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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LINGÜÍSTICA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGÜÍSTICA
Caetano Waldrigues Galindo
Abre aspas: a representação da palavra do outro no Ulysses de
James Joyce e seu possível convívio com a palavra de Bakhtin
volume um
Tese apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em
Lingüística como requisito
necessário à obtenção do título
de doutor em Lingüística.
Orientador: José Luiz Fiorin.
SÃO PAULO
2006
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2
Para
a Sandra,
que é a minha mulher
1
a Beatriz,
que é a coisa mais bonita que eu fiz na vida
os meus pais,
que me deram uma formação bacana e me fizeram
acreditar que eu tinha uma muito melhor.
o meu irmão
que é um homem bom
1
Além de ser responsável por tudo que de orelhada tenha entrado aqui sobre artes plásticas e Rimbaud, por
exemplo..
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3
Com um obrigado para
o professor José Luiz Fiorin, que bancou esse trabalho maluco e, maluco, confiou em mim;
o professor Carlos Alberto Faraco, mestrezen, meu orientador eterno, que eu esqueci de
agradecer no meu mestrado porque eu estava com uns coágulos no cérebro;
Cristovão Tezza, vizinho maravilhoso, o São Jorge deste sáurio que vos fala. Lutamos.
Cedi. Acho que saí vivo;
a mãe da minha filha, que cuida dela na maior parte do tempo;
o meu primo Sandro, que é meu alter ego tácito;
o meu colega Luís Bueno, o Cérebro, que virou meu irmão e junto com quem eu vou
dominar o mundo;
os meus colegas todos da lingüística da Federal do Paraná, que me deram a possibilidade de
ficar afastado das salas de aula durante quatro anos;
todos os alunos que eu não tive a oportunidade de atazanar durante esses quatro anos;
Antonio Houaiss, que fez o que ninguém tinha peito de fazer, num momento em que as
pessoas tinham montes de razões para não ter peito de fazer;
Bernardina da Silveira Pinheiro, que me passou a perna (,/e) prestou um enorme serviço à
literatura brasileira e gerenciou uma edição bem mais decente do Ulysses. Além de ser
bonita pacas;
Don Gifford, fidus achates, e David Hayman, Virgilius meus;
David Foster Wallace, que veio me mostrar que, depois de Joyce, ainda um escritor pode
efetivamente mudar a minha vida;
o senhor Augusto de Campos, que deu uma lida em uns fragmentos da tradução, me fez
fazer as pazes com a opublicação e deu uma calibrada na minha postura geral em
relação ao meu trabalho;
Marcelo Tápia, que me convidou pro Bloomsday paulistano;
Ivan Justen e todo o povo do Centro Paranaense Feminino de Cultura, que bancam o
Bloomsday curitibano desde o início, e que tiveram a imensa bondade de me acolher;
André (Dé) Tezza Consentino e o pessoal do Unicenp, que acreditam que eu entendo de
Joyce;
Sirce e rgio Medeiros Amarante, que são pessoas literalmente incríveis e fazem valer
mais a pena pensar essas abstrusiosidades em tal companhia.
as pessoas que me contrataram como tradutor (como eu estou munificente, mesmo o
pessoal da Rocco, que ainda não lançou os contos reunidos do Bellow);
4
as pessoas que me convidaram a escrever, na imprensa e na internet, sobre Joyce ou outras
coisas;
os leitores de O Lapão na Hiléia, que me aturam anos, e o Edson Cruz, que resolveu
abrigar a coluna no Cronópios (www.com.br);
os Arctic Monkeys, que me deixaram feliz pra c* este ano;
Johann Sebastian Bach, que me deixou feliz desde que eu conheci (especialmente se via
Glenn Gould);
Alfred Schnittke, que junta tudo;
todos os membros da banca de avaliação deste trabalho, que vão ter de ter um saco d’oiro
pra vencer isso tudo e descobrir que de repente nem tudo vale a pena quando a tese
não é pequena..
você que está lendo isso em algum momento e fazendo a coisa toda ganhar alguma vida;
o velho James Joyce, que me deu esse trabalho de presente e fez a minha vida bem mais
divertida;
Leopold Bloom, meu grande, grande amigo;
A Olga, a Manchinha e a Generosa (in memoriam); o Tranqüilo, o Martinho e o
Manouche.
E todo mundo que eu esqueci porque eu sou panaca.
5
RESUMO
Este trabalho pretende analisar cuidadosamente os mecanismos empregados por James Joyce
para a representação das vozes e do convívio das várias instâncias e individualidades vocais
em seu romance Ulysses. Para isso ele realiza uma minuciosa leitura (a todo momento
partindo de exemplos concretos) de cada um dos dezoito episódios do romance, buscando
primeiro estabelecer uma base, uma cnica primeira, a partir da qual se comentado o
desenvolvimento de novas técnicas e novos efeitos, episódio a episódio. Para esta leitura,
será central a idéia de arranjo, conforme definida por David Hayman. Num segundo
momento, as formulações estabelecidas a partir da letra do texto joyceano serão
confrontadas com o que os estudos do círculo de filósofos da linguagem cuja figura central é
Mikhail Bakhtin puderam dizer a respeito das mesmas questões. Como parte de seu
desenvolvimento e também como parte de seu resultado, o trabalho apresenta ainda uma
nova tradução do Ulysses para o português.
Palavras-chaves: Joyce; Ulysses; Arranjador; Bakhtin; vozes.
6
ABSTRACT
This work deals with the mechanics of the representation of voices and the representation of
their co-existence (both as individual voices and as representatives of different levels of the
narrative structure) in the novel Ulysses, by James Joyce. The first objective has been the
detailed reading and analysis (always grounding the commentary on concrete examples) of
each of the eighteen episodes of the novel, trying in a first moment to establish the notion of
a basic technique, to which new procedures and new effects will be added as the novel
progresses. In this reading, the ideas of David Hayman (best represented in his creation of
the arranger) have been of the utmost importance. After that, all that has been extracted from
Joyce’s text has been compared to the writings of that circle of Russian scholars defined by
the central presence of Mikhail Bakhtin, trying to refine from them all that may deal with the
same questions. Both as part of its development and as part of its final product, this thesis
presents also a new brazilian translation of Ulysses.
Keywords: Joyce; Ulysses; Arranger; Bakhtin; voices.
7
ÍNDICE
volume um
7.
Índice (cf: p.7, índice)
10. Instruções de segurança
11. Protofonia à incepção de uma jornada muito rígida
25. Hapax legomena
29. JOYCE
30. Palavras de pórtico
31. Capítulo 1 (Em que se busca uma leitura dos seis primeiros episódios do Ulysses,
aqueles a que a crítica usualmente se refere como Telêmaco, Nestor, Proteu, Calipso,
Lotófagos e Hades, episódios que formariam a Telemaquia, correspondente à primeira
parte da Odisséia de Homero, modelo para todo o livro, que dariam seguimento à
sessão de apresentação de temas incluindo os espe(ta!)culares primeiros três
episódios da verdadeira odisséia dublinense.)
32. A. Usurpado: Sandycove, oito horas da manhã
63. B. A estrada Vico, no caminho de Dalkey (um excurso)
64. C. A ponte (entre a bulha calada e o silêncio ruidoso), dez horas da
manhã.
77. D. Não gosto dessas palavras grandes, conchas ocas, símbolos
conspurcados (um grande excurso montado em retalhos)
83. E. Trezentos, trezentos e cincoenta: praia de Sandymount, onze horas da
manhã
104. F. A barriga de Bloom (um excurso)
107. G. Às avessas: um excuso
108. H. O dono do livro: Eccles street, oito horas da manhã.
131. I. Pirronismo, um excurso.
133. J. Desdobra-se o duplo: Dublin, dez horas da manhã.
150. L. O princípio do tio Charles
153. M. O inferno são os outros: Glasnevin, onze horas da manhã.
171. N. De regibus regalisque (uma divagação)
175. a. Ranjos
8
181. Capítulo 2(onde se dá prosseguimento à leitura dos demais episódios do Ulysses,
chegando-se à constatação de que a coisa ainda tem muito por onde se complicar)
182. A. O buraco do vento
192. B. Peristáltica
204. C. The horror, the verve
216. D. E tinha um despropósito de pedras no meio do caminho
227. E. É o que está por trás
241. F. It’s wide shut
251. F e meio. Urina
252. G. Que me importa que a musa manque
263. H. O estilo é outros homens
273. I. Dentro da voz de onde saem as vozes
281. I,3333333... E além do real
283. J. Sancho
293. M. Rio
312. Intervalo
314. BAKHTIN
315. i. O ano não começa
333. ii. antes da
337. iii. momice.
347. iv. Cinzas
358. v. Quaresma
373. vi. Paixão
388. vii. Pessach
400. viii. Ainda tem um ano todo pela frente mas é bem verdade que pra quem é de
carnaval o carnaval que vem anda já bem
407. ix. pelo horizonte. O que nos faz pensar que qualquer coisa que queiramos, no
fim dessa viagem, chamar de
CONCLUSÃO
, tem de ser relativizada, mesmo porque
fica relativizado o fim. Da viagem. Mas muito obrigado pela companhia.
414. Bibliografia
9
volume dois
419. BLOOM (a mãe de todos os anexos)
420.
Jeg
proevde
ou Prefácio desinteressantíssimo a uma tradução pro si só
repreensibilíssima (com ênfase no porsissoja)
446.
ikke
desto
mindre
452. Pequena (mesmo... juro... ) nota à tradução
453.
Ulysses
454. [1]
470. [2]
480. [3]
490. [4]
502. [5]
514. [6]
535. [7]
560. [8]
584. [9]
610. [10]
636. [11]
663. [12]
700. [13]
volume três
726. [14]
757. [15]
903. [16]
940. [17]
997. [18]
10
INSTRUÇÕES DE SEGURANÇA
Você está adentrando um trabalho de doutorado (doravante: trabalho).
Sim, eu sei, esses ambientes costumam ser desagradáveis, quando são bons. Os
piores lindam as raias do impossível, não é?
É de pleno interesse de nossa equipe, no entanto, que você aproveite ao máximo sua
estada conosco, e não pouparemos esforços para fazer seu tempo valer a pena e para garantir
sua prefererência numa próxima viagem.
Então me acompanhe, por favor.
11
PROTOFONIA À INCEPÇÃO DE UMA JORNADA MUITO RÍGIDA
O que este trabalho pretende fazer é discutir a relação Joyce-Bakhtin em um aspecto
que nos parece especialmente relevante
2
: a representação e o convívio das diversas vozes
dentro de um romance.
A pertinência para o projeto joyceano das formulações bakhtinianas sobre o
romance, a linguagem e seu papel na constituição das relações entre as pessoas e entre elas e
o mundo que as cerca salta aos olhos de qualquer leitor atento dos dois autores. Esse leitor,
contudo, imediatamente vai deparar com uma incongruência: Bakhtin mal cita Joyce e não o
discute em momento algum de sua obra publicada até o momento.
Durante um congresso internacional tive oportunidade de abordar o pesquisador
russo responsável pela edição de todos os manuscritos de Mikhail Bakhtin, que vem
acontecendo anos na Rússia, em bom ritmo russo. Fui até ele motivado por uma dica de
um pesquisador inglês que me afirmava ter ouvido falar da existência de um inédito que
trataria do discurso indireto livre em James Joyce. Mas fui recebido com uma entristecida
negativa.
Por tudo que por ora possamos saber, Joyce continuará sendo
a ausência marcante na obra de Bakhtin; diversos críticos ficaram intrigados com essa
omissão, visto que todos os principais conceitos bakhtinianos parecem mais e melhor
ilustrados em Ulysses e Finnegans Wake. Resenhando The dialogic imagination
em TLS em 1981, George Steiner chamou o silêncio de Bakhtin a respeito de Kafka e de
Joyce de suas “drásticas lacunas”, enquanto que os admiradores franceses de Bakhtin, tais
como Julia Kristeva e boa parte da escola Tel Quel, inevitavelmente invocam Joyce. Clark
e Holquist acreditam que a omissão seja politicamente motivada.
Como já apontava R. B. Kershner (1989, p.17).
Mas nos interessa (em mais de um sentido) lembrar que a aproximação entre os dois
autores pode se dar em muito mais de um ponto e em mais de uma direção. O livro de
Kershner que acabamos de citar trata todo ele das relações entre Joyce, Bakhtin e a cultura
2
Então, já de saída: Nós (ou nos) somos eu o meu orientador. Quando eu achar que não preciso, e
especialmente que não devo, meter o meu orientador em coisas meio, digamos, arriscadas, eu vou ser eu mesmo.
Você é você.
12
popular. Um seu discípulo, M. Keith Booker, completou seu trabalho, escrevendo sobre
Joyce, Bakhtin e a tradição literária.
Esses dois livros, publicados nos últimos anos, podem bem servir como mbolo
daquele que tem sido o principal foco de interesse dos bakhtinanos na obra de Joyce (e
ressalte-se que a aproximação costuma provir deste lado): Joyce e sua relação confessa com
os autores que o precederam, sejam eles membros do cânone da alta cultura ou não. Um Joyce
ao gosto do século 20, que permite divulgar um Bakhtin ao gosto do Século.
Essa corrente, diga-se, não foi criada pelos bakhtinianos no corpo dos estudos sobre
James Joyce. O próprio Joyce teve algo a ver com o surgimento dessa linha de estudos e,
conseqüentemente, com o grau de importância que ela veio a ter na tradição das leituras do
Ulysses.
Pois tanto quanto o belo livro de Ellmann, The consciousness of James Joyce (ou até mais
que ele) um livro como que encomendado pelo próprio Joyce teve um papel fundador nesse
campo. Trata-se do Ulysses de Stuart Gilbert, amigo e secretário particular do autor, livro
especialmente projetado para (e conhecido por) divulgar ao mundo a importância e a
profundidade dos paralelos homéricos no livro, obnubilados que tinham ficado depois da
decisão (tomada quando da publicação em forma de livro) de retirar os títulos de cada um
dos episódios.
A manobra foi tão bem sucedida que mesmo os títulos homéricos acabaram por
entrar em voga e circulam neste trabalho, por exemplo, por comodidade de referência.
Entrando em uma corrente bem-estabelecida, os bakhtinanos deixaram contudo a
marca de sua pata peluda e de sua varinha mágica, mesmo sendo obrigados a criar um
diálogo in absentia entre dois autores que tiveram tudo sobre o que conversar quando vivos.
O que era intertextualidade, nas mãos deles, torna-se dialogismo.
Mesmo assim uma limitação na aproximação que esse enfoque propicia, pois o
contato entre os dois autores parece estar-se limitando a apenas uma das áreas que o mesmo
Bakhtin reconhecia como sendo pertinentes aos fenômenos mais amplos de interferência de
vozes. Pois do trabalho do mesmo Bakhtin se pode depreender a existência de outros tipos de
diálogo que podem e devem ser analisados, conforme sintetiza muito bem o próprio
Kershner (1989, p.19).
13
No ensaio “Discurso no romance” e no capítulo “O discurso em Dostoiévski” de
Problemas da poética de Dostoiévski, Bakhtin estabelece três amplas aplicações do
dialogismo em um texto literário: (1) entre a linguagem do autor e a do protagonista; (2)
entre a linguagem do protagonista e as das outras personagens em um texto; e (3) entre a
linguagem de um texto ou de um protagonista, concebidas como um todo, e a linguagem de
outros textos relevantes, à que se faz explícita ou implicitamente alusão.
Da maior importância que esta última área tem para os seus estudos (e de seus
seguidores) e, não é abusado presumir, para algumas tendências dominantes do estudo
literário, pode-se deduzir pela frase que, em seu livro, dá continuidade ao parágrafo acima.
Esta terceira área do dialogismo imediatamente sugere a noção de intertextualidade,
conforme tem sido desenvolvida por diversos críticos contemporâneos, especialmente Kristeva,
Michel Rifaterre e Jonathan Culler.
E é a ela que se dirige afinal o trabalho de Kershner.
E ele se preocupa de pronto em trazer ao proscênio a mais-que-poderosa palavra-
chave intertextualidade, e em forrar seu parágrafo com nomes representativos.
Não obstante, na mesma página, ele lembra que
O interesse especial de Bakhtin está na área da interpenetração das vozes do autor e da
personagem, como a que se encontra no monólogo quase interno do discurso indireto livre ou
naquilo que ele chama de “zonas de personagem”, áreas de influência lingüística que
cercam as personagens de um romance mesmo quando elas não interrompem explicitamente
a narração do autor.
Isso e mais um breve período (e só) destacando a utilidade deste tipo de análise para a
ficção de juventude de Joyce e lembrando que tal tipo de trabalho foi de fato posto em prática (sem a
estrutura teórica que o acompanha) por Hugh Kenner, entre outros (Kershner, 1989, p.17).
Não se pode repetir sem entoar. É claro que a frase que acabo de escrever é de
Bakhtin. E não é mais. É minha, pela verdade mesma que enuncia.
É claro que cito Kershner para meus próprios fins. Bem como é claro que ele recorta
e cita Bakhtin e sua fortuna crítica com seus objetivos. (O próprio Bakhtin podia ser muito
tendencioso ao citar e omitir, ao contrário do que alguns bakhtinianos gostam de afirmar,
negando os mesmos postulados que defendem.)
14
O que resta, portanto, é que mais campo para discutir a relação entre os dois
autores, mesmo que não saiamos de debaixo da saia do dialogismo.
E são precisamente aqueles dois aspectos enumerados por Booker, e que ficaram de
lado na maior parte de seu livro e no de Kershner, o que pretendemos abordar aqui. Ou seja,
como se dá a relação de convívio, influência, ação e reação entre as vozes das personagens e
entre elas e a voz do narrador.
Tal aproximação, acredito, justificaria a possibilidade deste trabalho e a
importância desta possibilidade. No entanto, ainda uma pequena problematização que
não pode deixar de surgir e que, parece, pode ser a maior contribuição de nossa discussão.
E tudo começa porque a similaridade das linhas de pensamento dos dois autores, que
parece mais do que clara para mais de um teórico, foi questionada por outros, a começar,
talvez, pelo próprio Bakhtin.
Clark e Holquist, por exemplo, declaram que
Um dos muitos enigmas sobre Bakhtin é que ele não faz menção alguma em seu livro sobre
Rabelais ao Ulysses de James Joyce, um livro que poderia ser descrito como uma
celebração da heteroglossia e também do corpo. Isso é especialmente surpreendente que
Joyce era figura conhecida por vários dos companheiros de Bakhtin. Pumpiansky estava
trabalhando em um livro sobre Joyce em 1932, e V. O. Stenich... traduziu Joyce... [Mas
desde] pelo menos o Primeiro Congresso de Escritores em 1934, o Ulysseso podia mais
ser elogiado em letra escrita, e isso ainda era verdade em 1965 quando aquela dissertação
foi publicada como livro. Assim, Bakhtin efetivamente tinha duas escolhas a respeito de
Joyce, atacá-lo ou não mencioná-lo.
3
O que é complementado por Booker
Na verdade, na Rússia stalinista era politicamente perigoso tratar da maioria dos textos
contemporâneos, embora seja também verdade que Bakhtin (que tinha o treinamento de um
classicista) parecia preferir textos mais antigos por uma questão de gosto.
4
Uma ou outra coisa concedida, resta o fato de que a aproximação, que por vezes
pode ter parecido tão desejável, executável e mesmo óbvia a diversos leitores e a mais de um
crítico, teve sempre de ser feita, como que à revelia.
3
Citado em (e editado por) Kershner, (1989, p.17).
4
Nota número 2.
15
Cristovão Tezza, por exemplo, me diz que pode ser que a razão pura e simples seja a
de que Bakhtin não sentisse essa afinidade por Joyce, visto que talvez o projeto de Joyce
pudesse mesmo ser visto como contrário ao seu, mesmo depois de aparadas as arestas que
imposibilitam o diálogo de um texto ficcional com as formulações de um filósofo ético
5
. E
ainda que reconheçamos (a partir de mera consulta ao índice de nomes organizado por Caryl
Emerson para sua tradução de Problemas da poética de Dostoiévski, por exemplo) a presença
acachapantemente maior de nomes de autores antigos entre todos os citados por Bakhtin,
não fica de todo resolvido o problema da aproximação entre esses dois teóricos difusos.
Afinal, com todo o trabalho que vem sendo feito desde que Ellmann, no livro
citado, elenca e comenta a biblioteca deixada por James Joyce quando em 1920 ele se muda
de Trieste para Paris, o cânone dos autores (também eles antigos, por vezes: Joyce não teve
uma formação tão diversa da de Bakhtin) que mais influenciaram o autor de Ulysses fica cada
vez mais claro. E as convergências ou discordâncias podem ser estabelecidas em alguma
medida indiretamente.
E se a ausência de Homero, santo padroeiro do Ulysses, do corpo principal dos
estudos bakhtinianos da narrativa pode ser justificada, de saída, pelo enfoque adotado pelo
autor, que precisamente buscava traçar uma nova linha de desenvolvimento, diferente daquela
encampada pela cultura letrada; e mesmo se conseguimos compreender a leviandade, que
por vezes parece beirar a incompreensão, com que ele trata de Shakespeare
6
, atribuindo-a
novamente ao direcionamento dos seus estudos, que passavam ao largo do drama como
forma de expressão, podemos lembrar também que a dita biblioteca de Trieste, que resumia
os livros adquiridos entre a juventude e os trinta e oito anos de Joyce, continha, sim, a obra
completa de Rabelais, em francês. Que, no entanto, segundo o índice de Gifford, é
mencionado apenas uma vez em todo o Ulysses.
As possíveis concordâncias (ou, e, discordâncias) entre ambos ficam mais claras,
contudo, quando nos referimos a Dostoiévski, o autor que, para Bakhtin, melhor
corporificava seu credo formal, na medida em que podemos algo aleivosamente separar desse
credo um credo conteudístico, de que ele tratou especialmente em Rabelais (tendo para nosso
5
Comunicação pessoal.
6
Certamente o maior dos antepassados de Joyce: é conhecida a anedota, relatada por Budgen, da resposta de
Joyce à clássica pergunta que resume a um livro a bagagem do viajante rumo a uma ilha deserta.
16
sacrilégio um mínimo argumento proporcionado pelas mesmas diferenças entre os títulos
dos livros que tratam de cada um deles).
M. Keith Booker, interessado, em um capítulo (obviamente necessário) todo ele
dedicado ao tema, tenta encontrar afinidades entre Joyce e Dostoiévski. E agora (pois seu
livro trata das intertextualidades e em capítulos anteriores ele não precisou de muito esforço
para buscar o que de Goethe e de Shakespeare havia em Joyce), no indispensável capítulo
que desenharia de vez as afinidades entre Joyce e Bakhtin, ele precisa de uma algo longa
introdução que sequer justifique a aproximação.
Reconheçamos, Dostoiévski não é uma presença particularmente óbvia na obra de Joyce
7
.
Gifford, por exemplo, não menciona Dostoiévski em nenhuma de suas compilações de notas
aos trabalhos de Joyce. Igualmente, Thornton não identifica alusão alguma a Dostoiévski
no Ulysses, e Adaline Glasheen omite Dostoiésvki de seu censo de figuras aludidas no
Finnegans Wake. Finalmente, Dostoiévski pouco aparece na biografia de Joyce escrita
por Ellmann, exceto por uma menção passageira a uma sugestão de Joyce de que
Shakespeare e Dostoiévski teriam pouco em comum
8
e pelo relato de uma pequena anedota
em que Joyce refutava o argumento de seu filho Giorgio de que Crime e Castigo era o
maior romance jamais escrito [...] Na verdade, em The Consciousness of James
Joyce, Ellmann elenca tanto Crime e Castigo quanto O idiota entre os livros deixados
na biblioteca triestina de Joyce. (Booker, 1975, p.172)
Tentando justificar sua abordagem, ainda na mesma página, Booker pinça de um
livro bastante singular no corpus da crítica joyceana, as Conversas com James Joyce, de Arthur
Power, publicadas por Clive Hart na cada de setenta, um comentário (reportado) de Joyce
se referindo a Dostoiévski como
O homem que mais que qualquer outro criou a prosa moderna, e deu a ela a intensidade
do tom que atinge hoje. Foi o seu poder explosivo que abalou o romance vitoriano com suas
donzelas choramingantes e seus lugares-comuns ordenados; livros desprovidos de imaginação
e de violência. Eu sei que algumas pessoas pensam que ele era alucinado, louco, até, mas os
motivos que empregava em suas obras, violência e desejo, são o próprio alento da literatura.
7
Um autor que nunca se esforçou por encobrir suas filiações.
8
A estória em questão se refere a um evento, relatado também por Budgen, quando da primeira permanência
de Joyce em Zurique. Interessado em ampliar o horizonte estético musical de Joyce, Budgen o levara a uma
audição da Paixão segundo São Mateus, de Bach (Joyce não era grande amante de polifonia). Na saída, o
irlandês se mantinha calado e, interrogado por Budgen sobre sua opinião a respeito da obra, respondeu apenas
indignado sobre a possibilidade de alguém reunir em um só texto os evangelhos sinópticos e o de São João,
comentando, em seguida, que isso era como reunir Shakespeare e Dostoiésvski. (cf. Ellmann, 1982, p.430)
17
Um texto bastante atípico, a começar pela menção à violência como qualidade
essencial da literatura. Joyce não cansava de apontar que no Ulysses o único sangue
derramado era catamenial. E ahoje não consenso em saber se Dedalus ou não um
murro em Mulligan naquela estação de trem.
Desnecessário dizer que Booker, interessado em seguir em frente com sua
aproximação, culmina com a última citação sua inquirição na biografia joyceana.
Desnecessário dizer que eu, que vim aqui (a esta introdução, apenas...) para confundir e não
para explicar, sigo em frente com a prospecção.
Que com uma simples palavra, citada à página 164 do livro de Budgen, também
ele constituído especialmente de relatos de conversas com Joyce, e talvez o segundo livro
mais conhecido dentre a primeira leva de crítica joyceana; certamente um trabalho não
ignorado por Booker, como o prova sua bibliografia. Respondendo à pergunta direta:
– Dostoiévski era um grande escritor?
Joyce teria dito, simplesmente:
Não.
De que tipo de situação estamos falando afinal?
Por que aquele quadro inicial, em que a maioria das principais categorias de Bakhtin
parecia ser melhor exemplificada pelos dois últimos romances de Joyce, em que George
Steiner fica decepcionado com a ausência de menções a Joyce na obra do crítico russo, chega
a ser questionado agora com tamanha violência, precisamente na arena (a prosa de
Dostoiévski) que poderia encetar maiores possibilidades de convergência? Por que pode ser
possível que Wayne Booth, em sua introdução à edição americana de Problemas da poética de
Dostoiévski (p.xxiii), afirme, corroborando a opinião de Tezza, que, de um ponto de vista
bakhtiniano, na melhor ficção
O autor terá “desaparecido” da obra de uma maneira muito diferente daquilo a que James
Joyce se referia quando descreveu aquele poseur nos bastidores, como Deus,
imparcialmente contemplando a obra de suas mãos, e apresentando seu drama com fingida
indiferença, “silentemente aparando as unhas”.
?
18
Vamos nos deter por aqui por um minuto. Afinal o próprio Ellmann (1977, p.73),
buscando relativizar o peso dessa última e tristemente famosa frase, tratava dela da seguinte
forma.
Joyce não é reconhecido com freqüência como alguém que operou como um autor politizado.
A teoria da arte e de sua prática que usualmente se depreende de seus escritos é de que o
artista é divinal demais para tomar partido a favor ou contra seus personagens. Joyce, diz-
se, oferece ao invés disso perspectivas múltiplas sobre a ação, sob a forma de diferentes
narradores, sem escolher entre eles. Isso é maldar a Deus e a Joyce. A opinião teve algum
futuro, um pouco porque Flaubert por vezes a expressou, e Joyce é tomado por um outro
Mauberley, tendo Flaubert por sua verdadeira Penélope. No entanto as declarações
explícitas de Flaubert sobre o desprendimento artístico são inadequadas para explicar
Molly Bloom, onde o autor, conquanto com desconfiança, descreve os sentimentos de seus
personagens com uma atenção que pode ser irônica, mas não é cruel. Tamanha
consideração, paciente e detalhada, entra em conflito com a indiferença do autor.
Primeiro de tudo, há, sempre, em Joyce, que se dar conta do paradoxo biográfico.
Nenhum outro romancista parece ter sido o dado a pilhar sua própria vida para compor
seus livros, e isso sempre coloca a crítica em uma incômoda situação de diferenciar o que é
Joyce e o que é Stephen Dedalus, por exemplo.
James Augustine Joyce foi registrado, por engano, como James Augusta (nome que
ele tendia a assinar durante toda a vida, numa espécie de ato falho perene). Ao ser crismado,
adotou como seu santo onomástico o escolástico Aloísio: James Agustine Aloysius Joyce, no
entanto, assinava cartas e assinou obras literárias com o nome de Stephen Daedalus, mais
tarde assimilado e craseado em Dedalus.
Este mesmo trabalho terá de se haver com esses problemas ao tratar da questão do
monólogo interior do mesmo Stephen, especialmente conforme retratado no episódio de
número 3, Proteu. A frase aspeada no texto de Booth, sabemos, é freqüentissimamente
invocada para situar a estética de Joyce e, assim, situá-lo algo comodamente como talvez um
continuador verossímil do estetismo wildeano. Ela é tão conhecida que as pessoas na maioria
das vezes nem se dão ao trabalho de localizar a fonte da citação, como, aliás, o faz o próprio
Booth.
Trata-se, sabemos no entanto, não de uma frase retirada de um dos famosos
cadernos de estética do estudante James Joyce, mas sim de uma declaração feita pelo
estudante Stephen Dedalus.
Quanto de seu conteúdo podemos atribuir a James Joyce?
19
E, mais do que isso, quanto podemos atribuir de seu conteúdo ao James Joyce de
quarenta anos de idade, que escreve em alguma medida sobre o James Joyce de 22 anos de
idade?
Esmiuçar o paradoxo biográfico é algo que a crítica joyceana tem feito desde o início.
O que mais nos interessa aqui, contudo, é tentar desvencilhar Joyce da cômoda e engessada
classificação de mestre da ironia, tentando ver o que de fato representa o distanciamento (mesmo
aquele evocado por Dedalus) no projeto estético manifestado no progresso de sua ficção, e
aqui analisado em seu ponto culminante, o Ulysses.
Neste caminho, haverá três postulados, três premissas que de alguma maneira orientam
nossas vontades e determinam nossos caminhos, representando o que quer que possa haver
de original neste trabalho.
1. A neutralização de uma hierarquia tradicional.
2. A crença na conversão de registros.
3. O apego à evidência.
O primeiro deles se refere ao fato de que pretendemos conduzir um efetivo diálogo
entre o Ulysses e as formulações bakhtinianas. Em havendo uma mão de preferência, ela irá
na verdade do romance para o teórico. Essa primeira premissa acarreta uma segunda, que é a
da possibilidade de um diálogo entre meios diferentes.
Ernst Cassirer, em sua Filosofia das formas simbólicas, ensina que cada sistema de signos
de que dispomos (arte, ciência, religião, magia, mito...) é um instrumento que enforma o
mundo caótico, dá-lhe o Ser que nele possamos reconhecer e faz com que nele possamos
reconhecê-lo. Animais simbólicos, estamos irremediavelmente atados ao cordão de condão
da semiótica que faz viver em nós o que nos faz dizer sermos vivos.
Cassirer não viveu para acabar seu projeto. Seu livro sobre a Arte ficou incompleto,
restando dele apenas anotações e o texto que integra seu Ensaio sobre o homem, livro onde,
lado a lado, ele comenta sem qualquer esboço de uma gradação qualitativa, heurística ou
filosófica, todas as fôrmas que fazem o mundo.
Dele, o que agora quero é somente isso. A noção de que a arte, como o mito e a
ciência (todos três muito presentes no Ulysses, diga-se de passagem), tem validade noética.
20
Wayne Booth (p.xx), em sua introdução a Problems of Dostoevski’s poetics, declara o que
todos os mordidos pelo verme que milênios verruma a árvore da ciência sabiam, que a
ficção, do tipo certo, buscando realizar as tarefas corretas, é o melhor instrumento de compreensão que jamais
foi concebido.
9
Contudo, mesmo que eu acredite que o Ulysses, am de certamente ter muito a me
dizer sobre as pessoas que me cercam e o mundo em que tenho de viver, pode também
fornecer epifanias preciosas sobre a matéria de que o feitos os romances, e se pretendo
fazer com que essa “““teoria do romance”””, insinuada pela leitura de suas páginas, dialogue
com o que Bakhtin expôs sobre o romance, e especialmente sobre Dostoiévski, tenho
inicialmente que traduzir o que em um momento se disse sub specie artis (com a linguagem e as
finalidades deste meio) para um registro e um vocabulário mais próximos aos do trabalho
acadêmico
10
.
(O verbo latino duco é exemplo conhecido de irregularidade de radicais (duco, feri,
latum: levo, levei, levado.). Traduzo, pois, o Ulysses, num processo que é também metafórico,
transferindo as estruturas que nele governam a relações entre as vozes para uma outra
linguagem, trasladando-o para a episteme que aqui professamos.)
de fato, como mencionado por Tezza (cf. nota 4), uma incompatibilidade de
base, que dificulta qualquer possibilidade de comparação entre os projetos de Joyce e de
Bakhtin. Um artista e um filósofo pretendem coisas absolutamente diversas, e seria não menos
que impertinente convocá-los a dialogar, à revelia, sem que se nivelassem essas arestas.
Como dito antes, no entanto, essa primeira premissa acarreta uma outra. Será preciso
derivar do texto de Joyce, ad hoc, como que a olho nu, as categorias e as questões que depois
faremos dialogar com Bakhtin. O embate entre os dois autores, entre as duas visões do
9
Em tempos recentes, não consigo esquecer a trajetória de Richard Rorty, que abandona a cátedra de filosofia
para ensinar literatura..
10
Como se quiser comparar a Ária que abre as Variações Goldberg com a prisão de Cristo no Jardim das
Oliveiras de Caravaggio, tenho que primeiro abstrair delas o que possa ser estruturado e comparado. Extrair
delas o que não seja inelutavelmente intrínseco a cada forma de arte e do que restar deduzir um esqueleto
comparável. Ou, mais provável, traduzir o que seja inelutavelmente intrínseco a cada forma de arte a um
vocabulário (campo neutro) em que se possa reduzir a semelhança a diferença. Metaforicamente? Palavras são
metáforas que perderam o viço. A metáfora é instrumento da epifania. A polifonia bakhtiniana começou como
uma metáfora. É a bem da verdade uma metáfora –a da tradução, sugerida por Steiner em After Babel, em
trecho em que realça que a tradução interlingüística é apenas uma, de muitas possíveis– o que nos vem mais a
calhar, sendo que, em um segundo momento, este trabalho terá, como dito, que se haver com as eventuais
discrepâncias entre o todo, puramente filosófico, de Bakhtin, e o vocabulário e os procedimentos
epistemológicos mais estáveis, verificáveis e reproduzíveis que, hoje, julgamos mais adequados.
21
romance, se dará, é forçoso reconhecer, no terreno de Mikhail Mikhailovitch Bakhtin: na
academia.
Joyce, e o Ulysses, é que são os ádvenas. Eles é que precisarão de intérpretes.
Por isso é que nosso trabalho se entregará, primeiramente, a uma intensiva e
extensiva leitura da letra joyceana, sem, previamente, imputarmos a ela um instrumental
crítico, bakhtiniano ou não, que não foi desenhado para ela. A idéia é tentar deixar que o
Ulysses, um livro que via de regra fundou sua crítica, nos guie pela mão e nos mostre o que
tem de mostrar, sozinho, antes de podermos apresentá-lo ao raciocínio mais formalizado
em termos científicos do texto de Bakhtin.
Gostaria que ficasse claro portanto que, por mais paradoxal que possa parecer, o que
nos guia nesse desejo de não ceder ao mais direto e aplicável dos caminhos (pôr o teórico e o
instrumental por ele desenvolvido para ler o romance) é o absoluto respeito pelas
especificidades dos trabalhos dos dois pensadores que queremos ver conversar. E, ao abordar
inicialmente o texto joyceano de maneira, tanto quanto se possa
11
, livre de preconcepções
teóricas externas a ele e ao tentar, dele, desentranhar seus próprios conceitos e sua própria
regra e, então, tentar proporcionar um diálogo efetivo, de igual para igual, entre ele e
Bakhtin, não faço mais que respeitar as especificidades de cada um dos textos.
O que pode muito bem ser visto como corolário daqueles mesmos princípios que
embasaram nossa vontade de encenar o diálogo das diferenças.
Joyce não escreveu en théoretique; Bakhtin não escreveu sobre Joyce. Mal o citou.
Respeito Joyce ao lê-lo e buscar entendê-lo, antes (sentido temporal) de respeitar Bakhtin
não empregando seu trabalho (assistemático, terminologicamente inconsistente, aberto,
especulativo) como instrumental imediatamente aplicável a qualquer obra de arte. Abstraio de
Joyce o que ele disse sobre o romance em seu maior romance
12
, abstraio de Bakhtin o que ele
disse sobre o romance do que disse sobre o romance e sobre um romancista, e tento aproximar
duas visões que a muitos, antes de mim, pareceram já tão próximas.
Além disso, temos, meu orientador e eu, uma formação na área da lingüística.
Etimologicamente amadores e diletantes no mundo das belas letras.
11
O professor Fiorin, adequadamente, questiona a possibilidade de um enfoque assim tão “virginal” no trato
com um objeto semiótico qualquer. Fique claro que pensamos apenas na possibilidade de abordar um texto
sem determinar de saída qual será o instrumental de leitura. É claro, contudo, que o universo de leituras que
nos formou não pode e não deve ser apagado para propiciar uma hipotética, indesejável e impossível leitura ex
nihilo.
12
O Finnegans Wake ou não é um romance ou é o fim (um fim) do romance.
22
Estranhos sem ninho, portanto, no mundo da análise literária, temos ambos um
(hoje) quase excêntrico interesse pelo texto literário naquilo que tem de concreto (de
literário, diríamos?).
A materialidade do texto. Uma das expressões preferidas do doutor José Luiz Fiorin.
E é isso, somado ao fato de que pretendemos em alguma medida reverter as relações
de instrumento e objeto, fazer o romancista ler o crítico, conforme dito antes, que desenha o
trajeto deste trabalho. Tentaremos sempre nos ater à materialidade do texto, tentaremos sempre
mostrar, expor, montados sempre na frase, na palavra, no texto joyceano. Leremos o texto
literário com a finalidade de dele extrair um instrumental acadêmico e, portanto, devemos
tentar nos manter o mais rigorosos e científicos em nossa leitura (uma leitura minuciosa o
quanto possível, passível de verificação minuciosa, dos dezoito episódios do Ulysses, passo a
passo, de-ti-da-men-te) para que possamos pretender deslindar as relações, extremamente
complexas, entre as vozes das personagens (especialmente os três protagonistas, mas não
apenas eles), entre estas e a voz do narrador (?), a voz do autor (??) e a voz do arranjador
(???).
Mas...
(?) Existe um narrador no Ulysses?
Primeiro, o que é um narrador para Bakhtin, teórico que escolhemos para este
confronto?
Parece-me depreender de seus textos uma tendência a se referir por este termo
apenas à personagem da narrativa que se encarrega do relato. E grassa grossa confusão, de
resto, no que se refere à voz narrativa e à voz do autor.
Pois bem, a não ser pelo episódio do Ciclope, em que, sob forma de um verdadeiro
skaz hibérnico a narrativa é entregue a um nada confiável cobrador de dívidas más e duvidosas,
tendencioso, preconceituoso e hiperbólico (e ainda assim o-identificado) não se pode
localizar com facilidade (e talvez não se possa de todo) qualquer voz uniforme que conduza
a narração. Além da anódina presença (incrivelmente anódina, como se há de ver) que
enuncia e anuncia verba dicendi e quetais (coisas que Kenner chamou de afazeres domésticos da
narrativa) temos dificuldade em chamar de narrador, em um sentido portanto de saída
mais amplo que o bakhtiniano (é preciso com freqüência retificar Bakhtin para propiciar o
diálogo), o dono da camaleônica voz que, de entre as vozes dos enunciadores dos discursos,
23
oralizados ou não, surge e se insinua. Talvez o conceito de narrador que possamos
desentranhar do Ulysses possa ser, portanto, mais útil para a leitura de Bakhtin, novamente,
do que poderia vir a ser o processo contrário.
(??) Em que medida essa presença poderia ser identificada com a materialização
verbal da figura de um autor implícito, ou de um enunciatário bakhtiniano?
Esta hipótese, é claro, teria implicações tremendas para qualquer redefinição da
relação de forças entre personagens e autores, parecendo marcar com vigor quase ditatorial
(idéia que confirmaria pré-concepções de alguma crítica) a presença do indivíduo histórico
James Augustine Aloysius Joyce, como que hipostasiado diretamente no texto, contornando
mesmo a incômoda presença de um narrador, um preboste, um lugar-tenente... Afinal, como
diz o próprio Ellmann, no mesmo livro citado (1977, p.73), Sempre se sabe onde está Joyce,
mesmo que ele nunca o diga. E temos, novamente, Joyce questionando Bakhtin.
(???) E no entanto uma mancha. Aquele mesmo que ele nunca o diga. Sente-se (e que
por enquanto se perdoe o impressionismo; ainda não fomos ao texto.) de fato a presença de
James Joyce, espécie de control freak, sempre um passo à frente da mais arguta especulação do
leitor, mas sente-se que não a quem atribuir tal poder, dentre as vozes manifestas no
texto. Molly Bloom, em um momento de retórico desespero pode mesmo buscar seu criador
(que ela também parece entrever mas não localizar) implorando, em um idiotismo irlandês
que não foi inventado por Joyce, a um Jesus eufemizado em Jamesy!
Onde estás que não te vejo?
Mas a ironia de Joyce, sua famosa ironia, não poupa sequer essa eventual voz
hipostasiada. Ou, como talvez se possa dizer dos últimos capítulos, é essa voz que não
poupa nem a Joyce de sua ironia. (Calma... Ver-se-á!). Talvez o mais cômodo seja de fato
manter o autor implícito no lugar que lhe cabe.
Foi tudo isso que levou David Hayman a criar o belo monstro que é o arranjador
13
.
Categoria que (como a polifonia de Bakhtin) foi criada ex libro e não imposta a partir de
especulações prévias e que, portanto, a princípio é feita sob medida para um e apenas um
caso. Categoria que, como monstro que preza o nome que leva, mostrou muito mais e foi
muito além do que previa seu pai.
Que conceito de narrador(es) podemos derivar do Ulysses?
13
Uso o termo arranjador para designar uma figura ou presença que não pode ser identificada seja com o autor seja com seus
narradores,mas que exerce um controle cada vez maior sobre materiais cada vez mais desafiadores. (Hayman, 1982, p.84)
24
Que tipo de relações entre autor-narrador, narrador-personagens, personagens-
personagens podemos encontrar no Ulysses e o que elas podem nos dizer de uma visão
singular sobre a literatura?
Tudo isso. A se verificar.
E como?
E como.
Continuamos acreditando que somente depois de esclarecermos tais questões dentro
do texto de Joyce poderemos propiciar qualquer tipo de efetivo diálogo entre os dois
autores.
E é sobre isso que primeiro nos debruçamos.
25
(hapax legomena
Pois primeiro de tudo há uma coisa.
A mãe de todos os anexos.
Há um problema.
Diga-se de uma vez. E por todas.
O problema textual.
O que em mim existe de filólogo tem imensa dificuldade, que se acresce àquelas que
qualquer leitor isento reconhece, em lidar, por exemplo, com os textos bakhtinianos. Porque
preciso fazê-lo em tradução. Porque gostaria de fazê-lo a fundo, e qualquer tipo de leitura
cerrada se choca com a questão da palavra reportada, e o leitor de textos teóricos e filosóficos
traduzidos se coloca na incômoda posição da banca de jurados: é preciso chegar a
conclusões através de depoimentos, através da palavra do outro.
A minha leitura de Joyce será a leitura deste trabalho, carregando sua assinatura. E
qualquer outro trabalho que porventura dela se utilize estará comprando minha leitura em
sua integralidade ou, mais freqüente, recortando minha leitura de modo a satisfazer seus fins,
tornando-a em seu próprio meio de reflexão (e com que freqüência fazemos isso de forma
incompleta..).
A leitura de um texto em tradução envolve, o tempo todo, como parte constituinte
do processo que enceta, essa mesma dualidade. Estou comprando a leitura de uma pessoa do
texto original. E, se inescrupuloso, posso mesmo escolher dentre traduções diversas
disponíveis aquela que mais se aproxime do que eu desejaria ver, ler.
A refração tendenciosa da palavra do outro é elemento inelutável da constituição do
discurso acadêmico. Tenha ela se realizado consciente ou inconscientemente. Homens
(mulheres) dotados de ferramentas informáticas que recortam e colam, nós montamos
nossos textos cada vez mais a partir da palavra do outro e acreditamos ser objetivos ao
confessar nosso saque e escrupulosamente informar a proveniência do butim. Mesmo que o
façamos para localizar bibliograficamente um autor que negaria qualquer objetividade na
transmissão da palavra.
Em qualquer língua.
Tanto pior se em tradução.
26
Mas vieses, formações, perversões, deformações, algo do gênero continua a me
impedir de mexer a fundo nas idéias e nos termos (sempre flutuantes, ainda, las...) de
Mikhail Bakhtin. Deveria ter aprendido russo.
Porém, conforme será dito, não é de nosso interesse, aqui, promover uma leitura
cerrada das categorias e das metáforas bakhtinianas.
Mas sim do Ulysses.
Em que situação isso nos coloca?
Primeiro de tudo,
ressalvo de saída que, na medida do possível, todos os textos teóricos lidos em língua
estrangeira serão apresentados, comentados e citados em tradução que, até indicação em
contrário, será a minha. Aproprio-me efetivamente desses textos. Leio. A palavra do outro
que fala a mesma língua que eu (o desprestigiado patois acadêmico) será tratada como igual,
mastigada, assimilada, apropriada. Réu confesso, confesso;
ressalvo de saída que todos os exemplos discutidos e analisados nos próximos
capítulos (dedicados aos dezoito episódios que compõem o Ulysses) serão empregados no
original (mas que Original?) conforme a lição do texto estabelecido por Hans Walter Gabler
na década de oitenta, cada vez mais reconhecido como texto de referência para os trabalhos
joyceanos
14
.
Gabler, hoje, ainda que como todo trabalho filológico seja e deva ser questionável,
parece, por consenso, o mais confiável texto do Ulysses, e não se me afigura recomendável
14
Joyce abusou da paciência do senhor Darantière, responsável pela impressão da primeira edição do Ulysses,
feita em Paris. Exigiu nada menos que sete conjuntos de provas, cada um deles retornando às os dos
linotipistas, que mal conheciam a língua inglesa, com infindáveis modificações e acréscimos, feitos
concomitantemente à escritura dos dois últimos capítulos do livro. Isso, mais o fato de que ele batia em ver
o livro pronto para seu quadragésimo aniversário, no dia dois de fevereiro de 1922, levou a primeira impressão
a sair coalhada de erros, hides and hints and misses in prints. Ele chegou a preparar, algo indignado, uma lista,
mínima, de errata para uma eventual segunda edição, dizendo-se preocupado com a possibilidade de que aqueles
erros se perpetuassem. No entanto, a confusa, tortuosa estória de publicação do Ulysses (plena de censuras,
exemplares destruídos, edições piratas), somada à confusa, tortuosa estrutura do livro (que fazia a noção de erro
algo estranha aos olhos dos impressores), somada ao enfraquecimento dos olhos de Joyce, para quem a leitura
de provas ia se tornando um suplício, e ao seu desinteresse cada vez maior pelo Ulysses à medida que se
afundava na redação e em aparar os golpes da crítica contra o Finnegans Wake, onde se refere ao romance
anterior como o seu usilessly unreadable blue book of Eccles, geraram uma tradição de equívocos. No momento em
que Gabler se dispôs a fazer seu projeto, bastante controverso, especialmente dada a ausência de um texto-base
–ele não usou a espúria primeira edição como exemplar de colação, e nem mesmo os manuscritos,
fragmentários, mas sim um hipotético manuscrito contínuo reconstituído por ele o elenco de desvios que ele
declara ter corrigido chegava à casa dos 5000.
27
levantar, em um esforço de leitura miúda, a mais remota suspeita quanto, novamente, a
vieses e desvios. Será também o cômodo sistema de referência estabelecido pela praxe de
consultas a esta edição que será adotado neste trabalho.
Assim, depois de cada citação, virão entre parênteses o número do episódio de que
foi retirada e a linha em que se encontra nesse episódio. Como, no entanto, na grande
maioria das vezes abordaremos um episódio por vez, nesses casos a referência será feita
apenas ao número da linha.
Os argumentos expostos acima devem deixar clara a razão por que não compraria,
sem árduo trabalho de cotejamento, caso a caso, seja a tradução brasileira de Antônio
Houaiss, seja a portuguesa de João Palma-Ferreira, e nem mesmo a recente nova leitura da
professora Bernardina Pinheiro, estudiosa de Joyce por toda uma vida, que pode ter
produzido um texto em tudo e por tudo melhor que os outros dois, que, contudo, seu texto
permanece sendo. Não quero correr riscos. Não posso depender.
E selecionar trechos para traduzir, se feito previamente à análise, seria tendencioso.
Selecioná-los para análise, e depois traduzi-los (ou produzir uma versão ad usum caetani a
partir da comparação das traduções existentes, em diversas línguas), acabaria
irremediavelmente por gerar uma tradução que satisfizesse a análise (servil, insuficiente,
portanto), além de alijar o trabalho de uma compreensão global de vozes, tons e afinidades
de personagem a personagem.
A única alternativa, que teria além disso a vantagem de propiciar uma leitura
necessariamente criteriosa, detida e responsável de todo o livro, frase a frase, letra a letra, era
propormos uma nova tradução do livro na sua integralidade.
A decisão tomada acabou sendo dupla. Se optamos por apresentar o texto joyceano
no original d’après Gabler (no fim, por uma espécie de honestidade para com o leitor), não
pudemos deixar de perceber que a não-execução do pretensioso projeto da tradução
completa acabaria por criar um grande buraco na nossa possibilidade de uma leitura do
Ulysses.
Desmontar a máquina era, sim, uma etapa importante da compreensão de seu
funcionamento.
Tal tradução acompanha também, portanto, esta tese.
28
Se meramente como ilustradora de um processo que, ao longo de dois anos, dia a dia
(culminando no Bloomsday centenário de 2004), propiciou uma imersão quase patológica no
texto joyceano, acreditamos que ela tivesse aqui seu lugar. Contudo, pensamos que ela,
além disso, propicia uma eventual ampliação da discussão sobre as minúcias do texto
ulisseano. Pensamos, algo paradoxalmente, que esta tradução vem complementar a tradução
que pretendemos encetar, do Ulysses para o mundo da academia e da reflexão teórica.
Oferecemos logo neste trabalho duas traduções de um mesmo texto-base: uma
interlingüística e uma interepistemológica, ambas partes de um mesmo esforço de
compreensão e de apreensão.
O texto que, portanto, segue como anexo a este trabalho (trazendo grifados os
trechos que foram analisados no corpo do trabalho, para facilidade de eventual referência)
representa uma etapa, em muitos sentidos a mais importante, de todo este trabalho, ao
menos na medida em que foi ela que propiciou todas as outras.
Ele é também um resultado, não pouco relevante, das mesmas perguntas e das
mesmas motivações que geraram o corpo da tese, bem como um gerador de perguntas e
motivações que resultaram no corpo desta tese.
E está aí.
Para quem quiser ver.
Boa sorte.)
29
JOYCE
30
PALAVRAS DE PÓRTICO
As verdadeiras chaves para a compreensão de Joyce são dadas ao leitor diligente.
Anthony Burgess
31
CAPÍTULO
1. (Em que se busca uma leitura dos seis primeiros episódios do Ulysses, aqueles a que a
crítica usalmente se refere como Telêmaco, Nestor, Proteu, Calipso, Lotófagos e Hades, episódios
que formariam a Telemaquia, correspondente à primeira parte da Odisséia de Homero, modelo para todo o
livro
15
, e que dariam seguimento à sessão de apresentação de temas incluindo os espe(ta!)culares primeiros três
capítulos da verdadeira odisséia dublinense.)
15
A lista de todos os nomes convencionalmente atribuídos aos episódios é a seguinte.
1. Telêmaco
2. Nestor
3. Proteu
4. Calipso
5. Lotófagos
6. Hades
7. Éolo
8. Lestrígones
9. Cila e Caribde
10. Rochedos serpeantes
11. Sereias
12. Ciclope
13. Nausícaaa
14. Gado do sol
15. Circe
16. Eumeu
17. Ítaca
18. Penélope
Joyce manteve estes títulos nos episódios até muito pouco antes da compleição do longo processo de revisão
das provas do Ulysses. Como ressaltou Hugh Kenner, ele parece ter ficado contente com deixar-nos apenas
uma chave para a leitura homérica de seu texto, no título que manteve. Mas, acrescentaríamos nós, não
podemos perder de vista o fato de ter ele se ocupado consideravelmente em trazer a tona o paralelo, depois de
verificar que ele corria o risco de jamais ser percebido em sua integralidade, e o livro de Gilbert, incitado,
guiado, quase encomendado por Joyce, foi o maior de seus esforços.
32
A. Usurpado: Sandycove, oito horas da manhã.
Joyce dava grande importância às aberturas de suas obras. E fez delas quase que uma
arte à parte.
Elas não apenas iniciavam o texto, mas funcionavam como estabelecimento de
registros (prosaicos e psicológicos), como momento de musical exposição de temas a ser
desenvolvidos no decorrer da obra ou, mesmo, como ponto de partida de um
desenvolvimento que, de várias maneiras, pode vir a superar o que ali foi exposto.
Incipit iter. O início do trajeto.
A segunda das possibilidades apontadas é certamente mais bem representada, porque
mais violentamente, pelo Finnegans Wake. O último trabalho de Joyce declara, em uma
famosa gina de abertura, mais de uma dezena de motivos e de leitmotifs que serão
trabalhados e citados durante toda a obra.
A última delas parece ter sido mais extensivamente explorada em Um retrato do artista
quando jovem, onde os estilos do livro mimeticamente reproduzem o desenvolvimento
intelectual do protagonista, partindo da narrativa ingênua e talvez febril da primeira página.
Mas é claro que o fato de que nos propomos aqui a, na medida do possível, ler
linearmente o Ulysses não pode deixar de apontar para uma suspeita de que os processos
que aqui tentamos estudar possam estar neste livro figurados precisamente como processos,
como desenvolvimentos que, conquanto desprovidos de uma teleologia necessária, traçam
um caminho.
E que, como tais, hão de partir.
Não podemos subestimar o peso da primeira página do Ulysses.
Diga-se mais, não podemos subestimar o preço da primeira frase, da primeira
palavra, nem mesmo da primeira letra.
Mas tudo a seu tempo.
Anthony Burgess, por exemplo (1975, 70 ss.) consegue extrair não pouca matéria
para análise da mera leitura do primeiro parágrafo do romance. Vejamos.
33
Observemos o própria abertura. Buck Mulligan nos é apresentado imediatamente,
não através da mente de Stephen Dedalus, que ainda não subiu a escada da torre Martello
para ascender até a clara manhã de junho [...] Reconhecemos de imediato alguns dos
estratagemas de brevidade que Joyce empregou em Um Retrato, particularmente a
preferência por uma palavra em lugar de uma expressão ou de um sintagma, mesmo
quando (ou por vezes por causa disso) o efeito é levemente arcaico. A maioria dos escritores
de hoje colocaria ‘in the air’ no lugar de seu equivalente norueguês antigo (a: em, para;
loft: céu, cognato do alemão Luft). Thrice não é hoje muito usada, a não ser jocosamente,
e pode-se objetar que poupar uma palavra é insignificante demais para merecer atenção.
E no entanto há algo de errado com essa versão: ‘...blessed gravely three times the tower, the
surrounding country...’ A aliteração não é funcional e a ordem das palavras soa excêntrica.
Era de se esperar: ‘gravely blessed the tower three times, also the surrounding country...’
Joyce tem uma tendência a colocar um modificador imediatamente depois de um verbo
transitivo, mas usualmente quando ele é composto de uma palavra isolada e não de um
sintagma. No lugar de a yellow dressing-gown, ungirdled
16
muitos escritores escolheriam
‘an ungirdled yellow dressing-gown’, mas o emprego de Joyce implica um padrão de
conseqüências mais amplas: ‘ungirdled’ sugere o truncamento de um sintagma ou de uma
expressão adjetiva que viria naturalmente depois do substantivo. Para justificar a
posposição, muitos se sentiriam tentados a reescrever assim ‘which he wore ungirdled’ ou
‘which had no girdle’.
Toda a passagem de abertura sugere um tom pseudo-cerimonial (a arte que preside
o capítulo, temos de lembrar, é a teologia). a primeira palavra, ‘stately’ é cômica se
aplicada a Mulligan, que é rude e blasfemo além de roliço. (Às vezes, apesar de nenhum
dicionário ratificar tal uso, ficamos pensando se Joyce quis usar essa palavra
adverbialmente.)...
E assim por diante, por cerca de mais vinte linhas. E poderia ser bem mais que isso.
E no entanto (ou precisamente por causa desse fato), nada disso, por muito que seja, é ainda
o que nos interessa no texto em questão. E esse fato ecoará uma tendência bastante sólida:
em geral as obras da extensa, imensa, bibiliografia a respeito do Ulysses nos servirão
tangencialmente, em momentos em que, lateralmente, tocam no assunto que nos interessa. A
análise formal, no caso do Ulysses, parece até hoje estar mais centrada em elucidar e
interpretar fatos da macro-estrutura do livro.
Mas, ao texto.
Stately, plump Buck Mulligan came from the stairhead, bearing a bowl
of lather on which a mirror and a razor lay crossed. A yellow dressinggown,
ungirdled, was sustained gently behind him on the mild morning air. He held
the bowl aloft and intoned:
Introibo ad altare Dei:
(1-5)
16
Respeito o texto como citado por Burgess.
34
E estão elas; as primeiras palavras efetivamente pronunciadas naquele famoso 16 de
junho de 1904. Elas não saem, no entanto, da boca de nenhum dos cosidetti protagonistas do
livro. É o bufão, o Buck, o usurpador quem pela primeira vez detém a palavra: a primeira voz
manifesta.
E que se reserve tal dado. Não desprovido de importância. Nada parece ser
desprovido de importância no Ulysses
17
.
Ele fala, mas fala uma língua triplamente estrangeira, que representa o passado, um
império que não é deste mundo e um império que não é desta ilha. É conhecida, além disso,
a análise de Hugh Kenner (1987, p.35), em que, indo ainda mais longe, ele demonstra que
seria possível inscrever as palavras de Mulligan entre nada menos que seis pares de aspas, por
tratar-se de um personagem citando um celebrante de uma missa negra
18
, que, por definição,
cita, parafraseia, parodia um sacerdote cristão, que do ordo que determina suas falas, que
cita São Jerônimo, que traduz o salmista.
E durante toda a primeira página apenas a voz de Mulligan se seguirá aos travessões
que, idiossincraticamente (a contra-pêlo da praxe inglesa) abrem as falas do Ulysses, embora
tal voz seja sempre refratada, tinta, desviada, sem chegar ao leitor diretamente; pois sente-se
que ele não se revela em nada que lhe possa ser íntimo ou mesmo pessoal: ele dará ordens,
se referirá ao personagem principal por um apelido aparentemente hostil, cuja origem
permanece sendo um segredo conhecido apenas por eles, o identificará com um grupo de
que ele se esforça por se afastar, pronunciará mais um pastiche (de jargão militar), voltará a
celebrar sua missa profana, conversará com os elementos e, de novo, rirá de Dedalus. Ele,
acima de tudo, representa. Por vezes sabemos o que ele está representando, mas a sensação
de uma algo incômoda (e não por isso menos divertida) falta de autenticidade é um dos
objetivos de suas falas. Bufão, soa grosseiro e divertido, simultaneamente.
– Come up, Kinch! Come up, you fearful jesuit! (8)
– Back to barracks! (19)
17
Hayman, 1982, p.28: Há pouco espaço para redundância em um livro onde cada gesto tem seu aporte para personagens e
temas.
18
Dada a dessacralisação de todas as circunstâncias e, especialmente, o resto do texto da performance de
Mulligan sobre a torre.
35
For this, O dearly beloved, is the genuine christine: body and soul and
blood and ouns. Slow music, please. Shut your eyes, gents. One moment. A
little trouble about those white corpuscles. Silence, all. (21-3)
– Thanks, old chap, he cried briskly. That will do nicely. Switch of the
current, will you? (28-9)
– The mockery of it! he said gaily. Your absurd name, an ancient Greek! (34)
Paráfrases, pastiches e citações à parte, no entanto, se dizemos que a voz de Mulligan
nos vem como desviada e desviante, isso se deve em grande medida à assunção algo tácita de
que a consciência que domina o início do livro é a de Stephen Dedalus, personagem que,
retomado de um livro anterior, já é conhecido do leitor mesmo antes do início da leitura
19
.
Como, no entanto, pode-se estabelecer uma tensão entre uma voz presente e uma
outra, de início ausente, na primeira página de um livro, é algo que cabe investigar. Qual é
a sutileza que pode fazer surgir um conflito entre uma voz até mesmo simpática e um
silêncio hostil, com vitória deste?
Por ora, voltemos àquele primeiro parágrafo, antes da enunciação primeira.
Não podemos presumir com facilidade que seja todo ele entoado por um narrador
simpático a Dedalus. Talvez não possamos sequer presumir que seja todo ele de
responsabilidade de um narrador
20
. Afinal, se o tom geral, e a sintaxe, conforme Burgess já se
esforçava por demonstrar, são tipicamente joyceanos, ainda teremos que esperar um pouco
para que sejam declaradamente os de Dedalus
21
. Além disso, a voz que emite aquele
parágrafo vê Mulligan subir estando já ela sobre a torre (came), e não é típico de Joyce fazer
com que os narradores simpáticos às personagens saibam, vejam ou digam mais que elas
22
.
19
cf., por exemplo, a opinião de Hayman (1982, p.93): O ponto de vista de Stephen, complementado pelo de um narrador
simpático a ele domina os primeiros três capítulos.
20
Cada uma das três partes que compõem o livro se inicia por uma consoante que, aparentemente, não é
desprovida de sentido: S, M, P. Stephen, Molly, Poldy, sugerem alguns, o que, no entanto, inverteria a ordem de
apresentação das personagens. Outros, como Gifford (1989), pensam em Subjectus, Medium, Praedicatus, as três
partes que comporiam um silogismo que, convencionalmente, é encerrado por um grande ponto preto, um
substituto do quod erat demonstrandum, exatamente como o que se encontra encerrando o penúltimo capítulo da
edição original de 1922, tendo sido retomado no texto de Gabler. Tal tipo de arranjo obviamente não pode ser
imputado a cada um dos três narradores, cada um deles diferente do outro, mas sim a alguma figura que paire
acima e além deles.
21
Benstock (1974, p.2) já reparava que é só mais adiante, quando as repetições se tornam mais freqüentes, por
exemplo, que encontramos a marca indelével de Dedalus no Texto.
22
O processo de conivência vai ainda mais longe. Se, no episódio dos Lotófagos, por exemplo, o narrador,
ensopado de Bloom, ignora termos de um vocabulário eclesiástico que, aqui, não poderiam restar
desconhecidos, em outros momentos fica claro que o conhecimento compartilhado por ele, pela personagem e
pelo leitor também são simétricos e equivalentes. Assim, se Bloom não sabe em que bolso pôs um sabonete, ou
onde deixou seu chapéu, será de pouco uso para um leitor mais meticuloso voltar na leitura para verificar.
Bloom não sabe o que o texto não disse, e vice-versa. A literariedade; a situação das personagens como
36
Mais ainda, se aquele plump pode perfeitamente ser atribuído à má-vontade subnutrida e
banguela de Dedalus, que mais tarde se refere a Mulligan como tendo um strong, wellknit
trunk (132-3), o primeiro adjetivo/advérbio é de atribuição mais delicada; afinal, ele
corrobora não a leitura cínica que Dedalus está sempre pronto a fazer de seu companheiro
(veremos), mas sim a impressão que o próprio Mulligan poderia querer causar sobre sua
encenação.
No início, parece que o logos favorece o Buck
23
.
Assim mesmo, depois de vociferar contra a presença ausente de Dedalus, Mulligan
parece continuar tomando conta do texto do narrador, que, solene, grave e generoso em suas
bênçãos prossegue,
Solemnly he came forward and mounted the round gunrest. He faced about
and blessed gravely thrice the tower, the surrounding land and the awaking
mountains. (9-11)
Até que, intruso, usurpador ele também, surge na torre o anticlimático vulto de
Dedalus.
Then, catching sight of Stephen Dedalus, he bent towards him and
made rapid crosses in the air, gurgling in his throat and shaking his head.
Stephen Dedalus, displeased and sleepy, leaned his arms on the top of the
staircase and looked coldly at the shaking gurgling face that blessed him,
equine in its lenght, and at the light untonsured hair, grained and hued like
pale oak. (11-16)
Ele, Mulligan, toma conhecimento da presença de Dedalus, e o texto, como que
reconhecendo a autoridade a que a princípio deve obedecer, pronto se afasta dele e se coloca
mais próximo de Stephen. E é de seu ponto de vista que vemos Mulligan realizando ões
imprecisas, arrulhando, balançando a cabeça e fazendo cruzes no ar. A mesma ação, vista
pertencentes a um livro é algo a que, em outro momento, teremos que voltar com mais tempo. Booker (1995,
p.181) é também da opinião de que as personagens em Ulysses estão de várias maneiras entre os mais vívidos e convincentes
em toda a literatura, apesar de lembretes, no fim do livro, de que são aparatos ficcionais. Segundo a nossa leitura, talvez estes
lembretes venham desde os primeiros episódios, apenas se intensificando, como quase tudo mais, com o correr
da narração.
23
cf. mais abaixo, a revelação do nome inteiro de Malachi Mulligan, que traz uma nova leitura possível à
afirmação que acabamos de fazer.
37
por Mulligan, seria provavelmente descrita como o exorcismo que pretende invocar,
motivado pela aparição esquálida e descabelada (Hair on end. (136)).
Em uma primeira encruzilhada, o texto escolhe pender para Dedalus.
Em seguida, em um privilégio muito raro nesta manhã, revela-se o nome inteiro da
personagem que surge. Ele, que até aqui era apenas tratado por apelidos ou,
metonimicamente, como parte de um grupo que, diga-se, rejeita, ou pensa rejeitar
24
.
É de resto bastante autorizada essa voz singular que, de saída, nos informa do nome
inteiro de uma personagem. Haines, Mulligan, o rapaz que nada, a leiteira, o padre, o
barqueiro, o negociante, todos os demais personagens deste episódio ou não terão nome
algum ou sairão daqui conhecidos apenas por parte dele. Por vezes demoraremos mesmo em
saber que ignoramos
25
. O nome completo de Mulligan, por exemplo, será conhecido pelo
leitor perto do fim da obra (14.1213) apesar de ser relevante nessa primeira página para
plena elucidação do significado de uma palavra. Hugh Kenner (1987, p.35) já mencionava o
fato de que estas duas personagens que aqui estão como que disputando um espaço, em uma
narrativa ainda em formação
26
, são conhecidas especialmente, nesse momento, por nomes
falsos, Buck e Kinch.
Nomeado, Dedalus se sobrepõe. Conhecido, ele se estabelece mais fácil.
Os próprios comentários sobre a indisposição e a sonolência de Dedalus são feitos,
como já se observou, aceitando-se a visão que ele teria de si mesmo, contrafeito e sonolento,
o que nos prepara para a grande má-vontade com que ele vai temperar boa parte do
capítulo, bem como o restante do texto nos prepara para a tensão de fundo sexual que
parece subjazer a suas descrições físicas do companheiro, simultaneamente tintas de
admiração, inveja e despeito. Aqui, para além das repetições de vocábulos, que Benstock
alertava serem uma marca pessoal de Stephen, como, de resto, sabe qualquer leitor de Um
retrato... é o tom dos comentários que marca a voz graficamente inconspícua como
pertencendo quase indubitavelmente a Stephen.
24
É curiosamente a externa voz de Mulligan que parece tocar mais fundo nesse ponto quando, mais à frente,
declara que o problema de Dedalus é ter de fato o mesmo sangue dos jesuítas, apenas injetado ao contrário
(218-219).
25
O próprio nome de Bloom, como o de Odisseu, será revelado apenas tardiamente (17.1855).
26
Nunca é demais lembrar que, nos dois famosos esquemas de interpretação do Ulysses, que Joyce, em
momentos diferentes, enviou a Herbert Gorman e a Carlo Linati, nas colunas que tratam da atribuição de um
órgão do corpo como símbolo de cada episódio, havia apenas o papel em branco durante toda a parte referente
à telemaquia, em que a personagem, bem como a própria narrativa, ainda seriam desprovidas de um corpo, que
vai começar a se revelar, de dentro para fora, a começar das vísceras, apenas com a entrada de Bloom.
38
Kenner (1987, p.3) destacava, tratando da possibilidade de leitura do Ulysses como
um romance, que ele
tem uma dica, um título, que não ajuda em nada se viramos suas páginas em busca de
heróis gregos; e outra dica, a semelhança de sua primeira página com a primeira página de
um romance, que não nos auxilia por muito tempo se esperamos que os romances
mantenham narração, diálogo, comentário e divagações retóricas tipograficamente distintos.
Estamos a meio caminho da primeira página, e temos instrumentos suficientes
(mesmo que levemos em conta o fato de que, hoje, estamos mais do que acostumados a esse
tipo de procedimento) para perceber que esse livro pede que se aprenda com ele. Pede que
se o aprenda.
Budgen (1972, p.21) invocava uma afirmação de Joyce, que ilumina muito do que
possamos pensar sobre sua práxis literária, no que ela exige e apresenta ao leitor. Joyce teria
dito querer que o leitor entenda sempre por sugestão e não por declaração direta
27
. Ele
sempre insinuará antes de afirmar, sempre fará ver antes de mostrar. Sempre contará com o
esforço do leitor.
A frase que segue ao parágrafo que vínhamos analisando, por exemplo, nos joga de
volta com a maior sem-cerimônia para o gestual, a retórica e mesmo o vocabulário de
Mulligan.
Buck Mulligan peeped an instant under the mirror and then covered
the bowl smartly. (17-18)
Trata-se da representação reencetada.
E plenamente encampada por uma voz narradora conivente. A bem da verdade, todo
o trecho que segue, até a linha 31, pelo menos, parece se mostrar não apenas muito próximo
do vocabulário de Mulligan, mas também de suas crenças sobre a efetividade de seu papel de
bufão-celebrante e de sua ascendência sobre o mundo que o cerca. O mesmo homem que
abençoava a natureza, agora recebe dela confirmação. Ele assovia e dois assovios estrídulos
respondem; ele agradece a um old chap por essa manifestação e, só então, torna a se dar
conta de Dedalus.
27
Assim como também teria dito esperar de seus leitores nada menos que uma vida de dedicação à leitura de
seus textos.
39
Que, no entanto, esteve olhando para ele. uma pequena intromissão na descrição
do ritual que resumimos acima, que não evoca e depois confirma a presença de Dedalus
por trás da voz narradora como, mais do que isso, derruba um outro limite. Não serão
quebras de parágrafos e nem mesmo pontos finais que estabelecerão limites seguros para o
convívio higiênico das vozes: depois de uma vírgula, no meio do período, enquanto Mulligan
aguarda sua resposta, entram
his even white teeth glistening here and there with gold points.
Chrysostomos. (25-26)
O próprio ângulo do olhar que percebe as restaurações dentárias de Mulligan
(Stephen está ainda enterrado no escuro da torre, debruçado no topo da estreita escada que
leva ao topo.) revelaria o autor do comentário. Mas é novamente Dedalus, que depois
veremos estar com os dentes em estado muito ruim (3.495), que pode não perceber, de
novo perdido em admiração e despeito, o quanto aqueles dentes são retos, e o fato de terem
sido obturados com ouro. Tudo isso pode, no entanto, parecer ainda exagerado como
atribuição, até que nos vemos frente a frente com a frase seguinte.
Apenas uma palavra.
E não esqueçamos que no princípio era o verbo. E que essas linhas foram escritas
por um São João.
Chrysostomos é grego, vem do grego, como diria Bloom (E não é desprovido de
significado o próprio fato de que Molly Bloom inicie seu dia pedindo a seu sempre solícito
marido que lhe explique uma palavra grega. Aqui, ainda sem conhecer Poldy, estamos à
mercê do pernosticismo de Stephen, que jamais nos explicaria coisa alguma). Significa boca de
ouro.
Na linha 79, Mulligan estará dizendo a Stephen que precisa ensinar-lhe grego. Mas
Dedalus, aluno de colégios jesuítas por toda uma vida, não precisa de grandes
conhecimentos da língua grega para conhecer este epíteto e sua origem. O título está ligado à
vida de vários santos católicos, sempre em uma referência metafórica a seus dotes oratórios.
O mais famoso deles é São João Crisóstomo (c. 345-407), patriarca de Constantinopla e um
dos pais fundadores da igreja pré-nicênica (Gifford, 1989: 14). Stephen Dedalus, o menino
40
de escolas de padres, estaria, por associação de idéias, comentando (algo derrisoriamente?)
sobre os pretensos dotes verbais de seu eterno Lúcifer
28
.
Mas há mais.
Como no caso dos seis pares de aspas de Kenner, ou, talvez mais apropriado, no
caso das três leituras possíveis do texto bíblico, aqui, além de uma leitura possivelmente
alegórica (retórica), de uma possibilidade anagógica (hagiográfica), uma leitura meramente
literal (biográfica), pois, quase no final do livro, conforme dito, ficaremos sabendo que o
nome completo de Buck é Malachi Roland St. John Mulligan, nos moldes de Oliver St. John
Gogarty, cuja personalidade inspirou sua composição.
Mas, pelo menos por enquanto, podemos deixar de lado a vida de James Augustine
Aloysius Joyce.
A primeira página deste livro se encerra com Mulligan, mais uma vez, rindo de
Dedalus. E, o que parece mais iluminador, rindo de um nome, do absurdo que é aquele
nome grego na Dublin de 1904.
Identidades impostadas, nomes encobertos. Personagens. Um narrador
singularmente disposto a trocar de lado e a estar a serviço de dois senhores. A primeira
página termina com a certeza de que haverá um duelo pela posse da palavra. A certeza de
que aquele Stephen Dedalus que vimos crescer de menino a homem, que vimos passar de
uma presença conturbada na voz narradora para alguém que dela se apropria, chegando
mesmo a eliminá-la ao trazer o livro (seu Retrato) inteiro para seu domínio sob forma de
entradas de um diário, agora tem um adversário a sua altura. Saiu de um retrato e está em um
romance.
O usurpador com que Stephen fechará este capítulo parece tomar, a nossos olhos, um
outro significado possível.
É a posse do domínio sobre a narrativa que aqui está em jogo.
Estamos falando apenas de uma gina, e estamos falando apenas de vozes, de uma
luta por espaço e representatividade, da disputa pela ascendência sobre a voz narradora,
afinal o universo objetivo do Ulysses é freqüentemente vislumbrado através do meio de expressão (i.e. do
28
cf. Benstock, 1974, p.2: As tensões deste colóquio entre Muligan e Dedalus estão agora estabelecidas, com a voz narradora
constantemente acrescentando pesos a um dos lados da balança durante boa parte do capítulo.
41
próprio estilo). (Hayman, 1982, p.22), e toda a disputa de espaço que se entre esses dois
antípodas, entre Cila e Caribde, não pode deixar de vir devidamente iconicizada.
O conflito entre os dois personagens, neste momento, é uma bela ilustração desse
ponto. Se podemos (podemos?) dizer que ele fica claro (encoberto) pelos fatos
representados, não podemos negar que fica mais claro dada a maneira de representação. A
atração indubitável que todo leitor (Budgen, 1972, p.34) sente desde o início por Mulligan é de
pronto questionada pelo olhar amargo de Dedalus. É de fato um exercício curioso esforçar-
se por ler este capítulo sem as cores que as preconcepções de Stephen lhe emprestam. Sem o
zumbido contínuo de seu mau-humor, marcado nos verbos que descrevem seus movimentos
e seus procedimentos, além de no momento em que toma da palavra.
Trata-se de uma melodia de gavota, escrita sobre uma harmonia em tom menor. Por
mais que não se saiba por que, é o tom o que predomina. E teremos dificudade em separar
uma coisa da outra, à medida que formos percebendo serem ambas criações de Dedalus.
percebemos Buck Mulligan exclusivamente com os nervos exacerbados de Stephen, e ele é
bem tedioso na única vez em que surge sem que Stephen esteja lá para ser provocado ou sem
a paciência hostil de Stephen para mediar nossa atenção. Nessa única vez (10.1043-
1099) ele é uma figura comum em uma obra de ficção. Quando Stephen está perto, ele é
aparência sem recheio. (Kenner, 1987, p.28)
E não é apenas o leitor que se sente atraído pelo bufão Mulligan.
Joyce nos mostrará em todo este capítulo uma preferência por um narrador
incrivelmente anódino em tudo o que se refira a funções estritamente pragmáticas e
imediatas dessa voz: tudo aquilo que se refira, conforme a expressão citada de Kenner
(1987, p.67), aos afazeres domésticos da narrativa. Assim, se a voz que tem voz (que tem vozes)
se inclina para um ou outro personagem de momento a momento, sendo talvez motivo de
disputa entre eles, este narrador anódino se mostra inabalável em sua quase obtusidade
funcional. Se precisa enunciar que alguém é responsável por determinada fala, escolhe quase
sempre um transparente he/Mulligan/Stephen said. Nem mesmo a inversão sintática lhe
agrada
29
.
29
Gilbert via nisso um eco das formulas invariáveis que costumam introduzir as falas das personagens em
Homero. Tais fórmulas, contudo, são epítetos, e não interferências em rubricas. Anthony Burgess (1975, p.81)
me parece mais próximo da verdade quando afirma singelamente que verba dicenci coloridos lutam contra o
desprendimento. Como mero exercício, vale dizer que há 126 ocorrências do verbo to say no capítulo (quase uma a
42
Ele não se manifesta, não comenta, não desmente, não colore. Ele mata a mãe mas
não pode usar calças cinzas. Cede sua voz sem indicar fronteiras, mas se nega a tingir por
suas opiniões a voz manifesta das personagens.
A fala tende a ter grande autonomia de apresentação.
No entanto, nesta primeira página, em que apenas Mulligan fala, nenhum dos verba
dicendi aparece livre de algum matiz avaliativo, sempre muito próximo, contudo, do tom
pretendido pela própria fala. Nada de ironia aqui. Mesmo os afazeres domésticos parecem tender
a favorecer Mulligan, tendem a parecer ceder ao magnetismo do bufão.
Até mesmo sua tia prefere ter em casa criadas feias, afinal (139).
He shaved evenly and with care, in silence, seriously. (99)
Um parágrafo de uma frase, que encerra, com o silêncio, todo o trecho que se
segue àquela página de abertura, todo um diálogo em que os pratos da balança seguiram
sendo adulterados de um lado e de outro, em que uma gay voice (40) continuou falando
sem parar para uma pessoa cujas reações de fato não nos é dado ver.
Por enquanto ainda estamos sob o feitiço verborrágico de Mulligan, que contudo
parece carregar uma nota pesada que, repito, é sutilmente providenciada pelos matizes dos
verbos que se associam a Stephen. Este, quando fala, fala quietly (47), ou gloomily (90). Ele
praticamente se arrasta atrás de Mulligan, obedecendo a suas ordens, e suporta (70) vê-lo
mexer em seus bolsos. Com o silêncio, contudo, sua voz vem à tona, de uma forma para a
qual já vínhamos preparados desde aquela intrusão da palavra Chrysostomos no discurso do
narrador. Desde aquela primeira assinatura, que estávamos ali para ler.
Algo que fomos ensinados a ver como a principal contribuição estilística do Ulysses, e
que toca exatamente o tema que estamos abordando neste trabalho. Algo que a tradição de
língua inglesa nos ensinou a tratar por fluxo de consciência, mas que aqui preferiremos
chamar pelo nome que Valéry Larbaud lhe sugeriu: o famoso monólogo interior.
Stephen, an elbow rested on the jagged granite, leaned his palm
against his brow and gazed at the fraying edge of his shiny black coatsleeve.
Pain, that was not yet the pain of love, fretted his heart. Silently, in a dream
cada seis linhas) das quais apenas trinta são modificadas adverbialmente e não mais que três aparecem antes de
seu sujeito.
43
she had come to him after death, her wasted body within its loose brown
graveclothes giving of an odour of wax and rosewood, her breath, that had
bent upon him, mute, reproachful, a faint odour of wetted ashes. Across the
threadbre cuffedge he saw the sea hailed as a great sweet mother by the
wellfed voice beside him. The ring of bay and skyline held a dull green mass
of liquid. A bowl of white china had stood beside her deathbed holding the
green sluggish bile which she had torn up from her rotting liver by fits of loud
groaning vomiting.
Buck Mulligan wiped again his razorblade.
– Ah, poor dogsbody! he said in a kind voice. (100-12)
E o que começa como possível e ortodoxa narração, termina por um mergulho
incontornável na mente de Dedalus.
Tal forma, que Joyce sempre declarou não ter inventado, parecia, nesse momento, de
fato responder melhor às necessidades do autor. Ela simultaneamente manifesta o último
assalto à independência da voz narradora, aqui totalmente contaminada pela voz de Stephen,
sem que, contudo, uma narração em primeira pessoa se instaure, ainda
30
, e deixa muito claro
que alguma presença organizadora por trás desse narrador poderá abrir mão da voz, mas não
deixará as determinações do texto a pleno encargo das personagens.
Daí preferirmos aqui o termo de Larbaud. Não muito de fluxo nas consciências
manifestas no Ulysses.
E se não há aqui também a uniformidade estilística que permeia as manifestações das
personagens em Mrs Dalloway, por exemplo (havendo uma clara diferença entre os
monólogos de Bloom e de Stephen) continuam estas falas (e até mesmo por isso, talvez?)
declarando sua sujeição à mesma persona textual que determina os momentos em que seus
pensamentos poderão irromper.
Começamos, talvez, a vislumbrar os primeiros traços do arranjador de Hayman, que,
contudo, discutiremos em momento apropriado, que mesmo seu criador pensava nele
como sendo uma presença que, gradativamente, toma controle da narração. Tal figura, vista
de onde estamos, poderia muito bem ser descrita como sendo composta dos restos do
narrador, depois do saque efetuado pelas personagens.
Algo determina o momento em que aflora o pensamento de Stephen; aqui o
silêncio como álibi, mas, mais à frente, essa eclosão vai claramente interromper o fluxo da
30
Hayman (1982, p.123) chamará a este estilo narração em terceira pessoa pessoal.
44
narrativa. E como aqui há não só uma cessão de espaço, mas também a gradual incorporação
de uma retórica e de uma sintaxe tipicamente dedalianas (de fato entramos em seu mundo,
estamos em sua consciência) naqueles outros momentos nos veremos alijados de tudo
quanto esteja ocorrendo fora deste mundo, além desta consciência. Haines, em outra
oportunidade, aparentemente não deixou de falar. Mas nós, acompanhando as divagações de
Stephen, deixamos de ouvi-lo
31
.
Mas o mundo continua lá. E Buck Mulligan, o outro corsário, prepara novamente
sua navalha para uma vez mais cooptar a voz do narrador, mesmo ali onde ela parece mais
refratária, no domínio dos objetivos verba dicendi. E não se deve subestimar esta última
evidência.
o parágrafo que se inicia na linha 130 parece confirmar uma suspeita que vinha
daqueles momentos em que Stephen, mesmo calado, contaminava com seu espírito sombrio
cada linha das ações de Mulligan. Aqui, poesia, sexualidade, inveja física e cinismo todos se
reúnem para dar ao texto, conquanto se refira a Mulligan, a assinatura de Dedalus.
He swept the mirror a half circle in the air to flash the tidings abroad in
sunlight now radiant on the sea. His curling shaven lips laughed and the
edges of his white glittering teeth. Laughter seized all his strong wellknit
trunk. (130-3)
de fato muito pouco aqui, descontado o ato em si, que se possa atribuir ao tom
farsesco e inconseqüente de Buck Mulligan. Mas Buck parece novamente (como no caso da
palavra grega acima) gozar de uma proximidade bastante conveniente com as intenções
daquele que, por falta, por enquanto, de termo melhor, podemos chamar de Livro. Pois,
enquanto Dedalus contempla seu tronco forte e massivo, ele se prepara para, agora, rir-se, e
fazê-lo rir, de sua aparência. Como que em diálogo tácito com a presença que organiza tanto
as distribuições das falas quanto as interrupções dos monólogos de Dedalus.
– Look at yourself, he said, you dreadful bard! (134)
31
cf., Hayman (1982, p.26) Há grandes lacunas na ação de Telêmaco, apesar da meticulosa atenção aos detalhes. Para
começar, enquanto Stephen pensa, a ação continua. O que Stephen deixa de perceber, nós também perdemos.
45
E é novamente obedecendo a uma ordem de seu algoz que Stephen, desta vez, chega
a efetivamente contemplar-se no espelho do outro. E, ao fazê-lo, como por gica, dá-se a
identificação que ainda faltava entre ele e o outro, o autor.
Stephen bent forward and peered at the mirror held out to him, cleft by
a crooked crack. Hair on end. As he and others see me. Who chose this face
for me? This dogsbody to rid of vermin. It asks me too. (135-7)
Trata-se da primeira vez em que eclode, no meio do monólogo interior, uma
declarada manifestação em primeira pessoa. No entanto, em um subterfúgio absolutamente
joyceano, essa primeira primeira pessoa é, também, o eu do outro. Trata-se (Gifford, 1989,
p.16) de uma citação. Stephen continuará, em mais três períodos, a se afirmar como eu, mas
este processo teve início e tomou tema na voz do outro, em um poema do escocês Robert
Burns.
Em 152, a voz de Stephen já está à vontade no texto, longe daquela primeira
intromissão de uma só palavra e sem depender dos momentos de algum alento que lhe sejam
concedidos para divagar. Entre dois comentários de Mulligan, que, através dos olhos míopes
de Dedalus somos vistos a ler com cinismo, ela abre sua hostilidade também pela primeira
vez.
It´s not fair to tease you like that, Kinch, is it? he said kindly. God knows
you have more spirit than any of them.
Parried again. He fears the lancet of my art as I fear that of his. The
cold steel pen.
Cracked lookingglass of servant! Tell that to the oxy chap downstairs and
touch him for a guinea. (150-155)
Ernst Curtius teria dito que não se pode ler Joyce, pode-se apenas relê-lo.
Podemos, pela altura da sexta página, reler todo o movimento de abertura tingido
pela amargura de Stephen, cada vez mais dono da voz dominante do texto, e enxergar
cinismo mesmo na cooptação da voz narradora pelos encantos de Mulligan. Mas o mais
provável é que fique reservada para uma terceira, para uma quarta leitura, a possibilidade de
relermos todo esse trecho dirigindo nosso cinismo aos pronunciamentos de Stephen,
tamanha a diferença da estabilidade de sua posição no embate de vozes que aqui se encena.
46
Uma autoridade que se impõe mesmo ausente, e que tem como principal instrumento para
estabelecer sua posição o privilégio do domínio do monólogo interior.
É a intervenção seguinte de Stephen, contudo, que revela a plenitude da identificação
que já acontece entre ele e o autor. Tendo-lhe Mulligan dado o braço para que caminhassem à
roda da torre, ele enuncia:
Cranly´s arm. His arm. (159)
E é este o momento de lembrarmos que, apesar de toda a confusão que vamos
verificando entre essas vozes, o Livro tende, sim, a manter clara a distinção ao menos entre
fala pronunciada e monólogo interior. Na verdade (graças ao uso dos travessões ao invés das
aspas) até mais clara do que costuma acontecer em boa parte da ficção de língua inglesa.
E aqui não há travessão.
Cranly não não havia sido mencionado para que uma menção se justificasse sem
mais como, mais que isso, é personagem de um outro livro. Do livro anterior, a que pertence
também o passado de Stephen, que nos permite compreender estar ele pensando já na figura
do alegre traidor que voltará a sua imaginação em breve, na presença da leiteira.
Em um plano, temos aqui exemplificado o desregramento típico do monólogo
interior, onde as regras sobre o que pode e não pode ser mencionado não fariam tanto
sentido. Mas, como dito, nos parece poder ver que o monólogo interior das personagens
no Ulysses (e nenhum outro, afinal?) nunca escapa verdadeiramente ao controle do Livro, que
parece ter sempre plena consciência da literariedade do mundo que constrói.
Não é permitido, como regra, que as personagens se manifestem, mesmo se em
monólogo interior, de forma a obscurecer totalmente as possibilidades de referência para o
leitor. Há sintaxe. Há conseqüência.
Há funcionalidade narrativa.
Ao contrário do que poderíamos esperar ver ocorrer em um verdadeiro fluxo de
consciência, Cranly pode ser mencionado apenas como parte do pacto que une autor, Livro e
personagem; biografia, bibliografia e literatura.
O Ulysses não é um livro fácil. Mas sua dificuldade não reside na obscuridade
intencional e desprovida de, novamente, funcionalidade. Palavra chave.
47
Até aqui, o exame algo detido da transição das vozes e réplicas dos diálogos
pronunciados e escamoteados entre Stephen, Mulligan e o narrador nos estabelece
exatamente essa situação: apesar do fato de Mulligan parecer mais simpático ao leitor, é seu
contrário que, de alguma maneira, parece fazer valer poderes especiais de relação com a voz
narradora de forma mais sutil: mesmo calado ele pode contar com a cumplicidade dessa voz
em denotar seu estado de espírito, gerando um pano de fundo mais consistente e
homogêneo, que reclama autoridade mesmo (paradoxalmente) sobre a avaliação positiva que
possamos ter de seu algoz.
Entre as razões que podem explicar essa imediata diferença de ascendência entre as
personagens está o fato de Dedalus ser um personagem conhecido do leitor (e acabamos
de ver que o Livro de fato conta com esse conhecimento prévio). Mas obviamente tem
grande papel nessa relação o contato biográfico entre autor e personagem, que, contudo,
analisaremos com mais cuidado apenas quando tratarmos de “Proteu”.
Para “Telêmaco”, talvez nos baste a partir de agora a análise de trechos
especialmente complexos, em que a imbricação das vozes é mais questionável. Como no
trecho algo longo que segue.
If he makes any noise here I’ll bring down Seymour and we’ll give him a
ragging worse than they gave Clive Kempthorpe.
Young shouts of moneyed voices in Clive Kempthorpe’s rooms.
Palefaces: they hold their rib with laughter, one clasping another. O, I shall
expire! Break the news to her gently, Aubrey! I shall die! With slit ribbons of
his shirt whipping the air he hops and hobbles round the table, with trousers
down at heels, chased by Ades of Magdalen with the tailor’s shears. A scared
calf´s face gilded with marmalade. I don’t want to be debagged! Don’t you
play the giddy ox with me!
Shouts from the open window startling evening on the quadrangle. A
deaf gardener, aproned, masked with Matthew Arnold’s face, pushes his
mower on the sombre lawn watching narronwly the dancing motes of
grasshalms.
To ourselves... new paganism...
omphalos
. (162-76)
Depois de um comentário de Mulligan, que, solícito, declara estar disposto a
espancar Haines, o terceiro ocupante da torre, desde que isso contente a Dedalus, eclode
uma algo obscura reminiscência de um episódio em uma casa de estudantes. Precisamente
aquele, e aquela, a que Mulligan parece ter feito referência.
48
Atribuiríamos este trecho a Stephen, nesse momento, sem nem mesmo termos que
para isso recorrer demais a fatores estilísticos (de resto, bastante bem marcados no texto):
sabemos, ou acreditamos já, que Mulligan simplesmente não tem acesso a esse tipo de
manifestação. Um leitor que passe pela primeira vez por esse texto estará fadado a considerá-
lo mais uma digressão poetizada de um Stephen sempre obcecado por seu passado e relegará
o que porventura o tenha compreendido ao grande porão em que cabem metade das
referências cifradas, em uma primeira leitura do livro.
Mas problemas. Os nomes citados, ao contrário do recentemente evocado Cranly
(O Livro parece sempre querer mostrar que não faz as coisas sem motivos) não tem
ressonância alguma. O compulsório anotador Gifford (1989, p.16-7) não consegue encontrar
significados para eles: em Um retrato, em Dublin, ou em Oxford.
Por que em Oxford? Porque Magdalen é o nome de um dos colleges desta
universidade. Mas, novamente, há um problema. Stephen nunca esteve em Oxford.
O parágrafo seguinte, sobre Matthew Arnold, bem como sua conclusão, são
tipicamente fruto da mente de Stephen. Mas pensarmos que este trecho é na verdade uma
espécie de efetivo diálogo silencioso parece, neste momento, algo exagerado como recurso.
O mais verossímil é pensarmos tratar-se de uma reflexão de Stephen sobre algo que lhe tinha
sido relatado em outro momento (em outros momentos) pelo próprio Mulligan.
Estória antiga.
Assim, os nomes citados permanecem tendo significado apenas para os dois
(exatamente como fica entre eles o significado do nome Kinch
32
), e a estória toda fica
revelada como pertencente a um fundo comum de informações.
Eles, algo mais que simples conhecidos, detêm em alguma medida uma consciência
comum. Dito assim, podemos reformular a idéia daquele diálogo silencioso, porque não mais
pensamos na sucessão de dois monólogos interiores perfeitamente concatenados e como que
pertinentes, um para o outro, mas sim no fato de que, na mente de Stephen, realmente
uma apropriação e uma responsividade motivadas, imediatamente, pela palavra ainda
ressonante de Mulligan e, mediatamente, pelas palavras que, dele, Stephen ouviu em outros
32
Quanto a isso, vale a pena citar-se a longa nota de Gifford (1989, p.13)?
Kinch
– De Kinchin, ou criança
(William York Tindall, A reader’s guide to James Joyce [Nova Iorque, 1959], p. 139); ou “imitando o som cortante de
uma faca” (Ellmann, p.131). Em um ensaio, “James Joyce: um retrato do artista”, Oliver St. John Gogarty comenta, “Kinch me
chama de ‘Malachi Mulligan’.... ‘Mulligan’ é um nome estereotípico irlandês para mim. É para me fazer absurdo. Não me
ressinto, pois ele assume ‘Kinch-Lynch’ com os Joyce de Galway, o que é bem pior” (in O luto cai bem à senhora Spendolove
[Nova Iorque, 1948], p. 52).
49
momentos. Stephen, em si mesmo (seu palco preferido, como contrário de Mulligan que é),
encena um diálogo entre sua voz e uma outra voz de que se apropriou: ele se aproxima
perigosamente de um estatuto demiúrgico próprio da voz narradora.
Novamente mostrando o caminho, o autor encerra tal digressão com três lemas, três
citações de palavras alheias, conhecidas e repetidas: uma tradução do irlandês sinn fein, lema
muito usado pelos partidários da autonomia política em relação ao Reino Unido (é até hoje
nome de um braço do IRA); um lema (Gifford, 1989, p.17) da vanguarda literária de fins do
século XIX; e uma palavra grega que, neste contexto, ao menos para o re-leitor, é em
primeiro lugar uma citação de uma palavra ausente pois mais adiante (544) Mulligan usará
este termo para se referir à torre em que vivem, sem se preocupar em explicar qualquer
coisa, permitindo supor seja esta uma referência comezinha, ao menos entre os dois.
Exatamente como o Livro (e com ele Stephen) parece dar agora de barato a relevância da
palavra.
Sendo assim, depois de estabelecida a tensão entre as vozes que falam, e depois de
estabelecida a ligeira (ligeira?) vantagem de Stephen nessa querela, passamos a buscar a
tensão que possa existir dentro da voz de Stephen, entre ele e Mulligan. O campo de batalha
não muda, ele apenas se amplia, e Stephen, em 12 linhas, cita o que ouviu, o que lembra e o
que ainda ouvirá de Mulligan.
E resolve confrontá-lo, com a estória de uma ofensa que teria ouvido dele. Durante a
resposta de Mulligan, o narrador comenta
He shook his constraint from him nervously. (203)
Objetivamente?
Talvez seja ingênuo esperarmos objetividade desse narrador nesse momento. Vemos
Stephen se deleitando com ter conturbado a persona plácida e eufórica de Mulligan. O
mesmo Stephen que, logo depois, contudo
shielding the gaping wounds which the words had left in his heart, said very
coldly: (196-7)
Em um arroubo de retórica que não temos nenhuma razão em atribuir a ninguém
que o a ele mesmo. Que sente, que acredita e que tem vontade de expressar essa dor. O
50
narrador, afinal, agora está próximo dele o suficiente para sentir os pulsos das veias em
suas pálpebras. Sem, contudo, instaurar qualquer espécie de onisciência à moda antiga.
Primeiro porque estamos falando de uma aproximação que se dá somente em relação
a uma personagem. Segundo, porque essa aproximação, como vimos, não é unívoca e,
terceiro, porque poderíamos quase dizer que ele está próximo demais para isso. Synpathia
seria nome mais adequado. Como um observador dotado de imensa sensibilidade, o
narrador sente junto com Stephen.
A proximidade do tradicional narrador em terceira pessoa consegue ser
simultaneamente objetiva como a de um neurocirurgião, que analisa, examina e expõe o que
viu (ou, em afetado pudor, insinua, velando, mas sempre insinuando poder desvelar): o que
implica brutal proximidade; e objetiva como a de um psicólogo, que pode revelar muito mais
do que a própria pessoa poderia: o que implica brutal distanciamento.
O narrador de “Telêmaco” é cooptado, sim, por Stephen, mas exibe uma
cumplicidade total com ele (ele se ausenta da ação quando Stephen se ausenta, ele se
compadece de suas dores) que o leva a sonegar qualquer informação que Stephen não
quisesse fornecer. Ou, melhor, ele sonega toda e qualquer informação que ele, como o leitor,
não tenha podido ainda obter de Stephen.
Começamos aqui a ver o que será uma marca característica deste livro. Os narradores
têm muito poucos direitos que não aqueles concedidos, consentidos, pelos personages que
de certa forma representam. Uma espécie de sistema legislativo que de fato funciona.
Assim, volta a cena a objetividade, o distanciamento joyceano, sempre mais
paradoxal (e mais interessante) na medida em que possa existir uma identificação biográfica
entre autor e personagem
33
.
E eis o leitor, novamente, aprendendo mais por sugestão do que por ostensão.
Estranha a esse diálogo, a voz de Haines, quando se manifesta pela primeira vez, é
sentida exatamente como tal: A voice. (227)
34
. E ela chama Mulligan, que obedece, deixando
Stephen no topo da torre, livre de competidores, livre para demonstrar seu domínio da
33
Autor algum foi mais autobiográfico que Joyce, mas autor algum revelou menos de si mesmo ao contar sua estória. Ele se
mantém calado, nunca julga, nunca comenta. (Burgess, 1965, p.24)
34
Mesmo depois de termos contato com ele, como que a excluí-lo do efetivo diálogo, ele permanece sendo uma
figura alta (319) e, quando fala, é novamente uma voz quem pergunta (322).
51
narrativa e sua ingerência sobre a objetiva voz narradora. Livre das outras vozes, que serão
sempre adversárias.
Na verdade, Bernard Benstock já pôde dizer sobre o primeiro (e belíssimo) parágrafo
desse efetivo solilóquio de Stephen sobre a torre que em nenhum momento de Telêmaco a voz
narrativa e o monólogo interior estiveram tão indelevelmente misturados (1970, p.14).
De fato, nos dois parágrafos abaixo, por exemplo, o uso das formas de terceira e
primeira pessoa parece quase intercambiável.
In a dream, silently, she had come to him, her wasted body within its
loose graveclothes giving off an odour of wax and rosewood, her breath, bent
over him with mute secret words, a faint odour of wetted ashes.
Her glazing eyes, staring out of death, to shake and bend my soul. On
me alone. The ghostcandle to light her agony. Ghostly light on the tortured
face. Her hoarse loud breath rattling in horror, while all prayed on their knees.
Her eyes on me to strike me down.
Liliata rutilantium te confessorum turma
circumdet: iubilantium te virginum chorus excipiat.
(270-7)
Perdido neste diálogo consigo mesmo e com a voz narradora, Stephen é quase
despertado pela voz de Mulligan, que canta do interior da torre e que, novamente, chama por
ele, outra vez, ecoando outras vozes, outros registros, exatamente como desde o início do
capítulo. Mas aqui, dado o estado de espírito torturado de Stephen, é com alívio que ele ouve
essa voz, e é assim que a narrativa reage a essa interrupção.
Stephen, still trembling at his soul’s cry, heard warm running sunlight and in
the air behind him friendly words. (282-3)
Ele permanecerá nesse tom, e com ele a narrativa (que em breve verá welcome light
and bright air (328)), no que estiver dentro da torre, para o segundo momento do
episódio: em que, via de regra, o diálogo efetivo, pronunciado, reinará com mais estabilidade.
É quase como se, desprovidos da solidão, não pudessem mais eles dar espaço ao
diálogo íntimo que vinham travando. Lutas pessoais, se travadas em público, recorrem a
véus. É a palavra às claras (a luz benvinda) que deve dar o tom, quando na presença deste
estranho. Na verdade, é com um efetivo diálogo silencioso (569-571) que os dois reagirão à
menção inconsciente, por Haines, de um assunto que lhes é importante, e talvez doloroso,
ainda que tal menção, e tal ligação, sejam literárias, indiretas e, contudo, feitas imediatamente
por duas mentes, como vimos, bastante afinadas.
52
Aqui, é a fala que predomina e, conseqüentemente, é Mulligan quem tem mais vez.
Demonstrando esse seu domínio cênico (o bufão está em casa, entretendo seu
público, livre de falas plenas de conotações e tinturas sutis), ele chega mesmo a suprimir
(pela velocidade de suas réplicas?) as intromissões do narrador:
I’m melting, he said, as the candle remarked when... But, hush! Not
a word more on that subject! Kinch, wake up! Bread, butter, honey
35
. Haines,
come in. The grub is ready. Bless us, O Lord, and these thy gifts. Where’s the
sugar? O, jay, there’s no milk. (333-6)
[...]
Pour out the tea there. The sugar is in the bag. Here, I can’t go fumbling at
the damned eggs. (347-8)
Eles, juntos, caricaturam vozes. Conversam.
Até que entre uma quarta pessoa, efetivamente uma estranha, distante de tudo que
representam e com que convivem e que imediatamente (no fundo, pelo motivo de um
trocadilho inglês-gaélico
36
: a palavra, novamente) provoca em Stephen um grande momento
de reflexão e o arremessa de volta a seu estado de espírito de comiseração e lamentos por si
próprio. E, mais uma vez, como que demonstrando que caminho deve seguir a leitura, esse
trecho intruso que voz à consciência de Stephen depois de um longo momento de silêncio
em que as efetivas vozes se ocuparam dos diálogos, vem interromper uma cena, emoldurado
por duas falas que presumem entre elas uma ação que podemos entrever e ao menos uma
fala que temos que deduzir.
Quando a leiteira pergunta quanto eles querem naquela manhã...
– A quart, Stephen said.
35
Mesmo assim, ainda podemos ver pequenos acenos, piscadelas dirigidas a Stephen. Honey aqui pode ser mel,
mas pode ser um vocativo carinhoso, como o my love, que ele lhe dirigiu pouco antes (48).
36
O que Stephen está vendo é uma poor old lady, que é uma possível tradução do gaélico Shan van vocht, nome
tradicionalmente atribuído, como silk of the kine, à Irlanda, (Gifford, 1989, p.21), sobre cuja situação servil, que
compara à sua própria, Stephen passa a refletir.
Mesmo que não tenha ainda alcançado aqui o grau de procedimento heurístico que a ela está reservado no
Finnegans Wake, não podemos negar a importância da paronomásia (inclusive interlingüística, como vimos aqui)
para o método de trabalho de Joyce. Na verdade são mais que oportunas as palavras de Ellmann (1977, p.91):
O trocadilho se torna uma chave para seu trabalho: chave tanto estética quanto política, tanto lingüística quanto moral.
Ele se estende além das palavras. O mesmo processo ocorre com pessoas e incidentes. Uma lei do universo joyceano é que
cada coisa está sempre à beira de se desdobrar em outra. [...] À reclamação de que elas não se fundem, Joyce sem dúvida teria
respondido que a essência do trocadilho não é a junção completa, mas a incompleta. Fazê-las fundir-se seria abolir a razão de sua
aproximação.
53
He watched her pour into the measure and thence into the jug rich
white milk, not hers. Old shrunken paps. She poured again a measureful and
a tilly. Old and secret she had entered from a morning world, maybe a
messenger. She praised the goodness of the milk, pouring it out. Crouching
by a patient cow at daybreak in the lush field, a witch on her toadstool, her
wrinkled fingers quick at the squirting dugs. They lowed about her whom
they knew, dewsilky cattle. Silk of the kine and poor old woman, names given
her in old times. A wandering crone, lowly form of an immortal serving her
conqueror and her gay betrayer, their common cuckquean, a messenger from
the secret morning. To serve or to upbraid, whether he could not tell: but
scorned to beg her favor.
– It is indeed, ma’am, Buck Mulligan said, (397-408)
Mas nem mesmo essa intrusão pode ser considerada deslocada. Stephen se
encarregou de tomar posse da voz narrativa, ou, na verdade, de demonstrar cabalmente que
o fizera desde o início, mesmo ausente. Agora, mesmo quando se cala, ele continua
segurando o baixo ostinato que dá o tom de todo o episódio.
Mesmo quando não abre a boca ele ouve em silêncio desdenhoso (418), comentário ainda
na voz narrativa que margem a nova digressão, ainda mais marcada que a outra, com
direito a pronomes de primeira pessoa e a um conteúdo mais censuravelmente pessoal; e
novamente interrompendo o fluxo normal da ação.
Mesmo quando se cala, ele comenta; ou a voz narrativa (ao selecionar o que dizer, e
em que momento) comenta sobre ele. Haines se dirige a ele, dirigindo-se a Mulligan, pois o
mal-estar entre ele e Stephen, graças ao incidente da noite passada, em que sonhou com uma
pantera negra e acordou a todos, ainda é bastante grande, e até quando pede desculpas por
tudo isso ele o faz através de Mulligan. É quando saírem da torre que ele vai tentar, na
ausência do Buck, se dirigir mais longamente a Stephen
37
, sendo recebido com uma frieza
algo imerecida, fato que vai saltar aos olhos inclusive de Stephen. Ele comenta que deveriam
pagar a conta acumulada com a leiteira.
Stephen, o re-leitor sabe, dispõe pelo menos dos dois pence que vão ficar faltando
para que se pague todo o atrasado, mas se mantém calado, efetivamente deixando que o
diálogo transcorra apenas entre os endinheirados, eximindo-se de responsabilidade. Diante do
37
Seu primeiro comentário, bem-intencionado e reconciliador (480), já é comentado em monólogo interior
com desprezo: Speaking to me. They wash and tub and scrub. Agenbite of inwit. Conscience. Yet
here’s a spot. (481-2)
54
comentário de Haines, ele não comenta e não participa, e sua omissão é sublinhada pela
narração, que declara somente (quase cinicamente):
Stephen filled again the three cups. (441)
O silêncio que aqui sonega informação relevante é o silêncio pretendido por
Stephen, que cala a narrativa.
Silencioso também pode continuar sendo o diálogo entre ele e Mulligan que a
tônica geral do episódio, mesmo quando a conversa gira em torno de Haines; um chute por
baixo da mesa diz a Dedalus que o assunto em questão é, na verdade, outro, discutido por
eles no alto da torre, e que voltará a ser comentado assim que Haines se afastar. Pois é
hora de deixar a torre.
Quando Mulligan se levanta, a rubrica da narração novamente parece estabelecer
uma incerteza quando à paternidade daquelas palavras. O tom satírico e exagerado condiz
muito bem com Mulligan, mas o vocabulário poderia ter sido emprestado do clerical
Dedalus.
He stood up, gravely ungirdled and disrobed himself of his gown,
saying resignedly: (508-9)
Parece, na verdade, que o discurso oscila de um para outro, bem como fica clara a
presença de uma voz organizadora por trás de tudo isso, pois aquele curioso gravely thrice,
do início do livro anuncia exatamente três outras ocorrências do advérbio, que se completam
aqui.
Arranjador, narrador, Dedalus, Mulligan, algo indistintos. Como de costume, um
trecho mais longo que segue exporá tudo isso com maior clareza:
– There’s your snotrag, he said.
And putting on his stiff collar and rebellious tie he spoke to them,
chiding them, and to his dangling watchchain. His hands plunged and
rummaged in his trunk while he called for a clean handkerchief. God, we’ll
simply have to dress the character. I want puce gloves and green boots.
Contradiction. Do I contradict myself? Very well then, I contradict myself.
Mercurial Malachi. A limp black missile flew out of his talking hands.
– And there’s your latin quarter hat, he said. (512-18)
55
Quanto disso tudo foi dito, quanto suposto, quanto lembrado? Quem é I? Walt
Whitman (Gifford, 1989, p.22), Mulligan ou Dedalus? Trata-se de Stephen, encenando um eu
de Mulligan, ou de uma primeira incursão deste no domínio do monólogo interior... ou tudo
isso ao mesmo tempo. Cito, apesar de longa, a bela análise de David Hayman (1982, p.92)
deste mesmo trecho, apenas para ilustrar a complexidade das relações envolvidas.
Não como saber o que é dito, em oposição ao que Stephen pensa dessa espetáculo mudo
ensanduichado entre as duas apresentações. Se Buck fala ou não enquanto suas mãos
gesticulam fica aberto a discussão. A segunda metade do parágrafo é um curioso amálgama
de enunciações possíveis e improváveis, algumas das quais (como “agenbite of inwit”
38
) o
seguramente de Stephen, algumas das quais podem ser falas recordadas, e ainda algumas,
como a citação de Whitman (“Do I contradict... myself”), podem ser bordões favoritos.
Entramos em um espaço morto entre pensamento e ação, e, não importa quão vívida possa
ser a pantomima, temos uma sensação de que os dois indivíduos estão momentaneamente e
magicamente reunidos por um narrador cujos procedimentos são mais compreensíveis nos
níveis temáticos e analógicos do que no nível mimético. Dessa maneira ele prenunciou o
milagre mais enfático pelo qual Bloom e Stephen se reúnem no espelho de Circe. Fazendo
uma personagem se dirigir a objetos, deixando que falem as mãos, que um chapéu voe, uma
gravata se rebele, criando, isto é, a partir dos absurdos latentes em nossa fala uma
paisagem encantada que aceitamos sem questionar, ele também prenunciou um
deslocamento mais radical da realidade. O esfumado em nossa citação é portanto
deliberado. O narrador está nos obrigando a aceitar uma outra ordem da realidade. Ele
está brincando com a nossa necessidade de naturalizar e de explicar o que é estranho e
equívoco, de fechar o campo da experiência. Está também afirmando sua independência,
sua liberdade em relação às regras que ele mesmo estabeleceu.
Tudo isso parece afirmar, até aqui, ao menos duas coisas, com clareza, em meio à
intencional névoa que medeia essas vozes. Stephen Dedalus goza de uma relação privilegiada
com a voz narradora e, gradualmente, passa a se servir desse poder para dar cada vez mais
seu tom à narrativa.
Ele não tem a primeira palavra. Mas terá a última.
Além disso, fica estabelecido que esse domínio, no entanto, não é tranqüilo e
inquestionado. Há uma tensão entre ele e Mulligan, que se manifesta tanto no espaço
acústico disputado pelas duas vozes (com clara vantagem para Mulligan), quanto na luta pela
influência sobre a voz narradora (vitória de Stephen), quanto, ainda (e aqui o terreno é mais
truncado, a disputa é mais cerrada) na mesma consciência de Stephen, onde Mulligan pode
38
Recorrência da expressão, que é suprimida por Gabler.
56
representar vários fatores que ele gostaria de apagar de si próprio (sintetizados nos lemas
citados em (176)), atrações, repulsas e, infelizmente, convívios necessários. Pois ele não pode
negar que possuem uma comunhão de vozes, memórias e opiniões que, por vezes, a
presença alienígena de Haines serve apenas para sublinhar.
Assim é que à pergunta feita por Haines em (538), ambos respondem, como que
complementando uma mesma informação (e também, veremos, tentando estabelecer
direitos) e, logo depois (546-51), Mulligan afirma algo a respeito de si mesmo, e pede
confirmação da mesma informação, agora se referindo a Stephen.
Eu preciso, não precisas? A confusão e a intercambiabilidade de pessoas verbais
agora se referem às duas personagens. E a esta altura do capítulo, a tensão entre essa
identificação e essa repulsa, ambas vistas através dos olhos de Stephen, está como que
madura o suficiente para explodir no diálogo calado mais eloqüente e mais críptico de todo o
trecho, a que já nos referimos anteriormente.
– I mean to say, Haines explained to Stephen as they followed, this tower and
these cliffs here remind me somehow of Elsinore.
That beetles o’er is base
into the sea,
isn’t it?
Buck Mulligan turned suddenly for an instant towards Stephen but did not
speak. In the bright silent instant Stephen saw his own image in cheap dusty
mourning between their gay attires. (566-71)
Haines, a narrativa, e o leitor, ficarão sempre em alguma medida privados de saber o
que se passou efetivamente na consciência de Dedalus e Mulligan. Haines, na verdade,
seguirá impávido, como se nada tivesse de fato acontecido, como de fato nada parece ter
acontecido. Mas a menção ao Hamlet (um paralelo que corre por todo o livro, e muito
especialmente por este episódio), além de servir como aviso ao leitor desatento, que pode
reler o episódio à luz dessa correspondência anunciada, parece ter detonado nos dois (e
saberemos que ao menos um deles é um estudioso da peça) lembranças duras e pesadas que,
consoantemente à índole de cada um, gerarão nova digressão melancólica e nova explosão
carnavalesca, na balada do Joking Jesus e em novo excurso interno. Olvido e reflexão.
Vale a pena, contudo, até para explicitar tanto as razões quanto a cripticidade por
trás da tensão que de pronto surge entre os dois, ver o trecho todo em que Horácio alerta
Hamlet (1, iv, 50ss.) dos perigos que podem estar a sua espera.
What if it tempt you toward the flood, my lord,
57
Or to the dreadful summit of the cliff
That beetles o’er its base into the sea,
And there assume some other horrible form
Which might deprive your sovereignty of reason
And draw you into madness? Think of it.
E o fantasma chama por Hamlet.
Quanto (muito pouco) pode Mulligan saber do sonho de Stephen? Quanto pode ele
ter consciência dos papéis que, na reencenação de Stephen, caberiam a ele nesta montagem
da tragédia do príncipe da Dinamarca? Por que Stephen, convivendo com um bufão desde o
início, somente agora tem uma dolorosa consciência (ver o uso da palavra attires) da
teatralidade de toda aquela situação?
O que resta é a tensão, que ambos procuram desfazer, Mulligan, blasfemo, cantando,
e Stephen, fechando-se em si mesmo. E a tudo isso Haines não reage, nem pode reagir. Ele
não tem elementos que lhe permitam compreender, sequer conceber, o que está de fato se
passando entre os outros dois, e esta situação é iconicizada em seu tratamento, sempre algo
marginal, pela voz narrativa. Ele, inclusive, se verá novamente reduzido a uma voz em (666).
