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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
CENTRO DE ESTUDOS GERAIS
INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS
DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA
A UTILIZAÇÃO DOS INDICADORES SOCIAIS PELA GEOGRAFIA:
Uma análise crítica
José Carlos Milléo
Orientador: Dr. Ruy Moreira
Tese de Doutorado apresentada ao
Programa de Pesquisa e Pós-Graduação em
Geografia, da Universidade Federal
Fluminense, Niterói - RJ, como requisito
parcial para a obtenção do título de Doutor em
Geografia.
Niterói, RJ
Dezembro de 2005
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ii
M 646 Milléo, José Carlos.
A utilização dos indicadores sociais pela geografia : uma
análise crítica / José Carlos Milléo de Paula. – Niterói : s.n. ,
2005.
105 f.
Tese (Doutorado em Geografia) – Universidade Federal
Fluminense, 2005.
1.Indicadores sociais. 2.Mudança social. 3.Pobreza.
4.Geografia. I.Título.
CDD 300.72
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iii
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS
DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA – PPGEO
JOSÉ CARLOS MILLÉO DE PAULA
Tese submetida ao Programa de Pesquisa e Pós-Graduação em Geografia, área de
Concentração em Ordenamento Territorial e Ambiental, como requisito parcial para a
obtenção do título de Doutor em Geografia.
TESE APROVADA EM ___/___/___
_____________________________________________
Dr. Ruy Moreira – UFF
Orientador
_____________________________________________
Dr. Antonio de Ponte Jardim – IBGE
Membro
_____________________________________________
Dr. Marcos Antônio Campos Couto – UERJ/FFP – S.G.
Membro
_____________________________________________
Dr. Jacob Binsztok – UFF
Membro
_____________________________________________
Dr. Jorge Luis Barbosa – UFF
Membro
iv
Para Laura, Cirene e Cláudio.
Mostraram-me como breves encontros podem deixar nossa alma marcada para sempre.
v
As leis da estatística são válidas somente quando se lida com grandes números e longos
períodos de tempo, e os atos ou eventos só podem ser vistos estatisticamente como desvios ou
flutuações. A justificativa da estatística é que os feitos ou eventos são ocorrências raras na
vida do dia-a-dia e na história. Contudo, o significado das relações cotidianas revela-se não na
vida do dia-a-dia, mas em feitos raros, tal como a importância de um período histórico é
percebida somente no poucos eventos que o iluminam.
(Hannah Arendt, 1958)
vi
AGRADECIMENTOS
Aos colegas do Departamento de Geografia da Universidade Federal Fluminense, por
terem me concedido uma licença que, tenho certeza, acabou resultando em mais trabalho para
cada um dos professores. O afastamento por um ano e três meses dos afazeres cotidianos foi,
para mim, uma pausa imprescindível para a devida reflexão e realização desta pesquisa.
Ao meu orientador professor Ruy Moreira, por ter acreditado no projeto. Por suas leituras
e observações sobre os textos que vieram a compor esta tese. Sobretudo, por nossas
conversas recheadas de bom humor. Mais que conselhos estas foram um convite à reflexão
(que tento aceitar todos os dias).
Aos professores Jacob Binsztok e Jorge Luis Barbosa, pela leitura atenta e comentários
criteriosos feitos na defesa do projeto de pesquisa e na fase de qualificação para a defesa desta
tese. Suas recomendações bibliográficas, em especial, foram de extrema valia na consecução
desta pesquisa.
Ao Ivaldo, por sua atenção e paciência em discutir e explicar os pontos mais obscuros de
autores com os quais tinha pouca ou nenhuma intimidade.
Ao Charlles, pela leitura e comentários das primeiras versões da tese, que deve ter lhe
custado um tempo precioso e que me fez apreciar ainda mais sua amizade.
Ao Marcio, por seu apoio, tanto da forma de textos quanto de palavras de incentivo. Ambos
foram de grande importância para mim.
Ao Manoel Fernandes, pela inspiração que suas conversas e sua companhia sempre me
trouxeram.
À Sônia, por sua ajuda inestimável durante o tempo em que tive de “equilibrar” Coordenação
de Curso e Doutorado.
Ao Carlos Walter, por sua atenção e disposição ao diálogo além dos textos que me fazia
chegar, sempre em boa hora. Seu interesse me ajudou a renovar minha disposição em persistir
no término desta tarefa.
À minha irmã Regina que, no momento certo, sem nem mesmo ter percebido, mostrou-me
que a realização desta pesquisa era possível.
Ao meu irmão Lourenço, pelas conversas gostosas que me ajudavam a “desanuviar as
idéias”.
À Gloria, pela extrema compreensão com a qual sempre acolheu minhas ausências, distâncias
e impaciências. Seu carinho, em momentos tão difíceis, tornaram muito menos árdua a
caminhada e só aumentaram a satisfação em dividir a vida com alguém tão importante para
mim.
vii
RESUMO
O objetivo deste trabalho é elaborar uma crítica ao processo de adoção e utilização dos
indicadores sociais pela Geografia. Esta proposta baseou-se no argumento de que este
encontro, Geografia/indicadores, não tem sido devidamente explorado em função de uma
atmosfera povoada de deficiências e lacunas teóricas. Por isso, através do levantamento de
algumas circunstâncias históricas e teóricas que presidiram o nascimento dos indicadores
sociais, seu conceito e principais pressupostos foram revistos. Da mesma forma, alguns
referenciais teóricos provindos da corrente Utilitarista da Economia, assim como aqueles
oriundos da Escola de Sociologia de Chicago, foram examinados. Tendo em vista o destaque
dado a estas duas fontes de influência, são apontadas possibilidades e deficiências dos
indicadores sociais. Caracteriza-se o encontro da Geografia com os indicadores sociais como
tendo sido marcado pela desconsideração das circunstâncias anteriormente citadas. Isto se
reflete em um olhar negligente para com o indicador social e seu papel como objeto técnico
auxiliar na produção de um espaço racional. Deste modo, o trabalho lembra que os conceitos
próprios da Geografia podem ser redirecionados à construção dos indicadores sociais. Foi
apontada também uma reduzida reflexão sobre a reconstrução e representação estatística, o
que colabora para que se mistifique sua utilização e prejudique a análise dos processos que
compõem a substituição de um conceito social por dados estatísticos. Este trabalho infere que,
de forma crescente, incursões em torno da relação entre o espaço e os indicadores sociais
deverão se dar, como uma repercussão mais imediata das novas demandas de informação,
tanto para o controle quanto para a exploração de novas frentes ao processo de acumulação.
Para isto, demonstrou-se como os estudos interessados na mudança social fomentaram as
primeiras discussões em torno da idéia de se criarem indicadores sociais que mais
recentemente vêm sofrendo questionamentos através da reconsideração de alguns de seus
pilares como a modernização, o progresso ou mesmo o desenvolvimento. Este processo de
procura por novas bases de informações, assim como os questionamentos dos formatos
tradicionais de obtê-las, vem provocando a reemergência de debates mais afeitos ao campo da
Ética e da Filosofia Política que, de maneira geral, haviam se afastado das discussões sobre os
indicadores sociais. Estes debates são aqui explorados não só como uma recomposição de
aspectos anteriormente relevados, mas também como um chamamento à reconsideração do
componente espacial que transpassa o tema indicadores sociais. Foram examinadas, em
especial, propostas liberais como as do filósofo político John Rawls e do economista Amartya
Sen, tentando levantar as possibilidades destes dois autores funcionarem como alvo de
ponderações provindas da Geografia. Por fim, são feitas algumas reflexões com base em
pesquisas mais recentes. Os apontamentos feitos a tais trabalhos já procuram evidenciar novas
tendências que podem ser assumidas na “métrica” do social. Também se analisam as
perspectivas que exploram o conceito de pobreza, demarcando-o de maneira mais rígida e
tradicional, com base ao acesso sobre bens e rendas e que, com esta linha, procuram mapear a
pobreza, até pesquisas que procuram utilizar o conceito de território para abordar a exclusão
social.
Palavras-chave: indicadores sociais, Geografia, objeto técnico, racionalização, teoria social,
mudança social, pobreza, exclusão social.
viii
ABSTRACT
The aim of this work is to develop a criticism about the process of adoption and utilization of
the social indicators by Geography. This aim is based on the argument of this meeting,
Geography/ social indicators, has not been duly explored because of an atmosphere full of
deficiencies and theoretical gaps. Through the historical and theoretical circumstances survey
that presided the social indicators rise, its concept and main conjectures that guide them were
investigated. As well, some theoretical references from the Useful Economic current and from
the School of Chicago were examined. Observing the prominence of those influence
fountains, the social indicators’ possibilities and deficiencies were pointed. The meeting
between Geography and social indicators is marked by the negligence with previous
mentioned circumstances. This situation has reflections on a negligent sight at the social
indicator and its function as an assistant technical object at the production of a rational space,
as well as forgets that concepts inside Geography can be redirected to the social-indicator
construction. It was also appointed a reduced discussion about the reconstruction and statistic
representation, which collaborates to mystify the utilization and damages the analysis of the
process that collaborates to the substitution of a social concept by the statistics information.
This work infers that, each time more, discussions about the relation between space and social
indicators should happen as a immediately repercussion from new information demands, to
the control as well as to the exploration of new ways to the accumulation process. For that, it
was shown how studies interested in social changes advanced first discussions about the idea
of the social indicator creation and recently has been questioned across the reconsideration of
some its pilasters, like modernization, progress or development. This process of looking for
new bases of information as well the questions about the traditional ways of getting them has
brought to discussions the fields from Ethics and Political Philosophy that someway were
apart from social indicators discussion. These debates are here exploited not only as a re-
composition of aspects emphasized before, but also as a recall to reconsider a space
component that passes through the theme social indicators. Liberalism proposes were
examined in a special way, just like the ones from the politic philosopher John Rawls and the
economist Amartya Sen, by this point of view. At last, there are some reflections based on
recent researches. The notes made to those works try to evidence new tendencies that should
be assumed at the social “metrics”. The perspectives that explore the concept of poverty are
analyzed, marking it using a traditional and strict way, based on goods and income access and
with this line try to map poverty, even researches that try to use the territory concept in order
to approach social exclusion.
Keywords: Social Indicators, Geography, technical object, rationalization, social theory,
social change, poverty, social exclusion.
ix
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
01
1- A CONSTRUÇÃO DOS INDICADORES SOCIAIS
1.1 Algumas considerações em torno do conceito de indicador social 06
1.2 Contextualizando o surgimento dos indicadores sociais 12
1.2.1 Utilitarismo e indicadores sociais 16
1.2.2 A Escola de Chicago e os indicadores socais 23
2- A GEOGRAFIA VAI AOS INDICADORES SOCIAIS
2.1 Apontando algumas características do encontro entre a Geografia e os indicadores
sociais
30
2.2 A negligência à observação dos indicadores sociais como objeto técnico 31
2.3 A negligência às considerações geográficas sobre a necessidade humana 37
2.4 Insuficiências na adoção das estatísticas ligadas aos indicadores sociais 45
3- A CRISE DOS INDICADORES SOCIAIS
3.1 Teoria social e indicadores sociais, uma relação insuficiente para compor crise e
possibilidades de superação
50
3.2 Buscando um embasamento à incidência da Geografia no debate sobre os
indicadores sociais
54
3.3 Mudança social, para além de sua relação com a industrialização 57
3.4 “Geografizando” a reemergência do contrato social 64
4- OS INDICADORES SOCIAIS VÃO À GEOGRAFIA
4.1 A abordagem da pobreza 72
4.2 Indicando o desenvolvimento 77
4.3 Território e indicadores sociais 82
CONCLUSÃO
89
BIBLIOGRAFIA
98
INTRODUÇÃO
Este trabalho nasceu da incômoda observação de um descompasso. Mais recentemente
assistimos à renovação de um debate intenso nas mais diversas frentes, em torno dos
indicadores sociais. Discutem-se metodologias, criam-se índices-resumo, rejeitam-se ou
aprovam-se determinadas estatísticas como demonstrativas do estado em que se encontra a
sociedade. Mesmo dentro exclusivamente do âmbito científico, não tem sido menos forte o
debate, já que, igualmente, não têm sido poucas as tentativas de se indicar a pobreza, o
desenvolvimento, a miséria, a exclusão, a desigualdade, etc.
Uma volumosa literatura, que trata de questões pertinentes a este tema, tem se
acumulado discutindo desde a viabilidade de se substituir um conceito por uma determinada
informação (um indicador social), passando por metodologias de captação cada vez mais
aperfeiçoadas, que reduzam as dubiedades de interpretação, chegando a críticas aos conceitos
de qualidade de vida, nível de vida ou desenvolvimento.
Esta é uma face, senão promissora, ao menos efervescente do debate. Os indicadores
sociais funcionam como uma espécie de “pião”, em torno do qual orbitam todos estes temas e
altercações, além de outros não nomeados acima. Conjugam a qualidade de facilitar a
visualização de um fenômeno social, enquanto geram polêmica no processo de
simplificação/substituição em si. A Geografia destes indicadores é tomada de arrasto, de
forma que estas discussões transbordam aos processos de mapeamento dos indicadores, de sua
consideração em diferentes escalas, de sua superposição em cartogramas ou do abandono de
alguns em favor de outros para que determinado espaço fique evidenciado.
A outra dimensão do descompasso apontado é constituída pela reduzida consideração
dos indicadores sociais, como um objeto de estudo em si, aos olhos da própria Geografia.
Uma curiosa posição para uma das poucas ciências que pôde experimentar, nos indicadores,
uma intimidade quase visceral desde o momento de seu nascimento. Ou seja, não faltam
motivos para que a Geografia mergulhe nesta consideração e a faça às minúcias, buscando
uma densidade anteriormente alcançada na Economia, na Sociologia ou na Ciência Política.
Este trabalho não toma para si a monumental tarefa de extinguir as lacunas que se
revelam através citado descompasso. Tentamos trazer aqui, uma contribuição que pode servir
ao debate sobre as melhores formas de como esta aproximação pode se dar. Para isto,
traçamos como nosso objetivo principal elaborar uma crítica ao processo de adoção e
utilização dos indicadores sociais pela Geografia. Através desta crítica, acreditamos que é
possível realizar uma contribuição à exploração, por esta ciência, das maiores virtudes dos
indicadores, além de uma adoção deste instrumental despida tanto do preconceito quanto do
fetichismo, que acompanham as técnicas e são tão comuns na atualidade.
Defendemos que esta crítica, no entanto, só poderá ser feita se em concomitância for
cumprido o pré-requisito da construção de uma atmosfera mais propícia ao debate. Para que
isto se dê, alguns caminhos que, acreditamos, são impostergáveis, deverão ser trilhados. Cada
capítulo deste trabalho representa uma tentativa de colaborar para a criação desta atmosfera,
buscando desvelar não só a forma como a Geografia passou a se utilizar dos indicadores
sociais, mas também, e mais recentemente, como estão se dando algumas tentativas de
analisar os indicadores sociais a partir também de uma perspectiva que, ao menos, pretende
ser menos “descolada” do componente espacial.
Em primeiro lugar, julgamos necessário que as idéias que regeram a criação do
conceito de indicador social sejam examinadas mais detidamente e, desta vez, tentando
esquadrinhá-las como circunstâncias que reverberam fortemente no encontro da Geografia
com este instrumental. Em função disto, é que foram alinhadas aquelas que, ao nosso
entendimento, são as duas principais fontes teóricas que justificaram a possibilidade de
existência dos indicadores sociais e que lhes forneceram suas funções dentro do planejamento
estatal e privado. De um lado, abordamos a corrente utilitarista dentro da Economia, tanto em
sua versão (que Amartya Sen denomina de) Ética quanto a “corrente da Engenharia”, dentro
da qual figuram alguns economistas neoclássicos de grande expressão. Do outro lado,
procuramos demonstrar como algumas idéias advindas da chamada Escola de Chicago
também desempenharam um papel decisivo na constituição das primeiras idéias que
indelevelmente marcaram os indicadores sociais, tendo em vista, principalmente, o interesse
desta escola por formas de compreensão da mudança social e dos impactos que inovações
tecnológicas poderiam provocar na sociedade.
Este encaminhamento, entretanto não deve ser encarado como mero inventário de
idéias que funcionaram como os mananciais teóricos dos indicadores. Fazer isto equivaleria a
um exame de discursos sobre o social, e o que se defende aqui é a observação do indicador
com um conceito que nasce em sintonia com seu tempo e com os requerimentos que o modo
de produção capitalista experimentava. Assim, o trabalho é também transpassado pela idéia de
que os indicadores sociais, mais que mera estatística referida ao social, podem também
funcionar como uma expressão eloqüente das modificações pelas quais passou (e passa) o
capitalismo em seu regime de acumulação. Em especial, tentamos ver os indicadores como
uma expressão da crise do fordismo e do Estado de Bem-Estar Social enquanto, mais
recentemente, ele se apresenta como oportunidade para que verifiquemos as exigências do
regime de acumulação flexível para o levantamento das novas possibilidades de acumulação
que o espaço, como um todo, apresenta.
No segundo capítulo, à luz daquilo que inferimos no momento precedente, tentamos
recompor o encontro da Geografia com os indicadores sociais. Este processo foi visto aqui
como marcado por negligências e insuficiências que tentamos retratar em pelo menos três
aspectos. Inicialmente, procuramos abordar o significado da reduzida reflexão sobre os
indicadores sociais como um fator decisivo na sua observação como mera informação
estatística referida ao social. Aproveitamos, inclusive, este prisma para contrapormo-nos e
defender a abordagem dos indicadores sociais a partir de um conjunto conceitual do qual a
própria Geográfica já é detentora, ou seja, tentamos defender a possibilidade de os indicadores
sociais passarem a ser vistos como um objeto técnico funcional à racionalização do espaço
por determinados interesses.
Entretanto, acreditamos que as oportunidades, que podem se apresentar para uma
exploração mais profícua deste encontro, não surgirão apenas de uma revisão do conceito e
das possibilidades dos indicadores sociais em sua utilização pela Geografia, mas também de
uma reconsideração de conceitos já debatidos por esta ciência, que podem se converter em
fontes promissoras de investigação do social. Em função disto, procuramos focalizar o
conceito de necessidade como tendo sido igualmente negligenciado em suas possibilidades de
colaboração. O exame desta desconsideração parece revelar que esta lacuna ainda pode ser
reparada em função de novas abordagens da necessidade humana que procuram reafirmá-la
como um contraponto ao liberalismo mais extremado.
Por fim, neste mesmo segundo capítulo, procuramos apontar a contenda dentro do
campo da Geografia em torno da adoção das estatísticas como marcada por uma insuficiente
reflexão e que assume um papel importante na recomposição de uma atmosfera mais
proveitosa. Muito já tem sido dito a respeito do fato de que combater a visão mítica das
estatísticas na análise do social não significa seu abandono. Ocorre, porém que isto demanda
que um aprofundamento sobre a representação estatística em si seja feita, decompondo-a e
dissecando ao menos algumas das fases deste processo de representação. Para uma adoção
mais proveitosa dos indicadores sociais isto deverá ser feito e não nos parece que seja apenas
uma questão de a Geografia ganhar mais intimidade na lida com cálculos estatísticos.
Dentro do capítulo três, tendo em vista nossa tentativa de situar os indicadores sociais
dentro de um movimento histórico mais amplo, três frentes foram as escolhidas para retratar
uma utilização mais reduzida e reemergência do debate sobre os indicadores sociais. Todas
estas três frentes são o desdobramento do mesmo raciocínio: a responsabilidade da Geografia
neste processo de recomposição deverá aumentar, porque esta reemergência pode ser
interpretada à luz de uma renovação da relação entre indicadores e espaço.
A primeira frente explorada funciona também como uma prévia ao raciocínio
explicitado, abordando a relação entre indicadores e teoria social. Embora tenhamos
defendido a observação dos indicadores sociais como um objeto técnico, tentamos compor
esta postura, procurando argumentar sobre a possibilidade de incorporação de outras
contribuições que não apenas aquelas advindas da consideração de uma teoria social. Como
complemento a este raciocínio, procuramos demonstrar que autores como Lefebvre, Harvey
ou Bourdieu podem bem mostrar-nos como os indicadores sociais podem ajudar a erigir um
espaço racional enquanto também sofrem a influência do concreto ou do simbólico.
A segunda frente é uma tentativa de retratar e interpretar o desgaste de certos
conceitos relacionados à investigação da mudança social como sinais claros da necessidade de
um novo paradigma ético que auxilie na construção de conceitos pela teoria social e oriente o
julgamento destes indicadores. Este é o cerne do capítulo três, a reemergência dos
indicadores sociais como a face mais evidente de um processo de recuperação de debates mais
afeitos ao campo da ética ou da filosofia política, em detrimento de visões mais “técnicas”,
originadas da economia neoclássica. Uma atenção especial é dedicada às idéias advindas do
filósofo político John Rawls e do economista Amartya Sen. Rawls, por ser portador de um
discurso que, em 1971, ao tentar compreender o liberalismo como uma teoria de justiça, não
só apontava uma crise na métrica do social como fornecia reflexões que poderiam orientar
uma renovação desta métrica. Sen é citado, e analisado, como um continuador das idéias de
Rawls na medida em que enfatiza uma versão liberal da liberdade tão cara ao
neocontratualismo deste, revitalizando as discussões sobre a viabilidade e importância de se
medir o social.
Por fim, no capítulo 4, foram apresentadas algumas pesquisas que, de uma forma ou
de outra, tocam na questão da construção de indicadores sociais. Tais pesquisas também
procuram funcionar como possibilidades de observação dos indicadores em sua relação com o
espaço. São vistas, aqui, muito mais como um prenúncio que propriamente como respostas
aos dilemas enfrentados nos três capítulos precedentes. Ainda assim, são excelentes
oportunidades de apontarmos as possibilidades que se abrem à incidência da Geografia na
construção e análise de indicadores sociais. Tomamos, inicialmente, os estudos que se
lançaram na conceituação e mensuração da pobreza. Aproveitamos esta ênfase para, à moda
de tantos outros autores, reafirmar a complexidade do fenômeno pobreza e recusar sua
circunscrição baseada em linhas demarcatórias rígidas, traçadas com base no acesso que
determinadas populações possuam a bens e mercadorias. Esta é uma perspectiva mais estreita
de compreensão da pobreza e, por vezes, pode soar dispensável sua crítica, já que, como
dissemos, outros autores já o fizeram exaustivamente. Entretanto, a recorrência destas
análises, desta vez, inclusive, acompanhadas de considerações sobre sua espacialização,
obriga também a uma reafirmação dos problemas que o estabelecimento de linhas de pobreza
ou miséria acabam implicando.
Outros trabalhos destacados procuraram enfatizar o componente territorial na análise
dos indicadores sociais e, neste ponto, tentamos evidenciar que avanços obtidos no debate
sobre o conceito de território, bem poderiam beneficiar sobremaneira abordagens futuras.
Embora não fosse nossa intenção inicial, chegamos mesmo, na parte final deste quarto
capítulo, a explorar as possibilidades mais concretas que se apresentam do cruzamento do
conceito de território ao conceito de exclusão social como forma de passarmos sobre os
problemas de uma compreensão mais estreita do social.
Todos estes quatro capítulos, enfim, devem ser encarados como uma tentativa de
colaborar para a construção de uma nova teoria e uma nova prática da Geografia para com os
indicadores sociais. Tanto uma como outra devem se servir como contra-argumentação ao
discurso que prestidigita as condições nas quais boa parte da população vive. Da mesma
forma procura servir como contraponto à observação dos indicadores sociais como assunto
exclusivo de determinados especialistas. Buscamos portanto desfazer alguns dos tabus sobre
o tema, porque estes demonstram seu poder de constranger pensamentos e ações, restringindo
as possibilidades de discussão e, portanto, alijando a população da representação de suas
necessidades e das decisões sobre estas necessidades. Por fim, busca-se renovar neste
trabalho, o esforço para fazer da Geografia uma ciência que, como já disse Ruy Moreira em
1979 , com rara propriedade, desvende as máscaras sociais.
CAPÍTULO 1
A Construção dos Indicadores Sociais
1.1 Algumas considerações em torno do conceito de indicador social
De maneira geral, podemos propor os indicadores sociais como tendo surgido a partir
de meados dos anos sessenta, nos EUA, através do chamado “Movimento dos Indicadores
Sociais”. Otis Dudley Duncam
1
, em 1969, cunhou esta designação para caracterizar a
generalização de um profundo interesse de parte de pesquisadores, instituições e governos,
pela busca e discussão de teorias que embasassem a proposição de um sistema de informações
sobre a sociedade, calcado em indicadores. Tal movimento, segundo Andrews (1989), era
motivado por uma idéia bastante atraente: monitorar tanto mudanças ao longo do tempo na
vida da população de maneira geral, quanto mudanças específicas de subgrupos. Estas
informações, quando combinadas com outros dados, poderiam gerar novos conhecimentos
sobre como aumentar a qualidade da vida das pessoas a partir de políticas sociais que fossem
realmente mais efetivas.
Contudo, não seria excepcional iniciar um levantamento incluindo, por exemplo,
trabalhos como os de Davies, em 1795; Éden, em 1797; Rowntree, em 1901; e Ducpétiaux,
em 1855. Todos estes estudos
2
têm em comum o interesse pelas condições de vida da
população pobre que vivia nas grandes cidades européias. Diante desse interesse, pode-se
construir uma identidade entre tais trabalhos a partir da metodologia de pesquisa, geralmente,
fundada num cruzamento entre informações estatísticas e “dados qualitativos provenientes de
observação direta e do contato prolongado do pesquisador com seus informantes” (op. cit., p.
4). Destacam-se, por exemplo, os métodos de sondagem em que as pessoas interrogadas eram
eleitas, partindo da familiaridade que o pesquisador acabava obtendo a partir do contato com
seus pesquisados. Le Play enfatizava tal método ao propor que se deveria “verdadeiramente
‘partilhar’ a vida de seus informantes e levantar dados que iam desde suas práticas de trabalho
e consumo até sua história de vida familiar, suas crenças religiosas e morais e suas
possibilidades de ascensão ou degradação social” (OLIVEIRA, 1979, p. 4). Uma aproximação
bastante similar àquela proposta por Engels, em 1845, num trabalho que talvez seja o mais
conhecido deste citado grupo de autores
3
. Do contato com os pesquisados, resultavam
1
Conforme Carley, 1985.
2
Citados na introdução de Oliveira (1979).
3
“[...] renunciei à sociedade e aos banquetes, ao Porto e ao champagne da classe média, e consagrei as minhas
horas de descanso ao convívio quase exclusivo com simples operários” ENGELS, Friedrich (1845).
interessantes intermediações para tal aproximação ou familiaridade. Le Play (1855) utilizou-
se dos “notáveis do povo” para auxiliá-lo na escolha das famílias típicas que comporiam seu
estudo
4
. Booth (1889)
5
recorrerá aos “visitadores escolares”, e Halbwachs (1912)
6
, aos
sindicatos para encontrar seus operários voluntários à pesquisa.
De maneira mais convencional, estes estudos não são citados como contendo
indicadores sociais. Para fundamentar tal argumentação, alguns apontam aspectos como sua
reduzida preocupação com os métodos estatísticos utilizados. Com base nesta acepção, estes
mesmos autores vão colocar em dúvida, até mesmo, se estes trabalhos podem ser
considerados científicos
7
. Mas a observação mais detida vai encontrar, já no início do século
XVII, o matemático John Graunt calculando a taxa de mortalidade infantil na Inglaterra e Sir
Willian Petty, em 1662, defendendo o uso de dados estatísticos na avaliação do poderio
militar ou na avaliação do potencial de arrecadação de impostos. Do mesmo modo, o
astrônomo Quetelet, em 1832, ao criar o conceito de “homem médio
8
” exerceria, por
exemplo, forte influência sobre a sociologia de Durkheim ainda na primeira metade do século
XIX. Daí, decorre a conclusão de que, embora se esteja falando dos primórdios da Estatística
ou da “aritmética política”, como propôs Petty, não parece ser plausível fazer uma
demarcação sobre os trabalhos com indicadores sociais a partir da utilização ou não da
Estatística que visasse a “quantificação social”
9
.
Assim, podemos evitar, logo de início, a circunscrição mais simplista dos estudos que
contenham indicadores. Da mesma forma, podemos rejeitar propostas que tomam por base um
suposto interesse no monitoramento de mudanças específicas em grupos ou subgrupos sociais
(conforme visto, são bastante antigas). Igualmente, esta rejeição pode ser feita àqueles que
efetuam uma triagem com base na utilização de métodos estatísticos, sejam quais forem seus
níveis de sofisticação que, como também se demonstrou, não representam novidade alguma
no cenário das pesquisas sociais. Estamos assumindo aqui, como ponto de partida, a seguinte
concepção: o que distingue os indicadores sociais, como experiência inédita no campo das
ciências sociais, é o fato de serem um conceito que surge e está diretamente ligado a
4
Sobre este recurso, ver Desrosiéres, 1993, p. 234.
5
Op.cit.
6
Op.cit.
7
Oliveira, 1979, cita endosso ao “fetichismo das estatísticas” que o Bureau International du Travail, (1961) faz
quando questiona o caráter científico dos trabalhos de Booth entre outros autores.
8
Para o astrônomo belga Adolphe Quetelet (1796-1894), a regularidade e as formas de distribuição, estas duas
abordagens dos registros estatísticos, comporiam a possibilidade da construção de um ser novo, um homem
médio do qual todos os casos singulares seriam “cópias imperfeitas”. Sobre esta construção ver especialmente
Quetelet e o homem médio, em Desrosiéres (1993).
9
Expressão emprestada de Carley (1985, p.14).
determinado estágio do modo de produção capitalista e, por decorrência, as modificações que
este modo de produção sofre em seu interior repercutem, também, sobre este conceito. O
exame do próprio conceito de indicadores sociais talvez forneça algumas pistas que aclarem
melhor estas afirmações.
Parece ser unânime o procedimento de apontar a obra organizada por Raymond Bauer,
em 1966, como deflagradora do Movimento dos Indicadores Sociais. Da mesma forma,
resulta ser comum, também, justificar este surgimento como decorrente de um certo clima de
frustração com os indicadores econômicos:
[...] inicialmente, isso (o Movimento) constituiu uma reação contra o que se
considerou uma ênfase exagerada nas medidas de desempenho econômico como
indicativas do bem-estar social (Carley, 1985, p.1).
[...] os medidores do crescimento econômico não eram capazes de explicar as
mudanças do nível de vida; não serviam para analisar a mudança da estrutura e as
direções do desenvolvimento social (Sliwiany, 1987, p.6).
Está claro que, no início da segunda metade do século XX, o conceito de
desenvolvimento ainda se prendia exclusivamente a índices econômicos, relegando
a um plano insignificante, e muitas vezes subversivo dos indicadores sociais. Isto
não invalidou, contudo, a percepção, de nítida e crescente distância entre os
indicadores da economia e os efeitos diretos e indiretos do crescimento
econômico, o que levou a índices de mensuração mais adequados às realidades
sociais (Ferreira, 2003, p. 24).
A percepção do aparecimento deste conceito, vista apenas desta forma, pode dificultar
a consideração de outras interferências igualmente importantes. Desrosiéres (1993), por
exemplo, quando fala do surgimento das ferramentas estatísticas ao longo da história das
ciências, propõe que seu estudo pode ser compreendido sob duas óticas: uma, partindo-se de
uma perspectiva mais internalista
10
; e outra, privilegiando-se aquilo que circunstancia cada
inovação científica surgida, externalista
11
, por conseguinte. A tensão entre uma e outra
perspectiva destacada por Desrosiéres (op. cit.) é seu caminho escolhido para configurar uma
“História da Razão Estatística”. Retomaremos mais adiante às exposições do autor sobre este
mesmo assunto. Por enquanto, parece ser suficiente propor que, em relação aos indicadores
sociais, a consideração a partir desta tensão pode, também, favorecer o exame de sua
conceituação. Assumimos, claramente, o encaminhamento de uma proposta que sugere a
passagem do indicador social de simples aperfeiçoamento de uma medida à expressão
10
Segundo a perspectiva internalista, a história das ciências é a “história do conhecimento em si mesmo, a dos
instrumentos e resultados, a dos teoremas e demonstrações. Realizam-na, sobretudo, os especialistas em cada
uma das disciplinas (físicos, matemáticos,etc.)” (op. cit, p.19).
11
Na perspectiva externalista, “pelo contrário, são as condições sociais que tornaram possível ou obstaculizam a
marcha da ciência: os laboratórios, as instituições, as carreiras dos cientistas, as relações com a indústria ou os
poderes públicos. Na maioria dos casos, é obra de historiadores ou sociólogos”, (op. cit. p.19).
também do ambiente que lhe é externo. Ou seja, os indicadores não surgem apenas porque se
constatou que a medida até ali adotada era insuficiente, mas, principalmente, porque os
interesses de quem propunha tal sistema avaliatório haviam se modificado.
Bauer (1966) aponta que os indicadores sociais são “Estatísticas, séries estatísticas e
quaisquer outras formas de informação que nos tornam aptos a conhecer onde estamos e para
onde vamos, com respeito aos nossos valores e objetivos, além de prestar-se à avaliação de
programas específicos e determinação de seus impactos”.
12
Em princípio, podemos analisar o conceito de indicadores sociais tendo como base o
fato de que a distinção entre estes e qualquer outra medida estatística acha-se na sua
vinculação direta a um objetivo, como frisa o próprio autor. Parece necessário ressaltar,
porém, que os indicadores sociais não nascem vinculados a qualquer objetivo. Os “nossos
objetivos”, de que Bauer fala, foram estabelecidos pela NASA (National Aeronautics and
Space Admnistration). Esta agência, por sua vez, estava à procura de meios para retratar e
avaliar as mudanças provocadas pelo programa espacial dentro da sociedade norte-americana.
Os indicadores sociais não são, portanto, qualquer espécie de estatística. Nem mesmo são,
como se poderia mais afoitamente compreender, apenas uma estatística dedicada ao social.
Mais que isso, seu conteúdo acha-se referido aos objetivos de seus formuladores, transpassado
pelos valores que presidem sua formulação.
