
convicção de que suas verdades eram irrestritas e suas opiniões, eternas e
incontestáveis. Sua obrigação era enxergar além de si mesmo e perceber que outras
culturas com as mesmas certezas se desenvolviam e avançavam para fora de suas
fronteiras. Para ele, esse era um problema filosófico que, ao ser compreendido em toda
sua extensão, incluiria todos os grandes questionamentos da existência.
Sob essa luz, olhando para a produção crítico-literária do começo do século XX
na Inglaterra, enxergamos um exemplo muito claro da descrição de Spengler. Ao
questionarem sua formação e a produção de seus antecessores, os modernistas assumem
a obrigação de tentar conseguir respostas para as indagações sobre a existência e de
procurar apoio na produção de outras culturas. A amplitude do raio de visão do
pensador inglês modernista deveria se expandir a fim de que conseguisse enxergar
russos, franceses, alemães entre outros. O escopo divisado pelo artista em seu território
era limitado por sua própria inserção nele e no momento histórico inacabado. Enxergar
o outro traria mais equilíbrio e segurança para que estabelecesse parâmetros de
desenvolvimento humano e artístico. A consciência de si mesmo só se concretizaria
quando fosse refletida na imagem do outro, do outsider.
Todos os pensadores, seus manifestos e movimentos no final do século XIX e no
início do século XX eram estratégias para aplacar a frustração em que sobreviviam pela
derrocada dos princípios éticos e morais da natureza humana, que se vira expurgada de
todas as projeções de futuro e realizações. Ecoava o questionamento do que era
modernidade e, conseqüentemente, do que era moderno. Como representar de maneira
clara e objetiva uma realidade que não conseguiam capturar?
A tragédia dos artistas modernistas, de esquerda ou direita, foi
que o compromisso político muito mais efetivo de seus próprios
movimentos de massa e de seus próprios governantes – para
não falar de seus adversários – os rejeitaram. Com a parcial
exceção do fascismo italiano influenciado pelo futurismo, os
novos regimes autoritários da direita e da esquerda preferiam
prédios e vistas monumentais anacrônicos e gigantescos,
representações edificantes na pintura e na escultura,
13
elaboradas interpretações dos clássicos no palco e ideologia
aceitável em literatura.
11
O modernismo legitimava a luta dos artistas pela liberdade de expor a natureza
humana sem censura ou controle político ou econômico. Todos aqueles que
enfrentavam a vida real e a falta de perspectiva sócio-econômica, ética e moral daquele
momento procuravam recriar em seu cotidiano verdadeiro, ficcional ou artístico todos
os princípios de que necessitavam. Atacaram ou defenderam esses princípios como
puderam e desvendaram alguns paradoxos da humanidade que ainda estão sem
explicação. As pessoas que geraram e estabeleceram as tradições modernistas foram
realmente trabalhadoras incansáveis e confirmaram a máxima que diz que a humanidade
só é criativa em face da necessidade e do horror.
A absoluta falta de parâmetros de civilidade humana nas instituições em todos os
níveis de conhecimento e comportamento que praticamente anulou toda a sensação de
progresso até aquele momento estabeleceu um vazio que precisava ser preenchido. A
vida real não tinha condição de fazê-lo, pois as pessoas estavam preocupadas em
sobreviver e não permitir que o apocalipse da Primeira Guerra se repetisse. Tudo o que
estava fora do lugar precisava ser reorganizado de alguma maneira. As pessoas vinham
de estruturas muito duradouras e fixas da vida do século XIX e precisavam da sensação
de segurança para enfrentar as novidades do século XX e seguir o curso natural de
oposição ao antecessor a fim de fortalecer as próprias crenças e tendências.
Todas as idéias fora do lugar, aquém ou além do equilíbrio buscado pelo artista
moderno, também contribuíram para que o caminho da arte tomasse a direção do
inconsciente. O pensamento pode ser reinventado, manipulado, revirado, mas nunca
subtraído de alguém. Os caminhos do inconsciente levaram as pessoas a construírem
outros parâmetros, mesmo que individuais, para compreender a realidade. A função da
arte era representar essas incursões.
O dilema de se tratar do pensamento consciente e inconsciente está no fato de
que jamais se poderá estabelecer um padrão, pois não há duas maneiras de pensar
absolutamente idênticas. Assim como o inconsciente, a arte que o representa
conseqüentemente nunca poderá ser reduzida a um manifesto somente. Cada descoberta
11
Id ibidem, p. 187.
14
implica um novo capítulo na explicação da arte e uma nova visita ao vagão da senhora
Brown
12
, alcunha de Virginia Woolf para a natureza humana.
Além de todos os pensadores já citados que contribuíram para estabelecer o
debate modernista, há muitos outros que se desenvolveram durante o processo e que
produziram o que conhecemos hoje como o corpo de uma escola literária que, mais do
que exprimir didaticamente a função de uma era, representa os alicerces da discussão
atual sobre vida, arte, ética, moral, representatividade, conhecimento, valor, natureza
humana.
13
É nesse momento, com todos os ismos e seus pensadores, que inserimos Virginia
Woolf (1882-1941) e seus ensaios. Assim como todos os outros, mais ou menos
consciente da importância de tentar entender o mundo para não cometer os mesmos
enganos do passado, Virginia Woolf representou a eterna busca por sentido, a
necessidade de encontrar explicações e respostas para questões filosóficas, políticas,
econômicas, morais, éticas e estéticas, por conseqüência, que seu mundo oferecia. A
geração que sucede a de Woolf continuou a formular e reformular o modernismo e é
assim que continuamos a discuti-lo hoje. A partir dos anos 1930, contamos com a
participação de F.S. Fitzgerald (1896-1940), Samuel Beckett (1906-1989), Mark
Horkheimer (1895-1971), Bertold Brecht (1898-1956), W.H. Auden (1907-1973),
Wallace Stevens (1879-1955), Sergei Eisentein (1898-1948) no cinema, e Theodor
Adorno (1903-1969), entre outros pensadores da modernidade.
12
Referência à personagem principal do ensaio "O Senhor Bennett e a Senhora Brown" traduzido na parte
II, página 150.
13
O debate não seria o mesmo sem a participação de Margaret Storm Jameson (1891-1986) e seu
prenúncio da morte dos dramaturgos em 1915, John dos Passos (1896-1970), Edwin Muir (1887-1959) e
seu What is Modern? de 1918, E.M. Forster (1879-1970), Katherine Mansfield (1888-1923) e sua crítica
concisa e perspicaz, Thomas Mann (1875-1955), T.S. Eliot (1888-1965) e sua crítica acadêmica
(Tradition and Individual Talent, 1919), Herman Hesse (1877-1962), Carl Jung (1875-1961), Gertrude
Stein (1874-1946) e seu Composition as Explanation de 1926.
15
Em Busca de Uma Estética Literária
O universo de Virginia Woolf é extremamente complexo, caracterizado pela
ambigüidade ora proposital, enquanto estilo, ora absolutamente providencial, talvez
inconsciente, para a manutenção de seu próprio destino de artista, ou seja, a manutenção
de seu status de romancista em um momento em que todas as idéias concretas sobre a
organização política, social, econômica, e os princípios filosóficos e artísticos estão
sendo questionados. A concepção de realidade está sob escrutínio e há questionamentos
sobre as mudanças das instituições, do comportamento, das relações interpessoais, das
bases das ciências e do pensamento. Como manter a organização tradicional das idéias
em um contexto tão fragmentado e diferente? A necessidade pessoal de compreender o
mundo por volta de 1910
14
se reflete nas novas estratégias de produção artística: em um
mundo em que a realidade externa é frágil e incerta, nada mais lógico do que enveredar
pelos caminhos do inconsciente que nos permitirão lidar com o fragmentário e o
incompreensível de modo mais acessível e mais próximo das representações da
realidade que vivenciamos.
A artista desdobra-se em romancista, ensaísta, articulista de suplementos
culturais, crítica, palestrante, estudiosa em conflito constante com o academicismo que
almeja e, ao mesmo tempo, repele.
As relações de Virginia Woolf com o Modernismo, assim como com a maioria
de seus posicionamentos críticos, foram ambíguas, apesar da veemência de sua oposição
aos eduardianos
15
, autores da geração anterior a sua com quem debate a revitalização do
romance e o respeito pela personagem, e de seus experimentos ousados em ficção.
Segundo Herta Newman, por exemplo, Woolf foi considerada uma das modernistas
mais dóceis, pois manteve o tom decoroso da linguagem dos vitorianos. Newman
também afirma que, embora nada ortodoxa, a ficção de Woolf existe conforme os
padrões tradicionais, e seu conservadorismo está presente na linguagem e não no estilo.
Embora Woolf utilize o fluxo de consciência ou o monólogo interior, por exemplo, ela
não abre mão da gramática, do vocabulário e da sintaxe clássicos. Uma de suas críticas
aos modernistas diz respeito ao mau uso da linguagem em seus textos.
14
É importante rever a explicação de Woolf para a escolha desta data e os exemplos de modificação da
realidade cotidiana em "O Senhor Bennett e a Senhora Brown". Para a leitura complementar sobre esse
tema, ler também STANSKI, Peter. On or About December 1910. Early Bloomsbury and its Intimate
World. London, England: HUP, 1996.
15
A discussão sobre eduardianos e georgianos é encontrada principalmente no ensaio "O Senhor Bennett
e a Senhora Brown", traduzido na parte II, página 150.
16
No presente momento, estamos sofrendo não da decadência,
mas da falta de um código de maneiras que escritores e leitores
aceitem como prelúdio de uma relação mais excitante e
amigável. A convenção literária do tempo é tão artificial –
temos que falar sobre o clima durante toda a visita – que,
naturalmente, os fracos são tentados a infringi-la e os fortes são
levados a destruí-la, tanto suas fundações quanto as regras da
sociedade literária. Os sinais disso estão claros em todos os
lugares. A gramática é violada e a sintaxe desintegrada, como
quando um menino passa o final de semana com uma tia e rola
sobre o canteiro de gerânios por puro desespero enquanto as
solenidades do sabbath se desenrolam lentamente. Os autores
mais maduros não se entregam a tais exibições levianas de seu
tédio. A sinceridade dos jovens é desesperada e sua coragem
tremenda; simplesmente não sabem se usam o garfo ou os
dedos
16
.
Ao mesmo tempo em que se opõe firmemente aos preceitos do realismo
tradicional, Woolf também se mostra descontente em relação às rupturas e
deslocamentos da linguagem dos artistas modernistas. As afirmações de Newman
podem parecer muito vagas se não estabelecermos algumas características importantes
de Woolf e da vanguarda modernista como parâmetros de discussão. Os modernistas
são geralmente representados nos ensaios de Woolf por D.H. Lawrence, James Joyce,
T.S. Eliot e Lytton Stratchey. São os georgianos de "O Senhor Bennett e a Senhora
Brown". Inicialmente, a proposta deste trabalho é apresentar os pressupostos teóricos
que servem de pano de fundo e alimentam o debate entre Virginia Woolf e seus
contemporâneos, na defesa ou ataque dos princípios preestabelecidos pelos movimentos
literários anteriores. Os debatedores eduardianos são representados, principalmente por
H.G. Wells, Arnold Bennett e John Galsworthy. A divergência entre eduardianos e
georgianos concentra-se nos objetivos do romance. Os eduardianos focalizam o
concreto, o que as personagens têm, sua história, sua família, suas posses, o exterior.
16
Ver ensaio "O Senhor Bennett e a Senhora Brown", parte II deste trabalho, página 150.
17
Por sua vez, os georgianos preparam a vanguarda dos caminhos do inconsciente, do
fluxo de consciência, do monólogo interior, do experimentalismo.
A transição de um movimento ao outro e a consolidação dos modernistas é pano
de fundo para a carreira crítica de Virginia Woolf e sua tentativa de estabelecer uma
estética abrangente para esse movimento. É de se esperar que essa fase de mutação tanto
da realidade quanto da ficção dê origem a muitas reações e a oposições ferozes daqueles
que pretendem assimilar e representar as modificações como nova ordem.
Woolf sofreu a crítica sistemática dos Leavis da Revista Scrutiny e de Arnold
Bennett, do triunvirato eduardiano citado acima, e, por vezes, de opositores mais
amigáveis e nem sempre mais condescendentes como T. S. Eliot, D. H. Lawrence e
James Joyce, que detinham certa posição favorável junto a ela e à nova bandeira do
movimento contemporâneo experimental modernista. Lytton Stratchey e E.M. Forster,
menos experimentais do que Eliot, Lawrence ou Joyce e mais dependentes das lições
dos antepassados, também participaram da discussão. Woolf se debatia na terra de
ninguém do momento de transição entre eduardianos e georgianos, contra a futilidade
dos primeiros e a falta de pulso dos últimos para resgatarem independentemente, de uma
vez por todas, a natureza humana, a Senhora Brown, a personagem esquecida pela
escola anterior num canto de vagão.
17
Woolf se mostrou incapaz de definir exatamente sua posição no fogo cruzado
entre as duas tendências. Cuidadosa, utilizou a estratégia brilhante de mesclar a teoria e
a ficção tanto em seus romances, em comentários e posicionamentos de algumas
personagens, quanto em seus ensaios críticos. Protegia-se, desse modo, pelo menos na
intimidade, se é possível afirmar isso, da execração certa de seus oponentes, do próprio
ressentimento represado de “filha de um homem educado” em busca de seu lugar na
sociedade cujas relações modificadas ainda não havia digerido por completo, e da
inabilidade de resolver as questões propostas por ela mesma no cenário em que o
modernismo se estabelecia.
A relação de subordinação e dependência e a importância do respeito do escritor
pela personagem permeiam toda sua obra crítica. Ao nos apresentar a senhora Brown
como a natureza humana, que não se modifica, que aguarda pacientemente em seu canto
de vagão pelos outros passageiros e suas tendências, Woolf estabelece a importância
maior da personagem em relação aos outros elementos do romance. São os artistas que
17
Referência à discussão sobre personagem em "O Senhor Bennett e a Senhora Brown". Ver ensaio na
parte II, p.150.
18
vêm e vão, entram e saem do vagão e a descrevem com mais ou menos qualidade de
estilo e de linguagem.
Do mesmo modo que Virginia Woolf parece não dar conta, em termos práticos,
das questões entre eduardianos e georgianos e de sua própria postura estética, também
não deixa de utilizar seu tom prescritivo, provável herança vitoriana, que devido ao fato
de contradizer o conteúdo das idéias que tende a defender é, ao mesmo tempo, vago e
ambíguo e interfere na elaboração de suas conclusões.
Virginia Woolf tentou converter seu ceticismo quanto aos modernistas em uma
posição significativa junto a eles, apesar das hesitações que poderiam tê-la mantido à
parte dessa corrente. O que foi praticado na ficção foi muito mais difícil de teorizar.
Provavelmente porque quando conhecemos as variáveis, experimentamos as sensações e
os resultados, mas ainda não deciframos o objetivo, não conseguimos explicar por que
fazemos alguma coisa dessa ou daquela maneira. Os ensaios são tentativas de encontrar
o fio condutor que organizava a ação dos romancistas e de todas as outras pessoas
envolvidas na realidade em mutação do princípio do século XX. Algumas das
afirmações de Woolf e suas incertezas fazem mais sentido atualmente porque temos a
visão completa daquele momento. Assim como o romancista precisa de distanciamento
para tornar sua obra verossímil, todas as pessoas necessitam da amplitude de visão que
só o tempo proporciona para compreender as próprias experiências e opções.
Como Virginia Woolf tinha consciência disso, questionou seu tempo, mas não
conseguiu explicá-lo. Talvez por essa razão continue a exercer grande fascínio sobre os
estudiosos de crítica literária, enquanto muitos de seus contemporâneos mais assertivos
já se perderam na obscuridade ou são reconhecidos por causa de sua relação com ela.
Particularmente, acredito que Arnold Bennett e Q.D. Leavis sejam exemplos dessa
situação.
Certamente, Woolf não está sozinha na lapidação de uma “estética do desafeto”,
afirma Herta Newman. Essencialmente, é o que os modernistas estabelecem. De fato, é
o que toda nova geração faz a fim de construir uma esfera de influência na comunidade
fechada das artes. O que nos chama mais a atenção, porém, é a ênfase que Virginia
Woolf dá à guerra armada contra os antecessores e quanto tempo se dedica a tal postura
e a mantém, encontrando nessa guerra sua argumentação e o meio mais natural de
liberar seus mais profundos ressentimentos. Ela parece cultivar o ressentimento e suas
objeções parecem sinceras, embora deixem a sensação de preencher o vazio deixado
pela impossibilidade de explicar o caminho da ficção naquela fase.
19
Woolf demonstra sua indignação em relação à falsidade da vida que é veiculada
pela ficção materialista dos eduardianos, em que cenário e posses têm mais voz do que
as personagens. As personagens e suas idiossincrasias deveriam ser a essência do
romance e não detalhes a serem preenchidos pelo leitor. Contudo, Woolf se mostra
cuidadosa e explica que a ênfase na personagem não faz dela elemento exclusivo da
realidade ficcional.
Ser o elemento principal do romance pressupõe todo um contexto. A
representação da realidade e a existência de uma mensagem provêm das relações das
personagens entre si, daquilo que sua natureza demonstra implícita e explicitamente e
da maneira como o romancista encara essas atitudes e decide expressá-las.
Tornou-se rotineiro nesse estudo dos ensaios tentarmos descobrir quando Woolf
quebraria o raciocínio que nos envolve com evasivas contraditórias, ou pelo menos,
instigantes e, por vezes, questionáveis. Para Woolf, ao falharem na criação honesta de
personagens verdadeiras, verossímeis, os eduardianos perderam o senso do propósito
maior do romance. Contudo, Woolf percebe também que sua geração continua
ineficiente na criação de situações plausíveis e de personagens reais e verdadeiras.
Fracassam, inadvertidamente, por falta de experiência e modelos, ou acidentalmente,
para manter o status quo ou para tornarem seu experimentalismo mais visível. Nem
mesmo a própria Woolf dá conta completamente da criação dessas personagens da
maneira que acreditava ser correta, porque havia caminhos e tentativas, mas nenhuma
conclusão aparente e elucidativa que indicasse a direção certa. Ela entendia que o
objetivo a que visava em relação ao romance era extremamente difícil de atingir, talvez
nem fosse possível.
Tal descoberta significava um desastre para o desenvolvimento do romance, pois
se a personagem não era acessível, seria dispensável, e o romance como era concebido
estava fadado a não sobreviver. Outra dificuldade constatada: o romance também
mudara, como todas as relações humanas, mas ninguém sabia ainda como ou quanto ou
para quê.
Virginia Woolf utiliza argumentos fortes em suas discussões, porém muitas
vezes deixa-os escorrer pelos dedos, como deixou sua Senhora Brown, retribuindo com
evasivas quase pueris àquilo que o fragmentado mundo moderno lhe oferecia. O tom
vago e o escapismo fazem com que a busca pelo estilo ideal de ficção se perca na
ambigüidade dos textos teóricos e que estratégias brilhantes e peculiares fiquem
confinadas à impossibilidade de relacionar o mundo real ao das idéias. Woolf parece ter
20
conhecimento dessa deficiência e, mesmo assim, insiste na tentativa de estruturar
didaticamente a criação do romance alinhavado na crítica contra os eduardianos.
Faz-se necessário o resgate de suas idéias e de sua busca pela estética do
romance moderno, em que Proust e Tolstoi são os exemplos mais recorrentes de
qualidade. Além disso, há a necessidade de encontrar as respostas deixadas em branco
pela autora, dar continuidade a sua busca por uma estética capaz de abraçar até mesmo
Virginia Woolf e propiciar aos interessados naquele período e no trabalho crítico de
Woolf mais uma possibilidade de leitura desse viés de sua produção.
Toda sua obra é importante para tentarmos estabelecer ou desenvolver sua
estética literária. Contudo, vamos nos ater mais detalhadamente ao estudo dos cinco
ensaios críticos, elaborados entre 1918 e 1929 e traduzidos na segunda parte deste
trabalho. São eles "O Ponto de Vista Russo", "A Ficção Moderna", "Como se Atinge
um Contemporâneo", "O Senhor Bennett e a Senhora Brown" e "Fases da Ficção".
Foram escolhidos em função de sua representatividade das idéias importantes da autora
e organizados de modo a contemplar nosso recorte temático e nosso objetivo de
demonstrar os primórdios da tentativa de elaboração de uma estética que contemplasse a
ficção inglesa do século XX.
Antes de nos debruçarmos sobre os ensaios propriamente ditos, discutiremos um
pouco do imaginário pós-vitoriano, eduardiano, realista, concreto e georgiano
impressionista, experimental e fragmentário. Todas as divergências ocorreram naquele
momento em que as relações humanas mudaram, e com elas todas as instituições e o
que se esperava delas, porque nada mais fazia sentido do jeito que tinha sido sempre: o
humanismo utópico enveredou para a guerra mundial, as classes sociais se
fragmentaram, o que acarretou em sectarismo social ainda maior, o acesso à arte dos
outros se tornou muito mais fácil, causando o embaraço de perceber quão longe dos
russos e dos franceses estavam os cérebros ingleses que experimentavam novas
tendências, perdidos no deserto sem referências de antepassados rejeitados.
21
Há um vazio entre 1895 e 1910
As confusões sociais e as contradições no complicado processo de explicar as
mudanças de comportamento e suas razões são a verdadeira fonte de muitos dos
problemas da conduta humana e de sua (des)valorização, que as ações pessoais
intensificam. Uma sociedade abertamente consumista, que se preocupa com a
transmissão da riqueza acumulada, tenta adequar-se a um código herdado dos
antepassados e à moralidade daquilo ou daquele que é considerado superior. O paradoxo
de Virginia Woolf está em tentar conquistar unidade de tom, de um modo de ver e
julgar notavelmente modernos em seu universo de confusão, mudança e acomodação
política, social, econômica, cultural e moral.
Os romancistas modernos deveriam perceber que não há necessariamente
correspondência entre classe e moralidade, que a sobrevivência da discriminação
depende de muitos fatores além dessa relação, que os diferentes tipos de
desenvolvimento humano devem ser contrastados e não simplesmente divisados, que o
cultivo dos seres humanos, no sentido de desenvolver civilidade e educação, deveria
estabelecer um padrão contra os processos sociais civilizatórios preestabelecidos.
Sem dúvida, Jane Austen abriu caminho para que George Eliot enxergasse além
dos muros da comunidade familiar e Charles Dickens visualizasse a experiência humana
não sob a crítica moral, mas sob o olhar social bem antes de Henry James e dos
modernistas. A importante tradição da análise moral é bem apropriada para
continuarmos a traçar os caminhos do romance, pois, utilizada inteligentemente,
desenvolve-se no reconhecimento de outros tipos de pessoas, em outros países e em
outras atitudes em que a ênfase moral passa a se apoiar. Contrapondo a delicadeza do
desenvolvimento humano à crueza do poder ecomico, uma ênfase moral diferente se
torna inevitável. Há um novo juízo de valores de sociedade que se desenvolve não como
observadora passiva, mas como matriz ou destruidora ativa dos valores e das relações
humanas, e, conseqüentemente, dos valores literários de referência públicos e pessoais.
Há uma ruptura com a tradição do século XIX, que se arrasta entre 1895 e 1910,
e além, um período de crise e de tomadas de posição. Muitos dos caminhos a serem
seguidos e cada voz criativa que se levantou foram complementares e muitos dos
22
problemas levantados no começo do século XX ainda não foram resolvidos. Diz
Williams
18
De fato, o problema central, a relação entre o que se divisou
como ficção individual ou psicológica e ficção social ou
sociológica, ainda está, embora, talvez, de maneiras diferentes,
na essência de nossas dificuldades criativas e preocupações.
O ensaio de Virginia Woolf, "O Senhor Bennett e a Senhora Brown", é decisivo
na apresentação dessas questões fatídicas aos modernistas. Entre 1870 e 1914 começava
a nova fase da história inglesa. 1895 foi o último ano de Hardy como romancista e o
primeiro de Wells, o mesmo da trilogia Bennett, Galsworthy, Wells. Henry James e
E.M. Forster acumularam evidências sobre a sociedade durante todo esse tempo e as
transferiram para sua literatura, que abriu possibilidades para o experimentalismo da
nova geração modernista. Muitos escritores de língua inglesa contribuíram para a
construção da transição do século XIX para o XX e a dominação intelectual inglesa,
assim como a dominação imperialista, entra em crise. A Inglaterra foi uma cultura
dominante, filtrando outras culturas, outras classes em sua própria tessitura, obstruída
pela experimentação artística dos grupos que produziram o trabalho criativo de fato:
mulheres, que tinham sido excluídas muito especificamente da formação masculina do
mundo embora sua presença na produção literária de qualidade desde antes do século
XIX seja inegável, indivíduos em mobilidade socioeconômica e de tradições
educacionais diferentes daquelas de Oxford e Cambridge, imigrantes, gênios criativos
de outras nacionalidades.
A tensão crescente nesse período transformou-se em ruptura, em distúrbios
internos entre linguagem e forma que são, na verdade, representações dos problemas de
relacionamentos em transformação e da crescente consciência dos escritores de que
aquilo que deveriam acessar na totalidade para devolver imaginativamente aos leitores
era profundamente fragmentário e perturbador. Submeter-se à forma tradicional da
literatura significava aceitar a consciência dos escritores materialistas
19
, ou a falta dela.
Questioná-la significava opinar radicalmente contra as profundas relações com
18
Em The English Novel from Dickens to Lawrence. London: The Hogarth Press, 1984. p.123
19
Os autores da geração anterior à de Virginia Woolf, citados anteriormente como o triunvirato
eduardiano.
23
propriedade, renda, trabalho e educação de toda uma sociedade além de atacar a própria
fundamentação da literatura, que consiste inevitavelmente da interação dos interesses do
que conhecemos como experiência humana.
Uma sociedade dita estável enfatiza o ser humano. Desde que não haja guerras,
pobreza, fome, conflitos revolucionários, a estabilidade possibilita que as pessoas
enxerguem seus pontos fortes e fracos e os examinem seriamente a fim de atingir a
civilidade almejada e representá-la na arte. A evolução do romance desde meados do
século XIX até 1914 foi uma modificação necessária pela percepção repentina e
desesperada do que estava realmente em risco nas mudanças das relações humanas: a
completa incerteza do que estava por vir, a conseqüente perda do controle da história
em desenvolvimento e a fatídica descoberta que civilidade estável em qualquer
sociedade é uma utopia, o que foi consolidado com a Primeira Guerra. Uma saída era
buscar refúgio nos períodos histórico-literários fechados, como a literatura grega
clássica ou o século XVIII, por exemplo, na esperança de construir um ponto de
referência para a literatura produzida no caos daquele momento. Mesmo a distância dos
russos e a dificuldade de acesso a sua cultura funcionariam para ajustar o foco e suprir a
necessidade de referencial e de amplitude de visão.
Assim como em seu cotidiano, na literatura Woolf buscava estratégias e
definições para compreender seu tempo, além de algum modo de apreender o que estava
acontecendo e de ser capaz de representar o que era decisivo, significativo e importante
para o leitor comum e para si mesma. A separação do que é pessoal e social nos
confunde, pois a consciência pode ser tanto pessoal quanto social. Cada indivíduo com
sua consciência é parte integrante da consciência social e isso é uma das plataformas do
dilema do romancista. Cada personagem representa uma consciência particular que
relacionada a outras estabelece a representação da consciência sociológica. O
romancista certamente imprime sua própria consciência ao desenvolvimento de sua
experiência literária, onde o intelecto e as paixões, ou o espírito da superioridade
intelectual, são certamente relevantes e o perseguem com diversas roupagens ao longo
de seu aprendizado literário. Os modernistas, de modo geral, escolheram exprimir a
consciência pessoal, o desenvolvimento da mente de cada um, a fim de explicarem a
cegueira da consciência social e moral de um período convulsionado e sem
perspectivas.
A energia daquele momento de transição é renovada a cada discussão sobre o
romance, embora a crítica e a história da literatura pareçam inertes diante de todas as
24
questões ainda sem resposta sobre a separação de classes e categorias, das preocupações
mútuas e hostis, dos métodos, de social e pessoal, de público e privado, de estudos
sociais ou literários.
O que nos importa é a crise: onde o que era ou é mais criativo
no romance – a resposta aberta a uma sociedade em
crescimento e ativa, a resposta igualmente aberta ao sentimento
intenso e especial de associação – enfrentou grandes
dificuldades: dificuldades de relacionamento e de forma,
dificuldades que se entrelaçam e perturbarão pelo resto de
nosso século.
20
O dilema de Woolf ecoava no meio artístico e foi lapidado, contemporizado e
complicado pelas relações estabelecidas entre ela, o grupo de Bloomsbury, posições
críticas como as da Scrutiny e o momento inglês na história do início do século XX.
20
Em The English Novel from Dickens to Lawrence. London: The Hogarth Press, 1984. p.139
25
Bloomsbury
Originalmente o grupo que se reunia no bairro de Bloomsbury em Londres,
próximo ao British Museum, tinha representantes de diversas áreas: os críticos de arte
Clive Bell e Roger Frye, a pintora Vanessa Bell, o pintor Duncan Grant, o economista
John Maynard Keynes, o jornalista e editor Desmond MacCarthy e Molly MacCarthy, o
psiquiatra Adrian Stephen, o historiador Lytton Stratchey, o assistente social Saxon
Sydney-Turner, o escritor, editor e assistente social Leonard Woolf e a escritora e crítica
literária Virginia Woolf, seu expoente mais celebrado. Alguns estudiosos desse grupo e
de sua importância na Inglaterra incluem o escritor e crítico literário E.M. Forster e
Thoby Stephen, um dos irmãos de Virginia Woolf, e o contato do grupo com outros
elementos de Cambridge.
O grupo estudava e discutia filosofia, estética, ética, e quaisquer outros temas
que fossem de interesse, que despertassem a certeza de que quanto mais se conhece
menos se sabe. A leitura de Principia Ethica de G.E. Moore e mais tarde das idéias de
Sigmund Freud são com certeza ingredientes adicionados à obra de Virginia Woolf
gradualmente, até que os experimentos com o stream of consciousness
21
se tornassem
familiares e mais concretos.
A liberdade de expressão e de aprendizado em Bloomsbury, que fortaleceu o
lado observador que Virginia desenvolvera nos jantares de sua infância, e a democracia
aplicada permitiram que sua capacidade crítica fosse aguçada e posta em prática. A
liberdade e o estímulo do Bloomsbury Group encorajavam a criação de todos, cada qual
em sua área de atuação e com sua própria metodologia. Em A Writer’s Diary Virginia
Woolf descreve sua produção literária e crítica:
... Eu escrevo o que eu gosto de escrever, e há uma finalidade
nisso. (...) Devo escrever o que gosto e eles [os outros
integrantes do grupo de Bloomsbury] devem dizer do que
gostam.(...)
22
21
fluxo de consciência
22
... I write what I like writing and there is an end on it. (...)I’m to write what I like; and they are to say
what they like. Id. Ibid., p. 44-45. Tradução nossa.
26
Talvez o tom subjetivo ou o ritmo de histórias da hora do jantar por vezes
assumido pela crítica em seus ensaios tenha sua origem nas noites em Bloomsbury e nas
experiências da infância com Leslie Stephen, seu pai. Esse tom lhe rendeu muitas
críticas de contemporâneos como Q. D. Leavis, por exemplo, e de estudiosos como
David Daiches (1924), Louis Kronenberger e Mark Schorer (1942), e Diana Trilling
(1948), entre outros; e ainda o título de A Grande Sacerdotisa de Bloomsbury
23
,
concedido pelo contemporâneo e amigo T.S. Eliot, que acrescentou que, sem ela, o
grupo teria se mantido amorfo ou marginal e que, com a morte dela, todo um padrão de
cultura se foi.
24
A habilidade crítica de Virginia Woolf sempre foi influenciada por nomes que
participaram de sua formação, assim como Moore e Henry James, de quem ela absorveu
os princípios de criatividade como ação, e de seleção de uma obra de arte como um
exercício de julgamento moral. O ato de criar não deveria ter metodologia definida ou
regras a serem seguidas. Virginia Woolf repete as idéias de Henry James em "The Art
of Fiction"
25
em seu ensaio "A Ficção Moderna", de 1919:
Não existe matéria apropriada de ficção. Tudo é apropriado:
sentimentos, pensamentos. Toda qualidade do cérebro ou do
espírito é aproveitada e nenhuma percepção é errônea...
26
Assim como James, Virginia Woolf busca a estética da arte, a perspectiva do
autor conjugada à experiência do leitor da obra. Ela busca a regeneração do romance de
acordo com os princípios democráticos da criação artística enquanto expressão da
experiência humana observada no mundo real, analisada e exposta através de
personagens autônomas que assumem o controle de suas próprias vidas no romance,
independentemente de qualquer escola literária.
A definição do grupo de Bloomsbury sempre depende da fonte que foi
consultada e de seu relacionamento com sua estética ou seus integrantes. Nem mesmo
as personalidades mais marcantes do grupo concordam entre si sobre o que foi, ou
mesmo se houve, de fato, o grupo de Bloomsbury.
23
(The High Priestess of Bloomsbury) ELIOT, T. S. “Virginia Woolf”, Horizon 3, May, 1941. Tradução
nossa.
24
Id. Ibid.
25
MILLER, Jr., James. Theory of Fiction: Henry James. NY: Lincoln, 1972
26
Ver ensaio "A Ficção Moderna", parte II, p. 135.
27
Thoby Stephen decidiu continuar a encontrar seus amigos do Trinity College de
Cambridge fora da universidade e iniciou os encontros às quintas-feiras. Leonard Woolf
enfatiza em sua autobiografia que o Bloomsbury continuou sendo aquele grupo de
amigos que se reunia uma vez por semana para conversar. Antes de se encontrarem em
Gordon Square, o grupo de rapazes se reunia como uma sociedade secreta de leitura, o
Midnight Society, que mais tarde tornou-se Apostles e, depois, com o acesso das irmãs
Stephen, Vanessa e Virginia, Bloomsbury.
Todos os rapazes de Cambridge tiveram de se adaptar à presença feminina nas
reuniões, embora mantivessem alto grau de formalidade a princípio. Segundo Virginia
Woolf, dois momentos foram decisivos para o verdadeiro início de Bloomsbury como o
conhecemos, formado de indivíduos autênticos e com liberdade de expressão. Primeiro:
uma anedota de Lytton Stratchey sobre uma mancha de tinta no vestido de Vanessa, que
supostamente seria sêmen? – comentário que inauguraria a liberdade de discussão de
temas sexuais em oposição à formação vitoriana tradicional de todos. Segundo: a
descoberta de que a maior parte dos rapazes do grupo era homossexual, o que levou
Virginia Woolf a refletir sobre suas próprias atitudes e postura, além de influenciar sua
liberdade de comportamento.
A morte de Thoby Stephen em 1906, embora traumática, causou uma breve
interrupção dos encontros, que logo recomeçaram. Em 1907, Vanessa Stephen e Clive
Bell se casaram e trouxeram as artes plásticas para Bloomsbury, principalmente o que
havia de mais moderno, e os integrantes do grupo incluíram a vanguarda européia nos
saraus das quintas-feiras.
Em sua autobiografia
27
, Leonard Woolf escreveu que aquilo que o mundo
chamava de Bloomsbury nunca existira, pois o termo era usado erroneamente para
designar um grupo imaginário de pessoas com características e objetivos largamente
imaginários também. Leonard Woolf reconhecia as influências do grupo como um todo
feito de reações individuais e não comunitárias, como as influências exercidas sobre
amigos que as compartilham, mas reagem e as absorvem de maneiras muito pessoais.
Ele também comentou a eleição de Virginia Woolf como rainha desse séquito
imaginário que, de acordo com os observadores, vivia isolado em uma redoma estético-
literária. A própria Virginia, no ensaio "Old Bloomsbury", só menciona as origens do
27
WOOLF, Leonard. An autobiography, II: 1911 – 1969. NY, Oxford University Press, 1980. p. 9, 10,
244
28
grupo que veio a ser conhecido como Bloomsbury contando que a mudança de endereço
dos irmãos Stephen em outubro de 1904, logo após a morte de seu pai, para aquele
bairro de Londres conhecido como Bloomsbury coincidiu com o início da participação
das irmãs Stephen (Vanessa e ela) nas reuniões dos rapazes de Cambridge.
1910 foi o ano em que, segundo Virginia Woolf, o modo de enxergar o mundo
mudou. Foi o ano da primeira exibição pós-impressionista, organizada por Roger Fry e
Desmond MacCarthy. Virginia Woolf passou a encarar o mundo como uma grande
pintura impressionista.
Também em 1910, Duncan Grant e Adrian Stephen participaram de uma
manifestação popular contra o militarismo emergente e da crescente desilusão com o
imperialismo inglês. Nesta época, Leonard Woolf estava no Ceilão, de onde retornou
em 1911. Bloomsbury já se tornara alvo de desaprovação popular, muito mais em
termos éticos e morais do que estéticos ou políticos. Havia um grupo de jovens que
vivia e se comportava à margem dos costumes vigentes. Qualquer idéia proveniente de
tal centro de irradiação de idéias subversivas e incompreendidas, tanto no âmbito social
quanto no estético, era um alvo certeiro do status quo. Por exemplo, a juventude deveria
entusiasmar-se e defender a pátria contra seus inimigos. Bloomsbury sempre foi um
grupo consciente do mal da guerra e das estratégias de dominação e defendia a paz,
portanto, não poderia ser confiável.
Durante a Primeira Guerra, o pacifismo de Bloomsbury foi amplamente
demonstrado por seus participantes, que se tornaram opositores conscienciosos e ativos.
Um panfleto contra a guerra produzido por Clive Bell, por exemplo, foi confiscado e
queimado em 1915.
Para alguns, como Clive Bell, a guerra desintegrou o velho grupo de
Bloomsbury; para outros, como Leonard Woolf, a morte de Lytton Stratchey em 1932
desencadeou o princípio do fim. Para Virginia Woolf, o velho Bloomsbury acabou
quando o grupo da Gordon Square foi assolado por Lady Otoline Morrell, que seduziu
muitos dos integrantes do grupo para o glamour de uma sociedade diferente, onde o
poder do capital ditava as normas do bom gosto e das novas tendências.
Outras pessoas se juntaram aos antigos integrantes de Bloomsbury e a distinção
entre o novo e o velho grupo nunca foi muito possível, mesmo porque havia pessoas
que jamais se consideraram parte dele ou que nem gostariam de ser pensadas como tal.
Leonard Woolf considerou como novo Bloomsbury todos os antigos integrantes e os
29
filhos de Clive e Vanessa: Quentin, Julian e Angelica, sendo Davis Garrett e Francis
Birrel participantes secundários, ou menos ativos que os anteriores.
De acordo com Quentin Bell, sobre o grupo de Bloomsbury
dificilmente pode-se dizer que tenha tido idéias comuns sobre
arte, literatura ou política. Não havia um corpo de doutrina,
código de comportamento ou mestres.
28
Raymond Williams confirma:
A questão não era ter qualquer teoria ou sistema comum, quer
dizer, geral, não só porque não era necessário – pior, – seria
provavelmente algum dogma imposto – mas primordialmente, e
por questão de princípio, porque tais teorias e sistemas
obstruíam o verdadeiro valor organizativo do grupo, que era,
por sua vez, a expressão mais livre do indivíduo civilizado.
29
Contudo, S.P. Rosenbaum identifica quatro fontes que influenciaram a filosofia
de Bloomsbury: o puritanismo, o utilitarianismo, o liberalismo e o esteticismo. Afirma
também que
Bloomsbury redirecionou o puritanismo com seu ateísmo, o
utilitarianismo com o platonismo, seu liberalismo com
pacifismo, e seu esteticismo com amor.
30
28
(…) can hardly be said to have had any common ideas about art, literature or politics. It had no body
of doctrine, no code of conduct, no masters. BELL, Q. Bloomsbury. London: Weidenfeld & Nicolson,
1986, p.12. Tradução nossa.
29
The point was not to have any common – that is to say, general – theory or system, not only because
this was not necessary – worse, – it would probably be some imposed dogma – but primarily, and as a
matter of principle, because such theories and systems obstructed the true organising value of the group,
which was the unobstructed free expression of the civilized individual. WILLIAMS, R. “The Bloomsbury
Fraction. Problems in Materialism and Culture. London: Verso, 1989, p. 165. Tradução nossa.
30
Bloomsbury modified their puritanism with atheism, their utilitarianism with platonism, their liberalism
with pacifism, and their aestheticism with love. ROSENBAUM, S.P. “Virginia Woolf and the Intellectual
Origins of Bloomsbury.” In: GINSBERG, Elaine e Laura Moss Gotlieb, eds., Virginia Woolf: Centennial
Essays. Troy, New York: Whiston, 1983. p. 24. Tradução nossa.
30
Depois da Primeira Guerra, Bloomsbury tornou-se bastante popular entre os
jovens, e bastante influente durante a década de 1920. Havia, igualmente influente, o
grupo de críticos que desaprovavam a maneira Bloomsbury de descrever o mundo. Eles
estavam, na sua maioria, centrados em Cambridge e trabalhavam com F.R. e Q.D.
Leavis, que publicavam a revista literária Scrutiny.
F.R. Leavis criticou duramente as memórias de Maynard Keynes, My Early
Beliefs, utilizando expressões que demonstram muito do sentimento anti-bloomsburiano
comum entre os críticos ingleses da década de 1920:
Articulação e irrealidade cultivadas juntamente; indelicadeza
disfarçada na articulação; convencimento se encerrando a
salvo em um senso confirmado de alta sofisticação; a incerteza
sobre a seriedade ou a falta dela em alguém, considerando-se
postura irônica: quem não observou este processo pelo menos
uma vez?
31
O mesmo tom irônico, desaprovador e agressivo também foi utilizado contra
Virginia Woolf no ensaio "Caterpillars of the Commonwealth Unite!"
32
, publicado por
Q.D. Leavis, a respeito de Three Guineas.
Na década de 1930, as críticas aos artistas de Bloomsbury continuaram pouco
amigáveis e no mesmo tom irônico dos Leavis. Em 1935, Frank Swinnerton descreveu
Bloomsbury em The Georgian Literary Scene como um grupo que incorporava a
suposição de que seria superior ao restante da população britânica.
33
A crítica negativa a Bloomsbury, de que eles teriam se insinuado como
formadores de opinião e reguladores de gosto na mídia britânica, persistiu durante
décadas. Até mesmo de pessoas próximas do grupo viriam críticas duras como as do
filho de Vita Sackville-West, Benedict Nicolson, em carta a Virginia Woolf, sobre a
31
Articulateness and unreality cultivated together; callousness disguised from itself in articulateness;
conceit casing itself safely in a confirmed sense of high sophistication; the uncertainty as to whether one
is serious or not taking itself for ironic poise: who has not at some time observed the process? LEAVIS,
F.R. “Keynes, Lawrence and Cambridge in The Common Pursuit. Harmondsworth: Pelican, 1970, p.
257. Tradução nossa.
32
Scrutiny VII, 2, setembro, 1938
33
citado por MCNEES, Eleanor, ed. Critical Assessments. New York: Routledge, 1994, p. 335-6, vol. I
31
passividade do grupo diante das mudanças sociais do período entre guerras. Em sua
resposta
34
, Virginia diz que em seus livros The Common Reader, Um Teto Todo Seu e
Three Guineas ela tinha feito tudo o que podia para alcançar um círculo mais amplo de
leitores do que o pequeno grupo de pessoas especiais e cultas que sempre a leriam.
Além disso, ela também menciona as palestras de Roger Fry sobre arte, que
influenciaram muito a sociedade da época.
Embora o grupo possa ser considerado progressista em sua contestação do
imperialismo e do colonialismo inglês, por exemplo, eles limitavam sua ação em prol da
sociedade a uma obrigação moral, o que foi, provavelmente, a percepção de Nicolson ao
questionar Bloomsbury. Diz Raymond Williams:
(...) A questão não é que essa consciência social seja irreal; ela
é de fato muito real. Mas é a formulação precisa de uma
posição social específica, na qual um segmento de uma classe
alta, dissidente da maioria dominante, relaciona-se com uma
classe inferior como um problema de consciência: não em
solidariedade, nem afiliação, mas como uma extensão do que é
ainda sentido como obrigações pessoais ou de grupo pequeno
(...)
35
O forte sentimento antagônico em relação a Bloomsbury influenciou a decisão
de Leonard Woolf de publicar as cartas de Virginia Woolf e seu diário, além de permitir
que Quentin Bell escrevesse a biografia dela. Em 1964, Leonard teria dito a Bell que as
brumas que envolviam Bloomsbury ainda não haviam se dissipado o suficiente para
permitir que a biografia de qualquer integrante do grupo tivesse qualquer chance com a
crítica.
36
34
The Letters of Virginia Woolf. NICOLSON, N. e Joanne Trautman, eds., London: The Hogarth Press,
1977, vol. 6, p. 420
35
The point is not that this social conscience is unreal; it is very real indeed. But it is the precise
formulation of a particular social position, in which a fraction of an upper class, breaking from its
dominant majority, relates to a lower class as a matter of conscience: not in solidarity, nor in affiliation,
but as an extension of what are still felt as personal or small-group obligations. WILLIAMS, R. “The
Bloomsbury Fraction”, Op. Cit., p. 155. Tradução nossa.
36
SPOTTS, Frederic. Letters of Leonard Woolf. San Diego: Harcourt Brace Jovanovish, 1989, p. 535
32
Em 1973, Quentin Bell publicou a biografia de Virginia Woolf e Carolyn
Heilbrun, Toward a Recognition of Androginy, que contribuiu muito para o início de
uma reavaliação da estatura de Virginia Woolf. Heilbrun escreveu que admitir
admiração pelo grupo de Bloomsbury ainda requer que se assuma uma postura
defensiva ou apologética.
37
O próprio Quentin Bell, quando publicou Bloomsbury em
1986, declarou que o livro tinha sido lançado em uma época em que o grupo parecia
estar morto e fedendo.
A hostilidade da qual o grupo de Bloomsbury foi vítima desde os anos 20 tem
freqüentemente sido considerada resultado da desaprovação moralista de seu estilo de
vida. Segundo Christopher Reed, o desagrado provocado por Bloomsbury até hoje
sugere que o grupo continua a representar algo que desafia os princípios
preestabelecidos.
38
Raymond Williams, por sua vez, explica Bloomsbury em termos da dissociação
ideológica contemporânea entre a vida pública e a vida privada:
A consciência de sua própria formação como indivíduos dentro
da sociedade, daquela específica formação social que os fazia
explicitamente um grupo e implicitamente uma fração de uma
classe, não estava só além de seu alcance; ela era diretamente
descartada, pois o indivíduo civilizado e livre já era seu dado
fundamental. A psicanálise poderia ser integrada enquanto
permanecesse um estudo anistórico de formações individuais
específicas. Políticas públicas poderiam ser integradas
enquanto fossem direcionadas a reformar e corrigir uma ordem
social que produzira esses indivíduos livres e civilizados, mas
que, por meio da estupidez e do anacronismo, agora ameaçava
a existência destes mesmos indivíduos e de sua reprodução
indefinida e generalizada. A natureza final de Bloomsbury como
grupo é que, de fato, e diferencialmente, ele foi um grupo de
indivíduos livres que defendiam a noção de indivíduos livres.
37
HEILBRUN, Carolyn. Toward a Recognition of Androginy. New York, 1973, p. 115
38
REED, C. “Bloomsbury Bashing: Homophobia and the Politics of Criticism in the 80’s” in Genders 11,
outono de 1991, p. 58 - 80.
33
Qualquer outra posição distinta desta suposição especial o teria
destruído, embora toda uma série de posições especializadas
fosse, ao mesmo tempo, necessária, a fim de que os indivíduos
livres fossem civilizados. E a ironia é que tanto a suposição
especial quanto a série de posições especializadas se tornaram
naturalizadas – embora agora mais evidentemente incoerentes –
em todas as fases posteriores da cultura inglesa. É neste exato
sentido que esse grupo de indivíduos livres deve ser visto,
finalmente, como uma fração (civilizadora) de sua classe.
39
Em outras palavras, a independência dos integrantes de Bloomsbury e de suas
obras e pensamentos foi o único elo que os manteve ativos e participantes daquela micro
sociedade civilizada. Do mesmo modo, a individualidade do ser humano moderno o
mantém, paradoxalmente, tanto senhor de seus pensamentos quanto escravo
participativo da manipulação política de seu tempo. Ser independente não o torna livre
da organização maior em que se insere. Bloomsbury influenciava a representação da
vida real que propunha, não necessariamente a vida de fato. Algumas de suas posições
políticas e estéticas explicitaram caminhos da modernidade, mas não a explicaram na
totalidade.
O nome de Virginia Woolf é sempre associado à estética de Bloomsbury.
Revendo o posicionamento do grupo em relação à sociedade, é muito simples concluir
que o trabalho de Woolf não tem qualquer relação com posicionamentos sociais que
efetivamente modifiquem o status quo de seu momento histórico.
Virginia Woolf foi claramente adepta da estética bloomsburiana de pureza da
obra de arte, mas também se interessou profundamente pelas causas sociais, não no
39
Awareness of their own formation as individuals within a society, of that specific social formation
which made them explicitly a group and implicitly a fraction of a class, was not only beyond their reach;
it was directly ruled out, since the free and civilized individual was already their founding datum.
Psychoanalysis could be integrated with this, while it remained an ahistorical study of specific individual
formations. Public policies could be integrated with it, while they were directed to reforming and
amending a social order which had at once produced these free and civilized individuals but which
through stupidity or anachronism now threatened their existence and their indefinite and generalized
reproduction. The final nature of Bloomsbury as a group is that it was indeed, and differentially, a group
of and for the notion of free individuals. Any general position, as distinct from this special assumption,
would then have disrupted it, yet a whole series of specialized positions was at the same time necessary,
for the free individuals to be civilized. And the irony is that both the special assumption, and the range of
specialized positions, have become naturalized – though now more evidently incoherent – in all later
phases of English culture. It is in this exact sense that this group of free individuals must be seen, finally,
as a (civilizing) fraction of their class. Op. cit. p.169. Tradução nossa.
34
sentido em que tomamos o social atualmente, como militante, mas no sentido dos
direitos do cidadão enquanto representante da humanidade, independentemente de sua
origem, classe, ou orientação sexual. Há muita tensão entre os princípios humanistas
que regiam as idéias de Virginia Woolf e sua postura enquanto membro da classe
aristocrática dominante do início do século XX na Inglaterra. Isso determinou muitos
aspectos negativos da crítica social e politicamente engajada contra a veracidade das
preocupações sócio-econômicas de Virginia Woolf, ou até mesmo da existência delas.
A autora teceu considerações sobre esses aspectos de maneiras particulares e em estilo
muito pessoal. Sua ficção está longe de ser somente representante da arte, pois está
impregnada de uma crítica social latente que se revela no comportamento e nas palavras
de suas personagens. Virginia Woolf era perfeitamente capaz de se tornar doutrinadora,
pois sua formação moral estava sempre em conflito com sua consciência artística e,
muitas vezes, a sobrepujava.
Parece-me justo sugerir que a espinha dorsal de toda sua produção – ficção,
ensaios, artigos – seja um forte senso crítico de cunho humanista. Seu feminismo, por
exemplo, deve ser compreendido no sentido mais amplo da palavra, ou seja, sua intensa
consciência da identidade feminina e seu interesse pelos aspectos que envolvem a
condição de ser um ser humano feminino em um dado momento ou período histórico.
O grupo de Bloomsbury repudiava inteiramente a moralidade engessada, as
convenções e a sabedoria tradicional. Eles eram amorais, explicou Maynard Keynes, no
sentido de que não reconheciam qualquer obrigação moral ou qualquer sanção com a
qual se conformar.
A diferença entre Virginia Woolf e o restante do grupo estava em seu
compromisso com o presente, que era influenciado por sua necessidade de preservação
dos laços com sua formação vitoriana, o que cria grande parte da tensão encontrada em
suas discussões críticas. A conjunção entre modernidade e tradicionalismo foi
responsável pelo tom característico de sua prosa. Seu objetivo era escrever textos que
satisfizessem o totalitarismo filosófico representado por seu pai, Leslie Stephen, ao
mesmo tempo que permanecessem fiéis às tendências defendidas pelo grupo ao qual
pertencia. Portanto, paradoxalmente, seus textos deveriam contribuir para o bem-estar
da humanidade enquanto obras de arte autônomas, estratégias puramente estéticas na
luta pela forma significativa.
35
A formação de Bloomsbury baseia-se em valores compartilhados de afeição
pessoal e satisfação estética. Havia ênfase contínua na franqueza: as pessoas deveriam
dizer exatamente o que sentiam e pensavam umas às outras. A racionalidade e a
franqueza dão à afeição uma definição importante embora limitada. A tolerância valiosa
e o peso exato da afeição parecem estar sempre alinhados com a realidade. Também
enfatizavam a clareza: o reconhecimento franco ou qualquer outra afirmação deveria
sempre ser confrontado pela pergunta o que você quer dizer com isso exatamente? Os
mesmos valores que os uniram tanto logo lhes trouxeram a egocêntrica sensação de
serem diferentes dos outros, o que, por sua vez, os identificava como um grupo restrito
e praticamente inacessível. Leonard Woolf disse
40
:
Estávamos convencidos de que qualquer pessoa com mais de
vinte e cinco anos, havendo talvez uma ou duas exceções
notáveis, era irremediável, pois perdera a magia da juventude,
a capacidade de sentir e a habilidade de distinguir entre
verdadeiro e falso... Estávamos vivendo o florescer de uma
revolta da consciência contra as instituições sociais, políticas,
religiosas, morais, intelectuais e artísticas, contra as crenças e
os padrões de nossos pais e avós... Queríamos construir algo
novo [em relação à organização da sociedade e suas
instituições]; estávamos com o grupo de construtores de uma
nova sociedade que deveria ser livre, racional, civilizada, em
busca da verdade e da beleza.
Bloomsbury representava um estilo novo, de fato, no desenvolvimento da nova
ordem. Não foram os precursores da consciência social, que, de qualquer modo, é um
fator mais evidente depois de 1918 do que antes de 1914. Esse fator na definição inicial
da estrutura do grupo está relacionado, certamente, à irreverência generalizada nas
idéias defendidas contra o status quo. Nada contradiz mais facilmente a imagem de
estetas apáticos e indiferentes quanto o notável arquivo de envolvimento político e
organizacional, no período entre guerras, de Leonard Woolf, Virginia Woolf e Maynard
Keynes. Uma maneira de questionar essa marca de consciência social tão sedimentada é
40
Em WOOLF, Leonard. Sowing, London, 1960, pp.160-161 (tradução nossa)
36
perceber sua associação à outra marca significativa: a preocupação com os menos
favorecidos. O que deve ser definido mais cuidadosamente é a associação específica do
que os sentimentos de classe realmente imutáveis são – sentido persistente de uma
divisão clara entre as classes alta e baixa – com sentimentos muito fortes e efetivos de
comiseração pelas classes oprimidas pela falta de condições. Desse modo, a ação
política é direcionada para uma reforma sistemática da classe dominante. O desprezo
pela estupidez dos setores dominantes sobrevive bastante inalterado, durante todas as
fases do grupo.
A contradição inerente – a busca pela reforma sistemática nos estratos
dominantes que são descritos, em geral, como míopes e estúpidos – não é ignorada. É
um caso de consciência social explicar, propor oficialmente e, ao mesmo tempo, ajudar
a organizar e educar as vítimas. Há um sentimento de que a classe dominante desde
então deve à classe oprimida algo remediável, que alimente o vazio de oportunidades e
teoricamente diminua o abismo entre elas. A consciência social é a formulação precisa
de uma posição social específica, em que uma fração da classe alta desprende-se de sua
maioria dominante, relaciona-se com a classe menos favorecida em função da
consciência, não em solidariedade ou afiliação, mas como extensão do que ainda se
percebe como obrigações pessoais ou de um grupo menor consciente contra a crueldade
e a estupidez de um sistema a favor de vítimas que, de outro modo, estariam
relativamente indefesas.
O complexo de atitudes políticas e, por conseguinte, de certas reformas políticas
e sociais que fluíram dessa consciência social foi especialmente importante na
Inglaterra. Essa consciência se reflete também na busca dos artistas por modos de
exprimir as necessidades humanas mais escondidas. É no pensamento que os indivíduos
atingem as mesmas condições de expressão. A técnica do fluxo da consciência é uma
estratégia que facilita a exposição dos princípios do romancista que pretende atingir o
leitor comum, mesmo aquele à parte das oportunidades da classe dominante ou do
estudo formal. Virginia Woolf transita em meio às contradições socioeconômicas e a
eterna discussão sobre o que é conhecimento e qual o valor que deve ser atribuído à
maneira como as idéias são transmitidas.
A palavra-chave é consciência. É um senso de obrigação individual, ratificada
entre amigos civilizados, que tanto influencia relações próximas como pode ser
expandida em preocupações sociais mais amplas, sem alterar sua própria estrutura. Essa
ligação pode se distinguir, como o próprio grupo sempre insistiu, do estado de espírito
37
insensível, complacente e estúpido dos setores dominantes. Mesmo sendo um grupo
com posturas à frente de seu tempo, Bloomsbury não percebeu que a conscientização
daqueles que eram diferentes deles começava a fazer mais sentido na vida cotidiana,
além dos tratados e dos manifestos. Todos os movimentos sociais do início do século
XX pretendiam galgar melhores condições de vida para os cidadãos em geral.
Bloomsbury era uma fração real da classe dominante existente na Inglaterra.
Eram prontamente contrários às idéias e valores de sua classe e ainda assim
voluntariosamente parte dela. Essa postura foi muito complexa e delicada, e o
significado dessas fragmentações tem sido muito subestimado. As dificuldades em lidar
com o presente, de certa forma, comprovam que sempre há uma vantagem no
distanciamento histórico. É menos complicado criticar, ou estudar, aqueles cuja obra
está terminada. Nesse sentido, Bloomsbury é um tema complexo, pois alguns de seus
tons e estilos ainda exercem considerável influência contemporânea e até presença no
caráter mutante da sociedade e da economia constituída, um fator muito mais
importante para a nova classe alta profissional inglesa, de valores e propósitos muito
diferentes daqueles da velha aristocracia ou da burguesia estritamente comercial.
Leonard Woolf afirmou que os componentes de Bloomsbury:
Pressupunham coisas sobre a sociedade em seus subconscientes
que eu jamais atinara conscientemente ou não. Viviam em uma
atmosfera peculiar de influência, maneiras, respeito e isso era
tão natural que não tinham consciência disso, assim como os
mamíferos não têm consciência do ar que respiram e os peixes,
da água em que vivem.
41
As raízes da amizade estavam em Cambridge: das treze pessoas geralmente
consideradas na formação do grupo, dez eram homens, dos quais nove eram alunos de
Cambridge, e três eram mulheres, a princípio suas irmãs ou esposas. Mesmo assim, os
efeitos da diferença de oportunidades oferecidas e de formação intelectual foram,
ironicamente às vezes, observados e relatados com indignação por Virginia Woolf em
ensaios como os de Three Guineas ou em Um Teto Todo Seu
42
.
