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ALINE ALEIXO
A CULPA NO LAÇO AFETIVO
UNIVERSIDADE SÃO MARCOS
SÃO PAULO
2006
ALINE ALEIXO
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A CULPA NO LAÇO AFETIVO
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Psicologia da
Universidade São Marcos, como parte
dos requisitos para obtenção do título de
Mestre em Psicologia.
Área de Concentração: Constituição do
sujeito na família e na clínica.
Orientadora: Profª Drª Ines Loureiro.
UNIVERSIDADE SÃO MARCOS
SÃO PAULO
2006
A CULPA NO LAÇO AFETIVO
ALINE ALEIXO
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BANCA EXAMINADORA
__________________________________
Profª Drª Mirian Debieux Rosa (PUC-SP)
__________________________________
Profª Drª Consuelo Passos (USM)
__________________________________
Profª Drª Ines Rosa Bianca Loureiro (USM / orientadora)
Dissertação defendida e aprovada em: ___/___/_____
Para minha mãe.
AGRADECIMENTOS
A minha orientadora, Profª Drª Ines Loureiro, pelas incansáveis orientações.
Às Prof
as
Dr
as
Mirian Debieux e Consuelo Passos, cujas valiosas contribuições
determinaram novos rumos às minhas reflexões.
A um amigo e colaborador especial Francisco de Assis Carvalho.
E a minha mãe, que me apresentou aos livros, contagiou-me com a curiosidade,
esteve e está em cada passagem, inclusive nas mais difíceis, sugerindo alternativas e
fornecendo meios, ora concretos, ora sutis, para que eu insista.
ÍNDICE
Resumo
vi
Abstract
vii
Introdução
1
1. Culpa e laço em “Totem e tabu” (1912-1913)
6
1.1. Do incesto 6
1.2. Da ambivalência: proibição e desejo 10
1.3. Pensamento e desejo 13
1.4. O retorno do toteismo na infância 15
2. Culpa e laço em “Psicologia de grupo e análise do ego” (1921)
18
3. Culpa e laço em “O mal-estar na civilização” (1929)
25
4. Culpa e laço: outras perspectivas
36
Considerações finais
42
Apêndice - “Crônicas confessas”
45
Referências bibliográficas
50
RESUMO
ALEIXO, A. A culpa no laço afetivo. São Paulo, 2006. 52 p. Dissertação de Mestrado
em Psicologia, Universidade São Marcos.
Esta dissertação parte do estudo de três ensaios freudianos (a saber, “Totem e
tabu”, “Psicologia de grupo e análise do ego” e “O mal-estar na civilização”) para
neles examinar como Freud articula as relações entre culpa e laço emocional. O tema
teve origem na observação das tensões presentes nos vínculos emocionais vigentes
em relações familiares e institucionais. Para a psicanálise o sentimento de
culpabilidade é um conceito fundamental para a compreensão dos laços emocionais
que o sujeito estabelece. A articulação culpa/laço libidinal adquire tal abrangência
para a teoria freudiana, que a culpa chega a ser apontada como o principal problema a
ser enfrentado pela civilização. Presente nas modalidades primárias de relação e na
constelação edípica, o sentimento de culpabilidade é atuante desde o contexto das
primeiras identificações de um sujeito. Responsável pelos acordos e pelos modos de
regulação entre a pessoas, a culpa se mostra também em sua dupla vertente,
acionando tanto os mecanismos repressivos como os sublimatórios. A culpa sinaliza a
angústia do sujeito frente à necessidade de proteção contra o desamparo da condição
humana, bem como é indicativa dos embates pulsionais entre pulsão de vida e pulsão
de morte. Precursora do medo da perda de amor do complexo de Édipo, da autocrítica
na forma do superego e dos ideais de ego, a culpa pode ter seu alcance presumido nos
vínculos sociais, nas massas populacionais, nos grupos organizados e nas instituições
culturais. Em suma, esta dissertação procura destacar, dentre as teses psicanalíticas,
aquelas que despontam como mais significativas para um futuro estudo sobre
fenômenos sociais contemporâneos que parecem problematizar a concepção freudiana
da culpabilidade, como o advento do Holocausto e de assassinatos em massa, por
exemplo.
Palavras-chave: culpa; sentimento de culpa; laço emocional; laço social; psicanálise;
S. Freud.
SUMMARY
ALEIXO, A. The blame in the affective terms. São Paulo, 2006. 52 p. Dissertation of
Master's degree in Psychology, Universidade São Marcos.
This dissertation lies on the study of three Freudian rehearsals (“Totem and
taboo”, “Group psychology and the Analisys of the Ego” and “Civilization and its
discontents”) to examine as Freud articulates the relationships between the blame and
the emotional terms. The theme had its origin in the observation of the existing
tensions in the affective emotional entails in family and institutional relationships. For
the psychoanalysis, the guilty feeling is a fundamental concept for the understanding
of the emotional terms that the human being sets up. The articulation guilty/libidinal
terms provides such inclusion for the Freudian theory, that the blame is pointed as the
principal problem to be faced by the civilization. It is presented in the primary kinds
of relationship and in the Oedipus configuration; the guilty feeling exists since the
first identification of a human being. It is responsible for the agreements and for the
regulations among people; the blame is also shown in its double scope, working as
much the repressive mechanisms as the sublimate ones. The blame shows the anguish
of the human being towards the need of protection against the abandonment of the
human condition, as well as it is indicative of the pulsation collisions between life
beat and death beat. It is premonitory of the fear of the love loss of the Oedipus
complex, of the self-criticism in the form of the superego and of the ideals of ego; the
blame can have its assumed reach in the social means, in the population masses, in the
organized groups and in the cultural institutions. To sum up, this dissertation tries to
foreground, among the psychological theses, those which play up as more significant
for a future study on contemporary social phenomena which seem to inquire the
Freudian conception of guilt, as the advent of the Holocaust and of murders in mass,
for instance.
Word-key: guilt; blame feeling; emotional terms; social terms; psychoanalysis;
S. Freud.
INTRODUÇÃO
A atividade de atendimento e de escuta às questões vindas de pais,
comunidades e instituições voltadas ao trabalho com famílias, crianças e jovens ao
longo dos últimos anos, levou-me a buscar modos de compreender os laços
emocionais que os sujeitos estabelecem uns com os outros e consigo mesmo, com
suas demandas mais íntimas.
Particularmente sempre me inquietaram os modos de coesão e a tensão muitas
vezes manifestada entre tais instâncias (pais e filhos, entre professores e alunos, entre
a sociedade e sua mais nova geração, entre os sujeitos e as instituições).
Seguindo as indicações psicanalíticas, os vínculos que os sujeitos estabelecem
são intensamente afetados por aspectos libidinais e sua análise mostrou-se importante
também para o estudo dos laços sociais.
Ainda conforme as indicações em psicanálise, um elemento essencial para a
compreensão dos laços é o sentimento de culpabilidade, ao mesmo tempo responsável
pelo controle das tendências destrutivas entre os homens, pela instauração de leis de
regulação coletivas, pelo controle dos impulsos incestuosos e pelo mal-estar que
decorre de tais renúncias.
Em etapas anteriores à conclusão desta dissertação, cheguei a conclusões
precipitadas, como se fosse possível demonstrar um abrandamento do sentimento de
culpa nos laços na contemporaneidade, o que por sua vez poderia ser o responsável
pela banalização da violência e desmoralização do código, conceito apresentado por
Maria Rita Khel (2002) para pensar questões de ética e psicanálise.
No entanto, tal precipitação foi apontada no exame de qualificação, o que me
levou a buscar um novo direcionamento do objetivo desta dissertação que antes se
apresentava através da seguinte pergunta: a culpa teria assumido novas configurações
nas relações do sujeito em seu laço emocional? Acontece que esta pergunta mostrou-
se muito ampla e exigiu maior delimitação; afinal, podemos pensar em configurações
ou haveria apenas uma configuração para a culpa em psicanálise?
Imaginava ao mesmo tempo abarcar o estatuto do conceito da culpa em
psicanálise e considerar um possível afrouxamento de sua incidência nos laços sociais
na contemporaneidade. Para tal debate havia percorrido reflexões da obra sociológica
de Zygmunt Bauman (1999a, 1999b). Entre outras perspectivas, o autor em questão
procede a uma longa e detalhada interpretação das condições para o Holocausto, de
onde julguei poder inferir a seguinte reflexão: na medida em que determinadas
circunstâncias sociais puderam construir as condições de possibilidade que
“autorizaram” e “legitimaram” um grupo a banir e depois exterminar os “estranhos”
ameaçadores dos ideais coletivos, não seria justificável supor algo da ordem de uma
“suspensão” da culpa representando um ideal coletivo contemporâneo?
Naquele momento também destaquei dois relatos de jovens internos da
FEBEM, como se pudessem ilustrar esse contexto contemporâneo. Após o exame de
qualificação e tendo percorrido outros pontos da obra freudiana e de comentadores
(com destaque para Renato Mezan), volto aos relatos citados com outro olhar. De fato
eles retratam algo de minha inquietação, mas representam muito mais toda uma série
de indagações que o tema suscita do que qualquer possível convergência prévia. A
título de alusão aos primeiros movimentos desta dissertação, tais relatos encontram-se
em anexo, apresentados na forma de crônicas.
Foi necessário pensar outros enquadres para a pesquisa teórica. Qual a relação
entre laço e culpa? Como a culpa participa na constituição dos laços afetivos de um
sujeito? É possível considerar diferentes configurações para a culpa, ou apenas
acepções diferentes?
Suponho que este procedimento de responder a tais interrogações permitirá
ampliar o entendimento sobre o alcance ou a incidência do sentimento de culpa para
os laços emocionais.
Aliás, o exame de qualificação apontou também outras insuficiências
encontradas em meu texto e sugeriu como modo de superá-las o acréscimo das idéias
sobre vínculo presentes nos livros Processos e estruturas vinculares (1993), de David
Maldavsky e Psicanálise de casal (1994), de Janine Puget e Isidoro Baresntien.
Infelizmente não pude contemplar tais teorizações nesta pesquisa por faltar-me
condições prévias para tanto. Até onde pude verificar, tais estudos sobre o vínculo
buscam conceitualizar os limites entre mundo interno e externo, tocando em questões
como a noção de ego e objeto. A análise das condições do mal-estar nos vínculos sob
esta perspectiva inclui também considerar a incidência do social sobre diversos
campos, como o do trabalho, das relações familiares, da violência, etc.. No futuro
espero poder acrescentar tal articulação ao meu interesse de estudo sobre os laços,
seus determinantes e seus processos.
São muitos os comentadores envolvidos com o tema da culpa e da formação
dos laços, interesse dessa pesquisa; ainda que os tenha buscado, estou certa de que
inúmeras contribuições importantes não serão nem mesmo citadas. Mas vamos em
frente, a despeito e por conta de toda falta.
Esta dissertação retoma a caracterização freudiana sobre a culpa em seu valor
constitutivo da civilização; alguns autores, como Jurandir Freire Costa (1989)
entendem que tal elaboração que versa sobre a origem do social tem seu lugar
assegurado somente como desdobramento lógico das premissas freudianas para o
psiquismo, e que sua transposição para os princípios da cultura encontra dificuldades
profundas e mesmo insuperáveis em alguns pontos.
Mantendo tal ressalva em perspectiva e para encaminhar a proposta de analisar
a intersecção entre laço e culpa, selecionei os seguintes ensaios psicanalíticos:
“Totem e tabu” (1912-1913) “Psicologia de grupo e análise do ego” (1921) e “O mal-
estar na civilização” (1929).
Estes ensaios foram escolhidos por reconstruírem a trajetória dos conceitos
psicanalíticos em termos dos grupamentos sociais, povos primitivos, grupos e
civilização. Tal reconstrução conceitual tem em seu horizonte a investigação de
questões que destacam a função paterna, o complexo de Édipo e seu correlato, o
complexo de castração, as pulsões, o narcisismo e o ideal de ego e superego, enquanto
conceitos atuantes no nível social, ou seja, nos laços.
Interessa-me também entender que lugar a culpa ocupa em cada um dos
ensaios e a configuração que lhe é característica.
A hipótese sobre o laço emocional em psicanálise encontra seu fundamento
nos desenvolvimentos teóricos do complexo de Édipo e na dinâmica pulsional. O laço
amoroso logo ocupa papel fundamental na análise freudiana sobre sujeito em suas
relações de objeto, assim como a dualidade entre as pulsões de vida e morte. Esta
indicação será abordada a partir dos três ensaios destacados, especialmente naqueles
pontos onde converge com o sentimento de culpabilidade, o outro elemento da
equação aqui proposta.
A culpa, por sua vez, enoda com o complexo de Édipo por meio da tensão
entre o eu e o supereu, conflito de que participam principalmente os ideais de ego, o
narcisismo e o medo da perda do amor.
Porém, a culpa também aparece referida a um período pré-edípico marcado
principalmente pela “ambivalência fundamental que se cria no indivíduo a partir das
pulsões de vida e de morte” (MIJOLLA, 2005, p.424). Em modalidades primárias de
relação, como pensar a culpa?