Vejamos, por exemplo, a conceituação assumida pelo Ministério da Saúde e Bem-
Estar dos EUA , HEW (U. S. Departament of Health, Education and Welfare):
um indicador social, no sentido em que o termo está sendo empregado, pode ser
definido como uma estatística de interesse normativo direto, que facilita
julgamentos concisos, globalizantes e equilibrados dos principais aspectos de uma
sociedade. Ele é em todos os casos, uma medida direta de bem-estar. (H.E.W.,
1969, apud IBGE, 1979, p. 8)
“Bem-estar” é, neste trabalho, o objetivo a ser retratado em seus progressos ou
declínios e o Ministério da Saúde norte-americano não está falando de qualquer noção mais
ampla, passível de ser transposta a qualquer tempo ou lugar. Ele se refere, claramente, a um
conjunto de fatos e valores resultantes de relações sociais bastante específicas: saúde ou
doença; mobilidade social; renda e pobreza; meio ambiente; ordem e segurança pública;
educação, ciência e arte; participação e alienação (op. cit.). Esta é uma acepção bastante
12
No original: “statistics, statistical series, and other forms of evidence – that anable us to assess where we stand
and are going whith respect to our values and goals, and to evaluete specific programs and determine their
impacts”( BAUER,1966, p.1).
distante do Bem-Comum, conforme sua tradução dentro da Ética, na medida em que a
listagem de fatos e valores, anteriormente citada, é um projeto bem mais modesto, ou seja,
funciona como a tradução concreta do conjunto de bens e valores tidos como prioritários e
que deveriam presidir o debate dali por diante em qualquer parte do mundo.
Tomemos, como exemplo, algumas outras conceituações para melhor elucidar este
ponto de vista. Segundo Land (1971): “O termo indicadores sociais se refere a estatísticas
sociais, que são componentes de um modelo de sistema social (incluindo os componentes
sócio psicológicos, econômicos, demográficos e ecológicos)” (apud CARLEY, 1985, p. 28).
Para Carlisle (1972), indicadores sociais são: “[...] a definição operacional ou parte da
definição operacional de qualquer dos conceitos que são centrais para a geração de um
sistema de informações descritivo do sistema social” (apud Carley, 1985, p. 29). Por fim, para
Januzzi (2001):
Um indicador social é uma medida em geral quantitativa dotada de significado
social substantivo, usado para substituir, quantificar ou operacionalizar um conceito
social abstrato, de interesse teórico (para pesquisa acadêmica) ou programático
(para formulação de políticas). É um recurso metodológico, empiricamente
referido, que informa algo sobre um aspecto da realidade social ou sobre mudanças
que estão se processando na mesma (p. 15).
Tomar os indicadores sociais como estatísticas que se referem a um modelo, ou como
a definição operacional de um conceito é perfeitamente correto, mas expõe apenas uma parte
do que realmente são os indicadores, já que se omite o fato de que não se formulam modelos
de sistemas sociais que não sejam funcionais aos objetivos de quem os formula. E, para este
caso especificamente, retalhar a realidade social como conceitos, ou como componentes de
um modelo, foi resultado de um processo que é anterior a esta repartição. A natureza
normativa do indicador não reside, portanto, só nos juízos de valor que se façam sobre ele.
Esta natureza já reside na própria decisão de estudar uma realidade através de indicadores
sociais. Ou, como bem postula Januzzi (2001): “todo o indicador social ou até mesmo toda a
estatística pública tem uma natureza normativa, já que derivam de processos interpretativos da
realidade que não tem nada de neutro ou estritamente objetivo em sua formulação”(p.21).
A partir desta constatação, podemos compreender melhor porque Besson (1992)
aponta que as estatísticas em geral não refletem a realidade “mas refletem o olhar da
sociedade sobre si mesma” (p.18). Ou seja – e aplicando este raciocínio ao caso desta tese –
os indicadores sociais não nos contam apenas sobre como a sociedade está, mas também
apontam para o que ela quer prestar atenção e, principalmente, revelam de que modo a
sociedade quer construir seu próprio retrato.
Utilizemos como exemplo a situação, aludida anteriormente, que assume os
indicadores sociais como o resultado de uma mudança de ênfase, dos aspectos econômicos
para os aspectos sociais. O reducionismo desta visão fica evidente ao se considerar que nem
mesmo o Produto Interno Bruto (PIB) está livre de controvérsias. Apontado como a medida
de riqueza de uma nação, o PIB sofreu diversas transformações ao longo do tempo, o que
inviabiliza seu entendimento de forma monolítica.
Na chamada contabilidade nacional, o PIB, hoje, expressa a riqueza como um circuito
que se cumpre com a passagem do capital de um agente para outro. Isto, porém, nem sempre
foi assim. Como bem assinala Besson (1992), antes da Segunda Guerra, a contabilidade
nacional atinha-se aos estoques (patrimônio) e não ao fluxo de renda (a produção). Na França,
por exemplo, foi só em 1975 que o Sistema Ampliado de Contabilidade Nacional passou a
considerar o Estado também como produtor, e não mais apenas como um consumidor.
Atualmente, a maior parte das atividades domésticas não entra no cálculo do PIB, mas, como
pergunta o autor citado, o que aconteceria se cada dona de casa deixasse de realizar tais
tarefas?
Vale, portanto, o questionamento de Besson (1992): o que é riqueza nacional? Todos
os produtos (bens e serviços) ou somente os bens? Aí está uma escolha que enseja bem mais
que uma metodologia. Antes, depõe sobre a própria sociedade que a toma.
Agora, talvez, estejamos mais bem situados para estabelecer uma medida de
diferenciação entre as pesquisas sobre as condições de vida dos operários belgas, ingleses,
alemães ou franceses, feitas em meados e final do século XIX, e o estudo proposto por Bauer
(1966). Ao lermos A Situação da Classe Trabalhadora da Inglaterra, de Engels, fica claro
que estamos diante de trabalho bastante diferente do Social Indicators, de Bauer (op. cit.).
Não porque aquele se preocupe mais, ou menos, com o “social” ou com os “pobres”. Não,
também, porque faça uso (ou deixe de utilizar) deste ou daquele método estatístico. Nem
mesmo é diferente; apenas, porque Engels prefere o convívio com os trabalhadores enquanto
Bauer é bem mais “distante” quanto a este aspecto. Os traços definidores dos indicadores, que
irá distingui-los de qualquer outra experiência anterior no campo das pesquisas sociais, é sua
vinculação explícita, metodológica e normativa à determinada faixa de interesses específicos
impostos pelo novo momento em que passou a se encontrar o capitalismo.
Embora assumindo a conceituação de indicador social conforme os autores destacados
anteriormente, de maneira mais ampla, estamos propondo os indicadores sociais também
como um conceito que é expressão de uma fase bastante específica que marcou uma crise
13
dentro do Estado de Bem-Estar Social. Os indicadores ilustram as tentativas de resolução
pelo próprio capitalismo.
É esta vinculação com a crise estabelecida no seio do capitalismo que requererá um
instrumental técnico completamente diferente daquele adotado até então. Tendo em vista o
que já foi exposto anteriormente, não chega a surpreender Desrosiéres (1993) apontar que
mais tarde, já no século XX, os métodos adotados por Booth, Halbwachs, Le Play ou Engels
para sua “indicação do social” sejam estigmatizados como “geradores de erros”, embora, no
contexto em que são utilizados, resultem ser bastante coerentes. O aparecimento de sinais
claros de crise do Welfare State, já em meados da década de 50, exigia o abandono de
metodologias “pouco producentes” ou “excessivamente subjetivas”. Esta crise suscitava a
incorporação de novas variáveis e metodologias que fizessem frente aos crescentes
requerimentos da racionalidade agora vigente.
A proposta desta tese de doutorado, inclusive, é ir bem mais longe no
esquadrinhamento desta conceituação. Estamos afirmando que a consideração dada
inicialmente à variável espaço (dentro de estudos que se dedicam a levantar e mensurar
indicadores sociais) vem se modificando completamente. E isto ocorre como fruto desta
crise, assim como das modificações no regime de acumulação dentro do capitalismo. Este
movimento em direção à Geografia, por sua vez, deve repercutir fortemente na forma como a
Geografia passará a incidir no debate. De uma disciplina que tem tido participação
coadjuvante, a Geografia deve passar a provocar crescente interesse. Para que isto possa
acontecer, porém, será necessário considerar que a Geografia, pelo menos até aqui, deixou
passar o fato de que assumir os indicadores sociais representa bem mais que tomar um
conceito e a ele referir uma estatística. Assumi-los é tomar, também, como herança, a
influência das forças que erigiram este modo de “ver’ o social. É por isto que o próximo passo
proposto será examinar mais amiúde o contexto em que surgiram os indicadores sociais e suas
mais fortes influências.
1.2 Contextualizando o surgimento dos Indicadores Sociais
De maneira geral, os autores que se dedicam a esmiuçar o surgimento e evolução da
utilização dos indicadores sociais parecem concordar que, após seu surgimento e emergência
13
No capítulo 2, tentaremos expor tal crise a partir do conceito de racionalidade no capitalismo.
na década de 60, os indicadores sociais conheceram três fases distintas quanto às flutuações
em seu uso.
a) A primeira que vai até meados/final da década de 70, marcada pelo reconhecimento da
viabilidade dos indicadores sociais, expansão de sua utilização e um otimismo
bastante exacerbado quanto às suas possibilidades de aplicação.
b) A segunda fase atravessa, basicamente, toda a década de 80 e é marcada por uma crise
nas pesquisas sobre indicadores sociais, com redução das expectativas quanto ao uso
dos mesmos.
c) Por fim, parece haver certa convergência quanto a uma fase de estabilização desta
crise, nos anos 90, havendo inclusive aqueles autores que apostam em um novo
crescimento dos estudos que se utilizam deste instrumental.
Januzzi (2001) e Carley (1985) imputam a expectativas excessivamente otimistas a
razão para um posterior clima de frustração e conseqüente arrefecimento no entusiasmo pelas
pesquisas baseadas em indicadores sociais. Já Schrader (2002) aponta a falta de solução de
problemas de ordem metodológica e teórica, entre eles a incapacidade de convencer o público
da utilidade dos indicadores. Por outro lado, todos os três autores parecem convergir ao
apontar a crise fiscal que acometeu diversos países nos anos 80, acompanhada de
administrações de perfil neoliberal - principalmente na Inglaterra e EUA - como aditivos à
crise dos indicadores sociais.
Se, anteriormente, optamos por uma recusa em explicar o surgimento dos indicadores
apenas como uma decorrência das frustrações advindas das representações do social baseadas
unicamente no comportamento econômico, resultaria incoerente assumirmos agora que a
“crise dos indicadores” é decorrência apenas da percepção das limitações destas informações
sobre o social.
Os indicadores sociais são uma expressão clara de uma contínua tentativa de
adaptação das bases do pensamento liberal à crise no regime de acumulação capitalista. Desta
forma, uma vez que a década de 70 pôs à mostra uma crise no pensamento liberal, os
indicadores sociais sofreram reflexos desta crise e revelaram também as limitações dos
“remendos” a este pensamento a partir dos anos 50.
Assumindo o esclarecimento destas bases pelo menos em seus aspectos mais evidentes
como objetivo central deste primeiro capítulo, podemos partir de uma citação de Carley (op.
cit.):
[...] as mensurações são necessárias – a menos que se confie em palavras
intuitivas. Infelizmente não somos capazes de medir diretamente o bem-estar, já
que nem os indivíduos, nem os países têm medidores convenientes de bem-estar.
Portanto fazem-se necessários substitutos das medidas mais diretas do bem-estar.
Esses substitutos podem ser denominados de indicadores sociais – que são
medidas de uma característica observável de um fenômeno social e que
estabelecem o valor de uma característica diferente, mas não observável do
fenômeno. Isso aponta para duas características importantes dos indicadores
sociais: eles são substitutos e são medidas. (CARLEY, 1985, p. 2)
Os indicadores sociais foram construídos a partir das seguintes concepções: (1) a idéia
de que é possível repartir e estudar o social mediante o uso de “conceitos substitutos”; (2) a
idéia de que se pode, através destes substitutos, construir equivalências matemáticas ao que é,
por princípio, descontínuo e movediço. Exemplificando: o conceito de segurança não pode ser
medido diretamente, mas, se for conveniente a quem se interessa por este tema, pode ser
traduzido por meio do número de dias sem crime.
Estas pretensões não nascem com a busca pelos indicadores sociais, muito embora seja
certo que estes funcionem como seu desaguadouro natural. São, assim, os indicadores sociais
fruto de “progressos” havidos dentro de um campo bem mais amplo, que permitirão almejar
tanto a conceituação/substituição quanto o estabelecimento da métrica do social.
De um lado, são o fruto direto de diversos avanços que se deram dentro da sociologia
americana, principalmente, a partir da década de 1930. De outro lado, são o resultado de uma
busca empreendida pelo liberalismo – e, dentro dele, pela corrente utilitarista dentro da
Economia – por um fundamento básico de compreensão do funcionamento da sociedade.
Estes são os grandes tributários do conceito de indicadores sociais. É precisamente por isso
que, quando estas bases são questionadas dentro do próprio liberalismo, dada sua crescente
mostra de insuficiência, as mesmas pretensões de se criar conceitos e de se medir o social
serão postas em xeque.
Podemos aproveitar uma outra contribuição de Carley (op. cit.) para mergulhar em
uma primeira face da irmandade entre indicadores sociais e economia:
No início da década de 60, os economistas, usando indicadores e modelos
econométricos, puderam orientar os governos para que tomassem várias medidas,
como a redução de impostos, que pretendia resultar na deflação da economia, tal
como medida pelo PNB, aproximadamente no nível previsto. [...] a utilidade e
sucesso relativos desses indicadores na orientação da política econômica sugeriram
a alguns cientistas que uma série análoga de indicadores “sociais”, ou contas
sociais, poderia ser igualmente eficaz na condução da política social (CARLEY,
1985, p.18). [...] Assim, o movimento de indicadores sociais recebeu a
incumbência de elaborar indicadores complementares aos indicadores econômicos
úteis e inevitáveis, em vez de tentar suplantá-los. (op.cit., p.19)
A complementaridade entre a Economia e os indicadores sociais é, porém, algo mais
que a colagem de faces na observação de um mesmo problema. A Economia já vinha, através
da evolução empreendida pelo liberalismo em sua expressão utilitarista, munindo-se de um
arsenal teórico e metodológico, que a capacitara a ser uma personagem fortemente influente
sobre os indicadores sociais.
Estes indicadores podem ser vistos, então, como um dos resultados mais visíveis de
uma busca empreendida pelo liberalismo, no sentido da abolição da política através de uma
concentração de atenção sobre a troca de mercadorias. Como bem assinala Pierre Rosanvallon
(1993), o que uniria seus teóricos seria muito mais a esperança de encontrar um fundamento
básico do comportamento da sociedade. O mercado (ou o econômico) torna-se o verdadeiro
regulador da sociedade (e não apenas da economia). Em resumo lapidar:
O liberalismo econômico nasceu não apenas como teoria – ou uma ideologia – que
acompanhou o desenvolvimento das forças produtivas e a ascensão da burguesia à
condição de classe dominante, mas como reivindicação e tradução da emancipação
da atividade econômica em relação à moral, devendo ser compreendido, antes de
tudo, como resposta aos problemas não resolvidos pelos teóricos do contrato
social. (ROSAVANLLON, 1979, p. 8)
Achava-se, assim, este liberalismo, já de longa data, na vereda por um sistema de
representação do mundo que orientasse o modo pelo qual a burguesia pudesse, mais
perfeitamente, conduzir suas ações. É devido a isto que a Economia chefiará os estudos sobre
indicadores, estabelecendo logo de início sua sinonímia ao Produto Interno Bruto ou à renda
per capita. E, quando este modo de representação (e mensuração) começa a ser posto em
dúvida, no interior da própria Economia, já no final da década de 1940, e entra em crise
profunda na década de 1960, entra em crise também esta sinonímia. Este processo, contudo,
não livra os indicadores sociais da continuidade de uma discussão, principalmente, em
território econômico.
De início, examinaremos este processo de capacitação do discurso liberal no
estabelecimento de uma medida do social. Isto será feito em dois momentos: primeiramente,
através de um sucessivo abandono da ética pela Economia que, neste trabalho, é retratado
através da evolução do próprio utilitarismo; e, em segundo lugar, esta capacitação se dará
através da contínua adoção da matemática, encarregada, cada vez mais, de dar forma ao
intangível mundo da felicidade.
1.2.1 Utilitarismo e Indicadores Sociais
Em 1992, Amartya Sen reclamava de um excessivo distanciamento entre a Economia
e as discussões havidas no campo da Ética:
[...] a importância do enfoque ético enfraqueceu-se substancialmente no processo
de desenvolvimento da economia moderna. A metodologia da assim chamada
economia positiva manteve-se à distância da análise normativa [...]. Examinando
as publicações sobre economia nos nossos dias, é impossível não perceber a recusa
da análise normativa profunda e o desprezo da influência de considerações éticas
na caracterização do comportamento humano geral. (Sen, 1992 a, p.108)
Sen refere-se a uma bifurcação ocorrida dentro do pensamento econômico, que pode
ser reconhecida a partir de uma postura de afastamento dos temas relativos à Ética. Utilizando
as discussões situadas neste campo como ponto de referência, o autor distingue duas correntes
na Economia: Uma, mais antiga e bastante afeita a estes temas, “os Éticos”; outra, hoje,
bastante distante de qualquer discussão dentro deste âmbito, que não se resolva pelas próprias
leis do mercado, representada pelos “Engenheiros”.
A Corrente Ética, à qual se refere Sen, está ligada a filósofos e economistas clássicos e
é iniciada a partir de meados do século XVIII. Não cria os indicadores sociais, mas suas idéias
possuem tal força que até hoje infundem traços sobre suas orientações e objetivos, como
atestam os posicionamentos assumidos pelo próprio Sen. Por sua vez, e por contraditório que
possa parecer, é o afastamento proposto pelos Engenheiros que faculta à Economia o melhor
aparelhamento para servir às intervenções estatais e privadas sobre o Bem-Estar Social. Pelo
menos durante finais do século XIX e boa parte do século XX, é a corrente da Engenharia
quem arma metodologicamente a Economia no recorte do social.
A felicidade humana é um tema bastante comum entre os “éticos”, todavia a corrente
dos Engenheiros consegue a proeza de ir continuamente mantendo este tema em pauta,
afastando-o, porém de qualquer fundamento normativo ou ligado à justiça social. Na verdade,
para que se possa melhor avaliar a contribuição da corrente dos Engenheiros, será necessário
levar em consideração que esta se aproveita habilmente de um legado deixado pelos éticos,
que só muito recentemente (na pessoa de economistas como Sen) vem sendo novamente posto
em questão.
O primeiro legado é, sem dúvida, o aproveitamento de uma via de entendimento de
todas as relações sociais (e não só da economia) através do econômico. O marco inicial deste
deslocamento parece ser fornecido pelo próprio Adam Smith. Rosanvallon (2002) chama a
atenção para esta possibilidade:
Adam Smith é menos o pai fundador da economia política que o teórico do
definhamento da política. Não é um economista que faz filosofia, é um filósofo
que se torna economista no movimento de realização da sua filosofia. Smith é um
anti-Rosseau por excelência (op. cit., p. 10). [...] A economia não será para ele um
domínio separado da investigação científica: verá aí um resumo da sociedade, o
terreno sólido sobre o qual a harmonia social poderá ser pensada e praticada (op.
cit., p. 55).
O problema posto à frente de Smith parece ser o do estabelecimento de uma via de
entendimento da vida social. A resolução proposta por este será assimilada de imediato pela
sociedade da época. Estava exposto, ali, tanto o problema da regulação do social, quanto à
maneira de compreendê-lo, numa forma de pensamento passível de ser captada até mesmo
pelo mais comum dos homens. Para isto, o pensamento de Adam Smith percorre um caminho
no qual podemos assinalar dois momentos. Em ambos, porém, Smith atenta às paixões
humanas.
Inicialmente, o autor busca explicação para este entendimento naquilo que denomina
de “simpatia” ou a “fonte de nossa solidariedade para com a desgraça alheia” (SMITH, 1759,
p. 6). Mediante esta “simpatia”, seríamos capazes de, em nossa imaginação, trocar com o
sofredor e, portanto, nos interessarmos e nos compadecermos de seus problemas.
Posteriormente, na Riqueza das Nações, em uma de suas passagens mais famosas, Smith
parece ir se encaminhando a uma visão bem mais “crua” das relações humanas quando fala
do self-love:
É isto que faz toda pessoa que propõe um negócio à outra. Dê-me aquilo que eu
quero, e você terá isto aqui, que você quer – este é o significado de qualquer oferta
desse tipo; e é dessa forma que obtemos uns dos outros a grande maioria dos
serviços de que necessitamos. Não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro
ou do padeiro que esperamos nosso jantar, mas da consideração que eles têm pelo
seu próprio interesse. Dirigimo-nos não à sua humanidade mas à sua auto-estima, e
nunca lhes falamos das nossas próprias necessidades, mas das vantagens que
advirão para eles.(SMITH, 1776, p. 50)
Como já se dissemos anteriormente, o intento de Smith é o retrato daquilo que angustia
seu tempo: a procura por um sistema de entendimento do mundo que pudesse consagrar a nova
moral, evidenciada na prática. Ao explicar este comportamento, tomando por base a procura do
indivíduo por sua própria satisfação, a alça de mira iluminista passou a ser regulada para a
captação das relações sociais, antes de qualquer coisa, como relações de troca. O social,
portanto, vai se circunscrevendo a estas relações e através delas será captado. Transformar o
Bem-Estar, porém, em algo passível de ser captado pela ciência econômica, exigia que se
transformasse a própria felicidade em uma mercadoria e este é o outro legado aproveitado dos
Éticos, e aperfeiçoado pelos Engenheiros.
O caminho para se encontrar esta fórmula é longo, e o pioneiro neste empreendimento
será o filósofo e economista Jeremy Bentham. Em Bentham (1823), a regulação do social, e,
portanto, sua compreensão acontece através da busca contínua pela felicidade que seria,
segundo o autor, o saldo resultante da relação entre o prazer e a dor experimentados por cada
um. Com isto, Bentham estava fundando uma linhagem de entendimentos sobre o indivíduo e
sua relação com a sociedade, assim como uma base de compreensão para a aplicação da
justiça, o utilitarismo
14
.
A natureza colocou o gênero humano sob o domínio de dois senhores soberanos: a
dor e o prazer. Somente a eles compete apontar o que devemos fazer, bem como
determinar o que na realidade faremos. [...] O princípio da utilidade reconhece esta
sujeição e a coloca como fundamento deste sistema, cujo objetivo consiste em
construir o edifício da felicidade através da razão e da lei (Bentham,1823, p.1).
Propiciar prazeres e evitar dores constituem os objetivos que o legislador tem em
vista, razão pela qual é de conveniência que compreenda seu valor. Os prazeres e
as dores constituem os instrumentos com os quais o legislador deve trabalhar (op.
cit., p.22).
É preciso que frisemos: quando Bentham fala em “valor dos prazeres e das dores”, não
se refere apenas à sua importância, mas, exatamente, à possibilidade de se estabelecer sua
medida para que se pudesse construir, em última instância, um sistema de leis que regulasse
todas as relações entre os homens. Requintando, surpreendentemente, sua proposição, Jeremy
Bentham chega até mesmo a nomear as circunstâncias que deveriam ser consideradas na
avaliação do prazer e da dor para a construção de tal legislação
15
. Como bem retrata Hanna
Arendt (1958): “A invenção, por Bentham, do cálculo da dor e do prazer apresentava não só a
vantagem de introduzir, aparentemente, o método matemático nas ciências morais, mas a
atração ainda maior de haver encontrado um princípio inteiramente baseado na introspecção”
(p. 32).
14
Segundo Francisco Vergara (1992), as doutrinas éticas podem ser classificadas em duas grandes famílias.
Aquelas que, a exemplo do utilitarismo, consideram as ações (as leis, as instituições) como boas ou más de
acordo com as conseqüências que elas têm (sendo, por isso, denominadas de ‘conseqüencialistas’). E as
Doutrinas Éticas que consideram as ações como boas ou más de acordo com sua conformidade à uma norma
superior. Na doutrina utilitarista, a conseqüência desejada é a felicidade da coletividade. Neste caso, as ações
podem, portanto, ser qualificadas de úteis quando produzem esta conseqüência e inúteis ou nocivas no caso
contrário. Assim, o fato desta doutrina se vincular às conseqüências das ações (e não sua conformidade a uma
norma superior) leva naturalmente ao julgamento de sua utilidade para causar a felicidade. Daí, o termo
utilitarismo. (op. cit.).
15
Uma verdadeira hierarquia de recompensas e de penalidades estabelecida a partir de: sua intensidade; sua
duração; sua certeza ou incerteza; sua proximidade no tempo; sua fecundidade; sua pureza; e, por fim, sua
extensão. Sobre isto, ver a página 23 da obra já citada.
O pensamento de Bentham ainda sofrerá uma considerável correção de rumo, já que
confiava nesta relação entre prazer e dor para explicar toda a conduta humana. Caberá à figura
máxima do utilitarismo, John Stuart Mill, a suavização e aperfeiçoamento das idéias de
Bentham. Mill (1874) ataca a miopia deste pensamento, incorporando a ele o princípio da
perfectibilidade humana. Basicamente, Mill nega a concepção de um homem movido apenas
pela busca de satisfação. Ao analisar a desconexão entre a evolução ética da sociedade e os
progressos verificados em sua evolução tecnológica, Mill aponta que esta distância pode ser
vencida com base na aspiração inerente a qualquer homem em buscar seu próprio
aperfeiçoamento.
Quando os meios de vida já foram obtidos, a esmagadora maioria do trabalho e do
esforço restantes que ocorrem no planeta tem como objetivo adquirir o respeito ou
a opinião favorável dos homens, ser admirado, ou ao menos não ser desprezado,
por eles. A atividade industrial e comercial que faz avançar a civilização, assim
como a frivolidade, a prodigalidade e a sede egoísta de engrandecimento que a
retardam, originaram-se igualmente desta mesma fonte. (MILL, J. S,1874, apud
GIANETTI, E.,1993, p.45).
Contudo, o autor analisado não rompe em definitivo com o pensamento de Bentham,
apenas incorpora a ele a necessidade de se cultivarem através da educação as “qualidades
morais dos homens”, estas sim de importância capital à formação do indivíduo e da riqueza de
uma nação. Retomaremos mais adiante, e neste mesmo capítulo, este argumento de Stuart Mill.
Por enquanto, será suficiente anotar que a corrente dos Engenheiros, contudo, parece ter
guardado apenas residualmente estas preocupações. Provavelmente, seu eco mais perceptível
está na teoria do capital humano de Marshall
16
, um admirador confesso de John Stuart Mill.
A partir de final do século XIX, o viés ético dos estudos econômicos irá continuamente
sendo superado em favor de um crescente privilégio do homem econômico passível de ser
reconhecido através de suas escolhas dentro de um sistema de lógica matemática. Leon Walras,
em 1877, dá um passo decisivo neste sentido sob a forma de algumas asserções que, entre
outras tantas, podem ser destacadas na medida em que interessam mais diretamente a este
trabalho. Walras faz uma proposta de comprovação científica do equilíbrio econômico entre
oferta e procura de bens através de cálculos matemáticos:
16
Sidgwick e Marshall desenvolveram a abordagem e os conceitos básicos do que hoje em dia é conhecida como
a Teoria do capital humano. “Sua principal contribuição foi mostrar como os recursos humanos constituem
meios de produção, pelo menos tão importantes quanto qualquer outro tipo de capital. Embora dotadas de certas
propriedades peculiares (como, por exemplo, a não-transferibilidade), as faculdades e aptidões dos agentes
econômicos são, em larga medida, o resultado de um esforço prévio de investimento na formação destas
capacidades, assim como o estoque de capital físico resulta de um fluxo anterior de investimentos”.
(GIANETTI, Eduardo, 1993, p. 177).
[...] há uma Economia Política Pura que deve preceder à Economia Política
Aplicada, e essa Economia Política Pura é uma ciência em tudo semelhante às
ciências físico-matemáticas. Essa asserção é nova e parecerá estranha; mas acabo
de prová-la e a provarei ainda melhor em seguida (op. cit., p. 23).
Por outro lado, isto é claro, só podia ser feito mediante um raciocínio que tornava
cada homem em um agente econômico dentro de um universo de escolhas.
Desses tipos reais deve-se abstrair, por definição, tipos ideais e raciocinar sobre
estes últimos, só retornando à realidade depois da ciência feita e tendo em vista
aplicações. Teremos assim, em um mercado ideal, preços ideais que terão uma
relação rigorosa com uma demanda e uma oferta ideais (op. cit., p. 24).
De outra parte, porém, permanecia o problema de se medir a felicidade ou a dor
(BENTHAM, 1823; MILL, 1863) para se abandonar de vez o terreno da controvérsia e da
subjetividade. A resposta a este dilema é dada através de diversas contribuições que tentarão
argumentar sobre a possibilidade da conciliação entre a emoção do desejo, experimentada por
qualquer ser humano, e a objetividade da expressão matemática da satisfação deste desejo.
Serão diversos os conceitos propostos: utilidade ordinal, utilidade cardinal
17
e utilidade
marginal
18
. Todos na linha deste mesmo intento, já explicitado anteriormente.
De resultado concreto, pelo menos no que se refere aos objetivos deste trabalho, fica a
possibilidade aberta por estes estudos do cálculo do comportamento individual de cada
consumidor, passível de ser estendida a toda e qualquer sociedade que se analisasse. A
modelização matemática deste comportamento econômico, vendo-o como resultado de
escolhas racionais, conhecerá um incremento cada vez maior a partir do final do século XIX.
Muito embora tais análises apresentassem diversos problemas relativos ao
distanciamento crescente com a realidade concreta, isto não impediu que cada vez mais as
condições de vida da população passassem a ser retratadas através de análises de
comparações entre a base de mercadorias, que poderiam gerar utilidades (satisfação de
desejos, necessidades ou preferências) a esta população. O modelo de desenvolvimento
vigente demandava instrumentos de planejamento os mais diversos, e a indicação do social
através da economia se apresentava como ótima opção para estas ações. Não importava muito
17
Francis Edgworth, em 1881, em um livro, cujo sugestivo título era Psicologia Matemática, proporá uma
quantificação da satisfação humana em termos de unidades de prazer. Quando, porém, “os economistas se
convenceram de que havia, de fato, algum erro metodológico no uso das comparações interpessoais de
utilidades, a versão mais completa da tradição utilitarista logo abriu espaço para várias concessões. A concessão
que hoje é mais amplamente adotada é a de considerar a utilidade nada mais do que a representação da
preferência de uma pessoa.” (SEN, Amartya, 1999, p.87).
18
A utilidade marginal de uma mercadoria é definida como “o acréscimo à utilidade total (ou custo total) de se
consumir (ou produzir) mais uma unidade de um bem” (Dicionário do pensamento social do século XX, p. 247).
se o critério de justiça ficasse por conta da eficácia que tal distribuição gerava, avaliada a
partir de um modelo de trocas ótimas entre cada agente econômico. Injustiça neste caso seria
a perda da eficácia, decorrente da troca ótima entre estes agentes.
De maneira geral, porém, a primeira metade do século XX será um rosário de
crescentes demonstrações das sérias limitações que implicava o reducionismo econômico.
Sinais claros da necessidade de rearranjos dentro do Estado liberal que culminariam mais
tarde no modelo keynesiano. Para ficar apenas em alguns exemplos, podemos citar:
a edição de A Economia do Bem-Estar, por Pigou (1924) outra grande figura
da economia neoclássica, em que este afirmava que a economia já não podia
ignorar o conceito de custos sociais, que poderiam fazer com que o bem-estar
público diferisse do privado;
a iniciativa do Presidente Hoover, em 1929, de estabelecer uma comissão para
estudar tendências sociais nos EUA;
a invenção do desenvolvimento no pós-guerra, conforme a proposta do
presidente Truman, como fórmula para o alcance do bem-estar de parte de
cada nação.
O terreno para o nascimento dos indicadores sociais ficou ainda mais fértil quando, na
década de 1960, ocorreram um sem-número de conflitos, dentro e fora dos países centrais,
deixando claro que as decisões baseadas unicamente em teorias advindas deste casamento
entre economia e a matemática estavam bastante comprometidas.
A resolução deste dilema, sob a forma do mero acréscimo de variáveis a estas
análises, porém, será apenas aparente e não irá muito longe. Conforme apontamos logo no
início da segunda parte deste mesmo capítulo, da proposição do conceito, passando pela
euforia e, finalmente, pelo desânimo com as limitações deste instrumental, se estendem no
máximo quinze anos ou pouco mais. Isto ocorre, provavelmente, porque os indicadores
sociais, ironicamente nascidos para contestar o excessivo viés econômico através do qual a
avaliação da sociedade era feita, ainda tinham muita dificuldade em livrar-se de algumas
características que o utilitarismo lhe deixa. Este difícil descolamento processa-se em
concomitância às mudanças importantes pelas quais o modo de produção capitalista já vinha
passando como frisamos anteriormente.
Esta não é uma influência que se circunscreve apenas a uma atenção pronunciada a
respeito do acesso da população a rendas, mercadorias e serviços. Fosse isso, a crise dos
indicadores sociais teria sido sobrepujada meramente com o acréscimo, ou mesmo o desvio
completo do olhar dos interessados nestas avaliações para aspectos da vida da população que
haviam sido relevados até então, como a mortalidade infantil, a longevidade ou as taxas de
alfabetização. Esta nova fase na qual o capitalismo se insere demanda sistemas de avaliação
mais sofisticados.
Por conseguinte, há uma necessária modificação, não nas variáveis que eram
analisadas estatisticamente, mas no papel que estas passaram a desempenhar no
estabelecimento de políticas públicas ou mesmo dentro do âmbito de empresas privadas, o
que só pôde ser obtido com a adoção deste novo papel. Esta não é uma etapa fechada dentro
da história dos indicadores sociais, embora aconteça a passos razoavelmente largos nos
últimos dez anos, aproximadamente, como resultado da adoção de idéias advindas de um
movimento de renovação dentro do próprio liberalismo, que injetou novo sopro de vida aos
indicadores sociais.
