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ESCOLA SUPERIOR DE TEOLOGIA
INSTITUTO ECUMÊNICO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEOLOGIA
DAVID PESSOA DE LIRA
A DIDAKHE KAINE DE JESUS:
UM ENSAIO EXEGÉTICO DE MC 1.21-28
São Leopoldo
2006
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DAVID PESSOA DE LIRA
A DIDAKHE KAINE DE JESUS:
UM ENSAIO EXEGÉTICO DE MC 1.21-28
Dissertação de Mestrado
Para obtenção do grau de Mestre em Teologia
Escola Superior de Teologia
Instituto Ecumênico de Pós-Graduação em Teologia
Área: Bíblia
Orientadora: Marga Janete Ströher
São Leopoldo
2006
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Dedico este trabalho a Djanira, minha mãe,
a Antônio (Seu Justo), meu pai,
que me incentivam o estudo desde a minha infância, e
a Lilian, minha amada esposa,
que pacientemente tem cooperado e me incentivado na realização desse
trabalho.
AGRADECIMENTOS
Aos Bispos Orlando Santos de Oliveira e Sebastião Armando Gameleira
Soares, Primaz e Diocesano de Pelotas, respectivamente, da Igreja Episcopal
Anglicana do Brasil - IEAB, pela recomendação ao mestrado.
Ao professor Dr. Ananias Oliveira, coordenador pedagógico do Curso de
Teologia do Conselho Amazônico de Igrejas Cristãs CAIC, também pela
recomendação ao mestrado.
Ao Seminário Teológico Anglicano do Recife SAET, pela oportunidade de
formação teológica.
À Carmem Inês Hallberg, funcionária da Biblioteca do Seminário Teológico
Dom Egmont Machado Krischke – SETEK, pela presteza no atendimento.
Ao professor Dr. Rev. Humberto E. Maiztegui Gonçalves, do Seminário
Teológico Dom Egmont Machado Krischke SETEK, da IEAB, que o
prontamente me auxiliou com preciosas sugestões.
À professora Dra. Marga Janete Ströher, pela orientação na elaboração desta
pesquisa.
Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico CNPq,
que patrocinou o Curso e a minha manutenção nestes dois anos de pesquisa.
SINOPSE
O presente trabalho é resultado de um processo de pesquisa na área de Bíblia. Um
estudo exegético do novo ensino de Jesus com base no Evangelho segundo Marcos
1.21-28. Inicialmente, é feita uma análise a partir do método histórico-crítico,
seguindo os passos deste método: tradução do texto original, do grego para o
vernáculo; análise textual da fraseologia didach; kainh; kat j ejxousivan. A análise
literária procura definir os limites e os elementos constitutivos da perícope;
finalizando a primeira parte do trabalho com análises de redação e de forma. Na
segunda parte do trabalho, foi feita uma pesquisa do ambiente histórico do tempo de
Jesus: uma pesquisa de elementos que pertencem à história, tais como sinagoga,
Cafarnaum e escribas. Na última parte do trabalho, são destacadas algumas
importantes características de Jesus como professor, mostrando semelhanças e
diferenças de sua prática de ensino em relação à prática de ensino dos escribas e
fariseus. É igualmente apresentada a atuação de Jesus mediante a Lei e a Tradição,
bem como uma análise sobre o que consiste a práxis de Jesus que mereça atenção
especial e sirva de modelo para a prática do(a) professor(a), do(a) educador(a)
popular até os dias de hoje, como propõe a contextualização apresentada ao final
deste trabalho.
ABSTRACT
This present work is a result of a process of survey in the area of the Bible. This is a
exegetical study of the New Teaching of Jesus based on the Gospel according to
Saint Mark, chapter 1, verses 21 to 28. At the beginning, an analysis is done
according to the steps of the historical critical method: translation of the original text,
from Greek to the Vernacular Tongue; textual-criticism of a phraseology didach;
kainh; kat j ejxousivan. And the literary criticism seeks to define the limits and the
constitutive elements of the pericope; this first part of this work finishes with redaction
criticism and form criticism. In the second part of this work, there is a survey about
the historical environment of the times of Jesus: a survey of elements which belong
to the story such as synagogue, Cafarnaum, scribes. And the relation of these
elements with the tradition and the Law. The last part of this work presents some
important characteristics of Jesus as teacher, showing the similarities and differences
between the practice of teaching. In the same form, this part of this work presents the
performance of Jesus through the Law and the traditions; finally, this part analyzes
about what is the praxis of Jesus so that it deserves special regard and so that it is
an example to the pratice of the teachers and popular educators today, just as the
atualization presented proposes at the end of this work.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................... 08
CAPÍTULO I - PASSOS EXEGÉTICOS ..................................................... 11
1.1 – Tradução .......................................................................................... 12
1.2 - Análise ou Crítica Textual .................................................................. 13
1.3 - Análise ou Crítica Literária ................................................................. 18
1.3.1 - Delimitação do texto ......................................................................
18
1.3.2 - Estrutura do texto .......................................................................... 21
1.3.3 - Integridade e coesão do texto ...................................................... 25
1.4 - Análise Redacional ............................................................................ 27
1.4.1 – Redação do texto ......................................................................... 27
1.5 – Análise ou Crítica das Formas .......................................................... 34
1.6 - Algumas Considerações .................................................................... 37
CAPÍTULO II - O CONTEXTO VIVENCIAL DA PRÁTICA DE ENSINO
DO JESUS MARCANO, A PARTIR DE MC 1.21-28 ..................................
41
2.1 – Carfanaum .........................................................................................
41
2.2 - A Sinagoga .........................................................................................
44
2.3 - Os Escribas ou Professores da Lei .................................................... 48
2.4 - A Torah e a Halachah ........................................................................
52
2.5 - Algumas considerações ..................................................................... 55
CAPÍTULO III - A PRÁTICA DO ENSINO DE JESUS ................................
56
3.1 - As Escrituras e o Ensino de Jesus .................................................... 56
3.1.1 - Como Jesus interpretava as escrituras?
Qual é a sua hermenêutica? Como Jesus usava as escrituras? .....
59
3.2 - Radicalização e Relativização ............................................................
61
3.2.1 - Intensificação das normas na tradição de Jesus .......................... 61
3.2.2 - O abrandamento das normas na tradição de Jesus ..................... 61
3.3 - Jesus X Escribas ............................... 63
3.4 - A didach; kainh; kat j ejxousivan: Jesus como professor e
seu ensino segundo Marcos ......................
71
3.5 - Atualização: Jesus, um exemplo de Pedagogo ................................ 77
CONCLUSÃO ............................................................................................. 84
REFERÊNCIAS .......................................................................................... 87
INTRODUÇÃO
O assunto do presente trabalho tem por objetivo desenvolver uma pesquisa e
uma abordagem acerca do novo ensino de Jesus, tendo como base a perícope de
Mc 1.21-28. O estudo se limita à área de Bíblia, mais especificamente, a do Novo
Testamento. As várias citações de Jesus como mestre e sua prática de ensino no
Evangelho de Marcos, fazem-nos supor sua importância do ponto de vista teológico
e cristológico. Por esta razão, somos levados a refletir sobre o problema do
conteúdo e da forma de ensino no tempo de Jesus, assim como, também, leva-nos a
pensar nas variadas formas de ensino dos nossos dias.
O Evangelho segundo Marcos emprega, repetidamente, os termos ‘ensino’
(didakhe), ensinar’ (didasko) e ‘professor’ (didaskalos), relacionados a Jesus. No
entanto, este Evangelho não explicita ‘o que Jesus ensinava’, ou ‘em que consistiam
seus ensinamentos’.
Por que Jesus ensinava com autoridade, levando em conta que Ele era
chamado de professor? O que significa essa autoridade? Se professor (rabi), no
tempo de Jesus, era quem ensinava a Lei, então, Ele ensinava a Lei? Como verificar
isso no evangelho de Marcos?
Em termos metodológicos, é feita uma abordagem exegética de Mc 1.21-28,
tendo como base o método histórico-crítico. Com este propósito o livro “Exegese do
Novo Testamento - Manual de Metodologia”, de Uwe WEGNER, serve como
referência teórica, sendo utilizados os passos exegéticos apontados no referido
Manual
1
. O método é empregado para identificar o que está por trás do pensamento
de quem escreveu o Evangelho de Marcos, percebendo o contexto, a localização
histórico-cultural-geográfica e os termos de intencionalidade do autor, somando os
resultados obtidos com os dados históricos, com a finalidade de indicar o conteúdo
do ensino de Jesus.
Na pesquisa do ambiente histórico, bem como na análise comparativa de
Jesus com os escribas, foi utilizado o livro Jesus histórico - um manual”, de Gerd
THEISSEN e Annette MERZ, como referência teórica. Dicionários e gramáticas de
grego foram empregados na pesquisa literária e nas traduções de termos e palavras
de Mc.
Este trabalho é dividido basicamente em três capítulos: O primeiro é uma
análise exegética da perícope de Mc 1.21-28 (tradução, análises literária, redacional
e formal). O segundo capítulo apresenta um levantamento histórico e geográfico de
alguns elementos que aparecem no texto, como Cafarnaum, sinagoga, escribas e,
por conseqüência, alguns outros elementos interligados aos escribas e sinagogas,
como Torah e Halachah. O último capítulo é constituído por quatro partes ou
subunidades: As Escrituras e o Ensino de Jesus; Radicalização e Relativização;
Jesus X Escribas; Jesus como professor e seu ensino segundo Marcos. Ainda no
terceiro capítulo, é apresentada a atualização: Jesus, um exemplo de Pedagogo,
como proposta de leitura a partir do contexto da América Latina.
O estudo da perícope de Mc 1.21-28 contempla os detalhes literários e
redacionais, e os possíveis acréscimos e trabalhos redacionais dentro dos limites da
perícope. Quanto ao gênero, observamos que este relato está enquadrado no
gênero de milagre, porém, nosso objetivo o é analisar este tipo gênero, mas sim,
os aspectos redacionais de Mc que salientam a prática de ensino de Jesus. O
método de interpretação dos elementos que se encontram no texto é baseado na
própria história do contexto de Jesus. No entanto, também, levamos em
consideração o pensamento ou o objetivo do autor de Mc, o qual expressa sua
reflexão sobre os atos e palavras de Jesus.
1
WEGNER, Uwe. Exegese do Novo Testamento manual de metodologia. 3. ed. São Leopoldo e
São Paulo: Sinodal e Paulus, 2002. p. 17-22, 28-228.
Neste trabalho, evitamos qualquer discussão ou teorias sobre as epifanias
ocultas, assim como a Fonte Q.
2
Por último, uma observação técnica: todas as traduções das línguas grega,
inglesa e espanhola para o vernáculo, foram realizadas pelo autor deste trabalho.
2
Sobre a Fonte Q, cf. KÜMMEL, Werner Georg. Introdução ao Novo Testamento. Nova Coleção
Bíblica 13. 2. ed. São Paulo: Paulus, 1982. p. 36-93; sobre o problema das epifanias ocultas,
KÜMMEL, 1982, p. 104-109.
CAPÍTULO I
PASSOS EXEGÉTICOS
Texto grego de Mc 1.21-28:
21. Kai; eijsporeuvontai eijV Kafarnaouvm~
kai; eujqu;V toi:V savbbasin eijselqw:n eijV th;n sunagwgh;n ejdivdasken.
22. kai; ejxeplhvssonto ejpi; th:/ didach:/ aujtou:~
h\n ga;r didavskwn aujtou;V wJV ejxousivan e[cwn kai; oujc wJV oiJ grammatei:V.
23. Kai; eujqu;V h\n ejn th:/ sunagwgh:/ aujtw:n a[nqrwpoV
ejn pneuvmati ajkaqavrtw/ kai; ajnevkraxen
24. levgwn~ tiv hJmi:n kai; soiv. jIhsou: Nazarhnev? h\lqeV ajpolevsai hJma:V?
oi\dav se tivV ei\, oJ a{gioV tou: qeou:.
25. kai; ejpetivmhsen aujtw:/ oJ jIhsou:V levgwn~ fimwvqhti kai; e[xelqe ejx aujtou:.
26. kai; sparavxan aujto;n to; pneuvma to; ajkavqarton
kai; fwnh:san fwnh:/ megavlh/ ejxh:lqen ejx aujtou:.
27. kai; ejqambhvqhsan a{panteV w{ste suzhtei:n pro;V eJautou;V levgontaV~
tiv ejstin tou:to? didach; kainh; kat j ejxousivan~
kai; toi:V penu:masin toi:V ajkaqavrtoiV ejpitavssei, kai; uJpakouvousin aujtw:/.
28. kai; ejxh:lqen hJ ajkoh; aujtou: eujqu;V pantacou: eijV o{lhn th;n perivcwron th:V
GalilaivaV.
3
3
NESTLE-ALAND. Novum Testamentum Graece. 27 ed. Stuttgart: Stuttgart Deutsche
Bibelgesellschaft, 1994. p. 90.
1.1 – Tradução
21. E entram
4
em Cafarnaum; e logo
5
no Sábado
6
, tendo
7
entrado na
8
sinagoga, ensinava. 22. Admiravam-se
9
com o ensino dele: pois estava
10
lhes
ensinando
11
como tendo
12
autoridade e não como os escribas
13
.
23. E logo
14
estava
15
na sinagoga deles um homem com
16
espírito impuro e
gritou 24. dizendo: O que entre
17
nós e ti, Jesus nazareno? Vieste nos destruir?
4
Presente histórico: tem correspondência com o passado. Pode ser perfeitamente substituído pelo
aoristo. O presente histórico é característico em Marcos: WEGNER, 2002, p.147; RABUSKE, Irineu J.
Jesus Exorcista – Estudo exegético e hermenêutico de Mc 3,20-30. o Paulo: Paulinas, 2001. p.
75; TAYLOR, Vicent.The Gospel according to St. Mark. 2. ed. New York and London: St. Martin's
Press and Macmillan & Co., 1972. p. 46; FREIRE, Antônio, S.J. Gramática Grega. 2. ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2001. p. 217.
5
Imediatamente, de repente.
6
A palavra savbbaton se refere ao ‘sétimo dia, o Dia do Descanso’, o
tB'v;
. Porém, no plural,
savbbaton pode significar ‘semana’, como por exemplo, th:/ miva/ tw:n sabbavtwn (no primeiro dia da
semana Mc 16.2). No caso de Mc 1.21, savbbasin não se trata de uma semana ou de bados
sucessivos ou das Festas como em Mc 14.1: ta; a[zuma, em Mc 6.21: ta; genevsia, aos quais
(Sábados) é empregado o nome da festa no plural neutro. Savbbaton é uma palavra de segunda
declinação, porém sua declinação é irregular em relação ao dativo plural de palavras neutras de
segunda declinação. Além do que, nunca aparece no dativo singular, mas no dativo plural com o
mesmo sentido do singular. Ou seja, no Sábado ou no dia de Sábado. Vide TAYLOR, 1972, p. 172;
RUSCONI, Carlo. Dicionário do Grego do Novo Testamento. São Paulo: Editora Paulus, 2003. p.
411; MORWOOD e TAYLOR, James e John. Pocket Oxford Classical Greek Dictionary. Great-
Bretain: Oxford University Press, 2002. p 288; SWETE, Henry Barclay. The Gospel According to St.
Mark. London: Mcamillan and CO., Limited, 1905, p.17. 1905. p. 17.
7
Particípio aoristo na voz ativa, masculino, singular, nominativo: tendo (ele) entrado, i.e: tendo
(Jesus) entrado.
8
No texto grego, a preposição eijV (literalmente: para dentro de) equivale a ejn (literalmente: em,
dentro de). Este tipo de permuta faz parte do estilo marcano. Cf. Mc 1.9, 39; 2.1; 10.10; 13.9. Cf.
TAYLOR, 1972, p. 44 e 172.
9
Ficaram maravilhados.
10
Ele.
11
Imperfeito perifrástico: ensinava ou estava ensinando. TAYLOR, 1972, p. 45.
12
Particípio presente na voz ativa, masculino, singular, nominativo. Pode ser usado como uma
locução adverbial: com autoridade. Porém, é perfeitamente legítimo o uso: como um que tem
autoridade. A. FREIRE, 2001, p. 240.
13
oiJ grammatei:V (em hebraico
~yrIp..Os
): grammateuvV, no grego clássico, significa secretário ou
escritor; na Septuaginta, significa funcionário público ou escrivão (Êx 5.6), ou um oficial militar de
baixo escalão que tem a função de escrever (Dt 20.5). Nos evangelhos, grammateuvV é um Escriba,
um Mestre, Professor ou Doutor da Lei. Lucas também denomina oiJ grammatei:V de nomikoiv (Peritos
da Lei, Doutores da Lei, Jurisconsultos, Lc 7.30) e nomodidavkaloi (Doutores, Mestres da Lei, Peritos
Lc 5.17). Vide ECHEGARAY, Hugo. A Prática de Jesus. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 1991. p. 80-81;
THEISSEN e MERZ, Gerd e Annette. O Jesus histórico: um manual. São Paulo: Loyola, 2002. p.
248-250; TAYLOR, 1972, p. 173; RUSCONI, 2003, p. 320-321; MORWOOD e TAYLOR, 2002, p. 71.
14
Imediatamente, de repente.
15
Havia.
16
Aqui se trata de uma locução adverbial de companhia. No grego neotestamentário, por influência
semítica, é bastante usada a preposição ejn em (que corresponde à preposição hebraica
B.
..
.
) nos
variados tipos de locuções, nas quais, no grego ático, não a empregava necessariamente. Neste caso
seria: com espírito impuro, ou com um espírito impuro. BETTS, Gavin. New Testament Greek. Teach
Yourself. Great –Bretain: Teach Yourself-Hodder & Stoughton (Educational) Ltd, 2004. p. 199;
TAYLOR, 1972, p.173.
Conheço-te quem és, o Santo de Deus. 25. E lhe repreendeu Jesus dizendo
18
: cala-
te e sai dele. 26. E tendo
19
atormentado-o o espírito impuro, e tendo gritado
20
em
alta voz saiu dele. 27. E ficaram abismados todos, a ponto de discutir consigo
mesmos, dizendo
21
: o que é isto? Ensinamento novo com
22
autoridade; E aos
espíritos impuros ordena
23
e lhe obedecem. 28. E difundiu-se
24
a fama
25
dele,
imediatamente
26
, em todo lugar, em toda circunvizinhança
27
da Galiléia
28
. (tradução
própria)
1.2 - Análise ou Crítica Textual
Esta perícope de Mc 1.21-28 apresenta várias questões no que diz respeito à
Crítica Textual. Por razão de espaço, não vamos expor a construção da Crítica
Textual de toda perícope.
Discorreremos sobre o problema de Crítica Textual a respeito da fraseologia
tiv ejstin tou:to? didach; kainh; kat j ejxousivan~ (Mc 1.27).
O leitor que tem acesso ao texto crítico assim como se encontra no Novum
Testamentum Graece, vigésima sétima edição, de NESTLE-ALAND, deparar-se-á,
como se encontra no aparato referente a Mc 1.27, com as seguintes variantes:
17
O verbo haver, existir está elíptico na frase. Poderia ser: ‘O que entre nós e ti? O que existe
entre nós e ti? O que nós temos contigo? O que nós temos a ver contigo? O que há em comum entre
nós?’ Possivelmente esta expressão tem sua correspondência semítica ou hebraica
%l'w" WnL'-hm;
(Josué 22.24; Juízes 11.12; I Reis 17.18). No sentido hebraico, esta expressão teria o significado: Por
que te metes conosco? Cf. TAYLOR, 1972, p.174.
18
Particípio presente na voz ativa, masculino, plural, nominativo: dizendo ele.
19
Particípio aoristo na voz ativa, masculino, singular, nominativo: tendo ele atormentado-o.
20
Tendo exclamado.
21
Particípio presente na voz ativa, masculino, plural, acusativo: dizendo eles.
22
Em.
23
Ele.
24
Vide RUSCONI, 2003, p. 178: aoristo indicativo ativo de ejxevrcomai espalhar-se, difundir-se.
Literalmente: sair, percorrer.
25
O que se ouve dele.
26
Logo, de repente.
27
Região circunvizinha.
28
Em todo lugar, em toda circunvizinhança da Galiléia: pantacou: eijV o{lhn th;n perivcwron th:V
GalilaivaV corresponde a um pleonasmo, enfatizando o locus. A ênfase por meio de pleonasmo ou
redundância é uma outra característica do estilo literário de Marcos: Cf. TAYLOR, 1972, p.73.
a) tiv ejstin tou:to? tivV hJ didach; hJ kainh; au{th? o{ti kat j ejxousivan~ O que é
isto? Que ensino (ensinamento) novo é este? Que com autoridade [...] Esta leitura é
encontrada nos unciais A e C, nos cursivos da família 13 [ƒ
13
] e na leitura à margem
do cursivo 565 [565
mg
], no texto majoritário ×, nos manuscritos latinos e na Vulgata
[lat] e nas versões siríacas Peshita e heracleana [sy
p.h
].
29
b)[note a omissão de tiv ejstin tou:to?] tivV hJ didach; ejkeivnh hJ kainh; au{th hJ
ejxousiva o{ti~ Que ensino (ensinamento) novo é aquele, que autoridade é esta que
[...] Esta leitura é encontrada nos unciais D e W, e em todos ou na maioria dos
manuscritos latinos antigos [it] e na versão siríaca sinaítica [sy
s
].
30
c) tiv ejstin tou:to? didach; kainh; au{th, o{ti kat j ejxousivan~ O que é isto? Este [é
um] ensino (ensinamento) novo, que com autoridade [...] Esta leitura é testemunhada
no manuscrito uncial Θ e no cursivo 700, sendo que este apresenta pequenas
alterações em relação ao texto em apreço, como é indicado no aparato por meio de
parênteses.
d) O texto do Novum Testamentum Graece, de NESTLE-ALAND, na vigésima
sétima edição, com a versão tiv ejstin tou:to? didach; kainh; kat j ejxousivan~ é
testemunhado pelos unciais א, B, L, pelos cursivos 33, 2427, pelos cursivos da
família 1 [ƒ
1
], pelos originais dos manuscritos cursivos 28 [28*] e 565 [565*] e pelo
cursivo 579.
31
Em termos de idade, tipo de texto e de família textual, a versão crítica de
NESTLE-ALAND leva vantagem em relação a outras variantes segundo a evidência
externa: א (séc. IV, Alexandrino), B (séc. IV, Alexandrino), L (séc. VIII, Alexandrino),
a família dos cursivos 1 (séc. IX, Cesareense), os manuscritos cursivos: 33 (séc. IX,
Alexandrino), 579 (séc. IX, Alexandrino), 2427 (séc. XIV?), são todos textos da
família alexandrina ou textos alexandrinos, com exceção da família dos cursivos 1
que é cesareense. Quanto à evidência interna, a versão crítica de NESTLE-ALAND
29
O aparato indica (por meio de parênteses) que os manuscritos A, ƒ
13
e 565
mg
apresentam pequenas
divergências ou alterações em relação ao texto em apreço.
30
O aparato indica (por meio de parênteses) que os manuscritos W, it e sy
s
apresentam pequenas
divergências ou alterações em relação ao texto em apreço.
31
O aparato expõe que os manuscritos ƒ
1
, 28*, 565*, 579 apresentam pequenas alterações em
relação ao texto da versão de NESTLE-ALAND, a saber, kainh; au{th.
leva em consideração as regras lectio difficilior e lectio brevior
32
, ou seja, o texto
mais difícil e o texto mais breve como os mais próximos do original. O que podemos
inferir a partir desta descrição no que diz respeito aos manuscritos?
Segundo METZEGER o que podemos concluir é o seguinte:
Entre a maioria das leituras variantes, aquela preservada em
א
, B, L, 33 parece
responder melhor pela origem das outras. Sua forma abrupta pedia modificações, e
mais de um copista ajustaram (adaptaram)
33
a fraseologia de um modo ou de outro
ao paralelo em Lc 4.36. O texto também pode ser pontuado didach; kainh;~ kat j
ejxousivan kai;... Mas à luz do verso 22 é preferível colocar kat j ejxousivan com
didach; kainhv.
