manter a distância o material a que o sentimento de culpa se refere.
Constituiu uma surpresa descobrir que um aumento nesse sentimento de
culpa Ics. pode transformar pessoas em criminosos. Mas isso
indubitavelmente é um fato. Em muitos criminosos, especialmente nos
principiantes, é possível detectar um sentimento de culpa muito poderoso,
que existia antes do crime, e, portanto, não é o seu resultado, mas sim o
seu motivo. É como se fosse um alívio poder ligar esse sentimento
inconsciente de culpa a algo real e imediato (ibid., p.41).
Os extratos selecionados demonstram também as dificuldades em se tentar
fazer alguma distinção mais precisa entre os atributos consciente ou inconsciente do
sentimento de culpabilidade. Um entendimento possível para a articulação freudiana é
o de que tais “culpas” possuem uma base comum. Sob tal perspectiva, o sentimento
de culpa - ou a consciência de culpa - se referiria a um efeito de discordância entre o
ego e o superego que tem em suas bases os sentimentos advindos do conflito edípico.
Este efeito, por sua vez, seria derivado do “[...] estado do ego resultante do conflito
inconsciente entre as aspirações do superego e as do ego” (MIJOLLA, 2005, p.425,
grifo nosso), conflito inevitável do ponto de vista psicanalítico em virtude das
“pulsões em regime de civilização” (MEZAN, 1990, p.507).
A culpabilidade tem significativa representação também através da
psicopatologia psicanalítica, mais especificamente na neurose obsessiva. Freud
observa nas manifestações desta neurose os indicativos de um sentimento de culpa
que, ora ruidoso na consciência destes pacientes, às vezes é absolutamente
inconsciente, estranho ao sujeito, mas se faz representar pela necessidade de punição,
pelas inibições e pelas auto-recriminações.
Gostaria de concluir este capítulo fazendo referência a um outro texto que
estabelece com “O mal-estar na civilização” um paradoxo necessário a esta reflexão.
Refiro-me ao ensaio “Criminosos em função de um sentimento de culpa”, presente
em “Alguns tipos de caráter encontrados no trabalho psicanalítico” (1916), no qual
Freud apresenta a idéia de que um ato criminoso pode acontecer no sentido de
conferir materialidade e alívio a uma culpa que o antecede, na medida em que fixa a
culpa a este ato. Esta acepção possível para a culpa, embora se encontre também na
dimensão do complexo de Édipo, vem dar apoio à suposição de uma culpa “primária”,
da qual as demais decorrem e para as quais dá ancoragem.
A que corresponde na teoria esta culpa “primária”? Mezan (1985, p.545) nos