Para tal tarefa, de pesquisa teórica dos ensaios, optei por percorrer os artigos
destacando e sintetizando seus elementos fundamentais, acrescidos dos estudos de
Renato Mezan, para então finalizar cada ensaio com as reflexões sobre as acepções a
propósito da intersecção entre laço e culpa.
No primeiro capítulo abordo o ensaio “Totem e tabu” (1912-1913), cuja
complexidade de análise e de leitura implica primeiramente situá-lo em relação à sua
dupla referência, uma que busca retomar os conceitos psicanalíticos da perspectiva
cultural, outra que se lança às teses sobre a origem do social.
Não é meu objetivo estender-me sobre tal debate, mas entendo que o percurso
seja necessário para que os conceitos pesquisados - culpa e laço - possam ser situados
conforme os contextos dos quais derivaram, ainda que as teses sobre a origem do
social em Freud já tenham sido amplamente questionadas.
No segundo capítulo desta dissertação, a “psicologia social” em Freud adquire
seus contornos a partir do ensaio “Psicologia de grupo e análise do ego” (1921), e esta
foi a razão de ter sido escolhido para este estudo, pois por meio dele os aspectos
pulsionais do laço social poderão ser destacados.
Observemos de que modo é concebida a psicologia social. Não se trata de
estudar o ‘espírito coletivo’ nem a ‘alma dos povos’... mas de mostrar que,
para o indivíduo, as relações com os demais são determinantes para a
satisfação de suas pulsões (MEZAN, 1990, p.454).
No terceiro capítulo comento o ensaio “O mal-estar na civilização” (1929).
Nele podemos reconhecer a retomada de conceitos que culminam com as conclusões
que ligam o sentimento de culpa ao desfecho edípico expresso na tensão entre o ego e
o superego; abordam o sentimento também como decorrência das ambigüidades
expressas por meio da dualidade pulsional e que se repete através das gerações.
Poderíamos supor que sob tal perspectiva o sentimento de culpabilidade parece
adquirir uma propriedade comum, certificando a proposição freudiana que as
diferenças entre o indivíduo e o social não são tão significativas? Voltarei à questão
oportunamente.
Por fim, no último capítulo desta dissertação, destaco comentários de autores
cujas contribuições apontam outras acepções para o tema. Nas considerações finais,
retomo algumas das principais acepções da culpa encontradas nos ensaios
percorridos, assim como resgato parte dos interesses que estiveram na origem dessa
pesquisa (como a questão da culpa na contemporaneidade) por meio de breve
referência à obra de Z. Bauman.
1. CULPA E LAÇO EM “TOTEM E TABU” (1912-1913)
1.1. DO INCESTO
Iniciarei a abordagem do ensaio em questão seguindo o percurso freudiano,
suas indicações e acessos a outros títulos quando necessário e acrescidos dos estudos
realizados por Renato Mezan em conexão com o tema abordado.
O objetivo de tal procedimento é o de entender como e se os conceitos de
“culpa” e “laço” encontram seu lugar neste ponto da teoria, quais os elementos que os
sustentam e se entre eles há alguma articulação que nos permita equacioná-los.
Tal modo de proceder busca alcançar o sentido do texto como um todo,
assinalando os possíveis pontos de contato entre os conceitos de laço e culpa para,
num momento seguinte, analisar as configurações ou acepções que os conceitos
assumem para a teoria. Desse modo também irei proceder com os dois outros ensaios
abordados nos próximos capítulos.
Para que a leitura do ensaio possa contribuir ao propósito da pesquisa aqui
empreendida, torna-se fundamental comentar desde o início que as teses etnológicas
sobre o totemismo que lhe dão sustentação sempre foram questionadas e que
pesquisas mais recentes não lhes conferem o crédito com que são analisadas por
Freud. Porém, como nos indica Mezan (1990, p.322), em meio à polêmica:
[...] é preciso ver em que consiste a contribuição de Freud a dois domínios
tão diferentes: a constituição de determinados elementos da teoria
psicanalítica, e a reflexão sobre os fundamentos da sociedade e da cultura.
“O horror ao incesto” é o título com o qual se inicia “Totem e tabu”. Esta
referência ao incesto estabelece o ponto de partida e a principal argumentação
freudiana da origem das instituições sociais, a qual se liga à formulação do mito do
pai da horda. Freud concebe a força de coesão entre as pessoas regida por uma lógica
de conflito, como no caso da horda, ao invés de uma tendência à união ou um instinto
gregário.
Em 1912 concordei com uma conjectura de Darwin, segundo a qual a
forma primitiva da sociedade humana era uma horda governada
despoticamente por um macho poderoso. Tentei demonstrar que os
destinos dessa horda deixaram traços indestrutíveis na história da
descendência humana e, especialmente, que o desenvolvimento do
totemismo, que abrange em si os primórdios da religião, da moralidade e
da organização social, está ligado ao assassinato do chefe pela violência e
à transformação da horda paterna em uma comunidade de irmãos
(FREUD,1921/1976, p.155).
O estudo freudiano do totem como representação ancestral comum de uma
coletividade, como aliança de um grupo, inscreve esta reflexão no território dos laços
entre os homens, naquilo que os une ou disjunta e que ao mesmo tempo se preserva
como herança através das gerações.
Além disso, é a partir das sociedades “primitivas” que Freud situa os paralelos
com o primitivo que permanece atuante no psiquismo do sujeito. Este tema será
desenvolvido na última parte do ensaio, em “O retorno do totemismo na infância”, e
também aqui nesta pesquisa mais à frente.
Restrições sexuais e obrigações sociais são pontos de uma linha contínua onde
o propósito de evitar relações sexuais incestuosas permite o estabelecimento de
vínculos entre os homens e sua associação para fins coletivos.
Este eixo argumentativo freudiano autoriza pensar os efeitos de tais restrições
sobre o sujeito em um duplo registro; primeiro, quando impede o desejo de sua
manifestação e segundo, quando, por impedi-lo, acaba por levá-lo a outros modos de
expressão.
Os preceitos e restrições morais mais antigos da sociedade primitiva foram
por nós explicados como reações a um ato que deu àqueles que o
cometeram o conceito de crime. Sentiram remorso por ele e decidiram que
não se deveria repetir e que sua execução não traria vantagens. Este
sentimento de culpa criador ainda persiste entre nós (idem, 1912-
1913/1974, p.188).
A leitura do texto permite conjecturar que a culpa, em virtude dos sentimentos
ambivalentes de amor e ódio presentes no mito do parricídio e que também sinalizam
o complexo de Édipo, exigem do psiquismo algum meio de escoamento e um dos
desfechos possíveis ao pesar que dele decorre é o estabelecimento dos preceitos
morais e restrições éticas.
Outro aspecto fundamental do ensaio destacado por Mezan (1990) faz
referência à convergência de investigações psicanalíticas que o ensaio contém. O
inventário de tais investigações inclui a neurose através do estudo do tabu e
ambivalência, e a psicose, por meio do estudo da projeção e do narcisismo. Mezan
salienta que é a função paterna que fica no horizonte do artigo dando sustentação à
universalidade do complexo de Édipo - no indivíduo e na origem da civilização -
embora o complexo não esteja referido diretamente.
Os estudos sobre o totem levam Freud a inúmeras considerações sobre o papel
das restrições sexuais na constituição da civilização e é sobre a exogamia, este
aspecto particular das restrições, que sua atenção se detém.
Tais restrições também são bastante representativas da questão colocada pelo
mito de Édipo, e ainda mais no mito do pai da horda, no qual o sentimento de culpa
advém dos desejos hostil e incestuoso.
No sistema totêmico, a exogamia se traduz na lei que proíbe a relação entre
pessoas do mesmo totem, punindo-as severamente “[...] como se fosse uma questão de
impedir um perigo que ameaça toda a comunidade ou como se tratasse de alguma
culpa que a estivesse pressionando” (FREUD, 1912-1913/1974, p.23, grifo nosso).
Dois aspectos merecem apontamento neste momento. Em primeiro lugar,
conforme a referência freudiana, a exogamia permite estabelecer uma imbricação
entre laço grupal e culpa. Possivelmente esta será a referência mais significativa para
considerar como se organiza tal conceito nesse ensaio.
Em segundo lugar, seria preciso convencionar um estatuto para laço e/ou
vínculo até então aqui utilizados indistintamente, mas tal objetivo se representa
melhor como uma “construção” do que uma escolha.
O debate sobre o segundo aspecto deverá acontecer ao longo deste estudo
ligando o conceito de Édipo à constituição dos laços e também aos desenvolvimentos
sobre os conceitos de pulsão e identificação. A fim de antecipar onde estarão as bases
deste argumento, gostaria de citar Mezan (1990, p.329) quando se refere ao ensaio
“Psicologia de grupo e análise do ego”: “Mas pode-se ler, em filigrana, a tese da
identificação recíproca a partir da transferência libidinal que no texto de 1921, funda
o laço social”.
Retomo então a questão da exogamia por considerar que assim percorro todo o
ensaio em suas passagens necessárias à construção do argumento freudiano que
confere ao complexo de Édipo papel de destaque, embora não único, na constituição
do laço emocional e o papel desempenhado pela culpa nesse contexto.
Freud (1912-1913/1974, p.22) reconhece que só há discordância e “[...] não
existe uma afirmação que não comporte exceções e contradições” sobre a equação
obrigações sociais e restrições sexuais que o estudo do totem permite entrever. Porém,
também reconhece, a partir deste estudo, princípios similares que operam tanto no
nível da realidade psíquica do sujeito como em seu vínculo grupal e institucional. É
interesse para esta pesquisa reconstruir, tanto quanto possível, essa lógica freudiana.
A exogamia, como materialização do horror ao incesto presente no laço
totêmico, aponta que tal restrição representa tamanha força de coesão nesses laços
sociais que determina uma substituição do parentesco consangüíneo real pelo
parentesco totêmico. Ou seja, as leis contra o incesto que regem tais grupos, sua
constituição e manutenção, é que determinam as constelações familiares, os diversos
graus de parentesco. Nesse sentido, e dada a amplitude que estas constelações
assumem, o parentesco denota antes a relação do sujeito com um grupo do que a
relação de sujeito a sujeito. Desta argumentação Freud (ibid., p.27) extrai que a
exogamia “[...] parece ter constituído o meio apropriado para impedir o incesto
grupal”.
Por quais vias o incesto poderia configurar-se em tamanho risco para a
sobrevivência dos grupos a ponto de determinar meios de controle tão severos dos
quais a exogamia é insígnia?
Além dessa complexa instituição constituída por horror ao incesto, Freud
acrescenta tantos outros costumes convencionados socialmente para o mesmo fim, os
quais chama de “regras de evitação”. Em algumas tribos estudadas, as regras de
evitação incluem severas regras contra a aproximação, por exemplo, entre genros e
sogras.
É baseado em tais regras que Freud esboça a resposta para a questão
formulada acima, ou seja, quanto maior o desejo, maior também as tentativas de
coibi-lo. Do mesmo modo, quanto maior esta tensão, maior também o sentimento de
culpa que do conflito decorre por razão do desejo incestuoso ou hostil.
Freud menciona os estudos que apontam o contraste entre proibições e orgias
onde as mesmas proibições em momentos especiais são suspensas, como símbolo da
ambivalência que rege esta dinâmica.
Esta é uma das referências que permitem a Freud indicar como a ambivalência
emocional irá se configurar como elemento essencial à compreensão da constituição
do sujeito e o modo como rege seus laços.
Nessa primeira parte do artigo, Freud conclui afirmando pouco acrescentar aos
estudos da época sobre o totem, a não ser que a interpretação psicanalítica revela
grande concordância entre estes estudos e características da sexualidade infantil que
persistem no adulto. “Chegamos a ponto de considerar a relação de uma criança com
os pais, dominada como é por desejos incestuosos, como o complexo nuclear das
neuroses” (ibid., p.37).
1.2. DA AMBIVALÊNCIA: PROIBIÇÃO E DESEJO
A lógica freudiana assinala que o estudo sobre o totem revela esta face do
primitivo infantil e suas raízes na evitação do incesto enquanto que o tabu oferece o
código que o rege, ou seja, a ambivalência emocional.
O termo tabu já é uma expressão ambivalente, como assinala Freud (1912-
1913/1974, p.38), “[...] por um lado, sagrado, consagrado e por outro, misterioso,
perigoso, impuro”, e que visa a proteção através da exigência de cumprimento
inquestionável de certas proibições.
É nesse imperativo de um procedimento ritualístico aparentemente sem motivo
e nos modos de expiação e penitência quando o tabu é violado que Freud assenta um
admissível ponto de contato com a neurose obsessiva.
Para este estudo interessa particularmente o conceito de ambivalência cujos
efeitos podem ser bem observados na neurose obsessiva, onde o sentimento de culpa
também assume um papel fundamental. Penso que o texto freudiano permite abordar
os conceitos de ambivalência e culpa de modo a relacioná-los em termos de
constituição dos laços.