Se ele ganhou pessoa, e por alguns momentos deixou de ser uma voz e uma figura,
ele ainda é aquele que fala à margem da verdadeira discussão. Mesmo suas ações são
descritas com objetividade quase monótona, ainda que, em nível simbólico, possam ser
importantes para a narrativa:
Haines stopped to take out a smooth silver case in which twinkled a
green stone
39
. He sprang it open with his thumb and offered it.
– Thank you, Stephen said, taking a cigarrette.
Haines helped himself and snapped the case to. He put it back in his
sidepocket and took from his waistcoatpocket a nickel tinderbox, sprang it
open too, and, havind lit his cigarrette, held the flaming spunk towards
Stephen in the shell of his hands. (615-21)
Nada de comentários, de verbos simpatéticos, de descrições de fundo psicológico.
Haines, o conquistador, o dono do mar, simplesmente age, ele mesmo sem demonstrar
grande consciência das conseqüências possíveis de seus atos. E, enquanto caminham, ele
continua tentando puxar conversa com Stephen que, no entanto, parece mal ouvir seus
comentários, perdido em suas divagações; Haines chega inclusive a recomeçar uma sentença
39
A esmeralda é um símbolo recorrente da Irlanda.
58
interrompida em reticências, parecendo se dar conta da pouca atenção que, desde o início,
vem merecendo da parte de Stephen, perdido em si mesmo.
He walked on, waiting to be spoken to, trailing his ashplant by his
side. Its ferrule followed lightly on the path, squealing at his heels. My
familiar, after me, calling Steeeeeeeeeeeephen! A wavering line along the
path. They will walk on it tonight, coming here in the dark. He wants that
key. It is mine. I paid the rent. Now I eat his salt bread. Give him the key too.
All. He will ask for it. That was on his eyes.
– After all, Haines began....
Stephen turned and saw that the cold gaze that measured him was not
all unkind.
After all, I should think you are able to free yourself. You are your own
master, it seems to me. (627-37)
Além da nova demonstração da marginalidade de Haines em relação à narrativa e aos
embates que nela se encenam, esse parágrafo representa um símbolo mais do que adequado
do grau a que chegou, perto do fim do episódio, a mistura das vozes e das instâncias
narrativas.
O fato é que anos de crítica leram esta passagem sem nela perceber algo de anormal,
nos quadros e nas regras a que estávamos sendo acostumados desde a abertura do livro.
Stephen se soltou mais uma vez da situação imediata e lançou-se uma vez mais em um
monólogo inaudível que carrega suficientes marcas de sua autoria.
Apenas em 1980, quase sessenta anos depois da publicação do Ulysses, quando surge
a primeira edição do texto hoje clássico de Hugh Kenner é que encontramos, em uma nota à
página 55, o seguinte comentário:
Devo a Arnold Goldman a sugestão de que as palavras silenciosas de Stephen ‘It is mine.
I paid the rent’ (1.631) devam ser lidas na voz de Mulligan, entre aspas invisíveis, como
palavras que Stephen pode ouvir Mulligan pronunciando quando exigir a chave. Pois
não é típico de Stephen estabelecer propriedade por conseqüência de pagamento: este é o
estilo de Mulligans e Deasys. Além disso, quando Haines pergunta se é cobrado aluguel
pela torre, é Mulligan quem imediatamente responde com a quantia exata, 12 libras. E
essa é uma soma absurda de imaginarmos que Stephen reúna a qualquer momento.
cinco meses ele emprestou um guinéu (2.257) de AE quando estava faminto, e de pronto
gastou quase tudo na cama de uma rameira (9.195). Com seu salário de 3 libras e 12
shillings, ele poderia ter juntado doze libras (mal comendo) em quatro pagamentos, mas
houve um pagamento antes deste (2.233) a primeira das ‘três vezes’ foi uma sessão de
barganha – e suas dívidas reconhecidas para com dez pessoas totalizam 25 libras,
59
dezessete shillings e 6 pence (dos quais 9 libras ele deve a Mulligan) mais meias, sapatos,
gravatas, dois almoços, hospedagem de cinco semanas.
Duas frases.
Todo um parágrafo de informação colhida de três episódios diferentes (novamente, é
a releitura que possibilita a leitura), para justificar uma interpretação que, em tudo e por tudo,
parece muito mais convincente que a anterior. O fato, no entanto, repito, é que quase
sessenta anos de crítica não apenas passaram por cima da possibilidade levantada por
Goldman e Kenner, mas ainda tiveram o costume de citar nomeadamente estas frases para
refrisar o quanto Stephen tinha direito de se julgar espoliado
40
.
Em um trabalho em que buscamos nos empenhar em somente sondar o que se possa
esclarecer dos métodos e da técnica do Ulysses em um campo que, à primeira vista, possa
parecer redutor (pois pensamos apenas na representação das vozes e, por vezes a muito
custo, tentamos limitar qualquer comentário interpretativo, alegórico; qualquer comentário
enfim, caso não esteja firmemente expresso nas relações das vozes representadas) tal trecho
tem uma importância incrível, precisamente por demonstrar a dimensão do problema que
pretendemos estudar, até mesmo para a mera elucidação da trama do livro, e de sua fortuna
crítica.
Porque se aceitamos a hipótese de Goldman/Kenner, temos de aceitar também que
a manipulação que Dedalus vem realizando das cores e da avaliação da voz narrativa,
fazendo com que tenhamos de ver o mundo, para bem e para mal, através de seu ponto de
vista, foi bem sucedida a ponto de levar de roldão toda a crítica, séria, rigorosa como poucas,
que se construiu sobre esse trecho ao longo de quase seis décadas. Pesquisadores, leitores
treinados e experimentados nas sutilezas do câmbio de perspectivas foram como que
engabelados pela virtuosística manipulação de Stephen Dedalus.
Mais até do que o Livro poderia desejar.
Cabe aqui, também, uma ligeira reflexão tipográfica, embora, mesmo trabalhando
com a edição até o momento mais confiável do texto de Joyce, não tenhamos toda certeza
de poder contar com alguma segurança em questões de detalhe como essa. Afinal, quando
Stephen citou a frase de Mulligan que o magoou (198-9), tal texto, e sua refração, vieram
40
Benstock (1974, p.11), Melchiori (2000, p.68) (este último posteriormente à publicação de Kenner), recorrem
a este argumento, apenas para citar dois exemplos recentes.
60
marcados em itálico, que falta aqui. Aquela frase, citada em derrisão, mantida estrangeira;
esta, citada, apropriada, para si mesmo. A palavra efetivamente enunciada e depois citada
merece rigores de citação; a palavra presumida, por uma consciência que se julga apta a
prever reações de outra que vibra em uma freqüência próxima da sua é de fato palavra
própria.
Mas, mesmo que não possamos resolver a bizantina questão que roçamos, o que nos
interessa aqui é a mesma dúvida. Afinal, se falávamos de uma confluência tensa de vozes que
parecia se encaminhar a alguma resolução, vindo se esclarecendo desde o começo, temos
aqui uma mais do que apropriada resolução climática para tal dilema.
Na verdade, é quase como se pudéssemos dizer que Stephen começa a ficar cansado
de sua própria voz digredindo, processo que teremos possibilidade de verificar mais
adequadamente em Proteu. O último trecho mais longo de monólogo interior que aparece
neste episódio segue de perto o trecho de que vínhamos falando. Trata-se de uma longa
(quase longa demais) digressão sobre a igreja católica, retórica (quase em excesso) e
hiperbólica, que a mesma voz de Stephen (que outra?) vem encerrar em tom de irônico fastio
que, mais uma vez, prenuncia o que veremos no terceiro episódio. Eis o trecho:
The proud potent titles clanged over Stephen´s memory the
triumph of their brazen bells:
et unam sanctam catholicam et
apostolicam ecclesiam:
the slow growth and change of rite and dogma
like his own rare thoughts, a chemestry of stars. Symbol of the apostles
in the mass for pope Marcellus, the voices blended, singing alone loud
in affirmation: and behind their chant the vigilant angel of the church
militant disarmed and menaced her heresiarchs. A horde of heresies
fleeing with mitres awry: Photius and the brood of mockers of whom
Mulligan was one, and Arius, warring his life log upon the
consubstantiality of the Son with the Father, and Valentine, spurning
Christ’s terrene body, and the subtle African heresiarch Sabellius who
held that the Father was Himself His own Son. Words Mulligan had
spoken a moment since in mockery to the stranger. Idle Mockery. The
void awaits surely all them that weave the wind: a menace, a disarming
and a worsting from those embattled angels of the church, Michael’s
host, who defend her ever in the hour of conflict with their lances and
their shields.
Hear, hear! Prolonged applause.
Zut! Nom de Dieu!
(650-665)
Stephen reconhece que está voando alto demais. Ou imagina que alguém (quem?)
poderia lhe dizer que estivesse?
61
O narrador, que queria que aprendêssemos com ele a ler as vozes deste primeiro
episódio, estabeleceu suficientemente bem suas bases para se permitir ele mesmo
distanciar-se delas ocasionalmente. Ele pode, depois de traçar o painel do embate,
permitir-se a incerteza e a irresolução. Chegando os três ao mar para o banho de Mulligan, e
ali conversando ele com outro rapaz, sem nome, que está na água, ele pode de todo se
retirar, dada a desimportância (que não se pode confundir com falta de peso estrutural) desse
colóquio para o embate maior que se desenvolve.
O interlocutor de Mulligan permanecerá sem nome e por longos trechos nem
mesmo os afazeres domésticos mínimos da narrativa serão devidamente realizados. Nem o
inevitável he said comparecerá ao final das réplicas do diálogo que tem, contudo,
importância imensa para que saibamos mais da vida de um personagem que ainda nem
entrou em cena, pois temos aqui um primeiro contato com a filha de Leopold Bloom e com
o caso que ela estaria tendo com um jovem estudante em Mullingar.
Mas tudo isso, é claro, não é ainda transparente a nenhum dos envolvidos, nem
mesmo a Stephen, que mal parece ouvir a conversa, e que no fim do dia estará mais próximo
do que jamais esteve da vida dessa menina. É irônico para o papel de centro de convergência
das vozes que Stephen parece vir assumindo que ele deixe de ouvir, ou ao menos deixe de
registrar, palavras que poderiam vir a ser importantes para ele mesmo. Ou será demais
presumir essa importância, dada sua prepotência?
O fato, simbólico, é que ele, mestre de palavras, deixa de ouvir palavras importantes.
Afinal, esse é o princípio que será coroado no penúltimo capítulo do livro, o da
transmissão de conteúdo importante (como informação ou por seu impacto emocional), nos
termos mais frios e distantes: o que não daria Poldy para ouvir e depois prontamente
esquecer – o que aquele young man comenta com Mulligan logo cedo?
Na linha 722, por exemplo, a conclusão de todo um tema e de toda uma tensão que
remonta às primeiras páginas do texto, se revela a nós como se vista de quilômetros de
distância.
Stephen handed him the key. Buck Mulligan laid it across his heaped clothes.
62
Como dissemos antes, a palavra final, Usurper (744), cabe a Stephen. Mas de fato,
mesmo que consigamos acreditar na imagem de espoliação que o próprio Stephen, com a
colaboração do narrador, constrói para si, parece que houve realmente uma disputa nesse
primeiro episódio e que, conquanto tenha saído vencedor, Stephen realmente perdeu alguma
coisa. Algumas certezas sobre sua própria consciência e algum gosto na expressão verbal
irrefreada.
Ele está aprendendo a conviver com vozes. Está aprendendo a escrever o Ulysses.
63
B. A estrada Vico, no caminho de Dalkey (um excurso).
Melchiori e de Angelis (2000, p.78) lembram que (algo singular entre as composições
de Palestrina) a missa para o Papa Marcello, citada por Stephen em seu vôo retórico final, é
uma composição para coro a capela. Ou seja, vozes, nada mais, como o próprio texto de
Dedalus comenta. 23 ocorrências da palavra voice neste primeiro episódio, que em 11
oportunidades aparece personificada, substituindo identidades por vozes. Mulligan e Haines,
cada um deles se vê reduzido a uma voz em cinco ocasiões diferentes, com ainda uma
oportunidade em que são os estudantes da reminiscência de Dedalus (de Dedalus?) que
recebem esta honraria.
O texto se refere à voz de Stephen uma vez (188), em que ele se mostra deprimido
por sua própria voz.
Se Harold Bloom, em diversos textos, pôde dizer que o principal diferencial das
personagens de Shakespeare é o fato de que elas sempre se entreouvem, e se Bloom de fato
estará sempre muito atento ao que diz, Stephen, esteta consumado, e simultaneamente esteta
frustrado, deprime-se com sua voz e trata os que o cercam (com a conivência e o auxílio do
narrador que coopta) como vozes, de que lhe cabe se apropriar.
64
C. A ponte (entre a bulha calada e o silêncio ruidoso): Dalkey, dez horas da manhã.
Em vários sentidos o episódio correspondente ao trecho homérico de Nestor é de
fato uma ponte dentro do livro.
Sendo o menor de todos os episódios do Ulysses, e correspondendo ao momento
central da primeira das tríades que organizam o livro, ele é como que uma passagem da
abertura à conclusão de um movimento que, como se de ver, tem muito de prelúdio.
um livro que se encerra com o fim dessa Telemaquia. E talvez nem seja o Ulysses, que, como
a sublinhar a dimensão da apresentação de sua segunda personagem principal, fará no quarto
episódio até mesmo o sol voltar em seu caminho.
E recomeçaremos o dia, começaremos um novo livro, com Bloom e seu café da
manhã.
Não é à toa portanto que se podem separar estes primeiros três episódios do restante
do livro. Eles fazem soar o tema de Stephen que, depois da entrada de Bloom, não mais se
ouvido com a mesma independência, pois, mesmo quando volta a ocupar o primeiro plano,
ele passa a fazê-lo como que contra o pano de fundo muito mais sólido de Poldy. Como
em uma sonata que se abre em tom menor é praxe apresentar na dominante maior o segundo
conjunto de temas, uma mudança de tom com a entrada em cena de Poldy, que enviesará
mesmo as repetições dos temas de Stephen.
Geograficamente, em Nestor saímos de Sandycove para Dalkey, logo ao lado, antes de
irmos para Sandymount, quase em Dublin.
Entre Sandycove e Sandymount, pois: o caminho do vale para o monte.
Psicologicamente, passamos da vida social (afundada entre pares, recôncava entre
paredes) para a vida solitária (como pária, olhando por cima dos ombros dos gigantes)
através de um interlúdio em que é a vida profissional (a ascensão) que se manifesta.
No que de fato nos interessa mais de perto, aqui, é também clara a possibilidade de
vermos uma passagem entre Telêmaco e Proteu.
Proteu como se sabe é uma performance solo de Stephen. Em Telêmaco, como vimos,
desenharam-se as bases de um conflito, de um embate de vozes de que Stephen saiu
provisoriamente vencedor (seu verdadeiro rival nesta luta ainda não surgiu no livro), mas
simultaneamente abalado em suas certezas de domínio psicológico e narrativo.
65
Aqui, livre da oposição direta, da angústia que lhe causa a presença de Buck
Mulligan, sua consciência terá mais espaço para se desenvolver, para agregar motivos e temas
que serão futuramente desenvolvidos, para soltar-se em divagações que pode agora controlar
com mais autoridade. O outro, que se lhe apresenta aqui especialmente nas figuras de Sargent
e do senhor Deasy, é quase como um outro aspecto dele mesmo. Uma possibilidade,
próxima demais como apropriação para gerar repulsa e distante o suficiente como atualidade
para gerar atração.
E mesmo na apresentação desses outros é bífido o episódio. Eles vêm um por vez, em
dois ambientes diferentes, tendo novamente que contar apenas com Stephen para
proporcionar a ponte que une margens etárias, sociais e culturais diversas
41
.
Se vimos um Stephen egoísta e refratário no primeiro episódio, aqui o veremos
solidário e complacente. Mas, mais do que antes, o veremos através de seus próprios olhos.
Veremos o que queira que vejamos. Pois, como já lembra David Hayman (1982, p.94),
Em “Nestor” o narrador se apaga para apresentar tudo pelos olhos de Stephen, agindo
mais enfaticamente como complemento a suas ações. Como resultado, as outras personagens
se transformam no que eram em Um retrato, extensões da experiência de Stephen.
Aprendemos a desconfiar em Telêmaco. É preciso exercer aqui esses dotes
42
.
Pois não é de estranhar que, aqui, até as relações quantitativas se invertam: se antes
tínhamos uma situação em que os monólogos interiores de Stephen, desde a primeira página,
como que abriam espaço a golpes de ombros, e depois com mais naturalidade, entre o
domínio do diálogo, das vozes dos outros, aqui é precisamente o contrário que ocorre logo
41
(Melchiori & de Angelis, 2000, p.80): Pode-se considerar bipartido o episódio: Stephen em sala de aula,
Stephen no escritório do diretor. As duas partes se sucedem sem solução de continuidade e se interpenetram. A
fronteira é feita pelas meditações de Stephen.
42
Como sempre, temos que considerar que os problemas, em Joyce, são mais complexos do que nossas
explicações podem fazer supor a um primeiro olhar. Não se trata afinal, de simplesmente trabalharmos com uma
noção plácida de que o narrador não é confiável como fonte de avaliações e que Stephen (ao menos neste
momento) está por trás de suas posturas. Isso seria subestimar a engenhosidade de Joyce e a profundidade
psicológica de Stephen. Ellman (1972, p.11) já lembrava, assumindo o quadro de valores de Stephen que, cercado
por negadores, ele deve negá-los (...) Ele só pode afirmar por dupla negativa.o há a possibilidade, portanto, de
buscarmos em seus juízos respostas prontas incontestes e incontestadas, afinal, o que Booker (1995, p.63)
afirma a respeito da relação de Joyce com seus predecessores em pastiches e citações vale também, em alguma
medida, para Stephen, especialmente como o veremos neste episódio: ele escreve consideravelmente mais na voz de seus
inimigos do que na de seus aliados.
66
na abertura. Temos um painel totalmente dominado pela voz de Stephen, onde
esporadicamente irrompe a ação externa, quase intrusiva.
Mas, mesmo assim, ele ainda o detém sozinho a primeira palavra. Cinco falas criam,
por assim dizer, um ambiente sonoro (Melchiori & de Angelis, 2000, p.82). Afinal ainda o é o
momento de mergulharmos em vôo solo (com névoa pesada, sem instrumentos) na tortuosa
e torturada consciência de Stephen.
Mas o início deste texto não é de todo desprovido de um ingrediente de queda, de
precipitação.
– You, Cochrane, what city sent for him?
– Tarentum, sir.
– Very good. Well?
–There was a battle, sir.
– Very good, where?
The boy’s blank face asked the blank window.
Fabled by the daughters of memory. And yet it was in some way if not
as memory fabled it. A phrase, then, of impatience, thud of Blake’s wings of
excess. I hear the ruin of all space, shattered glass and toppling masonry, and
time one livid final flame. What’s left us then?
– I forget the place, sir. 279 B.C. (1-11)
Entramos, in medias res, mas entramos guiados pela mão.
Pode-se de pronto reconhecer a situação de sala de aula e, lembrando da menção de
Stephen a um pagamento, que Mulligan nos avisou vir de uma escola, podemos nos situar
rapidamente.
Estão no meio de alguma coisa, o que é mais do que icônico se lembramos tratar-se
de uma aula de história e se soubermos o quanto a história será um tema pesado para
Stephen. Eles estão de fato no meio de alguma coisa.
Fala-se.
Cinco vezes.
Mas quase nada é dito. E o que exista de significado naquelas linhas é desprovido de
efetivo valor comunicativo, o que virá a ser uma constante no episódio, visto pelos olhos de
Dedalus. Recita-se, repete-se. O ambiente sonoro, afinal, será por todo este trecho
67
substituído e superado pelo que em silêncio nos dirá Stephen Dedalus
43
, ele mesmo algo
disposto a desfazer do dito.
That phrase the world had remembered. A dull ease of the mind. (15)
E de pronto um parágrafo que parece (the boy...) provir do narrador, sem contudo
deixar de apresentar as marcas de Stephen (a repetição) e do Livro (o uso de rios sentidos
para uma mesma palavra (blank)), nos leva, novamente como uma ponte
44
, diretamente à
consciência de Stephen, onde também, hélas, nos encontramos in medias res: acompanhamos
em desenvolvimento uma divagação sobre a história e a natureza do tempo histórico que
certamente vinha acontecendo há algum tempo e que agora continua, graças ao mínimo
momento de silêncio propiciado pela incerteza do menino, que provavelmente esperaria que
seu professor, ao invés de se mostrar pronto a se desligar da situação imediata sempre que
pudesse, lhe fornecesse a ajuda que a janela cega não poderia.
Zoom in. Do ambiente sonoro, sentido como intrusivo pelo próprio Stephen, através
do narrador (campo que lhe é mais afim: sendo algo moldado a sua semelhança), para o
meio dos processos da consciência inquieta e irrequieta de Dedalus. De onde não sairemos
mais por todo o episódio
45
.
Se em Telêmaco pudemos ter a clara sensação de que em algumas vezes o monólogo
interior de Stephen chegava a nos privar de algo que acontecia enquanto estávamos ausentes
em sua companhia, era apenas porque ali ainda podíamos presumir que o fundo contínuo era
o da fala, o da ação dos outros, e conseqüentemente podíamos ler como intromissões (algo
mais ou menos benvindas) as digressões de Stephen. Aqui os valores efetivamente se
inverterão e serão as falas de professor (ele também personagem algo alheio a Dedalus ele
mesmo) e alunos que nos parecerão interromper o fluxo contínuo da estória que realmente
tentamos seguir: a das perguntas e (quem sabe?) respostas de Dedalus.
43
Das 449 linhas de texto que compõem o episódio, somente 165 se referem a falas das personagens, de que
poderíamos ainda descontar as onze linhas que são meramente de leitura de um texto literário por um dos
alunos; uma razão de 1:2,72. No primeiro episódio, a razão seria de 1:2,07, sem contar o fato de que teríamos
de levar em consideração que, naquele primeiro episódio, a voz do narrador ainda competia significativamente
com o monólogo interior de Stephen, o que quase não acontece mais aqui.
44
Sem querer acabar com o fôlego da coitada da metáfora, como diria Polônio, uma presença, aliás, muito
adequada a este episódio.
45
Notando também (1982, p.94) a simetria entre este episódio e o dos Lotófagos (central à segunda tríade),
Hayman já comentava que a posição de Stephen aqui era de clara precedência no que se refere a suas voz e reação.
68
Estamos às portas do labirinto do grande artífice, onde entraremos de fato apenas no
próximo episódio. E, aí, o que de vozes ouvirmos serão somente ecos.
E desorientadores.
Tais mergulhos, que partem do mundo audível para, através de uma voz
(putativamente?) narrativa, chegar ao fundo dos emaranhados da mente de Dedalus, não
deixarão de se repetir. Um caso mais sutil (nem a divisão de parágrafos está para nos
orientar, e a diferença entre o narrador e Stephen é cada vez mais uma questão de
interpretação) está ainda na primeira página:
A bag of figrolls lay snugly in Armstrong’s satchel. He curled them
between his palms at whiles and swallowed them softly. Crumbs adhered to
the tissue of his lips. A sweetened boy’s breath. Welloff people, proud that
their eldest son was in the navy. Vico road, Dalkey. (22-25)
A aparente descrição de um fato das circunstâncias vem desde o início matizada. O
saco de doces não está apenas na bolsa do aluno, mas está ali escondido, e é o professor
quem pode vê-lo e julgá-lo sorrateiramente escondido. A voz que sinestesicamente descreve o
consumo também sorrateiro dos doces como algo suave (uma das palavras preferidas do
autor) está mais longe da objetividade contemplativa e mais perto daquela que imagina o
hálito do menino e que, recalcada, pensa na sua família, de gente bem de vida, orgulhosa,
residente à beira-mar.
Conquanto possamos discutir sobre os tons e matizes do início do parágrafo, quando
ele termina estamos definitivamente sendo conduzidos por (e para) Stephen.
Isso, e situações ainda mais diretas em que o domínio da voz de Stephen sobre o
texto simplesmente obnubila e oblitera qualquer outra possibilidade de interesse ou de
convívio (cf. infra) é a amostra do que podemos esperar como tônica, ao menos da primeira
parte do episódio.
It must be a movement, then, an actuality of the possible as possible.
Aristotle’s phrase formed itself within the gabled verses and floated out into
the studious silence of the library of Saint Genevieve where he had read,
sheltered from the sin of Paris, night by night. By his elbow a delicate
Siamese conned a handbook of strategy. Fed and feeding brains about me:
under glowlamps, impaled, with faintly beating feelers: and in my mind’s
69
darkness a sloth of the underworld, reluctant, shy of brightness, shifting her
dragon scaly folds. Thought is the thought of thought. Tranquil brightness.
The soul is in a manner all that is: the soul is the form of forms. Tranquility
sudden, vast, candescent: form of forms. (67-76)
São dez linhas de puro vôo, de memória, de inquirição, de elaboração de estilo. Tudo
isso enquanto um aluno recita, repete, lê, sem sequer ter decorado, como deveria, o texto em
questão: ele espia em um livro que acredita estar fora do campo de visão do professor. E é
interessante repisarmos a elaboração de estilo. Stephen, o autor frustre, mantém a imagem da
autoria (da autoridade?) sempre diante de seus olhos; ele elabora cuidadosamente suas frases.
Repetimos, muito pouco há ali de fluxo.
Fala-se pouco neste momento simplesmente porque não muito o que dizer; uma
situação que nos lembra que se esta ponte nos traz do mundo social de Telêmaco, não
podemos esquecer também que seu destino final é a palavra muda, solitária, verborrágica e
contida de Proteu. Stephen começa a desenvolver mais seriamente uma relação ambígua, de
desconfiança e de algum desprezo pela palavra efetiva, que o vimos criar no episódio
anterior.
(O que nos levará a um pequeno excurso. Mas ainda não, porque o parágrafo acima
ainda tem o que nos dizer.)
Afinal, se estamos acostumados (cada vez mais) às digressões de Stephen e ao fato de
que (cada vez mais) a voz narradora parece estar a serviço dele, e dessas digressões, temos
aqui uma situação algo diferente da que nos foi primeiro apresentada aqui nesta sala de aula.
Se tivemos antes o narrador servindo como passagem do mundo exterior para a
consciência de Stephen, a passagem agora é brusca; a única transição é gráfica. O menino
está lendo e, depois de reticências, nos vemos em um novo parágrafo, em tudo e por tudo
isolado do resto, embora ligado a o que podemos imaginar seja uma reflexão contínua de
Dedalus, sobre a natureza do tempo e da história. E nos vemos diretamente ouvindo Stephen.
Mas, imediatamente depois, a voz narradora toma posse do texto, tingindo-o de
terceiras pessoas, sem que, no entanto, nos afastemos do conteúdo ou da forma das
reflexões e das memórias de Stephen.
Essa inclusão da voz narrativa no monólogo de Stephen simboliza muito bem a
definitiva cooptação. Ela, que esteve desde o início a serviço de dois mestres, a esta hora da
70
manhã se mostra absolutamente assujeitada por um deles. A serviço, ela realmente cumpre
uma função dentro da fala de Stephen.
Mas não é assim tão simples. Porque, se a uniformidade estilística o nos faz saltar
aos olhos a diferença dessa interrupção em relação ao resto do texto, aos pensamentos de
Dedalus, não podemos deixar de levar em consideração que se trata de uma interrupção.
Precisamente como a leitura do menino é cortada, suspensa pela voz interior de Stephen, sua
reflexão é interrompida por este trecho que quase podemos dizer que cumpre uma função de
narrador, efetivamente, ao trazer à tona o passado da personagem.
A serviço?
Ora. Talvez se possa dizer que a intromissão da voz narradora configure uma
tentativa de imposição.
Que se resolve, no entanto, como? Como uma ríspida retomada das primeiras
pessoas que, rapidamente, fazem a ligação entre a biblioteca e a sala de aula, ambos
ambientes em que cérebros se nutrem, e permitem ao mestre-escola retomar sua divagação,
afirmando sua ascendência e seu controle sobre a voz que autônoma deveria ser e que
deveria narrar com autonomia.
Stephen reafirma seu controle, mais do que do tom dessa voz, de seus recursos. Pois
o tempo narrativo também se expande a suas ordens. Toda essa reflexão e esse diálogo entre
Stephen e narrador, ou entre Stephen em primeira e terceira pessoa, aconteceu durante a
leitura de meros cinco versos do Lycidas de Milton e foi interrompida porque o aluno se
perdeu, tentando ganhar tempo para virar a gina, fato que, como tantos outros, somos
levados a apenas deduzir
46
.
Hayman, novamente, falando sobre a imagística de todo o episódio, também notava
(1982, p.94) que o fluxo de consciência (sua expressão) de Stephen era aqui tão organizado e
tão pleno de referências históricas (o que ele ressalta ser adequado ao cenário educacional de
todo o trecho), que ele parece de fato dominar até o maquinário sugestivo de Nestor.
Stephen esno controle, portanto. Mas ainda tem que conviver com o outro. Suas
reflexões são interrompidas por vozes. Vozes com que temos que lidar.
46
Tenho consciência de que aqui, como em não poucos outros momentos, descrevo fatos que não são
exatamente novos ou inusitados na teoria literária por vezes mais chã. No entanto sinto que preciso fazê-lo até
porque os textos de teoria literária, quando se estendem sobre essas possibilidades, o fazem tratando-as como
potencialidades, escolhendo a seu bel-prazer seus exemplos e, de regra, quando se debruçam sobre os textos
tendem a não se deter sobre tarefas meniais, ancilares, em suma, pequenas como essa. O que é de gosto é
regalo da vida.
71
Daqui para a frente, teremos imensa dificuldade em separar toda e qualquer invenção
pura do narrador das intenções e dos tons de Stephen. O narrador, ao menos por enquanto,
estará totalmente submisso, a não ser em momentos de quase pura funcionalidade, quase
rubricas de teatro, em que se descrevem movimentos e ações, usualmente de maneira muito
breve.
He dried the page with a sheet of thin blotting paper and carried his
copybook back to his bench. (176-7)
In the corridor his name was heard, called from the playfield. (181)
Muito embora se possa sem muita dificuldade argumentar que a menção à espessura
(e conseqüentemente ao preço) do mata-borrão caiba muito bem no quadro dos sentimentos
que o convívio com o menino está despertando em Stephen, novamente levado a pensar em
seu passado. E embora possamos pensar que a sintaxe enviesada do segundo exemplo seja
também bastante verossimilmente imputável a Dedalus.
Apesar de não estarmos propondo uma discussão que extrapole desnecessariamente
o limite da forma, é preciso lembrar aqui que esses sentimentos de Stephen, a que nos
referimos acima, são questão bastante discutida. Nestor parece ser o único trecho do livro em
que vemos Stephen sob uma luz mais caridosa e humana. Se, de nosso ponto de vista,
poderíamos talvez pensar que isso se deve simplesmente ao fato de que aqui estamos
comprando de Stephen uma versão que ele tem de si mesmo, e que em Proteu estaremos
tão perto de sua consciência que poderemos ver também o que ele não planejaria mostrar,
outras discussões se estendem muito mais sobre o assunto. E ao menos uma delas emprega,
ou declara empregar, a letra do texto como meio de argumentação.
Cabe aqui, portanto, discutirmos com Epstein (1970, p.18), que, em trecho de sua
leitura do episódio, parece se esforçar por afirmar essa bondade de Stephen e declarar o
contrário do que nos parecia virmos descobrindo a respeito da inseparabilidade das vozes e
dos tons de Stephen e do narrador, ao tentar separar intenções e avaliações. Vejamos
primeiro seu texto.
uma insinuação de desaprovação no adjetivo illdyed’ aplicado ao cabelo do senhor
Deasy, mas provavelmente ele não deve ser lido assim; mais provavelmente, ele é uma
descrição metafórica do louro manchado envelhecido do senhor Deasy do que uma
72
insinuação de alteração cosmética. Outros epítetos levemente pejorativos aplicados a ele nas
páginas anteriores se referem a sua passagem irritadiça através do campo de futebol, a seu
hábito de falar sem ouvir e a sua ‘old man´s voice’, todos na página 29, mas estes não são
comentários de Stephen sobre ele; são inserções autorais.
Cito agora os trechos a que se refere.
Their sharp voices cried about him on all sides: their many forms
closed round him, the garish sunshine bleaching the honey of his illdyed
head. (196-98)
He [Stephen] stood in the porch and watched the laggard hurry towards
the scrappy field where sharp voices were in strife. They were sorted in teams
and Mr Deasy came away stepping over wisps of grass with gaitered feet.
When he had reached the schoolhouse voices again contending called to him.
He turned his angry white moustache.
– What is it now? he cried continually without listening. (193-8)
And as he stepped fussily back across the field his old man’s voice
cried sternly. (193-4)
Primeiro de tudo, temos que convir que, apenas usando os trechos a que recorre o
mesmo autor (todos eles retirados da apresentação da personagem, por assim dizer: do
momento em que somos pela primeira vez confrontados com sua presença), somos capazes
de ali reconhecer algo mais do que aquelas poucas alusões possivelmente hostis. Ele tem um
bigode furioso, grita continuamente sem ouvir, caminha irritado e berra severo com sua voz
de velho.
Curiosamente (ou idiossincraticamente, o que é apenas a mesma coisa com outras
roupas), acho mais fácil ver alguma má-vontade na descrição de uma fala como consistindo
de um grito severo do que em alguém como tendo uma voz de velho. O senhor Garrett Deasy,
saberemos em breve (269) declara se lembrar da fome de 1846, o que nos faz pensar que ele
tenha algo mais que 60 anos, o que, em 1904, (quando um homem como Bloom, aos 38,
pode parecer maduro, e quase velho) era de fato idade avançada. O próprio autor do Ulysses
não viveria para chegar aos sessenta. Parece bastante natural que Deasy tenha a voz de um
velho.
É fato (17.1723-4) que Stephen tem uma repugnância até física pela velhice e pela
decadência do corpo. Mas ainda não sabemos disso direito neste momento, e este dado não
me parece necessário para que a referência àquela voz de velho seja compreensível.
73
O único parágrafo mais longo, dentre esses três, começa como que se destacando da
consciência de Stephen, sem contudo, como é de praxe, abandonar seu estilo e suas
referências: as vozes que o parágrafo descreve como estando em combate ecoam previamente
os pensamentos de Stephen quando, ouvindo as mesmas vozes, ele se solta em uma
divagação que, longe de ser a única no capítulo, apresenta uma imagística bélica e violenta,
lembrando ao leitor que a composição do episódio se deu durante a primeira guerra mundial.
Shouts rang shrill from the boys playfield and a whirring whistle.
Again: a goal. I am among them, among their battling bodies in a
medley, the joust of life. You mean that knockneed mother’s darling who
seems to be slightly crawsick? Jousts. Time shocked rebounds, shock by
shock. Jousts, slush and uproar of battles, the forzen deathspew of the slain, a
shout of spearspikes baited with men’s bloodied guts. (313-18)
Ou, ainda, as imagens também algo violentas com que o recalque de Stephen
pensava ver uma superioridade de experiência (sexual?) em seus alunos.
Some laughed again: mirthless but with meaning. Two in the back
bench whispered. Yes. They knew: had never learned nor ever been innocent.
All. With envy he watched their faces: Edith, Ethel, Gerty, Lily. Their likes:
their breaths, too, sweetened with tea and jam, their bracelets tittering in the
struggle. (34-8)
É a ele, sem dúvida, que pertence tal comentário. Não sei com que meios
poderíamos dizer que alguns outros, como aquele a respeito da voz, não devam ser também.
E muito menos como afirmar categoricamente que não o são.
Ou pensamos que Epstein es trabalhando com um autor muito mais cheio de
poderes e ingerências do que aquele que até aqui nos tem sido dado ver atuar (um autor pré-
Ulysses?) ou aceitamos que, empenhado em demonstrar um fato de conteúdo
(nomeadamente: a boa-vontade de Stephen durante o episódio), ele parece não ter se dado
ao trabalho de justificar suas afirmações.
O fato, que já parece inquestionável, é que essas meras trinta páginas, que compõem
os dois primeiros episódios da primeira parte do romance, partiram de terreno conhecido
e estável para, quase imperceptivelmente (a sutileza é sua principal arma), armar um caos que
se aproxima da impossibilidade.
74
Poderíamos passar páginas (e não o estamos fazendo?) discutindo a verdadeira
procedência e a verdadeira autoridade por trás de tal ou qual passagem.
Stephen, a voz de Stephen, conseguiu desestabilizar nossa leitura da voz narrativa a
tal ponto que agora temos grande dificuldade em sequer voltar a conviver com ela nos
termos antigos. E essa situação fará se complicar no próximo episódio, afinal, sozinho,
Stephen poderá colocar em ação todo o contraponto de vozes que ele inclui em si mesmo.
Ainda aqui (231), tal baralha de vozes ouvidas, relembradas e citadas começa a incluir
também uma outra voz do livro (voz do narrador, voz do autor?) e, especialmente, a incluir
o leitor e seus procedimentos.
Muito suavemente: a sutileza é sua principal arma.
Não podemos esquecer que toda essa fusão de vozes, inaugurada por aquela boca de
ouro logo na primeira página, depositou mais e mais peso, mais e mais responsabilidade,
sobre o leitor. Estamos aprendendo a ler o Ulysses, e estamos aprendendo muito rapidamente
que a passiva postura do leitor de romances anteriores a 1922, que recebe e contempla uma
estória, que convive com um racconteur durante algumas centenas de páginas, simplesmente
não dará conta da leitura deste livro.
Tenho certeza de que muitos leitores de romances vão a um livro o meramente pela
estória mas pela companhia de quem conta a estória: querem um amigo com um
conhecimento do mundo algo maior que o seu [...] Nas obras de Dickens, George Orwell
via um rosto:
É o rosto de um homem de cerca de quarenta anos, com uma pequena barba e
uma tez viva. Ele está rindo, com um toque de raiva em seu riso, mas sem
triunfo, sem malignidade. É o rosto de um homem que está sempre lutando contra
alguma coisa, mas que luta em campo aberto e não teme, o rosto de um homem
que é generosamente raivoso: em outras palavras, de um liberal do século
XIX, uma inteligência livre, um tipo odiado com igual violência por todas as
ortodoxiazinhas fedorentas que hoje disputam nossas almas.
Rosto algum resplende através dos romances de James Joyce, e isso é perturbante. Ele é
limado de sua própria criação, como é limado da de Deus, e não tem nada a declarar sobre
qualquer dessas coisas. Ele não pode ser recrutado pela causa do nacionalismo irlandês, do
fascismo ou do comunismo, embora (como Shakespeare, um homem legitimamente sem-rosto
porque escrevia peças e não romances) ele tenha sido invocado em nome de todas as
75
ideologias. Talvez, entre os romancistas, Flaubert se aproxime dele em auto-
apagamento
47
.
Rosto algum.
E isso é incômodo.
O leitor precisa dar conta de suprir por si próprio as lacunas deixadas pelo silêncio
de seu companheiro contador
48
. Impressões, rubricas e mesmo fatos não são fornecidos com
a mesma generosidade automática e transparente de outros tempos.
Com grandes poderes vem grande responsabilidade. E o leitor não pode deixar de
verificar o inverso. Crescendo sua responsabilidade sobre a composição da obra, crescem
também seus poderes, e ele pode ingerir mesmo onde, a princípio, possa-se argumentar que
não foi chamado.
E quando, diante de um comentário qualquer de Deasy, Stephen percebe que precisa
encetar um diálogo (ele precisa falar e, fora da sala de aula, onde os modelos lhe eram
fornecidos pela situação, parece-lhe difícil aceitar essa situação meramente social, este falar
sem dizer. Mais adiante (277) será somente com um gesto, breve e esboçado, que ele dará
sua réplica, ou (281) com um Alas.
49
), quem não se sente tentado a ver alguma ambigüidade
de procedência na voz que, em parágrafo isolado, apenas comenta?
Answer something.
Stephen, dirigindo a peça de si mesmo
50
, e dizendo-se o que fazer, ou a simpatética
voz narradora que, preocupada, se dirige a ele, quase como o tolo espectador da pantomima
muda
51
?
Muda, pois ele de fato quase não fala depois de sair de seu papel de professor.
47
Bom momento para que se diga com todas as letras que estamos (e como poderia ser diferente, ainda é de
manhã cedo?) especialmente buscando elementos que fomentem discussões mais definitivas, daí certa
inconstância terminológica e uma constante semeadura de dúvidas. Tanto a diferença de estatuto entre o
dramaturgo e o romancista (especialmente entre este dramaturgo e este romancista), quando a diferença entre o
apagamento flaubertiano e o joyceano são questões que não poderemos escapar de discutir mais extensamente (e
que mal posso esperar por fazer), mas que ainda não cabem no incipiente quadro que desenhamos.
48
Em que medida o apagamento do narrador em Joyce se aproximaria do quadro descrito por Benjamin,
pensando exatamente neste momento do pós-guerra?
49
E da linha 281 até a 359, Stephen permanecerá basicamente calado, apesar de seu monólogo interior correr
solto, e do senhor Deasy falar nada menos que dez vezes, inclusive se dirigindo a ele com duas perguntas
(retóricas?).
50
No nono episódio (9. 114) veremos citado o trecho de Mallarmé que cita Hamlet lendo o livro de si mesmo.
51
Hayman comenta de passagem que arranger é também aquele que monta as peças do teatro de bonecos.
76
Depois da linha 184, quando o último aluno se afasta e ele se sozinho com o
diretor, durante todas as 266 linhas que seguem, ele pronuncianão mais que 113 palavras,
respondendo com silêncio, com frases de efeito, com gestos e exclamações às 952 (!)
palavras do senhor Garrett Deasy, que, ele sim, se demonstra um verdadeiro virtuose na
conversa, no bate-papo, no falatório que, para Stephen, parece se aproximar do silêncio.
Pois ele tece perguntas retóricas e aporias, ordens a suas teclas, perora, cita e
chega mesmo a responder (cabe ao leitor novamente decidir) a uma pergunta que Stephen
(ou o narrador? os nós estão apertados..) nem chegou a formular.
And here what will you learn more?
Mr Deasy shook his head.
– Who knows? he said. [...] (404-6)
Stephen, dono de sua palavra, altamente elaborada, grileiro bem-sucedido de uma
outra voz, a voz do livro, está realmente cansado de palavras. Dono do livro neste momento,
ele concede com facilidade a palma da situação ao senhor Deasy, seguro de sua superioridade
em um plano mais alto.
A cumplicidade de personagem e livro agora está mais instrumentalizada (e diante de
um inimigo mais fraco) para fazer suas vítimas. O senhor Deasy é o único covardemente
excluído do conhecimento da verdade a respeito daquele diálogo.
Dedalus e o leitor detêm a verdade. Que foi muito além das palavras ali pronunciadas.
E que é a verdade de Dedalus, a verdade do dédalo que triunfará no episódio seguinte.
77
D. Não gosto dessas palavras grandes, conchas ocas, símbolos conspurcados (um grande excurso montado em
retalhos).
Pensando em características básicas da psique de Dedalus e em alguns elementos
fundamentais do enredo do romance, pudemos ver no primeiro episódio que alguns
desses traços se encontravam como que iconicizados na tessitura formal do romance.
Assim, se a imagem de Dedalus como espoliado (il figlio spodestatto alla lotta, como
Joyce mesmo anotava) é um traço de conteúdo, pudemos encontrá-la, ainda assim,
plenamente representada na forma do texto. Se sua situação de pária frente à sociedade e à
igreja católica é elemento determinante de suas ações e do que pensa de si mesmo, pudemos
encontrar tudo isso espelhado em sua relação com as vozes (especialmente a de Muligan) e
na presença de pastiches e citações.
Aqui, em Nestor, tentaremos agora em alguma medida observar a estreitíssima relação
forma-conteúdo de Joyce na mão inversa.
No enredo da tragédia de vozes que queremos observar, parecemos estar em um
trecho de suspensão, em que o problema está plenamente colocado, mas ainda não resolvido
(por mais que sejam sempre provisórias as soluções que por enquanto se possam encontrar).
A tensão, portanto, é maior. A palavra, logo, será também tematizada no nível do conteúdo.
E Stephen lembra algo cinicamente que da frase atribuída a Pirro as pessoas não se
esquecem, porque, frase feita, representa um alívio opaco para a mente; uma imagem de
poder, que faz com que todos ouçam. É o domínio da palavra de Pirro que faz dobrarem-se
os alunos, interessados, não o domínio dos fatos. É a palavra congelada, anestesiada, morta
em frase-feita, que interessa aos alunos, em um domínio (a sala de aula) por si mesmo tão
propício ao diálogo de surdos.
E esta possibilidade de ação sobre o outro via palavra é como que testada por
Stephen (39-40) que com um mot d’esprit sente, no entanto, ter gerado exatamente a sensação
contrária em seus alunos.
– Kingstown pier, Stephen said. Yes, a disappointed bridge.
The words troubled their gaze.
E, logo de início, o problema está colocado, pois não é apenas a relação de Stephen
com as palavras que será questionada aqui. Também, e em vários momentos especialmente,
78
será a opinião, a relação alheia com a palavra que será medida e questionada. Pois, se as
crianças, como boa parte dos adultos, querem das palavras alívio fosco, afirmação cega,
apoio incondicional e o questionamento, dúvida, aguilhões, outros públicos há, os bufões,
os literatos, que podem ter interesse precisamente por isto. E ele pensa que deve guardar
aquelas palavras para Haines e seu espicilégio de ditos irlandeses. Palavras são instrumentos,
portanto.
Mas vive ele também não só da palavra como entre palavras, palavras dos que o
cercam, como vimos, como vemos, e palavras que também o formaram, como a frase de
Aristóteles que espontaneamente se forma dentro dos versos que o aluno repete.
Se Talbot lê Milton sem ouvi-lo, Stephen ouve Aristóteles mesmo sem querer.
Diálogos diversos.
Este, o de vozes ativas, que se questionam e geram sentidos novos; aquele, de uma
mão, servil mesmo sem saber-se, em última instância, dogmático ao repetir sem sequer
compreender. Novamente como o catolicismo, cujos enigmas ele como uma adivinha a ser
tecida nos teares da igreja (97).
Domine a palavra e será senhor do mundo. No princípio era o verbo, que se
materializou no mundo como boa-nova.
Seguindo-se a isso, Stephen se entrega a verdeiras adivinhas, lembrando que, se suas
digressões são encharcadas de referências eruditas, os textos citados ou evocados durante
este episódio todo serão cantigas, adivinhas, textos populares, como que a democratizar o
mesmo questionamento.
Mas Zack Bowen (1970, p.72), citando Weldon Thornton (s.p.), fornece o restante
do texto, que Stephen omite. Trata-se de uma adivinha sobre uma semente negra em um
campo branco, cuja resposta seria escrever uma carta, numa omissão que Thornton julgaria não
desprovida de importância, por trazer à tona a angústia de Stephen como autor, como mestre
de palavras. E, além disso, diríamos nós, haverá mesmo uma carta ao final do episódio, e o
trecho faltante dos versos será ao menos evocado no episódio seguinte (3.415).
Stephen, se tem problemas com a letra escrita, na primeira vez em que o vemos,
oralmente, en auteur, inventando (102-7), sobre um molde conhecido (Gifford, 1989, p.33),
também uma adivinha para seus alunos, se mostra simultaneamente torturado e irônico. Suas
79
palavras ali não têm nada da domesticidade atenuada dos textos feitos e têm muito pouco da
lâmina aguçada da palavra (cri)ativa.
Pois se sua adivinha está excessivamente impregnada de uma simbologia cerrada que
se refere a suas próprias angústias, a sua própria vida (eis o enigma que autor do Ulysses teve
de decifrar, a tensão entre vida e obra, cf. Proteu), ela é também uma piada sarcástica, por ser
absolutamente indecifrável, a não ser, como lembra Gifford, por quem já conhece a resposta.
Galimatias simples, ela, acima de tudo, frustra as expectativas dos alunos, por escapar dos
moldes em que foi anunciada.
Palavras vãs, para os alunos. Enigmas dispostos, propostos a um leitor que não se
furtará a esmiuçar a vida do autor para esclarecer seus significados. Qual é o limite entre o
obscuro e o abstruso?
Afinal, os livros o estão acima nem além do embate de palavras de que falamos.
Afinal nem os números escapam do cinismo de Stephen, e a palavra faz como que se movam
e dancem sobre a página (155-7).
A palavra molda o mundo. A palavra tolda o mundo.
E, para Dedalus, por exemplo, a melhor maneira de compreender a complicada
relação mãe-filho, que o obceca durante todo o dia, é sintetizá-la em um quase trocadilho, na
ambigüidade da construção genitiva latina
52
. Dar um nome é tomar posse.
Amor matris
: subjective and objective genitive. With her weak blood and
wheysour milk she had fed him and hid from sight of others his
swaddlingbands. (165-7)
E é nesse mundo de complexa relativização do reconhecido poder do verbo que
entra, como um dicionário, pleno de certezas e de palavras de ordem, o senhor Garrett
Deasy que, muito significativamente, gritava continuamente sem ouvir (189), sem ver,
conseqüentemente, o que acontece no mundo a sua volta. Não adianta nem mesmo Stephen
informar-lhe o que está havendo: uma confusão na distribuição dos times de hóquei;
Cochrane e Halliday estão no mesmo time. Ele continua sem ouvir, gritando a mesma
pergunta. O que está havendo?
52
Usualmente ilustrada em sala de aula, talvez não seja inútil observar, com o sintagma amor Dei.
80
É preciso ouvir. Precisamente porque sabemos da pouca importância que têm as
palavras e da ínfima importância que tem todo o resto, se comparado a elas. O artista é
precisamente quem as pode manejar, fazê-las dançar e comover, manipular os que o ouvem.
Por saber-se senhor delas.
Daí o dilema de Stephen, que se sabe artista.
As pessoas dão muito pouca importância às palavras: as palavras são tudo o que
temos, falava, sozinho, o alter-ego de Nanni Moretti em Palombella rossa. Parece ser o destino
de quem reconhece a importância do verbo: o monólogo, resultado do desprezo pela palavra
que se julga autêntica, sendo ela composta de outras; do desprezo pela palavra que é vácua e
que cede à autoridade, da outra, dos outros, sem resposta; do desprezo pelas palavras
grandes que nos fazem tão infelizes (164).
E é por isso que, ao ver a manipulação, por ignorância tácita e muito difundida, que
Deasy tenta operar através da palavra, Stephen imediatamente o corrige, em uma correção
que é também uma resposta, e uma reafirmação da importância da palavra do outro, se
adequadamente assimilada.
If youth but knew
. But what does Shakespeare say?
Put but money in thy
purse
.
– Iago, Stephen murmured. (238-40)
O ditado popular da primeira frase (alívio para a mente) cabe bem na boca do senhor
Deasy, que afirmará truísmos como é preciso ser humilde para aprender, mas a vida é a grande escola
(406-7). Mas ele incorre em pecado contra a luz quando cita um homem, Iago, acreditando
citar um artista. E Stephen, algo resignado, murmura, como que para si mesmo novamente, a
correção que restabelece ao menos para ele mesmo o equilíbrio. E nunca é demais lembrar
que o refrão de Iago é constantemente repetido (Othello, I, iii) em um momento em que ele
pretende unicamente manipular seu ouvinte.
Deasy, como Roderigo, é vítima da incompreensão dos sentidos mais fechados da
palavra. Ouvem ao pé da letra, buscam consolo fácil na verdade pronta. Não ouvem de fato.
Garrett Deasy não ouvidos, ele deblatera sem ouvir, foi assim que ouvimos falar
dele pela primeira vez.
81
Sua palavra, conseqüentemente, pode mesmo conter informação valiosa, mas é
tratada com a leviandade com que tratou as outras. Stephen, por tudo que sabemos, não lerá
de fato durante todo o dia a carta que o diretor da escola lhe entrega para que tente publicá-
la. E nós, limitados a ver o que ele vê, temos dela somente um relance que, contudo, basta
para apresentar seu conteúdo. É a palavra disforme, oca, que, como a dos meninos em sala
de aula, não interessa ao artista por sua platitude de ressonâncias.
May I trespass on your valuable space
53
. That doctrine of
laissez faire
which so often in our history, Our cattle trade. The way of all our old
industries. Liverpool ring which jockeyed the Galway harbour scheme.
European conflagration. Grain supplies through the narrow waters of the
channel. The pluterperfect imperturbability of the department of agricuture.
Pardoned a classical allusion. Cassandra. By a woman who was no better than
she should be. To come to the point at issue
54
.
– I dont’t mince words, do I? Mr Deasy asked as Stephen read on
55
.
Foot and mouth disease. Known as Koch’s preparation. Serum and
virus. Percentage of salted horses. Rinderpest. Emperor’s horses at Mürtzteg,
lower Áustria. Veterinary surgeons. Mr Henry Blackwood Price. Courteous
offer a fair trial. Dictates of common sense. Allimportant question. In every
sense of the word take the bull by the horns. Thanking you for the hospitality
of your columns. (324-337)
Mas, na oportunidade em que Deasy parece disposto a ouvir, em que o próprio
Stephen reconhece que ele quer ouvir algo de seu contratado (376) é com uma frase de efeito
que Stephen responde, bem como (386) será com outra, e mais críptica, frase de efeito que
ele responderá à mais séria das perguntas, de Deasy ou de qualquer outro. Ele, reconhecendo
o pecado, não reconheceu ainda a generosidade que o possa superar. Ele se nega ao diálogo.
Stephen é um mau poeta (veremos em Proteu) como Joyce era. Ele está agora, às dez
horas da mando dia em que se escreverá o Ulysses tendo que aprender a conviver com a
multiplicidade de vozes que o cercam, que ele deve representar e a que deve responder com
generosidade e franqueza. Com respeito.
53
Perceba-se o cinismo dessa primeira frase, quando lida por Stephen, e pelo leitor de Ulysses.
54
E não é sem tempo.
55
E lá está ele invadindo um espaço (mais precisamente um tempo) precioso. E lá está ele se expondo, sem
saber, ao cinismo de Stephen e de quem arranja os momentos de intersecção das vozes. Ele diz que não mede
palavras quando Stephen ainda nem conseguiu chegar ao tema de sua carta.
82
De início ele parecia revoltado com a possibilidade de que essas outras vozes
disputassem com ele o espaço privilegiado de que dispunha, revoltado a ponto até de
questionar sua própria voz. Aqui, mais seguro, confrontado com outros mais simples, mais
chãos, ele pode se reafirmar sem se ver de fato questionado em sua soberania.
O que se apresenta para ele como questão aqui é qual importância dar às palavras, e
ao silêncio. Quanto de flatus vocis nas palavras, palavras, palavras, que lemos e ouvimos, e
quanto há de epifânico no verbo efetivamente compreendido e assimilado.
Os meninos apenas repetem Milton. O senhor Deasy meramente se apropria de
Shakespeare e dos provérbios, que, afinal, estão para isso. É algo mais complexo que isso
o que parece apontar no horizonte de Dedalus como uma solução e uma resolução, e algo
que em alguma medida iconiza e em outros aspectos amplia a discussão calada que vinha
se passando entre sua voz e a voz do autor, ou do narrador, desde que se abriu o livro. O que
é a palavra, ativa, poderosa, e o que é a fala, passiva, inane?
E é se afastando novamente, novamente se distanciando de pessoas que viraram
apenas vozes, e convivendo com vozes que conhece tão bem a ponto de prever, que ele
rumará para a solidão em que terá de reorganizar tudo isso em sua cabeça.
He went out by the open porch and down the gravel path under the trees,
hearing the cries of voices and crack of sticks from the playfield. The lions
couchant on the pillars as he passed through the gate: toothless terrors. Still I
will help him in his fight. Mulligan will dub me a new name: the
bullockbefriending bard. (427-31)
(E, mais significativo ainda, isso o é ainda o fim. Deasy ressurge, com mais uma
piada, mais um lugar-comum, mais uma intromissão em um domínio valioso...)
83
E. Trezentos, sou trezentos e cincoenta: praia de Sandymount, 11 horas da manhã
56
.
Ineluctable modality of the visible: at least that if no more, thought
through my eyes. Signatures of all things I am here to read, seaspawn and
seawrack, the nearing tide, that rusty boot. Snotgreen, bluesilver, rust:
coloured signs. Limits of the diaphane. But he adds: in bodies. Then he was
aware of them bodies before of them coloured. How? By knocking his sconce
against them, sure. Bald he was and a millionaire,
maestro di color che sanno
.
Limit of the diaphane in. Why in? Diaphane, adiaphane. If you can put your
five fingers through it it is a gate, if not a door. Shut your eyes and see.
Stephen closed his eyes to hear his boots crush crackling wrack and
shells. You are walking through it howsomever. I am, a stride at a time. A very
short space of time through very short times of space. Five, six: the
Nacheinander
. Exactly: and that is the ineluctable modality of the audible.
Open your eyes. No. Jesus! If I fell over a cliff that beetles o’er its base, fell
through the
Nebeneinander
ineluctably! I am getting on nicely in the dark.
My ashsword hangs at my side. Tap with it: they do. My two feet in his boots
are at the ends of his legs,
nebeneinander
. Sounds solid: made by the mallet
of Los
demiurgos
. Am I walking into eternity along Sandymount strand?
Crush, crack, crick, crick. Wild sea money. Dominie Deasy kens them a’.
Won’nt you come to Sandymount,
Madeline the mare?
Rythm begins, you see. I hear. Acatalectic tetrameter of iambs
marching. No, agallop:
deline the mare.
Open your eyes now. I will. One moment. Has all vanished since? If I
open and am for ever in the black adiaphane.
Basta!
I will see if I can see.
See now. There all the time without you: and ever shall be, world
without end. (1-28)
É com isso, com esse bloco de texto e esse nível de dificuldade, que depara o leitor
que, algo arduamente, tentou aprender com o livro e compreender os processos que se
vinham desenvolvendo desde a primeira página. Aquele leitor que viesse até aqui fazendo
força para fechar os olhos e ler o romance como se fosse um outro qualquer certamente há
de tomar susto ainda maior.
Se, como vínhamos insistindo, Stephen não teve a primeira palavra (ao menos não
em seu monólogo: a primeira palavra de Nestor é um bordão de seu personagem) em
56
Acredito que o capítulo de Proteu do Ulysses nos mostra Stephen começando a perceber que se algum dia
tiver que se transformar em um artista de verdade e não um diletante engenhoso, ele precisa provar da besta.
Até aqui ele esteve tentando evitar a diferença. [...] Desse capítulo ele não sairá bem-sucedido. Stephen Dedalus
nunca sairá bem-sucedido. Somente Joyce sairá. (Morse, 1974, p.30-1)
84
nenhum dos dois episódios anteriores, aqueles em que ele de um jeito ou de outro veio
aprendendo a tentar lidar com a alteridade, agora é no meio de sua voz que nos vemos
lançados sem qualquer preparação e sem qualquer tipo de reparação posterior. Se na abertura
da cena da sala de aula tivemos de contar com as evidências que vínhamos coletando para
situar situação e falantes, em muito pouco ajudados pelo narrador, quem quer que fosse, aqui
a situação é paroxística.
Quase podemos imaginar a esperança que se desenha, ao fim da primeira linha, de
ver aquele thought, continuado por um Stephen. E aí estaríamos em casa.
Mas não só isso não acontece como o que segue é ainda mais confuso e complexo. A
bem da verdade, como Burgess comenta (1965, p.84), os verba dicendi do narrador do
Ulysses tendem a ser precisamente isso, verbos de dizer. Eles nunca comentam a fala e, mais do
que isso, seria quase impossível imaginar no livro a ocorrência de um he thought. Para a
expressão dos pensamentos o autor desenvolveu meio muito mais refinado. Para quase tudo
ele desenvolveu meios mais refinados, afinal, pois ninguém jamais ultrapassou a habilidade de
James Joyce em elaborar limites plausíveis para a competência expressiva (Kenner, 1987, p.9).
Esperança, se houvesse, era vã.
Estamos presos dentro da consciência de Dedalus, que não pretende nos ajudar
muito a compreender o que se passa. trechos do episódio que, a hoje, despertam
controvérsia sobre seu significado. Afinal, Stephen se masturba ou não nas pedras da praia
57
?
Em Telêmaco, o início, o primeiro contato, tivemos cuidado em seguir linearmente o
texto, providenciando o máximo possível de exemplos para embasar o que pretendíamos
apenas começar a discutir.
Em Nestor, mais situados, e mais acostumados a ver o que a análise detida de
fragmentos poderia nos mostrar, aproveitamos a natureza bífida do episódio e montamos
uma argumentação fendida, centrada em desenvolver mais do que em mostrar.
Aqui, chegamos ao ponto de conclusão desta nossa Telemaquia. O primeiro
conjunto de temas deve ter aqui algum tipo de amarramento formal, ainda que estejamos
57
Esse enigma, por sua vez, depende também da ambigüidade na atribuição das vozes no texto. Afinal, as
palavras em (334-6) podem ser atribuídas à moça que Stephen imagina, e estarem recheadas de ironia, ou
podem se referir a ele mesmo, plenas de desejo (cf. Morse, 1974, p.39).
85
muito distantes de poder pensar em qualquer tipo de conclusões. Além disso, trata-se de um
dos episódios mais formalmente complexos, junto com as Sereias e o Gado do sol, de todo um
livro em geral já nada simples, e comentar linearmente, seqüencialmente, extratos de texto,
sem um propósito prévio, nos deixaria perigosamente próximos de ter de glosar o enredo,
caso a caso.
Mais que isso, o acredito seja uma traição dos princípios que pretendemos seguir
se resolvo começar esta análise declarando em busca de que tipo de coisas estou. As
perguntas, as dúvidas, emanaram todas da leitura dos dois primeiros episódios, e não de
qualquer necessidade teórica ex externis.
1. O que, afinal, retirar a respeito de representações e convívios de vozes de um
episódio em que estamos, a não ser por quatro palavras (353), inteiramente confinados a um
falante?
(O que acredito que tenhamos demonstrado, no entanto, vai na direção do que
afirma a citação de Morse que abre, como nota de rodapé, esta discussão. O embate, cada
vez mais, foi-se dirigindo para dentro do mesmo Stephen; e é nessa praça de armas que se
dará a conclusão dessas disputas. Ouviremos vozes.)
2. Que vozes outras serão estas?
Se Stephen dialoga, quem é o tu a quem se dirige e que a ele se dirige. E,
especialmente,
3. Quanto desses outros eus é na verdade projeção de Stephen, de seu autor ou do
livro personificado.
Dentro do mesmo primeiro parágrafo do texto, citado acima, nos vemos em um
contexto algo diferente do que estivemos acostumados a analisar.
A tensão, a necessidade de afirmar um domínio sobre a voz narrativa está superada.
Desde o início de “Proteu” veremos Stephen em cerrado intercâmbio. E desde o início nos
caberá determinar pelo menos a natureza desse intercâmbio (de que posição fala Stephen), e
a natureza desse interlocutor (quantas são as vozes com que Stephen dialoga). Pergunta algo
mais tendenciosa, muito mais próxima do perigoso limite da interpretação, seria aquela sobre
a identidade plausível desse interlocutor. Mas ainda não.
86
Conforme já declaramos, desde as primeiras palavras nos vemos agora dentro da
consciência de Stephen. Não um usurpador que queira disputar espaço de palco com ele,
fazendo com que tenha de se retirar para sua consciência
58
. Não há um contexto sonoro que,
sendo negligenciado, proporciona pela mesma leviandade com que é tratado por essa
consciência um pano de fundo contrastante. Mas o que mais nos interessa ver aqui é que,
depois de todo o caminho que o levou a amadurecer através do (para o) convívio durante os
dois primeiros episódios, a voz de Stephen adquiriu características que agora impossibilitam
o pleno e puro monólogo. Ele simplesmente não pode estar sozinho. Aquele primeiro
parágrafo, de um solo instrumental, ressoa e ecoa sob o peso de um diálogo cerrado.
Um percurso. Frase a frase. Vejamos.
O texto se abre com uma citação de Aristóteles
59
que, contudo, é imediatamente
relativizada, sofre uma apropriação: é a palavra do outro nada cristalizada ou hierática, como
vínhamos vendo nessa relação com Aristóteles desde o episódio anterior. E ela é
imediatamente resumida em uma formulação algo críptica, tortuosa e talvez inadequada que,
contudo, traz a marca única e indelével de Dedalus.
Antes do primeiro ponto final saímos de Aristóteles para a dúvida do leitor e desta
para uma formulação original. Uma história da filosofia, aliás.
Outra citação (Boehme), é de pronto secularizada e obrigada a se rebaixar de seu
misticismo para o aqui-agora prosaico do areal de Sandymount. A realidade visual da praia,
em seguida
60
, é reelaborada nas palavras de George Berkeley, signos coloridos.
Stephen pensa sozinho, mas sua cabeça está povoada de vozes de livros, que ele
tenta entender. Essa situação de um diálogo com os textos logo estabelece em um registro
mais direto um efetivo, ainda que encenado, diálogo. Aquela primeira pessoa que se
apresentava abertamente desde a abertura se vê estilhaçada em réplicas e perguntas, por meio
de um processo muito seguro e gradual (4-6). Ele passa a como que falar em voz alta,
resumindo para si mesmo o processo de seu pensamento até aquele momento, uma semente
de divisão que germinará da forma mais frutífera no decorrer do episódio.
58
Em que medida não terá sido a presença de bufões usurpadores como Mulligan a formar a introspectiva e
narrativa, personalidade de Stephen?
59
Toda esta análise, bem como toda minha leitura do livro, seria impossível sem as notas de Gifford.
60
Durante todo este episódio é bom lembrar, apesar de não ser freqüente (e não à toa, pois só se vai ter certeza
disso em Circe), que Stephen está sem óculos, tendo, como no retrato, quebrado os seus.
87
Se o que havia de literário no monólogo interior de Stephen nos primeiros episódios
(afastando-os da reprodução fiel de algum conteúdo de consciência) era a elaboração em
nível lexical e sintático, aqui é a encenação de um efetivo diálogo, iniciado com aquela
injunção em “Nestor” (Responda alguma coisa (2.231)), que dramatiza a complexificação da
posição, dominante, de Dedalus.
Pois segue-se uma pergunta, que podemos ler como artefato retórico, respondida, no
entanto, com uma vivacidade que costumamos atribuir às respostas efetivas a perguntas
impertinentes. O eu afetado, implicado inevitavelmente, se não pela primeira frase, ao menos
pela pergunta retórica, é tratado com algum desprezo, amenizado pela última palavra da
resposta, claro, que estabelece como que uma comunhão entre essas vozes. E vem o
comentário, vá com calma, que busca restabelecer a paz.
Aquele eu partido se encontra em animada e algo tensa discussão consigo mesmo, e
há uma (terceira?) camada de sua voz que consegue se manifestar como apaziguadora.
Mas talvez estejamos na trilha errada. O que uma pergunta retórica e um diálogo
simulado realmente simulam não é uma cisão do ego em dois eus, mas sim a criação de um tu
ausente da situação real de comunicação. Stephen, em paz com a voz dos outros, agora que
tem inquestionado seu domínio sobre a voz do livro, pode esquecer de vez seu centralismo.
A grande mudança neste capítulo é uma que aconteceu, fora do livro: do solipsístico
Stephen, que não consegue ver os outros a não ser em relação a si mesmo, para o Joyce que
se diverte conquanto seja dotado de compaixão, que observa Stephen bem como suas outras
criaturas com um alto grau de afastamento. (Morse, 1970, p.34)
Apesar de podermos discordar de sua leitura (veremos) no que se refere à capacidade
de Stephen de se desligar efetivamente de uma referência permanente a si mesmo, Morse, no
trecho citado acima, parece perceber algo muito similar ao que vínhamos notando, mas a
isso ele acrescenta um ingrediente que desde o princípio sabíamos que em algum momento
teria que ser enfrentado, a inclusão de James Joyce na discussão (e com ele vem a
literaridade, com ele vem o leitor, diríamos nós).
Mas ainda aindanão.
Por enquanto nos basta a mudança de uma perspectiva egotista e algo onívora para
uma postura algo mais relaxada e livre com os outros e suas palavras. Somente. Se
anteriormente tivemos dificuldades em desemaranhar as proveniências das vozes, graças a esse
88
progressivo assimilacionismo que verificamos no texto de Dedalus nada será assim tão
diferente neste episódio. Afinal.
A frase que se segue ao texto que vínhamos analisando (ainda estamos no primeiro
parágrafo!) é um belo exemplo que, como sempre, vem bem na hora certa. Cite-se um algo
longo trecho de Morse (1970, p.37-8) exatamente como ilustração do tipo de dificuldades
que a proteiforme adaptabilidade do discurso de Stephen pode agora gerar para o leitor.
A frase, Bald he was and a milionaire
, maestro di color che
sanno
61
, obviamente se refere a Aristóteles. Mas não corresponde a nenhum dos testemunhos
antigos de que dispomos. Diógenes Laércio, que não era ele mesmo uma testemunha, mas sim
um compilador de estórias, relata conflitos e contradições sempre que os encontra; ele deixa
incontradita a estória de que Aristóteles ‘cuidava bem de seu cabelo’, e com apenas uma
exceção todo busto ou grande estátua de Aristóteles que eu já vi mostra-o com basta cabeleira.
O testamento atribuído a ele, que é registrado por Diógenes Laércio, ainda que seja
certamente o de um homem bem de vida, dificilmente seria o de um milionário. Os
testemunhos da antigüidade, escritos ou esculpidos, são logicamente dúbios: conta-se a mesma
estória a respeito de homens diferentes, estórias contraditórias são contadas sobre o mesmo
homem, versões diferentes da mesma estória diferem em detalhes importances, etc.; mas neste
caso eu não encontrei qualquer testemunho escrito que Stephen pudesse ter em mente. Sugiro
portanto que a frase, Bald he was and a milionaire se refere não ao mestre daqueles
que sabem, mas a um outro filósofo. A expressão coloured signs sugere Berkeley, que
disse que o olho não –a retina não recebe– os próprios objetos, mas apenas a luz que se
reflete neles ou que emana deles, ‘em todos seus modos e cores’, de modo que dizer que vemos
um objeto é confundir o signo com a coisa significada; e como Berkeley no Alcyphron,
terceiro diálogo, seção 13, refuta a ética de Shaftesbury com os mesmos argumentos com
que refuta a de Aristóteles, e já que, mais que isso, Shaftesbury era calvo e milionário, acho
que temos aqui uma veloz e fluida mutação protéica que envolve todos esses três filósofos. Não
devemos subestimar a possibilidade de que Stephen estivesse pensando metaforicamente,
querendo dizer que Aristóteles, embora calvo em seu estilo, era rico em pensamento; mas
nenhuma dessas possibilidades exclui as outras.
Ainda não terminamos o parágrafo (há ainda novo processo, em tudo e por tudo
similar ao que abriu o texto, levando-nos da citação à relativização, via pergunta retórica e
diálogo afetado, auma ordem proferida por um eu que se imagina em tu.) e já percebemos
o que será talvez a mais importante contribuição desta discussão sobre Proteu para o objeto
deste trabalho.
Afinal, a tensão agora existente dentro dos limites do pensamento de Stephen não
pode em hipótese alguma ser vista como uma vitória das outras vozes sobre esta que, desde o
61
E Gifford (1989, p.45) ainda nos lembra que a frase italiana é também uma citação, de Dante.
89
começo, parecia ter imensa superioridade em relação a todas elas no que se referia à
ingerência e à intimidade com a voz do livro. O que temos aqui é a consumação da identificação
entre Dedalus e a voz narrativa, sendo que agora a personagem pode passar a exibir
plenamente (como que em um microcosmo) precisamente a característica que mais vinha
marcando essa voz até aqui.
O livro era assimilacionista, a personagem que com ele se identifica passa a sê-lo.
Stephen encampando tanto os poderes quanto a esquizofrenia da voz narrativa.
Personagem literário encampando função literária.
Hugh Kenner nos faz lembrar (1987, p.41) que pela altura do terceiro episódio é até
lugar-comum observar que a personagem principal do Ulysses já é a linguagem. Ora, de nosso
ponto de vista, isso representa nada mais que a culminação de um processo que se vinha
esboçando desde a primeira página do livro e que, diga-se, está muito longe de acabar.
Estamos vendo aqui, com Dedalus, apenas uma versão possível do resultado desse
embate que, a nosso ver, dá corpo ao Ulysses (um dos milhares de corpos que ele pode ter).
Bloom será uma outra resposta. Joyce é uma síntese possível entre eles. Teremos de lidar
ainda nesta primeira página, com essas duas presenças ausentes do texto. Mas ainda não.
Por enquanto vale repisar a importância da identificação da voz de Dedalus com o
livro.
um equívoco freqüentemente cometido (podemos quase ver Garrett Deasy
citando-o) nos estudos shakespeareanos: trata-se de vermos estudiosos ou professores
interessados por uma ou outra razão em defender uma imagem politicamente conservadora
de Shakespeare invocando como expressão de seus pontos de vista o famoso discurso sobre
a hierarquia, pronunciado, em Tróilo e Créssida, por ninguém menos que Ulysses. Atribui-se ao
autor o que pensa sua personagem.
Sejamos aqui mais sutis. Se errarmos, que não seja pela ignorância elementar de
Deasy.
Atribuindo a Joyce o que cremos deduzir que seu livro pensa sobre a linguagem e a
representação das vozes das personagens em um romance, talvez possamos dizer que, apesar
de alguns críticos encontrarem no festim joyceano elementos de anarquia, a postura de seu
criador reproduz não a de Malatesta, mas a de algum socialista menos iconoclástico. Para
90
Joyce, é necessária a existência de uma hierarquia de acessos e presenças entre as
personagens para que a liberdade e a pluralidade possam se manifestar com a liberdade que
ele pretendia imputar-lhes. Tudo que passa de ordem é desordem.
E aqueles dois elementos ausentes-presentes citados pouco são os pólos
determinadores desse processo e de sua potencialidade: Stephen Dedalus tem precedência
simplesmente por representar um alter ego do autor; Stephen Dedalus não pode ter uma
ascendência ditatorial sobre as outras vozes porque ele representa uma visão do autor sobre
uma parcela de si mesmo (jovem, imatura) e terá que conviver com uma outra projeção em
alguma medida biográfica do autor no texto, o socialista utópico Leopold Bloom
62
.
hierarquia, mas não pode haver autocracia.
agora, estabelecidas que foram as premissas para tal possibilidade (para além do
diálogo com a tradição e o passado, como vimos), uma conversa tensa e intensa entre
Dedalus e a voz narradora, que contudo, dada a situação que vimos analisando três
episódios, pode ser lida como uma conversa entre Dedalus e uma projeção de si mesmo,
entre Dedalus e a parcela de sua personalidade que penetra e encharca a voz da narrativa.
Mas esta é uma das respostas. Nela teríamos uma personagem culminando um
processo de anaférese, em que ela se projeta rumo às funções operacionais da narrativa,
transformando-se em livro.
Outras leituras, menos singelas, do mesmo diálogo?
Stephen Dedalus e Stephen Daedalus: mais uma.
Stephen Dedalus e Poldy Bloom: ainda outra, mais arriscada.
E o restante do texto que encabeça este capítulo pode ser lido de modo a iluminar
este problema.
Stephen Daedalus era a grafia do nome desta mesma personagem (seria a mesma?)
no livro que ficou conhecido como Stephen Hero, que hoje subsiste como um grande
fragmento, por ter sido reelaborado, violentamente resumido e esteticamente desenvolvido
para se transformar em Um retrato do artista quando jovem. Stephen Daedalus era, também, a
62
Morse (1974, p.49) lembra que, apesar de todo o progresso feito pela voz de Stephen, aqui na praia ele está
ainda romantizando. Ele ainda tem que encontrar a parteira de seu próprio pensamento, Leopold Bloom. É a diferença que
gera a síntese, mas é preciso isolar os reagentes para obter uma reação produtiva.
91
assinatura que o próprio Joyce usou para si próprio quando, por exemplo, da publicação da
primeira versão (ele parece estar sempre ligado a esboços...) de seu conto As irmãs, em um
jornal irlandês. Stephen Daedalus assinou, inclusive, muitas cartas de James A.A. Joyce.
Quando alunos de graduação lêem Um retrato correm sempre o risco de não
conseguir uma empatia (ou de conseguir uma empatia excessiva) com o livro, por não terem
compreendido a posição irônica do autor em relação àquela versão de si mesmo dez anos
antes. A ironia é sempre perigosa.
No Ulysses (publicado nos quarenta anos do autor) essa distância crítica é ainda
maior, e será feita mais visível pela introdução do Sancho Pança Bloom. Mas a persona
responsável por fazer soar o que de independente possa haver na voz do narrador dos
primeiros episódios é ela mesma um relativizador do domínio de Dedalus.
Stephen James Daedalus, confluência de livro e autor, pode muito bem ser
responsabilizado pelas admoestações, ordens e advertências dirigidas a Dedalus. com
calma. Feche os olhos e veja. Abra os olhos. Abra os olhos agora. Veja agora. O tempo todo lá, sem você: e
sempre será, mundo sem fim.
Estas duas últimas frases foram agora traduzidas propositadamente de modo a forçar
uma das possíveis leituras que elas abrem (confira-se a versão diferente que segue no anexo).
Stephen, depois de sua experiência sensorial, fechando os olhos para ver como vivem os
cegos, ou para testar a realidade empírica do mundo que o cerca, abre e vê que, pasmo!, o
mundo continua existindo mesmo que ele o o veja. A evocação do discurso religioso que
segue é verossímil para Dedalus e Daedalus e representa uma subserviência indesejada para
ambos.
E podemos mesmo compreender a situação em que se encaixa a surpresa de Dedalus
ao ver que o mundo prossegue sem ele se pensarmos no grau de poderes demiúrgicos
63
que
fomos levados a crer (junto com ele) que possuía nessa narrativa. Quase deveríamos de fato
poder pensar, a esta altura, que o mundo realmente devesse desaparecer com o fechar dos
olhos de Dedalus, pois mesmo sua miopia vinha condicionando o que dele víamos existir.
63
De novo Joyce chegou antes de nós, lá está a palavra demiurgos na linha 18. Ele parece sempre estar querendo
dizer que pensou em todas as possibilidades antes da crítica.
92
Dedalus, em grande medida graças a sua imbricação com Daedalus, corria o risco de
se tornar para nós, em nossa leitura, o autor do livro como o vemos
64
, em estreito diálogo
com ele (o livro), partindo de uma posição conquistada não sem esforço e afirmada com não
pouca veemência.
A privilegiada posição da personagem que é visão do autor sobre si mesmo (projeção
de parcela da vida do autor no texto) não é assim tão tranqüila. Porque, voltamos ao ponto,
Daedalus, a presença de Joyce, não pode vir à tona sem que (ao menos nós, os leitores
profissionais) tenhamos que encarar também a presença de James A.A. Joyce, pessoa sica
(particularmente avessa a pagar impostos), um autor, o que implica um livro, e leitores.
Ficcionalizar a vida é em alguma medida dar vida à ficção resultante. Retirá-la do
limbo a que se destinam os objetos estéticos e arremessá-la na sujeira do cotidiano.
Ficcionalizar a biografia é, ao menos para Joyce, um meta-procedimento, muito distante da
sublimação eugênica que pode representar para outros. E Stephen, elevado acima dos outros
por sua filiação, precisa aceitar junto com sua herança o fardo da ficcionalidade. Ele é elevado
mas não é retirado da literatura. Muito pelo contrário, o legado de seu pai é imergi-lo nela
mais fundo que os outros. Fazendo-o mais real?
Stephen (20-ss) não só cria versos, como impõe a eles uma escansão de todo
inadequada (são troqueus e não iambos, para começar): determina sua autoridade sobre o
texto. Que de fato, como seria mais do que esperado de um texto que em alguma medida
representa um diálogo entre uma personagem e um narrador, ou uma personagem e o que
dela se incorporou nesse narrador (seu outro eu), ou uma personagem e seu autor, começa a
assumir sua condição de texto.
Como dito acima, se temos texto, consciência do texto, temos consciência da
presença do leitor, de um processo de leitura. E o diálogo, mais uma vez, inclui o leitor
como termo. Pois o parágrafo que se inicia em 23, aquele que desenvolverá a autoritária
distorção da escansão, começa fazendo uso da ambigüidade de uma expressão inglesa (you
see), tanto mais interessante se lembrarmos que Stephen está de olhos fechados, para gerar
64
Kenner (1974, p.70): O estilo inicial cria quase tanto quanto registra. Ele cria Stephen e permite uma ambigüidade central
em todas as especulações de Stephen sobre seu emaranhamento em uma teia de determinismo, preso como está no livro de Joyce, onde
Joyce compõe suas palavras, embora ele pense com freqüência (e pensemos nós) que ele as compõe.
93
um texto que poderíamos, novamente traduzindo uma leitura, verter assim para o português:
Começa o ritmo, como vocês estão vendo. Já eu, eu só ouço
65
. Leitor e personagem. Também.
E há mais.
Durante todo o episódio veremos amostras dessa voz que se dirige a Dedalus (mas
dirige-se a ele vindo de onde?), usualmente de alguma maneira crítica. Elas contribuirão para
fazer deste o episódio mais denso em confrontos de vozes dos três que até aqui analisamos.
E serão o fio a orientar a leitura deste capítulo.
Não que as vozes dos outros não tenham contribuições importantes a fazer. Elas têm,
e Stephen se esforça mesmo por registrá-las no que tenham de singularidade material,
especialmente no longo trecho (61-104) que evoca uma possível/passada visita à casa de seus
tios, entremeada por comentários derrisórios que, ficaremos sabendo só pela altura do
capítulo seis, não podem ser de ninguém mais senão Simon Dedalus.
Mas, cada vez mais, será dentro de Stephen, entre ele e o livro, que se dará o embate.
Vejamos, além daquelas ocorrências que já citamos, todas elas referentes a esta
primeira página (Joyce gostava de aberturas), as outras oportunidades em que essa espécie de
monólogo interior em segunda pessoa parece se manifestar, com o intuito de tentar discernir
as identidades por trás desse diálogo.
By the way go easy with that money like a good young imbecile. (59)
Stephen parodiando a ideologia de prudência e antiprodigalidade do diretor Garret
Deasy? No parágrafo em que se encontra essa frase ele rememora as tarefas que terá de
cumprir: o favor para Deasy e o encontro marcado com/por Mulligan. Ele projeta uma voz
algo indefinida, que pode ser de qualquer um dos outros dois, numa reação clara à submissão
a suas ordens. Ele se vinga sozinho.
Se Ellmann pôde dizer que no Ulysses Joyce distribui castigos a seus conhecidos
com uma precisão e uma crueldade veramente dantescas, podemos pensar que Dedalus
65
Na verdade, como que outra vez reproduzindo em ponto menor a situação que transcorre no plano geral, o
texto está pleno de ambigüidades, algumas delas dependentes de uma meta-leitura, como a que propusemos
acima, e outras dependendo inclusive de um abandono da palavra escrita, em favor do que apenas se ouve, pois
see pode ser sea (como indubitavelmente será em 27) e hear pode ser here. Estamos no reino de Proteu, não
podemos esquecer.
94
agora está também em seu meio. Ele reconhece as vozes que lhe dão ordens (a primeira ele
cumprirá, a segunda, não) mas se vinga delas representando-as a seu modo.
Ele definitivamente (como cada um de nós, fora de livros) detém prerrogativas de
autor.
You told the Clongowes gentry you had an unce a judge and an uncle
a general in the army. Come out of them, Stephen. Beauty is not there. Nor in
the stagnant bay of Marsh’s library where you read the fading prophecies of
Joachim Abbas. (105-8)
Agora, quem se dirige a ele? Ele mesmo, com uma algo inédita auto-crítica
sarcástica? Seu mentor narrativo?
Postas à parte as especulações interpretativas, o que aqui nos interessa
inequivocamente é que, indubitavelmente, trata-se de uma papel de mentor; seja ele
representado projetadamente pelo próprio Dedalus ou preenchido por um narrador
interessado diretamente no passado e no presente da personagem. Uma constante nesses
diálogos, diga-se, é o fato de que essa voz que se dirige a Dedalus na segunda pessoa
conhece seu passado e suas sensações. Por vezes até melhor do que ele mesmo estaria
pronto a admitir.
Podemos pensar que aquele Stephen que demonstrou inesperadas compaixão e
tolerância para com Sargent e Deasy pode também manifestar uma auto-crítica inesperada.
Mas, repito, o que nos interessa em primeiro lugar aqui é estar ele assumindo uma postura
discursiva em que pode se dirigir a si mesmo como uma segunda pessoa. É a zona cinza
habitada por essa voz que trafega entre Daedalus e Dedalus. O próprio Stephen, o narrador
saqueado por ele durante dois episódios, o autor hipostasiado que sua vida passada, ou
um re-leitor muito bloomiano: alguém assume um papel que projeta a primeira pessoa
opressivamente dominante deste episódio em segunda retórica, ao menos.
Cousin Stephen, you will never be a saint. Isle of saints. You were
awfully holy, weren’t you? You prayed to the Blessed Virgin that you might
not have a red nose. You prayed to the devil in Serpentine avenue that the
fubsy widow in front might lift her clothes still more from the wet street.
O si,
certo!
Sell your soul for that, do, dyed rags pinned round a squaw. More tell
me, more still! On the top of the Howth tram alone crying to the rain:
Naked
women! Naked women!
What about that, eh?
What about what? What else were they invent for?
95
Reading two pages a piece of seven books every night, eh? I was
young. You bowed to yourself in the mirror, stepping forward to applause
earnestly, striking face. Hurray for the goddamned idiot! Hray! No-one saw:
tell no-one. Books you were going to write with letters for titles. Have you
read his F? O yes, but I prefer Q. Yes, but W is wonderful. O yes, W.
Remember your epiphanies written on green oval leaves, deeply deep, copies
to be sent if you died to all the great libraries of the world, including
Alexandria? Someone was to read them there after a few thousand years, a
mahamanvantara. Pico della Mirandola like. Ay, very like a whale. When one
reads these strange pages of one long gone one feels that one is at one with
the one who once... (128-46)
Trata-se de um trecho especialmente denso. Começamos um uma citação (Dryden
teria dito a Swift que ele jamais seria poeta (Gifford, 1989, p.51)), devidamente mastigada e
digerida. Ilha de santos é, ainda segundo Gifford, um epíteto medieval para a Irlanda.
Stephen põe o passado literário e popular para conversar mostrando, apenas pela
justaposição, a contradição gerada pela intromissão dele, Stephen, escritor, neste passado
literário.
Mas ele precisa enfrentar adversário menos suscetível a suas intromissões. E uma voz
agressiva, acusadora, dotada de um sarcasmo em tudo diferente do que a ele aprendemos a
associar, levanta contra ele elementos de um passado que ele, dentre as personagens,
poderia conhecer. Ri-se dele. E é respondida com igual acrimônia e cinismo.
Seja qual for a relação que se estabelece, ela é também ríspida.
E o parágrafo que se segue prossegue em ofensa e chacota. Dedalus, o bardo, está
sendo ridicularizado de uma maneira muito mais violenta do que Mulligan jamais pôde fazer.
Alguém está traindo sua confiança, arremessando contra ele seus feitos e seus pensamentos
passados
66
. Ele está sendo xingado de uma maneira que certamente nos leva a crer ser ele
quem profere as frases. Ele, um eu aqui profundamente cindido.
Mas não podemos deixar de ver (na mão inversa, aqui é a inclusão de nosso papel
como leitores que sugere a leitura) que esse personagem está também sendo analisado,
sabatinado por um narrador que, a esta altura, o mais dele se distingue, por um autor
que, mais do que pela mais óbvia das razões, conhece seu passado e seus pecados, aquela
figura híbrida que, por ora, podemos chamar de Daedalus.
66
A eterna possibilidade (quase vontade) de se ler em Joyce sua biografia sentiria fortes impulsos de identificar
com Stanislaus Joyce (Brother John) essa imagem de um duplo que rompe com o protagonista. Shem e Shaun.
96
O papel de pasmo bloomiano, no entanto, cabe a nós, leitores, espantados com as
revelações e dotados apenas de senso-comum para reagir.
Acuado, como que em sua defesa, Dedalus se manifesta, dirigindo-se ao algoz:
ninguém viu, não conte a ninguém.
Mas agora o sarcasmo deixou a voz inquiridora mais confiante (como Mulligan, que
se empolga com seu próprio discurso). E ela assume os poderes que reconhecemos em
Stephen: assume vozes outras, parodia, caricaturiza; e entre elas está mesmo a voz de
Stephen, ou ao menos suas opiniões sobre seu trabalho de juventude e sua possível
repercussão.
Tudo isso apresentado diretamente, como crença do Stephen adolescente, pelo
Stephen maduro. Ou como crença do Stephen maduro, apresentada por Daedalus e por ele
jogada contra a fronte de Stephen? E tudo isso devidamente aniquilado por mais uma
citação, que lembra a disposição de Polônio em acreditar em tudo que Hamlet lhe diga,
apenas para não contrariá-lo em sua loucura. E mais pastiches...
A posição de Stephen, uma vez mais, é tão rica que se torna instável. Ele tem seus
fantasmas e dispõe de meios par fazê-los falar que são certamente melhores do que os que
gostaria de empregar em público.
O Ulysses se tornará mais declaradamente meta-literário à medida que o dia progrida.
Mas, ao menos agora, quando o mero realismo expositivo já foi definitivamente deixado para
trás (estamos apenas falando de representação de vozes), não podemos deixar de vê-lo
presentemente reflexivo sobre sua condição literária.
Stephen Dedalus está só. Mas, condenado a ser personagem, está em nossa
companhia. Não tem interlocutor. Mas, condenado a ser personagem com poderes especiais
sobre a narração, tem já em si uma cisão que talvez nem ele maneje com tanta clareza.
Just say in the most natural tone: when I was in Paris,
boul’ Mich
, I
used to. Yes, used to carry punched tickets to prove an alibi if they arrested
you for murder somewhere. On the night of the seventeenth of February 1904
the prisoner was seen by two witnesses. Other fellow did it: other me. Hat, tie,
overcoat, nose.
Lui, c’est moi.
You seem to have enjoyed yourself. (178-83)
97
Ele, sou eu. O tema do outro eu, dos outros eus, começa agora a aparecer tematizado,
em meio à habitual confusão de ataques verbais, paródias, citações truncadas e defesas.
Outro eu. Mais adiante (410) Stephen declarará que eu está sentado ali.
Mas de pouco adianta ele atribuir a um outro eu as ões de que pretenda se esquivar.
Cinicamente, haverá a voz que lhe dirá, sim, mas parece que você se divertiu. Stephen continua
impossibilitado de ver o outro por si próprio, é sempre nele que verá o tu.
Proudly walking. Whom were you trying to walk like? Forget: a
disposessed. With mother’s money order, eight shillings, the banging door of
the post office slammed in your face by the usher. (184-7)
Agora ele está sendo acusado de tentar imitar alguém. mencionamos o fato de que
ele realmente passa bastante tempo simulando uma visita à casa de seu tio. Mas não é só isso.
Proteu, ele muda de forma e toma o corpo de outras vozes durante o episódio. Em (120-7),
ele não apenas recordará memórias de Dan Occam como, indo bastante além disso, o fará
em uma primeira pessoa projetada.
Curiosamente, embora estejamos acostumados com essas coincidências, isso se dá
precisamente no momento em que se discute a palavra hipóstase. O mistério de uma pessoa,
inconsútil, constituída no entanto de uma pluralidade. Eu sou um outro, ele é eu.
Se conhecêssemos os hábitos de higiene uns dos outros, não haveria mais apertos de
mãos, dizia Bertrand Russell. Stephen, quanto mais personagem, mais real. Muito mais real do
que muitas pessoas com quem cruzamos (pun intended) diariamente. Quanto mais literária é
sua situação (e o que venho pretendendo demonstrar aqui é que ela é cada vez mais literária,
na medida em que possamos julgar cristalizadas e pacificamente life-like as formas
tradicionais de narrativa), mais ele se aproxima de um naturalismo mais abrangente.
You were going to do wonders, what? Missionary to Europe after fiery
Columbanus. Fiacre and Scotus on their creepystools in heaven split from
their pintpots, loudlatinlaughing:
Euge! Euge!
Pretending to speak broken
English as you dragged your valise, porter threepence, across the slimy pier at
Newhaven.
Comment?
Rich Booty you broght back;
Le Tutu
, five tattered
numbers of
Pantalon Blanc et Culotte Rouge
; a blue French telegram,
curiosity to show: (192-8)
Fática, aquela voz que se dirige a Dedalus, e que anteriormente terminou suas
interrogações com um enfático, eh?, muito pouco provável em um efetivo diálogo retórico
98
simulado internamente, agora, ao terminar a sentença com um, what?, se torna mais
caricatamente irlandesa.
vimos, em outros momentos, como os símbolos convencionais da Irlanda podem
sintetizar uma imagem do outro para Dedalus. E aqui isso acontece discursivamente. E não é
à toa, mais uma vez, que essa possível marca do dialeto dublinense aparece exatamente no
momento em que o alvo da derrisão da voz que assola Dedalus é sua pretensamente
importante passagem pelo exterior. A Irlanda, a porca velha que come suas crias, faz pouco
da experiência dos gansos selvagens fora de casa.
Em (174), por exemplo, também em uma evocação da conturbada noção de
autenticidade irlandesa naquele período pré-autonomia, é a curiosa sentença I want puce
gloves, que não soubemos atribuir a Dedalus ou a Mulligan no primeiro episódio, que
retorna, novamente desprovida de qualquer marca de identidade, mas precedida de uma
expressão que sabemos ser de Mulligan. O Outro. Que em outros momentos (16-7, 446) virá
à memória de Stephen como o dono original dos sapatos que ele agora está usando;
especialmente em (496) onde os sapatos serão delemeus. Ele está agora, nesta praia,
condenado a sentir-se nos sapatos dos outros, como diz a expressão inglesa: sentir-se na pele dos
outros, sem nem mais saber se a pele é suadeles ou não.
Hide gold there. Try it. You have some. Sands and stones. Heavy of
the past. Sir Lout’s toys. Mind you don’t get one bang on the ear. (290-1)
Aquela mesma insinuação, antes na voz de Deasy, de que deveria cuidar do dinheiro
e que, agora fica mais claro, representa apenas pensamentos dele mesmo, atribuídos a outros
para serem mais facilmente questionáveis, agora aparece como um sussurro de uma
consciência, vinda diretamente das estórias de fantasmas e dos contos da carochinha.
A crueldade empregada contra ele pode também se voltar às vozes assimiladas. Elas
podem ser reproduzidas apenas para se mostrarem risíveis (caso de Richie Goulding e de
Simon Dedalus?) mas podem também ser invocadas para, com a cínica avaliação que
tacitamente carregam (já lemos três episódios do livro guiados em alguma medida por
Stephen), tingir de ridículo idéias que, por preguiça ou conformismo, ele prefere deixar de
considerar.
A realidade pode ter sido mais bem representada pelas vozes dos outros (ficaremos
sabendo que ele está com os dentes apodrecidos, mas mesmo assim gastará seu dinheiro
99
com bebida e prostitutas), mas não é a realidade que interessa. É a realidade segundo
Dedalus, que nos levou a conhecer Daedalus e que deu a ele os poderes que tem.
A point, live dog, grew into sight across the sweep of sand. Lord, is he
going to attack me? Respect his liberty. You will not be master of others or
their slave. I have my stick. Sit tight. From farther away, walking shoreward
across from the crested tide, figures, two. The two maries. They have tucked
it safe mong the bulrushes. Peekaboo. I see you. No, the dog. He is running
back to them. Who? (294-9)
Trata-se do cachorro.
James A.A. Joyce odiava cachorros e morria de medo deles. Na Suíça, logo antes de
morrer, era freqüentemente visto caminhando pela cidade com os bolsos cheios de pedras
para o caso de surgir algum vira-lata. Se ele tem medo de cachorros, Daedalus tem também,
e podemos supor que Dedalus tenha. Na verdade, o parágrafo foi citado em sua
integralidade pela maravilha de condensação e de riqueza que representa.
Primeiro, somos lembrados de que estamos, mesmo no que se refere à mais singela
das evidências físicas, atados à percepção de Stephen e, neste caso, a sua miopia. E o ponto,
ao entrar em foco, vira cão. A espontaneidade daquele Senhor, será que ele vai me atacar, acaba
por trair o agnóstico em conflito que é Dedalus e, mais uma vez, evocar uma outra
personagem que ainda nem conhecemos. E novamente Stephen recebe ordens, de suas
próprias crenças. E de sua prudência. E seguimos sendo lembrados de que é também sua
visão-de-mundo, além de sua visão de mundo, que impera nesta praia. Como aconteceu
antes com as duas Frauenzimmer (30), as duas personagens que surgem embaçadas ganham
imediatamente uma identidade inconteste. São as duas marias e, encaixando-se no
simbolismo referente a nascimentos e abortos que atravessa o episódio, acabaram de deixar
Moisés entre os juncos.
A referência que segue é ao jogo de esconde-esconde. Stephen está pensando que
não quer ser visto, fazendo o que quer que esteja fazendo? Ou, orgulhoso, declara ver por
trás das aparências esfumadas? Quem o viu? Ou a quem ele esse dirigindo. Seja qual for o
caso, a expectativa é minada pela constatação de que não, é o cachorro. E o cachorro está
voltando para as duas figuras.
E é então que o espectador se dirige ao narrador de tempos antigos, que não se
manifesta para calar suas dúvidas; ou o leitor se manifesta a Dedalus. Quem?
100
Cuidado. Ecolândia. A confusão beira o caos, em alguns momentos, e o livro grita
touché. O Livro, Daedalus e Dedalus, que se sarcasticamente, no passado, almejando a
literatura e seus louros.
For that are you pining, the bark of their applause? (312-3)
David Hayman (1982, p.57) declara que, como encenador, Stephen fracassa, como se poderia
esperar. Não precisamos concordar com ele, e não sei se podemos, à luz do que temos visto.
Mas parece inquestionável haver uma encenação em curso, regida toda ela, ou não, por
Stephen Dedalus.
He saved men from drowning and you shake at a cur’s yelping. (317)
We don’t want any of your medieval abstrusiosities. Would you do
what he did? A boat would be near, a lifebuoy.
Natürlich
, put there for you.
Would you or would you not? The man that was drowned nine days ago off
Maiden’s rock. They are waiting for him now. The truth, spit it out. I would
want to. I would try. (319-23)
o fundamental nesses dois trechos é que a presença a que se alude na terceira
pessoa é o Outro fundamental, o bufão Buck Mulligan, empregado como argumento para
aprofundar a humilhação, a desconstrução que se impôs a Dedalus durante todo e episódio.
E é a sua voz, em uma expressão que ele empregou no primeiro episódio, que vem fazer
com que Stephen, algo contrariado, tenha de confessar sua fraqueza. O que quer que
estivesse acontecendo, desde o início de “Proteu”, parece ter consumado seu sair-de-
controle, à medida em que reflexões sempre mais sombrias tomam conta do pensamento de
Dedalus
67
.
You will see who. (369)
A frase acima termina um parágrafo em que se descreve um sonho de Stephen,
bastante similar a um sonho que ainda veremos Bloom descrever, e que antecipa
profeticamente o encontro dos dois e o papel representado por Molly nessa relação. A frase,
no entanto, não se sabe de onde vem.
67
Este episódio, como todos os outros, é quebrado por uma cesura, que aqui ocorre quando Stephen muda a direção de seus passos.
A primeira parte trata do que é primal, a segunda, do que é terminal. (Ellmann, 1972, p.23)
101
Pode-se argumentar que teria sido dita pelo homem que, no sonho, conduz Stephen
a algum lugar. Embora tal frase fosse algo enigmática, diante das informações que temos a
respeito do sonho.
O parágrafo todo, no entanto (os sonhos são desorganizados, diria o futuro autor do
Finnegans Wake), ostenta uma falta de organização que não estamos acostumados a ver nos
monólogos interiores de Dedalus. Parece que aqui a palavra foi efetivamente entregue a ele,
sem nenhuma elaboração posterior e superior.
Hayman (1982, p.94) já lembrava que
Em “Proteu” a voz do narrador complementa as divagações auto-conscientes de
Stephen, possibilitando efeitos como o flashback de Paris e a visita ao tio Richie. A voz de
Stephen, que por vezes se funde inextricavelmente à do narrador, tornou-se um instrumento
protéico capaz de uma ampla gama de climas e de efeitos, refletindo acuradamente sua
confusão interior mas com um estilo bem pensado e literário.
Stephen costuma representar ele mesmo aquela última demão de verniz que se aplica
sobre o texto, sem precisar recorrer a uma instância superior para isso. Faltando esse
polimento, só podemos, paradoxalmente, atribuir a esta instância superior o efeito.
E aquela última frase parece portanto provir precisamente de um nível posterior e
superior. Aquele quem deve se referir a Bloom, mesmo para o re-leitor menos inclinado a
hiper-ler.
Se pudemos argumentar que essa voz algo indistinta em outros momentos
admoestava e censurava Dedalus. Aqui ela de fato faz uso das boas e velhas prerrogativas
dos narradores oniscientes. Mas o mundo em que estamos vivendo foi tão conspurcado
pela mistura das vozes e dos registros que agora mesmo isso parece fosco, nublado e
impressionístico. Estamos já domesticados, condenados ao Ulysses.
Put a pin in that chap, will you? (399)
Talk that to someone else, Stevie: a pickmeup. (430)
Where are your wits? (432-3)
But you were delighted when Esther Osvalt’s shoe went on you: (449)
Trata-se de casos talvez ainda mais complexos.
No primeiro deles Stephen está pensando em seu poema. Ele falaria isso para si
mesmo? A voz narradora lhe diria uma coisa dessas? Ou, mais provável, ele diria isso ao livro,
a Daedalus?
102
A citação de Hamlet é outra evidência. Hamlet, sozinho em cena, fala consigo
mesmo. Budgen (1972, p.94) declarava que a função do monólogo interior é, obviamente, a mesma da
de qualquer monólogo falado sobre o palco: familiarizar-nos com as pessoas e apresentar-nos seus conflitos
interiores. contudo outros meios de se atingir estes mesmos fins. Bem como há fins
diferentes que se podem atingir através do monólogo interior. Mas talvez nosso principal
problema seja com a natureza mesma do monólogo interior de Stephen em Proteu.
As platéias elizabetanas, antes de Shakespeare, estavam acostumadas a monólogos
que tinham especialmente função de adiantar o desenvolvimento da trama e de fornecer
apartes irônicos que rompessem com as convenções de distância entre peça e público. Com
ele é que surge o verdadeiro solilóquio, monólogo que só é exterior dada a natureza do meio
a que se destinava, mas que se refere a um personagem efetivamente falando consigo
mesmo.
O monólogo interior, em outros autores, não apenas anteriores a Joyce, pode ser
efetivamente igual a um solilóquio dramático. Mas, vendo o livro como o estamos vendo
nesse momento, o problema é que mesmo nossas convicções sobre o que é uma voz e o que
é a individualidade de uma voz (nem mesmo as vozes do texto escaparam) estão bastante
relativizadas.
Stephen, no livro em que estamos lendo, não poderá jamais falar sozinho. Sempre
haverá ouvintes putativos e, mais do que isso, ele nunca será um ao falar. Fale com outra
pessoa, Stevie, diz uma voz que tem com ele uma intimidade que todo o resto do livro (para
quem ele será sempre Dedalus, Stephen Dedalus) desconhece de todo, exortando-o a
assumir o diálogo de que tenta se esquivar inutilmente. Mas com outra, não com esta pessoa
que está aqui. Afinal, cadê o seu juízo?
E novamente, como de regra, surge a voz do Outro, talvez de Mulligan (de quem se
falará ainda no mesmo parágrafo em que ocorre a última frase citada).
Mas, a esta altura, haverá outros?
Mas, a esta altura, haverá um eu?
Stephen Dedalus, que pairou acima dos outros e que começou a desconfiar de seus
poderes singulares, descobriu-se traído: o outro havia sido implantado dentro dele pelo
mesmo processo que o elevou. Como a divindade plotiniana, ele se verifica dependente
daquilo que representa o século. Como Ícaro, ele voou, mas voltou ao mundo derrubado. E,
103
adequadamente, ele termina este episódio procurando em torno, com seus olhos fracos, para
saber se há ali alguém que o observe.
For the rest let look who will.
Behind. Perhaps there is someone. (501-2)
Incluídos quase à força no texto durante essas 42 páginas de abertura, quase nos
vemos tentados a dizer que sim, há alguém que o observa, Stephen. Mas ainda não sabemos
bem quem é.
Como sempre.
104
F. A barriga de Bloom (um excurso)
A sugestão mais arriscada feita durante a análise de “Proteu” ficou, contudo, sem
qualquer investigação mais aprofundada. Trata-se da idéia de que a curiosa integração
personagem-biografia e autor (Joyce-Daedalus-Dedalus) possa fazer soar um harmônico
inesperado.
Primeiro, explique-se a metáfora.
Harmônicos são elementos que compõem o que ao ouvido soa como uma nota
musical simples. Mas eles estão lá. Em cada dó, singelo dó, há um elemento de mi, de sol, de
outros dós, e assim por diante, em uma ordem conhecida e rigidamente mantida, ao menos
em sons ideais, senoidais, artificiais. A realidade sempre suprime alguns e realça outros.
Em grande medida a história da progressiva aceitação das dissonâncias na harmonia
ocidental é a história de como as combinações de notas puderam ostentar choques
dissonantes cada vez mais próximos da base da série harmônica. Sempre que soarem duas
notas juntas, em algum ponto de suas ries harmônicas haverá um choque algo mais ou
menos desagradável ao ouvido.
É essa tensão que gera a necessidade de um resolução, e põe a música para andar.
Quando mais perto esse choque está da base da série (a nota, por si mesma) mais ele soará
doloroso, e maior será a tensão.
O argumento aqui é que o acorde composto pelas vozes, por si s complexas,
portanto, de Stephen e de Joyce, conquanto consonante gera uma tensão nova, que induz a
um novo caminho e faz supor essa resolução mesmo enquanto ela ainda não se apresentou.
O que pode resultar do choque entre autor-livro-e-personagem?
A ironia do autor que se aos vinte e dois anos. A ironia do narrador que um
personagem. A ironia do personagem que demonstra seu domínio sobre o livro. Toda essa
tensão culmina em uma resolução que é uma alternativa. Outra personagem, mais conciliada
com biografia, narração e diversidade. Poldy Bloom.
De fato, mesmo naquela primeira página, quando se insinuam os diálogos Dedalus-
Daedalus, há a possibilidade de se encontrar um tom (um harmônico) bloomiano em mais de
um momento, possibilidade, mais de uma vez, realçada pelo autor/arranjador, ainda que isso
não possa estar claro para o leitor neste momento.
105
Vejamos.
Contrariando uma das premissas deste texto não poderia aqui argumentar com dados
e fatos em favor da idéia de que as linhas 14-16 apresentam uma inequívoco sabor a Bloom,
ainda que indelevelmente marcadas aqui com as tintas de Stephen, presentes no vocabulário
filosófico ou pseudo-filosófico, por exemplo. Para fazer isso eu teria que romper com outro
dos princípios que aqui nos orientam e interpor neste momento uma análise da voz de
Bloom.
Já estou indo longe demais em sugerir sua presença como sombra?
Mas, apenas adiantando fatos, para além do sonho que traz tudo menos o nome de
Bloom pra a boca de cena, a identificação de Stephen com os cegos e suas bengalas encontra
fácil paralelo na solidariedade de Bloom para com o moço cego, que ele ajuda a atravessar a rua;
por outro lado (o que é mais produtivo como paralelo) veremos este mesmo Bloom (8.1130-
42) aplicado em uma experiência bastante similar à de Stephen, ainda que diferente
precisamente na medida em que diferem os dois e suas relações com o outro.
Pois Stephen quer no fundo ver se o mundo existe sem seus olhos. Stephen é o
jovem intrigado pelo enigma da árvore derrubada na floresta sem testemunhas. E Bloom
quer saber como sentem os que não têm seus olhos. Solidariedade.
Pense Stephen em Aristóteles ou em Arthur Griffith ou em Hamlet ou nas parteiras ou no afogado
ou no cachorro, é sempre em relação a si próprio (Morse, 1970, p.33). E é assim que a presença de
Bloom pode comparecer e iluminar o episódio precisamente através de sua ausência. Bloom,
entregue e atento aos outros.
Ele é a resolução inevitável resultante da tensão dos harmônicos. A sonata Ulysses,
que se inicia em si menor (Bm, na cifra padrão: Buck Mulligan, diríamos s), se encaminha
para o segundo grupo de temas (Bloom e Molly, si maior.) através de um acorde instável, um
quarto grau, suspenso, resultante do confronto entre voz narrativa e personagem, que se
pode resolver em outra personagem.
In absentia. Não precisamos de elementos concretos que apontem para a presença de
Bloom no texto, ele é o termo de repouso possível, quase previsível, desejável. E o leitor pode
(o que não faremos aqui, hélas) ler todos os imaginários diálogos de Stephen como que
enviesados pelos temores e pelo senso-comum de alguém que, re-leitor, ele conhece mais do
106
que bem. Alguém que pode fazer o temor expresso por aquele Jesus! ficar mais convincente
e mais verossímil.
Poldy Pança Bovary, escudeiro e contraparte inevitável.
107
G. Às avessas: um excuso
Meramente. Antes que se tema pela extensão do dano.
Exponho os ossos.
A mantermos o passo deste primeiro capítulo, acabaríamos por brindar os senhores
membros da banca, com quase seiscentas páginas apenas de texto de análise (descontada a
mamútica segunda parte do trabalho).
O fato, contudo, é que pretendemos adotar uma estrutura cumulativa.
Menciono em vários pontos deste texto que o Ulysses é um livro que se aprende.
Sendo assim, tentamos trabalhar com pontos conquistados e acréscimos. Muito do que ficou
dito até aqui serve para todo o livro e, complementado pelo espelho de Bloom, fornecido
pela leitura dos próximos três episódios, fornece como que um arcabouço básico de noções
a respeito da postura das vozes dentro do livro.
Espere-se, portanto, que o restante deste capítulo tenha peso comparável ao da
primeira metade, mas que o outro (dedicado ainda a colher material em Joyce) resumam-se a
apresentar o que em cada episódio se possa considerar contribuição e novidade, visto,
inclusive, que a independência dos episódios tende a aumentar ao longo do dia do Ulysses.
108
H. O dono do livro: Eccles street, oito horas da manhã.
Qualquer leitor atento dos três romances de James Joyce sabe muito bem do valor
que ele dava às aberturas de seus textos. Elas funcionavam.
(Não custa repetir)
Que não se subestime portanto o fato, com que qualquer crítica parece concordar, de
que o Ulysses parece se abrir duas vezes. Pois é tão portentosa a aparição de Bloom que o sol retrocede
no céu, e o dia começa de novo às oito horas da manhã. (Kenner, 1987, p.54).
Em um livro todo ele dedicado a constituir minuciosa notícia de um dia (e não mais
que um) aplicado mesmo a reproduzir como que mimeticamente em seu desenvolvimento e
em sua desenvoltura o ritmo biológico das pessoas que vivem, dia-a-dia, dia após dia, vemos
de saída um grande desvio desse padrão. Mais do que isso, ao concluir a leitura com o sono
de Molly, teremos percebido ter sido essa a única bifurcação em um caminho que, de resto,
nos levou a ver e (especialmente) a sentir um único dia em seu desenrolar
68
.
Os próximos dois episódios farão também crescer essa sensação ao se desenrolarem
no mesmo período de tempo assignado aos trechos protagonizados por Stephen e, ainda
mais do que isso, ao nos brindarem com ecos e rimas, simetrias a princípio inesperadas.
Os dois personagens tomarão seu café da manhã acompanhados de pessoas que os
complementam e antagonizam, sairão para o mundo onde terão contato com um seu duplo que,
no entanto, causareações bastante diversas nos protagonistas (Stephen movido à piedade
pela auto-piedade e Bloom, sempre empenhado em esquecer, aplicado em desfazer de seu
igual para não ver o que ele mesmo pode ser), verão uma mesma nuvem que em ambos
provocará pensamentos lúgubres e, finalmente, mergulharão em meditações de ultima et
postera, imersos em pensamentos de morte.
À parte a funcionalidade estrutural dessa representação, que entrega iguais espaço e
oportunidades a seus dois personagens principais em sua abertura, temos de reconhecer
que, se em um primeiro momento é o trecho dedicado a Bloom que parece vir apenso aos
episódios da telemaquia, desdobrando-os e repetindo-os, a ininterrupta e conseqüente
68
David Hayman (1982, p.22) já lembrava que o universo temático do Ulysses é muito freqüentemente
vislumbrado no meio da representação que, portanto, não funcionaria como véu que dificultasse a
compreensão (primeira impressão de não poucos leitores) nem como capa anódina destinada a meramente
veicular alguma informação independente. O meio, para Joyce, definitivamente é a mensagem. Iconizar no
texto parece ter sido progressivamente uma preocupação do autor que, da fenomenal página de abertura de Um
retrato, nos levaria à absoluta imbricação de texto e contexto do Finnegans Wake.
109
sucessão dos episódios a partir de Calipso nos e em posição de, desta vez, ver os três
primeiros momentos do livro como outriders, pendurados a um canto da arquitetura geral
exatamente como virá a estar o trecho final, dedicado a Penélope. O que cede todo o corpo
da narrativa, comme il faudrait, a nosso Odisseu, recolocado assim em sua posição soberana
69
.
Vista de um modo ou de outro (ou, melhor ainda, vista de ambos os modos) a
transição é perfeita. E é relevante que se destaque o quanto ela se faz pensando em um leitor
atento, o mesmo a quem se pode pensar dirigirem-se as sutilezas no manuseio de vozes e
narradores de que este trabalho pensa tratar.
Per cognita ad incognita, per angusta ad augusta, per aspera ad astra.
O leitor de Um retrato começa a ler Ulysses pensando ver nele um desenrolar da
mesma estória, para ver esta transição cuidadosa para uma outra. Centenas de páginas
depois, ele, leitor de Ulysses, verá os primeiros episódios e Um retrato redimensionados e
reposicionados em suas expectativas e em seus ritos. O mundo do Ulysses, exatamente
como o do catolicismo, efetivamente começa apenas quando começa pela segunda vez.
E começa com um distinto tom ritualístico.
Mr Bloom ate with relish the inner organs of beasts and fowls. He
liked thick gibblet soup, nutty gizzards, a stuffed roast heart, liverslices fried
with crustcrumbs, fried hencod’s roes. Most of all he liked grilled mutton
kidneys which gave to his palate a fine tang of faintly scented urine. (01-05)
Parece quase impossível não reconhecer nessas primeiras linhas uma sensação de
alívio. Saímos do torvelinho da mente de Dedalus, de suas imagens de morte, de suas
preocupações auto-centradas e, na página seguinte, concomitantemente a um novo nascer do
sol, que agora anunciará uma gentle summer morning everywhere (08), temos a mais
prosaica das descrições.
O mais objetivo dos mundos. Aqui (ao menos agora, neste aqui) não se investiga,
não se tergiversa, não se medita, não se transcende.
Pelo contraste, a terrenalidade do senhor Bloom é feita mais visível e, quase por
necessidade, mais aprazível. Stephen nos tortura; Bloom nos reconforta.