34
(Tradução própria).
Pode-se notar que os textos de א, B, L pediam modificações, e a assimilação
a Lc 4.36 tem sido um fator de contribuição para tais modificações.
Segundo alguns exegetas, a origem e a existência das variantes, quanto a
esta fraseologia, acontecem a partir de uma suposta forma original tivV ejstin hJ
didach; ejkeivnh?, testemunhado pelo manuscrito latino e em quaenam esset doctrina
haec, paralelo a Lc 4.36 tivV oJ lovgoV ou|toV? Note a ausência da palavra kainhv.
Este argumento da origem e existência de determinadas variantes não parece
plausível ou satisfatório.
Podemos constatar a presença de ejkeivnh na leitura notoriamente confusa:
ejkeivnh hJ kainh; au{th, atestado por D e W e outros manuscritos ocidentais.
Segundo TAYLOR, o acréscimo de ejkeivnh na mesma posição de hJ kainhv
após didachv ou a confusão entre hJ kainhv e ejkeivnh acontece indubitavelmente,
32
Cf. CULLMAN, Oscar. Formação do Novo Testamento. 8. ed. (revisada). o Leopoldo: Editora
Sinodal, 2003. p. 9; WEGNER, 2002, p. 77.
33
WEGNER, 2002, p. 40: As alterações intencionais compreendem todas aquelas que os copistas
efetuaram conscientemente nos textos. Harmonizações: ocorrem, sobretudo, entre os textos dos
evangelhos sinóticos. Quando as diferenças entre os textos dos evangelhos o eram consideráveis,
costumava-se harmonizar os seus conteúdos.
34
METZEGER, Bruce M. A Textual Commentary on the Greek New Testament. 2.ed. Stuttgart:
Deutsche Bibelgesellschaft, 1994, p. 84.
mas é uma exclusividade dos manuscritos ocidentais, enquanto que a maioria atesta
o emprego de kainhv.
35
Esta fraseologia é muito simples para tomarmos qualquer conclusão
antecipada a respeito de qual forma seria a suposta fraseologia original. Por esta
razão, seria mais plausível a teoria das regras lectio difficilior e lectio brevior, as
quais evidenciam que o texto mais difícil e mais breve tende a se aproximar do
original em maior grau. Embora apareça a conjunção o{ti (recitativum) em algumas
variantes, seu emprego e uso são ambíguos.
36
Há vários textos que demonstram uso desta conjunção no Evangelho de
Marcos. O emprego da conjunção o{ti (recitativum) está relacionado ao verbo
levgw.(Mc 1.15, 37, 40; 2.12, 17; 3.11; 6.16, 18, 35; 7.6; 8.16; 9.11, 31; 10.33; 11.3;
12.6,7; 13.21, 24, 26, 30, 38, etc).
Porém, na grande maioria dos textos de Mc, o verbo levgw introduz citações
sem o emprego da conjunção o{ti (recitativum):(Mc 1.24s, 27, 38, 41; 2.5, 8, 10, 14,
18, 24s, 27; 3.3-5, 23, 32s; 4.9, 11, 1321, 24, 26, 30, 38, etc).
O que podemos avaliar é que a regra, segundo a qual o texto se aproxima do
original na medida em que se harmoniza com o estilo e vocabulário do autor, torna-
se insustentável diante destas duas tendências. A solução para este problema seria
a regra do mais breve como a forma mais original. Então, a omissão da conjunção
o{ti (recitativum) seria mais apropriada. Visto que, também, esta conjunção o{ti
(recitativum) aparece em algumas variantes mediante influência do Evangelho de
Lucas (Lc 4.36).
A mesma situação pode ocorrer com as outras palavras acrescidas ao texto
nas diferentes variantes: tivV, ejstin, hJ.
Quanto à posição de kat j ejxousivan na fraseologia, alguns exegetas e
teólogos interpretam que esta locução adverbial deveria estar ligada à frase kai; toi:V
35
TAYLOR, 1972, p. 177.
36
Cf. o parecer de WEGNER sobre o emprego desta conjunção. WEGNER, 2002, p. 77-78.
pneu:masin toi:V ajkaqavrtoiV ejpitavssei [...] (E com autoridade ordena aos espíritos
impuros [...] ).
37
Porém, aqui estaremos diante do mesmo problema de
harmonização de Mc 1.27 com Lc 4.36.
Outros exegetas defendem que é evidente a ligação de didach; kainh; kat j
ejxousivan (ensino novo com autoridade) com h\n ga;r didavskwn aujtou;V wJV ejxousivan
e[cwn (pois estava lhes ensinando com autoridade) do verso 22, que formam um
paralelo.
38
E por esta razão, é preferível unir a locução kat j ejxousivan com didach;
kainhv.
Além do que, a forma didach; kainh; kat j ejxousivan está coadunando com o
próprio estilo redacional de Marcos, o qual salienta e enfatiza o ensino autoritativo e
admirável de Jesus.
RICHARDSON resumiu este problema, afirmando que o ensino e o os
milagres estão ligados pela autoridade de Jesus.
39
Em outras palavras, é a
autoridade mediante o ensino e a prática de Jesus que faz o povo se maravilhar.
40
Parece que é intenção do Evangelho de Marcos ressaltar essa ligação intrínseca do
novo ensino com as práticas miraculosas de Jesus por meio de sua autoridade.
Em conclusão, optamos pela forma mais breve e mais difícil da fraseologia tiv
ejstin tou:to? didach; kainh; kat j ejxousivan como a forma mais próxima do original
diante das argumentações acima apresentadas.
37
Cf. SWETE, 1905, p. 21.
38
Cf. SOARES e CORREIA JR., Sebastião Armando Gameleira e João Luiz. Evangelho de Marcos
Refazer a casa. Vol. 1, Mc. 1-8. Comentário Bíblico NT. Petrópolis: Editora Vozes, 2002. p. 83;
GNILKA, 1986, p. 89, observa que entre os versos 22 e 27 há uma inclusão; TAYLOR, 1972, p. 176,
afirma que: “à luz, porém, de 1.22 h\n ga;r didavskwn aujtou;V wJV ejxousivan e[cwn, é preferível unir a
expressão kat j ejxousivan com didach; kainhv.(Tradução própria). METZEGER é do mesmo parecer
que TAYLOR: Cf. METZEGER, 1994, p. 84; ou p. 6 da presente dissertação.
39
RICHARDSON, Alan. The Miracle Stories of the Gospels. London: SCM Press Ltd, 1963, p.70.
40
TAYLOR, 1972, p. 176
1.3 - Análise ou Crítica Literária
1.3.1 - Delimitação do texto:
A perícope Mc 1.21-28 apresenta um começo, meio e fim, ou melhor,
apresenta três partes diferenciáveis
41
. Sua linguagem é narrativa, e seu gênero
literário é um relato de milagre do tipo exorcismo
42
, caracterizado pelos elementos
que o constituem.
Esta perícope se apresenta como uma unidade literária autônoma, o que
pode ser demonstrado a partir dos seguintes dados:
A perícope anterior - Mc 1.16-20 - apresenta algumas características as quais
se diferenciam das características da perícope de Mc 1.21-28:
A linguagem desta perícope é narrativa, cuja mensagem é o chamado ou
chamamento de quatro discípulos, a saber, Pedro, André, Tiago e João.
A localização é caracterizada pela expressão ‘próximo ao mar da
Galiléia’, o que pressupõe fora ou perto
43
de Cafarnaum, em
contraposição à entrada em Cafarnaum (Mc 1.21).
O tempo ou o momento é caracterizado pela oração ‘passando (ele)
próximo ao mar da Galiléia’ ou ‘quando (ele) passava
44
próximo ao mar
da Galiléia’.
45
41
HENDRIKSEN, William. The Gospel o Mark, 1
st
. Ed. Edinbourgh: The Banner of Truth Trust, 1976,
p. 63; HARGREAVES, John. A Guide to St Mark’s Gospel, TEF Study Guide 2. London: SPCK,
1977, p. 23.
42
GNILKA, Joachim. El evangelio segun san Marcos. 2 volumes. Salamanca: Síqueme, 1986, p.
89; SOARES e CORREIA JR., 2002, p. 82.
43
HENDRIKSEN, 1977, p. 63: “Agora fica claro que a parte da praia na qual Jesus estava
caminhando quando ele chamou os quatro primeiros discípulos era próxima de Capernaum.”
(Tradução própria).
44
Literalmente, de acordo com a conjugação do tempo verbal do particípio no texto grego, o verbo, na
segunda oração, deveria ser conjugado no presente: quando (ele) passa. Pois o particípio está no
tempo presente. Porém, optei pela forma do imperfeito.
45
Note o uso do particípio para indicar uma circunstância temporal ou uma oração adverbial temporal.
Vide A. FREIRE, 2001, p. 240; BETTS, 2004, p. 111-112.
As personagens da narrativa são Jesus, Pedro, André, João, Tiago,
Zebedeu (pai de João e Tiago) e os assalariados.
A perícope posterior - Mc 1.29-31 - apresenta algumas características, as quais
se diferenciam das características da perícope de Mc 1.21-28:
O gênero desta perícope é uma narrativa ou relato de milagre
46
cuja
mensagem é a cura da sogra de Pedro.
A localização é a casa de Pedro e de André.
O tempo ou o momento é caracterizado pela oração ‘tendo (eles) saído
da sinagoga’ ou ‘quando eles saíram da sinagoga’.
As personagens da narrativa o Jesus (ele - sujeito elíptico), sogra de
Pedro, Tiago, João, Pedro, André.
A perícope de Mc 1.21-28 apresenta as seguintes características
diferenciáveis das perícopes anterior e posterior:
Sua linguagem é narrativa, e seu gênero literário é um relato de milagre
do tipo exorcismo.
47
Sua mensagem central é o ensino autoritativo e a
autoridade de Jesus sobre os espíritos impuros.
A localização indicada na perícope é Cafarnaum
48
e a sinagoga.
O tempo é caracterizado pela locução adverbial no sábado
49
, ou
simplesmente pela palavra sábado.
50
46
GNILKA, 1986, p. 96; SOARES e CORREIA JR., 2002, p. 89.
47
GNILKA, 1986, p. 89; SOARES e CORREIA JR., 2002, p. 82.
48
HENDRIKSEN, 1976, p. 63: “Agora fica claro que a parte da praia na qual Jesus estava
caminhando quando ele chamou os quatro primeiros discípulos era próxima de Capernaum.”
(Tradução própria). Ou seja, próximo ao mar da Galiléia da perícope anterior pressupõe ser um lugar
fora ou perto de Cafarnaum em contraposição à entrada de Jesus e seus discípulos em Cafarnaum
(Mc 1.21).
49
Cf. A. FREIRE, 2001, p. 176 e BETTS, 2004, p. 65, sobre os complementos circunstanciais ou
locuções adverbiais de tempo.
Personagens: eles
51
(pressupõe os discípulos junto com Jesus), Jesus,
eles
52
(espectadores na sinagoga), um homem
53
com espírito impuro,
todos (pressupõe espectadores: discípulos
54
e os que estão presentes na
sinagoga).
Podemos afirmar que os versos de 21-28 são autônomos em relação as
perícopes anterior e posterior segundo as características evidenciadas
anteriormente. As indicações de unidade literária autônoma podem ser notadas pela
mudança espacial e temporal - eijsporeuvontai eijV Kafarnaouvm (entram em
Cafarnaum), toi:V savbbasin eijselqw:n eijV th;n sunagwgh;n (no sábado tendo (ele)
entrado na sinagoga) (v.21). Esta mudança de lugar e de tempo indica o início da
perícope
55
. Da mesma forma, ejk th:V sunagwgh:V ejxelqovnteV h\lqen eijV th;n oijkivan...
(a saída da sinagoga e a entrada na casa, v.29) compõe o início da perícope
posterior, ou seja, o verso 28 indica o final da perícope (21-28): a divulgação da
fama ou do que é ouvido sobre Jesus - kai; ejxh:lqen hJ ajkoh; - forma o fechamento
ou término do relato propriamente dito. O início é caracterizado pelos verbos que
indicam entrada como eijsporeuvontai, eijselqw:n enquanto que o término da
perícope é caracterizado pelo verbo que indica saída ou a difusão, como é o caso de
ejxh:lqen
56
. As personagens aparecem aos poucos e de forma gradativa aculminar
no término do relato: eles (pressupõe os discípulos junto com Jesus), Jesus (ele),
eles (espectadores na sinagoga), um homem com espírito impuro, o espírito impuro,
todos (pressupõe espectadores: discípulos e os que estão presentes na sinagoga).
1.3.2 - Estrutura do texto
50
Quanto ao lugar e tempo nesta perícope, cf. DELORME, J. Leitura do Evangelho de Marcos.
11. Coleção Cadernos Bíblicos. 4 ed. São Paulo: Paulus, 1982, p. 38-39 e GNILKA, 1986, p. 89.
51
O pronome pessoal é oculto ou elíptico, porém é designado pela desinência número-pessoal do
verbo: eijsporeuvontai – entram – (eles) entram.
52
O pronome pessoal é oculto ou elíptico, porém é designado pela desinência número-pessoal do
verbo: ejxeplhvssonto – admiraram-se – (eles) se admiraram.
53
GNILKA, 1986, p. 89, afirma que o homem com espírito impuro aparece em segundo plano, detrás
do espírito imundo que o domina.
54
GNILKA, 1986, p. 90, observa que a perícope faz referência aos discípulos no início, aludindo a
estes como acompanhantes de Jesus. No decorrer da narrativa, eles desaparecem para emergir no
verso 29, na perícope posterior. No entanto, o adjetivo enfático a{panteV (todos, v.27) o qual tem
função pronominal, ou seja, de pronome indefinido, não pode indicar com toda precisão se no meio
dos espectadores estavam ou não os discípulos. O adjetivo a{paV é a forma mais enfática de pa:V. Cf.
BETTS, 2004, p. 96; A. FREIRE, 2001, p.39; PERFEITO, Abílio Alves. Gramática de Grego. 7 ed.
Porto: Porto Editora, 1997, p. 47, 61.
55
GNILKA, 1986, p. 89
56
Cf. RUSCONI, 2003, p. 177-178, sobre o significado do verbo.
A perícope de Mc 1.21-28 está estruturada em três partes diferenciáveis:
A. A primeira parte (vv. 21-22) é uma introdução
57
ou a parte inicial que
transmite a prática pedagógica de Jesus, ou seja, o ensino de Jesus e
sua autoridade. Ela marca o início da perícope através das mudanças
temporal e espacial.
B. A segunda parte (vv. 23-26) constitui o relato de exorcismo
58
propriamente dito. Os versos anteriores (21-23) constituíam apenas uma
introdução ao que irá acontecer: a presença de um homem com espírito
imundo (v.23a), a tentativa de resistência (v. 23b 24), a ameaça de
Jesus (v.25a), a ordem de expulsão (v.25b), e a saída do espírito imundo
(v.26).
C. A terceira parte (27-28) enfatiza o efeito do ensino e da taumaturgia de
Jesus sobre as pessoas. Em outras palavras, o verso 27 se constitui
como uma síntese do espanto mediante o ensino e a taumaturgia. o
verso 28 constitui o fechamento e a conclusão do relato propriamente
dito: a difusão da fama de Jesus por toda região circunvizinha da
Galiléia.
59
NESTLE-ALLAND apresenta os versos 21-22 e 23-28 como duas unidades
literárias autônomas
60
. Porém, o que NESTLE-ALLAND não conseguiu explicar é a
ligação dos versos 27-28 com 23-26, os quais têm a ligação mais próxima com os
versos 21-22, principalmente o verso 27. O que é mais admissível é que o texto
como um todo é divido em três partes diferenciáveis interligadas entre si por elos
que formam uma coerência e uma coesão do texto.
57
HARGREAVES, 1977, p.23; WEISER, Alfons. O que é milagre na Bíblia – Para você entender os
relatos dos Evangelhos. 2 ed. São Paulo: Paulinas, 1978, p. 91; HENDRIKSEN, 1976, p. 63;
58
HARGREAVES, 1977, p.23; GNILKA, 1986, p. 89; SOARES e CORREIA JR., 2002, p. 82;
WEISER, 1978, p. 91;
59
Esta estrutura é seguida por HARGREAVES, 1977, p.23, o qual divide este relato em três partes
diferenciáveis: a. o ensino de Jesus (vv. 21-22); b. o exorcismo (23-26); c. o efeito de sua obra sobre
outras pessoas (27-28).
60
NESTLE-ALAND, 1994, p. 90, indica dois parágrafos abertos no v. 21 e no v.23, demonstrando
dois blocos separados: 21-22 e 23-28 como duas perícopes ou sub-perícopes.
O que queremos afirmar é que os versos 27-28, embora formem uma
conclusão do relato de exorcismo no que diz respeito ao espanto diante do feito
miraculoso de Jesus, não deixam de formar uma síntese entre o ensino e a
taumaturgia. Devemos considerar, em última análise, que os versos 27-28 não
concluem o relato de milagre, mas também concluem a introdução que enfatiza a
atividade pedagógica de Jesus.
Em relação a esta estrutura, note a seguinte tabela:
Ensino Síntese e
Conclusão
61
Taumaturgia
A
21. E entram em Cafarnaum; e
logo no Sábado, tendo entrado
na sinagoga, ensinava.
22. Admiravam-se do ensino
dele: pois estava lhes
ensinando como tendo
autoridade e não como os
escribas.
B
23. E logo estava na sinagoga deles um
homem com espírito impuro e gritou 24.
dizendo: O que (há entre) nós e ti,
Jesus nazareno? Vieste nos destruir?
Conheço-te quem és, o Santo de Deus.
25. E lhe repreendeu Jesus dizendo:
cala-te e sai dele. 26. E tendo lhe
atormentado o espírito impuro e tendo
gritado em alta voz e saiu dele.
C
27b. Um ensino novo com
autoridade:
27. E ficaram
abismados todos, a
ponto de discutir
consigo mesmos
dizendo: O que é
isto?
27c. E [com autoridade] aos espíritos
impuros ordena e lhe obedecem.
28. E difundiu-se a fama dele, imediatamente, em todo lugar, em toda circunvizinhança da
Galiléia. (Traduação própria).
62
As partes desta estrutura formam um único corpo literário que expressa uma
mensagem própria.
61
A síntese do ensino e da taumaturgia, e por último, a conclusão e fechamento de todo texto.
62
Tradução própria a partir do texto de NESTLE-ALAND, 1994, p. 90.
Estrutura Simétrica Concêntrica, ou Quiasmo Concêntrico.
A estrutura do texto pode ser construída de forma concêntrica:
A
21. Kai; eijsporeuvontai eijV Kafarnaouvm~
kai; eujqu;V toi:V savbbasin eijselqw:n eijV th;n sunagwgh;n ejdivdasken.
B
22. kai; ejxeplhvssonto ejpi; th:/ didach:/ aujtou:~
h\n ga;r didavskwn aujtou;V wJV ejxousivan e[cwn kai; oujc wJV oiJ grammatei:V.
C
23. Kai; eujqu;V h\n ejn th:/ sunagwgh:/ aujtw:n a[nqrwpoV ejn pneuvmati ajkaqavrtw/
kai; ajnevkraxen 24. levgwn~ tiv hJmi:n kai; soiv. jIhsou: Nazarhnev? h\lqeV
ajpolevsai hJma:V? oi\dav se tivV ei\, oJ a{gioV tou: qeou:.
X
25. kai; ejpetivmhsen aujtw:/ oJ jIhsou:V levgwn~ fimwvqhti kai; e[xelqe ejx aujtou:.
C’
26. kai; sparavxan aujto;n to; pneuvma to; ajkavqarton
kai; fwnh:san fwnh:/ megavlh/ ejxh:lqen ejx aujtou:.
B’
27. kai; ejqambhvqhsan a{panteV w{ste suzhtei:n pro;V eJautou;V levgontaV~ tiv
ejstin tou:to? didach; kainh; kat j ejxousivan~
kai; toi:V pneu:masin toi:V ajkaqavrtoiV ejpitavssei, kai; uJpakouvousin aujtw:/.
A
28. kai; ejxh:lqen hJ ajkoh; aujtou: eujqu;V pantacou: eijV o{lhn th;n perivcwron
th:V GalilaivaV.
A ligação do verso 22 e do verso 27 parece evidente. Os dois versos formam
um paralelismo sinonímico: o ensino de Jesus é admirado pelos espectadores por
causa da sua autoridade, e como um adendo, por causa de sua novidade. A ligação
entre os versos 23-24 e 26 demonstram um contraste entre a resistência do espírito
impuro e o seu fracasso. E por fim, no centro do esquema está a palavra autoritativa
de Jesus.
63
Analisando o texto, podemos notar a harmonia das partes e a inserção da
história de exorcismo (23-26) dentro de uma narrativa que fala de ensino (21-22 +
27-28). Note a intenção redacional de Marcos: tentar unir o ensino à taumaturgia, de
63
Cf. parecer de SOARES e CORREIA JR., 2002, p. 83.
modo que haja um nexo entre estas partes diferenciáveis, sendo sintetizadas no
verso 27.
Agrupamento ou inserção, o texto parece falar de duas tradições históricas
64
:
ensino e taumaturgia. Em outras partes do evangelho de Mc também ocorre este
espanto sobre o ensino e sobre o milagre de Jesus. Mc 6.1-3; 7.37; 10.26; 11.18.
Como foi indicado acima, o texto apresenta três partes com focos precisos:
ensino, taumaturgia e síntese das partes anteriores (conclusão). A passagem de
uma parte para outra é caracterizada por alterações no que diz respeito às
personagens: Personagens da primeira parte: eles (pressupõe os discípulos junto
com Jesus), Jesus (ele), eles (espectadores na sinagoga); da segunda parte: um
homem com espírito impuro, o espírito impuro; da terceira parte: todos (pressupõe
espectadores: discípulos e os que estão presentes na sinagoga). Podemos contatar
alteração de linguagem: um diálogo no meio da narrativa na segunda parte. No
entanto, o uso da conjunção kaiv e do advérbio eujquvV demonstra o nexo existente
entre as partes do texto.
De alguma forma há uma certa continuidade do texto até sua conclusão. Todo
o texto apresenta um tema que serve como fio condutor, amarrando estas partes
diferenciáveis, caracterizado por palavras como: ejxousiva, didachv, didavskw,
ejkplhvssomai, qambevomai, ou seja, autoridade, ensino, ensinar, espantar-se,
admirar-se etc.
65
A intenção é demonstrar a autoridade de Jesus seja no seu
ensino, seja na prática de realizar milagres. Logo o tema é A autoridade do ensino
de Jesus, a qual se faz presente em sua prática milagrosa, torna-se novidade
66
.
É notória a presença destas duas faces no texto: ensino e taumaturgia, no
que diz respeito à integridade e coesão do texto. Porém, sabemos que muito de
64
BULTMANN, Rudolf. The History of the Synoptic Tradiction. New York: Harper & Row,
Publischers, 1963, p. 341, em relação a Mc 1.22, ele fala que o material editorial não pode mais ser
claramente distinguido do material traditivo. Por esta razão, eu denomino o ensino e a taumaturgia
como duas tradições históricas.
65
SOARES e CORREIA JR., 2002, p. 84: o vocabulário do ensinamento aparece quatro vezes em Mc
1.21-28.
66
DELORME, 1982, p. 42: “Ou podemos também estudar a autoridade de Jesus em seu ensinamento
e perguntar-nos em que sentido ele é um ensinamento novo. Seria por causa de seu conteúdo?
Marcos não o diz; mas insiste no poder da palavra”.
um trabalho redacional, que reflete e retroprojeta a situação de então dos primeiros
cristãos para a vida e ministério de Jesus.
É fato que Jesus ensinava e realizava milagres. Mas com certeza, isto foi
pregado e ensinado com maior veemência entre os cristãos contra os judeus
(escribas), enfatizando o ensino de Jesus que era com autoridade e não como os
escribas. Provavelmente a Igreja vivia alguns conflitos com o Judaísmo.