Este papel dos indicadores é de difícil apreensão, pois não está exposto de maneira
flagrante dentro dos documentos que orientam sua construção, e talvez por isso exista certa
confusão neste meio. A mais comum delas é, sem dúvida, a contraposição entre indicadores
econômicos e indicadores sociais no estudo de fenômenos ligados ao desenvolvimento ou à
qualidade de vida, por exemplo. A despeito deste debate, porém, os indicadores em si têm
variado muito pouco desde sua “invenção” em meados de 1960, contudo variou bastante o
viés pelo qual passaram a ser vistos.
Quem parece melhor resumir este processo é Amartya Sen (1992 b) que em suas
obras tem analisado o desenvolvimento, a pobreza ou a qualidade de vida, à luz de um debate
que parte das bases avaliatórias de cada perspectiva. De maneira simplificada, podemos
dizer que as bases avaliatórias são os termos em que estabelecemos a comparação entre a
vida das pessoas para fazermos sua avaliação. Nesta perspectiva, a discussão em torno das
bases avaliatórias envolve não só as variáveis específicas que serão utilizadas, mas
igualmente o peso e o papel que cada variável joga nestas comparações. Sen resume
admiravelmente bem esta discussão, afirmando que qualquer ranking que organizamos para
estabelecer comparações entre a vida dos homens guarda, dentro de si, uma noção de
igualdade sobre a qual está voltado o foco de atenção. Daí, resulta um de seus textos mais
famosos em que Sen (1992 b) propõe a seguinte questão: “Igualdade de quê?”
19
Teorias éticas, econômicas ou filosóficas diferentes possuem também visões bastante
diversas sobre onde a igualdade deve ser enfatizada, para que alcancemos uma sociedade
mais justa. Uma ênfase sobre liberdades formais e direitos políticos, tal como na proposta do
19
Esta indagação serviu como título da Conferência Tanner, proferida por Sen, em 1979, citada por Cohen
(1993).
liberalismo conservador em suas diferentes versões de Friedmann, Robert Nozick ou Hayeck,
implica também desprezo sobre variáveis como a distribuição de renda e riqueza. Liberais
mais moderados como John Rawls irão enfocar sua atenção sobre variáveis que revelem a
igualdade ou a ausência dela dentro do âmbito dos bens sociais primários (direitos, liberdades
e oportunidades, renda e riqueza e base social do respeito próprio). O utilitarismo clássico
preconiza variáveis que revelam a existência ou inexistência da igualdade de felicidade entre
as pessoas enquanto, em uma versão mais moderna, enfocaria sua atenção sobre a igualdade
de escolhas postas à disposição de um conjunto de indivíduos. Por fim, como exemplo,
podemos citar, também, o próprio Sen (1999) que põe sua ênfase sobre aquilo que denomina
de “liberdades substantivas” em que as variáveis avaliadas estão ligadas à idéia de igualdade
das capacidades humanas, sejam elas exploradas ou não.
Ocorre que, tendo sido gestados em um ambiente onde o utilitarismo estava
plenamente vigente, os indicadores sociais parecem guardar certas características desta
doutrina ética e econômica. Dos engenheiros os indicadores obtiveram a possibilidade de
propor que a realidade social possa ser retalhada e estudada por conceitos substitutos que,
uma vez agrupados, recomporiam este social. Esta característica perdura até hoje, até porque
parece ser vital à sobrevivência dos próprios indicadores sociais.
Por outro lado, a base avaliatória utilitarista, com seu forte componente teleológico ou
sua atenção sobre as conseqüências das ações como forma de avaliação, conferiu aos
indicadores sociais um papel relevante no planejamento centralizado. À medida que as
políticas públicas e a tomada de decisão de parte do Estado exigiam o trato de temas como a
democracia embutida nestas decisões, assim como a capacidade dos indicadores em se
adaptar à diversidade humana e ambiental, aqueles que se utilizavam deste instrumental
técnico iam se dando conta de suas limitações. Estas dificuldades nomeadas aqui não ficam
por conta apenas da influência do utilitarismo em sua versão advinda dos “éticos” ou dos
“engenheiros”. Como tentaremos demonstrar adiante, a chamada Escola de Chicago também
é responsável por esta inaptidão momentânea dos indicadores sociais.
1.2.2 A Escola de Chicago e os Indicadores Socais
Como já observamos, a corrente utilitarista dentro da economia exerceria forte
influência sobre a idéia da construção dos indicadores sociais. Sua capacidade de influência
talvez até pudesse ter sido maior, mas a constituição do Movimento dos Indicadores Sociais
surge justamente em decorrência de um momento de menor expressão desta corrente (meados
da década de 1960). Isto parece ter colaborado para fazer com que esta dividisse a cena,
dentro do Movimento dos Indicadores, com outra personagem: a Sociologia. Em especial, a
Sociologia que se praticou em Chicago entre os anos 1920 e 1950.
São diversos os fatores que constroem esta capacidade de influência e não é possível
aqui esmiuçar exaustivamente estas razões. Contudo, ainda que o foco de nossa atenção esteja
voltado bem mais ao saldo decorrente desta “colagem”, parece ser bastante conveniente que
se mencionem alguns dos pilares que construíram esta capacidade, já que tais bases não
parecem ser apenas o resultado de casuais circunstâncias, porém constituem o cerne de um
projeto que repercute sobre os indicadores sociais. Um projeto que põe em perfeita sintonia
uma Escola de Sociologia que teve seu auge na década de 1930 e um movimento pela revisão
da métrica do social, surgido em meados de 1960. O exame do cenário que compõe esta
influência é, portanto, nossa primeira tarefa. Num segundo momento, tentaremos avaliar em
que medida o pensamento da sociologia de Chicago estendeu-se até o movimento dos
indicadores, o que será feito tomando-se algumas das propostas de uma de suas principais
figuras.
Tratando desta capacidade de influência, será necessário mencionar a habilitação desta
escola construída a partir da grande intimidade de alguns de seus membros com o uso de
métodos estatísticos. Na verdade, esta intimidade está em consonância com o próprio
interesse do governo federal dos EUA em fortalecer todo o aparelho de Estado, encarregado
de coletar e processar informações estatísticas.
Até 1902 não existia uma oficina permanente do censo (o Census Bureau). A
organização do censo e estabelecimento de um serviço ad hoc, a cada novo censo,
são objeto de uma lei especial, precedida de um intenso debate no Congresso, que
se refere às convenções de recontagem e repartição proporcional
20
, às perguntas
que se formulariam, e a recrutamento de entrevistadores e de pessoal encarregado
da operação (DESROSIÉRES, 1993, p. 209).
Esta é uma atmosfera que já vinha sofrendo modificações. A tradição do liberalismo
americano, contudo ainda significava forte empecilho ao acesso, de parte do governo
americano, a estas informações, tanto sobre cada cidadão individualmente, quanto sobre as
atividades de empresas, que agora adquiriam um tamanho e capacidade de influência inédito
na história americana. O panorama, todavia muda completamente após 1929 e, se havia
20
Em 1797, foi inscrito na Constituição americana que a repartição dos impostos se daria proporcionalmente à
população de cada Estado. Razões para o debate, portanto, não faltavam: “como contar os escravos e os
estrangeiros?” (DESROSIÉRES, 1993, p. 208). Nota do Autor.
resistências ao fortalecimento do poder do Estado para coletar informações estatísticas, estas
se tornaram bastante diminuídas pela nova conjuntura vigente:
Como o desastre econômico de começos da década de 30 havia conduzido a uma
quase desintegração da sociedade, a nova administração poderia romper com alguns
dos dogmas vigentes, mas essenciais sobre o equilíbrio de poderes entre o governo
federal, os estados, os condados e as empresas que realizavam livremente seus
negócios. O estabelecimento de sistemas federais de regulação monetária, bancária,
orçamentária ou social, atribui ao governo uma função completamente nova
(DESROSIÉRES, 1993, p. 229).
Por outra parte, não é apenas o poder público que se revela interessado no acúmulo de
elementos sobre o funcionamento da sociedade americana. Grandes corporações financeiras
passarão agora a financiar pesquisas, visando o acúmulo de informações, que permitiriam
contribuir para uma maior estabilidade e controle social (SMITH, 1988, apud LEMA, 1997).
Especialistas das mais diversas áreas das ciências sociais contam, agora, com o apoio
financeiro de ricas instituições tais como: as fundações Ford, Rockfeller
21
, Carnegie, além de
outras instituições como The City Club of Chicago, The Commonwealth Club, The Rotary
Club e The Women´s Club
22
(LEMA, 1997).
O resultado de um cenário tão propício a determinado perfil de investigação científica
ficará evidente na produção da Sociologia praticada em Chicago. Revelam-se tanto na grande
intimidade dos sociólogos com o manuseio de métodos estatísticos, postos agora em paralelo
com os procedimentos descritivos (e que até então haviam dominado a produção daquela
universidade), quanto na proximidade muito grande de seus membros aos órgãos federais ou
fundações sustentadas pela iniciativa privada.
Para o exame da influência que esta escola exercerá sobre os indicadores sociais, fica
impossível, é óbvio, chegarmos aos detalhes do pensamento de cada um de seus componentes,
muito embora talvez fosse este o caminho mais indicado, já que a produção da Escola de
Chicago é vasta e de repercussão inegável nas mais diversas áreas das ciências sociais.
Contudo, é preciso apontar a dificuldade em colher um corpo teórico absolutamente comum e,
a partir dele, examinar sua influência sobre os indicadores sociais. Isto se dá em função do
21
Interessante anotar que, em 1892, John D. Rockfeller seria processado nos EUA pela lei Antitruste Sherman.
Onze anos depois, este processo acabaria obrigando a Standar Oil a se desfazer de 33 companhias petrolíferas
diferentes. Em 1929, porém, seriam as doações provenientes de sua fundação as responsáveis pela construção do
Social Sciencs Research Building, em Chicago. Entre um e outro acontecimento parece estar mais que apenas
consciência e altruísmo, mas a crescente percepção de que o conhecimento e controle do governo norte-
americano não eram assim tão indesejáveis quanto se imaginava em finais do século XIX. Uma interessante
descrição desta e de outras batalhas entre governo e capital privado pode ser vista no capítulo X de Stratern
(2001).
22
No caso dos indicadores sociais, uma instituição particularmente importante foi a Fundação Russel Sage (New
York) responsável por inúmeras publicações pioneiras dentro desta área.
fato de que muitos estudiosos sequer reconhecem uma convergência absoluta entre o
pensamento de cada um de seus membros que justifique esta reunião.
Numa entrevista concedida no ano de 1990, o sociólogo Howard S. Becker, uma das
figuras mais ilustres deste grupo de cientistas, preferia outra forma de abordagem:
Acho que é preciso fazer uma distinção [...] entre escola de pensamento e escola
de atividades. Geralmente, quando se fala numa escola como a Escola de
Chicago, imagina-se um grupo de pessoas que compartilham certas idéias. Mas é
preciso fazer uma distinção. Uma escola de pensamento é definida do exterior.
Alguém, olhando de fora, nota idéias e pensamentos comuns a certas pessoas, que
podem nem se conhecer, podem nunca ter tido contato entre si (p. 7). O
Departamento de Sociologia da Universidade de Chicago, a chamada Escola de
Chicago, era, portanto, uma escola de atividades que executava, principalmente, o
trabalho organizado por Park (Becker, 1990, p. 8).
Assim, tentaremos suprir esta dificuldade, tomando alguns aspectos do pensamento do
sociólogo Willian F. Ogburn como o fio condutor do exame sugerido. Este procedimento se
baseia em algumas constatações que tornam este autor bastante importante ao estudo
proposto. Professor da Universidade de Columbia, Ogburn já transitara por diversas agências
governamentais sendo trazido para Chicago, em 1927, por solicitação direta de Robert Park.
Este último, por sua vez, justificou a escolha de Ogburn com base na carência que alunos e
professores revelavam no trato com métodos estatísticos dentro daquele
departamento.Cumprir esta missão não seria tarefa das mais difíceis para quem equiparava a
Sociologia à acumulação e verificação, quantitativas, de “pequenos fragmentos e peças de
novo conhecimento” além de, orgulhosamente, antever o dia em que todos os sociólogos
seriam também estatísticos (OUTHWAIT & BOTTOMORE, 1993, p. 594).
Por outro lado, Ogburn achava-se em estreita sintonia com o espírito pragmático que
já reinava no departamento, ocupando-se em tornar a Sociologia uma ciência que pudesse
servir à “resolução de problemas dos homens”. Assumindo, claramente, posição contrária
àquela dos fundadores desta ciência em Chicago, Ogburn criticava o fato de que até ali a
Sociologia não havia assumido a tarefa de fazer do mundo um lugar melhor para se viver.
Segundo o autor, esta ciência deveria ocupar-se de promover crenças, propagar informação,
administrar novidades, além de pôr em foco futuras impressões da vida, bem como nortear as
ações do Estado
23
. Para este autor, até aquele instante, a Sociologia havia se interessado
apenas por descobrir novos conhecimentos, mantendo apenas marginalmente uma
preocupação com a reforma da sociedade baseada em políticas públicas eficientes. Daí,
23
Lema, 1997, utiliza-se dos comentários de Smith, 1988, para retratar estes posicionamentos de Willian F.
Ogburn.
decorre sua perfeita adequação à perspectiva desenvolvida por Park, de ver a Sociologia como
uma “engenharia social”, mantendo sua preocupação na reforma da sociedade, baseada em
políticas públicas eficientes (LEMA, 1997).
Ogburn, assim como alguns de seus pares, no Departamento de Sociologia, dispunha
de ótimo trânsito nas diversas esferas governamentais. Contribuiu para tal prestígio sua
atuação bastante diversificada. Citemos, por exemplo, a publicação de Social Changes, em
1922, um texto tão importante que guiaria trabalhos pioneiros na área dos indicadores sociais
mais de 30 anos depois, como é o caso de Indicators of Social Changes
24
(1968), de Sheldon
& Moore, além do estudo Human Meaning of Social Changes
25
(CAMPBEL & CONVERSE,
1972). Além disso, Ogburn foi diretor do Comitê de Pesquisa sobre Tendências Sociais,
criado a partir de iniciativa do próprio presidente Hebert Hoover. Deste trabalho, resultaria
uma obra igualmente importante ao Movimento dos Indicadores, produzida junto com Wesley
C. Mitchel, o Recent Social Trends
26
, que foi publicado em 1933. Acrescente-se ainda a tudo
isto, o fato de que, desde 1928, Ogburn trabalhava em uma edição anual do American Journal
of Sociology, dedicado às mudanças sociais nos EUA. A edição de 1934, por sinal, foi
especialmente consagrada a uma avaliação dos efeitos e tendências sociais advindos do New
Deal
27
.
Contudo, o que faz de Ogburn um autor tão influente sobre o movimento dos
indicadores sociais não é apenas sua desenvoltura no trato com métodos estatísticos ou sua
proximidade com órgãos governamentais ou fundações. Ogburn está essencialmente
interessado nos possíveis efeitos que o processo de modernização tecnológica vinha impondo
à sociedade norte-americana da época. Neste sentido, sua produção se faz com vistas a uma
24
Publicado com apoio da Fundação Russel Sage, este livro consistia em 14 ensaios, organizados de acordo com
cinco categorias: (1) a base demográfica que fornece uma indicação de tendências agregativas da população,
suas mudanças de composição e distribuição sobre a superfície da nação; (2) componentes estruturais, da
sociedade, examinando os modos funcionalmente distintos pelos quais a sociedade produz bens e organiza seu
conhecimento e tecnologia (medidas de crescimento econômico, emprego, tamanho das famílias e mudanças
religiosas); (3) aspectos distributivos como consumo, condições de saúde, lazer, escolaridade, etc.; (4) aspectos
agregativos, estratificação e mobilidade social e medidas de bem-estar social (SHELDON, E; MOORE, W. E.
Indicators of social change: concepts and messuraments, 1968).
25
Citado por Carley (1985). Obra complementar ao livro de Sheldon e Moore, feito por encomenda da Fundação
Russel Sage, N. Y.. Nela, os autores preocupam-se com os indicadores psicológicos e subjetivos de bem-estar
(atitudes, expectativas, aspirações e valores) e é, segundo, provavelmente, uma das obras mais influentes sobre o
conceito de qualidade de vida.
26
As mudanças sociais eram captadas através de medidas quantitativas aplicadas a 32 tópicos tais como
educação, família, meio-ambiente, crime, ocupações, etc. Nele, Hoover escreveria na introdução: este volume
“deverá ajudar-nos a vermos onde estão ocorrendo as tensões sociais e onde devem ser empreendidos os
principais esforços para lidar com elas construtivamente”, (apud Carley, 1985, p.17).
27
Este trabalho acha-se também editado como OGBURN, W. F. Social Change and New Deal (social changes
in 1933). Univ. of Chicago Press. Chicago, Ilinois, 1934. Nele, Ogburn apresenta uma série de artigos que
versam sobre temas como recuperação econômica, dinheiro e finanças, educação, nacionalismo, filosofia social,
o futuro do New Deal, etc.
construção metodológica apta a mensurar estas mudanças, ao mesmo tempo em que fornece
também fundamentação teórica aos conceitos que deveriam ser objeto destas medidas. A
preocupação de Ogburn é consoante com seu tempo, marcado por um acelerado crescimento
urbano, acompanhado de todos os seus efeitos danosos. Chicago, neste sentido, era exemplo
mais do que claro destes efeitos: fortíssimo processo de crescimento demográfico; aumento
exponencial do poder das grandes corporações fruto de um acúmulo impressionante de
capital; conflitos raciais de diversas ordens, etc
28
.
É em função disso que, num artigo intitulado Thoughts on Freedom and Organization,
em 1948, Ogburn expunha preocupação com a implantação de valores virtuosos na moderna
América, em meio aos dilemas que sempre acompanharam o liberalismo: justiça social versus
liberdade individual, eficiência social versus felicidade individual (LEMA, 1997).
Daí, porque Ogburn fará das “mudanças sociais” um tema ao qual dedica especial
atenção. Nas obras já citadas, sua tônica é a existência de um descompasso cultural. Tal
descompasso é caracterizado, pelo autor, através de dois aspectos das mudanças ocorridas
dentro do âmbito da cultura: de um lado este autor põe a “cultura material” à qual estão
associadas, principalmente, as inovações tecnológicas. De outro, está aquilo que Ogburn
(1964)
29
nomeia como a “cultura não-material” ou as “crenças, valores, costumes e padrões
de organização” de uma sociedade. A cultura material é acumulativa, ou seja, constitui-se de
invenções e inovações que se somam às anteriores numa progressão que a torna cada vez mais
complexa, “colocando uma maior diversificação e especialização”. A cultura “não-material”
seria adaptativa, ou seja, procuraria sempre se ajustar às transformações da esfera da cultura
material, organizando-se para responder às suas demandas como uma espécie de
complemento. Da mesma forma, esse raciocínio se aplicaria às normas, às leis e às formas de
governo em geral.
Neste ponto, uma pequena observação se faz necessária. Podemos notar, claramente,
uma proximidade muito grande entre os temores ligados ao descompasso apontado por
Ogburn e a tese de John Stuart Mill
30
. A grande diferença entre uma e outra posição parece
estar no fato de que Mill vê este descompasso sendo resolvido por investimentos nas
28
Segundo Lema, 1997, “dos autores da primeira época da Escola de Chicago, Veblen foi o que dedicou
particular atenção a este dilema no seu escrito The Theory of Leisure Class, colocando o conflito gerado entre
racionalidade e felicidade. A preocupação generalizada do final do século XIX consistia na passagem de uma
sociedade sustentada por valores de vizinhança, relações abertas em comunidades de pequena escala para
relações de vida citadina, produto da acelerada industrialização capitalista. A concentração de poder e os vícios
do mundo moderno eram percebidos como perigos ao modo de vida americano” (p.58).
29
Ogburn (1964)apud BIDERMAN, Albert D. Social Indicators as Goals. p. 105, In: BAUER, Raymond. Social
Indicators, 1966.
30
Gianetti enquadra esta desconexão em Mill, denominando-a “tese do neolítico Moral”.
“qualidades morais” do Homem. Eduardo Gianetti, por exemplo, assinala que a divergência
de John Stuart Mill em relação à tradição clássica aberta por Smith e Ricardo reside na
importância que Mill atribui à formação de cada indivíduo na formação da riqueza de cada
nação:
O sucesso na atividade produtiva, como a maioria dos outros tipos de sucesso,
depende mais da qualidade dos agentes humanos do que das circunstâncias nas
quais eles trabalham [...] Os indivíduos, ou as nações, não diferem tanto nos
esforços que são capazes de fazer sob o efeito de incentivos imediatos, quanto na
sua capacidade de empenho presente para a realização de objetivos distantes, e no
ânimo e esmero com que se dedicam ao trabalho em ocasiões comuns [...] As
qualidades morais dos trabalhadores são tão plenamente importantes para a
eficiência e valor de seu trabalho quanto as intelectuais (MILL, J. S., apud
GIANETTI, E. 1993, p. 170).
Estas qualidades morais às quais Mill se refere poderiam ser cultivadas a partir da
educação, através de seus poderes de “refreamento disciplinador” e de “mobilização das
faculdades ativas da mente”. (op. cit.)
Ogburn, bem menos otimista quanto às possibilidades de correção de rumo contidas na
educação ou na democracia e, como representante da Escola de Chicago, é muito mais
pragmático. Vejamos o comentário que Lema (1997) faz ao tentar sintetizar o pensamento
deste autor e, ainda, de Louis Wirth, (este também um dos maiores expoentes desta Escola):
Embora de forma diferente, tanto Wirth quanto Ogburn tinham certa fascinação
pelo poder. Wirth centrava sua atenção na influência da comunicação de massas,
como meio potencial de promover ajustes entre interesses concorrentes através do
incremento do entendimento mútuo e da transmissão de valores compartilhados.
Ogburn interessava-se pela capacidade do governo e das agências públicas de
incorporar o conhecimento das ciências sociais para promover os ajustes
necessários à adaptação de instituições, práticas e valores. (LEMA, 1997, p. 88).
Ou seja, fica claro como, através de suas considerações, Willian Ogburn consegue
abarcar as inquietações decorrentes dos processos nomeados mais anteriormente (que tem
lugar dentro das grandes cidades americanas) numa proposta que concilia, admiravelmente
bem, os preceitos e preocupações morais do modo de vida americano com os interesses tanto
do capital privado quanto do Estado.
CAPÍTULO 2
2. A Geografia vai aos Indicadores Sociais
2.1 Apontando algumas características do encontro entre a Geografia e os Indicadores
Sociais
Este capítulo busca caracterizar um encontro que guardou potenciais de exploração
quase tão grandes quanto as negligências que acometeram ambas as partes envolvidas, a
Geografia e os indicadores sociais. Dedicaremos aqui uma atenção maior sobre estas
negligências advindas de parte da Geografia, uma vez que no capítulo 4 tentaremos explorar a
movimentação que os estudos sobre indicadores sociais experimentam na direção de passar a
considerar seu componente espacial.
Denominamos de negligência o traço característico deste encontro, porque não deixa
de ser interessante como um instrumental que, desde o início se demonstrou tão importante
para a análise geográfica dos fenômenos, recebeu tão reduzida atenção como objeto de estudo
em si. Estudaram-se temas ligados à geografia dos indicadores, poucas considerações, no
entanto, foram feitas sobre as virtudes e dilemas da adoção deste instrumental.
A exceção mais notória talvez seja Raffestin (1980), em uma obra que já é clássica e
que propõe uma Geografia do Poder. Infelizmente, as considerações de Raffestin, como se
verá mais adiante, estão mais voltadas para as questões ligadas à relação entre posse de
informação e posse de poder, em especial às informações que o recenseamento pode
disponibilizar ao Estado ou empresas privadas, o que apenas arranha a questão da análise das
formas de representação e realidade representada.
Os indicadores sociais permanecem dentro da Geografia como um campo pouco
explorado, provavelmente, porque são vistos como representação do existente, mas muito
pouco como criadores de uma nova existência ao circunstanciar ações futuras, ao criar
identidades enquanto destrói outras. Como procuramos demonstrar no capítulo anterior, o
exame dos indicadores sociais para além de meras estatísticas referidas ao social fica patente
tendo em vista as circunstâncias nas quais este instrumental passou a existir.
Por conseguinte, este estudo não é apenas um exercício de resgate histórico. Já se
postulou, anteriormente, que os indicadores sociais são um instrumental técnico que nasce
com uma função bastante definida dentro da crise que o regime de acumulação fordista estava
atravessando e na qual o keynesianismo recompôs suas bases ao menos momentaneamente.
Tentaremos agora justificar a proposição dos indicadores sociais como objetos que, ao se
prestarem à representação do espaço social, criam, eles próprios, um determinado espaço
social na medida em que facilitam e constrangem ações.
As três partes que se seguem tentam justificar a observação deste encontro como
marcado inicialmente por, pelo menos, duas negligências e uma insuficiência. A primeira
negligência dá-se em relação ao objeto técnico indicador social que, dentro da Geografia,
acabou sendo traduzido apenas como uma informação estatística e não (também) como um
objeto técnico. A segunda negligência é feita em relação à Geografia (e porque não dizer, de
parte dela mesma) ao não observar alguns de seus avanços e possibilidades de contribuição
mais crítica, na medida em que já explorava um conceito relacionado à indicação do social, o
conceito de necessidade que pode ser referido espacialmente. Por fim, são traçadas, também,
considerações sobre as insuficientes bases em que se discute a adoção, pela Geografia, de
procedimentos estatísticos de uma maneira geral para auxiliar na conformação do cenário que
circunstancia este encontro.
2.2 A negligência à observação dos Indicadores Sociais como objeto técnico
No estudo do espaço urbano, já é consideravelmente generalizada a concepção que
procura desvendar sua produção tendo por base a contraposição entre duas lógicas. Ana Fani
Carlos (2001), por exemplo, ao analisar o prolongamento da Avenida Faria Lima, dentro da
cidade de São Paulo, propõe que:
No mundo moderno a prática socioespacial revela a contradição entre a produção de
um espaço em função das necessidades econômicas e políticas e ao mesmo tempo a
reprodução do espaço da vida social. No primeiro caso, a reprodução do espaço se
dá pela imposição de uma racionalidade técnica assentada nas necessidades impostas
pelo desenvolvimento da acumulação que produz o espaço como condição/produto
da produção, revelando as contradições que o capitalismo suscita em seu
desenvolvimento, o que impõe limites e barreiras a sua reprodução. No segundo
caso a reprodução da vida na metrópole se realiza na relação contraditória entre a
necessidade e o desejo, o uso e a troca, a identidade e a não-identidade, o
estranhamento e o reconhecimento que permeiam a prática sócio-espacial. Nesse
momento o aprofundamento da divisão social e espacial do trabalho se baseia em
uma nova racionalidade, apoiada no emprego do saber e da técnica aplicada à
produção, à gestão e à supremacia de um poder político que tende a homogeneizar o
espaço por meio do controle e da vigilância (p.18).
Este é o caminho escolhido pela autora em sua empreitada: examinar o processo de
reprodução do espaço urbano de uma grande metrópole brasileira como resultante da atuação
de duas forças: de um lado, a organização do processo de reprodução e acumulação de capital,
em escala cada vez mais ampliada que impõe seus efeitos sobre a estrutura urbana. Do outro
lado, figuram aqueles interessados no espaço enquanto valor de uso ou, como a autora
caracterizou, aqueles que observam no espaço a condição de reprodução de sua vida e (por
que não dizer?) de sua felicidade.
O trecho extraído de um trabalho em que se contrapõem estas duas visões bastante
diferentes se apresenta como um bom meio de introduzirmos a segunda parte do trabalho. O
cenário contrastante que resulta é sempre revelador, porque se mostra como área de atrito
entre duas lógicas, dialeticamente articuladas no erigir cotidiano do espaço conforme seus
interesses. Neste trabalho, o caminho ótimo a ser escolhido talvez fosse aquele análogo ao da
autora supracitada.
Retratando estes atritos, poderíamos contrapor a cidade construída pelos indicadores
sociais, conforme sua versão “oficial” oriunda do poder público e dos interesses do capital,
àquela que pode ser erigida pelo cotidiano das classes menos influentes, segundo aquilo que
realmente consideram como importante, além do modo como acreditam que se deva medir
tais aspectos. Infelizmente, não será possível levar adiante, pelo menos por enquanto, uma
empreitada de tal envergadura. Além de um desvio considerável em nosso objeto – o
indicador social em si – é preciso se anotar a reduzidíssima tradição que o movimento popular
ainda tem no envolvimento com esta temática. A Estatística, por exemplo, mesmo dentro do
âmbito acadêmico, só a partir dos anos oitenta passou a contar com um razoável número de
obras que se reportam à sua construção enquanto ciência
31
. De outra parte, as organizações
populares parecem não ter se dado conta da importância do processo de representação da
realidade via indicadores como objeto a ser posto em discussão, ficando em primeiro plano os
resultados ou, no máximo, a discussão deste ou daquele indicador
32
.
Mais modesto, o objetivo é, antes, o realce de uma das faces do processo de produção
do espaço pelo Estado e agências privadas. Estamos propondo a observação do espaço como
fruto de determinada racionalidade que visa o aperfeiçoamento do processo de acumulação de
capital. Uma vez que esta premissa é admitida, então os indicadores sociais se convertem no
resultado dos embates rumo ao estabelecimento de determinada hierarquia na observação do
social. Jean-Louis Besson (1992) propõe que: “A formulação das questões e das respostas
sugeridas tem grande importância, mas o essencial se concentra na conceituação preliminar do
31
Sobre esta produção, ver o balanço de DESROSIÉRES (1993), contido especialmente no subitem “Dos tipos
de investigación histórica”( p.27), da Introdução.
32
O desemprego, ou a inflação ou a pobreza parecem ser os exemplos mais eloqüentes deste “desvio” de
atenção. Há grande quantidade de energia despendida na defesa desta ou daquela metodologia, mas pouquíssima
discussão se realmente estes são os objetos que devem ser construídos pelo movimento popular.
fenômeno: escolha de um fenômeno a estudar, elaboração de um esquema para analisá-lo.
Dessa forma, o “fato” apreendido é condicionado pelo questionamento” (p. 48).
Milton Santos (1996) se pergunta, à determinada altura de seu livro A Natureza do
Espaço, se “seria possível um espaço racional” (p.290). Na linha de raciocínio, já
desenvolvida pelo próprio autor, estamos respondendo afirmativamente, na medida em que
propomos os indicadores como auxiliares na demarcação e no estabelecimento de tal espaço.
Fica claro que não estamos falando num sentido geral de racionalidade – da capacidade de se
tornar inteligível uma realidade a partir da razão – mas, antes, aquela já exaustivamente
esmiuçada por Weber
33
, a submissão das esferas sociais aos critérios de decisão nascidos a
partir da lógica capitalista. Uma modalidade específica de agir caracterizada por sua
instrumentalização com vista a determinados fins funcionais à esta lógica.
Embora ultrapasse os objetivos do presente trabalho repassar exaustivamente o
conceito de racionalização em Weber, é preciso apontar que o predomínio desta razão-
instrumental na modernidade envolve, segundo este mesmo autor, processos sociais e
culturais fundamentais e altamente ramificados que sintetizam o espírito ao qual queremos
associar o advento da adoção de indicadores sociais. Há, por exemplo, segundo Weber, um
progressivo desencantamento do mundo advindo da sua reprodução intelectual, com a
conseqüente tendência em observar tudo como um mecanismo causal, passível de ser
controlado racionalmente. Da mesma forma, há uma crescente importância do conhecimento
técnico, acompanhado do desenvolvimento de meios de controle não só da natureza, mas,
igualmente, do próprio homem. Weber cita, ainda, a “objetivação e despersonalização do
direito, da economia e da organização política do Estado, com o conseqüente recrudescimento
da regularidade e da calculabilidade da ação nesses domínios” (OUTWAITE &
BOTTOMORE, 1993, p. 642).
Sempre tendo em vista os objetivos deste trabalho, estes aspectos destacados podem
bem funcionar como uma acepção que resume a racionalização conforme descrita por Weber.
Tornar mais claro o papel dos indicadores sociais dentro de um esquema que considere a
produção do espaço como alvo da atuação deste tipo de racionalidade implica, portanto,
observá-los – os indicadores sociais – como mais uma expressão (à moda de Weber), não só
do triunfo desta racionalidade, mas também como a necessária expansão de sua lógica a todos
os recônditos da vida social. Como o propõe Bernstein (1985):
33
Sobre esta conceituação de racionalidade, ver especialmente as páginas 38 e 39 de WEBER (1896), apud
COHN
, (2004).
Weber alegava que a esperança e a expectativa dos pensadores iluministas era uma
amarga e irônica ilusão. Eles mantinham um forte vínculo necessário entre o
desenvolvimento da ciência, da racionalidade e da liberdade humana universal. Mas,
quando desmascarado e compreendido, o legado do Iluminismo foi o triunfo da
racionalidade [...] proposital-instrumental. Essa forma de racionalidade afeta e
infecta todos os planos da vida social e cultural, abrangendo as estruturas
econômicas, o direito, a administração burocrática e até as artes [...] (
apud
HARVEY, 1989, p. 25).
Um outro autor que se dedica ao exame de tal racionalidade é Habermas (1968), ao
pôr em questão a própria técnica em si. Para este autor, “Max Weber introduziu o conceito de
‘racionalidade’ para definir a forma da atividade econômica capitalista, do tráfego social
regido pelo direito privado burguês e da dominação burocrática” (p. 45). O importante aqui é
anotar que esta concepção assume que as esferas sociais ficam crescentemente submetidas aos
critérios de decisão racional. Inicia-se esta submissão, é óbvio, pela esfera do trabalho social,
mas a esta se segue a penetração dos “critérios da ação instrumental”
34
, a qualquer outro
âmbito da vida: a adoção do modo urbano de vida, a crescente tecnificação da comunicação,
etc. O racional, portanto, converte toda e qualquer ação em meio com vistas a seus fins. Por
conseguinte, são exatamente tais fins, em última instância, que irão na mesma medida
estabelecer o critério do que é e do que não é racional
35
.