41
WOOLF, L. Beginning Again. London, 1964. (p.117, tradução nossa)
42
WOOLF, V. A Room of One’s Own. London: The Hogarth Press and Co. Inc, 1929.
38
Em resumo, devemos enfatizar alguns aspectos importantes na formação
sociológica de Bloomsbury. Primeiro: a origem do grupo no setor mais bem preparado e
profissionalizado da classe alta inglesa, com ligações muito fortes e constantes com sua
classe como um todo; segundo: o elemento de contradição entre algumas dessas pessoas
altamente preparadas e as idéias e instituições de sua classe como um todo – a
aristocracia intelectual, em sentido mais restrito, ou pelo menos alguns ou poucos deles
usavam sua inteligência e educação para relacionar-se com o “vasto sistema de
artificialismo e hipocrisia” mantido pelas diversas instituições: a monarquia, a
aristocracia, a classe alta, a burguesia suburbana, a igreja, o exército, a bolsa de valores;
terceiro: a contradição específica entre a presença de mulheres extremamente
inteligentes e intelectualizadas nessas famílias e sua relativa exclusão das instituições
masculinas formativas e dominantes como as universidades, os governos e a igreja, por
exemplo; quarto: mais genericamente, as necessidades internas e tensões de classe como
um todo, em especial de sua fração mais preparada e profissional.
Sempre houve liberalidade em Bloomsbury no que diz respeito a relações
pessoais, apreciação estética e receptividade intelectual, o que propiciou certa
modernização das maneiras tanto na vida privada quanto na pública, mobilidade,
contato com outras culturas e sistemas intelectuais mais abertos, como o russo ou o
alemão, e mais adequados às novas tendências do começo do século XX. Liberalidade e
modernização eram palavras de ordem geral nas circunsncias sociais em
transformação e, especialmente, depois do choque da guerra de 1914 a 1918 e da
derrocada do império colonial. Bloomsbury não foi um grupo militante, mas seus
representantes originais foram agentes importantes e relativamente coerentes na
discussão das mudanças. Ao mesmo tempo, a liberalidade e a modernização foram mais
estritamente adaptações do que modificações no modo de ser de uma classe que, em sua
função auto-estabelecida de gerenciar as instituições dominantes e tendo sofrido todas
as mudanças, foi obrigada a aceitar e conviver com as novas personagens do século XX.
As atitudes de Bloomsbury em relação ao sistema, pelo menos, estavam entre
suas características mais evidentes. De fato, há alguma coisa no modo como
Bloomsbury negava sua existência formal como grupo enquanto insistia em suas
qualidades de grupo, o que é a chave para sua definição. O importante não era ter uma
teoria ou um sistema comum ou geral, que seria provavelmente algum dogma imposto
que obstruiria o pensamento dos indivíduos e seu verdadeiro valor organizacional, que
39
era a livre expressão do ser civilizado. Leonard Woolf
43
define bem a frustração causada
pelo efeito da Primeira Guerra na busca da civilidade:
Na década que antecedeu a guerra de 1914, havia um
movimento social e político no mundo, particularmente na
Europa e na Grã-Bretanha, que parecia maravilhosamente
esperançoso e excitante. Parecia que os seres humanos estavam
realmente a um passo de se tornarem civilizados.
Nesse sentido, Bloomsbury carregava os valores clássicos do iluminismo
burguês. Eram avessos às convenções, superstições, hipocrisias, pretensões e
manifestações públicas de seus ideais. Também se posicionavam contra a ignorância, a
pobreza, a discriminação racial e sexual, o militarismo e o imperialismo. Seu apelo
contra todos esses males não apresentava nenhuma alternativa para o desenvolvimento
de uma sociedade melhor.
Todas as tendências se tornam uma só na filosófica soberania do indivíduo
civilizado sobre as forças maléficas do cotidiano A confiança primordial de Bloomsbury
nas bases filosóficas de sua posição no período que antecedeu 1914, em seu longo
convívio com todas as outras forças sociais reais, perdeu-se. Na prática, como na
sensibilidade dos romances de E.M. Forster e de Virginia Woolf, só pretendia oferecer
evidências muito mais contundentes da essência do indivíduo civilizado do que elaborar
máximas ortodoxas. Em sua teoria e prática, da economia de Keynes ao trabalho de
Leonard Woolf pela Liga das Nações, Bloomsbury fez poderosas intervenções pela
criação de condições econômicas, políticas e sociais nas quais, livres de guerras,
depressão e preconceito, os indivíduos teriam liberdade para se tornarem civilizados. Na
verdade, o paradoxo de muitos juízos de Bloomsbury é que o grupo vivia e trabalhava
suas crenças com entusiasmo considerado constrangedor, por assim dizer, para aqueles
muitos que consideram individualismo civilizado uma frase que resume um processo de
consumo evidente e privilegiado.
Não é possível agrupar os efeitos do trabalho de Clive Bell na arte, de Maynard
Keynes na área econômica, de Virginia Woolf na ficção, de Lytton Stratchey na história
e dos freudianos na psicanálise e transformá-los em uma teoria geral do século XX. As
43
WOOLF, L. Beginning Again. London, 1964. (p. 36, tradução nossa)
40
posições diferentes que o grupo de Bloomsbury reuniu e efetivamente disseminou como
conteúdo da mente do indivíduo civilizado, educado e moderno são alternativas de uma
teoria geral incorporada pelo laissez-faire que nem questionamos porque a integração
efetiva desses pensamentos no dia-a-dia das pessoas comuns já aconteceu. O indivíduo
civilizado se isola em grupos que tentam explicar o restante da sociedade. A civilidade
se transformou na auto-definição de todas as pessoas que se consideram melhores e
mais seguras em sua autonomia do que os outros enquanto voltam sua atenção
livremente para isso ou aquilo, de acordo com a situação ou a necessidade do momento.
O objetivo principal de todas as intervenções públicas e civilizadas no âmbito privado é
assegurar esse tipo de autonomia, encontrando maneiras de atenuar pressões e conflitos
e evitando desastres. A consciência social serve, portanto, para proteger a consciência
pessoal.
Mesmo sendo tão controvertido, Bloomsbury articulava uma postura fadada a
tornar-se a norma civilizada. No poder de suas demonstrações de sensibilidade
particular, que deve ser protegida e expandida em forma de preocupação pública,
estabeleceram as formas efetivas da dissociação ideológica contemporânea entre
público e privado, novo e antigo, tradicional e moderno. A natureza de Bloomsbury
enquanto grupo é que eles eram, de fato, um grupo de indivíduos que agia em favor do
princípio de liberdade dos indivíduos. Qualquer postura distinta dessa teria destruído
sua unidade naquele momento. Contudo, simultaneamente, todas as posturas
especializadas, liberais e de respeito mútuo eram necessárias para que os indivíduos
livres fossem civilizados.
41
E tudo mudou a partir de 1910
Desejo afirmar apenas uma possibilidade. Se a natureza
humana mudar, será porque os indivíduos conseguem se ver de
uma nova maneira. Aqui e ali, as pessoas – muito poucas, mas
há entre elas alguns romancistas – estão procurando fazer
isso.
44
Surpreendente, e talvez tardiamente, em relação a uma série de eventos
importantes na Europa continental, a Inglaterra entrou na história do Modernismo em
1910. Havia ali, assim como no resto da Europa, o triunfo da opulência concomitante à
pobreza brutal, ainda mais paradoxal no império mais poderoso do mundo. O
acontecimento que simbolicamente marca o final daquele período seria a morte do rei
Edward VII naquele ano, e o funeral do século XIX na Inglaterra.
A partir de 1910, as idéias modernistas, a tensão que antecedeu o confronto
armado e a oposição aos ideais preestabelecidos do século anterior sacudiram as
instituições e o comportamento. Virginia Woolf viveu as mudanças e passou a discutir a
análise do texto através da análise da intenção do autor – o discurso literário é o
palanque da personalidade do artista. Aqui encontramos mais uma de suas contradições:
o escritor é um individuo que consegue transcender objetivos pessoais e criar arte pela
arte.
Em novembro e dezembro de 1910, Roger Fry montou a exposição pós-
impressionista em Londres, apresentando Manet e contemporâneos aos ingleses e
cunhando o termo pós-impressionista, que se tornou canônico. Os efeitos da exposição
foram impactantes e certamente levaram Virginia Woolf a organizar e explicitar muitas
de suas idéias sobre o desenvolvimento da literatura do começo do século XX. Sua
preocupação maior estava nas manifestações conscientes do caráter humano, na
representação delas de modo profundo e diferente, no sentido moderno e introspectivo,
quase impressionista, do termo personagem, não como os eduardianos Galsworthy,
Bennett e Wells o concebiam, naturezas mortas no acervo apático das construções e
situações convencionadas e pré-concebidas.
44
Em FORSTER, E.M. Virginia Woolf, 1942 (tradução nossa)
42
A exposição foi muito apreciada, embora muitos a considerassem o evento
artístico representante do anarquismo político e social enfrentado pela sociedade da
época. Era a reação comum aos desafios de uma nova ordem e à adaptação a uma nova
realidade e à vida.
Entre 1910 e 1914 havia muita agitação por parte das classes trabalhadoras, dos
irlandeses e dos partidários do sufrágio feminino. Todas as instituições sofreram com o
questionamento dos indivíduos que perceberam a necessidade de se rebelar contra a
uniformidade aparentemente estável das pessoas e do conseqüente engessamento e
arbitrariedade das organizações. Certamente, os representantes da oposição à ordem
dominante se tornavam mais anárquicos, ou seja, modernos, e o mundo da arte era sua
mais pura representação. Perspicácia e imaginação sempre foram pilares essenciais da
história e da arte.
Em 1924, Woolf publicou "O Senhor Bennett e a Senhora Brown", ensaio em
que declarou a mudança do caráter humano citada acima e defendeu sua concepção de
personagem através da relação entre a senhora Brown e Arnold Bennett. O ataque a
Bennett e ao desenvolvimento das personagens pelos realistas estabeleceu o divisor de
águas necessário para que Woolf explicitasse a evolução do romance moderno dentro
dos parâmetros esboçados em Henry James e estabelecidos na obra de Forster, Joyce,
Lawrence, Shaw e da própria Woolf, entre outros.
Havia, também, naquele momento, uma postura resistente de que a Inglaterra
parecia incapaz de produzir avant-garde genuína, até mesmo sua revolta parecia
domesticada por sua tradicional contenção. Todos os movimentos pulsavam no
continente com o futurismo de Marinetti, o cubismo, o balé russo que visitou Londres
em 1911, a arte rebelde de Ezra Pound e Wyndham Lewis, ou a publicação dos ensaios
de Freud sobre as teorias da sexualidade, mas pareciam evaporar ou perder a razão na
Inglaterra.
Embora alguns vissem as artes plásticas inglesas como representações de fatos
concretos e crus, ainda percebiam que os mesmos ingleses que invejavam a
simplicidade e a resistência das pessoas comuns e reais, sem muitas abstrações, faziam
com que desaparecessem como lufada de ar da sala de estar em que debatiam suas
idéias e manifestações artísticas. Muitos artistas ingleses foram influenciados pelo
movimento pós-impressionista de 1910 e pelos novos comportamentos artísticos e
sociais. A revolta, porém, era domesticada, ou representada em modelos dóceis, que
43
eram desenvolvidos com tanta sutileza que perdiam a força do argumento inicial.
Parece-me uma descrição plausível da causa de um problema que enfrentamos ao ler os
ensaios de Virginia Woolf: há um argumento aparentemente bem definido, uso de
técnica impecável ao discuti-lo, mas certa diluição das idéias antes de alcançarmos o
clímax de descobrir qual a solução proposta para o problema analisado, ou a teoria
concreta apresentada em relação aos argumentos ou às tendências refutadas
veementemente em várias páginas de erudição inegável. Poderíamos dizer que o grande
poder e a grande fraqueza da Inglaterra se encontram no mesmo aspecto: a
domesticação ao extremo de todo elemento diante de confronto. O espírito de revolta, o
desafio à autoridade estabelecida, a mudança meramente em prol da própria mudança, a
anarquia e o alvoroço que afetaram praticamente todas as capitais européias como
Munique, Berlim, Bruxelas, Paris e Moscou, especialmente, estavam fora da vida
artística londrina.
Os artistas de Bloomsbury reagiram à nova tendência estética que enfatizava o
uso da forma, o abstrato na musicalidade das palavras, a massa, o espaço, a luz e a
sombra, qualidades potencialmente separadas do conteúdo. Para eles, especialmente Fry
e Woolf, a maior realidade estava na expressão de aspectos abstratos, o real no mundo
não estava no que era aparente, e sim nos pensamentos, sentimentos e nas atitudes de
uma senhora Brown, como Woolf defenderia em sua discussão com Bennett em meados
dos anos vinte. Não que Woolf considerasse que todos os romancistas anteriores ao
movimento contemporâneo tivessem falhado; admirava a capacidade criativa dos
vitorianos na gênese de algumas personagens memoráveis tanto quanto acreditava na
incapacidade dos eduardianos de captar a essência das personagens. O modernismo, que
dominaria o cenário cultural até bem depois do final da Segunda Grande Guerra, teve
muitos representantes: Yeats, Lawrence, Pound, Joyce, Eliot, que teve a primeira edição
de sua obra The Waste Land publicada pela Hogarth Press dos Woolf. A multiplicidade
das personagens de Bloomsbury e a sensação de que conheciam todas as trilhas os
ajudaram a manter-se em ascensão. Os valores do modernismo e os de Bloomsbury,
compromissados com encarar tudo sem conceitos preestabelecidos, não aceitar nada em
confiança e questionar todos os valores e opiniões recebidas, eram muito próximos. E o
risco, para todos aqueles engajados nesse movimento era o de estabelecer para si
mesmos um novo conjunto de valores rígido demais para permitir que mantivessem
seus princípios originais.
44
A Criação Artística de Virginia Woolf
Virginia Woolf sempre procurou se filiar a nenhuma corrente teórica. Isto
certamente contribuiu para o tipo de análise que sua crítica recebeu de seus
contemporâneos. Ela construiu uma teoria própria baseada em sua percepção da mente
humana e seu papel na criação artística. Tanto sua criação literária quanto sua
abordagem crítica são baseadas na teoria da mente criativa.
Sua visão sobre a vida era a de um processo fragmentado, uma coleção de
momentos organizados numa seqüência aleatória onde as dualidades tais como o
externo e o interno, a realidade e a personalidade se conjugavam como no princípio
chinês do Yin e Yang.
45
A partir de sua maneira de ver o mundo, Virginia Woolf
estabelece o papel do autor como alguém que deve estar preparado para absorver
quaisquer impressões, sublimar sentidos, ler nas reações das pessoas sua essência e,
finalmente, sintetizar e conjugar todas essas variáveis a favor de uma existência mais
rica.
Uma das dificuldades de tal empreitada é o pouco conhecimento que se tem da
mente humana e de como ela conjuga todas as variáveis da existência, embora
dependamos dela impreterivelmente. Acrescentaria que, além desta problemática, o
conceito de mentes andróginas, se não for bem compreendido, favorece interpretações
errôneas do ponto de vista da autora-crítica. Segundo Virginia Woolf, um dos erros
seria o favorecimento de um lado ou outro da mente a fim de se levantar bandeiras
como desta ou daquela posição política ou a da crítica feminista militante, por exemplo.
Ela discute as funções do lado masculino e do lado feminino do cérebro quanto à
organização das idéias e não quanto à anatomia: a capacidade de lidar com o físico, o
prático, com a vida de jornais e de cafés é parte da masculinidade do ser, enquanto que
a capacidade de abstrair do concreto e analisá-lo subjetivamente pertence ao lado
feminino. Um lado depende do outro na mesma proporção e o ideal é mantê-los
equilibrados.
45
Segundo V. Sharma, em Virginia Woolf as Literary Critic, não seria leviano pensar que os poemas
taoístas (o princípio Yin-Yang) influenciaram o conceito de realidade de Virginia Woolf. Também é
interessante pensar no título Granite and Rainbow em função dessa dualidade. A verdade seria algo com a
solidez do granito e a personalidade tão intangível quanto um arco-íris. De acordo com Harold Nicolson
no ensaio “The New Biography”, publicado pelo New York Tribune, em 1927, a consciência do aspecto
sólido das coisas e do etéreo assim como da verdade sobre o concreto e o subjetivo de uma pessoa são a
base do pensamento de Virginia Woolf.
45
A “mente superior” não é nada além de outro nome para a
parte masculina, científica ou racional da mente. Sua função,
não importa qual seja seu rótulo, é a de um gravador e de um
repórter. Ela traz fatos, detalhes e impressões para casa, que
devem ser organizados mais tarde. (...) A imaginação, porém,
não é senão uma função do feminino, ou da mente artística. (...)
Se um escritor interferir nesta atividade da mente feminina, o
resultado será um evento desastroso. O escritor moderno não
tem tido muito sucesso porque tem sido impaciente demais para
deixar as coisas penetrarem cada reentrância de seu ser antes
de começar a escrever.
46
Virginia Woolf critica autores que desenvolvem mais um lado do que o outro,
pois sua obra acaba retratando realidades parciais da vida. Ela cita exemplos tanto de
autores como de autoras que diminuem a amplitude de sua obra por não desenvolverem
os dois lados de sua mente. A estética proposta por Virginia Woolf não é masculina ou
feminina, ela busca a qualidade da obra literária enquanto representação da realidade do
corpo e do espírito. As duas partes do cérebro devem funcionar colaborativamente antes
de a criação artística poder ser alcançada.
47
A criação literária acontece quando o trabalho de campo de absorção da
realidade já aconteceu e o processo digestivo e de reorganização dos elementos toma
vulto e domina a mente. Em Um Teto Todo Seu, Virginia Woolf descreve este processo
e utiliza a figura do casal entrando no táxi a fim de alcançar seu objetivo comum. Ela
percebe que a luta entre conceitos e a prática internalizada deles provavelmente faz com
que nenhuma obra nasça inteira e sem falhas como fora idealizada pelo autor. Além
desse aspecto, outro risco para a obra é a interferência abusiva de um lado ou de outro
do cérebro. Para Woolf, o autor de seu tempo não atingia seu objetivo por falta de
46
The upper mind is but another name for the masculine, the specific for the rational part of the mind. Its
function, no matter what its label, is that of a recorder and a reporter. It brings home facts, details and
impressions that must be sorted out later. (...) The imagination, however, is but a function of the
feminine, or the artistic mind (...) Should a writer interfere with this activity of the female mind, the
product will be an abortive affair. The modern writer has not fared too well because he has been too
impatient to let things seep down into the very crevices of his being before he started writing.
SHARMA,
V. Id. Ibid., p. 55-6, 58, 61. Tradução nossa.
47
(…)before the art of creation can be accomplished. On re-Reading Novels", Collected Essays, II, pp.
121-25 Tradução nossa.
46
paciência, por não dar tempo suficiente para sua mente vagar por todas as possibilidades
criativas antes de se lançar sofregamente à produção concreta de seu texto.
A realidade deve ser analisada como processo ativo e não como fatos a serem
retratados. O autor que não consegue enxergar a sobreposição multifacetada dos fatos
na realidade torna-se pobre, como é o caso de Wells, Bennet e Galsworthy.
Se a arte é a representação da realidade sob o ponto de vista analítico da mente,
não é difícil compreender a busca pela prosa poética tanto na obra de Virginia Woolf
romancista como em seus critérios analíticos, como fica claro no ensaio "Fases da
Ficção". A poesia por si só não tem liberdade suficiente para buscar as inconsistências
da mente e o teatro lida muito mais com as reações que conseguimos expressar
abertamente de um modo ou de outro. Virginia Woolf procurava a maneira de expressar
todo o restante também. Daí sua busca pela revitalização do romance como forma de
expressão completa e de representação fidedigna da realidade vivida tanto pelo lado
concreto quanto pelo lado abstrato da mente.
A verdadeira realidade é o significado de cada episódio, decisão, problema,
cena. A realidade é a chamada natureza humana enquanto referência a personalidades
de personagens e de autores que se interessam em desvendá-las. Daí sua consideração
por autores como Tolstoi, Defoe, Austen e Sterne. Estes autores representavam a vida
como ela é, e não só como a viam. Quando Virginia Woolf analisa obras como Guerra e
Paz, Madame Bovary, Tristram Shandy, Orgulho e Preconceito entre outras, ela
encontra personagens que são reais, não no sentido de que são representações de tipos
existentes na vida real, mas no sentido de que têm personalidades que se alteram de
acordo com a evolução dos fatos, do conhecimento adquirido, das experiências vividas.
Virginia Woolf define, em "O Senhor Bennett e a Senhora Brown", cada personagem
como alguém que
tem o poder de nos fazer pensar não só nele, mas em todas as
coisas que nossos olhos podem ver através dele – a religião, o
amor, a guerra, a paz, a vida em família, as festas no campo, os
pores de sol, os luares, a imortalidade da alma.
48
48
“O Senhor Bennett e a Senhora Brown”. Ver ensaio traduzido na parte II, p.156.
47
Ainda em "O Senhor Bennett e a Senhora Brown", Virginia Woolf estabelece a
necessidade tanto do autor quanto do crítico de se manterem sempre atualizados,
encarando a vida sempre a partir das mudanças nas relações humanas, que alteram,
queiramos ou não, o curso das instituições e dos princípios – a natureza humana como
um todo. Eis a base da crítica aos vitorianos, que enxergavam personagens como seres
imutáveis: bons ou ruins, moralistas, amorais ou imorais. Ao prestigiar o processo
contínuo da vida, os romances em que a narrativa é uniforme e as personagens não se
modificam em função dos acontecimentos não são possíveis. Persistir no modelo
convencional e ultrapassado de literatura era parodiar a realidade.
Este princípio também serviu de base para a crítica aos eduardianos, que
utilizavam personagens como seus arautos na ilustração de conceitos preestabelecidos.
Somente quando as personagens se debatem para sobreviver, dependendo das atitudes
de um ou de outro como se fossem parte da vida real, é que o romance tem valor. A vida
real das personagens não significa que elas são cópias de pessoas, repito, mas sim
protagonistas de uma história que poderia acontecer com qualquer um.
Na estética de Virginia Woolf, as dualidades são a espinha dorsal: a emoção
artística não deve ser separada da forma, a realidade existencial é contrabalançada pela
verbalização dessa realidade, o concreto e o efêmero são conjugados de acordo com a
perspectiva do autor que ingere, analisa, modela e reinventa os fatos. A forma dada a
esse turbilhão de idéias não deve ser simplesmente linear, deve ser construída com
requinte arquitetônico.
Virginia Woolf como crítica literária não prescreve, mas defende a substituição
da formalidade tradicional pela arte genuína. Ela procura demonstrar o processo
encerrado em todas as obras de valor e a vida como processo que aglutina todas as
variações e transformações. Ela acreditava que não havia fórmula para uma boa obra,
nem regras imutáveis a serem seguidas pelos artistas. Portanto, nenhum experimento
deveria ser descartado ou condenado. Em sua teoria, Virginia Woolf alinha a verdade
da vida e as considerações estéticas. Porém, se a qualidade estética não fizer jus à
qualidade da experiência narrada, a obra está fadada ao esquecimento. A obra deve ter a
qualidade permanente da literatura.
48
Realidade, ficção e princípios estéticos
Joel Rufino dos Santos, historiador e sociólogo, afirma que os
intelectuais formam um grupo social especializado em produzir
idéias convenientes para a dominação social ou são agentes
dela. Aqueles intelectuais que se recusam a assumir esse papel
são meros justificadores ou remediadores da dominação.
Dentre os intelectuais, segundo Darcy Ribeiro, há dois tipos: o
contente, que gosta do país como é, e o irado, que não gosta do
que vê.
(entrevista exibida em agosto de 2004 pela TV Cultura)
Não apenas Forster mas outros intelectuais ajudam a desenhar o panorama em
que devemos inserir Virginia Woolf e a crítica que foi feita sobre sua obra e suas idéias.
Havia o legado de Matthew Arnold, crítico de uma geração anterior ainda muito
influente no começo do século XX. Arnold foi representante do período pré-revolução
liberal, quando a crítica literária era exercida pelo homem de bom gosto (man of taste) a
respeito da Cultura, e não estabelecida por critérios de valor mais científicos, como mais
tarde aconteceria, com a profissionalização do crítico literário nas universidades.
Quando a crítica do gosto já não supria os interesses dos leitores comuns e a
literatura passara a fazer parte das cátedras, foi necessário estabelecer instrumentos de
medida e de análise de qualidade que pudessem ser ensinados ao maior número possível
de leitores interessados em desvendar os mistérios dessa nova ciência. A partir de 1917,
I.A. Richards iniciou o projeto do Close Reading, processo analítico que decompõe o
texto literário a fim de dissecá-lo, estudá-lo e explicá-lo. Tendo estabelecido o projeto,
Richards contratou, para lecionar literatura em Cambridge, F. R. Leavis, fundador,
juntamente com Q. D. Leavis e outros professores, da revista literária Scrutiny. Os
Leavis propuseram e os New Critics, mais tarde, efetivaram o discurso crítico literário
que separava rigidamente a arte enquanto expressão pura e simples da própria arte,
daquilo que o crítico do gosto acreditava ser a representação do mundo como ele é e das
reações humanas pressupostas pelo meio em que se vivia, aquele habitado pela natureza
humana defendida por Virginia Woolf.
Em 1904, Woolf já escrevia resenhas para jornais, mas foi somente na década de
20, ao mesmo tempo em que o desenvolvimento dos métodos analíticos ocorria, que
49
passou a ser considerada uma crítica literária de fato. Em 1925, ela publicou The
Common Reader e, em 1929, Um Teto Todo Seu, revolucionando o tipo de discussão
crítica de sua época, bem à parte dos princípios da escola de Richards e Leavis. Ela
trouxe para o público uma análise em tom acessível e prático, sem decomposição de
texto, que lhe rendeu a posse de um ponto de vista moderno e independente na crítica,
em comparação com o estilo tradicional da crítica literária de então.
Virginia Woolf era uma liberal de formação privilegiada e de cultura invejável,
que compartilhava da companhia e da amizade dos maiores nomes do começo do
século. Além deles, havia a influência de G.E. Moore e de Henry James, que ela
conhecia desde criança. Seu livro Um Teto Todo Seu estabelece os princípios de suas
idéias liberais: a consciência da exclusão feminina das possibilidades culturais, a
dominação masculina na determinação do que ler, dizer ou fazer, a história da ascensão
da mulher na tradição literária, a tradição feminina, a androginia.
Em seu trabalho crítico, Virginia Woolf decodificou idéias inusitadas para a
época e demonstrou que não deveriam existir barreiras que controlassem a criatividade
do romancista, desde que houvesse qualidade literária em sua representação da vida
real.
A editora dos Woolf, The Hogarth Press, representante do perfil de Bloomsbury
e da necessidade de divulgar boa literatura, foi a primeira a publicar a obra de T.S. Eliot,
que, embora participasse ativamente dos movimentos acadêmicos da primeira metade
do século XX, sempre apreciou o estilo de Bloomsbury, cujos participantes eram
conscientes de suas posições e condição sócio-econômica e cultural, liberais cultos,
compromissados com o desenvolvimento humano na arte e na literatura, ativistas em
nome da tradição liberal. Contudo, Eliot foi um conservador fatalista, que, ao contrário
de Leavis, não acreditava nem mesmo teoricamente que o ser humano pudesse
transformar a cultura imutável de seus ancestrais. A discussão tensa entre a tradição
conservadora do crítico do gosto e a possibilidade de popularização, ainda que parcial,
da cultura estava no auge.
Embora essa tensão existisse entre os pensadores da época e a noção de
meritocracia, a ascensão social, econômica e cultural merecida pelo empenho pessoal,
começasse a ser discutida, não se lê nenhuma menção à mudança de classe social ou
acesso à cultura por mérito nos textos de Bloomsbury. Na definição de meritocracia, as
pessoas comuns têm acesso à cultura por esforço próprio ao seguir o que a elite cultural
decide ser bom.
50
No período entre guerras há muitas mudanças sociais, econômicas e culturais. A
maneira de ver o mundo é abruptamente transformada pelas guerras, e a voz do
proletariado que passa a ter acesso ao estudo ressoa um pouco mais alto. A autoridade
da meritocracia consiste do fato de o crítico, cuja voz passa a ser ouvida no mundo
acadêmico a partir daquele momento histórico, ter sido parte do grupo que tinha lido,
até então, o que a elite intelectual ditava como leitura de qualidade. A questão passa a
ser quem, além da consagrada elite, define o que é culto e o que é boa literatura, o que
permanece nas mãos daqueles que dominam os meios de comunicação: uma editora, um
jornal, ou uma revista.
Virginia Woolf tinha, naquele momento, a tradição do gosto em mãos, uma
editora que podia ditar o que considerava boa literatura, sua ficção experimental e sua
obra crítica esboçando as estratégias impressionistas que vislumbrava na pintura e
transferia para o preto no branco da crítica literária.
No ensaio "The Early Novels of Virginia Woolf", de 1926, E.M. Forster
considerou o legado crítico de Virginia Woolf uma contribuição essencial para a arte
da romancista.
49
Por outro lado, a crítica feita pela revista Scrutiny, por exemplo, não
foi muito favorável ao conteúdo de seu trabalho, embora reconhecesse a delicadeza e
precisão de sua linguagem. A partir de 1930, seu conceito como autora obteve mais e
mais prestígio; porém, seu trabalho crítico nunca foi discutido com a devida atenção.
A primeira publicação crítica de Virginia Woolf em jornal data de dezembro de
1904, onze anos antes da publicação de seu primeiro romance, The Voyage Out, em
1915. Ironicamente
50
, seu trabalho crítico foi publicamente mais discutido a partir de
sua palestra para os Heretics em Cambridge
51
, o que aparentemente concedeu-lhe a
qualificação de crítica literária.
Desde então, vários críticos leram e discutiram Virginia Woolf enquanto
ensaísta. Podemos citar David Daiches (1924), Louis Kronenberger e Mark Schorer
(1942), e Diana Trilling (1948), entre muitos outros. Embora em momentos diferentes,
49
...a definite contribution to the novelist’s art. FORSTER, E.M. “The Early Novels of Virginia Woolf,”
New Criterion, IV, 1926, p. 104. Tradução nossa.
50
Ironicamente porque Virginia nunca se interessou pelos títulos acadêmicos e sempre criticou a
profissionalização do trabalho do leitor crítico, talvez influenciada pelo que discordava no trabalho de seu
pai e pela própria educação informal, longe dos bancos escolares, que tivera.
51
Com a publicação da palestra no mesmo ano de 1924 com o título "Character in Fiction" e mais tarde
no mesmo ano como "O Senhor Bennett e a Senhora Brown", o trabalho crítico de Virginia Woolf
alcançou níveis mais sérios na discussão crítica de seus contemporâneos - tanto em função da qualidade
revolucionária do conteúdo, quanto da dificuldade da escola de crítica em vigor na época de compreendê-
la como um todo sutil e moderno.
51
todos aclamaram sua sensibilidade, sua relação estética e histórica com os textos, ao
mesmo temp que criticaram sua subjetividade e sua crítica “impressionista”, como disse
Daiches e reforçou Trilling, quando considerou Virginia Woolf incapaz de apreciar a
grandiosidade de qualquer obra literária por causa das bases subjetivas de sua atitude
crítica.
As investidas críticas de Virginia Woolf certamente não teriam feito parte da
escola da época, muito menos seriam compreendidas a partir do cientificismo em que
I.A. Richards estabelecia a Cambridge School of Criticism em 1917 e o New Criticism
florescia nos Estados Unidos, com sua objetividade científica da análise literária.
A contra-revolução crítica a partir de O Castelo de Axel de Edmund Wilson, de
1931, reforçada pela publicação de Anatomia da Crítica de Northrop Frye em 1957,
aqueceu a discussão sobre a crítica literária do período de 1920 a 1950. Edmund Wilson
fez um estudo sobre a literatura imaginativa de 1870 a 1930, enaltecendo autores como
T. S. Eliot, Gertrude Stein, Yeats, Joyce e Proust. É uma análise do simbolismo em
oposição ao naturalismo, sob o ponto de vista romântico do século XIX e a reação do
pós-guerra, da necessidade e da importância de se valorizar o psicológico tanto na obra
literária quanto no estudo sobre ela. Quase trinta anos depois, Northrop Frye, por sua
vez, reintroduz as noções baseadas no conhecimento grego da tragédia, da comédia e da
ficção. A crítica ética e suas fases literal, formal, mítica e anagógica, além da teoria dos
mitos e a teoria dos gêneros, também são formuladas em seu Anatomia da Crítica. Uma
das vantagens desta discussão é a reavaliação da qualidade do trabalho crítico naquelas
três décadas e a alteração da perspectiva sob a qual o trabalho crítico de Virginia Woolf
foi analisado então.
As mudanças no ponto de vista crítico e o acesso ao acervo de diários, cartas e
textos póstumos de Virginia Woolf favoreceram o trabalho de outros ensaístas que
decidiram tentar decifrar os objetivos desta autora de produção tão vasta e sistemática
52
.
Virginia Woolf mantém um sistema de crítica literária ajustado a sua posição
clara em relação às artes de modo geral e baseado nos princípios da mente criativa, da
natureza da realidade e da função do artista. A crítica contemporânea, injustamente a
meu ver, lê seu trabalho privilegiando demais o ponto de vista sócio-econômico, o que a
transforma em um poço de ambigüidades e contradições. Ela foi, sem dúvida, ambígua e
contraditória em função de todas as variáveis que regeram o momento em que viveu e o
52
Vide quadro demonstrativo de suas publicações ao final deste texto, p. 125.
52
meio em que se desenvolveu. O elemento sócio-econômico é importante, mas
considerá-lo como único, ou principal, fator responsável pela postura dela enquanto
artista e crítica é, na minha opinião, no mínimo simplista. Virginia Woolf discorda do
crítico prescritivo
53
, valorizando a liberdade da mente criativa no desenvolvimento do
processo de criação literária. Ela jamais se deixou absorver pela tirania da crítica
acadêmica, que segundo ela homogeneizava as opiniões dos estudiosos envolvidos.
Enquanto a maioria de seus contemporâneos compartilhava a visão acadêmica, ela
tentava alinhar as atividades intelectuais com as necessidades do leitor comum
54
.
Ignorar a importância do ponto de vista do leitor comum, aquele que não escreve, em
sua obra seria perder toda a dimensão de seu trabalho e, assim, a qualidade especial de
sua crítica.
Há um ponto que aproxima Virginia Woolf de Matthew Arnold, embora o
âmago de suas idéias seja essencialmente diferente: a atenção desinteressada da mente
por todos os assuntos, pela arte meramente como arte. Quando Virginia Woolf afirma
que os leitores precisam de todo o conhecimento possível dos clássicos para
compreender o arrojo dos autores contemporâneos, ela reitera a mesma sugestão feita
por Arnold a respeito da poesia, ou seja, que a cultura é o melhor caminho para a busca
da perfeição na arte
55
. Virginia Woolf vai mais longe, defendendo que o conhecimento
dos clássicos fará do leitor comum um crítico melhor, capaz de desenvolver tanto uma
perspectiva mais objetiva quanto uma discriminação mais clara do que considera boa
literatura. O leitor comum deveria buscar cultura e embasamento teórico nos clássicos
para que enriquecesse sua capacidade de leitura crítica. Ela percebeu, todavia, que
defender a intuição por si só não seria suficiente. Mesmo assim não prescreveu regras
analíticas, somente o treino consciente da mente criativa a fim de torná-la educada,
pronta para reconhecer a qualidade da obra literária. Sua definição de gosto como o
produto de treino e cultivo intelectual, sujeito ao controle do conhecimento da tradição,
reforça a afirmação anterior e facilita a compreensão do leitor como companheiro e
cúmplice do autor. De certo modo, Northrop Frye endossa aquilo em que Virginia
Woolf acreditava, quando afirma em sua "Polemical Introduction" que toda crítica
avaliadora, em oposição à crítica descritiva, é indutiva por natureza. Em outras palavras,
53
Embora a crítica contemporânea a descreva como tal em diversos artigos.
54
Talvez o leitor desavisado, mencionado por alguns críticos modernos de Virginia Woolf, que procura
algum tipo de auxílio simples, claro e direto para compreender a leitura que lhe é oferecida.
55
Somente o conhecimento e a cultura poderiam enriquecer os temas e os modelos dos artistas e,
conseqüentemente, produzir obras melhores e leitores mais conscientes e exigentes.
53
Virginia Woolf simplesmente enunciou o que muitos vinham fazendo sem entender
muito bem a natureza de sua atividade.
Um outro aspecto muito importante a ser mencionado, para que não tenhamos
uma má interpretação da postura de Virginia Woolf diante da obra de arte, é a
importância dada ao valor da obra de arte em si mesma. Virginia Woolf previne o leitor
todo o tempo para que ele não confie no autor que não separa o ser humano que sofre,
se angustia ou reage da mente criativa que escreve sobre a realidade e a vida.
O autor deveria ser um profissional sério e sincero, tanto quanto o bom crítico.
A crítica válida é aquela espontânea, que floresce em salas de estar onde há um bom
fluxo de idéias e opiniões que animam e alimentam a criatividade. Em outras palavras,
tal crítica assume o importante papel social de vitalizar a cultura entre os leitores
comuns, preocupados em expor opiniões formadas ao invés de primeiras impressões.
Então, a função da crítica para Virginia Woolf não é dar o veredicto imediato
sobre a qualidade de uma obra, mas sim analisá-la cuidadosamente e compará-la com
outras obras, tanto clássicas como da produção anterior do autor em questão. Diante da
comparação, a pergunta a ser respondida seria a respeito de quanto aquela obra
especificamente teria acrescentado ao conhecimento, à cultura como um todo.
Acreditando nisso, podemos afirmar que o crítico, para Virginia Woolf, deveria ser
eclético a fim de utilizar todo e qualquer método - ou inventar um - que abarcasse todas
as possibilidades de criação literária. O ecletismo em um crítico seria a fonte de sua
força.
Virginia Woolf visualizou antes de qualquer outro quem seriam os árbitros do
bom gosto na arte contemporânea e estabeleceu caminhos para uma nova crítica
literária. Sua importância como crítica encontra-se em seu pioneirismo e em sua
coragem de manter-se fiel àquilo em que acreditava, mesmo quando exposta ao
turbilhão de idéias contrárias de seus contemporâneos.
54
O Fluxo da Consciência – A Linguagem dos Modernistas
O fluxo da consciência é um desses termos enganosos usados por escritores e
críticos. Ilusório também, porque, embora pareça concreto, é empregado de formas tão
variadas quanto vagas, assim como romantismo, simbolismo ou surrealismo. Nunca
sabemos se está sendo usado para indicar a técnica ou o estilo e somos tomados de
espanto ao percebermos que o resultado é, na maioria das vezes, uma monstruosa
combinação de ambos. A locução retórica se torna duplamente metafórica: a palavra
consciência, do mesmo modo que a palavra fluxo, é figurativa: por conseguinte, ambas
são pouco precisas e ainda menos estáveis. Se o termo fluxo de consciência for
reservado para indicar um sistema para a apresentação de aspectos psicológicos da
personagem de ficção, poderá ser usado com certa precisão.
O romance do fluxo da consciência pode ser rapidamente identificado por seu
conteúdo, que o distingue muito mais que suas técnicas, suas finalidades ou seus temas.
O assunto principal é a consciência de uma, ou mais personagens, que tem sua
consciência retratada para que o conteúdo do romance possa se desenvolver. A
consciência indica toda área de atenção mental, a partir da pré-consciência,
atravessando os níveis da mente e incluindo o mais elevado de todos: a área de
apreensão racional e comunicável.
A ficção do fluxo de consciência difere de qualquer outra ficção psicológica
precisamente por dizer mais respeito aos níveis de consciência menos desenvolvidos, à
margem da atenção, do que à verbalização racional dos pensamentos. É impossível
procurar formar categorias definidas dos muitos níveis de consciência. As tentativas
para fazê-lo exigem respostas a sérias questões metafísicas e levantam diversas
indagações sobre os conceitos da psicologia dos escritores do fluxo da consciência e
suas intenções estéticas – perguntas que lingüistas, psicólogos e historiadores literários
ainda não responderam satisfatoriamente.
Robert Humphrey
56
diz que o termo psique, do mesmo modo que a palavra
mente, é várias vezes usado como sinônimo da palavra consciência. Também afirma
que o romance do fluxo da consciência ocupa-se da parte submersa do iceberg da
psique. William James, que cunhou o termo fluxo da consciência em seu The Principles
of Psychology, sustenta que as lembranças, pensamentos e sentimentos existem fora da
56
Em Stream of Consciousness in the Modern Novel. UCP, 1954
55
consciência primária e nos aparecem não em cadeia, mas como uma corrente, um fluxo.
Portanto, fluxo da consciência não é somente uma técnica especial de escrever ficção,
nem monólogo interior. É um método de representar a percepção interior dos eventos da
vida diária, suas revelações e seus desenrolares. Uma das questões que podemos
levantar seria: o que contém a consciência? Ou, o que continha a consciência na medida
em que a consciência dos romancistas a experimentou?
A arte ficcional é enriquecida pela descrição de estados interiores. Henry
James
57
acredita que a intenção de introduzir a consciência humana na ficção é uma
tentativa moderna de compreendê-la: a experiência nunca é limitada, nem completa. A
consciência é o espaço onde tomamos conhecimento da experiência humana. O
romancista não deixa nada de fora: sensações e lembranças, sentimentos e concepções,
fantasias e imaginações e aqueles fenômenos muito pouco filosóficos, mas
consistentemente inevitáveis, a que chamamos intuição, visões e introspecções. O
conhecimento humano que procede não da atividade mental, mas da vida espiritual, diz
respeito aos romancistas e aos psicólogos. Portanto, o conhecimento, como categoria da
consciência, deve incluir a intuição, a visão e, às vezes, mesmo o oculto, no que
concerne aos escritores de século XX. As sensações, lembranças, imaginações,
concepções e intuições são expressas em simbolizações e em processos de associação.
O objetivo dos romancistas, quando se utilizam do fluxo da consciência, consiste em
ampliar a arte da ficção descrevendo os estados interiores de seus personagens. Essa é
uma necessidade que Virginia Woolf aponta em seus ensaios, principalmente quando
critica a superficialidade das personagens de Bennett, Wells e Galsworthy
58
.
Para romancistas como Virginia Woolf, James Joyce, William Faulkner e
Dorothy Richardson, o assunto é a existência e os funcionamentos psíquicos, o homem
interior; para escritores como Zola e Dreiser, o assunto é motivo e ação, o homem
exterior. A diferença também está na filosofia e na psicologia atrás do romance: em
termos psicológicos, a distinção entre conceitos psicanalíticos e comportamentais; em
filosofia, é a distinção entre um amplo materialismo e um existencialismo generalizado.
Em suma, por um lado, preocupar-se com aquilo que se faz e, por outro, preocupar-se
com aquilo que se é.
Os romancistas do fluxo da consciência, assim como os naturalistas, estavam
procurando descrever a vida corretamente. A diferença entre eles é que, ao contrário dos
57
Em Art of Fiction, Partial Portraits, London, Macmillan, 1905, p.88.
58
Em "O Senhor Bennett e a Senhora Brown", 1910, principalmente, neste trabalho, p. 149.
56
naturalistas, os romancistas do fluxo de consciência se ocupavam da vida psíquica dos
indivíduos, até mesmo em detrimento da ação.
O preço que um autor pioneiro paga, mesmo sendo experimental, é ser o menos
conhecido dentre os importantes escritores de uma escola. Dorothy Richardson tem
papel garantido na evolução da ficção do século XX. Com grande dívida para com
Henry James e Joseph Conrad, ela inventou a descrição ficcional do fluxo da
consciência. Surpreendentemente, a crítica a considerou quase brilhante, o problema é
que se perdia no exagero disforme e interminável de detalhes realistas. Podemos
imaginá-la integrante da fase intermediária entre os materialistas e os modernistas, na
qual Virginia Woolf se debate e localiza seus contemporâneos D.H. Lawrence e E.M.
Forster, por exemplo.
Virginia Woolf pretendia formular os processos e as possibilidades da
compreensão interior da verdade que ela considerava inexprimível. Conseqüentemente,
só poderia encontrar esse processo de compreensão em funcionamento em níveis pouco
explícitos da mente. Clarissa Dalloway, Mrs Ramsay e Lili Briscoe têm momentos de
visão porque, na concepção de Woolf, havia a crença de que o mais importante na vida
humana é a constante busca de significado e identificação do indivíduo com tudo que o
cerca. Quando Woolf sente que suas personagens estão prontas para receber a visão,
elas se realizam. Os romances de Woolf são crônicas de seus preparativos para a
introspecção final, compreendida aqui como o resultado das tentativas de elaboração de
um romance ideal nos moldes da literatura russa admirada por sua facilidade de
transportar o leitor ao mundo das personagens de modo vivo e pungente. Os
preparativos são feitos em forma de introspecções fugidias, para o interior das
personagens e representam sínteses de símbolos particulares do presente e do passado
da autora. Certamente, a educação monitorada pela truculenta maneira vitoriana de ver o
mundo do pai, a ausência de convívio acadêmico tão cobrado pelos contemporâneos
como F. R. Leavis e T. S. Eliot, as relações tensas com os meio-irmãos, a proteção
sufocante de Leonard Woolf, a necessidade da aprovação dos amigos influenciaram a
maneira como Woolf concebia suas personagens, o desenvolvimento do romance
moderno e seus critérios de avaliação de seus contemporâneos e antecessores.
57
Nos ensaios, Woolf considera importante que o artista expresse sua visão
particular da realidade, o que, subjetivamente, é a vida. A busca da realidade, então, não
é uma questão de ação dramática exterior. Diz Woolf em “A Ficção Moderna”
59
:
Examine uma mente comum em um dia comum... A vida é uma
auréola luminosa, um invólucro semitransparente que nos
rodeia do começo da consciência até o final. Acaso não é a
tarefa dos romancistas transmitir esse espírito inconstante,
desconhecido e irrestrito?
A única restrição é que a maioria dos seres humanos não está consciente dessa
atividade psíquica, que ocorre nas profundezas da mente. Virginia Woolf escolheu o
fluxo da consciência como meio de apresentar essa busca da realidade interior, o que
nos leva à razão pela qual escolheu representar personagens sensíveis que se ocupassem
dos caminhos em direção à maturidade. Seu método é, ao mesmo tempo, a apresentação
de observações não censuradas das personagens e da formação psicológica delas.
Bernard Blackstone
60
explica que a autora executa uma radiografia da intuição ao
expor as elucubrações de suas personagens em relação ao mundo que as cerca.
Por sua vez, David Daiches
61
, defende a idéia de que Woolf sobrecarrega seus
romances de técnica, torna suas personagens eloqüentes, mas pouco comunicativas. O
excesso de técnica formal e o confinamento do que é significativo às personagens que
permanecem apenas como indivíduos, nunca compondo símbolos universais em relação
a outros, entorpecem a comunicabilidade com o leitor. A crítica de Daiches questiona a
visível tendência de Woolf de se apegar à técnica, talvez como reação à própria
cobrança por um academicismo formal inexistente, invejado, visivelmente
desnecessário, mas intencionalmente utilizado pelas críticas acadêmicas desfavoráveis a
seu trabalho.
O fluxo da consciência era uma estratégia que poderia se tornar essencialmente
técnica em detrimento da qualidade do romance. O excesso de introspecção eliminaria
as condições dos indivíduos se comunicarem entre si, o que era essencial para que o
romance atingisse a verossimilhança pretendida. O êxito de seu funcionamento
59
Em WOOLF, V. The Common Reader, p. 42. (tradução nossa)
60
Em FORSTER, E.M. Virginia Woolf, 1942.
61
Em FORSTER, E.M. Virginia Woolf, 1942.
58
dependia de recursos técnicos superiores ao de qualquer outro tipo de ficção. Assim
sendo, qualquer estudo de estilo terá de ser um exame de método. Um estudo dos
dispositivos e da forma tornar-se-á significativo se compreendermos o resultado que
justifica todo o virtuosismo. O fluxo de consciência por si só não constitui uma técnica;
estrutura-se numa compreensão da força dramática que se desenrola nas mentes dos
seres humanos.
Woolf considerou tal técnica significativa e suas próprias predileções pela
realidade de visões a levaram a demonstrar a que grau de introspecção a mente comum
é capaz de chegar. As visões fugazes, porém vitais, da mente humana precisavam ser
expressas e ela foi capaz de comunicar precisamente esse senso de visão nos ensaios e
nos romances de fluxo de consciência. Contudo, as relações entre suas personagens e
por vezes da própria Woolf com seus leitores tornaram-se herméticas, cifradas, perdidas
na falta de parâmetros concretos. Em outras palavras, Woolf pecou pelo excesso de
virtuosismo lingüístico e a senhora Brown permaneceu isolada no vagão de trem,
perdida em seus pensamentos mais íntimos desnudados porém incompreendidos.
Assim como Faulkner e Joyce, Woolf abriu as portas da ficção para um novo
campo da vida. Acrescentaram o funcionamento mental e a existência psíquica ao
domínio já bem estabelecido do motivo e da ação. Criaram uma ficção centralizada no
núcleo da experiência humana que, se não era o domínio comum da ficção, também não
era, conforme demonstraram, inadequado. Provaram que a mente humana, sobretudo a
do artista, é demasiado complexa e indócil para jamais ser canalizada através dos
padrões convencionais.
A descrição satisfatória da consciência exigiu a invenção de novas técnicas na
ficção ou, pelo menos, um reajuste das antigas. Há diversas técnicas utilizadas na
apresentação do fluxo de consciência, tais como o monólogo interior direto e indireto, a
descrição onisciente e o solilóquio. O monólogo interior representa o conteúdo e os
processos psíquicos da personagem, parcial ou inteiramente inarticulados, exatamente
da maneira como esses processos existem em diversos níveis do controle consciente,
antes de serem formulados para a fala deliberada. Ora o autor ou narrador fala consigo
mesmo, ora as personagens se exprimem para si mesmas tendo o leitor como cúmplice.
Woolf abandonava a cena por algum tempo, fazendo uso da combinação de monólogo
interior e da descrição da consciência, logo após apresentar o leitor à mente da
personagem com uma quantidade suficiente de observações adicionais para que
prosseguissem suavemente juntos.
59
Os romancistas ingleses foram desenvolvendo o interesse pelo interior das
personagens aos poucos. Henry James, embora se preocupasse com o conteúdo mental
de suas personagens, descrevia o peso racional da inteligência e, portanto, ocupava-se
da consciência no nível correspondente ao da fala. Faltava a ele a qualidade do fluxo
livre, elíptico e simbólico da consciência.
Ainda no século XIX, outro passo importante para o desenrolar do fluxo da
consciência foi a busca pela confiança do leitor através da verossimilhança. A retirada
do autor onisciente favoreceu o uso de diversos pontos de vista diferentes: do autor-
observador, da personagem-observadora, da personagem central ou de combinações
dessas possibilidades. Daniel Defoe e Edgar Allan Poe participaram do início desse
processo, abrindo caminho para a leitura mais tranqüila de romances de Dostoievski e
Conrad, Dorothy Richardson, Joyce, Faulkner e Woolf.
O fluxo é apenas uma das duas qualidades óbvias da consciência. A outra é sua
intimidade, isto é, os aspectos não formulados e incoerentes que fazem com que
qualquer consciência isolada seja um enigma para qualquer outra. Esses dois aspectos
fundamentais da consciência estão intimamente ligados e são resultados das leis mentais
de livre associação.
O leitor do século XX espera da linguagem e da sintaxe alguma espécie de
ordem e inteireza empíricas, afirma Robert Humphrey, como se isso pudesse oferecer
um porto seguro para a falta de significado concreto da mensagem que veiculam.
Contudo, para apresentar a consciência de modo convincente, é preciso que faltem a
essa apresentação as qualidades que o leitor tem o direito de esperar. A consciência
íntima tem todo um arquivo de símbolos e associações que são confidenciais e que estão
inscritos em um código secreto. Cada leitor interagirá com a obra de acordo com seus
próprios segredos e isso pode ser muito enriquecedor e ao mesmo tempo provocar certa
resistência. A finalidade da literatura não está em expressar enigmas.
Conseqüentemente, o escritor da literatura do fluxo de consciência precisa conseguir
representar a consciência de maneira realista, conservando suas características de
intimidade – a incoerência, a descontinuidade e as implicações particulares. Além disso,
deve ainda, através da consciência, conseguir comunicar sua mensagem ao leitor.
Todo escritor tem algo a dizer, algum senso de valores que deseja comunicar ao
leitor e, às vezes, escolhe o mundo interior da atividade psíquica para fazê-lo e para
dramatizar esses valores. A atividade psíquica deve ser apresentada ao leitor, então,
como processo comum e íntimo a ser compartilhado, a fim de conquistar sua confiança.
60
Transmitir a verdadeira textura da consciência e destilar algum significado para o leitor
é um dilema para o escritor, pois a natureza da consciência subentende um senso de
valores particular, associações particulares e relacionamentos particulares e peculiares a
essa consciência.
Há alguns artifícios técnicos na utilização do fluxo da consciência tais como a
suspensão do conteúdo mental por tempo indeterminado para que as impressões e idéias
reapareçam em lugares inesperados e aparentemente irracionais, de acordo com as leis
da associação psicológica; a representação da descontinuidade em figuras de retórica
padronizadas; a sugestão de níveis de significado múltiplos e extremos através de
imagens e símbolos.
Os métodos do fluxo de consciência são convencionais hoje, as fantasias da vida
mental que antecede a fala passaram a fazer parte das formas do século XX. Essa vida
interior é realidade que reconhecemos como sendo disponível a qualquer consciência, e
agora que as técnicas, formas e artifícios para transmitir essa realidade foram
estabelecidos, a arte da ficção está mais perto que nunca de alcançar seu objetivo junto
aos leitores. Este momento se torna propício, também, para analisarmos novamente a
importância teórica de uma crítica como Virginia Woolf, que cobrava de seus
contemporâneos, assim como de si mesma, o estabelecimento de um fio condutor no
desenvolvimento de sua ficção.
Woolf percebe que o artista não é livre para expressar suas próprias idéias o
tempo todo. É influenciado, até mesmo determinado, pela expectativa do público leitor,
que nem sempre demonstra interesses que facilitem a produção literária dentro de uma
estética lógica e regular. Ainda assim, fruto de seu idealismo cego ou da angústia gerada
por seus paradoxos, Virginia Woolf acredita que escrever livremente, sem defender
causas de gênero ou condição social, repletas de ódio, medo, amargura, protesto ou
ensinamentos – praticamente todos os elementos encontrados no conjunto de sua
própria obra – é o único caminho para a qualidade literária.
O nível de objetividade necessário para Woolf obter um referencial público de
juízo de valores jamais é atingido. Há contradições em todas as perspectivas críticas
analisadas. Os clássicos não forneceram padrões objetivos, mas impuseram sua
influência formadora, moldando a sensibilidade do leitor comum de acordo com as
convicções do passado. Sendo assim, os predecessores de Woolf, seguros de sua visão
de mundo em comum com os clássicos, não prestaram muita atenção às tentativas
irrelevantes e insignificantes, naquele momento, que Woolf compartilhava com seus
61
contemporâneos ingleses. A salvação parecia estar nos russos, que escreviam com tal
convicção que seus leitores acreditavam que os romances haviam capturado os
momentos mais significativos de sua própria existência.
Woolf pretendia demonstrar a seus contemporâneos que deveriam utilizar a
mesma forças sedutora dos grandes artistas russos se quisessem atingir o gosto de seus
leitores. Se fizessem isso, porém, destruiriam o objetivo de toda a experimentação
literária de seu movimento e dariam passos para trás, depondo contra a evolução do
romance.
Os pontos de vista contraditórios, ora favoráveis ora negativos, ora pelo
parâmetro tradicional ora pelo pessoal de julgamento de valores, ora clássicos ora
modernos, ora reacionários ora revolucionários, tornaram o ato de interpretar e analisar
o valor da obra literária um fardo sem sentido para Woolf. A solução final parece ser
que todas as opiniões devem ser desconsideradas e que cada um deve tecer suas próprias
considerações. Essa foi a maior derrota sofrida pelo propósito de sua crítica e por sua
esperança de estabelecer uma autoridade confiável para a determinação do valor
absoluto da modernidade.
Pode-se pensar que os romancistas sempre têm planos fixos
sobre os quais desenvolvem seu trabalho, a fim de que o futuro
previsto no primeiro capítulo seja, inexoravelmente, a realidade
no capítulo treze. Porém, os romancistas escrevem por vários
motivos: dinheiro, fama, crítica, pais, amantes, amigos,
vaidade, orgulho, curiosidade ou diversão. Assim como artesãos
especializados gostam de fazer mobília, bêbados gostam de
beber, juizes gostam de julgar... Poderia preencher um livro
com razões e seriam todas verdadeiras, mesmo que não
completamente. Cada um de nós compartilha somente um dos
motivos: queremos criar mundos tão reais quanto o mundo que
existe, ou existia, mas diferente dele. Por isso não podemos
planejar. Sabemos que o mundo é um organismo, não uma
máquina. Também sabemos que um mundo genuinamente
criado deve ser independente de seu criador. Um mundo
planejado, que revela por completo seu planejamento, é um
mundo morto. Somente quando nossas personagens e
62
acontecimentos começam a nos desobedecer é que passam a
viver.
62
62
Em FOWLES, John. The French Lieutenant’s Woman. Boston: Little Brown, 1969, p.81 (tradução
nossa)
63
Virginia Woolf e os Ensaios
A grande importância de Virginia Woolf como romancista tende a ofuscar o fato
de que no período de 1904 a 1922, quase duas décadas de sua vida profissional anterior
à publicação de seu primeiro romance experimental, Jacob’s Room (1922) ela publicou
artigos de crítica literária e ensaios. Continuou a escrevê-los durante toda a vida,
embora tenham sido considerados secundários ou acidentais em relação à totalidade de
sua produção.
Segundo Vijay Sharma, podemos agrupar os ensaios críticos de Virginia Woolf
em categorias bem definidas: ensaios em que ela tenta recriar para o leitor comum uma
época, um momento histórico, ou um retrato de artista – "The Strange Elizabethans",
“Sterne”; ensaios que pretendem promover a obra de um artista como um todo – "The
Novels of E.M. Forster", "Phases of Fiction"; ensaios que discutem as tendências da
literatura enquanto arte e representação da realidade – "Mr Bennett and Mrs Brown",
"The Leaning Tower", "The Narrow Bridge of Art"; ensaios que definem seus critérios
analíticos e juízos de valor – "How Should One Read a Book", "Letter to a Young
Poet".