É fato também que Jesus ensinava e isso é testemunhado por vários textos
dos Evangelhos, o que não supõe ser uma mera obra redacional de Marcos, mas um
dado histórico
67
.
Marcos enfatiza essa característica de Jesus como Professor ou Mestre, e ao
mesmo tempo, aproveita uma tradição, como por exemplo, Exorcista ou Curandeiro,
e retoca com a de um Professor
68
.
No texto de Mc 1.21-28, as pessoas se espantam com o ensino de Jesus,
mas o que houve foi um exorcismo. No entanto, qualquer característica de Jesus
tem de passar pelo crivo de sua característica de Mestre, de Professor segundo o
Evangelho de Marcos.
1.3.3 - Integridade e coesão do texto:
O texto não apresenta rupturas grosseiras ou exageradas, disparidades,
contradições, quebras da argumentação, mudanças abruptas de conteúdo e estilo
no que diz respeito à estrutura do texto. Podemos observar dois estratos neste texto:
um de origem pré-marcana e outra que faz parte da obra redacional de Marcos. Na
apresentação das partes, é possível notar os aspectos da redação em torno do
exorcismo.
67
Reforçando a afirmação de BULTMANN, 1963, p. 341, em relação a Mc 1.22, ele fala que o
material editorial não pode mais ser claramente distinguido do material traditivo. Por esta razão.
68
GNILKA, 1986, p. 90, afirma que a preocupação de Mc é apresentar o ensino ou a doutrina de
Jesus. Em outras palavras, apresentar Jesus como um Mestre. MARTIN, Ralph. Mark: Evangelist
and Theologian. Grand Rapids: Zondervan Publishing House, 1976, p.111; BLACK, C.Clifton. The
Disciples according to Mark. Sheffield: JSOT Press,1989, p.74, citando ROBERT MEYE.
Partindo do critério de coesão e coerência das partes de Mc 1.21-28, o texto
diverge: ora elementos estranhos aparecem no texto, como na sinagoga deles (o
que pressupõe os escribas). O advérbio ‘imediatamente’ (logo) mais a locução
adverbial de lugar ‘na sinagoga’ se apresentam como uma ligação dos versos 21-22
ao 23.
Podemos notar ainda que no texto alternância na conjugação verbal no
que se refere ao número-pessoal, como por exemplo, no v. 21 se ‘entram’
(referindo aos discípulos e Jesus), mas no mesmo verso retrata que Jesus entra
na sinagoga: entrando (ele) na sinagoga ensinava. Um outro dado interessante é
que o espírito impuro, embora seja um, faz a pergunta a Jesus como se fosse um
grupo de vários espíritos:
E logo estava na sinagoga deles um homem com espírito impuro e gritou 24. dizendo:
O que há entre nós e ti, Jesus nazareno? Vieste nos destruir? Conheço-te quem és, o
Santo de Deus. 25. E lhe repreendeu Jesus dizendo: cala-te e sai dele. 26. E tendo
atormentado-o o espírito impuro, e tendo gritado em alta voz saiu (o espírito impuro)
dele. (Tradução própria).
A tese de BETTS é que, no Novo Testamento, morfologicamente to; pneuvma
to; ajkavqarton se apresenta no singular e é traduzido como tal. Porém, isto depende
do contexto, ou seja, o contexto pode exigir que haja uma indicação de uma
generalização, e neste caso o número vem a ser plural, mesmo que
morfologicamente esteja no singular. No grego do Novo Testamento, é possível que
isto venha a acontecer.
69
Embora o texto apresente estas particularidades, ele não indica nenhuma
quebra de sentido ou de seqüência. O texto parece estar organizado de modo a
formular um corpo íntegro com sua mensagem própria através do estilo literário e
redacional do autor. Mais adiante poderemos constatar os elementos redacionais
que caracterizam todo este estilo do autor. podemos identificar, previamente,
algumas destas características, como por exemplo, a ênfase no ensino de Jesus.
69
BETTS, 2004, p. 11.
1.4 - Análise Redacional
1.4.1 – Redação do texto
Nesta análise, é preciso salientar a questão sobre a aceitação da perícope
como um todo. SOARES e CORREIA JR. defendem a tese que o texto tenha se
originado em comunidades palestinenses no qual se exalta a atividade exorcista de
Jesus, mas que foi retocado redacionalmente em função de uma nova imagem que o
autor queria comunicar. Ele aponta como obra redacional de Mc os versos 21-22, 27.
Mas também indica o verso 24 como provável obra redacional.
70
BULTMANN
salienta como obra redacional de Mc os versos 21-22, 27-28, e possivelmente o
verso 24.
71
GNILKA apresenta o seguinte parecer:
A frase inicial é obra de Marcos. A indicação de lugar é certamente tradicional, mas
pertence a 1.29ss. Ao nomear Cafarnaum é necessário para determinar a casa se
Simão, não a sinagoga. Assim Marcos tem unido o exorcismo e a cura na casa de
Simão com a ajuda de 21a. O começo original do relato de exorcismo é o 21b... O
verso 22 se deve completamente à redação. A doutrina de Jesus é sua preocupação
especial. Marcos é o sinóptico que mais vezes menciona os escribas. É difícil
determinar o 27 [...]
72
(Tradução própria).
Podemos notar que os próprios pesquisadores apresentam dúvidas a respeito
do que poderia remontar a uma tradição pré-marcana e o que seria obra redacional
de Marcos. Eles apresentam concordância em um fato e discordam em outros: é o
caso de BULTMANN e SOARES e CORREIA JR. quanto ao verso 24, e é o caso do
GNILKA quanto ao 27. Inclusive, GNILKA tenta se apoiar em algumas teses para
poder melhor explicar o problema redacional do verso 27.
Por outro lado, BULTMANN entende que, em relação ao verso 22, a obra
editorial não pode ser mais distinguida claramente da tradição
73
.
O que podemos depreender a partir disto?
70
SOARES e CORREIA JR., 2002, p. 82.
71
BULTMANN, 1963, p. 209.
72
GNILKA,1986, p. 90
73
Cf. nota 64.
Com certeza, retoques redacionais no texto. As teses são controvertidas,
mas em geral elas apresentam uma boa base: pré-marcano mesmo o relato do
exorcismo. Porém, em nada podemos duvidar da atividade pedagógica de Jesus, o
que também é um fato. A ênfase redacional de Mc sobre o ensino de Jesus pode
remontar a uma característica do Jesus Histórico que a comunidade marcana e o
autor de Marcos queriam evidenciar.
ROBERT MEYE emite o seguinte parecer:
Marcos e a comunidade marcana estavam profundamente interessadas no ensino do
Jesus histórico, o qual agora era adorado como o Cristo: eles estavam
comprometidos, em suma, com a didachv messiânica.
74
(Tradução própria).
A partir da Análise Literária, foi-nos evidenciado uma amostra da possível
organização redacional, caracterizada pelo ensino. Poderemos notar que as
evidências redacionais também ocorrem em toda a perícope. Elementos
característicos do estilo marcanos permeiam todo o texto, como poderemos
constatar em seguida:
Analisando as palavras do texto, podemos notar que é característico do estilo
literário e redacional de Mc:
1. O emprego da conjunção aditiva e copulativa kaiv em emprego de parataxe
75
, ora
seja pela influência hebraica da conjunção hebraica
w>
, ora seja pela forma mais
simples e rude do grego. Devemos salientar que o uso da parataxe é comum nos
outros Evangelhos.
2. O uso do presente histórico
76
: eijsporeuvontai (Mc 1.21).
3. O uso do advérbio eujquvV (Mc 1.21,23). Este advérbio aparece constantemente
no evangelho de Mc, mais do que nos outros sinópticos. O advérbio eujquvV é uma
das palavras que mais caracteriza o estilo redacional de Mc.
77
74
Cf. BLACK, 1989, p. 91, cita os resultados exegéticos de MEYE.
75
TAYLOR, 1972, p. 48, 57-58; WEGNER, 2002, p. 147.
76
WEGNER, 2002, p. 147; RABUSKE, 2001, p. 75; TAYLOR, 1972, p. 46; A. FREIRE, 2001, p. 217.
77
Cf.GNILKA, 1986, p. 90, nota de rodapé 30; TAYLOR, 1972, p. 44.
4. O uso exagerado do particípio: eijselqw:n, didavskwn
78
, e[cwn
79
, levgwn,
sparavxan, fwnh:san, legovntaV (Mc 1.21,24-27).
80
5. O uso do imperfeito perifrástico: h\n ga;r didavskwn (Mc 1.22).
81
6. O uso do pleonasmo: pantacou: eijV o{lhn th;n perivcwron th:V GalilaivaV (Mc
1.28).
82
7. O uso da preposição ejn em (que corresponde à preposição hebraica:
B.
) nos
variados tipos de locuções, as quais no grego ático, necessariamente, não eram
empregadas de forma aleatória como no Novo Testamento: a[nqrwpoV ejn pneuvmati
ajkaqavrtw/ (Mc 1.23)
83
.
Neste texto não aparecem casos de latinismo, o que é comum em Marcos
84
.
As formas aramaicas ou hebraicas
85
são encontradas no texto, principalmente
no relato de exorcismo propriamente dito, como toi:V savbbasin (shabat), jIhsou:
Nazarhnev, oJ a{gioV tou: qeou (Ieshua Hanesri-nazri ha-elohim
86
), to; pneuvma to;
ajkavqarton (espírito impuro
ha'm.Juh: x;Wr
87
), o uso de fwnh:/ megavlh/
88
em vez de um
advérbio é uma possível influência aramaica.
Além das que foram citadas acima, temos, possivelmente, a expressão tiv
hJmi:n kai; soiv (Mc 1.24) que pode ter sua correspondente hebraica
%l'w" WnL'-hm
;
89
.
No Evangelho de Marcos, podemos encontrar frases e palavras aramaicas
propriamente ditas (Mc 5.41; 7.34; 14.36; 15.34).
78
Vide o ponto 5. Neste caso, o particípio compõe imperfeito perifrástico.
79
Particípio com função de locução adverbial. A. FREIRE, 2001, p. 240.
80
TAYLOR, 1972, p. 46.
81
TAYLOR, 1972, p. 45.
82
Vide TAYLOR, 1972, p. 44-56, sobre vocabulário, sintaxe e estilo.
83
BETTS, 2004, p. 199; TAYLOR, 1972, p. 173.
84
TAYLOR, 1972, p. 45; KÜMMEL, 1982, p. 116; LOHSE, Eduard. Introdução ao Novo Testamento.
4 ed. São Leopoldo: Sinodal, 1985, p. 145.
85
GNILKA, 1986, p. 90-91.
86
SOARES e CORREIA JR., 2002, p. 86; TAYLOR, 1972, p. 177.
87
SWETE, 1905, p. 19: BULTMANN, 1963, p. 240.
88
BULTMANN, 1963, p. 240.
89
TAYLOR, 1972, p. 174.
O uso da locução adverbial com katav seguida de acusativo, como por
exemplo, kat j ejxousivan, é pouco usual em Mc (vide Rm 4.16 e Fl 2.3, concernente
ao emprego desta preposição para formação da locução adverbial). O uso do
particípio e da preposição ejn é mais freqüente para a formação das locuções
adverbiais. Quanto ao vocabulário, didachv, didavskw, ejxousiva, ejkplhvssomai,
qambevomai são característicos do estilo marcano (vide Mc 11.18, 28).
O espanto ou a admiração diante do ensino ou de um feito milagroso de
Jesus é próprio do estilo de Marcos (Mc 1.21-22,27; 6.1-3;
7.37; 10.26; 11.18).
São características redacionais de Mc a ênfase no ensino de Jesus (ensino:
Mc 1.21-22,27; 2.13; 6.6; 8.31; 10.1; 11.17; 12.35; 14.49.) e a oposição aos
escribas
90
(oposição: Mc 1.22-23, 39; 2.6, 16; 3.22; 7.1, 5; 8.31; 9.11, 14). Além do
que, a palavra grammateu:V consta vinte e uma vezes no evangelho de Mc.
91
Seguindo o processo da delimitação da Análise Literária, ainda podemos
reforçar com a análise da redação e seu contexto menor: com certeza existe uma
ligação das perícopes anterior e posterior.
Com as anteriores, podemos pensar em um ciclo de pregação, seguimento e
ensino. A pregação e ensino têm a ver com palavra autoritativa de Jesus. Além do
que, o chamado e o seguimento estão interligados com a pregação e o ensino de
Jesus, pois ninguém o seguiria se ele ficasse “calado” e “estático”.
Depois do evento na sinagoga em Cafarnaum, foram à casa de Pedro e
André, com Tiago e João (as personagens do seguimento). Agora são personagens
na casa de Pedro e André, onde um outro milagre: o exorcismo do demônio da
febre, ou seja, Jesus cura a sogra de Pedro de uma febre
92
.
Notamos que a ligação do ensino/exorcismo na sinagoga está caminhando
para um outro relato de exorcismo (cura) na casa de Pedro e André.
90
SOARES e CORREIA JR., 2002, p. 85.
91
GNILKA, 1986, p. 90.
92
RABUSKE, 2001, p. 80-81.
Resumindo, poderíamos dizer que: o anúncio do Reino, o seguimento de
alguns discípulos, o ensino, o exorcismo e a cura formam um crescendo da
atuação de Jesus. O Reino já está se aproximando, e as potências do Mal
(possessão e doenças) são aniquiladas.
O Evangelho de Marcos pode ser dividido em várias secções ou partes
93
.
Poderíamos dizer que 1.14-3.6 é a parte onde se situa o evento na sinagoga de
Cafarnaum. Esta secção, do ponto de vista da divisão pelo espaço geográfico, seria
caracterizada pelo ministério galilaico.
94
Do ponto de vista do desenvolvimento do
drama, esta secção pode ser caracterizada pela autoridade de Jesus:
95
a) 1.14-15: Preparação do ministério de Jesus;
b) 1.16-45: Início do ministério de Jesus com autoridade;
c) 2.1-3.6: Jesus provoca a oposição dos seus adversários.
96
Mc 1.21-28 pertence à segunda subunidade, a qual é caracterizada por um
complexo de curas e exorcismos, e finaliza com a divulgação de seus feitos, de
modo que Jesus não podia entrar na cidade publicamente (Mc 1.45).
Segundo o Evangelho de Marcos, o primeiro ato público de Jesus, além do
ensino e da pregação, é o exorcismo na sinagoga de Cafarnaum, um dentre os
quatro primeiros milagres neste ciclo de Mc 1.16-45.
97
Isto mostra como Marcos apresenta aquilo que vai ser o programa do
ministério de Jesus.
98
O ministério de Jesus será caracterizado pelo ensino,
93
Segundo WEGNER, 2002, p. 149, Não unanimidade entre os/ as pesquisadores sobre a
estrutura do Evangelho de Marcos.” As divisões ou esquemas dependem da ênfase do pesquisador
em determinados enfoques dentro de Mc, por exemplo, a organização do livro pode ser de acordo
com o quadro geográfico, com o desenrolar do drama, com a trama, ou com a relação de Jesus entre
as pessoas. Cf. DELORME, 1982, p. 35; SOARES e SOARES e CORREIA JR., 2002, p. 33-37.
Nossa estrutura está baseada no quadro esquemático segundo SOARES e CORREIA JR., 2002, p.
33, 35; WALTERS Jr., Carl. I, Mark: a personal encounter. Atlanta: John Knox Press, 1980, p. 72-
73; TAYLOR, 1972, p. 107ss; na divisão de Mc proposta por SCHWEIZER, Eduard. The Good News
According to Mark. London: SPCK, 1970, p. 44ss; GNILKA, 1986, p. 91-92; WEGNER, 2002, p.
149.
94
SOARES e CORREIA JR., 2002, p. 33.
95
SCHWEIZER, 1970, p. 44ss; DELORME, 1982, p. 35.
96
Vide WEGNER, 2002, p. 149.
97
Cf. RABUSKE, 2001, p. 251; SOARES e CORREIA JR., 2002, p. 70.
pregação, curas e exorcismos. O mais interessante é que a subunidade começa com
o chamamento e seguimento dos discípulos. A pregação e o ensinamento continuam
na sinagoga, porém ligados ao exorcismo; depois, continua o exorcismo (cura) na
casa de Pedro e André; após isto, aparecem curas, exorcismos e pregação (ensino);
e finalmente, fecha o ciclo com a pregação e purificação do leproso na sinagoga.
Entre estes vários textos, perpassa a mesma mensagem: pregação, cura, ensino,
exorcismo, com autoridade.
Esquematicamente, a secção de Mc 1.16-45 estaria organizada assim:
1.21-28: Ensino, exorcismo do espírito impuro;
1.29-31: Jesus cura a sogra de Pedro (exorcismo?
99
);
1.32-38: Curas, exorcismos, pregação, ensino;
1.39-45: Pregação, exorcismos, purificação do leproso (impuro).
O ministério estaria caracterizado por estes atos de Jesus: sua característica
de Mestre vinha acompanhada da de Taumaturgo.
Podemos perceber um tom de oposição aos escribas em alguns destes textos
como em Mc 1.22-23,(24?), e 39. O que pressupõe ser uma característica redacional
de Marcos, como tínhamos visto antes.
podemos constatar que Marcos assume o suposto embate da Igreja com o
sistema judaico, e faz uma retroprojeção aos tempos de Jesus: remonta à autoridade
de Jesus, e enfatiza a falta de autoridade dos escribas quanto ao ensinamento e
sobre o espírito impuro que se encontra no ambiente que supostamente deveria
estar puro.
100
Será que ele não exagera nesta redação: sinagoga deles e não como os
escribas? Pois comparando Mc 1.21-28 com Lc 4.31-37, percebemos que não
este tipo de contraposição entre Jesus e os escribas em Lucas, mas enfatiza a
autoridade no seu ensino.
101
98
Cf. RABUSKE, 2001, p. 251.
99
Vide NOLAN, Albert. Jesus antes do Cristianismo. 4 ed. São Paulo: Paulus, 1987, p. 45;
SOARES e CORREIA JR., 2002, p. 91; RABUSKE, 2001, p. 81.
100
SOARES e CORREIA JR., 2002, p. 85-86; RABUSKE, 2001, p. 215-216.
101
RABUSKE, 2001, p. 215-216.
Percebemos que os versos 21-22 e 27 compreendem a obra redacional do
próprio autor, que tenta enquadrar o exorcismo juntamente com o ensino de Jesus.
Notamos que o verso 27 efetua uma síntese dos dois blocos: do ensino (21-22) e da
taumaturgia (23-26). Comparando com Lc 4.31-37, podemos averiguar que Lc 4.36,
paralelo a Mc 1.27, cita a palavra lovgoV em vez de didachv. Isso indica que Lc tenta
fechar o exorcismo com um espanto diante desta palavra” autoritativa de Jesus, o
que pressupõe que o texto do exorcismo deveria ter justamente este final, como uma
unidade autônoma, finalizando totalmente no verso 37: com princípio, meio e fim. Mc
leva a uma síntese destas duas unidades, tentando unir o ensino e a taumaturgia
como parte da práxis de Jesus, que estão intimamente ligadas.
Não podemos deixar de levar em consideração que a palavra lovgoV pode ter
vários significados, dependendo do contexto, entre eles: ensino, discurso, pregação.
Se seguirmos estes significados, com certeza, estaremos com uma síntese do
mesmo porte em Mc e Lc.
Quanto a Mc 1.24, há um diálogo sui generis entre Jesus e o endemoninhado.
De todos os relatos de milagre-exorcismo em todo o Evangelho, dois apresentam
este tipo de diálogo: O relato do exorcismo do endemoninhado de Cafarnaum (Mc
1.21-28; Lc 4.31-37) e do gadareno (Mc 5.1-20; Mt 8.28-34; Lc 8.26-39). No entanto,
não podemos negar que Marcos faz uma alusão a este tipo de diálogo (ou embate)
entre Jesus e o endemoninhado em algumas passagens do Evangelho (Mc 1.34; Mc
3.11-12). Se levarmos em consideração que estes textos fazem parte de um
conjunto de textos referentes ao silêncio, epifania secreta ou ao segredo
messiânico
102
e que o segredo messiânico é uma característica do próprio estilo
redacional de Marcos
103
, logo, o diálogo de Mc 1.24 seria uma obra redacional de
Marcos, com o objetivo de chamar a atenção para a pessoa de Jesus.
102
Vide TAYLOR, 1972, p. 174-175; WEISER, 1978, p. 92.
103
Nem todos concordam que o segredo messiânico seja obra redacional de Marcos. CULLMAN,
2003, p.26: A menção desse segredo messiânico de Jesus, característica do segundo evangelho,
não é necessariamente uma invenção do evangelista, como se afirmou (Wrede), mas pode
perfeitamente provir de uma lembrança exata da Tradição oral, lembrança à qual Marcos deu uma
importância particular.”
Quanto a este problema do segredo messiânico, várias hipóteses sobre as
quais não entraremos em detalhes
104
.
Podemos notar que esta ênfase em Jesus como Professor, assim como na
oposição e autoridade de Jesus em relação aos escribas, sem deixar de levar em
consideração o espanto seja pelo ensino seja pela taumaturgia, o características
do redator de Mc. Estas características redacionais em nada põem em dúvida o fato
histórico em relação ao ato de ensinar de Jesus.
Em suma, deveríamos salientar que o texto se enquadra com a proposta
redacional de Marcos: o emprego da conjunção aditiva e copulativa kaiv em
emprego de parataxe (em toda perícope de Mc 1.21-28); assim como o uso do
advérbio eujquvV; o uso do presente histórico; o imperfeito perifrástico; o uso
exagerado do particípio; o pleonasmo; o semitismo ou aramaísmo; e a apresentação
de um Jesus taumaturgo e didavskaloV (professor), enfatizando sua pregação,
ensino e praxe.
Ligada a esta apresentação de Jesus professor e taumaturgo está sua
autoridade, a qual Marcos sempre coloca em posição mais elevada do que a dos
escribas. Os receptores deste tipo de texto possivelmente estavam num ambiente
onde havia toda uma celeuma diante da pureza e impureza, do confronto com os
escribas e com o Judaísmo, da tentativa de mostrar que os escribas não têm
nenhuma autoridade até mesmo dentro da casa deles (sinagoga). Daí, Marcos
apresenta o Escriba dos escribas, o verdadeiro Mestre, Jesus. Este, sim, tem
autoridade para ensinar e curar.
1.5 – Análise ou Crítica das Formas
Gênero e caracterização formal: A estrutura ou a moldura do texto de Mc
1.21-28 é caracterizada como um gênero narrativo: história de milagre-exorcismo
105
,
104
Vide KÜMMEL, 1982, p. 105-109; LOHSE, 1985, p. 140-141.
105
WEGNER, 2002, p. 190, 192.
embora também seja caracterizado como um paradigma menos puro
106
por se tratar
de um relato que se desenrola em torno de uma ou mais palavras de Jesus. De uma
forma ou de outra, ficaremos com a primeira hipótese: gênero de milagre, do tipo
exorcismo.
Embora o exorcismo apresente uma estrutura e estilo uniforme, no caso de
exorcismo em Cafarnaum e em Gadara, uma característica que não aparece em
nenhum outro caso de exorcismo: o diálogo do possesso com Jesus.
Geralmente o exorcismo é caracterizado nestes moldes e estrutura
107
:
Indicações do quadro mórbido.
Tentativa de defesa ou resistência do espírito impuro ou do demônio e o
reconhecimento do poder de Jesus.
Pergunta pelo nome do demônio;
Palavra autoritativa de Jesus de expulsão ou exorcismo;
Saída do demônio ou entidade mediante demonstração de seus poderes;
Êxito do exorcismo;
Reação dos espectadores.
O relato de exorcismo em Mc 1.21-28 apresenta uma estrutura semelhante
108
:
a) presença do espírito impuro – v.23a;
b) tentativa de resistência – v.23b-24;
c) ameaça do exorcista – v.25b;
d) saída do espírito impuro – v.26;
e) reação dos espectadores – v.27-28.