A ambivalência que ocupa Freud (ibid., p.49) é aquela que conflita proibição e
desejo: “[...] a principal característica da constelação psicológica que dessa forma se
torna fixa é algo que poderia ser descrito como a atitude ambivalente do sujeito para
com um objeto determinado, ou melhor, para com um ato em conexão com esse
objeto”. Da perspectiva freudiana, o que estabelece a relação entre o sujeito e este
impasse está apoiado por forças internas vindas da constelação edípica e das pulsões.
Neste momento me concentro na questão edípica. Em meio ao amor, ao medo
da perda desse amor e por razão da culpa derivada dos desejos que ameaçariam tal
laço, a constelação edípica mostra-se em seus elementos fundamentais e
ambivalentes. “O desejo se desloca constantemente, a fim de fugir ao impasse, e se
esforça por encontrar substitutos - objetos substitutos e atos substitutos - para colocar
em lugar dos proibidos” (ibid., p.50). Freud argumenta neste ponto que tal exigência
de substituição é também responsável pelos atos obsessivos.
O estudo freudiano da ambivalência a partir dos tabus permite que se
estabeleçam outros nexos entre instituições sociais e sujeito. Nos tabus relativos aos
inimigos, aos governantes, aos mortos e nos rituais de apaziguamento, de restrição, de
expiação e de purificação que acompanham estes tabus, Freud entende decorrer
aspectos da ambivalência emocional. Este tema da ambivalência terá sua análise
acrescida dos estudos sobre a identificação, ampliando assim o alcance de sua
interpretação sobre a constituição do laço na concepção freudiana no próximo
capítulo.
Ao final desta parte que trata sobre a ambivalência, é a questão da origem e
natureza da consciência que assume o primeiro plano de sua análise. Consciência e
consciência de culpa são analisadas sob a ótica da ambivalência, onde concorrem
culpa e desejo:
A consciência é a percepção interna da rejeição de um determinado desejo
a influir dentro de nós. A ênfase, contudo, é dado ao fato de esta rejeição
não precisar apelar para nada mais em busca de apoio, de achar-se
inteiramente “certa de si própria”. Isto é ainda mais claro no caso do
sentimento de culpa - a percepção da condenação interna de um ato pelo
qual realizamos um desejo (ibid., p.90).
Este desenvolvimento conta com o apoio de uma nota de rodapé sobre o mito
de Édipo, cuja culpa não foi aliviada a despeito de seu ato não contar com sua
intenção ou conhecimento conscientes.
Uma consciência pronta para a possibilidade da culpa antes mesmo ou a
despeito do ato realizado possivelmente nos indica que neste sentido os registros entre
culpa e consciência coincidem. O uso lingüístico da palavra consciência para apontar
seu duplo sentido tanto moral quanto de certificação é mais um aspecto da
argumentação freudiana que aponta a convergência dos registros. A leitura do texto
faz supor que se trata da concepção do sentimento inconsciente de culpa o que está
sendo articulado neste momento.
Freud também busca os paradoxos envolvidos no cruzamento entre
ambivalência e consciência de culpa, destacando uma vasta gama de analogias entre
os pares proibições tabus/proibições morais e instituições culturais/formas de neurose.
Conclui com a hipótese de muitas concordâncias e algumas divergências das quais
gostaria de destacar a passagem que segue a fim de exemplificar tal ponto: “Poder-se-
ia sustentar que um caso de histeria é a caricatura de uma obra de arte, que uma
neurose obsessiva é a caricatura de uma religião e que um delírio paranóico é a
caricatura de um sistema filosófico” (ibid., p.95).
A passagem mencionada é, sem dúvida, uma das mais complexas e
condensadas do ensaio, mas a escolhi por uma das várias acepções que sua análise
permite; ela marca um dos aspectos da lógica freudiana no sentido de que “[...] o
contraste entre a psicologia individual e a psicologia social ou de grupo, que à
primeira vista pode parecer pleno de significação, perde grande parte de sua nitidez
quando examinado mais de perto” (idem, 1921/1976, p.91).
Essa lógica foi relembrada aqui para salientar que o campo da constituição do
sujeito e, portanto, dos laços que estabelecem, vão compondo na obra uma base
comum, ou seja, aquela circunscrita à ambivalência. A ambivalência por sua vez está
referida ao complexo de Édipo e também à dinâmica pulsional que será abordada em
outro capítulo. Isso estará sempre na perspectiva deste estudo, pois só assim será
possível considerar os laços na constelação edípica e em formas primárias de relação
e, portanto, pré-edípicas.
Gostaria também de mencionar uma abordagem sobre a culpa do ponto de
vista de seu alcance coletivo. Isso ocorre quando Freud aborda a “solidariedade” que
surge num grupo quando a punição não recai automaticamente na figura do agressor.
É como se o desejo reprimido que foi satisfeito na figura deste agressor pudesse ser
praticado por todos que, para se protegerem do mesmo desejo, “[...] apressam-se em
efetuar eles próprios a punição omitida” (idem, 1912-1913/1974, p.94). Freud confere
a esse mecanismo a origem do sistema penal.
As instituições representantes dos sistemas penais teriam assim, além do papel
de satisfazer, na figura do agressor, a necessidade de punição desencadeada pela
culpa, a incumbência de proteger o sujeito de seus próprios desejos que a
identificação desnuda. Apazigua-se, assim, coletivamente a culpa de cada um,
possivelmente mais um elemento cuja manutenção é uma das bases para a coesão dos
laços.
A culpa se inscreve, desse modo, em sua forma social, exigindo punição
coletiva por meio da criação das leis ou revalidando o consentimento coletivo, como
no caso de execuções por linchamento e demais movimentos de massa. Ou seja,
solidariedade e cumplicidade parecem poder traçar paralelos em diferentes níveis com
a culpa, talvez conforme a identificação dos implicados aos ideais sociais de sua
cultura, de sua época.
1.3. PENSAMENTO E DESEJO
O título original desta parte do ensaio é “Animismo, magia e a onipotência de
pensamentos”. Pensamento e desejo foram os termos destacados para o comentário.
De modo condensado, Freud demonstra como a onipotência do pensamento
traduzida por meio da convicção de alterar o mundo externo com o pensamento é
aspecto fundamental da magia. Esse mesmo sistema encontrado na magia apresenta
semelhanças com os atos obsessivos, atos de proteção contra demônios, contra a
morte, contra desejos que disparam a culpa.
Ainda que os paralelos sejam apresentados com muita prudência, Freud
baseia-se neles para propor três diferentes formas de relações de objeto, como o eu se
comporta em cada uma delas e seus correspondentes encontrados na cultura.
A fase animista corresponderia ao narcisismo, onde a onipotência do eu
primeiro toma o próprio corpo como objeto (auto-erotismo); segundo, a escolha de
objeto ainda é interna e recai sobre o próprio ego. Numa fase posterior, a fase
religiosa, a onipotência do eu é deslocada aos deuses, e em termos de escolha de
objeto caminha para um objeto externo. Na última fase, a científica, a onipotência do
Eu submetida à potência da natureza, resultaria na maturidade e na escolha de objetos
externos. “Um ser humano permanece até certo ponto narcisista, mesmo depois de ter
encontrado objetos externos para a sua libido” (FREUD, 1912-1913/1974, p.112).
O trecho acima foi aqui destacado por indicar mais um elemento da
constituição dos laços afetivos e do estabelecimento do vínculo com o outro: o
narcisismo.
O narcisismo estudado por Freud e que versa sobre o amor próprio e o auto-
erotismo é mais um modo que permite ligar o conceito da culpa ao da constituição do
sujeito. O narcisismo surge, nesse momento, apontando como o pensamento mágico e
o recurso da onipotência do pensamento, encontrados na magia e no animismo,
apresentam coincidências dignas de destaque com o período do auto-erotismo infantil
e com a neurose obsessiva.
Os paralelos se esclarecem no eixo da onipotência do pensamento que tais
etapas da libido apresentam. É comum na criança e na neurose obsessiva o sentimento
de culpa por desejos ou pensamentos que ocupam sua realidade psíquica, ainda que
tais desejos não tenham se materializado. Um autojulgamento decorrente de culpa por
crimes não cometidos na realidade, por aqueles praticados na dimensão do imaginário
e até por eventos sobre os quais não há modo de interferência, como a morte.
A leitura do ensaio evidencia um aspecto da concepção freudiana sobre o ato
de interpretar, quer seja o mundo objetivo ou o interno, e o papel da culpa nesta ação.
Sob tal perspectiva, a interpretação que o sujeito realiza sofre deformações das quais
participam de maneira significativa o sentimento de culpa e aspectos de seu
narcisismo.
1.4. O RETORNO DO TOTEISMO NA INFÂNCIA
As crianças deslocam alguns de seus sentimentos do pai para um animal...
O deslocamento não pode dar cabo do conflito que é retomado em relação
ao objeto para o qual foi feito o deslocamento: a ambivalência é estendida
a ele (Freud, 1912-1913/1974, p.156).
Sob tal ótica Freud encaminha a última parte do ensaio ora analisado
ampliando as articulações entre a ambivalência, o narcisismo e a identificação. Ou
seja, ainda que não esteja citado explicitamente, tais desenvolvimentos parecem
apontar a constelação edípica na constituição dos laços e também como um dos
fundamentos para “as origens da religião, da moral, da sociedade e da arte” (ibid.,
p.185). E é através da arte - do livro “A Morte de Orfeu” - que Freud apresenta o
exemplo de uma outra acepção para a culpa referindo-se a ela como culpa trágica
(ibid., p.187).
Às acepções para a culpa supostas até aqui a partir da leitura do texto em
questão soma-se o drama representado no sofrimento do herói da tragédia ou no
sofrimento exemplar que nos apresenta a doutrina cristã. Sofrimento por uma culpa
que assim sentida heroicamente busca livrar e absolver os demais. Sacrifício ofertado
para nutrir um laço sagrado de proteção contra o desamparo.
Freud conclui o ensaio cuidadosamente ao mencionar que tais interpretações
basearam-se em aspectos convencionados, suposições que deveriam ser evitadas; no
entanto, é um texto que se abre em questionamentos que serão retomados e
expandidos por ele em seqüência. Para tanto, o coletivo e o individual são analisados
sob a ótica do funcionamento psíquico no ensaio “Psicologia das Massas e a Análise
do Ego” (1921).
Gostaria de destacar neste momento, comentários de Renato Mezan que
analisam o ensaio “Totem e Tabu” em seus principais elementos no sentido de extrair
as acepções para os conceitos de laço e de culpabilidade que melhor se ajustam a esse
período da obra de Freud.
A diferença entre tabu e o ritual obsessivo não é abolida pela análise
freudiana, que se empenha em ressaltar os elementos comuns. O que falta
é a dimensão positiva do tabu, isto é, o fato de que ele institui entre o
indivíduo e o objeto ou ação-tabu uma mediação social, da mesma forma
que no caso da exogamia, Freud é mais sensível ao elemento proibição que
ao elemento obrigação, já que a proibição de tomar mulher no seio do clã
obriga o indivíduo a procurá-la alhures (MEZAN, 1990, p.325, grifo do
autor).
Ao refletir sobre a análise de Mezan a respeito da questão da mediação social
que o tabu e a exogamia implicam, ocorreu-me se no complexo de Édipo também não
seria possível pensar a atuação de uma mediação desta ordem agindo sobre o laço
libidinal. Isto será possível se considerarmos que a mediação está referida à presença
do terceiro elemento representado pela função paterna; operação responsável pelo
deslocamento do sujeito da relação dual para a relação da tríade familiar ou
comunitária. Não se trata de concluir que laço social e laço libidinal são equivalentes,
mas que talvez possam ser analisados a partir de algumas teses comuns como nos
propõe Freud. O sentimento de culpabilidade estaria incluído neste território comum?
Vejamos o que nos indica a análise de Mezan sobre as proposições freudianas
encontradas em “Totem e Tabu” assim como este articula o sentimento de culpa ao
conjunto do estudo.
A partir da dupla fonte representada pela ambivalência e pelo tabu, Freud
tem condições de sugerir uma solução mais pertinente para o enigma da
origem da moral. A consciência é a percepção interna da repulsa a certos
desejos, desejos de natureza agressiva e de conteúdo edipiano: nascida da
ambivalência, ela corresponde à culpabilidade frente a tais impulsos,
presentes no inconsciente, e dos quais o primitivo se liberta parcialmente
por meio da projeção. A finalidade desta é atribuir a outrem - aos mortos,
aos chefes, aos espíritos - as intenções hostis (ibid., p.328).
Tais teses que refletem sobre a moral e apontam para o sentimento de culpa
como equivalente da consciência não serão enfatizadas como veremos nos demais
ensaios. Ainda assim parece legítimo considerar que tal tese fornece elementos
importantes para outras proposições do repertório psicanalítico, em especial as
relativas ao superego, superego cultural e ideal de ego.