Ainda segundo Habermas (1968), tal avanço da racionalidade ocorreria por duas
frentes: a primeira delas provinda “de baixo”, as estruturas tradicionais ou aquelas ainda não
imbuídas desta lógica, que sofreriam pressão para se adaptarem às necessidades que a
institucionalização das trocas comerciais, a compra e venda da força de trabalho e a
instituição generalizada da empresa capitalista acabam impondo. Dentro do sistema de
trabalho social ficam, assim, assegurados: (a) um processo cumulativo das forças produtivas e
(b) uma extensão horizontal dos subsistemas de atividade racional com respeito a um fim que
é a sua conseqüência – embora ao preço de crises econômicas.
Por isso mesmo, as estruturas tradicionais se submetem cada vez mais às condições
da racionalidade instrumental estratégica: a organização do trabalho e do comércio,
a rede de transportes, informações e comunicações, as instituições de direito privado
e, oriunda da administração financeira, a burocracia estatal (p.65).
A segunda coerção, apontada por Habermas, exercer-se-ia “por cima”, ao nível
ideológico, na medida em que
34
Op. cit. p.45.
35
Sobre este processo e de como Marcuse trata a racionalidade como uma forma de dominação política oculta,
ver HABERMAS, (1968), especialmente o capítulo 2.
as tradições que legitimam a dominação e orientam a ação, em especial as
interpretações cosmológicas do mundo, perdem seu caráter vinculante com a
imposição da racionalidade teleológica. [...] Só assim surgem as ideologias em
sentido estrito: substituem as legitimações tradicionais da dominação, ao
apresentarem-se com a pretensão da ciência moderna e a partir da crítica às
ideologias (p.66).
Milton Santos (1996) dedica especial atenção apenas às considerações de Habermas
quanto ao processo de adaptação provinda “de baixo”, na perspectiva de associá-lo ao
estabelecimento das condições da racionalização do espaço e tendo em vista sua óbvia ligação
com a expansão do capitalismo. É importante notar, porém, que Habermas, na obra citada, faz
considerações à racionalização provinda “de cima”, também, na perspectiva de retratar a
própria subordinação da ciência a este papel. No estabelecimento deste espaço racional,
portanto, não estaria em jogo apenas um novo modo de apropriação e dominação da natureza,
mas igualmente a possibilidade de sua perpetuação segundo a legitimidade que lhe precisaria
ser conferida. A racionalidade não precisa apenas ser eficaz, mas (também) ser vista por todos
como eficaz. Portanto, nos dois casos destacados – nas duas frentes nomeadas por Habermas
– os indicadores sociais poderiam ser, perfeitamente, encaixados como um exemplo bastante
eloqüente desta racionalização do espaço, tendo em vista não só a necessidade da organização
e adequação das ações de cada um dos agentes aos fins que esta racionalidade suscita, mas
também a manutenção de uma coesão que só pode ser obtida se todos os atores da vida social
observarem como racionais tais ações.
Karl Mannheim (1940), por sua vez, observa a racionalidade como passível de se
manifestar sob duas formas. Em primeiro lugar, através do que denomina de racionalidade
substantiva, que é a percepção inteligente das inter-relações dos acontecimentos de uma
determinada situação. Neste caso, cada atuação se faz tendo em conta um conhecimento sobre
as ligações estruturais entre cada uma das atividades envolvidas. Em segundo lugar, fica a
racionalidade que Mannheim nomeia como funcional ou a organização de uma série de
medidas com vistas à consecução de um objetivo previamente definido. Neste caso, todos os
elementos dessa série de atos recebem uma proposição e um papel funcionais. Aproveitando,
para ilustrar melhor, o exemplo dado pelo próprio autor: o soldado raso, por exemplo, realiza
uma série de atos (racionalidade funcional) sem ter idéia do objetivo final de suas ações ou do
papel funcional de cada ato individual dentro do todo (racionalidade substantiva)
36
.
As explanações deste sociólogo se fazem tendo em vista, justamente, o aumento
desmesurado da racionalidade funcional em detrimento de uma perda contínua da
36
Op. cit. p.64.
racionalidade substantiva, em especial na sociedade dos países industrializados, que emergia
na década de 1940. Vilmar Faria (1976), porém, prefere se deter bem pouco sobre este ponto
de vista, digamos, menos otimista, para aproveitar tais reflexões no sentido de compreender a
emergência dos indicadores sociais após a década de 1950:
Tendo-se em vista os objetivos de curto prazo, a demanda por indicadores sociais
prende-se à necessidade de introduzir maior racionalidade funcional na formulação e
implementação de políticas ligadas ao bem-estar social. Vista em termos mais
abrangentes – quanto ao alcance e quanto ao horizonte de tempo – a produção de
indicadores sociais liga-se à necessidade de aumentar a racionalidade substantiva, no
sentido de que esta produção deveria decorrer de um entendimento melhor e mais
amplo da natureza e do funcionamento da sociedade para que pudesse intervir de
forma a corrigir as disfunções produzidas pela “racionalização parcial” decorrente
do uso crescente da racionalidade funcional em esferas restritas e delimitadas.
(p.278)
Assim, ainda que preservadas todas as contradições entre cada uma das interpretações
sobre a expansão da racionalidade, se examinadas às minúcias, pode ser decantada uma
preocupação comum a estes apontamentos. Fica patente, por exemplo, um interesse em
retratar a instrumentalização da vida social através de sua subordinação à técnica e aos seus
objetos, sejam eles concretos ou abstratos. Neste retrato, fica evidente a preocupação quase
obsessiva desta racionalidade em estabelecer a homogeneidade, a previsibilidade, a
adequação, a eficácia como os critérios de avaliação de qualquer ação. Estas serão as
qualidades que presidem a construção deste espaço racional. Um movimento originado a
partir da técnica rumo à “perfectibilidade, impossível de ser alcançada pela natureza”
(SANTOS, 1996, p. 292).
Levando a análise dos indicadores sociais para este rumo, fica mais fácil esquivarmo-
nos de um debate – importante, é claro, mas inútil para este caso – em que a posse da
informação é que se põe em relevo. O IBGE
37
, em 1979, propõe logo na introdução da Síntese
dos Indicadores Sociais, por exemplo, que a utilização destes deve ser pensada no contexto de
uma relação entre conhecimento e controle social. De forma análoga, Raffestin (1980), ao
discorrer sobre os recenseamentos, aponta que este permite conhecer a extensão do recurso
população, fixando-se na atenção sobre o número ou qualquer imagem dele decorrente, como
o componente básico do domínio do Estado sobre qualquer grupo
38
. Esta perspectiva, porém,
no caso dos indicadores sociais (ou de qualquer estatística referida ao espaço), tem acabado
por eclipsar seu componente estratégico enquanto norteadores de um debate e, portanto,
37
IBGE (1979).
38
Op. cit. p. 67.
criadores da arena onde se trava a luta pela manutenção ou mudança nos interesses em cada
intervenção sobre ele.
Retornando ao debate sobre a técnica: acostumamo-nos a pensar na coerção que seus
objetos (os objetos técnicos) exercem sobre cada indivíduo ou sobre a sociedade. Mas cada
objeto técnico não encerra esta coerção unicamente em seu uso, ou em sua posse. Sua atuação
transborda estes âmbitos porque exige ações coerentes com sua presença. Desta relação
surgem os “fatos sociais” tal como Durkheim (1895) os designa, ou seja, “uma determinada
forma de agir que exerce poder sobre cada indivíduo” (p.3). Sobre isto, Bruseke (2001)
aponta:
No sentido amplo podemos incluir neste conceito tanto os atos simbólicos, que são
na sua essência imateriais, como os artefatos técnicos, nos quais se cristaliza, de
certa forma, a vida coletiva. A força que estes artefatos técnicos exercem sobre os
indivíduos é, nessa linha de interpretação, basicamente moral, apesar da impressão
imediata de que se trata de uma coerção meramente física. Uma auto-estrada seria
nesta perspectiva não exclusivamente uma faixa de asfalto que liga dois pontos num
determinado território, mas a cristalização de um conjunto de regras sociais que
forçam o homem, como motorista, por exemplo, a mostrar este ou aquele
comportamento (p.155).
Assim, os indicadores sociais, ao mesmo tempo em que facilitam algumas ações,
constrangem outras. Do mesmo modo que viabilizam determinada representação, dificultam
outras. Da mesma maneira que aceleram alguns raciocínios acabam embotando outros.
Os indicadores não são, portanto, a mera técnica aplicada ao espaço. À moda da auto-
estrada, do exemplo de Bruseke, não encerram dentro de si mesmos sua influência sobre os
atores sociais, mas criam, ao serem percorridos pelas ações, um determinado espaço. Este é,
em ultima análise, o ponto de vista defendido aqui.
2.3 A Negligência Às Considerações Geográficas Sobre A Necessidade Humana
Embora, como foi frisado, o exame dos indicadores sociais dentro da Geografia tenha
sido negligenciado, em nome de uma postura bem mais pragmática que prefere (apenas)
utilizá-los a propriamente pôr em pauta sua utilização, alguns avanços bem poderiam ser
anotados alinhando-se questões abordadas pela Geografia, mas que estão dentro da mesma
órbita dos indicadores. O exemplo mais ilustrativo talvez seja a incorporação de um debate
em torno de conceitos como o de necessidade. Na verdade, a consideração deste tema insere-
se dentro de uma questão bem mais ampla, que não se dá em decorrência da discussão ou das
controvérsias em torno da utilização dos indicadores sociais. Considerações sobre a
necessidade e a relatividade deste conceito são anteriores à própria discussão do conceito de
desenvolvimento (este, sim, bem mais recente) e, comumente, estão ligadas, dentro da
economia, aos debates sobre o conceito de valor. Adam Smith (1776), por exemplo, é um dos
autores que teceu comentários sobre a relatividade com que o socialmente necessário pode
ser encarado:
Por artigos de necessidade entendo não somente os bens indispensáveis para o
sustento, mas também tudo aquilo sem o que, por força do costume do país, é
indigno passarem pessoas respeitáveis, mesmo da classe mais baixa. Assim, por
exemplo, uma camisa de linho não é um artigo de necessidade para se viver, no
sentido estrito. Suponho que os gregos e romanos viviam muito bem, mesmo sem
terem linho. Mas nos tempos de hoje, na maior parte da Europa, um trabalhador
diarista respeitável se envergonharia de aparecer em público sem uma camisa de
linho, cuja falta supostamente denotaria aquele desonroso estado de pobreza no qual,
como se presume, ninguém pode cair a não ser por conduta extremamente má.
Analogamente, o costume fez com que sapatos de couro sejam um artigo de primeira
necessidade na Inglaterra. A pessoa respeitável, de qualquer sexo, mesmo a de
condição mais pobre, se envergonharia de aparecer em público sem eles (vol. II, p.
283).
Este é um debate ao qual os economistas, em particular, raramente se furtaram. Sua
ressurgência, entretanto, desta vez nos domínios de outras ciências sociais, está diretamente
ligada a utilização do conceito de desenvolvimento, conforme sua tradução pelo Estado de
Bem-Estar norte-americano no período pós Segunda Guerra. Desenvolvimento, neste caso
específico, interpretava-se como uma decorrência quase natural do processo de crescimento
econômico, de aumento da renda auferida por cada indivíduo e, por conseguinte, do seu
acesso a bens e serviços que resultariam em bem-estar. Portanto, a proposição de atenção
sobre a questão pressupunha que se esclarecesse de que bens ou serviços estava se falando.
Isto acabou fazendo com que o debate sobre necessidades, para este caso, entrasse pela porta
do consumo no rol de questões relacionadas ao desenvolvimento.
Assim, a reação à compreensão tão obtusa de uma característica inerente à própria
condição humana – com negligência explícita a aspectos como a definição que cada grupo,
porventura, possua de justiça social, ou de liberdade – significava pôr em pauta a maneira rasa
e homogeneizante com que algo tão complexo estava sendo discutido. Esta inquietação era
perfeitamente perceptível já no início da década de 1960. A ONU
39
, por exemplo, propunha
em 1962 que:
O problema dos países subdesenvolvidos não é simplesmente o crescimento, mas
sim o desenvolvimento [...] Desenvolvimento é crescimento com mudança [...]. As
39
Citada por Gustavo Esteva (1992). Desenvolvimento, In: Dicionário do desenvolvimento, Petrópolis, Rio de
Janeiro: Editora Vozes, 2000.
mudanças por sua vez são sociais e culturais, econômicas e qualitativas como
quantitativas [...] O conceito-chave é melhorar a qualidade de vida das pessoas
(
apud Esteva,1992, p. 68).
Observamos que este novo discurso sobre o desenvolvimento e, por conseguinte, sobre
as necessidades que tal conceito deveria abarcar não vinha apenas das costumeiras fontes que
se opunham ao imperialismo norte-americano ou europeu, mas de ícones do conservadorismo
político, como é o caso do então presidente do Banco Mundial, Robert McNamara
40
, que
advogava que os anos 70 deveriam ser “algo mais que índices brutos de crescimento
econômico” (op. cit, p.68). Neste sentido, o novo discurso sobre as necessidades humanas
espraiava-se agora mesmo entre os economistas. Alguns indicativos, de citação recorrente,
são os posicionamentos de alguns expoentes da chamada escola da economia do
desenvolvimento como Albert Hirshmann ou Walter Stohr
41
. Este primeiro, apesar de ter
inicialmente enfatizado um entendimento mais estreito do conceito de desenvolvimento, é
lembrado de modo mais comum por suas críticas e revisões posteriores. Em tais críticas
sempre vazará o desencanto com a resolução mais fácil de todas as carências verificadas em
países ou regiões (considerados, por este prisma, subdesenvolvidos) a partir de uma
concentração de esforços sobre a questão da renda e seu acesso pelos mais pobres:
Mas se a economia do desenvolvimento não conseguiu se curar completamente das
feridas que lhe foram infligidas por seus críticos, isso se deu também por [...] uma
sucessão de desastres políticos que se produziram em numerosos países no Terceiro
Mundo a partir dos anos 60 – desastres ligados evidentemente, de um modo ou de
outro, às tensões produzidas pelo desenvolvimento e pela ‘modernização’. E como
seria possível que tais ‘desastres do desenvolvimento’ [...] deixassem de levar à
hesitação uma equipe de cientistas que, logo após a Segunda Guerra Mundial,
haviam se consagrado à economia de desenvolvimento não como simples
especialistas, mas porque estavam motivados pela idéia de um mundo melhor?
Pessoas progressistas, a maioria desses cientistas acreditava no princípio de que
‘todos os bens andam juntos’; era assim óbvio, para eles, que – se se conseguisse
aumentar a renda nacional dos países deserdados – isso implicaria ipso facto efeitos
felizes nos domínios social, político e cultural (HIRSCHMAN, 1986, p. 74).
Ora, é deste sentimento de fracasso que nasce, segundo o próprio Hirschman, uma das
principais causas para que as preocupações dos economistas agora pusessem como alvo de
interesse a questão da distribuição de renda, saltando, em seguida, deste ponto para a
discussão das necessidades elementares, ou seja: “alimentação, saúde, educação, etc – que se
tornou em nossos dias uma das maiores preocupações”, (op. cit. p.77). Vemos, portanto,
através destas passagens, como a discussão em torno do desenvolvimento acaba repercutindo
40
McNamara foi também secretário de defesa dos EUA na década de 1960.
41
Sobre este ultimo ver a breve mas oportuna crítica à sua estratégia de redistribution whith grouth elaborada
por Souza (1995), que tece ainda comentários sobre o próprio Hischmann.
sobre as necessidades, seja lá como forem apontadas. Infelizmente, embora o próprio Adam
Smith já desconfiasse de uma formulação mais simplista em torno deste estabelecimento,
conforme visto, a colaboração por parte de outras ciências a respeito deste conceito parece ter
se resumido à exigência de especialistas em cada área para cuidar dos objetivos parciais, que
comporiam as necessidades, em uma versão cada vez mais ampliada.
De outra parte, existirão aqueles autores que põem em questão a própria possibilidade
de uso do conceito de desenvolvimento que não seja a serviço da difusão de valores da cultura
ocidental (ILICH, 1971 & TOWSEND, 1970, apud COATES, Jonhston & KNOX, 1977,
p.18). Serge Latouche (1996), por exemplo, argumenta que:
O desenvolvimento é aspiração ao modelo de consumo ocidental, ao poder da magia
dos brancos, ao status relacionado a esse modo de vida. O meio privilegiado de
realizar esta aspiração é evidentemente, a técnica. Aspirar ao desenvolvimento quer
dizer comungar com fé na ciência e reverenciar a técnica, mas também reivindicar
por conta própria, a ocidentalização, visando ser mais ocidentalizado para se
ocidentalizar ainda mais (p.29).
O que, no entanto, parece ter sido considerado de maneira muito apressada em toda
esta discussão, é a relação que a Geografia já estabelecia com este tema. Podemos afirmar que
esta já possuía considerável acúmulo nesta seara, principalmente dentro da tradição
ambientalista. Milton Santos (1978 a) aponta em boa hora que o determinismo geográfico
falava muito mais de necessidades geográficas que propriamente de determinações. Citando
o historiador H. Berr, Santos faz coro aos que propõem o uso do termo necessitarismo
42
para
designar a corrente de Ratzel:
Uma determinação, sociologicamente entendida, deve ser distinguida claramente de
uma necessidade. Determinismo é a causalidade natural. Entre as causas que na
natureza, determinam os fenômenos, algumas são contingentes. Entre estas causas
contingentes, algumas são geográficas. O problema reside em saber se existem
necessidades geográficas e de se os fenômenos naturais podem agir como causas
necessárias sobre uma humanidade ‘puramente receptiva’ (op. cit..,p.26).
É obvio que não cabe, neste momento, requentarmos velhas idéias ou querelas entre as
correntes do pensamento geográfico. Mais produtivo parece ser assinalarmos que, dentro da
Geografia, desde há muito, já havia considerável manancial a ser aplicado na crítica sobre
modelos de desenvolvimento baseados em conceitos como o de necessidades (ditas) básicas.
Uma crítica que poderia bem se embasar na consideração de que estas necessidades são
produzidas tendo como referência a um complexo arco de influências. Inicialmente, para que
42
Itálico do próprio Santos, 1978 a.
se aquilate esta possibilidade, veja-se, o que um não-geógrafo como Mendonça (2000), fala ao
criticar com veemência o conceito de necessidade básica como ponto de partida na definição
do conceito de pobreza:
[...] estando o consumo nas sociedades capitalistas referenciado a estruturas de
valores e símbolos, as ‘necessidades’ consistem em construções sociais e históricas,
portanto, determinadas no plano da cultura e subjetividade, sendo impossível
determinar quais dentre elas poderiam ser consideradas ‘vitais’ ou ‘verdadeiras’. Até
mesmo as necessidades alimentares seriam condicionadas por valores e padrões
culturais que orientariam a seleção dos alimentos a serem consumidos pelos
indivíduos. Assim, equivocam-se os autores quando pretendem ajustar a realidade ao
plano da objetividade e da racionalidade da ação dos indivíduos no mercado,
buscando adequá-las a pressupostos teóricos e modelos de análise frontalmente
dissociados da realidade (p.206).
Mendonça, acertadamente, rechaça a tentativa de engessar o conceito por meio de
qualquer linha demarcatória que pudesse repartir os pobres dos não-pobres através do acesso a
um mínimo de bens ou serviços e desconsiderando outras categorias bem mais importantes,
como é o caso do trabalho (falando especificamente de seu estudo). Compare-se agora estes
apontamentos à analise que Max Sorre, já em 1952, faz da aparente erosão que o conceito de
gênero de
vida sofria diante do processo de modernização das técnicas.
Em um primeiro momento, Sorre parece sucumbir à idéia de uma referência apenas
sobre o social:
Muitos estudiosos pensaram que a noção de gênero de vida, tão fecunda em se
tratando de sociedades primitivas, perdia, nas mãos dos geógrafos, toda a eficácia
quando se passava no mundo moderno. Ela apresentava interesse mais para o
sociólogo. Dentre os elementos que a compõem, há um que ganha dos outros: o
nível de vida característico das classes sociais. E ele mais ou menos apaga os outros.
A transferência do plano geográfico para o plano social torna-se legítima. [...]
(
SORRE, 1952, p.122).
Adiante, porém, o mesmo Sorre afirma que o conceito não estava completamente
perdido, pois se:
[...] Gêneros de vida dissolvem-se sob os nossos olhos. Outros se organizam,
conquistam espaço e impõem-se aos homens. Às vezes hesitamos em reconhecê-los,
ou porque, situados no meio do rio, distinguimos mal as suas margens, ou porque a
aceleração das mudanças de todas as formas de vida [...] constrange a consolidação
de complexos de hábitos, de sentimentos e de idéias, ou porque um véu de
uniformidade mascara as diferenças. Estas subsistem, tanto num plano como noutro,
e a tarefa do geógrafo consiste em desvendá-las (op. cit, p.122).
Desta maneira, enquanto Adam Smith ou Mendonça sugerem-nos, corretamente, que o
conceito de necessidade precisa estar socialmente referido, Sorre nos convida a refletir sobre
o fato de que as necessidades não se acham referidas apenas a um tempo, mas igualmente a
um lugar. Tais considerações sobre o conceito de necessidade, portanto, dão uma idéia das
possibilidades que estavam abertas à Geografia para a colaboração a este debate
43
.
Da mesma maneira, a abordagem ecológica da fome proposta por Josué de Castro viu
reduzidas as possibilidades de incidência sobre o debate dos indicadores sociais, partindo de
conceitos como o de fome endêmica, oculta por regimes alimentares que cobrem apenas
parcialmente as necessidades de nutrientes de diferentes grupos populacionais.
Por outro lado, talvez seja necessário anotar que esta oportunidade parece ter sido,
pelo menos num primeiro momento, parcialmente perdida. Um dos motivos aparenta ser o
fato de que os autores mais ligados ao movimento de renovação crítica da Geografia nos idos
de 1970, através de seu contato com o marxismo, passam a impressão de nunca ter ficado
inteiramente à vontade com qualquer perspectiva de apreensão do espaço que não pusesse
suas expectativas quase que inteiramente na esfera da produção. Lacoste (1965), por exemplo,
ao fazer uma crítica ao conceito de subdesenvolvimento, dedica um capítulo inteiro às
necessidades individuais e coletivas, sem apontar o viés colonialista que o próprio conceito de
necessidade possui. Não deixa de ser ilustrativa a descrição de Lacoste (op. cit.)
44
sobre o
modo como os países socialistas haviam lidado com a questão da emergência de necessidades
novas: “estas encontram uma resposta mais favorável em razão da potência das estruturas
coletivas e da operacionalização de uma verdadeira estratégia das necessidades: evitar que
apareçam necessidades que não é possível satisfazê-las (sic) para o momento” (ibid., p.102).
Provavelmente, teria sido bem mais interessante o autor perguntar em que medida seria mais
proveitoso cada país favorecer o aparecimento de seu próprio modelo de necessidades, ao
invés de suprimir aquelas advindas de qualquer “efeito demonstração”, (ibid., p.101).
Mais produtivo, talvez, seja levar a sério o apelo que o mesmo autor faz, bem
posteriormente, para a observação da complexidade dos fenômenos. Neste sentido, no estudo
do subdesenvolvimento, algo aparentemente simples como a mudança de escala pode
reverberar fortemente em mudanças no fenômeno estudado e, por conseguinte, nas
necessidades a serem tomadas como base para tal estudo: “O que parece assegurado é que,
para tudo aquilo que tem uma significância espacial, a natureza das observações que podem
ser efetuadas, a problemática que pode ser estabelecida, os raciocínios que podem ser
43
Sobre o auxílio que o conceito de gênero de vida pode prestar ao aprofundamento do conceito de necessidades
pode ser producente visitar WETTSTEIN, (1992), p. 60-76. Neste, o autor, além de Sorre, distingue outros oito
conceitos diferentes.
44
Obs.: A primeira edição de Geografia do subdesenvolvimento é de 1965, mas o Lacoste o revisou diversas
vezes. Esta edição é de 1990 e contém alterações feitas em 1976.
construídos” se dão em função do tamanho dos espaços considerados e dos critérios de sua
seleção (LACOSTE, 1985, p.82). Esta advertência é verdadeira. E o argumento de Mendonça,
explicitado anteriormente, fica assim bastante reforçado pelos apontamentos de Lacoste.
Da mesma forma que Lacoste, Harvey (1973)
parece revelar certo desconforto com a
questão das necessidades quando põe em tela a justiça social. Inicialmente, em suas
formulações liberais, este autor argumenta sobre os princípios que devem orientar um modelo
de “justiça distributiva territorial” e põe a necessidade no comando destes princípios. Nesta
busca, Harvey chega, surpreendentemente, a propor tal sistema, partindo de necessidades
biológicas por assim dizer, e descendo a aspectos mais refinados da existência humana. “Se a
necessidade é um critério primário de fixar a justiça social de uma distribuição de recursos ao
longo de uma série de territórios, então somos primeiro obrigados a estabelecer uma definição
de necessidade socialmente justa e um sistema de medida para ela” (p. 89). Já em suas
formulações socialistas, porém, ao discorrer sobre o conceito de excedente, Harvey propõe
que a necessidade somente pode ser definida em termos de uma situação particular (técnica,
social, cultural e institucional). Ou seja: mesmo uma coisa elementar como a fome não pode
ser medida independentemente de alguma situação social. Marx (1859) sugere que:
a fome é a fome. Mas a fome que é satisfeita com alimentos cozidos e talheres é uma
outra fome, diferente daquela que se satisfaz com alimentos crus, com ajuda das
mãos, das unhas e dentes. O modo de produção produz ao mesmo tempo,
objetivamente e subjetivamente, não somente o objeto consumido, mas também o
modo de consumo (apud HARVEY, 1973, p.186)
45
.
Se este é um apontamento importante, ao pôr em xeque raciocínios mais simplistas
46
,
por outro lado não parece ter frutificado numa posição que pudesse levar em consideração
algo mais que apenas a produção em si. Infelizmente, apesar das observações de Harvey, a
forma como a Geografia incorporou o marxismo parece ter deixado pouca (ou nenhuma)
margem a discussões sobre a formação das necessidades humanas que não decorresse do
estágio em que se encontrava seu modo de produção, empobrecendo bastante o conceito e sua
relação com o espaço. Mais recentemente, este desvio de curso exigiu uma revisão (que até
hoje vem sendo processada
47
).
45
Itálicos inseridos por Harvey (1973).
46
Como foi o caso do próprio Lacoste: “ é possível causar admiração ao se fazer referência ao caráter subjetivo
da necessidade quando a fome devasta amplas regiões do Terceiro Mundo [...] ” (LACOSTE, 1990, p.21)
47
Se tal revisão é possível ou não, dentro do pensamento marxista, é uma outra discussão. Souza, (1995), por
exemplo, cita o filósofo Cornelius Castoriadis para fundamentar o pensamento de que o desenvolvimento só
pode ser reconceituado a partir: tanto do rompimento de qualquer visão teleológica (a esperança em uma
modernização ainda não ocorrida no Terceiro Mundo) contida nas teorias burguesas; quanto da renúncia à
Moraes, em1988, já apontava que a negligência do imaginário, por exemplo, havia que
ser introduzida na análise da produção do espaço:
como explicar, no limite, a diversidade arquitetônica em meio às mesmas funções
materiais ou a variedade de estilos nas construções de um mesmo período técnico,
ou o detalhe sem função aparente? [...] No limite, as concepções do belo, da
harmonia, as sensibilidades, as auto-imagens e demais motivações, passam a
interessar a nossa Geografia. Todo domínio das utopias torna-se revelador das
formas criadas (
MORAES, 1988,.p.25).
Fica, por fim, a impressão reforçada de que os autores comprometidos com o
movimento de renovação crítica da Geografia, de modo geral – mas especificamente pela
adoção do método marxista – tinham dificuldade em abordar o tema das necessidades. Isto se
mostrava mais claro num abandono à perspectiva da observação desta questão pelo ângulo do
gênero de vida, sem a consideração do potencial que este conceito guardava no auxílio à
construção de um ideal mais democrático de desenvolvimento. É o próprio Harvey (1973)
quem admite que a abordagem de temas como a justiça ou a distribuição são postos de lado
pelos geógrafos por envolver “desagradáveis juízos de valor” (p.81).
Esta é realmente uma lembrança bastante importante para fazermos e talvez possa
explicar uma recorrência maior da questão das necessidades dentro de autores de perfil mais
afinado com o liberalismo. Isto, possivelmente, dá-se pelo fato de que esta corrente de
pensamento, embora tenha se notabilizado por procurar resolver questões ligadas à justiça
social através de critérios como a eficácia
48
, teve também representantes que não se omitiram
às discussões em torno da ética, ou da moralidade de tais distribuições e, portanto, da
relatividade do conceito de justiça.
É bastante interessante notar como Coates, Johnston e Knox (1977), ao tentarem
elaborar uma geografia da desigualdade, apontam quatro formas de abordagem da
necessidade que já denotam uma preocupação com esta ressalva
49
. Desta preocupação vão
parcela essencial do pensamento marxista comprometida “com a idéia de modernidade, herdada do Iluminismo e
exacerbada pela dinâmica do capitalismo histórico (produtivismo, dominação da natureza)” p.104.
48
Como é o caso da utilização de ótimos de Paretto para estabelecer os critérios de julgamento sobre um
determinado modelo de distribuição. Sobre isto ver o próprio Harvey (1973), em especial, o capítulo II.
49
“A mais estreita propõe que a definição deve ser dada por experts ou administradores em uma dada situação,
tais como no estabelecimento de padrões de habitação ou de ‘linhas de pobreza’. Necessidade é definida deste
modo como necessidade normativa, necessidade absoluta ou necessidade básica. A segunda abordagem compara
a atual situação em uma dada área ou comunidade com outras, identificando a necessidade em termos de espaço
entre a melhor área e o restante. [...] a terceira forma de abordagem define necessidade em termos de conduta de
consumo, utilizando o ‘comportamento do mercado’ como medida que exprime esta necessidade. Por fim
necessidade pode ser comparada a desejo ou demanda latente. Nesta abordagem, a necessidade é interpretada
como sensação de privação relativa a qual nasce quando algum bem, serviço ou amenidade é procurada por um
grupo particular ou indivíduo, mas não está disponível, muito embora esteja disponível a outros” (RUNCIMAN,
1966, apud COATES, B.E.; JOHNSTON, R.J. & KNOX, P.L, 1977, p.18). Tradução do Autor.
decorrer importantes aproximações ao tema das desigualdades espaciais, como é o caso de sua
análise sob várias escalas com comparações entre países, ou dentro de um mesmo país e
também à nível intra-urbano. Ainda que os autores reconheçam a dificuldade da obtenção de
dados, o que acaba obrigando-os à utilização das mesmas variáveis para estas diferentes
escalas, não se pode deixar de observar o mérito do reconhecimento do conceito de
necessidade. Esta atenção, não só às condições de bem-estar, mas também à sua escala de
análise talvez explique porque bem posteriormente Tuan é considerado por David M. Smith
(2000)
como o autor que melhores avanços obteve na inserção de um viés à moral na
Geografia, ao reconhecer que “o significado da boa vida varia grandemente entre as culturas,
assim como entre indivíduos nas complexas sociedades modernas”
50
(op cit., p.4).
Por outro lado, e finalizando esta reflexão, o (re)aproveitamento de perspectivas
trazidas pela Geografia à questão das necessidades para uma nova concepção de
desenvolvimento parece envolver a observância de se evitar a perspectiva excessivamente
calcada em uma postura que relativize tanto este conceito que acabe por inviabilizar um
discurso universalizante. Tal fragmentação pode resultar numa postura que favorece à
renúncia da possibilidade da construção de uma meta-teoria da justiça social e, portanto, de
desenvolvimento. Esta parece ser a perspectiva de David Smith (2000) que se baseia cada vez
mais na constante afirmação da “significância da diferença”. Harvey (2000), no entanto, em
uma revisão de suas posturas anteriores, parece sempre reafirmar a crítica aos discursos
particularizantes, em busca de uma postura epistemológica que possa estabelecer quando,
como e onde as diferenças sejam significantes:
a inserção e o poder organizado que a comunidade oferece como base para a ação
política são cruciais, embora sua coerência requeira sistemas de autoridade, um
consenso e regras de pertinência democraticamente estruturados. Assim embora a
comunidade ‘em si’ tenha sentido como parte de uma política mais ampla, a
comunidade ‘para si’ quase invariavelmente degenera em exclusões e fragmentações
regressivas [...] (op. cit., p.315).
2.4 Insuficiências na consideração das estatísticas ligadas aos Indicadores Sociais
Tentaremos abordar, no capítulo seguinte, como o componente espacial tem
dificuldades em se inserir dentro do Movimento dos Indicadores Sociais, uma vez que este
movimento ocorre já no ocaso do regime de acumulação fordista. O resultado mais imediato
50
Tradução do Autor.
desta atmosfera mais adversa, porém, já pode ser traduzido aqui numa espécie de “via de mão
única”, em que as possíveis contribuições que a Geografia poderia prestar encontravam
reduzida permeabilidade entre os estudos sobre a construção, o conteúdo ou o comportamento
dos indicadores sociais. A adoção deste instrumental com uma ou outra exceção parece ter
ocorrido “em bloco”, dentro da disciplina, ou seja, adotado também junto com os
procedimentos para sua captação. Por conseguinte, a sociedade, de maneira geral, tem
dificuldade em pensar na inserção da Geografia no debate sobre os indicadores sociais para
além de seu mapeamento.
Uma das insuficiências para o estabelecimento de uma relação mais proveitosa foi a
forma da adoção dos procedimentos estatísticos aplicados aos indicadores sociais. Os fatos
numéricos, as estatísticas ligadas aos indicadores acabaram por adquirir uma aura “esotérica”
(assim admitida pelo próprio IBGE
51
) que os confundiu com os fatos em si a serem estudados.
Isto acabou nublando o debate e deslocando a discussão do modo como se dá a construção do
social através da Estatística (a ciência) para as virtudes ou os defeitos da adoção das
estatísticas (os procedimentos)
52
no estudo dos indicadores sociais.