O sitz im leben deste tipo de gênero pode ser variado, pois não há um
consenso entre os pesquisadores. Alguns pesquisadores defendem que o gênero
milagre foi utilizado para enfatizar os poderes messiânicos de Jesus e sua divindade.
Outros sustentam a tese que tal gênero não poderia ser usado na pregação
missionária.
109
106
WEGNER, 2002, p. 184-185, 190.
107
WEISER, 1978, p. 91-92; WEGNER, 2002, 192; SOARES e CORREIA JR., 2002, p. 82.
108
BULTMANN, 1963, p. 209-210; SOARES e CORREIA JR., 2002, p. 82
109
WEGNER, 2002, p. 195.
Embora a narrativa de milagre tenha a intenção de legitimar e exaltar Jesus
como um terapeuta singular, não devemos desconsiderar que este tipo de gênero
também poderia ter sido utilizado no meio missionário.
O que constatamos foi uma possível utilização desse texto no meio
missionário
110
(como por exemplo, nas sinagogas; o início do trabalho missionário de
Paulo nas sinagogas reflete bem esse tipo de contexto: Atos 13.14-47; 14.1; 17.1-
13)
111
. Isto não exclui que possa ter sido usado também para ensino ou catequese,
embora DIBELLIUS defenda que o gênero discursivo sirva como melhor exemplo
para fins catequéticos e didáticos
112
.
Mesmo assim, examinamos que esse tipo de gênero possa ter sido utilizado
para exaltar a pessoa de Jesus mediante feitos miraculosos e mediante seu ensino
frente aos professores da Lei, enfatizando seu ensino e sua taumaturgia com mais
autoridade em contraste com as práticas dos professores da Lei.
Isto pode, perfeitamente, refletir a ruptura entre a Igreja e o Judaísmo. O seu
lugar vivencial pode ter sido o ambiente palestinense.
Intencionalidade: Se este gênero vem do meio missionário, o texto teria a
intenção de preparar os pregadores para esclarecer a seus ouvintes quão ampla era
a liberdade através da qual Jesus ensinava e pregava sobre o Reino de Deus que
acolhe todos.
110
SOARES e CORREIA JR., 2002, p. 84; WEGNER, 2002, p. 195; GNILKA, 1986, p. 96;
HENDRIKSEN, 1976, p. 76, afirma que “Não só judeus mas também homens tementes a Deus do
mundo gentio pessoas que tinham trocado a idolatria e a imoralidade do paganismo pelo judaísmo
freqüentavam a sinagoga nas regiões onde Paulo, etc. realizavam seus trabalhos missionários, é
claro que a sinagoga foi usada por Deus como um dos mais importantes e poderosos meios para a
difusão do evangelho entre os judeus e gentios.” (Tradução própria).
111
COLLIN e LENHARDT, Matthieu e Pierre. Evangelho e tradição de Israel. Nº 58. Coleção
Cadernos Bíblicos. o Paulo; Paulus, 1994, p.21; SOARES e CORREIA JR., 2002, p. 84. Segundo
GNILKA, 1986, p. 91, a apresentação de Jesus como mestre na sinagoga é um reflexo da situação
missionária de sua comunidade.
112
WEGNER, 2002, p. 173.
SCHWEIZER afirma que a história de milagre inserida nesta perícope deva ter
sido
recontada como se tivesse sido repetida várias vezes no ambiente da igreja,
como se ela tivesse sido usada para pregação e instrução.
113
Se considerarmos este texto como um advindo do ambiente catequético, sua
intencionalidade seria a de instruir sobre a autoridade de Jesus como Mestre e
Taumaturgo e sobre a reverência aos seus ensinamentos.
114
“O milagre é uma
evidência da autoridade do ensino de Jesus”.
115
(Tradução própria). Em outras
palavras, os milagres servem como um reforço ao ensino de Jesus.
116
1.6 - Algumas Considerações
Dois fatos que temos certeza a respeito de Jesus: ele ensinava e foi
crucificado.
117
Com certeza temos relatos dessa prática de Jesus em todos os
Evangelhos intra-canônicos e extra-canônicos como o Evangelho de Tomé.
As referências, que ele ensinava e que ele era um Professor ou Mestre, se
apresentam em todos os Evangelhos. Em Mc Jesus é chamado de didavskaloV
118
pelo menos 10 vezes (4.38; 9.17, 38; 10.17, 20, 35; 12.14, 19, 32; 13.1); em Mt, pelo
menos 6 (8.19; 12.38; 19.16; 22.16, 24, 36); em Lc, pelo menos 10 vezes (7.40;
113
SCHWEIZER, 1970, p. 50; RICHARDSON, 1963, p. 70, 74.
114
WEGNER, 2002, p. 223.
115
SCHWEIZER, 1970, p. 50.
116
THEISSEN e MERZ, 2002, p. 251.
117
Cf. GOERGEN, Donald J., O.P. The Mission And Ministry of Jesus a Theology of Jesus
Series. Volume 1. Disponível na Internet. http://www.op.org/don/mismin/mismin07.htm. Acesso em:
25 de jul. 2006. , que cita T. W. Manson, "The two most certain facts in the gospel tradition are that
Jesus taught and that He was crucified." Disponível na Internet.
<http://www.op.org/don/mismin/mismin07.htm>. Acesso em: 25 de jul.2006.
118
THEISSEN e MERZ, 2002, p. 381, expõe o seguinte: tanto Mc como Jo trazem consigo uma parte
da Tradição que apresenta Jesus como Rabi. Como este título não pode ter sofrido nenhuma
intervenção ou influência pós-pascal, ele é considerado uma Tradição confiável.
8.24; 9.38, 49; 10.25; 18.18; 20.21, 28, 39; 21.7).
119
A palavra hebraica ou aramaica
yBir:
, ou sua transliteração grega rJabbiv - rabi ocorre três vezes em Mc
120
.
O mais interessante é que esse título no Evangelho de Tomé parece ser o
mais expressivo. Jesus perguntou aos seus discípulos com que ele se assemelhava
e cada qual respondia: Simão Pedro diz que ele é Um Anjo Justo; Mateus diz que
ele é Um Sábio Filósofo; e por último Tomé expressa, chamando Jesus de Mestre,
ou Professor (no copta sa
sasa
saH
HH
H), que sua boca seria incapaz de dizer algo a respeito
dele. Tendo afirmado isso, Jesus diz a Tomé que ele não era mais o seu Mestre,
pois Tomé “bebeu da fonte borbulhante a ponto de se embriagar”, ou seja, tinha
aprendido bastante de suas palavras
121
.
Não se trata de querer interpretar o Evangelho segundo Tomé, mas notar um
testemunho de Jesus como Professor ou Mestre, e que pode atestar sua prática
pedagógica.
A prática pedagógica de Jesus era conhecida nos outros evangelhos através
do verbo didavskw
122
seja como forma de pregação, seja como forma de ensino: (Mc
2.13; 6.6; 10.1; 12.35; 14.49; Lc 4.15; 13.22, 26; 19.47; Mt 9.35; 11.1); (Mc 1.21-22;
8.31; 11.17; Mt. 5.2; 21.22; Lc 5.3, 17; 6.6; 13.10).
Em Mc 1.22 diz: pois (Jesus) estava lhes ensinando como tendo autoridade e
não como os escribas. Como vimos antes, isto é um resultado dos conflitos entre
o Cristianismo em relação ao Judaísmo. uma tendência de distanciar Jesus dos
Escribas e Fariseus, e assim elevar suas práticas acima das dos Escribas. Pode ter
119
ROBBINS, Vernon K. Jesus the teacher: a socio-rhetorical interpretation of Mark.
Philadelphia: Fortress, 1984, p. 88 e MARTIN, 1976, p. 111, constataram a ocorrência desta palavra
12 vezes em Marcos. BLACK, 1989, p. 86, citando ROBERT MEYE, constatou a ocorrência desta
palavra 12 vezes em Marcos e Mateus, e 17 em Lucas.
120
yBir:
ou sua transliteração grega rJabbiv é o sinônimo de didavskaloV. Algumas fontes cristãs do
período anterior ao ano 70 atestam a correspondência destas palavras. Cf. THEISSEN e MERZ,
2002, p. 381; RUSCONI, 2003, p.130, 406.
121
MEYER, Marvin. O Evangelho de Tomé As Sentenças Ocultas de Jesus. Interpretação de
Harold Bloom. Rio de Janeiro: Imago, 1993, dito 13, p.39.
122
ROBBINS, 1984, p. 88 e TAYLOR, 1972, p. 172, catalogaram 17 vezes a ocorrência da palavra
em Mc. Enquanto SCHWEIZER, 1970, p. 50 e MARTIN, 1976, p. 111, catalogaram 15 vezes a
ocorrência da palavra em Mc. BLACK, 1989, p. 86, citando ROBERT MEYE, faz a seguinte
constatação: o número de ocorrências de didavskein (17) é o mesmo em Marcos e Lucas, somente
três vezes mais do que em Mateus.”
havido conflitos entre Jesus e os Escribas por causa da Torah, Halachah
123
, e
conseqüentemente em relação à Autoridade. Agora isto ganha novos retoques e são
mais acentuados por causa dos conflitos existentes. Aqui podemos analisar que isso
se trata de uma forma que reflete a situação da Igreja. Por outro lado, podemos
notar que a atitude de ensinar na sinagoga não é sui generis. Qualquer homem
maior de idade poderia ensinar, desde que tivesse a permissão do presidente da
Sinagoga (Lc 4.14-21). Pois na sinagoga não ministros clericais
124
. Mas é
possível que Jesus se sobressaísse na interpretação das Escrituras como Mestre, e
o redator de Mc quis dizer mais sobre isso, diferenciando-o dos Escribas.
Além de dois fatos que Jesus ensinava e foi crucificado, podemos acrescentar
mais um: a taumaturgia. Seja como curas ou exorcismos, estes são atestados pelos
seus amigos e inimigos. Mesmo os que eram contrários à prática de Jesus, não
questionavam os milagres que ele realizava (Mc 3.23). Por outro lado, a taumaturgia
de Jesus é atestada em todos os Evangelhos intracanônicos
125
e também em
escritos extrabíblicos como o Talmud Babilônico
126
, o qual chama esta prática de
magia.
A pergunta é: O evento do exorcismo se deu num típico dia de Sábado, numa
sinagoga quando Jesus estava ensinando, conforme cita o texto de Mc 1.21-28?
Segundo a análise literária podemos constatar duas feições do texto: uma que
representa o ensino e outra que representa a taumaturgia. Também constatamos
pela análise redacional, que Mc 1.21-22, (24?) e 27 constituem a obra redacional de
Mc. De fato, Marcos retrata um dia de sábado de um homem Galileu que freqüenta a
sinagoga e lá ensina. E poderia ter sido este o costume de Jesus. Mas não podemos
atestar com toda certeza se o evento do possesso se deu naquele mesmo ambiente
e da mesma forma e com os mesmos detalhes.
123
MATERA, Frank. Ética do Novo Testamento: Os legados de Jesus e de Paulo. São Paulo:
Paulus, 1999, p. 36-43.
124
SOARES e CORREIA JR., 2002, p. 86.
125
WEGNER, 2002, p. 192-194; RABUSKE, 2001, p. 252-253: Não motivos para se duvidar da
historicidade em sentido geral, não havendo razões suficientes para que se possa negar o fato de
que Jesus tenha se servido da atividade exorcística em sua prática”.
126
SOARES e CORREIA JR., 2002, p. 82.
O que podemos constatar é que o relato do exorcismo foi trabalhado por
Marcos e englobado dentro da obra redacional do evangelho. Isto nos leva a crer
que Marcos tenha, de acordo com uma situação típica de Jesus de freqüentar a
sinagoga no dia de sábado assim como de ensinar lá, ambientado o exorcismo na
sinagoga. É notório e certo que Jesus tenha realizado exorcismo na região ao redor
de Cafarnaum, inclusive em Cafarnaum; porém, todos os outros detalhes devem ter
recebido influências e alteração no processo traditivo.
127
De acordo com a análise literária e a análise das formas, podemos constatar
que não há nenhuma evidência concreta do grau de historicidade na perícope de Mc
1.21-28. No entanto, não queremos dizer que os acréscimos redacionais não
apresentem nenhum dado histórico, pelo contrário, Jesus é caracterizado como
aquele que ensina.
128
Porém, Marcos quis apresentar mais detalhes que dizem
respeito a Jesus, como a taumaturgia da qual se apropriou para formular toda a
história a respeito de sua autoridade e ministério.
Gostaria de destacar a característica de Jesus como didavskaloV e seu
ensino. Nos capítulos seguintes, procuraremos aprofundar este tema, tentando
expor o quadro histórico no contexto de Jesus e a característica de Jesus no que diz
respeito a seu ensino em relação aos mestres e às instituições de seu tempo. É
justamente com este aspecto de Jesus como mestre que pretendemos expor e
tentar entender seu contexto. Neste capítulo, observamos algumas características
literárias, redacionais e formais do texto.
O capítulo subseqüente apresentará o aspecto histórico do grupo de ensino, a
instituição e o conteúdo deste ensino no ambiente de Jesus.
O terceiro capítulo apresentará as prováveis características de Jesus como
Mestre, sua relação com estes grupos e instituição. E para finalizar, retomaremos os
aspectos do ensino de Jesus, sua novidade e sua autoridade à luz do Evangelho de
Marcos, especificamente em Mc 1.21-28.
127
RABUSKE, 2001, p. 253.
128
BULTMANN, 1963, p. 341, em relação a Mc 1.22, ele fala que o material editorial não pode mais
ser claramente distinguido do material traditivo.
CAPÍTULO II
O CONTEXTO VIVENCIAL DA PRÁTICA DE ENSINO DO JESUS MARCANO, A
PARTIR DE MC 1.21-28
2.1 - Carfanaum
O centro da atividade de Jesus ficava situado à margem norte do Mar da
Galiléia.
129
É justamente em Cafarnaum que o chamado dos quatro discípulos
(Mc 1.16-20) e onde se situava a casa de Pedro e André (Mc 1.29). Possivelmente,
Cafarnaum seria a base da atividade peripatética ou itinerante de Jesus e seus
discípulos.
O nome desta Cidade não é citado no Antigo Testamento.
130
É interessante a
variante do nome de Cafarnaum em alguns manuscritos: Capernaum.
131
Cafarnaum,
em hebraico
~Wxn: rp:K.
significa ‘vila de Naum’.
132
Alguns estudiosos têm identificado
esta Cidade com a moderna Cidade de Tell-Hum, na Praia noroeste do Mar da
Galiléia, que dista duas milhas da entrada do Jordão.
133
Cafarnaum era uma Cidade de população tipicamente judaica. Ela ficava
entre os limites dos territórios de Antipas e Filipo. Lá havia a alfândega (Mc 2.14) e a
129
Cf. THEISSEN e MERZ, 2002, p. 187; SOARES e CORREIA JR., 2002, p. 83.
130
TAYLOR, 1972, p. 171; SWETE, 1905, p. 17.
131
Vide NESTLE – ALAND, 1994, p. 90, referente à variante de Kafarnaouvm.
132
SOARES e CORREIA JR., 2002, p. 83.
133
TAYLOR, 1972, p. 171; SWETE, 1905, p.17.
guarda (Mt 8.5-13). Situava-se na região da Galiléia
134
, tida como a região de
gentios e estrangeiros. Este cognome de Galiléia dos gentios se deu mediante a
invasão assíria sobre o reino do Norte, precisamente na região dos samaritanos, e
por causa da imigração ou da invasão estrangeira para região Galiléia.
A Galiléia, ainda no período dos Macabeus, era tida como região dos
estrangeiros. Porém, é neste período que uma minoria judaica que estava pede
ajuda aos judeus (I Mc 5.14s). E em seguida, Simão, filho de Judas Macabeu, leva-
os para Judéia (I Mc 5.21ss). No período de Aristóbulo (104-103 a.C.), esta região
passa por um período de rejudaização Aristóbulo uniu a Galiléia à Judéia. No
tempo de Jesus, quase toda a população da Galiléia era de influência judaica ou
constituída de judeus, principalmente nas aldeias e lugares interioranos
135
. Naquela
região se falava o aramaico galilaico, que era um dialeto do aramaico, embora o
grego fosse falado, principalmente em duas cidades, Séforis e Tiberíades, por
influência grega. Coletores de impostos como Levi, deveriam ter um conhecimento
do grego para exercer sua profissão.
136
Na verdade, a Galiléia era um enclave judeu
entre as cidades helenísticas como Tiro ao norte, Ptolemaida a noroeste; ao sul fazia
fronteira com Samaria, cuja cidade central, Sebaste, era uma cidade totalmente
helenística. Além destas, havia, para além do rio Jordão, uma união de dez cidades–
estado helenísticas, chamada de Decápole.
137
A atuação de Jesus nesta região compreende toda a área em torno do Mar da
Galiléia, isto é, Cafarnaum, Mágdala, Corazim, Betsaida, ou em regiões vizinhas da
Galiléia, como Tiro, Sidon, Cesaréia de Filipe (Mc 8.27ss) e Decápole (Mc 5.1ss).
138
Quanto à religiosidade desta região, é difícil criar um quadro galilaico.
Principalmente por causa da unilateralidade de testemunho judaico sobre aquele
134
Este nome vem da palavra hebraica galil, o que significa círculo. Em tempos anteriores esta região
compreendia aproximadamente as tribos de Zabulom, Issacar, Aser, Naftali e uma parte de Dã.
GNILKA, 1986, p. 80.
135
GNILKA, 1986, p. 80.
136
THEISSEN e MERZ, 2002, p. 190.
137
GNILKA, 1986, p. 80; THEISSEN e MERZ, 2002, p. 190-191.
138
THEISSEN e MERZ, 2002, p. 189. GNILKA, 1986, p. 80-81. Marcos salienta a importância da
Galiléia no quadro da atuação de Jesus. Possivelmente há uma intenção teológico-redacional por trás
desta ênfase. Por outro lado, parece claro que podemos fixar, através de alguns dados topográficos,
centros da pregação de Jesus.
povo. Os habitantes da Judéia não reconheciam os habitantes da Galiléia como
pessoas educadas e inteligentes. Os judeus os tinham como pessoas
descumpridoras e desdenhadoras da Torah. NOLAN afirma que a possível
desvantagem de Jesus na sua sociedade seria a de ser um Galileu, embora isso
se aplique mediante os habitantes de Jerusalém.
139
São poucas as fontes que nos permitem entender como era o comportamento
religioso daquele povo. Ao que tudo indica, os galileus tinham apego ao Templo, isto
se comprova pelas peregrinações (Cf. Lc 2.41ss.). Depois que erigiram uma estátua
de Calígula no Templo, os galileus e judeus se juntaram em Tiberíades para
manifestar sua indignação frente à profanação do lugar sagrado.
140
A crítica por
parte de alguns indivíduos para com o templo advém da própria ligação que estes
tinham com o templo. Por outro lado, podemos notar que havia lugares para
arrecadação de dízimos e tributos ao templo voluntariamente na região da Galiléia
(Cf. Mt 17.24-27.).
Todos estes dados nos permitem entender que a sociedade galilaica não
parecia ser tão distante do templo e de sua responsabilidade religiosa. Embora a
maioria da população tivesse uma ligação com o judaísmo, por isso deduzimos que
sua vida judaica estava embasada na Torah, o podemos afirmar que a Halachah
farisaica predominasse na Galiléia no tempo de Jesus.
A pergunta é: o que ensinavam os escribas, que liam a Torah na sinagoga, no
dia de Sábado, na Galiléia? Conhecemos muito pouco sobre grandes escribas que
liam e ensinavam a Torah nas sinagogas da Galiléia, com exceção de Jesus e de
poucos, como Judas Galileu.
141
Pouco se conhece sobre a Halachah galilaica. Mas ao que tudo indica, os
galileus tinham muito apreço pela Torah: o protesto de João Batista contra a
manipulação liberal das leis matrimoniais praticada pelos herodianos; e a revolta dos
camponeses em Tiberíades contra as imagens de animais no Palácio de Herodes;
139
NOLAN, 1987, p. 48; ver Jo 7.41-49.
140
THEISSEN e MERZ, 2002, p. 198.
141
THEISSEN e MERZ, 2002, p. 199; e sobre Judas galileu, ver CROSSAN, John Dominic. O Jesus
histórico: a vida e de um camponês judeu do mediterrâneo. Coleção Bereshit. Rio de Janeiro:
Imago Editora Ltda, 1994, p. 139-159.
fazem-nos compreender um pouco desta religiosidade popular galilaica, fundada na
crença da Torah.
142
Por motivos de distância geográfica, ou de costumes, é verdade que os
galileus relativizavam ou radicalizavam as leis referentes à Torah. Talvez isto
demonstre a atitude de Jesus diante dos mandamentos relativos à pureza.
Em suma, é evidente que no tempo de Jesus a Galiléia era uma região com
influência judaica, e que os seus habitantes eram ligados ao templo e seguiam os
preceitos da Torah em sua forma local. Infelizmente, o ambiente galileu do ensino de
Jesus foi coberto pela influência rabínica posterior e pelo cristianismo, e por esta
razão, isto nos impossibilita de ter um conhecimento direto sobre o ambiente Galileu
do ensino de Jesus.
2.2 - A Sinagoga
A palavra sinagoga vem do grego sinagwghv e significa assembléia,
ajuntamento, reunião
143
ou lugar de reunião
144
. A sinagoga não era o templo, mas
uma casa de oração e de leitura das Escrituras.
145
Templo havia um, em
Jerusalém. A maioria das vilas e cidades tinha sua sinagoga, onde os judeus se
reuniam para orar no sábado (nos outros dias da semana ela servia como escola) de
modo que havia várias sinagogas espalhadas pela Palestina.
146
É possível que a sinagoga realizasse seus ofícios no sábado
exclusivamente. Posteriormente, antes mesmo do período neotestamentário, os
serviços passaram a ser realizados também nos dias de festas. No tempo de Jesus,
142
THEISSEN e MERZ, 2002, p. 199.
143
Cf. RUSCONI, 2003, p. 436; SOARES e CORREIA JR., 2002, p. 84; TAYLOR, 1972, p. 172.
144
Cf. J. MORWOOD e J.TAYLOR, 2002, p. 305; HARGREAVES, 1977, p. 23.
145
SOARES e CORREIA JR., 2002, p. 84.
146
HARGREAVES, 1977, p.23; TAYLOR, 1972, p. 172.
é possível que ela funcionasse em outros dias da semana como uma espécie de
tribunal judiciário ou escritório de advocacia.
147
A sinagoga se constituía como uma instituição laica, ou seja, dirigida por
leigos, o que pressupõe uma influência dos fariseus neste ambiente.
148
Os escribas
tinham sua contribuição didática e pedagógica neste centro de ensino, e eles tinham
a tarefa particular de ensinar e de liderar.
149
DANA explica: O ensino era
administrado por escribas ou rabis, especialmente preparados para este fim, e
separados para este serviço por meio de especiais cerimônias de ordenação”.
150
Quanto à origem exata das sinagogas, é desconhecida
151
. É evidente que no
período do Novo Testamento, a sinagoga era considerada como uma instituição
antiga e bem estruturada. Alguns supõem que a sinagoga surge num período pós-
exílico. Porém, com certeza, elementos constitutivos do modo laico da sinagoga
podem ter sua origem desde os tempos do cativeiro, quando o povo estava distante
do templo.
152
Como o povo foi levado para o cativeiro da Babilônia em 587 a.C.,
permanecendo distante do templo, os mais fiéis e devotos começaram a se reunir
com a finalidade de ler e discutir as passagens da Lei. Este hábito se tornou mais
difuso a ponto de se reunirem regularmente em encontros especiais no dia de
sábado. Com a reforma de Esdras
153
, que deu bastante ênfase à Lei, houve um
impulso para o estudo sistemático da Lei na sinagoga.
154
O que fez a sinagoga ser o importante? Devemos lembrar que a sinagoga
não era só uma assembléia qualquer, mas um espaço onde a Lei de Deus era lida e
explicada. A sinagoga era constituída como uma verdadeira casa de ensino
155
. Ela
147
DANA, H.E. O Mundo do Novo Testamento um breve Esbôço da história e Condições que
Compuseram o Substrato do Novo Testamento. 1 ed. Rio de Janeiro: Casa Publicadora Batista,
1955, p. 127.