69
Essa é uma subversão tipicamente joyceana. O Ulysses afinal seria uma leitura da Odisséia, não? Mas quem
pode negar a possibilidade de, a partir de 1922, vermos Homero como leitura de Bloom? 1922, annus mirabilis,
fundou o modernismo. E poucas coisas podem defini-lo melhor do que essas leituras do passado pelo presente.
Essas inversões de valores que, aqui, o Ulysses iconiza em sua mesma estrutura.
110
Mas, ao texto.
E, mais uma vez, à primeira linha, à primeira palavra, às primeiras letras.
Stephen começa o livro com um nome falso. Ele, que se refere a todos os outros por
seus sobrenomes, nos aparece de início disfarçado por um apelido algo derrisório. Como se
viu, ele entra na narrativa em meio a uma batalha, em que precisa demonstrar seu domínio.
A muito custo.
este cavalheiro adentra um mundo que o trata com singular respeito. Em todo o
livro, descontadas as alucinações e os narradores mais ousados e caricatos (Sereias, Ciclope),
apenas sua mulher e seu pai o chamarão somente pelo primeiro nome. Para todos ele será
Bloom, Leopold Bloom, senhor Bloom, a não ser para seu pai, o outro senhor Bloom, vivo
somente em sua lembrança, e para sua mulher, que, como Mulligan para com Dedalus, o
degradará (!) em Poldy.
Tal tratamento o singulariza como Dedalus?
que ambos têm nomes que se distinguem do grosso da onomástica irlandesa?
Afinal Corny Kelleher jamais poderia ser apenas o senhor Kelleher. Qual dos
inúmeros senhores Kelleher, afinal? Não. Caminhar pelas ruas da Dublin de hoje, ainda é
encontrar legiões de nomes do Ulysses em placas e anúncios. Mas Blooms e Dedalus não
estarão entre eles.
Mas inda não é esta a chave. Ao menos não apenas esta.
E, como de costume, o Livro se empenhará em mostrar que estamos errados,
mesmo que isso se dê daqui a 160 páginas, mostrando um senhor Bloom, dentista,
distinto.
Quem é essa voz que abre o texto chamando o personagem de senhor? Se a simetria
com os primeiros episódios deve se sustentar, devemos pensar ver nessa primeira voz a voz
primeira de um narrador afinado com a de Bloom. Um narrador simpatético e simpático ao
personagem, mostrando mais uma vez a narração que David Hayman chamou de terceira
pessoa pessoal. E assim que estivermos nós suficientemente aclimatados com (em) Bloom,
veremos no parágrafo não poucos elementos que corroborem essa idéia. O detalhismo
desnecessário e anticonvencional de inner organs; a escrupulosa distinção entre beasts and
fowls; a pernóstica perfeição das
hen
cod’s roes; especialmente o tom de detalhada
objetividade cerimoniosa que a crítica aprendeu a associar acima de tudo ao episódio de
Eumeu, mais possível versão de uma ficção bloomiana.
111
Admitida essa hipótese de trabalho, o que ela pode revelar?
Sugestão?
Que toda a odisséia privada de Stephen em busca de um espaço para sua palavra
dentro do livro, e simultaneamente em busca de um espaço para a palavra do outro dentro
de si, parece vir, se não resolvida, pacificada já nesta abertura.
Se não resolvida, pacificada. Eis Bloom.
O leitor aprendeu com o Livro. O Livro aprendeu com a cruzada de Dedalus. De
ambos os processos surge Bloom por resultado.
No entanto ainda não estamos maduros para entregar a Bloom a narração. Acabo de
dizer que isso ainda vai levar quase quinhentas páginas (até Eumeu). Aqui, Bloom apenas
impregna a voz narradora, que continua capaz de efeitos que ele ignoraria, como o
intraduzível primeiro trocadilho do episódio. Pois to eat with relish pode ser comer com gosto,
ou comer com molho.
A voz que abre a Odisséia não é a voz de Bloom. Mas já está prenhe dela.
Que lhe pode sugerir deliciosos malapropisms como o que abre o parágrafo seguinte.
Kidneys were in his mind as he moved about the kitchen softly,
righting her breakfast things on the humpy tray. (06)
Falo em malapropismos como poderia falar em bloomismos. Richard Ellmann
(1972, p.32) sugere uma bloomianíssima definição para bloomismo, que seria “um registro
escrupuloso mas pouco à-vontade de um quase-erro verídico”, vendo nesse processo, que
muitas vezes envolve a paronomásia, uma das chaves que levariam ao Finnegans Wake. Aqui,
penso em um uso mais generalizado da idéia. O bloomismo típico, para meus fins, seria o da
ótima intenção levada excessivamente a sério, a ponto de gerar um efeito contrário, de leve
ridículo. Um registro escrupuloso, portanto, mas algo desajeitado, de uma quase-verdade.
E a relação que se vai estabelecer entre a voz narrativa e o Bloom a que somos
apresentados tem muito que ver com esse processo.
Como “Proteus”, “Calipso” apresenta o ambiente que cerca o personagem
(Bloom) em termos de suas reações. Mas aqui o narrador é uma contra-persona. Enquanto
Bloom reage sardônica ou humorosamente a aspectos de seu ambiente, o narrador é
delicadamente irônico a respeito de Bloom e, através de seu tratamento dos detalhes, põe a
mentalidade bloomesca em destaque ainda maior. (Hayman, 1974b p.94)
112
Atenção, portanto. tensão, ainda. Não integração total, mas o contraponto
entre a narrativa e o personagem, conquanto irônico, parece dar-se agora em outra chave,
mais pacífica. Que é, afinal, a chave de Bloom.
É claro que muito da idéia de usurpação presente nos primeiros três episódios é
possível por estarmos afundados na concepção de mundo e de sua própria história que nos é
apresentada por Dedalus.
Vamos, portanto, um passo ainda mais além. Não vemos ser possível uma
aceitação pelo narrador de elementos da voz do personagem, como vemos que o estado de
espírito e as regras desse processo são também determinados pela psique de cada uma das
pessoas do romance. Ao menos quanto a estes dois homens.
Bloom, como de regra, amplia ainda mais a leitura que pudemos fazer de Dedalus,
mostrando-nos o quanto, talvez, tenhamos nos deixado levar pelo que, no fundo, era apenas
sua versão dos fatos, e das atmosferas.
Hugh Kenner (1987, p.80):
[Diante dos narradores indignos de confiança que pululam por aí] É
até um alívio encontrarmos em Joyce um autor tão francamente enganador. Nós pelo menos
não temos de testar a psique do segundo narrador
70
; a não ser quando ele está sendo o
malevolente cachaceiro do ‘Ciclope’, ele não é nada além da ficção de um explicador,
projetada pelo livro de muitos ardis.
Facilmente vemos que as vozes não são isoláveis. E com isso podemos nos certificar
da “inconfiabilidade” do narrador. Certo. No entanto, agora que fomos mais longe,
podemos ver que mesmo a franqueza desse engano pode ser ilusória, na medida em que cede
algo para esconder talvez muito mais. O processo vai ainda mais longe, e nosso narrador se
declara culpado do crime menor para tentar esconder delito ainda mais significativo. Quem
chama Bloom de senhor é simultaneamente um narrador bloomiano, um narrador em tensão
contra um elemento bloomiano que lhe é imputado e um narrador algo diretamente anti-
bloomiano. Ele é apenas um de nós, sujeito a todas as ambigüidades disfarçadas pelas marcas
de respeito e de formalidade. Linguagem antes de tudo. Ele, como uma pessoa qualquer, é
linguagem antes de tudo.
70
Baste para este momento esclarecer que o que Kenner chama de segundo narrador não é o que, em nossa
análise poderia parecer ser: o narrador que acompanha Bloom em oposição ao que acompanhou Dedalus. Ele
seria muito mais o narrador permeável, em oposição ao homem dos afazeres domésticos. Ele tem bastante em
comum com o arranjador de Hayman. Calma. Tudo a seu tempo.
113
E ao mesmo tempo é ainda apenas parte do aparato cooptado pelo poder dos
personagens, suas vozes e suas personalidades, na medida em que possa haver distinção
entre estes dois últimos elementos
71
. Como se vê logo em seguida.
Another slice of bread and butter: three, four: right. She didn’t like her
plate full. Right. He turned from the tray, lifted the kettle off the hob and set
it sideways on the fire. It sat there, dull and squat, its spout stuck out. Cup of
tea soon. Good. Mouth dry. (11-14)
Eis o personagem sozinho, conversando com o leitor e com o narrador. Discurso
suposto, discurso indireto livre, voz narradora mais inclinada a metáforas poéticas, tudo
imbricado e devidamente misturado com a sem-cerimônia de quem apresentou seus
convidados às iguarias há já quarenta páginas
72
.
Mas Bloom não se há de ver só. Outros elementos serão sempre necessários, seja
para aprofundá-lo, seja para questionar.
Em Telêmaco, coube ao outro a primeira palavra pronunciada. Ao usurpador de
espaço e de domínio. Aqui, cabe ela também ao alheio, mas a disputa, mais uma vez, se
por vencida antes mesmo de instaurada.
– Mkgnao!
– O, there you are, Mr Bloom said, turning from the fire. (16-17)
Fala.
71
“O idioleto é o traje, para Joyce.” (Kenner; 1978, p.52)
72
Mesmo que venhamos evitando discussões teóricas mais estritas no que se refere aos termos usualmente
empregados para os estudos do discurso citado, cabe aqui um aparte. Considero forma indiscutível de discurso
indireto livre apenas aquela que, por meio de qualquer referencia dêitica, temporal ou espacial, pode
efetivamente ser atribuída a uma enunciação possivelmente citável em discurso indireto (enunciada
efetivamente ou não) à qual subtraiu-se o verbum dicendi. Assim, caberia nesse quadro a frase “Ela não gostava
do prato cheio”. Por outro lado, o primeiro período do parágrafo, por mais que possa também preencher o
pré-requisito de ser considerado como possível enunciação, conquanto irrealizada, não traz qualquer marca que,
por assim dizer, nos obrigue, como leitores, a tratá-la inequivocamente como representante do discurso efetivo
do personagem, transformado em indireto livre. É precisamente aqui que se inaugura o amplo campo das
interferências discursivas mais sutis (posibilidade, reconheçamos, aberta pelos usos mesmo mais ortodoxos do
indireto livre), onde o juízo do leitor e seu conhecimento da psique das personagens e (por que não?) do
narrador representam papel decisivo para a atribuição de proveniência das vozes. E foi precisamente um interesse
nessa imensa zona gris, muito pouco esclarecida pela atribuição indiscriminada de rótulos consagrados que me
fez escolher realizar este trabalho, assim como ele se apresenta. Vale aqui também lembrar a idéia de Hayman
(1974, p.121) de que é consistente com o desenvolvimento da terceira pessoa pessoal em direção ao fluxo de consciência, através do
discurso indireto livre, que todas essas três posições narrativas estejam inextricavelmente envolvidas em um só processo narrativo.
114
Um gato. Adversário de muito pouca monta. E fala em idioma bloomiano, que se
preocupa com o detalhismo usual em registrar da forma mais acurada as contorções e os
mordentes de seu miado. Em outro momento, mais enfática, a gata (é uma gata) dirá
Mrkrgnao (25).
Não. Não haverá disputa ainda aqui. Bloom não se preocupa em suplantar um gato.
Pelo contrário, quando cabe a ele se dirigir ao animal (sim, conforme suspeitáramos pela
qualidade de seus serviços de intérprete, ele fala gatês) ele pronuncia um mero miaow (462).
Mas por outro lado, um mero miau não basta ao gato de Bloom. Ele não apenas não
se esgrime por espaço como parece ávido por entregá-lo. O Bloom da primeira página
parece alguém muito generoso.
É hora, no entanto, de se fazer a única citação que este trabalho verá ao belo texto de
Adaline Glasheen. Onde ela declara pensar que em Calipso, que é sua própria ‘narrativa
madura’
73
, Bloom está mentindo.” (p.53). E que fique ela aqui, neste momento, como semente.
E seguimos com Bloom. E ele segue convivendo, em paz aparente, com a voz do
narrador e a voz do gato. O mesmo Bloom que (p.100) lembrará que todas as coisas falam a
sua maneira. Simpatético ele mesmo. Pacífico. Predisposto a se sentir no lugar dos outros e,
mais tarde, a se condoer por seus males.
Novamente, em um reduzidíssimo espaço (ainda não saímos da primeira página em
que Bloom aparece no livro) o Livro nos consegue fazer ver, ainda que apenas atentos aos
meios formais de sua construção, conteúdos e caraterísticas que, em análises psicológicas,
psicanalíticas ou semelhantes, dependeriam em grau muito maior de uma ingerência e de um
juízo do leitor ou, na melhor das hipóteses, dependeriam de outros instrumentais, que
usualmente cobram mais espaço para seu desenrolar.
Uma outra diferença, além dessas, é o espaço conquistado tacitamente pela tácita voz
de Bloom. Stephen, depois daquele mágico Chrysostomos da primeira gina, só tem de
fato seu primeiro monólogo interior de mais fôlego depois da linha cem do primeiro
capítulo. Bloom, não.
Por mais que ainda não estejamos plenamente dispostos a considerar a primeira
sentença como tendo sido escrita por um narrador não invadido pela voz de Bloom mas
73
A expressão aqui usada faz referência aos famosos “esquemas” fornecidos por Joyce a dois de seus
colaboradores, em momentos diferentes, ambos posteriores à publicação do Ulysses. Eles indicavam, entre
outras coisas, uma técnica que teria sido empregada em cada um dos episódios. Telêmaco, nesse quadro, seria
uma “narrativa juvenil” e Calipso, uma “narrativa madura”.
115
também disposto a expô-lo de maneira algo ridícula, em um texto como que escrito no estilo
literário que seria o do virtual romancista Poldy Bloom
74
, temos de reconhecer que no segundo
parágrafo do texto estamos irremediavelmente ensopados da palavra de Bloom.
E viveremos, pelos próximos três capítulos, inexoravelmente dentro desta voz. Como
se verá. Daí talvez a diferença.
Pois se Ellmann (1972, p.28) pôde ressaltar que Dedalus é mais voltado para dentro e
Bloom, para fora, o método escolhido para a apresentação de ambos, graças ao bom-senso
do Livro, é via de regra o oposto disso. Pois vemos Stephen na maior parte do tempo,
quando ele surge no livro, de fora, aa apoteose de Proteu, que pode amedrontar mais de
um leitor. Bloom é apresentado de dentro, pois fez as pazes com o mundo, e o apresenta
devidamente assimilado, ou em processo de assimilação.
He watched the bristles shining wirily in the weak light as she tipped
three times and licked lightly. Wonder if it’s true if you clip them they can’t
mouse after. Why? They shine in the dark, perhaps, the tips. Or kind of feelers
in the dark, perhaps. (39-42)
Wonder if. Perhaps. Bloom voltado ao mundo exterior, dúbio, curioso, todas coisas
alheias ao estado de espírito usual de Dedalus e esta a única razão de estarem sendo
apontadas aqui) responsáveis por algumas das características mais gerais do próprio estilo da
narrativa, no que se refere a nosso tema
75
.
E estamos prontos para o primeiro diálogo do episódio, entre Bloom e sua esposa.
– I’m going round the corner. Be back in a minute.
And when he had heard his voice say it he added:
– You don’t want anything for breakfast?
A sleepy soft grunt answered:
– Mn.
No. She didn’t want anything. (53-58)
O observador Bloom, aparentemente mais ecumênico que o próprio narrador por ele
invadido, é capaz de ouvir a si mesmo como uma voz. E de esperar que ela ressoe e se
74
Vale lembrar que o crítico Harold Bloom se divertia (ou será que falava sério?) ao atribuir ao menos um
romance àquele que, por razões mais do que óbvias, ele também chama de Poldy. Trata-se de Nothing like the sun
do joyceno obcecado Anthony Burgess.
75
A primeira dessas expressões é na verdade quase que um bordão bloomiano, aparecendo dezenove vezes
apenas nestes três primeiros capítulos, contra dezessete ocorrências da segunda. Na medida do possível, na
nossa tradução, elas foram vertidas sempre por “Fico imaginando se” e “Quem sabe”.
116
resolva, antes de continuar. Por outro lado, isso deixa uma outra coisa muito clara, e é
fundamental que não se esqueça dela durante o desenrolar do episódio. Ele continua falando
sozinho. E, condizentemente, é respondido por um resmungo abafado.
Adeline Glasheen, quando escreveu a frase que citei acima, pensava especialmente no
retrato de Molly Bloom que poderíamos derivar apenas deste primeiro episódio. Já desde
esta primeira fala de Molly, não podemos deixar de levar em conta que tudo, aqui, está sendo
visto através dos olhos e recontado através das palavras de Poldy que, de saída, desfruta de
uma posição e de um privilégio que o torturado Stephen, incapaz de encontrar a paz mesmo
com sua própria voz, perenemente assediada pela voz de outros, jamais conseguiu atingir.
Simplório? Búdico? Algo aleivoso?
Talvez tudo isso.
Bloom recebe o mundo simultaneamente mais aberto e mais definido que Stephen.
Assim como se encontra em paz com a sua voz, ele pode receber a dos outros não como
ameaça, mas como dado do mundo a ser compreendido e compreendido. Entendido e
abarcado. Por vezes, eventualmente, de maneira talvez tendenciosa, destinada sobretudo a
manter sua paz.
Vemos Molly como Bloom quer que vejamos. E o famoso elenco dos amantes
apresentado em Ítaca, e levado a sério pela crítica durante décadas, é apenas o mais gritante
dos exemplos. Uma cena ainda neste episódio, e ainda envolvendo uma palavra, nos fornece
exemplo igualmente interessante. Mas agüente aí.
Por enquanto vale refrisar que, se Bloom assimila e apresenta, temos nós também
acesso a ele refratado pelo narrador que, sim, o assimila com mais tranqüilidade, mas apenas,
como dissemos acima, para problematizar mais essa aceitação.
His hand took his hat from the peg over his initialled heavy overcoat
and his lost property office secondhand waterproof. Stamps: stickyback
pictures. Dare say lots of officers are in the swim too. Course they do. The
sweated legend in the crown of his hat told him mutely: Plasto’s high grade
ha. He peeped quickly inside the leather headband. White slip of paper. Quite
safe. (66-71)
Vemos, é verdade, o Bloom a que já vamos nos acostumando: curioso pelos afazeres
dos outros (a ponto de supor ações e palavras) e pelas características das coisas. Mas temos
também Bloom misterioso. A que se referem as duas últimas frases? Ainda é cedo para
117
sabermos da existência de Henry Flower, o nom de plume com que Bloom troca
correspondência com Martha Clifford, cujo nome, na verdade (será seu nome, de fato?)
viremos a saber na página 230.
Isso nos dá, de um lado, um narrador suficientemente ligado a Bloom para não
revelar, nesse momento, nem que a tira branca em questão é o cartão de acesso a uma caixa
postal, nem o que estaria esperando por Bloom nessa caixa postal. E não poderíamos esperar
o contrário, a esta altura, do Livro que vamos lendo.
Por outro lado, há também uma tinta daquela ironia que Hayman já acreditava ver no
trato de Bloom pelo narrador. Não seria de seu agrado a menção a seu impermeável de
segunda mão, provindo do escritório de achados e perdidos. Nem, possivelmente,
mencionaria ele a etiqueta gasta de seu chapéu. Sua roupa velha e ordinária.
Em um momento de rêverie que se segue, no entanto, temos de buscar a colaboração
do narrador ativamente, junto de Bloom, em chave diversa.
I pass on. Fading gold sky. A mother watches me from her doorway. She calls
her children home in their dark language. High wall: beyond string twanged.
Night sky, moon violet, colour of Molly’s new garters. Strings. Listen. A girl
playing one of those instruments what do you call them: dulcimers. I Pass.
Probably not a bit like it realy. Kind of stuff you read: in the track of
the sun. (94-99)
E a voz que narra, por tudo que podemos perceber, conceber, supre de poesia algo
refinada os pensamentos de Bloom. Não cabe imaginarmos fosse ele capaz de coisas como
aquele beyond strings twanged. Isso caberia mais a Stephen do que ao pragmático e
divertido Poldy. Mas o narrador trabalha em conjunto com as idéias que saem do
personagem, a ponto de incorporar aquela pequena digressão a respeito da cor das ligas
novas de sua esposa. Pois Bloom se intromete.
Estamos acostumados a isso desde Dedalus, capaz de vôos de muito maior beleza
em seus discursos interiores, guiados pela mão do Livro, do que no momento em que, por
exemplo, se põe a escrever seu poema. No entanto, algo se parte aqui, na colaboração entre
Bloom e o Livro, e talvez a menção à nova liga de Molly tenha sido o estopim para o
processo que culminaria com a retomada brusca da palavra por Bloom, desinflando e
desautorizando boa parte da retórica poética que vinha vigorando.
118
Como que entreouvindo o próprio livro de que faz parte, ele percebe o vôo. E se
arrepende dele? Ou se mostra incapaz de sustentá-lo?
O fato inquestionável é que tal rompimento se dá ao som dos, coméquechama, saltérios.
Entreouvem-se ambos, então, em complexo contraponto.
Porque 178 páginas depois o Livro vai se vingar do plebeísmo de Bloom ter
interrompido seu fluxo trazendo-o novamente à baila, no meio do mais musical dos
episódios, o das Sereias. Que também, como que a emular conhecida característica do meio
musical, é dos mais mesquinhos. E é também o primeiro momento em que fica muito claro
o estatuto da voz narradora como a de alguém que esteve lendo o livro que também estamos.
Trata-se, portanto, de um outro diálogo. Em tudo e por tudo diferente daquele
encetado entre Dedalus e a voz que o acompanhava. Eles parecem se entreouvir. E se tratam
com respeito e cinismo suficientes para interromperem-se e rirem um do outro. Afinal,
Bloom, o dono final da palavra, acaba por resumir toda a divagação oriental (que é
importante para definição de várias características de sua própria personalidade) do narrador
com suas palavras terra-terra: provavelmente não é nada parecido com isso mesmo. Isso é
coisa de livros.
(Talvez seja já o momento de pensarmos se não será ser Bloom Bloom o que
possibilita os futuros desenvolvimentos dos jogos entre narrador e personagem.)
Para um episódio em que estamos presos dentro da cabeça de Bloom
76
, este é
bastante generoso em presenças alheias, por razões que acredito ter deixado claras. E, logo
em sua terceira página, temos Bloom trocando palavras com outro personagem, o senhor
O’Rourke, do bar.
Stop and say a word: about the funeral perhaps. Sad thing about
Dignam, Mr O’Rourke.
Turning into Dorset Street he said freshly in greeting through the
doorway:
– Good day, Mr O’Rourke.
– Good day to you.
– Lovely Weather, sir.
– ‘Tis all that. (118-25)
76
Ellmann (1972, p.29). Sendo Bloom a figura principal, ele é imediatamente mais acessível que Stephen.
119
Há centenas, em todo o livro, de ocorrências como as que abrem esta citação. Graças
à morfologia do inglês, jamais saberemos se aquelas formas verbais se referem a primeiras
pessoas sem pronome expresso, possíveis na fala irlandesa como na fala de americanos ou
ingleses, ou a imperativos. E, se imperativos, enunciados por quem? Pelo próprio Bloom, em
suas reflexões, seria certamente a primeira hipótese em uma leitura inicial.
Mas é claro, entretanto, que para nós, nos quadros do que vimos discutindo até aqui,
seria mais interessante vislumbrarmos a chance de que tais imperativos sejam emitidos pela
voz do narrador, pois, especialmente neste caso, freqüentemente podemos ver que as
opiniões manifestas nesses comandos não são acatadas por Bloom, que, aqui, se inclina por
passar (ainda senhor de si, ainda dono da palavra) tendo trocado apenas palavras insossas
com um conhecido de chapéu e sobrancelha.
Ou não. O trecho que segue traz Bloom intrigado, e talvez algo injuriado com o
enriquecimento repentino dos bujamés do interior que se transformam em publicanos, donos
de bares. Poderíamos pensar que o trecho do diálogo, apresentado de forma sumária,
esconderia uma situação mais negativa para Bloom.
Em breve veremos que, de tudo que possa acontecer em torno a ele, saberemos o
que ele sabe (o chapéu, mais à frente), e saberemos o que ele quer que saibamos (a palavra de
Molly). Aqui parece ficar claro, pelo menos, que o senhor O’Rourke, como outros no livro,
não lembra o nome de Bloom, que no entanto se mostra disposto a parar para conversar
com ele. Será que a hostilidade da reação do comerciante (e Deus sabe como podem ser os
irlandeses!) teria dissuadido Bloom de seus planos originais de conversar mais longa e
convencionalmente sobre a tristeza causada pela morte de Dignam (que ainda nem sabemos
quem seja), animado também, me parece seguro afirmar, pelo sentimento de triunfo
(humano, demasiadamente humano) que experimentamos em ser os primeiros a comunicar
uma notícia séria a alguém?
Vemos através de Bloom. E ele, aqui como em outras oportunidades, quer passar
rapidamente pelo assunto
77
. E aqui, como em outras oportunidades, vemos o judeu Bloom
ser tratado como estranho, e quase indesejável. No entanto, mais adiante (140-190), ele
encontrará um possível semelhante. Um judeu, como ele, Dlugacz, também como ele
dedicado a uma tarefa de goim (um comprando, outro vendendo carne de porco) e que
parece, no final do trecho, ávido por estender a conversa para além da venda e do troco.
77
Estaríamos presenciando, assim, a ingerência de Bloom em níveis superiores ao do narrador?
120
Mas, termina assim o intercâmbio entre eles, pois Bloom quer correr para ver se alcança o
rebolado da criada do vizinho, que acaba de sair da loja.
A speck of eager fire from foxeyes thanked him. He withdrew his gaze
after an instant. No: better not: another time. (186-7)
O grande encontro de Bloom com seu duplo acontecerá em seu segundo episódio,
espelhando Stephen e Armstrong. E novamente, ali, será ele a não reconhecer a importância
e a relevância do momento. O lado negativo do domínio que ele parece exercer sobre as
palavras e a relação entre sua voz e a voz do Livro (perenamente mutável, lembre-se o
quanto este narrador é também dessemelhante daquele que vimos conviver com Stephen.
Criados por homens diversos.) é uma certa inflexibilidade no trato com coisas, e pessoas,
que decidiu deixar de fora de sua mente.
Como no trecho seguinte, em que, finalmente só, ele se deixa levar em uma
meditação que pode agora ser sua, e que continua, em chave mais realista, o pensamento
interrompido quando da intrusão dos saltérios.
A cloud began to cover the sun slowy, wholly. Grey. Far.
No, not like that. A barren land, bare waste. Vulcanic lake, the dead
sea: no fish, weedless, sunk deep in the earth. No wind couldlift those waves,
grey metal, poisonous foggy waters. Brimstone they called it raining down:
the cities of the plain: Sodom, Gomorrah, Edom. All dead names. A dead sea
in a dead land, grey and old. Old now. It bore the oldest, the first race. A bent
hag crossed from Cassidy’s, clutching a naggin bottle by the neck. The oldest
people. Wandered far away over all the earth, captivity to captivity,
multiplying, dying, being born everywhere. It lay there now. Now it could
bear no more. Dead: an old woman’s: the grey sunken cunt of the world.
Desolation.
Grey horror seared his flesh. (218-30)
A nuvem em questão é a mesma que também a Stephen (1.248) causou pensamentos
funéreos, depois de surgir com a mesma frase (slowly, wholly). E Bloom se perde em nova
divagação, ainda mais plena de elaborações convencionalizadas e, no limite, de puros e
simples equívocos, que culminam com a inclusão de Edom entre as cidades destruídas. Mas,
ao contrário da outra vez, em que as imagens eram atribuíveis a livros e, conseqüentemente,
algo desprezáveis, aqui elas lhe saem e lhe soam autênticas, e ele não não se interrompe
ironicamente como dispara em um profundo horror para sua casa, onde as imagens
finalmente se dissipam.
121
E uma pequena hierarquia se estabelece. Bloom pode fazer pouco das interferências
literárias do narrador em sua vida. Mas este, em nenhum momento do trecho que passou,
teve espaço ou oportunidade para apontar os erros factuais ou o ridículo eventual do
desespero desse senhor de 38 anos que corre para casa com medo dos pensamentos
causados por uma nuvem.
E nunca teria.
Ele depende de Bloom para ter espaço. E o contrário não se verifica. Hugh Kenner
(1987, p.22) lembrava que, singularmente, o narrador parece se deixar levar até mesmo
pelos momentos em que Bloom quer fazer de conta que não está mais pensando em alguma
coisa. Diria eu, aqui, ele o faz com inclusive mais facilidade que o leitor.
Isso faz parte, afinal, daquilo de que falava Ellmann (1972, p.30) como sendo a
grandeza necessária de Bloom. Alijado dos poderes estéticos, intelectuais e culturais de
Dedalus e apresentado desde dentro, o personagem precisa de uma individuação poderosa,
pois, por mais que encontremos duplos e espelhos seus pelo livro, que o imitam, repetem,
concentram e corrigem, ele precisa manter-se uno e singular, afastado dos outros para que o
reconheçamos como merecedor de especial atenção.
E no entanto ele deve ser separado daqueles que o cercam, e pelo dom da expressão (o mais
elevado que um escritor pode conceder a uma sua criatura). Era fácil separar Stephen por
causa de sua cultura extraordinária. Mas Bloom tem de falar em uma língua comum,
treinada por nada além de uma engenhosidade natural, relaxada ao invés de tensa, não tão
pernóstica a ponto de estar além da maior parte das expressões consabidas e contudo cética
em relação a elas, obtendo mesmo um agudo prazer em manobrar entre locuções ordinárias,
alusões e provérbios. É este poder de fala, na maioria das vezes fala internalizada, que
inclina Bloom a Odisseu: resiliência, o poder de vingar na mente o que perde na carne.
Outra pessoa que, até o último momento do livro, dependerá de Poldy para chegar
até nós é sua esposa. Voltando para casa ele se encontra com ela novamente, sobe até seu
quarto, e o primeiro diálogo entre eles tem lugar. Por sua importância singular para o
episódio e para o todo do livro, transcrevo a seguir todo o diálogo do casal, editado para
eliminar apenas um longo trecho em que Bloom desce novamente à cozinha, cuidar do café.
Com o perdão pedido pelo abuso, segue o longo trecho.
– Poldy!
122
Entering the bedroom he halfclosed his eyes and walked through
warm yellow twilight towards her tousled head.
– Who are the letters for?
He looked at them. Mullingar. Milly.
A letter for me from Milly, he said carefully, and a card to you. And a letter
for you.
He laid her card and letter on the twill beadspread near the curve of
her knees.
– Do you want the blind up?
Letting the blind up by gentle tugs halfway his backward eye saw her
glance at the letter and tuck it under her pillow.
– That do? he asked, turning.
– She was reading the card, propped on her elbow.
– She got the things, she said.
He waited till she had laid the card aside and curled herself back
slowly with a snug sigh.
– Hurry up with that tea, she said. I’m parched.
– The kettle is boiling, he said.
But he delayed to clear the chair: her striped petticoat, tossed soiled
linen: and lifted all in an armful on to the foot of the bed.
As he went down the kitchen stairs she called:
– Poldy!
– What?
– Scald the teapot. (246-70)
Não é preciso recorrermos à percucientíssima (palavra que Poldy adoraria empregar)
análise de Glasheen (especialmente dedicada a conteúdos) para verificarmos que, neste
primeiro trecho da conversa do casal, muito mais é dito em silêncio do que com palavras.
Ela pergunta para quem são as cartas, quando claramente quer saber de quem são elas. E é o
que ele registra calado, castigando-a com o suspense de separar até sintaticamente a carta
dela do restante da correspondência e, obviamente, sem lhe dar a única informação que ela
realmente desejava, a de que Boylan, seu futuro amante, realmente escreveu confirmando sua
visita de hoje à tarde. Seguem-se duas perguntas de Bloom, cujas respostas não ouvimos,
nem em palavras registradas, nem em gestos computados pelo narrador. Molly continua sem
espaço.
Perceba-se, no entanto que não é contra o leitor que se dirige o pacto de silêncio de
Bloom. A enigmática frase de Molly na seqüência é perfeitamente compreensível graças às
informações que recebemos no telegráfico monólogo interior de Bloom. Ela lê o cartão que
recebeu de Milly. Ainda não sabemos, no entanto, quem seja Milly, o que encobre mais um
grande não-dito: a filha escreve, agradecendo pelos presentes de aniversário, uma carta para
123
o pai e um mero cartão para a mãe, com quem não se desde que menstruou pela primeira
vez.
Ele não quer deixá-la sozinha, para que possa ler sua carta. Daí o demorar-se com as
roupas na cadeira, aproveitando para, literalmente, jogar sobre ela a roupa-suja. O que jamais
fará verbalmente. Mas ele tem de sair. E vai.
Eles são casados dezesseis anos (ainda não sabemos... a filha acaba de fazer
quinze). Talvez não devamos estranhar a secura das últimas três frases, embora não
possamos subestimar o fato de que ambos se tratam por apelidos, novamente os nomes
obscurecidos de Telêmaco. Podemos de início apenas imaginar quem seria a Molly cujas
novas ligas são violetas, e podemos depois identificá-la com a senhora Marion para quem
está endereçada a carta que Bloom recolhe ao chegar (sim, nós sabemos para quem é a
carta). Para Bloom o procedimento é similar. Sabemos que é ele o Poldy a quem ela se dirige,
mas devemos ainda deduzir seu nome inteiro
78
.
Tivéssemos nós de contar com apenas esse relato, tinto pelas luzes de Bloom, para
formar uma idéia de Molly, montaríamos uma figura consideravelmente antipática, em muito
diferente daquela a que temos acesso em “Penélope”. Na verdade, é um exercício algo
complexo tentar-se ler o último dos episódios sem qualquer preconcepção fornecida por
mais de quinhentas páginas de que Molly esteve quase que totalmente ausente, mas para as
quais ela contribui como o principal tema dos pensamentos de Bloom; nas palavras de
Bloom
79
.
E segue, depois de interrompido, o diálogo de marido e mulher.
– What a time you were! she said
78
A bem da verdade, o primeiro nome de Bloom será ouvido na página 62, em seu monólogo interior, em
que lembra uma frase de seu pai. O livro o chama de senhor Bloom quando o encontramos, como já vimos, e
sua mulher o chama de Poldy. Seu nome completo, no entanto, bem como o de sua filha (glosado à página
553), surgirá na página 594, quando ficaremos sabendo chamar-se ele Leopold Paula Bloom. Cabe aqui um
outro comentário a respeito de nomes, que justifica a repetição, como que pasmada, do vocativo senhora Marion
quando Bloom recolhe as cartas. O fato é que, pelos padrões da etiqueta do princípio do século, Molly deveria
ser tratada de senhora Leopold Bloom, exatamente como uma atriz é chamada de senhora Bandman Palmer, na
mesma página 62. O uso de seu nome cristão é uma marca do questionamento dos direitos do marido por
parte do amante prospectivo. Bloom, desejoso de se confirmar como marido, mas ansioso por igualizar as
condições de ambos, pensa (p.56) em escrever um conto que, contudo atribuiria também a sua mulher; e a
assinatura seria “senhor e senhora L. M. Bloom”, numa curiosa fusão de suas iniciais (igualmente violenta para
os padrões de 1904) que ganha luz, mais de quinhentas páginas mais tarde, quando sabemos que ele de fato tem
como nome do meio um nome feminino.
79
Esse exercício no entanto terá sido facilitado para todos os inúmeros leitores que começaram por Penélope sua
leitura do Ulysses, bem como para o grupo ainda maior dos que apenas leram este episódio.
124
She set the brasses jingling as she raised herself briskly, an elbow on
the pillow. He looked calmly down on her bulk and between her large soft
bubs, sloping within her nightdress like a shegoat’s udder. The warmth of her
couched body rose on the air, mingling with the fragrance of the tea she
poured.
A strip of torn envelope peeped from under the dimpled pillow. In the
act of going he stayed to straighten the beadspread.
– Who was the letter from? he asked.
Bold hand. Marion.
– O, Boylan, she said. He’s bringing the programme.
– What are you singing?
Là ci darem
with J.C.Doyle, she said, and
Love’s Old Sweet Song
.
Her full lips, drinking, smiled. Rather stale smell that incense leaves
next day. Like foul waterflower.
– Would you like the window open a little?
She doubled a slice of bread into her mouth, asking:
– What time is the funeral?
– Eleven, I think, he answered. I didn’t see the paper.
Following the pointing of her finger he took up a leg of her soiled
drawers from the bed. No? Then, a twisted grey garter looped round a
stocking: rumpled, shiny sole.
– No: that book.
Other stockings. Her petticoat.
– It must have fell down, she said.
He felt here and there.
Voglio e non vorrei
. Wonder if she pronounces
that right:
voglio
. Not in the bed. Must have slid down. He stooped and lifted
the valance. The book, fallen, sprawled against the bulge of the orangekeyed
chamberpot.
– Show here, she said. I put a mark in it. There’s a word I wanted o ask you.
She swallowed a draught of tea from her cup held by nothandle and,
having wiped her fingertips smartly on the blanket, began to search the text
with the hairpin till she reached the word.
– Met him what? he asked.
– Here, she said. What does that mean?
He leaned downward and read near her polished thumbnail.
– Metempsychosis?
– Yes. Who’s he when he’s at home?
Metempsychosis, he said frowning. It’s Greek: from the Greek. That means
the transmigration of souls.
– O, rocks! Tell us in plain words.
He smiled, glancing askance at her mocking eyes. The same young
eyes. The first night after the charades. Dolphin’s Barn. He turned over the
smudged pages.
Ruby: the pride of the Ring.
Hello. Illustration. Fierce Italian
with carriage whip. Must be Rudy pride of the on the floor naked. Sheet
kindly lent.
The monster Maffei desisted and flung his victim from him with
an oath.
Cruelty behind it all. Doped animals. Trapeze at Hengler’s. Had to
look the other way. Mob gaping. Break your neck and we’ll break our sides.
125
Families of them. Bone them young so they metamspychosis. That we live
after death. Our souls. That a man’s soul after he dies, Dignam’s soul...
– Did you finish it? he asked.
– Yes, she said. There’s nothing smutty in it. Is she in love with the first fellow
all the time?
– Never read it. Do you want another?
– Yes. get another of Paul de Kock’s. Nice name he has.
She poured more tea into her cup, watching it flow sideways.
Must get that Capel Street library book renewed or they’ll write to
Kearney, my guarantor. Reincarnation: that’s the word.
Some people believe, he said, that we go on living in another body after
death, that we lived before. They call it reincarnation. That we all lived before
on the earth thousands of years ago or some other planet. They say we have
forgotten it. Some say they remember their past lives.
The sluggish cream wound curdling spirals through her tea. Better
remind her of the word: metempsychosis. An example would be better. An
example?
The bath of the Nymph
over the bed. Given away with the Easter
number of
Photo Bits
: splendid masterpiece in art colours. Tea before you put
milk in. Not unlike her with her hair down: slimmer. Three and six I gave for
the frame. She said it would look nice over the bed. Naked nymphs: Greece:
and for instance all the people that lived then.
He turned the pages back.
Metempsychosis, he said, is what the ancient Greeks called it. They used to
believe you could be changed into an animal or a tree, for instance. What they
called nymphs, for example.
Her spoon ceased to stir up the sugar. She gazes straight before her,
inhaling through her arched nostrils.
– There’s a smell of burn, she said. Did you leave anything on the fire?
– The kidney! he cried suddenly. (302-81)
E ela está de volta. Novamente, sem qualquer comentário ou qualificativo de parte
do narrador que possa aparar as arestas do que não pode senão parecer um comentário rude,
ainda mais que, quando o narrador precisa descrever sua ação subseqüente, ela a faz levantar-
se bruscamente, sendo observada como quase um animal. E está de volta a muda agressão
representada pela carta de Boylan, agora sob a forma de uma mera tira rasgada de papel de
envelope apontando de sob o travesseiro: língua calada.
Que mais uma vez faz com que Bloom se detenha mais do que o necessário (e
desejado, veja-se o fim do trecho) para ver (sadomasoquisticamente?) o que pode obter
como comentário. E ele pergunta diretamente. A carta, ficamos sabendo agora, não estava
assinada.
126
As próximas frases são um exemplo de não-dito. Seu significado profundo, para
ambos, cifrado, seria: Boylan. Ele vem se encontrar comigo quando você não estiver. E o
que vocês vão fazer? O que fazem os amantes...
Bloom, como vai-se tornar costume, muda de assunto e, conforme já dito, com ele
vai a narração, contente em deixar calados os assuntos que o incomodam e desorientam e
sem, jamais, apontar seus procedimentos de desvio. A pergunta é tão banal que nem merece
resposta. E seguem as réplicas que transmitem pouco conteúdo, e, especialmente, um
conteúdo milhas distante do verdadeiro, e único, assunto daquele casal, naquela manhã. Um
casamento em crise, anos (saberemos muito mais adiante), e uma relação sexual
extraconjugal (a primeira?) que se consumará em poucas horas.
Pouco é efetivamente dito. E pouco se diz por Molly.
O que nos leva a uma pantomima cômica em busca de um livro que deve ter caído.
E pode-se sentir o regozijo da voz cruel que recorta as entradas de Molly ao perceber que ela
se recusa a pronunciar o correto must have fallen dow. Não de ser à toa que o próximo
parágrafo, mudo, se empenha, unindo os esforços de Bloom e do narrador, em fazer de tudo
por obrigar o leitor a perceber o deslize. Em quatro linhas, ele consegue reempregar a
palavra fallen (o narrador), conquanto que em outro contexto, mostrar a construção correta
em must have slid down (ambos?) e, acima de tudo, passar a se preocupar (Bloom) com a
pronúncia que sua esposa daria a uma palavra italiana presente na ária que deve cantar na
turnê que, ainda saberemos, acontecerá no mês seguinte. E, caso não baste toda essa sutileza
lingüística, ela é vista enfiando dobrada uma fatia de pão na boca, segurando a xícara pela
não-asa e limpando os dedos no cobertor no parágrafo seguinte.
Estes dois homens estão juntos contra ela.
E estamos preparados, acostumados a Molly, a simplória, para a entrada da met him
pike hoses.
Hugh Kenner (1987, p.82) já lembrava que, apesar dessa glosa algo bárbara da
palavra metempsychosis fazer parte das lembranças de quase qualquer leitor no que se refere a
Molly Bloom, nós jamais ouvimos a senhora Marion pronunciá-la. Ela procura (com um
grampo de cabelo! que estava usando como marcador!) a palavra no livro e, presumimos,
pronuncia o que imagina seja sua versão oral. Mas apenas o que temos no livro é o que o
senhor Bloom parece ter entendido do que ela disse e, mais tarde (351), uma versão,
127
resgatada por Hans Walter Gabler, muito mais próxima da pronúncia correta da palavra, que
pode muito bem figurar o que Bloom ouviu de sua esposa.
Mas no Ulysses, livro que freqüentemente mais mostra e insinua do que conta, é a
versão do fato, posteriormente retomada por Bloom, que manteremos em mente, apesar de
ela aparecer apenas uma vez no livro (p.534), a uma distância tão grande daqui, no entanto,
que nos capacita a ver como lembrança acurada o que Bloom, à uma da manhã, talvez creia
também sê-lo.
É claro que a escolha da palavra pelo autor não é vã.
Nunca é
80
.
O próprio senhor Bloom, literariamente, seria um exemplo de metempsicose ao
reencarnar o rei de Ítaca cerca de dois mil e quinhentos anos depois. Mas, do nosso ponto de
vista, agora, o que interessa é o fato de que uma palavra, apenas uma, gera material para
discussão e reflexão (por parte de Bloom) por toda uma página.
Ele sente na carne, com alguma superioridade, os solecismos de Molly, mas (mas?) se
sente compelido a explicar em detalhes o que ela quer saber. Para confirmar sua
superioridade e, mais do que tudo, para se desviar permanentemente do assunto que, no
entanto, algo nele mesmo quis trazer à tona. Bastava ele ter ficado calado, que nada seria
dito.
Molly, por mais que nos deixemos levar pela opinião de Glasheen, que nos faz ver
um Bloom tendencioso, malicioso e, no extremo, meramente mentiroso, não é aqui uma
adversária como o foi Mulligan (Molly, Mulligan... O cabrito [buck] e a cabra [shegoat]
(305), animais demoníacos...) com quem ela partilha, pelo menos, o gosto muito irlandês por
se tratar na primeira pessoa do plural (343). Ela não é um adversário pela simples razão de
que, aqui, no território da palavra de Bloom, ela está de saída subjugada e domesticada.
Visitante em seu próprio quarto, como que expulso de sua própria casa, é apenas em
seu discurso, e no livro organizado por um narrador construído a sua imagem e semelhança,
que Bloom pode exercer controle sobre sua mulher. Ela não é um adversário cujo destino é
ser derrotado, como o Mulligan de Dedalus, porque a ela, afinal, pertencerá a última palavra.
Ela terá sua apoteose e, literária, senão literalmente, rirá por último.
80
(Hayman, p.13). “Ele [Joyce] se orgulhava de que cada palavra em seu trabalho pudesse ter uma justificativa e
indubitavelmente tinha orgulho em dobro da lógica labiritintina necessária para se atingir tal justificativa.
128
Talvez a principal diferença entre Bloom e Dedalus, no que diz respeito ao nosso
enfoque, seja precisamente essa: Bloom, durante o dia, será hostilizado de todas as maneiras,
por catadupas de pessoas para as quais ele deu pouco, ou nenhum, motivo de queixa; mas ele
não se considera um humilhado e ofendido; a perseguição, os inimigos não fazem parte de
seu imaginário e, muito menos, de suas preocupações mais constantes. Pacificado, ele recebe
e distorce para seus fins. Stephen, torturado, localiza qualquer tensão e se aplica sobre ela.
Tudo isso, como espero venha ficando claro, se manifesta com muita clareza, seja no trato
entre cada um deles e o narrador (os narradores) com que convivem, seja na abordagem e na
recepção de cada um deles em relação à palavra alheia: prévia, literária; presente, social.
Molly, o animal fêmeo, está definidamente (ao menos por enquanto) no mundo de
Bloom, de uma forma que jamais caberia a Mulligan. Mulligan, por outro lado, existe
como presença relevante graças à obsessão de Dedalus em vencê-lo. Caso contrário, muito
diferentemente de Molly, ele apenas entraria e sairia do livro algumas vezes, desaparecendo
definitivamente em uma cena que nem mesmo é narrada, onde sequer sabemos o que de fato
houve entre ele e Dedalus, porque, nesse momento, depois da meia-noite, o livro que lemos
já é definitivamente o livro do senhor e da senhora L.M.Bloom.
Outra voz presente no episódio é a de Milly Bloom, que recebe o raro privilégio de
ser mostrada íntegra e sem cortes (397-414), em todos seu equívocos ortográficos (byby) e
desvios estilísticos e gramaticais.
Milly, ausente, merece espaço inquestionado. Milly, ausente, existe no livro na
consciência de Bloom (descontados os comentários do amigo de Mulligan) e, nela, merece
este espaço. Temos mesmo contato com o texto da carta antes de podermos lê-la, na medida
em que ela nos é apresentada porque Bloom resolve recorrer a ela para colmatar uma
brecha na memória
What was that about some young student and a picnic? (393-4)
Quando a pergunta, no entanto, aparece, não temos condições de respondê-la. E não
teríamos, caso Bloom não voltasse a relê-la. Caso Bloom não contasse com tê-la a seu lado.
Prova disso é que, dirigindo-se ao banheiro, no final do episódio, ele se pergunta:
129
Where is my hat, by the way? Must have put it back on the peg. Or hanging
up on the floor. Funny I don’t remember that. Hallstand too full. Four
umbrellas, her raincloak. Picking up the letters. Drago’s shopbell ringing.
Queer I was just thinking that moment. (485-8)
E se esforça por reconstituir seus passos, o que seria o equivalente de reabrir a carta.
Mas a memória é mais esquiva, e ele não pode se lembrar.
Pois bem, esforce-se o leitor, volte no texto, e descobrirá que o texto também não
iluminará nada
81
. Seria uma ilusão, já, a esta altura, presumirmos que o Livro poderia nos dar
qualquer coisa, a respeito de Bloom, que não fosse não somente conhecida por ele, como
também autorizada por ele, excluídos daí pequenos detalhes como o estado de seu chapéu e a
origem de seu casaco. Jamais saberemos, por exemplo, como foram as horas que se
passaram entre o pôr do sol e as dez horas da noite, quando ele chega à maternidade,
embora suas ações nesse período estejam certamente entre o que de mais importante ele
pôde fazer naquele 16 de junho.
Acreditar, contudo, que o Livro poderia nos dar uma informação que escapa a
Bloom é, num sentido mais geral, acreditar que Bloom o sabe tudo que sabe o Livro. O
que pode ser verdade, e que se tornamais e mais patente à medida que caminhe o dia e se
torne mais meta-narrativa a narração.
A narrativa, até aqui, se constitui dentro daqueles princípios que Kenner irá expor
como sendo os que definem a objetividade
82
. Nós sabemos o que Bloom sabe e ficamos
sabendo disso na ordem em que ele toma conhecimento dos fatos. Por outro lado, ao
integrar o narrador à psique do personagem, o que Joyce atingiu nesse momento foi a
possibilidade de que saibamos de coisas que eram do conhecimento de Bloom apenas no
momento em que elas são não apenas relevantes para a narrativa como relevantes para o
pensamento e as opiniões do próprio Bloom. Aqui, o interesse da narrativa e o interesse do
personagem se fundem de maneira quase completa.
Estamos, definitivamente, dentro de Bloom, como o livro, que jamais dirá coisas
como a frase que Bloom destaca do pequeno conto que lê enquanto evacua, e com o qual se
limpará.
81
Confira-se Kenner (1980, p.47) para uma discussão desse mesmo trecho e sua relevância.
82
Mais adiante me detenho mais em acompanhar a discussão de Kenner.
130
Matcham often thinks of the mastertroke by which he won the laughing witch
who now.
(513-14)
Como dizia David Hayman (1974b, p.75), vemos Bloom “completo, das caspas à
hemorróida”, mas não teremos acesso a qualquer outra voz superior que nos diga no que ele
pensa com freqüência. Teremos de assisti-lo pensar, e chegar sozinhos a conclusões como
essas, por meio do que ele nos diz, do que ele deixa escapar, e, muito eventualmente, do que
dele dizem os que o circundam. Mas estes não são nada confiáveis.
131
I. Pirronismo, um excurso.
E eis a definição de Hugh Kenner do termo em questão:
Pirronismo: uma comunidade inteira que concorda a respeito de apenas uma coisa, a idéia
de que ninguém, no fundo, sabe do que está falando, porque não o que saber além da
fala. (1978, p.53)
Kenner acredita ver esse espírito como uma dominante do caráter irlandês. Não
precisamos ir tão longe, mas o fato é que ele fornece uma explicação, via negativa (sensu
morale), para a confiança do Livro na palavra e na palavra dos personagens.
Não explicações. Não há exposições. Nada se desvenda, nada se amplia para além
do que vemos diante de nossos olhos (ouvidos?). Isso parece ser um fato, e vamo-lo
confirmando a cada passo em nossa leitura. O narrador se nega a nos fornecer uma
informação singela como a localização de um chapéu. Ele não nos dirá o nome de Bloom até
que o vejamos impresso em um documento. Ele não menciona que Bloom (que, até aqui, já
sabemos ter hemorróidas) tem um bigode até a página 293, porque naquele momento isso é
relevante. Só saberemos da idade de Milly quando Bloom pensar nesse fato.
Nada de a lembrança da jovem menina de quinze anos que até ontem saltitava pela casa e agora se
encontrava longe, , trabalhando como auxiliar de fotógrafo em uma cidade distante. Pudera, ficara difícil
demais a convivência com sua jovem mamãe que, aos 35 anos, incompletos (ela é filha do signo do escorpião),
ainda se sentiu incomodada com a chegada dos primeiros sintomas da feminilidade de sua primogênita, e
única filha sobrevivente, que o pobre do pequeno Rudy, morrera apenas onze dias depois do nascimento.
Cada uma dessas informações terá de ser garimpada, por vezes algo arduamente, de lugares
diferentes e distanciados do texto. Cada uma delas surgirá somente quando atender seja às
necessidades da narrativa (veja-se bem: da narrativa; não do leitor) seja aos interesses de cada
um dos personagens. Ou ambos, caso reconheçamos não haver diferença.
Kenner busca, por mais que cinicamente, reconhecer por trás dessa postura uma
atitude filosófica, por mais que cínica. Não é meu desejo aqui ampliar essa discussão, mas me
interessa extremamente a mera idéia de que possa haver extra-texto uma confirmação para
um fato que acredito vir demonstrando na letra do romance. Não há mais que palavras,
palavras, palavras. O próprio Kenner (1978, p.49) lembra que o livro todo, o livro vem insistindo,
não é mais que palavras, arranjadas, rearranjadas.
132
Outro fato com que teremos que nos haver depois deste capítulo, a livridade do
Ulysses.
De um jeito ou de outro, no texto, em sua estruturação, nos personagens, no acesso
que temos a eles, resta a confirmação de que nossa pista inicial, nossa escolha, pode se
revelar um caminho iluminador e, mais do que isso, pode se revelar o único caminho
possível para alguém que, sem extrapolar suas análises do texto em si, deseje eventualmente,
inclusive, atingir conclusões que sejam, por sua vez, extrapoláveis como idéias.
Se o livro são palavras. Que se as leiam atentamente.
133
J. Desdobra-se o duplo: Dublin, 10 horas da manhã.
By lorries along sir John Rogerson’s quay Mr Bloom walked soberly, (1)
E a violenta inversão sintática desta primeira linha dos Lotófagos já vem como que
nos lembrar que, apesar do tácito (tácito?) domínio da voz de Bloom sobre todo o tom da
narrativa, coisa que não veremos alterada neste trecho, estamos ainda em um livro. Escrito
83
.
E escrito como poucos, em todos os sentidos que se queira ler nesse fato. Os lembretes
sobre este fato ficarão cada vez mais freqüentes a partir do sétimo episódio, exatamente
depois do estabelecimento dos fatos e lugares primários de que tratamos neste capítulo e no
anterior.
No entanto, como tudo mais no Ulysses, esse elemento também funciona de maneira
sistodiastólica. Antes de surgir ele sempre aparecerá inesperado. Depois de estabelecido ele
continuará a se afirmar esporádico. Mas, ainda chez Bloom (ao menos no que se refere à
residência de nossa leitura) a narrativa que começa tão autoritária
84
não demora a ceder
novamente o lugar a seu dono, sem que, mais uma vez, vejamos tempo para que qualquer
conflito, qualquer hostilidade se estabeleça entre eles.
Dissemos que o segundo episódio (Nestor) a tratar de Dedalus constituía também
uma ponte no que se refere ao tema de nosso trabalho. Stephen, que começa o livro
disputando espaço com outro personagem e, também, depois de resolvido este conflito, com
o narrador
85
, passa por um momento de contato com outras pessoas em que aprende a se
dividir, bem como aprende a não se importar, num processo que rotulamos de aprendizagem
da inclusividade: sua voz se torna mais plástica; e é somente em Proteu que ele encontra sua
solução, que será sua chave definitiva e que (não subestimemos a vontade de Joyce de
iconizar) acontece precisamente antes do momento em que se ele se verá excluído da
narrativa (descontado um vislumbre de sua figura, vista na praia, precisamente quanto toma
83
Compare-se estra frase de abertura com a de Éolo. Mais adiante, e veja-se o constante caminhar dos processos
no livro.
84
Hipérbatos, anástrofes, sínquises... os Atos Institucionais da estilística.
85
Conflito que, a bem da verdade, é mais relevante simplesmente por ocupar mais espaço, mas também
porque, como se viu, depois da primeira aparição do discurso interior de Stephen, a disputa entre ele e
Mulligan, se ainda existe, existe somente vista e concebida como tal por Dedalus. Para os fins da narrativa, ela
está plena e singelamente resolvida. Personagens menores, como o padre Conmee, podem, sim, ser brindados
com trechos de monólogo interior, mas este não será, em momento algum, o caso de Mulligan. O narrador
dedaliano jamais o permitiria.
134
tal decisão) por sessenta e sete páginas, e excluído de qualquer domínio sobre ela por, pelo
menos, cento e nove: ele se isola em si mesmo, recolhe o que quer de outras vozes, que
ressoam e ribombam algo pesadas em sua cabeça, e se fecha em sua desconfiança.
Todo esse movimento pode também ser visto como preliminar ao advento de
Bloom (na nova Bloomusalém da Nova Hibernia do futuro, veremos, em outro trecho). Foi
preciso, de um lado, que os leitores se acostumassem com o processo, e que o vissem como
tal para que o reconhecessem em seus desdobramentos e conseqüências; por outro, foi
preciso que se visse como era a resposta possível, se negativa, para que se pudesse
compreender a magnitude da resposta positiva.
Novamente encontramos a estória no meio do caminho. Ou, aqui, até mais próxima
do fim. Não vemos Bloom se afirmando, quer diante de outros, quer diante do narrador. Ele
está posicionado e resolvido quando o encontramos. Se nele algum movimento ele não é
precisamente em direção aos outros, mas para o meio da multidão, cada vez maior, que o cerca
em cada um dos três episódios
86
. Ele aceita. Ou bem refrata inalterado. Isso veremos.
Mas o fato é que se alguém, ao final desta luta, haverá de virar o rosto e se isolar
ressentido, não será o senhor Leopold Bloom. Mas isso também ainda está por ser visto, no
próximo capítulo.
Agora, como pista, veja-se o primeiro parágrafo inteiro, para que se possa ter uma
noção mais adequada do estado de coisas até o momento.
By lorries along sir John Rogerson’s quay Mr Bloom walked soberly,
past Windmill lane, Leask’s the linseed crusher, the postal telegraph office.
Could have given that adress too. And past the sailor’s home. He turned from
the morning noises of the quayside and walked through Lime street. By
Brady’s cottages a boy for the skins lolled, his bucket of offal linked, smoking
a chewed fagbutt. A smaller girl with scars of eczema eyed him, listlessly
holding her battered caskhoop. Tell him if he smokes he won’t grow. O let
him! His life isn’t such a bed of roses. Waiting outside pubs to bring da home.
Come home to ma, da. Slack hour: won’t be many there. He crossed
Townsend street, passed the frowning face of Bethel. El, yes: house of: Aleph,
Beth. And past Nichol’s the undertaker. At eleven it is. Time enough. Daresay
Corny Kelleher bagged the job for O’Neill’s. Singing with his eyes shut.
Corny. Met her once in the park. In the dark. What a lark. Police tout. Her
name and adress she then told with my tooraloom tooraloom tay. O, surely he
bagged it. Bury him cheap in a whatyoumaycall. With my tooraloom,
tooraloom, tooraloom, tooraloom. (1-16)
86
Hayman (1974, p.94): Lotófagos põe Bloom em um cenário mais populoso; permite que ele reaja a estímulos mais variados.
135
Bloom está só. Passará quase todo este episódio solitário, caminhando e encontrando
sempre a si mesmo.
Deveríamos pensar, pressupor, quase crer, que o narrador tivesse, por contingência,
que ocupar espaço maior nessas próximas dezenas de páginas. Não estamos em Proteu e ao
menos até Eumeu (quando isso se dade forma completamente diversa) não assistiremos a
uma performance solo de Bloom. No entanto, ele não permitirá, de sua forma quase
intrusiva, de tão natural, que o narrador se declare ainda independente.
Vai-se formando uma idéia. Dedalus precisou se declarar independente do narrador e
dos outros. Aqui, o processo talvez venha a ser o contrário, tão gigantesca é a presença de
Bloom.
O narrador abre o texto, mostramos, disposto a reafirmar seu domínio
inquestionado. Contudo, se formos analisar o que poderíamos chamar de seu primeiro
período completo (que se conclui na terceira linha) veremos que ele foi grotescamente
fraturado a ponto de a inserção que o rompeu vir marcada não por parênteses, ou vírgulas,
mas sim isolada por pontos finais, estilhaçando em duas partes frangidas as metades do
período muito facilmente reconstruível. E quem irrompe interrompendo é, certamente, a
singela voz de Bloom que, ele, nesse momento, parece de fato vir lendo o relato junto
conosco e, ao ver uma palavra que lhe lembra uma coisa, insere seu comentário. Absoluta
sem-cerimônia.
Ele está em casa.
A narração continua, com um estilo e um vocabulário que não teríamos nenhuma
razão em atribuir a Bloom. O narrador volta a quase se parecer com Dedalus, com quem
talvez, afinal, tenha mais similaridades. E a segunda intervenção de Bloom, o monólogo a
respeito do menino, terá mais corpo agora: mais de três linhas.
Mas será um monólogo? Será ela toda uma intervenção de Bloom?
Retórica, covarde e litoticamente, digo apenas que nem vou mencionar aqui a
tentação que seria atribuirmos aquele tell him não a Bloom mas ao narrador, como naqueles
trechos do cinema pós Frank Capra
87
em que a voz em off do narrador chega de fato a
conversar com o personagem, sem que a estória pareça se incomodar mesmo com isso.
87
Ou pós Walt Disney?
136
Hmm.. E o tom de desprezo que Bloom manifestaria em sua resposta justificaria bastante bem
o que digo no parágrafo a seguir. Mas.. Enfim..
Não vou nem mencionar essa possibilidade.
Depois disso, ele assume enfática e definidamente o controle da narrativa, pelo
restante do parágrafo, a ponto de se tornar, mais uma de infindas vezes, quase
incompreensível em suas referências. Ele, como o Livro, não se preocupa em fornecer dados
que expliquem ou situem nomes, lugares e eventos mencionados de passagem em seu
discurso interior.
Ora, no que se refere a ele, trata-se de mera lei de verossimilhança impedi-lo de
fornecer dados na ordem que fosse a mais clara e mais bondosa para o leitor, evitando que
fizesse como faz, introduzindo-os na medida em que são relevantes para si próprio, com as
notas marginais apenas que requer sua própria memória.
Da natureza do monólogo, afinal: não há réplica que peça esclarecimentos, seu
interlocutor cobre o mesmo conjunto de referências que o enunciador.
E vemos que este, afinal, um ponto tão controvertido do trato do Ulysses com o
leitor, pode também ser visto simplesmente como uma conseqüência (uma extensão) de
princípios que surgiram na esfera de que trata este trabalho. A contaminação que se do
Livro pelos personagens (agora que estamos acomodados junto do pacificado Bloom podemos
perceber com mais facilidade) avança muito além do léxico, do estilo e das preocupações
mais presentes. O Livro aceita características individuais de cada um de seus dois
protagonistas, evitando desmenti-los, sobrepor-se a eles, ignorá-los ou corrigi-los. Mais do
que isso, ele aceita um pacto mais amplo com a categoria personagem, ao encampar a idéia de
que será a sua ética que dominará inclusive a narrativa em tudo que tange o fornecimento de
informações referentes à trama e aos próprios personagens.
Assim, estamos ficando cada vez mais longe daquela situação prototípica, anterior ao
Ulysses, em que uma estória era contada. Cada voz passiva presume um agente, um organizador
externo, titereteiro, narrador. Aqui, o que temos é uma estória que se conta, que se a ver.
Meramente acompanhamos pessoas e vamos vendouvindo o que tenham a nos revelar,
juntando por nossa própria conta os fragmentos, cacos e aparas de informação que
conseguirmos peneirar e montando por conta própria uma estória resultante.
Que, no fim, os tais fragmentos se revelem suficientes (que nenhuma informação
efetivamente crucial acabe por faltar) expõe a mesma verdade que poderíamos derivar do
137
simples fato de constatarmos que estamos acompanhando estas pessoas, e não outras. Há,
ainda uma pessoa por trás disso tudo, que organiza e arranja
88
, distribui e, sim, em alguma
medida guia fatos e leituras de fatos. Mas esta figura se encontra aqui muito mais despida de
suas prerrogativas habituais.
dissemos que pode soar agradável encontrarmos em Joyce narradores tão
francamente indignos de confiança como a figura que nos conta o Ciclope (em um momento
em que o livro estará mais pronto a rediscutir as categorias inicialmente questionadas e
talvez demolidas). Da mesma maneira podemos apreciar como honestidade o artifício da
ocultação da mão que rege.
A situação que quero definir aqui seria no entanto semelhante à que encontraríamos
em uma evolução, gradativa, da manipulação do ventríloquo, para o teatro de fantoches para,
paradoxalmente, o bunraku japonês. Se a primeira delas é de fato primitiva em seus
mecanismos de criação de uma ilusão de movimento independente, a segunda, acredita ter
resolvido esse problema da independência do narrado ocultando a influência que, contudo,
sabe-se presente, o bunraku, apesar de ter os manipuladores muito mais aparentes, pode
criar efeitos impressionantes de autonomia, e talvez seja amais fácil vermos nela uma aura
de honestidade do que no teatro de fantoches. Por não se preocuparem em se esconder os três
manipuladores do bunraku podem dar conta de movimentos muito mais complexos e reais.
É mais difícil criar a ilusão do corpo humano ocupando-se em se manter escondido. O
ardil chama a atenção para si mais do que a exposição, e os movimentos ficam limitados.
Trata-se de técnica, podendo ser usada de ambas as maneiras. Se vemos uma
diferença ética na relação de Joyce e do Livro de Joyce com seus personagens, ela não se
reduz a escolhas técnicas, sendo anterior a elas e se realizando apenas no conjunto de
escolhas técnicas que determina. Torna-se claro, finalmente, que o romance é um gênero problemático, e
que Joyce vislumbrou este fato antes de os teóricos da literatura terem começado a vislumbrá-lo. (Kenner:
1987, p.127)
Enquanto isso, segue estável (mas não por isso menos divertida, se tal comentário
não for considerado descabido) a batalha entre Bloom e o bloomiano narrador, detalhista,
88
Mais adiante discutiremos com mais ênfase a categoria do arranjador, conforme proposta por David
Hayman.
138
alro irônico, femininamente perceptivo. E eles se encontram com outras pessoas, num
prenúncio do que acontecerá no próximo episódio, quase todo ele vivido entre outros.
O primeiro dos outros, o primeiro lotófago (não é de se estranhar que estejam os
outros como que amortecidos aqui) é a funcionária do correio que recebe o cartão de Bloom
e de quem, apesar de termos o registro em discurso direto da primeira frase que Bloom lhe
dirige (55), não ouvimos palavra, enquanto Bloom segue ocupado em assimilar, em prever os
passos e as palavras (presentes ou ausentes) dos que o cercam (e interessam).
No answer probably. Went too far last time. (59)
Ele ouve o que interessa, e o que ouve, ouve como quer, afinal. Não podemos deixar
de assumir que o livro em questão é praticamente uma ode ao monólogo, em que a fala tem
incrível valor, mas não necessariamente a conversa
89
.
Talk: as if that would mend matters. (77-8)
Afinal, os únicos grandes diálogos, realmente pertinentes para a resolução da trama (e,
dado o que acabamos de dizer, com que cuidado temos de utilizar palavras como essas)
acontecem em circunstâncias inequivocamente destinadas a obnubilar nossa percepção do
qualquer conteúdo que tenham podido veicular. Do final de Circe a Eumeu, depois em Ítaca e
Penélope.
Nova e como que ironicamente, o Livro no entanto vem interromper Bloom em
suas divagações e ações, que ambas o mostravam pouco interessado em ouvir, atirando-lhe à
cara seu duplo M’Coy, talvez semelhante demais a ele para poder mover-lhe o interesse
90
.
O diálogo entre os dois durará mais de duas páginas (84-177), mas não receberá de
Bloom qualquer atenção mais detida. Ao contrário do que escolhemos fazer com o trecho
que envolvia a senhora Bloom, reproduzo abaixo toda a cena entre os dois personagens,
retirando dela todas as falas que registra, marcadas por travessão. O que restará serão apenas
as interferências do narrador e as divagações de Bloom, enquanto trinta e uma réplicas (18
89
Chegaremos a versões ainda mais radicais dessa conclusão na análise de trechos mais adiantados do livro.
90
Talvez seja ir longe demais, mas não consigo deixar de ver a rima entre o nome de M’Coy e a palavra decoy
que pode se referir ao animal artifial feito para atrair um outro em uma caçada. Uma isca, montada por
semelhança.
139
falas de M’Coy; 13 de Bloom) são trocadas, referentes ao empréstimo de uma valise para
uma viagem que a esposa soprano de M’Coy fará para cantar (empréstimo e assunto que
Bloom evitará: M’Coy é um notório emprestador e destruidor de valises) e ao enterro de
Dignam, onde M’Coy pede que Bloom registre seu nome, caso não consiga ir (não
conseguirá, e seu nome, apesar de tudo, constará da lista publicada no jornal, e que lemos em
Eumeu. Já o de Bloom...).
Começamos logo antes da primeira fala.
M’Coy. Get rid of him quickly. Take me out of my way. hate company
when you.
[...]
His eyes on the black tie and clothes he asked with low respect:
[...]
A photo it isn’t. A badge maybe.
[...]
Mr Bloom gazed across the road at the outsider drawn up before the
door of the Grosvenor. the porter hoisted the valise up on the well. She stood
still, waiting, while the man, husband, brother, like her, searched his pockets
for change. Stylish kind of coat with that roll collar, warm for a day like this,
looks like blanketcloth. Careless stand of her with her hands in those patch
pockets. Like that haughty creature at the polo match. Women all for caste till
you touch the spot. Handsome is and handsome does. Reserved about to
yield. The honourable Mrs and Brutus is an honourable man. Possess her
once take the starch out of her.
[...]
Doran, Lyons in Conway’s. She raised a gloved hand to her hair. In
came Hoppy. Having a wet. Drawing back his head and gazing far from
beneath his veiled eyelids he saw the bright fawn skin shine in the glare, the
braided drums. Clearly I can see today. Moisture about gives long sight
perhaps. Talking of one thing or another. Lady’s hand. Which side will she
get up?
[...]
Off to the country: Broadstone probably. High brown boots with laces
dangling. Wellturned foot. What is he fostering over that change for? Sees me
looking. Eye out for other fellow always. Good fallback. Two strings to her
bow.
[...]
Proud rich: silk stockings.
[...]
He moved a little to the side of M’Coy’s talking head. Getting up in a
minute.
[...]
Watch! Watch! Silk flash rich stokings white. Watch!
140
A heavy tramcar honking its gong slewed between.
Lost it. Curse your noisy pugnose. Feels locked out of it. Paradise and
the peri. Always happening like that. The very moment. Girl in Eustace street
hallway Monday was it settling her garter. Her friend covering the display of.
Esprit de corps
. Well, what are you gaping at?
[...]
The tram passed. They drove off towards the Loop Line bridge, her
rich gloved hand on the steel grip. Flicker, flicker: the laceflare of her hat in
the sun: flicker, flick.
[...]
He unrolled the newspaper baton idly and read idly:
What is home without
Plumtree’s Potted Meat?
Incomplete.
With it an abode of bliss.
[...]
Valise tack again. By the way no harm. I’m off that, thanks.
Mr Bloom turned his largelidded eyes with unhasty friendliness.
[...]
Mrs Marion Bloom. Not up yet. Queen was in her bedroom eating
bread and. No book. Blackened court cards laid along her thigh by sevens.
Dark lady and fair man. Letter. Cat furry black ball. Torn strip of envelope.
Love’s.
Old.
Sweet.
Song.
Comes lo-ove’s old...
[...]
M’Coy nodded, picking at his moustache stubble.
[...]
He moved to go.
[...]
Didn’t catch me napping that wheeze. The quick touch. Soft Mark. I’d
like my job. Valise I have a particular fancy for. Leather. Capped corners,
rivetted edges, double action lever lock. Bob Cowley lent him his for the
Wicklow regatta concert last year and never heard tidings of it from that good
day to this.
Mr Bloom, strolling towards Brunswick street, smiled. My missus has
just got an. Reedy freckled soprano. Cheeseparing nose. Nice enough in its
way: for a little ballad. No guts in it. You and me, don’t you know: in the same
boat. Softsoaping. Give you the needle that would. Can’t hear the difference?
Think he’s that way inclined a bit. Against my grain somehow. Tought that
Belfast would fetch him. I hope that smallpox up there doesn’t get worse.
Suppose she wouldn’t let herself be vaccinated again. Your wife and my wife.
Wonder is he pimping after me?
141
Mr Bloom stood at the corner, his eyes wandering over the
multicoloured hoardings. Cantrell and Cochrane’s Ginger Ale (Aromatic).
Clery’s summer sale. No, he’s going on straight. (82-194)
A interrupção da tranqüilidade de Bloom pela intromissão de M’Coy começa sendo
deixada muito clara por ambas as partes interessadas: Livro e Personagem. A bem da
verdade, o mais interessante neste trecho, para nós, sobre analisarmos as semelhanças entre
as figuras dos dois personagens, ou a relevância do que M’Coy diz ou não diz a Bloom, e
sobre Bloom, portanto, será vermos a colaboração de Livro e Personagem agora
definitivamente estreitada e consolidada, diante de um inimigo comum, um outro indesejado.
Bloom expressa inequivocamente seu descontentamento com topar com o
conhecido, e o Livro, sublinhando esse incômodo, interrompe a meio caminho a sintaxe de
Bloom para representar a primeira intervenção de M’Coy. Brutalmente interrompido bem
quando.
Na seqüência, surge o primeiro de apenas dois momentos em que o instrumental no
narrador se preocupará com M’Coy. É fundamental que o vejamos neste trecho (que o
ouçamos neste trecho) exata e unicamente conforme seja percebido por Bloom, que é a
régua de toda diferença, e que trabalha, desde o princípio, muito afinado com o narrador e
seu empregador. Sem tensões que determinem qualquer desejo ou efeito de solapamento de
sua estabilidade.
Ou será que este primeiro comentário se deve unicamente ao narrador?
Não uma descrição impessoal absoluta, que talvez dissesse ele olhou para a
roupa preta, nem, muito menos, uma sintonia simpática que permitisse expor eventuais
sentimentos de M’Coy. O que temos é uma singela descrição que pode muito bem ser
recebida como uma descrição provinda do interlocutor, que menciona apenas que M’Coy
está com os olhos na roupa preta do senhor Bloom. É o narrador em sua mais
inquestionada função (a de enunciar os he said) que, mesmo assim, se expressa através do
ponto de vista (literalmente, sem hífens) de Bloom, sem que, por outro lado, qualquer marca
dêitica indique ser esta uma enunciação de Bloom. Não se diz que ele estava com os olhos
em minhas roupas pretas (mas também não se diz nas roupas pretas do senhor
Bloom...). É nesta fronteira, incrivelmente tênue, que se move a identificação de narrador e
personagem chez Bloom.
142
No momento seguinte temos Bloom completamente removido da situação e
questão, preocupado apenas em, oculto, remexer dentro do bolso verificando qual seria o
objeto preso à carta de Martha com um alfinete. Ele estava precisamente fazendo isso
quando foi interrompido, no meio da sentença e da ação, pela intromissão de M’Coy e agora,
conquanto diante dele e ouvindo suas sentenças, retorna ao que realmente lhe interessa.
O próximo parágrafo já nos traz Bloom ausentado mesmo de sua preocupação
anterior, porque algo, mais relevante, apareceu. Duas primeiras sentenças facilmente
atribuíveis ao narrador, uma terceira, algo mais ambígua (como devem ser as transições,
afinal), e estamos novamente mergulhados na consciência de Bloom. É interessante vermos
como essa pequena transição, outro pequeno zoom in, dentro do parágrafo, ecoa uma outra,
maior, que sucede desde a entrada de M’Coy, nos três exemplos anteriores. Dos olhos de
Bloom, que observam os de M’Coy, vamos para dentro do seu bolso: suas mãos se ocupam
mas os olhos e os ouvidos ainda podem ser de seu interlocutor. No momento seguinte, seus
olhos se foram e, pela concentração que tal momento exige deste voyeur, em breve os ouvidos
se desligam de todo (ou quase isso: ele ainda não é Dedalus) do pobre coitado que sola
diante dele.
Ele viaja rápido, da visão da mulher para considerações bem mais gerais sobre as
mulheres. Ficasse apenas comentando o que via, poderíamos ainda pensar que alguma
atenção estava sendo dedicada. Mas a digressão veloz e selvagem não nos deixa opção senão
admitirmos que ele praticamente se esquece de M’Coy. E o Livro nos oferece um trecho
novo da narrativa de M’Coy, como sempre, no meio do caminho, para que não nos
esqueçamos nós.
Bloom, no entanto, também ele interessado em apreender aquele pequeno trecho de
informação para não se desligar de todo, e não correr o risco de parecer (parecer?) indelicado
e perder de todo o fio (o interesse nunca é unicamente o do leitor), se dedica a reconhecer
fiapos, farrapos do que foi dito, e repete mentalmente como que tomando nota (Doran
Lions in Conway’s). Na sentença seguinte ele está de novo acompanhando o desenrolar
da odisséia que mais lhe interessa agora, mas volta, depois do ponto, a assinalar a recepção
de outra felpa de dado, pois Hoppy Hollohan também passou a fazer parte da estória de
M’Coy. E vamos nós de novo acompanhar a expectativa do observador que mal pode
esperar.
143
A moça vai subir no carro. E, subindo, terá de mostrar das pernas mais do que os
costumes de 1904 permitiam a uma mulher parada na calçada. É isso que ele quer. É isso que
o destino está prestes a lhe dar. E é isso que M’Coy parece destinado, se não a roubar, ao
menos a ofuscar com seu falatório senfim que continua a demandar lapsos de atenção
(lapsos na atenção que era devida unicamente à moça e suas pernas, afinal).
A próxima réplica de M’Coy reproduzida pelo Livro (115-116) tem a finalidade de
contar o que foi que Hoopy teria dito e, por esta razão se inicia com um and he said.
M’Coy, curiosamente, assume papel de narrador e entrega a voz a uma outra pessoa.
A bem da verdade, em Lotófagos, o papel de narrador está quase vago, tamanho o
domínio que Bloom (já não basta falarmos apenas do domínio da voz de Bloom) exerce
sobre ele
91
. Pouco encontramos aaqui que seja inequívoca e necessariamente atribuível a
ele, conquanto tenha-se aberto o texto com uma tentativa de afirmação de sua voz, muito
rapidamente, no entanto, e iconicamente, sufocada sob a torrente do pensamento
bloomiano. Assim, não deixa de ser curioso que essa figura marginal e incômoda (M’Coy),
em muitos aspectos um espelho de Bloom (a mulher cantora, os empregos ocasionais
próximos da imprensa, a marginalidade em relação aos outros cidadãos), assuma agora um
papel de narrador delegado, como que em um míni skaz de efeito, como se poderia
presumir, cômico.
Bloom, que mal o ouve, passou por cima do narrador, e ele aqui resume as duas
coisas. No entanto, faz-se ouvir com sucesso a voz de Hoppy. Isso não mudou. o é
ditatorial a regra de Leopoldo.
E dom Leopoldo, no entanto, continua pensando naquela mulher, a ponto de se
entregar, de se deixar levar por sua habitual synpathia, misturada aqui a seu mais espúrio
(espúrio?) interesse próprio, e se irritar com a demora de seu acompanhante em pegar o
troco no bolso. Logo depois disso ele deduz que, orgulhosa e rica, ela deve estar trajando
meias de seda, o que apenas açula mais sua curiosidade.
Herring (p. 75) já dizia que, ao contrário de Odisseu e à semelhança dos que
convivem com ele neste trecho, Bloom cai vitimado pelo Lótus. Talvez seja essa uma razão,
uma explicação para o fato de estarmos vendo Bloom assim tão entregue a seu próprio
umbigo e a seus interesses sensoriais mais imediatos. Mais do que isso, ainda, talvez
91
Aqui, como em Nestor, o narrador se retira, tornando-se quase invisível, mas retornando ocasionalmente para comentar
detalhes. (Hayman, p. 94)
144
possamos ver nessa metáfora, muito mais do que motivada pelo paralelo homérico, uma
explicação, uma razão para vermos o aparato todo da narrativa tão conformado, neste
momento, em ceder espaço a Bloom e a seu umbigo.
Mas não precisamos, nós, estender por força de construto externo o paralelo
homérico ao arcabouço técnico da narrativa. Tal extensão se pelas regras que o mesmo
texto vem nos fornecendo, vem criando para si próprio.
Pois podemos crer que a arte que estamos descobrindo nesses primeiros episódios é
a de uma responsividade cada vez mais aguda, cada vez mais refinada (cada vez mais afinada
e mais complexa), por parte deste aparato da narrativa, a uma série de fatores que
começamos a perceber via estruturas lexicais, e depois passamos a ver em comportamentos e
estados de espírito. Assim, se Bloom escomo que sedado e auto-indulgente, é corolário
necessário daquilo que o próprio livro nos vem ensinando que o narrador e seu aparato
também estejam.
Pois M’Coy continua falando. Ou o será bem ele, pois ele não se bem uma
pessoa, mas apenas uma cabeça falante de que Bloom tenta se desviar no trecho seguinte.
A próxima intervenção é ainda mais curiosa. Aqueles dois imperativos, que em outro
momento tivemos quase a tentação de atribuir ao narrador, como que se dirigindo a Bloom,
aparecem seguidos de uma sentença que, terminando com sua repetição, se revela algo muito
difícil de atribuirmos unicamente a Bloom.
Como vimos em outro momento, parece haver muito pouco de fluxo
desorganizado nos monólogos interiores do Ulysses. Mesmo na longa fala de Molly, ao final,
veremos que em grande parte as ambigüidades (especialmente ambigüidades de referência, e
na sua maioria ambigüidades de referência do pronome he) presentes no texto são
cuidadosamente calculadas em função de um efeito desejado. Assim não podemos atribuir
banalmente o esfacelamento da estrutura sintática presente neste trecho a algum
procedimento normal do fluxo de consciência. Ele está ali, sim, como artefato estético destinado
a causar sensações específicas, e, por excessivamente desviante, não pode deixar de chamar
atenção para seu desvio e, logo, para a intenção estética do texto.
Não precisamos elocubrar indefinidamente sobre o alcance dos poderes estéticos de
Bloom e suas características estilísticas verbais para determinar a autoria do fragmento citado.
Sua própria intencionalidade estética já basta para que tenhamos uma preferência por atribuí-
145
la a alguém com consciência da obra como obra. A uma persona (que por enquanto ainda
chamamos de Livro) que se utiliza do narrador e de seus poderes para obter seus fins.
Ou seja, novamente narrador e Bloom estão fundidos. E, mais do que isso,
novamente vemos que a hierarquia entre eles resta inquestionada e inquestionável.
O efeito de estranhamento segue na frase seguinte, que analisaríamos da mesma
maneira, até a volta da voz desimpedida de Bloom no próximo parágrafo. Neste momento,
ele está tão profundamente absorto e tão definitivamente frustrado que qualquer
apresentação imediada do conteúdo de sua consciência muito provavelmente se resumiria a
imprecações e jaculações desconexas.
O mesmo se pode dizer do próximo parágrafo, que novamente termina em um tom
poético-aliterativo que reconhecemos como estranho a Bloom. Sua voz desfaleceu. O
narrador precisa tomar controle da situação para que nada se perca. E o mais bizzaro,
especialmente se lemos o texto como ele está apresentado aqui, é que M’Coy, apesar da
desatenção de Bloom, do narrador, e dos leitores, não deixou de falar... É bem possível que
ele não tenha dito nada durante o penúltimo excurso bloomiano. É muito possível,
conseqüentemente, que tenha apenas imperado um silêncio constrangedor entre os dois,
com Bloom olhando para outro lugar, até que este resolva por fim à situação com algo que é
pouco mais do que uma platitute inane.
Mais um que se vai...
Não é somente seu ouvido que Bloom sovina.
M’Coy responde à platitude com outra de igual calibre. E das melhores...
E mais silêncio. Apenas para quem não esteja, como nós dentro de Bloom.
M’Coy agora entra na conversa mole social e Bloom, determinado a não lhe devolver
ouvidos e olhos, descaradamente abre o jornal e , mais uma vez, o anúncio de carne em
conserva que o perseguirá durante todo o dia. M’Coy começa a tatear o caminho para pedir
o empréstimo da valise, o que Bloom antevê. A estas alturas, garantidas a cumplicidade do
narrador e do leitor, ele es quase que descaradamente fornecendo ele mesmo
comentários de narrador, notas de rodapé, elucidando as verdadeiras intenções de seu
interlocutor, em um processo a que o narrador deste livro ainda o se entregou, ao menos
não em relação a ele.
Pode não se tratar de uma ditadura, mas certamente se trata de algum domínio.
146
Pois o narrador, novamente a serviço, se detém agora em descrever a amistosidade
sem-pressa com que Bloom, consciente dos efeitos que causa, move seus olhos, depois de
quase duas páginas de quase total ausência, novamente para o rosto de M’Coy. E busca, de
uma vez, dissuadi-lo e apequená-lo, mencionando o grande evento de que sua mulher, a
verdadeira cantora, participará em breve. Bloom tem, sobre os outros personagens, direitos,
prerrogativas, que o narrador não tem em relação a ele.
Mas ele cai vítima de seu mesmo ardil, pois M’Coy, em retribuição, pergunta apenas
who’s getting it up?. As ressonâncias de duplo sentido da expressão (quem está
organizando, quem está levantando: quem está montando, dizemos nós) também ressoarão
durante todo o livro. E o duplo fato de esta leitura ser possível, e de o nome em questão ser
o do inominável Boylan, solta Bloom em uma divagação que, agora, pouco tem de enfadada
e impaciente. Ele se genuinamente incomodado pela lembrança que, a todo custo, tentará
manter abafada durante seu dia. E os fatos se empilham, as memórias se sobrepõem, a
música soa em seus ouvidos... e ele, despojado da persona superior do desprezo e da
desatenção, desarmado, vulnerável, tem de se sair com uma frase truncada, invadida pelo
narrador e por seu discurso interior, que veicula quase nenhum sentido claro e, muito
especialmente, não responde à pergunta específica de M’Coy.
It’s a kind of a tour, don’t you see, Mr Bloom said thoughtfully.
Sweeeet
song
. There’s a commitee formed. Part shares and part profits. (162-163)
Ao que M’Coy, surpreendentemente, responde com uma frase para-bom-entendedor
e, ainda mais surpreendente, conta com algum auxílio do narrador que, finalmente, logo
depois de Bloom, volta a olhar para ele, e o descreve fazendo que sim com a cabeça e
cofiando a raiz de seu bigode. Como diria Stephen, ele sabe.
O ponto, para nós, é que, vulnerado, Bloom perdeu sua estabilidade galharda e se viu
acessível. Igualmente, o narrador se mostra acessível, saqueável, apenas por aqueles que, em
algum momento, despertam seu interesse, são capazes de atingi-lo, podendo ser igual e
ferreamente bloqueado no que se refira a outros. E M’Coy, algo vingado pelo desprezo, se
prepara para ir embora. Não sem antes pedir um favor que, por um Bloom desarmado (esta
é a maior troca de réplicas de toda a cena: seis, ao todo, sem interrupções), será concedido
sem pestanejar.
147
E, novamente , é Bloom quem tem todo o campo para se vingar. E novamente
informações vêm a tona sem que se possa atribuir tal fato apenas ao interesse do leitor e, ou,
da narrativa. É Blom quem quer fazer visíveis as fraquezas, os podres de M’Coy, que, de
início simpático, apenas por culpa sua acaba por tratá-lo como, em geral, os outros o
tratarão. Daí a seqüência de lembranças de estórias de desdouro, a citação de trechos da fala
de M’Coy, evidenciando sua falta de refinamento (my missus), o juízo muito pouco
favorável de sua mulher, as ofensas e insinuações. Bloom chega à conclusão de que, de
alguma forma, aquele sujeito não lhe vai. Apenas não enxerga o porquê.
Ele chega a pensar, em um delírio de perseguição, que M’Coy possa ser
homossexual, e possa estar tocaiando seus passos, apenas para reconhecer que não, que ele
se foi.
E ele está novamente livre para se entregar a seus pensamentos e, como de costume,
não pensar mais no assunto.
É a paz de Bloom, que poderia parecer o inferno para Dedalus.
Agora, antes de qualquer outra intromissão nas palavras de Bloom, conviveremos com
seu discurso por mais de uma página. São 46 linhas, nas quais aparecerão 79 frases. Dessas,
como que a corroborar o que vínhamos dizendo a respeito do respeito do narrador por
Bloom, apenas 10 são necessariamente atribuíveis a esse narrador, e em sua quase totalidade
elas se referem àqueles afazeres domésticos da narrativa, sem os quais podíamos inclusive
esquecer ser essa sua natureza. Os comentários do narrador seguem abaixo, apenas para que
não fique vã a afirmação.
1. Mr Bloom went round the corner and passed the drooping nags of the
hazard. (210-11)
2-3. He came nearer and heard a crunching of gilded oats, the gently
champing teeth. Their full eyes regarded him as he went by, amid the sweet
oaken reek of horsepiss. (213-15)
4. He drew the letter from his pocket and folded it into the newspaper he
carried. (221-2)
5. He passed the cabman’s shelter. (223)
6. He hummed: (226)
7. He turned into Cumberland street and, going on some paces, halted in the
lee of the station wall. (229-30)
8. With carefull tread he passed over a hopscotch court with its forgotten
pickeystone. (231-2)
148
9-10. Near the timberyard a squatted child at marbles, alone, shooting the taw
with a cunnythumb. A wise tabby, a blinking sphynx, watched from her warm
sill. (232-4)
Apenas estas últimas duas ocorrências apresentam algum problema de atribuição e,
com elas, podemos contemplar um aspecto da interferência de vozes entre personagens e
narrador em que, aaqui, não nos detivemos. Se em outros momentos, desde a abertura do
livro, pudemos pensar ver na voz do narrador traços de elementos vocabulares, estilísticos e
psicológicos das personagens principais, agora, no trecho bloomiano do livro, em que tais
relações se encontram muito mais pacificadas, cabe finalmente notar que, em certos trechos,
agora que os papéis estão algo estabilizados, é na voz do personagem que podemos
encontrar sinais da habilidade e da praxe lingüística do narrador. Nestas duas últimas frases,
parece em tudo e por tudo mais interessante pensarmos que Bloom recebeu ‘uma mãozinha’
do narrador, do que pensarmos que este está em suas palavras exprimindo o que ocorreu a
Bloom.
Bem entendido, trata-se de dar nome aos bois. A interferência está estabelecida. No
caso de Bloom e seu narrador, está estabelecida mesmo uma certa comunhão de interesses e
tonalidades. Ergo... A estrada que sobe é a mesma que desce.
veremos a palavra de outro entrar por si só no texto novamente (como já adiantei
neste capítulo, passamos por um momento em que Bloom se recorda de palavras de seu pai,
e em que ficamos sabendo seu nome: Leopold) quando nos é, finalmente (M’Coy também
nos tirou do caminho reto e direto, afinal), apresentada a carta de Martha.
Esta carta é tratada por Bloom com muito mais acídia do que a que ele poderia ter
dedicado ao igualmente corrompido texto de Milly. Uma das gralhas de Martha (I do not
like that other world (245)) ecoará por todo o livro
92
e o fato de ela ter prendido uma flor a
sua carta será devidamente ironizado por Bloom em sua litania sobre a “linguagem das
flores” (264-6). Martha ele manipula. Protegido por um nome falso, Henry Flower, que
ficamos conhecendo neste mesmo capítulo (62), ele se sente livre para não se sentir exposto
a ela. Sua raiva não lhe diz respeito, seus pudores, temores e tremores definitivamente não
são os seus.
92
(8.328), (11.871) e (13.1263)
149
No entanto, como no caso de Milly, e ao contrário do senhor Deasy, tivemos acesso
ao texto integral dessa cartas. É óbvio que a presumível extensão, o absoluto desinteresse
para a trama, e o desprezo muito maior que Stephen sente por seu patrão todos justificam
essa omissão. No entanto continua me parecendo significativo que não possamos ter visto
nenhum trecho inteiro da carta de Deasy. Ela só nos é apresentada através da leitura
apressada de Dedalus. as cartas das mulheres de Bloom são lidas, por ele e por nós, por
mais que possam vir a ser, também motivo de recapitulações parciais e, ou, tendenciosas.
Bloom cede espaço, por não poder evitar (caso de sua filha), ou por não se sentir
ameçado (caso de Martha), ambas possibilidades via de regra distantes de Dedalus e,
conseqüentemente, de seu narrador.
150
L. O princípio do tio Charles.
Fecho a discussão deste episódio com uma leitura de um trecho extremamente
iluminador de um texto com um título mais do que adequado. Trata-se da cadeia de
arguentos que, em Joyce’s voices, de Hugh Kenner, leva ao estabelecimento do princípio do tio
Charles.
Kenner começa com descrever o que ele chama de princípio da objetividade, que
teria sido resumido e simultaneamente suplantado por Joyce. O primeiro determinante das
obras escritas segundo tal princípio é que [f]icamos sabendo apenas das coisas que um observador
teria vivenciado, e ficamos sabendo delas na ordem em que as teria vivenciado (p.4). Ou seja, temos
uma glosa do princípio que rege a distribuição de informação relativa aos personagens, à
trama, e ao ambiente externo nessa primeira parte do Ulysses, desprovidos, que estamos, da
presença de um guia com uma consciência abrangente, que fosse capaz de, e estivesse
interessado em, esclarecer pontos relevantes antes mesmo que eles pudessem vir a tona
naturalmente
93
.
Uma segunda regra, incontornável, desse jogo é que “a objetividade evita piscadelas”
(p.8). Ou seja, não teremos o privilégio de compartir do cinismo, do excedente de
conhecimento que nos o conforto da superioridade. As coisas serão o que são, ou o que
as pessoas que as retratam pensam que sejam (isso tudo irá ao zênite com Gerty e Nausícaa).
Nosso fidus achates, o narrador, não rirá à sorrelfa de qualquer dessas idéias e de suas
representações.
Não saberemos mais que Bloom. Não poderemos rir dele a não ser pelo que ele
mesmo nos fornece.
(Aqui cabe um excurso dentro do excurso. É de se pensar se a reputação de que
Joyce goza (goza?) em certos círculos: a de um supremo ironista, não é uma injustiça contra
seus mesmos princípios de representação da consciência. Pois a ironia pressupõe a piscadela,
e, antes de tudo, pressupõe a presença de uma figura autoritária que inspire no leitor
confiança suficiente para compactuar com ela em uma leitura que, a princípio, segue a
contra-pêlo das evidências. Ao menos no Ulysses, e ao menos até aqui. Nada vimos que caiba
nessa definição.)
93
Um narrador como aquele que teria escrito as linhas-pastiche que apresentamos anteriormente sobre a
família Bloom.
151
O curioso na definição de objetividade do joyceaníssimo Kenner é que ela se
transforma, imediatamente, na objetividade do outro. Ela se livra da voz objetiva naturalista,
por exemplo, em busca de uma verdade que é a verdade da mentira, a verdade da ficção, a
verdade do personagem.
Em conseqüência disso é que ele pode afirmar, comentando mesmo os contos de
Dublinenses, alguns dos quais escritos quase vinte anos antes da publicação do Ulysses: Eis um
pequeno exemplo de uma verdade generalizável a respeito do método de Joyce: suas ficções tendem a não ter
um narrador distanciado [detached], embora pareçam ter. (p.16). o se pode confundir
objetividade com frieza da análise científica. Aqui, com Joyce, trata-se, muito mais, de se
reconhecer as precedências éticas.
Em um romance, é a ficção quem prevalece.
Tudo isso leva ao fato de que o idioleto da narrativa não precisa ser o do narrador(p.18)
que é a mas crua definição do dito princípio do tio Charles, pois tal figura (o narrador),
dentro desses novos quadros objetivos, se viu tão privada de sua postura superior e excedente
que, agora, pode-se ver privada do privilégio de determinar o tom da narrativa. A
objetividade agora se transporta aos domínios da linguagem, pois, como o mesmo Kenner
notava, nada depende tanto quanto a Objetividade da linguagem e dos rituais da linguagem; a Objetividade
que prometera escapar da retórica e fazer os fatos emitirem suas próprias declarações. (p.14)
Se um livro são palavras. É nelas, e nelas, que se constróem fatos e objetividades.
Não há fatos, afinal. Há versões.
Eis uma delas.
Em um trecho de Um retrato do artista quando jovem, surge a seguinte frase.
Every morning, therefore, Uncle Charles repaired to his outhouse but
not before he had greased and brushed scrupulously his back hair and
brushed and put on his tall hat.
Wyndham Lewis, sempre determinado a derrubar Joyce, comentou que as pessoas se
dirigem a lugares apenas em obras de ficção da mais baixa estirpe. Kenner se detém
longamente em mostrar que o que escapava a Lewis era precisamente o fato de que aquele
não era o idioleto do narrador, mas sim o do tio Charles, que era a fonte, também, de um
advérbio como escrupulosamente. O trecho acima havia rompido a vaga fronteira que separa
152
o discurso indireto livre da plena interferência de vozes, aquilo que Kenner batizará em
homenagem a este personagem.
pude ler o livro de Kenner no início de 2005. Antes disso sempre me deliciava
com o trecho em que o narrador (369-71) (já ia escrevendo Bloom, veja-se só..) descreve os
movimentos do celebrante em um missa, e relata que, debaixo do treco de renda que ele usava,
surgiu uma sola de bota.
É obviamente Bloom quem está olhando, embora não seja, em hipótese alguma (o
parágrafo se inicia por um pronome que o deixa margem para dúvidas: he), sua a voz que
narra. E é não ele que repara na bota, como é ele quem desconhece o nome da veste de
um padre católico. Stephen, o menino que carregou a naveta de incenso em Clongowes,
como dissemos, jamais permitiria esse vacilo de seu narrador.
O princípio da objetividade (estendido pelo princípio do tio Charles) conforme
exposto aqui, pode ser, por exemplo a chave para que se compreenda o cosidetto fracasso da
peça de teatro e Joyce, Exiles.
Olhando-se de pronto, poderia parecer que a adramaticidade do drama se deva à
ausência de um narrador que guie, que comente e aprofunde a ação e as ações.
Pensado através desta lente, no entanto, esse fracasso parece provir muito mais da
ausência do monólogo interior do que da ausência desse narrador. Joyce aparentemente, ao
contrário, por exemplo, de William Gaddis, não conseguia se sustentar nos diálogos. Ele
precisava dizer mais sobre seus personagens. Mas seu caminho para guiar, para dizer mais do
que eles mesmos dizem não era complementar o que dissessem e fizessem, era, sim, como
de costume, mostrar. Dar mais e mais espaço a seus personagens para que eles, em ação, em
ações, mostrem e digam mais de si mesmos, guiados, sempre, bem entendido, pela mão do
arranjador, seu criador.
153
M. O inferno são os outros: Glasnevin, onze horas da manhã
Estamos, com o Ulysses, nos movendo em direção ao diverso. O livro se abre
retomando temas, personagens, idéias, sentimentos e técnicas de Um Retrato. Em escala
ampliada, modificada. Pela altura do terceiro episódio, entretanto, pudemos perceber que
as centenas de páginas restantes ainda hão de reservar surpresas consideráveis. Nada como
Proteu, nada da intensidade e da extensão de Proteu se poderia encontrar seja em Um Retrato,
seja em qualquer outro lugar: seja onde for.
A mesma estrutura do nosso texto e persistentes lembretes espalhados por ele vêm
alertando para o fato de que devemos esperar mais encontros com o vário para depois do
sexto capítulo, quando, no que se refere especificamente ao tema deste nosso trabalho, se
estilhaça a estabilidade, num processo, contudo, tudo menos inesperado, tudo menos
imprevisto e inaudito. As quebras, os contrastes, as oposições vêm aparecendo gradualmente
desde a abertura do livro. Com o recurso a elementos de seu romance anterior, Joyce
consegue fazer com que mesmo a primeira página do Ulysses se possa ler sob o signo da
mudança e, por que o, do progresso. Daí em diante, como todo leitor da obra sente (por
vezes dolorosamente) na própria pele, trata-se de um livro, como dizemos, que se aprende, e
que caminha irrefreavelmente para o novo que, mais uma vez, se dará em outro livro.
Hoje, domesticados por Joyce, estamos mais afeitos a reconhecer esse momento (no
sentido mecânico) que impregna o Ulysses em todos seus estratos, estilística, conteudística e
psicologicamente, como algo positivamente avaliável. Para os primeiros leitores, no entanto,
tal característica soube parecer um empecilho e um dificultador quase gratuito. Mesmo Ezra
Pound, em dado momento, pôde reclamar da necessidade da adoção de um estilo para cada
episódio.
Agora, enfim, vamos ao inferno.
E David Hayman, sempre acurado (1970, p.94), já lembrava que, de alguns pontos de
vista, o verdadeiro contraste vem com Hades, onde a voz de Bloom, ainda dominante, é suplementada por
diálogo. Bloom, acuado pelas hostes das trevas, estará quase que permanentemente cercado de
outros, de vozes que não a sua, que o interrompem e invadem.
154
Por outro lado, Adams (p.114), ressalta, com igual acurácia, que aqui Bloom está menos
fisicamente; mais espiritualmente. Como no caso de todo verdadeiro deslocado, a presença
de seus pares não faz mais que acentuar o não-pertencimento de Bloom e mesmo revelar uma
certa hostilidade para com ele, disfarçada, matizada, abafada mas presente. A análise deste
episódio, devidamente expostas as bases do processo que acredito venha se desenrolando no
livro todo, pode agora se dedicar a mostrar como é tratada a voz de Bloom pelos outros
personagens. Ele, que pudemos mostrar ainda mais (ou apenas diferentemente) democrático do
que Dedalus, vê-se agora atacado e cerceado por vozes outras.
Com colaboração da voz narradora?
Em que está agora a curiosa relação de Bloom com esta voz? Menos diretamente
comprensível que a de Stephen (que é mais orientada em direção a), mas não
necessariamente mais complexa que aquela.
O que viemos tentando demonstrar mostra que, ao contrário da batalha aberta que
se encenou entre Dedalus e o narrador, com Bloom vemos como que um putsch, uma
silenciosa e inquestionada revolução que faz com que o narrador se encontre, desde muito
cedo, conquistado ou subjugado por Bloom. Ele está cansado de Stephen? Em que medida a
psique desse narrador se equipara à de um eventual leitor? De um leitor ideal, ou implícito?
Nessa veia, ele pode apenas se contentar, minoria, com pequenas mesquinhezes que
revelem os pés de barro de Bloom durante os dois primeiros capítulos e vem parecendo cada
vez mais ceder o poder de instância que gere contraste e enriquecimento da narrativa a uma
outra figura, aquela que venho chamando de Livro e que, mais adiante, discutiremos em suas
possíveis relações com o Arranjador de Hayman. Quem decide quem Bloom encontrará,
quando, em que circunstâncias. Quem estabelece as simetrias, por espelho (Sargent e M’Coy)
ou oposição, o que parece ser o caso de Proteu e Hades.
No primeiro, vimos Dedalus precisar se afastar totalmente da foule para se estabelecer
como voz que, afinal, se constitui da assimilação (autoritária) de outras. Aqui, veremos
Bloom tendo de se manter afirmado como tal no preciso momento em que, muito pelo
contrário, ele se vê imerso em um contingente de personagens inédito no livro
94
.
94
Usando o viés estabelecido por Cristovão Tezza (2003) podemos tecer considerações extremamente
pertinentes à leitura do texto, e aos diferentes modos de constituição da autonomia das vozes de Dedalus e de
Bloom. Dedalus seria (como não poderíamos estranhar) o modelo do poeta, que precisa afirmar a cada
momento sua autoridade sobre o mundo e as vozes que o cercam, mesmo que tal processo se com a
finalidade de, no fim, apresentar um discurso, uma voz, que, como não poderia deixar de ser, é também
155
E o episódio se abre, como que a iconizar todo esse processo
95
, da seguinte maneira.
Martin Cunningham, first, poked his silkhatted head into the creaking
carriage and, entering deftly, seated himself. Mr Power stepped in after him,
curving his height with care.
– Come on, Simon.
– After you, Mr Bloom said.
Mr Dedalus covered himself quickly and got in, saying:
– Yes, yes.
– Are we all here now? Martin Cunningham asked. Come along, Bloom.
Mr Bloom entered and sat in the vacant place. He pulled the door to
after him and slammed it twice till it shut tight. He passed an arm through
the armstrap and looked seriously from the open carriagewindow at the
lowered blinds of the avenue. One dragged aside: an old woman peeping.
Nose whiteflattened against the pane. Thanking her stars she was passed
over. Extraordinary the interest they take in a corpse. Glad to see us go we
give them such trouble coming. Job seems to suit them. Huggermugger in
corners. Slop about in slipperslappers for fear he’d wake. Then getting it
ready. Laying it out. Molly and Mrs Fleming making the bed. Pull it more to
your side. Our windingsheet. Never know who will touch you dead. Wash and
shampoo. I believe they clip the nails and the hair. Keep a bit in an envelope.
Grows all the same after. Unclean job. (1-19)
Por vezes parece demais
96
.
Os três personagens que acompanharão Bloom na viagem ao cemitério (as três
cabeças de Cérbero?
97
), em suas primeiras aparições no livro, são apresentadas, comme il faut,
composto de vozes outras, aqui, assimiladas quase que totalmente. Bloom, por sua vez, caberia no papel do
prosador que, consciente de sua posição diferenciada em relação a essas vozes, não precisa no entanto se impor
sobre elas para manter sua estabilidade discursiva. Ele convive entre elas e lhes concede o espaço que precisem
ter. Aqui, em Hades, pode-se novamente argumentar que vemos a voz de Bloom em relação às dos outros
personagens se comportando muito mais como uma voz narradora ortodoxa do que pudemos, até aqui, ver a
voz do narrador em relação à sua. Bloom, ainda não é o romancista James Joyce, o Livro, ou o Arranjador, mas
está muitíssimo mais perto deles do que de Dedalus.
95
A estas alturas não deve ser surpresa encontrarmos essa relação de presentificação da teoria na letra do
Ulysses. Seja porque nossa leitura guia o que mostramos, afinal, seja porque o livro, definitivamente, é meta-
romanesco.
96
O professor Luís Bueno, certa vez, comentava comigo receber de Joyce essa mesma impressão: a de uma
persona incrivelmente abrangente e com um poder preditivo que não faz mais que demonstrar sua singela
superioridade intelectual. Joyce não se cansa de fazê-lo: mostrar ao leitor que o que ele julga ter percebido de
original, de criativo como leitura sua, estava lá como parte de um plano de que ele, Joyce (trata-se de uma mera
nota de rodapé, possivelmente eliminável: baixo a guarda teórica e trato do autor como pessoa) nunca deixou
de estar consciente. Ele parece ter sempre estado um passo à frente. Tanto melhor. Estamos no caminho; ao
menos em um caminho certo. Não parecemos estar torcendo o texto.
97
Apesar de eu não recordar ter visto essa ligação em algum lugar da crítica, vejo evidências para sustentá-la,
por exemplo, em (72-4), em que o olhar de Bloom passeia por três cabeças, uma de bigodes furiosos, uma
tranqüila e uma terceira, olhos e barba, que balança gravemente. Tenho evitado referências excessivas aos
paralelos homéricos do texto pela mera razão de que eles não dizem respeito direto, na maioria das vezes, ao
assunto deste texto, que por si próprio encontra caminhos para crescer talvez demasiadamente. No entanto,
156
ao leitor. Pensamos é claro, a setenta páginas do primeiro amanhecer, no leitor do Ulysses,
que não pode esperar fichas corridas e descrições minuciosas nesse primeiro momento. No
entanto seus nomes e seus movimentos (as rubricas de suas entradas em nosso espetáculo)
nos são fornecidos algo escrupulosamente.
Bloom?
Bloom tem de se virar sozinho.
Ele fala, cedendo a vez e simultaneamente se intrometendo na descrição ordenada
das ações prévias, e recebe apenas deste narrador uma constatação de que estava ali e
pronunciou aquela frase. Depois dela, aliás, toda uma frase da voz narrativa apenas para
introduzir uma completa sensaboria de Simon Dedalus que, a não ser pelo que represente de
enigma, não presta exatamente serviços ao progresso da narrativa naquele momento.
A fala seguinte, de Cunningham, é freqüentemente citada nos estudos sobre Ulysses
como documento da situação de pária a que se relega Bloom. Estamos todos aqui? Sim, as
três pessoas que realmente importam estão dentro da carruagem. Resta um lugar? Então
venha junto, Bloom.
Ele é tratado ou como uma criança, ou como um poodle. Sobe aí. Venha também.
Bom menino.
E o parágrafo seguinte, mais uma vez, nos devolve ao centro. Nos mostra que não, a
hierarquia ainda o mudou (mudará apenas na biblioteca e no monólogo de Molly)
continuamos, demos graças, orbitando em torno a Bloom. Antes, contudo, de lermos em
mais detalhe este parágrafo, paga a pena reexaminarmos a abertura do episódio sob uma
outra luz. Afinal, conforme de insinuou neste capítulo, podemos agora, depois do coup de
Bloom, questionar a procedência daquela primeira voz que faz as honras da casa. Papel do
anfitrião, não é mesmo?
Para tanto, concentremo-nos (a ênclise é muito bloomesca) no primeiro parágrafo, e
na pergunta: quem poderia enunciar descaradamente coisas como silkhatted head,
entering deftly e, muitíssimo especialmente seated himself, curving his
height
with care.
Infelizmente, para pensarmos no assunto, teremos de fazer uso de algum conhecimento
ainda não disponível ao leitor que estivesse encarando o livro apenas até aqui, ao contrário
do que vimos pretendendo fazer.
as simultâneas animalização, unificação e redução a cabeças (falantes, portanto) dos três acompanhantes de
Bloom em sua viagem para o encontro com os outros me parece ser especialmente significativa.
157
As duas primeiras amostras, conquanto algo exóticas, podem ser atribuídas ao
narrador que conhecemos cinco episódios, em suas diversas encarnações. Talvez
possamos dizer o mesmo da ocorrência do algo atípico, ou meticuloso, height na quarta frase.
Estamos, contudo, com um texto algo pesado estilisticamente, algo excessivamente carregado
de adjetivos e categorizadores, algo retoricamente gordo. Tais excessos se encontram
perfeitamente sintetizados no maravilhosamente redundante seated himself. O leitor de Eumeu
(e eis o momento em que preciso buscar um nacozinho de informação estranha ao momento
do texto) não terá dificuldades, depois de ter a atenção voltada à análise deste pequeno
fragmento, em nele reconhecer algo do escrúpulo e das adiposidades da retórica bloomiana
que, ali, atinge seu apogeu.
Poderíamos pensar que quem cumpre o papel de apresentar os novos personagens,
olhando de fora (da carruagem?) é um narrador em perfeita sintonia com Bloom? Ou, ainda,
um Bloom que praticamente (mais, portanto, do que pôde ou quis fazer Dedalus) assume o
demiúrgico papel do narrador distribuindo falas e adjetivos?
Como que a sinalizar que sim (por vezes parece demais!), a primeira frase do
primeiro parágrafo mais extenso do episódio: aquele que vai se dedicar a novamente
demonstrar a centralidade de Bloom, se abre com a versão que o narrador, sozinho, dá de
um fato simétrico a este. Mas, aqui, Bloom sat. Simplesmente. Ele não sat down, e, muito
especialmente, ele não seated himself.
Teríamos visto, de saída, Bloom usurpar o papel do narrador, imiscuindo-se na
voz narrativa (e perceba-se que aqui o processo é mais direto, mais objetivo e mais bem-
sucedido do que apud Stephen Dedalus) e, depois, voltar a sua cadeira (!) de personagem,
cedendo a quem de direito as funções de corrigir a narrativa?
Parece que sim.
E o parágrafo que se inicia à linha 9 faz o possível para mostrar que, de um lado,
ainda é cedo (em todos os sentidos) para podermos esperar que a subversão da ordem
narrativa se institucionalize, devolvendo os papéis a seus donos por uma extensão
reconfortante, e que, de outro lado, Bloom, nem por isso, perde qualquer de suas
prerrogativas de intromissão e sem-cerimônia diante desse narrador: seu monólogo interior
continua eclodindo no meio da narrativa e, mais ainda, tomando conta dela antes de
acabadas as dez linhas desta alínea. Terminamos a leitura do trecho novamente imersos nas
cifradas (o it da linha 17 se refere ao lençol ou ao corpo de Rudy Bloom, morto aos onze
158
dias de idade?) reflexões e lembranças de Bloom que, como não poderia deixar de ser,
contemplam, também, a palavra dos outros, refletida e assimilada, refratada a ponto de quase
não ter mais aspas, não ter assinatura. Quem teria pronunciado originalmente ordem de
puxar algo mais para lá? Molly? A senhora Flemming?
Não foi Bloom. Mas agora é. E é isso que nos interessa aqui. Estamos na sua palavra.
Mas essa verdade não parece ser assim tão placidamente reconhecida pelos que o
acompanham. Em um trecho muito conhecido, que se inicia na linha 250, quando
Cunningham avista na calçada o usurário Reuben J. Dodd e, silenciosamente, avisa Power, os
assaltos a Bloom se tornam mais intensos. E mais patéticos quando vistos pelo leitor, que
observa de fora os movimentos do teatro de bonecos de que estas pessoas (exceto Bloom)
não sabem fazer parte.
Martin Cunningham nudged Mr Power.
– Of the tribe of Reuben, he said.
A tall blackbearded figure, bent on a stick, stumping round the corner
of Elvery’s Elephant House, showed them a curved hand open on his spine.
– In all his pristine beauty, Mr Power said.
Mr Dedalus looked after the stumping figure and said mildly:
– The devil break the hasp of your back!
Mr Power, collapsing in laughter, shaded his face from the window as
the carriage passed Gray’s statue.
– We have all been there, Martin Cunningham said broadly.
His eyes met Mr Bloom’s eyes. He caressed his beard, adding:
– Well, nearly all of us. (250-61)
O estado de espírito que prevalecia na abertura do texto, em que Bloom parecia ser
ignorado ou desconsiderado pelos outros participantes da cena
98
, continua bem representado
aqui.
Nós, leitores, gozamos no entanto de um curioso excedente de informação em
relação às três cabeças de cérbero. Sabemos que Bloom de fato comanda a narração. Eles,
vãs pretensões, se acreditam em posição superior a ele. Esta é uma nova dimensão do pacto
Bloom-narrador, que exclui de sua relação os outros personagens, que, pela mesma
profundidade deste pacto, terão de ser apresentadas sempre através de Bloom, pois, como
dissemos em outro momento, a única relação em que uma contraposição de forças
98
E também desinteressado. Veja-se que suas primeiras providências ao entrar na carruagem são se proteger
passando o braço pela correia e dirigir olhos e divagações para fora, para longe de seus companheiros de
viagem.
159
semelhante à da narrativa tradicional vai ocorrer neste episódio é aquela que se esboça entre
Bloom e os outros e não entre Bloom e o narrador.
Aqui, assim, podemos começar a vislumbrar, sem ter de recorrer ao überbloomismo
de Eumeu, uma situação em que a narrativa externa a ele é uma narrativa de Bloom. Em
que os demais personagens são personagens deste personagem.
Stephen parecia lutar por essa posição, mas a mesma luta o incapacitava ao domínio;
Bloom tranqüilamente assume seu papel.
Por mera razão de sua ocupação e de seu nome de batismo, o agiota é equiparado a
um judeu, num acúmulo de estereótipos que serviriam, ali, para além da diversão dos
ocupantes, para ofender a Bloom, que efetivamente se considera judeu
99
. Além disso, ele é
abertamente excluído do grupo de todos pela ressalva de Power, que pensa que ele, como
judeu (agora eles se lembram do fato) estaria imune aos problemas financeiros, por contar
com a proteção yid.