Ao longo deste comentário algumas acepções sobre a culpa foram
mencionadas, primeiramente me referi ao sentimento de culpa criador que, de acordo
com o contexto de onde é presumido - o mito do pai da horda -, refere-se ao
sentimento de culpa como princípio das restrições morais e das leis.
O estudo freudiano da exogamia apresenta outro aspecto do sentimento de
culpabilidade, pois o rigor das regras exogâmicas busca evitar a realização dos
desejos, ou seja, são anteriores ao ato.
No entanto, a culpa que cria os preceitos morais unindo um grupo em torno de
prerrogativas comuns, punindo os atos cometidos contra seus alicerces (desejo hostil e
incesto) e a culpa que se antecipa ao ato a fim de evitá-lo como ameaça de dissolução
do grupo, parece possuir base comum, a ambivalência de sentimentos (amor e ódio).
A leitura destes aspectos do ensaio renova a pergunta lançada anteriormente:
por quais vias o incesto poderia configurar-se em tamanho risco para a sobrevivência
dos grupos a ponto de determinar meios de controle tão severos dos quais a exogamia
é insígnia?
O sentimento de culpabilidade está por certo nos fundamentos da resposta a
esta questão, ainda que, como salienta Mezan (ibid., p.328), “[...] o social não se
reduz, de forma alguma, a um terreno privilegiado de projeções dos conteúdos
inconscientes”.
2. CULPA E LAÇO EM “PSICOLOGIA DE GRUPO E ANÁLISE
DO EGO” (1921)
A tese de Psicologia Coletiva é bem conhecida: o que mantém unidos
todos os indivíduos de um grupo, de uma multidão ou de organizações
estáveis como a Igreja ou o Exército são laços de natureza libidinal,
redutíveis finalmente a uma sexualidade sublimada (MEZAN, 1990,
p.451, grifo do autor).
Tal síntese apresentada por Mezan estará no horizonte de minha leitura do
ensaio freudiano.
O que se pode entender quanto à tese freudiana de que os laços são de
natureza libidinal? Este ensaio parece ampliar argumento iniciado no ensaio anterior,
“Totem e tabu”, com a questão do complexo de Édipo na base da constituição dos
laços. Por natureza libidinal podemos reconhecer tanto Édipo e os embates do sujeito
com relação à castração, como também os elementos da dualidade pulsional
compondo os laços afetivos.
A abordagem freudiana aponta para a compreensão do grupo como um “ser
provisório” que, para fazer unidade, deve possuir algum elo comum e peculiar, algum
atributo que se encontre ao mesmo tempo no sujeito e no outro da relação. Desde o
início do texto suas considerações tendem a enfatizar que as “[...] relações de objeto
podem reivindicar serem consideradas como fenômenos sociais” (FREUD,
1921/1976, p.91). Passarei então aos argumentos de Freud neste sentido.
No estudo mencionado, há particularidades em relação aos grupos que gostaria
de destacar por supor que permitam também estabelecer nexo com o conceito de
culpa.
Refiro-me primeiramente ao efeito de anonimato que se opera sobre os
sujeitos quando participam da coletividade. Freud indica, apoiando-se nos estudos da
época sobre grupos, que fenômenos dignos de análise ocorrem nos indivíduos quando
submetidos à coerção exercida pelo grupo.
A força de coerção do grupo é analisada por Freud no sentido de que a
identidade pessoal fica “diluída” nas ações da massa e isso possibilita ao sujeito mais
que suas aspirações individuais autorizariam. Além disso, o processo conta com uma
conseqüência adicional, a de subjugar o sentimento de culpabilidade ou de
responsabilidade pelo ato praticado.
A leitura parece indicar “um negativo da culpa”, que é desejo e que encontra
apoio e reforços nos laços grupais; desejo de escoamento para as tensões hostis,
possivelmente da mesma ordem daquelas tensões que se configuram como as bases
das ambivalências emocionais. Esta acepção de culpa permite também considerá-la
sob a ótica de sua ausência, suspensão ou obscurecimento segundo as transformações
sociais.
Freud também se questiona sobre o sacrifício pessoal que implica os
indivíduos em atos e sentimentos comuns, chamando a este processo de contágio;
também alude à sugestionabilidade, mas por buscar entender de que forma a razão
pode ser suspensa em favor da afetividade.
Mais adiante o conceito de sugestionabilidade será abandonado, embora sua
questão permaneça: qual a relação entre razão e afetividade? A libido é o conceito que
se mostra a Freud como um melhor operador para analisar o enigma que a
sugestionabilidade só fez evocar.
Além da intensificação da emoção e da inibição do funcionamento intelectual,
outras dinâmicas presentes nas massas chamam a atenção de Freud, particularmente
as expressões de impulsividade, de onipotência, a tendência a se deixar influenciar
(tanto para a abnegação como para a crueldade), a exigência psíquica da ilusão típica
na fantasia e a necessidade de instituir um senhor, um líder.
Freud encaminha sua reflexão ao perguntar-se sobre a influência que suspende
qualquer juízo, fenômeno observado nas massas. Como mencionado acima, utiliza-se
do conceito de libido para tal investigação e isso não só o conduzirá a abandonar o
conceito de sugestão, mas implicará que a noção de identificação irá assumir o papel
fundamental.
É a identificação que demarca de maneira mais evidente as analogias da mente
grupal e as manifestações do inconsciente nas crianças, na neurose ou no estudo dos
povos primitivos que Freud está articulando neste ensaio.
A leitura do texto leva a pensar que o conceito de libido mediando o estudo
sobre o laço justifica-se na seguinte argumentação: a libido como expressão “[...]
daqueles instintos que têm a ver com tudo o que pode ser abrangido pela palavra
amor” (ibid., p.116) é a forma que mais se aproxima da idéia de uma influência que
pode suspender qualquer juízo, além de aglutinar toda forma de laço - amor sexual,
amor próprio, amizade, devoção, etc..
Tentaremos nossa sorte, então, com a suposição de que as relações
amorosas (ou para empregar expressão mais neutra, os laços emocionais)
constituem também a essência da mente grupal (ibid., p.117).
Freud prossegue apontando que para uma multidão ocasional de pessoas se
constituir num grupo e as analogias descritas poderem ganhar seus contextos, grupo e
pessoa devem possuir algo em comum uns com os outros. Mais à frente no ensaio,
decide escolher dois grupos cuja organização permita refletir sobre este elo comum
que a mediação do conceito de libido já antecipa.
A equação relação amorosa = laço emocional constituindo as relações de
objeto do sujeito é a proposição que encaminhará as demais partes do ensaio. Quando,
a partir de tal equação, Freud investiga os grupos da Igreja e do Exército, reconhece
nestes dois laços libidinais, um que liga cada sujeito aos demais e outro entre o
sujeito e o líder.
O ensaio se conduz para a relevância do líder na compreensão do laço e para a
ambivalência afetiva que aponta o narcisismo dos sujeitos ávidos por encontrar na
figura do líder o pai que protege do desamparo e que se mostra como garantia de
amor. A alusão ao complexo edípico se evidencia por meio de tal argumentação e a
semelhança entre o pai e o líder - político ou religioso - se configura.
O estudo sobre o líder também permite a Freud analisar o mecanismo da
identificação atuante sobre a coesão desses laços, ou seja, a identificação com o líder
e a identificação recíproca, aquela que une os membros de um grupo.
Desse contexto decorre toda a argumentação que culminará em três pontos
fundamentais para a compreensão do laço:
Primeiro, a identificação constitui a forma original de laço emocional com
um objeto; segundo, de maneira regressiva ela se torna sucedâneo para
uma vinculação de objeto libidinal, por assim dizer, por meio da introjeção
do objeto no ego; e terceiro, pode surgir com qualquer nova percepção de
uma qualidade comum partilhada (ibid., p.117).
A análise que Mezan realiza sobre o conceito em questão permite conceber
com mais clareza o alcance que a identificação assume para a formação dos laços e
como ela se apresenta para Freud:
Observemos de que modo é concebida a psicologia social. Não se trata de
estudar o espírito coletivo nem a alma dos povos [...] mas de mostrar que,
para o indivíduo, as relações com os demais são determinantes para a
satisfação de suas pulsões. É deste ponto de vista que o outro aparece em
quatro posições possíveis: ou é objeto da pulsão, ou um meio de obter este
objeto, ou um obstáculo que se interpõe entre este e o sujeito, ou,
finalmente um modelo para o sujeito (MEZAN, 1990, p.455).
Do condensado desta proposição gostaria de destacar que a identificação é
uma das possibilidades de satisfação da pulsão na medida em que o outro é tomado
como modelo para o sujeito.
Seguindo a lógica freudiana e fazendo-a agora incidir sobre o psiquismo, o
líder a quem o grupo se submete em busca de satisfazer sua demanda de amor é o pai
com o qual a criança primariamente se identifica em função da mesma demanda.
Mezan nos indica uma pergunta importante para a compreensão da
universalidade do complexo de Édipo: por que a identificação com o pai é primária?
De acordo com a interpretação de Mezan há uma possibilidade de resposta que pode
ser deduzida do texto freudiano e outra que consta textualmente do ensaio. A primeira
resposta recorre ao conceito de Édipo originário proposta por Le Guen e discutida por
Mezan (ibid., p.459):
É na situação do medo ao estranho [...] entre seis e oito meses, a criança
passa a apresentar uma nova conduta frente às pessoas que não são sua
mãe [...] Não é apenas a ausência da mãe que provoca sua angústia, mas a
presença do outro [o estranho], que assinala aquela ausência [...] a
negatividade, este não-mãe que é o protótipo de todas as frustrações e
interditos vindouros. Como a criança vai se relacionar com esta figura
ainda anônima? O desejo de presença da mãe implica a rejeição do não-
mãe, sua aniquilação [...] é, em suma, a prefiguração do desejo de
assassinato do pai.
A primeira identificação aponta para o fato dela acontecer com relação ao
agressor. Mezan reconhece que Freud não se fundamenta nos aspectos do Édipo
originário e que sua atenção aponta outras problemáticas; de todo modo, destaquei tal
formulação pois o tema do estranho e da hostilidade que lhe é decorrente demonstra
um importante fundamento da ambivalência que rege a constituição dos laços.
Aliás, os estudos de Zygmunt Bauman a propósito do tema da ambivalência e
do estranho cultural estão mencionados nas considerações finais desta dissertação.
Trata-se de um acréscimo sociológico à esta reflexão sobre o sentido da culpa para a
formação dos laços, em particular ao entendimento da hostilidade para com o
diferente, para com os que não são do grupo, tema que permanece no horizonte desta
dissertação, embora deva ser aprofundado no futuro.
Retomando as indicações de Mezan a respeito da importância da formulação
freudiana sobre a identificação, observa-se de que forma ela se articula com a
constituição do superego:
Freud vai atribuir à identificação um papel de extrema importância: o ego
é entre outras coisas, constituído por resíduos de identificações
abandonadas, e o superego nasce da introjeção das imagens parentais, o
que coloca sua gênese num registro próximo da identificação. O problema
que vai ocupar a teorização de Freud é, em síntese, o seguinte: o superego
é ao mesmo tempo o herdeiro da relação primitiva com os pais, isto é, do
complexo de Édipo, e o representante dos interditos e ideais sociais na
psique individual. Entre os impulsos de desejo do id e a censura exercida
pelo superego, o ego travará uma luta da qual surge o sentimento de
culpabilidade. Ora, a progressão do sentimento de culpabilidade nas
sociedades ocidentais é o tema de O Mal Estar na Cultura (ibid., p.461,
grifo do autor).
O extrato acima cita as principais teses deste ensaio ao mesmo tempo em que
indica a tensão entre as instâncias psíquicas, tensão causadora do sentimento de
culpabilidade. A perspectiva freudiana relativa às primeiras identificações com o
outro é de conflito e ambivalência, pois essas se baseiam em desejos e ideais que se
confrontam quando submetidas à civilização, ou seja, quando se confrontam com os
esforços para manter a coesão dos laços entre as pessoas.
Conflito e ambivalência também presentes quando o sujeito, em busca de
proteger seu narcisismo ameaçado pelo desamparo e pela possibilidade da perda de
amor, constrói seus ideais. Mezan nos indica que, em Freud, se por um lado o ideal de
eu deve sua origem ao narcisismo primitivo, também se situa em relação à crítica dos
pais.
É por meio do estudo da melancolia que Freud trará maiores detalhes sobre a
instância crítica que por vezes flagela o sujeito com auto-recriminações. Parece surgir
a necessidade do conceito de superego, pois como explicar as auto-recriminações a
partir de uma instância nascida para procurar preservar o narcisismo como é o caso do
ideal de eu? Mais adiante na elaboração freudiana a instância do superego cultural
será introduzida como derivação do mesmo mecanismo que promove a autocrítica e
que em escala social é responsável pelos preceitos morais.