A crítica de Virginia Woolf move-se entre a vida e a literatura e de volta para a
vida real. É sua determinação inconsciente da integração destas duas esferas que a afasta
dos críticos puramente estéticos. Ela considera o significado parte da verdade encerrada
na obra de arte. Sua crítica respeita valores preestabelecidos por sua própria fidelidade
aos princípios em que acredita. É no poder de seus princípios bem definidos que se
escora o contra-argumento às críticas sobre seu trabalho: como um ensaísta acidental
poderia seguir critérios tão sérios e tão fortemente embasados na cultura
contemporânea? A obra da autora demandava forma, uma estrutura narrativa, e sua
crítica tentava oferecer um plano consistente para a produção de boa literatura.
Um outro aspecto de seu trabalho é a preocupação dela em organizar seus
ensaios de maneira que a leitura deles fosse útil e didática, senão quanto à qualidade das
obras analisadas, pelo menos quanto à qualidade do texto artístico contido no ensaio
teórico. Tomando The Common Reader como exemplo, os ensaios foram organizados
de modo que o livro terminasse com a literatura moderna. Ela desenha a história
64
literária desde os gregos até seus contemporâneos, e inicia seu livro de ensaios com
Chaucer e seu conceito de sensibilidade moderna.
Virginia Woolf sempre nos oferece sua crítica como uma semente. Se o solo for
fértil, a semente germinará e as idéias florescerão. Se era diferente dos críticos de seu
tempo, parcialmente era porque estabelecera seus próprios valores e, mais do que isso,
era porque estava além de seu tempo. Virginia Woolf era eclética para desempenhar
bem seu papel crítico. Utilizou abordagens diferentes para analisar trabalhos diferentes:
desde as abordagens histórica e sociológica, a biografia dos autores e seus princípios
morais, a teoria do inconsciente de Freud, a filosofia, a fortuna crítica do autor
analisado, até o cânone tradicional.
Resumindo a crítica literária de Virginia Woolf em três itens principais,
teríamos: primeiro, a amplitude de seu conhecimento prévio é indiscutível, assim como
o alcance de sua análise quanto às qualidades dos autores estudados; segundo, seu
trabalho é controlado por teorias bem estabelecidas sobre literatura e crítica literária;
terceiro, sua crítica não se resume a analisar obras literárias e movimentos, mas procura
formular teorias críticas e literárias mais abrangentes e verdadeiras. Ela não só as
formula, mas demonstra sua aplicação prática e seu valor crítico.
Finalmente, Virginia Woolf crítica não defenderia o monopólio elitista da
cultura, pois seu objetivo era a revitalização da arte. Quanto mais estreita a base cultural
de um povo, mais insegura sua civilização. Virginia Woolf era uma humanista antes de
mais nada, que confiava no bom senso do leitor crítico e responsável por seu próprio
tempo. Sua liberdade de pensamento e expressão lhe rendeu comentários favoráveis e
negativos, como tudo o que é diferente do comum. Ela pretendeu trazer a literatura para
mais perto da vida real, ou vice-versa. Talvez este seja o único ponto a ser criticado em
sua obra: afirmar que qualquer pessoa teria acesso à bagagem cultural que ela carregava,
pois as oportunidades que lhe foram dadas eram únicas. Sua formação, seu status social,
sua condição financeira, sua situação privilegiada permitiram que ela refletisse sobre
arte levando a arte em consideração.
Até a Segunda Grande Guerra, os ensaios e artigos sobre literatura, por vezes
inovadores e com aquele tom autoritário próprio dos críticos cujo conhecimento é
considerado muito superior ao de seus leitores, eram escritos e publicados fora do
circuito das instituições acadêmicas tanto na Grã-Bretanha quanto nos Estados Unidos.
Os anos vinte assistiram ao desabrochar de revistas literárias e periódicos especializados
65
em literatura experimental e crítica avant-garde que continham os manifestos mais
modernos daquele momento histórico.
O trabalho de Woolf estava presente em jornais literários importantes como o
Times Literary Supplement
63
, o Nation and Athenaeum
64
, o Criterion
65
, o Dial
66
, e a
Revista Scrutiny
67
.
A história de como os ensaios de Woolf foram considerados pela crítica de modo
fragmentado e parcial revela por que sua função acadêmica foi tão obscurecida durante
anos. Podemos observar quatro fases diferentes na maneira como a crítica analisou os
ensaios de Woolf. A primeira, a recepção contemporânea de 1923 a 1941, que consiste
de artigos, ensaios e, ocasionalmente, um capítulo num livro sobre o romance. Essa fase
inicial estabeleceu o tom das críticas das duas posteriores. A segunda, de 1941 a 1970,
foi de ataques a Woolf. Os críticos em geral se referiam a "O Senhor Bennett e a
Senhora Brown" e "A Ficção Moderna", tratando-os somente no contexto da obra
ficcional da autora. Quando os críticos finalmente se deram conta dos ensaios, foi para
diminuir sua importância. A terceira fase, de 1970 até o presente, enfoca
fundamentalmente Um Teto Todo Seu e Three Guineas, além de outros ensaios isolados
que se ocupam da condição das mulheres. A quarta fase, a partir de 1992, faz mais jus à
obra de Woolf como um todo e ao conjunto de idéias, paradoxos e tendências de seu
trabalho crítico e estético. A publicação do primeiro volume de sua obra crítica
completa editado por Andrew McNeille em 1992 permitiu que os interessados tivessem
uma visão mais abrangente da produção intelectual de Woolf.
A crítica aos ensaios de Virginia Woolf está longe de ser consensual. Há críticos
como Gerald Sykes, por exemplo, que consideram seu trabalho datado e obsoleto, obra
de uma bibliófila beletrista
68
, em vez de inovador e instigante. Outros, como H. Fausset,
apreciam o fato de ela ter descoberto como escrever para jornais e revistas sem deixar
de ser uma artista e como exaltar a crítica numa aventura criativa que [...] ainda é
preservada por um senso de valores mais sofisticado do que o quixotismo
63
Fundado em 1902. Woolf escreveu para o TLS de 1905 a 1941.
64
Criado em 1921 depois que o Nation, fundado em 1907, absorveu o Athenaeum. Woolf participou de
suas publicações até 1931.
65
Existiu de 1922 a 1939. Foi fundado por T.S. Eliot e publicou ensaios de Woolf em 1923, 1924 e 1926.
66
Fundado em New York. Existiu de 1880 a 1929. Publicou ensaios de Woolf em 1923 e 1924.
67
Existiu de 1932 a 1953.
68
Em "Ex-modernist. Review of The Common Reader: Second Series". MCNEES, E., ed. Virginia
Woolf: Critical Assessments. Vol. 2. Mountfield, East Sussex: Helm Information, 1994.
66
impressionista.
69
Há muitas outras opiniões controvertidas. Citamos apenas dois
exemplos à guisa de demonstrar os extremos a que as contradições chegam nas análises
do trabalho crítico de Woolf. Não podemos deixar de lembrar que, mesmo que seu
trabalho transcenda o quixotismo impressionista, seu estilo nos revela sempre o estudo a
partir das impressões causadas pelos autores estudados ou pelos contemporâneos
analisados.
A crítica contemporânea de Woolf estabeleceu para os setenta anos seguintes
que seus ensaios eram mais impressões do que desenvolvimento de argumentos
concretos, pois jamais demonstraram soluções às questões levantadas pela autora. Vita
Sackville-West escreveu sobre Um Teto Todo Seu:
A senhora Woolf nunca recebeu o crédito merecido por seu bom
senso. Leve, fantástico, brilhante – todos adjetivos usados para
descrever seu texto, até que se imagine algo colorido mas vazio
como uma bolha iridescente.(...) Este livrinho [A Room], que
não é um romance, também não é somente crítica literária. Na
medida em que não é absolutamente nada, é um estudo de
mulheres.
70
O estudo da obra crítica de Woolf parece sempre oscilar entre os dois extremos
citados por Vita Sackville-West: ora reflete o melhor de Woolf, que se concentra no
estilo, na utilização da linguagem e na erudição, ora concentra-se na freqüente ausência
de diretrizes e de soluções propostas.
Virginia Woolf talvez tenha pretendido definir o modernismo. Não conseguiu,
assim como nenhum outro modernista. A filosofia do movimento, analisada a certa
distância histórica e geográfica, não parece pressupor respostas. Os modernistas
questionavam, quebravam barreiras e se envolviam com sua arte, já que a realidade que
representavam oferecia caminhos bem tortuosos e estratégias pouco amigáveis de
sobrevivência. Escrever um livro sobre nada me parece ser o auge da verossimilhança,
da representação da vida real, em que tudo o que acontece no dia-a-dia se reduz a nada
na memória.
69
Em FAUSSET, H. The Art of Virginia Woolf. Review of the Common Reader. Manjubar and
McLaurin, eds. Virginia Woolf: The Critical Heritage. London: Routledge, 1975.
70
Em Manjubar and McLaurin, eds. Virginia Woolf: The Critical Heritage. London: Routledge, 1975., p.
257-258 (tradução nossa)
67
Woolf foi inovadora como ensaísta, estilo que serviu para sua exclusão do meio
de ensaístas e críticos legitimamente consideráveis. Seus críticos e contemporâneos se
concentram em sua biografia, na tradição de sua família, nas relações intrincadas de
Bloomsbury, em seus oponentes literários. Wayne Booth e David Daiches diminuem o
valor crítico de Woolf argumentando que sua serventia está em justificar sua própria
ficção.
71
Em contrapartida, Bell e Ohmann afirmam que sua crítica merece muito mais
atenção, no sentido que Woolf se recusa a completar ou estabelecer um sistema
explicito de seu método. Percebem uma missão humanística em sua crítica, que
concluem existir em sua abordagem empática da literatura com o objetivo de humanizar
a reação de seus leitores, e na urgência da liberação e da completude do ser.
72
Essa tendência também é percebida nos estudos de Mark Goldman e de Vyjay
Sharma, respectivamente de 1976 e de 1977, numa fase em que a crítica acadêmica
como um todo e, particularmente o New Criticism estiveram sob o ataque das teorias
européias que começaram a influenciar as críticas a partir dos anos sessenta. Liberados
das amarras do New Criticism, Goldman e Sharma aplicam critérios diferentes ao
avaliarem os ensaios de Woolf. Goldman os aborda mais filosoficamente, discutindo a
natureza da realidade e a tentativa de Woolf de defini-la através de uma abordagem
histórico-tradicional da literatura. Goldman discute as teorias de Woolf sobre a natureza
e a função da crítica ao analisar o papel do leitor comum enquanto crítico, a influência
do conceito de forma significativa de Clive Bell, a relação entre crítica e criatividade e a
função do articulista literário contemporâneo. Conclui, tentando levar em conta o
equilíbrio, a integração de funções críticas e a compreensão de Woolf artista-crítica.
Woolf enxergava o crítico como uma pessoa de sensibilidade e conhecimento que reage
a um trabalho artístico e o compreende; expressa seu conhecimento e experiência ao
leitor e comunica-se com ele. O leitor comum de Woolf é mais do que um diletante que
meramente absorve as opiniões autorizadas. Seu leitor interage com suas impressões e
constrói seu próprio ponto de vista.
Na mesma linha de raciocínio, Sharma busca estabelecer uma metodologia
crítica clara e identificável nos ensaios de Woolf. Definindo sua própria abordagem
como a de um intérprete histórico, parte de uma pesquisa sobre as influências
intelectuais que permearam o trabalho de Woolf. Sharma refina sua classificação dos
71
Em BOOTH, W. & D. Daiches. The Rhetoric of Fiction. Chicago: University of Chicago Press, 1961.
72
Em BELL, Barbara Currier & Carol Ohmann. Virginia Woolf’s Criticism: A Polemical Preface.
Critical Inquiry, 1974: pp. 361-371.
68
ensaios em cinco grandes grupos: os artigos produzidos a pedido de editores, aqueles
que recriam uma época, período ou autor, aqueles que demonstram os feitos de um autor
e pretendem que o leitor conheça os resultados dessa obra como um todo, aqueles que
provocam debates sobre tendências literárias e comportamentais e aqueles em que
Woolf expõe conceitos críticos. Para V. Sharma, o conceito de androginia é a espinha
dorsal da teoria crítica de Woolf e origina-se em sua compreensão filosófica da mente
polimórfica, em que realidade e forma se integram no equilíbrio entre os modos
feminino e masculino de pensar e de se expressar.
Há muita discussão sobre a pretendida teoria do romance de Woolf tanto em
Goldman como em Sharma, que tenta esquematizar a relação entre o leitor comum e o
crítico, além de começar a estudar a teoria do leitor informado e receptivo, que vai além
da conotação de inocência e falta de preparo associada à frase leitor comum.
A discussão é relegada a certo esquecimento e Sharma conclui seu estudo
citando as diversas possibilidades críticas que eclodiram nos primeiros trinta anos do
século vinte: articulistas especializados, críticos acadêmicos, profissionais e escritores.
Woolf, assim como E.M. Forster, T.S. Eliot, D.H. Lawrence e W.H. Auden, é inserida
no grupo críticos-escritores porque exerce as funções sobrepostas de crítica literária e
romancista.
O objetivo dos ensaios de Woolf não era estabelecer uma teoria do romance ou
comentar a história literária, mas fortalecer a representação da experiência através da
escrita a fim de que o leitor comum compreendesse a si mesmo enquanto ser civilizado
e melhorasse sua postura social, histórica e cultural. Nos ensaios, assim como nos
romances,Woolf se preocupava com os gêneros e constantemente experimentava
integrá-los e fragmentar várias formas tradicionais de representá-los. A fluidez e
idiossincrasia dos ensaios tende ao amorfo, que tem seu significado peculiar, no sentido
de que enquanto os modernistas, a quem Woolf defendia e com quem comungava das
mesmas tendências, não conseguissem estabelecer seus próprios caminhos e não
firmassem seus objetivos para a revitalização do romance, nada teria forma definida.
Em sua definição da arte de escrever, Woolf também define forma:
A arte de escrever tem por espinha dorsal um apego violento a
uma idéia. É a partir de uma idéia, de uma crença convicta ou
69
algo visto com precisão que as palavras são compelidas a sua
forma.
73
Ou seja, o autor que se prende a idéias vagas não encontrará uma forma clara
para expressá-las. Suas impressões são bem-vindas desde que tenha argumentos sólidos
para ampará-las. A idéia precede a forma e por isso a compreensão histórica da forma é
inútil. A escrita depende da idéia, tão abstrata ou amorfa como pode ser, porque a idéia
cultivada se torna precisa.
Se os críticos concordam com Woolf sobre alguma coisa, é que o ensaio é uma
forma extremamente polifônica e difícil de definir em termos absolutos. É mais fácil
chegar à conclusão do que não é ensaio. Tanto Georg Lukács
74
, contemporâneo de
Woolf, como Theodor Adorno
75
, pensador da geração posterior afirmam que, até onde
podemos definir o ensaio, ele é uma forma estética que não é nem pragmática nem
científica por natureza e não se apóia naquilo que Woolf chama de contar verdades
literais. Ensaios não são escritos para provar nada. Nesse sentido, Lukács e Woolf
discutem o ensaio com a mesma linguagem. Saídos da ênfase do século XIX na
representação empírica e na compreensão da experiência, tanto um quanto o outro
reavaliam o uso do ensaio. Lukács argumenta que a ciência nos afeta com seu conteúdo,
a arte com sua forma; a ciência nos oferece fatos e as relações entre eles, mas a arte nos
oferta almas e destinos. O ensaio não reivindica nada, de acordo com Lukács, que
contrasta a ausência de reivindicação com a Arte, que nos dá o sentido abstrato da alma.
Ao definir alma, Lukács nos mostra duas realidades: uma é a vida e a outra é viver.
76
A
mesma dualidade é encontrada na oposição entre imagem e significado, que existe entre
a superfície, o literal, o significado denotativo do fato científico, e o significado
conotativo, figurativo abaixo da superfície, onde o significado é encontrado em
processo, existindo – o presente de Woolf, não o passado cristalizado.
Lukács, do mesmo modo que Woolf, afirma que a idéia precede a forma e que a
forma de cada ensaio é única, individual, existindo a partir de sentimentos e
experiências, ajudando a gerar o ponto de vista e a perspectiva expressa em cada texto.
A união entre alma e forma é o momento místico de Lukács, tão transcendente quanto o
73
Em WOOLF, V. The Common Reader I. “The Modern Essay”.
74
Em LUKÁCS, G. Soul and Form. On the Nature and Form of the Essay. Cambridge, MA: MIT Press,
1974. pp. 1-18
75
Em The Essay as Form. New German Critique 3.2 (1984) pp. 151-171
76
Em LUKÁCS, G. Soul and Form. On the Nature and Form of the Essay. Cambridge, MA: MIT Press,
1974. pp. 1-18
70
momento de Virginia Woolf. O ensaio, onde forma é realidade, é a voz com que os
escritores endereçam suas indagações à vida. Portanto, um ensaio não gera forma a
partir do nada, ordena idéias preexistentes, organiza-as de modo diferenciado e exprime
sua verdade sobre elas. Sendo assim, dois ensaios jamais se repetem ou se contradizem,
são julgamentos e não veredictos e comunicam o processo de julgar.
Adorno, por sua vez, afirma que a forma não pertence ao ensaio, ou seja, o
ensaio é a representação da forma. Também rejeita a idéia de que o ensaio expressa o
fato empírico. A forma do ensaio é uma função da sorte e do jogo essenciais a ele,
antíteses do dogma do pensamento pragmático. A forma, nesses termos, toma elementos
levemente separados em um contexto legível onde não há andaime nem estrutura sobre
a qual construir nada. Não há fórmulas empíricas que estruturem o ensaio, os elementos
se cristalizam em uma dada configuração e, cada uma delas, cada ensaio, é uma forma
única que obtém sua unidade simplesmente se movendo pelas fissuras, sem desgastes.
Paradoxalmente, a descontinuidade é essencial para o ensaio, pois nela está sua unidade.
A falta de uma estrutura consistente e unificada leva o ensaio a encontrar aquela que
seja mais apropriada ao conteúdo que se tenta expressar naquele momento.
Woolf considera que a forma do ensaio é determinada pelo jogo e pela
combinação das idéias e da linguagem, e através da linguagem a forma ou a identidade
do ensaio é gerada. No ensaio "Montaigne"
77
, ela explica:
O movimento e a mudança são a essência de nosso existir (...)
Digamos o que vem à mente, repetindo, nos contradizendo.
Lancemos os maiores absurdos e sigamos as tendências mais
fantásticas sem nos importarmos com o que o mundo vai fazer,
pensar ou dizer. Nada importa além da vida e, é claro, da
ordem.
Importante para Woolf são a liberdade, o fluxo, a sorte e o jogo da vida, que são
parte de nossa essência e a alma, que é parte de nossa existência. Do mesmo modo,
Woolf acredita que é importante imprimirmos ordem e estrutura à essência. O ensaio é
arte, não ciência, com forma diferente do romance ou da poesia. Tem lógica e estrutura,
embora sua forma seja meta-reflexiva. Sendo um artefato de reflexão sobre si mesmo, o
77
Em WOOLF, V. The Common Reader. New York: Harcourt, 1953. (tradução nossa)
71
ensaio representa e imita o próprio processo do pensamento. Sua elaboração particular
constrói seu conteúdo enquanto tenta articular suas partes. Em outras palavras, o ensaio
nem começa com uma tese que pretende demonstrar nem é indutivo em direção a uma
conclusão concreta e estável. Essa é uma das razões que nos ajudam a entender por que
foi tão difícil para a crítica do período entre 1910 e 1990 conceder a devida importância
aos ensaios woolfianos. Woolf produziu ensaios que enfatizaram o viver mais do que a
vida, o significado mais do que a imagem, as idéias mais do que a forma, que devem ser
analisados e reavaliados com o instrumental crítico moderno que não estava disponível
em seu tempo.
Graham Good
78
, do mesmo modo que V. Sharma, agrupa os ensaios de Woolf
sob diferente aspectos: viagem, moral, crítica e (auto)biografia. Woolf tem ensaios nos
quatro grupos e muitos em que elementos de duas ou mais categorias se sobrepõem. Por
exemplo: críticos comoO Senhor e a Senhora Brown e “A Ficção Moderna”,
memoriais como “A Sketch of the Past”, de viagem como “To Spain”, biográficos como
“Roger Fry”, ficção ensaística como “A Talk About Memoirs” e ensaios ficcionais
como Um Teto Todo Seu.
Além da tipologia, a história nos ajuda a estabelecer um sistema de estudo dos
ensaios. O momento histórico que envolve o final do século XIX e o começo do XX é
essencial para compreendermos como Woolf percebia seu trabalho e o de seus
contemporâneos.
Não creio que devemos ler Virginia Woolf sob um ponto de vista extremo ou
outro. Seria muito simplista estabelecer seus argumentos como elitistas ou forçosamente
incongruente percebê-los na defesa dos fracos e oprimidos. São visões unilaterais e
fragmentadas da obra de Woolf. Se a definirmos como elitista, estamos considerando
sua biografia, suas relações pessoais, suas idéias e crenças baseadas na tradição social e
familiar da sociedade estratificada inglesa com raízes no século XIX como chave; se
declararmos Woolf defensora dos oprimidos, como McNees o fez, provavelmente em
função dos ensaios de cunho feminista, não pronunciaremos uma inverdade completa,
mas seremos absolutamente parciais.
É importante, também, nos concentrarmos na importância da função histórica
sob pontos de vista específicos: a formação de Woolf, a tradição em que estava inserida
assim como seu objeto de estudo e trabalho, seu presente conturbado e as modificações
78
Em The Observing Self: Rediscovering the Essay. London: Routledge, 1988.
72
extremas de comportamento dos seres humanos em relação a como encaram a si
mesmos, suas instituições e seus países nas primeiras três décadas do século XX. Além
disso, ler historicamente a produção de Woolf, com o distanciamento do presente, sem
pretender que ela ou seus contemporâneos enxergassem o que podemos ver claramente
hoje como fato consumado é uma tarefa que exige neutralidade e cuidado.
Segundo Melba Cuddy-Keane,
79
Woolf transpõe a história de uma narrativa
holística e metafísica para um modelo pluralista e experimental, preocupando-se com as
diversas maneiras de experimentar a história através da leitura. Não basta enxergar
Woolf sob a lente do New Historicism, devemos tentar localizá-la, assim como sua
visão histórica no desenvolvimento da historiografia de seu tempo.
Um modelo pluralista e experimental estabelece a noção da problemática
histórico-literária. Porém, Woolf nos conduz num mergulho pela história da literatura
que conhecia profundamente, os autores e obras que a precederam. Reconhecia que um
autor não seria capaz de escrever sem compreender a posição que ocupava no contínuo
histórico-literário. Os dois volumes de The Common Reader foram tentativas de
escrever história literária e de redefinir a idéia da escrita que pretendia criticar a
literatura.
Woolf analisou muitos gêneros com muita consciência dos critérios estéticos
comumente utilizados. Ao analisar os românticos Wordsworth, Coleridge, Shelley e
Keats, porém, preferiu dados biográficos e comentários informais a uma metodologia
crítica mais formal, e só deixava transparecer explicitamente a bagagem histórico-
literária e crítica através de nuances e citações. A própria escolha dos poetas discutidos
demonstra conhecimento e aquiescência do consenso da época sobre os padrões e
valores poéticos.
Woolf questionava a autoridade, mas não a rejeitava, nem mesmo se eximia de
estabelecer sua própria, ainda que tentasse diluí-la. Percebia a dificuldade de julgar o
presente e tentava ser justa e honesta nos confrontos com seus pares, mesmo que irônica
e por vezes passional. O conflito com os Leavis da Scrutiny é bastante explorado, assim
como o longo debate com Bennett sobre a personagem de ficção e a estrutura dos textos
eduardianos e georgianos, no qual Wells e Gaslworthy também não foram poupados.
Havia T.S. Eliot e sua divergência quanto à concepção de receptor ou de leitor. Eliot
pregava sua doutrina como poeta e crítico a outros poetas e críticos, enquanto Woolf
79
Em ROSENBERG, B.C. & Jeanne Dubino, eds. Virginia Woolf and the Essay. New York: Saint
Martin’s Press. 1997
73
conversava de leitora para leitores, definindo o modernismo e a literatura em geral como
algo acessível a todos e não reservado a um pequeno grupo seleto de especialistas. Se há
uma qualidade que distingue Woolf como ensaísta é seu desejo incansável de definir,
explicar e refinar os preceitos dos leitores comuns – sejam eles quem forem – e o
processo de leitura crítica e consciente.
Os ensaios woolfianos revelam a articulação de uma teoria sobre o leitor e a
leitura que parece paradoxal em sua tentativa de codificar momentos de existência e os
estados de espírito experimentados na interação com o texto. Qualquer definição da
estrutura do romance engessaria a possibilidade de sua constante reinvenção,
contradizendo a afirmação sobre a natureza humana na forma da Senhora Brown,
sempre presente e acessível a inúmeros seres humanos que passam por seu vagão da
história.
Sendo assim, mesmo seus princípios críticos, que começaram a ser articulados
desde os primeiros textos não ficcionais, por volta de 1905, foram modificados,
revisados, refinados ao longo de sua vida. Woolf aprendeu a antecipar a reação dos
leitores, o que explica as diversas revisões personalizadas de seus ensaios para
diferentes receptores. Seu vasto conhecimento do cânone literário e de outras áreas de
interesse também contribuiu para o enriquecimento de sua imaginação e de seu texto. A
familiaridade com todos esses aspectos tornou seus ensaios democráticos, ou seja, de
espírito não-canônico, questionadores, abertos e diferentes dos textos acadêmicos
tradicionais.
É interessante observar as várias facetas que Woolf assumia quando revisava
seus ensaios para diferentes propósitos e receptores. Em seu processo de escrita,
experimentava as mesmas reviravoltas e mudanças que ocorrem no processo de leitura
que descreve. Seus momentos de existência se tornam momentos críticos do processo de
leitura, durante o qual o leitor galga degraus cada vez mais importantes na compreensão
de um texto, observando personagens viverem seus momentos ou percebendo a
tentativa do autor de proporcionar-lhe diversas novas experiências.
Contrariando os autores que analisam Woolf como ensaísta da história da
literatura, Anne E. Fernald
80
defende que a estrutura do ensaio woolfiano não se baseia
na análise histórica da literatura, mas no conceito de estado de espírito em relação à
leitura. Segundo Fernald, Woolf demonstra aos leitores a necessidade de se
80
Em FERNALD, A.E. "Pleasure and Belief in Phases of Fiction". Rosenberg, B.C. & Jeanne Dubino,
eds. Virginia Woolf and the Essay. New York: Saint Martin’s Press. 1997
74
movimentarem nos mundos ficcionais em que acreditam. Woolf teria construído uma
teoria do romance que oferece considerações coerentes sobre certas obras, deixando
sempre aberta a possibilidade de concepção de uma nova forma e nos mostrando o valor
de nossas reações cambiantes durante a leitura.
A polêmica criada por Woolf sobre a ficção deveria ser lida como uma
engenhosa estratégia para demonstrar a evolução da literatura de mera representação
histórico-literária para uma abordagem mais psicológica, particular e inerente ao ser
humano. Woolf, contudo, não consegue ou recusa-se a definir pessoal ou impessoal, não
se identifica com qualquer tendência que possa se tornar uma regra a seguir. Sua
intenção é definir a qualidade inerente ao significado. Woolf se apropria da forma
reconhecida para questionar o conteúdo tradicional e criticar a cultura da qual esse
gênero é produto.
Sua carreira foi marcada por pelo menos um fato consistente: o desejo de
mudança e a busca por novas formas de expressão dos momentos das personagens da
vida e do romance.
Embora Woolf tivesse muitas diferenças em relação aos críticos acadêmicos,
porta-vozes da autoridade estabelecida, respeitava e temia suas asserções e reclamava da
potencial influência que exerciam sobre a incapacidade do leitor em avaliar o romance
por si mesmo.
A autoridade cultivada pelos Leavis, pelo contrário, foi implantada na
universidade com o objetivo de assegurar a qualidade da literatura que deveria ser
oferecida aos leitores, conjunto cada vez mais fragmentado. Embora os Leavis se
considerassem rebeldes contra instituições como o governo ou a mídia, demonstraram
grande elitismo acadêmico e atacaram todos aqueles cujos movimentos fossem
diferentes dos seus. Sua relação com Woolf, que consideravam elitista sob os pontos de
vista social e cultural, só poderia ter sido hostil, pois eram parte de uma outra elite,
social e acadêmica,diferentes na forma, nem tanto no idealismo. O ataque social e
pessoal a uma pessoa isolada em sua classe
81
e de expressão sem interesse moral
82
somente mascara o verdadeiro embate: a crítica de Woolf não se adapta ao
academicismo crítico e o objetivo dela não é atacar a massificação da cultura. Sendo
assim, para Woolf não existe o leitor desestruturado que precisa de orientação
acadêmica para sua leitura e compreensão, há o leitor comum que desenvolve sua
81
Em LEAVIS, Q.D. "Caterpillars of the Commonwealth Unite!" Scrutiny 7.2 (1938) 203-214
82
Em LEAVIS, F.R. "After To the Lighthouse". Scrutiny 10.3 (1942) 295-298
75
habilidade crítica a partir do acesso à leitura de qualidade. Não se poderia esperar uma
postura diferente de Woolf, de formação intelectual privilegiada, sem dúvida, mas não
academicamente elitizada como a de Eliot, Forster, Leavis ou Bennett.
Tony Inglis
83
afirma que a reação dos ingleses ao modernismo levou ao descarte
automático dos ensaios de Woolf. Experiências como a exposição pós-impressionista de
1910, os manifestos e os romances experimentais se tornaram rebeliões enérgicas contra
os padrões tradicionais ou escapes questionáveis das expectativas estéticas daquele
momento. A Scrutiny ditava a combinação apropriada de experimento e tradição em
literatura pela preservação da saúde lingüística e contra qualquer outro lado, da guerra
de abstrações críticas aos movimentos políticos.
Os críticos considerados hoje pós-colonialistas ou contrários ao imperialismo,
Jane Marcus, Alex Zwerdling, Kathy J. Phillips e Mark Hussey entre outros, têm
analisado o trabalho de Woolf com mais neutralidade, embora tendam, às vezes, a
transformar seus textos críticos em ícones da categoria do politicamente correto. Uma
relação mais equilibrada com a crítica de Woolf ofereceria uma análise mais comedida e
demonstraria a grande necessidade de reavaliá-la sob parâmetros sócio-culturais mais
abrangentes e menos tendenciosos. Reavaliar a relevância de a preocupação de Woolf
ser maior com a arte do que com o mundo externo ou de ter subordinado as idéias ao
extraordinário refinamento e à delicadeza da percepção
84
reafirma a relação entre
crítica e cultura tanto do momento Scrutiny quanto do clímax da crítica cultural pós-
colonial dos anos oitenta e noventa. Não surpreende, portanto, que comparados aos
conceitos classicamente miméticos da crítica ao romance utilizados pelos Leavis, os
romances de Woolf deixem a desejar.
Assim como ela, Joyce e Eliot são criticados por escreverem romances somente
para um grupo muito especializado e estarem além do alcance da grande maioria de
leitores que passavam a ser considerados educados. Novamente, as tendências modernas
parecem despedaçar a tradição do grupo anterior, que reage em nome da saúde
lingüística e literária da sociedade. Segundo Leavis, a grande maioria do público leitor
não tinha parâmetros para julgar os novos romances, portanto a literatura perdera sua
função moral e social, ora se retraindo no esteticismo hermético de Woolf e Joyce, ora
83
Em "Virginia Woolf and the English Culture". BOWLBY, Rachel, ed. Virginia Woolf. London:
Longman, 1992, pp.46-61.
84
BRADBROOK, M. "Notes on the Style of Mrs Woolf". Scrutiny 1.2 (1932) 152-157
76
provendo a gama de sensações que a sociedade moderna buscava no início do século
XX.
Virginia Woolf sempre enfrentou a crise da avaliação em todos os sentidos:
como romancista, sentiu a pressão constante de avaliar seu próprio trabalho e o que era
dito sobre ele. Nos diários, há comentários sobre o efeito que as críticas tinham sobre
ela: em termos pessoais, precisava de um escudo protetor, pois a crítica negativa a
amargurava enquanto que a positiva reforçava seu prazer em fazer bem feito e a deixava
exultante. Em 1905, escreveu
85
Como odeio as críticas, e que desperdício, porque nunca as
considero de fato.
Submeter Virginia Woolf a censura ou a críticas pessoais que ela considerasse
injustas poderia ser mortal, embora aparentemente as desdenhasse. Um fato curioso é
que Woolf não debate com nenhuma das mulheres que faziam crítica literária
concomitante a sua. Talvez Q.D. Leavis tivesse razão ao acusá-la de manter os olhos
fechados para o grupo de mulheres que evoluíra academicamente e estava à altura de
seu debate; possivelmente seja verdadeira a teoria de que Woolf não enfrentava nenhum
rival que acreditava ter possibilidades de neutralizá-la ou de demonstrar que algum dos
princípios que defendia não fazia mais sentido. Talvez Woolf não acreditasse que fora
de Bloomsbury houvesse pessoas que seriam sempre honestas e civilizadas em suas
críticas em relação a si mesmas e aos outros. Como crítica, esperava-se que analisasse e
avaliasse o trabalho de seus contemporâneos de modo lúcido, objetivo e isento. Como
mulher, viveu em conflito permanente com o sistema patriarcal de valores de sua
sociedade e classe; e como ser humano, viveu e produziu sob a devastação da Primeira
Guerra e o horror da ameaça da Segunda. Sentia a urgência de determinar valores
diferentes para a sociedade e efetivar mudanças cruciais para a sobrevivência da
civilidade, ou pelo menos da esperança de civilidade, dos seres humanos e,
conseqüentemente, a qualidade da arte produzida por eles e a sobrevivência do romance.
Sua visão idealizada do potencial da arte de incorporar os verdadeiros valores
que podem transcender o contexto cultural em que se manifestam e se tornam padrões
universais com os quais se julgam códigos sociais de conduta e a própria arte, induziu-a
85
Em WOOLF, V. A Passionate Apprentice. Mittchell A. Leaska, ed. Harcourt, Brace & Jovanovich,
1990. (p.232, tradução nossa)
77
a buscar um referencial, ainda que fosse nos clássicos. Contudo, esses valores não
podem ser estabelecidos em um sistema fechado em que sujeito e objeto, termo e
definição são interdependentes em relação ao significado que é atribuído a cada um. Se
as particularidades são definidas pela maneira como se relacionam com o todo e o todo
é definido por suas partes, há um círculo vicioso estabelecido do qual não há como
escapar.
Somente a interferência de algo externo poderia desafiar esse mecanismo
fechado – o gênio russo, talvez, tão cortejado por Woolf, ou as minúcias introspectivas
de Proust. Na dúvida para determinar que obras deveriam ser consideradas grandiosas,
de leitura obrigatória na formação do leitor comum crítico e que caminho trilhar para
defini-las como tal, Woolf tentou estabelecer e explorar um novo sistema de valores
utilizando como instrumentos de medida as graduações de julgamento de qualidade
desde a mais genérica até a mais específica. O ideal seria que as duas formas de medida
chegassem a marcas afins, pois demonstrariam que a unanimidade no julgamento e,
conseqüentemente, o valor absoluto da boa arte não eram utópicos. A tentativa de
avaliar a arte e as novas relações humanas dessa maneira é responsável pelo grande
labirinto de argumentação e contradição nos textos críticos de Woolf. A falta de
objetividade e de conclusões plausíveis aos questionamentos levantados, agente do
círculo vicioso em que produziam arte e crítica, foi responsável pelo impasse em sua
obra crítica como um todo. A solução para os problemas apontados nunca se concretiza
porque sua tentativa de escapar da armadilha cultural e textual é sempre frustrada; sua
esperança de atingir o distanciamento necessário para um julgamento de valores
imparcial não se concretiza.
Seu uso de referências da literatura grega revela sua consciência da necessidade
de um padrão imparcial, impessoal, isento e suficientemente distanciado de seu
momento histórico e literário. Judy Reese
86
acusa:
Sua invocação dos gregos demonstra sua falta de autoridade
definitiva e uma inconsistência que depõe contra seu próprio
projeto crítico de julgamento de valor.
86
Em REESE, Judy S. Recasting Social Values in the Work of Virginia Woolf. Selinsgrove: Susquehanna
University Press, 1996. (p.25, tradução nossa)
78
Por outro lado, os gregos proporcionam a Woolf o padrão que buscava em
relação às personagens, que sempre se comportam da maneira como os seres humanos o
fazem na vida real em momentos decisivos, ou deveriam fazê-lo. Porém, reafirmando os
valores específicos de gênero e classe dos gregos, Woolf contradiz seu projeto de
estabelecer uma fonte de valores impessoais e essencialmente humanos que
transcenderiam a complexidade cultural e a marca de gênero de seu tempo. Ela acaba
por estabelecer que a origem dos verdadeiros valores está na natureza feminina,
outsider, destituída pela cultura vigente de oportunidade de educação e posse em seu
país. Idealisticamente, a solução foi declarar que as mulheres eram seres sem país, eram
parte do mundo e as soluções dependiam de sua tomada de consciência dessa condição.
O problema é que Antígona, Brown ou Woolf não conseguiriam negar ou
escapar de sua identidade, que estava predeterminada por gênero, classe e tradição,
impossibilitando a sobrevivência de outsiders. A frustração de não estabelecer a
neutralidade desejada para analisar seu momento reforça a complexidade cultural
inerente a sua identidade como filha de um homem educado. Suas posições críticas são
determinadas pelos padrões subjetivos de lei e autoridade que questiona, embora
respeite, porque acredita que as leis naturais, não aquelas inventadas pelos seres
humanos, mas as leis existentes indefectivelmente devem ser respeitadas pelas pessoas
civilizadas.
Há um agravante paradoxal nessa crença, pois Woolf compartilhava do
ceticismo religioso inerente ao pensamento de muitos cientistas e pensadores modernos.
Ao descartar o divino ou o sobrenatural do conceito de lei, Woolf restringe seu universo
legal a conceitos puramente humanos, que são limitados e sempre determinados por
gênero, classe e cultura. Para uma reformista na sociedade patriarcal, a lei dos homens
não oferecia bases concretas para desafiar o status quo. Porém, a lei natural, baseada na
tradição desde os gregos, poderia ser um ponto de partida para organizar todos os novos
sentimentos e as mudanças nas relações humanas.
Novamente Woolf se depara com um problema: quando defendemos a tradição
enquanto origem dos padrões de julgamento de valor, negamos a individualidade dos
padrões pessoais enquanto guias confiáveis da consciência, ou seja, não aceitamos a
formação e a capacidade do leitor comum de elaborar e exprimir seus próprios
julgamentos de valor. Além disso, sustenta-se que os sentimentos devem ser submetidos
à análise racional e que a razão deve ter supremacia na definição dos valores absolutos
da sociedade e da arte.
79
Em Three Guineas
87
, Woolf afirma que as leis naturais em que acredita devem
ser redescobertas a cada geração que tenta construir seus próprios significados. Woolf
está tentando redefinir o termo e atribuir a função de descoberta de valor tanto aos
instintos individuais quanto à eleição coletiva pública de boa arte, a fim de criar um
sistema duplo designado a medir e checar as leituras obtidas tanto pela razão quanto
pela imaginação. Para que as duas leituras sejam coincidentes, elaborando um cânone
próprio daquele momento, Woolf precisa encontrar pontos em comum na natureza das
duas. Seus leitores comuns determinariam o que acredita serem valores reais, mas eram
seres humanos limitados pelas diversas variáveis sociais, econômicas, culturais e de
gênero. A tradição de seu sistema social, dentro do perímetro de suas próprias negações,
também determinaria o que o coletivo acreditava serem os valores reais. As naturezas
do leitor comum e a tradição, porém, jamais seriam as mesmas.
Idealisticamente, a esperança de Woolf para resolver seu dilema da avaliação da
arte residiria em sua crença que arte, música e literatura podiam transcender a cultura
que as talhara a fim de se tornarem os padrões de valor aplicáveis a cada era. O artista,
assim como o crítico, teria de manter-se à distância dos acontecimentos de seu tempo
para conservar sua integridade e a qualidade de sua obra.
Ao aplicar sua referência pessoal de julgamento de valor, refinada pelo gosto e
pelo instinto de uma filha de homem educado, ao veredicto do julgamento do leitor
comum e da crítica pública corrente, Woolf foi incapaz de determinar padrões e valor
absolutos que pudessem exercer a função de referenciais no momento de vida daquela
sociedade. A consciência crescente dessa falha impulsiona o experimentalismo com a
estrutura do romance na tentativa de escapar daquele contexto frustrante e abrir
caminhos para estabelecer a famigerada distância necessária para a análise do
preexistente, do presente e de seus possíveis desdobramentos. Sem qualquer padrão
crítico objetivo para aplicar à arte ou à sociedade contemporânea, Woolf recorreu a uma
posição além dos limites daquela sociedade e do aprisionamento textual que vitimava
seus predecessores imediatos. Esse foco sobre a ficção do começo do século XX
ilumina o projeto analítico de seus ensaios críticos, embora não o consolide.
Em sua busca por um instrumento objetivo com o qual pudesse finalmente se
desvencilhar da complexidade de uma consciência programada pela sociedade vigente,
Woolf inventou dois parâmetros que, esperava, teriam autoridade suficiente para
87
Em WOOLF, V. Three Guineas. New York: Harcourt, Brace & Jovanovich, 1938. p. 185.
80
permitir ao indivíduo comum discernimento entre real e irreal, público e particular,
tradição e vanguarda.
Em seus ensaios, os argumentos de Woolf se dispersam através de um sistema
próprio de autodefesa literária que ora se baseia no parâmetro público, tradicional, ora
no pessoal, invertendo seus propósitos e defendendo a atividade de leitura
compartilhada com o leitor comum. Em alguns ensaios, principalmente os denominados
feministas, Woolf é uma teórica que analisa a obra literária à luz da reforma social
necessária para se atingir a civilidade; em alguns ensaios sobre autores e suas obras,
Woolf argumenta que o leitor comum deve buscar elementos nos clássicos para refinar
seu julgamento pessoal e submeter seus preconceitos a uma força maior que o fortaleça
e libere.
Na verdade, o objetivo era utilizar a arte clássica como caminho pelo qual seria
possível transcender os valores sociais e as atividades em comum com os
contemporâneos, além de obter o distanciamento histórico almejado e necessário e
traçar pontos de referência alheios à esfera política, socioeconômica e cultural do início
do século XX. Ainda assim, utilizar a arte, a tradição cultural e interpretar a mensagem
incorporada a ela continua a ser um problema sem solução. A disponibilidade dessa arte
tem graus diferentes para filhas e filhos de homens educados, ou nem tanto, e sua
interpretação e avaliação final jamais serão absolutas.
O valor dos ensaios de Woolf, além do conteúdo informativo extremamente rico,
está na tentativa de captura em preto e branco dos paradoxos de um momento histórico
controvertido, em que as instituições e valores e seus meandros aspergiam
questionamentos e evocavam reformas e explicações. Os paradoxos teóricos e pessoais
da obra crítica de Woolf retratam essa passagem e desafiam seus leitores a encontrarem
as soluções que ela não conseguiu, num momento em que todos os valores estão, ou
continuam desde sempre, indefinidos.
81
Os Ensaios
Escolhemos cinco de seus ensaios, publicados entre 1918 e 1929, para tentarmos
demonstrar os princípios estéticos que nortearam os juízos de valor da autora. São eles:
"O Ponto de Vista Russo"
Publicado em The Common Reader I, em 1925, incorporando o ensaio "The Russian
View", publicado em 1918 pelo Times Literary Supplement. Também consta das
edições Collected Essays, volume 1.
"A Ficção Moderna"
Publicado em 1919 pelo Times Literary Supplement. Também consta das edições de The
Common Reader I e Collected Essays, volume 2.
"Como se Atinge um Contemporâneo"
Publicado em 05/04/1923 pelo Times Literary Supplement. Também consta das edições
de The Common Reader I, Collected Essays, volume 2 e Essays, volume 3.
"O Senhor Bennett e a Senhora Brown"
Publicado pelo New York Post Literary Review em 17/11/1923. Também consta de The
Captain’s Death Bed and Other Essays, Collected Essays, volume 1 e Essays.
"Fases da Ficção"
Publicado pela Bookman, New York em três partes: abril, maio e junho de 1929
Os ensaios que escolhemos para incluir neste trabalho reúnem algumas das
idéias primordiais de Virginia Woolf. Algumas delas, discutidas desde o princípio de
sua carreira como ensaísta em 1905, foram desenvolvidas e aperfeiçoadas ao longo de
sua longa carreira crítica, que durou até o final de sua vida em 1941. Por exemplo, a
discussão da importância do crítico literário e a função do leitor comum. Sua definição
de leitor comum como uma pessoa capaz de utilizar seus instintos desenvolvidos a partir
da leitura dos clássicos e da necessidade por verossimilhança e a descrição de seu
82
desempenho para estabelecer critérios de qualidade do romance permeiam toda sua
obra, ora exaltando a participação dos leitores na manufatura de histórias plausíveis, ora
pedindo paciência e apoio deles aos romancistas órfãos da era pós-eduardiana, que não
tinham um exemplo a seguir para enfrentarem os resultados de seus experimentos.
Explicação estranha. É igualmente desconcertante para o leitor,
que deseja aprimorar suas tendências na caótica literatura
contemporânea, e para o autor, que tem o desejo natural de
saber se seu próprio trabalho, produzido com muito sofrimento
e quase que totalmente no escuro, tem mais probabilidade de
queimar para sempre entre os astros das letras ou, pelo
contrário, apagar o incêndio.
88
Em “Como se Atinge um Contemporâneo”, 1923, Woolf se demora bastante na
discussão da importância do relacionamento honesto e aberto entre autor e leitor, que
não deveria ser dependente de nenhum crítico, sendo que ela não acreditava que naquele
momento havia algum nome a ser respeitado ou alguma percepção com a autoridade de
um Coleridge, Dryden, Johnson ou Arnold, ou conhecimento suficiente para ser
apreciada e seguida. Havia ensaístas e não críticos.
O único conselho que podem nos dar é o de respeitarmos nossos
próprios instintos, segui-los sem receio e, em vez de submetê-los
ao controle de qualquer crítico ou ensaísta vivo, avaliá-los
através da leitura e da releitura das obras-primas do passado.
(...)
Certa vez, devemos acreditar, houve disciplina e regras que
controlavam uma grande república de leitores de modo que
desconhecemos atualmente. Isso não significa que o grande
crítico, Dryden, Johnson, Coleridge ou Arnold, era juiz
impecável de seus contemporâneos, que seus veredictos
classificavam os livros indelevelmente e tiravam a
88
Ver "Como se Atinge um Contemporâneo", parte II, p.142.
83
responsabilidade do leitor de avaliar o valor deles por si
mesmo.
89
Woolf, como de costume, indica caminhos e induz seu leitor a diversas direções,
pois não fica muito claro no ensaio se ela considera bom ter um homem forte e distante
que tire a responsabilidade do leitor de avaliar o romance por si mesmo ou se prefere o
milhão de policiais competentes escrevendo ensaios sem o veredicto de um juiz.
Contudo, no pensamento mais profundo de cada leitor existiria
a consciência de que havia pelo menos um homem que mantinha
os princípios da literatura à mão, que tendo contato com
alguma excentricidade do momento a transformaria em obra
perene e a limitaria com sua autoridade, nos arroubos
contraditórios de cumprimentos e culpa. (...)
Temos ensaístas, mas não temos críticos: um milhão de policiais
competentes e incorruptíveis, mas não temos juízes. Homens de
bom gosto, treinamento e habilidade estarão para sempre
repreendendo os jovens e celebrando os mortos. Todavia, o
resultado mais freqüente de suas hábeis e diligentes
interferências é a dissecação dos tecidos vivos da literatura em
um monte de ossinhos.
90
Na seqüência do ensaio, Virginia lança uma nova questão recorrente: seriam os
georgianos parte de uma era estéril e exaurida como ela mesma diz, só para se
contradizer um pouco depois? Ela afirma que os pessimistas de seu tempo é que não
conseguem enxergar a vasta produção de seus contemporâneos porque esperam a
rigidez e a regularidade da produção literária vitoriana, além de sentirem falta das obras-
primas publicadas naquele tempo.
Esta é uma era estéril e exaurida, repito. Devemos olhar
invejosamente para o passado. Por enquanto, é só um dos
primeiros dias agradáveis da primavera. A vida não está
89
Ver "Como se Atinge um Contemporâneo", parte II, p.143.
90
Ver "Como se Atinge um Contemporâneo", parte II, p.144.
84
perdendo totalmente seu colorido. O telefone, que interrompe as
conversas mais sérias e abrevia as observações de maior peso,
tem um romantismo próprio. E a conversa aleatória de pessoas
que não têm chance alguma de imortalidade e podem, por isso
mesmo, dizer o que pensam, tem um cenário freqüente de luzes,
ruas, casas, seres humanos, graça e estranheza, que se
entrelaçará no momento para sempre. É a vida. A conversa é
sobre literatura. Devemos tentar desembaraçar as duas e
justificar a revolta ousada do otimismo contra a plausibilidade
superior e a distinção refinada do pessimismo.
91
Para reforçar que considera pessimismo a crítica à falta de produção literária,
mas concorda que faltam obras-primas no século XX, Woolf nos leva ao início do
século XIX, citando exemplos da produção de então e reclamando do posicionamento
de críticos e leitores diante da aparente falta de rumo da literatura georgiana.
Waverley, Don Juan, Hazlitt’s Essays, Orgulho e Preconceito,
Hyperion e Prometheus Unbound foram todos publicados entre
1800 e 1821. Nosso século não está atrás em produção, mas se
exigirmos obras-primas, fica claro que os pessimistas estão
certos. Parece que uma era de genialidade, revolta e
extravagância deve ser seguida por uma de esforço, limpeza e
trabalho árduo. (...)
Ouvimos críticas e defesas e depois de tudo, temos que enfrentar
as objeções de que estamos simplesmente concordando com os
críticos que esta é uma era incapaz de sustentar esforço,
desordenada em fragmentos e sem seriedade para ser
comparada com a anterior.
92
91
Ver "Como se Atinge um Contemporâneo", parte II, p. 145.
92
Ver "Como se Atinge um Contemporâneo", parte II, p. 145.
85
A consciência das mudanças que dificultam a produção de obras-primas no
começo do século XX é muito forte, porém mais explícita em “A Ficção Moderna”, “O
Senhor Bennet a Senhora Brown” e “Fases da Ficção,” de 1919, 1923 e 1929
respectivamente. Há algumas investidas na problemática do momento histórico em
“Como se Atinge um Contemporâneo”, mas nada além de mencionar que uma das
causas da separação abrupta entre seus contemporâneos e seus antecessores teria sido a
guerra, que levou à perda de referenciais de comportamento e de sensatez.
E a literatura moderna, com todas suas imperfeições, tem o
mesmo poder sobre nós e exerce o mesmo fascínio que uma
pessoa de nosso convívio diário que nos repreende e critica
duramente, de quem não conseguimos ficar longe. Tem a mesma
qualidade de nos fazer estimar sermos o que somos, o que
fizemos e vivemos, em vez de sermos algo majestoso ou alheio a
nós mesmos, contemplado de fora. Nenhuma geração precisa
mais do que a nossa acalentar seus contemporâneos. Separamo-
nos abruptamente de nossos antecessores. Uma alteração na
balança: a guerra, um tropeço repentino das massas, mantidas
em seus lugares há séculos, desestabilizou a estrutura básica de
cima a baixo, nos alienou quanto ao passado e nos tornou talvez
conscientes demais de nosso presente. Todos os dias nos
surpreendemos fazendo, dizendo ou pensando coisas que seriam
impossíveis para nossos pais.
93
Os escritores modernos não conseguiam suprir as necessidades dos leitores
ávidos por segurança e parâmetros porque não acreditavam mais que fosse possível
estabelecer interações sociais concretas como nossos ancestrais conseguiam entre si por
acreditarem no senso de humanidade coletivo construído pelas convenções vigentes a
cada ciclo da história.
Nossos contemporâneos nos afligem porque deixaram de
acreditar. O mais sincero deles somente nos contará o que
93
Ver "Como se Atinge um Contemporâneo", parte II, p. 146.
86
acontece consigo mesmo. Não constroem um mundo porque não
estão livres de outros seres humanos. Não podem contar
histórias porque não acreditam que as histórias são
verdadeiras. Não conseguem generalizar, dependem mais de
seus sentidos e emoções, cujo testemunho é confiável, do que de
seu intelecto, cuja mensagem é obscura. Têm, por força maior,
que se negar a usar algumas das armas mais poderosas e
especiais de seu ofício; com toda a riqueza da língua inglesa a
seu dispor, timidamente passam só reles moedinhas de cobre de
mão em mão e de livro em livro. Acomodados na confortável
posição do eterno em potencial, somente açoitam seus cadernos
e gravam com intensidade agonizante os reflexos fugidios – que
iluminam o quê? – e os esplendores transitórios que podem,
talvez, compor coisa nenhuma. Aqui se interpõem os críticos,
que demonstram justiça para com alguns.
94
O princípio da fragmentação do texto seria o reflexo da descaracterização dos
seres humanos enquanto grupo, para dar vazão aos princípios mais escondidos da
individualidade psicológica.
Novos livros nos seduzem a lê-los parcialmente na esperança de
que refletirão esse rearranjo de nosso comportamento: as
cenas, pensamentos e os agrupamentos aparentemente fortuitos
de incongruências que nos impingem tamanho senso de
novidade. E como faz a literatura, os livros devolvem a
novidade aos nossos cuidados, ampla e compreendida. Aqui
estão, de fato, todas as razões do otimismo. Nenhuma era deve
ter sido mais rica do que a nossa em escritores determinados a
expressar as diferenças que nos separam do passado e não as
semelhanças que nos conectam a ele.(...)
94
Ver "Como se Atinge um Contemporâneo", parte II, p. 148.
87
Se fizermos um teste daqui a um século e perguntarmos quanto
da produção atual na Inglaterra ainda existirá, poderemos ter
que responder não só que não concordamos sobre a mesma
obra, mas que duvidamos muito que ainda exista. Esta é uma
era de fragmentos.
95
Os autores contemporâneos do início do século XX tiveram de enfrentar todos
esses inimigos: a ruptura do status quo, a ausência de referencial tanto humano quanto
artístico, a falta de um poder crítico aglutinador que estabelecesse parâmetros literários
e padrões de qualidade e a exigência de um público leitor insatisfeito, perdido entre a
falta de solidez das personagens modernas e o excesso de experimentalismo dos autores
igualmente insatisfeitos.
Livro após livro nos deixa com a mesma sensação de promessa
não cumprida, de pobreza intelectual, de brilho apreendido da
vida que não foi aproveitado pela literatura. Muito do que há de
melhor no trabalho contemporâneo tem a aparência de estar
sob pressão, anotado em taquigrafia melancólica que preserva
os movimentos e expressões das figuras como passam pela tela
com brilhantismo surpreendente. Porém o reflexo logo se esvai
e dá lugar à profunda insatisfação que permanece. A irritação é
tão profunda quanto foi intenso o prazer.
96
A insatisfação do leitor inglês é diagnosticada e discutida repetidamente nos
ensaios de Woolf, sempre repletos de contradições peculiares que os definem ora como
baluartes, construídos a partir de sua instintiva formação em leitura contínua de
qualidade, do desenvolvimento do romance, ora como seres inocentes que são
manipulados e treinados a reconhecerem sinais convencionais tais como número de
capítulos apropriado ou certos chavões que indicam clímax ou conclusão de uma
história – assim como os apreciadores de música clássica foram treinados a reconhecer
certos acordes que indicavam o final de uma sinfonia para que pudessem aplaudir na
hora certa.
95
Ver "Como se Atinge um Contemporâneo", parte II, p. 146.
96
Ver "Como se Atinge um Contemporâneo", parte II, p. 147.
88
O romancista georgiano estava em uma situação difícil e
estranha. Havia a senhora Brown protestando que era bem
diferente daquilo que as pessoas fizeram dela e seduzindo, com
seus truques mais fascinantes e o vislumbre efêmero de seu
charme, o romancista a socorrê-la; havia os eduardianos
oferecendo mecanismos apropriados para construirmos e
demolirmos casas. Havia também o público britânico
sustentando que deveriam ver a bolsa de água quente primeiro.
Enquanto isso, o trem seguia para a estação onde todos nós
deveríamos saltar.
Tal foi, em minha opinião, a situação difícil enfrentada pelos
jovens georgianos por volta de 1910.
97
Os romancistas georgianos precisavam reunir todas as características de seus
antecessores, analisá-las, reformular suas convenções de acordo com as mudanças de
seu dia-a-dia, a fim de conseguir sobrepujar a expectativa preestabelecida dos leitores e
produzir romances de qualidade que estabelecessem novos padrões de entendimento.
Ao mesmo tempo que Virginia Woolf defende seus contemporâneos, não deixa de
antipatizar com muitos de seus métodos, por considerá-los atos desesperados de autores
exauridos, não pelo esforço criativo, mas pelo árduo trabalho de nos fazer abrir os
olhos, buscar e alinhavar uma maneira engenhosa de escrever antes de nos fazer
enxergar. Outros romancistas, em outros tempos, dispenderam sua energia totalmente
para seu trabalho, tendo resultados muito mais prontamente do que os modernistas.
Ainda assim, se compararmos Eminent Victorians com alguns
dos ensaios de Lord Macaulay, mesmo percebendo que ele está
sempre errado e Stratchey sempre certo, também percebemos
corpo, ímpeto e riqueza nos ensaios de Macaulay que
demonstram todo o suporte de uma era. Sua força foi dirigida
totalmente para seu trabalho, não houve nenhum desvio com
propósito de dissimular ou converter. Porém Stratchey teve que
nos abrir os olhos, buscar e alinhavar uma maneira engenhosa
97
Ver "O Senhor Bennett e a Senhora Brown", parte II, p. 163.
89
de escrever antes de nos fazer enxergar. Conseqüentemente, o
esforço belíssimo, embora dissimulado, tirou muito da força de
seu trabalho e limitou seus horizontes.
98
"O Senhor Bennett e a Senhora Brown" (The Captain’s Deathbed) foi publicado
em 1923 com o título “Character and Fiction”
99
. O ensaio foi uma resposta à crítica
irônica e negativa de Arnold Bennett sobre Jacob’s Room, de 1922. Em resumo,
Bennett diz que Jacob’s Room é um exemplo de romance moderno cujas personagens
não sobrevivem na memória do leitor porque a autora estava mais preocupada com
detalhes de sagacidade e originalidade.
100
Além disso, Virginia Woolf retoma a oposição entre eduardianos e georgianos,
utilizando-se da personagem Senhora Brown para representar a natureza humana, que
deveria ser o maior propósito de um romance. Ela concorda com Bennett que a
personagem é o que há de mais importante no romance, mas discorda profundamente da
maneira como Bennett a explora no texto e da maneira como ele encara o significado da
realidade. Virginia Woolf concluiu que sua divergência com Bennett sobre personagens
estabelecia uma diferença profunda entre seus modos de ser e de encarar o mundo.