Violentamente excluído, a reação de Bloom, mais uma vez, é oposta às de Dedalus.
Ao invés de negar os negadores, Bloom se esforçará, muito e muito mais de uma vez,
por ser aceito. É ter recebido a dádiva da igualdade sem aparente esforço que faz de Bloom
uma voz mais ansiosa por aceitação, ao contrário de Stephen, que se esforçará amargamente
por um domínio pela via da recusa. E ele, desconfortado pelas alusões veladas, ansioso por
mudar de assunto e, não podemos deixar de ver, por recusar o grupo a que pertenceria Dodd
e se juntar aos que vão com ele, corre dizer. E se afoba tanto que sai em perigoso e
desprotegido vôo solo, exposto, longe das asas da voz narrativa, ao escárnio e à violência das
outras vozes.
Mr Bloom began to speak with sudden eagerness to his companions
faces.
That’s an awfully good one that’s going the rounds about Reuben J and the
son.
– About the boatman? Mr Power asked.
– Yes. Isn’t it awfully good?
– What is that? Mr Dedalus asked. I didn’t hear it.
99
A questão da judaicidade de Bloom é problemática. Segundo a normativa ortodoxa, só é judeu quem provém
de mãe judia. A mãe de Bloom era uma shiksa, católica. Além disso, ele não é circuncidado, e recebeu mesmo o
batismo protestante antes de seu casamento. Mas a identidade judia parece ser para ele um tema forte, como se
pode ver, por exemplo, na imagem que encerra Circe, em que ele vê seu filho morto, agora crescido, estudando
a Torá.
160
There was a girl in the case, Mr Bloom began, and he determined to send
him to the Isle of Man out of harm’s way but when they were both...
– What? Mr Dedalus asked. That confirmed hobbledehoy is it?
Yes, Mr Bloom said, they were both on their way to the boat and he tried to
drown...
– Drown Barabbas! Mr Dedalus cried. I wish to Christ he did!
Mr Power sent a long laugh down his shaded nostrils.
– No, Mr Bloom said, the son himself...
Martin Cunningham thwarted his speech rudely:
Reuben J and the son were piking it down the quay next the river on their
way to the isle of Man boat and the young chiseller suddenly got loose and
over the wall with him into the Liffey.
– For God’s sake! Mr Dedalus exclaimed in fright. Is he dead?
Dead! Martin Cunningham cried. Not he! A boatman got a pole and fished
him out by the slack of the breeches and he was landed up to the father on the
quay more dead than alive. Half the town was there.
– Yes, Mr Bloom said. But the funny part is...
And Reuben J, Martin Cunningham said, gave the boatman a florin for
saving his son’s life.
A stifled sigh came from under Mr Power’s hand.
– O, he did, Martin Cunningham affirmed. Like a hero. A silver florin.
– Isn’t it awfully good? Mr Bloom said eagerly. (262-90)
Na primeira frase do fragmento vemos o narrador como que pasmado,
reconhecendo o atabalhoamento de Bloom ao se interpor ao discurso dos que tão
placidamente o excluíam. E será apenas na linha 275 que o narrador (excluídos os afazeres
domésticos) volta a ter qualquer participação de vulto na narrativa que, depois da
intromissão de Bloom (mau menino) cai em queda livre espiral para domínios que Bloom
não pode compreender e que o narrador o pode evitar, e sua primeira intrusão é apenas
para fazer-nos ver o riso à socapa do senhor Power (o fato de eles estarem como que em
exposição no alto da carruagem, participando de um féretro e rindo desbragadamente
começa a incomodar. Ou será o riso escondido apenas de Bloom? Afinal será apenas vinte
linhas depois que surgirá o primeiro comentário direto neste sentido, e virá de Cunningham,
não de Power.).
Bloom, quando começa a falar, nitidamente solta a primeira coisa que lhe veio a
mente a respeito de Dodd e que lhe permite tirar de si o peso da observação e, ainda, excluir-
se das relações do prestamista. Depois do comentário de Power, ele apenas repete o que
disse. De início ele não parece disposto a narrar uma estória que, imagina, os outros
conheçam. Bloom, que teve seus sonhos de celebridade literária em Calipso, tem uma certa
161
preguiça narrativa, bem como uma imensa falta-de-jeito, que veremos em breve, e que nos
fará recordar aquele seated himself da abertura. Mas Dedalus insiste em saber, e Bloom, em
seguida, se entrega a algo que não é exatamente um modelo de desenvoltura narrativa.
Especialmente porque (não é -vontade de Dedalus.) seu uso de pronomes pessoais sem
referente claro (algo de que Molly fará uma arte em Penélope) de fato embaraça a
compreensão da estória. Bloom, no entanto, mal percebe a confusão e prossegue até nova
interrupção de Dedalus e o riso de Power. As coisas não estão indo bem.
Ele pode representar o narrador, mas, para isso, ele precisa do narrador. A simbiose
que possa ter havido entre essas duas vozes, por exemplo, na abertura do capítulo,
definitivamente alcança efeitos e possibilidades que Bloom, só, o pode sequer sonhar
alcançar.
E ele tenta novamente aque, o narrador constata, como que vencido, condoído
pela derrota de seu protegido, Martin Cunningham trunca sua fala de forma rude e assume o
posto de narrador da estorieta. Este trecho é muitas vezes citado como prova da rudeza que
lhe dedicam os dublinenses, mas não se pode esquecer que Cunningham, muito em breve,
representará uma tábua de salvação para Bloom, e que sua avaliação dele, ao final do
episódio, é basicamente boa (344 & 1029-30)
100
.
Atire a primeira pedra quem dentre nós não imagine ser possível sentir-se tentado,
diante desta situação, a salvar seja um conhecido de um momento embaraçoso em que ele
parece disposto a se enredar mais e mais, seja esse momento uma boa estória das mãos de
um pavoroso contador.
O fato é que a agonia de Bloom poderia ter tido um fim quando Martin assume a
narrativa, mas ele, ainda ansioso por se incluir, tenta retomar o controle ao menos a tempo
de enunciar a conclusão, a punch-line da anedota verídica.
Desta vez, no entanto não simpatia de qualquer narrador afinado com ele que
possa registrar uma rude interrupção, ou uma interrupção de qualquer natureza. Assim como o
Livro deixou claro que, mesmo em meio a muitos, será Bloom quem dará o tom do
episódio, agora fica estabelecido sem mais dúvidas que a capacidade de contar estórias, nesse
100
É muito fácil lermos essas reações de Bloom como impulsos de sua bondade para com um homem que
(350) tem uma vida particular muito pior que a sua, apesar de esse ter sido capaz de ofendê-lo neste momento.
Bloom, no entanto, não é nenhum santo, e muito menos um mártir. Cunningham ao menos uma vez (342) salta
em sua defesa (ainda que de forma velada para os outros, de início) em um momento constrangedor e, no fim
do episódio, como que se alia a ele contra Menton. Afinal, quanto de caridade não poderia haver, inclusive, na
interrupção de Cunningham neste momento?
162
momento, pertence a Cunningham, que, tranqüilisssimamente, segue sua estória de uma
conjunção, que a retoma bem onde havia parado, sem sequer reconhecer o contributo de
Bloom como escada, como parceiro de um jogral.
E Bloom, inabalado, repete, repete sua única informação válida, agora, como
pergunta. Pois esta (que eu não soube contar) não é mesmo uma estória ótima
101
?
O seguinte trecho, também freqüentemente citado, em que a exclusão de Bloom se
torna patente é o momento em que, por duas vezes, a ignorância das partes envolvidas releva
seu estranhamento. Se aquele comentário anti-semítico de Power foi intencional e malicioso,
as frases em que Bloom (312) diz ser a morte durante o sono a melhor das mortes (para
pasmo, silencioso, da companhia) e em que o mesmo Power (335) declara ser o suicídio a
pior das desgraças, não podem ser tidas na conta de agressões.
O ateu Bloom não pode lembrar que, para os cristãos, morrer sem as bênçãos finais
é sinônimo de danação certa, e ninguém, ninguém, sequer se dá ao trabalho de corrigi-lo. E
Power, por sua vez, o sabe naquele momento que Bloom é filho de um suicida. E é
Cunningham quem, imediatamente, sai em defesa do agora silente Bloom, tentando pelo
menos abafar o impacto das cruas opiniões de Power e, agora, Dedalus. No entanto, graças à
não-intrusividade do narrador (acredito vir demonstrando que são muito mais os
personagens principais que se revelam invasivos e determinados a minar a independência do
narrador), as verdadeiras feridas reveladas em apenas uma página de texto ficarão
desconhecidas dos participantes.
Mas nem tanto.
Mais adiante (527-32) o Livro nos porá diante de Cunningham explicando a Power o
motivo de sua agonia dentro da carruagem. Bloom não ouvirá esta explanação, mas
reconheceu o esforço de Martin. Bloom, por sua vez, continuará ignorante do erro que
cometeu. Ele continua sendo tratado, por todos que não o narrador
102
com um misto de
desprezo e condescendência: ele pode ser resgatado, mas não merece ser retificado e
instruído.
101
Existe uma sintonia entre Bloom e Cunningham que, além de ilustrada nesse momento e nas opiniões
posteriores que Bloom manifestará a respeito dele, Adams (p.109-10) acredita ver espelhada em um (mais um)
ardil do Livro. Pois uma expressão algo idiossincrática (damn the thing else) que aparece uma vez no discuro
interior de Bloom (676), não tarda a ser retomada na voz audível (única a que teremos acesso) de Martin
Cunningham (738). Um efeito como esse não pode deixar de trazer a tona essa comunhão de espírito (restrita, é
verdade) que aparecerá em outros momentos manifesta na larga escala da trama.
102
Ou será que o silêncio algo consternado da voz narrativa durante a bâcle narrativa de Bloom não pode ser
visto como irmanado aos sentimentos dos circunstantes?
163
A efetiva posição do narrador neste episódio, voltado ao confronto entre Bloom e o
mundo, é bastante difícil de se demarcar, dada a mera ausência de material para análise.
Descontados os verbos dicendi, depois da conclusão da narração de Bloom/Cunningham até
a linha 442, em que um excurso algo lírico a respeito de um barqueiro que leva turfa rio
abaixo, 152 linhas de texto e, neste intervalo, são meras 24 as frases ou comentários (por
vezes de apenas uma palavra) que na minha opinião se podem sem sombra de dúvida
atribuir ao narrador e apenas a ele. O texto está basicamente sendo levado pela voz interna
de Bloom, os diálogos dos três e, haveremos de reconhecer, pela algo significativa empatia
entre Cunningham e Bloom, mais do que verificável, por exemplo, no momento em que
Bloom (400-20), pela primeira de não poucas vezes, expõe suas idéias, com eco e apoio
apenas de Cunningham. Os outros, mesmo quando compelidos a concordar (cf. Simon
Dedalus em 414), o fazem como que a contragosto, sem qualquer ênfase, movidos apenas
pelo açulamento de Cunningham, a quem parecem considerar mais.
Graças ao pacto Bloom/Livro, temos inclusive (343-54), elementos suficientes para
simpatizarmos nós mesmos com a vida e a personalidade de Cunningham que, assim,
efetivamente cai nas graças do texto e de seus leitores. De Dedalus e de Power, neste
momento, ficamos sabendo muito pouco. Quando temos acesso à opinião de Bloom sobre
aquele, por exemplo (opiniões do narrador estão, repitamos, longe de nosso escopo)
ouvimos apenas o seguinte:
Noisy selfwilled man. Full of his son. He is right. (74)
Entre Bloom e os outros há, sim, uma ponte possível (ou muitas?). Exatamente
como entre o narrador e os personagens há a ponte representada por Bloom.
À linha 595, já no cemitério, encontramos uma nova encenação do diálogo das
diferenças, um novo exemplo da postura de Bloom perante os outros, seus discursos e suas
línguas. Bloom o estrangeiro, o alheio e alienado, continua disposto a empatizar, ainda que
nem sempre a se ver incluído a qualquer custo.
Dogmas estão além de sua boa-vontade.
Father Coffey. I knew his name was like a coffin. Dominenamine.
Bully about the muzzle he looks. Bosses the show. Muscular christian. Woe
164
betide anyone that looks crooked at him: priest. Thou art Peter. Burst
sideways like a sheep in clover Dedalus says he will. With a belly on him like
a poisoned pup. Most amusing expressions that man finds. Hhhhn: burst
sideways.
Non intres in judicium cum servo tuo, Domine
.
Makes them feel more important to be prayed over in Latin. Requiem
mass. Crape weepers. Blackedged note paper. Your name on the altarlist.
Chilly place this. Want to feed well, sitting in there all the morning in the
gloom kicking his heels waiting for the next please. Eyes of a toad too. What
swells him up that way? Molly gets swelled after cabbage. Air of the place
maybe. Looks full up of bad gas. Must be an infernal lot of bad gas round the
place. Butchers, for instance: they get like raw beafsteaks. Who was telling
me? Mervyn Browne. Down in the vaults of saint Werburgh’s lovely old organ
hundred and fifty they have to bore a hole in the coffins sometimes to let out
the bad gas and burn it. Out it rushes: blue. One whiff of that and you’re a
doner.
My kneecap is hurting me. Ow. That’s better.
The priest took a stick with a knob at the end of it out of the boy’s
bucket and shook it over the coffin. Then he walked to the other end and
shook it again. Then he came back and put it back in the bucket. As you were
before you rested. It’s all written down: he has to do it.
Et ne nos inducas in tentationem
.
The server piped the answers in the treble. I often thought it would be
better to have boy servants. Up to fifteen or so. After that, of course...
Holy water that was, I expect. Shaking sleep out of it. He must be fed
up with that job, shaking that thing over all the corpses they trot up. What
harm if he could see what he was shaking it over. Every mortal day a fresh
batch: midleaged men, old women, children, women dead in childbirth, men
with beards, baldheaded businessmen, consumptive girls with little sparrow’s
breasts. All the year round he prayed the same thing over them all and shook
water on top of them: sleep. On Dignam now.
In paradisum
.
Said he was going to paradise or is in paradise. Says that over
everybody. Tiresome kind of a job. But he has to say something. (595-630)
E isso, e mais, por ainda outras dez linhas. Acho que excusa o volume de texto
citado
103
o fato de ser ele uma representação primorosa de tudo que podemos crer em
alguma medida discutido (no que se refere ao espaço ocupado pelo discurso interno de
Bloom) à placidez com que se estabelece este espaço. No entanto, acredito também que o
trecho traz novos elementos, conteudísticos e formais, para nossa discussão. Para a relação
de Bloom, em um momento em que ele é indiscutível senhor da palavra, com os outros e
com as outras. Palavras.
103
Além de ser ele divertidíssimo!
165
Ele inicia o texto tratando de assuntos que, entre profissionais, podemos apenas
chamar de típicos de mentalidades primitivas, mas que, entre aficionados de palavras,
reconhecemos como atraentes a todos nós. Magia analógica. Tabu. Afinal, não de ser à
toa que o padre que oficia o serviço dos mortos tenha um nome que evoque um ataúde. A
expressão seguinte, neste contexto, pode muito bem ser lida como uma confusão da parte do
parcamente alatinado Bloom entre dois sintagmas simétricos muito citados: in nomine Domini
e nomen omen, ambos, claro, ligados ao nome, versão mistificável e mitificável da palavra
tornada nume. Em nome de Deus é o que realiza o padre Coffey (e o que ele possivelmente
pronuncia, mal entendido por Bloom), mas ele, e seu nome, representam um caso claro em
que o nome é um augúrio. Assim como Bloom. Assim como Dedalus.
A outra palavra a penetrar o discurso de Bloom é a de Dedalus que, conquanto tenha
podido ser caracterizado previamente como barulhento, cabeça-dura e orgulhoso, não pode
deixar de receber, agora, os louros merecidos pelo criativo manuseio da palavra (que, vimos,
Bloom almeja mas ainda não consegue obter). E Bloom se diverte com a palavra alheia.
E nunca será demais destacarmos o quanto de diferença entre esta postura e
aquela ilustrada por Dedalus, o outro, mais ou menos neste mesmo momento, na praia.
O trecho citado é certamente um dos mais divertidos serviços fúnebres que
poderemos presenciar. Pois, enquanto transcorrem rito e bênção, recebemos nós a benção
de acompanhar tudo pelo viés de Bloom e, na maior parte do tempo, de acompanhar apenas
a Bloom em seus desvios.
Quando, no entanto, na narrativa irrompe a encomendação do defunto
104
, fica mais
do que claro um propósito autoral. Não podemos atribuir a Bloom a seleção das frases
latinas que vemos no papel. É o Livro quem aí se manifesta.
Especialmente no que se refere às duas primeiras frases, que, descontextualizadas,
fornecem uma curiosa visão da dogmática e da teologia católicas. Não é sempre que se pode
ver fiéis pedindo que seu deus não entre em disputas com eles e, mais ainda, pedindo que ele
não os induza a pecar.
A última dessas frases é tão estranha aos ouvidos católicos modernos que a versão
corrente no Brasil da oração do Pai-Nosso viu por bem bowdlerizá-la em não nos deixeis cair
em tentação.
104
Correção do mestre Fiorin, porque o apóstata aqui tinha posto singelamente missa.
166
E Bloom compreende esses escrúpulos. Sabe inclusive que a oração em latim
cumpre, por sua mesma incompreensibilidade, um papel ritualístico importante. Muito
parecido com o dos ornatos fúnebres e da idéia de pertencimento a um grupo determinado.
Afinal, nem mesmo os fiéis devem saber muito mais latim do que ele que, quando da
terceira intromissão da língua do vaticano no texto, manifesta uma vida típica não de um
completo neófito, mas sim de um aluno de latim com alguma memória das singularidades da
língua. De fato, caso a forma do substantivo fosse um ablativo, o sentido da preposição seria
de localização espacial. Como se trata de um acusativo, o sentido é de movimento em
direção a. Ele sabe onde procurar. Exatamente como Stephen Dedalus, pouco antes, e suas
divagações sobre o genitivo latino.
O parágrafo que se inicia depois de ele ter ajeitado seu joelho (nada acostumado a se
prostrar) é uma maravilha de condensação e de efeito. Podemos apenas imaginar como seria
rico (e como seria tedioso) este mesmo texto descrito por Stephen Dedalus
105
.
No entanto, nossa imersão em Bloom e nossa empolgação com seu idioleto podem
nos cegar para o fato de que este parágrafo não esobrigatoriamente na voz de Bloom. O
princípio do tio Charles, agora que podemos nos considerar em alguma medida
conhecedores da língua e dos maneirismos de Bloom, pode atingir seus efeitos mais ricos e
atordoantes.
Pela função de informação que o trecho cumpre na estória, tenderíamos a atribuir
apenas ao narrador as primeiras frases, que descrevem a movimentação e os procedimentos
do padre. Claro, reconheceríamos a obra do referido princípio no fato de este narrador
subitamente desconhecer todo e qualquer vocabulário eclesiástico. A transição, no entanto,
para as últimas frases, que caminham para a expressão de uma identificação algo comiserada
muito bloomiana, se dá de forma absolutamente imperceptível.
Temos, neste trecho, o Livro algo determinado a fazer pouco do rito católico
(conforme viu-se no caso dos trechos latinos escolhidos e, agora, com o absurdo que resulta
de vermos o ofício descrito em termos de baldes e pauzinhos com bolas na ponta, reduzido
ao que tem de secular e tolo), o narrador definitivamente composto por Bloom, e por
bloomismos, e o próprio Bloom que, mais uma vez, transita galhardamente por entre toda
essa bulha.
105
O narrador deve estar alerta ao que seus personagens saberiam (Kenner: 1980, p.31)
167
Ele não deixa de reconhecer o absurdo. Mas sabe que, no fim, aquele é apenas o
emprego do indivíduo Coffey. Que deve ser inclusive tedioso para ele. Mas que ele tem de
fazer aquelas coisas, tem de dizer aquelas coisas.
Este é Bloom.
Com apenas mais um exemplo, quero terminar toda esta leitura do confronto
Bloom/Livro. Trata-se da conhecida estória de M’Intosh, que culmina, para meus fins, nas
linhas 894-5.
Os fatos são os seguintes:
Junto dos que pranteiam a morte de Dignam, surge um outro homem, desconhecido
por todos, que traja uma capa de chuva mackintosh marrom. Ao ser abordado por Joe
Hynes, que anota os nomes dos presentes para enviar à imprensa, ocorre a seguinte cena.
Hynes jotting down something in his notebook. Ah, the names. But he
knows them all. No: coming to me.
I am just taking the names, Hynes said below his breath. What is
your christian name? I’m not sure.
L, Mr Bloom said. Leopold. And you might put down M’Coy’s name
too. He asked me to.
– Charley, Hynes said writing. I know. He was on the
Freeman
once.
So he was, before he got the job in the morgue under Louis Byrne.
Good idea a postmortem for doctors. Find out what they imagine they know.
He died of a Tuesday. Got the run. Levanted with the cash of a few ads.
Charley, you’re my darling. That was why he asked me to. O well, does no
harm. I saw to that, M’Coy. Thanks, old chap: much obliged. Leave him
under an obligation: costs nothing.
And tell us, Hynes said, do you know that fellow in the, fellow was over
there in the...
He looked around.
– Macintosh. Yes, I saw him, Mr Bloom said. Where is he now?
M’Intosh, Hynes said scribbling. I don’t know who he is. Is that his
name?
He moved away, looking about him.
– No, Mr Bloom began, turning and stopping. I say, Hynes! (878-98)
Em poucas linhas, Bloom é abordado com a desculpa de que não se sabe seu
primeiro nome (talvez não se saiba nem o segundo), com o agravante de que perguntam a
um judeu por seu christian name; ainda não sabemos, e saberemos apenas em Eumeu, mas,
além de tudo, Hynes ou o jornal ainda se equivocam, e anotam seu nome como L. Boom
168
(16:1260); percebe que M’Coy, que tinha inclusive razões para fugir da companhia dessas
pessoas, é, ao contrário dele, conhecido não pelo prenome como por sua forma
hipocorística.
Mas nada disso muda o fato mais importante.
A figura de Mackintosh, fará parte do livro (10:1271; 11:1250; 12:1498; 13;1062;
14:1546; 15:1558-65; 15:2307) e dele, mais do que de qualquer outro, pode-se dizer que foi
criação de Bloom. Adâmico, ele deu nome e insuflou vida
106
.
Se Dedalus lutou, lutou apenas para terminar ressentido e mais do que nunca. A
possibilidade de que ele se masturbe durante Proteu é cada vez mais levada a rio pelos
joyceanos. Ele se fecha em si como possibilidade. Sua vitória no embate de vozes se anuncia
corroída internamente pelo verme da vaidade. Vaidade das vaidades, ele se afirma algo
egoisticamente.
O aspecto pirrônico dessa sua vitória ficou ainda mais claro assim que lemos a
primeira página da narrativa madura de Bloom
107
. Mais ainda, o princípio dessa nossa
Odisséia, conforme o vimos materializado nos três episódios que se seguem à Telemaquia,
parece ter se esforçado por demonstrar, a cada passo, a superação do modelo de embate
torturado de Dedalus por uma possibilidade de convívio baseada na autonomia da voz
principal, que não mais se questionada, espoliada, invadida, vitimizada a todo momento.
A placidez de Bloom com relação aos outros vai se ver alterada no que tange
determinados assuntos, tabuizados, como o iminente adultério de Molly, sua filha, seu filho e
seu pai mortos.
Boylan, acima de tudo, representa para ele o oposto da tranqüilidade e da
convivência, e o é a toa que em (200-10) nós o vemos se contorcendo para transformar
em não-palavras esse convívio impossível.
106
Muito se especulou sobre a verdadeira (?) identidade de Mackintosh: que ele seria, por exemplo, o marido
da senhora Sinico, personagem de A painful case, parece ser uma hipótese bem aceita. Mas já chegaram mesmo a
dizer que ele seria James Joyce. E aí nosso círculo se fecharia.
107
O fato de Joyce ter se referido a Telêmaco como sendo uma “narrativa juvenil” em oposição à “narrativa
madura” de Calipso (e à “narrativa senil” de Eumeu) pode iluminar também este ponto. Frente à revolta
angustiada e angustiante do adolescente contra o mundo, vemos a ataraxia, a placidez do adulto que não precisa
se afirmar.
169
Vale a pena terminarmos essa primeira parte do trabalho com essas dez linhas, que
dizem mais sobre Bloom, sua mulher e sua relação com o fato de que será traído do que
qualquer coisa que possamos tentar inventar, elaborar ou desenvolver.
Vimos a luta, vimos a paz, vimos toda espécie de convívio entre narradores,
personagens principais, demais personagens e leitor. Entre o Livro e os demais elementos do
processo.
Vimos o penoso processo que levou o usurpado Dedalus a encontrar sua voz e a
poder assumir que nela haveria espaço para a voz de outros. Vimos o cálido caminho do
estabelecido Bloom para assimilar a voz de outros, rir dela, e mesmo sofrer com ela. Vimos
as nuançadas posições que puderam esses dois homens assumir em relação à voz do
narrador (e vimos especialmente o quanto é difícil para esse narrador se sustentar em
princípios de autonomia e de independência que podem ter orientado colegas seus
anteriores). Vimos que, na luta de vozes, espaço para o convívio, mas que uma hierarquia
sempre se mantém.
Vimos a dor e vimos a esperança.
Vimos Bloom com seus antagonistas, seus duplos, entre os sedados e entre os mortos.
Vimos o domínio de que dispõe; que a narrativa está, ainda que sob alguma tensão, a suas
ordens, destinada a causar seus efeitos. Vimos o amor pelas palavras e pelas vozes que, de
forma diferente, enforma as relações dos dois personagens principais com o mundo e com o
Livro. Fomos de um pólo a outro transitando em meio ao verbo.
E ainda veremos mais.
E mais interessante.
Vimos a dor e vimos a esperança.
Nada melhor, acho eu, do que terminarmos com a passagem de uma a outra causada
pela visão do pior homem da cidade, e pela lembrança da bunda de Mooly Bloom.
Mr Bloom revised the nails of his left hand, then those of his right
hand. The nails, yes. Is there anything more in him that they she sees?
Fascination. Worst man in Dublin. That keeps him alive. They sometimes
feel what a person is. Instinct. But a type like that. My nails. I am just looking
at them: well pared
108
. And after: thinking alone. Body getting a bit softy. I
would notice that: from remembering. What causes that? I suppose the skin
can’t contract quickly enough when the flesh falls off. But the shape is there.
108
E voilà o artista indiferente de Dedalus!
170
The shape is there still. Shoulders. Hips. Plump. Night of the dance dressing.
Shift stuck between the cheeks behind.
He clasped his hands between his knees and, satisfied, sent his vacant
glance over their faces. (200-10)
171
N. De regibus regaliisque (Uma divagação)
Hugh Kenner, em seu belo livro Joyces’s Voices, dedica todo um capítulo (intitulado
precisamente além da objetividade) a esboçar os desenvolvimentos sugeridos pelo Ulysses no
tratamento da narrativa que ele, antes, havia definido como um pacto de objetividade, que
imperaria na prosa narrativa desde o século XVIII.
O que, com sorte, consegui mostrar até aqui a respeito dos meios de tratamento das
vozes (pronunciadas ou não) dos personagens e, conseqüentemente, dos modos de relação
destas vozes com a voz do narrador durante a narrativa, pode ser descrito como uma súmula
dos meios de que pode dispor a objetividade e o além-da-objetividade. Para nossos fins,
posso pensar que a técnica (as técnicas) de Joyce neste trecho do livro representam a
consumação dos efeitos de sentido do realismo aplicado à representação de consciências, de
personalidades.
O realismo aplicado mais à sociedade, à topografia, à arquitetura e mesmo à fisiologia
aparente, como qualquer leitor do Ulysses, conquanto possa ter sido o que mais frutificou
nos autores que com maior freqüência associamos ao termo, não está entre os principais
interesses do Ulysses. Se é que está, de todo, ao fim e ao cabo.
O Livro foca todos seus esforços e todas suas forças na representação o mais
possível completa e acabada de consciências (o maior problema da literatura, como assevera
um personagem de Cristovão Tezza em seu romance mais recente). Ainda não sabemos que
Bloom tem bigode, não vimos a cor dos cabelos de Molly, não sabemos se Stephen usa
barba, tivemos de dar conta sós de refazer trajetos e destinos, vimos de Dublin apenas o que
calhou ser mencionado por habitantes, muito pouco afeitos a notas de rodapé. E no entanto
sentimos, em apenas seis episódios, que conhecemos destas pessoas muito mais do que
poderíamos de muitas que efetivamente conhecemos.
Se Stephen já vinha de outro livro e se Molly ainda não teve seu espaço plenamente
ocupado, Bloom, por sua vez, está definitivamente enfronhado em cada leitor atento, depois
de meras cinqüenta páginas (exatamente cinqüenta, na versão Gabler). Sem que, talvez, o
leitor saiba dizer por quê.
Pelas razões que, espero, tenham ficado algo explicitadas nesse longo trabalho de
leitura.
172
Daqui para a frente, é daqui para a frente.
Como se pode perceber claramente da leitura em seqüência da ficção de Joyce, ele
não era muito afeito a explorar as glórias conquistadas pelo emprego de uma determinada
técnica. Derrubado o monstro, era sempre seguir adiante.
A partir de Éolo, ouviremos, ao fundo, como que a risada daquela misteriosa voz que
sempre encontramos dois passos avançada. E ela sussurrará. Que agora fez tudo. Agora já
mostrou como se pode. Agora perdeu um pouco a graça o brinquedo e, mesmo que não o
abandone, é a vez de ela se divertir.
É por isso que será simplificadora qualquer leitura que considere, por exemplo, o
monólogo de Molly Bloom como representando um fiel espelho do que seria um texto
escrito por Molly, ou um texto falado por ela. Trata-se da iconização de sua personalidade
por um Livro farto do realismo documental. Nas alucinações de Bloom em Nighttown,
veremos com mais clareza o que já estava também em seus monólogos interiores. A
elaboração gradativamente suplantando a representação.
O realismo está morto, ao meio-dia. Viva o realismo, até a madrugada.
Favor me acompanhar.
((Está comprido demais.
Tomaremos imediatamente providências para evitar uma debandada astronômica de
leitores. Enquanto isso, de repente valia a pena você dar uma parada e tomar tipo um
cafezinho.
As coisas, nas próximas páginas, acontecem em velocidade bem mais alta.)
173
Voltou?
Sinta-se em casa.
Bom..
Com o sexto episódio, encerra-se um ciclo fundamental no Ulysses. É facílimo
perceber, com Ellmann, por exemplo, que o livro se organiza (em diversos sentidos) em
eixos de três episódios.
Números eram tremendamente importantes para Joyce. Finnegans Wake faz uso
extenso de toda uma matemática de calendário para a constituição de seu elenco de
personagens, centrando-se no número doze e em seus fatores para estabelecer grupos de
doze, quatro, dois, vinte e oito personagens. Além disso, no livro uma incrível
importância atribuída aos números 11 e 32, sintetizados por vezes a hipotética data 1132 ou
em sua metade, 566. O mesmo número 32, que representa no sistema real inglês de medidas
a velocidade da aceleração da gravidade, tem sua participação e sua presença no Ulysses.
No entanto, aqui o eixo organizador é todo ele ternário. Dezoito episódios, três
partes, três personagens centrais, uma divisão dos episódios em uma padrão 3, 12, 3...
Se pensamos, além disso, que a simetria Dedalus-Bloom é o ponto fulcral da obra
toda (em tudo que tenha ela e tenham elas de também assimétrico, de especular ou de
contraditório, de glosa, oxímoro ou lítotes..), esses primeiros seis episódios representariam a
concretização plena da exposição dos temas principais do livro. Três e três, Estevão e
Leopoldo, o Livro expôs diante de nós seus elementos.
Do ponto de vista deste trabalho, pretendo demonstrar que, junto com os elementos,
vieram também expostas as ferramentas centrais. Que tudo o que se tentou demonstrar até
aqui na esfera da reprodução, replicação e refusão de vozes pode ser considerado
fundamental (no sentido mesmo da engenharia civil) para o desenvolvimento de todo o
restante do romance. As bases foram devidamente estabelecidas neste campo, como em
todos os outros.
Daqui para a frente, como bem o sabe qualquer leitor desavisado, o principal papel
do romance (no campo da forma) é o de surpreender. A cada episódio uma novidade. A
cada novidade uma contribuição.
É precisamente por isso que agora posso abrir mão da leitura linear (ou no mínimo
do tipo de lente de aumento que estávamos empregando para esta leitura) que vinha fazendo
174
dos episódios. Muito do que se poderia elucidar a partir de Éolo com uma leitura desta
natureza seria, no campo que nos interessa, reafirmação e reexemplificação de
procedimentos já inaugurados. Fique claro, não penso que o romance em seu
desenvolvimento, que o Livro em seu biorritmo, se dê por contente com o uso que pôde até
aqui fazer de cada um dos procedimentos que espero ter esboçado. O que pretendo, no
entanto, me concentrar em fazer é me aplicar às contribuições qualititativamente diversas. O
aprofundamento, a diferença quantitativa no emprego de técnicas introduzidas, como
muitas outras coisas (tantas..) terá de ficar de fora deste trabalho para que ele se mantenha
dentro dos limites da exeqüibilidade.
Assim, nossa discussão agora ficará centrada em expor a contribuição mais típica de
cada episódio e em estabelecer em que ela interfere, contribui, na e para a questão da
representação e da atribuição de espaço a todas as vozes presentes no romance.
De Éolo em diante.
Contudo, preciso pedir sua atenção por mais um momento, antes de me deter na
análise do sétimo episódio, para acompanhar uma pequena exposição. Um pequeno relato
do nascimento de mais uma persona que fará parte integrante de nossa leitura a partir deste
momento.
É a hora de falarmos do arranjador de Hayman.
175
a. Ranjos
E ele, em pessoa, disse. Uso o termo “arranjador” para designar uma figura ou uma presença
que não pode ser identificada com o autor nem com seus narradores, mas que exerce um grau cada vez maior
de controle explícito sobre materiais cada vez mais desafiadores (Hayman, 1974, p.84). Estamos
falando, de saída, de uma presença textual que se vai acrescentar ao quadro dos narradores,
aqueles narradores que, por tudo que pude querer demonstrar até aqui, já vinham se
mostrando bastante permeáveis, lenientes, tolerantes.
Pessoalmente, penso que esse arranjador seja precisamente o resultado do saque que
estivemos observando. Ele seria o que restou do galeão depois de retirado o butim. Mas
nisso eu já me repito.
E tudo isso ainda é muito precoce. É preciso, pelo menos, resolvermos três questões
antes de determinarmos o lugar da formulação de Hayman.
Em que esse arranjador é diferente dos narradores?
Em que ele é diferente do autor implícito das teorias de recepção de texto?
Qual seu papel no Ulysses?
Primeiro de tudo: ele não tem voz. Ele não é uma voz. É precisamente por isso que
ele não pode ser confundido com os narradores, que, em alguma medida, estão a seu serviço
na narrativa.
O próprio Hayman, mais uma vez, vai lembrar que ele deve ser visto como algo entre uma
persona e uma função, em algum lugar entre o narrador e o autor implícito [...] Talvez seja melhor ver o
arranjador como uma ausência sentida e significativa no texto, uma fonte de controle manifesta, mas de que
não se pode escapar (1982, p.122). Hugh Kenner (1987, p.65) chega mesmo a sugerir que essa
presença seja considerada equivalente à de um leitor da obra em curso; ou seja, segundo ele,
temos em diversos momentos a efetiva sensação de que a presença que brinca com o texto
diante de nós o está fazendo sobre uma narrativa escrita anteriormente. O arranjador como
uma supra-função narrativa
109
.
109
A afirmação de que o arranjador pode ser lido como uma camada cronologicamente posterior de construção
tem, de imediato, ao menos duas conseqüências. Podemos pensar nesse fato segundo as linhas da crítica
genética e, neste campo também, encontraremos material adequado pois veremos que as manchetes que
fraturam Éolo (o primeiro dos procedimentos que, segundo a leitura que faço da categoria, devem ser atribuídos
ao arranjador) foram apenas inseridos consideravelmente depois da escrita do episódio inteiro, depois da
176
Alguns pontos interessantes surgem dessas constatações. O primeiro deles, que na
verdade advém de tudo que este texto vem discutindo, representa uma continuidade em
relação a um possível projeto joyceano e parece resolver a contento a distinção entre a figura
proposta por Hayman e a instância da crítica de recepção. Pois, mesmo graças às
denominações que recebem (e, ao menos em crítica literária, nomear é definir
empiricamente
110
), elas parecem se opor.
O autor implícito é, de um jeito ou de outro, sentido com uma projeção do autor no
corpo da obra. Ele seria A manifestação possivelmente reconhecível do autor neste corpo, o
único acesso que teríamos ao autor biográfico, que a praxe nos aconselha (apenas mais um dos
conselhos tradicionais que em muitos momentos a leitura de Joyce nos força a deixar de
lado) deixar de lado. O arranjador, por sua vez, como função textual, estaria, ele também,
abaixo dessa instância. Ele surge do texto e se encerra no texto. Ele surge de entre os
narradores e se dirige ao intangível autor.
Talvez a questão se resuma a uma de direcionalidade dos processos.
E talvez assim possamos compreender o lugar que Hayman atribui a sua criação,
uma posição intermédia no contínuo que, do autor ao personagem, passa ainda pelo autor
implícito e pelos narradores.
Termo médio. In medio virtus, in medias res. Muito homérico, clássico e adequado.
Mas para que se possa tentar dar um polimento final a uma tentativa de responder
àquelas duas primeiras perguntas, mesmo antes de entrarmos nos trechos deste trabalho em
que as análises se servirão dessa categoria, é preciso verificarmos que tipos de coisas, que
espécie de feitos e de fatos Hayman atribui a seu arranjador, para que, em última análise,
redação do Ciclope (Hayman: 1982, p.125), onde o arranjador se estabeleceu. A bem da verdade, a inserção
dessas legendas foi um dos últimos atos de revisão de Joyce. Ele, efetivamente, estava relendo.
Por outro lado, é grande a tentação de considerar o papel desse releitor organizador como estando próximo
daquele exercido pelo leitor decifrador, que igualmente se aplica ao texto depois da redação e ensaia arranjar,
organizar a superfície em um todo significativo para seus propósitos. E, para fechar essa segunda discussão
marginal, cito apenas um belo trecho de Kenner (1987. p. 157-8).
As palavras nos antecedem, são comuns, imbricadas na experiência humana, registradas em outros livros e
em dicionários. Na maior parte dos livros elas são pintadas sobre a página, em uma camada fina. Mas Ulysses é o
primeiro livro a ser uma espécie de holograma da linguagem, a criar uma ilusão tridimensional de uma interferência
controlada entre nossa experiência da linguagem e seus arranjos da linguagem.
Apenas dos arranjos o autor pode reclamar uma autoria, como ele parece ter percebido em Paris, na segunda
metade de 1921, cercado, pela primeira vez desde o começo de sua longa odisséia, por gente que queria o livro, que estava
ansiosa por ele. O infinito trabalho de terminá-lo ele decidiu entregar a seus leitores, para seu infinito prazer.
110
Vale lembrar o comentário de Burke de que a definição é a obra-prima do crítico.
177
possamos compreender a resposta para a terceira. Afinal, não se trata de uma categoria
criada ex theoria, mas sim de um instrumento desenvolvido para lermos este livro
específico
111
.
Novamente, ao autor.
[...] devemos provavelmente considerar a presença arranjadora como algo que sutilmente
penetra o tecido da narrativa em diversos pontos e de várias maneiras. A intrusão, como os sistemas
alusivos, começa muito antes de o leitor ter consciência de quaisquer diferenças absolutas entre os
enfoques narrativos. Nós a percebemos no tratamento da ação inicial de Ulysses como fatos vistos
por um observador inominado de uma perspectiva neutra. Ela está também por trás da sintonia dos
fluxos de consciência durante o parágrafo em que se trata do espelho partido, por trás das mudanças
de estilo que marcam cada um dos primeiros capítulos e por trás de certas manifestações que, de
outra maneira, restariam inexplicáveis, como o tratamento dado ao momento em que Mulligan se
veste em Telêmaco. Além disso, o arranjador controla a supressão de informação e de ação,
ocorrência extremamente freqüente nos primeiros capítulos. Na verdade, praticamente todos os
fenômenos intrusivos ou arbitrários podem ser atribuídos à persona arranjadora. Podemos
acrescentar que tais procedimentos manipuladores usualmente anunciam ressonâncias temáticas e
simbólicas ao mesmo tempo em que minam a textura realista. (1970, p.125)
E isso tudo se refere apenas aos primeiros episódios, aqueles em que a presença do
arranjador precisa de fato ser defendida, pois este comentário se encontra em uma apêndice
de uma reedição do livro de Hayman, em que ele busca mensurar as repercussões e as
aplicações de uma categoria que, ele mesmo, inicialmente, se via inclinado a aplicar apenas a
partir das Sereias. Porque na metade final do livro essa intrusão de uma persona que dispõe os
fatos e organiza a técnica é já um fato inquestionável.
E talvez a questão, referindo-se a uma característica do Ulysses que não parece
estranha a qualquer seu leitor, se resuma à conspicuidade, à tematização de um procedimento
que, em outros livros, pode nos parecer mais amortizado depois desta leitura. O arranjador de
Hayman, assim, seria uma manifestação ensandecida e megalômana do autor implícito de
Iser, ou de Eco. E uma manifestação que, mais ainda, faz ainda mais conspícua sua intrusão
por permitir que um trecho inicial da obra de desenrole sem sua interferência excessiva. O
contraste faz mais clara sua presença.
O fato de que de capítulo em capítulo, ainda que sem um rigor que se possa prever, a dose de
estranheza estilística aumente (grifo e subjuntivo meus, de resto Hayman: 1982, p.84),
111
O mesmo Hayman registra que a categoria já corria risco de vulgarização e, por outro lado, uma colega,
instada por mim, parece já vir empregando com algum sucesso esse instrumento para a leitura de Lúcio
Cardoso.
178
assim,como o mais pasmante fato, responsável pela deserção de muitos leitores, inclusive de
Ezra Pound, de que nos últimos capítulos os meios empregados por Joyce parecem tomar o poder e o leitor
se mais obviamente atraído pela superfície estética, que deve, finalmente, servir não como uma barreira,
mas como meio de acesso para o drama que encapsula (Hayman: 1982, p.88) parecem clamar pela
invocação de uma figura diferente do anódino autor implícito, uma figura dotada de mais
personalidade própria, conquanto privada de voz direta, uma figura que possa de fato ter um
caráter, e cujo sorriso, ou cujo olhar pernóstico possamos sentir nas páginas do texto com a
mesma nitidez que estamos acostumados a associar à leitura que fazemos dos personagens
literários (nitidez muito maior do que a que vimos percebendo na autonomia dos
narradores): a figura que Hayman decide chamar de arranjador e que, vista assim, parece
guardar com o autor implícito precisamente as mesmas semelhanças e as mesmas diferenças
que sentimos entre a presença ausente do manipulador de um teatro de fantoches e a
ausência presente do manipulador dos bonecos incrivelmente humanos do bunraku, que
devemos concordar em fingir que não está lá, mas cujas expressões faciais efetivamente
podemos ver, colorindo e dirigindo o pathos de cada um dos personagens.
Joyce, no que vimos dos primeiros seis episódios, põe a nu a nudez do narrador
diante dos personagens.
É grande a tentação de considerarmos democrático e generoso esse processo, que
poder às instâncias mais distantes da voz do autor, removendo-o daquela que,
consuetudinariamente, esperaríamos representasse sua voz.
O surgimento gradual da presença arranjadora poderia ser lido, nesse quadro, como
uma reafirmação da presença autoral, como um comentário mudo mas eficaz do criador
sobre o Livro, sua criatura. No entanto, isso seria mais uma vez confundir o que
costumamos ler sob o rótulo de autor implícito com o que pretendo demonstrar ver no
arranjador. Seria, igualmente, pensar que o sorriso do manipulador do bunraku emana do
autor da peça e não da ação do boneco. Pois embora o outro criador, Hayman, defina seu
filho como uma criatura de muitas faces, ele se apressará a dizer ainda no mesmo período, que
ele não deixa de ser uma versão ampliada de seus personagens, com um campo de visão ampliado e muitas
percepções a mais sob seu controle (1982, p.93).
Converse-se com qualquer manipulador de bunraku, e tenho absoluta certeza de que
eles tenderão a dizer que, quando o trabalho é bem feito (e apenas nesse caso: vale sempre
ressaltar que nada se resume a um quid; trata-se sempre de um quomodo com Joyce), é muito
179
mais adequado dizer, contra toda e qualquer evidência empírica, que é o boneco que move o
homem, em uma dança de iguais.
(Ou isso ou minha metáfora não presta para nada mesmo. Fazer o quê?)
Seria igualmente equivocado estender excessivamente o poder que tal procedimento
parece atribuir ao leitor. Mesmo que por vezes sejam efetivamente similares as atividades de
arranjador e leitor, não é para o leitor que pende a balança das prioridades. Hugh Kenner,
muito melhor que eu na seleção de metáforas (e em todo o resto, obviamente) ressaltava
(1987, p.65) que, o Arranjador pode se sentir seguro de que os leitores estão provavelmente de visita, e ele
nos trata, quando se digna a registrar nossa presença, com a dura indiferença xenofóbica que Dublin pode
voltar contra os visitantes que ficaram tempo suficiente para ver se apagar o brilho da hospitalidade inicial.
E qualquer leitor, digamos, das Sereias, do Gado do Sol, das Simplégades, pode
assinar embaixo desse manifesto de protesto. O arranjador, conquanto parente próximo
desse leitor, não está, definitivamente não está, ali para facilitar seu acesso à narrativa. Ele
está ali com funções outras, que podem muito bem passar, e freqüentemente passam, por
um acréscimo do grau de dificuldade que o processo de leitura irá encontrar.
Visto assim, ele pode perfeitamente se encaixar no quadro que o núcleo deste
trabalho vem tentando esboçar. Paradoxalmente, como sóem fazer aqueles que conseguem
copernicamente revolucionar seu campo de trabalho, Joyce parece expor como vão, ou pelo
menos como artificioso, se não artificial, todo o aparato técnico envolvido na narração de
uma estória.
Ele expõe e, mais, muito mais do que isso, ele tematiza esses procedimentos,
tranformando-os em objetos analisáveis e questionáveis. Seus narradores foram
anatomizados a ponto de não poder mais ser placidamente equiparados aos narradores
anteriores
112
. Agora, seu autor implícito, mais uma categoria que lhe permitia projetar-se
sobre o texto, é exposto, esmiuçado e explodido em uma megalomania ativa e dramática que
pode apenas, lido corretamente, retirá-lo dessa associação pacífica com James Augustine
Aloysius Joyce e arremessá-lo no livro, estatelado irremediavelmente entre os personagens. A
ponto de precisar de um novo nome.
112
E é ponto significativo lembramos que o único narrador convencional do livro é um personagem (no
Ciclope).
180
E é o caminho do surgimento dessa nova figura que vamos retraçar na leitura dos
próximos doze episódios que, portanto, podem ser tratados como uma unidade que, em
peso e importância, se equipara àquela formada pelos seis primeiros.
Vamos a eles.)
181
CAPÍTULO
2 (Onde se prosseguimento à leitura dos demais episódios do Ulysses, chegando-se à
constatação de que a coisa ainda tem muito por onde se complicar..)
182
A. O buraco do vento
Daqui para a frente, trata-se de buscar a diferença. O acréscimo que, em relação às
bases que o livro já nos levou a estabelecer, represente contribuição.
A introdução, gradual, do arranjador no quadro de possibilidades técnicas de que o
romance se serviu aaqui será, acredito, o maior diferencial (ao menos até Penélope) em
relação aos elementos que, bem sucedido, este trabalho terá morfologizado nos primeiros
seis episódios. Esses procedimentos, claro esteja, encontrarão novos matizes e renovado
enriquecimento nas ocasiões em que vierem a ser empregados novamente.
A segunda metade de Nausícaa, ou o todo de Cila e Caribde, por exemplo, por mais
que pareçam apenas reafirmar o que foi visto, merecerão análise pelo que tem de
aprofundamento daquelas possibilidades.
De resto, nossa preocupação geral, daqui por diante, será a de verificar o que não se
enquadra em nossa análise. Pinçar o que, em cada episódio, surge como construção
inaugural. E esses fatos, via de regra, dependem do conceito de arranjo ou, mais
freqüentemente, contribuem para seu estabelecimento e sua elucidação.
Se até aqui pudemos ver o esboço de um novo lugar para os narradores (e mesmo
esse plural denuncia a incapacidade da noção tradicional de narrador para esta análise),
agora veremos o que a ela se acrescenta para completar nossa figura.
E, se diferença é o que buscamos, Éolo não as sonegará.
Pois se a transição que, entre o final de Hades e a abertura deste episódio, nos leva
de um plano fechado na pessoa e nos pensamentos de Bloom para um panorama dos
sistemas de transporte da capital irlandesa não precisa de qualquer nova figura teórica para
ser explicada (trata-se da matéria de que são feitos os romances), de imediato nos vemos
defronte daquele que poderá ser o maior dos traços atribuíveis a essa figura cínico-sorridente
que aponta por detrás da ação.
Sabe-se que a inserção das manchetes jornalísticas que cesuram perenemente a
narrativa de Éolo foi um dos últimos atos redacionais (praticamente um ato editorial) de
Joyce na concepção do Ulysses. E não fosse por ele o episódio passaria mais longe de ser um
alvo interessante nessa nossa cruzada em busca do novo. Como notaram Melchiori e de
Angelis (p.120), estamos diante de um episódio-ponte, um capítulo intermediário em que os dois
183
protagonistas não arriscam movimentos novos. Seus respectivos monólogos interiores, do ponto de vista
temático, não apresentam novidades relevantes e, na economia do episódio, têm uma função muito clara de
pano-de-fundo. E poderíamos com alguma facilidade estender ao plano formal a afirmação dos
italianos, ao menos no que se refere aos monólogos interiores dos dois personagens.
De fato, um leitor que se disponha a fazer uma leitura linear do episódio, saltando
simplesmente os trechos em capitulares, descobrirá uma imensa familiaridade (provisto que
esse leitor hipotético venha realmente da leitura dos seis primeiros episódios) com um texto
ulisseano pico (sic?), assim como não deixará de perceber que a inserção dessas curetas
gráficas se por vezes em momentos aparentemente arbitrários. Do ponto de vista da
economia clássica das narrativas, o episódio pode perfeitamente passar sem elas.
E é precisamente quando se verificam essas condições e quando no entanto o Livro
insiste em se manifestar de forma mais conspícua, que encontramos o campo de atuação de
nosso arranjador, para quem a conspicuidade é um estandarte e um objetivo. Além disso, vale
lembrar que, nos conhecidos quadros que Joyce enviou a dois de seus colaboradores, ele
declara ser a retórica a arte de Éolo, cuja técnica seria a entimêmica.
Hodgart (p.120) ressalva que essa arte pode ser considerada um representante
adequado de toda a arte da escrita, de toda a literatura. Ora, iconizar é sempre o forte de
Joyce, que raramente fala sobre, que sempre mostra no texto. E a iconização da retórica, a
tematização dessa arte que em embrião pode simbolizar o fazer literário, não deixa de
propiciar um outro motivo por que Éolo, precisamente Éolo, possa ser o momento propício
para a apresentação de nosso intruso.
Pois a retórica, como arte do convencimento mas também como sistematização do
estilo, permeia todo o episódio, muda ou tematizada. Lêem-se três discursos, que são
devidamente avaliados. Empregam-se nele, exaustivamente, todas as figuras retóricas em que
pôde pensar o aluno de jesuítas que o escreveu (Stuart Gilbert, seguido por Don Gifford,
estabeleceu a praxe de inclusive elencar tais figuras, com os exemplos que delas se
encontram em Éolo, o que constituiria, assim, uma espécie de manual prático de figuras de
retórica). Mais do que isso, tais figuras são, elas mesmas, por vezes tematizadas e discutidas:
Dedalus pensa sobre rimas
113
, surgem palíndromos e metáteses na fala dos personagens,
figuras que, de todas, são das mais difíceis de passar despercebidas.
113
Acho que vale anotar, em um trabalho sobre o respeito às vozes diversas, o fato de que as rimas em que
pensa Dedalus (South, pout, out, shout, drouth. Rhymes (715)), somente funcionam como rimas perfeitas
184
O Verbo é o tom de Éolo.
Para cúmulo de graças, surge ao final da narrativa uma narrativa. Pois é aqui que
Dedalus, devidamente fertilizado (Hodgart, p.118) pela entrada em cena de Bloom, consegue
superar seus vãos esforços líricos matinais, relatando aquela que é, definitivamente, a décima-
quinta estória de Dublinenses: sua parábola das ameixas que, como a ilustrar o maior poder
que este livro detém, alcança como que efetivamente produzir uma paralisia
114
na cidade, no
momento em que o sistema de bondes se vê travado por um curto-circuito.
No sistema triádico que Ellmann destaca como central para a estruturação do livro,
um primeiro momento está completo (as tríades do filho e do pai estão completas).
Tematicamente, a literatura surge em primeiro plano pela primeira vez. Biorritmicamente, em
um livro que emula o desenrolar de um dia, e não apenas aborda tal assunto, chegamos ao
zênite, estamos prontos.
É a hora. Valete fratres. O gigante que, invisível (como Éolo, deus dos ventos), age
dirigindo os cursos dos personagens (como o deus Éolo, dos ventos), empregando apenas
meios transparentes (como o deus dos ventos, Éolo), que somente se fazem sensíveis em
suas manifestações sobre corpos mais densos, mais tensos (como nós, expostos aos ventos)
tem sua aparição preparada
115
.
para o ouvido oirish, que na Irlanda usualmente uma neutralização da distinção entre a oclusiva surda
alveolar e sua contraparte fricativa, representada na ortografia padrão pelo grafo th. Para Dedalus, muito
provavelmente, as palavras de fato rimam perfeitamente em /awt/. se discutiu bastante a hibernicidade de
Dedalus e de novo, porque acredito não escapar de nossa esfera, registro um argumento brilhante de Burgess
(1965) que muito adequadamente resume o descuido com que as questões de língua o usualmente tratadas
pela crítica literária. Comenta ele que muito já se falou sobre o trecho em que, em Um retrato... o jovem Stephen
Dedalus, diante de seu deão, declara: How different are the words home, Christ, ale, master on his lips and on mine!. As
interpretações, diz Burgess, tendem a atribuir significados míticos e arquetípicos a cada uma dessas palavras,
buscando nelas sintetizar as diferenças entre a colônia e o colonizador (mesmo com a cerveja!), mas ninguém se
deu conta de que elas, economicamente, apresentam todo um inventário de algumas das principais diferenças
da pronúncia irlandesa em relação ao padrão britânico: a não-ditongação do /e/ de ale, e do /o/ de home, o
típico ditongo /oy/ em Christ e o fonema retroflexo que termina seu master.
114
A paralisia é uma imagem e um tema recorrente em Dublinenses.
115
Aqui vale registrar um curioso trecho de Ellmann (1972), em que ele parece, inadvertidamente, profetizar o
surgimento de Hayman e de sua criatura: ele concebia seu livro como um retrato silente, mudo, de um homem arquetípico que
jamais aparecia e cujo corpo, contudo, seria lentamente materializado com o progresso do livro, ganhando vida, por assim dizer, por
um processo de lingüifação (p.73). Parece claro que a metáfora por trás do texto de Ellmann tenha-lhe sido sugerida
pelo Finnegans Wake, onde Earwicker de fato caberia perfeitamente nessa descrição, inclusive por sua
identificação com a cidade, geograficamente, que permite que seu corpo, enterrado, realmente se rematerialize
progressivamente no ambiente que o cerca, no texto e no mundo. A adequação do texto, no entanto, para
discutirmos o arranjador (adequação que estou dando como certa, mas que pode ser questionada, claro) pode
sugerir uma curiosa ressonância entre as duas obras, que se encaixaria à perfeição dentro do mais-que-
conseqüente projeto ficcional joyceano. Pois se o Wake é a epifania do arranjador, na medida em que apenas ele
subsiste, não deixa de ser consistente encontrarmos na matéria deste livro conteúdo que sugira, ele também, em
185
Mas. Ao texto. Que se abre assim.
IN THE HEART OF THE HIBERNIAN METROPOLIS
Before Nelson’s Pillar trams slowed, shunted, changed trolley, started
for Blackrock, Kingstown and Dalkey, Clonskea, Rathgar and Terenure,
Palmerston park and upper Rathmines, Sandymount Green, Rathmines,
Ringsend and Sandymount Tower, Harold’s Cross. The hoarse Dublin United
Tramway Company’s timekeeper bawled them off:
– Rathgar and Terenure!
– Come on, Sandymount Green!
Right and left parallel clanging ringing a double-decker and a
singledeck moved from their railheads, swerved to the down line, glided
parallel.
– Start, Palmerston Park!
THE WEARER OF THE CROWN
Under the porch of the general post office shoeblacks called and
polished. Parked in North Prince’s street His Majesty’s vermilion mailcars,
bearing on their sides the royal initials, E. R., received loudly flung sacks of
letters, postcards, lettercards, parcels, insured and paid, for local, provincial,
British and overseas delivery.
GENTLEMEN OF THE PRESS
Grossbooted draymen rolled barrels dullthudding out of
Prince’s stores and bumped them up on the brewery float. On the brewery
float bumped dulthudding barrels rolled by grossbooted draymen out of
Prince’s stores.
– There it is, Red Murray said. Alexander Keyes.
Just cut it out, will you? Mr Bloom said, and I’ll take it round to the
Telegraph
office.
The door of Ruttledge’s office creaked again. Davy Stephen’s,
minute in a large capecoat, a small felt hat crowning his ringlets, passed out
with a roll of papers under his cape, a king’s courier.
Red Murray’s long shears sliced out the advertisement from the
newspaper in four clean strokes. Scissors and paste.
I’ll go through the printingworks, Mr Bloom said, taking the cut
square.
Of course, if he wants a par, Red Murray said earnestly,a pen behind
his ear, we can do him one.
– Right, Mr Bloom said with a nod. I’ll rub that in.
We.
seu plano, uma mesma noção de corporificação do ausente. Em mais um sentido, o Ulysses seria uma prévia do
Wake.
186
WILLIAM BRAYDEN
,
ESQUIRE
,
OF OAKLANDS
,
SANDYMOUNT
Red Murray touched Mr Bloom’s arm with the shears […] (7. 0-40)
Espero que fique claro, aqui e mais além, que a extensão da citação mais uma vez se
justifica.
A inclusão deste último trecho de um trecho, por exemplo, mostra bem a aparente
arbitrariedade das inserções. Tivesse a transição sido da cena com Murray e Bloom (e
daquela primeira eclosão, nesse ambiente, do monólogo interior de Bloom) para um outro
ambiente, poderíamos ainda contar com a possibilidade de que tais manchetes representassem
de fato a delimitação de quadros no texto, compondo assim um mosaico que, efetivamente,
encontraremos apenas nos Rochedos Serpeantes. Aqui, a narrativa é ainda una e, no limite,
linear. A intrusão das manchetes se faz ainda mais clara por sua aparição em meio a cenas de
resto perfeitamente contínuas. Mas, de volta ao começo.
Pois mesmo que demos como resolvida a questão da inserção das vinhetas,
atribuindo precisamente àquela persona caracteristicamente intrusiva esse gesto, restam ainda
alguns problemas. O primeiro deles, e nada insignificante, é o fato de que, segundo a estrita
definição de seu autor, o arranjador é uma persona, ou uma função, desprovida de voz. Que
fique claro, no entanto, que estamos falando de uma ausência de uma voz individualizada.
Não o que impeça o arranjador de se manifestar alterando ou mesmo adulterando a fala
das personagens, na mão inversa do processo que nhamos descrevendo no que se referia
aos narradores.
Assim, se Bloom repentinamente parece usar um vocabulário ou uma imagística
talvez distantes do universo que concebemos como seu (como na descrição da chaleira, em
Calipso) podemos pensar agora que estamos vendo agir essa outra instância narrativa,
guiando as palavras do personagem. Pois a diferença é que, surgido quase que como uma
irradiação dos personagens, esse indivíduo não está no entanto (ao contrário dos narradores)
a serviço desses seus genitores, podendo mesmo agir sobre eles, ainda que sempre, por assim
dizer, em seu interesse. Herói de proporções míticas, ele age no mundo real por vias tortas.
Fica bastante clara a possibilidade, portanto, de que tal figura se sirva, também, do
cavalo da voz do narrador para se manifestar, para espiar no texto.
E
EIS AS MANCHETES
.
187
Mas tal simbose, tal possessão da voz narrativa por uma entidade que lhe é estrutural
e funcionalmente superior não tem apenas essa conseqüência, e um exame mais detido desse
trecho inicial (Joyce.. e seu amor por aberturas) nos mostra muito mais do que até aqui
pudemos esboçar.
Pois em outro momentos, em outros tempos
116
, em que a sombra dessa figura não se
lançava tão nítida sobre a página, estávamos contentes em descrever as interações entre
personagens e narradores como sendo um processo de crescente influência daqueles sobre
estes. Concebíamos o eventual estilo verbal de cada narrador como sendo espelhamento e
espalhamento das características do personagem que, naquele momento, estava em foco.
Mas o narrador de Éolo abre seu texto distante de ambos os personagens, e no entanto
pleno de estilo, e de um estilo bastante singular dentro do que vínhamos vendo. Mesmo
aquela impressão de putativa familiaridade que o todo do episódio, se limpo das intrusivas
manchetes, poderia passar, fica nesta abertura bastante impossibilitada e, como sempre,
gradualmente impossibilitada.
Depois de uma abertura quase sinfônica, uma efetiva protofonia que, por
enumeração e redundância nos remete rapidamente ao caos e à bulha que pretende invocar,
a segunda intervenção desse narrador exibe um estranhamento, uma manipulação, uma
artificiosidade bastante conspícua.
O uso de parallel como advérbio causa um pequeno choque no leitor de inglês, que,
antes disso, esperaria ver a forma como adjetivo, substantivo, e mesmo como verbo. Não
bastasse esse fato, como que a sublinhar intencionalidades (outra característica que muito
vimos e ainda veremos muito), ela recorre, paralelamente, no final da sentença, reafirmando
a leitura adverbial que, a bem da verdade, o leitor pode estabelecer seguramente à altura
da décima-segunda palavra. Pois esse período todo é ambíguo e truncado, e o surgimento de
um verbo moved como núcleo do sintagma de que faz parte parallel (onde a expectativa
natural do leitor o levaria a contar com um substantivo, que forçasse a leitura adjetiva da
palavra) marca aquilo que Kenner (1978) chamava de exposição de artifícios. E ele
mesmo apontava esta gina de abertura como o ponto em que tal coisa começa a
acontecer.
116
Novamente a sombra do Wake se fazendo presente, pois esse livro é, como se sabe, organizado de modo a
espelhar a teoria viconiana dos ciclos históricos que se sucedem, sempre como releitura ou caricatura uns dos
outros, e reproduz em sua estrutura essas repetições e subversões.
188
A frase em questão nada tem da neutralidade que poderíamos esperar do narrador per
se, solus. Mais do que isso, seja contextualmente (eles estão ausentes), seja estilisticamente
(por tudo que deles conhecemos), teríamos dificuldade em atribuir a qualquer dos dois heróis
o estilo que ela exibe. Mas, quando viermos a conhecer o pervertido estilista por trás das
Sereias, dos Rochedos Serpeantes ou do Gado do Sol, não hesitaremos em lhe atribuir a
paternidade desses versos.
Em Éolo, o primeiro capítulo compartilhado por Stephen e Bloom, Joyce começa a solapar
sua
voz
narrativa (Hayman, 1982, p.85, grifo meu). Aquele último reduto, anódino e impessoal, aquele
pequeno canto em que a caracrterização não ditava as regras, começa a ser minado
precisamente no episódio em que poderia haver conflito entre narradores emanados pelos dois
personagens. O mesmo Hayman (1982, p.95) lembra que nem aqui nem em outro momento
o Livro intentará a arriscada superposição dos monólogos interiores de seus dois
personagens, e que, neste momento, a voz do narrador é nítida e consistente, seja o trecho referente
a Bloom ou a Stephen. A criança cresceu, graças ao influxo deste agente externo, o arranjador,
que lhe permite passar além das influências circunstantes que até aquele momento a vinham
definindo.
E, mais uma vez, como que a sublinhar intenções, a intrusividade de tal intervenção é
italicizada pelo fato de surgir ela entre duas emissões orais perfeitamente transparentes. A
cunha do arranjador já cava seus espaços.
O segundo trecho transcorre sem maiores sobressaltos, apesar da eventual
brincadeira com a palavra Prince, que aqui se refere a uma rua da capital.
E então se abre o terceiro deles, com uma frase, por si só, estranha e complexa. Não
bastasse isso, ela se repetida, revirada, imediatamente depois. Conheço poucas outras
manifestações tão claras da obviação do artifício.
A distância, neste momento, é tão grande que quase se pode argumentar que, no
trecho analisado, apenas aquele we na clara voz interior de Bloom é de fato familiar neste
trecho inicial. E toda a diferença provém do fato de que o narrador, antes servil aos
propósitos da narrativa (quando calmamente enunciava a mobília do relato) ou aos
personagens que o definiam e o criavam, agora encontra-se tomado, ocasionalmente, por uma
voz externa, por uma voz silente que no entanto o conduz por caminhos inauditos.
O homem tico que Ellmann dizia surgir do próprio tecido do texto do Ulysses
começa a ganhar corpo e a se transformar em um fato incontornável.
189
O narrador que enuncia, por exemplo, o parágrafo que segue à introdução de Murray
e Bloom deve ser definitivamente lido como um fato estético-literário de pleno direito.
Nesse sentido, a introdução da presença ausente do arranjador assim tão cedo no romance
parece explicar, proporcionar uma via de leitura para o curioso surgimento de um narrador
autônomo e dotado de estilo precisamente neste episódio, precisamente neste momento do
dia e da narrativa.
Mas o mais curioso é que não deixará de haver, como se pode facilmente verificar,
uma presença que enuncia verba dicendi e verba agendi: o narrador não será totalmente tomado,
como não era antes pelos personagens, por essa influência externa. E é por isso que outro
teórico, Hugh Kenner (1978), pode propor uma intepretação do Ulysses como sendo ele o
campo de batalha de dois narradores, o campo em que disputam espaço dois arquétipos
117
: o
oficioso contador e o artificioso escritor. Segundo ele, um modo de descrever o curioso curso de
Ulysses de Éolo a Circe é traçar as insolências do segundo narrador (p.79), que vemos introduzido
pouco a pouco, e que toma conta do espaço romanesco cada vez mais definitivamente.
Ao comentar a natureza desse segundo narrador, ele se expressa em palavras que,
por tudo que se viu até aqui, em nada destoam do que pretendemos demonstrar:
Este narrador está deixando claro para nós que está ali, e que não vai
necessariamente permanecer contente em servir as necessidades da narrativa, mesmo que se
suponha o improvável: que suas necessidades possam ser definidas com simplicidade. Não, ele
está lendo a narrativa, e se reserva o privilégio de nos mostrar o que pensa dela. Não
qualquer coisa sobre a qual ele possa ser mais objetivo do que sua própria atuação. (p.75)
A diferença é que, graças ao artifício que a leitura dos primeiros seis episódios nos
permitiu formalizar (a transparência do narrador e sua obediência a dois mestres: a
pragmaticidade comezinha da narrativa e o espírito transfuso dos protagonistas), podemos
agora considerar este segundo narrador como nada mais que a manifestação singular da plástica
voz narrativa quando permeada pelo influxo cabotino da persona arranjadora, e podemos,
portanto, pensar no curioso caminho que levará este romance até Ítaca (e não até Circe) como
sendo a estória dessa imbricação, precisamente como pudemos ver aqueles episódios como a
estória do surgimento da mera possibilidade da imbricação das vozes em planos diferentes
da narrativa: vozes funcionais e vozes dramáticas.
117
Shem the penman e Shaun the post? Quando mais se complexifica o romance, mais parece se tornar inevitável o
peso do Finnegans Wake.
190
O segundo narrador de Kenner pode, assim, ser considerado um quarto narrador (o
objetivo, o de Dedalus, o de Bloom e este) ou um sétimo, o que me parece mais provável, se
decido definitivamente desistir de buscar uma unidade que perpasse os dezoito episódios.
A citação de Kenner, no entanto, levanta mais uma questão interessante: a da
possibilidade, comentada aqui, de considerar a operação do arranjador como algo que se
posteriormente ao hipotético estabelecimento de um texto base (e ressalve-se que conto
aqui com um exercício de interpretação, e não com uma hipótese de crítica genética ou de
filologia) ou, para dizer de outro modo a mesma coisa, simultaneamente à leitura.
Agora, e muito mais muito mais para a frente, será difícil negar que certas reações
que podemos presumir provocadas pela presença arranjadora não sejam semelhantes às de
surpresa e pasmo por que pode passar um leitor.
Ou, até mais do que isso, semelhantes aos comentários e ao pasmo de um colega
escritor que leia o texto de um amigo. Ele revira frases mentalmente, ele brinca com a forma,
ele, aqui (mas mais intensamente em outros momentos), joga mesmo com o
conhecimento de que ele e o leitor dispõe do passado da narrativa.
Aqui, ainda tentativamente, com uma singela repetição de uma palavra porte-manteau
na linha 41, dullthudding Guinness barrels
118
. O que, posto assim, tematizando a forma
que apresentou o evento, equivale precisamente a dizer aqueles mesmos barris citados anteriormente
continuam a fazer o mesmo barulho, com o diferencial de que a possibilidade efetivamente
explorada pelo romance é não só mais literária como exclusivamente literária, fazendo uso da
característica central da leitura que é a possibilidade de voltar à página anterior e conferir a
primeira ocorrência.
Stephen Dedalus em um outro livro declarava que usaria como armas em sua mítica
tarefa de forjar em sua alma a consciência de uma raça a que não gostava de pertencer, o
exílio, o silêncio e a astúcia. James Joyce, na hora do almoço deste dia 16 de junho de 1904,
acaba de pôr à mesa uma arma a mais, que representa cada uma dessas.
Exilado no silêncio que lhe impõe o mandamento ainda por escrever antes da
existência de seu livro de que o autor não deve falar, não deve ter voz, mas deve conceder e
118
O mesmo acontecerá, agora chamando atenção para paralelos mais extensos, com a expressão glancing
sideways up, que surgirá na linha 134 deste episódio, evocando o peered sideways up que ocorria na
primeira página do livro. Sendo que ambas as expressões ocorrem em um contexto pseudo-religioso, pois
Mulligan parodia uma missa e Bloom acaba de traçar uma cruz com os dedos.
191
instituir vozes autônomas cujo principal dever é se manter sozinhas, solapando elas os
resquícios da autoridade autoral, ele agora, mui astuciosamente, cria um novo meio, uma nova
possibilidade, derruba mais um bunker, espalha seus personagens e suas vozes por uma
superfície ainda maior do tecido romanesco criando essa espécie de über-personagem, essa
projeção incorpórea que surge, que nasce do texto, esse primeiro grande passo em direção à
ultraliteratura ou à não-literatura do Finnegans Wake, que é a inesquecível presença do
arranjador, sentida mas não detectada; ausente, a única presença que pode, daqui para a
frente, unificar o livro, dar-lhe espírito e tom. O único personagem que talvez possa ser
maior que Leopold Bloom. Uma versão de James Joyce, o rosto do Ulysses, o arranjador. Uma
ferramenta a mais que responde plenamente às injunções silentes de Dedalus logo antes de
iniciar o relato de sua parábola (mais uma vez estamos tematizando e iconizando). E
especialmente, muito especialmente, à segunda delas.
On now. Dare it. Let there be life. (930)
192
B. Peristáltica
E Bloom está só.
Depois do ensaio de contraponto que foi o episódio do jornal, o leitor, a essas alturas
certamente admirador de nosso Sancho Panza, do pai de F.X. Enderby e de Timofey Pnin,
podia mesmo estar ansioso por se ver a sós com o homem. E, na economia de contrastes e
progressões do Ulysses, teria mesmo de ser o momento de nos vermos na rua, em oposição à
redação: em companhia de um só homem.
Ressalte-se, no entanto, que aqui, como em toda parte neste livro, trata-se de uma
economia de contrastes e progressões. Repetição com diferença, como entre os músicos.
Simultaneamente.
Não se pode imaginar a mera iteração e não se deve conceber o puro salto.
Se, como acredito que consegui demonstrar, por exemplo, o próprio arranjador surge
apenas (ou apenas mostra as garras) em um momento que havia sido cuidadosamente
preparado pelo solapamento das vozes narrativas, e surge aomesmotempomente como
resposta, contra-ataque e conseqüência, tanto mais se pode dizer de mudanças menos
dramáticas das estruturas e das possibilidades da narrativa.
Em Lestrígones temos uma simetria quase absoluta com Lotófagos. Vemos novamente
Bloom entre os bárbaros, a odisséia do viajante que contempla e interage, mas que se
mantém suficientemente diferente para não ser cooptado por um transe apoplético, em um
caso, ou devorado por uma fúria orgânica, em outro. Completa-se o ciclo que opõe espírito e
sangue como possibilidades que o pragmático e pacífico Bloom tem de negar.
Novamente ele anda, erra, vaga entre seus dessemelhantes provando suas
semelhanças. Tudo, afinal, é preparado e conseqüente. Se em breve (em dois episódios) a
cidade, as ruas de Dublin serão o personagem principal, aqui, depois de Lotófagos, vemos o
ensaio desse processo.
E no entanto uma mancha. Por tudo que venho dizendo até aqui eu não poderia
supor (quase não poderia aceitar) que os recursos e os usos em Lestrígones fossem exatamente
equivalentes aos de Lotófagos. Em um livro que, a se acreditar no que tento expor, se constitui
tão claramente como um processo, sucessão de meios e de fins, um passo estacado seria
estranho, mas uma regressão como essa seria de fato quase interdita.
O sol só nasceu duas vezes neste dia. Ele não deveria voltar em seu curso.
193
E esta é uma das grandes maravilhas de trabalhar com Joyce: se você estiver certo no
que propõe, ele nunca deixará de fornecer elementos. É impossível você pensar alguma coisa
a respeito deste livro que o próprio autor não tenha pensado antes, e mais organizadamente
que você.
A não ser, é claro, que seja bobagem.
Funambulamos aqui. Episódio a episódio. Cada achado é portanto um aval do autor.
Mas caminhamos com o receio da queda. Vejamos se há de ser agora.
Pois o ubíquo David Hayman (1970, p.96), já começava a falar deste episódio
declarando que
É com alguma surpresa e talvez com certo alívio que retornamos, em
Lestrígones, ao fluxo de consciência de Bloom e ao narrador discreto, e mais objetivo que
o normal. Este uso de uma convenção estabelecida faz parte do movimento alternado dos
estilos do livro, que freqüentemente se tornam mais conservadores antes de prosseguir para
novos experimentos.
E é fácil verificar as semelhanças. É cil, realmente, argumentar
simplesmente em favor desta volta, deste passo atrás que prepara os futuros dois adiante.
Nada de escandalosamente novo por aqui. Aquela mais conspícua intromissão da
presença arranjadora no episódio anterior (a inserção das manchetes de jornal) acabou se
revelando, em plano agora ainda maior, mais um exemplo de uma de suas características
mais básicas: tal função, persona, figura é especialmente intrusiva. Ela se manifesta entre
frases descritivas normais no primeiro fragmento; surge entre os fragmentos criando a mesma
divisão entre eles e, vemos agora, cinde o livro, não exatamente criando uma fronteira entre
dois momentos distintos (o que o comentário de Hayman pareceria esperar), mas
sistolicamente apresentando em momento inoportuno algo que se vai concretizar plenamente
só mais tarde.
Além disso, o fato de a técnica do episódio em que agora estamos ter sido chamada
de peristáltica e de sua temática toda envolver alimentação sugerem claramente um momento
digestivo: é a hora da pausa para o almoço, e o livro sossega.
Em sua manifestação muda, o arranjador vai viver uma primeira epifania nos Rochedos
Serpeantes, mas entre sua primeira entrada clara e esse momento, ele deve conviver com o
aparente retrocesso dos Lestrígones e de Cila e Caribde.
194
No entanto, sondando as minúcias, já de saída temos de discutir os termos de
Hayman, pois falar em um narrador discreto e mais objetivo que o normal que volta aqui presume
acreditar na existência de um momento prévio em que esse narrador já era discreto e era pelo
menos algo objetivo.
Primeiro é preciso que se diga que discreto vai aqui no sentido de separável,
singularizável. Ora, tudo que este trabalho tem feito é precisamente tentar minar esta idéia de
que o narrador dos episódios anteriores tenha podido ser discreto. resta pensar que
Hayman esteja se referindo àquele narrador que resta: ao estrito funcionário da narrativa. Em
breve veremos que, como em todos os outros momentos, não se poderá aqui estender essas
características de discreção e objetividade a toda e qualquer voz que no texto se manifeste
referindo-se aos personagens em terceira pessoa.
narradores e narradores. Ou, um narrador com momentos e manifestações
diferentes.
Mas essa presença burocrática, discreta e objetiva, estava presente em Éolo. Na
verdade ele sempre espresente (ao menos até o Ciclope). Sem ele o nimo não se faz, por
enquanto.
O que, por trás das palavras de Hayman, efetivamente ordena sua sensação de que
ele não apenas esteve ausente como agora volta mais estabilizado em sua neutralidade é, diria
eu, precisamente o contraste. Contraste com o papel que desempenhou, digamos, em
Lotófagos, provindo especialmente do contraste, sincrônico, com seu irmão contaminado.
Como em uma ilusão de ótica, esta faixa do terreno apenas parece mais clara por
estar cercada de matéria agora mais escura. Pois nos momentos em que lhe faltam
completamente a discreção e a objetividade, essa voz está agora não só tomada por Bloom (o
que podemos dar de barato e, conseqüentemente, podemos aceitar em grau maior), como
também vitimizada pelas influências do arranjador.
Vejamos.
Friedman se detém mais longamente nas questões relativas ao narrador de
Lestrígones. Sigo agora por um momento de mãos dadas com ele, olhando no meio do
caminho para um mesmo exemplo do texto.
Ele começa (p.132) por ressaltar que estamos em um monólogo quase ininterrupto. E até
aqui estamos em paz. No entanto, ele prossegue declarando (p.132, ainda) que o romancista
como narrador de fatos objetivos é visível apenas de maneira intermitente neste oitavo episódio do Ulysses, e
195
mesmo nesses momentos sua linguagem com freqüência está envolvida em uma sintaxe que pertence mais à
poesia do que à prosa. E sua onisciência é muitas vezes duvidosa. O narrador não tem identidade separada.
E estamos definitivamente falando de narradores diferentes.
Este narrador que não tem identidade separada é aquele, afinal, de que falamos desde
o início
119
e, de fato, sua onisciência é muito mais que duvidosa
120
. Agora, este narrador ter
sua sintaxe tomada por uma espécie de poesia (estando nós em companhia de Bloom) é algo
que não poderíamos esperar. E uma interferência que não poderíamos esperar é
precisamente o que deveríamos esperar de nosso amigo arranjador. !. O narrador agora está,
claro está, goldonianamente ecoando o Dedalus de Telêmaco, agindo como servo de dois
mestres.
Aumentando ainda mais a distinção entre as duas realidades que seus textos
comentam (e vale observar que, enquanto todo o texto de Friedman se dedica a este
episódio, em Hayman (1982) os comentários se resumem a um parágrafo), Friedman segue
declarando que este narrador, nosso Contador, sequer se dá o direito de inserções como ‘ele pensou’, ‘ele
disse’, ou ‘ele sentiu’ (ainda p.132).
Novamente, aqui, temos uma diferença por contraste, pois o espaço dedicado a
diálogos e a falas reportados é, neste episódio, muito menor que em Éolo, o que responderia
pela quase ausência de verba dicendi stricto sensu. Já os coloridos verba sentiendi ou os putativos
verba ratiotinandi definitivamente nunca fizeram parte do arsenal de preferência do narrador
que acompanha Bloom, estando, por outro lado, algo removidos das possibilidades do
Contador. Ou seja, de um jeito ou de outro, a constatação aqui é menos relevante do que
poderia a princípio parecer, pois as coisas continuam parecendo o que deveriam.
Friedman, na mesma página (!), se estende mais longamente a respeito da identidade
desse seu narrador. O trecho em questão, conquanto longo, vale a pia, por cópia de
razões, e especialmente porque traz para a discussão um trecho muito interessante do
episódio e, assim, nos permite voltar ao texto. Mas, agora, a ele.
Para dar alguns exemplos da presença e da identidade retórica desse narrador: ele
pode ser absolutamente insípido e anônimo, descrevendo os movimentos de Bloom com
119
E acho que já é hora. O doutorando separou então uma voz da outra. E a uma chamou Narrador e à outra
Contador. E viu que isso era bom.
120
Curiosamente (ou haverá ainda espaço para curiosamentes?) o exemplo do chapéu de Bloom, em Calipso,
encontra eco precisamente neste episódio quando, na linha 279, Bloom se pergunta se puxou a corrente da
descarga do banheiro depois de defecar.
196
afastamento de cronista: ‘He crossed at Nassau Street and stood before the window of
Yeates and Son, pricing the field glasses (166.17). Por outro lado, seu movimento
narrativo pode se ver envolvido pela sintaxe dos devaneios de Bloom, e o resultado pode ter
esta aparência: ‘With hungered flesh obscurely, he mutely craved to adore’ (168.37).
Ocasionalmente, a textura da linguagem é afetada e obtemos um efeito aliterativo, que se
faz acompanhar de confusão sintática: ‘Wine soaked and softened rolled pith of bread
mustard a moment mawkish cheese’ (174.25). Isso nada tem da narrativa onisciente e
segura que controla os eventos externos; a sintaxe ruiu completamente e as salvaguardas
gramaticais desertaram a língua. Na verdade, o trecho parece estar mais distante dos
controles lógicos e mais próximo de uma espécie de poesia pós-simbolista que as amostras do
monólogo interior de Bloom que se seguem: ‘Nice wine it is. Taste it better because I’m
thirsty’ (174.26)
Primeiro de tudo, esclareçamos que suas citações se referem à edição Bodley
Head de 1968, padrão de referência antes do lançamento da edição Gabler de que me sirvo.
Por isso, e para proporcionar um contexto mais amplo para o que intento mostrar,
reproduzo um pouco mais extensamente os quatro trechos, comentando-os, um a um.
He crossed at Nassau street corner and stood before the window of
Yeates and Son, pricing the fieldglasses. Or will I drop into old Harry’s and
hace a chat with young Sinclair? Wellmannered fellow. Probably at his lunch.
(551-4)
Aqui, há muito pouco que se comentar. Novamente o contraste com o
restante do trecho (e o parágrafo segue por mais sete linhas, sempre inequivocamente dentro
da consciência de Bloom) cumpre seu papel de estabelecer lindes, limites, fronteiras e
espaços. Aquela primeira frase definitivamente provém de nosso Contador, com uma
mínima intervenção psicológica, um mero rabicho de onisciência, contido em uma leitura
possível daquela forma verbal pricing: ele parece ter uma idéia do que anda pela cabeça de
Bloom. O trecho seguinte tem muito mais a oferecer.
High voices. Sunwarm silk. Jingling harnesses. All for a woman, home
and houses, silkwebs, silver, rich fruits spicy from Jaffa. Agendath Netaim.
Wealth of the world.
A warm human plumpness settled down on his brain. His brain
yielded. Perfume of embraces all him assailed. With hungered flesh obscurely,
he mutely craved to adore.
Duke street. Here we are. Must eat. The Burton. Feel better then. (634-
9)
197
Trata-se, para começo de conversa, de um trecho famoso. E sua fama se deve a uma
anedota relatada por Budgen (p.20). Ele conta que, logo depois de ter conhecido Joyce em
Zurique, eles certa vez se encontraram no fim da tarde, seu horário normal para conversar
depois de um dia de trabalho, e, interrogado por Budgen sobre o andamento de seu livro
naquele dia, Joyce teria respondido que tudo caminhara muito bem. A passos largos. Quanto
você escreveu? Quis saber um precavido Budgen, e a resposta foi próxima do esperado:
uma frase.
Budgen, pensando saber com que contar, quis saber se o amigo estava perdido na
flaubertiana procura pelo mot juste, e foi então que recebeu uma resposta que ilumina muito
dos procedimentos mais diferencialmente joyceanos. Pois as palavras ele disse que sempre
teve; faltava-lhe era a ordem. E a frase em questão era precisamente a que fecha o segundo
parágrafo citado.
Poderia parecer tentador usar a evidência biográfica para justificar a manipulação
excessiva da frase, argumentando que, se o autor biográfico teve tanto trabalho, certamente
podemos encontrar ali com mais clareza as marcas, as digitais de alguma persona mais
próxima dele: não as de Bloom, mas sim as de um narrador ou do arranjador. Tal
procedimento, contudo, incorreria em pelo menos três erros.
Erro: acreditar, depois de tudo que vimos até aqui, que o narrador e o arranjador
disponham de qualquer prerrogativa maior de representação do autor no texto.
Erro: acreditar que apenas o que parece elaborado custou labor; não pode haver
dúvidas de que certos trechos do fragmentário monólogo interior de Bloom tenham custado
tanto ou mais esforço ao autor.
Erro: mais ainda, acreditar piamente nas palavras de Joyce.
Tudo isso a parte,
pode-se ver, com Friedman, que a frase em questão apresenta uma elaboração que
não condiz com o que poderíamos esperar de nosso Contador, meramente em se olhando
para ela. O molde vácuo do Contador foi certamente ocupado aqui por uma voz com mais
direito a se manifestar. No entanto, a mera comparação com as amostras de inequívoco
monólogo bloomiano que antecedem este parágrafo e que fecham o exemplo anterior
(sequer precisaríamos recorrer a todo o livro lido até aqui) já bastaria para nos dizer que,
estranha, essa voz o parece pertencer ao telegráfico e pragmático, conquanto avoado,
198
Bloom. A bem da verdade, este parágrafo vem dotado de um gozo no excêntrico, no
desviante, em tudo que seja vário e contrário, como diria Hopkins, que parece exagerado
mesmo para Dedalus, que sabemos ser capaz (e especialmente se crer capaz) de vôos poéticos
desta natureza.
A mão que balançou essas frases é estranha, incômoda e impertinente em relação ao
leitor. Ela se diverte sobre o texto e se intromete, mais uma vez, em meio a nacos de texto
mais familiares. Ela ainda está treinando suas asas, mas já sabemos identificar sua plumagem.
E mais do que seguramente, por mais que Friedman argumente, não é à sintaxe dos
pensamentos de Bloom que devemos atribuir a interferência, mas a essa outra voz sem
corpo, a essa outra materialidade sem voz, que começamos a conhecer
121
.
Que emana de Bloom, ou ao menos emana do mundo a que Bloom pertence.
Que é do Livro antes de ser do Autor.
Que lê e reescreve. Que bagunça.
E que bagunça!
Pois veja-se o terceiro dos fragmentos citados por Friedman.
Wine soaked and softened rolled pith of bread mustard a moment
mawkish cheese. Nice wine it is. Taste it better because I’m not thirsty. Bath
of course does that. Just a bite or two. Then about six o’clock I can. Six. Six.
Time will be gone then. She. (850-3)
Nada de contadores. O narrador (sua versão contaminada) está seguramente em cena.
Percebe-se também que, sem sombra de dúvida, é na cabeça de Bloom que estamos quando
o parágrafo se conclui.
Eu atribuiria ao arranjador a interferência, mas não dúvidas de que aqui ela está
menos excêntrica, mais próxima do estilo bloomiano, e o ponto é que, precisamente, ela gera
uma transição gradual para o absoluto telegrafismo do final do trecho. Tudo muito bem
cuidado, o que não deixa de eliminar a aresta que representa aquela primeira sentença que,
mais uma vez, contra a maré de Friedman, atribuímos não a uma interferência da voz de
Bloom, mas sim ao arranjador. Mesma persona cum função que carrega a responsabilidade
121
Aqui vale uma pequena inserção. Pois Kenner (1978, p.78) registra um curioso fato que representa muito
bem o papel que a sintaxe representava na linguagem de Joyce e, mais do que isso, ilustra as condições ideais
para que tenha sido ele o fundador da persona do arranjador. Comentando uma carta de Joyce, com um bizarro
estilo pseudo-comercial, ele comenta que [q]uando Joyce não estava seguro de seu papel, as palavras acorriam em multidão
a sua cabeça, mas todo sentido sintático o desertava: a sintaxe era função do papel: do personagem.
199
por fazer assim tão suave a transição de uma coisa a outra, assim como se responsabiliza
pelo fato de Bloom, aqui, a partir da linha 64, ecoar idéias a respeito de rimas que já
passaram em forma bastante semelhante pela cabeça de Dedalus em Proteu. É o arranjador
no que tenha de mais similar ao autor implícito, mas ainda assim, creio eu, singularizável.
Desembrulha-se assim o que para Friedman pôde parecer realidade contínua.
Uma das características que servem para tingir de tons específicos esse autor
implícito ulisseano e que podem finalmente justificar seu segundo batismo é, repito, o fato
de que essa persona encontra-se, via de regra, subsumida pelo mundo dos personagens. Ela é
gerada por ele e criada por eles, obedecendo, assim, não diretamente ao comando do autor,
mas sim às injunções mais oblíquas de personalidades outras e várias. Trata-se (cada vez
chegando mais perto de uma definição?) de uma função caracterizada, de um personagem
estrutural.
Evidência disso podemos encontrar, por exemplo, no trecho seguinte:
– O, Mr Bloom, how do you do?
– O, how do you do, Mrs Breen?
– No use complaining. How is Molly those times? Haven’t seen her for ages.
In the pink, Mr Bloom said gaily. Milly has a position down in Mullingar,
you know.
– Go away! Isn’t that grand for her?
Yes. In a photographer’s there. Getting on like a house on fire. How are all
your charges?
– All on the baker’s list, Mrs Breen said.
How many has she? No other in sight.
– You’re in black, I see. You have no …?
– No, Mr Bloom said. I have just come from a funeral.
Going to crop all day, I foresee. Who’s dead, when and what did he die
of? Turn up like a bad penny.
– O, dear me, Mrs Breen said. I hope it wasn’t any near relation.
May as well get her sympathy.
Dignam, Mr Bloom said. An old friend of mine. He died quite suddenly,
poor fellow. Heart trouble, I believe. Funeral was this morning.
Your funeral’s tomorrow
While your coming through the rye.
Diddlediddle dumdum
Diddlediddle…
– Sad to lose old friends, Mrs Breen womaneyes said melancholily.
Now that’s quite enough about that. Just: quietly: husband.
200
– And your lord and master? (202-27)
Trata-se, espero que seja claro, de uma performance solo, arrasadora, de nosso velho
Leopold.
Para começo de conversa, a conversa, ou ao menos o começo da conversa, o
encontra em uma situação muito diferente daquela em que se encontrava quando encontra
M’Coy em Lotófagos (e nunca é demais lembrar que esses dois episódios funcionam como
espelhos: a comparação desses dois trechos, aliás, daria conta não apenas das semelhanças
como também das amplificações e divergências). As disposições prévias, embora possam ser
reveladas ao leitor apenas à medida que segue a leitura, explicam plenamente a forma que
assume a representação de cada um dos diálogos. Aqui, longe de indisposto, Bloom tem
especial interesse em dar rédea a sua antiga paixão, Josie Breen; e as primeiras réplicas da
conversa surgem ininterrompidas, resplandecendo em seu coloquialismo e em sua vacuidade
social fática.
Durante as três primeiras intervenções, nem mesmo o Contador tem direito de se
manifestar.
Em sua primeira intervenção, no entanto, já vem matizada sua voz, um pouco
distante da absoluta objetividade de verba dicendi nus que de fato encontramos em outros
momentos do livro e que, portanto, contamos ainda poder esperar. Pois o senhor Bloom fala
gaily.
Descrição de personagem visto de fora. Ou não, descrição de intenções do
personagem ventiladas por um narrador simpático, no sentido em que são simpáticas as cordas
de uma cítara. Nada estranho aos domínios da narrativa pré-Ulisses, mas o bastante para
estabelecer a possibilidade do domínio de Bloom sobre as entidades narrativas, sobre a voz
desse narrador que, novamente conforme Friedman (p.133) nunca fala por si próprio, aquele
cuja voz não tem qualquer timbre especial.
Pois o mesmo Friedman, em uma percepção genial e de rara acuidade estrutural,
lembra que a maior parte dos pensamentos de Bloom em Lestrígones está na área da consciência que
Freud rotulou de pré-consciente; assim a transição da terceira para a primeira pessoa é muitas vezes quase
imperceptível (p.135). Assim, encontra-se uma margem de confluência entre as duas
manifestações, ambas trafegando nas águas da pré-consciência bloomiana onde a terceira
201
pessoa serve para dar qualquer objetividade espaço-temporal, evitando que ela, artificialmente, tenha de ser
imposta ao monólogo de Bloom.
Elas se completam para gerar um painel mais colorido da percepção do personagem,
mas tal integração se exclusivamente na esfera de influência do próprio personagem, em
seu mesmo campo gravitavional, integrando ambas as possibilidades sob a ingerência da voz
criada, feita agora criadora. É Bloom quem rege tons e meios e é para amplificar o que nele
seja Bloom que entram em cena os recursos estruturais quaisquer.
Um outro exemplo, que eu acredito ser divertido, surge neste mesmo episódio para
ilustrar a hierarquia existente entre Bloom e o livro. Em outro momento, este mesmo
trabalho comentou o episódio do chapéu de Bloom em Calipso, empregado por Kenner para
demonstrar, naquele momento, que o Livro não pode saber mais do que Bloom. Se
extrapolarmos (como em alguma medida vimos fazendo) essa conclusão tirada de um dado
quase banal, podemos portanto basear nossa leitura na premissa de que o livro tem um
universo de percepção (estamos nos referindo apenas aos momentos em que o livro é o livro
de Bloom, nossa cosmologia tem pelo menos três sóis) que é pelo menos igual ao de Bloom,
mas ainda, com aquele único exemplo, não podemos nos arriscar a dar o passo a mais que
seria afirmar que ele estivesse contido no universo de percepção de Bloom como parte de
algo maior.
Já aqui (278-9) temos o seguinte passo:
Philip Beaufoy I was thinking. Playgoers’ Club. Matcham often thinks
of the masterstroke. Did I pull the chain? Yes. The last act.
Volte e releia o quanto quiser, o leitor que se detenha diante da interrogação de
Bloom, aqui como no outro exemplo, não poderá encontrar qualquer resposta. A bem da
verdade, sequer podíamos saber (como ressalva Hart
122
, nem mesmo o conhecimento mais
pleno da Dublin de 1904 resolveria este caso) se aquela casa em particular contava com
qualquer sistema de esgotamento de dejetos... com qualquer corrente... Mas aqui, muito ao
contrário daquele caso, Bloom demonstra que ele mesmo pode, sim, saber mais que o livro.
Ele lembra. E o que podia parecer óbvio pode, aqui, servir como mais uma instância da
gradual apresentação de meios e de situações a que o livro nos vem expondo. Primeiro foi
necessário deixar claro que A não era maior que B, agora podemos estabelecer o contrário. E
122
referêsncia
202
é claro que o fato de os dois exemplos se referirem a momentos do dia muito próximos não
parece ser vão.
É Bloom quem sabe mais, e é ele (neste capítulo plenamente dedicado a sua
consciência) quem vai distribuir vozes e atenções, colorir o narrador e reger o sistema e as
técnicas de intervenção do arranjador. B é de fato maior que A.
É ele quem exerce poderes de verbalização tão grandes e que orquestra de forma tão
eficiente esses níveis narrativos a ponto de poder operar o milagre legomenogênico
(devidamente marcado pelo subversivo uso da até aqui estável convenção que rege o uso dos
travessões: ao contrário de todas as possíveis entradas de discurso indireto livre, os trechos
depois de travessões efetivamente representariam sempre sentenças concretamente
enunciadas) de 694-5:
Mr Bloom raised two fingers doubtfully to his lips. His eyes said:
– Not here. Don’t see him.
Virtuosístico, a essas alturas ele pode demonstrar todos seus poderes de
incorporação e assimilação sem que por um só momento se questione sua ascendência sobre
o tom geral da narrativa e o ponto de onde ela contempla a realidade.
Se acredito que Joyce costuma deixar pistas prontas para premiar as boas hipóteses
de leitura do Ulysses, o tenho como deixar de exultar com o mágico trecho de
encerramento dos Lotófagos, em que tudo trabalha sobre a competente batuta de Bloom, e
em que essa integração, depois de todo o longo processo que culmina nestes parágrafos (a
seguir voltaremos à voz de Dedalus e, depois disso, em momento algum voltaremos a gozar
com essa imediação a voz e a regência do maestro Bloom), pode mesmo como que ser dada
de barato.
Fomos integralmente preparados para ela.
Agora é rir do fingimento de Bloom de estar preocupado com outra coisa que não a
presença de Boylan, da confluência de sua voz com a do narrador no início do penúltimo
parágrafo, mais gritante do que qualquer outra até aqui, da inserção quase que involuntária da
autêntica lembrança da necessidade de voltar ao boticário. A imersão na psique de Bloom,
mais uma vez, é tão completa que ele mesmo perde sobre suas manifestações o controle que
gostaria de exercer.
Estamos em uma festa vocal de tom Bloomiano.
203
I am looking for that. Yes, that. Try all pockets. Handker.
Freeman
.
Where did I? Ah, yes. Trousers. Potato. Purse. Where?
Hurry. Walk quietly. Moment more. My heart.
His hand looking for the where did I put found in his hip pocket soap
lotion have to call tepid paper stuck. Ah soap there I yes. Gate.
Safe. (1188-93)
204
C. The horror, the verve
Entramos na biblioteca nacional em Dublin sabendo, por tudo que os números
puderam nos mostrar até o momento, que estamos prestes a cruzar alguma espécie de
fronteira. Cila e Caribde marca o fim da terceira tríade de episódios do livro (já se viu o
quanto é relevante a organização triádica para este livro).
Completando os dois primeiros momentos, que se dedicavam a cada um dos dois
personagens centrais, este terceiro tempo pela primeira vez se dividiu equanimemente entre
os dois e, assim, acabado este nono episódio, chegaremos à metade do livro com todos os
movimentos de abertura tendo sido jogados e com muito do desenvolvimento da partida
esboçado.
A passagem entre Cila e Caribde marcará o meio do livro, em muitos sentidos.
Além disso, dados os mínimos mecanismos estruturais que este trabalho vem
levantando (não é, afinal, este o nosso objetivo), mesmo um leitor que ainda não tivesse tido
contato com o texto do nono episódio poderia prever certas coisas. Pois, se depois de três vezes
Dedalus tivemos três vezes Bloom, a que se seguiram um episódio misto, outro bloomiano,
parece bem claro que deva ser entregue a Dedalus agora a palavra. Se nesta terceira tríade
tivemos de início um episódio misto, depois um aberto, devemos esperar que o cenário deste
terceiro seja fechado: o que nos leva a Dedalus na biblioteca.
De nosso ponto de vista, vimos em Éolo o surgimento de uma nova preocupação, de
um elemento novo em nossa relações. Tivemos o tempo dos Lestrígones para ver como
Bloom se aranjaria com ele e, agora, deveríamos esperar ver quais seriam as relações de
Dedalus com nosso mais novo amigo, o arranjador, e seus procuradores. Além do mais
porque, como o mesmo papa Hayman lembra (1982, p.96) Éolo já nos preparou para as
manipulações mais enfáticas, mas mais sutis, de Cila e Caribde.
Como vimos mais de uma vez, pouco espaço para estase na dança das horas
encenada pelo Ulysses.
A bem da verdade, mesmo essas assunções e premonições, dão em água se não
contarmos com esta singularidade. Nem mesmo Dedalus é o mesmo neste momento. Nós já
205
não o vemos algumas horas e, mais do que isso
123
, como provam dois pequenos
comentários
124
do atento Mulligan (se necessários eles fossem, dado o contexto em que o
abandonamos em Éolo), ele já demonstra os efeitos da ingestão de provavelmente não pouco
álcool logo no início da tarde.
É com pelo menos esses fatos em mente que devemos, então, abordar a página de
abertura do episódio.
Urbane, to comfort them, the quaker librarian purred:
– And we have, have we not, those priceless pages of
Wilhelm Meister
. A great
poet on a great brother poet. A hesitanting soul taking arms against a sea of
troubles, torn by conflicting doubts, as one sees in real life.
He came a step a sinkapace forward on neatsleather creaking and a
step backward a sinkapace on the solemn floor.
A noiseless attendant setting open the door but slightly made him a
noiseless beck.
Directly, said he, creaking to go, albeit lingering. The beautiful ineffectual
dreamer who comes to grief against hard facts. One always feels that Goethe’s
judgements are so true. True in the larger analysis.
Twicreackingly analysis he corantoed off. Bald, most zealous by the
door he gave his large ear all to the attendant’s words: heard them: and was
gone.
Two left.
Monsieur de la Palisse, Stephen sneered, was alive fifteen minutes before
his death.
Have you found those six brave medicals, John Eglinton asked with elder’s
gall, to write
Paradise Lost
at your dictation?
The sorrows of Satan
he calls it.
Smile. Smile Cranly’s smile.
First he tickled her
Then he patted her
Then he passed the female catheter
For he was a medical
Jolly old medi …..
I feel you would need one more for
Hamlet
. Seven is dear to the mystic
mind. The shining seven WB calls them.
Glittereyed his rufous skull close to his greencapped desklamp sought
the face bearded amid darkgreener shadow, an ollav, holyeyed. He laughed
low: a sizar’s laugh of Trinity: unanswered.
123
Acho interessante frisar este ponto, por não ter encontrado menções a ele em qualquer das leituras críticas
que freqüentei, embora ele me pareça ser relevante para mais de uma análise do episódio e, claro, para esta, que
proponho.
124
(552) Have you drunk the four quid, assim que se dirige a Dedalus pela primeira vez, e (1102-3), quando
se prepara para escoltá-lo para fora da biblioteca: Can you walk straight?
206
Orchestral Satan, weeping many a rood
Tears such as angels weep.
Ed egli avea del cul fatto trombetta.
(1-34)
Aqui, se levarmos em conta a alteração etílica sobre a personalidade e as disposições
de Dedalus, não teremos muitas dificuldades em assumir que o procedimento narrativo é,
em sua essência, equivalente ao que vimos em ação, por exemplo, em Proteu. Vemos a ação
através dos olhos e das palavras de Dedalus, que reconhece apenas o que lhe cabe ouvir e
que comenta o que bem entende para si próprio.
A elisabetana descrição do pitoresco Lyster (ou será ele pitoresco apenas quando
descrito?) não escapa em nada das referências que o mesmo Dedalus revelará durante toda a
discussão shakespeareana que enformará este episódio. A diferença de tom, o humor, o
bizarro subjacente ao barroco do estilo é o que devemos atribuir, como novidade, a este
novo Dedalus que encontramos aqui, no meio da tarde. Ele ainda comanda citações,
derrisões, evoca autores e canções: tudo dentro de seu mundo, mas tudo, agora, mais solto.
Para que então seria necessário neste episódio invocarmos intervenções ou
colaborações do arranjador sobre os manifestos poderes de narração e de influência de
Dedalus?
aqui me parece haver uma diferença, pois os comentários dedalianos, que em
Nestor tingiam de tom pessoal, de percepções individuais uma ação que se narrava, agora me
parecem dotados de uma pretensão e de uma capacidade diferenciadas: eles de fato carregam
agora o peso e a vontade da condução da narrativa. E é precisamente um salto como este o que
poderíamos esperar como resultado do quantum de energia que a presença do arranjador
pode fornecer a seus criadores na página. Consumado o saque, Dedalus pode trabalhar
juntamente com esta presença organizadora epistasiada para escrever sua narrativa.
Essa premissa, se aceita, poderia muito bem dar conta, a meu ver, da igualmente
reconhecível diferença de grau, de intensidade, entre as prévias contaminações dedalianas e
esta: em poucas palavras, o parágrafo que descreve a saída como Lyster como he corantoed
off só pode provir de um narrador em tudo e por tudo diferente do Contador mais inerme:
se pode justificar pelo nosso já conhecido cruzamento de vozes: aqui, da de Dedalus com
a do narrador; seu tom só pode ser explicado pela mudança de humor (e de grau de
sobriedade) que não vimos Dedalus sofrer, mas que sabemos ter ocorrido. Essa liberdade,
207
essa jocosidade com que a voz penetrante do personagem é agora presenteada é possibilitada
pela presença em cena da função arranjador, que precisamente amplia, neste campo da
estrutura, os acessos e poderes dos personagens.
O livro tem um ritmo, quase um biorritmo e, como já detectou Hayman (1982, p.93)
O ritmo estrutural do livro, ecoando e mimetizando a “dança das horas”, é uma das realizações mais
espantosas de Joyce e a maior justificativa isolada para suas mudanças estilísticas. Dedalus se embriaga,
Bloom se cansa, o Livro abre brechas, depois do apogeu do sol e da narrativa e nessas
frinchas se infiltra outra voz. Quando dorme a literatura, Joyce insere seu gênio que, para
sorte dela, é-lhe essencialmente favorável.
No entanto, para que se veja plenamente em que o contato específico de Dedalus
com essas possibilidades é diferente daquele vivenciado por Bloom, será preciso andar mais
texto adentro e, por um momento, sair dele para o mundo real.
Porque aqui não podemos deixar de voltar a considerar, ainda que apenas por algum
momento, o tremendo complicador biográfico envolvido na narrativa do Ulysses. Se o por
mais nada, um único fato onomástico (e vivemos entre palavras) bastaria para evocar a
necessidade de pensarmos, em Cila, nas semelhanças e disparidades entre Dedalus e Joyce,
criador e criatura, criatura e criador.
A biblioteca, proporcionalmente mais que o resto da Dublin do Ulysses, está cheia de
nomes de pessoas que, curiosamente, calhavam de estar de fato perambulando em 1904 pela
Dublin registrada nos mapas laicos. Lyster, Best, Magee, Russell, todos eles estão presentes na
narrativa, e citam Yeats, Colum, Synge, Stephens.. Best, mesmo a exclamar para um leitor do
Ulysses, que não era um personagem de ficção. Entre eles está Gogarty que, contudo, no livro
aparece como Mulligan. E junto dele es Dedalus, que a teoria literária padrão não nos
aconselha identificar assim tão prontamente com o autor.
E, além de tudo, Bloom também faz parte desse triângulo.
Mas o fato é que o mesmo texto de Cila chama nossa atenção para esse gênero de
coincidência onomástica, ao atentar para a similaridade entre os nomes de alguns vilões de
shakespeare e os de seus irmãos, entre a viúva Ann e o da esposa Ann, entre Hamnet e
Hamlet Shakespeare. Vida e ficção se encontram nos nomes. E o Livro, aqui, nos ainda
mais uma pista para podermos trafegar instrumentalizados por esse curioso mundo montado
por um maníaco de uma espécie singular, alguém capaz de escolher para Bloom uma casa
208
que de fato estava vazia em 1904
125
, um criador que inseria seu Adão meticulosamente nas
brechas do mundo que o acolheria.
Kellog (p.162) lembra de uma outra cumplicidade Dedalus/narrador que
precisamente amplia este ponto, e nos põe cada vez mais inevitavelmente diante do rosto
desnudo de Joyce (e não deixa de ser curioso que precisamente no momento em que se
consolida a suma intrusão no texto apareça também, erguendo as sobrancelhas acima do
horizonte, a figura biográfica do autor como fato singularmente incontornável). Pois os
personagens presentes, quando se dirigem uns aos outros (e eles se dirigem uns aos outros
muito mais do que a Dedalus), invariavelmente (e por que haveria de ser diferente?) se
referem uns aos outros por seus nomes; mas quando fazem parte da narrativa, isto é, quando
nos surgem filtrados pelo conjunto D/A e acorrentados a seus propósitos estéticos mais que
miméticos, Magee e Russell serão via de regra Eglinton e AE, pseudônimos de fato adotados
por eles como noms de plume, em um fato duplamente curioso, que, como todo o episódio,
tematiza relações entre vida e arte. Se a apropriação de seus nomes de pia por um livro faz
deles personagem, a citação dos nomes falsos com que assinavam sua literatura lembra que
eles, como autores, eram personagens criados por homens, ou, aqui, personagens criados
por personagens.
O detalhe mais poderoso nesse argumento, porém, é o citado fato de Stephen
Daedalus ter sido também um nome adotado por Joyce muito antes de o Ulysses ser
concebido. Como já vimos, ele assinou cartas com tal apodo e com ele publicou na imprensa
irlandesa as primeiras versões dos primeiros contos de Dublinenses.
De fato, todas essas coisas aconteceram precisamente na época em que se passa a
ação do livro.
Em diversos sentidos, portanto, Dedalus existe precisamente como existem Eglinton
e AE, que, por sua vez, compartem (ou não?) os corpos de Magee e Russell (que corpos?).
Houvesse um detalhe sido incluído e a identificação seria perfeita, impossibilitando
ignorarmos a presença, naquela biblioteca e neste livro, de seu autor Augustine Aloysius:
bastava podermos verificar que personagem algum se dirigia a Dedalus por seu nome, o que
125
Ou ele acreditava que estivesse. Hart ressalta que, dadas as particularidades de atualização do guia de
endereços utilizado por Joyce, é impossível saber se naquele momento a casa estava ainda vazia. O que se sabe
é que em outubro do mesmo ano ela estava ocupada, pasmem, por um senhor de nome Finneran.
209
nos permitiria supor (suprindo as lacunas por singela regra-de-três), que eles o pudessem
estar chamando de Joyce.
Mas eles o fazem, e se referem a Mulligan por seu nome criado. E Joyce leva ao
limite, aqui, a exposição biográfica, mas não cruza a fronteira do documental.
Além disso, menções a Dedalus como autor pululam no texto
126
, afinal, como ressalta
Ellmann (1972, p.85), o que ele está oferecendo aqui não é, como parece, de forma alguma uma biografia
de Shakespeare; trata-se na verdade de uma parábola da arte. Sua arte, ao menos.
Dito isso (porque havia de ser dito, porque não podia ser tão facilmente contornado,
pois se Bloom mora em casa vaga, Dedalus sai da torre em que de fato morou Joyce),
podemos, querendo, deixar de lado a proximidade entre Dedalus e o narrador que se explique
por essas bases. Porque (e muito por que, quase porquesíssimo) se podemos argumentar que
uma proximidade maior entre Dedalus e Joyce, nada, até aqui, nos permite dizer que haja
qualquer proximidade maior entre o narrador e Joyce do que entre o narrador e Bloom, por
exemplo. As funções, no livro, escapam à identificação biográfica, enquanto os personagens
podem não.
Mais um twist. Duplo.
Que nos permite argumentar, querendo, que é via Dedalus, aqui, que o narrador
recebe poderes especiais, e não o contrário (mesmo concedida a relação de interferência
observada desde os primeiros episódios).
A linha que, afetivamente, ligaria o autor ao personagem autobiográfico, partindo
daquele em direção a este através de um narrador, aqui se apresenta completamente
invertida. O que pode justificar, espero, o tamanho desta aparente tergiversação, pois marca
um ponto importantíssimo. Talvez estejamos vendo um momento, em nossa guerra já
solidamente inclinada para uma vitória das vozes de papel, em que um deles, primeiramente,
bate mesmo o autor.
126
Especialmente no belo trecho entre as linhas 294 e 313, em que, depois de um comando (See this.
Remember), o texto nos apresenta uma descrição visual da cena, a que se segue a injunção Listen (muito mais
joyceana) acompanhada de um parágrafo muito joyceanamente mais longo de trechos de conversas registrados
taquigraficamente. Texto pleno de sugestões, ilações e iluminações a respeito dos processos de escrita e
leitura (em vários sentidos o Arranjador se parece com um leitor, afinal, embora em outros seja um autor
intrusivo), o Ulysses aqui apresenta uma confluência de tempos e de vidas. Vemos Dedalus registrando a cena
que escreverá aos quarenta anos de idade com o pseudônimo de Joyce. Kellog (p.162) já lembra que Stephen se
pergunta, O que eu aprendi? Com eles? Comigo?’. Trata-se de uma pergunta de um artista, que prevê uma reprodução sobre
um palco.
210
É difícil ir mais alto. E a trajetória do livro daqui por diante parece mostrar que,
depois do apogeu, pode muito bem vir o caos.
Mas, ao texto.
(Afinal, as tais estrepolias do narrador embrigado de Dedalus ficaram apenas (mesmo
que proficuamente) esboçadas naquela primeira página).
na página seguinte um trecho que pode mesmo passar despercebido em sua
importância, embora esteja idêntico na edição Gabler e na padrão Bodley Head
127
.
The schoolmen were schoolboys first, Stephen said superpolitely.
Aristotle was once Plato’s schoolboy. (56-7)
Nada neste trecho que possa decidir claramente, dadas as circunstâncias
estabelecidas desde a primeira página do romance (ou dada apenas a empatia presentemente
manifesta entre as vozes do personagem e a do narrador, que reconhece seu esforço
extracortês), se a última frase pertence ao monólogo interior de Dedalus ou ao diálogo
vocalizado. Perdemos o controle sobre o que ele de fato diz, porque, ao contrário da situação
do leitor em uma narrativa tradicional, não pertencemos mais a um estamento superior, de
onde os personagens são vistos em um mesmo plano: a conjunção do artifício de Dujardin e
do desenvolvimento que Joyce lhe aplicou nos colocou em algum lugar entre Dedalus e o
autor, ainda acima do Contador e muito próximos do narrador e do arranjador.
Para nós, saber que aquilo provém dele tem de bastar. Como ressalva Kellog (148), os
leitores de Joyce precisaram de algum tempo para se acostumar a essa extrema parcialidade narrativa. E este
tempo nós já tivemos.
Podemos dar de barato, por exemplo, o fato de que entre as linhas 181 e 184,
aparentemente a supressão de uma cópula (verbal! verbal!) a que Dedalus não teria prestado
atenção, ocupado com seus devaneios. Coisa familiar já.
No entanto, o que acontece dali por diante representa um elenco de progressivas
excentricidades que, acredito, ilustram muito bem não a progressiva ludicidade que o
entontecido Dedalus empresta a seu narrador como aquele salto quântico a que nos referimos
anteriormente, onde as interferências vocais e intencionais parecem sair da mera esfera em
127
Temos evitado (e aqui o plural é plenissimamente justificado, dadas as inclinações pessoais semelhantes dos
dois envolvidos diretos) incursões de caráter mais estritamente filológico. Mas, convenhamos, toda a
argumentação seguinte pende de um ponto..
211
que transitavam (e vejam só, podemos fazer pouco dela! Mera esfera...), parecem
transcender a coloração, a refração verbal, para se aproximar cada vez mais do cerne
estrutural da narrativa.
Dedalus está bêbado. Dedalus é um artista. Dedalus criaria Joyce.
Razões parece haver. E o fato é que veremos este passarinho voar bem mais alto do
que Bloom jamais atreveu tentar. Vejam só.
How now, sirrah, that pound he lent you when you were hungry?
Marry, I wanted it.
Take thou this noble.
Go to! You spent most of it in Georgina Johnson’s bed, clergyman’s
daughter. Agenbite of inwit.
Dou you intend to pay it back?
O, yes.
When? Now?
Well .... No.
When, then?
I paid my way. I paid my way.
Steady on. He’s from beyant Boyne water. The northeast corner. You
owe it.