Gostaria agora de retomar brevemente algumas considerações relativas ao
capítulo anterior. Com respeito ao ensaio “Totem e Tabu” interessa-me, neste
momento, destacar entre outros desenvolvimentos, aquele que confere ao desejo papel
fundamental na ambivalência relativa à formação dos laços entre as pessoas e as
conseqüentes restrições que do desejo decorrem. Neste ensaio já se pode vislumbrar o
questionamento freudiano em saber a que corresponde tamanha força de coerção que,
por impedir o desejo, alia os indivíduos, mas que tem por conseqüência o sentimento
de culpabilidade.
A extensa elaboração da resposta a esta questão passa pelo ensaio “Psicologia
de grupo e análise do ego”, quando Freud investiga as forma de influência entre as
pessoas. Os laços são basicamente libidinais e, por esta razão, conflitivos, como o
mito de Édipo ilustra. Outros aspectos que dão apoio a tal perspectiva são os
mecanismos que submetem as massas à influência de seus mestres, a afetividade que
domina a razão, a suspensão da culpa em ações coletivas e a atribuição de
responsabilidade a outros. É a partir da articulação entre estes mecanismos e o
processo de identificação que os aspectos libidinais presentes nos laços ganham
consistência e, dentre eles, o sentimento de culpabilidade.
No ensaio “Totem e Tabu” podemos refletir que a culpa presente nos laços é
da ordem da tensão ambivalente entre amor e ódio, primariamente referidos às figuras
parentais que o complexo de Édipo demonstra. A força desta tensão é retirada dos
sentimentos hostis e incestuosos de caráter edipiano que promovem a regulação entre
as pessoas, inclusive na forma das leis, segundo Freud.
Não obstante, em “Psicologia de grupo e análise do ego” o cruzamento entre
culpa e laço que melhor parece se ajustar às transformações teóricas é aquela que se
refere à culpa no contexto das primeiras identificações de um sujeito, portanto, pré-
edípicas.
Passarei agora aos comentários sobre o ensaio freudiano, “O mal-estar na
civilização”, que parece estabelecer com os demais aqui abordados os nexos
necessários à formulação que aqui se pretende em torno do tema: a culpa no laço
afetivo.
3. CULPA E LAÇO EM “O MAL-ESTAR NA CIVILIZAÇÃO”
(1929)
No início de seu estudo sobre o mal-estar, Freud retoma um aspecto de “O
futuro de uma ilusão” (1927) que nos interessa aqui como forma de introdução ao
tema da culpa e suas acepções.
Na conclusão de “O futuro de uma ilusão”, texto que antecede “O mal-estar na
civilização”, há uma afirmativa que coloca o saber, em particular o saber da ciência,
na ordem do não-todo: “Não, nossa ciência não é uma ilusão. Ilusão seria imaginar
que aquilo que a ciência não nos pode dar podemos conseguir em outro lugar”
(FREUD, 1927/1974, p.71).
A impossibilidade de totalização que a frase evoca a partir do campo do saber
talvez seja uma premissa que encontra ecos ao longo do pensamento freudiano sobre
o sujeito, sobre o social, sobre a natureza e em suas mútuas relações. Disjunção que
tem o inconsciente por fundamento e princípio operante.
Desde o início de sua obra, Freud aborda os sintomas e os atos do inconsciente
naquilo que estes escapam ao sentido, naquilo em que são embaraços para o sujeito,
algo que embora íntimo lhe é ao mesmo tempo estranho, desconhecido. É estranho ao
sujeito ser antecipado por um ato falho no qual ele não se reconhece ou por um chiste
que confere sentido diverso do que o esperado, mas que o leva a responder deste lugar
estrangeiro, mesmo que seja para dizer como quem diz de um terceiro: “foi
inconsciente!”. É estranho ao sujeito o mal-estar cujas causas desconhece, mas que se
mostra como efeito dos sintomas. “Há casos em que partes do próprio corpo de uma
pessoa, inclusive partes de sua própria vida mental - suas percepções, pensamentos e
sentimentos - lhe parecem estranhas e como não pertencentes a seu ego” (idem,
1929/1974, p.84).
No ensaio “O futuro de uma ilusão” - e mesmo muito antes - Freud já nos
apresenta este sujeito disjunto desde a linguagem, ou seja, desde o seu falar de si,
daquilo que nele mesmo escapa, sujeito ambivalente que altera o mundo enquanto
constrói as ilusões que permitem lidar com o mal-estar, ocupando de alguma forma e
ainda que temporariamente o espaço vazio dessa disjunção.
Em “O mal-estar na civilização” Freud propõe uma série de construções sobre
o que seria para o sujeito a idéia de “sua vinculação com o mundo” e o papel dos
afetos neste laço (ibid., p.83). É deste prisma que encontramos os desenvolvimentos
sobre a culpa nesse ensaio, como elemento constitutivo presente nos laços que o
sujeito estabelece.
De que forma a culpa aparece operando entre os laços a ponto de ser
considerada por Freud como principal problema a ser superado pela civilização? Logo
no início do texto, o amor surge representando de modo privilegiado esta questão de
fronteiras, laços e desenlaces enfrentados pelo sujeito em suas relações -“[...] no auge
do sentimento de amor, a fronteira entre o ego e o objeto ameaça desaparecer” (ibid.,
p.83). Ou, por outro lado, no amor esta fronteira sempre presente se mostra de
maneira muita intensa.
O esforço de Freud na primeira parte do texto é a construção de um imaginário
que possibilite entender os fundamentos dessa “tensão à fusão” encontrada no laço do
amor, quer seja na direção de um outro semelhante quer seja na do Outro da atitude
religiosa. A solução proposta nesse momento é a de que, frente ao desamparo vivido
pelo homem em seu confronto com o absoluto da natureza, o amor ao outro ou a um
poder superior surge como uma via de proteção para o sujeito. Toda demanda seria
então por amor como um desdobramento da necessidade de proteção por parte de um
pai, necessidade desencadeada pelas primeiras vivências do desamparo.
A partir desse ponto Freud passa a considerar os meios que o homem busca
para suportar o que advém dessa realidade. Suas reflexões indicam que é a
possibilidade de conferir um propósito à vida o que a torna suportável e que tal
propósito tem por premissa o princípio do prazer, como o trecho que se segue ilustra:
“Uma satisfação irrestrita de todas as necessidades apresenta-se-nos como o método
mais tentador de conduzir nossas vidas; isso, porém, significa colocar o gozo antes da
cautela, acarretando logo o seu próprio castigo” (ibid., p.96).
As fontes de desprazer e, portanto, de sofrimento do homem a que Freud faz
alusão são: a natureza, na forma de seu poder superior; a sociedade, através de suas
regras de ajustamento, e o corpo em sua fragilidade.
Freud (ibid., p.109), então, volta sua atenção para a civilização, tomando-a a
partir de seus propósitos de “[...] proteger os homens contra a natureza e o de ajustar
os seus relacionamentos mútuos” a fim de que tal estratégia possa lançar alguma luz
sobre o mal-estar advindo das exigências da civilização.
Seu inventário das exigências que o estabelecimento desse laço determina
inclui a beleza, a limpeza e a ordem, mas é para a regulação dos relacionamentos que
se volta especialmente sua análise e de onde podemos abstrair a categoria de
civilização e, portanto, de grupamento, com a qual trabalha neste período. Sobre este
aspecto, Freud (ibid., p.115) afirma:
A vida humana em comum só se torna possível quando se reúne uma
maioria mais forte do que qualquer indivíduo isolado [...] O poder desta
comunidade é então estabelecido como “direito” em oposição ao poder do
indivíduo, condenado como “força bruta”. A substituição do poder do
indivíduo pelo poder de uma comunidade constitui o passo decisivo da
civilização.
Indivíduo e sociedade, conflito irreconciliável? Freud sinaliza alguns pontos
de contato entre as exigências de um e de outro: os processos civilizatórios - como o
da parcimônia, o da ordem e o da limpeza - e o desenvolvimento libidinal no sujeito -
no caso específico da neurose obsessiva - ganham destaque. Freud considera também
a sublimação e seu papel regulador para a civilização enquanto renúncia pulsional, de
alcance tanto social quanto para o indivíduo. Mezan (1990, p.488) sobre este aspecto
afirma:
A tarefa de coesão própria a Eros exige, portanto que o amor sexual seja
limitado pelo amor inibido quanto ao fim [...] Dado que a cultura necessita
para suas finalidades, de um enorme investimento a ser realizado por cada
indivíduo em representações e atividades afastadas do erotismo
fundamental, e que ao mesmo tempo este investimento só pode provir da
sublimação das pulsões sexuais, ela impõe a cada qual uma renúncia cada
vez mais intensa às demandas eróticas.
Freud (1929/1974, p.118) conclui sua conjectura sobre a sublimação com o
questionamento que deverá conduzir sua reflexão no decorrer das demais partes do
texto: “Devemos perguntar-nos a que influências o desenvolvimento da civilização
deve sua origem, como ela surgiu e o que determinou o seu curso”.
A sublimação como uma condição de possibilidade para a cultura se faz
representar através da repressão da sexualidade e da agressividade. Ambas parecem
justificar-se a partir de um elemento comum, o sentimento de culpabilidade.
Conforme a análise de Mezan (1990, p.492), “[...] somente a consciência de
culpabilidade pode dar conta da repressão da violência”.
Parece interessar a Freud saber se algum processo comum encontra-se tanto na
base da constituição de um sujeito como na de uma família ou de uma comunidade e
quais suas diferenças. Para tanto, a dinâmica libidinal, da qual o amor é insígnia, é
trazida novamente à cena respondendo por uma divergência entre as exigências do
sujeito e as da civilização, já que tem em seu fundamento a mesma ambivalência que,
do ponto de vista psicanalítico, se observa no complexo edípico e também nas
dualidades pulsionais.
As articulações sobre o amor reconduzem suas reflexões ao campo do amor
próprio - o narcisismo - e do amor ao próximo - do preceito religioso - e seus
evidentes paradoxos amplamente abordados em “O futuro de uma ilusão”. “Agora,
penso eu, o significado da evolução da civilização não mais nos é obscuro. Ele deve
representar a luta entre Eros e a Morte, entre o instinto de vida e o de destruição, tal
como ela se elabora na espécie humana” (FREUD, 1929/1974, p.145).
A articulação teórica freudiana aponta nesse momento a dualidade pulsional
como a principal responsável pelo mal-estar na cultura. Essa premissa encontra sua
correlação na ambivalência emocional do complexo de Édipo, da qual deriva o
superego, responsável pelo sentimento de culpabilidade que se instala como fator
necessário à coesão dos laços sociais.
Poderíamos fazer um corte neste ponto do texto dividindo-o em dois
momentos. O primeiro, já desenvolvido e que teve por tema as exigências da
civilização; e um segundo, guiado pela reflexão do que poderia equacionar a
hostilidade decorrente do primeiro.
O processo descrito a seguir é parte do pensamento freudiano no que concerne
aos obstáculos à satisfação irrestrita da agressividade e como as instâncias do
psiquismo se articulam nesse território. Para tanto se impõe o estabelecimento de
alguns eixos por onde conduzir as reflexões sobre as acepções para a culpa, eixos que
se apoiarão nas definições sobre sentimento de culpa e sentimento inconsciente de
culpa. Qualquer elaboração sobre a culpa deverá abordar de início a “[...] tensão entre
as instâncias psíquicas ego e superego” (ibid., p.146), formulação base para o
conceito.
A título de localização conceitual, vale mencionar a primeira ocorrência do
termo culpa na obra freudiana, como nos indica o Dicionário internacional de
psicanálise:
A análise de atos obsessivos já nos possibilitou alguma compreensão
interna (insight) de suas causas e da seqüência de motivos que os tornam
ativos. Podemos dizer que aquele que sofre de compulsões e proibições
comporta-se como se estivesse dominado por um sentimento de culpa, do
qual, entretanto, nada sabe, de modo que podemos denominá-lo de
sentimento inconsciente de culpa, apesar da aparente contradição dos
termos (FREUD, 1907/1974, p.126).
Além disso, é preciso destacar que se trata da primeira ocorrência em obra
publicada, pois Freud (1892-1899/1987) fala em sentimento de culpa anteriormente,
inclusive na correspondência com Fliess, mais precisamente na carta 71 de 15 de
outubro de 1897. Nela, Freud aborda sua auto-análise, que o conduz à hipótese de
universalidade do complexo de Édipo. Ao analisar Hamlet a partir do complexo,
Freud propõe o sentimento inconsciente de culpa como base da consciência moral.
Prossigo com as definições mencionadas anteriormente a fim de estabelecer as
articulações teóricas entre estas definições e o conceito de culpa.
O sentimento de culpa e o sentimento inconsciente de culpa
A essência do sentimento de culpa reside na impressão que o sujeito nutre
de que suas próprias pulsões agressivas causaram dano ao objeto amado
(MIJOLLA, 2005, p.425).
O sentimento de culpa refere-se a um estado afetivo cujos vínculos encontram-
se tanto na ambivalência decorrente do complexo de Édipo quanto na dualidade
pulsional. Dessa perspectiva elas se caracterizam respectivamente pela ambivalência
afetiva e pelo embate entre a pulsão de vida e de morte. A origem do sentimento de
culpa relaciona-se com o medo da autoridade externa posteriormente internalizada
como superego e que tem por função a consciência moral.