Falando sobre esta relação, Geografia/indicadores, não devemos esquecer que o
incremento do uso dos indicadores sociais deve ser inserido dentro de uma perspectiva bem
mais ampla, que é a da criação de um aparelho burocrático dentro dos EUA destinado à coleta
e ao processamento da informação estatística. A estatística e os órgãos encarregados do
processamento de dados fortalecem-se, na década de 1930, nos EUA, mas é a partir de
1950/60 que os frutos desse investimento vão estar plenamente maduros. A Sociologia parece
ser aliada de primeira hora nesta construção, como ficou demonstrado no Capítulo 1. Este
movimento de aproximação, só veio reforçar uma intimidade que capacitou outras disciplinas
para uma adoção bastante consciente da estatística, acompanhada desde sempre por uma
discussão apurada de seu uso. A Geografia, portanto, adotará uma quantidade considerável de
técnicas que vinham coladas ao uso dos indicadores sociais, já com considerável avanço na
década de 1960, passando ao largo de questões capitais à utilização destes mesmos
indicadores ou mesmo de sua relação com estas técnicas.
Isto, provavelmente, decorreu do próprio modelo de adoção da Estatística pela
Geografia. Uma adoção que, inclusive, aguarda análises mais detidas. Santos (1978 a) cita
Crisholm (1975) ao apontar que as raízes da quantificação dentro da ciência geográfica não
51
Sobre a consideração da linguagem estatística caracterizada como “esotérica”, ver as páginas 23 e 24 de
IBGE, (1989).
52
Sobre a confusão que comumente se faz entre a ciência Estatística e os dados e procedimentos estatísticos, ver
BESSON, (1992).
estão fincadas na estatísticas modernas, mas na “arte e na ciência da Cartografia”. Assim, o
ingresso da quantificação acontece tentando compensar este fato, ou seja, tendo em vista uma
busca por descrições mais exatas e não de explicações que se inserem dentro de um “quadro
probabilístico”. Por conseguinte, a forma de adoção dos indicadores sociais se insere dentro
de um movimento bem amplo que passa, por exemplo, pelo estabelecimento daquilo que
Desrosiéres (1993) denomina como sendo “espaços de equivalências”, as arenas onde se dão
os acordos em torno da objetivação daquilo que será retratado. Isto converte a construção de
um objeto de estudo e a definição dos atributos que lhe serão medidos numa relação complexa
entre a realidade e as equivalências que lhes são atribuídas, portanto, também um processo
social. Uma constante tensão que, no entender deste autor (op. cit.), faz com que a
consideração da informação sobre cada objeto passe por sua consideração como objeto que é,
ao mesmo tempo, real e construído, concreto e fruto de uma convenção.
Seria importante, portanto, pormos em pauta algumas das etapas do processo de
construção estatística dos indicadores. Pode ser útil lembrar aqui, por exemplo, que o termo
grego traduzido por observação significa “vigiar”, o que se faz atentamente e com vistas a
certos fins. Observar não é ver tudo, evidentemente, mas já imbuir o ato de ver de alguma
seletividade, tendo em vista um determinado objetivo. Por outra parte, Bourdieu (1987) nos
lembra que a percepção, a etapa seguinte no processo de construção estatística, é
essencialmente diacrítica, isto é, ela distingue a forma do fundo, “o que é importante do que
não é, o que é central do que é secundário” (p. 99). Esta percepção, porém nunca é
propriamente individual, pois o objeto percebido “é o resultado de determinações paralelas e
concomitantes da estrutura nua e da ideologia. Esta, contida no objeto, é dada pelo funcional,
simbólico.” (SANTOS, 1978 a, p. 69). Disto decorre, finalmente, que tanto a observação
quanto a percepção devem ser encaradas como atos que se inserem dentro de determinada
situação, e não isolada dela. Nunca é demais lembrar, portanto, que os conceitos
operacionalizados pelos indicadores sociais (tanto quanto a “informação estatística” de
Desrosiéres, 1993) também não “aparecem”, mas são fruto de uma negociação que pode,
inclusive, ser perturbada.
Este não é um caminho novo, já que a relação entre a convenção e a realidade são
vistos, já de longa data, como um dos pilares do estabelecimento de relações de poder. Um
exemplo que o próprio Desrosiéres (1993) cita são os debates que se processam hoje em torno
de conceitos construídos para balizar políticas econômicas que ilustram bem a conformação
de espaços de equivalências. Para este autor, durante aproximadamente trinta anos, existiu um
espaço cognitivo de negociação e cálculo que era dotado de grande legitimidade. Uma
legitimidade que advinha do grande prestígio da ciência em sua combinação com as ações do
Estado. No interior destes dois agentes, até mais ou menos os finais da década de 1970,
processavam-se a maior parte dos debates que precediam ou acompanhavam as decisões que
envolviam a política econômica. Ocorre, porém, que todo este espaço de coerência relativa –
formado por instituições, “objetos sociais” ou termos que se serviam ao debate entrou em
crise já no início dos anos 1980. O Estado passaria crescentemente a enfrentar problemas para
decompor a realidade e planejar suas ações mediante o uso da Econometria. Os debates em
torno da medida de alguns “objetos sociais” e de sua significação vêm se tornando cada vez
mais árduos. População economicamente ativa, desemprego, pobreza, economia informal, etc.
são alguns destes objetos que vêm sendo alvo de propostas bastante diferenciadas de
conceituação, o que dificulta sobremaneira a conformação de um espaço de equivalências.
Pierre Bourdieu (1994) parece tocar nesta questão quando propõe a abordagem dos
modos de percepção do mundo através do conceito de “campos de poder”. Para este autor, o
campo de poder pode ser estabelecido como um espaço de relações de força entre os agentes
providos de diferentes tipos de capital (econômico, político, cultural, social ou simbólico),
visando dominar o campo correspondente cujas lutas se intensificam sempre que o valor
relativo dos diferentes tipos de capital é posto em discussão.
Poderiam, então, os indicadores ser encarados deste modo? Não apenas como um
capital técnico, uma vez que informam sobre a realidade, mas também (e ao mesmo tempo)
como um capital simbólico, já que procuram estabelecer os termos de apreensão do mundo?
Se a resposta for afirmativa, então decorre que faz pouco sentido tecer apelos ao caráter
ilusório dos números, se não se está armado de uma proposta alternativa de utilização deste
instrumento. Deste raciocínio, deriva a necessidade de destrinchar amiúde algumas das etapas
que possam compor o processo de estudo estatístico dos indicadores sociais para que,
posteriormente, estes possam ser analisados à luz da Geografia.
Esta repartição e exame mais detido podem, tanto se aproveitar de um momento
bastante rico no qual estão se dando debates em torno dos conceitos advindos da economia,
como bem demonstrou Desrosiéres (1993), para o estabelecimento de um novo espaço de
equivalências, quanto rever conceitos como o de gênero de vida para repercuti-lo no
estabelecimento das necessidades básicas, por exemplo. Por conseguinte, estaríamos
incidindo sobre uma etapa que antecede ao tratamento estatístico no sentido estrito.
Por outro lado, o debate bem pode transbordar para pôr em relevância os processos
que circunstanciam o tratamento estatístico dos dados. Soa como bastante apropriada a
advertência de Besson (1992) sobre a associação pura e simples das estatísticas à fotografia:
se as estatísticas fossem apenas um reflexo (concepção fotográfica), disporiam de
um critério de verdade (a exatidão). Não é este o caso: elas não provém da
denotação mas da conotação, pois é o contexto, o contorno, que determina seu
sentido. De fato, o estatístico não escolhe seus índices: A realidade lhe aparece então
pré-modelada pelas categorias já existentes na representação ou na prática
individual, social, administrativa (p.52).
Bourdieu (1994) demonstra bem isto, ao pôr em pauta o processo de classificação.
Sendo uma operação lógica que hierarquiza as coisas do mundo sensível em grupos e gêneros
e cuja delimitação apresenta caráter arbitrário, a classificação estabelece uma conexão entre as
coisas agrupadas numa dada classe. Este agrupamento, por sua vez, tem muito mais sentido se
os seus fundamentos são buscados fora do sistema classificatório. Deste modo, Bourdieu (op.
cit.) propõe que, em sociedades mais complexas, o Estado pode impor e inculcar, de modo
universal, estruturas cognitivas e de avaliação que sejam idênticas ou semelhantes
53
. Decorre
daí a importância dada, nesta tese, ao trabalho que o Estado e agências, que estão em sua
órbita, exercem como os principais agentes no processo de estabelecimento de tais estruturas
cognitivas. Um caminho, portanto, no estudo geográfico dos indicadores sociais pode ser o de
pôr em evidência o próprio processo de classificação e forçar Estado e agências privadas a
reconhecer formas de classificação que não venham exatamente de suas esferas.
Como já dissemos anteriormente, a construção do objeto pode se tornar ela própria em
objeto de estudo e, neste caso, um bom indicador social talvez possa ser as diferentes
maneiras com que os grupamentos estudados podem também incidir nas discussões sobre o
estabelecimento das classificações que lhes serão aplicadas e através das quais serão julgados.
53
Bourdieu (1994) utiliza-se do pensamento de Durkheim (s.d.), que estudou as formas de classificação dos
povos primitivos e as propõem como um produto das estruturas nas quais estes grupos estão inseridos e que são
por eles incorporadas.
CAPÍTULO 3
A Crise dos Indicadores Sociais
3.1 Teoria Social e Indicadores Sociais: uma relação insuficiente para compor a crise e
as possibilidades de superação
Já anotamos, anteriormente, que as pesquisas sobre indicadores sociais sofreram certo
arrefecimento, mais ou menos ao longo da década de 1980 para, posteriormente, experimentar
uma renovação na forma de um processo de constante crescimento do interesse pelas
possibilidades que estas pesquisas abriam. Tentaremos passar em exame esta trajetória de
declínio e renascimento, buscando as origens desta crise na dificuldade destes estudos em se
relacionar com a variável espaço.
Esta interpretação, obviamente, não é a única possível. A crise pela qual passaram os
indicadores sociais e seu movimento está longe de ser algo advindo exclusivamente da
necessidade de adequação de sua abordagem espacial. Por outro lado, com certeza, tal crise
parece ter suas raízes fincadas em uma busca pela renovação do espaço racional, na qual os
indicadores possam continuar exercendo não só seu papel norteador na pauta das discussões,
mas também como instrumentos que ponham em relevo as novas virtudes que cada porção do
espaço pode apresentar.
Para concretizar esta proposta, poderemos iniciar pela análise destas insuficiências,
ainda que a condução deste estudo se dê de maneira diversa daquela empreendida no capítulo
1. Neste último, predominou uma visão externalista aos indicadores. Ou seja, até aqui foi
dado um grande privilégio ao ambiente político, econômico e intelectual que circunstanciou o
nascimento dos indicadores sociais. O objetivo desta inserção foi apresentar os indicadores
sociais também como uma expressão deste cenário. Agora, mesmo sem abandonar
completamente este espírito, a idéia é partir para uma introspecção dos limites que os
indicadores sociais foram paulatinamente revelando após a década de 1970. Vasculhando as
críticas sobre os modelos construídos e observando o debate sobre os limites dos indicadores
sociais, são examinadas as razões de sua crescente dificuldade de aplicação às situações
concretas. Em outras palavras, a tarefa aqui é perguntar ao próprio instrumental o porquê de
sua momentânea debilidade ou, ainda, o porquê da redução contínua de seu alcance que se
revela no crescente desejo de pesquisadores em reformular as bases metodológicas dos
indicadores sociais. Assim, para que esta proposta seja concretizada, contudo, algumas
aproximações ao tema, anteriormente feitas, têm de ser readequadas. O ajuste mais
importante, se permanece o objetivo de se aproximar de uma perspectiva mais internalista,
deve ser feito em relação à forma como indicadores sociais e teoria social interagem. Já
dissemos, no capítulo 1, que os indicadores se distinguem de qualquer experiência anterior
por seu vínculo à determinada faixa de interesses que o próprio capitalismo gerou. Daí, por
que os conceitos de espaço racional e de objeto técnico foram aqueles escolhidos para
referenciar nossa análise sobre o encontro entre as representações do social e a Geografia.
Esta forma de aproximação, contudo, pode se ressentir de uma dificuldade em se
abordar o tema que não seja por vias naturalmente adequadas à conformação deste espaço
racional. Em outras palavras, estamos afirmando que mesmo a constituição deste espaço
racional não prescinde de outros meios à construção dos indicadores, incluindo aqueles que
poderiam ser considerados como advindos de âmbitos não-racionais. O detalhe importante é
que a técnica instrumentaliza estas outras fontes aos seus fins enquanto sofre também suas
influências. Deste modo, o primeiro reparo que terá de ser feito será uma recolocação da
relação que os indicadores sociais mantêm com a teoria social. A crise dos indicadores sociais
não é, por este entendimento, um problema meramente teórico porque, ainda que os
indicadores sejam vistos aqui como objetos técnicos auxiliares à conformação de um espaço
racional, suas fontes não são exclusivamente racionais, muito embora esta seja a impressão
que prevaleça.
O IBGE (1975) propunha que: “Não há sentido no indicador social sem a construção
de uma teoria social” (p.10).
Os indicadores sociais são, por este prisma e em última instância, a expressão de
conceitos. Um componente central para a geração de informações sobre sistemas sociais,
como componentes de um modelo que fundamenta uma teoria social. Como bem assinala
Land (1971), a teoria social se constitui a partir de modelos que são concepções de processos
sociais e que podem ser formulados verbalmente, logicamente, matematicamente ou por
simulações (op. cit., apud IBGE, 1975).
Esta é uma afirmação que beira um truísmo. Dela decorre, porém, o raciocínio de que
um progresso dentro do âmbito dos indicadores sociais apenas se dá quando antes progride a
teoria social que o alimenta. Daí, por que Carley (1985)
passe boa parte de seu livro
lamentando o fato de que ainda não se tem uma “teoria social” suficientemente desenvolvida
para aplicação aos sistemas sociais. Isto, na opinião do autor, por sua vez, facilitaria
enormemente a construção de indicadores sociais. Falando desta mesma deficiência, o IBGE,
porém, já nos fornece algumas pistas que informam que talvez o problema não resida
necessariamente para onde aponta Carley. Argumenta este Instituto que, ainda que se constate
esta deficiência, “alguns modelos têm sido elaborados para subsistemas sociais e para
determinados princípios estruturais de sistemas sociais” (IBGE, 1975, p. 11)
54
.
Ora, outro apontamento que evidencia o equívoco de uma posição radical como a de
Carley (1985) deriva das dificuldades que se criam à pesquisa sobre os indicadores sociais,
advindas da observação destes indicadores meramente como a expressão de uma teoria social.
Se o objetivo, por exemplo, é compor um quadro das modificações teóricas pelas quais
passaram os indicadores sociais em tempos mais recentes, não é possível estabelecer uma
sucessão clara e coerente de teorias que fomentaram a construção dos conceitos que têm
orientado os estudos de indicadores. Tais conceitos não se mostram como redutos evidentes
desta ou daquela teoria. Mesmo conjuntos de indicadores, sistemas que originam índices, não
se mostram mais explícitos quanto ao referencial teórico que recorrem para a construção de
sua proposta. Conceitos como saúde, educação, segurança, em trabalhos dedicados a
investigar os indicadores sociais, não explicitam claramente a teoria social na qual se
referenciam, seja ela advinda de Marx, Durkheim ou Weber, para referenciar os autores
citados em texto do IBGE (op. cit.).
Desta forma, fica bastante difícil estabelecer uma ligação entre o uso de indicadores
sociais e a adoção, ou abandono, desta ou daquela teoria social. Carley (op. cit.) tenta
enfrentar esta situação a partir da perspectiva de constituição de um horizonte mais modesto.
Este autor cita Guttman (1979) para referendar que “uma teoria é uma hipótese de
correspondência entre um sistema definidor de um universo de observações e um aspecto da
estrutura empírica dessas observações, juntamente com uma fundamentação lógica de tal
hipótese”. A partir desta conceituação, Carley (1985) circunscreve a relação teoria
social/indicador como um processo de duas etapas:
Em primeiro lugar, propõe-se a hipótese (uma proposição empiricamente
verificável) de que uma variável (o indicador) tem uma relação recorrente definida
com uma ou mais dentre outras variáveis (o indicado), ou seja, de que a relação
postulada é válida. Quando isso ocorre, então, em segundo lugar, os indicadores
podem ser usados em testes adicionais da validade da teoria social postulada (op.
cit.,p. 79).
Como saldo destas considerações, permanece a impressão de que as atenções tanto de
Carley (1985) e Guttman (1979) ficam quase exclusivamente voltadas à procura da relação
mais adequada entre indicador e indicado. Ou ainda, fica patente a preocupação em buscar as
54
É mesmo interessante notar que este texto do IBGE, em nota de pé de página, coloca: “Parece-me que as obras
de Durkheim, Weber ou Marx oferecem uma teoria geral sobre sistemas sociais”.(op.cit, p.11)
melhores formas de verificação e, por conseguinte, aceitação ou rejeição do indicador que
substitui o conceito. Toda a discussão fica por demais circunscrita a esta relação, pondo à
margem quaisquer outros caminhos de se chegar ao indicador que não aquele que o coloque
como a expressão última de uma teoria qualquer. Não por acaso tanto Carley (1985) quanto
outros autores que se ocupam das flutuações no uso dos indicadores sociais procuram
enfatizar a precariedade da teoria social que os orienta, buscando resolver esta deficiência
sempre através da adequação entre conceito e indicador, mas nunca pela via do exame da
construção destes mesmos conceitos. Acreditamos (e talvez o melhor vocábulo fosse
“desconfiamos”) em que isto teima em ocorrer, em função da inadequação dos termos do
problema, na medida em que se propõem os indicadores sociais apenas como expressão final
de um processo que se inicia com uma teoria social.
Resta então, a conclusão, até certo ponto contraditória, de que antes de enveredarmos
por uma crítica às insuficiências teóricas dos indicadores sociais, talvez seja melhor compor
uma forma de aproximação a estes problemas que signifique um contraponto a sua abordagem
exclusivamente pelo viés de sua relação exclusiva com qualquer teoria social. Este novo
formato deve possuir uma conotação mais ampla que aquela abarcada pela relação
indicador/teoria, além de estar sensível às variações que a base avaliatória sofre por conta de
influências advindas de outras forças que não apenas aquelas provindas das batalhas entre
diferentes teorias. Os indicadores sociais, como procuramos demonstrar até aqui, têm
funcionado como o desaguadouro de uma série de embates que vão bem adiante do front
exclusivamente acadêmico, por assim dizermos, da questão.
Neste sentido, um bom exemplo do caminho pelo qual pretendemos enveredar pode
ser encontrado na obra de Kuhn (1962), quando este esclarece seu conceito de paradigma:
De um lado (este conceito) indica toda a constelação de crenças, valores, técnicas,
etc..., partilhadas pelos membros de uma comunidade determinada. De outro, denota
um tipo de elemento dessa constelação: as soluções concretas de quebra-cabeças que
empregadas como modelos ou exemplos, podem substituir regras explícitas como
base para a solução dos restantes quebra-cabeças da ciência normal (p. 218).
Deste modo, ao significado mais relacionado com o sentido estrito da ciência Kuhn
(op. cit.) opõe um outro que denomina de “sociológico”, dentro do qual o mesmo não receia
incluir “crenças e valores compartilhados” pelos cientistas. Cidade (2001), fundamentando
um pensamento similar, utiliza-se desta mesma passagem de Kuhn, somando a ela o
pensamento de Kneller (1980), para quem, ao longo de seu desenvolvimento, a ciência tem
sido influenciada não só pelos avanços acontecidos dentro de suas cercanias, mas também
pela visão de mundo e ideologia, processos econômicos, culturais e tecnológicos nos quais
estão imersos os cientistas.
3.2 Buscando um embasamento à incidência da Geografia no debate sobre os
Indicadores Sociais
Como saldo do exposto até este ponto, fica a impressão de que a incorporação da
Geografia nos debates sobre os indicadores sociais terá de ser feita no sentido de levar este
conceito para além de sua observação como mera operacionalização de uma teoria social. É
bem verdade que a crise dos indicadores sociais pode ser encarada como uma de suas
possibilidades de captação e constituição de um espaço racional. E é igualmente verdade que
este processo se dá com uma concomitante desqualificação de qualquer discurso que não sirva
a esta instrumentalização. Por outro lado, a constituição de tal espaço não advém
exclusivamente da técnica e de suas “geometrias”. Como tentaremos demonstrar, no decorrer
deste trabalho, a busca que tem se dado pela inserção da Geografia neste debate é também a
busca por um formato e um enfoque dos indicadores sociais que abarque a relação entre
diferentes representações.
Ao nosso entendimento, Harvey (1989) toca nesta mesma questão, ao utilizar-se de
autores como Lefebvre (1974) e Bourdieu (1977)
55
. Para Harvey, há um sentido específico
que o espaço assume conforme ocorre a variação de cada formação social ao longo do tempo.
Seguindo, inicialmente, o pensamento de Lefebvre, Harvey entende a produção do espaço
como uma resultante da atuação de três dimensões
56
:
a) as práticas espaciais (ou o espaço percebido): as quais envolvem as localizações
particulares e conjuntos característicos de determinada formação social. São os
fluxos, as transferências, interações físicas e materiais que garantem a
continuidade e a coesão da produção e reprodução espacial;
b) as representações do espaço (ou o espaço concebido): que são os signos e
significações, os códigos e os conhecimentos que permitem falar sobre as práticas
materiais e compreendê-las através do senso comum ou da linguagem acadêmica.
Estas representações estão submetidas às relações de produção e às ordens que
estas relações impõem;
55
Harvey cita Outline of a theory of a pratice, mas para as considerações que se seguem outros textos de
Bourdieu foram analisados e citados.
56
As três dimensões que se seguem foram redigidas com base em Lefebvre (1974) e Harvey (1989).
c) os espaços de representação (ou o espaço vivido): que são os simbolismos
complexos, algumas vezes codificados, outras vezes não, ligados ao lado
clandestino ou subterrâneo da vida social. Invenções mentais, códigos, planos
utópicos, paisagens imaginárias, etc.
Assim, segundo Harvey (op. cit.), haveria uma “experiência espacial cambiante”,
conforme variassem também os “modos de pensar” este espaço. Da mesma forma que
podemos propor que diferentes formações sociais podem ser associadas a sentidos específicos
de tempo (um tempo social), também podemos pensar que cada formação social poderia ser
relacionada a sentidos igualmente específicos de espaço (GURVITH, 1964, apud HARVEY,
1989). Relacionando este raciocínio com a tríade proposta por Lefebvre, Harvey procura
respaldar uma proposta que põe a produção do espaço como resultado de uma relação entre o
concreto (as práticas espaciais) e o abstrato (as representações do espaço e os espaços de
representação) em que nenhuma destas dimensões age isoladamente sobre o processo de
produção do espaço, mas se relaciona, dialeticamente, ao longo do tempo, produzindo uma
“experiência espacial” própria de cada tempo.
Os efeitos dessa premissa, para o caso do presente estudo sobre os indicadores sociais,
são expressivos. Em um primeiro momento, conforme fizemos no capítulo 2, por exemplo,
podemos ligar os indicadores sociais mais diretamente às representações do espaço. Contudo,
se é levada em consideração também a idéia de que estas dimensões se influenciam
mutuamente, então será necessário, ainda, aceitar não só as representações do espaço criadas
para instrumentalizá-lo, segundo uma determinada racionalidade técnica, mas igualmente os
códigos, os signos e discursos espaciais que não constam no âmbito da representação do
espaço.
A questão é que este movimento não implica uma recomposição da relação entre
espaço e representação.A melhor pista sobre como esta nova conciliação pode ser feita vem
do próprio Harvey, na medida em que este autor tenta sintetizar o processo de produção do
espaço proposto por Lefebvre (op. cit.), por meio do conceito de habitus, provindo de Pierre
Bourdieu (1994)
57
. Conforme este último, o habitus efetua a mediação na relação entre o
indivíduo e a sociedade, ou melhor, entre o indivíduo e a classe ou grupo ao qual pertença. O
habitus é, então, o responsável direto pelo processo de socialização do indivíduo e pela
manutenção de uma dada ordem social. Esta mediação se daria, em especial, entre o indivíduo
e a base econômica desta formação social, mas não exclusivamente por ela, funcionando
57
Foi utilizado em especial o conceito de habitus contido no capítulo 1 de BOURDIEU, Pierre (1994).
como uma matriz de percepções, avaliações e ações constituindo o que Harvey (1989)
denomina de “improvisações reguladas”:
Os condicionamentos associados a uma classe particular de condições de existência
produzem habitus, sistemas de disposição duradouros e transponíveis, estruturas
estruturadas dispostas a funcionar como estruturas estruturantes, isto é, como
princípios geradores e organizadores de práticas e representações que podem se
objetivamente adaptadas ao seu objetivo sem supor a visada consciente de fins e o
controle expresso das operações necessárias para atingi-los, [...] (BOURDIEU,
1980, apud BONNEWITZ,1998 p. 76).
A diferença é que – enquanto Bourdieu (1980) utiliza o conceito de habitus para situar
grupos ou classes que compartilham de elementos que podem se servir a identificá-los –
Harvey (1989) parece dar uma conotação bem mais ampla ao conceito, já que este
engendraria também ação e percepção do espaço em seu processo de produção, auxiliando na
explicação das variações dos sentidos de espaço em cada tempo específico. Resolver esta
desconexão entre os dois autores demandaria um trabalho que foge aos propósitos deste
estudo. Isto, porém, não invalida a possibilidade de vermos nestas mediações um importante
achado no entendimento das representações do espaço. Ou seja, estas “improvisações
reguladas” ou a mediação entre os espaços (concebido, vivido e percebido) podem ser um
bom instrumento de entendimento da tensão estabelecida entre cada uma das dimensões da
tríade de Lefebvre (1974).
E é esta tensão que tem de ser o ponto de partida de um entendimento dos indicadores
sociais como estruturantes de um discurso de representação do espaço. Por um lado, é bem
verdade que sua “ancoragem”, por assim dizermos, se faz tendo em vista uma determinada
teoria social, procurando sempre se impor ao espaço vivido e às praticas espaciais. Por outro,
não é possível imaginar uma representação do espaço que se faça meramente ao arrepio das
duas outras dimensões já mencionadas, sob o risco de um “descolamento” tal que resulte em
um discurso tão vazio quanto ineficaz na construção de determinada hegemonia na produção
do espaço. Toda vez que este descolamento se dá em medida demasiado grande, apresenta-se
a possibilidade de uma nova representação se impor. O espaço concebido, portanto, existe em
constante tensão com as outras dimensões, mas ao mesmo tempo recorre a elas, além de sofrer
suas influências.
É em função disto, provavelmente, que podemos encontrar Amartya Sen (1999)
justificando sua opção por determinada base avaliatória como uma tentativa de retratar “a vida
que as pessoas realmente levam” (p. 93), deslocando seu olhar das rendas ou recursos para se
concentrar nos usos que as pessoas podem fazer destes bens para melhorar suas vidas. Se tal
iniciativa remete à necessidade de uma forma mais justa de cada sociedade estabelecer suas
prioridades, também se dá como expressão de uma busca pela recomposição das formas de
representação do espaço. Sen está, através deste apontamento, reconhecendo este processo de
descolamento descrito acima e, para isto, não propõe que se recorra a esta ou aquela teoria
social, mas que a teoria construída, esta sim, se mostre porosa à valorização do que as pessoas
julgam e têm em suas vidas como importante.
A proposta aqui, então, é vermos os indicadores sociais como um elemento bastante
específico na constituição deste habitus na luta pelo processo de representação e, por
conseguinte, na manutenção ou mudança de uma sociedade e não apenas como a
operacionalização de um conceito que se refere a uma teoria.
3.3 Mudança Social – para além de sua relação com a industrialização
Os esclarecimentos iniciais ajudam a iluminar melhor a redução do poder de influência
sobre a idéia da construção de indicadores que alguns aspectos da teoria social vem sofrendo,
enquanto, por outro lado, observamos uma procura pela refundação destes indicadores, agora
assistida por teorias éticas (e não apenas teorias econômicas) que apontem para novas bases
avaliatórias. Ilustrativo deste momento é o caso da mudança social, uma das fontes que se
prestou à construção dos indicadores sociais e que vem sofrendo modificações em suas
formas de influência sobre as pesquisas dos indicadores. A mudança social, este “feixe de
convicções”, por assim dizer, funcionou como uma espécie de cúpula, sob o qual se abrigam
estudos provindos das mais diversas filiações ideológicas. A crise de alguns de seus pilares
ajuda a explicar a dificuldade que estas teorias têm encontrado no sentido de fornecer
subsídios que orientem uma retomada dos estudos dos indicadores sociais. A mudança social
pode ser resumida como uma busca pelo entendimento das razões e dos mecanismos que
governam as transformações que se dão ao longo do tempo na estrutura e no funcionamento
de organizações sociais (VALADE, 1996, p. 93). Nessa busca, são alinhados autores dos mais
diferentes matizes teóricos: Condorcet, Conte, Hegel, Marx, Spencer, Tockeville e, até
mesmo, Darwin. A própria conceituação de mudança social, que orientou os primeiros
estudos sobre indicadores sociais, já dá mostras desta amplitude:
Mudança social é uma alteração significativa das estruturas sociais (que são, padrões
de ação e interação) incluindo conseqüências e manifestações de tais estruturas
incorporadas em normas (regras de conduta), valores e produtos culturais ou
símbolos
58
(MOORE, Wilbert E. apud SHELDON & MOORE, 1968, p. 05).
O fato de que, em trabalhos mais recentes, a mudança social não figure como matriz
que alimenta os estudos sobre os indicadores sociais não deve ser interpretado como mero
abandono de um modismo. As justificativas que Sheldon & Moore (1968) lançam mão para
justificar a utilização da mudança social são bastante ilustrativas:
For the social scientist, and particularly for the sociologist, an interest in social
change represents a return to a major preoccupation of the founders of the discipline,
which began more than a century ago. That interest was almost lost among the great
majority of sociologists, as both theorists and methodologists addressed themselves
to cross-sectional interdependence rather than to sequential links through time. The
recent revival of interest may have been provoked as much by practical concerns in
reducing the social costs of headlong change, in deliberate social intervention and
program evaluation, as by strictly theoretical developments
59
(op. cit., p. 03).
Reparemos que Sheldon e Moore revisitam este tema, a mudança social, valendo-se da
atenção sobre questões que poderiam, perfeitamente, ser aplicadas a uma realidade mais
contemporânea. Contudo, apesar desta motivação ainda restar bastante viva – e de se estar em
uma época em que não faltam transformações – a mudança social arrefeceu seu poder de
fomento de novos debates dentro do campo dos indicadores sociais. Tal desconexão pode
demonstrar que, na verdade, suas bases podem estar sofrendo reveses, tendo em vista a
realidade posta a sua frente.
Valade (1992) liga o surgimento da Sociologia diretamente ao advento da Revolução
Industrial, justificando com isso, também, a associação quase que direta desta ciência aos
estudos interessados em mudanças sociais. Estas perspectivas estão imersas em um
sentimento de ruptura que precisa ser representado e interpretado. Desta forma, esta tarefa
atravessará todo o espectro da análise sociológica, das formulações teóricas progressistas, por
um lado, até as contra-revolucionárias, por outro (op. cit.). Assim, dentro da mudança social,
campos teóricos opostos, embora apresentem opiniões diferenciadas sobre as razões desta
mudança, não põem em discussão a existência da evolução, do desenvolvimento, da
modernização ou do progresso. Uma ligação decorrente do próprio berço da mudança social,
58
Tradução do Autor.
59
Tradução do Autor: “Para os cientistas sociais, e particularmente para os sociólogos, um interesse em
mudanças sociais representa um retorno à principal preocupação dos fundadores da disciplina, a qual se iniciou
há mais de um século. Este interesse foi quase perdido entre a maioria dos sociólogos, tanto de parte daqueles
ocupados da teoria quanto daqueles que se ocupavam da metodologia, dedicados em cruzar partes
interdependentes em detrimento de estabelecer ligações seqüenciais através do tempo. O recente renascimento
do interesse pode ter sido provocado muito mais pelo propósito prático em reduzir os custos sociais advindos de
mudanças abruptas, através de intervenções sociais deliberadas e programas de avaliação, assim como o
desenvolvimento estritamente teórico.”
a ponto de utilizá-la praticamente como sinônimo de uma teoria do desenvolvimento. Nisbet
(1986), por exemplo, afirma que a idéia do desenvolvimento deve ser vista, antes de tudo,
como uma “uma sutil e complexa teoria das fontes e mecanismos de mudança, que é sua
essência” (op. cit, p. 33)
Não é o caso de se passar em revista o conceito de desenvolvimento, de progresso ou
de modernização. A idéia central, neste trabalho, é mostrar a exaustão desta ligação da
maneira usual ao processo de industrialização. Ou seja, de como a avaliação do progresso, da
modernização e do desenvolvimento dá-se cada vez menos na perspectiva de fazê-la dentro
dos marcos mais adequados à industrialização. A problematização desta ligação é cada vez
mais patente, o que por sua vez justifica uma crítica à mudança social:
Ligada, portanto, à industrialização, em que se encadeiam inovação técnica,
aumento de produção, nova divisão do trabalho; ao desenvolvimento econômico que
se exprime em termos de renda nacional e elevação do nível de vida; à
modernização, cujo resultado final é a constituição de uma organização social
ajustada às necessidades e às contradições criadas pelo progresso das ciências e das
técnicas, a noção de transformação social
60
parece problemática. (VALADE,1992,
p. 342).
Estamos afirmando, neste ponto, que a métrica da sociedade, tão bem estabelecida
pelo utilitarismo, não pode mais ser levada a efeito porque as razões que demandam tal
métrica vêm se modificando. Para justificar este posicionamento, pode ser bem mais
proveitoso examinar em que medida a mudança social, associada ao processo de
industrialização, encontrou no utilitarismo o manancial teórico apropriado à elaboração de
uma proposta de avaliação do social
61
. A ligação entre desenvolvimento, progresso,
modernização e industrialização sempre teve amplos motivos para a grande conveniência em
seu casamento com os indicadores sociais, desde que orientados pelo utilitarismo em sua
versão ética e econômica, digamos. Daí, por que, mesmo quando os indicadores que
enfatizavam apenas aspectos econômicos da vida das pessoas foram postos de lado, a herança
utilitarista nunca deixou verdadeiramente de ter validade. Igualmente, todas as teorias que
comungavam da idéia da mudança social tinham dificuldades de elaborar uma proposta
alternativa à avaliação vigente.