Virginia Woolf pondera que sua geração estava mais disposta a pensar nas
personagens do que a anterior, e se interessava por elas porque o mundo sofrera
modificações muito radicais naquele começo de século – Freud, por exemplo – que
apontavam para a importância da representação da realidade inconsciente tanto quanto
da consciente e visível.
É neste ensaio que Virginia Woolf afirma que o modo de ver o mundo se
transformou em 1910. Foi o ano da primeira exposição pós-impressionista, da morte do
rei Edward VII, dos movimentos sociais, dentre outros eventos. As expectativas das
pessoas, os valores, os parâmetros tinham mudado e a transformação era tão clara que
não se podia mais ignorá-la. Assim como a arte, a vida deixa de ser clara, objetiva e
previsível para assumir imagens fragmentárias, indiretas, subjetivas e totalmente novas,
sem comparações.
Mais uma vez, Woolf mescla estilos diferentes quando especula sobre a senhora
Brown, suas atitudes, seu comportamento, seus sentimentos e suas relações com outras
98
Ver "O Senhor Bennett e a Senhora Brown", parte II, p. 165.
99
“Personagem e Ficção” (tradução nossa)
100
BENNETT, Arnold. “Is the Novel Decaying?”, Cassell’s Weekly, março, 1923.
90
pessoas. Woolf aproveita a história e sua descrição da senhora Brown para elaborar a
comparação com o que seria da mesma história se ela fosse narrada por Arnold Bennett
ou outro eduardiano.
Ela aproveita a comparação das narrativas para discutir a importância da história
do próprio romancista enquanto determinante do tipo de caráter que seria emprestado à
senhora Brown. Também afirma que a concepção de uma personagem depende da
noção de realidade do autor.
Virginia Woolf termina o ensaio em tom otimista, considerando o momento
literário o início de uma grande fase da literatura inglesa e incitando o leitor a nunca
abandonar a senhora Brown, a personagem da ficção.
No mesmo ano, Woolf publicou "Como se Atinge um Contemporâneo" (The
Common Reader I). 1923 foi o ano da morte de Katherine Mansfield
101
, cuja rivalidade
profissional com Virginia Woolf a fez refletir sobre o período fragmentado em que
viviam e como o representavam, e, tão importante quanto isso, a perda de Mansfield a
fez perceber que tinha, de fato, dificuldade para enfrentar oposição de peso que não
fizesse parte do seguro universo crítico de Bloomsbury. Mansfield não compartilhava do
ambiente daquela comunidade, era uma outsider, e sendo assim, trazia para Woolf a
desconfortável crítica externa que a fazia perceber seus próprios limites e, ao mesmo
tempo, a incerteza sobre muitas de suas posturas quanto à produção literária
contemporânea das mulheres. Virginia Woolf aceitara Katherine Mansfield como rival
porque a respeitava como artista e como crítica. Mansfield era severa e sagaz, mas não
passional. Devemos lembrar que, para Woolf, o escritor deveria ser verdadeiro e jamais
se deixar envolver por seus sentimentos de revolta ou admiração profunda. Mansfield
tinha conhecimento, técnica, idéias e serenidade profissional para produzir literatura e
crítica literária. De certo modo, Q.D. Leavis também demonstrou algumas facetas
incertas de Woolf. Porém, Leavis atacava Woolf de modo inflamado e agressivo
102
, o
que provavelmente foi considerado por Woolf uma fraqueza que não era digna de seu
respeito ou de sua preocupação.
101
Virginia Woolf e Katherine Mansfield se conheceram em 1916. Sua relação foi próxima até 1919,
quando Mansfield, já muito doente, mudou-se para a França. Woolf a considerava a única mulher com
quem poderia manter discussões sobre literatura e, em vários trechos de seus diários, demonstra como a
respeitava e, ao mesmo tempo, aprendia com sua técnica, embora se incomodasse com sua crítica. Uma
passagem elucidativa no segundo volume dos diários de Woolf, na época da morte de Mansfield,
confirma a afirmativa anterior: não há mais "razão para escrever. Katherine não vai ler." (p.226) (...)
"provavelmente tínhamos algo em comum que jamais encontrarei em outra pessoa." (p.227)
102
Ver LEAVIS, Q.D. "Caterpillars of the Commonwealth Unite!". Scrutiny, September, 1938. Ensaio em
que Leavis discute Three Guineas (1938).
91
Segundo Virginia Woolf, uma das demonstrações da fragmentação do presente
seria a ruptura brusca e radical de sua geração com seus antecessores. Ela também
afirma que seus contemporâneos não contavam mais histórias porque não acreditavam
nelas. O recado para os críticos era para que analisassem o passado em relação ao
futuro, pois os autores de seu tempo seriam meros instrumentos na proposta de uma
estética que ainda não estava suficientemente clara. "Como se Atinge um
Contemporâneo" é um ensaio sobre as dificuldades dos críticos em concordarem sobre o
valor do trabalho de seus contemporâneos, assunto já debatido em "Hours in a
Library"
103
.
Em "O Senhor Bennett e a Senhora Brown", Woolf reitera a dificuldade dos
jovens escritores de se encontrarem diante do caos da modernidade, que basicamente
lhes tirou o equilíbrio estabelecido por anos de tradição e convenções concretas, lícitas,
verossímeis – o bom romancista havia sempre sido aquele que fazia seu leitor acreditar
que as personagens viviam vidas próximas às dele e tudo o que era mais distante estava
no patamar do divino, ou seja, daquilo que não tem controle humano, portanto, não
precisa ser explicado, somente apreendido.
Guerra e Paz, Vanity Fair, Tristram Shandy, Madame Bovary,
Orgulho e Preconceito, The Mayor of Casterbridge, Villette,
imediatamente pensaremos em uma personagem que nos
pareceu tão real (não quero dizer com isso que fossem reais,
tais como a vida é) que tem o poder de nos fazer pensar não só
nela, mas em todas as coisas que nossos olhos podem ver
através dela – a religião, o amor, a guerra, a paz, a vida em
família, as festas no campo, os pores de sol, os luares, a
imortalidade da alma. Parece-me que nenhuma experiência
humana foi deixada de fora em Guerra e Paz. Em todos os
romances mencionados, esses grandes autores nos fizeram ver o
que queriam que enxergássemos através do olhar de alguma
personagem. Se não fizessem assim, seriam poetas,
historiadores ou panfletários, não romancistas.
104
103
“Horas na Biblioteca” (tradução nossa)
104
Ver "O Senhor Bennett e a Senhora Brown", parte II, p. 156.
92
Como considerar bom um romancista jovem, experimentando com a linguagem
e os conceitos de consciente e de subconsciente dentro dos parâmetros de outra era, que
foi chamada de materialista, tão diferente da tendência presente?
Woolf passa a discutir duas outras questões absolutamente recorrentes em sua
obra crítica e essenciais para qualquer estudo da literatura do início do século XX: a
personagem como espinha dorsal do romance, cuja compreensão seria o objetivo
máximo da literatura moderna e a tentativa de compreender os caminhos da
modernidade e suas revoluções a fim de estabelecer algum tipo de controle da realidade
através de sua representação verossímil.
Creio que todos os romances germinam a partir de uma senhora
sentada no canto oposto ao seu do vagão. Creio também que
todos os romances lidam com personagens e que existem para
expressá-las, não para pregar doutrinas, entoar canções ou
celebrar as glórias do império britânico. Creio que a forma do
romance, tão confusa, loquaz e sem força dramática; tão rica,
flexível e viva, evoluiu.
105
O movimento interno de “O Senhor Bennett e a Senhora Brown” oscila , assim
como a realidade em que a autora sobrevive, de constatações de mudanças na sociedade
local, da relação dessa mudança com outras sociedades em transformação tão violenta
quanto aquela da descoberta de um movimento aparentemente descontrolado de idéias
desconexas, tais como átomos, porque fogem ao entendimento comum do momento.
Não estou dizendo que aconteceu como quando alguém vai ao
jardim e vê que uma rosa desabrochou ou que uma galinha
botou um ovo. Não. A mudança não foi repentina ou definitiva
assim. Entretanto, uma mudança houve, e uma vez que é
necessário sermos arbitrários, estabeleçamos a data acima do
ano de 1910. Os primeiros sinais da mudança estão gravados
nos livros de Samuel Butler, In the Way of All Flesh, em
particular. Nas peças de Bernard Shaw também há sinais. Na
105
Ver "O Senhor Bennett e a Senhora Brown", parte II, p. 155.
93
vida cotidiana, há sinais. Podemos enxergar as mudanças, se
me permitem uma imagem bem doméstica, no comportamento
da cozinheira. A cozinheira vitoriana vivia como um imenso ser
marinho tirado das escrituras, vivendo nas profundezas mais
longínquas, formidável, silenciosa, obscura, inescrutável. Por
outro lado, a cozinheira georgiana é uma criatura do sol e do ar
fresco, entrando e saindo da sala de estar para pedir o jornal
emprestado ou dar um conselho sobre um chapéu. Vocês
precisam de algum outro exemplo solene do poder de adaptação
da raça humana? Leia Agamemnon e veja se sua simpatia não
tende, no decorrer da história, indubitavelmente para
Clitemnestra. Ou ainda, considere a vida conjugal dos Carlyle e
lamente o desperdício, a futilidade, tanto dele quanto dela, na
tradição doméstica horrível que fez parecer direito que uma
mulher talentosa ocupasse seu tempo caçando besouros e
esfregando panelas em vez de escrevendo livros. Todas as
relações humanas mudaram: entre patrões e empregados,
maridos e esposas, pais e filhos. E quando as relações humanas
mudam, há mudança na religião, no comportamento, na política
e na literatura. Vamos estabelecer de comum acordo que essas
mudanças aconteceram por volta de 1910.
106
A essência da natureza humana, porém, permanece, pois a senhora Brown
sempre permanece no vagão. São os romancistas que entram e saem. A roupagem se
modifica, as convenções também, mas o indivíduo e o que se passa em sua alma não se
transformam radicalmente.
Lá vai ela viajando, não de Richmond a Waterloo, mas de uma
era da literatura inglesa para a próxima, pois a senhora Brown
é eterna, ela é a natureza humana. A senhora Brown só se
modifica na superfície; são os romancistas que entram e saem.
Ela permanece lá sentada, sem que nenhum dos eduardianos
106
Ver "O Senhor Bennett e a Senhora Brown", parte II, p. 152.
94
tenha se preocupado em olhar para ela. Poderosos, inquisitivos
e complacentes observaram o lado de fora da janela, as
fábricas, as Utopias, até mesmo a decoração e o estofamento do
trem. Porém, nunca olharam para ela, para a vida, para a
natureza humana. Desenvolveram uma técnica de escrever
romances que se adapta a seus propósitos. Criaram mecanismos
e estabeleceram convenções que trabalham por eles. Mas seus
mecanismos não são como os nossos, e seu trabalho não é como
o nosso. Consideramos suas convenções ruins e seus
mecanismos, a morte.
107
Há relações diferentes entre os seres humanos, o que é permitido ou proibido
sofre variações, a autoridade deve ser exercida, se exercida, de maneira diferente. Tudo
o que se modifica são as nuances que se fazem mais ou menos claras de acordo com o
momento em que se vive. Em uma sociedade sacudida por uma guerra mundial
sangrenta e inacreditável, inconcebível pela contradição que impôs entre os valores
humanitários filosóficos de uma era de descobertas e desenvolvimento científico,
artístico, sócio-econômico e cultural e os interesses político-mercantilistas desumanos,
nenhuma relação humana fazia mais sentido. A confiança para a reprodução da
realidade, baseada nas relações estáveis entre seres humanos não pode mais ser
parâmetro para o romance. A mudança básica que ocorreu por volta de 1910 já era o
prenúncio da morte dessa confiança e da necessidade de se buscar novas maneiras de
representar o que escapasse do caos.
Sobrecarregar a personagem e passar a dissecá-la psicologicamente parece a
única rota de fuga viável, tomada por todos os seres humanos que tentavam, ao mesmo
tempo, enxergar uma saída para sua realidade e conseguir representá-la do modo menos
utópico possível.
Além da necessidade de enfrentar a realidade brutal e a iminência da
continuação da guerra, que de fato ocorreria poucas décadas depois, os romancistas,
assim como todos os outros ingleses, tiveram de tomar consciência de que não era
possível isolar-se em seu território, cada vez mais restrito por causa das revoluções nas
colônias, e tentar produzir literatura como os antepassados para garantir a manutenção
107
Ver "O Senhor Bennett e a Senhora Brown", parte II, p. 161.
95
de sua existência. Na verdade, o isolamento seria uma mentira, uma vez que a Europa
Ocidental e os Estados Unidos eram fortes aliados em áreas mais mundanas tais como
economia e artefato bélico e pólos de produção de vanguarda cultural, assunto em que a
Rússia também detinha grande poder de fogo.
Uma das estratégias para redefinir os parâmetros de qualidade da literatura
nacional, de certa forma defendendo o experimentalismo dos georgianos, que
enveredava pelo mesmo caminho dos alemães e dos franceses, e mantê-la viva e forte
diante da realidade fragmentada poderia ser a comparação do romance inglês aos
produzidos em outros países. Woolf esboça essa tendência quando exemplifica como
ingleses, franceses e russos descreveriam o incidente com a senhora Brown no trem.
Seria muito fácil escrever três versões do incidente no trem:
uma inglesa, uma francesa e uma russa. O escritor inglês
transformaria a velha senhora em uma personagem.
Mostraria suas esquisitices e maneirismos, seus botões e
marcas de expressão, seus laçarotes e verrugas. Sua
personalidade dominaria o livro. Um escritor francês
apagaria tudo isso. Sacrificaria o indivíduo senhora Brown
para nos oferecer uma visão mais ampla da natureza
humana, para construir um todo mais abstrato, proporcional
e harmonioso. O russo perfuraria a carne, revelaria a alma –
somente a alma, vagando pela Waterloo Road, questionando
implacavelmente a vida, de modo que tal questão ecoasse em
nossos ouvidos mesmo depois de terminada a leitura do
livro.
108
Aparentemente, a comparação das reações de outras realidades com o status quo
assume uma função muito mais importante e vital para o conjunto de sua obra do que a
própria batalha entre a modernidade imatura dos georgianos e a sedentária tradição do
elemento material eduardiano de Wells, Galsworthy e Bennett, que pressupõe que o
leitor deve descobrir a vida dentre os detalhes da mobília e da construção. A única
serventia explícita da crítica aos eduardianos é a criação de argumentação que defenda
108
Ver "O Senhor Bennett e a Senhora Brown", parte II, p. 156.
96
os jovens contemporâneos e os exima da responsabilidade de produzir obras-primas
num momento tão delicado e incompreensível da natureza humana.
Isso é o que quero dizer com os mecanismos utilizados pelos
eduardianos serem errados para os georgianos. Enfatizaram
demais a manufatura dos elementos. Eles nos deram uma casa
na esperança que conseguíssemos deduzir que seres humanos
vivem nela. Para sermos justos, tornaram a casa muito melhor
para se viver. Contudo, se acreditamos que os romances são,
antes de tudo, a respeito de pessoas e não de lugares e, em
segundo plano, sobre as casas onde as pessoas vivem, o que os
eduardianos fizeram está errado. Desse modo, os georgianos
tiveram que começar jogando fora o método que estava sendo
utilizado naquele momento. Foram abandonados diante da
senhora Brown sem qualquer metodologia para apresentá-la ao
leitor.
109
O tom informal dos ensaios é uma constante e nos reporta aos debates de um
grupo de estudos, em que as idéias fossem respeitadas e discutidas sempre dentro de um
princípio de honestidade questionadora e de princípio ético inviolável. O estilo de
Virginia Woolf é característico e expressa a erudição pela convivência e não pela
academia. Toda sua obra era analisada e discutida por companheiros de Bloomsbury,
em quem depositava toda sua confiança: Vanessa Bell, Leonard Woolf, E.M. Forster e
Lytton Stratchey, principalmente.
No ensaio "O Senhor Bennett e a Senhora Brown", assim como em Um Teto
Todo Seu Woolf faz uso de uma miscelânea de técnicas, ora como se narrasse um
romance, ora como se estivesse apresentando uma palestra. A autora se utiliza de
personagens para discutir e exemplificar pontos de vista teóricos, assim como utiliza
metáforas inesperadas para descrever autores e obras: A cozinheira vitoriana vivia como
um imenso ser marinho tirado das escrituras, vivendo nas profundezas mais
longínquas, formidável, silenciosa, obscura, inescrutável. (...) o resultado mais
freqüente de suas hábeis e diligentes interferências é a dissecação dos tecidos vivos da
109
Ver "O Senhor Bennett e a Senhora Brown", parte II, p. 162.
97
literatura em um monte de ossinhos. (...) A sinceridade dos jovens é desesperada e sua
coragem tremenda; simplesmente não sabem se usam o garfo ou os dedos.
Woolf sempre defendeu a condição do leitor comum de estabelecer parâmetros
de qualidade. Talvez tivesse em mente a si mesma e seu círculo de amigos, pois
acreditava que o leitor comum deveria ajudar o romancista moderno a encontrar seu
próprio caminho, estabelecendo, com propriedade, referenciais a partir dos quais a
literatura se desenvolveria.
Em outros ensaios como "How Should One Read a Book?" (The Common
Reader II) e "The Narrow Bridge of Art" (Granite and Rainbow), Virginia Woolf só
reitera suas afirmações e propostas sobre leitores, romancistas e desenvolvimento do
romance.
“How Should One Read a Book?” foi publicado em 1926. Virginia volta a
insistir em seu conselho aos leitores para que sigam seus próprios instintos ao analisar
uma obra de arte. Seu tom é o da romancista e não o da crítica, quando sugere que o
leitor deveria tentar se colocar na posição do autor cuja obra ele lê. Então ela pondera
que talvez a maneira mais rápida de se entender o objetivo de um escritor seria escrever
também. Tendo consciência da dificuldade de se escrever bem, os leitores se tornariam
mais aptos a compreender os grandes escritores. Em seu ponto de vista, leitores e
romancistas são colaboradores, pois o julgamento dos primeiros sobre o trabalho dos
últimos torna-se parte do processo de criação da obra de arte.
No mesmo ano Virginia Woolf publicou "Life and the Novelist" (The Common
Reader II), continuando a discussão da arte do romancista. Ela descreve os dois
processos envolvidos no ato de escrever neste ensaio: ter impressões sobre o mundo e,
então, selecioná-las de modo que as experiências a partir das impressões possam ser
transmitidas. Isto é interessante porque Virginia Woolf usa a figura do lado masculino
do cérebro, o observador no café, e a do lado feminino do cérebro, que analisa e
seleciona as impressões do primeiro a fim de transmiti-las ao leitor. Claramente, o
princípio da androginia já estava em sua mente.
Este processo conjugado de observar, ter impressões, selecionar e reproduzir
exige, segundo Virginia Woolf, muito mais habilidade literária do que o trabalho do
crítico e, ao mesmo tempo, é o ponto que fascina o profissional de crítica literária.
Em 1927 publicou o ensaio “The Narrow Bridge of Art”, em que defende a
primazia do romance moderno enquanto gênero literário. Ela acusa os críticos
98
acadêmicos de só olharem para o passado e de deixarem as obras contemporâneas para
os articulistas, sem que ninguém se preocupe com o futuro da arte. A visão de Woolf a
respeito do que o romance do futuro deveria ser está bem exemplificada em seus
próprios romances.
Ele terá algo da exaltação da poesia, mas muito do corriqueiro
da prosa. Será dramático, mas ainda assim não será uma peça
teatral.
110
Para Woolf, o romance é flexível o bastante para exprimir tudo o que os outros
estilos exprimiram no passado, mas os romancistas deveriam expandir seus horizontes e
interesses a fim de dramatizar o número extraordinário de percepções que ainda não
foram expressas sem se deixar envolver pelos excessos do texto psicológico, ou seja, em
sintonia com todos os aspectos do mundo real, intrínseco e extrínseco, mas distanciados
de suas personagens enquanto narradores. As personagens deveriam ser independentes
para gerir suas próprias relações com o mundo.
Ainda em 1927, Virginia Woolf publicou seu ensaio sobre Aspects of the Novel
de E.M. Forster, criticando-o por não tratar a ficção como forma de arte e por omitir
qualquer consideração sobre a linguagem como meio da comunicação ficcional. Ela
aproveita para demonstrar seu descontentamento e frustração em relação aos
romancistas que aceitam uma concepção de vida que limite seu raio de visão criativa.
Seu argumento no ataque a Forster é que a ficção deveria ser tratada como arte com
tanta seriedade quanto a pintura, a música ou a escultura, e não simplesmente como uma
forma de entretenimento social. Tanto "How Should One Read a Book" como "The
Narrow Bridge of Art" refinam as idéias e sugestões que são apresentadas em "Fases da
Ficção".
Em 1929, Woolf publicou "Fases da Ficção" (Granite and Rainbow), em que ela
continua seu trabalho na tentativa de estabelecer uma teoria abrangente da ficção. Neste
ensaio, ela propõe que a leitura seja a do leitor comum porque, juntamente com o autor,
ele cria e não se preocupa com nenhum critério preestabelecido. Ela já discutira a
participação do leitor no processo criativo três anos antes em "How Should One Read a
Book".
110
It will have something of the exaltation of poetry, but much of the ordinariness of the prose. It will be
dramatic, and yet not a play. (Granite and Rainbow, 23) Tradução nossa.
99
"Fases da Ficção" é dividido em seções que classificam os autores e identificam
seu tipo de trabalho. O primeiro grupo é o dos Contadores de Verdades, os Truth Tellers
– Defoe, Maupassant, Tobias Smollet. Eles mantiveram estável a relação dos três
elementos-chave do romance: Deus, o Homem e a Natureza e, por sua vez, contribuíram
para a manutenção do mundo dos leitores dentro da perspectiva “apropriada”; o segundo
grupo é o dos Românticos, the Romantics – Walter Scott, Stevenson, Anne Radcliffe –
que, segundo Woolf, tinham falhas no desenvolvimento do romance, mas causavam
uma emoção profunda e genuína no leitor; o terceiro grupo é o dos Mascates de
Personagens e Comediantes, the Character-Mongers and Comedians – Dickens,
Austen, George Eliot – que são exímios criadores de personagens, além de utilizarem o
cômico e de enriquecerem sua obra com muitas estratégias de narrativa; o quarto grupo
é o dos Psicólogos, the Psychologists – Henry James, Proust, Dostoievski. Neste grupo,
ela retoma entusiasticamente a importância da origem do romancista e de sua cultura e
critica novamente a excessiva utilização do psicológico em detrimento da civilização –
o que ela denomina distanciamento ou impessoalidade diante do mundo em alguns
ensaios; o quinto grupo é o dos Satíricos e Fantásticos, the Satirists and Fantastics
Thomas Peacock, Sterne – que ela compara com os Psychologists, dizendo que o
Satirist não trabalha sob a opressão da onisciência, mas brinca com suas próprias idéias
livre e ironicamente, mantendo seu senso de humor à tona, e não submerso nas
profundezas do subconsciente; o sexto grupo é o dos Poetas, the Poets – Tolstoi, George
Meredith, Emily Brontë, Thomas Hardy – cujos romances têm personagens dominadas
pela impessoalidade, independentes do modo de pensar de seus inventores.
Woolf conclui que não há como tecer teorias sobre a ficção do futuro, pois o
romance no século XX não tem referências estáveis. O único elemento comum dos
romances de nosso tempo é o elemento humano. O romance, para Virginia Woolf, está
sempre atrelado à concepção contemporânea da realidade, por isso tantas histórias
parecem perder a relação com o presente depois de algum tempo e não nos dizem mais
nada.
Woolf afirma que o romancista tem que, simultaneamente, manter-se impessoal
diante da vida e trazer o leitor para o mais perto dela que for possível. Woolf define o
romancista completo como sendo aquele que pode alcançar o equilíbrio entre as duas
forças e que exerce controle sobre seus leitores, oferecendo alternativas para suas
100
reações e alterando seu comportamento. Se o romancista não tiver este controle, sua
obra terá significado somente enquanto for contemporânea.
No entanto, se ninguém, exceto o historiador professo e o
crítico, lê para entender um período ou para revisar uma
reputação, ninguém lê simplesmente por acaso ou sem uma
escala de valores definida. Há, para falar metaforicamente,
algum desígnio traçado em nossas mentes que a leitura traz à
tona. Desejos e apetites, seja lá como os encontramos, o
preenchem, conquistando posições ora nessa direção ora
naquela. Em conseqüência disso, um leitor comum pode
freqüentemente traçar seu curso através da literatura com
grande exatidão e pode até acreditar, de tempos em tempos, que
possui um mundo tão habitável nela quanto na vida real.
111
Em "Fases da Ficção", Woolf traça o roteiro ideal de leitura do leitor comum a
fim de que, a partir da análise das diversas fases da literatura, ele seja capaz de
direcionar o romancista a produzir o tipo de romance que saciará todos os seus desejos e
ansiedades.
Reforçando a propriedade dos clássicos, e assim contribuindo para a manutenção
da tradição literária e de seu cânone pessoal, Woolf também reitera a contradição de seu
discurso, ora experimentalista na elaboração dos romances, ora cauteloso e hesitante nos
textos críticos.
A defesa da obra dos jovens contemporâneos como James Joyce, D.H. Lawrence
e T.S. Eliot e da obra essencial de Henry James para que eles conseguissem, ou
chegassem muito perto do efeito que pretendiam, antes de defendê-los por sua
produção, serviu como defesa de uma causa. Na caótica intersecção de novos ideais,
comportamentos diferentes, revoluções estéticas na arte, novas ordens sócio-
econômicas, novos discursos políticos e uma ênfase maior sobre o individuo, era
necessário que alguém fizesse alguma coisa. A total ausência de elementos de
comparação tanto das idiossincrasias como dos resultados das novas instituições em
experiência tornavam qualquer definição preexistente inaceitável.
111
Ver "Fases da Ficção", parte II, p. 168.
101
Em perspectiva, na multidão, meio cegos com a poeira, olhamos
para trás com inveja daqueles guerreiros mais felizes, cuja
batalha já está vencida e cujos feitos têm um ar tão sereno de
realização que mal podemos evitar o murmurinho de que a luta
não foi tão bárbara para eles quanto está sendo para nós. O
historiador de literatura deverá decidir se estamos começando,
terminando ou vivendo uma grande fase da ficção, pois de onde
estamos muito pouco é visível. Somente reconhecemos que
certas gratidões e hostilidades nos inspiram e que alguns
caminhos parecem nos levar a campos férteis enquanto outros
nos conduzem à poeira e ao deserto.
112
Em função das necessidades prementes do momento, Woolf se vê obrigada a
discutir dois outros temas extremamente difíceis e que permanecem em discussão aberta
desde os primórdios do romance como o conhecemos, tendo sobrevivido a todos os
movimentos ou à falta deles: a função do romancista e a definição do próprio romance.
Às vezes, com o passar do tempo e cada vez mais
freqüentemente, suspeitamos de uma dúvida momentânea, um
espasmo de rebelião ao longo das páginas preenchidas como de
costume. A vida é assim? Os romances precisam ser assim?
(...)
A tarefa do romancista não seria transmitir esse espírito
variante, desconhecido e não circunscrito, seja qual for a
complexidade ou aberração que possa demonstrar, com o
mínimo de interferência externa possível? Não estamos
simplesmente pedindo coragem e sinceridade, estamos
sugerindo que o assunto da ficção seja um pouco diferente
daquilo que o costume nos leva a crer.
113
Ao discutir a função do romancista, Woolf se aproveita mais uma vez das
diferenças entre eduardianos e georgianos para expor o que acredita ser importante em
112
Ver "A Ficção Moderna", parte II, p. 135.
113
Ver "A Ficção Moderna", parte II, p. 138.
102
literatura: a personagem e suas reações perante o mundo em constante transformação.
Contudo, sua argumentação se torna volátil e quase pueril quando se apega a
argumentos como a força criativa vem da alma ou as convenções não são suficientes
para envolver todas as faíscas da chama interior que atingem o cérebro.
Os jovens tentam se aproximar mais da vida e preservar com
mais sinceridade e exatidão o que os interessa e move, mesmo
que para fazê-lo tenham que descartar a maior parte das
convenções comumente observadas por um romancista.
(...)
[Joyce]Preocupa-se ao extremo em revelar todas as nuances
das faíscas da chama interior que atingem o cérebro. A fim de
preservá-las, desconsidera corajosamente o que lhe parece
fortuito: probabilidade, coerência ou qualquer outro sinal, que
serviram, por gerações, para apoiar a imaginação do leitor
compelido a pensar o que não pode ver nem tocar.
(...)
Será que é o método que inibe a força criativa? Será devido ao
método que não nos sentimos jovens e generosos, mas centrados
em nós mesmos apesar de estremecermos com suscetibilidades
sem jamais abraçar algo ou criar além de nós mesmos? Será
que a ênfase posta, talvez didaticamente, sobre a indecência
contribui para o efeito de algo angular e isolado? Ou será
simplesmente muito mais fácil, no esforço dessa originalidade,
principalmente entre os artistas contemporâneos, perceber o
que falta do que definir o que se produz? Seja qual for o caso,
ficar de fora analisando métodos é um erro. Todo método é
correto desde que expresse o que desejamos, se somos
escritores, e nos aproxime da intenção do romancista, se somos
leitores.
114
114
Ver "A Ficção Moderna", parte II, pp. 138-139.
103
Se todo método é válido desde que expresse o que desejamos, se somos
escritores, e nos aproxime da intenção do romancista, se somos leitores, por que
Bennett está tão errado em oferecer descrições de vilarejos, casas, encostas, mobília e
bolsas de água quente a pessoas que esperavam ler exatamente isso? Se, de acordo com
a própria Woolf, a prática moderna da ficção é um progresso em relação à anterior e
nunca escrevemos melhor, só modificamos a direção de nossos argumentos, por que
dispender tanta energia criticando quem produziu antes e de maneira diferente?
Devemos admitir que somos rigorosos e que consideramos
difícil justificar nosso descontentamento e explicar o que
exatamente exigimos. Questionamos de modos diferentes em
momentos diferentes. A pergunta aparece mais persistentemente
quando descartamos um romance terminado com um suspiro:
vale a pena? Qual o objetivo disso? Será possível que, devido a
um daqueles pequenos desvios em que o espírito humano parece
entrar às vezes, Bennett apareça com seu aparato magnífico
para distorcer um pouco a vida? A vida escapa e talvez sem ela
nada mais valha à pena. É uma imprecisão confessa fazer uso
de uma figura como essa, mas enriqueceremos o assunto se
mencionarmos, como outros críticos tendem a fazer, a
realidade. Admitindo que a imprecisão aflige toda a crítica dos
romances, vamos arriscar nossa opinião de que, neste momento,
a forma de ficção de maior destaque é aquela que com maior
freqüência falha em nos assegurar o que buscamos. A essência,
quer a denominemos vida ou espírito, verdade ou realidade,
transformou-se ou adiantou-se em relação às vestimentas que
lhe oferecemos e recusa-se a usá-las.
115
A dúvida é explicitada en passant quando Woolf se refere a autores de seu
cânone pessoal, sem compreender por que exercem tanto fascínio e poder sobre seus
leitores, uma vez que não se enquadram na definição de bom romancista que ela
aparentemente defende.
115
Ver "A Ficção Moderna", parte II, p. 137.
104
Eles têm oportunidades, mas as negligenciam. Sombras e
sutilezas se acumulam e eles as ignoram. Pareciam
deliberadamente recusar-se a contemplar os sentidos que são
estimulados tão prontamente pelos modernos: visão, audição,
tato, e acima de tudo, o sentido do ser humano, sua
profundidade e a variação de suas percepções, sua
complexidade, sua confusão, em resumo, seu eu interior. Há
muito pouco disso tudo em Wordsworth, Scott e Jane Austen. De
onde vem, então, aquela sensação de segurança que gradual e
prazerosamente nos arrebata por completo? É o poder de sua
crença, sua convicção que se impõe sobre nós. Em Wordsworth,
o poeta filosófico, isso é bem óbvio.
116
As personagens de Austen e Scott não têm a profundidade e a complexa
confusão de seu eu interior exposta ao leitor. As relações humanas aparentes e seus
silêncios sugestivos e cheios de significado é que constroem seus mundos. Eles não se
ocupam das batalhas interiores como Joyce, Henry James ou Lawrence, sem esquecer
de Proust, Tolstoi, Tchecov e Dostoievski. Contudo, todos eles são ícones de
universalidade.
Em vez de nos apegarmos somente à definição de bom romancista, então, que
varia assim como o bom romance varia, talvez devêssemos nos voltar ao conceito de
androginia defendido por Woolf em Um Teto Todo Seu. O que todos os escritores acima
teriam em comum seria a facilidade de integrar os lados masculino e feminino de seus
cérebros a fim de produzir obras de qualidade, de neutralidade espiritual, ou seja,
capazes de transmitir verossimilhança, sensibilidade e resolução. A consciência do ser
de mente andrógina é superior porque não se apega a mesquinharias e pequenas
diferenças mundanas e não exaure sua energia em questões menores como defender
bandeiras, sejam elas quais forem. Seu objetivo é representar a vida da maneira mais
próxima possível da realidade. Sendo assim, não é a forma do romance, mas sua
essência que o torna fértil ou não.
116
Ver "Como se Atinge um Contemporâneo", parte II, p. 147.
105
A prova mais significativa da fertilidade, porém, é fornecida
pela consciência de sentir algo que ainda não foi dito, algum
desejo insatisfeito. Uma visão bem genérica e muito elementar
desse desejo parece demonstrar que aponta para duas direções.
Na primeira, a vida, lugar comum, está ficando mais complexa.
Nossa consciência de nós mesmos está se tornando mais alerta
e mais bem treinada. Temos consciência de relações e sutilezas
que ainda não foram exploradas. Proust é o pioneiro dessa
escola e, sem dúvida, ainda não nasceram escritores que
levarão a análise de Henry James adiante, que vão revelar e
relacionar as linhas mais tênues do sentimento e das
imaginações mais obscuras e estranhas.
Na outra direção, desejamos síntese. O romance, concordamos,
pode vir na seqüência da vida, pode juntar detalhes. Mas
também pode selecionar? Simbolizar? Poderá nos dar uma
personificação assim como um inventário? Era uma função
como essa que a poesia exercia no passado. Mas no presente e
talvez por mais tempo, a poesia com seus ritmos, sua dicção
poética, seu forte sabor de tradição está longe demais para
fazer por nós o que fez por nossos pais. A prosa talvez seja o
instrumento mais qualificado para a complexidade e a
dificuldade da vida moderna.
117
Não havendo necessidade de convenções preestabelecidas ou assuntos a
defender contra ou a favor de alguma facção, o romance se torna uma instituição de
livre acesso e de poder imensurável. Teoricamente não há forma, assunto ou maneira
adequada de se escrever romances.
Não existe matéria apropriada de ficção. Tudo é apropriado:
sentimentos, pensamentos. Toda qualidade do cérebro ou do
espírito é aproveitada e nenhuma percepção é errônea. Se
imaginarmos a arte da ficção viva e forte entre nós, sem dúvida
117
Ver "Fases da Ficção", parte II, p.210.
106
ela nos fará domá-la e intimidá-la, assim como amá-la e honrá-
la, pois é dessa forma que sua juventude se renova e sua
soberania é assegurada.
118
Outra contradição da obra crítica de Woolf está exatamente nesse argumento,
pois embora afirme que o apropriado não existe em ficção, continua a buscar,
freneticamente, romances adequados a sua definição de bom romance, revirando
tradições desde os gregos até russos, passando pelos clássicos ingleses e pelos
franceses.
Sua própria definição de romance traz dois aspectos antagônicos: a vida real
próxima, acessível e o planejamento do romancista, o distanciamento necessário para
que ele possa desvendar todas as nuances da vida das personagens. Como manter a
representação da vida verossímil quando é preciso estar distante dela para enxergá-la?
As qualidades mais características do romance – registrar o
lento crescimento e desenvolvimento dos sentimentos, seguir o
curso de muitas vidas e localizar suas intersecções e destinos
por um longo período de tempo – são qualidades quase
incompatíveis com estrutura e ordem. O dom do estilo, do
planejamento e da construção está em nos distanciarem da vida
especial e apagarem suas características, enquanto o dom do
romance é nos trazer para bem perto da vida. As duas forças
são antagônicas quando combinadas. O bom romancista deve
ser aquele capaz de equilibrar as duas forças a fim de que uma
enriqueça a outra.
Isso parece provar que o romance, por sua própria natureza,
está fadado a comprometer-se e casou-se com a mediocridade.
Pode-se concluir que seu domínio está em lidar com as emoções
mais comuns, porém menos concentradas, expressar a
generalidade da vida e não sua essência. Contudo, qualquer
veredicto deve ser baseado na suposição de que o romance tem
certo caráter fixo que não pode ser alterado, que a vida tem um
118
Ver "A Ficção Moderna", parte II, p. 141.
107
limite que pode ser definido. É precisamente essa conclusão que
os romances que lemos tendem a desequilibrar.
119
A temática da preocupação permanece em "A Ficção Moderna", como na maior
parte dos textos de The Common Reader: como ler as obras do passado e relacioná-las à
realidade contemporânea? Nesse sentido, esse ensaio é um manifesto do modernismo
literário, onde Virginia Woolf já compara a geração dos eduardianos (Wells, Bennett e
Galsworthy) a sua própria. Também é ali que Virginia afirma que não há progresso em
literatura, só diferença. Então, as obras clássicas parecerem mais completas e de melhor
qualidade que as contemporâneas é uma ilusão de ótica. Ela desenvolve o texto
atacando o materialismo dos eduardianos, que se ocupam do corpo e não do espírito, o
que seria sua diferença em relação aos georgianos (Woolf, Joyce, Lawrence, Mansfield,
entre outros). De acordo com Virginia Woolf, a vida escapa das mãos dos eduardianos
porque eles não se interessam pelos caminhos tortuosos da psicologia humana. "A
Ficção Moderna" e mais tarde "O Senhor Bennet e a Senhora Brown" estabelecem os
caminhos para a nova estética do realismo psicológico
120
, cujos exemplos mais claros
são os próprios georgianos.
Como em quase todos os seus ensaios críticos, Virginia Woolf escreve como
romancista e como leitora, sugerindo que a emoção poderia fazer os críticos perderem a
visão unilateral do consciente. Ela acrescenta que os críticos deveriam observar como os
romancistas contam histórias: a forma se tornaria a representação da relação correta das
emoções entre si.
Ao final do ensaio, Virginia Woolf considera que Marcel Proust era um bom
exemplo de autor que conduzia o romance nessa nova direção, e que os leitores
deveriam ter sua função na criação do novo gênero do romance, assim como os atores e
a platéia contribuem para o desenvolvimento do drama.
Woolf encontra em Proust o exemplo maior de romancista e de sensibilidade
andrógina, sua capacidade de esmiuçar a intimidade de suas personagens sem incorrer
no erro de estabelecer juízos de valor. Todos os acontecimentos em sua obra são pontes
para reflexão, para incursões pela alma e pelo subconsciente das personagens. Não
importa qual a classe social, a formação ou o sexo, a personagem se torna parte
119
Ver "Fases da Ficção", parte II, p. 209.
120
SCOTT, B.K. The Gender of Modernism: A Critical Anthology. Bloomington: Indiana University
Press, 1990, p. 623.
108
integrante da experiência de vida tanto do romancista como do leitor, é a comunhão
entre eles que estabelece a qualidade do romance. Assim como ele, Dostoievski também
não se ocupou dessas restrições, ocupou-se só da alma, enquanto os ingleses se
apegavam às diferenças materiais para definir os temas de suas obras.
Nossa sociedade é dividida em classes: alta, média e baixa,
cada uma com suas tradições, costumes e, de certa forma, sua
própria língua. Querendo ou não, o romancista inglês está sob
pressão constante para reconhecer essas barreiras e,
conseqüentemente, ordem e algum tipo de forma lhe são
impostas. Tende mais à sátira do que à compaixão, ao
escrutínio da sociedade do que à compreensão dos próprios
indivíduos.
Dostoievski não sofreu nenhuma dessas restrições. Não fez
diferença se a pessoa era nobre ou simples, um vagabundo ou
uma grande dama. Quem quer que fosse, o ser era o veículo do
fluido perplexo, da matéria preciosa, enevoada, essencial que é
a alma. Não há barreiras que limitem a alma: transborda,
inunda, mistura-se com outras.
121
Tão grandiosos quanto eles e Henry James e muito maiores do que os jovens
ingleses iniciantes na arte de enveredar pela alma das personagens foram os russos
Tchecov e Tolstoi. Ninguém foi mais capaz de aprofundar-se na alma humana do que
eles.
Se desejamos a compreensão da alma e do coração, onde mais
poderemos encontrá-la com mais profundidade? Se estamos
cansados de nosso próprio materialismo, o menor dentre os
romancistas russos tem, por sua vez, por direito de nascença,
uma reverência natural pelo espírito humano. "Aprenda a
tornar-se familiar para as pessoas... mas não deixe esse
121
Ver "O Ponto de Vista Russo", parte II, p. 132.
109
sentimento influenciar sua mente, o que é fácil, mas sim o
coração. Ame-as".
122
Os russos pareciam estar mais integrados ao ritmo alucinante dos tempos
modernos, como se a realidade fragmentária e os aspectos voláteis da experiência
humana não os tivessem surpreendido. A humanidade permeia o olhar dos autores
russos, além da qualidade irresistível de não julgarem suas personagens. Elas são
expostas desnudadas e sem maquiagem, ora belas, ora desprezíveis. Não há
estereótipos. Há personagens comuns que têm reações comuns, como pessoas reais,
cujas vidas assumem um ritmo alucinante que nos confunde tanto quanto nossa própria
existência.
O ritmo de nossas vidas é tamanho, que levantamos faíscas
quando voamos. Além disso, quando a aceleração é assim
aumentada e os elementos da alma são vistos, não em cenas
estanques de humor ou de paixão como nossas lentas mentes
inglesas as concebem, mas cruzadas, envolvidas, confusas, um
novo panorama da mente humana se revela. As velhas divisões
se mesclam. Os homens são vilões e santos ao mesmo tempo e
seus atos são belos e desprezíveis. Amamos e odiamos ao
mesmo tempo. Não existe nada daquela divisão precisa entre
bom e mau a que estamos acostumados. Freqüentemente,
aqueles por quem nutrimos mais afeição são os maiores
criminosos e aqueles pecadores mais absolutos nos levam a
admirá-los tanto quanto a amá-los.
123
Deslumbrada com a humanidade explícita dos russos, e com a qualidade de suas
obras, Woolf ainda submete o emaranhado de reações e de situações que ocorrem
simultaneamente nas histórias ao enquadramento das definições inglesas
preestabelecidas, tentando demonstrar que o leitor inglês, com suas expectativas
engessadas, não consegue acompanhar a agilidade da mente russa e que o romancista
inglês tem muito a aprender com eles.
122
Ver "A Ficção Moderna", parte II, p. 140.
123
Ver "O Ponto de Vista Russo", parte II, p. 132.
110
Essas histórias não têm conclusões, dizemos, e prosseguimos
enquadrando-as com uma crítica baseada na hipótese de que as
histórias devem ser concluídas de modo reconhecível. Ao
fazermos isso, questionamos nossa própria aptidão como
leitores. Quando a sintonia é familiar e o encerramento,
enfático: amantes reunidos, vilões desmascarados, intrigas
desatadas, como acontece na maior parte da ficção vitoriana,
raramente erramos.
124
A princípio, o que parece um amontoado de situações aparentemente fora do
controle do romancista começa a tomar forma e estabelecer relações entre si. Assim
como a vida real, as diversas facetas das diferentes personalidades se envolvem em
situações e devem tomar decisões que nem sempre são aquelas que esperamos ou que
gostaríamos. É muito difícil prever o final de um romance russo.
Nada é resolvido, nada é acertado. Por outro lado, o método
que a princípio parecia tão casual, não conclusivo e ocupado
com banalidades, revela-se o resultado de um gosto
especialmente original e detalhista, de escolhas audaciosas,
organização infalível e controlado por uma honestidade ímpar,
a não ser entre os próprios russos. Pode não haver respostas
para essas questões, mas não devemos manipular as evidências
a fim de obter algo mais conveniente, adequado e agradável a
nossa vaidade.
125
Há um constante indagar sobre a razão de viver, sobre o significado das coisas e
quais deveriam ser nossos objetivos. A vida domina a arte e a arte é a mais pura
manifestação dela.
Woolf demonstrou profunda compreensão pelo que os russos estavam fazendo,
mas não conseguiu transpor a barreira do diagnóstico para aplicar suas conclusões na
resolução de seus dilemas locais. Na luta pela sobrevivência do romance inglês, impôs a
si mesma e seus contemporâneos a necessidade de um modelo a seguir. Sendo o
124
Ver "O Ponto de Vista Russo", parte II, p. 129.
125
Ver "O Ponto de Vista Russo", parte II, p. 130.
111
romance a representação da vida e estando a vida em curva máxima de transformação,
sua luta estava fadada a ser vã. Como podia exigir que as pessoas reproduzissem aquilo
que não tinham claro para si mesmas, ou que ainda não podiam enxergar? Assim como
o romancista necessita de distanciamento para apreender significados e representá-los
na completude, as pessoas precisam de fases de adaptação a novas realidades e de
desenvolvimento pessoal para serem capazes de exigir posturas ou de estabelecer
julgamentos de valor.
[Romancistas] Aprendam a se tornarem semelhantes às
pessoas. Gostaria até de acrescentar: tornem-se indispensáveis
para elas. Porém, não permitam que a compaixão influencie
suas mentes, o que é fácil, mas o coração, amando as pessoas.
Onde quer que encontremos essa citação, saberemos que é
russa. A simplicidade, a ausência de esforço, a aceitação de um
mundo em que a miséria explode, nosso maior dever é o de
compreender nossos semelhantes que sofrem não com a mente,
o que é fácil, mas com o coração. Essa é a nuvem que paira
sobre a literatura russa, que nos seduz além de nosso próprio
brilhantismo ressequido e de nossos caminhos aniquilados a fim
de expandirmos a sua sombra com resultados obviamente
desastrosos.
126
Naquele momento de profundas modificações estruturais, sem uma instituição
segura sequer para se apoiar, a sensação de desalento e de falta de perspectiva deve ter
feito toda iniciativa parecer tola. Quando os seres humanos estão envolvidos em uma
crise tão violenta, seus sentidos prevalecem alerta, mas facilmente desviados de seus
objetivos. Talvez o grande apelo dos russos para os ingleses esteja no fato de que sua
literatura não sofreu nenhuma ruptura diante da realidade presente. Eles mantiveram
suas histórias simples, não recaíram na utopia de um mundo imaginário nem na
flagelação da falta de coerência e de perspectiva. Sua visão da natureza humana e de
suas idiossincrasias já era bastante realista e não incorreram na falha dos maniqueísmos
de caráter. Diante desse quadro, é claro que a única reação possível quando lemos
126
Ver "O Ponto de Vista Russo", parte II, p. 128.
112
Tolstoi, a quem nenhuma reação humana passou despercebida, ou Dostoievski ou
Tchecov é questionarmos a própria vida sem parar, sem encontrar respostas. Não há
respostas para os grandes dilemas, há soluções remediadas pelas circunstâncias do
momento de vida.
Poderíamos falar com mais propriedade, de fato, da falta de
conclusão, da mente irresoluta dos russos. É a sensação de que
não há resposta, de que se a vida for honestamente examinada,
apresentará perguntas e mais perguntas que devem ser
formuladas e reformuladas depois que a história acabar. Esse
questionamento desesperançado nos enche de profundo
desespero, a princípio, e chegamos ao limite do ressentimento.
Talvez estejam certos. Sem sombra de dúvida, enxergam muito
além de nós e sem nossas limitações grosseiras de visão.
Contudo, talvez vejamos algo que lhes escapa. Se não, por que
sua voz de protesto se mesclaria com nossa tristeza?
127
E o que os ingleses veriam que poderia escapar aos russos, mas mesclar-se a seu
protesto em forma de tristeza? Creio que o comentário de Woolf na última citação não
passa de uma questão retórica. A não ser que a parte humanista de sua formação a
tivesse realmente feito enveredar pelos questionamentos filosóficos da razão da
existência e dos porquês da necessidade humana por conflitos, competições e poder.
Sendo esse o motivo do desatino, por que continuar traçando rotas de fuga para o
romance e seus representantes? Existe a possibilidade de que ela acreditasse de fato que
haveria uma sociedade especial em que todos os indivíduos fossem leitores comuns ou
autores, todos andróginos e éticos, alheios a todo e qualquer desequilíbrio da sociedade
e sempre prontos a acolher as transformações de modo civilizado e honesto.
Tal quadro remete ao estilo informal, simples, muitas vezes contraditório em si
mesmo, até mesmo pueril, beirando a fantasia. Olhando para trás, como ela mesma
gostava de nos incitar a fazer, com olhos cem anos mais velhos, é difícil acreditar que
ela tivesse dimensão exata da problemática que enfrentava. A chuva de milhares de
novas tendências e de diversos pontos de vista diferentes castigando sua existência
127
Ver "A Ficção Moderna", parte II, p. 140.
113
insistentemente induziu-a a escrever crítica a tudo e contradizer-se sem parar e produzir
romances experimentais de cunho psicológico a fim de tentar entender, digerir,
internalizar e concretizar os movimentos de seu tempo. Ela mirou dos gregos aos russos,
passando pelos franceses e por seus conterrâneos e não conseguiu definir o famigerado
caminho seguro a seguir. Como se houvesse um...
Seus ensaios geralmente terminam de modo vago, sem grandes conclusões.
Woolf apela para a alma, o espírito, para invocações e profecias. Seus textos perdem a
consistência e acabam depondo contra si mesmos, reforçando a sensação de que lemos
algumas anotações brilhantes perdidas em um mundo de metáforas complexas e de
sentenças emboladas. O estilo deixa de estimular a discussão do conteúdo para arrancar
suspiros entediados e uma irritação constante em busca da solução prometida e nunca
alcançada.
Permita que eles [os críticos] tenham uma visão mais
abrangente e menos pessoal da literatura moderna e realmente
olhem para os escritores como se estivessem engajados em
alguma grande construção, levantada pelo esforço comum de
trabalhadores isolados que podem muito bem permanecer
anônimos.
128
128
Ver "Como se Atinge um Contemporâneo", parte II, p. 149.
114
E a busca continua...
Todavia, toda comparação entre duas literaturas [a inglesa e a
russa] tão longínquas é fútil, a não ser que, de fato, a conclusão
nos permita enxergar plenamente as infinitas possibilidades da
arte e nos faça lembrar que não existem limites no horizonte e
que, nada, nenhum método ou experimento, até o mais absurdo,
é proibido, a não ser a falsidade e a dissimulação.
129
O que, afinal de contas, foi o movimento estético inglês? E que papel teve
Virginia Woolf no desenvolvimento dele? Questionar isso não significa que
defendemos que há algum vínculo concreto no pensamento, às vezes coincidente, de
John Ruskin, Walter Pater, Oscar Wilde, D.H. Lawrence, T.S. Eliot, Virginia Woolf ou
qualquer outro participante do grupo de Bloomsbury, com toda sua diversidade de
posturas e atitudes. Nosso problema existe quando questionamos a natureza da relação
que há entre todos esses pensadores e a formação cultural de seu passado e do futuro
que pretendem construir.
O pensamento moderno sobre estética na arte e na literatura deve muito à
filosofia de G.E. Moore, essencialmente à discussão do Mito da Caverna de Platão
130
, e
à análise clara, objetiva e democrática de Roger Fry. Ambos estruturaram seu
pensamento conhecendo Walter Pater, Oscar Wilde e John Ruskin entre outros, que
desenvolveram a idéia da arte pela arte derivada dos movimentos literários franceses do
século XIX. Charles Baudelaire, Théophile Gautier, Banville e Gustave Flaubert,
principalmente, expandiram a arte pela arte já discutida em Schelling e Immanuel Kant
na Alemanha no começo do século XIX. Kant defendia que a arte não deveria ter
nenhum propósito além de si mesma, pois qualquer manifestação ideológica na arte
adulteraria sua essência. Foi o filósofo do Romantismo e influenciou muito a
129
Ver "A Ficção Moderna", parte II, p. 141.
130
...E agora, deixa-me mostrar, por meio de uma comparação, até que ponto nossa natureza humana
vive banhada em luz ou mergulhada em sombras. Vê! Seres humanos vivendo em um abrigo subterrâneo,
uma caverna, cuja boca se abre para a luz, que a atinge em toda a extensão. Aí sempre viveram, desde
crianças, tendo as pernas e o pescoço acorrentados, de modo que não podem mover-se, e apenas vêem o
que está à sua frente, uma vez que as correntes os impedem de virar a cabeça. Acima e por trás deles, um
fogo arde a certa distância e, entre o fogo e os prisioneiros, a uma altura mais elevada, passa um
caminho. Se olhares bem, verás uma parede baixa que se ergue ao longo desse caminho, como se fosse
um anteparo que os animadores de marionetes usam para esconder-se enquanto exibem os bonecos. [...]
Pois esses seres são como nós. Vêem apenas suas próprias sombras, ou as sombras uns dos outros, que o
fogo projeta na parede que lhes fica à frente. (Obras Completas de Platão – República, livro 7, 1953.)
115
formulação da teoria estética romântica e, ao que parece, a importância dada por Woolf
ao valor da arte diretamente proporcional ao controle emocional do artista
131
.
Bertrand Russell e G.E. Moore foram contemporâneos, integrantes dos
Apostles
132
. Eram filósofos que se opunham ao idealismo hegeliano e à
supervalorização dos atos de refletir e analisar em detrimento daqueles de tomadas de
posição, de conclusões ou manifestos. Sua influência sobre Bloomsbury foi muito forte
e responsável por alguns dos paradoxos da obra e do pensamento de Virginia Woolf.
Bloomsbury acreditava na discussão democrática das idéias e da arte em si mesma e
defendia algumas máximas iluministas em que o conhecimento dominaria a tradição e a
fantasia.
O conhecimento de Virginia Woolf sobre a tradição francesa, assim como seu
fascínio pelos gregos, serviram para que ela desenvolvesse valores estéticos bem
particulares e começasse a definir alguns dos temas mais controvertidos de sua
existência: a sexualidade e as relações de poder estabelecidas por ela, a androginia, os
relacionamentos pessoais, a natureza humana. Toda a discussão sobre a natureza
humana acontece à luz da analogia de Platão no mito da caverna, que é um ataque aos
nossos hábitos maniqueístas de pensamento e nos mostra que estamos acostumados a
aceitar os objetos concretos que nos cercam como reais, sendo que eles são
simplesmente cópias imperfeitas e menos reais de formas imutáveis e eternas. Essas
formas, como Platão as define, são as realidades permanentes, ideais e originais a partir
das quais, de alguma forma, são construídas cópias concretas imperfeitas e corruptíveis.
Quase podemos enxergar a senhora Brown no vagão de trem junto a muitos romancistas
capazes de enxergar somente a própria sombra projetada na parede pela luz da chama
acesa atrás de si. Todas essas idéias reforçam a ligação que existe entre os modernistas e
a subjetividade estética dos românticos. A postura de observação e diagnóstico
assumida por Virginia Woolf é platônica ao extremo, e contraria as tentativas e
manifestações de novas idéias dos modernistas. Sua atitude é inversamente proporcional
a sua necessidade de experimentar e parece não ser consciente.
Virginia Woolf não encontra propostas que a ajudem a solucionar os problemas
estéticos de seu tempo em nenhuma das bases que utilizava para fundamentar seu
131
Lembrar das críticas de Woolf em Um Teto Todo Seu à amargura de Charlotte Brontë, que ofuscava
sua personagem Jane Eyre, ou sua admiração pelo profissionalismo de Katherine Mansfield em vários
trechos de seu diário, principalmente no segundo volume (de 1916 a 1919).
132
Grupo de estudantes de Cambridge que formavam a irmandade da qual participaram Walter Pater,
Leonard Woolf e outros Bloomsburianos.
116
pensamento porque sua análise dos fatos e o modo como os representa são
contraditórios. Produzia diagnósticos, explicações sobre causas e descrições da
realidade lógica ou não, mas não tinha condições de oferecer nenhuma rota de estudo
concreta. Não havia nem mesmo um grupo de escritores contemporâneos ingleses de
fato que pudesse estabelecer um pensamento próprio naquele início de século XX na
Inglaterra. Há uma forte tendência, de acordo com Andrew McNeile
133
, de afirmarmos
que não existe um movimento estético inglês de fato, pois a maioria dos modernistas
que são citados quando estudamos o movimento na Inglaterra eram franceses, alemães,
norte-americanos ou descendentes de escoceses, irlandeses e judeus. Os poucos ingleses
eram, em geral, simpatizantes das idéias do continente. Além disso, quando pensamos
em Bloomsbury, há o agravante da origem vitoriana e da cultura de classe média alta,
que com certeza influenciaram sua participação na produção e na crítica modernista. A
única plataforma comum de todos esses elementos era a arte. Quando Roger Fry trouxe
a exposição pós-impressionista para a Inglaterra em 1910 e depois em 1912 nada mais
fez do que mostrar aos ingleses o que estava acontecendo fora de sua caverna e que era
essencial que procurassem a saída para suas representações da realidade e da nova
ordem das relações humanas que era inegável e impossível de negligenciar. Isso não
diminui a importância ou o efeito da exposição, ou a influência de Fry. Pelo contrário,
evidenciando a ligação entre as filosofias romântica e modernista, as vozes de Fry,
MacCarthy e dos Woolf instigavam a luta entre gerações que é providencial para a
continuidade da produção humana e, às vezes, pela constante volta ao marco zero da
evolução.
Leonard Woolf demonstra bem o sentimento da vanguarda na Inglaterra do
início de século XX, capturada entre a tradição, a modernidade e o desencanto com o
conhecimento que levava as idéias de liberdade e beleza ao extermínio – tudo o que fora
projetado de positivo na emergência das novas relações humanas estava à beira do caos
– em seu texto George or George or Both, de 1903.
Nosso irmão Platão diz que este mundo com suas formas
instáveis e em constante transformação, com sua justiça, moral,
educação e governo falsos é uma caverna iluminada por uma
fogueira, onde homens se encontram prisioneiros assuntando
133
Em MCNEILLE, A. "Bloomsbury". The Cambridge Companion to Virginia Woolf. Sue Roe e Susan
Sellers, eds. Cambridge University Press, 2000. (pp. 1-28)
117
sobre as sombras da realidade e se vangloriando do fato de
terem encontrado a verdade. Lá fora o sol e o vasto mundo da
realidade brilham e somente o homem que conseguir alcançar a
saída estreita da caverna e olhar para o sol é que poderá ter a
esperança de estabelecer a ordem nesse caos.