Partindo dessa definição condensada, passarei aos desenvolvimentos
apresentados por Freud. Durante todo o ensaio “O mal-estar na civilização”, mas
particularmente a partir do capítulo VII, Freud (1929/1974) se pergunta sobre a luta
cultural que marca a vida em sociedade. Sua questão parece incidir sobre o que teria
amplificado essa luta entre os homens, representada pela pulsão destrutiva, e quais os
meios que a civilização utiliza para lidar com ela.
Freud entende que fatores pulsionais encontram-se na base desta luta e que os
meios de lidar com a hostilidade de que dela advém é uma realização da cultura e de
seu representante psíquico, o superego. A civilização, assim como o superego, exige
renúncia pulsional do ego e, portanto, de parte do narcisismo do sujeito. Mantendo
esta lógica sob perspectiva, poderíamos imaginar como seria um mundo regido pelo
império do narcisismo ou, num outro extremo, pela perspectiva da renúncia narcísica
da melancolia, que pouco permite ao “amor próprio” senão a autopunição pela culpa.
Ainda que a rigor esta tese necessite de desenvolvimento, nas duas possibilidades o
sentimento de culpa pode ser presumido a partir da elaboração freudiana. Seja no pólo
narcísico, seja no melancólico, a culpabilidade pode ser adotada como um indicador
de como o sujeito modula as relações de objeto.
O impulso hostil pode ter sua força atenuada pelo superego na medida de sua
introjeção. Como conseqüência, o sentimento de culpa se apresenta a partir dessa
tensão entre ego e superego, tensão que foi amplificada em razão da internalização da
hostilidade gerada pelas renúncias pulsionais. É importante retomar que tal
internalização acontece no contexto do complexo de Édipo, ou seja, internaliza-se a
hostilidade para que sua manifestação não ameace o sujeito com a perda do amor,
expondo-o ao desamparo; mas, ao mesmo tempo, esta hostilidade agora internalizada
ameaça o sujeito de outro modo, com a auto-observação que no extremo é a
consciência de culpa.
O tema do amor parece amalgamar as ambivalências tanto do complexo
edípico quanto dos embates pulsionais, e contém em si os principais geradores de
culpa com os quais o sujeito tem que se confrontar no estabelecimento de seus laços
afetivos - nesse sentido, Édipo é um bom exemplo.
Não pretendo aqui retomar toda a elaboração freudiana do mito de Édipo, mas
apenas referenciá-la por se tratar de um aspecto fundamental na formação dos laços
emocionais e como um dos geradores do sentimento de culpa. O mito versa sobre a
ambivalência dos sentimentos de amor e ódio, os quais encontram na tragédia sua
mais clássica representação. É no amor ou, mais precisamente, no medo da perda do
amor que se baseia a ambivalência presente no complexo de Édipo, a qual é um dos
fundamentos do sentimento de culpa.
Em idade muito precoce o menino desenvolve uma catexia objetal pela
mãe [...] trata o pai identificando-se com este. Durante certo tempo, esses
dois relacionamentos avançam lado a lado, até que os desejos sexuais do
menino em relação à mãe se tornam mais intensos e o pai é percebido
como um obstáculo a eles; disso se origina o complexo de Édipo. Sua
identificação com o pai assume então uma coloração hostil e transforma-se
num desejo de livrar-se dele, a fim de ocupar o seu lugar junto à mãe. Daí
por diante, a sua relação com o pai é ambivalente; parece como se a
ambivalência, inerente à identificação desde o início, se houvesse tornado
manifesta (idem, 1923/1976, p.46).
O trecho acima aponta também os embates do sujeito com a castração, com
aquilo que impõe limites ao seu desejo e que ameaça seu narcisismo com a perda do
objeto amoroso. Freud retoma aqui o desamparo sentido pela pessoa como sendo
aquilo que lhe confere as primeiras referências éticas: o bom relaciona-se à
possibilidade de preservar o objeto amoroso, como garantia de proteção em relação
aos perigos do desamparo; o mal, por sua vez, seria o inverso.
Freud argumenta inclusive que o perigo só pode ser caracterizado em virtude
da possibilidade da autoridade descobri-lo e isso nos envia ao campo da consciência e
ao fato desta autoridade ter sido internalizada. Este comentário retoma consideração
anterior a respeito da internalização do superego em seu registro da consciência -
representado pela auto-observação - ou em seu registro moral - representado pelas
auto-recriminações.
Numa nota de rodapé, Freud (1929/1974, p.154) afirma: “Nas crianças
delinqüentes, criadas sem amor, a tensão entre ego e superego está ausente, e a
totalidade de sua agressividade pode ser dirigida para fora”. A leitura desta nota
permite observar como Freud estabelece um elo entre a formulação inicial da tensão
ego/superego e um de seus possíveis efeitos no sujeito, efeito cuja atualização nos
remete aos dilemas e impasses sociais de realidades como aquelas vividas pelos
adolescentes em conflito com a Lei.
Há uma outra ordem de ambivalência geradora de culpa, a que se apresenta no
antagonismo das pulsões. Ainda que a concepção do Édipo originário não apareça
textualmente nos desenvolvimentos freudianos, penso que tal elaboração pode ser dali
presumida, como mencionado no capítulo anterior.
Segundo Mijolla (2005, p.424), Melanie Klein também assinala que “[...] o
sentimento de culpa não se manifesta somente na relação edipiana, pois também está
presente nas primeiras relações com a mãe nutriente”. A menção a Melanie Klein
permite também anunciar o ponto seguinte, que é o da origem do sentimento de culpa
tal qual ele se coloca em Freud, questão ligada à própria origem da consciência. “Em
primeiro lugar, vem a renúncia à pulsão, devido ao medo de agressão, por parte da
autoridade externa [...]. Depois, vem a organização de uma autoridade interna e a
renúncia devido ao medo dela, ou seja, devido ao medo da consciência” (FREUD,
1929/1974, p.152).
Este tema resulta numa longa articulação de Freud com a finalidade de
analisar como a consciência moral se constitui e o dinamismo resultante entre a
autoridade externa e a interna, estes que são seus principais índices. Sua conclusão
aponta para a conciliação entre as duas instâncias, interna e externa, e esta lógica
encaminha o questionamento que levanto a seguir.
O que indica a Freud o fato - tão facilmente observado - de que o remorso por
um ato realizado aponta para o sentimento de culpa? Indica principalmente uma
consciência pronta para a possibilidade do sentir-se culpado, uma culpa em potencial,
ou seja, pressupõe uma consciência que já estava ali na forma de culpabilidade
mesmo antes de um ato vir a atualizá-la.
O mito do parricídio busca clarificar o sentimento de culpa presente na
consciência como potência, antes mesmo de um ato lhe conferir tal magnitude. Mito
cujo alcance social porta o imaginário edípico atualizado pelo sujeito. Sob tal
perspectiva, a ambivalência ódio/amor presente no remorso filial cria o superego a
partir da identificação com o pai - ou ainda, cria o superego cultural a partir da
identificação com o líder. “O que começou em relação ao pai é completado em
relação ao grupo” (ibid., p.157).
É interessante observar que a articulação que Freud estabelece não parece se
tratar exatamente de uma analogia entre o indivíduo e o grupo, mas, por outro lado,
propõe uma perspectiva de ligação entre ambos.
O superego retém o caráter do pai, enquanto que quanto mais poderoso o
complexo de Édipo e mais rapidamente sucumbir à repressão (sob a
influência da autoridade do ensino religioso, da educação escolar e da
leitura), mais severa será posteriormente a dominação do superego sobre o
ego, sob a forma de consciência (conscience) ou, talvez, de um sentimento
inconsciente de culpa (idem, 1923/1976, p.49).
Novamente aqui se observa essa perspectiva de complementaridade entre os
registros do indivíduo e da cultura que a culpabilidade articula através da vertente
pulsional, seja ela da ordem da consciência ou do inconsciente.
Na neurose obsessiva, como sabemos, predominam os fenômenos de
formação reativa, mas aqui [na histeria] o ego alcança êxito apenas em
manter a distância o material a que o sentimento de culpa se refere.
Constituiu uma surpresa descobrir que um aumento nesse sentimento de
culpa Ics. pode transformar pessoas em criminosos. Mas isso
indubitavelmente é um fato. Em muitos criminosos, especialmente nos
principiantes, é possível detectar um sentimento de culpa muito poderoso,
que existia antes do crime, e, portanto, não é o seu resultado, mas sim o
seu motivo. É como se fosse um alívio poder ligar esse sentimento
inconsciente de culpa a algo real e imediato (ibid., p.41).
Os extratos selecionados demonstram também as dificuldades em se tentar
fazer alguma distinção mais precisa entre os atributos consciente ou inconsciente do
sentimento de culpabilidade. Um entendimento possível para a articulação freudiana é
o de que tais “culpas” possuem uma base comum. Sob tal perspectiva, o sentimento
de culpa - ou a consciência de culpa - se referiria a um efeito de discordância entre o
ego e o superego que tem em suas bases os sentimentos advindos do conflito edípico.
Este efeito, por sua vez, seria derivado do “[...] estado do ego resultante do conflito
inconsciente entre as aspirações do superego e as do ego” (MIJOLLA, 2005, p.425,
grifo nosso), conflito inevitável do ponto de vista psicanalítico em virtude das
“pulsões em regime de civilização” (MEZAN, 1990, p.507).
A culpabilidade tem significativa representação também através da
psicopatologia psicanalítica, mais especificamente na neurose obsessiva. Freud
observa nas manifestações desta neurose os indicativos de um sentimento de culpa
que, ora ruidoso na consciência destes pacientes, às vezes é absolutamente
inconsciente, estranho ao sujeito, mas se faz representar pela necessidade de punição,
pelas inibições e pelas auto-recriminações.
Gostaria de concluir este capítulo fazendo referência a um outro texto que
estabelece com “O mal-estar na civilização” um paradoxo necessário a esta reflexão.
Refiro-me ao ensaio “Criminosos em função de um sentimento de culpa”, presente
em Alguns tipos de caráter encontrados no trabalho psicanalítico” (1916), no qual
Freud apresenta a idéia de que um ato criminoso pode acontecer no sentido de
conferir materialidade e alívio a uma culpa que o antecede, na medida em que fixa a
culpa a este ato. Esta acepção possível para a culpa, embora se encontre também na
dimensão do complexo de Édipo, vem dar apoio à suposição de uma culpa “primária”,
da qual as demais decorrem e para as quais dá ancoragem.
A que corresponde na teoria esta culpa “primária”? Mezan (1985, p.545) nos
indica que:
Com a hipótese do assassinato primordial, Freud visa dar conta, entre
ouras coisas, da instauração da sociedade civilizada por meio da proibição
do incesto, pedra angular do direito e da ordem política, e ao mesmo
tempo, pelos efeitos inconscientes do crime, da gênese da religião como
reconciliação imaginária com o pai morto, e do vínculo social como
determinado pela identificação dos irmãos, ambas as coisas - projeção
recíproca e vínculo social - correspondendo a diferentes expressões do
sentimento de culpabilidade.
É interessante observar que Mezan, ao abordar tal ponto, coloca em
perspectiva o que possivelmente explicita a lógica freudiana sobre o social, a saber,
que o social é uma condição de possibilidade para as representações e as relações de
objeto edípicas ou pré-edípicas. No entanto, o social não se reduz a esta dimensão
libidinal que necessita da instituição das regras que a sociedade estabelece para se
ordenar. Isto é, o mito do assassinato do pai da horda seria uma exigência lógica de
definir um marco - “uma realidade empírica” (ibid., p.576) - onde pudessem se
assentar as hipóteses que a ele se referem, como os complexos de castração e de
Édipo, a dualidade das pulsões e o sentimento de culpabilidade, para citar apenas os
aspectos que possuem estreita ligação com o objeto desta dissertação.
4. CULPA E LAÇO: OUTRAS PERSPECTIVAS
Analisaremos agora outras proposições sobre a culpa a partir da leitura de
comentadores cujas análises os levaram a refletir sobre a intersecção laço/culpa, tema
de interesse desta pesquisa. Meu objetivo mais imediato é buscar perceber nos
extratos selecionados até onde a culpa se mantém como categoria para entender o
vínculo com o outro e com o social, tal como aparece em Freud.
Iniciamos esta etapa com as reflexões de Urânia T. Peres (2001, p.9), que trata
o tema sob a seguinte perspectiva:
Não sabemos se o nosso século foi mais ou menos dominado pela culpa.
Podemos, entretanto, afirmar que uma nova dimensão lhe foi atribuída e
que Sigmund Freud foi o artífice dessa modificação. A psicanálise nos
propicia assim uma nova leitura da culpabilidade, do que se destaca como
sentimento de culpa.