148
VOLKMANN, Martin. Jesus e o templo: uma leitura sociológica de Marcos 11.15-19. o
Leopoldo: Sinodal; São Paulo: Paulinas, 1992, p. 131.
149
SOARES e CORREIA JR., 2002, p. 84.
150
DANA, 1955, p. 127.
151
DANA ,1955, p. 126; HENDRIKSEN, 1976, p.74
152
LOHSE, Eduard. The New Testament Environment. Nashville: Abingdon, 1976, p. 158, afirma
que a sinagoga surge na diáspora.
153
LOHSE, 1976. p. 17.
154
DANA, 1955, p. 126.
155
DANA, 1955, p. 126, afirma que a sinagoga se apresentava como uma “instituição educacional do
judaísmo.”
era o âmbito em que se realizava o ensino sobre a Torah, ou seja, o espaço onde
ocorria a instrução da Lei.
156
A sinagoga se constituía lugar de bênção e oração,
lugar de formação intelectual.
157
Não havia nenhum problema com a co-existência
templo-sinagoga, embora ambos oferecessem possibilidades para o ensino. Porém,
o objetivo de cada um era preciso. No templo, a ênfase estava nas oferendas; e na
sinagoga, a ênfase estava no ensino.
158
O templo e a sinagoga não se rivalizavam.
HENDRIKSEN afirma que havia uma sinagoga ou reuniões de estudo no
próprio templo antes da destruição do Templo. Um tal Theodotus veio a ser
sacerdote e presidente sinagogal.
159
A forma ou formato das sinagogas variava. O
que podemos perceber é que os prédios sinagogais são datados depois do século I
d.C. As ruínas da sinagoga de Cafarnaum são mais tardias e remontam a épocas
mais tardias do que se pode imaginar.
160
Embora não se descarte que o sítio possa
ser o mesmo onde Jesus tenha atuado.
161
Na sinagoga havia uma ordem litúrgica ou uma ordem de culto nos tempos de
Jesus. A estrutura básica permanece inalterada do tempo de Jesus aos dias de
hoje
162
:
1. oração: bênçãos, Shemah e uma oração com um responso congregacional
de Amém;
2. leituras das Escrituras em hebraico (seguidas da tradução aramaica
163
):
Torah e Profetas;
156
VOLKMANN, 1992, p. 133.
157
SOARES e CORREIA JR., 2002, p. 84; HENDRIKSEN, 1976, p.74.
158
DANA, 1955, p. 126.
159
HENDRIKSEN, 1976, p. 75.
160
WEISER, 1978, p. 69. A sinagoga de Cafarnaum data do período bizantino.
161
HENDRIKSEN, 1976, p. 75.
162
HARGREAVES, 1977, p. 23; HENDRIKSEN, 1976, p. 75; LOHSE, 1976. p. 161; DANA, 1955, p.
126; GNILKA, 1986, p. 91.
163
Os Targumim são as traduções em aramaico do texto hebraico. O povo já não falava mais o
hebraico, e por isso precisavam de uma tradução do hebraico para o aramaico. Estas traduções
pareciam mais uma releitura do que transposições literais. Cf. VOLKMANN, 1992, p. 133; THEISSEN
e MERZ, 2002, p.382.
3. Sermão ou palavra de exortação: o leitor explicava ou fazia uma prédica,
ou explanava um ensinamento das passagens que ele tinha lido;
4. Bênção final: esta bênção pode ser feita pelo sacerdote e o povo responde
Amém. Caso o sacerdote não estivesse presente, uma Oração Final pode substituir
a bênção sacerdotal.
164
É possível que esta ordem litúrgica tenha sido seguida por Jesus quando ele
ensinava na sinagoga, e obviamente, pressupõe que ele tenha sido convidado pelo
presidente sinagogal (Mc 1.21; Lc 4.14-21).
165
Na sinagoga não havia clero
propriamente dito, ou seja, não havia um ministro oficial da palavra. E qualquer
homem adulto, poderia ser convidado para ler e explicar as Escrituras.
166
Por isso
não é de admirar que Jesus ensine na sinagoga (Lc 4.14-21).
167
Assim como um lugar onde a Lei era ensinada, a sinagoga se constituiu como
uma escola, e por isso era chamada de “casa de instrução” ou bet-hamidrash. O
mesmo espaço para oração e adoração servia como casa de instrução. Neste
ambiente eram realizados estudos das Escrituras: os escribas estudam e ensinam
não a Torah, mas também outros textos. A partir destes métodos de
interpretação, eles desenvolvem um sistema de idéias religiosas que servem de
base para influenciar e corrigir o povo.
168
As crianças deveriam passar por um processo de aprendizado sobre a Lei
com um professor ou mestre. Era na sinagoga que o escriba expunha para seus
pupilos a fina arte da exposição da Lei, como foi dito antes. A sinagoga constituía
uma escola intelectual, mas também uma comunidade na qual as pessoas discutiam
todas as questões que afetavam a vida da comunidade.
169
164
HENDRIKSEN, 1976, p. 76; DANA, 1955, p. 127.
165
HARGREAVES, 1977, p. 23; HENDRIKSEN, 1976, p. 63.
166
SOARES e CORREIA JR., 2002, p. 84; HENDRIKSEN, 1976, p. 76; GNILKA, 1986, p. 91.
167
Segundo GNILKA, 1986, p. 91 e SOARES e CORREIA JR., 2002, p. 84, a apresentação de Jesus
como mestre na sinagoga é um reflexo da situação missionária de sua comunidade. Cf.
HENDRIKSEN, 1976, p. 63.
168
VOLKMANN, 1992, p. 133; SOARES e CORREIA JR., 2002, p. 84.
169
LOHSE, 1976. p. 166-167.
2.3 - Os Escribas ou Professores da Lei
Havia um grupo muito heterogêneo que era o grupo dos escribas, ‘dos
letrados’ ou dos doutores da Lei. Não formavam um grupo coeso, mas um
movimento de intelectuais. Este movimento abarcava pessoas de diferentes classes
e grupos religiosos do Judaísmo: desde a classe rica até a classe pobre. Poder-se-ia
encontrar os escribas entre os fariseus e entre os saduceus. Os escribas tinham o
saber como privilégio e status. Alguns, ou poucos deles tinham passado (ou se
formado na) pela bet-hamidrash, ou seja, casa de instrução ou ensino, a qual era um
centro intelectual dirigido por um rabi ou escriba.
170
De fato, estes eram os mestres
ou doutores ou professores da Lei, como atestam suas funções.
171
Os escribas valorizavam a Tradição oral, por meio dela é que se media a
sua autoridade. Esta Tradição oral com autoridade funcionava como base para toda
a ideologia dos escribas. Além do que, esta Tradição (halachah) é a interpretação da
Torah. Em todas as interpretações deveria haver o trabalho dos escribas. Eles eram
os profissionais nesta arte (interpretar as Escrituras).
Muitos escribas atingiram altos postos no Sinédrio e em partidos religiosos,
tanto os escribas dos fariseus, quanto os dos saduceus. Alguns estavam envolvidos
em missões para ensinar através de toda Palestina, o que caracteriza, também, a
missão de Jesus e seus discípulos. Alguns recebiam pelos ensinos, andavam de
casa em casa, e muitas vezes eram bem recebidos. As pessoas geralmente
recebiam os escribas com toda honra, pois se tratava de uma autoridade do saber.
Embora os escribas estivessem em variados grupos, como o grupo dos
saduceus e o grupo dos fariseus, a maioria pertencia ao segundo grupo.
172
O grupo
dos fariseus era liderado por escribas não-sacerdotes. O que podemos notar é que
nem todos os fariseus eram escribas
173
, pois a grande maioria dos fariseus era
170
ECHEGARAY, 1991, p. 80-81.
171
CROSSAN, 1994, p. 142; ECHEGARAY, 1991, p. 80; NOLAN, 1987, p. 29.
172
HARGREAVES, 1977, p. 44, afirma que “a maioria dos escribas pertenciam aos fariseus, e vieram
a ser seus líderes porque eles eram bem educados. Alguns escribas e alguns fariseus ocuparam
posições importantes em sinagogas de vilarejos, assim como no sinédrio, o mais alto conselho da
religião judaica”. (Tradução própria).
173
GNILKA, 1986, p. 92.
composta de clerus minus (baixo clero), pequenos comerciantes, artesãos e
camponeses.
174
É possível encontrar em meio a sua liderança, sacerdotes e levitas
(baixo-clero) que se identificavam com o movimento farisaico, embora esse
movimento fosse de leigos. Dana afirma que: “A ortodoxa sinagoga de nossos dias
nada mais é que a descendência histórica do antigo fariseu”.
175
Isto é, o movimento
leigo dos fariseus deu origem à Sinagoga ortodoxa dos dias de hoje. Com a
destruição do Templo, o movimento dos saduceus e a aristocracia sacerdotal
desaparecem, restando o movimento farisaico.
Como foi dito antes, nem todos os fariseus eram escribas. Às vezes as
críticas de Jesus se faz diferentemente a um grupo ou a outro (Mt. 5.20-6.6): Jesus
assume a autoridade além da Tradição e interpreta a Lei, contradizendo a Tradição
de interpretação, recebida no círculo dos escribas (Mt. 5.20-48); e critica a falsa
piedade dos fariseus (Mt. 6.1-6.6). Aqui podemos notar que há dois grupos.
Os escribas, doutores, ou professores da Lei, ou rabis eram teólogos,
advogados e professores, mas não necessariamente sacerdotes. Como foi dito,
sua autoridade (seu poder) consistia no saber
176
, e saber está atrelado à Tradição e
à Lei. Em geral, o único poder dos escribas era o saber, e saber em relação à Lei.
Eles tinham plenas convicções disso, a ponto de afirmarem que sem o conhecimento
da Lei, o existe salvação diante do pecado. Neste sentido, eles se vangloriavam
desta intelectualidade, que quer dizer, trato com a Lei e seu estudo assíduo
177
.
De fato, é inegável o privilégio e a honra que os escribas tiveram na
sociedade palestina, sua influência no grupo dos fariseus e no Sinédrio, além do
que, eles eram considerados detentores do saber pelo povo e assim eram
respeitados e admirados. As revoltas judaicas e os combates contra o Império
Romano, em torno de 60 a 70, foram tomados pelos movimentos dos galileus (Judas
Galileu) que eram, na maioria, escribas. A importância desse movimento era notória.
Porém, o que deve ser salientado é: em que estava alicerçada a autoridade dos
174
ECHEGARAY, 1991, p. 87.
175
DANA, 1955, p. 101.
176
ECHEGARAY, 1991, p. 80.
177
ECHEGARAY, 1991, p. 81.
escribas? A resposta imediata é: no conhecimento da Tradição (halachah) e na
Torah, mas de fato,
“Sua autoridade se alicerçava no sincero respeito que lhes tributam, bem como
também na condição de peritos que se atribuíam em face de uma matéria
considerada por eles, e espontaneamente pelo povo, esotérica, começando pela
própria língua sacra, o hebraico, a língua original dos textos que exigia, para
decifração, a tradução do aramaico, língua vernácula.”
178
Com certeza estas atribuições e outras, como a interpretação das
Escrituras, propriamente dita, fizeram dos escribas pessoas influentes. Além do que,
seus comentários e interpretações tiveram excelentes influências nas Sinagogas.
179
O que mais chama a atenção em relação ao prestígio dos escribas era seu
estilo de vida simples, que em muito se identificava com os movimentos “de pobreza
e liberdade” dos cínicos, ou até talvez com o dos estóicos.
180
Possivelmente eles
estivessem mais próximos dos estóicos do que dos cínicos. Em outras palavras, os
cínicos se baseavam no ”despojamento prático... (não tenho, mas não me importo)”
e os estóicos na “impassibilidade teórica... (tenho, mas não me importo)”.
181
Por outro lado, alguns viviam de seu próprio trabalho, outros de esmolas ou
salários das aulas dadas a domicílio, ou das esmolas e dízimos do Templo.
182
Neste sentido, eles poderiam se assemelhar aos filósofos estóicos ou
aristotélicos, quando cobravam por aulas. Os cínicos pediam esmolas, embora
alguns viviam do salário do seu trabalho, sendo este braçal ou manual. Isto
pressupõe que os escribas se assemelhassem aos cínicos, que eram jornaleiros
tanto quanto.
183
Esta questão sobre a sobrevivência e o salário do filósofo era assunto
discutido entre Sócrates e os sofistas. Os epicuristas tinham contribuições anuais.
178
ECHEGARAY, 1991, p. 81.
179
ECHEGARAY, 1991, p. 81.
180
CROSSAN, 1994, p. 108-126.
181
CROSSAN, 1994, p. 110.
182
ECHEGARAY, 1991, p. 82.
183
CROSSAN, 1994, p. 119-120.
Mas em suma, os escribas viviam do pequeno comércio ou eram artesãos
ou jornaleiros (ou assalariados)
184
e se o, como o que foi dito antes, recebiam
dos seus discípulos ou das esmolas ou dízimos dos pobres do Templo.
Os doutores da Lei e os escribas, muitos deles eram pobres, mas seu status
era o saber, era isto que fazia diferença. Este era o “segredo de seu poder”.
185
Por
isso, eram considerados “representantes da Aristocracia Intelectual”.
186
No entanto,
alguns não recebiam, mesmo que insistissem nisso. Nestas condições, optavam por
uma vida simples.
187
As atividades de um escriba estavam todas ligadas à Lei, a
saber, ser conhecedor da Lei e interpretá-la; ensinar a Lei aos discípulos; ser juiz a
partir do conhecimento da Lei. Ser juiz lhe dava o direito de fazer parte do Sinédrio
que, antes de qualquer coisa, era a corte judicial da época. Embora atuassem
também como administradores do Sinédrio.
188
Vale salientar que seu estilo de vida
dedicado aos estudos das Escrituras proporcionava respeito e admiração.
A autoridade dos escribas (tanta quanto a dos fariseus) está fundada,
justamente, na transmissão da Tradição dos antigos, como se pode atestar no
exercício do ensino da sinagoga.
189
Isto é que caracteriza sua autoridade e é
exatamente neste ponto que Jesus entra em atrito com os escribas. Os escribas
reconheciam essa autoridade e eles, por meio esotérico, poderiam interpretar e
reinterpretar a Tradição (oral) de acordo com a Lei. Por meio desta habilitação de
interpretar a Lei, poderiam resolver problemas de conflitos com ou em relação à Lei
e à Tradição. Alguns deles, com certeza, ocupavam cargos diversos na área de
ensino, direito e teologia, ou seja, poderiam ser teólogos, advogados e mestres
(professores).
190
Suas influências poderiam ser vistas no Sinédrio, sinagogas e
tribunais. ECHEGARAY diz: “somente os doutores especialmente designados
podiam transmitir e atualizar as tradições orais concernentes à Lei”.
191
184
ECHEGARAY, 1991, p. 81.
185
MORIN, Emile. Jesus e as Estruturas do Seu Tempo. 4. ed. São Paulo: Paulinas, 1982, p. 135;
JEREMIAS, Joaquim. Jerusalém no tempo de Jesus. o Paulo: Paulinas, 1983, p. 320.
186
VOLKMANN, 1992, p. 87.
187
ECHEGARAY, 1991, p. 81-82.
188
VOLKMANN, 1992, p. 88; GNILKA, 1986, p. 92.
189
VOLKMANN, 1992, p. 89.
190
ECHEGARAY, 1991, p. 82; NOLAN, 1987, p.29.
191
ECHEGARAY, 1991, p. 82.
Estes eram os mestres e professores com os quais Jesus entrou em
conflito. Mas até que ponto Jesus entrou em discordância com eles? Em muitas
práticas, Jesus se assemelha tanto com os escribas quanto com os fariseus. Os
escribas e Jesus eram duas expressões de uma mesma realidade. Jesus tinha um
estilo de vida muito mais radical do que o estilo dos escribas.
2.4 - A Torah e a Halachah
Dentre todos os elementos constitutivos do judaísmo, como monoteísmo,
templo, sinagoga, sacrifício e liturgia, uma que sobressai, a saber, a Torah. Entre
o Deus único e Israel há uma relação por meio da Aliança. A Aliança se constituiu
uma dádiva de Deus para com seu povo mediante o chamado de Abraão, o êxodo e
a entrega da Lei no Sinai. A Torah foi dada para que o povo permanecesse na
Aliança com Deus.
192
De fato, para o judaísmo, a Torah é resultado da própria
vontade divina
193
.
No quarto século antes da era cristã, os cinco livros de Moisés já eram
considerados como um conjunto fechado e acabado de livros canônicos utilizados
no culto judaico. A comunidade dos samaritanos, que se separou da comunidade
cúltica judaica, continuou utilizando o Pentateuco unicamente como livro sagrado.
194
A Torah ocupava uma posição sem igual na vida religiosa judaica. Os rabis
consideravam a Torah, como obra divina preexistente, ou seja, antes da criação do
mundo a Torah já existia com Deus.
195
Notável é que os outros escritos estavam em uma posição inferior à Torah, ou
subjacente a esta. Isto porque a Torah não era considerada obra humana, o mesmo
não se pode afirmar a respeito dos outros escritos que são produtos de mãos
humanas, ou seja, os escritos posteriores foram escritos por homens sob a
inspiração divina. Contudo, todas as outras recebem a autoridade se estiverem
em sintonia com a Torah. Isto quer dizer que o reconhecimento é atribuído a estes
escritos só mediante a base de concordância com a Torah.
192
THEISSEN e MERZ, 2002, p. 148-149.
193
LOHSE, 1976. p. 178.
194
LOHSE, 1976. p. 167.
195
LOHSE, 1976. p. 167.
A coleção dos escritos proféticos era distinguida pelos rabis em dois grupos:
O grupo dos profetas anteriores: Josué, Juízes, I e II Samuel, I e II Reis; o grupo dos
profetas posteriores: Isaías, Jeremias e Ezequiel, Amós a Malaquias. Daniel ficou de
fora deste grupo porque, no período que ele foi escrito, a coleção dos profetas
estava fechada e acabada. O livro de Daniel foi colocado dentro de uma outra
coleção: dos livros de Esdras, Neemias e Crônicas, ou seja, no final do cânon do
Antigo Testamento.
O livro de Jesus Sirach do segundo século antes da era cristã faz
referência à Lei e aos profetas. Isto pressupõe que já havia uma coleção da primeira
e da segunda parte dos escritos vetero-testamentários. O Novo Testamento também
cita sobre estas duas partes do Antigo Testamento: Mt 5.17; 7-12; 11-13; Lc
16.29,31; Rm 3.21. em Lucas 24.44, que cita a Lei de Moisés, os Profetas e os
Salmos.
Embora a delimitação canônica do Antigo Testamento venha a acontecer
no final do primeiro século d.C., o Novo Testamento cita os outros escritos, o que
pressupõe que no tempo de Jesus estes escritos já eram aceitos no tempo de Jesus.
Alguns livros passaram por um processo rigoroso para ser incluído no cânon como
Cântico dos Cânticos, Eclesiastes e outros.
196
Segundo a concepção dos rabis, Deus entregou a Torah a Israel, e esta tem
passado de geração em geração. Segundo a Mishanah Aboth 1.1: “Moisés recebeu
a Torah no Sinai e a entregou a Josué, e Josué aos anciãos, e os anciãos aos
profetas, e os profetas a entregaram aos homens da Grande Sinagoga”.
197
A Torah
foi recebida por Moisés do Deus IHWH e continua sendo transmitida de geração em
geração por meio de uma sucessão ininterrupta de escribas ou rabi.
198
Os escribas transmitiam este legado aos seus discípulos através de um longo
período de estudo. Quando findava este período de formação, o discípulo era
ordenado ‘mestre’ e neste momento ele se tornava membro de um corpo de
196
LOHSE,1976. p. 167-168.
197
LOHSE, 1976. p. 169, cita Aboth I.1; VOLKMANN, 1992, p. 131; SCHUBERT, Kurt. Os partidos
religiosos hebraicos da época neotestamentária. São Paulo: Paulinas, 1979, p. 38-39.
198
LOHSE, 1976. p. 169.
mestres. Isto pressupõe que o discípulo ordenado, agora mestre, está incluído em
uma sucessão traditiva. Se considerarmos que Moisés é autoridade da Lei, ou que
seu nome é correspondente à Lei, e que os escribas são seus sucessores, logo,
poderíamos dizer que as palavras dos escribas também equivalem à Torah.
199
Assim, por meio de uma sucessão, a palavra dos escribas se torna autoritativa, pois
eles sabem qual é vontade de IHWH para variadas questões nas diferentes
situações.
200
A validade da Torah oral requeria um conteúdo preciso e detalhado através
de todos exegéticos no Pentateuco, ou seja, sua validade consistia em se
harmonizar com a própria Lei escrita e nela se ancorar. A Tradição não era menor do
que a Lei escrita, pelo contrário, a Tradição consistia da Lei transmitida oralmente.
201
Os fariseus foram os primeiros a se apoiarem na Lei escrita e na Tradição dos
antigos ou anciãos (Mc 7.3). Esta Tradição está afirmada pela
hk'l'h}
Halachah
202
. A
Halachah era caracterizada pela interpretação das Escrituras, particularmente da
Torah, e que se destrincha em múltiplos detalhes e normas. Sua base está na
Tradição dos antigos, transmitida oralmente. Isto significa que se um mandamento
não é claro ou é inexato, por meio da Tradição ou Halachah, possíveis regras e
normas para tal mandamento poderiam ser aplicadas. Por exemplo, quando
afirmamos: “Lembra-te do dia do sábado, para o santificar” (Êx 20.8).
203
Seria
preciso especificar o que é proibido fazer ou não fazer no sábado, ou seja, o que é
permitido ou não permitido.
204
Para um judeu farisaico, toda Torah significaria a Torah escrita e oral.
205
Na
mentalidade judaica, como vimos anteriormente, a Torah pré-existia com Deus.
Sua pré-existência consistia na forma oral que precede a Torah escrita.
206
A questão
199
VOLKMANN, 1992, p. 131.
200
VOLKMANN, 1992, p. 131.
201
LOHSE, 1976. p. 169-170
202
A palavra
hk'l'h}
Halachah, que significa modo de vida, direção ou guia de como a pessoa
deveria andar, vem do verbo
$lh
que significa ir, andar, caminhar. Cf. THEISSEN e MERZ, 2002, p.
389; LOHSE, 1976. p. 170.
203
BIBLIA SAGRADA: Antigo e Novo Testamento. Tradução em português por João Ferreira de
Almeida. Ed. Revista e Atualizada no Brasil. Edição. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993,
p.77.
204
LOHSE, 1976. p. 170.
205
NOLAN, 1987, p. 105-106; SCHUBERT, 1979, p. 38-39.
206
Cf. COLLIN e LENHART, 1994, p. 27-28, sobre a Torah escrita e a Torah oral.
da oralidade fixada numa Tradição e o aprendizado da Lei escrita caminhavam
juntamente.
207
A base autoritativa do ensinamento dos escribas era a Tradição. Os escribas
e fariseus costumavam repetir os ensinamentos tradicionais que constituíam sua
base autoritativa.
208
A Lei que é pré-existente com Deus antes da criação do mundo
tem uma validade eterna, isto é, a Lei escrita e oral.
209
2.5 - Algumas considerações
Neste capítulo, observamos o pano de fundo histórico destes elementos que
aparecem no texto ou subentende-se sua presença por meio de outros elementos.
Esta avaliação histórica nos proporciona um conhecimento da própria situação social
e religiosa do tempo de Jesus no que diz respeito às práticas pedagógicas, ao
processo de forma destas práticas e a seu conteúdo.
Notamos quem são as pessoas que constituem o grupo de professores na
sociedade de Jesus. O elemento base de sua formação, ou seja, a Lei mediante
uma sucessão que lhe compete um legado traditivo dos antigos mestres. Isto
constituía sua autoridade. A palavra do rabi ou do escriba tinha o mesmo peso da
Lei, pois o próprio professor estava dentro de uma sucessão que lhe outorgava o
direito para tal.