Wait. Five months. Molecules all change. I am other I now. Other I
got pound.
Buzz. Buzz.
But I, entelechy, form of forms, am I by memory because under
everchanging forms.
I that sinned and prayed and fasted.
A child that Conmee saved from pandies.
I, I and I. I.
A. E. I. O. U. (192-213)
Calma. Passo a passo. Steady on. Pois tudo isso, ainda, está ainda dentro da mente de
Dedalus. Nada disso foi pronunciado e, mais do que isso, nada disso foi pronunciado por
outros. Qualitativamente, quanticamente, estamos ainda na mesma órbita. No entanto
podemos começar a presenciar um diálogo efetivo (restrito pela lembrança da frase de
Deasy, que detona um retorno ao self usual de Stephen) entre as possibilidades testadas e
algo novo.
Como que vemos uma criança brincar com uma arma naquele pseudo-diálogo
elisabetano que abre a inserção e no hoje famoso trocadilho vocálico que encerra o texto e
funde a brincadeira sonora com a frase AE [Russell] I owe you.
212
Dedalus já está brincando, mas, por enquanto, ainda está contido em si próprio, e as
referências a Hamlet e a sua manhã se misturam como estamos acostumados a ver.
Igualmente evocativa de fenômenos que presenciamos, mas igualmente algo
ominosa, prenunciando atividade sísmica maior, é a descrição (na voz do narrador) que
apresento abaixo.
His look went from brooder’s beard to carper’s skull, to remind, to
chide them not unkindly, then to the baldpink lollard costard, guiltless
though maligned. (245-6)
128
Pouco depois, por outro lado, podemos ver aquele esquizóide diálogo elisabetano
gerando frutos mais selvagens.
There can be no reconciliation, Stephen said, if there has not been a
sundering.
Said that. (397-9)
E ele de fato disse isso. Para Lyster (335). Mas o curioso, a primeira semente do
que colhemos aqui, é que a construção da frase final, em teoria solecista em bom inglês, não
nos deixa saber com segurança quem a enuncia. Poderia ter sido aquele outro eu..
Que aliás continua a pôr as manguinhas de fora.
I think you’re getting on very nicely. Just mix up a mixture of
theolologicophilolological.
Mingo, minxi, mictum, mingere.
(761-2)
A ponto de, mais tarde, criar turbulências na relação.
What the hell are you driving at?
I know. Shut up. Blast you. I have reasons.
Amplius. Adhuc. Iterum. Postea.
Are you condemned to do this? (846-9)
128
Eu diria que quase se pode traçar uma micro-estória etílica da interferência de Dedalus sobre o narrador
neste episódio, a partir, unicamente, das descrições das insignificantes ações de Lyster, desde aqueles passos de
dança já na primeira gina, até momentos como (969) Swiftly rectly creaking rectly rectly he was rectly
gone. Em que se misturam seu amor pela palavra directly e o ranger de seus sapatos para criar um texto que,
rumo à iconicidade, rompeu a fronteira inicial de acesso a uma realidade narrada.
213
Nos dois casos nos mantemos integralmente dentro da consciência de Dedalus. Mas,
nitidamente, essa consciência perde integridade com o avanço do texto. um outro eu cada
vez mais ativo, com que Dedalus tem de se haver. Afinal, todas aquelas condições que
proporcionariam maior interferência entre as vozes e maior ingerência delas sobre a estrutura
da narrativa, neste entretempo, não deixaram de também frutificar, e o que antes estava
plenamente contido na caixa encefálica de um professor de história algo tocado, agora se
espalha pela página, anunciando novos tempos.
Se não, vejamos. E comecemos pelo momento em que a própria voz (Dedalus ou o
narrador?) parece se dar conta de que (o narrador ou Dedalus?) começa a ir longe demais.
He faced their silence.
To whom thus Eglinton: You mean the will.
But that has been explained, I believe, by jurists.
She was entitled to her widow’s dower
At common law. His legal knowledge was great
Our judges tell us.
Him satan fleers,
Mocker:
And therefore he left out her name
From the first draft but he did not leave out
The presents for his granddaughter, for his daughters,
For his sister, for his old cronies in Stratford
And in London. And therefore when he was urged,
As I believe, to name her
He left her his
Secondbest
Bed.
Punkt.
Leftherhis
Secondbest
Leftherhis
Bestabed
Secabest
Leftabed.
Woa! (684-707)
Eia! As coisas definitivamente estão andando rápido demais. Se ainda podemos
atribuir a temática elisabetana a Dedalus, e a gradual dissolução do texto em brincadeiras
214
sonoras a seu estado de intoxicação, não se pode obliterar o fato de que as palavras que
foram (inclusive graficamente) tratadas de forma tão singular, não foram pronunciadas por
ele. As asas do excesso de Blake definitivamente não apenas ruflam sobre a cena, mas
projetam alguma sombra. Nossa ave já saltou da janela. E, agora, coisas estranhas não
pararão de surgir:
– What? Asked Besteglinton? (728)
– History shows that to be true,
inquit Eglintonus Chronolologos
. (811)
– John Eclecticon doubly smiled. (1070)
MAGLEEGLINJOHN
(900)
Esta última citação, assim, isolada, merece um esclarecimento mais. Afinal, a
intervenção gráfica não é imotivada: ela é de fato uma rubrica de um trecho algo longo (835-
934) que finalmente extrapola a teatralidade dos primeiros delírios de Dedalus na biblioteca
129
,
narrando todo um momento da ação sob forma dramática. Uma mínima interferência, por
um lado, sobre as vozes dos personagens, que, de fato, podem mesmo parecer mais íntegras
nesta forma. Por outro, no entanto, o ruído gerado na forma do livro por tal inserção pode
mesmo ser considerado de pouca monta (especialmente com o que sabemos estar ainda por
vir) diante do fato de que tal esquema narrativo, por um caminho diferente, que reafirma o
arranjador como organizador da superfície do texto, solapa uma última convenção, até aqui
deixada quietinha em seu canto.
Pois nem mesmo o Contador, confiável último esteio da estabilidade em meio ao
progressivo ensandecimento da narrativa de restar de pé. As condições criadas por oito
episódios precedentes e pelo contexto imediato da biblioteca geraram um estado de coisas
em que Dedalus pode, pela primeira vez, exercer o controle que vinham (ele e Bloom)
manifestando sobre a voz e a personalidade de seus narradores sobre níveis mais altos, ou
mais profundos, da narrativa como construção. Se antes não podíamos escapar da
constatação de que víamos as coisas tingidas pelo olhar dos protagonistas, daqui por diante,
cada vez mais será difícil escaparmos da constatação de que as coisas sequer existem fora do
olhar desses protagonistas.
Eles não mais matizam. Abrangem.
129
Kellog (p.159): através do narrador a cena assume as formas e modos literários que são, em cada momento dado, a extensão
adequada da imaginação dotada de vigorosos padrões de Stephen.
215
E Dedalus, de ambíguo estatuto autoral, é a pessoa certa para nos introduzir ao que
se verá em escala cada vez mais alucinada a partir das Sereias.
Mas antes é preciso nos determos ainda por um minuto para observar o que pode o
arranjador quando afastado daqueles (neste momento ainda Stephen e Bloom) que lhe dão
vida e que o podem determinar. Pois, se, como quer Kellog (p.147) A alma de uma cidade é sua
fala, alma desse livro é também uma cidade.
216
D. E tinha um despropósito de pedras no meio do caminho
E, aliás, chegamos bem ao meio do caminho.
Vencidos os primeiros nove episódios, temos agora um novo livro pela frente.
Houve tempo (e aqui falo simultaneamente do livro e deste trabalho, falando, portanto e
obviamente, do livro conforme concebido por este trabalho) para que os princípios gerais se
estabelecessem e fossem desenvolvidos até seu ponto ótimo de maturação, permitindo que a
segunda metade do livro (que, diga-se de passagem é 150 por cento maior que a primeira,
reflexo dessas mesmas liberdades) se abandone em experimentos, segura que está de suas
bases e da compreensão de suas bases.
Concluído o significativo trabalho dos nove primeiros episódios, o autor pode se
permitir um momento para respirar, para se afastar e contemplar sua criação, esta ambígua
cidade de fato e de letras, de uma perspectiva mais tranqüila. Pode dar alguma folga a seus
personagens e a seus leitores, gerando um verdadeiro interlúdio, que parecerá ainda mais
doce depois que o leitor encarar as complexidades das Sereias, no episódio seguinte.
Esse desvio da ação (esse momento de inação incrivelmente movimentada) explicaria
perfeitamente bem a escolha (neste único momento do livro) de um paralelo não-homérico
para as aventuras de nosso Odisseu. Embora mais de um texto da rica tradição pós-homérica
que explora as desventuras do rei de Ítaca mencione e desenvolva o tema das temidas
simplégades, na Odisséia, propriamente dita, elas não são mais que um detalhe.
Dentro dos princípios de seu método mítico, na economia geral da narrativa, no ritmo
da evolução da técnica, portanto, é hora do café.
Como em um trabalho acadêmico, ele produz uma retomada em microcosmo de sua
obra e propõe uma síntese provisória. A bird’s eye view. Olha. o que fez. E que estava
danado de bom.
(Um pequeno excurso será necessário para comentar a estruturação geral do episódio
(o que dele é mais conhecido), porque ela nos propõe um problema bastante singular dentro
dos quadros que até aqui vamos conseguindo propor.
E que não me custa expor de uma vez: este é, em diversas medidas, o momento de
triunfo do arranjador. E tal coisa não deveria ser estranha dentro das linhas que este trabalho
vem desenhando.
217
Depois de introduzido e calmamente desenvolvido na tríade anterior de episódios,
era mesmo o momento de este divíduo encontrar algum tipo de epifania (para usarmos uma
palavra muito cara a Joyce). No entanto, tal triunfo se precisamente sob as vestes da
pantomima. O arranjador vigora, sim, mas quase exclusivamente em função dos poderes e
atividades não-verbais que possui.
Em alguma medida, até aqui, estivemos tentando uma síntese entre as possibilidades
abertas pela definição que Hayman de seu arranjador e a idéia kenneriana de que o Ulysses
encenaria uma batalha entre dois narradores de índoles diversas. Chamando a um deles de
Contador e mantendo o termo narrador para o outro (e vejam só, vou eu escrevendo a
minha ntese provisória..), acredito que tenhamos conseguido, concebendo como vulnerável
(de início às ações dos personagens e, depois, desta figura que deles emana) este segundo
porta-voz, estabelecer o campo em que o arranjador contribui para a amplificação das vozes
dos personagens, facilitando e aprofundando seu ataque sobre a suscetível persona do
narrador.
É necessário, no entanto, mantermos sempre em mente um breve comentário do pai
da criatura, que afirma que ela deve ser pensada como algo entre uma função e uma persona.
Neste episódio, segundo todas as aparências, é a função-arranjador que tem sua
apoteose (e podemos deixá-la triunfar em paz por algumas páginas..) Mas vejamos.
É lugar comum lembrar que Joyce escreveu este episódio diante de um mapa de
Dublin, com um cronômetro a seu lado. Ele se compõe de uma série de dezoito fragmentos
(intercalados: muito intercalados), mesmo número de episódios do livro em sua versão final,
a que se acresce uma coda que retoma um dos fios condutores da cronologia do episódio, a
cavalgada do vice-rei pela cidade de Dublin (poder secular).
O próprio Hayman (1982, p.97) anotava que [d]urante todo o capítulo ficamos cientes de
que estamos sendo manipulados pelo arranjador. O mecanismo da caixa de música dos Rochedos
acaba definitivamente sendo o foco de maior interesse do episódio. Clive Hart (2002) narra
inclusive como se dispôs a reproduzir a por toda a cidade de Dublin os itinerários de 37
personagens (munido, ele também, de um cronômetro) apenas para, no fim, verificar a
acurácia de todo o intricado sistema de inter-referências estabelecido no episódio. Pois,
desde que na linha 213 há a repetição de uma descrição que havíamos visto (no fragmento
anterior) na linha 97, começamos a perceber que a narrativa é, em alguma medida, sincrônica
(Segundo quadro elaborado por Hart, toda a ação duraria pouco mais de uma hora).)
218
Mas tal virtuosismo de composição ainda o explica a incômoda sensação a que se
referia Hayman. No entanto a ação deste arranjador enxadrista (e, nada curiosamente,
uma partida de xadrez sendo jogada no episódio) não é simplesmente a de compor uma peça
complexa. Estamos nos familiarizando bastante bem com este arranjador para saber que ele
é bastante bem dotado da característica muito dublinense que, vernacularissimamente, eu
chamaria de espírito de porco. E temos, consternados, de descobrir que
Ambigüidades de nomenclatura proporcionam uma espécie de armadilha
que, para ser evitada, requer conhecimento detalhado da história e da topografia da
cidade. Uma das formas mais comuns que esse tipo de ambigüidade assume é o
hábito do narrador de renomear coisa a que já se fez referência usando termos
diferentes e mais freqüentes. A ponte Carlisle é a mesma coisa que a ponte
O’Connell; o salão de música de Dan Lowry é o salão de música Empire com seu
nome antigo; a câmara do concílio da abadia de Santa Maria é a velha casa do
capítulo da abadia de Santa Maria. Esse recurso é levado ao clímax na seção final,
em que o vice-rei recebe títulos diferentes de quase todos os dublinenses que
contemplam sua passagem pelas ruas da cidade. [...]
O recurso funciona ao contrário quando o mesmo termo é usado para
objetos e eventos distintos. O reverendo Nicholas Dudley, cura encarregado da igreja
de Santa Ágata na rua William Norte nada tem que ver com o vice-rei, duque de
Dudley; o senhor Bloom, dentista, não conhece o senhor Leopold Bloom; o Jardim de
Dignam é uma área da cidade rica demais para ser do interesse da família Dignam.
Lambert e O’Molloy, que acabaram de conversar na Abadia de Maria (o edifício),
saem ‘lentamente para a Abadia de Maria’ (a rua). Hart (2002, p.192)
Estamos entregues à lúdica vilania do arranjador. E, como já se disse, e mesmo como
se poderia prever, é o deslindar dessas tramas, a compreensão dessas sincronias, que tem
sido o prato cheio da crítica que sobre este episódio se debruçou nos últimos setenta anos. O
arranjador parece de fato estar em seu ápice e, para consternação do autor deste trabalho, tal
glória parece lhe ocorrer precisamente quando sob sua forma funcional.
Mas, acompanhemos Hart (2002, 188), em sua admoestação de que O modo narrativo
de cada uma das seções é aparentemente simples, lúcido, auto-contido, sem o peso de alusões ou complexidades
lingüísticas. A simplicidade, no entanto, é uma ilusão, uma armadilha para o leitor ingênuo. Ingênuo e,
justificavelmente, atordoado pelo malabarismo da construção, além de, igualmente,
entorpecido pelo distanciamento que esta súbita visão panorâmica da cidade (Bloom e
Stephen ocupam apenas três dos dezenove fragmentos) parece lhe impor. Pois, nas palavras
de Hayman (1982, p.97)
219
Até os Rochedos Errantes o fluxo de consciência nos deu uma
aproximação de duas mentes que se desnudam em relação a um mundo pleno de
opacidade. Agora o arranjador começa a reduzir esses protagonistas à condição dos
outros personagens, nos obrigando a uma reorientação que nos possibilite usar nosso
conhecimento a respeito de Stephen e de Bloom em contextos em que seus
pensamentos estão confusos, distorcidos ou ausentes. Pela primeira e última vez
alguns dos personagens menores chegam até nós através de seus fluxos de consciência.
Diante do que, Hart (2002, p.192), arremata: A proliferação do monólogo interior, mesmo
quando continuada por tempo suficiente para fazer justiça às personalidades, serve, mais uma vez, para
diminuir o envolvimento emocional do leitor ao tratar tanta gente de forma similar e espalhar a atenção em
direções divergentes. Afinal, a mesma base da argumentação deste trabalho, que seria a
necessidade de se separar de entre os personagens alguns que detivessem um poder maior
sobre a estrutura da narrativa, se aqui questionada. Veja-se, como de costume, a mera e
bela abertura do episódio.
The superior, the very reverend John Conmee S. J. reset his smooth
watch in his interior pocket as he came down the presbytery steps. Five to
three. Just nice time to walk to Artane. What was that boy’s name again?
Dignam. Yes.
Vere dignum et iustum est
. Brother Swan was the person to see.
Mr Cunningham’s letter. Yes. Oblige him, if possible. Good practical catholic:
useful at mission time.
A one legged sailor, swinging himself onward by lazy jerks of his
crutches, growled some notes. He jerked short before the convent of the
sisters of charity and held out a peaked cap for alms towards the very reverend
John Conmee S. J. Father Conmee blessed him in the sun for his purse held,
he knew, one silver crown.
Father Conmee crossed to Mountjoy square. He thought, but not for
long, of soldiers and sailors, whose legs had been shot off by cannonballs,
ending their days in some pauper ward, and of cardinal Wolsey’s words:
If I
had served my God as I have served my king He would not have abandoned
me in my old days.
He walked by the treeshade of sunnywinking leaves: and
towards him came the wife of Mr David Sheehy M. P.
– Very Well, indeed, father. And you, father?
Father Conmee was wonderfully well indeed. He would go to Buxton
probably for the waters. And her boys, were they getting on well at Belvedere?
Was that so? Father Conmee was very glad indeed to hear that. And Mr
Sheehy himself? Still in London. The house was still sitting, to be sure it was.
Beautiful weather it was, delightful indeed. Yes, it was very probable that
Father Bernard Vaughan would come again to preach. O, yes: a very great
success. A wonderful man really. (1-25)
E, ora, trata-se de outro verdadeiro putsch.
220
Tudo aquilo que estávamos expondo como meios refinados colocados à disposição
de certos personagens principais, agora encontra-se nas os (e na mente) de nosso velho
conhecido, o padre Conmee, figura de relevância reduzida para este romance.
Pois me permitam, então, como é de meu gosto e do gosto de nosso autor, gastar
algum tempo com essas linhas de abertura.
A primeira frase já faz seu possível para demonstrar que (1) este texto está escrito e (2)
que a voz que se encarregará da narração é a de alguém pleno de schadenfreude, espírito de
porco ou o que mais queira-se imputar-lhe.
Em certo sentido, boa parte de meu esforço nesse capítulo irá no sentido de tentar
explicitar as razões que puderam levar Clive Hart (2002) a escrever coisas como esta (p.188):
Como muito pouca ação nos Rochedos Serpeantes, Joyce pode dar tempo a
seus leitores para que olhem em torno de si e observem o cenário em que ele localizou os
eventos anteriores. Ele não permite que seus leitores relaxem mas, pelo contrário, adota a
persona de um narrador canhestro e ríspido cuja personalidade difícil é o que de mais
saliente há no capítulo.
Um narrador, prosseguiria ele (p.190), que relata, mas raramente se digna a explicar, que
oculta e revela segundo caprichos; e tanto nós quanto os personagens sofremos com seu domínio totalitário.
Quem é essa voz.. E de onde ela provém..
A primeira palavra do texto é ambígua, pois poderia contar com uma leitura adjetiva
até o momento em que surgem o adjetivo reverend e a sigla da companhia de Jesus
(informação de que nem todos precisam dispor), para deixar claro que se trata de um título
religioso. Conmee não é a superior person, ele é, de fato
THE
superior. E em seguida, o que fez
ele? Ele reset his smooth watch. Ora, parando aqui, qualquer falante nativo de inglês veria
o personagem arrumando o horário de seu relógio. Mas a frase segue, in his interior
pocket, o que força uma releitura daquele primeiro verbo, agora com sentido de
reacomodar.
O texto está nos mostrando em sua primeira frase o que encontraremos em todo o
episódio: muita dêixis (por vezes equivocada, por vezes equivocante), muita ambigüidade,
muita necessidade de atenção simultaneísta: a leitura linear aqui não há de bastar.
E Conmee ainda nem abriu a boca.
221
E, quando o fizer, veremos que definitivamente foi quebrada a patente de todo o
arsenal que vinha sendo reservado para Dedalus e Bloom. Logo sua primeira manifestação
verbal
130
vem na forma do precioso monólogo interior, a não ser, é claro, que pensássemos que
ele de fato poderia estar verbalizando, sozinho, o horário; mas tal suposição não bastará para
a frase seguinte: ele definitivamente dispõe dos meios
131
.
A bem da verdade, de todos os meios possíveis de representação de discurso, o
único que nestas poucas linhas não vemos aplicado a Conmee é precisamente o singelo
discurso direto. O indireto livre, por sua vez, é empregado com tanta maestria que podemos
nos ver inclinados a vê-lo mesmo onde esteja ausente, caso da maior porção do diálogo que
encerra nosso fragmento, onde o que vemos são as réplicas efetivas de cada um deles,
desprovidas apenas do amparo do Contador. Mesmo o pouco discurso direto a que Conmee,
assim, tem acesso, vem como que complexificado por este procedimento.
Agora, em que medida esses procedimentos sutis configuram uma leitura irônica de
Conmee? Me parece claro que sim, em alguma.
Talvez a mera negação de seu acesso ao discurso direto não possa responder por essa
sensação, mas pequenos detalhes no tratamento que ele recebe do narrador possam pô-la
mais ao claro. Seu amor por siglas e títulos honoríficos, por exemplo, é alvo de troça desde o
momento em que ele é apresentado ao trecho em que encontra a senhora Sheehy. Em
outro momento (linha 150) será seu pio D.V. (Deo volente) que será aplicado de forma
tortuosa
É ele mesmo que enuncia (linhas 198-9), ao ler seu livro de horas, as palavras
principium verborum tuorum veritas. O princípio de tuas palavras é a verdade. E,
i(c/r)onicamente, é ele mesmo que, talvez neste preciso momento, inclusive, serve a mostrar
ao leitor que ele está sob o domínio de alguém (o narrador singular de Hayman) cujas
130
Que, em minha opinião, esconde o germe de mais uma ambigüidade forçada, a semente de mais uma leitura
equivocada: pois, depois de se dizer que ele descia os degraus, surge um número, cinco, e eu, ao menos, nunca
deixo de pensar por um centésimo de segundo que cinco seriam os degaus..
131
E, apesar de estarmos centrando nosso fogo nesta página de abertura, é preciso que se diga que ele estará
longe de ser o único personagem menor que, durante este episódo, tocará o graal do monólogo interior. Alguns
exemplos: na linha 327, ninguém menos que Blazes Boylan terá direito a um comentário sexista interno; dois
para-Blooms, M’Coy e Tom Kernan, terão também seus momentos de introspecção verbalizada na página, nas
linhas 513ss para o primeiro e 720ss para o segundo deles. O mesmo Bloom (a começar da linha 585) e
Stephen Dedalus (que, embora participe apenas como personagem do fragmento 6, tem também seu momento de
protagonista junto de sua irmã, em que seus pensamentos nos surgem a partir da linha 805) não ficarão também
de fora, mas o fato é que mesmo personagens até aqui mal mencionados, como o pequeno Patrick Dignam
(mais uma pista falsa) filho do defunto, que toma conta completamente de todo o décimo-oitavo dos
fragmentos, verão seus direitos e possibilidades igualados aos dos personagens centrais..
222
palavras parecem seguir o princípio da mentira. Alguém cuja participação na narrativa parece
ser responsável (como no filme Irréversible, em que um ruído de 28Hz acrescentado à trilha
sonora, apesar de quase inaudível, foi responsável pelo fato de boa parte do público ter
abandonado as salas de exibição) por um incômodo e indefinível mal-estar, um tom de
derrisão, de sarcasmo e de escárnio por trás das palavras de aparência mais inocente que
lembra muito o que se pode sentir durante a leitura de Dublinenses
132
.
O que nos interessa ver, aqui, é que (apesar da aparente democratização do acesso à
superfície da página, ou talvez precisamente em função dela, como já apontado neste
trabalho) a função arranjador, que tão nitidamente exibe suas garras e seu sorriso em cada
canto da construção do quebra-cabeças dos Rochedos Errantes, também, em não pequeno
grau, manifesta sua presença como persona, ainda que, até o momento, o faça como uma
persona bastante indefinida.
Estávamos acostumados a atribuir as interferências sobre o narrador (antes ou
depois do surgimento da figura mediadora e amplificadora do arranjador em nossa
discussão) a este ou aquele personagem. Nomeadamente, a Stephen Dedalus ou a Leopold
Bloom. Aqui, teríamos de pulverizar essa responsabilidade por cada um dentre as dezenas de
personagens que povoam nossa Dublin.
Mas isso seria um grande equívoco, como espero que a leitura do trecho referente ao
padre Conmee possa ter demonstrado. Quem quer que esteja agindo sobre este narrador,
tingindo suas falas para um ou outro lado, parece freqüentemente estar trabalhando mais
contra o acesso direto dos personagens à superfície da página (enviezando-o e ironicamente
subvertendo-o), do que funcionando como amplificador de suas vozes.
O curioso, no entanto, é que tal procedimento o é uniforme. Os narradores que
acompanham Dedalus e Bloom, nos momentos em que estão diante de nossos olhos, são
basicamente o que poderíamos esperar, assim como o narrador que segue muito de perto os
devaneios do pequeno Patrick Dignam gera apenas o sarcasmo involuntário que gera uma
criança ao se expressar. Vejam-se os três exemplos.
Stephen Dedalus watched through the webbed window the lapidary’s
fingers prove a timedulled chain. Dust webbed the window and the
132
Aliás, Melchiori e de Angelis (2000 p.161) lembram que talvez a mais feliz definição deste capítulo, que está
como que entre parênteses no contexto do romance, tenha sido dada por Anthony Burgess: Uma engenhosa
síntese, uma espécie de Dublinenses sem o enredo.
223
showtrays. Dust darkened the toiling fingers with their vulture nails. Dust
slept on dull coils of bronze and silver, lozenges of cinnabar, on rubies,
leprous and winedark stones.
Born all in the dark wormy earth, cold specks of fire, evil, lights
shining in the darkness. Where fallen archangels flung the stars of their
brows. Muddy swinesnouts, hands, root and root, gripe and wrest them. (800-
7)
Mr Bloom turned over idly pages of
The Awful Disclosures of Maria
Monk
, then of Aristotle’s
Masterpiece
. Crooked botched print. Plates: infants,
cuddled in a ball in bloodred wombs like livers of slaughtered cows. Lots of
them like that at this moment all over the world. All butting with their skulls
to get out of it. Child born every minute somewhere. Mrs Purefoy. (584-9)
Master Dignam walked along Nassau street, shifted the porksteaks to
his other hand. His collar sprang up again and he tugged it down. The
blooming stud was too small for the buttonhole of the shirt, blooming end to
it. He met schoolboys with satchels. I’m not going tomorrow either, stay away
till Monday. He met other schoolboys. Do they notice I’m in mourning?
Uncle Barney said he’d get it into the paper tonight. Then they’ll all see it in
the paper and read my name printed and pa’s name. (1155-60)
Ora, tal narrador (tais narradores?) por mais que possa representar uma manifestação
(por mais que sua mera existência possa manifestar uma representação) da presença e da
atividade do arranjador no texto, especialmente se em contraste com os procedimentos que
vinham até aqui tomando lugar e, ainda mais especialmente, se colocado dentro da linha
evolutiva que parece estar se desenhando diante de nossos olhos, o deixa de também poder
ser lido como um exemplo claro da figura do autor implícito.
Seria necessário recorrer aqui ao arranjador?
Um exemplo que pode, muito depassagemente, ser empregado para explicitar a
diferença e mostrar o que quero (exemplo com que acenei em outros momentos) é o de
Mrs Dalloway, de Virginia Woolf. Pois o fato é que, no organograma que Hayman nos ajuda a
traçar, o arranjador se coloca em algum ponto entre o autor implícito e seus narradores.
Dizer, portanto, que os Rochedos Errantes apresentam, como Mrs Dalloway, uma presença desta
entidade (o AI), sem qualquer outra manifestação singular, é aproximar a narrativa do autor,
é aumentar sua ingerência, seu poder de refração, sobre as palavras do texto e as palavras dos
personagens.
Isso, em Woolf, me parece extremamente adequado. Sente-se sua presença e se ouve
sua voz durante todo o texto. Em outro trabalho
133
, pude mesmo argumentar que era a falta
133
Galindo, 2003.
224
de um centro de referência, que paradoxalmente impedia o texto de Woolf de alcançar uma
verdadeira equanimidade de tratamento de vozes. Ausente esse centro, é nela que se o vai
buscar.
Joyce, por sua vez, continua mantendo os dois centros de seu sistema ativos durante
o episódio. Mas sua participação é discreta e discrecionada. E eles o podem estender seus
tentáculos para os momentos em que estão ausentes. A única coisa que salva tal persona
narrativa de uma identificação direta com o autor implícito é sua personidade, além de sua
personalidade. Ela é muito singularizável, muito caricatural, em certo sentido, e o autor
implícito que ser responsável por ela e por outras, em todo o texto, precisando, assim,
manter-se um nível acima (contraditoriamente, um nível de menos interferência).
Que tal voz não é o narrador, em cada momento, também deve ficar claro. É ela
quem fornece uniformidade de procedimentos aos narradores, declarando, contudo, sua
liberdade de ação. Ela (como persona; como função seu papel é outro) é um prisma. Um
prisma de leitura que por vezes, como já se disse, parece ser ele mesmo um leitor, alguém
que já passou por aqui antes e, mais ainda, alguém que em alguma medida lembra muito bem
o que já leu e algumas vezes parece lembrar o que está pela frente.
Ela, schweingeist, se permite brincar com o texto, como já vinha fazendo:
A cavalcade in easy trot along Pembroke quay passed, outriders
leaping, leaping in their, in their saddles. Frockcoats. Cream sunshades. (795-
6)
Gaily they went past before his cool unfriendly eyes, not quickly. In
saddles of the leaders, leaping leaders, rode outriders. (1036-7)
Ela se permite brincar com a estrutura do livro, com pequenas piscadelas para o
releitor, ou com a antecipação de temas (verbais e formais) de momentos posteriores do
livro. Como em
Passing by Roger Greene’s office and Dollard’s big red printinghouse,
Gerty Macdowell, carrying the catesby’s cork lino letters, for her father who
was laid up, knew by the style it was the lord and lady lieutenant but she
couldn’t see what Her Excellency had on because the tram and Spring’s big
yellow furniture van had stop in front of her on account of its being the lord
lieutenant. (1205-11)
onde encontramos a Nausícaa do episódio 13 entregue ao tipo de preocupações
com roupas e estilo que tomará boa parte do tempo de suas fantasias na praia. Além disso,
225
a unificação dela (futuro objeto do voyeurismo de Bloom) com a rica senhora que Bloom
tentava admirar enquanto ouvia, ou fingia ouvir, M’Coy, pois nos dois casos um veículo
que se interpõe para atrapalhar contemplação e cobiça. Para bom enten.
O mesmo processo segue ainda em
Bronze by gold, Miss Kennedy’s head by Miss Douce’s head, appeared
above the crossblind of the Ormond hotel. (962-3)
em que vemos as duas Sereias do próximo episódio na posição em que se encontram
quando ele se inicia (a bem da verdade, é aqui que se inicia o próximo episódio). Mas não
há a menção dos nomes de Mina e Lydia como, também aqui, prenuncia-se a técnica
empregada no texto em que reinarão. O sintagma inicial, que é o primeiro, também, das
Sereias, conseguindo mesmo a proeza, graças à singular estrutura daquele episódio, de ser ali
o primeiro em dois inícios diferentes, regerá, junto com sua inversão, que vemos também em
(1197-9)
Above the crossblind of the Ormond hotel, gold by bronze, Miss
Kennedy’s head by Miss Douce’s head watched and admired.
boa parte dos temas do episódio que está por vir. Igualmente, a confusão gerada
pelas inversões (o leitor leva bastante tempo para alinhar corretamente todos os pares
designativos (bronze, ouro; Lydia, Mina; Douce, Kennedy; aqui, na ordem correta que, para
variar, não é aquela que a primeira apresentação, em 962, sugeriria).
O relevante aqui é precisamente isso, que lembremos que a antecipação de elementos
da trama e mesmo as correspondências simbólicas traçadas entre eles em diversos pontos
são instrumentos típicos da construção de qualquer narrativa longa. Por outro lado, o que
vemos aqui é uma antecipação de técnicas singulares, em um livro singularmente ele mesmo
construído como sucessão de técnicas diversas. A mão do jogador que move as peças neste
tabuleiro não apenas traslada um bispo de uma para outra, mas, quando o traz, traz com
ele todo o ambiente, as referências e o tom da outra posição que previamente ocupava, ou
que, como aqui, ainda virá a ocupar.
E é exatamente para resolver o paradoxo de um controle mais intenso exercido por
uma figura mais distante do autor que surge o arranjador.
226
Resta, no entanto, para a simetria de minha argumentação, o buraco causado pelo
súbito descolamento dos narradores (na mão deste arranjador) de um centro discursivo
unificador (necessariamente diferente do autor). Eles parecem ter-se pulverizado em diversos
centros axiológicos, um a cada momento. Para minha felicidade, no entanto, este narrador
que se revela, acompanhando Ben Dollard, subitamente capaz de vulgarismos dublinenses
como
Ben Dollard halted and stared, his loud orifice open, a dangling button
of his coat wagging brightbacked from its thread as he wiped away the heavy
shraums that clogged his eyes to hear aright. (940-2)
despertou em Clive Hart (2002, p.198), possivelmente o autor mais preocupado com
o papel de Dublin no Ulysses, a seguinte reflexão, que finalmente nome ao boi que nos
incomodava, identifica o Platzgeist que unifica nosso sistema de referências e que, finalmente,
deixa claro que o texto deu voz a mais um de seus personagens principais. Os grifos serão
meus.
Em muitos capítulos de Ulysses, Joyce cria uma consciência narrativa singular e
distintiva e, malgrado a fragmentação,
isso é tão válido nos
Rochedos
Errantes
quanto em qualquer outro episódio
. Com a redução de Bloom e Stephen a
proporções cotidianas, nem um deles mais nem menos importante, por enquanto, que
qualquer outro dublinense,
tomamos consciência da presença de um
spiritus
loci.
A consciência que apresenta os Rochedos Errantes é em certo
sentido a da própria Dublin, e esse espírito é dotado de uma
personalidade distinta
. Os Rochedos Errantes empregam grande quantidade de tons
e pontos de vista narrativos, do cuidadoso paternalismo condescendente de Conmee à
cansada linguagem jornalística de um centavo por toque em que se baseiam as brilhantes
variações da coda, mas todos eles têm em comum um tipo especial de objetividade não-
interpretativa. Mas a objetividade é uma fraude dissimulada, uma armadilha deliberada.
O narrador o tira conclusões, não faz comentários. Mas ao mesmo tempo em que quase
tudo o que ele diz é, no fim de contas, verdade, muitas mentiras por omissão, quando o
narrador não fornece informação conectiva essencial que, consoantemente, temos de obter por
conta própria. Quase tudo é apresentado como se visto pela primeira vez. ‘Um marujo
perneta’ na seção de Conmee é ainda ‘Um marujo perneta’ (não ‘O marujo perneta’)
quando reaparece na seção 3. O narrador se pretende inocente de autoconhecimento. Espécie
similar de simplicidade dissimulada encontra-se em outro trechos, em que a recusa da
congruência ao tratar do marujo encontra resposta especular na inclusão de muitas
congruências inesperadas e falsas.
O leitor está continuamente correndo risco
de tirar conclusões errôneas
.
227
E. É o que está por trás
O Finnegans Wake, livro seguinte de James Joyce, organiza-se claramente (se algo ali
existe claramente), em torno de células, cada uma delas dedicada ao desenvolvimento de um
dos personagens principais: o livro se abre com um conjunto de capítulos que expõem
(literalmente) Humphrey Chimpden Earwicker, o pai; depois disso somos apresentados ao
jorro de Anna Lívia Plurabelle, a mãe; e em um terceiro momento, quando os dois como
que se fecundaram, podemos conhecer melhor seus filhos, a começar da ovelha negra, a
começar de Shem, dito the penman, o cálomem, o escriba,
Digo isso porque, em muitos sentidos, me parece que o Ulysses, no que se nos refere,
pode ter sua estrutura descrita em termos algo similares. Pois se em um primeiro momento
(episódios 1-3) tivemos o livro de Dedalus, posteriormente (4-6, absoluta simetria) vivemos a
era de Bloom. A tríade seguinte (7-9) foi o momento de convívio, de desenvolvimento
igualmente simétrico dos dois, agora conscientes um do outro: e nesse momento, dessas
matrizes, surgiu nosso escriba, o arranjador, que, em mais uma evocação do Finnegans Wake e
de seus intensos questionamentos dos pontos aparentemente mais estáveis da teoria literária,
pode, de um certo ponto de vista, ser descrito como um personagem-função (suas manifestações
vocais, afinal, se realizam através de um meio a interferência no narrador também
empregado pelos outros personagens, mas apenas ali), um personagem que pertence ao nível
da estrutura da narrativa mais que à narrativa, uma epifania da técnica em conteúdo
134
.
Até Cila e Caribde nós o vimos crescer, fazendo uma das coisas que mais o
caracterizam, insinuando-se nas frestas da trama, interrompendo, imiscuindo-se, invadindo e
irritando. Agora, a partir dos Rochedos Errantes, como vimos, aparentemente estamos
vivenciando a apoteose desta figura (ainda é cedo... ainda é cedo para falarmos em apoteose,
ele ainda pode ir muito mais longe..). Estamos em seu terreno e, se pudemos, com Clive
Hart, encontrar um possível responsável externo pelas projeções vocais que ele ali encampa,
não podemos deixar de ver que, a partir daquele momento, ao menos uma grande mudança
qualitativa ocorreu, visto ter sido ele, e não a narrativa, quem escolheu a voz a ser projetada.
Ele estava no comando.
134
Cope (2002, p.222), já dizia ver neste texto um Finnegans Wake em miniatura.
228
E para mostrar, de forma acachapante, quem esdando as ordens, as cartas e as
vozes a partir daqui, temos a famosa abertura das sereias, de que cito apenas um trecho, para
ilustrar a batalha.
Bronze by gold heard the hoofirons, steelyringing.
Imperthnthn thnthnthn.
Chips, picking chips off rocky thumbnail, chips.
Horrid! And gold flushed more.
A husky fifenote blew.
Blew. Blue bloom is on the.
Goldpinnacled hair.
A jumping rose on satiny breast of satin, rose of Castille.
Trilling, trilling: Idolores. (1-9)
E isso prossegue por ainda mais duas páginas.
Joyce, em seus famosos esquemas, indicou que a técnica do episódio seria a da fuga per
canonem, fazendo crer, portanto, que este primeiro trecho representaria a apresentação do
primeiro soggetto, tema que depois se entretece nas outras vozes, é cerzido e ornado por elas
em suas repetições.
Isso em algum grau acontece de fato, mas, mui infelizmente, não teremos espaço
aqui para discutir em profundidade os temas musicais do episódio.
É claro que tal calhau no meio do texto não pode deixar de incomodar. Fica óbvio
para qualquer leitor que qualquer princípio de representação que o livro viesse buscando
empregar ou desenvolver (inclusive aqueles que tento analisar aqui) foi temporariamente
posto de lado.
Qual a funcionalidade desta protofonia para a economia deste episódio e do livro
como um todo será um assunto delicado de resolver: talvez seja possível, mesmo hoje,
alguém argumentar (junto com Pound) que Joyce dessa vez foi longe demais.
Mas pelo menos duas coisas me interessam aqui como conseqüências da necessidade
de convivermos com esta última (extrema) intromissão. O fato de que fica mais do que claro
que a superfície passa, a partir deste tremendo tapa de luva, a ter lugar na ordem de
prioridades absolutas do texto (não há o que contornar ou disfarçar: toda e qualquer
convenção realista de representação que ainda restasse de foi, momentaneamente, posta
ao chão). E o fato de que, por mais que o leitor possa sofrer com essa leitura, ele não pode
229
dizer que não estava preparado, se não para ela, ao menos para o método que a enforma,
para o método de leitura que ela exige.
Do ponto de vista da continuidade e da coerência do romance, Hayman (1982, p.98)
alerta para o fato de que ela é Um complemento adequado à jocosa lista de espectadores da procissão
do vice-rei, ela também o tom desde episódio de aparência caótica, dando forma musical, ou ao menos
onomatopaica, e diversidade rítmica às circunstâncias prosaicas. E de fato a transição é apenas de grau
entre o último e caótico fragmento dos Rochedos e este trecho.
Mas, mais do que isso, é um comentário de Burgess (1965, p.137) o que mais me
interessa aqui. Diz ele que, Tendo navegado com sucesso por entre os Rochedos Errantes, estaríamos
certos ao supor que linhas como ‘Clapclop. Clipclap. Clappyclap’ e ‘Goodgod henev erheard inall’ farão
sentido quando as encontrarmos contextualizadas.
Pois há um título de um capítulo de um livro de Kenner (1978) que resume em
muito o que Joyce ensina seus leitores a esperar. Uma estética do retardo. Aprende-se, com o
livro, a esperar. E aprendemos a esperar que o livro espere que esperemos. Calma. Acima de
tudo paciência, como adverte o Finnegans Wake. Já deveríamos estar acostumados a encontrar
pedaços de informação que, no momento em que os vemos, não fazem muito sentido (ou
não fazem sentido algum), mas que, mais tarde (por vezes muito mais tarde), serão
esclarecidos. Joyce, a bem da verdade, toma muito cuidado para (por paradoxal que isso
possa parecer, ouvido por um leitor de primeira viagem) ancorar muito bem a possibilidade
de leitura de sua ouverture: ele se esforça para não perder o leitor. Afinal, o primeiro
fragmento citado prende firmemente o texto ao episódio anterior (como vimos) e eles serão
todos esclarecidos na ordem em que foram apresentados, o que garante que os primeiros sejam
compreendidos muito cedo. O que simultaneamente garante sua compreensão e a
compreensão do procedimento como todo. Ensina, portanto, a calma.
Essas duas premissas (a nova supremacia da forma e a confiança em uma leitura
pausada e dedicada) servem também para guiar muito do que poderemos ver no campo que
mais diretamente nos interessa. Afinal (Cope: p.218) [a] abertura, com enunciados fragmentários
extraídos do corpo principal do capítulo, anuncia vigorosamente uma drástica mudança na técnica estilística,
ainda mais nítida por vir nos calcanhares da meticulosa narração dos Rochedos Errantes. Até os defensores
mais ardentes de Joyce ficaram intrigados e assustados.
230
Uma das principais conseqüências desse fato é que, aqui, conforme víamos
insinuado no episódio anterior, os protagonistas (e, no limite, todas as vozes) perderão
espaço para as peripécias do arranjador. Perderão voz para a voz de um narrador tomado
por intenções que não se projetam como conseqüências necessárias das suas.
O mesmo Cope tem muito que dizer sobre essa copernicana mudança de paradigma
que, agora, não podemos mais ignorar.
o Ulysses muda, em todas as esferas, com este episódio. Joyce o concebia como uma abertura
para a segunda metade do romance; Bloom inverte sua direção psíquica de passiva a ativa;
o construto simbólico do mar e da concha passa por uma metamorfose: da dicotomia
insuperável que constitui para Stephen, para o epitalâmio de Bloom; Pound e outros, com
bastante razão, reconheceram uma drástica mudança da técnica estilística. O estilo deixa
de ser a narrativa tradicional, ainda que complexamente contrapontística, e se torna
seriamente mimético da ‘arte’ do episódio, que é a ‘música’. (241)
A narrativa descreve as atividades de outros –Douce e Kennedy, Lenehan e
Boylan, Simon Dedalus, Dollard e Cowley, Richie Goulding– ouvidas e vistas por Bloom,
mas sem sua interação neste point du départ para seu novo e ativo papel na economia do
romance. A segunda ironia é que no momento em que Bloom se determina a agir segundo
sua própria percepção, o leitor consegue assumir um ponto de vista superior pela primeira
vez, recebendo do mítico narrador a capacidade de ver a sabedoria de Bloom dentro da
perspectiva de suas limitações locais e de sua validação final. (224-5)
Ou seja, vemos (muito ao contrário do que aaqui vínhamos acompanhando) uma
cisão absoluta de intensões e visões de mundo entre Bloom e a narrativa. Entre Bloom e o
narrador, decididamente cooptado agora por uma instância superior. Bloom decide agir, e o
livro se afasta dele, permitindo que o vejamos (agora muito, muito mais do que no episódio
anterior) em sua pequena realidade, humana, demasiadamente humana.
E simultanemante vemos o Livro nos acenar com a possibilidade de uma integração
funcional muito maior do que jamais sonháramos entre ele e ela.
A abertura do texto (depois da introdução fragmentária), até a primeira entrada de
Bloom, é (grande surpresa) tremendamente elucidativa desta nova ordem de valores.
Bronze by gold, miss Douce’s head by miss Kennedy’s head, over the
crossblind of the Ormond bar heard the viceregal hoofs go by, ringing steel.
– Is that her? asked miss Kennedy.
Miss Douce said yes, sitting with his ex, pearl grey and
eau de Nil
.
– Exquisite contrast, miss Kennedy said.
When all agog miss Douce said eagerly:
– Look at the fellow in the tall silk.
231
– Who? Where? gold asked more eagerly.
In the second carriage, miss Douce’s wet lips said, laughing in the sun.
He’s looking. Mind till I see.
She darted, bronze, to the backmost corner, flattening her face against
the pane in a halo of hurried breath.
Her wet lips tittered:
– He’s killed looking back.
She laughed:
– O wept! Aren’t man frightful idiots?
With sadness.
Miss Kennedy sauntered sadly from bright light, twining a loose hair
behind an ear. Sauntering sadly, gold no more, she twisted twined a hair.
Sadly she twined in sauntering gold hair behind a curving ear.
– It’s them has the fine times, sadly then she said.
A man.
Bloowho went by by Moulang’s pipes bearing in his breast the sweets
of sin, by Wine’s antiques, in memory bearing sweet sinful words, by Carroll’s
dusky battered plate, for Raoul. (64-88)
E temos , em miniatura, um elenco dos procedimentos que serão utilizados e
(muito) amplificados durante todo o episódio.
O texto se abre com mais uma salvaguarda. Trata-se da segunda recorrência daquele
trecho, do fim dos Rochedos para cá, e agora, finalmente, o vemos contextualizado: ou seja,
as coisas começam a entrar em seus lugares. Porém, depois de uma pergunta de Mina (ouro)
Kennedy, transcrita como estaríamos acostumados a esperar em outros livros, e mesmo em
outros momentos deste livro, com uma asséptica vírgula separando personagem de
Contador, vemos a resposta de Lydia (bronze) Douce, completamente encapsulada na
sintaxe do narrador, em uma ocorrência muito típica de algo que veremos em outros trechos
do romance e que só me ocorre chamar discurso direto livre.
Daqui para a frente o labirinto se vai fazer mais intricado. Quem está rindo ao sol?
Os lábios úmidos de Lydia ou sua excelência na carruagem?
Ou seja, a quem pertence a frase: a ela ou ao narrador?
O que, ou quem é caracterizado por aquele com tristeza, que de início parece se referir
a Lydia e, depois, a Mina?
Depois dessa última frase, aliás, vemos desenvolvido e devidamente acomodado
(domesticado) o hábito intrusivo e lúdico daquela voz que conhecemos em Éolo. A
repetitividade do gesto da sereia que enrola o cabelo no dedo e o prende atrás da orelha é
belissimamente representada em um parágrafo de elevada riqueza sonora em que,
232
definitivamente, a forma iconiza mais do que narra. Ganha, por isso, interesse em relação ao
conteúdo subjacente.
E então, depois do gnômico comentário da senhorita Kennedy sobre os homens,
temos a concisa apresentação um homem. Bloom. Obviamente. Que agora no entanto se
reduzido a um dentre outros, visto como lugar comum dentro de um lugar-comum. Bloom,
quem diria, agora é um homem.
E como que a sublinhar esse desligamento da persona narrativa de seu herói, vemos o
personagem chamado, no parágafo seguinte, por uma curiosa e representativa deformação
de seu nome. (Nomen omen, sabe Joyce e sabemos nós.) Nomes são coisa séria, e as
transformações por que passará Bloom em Circe, por exemplo, serão devidamente
acompanhadas de tantas trocas de nome quantas forem elas.
Bloom, aqui também, depois de Bloowho, será ainda Bloowhose (149), greasabloom
(180,185), Bloohimwhom (309), Bloom lost Leopold (642), lost Richie Poldy (678-9), Pat Bloom (720),
Siopold (752), Bloo mur (860, 888), Henry (888), prince Bloom (1000), Blm (1126), Lionelleopold,
naughty Henry (1187), Poldy (1189) haughty Henry Lionel Leopold dear Henry Flower earnestly Mr
Leopold Bloom (1261-2), Seabloom, greasabloom (1284), lista que, além de fazê-lo por sua mesma
extensão, demonstra em seus constituintes precisamente esse processo de fusão de Bloom
com os outros de que vínhamos falando.
De início ele (não mais que um homem, afinal) é precisamente soldado a pronomes
interrogativos que, depois (em 309), serão acusativos. E Bloom é objetificado como resposta
incerta. Greasabloom, que sozinho surge três vezes no elenco, é uma pequena maldade do
narrador que, por conta própria, identifica Bloom (que apenas ele acompanha, que Poldy
ainda não entrou no bar) com o sujeito seboso de que falam as sereias em certo momento.
Depois disso, o que mais se destaca são as identificações entre ele e Richie Goulding (tio de
Stephen) com quem almoça; Pat, o garçom significativamente surdo que ouve seus pedidos;
Simon Dedalus (ele mesmo identificado com Lionel, personagem que canta a ária que agora
ele: All is lost now, que porporciona mais uma identidade para Poldy).
Além dessas identificações, geradas por um observador externo, também a volta
de seu quase inefável heptagrama (seu primeiro nome aparece muito pouco no romance do
senhor Bloom), de seu psedônimo Henry (Flower), que conhecemos desde a manhã, do
hipocorístico Poldy, que apenas Molly emprega e, finalmente, de seu total esvaziamento (em
1126), transformado que está ele em uma espécie de radical trilítere de uma qualquer língua
233
semítica: um molde que gera um campo semântico, mas que precisa ser preenchido,
vocalizado, para ganhar vida como léxico. E, como vimos, é precisamente vocalização o que
ele está perdendo.
O processo vai tão longe neste episódio que (em 133) o narrador, ele mesmo, em
meio a mais uma descrição das conversas das sereias, pergunta (-se) But Bloom?
Pois, para traduzir mais dois trechos do episódio, era preciso constatar que aqui
Bloom caladocantava (776), pois ele mesmo confessa que precisa Ventriloquar. Minha boca fechada
(1095).
Uma outra técnica de que o romance se servirá cada vez mais lautamente é a do uso
de palavras, temas específicos, quase como leitmotiven para personagens e situações.
O surgimento daquele Poldy no texto, por exemplo, imediatamente põe em cena
nossa Penélope, mesmo que ela não seja citada. Assim como o fiapo de frase for Raoul, na
abertura, pôde nos colocar no mundo das doçuras do pecado e, conseqüentemente, do
adultério, tema que mais assola Bloom nesse dia, e que, agora, o assola mais do que em
qualquer momento desse dia.
Tal recurso só pode ser explorado agora, depois de termos entrado tão
profundamente nas palavras e nas mentes desses personagens. Foi preciso dar-lhes um
espaço inaudito para que neste momento eles pudessem ser submergidos pela superfície da
narrativa sem se perder. Nossos tímpanos, afinal, vibram na freqüência fundamental da
voz de Bloom. Vibração simpática.
Dito isso, vejamos do que é capaz essa nova voz que ganhou todo esse espaço no
texto porque agora é o momento de repetir ações, sem jamais mudar, e, ainda assim, é o momento de deixar
a voz tutorial vir ao proscênio interpretá-las. Bloom o faz. O narrador ainda mais (Cope: p.234).
Vejamos o que faz esse arranjador que irreverente mas consistentemente distorce o ritmo da voz
narrativa. (Hayman: 1982, p.98)
God’s curse on bitch’s bastard. (285)
Eu decidi fazer essa leitura pela ordem em que aparecem esses fragmentos. Então
que começar por aqui. Por essa frase (um parágrafo completo) que surge no meio da
234
descrição e que, de todas as fontes possíveis, pode provir de Simon Dedalus que, no
entanto, nunca foi agraciado com monólogos interiores. E não será aqui também.
A assinatura discursiva é dele. Mas temo que ele não tenha autoridade sobre a frase.
Uma cusparada do próprio arranjador.
Upholding the lid he (who?) gazed in the coffin (coffin?) ate the
oblique triple (piano!) wires. He pressed (the same who pressed indulgently
her hand), soft pedaling, a triple of keys to see the thickness of felt advancing,
to hear the muffled hammerfall in action. (291-4)
Uma das mais interessantes novidades deste Novo Ulysses que começa a surgir à
medida que o arranjador ganha fôlego e abre as asas é o fato de que o livro, mais do que em
qualquer outro momento, parecerá estar sendo lido. registrei aqui esse (mais um) estatuto
ambíguo da figura do arranjador, que parece ser utilizado muito bem por Joyce para evitar
(mais uma vez) a pronta identificação deste instrumento com qualquer projeção unívoca do
autor sobre o texto ou originária do texto.
Os enxadristas dizem que a melhor maneira de responder a um ataque pelos flancos
é montar um ataque central. O distanciamento do autor James Augustine Joyce parecia estar
sendo muito questionado, e ele começa a tentar resolver essa questão indo muito longe,
incluindo um novo e poderoso termo na negocioção: seu arranjador gera um conflito
esquizóide em que o livro é simultaneamente escrito e relido.
O arranjador, em grande medida, parece-se com um über-revisor. E o texto sobre o
qual ele age (aquele, escrito pelo dito autor implícito, que se encarrega de dar espaço aos
personagens etc..), será muitas vezes tratado por ele como corpo estranho, especialmente
quando o livro, como o dia e as pessoas que o vivenciam, começa a se cansar.
Os pronomes pessoais e sua dêixis imprecisa serão um prato cheio para tais
equívocos, interrogações e explicações. Assim como, no trecho acima, a metáfora exagerada
do narrador, que é prontamente contestada e, depois, aliviadamente compreendida. O
arranjador está entre nós.
Hello. Where off to? Something to eat? I too was just. In here. What,
Ormond? Best value in Dublin? Is that so? Diningroom. Sit tight there. See,
not be seen. I think I’ll join you. Come on. Richie led on. Bloom followed bag.
Dinner fit for a prince. (356-9)
235
No confirmado questionamento de todas as hierarquias e estabilidades, o parágrafo
acima é um exemplo muito melhor do que qualquer encomenda.
Para o olhar distraído, ele, mesmo graficamente, se assemelha aos trechos do
monólogo interior de Bloom. Mas o fato é que sua maior parte representa efetivamente um
diálogo entre Bloom e Goulding, no momento em que aquele (Bloom) decide entrar com
este (Goulding) para almoçar no Ormond: um mero pretexto para observar (Boylan). São
nacos de réplicas que bastam para que se compreenda a deriva geral da conversa, mas tal
conversa é apresentada, toda ela (todos os nacos), devidamente digerida por Bloom, que
pode, portanto, inserir três bifes de monólogo interior, referentes a sua idéia de se manter no
salão fechado do pub para ver Boylan sem ser visto, em um texto que é basicamente seu.
Mas o parágrafo se fecha comodamente na voz, cada vez mais singularizada, do
narrador. E não podemos atribuir pacificamente ao trecho um domínio bloomiano. uma
ampliação generalizada de meios, alcances e recursos discursivos, que atinge o protagonista
(conforme já vimos, o arranjador pode exacerbar as singularidades dos personagens
meramente em lhes conferindo poderes), mas que também o engloba na narrativa. Pois
lembremos Ellmann (1972, p.109)
Na verdade, ele constantemente [no resto do livro] expandia o monólogo por
métodos não-representacionais, e no episódio das Sereias ele o estiliza ao ponto do absurdo.
Os recursos ficcionais começam a cair na medida que ganham ceticismo a respeito de si
próprios. A imaginação dominante do livro aparece cada vez mais distinta de seus
personagens, com propósitos para os quais eles são meramente acessórios. [...]No episódio
de Éolo, o monólogo interior mantinha sua verossimilhança mas, aqui, um compositor
desconhecido interpola notas de passagem a seu bel prazer nas reflexões de Bloom e inventa
uma canção imaterial para Boylan.
Gostaria de frisar uma noção discretamente embutida nessa situação, a idéia de que, a
partir daqui, a ficção começa a duvidar de si própria. E que melhor ilustração para isso que o
exemplo anterior, com suas intervenções quase punitivas entre parênteses?
God, do you remember? Ben bulky Dollard said, turning from the
punished keyboard. And by Japers I had no wedding garment.
They laughed all three. He had no wed. All trio laughed. No wedding
garment. (472-5)
Por outro lado, neste momento em que o livro aprende a voar, não faltam amostras
de situações em que o poder da ficção e da narrativa reina imperioso. Novamente nosso
236
narrador abre mão de narrar para iconizar, para mostrar, em um tipo de procedimento que,
em breve ainda, veremos levado a extremos.
Mr Dedalus struck, whizzed, lit, puffed savoury after
– Irish? I don’t know, faith. Is she, Simon?
Puff after stiff, a puff, strong, savoury, crackling. (509-11)
Se vimos que quando imersos nas vozes de Bloom e especialmente na de Dedalus
corríamos regularmente o risco de perder algo que acontecia no mundo exterior a essas vozes,
aqui aprendemos que o domínio do narrador, alimentado pelo arranjador, certamente não é
daquele mundo. Ele espera. Tolera interrupções e, placidamente, retoma de onde estava.
Ele, claramente, está agora em um nível diferente do de seus personagens.
Tenors get women by the score. Increase their flow. Throw flower at
his feet. When will we meet? My head it simply. Jingle all delighted. He can’t
sing for tall hats. Your head it simply swurls. Perfumed for him. What
perfume does your wife? I want to know. Jing. Stop. Knock. Last look at
mirror always before she answers the door. The hall. There? How do you? I
do well. There? What? Or? Phial of cachous, kissing comfits, in her satchel.
Yes? Hands felt for the opulent. (686-92)
E Bloom, nosso Bloom, por sua vez, vai-se perdendo em meio a seus poderes cada
vez maiores de absorção e representação. Ou vai-se encontrando.
O parágrafo está todo dentro do que poderíamos chamar de monólogo interior de
Poldy Bloom. No entanto, vejamos essas frases, uma a uma: A primeira é um lugar-comum
sem verificação, domínio público; a segunda, uma falsa crença científica, folclore; três, uma
memória de estórias ouvidas ou de fatos vividos, não faz diferença; quatro, suposição de
uma enunciação; cinco, lembrança (equivocada) da canção de Boylan; cinco, para mais tarde;
seis, um julgamento próprio ou a repetição de algo comumente dito?; sete, lembrança
(correta) da canção de Boylan; oito, pela primeira vez temos uma frase que não deveria estar
entre aspas; nove, lembrança da carta de Martha; dez, idem; onze; daqui a pouco; doze e
treze; suposição de ação que, em uma primeira leitura (depois se verifica que ela é apenas
proléptica) pode ser confundida com a narração propriamente dita do fato; catorze,
lembrança de um costume de Molly; quinze e dezesseis, legítimas dúvidas bloomianas;
dezessete e dezoito, suposições de diálogos que ainda não ocorreram; dezenove, repetição
pasmada da dúvida; vinte e vinte e um, manifestações de mesmo teor daquelas perguntas
entre parênteses?; vinte e dois, bom e velho monólogo interior, provido, no entanto, de uma
237
curiosa ressonância que remete ao aluno de Dedalus com doces na sacola; vinte e três,
dúvida?; vinte e quatro, citação do livro que ele alugou para Molly..
Trata-se de um verdadeiro espetáculo de digestão e assimilação de aspas. Bloom,
everyman, monta agora seu monólogo a partir de tudo que passe pelo livro, tentando inclusive
roubar as prerrogativas do narrador. No entanto, duas daquelas frases (cinco e onze)
merecem consideração mais atenta. Pois elas retomam uma das principais palavras
recorrentes do episódio, o jing ou jingle que anuncia (veremos) a carruagem que leva Boylan
até Molly e, mais tarde, as molas rangentes do leito do adultério. Vejamos Burgess (1965,
p139)
A técnica de aproximação musical permite que Joyce se entregue totalmente a um
recurso ousado mas bem sucedido: a idéia de permitir que uma palavra, como uma nota
musical, soe todo um mundo de harmônicos. Assim a palavra jingle, arremessada no texto
sem preparação ou resolução, representa a ida de Boylan até Molly Bloom em um carro
saltitante e, cataforicamente, os saltos das molas adúlteras.
Agora, naquele trecho, em meio ao monólogo de Bloom, só podemos pensar que ele,
então, está inconscientemente servindo os propósitos do todo-poderoso arranjador.
Precisamente quando julgávamos vê-lo no auge da independência, tal ocorrência concorre
para gerar mais confusão, levando de fato o leitor mais atento a conjecturar que, naquele
momento, esteja de fato chegando ao número sete da rua Eccles o coche do amante. Bloom
não é mentor desse complô de ilusões. Aqui é ele quem está conosco. Nada é unívoco.
Richie, admiring, descanted on that man’s glorious voice. He
remembered one night long ago. Never forget that night. Si sang
‘Twas rank
and fame
: in Ned Lambert’s twas. Good god he never heard in all his life a
note like that he never did
then false one we had better part
so clear so God he
never heard
since love lives not
a clinking voice
lives not
ask Lambert he can
tell you too.
Goulding, a flush struggling in his pale, told Mr Bloom, face of the
night Si, in Ned Lambert’s, Dedalus house, sang
‘Twas rank and fame
.
He, Mr Bloom, listened while he, Richie Goulding, told him, Mr
Bloom, of the night he, Richie, heard him, Si Dedalus, sing
‘Twas rank and
fame
in his, Ned Lambert’s, house. (778-88)
E ninguém me diga que alguém não está se divertindo com a superfície do texto. O
que o leva a basicamente descrever três vezes a mesma ação: de início em um modo ulisseano
bem estabelecido, em que a voz de Goulding, a do narrador e os trechos da canção de
238
Dedalus (na memória de Bloom, na voz de Goulding, ou apenas na página) se misturam de
forma muito hábil; depois em uma descarada manifestação de autoridade, em que as
inserções entre vírgulas estão ligeira mas radicalmente deslocadas à esquerda, gerando uma
leitura truncadíssima de um período de resto muito tranqüilo (uso desnecessário de força
bruta!); e finalmente produzindo a mais prosaica, chã, banal e desinteressante das descrições,
como que se desculpando por seu exagero, em que todos os pronomes são devida e
imediatamente glosados.
O processo fica exemplificado. Ele escreve, ele lê e ele questiona. Aqui, uma coisa de
cada vez..
George Lidwell told her really and truly: but she did not believe.
First gentleman told Mina that was so. She asked him was that so. And
second tankard told her so. That that was so.
Mis Douce, miss Lydia, did not believe: miss Kennedy, Mina, did not
believe: George Lidwell, no: miss Dou did not: the first, the first: gent with the
tank: believe, no, no: did not, miss Kenn: Lidlydiawell: the tank. (815-20)
Aqui, entrando no terço final do episódio, não há mais como ignorar que vozes
(ao menos as dos personagens menores) simplesmente deixaram de existir, desapareceram
no vórtice do virtuosismo de arranjador-narrador. Sumiram as finalidades e os enredos,
restou apenas a música, somente a elaboração.
A hackney car, number three hundred and twentyfour, driver Barton
James of number one Harmony avenue, Donnybrook, on which sat a fare, a
young gentleman, stylishly dressed in an indigoblue serge suit made by
George Robert Mesias, tailor and cutter, of number five Eden quay, and
wearing a straw hat very dressy, bought of John Plasto of number one Great
Brunswick street, hatter. Eh? This is the jingle that joggled and jingled. By
Dlugacz’ porskshop bright tube of Agendath trotted a gallantbuttocked mare.
(878-85)
E é aqui, quase duzentas linhas depois da narração de Bloom que final e
inquestionavelmente (e o detalhismo da narração parece estar aqui precisamente para
eliminar qualquer vestígio de dúvida) chega Boylan e é aqui que, em momento de
simultâneas ironia e necessária explicação, o livro resolve nos contar que era esse o jingle que
assolava o texto. Isso não sem a necessidade de uma hibernicíssima interrogação eh? que
parece dizer mas por que você está descrevendo tudo isso?
239
E, não contente com essa repentina plebeização de um belo motivo sonoro
recorrente, é apenas depois desse esclarecimento que se introduz no episódio o tap que, depois,
bem depois, saberemos, se refere à bengala do afinador de pianos cego que retorna ao bar. A
música tem de continuar prevalecendo sobre o sentido, que, combalido, pede água.
Estamos definitivamente à beira de nos perder em um caos de vozes que, em
diversos momentos, quase não sabemos mais de onde provêm. Estamos ficando à mercê de
um livro que, aparentemente, se enquanto o lemos nós, ri de si próprio e de nós mesmos,
seus colegas e seus títeres.
O que dizer da lista abaixo, de explícitas manifestações de meta-leitura, mais que
meta-literatura, por vezes com um inequívoco subtom de paródia de textos não-literários?
As said before he ate with relish the inner organs […] (519-20)
Bloom ate liv as said before. (569)
[…] like no voice of strings or reeds or whatdoyoucallthem dulcimers [
evocando a expressão de Bloom em Lotófagos…] (675-6)
Blazes Boylan’s smart tan shoes creaked on the barfloor, said before.
Jingle by monuments of sir John Gray, Horatio onehandled Nelsn, reverend
father Theobald Mathew, jaunted, as said before just now. (761-3)
This is the jingle that joggled and jingled. (883-4)
In Gerard’s rosary of Fetter lane he walks, greyedauburn. One life is
all. One body. Do. But do. [Stephen Dedalus, ausente, sua fala na biblioteca
citada por uma consciência do livro, que tudo vê, que tudo lê] (907-8)
Scaring eavesdropping boots croppy bootsboy Bloom in the Ormond
hallway heard the growls and roars of bravo, fat backslapping, their boots all
treading, boots not the boots the boy. General chorus off for a swill to wash it
down. Glad I avoided. (1142-5)
Hmm..
Hayman (1982, p.98):
Como resultado dessa técnica, o leitor fica plenamente atraído pela superfície
verbal como fonte independente de eventos e de interesse. Ao mesmo tempo em que nos força
a trabalhar mais e nos priva tanto de uma perspectiva narrativa firme quanto da confiável
voz de Bloom, Joyce trabalha mais do que nunca contra si próprio. Seus deslocamentos são
possíveis e funcionais, no entanto, porque acumulamos uma consciência dos rumos da mente
de Bloom e do cenário de Dublin. É adequado que, quando as preocupações de Bloom
voltam a ser o foco principal, mesmo seus pensamentos sejam apresentados de uma forma
comicamente aleatória, capturados, por assim dizer, pela música das sereias a que ele reage
retomando seus temas ou caindo em uma cantarolar mental.
240
A literatura, e seus meios, chegou (chegaram) ao ápice de seus meios. E com isso
veio a dúvida. Veio o não-literário, o extraliterário leitor. Esse poder que é uma autoridade
desmedida, e essa dúvida sobre a literatura estão maduros para suas encarnações no Ciclope.
241
F. It’s wide shut
Richard Ellmann (1977, p.109-10) fez a mais clara das perguntas que devem reger
uma análise como esta do episódio do Ciclope, assim como deve ter andado pela cabeça de
boa parte dos leitores que chegaram a este ponto do livro (ao menos daqueles leitores com
algum interesse pela forma da narrativa, talvez os únicos que tenham resistido até aqui). Como
compor algo que fosse além das Sereias?
Em sua busca por um virtuosismo musical que primasse sobre a superfície do texto,
Joyce chegou muito perto, como vimos, de esgotar todos seus meios. Ao menos aquele
processo que vínhamos sublinhando desde as primeiras páginas do romance parece ter
atingido seu apogeu e sido, subseqüente e inevitavelmente, substituído.
Em alguma medida, parece mesmo que ele foi levado a alturas inauditas apenas com
a finalidade de propiciar sua substituição por algo ainda mais ousado, sem que o romance
tivesse de perder pé, sem que os personagens houvessem de desaparecer na poesia da frase.
Eles estavam fortes demais para isso. somos capazes de farejar Bloom a partir de um
monossílabo. Ele não pode sumir.
Mas mesmo os novos recursos, conseqüências da entrada em cena do arranjador,
parecem ter chegado a um impasse. Eles rapidamente atingiram seu pleno poder,
questionando as formas tradicionais de narração e, simultaneamente, gerando novos
problemas (inclusive de compreensibilidade) que apenas puderam ser resolvidos pela
inserção (gradual, sutil, mas definitiva) de um novo termo na equação: do leitor ou de um
seu procurador, que responda por ele e que como ele responda ao livro, ao menos
ocasionalmente.
O que resta depois das Sereias (além do infindo elenco de belezas e achados) é o fato
de que as crias todas cresceram mais do que se poderia esperar. Bloom, Stephen, mas
também o arranjador, o livro. A literatura chegou próxima de seu máximo (e não é a toa que
as referências ao Finnegans Wake, sumo questionamento da arte, tenham tido de aparecer
precisamente ali). E, como já vimos, ela não pôde evitar desdenhar de si própria.
O arranjador, essa figura paralela tão singular, pode muito bem funcionar como
elemento de esquizofrenia, como visto, e, assim, pode muito bem fornecer o contraponto
irônico que leva os poderes de Joyce a terem de rir de si próprios. Ele demoliu a ponte,
242
passou voando por sobre o Liffey. E agora, como centenas de outros escritores depois dele,
ele precisa se perguntar o que resta fazer? Como compor algo que fosse além das Sereias?
David Hayman (sempre ele: 1982, p.98-9), aponta (fácil, post facto) a possibilidade que
Joyce teve de contemplar ao argumentar que [t]alvez a coisa mais espantosa que Joyce poderia fazer
depois da extravagância verbal das Sereias fosse inverter sua marcha, retornando não apenas à tradição
narrativa mas aparentemente à narrativa oral de um nível popular e muito baixo.
Um Skaz.
Mas, acima de tudo, recorde-se, perceba-se que a este autor não cabe mais fé. Ele
não pode, como um Walter Benjamin de seu ofício, voltar-se melancolicamente à narrativa
oral como salvadora da literatura. Ele não crê. E de sua descrença nasce seu narrador. Mais
um Ciclope.
E o episódio do Ciclope (o outro) será o primeiro, em todo o livro, a contar com um
narrador em primeira pessoa. Um eu estável em relação a quem se desenrolam os fatos. No
entanto este eu é míope, embora mantenha bem abertos seus dois olhos
135
.
Na verdade, no entanto, este narrador representa ele mesmo uma cisão entre o
literário e o não literário. Ele é de fato um narrador popular na medida em que de fato está
contando a estória a alguma pessoa (algumas pessoas) certo tempo depois de decorridos os
fatos. Ele é portanto um personagem que atua como narrador, e não um narrador-
personagem.
Contudo não quaisquer das inserções padrões do contador, o que contribui para
relativizar em muito essa posição. De fato, temos grande facilidade de ler o episódio como se
135
Cabe aqui uma digressão. Não é de bom tom apresentar uma hipótese que não tenha sido apresentada ou
aventada por algum autor com ISBN, diz nossa tácita etiqueta. Muito menos (bom: pior) seria apresentar uma
hipótese baseada em nada além de suposição. Dito isso, fiat. Trata-se, coloquemos assim, de mero exercício
mental. De bela anedota.
Mas pensemos que, a par as questões de continuidade formal e de responsividade aos problemas postos no
caminho que culminou na ilha das sereias, o surgimento do narrador do Ciclope possa ter sido conseqüência, em
um homem de palavras, da mera manipulação extensiva de uma delas. Sabemos que Joyce gostava de empregar
símbolos recorrentes em seus episódios e, no episódio em que a referência principal é Polifemo, é claro que a
palavra olho deve estar presente como tônica da imagística. Uma contagem perfunctória mostra que é verdade:
48 ocorrências da palavra eye (descontada uma citação do nome Keyes, que no entanto a engloba), das quais
33 no singular, ciclopicamente.
Supondo que Joyce pretendesse estender a este episódio uma nova versão da técnica de leitmotiven que já atingira
um alto grau de desenvolvimento nas Sereias, ele deveria ter deparado com o fato de que o monossílabo inglês
tem um par de homófonos perfeitos. O advérbio ay (arcaico mas popularesco nas ilhas britânicas), com sentido
de yes (curiosa versão parcial de eyes) e o pronome de primeira pessoa singular I.
Ora, a conseqüência necessária de uma vontade de encher o texto de versões gráficas possíveis do som / ‘aj/
passa a ser a necessidade da existência de um narrador em primeira pessoa que empregue um jargão de baixo
nível sócio-econômico: daí nosso cobrador de dívidas más e duvidosas.
Tenho dito.
243
estivesse sendo narrado enquanto acontece. Mas o duplo artificialismo da situação (a ultratípica
narração dentro do romance como narração de um personagem, num momento em que
nada se pode esperar desse romance na esfera do realismo puro e simples, convencional) nos
coloca claramente o paradoxo que vivenciamos. Apesar de aparentemente em terreno
familiar e muito próximo do não-literário, estamos cada vez mais dentro de um mundo
rigidamente controlado, estritamente concebido.
Ainda mais que, para sublinhar a presença dessa mão arranjadora por sobre o texto, a
narrativa do personagem anônimo se nos apresenta entremeada por trinta e dois pastiches,
reproduções estereotipadas de todo tipo de linguagem e estilo, literários e não-literários.
Com extensões que variam entre menos de meia dúzia de linhas e mais de quatro páginas,
essas interpolações cobrem da linguagem jornalística ao velho testamento, amarrando o livro
ao prenunciar a explosão dos pastiches do Gado do Sol e a longa caricatura de Nausícaa e, ao
mesmo tempo, sublinhando a artificialidade da natural descrição do narrador anônimo, ou
Thersites, como prefere chamá-lo Ellmann.
Hayman (1974b, p.266) já alerta para o fato de que (os paradoxos continuam;
continua o passeio no fio da navalha entre o elaborado e o natural, o artificial e o realista)
Enquanto que a maioria dos apartes é irreverentemente intrusiva, afastando-se, mais do que esclarecendo a
ação, mais de um terço deles (onze no total), contêm detalhes relevantes, se não essenciais, para a trama.
O que parece artificial e supérfluo pode se revelar importante, enquanto que o que
parece natural e espontâneo pode se revelar tendencioso e artificial, senão artificioso: como
na cena (veremos) da micturição.
Hamlet, falando sobre a vida, censurava quem acreditava que seus trajes pretos eram
aparência. Eles eram fatos. Eles não pareciam, dizia ele. Aqui, na ficção, estamos no reino das
coisas que, quanto mais parecem, mais têm existência objetiva. Estamos nas mãos do
arranjador, a mais literária das funções narrativas, precisamente por ser quase extraliterária.
Ele ri de nós ao buscar nos fazer crer que a apoteose das sereias seria substituída por um
trêfego Thersites de botequim. Ele ainda está no comando.
Vejamos um algo longo excerto (como de costume) da abertura do episódio, para
que se possa estabelecer bem em que mundo estamos.
I was just passing the time of day with old Troy of the D. M. P. at the
corner of Arbour hill there and be damned but a bloody sweep came along
and he near drove his gear into my eye. I turned around to let him have the
244
weight of my tongue when who should I see dodging along Stony Batter
only Joe Hynes.
—Lo, Joe, says I. How are you blowing? Did you see that bloody
chimneysweep near shove my eye out with his brush?
—Soot's luck, says Joe. Who's the old ballocks you were talking to?
—Old Troy, says I, was in the force. I'm on two minds not to give that
fellow in charge for obstructing the thoroughfare with his brooms and
ladders.
—What are you doing round those parts? says Joe.
—Devil a much, says I. There's a bloody big foxy thief beyond by the
garrison church at the corner of Chicken lane - old Troy was just giving
me a wrinkle about him - lifted any God's quantity of tea and sugar to pay
three bob a week said he had a farm in the county Down off a
hop-of-my-thumb by the name of Moses Herzog over there near
Heytesbury street.
—Circumcised? says Joe.
—Ay, says I. A bit off the top. An old plumber named Geraghty. I'm
hanging on to his taw now for the past fortnight and I can't get a penny out
of him.
—That the lay you're on now? says Joe.
—Ay, says I. How are the mighty fallen! Collector of bad and doubtful
debts. But that's the most notorious bloody robber you'd meet in a day's
walk and the face on him all pockmarks would hold a shower of rain.
Tell
him,
says he,
I dare him
, says he,
and I doubledare him to send you round
here again or if he does
, says he,
I'll have him summonsed up before the
court, so I will, for trading without a license
. And he after stuffing himself
till he's fit to burst. Jesus, I had to laugh at the little jewy getting his shirt
out.
He drink me my teas. He eat me my sugars. Because he no pay me my
moneys?
For nonperishable goods bought of Moses Herzog, of 13 Saint
Kevin's parade in the city of Dublin, Wood quay ward, merchant,
hereinafter called the vendor, and sold and delivered to Michael E.Geraghty,
esquire, of 29 Arbour hill in the city of Dublin, Arran quay ward,
gentleman, hereinafter called the purchaser, videlicet, five pounds
avoirdupois of first choice tea at three shillings and no pence per pound
avoirdupois and three stone avoirdupois of sugar, crushed crystal, at
threepence per pound avoirdupois, the said purchaser debtor to the said
vendor of one pound five shillings and sixpence sterling for value received
which amount shall be paid by said purchaser to said vendor in weekly
instalments every seven calendar days of three shillings and no pence
sterling: and the said nonperishable goods shall not be pawned or pledged
or sold or otherwise alienated by the said purchaser but shall be and remain
and be held to be the sole and exclusive property of the said vendor to be
disposed of at his good will and pleasure until the said amount shall have
been duly paid by the said purchaser to the said vendor in the manner
herein set forth as this day hereby agreed between the said vendor, his heirs,
successors, trustees and assigns of the one part and the said purchaser, his
heirs, successors, trustees and assigns of the other part. (1-51)
245
Hayman já chamava atenção para o fato de o primeiro período da narrativa começar
e terminar com aquele ditongo /’aj/ de que falei em nota de rodapé. O que resta como
contraste nesta abertura é a grande distância que parece separar este eu do texto que
podemos encontrar voltando apenas uma página de nosso livro.
É sob a égide da mudança, da simplificação e da oralidade que se abre, ilusoriamente,
o Ciclope.
O corpo do texto, entretanto, que dali se prolonga até a linha 23 (logo antes da
última fala de Thersites neste trecho), serve para demonstrar que, se estamos diante de um
contador de estórias, estamos vendo um exemplo de assombrosa literaturidade (com o
perdão da má palavra).
Desde o começo, graças, inclusive, ao espetáculo de representação de oralidade
dublinense que estas poucas linhas proporcionam, parece ter ficado claro que estamos
distantes (parodiando-a) da convenção do narrador-personagem que encena o processo de
narração de uma estória, linhagem longa e respeitável, com ramificações que atingem desde o
Shakespeare de The taming of the shrew até o Thomas Pynchon de Mason & Dixon.
Devemos, realmente, olhar para Thersites não como olhamos para uma função
literária hipostasiada, disfarçada no texto, mas sim como vemos um personagem que, em
algum momento, conta uma estória, em tempo real, sem que sua introdução sirva apenas
como prelúdio, depois devidamente dissolvido na narrativa propriamente dita. Não. É ele
mesmo o personagem principal deste episódio. Ele não está ali para erguer cortinas.
No entanto ele demonstra um poder de reconstituição e de fidelidade de reprodução
que não poderíamos esperar de qualquer contador de causos. Ele privilegia o discurso direto
136
,
ele representa vozes distintas da sua com alguma fidelidade. Ele tenta. Como podemos ver
na diferença entre as falas que ele reproduz de seu amigo Hynes e as falas do judeu (um dos
muitos judeus-papões que assombram este episódio anti-bloomita), elas mesmas reportadas em
uma narração dentro da narração.
Estamos diante de um profissional.
Ele será capaz (e tenho que insistir que lembremos que, fora dos pastiches, sua é a
única voz que ouvimos em todo o episódio) de representar (e podemos vê-lo atuando: ouvir
as inflexões, os silêncios, ver suas mãos e seus olhos falando) o susto, o pasmo e o medo na
136
O que permite que Joyce insira dezenas de vezes a frase says I, de marcado sabor oral.
246
voz de Alf Bergan no momento em que este descobre que Patrick Dignam, que ele
acreditava ter visto cinco minutos antes, estava morto, ou que ao menos, nas palavras de Joe
Hynes, tomaram a liberdade de enterrar o coitado hoje de manhã.
– What? says Alf. Good Christ, only five …. What? And Willy
Murray with him, the two of them there near whatdouyoucallhim’s …. What?
Dignam dead? (327-9)
Se suas próprias descrições e comentários avaliativos estão em dialeto de classes baixas e em jargão,
ele registra as palavras dos personagens, como faria um narrador literário objetivo, em uma grande variedade
de vozes (Hayman: 1974b, p.258). O que não o deixa nada atrás (na verdade o põe à frente, se
pensarmos que ele precisa atuar diante de uma platéia) do responsável pelos pastiches que,
em certo momento, também é capaz de fiéis explosões de vernacularidade:
God Blimey if she ain’t a clinker, that there bleeing tart. Blimey it
makes me kind of bleeding cry, straight, it does, when I sees her cause cause
I thinks of my own mashtub what’s waiting for me down Limehouse way.
(676-8)
A não ser que o leitor se deixe esquecer que toda esta narrativa está de fato sendo
presenciada por uma ou mais pessoas, não como não se maravilhar com a riqueza de
mímica e de caracterização vocal que certamente está por trás de um trecho quase chão
como o seguinte:
– Hello, Ned.
– Hello, Alf.
– Hello, Jack.
– Hello, Joe.
– God save you, says the citizen.
– Save you kindly, says J. J. What’ll it be, Ned?
– Half one, says Ned.
So J. J. ordered the drinks.
– Were you round at the court? Says Joe.
– Yes, says J. J. He’ll square that, Ned, says he.
– Hope so, says Ned. (1011-21)
em que este autor, por meio do virtuosismo caricatural de sua criatura, chega mesmo
a fazer pouco da até então preciosa tarefa do contador com seus verba dicendi. Se a literatura
começava a duvidar de si própria nas Sereias, ela pouco mais podia esperar além da
247
destruidora figura de Thersites, que se apropria de seus meios com absoluta competência
(como disse, ele é plenamente literário em suas ferramentas) mas a coloca na incômoda
posição de cria bastarda da sarjeta dublinense.
Ele, sem uma folha de papel, a engloba e a reduz.
Além de tudo, como o ilustra perfeitamente o choque que um leitor-de-primeira-
odisséia sofre ao encontrá-lo, o primeiro de todos os pastiches, que surge no fim daquele
primeiro fragmento citado aqui, reafirma (como se necessário fosse) que estamos aqui sob
domínio de mão mais forte, mais autoritária: onipotente. Estamos, como diriam os
personagens Rosencrantz e Guildenstern na metaliterária peça de Tom Stoppard, sob domínio
de forças sub, a, anti e/ou sobre naturais.
Esta mesma mão que se encarrega de justapor coisas tão díspares e, como dito, fazer
com que se integrem em um inseparável objeto gerador de significados que contribuem para
toda a narrativa, deixará claro também que, ao menos desde as Sereias, cada parte da narrativa
será vista como parte da narrativa, em um processo de contínua releitura. Assim, ela pode,
coquete, inserir no meio do mais insignificante dos apartes informação quase-reveladora de
enigmas que, no fim, resistirão a toda e qualquer releitura.
Quem é o homem com a capa Mackintosh?
Love loves to love love. Nurse loves the new chemist. Constable 14 A
loves Mary Kelly. Gerty MacDowell loves the boy that has the bicycle. M. B.
loves a fair gentleman. Li Chi Chan lovey up kissy Cha Pu Chow. Jumbo, the
elephant, loves Alice, the elephant. Old Mr Verschoyle with the ear trumpet
loves old Mrs Verschoyle with the turnedine eye. The man in the brown
macintosh loves a lady who is dead. His Majesty the King loves Her Majesty
the Queen. Mrs Norman W. Tupper loves officer Taylor. You love a certain
person. And this person loves that other person because everybody loves
somebody but God loves everybody. (1493-501)
E no meio de muita informação jocosa ou de fato tocante, ficamos sabendo que
Gerty MacDowell, que por enquanto só vimos de passagem (em Nestor e nos Rochedos
Errantes), mas que no próximo episódio conheceremos a fundo, ama o rapaz que ela mesma
citará em breve; ficamos sabendo que nosso velho conhecido M’Intosh ama uma mulher
morta (o que poderia ser a verdadeira razão de estar ele no cemitério pela manhã) e, mais
importante, ficamos sabendo que M. B. (que podemos, se quisermos, identificar com Molly
Bloom) ama um certo cavalheiro, o que, se concordarmos em colocar a ação narrada no
248
Ciclope logo depois da refeição entre as sereias, um novo, mais ativo, sentido ao verbo
amar.
Hayman (1974b, p.243) já lembrava que
Mais ainda que as Sereias, em que a percepção se transforma em som liquefeito,
o Ciclope é o episódio das ‘mídias mistas’. Nele Joyce propositadamente mistura modos
diurnos e noturnos, justapondo uma voz narrativa convencional e uma baralhada de
apartes cômicos, a palavra falada e a palavra impressa. [...] O resultado é uma complexa
unidade mimética em que, pela primeira vez, ficamos privados da voz de Bloom e de um
narrador objetivo.
E é curiosamente no controle dessa complexa unidade mimética que veremos realçado o
poder do arranjador, pois [t]oda apresentação de desordem pressupõe um sentimento equivalente de ordem
e coerência (idem, p.260). Quanto maior o caos, maior a necessidade de presumirmos uma
presença controladora, ao menos aqui, e ao menos dado o fato de que tal caos, conforme
vimos, gera com freqüência complexa cadeias organizadas de sentido.
No Ulysses, repito, a desordem tende a imperar no mesmo momento em que tendem
a se obnubilar as mentes e o juízo de seus personagens: o livro anoitece, se cansa, se turva.
E é neste capítulo de tempo ambíguo (a ação deve se passar perto das cinco horas,
mas a narrativa pode estar se dando em qualquer momento da noite) que os dois mundos
começam a conviver, ainda cada um em seu canto: o diurno Thersites e os noturnos apartes
caricaturais. E, como lembra o mesmo Hayman (1974b, p.271), esse controle rígido, neste
livro, deverá sempre se manifestar com mais intensidade nos momentos em que a difusão
cômica tome mais conta da superfície.
Precisamente como talvez tenha sido necessário criar vozes poderosíssimas para
depois poder sobrepor um livro a elas, talvez tenha sido necessário criar uma persona
poderosíssima para gerir um texto que aparentemente mergulha em sua mesma entropia. E
Finalmente, no Ciclope, onde seus melhores efeitos são justapostos como apartes à previsível voz do
narrador, ele [o arranjador] voa solo, obrigando-nos a equiparar sua presença com a diminuição de lucidez,
a afirmação do lado inconsciente e instintivo da experiência, o reino inexplicável da escuridão através da qual
a luz finalmente brilha escura (Hayman: 1982, p.266).
Mas, neste texto completo, complexo e bipartido, em que instâncias literárias
parecem ser tão solidamente e tão ironicamente propostas e questionadas, num episódio em
que, graças à presença de O’Molloy entre os personagens, mesmo um J.J. (acrônimo
249
epônimo do autor!) que se manifesta, prenunciando a famosa exclamação de Molly Bloom
em Penélope (Jamesy!); neste trecho em que propósitos e meios tão spares acabam por se
fundir de maneira inquestionável
137
, nós podemos apenas, agora, repetir aquela estranha voz
que invadia a ilha das sereias e perguntar mas e o Bloom?
Bloom (aquele que Bloom, Harold, disse ser o personagem mais completo da
literatura pós-shakespeareana
138
) é o exemplo último da literatura como convenção. Dos
personagens que parecem vivos. Da narração como sugestão de realidade. Agora começamos
a viver o reino da literatura como literatura, em que um livro é um livro, é um livro, é uma
rosa.
Bloom foi fortificado para poder disputar terreno com alguém muito grande. Com o
arranjador. E suas altercações com o Cidadão e com Thersites podem muito bem ilustrar o
começo deste embate.
O paralelo homérico, também, o poderia ser mais adequado, pois é para o gigante
Polifemo que Odisseus mente seu nome, dizendo se chamar Outis, Ninguém. Aqui (Hayman:
1974b, p.249), indíviduo completo e invenção cômica, Bloom é o centro ativo da ação [...] e seu foco passivo.
Para atingir esse efeito Joyce de início construiu o indivíduo particularizado e depois, gradualmente, a começar
de Éolo, diminuiu seu papel. O processo culmina com a reversão de sua consciência em Circe, mas o
Ciclope o encontra em uma posição média, simultaneamente personagem simpático e objeto de ridículo.
Estamos ainda no meio do caminho. E Bloom terá de suportar muito mais, apenas para sair
de tudo muito mais forte.
Neste episódio, mesmo antes de sua entrada, ele, e, quando ele chega, sua palavra,
são maltratados e vilipendiados. A primeira citação a ele (sem que ainda seu nome surja),
vem entre as linhas 211 e 214, em que ele é identificado apenas como the prudent member (em
uma de várias insinuações a respeito de seu pertencimento à maçonaria) e como alguém que
tem olho de bacalhau.
Depois de sua chegada ao bar, ele, em duas ocasiões (435ss e 450ss), estranhamente
leva Thersites a abandonar sua preferência pelo discurso direto, pois tem sua fala narrada
137
Veja-se exatamente o último momento do episódio, em que, em meio à descrição em termos
presbitestamentários da saída de Bloom, atacado pelo Cidadão (o Ciclope do episódio), que nos aparece
narrada como a ascenção de Ben Bloom Elias ao firmamento, surge a prosaica expressão (as últimas palavras
do texto) like a shot off a shovel, de inegável e thersiteano prosaísmo: eles esperaram até o fim, mas confessaram
sua união.
138
(2002, p.543)
250
através de um tendenciosíssimo discurso indireto em que quase nada de discurso resta:
apenas a maldosa descrição de seu estilo e de suas pretensões. O segundo dos exemplos
basta como exemplificação.
So they started talking about capital punishment and of course Bloom
comes out with the why and the wherefore and all the codology of the
business and the old dog smelling him all the time I’m told those jewies does
have a sort of a queer odour coming off them for dogs about I don’t know
what all deterrent effect and so forth and so on. (450-4)
Nas suas ocasiões seguintes em que ele faz uso da palavra, suas falas aparecerão
truncadas, suplantadas pela voz de Thersites (seguido pelo arranjador em um pastiche)
That can be explained by science, says Bloom. It’s only a natural
phenomenon, don’t you see, because on account of the …
And then he starts with his jawbreakers about phenomenon and
science and this phenomenon and the other phenomenon.
The distinguished scientist Herr Professor Luitpold Blumenduft […]
(464-8)
ou ainda afogadas pelas ofensas do Cidadão
– You don’t grasp my point, says Bloom. What I mean is ….
Sinn Fein!
says the citizen.
Sinn Fein amhain!
The friends we love
are by our side and the foes we hate before us. (522-4)
É apenas na linha 760, passado um terço do episódio, que chegaremos a ouvir o que
possa de fato ter sido dito por aquele que, até este momento, era o herói inquestionável da
narrativa, mas que agora terá de sofrer ataques de toda espécie.
Na batalha das vozes que o livro encena, a quarta tríade de episódios se encerra com
o anúncio de hostilidades inéditas, em um campo tremendamente equilibrado.
251
F e meio. Urina.
Um último comentário pode, simultaneamente, impedir que eu tenha de deletar o
trecho anterior em que anunciava que trataria do episódio da micturição de Thersites e
aclarar, ou obscurecer definitivamente, o complexo domínio exercido pelo arranjador sobre
o episódio, mostrando que há um controle, e que por vezes ele abusa de seu virtuosismo.
Trata-se do seguinte trecho.
Goodbye Ireland I'm going to Gort. So I just went round the back of
the yard to pumpship and begob (hundred shillings to five) while I was
letting off my (
Throwaway
twenty to) letting off my load gob says I to
myself I knew he was uneasy in his (two pints off of Joe and one in
Slattery's off) in his mind to get off the mark to (hundred shillings is five
quid) and when they were in the (dark horse) pisser Burke was telling me
card party and letting on the child was sick (gob, must have done about a
gallon) flabbyarse of a wife speaking down the tube
she's better or she's
(ow!) all a plan so he could vamoose with the pool if he won or (Jesus, full
up I was) trading without a licence (ow!) Ireland my nation says he (hoik!
phthook!) never be up to those bloody (there's the last of it) Jerusalem (ah!)
cuckoos. (1561-72)
Onde a questão é determinar qual a natureza das inserções entre parênteses.
Presumindo que a única voz presente é sempre a de Thersites, Hayman (1974b, p.264),
defendeu a idéia de que a narração de uma micção acontece simultaneamente a outra micção,
no tempo da narração que, aqui, se imiscui no tempo da narrativa, devidamente isolado por
parênteses que marcam seus comentários sobre o assunto, sobre sua urina, bem como os
ruídos do momento em que ele também escarra.
Ou seja, continuamos unicamente ouvindo Thersites, mas, aqui, ele demonstra
capacidades literárias ainda mais refinadas do que em qualquer outro momento. Afinal ele,
que se descreve como cobrador de dívidas s e duvidosas, trabalha para alguém que, a estas
alturas, conhecemos muito bem.
252
G. Que me importa que a musa manque
The summer evening had begun to fold the world in its mysterious
embrace. Far away in the west the sun was setting and the last glow of all too
fleeting day lingered lovingly on sea and strand, on the proud promontory of
dear Howth guarding as ever the waters of the bay, on the weedgrown rocks
along Sandymount shore and, last but not least, on the quiet church whence
there streamed forth at times upon the stillness the voice of prayer to her who
is in her pure radiance a beacon ever to the stormtossed heart of man, Mary,
star of the sea. (1-8)
Certo.
A quem acaba de sair da balbúrdia de vozes do Ciclope nada de sair estranho. E o
fato de que o novo episódio se abre com uma voz totalmente nova, nada familiar portanto, e
basicamente inconsistente com todo o tom das vozes narradoras que poderíamos esperar do
romance não é uma surpresa. Na verdade, surpresa seria se ainda esperássemos esperar algo
de constante nas vozes e na cor desse romance que tudo fez por nos ensinar o quanto pode
ser heteróclito, assimilador e (com milhares de resmas de cuidados) democrático.
O fato de que o parágrafo seguinte seguirá intrépido a narração, com o mesmo matiz
gerado pelo primeiro, acabando com qualquer suspeita de que pudéssemos estar diante de
uma outra voz narradora presentificada como a que nos conta o Ciclope também não pode
ser posto na conta do contra-senso. As etapas continuam a se suceder.
Se no episódio anterior pudemos ver um personagem-narrador (invenção das mais
antigas e estáveis) parecer algo de estranhamente novo e instável, pudemos, mesmo assim,
nos acostumar a mais essa possibilidade, ainda que devidamente refratada e reabsorvida.
Agora, portanto, não precisamos mais contar com sequer esta estabilidade. De fato, durante
toda a primeira metade (na verdade, até a linha 771) do episódio, nos veremos confrontados
com essa voz-personagem, que nos narra (faz mesmo muito mais jus ao nome de narradora,
que se dá ao luxo de nos fornecer uma descrição, uma contextualização dos ambientes e dos
personagens nas primeiras linhas do segundo parágrafo) uma versão possível da mesma
estória que veremos reanalisada num segundo momento a partir da conhecida (conquanto
algo suavizada pelo sono e pelo cansaço) voz do velho Leopold Bloom.
Esta cisão do episódio é coisa das mais analisadas na literatura sobre o Ulysses. Ela é
conspícua demais para que não seja tematizada. Trata-se do episódio mais nitidamente bífido
em um livro todo dominado por simetrias.
253
Em nosso processo de reduzir ao essencial da inovação de cada episódio o
comentário que tentamos fornecer nessas análises, é apenas nessa voz que vamos centrar
fogo. O mesmo David Hayman (1982, p.99), depois de tecer consideração bastante similares
às que abriram esta leitura, declara categórico que [d]epois da derrisão duas-caras do Ciclope, a
suave falsa-pastoral de Nausícaa parece calma, um descanso para Bloom e o leitor. Ela contém apenas uma
grande inovação, uma voz artificial em discurso indireto livre.
E é essa artificialidade que temos de analisar, visto que a leitura mais comum do
episódio pretende ver na primeira parte uma narração feita por (ou na voz de) Gerty
Macdowell, a idiossincrática ninfeta que será a contraparte, parceira e algoz de Bloom
naquele entardecer na praia. Viria dela o tom de novela sentimental ou de revista feminina
que parece dominar as descrições
Cissy Caffrey cuddled the wee chap for she was awfully fond of
children, so patient with little sufferers and Tommy Caffrey could never be
got to take his castor oil unless it was Cissy Caffrey that held his nose and
promised him the scatty heel of the loaf or brown bread with golden syrup on.
(29-33)
bem como a gramática e o vocabulário de todo o texto, além das convenções que
(em mais uma refração, mais um discurso sobre e acerca da tradição que gerou suas
possibilidades), se em outro momento pudemos ver como radicalmente inovadoras (nas
Sereias, por exemplo), aqui ganham contornos de romantismo esquemático e figé.
Cissy’s quick motherwit guessed what was amiss and she whispered to
Edy Boardman to take him there behind the pushcar where the gentleman
coulnd’t see and to mind he didn’t wet his new tan shoes.
But who was Gerty?
Gerty MacDowell who was seated near her companions, lost in
thought, gazing far away into the distance was, in very truth, as fair a
specimen of winsome Irish girlhood as one could wish to see. (75-81)
Encarar a voz que descreve Gerty e sua circunstância como projeção da própria
Gerty, de seus desejos, de sua formação (de-formação, como quer Senn, 1970) parece
incrivelmente tentador. E muitos leitores do Ulysses ultrapassaram mais esta barreira (a
primeira leitura do livro é de fato um steeplechase em que se conquista etapa a etapa uma pista
de semprecrescente complexidade) a partir do momento em que pacificaram suas inquirições
254
com esta constatação. Nesses primeiros parágrafos citados, e nessas primeiras 770 linhas,
estamos vendo mundo e livro pelos olhos e pela laringe de Gerty MacDowell.
E é um deleite observar o virtuosismo com que o arranjador nos brinda ao expor em
todas suas fraquezas e mediocridades a menina que, no mundo físico da narrativa, existe para
se expor ao voyeurismo de Bloom.
Mas mesmo essa última afirmação remete a outro inquietante comentário de
Hayman (mesma data, mesma página). Como a ninfa nua na parede do quarto de Bloom, Gerty é um
produto da imaginação masculina mesmo a seus próprios olhos [...]. De onde sua artificialidade...?
Recorra-se então ao segundo momento chave da guerra (guerra?) de vozes deste
episódio, quando, quase na metade aritmética da extensão do texto, temos uma dramática, e
simultaneamente familiaríssima, mudança de tom e de dono; de dom.
Slowly, without looking back she went down the uneven strand to
Cissy, to Edy, to Jacky and Tommy Caffrey, to little baby Boardman. It was
darker now and there was stones and bits of wood on the strand and slippy
seaweed. She walked with a certain quiet dignity characteristic of her but with
care and very slowly because – because Gerty MacDowell was…
Tight boots? No. She’s lame! O!
Mr Bloom watched her as she limped away. Poor girl! (766-72)
E eu prometo fazer o possível para não perder duas ou três páginas de texto em pura
e simples admiração ao verdadeiro milagre de compressão e de beleza literária que é o
desvanecimento violento e incontornável (ele some para sempre do episódio) do mundo
romantizado e liricizado da voz-Gerty, absorvido, tragado vorticosamente pela nossa velha
conhecida, a conflituada consciência de Bloom.
A cada um seu prazer e suas glórias. Leia-se.
Posso igualmente me passar de argumentar nesse momento do trabalho em favor da
inquestionável bloomidade do texto a partir da linha 771. Nosso Sancho Pança é de casa.
Suas precauções, seus medos e cuidados já nos são mais que conhecidos.
O efeito, no entanto, de súbito acender de luzes, de queda estrepitosa de um cenário,
do som da agulha de um toca discos inopinadamente correndo transversal até o rótulo, tem
muito a nos dizer e tem muito que ser analisado. Pois nos remete à sugestão incontornável
(estamos agora, ao menos tentando ler em um nível um pouco mais profundo que o do
leitor de primeira-viagem) de que a cisão entre as tais duas vozes envolvidas esconda uma
255
cisão e uma unidade mais profundas. Esconda o fato de que a voz que engloba e encampa
clichês e kitsch seja mais e apenas mais um desdobramento da ubíqua consciência bloomiana.
Não teríamos visto nada através dos olhos de Gerty. Teríamos visto coisas através da
ótica de uma projeção, de um desejo de Bloom. Veríamos a narradora Gerty como
personagem, não do livro, ou não exclusivamente do livro, mas de seu protagonista. O
prisma de leitura seria o das pré-concepções de Bloom, num grau médio entre o que vimos,
de passagem, da mesma Gerty nas Simplégades e o que dela veremos (completamente
assumida, filtrada por Poldy) em Circe.
Ela estaria em processo de ser digerida.
É uma constatação dessa estirpe, por exemplo, que pode levar Fritz Senn (p.301) a se
interromper em parênteses ao comentar o discurso da menina. A voz de Gerty (presumindo que
seja sua) [...]
Anotadores e exegetas das minudências do Ulysses gastaram suas unhas buscando
no texto evidências de que Gerty, em seu discurso, demonstra saber mais sobre Bloom do
que as circunstâncias efetivas presumiriam. Ou, vice-versa, se algo no discurso da menina
teria inquestionavelmente de refletir algum saber ou pressuposição que não estivesse ao
alcance de Bloom
139
. O que viria a provar a independência ou a submissão de Gerty. Ou,
ainda, apontar como, de fato, sua idade parece ser incongruente com os dados de sua vida, e
ela parece envelhecer à medida que cresce o desejo de Bloom, consumado em masturbação.
Mas e o arranjador?
E o Livro?
Será que supor apenas essas duas possibilidades o é, a essa altura do campeonato,
fazer pouco da capacidade dessa voz-personagem que demonstrou tanto poder e poder
tanto sobre Bloom e cia., na mesma e precisa medida em que se verificou completamente
submetida a suas crias?
As relações de propriedade, autoridade e domínio não vêm sendo, em momento
algum, assim tão claras, e especialmente não vêm se mantendo claras durante momento
algum mais dilatado. O mesmo Senn (p.279), em comentário bastante adequado a essa
questão, por mais que se destinasse a coisa apenas semelhante, já lembrava que
139
Ou, na mão contrária, saber se a palavra Tableau, com nítido sentido cênico, conforme empregada em 486,
estaria dentro das possibilidades do léxico de Gerty, seria um influxo vitaminado pelo arranjador, ou revelaria a
presença de Bloom.
256
Um dos efeitos morais potenciais do Ulysses é o fato de ele poder nos condicionar,
mais do que qualquer romance anterior, a suspender ou, pelo menos, adiar a tendência
moralizante que consiste em atribuir culpas e méritos em favor de uma séria de ajustes
constantes e de uma consciência flutuante da complexidade das motivações.
No nosso (admirável, ah, e quanto) mundo novo, relações de comando e pertença
podem sofrer (sofrer?) a mesma relativização.
Ou seja
As metamorfoses estilísticas, algumas rápidas, outras velocíssimas, não precisam
ser interpretadas como mudanças meramente verticais. A linguagem poderia ser registrada
em alguma espécie de oscilógrafo, mas não seria simples articular o discernimento entre os
modos de linguagem, que acreditamos poder compreender intuitivamente. (Senn, 1970;
308)
Dito.
Fique claro que é de fato no interior dessas primeiras 770 linhas, no interior da voz e
do psiquismo desse construto ambíguo, cria de Livro e Personagem, que é nossa visão
possível de Gerty MacDowell que poderemos encontrar os germes, as bactérias que
devidamente cultivadas nos dirão algo sobre mais este estágio da fusão de vozes e da relação
entre discurso no Ulysses.
Dados.
Nas linhas 98 e 168, por exemplo, há menções ao higharched instep de Gerty. Seu pé
tem uma curvatura acentuada que Bloom percebe de longe, ou o que vemos é ela mesma
transformando em curva elegante uma deformidade?
Mas não pode, ainda e sempre, ser assim tão simples ou tão direto. A menina cuja
independência podemos querer buscar comprovar, e que existe para nós como discurso
indireto livre (menciono depois o problema que parecem representar as instâncias em que ela
se manifesta em discurso direto), revela-se ela mesma um pastiche, representado por um
pastiche. A autenticidade que podemos buscar nela, sua verdade (não esqueçamos a
admonição de Senn), são igualmente convencionais, convencionadas e artificiais. Senão
vejamos.
And yet – and yet! That strained look on her face! A gnawing sorrow is
there all the time. Her very soul is in her eyes and she would give worlds to be
in the privacy of her own familiar chamber where, giving way to tears, she
could have a good cry and relieve her pentup feelings though not too much
257
because she knew how to cry nicely before the mirror. You are lovely, Gerty, it
said. The paly light of evening falls upon a face infinitely sad and wistful.
(188-93)
O que nos leva a um paradoxal extremo. Pois quanto mais concedamos de
autenticidade a essa voz, mais ela será vítima de uma irrefutável artificialidade. O único jeito de
salvarmos (se por alguma razão tivermos de acreditar que isso precisa ser feito) a verdade de
Gerty é se a imputarmos inteira a Bloom. Se consumarmos sua dependência.
Se decidirmos, no entanto, que o complexo jogo de vozes e citações que passa pelo
convencional de gnawing sorrow, Her very soul
e pentup feelings, atravessa o familiar e
algo grosseiro em have a good cry, e aterrissa no puramente lírico e ítalo-joyceano em a
face infinitely sad pode ser atribuído a uma fonte ainda acima deles, mesmo que deles
dependente, podemos estar apenas fazendo a mínima justiça ao espírito do livro.
Pois que Gerty continuará a se revelar, mais falsa, mais verdadeira. E se tornará mais
tocante quanto mais elaborada for em farsa literária, mais real. Vemos o que ela o quer,
mesmo quando é ela quem nos guia, como no momento em que ela distorce de forma
sublime o que de oitiva acredita conhecer dos ritos do casamento.
With all the heart of her she longs to be his only, his affianced bride for riches
for poor, in sickness in health, till death us two part, from this to this day
forward. (215-217).
Acima de tudo, não há julgamento.
Estamos em um mundo ficcional, que por seu mesmo acabamento, por sua própria
perfeição, precisa nos lembrar vez por outra desse fato, nos cutucar e nos acordar de novo
para o sonho, apagar a ilusão de realidade que apenas sua hiper-elaboração pôde gerar.
Precisamos nos dar conta de que o xixi da criancinha parece ter durado o tempo de
166 linhas, quatro páginas da apertada edição Gabler.
Tudo mais do que comum. Mas é da essência da epifania joyceana transformar o
mais comum em mais novo e o mais original em comezinho.
Mesmo quando a bolha começa a se romper, quando a scara criada pelo conluio
arranjador-Bloom parece não mais agüentar, esgarçada, a pressão exercida pelo dado
258
sensório imediato representado pelas ações e reações da musa coxa
140
, convivemos com essa
incongruência como elemento constituinte desse discurso:
The gentleman [Bloom] aimed the ball once or twice and then threw it up the
strand towards Cissy Caffrey but it rolled down the slope and stopped right
under Gerty’s skirt near the little pool by the rock. The twins clamoured
agains for it and Cissy told her to kick it away and let them fight for it so
Gerty drew back her foot but she wished their stupid ball hadn’t come rolling
down to her and she gave a kick but she missed and Edy and Cissy laughed.
(352-8)
ou
Gerty wished to goodness they would take their squalling baby home out of
that and not get on her nerves, no hour to be out, and the little brats of twins.
She gazed out towards the distant sea. It was like the paintings that man used
to do on the pavement with all the coloured chalks and such a pity too leaving
them there to be all blotted out, the evening and the clouds coming out and
the Bailey light on Howth and to hear the music like that and the perfume of
those incense they burned in the church like a kind of waft. (404-11)
E o que dizer de um trecho como o seguinte, em que a opinião de Bloom sobre si
próprio, a imagem que ele desejaria projetar, os sonhos românticos de Gerty, a literatura
sentimentalóide que bem poderia ser de sua projeção e mesmo o ideário que o mesmo
Bloom abstrai das leituras de Molly (autoridade parda que lança seu olhar oblíquo sobre todo
o episódio e medeia irremediavelmente qualquer relação de Bloom com as mulheres e com a
sentimentalidade) se vêem todos inextricavelmente reunidos em uma sinfonia (ainda estou
fugindo do vocabulário bakhtiniano) de extrema e insondável complexidade?
Yes, it was her he was looking at, and there was meaning in his look. His eyes
burned into her as though they would search her through and through, read
her very soul. Wonderful eyes they were, superbly expressive, but could you
trust them? People were so queer. She could see at once by his dark eyes and
his pale intellectual face that he was a foreigner, the image of the photo she
had of Martin Harvey, the matinée idol, only for the moustache which she
preferred because she wasn’t stagestruck like Winny Rippingham that wanted
they two to always dress the same because on account of a play but she could
not see whether he had an aquiline nose or a slightly
retroussé
from where she
was sitting. He was in deep mourning, she could see that, and the story of a
haunting sorrow was written on his face. She would have given worlds to
know what it was. (411-23)
140
Mais um momento em que se torna quase tantalizante a vontade de que Joyce pudesse ter lido Machado.
259
Durante todo o restante do trecho do episódio em que nos veremos dentro dessa
estranha voz feminina (e não é descabido observar, com Senn (p.281), que neste episódio
temos a porta para o que, daqui em diante, será um mundo predominantemente noturno e
feminino, o que pode aclarar muito sobre a necessidade e a possibilidade de nos vermos
tanto tempo discutindo uma única fusão de vozes, uma única unidade surgida da
multiplicidade, da conjunção de duas individualidades e de uma terceira presença superior: o
arranjador, ou aquela terceira pessoa de que fala Saramago em Todos os nomes, formada de um
e de outro, mas diferente de ambos) teremos de conviver com um grau (sempre)
crescentemente acentuado de promiscuidade, de invasão, de sobreposição de discursos,
léxicos e atitudes.
No parágrafo anterior, plenamente vazado no jargão de romances sentimentais e
revistas femininas algo distorcido pela natural vulgaritas de Gerty, temos, no entanto, ainda
que isentas de singulares marcas discursivas que as indentifiquem e rotulem, as preocupações
de Bloom com diversos elementos de sua aparência e de sua imagem devidamente
pacificadas e lidas pelo prisma do encanto e da sedução.
O olho sebento com que ele é descrito em outros momentos vira um olhar escuro e
profundo. Seu nariz semítico, avolumado, é eufemicamente descrito como algo entre um
nariz aquilino ou arrebitado (resumindo, ao mesmo tempo, as duas únicas palavras que uma
leitora da estirpe de Gerty teria visto aplicadas a narizes! Tivesse ela um pouco mais de
formação, veríamos rubicundo acrescentado à lista..). Sua mesma origem judaica, fonte de
tantos problemas agora há pouco, no bar
141
, se transforma no selo do estrangeiro, do
estranho, do peregrino, de tudo quanto seja, raro, caro, vário e contrário. Do ídolo das
matinês.
Por mais que não queiramos, em algum momento, discutir sob que égide se
desenrola tal ou qual processo, temos de concluir que os dois, ou os três, se levarmos em
141
E aqui cabe reafirmar um fato interessante, que, nos quadros com que estamos trabalhando agora, não pode
deixar de ser lido como mais uma brutal afirmação de vigor e domínio por parte do Livro. Pois que Bloom na
verdade não acaba de sair do bar. Depois de muito cruzar e cotejar informações, pode-se facilmente descobrir
o óbvio: que ele esteve neste intervalo na casa do falecido Dignam com Martin Cunningham (não era outra a
razão do encontro dos dois no episódio anterior) para regularizar a complicada situação da família acéfala e
tentar, minimamente, prover pelo futuro dos órfãos. Ou seja: trata-se, sem sombra de dúvidas, do ato mais
pragmaticamente relevante de Bloom durante todo o dia. E o Livro nos diz, sem dizê-lo às claras, para cúmulo
de males, que não saberemos o que aconteceu ali. Estamos sujeitos ao poder do Arranjador.
260
conta o arranjador, trabalham aqui em perfeita sincronia, refundindo muito bem o velho
conceito de ponto de vista.
Não temos a visada de Bloom, ou de Gerty, ou de uma persona externa sobre essa
cena. Os pontos de vista são aqui todos eles representados, e representados sincronicamente,
em cada parágrafo. Cada enunciado de Gerty MacDowell representa o que em macro escala
é o retrato pintado por todo o episódio: Bloom olhando Gerty em uma narração que não é
deles, mas pertence a eles.
Tal união não poderia deixar de se manifestar como cumplicidade (bem como não
poderia deixar de acabar em desilusão, diz o Thersites que vive dentro de nós, em algumas
centenas de linhas, quando Bloom restará sozinho, sozinho, sozinho, sozinho..) e, no preciso
momento em que Gerty percebe que seu cavaleiro idealizado está conspurcando sua fantasia
e sujando sua roupa consumando o desejo que sente por ela na palma de sua mão direita, é
que tal simbiose se revela, e a união passa a um grau diferente, mais intenso ainda.
Gerty stifled a smothered exclamation and gave a nervous cough and
Edy asked what and she was just going to catch her to catch it while it was
flying but she was ever ladylike in her deportment so she simply passed it off
with consummate tact by saying that that was the benediction because just
them the bell rang out from the steeple over the quiet seashore because
Canon O’Hanlon was up on the altar with the veil that father Conroy put
round his shoulders giving the benediction with the Blessed Sacrament in his
hands. (616-23)
Neste caso sinto ser preciso seguir, fôlego a fôlego, o preciso movimento do
parágrafo para que fique claro o processo que, canhestramente, venho tentando delinear ao
longo dessas nove páginas.
De início Gerty sufoca uma exclamação. Seu discurso (aquele, o polifônico) tem de se
deter diante da nova aliança. Ela tosse, nervosa, e a metida insolente da Edy Boardman (com
o perdão da vibração simpática) pergunta o que foi; ela se a ponto de mandá-la àquele
lugar. Ou seja, toda a persona construída trabalhosamente, a seis mãos, durante seiscentas
linhas, pode estar a ponto de desmoronar. A investida sexual representa sempre um risco, a
possibilidade de se ter cruzado um limite indesejado por uma das partes.
Mas ela consegue retornar a seu papel, com base em uma afirmação que é quase um
dogma: ela era
sempre
uma dama. E ela então sai do impasse com tato consumado.
261
Diante desse último sintagma, quase não há o que dizer. Até mesmo um
verborrágico nato como eu sente vontade de calar e ouvir apenas a ressonância do acorde.
Cada uma das duas palavras é estupendamente rica no contexto imediato da união que se
celebra, se consuma, entre os dois, naquele momento. E a escolha dessas palavras, na voz do
narrador, para se referir a Gerty naquele momento revela como nenhumas outras dez páginas
a sólida união dessas três vozes neste trecho.