Inicialmente, a autora toma a culpa em sua acepção condicional do sujeito e da
civilização, a primeira representação do registro simbólico - como sustenta Freud na
argumentação de que é através da culpa que se institui a Lei de regulação entre os
homens. Operando tanto no nível individual como no coletivo, Peres situa a culpa
como dívida simbólica onde “[...] o homem é culpado pela ruptura com a ordem da
natureza” (ibid., p.10) na medida em que fala e que a linguagem o leva para além do
que diz.
Para a autora, tal ruptura reinscreve-se em laços afetivos marcados pela
exacerbação do narcisismo no mundo regido pela lógica capitalista. O narcisismo
ocupa, assim, o centro da reflexão sobre o contexto dos laços na contemporaneidade,
ou seja, pensar o estatuto da culpa hoje parece nos levar necessariamente ao terreno
da teorização freudiana sobre o narcisismo, segundo a autora. Peres (ibid., p.12)
conclui sua reflexão afirmando que o vazio da desesperança presente nos laços é o
próprio mal-estar moderno: “[...] é possível que nosso maior mal-estar repouse nessa
doença dos vínculos ou, se quisermos, do narcisismo”.
Quais seriam as implicações para os laços emocionais se a inflação narcísica
tiver como efeito o abrandamento da destrutividade do sujeito em relação à
civilização, na qual a culpa também opera? A considerar o que nos apresenta a autora,
a culpa funciona como o disparador desse processo que promove o mal-estar, ainda
que o representante da culpa assuma outras formas (no caso específico, o narcisismo
em sua versão de desejo sempre insatisfeito).
Feito este apontamento sobre culpa e narcisismo, abordarei agora um artigo de
Barbiere (2001), que busca proceder a uma categorização do conceito da culpa
segundo princípios comuns às teorias freudiana e lacaniana. Ainda que não seja meta
desta pesquisa afastar-se do terreno teórico freudiano utilizando conceitos que possam
parecer, num primeiro momento, importados precipitadamente, gostaria de trazer o
comentário que se segue devido à sua estreita ligação com o tema.
Segundo o ponto de vista do autor, a culpa sustenta-se como a mais poderosa
fonte do mal-estar por dirigir-se a uma busca de satisfação irrestrita, teorização que
foi desenvolvida por Lacan por meio da noção de gozo. De acordo com a teoria
lacaniana, a noção de gozo também nos permite abordar o aspecto mencionado no
artigo anteriormente apresentado, a saber, uma busca de satisfação irrestrita das
necessidades apontando para o cruzamento entre narcisismo e contemporaneidade.
A leitura do texto nos remete a um ponto da teorização lacaniana que alinha
culpa e desejo de modo a apresentar o gozo num extremo da tentativa de burlar a
castração e o desejo, seu contraponto, como um meio de refrear o gozo. Entre ambos
presume-se o lugar da possibilidade de culpa, lugar que se manifesta em relação direta
com o fato do sujeito renunciar a seu desejo. Na categorização estabelecida por
Barbieri para a ampliação da noção de culpa, são utilizados os registros do real, do
simbólico e do imaginário, construções que também são advindas do repertório
conceitual de Lacan a partir da leitura de Freud.
Barbiere prossegue e retoma em Freud a noção da culpa como condição da
subjetividade do sujeito, culpa mascarada pelas manifestações sintomáticas, a qual a
autora chama de “culpa muda”, relativa ao registro do real. A autora afirma ainda que
outras duas vertentes da noção de culpa relacionam-se, por sua vez, ao simbólico e ao
imaginário, referindo-se às noções freudianas de culpa inconsciente e consciente,
respectivamente. Barbiere menciona também “O ego e o id”, quando Freud identifica
a culpa não só como motivo, mas como causa dos delitos, “[...] como se o indivíduo
sentisse um alívio de poder ligar este sentimento inconsciente de culpa a algo real e
atual” (ibid., p.27).
Vejamos agora o recorte da autora sobre a culpa na teoria lacaniana. Em Lacan
a culpa apresenta-se como “dívida simbólica” do sujeito operando o laço fundamental
entre o eu e o Outro. Dívida simbólica tributária do recalque que o mito do parricídio
ilustra. Para Lacan, a culpa também encontra seus eixos nos embates do sujeito com a
castração, que é o ponto central do mito do parricídio.
Retomando e comentando o que foi descrito anteriormente, Barbiere divide a
culpa em três categorias, a saber: a culpa consciente, referida ao imaginário; a culpa
inconsciente, referida ao simbólico, e o sentimento inconsciente de culpa, aqui
nomeado como culpa muda e referida ao registro do real.
Penso que tal recorte aponta para uma ampliação da compreensão do conceito
na medida em que permite analisar a culpa situando-a nos três registros psíquicos. A
leitura deste artigo nos permite conjecturar que a culpa consciente - ou sentimento de
culpa - estaria referida ao imaginário, na medida em que é elemento operador da
constituição do ego através da imagem de si que o outro lhe antecipa. Como em Freud
tal período corresponde ao das primeiras identificações, é possível presumir que tal
culpa tem sua relação com o desamparo ao despertar da consciência e como marca do
estabelecimento dos laços. Por um lado, consciência do desamparo, consciência de
que há falta e de que o outro a representa - assim como representa a possibilidade de
apaziguá-la - por outro, consciência de culpa pelos sentimentos ambíguos que tal
circunstancia cria.
O sentimento inconsciente de culpa - ou culpa inconsciente - analisado a partir
do registro simbólico parece contemplar uma perspectiva fundamental em Freud: a de
que a culpa inconsciente é a responsável pelo estado do ego quando este está em
conflito com as aspirações do superego. Como enfatizado por Barbiere, o sentimento
inconsciente de culpa já coloca em questão o sujeito dividido pelas exigências da
cultura. Além disso:
[...] ao aceitar a hipótese de um aparecimento simultâneo de sentimento de
culpa e do Superego, cumpre sublinhar que ambos têm um caráter social,
pois o Superego deve igualmente seu aparecimento a causas externas e
representa para o Ego as exigências da sociedade (MIJOLLA, 2005,
p.425).
Analisada a partir do registro do real, a culpa inconsciente ou culpa muda,
como referida por Barbieri (2001), apresenta-se em seu aspecto pulsional. Segundo
este enfoque, a culpa traz para um primeiro plano o antagonismo e a ambivalência das
pulsões de vida e de morte. Sob esta perspectiva, a culpa se faz representar pelo mal-
estar constitutivo da civilização, como indicado por Freud. Pulsão de vida e pulsão de
morte baseando os embates do sujeito com a castração na forma de renúncia aos
impulsos contrários à civilização. Isto seria um inevitável gerador de culpa na medida
da ambivalência que lhe sobrevém. Tal culpa possivelmente é aquilo que Freud
(1929/1974, p.159) entende por trás de todo sintoma:
[...] no fundo, o sentimento de culpa nada mais é do que uma variedade
topográfica da angústia; em suas fases posteriores, coincide
completamente com o medo do Superego. E as relações da angústia com a
consciência apresentam as mesmas e extraordinárias variações. A angústia
está sempre presente, num lugar ou outro, por trás de todo sintoma.
Dando continuidade a esta perspectiva sobre o sentimento de culpabilidade,
gostaria de mencionar alguns extratos do pensamento de Renato Mezan (1990) no
sentido de ampliar o que foi exposto até aqui. A partir de seu estudo da obra freudiana
em Freud, pensador da cultura, é possível verificar as diversas acepções assumidas
pela culpa e como estas se arranjam em torno da constituição dos laços. Uma das
primeiras ocorrências deste cruzamento em seus comentários surge quando, ao refletir
sobre a moralidade, Mezan questiona como o vocábulo “moral” pode ao mesmo
tempo referir-se a sentidos tão diversos como repugnância e altruísmo. Aversão e
respeito ao outro encontram-se associados desde as primeiras inscrições da moral no
psiquismo infantil, sendo que tal estabelecimento “[...] corresponde às etapas
sucessivas da instauração do sentimento inconsciente de culpabilidade” (idem, 1990,
p.206).
Assim, a culpabilidade parece se encontrar nas bases dos laços sociais na
medida em que seus efeitos de repressão sobre os impulsos incestuosos e hostis
primeiramente contra os pais se estendam aos demais do convívio.
A leitura desta articulação parece se relacionar com o que em Freud é indicado
por sentimento de culpa criador e que foi mencionado anteriormente. Naquele
momento discutiu-se sobre como o remorso pelo crime cometido contra o pai da
horda teria deixado a marca de certas evitações favorecedoras ao estabelecimento dos
contratos sociais entre as pessoas e as leis.
Ato ou simbolismo, o parricídio é a via argumentativa principal por onde
discorrer sobre a culpa em seus dinamismos. Tal polêmica parece não comprometer o
todo da argumentação freudiana de como a ambivalência encontra-se na base dos
laços, embora exija esforço por modular os nexos teóricos de tais premissas.
Outra perspectiva trazida por Mezan insere o pensamento freudiano sobre
origem da sociedade na dimensão política por reconhecer num contrato a origem do
laço entre as pessoas, contrato responsável pela passagem da natureza à cultura. “O
crime é assim o inaugural, e o contrato derivado, sendo suscitado pelo sentimento de
culpabilidade e pela necessidade de impedir a reiteração do crime” (idem, 1990,
p.347). Política e sexualidade combinadas através do sentimento de culpa,
instaurando a comunidade de iguais, num esforço por manter esta coesão.
Mezan aborda também o ensaio “Psicologia de grupo e análise do ego”. A
mim interessa especificamente a sua síntese com relação à segunda parte texto
freudiano:
O superego é ao mesmo tempo herdeiro da relação primitiva com os pais,
isto é, do complexo de Édipo, e o representante dos interditos e ideais
sociais na psique individual. Entre os impulsos de desejo do id e a censura
exercida pelo superego o ego travará uma luta da qual surge o sentimento
de culpa (idem, 1990, p.462).
Mezan aponta que tal concepção, em Freud, permite articular ao mesmo tempo
o complexo de Édipo e seu correlato, o complexo de castração, o superego na forma
da angústia moral e o conflito advindo do confronto entre as instâncias, representado
no sentimento de culpabilidade.
Outro evento a que corresponde o sentimento de culpa refere-se ao mecanismo
constituído a fim de preservar o amor, ou a instância parental seu representante. A
culpabilidade ora manifesta através da necessidade de punição aponta que tal
sentimento “[...] surge assim como o epicentro de uma série de fenômenos cujo
fundamento deve ser buscado na dimensão do masoquismo” (ibid., p.479).
Dessa hipótese Mezan (ibid., p.479) propõe um processo onde o masoquismo
seria uma versão sexualizada do sentimento de culpabilidade provocada pela “[...]
coerção cada vez mais intensa imposta às pulsões em regime de civilização”. Tal
perspectiva culmina por reconhecer o sentimento de culpabilidade como um indicador
privilegiado da dimensão cultural através do qual o fundamento da vida em sociedade
pode ser abordado, “[...] além de um fator exponencial que o torna índice de uma
infelicidade amplamente difundida” (ibid., p.482).
Esta perspectiva do autor coloca o sentimento de culpabilidade, suas acepções
e incidências num duplo registro, afetando a constituição dos laços e a constituição do
sujeito, mas também afetado pela civilização. Ao mesmo tempo em que tal sentimento
de culpabilidade destaca certos aspectos libidinais dos laços e sendo tal sentimento
por tais laços profundamente afetado, este mecanismo poderia refletir algo da
amplitude de sintomas sociais?
Gostaria de finalizar este comentário com a problematização que Mezan
procura articular como desdobramento do trecho que segue:
Com a hipótese do assassinato primordial, Freud visa dar conta, entre
outras coisas, da instauração da sociedade civilizada por meio da proibição
do incesto, pedra angular do direito e da ordem política, e ao mesmo
tempo, pelos efeitos inconscientes do crime, da gênese da religião como
reconciliação imaginária com o pai morto, e do vínculo social como
determinado pela identificação recíproca dos irmãos, ambas as coisas -
projeção recíproca e vínculo social - correspondendo a diferentes
expressões do sentimento de culpabilidade (ibid., p.545).
Muito haveria a se dizer sobre tais pontos, inclusive se Freud tem uma teoria
de grupo, como nos leva a problematizar Jurandir Freire Costa (1989), ao concluir
que tal grupo é a família. No entanto não é do interesse desta pesquisa, no momento,
aprofundar tais debates, isso para que o par culpa/laço possa apresentar seus
contornos e articulações.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Escolho encaminhar essas considerações finais apresentando brevemente um
panorama da relação entre culpa e laço, a partir da leitura que realizei dos ensaios de
Freud.
O sentimento de culpabilidade é um conceito fundamental à compreensão dos
laços emocionais e seu estatuto permite que a abordagem se estenda a determinados
aspectos sociais. Neste sentido, Renato Mezan (1990, p.498, grifo do autor), ao
analisar a intersecção da função paterna e do líder, situa um destes aspectos que
merecem destaque: “[...] a coesão do grupo, que depende da relação com o líder,
resulta em última análise de que a sociabilidade é um derivado da culpabilidade, ou
melhor, uma forma de defesa contra ela, mas que se nutre de seu caráter
inextinguível”.