134
Consciente das mudanças de seu tempo e possuidora de uma educação literária
incomum tanto no sentido quantitativo como no qualitativo, Virginia Woolf se
esforçava sob a luz das discussões filosóficas do início do século para tentar explicar a
estética que se formava além do mero impressionismo crítico e das influências por
vezes limitadoras da crença kantiana de que a arte deveria ser desprovida de ideologia,
pois qualquer posicionamento do autor adulteraria a obra. O problema é que a arte
sempre alcança propósitos que não se atêm a ela mesma, independentemente do
objetivo primeiro do artista. Podemos interpretar que um dos paradoxos dos textos de
Woolf, se não o grande problema, é que seu desejo de estabelecer caminhos que levem
o artista inglês para a luz da saída da caverna não condiz com o método de analisar e
discutir até a exaustão todos os aspectos que tornam a representação artística autônoma
e voltada para si mesma sem levantar bandeiras ou manifestar posicionamentos. Na
conclusão do ensaio "How Should One Read a Book", por exemplo, as influências
filosóficas ecoam e estabelecem a problemática de grande parte da obra crítica de
Woolf:
Porém, quem é que lê para chegar a alguma conclusão, mesmo
que seja a mais desejável? Não há algumas buscas em que
embarcamos só porque são importantes em si mesmas, e
prazeres que são sua única finalidade?
135
Embora envolvida por todos esses pensamentos, Woolf de fato aproveitou-os em
sua busca pessoal por respostas que explicassem a modernidade e sua experiência
literária? Caso a resposta fosse afirmativa, também seria parcial, no sentido de que há
muitas outras influências a considerar: a sobrevivência contemporânea no moderno
século XX com suas maravilhas tecnológicas e as atrocidades das guerras e do
134
Em Leonard Woolf’s Papers, volume II, Oxford, 1903.
135
WOOLF, V. "How Should One Read a Book". The Common Reader. Second Series, 1932.
118
imperialismo, além do ecletismo estético experimental dos modernistas de uma
Inglaterra inserida num mundo de Ibsens, Prousts, Tchecovs, Dostoievskis, Tolstois,
Joyces, Eliots e Freuds.
As possibilidades de revigoramento da senhora Brown pareciam muito mais
convincentes nas mãos dos outros do que na dos ingleses. Até mesmo o realismo
psicológico de Henry James tinha sua origem fora da esfera inglesa. Os franceses e os
russos pareciam bem mais à vontade e mais seguros de uma metodologia modernista,
seja ela qual fosse:
Os comentários mais banais sobre a ficção inglesa moderna não
podem evitar a menção da influência russa e, se os russos são
citados, corremos o risco de sentir que escrever qualquer texto
de ficção além dos deles é perda de tempo. Se desejamos a
compreensão da alma e do coração, onde mais poderemos
encontrá-la com mais profundidade? Se estamos cansados de
nosso próprio materialismo, o menor dentre os romancistas
russos tem, por sua vez, por direito de nascença, uma
reverência natural pelo espírito humano. "Aprenda a tornar-se
familiar para as pessoas... mas não deixe esse sentimento
influenciar sua mente, o que é fácil, mas sim o coração. Ame-
as". Em cada autor russo temos a impressão de perceber as
feições de um santo, se é que a compaixão pelo sofrimento
alheio, o amor pelos outros e o esforço para alcançar um
objetivo digno das exigências mais rigorosas do espírito
constituem santidade. É a santidade neles que nos perturba com
a percepção de nossa trivialidade atéia, transforma tantos de
nossos romances famosos em textos de apresentação de mau
gosto e artificiais. As conclusões da mente russa, desse modo
compreensivas e complacentes, são, inevitavelmente talvez,
tristes ao extremo. Poderíamos falar com mais propriedade, de
fato, da falta de conclusão, da mente irresoluta dos russos. É a
sensação de que não há resposta, de que se a vida for
honestamente examinada, apresentará perguntas e mais
perguntas que devem ser formuladas e reformuladas depois que
119
a história acabar. Esse questionamento desesperançado nos
enche de profundo desespero, a princípio, e chegamos ao limite
do ressentimento. Talvez estejam certos. Sem sombra de dúvida,
enxergam muito além de nós e sem nossas limitações grosseiras
de visão. Contudo, talvez vejamos algo que lhes escapa. Se não,
por que sua voz de protesto se mesclaria com nossa tristeza? A
voz de protesto é a de uma outra antiga civilização que parece
ter cultivado dentro de nós o instinto de aproveitar e de
batalhar mais do que o de sofrer e de compreender.
136
É preciso que reconheçamos a resistência de Virginia Woolf, sua trajetória
independente, além de Bloomsbury e das outras influências, na tentativa de efetivar seu
próprio projeto literário e estético comprometido com causas contemporâneas e difíceis
como o feminismo, o pacifismo, sua prática crítica baseada na história, filosofia e uma
sensatez refinada na descoberta de valores importantes na arte, mesmo que fossem
peças de um grande quebra-cabeça que ela passou a vida tentando resolver.
Uma outra dificuldade de Woolf na definição de uma estética modernista inglesa
poderia ser apontada ao percebermos sua crença na importância das comunidades, no
sentido de agrupamentos de pessoas com premissas comuns que possibilitam discussões
e aprendizado. Uma formação clássica, em meio a saraus literários e discussões
democráticas que pressupunham ligações pessoais e confiança mútua, além de juízos de
valor semelhantes, é desequilibrada de forma abrupta pela percepção de que tal
comunidade não dá conta do ritmo do mundo moderno e não é ágil o suficiente para
acompanhar as mudanças históricas, governamentais e de comportamento. Cada
indivíduo deveria tentar chegar à luz por si mesmo a fim de encarar o mundo exterior e
reinventar seu interior. A corrida individual pela sobrevivência é dolorosa, trágica e
intensa, desferindo golpes na filosófica comunidade que lhe servira de apoio até então.
Toda representação do que se via pela abertura da caverna está turva, pois os olhos não
estavam acostumados ao excesso de claridade e opções. Contudo, os indivíduos que
chegam à abertura da caverna enxergam a novidade e, com ela, os horrores que os
homens conseguem produzir quando resolvem utilizar o conhecimento para se
destruírem. O auge do existencialismo e da libertação do indivíduo é coroado pela
136
Ver "A Ficção Moderna", parte II, p. 140.
120
derradeira descoberta de que não há nada pior para o ser humano de que sua própria
natureza. Essa parece ser uma revelação recorrente:
O Iluminismo, compreendido em seu sentido mais amplo,
sempre teve como motivação libertar os seres humanos do medo
e instaurar a supremacia da humanidade. Contudo, toda a terra
iluminada reluz em calamidade triunfal. O desenvolvimento do
Iluminismo foi o desencanto do mundo. O objetivo era
desmantelar os mitos e substituir a fantasia pelo conhecimento.
Bacon, o pai da filosofia experimental, reuniu esses intuitos.
Desprezava os pilares da tradição, os quais tinham substituído
a crença pelo conhecimento e eram bem resistentes a
questionamentos, pois forneciam respostas a todos com muita
inquietação. Tudo isso, dizia Bacon, atravancava a união feliz
entre a mente humana e a natureza das coisas, o que resultava
na inabilidade dos seres humanos em utilizar seu conhecimento
para a melhoria de sua condição.
137
Como salvar a senhora Brown, se todos se atracam na disputa por causas
particulares e sem nexo de comunidades inexistentes no sentido mais primordial dos
agrupamentos humanos?
Todas essas dificuldades convergem para um único problema: o que era o
modernismo para Virginia Woolf? Como ela lidou com os aspectos tecnológicos,
sociais, intelectuais e literários de seu tempo? Seu tom didático, geralmente pouco
conclusivo, parece ter integrado um dos aspectos mais políticos do modernismo, que
seria o problema de disseminar a cultura e o conhecimento como estratégias de auto-
libertação. Os seres humanos só não têm medo daquilo que conhecem. Se for possível
conhecer-se, todo o resto poderá ser enfrentado. A noção do que constitui a consciência
é invocada e as descobertas formais de Woolf passam a integrar o conjunto de
perspectivas complexas do movimento artístico e literário tão fragmentário em que
estava inserida. Não há consenso sobre aquilo que constitui a subjetividade, as noções
de tempo e espaço, o uso da linguagem ou a representação do caráter das personagens.
A linguagem usada pelos romancistas, fosse qual fosse o idioma de origem, tornara-se
137
Em HORKHEIMER, Mark e Theodor Adorno. A Dialética do Iluminismo. Fragmentos Filosóficos,
1944.
121
elástica, muito flexível, e, ao mesmo tempo, de uma solidez assustadora que tornava as
relações entre as palavras quase tão duras, dolorosas e insólitas quanto as relações
humanas, assim como a interpretação das mensagens propostas, difíceis e pesarosas.
Todas as nuances literárias se tornaram refinadas e profundas, exigindo tanto do autor
como do leitor certa comunhão de experiências individuais e únicas que mascarassem a
solidão dos indivíduos fora das comunidades desfeitas das convenções.
O modernismo de Virginia Woolf não existe nem conforme um ideal abstrato
específico e nem é completamente idiossincrático. Suas reações em relação à
modernidade com freqüência divergiam das de seus contemporâneos, sendo
influenciadas por seus amigos, por comunidades imaginárias de leitores comuns e por
sua visão de mundo. Sua maneira de ver e representar sua realidade e a dos outros teve
implicações políticas
138
inconscientes, creio, no sentido de que não acreditava em
transformar o status quo com a literatura e nem pretendia fazê-lo. Sua influência política
se encontra nas reações a sua obra e não nela propriamente dita. As discussões
comportamentais, sociais, políticas e de classe na voz de suas personagens somente são
possíveis sob o ponto de vista abstrato da linearidade histórica da classe dominante,
educada na posição de mera espectadora até que as relações humanas começassem a
mudar. Quando o outro toma a palavra e ameaça a beleza da arte pela arte e das
manifestações culturais teoricamente não ideológicas, o status quo é ameaçado, e sua
representação precisa ser revista. O leitor desavisado, ou não iniciado, de Woolf pode
facilmente ignorar esses aspectos políticos de seus textos ou até mesmo interpretá-los de
modo equivocado em relação aos objetivos da autora.
Devemos questionar qual seria, de fato, sua intenção. Se Woolf pretendia
estabelecer uma estética literária para o modernismo do século XX, deparou-se com
tantos paradoxos que precisou mudar o rumo de sua busca. Foi necessário tentar
compreender a natureza humana revestida de modernidade e perceber as diversas
maneiras que ela encontrou para se expor. Essa fase analítica do trabalho parece ter
frutificado em seus ensaios. Contudo, a complexidade do momento histórico e a
diversidade de estratégias artísticas e literárias utilizadas para tentar explicá-lo não
permitiram que uma estética do movimento fosse definida.
138
Faz-se necessário explicar o uso do termo política quando discutimos Virginia Woolf. Não se trata da
arte de governar os povos ou de cuidar da coisa pública com sabedoria, mas sim da habilidade no trato
das questões humanas ou do modo preestabelecido de conduzir uma relação ou negociação. (Dicionário
da Língua Portuguesa – Antonio Houaiss)
122
Virginia Woolf demonstrou expoentes das diferentes classes inglesas de modo
linear e mecânico, como se fossem representações de um mesmo parâmetro, embora
seus ideais políticos e culturais fossem profundamente diferentes. O ceticismo
modernista de Woolf sobre os padrões da realidade pode ser observado no
questionamento dos processos ideológicos pelos quais um grupo social tem seus
interesses representados como mais reais ou naturais do que aqueles de outro grupo.
Esses processos impediam que os leitores discutissem o mundo material em que as
vidas reais eram vividas e perdidas, além de ser um fator de alienação que os afastava
das iniciativas necessárias para a restauração da condição humana, da qualidade de vida
e da arte.
Woolf nos atinge de diversas maneiras e sob todos os aspectos: histórico,
literário, cultural e filosófico, trazendo suas experiências e seus questionamentos para
muito perto dos leitores.
Assim como em sua ficção, nos ensaios procurou compartilhar sentimentos
profundos e não crenças pessoais. O estilo informal e fluido esconde dúvidas cruciais e,
várias vezes, a ausência angustiante de respostas ou pelo menos caminhos a seguir.
Lemos nas entrelinhas a vigorosa negociação entre personalidade e sociedade,
individualismo e comunidade, tradição e modernidade, realidade e representação.
Encarando a árdua tarefa de compreender e explicar a modernidade, seus ensaios
foram muito usados para teorizar e elucidar seu próprio experimentalismo literário,
conferindo-lhe importância e seriedade, além de estabelecer certa credibilidade entre os
críticos reconhecidos e os autores modernistas.
O valor dos ensaios está na diversidade de temas abordados, na riqueza de sua
elaboração formal, no questionamento sobre o uso da autoridade crítica e da tradição, e
no debate sobre a revitalização do romance enquanto representação verossímil da
realidade.
Outro aspecto essencial para a compreensão do estilo de seus ensaios e da falta
de conclusões concretas, em geral, pode ser rastreado na crença de que a discussão é
mais importante do que a resposta e de que a arte e a beleza existem por si só – a não ser
que defendamos que o grande problema era de fato que ela, assim como todos os outros
modernistas, não conseguiu articular todas as variantes daquele momento problemático
da história humana e traçar um projeto coerente de produção crítico-literária.
Quanto ao aspecto formal, Woolf mantinha seu comportamento subversivo em
relação ao gênero crítico em vigor com seu estilo especulativo e hesitante, com o qual se
123
recusava a estabelecer regras e juízos de valor autoritários que desacreditassem suas
recomendações em favor de uma comunidade democrática de leitores comuns
independentes em constante intercâmbio intelectual com os romancistas. A idéia de
comunidade de leitores é tão forte que temos a sensação de sermos parte do grupo se
lemos o romance que ela discute num dado ensaio e, se não lemos o romance em
questão, continuamos a leitura de um texto enigmático e fragmentado que nos isola. O
efeito é frustrante e nos incita a fazer a leitura do romance a fim de podermos
compreender o ensaio.
Virginia Woolf faz nos ensaios o que acredita ser bom e o que recomenda para a
ficção, como se tentasse explicar sua própria produção literária. O que ela critica no
materialismo exagerado e no detalhamento exagerado da ficção inglesa da escola
imediatamente anterior à sua é o inverso de seu estilo indireto e sugestivo. Assim como
as histórias dos russos, ela gostaria que os romances ingleses conseguissem produzir
ênfase no inesperado, naquilo que parecia não ter qualquer importância. Sua preferência
está nas alusões e nas omissões enquanto estratégias para reproduzir a falta de
linearidade e de previsibilidade da vida real.
Afinal, a falta de soluções para suas propostas crítico-literárias e estéticas talvez
não seja simplesmente incapacidade de resolver os problemas do início do século XX,
que eram muitos e cruciais para o desenvolvimento da natureza humana que deflagrou a
Primeira Grande Guerra. Talvez tenha sido só mais uma técnica, vagamente
democrática e anti-autoritária, para nos manter protegidos de nossa própria natureza e
ocupados discutindo os destinos da senhora Brown em momentos em que o indivíduo
nunca domina [e] muitas coisas parecem acontecer ao mesmo tempo.
139
... no mundo do conhecimento, a idéia do bem aparece por
último e é percebida apenas com esforço; mas, quando
percebida, torna-se claro que ela é a causa universal de tudo
que é bom e belo, o criador da luz e o senhor do sol neste
mundo visível. (República, livro 7, Platão (428-348 a.C.)
139
Em "The Novels of Turgenev", 1933, Collected Essays I, p. 251.
124
Contudo, só quando as opiniões prevalecem universalmente e já
conversamos bastante e convencemos muitas pessoas sobre elas
é que às vezes tomamos consciência de que não acreditamos em
uma só palavra do que dissemos. Esta é uma era estéril e
exaurida, repito. Devemos olhar para o passado com inveja.
140
140
Ver "Como se Atinge um Contemporâneo", parte II, p. 145.
125
Quadro de Publicações de Virginia Woolf
DATA FICÇÃO CRÍTICA
1915
The Voyage Out
1917
The Mark on the Wall
1919
Kew Gardens
Night and Day
1922
Jacob’s Room
1924
Mr Bennet and Mrs Brown
1925
Mrs Dalloway The Common Reader: First
Series
1927
To the Lighthouse
1928
Orlando
1929
A Room of One’s Own
1931
The Waves
1932
The Common Reader: Second
Series
Letter to a Young Poet
1933
Flush: a Biography
1934
Walter Sickert: a Conversation
1935
Freshwater: a Comedy
1937
The Years
1938
Three Guineas
1940
Roger Frye: a Biography
1941
Between the Acts
Publicações Póstumas
1942
The Death of the Moth
1947
The Moment
1950
The Captain’s Death Bed
1953
A Writer’s Diary
1958
Granite and Rainbow
1965
Contemporary Writers
1966
Selections from Her Essays
1966/67
Collected Essays (4 volumes)
1973
Mrs Dalloway’s Party
1977
The Pargiters
1982
The London Scene
1986/94
Essays (6 volumes)
1989
Early Essays
126
Farei uma ultima previsão ultrajantemente ousada: estamos no
limiar de uma das grandes eras da literatura inglesa, mas só a
alcançaremos na totalidade se estivermos determinados a
nunca, nunca desertarmos da senhora Brown.
141
141
Ver "O Senhor Bennett e a Senhora Brown", parte II, p. 166.
127
O Ponto de Vista Russo
142
Freqüentemente duvidamos se os franceses e os norte-americanos, que têm tanto
em comum conosco, conseguem entender a literatura inglesa. Devemos admitir dúvidas
ainda mais sérias se, mesmo com todo seu entusiasmo, os ingleses conseguem entender
a literatura russa. Podemos debater incansavelmente sobre o que significa entender.
Ocorreram a todos exemplos de alguns autores, especialmente norte-americanos, que
escreveram discriminando muito tanto nossa literatura quanto nós mesmos ou que
viveram toda a sua vida entre nós e finalmente decidiram tornar-se formalmente súditos
do Rei George. Tendo isso em vista, eles nos entenderam ou permaneceram estrangeiros
até o fim de seus dias? Alguém acreditaria que os romances de Henry James foram
escritos por um homem que cresceu na sociedade que descreve ou que suas críticas
sobre os escritores ingleses foram escritas por alguém que leu Shakespeare sem levar o
oceano Atlântico em conta e os duzentos ou trezentos anos que separam sua civilização
da nossa? Acuidade especial e distanciamento, um ângulo de visão exato, o estrangeiro
sempre vai alcançar, mas não a falta de acanhamento, a serenidade, a camaradagem e o
senso de valores comuns que substituem a intimidade e a sanidade, além da rapidez das
negociações das relações familiares.
Não é só isso que nos separa da literatura russa, há uma barreira muito mais
séria: a diferença da língua. Dentre todos aqueles que se deliciaram com Tolstoi,
Dostoievski e Tchekov durante os últimos vinte anos, talvez um ou dois tenham sido
capazes de ler seus romances em russo. Críticos que jamais leram uma palavra em russo
ou viram a Rússia contribuíram para nosso apreço por suas obras, sem nem mesmo
ouvirem a língua falada pelos nativos. Dependemos, cega e implicitamente, do trabalho
dos tradutores.
Em resumo, estamos afirmando que julgamos toda uma literatura destituída de
seu estilo original. Quando passamos todas as palavras em uma sentença do russo para o
inglês, alteramos um pouco o sentido, o som, o peso e completamente a maneira de
dizer as palavras na relação entre si. Nada permanece, a não ser uma versão crua e
deselegante do sentido original. Tratados dessa maneira, os escritores russos são como
142
N.T. Publicado pela primeira vez em The Common Reader, 1925, incorporando o artigo "The Russian
View" publicado em 1918 pelo Times Literary Supplement. Também foi publicado em Collected Essays,
vol. 1.
128
homens destituídos não só de suas roupas, mas também de algo mais sutil e importante:
seus modos e as idiossincrasias de suas personagens. O que resta é muito poderoso e
impressionante, como os ingleses provaram ser pelo fanatismo de sua admiração, mas é
difícil sentir-se seguro diante de tantas mutilações. Quanto podemos confiar em nós
mesmos para não atribuirmos aos russos uma ênfase errônea e distorcê-los quando
lemos?
Perderam suas roupas em alguma catástrofe terrível, dizemos, pois é uma figura
como essa, que descreve a simplicidade e a humanidade acionada a partir do esforço
para esconder e disfarçar instintos, que a literatura russa imprime, seja devido à
tradução ou a alguma outra causa mais profunda. Encontramos essas qualidades
acentuadas, tão óbvias nos autores de pouca projeção quanto nos grandes. Aprendam a
se tornarem semelhantes às pessoas. Gostaria até de acrescentar: tornem-se
indispensáveis para elas. Porém, não permitam que a compaixão influencie suas mentes,
o que é fácil, mas o coração, amando as pessoas. Onde quer que encontremos essa
citação, saberemos que é russa. A simplicidade, a ausência de esforço, a aceitação de
um mundo em que a miséria explode, nosso maior dever é o de compreender nossos
semelhantes que sofrem não com a mente, o que é fácil, mas com o coração. Essa é a
nuvem que paira sobre a literatura russa, que nos seduz além de nosso próprio
brilhantismo ressequido e de nossos caminhos aniquilados a fim de expandirmos a sua
sombra com resultados obviamente desastrosos. Nós nos tornamos ridículos e
acanhados, negando nossas próprias qualidades e escrevendo com afetação de bondade
e simplicidade nauseante ao extremo. Não conseguimos dizer irmão
143
convictamente.
Há uma história de Galsworthy na qual uma de suas personagens se dirige a outra dessa
maneira, pois estão nas profundezas do infortúnio. Imediatamente tudo se torna afetado
e sem espontaneidade. O equivalente inglês para irmão é camarada
144
, uma palavra bem
diferente, com certo tom sardônico e uma indefinível nuance humorística. Contudo, os
dois ingleses de Galsworthy, reunidos no infortúnio, abordam os desejos um do outro:
certamente encontrar um bom emprego, fazer fortuna, passar os últimos anos de vida
com luxo e deixar uma boa soma em dinheiro para evitar que outros pobres diabos
tenham que se dirigir um ao outro utilizando o termo irmão. Todavia, é o sofrimento em
143
N.T. A palavra brother ainda tem uma gama significativa muito maior do que a palavra irmão, embora
os movimentos das minorias tenha importado muitos desses significados. Referem-se à igualdade de
classe, de raça, de credo, de qualquer situação em que a solidariedade entre iguais seja expressa.
144
N.T. A palavra traduzida do inglês como camarada é mate. A autora faz a comparação do sentido
conotativo das duas palavras e da carga semântica envolvida na escolha de uma ou de outra.
129
comum, mais do que a felicidade, o esforço e o desejo em comum que produzem o
senso de irmandade. É a tristeza profunda que Hagberg Wright
145
considera típica do
povo russo que cria sua literatura.
Uma generalização como essa, é claro, será profundamente alterada quando um
autor genial se dedicar a ela, mesmo se houver algum grau de verdade quando for
aplicada ao corpo de uma literatura. Outras questões aparecem logo. Viu-se que uma
atitude não é simples, que é altamente complexa. Os homens pilharam seus casacos e
seus modos surpresos com um acidente ferroviário. Dizem coisas pesadas, difíceis,
desagradáveis, mesmo em face do abandono e da simplicidade impingida pela
catástrofe. Nossa primeira impressão de Tchecov não é de simplicidade, mas de
confusão. Qual o objetivo disso e por que escrever uma história sobre isso? é o que nos
perguntamos enquanto lemos uma história após outra. Um homem se apaixona por uma
mulher casada, separam-se e se encontram e no final conversam sobre sua situação e
como poderiam se libertar desse vínculo intolerável.
Como? Como?, perguntou, segurando a cabeça... E parecia que daqui a pouco
a solução seria encontrada e uma nova vida esplêndida começaria. Esse é o final. Um
carteiro leva um estudante para a estação e durante todo o trajeto, o estudante tenta fazê-
lo falar em vão. De repente, o carteiro diz: É contra o regulamento levar alguém com a
correspondência. Anda de um lado para outro da plataforma com uma expressão de
raiva em seu rosto. De quem tem raiva? Das pessoas, da pobreza, das noites de outono?
Outra história termina.
Mas é esse o final? Questionamos. Temos a impressão que infringimos os sinais
ou que um acorde foi interrompido sem as notas finais que esperávamos ouvir. Essas
histórias não têm conclusões, dizemos, e prosseguimos enquadrando-as com uma crítica
baseada na hipótese de que as histórias devem ser concluídas de modo reconhecível. Ao
fazermos isso, questionamos nossa própria aptidão como leitores. Quando a sintonia é
familiar e o encerramento, enfático: amantes reunidos, vilões desmascarados, intrigas
desatadas, como acontece na maior parte da ficção vitoriana, raramente erramos. Porém,
onde o tom não é comum e o final, um ponto de interrogação ou meramente a
145
Sir Charles Hagberg Wright (1862-1940), foi bibliotecário na London Library de 1893 até sua morte.
Foi responsável pelo sistema de organização de obras por assunto nas prateleiras da biblioteca, o que
passou a permitir o acesso mais fácil dos usuários. A compilação e manutenção do catálogo que ainda é
utilizado hoje, sendo só atualizado, também são frutos de seu trabalho. Hagbert Wright continuou o
trabalho de seu antecessor, Robert Harrison, na construção de um acervo considerável de literatura
européia desde o começo do século XIX, especialmente literatura russa. Wright teve parte de sua
educação na Russia, conheceu Gorki e Tolstoi, e foi um dos maiores estudiosos de cultura russa na
Inglaterra daquele período.
130
informação de que continuam a conversar, como em Tchekov, precisamos de um senso
literário muito alerta e corajoso que nos faça acompanhar o ritmo, em particular aquelas
notas que complementam a harmonia. Provavelmente precisaremos ler muitas histórias
antes de sentirmos, e o sentimento é essencial para nossa satisfação, para que
compreendamos o todo e percebamos que Tchekov não estava simplesmente delirando.
Ora toca uma nota, ora outra, intencionalmente, a fim de completar o significado.
Temos que procurar ansiosamente para descobrirmos exatamente onde recai a
ênfase nessas histórias estranhas. O próprio Tchekov nos direciona: ... uma conversa
como essa nossa teria sido impensável para nossos pais. À noite, não conversavam,
dormiam pesadamente. Nossa geração dorme mal, é inquieta, mas conversa bastante e
está sempre tentando estabelecer se está certa ou não. Nossa literatura de sátira social e
de diplomacia psicológica origina-se desse sono inquieto, da conversa incessante. Há,
além de tudo, uma diferença enorme entre Tchecov e Henry James, entre Tchekov e
Bernard Shaw. Mas onde ela nasce? Tchekov também tem consciência dos males e
injustiças sociais e as condições dos camponeses o deixam horrorizado. Todavia, o zelo
da reforma não é dele. Obviamente esse não é o sinal para pararmos. A mente o
interessa muito, é um analista sutil e delicado das relações humanas. De novo, não! Não
chegamos ao final. Será que ele está primeiramente interessado nas relações da alma
com a saúde, da alma com a bondade e não da alma com outras almas? Essas histórias
sempre nos demonstram afetação, fingimento, hipocrisia. Uma mulher se envolveu em
uma relação falsa, um homem foi pervertido pela desumanidade das circunstâncias. A
alma está doente, é curada ou não. Esses são os pontos altos em suas histórias.
Uma vez que os olhos estejam acostumados com essas sombras, metade das
conclusões da ficção evaporam no ar. Parecem transparências sobrepostas à luz: de mau
gosto, impróprias e superficiais. O desfecho usual do último capítulo, o casamento, a
morte, a declaração de valores tão alardeados, tão enfatizados, torna-se um final dos
mais rudimentares. Nada é resolvido, nada é acertado. Por outro lado, o método que a
princípio parecia tão casual, não conclusivo e ocupado com banalidades, revela-se o
resultado de um gosto especialmente original e detalhista, de escolhas audaciosas,
organização infalível e controlado por uma honestidade ímpar, a não ser entre os
próprios russos. Pode não haver respostas para essas questões, mas não devemos
manipular as evidências a fim de obter algo mais conveniente, adequado e agradável a
nossa vaidade. Essa pode não ser a maneira de chamar a atenção do público. Afinal de
contas, as pessoas estão acostumadas a música mais alta e a medidas mais drásticas.
131
Tchekov escreveu ao som da sintonia harmônica. Por conseguinte, ao lermos as
historinhas sobre nada o horizonte se alarga e a alma atinge uma liberdade estonteante.
Lendo Tchekov, repetimos a palavra alma o tempo todo. Os velhos bêbados a
usam indiscriminadamente: ...Você está lá em cima, no trabalho, além do bem e do mal,
mas não tem alma de verdade, meu caro jovem... não há força nela. De fato, a alma é a
personagem principal da ficção russa. Delicada e sutil em Tchekov, sujeita a um número
infinito de humores e destemperos, tem mais profundidade e peso em Dostoievski,
sujeita a doenças violentas e febres avassaladoras. Ainda assim é a maior preocupação.
Talvez seja por isso que o leitor inglês precise se esforçar tanto para ler Os Irmãos
Karamazov ou The Possessed pela segunda vez. A alma lhe é desconhecida. É até
antipática, não tem senso de humor nem de comédia. É amorfa e tem pouca conexão
com o intelecto. É confusa, difusa, tumultuada, aparentemente incapaz de submeter-se
ao controle da lógica e à disciplina da poesia. Os romances de Dostoievski são
rodamoinhos fervilhantes, tempestades de areia circulantes, jatos de água sibilantes que
fervem e nos engolem. São concebidos totalmente de pura matéria
146
da alma. Somos
tragados contra nossa vontade, rodopiamos cegados, sufocados e, ao mesmo tempo,
sentindo uma tontura extasiante. Com exceção de Shakespeare, não há mais leituras
excitantes. Abrimos a porta e nos encontramos numa sala repleta de generais russos,
seus tutores, suas enteadas, primos e multidões de pessoas variadas conversando aos
berros, todas ao mesmo tempo, sobre seus assuntos mais íntimos. Onde estão?
Certamente é função do romancista nos informar se estão em um hotel, apartamento ou
acomodação alugada. Ninguém pensa em explicar. Somos almas torturadas e infelizes
cujo único objetivo é conversar, revelar, confessar, gravar em carne e osso os pecados
rastejantes nas areias de nossas profundezas. Enquanto ouvimos, porém, nossa confusão
lentamente se aquieta. Uma corda nos é jogada, agarramos um solilóquio. Seguros pelos
dentes, somos levados rapidamente pela correnteza. Febrilmente, com selvageria, nos
lançamos repetidamente na água. Submersos, num momento visionário, entendemos
mais do que jamais conseguimos e temos revelações que só conseguimos na pressão
exercida pela vida em sua plenitude. Enquanto voamos, captamos tudo: nomes das
pessoas, suas relações entre si, o hotel onde estão em Rouletenburg, o envolvimento de
Polina numa intriga do Marquês de Grieux. Fatos sem importância quando comparados
com a alma! É a alma que importa, suas paixões, tumultos, a surpreendente mistura de
146
N.T. Stuff of the soul – a tradução popular coisas da alma parece ter um alcance muito mais
abrangente de significado do que a utilizada no texto.
132
beleza e vilania. Existe algo mais natural do que nossas vozes de repente se alterarem
em gargalhadas ou sermos sacudidos por soluços incontroláveis? Sem comentários. O
ritmo de nossas vidas é tamanho, que levantamos faíscas quando voamos. Além disso,
quando a aceleração é assim aumentada e os elementos da alma são vistos, não em
cenas estanques de humor ou de paixão como nossas lentas mentes inglesas as
concebem, mas cruzadas, envolvidas, confusas, um novo panorama da mente humana se
revela. As velhas divisões se mesclam. Os homens são vilões e santos ao mesmo tempo
e seus atos são belos e desprezíveis. Amamos e odiamos ao mesmo tempo. Não existe
nada daquela divisão precisa entre bom e mau a que estamos acostumados.
Freqüentemente, aqueles por quem nutrimos mais afeição são os maiores criminosos e
aqueles pecadores mais absolutos nos levam a admirá-los tanto quanto a amá-los.
Atirado à crista das ondas e surrado pelas pedras do fundo, o leitor inglês tem
dificuldade para sentir-se à vontade. O processo a que estava acostumado em sua
própria literatura é o oposto. Se quiséssemos contar a história do caso de amor de um
general, a princípio seria muito difícil não rirmos dele, deveríamos começar com a
descrição de sua casa e solidificar tudo o que o cercasse. Somente quando o cenário
estivesse completo é que nos ocuparíamos do general mesmo. Além do mais, não é o
samovar que governa a Inglaterra, mas a chaleira. O tempo é limitado, os espaços são
abarrotados de pessoas e a influência de outros pontos de vista, de outros livros, mesmo
de outras épocas, se faz sentir. Nossa sociedade é dividida em classes: alta, média e
baixa, cada uma com suas tradições, costumes e, de certa forma, sua própria língua.
Querendo ou não, o romancista inglês está sob pressão constante para reconhecer essas
barreiras e, conseqüentemente, ordem e algum tipo de forma lhe são impostas. Tende
mais à sátira do que à compaixão, ao escrutínio da sociedade do que à compreensão dos
próprios indivíduos.
Dostoievski não sofreu nenhuma dessas restrições. Não fez diferença se a pessoa
era nobre ou simples, um vagabundo ou uma grande dama. Quem quer que fosse, o ser
era o veículo do fluido perplexo, da matéria preciosa, enevoada, essencial que é a alma.
Não há barreiras que limitem a alma: transborda, inunda, mistura-se com outras. A
simples história do bancário que não conseguia pagar por uma garrafa de vinho se
expande e, antes de percebermos o que está acontecendo, já ocupou a vida de seu sogro
e de suas cinco amantes, a quem tratava abominavelmente, além das vidas do carteiro,
da executiva, das princesas que se abrigavam no mesmo prédio. Nada é deixado de lado
no mundo do incansável Dostoievski. Ele não tem limites e continua sempre. A alma
133
humana é derramada sobre nós – quente, escaldante, miscigenada, maravilhosa, terrível,
opressiva.
Ainda resta o maior de todos os romancistas. O que mais podemos dizer do autor
de Guerra e Paz? Devemos considerar Tolstoi, também, difícil e estranho a um leitor
estrangeiro? Há certa estranheza em seu ângulo de visão que nos mantém desconfiados
e confusos até nos perdermos de nossas orientações
147
e nos tornarmos seus discípulos.
Desde suas primeiras palavras temos certeza de que é um homem que enxerga o mesmo
que nós vemos, que também procede como estamos acostumados a agir, não de dentro
para fora, mas de fora para dentro. Eis um mundo onde o carteiro bate à porta às oito
horas e as pessoas vão dormir entre dez e onze da noite. Aqui está um homem que não é
selvagem nem nativo. É educado, experimentou de tudo, é um desses aristocratas que
aproveitaram seus privilégios plenamente. É metropolitano e não suburbano. Seus
sentidos e intelecto são aguçados, poderosos e bem nutridos. Há orgulho e soberba no
ataque desse corpo e dessa mente contra a vida. Nada lhe escapa, nada passa
despercebido. Ninguém, portanto, pode exprimir a excitação do esporte, a beleza dos
cavalos e toda a premência ferrenha do mundo aos sentidos de um jovem tão forte. Cada
graveto e cada pena são atraídos a ele como a um ímã. Ele percebe o azul ou o vermelho
do manto de uma criança, o modo como um cavalo mexe a cauda, o som da tosse, o
movimento de um homem tentando pôr as mãos nos bolsos que foram costurados. Tudo
o que seus olhos infalíveis captam sobre a tosse ou um maneirismo das mãos, seu
cérebro relaciona com algo oculto na personagem a fim de que conheçamos as pessoas,
não só como amam ou quais são suas posições políticas, ou ainda pela imortalidade da
alma, mas tamm pelo modo como espirram e engasgam. Até mesmo pela tradução
percebemos que fomos colocados no topo de uma montanha com um telescópio nas
mãos. Tudo é incrivelmente claro e absolutamente preciso. De repente, assim que
ficamos exultantes, respirando fundo, sentindo-nos ao mesmo tempo preparados para
qualquer coisa e purificados, algum detalhe, talvez a cabeça de um homem, salta da
imagem e nos atinge de maneira alarmante, como se expelido pela própria intensidade
da vida. “De repente algo estranho me aconteceu: primeiro parei de enxergar o que
147
N.T. A tradução orientações para a palavra bearings perde um pouco da riqueza semântica. O termo
em inglês tem correspondência com localização de embarcações, direção exata a ser seguida a fim de se
atingir um objetivo. Creio que a escolha do termo pela autora nos conduz à idéia dela de que os autores
ingleses seguem uma cartilha para escrever seus romances, como se houvesse uma fórmula para
demonstrar detalhes e ações preestabelecidas que levassem um romance ao sucesso garantido. A
discussão sobre a diferença entre eduardianos e georgianos em "O Senhor Bennet e a Senhora Brown"
ilustra bem isso.
134
estava ao meu redor e o rosto dele pareceu esvair-se no ar até que somente o brilho de
seus olhos restou na direção dos meus. Em seguida os olhos pareceram estar em minha
própria cabeça e fiquei confusa. Não conseguia ver nada e era forçada a fechar meus
olhos para me libertar da sensação de prazer e de pavor que seu olhar produzia em
mim...” Compartilhamos dos sentimentos de Masha repetidamente em Family
Happiness. Alguém fecha os olhos para escapar da sensação de pavor e prazer.
Geralmente é o prazer que é predominante. Nessa história há duas descrições: a de uma
moça passeando com seu amante pelo jardim à noite e a de um par recém-casado
caminhando empertigado em sua sala de estar. Ambas transmitem tal sensação de
intensa felicidade, que fechamos o livro para senti-la melhor. Contudo, há sempre um
elemento de pavor que nos faz, assim como Masha, querer escapar do olhar fixo de
Tolstoi. Será que vem da consciência, que na vida real pode nos incomodar, de que tal
felicidade descrita por ele é intensa demais para durar, de que estamos na iminência de
um desastre? Ou será que não vem do fato de que a própria intensidade de nosso prazer
é, de certa forma, questionável e nos força a indagar com Pozdnyshev na Kreutzer
Sonata: “Mas por que viver?” A vida domina Tolstoi assim como a alma domina
Dostoievski. Sempre há esse escorpião “Por que viver?” no centro de todas as pétalas
brilhantes da flor. Sempre há, no âmago do livro, um Olenin ou Pierre ou Levin, que
reúne em si mesmo todas as experiências, revolve o mundo entre os dedos e nunca deixa
de questionar o significado das coisas, até mesmo quando as aprecia, além de indagar
sobre quais deveriam ser nossos objetivos. Não é o padre que dilacera nossos desejos
com mais eficiência, é o temente que já os conheceu e os amou. Quando ridiculariza
nossos desejos, o mundo realmente se torna pó e cinzas sob nossos pés. Desse modo, o
medo se mistura ao prazer e, dentre os três grandes escritores russos, Tolstoi é aquele
que mais nos encanta e causa repulsa.
Todavia, a mente sofre influência do lugar onde nasceu e, sem dúvida, quando
tem acesso a uma literatura tão estranha quanto a russa, foge por uma tangente bem
distante da verdade.
135
A Ficção Moderna
148
Em qualquer pesquisa que se faça, mesmo a mais livre e despretensiosa, sobre a
ficção moderna, é difícil não perceber que a prática moderna dessa arte é, de algum
modo, um progresso em relação à anterior. Com seus mecanismos simples e material
primitivo, Fielding produziu bem e Jane Austen ainda melhor, mas compare as
oportunidades deles com as nossas! Suas obras-primas certamente têm um estranho ar
de simplicidade. E mesmo assim, a analogia entre a literatura e o processo, para
exemplificar, de produzir automóveis dificilmente se mantém se prestarmos mais
atenção a ela. Parece-me duvidoso que tenhamos aprendido algo sobre literatura ao
longo desses séculos embora saibamos muito sobre máquinas. Não chegamos a escrever
melhor, tudo o que se pode dizer que fazemos é continuar nos movimentando, ora um
pouco nessa ora naquela direção. Todavia, observado por uma lente imparcial o
suficiente, esse movimento apresenta uma tendência circular. Não se faz necessário
dizer que não reivindicamos, nem por um segundo, estar em posição vantajosa. Em
perspectiva, na multidão, meio cegos com a poeira, olhamos para trás com inveja
daqueles guerreiros mais felizes, cuja batalha já está vencida e cujos feitos têm um ar
tão sereno de realização que mal podemos evitar o murmurinho de que a luta não foi tão
bárbara para eles quanto está sendo para nós. O historiador de literatura deverá decidir
se estamos começando, terminando ou vivendo uma grande fase da ficção, pois de onde
estamos muito pouco é visível. Somente reconhecemos que certas gratidões e
hostilidades nos inspiram e que alguns caminhos parecem nos levar a campos férteis
enquanto outros nos conduzem à poeira e ao deserto. Talvez nesse último alguma
tentativa valha a pena.
Nossa batalha, então, não é com os clássicos. E se falamos em debater com
Bennett, Wells e Galsworthy é, em parte, devido a sua mera existência em carne e osso,
o que implica a imperfeição viva e cotidiana de suas obras, que, por sua vez, nos
proporcionam algumas liberdades. Também é verdade que, enquanto os agradecemos
por centenas de dádivas, reservamos nossa gratidão incondicional a Hardy, Conrad e,
em proporções bem menores, a Hudson, que escreveu The Purple Land, Green
Mansions e Far Away and Long Ago. Wells, Bennett e Galsworthy nos deram tantas
148
N.T.Publicado pela primeira vez em 1919 como "Revision of Modern Novels" pelo Times Literary
Supplement e como "Modern Fiction" em The Common Reader I em 1925. Publicado também em
Collected Essays, vol.2
136
esperanças e nos desapontaram com tanta persistência, que nossa gratidão geralmente
existe por terem nos mostrado o que deveriam ter feito e não fizeram, o que, certamente,
não podemos fazer mais e, mais certo ainda, o que não queremos fazer. Nenhuma
palavra resume nossa cobrança ou nosso ressentimento com tamanha massa de trabalho
que incorpora tantas qualidades admiráveis quanto abomináveis. Se tentássemos
formular o que queremos dizer em uma só palavra, diríamos que esses três escritores
são materialistas porque não se ocupam do espírito e sim do corpo. Por isso nos
desapontaram e nos deixaram a sensação de que quanto mais rápido a ficção inglesa
lhes der as costas, tão educadamente como se deve, e marchar nem que seja para o
deserto, melhor para sua alma. Naturalmente, uma só palavra não alcança o centro de
três alvos diferentes. No caso de Wells, atinge uma marca bem distante do centro.
Ainda assim, até mesmo ele indica um amálgama fatal de sua genialidade, um
grande torrão de barro que se mistura com sua inspiração. Bennett talvez seja o maior
culpado dos três porque é, de longe, o melhor. Constrói um livro tão bem e com uma
trama tão sólida, que é difícil até mesmo para os críticos mais exigentes enxergarem por
que frestas e reentrâncias a decadência pode se insinuar. Não há nada além de uma
corrente de ar entre as janelas ou uma rachadura em uma placa. E se mesmo assim a
vida se recusasse a estar ali? É um risco que George Cannon, criador de The Old Wive’s
Tale, Edwin Clayhanger e outros anfitriões podem afirmar ter superado. As personagens
de Cannon vivem amplamente, quase nos surpreendem, mas fica a pergunta sobre como
vivem e para quê. Cada vez mais nos parece que desertaram até mesmo a vila bem
construída de Five Towns para passar seu tempo em algum vagão suavemente
almofadado de trem de primeira classe, apertando inumeráveis botões e tocando sinetas.
Seu destino nessa viagem tão sofisticada se torna, cada vez com mais certeza, uma
infinidade de bênçãos vividas no melhor hotel de Brighton. É difícil dizer que Wells
seja um materialista na medida em que se delicia demais com a solidez de sua estrutura.
Sua mente é muitíssimo generosa para com suas causas para permitir-lhe investir muito
tempo em coisas organizadas e importantes. Wells é um materialista do fundo do
coração, carregando nos ombros o trabalho que deveria ser desenvolvido por
funcionários do governo. Além disso, no excesso avassalador de idéias e fatos, raras
vezes tem tempo para perceber ou esquece de considerar a importância, a crueza e a
grosseria dos seres humanos. Apesar disso, que crítica mais nociva poderia haver a sua
terra e seu céu além do fato de serem habitados por suas Joans e seus Peters? A
inferioridade da natureza deles não mancha qualquer instituição ou ideal concebido por
137
seu criador? Do mesmo modo, embora respeitemos profundamente a integridade e a
humanidade em Galsworthy, não encontraremos o que buscamos em suas páginas.
Se etiquetarmos todos esses livros com a palavra materialistas, queremos dizer
que os autores escreveram sobre assuntos sem importância, desperdiçam sua imensa
habilidade e um esforço enorme fazendo o trivial e o transitório parecerem o verdadeiro
e o duradouro.
Devemos admitir que somos rigorosos e que consideramos difícil justificar
nosso descontentamento e explicar o que exatamente exigimos. Questionamos de modos
diferentes em momentos diferentes. A pergunta aparece mais persistentemente quando
descartamos um romance terminado com um suspiro: vale a pena? Qual o objetivo
disso? Será possível que, devido a um daqueles pequenos desvios em que o espírito
humano parece entrar às vezes, Bennett apareça com seu aparato magnífico para
distorcer um pouco a vida? A vida escapa e talvez sem ela nada mais valha à pena. É
uma imprecisão confessa fazer uso de uma figura como essa, mas enriqueceremos o
assunto se mencionarmos, como outros críticos tendem a fazer, a realidade. Admitindo
que a imprecisão aflige toda a crítica dos romances, vamos arriscar nossa opinião de
que, neste momento, a forma de ficção de maior destaque é aquela que com maior
freqüência falha em nos assegurar o que buscamos. A essência, quer a denominemos
vida ou espírito, verdade ou realidade, transformou-se ou adiantou-se em relação às
vestimentas que lhe oferecemos e recusa-se a usá-las. Todavia, continuamos
perseverantes e conscienciosos a construir nossos trinta e dois capítulos a partir de um
esboço que foge cada vez mais à imagem que tínhamos em mente. Muito do esforço de
provar a solidez e a verossimilhança da história não é meramente descartado, mas mal
direcionado a ponto de obscurecer e ofuscar a luz da concepção. O escritor parece
constrangido, não por sua própria vontade, mas pela de um tirano poderoso e
inescrupuloso que o mantém cativo para a produção de enredo, comédia, tragédia, amor,
interesse e um ar de probabilidade embalando o todo tão impecável que, se todas as
personagens ganhassem vida, poderiam ver-se vestidas completamente de acordo com a
última moda. O tirano é obedecido e o romance é produzido aos trancos e barrancos. Às
vezes, com o passar do tempo e cada vez mais freqüentemente, suspeitamos de uma
dúvida momentânea, um espasmo de rebelião ao longo das páginas preenchidas como
de costume. A vida é assim? Os romances precisam ser assim?
Volte-se para seu interior e a vida, ao que parece, está muito longe de ser
“assim”. Examine por um momento uma mente comum em um dia comum. A mente
138
recebe uma infinidade de impressões: triviais, fantásticas, evanescentes ou cunhadas
com a precisão do aço. Vêm de todos os lados, uma chuva incessante de inúmeros
átomos que se moldam à vida de segunda ou terça-feira quando caem, assim como o
tom também se modifica. O momento importante não aconteceu aqui, mas lá, para que,
se o autor fosse livre e não escravizado, pudesse escrever sobre o que escolhesse e não
sobre o que devesse. Se o escritor pudesse sustentar seu trabalho com seu próprio
sentimento e não com convenções, não haveria enredo, nem comédia, tragédia, interesse
pelo amor ou pela catástrofe no estilo aceito e talvez nem um só botão costurado como
os alfaiates de Bond Street o fariam. A vida não é uma seqüência de lâmpadas
simetricamente organizadas num espetáculo. É uma auréola luminosa, um envelope
translúcido que nos envolve totalmente. A tarefa do romancista não seria transmitir esse
espírito variante, desconhecido e não circunscrito, seja qual for a complexidade ou
aberração que possa demonstrar, com o mínimo de interferência externa possível? Não
estamos simplesmente pedindo coragem e sinceridade, estamos sugerindo que o assunto
da ficção seja um pouco diferente daquilo em que o costume nos leva a crer.
De qualquer modo, essa é a tendência que buscamos em uma obra para definir a
qualidade que distingue o trabalho de jovens escritores, dentre os quais James Joyce é o
mais brilhante, daquele de seus predecessores. Os jovens tentam se aproximar mais da
vida e preservar com mais sinceridade e exatidão o que os interessa e move, mesmo que
para fazê-lo tenham que descartar a maior parte das convenções comumente observadas
por um romancista. Recordemos os átomos que se lançam sobre a mente e a ordem em
que caem, vamos estabelecer padrões que cada visão ou incidente imprime na
consciência, não importa quão desconexos ou incoerentes pareçam. Não deixemos de
levar em consideração que a vida existe com mais plenitude naquilo que é comumente
considerado maior do que em algo que pensamos menor. Qualquer um que tenha lido
Retrato de Um Artista Quando Jovem ou Ulysses, escrito em abril de 1919, apresentado
na Little Review e que promete ser ainda melhor, terá arriscado alguma teoria dessa
natureza quanto à intenção de Joyce. De nossa parte, diante de tal fragmento, é arriscar
mais do que afirmar. Porém, qualquer que tenha sido a intenção de Joyce no todo, não
há dúvida que ele exprime a maior sinceridade e que o resultado, difícil ou desagradável
de acordo com o julgamento de cada leitor, é incontestavelmente importante. Ao
contrário daqueles que classificamos materialistas, Joyce é espiritual. Preocupa-se ao
extremo em revelar todas as nuances das faíscas da chama interior que atingem o
cérebro. A fim de preservá-las, desconsidera com coragem o que lhe parece fortuito: a
139
probabilidade, a coerência ou qualquer outro sinal, que serviu, por gerações, para apoiar
a imaginação do leitor compelido a pensar o que não pode ver nem tocar. A cena do
cemitério, por exemplo, com seu brilho, sua sordidez, sua incoerência, sua emissão de
faíscas elucidatórias de significado, sem dúvida se aproxima tanto da rapidez mental
que, numa primeira leitura em qualquer nível, é difícil não considerá-la uma obra-prima.
Se queremos vida propriamente dita, certamente a encontramos nessa cena. Na verdade,
somos inaptos para lidar com a estranheza, se tentamos dizer o que mais desejamos e
por que razão uma obra tão original ainda é falha quando comparada com Youth ou The
Mayor of Casterbridge. Poderíamos dizer que a falha está na pobreza comparativa da
mente do escritor, e é o que temos feito. Contudo, para nos libertarmos, é possível
pressionarmos um pouco mais, indagando se não podemos ter como referência à
limitação imposta pelo método e pela mente nossa sensação de confinamento em uma
sala iluminada e estreita em vez de ampla. Será que é o método que inibe a força
criativa? Será devido ao método que não nos sentimos jovens e generosos, mas
centrados em nós mesmos apesar de estremecermos com suscetibilidades sem jamais
abraçar algo ou criar além de nós mesmos? Será que a ênfase posta, talvez
didaticamente, sobre a indecência contribui para o efeito de algo angular e isolado? Ou
será simplesmente muito mais fácil, no esforço dessa originalidade, principalmente
entre os artistas contemporâneos, perceber o que falta do que definir o que se produz?
Seja qual for o caso, ficar de fora analisando métodos é um erro. Todo método é correto
desde que expresse o que desejamos, se somos escritores, e nos aproxime da intenção
do romancista, se somos leitores. O método de Joyce tem o mérito de nos aproximar do
que fomos preparados para chamar de vida. A leitura de Ulysses não sugere o quanto de
vida é excluído ou ignorado e também não causa o choque de abrir Tristram Shandy ou
mesmo Pendennis e ser convencido por eles que há somente outros aspectos de vida,
mas detalhes muito mais importantes em jogo.
Seja lá como for, o problema do romancista contemporâneo é, como supomos ter
sido no passado, descobrir maneiras de ter liberdade para estabelecer suas escolhas.
Deve ter coragem de dizer que o que o interessa não é mais isso e sim aquilo e, somente
a partir de aquilo deverá elaborar sua obra. Para os modernos, é muito provável que
aquilo, o fator de interesse, esteja nos campos obscuros da psicologia. Imediatamente,
então, um novo tom se apresenta de modo um pouco diferente e enfatiza-se algo até
agora ignorado, e um esboço de forma diferente, difícil de alcançarmos e
incompreensível para nossos predecessores, se faz necessário. Ninguém além de um
140
moderno, talvez ninguém além de um russo, teria tido interesse na situação que
Tchekov transformou no conto Gusev: alguns soldados russos adoecem a bordo de um
navio que os está levando de volta para seu país. Temos acesso a alguns trechos de
conversas e alguns dos pensamentos. Na seqüência, um deles morre e é levado embora.
A conversa continua entre os outros por algum tempo até que o próprio Gusev morre e
“parecendo uma cenoura ou um rabanete” é atirado ao mar. Enfatizam-se lugares tão
inesperados que a princípio parece não haver ênfase alguma, até que os olhos se
acostumam com a difusão da luz e passam a vislumbrar as formas dos objetos numa sala
e enxergam como a história é completa e com que profundidade e obediência à própria
visão Tchekov escolheu isso, aquilo ou aquilo outro e os colocou juntos para compor
algo novo. Porém é impossível dizer se é cômico ou trágico, não temos nem certeza se o
texto, que é vago e não expressa nenhuma conclusão, deve ser considerado um conto de
acordo com a definição que aprendemos: um conto deve ser breve e ter uma conclusão.
Os comentários mais banais sobre a ficção inglesa moderna não podem evitar a
menção da influência russa e, se os russos são citados, corremos o risco de sentir que
escrever qualquer texto de ficção além dos deles é perda de tempo. Se desejamos a
compreensão da alma e do coração, onde mais poderemos encontrá-la com mais
profundidade? Se estamos cansados de nosso próprio materialismo, o menor dentre os
romancistas russos tem, por sua vez, por direito de nascença, uma reverência natural
pelo espírito humano. "Aprenda a tornar-se familiar para as pessoas... mas não deixe
esse sentimento influenciar sua mente, o que é fácil, mas sim o coração. Ame-as". Em
cada autor russo temos a impressão de perceber as feições de um santo, se é que a
compaixão pelo sofrimento alheio, o amor pelos outros e o esforço para alcançar um
objetivo digno das exigências mais rigorosas do espírito constituem santidade. É a
santidade neles que nos perturba com a percepção de nossa trivialidade atéia, transforma
tantos de nossos romances famosos em textos de apresentação de mau gosto e
artificiais. As conclusões da mente russa, desse modo compreensivas e complacentes,
são, inevitavelmente talvez, tristes ao extremo. Poderíamos falar com mais propriedade,
de fato, da falta de conclusão, da mente irresoluta dos russos. É a sensação de que não
há resposta, de que se a vida for honestamente examinada, apresentará perguntas e mais
perguntas que devem ser formuladas e reformuladas depois que a história acabar. Esse
questionamento desesperançado nos enche de profundo desespero, a princípio, e
chegamos ao limite do ressentimento. Talvez estejam certos. Sem sombra de dúvida,
enxergam muito além de nós e sem nossas limitações grosseiras de visão. Contudo,
141
talvez vejamos algo que lhes escapa. Se não, por que sua voz de protesto se mesclaria
com nossa tristeza? A voz de protesto é a de uma outra antiga civilização que parece ter
cultivado dentro de nós o instinto de aproveitar e de batalhar mais do que o de sofrer e
de compreender. A ficção inglesa de Sterne a Meredith é testemunha de nosso deleite
natural com o humor e a comédia, com a beleza da terra, com as atividades do intelecto
e com o esplendor do corpo. Todavia, toda comparação entre duas literaturas tão
longínquas é fútil, a não ser que, de fato, a conclusão nos permita enxergar plenamente
as infinitas possibilidades da arte e nos faça lembrar que não existem limites no
horizonte e que, nada, nenhum método ou experimento, até o mais absurdo, é proibido,
a não ser a falsidade e a dissimulação. Não existe matéria apropriada de ficção. Tudo é
apropriado: sentimentos, pensamentos. Toda qualidade do cérebro ou do espírito é
aproveitada e nenhuma percepção é errônea. Se imaginarmos a arte da ficção viva e
forte entre nós, sem dúvida ela nos fará domá-la e intimidá-la, assim como amá-la e
honrá-la, pois é dessa forma que sua juventude se renova e sua soberania é assegurada.
142
Como se Atinge Um Contemporâneo
149
Em primeiro lugar, é quase impossível que um contemporâneo não se choque
quando dois outros críticos sentados à mesma mesa, no mesmo instante, exprimam
opiniões tão completamente diferentes sobre o mesmo livro. À direita, considera-se o
livro uma obra-prima da prosa inglesa, enquanto à esquerda, ao mesmo tempo, é
considerado um simples amontoado de papel de rascunho que deveria ser usado para
alimentar as chamas da lareira. Contudo, os dois críticos concordam em relação a
Milton e Keats, demonstram sensibilidade especial e, sem dúvida, entusiasmo genuíno.
Só quando discutem o trabalho de autores contemporâneos é que inevitavelmente se
alteram. O livro em questão, que é ao mesmo tempo uma contribuição duradoura à
literatura inglesa e uma miscelânea de mediocridade pretensiosa, foi publicado há mais
ou menos dois meses. Eis a explicação por que discordam:
Explicação estranha. É igualmente desconcertante para o leitor, que deseja
aprimorar suas tendências na caótica literatura contemporânea, e para o autor, que tem o
desejo natural de saber se seu próprio trabalho, produzido com muito sofrimento e
quase que totalmente no escuro, tem mais probabilidade de queimar para sempre entre
os astros das letras ou, pelo contrário, apagar o incêndio. Porém, se nos identificamos
com o leitor e exploramos seu dilema primeiramente, nossa confusão tem vida mais
curta. Aconteceu o mesmo tantas vezes antes dessa. Ouvimos os médicos discordarem
sobre o novo e concordarem com o antigo pelo menos duas vezes ao ano, em média, na
primavera e no outono, desde que Robert Elsmere (ou foi Stephen Phillips?) de algum
modo penetrou na atmosfera e houve grande discussão entre os adultos a respeito dele.
Seria tão maravilhoso, e com certeza mais desconcertante se, por milagre,
concordassem, declarassem o livro de Blank uma obra-prima na certa e, desse modo,
nos obrigassem a encarar a necessidade de decidir se deveríamos acatar sua opinião
dentro do limite de dez libras e sessenta. Os dois são críticos de renome e suas opiniões
expostas aqui de maneira tão espontânea serão fixadas e se tornarão inflexíveis em
colunas de prosa sóbria das letras inglesas e na América.
Deve ser cinismo inato ou desconfiança mesquinha da genialidade
contemporânea, que determina, automaticamente durante a discussão sobre o assunto,
mesmo que concordassem, o que não deve nem de longe acontecer, que meio guinéu é
149
N.T. Publicado pela primeira vez em 05 de abril de 1923 pelo Times Literary Supplement. Também foi
publicado em The Common Reader I, Collected Essays, vol.2 e Essays, vol.3.