Mais ainda, descontado o eventual elemento sacrílego do restante do trecho, em que
Gerty (insistentemente comparada à Virgem Maria pela escolha de imagens e de vocabulário
de todo o trecho, que transcorre simultaneamente a uma celebração da torre de marfim numa
igreja vizinha) aceita como uma bênção o santo sacramento oferecido pelas os de Bloom, o
que resta é a iconização de um outro processo quase inevitável.
Pois nós, leitores, ficamos sabendo que Gerty desviou do assunto e fez Edy crer que
pensava na eucaristia e, simultaneamente, nós, leitores, nos vemos embarcados em uma algo
alentada descrição da cerimônia. Somos repentinamente jogados para o lado de Edy.
Subitamente vemos confirmado o fato de que a união entre esses três elementos (Pai,
amante-filha, e o espírito que paira sobre a página) nos exclui, e nos confirma
irrevogavelmente no papel de receptores, de Edys, de leitores, afinal.
Está consumado.
E, assim, não faz mais sentido manter certos simulacros e o trecho imediatamente
anterior à cessão definitiva da voz a Bloom entrega o pouco que ainda havia a ser entregue,
cinicamente redobrando informações que o leitor atento já teria plenas condições de ter, por
si próprio, desvendado.
He was leaning back against the rock behind. Leopold Bloom (for it is he)
stands silent, with bowed head before those young guileless eyes. What a
brute he had been! At it again? A fair unsullied soul had called to him and,
wretch that he was, how had he answered? (443-7)
É claro que, mais do que a dramática revelação da identidade do galã da praia (ou
mesmo mais do que a importância daquela dêixis presente nos parênteses), o que nos
importa aqui é a confissão de que, durante toda a narrativa, por trás da pretensamente
consistente voz de um personagem novo e independente, estava mesmo alguém que, o
tempo todo, sabia tratar-se de Bloom, uma presença nossa conhecida e que, não fosse
262
aquele mesmo processo de incessante problematização dos meios e das técnicas literárias,
poderíamos mesmo dar de barato.
Mas não aqui.
Aqui ele é capaz de identificar como poderíamos ter nos deleitado com toda uma
narração do processo de integração de dois estranhos, a metros de distância um do outro, no
episódio (Senn, p.278) em que, à exceção de Proteu e de Penélope, basicamente silentes, menos
palavras são efetivamente pronunciadas, e como essa integração poderia ter-se dado
precisamente no verbo.
Aqui ele merece de fato o nome que tem e, muito em breve, mostrará tudo de que é
capaz.
263
H. O estilo é outros homens
E com que intensidade..
Trata-se de um episódio tão complexo, de leitura tão tortuosa e suada, que me vejo
obrigado a abrir três exceções logo de saída.
Uma delas é solicitar
142
que você pelo menos folheie, leia trechos da versão
portuguesa deste texto no anexo. É a minha leitura, não apenas do enredo e do texto, por si
próprios, mas do processo e da tentativa de Joyce. E acredito que se em toda essa
tradução algum rito mais óbvio, está precisamente em ter ela sido a primeira tentativa de
reproduzir este experimento joyceano em plena escala.
A segunda é fornecer, senão uma sinopse (seria trabalho imenso, que consome, por
exemplo, quase inteiro o texto de Atherton citado na bibliografia), ao menos uma descrição
da espécie de grifo, de quimera que o leitor encontra. O que afinal é aquilo?
Para tanto, nada melhor que citar o próprio réu, enquanto ainda compunha o texto,
em carta de 20 de março de 1920 a seu amigo Frank Budgen (in Ellmann (org: 1957, p.251-
2)).
Estou trabalhando muito com o Gado do sol, sendo a idéia principal a do crime
cometido contra a fertilidade pela esterilização do ato do coito. Cena: maternidade. Técnica:
um episódio dividido em nove partes sem divisões, introduzido por um prelúdio salustiano-
taciteano (o ovo não fertilizado), depois, através dos mais antigos exemplos de prosa inglesa
aliterativa e monossilábica e prosa anglo-saxã [...]. Depois, passando por Mandeville [...],
depois a Morte de Arthur de Malory [...], depois o estilo da crônica elizabetana [...],
depois uma passagem solene, como que de Milton, Taylor, Hooker, seguida por um trecho
de latim de cozinha meio fragmentário, no estilo de Burton-Browne, depois uma passagem
bunyanesca [...], depois um trecho em estilo de diário Pepys-Evelyn [...], e assim por
diante, passando por Defoe-Swift e Steele-Addison-Stern e Landor-Pater-Newman até
terminar em uma mixórdia medonha de pidgin, inglês negro, cockney, irlandês, gíria e
palavrório incompreensível. Essa progressão também se refere em cada momento sutilmente
a algum episódio anterior do dia e, além disso, aos estágios naturais de desenvolvimento do
embrião e a períodos da evolução faunal. O motivo anglo-saxão de duplo estrépito reaparece
de vez em quando [...] para dar a impressão dos cascos do gado. Bloom é o espermatozôo, o
hospital é o útero, a enfermeira, o ovo, Stephen, o embrião.
Achou pouco?
Acho que não. Mas é bom saber que mesmo ele tinha consciência da dimensão de
seu projeto.
142
Na contramão daquela primeira afirmação, que colocava como documento, como testemunho do processo de
trabalho, a tradução que acompanha esta tese.
264
A terceira (exceção. Lembra as três exceções?) é precisamente o fato de que aqui,
depois da consolidação quase definitiva que presenciamos em Nausícaa, não vamos nos deter
em analisar os processos empregados. Nossa principal ocupação de ser, neste momento,
verificar o eventual sucesso ou fracasso de uma empresa tão idiossincrática e, acima de tudo,
perguntar por que diabos ele fez uma coisa dessas.
Pois o fato é que aqui, mais do que em qualquer outro trecho de um livro
proverbialmente difícil, com uma reputação assustadora de espantar leitores, a superfície da
narrativa se transforma em um empecilho de dimensões inéditas e aparentemente
intransponíveis, mesmo para este que vos fala, colocando efetivamente em questão a
validade do experimento.
Se até agora pudemos colocar todas as tentativas, invenções e re-invenções ulisseanas
em um quadro basicamente funcional (mesmo que por vias tortuosas e por vezes de
aparente contra-senso), um quadro em que tais processos sempre serviam, de alguma
maneira, à narrativa, ao narrado, teremos de recolocar tais questões de forma muito mais
problematizada neste momento.
E acho que não é preciso frisar a importância que uma tal discussão poderia ter para
o desenvolvimento e para a consistência da discussão que estamos tentando estabelecer e,
mais ainda, das hipóteses que começamos a esboçar. Se pretendo demonstrar algum projeto
conseqüente e algo linearizável na sucessão dos episódios do Ulysses, a grande pedra em meu
sapato, como para qualquer leitor, há de sempre ser um dos cornos das reses de Hélios.
O que me interessa compreender aqui é como um leitor fenomenal como Anthony
Burgess, e, mais do que isso, um colega romancista, consegue chegar a conclusões tão
negativas e ao mesmo tempo tão empolgantes a respeito desse episódio. Acho na verdade
interessante, por essas mesmas razões, acompanhar mais de perto a discussão de Burgess.
Que começa (151) por estabelecer que
Tipicamente, Joyce nos nega uma visão clara do que está acontecendo; ele nos cega com um
virtuosismo técnico quase insuportável, embora isso não seja mera futilidade. A
correspondência homérica tem de ser mantida, uma arte ou ciência tem de ser celebrada e
uma técnica literária nova tem de ser posta à prova. Este, no entanto, é o episódio mais
conscientemente virtuosístico de todo o Ulysses, e para alguns leitores Joyce parecerá ter ido
longe demais.
265
, que é exatamente a possibilidade que nos interessa investigar, e que pode-se muito
bem crer insinuada no orgulho e na empolgação do missivista de 1920.
É em três trechos mais longos, entre as ginas 154-6 de seu volume sobre Joyce
(um de seus volumes sobre Joyce) que Burgess vai tentar esclarecer e deslindar as aparentes
contradições inerentes ao caminho escolhido por Joyce. E ele o faz com tantas clareza e
objetividade que peço que você me perdoe a citação enorme e acompanho, meramente
comentando, e discordando ao final de (senão não tinha graça), suas conclusões. Peço vênia.
Este capítulo tem uma função que vai acima e além da exibição estilística, do
simbolismo e da lenta progressão da estória. Joyce recolheu uma grande quantidade de
material que ainda não foi desenvolvido, e chegou a hora de usá-lo. Ele está primariamente
preocupado, aqui, com formas, estilos de escrita, mas a forma não pode existir sem
conteúdo. O conteúdo, então, pode muito bem provir dos retalhos, os slogans, canções,
pequenas obsessões cotidianas.
[...]
Mas o mero fato de que Joyce tem de encontrar algum material estático para seus
pastiches literários (idéias, imagens, motivos) de modo a preencher os nove meses de
gestação e os novecentos anos de história lingüística nos deixa em dúvida sobre a validade
de sua técnica. Ele parece estar se esquecendo de Bloom e de Stephen; eles se viram
subordinados a uma mera demonstração de engenhosidade é isso pelo menos o que nos
vemos inclinados a objetar. Por outro lado, é correto que os vejamos sob tantos aspectos
míticos e sociais quantos forem possíveis e isso pode ser feito através de uma espécie de
metempsicose: Stephen e Bloom através das eras, usando todo um museu de trajes,
empregando toda a língua inglesa como alguma antologia poderia apresentá-la.
[...]
Parece estranho que tenhamos de ir ao próximo capítulo para descobrir o que aconteceu
neste.
E no entanto, de todos os episódios do Ulysses, este é o que eu mais gostaria de ter
escrito, e muitos autores que concordariam comigo. Trata-se de um capítulo de autor,
um atordoante e peremptório retrato do que o inglês pode fazer. Mais do que isso, trata-se
da realização do desejo egoísta de todo e qualquer autor, de não apenas acrescentar algo à
literatura inglesa, mas sim englobar o que está nela. A história da literatura é uma
linha; Joyce quer -la como uma série de círculos concêntricos, sendo ele mesmo a camada
externa
143
Mais uma vez, é encorajador ser lembrado de que a criação literária em
qualquer século é um ato de homenagem ao gado da fertilidade, que os escritores são os
mais notáveis dentre todos os progenitores. Mas é uma pena que Stephen e Bloom tenham
de se perder no processo de se glorificar uma arte que deveria ser sua serva.
Muito bem.
143
O primeiro comentário não me atrevo a erguer para o meio da página. Enfim. Que se perdoe ao engraxate
querer passar da meia, mas ia ficar bem mais lindo se Burgess tivesse dito que, sendo a história da literatura
uma linha, Joyce queria era dar-lhe um nó e metê-la no bolso, e depois sair assoviando uma ária elisabetana.
266
Se de início Burgess parece estar agindo em defesa do procedimento joyceano, até
mesmo de forma algo tortuosa (afinal, de que natureza é o material que Joyce recolheu
durante o dia senão conteudística? É bastante curioso pensarmos em um autor recolhendo
material formal durante uma narrativa, por mais que, como aqui, estejamos, sim, pensando
na possibilidade de que ele viesse acumulando possibilidades formais, imediatamente
empregadas, no entanto; o que nos pode levar a uma única possível solução para o dilema da
validade do experimento, da brincadeira joyceana.), seu texto em breve mergulha em uma
nota mais sombria, mais duvidosa do êxito do procedimento.
Mesmo reconhecendo a importância (o que, numa leitura como a que estamos
fazendo, é um pouco anacrônico, pois parte de uma compreensão global dos processos e da
identidade do Ulysses e não de uma análise linear que suponha que cada episódio apresenta as
pré-condições de surgimento do seguinte) de vermos representações ticas, literárias,
personificadas de Bloom e de Stephen, ele passa a manifestar seu receio quanto à
possibilidade de que eles tenham ficado em segundo plano. E, mais grave, o receio de que a
relação de servo e mestre se tenha revertido, passando os personagens (até aqui, para ele
como para nós, pontos centrais de toda a investigação estética de Joyce) a uma situação de
submissão em relação à forma do romance.
Essa me parece ser a grande ressalva do, de resto, devoto Burgess; assim como
parece ser esse o problema para a maioria dos leitores, que inclusive por vezes tendem a
carimbar o livro todo, ou ao menos o livro daqui em diante, com esse mesmo selo:
esteticismo, experimentalismo estéril, vaidade das vaidades
144
. É isso que temos de verificar.
144
Hoje me parece claro o papel principal desempenhado por Joyce na invenção do que viríamos a chamar de
moderno. Assim, não deixa de ser curioso vermos nessas acusações a constatação de que está também nele, ao
menos como potencialidade, a cisão pós-moderna, contemporânea, ou como a queiramos chamar, que leva à
objetificação do processo artístico como única finalidade possível da obra de arte erudita, resultando, no limite,
no conhecido problema da arte para pares e do descaso para com a audiência, hermetismo, etc. Os primeiros
treze episódios do Ulysses seriam portanto um resumo das possibilidades, por vezes até então desconhecidas ou
subestimadas, do romance até aquele momento, e o restante do livro seria uma projeção (profecia é forte demais)
sobre o desenvolvimento da forma. Não é de estranhar que a tentação de citar os procedimentos do Finnegans
Wake cresça neste digitador à medida que avança a noite em Dublin (O FW é, afinal, o irmão notívago do
Ulysses), como no caso da estupenda condensação de sentido nas duas palavras tato consumado, agora há pouco,
na praia. E não é de estranhar, também, que as centúrias joyceanas se concluam pelo monólogo de Molly
Bloom, retrato obsessivo da realidade, que muito bem poderia receber os títulos de realismo histérico ou realismo
neurótico, com que alguns críticos se referiram ao trabalho de David Foster Wallace com o romance e de Ron
Mueck com a escultura, dois nomes que, com o músico Thomas Adès, não deixam de me parecer trabalhar em
uma possível resposta a essa esterilidade da alta arte. (Devo muito do conteúdo dessa nota de rodapé a extensas
conversas com minha mulher, a professora Sandra M. Stroparo, que me ensinou também a incluir o brasileiro
Paulo Henriques Britto nesse movimento inominado)
267
É inconteste, como dirá Hayman (citação abaixo) que estamos em um momento em
que a tessitura verbal, a superfície da narrativa, faz muito mais por dificultar nosso acesso à
ação, ao enredo, do que por facilitá-lo (ela nada faz nesse sentido). Se em outros momentos
do livro tivemos de ler com extrema atenção o texto para perceber o que, de fato, estava
acontecendo (e novamente o parágrafo do tato consumado é um bom exemplo), aqui teremos a
nítida sensação de precisar ler a contra-pêlo, contra o texto, de precisar despir a ação do
texto para que ela surja, de precisar jogar fora a linguagem.
Ora, primeiro, não parece que esta última constatação esteja assim tão distante do
que parecia que o texto vinha tentando demonstrar sobre a (im)possibilidade da comunição
humana, especialmente em Nausícaa, episódio que se conclui com Bloom escrevendo uma
sentença interrompida (e desconhecida, portanto) na areia da praia. A necessidade de jogar
fora a linguagem para que a realidade possa surgir surge, assim, como corolário necessário
daquele pirronismo que em outros momentos discutimos. E em momento mais do que
apropriado.
Portanto, mesmo a mais negativa das conclusões possíveis não desmentiria o projeto
lingüístico joyceano. O que resta saber é se ela desmente seu projeto especificamente
romanesco.
Minha resposta, possível, (e, em um capítulo de exceções, por que o apresentar
essa resposta antes das evidências que a buscam sustentar?), vai em duas direções.
De um lado, devemos poder presumir (em uma obra que, vimos e revimos, trabalha
por acumulação, por superação e acréscimo) que Bloom e Dedalus, às dez horas da noite,
estejam já bem grandinhos para ser deixados sós em casa. O fato, como disse em outro
momento, é que suas personas (muito especialmente a de Bloom) estão tão bem
construídas, consolidades e, por assim dizer, enfronhadas no texto (suas vozes (espero que
isto, ao menos, esteja pelo momento acima de qualquer discussão) impregnaram toda a
trama do romance, muito além de seu discurso direto, indireto...), que conseguiremos
suportar a extremada opacidade do Gado do sol sem que, a uma leitura atenta (novamente o
leitor ideal, com a insônia ideal) elas de fato se percam para nós.
Estaríamos vendo, de grande distância, através de um cenário que atrai todo nosso
interesse e toda nossa capacidade de interpretação e discernimento, agirem pessoas cujas
expressões faciais, vocabulário, espírito e predisposições, contudo, conhecemos bem o
suficiente para deduzir com alguma acurácia.
268
De outro lado, posso pensar (ao contrário de Burgess, que parece ler O gado com a
lupa de Circe) que este episódio se encaixa no processo, no progresso do projeto da narrativa
de Joyce na medida em que, pelo contrário, tentarmos lê-lo sob a luz (possibilidade
vislumbrada mesmo na leitura de Burgess) das possibilidades criadas ou potencializadas pelo
Ciclope e por Nausícaa: como pastiche que amplifica, ao invés de sufocar, os personagens. É
bem verdade que, aqui, essa possibilidade é levada a extremos imponderáveis, o que,
também, justifica portanto sua presença antes de Circe, mais uma vez abrindo caminho para
uma possibilidade ainda mais radical, que é a da exploração imediada do psiquismo de
Bloom e Dedalus.
A discussão sobre terem-se perdido os dois (ou estarem mais completa e
irrevogavelmente presentes que no resto do livro) na fantasmagoria de Circe é
simultaneamente mais complexa e mais simples, visto que melhor compreendida graças à
tradição dos estudos psicanalíticos.
David Hayman (1982, p.100) ainda mais nesse processo, e vale também a pena
citá-lo.
A tensão entre a prosa rigidamente estilizada dos pastiches e a frouxa devassidão
e a irreverência dos rapazes aproxima mais o leitor do quadro todo, como um cúmplice do
arranjador, cujo rompimento artificial da superfície chama atenção para sua engenhosidade.
Mais importante, a textura verbal, que impede mais do que facilita nossas tentativas de
seguir a ação que adorna, ataca a própria possibilidade de comunicação ao comunicar as
circunstâncias mais simples através de uma grande variedade de posturas literárias
absurdamente datadas e variadamente adequadas.
Onde a perspicaz percepção desse processo de cumplicidade leitor-arranjador oferece
precisamente a contraparte necessária ao que diagnosticamos na primeira metade de Nausícaa
(a cumplicidade arranjador-personagens, quase que às expensas do leitor); contraparte que
sela muito bem a amplificação de possibilidades e a ambigüidade da posição do arranjador na
estrutura. Ainda mais, ao mencionar os variados graus de adequação entre as posturas
literárias e a matéria narrada, que vão da mera incongruência à amplificação efetiva, ele nos
lembra que episódios como Ítaca ainda estão por vir.
Se, com isso, conseguimos demonstrar a possibilidade de se encaixar o
problematiquíssimo episódio dos touros do sol na justeza do projeto conseqüente que
pretendemos imputar (!) ao Ulysses, ainda nos falta, no espírito que nos comprometemos a
269
manter para este trabalho, a demonstração da primeira parte do argumento, da viabilidade de
sustentarmos não haver uma diluição completa dos personagens pelo ácido do meio.
Vamos ao texto.
Queira me acompanhar.
Começamos por duas instância de discurso bloomiano, devidamente afogado na
imitação da literatura inglesa medieval.
The man then right earnest asked the nun of which death the dead man was
died and the nun answered him and said that he was died in Mona Island
through bellycrab three year agone come Childermas and she prayed to God
the Allruthful to have his dear soul in his undeathliness. He heard her sad
words, in held hat sad staring. So stood they there both awhile in wanhope
sorrowing one with other. (100-6)
Onde, apesar da incompreensibilidade do texto anacrônico e descontado o fato de
que aqui se encena a fecundação, nos termos propostos por Joyce, não me parece estranho ver
aí mais uma caricatura do nosso conhecido Bloom que, ao ser informado da morte de alguém,
se apressa em saber as circunstâncias e em, chapéu na mão, manifestar seus pêsames.
Já em
Sir Leopold heard on the upfloor cry on high and he wondered what cry that it
was whether of child or woman and I marvel, said he, that it be not come or
now. Meseems it dureth overlong. (169-72)
Temos uma situação mais complexa, pois a inverossimilhança de vermos o pretenso
discurso direto representado nesses termos reafirma, é claro, a superioridade do projeto do
arranjador sobre a representação fiel dos discursos. Por outro lado, sobra bastante, senão da
forma, da forma de pensamento típica do discurso bloomiano (ele, única pessoa, em toda
aquela noite, a lamentar a longa duração do trabalho de parto de Mina Purefoy e único a ali
estar apenas por preocupar-se com ela (ainda que, a bem da verdade, esteja fugindo de ir
para casa..)). O dado sensitivo, a informação de que ele ouviu os gritos, presentes para todos
mas ouvidos por ninguém, bem como a manifestação de sua preocupação, são ambos
assinaturas.
270
No trecho seguinte, acredito que mesmo o mais azedado dos leitores consiga sorrir
145
e reconhecer por baixo da pesada maquiagem, o velho Poldy, suas idiossincrasias e a irritação
que consegue despertar em seus concidadãos.
All they bachelors then asked of sir Leopold would he in like case so jeopardy
her person as risk life to save life. A wariness of mind he would answer as
fitted all and, laying hand to jaw, he said dissembling, as his wont was, that as
it was informed him, who had ever loved the art of physic as might a layman,
and agreeing also with his experience of so seldomseen an accident it was
good for that mother Church belike at one blow had birth and death pence
and in such short deliverly he scaped their questions. (252-9)
Trata-se de um belo exemplo da metempsicose tão cara ao Ulysses. A alma de Bloom
efetivamente invadiu um cavalo, que nada cria ou queria ter que ver com ela.
Surgindo Dedalus, continuo não vendo tão grande dificuldade em carimbar como
suas enunciações como as duas seguintes.
A pregnancy without joy, he said, a birth without pangs, a body without
blemish, a belly without bigness. Let the lewd with faith and fervour worship.
With will will we withstand, withsay. (309-12)
To be short this passage was scarce by when master Dixon of Mary in Eccles,
goodly grinning, asked young Stephen what was the reason why he had not
cided to take friar’s vows and he answered him obedience in the womb,
chastity in the tomb but involuntary poverty all his days. (334-7)
Na verdade, se falavámos em graus variados de adequação, aqui a superfície, muito
especialmente no segundo exemplo, pouco faz por disfarçar o que podemos mesmo
presumir tenha sido o discurso original de Dedalus. Na verdade, essa segunda citação abre
um longo trecho, que se prolonga até a linha 400 (e que me abstenho de citar inteiro,
remetendo-o à tradução, ainda que com fundos lamentos e lacerando as carnes do rosto),
que é uma outra grande demonstração de virtuosismo e da possibilidade de fundir vozes de
personagens e de escritores do passado sem matar qualquer uma delas no processo.
E as marcas se sucedem.
145
Atherton (p.337): O traço principal de toda essa passagem, apesar de todo o laborioso exercício e de um ou outro parágrafo
tedioso é seu humor. Há poucas passagens mais engraçadas em toda a literatura. Mas ele é mais importante historicamente como
um ataque aos problemas da comunicação escrita.
271
Vemos Bloom (427-28) declarar que aquilo é tudo of the order of a natural
phenomenon, palavra que já vimos e ainda veremos associada a ele quase como um
autógrafo. Ou lamentar a possibilidade da execução do gado irlandês por causa da velha
febre aftosa exclamando (567-8): will they slaughter all? I protest I saw them but this
day morning going to the Liverpool boats.
E, que surpreendente!, vemos Buck Mulligan extremamente à vontade em costume
de bufão, em costume de época, dentro de mais um pastiche, ele que se apresenta o mais das
vezes como um:
He proposed to set up there a national fertilising farm to be named
Omphalos
with an obelisk hewn and erected after the fashion of Egypt and to offer his
dutiful yeoman services for the fecundation of any female of what grade of life
soever who should there direct to him with the desire of fulfilling the
functions of her natural. Money was no object he said, nor would he take a
penny for his pains. The poorest kitchenwench, no less than the opulent lady
of fashion, if so be their constructions and their tempers were warm
persuaders for their petitions, would find in him their man. (684-92)
E é claro que, à medida que avança o texto, e os templates de Joyce se aproximam do
momento em que se desenrola a ão, tal processo se torna mesmo mais cil. É preciso
conhecermos Bloom como apenas Bloom pode ser conhecido dentre os personagens de
romance para que ensaiemos reconhecê-lo naqueles primeiros fragmentos. Mas agora (e
Mulligan não está nem mesmo presente na abertura da cena) podemos sem incríveis
dificuldades discernir mesmo os traços de Mulligan, que apenas vimos, até aqui (afinal, qual a
diferença?) retratado enviesadamente.
Ainda mais fascinante, se pretendemos demonstrar o lugar preciso de forma precisa
ocupado por este episódio na dinâmica que nos leva do Ciclope a Circe, i.e., do mergulho no
pastiche e na literatura para a sondagem da consciência, do palavra ao verbo, são os
momentos (como se poderia esperar, mais próximos do terço final do episódio) em que
mesmo a voz inconsciente de Bloom, por exemplo, pode se manifestar, e pode ser
individualizada (aqui temos de reconhecer: talvez apenas depois da leitura de Circe) como sua,
ou como voz de Molly citada e, ou, presente em seu psiquismo.
He says this, a censor of morals, a very pelican in his piety, who did not
scruple, oblivious of the ties of nature, to attempt illicit intercourse with a
female domestic drawn from the lowest strata of society! Nay, had the hussy’s
272
scouringbrush not been her tutelary angel, it had gone with her as hard as
with Hagar, the Egyptian! (921-5)
O que não impede que sua voz (stricto sensu) se manifeste ainda, suas próprias
palavras, como em:
It is she, Martha, thou lost one, Millicent, the young, the dear, the radiant.
How serene does she now arise, a queen among the Pleiades, in the
penultimate antelucan hour, shod in sandals of bright gold, coifed with a veil
of what do you call it gossamer. (1101-4)
em que o último sintagma, puro Bloom, soa ainda mais revelador por surgir depois
de todo o palavrório literário.
Eles não se perderam.
Acredito que se possa acreditar.
Eles estão lá, mais abafados por uma superfície muito espessa, mas reconhecíveis e
familiares.
Resta a resposta à pergunta mais séria. Por quê?
Não tenho pretensão de dar conta do mistério do Gado do sol, certamente o episódio
cuja existência em seu formato final é mais difícil de justificar, em um texto que começa a
ficar maior do que deveria. Mas acredito que adiantar a possibilidade de que o exercício
joyceano tenha algo a dizer, como avançaram Hayman e Atherton (cit.), sobre a elusividade
da comunicação escrita, ou da comunicação humana, na ante-sala de Circe em que ao verbo
se sobrepõe o sonho, não me parece de todo inútil. E o vale pouco lembrar que aquela
mixórdia de que falava Joyce, no encerramento do episódio, é de fato o mais próximo do
incompreensível a que o Ulysses (e quase certamente a literatura até aquele momento) ousou
chegar.
Se T.S.Elliot pôde argumentar que a funcionalidade do episódio era mostrar a
futilidade do estilo, podemos, assim, ir ainda mais longe, se tentamos mostrar que se trata de
um argumento sobre a vanitas de toda e qualquer possibilidade de comunicação.
E a literatura?
Resta ela. Resta o arranjador ainda mais forte, acenando com possibilidades novas
que vamos começar a ver, e que contradizem o negativismo pirroniano que o Gado nos fez
entrever e com que Nausícaa já parecia acenar.
273
I. Dentro das vozes de onde saem as vozes
Ficou bastante claro que o processo de criação de exceções, de singularidades
teóricas, que vimos anunciado em Nausícaa não vai ser abandonado pelo Livro. O episódio
seguinte demonstrou cabalmente (eis mais uma de suas utilidades estruturais) que o novo
caminho, que determina de vez o poder e as potencialidades do arranjador, bem como sonda
as possibilidades oriundas dessa nova dimensão, não seria abortado sem ser examinado em
profundidade, sem se medirem conseqüências.
Parece também que, como parece ser praticamente inevitável
146
, a problematização
das questões referentes à representação e à citação do discurso alheio no romance acabou
por desembocar em uma discussão (mesmo que apenas esboçada) sobre as possibilidades da
comunicação humana e, caso quiséssemos ir tão fundo, sobre o humano e sua definição,
passando inexoravelmente pela linguagem.
Se Wittgenstein anunciava a impossibilidade paradoxal de estudar a língua pelo
fato de ser ela mesma nosso instrumento de pesquisa, aqui vemos a contraparte necessária
deste dilema na impossibilidade de pensar sobre os usos de língua sem que surja uma
reflexão sobre nossa mente, nosso instrumento de pesquisa.
A isso se soma (sem que constitua uma discussão isolada desta) o desenvolvimento
final das possibilidades do arranjador pois, se de um lado vimos a passagem da garrulidade
vácua do Ciclope, para o questionamento da possibilidade da fusão de vozes e egos, a partir de
uma vacuidade loquaz não menos que aquela em Nausícaa e, num segundo momento,
veremos a transição da voz sufocada do Gado do sol, onde víamos os personagens apenas
como que por espelhos e em enigmas, a um momento, Circe, em que tudo, todos, e muito,
muitos, mais terão voz e direito de expressão direta na página; de outro tivemos, em
Nausícaa, uma situação em que o leitor se via praticamente alheado do conluio
aparentemente produtivíssimo de arranjador e personagens, depois, no Gado, uma situação
em que eram os personagens que se viam quase forçosamente expulsos da brincadeira que
envolvia o arranjador e os leitores: agora, inevitavelmente, teremos de nos ver, junto dos
personagens, à mercê do arranjador. Ainda mais chocante é nossa sensação de que fazemos parte dessa
cena, tão espantados com a luz da noite quanto eles e tão encantados. (Hayman, 1982, p.102)
146
E, por mais que seja ainda um pouco um caso de carro antes dos bois, cabe mencionar como ilustração
catafórica o processo que se deu tanto com o pensamento do mesmo Bakhtin quanto com a fortuna crítica que
sobre ele se debruçou.
274
Pois Circe é nossa Walpurgisnacht. Trata-se de uma alucinação, mas, como não poderia
mesmo ser diferente neste livro, de uma alucinação muitíssimo bem controlada, regida,
orquestrada. Hayman (1982, p.101-2) é novamente quem melhor define a simplicidade e a
complexidade do episódio:
Circe, que coloca Bloom e Stephen reagindo a impulsos subconscientes no centro de
um palco imaginário, combinacnicas e efeitos de seus modelos literários (Fausto e A
tentação de Santo Antônio) com outros, da pantomima tradicional.
[...]
Mas a quantidade de malabarismos com fatos, temas e analogias que o episódio
requereu é atordoante. Joyce parece ter tomado todo o livro, misturado-o em um
liquidificador gigante e então reorganizado seus elementos em uma pantomima-monstro
que, como lhe cabe, inclui toda e qualquer forma imaginável de bufonaria, mas que pode
muito bem ser o capítulo mais sério do livro, um verdadeiro rito de passagem.
Vejamos o texto, para que a discussão possa prosseguir por quaisquer caminhos que
se apresentem.
(The Mabbot street entrance of nighttown, before which stretches an
uncobbled tramsiding set with skeleton tracks, red and green will-o’-the-
wisps and danger signals. Rows of grimy houses with gaping doors. Rare
lamps with faint rainbow fans. Round Rabaiotti’s halted ice gôndola stunted
man and women squabble. They grab wafers between which are wedged
lumps of coral and copper snow. Sucking, they scatter slowly, children. The
swancomb of the ndola, highreared, forges on through the murk, white
and blue under a lighthouse. Whistles call and answer.)
THE CALL
Wait, my love, and I’ll be with you.
THE ANSWER
Round behind the stable.
(A deafmute idiot with goggle eyes, his shapeless mouth dribbling,
jerks past, shaken in Saint Vitus’ dance. A chain of children’s hands imprisons
him.)
THE CHILDREN
Kithogue! Salute!
THE IDIOT
275
(lifts a palsied left arm and gurgles)
Ghahute!
Para quem sai daquela caótica maternidade em que veio à luz a língua inglesa, é, de
fato, como outros comentaram, um consolo ver um texto organizado de forma familiar,
ainda que, naquele momento, pudesse parecer tudo menos familiar vermos uma cena de um
romance repentinamente assumir a forma de uma representação teatral completa, com
rubricas de cena e de atuação. Além de tudo, em breve veremos que tal representação
poderia pertencer a um romance: trata-se de teatro inencenável, em que os objetos de cena
falam e os cenários mudam segundo os caprichos do autor.
Se pensamos em um trabalho sobre representação de vozes, é claro que a escolha da
notação teatral (e da subseqüente escolha (inevitável) do único discurso direto) é de extrema
relevância. Kenner (1978, p.24-26) lembra o lugar importante, na carreira de Joyce e na
elaboração do Ulysses, que ocupa a peça Exiles (única de suas duas obras dramáticas a chegar
até nós), um elaborado estudo sobre a volta ao lar e a traição: consentida ou desejada.
Ele pensa que, depois de ter feito o exercício de desenvolvimento de ponto-de-vista
que é Um retrato do artista quando jovem na forma em que viemos a conhecê-lo, Joyce precisava
escrever um trabalho sem ponto de vista, de modo a se preparar para a odisséia ainda mais
complexa que seria sua Odisséia. O problema é que ele fracassa nessa tentativa.
Exiles é nitidamente a peça de um romancista. Sente-se por toda a peça um autor de
mãos atadas, louco por encenar um anacrônico solilóquio, louco por exercer sobre a cena o
controle que sua pena ausente não pode ter, desejo manifestado, como aqui, em longas
rubricas que são capazes de tentar determinar, por exemplo, quantas vezes um ator deve
suspirar antes de se erguer de uma cadeira.
Aqui temos a solução de compromisso entre os dois meios. Joyce não podia ser o
diretor de todas as montagens de sua peça. Aqui, o arranjador é que vai ocupar o posto de seu
lugar-tenente, suprindo sua curiosa necessidade de simultâneos desaparecimento e controle
sobre a cena
147
.
O mero discurso direto, e mesmo a variante shakespeareana do monólogo interior, o
solilóquio em cena, serão substituídos por recursos tipicamente romanescos, recursos de
papel. Dando voz a objetos Joyce abre mão de representar sua importância simbólica: ele a
147
Neste parágrafo talvez resida o que de mais importante tenhamos a comparar com as teorias bakhtinianas.
276
encena; usando possibilidades ilimitadas nas rubricas (longe dos limites não do teatro
tradicional, mas sim da realidade como a conhecemos), ele pode sublinhar todo e qualquer
conteúdo inexprimível como fala (inefável, proibido, bloqueado, inviável) de forma direta.
Dando voz a todo o psiquismo de seus personagens, ele enfim adentra de vez o mundo
noturno de que só se livrará com a inconclusiva frase que encerra (?) o Finnegans Wake. Aqui,
mais é permitido.
Algo necessário, no entanto, é a determinação do verdadeiro peso da alucinação no
episódio. Primeiro de tudo, como certos atos e suas conseqüências poderão provar, muito
do que aqui vemos acontecer, de fato acontece. Ergo, o episódio não é todo ele uma alucinação
que ocorresse a alguma consciência extra-livro. Segundo, é necessário cuidado ao separar
alucinação de verdade narrada em Circe como se tais alucinações fossem representações realísticas
de fenômenos que assolassem as consciências dos personagens. Ou seja, cuidado ao pensar
que de fato eles estão tendo alucinações, e que toda a representação é fiel.
É o livro quem alucina. É recurso.
Por outro lado, como prova toda uma longa discussão em Kenner (1978),
infelizmente irreproduzível em sua integralidade, a respeito das finanças de Stephen, aqui,
como em toda parte, neste livro, o tom, o grau de realidade da representação é determinado
pelo grau e pela qualidade da consciência de quem quer que seja o personagem naquele
momento dominante. Nomeadamente: por mais que Stephen não tenha consciência do valor
de seu dinheiro, e mal saiba que tipo de nota entrega às prostitutas, a dona do Bordel, Bella
Cohen, se mantém plenamente sã, assim como Bloom, que acompanha todo o processo e
tenta remendá-lo o melhor que pode.
Nas palavras do mesmo Kenner (351), Aqui também a impersonalidade tem um ponto de
vista.
Na verdade, assim como pude sugerir a metáfora da simultaneidade de pontos de
vista para Nausícaa penso que o que podemos contemplar em Circe é uma demonstração de
força do arranjador, que, paradoxalmente, cria grande mal-estar para os personagens por dar-
lhes plenos poderes sobre a realidade. Se antes tínhamos acesso aos fatos através dos olhos de
Bloom e Dedalus, se antes víamos os fatos tingidos pelo discurso e pela personalidade dos
personagens, agora vemos o mundo através da mente de Bloom e de Dedalus, recebemos os
fatos completamente filtrados, convertidos e distorcidos por todos os níveis da consciência
277
de ambos: obviamente temos, assim, acesso mais direto a essas mesmas consciências, como
bônus deste processo, mas obviamente nos vemos de início tão desorientados quanto eles.
Apenas o arranjador está de posse do controle da representação e de sua recepção.
Daí a incômoda sensação de que falava Hayman. Alucina o livro. Alucinamos nós e alucinam
os personagens.
Mas nossa velha conhecida, a presença indeterminada mas determinante, está cada
vez mais ativa. (Não poderíamos dizer ser mesmo ela, afinal, a dona da voz que enuncia as
rubricas? caberia chamar de narrador esse enunciador? Ou estaríamos de fato diante de um
primeiro momento, e nenhum seria mais adequado para isso, em que o arranjador finalmente
dá as caras e mostra sua voz, personifica-se, ainda que em uma pessoa sem presença?)
Tudo isso dito, tudo isso eliminado, nos vemos diante de um episódio a mais,
plenamente analisável dentro dos quadros de que vimos tratando. Como todos os episódios
pós-sol-posto, ele parece ter abandonado a mais clara linha sucessiva e evolutiva que vínhamos
tentando demonstrar desde a abertura do romance. Aqui, como em toda parte entre as duas
mulheres que delimitam nossa noite, Nausícaa e Penélope, as coisas trabalham em círculos,
desenvolvendo, tentando, rebuscando, numa clara demonstração de que (como citava
Burgess ainda pouco), Joyce recolheu material suficiente durante o dia para agora se
refestelar sobre as possibilidades por ele geradas.
Vejamos como ele se sai aqui.
E comecemos por um trecho (algo longo, mas é preciso finalmente deixar-se sentir o
episódio) em que ao mesmo tempo vemos o recurso insofismável ao alucinatório e a
possibilidade (graças ao vigor que atingiu a construção da pessoa Bloom) de manter sua
estabilidade e sua recognoscibilidade.
THE GONG
Bang Bang Bla Bak Blud Bugg Bloo.
(The brake cracks violently. Bloom, raising a policeman’s whitegloved
hand, blunders stifflegged out of the track. The motorman, thrown forward,
pugnosed, on the guidewheel, yells as he slides past over chains and keys.)
THE MOTORMAN
Hey, shitbreeches, are you doing the hat trick?
278
(Bloom trickleaps to the curbstone and halts again. He brushes a
mudflake from his cheek with a parceled hand.)
BLOOM
No thoroughfare. Close shave that but cured the stitch. Must take up
Sandow’s exercises again. On the hands down. Insure agains street accidents
too. The providential. (he feels his trouser pocket) Poor mamma’s panacea.
Heel easily catch in track or bootlace in a cog. Day the wheel of the black
Maria peeled off my shoe at Leonard’s corner. Third time is the charm. Shoe
trick. Insolente driver. I ought to report him. Tension makes them nervous.
Might be the fellow balked me this morning with that horsey woman. Same
style of beauty. Quick of him all the same. The stiff walk. True word spoken
in jest. That awful cramp in Lad lane. Something poisonous I ate. Emblem of
luck. Why? Probably lost cattle. Mark of the beast. (he closes his eyes an
instant) Bit light in the head. Monthly or effect of the other. Brainfogfag. That
tired feeling. Too much for me now. Ow!
(A sinister figure leans on plaited legs against O’Beirne’s wall, a visage
unknown, injected with dark mercury. From under a wideleaved sombrero
the figure regards him with evil eye)
BLOOM
Buenas noches, señorita Blanca. Que calle es esta?
THE FIGURE
(impassive, raises a signal arm)
Password.
Sraid Mabbot.
BLOOM
Haha.
Merci
. Esperanto.
Slan leath
. (
he mutters
) Gaelic league spy, sent by
that fireeater. (188-221)
Vamos agora ver se consigo lhe dar alguma prova de que valeu ter esperado tanto e
ter logo citado um trecho tão longo.
Bloom está chegando ao distrito dos bordéis, à cata de Dedalus, está cansado e
caindo de sono (uma das possíveis justificações para uma base realista, uma premissa realista
para as alucinações). Portanto pode muito bem ser que ele tenha se deixado ficar no
caminho do bonde e que alguma altercação com um motorneiro tenha-se produzido. Ou ele
apenas, de longe, viu um deles. Fica claro que isso não interessa primariamente. O que nos
279
interessa é o que surge na página, e como tudo o que surge na página é Bloom posto em
letras.
O mesmo gongo do carro chega aliterativamente modificando seu Bang original na
direção de palavras que podem ser lidas como pedaços de admoestações e lembranças, algo
mais ou menos reprimidas do dia de Bloom: Bla e Bak lembram black, a cor de suas roupas,
motivada pelo funeral, assim como avisam back, afaste-se; Blud é blood, sangue, e lembra
especialmente o folheto com a frase Blood of the lamb, que ele encontrou perto do Liffey,
pois naquele momento ele, por um momento de quatro letras, pensou que leria seu nome na
página, o que nos leva ao Bloo; Bugg, bugger, lembra que ele está em uma zona de
prostituição, e abre uma longa série de acusações, vindas dele ou de outros, que vão culminar
com Bloom sendo julgado e condenado naquela mesma noite, neste mesmo delírio.
O bonde freia e Bloom ao mesmo tempo levanta uma mão branquenluvada de policial,
uma óbvia alegoria, e não uma alucinação (cf. acima), e se afasta desajeitado dos trilhos. Um
gesto de pretendida autoridade, ou um desejo de emprestar dignidade a uma mão que quase
pedia desculpas, acompanhado de um reconhecimento de culpa, fugindo da cena do crime e
liberando a estrada para quem a tem de direito. É apenas a alegoria da mão de policial que
sustenta o orgulho de Bloom. Mesmo as alucinações podem vir a calhar, podem pertencer a
seu registro pessoal.
A mera presença do adjetivo pugnosed
no parágrafo, e em referência a um condutor
de bonde, nos leva, como Bloom mesmo reconhecerá, de volta aos Lotófagos e ao momento
em que o condutor de bonde se interpõe entre Bloom e seu desejo. Confluência de imagens
em um símbolo: sonho: um lugar em que a autoridade do indivíduo sobre o mundo é
simultaneamente total e nula.
Ofendido pelo condutor, Bloom salta para o meio-fio com uma agilidade que, neste
momento, certamente não tem, mas gostaria que acreditássemos (nós e todos) que pode ter,
(daí a menção no próximo parágrafo a seu passado hábito de se exercitar) e, dândi, elimina
um floco de lama(choveu durante o Gado do sol) da bochecha com um pacote. Comida que
comprou e que dará a um cachorro.
O parágrafo seguinte começa e se desenvolve como puro monólogo interior
bloomiano. Depois de coisas tão estranhas acontecerem nas primeiras cinco páginas do
episódio, nos parece que Bloom esteja perfeitamente normal. Afinal, é precisamente a esse
tipo de salto associativo assindético que estamos acostumados desde que entramos em
280
contato com ele (há tanto tempo) às oito horas da manhã. Mesmo a talvez excessiva
violência, e mesmo alguma inconseqüência, das associações que surgem mais para o fim do
parágrafo parecem encontrar uma incômoda explicação, parecem fazer sentido quando Bloom
reconhece que está meio zonzo. Sabemos que ele está.
Mas nada se resolve se ele atribui tal tontura a seu período menstrual.
Ele está, no limite de sua consciência, no limite de sua consciência. Tonto,
vivenciando um mundo, portanto, crescentemente estranho, a que terá de se acostumar. A
similaridade de seu discurso sob tais circunstâncias e de seu discurso desperto durante todo o
livro deve tanto nos levar a ver que ele está, novamente, sob influência de forças a- anti- sub-
ou sobrenaturais, quanto a nos convencermos de que estamos nós na mesma posição.
Alucinamos agora. Mas essa alucinação lembra tanto o período de nossa lucidez que
não podemos deixar de nos perguntar quanto de lúcido havia naqueles momentos.
Quanto de sonho.
Joyce parece continuar a nos falar mais sobre a comunicação humana, a comunhão via
linguagem.
E não estranhemos, nem Bloom, que, ao topar com uma figura bem-vestida e
portando um sombrero, imediatamente se dirija a ela em espanhol, receba uma resposta
gaélica e a reconheça como esperanto, respondendo contudo na mesma língua.
As coisas estão muito confusas e, apenas desta vez, talvez seja melhor, ao invés de
prosseguir com a leitura de outros trechos do mais longo do episódio do livro (ele tem,
sozinho, o tamanho dos primeiros oito episódios e, na edição Gabler, ocupa muito pouco
menos que um quarto do livro), o que poderia nos consumir resmas de papel, seja melhor,
repito, que eu lhe mostre uma dízima periódica, uma conta que ainda não fecha...
281
I, 3333333... E além do real
Vimos vozes indo ao delírio e extrapolando seus direitos e seus espaços, tingindo
pensamentos alheios e determinando o que veríamos do mundo e do mundo visto por
outras pessoas, na praia, no entardecer. Bloom definitivamente começa a escapar de si
próprio.
Depois disso passamos por uma maternidade em que essas mesmas vozes, por mais
que se exercitem em uma parolagem sem fim e sem limites, se vêem sufocadas por um
cobertor espesso que delas quase nada como tais nos apresenta. Temos de nele adivinhar
seus volumes, seus contorno e movimento.
Chegamos a um estado alucinatório (só agora?) em que as duas vozes que mais nos
interessam passam a se manifestar em um estado de exaltação (pode-se argumentar que
estou confundindo vozes, discursos, com psiquismo, consciência: mas, ora, discussões
filosóficas senfim postas à parte, não consigo pensar em momento melhor, neste livro, neste
trabalho, para ceder precisamente a essa confusão) que, como sói, revela delas muito mais do
que desejariam e, muito, muito especialmente, transcende de fato o conceito de discurso.
Afinal, se em um romance tradicional (de uma forma ou de outra representação de
uma realidada dada ou suposta), temos como meio de acesso aos personagens suas falas e o
que nos diz sobre elas alguma outra voz, vimos que em Joyce (como em Flaubert, talvez) as
fronteiras começam a se borrar, e o mecanismo do romance passa a estar todo ele à
disposição do personagem, para sua expressão.
Podemos aprender coisas sobre Bloom, conhecê-lo, mesmo quando ele não fala e
nada sobre ele se diz. O romance fala (de) Bloom.
E aqui, em Circe tivemos a demonstração cabal de que tal promiscuidade atingiu seu
ponto máximo. Encena-se de Bloom o que ele não seria capaz de dizer. Ele diante de seus
olhos, vivas, as palavras que mais tentaria esconder. Acima de tudo é preciso que
reconheçamos que, por meio da fantasmagoria de Circe, cenário, elenco, música e objetos de
cena se transformam em discurso. Tudo agora fala Bloom. Mesmo a contra-pêlo de suas
manifestações mais lúcidas.
Tudo isso nos leva a uma constatação de que não podemos fugir: se os primeiros
doze episódios do romance nos levaram de fato aos extremos da representação realista (e
com que elasticidade e mesmo desconfiança nos vemos obrigados a nos servir da palavra
282
neste momento..) de personalidades como discursos, os episódios que a eles se seguiram
(com Nausícaa como apta ponte) trataram de levar além essas possibilidades e de brincar com
um domínio que, definitivamente, está além do realismo.
Essa possibilidade de que estejamos diante não apenas de uma declaração de
indisposição para com as convenções de representação realística da realidade como de uma
afirmação consciente da impossibilidade da representação e de sua (ou de qualquer)
comunicação, pode muito bem encontrar eco também no fato de que, se entre o Ciclope e
Nausícaa vimos a curiosa omissão de um fato relevante no dia de Bloom (descontado o
adultério de Molly, que veremos todo o dia, durante o dia todo, sempre diagonalmente, mas
não acompanharemos enquanto se realiza), esse fenômeno vai-se tornando mais freqüente, e
o livro vai se encerrar com mais perguntas abertas que respostas.
Um exemplo levantado por Kenner (1974) é o que se pode deduzir (como de
costume) de duas menções espalhadas pelo texto. Aqui (3720-1), sem mais, Stephen
repentinamente percebe que machucou a mão, de alguma maneira, em algum lugar. Como
argumenta o próprio Kenner, não podemos supor um ferimento aberto, com sangue e
sujeira, pois imediatamente veríamos Bloom correndo de um lado para outro atrás de
antissépticos e bandagens. Ele fez o que na minha família se chamava magoar a mão.
No capítulo seguinte (16.250) é Bloom que algo enigmaticamente comenta que
Stephen não poderá voltar à torre depois do que aconteceu na estação. Kenner pensa que Dedalus
foi a vias de fato e agrediu Mulligan, acarretando o definitivo rompimento entre eles. Mas,
novamente, tudo isso aconteceu quando estávamos dormindo, entre um episódio e outro. E
não foi narrado. Não (simplesmente) foi narrado.
Como o mesmo Kenner (351-2) comenta, a respeito de outro trecho, que além de
tudo ilumina também a questão do estatuto das alucinações em Circe,
Stephen realmente está assustado por causa de uma alucinação, a única alucinação
genuína no capítulo. Esse fato quase fica obscurecido pela pletora de episódios que parecem
alucinações e são apresentados em idêntica notação, mas são, na verdade, ou metáforas
dramatizadas, como a mão branquenluvada, ou equivalentes expressionísticos de estados de
sentimento. A alucinação de Stephen é um dos clímaxes do livro, mas Joyce é um grande
ocultador de clímaxes.
E isso só se vai ver confirmado daqui para a frente.
Caiu a noite. O real agora é bem outro.
283
J. Sancho
E estamos em crise.
Daquelas das mais produtivas, é verdade. Mas parece que o que vínhamos tentando
observar, todo um processo de fortalecimento de vozes de personagens, dentro (ainda que
forçando-os todos) dos limites da representação ficcional convencionada, uma reinvenção de
possibilidades acompanhada, por que não?, da criação ou da ressuscitação de certos recursos,
operando, ainda e sempre, dentro do quadro de finalidades daquela mesma ficção, parece ter
escorrido inexoravelmente por entre nossos dedos.
Parecemos estar além do realismo.
Temos apenas de tentar estabelecer se esta passagem desmente o processo que a
possibilitou ou pode ser lida como uma conclusão (certamente não a única, mas mesmo
assim inevitável in potentia) dessa mesma linha.
Eumeu, o episódio mais estrategicamente localizado do Ulysses, segundo Bruns
(p.364), pode muito bem representar uma chave, ainda que qualquer luz que ele possa lançar
sobre nossas perguntas seja uma luz tão esmaecida, tão cansada como, nesse momento, nos
vemos nós, Dedalus, Bloom e o Livro.
O episódio se abre assim.
Preparatory to anything else Mr Bloom brushed off the greater bulk of
the shavings and handed Stephen the hat and ashplant and bucked him up
generally in orthodox Samaritan fashion which he very badly needed. His
(Stephen’s) mind was not exactly what you could call wandering but a bit
unsteady and on his expressed desire for some beverage to drink Mr Bloom in
view of the hour it was and there being no pump of Vartry water available for
their ablutions let alone drinking purposes hit upon an expedient by
suggesting, off the reel, the propriety of the cabman’s shelter, as it was called,
hardly a stonesthrow away near Butt bridge where they might hit upon some
drinkables in the shape of a milk and soda or a mineral. But how to get there
was the rub. For the nonce he was rather nonplussed but inasmuch as the
duty plainly devolved upon him to take some measures on the subject he
pondered suitable ways and means during which Stephen repeatedly
yawned. (1-14)
Argh! Esse parágrafo prossegue por mais 15 linhas. E essa voz nos acompanhará por
mais 1880.
284
Estamos diante de um pernóstico. Lugares-comuns meio desarranjados (orthodox
Samaritan), sobrespecificações (His (Stephen’s)), tergiversações acompanhadas de uma
curiosa reflexão sobre a banalidade que se insiste em pronunciar (not exactly what you
would call wandering; the cabman’s shelter, as it was called), redundâncias (some
beverage to drink), demonstrações de conhecimento desnecessárias (Vartry é o reservatório
de onde provém a água que Dublin consome, como qualquer leitor do Ulysses
inapelavelmente estará sabendo no próximo episódio), pedantismo lexical (ablutions; some
drinkables), e mesmo o hamletiano rub: tudo aponta para uma voz bastante dissonante em
relação ao que viéramos observando nos episódios anteriores, especialmente nos que
imediatamente antecedem essa abertura.
Trata-se de uma voz, de um conjunto de traços e procedimentos discursivos que
conhecemos (ainda que variem os atores que empregam a mesma máscara). De Sancho
Pança ao vestibulando que utiliza todos os recursos que possui, vemos sempre esse tipo de
tentativa de demonstrar uma familiaridade e uma desenvoltura no uso da ngua (não só)
escrita, que se baseia especialmente na reprodução de suas possibilidades mais marcadas e
mais nefandas para qualquer potencialidade de estilo.
Mais, algo nessa voz (que pode incluir o fato de aqui, mais do que em qualquer lugar,
Dedalus será sempre Stephen, enquanto que Bloom goza invariavelmente do título de
Senhor Bloom), e mesmo a solidariedade que inevitavelmente sentimos diante dos bocejos
de Stephen, nos pode levar a supor uma identidade por trás desse discurso.
Hugh Kenner (1978, p.35 e 38) vai direto ao ponto e, um pouco tarde demais (o
tropel do gado de Hélio vai longe), dá de vez aos bois seus nomes.
Ele [Bloom] ganha de presente um episódio escrito como ele o teria escrito. [...] Todos os
outros falam realisticamente [...]. Somente Bloom usa polissílabos: como se, durante essas
cinqüenta páginas ele detivesse a pena, e pudesse reservar para si próprio as falas mais
elegantes [...] Copioso em sua deselegância fecunda, ele [Eumeu] é o retorno de Joyce à
tônica de seu método: o princípio do tio Charles in excelsis, uma homenagem estilística a
Bloom, no estilo de Bloom, e de certa forma é o tributo mais profundo do livro a seu herói,
Ulisses, primeiro entre os homens da palavra em Homero.
É preciso que estabeleçamos uma diferença entre o que Kenner parece afirmar e o
que nhamos apontando desde que Bloom entrou em cena. Estamos, na verdade,
considerando aqui toda uma mudança de estatuto, apesar de, de saída, Kenner poder ver
285
nela uma continuidade, uma retomada de procedimentos estabelecidos desde o início do
romance, desde o início da obra de ficção de Joyce.
David Hayman (1982, p.102) põe com precisão o dedo nessa distinção quando anota
que
É a voz, e não o ponto-de-vista, que é de Bloom, e é através dessa voz que o arranjador
transmite com surpreendente acurácia os sentimentos, fatigados pela bebida e pelo cansaço,
de ambos os protagonistas. Não é fluxo de consciência e há apenas vestígios do narrador do
início do livro.
De início, o que mais víamos de Bloom como contaminação sobre o livro era seu
ponto-de-vista, manifestado o que tentamos defender aqui) através de marcas discursivas,
lexicais, sintáticas que surgiam mesmo na voz do narrador, distinta da sua. Víamos, sim, uma
invasão bloomiana sobre outros campos discursivos, mas com algumas diferenças.
Primeiro, essa invasão não chegava a ameaçar as distinções. Apenas a partir de
Nausícaa é que pudemos começar a ver a efetiva deleção das fronteiras entre estrutura
narrativa e personagem. Existe uma diferença muito grande entre conquistar e anexar. Entre
anexar e assimilar.
Segundo, o que víamos de Bloom, manifesto nas instâncias permeáveis que se
ofereciam a sua voz era precisamente o que Bloom era. Obtínhamos ali uma permissão para
conhecer mais de Bloom, contra, talvez, o que o mesmo Bloom pudesse desejar.
aqui, além de possivelmente estarmos diante do apagamento definitivo de uma
fronteira tida por estável (entre autor e personagem), vemos de Bloom o que Bloom gostaria
que alguém, um outro, visse dele se pudesse ter ele esse controle. Vemos uma persona de
Bloom. Uma afetação. Vemos o que ele gostaria-de-ser-quando-crescer.
Assim podemos chegar a um termo de compromisso, aparente e inicialmente, entre
as visões em superfície contrastantes de Hayman e Kenner. Quando H. afirma ver aqui
apenas vestígios do narrador do início do livro, ele se refere a uma persona, uma instância
discursiva que, depois de prodigiosamente solapada de várias e complexas maneiras, dessa
vez cede vez e some de vez, tendo sido completamente substituída por Bloom. Portanto é
exatamente pelas mesmas razões que K. pode detectar aqui uma volta (depois dos
descaminhos, do intercurso do Gado e de Circe) aos princípios que orientam o livro (e seus
narradores) desde o princípio: o processo de derrubada, de saque, de invasão da voz
narradora finalmente (depois do ensaio que foi Nausícaa, em que Bloom no entanto, como
286
Joyce, precisou se apoiar em um modelo estável pré-existente) chega a (bom?) termo,
possibilitando que Bloom tome as rédeas da narrativa.
Veja-se um outro trecho, de um momento completamente diferente do texto, que
pode exibir o discurso efetivo de Bloom e a apropriação, por sua parte, dos poderes da voz
narrativa, com tudo (a essas alturas) que quer e não quer demonstrar.
Yes, Mr Bloom thoroughly agreed, entirely endorsing the remark, that
was overwhelmingly right. And the whole world was full of that sort of thing.
You just took the word out of my mouth, he said. A hocuspocus od
conflicting evidence that candidly you couldn’t remotely…
All those wretched quarrels, in his humble opinion, stirring up bad
blood, from some bump of combativeness or gland of some kind, erroneously
supposed to be about a punctilio of honour and a flag, were very largely a
question of the money question which was at the back of everything greed
and jealousy, people never knowing when to stop.
– They accused, remarked he audibly.
He turned away from the others who probably and spoke nearer to, so
as the others in case they.
– Jews, he softly imparted in an aside in Stephen’s ear, are accused of ruining.
Not a vestige of truth in it, I can safely say. (1106-20)
Trata-se do mais absoluto virtuosismo no emprego do complexo discurso indireto
livre. Exatamente o tipo de coisa que nos leva a sondar o quê, além do mero rótulo DIL,
pode estar em jogo nessas interferências discursivas do Ulysses. Exatamente o que nos leva a
propor todo este trabalho. Poucos trechos justificariam melhor (espero que justifique, afinal)
a existência dessas centenas de páginas cansativas.
Peço licença para me deter um pouco mais sobre ele.
A primeira palavra é de Bloom (e será a última de Molly), mas ela não vem precedida
de travessão (singular convenção que Joyce não deixa de empregar, no Ulysses), logo, está
na boca do narrador. Mas que diferença isso faz? É o que o resto do trecho nos faz
perguntar.
A ênfase seguinte (o senhor Bloom concordou absolutamente, endossando integralmente o
comentário) pode ser vista como mera representação, suponhamos, do convicto movimento de
cabeça de Bloom. Mas, convenhamos também, ela é expressa em termos tão autenticamente
bloomianos... A ponto de que a terceira (terceira!) qualificação positiva a se referir ao
comentário em questão, nos coloca (no texto inglês como se nos apresenta) no domínio do
inatribuível, novamente, tão típico do DIL.
287
Se traduzimos aquele that
por um pronome relativo, obtemos a continuidade da
sintaxe do narrador (comentário...que estava assombrosamente correto). Se, por outro lado,
escolhemos vertê-lo por um demonstrativo, entramos no discurso de Bloom, que não pode
ser direto pela falta do travessão e não pode ser indireto pela falta do verbo dicendi, embora a
dêixis temporal o qualifique como tal. Ou seja: indireto livre possível (aquilo estava
assobrosamente correto).
E ambas as possibilidades são assombrosamente corretas. E nada impõe a necessidade de
se escolher entre elas.
Se neste exemplo tivemos a dêixis verbal retirando uma fala do narrador e forçando-
o a considerar a possibilidade de compartilhá-la com Bloom, a frase seguinte o faz de forma
ainda mais violenta, ainda que no sentido contrário, tirando de Bloom um comentário que
nos forçamos a atribuir também ao narrador
148
.
A comunhão entre os dois é tão absoluta que, quando Bloom fala, ele não faz mais
que gerar mais, ainda mais, do mesmo, do mesmíssimo efeito de multiplicada redundância.
Sua primeira frase, devidamente cercada por travessão e verbo dicendi, não precisava mais ter
sido pronunciada.
Peralá, Bloom. A gente está dentro da tua cabeça. A gente já sabe.
Sua frase seguinte, um baú de pedantescos polissílabos que pouco faz para introduzir
um comentário efetivo além de criar nos ouvintes algum sentimento de enfado, chega a
graus de inverossimilhaa (pense-se em onde ele está; falando com quem..) e incongruência
tão grandes que ele não tem outro remédio que não ser interrompido.
E vejamos bem essa interrupção.
Ela segue misturando seu discurso ao do narrador, seu cúmplice confirmado, amigo
de e irmão camarada. O que estamos vendo aqui muito bem poderia ser uma troca de
guarda. Inquietado (ou empolgado?) com os tortuosos prolegômenos de Bloom, o narrador
(Bloom mais uma vez) resolve empregar seus poderes pretensamente maiores de
comunicação para dar continuidade ao argumento. Novamente, afinal, não fosse a dêixis
verbal e aquela pequena atribuição a uma terceira pessoa da primeira linha, a frase poderia ter
saído integral e irretocadamente da boca de Bloom; ou ao menos da boca deste Bloom, a
versão de si próprio que ele nos quer vender a essa hora da madrugada!
148
Segure-se na cadeira. Em breve comentário sobre a diferença do lugar do narrador no DIL tradicional e
neste que tentamos deslindar.
288
No entanto, a idéia do conluio amigável, do narrador meramente usando seus
instrumentos para refundir a fala de Bloom e poupar-lhe o trabalho de ventilar suas opiniões,
cai por terra com o próximo travessão.
Bloom faz referência a Zola (o que fica bem condizente com sua persona no
momento) e, o narrador (o Contador) acrescenta, o faz agora audivelmente. Ou seja, os
comentários anteriores não foram ouvidos, porque quase certamente algum dos
interlocutores, chocado com a abertura da sentença, cortou-lhe a palavra e atropelou-o com
suas próprias invectivas (mais uma vez, aparentemente, dirigidas a sua judaicidade). O
mundo que o cerca não ouviu as palavras de Bloom; já nós, o que não ouvimos foi
precisamente o desimportante mundo exterior.
Perceba-se a diferença qualitativa entre os momentos anteriores em que Stephen, por
exemplo, deixava de prestar atenção ao mundo e a narrativa o acompanhava, voltando
alguns momentos depois, para um mundo diferente. Aqui é o mundo que deixa de prestar
atenção a Bloom, que não divaga, mas continua obstinadamente, socorrido pelo narrador, a
falar o que não querem ouvir. O pacto agora é de natureza efetivamente simbiótica.
Perceba-se a que ponto de flexibilidade e camaleonismo pode chegar essa relação na
frase seguinte do narrador, que novamente pode apenas iconizar o falar tateante e reticente
de Bloom ou, significativamente, incluir trechos efetivamente pronunciados por ele. Com o
diferencial de que a ausência de qualquer elemento dêitico simplesmente não nos permite, de
todo, decidir.
Quem chama Stephen a se aproximar e ouvir um longo discurso de 21 linhas o
duas pessoas, que são uma e a mesma. Eis o milagre da fé. (!).
Mas o que mais importa aqui (mais do que a análise detida, encharcada de pasmo e
deleite, por mais que ela possa ser, como de fato me é, incrivelmente divertida) é a dimensão
da novidade que esta mudança de eixo de leitura pode trazer para o romance. E é a perfeita
compreensão de suas simultânea surpresa e previsibilidade dentro do processo evolutivo,
dentro do ritmo da jornada do Ulysses que pode iluminar este ponto.
Para isso, acompanho, algo longamente, o que Bruns (p.364) já julgou ser válido citar
in extenso de Valéry
149
.
149
in: Maîtres et amis.
289
[...] o espírito de Bloom, talvez –que domina o episódio, mas o que é
extraordinário de observar é como esse domínio se origina e se mantém.
Ele se origina e se mantém, primeiro de tudo, através da linguagem. Ajuda
observar, a esse respeito, o quanto Eumeu se afasta da tradição comumente aceita da
ficção realista, que, paradoxalmente, se ocupava da redenção de seu conteúdo ordinário
através do estilo. Em um ensaio entitulado A tentação de (São) Flaubert, Paul
Valéry explicou assim este paradoxo:
A literatura... que objetiva efeitos imediatos, instantâneos, procura uma
“verdade” completamente diferente, uma que seja verdadeira para todos e que portanto
não pode divergir da visão comum das coisas: do que se pode expressar na linguagem
comum. Mas a ambição do escritor deve necessariamente se distinguir do comum dos
homens, enquanto que a linguagem ordinária está na boca de todos e a visão comum das
coisas é tão desprovida de valor como o ar que todos respiram. Este conflito entre a
premissa fundamental do Realismo (a preocupação com o lugar-comum) e o desejo de todo
escritor de se converter em um ser especial, uma personalidade especialmente dotada, levou
os realistas a um interesse no refinamento do estilo. Eles criaram o estilo artístico. Eles
prodigalizaram um cuidado e uma aplicação, uma sutileza e uma virtuosidade, bastante
admiráveis por si próprios, na descrição dos objetos mais ordinários e por vezes mais
triviais; mas eles o fizeram sem perceber que, desta forma, estavam lutando por algo que
estava fora de seus princípios... Na verdade, eles colocaram os mais broncos dos
personagens, que eram incapazes de demonstrar o menor interesse pela cor ou de gozar as
formas das coisas, em cenários cuja descrição requeria o olho de um pintor, uma
capacidade de sentimento que pertence ao individuo sensível que responde precisamente
àquelas coisas que escapam ao homem comum... Se falavam, seus comentários ocos e seus
clichês eram embutidos em um estilo altamente elaborado composto de termos raros e
ritmos estudados em que cada palavra era cuidadosamente pesada, traindo sua auto-
consciência e seu desejo de ser percebido. O Realismo acabava curiosamente dando uma
impressão de artificialidade deliberada.
É claro que é contra (sobre) este cenário que Joyce parece estar trabalhando. Que seu
trabalho de investigação e expansão se precisamente sobre este paradoxo. Que ele parece
buscar exatamente o apagamento da necessidade da reafirmação da distância do autor, do
distanciamento, frio e analítico ou frio e pleno de julgamento, com que a ficção realista
(stricto latoque sensu) pretendia organizar seu mundo e apaziguar seu espírito.
Pois a afirmação da distância é simultânea afirmação de diferença e, portanto, de
estabilidade ontológica.
Bruns prossegue (p.365) contrastando Joyce e um de seus mestres, ainda em busca
desse específico joyceano, dessa copernicidade que parece algo esquiva mesmo ao olho atento.
Ao relatar o discurso de Emma Bovary, ao invés de representá-lo diretamente ou
meramente tecer comentários a respeito de suas intenções, o narrador estava em posição de
mediador entre uma mulher com uma sensibilidade elementar e Flaubert, o mestre estilista.
290
Ou, mais (367):
A ironia em uma obra como O vermelho e o negro, de Stendhal, por exemplo, baseia-se
em uma descontinuidade entre o narrador o protagonista. O narrador no romance de
Stendhal compartilha com sua audiência uma sensação de superioridade em relação a
Julien Sorel e, ainda mais importante, uma sensação de liberdade em relação à situação de
Julien. Mas em Eumeu não tal descontinuidade; ou, na verdade, a descontinuidade é
de ordem diferente: uma descontinuidade entre narrador e leitor.
Eis a ética que suspeitávamos.
Pois em abrindo mão do narrador como instrumento de imposição de visão, de
léxico, de recorte de mundo sobre o mundo fingido, criado, Joyce não apenas exemplifica o
desdém belle-époque do dândi por seus inferiores, o desinteresse que poderia culminar nos
paradoxos wildeanos, que ele abre o livro aguilhoando na voz de Mulligan. Ele oferece ao
mundo ficto meios e instrumentos que não costumavam estar em seu poder.
Falava em copernicidade, mencionei anteriormente um putsch. O que mais parece
adequado aqui é falar em uma brutal revolução, em que um déspota mais que absoluto
decide, assim, entregar a seus súditos as chaves do cofre, a tinta com que se escrevem as
constituições e as lanças de seus dragões.
Seu narrador não serve mais a manter a asséptica distância de que ele precisa. Seu
narrador é uma protéica criatura muito mais afeita ao mundo narrado que a seu autor. A tão
famosa ironia joyceana, portanto, pode em muitos casos se basear em uma incompreensão
de seu método. O que quer dizer a última frase de Bruns é exatamente isso: que a leitura
irônica (o julgamento, portanto, a constação da distância e da superioridade), se existir, deve
provir apenas do leitor. Não se trata de um julgamento sub-dito, como seria o caso da ironia
típica, mas da mera exposição do fato, acompanhado do sacro direito de decisão.
Ria de Dedalus no Retrato. Mas saiba que é você quem ri. Assuma sua
responsabilidade.
Pois, ao juntarmos a descrição do típico autor realista e sua inconsistência de
princípio à sensação de que em Eumeu estamos lendo um texto quase que literalmente escrito
por Bloom, e escrito segundo os mesmos métodos que vínhamos descrevendo, partilhando
contudo do mesmo desenxabimento que poderia acompanhar o paradoxo realista de Valéry,
não podemos deixar de constatar que, se alguma figura aqui (entre Joyce, o arranjador e
291
Bloom) pode estar algo próxima de ser satisfatoriamente descrita pela definição tradicional
de autor realista, ela definitivamente há de ser Bloom.
No processo de entregar o narrador às criaturas, Joyce, aparentemente, precisou se
servir de uma nova instância teórica (aquele arranjador), precisou encontrar um novo degrau
onde se empoleirar e de onde contemplar e simultaneamente organizar seu novo mundo.
Mas, em Eumeu ao menos, parece que ele finalmente conseguiu seu intento original.
Aquele, o mesmo que porventura estava por trás da mais primitiva forma de narrativa em
discurso direto.
Ele finalmente conseguiu dar a Bloom o direito e os meios de contar sua própria
estória.
E, agora, daqui, podemos muito bem rever aquele interlúdio aparentemente dedicado
a glosar a impossibilidade da efetiva comunição entre homem e mulher, entre homens, entre
pessoas. Podemos muito bem revestir de uma importância toda nova essa excursão pelos
domínios da pirroniana filosofia da linguagem, que a custo de um desvio e da interrupção de
nossa linha, nos fez ver mais brilhante e mais incontornável a verdade que talvez tenha guiado
todo o projeto joyceano e que (certamente) esteve por trás do meu (projeto em um sentido tão
mais melancolicamente reduzido), embora talvez agora eu me tenha dado conta disso
(ora, é para se aprender alguma coisa que se faz um doutorado, não?).
Se a comunicação é possível, é na literatura que ela se dá.
Entre homem e personagem.
Entre mundo e mundo, pai e filho, autor e livro.
E o leitor?
Ora, e ele ainda vai reclamar de alguma coisa?!
*
Sua meta foi atingida?
Ele chegou ao fim do processo iniciado de forma solene no topo da torre?
Mas dois capítulos pela frente. E veremos que ele soube muito bem resumir e
fechar sua busca.
Mas, antes disso, me acompanhe por favor e veja, por seus próprios olhos, sem
comentários (nada mais adequado neste momento do que lavar as mãos e deixar que a
292
estória se narre), a perfeita adequação e a incrível beleza com que o Livro (1880-94) se
despede de sua demanda, abandona sua narrativa, dá adeus a Dedalus e Bloom.
Side by side Bloom, profiting by the
contretemps
, with Stephen passed
through the gap of the chains, divided by the upright, and, stepping over a
strand of mire, went across, towards Gardiner street lower, Stephen singing
more boldly, but not loudly, the end of the ballad.
Und alle Schiffe brücken
The driver never said a word, good, bad or indifferent, but merely
watched the two figures,
as he sat on his lowbacked car
, both black, one full,
one lean, walk towards the railway bridge,
to be married by Father Maher
. As
they walked they at times stopped and walked again continuing their
tête à
tête
(which, of course, he was utterly out of) about sirens, enemies of man’s
reason, mingled with a number of other topics of the same category,
usurpers, historical cases of the kind while the man in the sweeper car or
you might as well call it in the sleeper car who in any case couldn’t possibly
hear because they were too far simply sat in his seat near the end of lower
Gardiner street
and looked after their lowbacked car
.
293
L. Que tipo de coisa ele ainda podia apresentar?
Se o Ulysses é um laboratório crucial para as teorias do romance, como parece ter
se tornado, então o episódio de Ítaca tem de ser um locus classicus para qualquer crítico
interessado nas tradições da ficção inglesa e européia. Aqui os extremos da arte de Joyce, e
da ficção em geral, encontram-se de forma radical: a tensão entre simbolismo e realismo,
aquilo que Arnold Goldman chamou de “paradoxo mito/fato”, ao episódio sua vida
essencial. Joyce certa vez disse a Frank Budgen que Ítaca era seu episódio favorito, o
patinho feio do livro, e suas freqüentes referências ao episódio em suas cartas revelam um
envolvimento pessoal e artístico poucas vezes igualado em seu trabalho nos outros capítulos.
Ele tinha uma aguda consciência de que Ítaca levava a termo sua arriscada política de
terra arrasada de constantemente alterar os estilos do romance e os métodos narrativos, de
modo que o progresso do livro é na verdade como o progresso de uma tempestade de areia,
com cada episódio deixando atrás de si um campo queimado. Ele sabia também que o
leitor que tivesse dominado o estilo inicial dos primeiros episódios, aquela sutil mistura de
monólogo interior e descrição distanciada derivada do Retrato do artista, gostaria mais dele
como o preferiria caminhante que ansiava pelo rochedo de Ítaca. (Litz, p.386)
Estamos chegando em casa.
No ritmo, no biorritmo do livro, estamos nos aproximando da cama. No paralelo
Homérico dominante, estamos chegando de fato a Ítaca, e a um outro leito que detém as
chaves de identidade, repouso e pertencimento.
Em nossa linha, em nossa viagem, atingimos também em Eumeu (ou consolidamos
em Eumeu o processo que nos trouxe a atingir) um ponto máximo, uma conclusão lógica e
incontornável, que não pode deixar de parecer inevitável, que não pode deixar de se
assemelhar, portanto, a um repouso e um relato de nostos, de volta para casa, como qualquer
idéia que repentinamente percebêssemos nos ter faltado.
Joyce nos deu a sua. Nos levou de novo para casa.
Mas o livro ainda tem mais dois episódios. E, por mais que isso estrague a surpresa e
que eu, assim, adiante conclusões, pondo-as à frente das evidências discutidas, o fato é que
evolução, mudança, passos significativos à frente nós veremos quando o sono vencer e
chegar a noite de Finnegans Wake.
Existem em xadrez dois momentos terríveis, ambos nomeados em alemão: quando
qualquer movimento possível piora a situação do jogador, quando ele preferiria passar o lance
e então poderia mesmo estar ganhando o jogo, diz-se que ele esem zugzwang; quando seu
relógio não lhe permite pensar com calma, e ele tem de jogar imediatamente para não perder
294
por tempo, ele está em zeitnot. Joyce, vimos, não é homem de se preocupar com a pressão do
tempo. Ele sabe o tempo que tem, e ele o faz durar o quanto queira. E sua posição
argumentativa (por assim dizer) em nossa discussão, parece ser exatamente o contrário do
zugzwang: ele estabeleceu seus pontos de forma tão sólida que, contando com tempo ainda,
lhe resta fazer pequenos movimentos de ajuste em suas peças, tornando ainda mais sólida
sua estrutura, reforçando sua posição.
Assim, em Ítaca ele vai nos oferecer uma deliciosa brincadeira, um prêmio aos
leitores que se atreveram a vencer o dia do Ulysses, na figura de dois (serão dois?) narradores,
de certa forma muito próximos de nossa idéia tradicional, que olham, como nós, leitores,
para aqueles personagens e aquelas ações como algo consumado, realizado e analisado post-
mortem com a frieza e a objetividade que, como vimos, seriam o sonho do autor realista.
Baseado nos catecismos que conheceu em sua infância, em um livro de questões
científicas ou na seção de cartas de uma revista de seu tempo (a discussão entre os pânditas
não acabou), Joyce nos oferece um inesquecível formato de pergunta e resposta encenado
por dois palhaços beckettianos, duas versões irlandesas de Bouvard e Pécuchet, que é agora
nosso dever anatomizar.
O capítulo se abre assim
What paralell courses did Bloom and Stephen follow returning?
Starting united both at normal walking pace from Beresford place they
followed in the order named Lower and Middle Gardiner streets and
Mountjoy square, west: then, at reduced pace, each bearing left, Gardiner’s
place by an inadvertence as far as the farther corner of Temple street: then, at
a reduced pace with interruptions of halt, bearing right, Temple street, north,
as far as Hardwicke place. Approaching, disparate, at relaxed walking pace
they crossed both the circus before George’s church diametrically, the chord
in any circle being less than the arc which it subtends. (1-10)
Eis.
A primeira questão que temos de nos propor, se queremos estabelecer o estatuto
verdadeiro dessa objetividade joyceana, que há de durar por 2330 linhas mantendo este
preciso formato preciso, é a da identidade desses personagens dotados de voz.
295
Não a poderemos resolver de fato com base em argumentos fornecidos pelo livro.
Não saberemos seus nomes. O que podemos investigar é um quem são de natureza muito
próxima à de um de onde vêm. E o primeiro ponto é determinarmos quanto sabem.
De saída fica claro que sabem ao menos tanto quanto nós, muito mais, por exemplo,
do que o cocheiro que fechou Eumeu e que, assim, fica como porteiro de sua possibilidade.
Eles conhecem os personagens como os conhecemos, parecem saber de onde vem e para
onde vão: a primeira pergunta presume estarem saindo juntos de algum lugar e voltando
(ambos) para um outro. E que se perceba que, mesmo na pergunta, começamos
descrevendo-os no plural. Pois se eles sabem o que sabemos (não havendo espaço para
perguntas como: qual seria a identidade das duas figuras de preto?), não podemos, desde a primeira
linha, imaginar que o intelocutor P de fato saiba assim tão menos que o interlocutor R.
Desde o início (o verbo voltar e o adjetivo paralelos) ele demonstra conhecer, se não toda, ao
menos parte da resposta que parece apenas incitar.
Eles trabalham juntos, conspiram, não para de fato informarem um ao outro, mas
para fazer com que um determinado conteúdo nos seja transmitido. Um simulacro de
narração que tem a precisa finalidade de gerar uma narrativa: ou seja: a convenção realista
mais simples (um homem contando uma estória a seus amigos, Ulisses narrando suas
desventuras aos feácios..).
Mais ainda, detenha sua bondosa atenção sobre as duas últimas linhas da resposta,
sobre as gloriosas inutilidade e redundância da informação geométrica, e me diga se não lhe
parece algo familiar essa voz.
Trata-se, afinal, de uma objetividade bastante fácil de ser desmascarada por um leitor
preparado pelo Ulysses. E Joyce não parece querer outra coisa, num momento em que ele vem
de demonstrar ter superado esses mesmos simulacros de objetividade.
Afinal, citando novamente Litz (ibid.)
A partir das Simplégades e das Sereias, a realidade que deve ser processada em arte é
tanto a ação humana imitada quanto o rico mundo artístico já criado nos episódios
anteriores e mais planos, A técnica tende cada vez mais a se tornar o tema, e quando
chegamos a Ítaca a forma do episódio é tanto substância quanto as réplicas de fato entre
Bloom e Stephen.
Estamos no mundo ainda da perfeita fusão de personagens e texto, de narrativa e
narrado, mas agora nos divertimos em brincar de imitar o que ultrapassamos.
296
Nosso interlocutor P, aquele que pergunta, aquele que, não sabe, o dono da pergunta
retórica, portanto, será capaz, em breve, de coisas como as seguintes:
Of what similar apparitions did Stephen think? (134)
ou
What had prevented him from completing a topical song (music by R.G.
Johnston) on the events of the past, or fixtures for the actual, years, entitled
If
Brian Boru could but come back and see old Dublin now
, commissioned by
Michael Gunn, lessee of the Gaiety Theatre, 46, 47, 48 South King street, and
to be introduced into the sixth scene, the valley of diamonds, of the second
edition (30 January 1983) of the grand annual Christmas pantomime
Sinbad
the Sailor
(produced by R Shelton 26 December 1892, written by Greenleaf
Whittier, scenery by George A. Jackson and Cecil Hicks, costumes by Mrs
and Miss Whelan under the personal supervision of Mrs Michael Gunn,
ballets by Jessie Noir, harlequinade by Thomas Otto) and sung by Nelly
Bouverist, principal girl? (417-27)
Se a primeira das intervenções é cínica quase na mesma medida ditada por aquele
adjetivo parallel logo na primeira linha (não podemos deixar de perceber que P está apenas
levantando a bola para R), a segunda delas é da esfera do descaramento. Como pode ele
ainda, depois de tamanha demonstração de conhecimento de causa, se atrever a simular
perguntar qualquer coisa sobre essa estória? Ele parece mesmo estar interessado a provar ao
próprio R seu estatuto convencional, o fato de que suas perguntas existem apenas para servir
ao interesse maior da narrativa, não para ele, que certamente não precisa de respostas.
Por outro lado, o homem das Respostas é capaz de lacunas curiosas, que nos podem
levar a apenas uma consideração, como em:
The reflection that, apart from the letter in question, his magnetic face, form
and address had been favourably received during the course of the preceding
day by a wife (Mrs Josephine Breen, born Josie Powell), a nurse, Miss Callan
(Christian name unknown), a maid, Gertrude (Gerty, family name unknown).
(1844-8)
onde a reflexão, por si própria, a auto-avaliação (rosto magnético) e mesmo o vocabulário
recendente a Eumeu (address no sentido de porte) nos levam a perceber claramente a sombra
de Bloom por trás da objetividade das respostas. Mas, ainda mais importante do que isso é o
que nos revelam as informações fornecidas sobre as três mulheres, todas elas absolutamente
coerentes com o que Bloom sabe a respeito delas, ele que conheceu Josie Powell solteira, que
297
foi apenas vizinho da enfermeira Callan em uma sociedade em que prenomes não se dão tão
baratos, e que apenas ouviu as amigas chamarem Gerty por seu apelido, de onde pôde
deduzir seu nome, mas o seu nome de família
150
.
Essa sobreposição de mundos e de recortes de mundo pode de fato se tornar
cumplicidade no momento em que (como seria de esperar) pudéssemos contar com a maior
objetividade.
Na linha 1455 P incita:
Compile the budget for 16 June 1904.
Ao que R responde com uma completa tabela que, listando 18 entradas na coluna
débitos (que incluem mesmo gorjetas e o dinheiro entregue como doação no enterro de
Dignam) e apenas 3 na coluna créditos (começando pelo dinheiro que lhe resta), chega à
perfeição de obter resultados idênticos. Tanto entraram como saíram de seus bolsos naquele
dia duas libras, dezenove shillings e três pence.
Mas ele mente. Eles mentem. Não há ali registro, por exemplo, da quantia entregue à
dona do prostíbulo como parte do processo de evacuação de Dedalus de sua casa.
Tudo dito, o matemático orçamento de Bloom tem a mesma objetividade, a mesma
frieza analítica que o relato que ele mesmo fará a Molly de seu dia, que conhecemos muito
bem, mas que veremos algo distorcido quando apresentado àquele específico público
ouvinte (mais uma cotovelada nas convenções da narrativa?)
151
.
What followed this silent action?
Somnolent invocation, less somnolent recognition, incipient excitation,
catechetical interrogation.
With what modifications did the narrator reply to this interrogation?
Negative: he omitted to mention the clandestine correspondence between
Martha Clifford and Henry Flower, the public altercation at, in and in the
150
O que nos leva a reafirmar o complô entre Bloom e o aranjador como meio mais seguro de avaliarmos a
primeira seção de Nausícaa. Enquanto que aqui o arranjador, como vimos, parece estar mais interessado em
expor uma fraude (a convenção realista) do que em colmatar as lacunas do conhecimento de Bloom.
151
Então, lacunas, evasivas, muitas. O próprio orçamento (a objetividade da objetividade) é distorcido, para eliminar a
soma deixada no prostíbulo. Pois embora “objetivo” seja o que ouçamos em geral dizer de Ítaca, objetivo é exatamente o que ele não
é. Ele é incompleto e apenas intermitentemente direto [...]. (Kenner, 1978, p.96)
298
vicinity of the licensed premises of Bernard Kiernan and Co, Limited, 8, 9,
and 10 Little Britain street, the erotic provocation and response thereto caused
by the exhibitionism of Gertrude (Gerty) surname unknown. Positive: he
included mention of a performance by Mrs Bandman Palmer of
Leah
at the
Gaiety Theatre, 46, 47, 48, 49 South King street, an invitation to supper at
Wynn’s (Murphy’s) Hotel, 35, 36 e 37 Lower Abbey street, a volume of
peccaminous pornographical tendency entituled
Sweets of Sin
, anonymous
author a gentleman of fashion, a temporary concussion caused by a falsely
calculated movement in the course of a postcenal gymnastic display, the
victim (since completely recovered) being Stephen Dedalus, of no fixed
occupation, an aeronautical feat executed by him (narrator) in the presence of
a witness, the professor and author aforesaid, with promptitude of decision
and gymnastic flexibility.
Was the narration otherwise unaltered by modifications?
Absolutely. (2247-78)
Eles conhecem os fatos, como nós. E o capazes de perceber acréscimos e
omissões de parte de Bloom. Ao mesmo tempo, eles parecem se juntar a ele ao pedir que,
com Molly, acreditemos que foram apenas esses os acréscimos e omissões. Fica ainda mais
sensacional a canalhíssima resposta da linha 2278, convictamente enunciada sem reticências,
em apenas uma, categórica, palavra, se lembramos que Bloom omite, e eles em sua lista de
omissões, toda a passagem referente ao tempo que ele dispendeu em um puteiro naquela
mesma noite, assim como justifica tortuosamente coisas que talvez nem precisasse justificar
(como a lesão de Dedalus) e menciona, como distração para ela e para nós, o livro que ela
havia solicitado (enganosamente listado como acréscimo fictício pelos interlocutores),
enquanto que omite (novamente sem que isso seja assinalado) seu esquecimento das
encomendas do boticário. Pois [...] apesar de sua prosa elaborada, o enunciador não é completamente
confiável e seu ponto de vista não é sempre claro. Ele é, afinal, uma projeção da mentalidade científica de
Bloom mais do que o espírito de pura e simples investigação. (Hayman, 1982, p.106)
Ou seja, aquele mesmo Bloom que vimos, cuidadosa e lentamente, tomando o lugar
que de início pensariamos ser de Dedalus como personagem principal e que seguiu
consolidando sua posição para chegar aonde homem nenhum de seu mundo (o mundo dos
homens fictos) jamais havia chegado, para atingir o ponto de absoluta fusão (e a ordem
hierárquica se torna tão dissolvida que, neste momento, de fato torna irrelevante a discussão
da possibilidade de uma determinação de parte a parte, de alguma, ainda, subordinação) com
os instrumentos da narrativa, agora parece, com ela (a narrativa) tentar nos fazer rir dos
299
meios que, anteriormente, puderam ser empregados por essas mesmas narrativas com o
pretexto de atingir um grau de verdade, de realismo, que agora vemos definitivamente
suplantado.
É também reconfortante (para dizer pouco) se agora podemos pensar que a obsessão
do Joyce crepuscular pelo pastiche (que atingiu seu zênite no limite da impossibilidade do
Gado do sol) fez parte desse mesmo projeto concluído agora com a demonstração de força
(quase desnecessária) que, assim, seria Ítaca.
É A apobibliose do divino Bloom.
O momento em que ele se transforma em livro, e em que o Livro nos mais uma
chance de verificarmos a extensão desse sucesso
152
.
Que, em alguma medida preciso que reconheçamos algo que vimos assumindo
tácitos há algumas páginas, páginas em que seu nome pouco foi lembrado, e lembrado pouco
com destaque) se às custas de Stephen Dedalus. O que parece natural se pensarmos que
Dedalus fornece, neste livro, a ligação direta com a ficção anterior de Joyce, que não poderia
deixar de se ver envolvida nesse processo que, tão claramente, estabelece cada episódio do
Ulysses (ele mesmo, portanto, agora um episódio em uma trama maior) como um degrau, um
passo de um caminho. Assim, se em Finnegans Wake ele terá de desfazer do Ulysses (seu usilessly
unreadable blue book of Eccles), é natural que o Ulysses represente a superação do Retrato em seu
personagem principal.
Uma evidência muito importante neste sentido, destinada a passar despercebida por
gerações de críticos e leitores, foi desencavada pelo jardineiro tranqüilo Anthony Burgess,
quando percebe que, na transcrição da canção de Dedalus (803-28)
153
um problema que
Bloom e seus asseclas não teriam, como as tais gerações de leitores críticos, sido capazes de
perceber.
Burgess comenta apenas em uma nota, em uma dúzia de palavras, um problema que
considera marginal. Mas, para nós, aqui, talvez ele valha um pouco mais.
152
Fica interessante levantar aqui a possibilidade (talvez apenas mesmo em nota) de que, como pudemos
argumentar que apenas o som da palavra eye possa ter sugerido toda uma forma ao Ciclope, aqui o formato do
episódio possa ter nascido precisamente desse interrogatório final, em que Molly (como vimos ela mesma
participante em grande medida da formação da consciência de Bloom) pergunta coisas que talvez já saiba, ou
de que desconfia, como ela mesma deixará claro, e suscita respostas de um Bloom que, culpado, busca
compensar em objetividade (fornecer os números das casas é o recurso que o arranjador empresta ao texto) o
que sonega em veracidade. Objetividade como farsa. Eis Ítaca.
153
Não poderia faltar uma partitura ao onicompreensivo Ulysses (como não falta uma ao Finnegans Wake).
300
Pois o fato é que Stephen, sabemos pelo menos desde 16.1820, é um tenor, voz
tradicionalmente descrita como aquela que domina o intervalo entre -3 e Dó-5. E a
canção, transcrita inclusive em clave de fá, atinge o abaixo do Dó-2 (Lá-1, portanto), uma
nota grave que nem mesmo um barítono consegue atingir.
Stephen, em poucas palavras, jamais conseguiria cantar o que está escrito naquela
partitura.
A pergunta de Burgess é por quê? (1965, p171).
Joyce era plenamente versado em música, ao menos ao ponto de saber (sendo ele
mesmo um tenor) que tal arranjo era impossível. Podemos descartar uma gralha de autor.
Mas Bloom, P e R não o são. E podem muito bem ter cometido este engano, novamente às
custas de Dedalus, aqui desprovido dos mesmos meios de acesso entregues a Bloom.
O que Burgess (repito, seu comentário é apenas uma nota de passagem) não comenta
é que, sendo a música o efetivo sistema de valores puros que Saussure adoraria ter descrito,
as notas na partitura não têm qualquer valor absoluto antes que se lhes anteponha uma clave,
uma chave de leitura. E se trocarmos (contando que o erro do Livro tenha sido na direção do
pernosticismo, de buscar o menos óbvio) a clave de que aparece na página pela mais
plebéia e conhecida clave de Sol, instaneamente teremos uma transcrição perfeitamente
adequada a um tenor competente, que não desce além do Fá-3 e atinge, em quatro ocasiões,
o famoso Dó-5, o dó de peito dos sonhos dos solistas de ópera.
Neste episódio nossos dois heróis estão, por razões diferentes e com diferentes
(muito diferentes) conseqüências para suas noites e suas vidas, sem chave. Bloom porque
esqueceu a sua no bolso da calça que usou no dia anterior e Dedalus porque teve de entregá-
la a Mulligan na praia.
O fato, contudo, de que Dedalus (o músico dentre eles) se verifique também sem
clave
154
mostra o quanto está em Bloom o foco, o enfoque e o privilégio. Mostra, afinal, para
que lado pende o pêndulo do Ulysses.
*
154
Não posso pensar sequer por um minuto que a ligação etimológica entre clave e chave (ambas provindas do
latim clavis) seja forçada e imposta à força a Joyce. Ele certamente conheceria esse fato, mesmo se quiséssemos
esquecer que, em inglês, as duas palavras portuguesas são traduzidas pela mesma, key.
301
Desfeito o problema da objetividade, resta pensarmos, mais uma vez, nas razões do
Livro. No porquê.
E ele me parece dicotômico.
De um lado, Ítaca, visto como pretendi mostrá-lo nessas poucas (a roupa está me
apertando..) ginas, se mostra como a consumação de um escárnio, do sorriso do vencedor
diante de um campo não de fato arrasado, mas sim coberto pelo espólio de um numeroso
exército vencido de forma convincente. Bloom, depois de encampar o narrador de forma
gradativa e incontornável, depois de se transformar, especialmente em Eumeu, mas talvez
também em Nausícaa em um pastiche de claros contornos dos narradores que o
antecederam, depois de contar com a caricatura do narrador do Ciclope em seu processo de
minar essa persona tradicional, agora se encontra, para usar uma frase do próprio Ulysses
(apenas uma vez sem indicação de origem... os fins agora são diferentes: ela não é evidência,
é o discurso do Livro mastigado por mim, feito palavra minha..) forte a ponto de se ver fraco. Ele
não precisa mais do exagero do pastiche para desfazer da narrativa pré-Ulysses.
Aceitando suas regras mais claras e declaradas, ele mesmo assim consegue subverter
tais convenções em um texto que, em momento algum, conseguimos agora levar a rio,
convertidos que fomos graças ao lento e eficaz proselitismo do Livro.
A literatura anterior ao Ulysses faz agora inexoravelmente parte, como os episódios
anteriores, da terra que o Livro abandona ao passar para o episódio seguinte. A objetividade,
afinal, de que tão pouco faz este episódio, era bandeira de destaque do realismo, de qualquer
realismo. E ao rir da possibilidade da narrativa objetiva, o Livro faz o mesmo que fez ao rir da
possibilidade da comunicação interpessoal em Nausícaa e da comunição escrita no Gado do
Sol. Reafirma a literatura, acima de suas convenções e acima do mundo real.
Por outro lado, a distância absurda entre a pretensa objetividade do estilo e o
conteúdo do episódio (trata-se, afinal, conforme mais uma vez prefigurado pela brilhante
conclusão de Eumeu do momento mais tocante do livro, do momento em que as duas
demandas centrais (o pai em busca do filho morto e o filho em busca de um pai que lhe faça
sentido) se tocam e se complementam) se presta a gerar um efeito paradoxalmente
potencializado, e nos fazer ver com ainda mais profundidade o efeito das ações ali narradas
sobre aquelas duas pessoas.
Esse procedimento, além de prefigurado, por exemplo em O gado do sol, no Ciclope e
em Nausícaa, se harmoniza bem com a tendência do Livro de evitar o banal e o pisoteado, de
302
entregar seus efeitos mais puros, duros e violentos sob formas insuspeitas, banalizando-os e
potencializando-os em um mesmo golpe.
Será assim, por exemplo, que a união de Bloom e Dedalus se verá simbolizada, acima
de tudo, na cena em que eles urinam juntos olhando para o céu. As estrelas, a escatologia e a
vida.
Hayman (1982, p.103), sempre ele, pode nos dizer não pouco sobre a possibilidade
desse efeito. Deixo que ele conclua essa análise, que, em certo sentido, é a conclusão do
Ulysses.
Em Ítaca, o arranjador, que nos provocou durante toda a extensão de Eumeu, veste a
máscara da perversa objetividade. Como a “narrativa (velha)”, o “catecismo
(impessoal)” [i.e: Eumeu e Ítaca, segundo os nomes das técnicas que Joyce lhes
atribui nos dois esquemas que deu a público] parece precisamente inadequado para
transmitir uma situação humana e recompensar o leitor que empatizou com a situação dos
personagens. E no entanto em ambos os capítulos o estilo permite que Joyce transmita a
resolução inevitável de um relacionamento impossível sem recorrer a uma ironia brutal ou a
um sentimentalismo barato. [...]
A técnica é especialmente eficiente em reduzir o pensamento ao nível de reflexo e, nesse
sentido, ambos os protagonistas se vêem comicamente despidos de suas máscaras
intelectuais e tornados simultaneamente vulneráveis e humanos em um nível em que Molly,
por mais escasso que seja seu instinto maternal, pode se aproximar deles e com eles se
identificar.
303
M. Rio
Estamos portanto preparados. O Ulysses acabou.
Como Boyle (p.411) lembra, se voltamos a considerar o livro como uma sonata, trata-
se de uma peça dotada de uma coda, uma livre recapitulação de seus temas em outro tom,
reelaborados.
O monólogo de Molly Bloom é certamente o mais conhecido de todos os trechos do
Ulysses, é mesmo muito mais lido que o livro. É ele o responsável principal pela idéia algo
estanque de que a inovação formal (especialmente no campo que nos diz respeito neste
trabalho) se centra em torno do monólogo interior ou fluxo de consciência, no Ulysses. Enquanto
que, como espero que tenhamos visto, o monólogo interior parece ser parte de um quadro
muito mais amplo neste livro e poderia, de fato (como de fato o foi), ser utilizado
intensamente por outros autores que não contassem com o mesmo projeto, que buscassem
ou apenas atingissem fins diversos.
Trata-se de uma ferramenta. Apta a fabricar coisas bastante diversificadas.
O que não impede que este monólogo final seja de fato uma peça das mais
interessantes. E tremendamente iluminadora (ainda que especularmente, por mistérios) de
todo o processo de que estávamos tentando falar. Como lembra Hayman (1982, p.104), se
referindo às ões dos personagens, no caso da forma da citação e da incorporação do
discurso alheio, aqui também [n]o meio da noite vemos as coisas claramente pela primeira vez, como se
do outro lado da experiência, à luz da lua.
Depois de um momento de estabelecimento de premissas, de um necessário prelúdio
que, além de mostrar suas armas, servisse a dar tempo de exposição a seus protagonistas para
que se fortificassem e ganhassem pernas grandes o suficiente para lhes garantir ser vistos em
qualquer multidão (etapa que consome basicamente os seis primeiros episódios, necessários
para que o processo se dê com Dedalus e depois se repita, muito mais intenso, com Bloom);
depois de uma seção de desenvolvimento, em que um novo personagem nos é apresentado, em
que fica claro que a estrutura, o ferramental narrativo também terá papel definitivo nesse
novo regime que se está instaurando (episódios sete a dez, o nascimento do arranjador e seu
convívio com os dois personagens); depois de uma pequena transição em que fica claro que
a partir de agora o ludus, a invenção, a liberdade marcará a atuação possível dessa nova voz
muda, agora trabalhando direta e despudoradamente sobre os corpos incorruptíveis das
vozes muito bem estabelecidas de Stoom e Blephen (nossa passagem entre novos monstros, as
304
sereias e o ciclope: episódios onze e doze); depois de uma seção de confirmação, em que o
processo é levado a termo e gradualmente posto de novo em terra, com os conflitos e
disputas resolvidos e com cada uma das vozes envolvidas tão fortalecidas que se podem
dar o luxo de desaparecer e, de seu distanciamento confortável, observar o que se dava em
um mundo que acabou (ainda ontem) com olho cínico e derrisório (treze a dezessete, onde
dezessete funciona ele mesmo como uma coda. Pois, como lembra Litz (p386) tanto a ação
quando o desenvolvimento estilístico de Ulysses atingem um clímax em Ítaca, que Joyce [Cartas]
considerava ser de fato o fim, na medida em que Penélope o tem começo, meio ou fim.), nos
vemos finalmente dispostos a abandonar o processo concluído e a retomar a crônica desta
batalha de um novo ponto de vista. Penélope não contribui para a seqüência de estilos que é um de
nossos principais interesses no Ulysses (Hayman, 1982 p.103).
Molly Bloom foi a ausência mais presente em todo o Livro. Dela quase nada
ouvimos. E nos vimos constrangidos a confirmar ter acreditado ouvir de fato coisas que
apenas conhecemos por intermédio da ubíqua voz de se marido. Dela pouco ou nada vimos,
apenas um braço, inidentificado, saindo de uma janela e arremessando uma esmola. Era
necessário que surgisse agora como contraponto.
Como lembra Hayman (1982, p.103) Penélope é de fato a indispensável contraparte ao
passaporte de Bloom para a eternidade, como Joyce certa vez identificou. Ela é necessária.
Vermos Bloom e revermos seu passado através de outros olhos é rico e é belo e é
bom. Sabermos Molly diretamente, como o sucesso do episódio não cansa de comprovar,
mostrou-se quase viciante.
O quase ininterrupto solilóquio de Molly (costuma-se esquecer o fato de que ele não
é de todo inconsútil, estando claramente dividido em oito frases, oito fragmentos que
reproduzem, em microcosmo, a estrutura hexadecimada do livro), com seus saltos de
assunto em assunto, sua ausência de pontuação e de diacríticos como o apóstrofe, sua
absoluta falta de clareza anafórica (quase todos os he e him do texto podem ter duas ou
mais referências possíveis) contribuem para que, paradoxalmente, vejamos gerado um retrato
infinitamente mais completo e mais complexo do que o que aparentemente poderia ter sido
o fruto de processos mais tradicionais e analíticos. Veja-se o que dele pensa Burgess (1965,
p.174)
305
A nudez é total, e na versão francesa de Ulysses Molly chega mesmo a tirar seus
acentos, como se fossem grampos de cabelo
155
. É o tour de force final do livro, e em
muitos sentidos o mais impressionante.
E contudo ele é menos uma demonstração de engenho que uma revelação de percepção.
Joyce ousou entrar via seu pensamento na mente de uma mulher: teria sido perigoso dar
forma, usar as astúcias do artista: é mais seguro deixar abertas as eclusas de escoamento e
deixar que a corrente escura e túrgida siga seu caminho; caso contrário o feitiço pode se
quebrar. E então ouvimos uma incrível torrente de reminiscência, grande parte dela erótica,
de onde devemos retirar um retrato de Leopold Bloom por sua esposa.
A postura que o arranjador parece, portanto, ter adotado, se aproxima de fato da do
cavalo do espiritismo, do médium que se abre como canal para a expressão imediada de uma
voz que não é a sua. Quase tudo na ficção de Joyce, das experiências infantis de Dublinenses,
passando pelos anos escolares do Retrato e chegando ao artista pretensioso e ao pai de família
do Ulysses e ao complicado psiquismo de uma família que também inclui um escritor em
Finnegans Wake, de alguma forma (por vezes mesmo nos mais miúdos detalhes) provém de
sua própria experiência, é reelaborado de algo vivido ou sentido por ele. Para Molly Bloom
ele teve de fato de se abrir (como para Anna Livia no final do FW)
156
. E sua conclusão,
baseada na possibilidade de permitir o fluxo desimpedido de uma consciência através da sua,
diretamente para a página, sem qualquer intermediação estrutural, sem narradores ou
diálogos, apenas deixando-a falar, parece ter sido, como, repito, a recepção do trecho pode
bem demonstrar, das mais acertadas.
Que fique bem claro: Molly é filha de Joyce, criada unicamente e unicamente
mediada por seu engenho. Que não se leve a sério demais a metáfora da possessão espiritual.
Falamos aqui apenas de uma forma de transcrição. Lembramos apenas, como recorda o
jesuíta Boyle (p.409), que o chaosmos
157
, pelo menos como a tradição cristã o tem visto, Deus, análogo
do verdadeiro artista literário, ama sua criatura humana o bastante para fazê-la, misteriosamente, livre.
Embora Penélope seja o quinto maior episódio do Ulysses, nada contorna o fato de que
este Livro empregou 23931 linhas para conseguir conceder a Bloom, para conseguir
conceber em Bloom essa liberdade final, e que agora ele precisa, se deseja efetivamente gerar
155
Abro uma pequena exceção novamente para falar no corpo do trabalho da tradução que o acompanha,
lembrando que a decisão da equipe responsável pela primeira tradução francesa (acompanhada de alguma
forma pelo próprio Joyce) me serviu como apoio na difícil decisão de me livrar de todos os diacríticos
portugueses para a tradução de Penélope.
156
E as especulações sobre o uso, ou não, das cartas que ele recebia de sua esposa com fonte primária inclusive
para a falta de pontuação do texto de Molly me parecem não caber neste texto.
157
Conhecida cunhagem joyceana no FW
306
aquela contraparte de que falava Hayman, realizar processo semelhante em menos de um
catorze avos daquele espaço. Daí seu imediatismo, em todos os sentidos. Daí o jorro de
Molly. Daí
Yes because he never did a thing like that before as ask to get his
breakfast in bed with a couple of eggs since the City Arms hotel when he used
to be pretending to be laid up with a sick voice doing his highness to make
himself interesting for that old faggot Mrs Riordan that he thought he had a
great leg of and she never left us a farthing all for masses for herself and her
soul greatest miser ever was actually afraid to lay out d for her methylated
spirit telling me all her ailments she had too much old chat in her about
politics and earthquakes and the end of the world let us have a bit of fun first
God help the world if all the women were her sort down on bathingsuits
and lownecks of course nobody wanted her to wear them I suppose she was
pious because no man would look at her twice I hope Ill never be like her (1-
12)
.
A mão do arranjador, repito, é claro está clara por toda parte. Apenas para
mencionar possibilidades, se viu mais de um hexâmetro homérico escondido em sua
prosa, já se encontraram correspondências e simetrias matemáticas entre o número de
palavras afirmativas e negativas em determinados trechos, se buscaram simbologias
numéricas que vão muito além da matemática e contemplam também aspectos mais arcanos
como a mesma aparência dos números (especialmente o número oito), se esclareceram
simbologias as mais intricadas e completas, se desenterraram catadupas de eventos todos
eles relacionados a outros momentos do dia de Bloom e especialmente, muito especialmente,
ainda se escreve muito sobre o(s) amante(s) de Molly, sem que se possa saber exatamente
qualquer verdade. E é assim que deve ser. Se fôssemos capazes de arrancar o coração de seu mistério, ela
ainda desfiaria música das mais eloqüentes, não há dúvida, mas não seria uma reflexão adequada de um
complexo animal humano. (Boyle: p.407)
E é assim que devemos ver que, precisamente como para Bloom
158
, é apenas como
criaturas mediadas que esses personagens encontram sua imediação como pessoas. É como
reflexões, em mais de um sentido, que eles podem ser adequados animais humanos complexos.
158
Insisto neste aspecto apenas porque sinto o risco de que tudo o que se diz aqui, e que se pretende um
comentário estritamente literário, sobre uma possibilidade estritamente literária, na verdade, uma possibilidade
ultraliterária no sentido em que leva a seus extremos absolutos a possibilidade da literatura (überliteratur se
quisermos, mas nunca antiliteratur) possa ser lido em qualquer quadro estranho a esse.
307
Um outro aspecto interessante é que, se vimos que em Bloom a independência pôde
também assumir ares de comando (o personagem soube também tomar posse de
instrumentos narrativos e se pôr ele mesmo como mestre de vozes e discursos), com Molly,
inevitavelmente, um tal processo tinha de se repetir. A plena personalidade, a toda pessoidade
que o Livro parece buscar para esses personagens, não pode excluir o trato de cada um deles
com a palavra do outro, com as palavras dos outros, e com, também, a criação de
personagens e ficções, o relato, a narrativa, a literatura.
Joyce parece afirmar que ser humano é especialmente fazer literatura.
Se pudemos entrever em Nausícaa um comentário na direção de que a única
possibilidade de efetiva comunicação seja a ficção, e se desejamos conceber como
fundamentalmente humana esta precisa possibilidade, não como fugir à conclusão do
silogismo.
Teologicamente, lembraria Boyle se o recrutássemos, ser humano é essencial e
paradoxalmente ser livre para não escolher Deus, que nos fez humanos. Literariamente, os
personagens do Ulysses atingem o estatuto de pessoas precisamente na medida em que
podem escolher se tornar superliterários, convertendo-se em instrumentos de literatura,
renegando serem representações realistas de seres humanos.
Nenhum dos procedimentos que analisamos até aqui conseguiu se livrar do fantasma
da voz de Bloom, desde que ele começou a fritar seus rins coisa de dezoito horas. Molly,
muito obviamente, não seria diferente. Veja só.
yes he came somewhere Im sure by his appetite anyway love its not or hed be
off his feet thinking of her so either it was one of those night women if it was
down there he was really and the hotel story he made up a pack of lies to hide
it planning it Hynes kept me who did I meet ah yes I met do you remember
Menton and who else who let me see that big babby face I saw him and he
not long married flirting with a young girl at Pooles Myriorama (34-40)
Molly é humana, demasiadamente humana, e não podemos esperar dela o mesmo
tipo de munificência discursiva, a mesma riqueza de procedimentos e a mesma generosidade
contemplando a voz alheia que pudemos buscar no Livro, quando o arranjador servia para
isso. O que ela consegue, contrariada e ofendida por estar sendo acordada no meio da
madrugada por seu marido que definitivamente lhe mente, por seu marido que se recusa, a
seu ver, a estar em seu papel de corno consentido, e inventa de lhe aparecer com segredos
308
possivelmente sexuais, o que ela consegue é apenas reproduzir sua fala em um sarcástico
discurso direto sobretipificado em que se podem quase ler os trejeitos e as caras de
ridicularização que pode, mesmo silenciosa, estar fazendo.
Ela não é Joyce, e isso fica claro em suas óbvias escorregadelas gramaticais (as ask to
get) e, também, na recusa de certas marcas estilísticas que, por unicamente gráficas,
pertencem a quase ninguém mais que não o autor. Por existirem no livro como página.
(Penso aqui especialmente no hábito que, a certa altura, praticamente deixamos de perceber,
que tem este Livro de abolir hífens e espaços entre os compostos. Agora podemos
claramente sentir que em nenhum outro momento desta narrativa, em nenhuma outra folha
deste códice encontraríamos night women escrito como duas palavras separadas.)
Molly pode, Molly deve cometer pequenos crimes sintáticos, morfológicos e
ortográficos (mesmo ortográficos), mas atribuir-lhe um cacoete autoral que desvia da norma
não pelo lado da ignorância de seus estatutos mas por voluntária confrontação de
incoerências ou por mera volição estética (em ambos os casos procedimentos típicos da
consciência artística criadora) iria contra o interesse do processo de humanização dessa voz
específica.
Depois da miríade de instâncias que precisamos invocar (mesmo que para nos passar
delas em momentos posteriores) a fim de desembaralhar as complicadas relações
hierárquicas ou não do Ulysses, aqui, pela natureza mesma da técnica escolhida, do
procedimento intentado, temos a aguda sensação de encontrarmos apenas James Augustine
Aloysius Joyce e Marion Bloom (née Tweedy) no quarto formado por essas páginas mais que
pelas paredes do número 7 da rua Eccles. E entre eles pairando, como terceira mística pessoa
da trindade, essa emanação que surge mesmo deles, e que é o arranjador.
O que a pequena evidência citada acima parece mostrar é que se de fato todo o
instrumental da narrativa foi abolido e, ou, entregue a Molly Bloom por mais de mil e
seiscentas linhas, o arranjador é única presença autoral que podemos verificar e, se
quisermos ler (e talvez possamos) o monólogo de Molly como demonstração de pura
espontaneidade, nem mesmo o arranjador (apesar das evidências em contrário já discutidas:
cada leitura pode ser uma) tem grande papel a desempenhar. Resta o escriba.
Num paradoxo que a leitura do Finnegans Wake fará muito por esclarecer, o episódio
que em certos sentidos pode parecer o menos escrito de todo o Ulysses é exatamente aquele
em que sentimos mais aguda a presença de Joyce como dado incontornável.
309
Et pour cause, diria o espírito deste trabalho, que até aqui pareceu mesmo advogar a
literatura como possibilidade de apagamento do autor em favor de suas criaturas.
*
Uma última consideração, neste capítulo que ele mesmo acabou se transformando
em uma coda reflexiva (Continua me parecendo impossível escrever pausadamente sobre
Molly e sua fala. Continua me parecendo que a única análise que ela merece é mais literatura,
menos análise.) sobre os usos e abusos da palavra alheia.
Lembre que Molly já abre sua fala estranhando o pedido de Bloom: café da manhã na
cama, com dois ovos. Boyle, entre outros, gasta algo de seu tempo comentando o que este
pedido de Bloom, e o fato de que mais adiante Molly decide atender sua solicitação, pode
representar para o futuro do casal.
Vejamos no entanto o trecho final do episódio anterior, único momento em que tal
pedido (a não ser que feito em off; não registrado pela narrativa) poderia ter acontecido.
In what directions did listener and narrator lie?
Listener, S.E. by E.: Narrator, N.W. by W.: on the 53
rd
parallel of latitude, N.,
and 6
th
meridian of longitude, W.: at an angle of 45o to the terrestrial equator.
In what state of rest or motion?
At rest relatively to themselves and to each other. In motion being each and
both carried westward, forward and rereward respectively, by the proper
perpetual motion of the earth through everchanging tracks of neverchanging
space.
In what posture?
Listener: reclined semilaterally, left, left hand under head, right leg extended
in a straight line and resting on left leg, flexed, in the attitude of Gea-Tellus,
fulfilled, recumbent, big with seed. Narrator: reclined laterally, left, with right
and left legs flexed, the indexfinger and thumb of the right hand resting on
the bridge of the nose, in the attitude depicted in a snapshot photograph
made by Percy Apjohn, the childman weary, the manchild in the womb.
Womb? Weary?
310
He rests. He has traveled.
With?
Sinbad the Sailor and Tinbad the Tailor and Jinbad the Jailer and Whinbad
the Whaler and Ninbad the Nailer and Finbad the Failer and Binbad the
Bailer and Pinbad the Pailer and Minbad the Mailer and Hinbad the Hailer
and Rinbad the Railer and Dinbad the Kailer nd Vinbad the Quailer and
Linbad the Yailer and Xinbad the Phthailer.
When?
Going to dark bed there was a square round Sinbad the Sailor roc’s auk’s egg
in the night of the bed of all the auks of the rocs of Darkinbad the
Brightdayler.
Where?
. (2302-32)
Do ponto de vista da análise de Ítaca, que acabamos de construir, tal conclusão ilustra
maravilhosamente a possibilidade de que P e R não sejam mais que facetas de Bloom. Bloom
cai no sono, e suas vozes o acompanham, primeiro na falta de sentido direto, e depois na
pura inconseqüência de suas perguntas e respostas.
O estranhamento começa perfeitamente legítimo. P estranha as menções feitas a
duas palavras que parecem dissonantes com o contexto imediato, ao que recebe a resposta
(onde quase ouvimos o sussurro) que o informa que Bloom dorme. Ele, no entanto, algo
intransigente, segue perguntando: viajou (dorme?) com quem? E a resposta seguinte já é toda
ela emitida da terra brumosa que antecede o sono propriamente dito. R adormece com seu
criador.