Milton Santos (1978 a)
ilustra, claramente, esta ligação, expondo o papel da
Geografia nesta racionalização:
60
Itálico nosso.
61
Já se disse no capítulo anterior que Amartya Sen examina a herança com a qual o utilitarismo impregnou os
indicadores sociais, procurando deixar claros os problemas advindos de suas ênfases. Sen(1999) aponta, por
exemplo, para o “conseqüencialismo” ou para a reduzidíssima atenção aos aspectos distributivos pela qual a base
informacional utilitarista se caracteriza.
A aceitação do novo modelo de utilização dos recursos dependia essencialmente de
duas alavancas: a aceitação da noção de crescimento econômico e a submissão a um
novo modelo de consumo. Juntos, esses dois elementos permitiram implantar uma
nova estrutura da produção, primeiro no centro e depois na periferia. [...] Para que a
Geografia se tornasse uma coadjuvante em um programa dessa natureza, ela devia
adotar como palavra de ordem a noção de modernização cujos índices seriam o
instrumento de medida do crescimento “moderno”, índices que passavam a ser
calculados a régua e pesados numa balança de precisão: as técnicas quantitativas.
(op. cit.,p. 75)
De maneira geral, esta é uma orientação que se baseia em uma perspectiva
homogeneizadora, porque centra sua atenção em um conceito de desenvolvimento que
enfatiza a superação contínua de fases, de etapas. Assim, a atenção aos aspectos regionais, ou
locais, era posta sempre na perspectiva de explicar o sucesso ou os obstáculos rumo à
realização do moderno. Nada de excepcional, uma vez que esta perspectiva nasce a partir da
visão de ruptura que a Revolução Industrial inspirou. Ou seja, cliva-se o mundo entre o
moderno e o arcaico e avalía-se em que medida já se venceram as etapas, no sentido de se
chegar ao moderno. Desse modo, surgem os que propõem que se aborde o
subdesenvolvimento a partir da escassez de acumulação primitiva de capital, por exemplo.
Neste caso, quando se fala em homogeneização não estamos nos referindo apenas à
uniformização de gostos e preferências, mas a toda uma gama de intervenções que
aperfeiçoavam o modo de produção. Harvey (1989) argumenta que o fordismo deve ser visto
menos como mero sistema de produção em massa e bem mais como um modo de vida:
Produção em massa significava padronização do produto e consumo de massa, o que
implicava toda uma nova estética e mercadificação da cultura que muitos
neoconservadores como Daniel Bell mais tarde consideravam prejudicial à
preservação da ética do trabalho e de outras supostas virtudes capitalistas. O
fordismo também se apoiou, na e contribuiu para a, estética do modernismo –
particularmente na inclinação desta última para funcionalidade e a eficiência – de
maneiras muito explícitas, enquanto as formas de intervencionismo estatal
(orientadas por princípios de racionalidade burocrático-técnica) e a configuração do
poder político que davam ao sistema a sua coerência se apoiavam em noções de uma
democracia econômica de massa que se mantinha através de um equilíbrio de forças
de interesse especial (p.131).
Esta divisão pressupõe um espaço em que o mecanismo gerador dos mesmos efeitos
possa ser transposto com a menor quantidade de imperfeições. Isto, por sua vez, pode ajudar a
explicar porque o formato utilitarista de avaliação do social acha-se profundamente
comprometido na atualidade. Há, portanto, espaço para uma procura por formas de avaliação
que dêem mais voz ao contexto de cada intervenção. Ron Martin (1994),
ao analisar as
relações contemporâneas entre teoria econômica e Geografia, discorda daqueles que observam
a economia cada vez mais descolada do espaço, em função do processo de modernização das
forças produtivas. Martin aponta, justamente, uma deficiência a ser suprida:
[...] os eventos econômicos são necessariamente contextuais, isto é, encravados em
estruturas espaciais de relações sociais e que nossas explicações deveriam
explicitamente procurar incorporar esse fato.[...] As principais escolas de teoria
econômica não tratam adequadamente, se é que o fazem, da questão do contexto
social e de sua implementação (op. cit., p.53).
Este autor, na perspectiva de justificar o apontamento acima, põe em paralelo
algumas teorias econômicas de um modo que bem poderia ser estendido à critica do
desenvolvimento ou da mudança social:
A teoria neoclássica apresenta um modelo distinto de produção e distribuição
econômica subcontextualizado, baseado em um conceito de comportamento
econômico de ator-atomizado. A política econômica marxista, por outro lado,
interpreta a ação econômica em termos de conflitos de classe mecânicos, macro-
estruturais, quando relega os complexos aspectos específicos do sócio-institucional à
condição de meros epifenômenos. [...] mesmo a teoria da regulação com sua ênfase
no modo de regulação deixa de oferecer uma conceitualização adequada dos
processos e estruturas institucionais (ibid., p.53).
Desta forma, é possível reconhecer que a negação da contextualização dos fenômenos
e – mais propriamente falando – dos indicadores sociais tem exercido uma importante função
em um regime de acumulação que tem na padronização importante fundamento; daí, sua
ligação ao taylorismo. Por outro lado, a chegada deste modo de produção a novo estágio tem
tornado cada vez mais incômodo o que Harvey denomina como sua “rigidez”:
De modo mais geral, o período de 1965 a 1973 tornou cada vez mais evidente a
incapacidade do fordismo e do keynesianismo de conter as contradições inerentes ao
capitalismo. Na superfície, essas dificuldades podem ser melhor apreendidas por um
palavra: rigidez. Havia problemas com a rigidez dos investimentos de capital fixo de
larga escala e de longo prazo em sistemas de produção em massa que impediam
muito a flexibilidade de planejamento e presumiam crescimento estável de mercados
de consumo invariantes (HARVEY, 1993, p.135).
Quase que, como uma decorrência natural desta nova realidade, fica comprometida
outra perspectiva que sempre alimentou os estudos sobre mudanças sociais, qual seja: a
perspectiva da construção de grandes leis, de grandes modelos ou dos macro-sistemas de
compreensão do processo de desenvolvimento (NISBET, 1986). Isto, por sua vez, não pode
ser qualificado como algo inesperado, pois na medida em que tanto o mundo do consumo
quanto da produção estabelecem requerimentos novos ao aproveitamento das diversidades
espaciais, a margem para o transporte de grandes modelos de compreensão parece ficar, pelo
menos momentaneamente, bastante restringida. O posicionamento de Nisbet (op.cit.) é
bastante ilustrativo do clima de descrença agora instaurado:
A nova teoria do desenvolvimento endógeno não acabou na sociologia moderna,
simplesmente mudou de foco. Em vez de preocupar-se com o panorama evolutivo
que interessava o século XIX, voltou sua atenção para o que se pode chamar de os
mecanismos de desenvolvimento encontrados nos grupos e sistemas sociais. Todos
os atributos essenciais da teoria original permanecem [...] mas a sua abrangência foi
reduzida (NISBET, p.73).
O autor supracitado mostra certo desalento com análises mais amplas da mudança
social. Valade (1992) interpreta esta constatação como um reflexo das desilusões provocadas
pela superestimação, e posterior fracasso, das estratégias de desenvolvimento, dos modelos de
crescimento e, por conseguinte, das possibilidades mais simplistas de ordenação racional do
real: “Onde pensávamos ter encontrado regularidades estruturais surgiu a desordem; onde
esperávamos poder controlar ou prever revelou-se incontrolável e imprevisível” (p. 350 ).
Embora o próprio Valade (op. cit.) procure ressaltar que a natureza complexa dos
fenômenos sociais não pode destruir a perspectiva da construção de teorias que expliquem
estes fenômenos, parece inegável que o processo descrito tem contribuído para uma atmosfera
de perplexidade que favorece perspectivas mais reduzidas. Isto parece se dar na esteira de um
processo que, na mesma medida em que procura a redução do poder e da importância das
barreiras espaciais, amplia a os incentivos para que os lugares se diferenciem de maneiras
atraentes ao capital (HARVEY, 1989, p. 267).
Este potencial que os lugares passam a ter, no sentido do
aprofundamento/aperfeiçoamento do processo de acumulação de capital, cria um “paradoxo”
(expressão de Harvey) que se reflete também dentro dos estudos interessados em formular
indicadores sociais. Deste modo, às novas formas do capital se relacionar com as variações
espaciais pode, então, ser posta em paralelo, a preocupação de Martin (1994) e sua crítica à
falta de contextualização que caracteriza a teoria econômica tradicional. Ambos, a seu modo,
estão tocando na mesma, e necessária, permeabilidade que as novas representações têm de
apresentar.
Anotamos, em passagens anteriores do capítulo 2, que uma das tendências deste
processo pode ser o vicejar de uma visão mais fracionadora da realidade. Privilegia-se o
específico, o particular, o diferencial, em um ataque direto aos conceitos mais generalizantes
em favor do excepcionalismo espacial
62
. Contudo, como demonstramos, também, a própria
62
Martin(1994) ilustra bem este posicionamento através de uma crítica à Hudson(1988). Para Martin,
argumentar, como faz Hudson, que “todos os eventos locais e mudanças na economia espacial são em última
técnica demanda um discurso e uma prática que provoque a emersão das virtudes de cada
porção do espaço sem que isso signifique a abdicação de uma visão totalizante. Para o
trabalho aqui proposto, é conveniente frisarmos que se vive plenamente este processo na
atualidade, muito embora os marcos da tentativa de sua superação possam ser reportados ao
início da década de 70.
Fica claro que esta superação só se dará através de modelos que conciliem estas duas
tendências. Com o aprofundamento do “paradoxo” descrito por Harvey, a discussão em torno
de modelos de avaliação do desenvolvimento precisa necessariamente passar por uma
flexibilização. Daí, no nosso entender, a centralidade que vem assumindo a discussão sobre a
“liberdade”, submetendo a revisão de conceitos como desenvolvimento, progresso ou
modernização à sua primazia e não mais o contrário. Anteriormente, era livre aquele que
alcançava o desenvolvimento, a modernização ou o progresso; agora, parece que só será
desenvolvido, moderno e portador de progresso aquele que for livre, ou melhor, aquele que
for portador de determinado tipo de liberdade.
A razão deste deslocamento, do mero processo de acumulação de riquezas às questões
envolvendo diretamente as vidas das pessoas, assim como o ambiente que as circunda, vendo
nisso uma forma de realização da liberdade, é ainda de difícil elucidação. Uma boa pista, no
entanto, pode ser o apontamento de Boaventura de Sousa Santos (1999). Este autor argumenta
que se atravessa na atualidade um processo de refundação do contrato social. Desse modo,
sendo o contrato social “a grande narrativa em que se funda a obrigação política moderna”
nada mais importante que verificar esta refundação como uma recolocação da questão da
liberdade, já que esta obrigação “complexa e contraditória”, porque erigida por homens livres,
se dá com vistas à maximização da liberdade.
Isto, por sua vez, ajudaria a explicar por que na raiz das novas propostas de
composição de bases avaliatórias estão aqueles autores interessados em uma rediscussão ou
revitalização do contrato social. Neste sentido, é o mesmo Santos (1999) quem referenda esta
insurgência, pois “nunca se falou tanto de contratualização das relações sociais, das relações
de trabalho, das relações políticas do Estado com organizações sociais”. O contrato social
funciona, portanto, como um campo para o qual convergem diferentes forças no sentido desta
refundação, muito embora este processo seja visto com muita reserva pelo mesmo autor:
[...] esta nova contratualização tem pouco a ver com a que foi fundada na idéia
moderna do contrato social. Em primeiro lugar trata-se de uma contratualização
análise, totalmente contingentes e únicos: [...], é argumentar em favor do excepcionalismo espacial” (MARTIN,
1994, p. 52)
liberal individualista, moldada na idéia de contrato de direito civil entre indivíduos,
e não na idéia do contrato entre agregações coletivas de interesses sociais
divergentes. O Estado, ao contrário do que se passa no contrato social, tem uma
intervenção mínima, de assegurar o cumprimento do contrato enquanto ele não for
denunciado, sem, no entanto, poder interferir nas condições e nos termos em que foi
acordado. Em segundo lugar, ao contrário do contrato, a nova contratualização não
tem qualquer estabilidade, podendo ser denunciada a qualquer momento por
qualquer das partes. Em terceiro lugar, a contratualização liberal não reconhece o
conflito e a luta como elementos estruturais do combate (op. cit., p.44).
Deste modo, ficam mais claras, por meio das passagens anteriores, as razões pelas
quais um filósofo político como John Rawls (1971) apresenta-se como um dos autores de
maior influência sobre o pensamento daqueles que, ao final do século XX e início deste, se
propõem à avaliação do social. Basicamente, o autor desvenda sua sintonia com o processo
bem mais amplo, destacado por Santos, quando afirma seu propósito na publicação de sua
obra máxima: “[...] apresentar uma concepção da justiça que generaliza e leva a um plano
superior de abstração a conhecida teoria do contrato social como se lê, digamos em Locke,
Rousseau e Kant” (p. 12).
3.4 “Geografizando” o debate em torno da reemergência do contrato social
É justamente esta busca por uma revitalização do contrato social, principalmente
conforme se encontra em Kant, que parece conceder a Rawls uma autoridade sem par entre os
pensadores liberais mais recentes. Podemos afirmar que o interesse generalizado pela obra de
Rawls, em especial a partir da publicação de Teoria da Justiça em 1971, advém da
originalidade de seu pensamento que se opõe aos modelos hobbesianos (a justiça como um
regramento de interesses ou barganha). Do mesmo modo, Rawls critica o entendimento da
ação humana como resultado de cálculos de custo e benefício, de competitividade e
cooperação, onde o Homem desliga-se de um código moral específico, como parece ter sido o
caso da crescente incorporação da teoria dos jogos na economia (OLIVEIRA, Nythamar de,
2003).
Isto pode ser verificado mais claramente na crítica de Ralws ao “princípio da
eficiência”
63
como critério de julgamento de uma dada distribuição. Segundo este princípio,
tanto mais justa é considerada uma determinada distribuição de direitos e deveres, quanto
mais eficiente essa distribuição o for. Tal eficiência se comprova se, e somente se, “é
impossível mudar as regras, redefinir o esquema de direitos e deveres de modo a aumentar as
63
Conforme o Ótimo de Paretto, por exemplo.
expectativas de qualquer dos homens representativos (pelo menos de um) sem ao mesmo
tempo diminuir as expectativas de um (pelo menos de um) outro homem representativo”
(RAWLS, 1971, p. 74).
Rawls, porém, traça uma extensa crítica a este princípio – que havia transbordado da
economia e influenciado abordagens da justiça social dentro dos mais diversos campos (a
Sociologia e a Geografia entre eles
64
). Seu argumento é de que o desprezo pela igualdade em
uma situação inicial, contestado apenas em casos excepcionais quando estão em perigo as
condições mínimas de existência de instituições básicas indispensáveis, compromete
invariavelmente qualquer distribuição futura:
A distribuição de renda e riqueza, por exemplo, é o efeito cumulativo de
distribuições anteriores de ativos naturais – ou seja, talentos e habilidades naturais –
conforme eles foram sendo desenvolvidos ou não, e sua utilização foi favorecida ou
desfavorecida ao longo do tempo por circunstâncias sociais [boa sorte ou eventuais
acidentes] [...] a mais óbvia injustiça do sistema de liberdade natural é que ele
permite que a distribuição das porções seja influenciada por esses fatores tão
arbitrários do ponto de vista ético (op. cit. p. 76 e 77).
Daí, por que a crítica de Rawls ao utilitarismo se faz sempre no sentido de resgatar
algumas importantes contribuições desta corrente ética que se perderam na medida em que os
critérios advindos de posicionamentos como os de Paretto foram sendo adotados. Rawls repõe
a discussão sobre a liberdade no contrato social, aproveitando-se de autores como Mill ou
Sidgwick
65
, mas não abdica de uma forte crítica ao utilitarismo conforme ele chega aos nossos
dias. Objeta, inicialmente, seu caráter totalizador, seu desinteresse pela distribuição do padrão
de bem-estar, o que, segundo o autor, acabou resultando em tornar desnecessária qualquer
justificativa à desigualdade desta distribuição. Por outro lado, Rawls não fica apenas nesta
crítica sobre a desconsideração da desigualdade. Contesta ainda o pressuposto de que as
utilidades (ou o bem-estar) são o aspecto ao qual se deve dar atenção normativa. Rawls
efetuou a troca da totalidade pela igualdade. Da mesma forma, John Rawls propôs a troca do
bem-estar por liberdades formais e meios para a obtenção de condições mínimas de existência
(bens primários). Segundo Cohen, Rawls acabou recomendando uma avaliação normativa
através de novas argumentações (os bens primários ao invés da quantificação do bem-estar) e
uma nova função (a igualdade ao invés da totalidade) que nos leva destes argumentos aos
valores. (COHEN,1993).
64
Sobre a influência das idéias de Paretto dentro da Geografia, ver Harvey (1973).
65
Conforme Oliveira, Nythamar de (2003): “Rawls se serve [...] do conceito de racionalidade deliberativa,
inspirado numa formulação utilitarista de Henry Sidgwick, segundo a qual o bem de um indivíduo deve ser
escolhido levando em conta também os interesses de outras partes envolvidas, otimizando as possibilidades de
concretização dos fins racionalmente escolhidos por cada um” (p.16).
Como alternativa ao utilitarismo e à teoria da escolha racional, Rawls parte de uma
situação hipotética à qual denomina de “posição original”, uma situação ideal em que todos os
membros de uma sociedade bem ordenada se encontram. Nesta situação, cada indivíduo é
inteiramente livre, consciente e isento de influências de pessoas ou grupos do mesmo modo
que ignora as diferenças entre eles e sua condição social. Na expressão de Rawls, estes
indivíduos estão recobertos por um “véu de ignorância”, ou seja, Rawls formula a seguinte
questão: Qual sistema regulatório de justiça, dentro de suas vidas, cada indivíduo optaria se
não soubesse qual seria sua situação logo após escolhidas as regras?
Ficam, deste modo, postos em suspenso o status social ou os dotes naturais de cada
um, e é nesta “posição original” de “total isenção e de plena liberdade que o acordo da
sociedade bem ordenada deve ser firmado: é o contrato social da era contemporânea”,
(PEGORARO, 1997, p.58). É com base nesta situação hipotética que o autor justifica a
escolha que propõe, por dois princípios básicos, de justiça.
O primeiro denomina-se princípio da liberdade: “cada pessoa deve ter um direito igual
ao mais abrangente sistema de liberdades básicas iguais, que seja compatível com um sistema
semelhante de liberdades para as outras” (RAWLS, 1971, p. 64). Consistem estas liberdades
em direitos formais tais como: a liberdade de pensamento, o direito à propriedade, o direito a
eleger e ser eleito, a liberdade em relação à captura e prisão arbitrária
66
.
Em um primeiro momento, pode parecer que Rawls se aproxima dos ótimos de Paretto
que tanto critica, na medida em que a posição original parece equivaler ao desprezo por
qualquer informação que remeta à situação anterior ao contrato que se estabelece. Mas isto é
apenas aparente, pois o segundo princípio, ou princípio da eqüidade, estabelece que: “as
desigualdades sociais e econômicas devem ser ordenadas de tal modo que sejam ao mesmo
tempo (a) consideradas como vantajosas para todos dentro dos limites do razoável, e (b)
vinculadas a posições e cargos acessíveis a todos” (op. cit. p. 64).
Já são bastante conhecidas as críticas a esta tentativa de Rawls em dar nova dinâmica
ao pensamento liberal. Algumas polêmicas, inclusive, tornaram-se tão notórias quanto a
própria formulação original do autor em tela. Recobri-las de maneira exaustiva demandaria
um trabalho bem mais ambicioso que as intenções deste capítulo. Podemos, contudo, depurar
destas críticas alguns argumentos que ajudam a referendar a percepção de que a superação da
crise do pensamento liberal, através de uma reafirmação das liberdades e direitos constantes
66
Sen (1999) denomina este primeiro conjunto de liberdades formais, ou formal libertys, no original em inglês.
no contrato social, recaem em uma reconsideração do papel que o espaço exerce na realização
destes bens primários.
Aqueles que não se guiam pelos ideais liberais, como é o caso de Habermas, por
exemplo, atacarão a concepção rawlsiana de liberdade como resultado do estabelecimento de
um contrato entre indivíduos ou pessoas isoladas. Habermas, em sua crítica, aponta aquilo que
denomina como seu caráter monológico, ou uma proposta de reposição dos valores
iluministas já solidamente estabelecidos na sociedade ocidental através dos bens primários.
Para Habermas, embora, através destes bens, seja possível o estabelecimento de políticas
redistributívas que caracterizam o welfare state, esta proposta constitui um modelo que se
fecha para as reclamações de vozes potenciais, “não só que apresentam formas de
entendimento diferentes do que devam ser os bens primários, como também das que
apresentam problemas de reconhecimento de identidade de grupo, tais como ecologistas,
pacifistas, grupos locais” (LIMA, 1993, p.347).
Ou seja, muito embora Rawls recomponha e problematize a questão da liberdade fora
dos estreitos muros da teoria da escolha racional, ou mesmo do utilitarismo, em suas diversas
formulações, as críticas de Habermas (1996) parecem enfatizar que Rawls deixa incompleta a
proposta das bases em que essa avaliação deve se dar. Vejamos o que afirma Olinto Pegoraro
(1997), em sua crítica à proposta rawlsiana:
Pelo exposto parece que eles (os participantes do contrato social) formulam as novas
regras do nada ou do quase nada. Deveria a sociedade começar de novo, sem
nenhuma ligação com a experiência histórica das gerações passadas? Seria o novo
contrato social ahistórico? (p.59).
Em adição à pergunta de Pegoraro, talvez fosse conveniente saber se este mesmo
contrato poderia, em algum momento, realmente desprezar o conteúdo geográfico de cada
sociedade. Assim, a posição original e o véu da ignorância são propostas que “pelo menos
aparentemente, rompem com toda a experiência de uma comunidade” (op. cit., p.59) e, em
função disso, encontram dificuldade em se sustentar na realidade.
Boa parte das críticas a Rawls revela nítida raiz geográfica, mesmo quando não
provém especificamente de geógrafos. O sociólogo alemão Plantenberg (2001), por exemplo,
faz coro à preocupação de Pegoraro quanto à perspectiva excessivamente deslocada da
realidade em Rawls:
É preciso levar mais a sério a recusa do universalismo, que estabelecem contra
Rawls alguns dos chamados “comunitaristas’. Sua construção [de Rawls] sobre as
negociações dos homens no estado original serve para justificar normas
independentes dos contextos históricos e culturais concretos. Os procedimentos
eleitos por Rawls poderiam ser significativos apenas para os homens que estão
familiarizados com a maneira ocidental moderna de pensar, assim como seu modo
particular de justificação das normas (Pantenberg, 2001, p. 229).
De maneira análoga a Habermas, Plantenberg critica, portanto, o fato de Rawls
objetivar a formulação de uma concepção de justiça que se sirva à estruturação básica de uma
sociedade, concebida como um sistema fechado e separado de outras sociedades. Com razão,
Platenberg argumenta que esta ‘sociedade fechada’ que Rawls propõe não existe na realidade.
Na atualidade, então, isto seria ainda menos válido, dada toda sorte de transações entre
pessoas, países ou regiões, as quais têm considerável repercussão sobre a repartição de bens
no interior das próprias sociedades.
De fato, há toda uma gama de situações, dentro de cada país, que precisa
necessariamente ser considerada, incluindo questões como a situação de migrantes, das
mulheres, de grupos étnicos minoritários, das crianças e idosos, etc., que fazem o
apontamento de Platenberg ser bastante válido. Este é um dilema que fica patente quando se
toma a obra de Rawls na perspectiva do exame das desigualdades entre os homens. A
proposta do autor nasce como reação liberal à situação em que se encontrava o mundo na
década de 60, fruto, como já vimos, de uma rigidez na aplicação dos modelos. Mas a recusa
ao utilitarismo, com seu privilégio às análises que observam esta desigualdade apenas sob a
ótica de bens, serviços e rendas e a correspondente reação mental que sua posse e uso
proporciona, resulta em uma negação das condições que antecedem ao contrato proposto
67
.
Como já assinalamos anteriormente, vivemos um tempo em que apenas se esboçam as
respostas que o liberalismo pode dar aos dilemas criados pelo regime de acumulação vigente.
Temos claro, somente, que a avaliação do social terá de se dar em moldes diferenciados
daqueles que enfatizam apenas as realizações que cada indivíduo consegue lograr (tomando
bens, rendas, serviços ou, até mesmo, sensações como os correspondentes a estas realizações).
Do mesmo modo, a resistência velada às propostas neocontratualistas parece vir
demonstrando que a simples observação da preservação de oportunidades para a realização do
bem-estar não faz frente aos reclames por novos formatos de avaliação do desenvolvimento,
mesmo dentro das hostes liberais, mesmo com avanços consideráveis.
Tanto uma como outra proposta sempre suscitam críticas quanto ao seu reduzido poder
de cobertura. A relação que indivíduo e sociedade estabelecem com a presença ou ausência
dos bens ou liberdades formais é uma destas desconsiderações bastante recorrente na
literatura relacionada às avaliações do desenvolvimento. O neoconservadorismo libertarista
67
Sen denominará este ponto de vista como “particularismo nacional” (apud PLATENBERG, 2001, p.236)
baseia-se no princípio da igualdade de acesso de cada indivíduo às liberdades formais, que são
consideradas como prioritárias sob qualquer circunstância. Em uma avaliação do estado em
que se encontra determinada sociedade, caberia, apenas e tão somente, se verificar em que
medida direitos e liberdades básicos estão sendo observados. Mas privações de todos os tipos
podem coexistir com a salvaguarda de todos os direitos formais de um indivíduo (incluindo o
direto de propriedade). Além disso, dependerá da condição inicial de cada indivíduo a maior
ou menor possibilidade de fazer uso destes direitos (e, neste sentido, conta também sua
condição geográfica).
Por outro lado, o neocontratualismo de Rawls propõe que os julgamentos se dêem sob
a premissa da necessária busca pela igualdade que deve prevalecer no acesso de cada
indivíduo aos bens primários. Mesmo que se considere que Rawls defenda que as diferenças
econômicas devem ser compensadas concedendo-se vantagens aos mais desfavorecidos e
assegurando-se sua oportunidade de acesso às melhores posições sociais, vale ainda a mesma
crítica já feita à atenção, praticamente, exclusiva para as liberdades formais
68
. A posição
original e o desprezo às diferenças individuais parecem comprometer a adoção integral da
proposta de Rawls. Como bem lembram Sen & Nussbaum (1993), graças a Rawls (1971),
somos lembrados que existem variações entre os indivíduos que lhes conferem diferentes
concepções dos fins desejados, ainda que os meios possam ser os mesmos. Entretanto, Ralws
erra
em não fazer justiça à variação inter-individual na relação entre bens primários e a
liberdades de perseguir fins: ‘as variações relacionadas à sexo, idade, dotes
genéticos e muitos outros fatores, nos conferem capacidades desiguais de edificar a
liberdade em nossas vidas mesmo que tenhamos o mesmo complexo de bens
(CROCKER, 1993, p.113).
Para Sen e Nussbaum
Comparar os bens primários de que dispõe diferentes pessoas não é exatamente o
mesmo que comparar as liberdades que são de fato usufruídas por diferentes
pessoas, ainda que as duas coisas estejam intimamente relacionadas. Os bens
primários são meios para a liberdade, mas eles não podem representar o grau de
liberdade, dada a diversidade com que os seres humanos convertem bens primários
na liberdade de perseguir seus diferentes objetivos (SEN, apud CROCKER, 1993,
p.113).
68
De uma forma muito similar a neoconservadores como Nozick (1974), como é comentado por Sen (1999) e
Ralws (1971).
Avaliar, porém, esta relação é tarefa que demanda um considerável avanço conceitual,
já que Rawls centra sua atenção sobre os bens primários e apenas aponta para a consideração
do que estes bens capacitam as pessoas a realizar conforme suas condições e expectativas
individuais (op. cit. p. 115). Estas capacidades são construídas a partir daquilo que Sen
denomina como funcionamentos, ou seja, o conjunto de bens, direitos convertidos na
liberdade com que cada indivíduo persegue seus objetivos.
O conceito de funcionamentos, que tem raízes distintamente aristotélicas
69
, reflete as
várias coisas que uma pessoa pode considerar valioso fazer ou ter. Os
funcionamentos valorizados podem variar dos elementares, como ser
adequadamente nutrido e livre de doenças evitáveis, a atividades ou estados pessoais
muito complexos, como poder participar da comunidade e ter respeito próprio (SEN,
1999 p. 95).
Assim por exemplo, funcionamentos tais como estar bem nutrido ou manter-se livre de
doenças podem compor a capacidade de um indivíduo em levar uma vida longa e saudável.
Do mesmo modo, um funcionamento como o acesso à alfabetização poderá compor a
capacidade do indivíduo em adquirir conhecimentos e, por fim, um funcionamento como a
renda per capita compõe a capacidade de um indivíduo em manejar recursos para uma vida
decente.
Esta concepção avança bastante, em relação à proposta de avaliação baseada nos bens
primários de Rawls, pois, além de ignorar o somatório das utilidades em seu cálculo, também
não fixa sua atenção sobre bens, qualquer que seja a ordem à qual pertençam. Com isto, abre-
se uma lacuna que se oferece à investigação da relação entre os bens – serviços, mercadorias
ou rendas – e as possibilidades de acesso e uso que cada indivíduo faz destes bens, no sentido
de ampliar seus graus de liberdade.
69
Sen baseia-se, extensivamente, nos escritos de Aristóteles, em especial na Ética a Nicômanos (livro I) e suas
considerações sobre o bem e a felicidade. Isto não é, de modo algum, uma postura original, já que o próprio Sen
reconhece que tanto Marx quanto Adam Smith sofreram forte influência em suas considerações sobre a avaliação
do enriquecimento da vida humana. Segundo Sen, o enfoque de Marx é diretamente influenciado por Aristóteles:
“uma parte importante do programa marxista de reformulação dos fundamentos da economia política claramente
diz respeito à concepção de sucesso da vida humana em termos de cumprimento das atividades humanas
necessárias” (SEN, 1989, p.316, O desenvolvimento como expansão das capacidades). Por outro lado, Sen
destaca que Adam Smith tece considerações sobre a efetividade: “a capacidade de aparecer em público sem se
envergonhar ou de participar da vida da comunidade” (1999, p. 94). Através deste excerto, Sen, habilmente,
demonstra como Smith (1776) concentrou-se no fato de que as mercadorias necessárias para esta efetivação
podem variar, mas permanece constante sua valorização por parte das mais diversas sociedades. Estes
funcionamentos também podem ser encontrados sob a denominação de efetivações ou efetividades (como na
tradução de Regis de Castro Andrade para Sen, 1989), mantendo o mesmo significado de uma realização ou uma
atividade valorizada que compõe parte do estado de uma pessoa. Já as capacidades, nesta mesma tradução,
aparecem conceituadas como uma noção derivada ou “as várias combinações de efetivações (atividades e modos
de ser) que uma pessoa pode alcançar” (op.cit. p. 318).
Um problema importante, e frequentemente encontrado, surge da concentração da
discussão na desigualdade de rendas como o foco primário de atenção na análise da
desigualdade. A extensão da desigualdade real de oportunidades com que as pessoas
se defrontam não pode ser prontamente deduzida da magnitude da desigualdade de
rendas, pois o que podemos fazer ou não fazer, podemos ou não realizar, não
depende somente das nossas rendas, mas também da variedade de características
físicas e sociais que afetam nossas vidas e fazem de nós o que somos (SEN, 1992 b,
p. 60).
Há, assim, uma busca pela retratação da “vida que as pessoas realmente conseguem
levar” conforme o entendimento de Sen. Esta aproximação, no entanto, não se dá no sentido
do estabelecimento de uma listagem de componentes mínimos os quais deve ter um indivíduo
ou uma população. Isto ocorre porque Sen parece buscar na relação que os indivíduos
estabelecem com os bens aos quais têm acesso o foco para retratação de suas liberdades.
Fica claro este posicionamento em sua crítica ao conceito de necessidades básicas
como meio de retratação das variações de bem-estar ou liberdade de uma determinada
sociedade. Na crítica de Sen (1989), as heterogeneidades pessoais são uma fonte de variações
destas necessidades: “as pessoas apresentam características físicas díspares relacionadas à
incapacidade, doença, idade ou sexo, e isso faz com que suas necessidades difiram”. Estas
variações são responsáveis por uma disparidade muito grande na conversão dos bens em
capacidades. Sen (op. cit.), a exemplo de Marx, denomina este fato de fetichismo da
mercadoria o que frustra a possibilidade de uma delimitação clara das necessidades.
Este mesmo fetichismo, na opinião de Sen, é responsável também pela negligência das
diversidades ambientais: variações climáticas, diferentes necessidades de aquecimento, de
água, de métodos de prevenção a doenças infecciosas. Todos estes aspectos são responsáveis
por diferentes possibilidades de aproveitamento de determinado nível de renda.
A interdependência social é outro fator que problematiza bastante o enfoque das
necessidades básicas. As necessidades de bens para efetivar certas capacidades não se
resumem à provisão de (uma certa quantidade de) mercadorias a um indivíduo isolado. Desta
forma, Sen (1989) aponta corretamente que a abordagem das necessidades básicas ao
focalizar-se sobre os bens de uma forma culturalmente invariante, acaba por fazer com que a
avaliação de algumas capacidades fique bastante prejudicada. Sen ainda, em um texto
posterior, aponta que a distribuição intrafamiliar das rendas é
uma variável paramétrica crucial na associação das realizações e oportunidades
individuais com o nível global de renda familiar. As regras distributivas seguidas na
família (por exemplo, relacionadas a sexo, idades ou necessidades percebidas)
podem fazer grande diferença para o que cada membro obtém e para as dificuldades
que enfrenta (1999, p. 91).