143
muito para se desperdiçar com o entusiasmo contemporâneo e que o caso será resolvido
de modo adequado com um cartão de biblioteca. A questão continua sem resposta.
Deixe-nos colocá-la com certa audácia aos próprios críticos: não há orientação para o
leitor que não reconhece ninguém nem reverencia os mortos, mas é atormentado pela
suspeita de que nossa compreensão dos vivos está atrelada ao fato de compreenderem
esses antepassados? Após pesquisa rápida, os dois críticos concordam que infelizmente
não existe tal pessoa, pois qual o valor de seu julgamento quando consideramos novos
livros? Certamente não é dez libras e sessenta. E do âmago de sua experiência,
prosseguem na exposição dos erros do passado, crimes da crítica que, se cometidos
contra os vivos e não contra os mortos, teriam feito os críticos perderem os empregos ou
arriscarem sua reputação. O único conselho que podem nos dar é o de respeitarmos
nossos próprios instintos, segui-los sem receio e, em vez de submetê-los ao controle de
qualquer crítico ou ensaísta vivo, avaliá-los através da leitura e da releitura das obras-
primas do passado.
Agradecendo-os com humildade não podemos deixar de lembrar que não foi
sempre assim. Certa vez, devemos acreditar, houve disciplina e regras que controlavam
uma grande república de leitores de modo que desconhecemos atualmente. Isso não
significa que o grande crítico, Dryden, Johnson, Coleridge ou Arnold, era juiz
impecável de seus contemporâneos, que seus veredictos classificavam os livros
indelevelmente e tiravam a responsabilidade do leitor de avaliar o valor deles por si
mesmo. Os erros desses grandes homens sobre seus contemporâneos são
excessivamente notórios para serem dignos de registro. Sua mera existência tinha
influência centralizadora. Só isso, não é fantástico supor, teria controlado os desacordos
durante o jantar e dado ao bate-papo informal sobre um livro recém-publicado a
autoridade absoluta que se busca. As várias escolas teriam debatido com mais energia
do que nunca. Contudo, no pensamento mais profundo de cada leitor existiria a
consciência de que havia pelo menos um homem que mantinha os princípios da
literatura à mão, que tendo contato com alguma excentricidade do momento a
transformaria em obra perene e a limitaria com sua autoridade, nos arroubos
contraditórios de cumprimentos e culpa.
150
Quando se trata da formação do crítico, a
150
Nota da Autora: Quanta violência as duas citações demonstram: “[Told by an Idiot] deveria ser lido
como The Tempest ou As Viagens de Gulliver, pois se o talento poético da senhorita Macaulay é
porventura menos sublime do que o do autor de The Tempest e se sua ironia parece menos formidável do
144
natureza deve ser generosa e a sociedade madura. As mesas de jantar espalhadas no
mundo moderno, a perseguição e a agitação das diversas correntes que compõem a
sociedade de nosso tempo só poderiam ser dominadas por um gigante de dimensões
desproporcionais. E onde está pelo menos o homem alto que temos o direito de esperar?
Temos ensaístas, mas não temos críticos: um milhão de policiais competentes e
incorruptíveis, mas não temos juízes. Homens de bom gosto, treinamento e habilidade
estarão para sempre repreendendo os jovens e celebrando os mortos. Todavia, o
resultado mais freqüente de suas hábeis e diligentes interferências é a dissecação dos
tecidos vivos da literatura em um monte de ossinhos. Não encontramos em lugar algum
o vigor inequívoco de um Dryden ou Keats, com sua postura superior e natural, seu
discernimento profundo e sua sanidade, ou um Flaubert, com o poder tremendo de seu
fanatismo, ou Coleridge, acima de todos, maquinando o todo da poesia em sua cabeça e
deixando escapar de vez em quando uma daquelas observações gerais e profundas que
são acompanhadas pela mente aquecida pela fricção da leitura, como se fosse a alma do
próprio livro.
Com generosidade, os críticos concordam com isso, também. Um bom crítico,
segundo eles, é um dos seres mais raros. Mas quando um aparece miraculosamente,
como mantê-lo, como alimentá-lo? Grandes críticos são requisitados, a não ser que
sejam grandes poetas, pela riqueza de produção de uma era. Há um grande homem que
deve ser inocentado ou alguma escola a ser fundada ou destruída. Contudo, nossa era é
pobre, no limite da miséria. Não há um nome dominante. Não há mestre cujos cursos os
jovens se orgulhem de participar. Hardy há muito deixou a arena e há algo de exótico na
genialidade de Conrad que o torna mais do que uma influência, um ídolo honrado e
admirado, mas distante. O restante, embora formado por muitos, vigoroso e em plena
atividade criativa, não oferece ninguém que possa seriamente influenciar seus
contemporâneos ou ir além de nosso tempo para participar do que nos agrada chamar de
imortalidade. Se fizermos um teste daqui a um século e perguntarmos quanto da
produção atual na Inglaterra ainda existirá, poderemos ter que responder não só que não
concordamos sobre a mesma obra, mas que duvidamos muito que ainda exista. Esta é
uma era de fragmentos. Algumas estrofes, algumas páginas, um capítulo aqui e outro lá,
que a do autor de As Viagens de Gulliver, sua justiça e sabedoria não são menos nobres do que as deles."
(The Daily News)
No dia seguinte lemos: “Sobre o restante, só podemos dizer que se o senhor Eliot tivesse se comprazido
de escrever em inglês degradado, The Waste Land poderia não ter sido, como o é para todos com exceção
de antropólogos e literatos, tamanho amontoado de papel de rascunho.” (The Manchester Guardian)
145
o começo desse romance, o final daquele são iguais ao melhor de qualquer outra era ou
autor. Podemos seguir para a posteridade com um maço de páginas soltas ou pedir aos
leitores de então, com toda a literatura a seus pés, que peneirem nossas enormes pilhas
de lixo em busca de algumas perolazinhas? Essas são as questões que os críticos
poderiam legitimamente pôr em discussão com seus companheiros de mesa: os
romancistas e os poetas.
A princípio, o peso do pessimismo parece suficiente para arcar com toda a
oposição. Sim, é uma época de vacas magras, repito, com muito para justificar sua
pobreza. Mas, sejamos francos, se compararmos qualquer outro século ao nosso, o
resultado me parece muito contrário. Waverley, Don Juan, Hazlitt’s Essays, Orgulho e
Preconceito, Hyperion e Prometheus Unbound foram todos publicados entre 1800 e
1821. Nosso século não está atrás em produção, mas se exigirmos obras-primas, fica
claro que os pessimistas estão certos. Parece que uma era de genialidade, revolta e
extravagância deve ser seguida por uma de esforço, limpeza e trabalho árduo. Toda a
honra, é claro, àqueles que sacrificaram sua imortalidade para arrumar a casa. Se
quisermos obras-primas, onde devemos procurar? Um pouco de poesia com certeza
sobreviverá: alguns poemas de Yeats, Davies, De La Mare. Lawrence tem momentos
grandiosos, e outros nem tanto. Beerbohm, a seu modo, é perfeito, mas não é um grande
passo. Trechos de Far Away and Long Ago sem dúvida ficarão para a posteridade.
Ulysses foi uma catástrofe memorável, imensa em coragem, fantástica no desastre. E
assim escolhendo, selecionamos um e outro, colocando-os na vitrine. Ouvimos críticas e
defesas e depois de tudo, temos que enfrentar as objeções de que estamos simplesmente
concordando com os críticos que esta é uma era incapaz de sustentar esforço,
desordenada em fragmentos e sem seriedade para ser comparada com a anterior.
Contudo, só quando as opiniões prevalecem universalmente e já conversamos
bastante e convencemos muitas pessoas sobre elas é que às vezes tomamos consciência
de que não acreditamos em uma só palavra do que dissemos. Esta é uma era estéril e
exaurida, repito. Devemos olhar invejosamente para o passado. Por enquanto, é só um
dos primeiros dias agradáveis da primavera. A vida não está perdendo totalmente seu
colorido. O telefone, que interrompe as conversas mais sérias e abrevia as observações
de maior peso, tem um romantismo próprio. E a conversa aleatória de pessoas que não
têm chance alguma de imortalidade e podem, por isso mesmo, dizer o que pensam, tem
um cenário freqüente de luzes, ruas, casas, seres humanos, graça e estranheza, que se
entrelaçará no momento para sempre. É a vida. A conversa é sobre literatura. Devemos
146
tentar desembaraçar as duas e justificar a revolta ousada do otimismo contra a
plausibilidade superior e a distinção refinada do pessimismo.
Nosso otimismo, então, é amplamente instintivo. Vem do dia agradável, do
vinho, da conversa. Vem do fato de que a vida nos oferece tais tesouros diariamente e
sugere mais do que o loquaz pode expressar, muito embora admiremos os mortos,
preferimos a vida como ela é. Há algo no presente que não trocaríamos, embora nos
tenham oferecido uma escolha dentre todas as eras passadas para vivermos. E a
literatura moderna, com todas suas imperfeições, tem o mesmo poder sobre nós e exerce
o mesmo fascínio que uma pessoa de nosso convívio diário que nos repreende e critica
duramente, de quem não conseguimos ficar longe. Tem a mesma qualidade de nos fazer
estimar sermos o que somos, o que fizemos e vivemos, em vez de sermos algo
majestoso ou alheio a nós mesmos, contemplado de fora. Nenhuma geração precisa
mais do que a nossa acalentar seus contemporâneos. Separamo-nos abruptamente de
nossos antecessores. Uma alteração na balança: a guerra, um tropeço repentino das
massas, mantidas em seus lugares há séculos, desestabilizou a estrutura básica de cima a
baixo, nos alienou quanto ao passado e nos tornou talvez conscientes demais de nosso
presente. Todos os dias nos surpreendemos fazendo, dizendo ou pensando coisas que
seriam impossíveis para nossos pais. Sentimos as diferenças que não foram percebidas
com mais intensidade do que as semelhanças que foram expressas com perfeição.
Novos livros nos seduzem a lê-los parcialmente na esperança de que refletirão esse
rearranjo de nosso comportamento: as cenas, pensamentos e os agrupamentos
aparentemente fortuitos de incongruências que nos impingem tamanho senso de
novidade. E como faz a literatura, os livros devolvem a novidade aos nossos cuidados,
ampla e compreendida. Aqui estão, de fato, todas as razões do otimismo. Nenhuma era
deve ter sido mais rica do que a nossa em escritores determinados a expressar as
diferenças que nos separam do passado e não as semelhanças que nos conectam a ele.
Seria tendencioso mencionar nomes, mas o leitor mais comum imerso em poesia, ficção
e biografias raramente deixa de se impressionar com a coragem, a sinceridade, a
originalidade difundida em nosso tempo. Nossa excitação é estranhamente limitada.
Livro após livro nos deixa com a mesma sensação de promessa não cumprida, de
pobreza intelectual, de brilho apreendido da vida que não foi aproveitado pela literatura.
Muito do que há de melhor no trabalho contemporâneo tem a aparência de estar sob
pressão, anotado em taquigrafia melancólica que preserva os movimentos e expressões
das figuras como passam pela tela com brilhantismo surpreendente. Porém o reflexo
147
logo se esvai e dá lugar à profunda insatisfação que permanece. A irritação é tão
profunda quanto foi intenso o prazer.
Depois de tudo isso, de volta ao começo, vacilamos de extremo a extremo, ora
entusiasmados, ora pessimistas, incapazes de chegar a qualquer conclusão sobre nossos
contemporâneos. Pedimos o auxílio dos críticos, mesmo deplorando a tarefa. Agora é
tempo de aceitarmos os conselhos deles e corrigirmos os extremos consultando as
obras-primas do passado. Sentimo-nos impelidos a elas não por julgamento pacato, mas
por alguma necessidade imperiosa de ancorar nossa instabilidade em sua segurança.
Honestamente, o choque da comparação entre passado e presente é, a princípio,
desconcertante. Há, sem sombra de dúvida, monotonia em grandes livros, uma
tranqüilidade inabalada página após página em Wordsworth, Scott e Jane Austen, que é
sedativa à beira da sonolência. Eles têm oportunidades, mas as negligenciam. Sombras e
sutilezas se acumulam e eles as ignoram. Pareciam deliberadamente recusar-se a
contemplar os sentidos que são estimulados tão prontamente pelos modernos: visão,
audição, tato, e acima de tudo, o sentido do ser humano, sua profundidade e a variação
de suas percepções, sua complexidade, sua confusão, em resumo, seu eu interior. Há
muito pouco disso tudo em Wordsworth, Scott e Jane Austen. De onde vem, então,
aquela sensação de segurança que gradual e prazerosamente nos arrebata por completo?
É o poder de sua crença, sua convicção que se impõe sobre nós. Em Wordsworth, o
poeta filosófico, isso é bem óbvio. É igualmente verdadeiro a respeito o descuidado
Scott, que rascunhou obras-primas sobre castelos antes do desjejum e a modesta senhora
virginal que escrevia furtiva e silenciosamente só para agradar. Em ambos há a mesma
condição natural de que a vida tem certa qualidade. Eles têm seu próprio julgamento de
valores e conhecem as relações dos seres humanos entre si e com o universo. É provável
que nenhum deles tenha imediatamente o que dizer sobre um assunto, mas tudo depende
disso. Só acredite, nós ouvimos dizer, que todo o resto virá por si. Só acredite, pegando
um exemplo muito simples, que a recente publicação de The Watsons nos traz à mente
que uma menina tentará instintivamente apaziguar os sentimentos de um menino tratado
com desrespeito num baile. Se acreditarmos que isso é implícito e inquestionável,
veremos que, cem anos depois, faremos as pessoas sentirem a mesma coisa com
literatura. Certeza como essa é a condição que torna possível escrever. Acreditar que
suas impressões trazem algo de bom para os outros é liberar-se dos espasmos e do
confinamento da personalidade. É ser livre, como Scott era, para explorar todo o mundo
de aventura e romance com vigor que ainda nos mantém enfeitiçados. É também o
148
primeiro passo para o processo misterioso do qual Jane Austen era uma adepta tão
grandiosa. O menor grão de experiência certa vez selecionado, no qual ela acreditou e
estabeleceu, pode ser precisamente localizado, deixando-a livre para transformá-lo
através de um processo que nunca desvenda seus segredos ao analista, na afirmação
completa do que é literatura.
Nossos contemporâneos nos afligem porque deixaram de acreditar. O mais
sincero deles somente nos contará o que acontece consigo mesmo. Não constroem um
mundo porque não estão livres de outros seres humanos. Não podem contar histórias
porque não acreditam que as histórias são verdadeiras. Não conseguem generalizar,
dependem mais de seus sentidos e emoções, cujo testemunho é confiável, do que de seu
intelecto, cuja mensagem é obscura. Têm, por força maior, que se negar a usar algumas
das armas mais poderosas e especiais de seu ofício; com toda a riqueza da língua inglesa
a seu dispor, timidamente passam só reles moedinhas de cobre de mão em mão e de
livro em livro. Acomodados na confortável posição do eterno em potencial, somente
açoitam seus cadernos e gravam com intensidade agonizante os reflexos fugidios – que
iluminam o quê? – e os esplendores transitórios que podem, talvez, compor coisa
nenhuma. Aqui se interpõem os críticos, que demonstram justiça para com alguns.
Se a descrição parece boa, dizem, e não é completamente dependente de nossa
posição à mesa e de certas relações puramente pessoais com vidros de mostarda e vasos
de flores como poderia ser, então os riscos de julgar o trabalho contemporâneo são
maiores do que jamais o foram. Há todo tipo de desculpa para se eximirem e não há
dúvida de que seria melhor retirarem-se, como aconselhou Matthew Arnold, do fogo
cruzado do presente para a tranqüilidade segura do território do passado. Entramos no
fogo cruzado, escreveu Matthew Arnold, quando abordamos a poesia de momento tão
próximo, como a de Byron, Shelley e Wordsworth, das quais as estimativas são tão
freqüentemente não só pessoais, mas passionalmente pessoais. E isso, somos
lembrados, foi escrito em 1880. Cuidado, dizem, ao colocar no microscópio uma
amostra de algo que ainda vai longe, as coisas se organizam se esperamos. Devem-se
recomendar moderação e o estudo dos clássicos. Além do mais, a vida é curta e o
centenário de Byron está aí, mas a questão do momento é se ele se casou ou não com
sua irmã. Em resumo, se alguma conclusão é possível quando todos falam ao mesmo
tempo e é hora de ir embora, parece-me mais inteligente que os escritores do presente
renunciem à esperança de produzirem obras-primas. Seus poemas, peças, biografias e
romances não são livros, mas cadernos e o Tempo [maiúscula da autora], como bom
149
professor, vai levá-los pela mão, apontar seus borrões e rasuras e arrancar suas páginas.
Contudo, não as jogará na lata de lixo; vai mantê-las porque outros alunos vão
considerá-las muito úteis. É a partir dos cadernos do presente que as obras-primas do
futuro serão escritas. Como os críticos acabaram de dizer, a literatura durou muito e
sofreu muitas modificações. Somente uma visão distorcida e uma mente estreita vão
exagerar na importância dessa gritaria, não se importando como podem agitar os
barquinhos à deriva no mar neste momento. A tempestade e a umidade são superficiais;
a continuidade e a calma estão nas profundezas.
Aos críticos, cuja tarefa é passar julgamentos de valor sobre os livros do
momento e cujo trabalho, admitamos, é difícil, perigoso e freqüentemente nauseante,
vamos pedir que sejam generosos em seu encorajamento, mas que reajam aos louros e
títulos que são tão suscetíveis a se alterarem, desbotarem e tornarem seus usuários
ridículos em seis meses. Permita que eles tenham uma visão mais abrangente e menos
pessoal da literatura moderna e realmente olhem para os escritores como se estivessem
engajados em alguma grande construção, levantada pelo esforço comum de
trabalhadores isolados que podem muito bem permanecer anônimos. Permita que não se
prendam à companhia afável e aos aspectos mundanos como onde o açúcar é barato e a
manteiga abundante, e que desistam, pelo menos por algum tempo, da discussão da
fascinante vida pessoal de Byron, se ele se casou com sua irmã, e, retirando talvez as
mãos de cima da mesa onde estamos conversando digam algo interessante sobre
literatura. Vamos abordá-los quando saírem e relembrá-los da aristocrata melancólica,
Lady Hester Stanhope, que manteve um cavalo branco como o leite no estábulo de
prontidão para o Messias e procurou para sempre nos topos das montanhas,
impacientemente, embora confiante, sinais de que Ele se aproximava. Vamos pedir que
os críticos sigam seu exemplo, examinando atentamente o horizonte, observando o
passado em relação ao futuro e preparando o caminho para as obras-primas que estão
por vir.
150
O Senhor Bennett e a Senhora Brown
151
Trabalho lido para os Herectics, em Cambridge, em 18 de maio de 1924.
Parece-me possível, talvez desejável, que eu venha a ser a única pessoa nesta
sala que tenha cometido o desatino de escrever, de tentar escrever, ou mesmo de não ter
conseguido escrever um romance. E quando me perguntei, estimulada por seu convite
para lhes falar sobre ficção moderna, que figura demoníaca cochicharia em meu ouvido
e me empurraria para a perdição, uma figurinha surgiu diante de mim. A figura de um
homem, ou de uma mulher, que disse: “Meu nome é Brown. Pegue-me se puder.”
Muitos romancistas passam pela mesma experiência. Certo Brown, Smith ou
Jones aparece e diz do modo mais sedutor e charmoso do mundo: “Venha, pegue-me se
puder.” Encantados por esta quimera, os romancistas se atrapalham livro após livro e
gastam os melhores anos de suas vidas em busca dessa ilusão, recebendo muito pouco
dinheiro por isso na maioria das vezes. Poucos alcançam o ente, muitos têm que se
contentar com um fiapo de suas vestes ou com um fio de seus cabelos.
Minha crença de que homens e mulheres escrevem romances porque são
seduzidos pela criação de personagens que se impõem desse modo é corroborada por
Arnold Bennett. Diz Bennett em um de seus artigos:
“Os alicerces da boa ficção estão na elaboração de personagens e em nada
mais. (...) O estilo conta. A trama conta. A originalidade do ponto de vista conta.
Porém, nenhum desses conta tanto quanto personagens convincentes. Se as
personagens são reais, o romance tem uma chance. Se não, seu destino é o
esquecimento. (...)"
152
Bennett continua seu raciocínio para concluir que não há muitos romancistas
jovens de primeira linha atualmente porque são incapazes de elaborar personagens reais,
verdadeiras e convincentes.
Essa é a questão que quero discutir hoje, mais com ousadia do que com
discrição. Quero deixar claro o que queremos dizer quando falamos em personagem de
ficção, discutir a questão da realidade levantada por Bennett, sugerir alguns motivos por
que os jovens romancistas falham na criação de personagens, se é que, como afirma
151
N.T. Publicado pela primeira vez em 17 de novembro de 1923 pelo New York Evening Post: Literary
Review. Também publicado em The Captain’s Deathbed and Other Essays, The Essays of Virginia Woolf,
vol.1 e Collected Essays, vol. 1.
152
Tradução nossa. O original não traz referências bibliográficas de nenhum dos textos citados.
151
Bennett, falham mesmo. Esse objetivo me conduzirá por afirmações ora um tanto
radicais, ora muito vagas, devido ao grau de extrema dificuldade da questão. Pensem no
pouco que sabemos sobre personagem, no pouco que sabemos sobre arte. A fim de
trabalhar em campo neutro, sugiro uma divisão de territórios entre os eduardianos e os
georgianos. Considerarei eduardianos Wells, Bennett e Galsworthy,
153
e georgianos
Forster, Lawrence, Strachey, Joyce e Eliot
154
. Se eu porventura utilizar a primeira
pessoa, com um egocentrismo intolerável, peço, por favor, que me perdoem. Não desejo
atribuir ao mundo em geral as opiniões de um indivíduo solitário, mal informado e mal
orientado.
Creio que todos concordarão com minha primeira afirmação: todos nesta sala
julgam o caráter
155
. Na verdade, seria impossível viver durante um ano sem um
completo desastre das relações sem que praticássemos “leitura-de-caráter”
156
com certa
habilidade. Nossos casamentos e amizades dependem disso. Nossos negócios dependem
amplamente dessa leitura, além de questões do dia-a-dia que só podem ser resolvidas
com sua ajuda. Agora arriscarei uma outra afirmação, talvez mais discutível, sobre a
mudança de caráter do ser humano em 10 de dezembro de 1910, ou por volta dessa data.
Não estou dizendo que aconteceu como quando alguém vai ao jardim e vê que uma rosa
desabrochou ou que uma galinha botou um ovo. Não. A mudança não foi repentina ou
definitiva assim. Entretanto, uma mudança houve, e uma vez que é necessário sermos
arbitrários, estabeleçamos a data acima do ano de 1910. Os primeiros sinais da mudança
estão gravados nos livros de Samuel Butler, In the Way of All Flesh, em particular. Nas
peças de Bernard Shaw também há sinais. Na vida cotidiana, há sinais. Podemos
enxergar as mudanças, se me permitem uma imagem bem doméstica, no
comportamento da cozinheira. A cozinheira vitoriana vivia como um imenso ser
marinho tirado das escrituras, vivendo nas profundezas mais longínquas, formidável,
silenciosa, obscura, inescrutável. Por outro lado, a cozinheira georgiana é uma criatura
153
Esses três autores formavam , segundo Herta Newman em Virginia Woolf and Mrs Brown – Towards
a Realism of Uncertainty, o triunvirato eduardiano.A crítica constante de Woolf sobre o trabalho deles é
recorrente em seus ensaios, principalmente sobre Arnold Bennett, com quem Woolf manteve diálogo
crítico durante muito tempo.
154
Esses autores são exemplos de contemporâneos de Woolf, a quem criticava pelos abusos contra a
gramática e a sintaxe, numa cruzada um tanto ambígua entre o modernismo e o realismo materialista dos
eduardianos.
155
A autora se utiliza da palavra character e das duas possibilidades de significado dela neste contexto:
caráter e personagem. Uma das características de seu estilo leve, lúdico e denso ao mesmo tempo, com
tom bastante informal.
156
Novamente, o jogo de palavras com character-reading faz muito mais sentido na língua inglesa
devido aos significados mencionados na nota anterior.
152
do sol e do ar fresco, entrando e saindo da sala de estar para pedir o jornal emprestado
ou dar um conselho sobre um chapéu. Vocês precisam de algum outro exemplo solene
do poder de adaptação da raça humana? Leia Agamemnon e veja se sua simpatia não
tende, no decorrer da história, indubitavelmente para Clitemnestra. Ou ainda, considere
a vida conjugal dos Carlyle e lamente o desperdício, a futilidade, tanto dele quanto dela,
na tradição doméstica horrível que fez parecer direito que uma mulher talentosa
ocupasse seu tempo caçando besouros e esfregando panelas em vez de escrevendo
livros. Todas as relações humanas mudaram: entre patrões e empregados, maridos e
esposas, pais e filhos. E quando as relações humanas mudam, há mudança na religião,
no comportamento, na política e na literatura. Vamos estabelecer de comum acordo que
essas mudanças aconteceram por volta de 1910.
Disse que as pessoas devem desenvolver muito a habilidade de ler o caráter se
querem viver mais um ano de vida sem desastres. Porém, essa é a arte dos jovens. Na
meia idade e na velhice essa arte é praticada principalmente por si mesma e pelas
amizades, outras aventuras e experiências na arte da leitura do caráter são raramente
vividas. Os romancistas, contudo, diferem do restante do mundo porque não deixam de
se interessar pelo caráter quando já aprenderam o suficiente sobre ele em termos
práticos. Vão além, sentem que há algo permanentemente interessante no próprio
caráter. Quando toda a parte prática da vida foi descartada, há alguma coisa sobre as
pessoas que continua a parecer importantíssima ao romancista, apesar de isso não ter
qualquer efeito sobre sua felicidade, conforto ou renda. O estudo do caráter se torna
uma busca absorvente: descrever o caráter é uma obsessão. Considero difícil de explicar
o que os romancistas querem dizer quando falam de caráter, que impulso é esse que os
instiga, com tanto poder, a dar corpo a seu ponto de vista em sua escrita.
Se me permitem, em vez de analisar e abstrair, contarei uma história, que a
despeito de sua inutilidade, tem o mérito de ser verdadeira. Vou narrar uma viagem de
Richmond a Waterloo, na esperança de conseguir mostrar-lhes o que quero dizer com
caráter, de que vocês percebam os aspectos diferentes de cada uma das personagens e os
perigos horríveis que as espreitam quando tentamos descrevê-las.
Uma noite, há algumas semanas, atrasada, entrei no primeiro vagão do trem a
que tive acesso. Ao sentar-me, tive a sensação estranha e desagradável de ter
interrompido a conversa de duas pessoas que já se encontravam no vagão. Não eram
nem jovens, nem felizes. Longe disso. Eram ambos mais velhos. A mulher tinha mais
de sessenta e o homem, bem mais de quarenta. Estavam sentados de frente um para o
153
outro. O homem, a julgar por sua atitude e pelo rubor da face, estivera inclinado na
direção dela falando enfaticamente. Voltara a seu lugar e estava calado. Eu o atrapalhara
e ele estava irritado. A senhora, porém, a quem chamarei de senhora Brown, pareceu
bastante aliviada. Era uma dessas mulheres muito asseadas, com tudo muito surrado,
cujo extremo alinho – tudo abotoado, fechado, enlaçado, consertado e escovado –
sugere pobreza mais extrema do que farrapos e sujeira. Havia um quê de aflição nela:
um olhar sofrido, apreensivo. Além de tudo, era extremamente pequena. Seus pés, em
botinhas limpas, mal tocavam o chão. Achei que não tinha quem cuidasse dela, que
tinha que tomar decisões sozinha, que, tendo sido abandonada ou enviuvado há muitos
anos, levara uma vida de ansiedade e opressão, educando um filho único, que,
promissor ou não, estaria enveredando pelo mau caminho. Tudo isso me passou pela
cabeça como um raio enquanto me sentava, muito pouco à vontade, como a maioria das
pessoas que viajam com outras, a não ser que já as conheçam. Olhei para o homem.
Tinha certeza de que não tinha nenhuma relação com a senhora Brown. Tinha um
biotipo maior, mais corpulento e menos refinado. Imaginei que fosse um negociante do
norte, muito provavelmente um respeitável comerciante de milho, vestido de boa sarja
azul, com canivete, um enorme lenço de seda e uma mala de couro reforçada. Tinha,
porém, claramente, um assunto desagradável para tratar com a senhora Brown. Algo
secreto, sinistro talvez, que não pretendia discutir na minha presença.
“Pois é, os Croft tiveram muito pouca sorte com os empregados”, disse Smith
(vou chamá-lo assim) pensativamente, voltando a algum assunto anterior na intenção de
manter as aparências.
“Pobre gente”, disse a senhora Brown, um tanto condescendente. “Minha avó
teve uma empregada que chegou a sua casa aos quinze anos e ficou até os oitenta.”
Disse isso com o orgulho meio ferido e de modo agressivo, para nos impressionar,
talvez.
“Não acontece com muita freqüência hoje em dia”, respondeu Smith em tom
conciliatório.
Ficaram em silêncio.
“Estranho não abrirem um clube de golfe lá. Achei que um dos jovens faria
isso”, disse Smith para quebrar o silêncio que obviamente o deixava nervoso.
A senhora Brown não se deu o trabalho de responder.
“Que mudanças estão acontecendo neste lado do mundo!”, disse Smith olhando
pela janela e furtivamente para mim ao fazê-lo.
154
Era claro, pelo silêncio da senhora Brown e pela afabilidade nervosa de Smith,
que ele exercia algum poder sobre ela, de maneira bastante desagradável. Poderia ser a
ruína de seu filho ou algum episódio doloroso de seu passado, ou do de suas filhas.
Talvez a senhora Brown estivesse viajando a Londres para assinar algum documento e
transferir uma propriedade. Certamente contra sua vontade, estava nas mãos de Smith.
Estava começando a sentir uma pena incrível dela quando de repente e
inconseqüentemente, ela disse:
“Você pode me dizer se um carvalho morre quando suas folhas são comidas por
lagartas dois anos seguidos?”
Falava claramente, de modo preciso, numa voz educada e inquisitiva.
Smith estava chocado e ao mesmo tempo aliviado por ter um tema tão seguro
sobre o qual discorrer. Falou-lhe muito sobre pragas e insetos, rapidamente, que tinha
um irmão em Kent que administrava uma fazenda de cultivo de frutas. Contou-lhe o que
os fazendeiros fazem todos os anos em Kent, etc., etc. Enquanto falava, algo muito
estranho ocorreu: a senhora Brown pegou seu lencinho branco e começou a enxugar
levemente os olhos. Estava chorando. Continuou a ouvi-lo com compostura. Ele, porém,
continuou falando um pouco mais alto e um pouco mais zangado, como se a tivesse
visto chorar muitas vezes antes daquela, como se fosse um hábito doloroso. Finalmente
ele se irritou. Parou abruptamente, olhou pela janela, inclinou-se na direção dela, como
estava quando entrei, e disse-lhe em tom intimidador, como se não fosse mais tolerar
aquele despropósito:
“Sobre aquele assunto que discutíamos. Tudo certo? George estará lá na terça?”
“Não nos atrasaremos”, respondeu a senhora Brown, recompondo-se com
soberba dignidade.
Smith não disse nada. Levantou-se, abotoou o casaco, pegou sua mala e saltou
do trem antes mesmo de termos parado na Clapham Junction. Conseguira o que queria,
mas estava envergonhado de si mesmo. Estava feliz de poder sair de perto da senhora
Brown.
A senhora Brown e eu ficamos sozinhas. Sentada no canto oposto ao meu, muito
limpa, muito pequena, bem estranha, sofria imensamente. Causava uma impressão
opressiva. Inundava tudo como uma corrente de ar, como cheiro de queimado. De que
se compunha essa impressão tão opressiva e peculiar? Uma infinidade de idéias
incongruentes e irrelevantes povoam a mente nessas ocasiões. Vê-se a senhora Brown
no centro de todos os tipos de situações. Pensei nela numa casa de praia com muitos
155
ornamentos extravagantes: ouriços, barcos em garrafas de vidro. As medalhas do
marido sobre o console da lareira. Entrava e saía da sala, segurando as bordas dos
encostos das cadeiras como as aves fazem no poleiro, tirando restos de refeições dos
pratos, aproveitando seus longos e silenciosos olhares. As lagartas e os carvalhos
pareciam trazer tudo aquilo implícito. Nesse momento, Smith invade essa vida
fantástica e regrada. Eu o vi entrar como o vento num dia de ventania. Entrou com
violência, agressivamente. Seu guarda-chuva encharcado fez uma poça no corredor.
Trancaram-se.
Então a senhora Brown enfrentou a terrível revelação e tomou sua decisão
heróica. Cedo, antes da alvorada, arrumou a mala e a carregou sozinha para a estação.
Não permitiria que Smith a tocasse. Tinha o orgulho ferido, o vento a jogara para longe
de seu porto seguro. Vinha de uma linhagem de elite, que tinha empregados, mas esses
detalhes podiam esperar. O mais importante era perceber seu caráter, esgueirar-se em
seu ambiente. Não tive tempo para explicar por que senti algo trágico e heróico, ainda
que com um lampejo de fantástico, antes de o trem parar. Vi-a desaparecer, carregando
sua mala no burburinho da imensa estação. Parecia muito menor e muito tenaz e ao
mesmo tempo muito frágil e heróica. Nunca mais a vi e jamais saberei o que houve com
ela.
A história termina sem mostrar sua relação com o assunto tratado. Porém, não
lhes contei tudo isso só para exemplificar minha ingenuidade ou os prazeres de viajar de
Richmond a Waterloo. Gostaria que percebessem o seguinte: aqui está uma personagem
se impondo sobre uma pessoa. Aqui está a senhora Brown pressionando alguém a,
quase automaticamente, escrever um romance sobre ela. Creio que todos os romances
germinam a partir de uma senhora sentada no canto oposto ao seu do vagão. Creio
também que todos os romances lidam com personagens e que existem para expressá-las,
não para pregar doutrinas, entoar canções ou celebrar as glórias do império britânico.
Creio que a forma do romance, tão confusa, loquaz e sem força dramática; tão rica,
flexível e viva, evoluiu.
Referi-me a expressar personagens, o que pode ser imediatamente interpretado
de diversas maneiras. Por exemplo, o caráter da velha senhora Brown vai nos afetar dos
modos mais diferentes, de acordo com nossa idade e com nosso país de origem. Seria
muito fácil escrever três versões do incidente no trem: uma inglesa, uma francesa e uma
russa. O escritor inglês transformaria a velha senhora em uma personagem. Mostraria
suas esquisitices e maneirismos, seus botões e marcas de expressão, seus laçarotes e
156
verrugas. Sua personalidade dominaria o livro. Um escritor francês apagaria tudo isso.
Sacrificaria o indivíduo senhora Brown para nos oferecer uma visão mais ampla da
natureza humana, para construir um todo mais abstrato, proporcional e harmonioso. O
russo perfuraria a carne, revelaria a alma – somente a alma, vagando pela Waterloo
Road, questionando implacavelmente a vida, de modo que tal questão ecoasse em
nossos ouvidos mesmo depois de terminada a leitura do livro. Em suma, além de nossa
idade e origem, há o temperamento do autor a considerar. Você vê um aspecto da
personagem e eu vejo outro. Diz que significa isso e digo que quer dizer aquilo. Quando
se considera a literatura, cada um tem uma seleção ainda mais profusa de interpretações
de acordo com princípios muito próprios. Desse modo, pode-se retratar a senhora
Brown de uma infinita variedade de formas, segundo a idade, a origem e o
temperamento do autor.
Devo, agora, recordar o que o senhor Bennett afirma: somente quando as
personagens são reais é que um romance tem chances de sobreviver. Caso contrário,
deve morrer. Pergunto, todavia, o que é realidade? Quem são os juízes da realidade?
Uma personagem pode ser real para o senhor Bennett e um tanto irreal para mim. Por
exemplo, no artigo do qual tirei as citações, o senhor Bennett diz que considera Watson
em Sherlock Holmes real. Para mim, Watson não passa de um saco cheio de feno, um
manequim, uma figura divertida. Assim é, de personagem em personagem, de livro em
livro. Não há nada sobre o que as pessoas divirjam mais do que a realidade das
personagens. Especialmente nos livros contemporâneos. Ampliando o foco, creio que o
senhor Bennett está perfeitamente correto. Se observarmos os romances considerados
grandiosos: Guerra e Paz, Vanity Fair, Tristram Shandy, Madame Bovary, Orgulho e
Preconceito, The Mayor of Casterbridge, Villette, imediatamente pensaremos em uma
personagem que nos pareceu tão real (não quero dizer com isso que fossem reais, tais
como a vida é) que tem o poder de nos fazer pensar não só nela, mas em todas as coisas
que nossos olhos podem ver através dela – a religião, o amor, a guerra, a paz, a vida em
família, as festas no campo, os pores de sol, os luares, a imortalidade da alma. Parece-
me que nenhuma experiência humana foi deixada de fora em Guerra e Paz. Em todos os
romances mencionados, esses grandes autores nos fizeram ver o que queriam que
enxergássemos através do olhar de alguma personagem. Se não fizessem assim, seriam
poetas, historiadores ou panfletários, não romancistas.
Analisemos o que o senhor Bennett afirma na seqüência: não há grandes
romancistas entre os georgianos porque não conseguiam criar personagens reais,
157
verdadeiras e convincentes. Não posso concordar. Há razões, desculpas e possibilidades
que, acredito, revelam outras facetas desse caso. Parece-me, pelo menos, mas tenho
plena consciência que este é um assunto sobre o qual provavelmente tenho preconceitos,
sou defensiva e míope. Meu ponto de vista será exposto na esperança que vocês o
tornem imparcial, crítico e liberal. Por que é tão difícil para os romancistas atuais
criarem personagens que pareçam reais não só para o senhor Bennett, mas para o mundo
em geral? Por que, quando chega outubro, as editoras não conseguem publicar uma
obra-prima?
Certamente, uma das razões é que os homens e mulheres que começaram a
escrever romances por volta de 1910 enfrentaram a grande dificuldade de não haver
nenhum romancista inglês vivo para servir-lhes de modelo, com quem pudessem
aprender o oficio. Conrad é polonês, o que o exime e faz com que, embora admirável,
não nos seja muito útil. Hardy não escreveu um só romance desde 1895. Os romancistas
mais conceituados e de maior sucesso no ano de 1910 eram, suponho, Wells, Bennett e
Galsworthy. Em minha opinião, procurar essas pessoas e pedir-lhes que nos ensinem a
escrever romances e criar personagens reais é exatamente igual a procurar um mestre
sapateiro e pedir-lhe que nos ensine a montar um relógio. Longe de mim dar-lhes a
impressão de que não admiro nem aprecio os livros deles. Para mim, têm grande valor e
são, de fato, muito necessários. Há momentos em que é mais importante ter botas do
que ter relógios. Deixando a metáfora de lado, creio que depois da atividade criativa da
era vitoriana, era muito necessário, não só para a literatura, mas para a vida, que alguém
escrevesse livros como esses de Wells, Bennett e Galsworthy. Contudo, que livros
esquisitos! Às vezes me pergunto se é certo chamá-los de livros, pois deixam uma
sensação estranha de vazio e insatisfação. Para completá-los parece necessário
inscrever-se em alguma sociedade ou, mais desesperadamente, fazer um cheque. Tendo
feito isso, a inquietação esmorece, a leitura do livro terminou e podemos colocá-lo na
estante para nunca mais ser aberto. Não acontece o mesmo com o trabalho de outros
romancistas. Tristram Shandy ou Orgulho e Preconceito são obras completas em si
mesmas. São independentes, não aguçam o desejo de fazermos qualquer coisa a não ser
lermos o livro novamente para entendê-lo melhor. A diferença talvez esteja no fato de
que Sterne e Jane Austen se interessavam pelas coisas em si mesmas, pelo livro em si
mesmo. Sendo assim, tudo fazia parte do livro, nada ficava de fora. Os eduardianos
nunca se interessaram pela personagem ou pelo livro em si. Interessavam-se por algo
158
além do livro. Suas obras foram livros incompletos e requeriam que o leitor fosse ativo
e os terminasse praticamente sozinho.
Talvez tornemos isso mais claro se tomarmos a liberdade de imaginar uma
festinha no vagão do trem: Wells, Bennett e Galsworthy estão viajando para Waterloo
com a senhora Brown. Como eu disse, a senhora Brown estava pobremente vestida e era
muito pequena, tinha uma aparência ansiosa e perturbada. Duvido que ela fosse o que se
considera uma mulher instruída. Agarrando-se a todos os sintomas da condição
insatisfatória de nossas escolas primárias com uma rapidez que eu não conseguiria
acompanhar, Wells projetaria instantaneamente sobre esse pano de fundo a visão de um
mundo melhor, mais refrescante, mais animado, mais feliz, mais aventureiro e galante,
onde vagões de trem com cheiro de mofo e velhas senhoras antiquadas não existissem,
onde barcas miraculosas trouxessem frutas tropicais a Camberwell às oito horas da
manhã, onde houvesse creches públicas, fontes e bibliotecas, salas de jantar e de estar,
casamentos; onde todos os cidadãos fossem generosos e francos, tivessem hombridade e
magnitude, fossem muito parecidos com o próprio Wells. Ninguém seria nem um pouco
parecido com a senhora Brown. Não há senhoras Brown em Utopia. Na verdade, não
acredito que, em sua ânsia de fazê-la parecer o que deveria ser, Wells perderia um
segundo com aquilo que ela realmente é. O que Galsworthy enxergaria? Podemos
duvidar que os muros da fábrica Doulton despertariam sua imaginação? Há mulheres
que produzem vinte e cinco dúzias de potes de cerâmica por dia naquela fábrica. Há
mães em Mile End Road que dependem dos vinténs que aquelas mulheres recebem.
Mas há patrões em Surrey que estão, nesse exato momento, fumando seus charutos
enquanto o rouxinol canta. Ardendo de indignação, repleto de informações, censurando
a civilização, Galsworthy só veria na senhora Brown um pote defeituoso retirado da
linha e descartado.
O senhor Bennett, especial entre os eduardianos, fixaria seu olhar no carro.
Certamente observaria cada detalhe com imenso cuidado. Notaria os anúncios, as
imagens de Swanage e de Portsmouth, a maneira como a almofada fica saliente entre os
botões dos bancos, a maneira como a senhora Brown usava um broche baratíssimo
comprado no bazar Whitworth e como ela consertara as luvas: o polegar da mão
esquerda havia sido substituído. Também observaria, por fim, a razão pela qual aquele
trem direto de Windsor parava em Richmond para a conveniência da classe média local,
que podia dar-se ao luxo de ir ao teatro embora não tivesse atingido o nível social para
ter seu próprio carro. Havia ocasiões, ele contaria quais, em que alugariam um carro de
159
alguma empresa, que ele nos diria qual. Gradualmente, ele nos encaminharia paralela e
calmamente à senhora Brown e comentaria como ela herdara um pequeno aforamento,
não uma propriedade absoluta, em Dachet, hipotecado ao advogado Bungay. Por que
aventurar-me a inventar o senhor Bennett? Ele não é um romancista? Abri o primeiro
livro dele que me caiu nas mãos: Hilda Lessways. Vejamos como ele nos faz sentir que
Hilda é verdadeira e convincente, como todo bom romancista deveria fazer.
“Fechou a porta delicada e controladamente, o que demonstrava o
constrangimento de suas relações com a mãe. Gostava de ler Maud, era dotada do poder
de sentir tudo intensamente.”
157
Até aqui, tudo bem. Com seu estilo pausado e certeiro,
o senhor Bennett está tentando nos mostrar que tipo de jovem Hilda é desde as
primeiras páginas do romance, onde tudo é importante.
Todavia, na seqüência ele começa a descrever, não Hilda Lessways, mas a vista
que ela tem da janela de seu quarto, com a desculpa de que o senhor Skellorn, o
cobrador do aluguel, vinha por aquele caminho. Ele continua:
“A comarca de Turnhill ficava atrás da casa e todo o sombrio distrito de Five
Towns, do qual Turnhill é um dos extremos, ficava ao sul. Ao pé de Chatterley Wood, o
canal dava voltas em curvas largas na direção da planície imaculada de Cheshire e do
mar. Ao lado do canal, exatamente do outro lado da janela de Hilda, ficava um moinho
de trigo que fazia tanta fumaça de tempos em tempos quanto as fornalhas e chaminés,
fechando a paisagem dos dois lados. Um caminho de tijolos saindo do moinho, que
separava um conjunto considerável de casas novas de seus respectivos jardins, levava
diretamente à rua Lessways, para a frente da casa da senhora Lessways. O senhor
Skellorn sempre chegava por esse caminho, pois morava na última casa da longa fileira
de casas do conjunto.”
Uma linha perspicaz teria sido melhor do que todas essas linhas descritivas.
Deixemos passar as descrições como lapso na labuta enfadonha do romancista. Onde
está Hilda? Será possível? Ainda está olhando pela janela. Passional e insatisfeita como
é, tem um interesse especial por casas. Freqüentemente compara o velho Skellorn com
as casas que vê de sua janela. Portanto, as casas devem ser descritas. Prossegue o senhor
Bennett:
“O grupo de casas era conhecido como Freehold Villas, um nome que era fruto
consciente de orgulho, tendo em vista que a maior parte da terra no distrito era dividida
157
Todas as citações de Hilda Lessways feitas por Virginia Woolf no ensaio original aparecem aqui em
traduções nossas.
160
em aforamentos que só poderiam ser negociados pelos proprietários mediante
pagamento de multas ou consentimento de uma corte presidida por um agente do
senhorio. No Freehold Villas, a maior parte dos residentes era proprietária absoluta de
sua terra e detinha-se em pormenores à noite em seus jardins cheios de fuligem, em
meio às camisas e toalhas ao vento nos varais. O Freehold Villas simbolizava o triunfo
final da economia vitoriana, a apoteose do artesão prudente e trabalhador. Correspondia
a um sonho paradisíaco da Building Society Secretary
158
. Era, de fato, uma conquista
real. Contudo, o desprezo irracional de Hilda não permitiria que ela enxergasse isso.”
Graças a Deus, exclamamos! Finalmente chegamos a Hilda! Não tão depressa.
Ela pode ser isso, aquilo ou aquilo outro, mas Hilda não se entretém só olhando as casas
e pensando nelas. Hilda vive em uma casa. E em que tipo de casa Hilda vive? Continua
o senhor Bennett:
“Era uma das duas casas do centro de uma plataforma com entradas laterais. Seu
avô Lessways, o produtor de chaleiras, construíra as quatro casas. Sua casa era a
principal, obviamente, era a moradia do proprietário da plataforma. Uma das casas de
canto abrigava uma mercearia, cujo jardim havia sido confiscado a fim de tornar o
jardim do senhorio frivolamente maior do que o jardim das outras casas. A plataforma
não era uma área de casinhas. Suas casas eram cotadas entre vinte e seis e trinta e seis
libras por ano, muito além das possibilidades de artesãos, pequenos corretores de
seguros e cobradores de aluguel. Além do mais, eram bem construídas, generosamente
construídas. Sua arquitetura, embora modificada, mostrava vagos sinais da suavidade
georgiana. Era reconhecidamente o melhor conjunto de casas naquela parte da cidade.
Vindo do Freehold Villas, o senhor Skellorn certamente vinha a um lugar superior,
maior, mais liberal. De repente, Hilda ouviu a voz da mãe...”
Não podemos ouvir a voz da mãe ou a de Hilda. Só conseguimos ouvir a
voz do senhor Bennett nos contando tudo sobre aluguéis, aforamentos, propriedades
absolutas e multas. O que será que ele pretende? Na minha opinião muito particular, sua
pretensão é nos fazer imaginar por ele. Está tentando nos hipnotizar para acreditarmos
que, porque criou uma casa, deve haver alguém vivendo nela. Com seu maravilhoso
poder de observação, sua compaixão e humanidade grandiosas, o senhor Bennett jamais
olhou para a senhora Brown em seu cantinho do vagão. Lá vai ela viajando, não de
158
As Building Societies são empresas de captação de recursos através de financiamentos e de empresas
subsidiárias cujo objetivo é conceder crédito para construção civil e compra de casa própria. Funcionam,
muitas vezes, em sistema cooperativista.
161
Richmond a Waterloo, mas de uma era da literatura inglesa para a próxima, pois a
senhora Brown é eterna, ela é a natureza humana. A senhora Brown só se modifica na
superfície; são os romancistas que entram e saem. Ela permanece lá sentada, sem que
nenhum dos eduardianos tenha se preocupado em olhar para ela. Poderosos, inquisitivos
e complacentes observaram o lado de fora da janela, as fábricas, as Utopias, até mesmo
a decoração e o estofamento do trem. Porém, nunca olharam para ela, para a vida, para a
natureza humana. Desenvolveram uma técnica de escrever romances que se adapta a
seus propósitos. Criaram mecanismos e estabeleceram convenções que trabalham por
eles. Mas seus mecanismos não são como os nossos, e seu trabalho não é como o nosso.
Consideramos suas convenções ruins e seus mecanismos, a morte.
Podem queixar-se do aspecto vago de minha linguagem e questionar o que é
uma convenção, um mecanismo. O que quero dizer com: as convenções de Bennett,
Wells e Galsworthy são erradas para os georgianos? A questão é de difícil acesso e
tentarei um atalho. Uma convenção em literatura não é muito diferente de uma
convenção comportamental. Tanto na vida como na literatura é preciso haver maneiras
de aproximar, por um lado a anfitriã de sua convidada desconhecida e por outro, o
escritor de seu leitor desconhecido. A anfitriã fala sobre o tempo, pois gerações de
anfitriãs estabeleceram que esse é um assunto de interesse universal que todos
consideram. Começa dizendo que o mês de maio está terrível e, tendo se aproximado da
convidada desconhecida, prossegue com assuntos de maior interesse. Assim também
acontece na literatura. O escritor deve aproximar-se de seu leitor apresentando-lhe algo
que ele reconheça, que estimule sua imaginação e o faça cooperar no momento em que
tudo fica mais difícil: na intimidade. É de máxima importância que esse ponto de
encontro seja alcançado facilmente, quase por instinto, às escuras, de olhos fechados. O
senhor Bennett faz uso desse território comum nas passagens que citei acima. Seu
problema era nos fazer acreditar na realidade de Hilda Lessways. Sendo eduardiano,
começou descrevendo minuciosamente o tipo de casa onde Hilda morava e o que ela
enxergava de sua janela. A propriedade era o território comum de onde os eduardianos
acreditavam ser fácil atingir a intimidade. Por mais indireta que nos pareça, essa
convenção funcionou admiravelmente e milhares de romances como Hilda Lessways
foram lançados no mundo por seu intermédio. Para aquela geração, naquele momento,
essa convenção era ótima.
Se me permitem, destruirei minha própria história, perceberão como senti
profundamente a falta de uma convenção e quão sério é nosso problema quando os
162
mecanismos de uma geração são inúteis para a seguinte. O incidente no vagão do trem
causou-me grande impressão. Mas como deveria transmiti-lo a alguém? Tudo o que
podia fazer era relatar exatamente o que havia sido dito, cada detalhe do que vestiam,
desesperadamente, por assim dizer, pois todos os tipos de cenas me passaram pela
cabeça, prosseguir revirando as cenas a esmo e descrever essa impressão vívida e
dominante, comparando-a a uma corrente de ar ou a cheiro de queimado. Para dizer a
verdade, estava fortemente inclinada a escrever um romance em três volumes sobre o
filho mais velho da senhora Brown e suas aventuras atravessando o Atlântico, sua filha
e a maneira como gerenciava uma chapelaria em Westminster, o passado de Smith e sua
casa em Sheffield. Porém, essas histórias me parecem as mais melancólicas, irrelevantes
e fraudulentas do mundo.
No caso de escrevê-las, deveria evitar o esforço terrível de explicar o que queria
dizer. Para chegar onde gostaria, deveria voltar ao passado e mais e mais. Deveria tentar
essa ou aquela sentença, comparar cada palavra à imagem mentalizada, combiná-las da
maneira mais exata possível e saber que, de algum modo tinha que encontrar um
território comum para nós, uma convenção que não lhes parecesse muito estranha,
irreal, artificial, difícil de acreditar. Admito que me esquivei dessa tarefa árdua. Deixei
minha senhora Brown escapar pelos vãos entre os dedos. Não lhes contei nada sobre ela,
o que é, parcialmente, uma falha dos grandes eduardianos. Perguntei-lhes, pois são mais
experientes e melhores, como poderia começar a descrever o caráter daquela mulher.
Responderam que deveria dizer que seu pai tinha uma loja em Harrogate, averiguar o
valor do aluguel, pesquisar os salários dos balconistas em 1878, descobrir de que sua
mãe havia morrido, descrever o câncer, descrever a chita, descrever... Implorei que
parassem e, sinto dizer, joguei aquele mecanismo incongruente pela janela, pois sabia
que se começasse descrevendo câncer e chita, minha senhora Brown, aquela imagem a
que me apego, embora não saiba como compartilhá-la, seria embotada, perderia o brilho
e se perderia para sempre.
Isso é o que quero dizer com os mecanismos utilizados pelos eduardianos serem
errados para os georgianos. Enfatizaram demais a manufatura dos elementos. Eles nos
deram uma casa na esperança que conseguíssemos deduzir que seres humanos vivem
nela. Para sermos justos, tornaram a casa muito melhor para se viver. Contudo, se
acreditamos que os romances são, antes de tudo, a respeito de pessoas e não de lugares
e, em segundo plano, sobre as casas onde as pessoas vivem, o que os eduardianos
fizeram está errado. Desse modo, os georgianos tiveram que começar jogando fora o
163
método que estava sendo utilizado naquele momento. Foram abandonados diante da
senhora Brown sem qualquer metodologia para apresentá-la ao leitor.
Essa afirmativa está incorreta. Um escritor nunca está só. Sempre há o público,
se não no mesmo vagão, pelo menos no compartimento vizinho. O público é um
companheiro de viagem estranho, porém. Na Inglaterra, é uma criatura dócil e
sugestionável que, uma vez cativa, acreditará implicitamente no que lhe for contado
repetidamente durante um certo período. Se disser com bastante convicção que todas as
mulheres têm caudas e que todos os homens têm corcundas, o público aprenderá a
enxergar mulheres com cauda e homens com corcundas e pensará ser revolucionário
demais ou inapropriado dizer que é tudo bobagem, que macacos têm caudas e camelos
têm corcundas e que homens e mulheres têm cérebros e corações, pensam e sentem.
Para o público, tudo isso parecerá uma piada de mau gosto.
Retomando. Eis o público inglês sentado ao lado do escritor e dizendo
unanimemente que as senhoras idosas têm casas, pais, renda, empregados, bolsas de
água quente. É assim que reconhecemos as senhoras idosas. Wells, Bennett e
Galsworthy sempre nos ensinaram que era assim que as reconheceríamos. E a senhora
Brown? Como acreditar nela? Nem sabemos se sua propriedade se chamava Albert ou
Balmoral, nem quanto pagava por suas luvas, ou se sua mãe morreu de câncer ou de
alguma outra doença contagiosa. Como pode estar viva? Não, ela é simplesmente um
fruto de nossa imaginação.
Além disso, as senhoras idosas deveriam ser feitas de aforamentos e de
propriedades absolutas, não de imaginação.
O romancista georgiano estava em uma situação difícil e estranha. Havia a
senhora Brown protestando que era bem diferente daquilo que as pessoas fizeram dela e
seduzindo, com seus truques mais fascinantes e o vislumbre efêmero de seu charme, o
romancista a socorrê-la; havia os eduardianos oferecendo mecanismos apropriados para
construirmos e demolirmos casas. Havia também o público britânico sustentando que
deveriam ver a bolsa de água quente primeiro. Enquanto isso, o trem seguia para a
estação onde todos nós deveríamos saltar.
Tal foi, em minha opinião, a situação difícil enfrentada pelos jovens georgianos
por volta de 1910. Muitos deles, em especial Forster e Lawrence, desperdiçaram seus
primeiros trabalhos porque, em vez de jogarem os velhos mecanismos fora, tentaram
utilizá-los. Tentaram chegar a um acordo. Tentaram combinar sua impressão sobre a
estranheza ou a insignificância de alguma personagem com o conhecimento das leis das
164
fábricas de Galsworthy e o conhecimento de Bennett sobre Five Towers. Tentaram, mas
tinham uma consciência muito aguçada e irresistível da presença da senhora Brown e de
suas peculiaridades para continuar tentando por muito tempo. Algo deveria ser feito a
qualquer custo, seja da própria vida, de uma das partes do corpo ou de uma propriedade
valiosa. A senhora Brown deveria ser resgatada, expressada, restabelecida em suas
relações com o mundo antes que o trem parasse e ela desaparecesse para sempre. Então
a pancadaria começou. É o que ouvimos de todos os lados, de poemas e romances e
biografias, até mesmo de artigos de jornal e de ensaios. Ouvimos os ruídos de coisas
caindo e quebrando, de choques e de destruição. São os sons que prevalecem na era
georgiana. Bem melancólicos, se lembrarmos dos dias melodiosos que tivemos no
passado com Shakespeare, Milton, Keats e mesmo com Jane Austen, Thackeray e
Dickens, e se pensarmos a que alturas a linguagem pode chegar quando é livre e não
implume e ranzinza como uma águia cativa.
De acordo com esses fatos, com esses sons nos ouvidos e essas imagens na
cabeça, não vou negar que o senhor Bennett tem um quê de razão quando reclama que
nossos escritores georgianos são incapazes de nos fazer acreditar que suas personagens
são reais. Sou forçada a concordar que não nos oferecem três obras primas imortais todo
outono, com regularidade vitoriana. Porém, em vez de ficar deprimida, estou animada,
pois esse estado de coisas é, creio, inevitável sempre que a convenção deixa de ser o
meio de comunicação entre escritor e leitor e se torna um obstáculo ou impedimento,
seja para a gélida velhice ou para a juventude imatura. No presente momento, estamos
sofrendo não da decadência, mas da falta de um código de maneiras que escritores e
leitores aceitem como prelúdio de uma relação mais excitante e amigável. A convenção
literária do tempo é tão artificial – temos que falar sobre o clima durante toda a visita –
que, naturalmente, os fracos são tentados a infringi-la e os fortes são levados a destruí-
la, tanto suas fundações quanto as regras da sociedade literária. Os sinais disso estão
claros em todos os lugares. A gramática é violada e a sintaxe desintegrada, como
quando um menino passa o final de semana com uma tia e rola sobre o canteiro de
gerânios por puro desespero enquanto as solenidades do sabbath se desenrolam
lentamente. Os autores mais maduros não se entregam a tais exibições levianas de seu
tédio. A sinceridade dos jovens é desesperada e sua coragem tremenda; simplesmente
não sabem se usam o garfo ou os dedos. Sendo assim, ao lermos Joyce e Eliot ficaremos
chocados com a indecência do primeiro e com a obscuridade do segundo. A indecência
de Joyce em Ulysses me parece consciente e calculada por um homem desesperado que
165
sente que deve quebrar as janelas para poder respirar. Há momentos, quando a janela
está quebrada, em que ele é magnífico. Que desperdício de energia! Que estúpida a
indecência quando não resulta da fluidez de uma energia extremamente abundante ou da
selvageria, mas de um ato determinado e patriótico de um homem que precisava de ar
fresco! Novamente sobre a obscuridade de Eliot. Em minha opinião, ele escreveu alguns
dos versos mais adoráveis da poesia moderna. Mas como ele é intolerante com os usos e
com a polidez da sociedade: respeito pelos mais fracos, consideração pelos insossos!