Mas a coisa não se detém por , pois, como prova de que P não se encontra nada
mais lúcido que R e de que os dois estão basicamente fazendo parte
159
, mais do que nos
159
Aqui cabe uma importante digressão, baseada em um trecho do texto publicado por Samuel Beckett (p.14)
como parte da coletânea encomendada pelo próprio Joyce para tentar valorizar a recepção crítica do Finnegans
Wake ainda antes da publicação do livro em formato de livro. Reagindo aos comentários negativos que
negavam o texto de Joyce, recusando-se a sequer tentar ler um texto que nem mesmo era escrito em inglês, ele
escreve: Vocês reclamam que isto não esteja escrito em inglês. Isto sequer está escrito. Isto não é para ser lido: ou melhor, não é
para ser apenas lido, é para ser visto e ouvido. Seu texto não é sobre alguma coisa: ele é aquela coisa. Tal frase pode muito
bem ser o resumo do que busco achar no Ulysses um texto que não reproduz outras vozes, mas que se
transforma em outras vozes. Agora, se Bloom adormece, o texto não nos dirá (e estamos no episódio em que a
objetividade deveria reinar soberana!) que ele cai no sono. O Livro adormece com ele.
311
informando, do sonho incipiente e confuso de Bloom, ele não estranha a resposta e continua
com as perguntas mais pretensamente óbvias e claras. Até que não haja mais resposta. E que
o ponto em fonte extra-grande que Joyce fez questão de pedir aos tipógafos encerre de vez o
diálogo: não há voz a sós: sem Bloom.
Molly, no entanto, que como vimos pertence e inicia um outro processo, está agora
mais acordada a atenta do que em qualquer outro momento do livro. Ou julga estar. E é
provavelmente a partir dos fragmentos de frases, relativas todas elas a um sonho das mil e
uma noites, que consegue discernir na língua embolada do sonolento Bloom que ela
desenterra, por conta própria (ela, como Thersites, apesar de estar em um texto cabalmente
vanguardístico, é um exemplo muito mais acabado, eticamente, do narrador pico da literatura
mais chã do que jamais poderiam sonhar ser os dois interlocutores do objetivo Ítaca) todo um
significado e, a partir dele, constrói toda uma estória, à qual reage e que a modifica, sem de
fato ter existido.
Quando, por fim, Molly decide que talvez afinal valha a pena fazer essa sua vontade
(sem que ela, nem nós, possamos imaginar o tamanho do susto de Bloom na manhã
seguinte, ele que parece ter sempre servido o café), numa perfeita ilustração do poder da
apropriação da palavra, da diferença do que fez o livro todo e do que ela agora faz, como diz
com perfeição Hugh Kenner (1978, p.87)
Incipit, possivelmente, vita nuova, fundada em um resmungo mal entendido.
312
INTERVALO
(Estamos maduros para nosso intercâmbio acadêmico na Rússia? Não sei. Sei que vamos
tentar. E que a primeira coisa que me parece necessária aqui é uma explicação da dimensão
dessa primeira parte do trabalho, necessariamente adernado, portanto. Ora, estamos falando
de um livro de mais de duzentas e trinta e cinco mil palavras, na tradução que acompanha
este texto. Além de tudo, trata-se de um livro que, espero esteja muito, muito claro, não pára
quieto, inventa novidade o tempo todo. Mais ainda, é um livro sobre o qual ainda muito
pouco se escreveu no Brasil. Tudo isso somado, perdão peço e tudo o mais, mas a extensão
dessa análise me parece justificada. De resto, é preciso pensarmos ao menos um pouquinho
sobre o que estamos levando daqui para a comparação com Bakhtin.
A idéia de que este romance é polimórfico, protéico e versátil em seus recursos.
A idéia de que o ponto de que ele parte é bastante interessante e complexo no que se
refere a possibilidades de representação do discurso alheio. Sua base de lançamentos já
trabalha com um uso refinadíssimo de todas as possibilidades reconhecidas de citação
de discurso, todas elas levadas a um radical extremo de fusão e permeabilidade, de
modo a estabelecer muito claramente uma hierarquia de personagens e a questionar de
forma inaudita uma hierarquia autor-personagens.
A idéia de que é necessário, para dar conta dessa nova relação de forças, presente no Ulysses a
instituição de uma nova categoria, a nomeação de uma nova função literária, o
arranjador, que se encarrega precisamente de possibilitar os dois processos descritos:
daí nossa terminologia agora envolver personagens (dotados certamente de
potencialidades distintas dos personagens anteriores e hierarquizados em seu acesso a
essas potencialidades, mas essencialmente personagens), narrador (que vimos por bem
cindir, de acordo com Kenner, em contador, destinado a dar conta dos mínimos afazeres
domésticos da narrativa, e narrador, propriamente dito, figura que dista do narrador
tradicional tanto quanto distam os personagens deste livro de seus antecessores, ainda
que em direção oposta; figura em tudo e por tudo múltipla, variável, permeável a
influências de toda espécie que podem provir desses personagens mas que,
posteriormente, virão especialmente do) arranjador (entidade híbrida, o mais próximo
que a função literária pode chegar de se tornar personagem e vice-versa, entidade que
emana do livro e todos seu constituintes, inclusive os personagens, mas que, ao
313
contrário do autor implícito de outras teorias, como se dirige de novo ao livro e não ao
autor; simultâneo representante e negador da presença autoral no texto; maestro que
pode, além de recortar e editar o que vemos, abrir e fechar torneiras entre os
compartimentos das vozes e, mais ainda, determinar de que grau será a comunição
entre cada um dos níveis em cada um dos momentos; figura que, potencialmente, pode
mesmo assumir para si a responsabilidade de colorir e criar os narradores, de início da
alçada dos personagens.), autor implícito (a imagem do autor a quem podemos ousar
imputar intenções e vieses, preferentemente chamada, durante todo o trabalho, por
uma idiossincrasia que não deixa de revelar a distorção de valores que a presença do
arranjador acarreta, de Livro). E James Joyce.
A idéia de que, depois de levar ao extremo tanto seu ponto de partida quanto o novo
estamento nascido de suas páginas, a narrativa pode se pôr a desdenhar, a fazer pouco
da mesma tradição que a gerou, e que pretendia, ela mesma, ter atingido pontos e
estabilidades que, depois do processo aqui encenado, se verificam ou quiméricos ou
pretensiosamente superestimados: daí as paródias, seja em micro escala –caso dos
pastiches eventuais–, seja em escala maior caso de toda a concepção da narrativa
delegada do Ciclope, da objetividade realista de Eumeu e de Ítaca e da primeira pessoa de
Penélope.
A idéia de que um tal processo, que se assume como literatura e que loa a literatura muito
mais que o literato –conquanto seja necessariamente uma reafirmação incontornável da
capacidade deste literato em particular– é essencialmente uma celebração definitiva das
potencialidades mais centrais da própria literatura, mesmo que isso custe questionar o
que a mesma literatura via como uma tradição contínua a levou ao ponto em que se
encontrava anteriormente ao Ulysses.
A idéia de que tais coisas terão agora de se ver esclarecidas, questionadas ou derrubadas pelo
confronto com as idéias de um teórico que, mais que qualquer outro, se interessou por
todos os fenômenos de interferência de vozes.
Tenho dito.)
314
BAKHTIN
315
i. O ano não começa
Se vamos nos deter, agora (eu e a sua atenção), sobre as possibilidades de
encenarmos aquele diálogo com que acenei na introdução, se vou agora buscar encontrar
em Bakhtin os elementos que poderiam tornar o óbvia a relevância de Joyce para o
trabalho do autor russo, ao mesmo tempo em que tento vislumbrar as razões por que essa
relevância parece ter passado despercebida, ou ter sido menosprezada, precisamente pelo
próprio Bakhtin, tenho de começar de algum lugar.
Em primeiro lugar (mesmo em se tratando agora do capítulo que deveria ser
dedicado ao que de não-Joyce este trabalho verá) acho que pode ser útil reafirmar um
pressuposto estabelecido desde o início desta leitura (e lá se vai tanto tempo) e que talvez
não seja assim tão banal e, especialmente, tão recorrente assim na crítica literária: a idéia de
que tentamos, até aqui, extrair de Joyce uma teoria do romance, por mais que esmiuçá-la não
esteja em nossos planos mais diretos, e de que essa teoria tem plenas possibilidades de
dialogar de igual para igual com a teoria bakhtiniana, ou, mais precisamente, com a leitura de
alguns pontos da teoria bakhtiniana que este trabalho vai realizar.
Esta teoria, simplesmente extraída, como que exumada do corpus do romance, poderia
ainda ganhar muito com uma sistematização que, contudo, pertence mais ao escopo das
obras de Hayman e de Kenner (e especialmente ao gabarito desses dois autores) do que a
este trabalho, que busca apenas ancorar tais conclusões em uma leitura muito mais
minuciosa do livro do que a que nos expõe qualquer um dos dois autores. Mesmo assim,
parece válida como objeto de análise.
Pois se posso pensar que a arte é uma dentre as possíveis formas, uma dentre as
várias fôrmas que organizam o mundo ou concedem-lhe existência semiotizando o caos,
tornando-o digerível para nossos olhos, devo poder aceitar que a teoria do romance
veiculada por Joyce no Ulysses é tão válida como objeto de estudo quanto aquela que
podemos extrair dos escritos do círculo de Bakhtin que tocam no mesmo ponto. Se o
melhor comentário a um poema de sempre ser o próximo, e não a crítica, posso na
verdade supor que a reflexão de Joyce, acientífica que seja, não deixa de ter (ou passa
316
precisamente por isso a tê-lo) um potencial heurístico quem sabe mesmo maior do que a
sistematização teórica empreendida pelas leituras deste ou de outros círculos.
Explique-se.
James Joyce, como talvez nenhum outro romancista, teve um projeto claro,
claramente concebido e com clareza executado. Dos fragmentos que nos restaram do Stephen
Hero, passando pelo importantíssimo laboratório de Dublinenses, até a reelaboração magistral
que é Um retrato.. depreende-se nítido um caminho. A via de um autor que compreendera
extremamente bem o locus histórico da narrativa ficcional naquele momento e que já dava
sinais de estar ela ultrapassada para suas ambições, ultrapassada por suas ambições.
O Retrato, especialmente em seu incrível trecho de abertura, que estabelece o padrão
mimético do estilo do livro todo –evoluindo conforme evolui o intelecto de seu
protagonista; ou mesmo mais que ele, a ponto de deixar insinuado um certo distanciamento
irônico nos últimos momentos– inicia um processo de rompimento com uma tradição
muito estável do desenvolvimento da narrativa, que vinha se esboçando também em outros
autores, principalmente Dostoiévski e Flaubert.
A idéia de uma voz narrativa que é projetada pela personagem, que, subjugada por ela,
incorpora mesmo suas limitações discursivas, culturais e ideológicas começava a se
apresentar como grande contributo bakhtiniano de Joyce à ficção já naquele momento.
Leandro Konder, (p. xviii) em sua introdução a O romance está morrendo?, de Ferencz
Fehér, trazia a pergunta para o mundo especificamente joyceano.
Será o romance uma “garrafa” que comporta indiferentemente qualquer vinho?
Então por que a garrafa explodiu quando Joyce lhe derramou o Ulysses adentro?
É óbvio que a concepção exposta (criticamente) por Konder é datada e quase
pejorativamente caracterizável por nós, hoje, requerendo mesmo uma noção de autor e de
expressão que sabemos fazer mais parte da história do que da teoria da literatura. No entanto,
sob outros muitos matizes, ela parece perpassar várias posições críticas de hoje, no que se
possa referir a algum estatuto próprio do romance e à atenção que se lhe deva conceder.
A mesma recusa do estudo estritamente formal, em favor de uma escola de crítica de
inspiração historiográfica e sociológica, faz com que ao menos no Brasil a metáfora do vaso
continue sendo, declarada ou subsumidamente, empregada por vários autores.
317
O fato é que para este tipo de trabalho pouco importa a forma de tal vaso, bem
como importa pouco sua existência como tal, o que é limitação que por vezes atinge mais do
que poderia supor um mero delimitar de campo de estudo.
Na verdade, apor isso acho uma falha na bela frase de Konder; porque podem ser
precisamente aqueles que acreditam conceber o romance como unicamente vasilhame os que
negariam a explosão promovida por Joyce. Para poder reconhecer o estrago que o Ulysses
determinou naquela fôrma, seria preciso ver nela mecanismos específicos e determinantes,
que seu autor identificou, alvejou e destruiu. Mecanismos de todo desinteressantes àquele tipo
de análise.
Pois capítulo a capítulo a odisséia do senhor Bloom e de sua cidade parece se dedicar
inicialmente a esgotar todos os procedimentos relevantes naquele momento ao fazer literário
romanesco, apenas para posteriormente (de modo especial em sua segunda metade) ostentar
sua superação definitiva. Se ao terminarmos de ler o Ulysses somos capazes de voltar a ler
romances anteriores a ele (quase todos os romances) e, muito especialmente, se somos capazes
de continuar a escrever romances anteriores a ele, isso necessariamente configura uma
desistência. Por outro lado, o procedimento do próprio Joyce ao escrever o Finnegans Wake, se
não é uma outra desistência, pode ser visto pessimisticamente como uma recusa.
O caminho do desenvolvimento do romance como nós o conhecemos até hoje
encontra de fato (ou encontro eu nele) um fim, uma explosão, no Ulysses, e seu autor
obrigou-se a radicalizar suas próprias conclusões ao escrever o ultra-romance que o sucedeu.
Faça o que eu digo, não faça o que eu faço, dizem muitos escritores e tradutores que
fazem conviver com sua produção artística uma veia crítico-teórica.
James Joyce disse muito pouco. Como bem lembra Richard Ellman em sua
introdução aos Critical Writings, a crítica que ele escreveu nos conta muito mais sobre ele
mesmo do que sobre os autores que analisou. No entanto seu programa foi todo ele feito:
mostrado. Icônico, como seu procedimento literário mais característico no Ulysses: mostrar no
texto muito mais do que descrever.
Este capítulo pretende exatamente mostrar que a declaração de Booker que o abre
pode ser tão verdadeira a ponto de não apenas eximir a crítica bakhtiniana de recorrer à
teoria do círculo para ler Joyce como também de permitir uma leitura joyceana da obra dos
teóricos ligados a Mikhail Bakhtin.
318
Se as teorias de Bakhtin funcionam particularmente bem quando aplicadas à obra de
Joyce
160
; se Joyce poderia ser a ilustração perfeita de quase todos os principais conceitos
bakhtinianos
161
, é porque as teorias que podemos desentranhar dos corpora dos dois autores,
referindo-se ao objeto, aos objetivos e aos meios da forma romanesca, trafegam em pistas
similares, buscando pistas similares de um überroman (para germanizar a definição que Pound
deu do Ulysses) ideal para uns, ainda que não presente como ideal teleológico, e manifesto
por outro.
O diálogo entre eles só poderia ser proveitoso.
O diálogo entre eles só poderá, feito por nós, ser proveitoso.
Para nós e para eles.
Este diálogo deve começar em algum lugar. Mais uma vez.
E o texto de Volochínov sobre o “Discurso de outrem”, incluído em Marxismo e
filosofia da linguagem, parece um ponto de partida mais do que adequado à sistematização de
algum, qualquer, instrumental de análise que possa nos ser útil.
As idéias desenvolvidas por Bakhtin (ou pelo círculo de Bakhtin, na medida em que
começamos esta análise por um texto que prefiro atribuir a um outro membro da escola e
trabalho orientado em grande medida pelas idéias de Faraco (2003), que pretende confirmar
a integridade do plano teórico desses intelectuais, ao mesmo tempo em que destaca suas
singularidades) soam por vezes algo difíceis de apontar e individualizar.
Diversos fatores, como a longa produtividade de Bakhtin e as condições adversas em
que teve de trabalhar durante toda sua vida (tanto materialmente quanto ideologicamente:
afinal, produzir, exilado, tendo uma perna amputada, um trabalho que deveria atender aos
draconianos códigos ideológicos dos censores stalinistas não havia de ser bolinho), garantem
o que para os estudiosos dessa produção é terreno familiar: uma considerável inconstância
terminológica e um flanar de tema a tema (este muito mais característica direta do estilo e
mesmo da filosofia particular do autor, de sua peculiar concepção do funcionamento da
linguagem e do pensamento), de autor a autor, que freqüentemente dificultam bastante o
trabalho do pobre doutorando resenhador.
160
Kershner (apud Booker, p.8)
161
Booker (p.9)
319
Volochínov, por suas próprias inclinações (muito mais sistematizantes) e pelo tema
sobre o que se debruça neste apêndice a seu (seu?) livro mais famoso, pode fornecer uma
pedra de toque onde medirmos as formulações dos bakhtinianos em seu estado mais
imediado, mais objetivo.
Para os que estão chegando agora:
o texto de Volochínov se estabelece, para nossos fins, como uma grande tentativa de
sistematização (mais uma vez) das diversas possíveis formas que a literatura encontrou, ao
longo de sua trajetória histórica, para representar na página as falas dos personagens. Ou
seja, das diversas formas que uma voz encontra para se apropriar de outra, posto em termos
mais estritamente bakhtinianos.
Mesmo se a custa de horrorosa ênclise, vale acompanharmo-lo por alguns
momentos, em nome de certas formulações de uma clareza lapidar, sobre um tema que,
afinal, é precisamente o que mais nos diz respeito. Partamos de uma definição.
O discurso citado é visto pelo falante como a enunciação de uma outra pessoa,
completamente independente na origem, dotada de uma construção completa, e situada
fora do contexto narrativo. É a partir dessa existência autônoma que o discurso de
outrem passa para o contexto narrativo, conservando o seu conteúdo e ao menos
rudimentos de sua integridade lingüística e de sua autonomia estrutural primitivas. E
a enunciação do narrador, tendo integrado na sua composição uma outra enunciação,
elabora regras sintáticas, estilísticas e composicionais para assimilá-la parcialmente,
para associá-la à sua própria unidade sintática, estilística e composicional, embora
conservando, pelo menos sob uma forma rudimentar, a autonomia primitiva do
discurso de outrem, sem o que ele não poderia ser completamente apreendido. (p.144-
5)
E que definição.
Indo muito além do tatibitate instrumentalizante dos manuais de retórica (e é preciso
lembramos que este texto foi publicado em 1929) Volochínov busca uma verdadeira teoria
da linguagem (ainda pré-bakhtiniana, mas que como tal já se insinua), uma verdadeira ética
da palavra que rege seus procedimentos e comanda suas instâncias. No entanto, mesmo aqui,
no mais prosaico da teoria ainda a ser desenvolvida, o fato de virmos dessas quase trezentas
páginas de leitura do Ulysses nos permite redimensionar quase tudo, e questionar muita
coisa em seus termos mais objetivos.
Senão, vejamos:
320
O discurso citado é visto pelo falante como a enunciação de uma outra pessoa,
Ora, tomando aqui o falante como o narrador (transposição que o mesmo texto opera
ainda nesse parágrafo
162
) e pensando no que vimos do narrador do Ulysses (aqui considerado
como fusão de narradores e arranjador: fusão que teremos de operar com freqüência para
que qualquer leitura contrastiva seja possível sem todo um exército de ressalvas e
sobrespecificações), há já aqui dois possíveis problemas.
Um deles é a idéia de que o discurso citado é visto como uma enunciação prévia.
A bem da verdade, mesmo nos exemplos que embasam sua própria discussão essa
distinção já é pouco sólida em Volochínov. É claro (se não dermos algumas coisas de barato,
em breve teremos mais trezentas páginas de análise) que tal problema se coloca muito
especialmente no campo do problemático discurso indireto livre, cume do eventual contínuo de
formas esboçado por Volochínov e campo em que, como ele mesmo ressalta, é preciso
adivinhar quem tem a palavra (177)
163
. O problema, para nós, no entanto, e para a leitura que
vimos fazendo da apropriação da palavra pelo aparato narrativo do Ulysses, é, de saída, saber
se alguém tem em cada ocorrência a palavra, no sentido de palavra efetivamente enunciada. De
enunciação de que outra voz se pode apropriar.
Pois se consideramos apenas os exemplos retirados da obra de Thomas Mann, que o
próprio Volochínov (p.181) utiliza como demonstração das características do que ele chama
de DIL, e se o fazemosde saída lendo seu texto através de Joyce, através de lentes polidas
pela leitura do Ulysses, fica clara uma indefinição. Pois se em um trecho como: O cônsul, as
mãos às costas, ficou passeando e movendo nervosamente os ombros. Ele não tinha tempo. Estava
assoberbado, por Deus! Ela devia ter paciência e, por favor!,pensar mais cinqüenta vezes. temos
definitivamente a apropriação pela voz narradora da palavra do personagem, se podemos
considerar que as palavras do cônsul foram inclusive efetivamente pronunciadas
164
, o que
fazer de um outro exemplo que o segue.
162
E volto a manifestar minha tristeza por não ler russo. Não sei, não posso dizer que termos ele efetivamente
emprega, e especialmente, não posso saber se ele se refere aqui (mais adiante) a um narrador, mais próximo do
falante (o falante em função narrativa), mais próximo da categoria conforme vislumbrada por Benjamin, ou se
ele menciona o narrador em seu sentido mais estritamente literário, leitura mais imediata em português. Não sei
quanto dessa incômoda sensação de falta de rigor na definição dos termos e das esferas de leitura (de resto
bastante destoante da tônica geral dos procedimentos volochinovianos) provém unicamente da palavra do
tradutor.
163
Bakhtin e suas zonas de personagem farão muito mais dessa noção.
164
Embora, por favor, não se deva pensar que seja este critério o que mais nos importa.
321
Porque em As coisas iam mal para o senhor Gosch: com um belo e largo movimento dos braços,
ele recusou a hipótese de que pudesse pertencer aos felizes. A incômoda velhice se aproximava, estava ali
sua cova, como se [dizia]
165
, estava aberta. À noite ele mal podia levar o copo de grogue à boca sem derramar
a metade, de tanto que o diabo fazia seu braço tremer. Aí nenhuma maldição adiantava... A vontade já não
triunfava mais. a situação é incrivelmente mais complexa. Posso, se quiser, tomar como
enunciação prévia as frases elaboradas em DIL na metade final do fragmento, mas essa não
parece sequer ser a leitura mais imediata.
Se no primeiro fragmento de Thomas Mann temos a representação de uma réplica
em situação de diálogo, manuseada segundo as regras da arte que configuram o DIL
prototípico
166
, o segundo deles está em posição muito mais delicada, muito mais complexa.
Fica claro que o texto está escrito como que visto pelos olhos e concebido pela
linguagem do senhor Gosch. Mas não é corolário necessário dessa afirmação supormos que
podemos tratar como enunciações suas cada uma das frases citadas no fragmento. E vimos
que em Joyce essas nuances vão ganhar ares ainda mais delicados e refinados.
Somente para evitar que o Ulysses s intrometa demais por aqui, cito (em tradução
minha) apenas um trecho de Joyce, de seu livro de contos, Dublinenses, da abertura do conto
Os mortos.
Lily, a filha do zelador, estava literalmente pernas para o ar. Mal tinha trazido um
cavalheiro até a despensinha atrás do escritório do térreo e o ajudado a tirar o casaco, e
batia de novo a cigarrinha asmática da porta de entrada e ela tinha que saltitar pelo
corredor vazio para deixar um outro convidado entrar. Que bom para ela que não tinha
que cuidar das senhoras também.
Fica claro que James Joyce, ou seu narrador, não estão dizendo que ela estava
literalmente de pernas para o ar. O fato, por outro lado, de ela ser uma terceira pessoa,
identificável e apresentável (a filha do zelador) deixa claro que o texto não é a reprodução de sua
fala. Até aqui estamos no campo possível do DIL: temos um texto que, na voz do narrador,
em seu quadro enunciativo, contamina-se pela voz da personagem.
165
A tradução original tem um inexplicável disse pelo alemão wie gesagt.
166
Que, visto assim, longe de ser aquele carrasco das aulas de teoria literária, se configura como forma mais
simples, início de um contínuo que abre possibilidades muito mais sutis.
322
No entanto eis uma mancha: o trecho joyceano não supõe a representação de uma fala.
Pode mesmo não supor uma enunciação prévia. De fato, se alguém efetivamente pronunciou
aquelas frases, pode mesmo nem ter sido Lily.
Em um movimento que se aproxima do que fará com o monólogo interior de
Dujardin em Ulysses, Joyce nos leva além da representação da fala de outrem. Ele representa,
sim, um discurso alheio, e o incorpora de maneira cada vez mais definitiva e mais sutil à trama
de sua própria voz. Mas, precisamente por fazê-lo em um grau aentão inaudito, ele rompe
a barreira da fala.
(Mais ainda, ao menos no que se refira aos personagens menores, por vezes é mais o
fato de ele ser alheio que sua pertença eventual a este ou aquele personagem que pode
interessar.)
Seu narrador (e o é a toa que naqueles últimos livros mal se pode falar na presença
de um narrador) estão profundamente impregnado pela voz dos outros que não é mesmo
necessário que eles falem para nele encontrarem uma expressão.
Os estudos bakhtinianos de Joyce têm se deleitado especialmente em mostrar como
esse processo de constituição dialógica de uma voz molda a relação de James Augustine
Aloysius Joyce com a tradição: a intertextualidade feita princípio e tudo o que nesse processo
propiciou nossa (pós-) modernidade. O que estamos tentando fazer aqui, por outro lado, é
ilustrar como a voz narradora do Ulysses é constituída tão basilarmente sobre as outras que
por vezes não admite sequer o grau de independência e de autoridade necessários para
sustentar a imposição do quadro enunciativo encampado (um hic et nunc outro e
determinante, porque determinado) que define o DIL típico.
A alteridade daquela outra pessoa de Volochínov é, afinal, bastante questionável na
medida em que avançamos no dia 16 de junho de 1904. E é esse fato que permite que se
questione a verbidade das enunciações de que o narrador se apropria. Constituído que é, ele
mesmo, em um processo que parte dos personagens, que projeta suas características em uma
plástica instância narrativa que tem muito mais da essência de personagem do que da de
narrador, este narrador não se apropria de conteúdos previamente existentes e, sim, verbifica
com o discurso dos próprios personagens, o conteúdo que enformaria as enunciações destes
mesmos personagens.
Trata-se de mais uma hierarquia sutilmente revertida.
323
O que nos leva a ver com outros olhos o restante da definição de Volochínov.
completamente independente na origem, dotada de uma construção completa, e situada fora do
contexto narrativo.
Não.
O discurso dos personagens (depois de plenamente estabelecidas a figura e a
intervenção do arranjador) não é completamente independente. O que não acarreta, como
poderia pensar Volochínov naquele momento (e contra o que ele parece estar trabalhando
sua definição), uma dependência da voz do personagem em relação à voz do aparato
narrativo.
Muito pelo contrário.
É este aparato que não pode reclamar independência completa da instância do
narrado
167
.
E esse discurso também não precisa ser dotado de qualquer estrutura acabada.
Vimos de saída que, na primeira página do Ulysses, o processo de cuidadosa caracterização
verbal e psicológica de seus personagens permite que uma só palavra (exemplo acabado de
não-construção-completa, a não ser na medida em que se considere um tijolo um edifício.
168
)
seja tomada como plena remissão a essa outra voz.
Quanto a estar ele situado fora do contexto narrativo, bem, a essa alturas nem vale mais a
pena.
E ele seguia..
É a partir dessa existência autônoma que o discurso de outrem passa para o contexto narrativo.
Que é precisamente o texto que justifica, ou glosa, a idéia da necessidade de uma enunciação
pré-existente sobre a qual se aplica o aparato da narrativa.
E aqui vale lembrar que é Volochínov quem escreve, e não Bakhtin, e que ele declara
desde o título da última parte desse seu livro, estar-se dedicando a problemas sintáticos. E é só
nesses termos (brutalmente insuficientes, como vimos) que se pode pensar no DIL como
construção que se aplica a uma forma previamente existente. É apenas se ignorarmos o que
o mesmo Volochínov teve a dizer sobre a impossibilidade da existência de conteúdo
expressável antes da expressão e tudo o que ela tem a oferecer se estendida a esse processo
167
Veremos mais de uma vez que o mesmo Bakhtin se vê presa da incapacidade de considerar que a subordinação
possa se dar, nos limites estritos do texto lido, em outra direção.
168
Por mais que possa ser uma palavra uma enunciação completa. Falamos aqui de sintaxe, penso eu.
324
em que o conteúdo é um discurso prévio que podemos pensar nessa preliminaridade do
discurso a ser citado.
É quase como se disséssemos que, para além da bakhtinianíssima idéia de que não
pode haver discurso do eu sem que haja o discurso do outro, podemos também assumir
169
que, em tudo que se refira à apropriação da palavra propriamente dita, não pode haver
discurso do outro previamente ao discurso do eu..
De fato, parece-me quase uma questão de mera lógica argumentativa que, contudo,
pode levar a algumas reavaliações da filosofia bakhtiniana. Pois que se defenda que o
discurso do ego se forma a partir de retalhos absorvidos (desaspeados) do discurso do ille,
do discurso do mundo exterior (e se, como a abordagem de senso-comum, de sala-de-aula,
parece fazer, tomo este fato como prova da dissolução dessa mesma personalidade, desse
mesmo centro axiológico em um contínuo formado, em toda direção, pelo outro, pelo non
ego), dou de barato que a única acepção de unidade que resta a este ego é precisamente a de
centro organizador de retalhos e farrapos. Cada eu seria inquestionavelmente um feixe
determinado de recortes e absorções, cada um se veria formado por diferentes refrações e
reflexões do vário.
Ora, em sendo assim, é pouco mais que uma questão de ângulo de visada
considerarmos esse ego, conforme exposto acima, como precisamente o centro que constitui os
recortes e, conseqüentemente, os discursos prévios, que só passam a existir, a se ver providos
de uma ontologia significativa porque assimilados, porque desapropriados, numa aparente
afirmação da centralidade do eu perceptivo e de sua precedência fenomenológica em relação
a todo e qualquer outro que se lhe disponha defronte
170
.
E o curioso é que nos vemos inquestionavelmente em posição de argumentar que a
leitura do processo elaborado por Joyce é capaz de nos mostrar o quanto é ainda pré-
169
Ao menos aqui, para a esfera do discurso citado como elaboração na literatura; mas não deixa de ser
incrivelmente sedutor pensar o quanto isso poderia implicar para a teoria geral da linguagem em Bakhtin.
170
E uma outra conseqüência interessante surge desse raciocínio para a concepção ético-lingüística bakhtiniana,
visto que afirmamos quase inexoravelmente que, deste ponto de vista, o tu só existe como meio de constituição
do eu, o que vale exatamente a mesma coisa (e toda essa argumentação se baseia nessa convertibilidade dêitica)
que dizer que o eu existe unicamente como (e quando) dissolvido no tu.
É válido lembrar que não é estranha à discussão bakhtiniana a problematização da formação do discurso em
seu momento fundador. Ou seja, de como a criança primeiro desenvolve um discurso do grau zero ao grau
máximo. E é esse elemento (daí a ressalva acima ao fato de que tal raciocínio pode a princípio funcionar ao
menos para o texto literário, em que as relações se dão entre discursos maduros, formados) que precisa ser
retirado da equação para que a conta feche.
325
bakhtiniana, ou ao menos singelamente bakhtiniana, a leitura de um dos membros do
círculo.
Tenho sinceras dúvidas sobre o interesse de promover uma análise volochinoviana
do Ulysses. Ela provavelmente se resumiria a uma aplicação de rótulos que deixaram
descoberta enorme parte do corpo do gigante. Virariam band-aids. Mas pouco de mais
poderoso Joyce poderia fazer por Volochínov do que isto: mostrar o quanto ainda pode se
aprofundar, além das categorias sintáticas, a análise efetivamente bakhtiniana dos problemas
do discurso citado, e o quanto essa problematização pode, de fato, apenas enriquecer a
leitura do círculo de Bakhtin.
Pois por mais que não estejamos, até aqui, mergulhados em conceitos estritamente
bakhtinianos, podemos perceber, curiosamente, que é apenas lido através das lentes
joyceanas que o texto de Volochínov pode se encaixar com facilidade nessas mesmas
categorias.
Em uma algo acalorada conversa de corredor com o professor Fiorin
171
começou a
surgir o germe do que seria uma tremenda dificuldade neste processo de adaptar a discussão
joyceana à discussão das categorias volochinovianas. Tentando situar histórica e eticamente
(fiquemos por ora com este termo) o emprego do monólogo interior na literatura,
encontrávamos uma situação de aparente impasse. Pensando nas formas mais típicas do MI
e em seus usos mais diretos, o professor Fiorin não podia deixar de vê-lo como uma espécie
de regressão no contínuo estabelecido por Volochínov desde o discurso direto monumental
até o discurso indireto livre
172
.
171
Saudade dos tempos em que este trabalho era um esboço megalômano e o professor Fiorin tinha de me pôr
no meu lugar. Imagine, isso, que está aqui, é o que restou depois de ele tentar me pôr no meu lugar...
172
Seria praticamente inviável, dadas as proporções que pretendo dar a esta discussão, expor em miúdos a
argumentação da Volochínov, que, contudo, pode ser resumida da seguinte maneira. Ele encontra na história
da literatura um predominância de formas de citação do discurso alheio que se sucedem de uma maneira
determinada. Do discurso direto que ele chama monumental, em que a palavra citada é quase sagrada, intocada,
passando pelo discurso indireto (e suas múltiplas variedades, que servem a estabelecer também uma progressão
dentro da história do uso dessa forma), em que existe uma integração (uma semente de dialogismo) entre a voz
do narrador e a voz do narrado, representada pela integração sintática das duas enunciações, e chegando ao
discurso indireto livre, em que essa fusão é já tão intensa a ponto de poder encobrir (como pudemos ver,
mesmo mais poderosamente do que poderia suspeitar o mesmo Volochínov) uma quase que indissociação de
narrador e narrado; uma situação em que a autoridade, que de início atribuía-se somente ao citado e, depois,
passa para o domínio do citante, fica presa entre dois mundos, ancorada em ambos e pertencente a nenhum.
Nesse sentido, ficaria difícil não ver de início (antes de toda a análise das centenas de páginas anteriores) o MI
326
Por outro lado, eu não podia deixar de sentir que, de alguma maneira, o emprego que
Joyce fazia do MI não não se coadunava com esse juízo como, possivelmente,
representava um passo além no desenvolvimento das formas de representação do discurso
do outro. Mas se tratava, naquele primeiro momento, de pouco mais de um palpite. Talvez
apenas a vontade de torcer o tema para que minha hipótese geral se mantivesse de pé.
Mas que hipótese?
Aqui cabe fazer a ressalva de que, ao menos deste ponto de vista, me parece
adequado encarar a análise de Volochínov como sendo o estabelecimento de um contínuo,
se não teleologicamente orientado, ao menos direcionado, vetorizado. Na medida em que
(ego, hic et nunc) considero como um desenvolvimento positivo a progressiva integração das
vozes na representação romanesca, ou sua progressiva prosificação (como diria Cristovão
Tezza, em seu Entre a prosa e a poesia
173
), sua progressiva dissolução de um centro de valores e
a progressiva obliteração de qualquer axiologia única, posso falar de uma ética específica e
unicamente romesca que, sim, desenvolve-se: evolui. E não faço mais do que tomar a deixa
do mesmo Cristovão Tezza que, em texto publicado no livro Bakhtin, dialogismo e contrução do
sentido, terminava dizendo acreditar que poderia derivar de Bakhtin uma ética e declarava
falar naquele momento talvez mais en auteur.
Se, como veremos, a consciência do prosador difere qualitativamente da consciência
do poeta em sua atitude em relação ao mundo, ao outro, às vozes, é bastante interessante
tomarmos como referência essa última citação de Tezza, em que é precisamente esse projeto
ético que surge dos textos do círculo que se torna ponto de destaque. O romancista pode
vislumbrar uma ética
174
no processo constituidor de seu discurso como tal, na possibilidade
de progressivos fusão e convívio de vozes várias.
Resta apenas saber se devemos considerar o monólogo interior como um
desenvolvimento mais refinado das possibilidades romanescas (lugar que ele, de fato,
cronologicamente, ocupa) ou se devemos pensar nele como uma regressão a um modelo
pré-romanesco de relação com a linguagem, o que abriria campo para mais uma infinidade
como efetivamente uma regressão. E, mais, uma regressão with a vengeance, pois que aquela autoridade e aquela
intocabilidade agora se estendem a níveis superiores aos da citação verbatim. Ela ultrapassa mesmo as regras
sintáticas e de compreensibilidade como que superpostas socialmente. O citado domina seu texto a seu bel-
prazer.
173
Texto de que ainda vou falar muito, o que me exime de maiores considerações pelo momento, espero.
174
E acredito ser quase redundante afirmar que aqui emprega-se o termo exclusivamente em uma acepção
positiva..
327
de discussões a respeito da cumplicidade de Joyce no eventual assassinato do romance
moderno.
Mas, dado aquele primeiro palpite, ficava formulada a hipótese que, em um primeiro
momento, era tudo de que dispúnhamos e cuja possibilidade cabia verificar: o monólogo
interior (ao menos como empregado por Joyce no Ulysses) era o ponto que faltava para a
conclusão do raciocínio volochinoviano que demonstra o desenvolvimento de meios mais
refinados e mais democráticos de representação de discursos no universo da narrativa
romanesca, ponto este curiosamente sequer considerado pelo mesmo Volochínov,
conquanto escrevesse ele sete anos depois do lançamento do Ulysses, simultaneamente (a
segunda edição de seu texto sai mesmo um ano depois) ao surgimento da tradução francesa
integral.
O que resta portanto como problema, exposto apenas pela leitura de Joyce, é a
possibilidade de que uma tal possibilidade (sick...), que definitivamente redefine os limites do
mesmo tema que se constituía em núcleo central de seu texto, tenha sido ignorada por
Volochínov.
A possibilidade de haver uma diferença de potencial entre alguns e outros usos (se
não formas) do discurso indireto livre, pelo mero fato de que pela primeira vez na linha
estabelecida por Volochínov rompe-se a fronteira da enunciação enunciada, da enunciação
sobre a enunciação, para se permitir que a enunciação que cita presuma, incorpore a outra voz a
ponto de o precisar de suporte material para a citação, teria obrigatoriamente de
reformular a posição do autor russo.
E, curiosamente, essa reformulação teria de ir na precisa direção para a qual ele parece
conduzir seu texto.
Quando, no segundo exemplo derivado de Thomas Mann, ele pôde entrever a
chance de que a fala citada o precisasse ser fala para ser citada, ele pôde, igualmente,
entrever todo um novo campo, que surge como conclusão de seu mesmo raciocínio. Mas ele
parece não tê-lo feito.
Se aquele, suposto, contínuo que segue rumo a uma democratização da hierarquia das
vozes poderia levar a algum lugar, os mesmos exemplos citados por Volochínov poderiam
apontá-lo: o estabelecimento efetivo do domínio da interferência discursiva que ele mesmo
detectava, mas agora posta em novo nível.
328
Ele mesmo cita a curiosa afirmação de Charles Bally de que o discurso indireto
livre tenderia ao discurso direto (DD), o que parece contrariar o movimento que ele próprio
supõe, baseando-se (a curiosa afirmação de Bally) aparentemente apenas em elementos
sintáticos.
Bally pode, portanto, ter visto somente fatos estruturais verificáveis, como a ausência
do verbum dicendi e de todo o aparato de introdução ou comentário fornecido pelo narrador
nas formas típicas dos discursos indiretos, mas posso agora pensar em um movimento
diverso, acarretado por este, e curiosamente sugerido pela linha mais ampla desenhada pelo
texto de Volochínov.
Posso agora, joyceanamente, imaginar que o que algumas formas, alguns empregos
do indireto livre parecem indicar é um movimento de restabelecimento de um equilíbrio que,
em nome da integração das vozes, perdeu-se na passagem do discurso direto para o indireto.
Ao embaraçar os discursos, processo que culminaria no indireto livre prototípico, em nome
(suponho, eu, aqui) de uma nova relação ética entre as vozes representadas, a linha exposta
por Volochínov acaba por paradoxalmente apagar a possível autonomia do discurso
representado, terminando, naquelas formas prototípicas do indireto livre, por entregá-lo
totalmente ao narrador.
O modo que até então se encontrara de fornecer livre e plena expressão às vozes
representadas era reconhecer como dada a superioridade de meios da voz narradora e buscar
conceder às outras estas suas possibilidades. Conceder nela um espaço a elas.
E quanto mais espaço aberto às outras vozes, mais se fortalece a posição da voz do
narrador, e mais espaço ela ocupa. Ou, se quisermos argumentar que o domínio de sua voz é
precisamente o que se questionado, podemos ainda concluir que é seu domínio como
função que se vê reafirmado.
E é claro que é nessa brecha, nessa espessa zona cinzenta, que se vai criar o
arranjador. Levando a termo o apagamento da voz narratorial e delegando o poder funcional
a outra instância, Joyce resolve para um lado (o dos personagens) o tenso embate desenhado
aqui. Mas, neste momento, meu objeto é o monólogo interior.
Ao ler Les lauriers sont coupés, de Édouard Dujardin, Joyce deu-se conta da
possibilidade que lhe faltava e que parece ter passado décadas despercebida por todos,
incluindo seu autor (e incluindo Volochínov) tendo o livro sido publicado em 1887.
329
Uma narrativa toda ela escrita como que a acompanhar o fluxo dos pensamentos de
uma personagem abria a oportunidade de se integrar definitivamente voz a voz, como que
com a criação de um discurso direto livre que, depois de Joyce, passou a ser chamado de
monologue intérieur ou stream of consciousness. Estas duas últimas designações, contudo, recobrem
bem apenas o método de Dujardin; mas a primeira, proposta aqui, poderia ser aplicada
somente a Joyce.
E essa distinção pode estar na raiz da diferença entre as leituras com que
deparávamos eu e meu orientador.
Porque o problema, a diferença, repousa no fato de ser a narrativa francesa um relato
em primeira pessoa (distinção algo estranhamente subestimada por todo o texto de
Volochínov), definitivamente centrada e axiologicamente orientada. Joyce, sintonizado que
estava em uma busca que seguia em outra direção, saberá fazer do monólogo interior a
máxima fusão, a máxima penetração que as vozes representadas atingirão, sem contudo
impor a elas (ou à narrativa como um todo) uma orientação ideológica e discursiva
175
.
Ele descobrirá que fazendo conviver esta forma de monólogo interior com um
discurso direto exemplarmente sobredeterminado, por exemplo, ele poderá criar a hierarquia
entre personagem e personagem que institui, a cada momento, uma relação de proeminência
entre eles, e não entre eles e o narrador. A cada momento. Pois o foco, como se viu, varia de
momento a momento.
Abrindo mão de todo de um narrador prototípico que pudesse mesmo fornecer
algum quadro orientador, e especialmente abrindo mão de todo de usar um narrador
definido e estável como voz (possibilidade estrutural que, abrindo o escopo das
considerações, por si já altera as possibilidades hierárquicas, levando-as muito além do
previsto por Volochínov), fazendo com que as vozes narradoras sejam predominantemente
projeções dos personagens em foco, ele reforça essa redistribuição de forças.
Isso pareceria o bastante, mas manteria aberta a possibilidade de encarar o processo
como tendente ao monologismo, se pensássemos que, em cada momento, a personagem
retratada pelo monólogo interior encontra uma integração (de qualquer maneira privilegiada)
com a voz narradora.
175
E aqui, mais uma vez, é fundamental a presença do arranjador na equação joyceana. Neste momento, sua
função é como que criar luft, abrir espaço na tensa relação entre narrador e personagens, removendo para mais
longe deles o embate efetivo.
330
Mas falamos aqui de luta muito mais que de vitória.
Pois as sucessivas releituras do romance, como seu primeiro capítulo deixa
sobejamente claro, acabam revelando uma sutílima ironia de caracterização que relativiza
mesmo o estatuto, naquele momento, central de uma determinada personagem. Ao
percebermos que o narrador foi cooptado, re-lemos em busca de uma autonomia nossa de
julgamento, e encontramos inconsistências.
Ernst Curtius, pretendendo criticar Joyce, havia dito que não se pode ler o Ulysses;
pode-se apenas relê-lo.
E apenas relendo-o é que podemos nos dar conta da eventual tensão existente entre
os pontos-de-vista manifestados pela dedaliana voz que narra a abertura do livro, por
exemplo, e os mesmos fatos que ela parece descrever. A imagem de Mulligan (entre a
simpatia-solicitude e a aversão-ironia) só pode ficar algo claramente estabelecida se nos
dispomos a ler (ao menos uma vez) a contra-pêlo de Dedalus.
É para a esfera dos personagens (repito) questionáveis e suspeitos, que a voz do
narrador se lançada. E não o contrário. Supor portanto um privilégio ético incontornável
no acesso aos meios narrativos por parte deste ou daquele personagem pode ser, mais uma
vez, o equivalente de não ver a essência do processo global
176
.
Talvez a grande contribuição de Joyce para o progresso das formas de representação
do discurso de outrem em uma linha orientada pela gradual integração de vozes tenha sido
precisamente responder à dúvida que tivemos eu e o professor Fiorin, e responder apoiando-
se em uma distinção e em uma possibilidade que o texto de Volochínov não considerava.
Ao artesão, as distinções desconsideradas pelo crítico mostram seu peso e suas
oportunidades: da narrativa em terceira pessoa ao uso em macro-escala das possibilidades
apenas insinuadas no nível da frase. Pois sabíamos, antes mesmo de pararmos para pensar
em Volochínov que, para ser relevante para o Ulysses, como o lemos aqui, qualquer discussão
a respeito dos estatutos das vozes de narradores e personagens e de suas representações não
pode se limitar ao nível da frase, visto que o embate teórico entre essas instâncias é projetado
no livro como um todo, tornando-se, de fato, um elemento de superestrutura.
176
Mesmo considerando que eu, aqui, possa ter feito isso em determinados momentos, o que espero se
justifique pelo fato de estar trabalhando com o texto em partes, não em sua totalidade, durante quase todo o
trabalho.
331
Talvez seja realmente possível escreverem-se narrativas calcadas no emprego do
monólogo interior em que o caminho esboçado por Volochínov é abandonado em favor de
um estágio anterior, mais claramente monológico. Estas narrativas, contudo, serão
preferencialmente narradas em primeira pessoa, uma distinção, repito, estranhamente
desprezada por Volochínov.
Outra maneira de fazê-lo talvez seja, mesmo com um narrador separado do universo
dos personagens, através de uma postura que não permita, ou que sequer conceba, a
possibilidade do apagamento da persona e da axiologia do autor conforme representado por este
narrador.
Talvez um livro como Mrs Dalloway, por exemplo, possa ilustrar esta possibilidade.
James Joyce, por outro lado, com a originalidade imprevisível e paradoxal típica
daqueles autores que, como gosta de dizer um outro Bloom –o crítico Harold Bloom– o
pura e simplesmente mais inteligentes do que nós, conseguiu resolver este problema do
apagamento de sua voz e de suas projeções em um relato fortemente autobiográfico, como
que frisando ainda mais a potencialidade de apagamento representada pela inclusão do
arranjador entre os termos do problema.
Se Virgina Woolf pode ter escrito livros sobre dezenas de personagens, todos eles
claras projeções de seu mundo e de sua linguagem, Joyce consegue escrever sobre ele mesmo
sem que seus romances percam um grama de riqueza e de variedade discursiva.
Talvez tenha sido o reconhecimento, por sua parte, de que algum centro é
necessário, que lhe tenha permitido abrir mão de ser ele, via seu narrador, o centro das vozes
de sua obra. Talvez tenha sido por ignorar essa necessidade que Virgina Woolf não tenha
alcançado o mesmo resultado.
Some-se a isso o reconhecimento da possibilidade de citar discursos não-
pronunciados, falas supostas graças a um elevado grau de interferência de vozes e de
consciências, possibilidade manifesta em seu uso daquilo que aqui escolhi então chamar discurso
direto livre, e temos demonstrada, executada a possibilidade não de confirmar a suposição
de Bally agora no nível da ideologia como de fazer avançar de um grande passo o caminho
esboçado por Volochínov.
Seamus Deane, no início de sua introdução ao Finnegans Wake, dizia:
332
É difícil dizer que o Wake é um romance; igualmente difícil é negá-lo. Poucas obras
apagam mais efetivamente o autor como uma voz e um gênio individuais; nenhuma afirma
esse papel mais alta e escandalosamente.
Precisamente por encampar todos seus personagens e por projetá-los todos a partir
de si mesmo é que James Joyce pôde ceder-lhes a voz e a vez de maneira mais generosa do
que os autores que o antecederam. Precisamente por levar o romance ao paroxismo de suas
próprias características ele pôde questionar seu futuro. Esgotá-lo mais do que destruí-lo.
Biografias à parte, o Ulysses é o que temos. Mas, parafraseando seu mestre, podemos
dizer que temos ao Ulysses tão coerente e independente da vida de James Augustine
Aloysius Joyce, porque l’Ulysse, c’est lui.
Especulações à parte, a forma do discurso (seus aspectos sintáticos) é o que temos.
Mas, recorrendo ao principal teórico do círculo, talvez possamos encontrar a melhor definição
para o processo que Joyce levaria a culminar no Finnegans Wake, e que se encontra em
pleno desenvolvimento no Ulysses em um parágrafo que trata de uma questão ideológica e de
um conceito que poderíamos aplicar a nossa questão se considerássemos, novamente, a
possibilidade de sua iconização, sua tematização; se visualisássemos o emprego estrutural de
um procedimento mais freqüentemente analisado em nível de conteúdo. E poucas coisas
seriam mais joyceanas.
O carnaval é um espetáculo sem ribalta e sem divisão entre atores e
espectadores. No carnaval todos são participantes ativos, todos participam da ação
carnavalesca. Não se contempla e, em termos rigorosos, nem se representa o carnaval,
mas vive-se nele, e vive-se conforme as suas leis enquanto estas vigoram, ou seja, vive-se
uma vida carnavalesca. Esta é uma vida desviada da sua ordem habitual, em certo
sentido uma “vida às avessas”, um “mundo invertido” (“monde à l’envers”)
177
177
É intencional aqui a falta de referência. Que se me perdoe o bakhtinianismo extremado. E muito obrigado à
professora Sandra M. Stroparo por me indicar essa citação. E por muito mais.
333
ii. antes da
É assim mesmo.
Que a conversa entre os dois se dê de fato entre os dois, visto que a pequena
discussão do texto de Volochínov já parece ter apontado para isto. Uma formalização estrita,
que não dê conta de aspectos mais gerais da relação com linguagem e mundo, simplesmente
não poderá equalizar Joyce e Bakhtin.
Em se tratando de dois pensadores (veja-se aquela ressalva que fizemos na
introdução) que conseguiram fazer com que suas idéias fossem muito além do campo mais
imediato em que trabalhavam, alcançando repercussões em toda uma filosofia da linguagem
e das relações do homem com sua língua e, por meio desta, com seu mundo, que se
comparem então suas conclusões mais profundas, mais poderosas.
Isto, dito, poderia levar a pensar que o corpus bakhtiniano mais desejável para esta
sombra de análise contrastiva que se pretende aqui seria o cleo duro de suas formulações
sobre a natureza da linguagem e da cultura, ao que de imediato se apresentam dois
problemas.
Pois sabe-se que, de um lado, a filosofia de Bakhtin, toda ela, encontra-se dispersa e,
de certa maneira, mesmo rarefeita entre todos seus escritos. O trabalho de organização de
um coerente conjunto de postulados bakhtinianos não-contraditórios, em muitos sentidos, é
de várias formas uma empresa estranha à própria filosofia de Mikhail Mikhailovitch Bakhtin,
que pareceu fazer dessa fragmentação uma forma de trabalho, de resto, coerente ela própria
com seus postulados mais gerais sobre a relação do homem com o mundo
178
.
De outro, considerabilíssimo, lado, a mera extensão que já alcançou este trabalho não
nos permite sequer sonhar empreender investigação dessa monta.
E que fique claro, como claro ficou desde o começo. Mas recomeço, e remeço
então meu recomeço, e remeto, se necessário àquele começo, mas não me impeço de redizer
que este trabalho é um trabalho sobre o Ulysses e sua possível relação com um quadro
específico de teorias sobre a linguagem e sobre a representação da linguagem como
178
Particularmente, a idéia de que necessariamente haja uma noção de relação incontornável entre qualquer
filosofia que se baseie, por exemplo, na idéia de incompletude e sua conseqüente exposição de forma
incompleta e, em alguns sentidos, incoerente (na medida em que nem todos seus conceitos se mantenham
estáveis e confrontáveis de texto a texto), continua a me parecer algo equivocada. Ranço formalizante? De
qualquer maneira, o argumento que os estudiosos de Bakhtin podem apresentar como que para defender sua
assistematicidade não é, de maneira alguma, desprovido de sentido.
334
literatura. Não é um trabalho sobre Bakhtin, portanto. Como dito, pode-se mesmo pensá-
lo como uma investigação joyceana de um corpus teórico específico, o que justifica aquele
primeiro, alentado, momento, em que se buscava extrair de um romance um esboço de
ferramental teórico.
Mas a limitação de nossa leituras aos escritos em que Mikhail Bakhtin aborda mais
especificamente o romance e suas características que, aqui, nos interessam mais de perto
(nosso recorte vem feito) não implica aniquilar na letra bakhtiniana o que possa haver de
mais generalizante e mais profundo em suas teorizações mais gerais e mais profundas. Pensar
tal possibilidade seria imaginar que, para ele, o romance é um fenômeno marginal (um dentre
outros) no grande universo da linguagem e da literatura, e que limitando assim seu
pensamento, estaríamos conseqüentemente limitando seu alcance.
Na verdade, se podemos esboçar uma lista das categorias fundamentais da visão-de-
mundo que podemos chamar de bakhtiniana, bem como da sistematização do historiador da
cultura Mikhail Bakhtin, veremos que quase todas elas podem ser melhor representadas ou
exemplificadas no romance ou no histórico do surgimento do romance.
Para ele o romance representava a culminação de um contínuo processo em certa
medida subterrâneo que, desde a antiguidade registrada, deixava suas marcas em textos e
gêneros das naturezas mais diversas e que, precisamente por representar o que de mais
sofisticado poderia haver quanto à compreensão do lugar do homem em um mundo de
linguagem e do lugar da linguagem no mundo dos homens, acabava por se tornar a forma
final de uma literatura que, depois de passar por diversas formas que sempre representaram
os meios culturais dominantes, chegava finalmente a seu período de apogeu.
Não é mesmo estranha a essa leitura a comparação com o joyceaníssimo ciclo
viconiano das quatro eras. Conforme descrita por Bakhtin (e em alguma medida por
Volochínov, também) a literatura (e a humanidade que re-presenta) parece mesmo ter
passado por fases teocrática (mitológica-épica), autocrática (aristocrática-poética) e ter chegado,
finalmente, a seu momento democrático (popular-romanesco
179
). O que Vico propunha na
Scienza Nuova continha, no entanto, lembremos, um ricorso, um momento em que o caos se
instaurava de forma inevitável antecedendo a manifestação renovada da voz do deus e o
reinício do ciclo.
179
Repare na ausência de paroxítonos!
335
O fato de eu usar como metáfora um processo que embasa boa parte da organização
do Finnegans Wake (livro que parece se abrir em um dos momentos de ligeira suspensão entre
ricorso e reinício) já não pode evitar trazer a Joyce um lugar neste ciclo vico-bakhtiniano. Mas a
adequação dessa comparação na verdade só poderá ser plenamente sentida quando
terminarmos esta leitura.
Mas que se reserve à parte este dado: que, em um mundo constrangido pela primeira
vez no ciclo dos ciclos pelo registro histórico, a volta ao estatuto primeiro não se pode mais
dar sem a consciência do processo e das fases finais do ciclo anterior, gerando um
convivência potencialmente equizóide mas, não se pode negar, incrivelmente interessante em
possibilidades.
Tudo o que convencionamos chamar de pós-moderno?
Mas mesmo que queiramos deixar de lado a ligeira empolgação com a idéia de ápice
histórico que com o tempo aprendemos a associar ao meio cultural socialista russo, não se
pode diminuir a centralidade desta forma de arte para as formulações, todas elas, histórico-
filosóficas deste teórico em particular.
E seria esta a primeira (e central) similaridade entre os projetos (identificados post
facto) de Joyce e de Bakhtin. Para ambos os autores, um romance não é um romance, não
é só um romance, não é só um romance..
Dois textos determinarão o curso de nossa leitura de Bakhtin e, para evitar a
excessiva multiplicação do nome do teórico russo nestas páginas, a eles me refiro apenas por
suas datas. E me refiro aqui às primeiras datas de que dispomos. Portanto, toda citação aos
Problemas da poética de Dostoiévski se referirá apenas ao ano da primeira publicação do livro em
russo (1929), e toda vez que a referência for ao texto O discurso no romance, presente em
Questões de literatura e estética, a data que surge é a da conclusão do original, conforme indicada
no próprio corpo do texto (1935).
Outra ressalva é necessária.
Nos quase dois anos que separam a redação da introdução deste trabalho e desta
página que escrevo agora, eu não consegui me disciplinar para aprender russo, o que
portanto, em minha sincera opinião, condena este trabalho a certa falta de rigor na leitura de
Bakhtin. Tentei minorar esta deficiência consultando traduções inglesas, recentes, dos textos
que utilizei, mas decidi fazer todas as citações pelas traduções portuguesas disponíveis. Não
336
faria sentido traduzir enviesadamente do inglês apenas para que minha consciência pudesse
se acomodar com tal ou qual distinção terminológica.
As traduções que empreguei foram escolhidas também pelo fato de terem sido os
textos em que primeiro deparei com a palavra de Bakhtin, textos com que convivi (anotando
e revendo) durante bastante tempo.
Ao menos uma delas tem problemas bastante sérios, mas mesmo assim acreditei ser
mais honesto me referir a estes textos.
A tradução de todas as citações ao texto de 1929, portanto, é de Paulo Bezerra e, do
texto de 1935, da equipe liderada por Aurora Fornoni Bernardini.
A eles, então.
337
iii. momice.
Todo o processo, todo o progresso que nos levou a cuidadosamente extrair do
Ulysses a minha versão do que poderia ser uma teoria da representação dos discursos naquele
livro em particular (assim como o introdutório e, em certo sentido, retórico capítulo anterior,
a respeito de Volochínov) pareceria ter-nos preparado para discutir com Bakhtin
especialmente neste terreno. Na arena do convívio das linguagens e de sua representação
artística.
No entanto mais uma digressão é necessária. E auto-explicativa depois que se expõe
seu tema
180
.
Até aqui o que pudemos falar da putativa relação entre Joyce e Bakhtin se deu quase
que exclusivamente (ainda não nos debruçamos sobre o texto de um deles) na esfera do
lugar-comum a respeito da filosofia do autor russo. Sabe-se, contudo, que boa parte dessa
filosofia pertence não apenas à esfera das noções comumente partilhadas mas também ao
domínio mais restrito (logicamente, conquanto quantitativamente mais amplo) das noções
vulgarizadas, semeadas sem discussão e sem reflexão
181
.
Pode mesmo ser que a mesma inconclusibilidade, a mesma dispersão dos conceitos
bakhtinianos tenha favorecido esse fenômeno que, ao menos no Brasil, em determinados
momentos tomou forma quase epidemiológica. Mas o fato é que certos termos, em certos
círculos, ganharam aquele estatuto mágico de palavra-fundadora, de palavra-mito, de logos.
Por mais que nada se saiba do que se fala.
E a principal dessas vítimas foi sem dúvida a noção de carnavalização. Pior que isso
(ou melhor, se pensamos em discutir a necessidade dessa digressão) o tal conceito é
absolutamente central para a discussão bakhtiniana da produção romanesca de Dostoiévski,
por sua vez central (como instrumento de descoberta e como ilustração máxima) a toda sua
teorização sobre o romance em sua forma mais elevada, por sua vez central, etc..
É uma frase que um curitibano pronuncia todo ano: não há como escapar ao
carnaval.
180
Pois é carnaval!!
181
os conceitos de polifonia e carnavalização, por exemplo, assim que se tornaram públicos no Ocidente foram
imediatamente aceitos, assimilados e repetidos de modo retumbante dos anos 70 em diante
(Tezza, 2003, p.182)
338
Mas então vamos ao tal do baile, mas circunspecta e profissionalmente. Você viu
um desfile de rua em Curitiba? Unidos da Sapolândia.
Chamaremos literatura carnavalizada à literatura que, direta ou
indiretamente, através de diversos elos mediadores, sofreu a influência de diferentes
modalidades do folclore carnavalesco (antigo ou medieval). Todo o campo do sério-
cômico constitui o primeiro exemplo desse tipo de literatura. Para nós, o problema da
carnavalização da literatura é uma das importantíssimas questões de poética histórica,
predominantemente de poética dos gêneros.
[...]
A primeira peculiaridade de todos os gêneros do sério-cômico é o novo
tratamento que eles dão à realidade. A atualidade viva, inclusive o dia-a-dia, é o
objeto ou, o que é ainda mais importante, o ponto de partida da interpretação,
apreciação e formalização da realidade. Pela primeira vez, na literatura antiga, o
objeto de representação séria (e simultaneamente cômica) é dado sem qualquer
distância épica ou trágica, no nível da atualidade, na zona do contato imediato e até
profundamente familiar com os contemporâneos vivos e não no passado absoluto dos
mitos e lendas. Nesses gêneros, os heróis ticos e as personalidades históricas do
passado são deliberada e acentuadamente atualizados, falam e atuam na zona de
contato familiar com a atualidade inacabada. Daí decorrer, no campo do sério-cômico,
uma mudança radical da zona propriamente valorativo-temporal de construção da
imagem artística. É essa a primeira peculiaridade desse campo.
A segunda peculiaridade é inseparável da primeira: os gêneros do sério-cômico
não se baseiam na lenda nem se consagram através dela. Baseiam-se
conscientemente na experiência (se bem que ainda insuficientemente madura) e
na fantasia livre; na maioria dos casos seu tratamento da lenda é profundamente
crítico, sendo, às vezes, cínico-desmascarador. Aqui, por conseguinte, surge pela
primeira vez uma imagem quase liberta da lenda, uma imagem baseada na
experiência e na fantasia livre. Trata-se de uma verdadeira reviravolta na história da
imagem literária.
A terceira peculiaridade são a pluralidade de estilos e a variedade de vozes de
todos esses gêneros. Eles renunciam à unidade estilística (em termos rigorosos, à
unicidade estilística) da epopéia e da tragédia, da retórica elevada e da lírica.
Caracterizam-se pela politonalidade da narração, pela fusão do sublime e do vulgar,
do sério e do cômico, empregam amplamente os gêneros intercalados: cartas,
manuscritos encontrados, diálogos relatados, paródias dos neros elevados, citações
recriadas em paródia, etc. Em alguns deles observa-se a fusão do discurso da prosa e
do verso, inserem-se dialetos e jargões vivos (e até o bilingüismo direto na etapa
romana), surgem diferentes disfarces de autor. Concomitantemente com o discurso de
representação, surge o discurso representado. Em alguns gêneros os discursos
bivocais desempenham papel principal. Surge neste caso, conseqüentemente, um
tratamento radicalmente novo do discurso enquanto matéria literária. (1929, p.107-
8)
339
Aqui, Bakhtin ainda, como ele mesmo deixa claro, mal começou a tratar das
especificidades, do núcleo duro das questões relativas à carnavalização, abordando com mais
destaque a caracterização do que chama de gênero sério-cômico (designação que, por si só,
daria muito que falar em uma discussão a respeito do Ulysses). E mesmo assim os pontos de
contato, como teríamos podido prever desde a abertura do nosso trabalho, guiada por
pessoas que precisamente navegam nas águas mistas das duas teorias, começam a se fazer
conspícuos e profícuos.
O último parágrafo da citação, se despido de suas marcas mais inequivocamente
históricas (como a menção a uma etapa romana) poderia ser uma descrição precisa e necessária
de boa parte das mais singulares características da estilística do Ulysses que, assim, deixam
automaticamente sua singularidade de lado. Multiplicidade, poli-estilismo, bivocalidade
(voltaremos a ela, embora seja bakhtinianamente coerente lançar conceitos teóricos sobre a
página e passar a defini-los, se tanto, apenas tangencialmente, e no correr do texto), são todas
características que, levadas a um paroxismo que mesmo Bakhtin teria tido dificuldades em
vislumbrar, marcam o Ulysses e o separam do grosso da produção romanesca sua
contemporânea e, por que não, sua sucessora.
Essa idéia, de que as categorias apontadas por Bakhtin em sua categorização do
romance (e lembremos que, no livro de 1929, toda a discussão da carnavalização e da
categoria genérica do sério-cômico está subordinada ao esboço de uma pré-história do
romance, visto como ápice de toda uma tradição popular, democrática) não apenas encontram
sua melhor representação em James Joyce, mas, mais do que isso, são como levadas a um nível
de exagero (muito cuidado com as palavras..) que na quase totalidade das vezes trai sua
autoconsciência, ou seja, a manipulação consciente de uma tradição (manobra de resto
tipicamente joyceana), com a finalidade de não apenas exemplificá-la mas questioná-la, pode
ser vista com ainda mais clareza no trecho do passo bakhtiniano que se refere à lenda, ao
mito.
Pois se a pulverização da unidade estilística é aqui não uma característica mas um
verdadeiro princípio de trabalho, e se isso mostra uma vontade de ser menos real que os plebeus,
o que podemos dizer da complexa problematização da relação lenda/realidade-circunstante
que o Ulysses promove em sua mágica equação do publicitário corno com o de muitos ardis?
De poucos livros se pode dizer com tamanha segurança que estejam dedicados à vida
cotidiana, ao fazer prosaico (veja só) e imediato do dia e das companhias imediadas de cada
340
dia. Poucos livros são mais cotidianos que este, que se pretende um retrato exaustivo de um
dia basicamente ordinário, na vida de uma comunidade (e de uma família, um casal) que nada
têm de excessivamente incomum. E no entanto, muito ao invés de se apoiar na sólida idéia
(conforme esboçada por Bakhtin na sua caracterização do gênero) de que esta decisão
implica um afastamento da lenda e uma negação do universo por ela representada, Joyce, em
um genial coup de plume, mete na capa de seu livro uma única palavra, que nos força a reler
esta trama com novos olhos, a ver sob a pele do vulgar Leopold Bloom escondido o coração
do laércio rei de Ítaca.
Ele nos força a pensar que a mesma distinção entre lenda e vida, marcada tão
positivamente pela negação imanente à tradição sério-cômica, pode ou deve ser levada a
sério. Que, no final, é de intrigas, de adultérios, de tarefas cotidianas que trata a mitologia
olímpica. Que o pensamento mítico é apenas uma forma de dar fôrma à inapreensível
realidade, exatamente como a mecânica romanesca, que o subsume, o resume e o comprime.
O romance, em Joyce, está maduro o suficiente (lembremos novamente que o que
Bakhtin efetivamente aborda é um momento de formação) para que a negação de seu
contrário não precise mais ser uma questão de afirmação de suas especificidades. Ele pode,
mais ainda do que a mera assunção do diverso, do contrário e do vário como seu tema
poderia fazer esperar, assumir-se ele mesmo como múltiplo, como contraditório e todo-
absorvente
182
.
Isso vale dizer, portanto, que a definição (ainda em germe) que Bakhtin começa a
traçar para o romance não serve para Joyce? Apenas para quem o quiser ver a diferença
entre negar e sublimar.
Se não, vejamos outro trecho (1929, p.123-4) mais diretamente ligado à idéia do
carnaval, propriamente dito
183
.
No carnaval forja-se, em forma concreto-sensorial semi-real, semi-
representada e vivenciável, um novo modus de relações tuas do homem
com o homem, capaz de opor-se às onipotentes relações hierárquico-sociais da vida
extracarnavalesca. O comportamento, o gesto e a palavra do homem libertam-se do
poder de qualquer posição hierárquica (de classe, título, idade, fortuna) que os
182
Difícil aqui não lembrar a invocação que abre o capítulo 4 do Finnegans Wake, que se refere à divindade
como mistericordiosa, portadora de plurabilidades.
183
E qualquer um que já tenha visto bundalelê generalizado que pode ser uma festa de São Patrício ou mesmo
uma mera sexta-feira, ou um sábado de rúgbi em Dublin sabe que o carnaval é algo que os irlandeses conhecem
tão bem quanto nós.
341
determinava totalmente na vida extracarnavalesca, razão pela qual se tornam
excêntricos e inoportunos do ponto de vista da lógica do cotidiano não-carnavalesco. A
excentricidade é uma categoria específica da cosmovisão carnavalesca, organicamente
relacionada com a categoria do contato familiar; ela permite que se revelem e se
expressem –em forma concreto-sensorial– os aspectos ocultos da natureza humana.
A familiarização está relacionada à terceira categoria da cosmovisão
carnavalesca: as mésalliances carnavalescas. A livre relação familiar estende-se a
tudo: a todos os valores, idéias, fenômenos e coisas. Entram nos contatos e combinações
carnavalescas todos os elementos antes fechados, separados e distanciados uns dos
outros pela cosmovisão hierárquica extracarnavalesca. O carnaval aproxima, reúne,
celebra os esponsais e combina o sagrado com o profano, o elevado com o baixo, o
grande com o insignificante, o sábio com o tolo, etc.
A isso está relacionada a quarta categoria carnavalesca: a
profanação
.
Esta é formada pelos sacrilégios carnavalescos, por todo um sistema de descidas e
aterrissagens carnavalescas, pelas indecências carnavalescas, relacionadas com a força
produtora da terra e do corpo, e pelas paródias carnavalescas dos textos sagrados e das
sentenças bíblicas, etc.
Ora, agora não há muito que o caia por terra. A conduta, muito especialmente, de
Leopold Bloom é, durante todo o dia marcada por uma considerável sensibilidade às
realidades hierárquicas e às convenções sociais.
Seu único momento de subversão carnavalesca encontra-se, talvez, pouco mais que talvez,
naquela erupção de raiva no bar, diante de um ciclope anti-semita e tacanho. Mas mesmo
isso é muito pouco.
E o que dizer da compenetrada seriedade de Dedalus?
Os personagens principais do Ulysses passam um dia basicamente acarnavalesco.
Um dia, sim.
Mas e a noite?
Pois, como ficou insinuado no momento em que discutíamos a citação anterior (e
como a crítica sobre o livro cansou de afirmar) pode-se de várias maneiras e em diversos
momentos pensar o Ulysses como, mais do que um romance, uma declaração, uma tomada de
posição a respeito de toda a tradição romanesca. Como Bakhtin, ele está interessado não
apenas em um romance, mas naquilo que naquele momento constitui e anteriormente pôde
constituir a tradição romanesca, de que ele (mais óbvio do que em qualquer lugar no Gado do
Sol) se considera não apenas lídimo representante como também conclusão quase inevitável.
Se boa parte do Ulysses diurno (ou, para sermos mais precisos, do Ulysses matutino,
visto que logo depois do almoço nosso conhecido amigo bagunçador de estruturas começa a
dar as caras) pode ser lida como um comentário e um desenvolvimento (essa é a cristalização
342
do processo que vamos abordar aqui em referência a muitas coisas diferentes: comentário e
desenvolvimento) da tradição do romance realista, matizado contudo, o comentário, pela
subversiva (arbitrária? incrivelmente autoritária) inclusão em seu mundo de uma sombra da
mitologia clássica
184
e pela radical bivocalidade de cada palavra, de cada enunciação, o que
solapa uma das bases mais estáveis do romance realista quadrado, à medida que o sol desce de
seu apogeu, o livro mergulha em mundo noturnamente pervertido, carnavalizado
185
.
E aqui é necessário separarmos duas coisas, pois Joyce, mais uma vez, vai nos levar a
estender a problematização a um nível mais alto.
Primeiramente consideremos o assunto do ponto de vista do enredo, das situações
representadas, o que é basicamente o que faz Bakhtin quando comenta em Dostoiévski a
presença dessa difusa ideologia carnavalizada: mostrar em determinadas situações, em
quadros recorrentes em cada um dos romances, que o ideário, a chave carnavalizante, está
presente na concepção de seu mundo.
É com base nesse tipo de procedimento, por exemplo, que ele pode argumentar,
analisando certa cena que se desenrola em um vagão de trem
tivemos oportunidade de observar que o vagão de terceira classe, à
semelhança do convés do navio na menipéia antiga, é um substituto da praça onde
pessoas de diferentes posições sociais se encontram em contato familiar entre si. Assim
se encontraram aqui o príncipe miserável e o comerciante milionário. (1929,
p.176)
Ao que poderíamos com muita facilidade responder invocando a abertura do episódio
dito Hades, em que em uma mesma carruagem alugada reunimos não menos significativa
amostra, em microcosmo, da sociedade que habita aquela cidade e, automaticamente, este
livro.
No entanto vale lembrar que é por Hades que nos referimos a este episódio. Vale
lembrar que ele, em um certo nível, um nível que não pode ser contornado depois de nos
termos dado conta daquela subversão original, representa de fato uma descida ao inferno, todo
um sistema de descidas e aterrissagens carnavalescas.
184
E aqui vale lembrar o estatuto já originalmente rico e ambíguo de Ulisses que, como Édipo, por exemplo, é
simultaneamente mito e tradição literária.
185
Neste sentido radicalmente modernista, mesmo acima de ser moderno, o Ulysses em inúmeras ocasiões nos
aparecerá não apenas como cume de qualquer processo, mas como reflexão e especularização sobre e desse
mesmo processo no que tenha de narratividade histórica.
343
Aqui, ainda muito suavemente, o livro começa a nos mostrar que catar nele exemplos
dessa ideologia carnavalizada de ser mais fácil, muito menos tortuoso e dependente-da-
leitura-do-crítico que em Dostoiévski. Se concordamos que a leitura, digamos, anagógica, do
Ulysses é um elemento que não pode ser posto de lado sem mais, devemos assumir que aqui a
metáfora da descida carnavalesca é levada a um nível mais complexo.
A rota
186
rumo ao cemitério no tal vagão de terceira classe poderia (com sobras) ser
vista como elemento demonstrativo da presença dessa ideologia de fundo. Mas, ainda mais
do que isso, devemos lembrar que, neste livro, graças a um de seus princípios fundamentais e
fundadores, devemos pensar nesse caminho, também, como o caminho que efetivamente
leva ao inferno, ao reino dos mortos.
Mas, facilidade por facilidade, sequer precisamos de Hades ou dos outros catorze
episódios do livro para argumentar em favor da existência dessa função em sua cosmovisão.
Circe, só, seria suficiente.
Pois ali todas as indecências, todas as inversões de papéis, toda a anarquia, a familiaridade,
a subversão carnavalesca acontecem não em um nível profundo da interpretação do texto,
mas na superfície mesmo da página.
Se devemos pensar que a ação carnavalesca principal é a coroação bufa e o posterior
destronamento do rei do carnaval. (1929, p.124), aqui não teremos necessidade de encontrar
ações que, metaforicamente, sugiram um tal processo. Bloom se de fato carregado nos
ombros da multidão e fundará a utópica Nova Bloomusalém novae hiberniae futuris. E, ainda, ele
será obviamente destronado e, mais do que isso, execrado por essa mesma população em
questão de poucas páginas.
Isso apenas dentro da materialidade do enredo do livro.
Se ao comentar as características de outro gênero que julga estar na base da formação
da romanesca moderna Bakhtin pode afirmar que os heróis da menipéia sobem aos céus, descem ao
inferno, erram por países fantásticos, são colocados em situações extraordinárias reais (1929, p.114), nós
podemos responder que no Ulysses, livro essencialmente realista de uma forma algo
pervertida, livro em que ninguém se transforma em abóbora, também seu herói sobe aos
céus (na conclusão do Ciclope, que aproveita para tirar uma da linguagem bíblica), desce ao
inferno (e conversa com os mortos), erra por uma terra fantástica (pois pisa as areias dos
Feácios em Sandymount, encontra lupanares em que o mundo se vira ao contrário e conhece
186
Cacófato carnavalizado!
344
navegantes que viram canibais) e, definitivamente, é colocado em situações as mais
extraordinárias, sem, no entanto, escapar por um momento da mais normal e rotineira vida cotidiana de
seus pares.
Pois não podemos esquecer que essa materialidade, essa verificabilidade, por assim
dizer, está como que sujeita a novas regras, maiores, no Ulysses.
Pois se o passeio no coche que seguia o féretro de fato ocorreu na realidade de Bloom,
enquanto que a leitura que chamamos de anagógica forçava também uma leitura metafórica do
mesmo episódio, em Circe a relação entre metáfora e fato se encontra completamente de
pernas para o ar. Ela mesma carnavalizada.
Pois é claro que, se supusermos como quadro de realidade a percepção por Bloom
dos eventos que o cercam e que “”efetivamente”” “””””acontecem”””””, nada daquilo que
está na superfície imediata da página de Circe chega afetivamente a acontecer. Como no Gado
do Sol (outro exemplo muito melhor que a encomenda de destronamento), é por trás da
narrativa que efetivamente se produz que devemos buscar a realidade não-carnavalizada. É
necessário aqui encetarmos uma leitura catagógica que desça da metáfora feita fato para
buscar, por trás dela, seus antecedentes, factuais.
E é este o segundo momento que nos vemos forçados a analisar na relação do Ulysses
com o conceito de carnavalização.
Joyce, vimos com sobras no que se refere a sua técnica de representação de vozes,
não gostava de manter um recurso poderoso apenas no nível da técnica de representação.
Ele não apenas se servia das ferramentas que (quase todas elas, veremos) Bakhtin
considerava fundamentais para a constituição do romance como gênero independente: ele as
sublimava em personagens, em membros ativos da trama romanesca, com os mesmos
direitos nela que as outras instâncias.
O que o Ulysses, em sua trajetória do duplo nascer do sol ao infinito nascer do sim de
Molly Bloom pode representar, no que tange a também este recurso, é a epifania da
carnavalização, que de recurso passa a método, de fundo passa a tela.
Afinal, escrever um conto com a técnica de Circe, ou do Gado, ou um romance com
as recorrências do imaginário carnavalesco que, graças ao paralelo homérico, podemos
encontrar em Hades demonstraria que ele, como poucos, estava inserido nesta tradição. Fazer
dela um livro que demonstra claramente uma consciência desse processo enquanto processo o
345
coloca no mesmo nível de Mikhail Mikhailovitch como pensador da história do romance, e
um passo à frente de Dostoiévski como (pós-)modernidade.
Ele não apenas estava lá. Ele sabia disso. Pensava sobre isso.
E tal fato fica mais do que claro mesmo se pensarmos apenas na essência do método
mítico como o estamos utilizando até aqui, pois pouco pode haver de mais
carnavalizantemente destronador do que a colocação rei de Ítaca no mesmo nível de L.
Boom. O método que início a toda a formulação joyceana neste livro é, pois, ele mesmo
simultâneas reflexão e proposição sobre a tradição romanesca, narrativa. E começa ele mesmo
a questionar, também, a estabilidade deste gênero.
Se pensarmos como Bakhtin, afinal, teremos de separar a epopéia do sério-cômico,
como geradores de duas tradições diversas, assim como teríamos de separar, neste, a lenda
da realidade comezinha. Mas Joyce, em seu über romance, não parece estar dando muita
pelota a tais requisitos de estabilidade de um gênero que, Bakktin seria o primeiro a
concordar, se constitui precisamente a partir da absorção e da negação de limites e
estabilidades.
Mais uma vez, não é negando o anti-romanesco que Joyce firma seu romance, mas
sim incorporando-o a este tecido que havia provado poder incorporar quase tudo. Mais
bakhtiniano que a definição bakhtiniana de romance (ainda por vir) ele sabe que o romance
pode mais do que ela.
*
A discussão bakhtiniana da carnavalização e de sua importância para a criação da
tradição romanesca nos interessa aqui apenas neste último aspecto. Ela na verdade está algo
destacada da discussão que este trabalho, desde seu título, anuncia.
Mas, vejamos.
A discussão das hipóteses volochinovianas a respeito da representação do discurso
alheio no romance (convenhamos..) havia de se ver ligada umbilicalmente a nossas hipóteses
e a nosso exercício efetivo de análise. No entanto verificamos com alguma facilidade que não
seria bem assim, que as proposições de cunho mais formalizante de Volochínov seriam
como que insuficientes para tratarmos de nosso problema.
346
Bakhtin ele-mesmo parece responder melhor às comparações com Joyce, e era a isso
que se referiam Kershner e Bookner. E, se a tentativa de formalizar uma técnica glosando
suas possibilidades e exemplificando seus usos pode se ver farta e rapidamente ultrapassada
para e pela análise do texto de um livro que estava publicado e traduzido quando o texto
de Volochínov vem a público, a mera vista d’olhos sobre uma categoria formulada pelo
menos-formalizante Bakhtin, categoria que diz mais respeito à essência da concepção de
mundo por trás do surgimento da estética romanesca, nos faz ver que o diálogo com Joyce
pode ser, sim, proveitoso, para ambos os lados.
Não parece que vá ser difícil demonstrar, como dissemos querer, que a leitura
contrastiva de Joyce e de Bakhtin ganha mais se feita de igual para igual, buscando não apenas
aplicar as categorizações bakhtianas (mais uma vez, e mais uma vez algo a-contra-pêlo) a
mais um autor que Bakhtin não pôde, ou não quis, estudar, mas sim mostrar que, depois de
vencidas as barreiras que de início podem impedir a conversa entre textos de naturezas, de
gêneros diferentes, estes dois pensadores podem ter muito o que dizer um ao outro.
Neste caso específico, a obra de Joyce não ganha muito se lida através das lentes do
histórico processo de carnavalização de Bakhtin. As conclusões a que essa leitura pode
chegar são demasiado óbvias se buscadas nos mesmos níveis de análise propostos e
mostrados por Bakhtin.
Ela pode, sim, servir para mostrar a verdade daquela afirmação inaugural, de que a
maioria dos conceitos bakhtinianos parece ser melhor exemplificada por Joyce. Ou, a bem da
verdade, pode mostrar o quanto ainda de potencial, de não-explorado nas idéias
bakhtinanas, pois nessa pôde.
Do confronto (sumário, é bem verdade) dos dois textos, é a categoria bakhtiniana
que sai enriquecida, que passa, agora, a poder qualificar muito mais.
347
iv. Cinzas
Mas, agora, é a hora.
Valei-me, confrades.
Circundamos o essencial, vimos que pouco Bakhtin é pouco para Joyce e que certo
Bakhtin tangencial a nosso tema mais estrito pode ser pouco para Joyce. Mas a teorização
mais diretamente concernente ao universo que buscamos abordar desde o início agora
tocamos de frente.
Se Bakhtin foi um teórico do romance que soube fazer ver neste nero muito mais
que um simples modo literário, toda uma visão de mundo subterrânea, anti-oficial, legítima
portanto em muitos sentidos, que trafega durante toda a história da literatura na contramão
dos gêneros elevados, ao mesmo tempo mordendo pelas bordas essa mesma tradição até que
os quadros históricos permitam sua ascenção como forma de arte que simbolize um seu
tempo, foi precisamente na obra de Dostoiévski que ele pôde encontrar como que a
realização de um seu sonho que ia muito além de um desejo de encontrar uma determinada
forma estética realizada desta ou daquela maneira.
Dostoiévski, para Bakhtin, foi, como lembra Tezza (2003, p.185), a realização
possível de um projeto ético (muito mais do que estético) que talvez fosse impossível
naquele momento, dadas as condições do império soviético que se começava a montar;
talvez fosse de fato utópico
187
. Dostoiévski, mais do que um romancista (ou precisamente
por ser um romancista extremo, se considerarmos os quadros de avaliação e de concepção
da natureza do romance dentro da mesma filosofia bakhtinana), passava a ser a efetivação de
um ideário a respeito da natureza da linguagem humana e da representação estética (agora
sim) dessa realidade segundo um modelo que não desmentisse (meramente isso) sua natureza
mais específica, que não falseasse por meio da insustentável figura do artista na obra o grão
mais duro e mais singular da verdade da língua como fato social e multivalorado(/-ável).
187
E não é de todo singular a sensação, durante a leitura dos textos mais programáticos de Bakhtin, de que o
mundo descrito por ele pode não corresponder ponto a ponto a alguma situação que se queira descrever, mas
parece definitivamente um mundo desejável. E está na fronteira dessa desejabilidade de certos valores descritos por
Bakhtin, no fato, marginal, mas que se reveste de imensa importância dada a quantidade de apropriações que se
apóia neste ponto, de que algumas de suas descrições parecem revestir automaticamente de um valor positivo
seus objetos, o que parece acarretar, via negativa, uma avaliação indesejável para seus contrários. É com base
nessa idéia bastante simples, por exemplo, que Tezza, no mesmo livro, conseguirá começar a deslindar parte do
mistério que se propõe como tema.
348
É por essa mesma unicidade de Dostoiévski que ele vai necessitar elaborar para ele
uma teorização de exceção, mas não de exceção em relação a suas próprias concepções a
respeito do romance (plasmadas, elas mesmas, com um olho no peixe e outro em
Raskólnikov), concepções que a bem da verdade quase classificam como exceções todo o
restante da literatura romanesca, se pensarmos nessa forma como uma questão de qualis e
não de quantum. O que Dostoiévski tem de excepcional (pun intended) é o fato de mostrar a
inadequação da análise literária tradicional que se pretenda debruçar sobre suas obras.
Visto por Mikhail Mikhailovitch, Dostoiévski simplesmente não cabe na teoria
literária que o antecedia; ele (ambigüidade intencional) precisa fundar uma nova crítica, uma
nova teoria, numa situação em tudo e por tudo semelhante àquela que, naquele mesmo
momento, a crítica da Europa ocidental vivia em relação a um curioso livro azul publicado
em Paris.
Mas, a ele, que acredita de fato que
As peculiaridades da poética de Dostoiévski, que tentamos mostrar nos
capítulos anteriores, subendentem, evidentemente, um enfoque totalmente novo das
manifestações do gênero, do enredo e da composição na obra dostoievskiana. Nem o
herói, nem a idéia e nem o próprio princípio polifônico de construção do todo cabe nas
formas do gênero, do enredo e da composição do romance biográfico, psicológico-social,
familiar e de costumes, ou seja, não cabe nas formas que dominavam na literatura da
época de Dostoiévski e foram elaboradas por contemporâneos seus como Turguêniev,
Gontchárov, L. Tolstoi. Comparada à obra destes escritores, a obra de Dostoiévski
pertence a um tipo de gênero totalmente diverso e estranho a eles. (1929, p.101)
Ou seja, estamos realmente diante de um teórico (lembremos que a idéia de que
Dostoiévski podia ser para ele muito mais que um objeto de análise literária é uma leitura
posterior, o é a forma como ele apresenta seu tema, afinal) que, precisamente como a
crítica que encara o Ulysses desde a publicação do livro de Gilbert, tem de se haver com algo
que parece em nada negar a natureza do modelo romanesco, mas que definitivamente recusa
caber em qualquer dos moldes pré-existentes de romance.
Um romance que parece reinventar o romance.
Pois as formas que foram elaboradas por James, Dickens, Hardy, igualmente não
servirão para dar conta da leitura do Ulysses.
A hipótese que, no entanto, parece ter animado certa parcela dos teóricos
bakhtinianos que resolveram ler Joyce é a de que este específico modelo de crítica, este
349
modelo específico de romance, desenvolvido neste caso específico, poderia, sim, ter muito
que dizer sobre Joyce.
Bakhtin, afinal, foi um teórico que teve uma assimilação tremendamente truncada e
bastante lenta tanto em sua terra quanto no Ocidente, o que poderia explicar o fato de que
seus modelos não tenham sido evocados para explicar a obra de Joyce, ou de que a obra de
Joyce não tenha sido chamada em defesa das categorias bakhtinianas nos momentos em que
porventura tenha parecido pouco brilhante seu futuro
188
.
Além disso, a Europa ocidental soube ser bastante autocentrada na atribuição de
filiações e na criação de linhas de desenvolvimento, e não seria nada estranho a exclusão de
um autor russo do cânone estabelecido para a definição dos limites e das possibilidades, em
um dado momento, da forma-romance como se a podia conceber
189
.
Mas, a ver, então, que similaridades seriam essas, se similaridades forem elas.
O que seria esse singular romance oitocentista inclassificável. Parte a parte.
De início Bakhtin destaca em Dostoiévski uma característica que, hoje, diríamos
apontar para uma radical modernidade, e que certamente encontra seu eco na igualmente
singular obra joyceana: o fato de que o autor russo tende a conceber o todo de suas
construções romanescas como algo baseado essencialmente na coexistência, como um retrato
de uma multiplicidade simultânea.
A categoria fundamental da visão artística de Dostoiévski não é a de
formação mas a de coexistência e interação. Dostoiévski via e pensava seu mundo
predominantemente no espaço e não no tempo. (1929, p.28)
De saída note-se que essa mera constatação, que, detida aqui, diria algo mas não
criaria muito, aponta por sua mesma natureza para dois outros fenômenos fundamentais que
veremos desenvolvidos mais longamente à medida que caminhemos. Pois que a idéia de
188
Não custa lembrar, por outro lado, haver uma fatia não menos significativa dos estudiosos de Bakhtin que,
reconhecendo o fato de que seu instrumental para a análise do romance foi de fato retirado de um autor
específico, tendo portanto sido criado (na mesma e precisa medida em que se pode dizer o mesmo do
instrumental que derivamos de Joyce na primeira parte deste trabalho) ex libro, tendem a não crer
demasiadamente na possibilidade da aplicação desmedida dos rótulos ou categorias bakhtinianos a outros autores.
Tal posição, em minhas leituras, fica melhor exemplificada por Tezza (2003, p.181ss), obra que, de resto, me
interessa seguir de perto.
189
A bem da verdade essa postura segue mesmo hoje algo inalterada (mas que os deuses mantenham longe de
mim o fantasma do multiculturalismo), o que se pode ver na facilidade com que se escanteia Dostoiévski da
linha de inovadores da forma romanesca. Ele, que em muito parece ter se antecipado ao mesmo Flaubert, seu
absoluto contemporâneo.
350
coexistência acarreta necessariamente a de multiplicidade. A fragmentação do centro de
avaliação e do foco.
Se a divindade neoplatônica institui o humano ao escorregar da eternidade e fundar o
tempo, podemos dizer que é apenas ao escorregar da trilha central do eu, ao olhar à volta,
que se institui a humanidade, o múltiplo no tempo. Eu sou no tempo, nós somos no espaço.
Tal constatação, aparentemente banal, aponta já para o que será a copernicana
(galileana, como prefere Mikhail Mikhailovitch) criação de Dostoiévski, de um romance que
não se centre mais na linha única do desenvolvimento do eu no tempo, mas sim, e
precisamente, nesse olhar à volta que define o espaço, o outro, o múltiplo.
Fora isso, lembre que na secular busca de universais lingüísticos a coisa mais próxima
de uma característica que inquestionavelmente pertença a todas as línguas humanas que se
pôde encontrar é precisamente o fato de que elas se desenvolvem no tempo. Por mais que
características supra-segmentais (o acento tonal, por exemplo) possam determinar uma
ligeira insinuação de acordes na melodia da linguagem, é sempre no contínuo da linearidade
temporal que se desenvolve a linguagem. E a prosa. E o romance.
A insinuação desse elemento de simultaneidade, contrário à índole da língua e da
narrativa oral (que embasa o surgimento de toda a literatura poética, oposta ao romanesco,
palavra escrita) gera uma primeira sombra de musicalidade, que, muito em breve, regerá a
entrada da polifonia no tecido desta argumentação.
Mas pensemos que, acima de tudo, Bakhtin atribui a Fiódor Mikhailovitch
190
tais
características e tais preocupações principalmente no processo de negar, nele, a ênfase
naquela formação que aparece tematizada desde o início. Muito ele ainda dirá sobre uma
característica que tem muito a nos dizer nessa tentativa de comparação: sobre o fato de que
o herói dostoievskiano nos é sempre e necessariamente apresentado como inconcluso mas
pronto em sua inconclusibilidade. Ou seja, ele não está acabado e, muito especialmente, o
voz outra que se possa ver em posição de lhe conferir, de fora, algum acabamento.
Porém, essa situação em que o encontramos na narrativa, não é vista na narrativa como fruto
de um processo de desenvolvimento. O herói dostoievskiano nos é apresentado em um
eterno presente, sem passado, e impossivelmente futurizável.
190
Você me desculpe, mas é tão divertido ficar usando esses patronímicos.
351
Aqui o dinamismo e a rapidez (como aliás em toda parte) não são um
triunfo do tempo mas a sua superação, pois a rapidez é o único meio de superar o
tempo no tempo. [...] Por isso as suas personagens também não recordam nada, não
têm biografia no sentido do ido e do plenamente vivido. [...] Cada atitude da
personagem está inteiramente no presente e neste sentido não é pré-determinada; o
autor a concebe e representa como livre. (1929, p.29)
Tudo isso, de saída precisa ser dito, é muito estranho de ser visto por (e, ou, para)
Leopold Bloom, que tem biografia, tem todo um passado que vamos recompondo
gradativamente (nesse sentido o Ulysses é também, frise-se, uma negação da formação linear
no tempo) no presente do dia 16 de junho, mas que obviamente o conforma e o define,
fazendo com que seus atos e reações, pouco a pouco, passem a ganhar novas luzes e novas
possibilidades de leitura.
A curiosa maneira que Joyce, assim, encontrou para superar no mesmo quadro que
enfatiza a simultaneidade as limitações que representa a apresentação de um personagem todo
presente, plasmando um passado que surge em espiral de dentro desse momento presente,
gerando uma imagem do fluxo do tempo que devemos, contudo, reconstituir fora do tempo
presente e, neste sentido, estático, da narrativa, atraiu não pouca atenção. Há sites de
internet, livros que tentam desembaralhar e apresentar linearmente a cronologia da vida
dos Bloom, ou a cronologia da vida de Dedalus entre Um retrato e o Ulysses. Mas, em
momento algum (ao contrário do que vimos em Um retrato) elas nos foram de fato
apresentadas desta maneira.
O Ulysses consegue se apresentar como simultaneamente simultaneísta e radicalmente
cronológico, e tal paradoxo pode muito bem se ver ilustrado pela convivência, em um
mesmo livro, de um episódio que cronometra rigorosamente
191
o passo de dezenas de
caminhantes que se cruzam com aquele monumental salto cronológico que faz com que o
sol de fato renasça na Dublin de 16 de junho; o absoluto biorritmo coerente do progressivo
entardecer do Ulysses com a negação de qualquer linearidade narrativa formativa.
O presente do Ulysses é um dia, seu espaço é uma cidade. Bloom e cia. não existem
fora deles. Mas, neles, existem com tudo que neles existe e que os faz existir, e o passado tem
um peso enorme para cada um deles, pessoas e cidade.
Essa virada que a leitura do Ulysses nos permite dar na formulação bakhtiniana se
apóia em dois elementos que corremos o risco de aceitar gratuitamente na citação acima.
191
cf. Hart, 2000
352
Pois, de um lado, temos de concordar, hoje, que aceitar que a velocidade é o único
meio de vencer o tempo é algo que podemos facilmente aceitar em Bakhtin, nos turbulentos
anos vinte do mundo e da recém-nascida URSS, mas nos é praticamente impossível deixar
de concordar que essa afirmação tem o mesmo (todo e nenhum) valor de verdade que sua
antípoda: a lentidão é o único meio de vencer o tempo.
Afinal não meio de vencer o tempo. E ambos podem nos dar noções de sucesso
que representam fatias, aspectos dessa superação impossível. Joyce opta pela detenção. Por
um dia que dura centenas de páginas, que lhe fornece espaço para incluir no átimo do
presente o infinito do passado. A seu gosto.
De outro, me é especialmente duro aceitar a equação de liberdade e privação de
passado, que novamente podemos atribuir com alguma facilidade à ideologia reinante em
torno e durante M.M.Bakhtin. Um homem todo presente é obviamente uma vítima. Um
homem sem memória é um aleijão. E é claro que tais noções, que podem ter começado a
surgir no século XVIII, nos são especialmente caras, hoje, como fruto da mesma alta
modernidade que gerou Ulíanov, mas o fato é que nos são centrais, incontornáveis.
Tanto para homens como para personagens.
A apresentação de Raskólnikov como desprovido de passado é, de saída,
questionável (ele tem uma família; isso basta). Mas lembremos que o texto de Bakhtin
enfatiza o fato de que eles não se lembram ou, mais precisamente, não evocam. Vivem esse
presente como tal. E é apenas nesse sentido que podemos pensar o adjetivo livres aplicado a
esses personagens.
Mas, mesmo nesse sentido, temos de reconhecer que hoje, em 2006, parece algo
ilusória a mera noção de que tais personagens pudessem efetivamente desfrutar dessa
liberdade de ideólogos apagando seu passado
192
.
Podemos conceber Bloom como livre porque auto-definido (sem receber de fora
qualquer acabamento), mas como livre porque completo. Ou seja, livre apenas no sentido
pragmaticamente atualizável da palavra. Pois que a liberdade que Bakhtin queria ver nos
personagens dostoievskianos parece, algo perigosamente, aproximá-los do estatuto de
192
Irônica referência sutil e enviesada a processos fotográficos de apagamento não-gratuito.
353
megafones que permitam a encenação de um romance filosófico que precisa de elenco para sê-
lo
193
.
A possibilidade (algo sombria) de que neste primeiro momento Bakhtin se tenha
deixado levar pela empolgação em ver realizada sua ética e não tenha visto o que ele mesmo
poderia, em outras circunstâncias, ter considerado uma falha da representação dostoievskiana
ganha alguma força se nos detemos sobre o exemplo seguinte, uma das únicas ocasiões em
que o nome de Joyce (de maneira tudo menos tendenciosa, na palavra de outro,
convenientemente recortada) aparece em sua obra.
“Diferentemente do psicologismo degenerado e decadente como o de Proust ou
Joyce, que marca o ocaso e a morte da literatura burguesa, o psicologismo de
Dostoiévski, em suas criações positivas, não é subjetivo mas realista. Seu
psicologismo é um todo artístico especial de penetração na essência objetiva da
contraditória coletividade humana, na própria medula das relações sociais
que inquietavam o escritor, é um método artístico especial de reprodução de tais
relações na arte da palavra... Dostoiévski pensava por imagens psicologicamente
elaboradas mas pensava socialmente
A compreensão precisa do “psicologismo” de Dostoiévski como visão realista-
objetiva da coletividade contraditória das psiques dos outros leva conseqüentemente
Kirpótin à correta compreensão da polifonia de Dostoiévski, embora ele mesmo não
empregue esse termo.
“A história de cada ‘alma’ individual é dada... (1929, p.38)
Compreende-se facilmente que na recusa a um psicologismo subjetivo repouse a
ênfase desta teorização literária, aqui, (que me desculpem as vozes contrárias) marcadamente
marxista. Agora, que não escape a qualquer leitura a percepção de que a distinção entre
psicologismo subjetivo e realista tem, ela mesma, muito mais do primeiro que do segundo.
Pensar os retratos elaborados por Dostoiévski como retratos do psiquismo social é
plenamente válido, mas é difícil não deixar de considerar nessa formulação a presença do
autor como meio externo, como pensador que se debruça sobre a sociedade. É mais fácil ser
igual de um igual. Uma consciência subjetiva exercitando-se sobre, ou em torno de outra(s)
posso compreender gerar o convívio da multiplicidade como democracia. Uma consciência
que, por princípio de análise, devo considerar como social ela mesma, debruçando-se sobre a
193
Uma outra referência irlandesa quase inescapável nesse momento, por sua mesma auto-explicação, é a de
Michael Furriskey, personagem do maravilhoso At Swim-two-birds de Flann O’Brien que, muito adequadamente,
em um livro sobre um escritor que escreve um livro sobre um escritor que escreve um livro, aparece na página
como um homem adulto (ele é um personagem, afinal, diria Dostoiévski?) e acha muito estranho isso de nascer
assim maduro e pronto.
354
coletividade também ela social não é, afinal, outra coisa que não um outro jeito de ver a
mesma coisa. Trata-se de recortes filosóficos diversos e, em última análise, de uma barreira
intransponível.
Mas, para o leitor, curiosamente, não sei se Raskólnikov não pode parecer mais
próximo do solipsismo que Leopold Bloom. O ideólogo livre de Dostoiévski é, na mesma
medida, fruto inequívoco do social, e, por sua mesma e pretensa liberdade, entidade central,
feixe de perspectivas.
Vê-se em que medida podemos realmente defender que neste momento, no que se
refere à importância dessa a-historicidade como constituidora da liberdade da plenitude do
personagem social de Dostoiévski, Bakhtin possa ter deixado o ideólogo falar mais alto que
o crítico literário dotado de algum rigor analítico no fato de ele declarar que Kirpótin teria de
fato percebido acuradamente a natureza da polifonia dostoiveskiana (conquanto não a tenha
identificado) apesar de este se calcar na afirmação de que o que singulariza Dostoiévski é
apresentar a história de cada “alma” individual, negando diretamente a presentidade e o não-
subjetivismo
194
que ele mesmo identifica em seu autor.
Aquela empolgação que Tezza tão corretamente identifica no pensador que
encontrou a exemplificação de um modelo teórico na produção artística, e que tão
inevitavelmente compreendemos neste pensador pode, efetivamente, trazer seu lado
questionável.
Mas isso não resolve (seria simplório considerar que a demonstração dessa espécie de
aporia poria de lado a questão) o problema do psicologismo de Dostoiévski, e muito menos
o de sua relação com os personagens de Joyce.
Mais adiante, é ao mesmo Fiódor Mikhailovítch que Bakhtin recorre, o que pode nos
ajudar a pôr o dedo algo mais próximo de algum ponto fulcral nesta questão.
Em pleno fim de sua trajetória artística, Dostoiévski assim define em seu
caderno de notas as peculiaridades do seu realismo:
194
Esse passo, aliás, destaca um outro paradoxo ao menos teminológico. Pois em diversos momento Bakhtin
sintetizará a idéia de que o autor não pode fornecer acabamento ao seu herói na imagem da impossibilidade de
sua objetificação. Ele não pode ser objeto de outra consciência. Se, contudo, ele não pode também ser
subjetivamente objeto de sua própria consciência, nos resta acreditar apenas na possibilidade de uma
autoconsciência em tudo e por tudo, e exclusivamente, social, o que parece mais uma imposição do teórico
(seja ele Dostoiévski ou Bakhtin) do que uma viabilidade de fato.
355
“Com um realismo pleno, descobrir o homem no homem... Chamam-
me de psicólogo: não é verdade, sou apenas um realista no mais alto sentido, ou
seja, retrato todas as profundezas da alma humana.(1929, p. 60)
Realismo, afinal, é palavra-chave, conceito-chave para entendermos o que es
acontecendo no romance de Dostoiévski ou de Joyce. Parece dificílimo sequer concebermos
a possibilidade (para o autor de que tratamos mais diretamente) de que alguém negue
absolutamente a posição de Joyce como um realista
195
, queira isso dizer o que quer que isso
queira dizer em dado momento histórico-crítico. O Ulysses pode, todo ele, ser visto como
uma tentativa de ampliar, em sua primeira metade, os mecanismos do realismo, da mimese
tradicional, e não de negar essa possibilidade. Mesmo a segunda parte do livro, o que faz é
ampliar o conceito do que possa ser o real representado, levando para além do factual, do
eventualmente verificável por olhos e ouvidos a base de constituição da mesma mimese
196
.
Um realismo pleno pode servir, portanto, muito bem a descrever as peculiaridades
também deste outro autor.
O restante da descrição que o próprio Dostoiévski nos oferece de seu próprio
método (e é claro que um tal momento não pode ser desprezado por qualquer estudioso da
literatura) parece matizar melhor aquela oposição entre subjetivismo e realismo que Kirpótin
e Bakhtin buscavam sublinhar. Pois, negando o rótulo de psicólogo, obviamente estava
Doistoiévski se afastando de determinada literatura que poderíamos, facilmente, identificar
de fato com algum imaginário decadentista, seja ele ou não sinal da morte de uma ou outra
abstração social.
O que ele faz neste trecho é, em uma eventual polaridade entre o puramente
psicológico e o realista mais chão, evitar situar-se no primeiro extremo, preferindo conceber
um realismo mais pleno, que abarque a representação psicológica (o subjetivismo, portanto)
sem se ver reduzido a ela.
Se tal representação plena do homem apresentará ou não vieses sociais é ou
conseqüência de uma escolha ideológica prévia (de um determinado modelo de mundo e de
sociedade) ou, o que parece mais condizente com a leitura bakhtiniana, um fator
incontornável dada a essência mesma da constituição da personalidade, do humano,
195
A bem da boa e sã verdade, mesmo no Finnegans wake acredito ser ainda possível argumentar em favor do
realismo de Joyce.
196
É bem verdade que ao menos o episódio do Gado do sol, mais uma vez, nos coloca aparentemente um
problema intransponível, mas quero crer que essa pedra não inutiliza todo o sapato, que ainda serve.
356
intrínseca e inquestionavelmente socializados. Se o primeiro, fica essa questão relegada a um
segundo plano, sem afetar o núcleo duro do realismo pleno que poderia, plenamente, realizar-
se de formas e com cores diferentes em autores, momentos e quadros históricos diferentes.
Se o segundo, banaliza-se e se torna desnecessária a discussão, tanto quanto mencionarmos o
fato de serem bípedes todos os protagonistas dostoievskojoyceanos
197
.
O que resta é termos, nesses dois romancistas extremos, duas concepções gêmeas,
conquanto possivelmente opostas (ainda não me posiciono a este respeito), de um realismo
todo-abrangente que em Joyce, como de costume, será levado ainda mais a fundo
quantitativa (quais serão os temas que se apresentarão como legítimos assuntos, modelos de
representação) e qualitativamente, levando para o plano da alucinação, do desejo, e mesmo
da literatura o campo representável.
O que resta é que em ambos os romancistas (e no teórico que nos acompanha, aqui
colocado entre eles) manifestações correspondentes de uma idéia que se reflete, na ficção,
em uma necessidade de fornecer aos personagens meios plenos de expressão, por que nada
neles não seja contemplado e, simultaneamente, por que nada além deles lhes venha dar
forma e conferir acabamento, visto que o homem realisticamente representado como objeto de
narrativa há de ser sempre um homem em aindamento. Um homem inacabado.
É bastante curioso pensarmos essa característica em particular à luz da seguinte
citação
No mundo de Dostoiévski não há discurso sólido, morto, acabado, sem
resposta, que já pronunciou sua última palavra. (1929, p.256)
E do simples fato (digo simples porque tenho plena consciência de estar
simplificando, talvez mesmo banalizando o significado efetivo da palavra de Bakhtin neste
momento) de que nenhum dos persongens principais do Ulysses terá direito de pronunciar
uma última palavra sequer sobre qualquer coisa. Todos eles terminarão o livro inacabados em
qualquer dos sentidos que se queira dar a esta noção.
Dedalus sai de cena em um capítulo em que praticamente não temos acesso a
qualquer voz que não a dos dois narradores que encenam seu pequeno catecismo particular
naquela cozinha de Ítaca. Bloom cai no sono enquanto aparentemente (estamos ainda nas
mesmas circunstâncias) murmura palavras desprovidas de sentido que, além de tudo, serão
interpretadas equivocadamente por sua mulher, gerando uma das maiores e mais seguras
197
Com a nobre exceção do burrico do Finnegans Wake
357
sementes de expectativa para aquele 17 de junho que nunca veremos (vale lembrar que, dada
a diferença, progressivamente mais nítida, de estatuto entre Dedalus e Bloom, o Livro não
resiste ao apagamento de Bloom, e cai no sono com ele). Molly, mais famoso de todos os
exemplos, adormece, ela também, repronunciando uma escolha que fez mais de quinze
anos e que, naquele momento, se praticamente despida de significado ou, se mais prenhe
dele, mais acena para uma possibilidade de renovação, de inconclusão, portanto, do que
qualquer outra coisa.
É na técnica da representação romanesca dessas consciências terminalmente
intermináveis e inescapavelmente manifestas como vozes que estes dois autores que nunca
respiraram o mesmo ar (um ano separa suas existências no mundo) terão de dar conta desse
projeto comum, terão de se haver com o que sua opinião sobre mundo e literatura (bem
como sua opinião sobre a (ir)relevância dessa distinção) acarreta esteticamente. E para esses
homens, e para tais projetos, nenhuma tradição literária entregará modelos prontos que
respondam a suas perguntas.
E, como o terceiro dentre eles não se deteve em analisar características
exclusivamente dostoievsianas, mas sim optou por fazer delas o berço de toda uma estética
do romance (além da estética de um novo romance, que não vingou), podemos prosseguir
agora em direção do que de mais específico haveremos de encontrar.
358
v. Quaresma
E as considerações mais estrita e diretamente ligadas ao romance na teorização de
Mikhail Bakhtin podem precisamente nos servir neste momento como cerzidura entre o que
brotou em termos formais da discussão sobre a influência dos gêneros carnavalizados na
formação do romance e o que pudemos entender como aquela curiosa distinção, indistinção,
entre psicologismo e subjetivismo, entre uma mente que se concebe como sua e uma outra
que se concebe em outras.
Multiplicidade, e a idéia de que é inescapável essa multiplicidade, serão as noções-
chaves para compreendermos a singular formulação romanesca proposta pela leitura de
Bakhtin e, por tabela, a absoluta centralidade dessa noção para toda sua compreensão de
linguagem e de sociedade, ou vice-versa. Absolutamente tanto faz.
Aquele paradoxo realista, mencionado anteriormente, em que a imposição de um
estilo pessoal é o crux que determina uma incoerência e, no limite, uma inadequação, em que a
presença de uma voz social configurada de forma diferente daquelas que representa acaba por
surgir como elemento alheio e verniz excedente encontra perfeita definição na idéia
bakhtiniana de acabamento. No fato de que esta externidade do autor e de sua linguagem no
realismo convencional acabam funcionando precisamente como o verniz que cobre o óleo,
dando acabamento a uma obra e retirando-a, portanto, dos processos todos que definem sua
vida, seu desenvolvimento, na tentativa de retirá-la quimericamente da linha dos processos de
decomposição.
A saída para o realismo pleno de Doistoiévski, bem como, vimos, para o realismo
de Joyce, será precisamente abrir mão desse direito finalizador (e por enquanto falamos
apenas –se em alguma medida pudermos pensar esse apenasde linguagem) e entregar aos
personagens a plenitude da página, com tudo que isso acarrete de incompletude para seus
psiquismos e, inclusive, para o leitor no sentido de acompanhante da trama.
Mas, como também vimos, a mera saída de cena de uma voz autorial, entregando
(especialmente se a um só personagem) a sua criação poderes plenos de expressão imediada,
tem o considerável potencial de gerar não apenas um todo não-realista no sentido que aqui
nos interessa como, ainda mais especificamente, um todo que se aproxime
perigosissimamente daquela definição tácita de subjetivismo decadentista de que queremos nos
afastar.
359
Eliminar o autor não precisa ser a busca pela eliminação da literaturidade (até porque
tal busca costuma dar de cara com a excessiva literaturidade no fim de seu caminho), e é
precisamente através da abertura de seu texto à literatura como excesso de possibilidades
estilísticas, à literatura como história registrada da literatura, que ambos os autores ensaiarão
escapar ao solipsismo psicologizante.
Vejamos o que diz Bakhtin a esse respeito.
o estilo do romance é uma combinação de estilos; sua linguagem é um sistema
de “línguas”. [...] O romance é uma diversidade social de linguagens organizadas
artisticamente, às vezes de línguas e de vozes individuais. A estratificação interna de
uma língua nacional única em dialetos sociais, maneirismos de grupos, jargões
profissionais, linguagens de gêneros, fala das gerações, das idades, das tendências, das
autoridades, dos círculos e das modas passageiras, das linguagens de certos dias e
mesmo de certas horas (cada dia tem sua palavra de ordem, seu vocabulário, seus
acentos), enfim, toda estratificação interna de cada língua em cada momento dado de
sua existência histórica constitui premissa indispensável do gênero romanesco. [1935,
p.74]
Note-se que apesar de estarmos mais atrás falando de uma oposição entre um tipo de
realismo romanesco e um outro, a que não pretendemos furtar título de romance, Bakhtin,
neste e em outros passos, aposta nessas características como premissas indispensáveis do
gênero romanesco. Na verdade, será apenas no final de nossa discussão bakhtiniana que nos
veremos capazes de compreender o não-normativismo deste trecho que, neste momento,
não pode deixar de parecer dogmático. Pois o que fazer, para citar apenas um exemplo, e um
exemplo de um clássico incontestável, de A morte de Virgílio? Como encaixar sem excesivos
malabarismos teóricos o poético texto de Broch a respeito de um poeta em um momento
limítrofe (noção muito cara ao mesmo Bakhtin) na definição indispensavelmente baseada em
plurilingüismo com que agora deparamos.
E veja-se que não é do dito dialogismo constituinte que está falando Bakhtin neste
momento. o é da premissa de que cada palavra seja de saída matizada pela palavra alheia,
em seu processo de aquisição e seu momento de emissão (graças ao contexto em que é
enunciada bem como às projeções de reações que cada falante realiza, baseadas em seu
ouvinte). O que ele considera indispensável ao que então devemos chamar de romance
prototípico, romance máximo, romance tout-court (para nossa comodidade) é de fato a
360
representação de um sistema de línguas. O romance para ele é um fato social. E nisso se opõe à
poesia, lar do indivíduo.
Mas é precisamente na contraposição entre esses dois mundos, na constatação,
também ela indispensável, de que um pretenso relato mítico do surgimento do alto romance
europeu teria de passar pelo momento em que essa forma popular e subterrânea teve de se
haver (ou com ela teve ele de se haver) com o tradicional poeta, que passaria a se dedicar a ela,
que surgem as implicações mais interessantes para nossa discussão.
O objeto é para o prosador a concentração de vozes multidiscursivas, dentre
as quais deve ressoar a sua voz; essas vozes criam o fundo necessário para a sua voz,
fora do qual são imperceptíveis, “não ressoam” os seus matizes de prosa artística.
[1935, p.88]
Entre as quais deve ressoar a sua voz.
Trata-se de indissolúvel simbiose em que a voz do artista tem precisamente este
peso, o de conferir forma artística à realidade, mas em que deve reconhecer seu estatuto de
voz-igual, de voz-entrevozes, em uma subversão sublime da noção baixa (alta) do fazer
poético e, por extensão, literário tradicional
198
. Repare-se na insistência nessa dependência de
duas mãos, em que as vozes dos personagens não podem soar sem o condão do artista, é
fato, mas em que, também, neste meio específico, não pode haver magia sem matéria prima.
interessante pensar nos desenvolvimentos subseqüentes da forma romanesca, que
Bakhtin não poderia imaginar naquele momento, e que se vêem fundados, em grande
medida, pelo romance seguinte do autor que neste momento ele escolhe ignorar. Se todo o
papel do artista e da artisticidade se viu questionado nas poéticas ditas pós-modernas, não
seria a literatura a poder ficar de fora. Seria de argumentar que, dentro dos quadros
estritamente definidos por Bakhtin, um romance, ou um conto, todo ele formado pela
transcrição de uma gravação não-editada de uma conversa entreouvida em uma fila de banco
não se enquadraria nos moldes da narrativa romanesca, permanecendo em um gênero
documental. Depois de Marcel Duchamp, no entanto, a mágica do artista passou a residir em
198
Uma das principais bêtes noires de Bakhtin é precisamente a noção de que a estilística convencional, criada e
vicejante sobre os solos da poética tradicional, simplesmente não dispõe de um ferramental que a capacite a ler
o romance em sua especificidade. Não é difícil concordarmos com o fato de que qualquer análise literária pré-
bakhtiniana (em qualquer sentido que se queira dar ao prefixo) deve realmente se embasar, se pretende (e
poucas vezes elas sequer o pretendem) debruçar-se em algum grau sobre os recursos estilísticos do autor, da
obra, em recursos e meios forjados inicialmente para a análise de textos poéticos.