CAPÍTULO 4
Os Indicadores Sociais vão à Geografia
4.1. A Abordagem da Pobreza
No capítulo anterior, foram examinados alguns aspectos que contribuíram para uma
redução significativa que os indicadores sociais experimentaram, tanto no volume da
produção de estudos dedicados ao tema, quanto em seu poder de influência sobre o debate das
formas de pensar o social. Como resultante deste processo, foram exploradas as propostas
mais recentes de superação deste impasse, digamos, como sendo a expressão da necessidade
da incorporação de novas (e diferentes dimensões) à formulação dos indicadores sociais. Estas
dimensões não significam o mero acréscimo de outras variáveis, mas, antes disso, um “desvio
de olhar” para a construção dos conceitos que passam a orientar os novos trabalhos. Este
“desvio” é interpretado, neste trabalho, como uma aproximação por parte dos indicadores
sociais, da consideração da variável espaço no estabelecimento dos focos aos quais se deveria
pôr esta atenção.
Desta maneira, no capítulo 3, procuramos caracterizar esta passagem havida em torno
da idéia da criação de indicadores sociais; no presente capítulo, tentaremos adicionar ao
cenário as pesquisas mais recentes, procurando vê-las como conseqüências desta tentativa de
superação. Por sua vez, se a crise é vista também como a expressão de uma desconsideração
da relação entre indicadores e espaço para o estabelecimento de uma base informacional, os
trabalhos que por uma via ou outra sofreram influência deste processo tornam-se os alvos
principais. Em outras palavras, foram escolhidos preferencialmente trabalhos que, ao alinhar e
analisar determinados indicadores sociais, procuravam justificar tal esforço, argumentando
sobre a necessidade da colocação desta análise através de conceitos advindos da Geografia ou,
pelo menos, de sua consideração dentro de determinado recorte.
O resultado, porém, busca caminhar no sentido da superação de um discurso
exclusivamente geográfico sobre a questão. Já é reconhecido o desnível nas atenções, quando
a intenção principal é a construção de formas de mensurar a realidade social. Não é novidade
dizermos que, neste caso, o campo econômico tem polarizado a discussão, principalmente, no
que diz respeito à proposição dos conceitos que serão mensurados ou das metodologias que
guiarão esta mensuração. Por outro lado, este estudo trabalha com a idéia de que o melhor
caminho no rumo à superação deste desnível não reside necessariamente em uma
contraproposta advinda exclusivamente do campo antropológico, sociológico ou geográfico,
funcionando estes, por exemplo, como uma espécie de contraposição ao convencional.
Pressupomos que, até mesmo aqueles que trabalham em uma perspectiva de “desconstruir” a
proposta dos indicadores sociais, deverão fazê-lo a partir de uma alternativa que abarque o
social de maneira mais ampla que aquela advinda exclusivamente do pólo econômico. Dessa
forma, mesmo estes últimos teriam boas razões pelas quais considerar a introdução de novos
olhares sobre a mensuração do social com atenção redobrada.
Embora admitamos que seja altamente discutível tal mensuração, esta discussão traz
embutida, dentro de si, uma série de outras questões, conforme visto até aqui. Neste debate,
estão postas questões como a estatística e seu papel no estudo do social, o papel ideológico
que o instrumental analítico das ciências sociais acaba cumprindo, além do desprezo (que os
formuladores deste instrumental acabam legitimando) para com quaisquer fontes que não
sejam as “científicas” na mensuração deste social. E isto para atermo-nos a uma visão mais
imediata do universo de discussões que envolve os indicadores sociais.
Assim, não estamos, pelo menos de imediato, assumindo uma postura de adesão ou de
ataque aos indicadores, embora sejam evidentes os problemas ligados à sua adoção. Por outro
lado, é preciso reconhecer que, se são buscados aperfeiçoamentos conceituais que lhes
repercutam favoravelmente ou a formulação de um projeto alternativo à tradicional
mensuração do social, em qualquer um destes dois casos, o espaço comum onde se dá o
diálogo entre cada campo científico na crítica aos indicadores parece ser uma alternativa bem
mais interessante ao avanço científico que os redutos exclusivos de cada campo.
O conceito de pobreza pode ser utilizado para examinar a potencialidade que assume
este diálogo como um ponto comum para onde podem convergir as mais diversas
contribuições. Ou seja: como se indica a pobreza de um lugar? E, (aí sim) a partir desta
indicação, como se geografiza a pobreza?
Neste sentido, a década de 1990 apresentou-se como um tempo em que as iniciativas,
com vistas a dimensionar o fenômeno desenvolvimento, têm ao menos suscitado o debate e a
busca por formas menos estreitas de compreensão da pobreza. O espaço tem sido uma destas
vias de apreensão, muito embora, como se tentará demonstrar aqui, ainda reste longo caminho
a ser percorrido para sua melhor incorporação. Milton Santos, já em 1978
70
, fazia uma crítica
a esta estreiteza ao apontar que:
70
SANTOS, (1978 b).
um fenômeno tão sintético e complexo não pode ser compreendido através do
estudo isolado de fragmentos de informações. Somente um exame do contexto,
responsável num dado momento por uma determinada combinação, pode ser de
alguma ajuda para a construção de uma teoria coerente e capaz de servir como base
para a ação (p. 10).
Para Santos, portanto, ao contrário do juízo corrente mesmo hoje em dia, haveria
diferentes tipos de pobreza conforme variassem os termos em que se dá sua aproximação.
Citando Buchanan (1972), Santos afirma que:
o termo pobreza não só implica um estado de privação material como também um
modo de vida – e um conjunto complexo e duradouro de relações e instituições
sociais, econômicas, culturais e políticas criadas para encontrar segurança dentro de
uma situação insegura (op. cit., p.10).
Vemos que há, aqui, uma recusa a qualquer afirmação de pobreza na perspectiva de
sua conceituação com base em valores monetários mínimos ou cálculos estatísticos, por mais
sofisticados que fossem, por vermos neste procedimento uma rigidez demarcatória,
incompatível com a natureza do fenômeno. Eduardo Luiz de Mendonça (2000) faz coro a este
posicionamento ao utilizar-se exaustivamente de uma safra de trabalhos advindos de um
período áureo do pensamento social brasileiro e cepalino
71
que, ao criticar o conceito de
marginalidade social, cuida de construir um conceito de pobreza “histórico-estrutural”,
baseado no processo de produção capitalista e na inserção da força de trabalho. A adoção
deste manancial põe Mendonça (2000) alinhado a posições que fogem de uma discussão da
pobreza por um viés superficial, que a observa meramente como uma disfunção de um
sistema encarregado de suprir o consumo de todos os membros de uma dada sociedade. Para
os que optam por esta fuga, a conceituação da pobreza passa a ser válida apenas quando posta
dentro do processo mais amplo de acumulação de capital. Isto, por sua vez implica, uma visão
que dialetiza (e não antagoniza) os setores mais modernos aos mais arcaicos da economia de
cada país. Daí, por que a caracterização da pobreza e das condições de vida dos trabalhadores
é buscada na própria forma como se dá sua inserção dentro do processo produtivo, e não
como o resultado de alguma deficiência em seus atributos individuais, notadamente, seu nível
educacional, de suas possibilidades de acesso ao mercado de trabalho ou, até mesmo, de seus
níveis de participação política que repercutem no atendimento de demandas junto aos centros
de decisão. (op. cit.).
71
Mendonça (2000) apóia-se, basicamente, em autores que tiveram um momento brilhante de suas produções
por volta das décadas de 60 e 70: Francisco de Oliveira, Fernando Henrique Cardoso, José Serra, Quijano,
Langoni, etc.
Desta forma, ao recorrer a esta perspectiva, o autor supracitado desqualifica qualquer
abordagem da pobreza por meio de indicadores que a registrem a partir da insuficiência de sua
renda ou do seu não-acesso a bens, serviços ou mercadorias. A crítica que advém de autores
em que se apóia Mendonça (ibid.) é um convite enfático à reflexão sobre a estreiteza da qual
padece boa parte dos trabalhos que estudam o social através de indicadores. De fato, se, por
um lado, não têm sido reduzidas as tentativas de estudar a pobreza partindo de “linhas
demarcatórias” – arbitrariamente traçadas com base em alguma carência de renda ou cestas de
mercadorias; por outro lado, também não tem sido reduzido o fogo aberto contra tais
iniciativas.
O objetivo aqui não é repisar tais críticas, já que se parte do pressuposto que esta
opção, antes de ser cientifica, é também uma opção política. Além disso, parece-nos que a
parcela de cientistas que condena a conceituação da pobreza partindo-se, meramente, de
“linhas”, arma-se de sólida argumentação que dá pouca margem a acréscimos ou reparos.
Contudo, mesmo à revelia de tal argumentação, tais trabalhos continuam a se apresentar e
talvez seja prudente pôr em pauta sua capacidade de colaborar para o diálogo ou para o
espaço comum, anteriormente aludido. Em outras palavras, podemos perguntar que tipo de
Geografia pode ser praticada com o estudo da pobreza a partir de sua caracterização por
insuficiência de rendas, mercadorias ou acesso a serviços.
Em 1993, por exemplo, o IPEA (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas)
publicava o Mapa da Fome, o qual ilustra bem as dificuldades advindas do posicionamento
descrito acima. Este trabalho assumia a quantificação das famílias indigentes por municípios,
de forma a fornecer as bases para o planejamento de ações voltadas ao combate à fome e à
miséria. A linha demarcatória para se estabelecer esta condição foi tomada a partir da renda
familiar que garantisse “a aquisição de uma cesta básica de alimentos capaz de satisfazer as
suas necessidades nutricionais” (IPEA, 1993a, p. 5). Uma metodologia tão rígida não é
tomada sem o pagamento de um pesado tributo, uma caracterização engessada da realidade
que, por vezes, trai seus construtores. Vejamos, por exemplo, a conclusão que o IPEA chega
na análise dos resultados do mapeamento da linha de indigência:
O Mapa da Fome permite [...] concluir que o problema não está na disponibilidade
global de alimentos, mas sim no desencontro geográfico entre a existência dos
produtos e a localização das famílias mais necessitadas. Quase 90 % da produção
localiza-se no Sul, Sudeste, porção meridional do Centro-Oeste, enquanto cerca de
60 % dos famintos habitam o Norte-Nordeste (op. cit., p. 6).
Comentar o mérito de reduzir a questão da fome à um pensamento tão simples quanto
temerário parece-nos absolutamente supérfluo. Mais proveitoso talvez seja tomar esta acepção
como um demonstrativo de que medidas da desigualdade interna de um país, de uma região
ou de uma cidade, sempre são importantes ao planejamento, ainda que os mapas de pobreza,
indigência, miséria, etc. pareçam sempre perder sua capacidade de “falar”, quando
construídos sobre metodologias que privilegiam linhas divisórias rígidas (ou simplistas) entre
os pobres e os não-pobres. O objeto em análise, a pobreza, quando deslocada do espaço social
que com ela interage, se não “emudece” completamente os mapas resultantes, no mínimo
rouba-lhes muito da qualidade de interagir com outras questões que não apenas a ausência de
renda.
A Nova Geografia da Fome e da Pobreza, de Velloso & Albuquerque (2004), parece
ser outra ilustração deste mesmo caso. Segundo estes dois autores, a permanência da questão
pobreza dentro da agenda nacional durante toda a última década acabou por propiciar além da
ampliação da base de dados estatísticos e um crescente acervo dedicado ao tema, também o
estabelecimento de pelo menos três consensos básicos sobre o problema: (1) uma constatação
de que as dificuldades na eliminação da pobreza estão vinculadas aos desníveis de renda, de
acesso à educação, de acesso a serviços públicos e sociais propiciados pelo Estado; (2) a
constatação da heterogeneidade da pobreza brasileira, decorrente da “dimensão territorial e
demográfica do país, dos grandes desequilíbrios regionais e do modo como se foi
historicamente configurando o complexo mosaico social brasileiro”. Esta diferenciação
exigiria políticas, monitoramentos e avaliações adaptados a estas diferentes “situações de
pobreza”; (3) por fim, um consenso quanto à “necessidade de focalização eficaz das políticas
anti-pobreza.”(p. 30).
É interessante verificar como Veloso e Albuquerque não poderiam assumir uma
posição mais contrária àquelas anteriormente destacados por Mendonça (2000). Não só
propõem um consenso absolutamente discutível em relação ao diagnóstico e trato da questão
pobreza, quanto elevam “ações focalizadas” à categoria de medidas com as quais se deve
tratá-la. Além disso, considera-se a pobreza um fenômeno heterogêneo e complexo enquanto,
ao mesmo tempo, elege medidas “focalizadas” para combatê-la.
Pouco adianta, uma vez construída a pobreza com base nestas premissas, propor seu
mapeamento na esperança da construção de uma “visão mais holística da pobreza extrema no
Brasil”
72
. Ainda que o título do trabalho faça alusão à obra de Josué de Castro (1959), é
72
Conforme a intenção de Sonia Rocha, p.35, na mesma obra organizada por Veloso & Albuquerque (2004),.
importante lembrar que Castro cria uma Geografia da Fome, provavelmente, porque não se
propõe à construção de linhas demarcatórias. Toda sua obra constrói uma percepção das
condições de vida a partir da interação entre seres humanos e meio ambiente que os circunda.
Como Mançano e Gonçalvez (2000)
deixam claro, ao comentarem a obra de Josué de Castro,
o conceito de fome tem para estes autores diversas conotações:
[...] fome como produto da dominação política, fome como conseqüência da
injustiça, fome como resultado da exploração econômica, fome como dependência,
fome física, fome espiritual, fome como alienação, fome como alimento de justiça,
fome como sede de lutar (MANÇANO & GONÇALVES, 2000, p.19).
Assim, a possibilidade de crítica, que advém de posicionamentos como os de Milton
Santos (1978 b), ou das hostes da CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina),
convida-nos à uma reflexão sobre os limites tremendamente estreitos dos quais padece uma
boa parcela de trabalhos mais recentes que fundamenta o estudo da pobreza partindo de linhas
demarcatórias muito rígidas.
4.2 Indicando o Desenvolvimento
Há, porém, que se destacar que esta constatação talvez não deva colocar no mesmo
grupo outras iniciativas de caracterizar a pobreza, tais como a da construção do Índice de
Desenvolvimento Humano. Para Mendonça (2000), ainda que esta proposta seja justificada
como a procura por uma nova concepção de desenvolvimento para o capitalismo, “tendo o
homem como centro e principal beneficiário”, na verdade, não passaria de mero diagnóstico,
visando não mais que o atendimento das carências básicas dos indivíduos. Esta, então, seria
uma noção que pouco ou nada difere daquela que propõe a construção de linhas de pobreza
com base na carência de renda, já que apoiada na idéia de que a implantação de políticas
sociais deve priorizar aqueles indivíduos que se acham em situação mais desfavorável. Ao fim
das contas, tudo se resumiria, como de resto sempre se resumiu, no ideário liberal da
igualdade de oportunidades, garantidas, hoje, através de políticas educacionais e de
qualificação da mão-de-obra, mas também de investimentos na área de saúde.
Em transcrição que resume o pensamento de Mendonça:
A igualdade de oportunidades para a livre competição dos indivíduos no mercado de
trabalho, em uma sociedade aberta e permeável à mobilidade social, via mercado de
trabalho, seria o mecanismo natural de promoção da equidade, com a pobreza
caracterizando-se por uma distribuição não equânime das oportunidades. Essa teria
sido a tônica principal dos trabalhos que caracterizaram, mediram e analisaram a
pobreza no Brasil nos anos 1990, sejam aqueles que se utilizaram das linhas de
pobreza, dos indicadores de carências básicas de bens e serviços coletivos ou da
combinação de ambos (op. cit., p. 176).
O apontamento de Mendonça (ibid.) não é improcedente, e documentos recentes,
inspirados nas mesmas máximas, ainda teimam em colocar a questão da pobreza ou do
desenvolvimento dentro dos mesmos termos, o que torna ainda mais pertinente a crítica já
destacada
73
. Neste sentido, a construção de um Índice de Desenvolvimento Humano pode ser
encarada como mais uma modalidade, dentre tantas, de monitoramento e controle das
políticas públicas, mas também de embaçamento (mais que esclarecimento) do conceito
pobreza ao reduzi-la à mera questão de aperfeiçoamento em mecanismos que garantam a
“eqüidade de oportunidades”. Em última análise, a produção mais conhecida de economistas
como Mahbu Ul Haq e Amartya Sen
74
não trairia sua filiação ao liberalismo em nenhum
momento.
Por outro lado, e apesar desta importante requalificação do IDH (Índice de
Desenvolvimento Humano), talvez possa existir alguma margem para se avaliar a proposta
dos autores supracitados de maneira mais condescendente que aquela feita anteriormente.
Pedro Demo (2004), por exemplo, ainda que anteponha ressalvas “quanto ao fundo
neoliberal
75
deste tipo de esforço”, reconhece tanto o nível acadêmico de grande excelência de
seus proponentes, quanto sua intenção em realizar uma crítica fundamentada aos atuais
modelos (op. cit.). Para isto, Demo, ao contrário de Mendonça (2000), não recusa a relação
estreita entre desenvolvimento e oportunidade enfatizada pelo IDH. Na verdade, o autor vê
nesta relação que o IDH estabelece o reconhecimento da preponderância dos fatores políticos
em sua “gestação e gestão” enquanto faz com que o crescimento econômico passe da
condição de finalidade a instrumento do desenvolvimento. Para Pedro Demo (2004),
inclusive, o relatório de 1997, ao incluir um Índice de Pobreza Humana (IPH), concentrando-
se em algumas variáveis específicas dentro dos países com os piores IDH’s
76
, introduziu “a
73
Ver por exemplo Vinod et al., 2002, trabalho financiado e editado pelo Banco Mundial em que medidas como
a liberalização dos mercados, a privatização do ensino universitário e a mera ampliação do número de vagas para
o ensino fundamental são preconizadas indiscriminadamente a todos os países que buscam o melhoramento de
seu desenvolvimento humano.
74
Sobre a participação de cada um destes dois economistas na construção da proposta do IDH, ver especialmente
o breve relato que Amartya Sen faz do convite de Mabun Ul Haq e dos debates havidos com este último,
contidos na apresentação do Relatório sobre o Desenvolvimento Humano de 1999 em PNUD(Programa das
Nações Unidas para o Desenvolvimento), 1999.
75
Na opinião do autor desta tese, Demo (2004) nunca deixa muito claro, pelo menos nesta obra, a que está se
referindo quando fala em “fundo neoliberal”.
76
Neste caso, o Relatório do Desenvolvimento Humano, de 1997, pesquisou o Índice de Pobreza Humana para
78 países “em desenvolvimento” (PNUD, 1997).
noção de pobreza política como pano de fundo mais duro do desafio do desenvolvimento”
(op. cit., p.60).
Por que Mendonça (2000) e Demo (ibid.) apresentam pontos de vista tão opostos? Um
fator importante para explicar esta contraposição é que Demo vê com outros olhos a questão
“oportunidade versus desenvolvimento”. Em princípio, poderíamos dizer que seu discurso não
se diferencia muito daquele já corrente nos tradicionais estudos do Banco Mundial: “Se
desenvolvimento é, sobretudo questão de oportunidade, à pergunta – o que melhor gesta
oportunidades? Segue como regra, a resposta: educação em primeiro lugar, ou seja, o
horizonte da cidadania”.
Mas ressalvas feitas, logo de imediato, em seu discurso, acabam compondo diferenças
significativas: “Não se trata apenas de gerar oportunidades, mas do sentido mais radical de
‘fazer-se oportunidade’, assumindo [neste caso, o pobre] o destino nas mãos.” (ibid., p. 60 e
61).
Demo, porém, alerta com propriedade para o fato de que esta geração de
oportunidades pode ser mal interpretada (e quase sempre ela o é) quando entendida, de novo,
como efeito de poder, como concessão, caridade, como inclusão, porém na margem do
processo de desenvolvimento e sustentáculo do privilégio de minorias. Ou seja, o “fazer-se
oportunidade” é a tradução direta do termo empowerment ou o processo emancipatório onde
os pobres são a figura central e decisiva, na condição de capacitado ao “desfrute igualitário
das benesses do sistema” (ibid., p. 62).
Para este caso, mesmo que não se concorde com a posição de Demo, será necessário
reconhecer que este autor remete a questão da oportunidade para bem adiante da avaliação
de rendas ou acesso a serviços. Amartya Sen (1992 b), por sinal um dos grandes responsáveis
pela criação do IDH, mostra que há nuances próprias em sua obra que parecem pretender um
vôo de maior alcance que aquele popularizado com o próprio IDH. O autor chega a tecer
considerações sobre a confusão entre a avaliação da “igualdade de capacidades” (que é
proposta sua) e a avaliação da igualdade de oportunidades que, talvez, tenha sido a versão
mais freqüente com a qual se interpreta o IDH.
Sen (op. cit.) frisa claramente que a observação do desenvolvimento pela comparação
das capacidades difere de se medi-lo pela igualdade de oportunidades
77
. Embora este autor
admita que a capacidade de uma pessoa para realizar seus objetivos em um sentido básico,
obviamente, representa a oportunidade que esta pessoa possui para realizar estes mesmo
77
Sobre esta distinção ver, especialmente, as páginas 37 e 38 de Sen, (1992 b).
objetivos, Sen argumenta que este último conceito tem sido padronizado na literatura corrente
sobre políticas sociais de maneira bastante limitada, sendo definido em termos da igual
disponibilidade de um recurso ou meio, ou mesmo da igual restrição ou acesso a bens e
benefícios. A igualdade no campo das capacidades (ou a “igualdade de liberdades
abrangentes”) não se dá através da igual distribuição de oportunidades entre as pessoas
porque: (1) os seres humanos diferem entre si, o que faz com que essas oportunidades sejam
aproveitadas de maneira desigual; e (2) dizer que renda e riqueza são igualmente oferecidas
não equivale dizer que todos têm a mesma oportunidade de aproveitá-las.
Posto desta forma, fica confuso tentar entender o que o autor quer dizer, com
“igualdade de capacidades” Assim, talvez um exemplo mais famoso, do qual Sen (1992 a,
1992 b, 1993) lança mão, seja mais eloqüente nesta explicação.
Sen parte dos raciocínios que decorrem do senso comum e que observam os pobres
dos países ricos como sendo relativamente mais bem posicionados em termos de nível de
renda que os pobres do mundo subdesenvolvido. Considerados em separado, de fato, os
negros dos EUA (Estados Unidos da América), por exemplo, apesar de possuírem uma renda
per capita bem mais baixa que seus compatriotas brancos, são bem mais ricos que os pobres
da China, do Sri Lanka ou da Índia. Se considerados em separado, inclusive, os negros dos
EUA seriam a 11ª nação do mundo em termos de PIB – Produto Interno Bruto, (SEN, 1999).
Contudo, na China ou no estado indiano de Kerala na Índia, os homens têm uma taxa
de sobrevivência maior que negros norte-americanos em qualquer faixa etária que se compare.
Mesmo as mulheres negras nos EUA, embora sejam muito mais ricas que as chinesas e ainda
mais ricas que as mulheres pobres de Kerala, apresentam, em faixas etárias mais elevadas, um
padrão de sobrevivência bastante semelhante entre si. Ou seja, Sen constatou, por estes dados,
que um negro americano possui uma chance absolutamente menor de chegar à idade adulta
que as pessoas que vivem em sociedades como a China, Sri Lanka ou partes da Índia, com
seus diferentes sistemas de saúde, educação e relações comunitárias.
Assim
[...] o fato, portanto, não é apenas que os negros americanos sofrem uma privação
relativa em termos de renda per capita em contraste com os americanos brancos,
mas também que eles apresentam uma privação absoluta maior do que a dos
indianos de Kerala, que têm baixa renda (tanto os homens quanto as mulheres), e
que os chineses (no caso dos homens), no aspecto viver até idades mais avançadas
(SEN, 1999, p.37).
A verdade é que existe dissonância entre a renda per capita e a liberdade dos
indivíduos para ter uma vida longa e viver bem. Os cidadãos do Gabão, da África do Sul, da
Namíbia ou do Brasil podem ser muito mais ricos, em termos de PIB per capita, do que os do
Sri Lanka, da China, ou do Estado indiano do Kerala, mas, neste segundo grupo de países, as
pessoas têm expectativas de vida substancialmente mais elevadas do que no primeiro grupo
(VEIGA, 2005).
Na explicação ao “sucesso de Kerala”, Sen (1992 b) não trai o viés liberal do qual
descende:
A explicação [...] tem de ser buscada na história da política pública envolvendo a
educação (incluindo a alfabetização das mulheres) e serviços de saúde (incluindo
cuidados médicos comunitários) e, em certa medida, a distribuição de alimentos
(incluindo o uso da manutenção pública do consumo de alimentos tanto da
população rural quanto urbana), em contraste com o resto da Índia (op. cit. p. 195).
Mas há certa margem de manobra, deixada por conta do fato de que Sen menciona
outros fatores como “uma posição mais favorável das mulheres quanto aos direitos de
propriedade e às heranças”, a maior ativismo político, além de seu envolvimento em
campanhas pela educação.
É ilustrativo que Amartya Sen (op cit.) intitule a parcela do capítulo do qual se extraiu
esta última citação como “os contrastes inter-regionais”. Se a perspectiva do autor é levada
em consideração, podemos entender melhor por que o espaço acaba se tornando importante
aliado em análises mais recentes sobre a pobreza. Não o espaço no sentido físico, elemento
estático e mero repositório das ações dos homens. Mas espaço como relação social,
corroborando a assertiva anterior de Milton Santos (1979) sobre a pobreza como um conjunto
complexo de relações. Ora, acredita-se que Demo (2003) chama a atenção para algo
importante quando fala em “fazer-se oportunidade”. Daí, por que, para que se possa fugir de
uma consideração da pobreza como mera ausência de renda ou mercadoria, será necessário se
fugir também da consideração de sua espacialidade de maneira mais primária e incorporar
uma discussão sobre o poder que os pobres possuem (ou deixam de possuir) em “se fazer
oportunidade” na sua relação com o espaço.
O lugar, então, faz toda a diferença
78
. Esta é uma proposta que toca em questões
importantes, quando o estabelecimento de parâmetros para se medir o social está em jogo. A
crítica ao conceito de pobreza absoluta e às linhas de pobreza nos remetem à consideração –
entre outras variáveis – do espaço no estabelecimento de indicadores sociais. Por outro lado,
aquilo que se levantou como fruto de uma relação complexa leva-nos a questionar esta
espacialização como mero exame de distribuições ou acessos.
78
Sen (s.d.) apud KOGA, 2003, p. 30.
Não é, também, mera questão da escala em que se dá cada recorte espacial. Os
indicadores sociais então, não deverão juntar-se ao espaço apenas ao final de seu processo de
construção senão, antes, deverão compor o processo de construção em si. Incorporam-se,
assim, as duas frentes de luta: a luta que se dá ao nível concreto pela distribuição de
investimentos dentro do espaço e a luta política por uma representação deste espaço que não
cerceie, porém, antes, viabilize o poder das classes subalternas em “fazer-se” não mais apenas
oportunidade, conforme Demo já disse, mas história.
4.3 Território e Indicadores Sociais
Agora, já podemos verificar com mais segurança porque o território vem se
convertendo em um conceito do qual, recorrentemente, diversos autores lançam mão em
trabalhos que buscam dar essa nova dinâmica aos indicadores sociais. Um conceito que pode
se mostrar como importante aliado na mensuração do social, dada sua aptidão em evidenciar a
multidimensionalidade que esta mensuração implica. Dirce Koga (2003) cita alguns trabalhos
surgidos nas décadas de 1990 e 2000 como legítimos representantes de uma linhagem nova
que persegue a construção de “medidas sociais territoriais”. Tais trabalhos, segundo a autora,
repercutiriam uma desatenção já evidenciada por Boaventura de Souza Santos (2000):
Todos os conceitos com que representamos a realidade e à volta dos quais
construímos as diferentes ciências sociais e suas especializações, a sociedade e o
Estado, o indivíduo e a comunidade, a cidade e o campo, as classes sociais e as
trajetórias pessoais, a produção e a cultura, o direito e a violência, o regime político
e os movimentos sociais, as identidades nacionais e o sistema mundial, todos estes
conceitos têm a contextura espacial física e simbólica, que nos tem escapado pelo
fato de os nossos instrumentos analíticos estarem de costas viradas para ela, mas
que, vemos agora, é a chave da compreensão das relações sociais de que se tece cada
um destes conceitos. Sendo assim, o modo como imaginamos o real espacial pode
vir a se tornar na matriz das referências com que imaginamos todos os demais
aspectos da realidade (apud KOGA, 2003, p. 21).
Esta atitude, de dar relevância a um aspecto que recebia menos iluminação, exige nova
postura diante do conceito que pode preencher este requerimento, o conceito de território.
Parece haver consenso diante da constatação de que categorias novas devem ajudar a compô-
lo. Assim, Koga (2003), imbuída desta perspectiva, lança mão de Santos (2000)
79
, que associa
este conceito à categoria uso. Para Santos, o território só se torna conceito “utilizável para a
análise do social, quando o consideramos a partir de seu uso, a partir do momento em que o
pensamos juntamente com aqueles atores que dele se utilizam”, (apud KOGA, 2003, p.35).
79
SANTOS, (2000), apud Koga, 2003.
Esta é uma proposta muito interessante e Haesbaert (2004), comentando esta mesma
ligação, território e uso, lembra que, a partir dela, Santos et al (2000)
80
distingue o território
usado pelos atores hegemônicos como recurso ou a garantia de realização de seus interesses
particulares. Para os atores hegemonizados, trata-se de “um abrigo, buscando constantemente
se adaptar ao meio geográfico local, ao mesmo tempo em que recriam estratégias que
garantam sua sobrevivência nos lugares”. Ora, esta lembrança de Haesbaert parece mostrar a
precariedade dos instrumentos das Ciências Sociais, no sentido de conceber o território como
abrigo.
Na mesma perspectiva, Koga (2003) introduz diversos pensamentos que, de certa
maneira, apontam para direções similares no exame do território. Afora o próprio Santos, que
liga o conceito de território ao “uso”, Di Méo (1996)
81
é citado porque explora o cotidiano
como elemento que pode infundir uma qualidade de maior proximidade entre o conceito de
território e as práticas cotidianas “dos sujeitos em torno de seus locais de moradia, de trabalho
ou mesmo de lazer”. Há ainda a introdução de reflexões sobre o conceito de lugar ou
comunidade como auxiliares a este mesmo projeto de captação do território como síntese das
relações mais estreitas que a população mantém com seu “espaço vivido”. Embora Koga faça
ressalvas à associação direta entre a “dimensão territorial e a dimensão comunitária” que
parece sempre prevalecer.
Este “movimento” na direção do local, do lugar, do cotidiano, da comunidade não
chega a ser novidade. Vem na esteira de um processo de valorização da governança local que
toma corpo, a nível mundial, já em finais da década de 70 e, no Brasil, tem seu ponto
culminante marcado pela promulgação da Constituição de 1988, amplamente
descentralizadora, sob o ponto de vista administrativo pelo menos
82
. E, nesta busca, é
interessante notar como a investigação de algumas propostas que, no entender de Dirce Koga
(2003), auxiliam na proposição do território como viabilizador desta aproximação, tornam
claras as limitações que ainda precisam ser vencidas. Na revisão, a autora se debruça
especialmente sobre trabalhos ou experiências que, ao construir indicadores sociais ao nível
intra-urbano, “se apresentam como um novo modo de compreender a dinâmica das cidades
brasileiras, colocando na desagregação territorial um elemento fundamental capaz de
possibilitar medidas geossociais” (op. cit., p.81). Aposta a autora, especialmente, na análise de
80
SANTOS, (2000) apud Haesbaert (2004), p. 58 e 59.
81
Di Méo, (1996) apud Koga (2003), p. 36.
82
Ver página 59 do referido livro de Koga (2003).
trabalhos como: O Mapa da Exclusão Social da cidade de São Paulo
83
; o Mapa da Pobreza de
Curitiba
84
; o Mapa da Exclusão social de Belo Horizonte
85
; O Índice de Qualidade de Vida de
Urbana de Belo Horizonte
86
; Desenvolvimento Humano sustentável no Recife
Metropolitano
87
; o IDH do Rio de Janeiro
88
.
Ocorre, porém, que se a descentralização administrativa, como a própria prática
política comprovou, em tempos mais recentes, não garante por si só a democratização das
decisões sobre a distribuição de benefícios dentro do espaço, a desagregação espacial dos
dados também não pode funcionar como garantia de aproximação ao “território usado”. Um
problema que desponta logo de início, tendo em vista o objetivo de “discutir a introdução da
variável território no exame da realidade para produção de políticas públicas voltadas para
inclusão social” (ibid., p. 19) é que Koga, mesmo em vista deste objetivo, não consegue
extrair dos trabalhos selecionados uma discussão mais aprofundada sobre este mesmo
conceito.
É interessante notar como uma associação tão direta entre território e nível de
desagregação faz com que a discussão sobre a espacialização dos indicadores sociais acabe
por deslizar para uma discussão sobre os níveis dessa desagregação. Isto deixa uma margem
reduzidíssima à avaliação das conseqüências advindas da adoção de conceituações que
procurem captar o território para além do mero recorte espacial. Marcelo Lopes de Souza
(1995), por exemplo, ao recusar uma conceituação simplista que associa diretamente território
e Estado, pontua que os territórios podem ser multiescalares e multidimensionais, podendo
inclusive ser concebidos para além de uma associação direta ao solo. Ao conceituar território
como “um campo de forças, as relações de poder espacialmente delimitadas e operando,
destarte, sobre um substrato referencial” (op. cit, p. 97), Souza desloca o centro das atenções,
na constituição de territórios do Estado, para a rede de relações sociais que pode engendrar
relações de poder tendo o espaço como mediação. Assim, o autor supracitado nos faz pensar
não só sobre a contigüidade territorial, mas também sobre a coexistência de territórios
conforme variem estas relações (econômicas, culturais, políticas, etc.).
Estes apontamentos de Souza, embora polêmicos em sua forma de encarar o meio
físico na sua relação com o território, já são demonstrativos das diversas perspectivas pelas
quais este conceito pode ser utilizado na análise dos indicadores sociais. Em uma importante e
83
SPOSATI, Aldaísa (coord.). Mapa da Exclusão Social da cidade de São Paulo. São Paulo: Educ, 1996.
84
Ufpr, Ipardes, Ippuc. Mapa da Pobreza de Curitiba. Ufpr, Ipardes, Ippuc, 1997.