As características evidenciadas no ambiente de ensino e seus objetivos serão
colocados diante da característica de Jesus. Avaliaremos se, de fato, Jesus se
contrapõe completamente, ou reforça esta estrutura de ensino. Poderemos fazer um
comparativo de Jesus e os professores da sua sociedade, tentando notar este
processo pedagógico e didático de Jesus em seu ambiente.
207
Cf. COLLIN e LENHART, 1994, p. 27-28
208
CHOURAQUI, André. A Bíblia – Marcos (O Evangelho segundo Marcos). Coleção Bereshit. Rio
de Janeiro: Imago Editora Ltda, 1996, p. 53.
209
LOHSE, 1976. p. 178.
CAPÍTULO III
A PRÁTICA DO ENSINO DE JESUS
3.1 - As Escrituras e o Ensino de Jesus
Os evangelhos, sobretudo Marcos e João, atestam uma tradição sobre o uso
do título rabi
210
, título empregado para Jesus. O fato deste título não ter sofrido
influências s-pascais faz com que consideremos como tradição confiável.
211
A
única questão é sobre o significado do título. Alguns defendem que, quando
empregado a Jesus, não passa de um mero título de respeito, ou seja, de um
tratamento respeitoso. Isso porque o uso do título rabi veio a ser empregado aos
eruditos após 70 d.C., e que não havia nenhuma conexão entre Jesus e estes
escribas eruditos. Porém, esta distinção não parece ser plausível. Podemos
constatar que este título ocorre em algumas fontes cristãs antes do ano 70 d.C. e
que apontam para o significado correspondente em
yBir:
e didavskaloV
212
(cf. Jo
1.38; 3.2; Mt 23.8).
210
THEISSEN e MERZ, Gerd e Annette. O Jesus histórico: um manual. São Paulo: Loyola, 2002, p.
381; ROBBINS, 1984, p. 88; MARTIN, 1976, p. 111; BLACK, 1989, p. 86, citando ROBERT MEYE.
211
THEISEN e MERZ, 2002, p. 381.
212
RUSCONI, 2003, p. 130; THEISEN e MERZ, 2002, p. 381. A palavra
yBir:
se origina de uma
junção da palavra
br:
, cujo significado é grande ou chefe, e do sufixo da primeira pessoa do singular
y i
que indica posse. A palavra
yBir:
originalmente teria o significado de meu chefe ou meu senhor,
porém, com o passar do tempo, esta palavra se afirmou pelo uso do significado de (meu) mestre. Cf.
RUSCONI, 2003, p.406.
Os escribas e fariseus, assim como Jesus
213
, responsáveis pela interpretação
da Lei, fizeram-se chamar rabi (Mt 23.2,7), e possivelmente havia judeu-cristãos que
tomavam este título para si (Mt 23.8; 13.52).
214
THEISSEN e MERZ afirmam que a avaliação histórico-social de documentos
cristãos, epigráficos e rabínicos, demonstra que o movimento rabínico no século I
“constituía uma rede frouxa”
215
de eruditos com idéias e convicções diferentes e
sem ritos estabelecidos ou eixos, no que diz respeito à aceitação e exclusão. Em
outras palavras, um escriba se tornava rabi no momento em que ele tivesse o
reconhecimento de outros, especialmente de alunos, e o tratassem como tal.
216
Também sabemos que alguns dos escribas tiveram sua formação na bet-
hamidrash, casa de instrução, ou centro de estudo e formação. Isto quer dizer que
nem todos tinham formação na bet-hamidrash. Estes centros de formação se
encontravam dispersos em toda a Palestina e eram dirigidos por um escriba ou rabi.
De fato, uma pessoa poderia se tornar mestre do povo por opção ou condição e
sobre o povo exercia influência.
217
No momento em que Jesus começou a discutir
com outros escribas, formar um grupo de aprendizes ou responder perguntas
teológicas de leigos, ele adquiriu as condições próprias de rabi da sua época.
218
Pouco se sabe da formação educacional de Jesus, ou melhor, quase nada se
sabe. O episódio de Lc 2.41-51, embora relate sobre a erudição do menino Jesus,
de 12 anos, não pode ser considerado como um dado histórico. Algumas
informações podem indicar uma formação educacional de Jesus:
1) A educação de Jesus a partir da casa paterna: Neste ambiente ocorre a educação
religiosa elementar: aprender e contar histórias, decorar textos das Escrituras e
213
Segundo ECHEGARAY, 1991, p. 82: “Jesus adotou radicalizando-o o estilo de vida dos doutores
da lei... Surpreendia, no entanto, a liberdade e a autoridade com a qual comentava as , tanto mais
que não ostentava um título oficialmente reconhecido de <<doutor>> (rabi).”
214
THEISEN e MERZ. 2002, p. 381.
215
Os escribas formavam um movimento intelectual muito mais do que um grupo de grande coesão.
Cf. ECHEGARAY, 1991, p. 80.
216
ECHEGARAY, 1991, p. 80.
217
ECHEGARAY, 1991, p. 80-81.
218
THEISEN e MERZ, 2002, p.381-382.
partes da liturgia; neste ambiente se aprende o ofício do pai (Mc 6.8, Mt 13.55).
Alguns indícios que sua família parecia ser piedosa e ancorada na tradição de Israel
são evidenciados pelos nomes dos filhos (Mc 6.3).
2) Uma questão que é duvidosa é se Jesus freqüentou escola elementar, onde se
aprendia a ler a escrever. Não podemos afirmar se uma cidade sem muita evidência
como Nazaré possuía escola pública no início do século I.
3) O fato é que havia uma sinagoga em Nazaré (Mc 6.2; Mt 13.54; Lc 4.10). Isto
supõe que havia uma escola. Numa sinagoga, pelo menos, deve haver o rolo da
Torah, e dependendo das economias da sinagoga, deveria haver um rolo de Isaías
ou dos Profetas (Lc 4.17), saltério e traduções (targumim). As Escrituras deveriam
ser lidas e comentadas na sinagoga todo sábado. Isto indica o caminho natural para
que as crianças aprendessem sobre as Escrituras e também aprendessem a ler.
se organizava o ensino da leitura para as crianças, porém isto ficava à disposição do
pai, ou dos funcionários sinagogais, ou de professores ou de quem soubesse ler.
219
4) Alguns indícios apontam que Jesus sabia ler: em várias ocasiões ou discussões,
Jesus fala “então nunca leste [...]?” ou “não leste [...]?”. Tais perguntas
pressupõem que ele já tinha lido. (Mc 2.25; Mc 12.10; Mc 12.26; Mt 21.42; Mt 22.31;
Mt 12.5; Mt 19.4; 21.16).
Sob a redação lucana, podemos perceber um outro indício (Lc 4.16ss): de
fato, Jesus deve ter ensinado na sinagoga como está relatado. A práxis de ensinar é
característica típica de Jesus (cf Mc 1.21, 39). É difícil pensar que Jesus tivesse
assumido a função de ensinar sem ter aprendido a ler, ou assumido também o
serviço da leitura quando designado para tal, principalmente num ambiente no qual a
escuta da palavra escrita é tão importante e tão contagiante, sem ter aprendido os
rudimentos da leitura.
220
219
COLLIN e LENHARDT, 1994, p. 27-28; THEISSEN e MERZ, 2002, p.382; LOHSE, 1976. p. 166-
167.
220
COLLIN e LENHARDT, 1994, p. 27-28; THEISSEN e MERZ, 2002, p. 383.
Outro indício sobre sua capacidade de ler é evidenciado em João 7.15: Pw:V
ou|toV gravmmata ou\den mh; memaqhkwvV? “Como este conhece as letras sem ter
aprendido (ou estudado)?” Segundo THEISSEN e MERZ, “conhecer as letras” se
refere à capacidade de comentar e argumentar sobre as Escrituras.
221
Esta
passagem pressupõe que Jesus teria tal habilidade sem ter passado por uma escola
formal com um professor conhecido, o que também não é estranho, visto que
alguns escribas tinham formação na bet-hamidrash.
222
Muitas citações do Antigo Testamento atribuídas a Jesus, nos escritos
cristãos, podem ter sido citadas pelo próprio Jesus. Mas por outro lado, isto pode ter
sido uma retro-projeção de uma reflexão pós-pascal com o intuito de relacionar a
história e a mensagem de Jesus às Escrituras. Retirando essas reflexões pós-
pascais, poderíamos chegar às características e tendências que supostamente
remetem a Jesus. Não podemos afirmar categoricamente quais escritos eram
conhecidos de Jesus e considerados canônicos. No entanto, devemos salientar que
Jesus pode ter conhecido livros ou escritos que posteriormente ficaram excluídos da
lista canônica e que talvez tenham sido perdidos. Possivelmente estes poderiam
servir de base para suas citações.
223
No tempo de Jesus, os livros do Antigo
Testamento, os quais posteriormente serão canonizados, já eram conhecidos.
224
3.1.1 - Como Jesus interpretava as Escrituras? Qual é a sua hermenêutica?
Como Jesus usava as Escrituras?
O princípio hermenêutico de Jesus se assemelha aos princípios de
interpretação de seu tempo, os quais foram sistematizados e fixados posteriormente
pelos rabis no middoth. Um exemplo deste princípio utilizado por Jesus, é o da
inferência do menor para o maior, ou do leve para o pesado
rmeAxw" lq:
se Deus
providencia alimento para os pássaros (Sl 147.9, etc), quanto mais para os homens.
Então, seus discípulos não precisam se preocupar Mt 6.26/ Lc 12.24. Um outro
221
THEISSEN e MERZ, 2002, p. 383, ou seja, isto pressupõe a capacidade de ler.
222
ECHEGARAY, 1991, p. 80-81; cf. também Mc 6.2; Mt 13.54 a respeito da admiração das pessoas
mediante o conhecimento e o ensino de Jesus.
223
THEISSEN e MERZ, 2002, p. 383.
224
LOHSE, 1976. p. 168.
princípio, que posteriormente sechamado “a fundação de uma família” (
bWtK'mi ba'
!y:n>Bi dx'a
,), é utilizado na argumentação de Jesus sobre a ressurreição (Mc 12.18-27).
A regra deste princípio diz que é possível extrair uma norma exegética de uma
passagem das Escrituras e transferir para uma outra passagem. Assim, Jesus
relacionou as passagens que citam IHWH como Deus dos vivos (Is 38.18s; Sl 6.5s,
etc), com outra passagem que cita IHWH como Deus de Abraão, Isaac e Jacó (Ex
3.15). A pressuposição é que Deus, sendo Deus dos vivos, de ressuscitar os
patriarcas e também todos cujo Deus é IHWH.
Diferentemente dos rabis e essênios, Jesus utilizava as Escrituras com um
propósito instrumental, ou seja, elas servem para diversos fins: conduta provocativa,
argumentação polêmica e fundamento ético.
Conduta provocativa: alguns relatos falam que Jesus cita passagens das
Escrituras como uma provocação aos ouvintes. Essa atitude de Jesus tem um fim
didático de fazer com que os ouvintes reflitam sobre seus comportamentos e
busquem um outro comportamento adequado a um novo sistema (cf Mc 4.12).
225
Argumentação polêmica: geralmente as citações das Escrituras por parte de
Jesus estão situadas em contextos polêmicos. É possível que muitos relatos
polêmicos reflitam a situação das próprias comunidades cristãs diante do judaísmo
(Mt 12.1ss). Porém, outras vezes podem remontar a Jesus o caso do debate
sobre a ressurreição, Mc 12.1ss). Uma outra observação é que nestes debates
polêmicos, Jesus faz o jogo paradoxal, colocando umas passagens das Escrituras
contra outras (Mc 10.2ss).
226
Por último, o fundamento ético. Jesus utiliza as Escrituras como fundamento
ético. Ele tinha a convicção básica do próprio judaísmo de que a Torah contém a
vontade de Deus como uma exigência às pessoas (Mc 10.17-19).
227
É neste sentido
que Jesus fundamenta sua ética. Mas antes de qualquer análise sobre o ensino de
Jesus em termos éticos, é imperativo analisarmos antecipadamente a questão da
225
Cf. também Mt 12.41.
226
THEISSEN e MERZ, 2002, p. 385: “Um traço característico de Jesus poderia ser que em tais
debates ele joga duas passagens da Escritura uma contra outra (Mc 10.2ss).
227
LOHSE, 1976. p. 167,178; THEISSEN e MERZ, 2002, p.385.
ambivalência em relação à Torah, ou seja, a intensificação e o abrandamento das
normas como características da relação de Jesus com a Torah.
É notório que Jesus radicaliza ou intensifica alguns mandamentos como
normas éticas, sobretudo o amor, nos quais é perceptível à tendência de Jesus a
uma ética universal, sem limites. Por outro lado, a relativização ou o abrandamento
de certas normas rituais, sobretudo o mandamento da pureza, dos quais se cria uma
ruptura entre o judaísmo e o helenismo, embora não se fale da eliminação completa
destas normas.
3.2 - Radicalização e Relativização
3.2.1 - Intensificação das normas na tradição de Jesus
1. Jesus radicaliza o primeiro mandamento, ou seja, uma intensificação
teocrática deste mandamento. Ele não é o primeiro a radicalizar este mandamento.
Judas Galileu e o seu movimento de resistência radicalizaram este mandamento a
ponto de afirmarem que qualquer lealdade ao imperador era a anulação do
reconhecimento da soberania de Deus, ou seja, era traição a Deus.
228
Ao contrário
de Judas Galileu, Jesus não enfatiza o mandamento no campo da política, e sim no
campo da economia, ou seja, ele não exige que haja uma escolha entre Deus e o
imperador (Mc 12.13-17); porém, a ênfase é a escolha entre Deus e o dinheiro (Mt
6.24; Lc 16.13).
229
Esta ênfase na escolha entre Deus e o dinheiro pode ter
influenciado a história do jovem rico. A afirmação oujdei;V ajgaqo;V eij mh; ei|V oJ qeovV
(“ninguém é bom senão Deus”. Mc 10.18) pressupõe uma vinculação da unidade de
Deus à exortação a dar as posses aos pobres.
230
2. A proibição do homicídio e do adultério é radicalizada, como se pode
verificar em Mt 5.22, 28. Mc não trata do homicídio, mas se pode pressupor que ele
228
CROSSAN, 1994, p. 148; THEISSEN e MERZ, 2002, p. 388.
229
NOLAN, 1987, p. 79ss; THEISSEN e MERZ, 2002, p. 388.
230
THEISSEN e MERZ, 2002, p. 388.
é radicalmente contra, uma vez que o mandamento do amor ao próximo é
radicalizado.
231
3. Sui generis é o amor ao próximo. Sua radicalização forma a base da ética
de Jesus. Toda sua prática e seu ensino estão alicerçados por esta radicalização.
Este mandamento que se encontra na Torah, especificamente em Lv 19.18; e está
paralelo ao mandamento de amor a Deus, outro que se encontra na Torah, Dt 6.4-5
(Mc 12.28-34). Sua radicalização se em três aspectos: amor ao inimigo (Mt 5.43-
48), amor ao estrangeiro (Lc 10.25-37) e amor ao pecador (Lc 7.36-50).
4. A radicalização contra o divórcio e contra o novo casamento está expressa
em Mc 10.2-12. Ao ser interrogado pelos fariseus se seria lícito ou permitido repudiar
a sua mulher, Jesus faz uma outra pergunta: “O que vos ordenou Moisés?” E eles
lhe responderam que Moisés tinha consentido escrever carta de divórcio e repudiar a
mulher. Jesus não procura negar ou anular aquilo que está escrito, mas retoma uma
passagem da Torah, especificamente de Gn 1.27 e 2.24, para responder aos
fariseus. Sua argumentação se por meio de uma contraposição
232
entre duas
partes que se encontram na Torah, de modo que retoma uma ordenança ou
mandamento anterior àquilo que foi dito por Moisés. O fundamento de Jesus contra
o divórcio se com base na criação. Por esta razão, Jesus responde aos fariseus
que tal mandamento a respeito do divórcio foi prescrito por causa da dureza do
coração. E que o homem deixaria o seu pai e sua mãe e se juntaria a uma mulher, e
eles seriam uma carne, de maneira que não poderiam ser mais duas pessoas.
“Portanto o que Deus uniu, o homem não separe.” E se porventura o homem ou a
mulher se divorciarem e casarem novamente, cometem adultério. A radicalidade de
Jesus contra o divórcio e contra o segundo casamento retoma sua base na Torah,
sobretudo naquilo que concerne à criação. Com isso, sua radicalização está
fundamentada na ordem da criação transferida para o presente.
233
231
THEISSEN e MERZ, 2002, p.388.
232
THEISSEN e MERZ, 2002, p. 385: “Um traço característico de Jesus poderia ser que em tais
debates ele joga duas passagens da Escritura uma contra outra (Mc 10.2ss).
233
THEISSEN e MERZ, 2002, p. 389, 401; MATERA, 1999, p. 40-41.
3.2.2 - O abrandamento das normas na tradição de Jesus
O abrandamento ou a relativização advém do fato de que alguns
mandamentos dizem respeito a normas ritualísticas. Estas normas não são ab-
rogadas ou destruídas; porém, quando se trata de se ter solidariedade ou de
providenciar assistência, ou seja, quando se trata de mandamentos sociais, aquelas
normas são relativizadas ou postas em segundo plano em relação aos
mandamentos sociais. Em outras palavras, aquilo que colide com o plano de Deus,
de restaurar ou integrar o ser humano, não pode ser prioridade. Prioridade é
enquanto proporciona o bem-estar da humanidade.
NOLAN afirma que “Jesus relativizou a Lei para que seu verdadeiro objetivo
pudesse ser alcançado.”
234
O mandamento do sábado não deixa de ter sua
importância, mas quando ele não proporciona o espaço para o salvamento da vida e
sua promoção, ele passa a ser relativizado,
235
como atesta Mc 3.4: “O que é lícito
no sábado, fazer o bem ou fazer o mal? Salvar uma vida ou matar?”.
Em relação ao mandamento da purificação, ao que tudo indica, Jesus deve
ter tido contato com pessoas consideradas impuras como as leprosas, as possuídas
por espíritos impuros, as afetadas por hemorragias e contaminadas por pecados (Mc
1.2ss, 40ss; 2.13-17; 5.25ss, etc).
236
O dito sobre a pureza, em Mc 7.15, indica uma
suposta relativização desta norma. Mas não indica sua anulação total.
237
Para Jesus
estava claro que aquelas normas de pureza não poderiam influenciar de forma
alguma em uma verdadeira purificação, ou seja, não poderiam tornar a pessoa mais
pura ou menos pura. Pressupõe-se que Jesus era indiferente ao cumprimento ou
descumprimento do mandamento. Ele tenta apresentar o que é o verdadeiro
mandamento de Deus e o que são as tradições humanas e secundárias. Os escribas
e fariseus nulificam os mandamentos de Deus e valorizam as tradições humanas.
Isto quer dizer que Jesus coloca a purificação em segundo plano.
238
Em outra
passagem, ele declara puro o homem leproso, mas lhe envia ao sacerdote para
234
NOLAN, 1987, p. 108.
235
NOLAN, 1987, p. 106; THEISSEN e MERZ, 2002, p. 391: “o salvamento da vida e a auto-defesa
na guerra tinham, em geral, prioridade sobre a observância do sábado”.
236
NOLAN, 1987, p. 39-40; THEISSEN e MERZ, 2002, p. 391-392.
237
THEISSEN e MERZ, 2002, p. 393.
238
MATERA, 1999, p. 39-40.
averiguar e dar uma declaração oficial de sua purificação (Mc 1.41ss). Podemos
constatar que o dito de Jesus a respeito da purificação em Mc 7.15 é um tanto
radical. Mas não podemos negá-lo a Jesus. Por outro lado, não podemos deixar de
salientar que Jesus era judeu, e que continuou judeu quando proferiu tais
pensamentos.
Poderíamos dizer, então, que o ensino de Jesus tem como base a ética
judaica. Quanto ao conteúdo do seu ensino ético, poderíamos salientar a Torah
livremente interpretada, ou seja, a Torah constitui a base de seu ensinamento ético.
Ele se apresenta como um rabi judeu.
239
É óbvio que devemos distinguir, neste sistema de normas e condutas, os
preceitos concretos de condutas dos axiomas subjacentes e periféricos. Ao formular
suas normas ou máximas éticas, não podemos desconsiderar que Jesus estivesse
no solo da Torah em constante tensão entre a letra e a sua interpretação. Por isso,
Jesus utiliza as Escrituras como um instrumento para variados fins.
240
Obviamente
ele consegue distinguir o importante do menos importante, e neste sentido, o amor
ao próximo e o amor a Deus constituem o bojo de sua ética pedagógica. Para Jesus,
às coisas sem importância pertenciam os mandamentos sobre pureza. Ele invalida
uma máxima da Torah em nome de uma máxima implícita mais importante, que
reintegra e traz dignidade aos seres humanos. Mas isto não quer dizer que ele ab-
roga tal norma, nem a considera sem importância.
241
No entanto, ela poderia ser
quebrada em determinadas situações.
O estilo de vida itinerante de Jesus proporciona este tipo de comportamento:
o mandamento do sábado não poderia ser observado radicalmente diante deste
estilo. Talvez, o simples fato de sair da casa dos pais poderia corresponder à
quebra do mandamento de honrar pai e mãe diante tal modo de vida.
239
THEISSEN e MERZ, 2002, p. 420;
240
NOLAN, 1987, p. 106; THEISSEN e MERZ, 2002, p. 420-421:
241
NOLAN, 1987, p. 107-108.
Os mandamentos de pureza ou impureza eram irrelevantes diante da situação
itinerante de certas pessoas.
242
A radicalização e relativização são duas formas do
mesmo objetivo: integrar as pessoas marginalizadas. A radicalização é, ao mesmo
tempo, a conservação da identidade judaica. A integração dos grupos
marginalizados se mediante o abrandamento. No centro desta tensão está o
amor.
243
3.3 - Jesus X Escribas
O conflito de Jesus versus escribas se dá principalmente no âmbito da
Tradição: é o embate da ejntolh; tou: qeou: - do mandamento de Deus com hJ
paravdosiV tw:n ajnqrwvpwn a tradição dos homens (Mc. 7.8).
244
Em Mc, Jesus não se coloca contra a Lei (embora a palavra novmoV
245
, ou
seja Lei, não exista nesse evangelho), pelo contrário, esta é refletida como
mandamento de Deus. É notório que o atrito de Jesus com os escribas (e fariseus)
não se em relação à Lei enquanto mandamento de Deus (Mc. 7.8-10.13), e sim
contra a Tradição dos antigos (Mc. 7.3-5,8). Seguindo este mesmo argumento,
KÜMMEL afirma: “Marcos defende Jesus da acusação de ter abandonado a Lei
judaica...”
246
Isto indica que Mc acusa os judeus de terem se distanciado dos
mandamentos de Deus. E por que contraposição entre a autoridade de Jesus e a
dos escribas? CHOURAQUI diz o seguinte “[...] Iéchoua retira seus ensinamentos de
sua própria autoridade, de si mesmo”.
247
Talvez este seja o problema conflitante
entre Jesus e os escribas: autoridade tradição ensino. Jesus poderia dizer por
meio da antítese: ouviste o que foi dito aos antigos [...]”, isto é, algo que pressupõe
a autoridade pela tradição dos antigos, na qual estão baseados os escribas, em
contraposição ao “eu, porém, vos digo [...]”, isto é, algo que expressa autoridade
que vem de Jesus, como aquele que interpreta.
242
THEISSEN e MERZ, 2002, p. 421; MATERA, 1999, p. 40.
243
THEISSEN e MERZ, 2002, p. 421; NOLAN, 1987, p. 107-108.
244
NOLAN, 1987, p. 105-106; MATERA, 1999, p. 39.
245
MATERA, 1999, p. 37, 39. Embora Marcos não use a palavra novmoV, ele utiliza sua equivalente
ejntolhv, que significa ‘mandamento’.
246
KÜMMEL, 1982, p.109.