Enquanto me enterneço com a intensa beleza encantadora de um de seus versos, reflito
se devo lançar-me às cegas e perigosamente para o próximo. E assim, de verso em
verso, leio como uma acrobata voa arriscadamente no trapézio. Devo confessar que
imploro pelo velho decoro e invejo a indolência de meus ancestrais que, em vez de
rodar loucamente pelo ar, sonhavam calmamente ao ler um livro sob a sombra. Mais
uma vez. Nos livros de Stratchey, Eminent Victorians e Queen Victoria, o esforço e a
tensão de escrever contra a corrente do momento são visíveis. São muito menos
perceptíveis, é claro, pois Stratchey elaborou um código muito particular, muito discreto
de maneiras baseado em material do século XVIII, que lhe permite sentar-se à mesa
com a elite e dizer muitas coisas sob a roupagem desse código especial. Se ele não
tivesse esse aparato, certamente teria sido escorraçado da sala de jantar. Ainda assim, se
compararmos Eminent Victorians com alguns dos ensaios de Lord Macaulay, mesmo
percebendo que ele está sempre errado e Stratchey sempre certo, tamm percebemos
corpo, ímpeto e riqueza nos ensaios de Macaulay que demonstram todo o suporte de
uma era. Sua força foi dirigida totalmente para seu trabalho, não houve nenhum desvio
com propósito de dissimular ou converter. Porém Stratchey teve que nos abrir os olhos,
buscar e alinhavar uma maneira engenhosa de escrever antes de nos fazer enxergar.
Conseqüentemente, o esforço belíssimo, embora dissimulado, tirou muito da força de
seu trabalho e limitou seus horizontes.
Por todas essas razões devemos nos reconciliar com um momento de falhas e
fragmentos. Devemos refletir que, onde tanta energia é gasta buscando maneiras de
dizer a verdade, a própria verdade está fadada a nos atingir um tanto exaurida e em
condições caóticas. Ulysses, Queen Victoria e Mr Prufrock, para relembrar alguns dos
nomes dados à senhora Brown recentemente, estão um pouco pálidos e desgrenhados
quando os salvadores alcançam a senhora Brown. É o som de seus machados que
ouvimos, vigoroso e estimulante, a não ser que queiramos dormir quando a
166
generosidade da Providência nos oferta um grupo de escritores ansiosos e capazes de
satisfazer nossas necessidades.
Tentei, em detalhes um tanto tediosos, receio, responder a algumas das questões
que formulei no início. Relatei algumas das dificuldades que, em minha opinião, os
escritores georgianos têm que enfrentar em todos os sentidos. Procurei eximi-los de
responsabilidade. Para terminar, aventuro-me a lembrar-lhes de suas obrigações e
responsabilidades como participantes dessa aventura de escrevermos livros e de sermos
companheiros de viagem da senhora Brown. Ela é tão visível para vocês que
permanecem calados quanto para nós que contamos histórias sobre ela. No decorrer da
última semana, todos vocês tiveram experiências mais estranhas e interessantes do que
essa que tentei descrever, ouviram conversas que os encheram de assombro. Foram
dormir à noite aturdidos com seus sentimentos. Em um só dia milhares de idéias
passaram por suas cabeças, milhares de emoções se chocaram, colidiram e
desapareceram desordenadamente. Todavia, permitem que escritores impinjam a vocês
uma versão de tudo isso, uma imagem da senhora Brown que não se assemelha nem um
pouco àquela aparição surpreendente. Em sua simplicidade, parecem acreditar que
escritores não são feitos de carne e osso e que sabem mais sobre a senhora Brown do
que vocês. Não cometam tamanho engano. Essa separação entre escritor e leitor, essa
sua humildade e esse nosso ar de profissionalismo são os fatores que corrompem e
maculam os livros que deveriam ser o fruto saudável de uma forte aliança entre nós.
Sendo assim, livrem-se dos romances fáceis e pouco sinceros, das biografias ridículas e
auspiciosas, da crítica complacente e insípida, dos poemas que celebram
melodiosamente a inocência das rosas e das ovelhas. Livrem-se de tudo que
plausivelmente passa por literatura nos dias de hoje.
Sua responsabilidade está em insistir que os escritores desçam de seus pedestais
e descrevam a senhora Brown da maneira mais bela possível, com honestidade
indubitável. Devem insistir que ela seja a velha senhora de capacidade ilimitada e
variedade infinita, capaz de aparecer em qualquer lugar e de fazer qualquer coisa. Além
do mais, as coisas que diz e as coisas que faz, seus olhos e seu nariz, sua fala e seu
silêncio exercem uma fascinação tremenda, pois ela é, com certeza, tudo pelo que
vivemos, a própria vida.
Não esperem uma apresentação completa e satisfatória dela desde o início.
Tolerem o intermitente, o obscuro, o fragmentado, o incorreto. Sua ajuda é invocada por
uma boa causa. Farei uma ultima previsão ultrajantemente ousada: estamos no limiar de
167
uma das grandes eras da literatura inglesa, mas só a alcançaremos na totalidade se
estivermos determinados a nunca, nunca desertarmos da senhora Brown.
168
Fases da Ficção
159
As páginas seguintes tentam reproduzir as impressões deixadas pela leitura de
alguns romances. A mente não foi pressionada a decidir com que livro começar e com
qual continuar. Foi-lhe permitido ler o que lhe era aprazível. Não foi pedido que lesse
com interesse histórico nem crítico, só por prazer. Ao mesmo tempo, pediu-se que
comentasse a natureza de seu interesse naquela leitura e o prazer encontrado. Assim foi,
sem as amarras do tempo ou da reputação. Leu Trollope antes de ler Jane Austen e
ignorou, por acaso ou negligência, alguns dos livros mais célebres da ficção inglesa.
Desse modo, há pouca ou nenhuma referência a Fielding, Richardson ou Thackeray.
No entanto, se ninguém, exceto o historiador professo e o crítico, lê para
entender um período ou para revisar uma reputação, ninguém lê simplesmente por acaso
ou sem uma escala de valores definida. Há, para falar metaforicamente, algum desígnio
traçado em nossas mentes que a leitura traz à tona. Desejos e apetites, seja lá como os
encontramos, o preenchem, conquistando posições ora nessa direção ora naquela. Em
conseqüência disso, um leitor comum pode freqüentemente traçar seu curso através da
literatura com grande exatidão e pode até acreditar, de tempos em tempos, que possui
um mundo tão habitável nela quanto na vida real. Tal mundo, concorde ou não, é
sempre um processo de criação. Pode-se acrescentar, em detrimento dele, que é pessoal,
limitado e talvez inabitável por outras pessoas, que é criado em obediência a gostos que
são peculiares a certos temperamentos e desagradáveis a outros. Na verdade, a
conclusão é que esse registro de leitura está fadado a ser limitado, pessoal e excêntrico.
Em sua defesa, porém, pode-se afirmar que, se o crítico ou historiador utiliza
uma linguagem mais universal, mais culta, a probabilidade de perder a essência e a
orientação também é maior, pelo simples fato de que sabe muito mais sobre o escritor
do que ele mesmo. Ouvem-se reclamações dos escritores sobre o peso que é imputado a
influências como a educação, a hereditariedade e a teoria, sendo que eles mesmos não
têm consciência delas no ato da criação. O autor em questão é filho de arquiteto ou de
pedreiro? Foi educado em casa ou na universidade? Vem antes ou depois de Thomas
Hardy? Contudo, talvez nenhuma dessas coisas esteja presente no mundo do escritor
quando ele escreve e a ignorância do leitor, que restringe e limita, tem pelo menos a
159
N.T. Publicado pela primeira vez em três partes pela Bookman, New York, em abril, maio e junho de
1929. Também consta das edições de Granite and Rainbow e de Collected Essays, vol.2
169
vantagem de preservar aquilo que tem em comum com o escritor, mesmo que
fragilmente: o desejo de criar.
Aqui, então, com simplificações inevitáveis, faz-se uma rápida tentativa de
mostrar o funcionamento de uma mente diante de uma prateleira cheia de romances,
escolhendo ou rejeitando-os, tornando-se residência deles de acordo com seus próprios
desejos, dos quais talvez o mais simples seja o desejo de acreditar por inteiro em algo
fictício. Essa vontade lidera todo o restante. Não há determinações, sendo que os
interesses se modificam demais de época para época, sobre uma obra ser melhor do que
a outra.
O leitor comum, além disso, suspeita de rótulos e hierarquias preestabelecidos.
Ainda assim, como deve haver um primeiro impulso, deixe-nos dar a largada e começar
pela prateleira repleta de romances a fim de deleitar nosso desejo de crença.
Os Contadores de Verdades
Na ficção inglesa há muitos escritores que agradam nosso desejo de acreditar:
Defoe, Swift, Trollope, Borrow, W.E. Norris, por exemplo. Entre os franceses,
lembramos instantaneamente de Maupassant. Eles nos asseguram que tudo é como nos
dizem que é e o que descrevem de fato acontece diante de nossos olhos. Seus romances
nos oferecem o mesmo tipo de revigoramento e prazer que temos ao assistir a algo
acontecendo na rua lá embaixo. Um coletor de lixo derruba com um movimento
desajeitado do braço uma garrafa que parece conter Condy. Ela quebra no asfalto. O
coletor se abaixa, cata os cacos e se volta para um homem que está passando. Não
conseguimos tirar os olhos dele até que tenhamos saciado nosso desejo de acreditar por
completo. É como se um canal fosse cortado, no qual de repente e com grande alívio,
uma emoção até agora reprimida extravasasse. Esquecemos seja lá o que for que
estávamos fazendo. Essa experiência positiva sobrepuja todos os sentimentos confusos e
ambíguos de que estamos imbuídos naquele momento. O coletor derrubou a garrafa, a
mancha vermelha se espalha no asfalto. Acontece precisamente assim.
Os romances dos grandes contadores de verdades, dos quais Defoe é, de longe, o
líder inglês, nos proporcionam esse tipo de revigoramento. Defoe nos conta a história de
Moll Flanders, de Robinson Crusoe, de Roxana e sentimos nosso poder de crença
precipitar-se, moldado instantaneamente, fertilizando e revigorando todo nosso ser.
Acreditar parece o maior de todos os prazeres. É impossível saciar nossa avidez pela
170
verdade de tão voraz que é. Não há uma só palavra vaga ou inconsistente no livro que
surpreenda nosso inquieto senso de segurança. Três ou quatro ataques diretos da pena
esculpem o caráter de Roxana. Seu jantar é servido com regularidade. Há vitela e nabos.
O dia está bom ou nublado, o mês é setembro ou abril. Com persistência e naturalidade
e uma curiosa reiteração quase inconsciente, os fatos que mais fortalecem nossa
confiança na estabilidade da vida real – dinheiro, mobília, comida – são reiterados, até
que parecemos aprisionados entre objetos sólidos em seu universo sólido.
Um dos elementos de nosso deleite vem do fato de esse mundo, com todos os
seus pormenores, ser brilhante, tridimensional, difícil e, ainda assim, ser completo, a
fim de que sejamos tranqüilizados seja qual for a direção que tomemos. Se
pressionarmos além do confinamento de cada página, como fazemos instintivamente,
complementando o que o autor deixou por dizer, percebemos que traçamos nosso
caminho, há indicações que se deixam perceber. Há um submundo, um lado obscuro
desse mundo. Defoe presidia seu universo com a onipotência de um Deus a fim de que
ficasse equilibrado com perfeição. Nada é tão grande que ostracize outro elemento e
nada é tão pequeno que agigante outro fato.
O nome de Deus é com freqüência proferido pelas pessoas, que invocam uma
divindade pouca coisa menos substancial que elas mesmas, um ser bem acomodado no
topo das árvores, não muito distante das pessoas. Uma divindade mais mística, se Defoe
nos fizesse acreditar nela, teria desacreditado o cenário e lançado dúvidas sobre a
essência de homens e mulheres, além de feito sucumbir nossa crença neles. Suponha
que ele mesmo lidasse com as sombras esverdeadas das profundezas da floresta ou com
a fluidez do verão. Outra vez, não importa qual fosse nosso deleite na descrição,
deveríamos sentir constrangimento porque essa outra realidade prejudicaria a realidade
sólida e monumental de Crusoe e de Moll Flanders. Assim como é, saturada com a
verdade do próprio universo de Defoe, tal discrepância não teria permissão para se
impor. Deus, homem e natureza são todos reais, do mesmo tipo de realidade: uma
proeza estonteante, pois implica submissão completa e perpétua do autor a sua
convicção, uma surdez obstinada a todas as vozes que o seduzem e tentam encantá-lo
com outras suscetibilidades. Devemos só refletir como é raro um livro ser desenvolvido
com o mesmo impulso de crença a fim de que sua perspectiva seja harmoniosa por
inteiro para percebermos que escritor grandioso foi Defoe. Podemos contar nos dedos os
romances produzidos para serem obras-primas que falharam porque defendiam
171
bandeiras: as realidades se misturam, o ponto de vista muda e, em vez de clareza,
conseguimos uma confusão atordoante que nem sempre é só momentânea.
Tendo saciado nosso desejo de crença e aproveitado o alívio e o sossego desse
mundo existente, exterior e positivo, tão palpável e concreto, aquela falta de atenção
pela inatividade começa a nos assolar, o que significa que a resistência em uso está
saturada. Absorvemos tanto dessa verdade literal quanto pudemos e começamos a
desejar alguma coisa alternativa, porém harmoniosa. Não queremos, exceto em um
lampejo ou insinuação, uma verdade como a oferecida a Roxana quando ela nos conta
como seu senhor, o Príncipe, sentava ao pé de seu filho e adorava olhar para ele
enquanto dormia. Tal verdade é escondida, nos faz mergulhar e percebê-la e, sendo
assim, paralisa a ação. É ação que queremos. Um desejo seguiu seu curso, um outro
salta à frente para assumir a carga e nem mesmo formulamos nosso desejo, Defoe já o
concedeu. Adiante com a história é o grito constante em seus lábios. O fardo é liberado
tão logo reúna os fatos. O tempo todo, brotando com frescor e sem esforço, ação e
evento se sucedem com rapidez colocando em movimento essa densa acumulação de
fatos e mantendo uma brisa soprando em nossos rostos. Torna-se óbvio que, se as
pessoas de Defoe são generosamente equipadas ou despojadas de certas afeições como o
amor de marido e filhos, o que esperamos delas é serenidade calma para se
movimentarem mais rapidamente. Devem viajar com leveza, pois foi pela aventura que
foram criadas. Precisarão mais de sagacidade, músculos e senso comum na estrada
pedregosa que devem trilhar do que de sentimento, reflexão e poder de auto-análise.
A crença é agraciada por Defoe por completo. Seu leitor pode ficar descansado
pois compartilha de grande parte do domínio do autor. Testa, experimenta, sente que
nada o frustra ou se esvai diante dos olhos. Ainda assim a crença busca sustentação
renovada como quem dorme procura a outra face do travesseiro. Volta-se,
provavelmente, para alguém mais próximo do que Defoe para satisfazer seu desejo de
verdades, pois o distanciamento de um romance no tempo estabelece graciosidade
imaginativa, em conseqüência, estranheza. Se o leitor tivesse acesso, por exemplo, a
algum livro de um autor prolífico e outrora estimado como W.E. Norris descobriria que
a justaposição de dois livros apresentaria cada um deles com mais clareza.
W.E. Norris foi um autor diligente, excelente para isolarmos em estudo, pelo
menos porque representa aquele vasto grupo de romancistas cujo trabalho mantém a
ficção viva na falta de grandes mestres. A princípio, parecemos receber tudo o que
precisamos: meninas e meninos, críquete, tiro, dança, embarcações, amor, casamento;
172
um parque aqui, uma sala de estar londrina ali; um senhor inglês aqui, um cafajeste ali;
jantares, chás, galopes no Row e, por trás de tudo isso, os verdes e cinzentos campos
domésticos e veneráveis e casas nobres da Inglaterra. Conforme uma cena sucede a
outra, lá pela metade do livro, parecemos ter muito mais em que acreditar do que
podemos suportar. Exaurimos o vigor da gíria, da modernidade, da hábil mudança de
humor. Matamos o tempo no limiar das cenas, pedindo permissão para pressionar um
pouco mais. Capturamos uma frase e a observamos como se pudesse produzir mais. Na
seqüência, desviamos os olhos das figuras principais e tentamos delinear alguma coisa
no pano de fundo, perseguimos esses sentimentos e relações do momento presente sem,
desnecessário dizer, o objetivo de descobrir alguma concepção arguta, algo que
possamos chamar de uma leitura de vida. Não, nosso desejo é outro: alguma sombra de
profundidade apropriada à grandeza das figuras, alguma Providência como a fornecida
por Defoe ou a moralidade que ele sugere a fim de que possamos ir além desse tempo
sem cair na falta de sentido.
Descobrimos que essa é a marca de um escritor de segunda categoria: não pode
sugerir aqui ou parar ali. Toda sua força se concentra em manter a cena diante de nossos
olhos, seu brilho e sua credibilidade. A superfície é tudo, não há nada além.
Nossa capacidade de acreditar, porém, não está nem perto de se exaurir. É só
uma questão de encontrar algo que a reviva. Nem Shakespeare, nem Shelley, nem
Hardy; talvez Trollope, Swift e Maupassant. Acima de tudo, Maupassant é o mais
promissor do momento, pois aproveita a grande vantagem de escrever em francês. Não
que o mérito seja dele, pois temos mais incentivo para ler em uma língua cujas arestas
não foram desgastadas pelo nosso uso diário. As próprias sentenças se formam de
maneira definitivamente mais sedutora. As palavras formigam e brilham. Quanto ao
inglês, ai de mim, é nossa língua, vulgarizada pelo manuseio e pela exposição e talvez
não seja tão desejável. Além disso, cada uma dessas historietas compactas tem um quê
de pólvora, artisticamente organizadas para explodirem quando pisamos nelas. As
últimas palavras são sempre altamente inflamáveis. Lá vão, bang! Há luz para nós no
deslumbramento descompromissado de alguém com sua mão levantada, em alguém
escarnecendo, dando as costas, pegando ônibus. É como se essa ação insignificante, seja
qual for, resumisse toda a situação para sempre.
A realidade que Maupassant nos apresenta é sempre corpórea, sensorial: a carne
madura de uma jovem criada, por exemplo, ou a suculência da comida. Elle restait
inerte, ne sentant plus son corps, et l’esprit disperse, comme se quelqu’un l’eût
173
d’échiqueté avec un de ces instruments don’t se servent les cardeurs pour effiloquer la
laine des matelas.
160
Ou suas lágrimas secaram em seu rosto comme des gouttes d’eau
sur du fer rouge.
161
Tudo é concreto, tudo visualizado. É um mundo em que podemos
acreditar com nossos olhos, narizes e sentidos. Contudo, é um mundo que produz
gotinhas de amargura todo o tempo. Isso é tudo? E se for, é suficiente? Devemos, então,
acreditar nisso? Questionamos. Agora que temos a verdade nua e crua, uma sensação
desagradável, que devemos analisar antes de continuarmos, parece atrelada a ela.
Suponha que uma das condições de as coisas serem como são é serem
desagradáveis. Teremos força suficiente para suportar o desagradável pelo prazer de
acreditar nelas? Não ficamos de algum modo chocados com As Viagens de Gulliver,
Boule de Suif e La Maison Tellier? Não estamos sempre tentando desviar dos obstáculos
da feiúra dizendo que Maupassant e os outros como ele são toscos, cínicos e sem
imaginação, quando, de fato, é sua crueza que ressentimos? O fato de que há
sanguessugas nas pernas nuas das criadas, que há bordéis e que a natureza humana é,
fundamentalmente, fria, egoísta e corrupta? Esse desconforto diante do desagradável da
verdade é uma das primeiras coisas que desestabilizam nosso desejo de acreditar. Nosso
sangue anglo-saxão talvez nos tenha dado um instinto de que a verdade é, se não bela,
pelo menos agradável ou virtuosa quando contemplada. Observemos a verdade
novamente, desta vez através do olhar de Anthony Trollope: um homem grande,
tempestuoso, que usava óculos e tinha voz alta de caçador... cuja linguagem na
sociedade masculina era, creio, tão lúgubre que não me permitiriam tomar o desjejum
com ele... que perambulava pelo país pedindo uma moeda e escrevia, como diz a lenda,
tantos milhares de palavras antes do desjejum de cada dia de sua vida.
162
Certamente, romances como Barchester Towers
163
mostram a verdade, e a
verdade inglesa, à primeira vista, é quase tão desprovida de detalhes quanto a francesa,
com uma diferença: Slope é um hipócrita desajeitado asqueroso e Proudie é uma
brutamontes dominadora. O diácono é bem intencionado, mas tosco e grosseiro. Graças
160
N.T. Citação em francês no original, sem tradução para o inglês. Ela ficou parada, não sentindo mais
seu corpo, e o pensamento desordenado / espírito disperso como se alguém a tivesse dividido em
quadrados com um daqueles instrumentos que os separadores de fios têxteis usam para desfiar a lã dos
colchões. (tradução nossa)
161
N.T. Citação em francês no original, sem tradução para o inglês. (...) como gotas de água sobre ferro
quente. (tradução nossa)
162
Em Vignettes of Memory, de Lady Violet Greville, 1927. (referência do original, tradução nossa)
163
N.T. Segundo volume da trilogia Barsetshire, publicado em 1857, Barchester Towers, romance
cômico clássico sobre o embate de modos novos e antigos, foi responsável pela reputação de Trollope
entre os leitores vitorianos.
174
ao vigor do escritor, o mundo no qual são os habitantes mais proeminentes gira em
torno da correria diária de alimentar e formar crianças e adorar, amplamente e com
gosto, as amarras que não deixam uma brecha sequer para escaparem. Acreditamos em
Barchester Towers como percebemos a realidade de nossas contas semanais. De fato,
não desejamos fugir das conseqüências de nossa crença, pois a verdade dos Slopes e
Proudies na noite da festa em que o vestido de Proudie rasga nas costas sob a luz de
onze lampiões a gás é inteiramente aceitável.
No auge de sua inspiração, Trollope é um novelista maior, para não dizer de
primeira linha. Sua melhor fase ocorreu quando escreveu enérgica e rapidamente a
partir das tendências da vida provinciana, entalhando, sem crueldade, em boa forma e
bom senso, os retratos de homens e mulheres bem alimentados dos anos cinqüenta
164
,
de preto e sem imaginação. A sua maneira, que é moldada por eles, tem uma sagacidade
admirável, como a de um médico de família ou um advogado, extremamente
familiarizado com as fraquezas humanas para não julgá-las com tolerância e sem estar
ileso a essas fraquezas, como gostar de alguém muito mais do que de outrem sem
nenhum motivo aparente. Na verdade, embora se esforçasse para ser severo, e era o
melhor quando o fazia, Trollope não conseguiria ficar à distância sem que soubéssemos
que amava a moça bonita e odiava o farsante asqueroso com tanta veemência que
somente um puxão muito forte das rédeas o manteria na linha. É como se fosse o
anfitrião de uma festa familiar e seu leitor se tornasse, com o passar do tempo, um de
seus amigos mais íntimos, sentando-se à mesa a sua direita. Seu relacionamento se torna
confidencial.
Tudo isso complica o que era simples em Defoe e em Maupassant, que só nos
pediam diretamente que acreditássemos. Em Trollope, somos levados a acreditar através
de seu temperamento, o que estabelece uma outra relação com ele, que nos diverte, mas
também nos perturba. A verdade já não é tão verdadeira. A verdade nua e crua que é
desvelada em As Viagens de Gulliver, Boule de Suif e La Maison Tellier é apresentada
por Trollope adornada com um lindo bordado. Porém, não é desse adorno atraente da
personalidade de Trollope que vem o problema que se mostra fatal contra a verdade
sólida, bem apoiada e autenticada nos romances de Barsetshire. A própria verdade, por
mais desagradável que seja, é sempre interessante. Infelizmente, as condições para
contar histórias são sempre difíceis, demandam uma cena após a outra, um episódio
164
N.T. Anos cinqüenta do século XIX.
175
apoiado no outro, uma personagem na outra, tudo equilibrado e com os mesmos valores
prevalecendo. Se nos dizem que a iluminação do palácio era a gás, devem nos dizer que
as casas nobres eram fiéis às lamparinas a óleo. O que acontecerá se, no processo de
solidificação do corpo de sua história, o romancista se vir sem acontecimentos para
narrar ou com seu poder de criação esvaziado? Deverá continuar? Sim, pois a história
deve ser terminada: a intriga desmascarada, os culpados punidos e os amantes casados
no final. O testemunho, às vezes, se torna meramente uma crônica. A verdade se perde
em um catálogo simplificado. Seria melhor deixar um vazio ou até ultrajar nosso senso
de probabilidade do que preencher os espaços com improvisação: o lado avesso da
verdade é um tecido surrado, sem graça, monótono e ressequido diante da fluidez da
imaginação. O romance estabeleceu suas ordens: consisto de trinta e dois capítulos, diz.
E quem sou eu, parecemos ouvir o humilde e sagaz Trollope questionar, com seu bom
senso costumeiro, para desobedecê-lo? E produz, valentemente, improvisações.
Se avaliarmos o que vimos com os contadores de verdades, descobriremos que é
um mundo em que nossa atenção sempre se dirige a coisas que podem ser vistas,
tocadas e experimentadas a fim de que consigamos atingir um senso aguçado da
realidade de nossa existência física. Tendo estabelecido assim nossa crença, todos os
contadores de verdades juntos arquitetam que a solidez deve ser estremecida pela ação
antes de se tornar opressora. Os fatos acontecem e as coincidências complicam a
história simples. Ações existem para manter uns e outros e autores são muito
cuidadosos para não serem desacreditados ou alterarem sua ênfase na criação de
personagens diferentes de pessoas que se expressam abertamente em carreiras ativas e
aventureiras. Os contadores de verdades detêm os três poderes que dominam a ficção
em relação estável: Deus, a natureza e o homem, a fim de que enxerguemos o mundo
pela perspectiva apropriada. Um mundo em que tudo permaneça bom, não só aqui
diante de nós, mas atrás da árvore ou entre aquelas pessoas desconhecidas ao longe, na
sombra, atrás daqueles montes. Ao mesmo tempo, contar a verdade implica ser
desagradável. A mordacidade e seus limites são parte dela. Não podemos negar que
Swift, Defoe e Maupassant nos convencem mais na profundidade da feiúra do que
Trollope em sua afabilidade. Por essa razão, ao contar a verdade um autor desvia-se,
facilmente, para o satírico, que caminha lado a lado com os fatos e os imita, como uma
sombra que só é um pouco mais curvada e angular do que o objeto que representa.
Mesmo assim, em seu estado perfeito, quando podemos acreditar
completamente, nossa satisfação é plena. Podemos afirmar que, embora outros estados
176
melhores ou mais exaltados possam existir, não há nenhum que torne esse desnecessário
ou aquele excedente. Porém, contar a verdade traz consigo uma fraqueza que é aparente
no trabalho de escritores menores e de mestres exauridos; contar a verdade
provavelmente se degenera em um relatório superficial de fatos: a repetição de que foi
na quarta-feira que o vigário foi à reunião de sua mãe, na qual estavam presentes a
senhora Brown e a senhorita Dobson, que chegaram na sua charrete puxada por um
pônei. Tal afirmação, o leitor logo percebe, não tem nada de verdade a não ser o exterior
respeitável.
Lentamente, levando em consideração o relatório superficial dos fatos, a falta de
metáforas, a simplicidade da linguagem e o fato de que acreditamos mais quando a
verdade nos é mais dolorosa, não é de se estranhar que tomemos consciência de um
outro desejo que cresce espontaneamente e reveste aquelas fissuras deixadas nos
grandes monumentos dos contadores de verdades. Somos arrebatados pelo desejo de
distanciamento, música, sombra e espaço. Ao anoitecer, o coletor de lixo pegou sua
garrafa quebrada, atravessou a rua e começou a perder solidez e detalhamento ao longe.
Os Românticos
Era uma manhã de novembro e os penhascos que se erguem do oceano estavam
suspensos na bruma espessa e pesada. Os portões da antiga torre, meio em ruínas, na
qual lorde Ravenswood vivera os últimos e mais atormentados anos de sua vida, se
abriram para que seus restos mortais fossem levados a uma morada ainda mais lúgubre
e solitária.
Nenhuma mudança poderia ser mais completa. O coletor de lixo se tornou um
lorde, o presente se transformou em passado, o discurso anglo-saxão feioso se tornou
mais glamuroso e mais silábico. Em vez de potes e panelas, bicos de gás e coches
aconchegantes, temos uma torre meio em ruínas e penhascos, o oceano e novembro
cheio de brumas. Esse passado e a ruína, o lorde e o outono, o oceano e o penhasco são
tão agradáveis quanto sair de uma sala abafada e barulhenta para o ar livre da noite. A
suavidade curiosa e o idílio de Bride of Lammermoor, a atmosfera das charnecas
enferrujadas e de ondas quebrando, a escuridão e a distância realmente parecem se
somar a outra cena mais verdadeira, que ainda trazemos na memória, e dar-lhe
completude. Depois da tempestade, a bonança, depois do clarão, a frieza. Os contadores
de verdades tinham muito pouco amor, ao que parece, pela natureza, que era usada
177
quase sempre como obstáculo a enfrentar ou como pano de fundo, não esteticamente por
contemplação ou por qualquer papel que poderia exercer nos assuntos das personagens
áridas. Afinal a cidade era seu habitat natural. Vamos compará-los em qualidades mais
essenciais: como tratam as pessoas, por exemplo. Lá vem uma menina meio trôpega em
nossa direção, apoiada de leve no braço de seu pai:
Os traços, ainda com certo ar de menina, de Lucy Ashton são especialmente
bonitos e foram concebidos para expressar paz de espírito, serenidade e indiferença ao
brilho superficial dos prazeres mundanos. Seus cachos, que eram de um dourado irreal,
dividiam-se na fronte de brancura especial como um vislumbre do brilho do sol pálido
e entrecortado sobre um monte coberto de neve. A expressão de compostura era gentil,
suave, tímida e feminina ao extremo, parecia encolher-se diante do olhar mais casual
de um estranho do que apreciar sua admiração.
Ninguém poderia parecer-se menos com Moll Flanders ou com a senhora
Proudie. Lucy Ashton é incapaz de agir ou controlar a si mesma. Um touro corre em sua
direção e ela afunda no solo, um trovão ressoa e ela desmaia. Ela vacila a cada
palavrinha de cerimônia ou polidez: Oh, se o senhor é um homem, se for um cavalheiro,
ajude-me a encontrar meu pai. Poderíamos dizer que ela não tem nenhum caráter além
do tradicional: para seu pai é dedicada, para seu amante, recatada, para os pobres,
benevolente. Comparada a Moll Flanders, é uma boneca com serragem nas veias e cera
na face. Ainda assim, somos absorvidos pela leitura e nos familiarizamos com suas
proporções. Percebemos, por fim, que qualquer coisa mais individualizada, excêntrica
ou pontual enfatizaria o que não queremos. Esse espectro adelgaçado ronda o cenário e
é parte dele. Ela e Edgar Ravenswood são importantes para manter esse mundo
romântico com suas formas cruas, para prendê-las com o tema do amor infeliz que é
necessário para manter todo o restante. O mundo a que se apegam tem suas próprias leis
e também ignora ou elimina tão drasticamente quanto o mundo real. Há sentimentos de
extrema exaltação: amor, ódio, ciúme, remorso e, por outro lado, racismo e simplicidade
exacerbada. A retórica dos Ashtons e Ravenswoods se completa com o humor dos
camponeses e a tagarelice das mulheres do vilarejo. O verdadeiro romântico nos joga da
terra para o céu. O grande mestre da ficção romântica, Walter Scott, usa essa liberdade
por completo. Ao mesmo tempo, desaprovamos a melancolia que ele evoca como, por
exemplo, em Bride of Lammermoor. Rimos de nós mesmos por termos nos emocionado
tanto com o sistema tão absurdo. Contudo, antes de imputarmos esse defeito ao
romance, devemos considerar se a falha não é de Scott. Esse homem de mente
178
preguiçosa era bem capaz, com o impulso de preencher um ou dois capítulos
convencionalmente, de utilizar uma fonte de frases vazias ou jornalísticas que, por mais
charme próprio que tivessem, negligenciariam ainda mais nossa atenção.
Descuido nunca foi o problema de Robert Louis Stevenson. Era cuidadoso,
cuidadoso ao extremo: um homem que combinava inusitadamente a psicologia de
menino com a extrema sofisticação do artista. Mesmo assim, obedecia ainda mais
implicitamente do que Walter Scott às leis do romanesco. Stevenson estabelece a cena
no passado, mantém suas personagens sempre ameaçadas sob a ponta de uma espada
por causa de alguma aventura desesperada e encobre a tragédia com humor
despretensioso. Não há dúvidas de que sua consciência e seriedade como escritor lhe
renderam uma boa colocação. Abra The Master of Ballantrae em qualquer página que
só encontrará desgaste pelo uso. Por outro lado, o tecido de Bride of Lammermoor está
cheio de falhas, rasgos remendados, costurados às pressas. Em Stevenson, o romanesco
é tratado com seriedade e permeado de todas as vantagens da arte literária mais
refinada, o que resulta em nunca considerarmos quão absurda a situação é ou
concluirmos que não temos mais emoções com as quais suprir a demanda da história.
Obtemos, ao contrário, uma história firme e aceitável, que não nos trai jamais, que é
corroborada, concretizada, de boa qualidade em cada detalhe. Cada cena nos é mostrada
com precisão e astúcia, como se o trabalho do escritor fosse livrar sua essência do
envoltório.
Foi como ele disse: não havia qualquer movimento de respiração, um
estrangulamento de geada sem vento havia comprometido o ar e ao continuarmos
adiante à luz de velas, a escuridão era como um teto sobre nossas cabeças. Ou, ainda: o
rigor do inverno durou toda a estação. Um frio sufocante, pessoas se movimentando
como chaminés enfumaçadas, uma lareira enorme atulhada de lenha no corredor,
alguns dos pássaros da primavera que já haviam partido para o norte, para nossa
região, sitiando as janelas da casa ou saltitando pela relva congelada, como seres
atormentados.
Um estrangulamento de geada... Pessoas se movimentando como chaminés
enfumaçadas. Podemos pesquisar os romances Waverley em vão na busca por uma
escrita tão densa assim. Separadamente, essas descrições são adoráveis e brilhantes. A
falha está em algum outro ponto, no todo do qual fazem parte. Algo parece estar
faltando, pois, naqueles minutos críticos que decidem o destino de um livro que
terminamos de ler e cujo conteúdo pode ser contemplado como um todo pela mente.
179
Talvez seja o fato de o detalhe ser proeminente demais. A mente é capturada por essa
ela passagem descritiva, pela exatidão curiosa da frase, porém o ritmo e o alcance da
emoção que a história provoca não são satisfeitos. Sofremos restrições quando
deveríamos oscilar livremente. Nossa atenção é presa por um nó de laço ou um
refinamento de traços quando, na verdade, só desejamos um corpo nu sob o céu.
Scott repele nosso gosto de mil maneiras. Mas a crise, este é o ponto, em que o
sotaque cai e modela o livro, é certa. Desajeitado, descuidado como é, ele se recompõe
no momento crítico para desferir o golpe necessário que dá ao livro sua vivacidade.
Lucy senta-se tagarelando acomodada como uma lebre sobre sua forma. Pergunta:
Então você assumiu sua noiva atraente?, deixando seu discurso afetado de grande dama
de lado e assumindo um tom mais popular. Ravenswood afunda em areia movediça.
Somente um vestígio de seu destino apareceu. Uma enorme pena negra havia sido
retirada de seu chapéu e as ondas encrespadas da maré alta a levaram para os pés de
Caleb. O velho a pegou, secou e colocou junto ao peito. Nessas duas passagens as mãos
do autor estão direcionando o livro. Em The Master of Ballantrae, porém, embora cada
detalhe seja exato e elaborado a fim de, separadamente, cativar nossa admiração, não há
essa conclusão final. O que deveria ter ajudado, em retrospectiva, parece ser alheio ao
romance. Lembramo-nos de detalhes e não do todo. Lorde Durisdeer e o Master morrem
juntos, mas quase não percebemos. Nossa atenção foi desperdiçada em algum outro
ponto.
Parece que o espírito romântico é exigente: se vê um homem atravessar a rua sob
a iluminação pública e perder-se nas sombras da noite, imediatamente dita que direção o
escritor deve seguir. Não queremos saber muito sobre o tal homem, dirá o espírito
romântico; queremos que expresse nossa capacidade de sermos nobres e aventureiros,
experimente lugares selvagens e sofra os extremos da sorte, que seja dotado de
juventude e distinção e aliado dos campos, ventos e pássaros selvagens. Além disso,
deverá ser um amante, não de modo introspectivo e minucioso, mas abertamente. Seus
sentimentos devem fazer parte do cenário, os leves tons de marrom e azul dos bosques
distantes e das plantações devem estar dentro dele. E talvez uma torre, também, e um
castelo onde floresce a boca de leão. Acima de tudo, o espírito romântico exige uma
crise aqui, outra acolá, em que a onda que invade o peito arrebenta. Scott contempla
esses sentimentos mais do que Stevenson, embora com qualificação suficiente para
fazer com que nos aprofundemos na questão do romance, seu escopo e suas limitações.
A esta altura, talvez fosse interessante lermos The Mysteries of Udolpho, sobre o qual,
180
considerado um absurdo gótico, já se riu tanto. É difícil encará-lo com olhar neutro;
sempre o analisamos com a expectativa de ridicularizá-lo. Porém, quando encontramos
sua beleza, alcançamos o outro extremo e apreciamos trechos poéticos. A beleza e o
absurdo estão presentes no romance, que é um bom teste da atitude romântica, pois
Radcliffe leva a liberdade do romance ao extremo. Enquanto Scott volta cem anos no
tempo para conseguir o efeito do distanciamento, Radcliffe volta trezentos. Com um só
golpe, livra-se de um anfitrião de desarmonia e aproveita sua desmesurada liberdade.
É seu desejo, enquanto romancista, descrever cenários, seu grande dom. Assim
como todo escritor verdadeiro, enfrenta todos os obstáculos para atingir seus objetivos.
Somos trazidos para um imenso mundo vazio e airado. Algumas pessoas com mentes,
maneiras e discurso inteiramente representativos do século XVIII passeiam por vastos
jardins, ouvem rouxinóis cantarem apaixonadamente pelos bosques no meio da noite,
assistem ao pôr do sol sobre a lagoa de Veneza e aos tons de rosa que recaem sobre os
Alpes longínquos e as torres azuladas de um castelo italiano. Essas pessoas, quando
bem nascidas, têm o mesmo sangue dos abastados de Scott, silhuetas atenuadas e
formais que, curiosamente, apesar de também serem ensimesmadas, insignificantes e
insípidas, emergem harmoniosamente da trama.
Mais uma vez percebemos a força que os românticos adquirem por obliterarem
os fatos. A solidez do chão desaparece, outras formas se tornam aparentes e outros
sentidos se aguçam com o esmorecimento da luz. Tornamo-nos conscientes do perigo e
da escuridão de nossa existência e a realidade confortável se torna um fantasma
também. Fora de nosso refúgio ouvimos o vento enraivecido e as ondas arrebentarem.
Nesse estado nossos sentidos estão tensos e apreensivos, sons que normalmente não
ouviríamos são audíveis. As cortinas farfalham. Algo na quase penumbra parece se
mover. Estará vivo? O que será? O que estará procurando aqui? Radcliffe consegue nos
fazer sentir tudo isso, principalmente porque é capaz de nos conscientizar da paisagem
e, assim, nos induzir a um estado de imparcialidade favorável ao romance. Em
Radcliffe, porém, mais diretamente do que em Scott e Stevenson, o absurdo é evidente,
as engrenagens do sistema são visíveis e o processo é audível. As exigências dos
românticos estão mais claras.
Tanto Scott quanto Stevenson, com o puro instinto da imaginação, mostram a
comédia rústica e o franco dialeto escocês. Eles certamente adivinharam que a mente se
desdobraria naquela direção quando relaxasse. Para Radcliffe, por outro lado, tendo
chegado ao limite, é impossível voltar a trás. Tenta nos consolar com passagens
181
cômicas, naturalmente colocadas nas falas de Anette e de Ludovico, os criados. A
ruptura é muito abrupta, porém, para suas limitações de senhora da alta classe, e ela
destrói os grandes momentos e a bela atmosfera com um reflexo pálido de romance, que
é mais entediante do que qualquer obscenidade. Os mistérios se acumulam. Corpos
assassinados se multiplicam, mas ela é incapaz de criar a emoção com a qual devemos
percebê-los. O resultado que ali jaz é inacreditável e, portanto, ridículo. Cai o véu, lá
está a figura escondida. Há um rosto decomposto e os vermes se contorcem. Nós rimos.
O poder que habita toda a tessitura de um romance esmorece: as sentenças, seu
tamanho e sua forma, as inflexões, os maneirismos. Tudo o que era usado com tanto
orgulho e naturalidade sob o impulso de uma emoção verdadeira se torna rançoso,
forçado e indesejável. Radcliffe escorrega, trôpega, para o estilo desgastado de Scott e
embroma página após página, num estilo que pode ser ilustrado por este exemplo:
Emily, que sempre se esforçara para se comportar de acordo
com os princípios mais corretos e cuja mente era bem sensata,
não só em relação ao que era moralmente justo, mas sobre
qualquer coisa que fosse bela no caráter feminino, estava
chocada com tais palavras.
E assim continua até que afundamos e nos afogamos na insípida maré. Contudo,
Udolpho passa esse teste. Provoca uma emoção tão distinta quanto especial, de acordo
com nossa definição pessoal de emoção.
Se enxergamos agora onde o risco do romance reside, como é difícil sustentar o
estado de espírito, como o alívio da comédia é necessário, como a distância das
experiências das pessoas comuns e a estranheza de seus elementos se tornam ridículas,
vemos também que essas emoções são, em si mesmas, jóias sem preço. O romance
romântico nos proporciona uma emoção profunda e genuína. Scott, Stevenson e
Radcliffe, cada um a sua maneira, desvendam outro território da ficção, fazem aflorar
nosso desejo intenso por algo novo, o que é prova de seu poder.
Os Mascates de Personagens e os Comediantes
Os romances que nos fazem viver imaginariamente, de corpo e alma, produzem
sensações físicas de frio e calor, barulho e silêncio, razão, talvez, pela qual desejamos
182
mudar sempre e variamos tanto nossas reações em momentos diferentes. Só que, é claro,
a mudança não deve ser abrupta. Certamente, depois do silêncio dos campos castigados
pelo vento, precisamos de uma nova cena, de um retorno a rostos humanos, a uma
sensação de muros e cidades a nossa volta, com suas luzes e personagens.
Depois da leitura dos romances de Scott, Stevenson e Radcliffe, nossos olhos
parecem dilatados, a visão meio distorcida, como se olhássemos fixamente ao longe e
fosse um alívio o contraste de encarar uma face humana fortemente marcada e
personagens de força extravagante e caráter, mesmo que mantivéssemos nosso espírito
romântico. Essas figuras são facilmente encontradas em Dickens, é claro,
particularmente em Bleak House, em que ele diz: Lidei, propositalmente, com o lado
romântico daquilo que nos é familiar, que é encontrado com aptidão peculiar, pois, se
as personagens nos satisfazem com sua excentricidade e vigor, Londres e a paisagem da
residência dos Dedlock em Chesney Wold aparecem nos moldes dos campos
românticos, embora iluminadas com o brilho mais intenso ou na escuridão mais densa,
tudo mais sinistramente. Em Dickens, o poder de criação de personagens é tão
prodigioso que as próprias casas, ruas e campos são marcadamente dispostos em função
delas. De fato, seu poder é tão incrível que praticamente não precisa fazer uso de
observação. Grande parte do deleite de ler Dickens está em nossa sensação de brincar
com seres humanos muitas vezes menores do que seu diminuto tamanho natural, que
somente retêm semelhança suficiente com a humanidade para que possamos comparar
seus sentimentos abertamente, não com os nossos, mas com os daquelas figuras
estranhas vistas casualmente pelas portas entreabertas dos prédios públicos,
perambulando pelos cais ou escapulindo misteriosamente pelos becos entre Holborn e
os tribunais de justiça. Entramos imediatamente no espírito do exagero.
Quem, algum dia, encontrou um senhor Chadband, um senhor
Turveydrop ou uma senhorita Elite? Quem já não encontrou alguém que, seja qual fosse
a ocasião, diria, com certeza, a mesma frase ou repetiria a mesma ação? Essa repetição
eterna tem, sem dúvida, um poder impressionante de conduzir essas personagens para
casa, de estabilizá-las. O senhor Vholes, com suas três garotinhas queridas em casa e o
pai para sustentar no Vale de Tauton, a senhora Jellyby e os nativos de Borrioboo-la-
Gha, o senhor Turveydrop e sua deportação. Todos servem de pontos estacionários no
fluxo e na confusão da narrativa, têm efeito decorativo como gárgulas entalhadas,
imóveis nos cantos de uma composição. Não importa aonde vamos, voltamos e os
encontramos no mesmo lugar. Sustentam uma trama extraordinariamente intrincada em
183
que, com freqüência, nos envolvemos por completo. É impossível imaginar que os
Jellyby e os Turveydrop sejam afetados por emoções humanas, ou que sua rotina seja
ameaçada pelos acontecimentos chocantes que se precipitam de todos os lados ao
mesmo tempo a cada página do livro. Sendo assim, têm força e sublimidade que outras
personagens mais insignificantes e de atitudes mais peculiares não possuem.
A própria vida, enfim, com suas coincidências e volteios, não é
surpreendentemente esquisita? O próprio Dickens questiona: que ligação pode haver
entre as diversas pessoas nas incontáveis histórias do mundo, que, de lados opostos de
grandes golfos, foram curiosamente reunidas? Suas personagens aparecem uma após a
outra, trazidas ao mundo por uma visão que só precisa de um olhar de soslaio na sala
para apreender cada objeto presente, humano ou inanimado, que enxerga tudo de uma
só vez, que se esforça para capturar o anelador de cabelos metálico de uma mulher, os
olhos avermelhados e uma cicatriz branca e faz, de algum modo, que esses detalhes
revelem a essência de uma personagem. É um olhar insaciável, glutão, incansável, que
cria mais do que consegue utilizar. Desse modo, a impressão que prevalece é a de
movimento, de um fluxo de vida infindável ao redor de um ou dois pontos
estacionários.
Freqüentemente deixamos de nos preocupar com a trama e divagamos a partir de
alguma sugestão estranha nesse vasto mundo remexido por um movimento casual, uma
palavra ou uma olhadela. Indefectível, caminhava pela grama molhada em sua direção,
calmamente e com regularidade, a senhorita Hortense, uma figura também pacífica e
sem sapatos. Ela vai adiante e deixa um estranho rastro de emoção atrás de si. Ou, uma
vez mais, uma porta é escancarada na nebulosa Londres. Há o amigo do senhor
Tulkinghorn, que aparece uma única vez, um homem da mesma essência e também
advogado, que viveu o mesmo tipo de vida até os setenta e cinco anos e,então, de
repente teve (supõe-se) a impressão de que era monótona demais. Certa noite de verão
presenteou seu cabeleireiro com seu relógio de ouro, caminhou vagarosamente para
casa em Temple e se enforcou.
Esse sentido de que o significado continua depois que as palavras são ditas e que
as portas são abertas e nos deixam olhar por elas está repleto de romantismo. Porém, o
romance de Dickens nos é dado a conhecer pelas personagens, por tipos extremos de
seres humanos, não por castelos ou estandartes, não pela violência das ações, da
aventura ou da natureza. As faces humanas são severas, sorridentes, más, benevolentes e
nos são atiradas de todos os lados. Tudo é extremo e sem atenuações.
184
Mas finalmente, dentre todas essas personagens tão estáticas e tão extremas, nos
deparamos com o inspetor Bucket, o detetive, que não é uma personagem tão maciça
como as outras, é feito de contrastes e discrepâncias. O poder romântico da personagem
maciça está perdido, pois a personagem não é mais fixa, parte do enredo. É interessante
por si só, seus movimentos e mudanças nos compelem a segui-las. Tentamos entender
esse homem multifacetado que penteia seu cabelo ralo com uma escova molhada, que
tem seu lado oficial e bombástico e ainda assim, como vemos no episódio da explosão
da mina, combina com ele habilidade, consciência e compaixão.Todas essas qualidades
são demonstradas, uma a uma, na surpreendente descrição da viagem e da tempestade
na busca pela mãe de Esther. Se muito mais fosse acrescentado para que o inspetor
atraísse nossa atenção e a desviasse da história, começaríamos, com sua nova escala de
valores diante de nossos olhos, a considerar o uso de opostos evidentes violento demais
para ser tolerado. Dickens não cometeu essa falta para com seus leitores. Utiliza essa
figura abrupta e multifacetada para harmonizar suas cenas finais e então, eliminando o
inspetor Bucket, juntar as pontas soltas da história (numa mão) e terminá-la. Contudo,
Dickens aguçou nossa curiosidade e nos tornou insatisfeitos com as limitações e até
com a exuberância de sua genialidade. A cena se torna elástica demais, volumosa
demais, com os contornos de uma nuvem. A própria abundância nos cansa, assim como
a impossibilidade de manter tudo isso coeso. Estamos sempre caminhando por atalhos e
por becos nos quais nos perdemos e não conseguimos nos lembrar nosso destino
original.
Embora sofresse com indignação observando os erros públicos, Dickens não
tinha sensibilidade na privacidade e suas tentativas de intimidade falharam. Suas
personagens existem em escala larga demais para que se encaixem bem umas nas
outras. Elas não se entrosam, precisam de outras para mostrá-las e de ação para trazer
seu humor à tona. Estão geralmente fora do alcance umas das outras. Em Tolstoi, em
cenas como aquelas entre a princesa Marya e seu pai, o velho príncipe, a pressão que
uma personagem exerce sobre a outra nunca cede. A tensão é eterna, cada nervo da
personagem pulsa. Talvez seja esse o motivo que torna Tolstoi o maior dos romancistas.
Em Dickens, as personagens são impressionantes em si mesmas, não através de suas
relações pessoais. Na verdade, freqüentemente quando conversam são insípidas ao
extremo ou mais sentimentais do que deveriam. Pensamos nelas como independentes,
eternas, imutáveis, como monolitos apontando para o céu. Por isso começamos a desejar
algo em menor escala, mais intenso, mais intrincado. O próprio Dickens nos iniciou no
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prazer de observar curiosa e intencionalmente outras personagens. Ele nos levou a
reduzir, instintivamente, o tamanho da cena para as proporções de uma figura humana
em tamanho normal e agora buscamos intensificação, essa redução levada à perfeição e
completude, como nos romances de Jane Austen.
Quando abrimos Orgulho e Preconceito, imediatamente nos conscientizamos de
que a sentença assumiu um caráter diferente. Dickens, claro, tem um ritmo acelerado e
tão livre e abrangente quanto possível, mas em comparação com este estilo inquieto, é
tão vago e desengonçado. Em Austen, a sentença se movimenta rapidamente, como uma
lâmina, para dentro e para fora, entalhando claramente uma forma. Isso é feito numa
sala de visitas, usando diálogos. Algumas pessoas se reúnem após o jantar e começam a
discutir o hábito de escrever cartas. O senhor Darcy escreve devagar e se esforça em
demasia para encontrar palavras de quatro sílabas. O senhor Bingley, por sua vez (é
necessário que conheçamos os dois e eles podem ser apresentados com muito mais
rapidez se forem comparados), deixa de lado metade das palavras e borra o restante.
Esse é somente o primeiro esboço do que vai delinear suas personalidades.
Continuamos a fim de definir e distinguir. Na opinião de Darcy, Bingley está realmente
se gabando quando se apresenta como um escritor de cartas descuidado porque acredita
que o defeito é interessante. Gabava-se quando disse à senhora Bennet que se deixasse
Netherfield, faria isso em cinco minutos. Essa passagem da análise feita por Darcy,
além de demonstrar sua astúcia e seu temperamento calmo e observador, incentiva
Bingley a nos mostrar uma figura vigorosa de Darcy na privacidade: não conheço nada
mais horrível do que Darcy em algumas situações e em alguns lugares. Em sua casa,
em particular, em um domingo à noite, sem nada para fazer.
Portanto, a partir de uma troca de perguntas e respostas perfeitamente natural,
todos são definidos e, enquanto conversam, tornam-se claramente mais visíveis e se
aproximam ou se afastam a cada troca de informações. O grupo deixa de ser casual, pois
as personagens estão entrosadas. O diálogo é mais do que simples conversação, tem
intensidade emocional que lhe atribui mais do que inteligência. Luz, paisagem, tudo o
que fica do lado de fora da sala de visitas é organizado para iluminá-la. As distâncias
são exatas e os arranjos perfeitos. Meryton fica a uma milha de distância e hoje é
domingo e não segunda-feira. Queremos todas as suspeitas e as perguntas acomodadas.
É preciso que as personagens nos sejam apresentadas da maneira mais clara e tranqüila
possível, pois cada oscilação, cada estremecimento será observado. Nada acontece
como as coisas acontecem em Dickens, em função de sua própria estranheza ou
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curiosidade, mas sempre em relação a algo mais. Não há caminhos sugestivos ou portas
que se escancaram de repente. As amarras que mantêm a estrutura, todas originárias do
coração, são firmes e seguras. Para que as relações pessoais sejam desenvolvidas ao
máximo, é importante manter-se fora do âmbito do abstrato e do impessoal. Sugerir que
existe alguma coisa além de homens e mulheres seria duvidar da comédia de seus
relacionamentos e de sua suficiência. Com frases crispadas, em que freqüentemente
uma expressão, disposta no contra fluxo, serve para instigar (por exemplo: e sempre que
algum dos camponeses se dispunha a ser brigão, descontente ou pobre demais), vamos
às profundezas, pois são profundas em toda sua clareza.
Enfatizando a comicidade, Jane Austen parece perceber que as relações pessoais
têm limites. Parece nos dizer que tudo tem, se pudéssemos descobri-la, uma conclusão
razoável, e que é extremamente divertido e interessante observar os esforços das
pessoas para desequilibrarem a ordem natural e serem derrotadas, como invariavelmente
acontece. Contudo, se reclamando da falta de poesia ou de tragédia, estamos a ponto de
fazer a declaração costumeira de que este mundo é muito pequeno para nos satisfazer,
um mundo prosaico, de polegadas e cortadores de grama, somos forçados a fazer uma
pausa diante de uma outra impressão que requer um pouco mais de análise. Dentre
todos os elementos que nos rodeiam na leitura de ficção, sempre houve, embora em
volumes diferentes, alguma voz, tom ou temperamento ouvido claramente, mesmo que
por trás das cenas de um livro. Trollope, o romancista, um caçador grande, fanfarrão,
usando óculos, com vozeirão alto e Scott, o senhor do campo arruinado, cujos porcos
seguiam o som tão gracioso de sua voz. Ambos se aproximam de nós comportando-se
como anfitriões, nos recebendo bem, e caímos no encantamento de seu charme ou no
interesse por suas personagens.
Não podemos dizer o mesmo de Jane Austen, e sua ausência resulta em nosso
distanciamento de sua obra e em lhe conferirmos, em função de seu brilho e vivacidade,
certo ar blasé. Sua genialidade a compelia a se ausentar. Uma visão tão verdadeira, clara
e sadia não toleraria desordem, mesmo que viesse de suas próprias reivindicações, nem
permitiria que a experiência real de uma mulher em transição manchasse o que deveria
permanecer imaculado pela personalidade. Por essa razão, embora menos enlevados por
ela, também estamos menos insatisfeitos. Pode ser que a própria idiossincrasia de um
autor nos faça cansar dele. Jane Austen, que tem tão pouco de peculiar, não nos cansa
nem desperta o desejo de procurarmos autores cujo método e estilo diferem
completamente do seu. Sendo assim, em vez de sermos compelidos a procurar algo que
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contraste com ele ou o complete, assim que a última página é lida, fazemos uma pausa
quando lemos Orgulho e Preconceito.
A pausa é resultado da satisfação que leva nossa mente a retornar ao que
acabamos de ler e não a procurar algo novo. A satisfação é, por natureza, retirada da
análise, pois a qualidade que satisfaz é a soma de muitas partes diferentes. Assim, se
elogiamos Orgulho e Preconceito pelas qualidades que o compõem: inteligência,
verdade, profundo poder de comicidade, ainda não estamos elogiando a qualidade
maior, que é a soma de todas elas. A esta altura, resgatada, a mente escapa do dilema e
recorre a imagens. Comparamos Orgulho e Preconceito à outra obra porque, uma vez
que satisfação não pode mais ser definida, tudo o que a mente pode fazer é construir
similaridades, dando à satisfação outra forma, alimentando a ilusão de que a está
explicando, embora esteja, de fato, encarando-a sempre pela primeira vez. Dizer que
Orgulho e Preconceito é como uma concha, uma gema, um cristal, qualquer imagem
que se escolha, é ver a mesma coisa sob aspectos diferentes. Porém, talvez, se
comparamos Orgulho e Preconceito a algo concreto, é porque estamos tentando
expressar o sentido distinto nele, que é imperfeito em outros romances, de uma
qualidade que não está na história, mas além dela, não está no que é meramente dito,
mas em sua organização.
Diz-se que Orgulho e Preconceito tem forma e Bleak House não tem. O olhar,
sempre tão ativo na ficção, dá sua própria interpretação das impressões que a mente
recebe em termos diferentes. A mente sabe que em Orgulho e Preconceito as coisas são
ditas, com toda naturalidade, com um propósito, uma emoção é contrastada em relação à
outra, uma cena é curta e a seguinte longa a fim de que todo o tempo, em vez de lermos
desordenadamente, sem controle, nos agarrando a isso ou aquilo, enfatizando qualquer
coisa a nosso bel prazer, tenhamos consciência do controle e do estímulo, da estrutura
arquitetada por trás da vivacidade e da variação das cenas. É uma característica tão
precisa que não é observada nem no que é dito, nem no que é feito, ou seja, escapa à
análise e está a serviço da ficção. Seu controle é invariavelmente fraco na ficção, muito
mais fraco que na poesia ou no teatro, porque a ficção segue tão próxima da vida que
estão sempre colidindo. Jane Austen prova que um romancista pode ter uma qualidade
estrutural assim, do mesmo modo que prova que, longe de esfriar o interesse pelas
personagens, essa qualidade parece acentuar o interesse e acrescentar um prazer a mais
à leitura do livro, um significado. Ela faz com que o livro pareça bom por si só,
independentemente de nossos sentimentos pessoais.