85
PMBH. Mapa da Exclusão social de Belo Horizonte. PMBH, 1999.
86
PMBH. Índice de Qualidade de Vida de Urbana de Belo Horizonte. PMBH, 1999.
87
PNUD et al. Desenvolvimento Humano sustentável no Recife Metropolitano. Recife: Pnud, 2000.
88
PNUD, IPEA, Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro. IDH do Rio de Janeiro. RJ, 2001.
exaustiva revisão do conceito de território feita por Haesbaert (2004), podemos, a título de
ilustração, destacar dois autores que mais recentemente têm exercido considerável influência
no debate sobre as formas de apreendê-lo. Para Sack (1986):
a territorialidade, esta qualidade necessária para a construção de um território, é
incorporada ao espaço quando este media uma relação de poder que efetivamente o
utiliza de forma a influenciar e controlar pessoas, coisas e/ou relações sociais –
trata-se, simplificando, do controle de pessoas e/ou recursos pelo controle de uma
área. A fronteira e o controle de acesso, portanto, são atributos fundamentais na
definição da territorialidade defendida pelo autor ( apud HAESBAERT, 2004, p.86).
Do mesmo modo, Raffestin (1993) é citado por centrar sua atenção sobre as relações
entre espaço e poder concebidas de uma maneira bastante ampla, na caracterização do
território. Para Raffestin (op cit.), o território é “um trunfo”, um suporte à consecução das
ações pretendidas por indivíduos ou grupos. Estes atores preenchem de vida estes trunfos e
tornam o território um campo de ação dos próprios trunfos, convertendo-se, ele mesmo, o
território, em trunfo também.
Por fim, o próprio Haesbaert (2004), ao propor o território tal qual os autores citados,
como “mediação espacial de poder”, propõe-no como um resultado
da interação diferenciada entre múltiplas dimensões desse poder, desde sua natureza
mais estritamente política até seu caráter mais propriamente simbólico, passando
pelas relações dentro do chamado poder econômico, indissociáveis da esfera
jurídico-política (p.93).
Qual a importância desta breve digressão em torno do conceito de território?
Em primeiro lugar, permite desvendar o conteúdo político no próprio ato de
proposição de determinado recorte territorial. Assim, se – como bem nos mostram as
conceituações destacadas – múltiplas territorialidades não só se justapõem mas podem
inclusive conviver ou se superpor, então, o ato de proposição de um recorte é também a
escolha por se viabilizar determinadas representações enquanto se inviabilizam outras. Já se
haviam feito algumas incursões neste tema, tendo em vista as reflexões propostas no capítulo
2 sobre a escolha de variáveis a serem tomadas, os indicadores sociais como sendo atos de
poder. Estas afirmações estão sendo examinadas, considerando que escolhas por determinadas
variáveis tendem a criar ou reforçar determinados territórios em detrimento de outros.
Em segundo lugar, estas reflexões acabam exigindo uma associação mais refinada
entre os indicadores sociais e o fenômeno da territorialização. Se a ênfase que Souza (1995),
Sack (1986), Raffestin (1993) ou Haesbaert (2004) estabelecem, propondo o território como
uma mediação espacial do poder, são tomadas como corretas, então, o exame da pobreza, por
exemplo, tendo por base a territorialidade, implica observá-la sob a perspectiva da perda de
poder sobre o espaço (ou uma desterritorialização), ainda que possamos conceber a
possibilidade de ampliação do exercício de uma outra territorialidade.
Já que o conceito de pobreza tem acabado por se apresentar muito mais como barreira
que propriamente como uma ponte à indicação do social, como já se demonstrou
anteriormente, uma grande atenção tem sido posta na associação direta entre o par
territorialização/desterritorialização e um outro binômio que é admitido como sua outra face:
a relação inclusão/exclusão social. É o mesmo Haesbaert (2004) que alerta para alguns
aspectos que devem ser observados nesta associação. Primeiro, porque, como bem aponta o
autor, desterritorialização, ao contrário da exclusão social, pode não ser empregado apenas no
sentido negativo do termo. Em segundo lugar porque, uma vez que o território pode ser
multidimensional e multiescalar, pode-se admitir a concomitância, por exemplo, de processos
de desterritorialização no sentido simbólico-cultural e processos de territorialização
econômico-política para o mesmo grupo de indivíduos
89
.
Contudo, ainda que observemos estas ressalvas, surge um manejo mais interessante do
conceito de exclusão quando posto em paralelo à desterritorialização. Não haveria, conforme
aponta o autor citado, uma desterritorialização entendida como aniquilação da influência que
o espaço exerce sobre os homens sem um concomitante processo de reterritorialização, muito
embora este possa se dar sobre bases diferenciadas da territorialização anterior.
O comparativo às posições de José de Souza Martins que, de modo análogo, nega a
existência de uma exclusão social completa, é inevitável. Para Martins (1997), há que ser feita
a crítica à concepção corrente de exclusão, deslocando a discussão para, esta sim, a verdadeira
questão: as formas de inclusão. Formas pobres, insuficientes e, até mesmo, indecentes de
reincluir os que, em um momento anterior, foram excluídos (op. cit.). Nas palavras do autor:
“A sociedade capitalista desenraiza. Exclui, para incluir de outro modo, segundo suas próprias
regras, segundo sua própria lógica. O problema está justamente nessa inclusão” (op. cit.,
p.32). Martins, por este raciocínio, indica a existência de processos paralelos de inclusão
econômica e exclusão social, moral e até política.
Da mesma forma, Haesbaert (2004) postula que também não se pode admitir uma
situação de exclusão ou privação territorial completa, isto é, uma desterritorialização no
sentido absoluto do termo
90
.
89
Sobre tais ressalvas, ver em especial as páginas 312 e 313 de HAESBAERT ( 2004).
90
“pelo menos durante uma período razoável de tempo” (op. cit., p. 315).
Desterritorialização, se é possível utilizar a concepção de uma forma coerente,
nunca ‘total’ ou desvinculada dos processos de (re)territorialização, deve ser
aplicada a fenômenos de efetiva instabilidade ou fragilização territorial,
principalmente entre grupos socialmente mais excluídos e/ou profundamente
segregados e, como tal, de fato impossibilitados de construir e exercer efetivo
controle sobre seus territórios, seja no sentido de dominação político-econômica,
seja no sentido de apropriação simbólico-cultural (p.312).
Uma imbricação que, como o autor frisa, é bem menos óbvia do que se pensa e requer
uma contextualização histórica e geográfica, dado seu caráter multidimensional. Isto talvez
possa oferecer um caminho a formas novas de se contemplar os estudos sobre a exclusão
social e que, por vezes, tocam em sua espacialização. No Atlas da Exclusão Social
(POCHMANN et al., 2004), por exemplo, propõe-se este conceito como sendo passível de ser
visto em dois momentos. Uma “velha” exclusão que é definida como: “a forma de
marginalização dos frutos do crescimento econômico e da cidadania, expressa pelos baixos
níveis de renda e escolaridade, incidindo mais freqüentemente sobre os migrantes,
analfabetos, mulheres, famílias numerosas e a população negra” (op. cit., p. 43, v. 2). E uma
“nova exclusão”:
um fenômeno de ampliação de parcelas significativas da população em situação de
vulnerabilidade social, e também as diferentes formas de manifestação da exclusão,
abarcando as esferas cultural, econômica e política. Esta nova exclusão atinge
segmentos socais antes relativamente preservados do processo de exclusão social,
tais como jovens com elevada escolaridade, pessoas com mais de 40 anos, homens
não negros e famílias monoparentais (ibid., p.49, v.2).
O espaço retratado aparece, então, como uma colcha de retalhos em que espaços de
inclusão ou “acampamentos de inclusão” aparecem justapostos a espaços de exclusão ou à
“selva que ameaça engolir estes acampamentos”, como recortes feitos a partir de barreiras
invisíveis em que o grande ganhador é, por exemplo, o mercado imobiliário. Mas, como
ficaria este cenário se tomássemos também como indicador a capacidade dos indivíduos em
fazer destes recortes também seu território?
Haesbaert (2004) aponta nesta direção ao propor um índice de mobilidade que bem
poderia ser visto também como um “índice de exclusão ou de desterritorialização”. Investindo
nesta idéia, que é tremendamente interessante, podemos ver a exclusão e a perda do território
tanto na mobilidade quanto no imobilismo de determinada população. Ou seja, conforme o
Atlas da Exclusão Social (
POCHMANN & AMORIN, 2003) desenha seu objetivo principal levado
a cabo em 5 volumes:
[...] ao debruçar-se sobre a fragmentação socioeconômica do território nacional, o
estudo na forma de um Atlas torna possíveis localizar geograficamente as regiões
relativamente mais excluídas do país e identificar algumas de suas principais
carências, desenhando com clareza a necessidade de ações prioritárias em diferentes
regiões (op. cit., p. 13, v. 1).
Podemos perguntar: qual será a capacidade da população em resistir às pressões e
permanecer em seu território, uma vez feitos estes investimentos? Investimentos em áreas
críticas podem ser associados a territorializações?
Em interessante artigo sobre a adoção do discurso da qualidade como uma nova
retórica conservadora que se contrapôs às preocupações com a democratização dentro do
campo educacional, Pablo Gentili (1994) nos fornece alguns subsídios para ilustrarmos
melhor estes últimos questionamentos. Segundo este autor, o discurso da qualidade começou
a substituir, em finais da década de 80, as reivindicações pela democratização dentro do
ensino. Um fenômeno que, com uma ou outra nuance diferencial, atingiu quase toda a
América Latina. Assim, Pablo Gentili mostra-nos como, paulatinamente, as discussões em
torno de questões como análise de modelos teóricos ou preocupações com a democratização
com qualidade que deveriam orientar a novas políticas públicas no setor educacional foram
sendo substituídas por debates cada vez intensos em torno da qualidade, da eficiência ou da
produtividade na educação. Exemplo desta nova ênfase seriam os indicadores desta qualidade,
tais como: os custos que cada aluno significa, as taxas de reprovação, evasão escolar, etc.
Com isto, porém, o autor habilmente não refuta a qualidade como uma discussão importante
dentro do meio educacional, mas sustenta que : “não existe um critério universal de qualidade
(ainda que os intelectuais reconvertidos assim o pretendam). Existem diversos critérios
históricos que respondem a diversos critérios e intencionalidades políticas” (op. cit., p.172).
Pois bem, não estariam nestas colocações de Gentili, que não contrapõem qualidade e
democratização, uma boa pista para analisarmos a questão educacional pelo viés do território?
Desta forma, podemos imaginar um distanciamento dentro da relação que uma escola possa
ter com uma comunidade como uma perda de território e, por conseguinte, da possível
qualidade da educação que esta possa desfrutar. Nesta aproximação, não estamos apenas
falando da eleição do diretor desta escola fictícia, mas de seu projeto pedagógico, das
possibilidades que se oferecem à comunidade para debater e decidir no orçamento estadual ou
municipal os investimentos que se farão. Pode-se imaginar a própria comunidade
determinando seus indicadores de territorialização como a expressão da qualidade da
educação que ela espera alcançar e a inclusão da escola como parte do território de uma
comunidade como um indicador bastante interessante da qualidade de sua educação.
CONCLUSÃO
Buscamos, inicialmente, identificar os momentos mais significativos na constituição
das principais propostas que guiaram a construção do conceito de indicador social, bem como
o estabelecimento dos seus objetivos. Tendo em vista este propósito, efetuamos um
levantamento e triagem dos principais referenciais teóricos que alimentaram e justificaram
esta construção, pondo-nos em contato com um saldo tão rico quanto ainda pouco refletido no
âmbito da Geografia. Autores como Bauer (1966), Land (1971) ou Carley (1985), além de
organizações governamentais como o Ministério da Saúde norte-americano ou o IBGE, foram
alinhados para fornecer conceituações que, de forma geral, convergem para uma posição que
considera os indicadores sociais uma operacionalização, em geral quantitativa, de um conceito
que não pode ser mensurado diretamente.
Por outro lado, os debates reduzidos havidos em torno das causas da emergência de
um instrumental como os indicadores sociais acabaram por favorecer sua observação,
meramente, como um fruto derivado das insatisfações com as estatísticas econômicas na
abordagem do social. Esta insatisfação, conforme procuramos demonstrar, revela apenas parte
do cenário que circunstanciou o surgimento dos indicadores sociais.
Esperamos ter evidenciado que os indicadores sociais são também a expressão de uma
fase do capitalismo marcada pela crise do Estado de Bem-Estar Social e de suas repercussões
tanto no mundo desenvolvido quanto nos países subdesenvolvidos. Do mesmo modo, o
recente renascimento destes indicadores, na década de 1990, demonstra que as idéias que
orientaram o papel destes últimos, a escolha das variáveis ou até mesmo as formas de
mensurá-las representam as respostas que o próprio modo de produção vem procurando dar às
suas questões internas.
Assim, procuramos deixar claro que o exame restrito das variáveis em si, sejam elas
econômicas ou sociais, atidas aos aspectos objetivos ou subjetivos da realidade, tem
apresentado poucas oportunidades para que o debate evolua. Um caminho que parece se
apresentar como bem mais profícuo parece ser o exame de alguns legados teóricos que os
indicadores sociais vêm incorporando. Neste sentido, a abordagem da influência que a ciência
econômica (e, dentro dela, de sua corrente utilitarista) assim como da Sociologia (mais
especificamente da chamada Escola de Chicago) são caminhos que se mostram
impostergáveis. Estas duas esferas de influência, não incidiram apenas sobre a escolha das
variáveis através das quais se tem estudado o social. Tais esferas têm também funcionado
como uma espécie de matriz de pensamento que influencia decisivamente no papel que os
indicadores têm exercido, embora muitas vezes sem a devida explicitação.
A característica conseqüencialista que o utilitarismo possui, por exemplo, tem
colaborado para a observação de cada variável como o resultado capaz de demonstrar a
eficácia das ações tomadas no sentido da promoção do desenvolvimento, da qualidade de vida
ou do nível de vida. Em função disto, estão estes indicadores amparados por um arcabouço
teórico que os põe a serviço da métrica destas conseqüências, tendo este amparo teórico pouca
ou nenhuma sensibilidade às variações internas aos grupos avaliados, assim como não se
oferece facilmente a intervenções por parte destes últimos.
Da mesma forma, fica patente que a influência que a Escola de Chicago acabou
exercendo se revela nas dificuldades que estas análises têm ao lidar com temas como a
democracia, com a qual se constroem tais sistemas de avaliação, a participação que os
avaliados terão nesta construção ou a liberdade como uma preocupação a ser explorada nestas
mensurações. Daí, por que os indicadores sociais parecem ter uma facilidade muito grande em
retratar desigualdades sociais através da mortalidade infantil, da renda per capita ou da
esperança de vida de uma população, mas revelam pouca intimidade no trato de temas como o
grau de democracia embutido nas ações que originaram tais conseqüências ou a liberdade da
qual desfrutam as pessoas que são alvo das mensurações.
Tendo em vista estas duas esferas de influência, fica mais fácil compreender por que o
IBGE (1979) delineou três críticas dos sistemas de indicadores que até ali haviam sido
construídos:
uma concepção “fechada” do social, ou seja, propunham-nos como algo
separado do mundo econômico ou do mundo político, (e aqui poderíamos facilmente
acrescentar o mundo natural);
a excessiva vinculação dos indicadores ao planejamento;
a excessiva atenção dos indicadores sociais aos aspectos objetivos e
mensuráveis da realidade social.
A esta altura, talvez fosse o caso de se perguntar se poderiam ter sido outras
fragilidades, que não exatamente estas, os aspectos que mais ficariam expostos a críticas. Em
outras palavras, o espírito existente na proposta dos indicadores sociais mostra, desde o início,
sua função muito clara – anteriormente dentro do Estado de Bem-Estar Social – , hoje, dentro
da formas mais modernas de administração das políticas públicas, nos moldes liberais.
Um aspecto complicador deste cenário é que estas dificuldades parecem ter sido alvo
de pouca consideração quando da adoção dos indicadores sociais por ciências que ainda
achavam-se mais afastadas do debate em torno de sua elaboração. Por conseguinte, a
Geografia poderia ter incidido mais proveitosamente sobre estas dificuldades, se tivesse
debatido a herança que os indicadores carregam consigo.
Uma vez caracterizadas as circunstâncias em meio às quais os indicadores sociais
foram constituídos, ficou como segunda tarefa tentar captar as formas de sua abordagem e
utilização pela ciência geográfica. Tendo em vista que se tomaram como base os indicadores
conforme sua versão mais acabada, que surgiu apenas em meados da década de 1960, ficaram
desprezadas nestas considerações quaisquer experiências anteriores que poderiam ser
incluídas, caso a conceituação fosse menos limitada. Embora restringindo bastante as
discussões sobre os indicadores sociais, as esferas mais relacionadas ao Estado e seus
problemas de planejamento, este sentido mais estreito facilitou não só a demarcação do
campo de estudo, mas também a caracterização do uso de indicadores sociais pela Geografia.
Podemos apontar, logo de início, o desnível entre a importância que este instrumental
comporta para a realização de uma ciência diretamente interessada no espaço com suas
desigualdades e a baixa profundidade das reflexões que embasaram a adoção dos indicadores.
Mereceriam considerações mais acuradas, que infelizmente não puderam ser feitas neste
trabalho, sobre, por exemplo, o distanciamento entre o centro do Movimento dos Indicadores
e a Geografia. É sintomático que obras de importância capital a este movimento, embora
contenham contribuições advindas das mais diversas áreas, não guardem intervenção alguma
advinda da Geografia, ainda que geógrafos, à moda dos sociólogos, já tivessem circulação
dentro dos órgãos de planejamento norte-americano.
Isto, por sua vez, contribui para uma adoção inadequada dos indicadores sociais que
subestima seu papel na racionalização do espaço, tomando-o como mera informação
estatística e desprezando seu papel como objeto técnico que facilita e constrange pensamentos
e ações, tanto do Estado quanto dos movimentos populares. Esta é uma distração que as
classes dominantes não cometem, cuidando de pôr a campo, todos os dias, seus técnicos para
demonstrar como não se pode pensar a questão social para fora dos estreitos muros que os
indicadores acabam erigindo.
É claro, porém, que não existe um objeto puramente técnico, já que este é transpassado
por usos que vão além daqueles que a racionalidade lhes confere. O fato de defendermos que
o indicador social é um objeto técnico, não quer dizer que seja um objeto que se sirva à
atividade técnica e apenas por ela seja influenciado. É necessário esclarecer a relação dialética
que este instrumental mantém com as outras forças sociais que infundem vida a cada objeto
contido no espaço. Será, contudo, sempre importante frisar este papel que os indicadores
sociais acabam assumindo e que, argumentamos, deve ser considerado pela Geografia para
aumentar a importância de sua adoção e dos procedimentos ligados à sua construção.
Por outro lado, ainda que a Geografia já dispusesse de avanços conceituais que
poderiam repercutir num aprimoramento da proposta de construção dos indicadores, foi
bastante reduzido este aproveitamento. O conceito de necessidade que havia se servido à
corrente ambientalista da Geografia é um destes debates que bem poderia ter sido transposto
às cercanias dos indicadores sociais.
Em princípio, o convite a uma discussão como esta pode soar de certa forma
ultrapassado, tendo em vista que muitos argumentam a favor da destruição dos lugares e
territórios pelos avanços tecnológicos nas mais diversas áreas. Haesbaert (2003) parece
reforçar este convite quando afirma que, mesmo o enfraquecimento da “mediação
espacial/material nas relações sociais, em seu sentido mais elementar e concreto, é
absolutamente questionável. Alguns autores, ao enfatizar sobremaneira suas análises sobre o
aumento da velocidade e dos processos de homogeneização cultural, prestam pouca ou
nenhuma atenção a novos processos que “reenfatizam” uma base geográfica material, a
começar pelos que envolvem questões ecológicas (desflorestamento, erosão, poluição, efeito
estufa) e de acesso a novos recursos naturais (como aqueles ligados à biodiversidade),
questões ditas demográficas e de difusão de epidemias, questões de fronteira e de controle de
acessibilidade (como os fluxos migratórios), novas lutas nacional-regionalistas de forte base
territorial.” (p.26).
Como ficaria esta discussão se incluíssemos a questão das necessidades, uma vez que
estas se relacionam de modo estreito ao espaço em que se dão estes processos tão bem
nomeados por Haesbaert (op. cit.)? Que legitimidade contém as análises que buscam avaliar
comunidades sem considerar a relevância da questão das identidades territoriais? Será que
buscam avaliar aquilo que é realmente importante? E, mesmo passando por cima desta
discussão sobre necessidades, será que focalizam sua atenção sobre os indicadores mais
adequados àquela comunidade?
Tentamos, ainda, apontar que um outro fator que colaborou para um encontro pouco
fecundo reside numa adoção algo mistificada da estatística. Encarada em princípio, conforme
demonstraram exaustivamente Santos (1978 a) ou Moraes (1983), como uma espécie de
redenção da Geografia à quantificação, adotada como um bloco coeso, as estatísticas não
tiveram cada um dos processos que compõem sua construção e julgamento devidamente
criticados. Desta atmosfera parecem resultar debates bem pouco fecundos, tais como: a
contraposição entre as vantagens de se utilizar indicadores objetivos (passíveis de
quantificação) e subjetivos (não quantificáveis) sem olhar para o norteamento ético que estes
indicadores afiançam.
A intenção de tentar propor os indicadores sociais como um objeto técnico, fruto da
prevalência de determinada racionalidade, embora guarde consigo um resgate às negligências
que se deram quando de sua adoção pela Geografia, teve, no entanto, a vantagem de evitar o
obscurecimento de outras influências que podem ser exercidas sobre tal objeto. Assim, se o
indicador tem uma função precípua na criação de um espaço racional, auxiliando na
conformação de pensamentos e ações, por outro lado, foi necessário anotar que outras esferas
de influência também atuam na constituição deste objeto técnico.
A incursão feita no campo das reconstruções estatísticas, propondo-as como fruto de
negociações havidas numa arena de equivalências, já havia demonstrado que o processo de
substituição de conceitos por estatísticas não se faz sem um acordo mínimo entre as partes
envolvidas. Assim, uma outra frente de exploração passou a ser necessária para esclarecer
como esta racionalidade passa a subsidiar a construção dos indicadores sociais, repercutindo,
também, num questionamento sobre a forma usual de observação da relação entre indicador e
teoria social.
Neste sentido, pudemos nos aproveitar de autores que, no campo da Geografia, já
procuram compreender os mecanismos da produção do espaço de maneira análoga, uma vez
que a mesma é vista como resultante de uma relação dialética entre forças sociais,
representações e o espaço concreto. Os autores que melhor se prestaram a este papel foram,
inicialmente, destacados: David Harvey (1989) e, através deste, Henry Lefebvre (1974). Este
último, porque propõe a produção do espaço como resultante da ação de uma tríade onde
nenhum dos componentes age de forma isolada, sugerindo que as representações do espaço,
em que poderíamos postar os indicadores sociais, não figuram sozinhas, mas sofrem a
influência das práticas espaciais e dos espaços de representação. Já Harvey passou a figurar
dentro desta análise por tentar, com o auxílio de Bourdieu (1977), compor um raciocínio que
nos possibilita concebermos sentidos específicos de espaços advindos de conjugações
específicas da tríade de Lefebvre havidas em cada tempo. Estas regulações, à moda de
sentidos específicos de tempo próprios de cada sociedade, fazem-nos pensar sobre o papel
flutuante que as práticas espaciais, as representações do espaço e os espaços de representação
exercem em diferentes tempos e em diferentes sociedades.
Podemos, então, imaginar as conseqüências que a consideração destas conclusões dos
autores, anteriormente citados, pode ter sobre as pesquisas em torno da idéia da criação de
indicadores sociais. Em primeiro lugar, mesmo admitindo os indicadores como objetos mais
afeitos ao mundo das técnicas, somos forçados a olhar de outro modo as outras esferas de
influência que são tradicionalmente desqualificadas na sua construção. Concepções mais
específicas, por exemplo, do que seja o bem-estar em determinadas comunidades (ou a partir
da influência que possam sofrer da chamada “cultura global”) passam a ser cogitadas.
Isso, porém, ainda seria uma perspectiva mais rasa que poderia advir destas
considerações. Talvez um saldo mais importante pudesse ser o questionamento dos
mecanismos de construção e avaliação dos indicadores sociais que se oferecem, agora, à
própria intervenção dos avaliados, reforçando a idéia de uma arena onde se negociam as
equivalências.
O momento que se atravessa, em relação a estas pesquisas, parece especialmente
propício à abertura de tais frentes, uma vez que os indicadores sociais acham-se no centro de
uma luta mais ampla, envolvendo a mudança dos modelos éticos e técnicos que embasam a
avaliação do social. Convicções, por exemplo, que se serviam como referência à idéia da
mudança social (progresso, desenvolvimento, modernização) acham-se em meio a revisões e
questionamentos, conforme procuramos demonstrar. Da mesma forma, conceitos que se
serviam à compreensão de tais mudanças e que se adequavam bem ao regime de acumulação
fordista, ao que parece, precisam passar por uma reformulação. Assim, toda esta atmosfera
acaba repercutindo como uma espécie de crise dos indicadores sociais, mas guarda em seu
bojo a possibilidade de intervenções mais radicais no sentido do resgate ou da habilitação dos
canais que anteriormente estavam alijados do debate.
Isto parece estar ocorrendo porque o fordismo e o Estado de Bem-Estar Social
demandavam um arsenal teórico mais adaptado à coleta de informações relativas ao
oferecimento de uma vasta gama de serviços, bem como às conseqüências das políticas
adotadas. Mais recentemente, com a vigência do regime flexível de acumulação, outras
questões acabaram pondo em xeque o antigo modelo. Partindo da análise que alguns autores
fazem em torno da mudança social e do questionamento de suas bases, ficou mais fácil
perceber como ela se transforma numa das raízes do movimento dos indicadores, mais
propriamente, através de sociólogos como William Ogburn e como o utilitarismo que
convertem o prisma ético e econômico à construção deste objeto técnico. Assim, sistemas de
avaliação mais adequados aos processos de homogeneização espacial vêm reduzindo seu
poder de influência, fazendo com que a ética volte a ganhar evidência no estabelecimento e no
julgamento dos indicadores sociais.
Toda esta readequação ajuda a explicar por que a renovação da proposta de construção
e o uso de indicadores sociais têm suas raízes numa contestação à observação pura e simples
da justiça social pelo critério da eficácia ou da utilidade. Esta é uma discussão eminentemente
ética, uma recomposição das bases do pensamento sobre a avaliação dos indicadores que
denuncia modificações necessárias e cada vez mais inadiáveis. John Rawls, contudo, ao
revitalizar esta discussão com a defesa da primazia de determinadas “liberdades formais”, não
trai o liberalismo (na medida em que submete qualquer desigualdade a respeito deste princípio
de igualdade apenas ao campo destas liberdades). Contudo, esta proposta também não
representa o ponto de partida mais adequado a uma avaliação que capte diferentes situações,
virtudes e requerimentos de homens e lugares.
Desta forma, foi-nos possível compreender por que é um economista (com sólida
formação no campo da ética e da filosofia política) que toma as idéias de John Rawls,
aproveita sua defesa do liberalismo, mas submete a liberdade a outros critérios para avançar
bastante no campo das avaliações. Na verdade, o mérito da abordagem de Amartya Sen (se
relevarmos as imperfeições decorrentes da pretensão de resumir um pensamento tão rico em
poucas linhas) decorre do fato de que esta consegue conciliar habilmente o melhor de duas
correntes de pensamento numa única proposta. Do utilitarismo, Sen toma a ênfase sobre os
resultados em termos de bem-estar, como a informação básica através de sua ênfase sobre os
funcionamentos. Das correntes neoconservadoras ou neocontratualistas, Sen toma a ênfase
sobre as liberdades para se realizar o bem-estar referido como a informação mais relevante.
O resultado é uma interessante proposta em que os indicadores sociais já utilizados
são, agora, dispostos em um sistema que enfeixa os funcionamentos (ou o bem-estar) em
agrupamentos de capacidades que são julgadas como fundamentais à consecução da liberdade
de escolha dos caminhos que cada pessoa valorize. Da mesma forma, Sen, ao recusar uma
atenção exclusiva e simples a bens, mercadorias ou direitos, argumentando que as
possibilidades de seu aproveitamento variam conforme variem as pessoas e o ambiente em
que estão inseridas, oferece a possibilidade de que o conceito de funcionamentos possa ser
revisto sob o enfoque da análise geográfica também.
Tentamos evidenciar, assim, as conseqüências da efervescência destes debates mais
recentes sobre a idéia da criação de sistemas de avaliação do social e, mais especialmente,
como esta movimentação acaba criando requerimentos à Geografia, na medida em que temas
a ela diretamente ligados passam a figurar neste debates.
Pudemos evidenciar que não ficaram imunes nem mesmo perspectivas mais
tradicionais, como aquela que procura avaliar um fenômeno complexo como a pobreza, a
partir de sua compreensão como uma resultante da insuficiência de rendas, benefícios ou
mercadorias; e que procuram dispor o resultado desta métrica dentro de Atlas no afã de obter
uma compreensão mais ampla do fenômeno. Em princípio, reafirmar a dificuldade da
abordagem da pobreza através de um conceito mais estreito pareceu-nos repetitivo, uma vez
que outros autores já, de longa data, vêm alertando para este problema. A constante
ressurgência deste viés mais tradicional, e sua conformação em mapas de fome, de miséria ou
de pobreza, exige, no entanto, a firme recolocação destes mesmos argumentos, além da
incompatibilidade destas visões com uma incidência mais enriquecida do espaço na discussão
da pobreza.
Por outro lado, se parece mais apropriada a abordagem da pobreza por prismas que
procurem apreender sua complexidade e não se atenham apenas à ausência de rendas, por
outro, parece-nos que existem importantes questões levantadas em caminhos intermediários
que procuram apreendê-la como a expressão da redução ou da ausência da liberdade com a
qual cada pessoa explora suas capacidades. Neste sentido, o maior mérito de trabalhos como
os do economista indiano Amartya Sen, em face de nosso objetivo, parece ser o de abrir uma
nova possibilidade de incidência da Geografia na construção e julgamento de indicadores
sociais ao ver a liberdade como a interação entre as realizações ou o bem-estar conseguido e
os recursos disponíveis vistos como um somatório destas realizações em agrupamentos que
nos informariam das capacidades de que cada pesquisado dispõe.
Por fim, abordamos a afirmação sobre o conceito de território como uma forma pela
qual alguns estudos vêm tentando rever a questão que envolve a relação entre medidas do
social e o espaço. Ficou evidenciado, com a análise de trabalhos mais recentes, uma clara
intenção de suplantar a desconexão já, tantas vezes, apontada, através da consideração dos
diferentes indicadores à luz de novas desagregações espaciais. Assim, as novas possibilidades
técnicas com as quais contam órgãos oficiais (municipais, estaduais e federais), mais
recentemente, podem facilitar a coleta de informações em conformidade com o traçado
original de cada bairro dentro do espaço urbano. Parece transparecer que esta possibilidade de
desagregação dos dados acabou sendo interpretada como uma oportunidade de
territorialização dos mesmos. Este é um aspecto que pareceu-nos ainda demandar cuidadosa
reflexão, uma vez que denota uma compreensão muito acanhada do conceito de território.
Estas possibilidades ficam ainda mais claras se tomarmos por base as recentes
incursões feitas sobre a espacialização da vulnerabilidade ou da exclusão social. Muito
embora o Atlas da Exclusão Social, por exemplo, faça menção a conceitos como o de
segregação territorial
91
, ou que Koga (2003) aponte questões como a exclusão territorial
92
,
91
Neste caso, Rolnik (1997) é citada por Pochman, et al (2004) para embasar a menção a processos se
segregação territorial a partir da legislação urbanística.
fica ainda incipiente a exploração do território como uma mediação espacial no exercício do
poder.
Atualmente, a exclusão social tem sido tema recorrente no sentido de superar formas
mais antiquadas (como a de pobreza, já explicitada). Este fenômeno conta, hoje, com
reflexões bastante apuradas que nos fazem pensá-lo como um processo que enquanto aparta
cada indivíduo também o “reinclui” de uma forma diferenciada. Daí, por que as reflexões de
autores que observam a territorialização/desterritorialização de maneira análoga foram
destacados.
Investigar possibilidades e limites deste paralelo é ainda uma missão recente. Podemos
imaginar, por exemplo, situações em que os níveis de territorialização e exclusão se
comportem de maneira diferenciada ou, até mesmo, no limite, de forma inversa. O
importante, no entanto, é apontar que o território pode ser um aliado que não apenas sofistica
a análise da exclusão, mas que lhe pode ser imprescindível para sua completa compreensão.
Já dissemos, anteriormente, que há uma recusa de certos setores na observação da
realidade social a partir dos indicadores, tendo em vista que estes parecem se ater,
exclusivamente, à esfera do consumo. Se isto for procedente, poderíamos, entretanto imaginar
uma rediscussão do conceito de liberdade, desta vez dentro da esfera da produção.
Robert Kurz (2005), muito apropriadamente, escreve sobre os limites desta análise.
Este autor propõe que, na esfera da circulação, “predomina uma espécie bem determinada de
liberdade e igualdade, que se refere única e exclusivamente a vender o que se quer – supondo
que se encontre um comprador – e, comprar o que se quer – supondo que se possa pagar. E só
nesse sentido predomina também a igualdade, isto é, a igualdade dos possuidores de
mercadoria e de dinheiro” (p. 8).
Ora, podemos imaginar que o território pode se transformar numa importante via de
recolocação do conceito de liberdade para além da mera negociação dos dotes individuais de
cada pesquisado, ou da rentabilidade de cada porção do espaço (de seu “capital humano”,
como o próprio Kurz afirma) e passe a vê-la como um processo de condução de seus destinos
por estes indivíduos. O próprio processo de construção e julgamento de suas métricas seja de
um país ou de um bairro de que estejamos falando deverá também ser um indicador desta
liberdade.
92
Rolnik (1999) é citada por Koga (2003), tendo em vista o conceito de exclusão territorial que considera “tanto
os direitos sociais quanto os aspectos materiais” da exclusão social.
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