247
CHOURAQUI,1996, p. 53.
Por outro lado, Jesus não se coloca contra o que foi estabelecido, não
anula; ao contrário, ele transcende ao que foi estabelecido pelos antigos. Porém,
Jesus expressa, por meio do ejgw; de; levgw uJmi:n [...], que a transcendência da Torah
não é algo meramente atribuída a Deus, mas é derivada de si mesmo
248
, do próprio
Jesus. Neste sentido, o ejgw; de; levgw uJmi:n [...] se distingue de uma mera revelação
transmitida de Deus.
249
Jesus é a fonte de autoridade diante dos escribas, ele incorpora sua
autoridade interpretativa (Mt 5.20-48). Como foi dito: aqui Jesus assume uma
autoridade além da Tradição e interpreta a Lei, contradizendo a tradição de
interpretação recebida no círculo dos escribas. No entanto, Jesus é aquele que
cumpre a Lei, segundo Mc: o autor marcano o apresenta como cumpridor da Lei e
não como os que violam a Lei.
250
É claro que a questão da pureza, mesmo que exista na Torah, ganha
retoques normativos pelos escribas, assim como o mandamento do sábado. Por esta
razão a Lei deixa de ter um caráter restaurador e integralizador, deixa de refletir a
própria Aliança entre Deus e os homens. Os escribas fizeram das leis um fardo
insustentável.
251
Além disso, no caso do divórcio, mesmo que tenha sido permitido,
Jesus se coloca na posição daquele que deve cumprir o mandamento primeiro
desde a criação, assumindo a Lei para se colocar contra o divórcio, citando Gênesis
(Gn. 1.27; 2.24; Mc. 10.1-12).
252
Para Jesus, o problema não era o sábado em si, mas a idolatria e as
interpretações que eram feitas sobre o descanso. Isto não se trata de um conflito em
que se aborda o mandamento propriamente dito, mas a interpretação que se faz
desse mandamento, o que leva a estabelecer várias normas em torno do
mandamento do sábado (Mc. 2.24; 3.4).
253
Além disso, o questionamento a respeito
de certas práticas de Jesus no sábado leva a uma pergunta que subjaz: onde está
fundada sua autoridade para interpretar a Lei? (Mc. 11.28). Indiretamente ou
248
GNILKA, 1986, p. 92-93; HENDRIKSEN, 1976, p. 63-64.
249
THEISSEN e MERZ, 2002, p. 391.
250
MATERA, 1999, p. 37.
251
NOLAN, 1987, p. 106.
252
THEISSEN e MERZ, 2002, p. 420; MATERA, 1999, p. 39.
253
LOHSE, 1976. p. 170; NOLAN, 1987, p. 106.
diretamente, as respostas de Jesus também se baseavam na Lei enquanto
mandamento de Deus.
254
O mandamento de Deus tem como objetivo criar
integridade, salvar e libertar a humanidade. A demonstração da autoridade de Jesus
é esta novidade em sua forma de ensinar: libertar da opressão.
255
Com certeza, a
autoridade de Jesus se baseia na autoridade de si mesmo ou que ‘vem do alto’ (Mc.
2.10; 2.28) diante da autoridade dos escribas.
Jesus adotou um estilo de vida semelhante ao dos escribas, porém foi mais
radical.
256
Embora não chamasse a si mesmo pelo título de rabi, essa era a maneira
como alguns o chamavam. Não optou em ser juiz ou legislador (Lc. 12.14), mas
optou por uma vida de simplicidade e itinerância, assim como sugeriu aos seus
discípulos. Nisto os escribas e Jesus se encontram no mesmo ponto. Com certeza,
vida itinerante fez parte da missão e ministério de Jesus e de seus discípulos (Mc.
6.6-13).
257
Parece que Jesus propõe uma vida simples aos seus discípulos e que em
muito se assemelha aos cínicos.
258
O estilo de vida simples exige radicalidade: não
andar de casa em casa ficar na casa apartir. Isto implica em não pedir esmola
aqui e ali (Lc 10.7-8). Além do que, viver com o mínimo necessário é uma
exigência.
259
Mas a simplicidade é algo que tinha a ver com o seu ministério diante
do Reino de Deus. Sua simplicidade não ficava na aparência, mas na prática e esta
tinha a ver com seu ensino: curas, exorcismos.
Pode-se também concluir que Jesus tinha muitos pontos em comum com os
escribas farisaicos ou com os fariseus escribas. Os fariseus se constituíam como um
partido laico dirigido por escribas e muitos escribas pertenciam ao farisaísmo
260
.
Seus adversários são, quase em todas as passagens, os escribas (sem dizer de
qual seguimento) ou fariseus (e daí pressupõe-se escribas farisaicos). Alguns
254
THEISSEN e MERZ, 2002, p. 391; NOLAN, 1987, p. 106-108; MATERA, 1999, p. 37, 39;
KÜMMEL, 1982, p.109; HENDRIKSEN, 1976, p. 63-64.
255
THEISSEN e MERZ, 2002, p. 391; NOLAN, 1987, p. 107; MATERA, 1999, p. 37.
256
ECHEGARAY, 1991, p. 82.
257
ECHEGARAY, 1991, p. 82-83; MEYER, 1993, p. 25-27; CROSSAN, 1994, p. 383-386
258
CROSSAN, 1994, p. 116-119. Os cínicos formavam um grupo contra-cultura, organizado por
Antístenes, que teve como um dos maiores expoentes Diógenes, que viveu antes da era cristã.
259
ECHEGARAY, 1991, p. 83.
260
SCHWEIZER, 1970, p. 51.
autores supõem que este conflito entre Jesus e os escribas (e fariseus) advém do
fato de ele ter mais afinidade com este grupo. Além do que, conflitos de
interpretação existiam no círculo farisaico, na mesma escola. Nesta mesma linha de
raciocínio, toda crítica de Jesus se resume à crítica particular e não generalizada a
todos os escribas pró-fariseus ou farisaicos. O que estava havendo, provavelmente,
era crise interna em relação a interpretações da Torah.
261
Jesus o entrou na
Sinagoga de Cafarnaum por acaso, nem seu intuito era entrar em combate com os
escribas. Ele foi como um judeu para suas devoções e ensinos na sinagoga. E no
seu ambiente, teve conflitos de interpretação. Jesus tem mais afinidade com os
escribas e fariseus do que com qualquer outro grupo. Na sua grande maioria, as
crenças dos fariseus e escribas eram muito semelhantes às de Jesus, além do que,
os fariseus e escribas pertenciam (alguns deles) à mesma classe social de Jesus
262
,
suas crenças eram semelhantes (demônios, anjos, messias, ressurreição).
263
A imagem que temos dos escribas fariseus é uma imagem um tanto quanto
“negativa”: hipócritas, legalistas, etc. Esses são alguns dos dados dos escritos
neotestamentários contra eles. Certamente Jesus entrou num embate contra os
escribas fariseus. Mas até onde Jesus era diferente? A crítica que Jesus faz contra
os escribas e fariseus, possivelmente é fruto de um profundo conhecimento do
mesmo grupo.
264
Para o judaísmo, tudo tinha relação direta com a Lei: conversão e Reino
(Reinado) de Deus. A Lei era a Lei mosaica: Lei escrita e oral transmitida a Moisés
por Deus, como seus mandamentos.
265
Jesus não abriu mão dos conceitos de
mandamentos, de Reinado de Deus e de conversão. Ele deu um novo sentido ético-
moral para esses conceitos. Jesus tinha concepções diferentes a respeito do
Reinado de Deus e da conversão. Ele não pensava que o Reinado de Deus,
261
THEISSEN e MERZ, 2002, p. 250; COLLIN e LENHARDT, 1994, p. 11-12.
262
NOLAN, 1987, p.48. Segundo NOLAN, Jesus, os fariseus e os escribas faziam parte da classe
média: “Jesus era da classe média. Ele não era, por nascimento e educação, um dos pobres e
oprimidos.J.JEREMIAS, 1993, p. 144-155. Embora classe média seja uma categoria moderna, o que
NOLAN e J.JEREMIAS querem destacar, é que pertenciam a uma classe diferenciada dos pobres e
da aristocracia propriamente dita. Uma classe intermediária.
263
THEISSEN e MERZ, 2002, p. 249-250, 252.
264
COLLIN e LENHARDT, 1994, p. 11-12.
265
Cf. MATERA, 1999, p. 23-42; GOPPELT, Leonhard. Teologia do Novo Testamento. 1
o
volume, 2
ed. Canoas: Sinodal e Vozes, 1983, p. 80-86 (a respeito do Reino); SCHRAGE, Wolfgang. Ética do
Novo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, 1994, p. 46-47 (a respeito da conversão) e p. 35-43.
apregoado por ele, tinha relação com ritualismos e leis de purificação, mas com as
verdadeiras exigências de Deus que são a conversão (metavnoia) e a (pivstiV)
266
.
Conversão é ruptura, meia-volta, contra tudo e todas as pessoas que colidem contra
o Reinado de Deus, é um seguimento a uma nova ordem ou sistema de Deus. Os
mandamentos o aqueles que trazem vida, integridade e restauração às pessoas.
A conversão é uma volta incondicional a Deus, o que pressupõe seguir esses
mandamentos éticos.
Para os escribas fariseus, a Lei, e somente ela, era o que caracterizava
quando viria e o que era o Reinado de Deus através do cumprimento da Lei. O
cumprimento era, portanto, correspondente à conversão a Deus. Visto que os
escribas fariseus faziam várias interpretações da Lei dentro do seu próprio círculo, é
possível que isto tivesse contribuído para que Jesus começasse a fazer uma leitura
da Lei e da Tradição, de modo que separasse aquilo que julgava ser mandamento
divino e aquilo que parecia ser elementos ou doutrinas secundárias. Então, seria
notório que a discussão de Jesus com os fariseus fosse assunto de interpretação
interna dentro do farisaísmo.
267
Jesus não rejeita a Lei, mas rejeita as tradições e leis desnecessárias que
aprisionavam as pessoas. Ele era um judeu e via as leis como mandamentos de
Deus e não como prisões. Para Jesus, cumprir os mandamentos também são
exigências do Reino (Reinado) de Deus.
268
Ele não se coloca abertamente contra a
Lei. Neste ponto ele dialoga com os fariseus.
269
O que podemos afirmar é que Jesus
toma uma postura indiferente em relação à Tradição, quando esta o condiz com a
restauração do Reino de Deus. O que caracteriza a diferenciação de Jesus em
relação aos escribas não é a Lei propriamente dita, mas a interpretação que os
escribas fariseus fazem dela. O problema é a distinção entre a interpretação de um e
outro escriba, e não de um escriba em relação à Torah.
270
Ele recita a Lei
(mandamentos); classifica algumas leis como secundárias, priorizando a vida: ele
radicaliza algumas e abranda outras.
266
Cf. MATERA, 1999, p. 36-43; SCHRAGE, 1994, p. 45-49.
267
COLLIN e LENHARDT, 1994, p. 11-12.
268
NOLAN, 1987, p. 105-108. Cf. também Mc. 2.18-22; 2.23-3.6; 7.1-23; 10.1-12; 10.17-27; 12.28-34.
269
NOLAN, 1987, p. 107.
270
THEISSEN e MERZ, 2002, p. 250.
Jesus não deixa de ter uma relação com os escribas fariseus, que quando
confrontam-no o fazem não apenas porque têm algo contra ele, mas provavelmente
porque querem compartilhar coisas comuns com Jesus. Muito mais radical que os
escribas fariseus, Jesus assume não o rigor da Lei, mas a compaixão pelas pessoas
pobres e oprimidas. Isso também é uma interpretação que Jesus faz da soberania
divina através dos seus mandamentos ou vontades divinas.
271
Certamente, nada une tanto os escribas fariseus a Jesus do que a crença do
bem e do mal, e da ressurreição. Isso consiste no fato de que Jesus estava
largamente envolvido com os elementos constitutivos da fé dos fariseus.
A autoridade de Jesus superava a dos escribas, que tinham formação na bet
hamidrash (a casa do conhecimento ou do ensino). Eis porque os escribas eram
chamados de rabi. Jesus é chamado várias vezes de didaskalos no evangelho de
Mc e parece que ele tem a mesma característica dos escribas.
Como Mc interpreta Jesus como sendo didaskalos? Como está sendo
evidenciado seu ensino? O que faz deste ensino ser algo sui generis? Por que é
novidade? Será que é algo de conteúdo? Pelo que notamos, a base do ensino de
Jesus era a mesma base do ensino dos escribas: a Torah. Em termos de alicerce,
eles apresentam os mesmos argumentos apoiados na Torah, embora com
perspectivas diferentes. Mas se ele não apresenta um conteúdo tão diferente dos
seus conterrâneos, então qual se a novidade deste ensino e qual será esta
autoridade que Mc tanto enfatiza a respeito de Jesus? Para respondermos esta
questão, deveremos retornar ao texto do qual partimos para tentar reconstruir o
pensamento de Mc no que diz respeito a este ensino como novidade e sua
autoridade.
271
MATERA, 1999, p. 48-49.
3.4 - A didach; kainh; kat j ejxousivan: Jesus como professor e seu ensino
segundo Marcos
Um dos papéis de Jesus no evangelho de Marcos é como professor ou
mestre, contrariando a idéia popular de que Jesus se apresenta unicamente como
curandeiro ou exorcista.
272
Antes foram citadas quantas vezes ocorrem as
palavras didavskaloV, didavskw neste evangelho. Foi constatado que
possivelmente esta evidência seja redacional.
Em Mc o verbo didavskw é usado com o intuito de caracterizar a atividade
instrutiva de Jesus na sinagoga ou no templo (Mc 1.21; 6.2; 11.17; 12.35; 14.49), ao
povo (Mc 2.13; 4.1ss; 6.34; 10.1) ou aos discípulos (Mc 8.31; 9.31). Ocasionalmente,
Mc emprega este verbo para caracterizar a instrução dos discípulos a outras
pessoas em obediência a sua comissão (Mc 6.30).
273
O verbo didavskw geralmente aparece conjugado no imperfeito ejdivdasken
274
ou no presente particípio didavskwn, denotando uma ação contínua ou progressiva.
Mc também emprega este verbo no infinitivo juntamente com o verbo a[rcomai
começar, h[rxato didavskein “começou a ensinar” (Mc 6.2), sugerindo uma prática
habitual.
275
Porém este tipo de construção pode indicar uma ação momentânea.
276
Quer seja a ação habitual, quer seja momentânea, o emprego de h[rxato didavskein
apresenta um sentido inceptivo
277
. Em geral, em todas as ocorrências deste verbo,
a grande maioria dos casos indica que ele é caracterizado por uma ação contínua.
278
Expressões sinonímicas como “veio pregando” (Mc 1.14) ou “falava a palavra”
(Mc 2.2; Mc 4.33) fazem aumentar a lista de expressões e palavras através das
272
MARTIN, 1976, p. 111.
273
MARTIN, 1976, p. 111.
274
Também aparece em formava de imperfeito perifrástico, como em Mc 1.22: h\n ga;r didavskwn.
Note que neste caso, o verbo no particípio serve para construir o chamado imperfeito perifrástico.
Basicamente, o imperfeito perifrástico apresenta um sentido contínuo de uma ação: ‘ele estava
ensinando ou ele ensinava’. TAYLOR, 1972, p. 45; BETTS, 2004, p. 29-31; SCHWEIZER, 1970, p.
50; MARTIN, 1976, p.111.
275
MARTIN, 1976, p.111.
276
SCHWEIZER, 1970, p. 50.
277
O significado inceptivo sempre esligado ao verbo começar, o qual apresenta o início da ação:
começou a fazer, começou a ler etc. BETTS, 2004, p. 31.
278
SCHWEIZER, 1970, p. 50.
quais Mc enfatiza a atividade de Jesus como um didavskaloV ou
yBir:
palestinense,
engajado no ministério da instrução e seguido por um grupo de discípulos (Mc 3.13-
14).
279
Mc efetua ingredientes redacionais que apresentam a novidade das práticas
de Jesus por meio do seu ensino. Esta nova imagem do ensinamento é traçada por
uma autoridade que não pode ser comparada à autoridade de qualquer um de sua
época
280
.
Embora Jesus seja comparado com um rabi palestinense, segundo Mc, o
movimento pedagógico de Jesus apresenta algumas características sui generis:
a) O chamado ao discipulado era uma meia-volta ou um abandono ao antigo modo
de vida. O discípulo estava ligado a Jesus por uma nova situação e condição de
obediência e serviço. Este modo é mais radical e vai além do que qualquer mestre
exigia de seus discípulos.
281
b) Os discípulos de Jesus não eram pupilos de uma escola rabínica ou seguidores
de um novo líder rabínico. Os discípulos não eram iniciados ou limitados aos ‘livros’
ou ‘escritos’. Sua formação educacional era prática. Os discípulos deveriam estar na
companhia de Jesus, em contato com o povo todos os dias.
282
No primeiro capítulo podemos constatar por meio da análise literária e da
análise redacional que Mc 1.21-22 e 27 se enquadram dentro das características do
estilo literário e redacional do Evangelho. Partindo do relato do exorcismo nos versos
23-26, Mc criou uma moldura que explicita a atividade instrutiva de Jesus em torno
do exorcismo. Nos versos 22 e 27, Mc chama a atenção para o ensino, para a
autoridade e para o espanto diante deste ensino com autoridade. No verso 27
propriamente dito, este ensino com autoridade é recebido como uma novidade, ou
seja, é um novo ensino com autoridade.
279
MARTIN, 1976, p.111; BLACK, 1989, p. 85-87, citando ROBERT MEYE.
280
SCHWEIZER, 1970, p. 50.
281
MARTIN, 1976, p. 112.
282
MARTIN, 1976, p. 112.
podemos constatar que Mc apresenta Jesus como aquele que cumpre os
mandamentos de Deus.
283
E qual seria a novidade e autoridade do ensino de Jesus
para Mc? Seria uma nova compreensão destes mandamentos de Deus?
Podemos notar que Mc não explicita diretamente o que Jesus ensinava, ou
seja, não percebemos de imediato qual é o conteúdo
284
do ensino de Jesus em Mc.
Esta suposta renúncia a uma apresentação mais clara e detalhada do conteúdo do
ensino de Jesus tem sido considerada como uma lacuna quando analisamos este
Evangelho a partir dos outros Evangelhos Sinópticos, principalmente Mateus.
Porém, para Mc o conteúdo do ensino de Jesus é expresso pelo contexto.
285
tínhamos avaliado na análise redacional que o Evangelho de Marcos pode
ser dividido em várias secções ou partes. Poderíamos dizer que 1.14-3.6 é a parte
onde se situa o evento na sinagoga de Cafarnaum.
1.14-15: Preparação do ministério de Jesus;
1.16-45: Início do ministério de Jesus com autoridade;
2.1-3.6: Jesus provoca a oposição dos seus adversários.
286
A primeira subunidade (Mc 1.14-15) apresenta e caracteriza a pregação de
Jesus de forma programática. No entanto, a comparação do ensino de Jesus com o
ensino dos escribas depende do que vem subseqüentemente a Mc 1.21-28: o que
vem posteriormente é caracterizado pelos debates e conflitos de Jesus com as
concepções e objeções dos judeus. Mc 1.22 é importante para entender a totalidade
da secção 1.14-3.6.
287
Mc emprega repetidamente
ejkplhvssomai, qambevomai
(
Mc 6.2; 7.37; 10.26;
11.18) para indicar admiração ou espanto diante do ensino ou da taumaturgia de
283
KÜMMEL, 1982, p. 109.
284
SCHWEIZER, 1970, p. 50; GNILKA, 1986, p. 91-92; WALTERS, 1980, p. 105; SOARES e
CORREIA JR., 2002, p. 84-85; MESTERS e LOPES, Carlos e Mercedes. Caminhando com Jesus
Círculos Bíblicos do Evangelho de Marcos. São Leopoldo: CEBI e São Paulo: Paulus, 2003, p.30.
285
GNILKA, 1986, p. 91.
286
Vide WEGNER, 2002, p. 149.
287
GNILKA, 1986, p. 91-92.
Jesus. Por meio destes verbos, Mc enfatiza a admiração dos ouvintes diante da
atividade de Jesus.
288
O espanto dos espectadores em relação ao seu ensino está relacionado à
autoridade do ensino. Isto pressupõe que Mc indica que o ensino de Jesus é algo
poderoso, advindo de Deus. O espanto não se necessariamente com a
taumaturgia ou com o ensino, mas com a autoridade com a qual são realizados.
289
Por que os espectadores se admiraram do ensino de Jesus? Qual é o motivo
para esta atitude diante do ensino de Jesus? O texto responde que tal reação se
pelo fato de que Jesus ensinava com autoridade. E por que ele ensinava com
autoridade? Ele ensinava com autoridade porque esta vinha do seu próprio ser e das
Escrituras, as quais apresentam os mandamentos de Deus.
290
A diferença de Jesus
em relação aos escribas é que sua autoridade provinha de si mesmo, ou seja, ele
falava com autoridade própria, no entanto os escribas se limitavam, no círculo
traditivo, à Lei e à tradição.
291
Devemos considerar que a autoridade não significa permissão nem indica
estar num círculo da tradição dos escribas.
292
A autoridade indica a forma e modo
como algo é feito, realizado ou ensinado.
293
O que diferenciava o ensino de Jesus
em relação ao ensino dos escribas não parece ser o conteúdo em si, mas sua forma
de empregar o conteúdo e o cumprimento da palavra.
294
Esta forma de ensino
pressupõe novidade.
295
A novidade consiste em que o ensino de Jesus venha
acompanhado da autoridade. O ensino está intimamente ligado à práxis
296
: por meio
da autoridade, Jesus ensina e realiza milagres.
297
A derrocada do espírito imundo é
a indicação da soberania de Deus. Com a irrupção do Reino de Deus se inicia o
288
GNILKA, 1986, p. 92; SOARES e CORREIA JR., 2002, p. 84;
289
TAYLOR, 1972, p. 176; DELORME, 1982, p. 42.
290
HENDRIKSEN, 1976, p. 63-64;
291
GNILKA, 1986, p. 92-93.
292
SOARES e CORREIA JR., 2002, p. 85.
293
HARGREAVES, 1977, p. 24.
294
SCHWEIZER, 1970, p. 50; SOARES e CORREIA JR., 2002, p. 85; MESTERS e LOPES, 2003,
p.30.
295
SOARES e CORREIA JR., 2002, p. 84.
296
SOARES e CORREIA JR., 2002, p. 84; GNILKA, 1986, p. 93; SCHWEIZER, 1970, p. 51.
297
RICHARDSON, 1963, p. 70.
novo tempo, e Satanás deveria ser aniquilado.
298
A autoridade de Jesus se
manifesta através dos sinais do Reino (Mc 1.27; 3.24-37).
299
Não é por acaso que o
ministério de Jesus começa com o exorcismo.
300
O novo ensino com autoridade se caracteriza pela realização de um novo
tempo, de um novo sistema (Cf. Mc 1.27; 2.21-22).
301
Este novo ensino também
está relacionado com a obediência dos espíritos impuros à ordem de Jesus. Mc
enfatiza que a irrupção do Reino de Deus é a derrota dos demônios, e esta é a
novidade do ensino de Jesus: palavra autoritativa que indica o cumprimento e a
irrupção do Reino de Deus.
O texto de Mc 1.21-28 nos indica três aspectos sobre o ensino de Jesus. O
verso 27 nos serve de sumário: a novidade, a autoridade e obediência dos espíritos
impuros.
302
Mc não nos fala do conteúdo do ensino de Jesus, mas subtende-se que
a base do seu ensino não é a Torah de forma repetitiva
303
, mas o anúncio do
Reino de Deus.
A indicação do exorcismo na sinagoga tem a ver com o anúncio de um novo
sistema, e a destruição do sistema do mal, ou seja, Satanás e sua hoste. O embate
do demônio e sua pergunta a Jesus (O que entre nós e ti, Jesus nazareno?