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Não a busca pelo contraste, mas o recomeçar. Esse é nosso impulso ao terminar
a leitura de Orgulho e Preconceito. Precisamos recomeçar. As relações pessoais,
recordemos, têm limites. O mistério, o desconhecido, o acidental, o estranho são
amainados e suas pontas aparadas: sua intervenção seria confusa e aflitiva. A autora
adota uma postura irônica em relação a suas criaturas porque lhes negou muitas
aventuras e experiências. Um bom casamento é, afinal, o clímax de todos os percalços.
Um mundo que tão freqüentemente termina em um bom casamento, não é um mundo
pelo qual alguém se deva afligir. Ao contrário, é um mundo sobre o qual podemos ser
sarcásticos, que podemos examinar minuciosamente para sempre enquanto juntamos as
peças irregulares. Sendo assim, não é possível pedir que nosso mundo seja melhorado
ou alterado, o que nossa satisfação não permite, mas que um outro, cuja constituição
seja diferente e permita outras relações, seja atingido. As relações das pessoas devem
ser com Deus ou com a natureza. Devem pensar, sentar-se como Dorothea Casaubon,
em Middlemarch, fazendo planos para a casa dos outros, sofrer na solidão como as
personagens de Gissing, ser sozinhas. Por causa de toda sua integridade, Orgulho e
Preconceito nem por um instante passa dos limites de outras províncias e, assim, define
as pessoas mais claramente.
Nada poderia ser mais completo do que a diferença entre Orgulho e Preconceito
e Silas Marner. É lançada uma sombra entre a cena tão próxima e nítida e os leitores.
Alguma coisa intervém. A personagem Silas Marner é tirada de nós, mantida em relação
a outros homens e sua vida comparada à vida humana. Essa comparação é feita e
ilustrada por alguém que não está implícito no livro, mas está nele, alguém que se revela
de imediato como eu, estabelecendo indubitavelmente, desde a primeira página, que não
seguiremos as relações pessoais diretamente, mas sim o espetáculo da vida até onde eu
consiga mostrá-lo. O eu fará o melhor possível para iluminar esses exemplos
particulares de homens e mulheres com todo o conhecimento e as reflexões que possa
nos oferecer.
Logo percebemos que o eu tem acesso a muito mais, experiências e reflexões, do
que qualquer um dos indivíduos rústicos. Ela descobre quais as emoções de um simples
tecelão ao deixar seu vilarejo natal comparando-as com aquelas de outras pessoas.
Pessoas cujas vidas são modificadas pelo aprendizado, às vezes acham difícil se
manterem fiéis a seus pontos de vista habituais, a sua fé no Invisível... É o observador
dialogando conosco. Imediatamente nos sentimos em comunicação com uma mente
circunspecta, a qual é parte de nossa obrigação compreender. Claramente, a atmosfera
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se torna mais pesada e obscura, porque enxergamos através de diversos temperamentos.
Nossa visão é manipulada por diversos lampejos secundários de conhecimento e de
reflexão. Freqüentemente, até quando observamos o tecelão, nossas mentes o rodeiam e
o analisamos com prazer, compaixão ou interesse, que seriam impossíveis de ele mesmo
sentir.
Raveloe não é somente uma cidade como Meryton, que existe com algumas lojas
e um salão para reuniões. Tem um passado e, portanto, seu presente se torna efêmero.
Apreciamos, entre outras coisas, a sensação de que é um mundo em processo de
mudança e decadência, cujo charme se deve, em parte, ao fato de ser passado. Talvez
comparemos Raveloe com a Inglaterra contemporânea e as guerras napoleônicas com as
guerras de nosso tempo. Tudo isso, se é que isso serve para ampliar horizontes, também
torna o vilarejo e seus habitantes diminutos e de impacto muito menor entre si, quando
observados por um olhar tão superior. O romancista que acredita que as relações
pessoais são suficientes intensifica-as, tornando-as mais aguçadas, e devota sua energia
para investigá-las. Se o objetivo da vida não é nos encontrarmos, partirmos, amarmos,
rirmos, se estamos à mercê de outras forças, às vezes desconhecidas, além de nossa
vontade, a urgência dos encontros e despedidas é ofuscada e diminuída. Os limites dos
encontros estão embotados e a comédia tende a expandir-se numa esfera maior e ser
modulada como algo melancólico, tolerante ou até resignado. George Eliot distanciou-
se bastante de suas personagens para dissecá-las e garantiu o uso de sua própria razão
sobre essas mesmas personagens. Jane Austen transitou pelas mentes de suas
personagens como sangue em suas veias.
George Eliot mantém a máquina de sua mente poderosa e incômoda a seu
dispor. Utiliza-a livremente após elaborar material suficiente e consegue parar a
qualquer momento para discutir seus motivos para tal criação. Quando Silas Marner
descobre que seu ouro foi roubado, recorre àquele tipo de refúgio que sempre advém da
prostração do pensamento diante de uma paixão avassaladora. Essa expectativa de
impossibilidade, essa crença em imagens contraditórias, ainda se distingue da loucura
porque é capaz de dissipar-se em função de um fator externo. Uma análise assim é
impensável em Dickens ou em Jane Austen, acrescenta algo à personagem que não
existia antes, não nos faz sentir só que o trabalho da mente é interessante, mas que
teremos uma compreensão muito mais verdadeira e sutil do que realmente é dito e feito
se o analisarmos. Percebemos que freqüentemente a ação tem uma relação muito tênue
com o sentimento e, sendo assim, que os contadores de verdades, que se contentam em
190
relatar na íntegra o que foi dito e feito são em geral ludibriados e suas previsões são
equivocadas. Há mudanças em outras direções. O uso do diálogo é limitado, pois as
pessoas podem dizer muito pouco diretamente. Muito mais pode ser dito por elas ou
sobre elas pelo próprio autor. Então, a mente do escritor, seu conhecimento, sua
habilidade, e não só seu temperamento, se tornam meios de expressar a disposição de
suas personagens e de relacioná-las com outros momentos e lugares. Desse modo, um
estado de espírito que sempre flui em oposição à ação e ao discurso se revela.
George Eliot direciona suas personagens e suas cenas nessa direção. São
esquadrinhadas pelas sombras. Todo tipo de influência histórica, temporal e reflexiva as
manipula. Ao consultarmos nossas próprias emoções, difíceis e confusas enquanto
lemos, torna-se claro que estamos rapidamente nos afastando do escopo de mascatear
personagens e de fazer comédia para uma região muito mais dúbia.
Os Psicólogos
Na verdade, temos a sensação estranha de termos deixado o mundo quando
iniciamos a leitura de What Maisie Knew e de estarmos sem o apoio que, se nos
estorvava em Dickens e Eliot, pelo menos nos sustentava e controlava. O senso visual
que até agora era tão ativo, perpetuamente delineando campos e casas de fazenda,
parece enfraquecer ou redirecionar seu poder para o interior da mente em vez de para o
mundo exterior. Henry James procura algo equivalente aos processos mentais para
concretizar um estado mental. Diz que a mente é um recipiente pronto para a
amargura, uma xicarazinha funda de porcelana na qual ácidos corrosivos poderiam ser
misturados. Utiliza sempre esse imaginário intelectual; os suportes usuais, os apoios e
esteios das convenções expressos ou observados pelo autor são removidos. Tudo parece
além da interferência, aberto a discussão e iluminado, embora sem nenhuma base
visível. As mentes daqueles para quem esse mundo é composto parecem estranhamente
livres da pressão exercida pelos velhos empecilhos e elevadas acima do estresse das
circunstâncias.
As crises não podem ser precipitadas por qualquer dos antigos instrumentos
utilizados por Dickens ou George Eliot. Assassinatos, estupros, seduções, mortes
súbitas não exercem nenhum poder sobre esse mundo elevado e distante. Aqui as
pessoas são resultados de um jogo de influências delicadas, de pensamentos
dificilmente declarados de umas sobre as outras, de julgamentos que os desocupados se
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divertem em arquitetar e aplicar. Conseqüentemente, essas personagens parecem pairar
no vácuo, em movimentos originados nos mundos substanciais e atravancados de
Dickens e de George Eliot ou nos cruzamentos precisos das convenções que florescem
no mundo de Jane Austen. Vivem em um casulo torneado com as melhores nuances de
significado, no qual uma sociedade, completamente alheia porque deve ganhar a vida,
tem tempo de contar histórias sobre si mesma e sobre os outros. Imediatamente nos
conscientizamos do uso das faculdades até aqui adormecidas, de ingenuidade e
habilidade, agilidade mental e destreza necessárias para resolver engenhosamente um
quebra-cabeça. Nosso prazer é fragmentado, refinado, sua essência infinitamente
dividida em vez de servida de uma só vez.
Maisie é uma garotinha que representa o cerne da discórdia de seus pais, cada
qual reclamando sua guarda há seis meses. Finalmente, cada um deles se casa outra vez
e Maisie é soterrada nas profundezas da sugestão, insinuação e conjectura, afetando o
leitor muito indiretamente. Seus sentimentos são desviados e nos atingem sempre
através da reflexão de uma outra pessoa, não nos causam emoções diretas e simples.
Sempre temos tempo para antecipar o que vem, calcular o percurso, se para a esquerda
ou para a direita. Ficamos em suspenso com esse mundinho distante e assistimos aos
eventos com curiosidade intelectual, entretidos, intrigados, tentando a cada segundo
refinar ainda mais nossos sentidos e aproveitar toda a inteligência sofisticada que
guardamos em alguma parte de nós mesmos.
Apesar de nosso prazer ser mais indireto, tem uma fineza e uma doçura que
escritores mais diretos não conseguem provocar. Deve-se, em parte, ao fato de que
milhares de veios emocionantes e traços de personalidade são mais perceptíveis no
lusco-fusco do anoitecer ou da madrugada do que na luminosidade do meio-dia.
Além desse refinamento e doçura, temos prazer quando a mente se livra da
exigência eterna dos romancistas de que devemos sentir com suas personagens. Ao
excluir as respostas que são esperadas na vida real, o romancista nos libera para
apreciar, como fazemos quando estamos doentes ou viajando, as coisas por si mesmas.
Só enxergamos a estranheza quando o hábito não nos insere nas situações e podemos
observar, de fora, o que não pode nos atingir de modo algum. Assim vemos a mente
funcionando. Nós nos deleitamos com seu poder de criar padrões, expor as relações dos
fatos e os disparates que ficariam encobertos se agíssemos como de costume ou levados
por impulsos comuns. É um prazer comparado, talvez, ao da matemática ou da música,
nas devidas proporções, pois o romancista lida com homens e mulheres, causando
192
sentimentos que se opõem à impessoalidade de números e sons. Parece, na verdade, que
ignora e reprime seus sentimentos naturais, força-os a um plano que chamamos, com
certo ressentimento, artificial, embora provavelmente não sejamos tolos o suficiente
para ressentir o uso de artifícios na arte. Henry James, por timidez, puritanismo ou falta
de audácia imaginativa, diminui o interesse e a importância de sua personagem para
deixar aflorar a simetria que tanto lhe agrada. Seu leitor ressente. Nós o pressentimos,
como um apresentador sutil, manipulando suas personagens habilmente, cerceando,
reprimindo, evitando e ignorando sagazmente aquilo que um escritor de mais
profundidade ou disposição natural teria arriscado, navegado a todo vapor e, talvez,
alcançado simetria e padrão, em si mesmos tão aprazíveis, do mesmo modo.
Mas é a medida da grandeza de Henry James que nos oferece um mundo tão
definido, uma beleza tão distinta e peculiar. Não descansamos satisfeitos até
experimentarmos mais com essa percepção extraordinária, para entendermos mais e
mais, porém livres da tutela permanente do autor, seus arranjos e ansiedades. Para
agraciar nosso desejo, naturalmente, nos voltamos para a obra de Proust, em que
encontramos imediatamente tamanha expansão de simpatia que quase invalidamos o
objeto. Se formos conscientes de tudo, como perceberemos qualquer coisa? Mesmo
assim, se o mundo de Henry James, depois dos mundos de George Eliot e Dickens,
parecia sem fronteiras materiais, se tudo era tão impermeável ao pensamento e
suscetível a vinte interpretações diferentes, a luz e a análise são levadas bem além
dessas amarras. Por um lado, Henry James, o norte-americano, constrangido por sua
urbanidade magnífica numa civilização estrangeira, foi um obstáculo jamais assimilado
completamente, nem pela essência de sua própria arte. De outro, Proust, produto da
civilização que descreve, é poroso, maleável, tão perfeitamente receptivo que o
percebemos como um envelope, fino e elástico, que se estica mais e mais e serve para
envolver o mundo e não para forçar um ponto de vista. Seu universo é todo impregnado
pela luz da inteligência. O objeto mais comum, como o telefone, perde sua
simplicidade, sua solidez, e se torna transparente e parte da vida. As ações mais comuns,
como entrar num elevador ou comer bolo, em vez de serem descartadas
automaticamente, aglutinam uma série de pensamentos, sensações, idéias, lembranças
que, aparentemente, estavam esquecidas nas paredes da memória.
Que fazemos com isso tudo? Não conseguimos evitar a pergunta enquanto esses
troféus se amontoam a nossa volta. A mente não se contenta em manter as sensações
passivamente em si mesmas, algo deve ser feito com elas, sua abundância deve ser
193
moldada. A princípio, parece que a força revitalizadora que se tornou tão fértil nos
obstruiu o caminho e nos atrapalha quando precisamos nos apressar, colocando algum
objeto estranho e sedutor em nosso caminho. Temos que parar e olhar para ele mesmo
contra nossa vontade.
Desse modo, quando sua mãe o chama ao leito de morte de sua avó, o autor diz:
“Não estava dormindo,” respondi quando acordei. Então, mesmo em meio a uma crise,
ele pára e nos explica cuidadosa e sutilmente, porque no momento em que acordamos
freqüentemente achamos por um segundo que não estávamos dormindo. A pausa, que se
torna ainda mais marcante porque a reflexão não é feita pelo eu narrativo, mas sim por
um narrador impessoal e, portanto, de um ponto de vista diferente, impinge uma grande
tensão à mente, já no limite extremo em função da urgência de concentrar-se na
moribunda no quarto ao lado.
Muito da dificuldade de ler Proust está em seu conteúdo tortuoso. O acúmulo de
objetos cercando o principal é tão grande, e geralmente tão remoto, de tão difícil acesso
e apreensão, que o processo de agrupá-los é gradual, oblíquo e a relação final é
extremamente difícil. Há muito mais para se pensar sobre eles do que se supunha. As
relações de alguém vão além da outra pessoa, também são relações com o clima,
comida, roupas, cheiros, com a arte, religião, ciência, história e com milhares de outras
influências.
Se começarmos a analisar a consciência, descobriremos que é a mistura de
milhares de ideiazinhas irrelevantes recheadas de conhecimento. Quando, então,
dizemos algo tão simples como eu a beijei, podemos ser obrigados a explicar, também,
como a garota se atirou sobre um homem sentado numa cadeira na praia antes de
chegar, tortuosa e gradualmente, ao difícil processo de descrever o que um beijo
significa. O tanto de emoções que compõem cenas como a da morte da avó ou aquela
em que a duquesa toma conhecimento, ao entrar na carruagem, que seu velho amigo
Swann está fatalmente doente, é muito maior do que em qualquer cena de crise, além de
serem emoções muito mais incongruentes e difíceis de relacionar do que qualquer outra
que um romancista já tenha apresentado.
Se precisarmos de ajuda lendo Proust, ela não virá pelos canais costumeiros.
Nunca ouvimos, como ouvimos dos romancistas ingleses, que um caminho é certo ou
errado. Todas as possibilidades são abertas sem reservas e sem preconceitos. Tudo que
pode ser sentido pode ser dito. A mente de Proust permanece aberta, com a comiseração
de um poeta e o distanciamento de um cientista, a tudo o que tenha o poder de sentir.
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Instruções ou ênfase, ouvir que algo está certo, ser pressionado e forçado a dedicar-se a
isso, tudo cairia como uma sombra sobre a profunda luminosidade e esconderia parte
dela de nossa vista. A matéria-prima do livro se origina de um reservatório profundo de
percepção. É dessas profundezas que nascem suas personagens, como ondas que se
formam, quebram e afundam novamente no mar inquieto dos pensamentos, comentários
e análises que as gerou.
Em retrospectiva, embora as personagens de Proust sejam tão dominantes quanto
qualquer outra em ficção, parecem feitas de uma substância diferente. Pensamentos,
sonhos e conhecimento são partes delas. Cresceram até sua estatura final e seus atos são
encontraram nenhuma resistência. Se procuramos instruções que nos ajudem a localizá-
las no universo, encontramos o oposto na falta de instruções – talvez a comiseração e a
compreensão tenham mais valor do que a interferência e o julgamento, respectivamente.
Muitas vezes, como conseqüência da união entre poeta e pensador, muito próximos de
alguma observação fanaticamente precisa, nos deparamos com um arroubo da
imaginação: belo, colorido, visual, como se a mente, tendo usado suas forças até o
limite, de repente se erguesse e, de um patamar mais alto, chegasse a um ponto de vista
diferente sobre o mesmo objeto em termos metafóricos.
Essa dupla visão faz as grandes personagens de Proust e seu mundo parecerem mais um
globo com uma das faces sempre escondida do que um plano que apreendemos com
uma olhadela.
Para sermos ainda mais precisos, seria interessante escolher ainda um outro
autor, estrangeiro também, que tem o mesmo poder de iluminar a consciência de suas
raízes até a superfície. Vamos diretamente do mundo de Proust ao de Dostoievski e
ficamos surpresos com as diferenças que absorvem toda nossa atenção durante certo
tempo. Que certeiro é o russo quando comparado ao francês! Ele alcança uma
personagem ou uma cena pelo uso de oposições deslumbrantes sem transições. Termos
extremos como amor e ódio são usados tão profusamente que precisamos acelerar a
imaginação para acompanhá-lo. Sentimos que a malha da civilização aqui é feita de um
trançado grosseiro, com vãos bem abertos. Homens e mulheres escaparam, se
comparados aos aprisionados de Paris. Estão livres para atirar-se de um lado a outro,
gesticular, sibilar, usar discurso retórico, desatinar em arroubos de ira e excitação. São
livres de hesitação, escrúpulo, análise, com a liberdade que as emoções fortes
favorecem. A princípio, ficamos perplexos com o vazio e a crueza desse mundo em
comparação com o outro. Mas quando ajustamos um pouco nossa perspectiva, fica claro
195
que ainda estamos no mesmo mundo. A mente que nos seduz e suas aventuras é que são
importantes. Outros mundos, como os de Scott e Defoe, são inacreditáveis. Temos
certeza disso quando começamos a encontrar as contradições curiosas tão prolíficas em
Dostoievski. Há simplicidade na violência, que não encontramos em Proust, mas a
violência também é explícita no fundo da alma, onde as contradições prevalecem. Esse
contraste que pontua a aparição de Stavrogin, a fim de que ele fosse um modelo de
beleza e ao mesmo tempo houvesse algo de repulsivo nele, não é nada mais do que a
marca externa do vício e da virtude que encontramos no mesmo peito. A simplificação é
superficial. Quando o processo audacioso e implacável, que parece nocautear
personagens para depois agrupá-las e então fazê-las se movimentar com violência,
energia e impaciência está completo, percebemos, sob a fachada da crueza, que tudo é
caótico e complicado. Sentimos, no começo, que estamos em uma sociedade selvagem,
em que as emoções são muito mais simples, fortes e impressionantes do que qualquer
outra que encontramos no Em Busca do Tempo Perdido.
Como há muito poucas convenções e barreiras (Stavrogin, por exemplo, vai
facilmente das profundezas ao ápice da sociedade), a complexidade parece estar mais
entranhada e as contradições e anomalias, que tornam alguém divino e bestial ao mesmo
tempo, parecem estar arraigadas no coração e não sobrepostas. Por conseguinte, o efeito
emocional estranho de The Possessed. Parece a obra de um fanático disposto a sacrificar
a habilidade e o artifício para revelar as dificuldades e confusões da alma. Os romances
de Dostoievski são permeados de misticismo: ele fala como um sábio, e não como um
escritor, sentado sobre um cobertor à beira do caminho, com paciência e conhecimento
infinitos.
Ela respondeu: “Sim, a mãe de Deus é a Grande Mãe – a terra úmida, e nela
está a grande alegria dos homens. Quando molhar um palmo de profundidade da terra
com suas lágrimas, regozijará sobre tudo imediatamente e sua tristeza não existirá
mais, assim é a profecia.” Tais palavras calaram fundo em minha alma naquela época.
Desde então, sempre que me ajoelho para fazer minhas orações, beijo a terra. Beijo-a e
caio em prantos.
É uma passagem característica. Porém, em um romance, a voz do profeta, não
importa quão exaltada, não é suficiente. Temos interesses demais a considerar e
problemas demais a enfrentar. Considere uma cena como a da festa incrível à qual
Varvara traz Marya, a tola pouco convincente com quem Stavrogin se casara por paixão
pelo martírio, necessidade de remorso através de sensualidade moral. Não
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conseguimos ler até o final sem sentirmos algo como a pressão de um dedo apertando
uma campainha interna quando não temos mais nenhuma emoção com a qual atender o
chamado. É um dia de surpresas, de revelações chocantes, de coincidências estranhas.
Para muitas das pessoas presentes (e elas enchem a sala vindas de todos os cantos), é
uma cena de grande importância emocional. Tudo é feito para sugerir a intensidade de
suas emoções. Empalidecem, tremem de pavor, ficam histéricas. São apresentados em
lampejos de extremo brilho – a louca com uma rosa de papel no chapéu, o jovem cujas
palavras tamborilam como grandes grãos homogêneos... De algum modo alguém
começa a enxergá-lo com uma língua de formato especial, excepcionalmente longa e
fina, extremamente vermelha, com uma extremidade pequenina muito pontuda e sempre
em movimento.
Contudo, embora pisoteiem e gritem, temos a impressão de que o som vem de
outra sala. Talvez a verdade seja que o ódio, a surpresa, a raiva, o horror sejam emoções
muito fortes para serem sentidas continuamente. Esse vazio e o barulho nos levam a
indagar se o romance psicológico, que projeta seu drama na mente, não deveria, assim
como os romances dos contadores de verdades nos mostraram, variar, diversificar suas
emoções para que não nos tornemos apáticos por exaustão. Afastar a civilização e
mergulhar nas profundezas da alma necessariamente não nos enriquece. Temos,
voltando a Proust, mais emoção em uma cena sem pretensões como aquela no
restaurante em meio à neblina. Nela compartilhamos de um fio condutor de observação
que entra e sai da mente o tempo todo, que junta informações de níveis sociais
diferentes, que nos leva a nos sentirmos ora como o príncipe, ora como o gerente do
restaurante, e nos conduz a experiências físicas diferentes como a luz depois da
escuridão e a segurança depois do perigo, para que a imaginação seja estimulada de
todas as maneiras a fechar-se devagar, aos poucos, sem ser espicaçada por gritos ou por
violência completamente secundários. Proust está determinado a apresentar ao leitor
todas as evidências sobre as quais qualquer estado mental se fundamenta; Dostoievski,
por sua vez, está tão convencido da verdade que enxerga que saltará para sua conclusão
com muita espontaneidade, o que, por si só, é estimulante.
O psicólogo se revela por essa distorção. O intelecto, que analisa e discrimina,
sempre é, e quase imediatamente, subjugado pela corrida ao sentimento, seja ele de
simpatia ou de raiva. Portanto, há algo de ilógico geralmente contraditório nas
personagens, talvez porque sejam expostas a tanto mais do que o fluxo normal das
emoções. Por que age dessa maneira? Questionamos repetidamente e respondemos
197
repletos de dúvidas, que talvez seja assim que os loucos agem. Em Proust, por outro
lado, a abordagem é igualmente indireta, mas é através do que as pessoas pensam e do
que pensam sobre elas, através do conhecimento e das idéias do próprio autor, que
chegamos a compreendê-las devagar e laboriosamente, mas com a totalidade de nossas
mentes.
Os livros, porém, mesmo com tantas diferenças, são parecidos porque ambos são
permeados de infelicidade, o que parece inevitável quando a mente não tem alcance
direto a qualquer coisa que seja. Dickens é, de muitas maneiras, parecido com
Dostoievski. É prodigiosamente fértil e tem a imensa capacidade de caricaturar.
Micawber, David Copperfield e a senhora Gamp nos são apresentados diretamente,
como se o autor os visse do mesmo ângulo e não tivesse nada a fazer, nenhuma
conclusão a chegar, exceto oferecer entretenimento ou cativar interesse. A mente do
autor nada mais é do que uma folha de vidro entre nós, ou, no máximo, serve para
emoldurar as personagens. Toda a força emocional do autor está nelas. O saldo positivo
de pensamentos e sentimentos que permaneceram depois que George Eliot criou suas
personagens para anuviar e escurecer suas páginas foi usado nas personagens de
Dickens. Nada importante permanece.
Mas em Proust, Dostoievski e Henry James, e todos aqueles que se propuseram a
perseguir idéias e sentimentos, sempre há um fluxo maior de emoção do autor, como se
as personagens de tanta sutileza e complexidade pudessem ser criadas somente quando
o resto do livro fosse um reservatório profundo de pensamentos e emoções. Desse
modo, embora o autor não esteja presente, personagens como Stephen Trofimovitch e
Charlus podem existir em um mundo feito da mesma matéria que eles, embora isso não
seja equacionado. O efeito dessa mente centrada e analítica sempre é a produção de uma
atmosfera de dúvida, questionamento, dor e talvez desespero. Pelo menos esse parece
ser o resultado da leitura de Em Busca do Tempo Perdido e The Possessed.
Os Satíricos e Fantásticos
Os sentimentos confusos que os psicólogos estimularam, a complicação
extraordinária que nos revelaram, a trama de emoções raramente inteligíveis e, ainda
assim, profundamente interessantes com que nos envolveram, estabeleceram um desejo
enorme de alívio, inicialmente tão primitivo que quase se torna uma sensação física. A
mente é como uma esponja saturada de empatia e compreensão que deve se enxugar,
198
contrair-se sobre uma superfície sólida. A sátira e a sensação que o satírico nos
proporciona, de que tem o mundo à mercê de sua pena, dá conta precisamente de nossas
necessidades.
Um instinto maior nos conduz ao largo de satíricos famosos como Voltaire e
Anatole France em favor de alguém que escreva em nossa língua, o inglês. Pois, sem
desrespeito aos tradutores, ficamos intoleravelmente chateados lendo Dostoievski, como
se estivéssemos usando os óculos errados ou uma nuvem tivesse se formado entre
nossos olhos e a página. Ficamos com a sensação de que cada idéia nos escapa em
vestes mal cortadas e de tamanho muito maior, pois uma tradução nos faz entender
melhor do que as palestras de qualquer professor a diferença entre palavras toscas
escritas e a natureza e importância do que chamamos estilo. Mesmo um escritor menor,
usando sua própria língua para exprimir suas idéias, faz uma diferença agradável e
marcante de imediato. Sua sentença se encolhe e abraça firmemente o significado,
mesmo que seja ínfimo. O desconexo e solto se condensa. Se um escritor cujo uso da
língua inglesa é razoável faz isso, alguém como Peacock o faz infinitamente melhor.
Quando abrimos Crotchet Castle e lemos aquela primeira sentença longíssima
que começa: Num daqueles belos vales entrecortados pelo Thames (ainda não poluído
pela maré, pelo assoreamento das cidades ou mesmo pela sujeira menor proveniente
dos córregos arenosos de Surrey), seria difícil descrever o alívio que sentimos, a não
ser através de metáforas. Primeiro há a forma que lembra algo visualmente agradável
como o fluir de uma onda ou o fustigar de uma chicotada vigorosa, então, enquanto uma
frase se une a outra e um parêntesis após outro desemboca em seus afluentes, tomamos
consciência de todo o rio deslizando sob os velhos muros com as sombras de prédios
antigos e o viço dos gramados refletidos nele. E o que é ainda mais incrível depois da
imensidão e da obscuridade em que temos vivido, é que estamos em um mundo
proporcionalmente tão gerenciável que podemos medi-lo, provocá-lo e ridicularizá-lo. É
como ir ao jardim numa manhã perfeita de setembro quando todas as sombras são
exatas e toda cor é límpida depois de uma noite de tempestade. A natureza se submeteu
às regras do homem, que é dominado por sua inteligência. Em vez de serem
multifacetadas, complicadas, evasivas, as pessoas possuem idiossincrasias que as
cristalizam em personagens isoladas que colidem bruscamente quando se encontram.
Parecem ridículas e grotescamente simplificadas, sem qualquer conhecimento. O doutor
Folliott, o senhor Firedamp, o senhor Skionar, o senhor Chainmail parecem, depois da
tremenda densidade e essência de Guermantes e de Stavrogins, nada além de caricaturas
199
agradáveis que um velho estudioso recortou de uma folha de papel preto. Contudo,
examinando mais de perto, descobrimos que, embora fosse absurdo tentar encontrar em
Peacock qualquer desejo, ou talvez capacidade, de explorar as profundezas da alma, sua
reserva não é vazia, mas sugestiva. A personagem Folliott é concebida com três
pinceladas. O que fica nas entrelinhas é deixado de lado. Cada pincelada, porém, indica
o peso por trás dela para que o leitor possa descobrir a personagem por si só, mesmo
que, por causa de sua aparente simplicidade, ela carregue a precisão de uma caricatura.
O mundo é constituído tão alegremente que sempre há trutas para o desjejum, vinho na
adega e alguns contratempos interessantes, como a cozinheira que ateia fogo em si
mesma e é socorrida pelo lacaio para nos fazer rir. Um mundo em que não há nada mais
urgente a fazer do que deslizar sobre as águas discutindo tudo e decidindo nada, não é
um mundo de pura fantasia. Está bem próximo de ser uma paródia de nosso mundo e
fazer nossos desatinos e as solenidades de nossas instituições parecerem um pouco
tolos.
O satírico, diferentemente do psicólogo, trabalha sob a opressão da onisciência.
Tem o prazer de dispor de sua mente livre e ironicamente. Suas simpatias não são
profundamente comprometidas e seu senso de humor não é submerso.
A principal distinção está na atitude diferente em relação à realidade. Nos
psicólogos, o grande fardo de acontecimentos se estrutura firmemente em cama e mesa.
É com surpresa mas com alívio e certo prazer que aceitamos a versão de mundo de
Peacock, que ignora tanto, simplifica tanto, revira o velho globo e mostra sua outra face.
Aparentemente, não é preciso ter tanto esmero. E, afinal, isso não é tão real e verdadeiro
nele como era no outro? E talvez todo esse barulho pela realidade seja exagerado. O
grande prêmio talvez seja que nossa relação com as coisas esteja mais distanciada.
Colhemos o benefício de um ponto de vista mais poético. Uma linha como a charmosa:
Em Godstow, juntaram avelãs no túmulo de Rosamond só poderia ter sido escrita por
um autor a certa distância de seu povo, para que não houvesse necessidade de
explicações. Certamente, para os leitores de Trollope, as explicações teriam sido
necessárias; precisariam saber o que se teria pretendido juntando avelãs e onde jantaram
depois e como a carruagem os encontrara. Eles, contudo, sendo Chainmail, Skionar e o
restante, têm liberdade de juntar avelãs no túmulo de Rosamond se quiserem, assim
como são livres para cantar se lhes aprouver ou debater o ritmo do pensamento.
Os românticos tomaram a mesma liberdade, mas com outro propósito. Não
observamos o senso selvagem e as aventuras da alma nos satíricos, mas percebemos que
200
a mente é livre e portanto vê além e compartilha de muito do que é levado a sério por
escritores mais reconhecidos.
É claro que há limitações, lembretes, até em meio a nosso prazer, de fronteiras
que não devemos cruzar. Não conseguimos imaginar, em primeiro lugar, que o escritor
de linhas tão especiais, que custam tanto a produzir, consiga preencher tantas resmas de
papel. Então, mais uma vez, um escritor, que nos oferece uma imagem tão clara de sua
própria personalidade através da forma de sua frase, é limitado. Somos sempre levados
a contatar Trollope, não Peacock, pois ele não compartilha seus segredos conosco, nem
invoca a si mesmo e ao som da própria risada como Trollope o faz. Contudo, o tempo
todo nosso pensamento assume a cor do dele, pensamos, insensivelmente, com suas
medidas. Se por ventura escrevemos, tentamos fazer a seu modo e isso nos torna ainda
mais íntimos dele do que de autores como Trollope ou Scott, que envolvem seus
pensamentos adequadamente em um cobertor felpudo cinza que é agradável ao tato e
serve para tudo. Isso pode levar a algumas restrições no final, é claro. O estilo,
especialmente em prosa, pode carregar consigo tanta personalidade que nos mantém
cativos. Peacock permeia seu livro implicitamente.
A fim de podermos fazer considerações mais convincentes sobre isso, deixemos
Peacock para nos voltarmos a Sterne, escritor muito melhor, mas ainda tão próximo de
Peacock que nos permite manter o mesmo raciocínio ininterruptamente.
De imediato percebemos que estamos diante de uma mente muito mais sutil, de
muito mais alcance e intensidade. As sentenças de Peacock, bem formadas e belamente
lapidadas como o são, não conseguem se flexionar como estas. Nosso senso de
elasticidade é tão aumentado que raramente sabemos onde estamos. Perdemos o senso
de direção. Vamos para trás em vez de irmos para frente. Uma simples afirmação inicia
uma digressão: circulamos, levitamos, viramos e finalmente retornamos ao tio Toby,
que esteve sentado, vestindo calça de golfe de camurça preta, com seu cachimbo na mão
todo o tempo. Podemos dizer que Proust era tão tortuoso quanto, mas seus rodeios
aconteciam em função de seu imenso poder de análise e do fato de que, diretamente, ele
disse algo simples, percebeu e precisava nos fazer perceber tudo o que aquilo implicava.
Sterne não é um analista das sensações dos outros. Elas se mantêm simples, excêntricas
e erráticas. É sua própria mente que o fascina, suas estranhezas e seus caprichos, suas
fantasias e sensibilidade. E é sua própria mente que colore o livro e constrói seus muros
e forma. Ainda assim, é obvio que sua afirmação só existe quando diz que,
independentemente do quanto possa divagar – sobre minha tia Dinah e o cocheiro ou
201
alguns milhões de milhas em direção ao centro do sistema planetário – está na
eminência de nos contar sobre o caráter do tio Toby. O esboço de seu caráter prossegue
suavemente todo o tempo – não seus grandes contornos, isso seria impossível, mas
algumas de suas tacadas familiares e suas designações leves – a fim de que se conheça o
tio Toby muito mais agora do que antes. É verdade, pois estamos sempre radiantes
enquanto lemos superficialmente e circulamos para observar um pouco mais a figura de
tio Toby sentado lá com seu cachimbo na mão. Há, dessa maneira construído,
intermitentemente, sem regularidade, um retrato extraordinário de uma personagem,
mostrada quase sempre em estado passivo, sentada, quieta, através dos olhos de um
observador errático, que jamais permite que ela diga mais do que alguma palavras ou dê
mais do que alguns passos por si só. Está sempre circulando e brincando com a lapela
de seu casaco e espiando seu rosto, provocando com afeição, caprichosamente, como se
fosse o responsável por algum mortal inconsciente. Dois opostos como esses foram
criados para se despedirem um do outro e se afastarem. Nós nos animamos com a
simplicidade e a modéstia do tio Toby para compará-las a uma personagem esperta,
indecente, desagradável, porém muito simpática criada pelo autor.
Em todo o romance Tristram Shandy estamos conscientes dessa mistura e do
contraste. Laurence Sterne é a personagem principal do livro. É fato que, no momento
crítico, o autor se esconde, incentiva suas personagens para liberá-las de sua tutela,
permitindo que sejam algo mais do que caprichos de um cérebro brilhante. Porém, como
personagens são amplamente constituídas de circunstâncias e arredores, essas pessoas
cujas cercanias são tão esquisitas, que estão sempre em silêncio, mas são sempre o
assunto, são um grupo a parte dentre as personagens de ficção. Não há nada como elas,
pois em nenhum outro tipo de livro as personagens dependem tanto do autor. Não há
nada como elas, pois em nenhum outro tipo de livro autor e leitor têm tanto
envolvimento. Então, afinal, conseguimos um livro em que todas as convenções
costumeiras são consumidas e, mesmo assim, nenhuma catástrofe acontece: o todo
subsiste por si, como uma casa miraculosamente habitável mesmo sem paredes, escadas
e divisórias. Vivemos nos humores, contorções, estranhezas do espírito e não no
vagaroso desenrolar da vida. E a reflexão acontece, enquanto somos iluminados em um
desses clímax: não podemos escapar para mais longe ainda a fim de que não tenhamos
consciência nenhuma da existência de um autor? Não podemos encontrar poesia em um
romance ou outro? Sterne, pela beleza de seu estilo, nos leva além da personalidade
202
mediana para um mundo que não é, de maneira nenhuma, o mundo da ficção. Está
muito além.
Os Poetas
Algumas frases nos modificam e nos levam para além da atmosfera da ficção.
Elas nos fazem parar e questionar. Por exemplo:
Não discutirei o assunto; o tempo passa muito depressa: cada letra que traço
me diz com que rapidez a Vida segue a pena; dias e horas mais preciosos – minha
querida Jenny – do que os rubis em volta do pescoço estão voando sobre nossas
cabeças como nuvens leves em dia de ventania, para nunca mais voltar; tudo pressiona
– enquanto estais virando a chave – veja, escurece; e cada vez que beijo sua mão para
me despedir, e cada ausência que se segue, são prelúdios da separação eterna que
estamos prestes a sofrer.
165
Frases como essas trazem, pelo ritmo curioso de sua organização, pelo apelo
visual, uma alteração no movimento da mente que faz pausar e ampliar seus horizontes
e mudar levemente o foco de sua atenção. Estamos olhando para a vida em geral.
Embora Sterne, com sua incrível elasticidade, pudesse usar esse efeito também,
sem incongruências, isso só foi possível porque sua genialidade era grande o bastante
para permitir que sacrificasse algumas das qualidades originais das personagens do
romance sem que percebêssemos. É obvio que não há amontoados de experiências de
muitas vidas e mentes como em Guerra e Paz, e também que há um quê de ensaio e de
solilóquio nos caprichos dessa mente brilhante. Às vezes é sentimental, como se depois
de tamanha demonstração de singularidade ele precisasse assegurar seu interesse pelas
vidas normais e pelo afeto das pessoas. Lágrimas são necessárias, lágrimas são
proporcionadas. Seja como for, mesmo que sua poesia seja especial e individualizada
como é, há uma outra poesia mais natural ao romance porque se utiliza de material
fornecido pelo romancista. É a poesia de situação mais do que a de linguagem, a poesia
que percebemos quando Catherine, de O Morro dos Ventos Uivantes, arranca as penas
do travesseiro, quando Natasha, de Guerra e Paz, olha para as estrelas pela janela. É
significativo que lembremos dessa poesia não como nos recordamos da poesia nas
palavras em verso, mas através da cena. A prosa permanece casual e bem regular, sendo
165
A pontuação foi mantida, assim como o uso de maiúsculas, exatamente como na citação original.
203
que citá-la não esclarece nem um pouco o efeito poético causado. Freqüentemente
precisamos ler um capítulo mais de uma vez para sermos capazes de vislumbrar a beleza
ou intensidade daquilo que nos arrebatou.
Ainda assim, não se deve negar que dois dos romancistas que são poéticos com
mais freqüência, Meredith e Hardy, são romancistas imperfeitos. Tanto The Ordeal of
Richard Feverel como Far From the Madding Crowd são livros de muito pouca
qualidade. Sentimos falta de controle e coerência em ambos, o que jamais acontece ao
lermos Guerra e Paz, Em Busca do Tempo Perdido ou Orgulho e Preconceito. Tanto
Hardy como Meredith estão demasiadamente impregnados de senso poético e têm muito
pouca simpatia pelos seres humanos para expressá-la adequadamente através desse
canal. Sendo assim, vemos o elemento impessoal, o destino ou os deuses, seja qual for o
nome que usemos para denominá-lo, tão freqüente em Hardy, dominar as pessoas.
Parecem feitas de madeira, melodramáticas, irreais. Não conseguem expressar a poesia
com a qual o autor está impregnado através de seus próprios lábios, pois sua psicologia
é inadequada. Desse modo, a expressão é deixada para o autor, que assume uma
personagem separada das outras e não consegue reassumi-las naturalmente quando é
preciso.
Em Meredith, o senso poético do autor sobre a juventude, o amor e a natureza é
ouvido como uma canção também ouvida pelas personagens, passivamente, sem que
movam um músculo. Então, quando a canção termina, as personagens se movem outra
vez com um gesto de enfado. Isso parece provar que um senso poético profundo é um
dom perigoso para o romancista, pois em Hardy e Meredith a poesia parece significar
algo impessoal, generalizado, hostil para com a idiossincrasia da personagem. Os dois
sofrerão se forem mais acessíveis, mais próximos. Pode ser que o romancista perfeito
expresse um tipo diferente de poesia ou tenha o poder de expressá-la de maneira que
não prejudique as outras qualidades do romance. Se relembrarmos os trechos que nos
pareceram, em retrospectiva, poéticos na ficção, pensamos neles como partes do
romance. Quando Natasha, em Guerra e Paz, olha as estrelas pela janela, Tolstoi produz
um sentimento poético profundo e intenso sem qualquer interrupção ou aquela sensação
inquietante de música cantada para ouvintes inertes. Faz isso porque seu senso poético
encontra expressão na poesia da situação ou porque suas personagens a expressam com
suas próprias palavras, que são sempre as mais simples. Vivemos nelas, conhecendo-as.
Assim, quando Natasha se apóia na janela e pensa em sua vida futura, nossos
204
sentimentos sobre a poesia não recaem sobre as palavras ditas por ela, mas em nossa
percepção de Natasha dizendo tais palavras.
O Morro dos Ventos Uivantes é temperado com poesia. Mas há uma diferença,
pois ninguém pode dizer que a profunda poesia da cena na qual Catherine arranca as
penas do travesseiro tem algo a ver com nosso conhecimento dela ou acrescenta alguma
coisa a nossa compreensão ou a nossos sentimentos sobre seu futuro. Em vez disso,
aprofunda e controla a atmosfera selvagem e tempestuosa de todo o livro. Através de
um golpe de mestre de visão, mais raro na prosa do que na poesia, pessoas, cenário e
atmosfera estão, todos, controlados. E, o que é ainda mais raro e mais impressionante é
que através dessa atmosfera parecemos captar a imagem de homens e mulheres maiores,
de outros símbolos e importância. Ainda assim, o caráter de Heathcliff e o de Catherine
são perfeitamente naturais, contêm facilmente toda a poesia que a própria Emily Brontë
sente. Nunca sentimos que um momento é poético separado do restante ou que Emily
Brontë é quem fala conosco através desta ou daquela personagem. Sua emoção não
transbordou e se apresentou voluntariamente em algum comentário ou atitude da autora.
Ela usa suas personagens para expressar sua concepção, sendo que elas são agentes
ativos na vida do livro, enriquecendo e não coibindo seu ímpeto. O mesmo acontece,
mais explicitamente, porém de forma menos concentrada, em Moby Dick. Nos dois
livros captamos a presença de um significado, alheio aos seres humanos, que as pessoas
defendem sem deixarem de ser elas mesmas. Mas é notável que tanto Emily Brontë
como Herman Melville ignorem a maior parte daqueles despojos do espírito moderno
que Proust atinge tão tenazmente e transforma de modo tão triunfal. Os dois escritores
mais antigos simplificam suas personagens até que só seu contorno e os traços mais
evidentes da face estejam visíveis. Os dois parecem ter se contentado com o romance
como sua forma e com a prosa como seu instrumento, desde que pudessem retirar a cena
para longe das cidades, simplificar suas personagens
166
e permitir que a faceta mais
selvagem da natureza tomasse parte da cena. Podemos dizer que existe poesia nos
romances onde a poesia não é explícita em nenhuma situação especial como a de
Natasha na janela, por exemplo, mas no tom e no espírito, que Catherine, Heathcliff ou
o capitão Ahab expressam em O Morro dos Ventos Uivantes ou Moby Dick.
Na obra Em Busca do Tempo Perdido há tanta poesia como em qualquer um
desses livros, mas é uma poesia diferente. A análise da emoção é mais aprofundada em
166
N.T. O original sempre apresenta characters ou people para personagens. Nesta sentença,
especificamente, Woolf utilizou actors para referir-se a personagens.
205
Proust do que em qualquer outro romancista. Sua poesia não aparece em situações, que
são densas demais para tanto, mas naquelas passagens repletas de metáforas elaboradas
que afloram do rochedo do pensamento como de fontes de água doce e servem como
traduções de uma linguagem para a outra. Como se houvesse sempre duas faces para
cada situação: uma cheia de luz, que podemos descrever precisamente e analisar tão
detalhadamente quanto possível, e outra nas sombras, que só pode ser descrita em um
momento de fé e visão através de metáforas. Quanto mais o romancista aguça sua
análise, mais consciente se torna de que algo sempre lhe escapa. É essa duplicidade que
torna a obra de Proust tão completa, tão abrangente para nossa geração. Sendo assim,
enquanto Emily Brontë e Herman Melville levam o romance para mar aberto longe da
praia, Proust concentra-se nos homens.
E aqui fazemos uma pausa, não porque não haja mais livros para lermos ou
mudanças de temperamento para satisfazermos, é claro, mas por uma razão que se
origina na juventude e no vigor da arte. Podemos imaginar tantos tipos diferentes de
romances, estamos tão conscientes de tantas relações e suscetibilidades que os
romancistas ainda não mostraram, que encerramos com Emily Brontë ou com Tolstoi
sem nenhuma pretensão de que as fases da ficção estejam completas ou que nossos
desejos enquanto leitores tenham sido plenamente satisfeitos. Pelo contrário, a leitura
nos entusiasma. Os desejos se acumulam e nos deixam desarticuladamente conscientes
de dezenas de romances diferentes que aguardam ao longe para serem escritos. Portanto,
eis a futilidade da presença de qualquer teoria do futuro da ficção. Os próximos dez
anos vão provavelmente afetá-la e o próximo século vai explodi-la pelos ares. Só
precisamos nos lembrar da comparativa juventude do romance, que é, grosso modo, da
idade da poesia inglesa do tempo de Shakespeare, para percebermos a bobagem de
qualquer resumo ou teoria do futuro da arte. Além disso, a própria prosa ainda está na
infância e, sem dúvida, com capacidade para modificações imensuráveis e
desenvolvimento.
Nossa rápida incursão pelos livros nos garantiu algumas anotações feitas pelo
caminho que podemos organizar, nem tanto para buscar uma conclusão, mas para
expressar a análise, o estado meditativo que segue a atividade de leitura. Em primeiro
lugar, embora nosso tempo disponível tenha sido ínfimo, viajamos uma longa distância,
emocionalmente falando, na leitura desses livros. Nós nos arrastamos sobriamente ao
longo da estrada, falando com sensatez e deparando com aventuras interessantes.
Tornamo-nos românticos, vivemos em castelos, fomos perseguidos, lutamos
206
galantemente nos prados e morremos. Depois, cansados disso tudo, entramos em
contato com a humanidade outra vez: primeiro romântica e prodigiosamente, apreciando
a sociedade de gigantes e anões, dos imensos e dos deformados e então, outra vez
cansados da extravagância, nós os reduzimos através do microscópio de Jane Austen
para homens e mulheres de proporções normais e perfeitas no mundo caótico dos
presbíteros, arbustos e gramados ingleses.
Porém uma sombra recai sobre esse potencial brilhante, distorcendo a harmonia
agradável dessas proporções. As sombras de nossas próprias mentes recaem sobre elas e
gradualmente somos sugados para o interior e exploramos com Henry James as
conexões infinitas do sentimento e das relações em que homens e mulheres são
enredados e somos conduzidos por Dostoievski a milhas e milhas de profundidade para
as camadas essenciais da alma.
Finalmente, Proust traz a luz de uma inteligência civilizada e plena para suportar
esse caos e revelar o imenso escopo e a complexidade da sensibilidade humana. Porém,
seguindo-o, perdemos o senso de direção e para recuperá-lo buscamos os comediantes e
os fantásticos, que se mantêm à distância do mundo, além de eliminar e reduzir para que
tenhamos o prazer de enxergar as coisas por inteiro e de fora, depois de termos
experimentado a imersão nelas. E os comediantes e os fantásticos como Peacock e
Sterne, por causa de seu distanciamento, freqüentemente escrevem como os poetas, pela
beleza da sentença e não pelo uso que se faz dela, nos estimulando a desejar poesia no
romance. A poesia, me parece, requer uma organização diferente das cenas. Os seres
humanos são necessários, mas necessários em suas relações com o amor, a morte ou a
natureza, mais do que uns com os outros. Por esse motivo sua psicologia é simplificada,
assim como em Meredith e Hardy, em cujas obras sentimos sua paixão e sua tragédia
em vez da complexidade da vida. Tanto em O Morro dos Ventos Uivantes como em
Moby Dick essa simplificação, longe de ser vazia, tem grandeza e sentimos que algo
além, mesmo não sendo humano, não destrói sua humanidade inerente. Podemos
resumir nossas impressões rapidamente. Mesmo sendo breves e fragmentárias, nos
levaram a perceber um pouco da grandeza da ficção e da amplitude de seu escopo.
Ao olharmos para trás, parece que o romancista pode fazer qualquer coisa. Num
romance há espaço para contar histórias, além de comédia, tragédia, crítica, informação,
filosofia e poesia. Parte da atração exercida pela ficção está na variedade de opções e na
satisfação que oferece a tantos temperamentos, desejos e instintos diferentes de tantos
leitores. Mas não importa o quanto o romancista varie suas cenas e altere as relações
207
entre as coisas, quando olhamos para trás vemos o mundo em eterna transformação,
somente um elemento permanece constante em todos os romances: o ser humano.
Romances são sobre pessoas, causam sensações que pessoas reais nos proporcionam. O
romance é a única forma de arte que procura nos fazer acreditar que está oferecendo o
registro completo da vida de uma pessoa real. A fim de nos proporcionar tal registro de
vida, nem o clímax nem a crise, mas o crescimento e o desenvolvimento dos
sentimentos, seu objetivo, o romancista copia a ordem do dia, observa a seqüência dos
eventos comuns, mesmo que tanta fidelidade preencha capítulos de descrição e horas de
pesquisa. Desse modo, escorregamos para dentro do romance sem muito esforço e sem
sofrermos uma ruptura muito drástica com nosso dia-a-dia, o que acontece quando
mergulhamos em qualquer outra forma de literatura imaginativa. Parece que
continuamos a viver, só que em outra casa ou país, talvez. Nossas simpatias mais
habituais ou naturais são aguçadas com as primeiras palavras e sentimos que aumentam
ou diminuem a cada página quando apreciamos alguma coisa ou não, quando sentimos
esperança ou pavor. Observamos o caráter de Becky Sharp ou de Richard Feverel e
instintivamente formamos a opinião de que são charmosos, mas não são sinceros, são
bons ou sonsos, misteriosos, mas interessantes, assim como nos convencemos do caráter
das pessoas que encontramos.
Essa envolvente falta de artifícios e a força da emoção que o romance é capaz de
causar são grandes vantagens para o romancista, porém, também são grandes perigos. É
inevitável que o leitor, convidado a viver nos romances assim como o faz em seu dia-a-
dia, reaja com as personagens como reage na vida real. Romance e vida são postos lado
a lado. Queremos felicidade para a personagem de que gostamos e punição para aquelas
que não apreciamos. Temos particular simpatia por personagens que se parecem
conosco. É difícil admitir que um livro tenha mérito se ultraja nossas tendências ou
descreve uma vida que nos pareça irreal. Mais uma vez temos a consciência aguçada do
caráter do romancista e especulamos sobre sua vida e suas aventuras. Esses padrões
pessoais se multiplicam, pois todo tipo de preconceito ou vaidade pode ser ignorado ou
apaziguado pelo romancista. De fato, o crescimento enorme do número de romances
psicológicos em nosso tempo tem sido muito incentivado pela crença errônea, que o
leitor impôs ao romancista, que a verdade é sempre exata, até mesmo quando é a
verdade do psicanalista e não a da imaginação.
As vaidades e emoções do leitor estão perpetuamente forçando o romancista a
gratificá-lo. O resultado, embora dê ao romance vida curta e extremamente vigorosa, é,
208
como sabemos mesmo enquanto apreciamos as lágrimas e o riso e a excitação daquela
vida, fatal para sua sobrevivência. A exatidão da representação, a flexibilidade e
simplicidade do método, a rejeição do uso de artifícios e convenções, o poder imenso de
imitar a realidade superficial: todas as qualidades que tornam o romance a forma
literária mais popular, também o tornam insosso, mesmo durante nossa leitura, e o
levam a perecer em nossas mãos. Alguns dos grandes romances do passado, como
Robert Esmere ou A Cabana do Pai Tomás já pereceram, exceto por alguns remendos.
Originalmente eram fortalecidos com enorme qualidade e clareza, mas somente para
aqueles que vivenciaram o momento em que foram escritos: as maneiras mudaram, o
linguajar contemporâneo se altera. Página após página, capítulo após capítulo se tornam
obsoletos e sem vida.
O romancista tem consciência disso tamm e, ao mesmo tempo que usa seu
poder de seduzir a simpatia humana, que lhe pertence, tenta controlá-la. Na verdade, o
primeiro sinal de que estamos lendo um bom autor é que sentimos esse controle agindo
sobre nós. A barreira entre os leitores e o livro se levanta mais alto. Não escorregamos
com tanta facilidade ou tão instintivamente para um mundo que já conhecemos.
Sentimos que somos impelidos a aceitar uma ordem e organizar os elementos do
romance – homem, natureza, Deus – em certas relações nas apostas do romancista.
Olhando para trás, para os poucos romances que citamos, podemos observar como nos
entregamos, espantosamente, a uma visão e depois a seu oposto. Apagamos todo o
universo ao comando de Defoe, observamos cada cortador de grama e cada lesma do
jardim sob as ordens de Proust. Desde a primeira página sentimos que nossas mentes
são treinadas, o que se torna cada vez mais perceptível no decorrer do romance, quando
o autor revela sua concepção. Finalmente o todo é exposto por completo. Quando o
livro está terminado, parece que vemos (é estranho como a impressão é concreta) algo
que o envolve como a direção firme do estilo de Defoe ou algo moldado e simétrico
com as abóbadas e colunas completas de Orgulho e Preconceito e Emma. Uma força
que não é o poder da exatidão, do humor ou do pathos também é usada pelos
romancistas para moldar seu trabalho. Ao virarmos as páginas, algo é construído além
da própria história. Se essa força é acentuada, concentrada e dá fluidez à resistência e ao
poder do romance, e nenhum romance pode sobreviver mais do que alguns anos sem
ela, também é perigosa. As qualidades mais características do romance – registrar o
lento crescimento e desenvolvimento dos sentimentos, seguir o curso de muitas vidas e
localizar suas intersecções e destinos por um longo período de tempo – são qualidades
209
quase incompatíveis com estrutura e ordem. O dom do estilo, do planejamento e da
construção está em nos distanciarem da vida especial e apagarem suas características,
enquanto o dom do romance é nos trazer para bem perto da vida. As duas forças são
antagônicas quando combinadas. O bom romancista deve ser aquele capaz de equilibrar
as duas forças a fim de que uma enriqueça a outra.
Isso parece provar que o romance, por sua própria natureza, está fadado a
comprometer-se e casou-se com a mediocridade. Pode-se concluir que seu domínio está
em lidar com as emoções mais comuns, porém menos concentradas, expressar a
generalidade da vida e não sua essência. Contudo, qualquer veredicto deve ser baseado
na suposição de que o romance tem certo caráter fixo que não pode ser alterado, que a
vida tem um limite que pode ser definido. É precisamente essa conclusão que os
romances que lemos tendem a desequilibrar.
O processo de descoberta é continuo e eterno. Sempre reclamamos mais e
reconhecemos mais da vida. Portanto, fixar o caráter do romance, a mais jovem e
vigorosa das artes, neste momento, seria como fixar o caráter da poesia no século XVIII
e dizer que, sendo Gray’s Elegy poesia, Don Juan era impossível. Uma arte praticada
por anfitriões que abrigavam diversas mentes também está fadada a ser fumegante,
volátil e instável. E por alguma razão, que não examinaremos aqui, a ficção é uma das
anfitriãs mais hospitaleiras: atrai para si, atualmente, escritores que ontem eram poetas,
dramaturgos, panfleteiros, historiadores. Sendo assim, o romance como ainda o
nomeamos, com tanta parcimônia, está claramente se fragmentando em livros que não
têm nada em comum além dessa nomenclatura inadequada. Os romancistas já estão tão
isolados que mal se comunicam, e o trabalho de um é genuinamente ininteligível ou
insignificante para o outro.
A prova mais significativa da fertilidade, porém, é fornecida pela consciência de
sentir algo que ainda não foi dito, algum desejo insatisfeito. Uma visão bem genérica e
muito elementar desse desejo parece demonstrar que aponta para duas direções. Na
primeira, a vida, lugar comum, está ficando mais complexa. Nossa consciência de nós
mesmos está se tornando mais alerta e mais bem treinada. Temos consciência de
relações e sutilezas que ainda não foram exploradas. Proust é o pioneiro dessa escola e,
sem dúvida, ainda não nasceram escritores que levarão a análise de Henry James
adiante, que vão revelar e relacionar as linhas mais tênues do sentimento e das
imaginações mais obscuras e estranhas.
210
Na outra direção, desejamos síntese. O romance, concordamos, pode vir na
seqüência da vida, pode juntar detalhes. Mas também pode selecionar? Simbolizar?
Poderá nos dar uma personificação assim como um inventário? Era uma função como
essa que a poesia exercia no passado. Mas no presente e talvez por mais tempo, a poesia
com seus ritmos, sua dicção poética, seu forte sabor de tradição está longe demais para
fazer por nós o que fez por nossos pais. A prosa talvez seja o instrumento mais
qualificado para a complexidade e a dificuldade da vida moderna. E a prosa, devemos
repetir, ainda é tão jovem que mal sabemos que poderes mantém escondidos. Sendo
assim, é possível que o romance no futuro seja tão diferente do romance de Jane Austen
e de Tolstoi quanto a poesia de Browning e Byron é daquela escrita por Lydgate e
Spenser. No futuro. Mas o futuro está muito além de nosso domínio.
211
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