Ao término deste trabalho, creio que é possível supor a existência de uma
“gradação” relativa à relação culpa - laço, ao longo dos ensaios estudados. A
articulação da culpa no laço emocional no ensaio “Totem e tabu” remete-nos
principalmente ao complexo edípico, aos sentimentos conflitantes e, portanto, ao
contexto ternário onde o amor está em jogo segundo os desejos e suas restrições. É
possível supor que as conclusões de Freud colocam a função paterna na lógica do
ensaio através dos interditos aos desejos incestuosos e hostis representados pela
instituição totêmica e seus tabus.
No sentido descrito, a relação culpa - laço está muita ligada ao complexo
edípico e à ambivalência emocional; porém este é apenas um dos modos presentes
em “Psicologia de grupo e análise do ego”, ensaio que contém uma outra forma de
conceber a relação culpa - laço, pois aponta aspectos menos ligados ao complexo de
Édipo, e mais ao contexto das primeiras relações objetais. Este contexto é anterior ao
Édipo e, portanto anterior à entrada do terceiro.
O que se sobressai dessa perspectiva dual a partir da articulação culpa - laço,
é a relação mãe - bebê, onde a culpa surge como sinal da angústia que expõe o
narcisismo da criança.
No ensaio o “O mal-estar na civilização” o antagonismo pulsional ganha
relevo ampliando o que inicialmente teve o complexo de Édipo como principal
matriz. Os embates pela vida e pelo amor que implicam a sociabilidade encontram no
sentimento de culpa um articulador necessário à compreensão dos vínculos
emocionais, ainda que o social não seja redutível a ele.
A ênfase no contexto dual das primeiras relações objetais ou ternário do
complexo edípico sugere que uma “etapa” necessariamente não exclui a outra e nem
se contradizem mantendo entre si uma circulação.
O que talvez possa se acrescentar a essa reflexão é o questionamento se a
“gradação” proposta permite cogitar qual a ênfase modulada contemporaneamente
com respeito à relação culpa-laço. Ela se concentraria mais no pólo dual ou ternário?
O que isso implicaria em termos dos laços sociais? Esses são interesses que se
encontram na origem desta pesquisa e, para finalizar, gostaria de mencionar alguns
aspectos da obra de Zygmunt Bauman que se ligam aos interesses mencionados.
Sua análise procura levar em conta o esforço moderno em combater a
desordem e o desejo de aniquilar aquilo que é considerado seu representante, no caso,
o estranho cultural. Segundo Bauman, amigos e inimigos mantêm o antagonismo que
permite a um a definição do outro no laço; já o estranho indetermina o laço, pois
pode migrar de um a outro pólo, burlando suas fronteiras e causando indeterminação.
Bauman explora os aspectos envolvidos na construção social da ambivalência
ordem/caos, principal evento contra o qual a modernidade se constituiu e do qual
decorre seu conceito de desetificação. Bauman sugere o termo desetificar para este
mecanismo que é a negação do estranho como sujeito moral e descreve o modo como
os judeus foram colocados nesta posição contrária aos ideais da raça pura a ponto de
sua aniquilação ter sido possível.
No desdobramento dessa perspectiva, Bauman identifica a condição de
possibilidade do genocídio, ou seja, as restrições morais suspensas em favor de uma
ação com propósito, o fim - o ideal da raça pura e sua proteção contra os estranhos -
justificando o meio - o holocausto.
Conforme Bauman, essa perspectiva remete à autoria de tais atos e aponta
para um sujeito moderno sem rosto, afetado em sua identidade e, inclusive por isso,
desapropriado de sua responsabilidade moral. Seria possível articular a relação laço -
culpa a essa perspectiva sociológica que Bauman apresenta?
Esta dissertação procurou indicar, dentre as teses psicanalíticas, algumas
através das quais certos aspectos de fenômenos sociais poderão futuramente ser
abordados. Refiro-me a fenômenos como aqueles que criaram as precondições para
um evento como o holocausto ou ainda para o assassinato em série de pessoas em
situação de rua.
Ocorre-me neste ponto um comentário sobre a condição de pessoas em
situação de rua, tendo em vista inclusive o assassinato do índio em Brasília há alguns
anos e os mais recentes extermínios de “moradores” de rua. Tendo convivido de
perto com a problemática sob uma perspectiva profissional de quem busca contribuir
para o estabelecimento de políticas públicas na direção desta população, o que se
observa na prática é um imaginário social repleto dos elementos que Bauman
assinala. Destaco, por exemplo, a desumanização que os episódios citados refletem e
o incômodo à ordem que tais pessoas representam para seus ocasionais vizinhos
territorializados e para os agentes públicos. Merece grifo, inclusive, o efeito
suspensivo da moral por parte daqueles que acreditam que tais pessoas devam ser
privadas de seu direito de ir e vir e sua presença separada da “sociedade”, afastando-
os das portas de suas casas, áreas centrais, parques, locais de comércio, etc.. Eles são
literalmente transformados em tabu e tornam-se assim ameaçadores da ordem; resta-
lhes existir no espaço marginal, transformado em doméstico, as ruas, acesso “livre” a
qualquer fronteira.
É meu interesse que estas considerações se estendam em futuras pesquisas e
possam incidir mais amplamente sobre tais eventos ou sobre aqueles contidos nas
“Crônicas confessas” em anexo. O desejo de retornar à prática com outras
perspectivas.
APÊNDICE - “CRÔNICAS CONFESSAS”
Crônicas Confessas
Como sugere o dicionário, aquele que confessa o faz sobre uma culpa, defeito,
falta, pecado, verdade, etc.
Dia seguinte J. Firmeza
Jesus é de uma família cuja mãe faleceu quando ele ainda era uma criança, não
conheceu o pai e foi criado pelo padrasto que se casou novamente.
Sempre morou no mesmo barraco como costuma chamar sua casa, e foi
crescendo com a região que se desenvolvia por razão do tráfico de drogas local. Este
era o negócio para onde, aliás, se encaminhavam crianças e jovens, especialmente
aqueles que se destacavam em receber ordens, cumprir determinações sem questioná-
las e assumir responsabilidades junto aos seus companheiros.
Jesus reconhecia que as regras de seu ofício eram rigorosas, porém uma justa
medida pela proteção e pelo respeito que dela advinha. Além do mais tais regras
representavam a manutenção dos salários e, portanto, de sobrevivência; a regra da
vida.
As dívidas contraídas neste mercado tinham a vida por moeda de troca e como
isto estava desde cedo acordado, Jesus e os demais sempre entenderam que o
“combinado não é caro”.
Jôta, como era o apelido de Jesus, foi sempre um padrão de operário neste
sistema cuja produtividade era valorada em função do fortalecimento e poder
coercitivo de um grupo sobre outros e em como cada um contribuía para isso.
Fortalecimento e poder na preparação para os confrontos, e também como insígnia de
força para manter os outros grupos atemorizados de qualquer reação.
Tal sistema erigido sobre a clandestinidade tem por signo de pertença a
lealdade e a promessa de reciprocidade, valores absolutos e cuja presença ou ausência
determinam os destinos dos envolvidos.
Desde muito pequeno o jovem Jôta de Jesus já sabia o que fazer para se
garantir e sua família usufruía silenciosamente os benefícios de seus atos; o jovem era
reconhecido ao prover a família em suas necessidades, que não eram poucas.
Visto de fora, cumplicidade no ilícito; visto por dentro fidelidade ao secreto.
Jota, agora com 16 anos, passou por todos os estágios de seu ofício até ser
confrontado a última prova de sua dedicação; ao ultrapassá-la nada mais estaria entre
ele e a promoção almejada.
Gilmar morava em bairro vizinho de Jôta e em incerto dia arriscou-se vender
sua mercadoria em território alheio. O domínio de Jôta e seus pares foi o escolhido e
logo por ali a notícia correu que alguém havia quebrado as fronteiras.
Isso colocava em risco a rede tão cuidadosamente formada e legitimada pela
comunidade da qual Jôta fazia parte.
Jôta conhecia Gilmar e sua família. Quando pequenos brincavam no mesmo
campo de futebol ali próximo, mas este era de fato um detalhe em meio a urgência por
medidas que aquela invasão desencadeara.
Esta prática comercial desleal precisava ser coibida e Jôta foi o escolhido para
resolver o impasse que se criara. “O Patrão” o selecionou em meio a muitos em
virtude de possuir as características exigidas para tanto, e assim Jôta também
reconhecia.
Dia seguinte, seis tiros, já era fato, Gilmar morto, Jôta Firmeza!
Nunca mais somente um Jesus qualquer, agora sim, Jôta Firmeza. Deste modo
adjetivado, Firmeza poderia ser identificado em outros territórios. Porém o jovem
sentia que ainda faltava algo. Tinha estado solitário por muito tempo, envolvido com
este seu projeto de vida e distante de envolvimentos afetivos duradouros. Porém
sentiu-se assim sem companhia somente até conhecer Joana a quem logo se afeiçoou.
Foram meses de namoro para que Jôta pudesse confiar-lhe segredos, até que
um dia lhe confidenciou sobre Gilmar e sua patente na “Firma” como era nomeado o
negócio.
Passado pouco tempo desta confidencia fatos estranhos começaram a
acontecer. Ao mesmo tempo Joana, começou a se afastar de Jôta e na vizinhança
ouviu-se rumor de que andavam perguntando da relação deste com Gilmar.
Ela o teria traído? Jôta não teve dúvida e sua certeza o colocava de novo na
dimensão das traições.
Dia seguinte, já era fato, um tiro, Joana morta, J. Firmeza.
“O sangue subiu! Será que recebeu um apavoro para falar? Ela tremeu de
medo então era verdade! Se ela tivesse confessado...”
O mesmo jovem foi institucionalizado por razão de uma denúncia anônima,
cumprindo as medidas relativas ao seu primeiro homicídio. Está inserido de modo a
ser reconhecido como cooperativo, tímido, colaborador e tranqüilo ao cumprir o
combinado sobre as regras de relacionamento, tanto que tem uma agenda repleta.
Divide seu tempo entre as atividades oferecidas a todos como estudo e cursos, mas
também está incluído em oficina remunerada reservada a pouquíssimos ali dentro.
Tem expectativas de logo receber sua liberdade e voltar ao convívio dos seus.
Dia seguinte tatuagens pelo corpo
Bira, um jovem calado, olhar fixo, pouco expressivo, só fala quando
questionado e é reticente ao responder sobre o assassinato que cometeu contra o
“avô”, este que foi companheiro de sua avó legítima por muitos anos.
Consta que ele e o irmão, após cometerem o ato, jogaram o corpo num poço.
Relembra que não sabe como o pau foi parar em sua mão...”Foi como arrancar
a folha de um livro”.
Bira foi criado por este homem que era alcoolista e muito violento. Supõe,
inclusive, que o falecimento de sua avó se deu em virtude de uma paulada que
recebeu deste companheiro numa das muitas discussões.
O jovem Bira com 17 anos costumava trabalhar ora em borracharia, lava
rápido ora como ajudante geral em obras, para manter-se e ao seu irmão mais novo,
na casa destes avós que passavam por dificuldades financeiras. Seus pais estavam
separados e decidiram que o melhor para os filhos era viverem pois eles não
conseguiriam provê-los do mínimo.
O pai de Bira os via com certa freqüência e certa vez contou-lhes porque o
relacionamento dele com este companheiro de sua mãe era tão tenso. Conta o pai que
este homem quando jovem matou o seu pai, o avô legítimo dos jovens. O que motivou
tal atitude teria sido uma disputa pela mulher entre eles. Bira e o irmão souberam
disso quando tinham 12 e 10 anos respectivamente.
Institucionalizado pelo assassinato do assassino de seu avô, Bira se reconhece
como o agente desse drama familiar, mas não submetido à justiça formalizada. Há
uma autorização velada na compreensão que merece dos pais e na aprovação que
recebe dos amigos ou daqueles com quem conviveu na vizinhança onde cresceu.
Dia seguinte, já era fato, enquanto no poço afundava, noutro corpo tatuava.
A primeira de uma série de sete, foi a tatuagem de um túmulo; todas, aliás,
foram feitas na manhã do dia seguinte.
Bira sempre gostou do tema da morte da mesma forma como se interessava
por biologia humana, e isto não era segredo para quem o conhecia. Secretas sim eram
suas opiniões sobre o avô; nem para a mãe queixava-se, “não queria incomodá-la”,
este era um terreno que sempre manteve em página por arrancar.
Quando reconstrói o dia do ato, lembra das ameaças do avô de matar seu
irmão do mesmo modo que matara sua avó. Este foi o limite para além do qual tudo o
mais era obscuro; eles estavam discutindo quando Bira chegou inflamando ainda mais
os ânimos, espalhando ainda mais os móveis e derrubando tudo. E de repente a gota
d’água oculta a cena.
Tatuagens pelo corpo, alívio e fim.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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