Vieste nos destruir? Conheço-te quem és, o Santo de Deus. Mc 1.24.) expressam
que o anúncio do Reino de Deus poderia causar tal reação. O ensino de Jesus
deveria imprimir um conteúdo do mesmo sumário que se encontra em Mc 1.14-15,
por isso, o texto não evidencia o espanto dos espectadores diante do ensino de
Jesus e sua autoridade, mas também a palavra autoritativa de Jesus de expulsar o
espírito impuro. O conteúdo teórico do ensino espaço à prática de Jesus: curas,
exorcismo etc.
304
Este milagre apenas reforça seu ensino, é apenas uma evidência
298
SOARES e CORREIA JR., 2002, p. 85; GNILKA, 1986, p. 93.
299
SOARES e CORREIA JR., 2002, p. 85.
300
GNILKA, 1986, p. 93.
301
TAYLOR, 1972, p. 176; SWETE, 1905, p. 22.
302
WALTERS, 1980, p. 105.
303
SOARES e CORREIA JR., 2002, p.85.
304
WALTERS, 1980, p. 105; GNILKA, 1986, p. 93; SOARES e CORREIA JR., 2002, p.84-85.
daquilo que Jesus ensinava.
305
Em Mc não enfatiza tanto o conteúdo teórico, mas a
práxis de Jesus como resultado de sua pregação, isto é, teoria e prática juntas.
Os espectadores na sinagoga ficaram maravilhados diante da autoridade,
novidade, e poder deste ensino de Jesus. A novidade não se no ensino
enquanto didática, mas é o anúncio de um novo sistema, de uma nova ordem. Em
Mc, a palavra anúncio, pregação e ensino estão intimamente interligadas. Quando
Jesus estava ensinando, pressupunha pregação; e quando pregava, pressupunha
ensino.
306
Ou seja, Jesus estava inserido numa visão de ensino e pregação que
tinha a ver com o anúncio do Reino de Deus. O anúncio de uma nova época e seu
novo ensinamento são elementos que se complementam. Este anúncio traz uma
novidade evangélica, uma nova qualidade (Mc 2.14): a soberania de Deus.
307
Segundo Mc, a grande diferença do ensino de Jesus em comparação ao dos
escribas é que o ensino de Jesus obtém um resultado.
308
O fato é que Mc tenta
apresentar que Jesus conseguiu apresentar algo concreto, diferentemente dos
escribas e rabis de seu tempo. Além do que, é notório que Mc apresenta Jesus
como o único que ensina.
309
Isto se porque o autor apresenta Jesus como aquele
que “ensinava com autoridade, e não como os escribas” (Mc 1.22). Enquanto que os
escribas se apoiavam num ensino que tinha sido basicamente o ensino de outros
que vieram e interpretaram anteriormente (Mc 7.5,8), Jesus falava de forma direta,
independente e confiante. Isto era profético e audacioso.
310
O espanto dos espectadores diante de sua autoridade não se deu
necessariamente porque Jesus trouxe algo diferente do conteúdo daquilo que se
ensinava em seu tempo. Jesus se distinguia dos professores de antes e depois dele.
Jesus, em Mc, é distinguido porque ele ensinava algo que tinha seu resultado, e não
pelo conteúdo enquanto Lei ou Torah. Ele o era diferente dos outros escribas,
senão pelo resultado de seu ensino.
311
305
THEISSEN e MERZ, 2002, p. 250; SCHWEIZER, 1970, p. 50.
306
BLACK, 1989, p. 84, citando ROBERT MEYE.
307
TAYLOR, 1972, p. 176.
308
WALTERS, 1980, p. 106; SOARES e CORREIA JR., 2002, p. 85; SCHWEIZER, 1970, p. 50.
309
SCHWEIZER, 1970, p. 50; SOARES e CORREIA JR., 2002, p. 85.
310
WALTERS, 1980, p. 106.
311
SCHWEIZER, 1970, p. 50-51.
Este ensino de Jesus se como ponto de reconciliação entre Deus e o
homem. Por meio do seu ensino, Jesus uma oportunidade de comunhão entre a
humanidade e Deus. Mc mostra os milagres para indicar a dimensão do ensino de
Jesus (Mc 4.35-41). Sua palavra é práxis que faz seu ensino autoritativo.
312
Logo, podemos afirmar que a didach; kainh; kat j ejxousivan, longe de ser
uma mera repetição de ensinamentos baseados em uma herança traditiva dentro do
círculo exclusivamente dos escribas, é uma novidade como anúncio do Reino de
Deus. Nisto consiste um reforço da Lei enquanto mandamento de Deus, o qual traz
uma nova perspectiva de integração neste novo sistema.
A proposta de Jesus, segundo Mc, é reforçar os mandamentos de Deus como
possibilidade para restauração da vida. Isto é possível mediante o amor, sem o
qual a proposta de um novo sistema se torna uma velha repetição das normas.
Nesta nova perspectiva, percebe-se a autoridade de Jesus. Ele pode interpretar e
justificar seu ensinamento nos mandamentos de Deus.
3.5 - Atualização: Jesus, um exemplo de Pedagogo
Depois de responder sobre o que Jesus ensinava, faz-se necessário
perguntar qual a aplicabilidade desse ensinamento no contexto de onde o presente
trabalho foi elaborado. Para tanto, faz-se igualmente necessário nos reportarmos à
proposta pedagógica latino-americana de Paulo Freire, que tem em Jesus Cristo um
exemplo de pedagogo. Como ele mesmo afirma, em certa nota: “Costumo dizer que,
independentemente da posição cristã em que sempre procurei estar, Cristo seria,
como é, para mim um exemplo de Pedagogo.”
313
312
SCHWEIZER, 1970, p. 50-51.
313
FREIRE, Paulo. Conhecer, praticar, ensinar os Evangelhos. (Notas de Paulo Freire para 4
jovens seminaristas alemães). In Tempo e Presença, publicação mensal do CEDI, nº. 154. Rio de
Janeiro: CEDI, 1979, pág. 7.
Por que Jesus seria um “exemplo de Pedagogo”? Lucas Spegne o chama de
“Educador Popular”
314
. De fato, estamos diante de uma personagem significativa no
campo do ensino e não estamos dizendo apenas enquanto conteúdo de ensino, mas
em método e forma de ensino. Sua forma de ensinar parece surpreender a muitas
pessoas: didach; kainh; kat j ejxousivan, ensino novo com autoridade. Mas os
escribas também eram professores e gozavam de autoridade.
315
Talvez Jesus demonstrasse muito mais facilidade didática e convicção do que
ensinava, além do que, falava aos pobres e sua autoridade consistia no seu ensino e
capacidade de curar e exorcizar.
316
O exemplo de Jesus como pedagogo ou
educador popular se baseia numa autoridade, como diz Paulo Freire: “Neste sentido
é que somente a prática de quem se sabe humildemente um eterno aprendiz, um
educando permanente da Palavra, lhe confere autoridade, no ato de aprendê-la e
ensiná-la.”
317
Neste mesmo sentido, Jesus é tomado por uma autoridade
sobrenatural de ensinar e ser um didavskaloV. Ser educador como Jesus remete a
um ponto importante: fazer opção pelos excluídos da sociedade, pelos miseráveis e
pobres diante de status quo.
318
Como poderíamos evidenciar isto em Jesus?
De fato, em Mc, não um conteúdo explícito do que Jesus ensinava,
evidencia-se sua autoridade. ‘Com autoridade’ é uma expressão adverbial que
expressa como Jesus ensinava. Só uma única vez aparece o objeto direto ligado ao
verbo didavskw (Mc. 6.34). E mesmo assim, é uma forma muito vaga de falar do
conteúdo ou o que ensinava Jesus. Mas o que se destaca junto a este verbo
didavskw é a autoridade e o espanto diante dessa forma de ensinar. Ele estava lhes
ensinando como tendo autoridade e não como os escribas (Mc. 1.22). O que é isso?
Justamente a forma como ensinava é que estava em jogo, comparando-a com a dos
escribas e fariseus.
Tudo isso podemos notar em várias passagens de Mc, descrevendo a
autoridade de Jesus para curar e exorcizar assim como ensinar. Podemos constatar
314
SPEGNE, Lucas. Jesus Educador Popular no evangelho de Marcos. In Revista Vida Pastoral,
jan/fev de 1998, p. 13-20.
315
ECHEGARAY, 1991, p. 81-82.
316
RICHARDSON, 1963, p. 70.
317
FREIRE, 1979, p. 7.
318
NOLAN, 1987, p. 39-40, 48.
que Jesus colocava sua prática de opção pelos pobres junto ao seu ensino. Exemplo
disto é a cura e o exorcismo atrelado ao seu ensino em Mc. 1.27. Além do que, sua
atividade era um constante ensinar (Mc. 1.21,22; 2.13; 4.1,2; 6.2). Jesus é um
professor nato. O que podemos notar nesta característica de professor é a sua
necessidade de fazer o bem ao próximo. E fazer o bem requer alguns passos
importantes que são a negação de si mesmo. A opção de Jesus é opção dos
esmagados e oprimidos do povo. A salvação diante de Deus através do amor e da
compaixão.
Em última análise, o texto de Mc enfatiza o ensinamento de Jesus como um
processo de formação popular, no qual o povo se surpreende com a autoridade de
Jesus. Diferente dos escribas, Jesus abre para o povo uma interpretação das
Escrituras que lhe traz salvação e libertação. Não em Jesus um sistema de
ensino fechado e recobrando para si autoridade. Era a autoridade do seu ensino que
libertava de toda opressão (Mc. 1.21-28).
ECHEGARAY diz que “os escribas monopolizam a ciência e, ao mesmo
tempo, a tornam incompreensível e o último, por causa do primeiro”.
319
Ao contrário
dos escribas, Jesus se coloca na posição de pedagogo libertador: “livra o texto, em
muitos casos, dos lagos institucionais revelando aspectos esquecidos e obtendo
com isto ressonâncias insuspeitáveis”.
320
Sua leitura, sendo livre, recobrava para si
mesmo sua autoridade de ensino. Assim, Jesus se coloca em posição contrária às
leituras dos escribas. Sua leitura libertadora não fecha ou dificulta a palavra ao povo,
mas lhe proporciona liberdade e salvação. Salvação, aqui, consiste em dar
dignidade, reintegrar as pessoas destituídas e excluídas. Diferente dos escribas,
Jesus estabelece libertação através da ação (sua prática de libertação) e de seu
ensino (que consistia em pregação do Reino de Deus em justiça e amor).
321
“Jesus Cristo coloca a palavra de Deus ao alcance de todos; simplificando, vai ao
essencial. Fala com simplicidade, porque se dirige aos mais pequeninos e usa a
linguagem deles, porque através dessa linguagem revela a própria proximidade de
Deus”.
322
319
ECHEGARAY, 1991, p. 84.
320
ECHEGARAY, 1991, p. 84.
321
NOLAN, 1987, p. 48-49, 71-78.
322
ECHEGARAY, 1991, p. 85.
A proposta de Jesus é a formação de uma comunidade (Mc 1.16-20). Por
outro lado, o povo percebe que Jesus tem uma forma diferente de ensinar. Não é
tanto o conteúdo que deve ser envidenciado, mas sua forma instrutiva. Esta forma
impressiona porque cria uma consciência crítica no povo, que era manipulado pelos
escribas. Entretanto, diante da forma de ensinar de Jesus aparece uma outra
perspectiva. Nisto, o ensino de Jesus se diferencia do ensino dos escribas.
323
A autoridade de Jesus não consistia em meras repetições de interpretações.
Ela inaugurava um novo tempo. Esta novidade se faz mediante a forma diferente,
audaciosa e profética de proclamar o Reino de justiça e salvação.
324
As normas que antes indicavam a pureza ou impureza, são relativizadas
diante desta urgente novidade do Reino. É a vida que deve ser valorizada e não as
normas como prerrogativas para a vida. As normas devem estar subjacentes à
humanidade e ao amor incondicional.
325
Esta novidade é pedagógica porque exprime novas características, novas
perspectivas em relação ao antigo sistema (Mc 1.27; 2.21-22). A novidade radical é
um novo jeito de ser e de viver. E esta é centrada nas Boas-novas do Reino de
Deus (Mc 1.14-15).
326
Esta novidade de ensino é caracterizada pela autoridade que se apresenta de
um modo diferente daquele dos escribas (Mc 1.22-27). Por meio desta autoridade,
Jesus manifesta a capacidade de perdoar (Mc 2.10), libertar e salvar as pessoas de
todas as coisas que as prendem e as alienam.
327
O ensinamento dos religiosos da época de Jesus se baseava em um sistema
de regras, normas e condutas de pureza, e o ensino de Jesus se baseava na
“gratuidade”.
328
O ensino de Jesus é mandamento de Deus que proporciona e
323
MESTERS e LOPES, 2003, p. 30; SOARES e CORREIA JR., 2002, p. 84-85.
324
MESTERS e LOPES, 2003, p. 30; SOARES e CORREIA JR., 2002, p. 84-85.
325
NOLAN, 1987, p.106-107; MESTERS e LOPES, 2003, p. 31; SOARES e CORREIA JR., 2002, p.
84-85.
326
SPEGNE, 1998, p. 13.
327
SPEGNE, 1998, p. 15; NOLAN, 1987, p.107-108.
328
SPEGNE, 1998, p. 16.
integra as pessoas. Ele acusava os religiosos de seu tempo de abafar os
mandamentos de Deus para assegurar a tradição de homens (Mc 7.8).
A idéia pedagógica de Jesus era restaurar as pessoas para um novo modo de
vida, para uma vida de integridade e libertação. SPEGNE diz: “As autoridades
religiosas ao contrário, ensinavam oprimindo,...” (Mc 7.6; 12.38-40). A teologia da
gratuidade tem suas raízes na tradição profética, contrária ao ritualismo tradicional e
hipócrita (Is 1.11-20).
Uma pergunta que deve ser feita hoje: Se temos alguma função de ensino na
Igreja, somos escribas ou somos testemunhas?
329
GARAUDY afirma que uma desigualdade grande e gritante em todo
mundo, principalmente quando comparamos o Norte do Mundo com o Sul.
330
Além
do que, a tecnologia e a ciência, que deveriam servir à humanidade, servem aos
grandes produtores. A regra é produzir, produzir e produzir. O lazer é um vazio e
antro de consumo, não valoriza a cultura nem os verdadeiros valores do homem
como tal. E o que isto tem a ver com a Igreja e seu papel educativo na América
Latina? Tudo.
Visando esta situação no mundo, entramos em nosso mundo, aqui, na
América Latina. O que devemos levar em consideração é a própria tarefa da Igreja
como elemento de educação e profecia. Mas não é qualquer educação, é uma
educação libertária e profética. Eis uma grande questão: qual é a característica da
Igreja que tem esta educação como base? É uma Igreja profética que está além das
estruturas de uma “Igreja tradicionalista ou modernizante
331
, como atesta Paulo
Freire que para algumas afirmações em relação à educação na América Latina.
Primeiramente ele declara que a Igreja não é uma instituição abstrata ou apolítica. O
ideal de Igreja é aquele que trabalha em prol da liberdade e por uma reconstrução e
reestruturação do sistema. Entretanto, ele o nega que indivíduos que
329
DELORME, 1982, p. 42.
330
GARAUDY, Roger. Rumo a uma guerra santa? O debate do século. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 1995, p. 11.
331
FREIRE, Paulo. O Papel Educativo das Igrejas na América Latina. In Ação Cultural para a
Liberdade e outros escritos. 8 ed. Rio de Janeiro e São Paulo: Paz e Terra, 1987, p. 122-123.
comungam com toda a situação vigente, como os inocentes e os espertos. Uns, são
aparentemente inocentes em relação a todo um problema de opressão; outros estão
mais conscientes do que fazem, cooperando com o status de opressão. Dentro
deste esquema, estão as igrejas tradicionalistas, as que seguem aqueles mesmos
meios de cooperação com o status quo, e as modernizantes, que mudam a estrutura
aparente, aparelham o ambiente de ensino, mas a contribuição com o sistema é a
mesma das tradicionalistas.
Além destas, estão as proféticas, aquelas que promovem uma nova estrutura
de educação, visando a libertação do povo do aparelho de opressão e de exclusão.
A educação libertadora não pode ser a que busca libertar os educandos dos
quadros para oferecer-lhes projetores. Pelo contrário, é a que se propõe, como
prática social, a contribuir para a libertação das classes dominantes”.
332
O que se pode abordar sobre o ensino ou pedagogia de Jesus é que ele não
precisava explorar e ridicularizar o povo com conhecimentos fechados. Jesus
ultrapassou a maneira hermética e esotérica dos escribas e fariseus para uma esfera
chamada povo. Neste sentido, a linguagem deve ser pedagógica e didática. E não
uma ciência complicada e exclusivista.
Não se pode pensar que Jesus utilizou os mecanismos e as táticas dos
escribas. A pedagogia de Jesus era antes uma abordagem da libertação em seu
contexto, onde as pessoas viviam suas vidas presas ao status quo da religião e da
política. “Ai de vós, doutores da Lei, que tirastes a chave da ciência; s mesmos
não entrastes e impedistes os que entravam.”
333
Está claro que a posição de Jesus é
a de libertar, abrir, conduzir as pessoas ao conhecimento de Deus e de sua vivência
no mundo; distantes são os escribas, que viam em si mesmos a autoridade que vem
dos antepassados, que no entanto ficavam no ambiente esotérico e fechado deles
mesmos. Jesus pensava que a libertação e a salvação das pessoas era algo além
de um ensinamento restrito à Lei e que tinha a ver com sua práxis. Sua práxis
refletia o seu ensino: curar e exorcizar.
332
FREIRE, 1987, p. 110.
333
Cf. Lc. 11.52.
Fazer milagres em geral é causa de espanto para o povo, pois o povo
entendia a autoridade dos seus ensinamentos na ordem prática: ensino é igual à
ordem prática: ensino é igual a ordenar aos espíritos impuros (opressores). Neste
sentido Jesus é autoridade em ensino e prática. (Mc. 1.21-27). Como diria FREIRE:
Autoridade, por isto mesmo, que jamais se alonga em autoritarismo. Este, pelo
contrário, é sempre a expressão da redução da Palavra a mero som não mais
PALAVRAÇÃO – e negação, portanto, do testemunho pedagógico do Cristo.
334
Para Jesus, não pode haver exorcismo, cura e libertação diante dos
opressores, se não houver ensino. O ensino através destas coisas: ensino que faz o
ser humano livre e salvo é ensino com autoridade.
334
FREIRE, 1979, p. 7.
CONCLUSÃO
O presente trabalho foi desenvolvido a partir do método histórico-crítico.
Principalmente no que diz respeito ao primeiro capítulo. O texto bíblico escolhido, a
perícope de Mc 1.21-28, foi devidamente analisado seguindo este método.
Também, partimos da análise do próprio contexto do ambiente de Jesus.
Quanto ao primeiro capítulo, apresenta o texto grego da versão de Novum
Testamentum Graece, de NESTLE-ALAND, por se tratar de uma versão crítica que
auxilia o exegeta no trabalho de pesquisa. A tradução mostrou que o texto
apresenta alguns semitismos, alguns usos exagerados do particípio, mas que
devemos estar atentos para estes usos e traduzí-los devidamente.
A crítica textual ressalta uma análise da fraseologia didach; kainh; kat j
ejxousivan e suas possíveis variantes. Os melhores manuscritos atestam o uso de
didach; kainh; kat j ejxousivan~. Alertamos para a origem destas variantes como
advindas da influência paralela de Lc 4.16.
A análise literária contribui para a delimitação da perícope e verificação de
sua unidade. Também analisa as partes diferenciáveis dentro da perícope e com
isso observamos a possível utilização de dois materiais: um pré-marcano e o outro
redacional. Esta análise serviu para dar início à análise redacional.
A análise redacional apontou o estilo de Mc e os elementos pertencentes a
este estilo. Reforçou a hipótese de que havia partes diferenciáveis apontando para
um trabalho redacional posterior e um trabalho de origem pré-marcana; chegando à
conclusão quanto às partes redacionais de Mc dentro da perícope, a saber, a parte
redacional, basicamente, está expressa em Mc 1.21-22 e 27-28. A parte pré-
marcana compreende os versos 23-26. Ainda na análise redacional, destacamos
alguns elementos redacionais, próprios do estilo de Mc. Por exemplo: a ênfase no
ensino; a repetição dos vocábulos ensino, ensinar; o uso da conjunção aditiva ‘e’,
como parataxe; o uso excessivo do particípio; etc. Admitimos que a Fonte Q serviu
de material para Mateus e Lucas, tanto quanto Marcos serviu de fonte para estes.
Como nos limitamos ao estudo de Mc, e raras vezes citamos Lucas como paralelo,
não nos detivemos no estudo da Fonte Q.
Quanto à análise das formas, percebemos que este relato apresenta
elementos constitutivos do gênero de milagre e que este relato poderia estar
caracterizado e enquadrado como tal. Entretanto, nosso objetivo não foi trabalhar
esse gênero, mas o aspecto redacional de Mc que salienta o ensino e a
característica de Jesus como professor. Quanto a seu lugar vivencial ou sitz im leben
do gênero, optamos pelo meio missionário sinagogal ou catequético. O seu lugar
vivencial pode ter sido o ambiente palestinense. Sua intencionalidade está
basicamente ligada à idéia de mostrar Jesus como taumaturgo e mestre, e sua
autoridade diante dos outros mestres.
Quanto ao segundo capítulo, basicamente apresentamos os dados históricos
do ambiente de Jesus. Partimos da análise do ambiente geográfico onde se
encontrava a sinagoga, Cafarnaum. Posteriormente, analisamos os dados históricos
sobre a sinagoga, destacando-a como lugar ensino, de formação e de devoção, e
por fim, analisamos o grupo dos escribas, a Torah e a Halachah. Estas contribuições
atestam sobre a localização histórica, social, religiosa e educativa, para melhor
compreensão do ambiente da época de Jesus e sua prática de ensino.
No terceiro e último capítulo, apresentamos um quadro da formação
educacional de Jesus, como mestre ou rabi judeu em sentido amplo, inserido em seu
tempo. Porém ele não se limita às normas ritualísticas de seu tempo, ele abranda ou
radicaliza as Leis. Chegamos à conclusão de que Jesus não estava distante dos
rabis e escribas, exceto quando, a partir de si mesmo, radicalizava e relativizava
alguns mandamentos. Por exemplo: a radicalização contra o divórcio; do primeiro
mandamento e do amor ao(à) próximo(a); a relativização de normas ritualísticas de
pureza; a relativização do mandamento do sábado, em que acentua a importância
do ser humano em relação a esse mandamento. Também apresentamos suas
ligações com a formação institucional de ensino.
A base do ensino de Jesus é a mesma base do ensino dos escribas. Embora
Marcos não apresente nenhum conteúdo do ensino de Jesus, notamos que,
implicitamente, este conteúdo vai se apresentando como o anúncio do Reino de
Deus. A novidade deste ensino é uma nova perspectiva: que o anúncio do Reino de
Deus se evidencia caracterizado pela forma autoritativa de ensino que cria o espanto
e admiração por parte dos espectadores.
Observamos também a influência e o papel das Escrituras como elementos
fundantes do pensamento e ensino ético de Jesus. Sua autoridade consiste no seu
modo de ensinar, idéia defendida por SCHWEIZER e WALTERS; ou em seu jeito
independente de interpretar as Escrituras, como defende GNILKA. Mas o uma
exclusão destas duas idéias. Atestamos que a ética de Jesus e o conteúdo do seu
ensino estão ancorados na Torah, livremente interpretada. Notamos que a ênfase de
Mc em apontar Jesus como professor e destacar o seu ensino, se pelo fato de
que Jesus é o mestre que está anunciando o Reino de Deus. Esta é a grande
novidade de seu ensino.
Na atualização, devemos notar a contribuição de Jesus como um exemplo de
pedagogo, como Paulo FREIRE defende, para os(as) professores(as) e para a Igreja
da América Latina. O exemplo de Jesus projeta sua didática por meio do conteúdo.
Sua didática indica o conteúdo do seu ensino que se apóia no Reino de Deus para a
integração e amor pelas pessoas.
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