361
grande medida em sua mesma autoridade nomotética, em seu poder de redefinir o que
concebemos como arte e de midicamente transformar em arte o que quer em que toque.)
No romance, a linguagem literária possui o órgão para perceber o seu
pluriligüismo. No romance, e graças ao romance, o plurilingüismo em si transforma-se
no plurilingüismo para si: as linguagens se correlacionam dialogicamente e começam a
existir umas para as outras (como as réplicas do diálogo). (1935, p.191)
E é na metáfora do diálogo, do processo do diálogo como que apreendido
precisamente no espaço (ou no tempo) que medeia a distância entre os interlocutores, no
diálogo não como meio de ação de uma consciência sobre outra (como fazer coisas com
palavras) mas como constituinte inescapável de cada situação lingüística, e muito
especialmente como constituinte dessa forma narrativa que, tão representante da
modernidade como a podemos conceber desde o romantismo, cai tão bem à representação
dessa realidade, que Bakhtin vai encontrar o meio para suas mais férteis formulações. Sobre
linguagem bem como sobre o romance.
*
Pode-se relacionar todos os procedimentos de criação do modelo da linguagem
do romance em três categorias básicas: 1. hibridização, 2. inter-relação dialogizada
das linguagens, 3. diálogos puros.
O que vem a ser a hibridização? É a mistura de duas linguagens sociais no
interior de um único enunciado, é o encontro na arena deste enunciado de duas
consciências lingüísticas, separadas por uma época, por uma diferença social (ou por
ambas) das línguas. [...] Desta forma, são duas consciências, duas vontades, duas
vozes e portanto dois acentos que participam do híbrido literário intencional e
consciente.
[...] O aclaramento mútuo interiormente dialogizado nos sistemas lingüísticos
em seu todo, distingue-se da hibridização em seu sentido próprio. Aqui já não há mais
a fusão direta de duas linguagens no interior de um enunciado –é uma única
linguagem que é atualizada e enunciada, mas apresentada à luz de outra. Esta
segunda linguagem permanece fora do enunciado, não se atualiza.
A forma mais característica e nítida deste aclaramento mútuo das línguas na
dialogização interna é a estilização. [...] Tanto o significado da estilização direta,
como da variação é enorme na história do romance, cedendo lugar apenas ao significado
da paródia.
[...] O diálogo do romance enquanto forma composicional está
indissoluvelmente ligado ao diálogo das linguagens que ecoa nos híbridos e no pano de
362
fundo dialógico do romance. Por isso o diálogo no romance é um diálogo de uma espécie
particular.
[...] Nos diálogos e nos monólogos dos personagens romanescos, as linguagens
puras do romance submetem-se à mesma tarefa da criação da imagem e da língua.
(1935, p.156-62)
Este é um possível resumo, ou ao menos uma possível entrada no pensamento de
Bakhtin a respeito da presença e da importância das formas derivadas ou contaminadas pelo
diálogo no romance conforme visto por ele. Em um raro momento sistematizador, ele
esboça mesmo uma espécie de classificação das formas dessa presença, dessa interferência.
A primeira das formas descritas por ele é precisamente aquela de que tratamos mais
diretamente durante o decorrer deste trabalho. A hibridização responde (muito mais
genérica, muito mais abrangente e muito mais eficientemente) por todo o campo do discurso
indireto livre e, muito mais, por todo o campo do que o mesmo Bakhtin chamara discurso
alheio difuso. É precisamente essa difusão (no sentido de diluição, solução, mas também no
de transmissão) que garante a possibilidade do convívio efetivamente bi-acentual de duas
vozes em um mesmo enunciado, bem como garante à teoria da palavra bakhtiniana sua
maior vitalidade
199
.
Figuras retóricas como a ironia demonstram claramente a possibilidade de
convivência em um mesmo enunciado de dois enunciados inclusive auto-cancelantes. Duas
vozes com dois acentos diversos (declarativo e derrisório). Em suma, na feliz formulação
bakhtiniana, dois acentos diferentes
200
. Aliás, me parece sumamente interessante pensar
precisamente a ironia, e seu lugar (inquestionável?) no romance moderno inaugurado por
Joyce a partir desse viés bakhtiniano, que parece levantar a bola e distrair o goleiro diante da
artilheira.
O que distingue o discurso irônico (subespécie) do discurso efetivamente hibridizado
do romance como o define Bakhtin é uma algo indefinível distinção de postura de uma voz
199
Em outro momento ele ainda se estende mais sobre a hibridização.
Denominamos construção híbrida o enunciado que, segundo índices gramaticais (sintáticos) e composicionais, pertence a
um único falante, mas onde, na realidade, estão confundidos dois enunciados, dois modos de falar, dois estilos, duas linguagens,
duas perspectivas semânticas e axiológicas. Repetimos que entre esses enunciados, estilos, linguagens, perspectivas, não nenhuma
fronteira formal, composicional e sintática: a divisão das vozes e das linguagens ocorre nos limites de um único conjunto sintático,
freqüentemente nos limites de uma proposição simples, freqüentemente também, um mesmo discurso pertence simultaneamente às
duas línguas, às duas perspectivas que se cruzam numa construção híbrida, e, por conseguinte, tem dois sentidos divergentes, dois
tons (exemplos abaixo). As construções hibridas têm uma importância capital para o estilo romanesco. [1935, p.110-11]
200
E não deixa de ser curioso o quanto a formulação do inefável sempre tende a se aproximar das metáforas
musicais. Hugo Friedrich define a poesia moderna como caracterizada por dissonância, as teorias da
comunicação vão abusar da noção de ruído, Bakhtin erguerá sua casinha sobre a polifonia..
363
em relação à outra, em considerável medida atada à concepção que cada era de fazer do
artista e aos distanciamentos que, assim, a leitura se permita ou se negue fornecer à voz desse
artista em relação aos seus temas, eles também variáveis e variados.
O campo de estudos aberto pelos fenômenos de hibridização é, em suma, tão
grande, que mesmo este trabalho excessivamente longo representa nele a concretização de
uma só hipótese relativa a um só autor, em um só livro, de uma só maneira.
Como pensar, por exemplo, a relação entre as mutáveis vozes narradoras de Um
retrato e seu protagonista? Alunos de graduação tendem a ver identificação (deixando que a
identificação entre eles e o protagonista obnubile qualquer outra distinção), a teoria literária
tradicional tendeu a ver ali um manifesto irônico (algo guiada pela imagem que de si mesma
e de si mesma em relação à imagem do artista romântico construiu a mesma alta
modernidade), mas em que medida nos será de fato impossível ler essa relação como
solidária e solitária, como, em suma, independente de juízos de valores e cotoveladas sutis (se
nos deixamos levar pela corrente recente de escritores anti-irônicos liderada por David Foster
Wallace)?
A relação, se efetivamente rica, é aberta, não-determinada. Deixamos em capítulos
anteriores (tanto de nossa análise sobre o Ulysses quanto dos comentários sobre Bakhtin) a
possibilidade de que o autor queira conferir acabamento a personagens e relações. Passado.
Em Dostoiévski e em Joyce, por tudo que pudemos argumentar, a relação é simplesmente
um dado. Não um meio. E cada tempo verá neles seu ideal.
Quando, passando adiante, Bakhtin se detém sobre as formas do aclaramento mútuo das
linguagens, especialmente bem representadas pela estilização, preciso me deter eu sobre uma
palavra.
Ao descrever essas formas de convívio entre linguagens estabelecidas e a diferença
entre o que entre elas se realiza e o que vemos nas formas da hibridização anteriormente
descritas, Bakhtin se apóia na idéia de que aqui não uma fusão. Essa palavra recorrerá de
forma algo problemática em suas definições, e ele por vezes negará que haja efetiva fusão nas
formas de hibridização. Trato disso em momento mais conveniente, mas peço que você
guarde isso de lado desde já.
Mais, no entanto, fica dito aqui. Transparece que Bakhtin reserva o nome de
hibridização apenas ao que tentávamos classificar como hibridização plena (como que
364
recomendável); é às formas da estilização, do aclaramento mútuo que ele vai atribuir, fica
claro por seu texto, a possibilidade da ironia.
Subespécie dos fenômenos de hibridização. Era o que havíamos dito.
E na verdade Bakhtin faz pouco mais que isso, ele mesmo, visto que mesmo seu
momentâneo rigor sistematizante desiste de rotular consistentemente esses fenômenos,
atribuindo-lhes apenas uma descrição parafrástica.
A idéia, o princípio da hibridização continua a ser o que impera.
Se tal grau de complexidade na relação entre linguagens distintas pôde-se ver
instituído sem que necessariamente tenhamos abandonado o campo da voz narrativa (todos
os fenômenos citados acima podem efetivamente ocorrer em um romance ainda desprovido
de personagens. As linguagens em questão podem –com muito mais facilidade, é verdade, no
campo da estilização– provir de meios e situações convencionais externas à trama de cada
romance específico), o diálogo como tal obviamente nos coloca um degrau a mais a ser
superado.
Pois que essa voz, composta ela mesma por outras, definida ela mesma em constante
e tensa relação com vozes alheias, convive agora no tecido do romance com outras vozes
independentes e autônomas que, contudo, são criadas por ela. Não é à toa que venha do
diálogo a metáfora dominante na inquirição bakhtiniana. É nesse exercício de esquizofrenia
extremada que se propõe a criação de uma voz independente em um meio que se reconhece
como isento da possibilidade da independência total das vozes que se estabelece a grandeza
do romance.
O solipsista sempre se julgará capaz de criar outra consciência. Seja ela em tudo um
eco da sua, seja ela diversa e alheia unicamente por ser outra, de saída. A idéia de criar uma
outra consciência quando se parte da premissa de que mesmo a consciência original é uma
mescla originada de várias é incrivelmente mais complexa.
A noção bakhtiniana do lugar do diálogo, efetivamente, no todo romanesco, merece
no entanto amplificação.
Nos romances de Dostoiévski tudo se reduz ao diálogo, à contraposição
dialógica enquanto centro. Tudo é meio, o diálogo é o fim. Uma só voz nada termina e
nada resolve. Duas vozes são o mínimo de vida, o mínimo de existência.
No plano de Dostoiévski, a infinitude potencial do diálogo por si só já resolve
o seguinte problema: esse não pode ser um diálogo do enredo na acepção rigorosa do
termo, pois o diálogo do enredo tende tão necessariamente para o fim como o próprio
365
evento do enredo do qual o diálogo é, no fundo, um momento. Por isso o diálogo em
Dostoiévski, como dissemos, está sempre fora do enredo, ou seja, independe
interiormente da inter-relação entre os falantes no enredo, embora, evidentemente, seja
preparado pelo enredo. (1929, p.257)
Mas essa elaboração nos coloca mais um problema para a análise também do Ulysses.
É interessante vermos que, detidos no primeiro parágrafo da citação, nada
encontramos que desminta o que vínhamos dizendo até aqui ou o que pudemos derivar de
toda a análise dos fragmentos joyceanos, mas que, ao menos no segundo parágrafo isso fica
algo claro, Bakhtin está aqui falando de fato do diálogo propriamente dito, do lugar que ele
ocupa no centro e simultaneamente na periferia da obra, do todo dialógico.
E algumas noções precisam ser desembaralhadas.
A idéia de que o diálogo como meio de evolução do enredo esteja ausente da obra é
de todo germana ao Ulysses, livro em que, na verdade, muito pouco diálogo, e quase
nenhum diálogo extenso. A bem da verdade, mais uma vez o livro um belo passo além,
mais uma vez como que iconizando um elemento ou, melhor ainda, levando-o a um outro
nível da estutura romanesca.
Pois considerável preponderância de diálogos nos primeiro episódios do Ulysses,
aqueles em que Dedalus se frente a frente com seus nêmesis e em que, como vimos, seu
monólogo interior conquista espaço gradualmente, assim como gradualmente se estabelece
sua ascendência sobre a voz narradora. Mas este primeiro Ulysses, o da Telemaquia, é ainda
um livro antigo, um livro que terá por força de ser superado pelo Ulysses de Bloom, assim
como este terá de ser suplantado pelo Ulysses noturno, meramente em termos técnicos.
O terceiro episódio é o triunfo do monólogo interior dedaliano. Nele o um
momento de diálogo stricto sensu (onde o itálico registra o latim e uma grande, enorme
ênfase).
Bloom entra em cena, com ele a mais radical modernidade da técnica que o Livro até
então nos apresentou, e os diálogos desaparecem. Sua primeira troca de réplicas com sua
esposa se resume (de parte dela) a grunhidos ininteligíveis, e o diálogo mais extenso que tem
lugar quando ele retorna é, como vimos, um antidiálogo na medida em que tudo que é de
fato relevante para o enredo é sublimado, atapetado e acobertado. Bakhtin não poderia ficar
mais contente.
366
Mas o mais interessante a se ver aqui é que o confinamento gradual do livro às
consciências de seus dois (mais tarde, de madrugada, serão três) heróis não acarreta uma negação
do diálogo. Para começo, não é banalizável a importância de serem dois esses protagonistas.
Duas vozes. O mínimo. De resto, como uma mera releitura, como que de sortes bloomianas,
toda ao acaso, de algum extrato de Proteu ou de Calipso
201
, prova incessantemente, as vozes
de Dedalus e de Bloom são exemplarmente fragmentárias, constituídas sobre outras, vozes e
consciências. E se Dedalus é o estilizador, perenemente consciente de seu diálogo muito em
especial com a tradição literária (ele representa o poeta no romance; o poeta no romance), ele
também pode se revelar ambiguamente relacionado com as consciências e as respostas
alheias, como o episódio do final de Proteu deixa claro. Bloom, por sua vez, é todo ele
formado por retalhos de réplicas ouvidas e muito, muito, muito especialmente presumidas.
Todo o monólogo destes dois indivíduos é na verdade bakhtiniano
202
. E diálogo de
fato, não com algum alter-ego que representasse mera projeção de suas consciências a algum
ponto distanciado de observação (na eventualidade de que tal possibilidade seja sequer
verificável), mas sim com efetivas consciências outras que determinam o que emitem suas
vozes e continuamente, por meio de um feedback ininterrupto, determinam por onde elas
presumivelmente devem seguir. E Bakhtin não poderia se ver mais contente.
Como bônus, a essas alturas soído e costumado (Joyce parece sempre premiar o
boncaminho), vem o Ulysses noturno, aquele que tematiza a técnica e ilustra em fatos os fatos
teóricos e nos mostra que, entre o Ciclope e Ítaca, episódios 12 a 17, temos quatro episódios
absolutamente centrados na representação de longos e importantes diálogos. Conversas
203
.
Mas não.
O Ciclope se perde na peroração, na característica caricatura de uma narrativa
monovocal, a que se misturam, como que em último tripúdio, trechos parodizados de toda
espécie de linguagem.
Nausícaa é basicamente silente, embora falem muito as meninas, as que não
interessam.
201
Infelizmente tenho de optar por não carregar este texto com mais citações do Ulysses. Atenua a
irresponsabilidade o fato de vir apensa ao volume da tese a tradução completa. Peço que, se mais curioso e mais
desconfiado, você se dirija até ela e, realmente, leia ao acaso.
202
onde começa a consciência começa o diálogo (1929, p.42)
203
E nada estranho agora parece o fato de que essa seqüência leve, mais uma vez, a um ápice em monólogo, em
Penélope.
367
O Gado do Sol dilui a conversa em pastiches que opacificam todas as réplicas.
Circe, em forma dramática, tem tudo menos uma preponderância de falas
efetivamente enunciadas, negando a mesma natureza da forma que escolhe.
Eumeu se perde em triunfante literatura, e afoga as falas de Bloom no bloomismo
inconsciente.
E Ítaca... Quase não o que se dizer. O Ulysses culmina neste diálogo. Do qual não
ouvimos uma réplica, embora nos vejamos perdidos em meio ao diálogo de dois
amalucados narradores que falam como se soubessem sempre o que o outro quer ouvir e o
que o outro quer falar
204
.
Preponderância absoluta do dialogismo-função sobre diálogo-meio. E Bakhtin
deveria rolar de felicidade.
Mas não..
E veja-se, por favor, o quanto de articulação, de uma articulação que em grande
medida define boa parte da novidade que possamos encontrar na relação Doistoiévski
205
-Joyce,
entre aquela idéia de que a mimese no Ulysses basicamente redefiniu os limites do real de que
parte e esta, de que o dialogismo se encontra manifestado nos personagens principais do
livro principalmente em seus monólogos e, mais ainda do que isso, em monólogos que se
desenham no limite de alguma maneira pré-verbal (ou ao menos pré-verbalizado) da
consciência interna.
A realidade que motiva boa parte do conteúdo de Circe ou de Nausícaa, assim como
os diálogos encenados e encetados nas consciências fechadas de Dedalus e Bloom sinalizam
um passo definitivo dado por Joyce na busca que compartilhava com Fiódor Mikhailovitch:
de mostrar o homem no homem através de um realismo plenivalente.
Joyce opta radicalmente por incluir em sua temática aquilo que a princípio
Dostoiévski abominaria, a consciência subjetiva de cada personagem. O que impede o salto às
204
Curiosamente, Bakhtin parece precisamente se referir a este episódio, que bastaria para retirar o peso
especulativo e não-verificável da afirmação algo dogmática, no passo seguinte.
Mais tarde, quando o gênero do “diálogo socrático” passa a servir a concepções dogmáticas do mundo acabadas de
diversas escolas filosóficas e doutrinas religiosas, ele perde toda a relação com a cosmovisão carnavalesca e se converte em simples
forma de exposição da verdade já descoberta, acabada e indiscutível, degenerando completamente numa forma de perguntas-respostas
de ensinamento de neófitos (catecismo). [1929, p.110]
205
E que se ressalte que em todo momento em que me refira ao romancista russo penso na verdade na leitura
que dele foi feita por Bakhtin. É o construto bakhtinano construído e motivado sobre a obra de Dostoiévski
que me interessa como objeto de comparação. Infelizmente, as dimensões deste trabalho precisariam de tudo
menos de uma análise original da vasta obra dostoievskiana.
368
cegas rumo àquele psicologismo decadente que parece detestado por ambos é o fato de que
Joyce não reage em negação às premissas que orientavam a poética dostoievskiana, mas sim,
com a consciência do póstero que se sabe, agia incluindo em seu passo (aparentemente
retrógado) toda a experiência desbravada previamente.
Joyce abarca a consciência como tema, mas não se fecha nela, negando qualquer
coisa da palavra pública e social. Não, o que ele faz é interiorizar esta palavra múltipla e multi-
acentuada, assim como interioriza a realidade que deve mimetizar.
O que resta por resolver nesta equação é a efetiva inclusão da voz do autor (ou de
seus testas-de-ferro) na trama dialógica, pois
Para se tornarem dialógicas, as relações lógicas e concreto-semânticas
devem,como dissemos, materializar-se, ou seja, devem passar a outro campo da
existência, devem tornar-se discurso, ou seja, enunciado e ganhar autor, criador de
dado enunciado cuja posição ela expressa. (1929, p.184)
Ou seja (e é precisamente essa a razão da exclusão, por parte de Bakhtin, de todo o
universo do drama, por princípio, das regras da arte dialógico-polifônica), para que ganhem a
devida ressonância polêmica as vozes representadas (todas elas constituídas, como sempre, de
forma dialógica) precisam entrar no embate com a voz de um autor que lhes forneça os
meios com que ressoem. Para Bakhtin, é na apropriação artística, no convívio dessas vozes
regidas por esse meio privilegiado que se pode verificar o legítimo dialogismo romanesco.
Tal posição, se levamos a sério a hipótese proposta acima, de que se podem ler os
romances dostoievskianos como instrumentos na elaboração de uma ficção-filosófica (ou ao
menos, mais uma vez, se pode dizer isso do Doistoiévski de Bakhtin), pode efetivamente
fazer sentido pleno.
No entanto, traçamos longamente o périplo que leva Joyce a buscar apagar do Ulysses
qualquer vestígio de uma voz (e não de uma consciência) de autor. A esta altura, sabemos que
é apenas via a persona do arranjador que no Ulysses se vai resolver esse impasse, e que o
Ulysses continuará podendo ser lido pelo ferramental bakhtiniano que, mais uma vez, terá
portanto de sofrer um pequeno acréscimo, uma complexificação.
Neste momento, tudo o que posso dizer a respeito desse fato é que essa pequena
subversão ulisseana acabará por ter conseqüências muito mais profundas para todo o modo
369
como podemos encarar o pacto romanesco-estético do Ulysses. Ela serve, basicamente, muito
mais do que para estabelecer algum refinamento terminológico, para determinar, afinal, o
que há de não-bakhtinianamente romanesco em Joyce.
A cisão começa aqui.
Mas mesmo em Dostoiévski, mesmo se considerarmos que nele ainda podemos
encontrar vestígios e marcas da presença de uma voz de autor, a questão é complexa se
pensada em termos efetivamente dialógicos, pois essa voz, como quer que se desenhe, deve
contemplar a impossibilidade de se criar plena e auto-suficiente. Ela, mesmo voz de autor,
não poderá gozar dos privilégios da voz do poeta.
Isso acarretará conseqüências técnicas óbvias. Bakhtin de imediato aponta (1919,
p.229), que um dos recursos encontrados por Dostoiévski (e posso mesmo me abster de
traçar qualquer paralelo com Joyce, tamanha a obviedade da pertinência dessa observação
para a leitura do Ulysses) para escapar ao fantasma do monologismo monovocal na voz do
autor/narrador foi a assimilação da convencionalidade literária; ou seja a apropriação
estilizada ou parodística de discursos outros, de vozes alheias, que permitem, como cavalos
em uma sessão espírita, que a voz do autor se manifeste em um meio que o é o seu, sem
impor a esse meio sua presença deslocada.
Daí a presença dos diários, do jornalismo, dos folhetins..
Mais um.
Mais um elemento para que possamos pintar o grande quadro que aqui nos interessa,
e ele, mais uma vez, tem que ver com a figura do arranjador. Pois, visto assim, o que Joyce
teria realizado ao dar vida a este indivíduo foi materializar em uma persona de nível
intermediário os mesmos poderes de incorporação e de estupro vocálico dirigido a outras
variedades de língua e de literatura. Ele simultaneamente relativiza ainda mais os poderes do
autor diretamente manifestados sobre a obra e amplia muito mais suas possibilidades de
manipulação.
O que o médium aqui incorpora é o porta-voz do autor.
Pois o que toda discussão que compare Dostoiévski e Joyce não pode deixar de levar
em conta são os anos que separam o nascimento desses escritores. O fato de que as gerações
a que pertencem eles (ideologicamente, pois cronologicamente pertenciam a momentos
anteriores) são basicamente diferentes: moderna a de Dostoiévski, pós-moderna (por falta de
370
nome melhor
206
) a de Joyce. E a autoconsciência, como vimos, de ser sempre elemento
constituinte da representação de mundo do pós-freudiano Joyce.
Mais ainda, sua consciência do processo histórico de que faz parte de moldar
quase tudo o que fez este autor. Autoconsciência técnica. Metaficção.
Assim, se pensarmos, com Bakhtin, que
todo discurso existente não se contrapõe da mesma maneira ao seu objeto:
entre o discurso e o objeto, entre ele e a personalidade do falante interpõe-se um meio
flexível, freqüentemente difícil de ser penetrado, de discursos de outrem, de discursos
“alheios” sobre o mesmo objeto, sobre o mesmo tema. E é particularmente no processo
da mútua-interação existente com este meio específico que o discurso pode
individualizar-se e elaborar-se artisticamente.
Pois todo discurso concreto (enunciação) encontra aquele objeto para o qual
está voltado sempre, por assim dizer, desacreditado, contestado, avaliado, envolvido
por sua névoa escura ou, pelo contrário, iluminado pelos discursos de outrem que
falaram sober ele. O objeto está amarrado e penetrado por idéias gerais, por pontos de
vista, por apreciações de outros e por entonações. Orientado para o seu objeto, o
discurso penetra neste meio dialogicamente perturbado e tenso de discursos de outrem,
de julgamentos e de entonações. Ele se entrelaça com eles em interações complexas,
fundindo-se com uns, isolando-se de outros, cruzando com terceiros; e tudo isso pode
formar substancialmente o discurso, penetrar em todos os seus estratos semânticos,
tornar complexa a sua expressão, influenciar todo o seu aspecto estilístico. (1935,
p.86)
que, nele, pretendia ser ainda uma descrição daquele dialogismo que tão bem
chegamos a conhecer, e se substituímos mentalmente o referente da palavra discurso em todo
este trecho, obtemos o que de realmente relevante podemos descobrir aqui. Pois que o
verdadeiro discurso de Joyce no Ulysses, talvez o único discurso que univocamente podemos
atribuir a ele em todo o livro, é um discurso sobre a literatura, sobre o romance como tradição
que o traz até ali.
Me parece óbvio que uma leitura como essa possa ser feita mesmo para os textos de
Dostoiévski. Me parece claro que ela repouse em germe dentro de toda a teoria da
dialogicidade da palavra no que tenha ela de artístico. Mas o fato é o grau de
incontornabilidade que ela atinge no Ulysses, pronunciamento sobre o mundo, sobre mim e
206
O xadrez também passou por períodos estilísticos. Há um xadrez clássico, um xadrez romântico. Mas o
divertido é que o revolucionário xadrez de Reti e Nimzovitch, que se desenvolve nos primeiros anos do século
XX, é chamado de hipermoderno. Bom nome.
371
sobre você, mas também (e, em não poucos sentidos, acima de tudo) pronunciamento sobre
o romance.
É virado para a literatura, para a literaturidade que podemos, finalmente, encontrar
um discurso joyceano no livro, todo ele dirigido a um objeto previamente tinto por todo tipo
de comentários prévios e todo ele disposto a se colocar neste mundo de múltiplos vieses
como uma voz polemizante e consciente dos imbróglios que vivencia e instaura.
E a felicíssima gênese do conceito do arranjador, patrocinada por David Hayman,
veio apenas deixar mais clara esta ênfase, esta vocação para polemizar a tradição romanesca
e, inevitavelmente, a tradição da crítica do romance que, aqui, de forma incontestada se
em lençóis ainda piores do que os que a cobriam quando tentava se proteger de Dostoiévski.
Façamos análise de mais um trecho em que se discute a relação de vozes no romance
de Dostoiévski para tentar demonstrar a que grau vai a complexificação joyceana.
Essa correlação, essa conjugação dialógica de duas linguagens e de duas
perspectivas permite que a intenção do autor se realize de tal forma que nós a
percebemos nitidamente em cada momento da obra. O autor não está na linguagem do
narrador nem na linguagem literária normal, com a qual está correlacionada a
narrativa (embora ela possa estar próxima de uma e de outra língua), mas ele se
utiliza de ambas para o entregar inteiramente as suas intenções a nenhuma delas;
ele utiliza essa comunicação, esse diálogo das línguas em cada momento da sua obra
para permanecer como que neutro no plano lingüístico, como “terceiro” na disputa
entre as duas (mesmo que esse terceiro possa ser parcial).
Todas as formas que introduzem um narrador ou um suposto autor
assinalam de alguma maneira que o autor está livre de uma linguagem uma e única,
liberdade essa ligada à relativização dos sistemas lingüísticos literários, ou seja,
assinalam a possibilidade de, no plano lingüístico, ele o se autodefinir, de transferir
as suas intenções de um sistema lingüístico para outro, de misturar a “linguagem
comum”, de falar por si na linguagem de outrem, e por outrem na sua própria
linguagem. (1935, p. 119)
O primeiro fato que não podemos deixar de perceber é a estabelecida extrema
dificuldade de falar em qualquer manifesta intenção do autor por trás das páginas do Ulysses.
Mais especificamente, se podemos ver uma mão autorial, uma voz que represente um discurso
do autor no corpo daquele texto, ela se resume a uma presença estruturadora consciente dos
destinos e de seu poder sobre os destinos literários, estruturais, novamente, do livro como
todo.
372
Não , no Ulysses, muito mais entregue à indeterminação e ao não-acabamento,
qualquer sombra de um projeto, de uma concepção ético-social anterior ao romance e que
determine, nele, uma determinada serventia. Ele, como romance, é soberano como romance.
E é apenas sobre ele como romance que podemos ver se manifestar o discurso do autor.
Nem mesmo se nos limitarmos a pensar aquela intenção do texto bakhtiniano como o
impulso que controla e conduz a trama, linearmente, a seu desfecho, por mais que ele pouco
possa ter de fecho, podemos encontrar univocamente essa mão autorial. A presença do autor
que monta (e a escolha da palavra é tudo menos arbitrária) a trama do Ulysses é muito mais
facilmente sentida como uma presença que se manifesta sobre o livro composto, como um
revisor, que trabalha portanto com o livro como livro
207
.
A estória, a trama, parece ter-se desenvolvido em um mundo anterior, em um mundo
que nós, leitores, não temos como não considerar ficto, representado. Não temos como ler o
Ulysses como outra coisa que o literatura. É em um momento posterior, cronológica ou
estruturalmente, que aparece essa voz autorizada e forma aos cacos que tínhamos diante
dos olhos.
Qualquer que seja ela, a intenção do autor não se manifesta no Ulysses como ou através
de vozes. Ela é função.
Pois mesmo aquele posto de tertius neutrus que Bakhtin quer assignar a essa voz em
sua hierarquia cabe a ela no Ulysses. Ele é delegado a este indivíduo que, geneticamente,
pertence ele também ao mundo ficto, mas que comparte dos poderes do autor, inclusive de
reger a escolha e a formação da voz dos narradores.
Pois se toda obra que propõe um narrador oferece ao autor esse lugar o-marcado,
algo isento, de onde observar o desenrolar dos fatos, o que poderemos dizer de uma obra
que propõe o apenas dezenas de narradores diferentes, mas também a figura de um
capataz de narradores, ainda ele submetido ao proprietário que, contudo, parece vir à
fazenda só no final do ano?
Esse autor se afirma por sua ausência. Se determina por seu silêncio. Se torna o mais
opressivo dos dominadores precisamente porque não podemos pôr-lhe o dedo. É aqui que
Joyce, aparentemente, começa a escapar dos quadros da romanesquicidade propostos por
Bakhtin. Rumo à literaturidade.
207
É essa, afinal, uma das possíveis leituras da categoria desentranhada por Hayman.
373
vi. Paixão
O que Bakhtin de fato enfrentava, e ele mesmo não cansa de afirmá-lo, é a pura e
completa incapacidade de princípio que tem toda a estilística tradicional (em um momento
em que ainda se podia falar claramente em uma estilística tradicional que ainda vigorasse) de
compreender uma relação sujeito(artista)-linguagem que não fosse baseada na idéia poética
de um eu que se expressa através de uma determinada língua, impondo a ela singularidades,
idiossincrasias que fizessem com que ela fosse acima de tudo acima de tudo sua.
O estilo é o homem.
Gradativamente, a partir de uma concepção geral e nova dos fatos da linguagem e da
natureza estilística do romance, o que Bakhtin constata é que tudo o que ele possa chamar de
estilo autoral no romance (novamente, teríamos de dizer no romance prototípico, desejado) são
meios e instrumentos empregados pelo autor para fazer com que a linguagem que exale de
suas páginas seja tudo menos acima de tudo sua. Meios de apagamento, recursos de cessão de
voz.
Mais de setenta anos depois, curiosamente deparamos com a mesma situação: a
inexistência de um quadro de procedimentos estilísticos estabelecido que nos forneça
ferramentas para a análise daquilo que pretendemos extrair do Ulysses. E uma tal ausência
não provêm da incapacidade daquela estilística dita clássica, mas sim do fato de que ela
mesma deixou de vigorar sem que tivesse sido substituída por qualquer outra coisa.
Seja pela assimilação da verdade por trás do pressentimento de Bakhtin (tendo ou
não sua teoria influenciado no processo), seja por uma mudança paradigmática de outra
ordem, o fato é que o foco dos estudos literários (muito especialmente no Brasil) vem
deixando completamente de se dirigir para as especificidades da forma romanesca, se é que
um dia o pôde fazer.
E, se o pôde, suspeito que o tenha feito apenas nos quadros da estilística monovocal
convencional.
Que fique claro que os trabalhos que pretendem analisar os casos e as ocorrências
desta ou daquela forma de discurso em um texto narrativo, em menor ou maior grau
aplicando-lhe rótulos sucessivos não dão conta da especificidade maior do gênero
romanesco conforme vislumbrado por Bakhtin, que é precisamente o procedimento
anterior, que gerencia o uso dessas formas, e que permite que o autor, ao empregá-las
374
sistematicamente desta ou daquela maneira, empreenda no texto o apagamento de sua voz e a
orquestração de todas as outras.
Os instrumentos de que ainda hoje convencionalmente dispomos (e, repito,
dispomos com menos e menos freqüência) continuam incapazes de formalizar e
compreender (abarcar) a seguinte formulação bakhtiniana.
A originalidade de Dostoiévski não reside no fato de ter ele proclamado
monologicamente o valor da individualidade (outros já o haviam feito antes) mas em
ter sido capaz de vê-lo em termos objetivo-artísticos e mostrá-lo como outro, como a
individualidade do outro, sem torná-la lírica, sem fundir com ela a sua voz e ao
mesmo tempo sem reduzi-la a uma realidade psíquica objetificada. (1929, p.11)
E não posso deixar de supor que tal incapacidade se deva em alguma medida à
especialização reinante e à conseqüente ampliação do abismo existente entre os estudos
literários e os estudos lingüísticos que, apenas integrados, efetivamente integrados, poderiam
dar corpo a qualquer (nova ou velha) estilística.
Pois vai muito além do diagnóstico do uso desta ou daquela forma de representação do
discurso alheio o que Bakhtin busca com a citação anterior. A estética dessa miscigenação talvez
possa, ainda hoje, ser feita em termos bakhtinianos, o que acarreta toda uma limitação no
que se refere a sua efetiva formalização. O que este trabalho tentou fazer, de certa forma,
antes de abordar a obra de Mikhail Mikhailovitch foi precisamente buscar desenredar do
mesmo Ulysses instrumentos que permitissem a resenha dessa regência. Novamente circundando
as inescapáveis metáforas musicais, estamos falando da diferença entre analisar as vozes de
um quarteto de cordas e o acorde resultante delas: buscamos verticalidade e não horizontalidade.
Buscamos o rosto do paradoxo que é o estilo do apagamento.
Como que a sublinhar esta diferença, por exemplo, Bakhtin comenta:
Romance [sic] como Bouvard et Pécuchet, por exemplo, reúne material
extremamente heterogêneo em termos de conteúdo, mas essa heterogeneidade na própria
construção ro romance não aparece nem pode aparecer acentuadamente por estar
subordinada à unidade do estilo e ao tom pessoal que a penetra inteiramente, à
unidade de um mundo e de uma consciência. (1929, p.14)
Não é o mero uso de formas e fôrmas diversas que garante qualquer resultado
efetivo. É o espírito que rege a concatenação dessas formas e que lhes infunde uma relação,
375
abdicando de um posto privilegiado ele mesmo, de permeabilidade e igualidade. Toda uma
descrição que parece, mais uma vez, remeter a uma função específica no quadro estrutural
do romance, que apenas não é automaticamente o arranjador joyceano porque ainda não lhe
imputamos como obrigatória sua aproximação do tempo e do mundo dos personagens. Tal
figura, necessária desde aqui, aqui ainda pode ser simplesmente o autor implícito das teorias da
recepção, figura já ela totalmente dispensável para os estudos estilísticos da poesia mais poética,
para ficarmos com uma distinção estabelecida em esboço pelo próprio Bakhtin, e
desentranhada belamente por Tezza (2003), de que ainda voltaremos a falar.
Mas não se pode desviar do incômodo representado neste tipo de concepção da
estilística romanesca por uma outra figura do esquema estrutural da narrativa. Concebido
assim o romance, o narrador pode ser uma solução aparentemente simples ou um escolho
incontornável. Pois se escolho narrar em primeira pessoa, incluindo na trama um
personagem dotado dos recursos do narrador (em maior ou menor escala) aparentemente
encaminho mais facilmente a possibilidade de realizar a efetiva dissolução da voz do autor
como autoridade unida. De outro lado, se narro em terceira pessoa (excluindo da trama a
voz que narra) deparo com a dificuldade de não ocupar o espaço proporcionado pela
aparentemente automática ausência de caracterização desta voz. Não sendo de ninguém, ela
bem pode ser minha.
Daí a necessidade, que Bakhtin encontra em Dostoiévski e nós vimos sobejamente
no Joyce da abertura do Ulysses, de como que botar em seu lugar esta voz narradora, privando-a
de toda e qualquer expressividade pessoal (e estilística) deixando para o mundo dos
personagens o embate de vozes e discursos, educadamente tirando de cena o possível lugar-
tenente do autor.
o discurso do interior da narração é, na maioria dos casos, seco e opaco:
chamar-lhe “estilo protocolar” seria a melhor definição. [...] A tendência fundamental
de Dostoiévski no último período de sua obra foi a de tornar o estilo e o tom secos e
precisos, neutralizá-los. Contudo, em toda parte onde a narração protocolarmente seca
e neutralizada é substituída por tons acentuados essencialmente coloridos, esses tons,
em todo caso, estão dialogicamente voltados para o herói e nasceram da réplica do seu
possível interior consigo mesmo. (1929, p.230)
Daí o contador.
376
Protocolar pode de fato ser a melhor definição para a descolorida voz que vimos
enunciar aqueles afazeres domésticos da narrativa durante todo o Ulysses, mas com muito maior
destaque (precisamente na mesma e única medida em que recebe maior destaque por
também não contar com adversário à altura neste momento a voz de Dedalus) nos episódios
de abertura. A bem da verdade, o fato de que essa voz se coloque quase caricaturalmente
neutra nesses primeiros episódios apenas para depois se ver tendo de conviver com a plena e
idiossincrática personalidade do arranjador não pode deixar de insinuar a possibilidade de
estar ela, aí, precisamente iconizando aquela necessidade de apagamento.
A possibilidade de apagamento da autoridade vocálica autoral através da mera
delegação dos direitos de uso de uma primeira pessoa verbal é algo, sabemos, em que
alguns professores de português podem acreditar. O uso de um narrador em primeira
pessoa, parece pensar Joyce, pode ser apenas (e talvez quanto mais esforço se realize mais as
coisas se encaminhem para esta possibilidade) a troca de uma consciência dominante por
outra. De um ditador por outro.
Preso ao universo ficto, um personagem não tem os poderes necessários para
encampar a orquestração de vozes e possibilidades que caracteriza o melhor romance. Por
outro lado, um narrador sobretipificado arriscaria sufocá-la. E Joyce, neste primeiro
momento, antes de nos mostrar que a verdade, como sempre, está no meio (aqui, no meio
do contínuo entre personagem e narrador), segue forçosamente (e enfaticamente) os
mesmos princípios que geriram a experiência dostoievskiana. Antes de demonstrar o quanto
de delegação de poderes pode haver na estruturação de uma narrativa em terceira pessoa.
Em linhas gerais, a narração se desenvolve entre dois limites: entre o discurso
secamente informativo, protocolar, de modo algum representativo, e o discurso do herói.
Mas onde a narração tende para o discurso do herói ela o apreenta com acento
deslocado ou modificado (de modo excitante, polêmico, irônico) e somente em casos
raríssimos tende para uma fusão monoacentual com ele. (1929, p.255)
Entre ele disse e Stephen Dedalus.
E eis mais uma mancha.
É preciso nos detenhamos sobre a última ressalva de Bakhtin neste trecho. Ressalva
que dará a tônica (música, mais uma vez) de diversos momentos de seu texto.
Compreendemos que a fusão a que ele se refere (e que em outro momento, como vimos,
constatou como desejável) parece ser freqüentemente algo a ser evitado para o
377
estabelecimento de verdadeiras relações dialógicas no romance. Como muito bem lembra
Tezza, temos inclusive de conviver com o fato de vivermos em tempos em que a mera
presença daquele prefixo mono empresta tintas de indesejabilidade à noção. Que contudo
parecem ter sido realmente aplicadas aqui pelo autor.
O fantasma que parece assombrar M.M. Bakhtin, aqui e em outros momentos, não é
de fato a possibilidade da fusão, mas sim da dissolução da voz dos personagens no Ph da voz
do autor, por princípio mais poderosa que elas.
Mas um sentido em que, efetivamente, qualquer fusão, em qualquer grau, não
poderia corresponder às precondições de estabelecimento de um mundo dialógico. É apenas
contando com essa possibilidade que Bakhtin pode, por exemplo, excluir por princípio o
drama das formas potencialmente dialógicas. Ele conta com imbricamento, entretecimento,
entrelaçamento de vozes em um resultado uno conquanto segmentável sob a lupa do analista,
por mais que não se dedique, ele mesmo, a tal análise.
Não cabe aqui discutir a procedência dessa definição (de resto, plenamente
consistente). Mas cabe apontar que, mais uma vez, Joyce parece ter trazido uma ampliação
de possibilidades (nenhum copernicanismo, contudo) para este universo ao demonstrar que,
in absentia, a necessária voz do autor pode se tornar uma presença mais definidora, como que
um fundo claro contra o qual nossos hábitos de leitura examinarão necessariamente todas as
vozes
208
. Assim como esses mesmos hábitos necessariamente nos levam a buscar no
narrador a voz do autor (e é por saber disso que Dostoiévski & Joyce têm de esvaziá-lo tão
cabalmente), eles nos levam a encontrá-la como meio de cultura do que quer que tenhamos de
desenvolver.
O ponto passa a ser em que grau do contínuo de cores se resolve a solução das vozes
que, em Joyce, vimos, efetivamente se aproximam muito mais da fusão completa. Pendendo
sempre, contudo, para o campo do espectro dos personagens, fenômeno em que pesa não
pouco o citado e inevitável paradoxo biobibliográfico do Ulysses. Hipótese com que Bakhtin
parecia não contar.
Visto ficou já, também, o que Joyce resolve fazer (novamente mostrando na gina,
ao invés de deixar subententida uma postura) com relação àquela algo idílica idéia da
208
Veja-se por exemplo (e mais uma vez), a complexa, e para mim irresolvida, questão da ironia joyceana que,
nestes quadros, precisa ser usualmente lida contra a evidência da não existência de um discurso que a torne
necessária: um cutucão autoral ou narratorial de qualquer espécie. Mas que continua a ser lida.
378
possibilidade de uma convivência menos enviesada das vozes dos personagens na ausência
de qualquer instância narrativa que se lhes sobrepusesse: em uma narrativa em primeira pessoa.
Nada escapa intocado do sectarismo vicioso do Ciclope, vozes citadas, vozes presentes.
Tudo se vê plenamente achatado e absorvido pelos consideráveis dotes literários desse
narrador personificado, que, mesmo como personagem, existe no livro apenas nesta função,
embora o livro subverta essa função de infinitas maneiras, a começar pelo fato mais direto de
que ela vem colocada, no contínuo agora inalterável da passagem do dia 16 de junho, no
momento em que acontece a ação narrada, devendo o leitor presumir, inferir a partir de
muito pouca informação, o momento preciso em que terá ocorrido a narração da ação. Ele já
surge desbancado.
A presença, no mesmo episódio, dos trechos de pastiches de diversas formas
convencionais, cada uma com seu narrador igualmente convencionado, nada faz para ajudar
nas chances de salvação dessa figura no imaginário joyceano.
Ele, como Dostoiévski, sente o quanto é ilusória essa possibilidade, e o quanto é
mais rico em possibilidades o apagamento da voz narratorial, e sua redução a um artefato
seco e protocolar. No entanto, mais uma vez, Joyce escreve cadas depois, em todos os
sentidos, e para ele este apagamento é apenas uma etapa, um momento de um processo que
culmina em uma escolha ainda mais efetiva, mais poderosa, que entrega mais poder às vozes
dos personagens, que faz e desfaz daquele mesmo narrador a seu bel-prazer, que
simultaneamente inutiliza a figura do autor na obra e clama desesperadamente por seu
estabelecimento imediato. O arranjador faz seus estragos na medida em que Joyce percebe
que uma terceira pessoa pode (e nada pode ser mais dialógico) ser precisamente a síntese
entre uma primeira e uma segunda. Para ele, jesuíta de formação, isso nada devia ter de
estranho.
*
O próximo passo é averiguar como se pode dar a relação de vozes, não mais entre
autor e narrador, mas entre estes, postos em qualquer grau de comunhão (e vimos o que
nos cabe aqui) e as vozes dos personagens, efetiva relação instauradora da multivocalidade,
do dialogismo constituinte do gênero romanesco.
379
Uma das primeiras coisas que o mesmo Bakhtin decide precisar tirar de seu caminho
(de forma basicamente simétrica ao procedimento necessário de exclusão, mesmo que tácita,
da narrativa em primeira pessoa como meio óbvio de atingir os fins que busca) é a idéia
também aparentemente senso-comúnica de que o meio mais direto de garantir independência
às vozes dos personagens é estabelecê-las, caracterizá-las como radicalmente outras
209
.
Se a linguagem do autor é elaborada de maneira a que se perceba seu traço
característico ou sua tipicidade para uma determinada personagem, uma posição social
determinada ou uma certa maneira artística, estamos diante de uma estilização, seja
da estilização literária comum, seja do skaz estilizado. (1929, p.187)
Pois na verdade é precisamente na fronteira bastante complexa que se constitui em
torno da noção de que je est un autre que se deve desenrolar a personificação legitimamente
dialógica, entre a barata constatação de que os outros são diferentes que esta solitária atribuição
de valor basta para constituí-los como independentes (em que medida a diferença é
autonomia?) e a ultrapassada percepção de que os personagens (ou ao menos os heróis) são
projeções algo mais ou menos matizadas da voz e da consciência do autor que se constitui a
idéia de que esses outros são, sim, parte de uma consciencia que os cria e determina, mas de
que essa mesma consciência é, ela própria, fruto de processo bastante semelhante em cada
nível de sua formação, o que nos leva efetivamente a poder concluir que é a sameness do eu
autorial que se vê questionada, e não a otherness dos personagens.
Afinal reconhecer, tematizar a diferença é necessariamente pronunciar-se sobre ela, e
portanto, necessariamente, reconhecer-se (ao menos momentaneamente e ao menos como
instância discursivo-analítica) exterior a ela. Mergulhar na alteridade passa, primeiramente,
pelo reconhecimento de semelhanças, de imbricamentos, entretecimentos e entrelaçamentos.
Como que sob medida, de fato o Ulysses nos brinda com uma galeria de personagens
que comparte de um socioleto algo próximo, com um elenco em que em momento algum
nos vemos diante de uma variedade extramadamente marcada. As marcas são sutis. São
marcas de personagem e não marcas de tipo
210
.
209
O que me parece ser, por exemplo, a premissa de Graciliano Ramos em Vidas Secas.
210
A relação entre a sobrecaracterização e a tipificação e, de outro lado, entre esta e a essência do cômico mais
típico já bastaria para anular sua utilidade para estes fins.
380
Mais do que isso, novamente, quem nos surge com marcas muito claras de uma
linguagem diferenciada são precisamente os narradores que vemos em narrativas que
efetivamente tomam a forma do skaz, como no caso do Ciclope e de Gerty McDowell.
Mais ainda, se verificamos atentamente os registros e os níveis de fala da maior parte
dos personagens do Ulysses, verificamos que, mesmo havendo uma certa cisão sócio-
econômica especialmente entre o grupo dos estudantes universitários e o resto do elenco,
duas coisas impedem que essa marca mais óbvia atinja mais violentamente o texto. De um
lado, os momentos em que esta trupe realmente domina a cena e aparece em primeiro plano
são precisamente aqueles em que a representação da palavra se afogada pelo experimento
formal (O gado do Sol e Circe) e, de outro, fica a constatação irremediável de que o único,
dentre todos os estudantes, que realmente contemplamos com olhos (e ouvidos) diferentes em
função do uso que faz da linguagem é Stephen Dedalus que, de fato, não pertence realmente
a este grupo, e cuja diferenciação lingüística serve mais para colocá-lo à margem do grupo
dos personagens (ao qual, como vimos, encontra-se soldado o autor) do que para garantir-
lhe qualquer privilégio, apesar, mais uma vez, de ser ele quem mais de perto poderia
representar exatamente a voz do autor (inclusive do autor biográfico) no texto.
Fica portanto claro que inclusive deste possível instrumento de acabamento, desta
possibilidade de fornecer uma opinião sobre os personagens, o legítimo autor dialogizante
abrirá mão, pois
Por conseguinte, não são os traços da realidade –da própria personagem e de
sua ambiência– que constituem aqueles elementos dos quais se forma a imagem da
personagem, mas o valor de tais traços para ela mesma, para a sua autoconsciência.
Em Dostoiévski, todas as qualidades objetivas estáveis da personagem, a sua posição
social, a tipicidade sociológica e caracterológica, o habitus, o perfil espiritual e
inclusive a sua aparência externa –ou seja, tudo de que se serve o autor para criar
uma imagem rígida e estável da personagem, o “quem é ele” tornam-se objeto de
reflexão da própria personagem e objeto de sua autoconsciência; a própria função
desta autoconsciência é o que constitui o objeto da visão e representação do autor. [...]
Nós não vemos quem a personagem é, mas de que modo ela toma consciência de si
mesma, a nossa visão artística não se acha diante da realidade da personagem mas
diante de uma função pura de tomada de consciência dessa realidade pela própria
personagem. Assim a personagem gogoliana se torna personagem dostoievskiana.
Poderíamos apresentar uma fórmula um pouco simplificada da reviravolta
que o jovem Dostoiévski realizou no mundo de Gógol: transferiu para o campo de
visão da personagem o autor e o narrador com a totalidade dos seus pontos de vista e
descrições, características e definições de herói feitas por eles, transformando em matéria
da autoconsciência da personagem essa sua realidade integral acabada [...] À
381
consciência todo-absorvente da personagem o autor pode contrapor apenas um mundo
objetivo – o mundo de outras consciências isônomas a ela. (1929, p.47-9)
E Bakhtin novamente nos apresenta enigmas e nos força a repensar e reler suas
categorias.
Afinal, o que é senão uma espécie absoluta de fusão o que ele descreve como uma
transferência absoluta dos campos funcionais do autor e do narrador para a esfera perceptiva
do personagem? Algo que se parece muito com o que vínhamos tentando estripar do texto
joyceano ao longo de toda nossa leitura e, também, ao longo dessa análise da letra de
Bakhtin. Devemos manter em mente que esse fundir-se do autor com o personagem não
representa, não deve e a bem da verdade não pode representar um perder-se do autor no
personagem, ou vice-versa. Devemos ainda manter em mente que talvez tenha sido apenas
esta hipótese que Bakhtin tenha buscado eliminar quando se deteve sobre a indesejabilidade
de considerarmos o processo de imbricamento de vozes como uma fusão. Mas as metáforas
são coisas muito perigosas.
De nosso ponto de vista, o que resta desses raciocínios agora irmanados é
precisamente a idéia de que a trança de vozes continua existindo e continua podendo ser
desfeita, mesmo que a custo de um esforço eventualmente desproporcional à recompensa
obtida, mas ela definitivamente mudou de endereço. Ela se aloja na esfera dos personagens. É
agora o autor quem está de visita e, como sabemos, esse conúbio em casa alheia gerará uma
cria mestiça.
Por outro lado, a descrição que ele se permite fazer de como nos é representada a
consciência e o mundo do personagem beira ela mesma o subjetivismo solipsista de que, a
princípio, ele tanto desfazia em outros momentos. O que nos permite supor que aquele
banido subjetivismo se referisse de fato apenas ao sujeito-autor. No entanto é claro que desde
que aceitemos convencionar que o poder da literatura que parecia precisamente a que
desejava ver realizada M. M. Bakhtin (e que definitivamente se parece com o que vínhamos
descrevendo no Ulysses) tem a capacidade de fornecer subjetividade legítima (o que de resto
vem mesmo implícito no todo do raciocínio bakhtiniano) ao objectus convencional do
discurso autoral literário, o personagem, não é somar esquizofrenia ao solipsismo chamar de
igualmente subjetiva a literatura descrita nesta última citação.
Revelar o homem no homem é ainda o lema que melhor define tudo de que Bakhtin
continua a falar, e revelar o homem no homem implica necessariamente concebê-lo como
382
subjectus autoconsciente, como centro axiológico de visão-de-mundo. Implica subjetivismo,
sim. O subjetivismo do outro. E mesmo que quiséssemos manter em mente que era a isso
que se referiam Bakhtin e Kirpótin quando pensavam no realismo dostoievskiano, temos
agora obrigação de pensar que ambos (citado e citador, dado que este nada contesta e
escolhe recortar como quer) ou não leram Joyce, ou não o leram direito, ou escolheram-no
como alvo fácil via senso-comum
211
.
Tal conceito da relação axiológica entre autor e personagem, que, espero que se
possa reconhecer, não é exatamente dado por Bakhtin, mas sim retirado de algumas
contradições e de numerosas intuições muito vigorosas de momentos diferentes de seus
textos, agora se harmoniza perfeitamente com o trecho seguinte para demonstrar,
cabalmente, qual é a concepção de concepção de personagem que ele em Dostoiévski e
que, devidamente retificada (muito mais que corrigida), podemos perfeitamente aplicar aos
personagens do Ulysses.
Ele não constrói a personagem com palavras estranhas a ela, com definições
neutras; ele não constrói um caráter, um tipo, um temperamento nem, em geral, uma
imagem objetiva do herói; constrói precisamente a palavra do herói sobre si mesmo e
sobre o seu mundo.
A personagem dostoiveskiana o é uma imagem objetiva mas um discurso
pleno, uma voz pura; não o vemos nem ouvimos. Afora a sua palavra, tudo o que
vemos e sabemos é secundário e absorvido pela palavra como matéria sua ou permanece
fora dela como fator estimulante e excitante. (1929, p.53)
(Primeiro de tudo, não consigo [trata-se de uma obsessão permanente] ver o que na
afirmação anterior não possa ser dito de Hamlet)
Especialmente no que se refere a Bloom, Joyce vai muito longe neste preciso
caminho. Ele é definitivamente um discurso sobre si próprio e sobre o mundo que
aprendemos a reconhecer e se, como ficou demonstrado anteriormente, precisarmos esperar
centenas de páginas para saber que ele tem um bigode, isso definitivamente não não faz
diferença para a formação desse personagem como, muito, muito mais do que isso, se
harmoniza perfeitamente com o processo todo que se viu empregado para moldá-lo.
Bloom é o que Bloom pensa sobre Bloom.
211
E sequer menciono Proust.
383
Quando ele está em cena vemos todo o mundo (presente, evocado, lembrado..)
através de seus olhos e de suas fixações e não poderíamos de deixar de ver a ele mesmo pelas
mesmas lentes.
Mas não.
Joyce, como de costume, vai um passo além.
Pois se Bloom é o foco para onde parecem convergir todos os discursos (mesmo que
contra sua vontade) no Ulysses, a dele não é a única voz que vemos diretamente voltada para
ele. Eventualmente, pequenos comentários isolados nos mostram que os habitantes de
Dublin também encaram como nós (apesar de estarem eles condenados a mistério muito
maior, visto que apenas conhecem o exterior de um homem basicamente ensimesmado) o
mistério de Bloom. E Molly, em seu jorro final, nos fornece dezenas de páginas de
comentários, críticas, elogios, mas tudo, quase tudo, em torno de novo de Bloom, dando, ela
(numa, mais uma, sacada magistral de Joyce), todo o acabamento que nos será dado receber
para Bloom. Vem de um personagem o toque que o autor não se permitiu dar em momento
algum, e comparte portanto das limitações de percepção de mundo que tem um personagem,
não-dotado dos superpoderes externos do autor
212
.
Essas constatações vão novamente (de muitas maneiras) ao encontro de, e de
encontro a, o que o mesmo Bakhtin tinha a dizer sobre o tema.
A verossimilhança da personagem é, para Dostoiévski, a verossimilhança do
seu discurso interior sobre si mesma em toda a sua pureza, mas para ouvi-lo e mostrá-
lo, para inseri-lo no campo de visão de outra criatura torna-se necessário violar as leis
desse campo de visão, pois um campo normal de visão tem capacidade para absorver a
imagem objetiva de outra criatura mas não outro campo de visão em seu todo. Tem-se
de procurar para o autor algum ponto fantástico situado fora do campo de visão.
(1929, p.54)
A idéia, afinal, de que um campo de percepção (uma axiologia) não pode absorver
completamente um outro, não pode compreender um outro, afina-se perfeitamente com o que
os procedimentos joyceanos puderam nos fazer ver. A visão que de Bloom tem os
212
Em entrevista recente, David Foster Wallace mencionava ser, em sua opinião, esse um dos grandes atrativos
da literatura, a possibilidade, eventual, de saber como é ser outra pessoa. Se o procedimento adotado por
Dostoiévski e Joyce, eliminando o verniz do autor sobre a composição das personalidades que inventam, pode
dotar de um imediatismo inédito esse contato com o outro via ficção, não podemos esquecer que esse contato é
privilegiado apenas entre leitor e livro. Presos ao universo da ficção, os personagens, eles mesmos, convivem
uns com os outros sem as vantagens que apenas a literatura pode fornecer, convivem como pessoas no mundo.
Pela metade. Molly não compreende mais de Bloom que nós. Talvez compreenda mesmo menos.
384
dublinenses que com ele convivem, e mesmo sua esposa, é definitiva e exemplarmente mais
fragmentária e menos privilegiada que a que nos é dado receber. Trata-se de uma finalidade
quase expressa desse método, afinal, lutar pela quimera que é fazer com que o campo de
percepção do leitor possa passar o mais próximo de abranger um outro.
Mas o apagamento quase definitivo da presença do autor como voz e como eixo de
organização e valoração na leitura do Ulysses e a presença nele de um arranjador que, em
muitos sentidos, é precisamente sua conseqüência, levam a uma leitura tremendamente
potencializada da última frase do texto bakhtinano. Pois que aqui esse processo de buscar
para um autor um posto novo atingiu terrenos essencialmente inexplorados.
Esse posto, neste livro, fica simultaneamente mais distante do mundo ficto (para o
autor-autor) e mais próximo de seu (do mundo ficto) cotidiano (para o arranjador como testa-
de-ferro a quem é dado transitar entre os personagens de forma não-impositiva, a quem é
dado falar a língua dos personagens, ao mesmo tempo em que comparte do acesso aos
efeitos técnicos que, na verdade, precisa conceder aos narradores).
Pois se a palavra do autor sobre o herói é organizada no romance dostoievskiano como palavra
sobre alguém presente, que o escuta (ao autor) e lhe pode responder (1929, p.63), no romance
joyceano talvez nem isso possamos pensar. Se as vozes de Dedalus, Molly e, sempre
especialmente, Bloom são efetivamente plenipotentes em seus meios expressivos no Ulysses,
não podemos dizer que se coloquem em interlocução com o autor, a não ser na medida em
que nos vejamos obrigados a considerar essa possibilidade devido à incontornabilidade da
natureza dialógica desse processo.
Mas talvez seja precisamente que devamos chegar. À subversiva possibilidade de
que, conquanto presente como acento, a voz do autor no Ulysses não se possa considerar
presente como voz. Aquela mudança de polaridade que mencionávamos, que poderia levar a
fusão de vozes em nosso romance a se realizar quase que completamente no espectro dos
personagens, pode fazer com que a voz do autor é que se veja como que hierarquicamente
subordinada acentualmente às vozes dos protagonistas. Em momento algum me parece
legítimo (descontados, mais uma vez, os episódios de abertura, em que o romance ostenta
uma técnica menos madura e em que dois fatores extra-livro se apresentam como elementos
não-banalizáveis: o paradoxo biográfico e a relação intratextual com Um retrato...) considerar
qualquer projeção ideologicamente ativa da voz do autor como um interlocutor possível e
385
plausível dos monólogos ou das perorações de Dedalus ou Bloom (irrespectiva e
obviamente).
Eles nem estão aí para isso. O que ilustra muito bem o que se expõe no passo
seguinte.
Deste modo, a liberdade do herói é um momento da idéia do autor. A
palavra do herói é criada pelo autor, mas criada de tal modo que pode desenvolver até
o fim a sua lógica interna e sua autonomia enquanto palavra do outro, enquanto
palavra do próprio herói. Como conseqüência, desprende-se não da idéia do autor
mas apenas do seu campo de visão monológico. Mas é justamente a destruição desse
campo de visão que entra na idéia de Dostoievski. (1929, p.65)
o arranjador, ele sim, é um interlocutor viável, mesmo no sentido mais direto do
termo (como esquecer aquele E Bloom? das Sereias). Mas, sempre, será um interlocutor que
se relaciona com o livro. Ele é mais leitor que autor em muitas de suas facetas. E a literatura, a
possibilidade literária, sai mais uma vez enriquecida, louvada e magnificada do processo
todo
213
.
A palavra de Bloom pode ser dialógica.
A palavra de Dedalus por ser dialógica.
213
Discussões sobre a validade do termo pós-moderno à parte, a consciência da livridade é certamente um dos
aspectos que mais contribuem para diferenciar os construtos de Joyce e Dostoiévski. Mas o interessante é que,
apesar do muito em sentido contrário que posteriormente se pôde fazer, aqui Joyce consegue dar a essa mesma
consciência um peso inquestionavelmente dialógico, seja por sua aguda consciência intertextual (o que resolve o
problema extra-livro), seja pela hábil problematização da narratividade (que obviamente teria de ser colocada
por uma entidade acima do narrador) que se instaura no livro depois de sua metade (o que resolve o problema
intra-livro).
A bem da verdade, a típica relação intertextual, que viríamos, em grande medida graças a este mesmo
livro, a considerar tão definidora da modernidade e do que quer que tenha vindo depois dela, esconde, ou
revela, uma mais profunda aplicação e uma mais densa problematização (mais uma) das questões dialógicas
propostas por Bakhtin. Tema que infelizmente não poderá ser desenvolvido plenamente nas dimensões deste
trabalho, e porque de fato tem relação mais tangencialmente iluminadora com o tema que nos propomos. Mas
não posso deixar de apontar essa possibilidade e ilustrá-la com o seguinte trecho que, sintetizando na vigorosa
idéia da polêmica a discussão em torno da estilização e da paródia, com as diferenças da postura do autor em
relação a cada uma das vozes apropriadas nos dois registros (discussão que, no limite, nos levaria de volta ao
tentador vórtice da ironia), descreve à perfeição a postura de Joyce diante da tradição.
No discurso literário é imenso o valor da polêmica velada. propriamente em cada estilo
um elemento de polêmica interna, residindo a diferença apenas no seu grau e no seu caráter. Todo
discurso literário sente com maior ou menor agudeza o seu ouvinte, leitor, crítico cujas objeções
antecipadas, apreciações e pontos de vista ele reflete. Além disso, o discurso literário sente ao seu lado
outro discurso literário, outro estilo. O elemento da chamada reação ao estilo literário antecedente,
presente em cada estilo novo, é essa mesma polêmica interna, por assim dizer, dissimulada pela
antiestilização do estilo do outro, que se combina freqüentemente com um paródia patente deste. [1929,
p.197]
386
A palavra de Molly pode ser dialógica.
A palavra do arranjador (se ele tem palavra) pode ser dialógica.
Mas a palavra do Ulysses (todas e cada uma delas) é definitivamente dialógica.
Mas a privação desse diálogo com o autor começa a ter conseqüências para a
possibilidade da efetiva aplicação da terminologia e do quadro de análise de Bakhtin à obra
joyceana. Pois, para o autor russo
O momento de apelo é inerente a todo discurso em Dostoiévski, ao discurso
da narração no mesmo grau que ao discurso do herói. No mundo de Dostoiévski não
há, de um modo geral, nada de concreto não objetos, referentes, apenas sujeitos.
Por isso não o discurso-apreciação, o discurso sobre o objeto, o discurso
premeditadamente concreto: apenas o discurso-apelo, o discurso que contata
dialogicamente com outro discurso, o discurso sobre o discurso, voltado para o discurso.
(1929, p.240)
Para que ainda possamos considerar produtivo o diálogo desta teoria com este autor,
precisamos de saída estabelecer claramente o fato claro de que deve haver uma diferença
entre o fato de apenas podermos conhecer um personagem pelo que ele mesmo de si
conheça, a partir do que sua mesma consciência elabore sobre si própria, e apenas nos
momentos e na ordem em que tais coisas se lhe apresentem como temas, e a necessidade de
considerarmos que, para que tal coisa ocorra, é preciso estarmos diante de personagens
dedicados em algum grau a se autotematizar.
Um discurso voltado para o discurso não precisa ser um discurso voltado para a
busca constante da definição do eu. E Bloom nos demonstra isso cristalinamente.
Parece ser de fato elemento relevante da concepção de personagem em Dostoiévski
esse elemento autotematizador que, só ele, pode explicar a centralidade da idéia desse
discurso-apelo como constituinte principal de suas falas. Mas mesmo Stephen Dedalus, que
parece se considerar essencialmente ofendido pelo mundo e que se demonstra profundamente
ressentido contra mundo e gentes parece incapaz, sob a batuta de James Joyce, de se entregar
por qualquer intervalo mas alentado a qualquer espécie de discurso que possamos considerar
pertencente a algum nero de apelo. Trata-se de um (de não poucos deles) caso em que por
mais que saibamos que a noção esboçada por Bakhtin tem muito de metáfora e pouco de
rigor denotativo, não como espichar seu campo semântico para que ele chegue a cobrir,
de qualquer maneira relevante, o universo de que estamos tratando.
387
E mais uma vez o subjetivismo aparece como um problema para Bakhtin e seu
Dostoiévski.
De qualquer maneira, parece fazer até mais sentido para Joyce do que para o
Dostoiévski que vimos desenhado, a afirmação (1929, p.259) de que estes autores tenderão
sempre a buscar expor em pares seus personagens centrais. Não necessariamente pares
antitéticos, mas, diríamos nós, pares que por sua mesma simetria (estrutural) desafoguem a
narrativa do peso exercido pelo domínio de apenas uma voz no embate de consciências.
Dedalus, Molly e Bloom. Os três nos são apresentados durante todo o dia
basicamente sós. Mesmo quando acompanhados em cena (os homens) convivemos muito
mais com a solidão explicitamente povoada por miríades de outros que são suas consciências
do que com a efetiva interação que pode se dar entre eles e outros em cena (pense-se na
conversa de Bloom com a senhora Breen, ou, melhor ainda, na conversa do padre Conmee,
único personagem menor a ser significativamente dotado de monólogo interior, com a
senhora Sheehy).
Mais ainda, não nos é dado presenciar significativamente qualquer interação entre
esses três personagens. Molly não sai dos pensamentos de Bloom. Bloom habita cada uma
das oito frases de Molly. Mas o pouco de conversa que eles travam durante o dia nos é
sonegado das formas mais inventivas. Bloom e Dedalus conversam longa e loucamente
depois de saírem do prostíbulo, mas ouvimos essa conversa toda (quando muito) através de
uma cortina formada por um ruído branco cuidadosamente articulado em pastiches e
ridículos que vela principalmente palavras.
E no entanto a interação entre essas três pessoas é riquíssima.
Leitor algum deixa de sentir (ou ao menos de desejar) que Bloom e Dedalus
(certamente do ponto de vista daquele, ao menos) celebraram naquela noite uma nova
aliança. Assim como ninguém pode contornar a possibilidade insinuada de que o casal
Bloom encontre na manhã seguinte uma centelha de algo que julgavam perdido. Tudo isso
baseado, como lembra o mesmo Livro, em um resmungo mal compreendido.
As palavras efetivamente pronunciadas m muito pouco peso em qualquer dessas
sensações. O que nos resta é convívio mediado pela literatura. E talvez por isso mesmo
perceptível apenas para nós, culpados de literatismo
Felix culpa.
388
vii. Pessach
Até aqui acredito que tenhamos podido ver que o grosso das formulações
bakhtinanas que transitam na extensa faixa de seu pensamento que se articula entre a
filosofia da linguagem como tal e a formulação de uma estética romanesca que seja, em
grande medida, não necessariamente derivado, mas claramente corolário necessário dessa
mesma filosofia serve bastante bem para a discussão do Ulysses. Não quero dizer com isso
que suas categorias possam ser aplicadas a uma análise do livro. Não acredito de fato (e, mais
ainda, não acredito que qualquer outra pessoa possa ter motivos para acreditar) que elas
tenham sido em qualquer grau concebidas com essa finalidade. Elas em muitos sentidos mal
chegaram a ser concebidas como categorias, assemelhando-se muito mais a instrumentos
auxiliadores da própria reflexão do autor, em um pensamento sempre em vias de se construir
no ato de exposição
214
. O que realmente parece surgir da tentativa de gerar o convívio entre
esses dois mundos é, pelo contrário, um enriquecimento considerável desse tentativo
ferramental bakhtiniano.
Uma curiosa afinação de princípios que faz com que mesmo o que em Joyce seja não-
bakhtiniano possa ser visto, no mais das vezes, como amplificação, complexificação da
discussão bakhtiniana, e não como negação ou antipodalismo.
Gostaria de repetir duas coisas. Uma vez cada uma..
Primeiro, mantenha em mente a afirmação da introdução de que este trabalho
pretendia, na medida do exeqüível, tratar Joyce e Bakhtin como pensadores de estatuto
comparável. Não penso Joyce como artesão que produziu apenas um engenho que com
auxílio de uma teoria posso desmontar para comprovar seu funcionamento. Toda abordagem
de Joyce que se paute inflexivelmente por um principio semelhante me parece fadada ao
fracasso. É no embate entre duas teorias sobre o romance (na medida em que considero a arte
uma forma simbólica de valor equiparável ao da episteme filosófica) que surgirão as novas
possibilidades de leitura, para uma e outra delas.
Segundo, no entanto, reafirmo o que citei na abertura da análise do texto de
Volochínov. Leitores armados de uma prévia leitura de um de nossos dois autores, ao
deparar com o outro, podem muito bem, desde que desprovidos da pré-noção que reza que
214
Já antecipo o comentário: de te fabula..
389
o trabalho em teoria literária deva ser sempre realizado na mão contrária, chegar à conclusão
de que Joyce apresenta efetivamente uma possibilidade de prescindir de uma leitura
bakhtiniana, tamanha a afinação entre o núcleo de suas leituras de língua, mundo e novela.
Joyce teria declarado que se a cidade de Dublin fosse destruída por algum cataclismo,
deveria ser possível reconstruí-la a partir do Ulysses. É precisamente nesta esfera, no trânsito
entre a hipérbole que busca chamar atenção para o poder da proposta e a metáfora que leva
o verbo a reconstruir-se longe do prosaico, que podemos pensar que se os escritos
bakhtinianos sobre o romance fossem perdidos, poderíamos reconstruí-los (em versão
inclusive aprofundada) a partir do Ulysses.
E o Finnegans wake, se um dia efetivamente assimilado, fará isso e muito mais.
Um problema, no entanto, se apresenta, aqui como em todas as leituras de outros
romancistas através de um viés bakhtiniano, que, como aqui, não podem escapar do que ele
formulou em torno da obra de Dostoiévski: a aplicabilidade, para além da obra de Fiódor
Mikhailovitch, do conceito de polifonia, paradoxalmente, uma das metáforas (muito, muito
mais que categorias) mais convidativas do corpus bakhtiniano.
Tezza (2003, p. 231), que pretendo acompanhar também aqui, é bom exemplo de
uma opinião nada exótica entre os estudiosos da filosofia bakhtinana.
O conceito de polifonia é uma categoria não reiterável; apesar de toda a
aposta de Bakhtin no que ele chama de “novo gênero romanesco”, ele mesmo não
conseguia encontrar (isso 40 anos depois, em 1974), mais do que dois ou três
exemplos de romance polifônico, citando mais obras filosóficas que literárias, Camus
em particular.
Por outro lado é inegável que o mesmo Bakhtin, como Tezza não deixa de apontar,
em mais de um momento (cf. 1929, p.36), acredita ter presenciado na obra de Dostoiévski
não o surgimento, mas a fundação de um novo gênero romanesco e, ainda mais
significativamente, dado o rumo que hão de tomar nossos raciocínios aqui, de um novo
modo de pensar.
Consideramos Dostoiévski um dos maiores inovadores no campo da forma
artística. Estamos convencidos de que ele criou um tipo inteiramente novo de
pensamento artístico, a que chamamos convencionalmente de tipo polifônico. Esse
tipo de pensamento artístico encontrou expressão nos romances doistoievskianos, mas
390
sua importância ultrapassa os limites da criação romanesca e abrange alguns
princípios básicos da estética européia. Pode-se até dizer que Dostoiévski criou uma
espécie de novo modelo artístico do mundo, no qual muitos momentos basilares da
velha forma artística sofreram transformação radical. (1929, p.1)
Teria ele se desiludido com os rumos futuros da literatura para assim abandonar a
prole que se poderia esperar tivesse vingado a partir dos irmãos Karamázov? Ou teria ele
percebido um equívoco?
Nem tanto ao mar..
De início saímos desse impasse com uma hipótese, o que, reconheço, destoa do que
se vem tentando fazer ao longo de todas essas páginas. No entanto temos elementos
suficientes para aventar uma possibilidade de explicação que, na seqüência, buscaremos
demonstrar e ampliar. Pois a polifonia, conquanto ausente de nossas discussões até aqui
como membro determinante, projetou sua sombra por sobre os pareamentos de Joyce e
de Bakhtin.
A hipótese com que quero trabalhar é a de que a polifonia bakhtiniana, como tal,
efetivamente não serve para a análise do Ulysses devido a limitações suas, por se tratar da
única categoria romanesca bakhtiniana que, efetivamente, não é uma categoria romanesca,
mas sim uma categoria unicamente dostoievskiana. Não se trata de dizer que Joyce não é um
autor polifônico no sentido bakhtiniano, mas sim de afirmar que Joyce não é Dostoiévski, e
que polifônico e doistoievskiano querem dizer essencialmente a mesma coisa para Mikhail
Mikhailovitch.
Se não, vejamos. Quando Tezza aponta, previamente em seu livro, o fato de que O
mito de Sísifo de Albert Camus seria o grande exemplo de polifonia que Bakhtin, ele mesmo,
pôde encontrar na tradição da literatura européia que se estendeu durante mais de quarenta
anos depois da publicação de seu ensaio, e mais de noventa anos depois da morte de
Dostoiévski, e mais ainda, quando ele aponta que este texto (uma alegoria filosófica) vem
acompanhado para Bakhtin de outros textos que em sua maioria pertencem à esfera dos
textos filosóficos, não-romanescos, de saída lembramos a possibilidade timidamente
aventada mais acima neste mesmo trabalho, de que a liberdade dos personagens
dostoievskianos, conforme concebida por Bakhtin, pudesse na verdade servir como disfarce
para a execução sub specie fictionis do que teria mais especificamente as caraterísticas de um
manifesto ideológico ou de um tratado filosófico.
391
Veja bem, não estou dizendo que os romances dostoievskianos não são romances.
Primeiro porque, e aqui não me contradigo, os romances de Dostoiévski, por si
próprios, não me interessam neste momento. Me interessa apenas o construto teórico
bakhtiniano que se ergue sobre eles, a partir deles, em torno deles. Segundo, porque o que
afirmo (tento) se refere a uma possibilidade de leitura. Assim como há romances (e os
tempos atuais são pródigos de exemplos, de todo tipo de qualidade literária) que incluem,
que abrangem (dentro do mais puro espírito romanesco, bakhtinianamente falando)
discussões históricas, geográficas, religiosas ou biográficas, sem que por isso deixem de
pertencer ao gênero, posso pensar que os romances da madureza de Dostoiévski, aos quais
Bakhtin aplica mais diretamente a idéia da polifonia, possam incluir (não apenas em sua
trama, o que seria mais banal, mas em sua estrutura, em sua concepção global) o texto
filosófico-ideológico, a inquirição existencial-social, como base de partida, sem a qual não
podem ser adequadamente compreendidos.
Eles não têm interlúdios filosóficos e não precisam incluir um filósofo entre seus
personagens, muito menos suas eventuais digressões, para que possam incorporar o discurso
ideológico-filosófico como motivo estruturador básico. A bem da verdade, como o mesmo
Bakhtin adequadamente ressalta, o artigo efetivamente filosófico que ficamos sabendo ter sido
escrito por Raskólnikov não tem, e não poderia ter, espaço nas páginas de Crime e castigo.
No entanto o discurso-apelo, a auto-tematização, o questionamento incessante de
base ontológico-social fazem com que esses romances soem sempre em tom filosófico como
entidades superiores. Fazem com que os personagens dostoievskianos se aproximem
bastante de se tornarem idéias, ainda que não idéias-tipo.
Em que medida esse processo chega a questionar o apagamento da voz autorial
como elemento sobredefinidor, que proporciona o verdadeiro dialogismo entre iguais, se
considerarmos que (em um virtual plano de análise de idéias puras, em que se desconte a
realidade discursiva) a ideologia do autor aparece como elemento finalizador em uma medida
excessiva, ou no mínimo como elemento condicionante decisivo, vai depender do quanto
julguemos (naquele hipotético nível de análise que estabelecesse uma morfologia ideológica
independente) serem efetivamente independentes, e inclusive contraditórias, as ideologias
manifestadas pelos, e nos, personagens criados por Dostoiévski.
Essa análise não é necessariamente vã. Mas não creio que possa chegar a resultado
muito revelador.
392
O que, por outro lado, não penso que se possa deixar de lado é que a presença da
ideologia dostoievskiana é muito maior, necessariamente, para que este quadro montado por
Bakhtin se possa sustentar, do que a presença da voz lingüística e esteticamente definida de
Fiódor Mikháilovitch na letra de seu texto. (Assim como não se pode negar que a similitude
entre essa ideologia e o ideário cultural do mesmo Bakhtin tenha tido um peso considerável
na atração que sentiu o teórico pelo romancista, e mesmo na coloração final da teoria de que
um novo gênero estaria por surgir daquela semente.)
Mais uma vez, é preciso estabeleçamos que a diferença, por mais que busquemos
fundos e núcleos comuns e sensocomumente incontornáveis (a ideologia do autor estará sempre
presente..) pode estar nos objetos para os quais se voltam as preocupações filosóficas de cada
autor, de cada livro. É mais duramente filosófico o recorte temático de Dostoiévski, seus alvos
principais se referem àquilo que poderíamos chamar maiusculamente de Condição Humana.
Joyce tem coisas sérias a dizer sobre a história no Finnegans wake, pode ter coisas sérias a
dizer sobre o artista (ou sobre uma imagem de artista) em Um retrato.. mas essencialmente o
conteúdo mais impactante de sua produção (especialissimamante se nos mantemos atados ao
Ulysses) diz respeito muito mais diretamente à minusculíssima condissão umana.
O que parece não ser considerado por Bakhtin é a possibilidade de sermos efetiva e
plenamente humanos sem que tenhamos de ser ideólogos. O que, obviamente, se estende
aos mundos fictos que forjamos por dar forma a nossa ficção.
O adultério é um tema do Ulysses. Mas nada nele de tragédia grega ou de drama
ibseniano-bergmanniano. O Ulysses trata mais propriamente da cornice. As relações de pais e
filhos? Compare-se o ágon dos Irmãos Karamazov ou a violência do Lear com o tom menor e
camerístico da dor de Bloom. O alcoolismo e a dissolução das famílias? Pensemos em
Dickens e na pateticamente triste família Dedalus.
Contraste-se isso com o seguinte
Cabe lembrar, antes de mais nada, que a imagem da idéia é inseparável da
imagem do homem, seu portador. Não é a idéia por si mesma a “heroína das obras de
Dostoiévski”, como o afirma B.M. Engelgardt, mas o homem de idéias. É
indispensável salientar mais uma vez que o herói de Dostoievski é o homem de
idéias. [...] A todas as personagens principais de Dostoiévski é dado “pensar nas
alturas e as alturas buscar”, em cada uma delas “há uma idéia grandiosa e o
resolvida”, todas precisam antes de tudo “resolver uma idéia”. (1929, p.84, 86)
393
E o curioso é que, mais uma vez, vemos que Joyce nos ainda um argumento de
sobra. Mais uma vez ele tematiza os processos que realiza, iconiza a cnica na trama e nas
caracterizações. Seu sanchopancismo não poderia deixar de rir da idéia de que os
personagens da literatura relevante tenham, por força de ofício, de pensar grandes idéias, de
buscar as alturas. Ele, aos quarenta anos de idade, não é mais sério o suficiente para levar isso a
sério. E portanto nos presenteia com o everyman, e mais ainda, com o everyday Leopold
Bloom, que, em um sentido deliciosamente subvertido, é um grande homem de idéias, um
reformador urbano e social que viverá sua apoteose no momento mais carnavalizado de toda
a obra, em que se verá de posse do condão do nomoteta apenas para ser ridiculamente
despojado de manto e cetro em muito poucas páginas.
Como fazer conviver a carnavalização e os ideólogos das alturas?
Vimos que se em Dostoiévski os elementos carnavalizados tinham de ser buscados
em espelhos, por enigmas, per angustas, em Joyce sua presença é literal e acachapante. O
coroamento e o destronamento do rei bufo não são uma metáfora. A ida aos infernos de
fato se dá.
E, nesse mundo, os ideólogos não têm muito espaço.
Mesmo no fato de se decidir por cobrir minuciosamente um dia, a opção de Joyce
pelo cotidiano, pelo que efetivamente nos condiciona e nos molda, pequenininhamente, dia-
a-dia, grita seus motivos e sua grandeza, afasta-a do cerebralismo angustiado(-ante) da
inquirição existencial (subjetiva ou social) e o coloca junto às pedras da calçada,
carnavalizada mesmo a filosofia. E, temo, o coloca bem distante da idéia do romance
polifônico conforme desenhada por Bakhtin para a obra de Dostoiévski.
Mas, ouso dizer, o problema é dela.
Em diversos sentidos.
A polifonia se revela assim (vista por olhos reconhecidamente tendenciosos, que não
a avaliam em sua utilidade para a história dos estudos dostoievskianos) como uma categoria
mais fraca, menos interessante por ter, em algum grau, tomado como premissas fatores
intrinsecamente relevantes para o trabalho e o pensamento de um autor, com base em pouco
mais que uma aposta (wishful thinking em seu pleno esplendor) de que tal trilha seria seguida
por gerações de outros autores, e com isso imputado em alguma medida à teoria geral do
394
romance bakhtinano a sombra de uma potencialidade (se ela criava um novo gênero de
romance não podemos pensar que ela se limitasse ao estudo de Dostoiévski como um
princípio) que efetivamente não precisava ser verificada caso a caso para que toda a
conceituação anterior a ela, baseada na constituição radicalmente dialógica do romance,
pudesse se sustentar.
Nos vemos novamente diante de um problema que Tezza saberá muito bem apontar.
Baseadas em metáforas, as categorias bakhtinianas de análise literária se viram à mercê das
avaliações tendenciosíssimas que outros tempos vieram fazer dos termos e das noções
evocadas por esses termos. Assim como, em nosso tempo, ninguém quer ser monológico (ou
mono-qualquer-coisa), e o dialogismo passa a ser avaliado necessariamente como categoria
positivamente marcada, a literatura dialógica como literatura melhor (o que pode levar certos
estudantes a aplicar à força o rótulo de dialógico a qualquer que seja a obra com que
trabalhem), a polifonia parece (pelo mesmo poli-) uma versão, senão superior, ao menos mais
desenvolvida da possibilidade dialógica. Ser polifônico seria o máximo da avaliação positiva
que o autor poderia receber.
de pensarmos contudo, sem jamais deixar de lado o quanto de empenho pessoal
por parte de Mikhail Bakhtin podemos detectar em sua percepção de que a obra de
Dostoiévski lhe era mais satisfatória que qualquer evidência empírica que pudesse querer
forjar, se, no fundo, o mesmo Bakhtin não pensava dessa maneira. A atribuição de uma
valoração comparativa aos gêneros literários diversos e às formas diferentes de cada gênero,
bem como a corroboração tácita de expressões como a morte da literatura burguesa, não deixam
de ter suas raízes, senão na letra efetiva do texto bakhtiniano, em uma postura bastante difícil
de negar. Ele não o afirma. Mas nada faz por desmenti-lo, consciente que ele –acima de
todos– deveria ser das possíveis objeções de seus interlocutores.)
Mas, aos fatos, vejamos o que diz ele de Dostoiévski, e em que medida Joyce se
desvia de seu padrão polifônico, segundo o que expusemos aqui na análise dos episódios do
Ulysses.
de saída (o que é raro), no livro sobre Dostoiévski ele nos fornece algo que bem
poderia passar por uma definição, ainda que tangencial (o que é característico) daquilo que
chamará de polifonia no romance ou, para sermos mais precisos, de romance polifônico.
395
A multiplicidade de vozes e consciências independentes e
imiscíveis e a autêntica polifonia de vozes plenivalentes constituem, de
fato, a peculiaridade fundamental dos romances de Dostoiévski. Não é a
multiplicidade de caracteres e destinos que, em um mundo objetivo uno, à luz da
consciência una do autor, se desenvolve nos seus romances; é precisamente a
multiplicidade de consciências eqüipolentes e seus mundos que aqui se
combinam numa unidade de acontecimento, mantendo a sua imiscibilidade. Dentro do
plano artístico de Dostoiévski, suas personagens principais o, em realidade, não
apenas objetos do discurso do autor, mas os próprios sujeitos desse
discurso diretamente significante. (1929, p.4)
Duas idéias se destacam, articuladas que estão: o fato de que as consciências desses
heróis são plenivalentes e de que elas não se apresentam como objetos do discurso do autor,
mas plenamente orientadas e colocadas em seu próprio mundo feito discurso.
Ou seja, vale dizer que
Suas obras marcam o surgimento de um herói cuja voz se estrutura do mesmo
modo como se estrutura a voz do próprio autor no romance comum. (1929, p.5)
Uma voz, portanto, dotada de não-menos recursos que aqueles de que dispõe a voz
do autor. E é importante aquele não-menos.
Como vimos anteriormente, essa nivelação das possibilidades se de forma bífida,
ampliando brutalmente, sim, os recursos e a potencialidade expressiva autônoma
(novamente, não falamos de marcas idioletais) dos personagens mas, simetricamente,
retirando do autor poderes e recursos de que ele tradicionalmente poderia dispor. Buscando,
neutralizá-lo, torná-lo mais plano e, assim, mais atingível por aquelas consciências que,
inelutavelmente, são produto da sua.
É como se aquele excedente de visão de que dispõe o autor clássico e que lhe permite
finalizar o personagem, depois de descartado como instrumento voluntário pelo autor
dostoievskiano, tivesse ainda de ser considerado em seu peso remanescente. Tal é a distinção
entre criador e criatura no universo literário que, mesmo disposto a se equiparar abrindo
mão de certos recursos, o autor tem necessidade de se sobre-neutralizar nas marcas exteriores
do discurso para possibilitar um convívio efetivo de iguais.
Mais uma vez indo mais longe, Joyce acaba por retirar da esfera de influência do
autor mesmo certas possibilidades de arranjo estrutural. Essa é a parte mais central da
definição e da utilidade do conceito do arranjador. Em seus livros o autor procura se
396
rebaixar além do nível dos personagens, o que acarreta, de saída, senão necessariamente a
impossibilidade da interlocução entre iguais, pelo menos sua maior dificuldade, sua menor
obviedade.
Se a idéia é tornar iguais essas vozes, no Ulysses, as dos personagens são mais iguais
que a do autor. E isso obviamente teve de acarretar (ou surgiu como conseqüência de) um
rearranjo completo das relações entre as instâncias narrativas em sua totalidade.
E elas terão de ser totalmente diferentes das estabelecidas para (por?) Dostoiévski.
Olha só.
Aqui é oportuno enfatizar mais uma vez o caráter positivamente ativo
da nova posição do autor no romance polifônico. Seria absurdo pensar que nos
romances de Dostoiévski a consciência do autor não estivesse absolutamente expressa.
A consciência do criador do romance polifônico está constantemente presente em todo
esse romance, onde é ativa ao extremo. Mas a função dessa consciência e a forma de
seu caráter ativo são diferentes daquelas do romance monológico: a consciência do autor
não transforma as consciências dos outros (ou seja, as consciências dos heróis) em
objetos nem faz destas definições acabadas à revelia. Ela sente ao seu lado e diante de
si as consciências eqüipolentes dos outros, tão infinitas e inconclusas quanto ela mesma.
Ela reflete e recria não um mundo de objetos mas precisamente essas consciências dos
outros com os seus mundos, recriando-as na sua autêntica inconclusibilidade (pois a
essência delas reside precisamente nessa inconclusibilidade). (1929, p.68)
Longe de mim (bom-senso, apenas, e mais uma vez) querer questionar o fato de
estar expressa no romance mono- dia- ou pantológico a consciência do autor. O que contudo
surge como claro diferencial entre a postura que tentamos exumar da letra do Ulysses e o que
agora se diz com ainda mais clareza a respeito de Dostoiévski é a atividade dessa consciência
no contato com os personagens.
A criação do conceito do arranjador (trato aqui da criação do conceito, por Hayman,
não da criação da função, por Joyce), por mais que possa ser considerada falsa, inadequada,
ou desnecessária, junto ao fato de ter tido ela uma repercussão muito rápida e muito intensa
nos estudos joyceanos surge precisamente como uma resposta a uma sensação recorrente
entre os leitores do Ulysses: de que o autor estava de alguma forma realmente ausente das
discussões e do contato relevante com o mundo ficto.
Se você não compra a leitura de Hayman. Se minha exposição e minha leitura de sua
categoria não o convencem como necessárias ou suficientes, é bastante manter em mente que
quarenta anos de leitura do Ulysses parecem ter concordado com o fato de que alguma (talvez
397
não essa) formulação diferente precisava entrar em cena para explicar a inimputabilidade
ideológica da voz do autor no Ulysses.
E volta à berlinda (agora estamos prontos para essa volta) a incômoda e recorrente
definição de Stephen Dedalus, de um autor que se mantém afastado, aparando as unhas,
como Deus, olhando sua criação. E tudo de repousar no que cada um achar que quer
dizer aquele como Deus. Se totalitariamente e inexoravelmente dominador, como na literatura
monológica anterior a Dostoiévski, descartamos Joyce desse estudo; se indiferente e
inabalado em relação ao mundo que lhe é inferior, temos a postura do esteta wildeano in
excelsis, que no limite não gera literatura.
Por mim, voto por: isento, depois de criar seres plenipotentes a quem concede como
principal dádiva o máximo que possam ter de livre-arbítrio: uma ficção (este e aquele) tanto
para eles como para nós.
Tomado como solução para o reequilíbrio da estrutura romanesca levada a um ponto
de fratura com a perbakhtinianização do romance operada por Joyce, o arranjador nos
coloca diante da curiosa situação de vermos que se o autor não pode dar acabamento,
finalizar seus personagens (se seu excedente de visão é posto o mais que possa à parte
precisamente para evitar tal processo) talvez, no campo das metáforas, que é o campo da
literatura, seja interessante pensarmos que agora possam ser os personagens a dar esta
finalização ao autor, fruto do romance.
É como se o radicalmente sério Dostoiévski da maturidade tivesse de criar seus
ideólogos para poder conversar com eles (eis o mistério da polifonia) enquanto que Joyce
cria os seus, para que possamos, nós, conversar com eles. É assim que ele resolve o
paradoxo da criatura inacabável. Ele nos apresenta essas pessoas em devir e se recolhe, pai
escrupuloso, a seu silêncio.
*
O mesmo Bakhtin abre uma ressalva para o perigo de levarmos demasiadamente a
sério, e a fundo, sua metáfora musical.
Mas as matérias da música e do romance são diferentes demais pra que se
possa falar de algo superior à analogia figurada, à simples metáfora. (1929, p.21)
398
É isso que ele busca com polifonia.
Mas não o excusa.
Ninguém está isento de responsabilidade por ter se expressado metaforicamente, já
houve mesmo quem nos lembrasse que afinal são metáforas todas as palavras, ou o foram. E
Bakhtin, na mesma linha geral, mesmo querendo se manter no campo das metáforas
musicais, poderia ter escolhido contraponto, acorde, verticalização...
Mas escolheu polifonia, com o sentido mais direto que pode ter a palavra na
teorização musical. A idéia de que, em oposição à música ocidental medieval (novamente o
processo traz no bolso a noção de superação, de melhoramento pelo menos no sentido da
complexificação, da multiplicação de possibilidades), desenvolvida em torno de uma
melodia, uma linha solista, a sica renascentista começa a trabalhar com a possibilidade de
que diversas melodias se entrecruzem, mantendo cada uma sua coerência interna e, no
entanto, contribuindo para que a peça, no todo e também momento a momento, ostente
uma coesão vertical que é quantitativa e qualitativamente diversa daquela que as melodias
perseguem para si, mas que contribui em igual grau de importância para a determinação da
tonalidade e da estabilidade, bem como do movimento geral do trecho.
Uma nota é diferente de um acorde de maior (formado por Dó-Mi-Sol,
executados simultaneamente).
Faço soar, digamos, quatro melodias que, tocadas uma a uma, funcionam como
contínuos narrativos, usalmente por estarem embasadas em movimentos do tipo pergunta-
resposta ou tensão-resolução (o que parte de uma interdependência fundamental horizontal-
vertical). Mas o fato de essas melodias se encontrarem empilhadas (essa metáfora não é nem
mesmo necessária para o surgimento da noção de verticalidade: mais prosaicamente falando,
as vozes são de fato escritas uma em cima da outra na pauta tradicional) acaba por gerar uma
progressão harmônica, digamos, de a sol, com resolução em , que é, ela mesma, uma
realidade também isolável, funcional por si própria (e gera atribuições de valores para cada
nota das melodias, na medida em que elas pertençam ou não à tonalidade estabelecida para a
música, o que possibilita as relações de tensão-resolução).
Mas cada uma dessas realidades não apenas depende da outra na obra pronta como
na verdade inexiste sem ela. De onde a idéia da composição, do agrupamento.
Perseguindo polonisticamente a metáfora bakhtiniana, vemos que ela de fato ainda se
sustenta. no que ele descreve exatamente a manifestação de vozes plenamente autônomas
399
que se encaixam e apenas fazem sentido em um todo que as supera. Musicalmente, na
verdade, a metáfora ainda cobre o Ulysses. O problema, no entanto, na raiz da distinção
prudente e habilmente levantada por Bakhtin é a semântica.
De que a música, para sua eterna felicidade, não depende.
A única maneira de acrescentarmos esse dado à metáfora musical (e, calma, acima de
tudo paciência, isso ainda chega a algum lugar) é pensarmos em acrescentar outro nível a ela.
Se o autor é o compositor, pensamos efetivamente (a escolha de Bakhtin continua se
revelando adequada) na polifonia clássica, em que o autor é a presença determinante por trás
da orquestração de todas aquelas vozes, sem que, contudo sua voz se faça ouvir. Mudo, ele é
ideologicamente relevante como nenhuma das vozes, ou, na verdade, como todas elas.
E Joyce já não cabe mais no mesmo saco.
Ele como que deixou a estrutura de sua obra, e saiu de cena, para que ela se
desenvolvesse por conta própria, aos cuidados de um lugar-tenente. Precisamente o que
acontece com o autor de um standard de jazz, que pode ter composto sua obra (que, ao
contrário de uma sinfonia [e eis Joyce novamente nos levando para longe do mundo
convencionalmente elevado], não é um todo rigidamente determinado, mas sim uma estrutura
melódica e harmônica que permite um determinado grau de variedade em sua realização
efetiva) trinta anos antes do nascimento dos músicos que agora se debruçam sobre ela e que
têm a responsabilidade de não apenas reproduzi-la (malgrado o ativo e criativo envolvimento
do intérprete em qualquer reprodução de uma peça clássica), mas sim de fazê-la nascer naquele
momento, sob uma forma determinada por ele.
Ao invés das vozes reconhecidamente independentes e autônomas criadas por um
compositor, temos agora vozes quase imprevisivelmente autônomas, criadas, in loco, por
músicos eles mesmos criativamente competentes. Não há orquestração. o
determinação do autor sobre o regente (nosso narrador?).
O que pode haver, e via de regra deve haver, seja este papel desempenhado por um
indivíduo ou por uma coletividade, é a persona de alguém que esboça os momentos de
entrada de cada voz, a direção e o movimento geral da peça, a tonalidade em que ela será
executada e a atmosfera geral dessa criação.
Esse profissional é entre os músicos chamado de arranjador.
400
viii. Ainda tem um ano todo pela frente mas é bem verdade que pra quem é de carnaval o carnaval que vem
anda já bem
Em diversos momentos deixei claro que, dentre a volumosa bibliografia que
acompanha, resenha e desenvolve os conceitos de Bakhtin no Brasil, escolhi acompanhar de
perto apenas o volume de Tezza (2003), com óbvias e indisfarçadas segundas intenções.
A primeira delas (sei que isso não é exatamente uma revelação, mas afinal é sempre
muito prudente deixar muitas vezes claro o que um determinado trabalho não pretende fazer)
é o fato de que me decidi a não fazer uma profunda discussão do próprio trabalho de
Mikhail Bakhtin, de que me sirvo aqui em alguma medida como uma realidade algo mais
discutida e conhecida. Na mesma medida em que interessa de Dostoiévski apenas o
Dostoiévski construído por Bakhtin, me sirvo em Bakhtin apenas daquilo que, em alguma
medida, posso usar sem problematizar a fundo. Este trabalho não é sobre Dostoiévski que,
coitado, entra aqui realmente passageiro, e não é, também, exclusivamente sobre Bakhtin,
que entra aqui como um dos elementos de uma equação, e precisamente aquele dentre eles
que o mesmo bom-senso me leva a considerar mais conhecido, mais familiar.
Por outro lado, o livro de Tezza se encaminha todo ele para uma questão que, algo
paradoxalmente, me parece de extrema serventia para a discussão que estamos tentando
estabelecer aqui, entre a visão de mundo-romanesco de Mikhail Bakhtin e a efetiva produção
joyceana.
Desde seu título, o estudo de Tezza se propõe investigar a curiosa fronteira entre a
prosa e poesia de um viés essencialmente bakhtiniano, resolvendo, através da revelação do
quanto de adventiciamente valorativo acabou-se por apender aos conceitos essencialmente
bakhtinianos de literatura (fundados no estudo da prosa), a questão da adequação do
instrumental bakhtiniano para o estudo da poesia, ou, dito de outra forma, a questão da
eventual aversão de Bakhtin pela poesia.
Mais ainda do que isso, no entanto, o texto cumpre a preciosa função de fornecer
para a teoria da literatura um ferramental com o qual avaliar com alguma produtividade a
distribuição dos textos em um eventual contínuo que se estenda do prototipicamente
prosaico ao prototipicamente poético sem contar com qualquer normatividade que contradiga
o que o senso-comum e a tradição crítica estabeleceram. Sua argumentação, ao contrário
de outros modelos, não exclui deste ou daquele universo qualquer texto que, previamente a
401
essa mesma análise, pudesse ser incluído, mas efetivamente delimita em que, e por que, a
atribuição de pertencimento pode ser mais complexa para cada determinado texto, ou menos
complexa.
Trata-se da possibilidade da distinção desprovida de proselitismo. E isso não tem
preço.
Mas o que raios isso tem que ver com Joyce e Dostoiévski, prosadores da mais pura
estirpe (descontada a mediana poesia de Joyce)?
O interessante, me parece, é podermos finalizar essa discussão, que tratou de
localizar Joyce no universo da romanesquicidade bakhtinana com precisamente o ponto
central dessa definição de prosa, anterior mesmo a qualquer discussão dostoievskiana.
Pois a discussão de Tezza vai-se dirigir, não a qualquer aspecto formal do texto, mas
à postura do autor, da voz do autor, em relação à multiplicidade dialógica da linguagem.
a distinção de Bakhtin significa, em última instância, que a poesia, para se
manter poesia, para não perder o seu estatuto poético, tem um limite
nítido no grau de autonomia ou de presença da voz alheia na linguagem
do autor criador e de seu centro de valor. [...] Em contraposição, o discurso
prosaico entrega-se inteiramente a palavra alheia –no seu limite, o autor-criador
prosaico não tem nenhuma autoridade semântica visível; ele pode ser um mentiroso da
primeira à última palavra. o poeta –que nos perdoe Fernando Pessoa– o pode
mentir; nós não lhe damos esse direito. E o prosador, paradoxalmente, não pode
dizer a verdade; se a sua palavra se transforma em palavra cognitiva, como diria
Bakhtin, ou ética, ou religiosa, sem refração, o objeto estético se destrói. (Tezza,
2003, p.242-3)
Trata-se, essencialmente, para usarmos mais uma palavra radicalmente presa a
indesejadas avaliações valorativas, de uma questão de autoridade. Trata-se do fato de que o
poeta é plena e irreversivelmente imputável, sobre ele recai o peso de uma escolha que
predetermina qualquer outra: a escolha por um meio de expressão essencialmente
monológico.
Mesmo a comum teoria literária, em sua distinção entre autor e eu lírico, mais que
escamotear, acaba por revelar essa presença incontornável, na mesma e precisa medida em
que é desnecessário, ou acabadamente equivocado, falarmos em eu prosaico.
(E o curioso, mais uma vez, do poder de alcance da definição desentranhada por
Tezza do corpus bakhtiniano é que a poesia grosso modo dita moderna, através da rejeição de
toda uma série de constrições que limitaram o poético a centrar-se [nem por isso diminuindo
402
a postura descrita aqui] em uma arte do quomodo, pode acabar por-se revelar potencialmente
mais poética que as formas tradicionais)
O poeta é dono de seu texto e, nele, dono de um mundo sobre o qual não incide
palavra alheia alguma. Senhor de tempos e espaços.
Nada disso vale dizer, no entanto, que a poesia suprime a dialogicidade essencial da
literatura e, acima de tudo, da linguagem.
Para Bakhtin, todo estilo é pelo menos o encontro de duas
línguas. É preciso avaliar em que medida o centro de valor alheio, contra o
qual a minha palavra se recorta, conserva a sua relativa autonomia na minha
palavra. É exatamente nessa relação, nos seus modos quantitativos de se realizar,
que Bakhtin verá a distinção concreta entre a prosa e a poesia. (Tezza, 2003,
p.258)
Mesmo que em diálogo com a ausência, a afirmação da idiossincrasia é sempre uma
relação, o solipsismo é sempre uma atitude em relação ao outro (a não ser que pretendamos
nos deter sobre universos psicopatológicos). Toda a linguagem (seja no sentido humano
geral, seja no sentido literário específico) se constitui sobre o outro e no processo de
apropriação, negação, polemização, submissão em relação à linguagem do outro. Mas são as
diferentes atitudes em relação a essa situação que nos colocam em meios, modos diferentes
dentro do mundo literário.
Mas, repetimos, na maior parte dos gêneros poéticos a unidade do sistema da
língua e a unidade (a unicidade) da individualidade lingüística e verbal do poeta, que é
realizada de maneira espontânea, tornam-se as premissas necessárias do estilo poético.
O romance não exige apenas estas condições, pois, conforme dissemos, a verdadeira
premissa da prosa romanesca está na estratificação interna da linguagem, na sua
diversidade social de linguagens e na divergência de vozes individuais que ela encerra.
(1935, p.76)
Confrontar diretamente a inexorável alienidade da linguagem com um
pronunciamenteo de um eu que se determina a responder plenamente por seu discurso
implica (a parte essa mesma postura, de resto plenamente condizente com a maioria dos
ideais poéticos do senso-comum e dos movimentos artísticos) todo um conjunto de atitudes
em relação ao mundo, aos homens, e, no que nos diz mais respeito aqui, à linguagem pré-
403
estabelecida como semiose, como representação de mundo e homens e, mesmo, como
conjunto de convenções estabelecidas pela mesma coletividae a que se opõe o poeta.
Vate. Profeta. Reformador. Superior.
E o poeta rompe com a sintaxe. Rompe com a arbitrariedade do signo forçando, por
exemplo, traços articulatórios de certos fonemas a significar por si próprios. Rompe com as
convenções gráficas (distribuição do texto sobre a página: um elemento presente mesmo na
mais conservadora poesia em versos que, afinal, não obedece à mancha padrão da produção
prosaica) e ortográficas. E tudo isso garantido, abalizado e sustentado pela vigorosa
atribuição de autoridade que lhe confere o leitor, e em que ele mesmo se refestela.
Apenas para quebrar com a seriedade disso tudo: o poeta é um caga-regras. O poeta
é alguém que tem a sublime desfaçatez de afirmar, junto com outro déspota, Humpty
Dumpty, que ele é quem manda nas palavras, e que elas hão de significar tudo e apenas o que
ele quiser, nem uma palavra a mais, ou a menos.
No entanto, os dois autores que até aqui estamos tratando como sumos (eles, sumos;
nós não sumos) representantes da posição mais tipicamente prosaica têm laivos e traços desse
autoritarismo que não podemos deixar de chamar, agora, de poético. (O que de resto se casa
muito bem com uma distinção que trabalha com um contínuo, em que pouquíssimos textos
corresponderão univocamente a algum de seus extremos.)
Dostoiévski (ou sua imagem via Bakhtin) no que se refere à visão-de-mundo,
particularmente naquelas características que nos levaram a propor a possibilidade de que seus
maiores romances encampem (se não escondem) o gênero do romance-filosófico, do
romance-manifesto, e que puderam eventualmente fazer com que todo o gênero polifônico, na
visão retrospectiva do mesmo Bakhtin, se visse dirigido a obras de natureza não-romanesca.
Joyce (ou a projeção funcional que dele escolhamos analisar em dado momento), por
outro lado, exibe precisamente sobre a esfera das palavras esse seu autoritarismo. Ele deleta
hífens, lima vírgulas, cria palavras, mistura línguas, impõe a seu romance uma estrutura
sufocantemente complexa e completa, enfia todo tipo de linguagem (por vezes mesmo de
forma arrevesada, arrevesando a leitura) em todo tipo de situação. Em suma: faz o que quer
da língua inglesa. Aproveitando-se do fato (previamente apontado por Bakhtin) de que não é
a sobretipificação dialetal que garante (muito pelo contrário) a autonomia das vozes em
sentido amplo no romance, ele aproveita para deitar e rolar sobre a língua.
404
(Ele consegue fazer do processo acabadamente romanesco de contestação da autoridade
estabelecida que são as paródias e as estilizações uma demonstração de autoridade sobre língua
e livro, ao levá-lo a extremos de idiossincrasia e aparente gratuidade.)
Que fique claro que essa cisão aqui esboçada exime Joyce do estigma de afirmações
como a seguinte, de que na poesia o discurso sobre a dúvida deve ser um discurso inevitável. (1935,
p.94), na medida em que se refere apenas à estrutura literária, ao livro em sua agora
incontornável livridade, ao mesmo tempo em que não fere, por razões que acredito tenham
ficado sobejamente claras, princípios norteadores da leitura bakhtiniana como o expresso
em
A orientação dialógica do discurso para os discursos de outrem (em todos os
graus e de diversas maneiras) criou novas e substanciais possibilidades literárias para o
discurso, deu-lhe a sua peculiar artisticidade em prosa que encontra sua expressão
mais completa e profunda no romance. (1935, p.85)
Ele continua dirigindo ao outro o foco do discurso, continua veiculando um discurso
que, acima de tudo, é questionável, não-estável, não-acabado e, finalmente, não-seu-próprio.
O que sugiro aqui é que em algum momento posterior à conclusão desse processo (ou seja,
novamente temos de recorrer ao livro como objeto elaborado, que passa antes de pronto por
uma leitura de outra espécie: característica que na verdade não tenho qualquer dificuldade em
associar a um gênero heteróclito e multiforme: as colagens precisam ser montadas e vistas de
longe) o autor se dá a liberdade de, àquele todo romanesco constituído como tal por
princípio de composição e de visão-de-mundo, impor uma forma artística que está distante,
como concepção, do toque mídico que associamos anteriormente a Marcel Duchamp.
O artista aqui não se exime de se expor como artifício, de se arvorar em reformador
de meios e linguagens, de propor línguas novas e violentas.
O que nos cria dois problemas.
Um, o que estávamos precisamente encaminhando, é o fato de que esses
procedimentos se encaixam muito melhor no extremo poético do contínuo estabelecido por
Bakhtin-Tezza (e isso em um autor que pretendemos defender como expoente máximo de
não poucas das características mais centralmente definidoras da idéia bakhtiniana de romance).
De outro lado, a mera referência à possibilidade de que tais fenômenos sejam
atribuídos a um nível estrutural e cronologicamente posterior ao da composição do texto, caso
405
consideremos a possibilidade de segmenta dessa maneira o momento e o processo da
composição, já bastaria para nos fazer evocar a figura conhecida do arranjador.
Não bastasse isso, nos quadros que desenhamos aqui, todas as características que
listamos exemplificando o autoritarismo lingüístico do Ulysses não podem ser atribuídas ao
autor, sujeito histórico pré-livro, (e apenas em uma visão completamente desprovida de
reflexão teórica sobre a narratividade isso poderia ser dito sem alguma matização). Como
vimos aqui, nem mesmo aos narradores, eles mesmos parte do problema bem mais que da
solução, poderíamos atribuir todos esses dons. A instância teórica que, sozinha tem
capacidade de responder por todos esses elementos, no que se refere ao livro que estamos
analisando, é novamente o arranjador.
Ou seja, se Joyce pareceu em muitos momentos estar alguns passos à frente da
reflexão bakhtiniana sobre o romance levando-a mais longe do que poderia sequer supor o
mesmo Mikhail Mikhailovitch, não seria talvez de estranhar o fato de que em suas
teorizações sobre a literatura como tal, Bakhtin possa se ver, se não questionado, ao menos
amplificado por Joyce, que consegue de forma inaudita levar simultaneamente o romance ao
paroxismo, à apoteose de sua especificidade, apagando-se para isso de forma inédita, e fazer
com que sua voz de artista se faça ouvir de forma também semprecedêntica, através de um
artifício de singular singeleza.
Se ele delega aos personagens um poder muito maior sobre a linguagem do livro do
que o que a tradição soube reconhecer, e se isso acarreta uma diminuição da autoridade do
narrador, ele consegue fazer vir à vida uma categoria intermediária, a que pode delegar muito
mais poderes do que receberia o comum dos narradores.
Eles, James Augustine Aloysius Joyce, autor histórico, James Joyce, autor implícito,
conseguem lavar suas mãos, e desaparecer do tecido romanesco como nenhuma outra dupla
havia ousado fazer na história do romance. No entanto, deixam o livro aos encargos de um
capataz capaz de exercer papel de leitor, criador e personagem, de tudo isso derivando para
si próprio o apenas potencialidades potencializadas, mas também um gozo cruel, um
prazer exacerbado, que transforma em parte do jogo literário de que participam todas as
instâncias entre as quais ele se move sua empolgação com o livro e com sua ingerência sobre
ele.
Se Tezza pode citar Fernando Pessoa como exemplo de uma corrente prosaísta na
literatura de língua portuguesa, e pode encontrar uma maneira brilhante de encaixar esse fato
406
nos quadros da análise que esboça ao lembrar que a mesma criação dos heterônimos lhe
podia servir como excusa para fazer conviver o instinto dialógico do prosador e a autoridade
terminal do poeta, temos aberta a possibilidade de ver o outrário.
Pois, delegando essa autoridade a diversos personagens, Pessoa se afigura como
prosador, criador de poetas.
Joyce, por outro lado, numa analogia quase perfeita, foi de fato e acima de tudo um
prosador, que deixou para criar seu único poeta (e a oposição entre criar vários deles e criar
apenas um mostra já o quanto de especular nos dois casos) dentro de sua obra ficcional,
permitindo, no entanto, que se regozijasse com o que de poética autoridade lhe pudesse
restar em um mundo previamente concebido como irremediavelmente romanesco.
E com isso, mais uma vez, celebrar a literatura. Escrevendo o livro que podia estar
além da prosa e da poesia.
Levando ao extremo a romanesquicidade, Joyce, visto assim, realmente o poderia
evitar completar o círculo e conciliar as duas posturas literárias mais poderosas que a tradição
concebeu em um livro para acabar com todos os livros.
407
ix. pelo horizonte. O que nos faz pensar que qualquer coisa que queiramos, no fim dessa viagem, chamar de
CONCLUSÃO
, tem de ser relativizada, mesmo porque fica relativizado o fim. Da viagem. Mas muito
obrigado pela companhia.
E voltamos, depois de todo o caminho, à mesma citação que abriu essa última
investigação.
Pode ser que os últimos romances de Joyce se casem o bem e tão obviamente com
as idéias de Bakhtin que a maioria das características desses romances que possam ser
identificadas por uma leitura bakhtiniana possa ser identificada sem ela. (Booker,
p.9)
Parece que a imagem final que podemos derivar do contraste que ensaiamos
estabelecer aqui entre nossos dois teóricos do romance caminha precisamente nesta direção. Se
podemos diagnosticar um espírito geral que norteasse suas investigações, uma linha-mestra
que guiasse suas posturas em relação ao fazer romanesco e ao romance como fato estético-
histórico, não acredito que qualquer leitura possa negar as últimas coerência e pertinência de
cada uma delas para com a outra.
Eles desciam estradas bastante similares, que aparentemente levavam ao mesmo
lugar. Fica no entanto aberto ao juízo de cada leitor determinar se um deles (meu voto é
bastante óbvio) poderia estar já mais avançado na caminhada.
Mesmo descendo dessas alturas abstratas e buscando ancoragem nas categorias
desenhadas por aquele dentre eles cujo trabalho era em alguma medida em alguma medida
definir categorias, continuamos nos deparando com essa central concordância de espírito.
Se Bakhtin encontra na linha alternativa fundada nos gêneros do sério-cômico, na
sátira menipéia e nos diálogos socráticos, por exemplo, a verdadeira gênese do romance, e
especialmente do romance Dostoievskiano, não poderemos negar que Joyce, no Ulysses
pertença a essa mesma linhagem.
A bem da verdade, fica bastante claro que ele não é mais facilmente defensável
como lídimo representante dessa corrente (os exemplos que do Ulysses podemos derivar são
ao mesmo tempo mais diretos e muito mais abundantes) como se mostra nitidamente
consciente de seu pertencimento, consciente da diacronia que gera essa linha, que o hesita
em problematizar ou, mais simplesmente, expor.
408
Como em tantas outras ocasiões, ele transforma em procedimento o que para outros
é mero recurso. Tematiza a técnica. O que em um sentido muito menos banalizável gera a
perfeita definição de metaliteratura.
Se Bakhtin encontra em um determinado tipo (ou um determinado grau) de
dialogismo a marca definidora do romance em oposição a tudo quanto mais se possa fazer
em literatura, o Ulysses nos fornece, mais uma vez, não uma negação, mas sim um
aprofundamento dessa mesma postura descrita. Mais uma vez podemos continuar dizendo
que podemos, sim, aplicar Bakhtin a Joyce, mas mais uma vez dizer apenas isso seria
apequenar a discussão.
Mais uma vez ele exemplifica melhor que a encomenda o que Bakhtin parecia querer
demonstrar.
E mais uma vez (mais uma vez mais uma vez?) ele faz dessa técnica o mote de todo
um universo de procedimentos destinados a levar ao extremo as relações e ambigüidade das
relações entre todas as vozes participantes do tecido romanesco que, como parte desse
mesmo processo, ignora, em grau inaudito, sua própria voz histórico-ideológica. Inserindo
um grau a mais na discussão teórica em torno da representação das vozes (da reapresentação
das vozes citadas dos personagens e também da representação da voz do autor na página),
apropriando-se esfaimadamente da possibilidade de presumir a enunciação primeira ao
trabalhar o discurso citado (o que lhe possibilita dar novo sentido àquela fusão, que tanta dor
de cabeça parecia dar a Bakhtin), investindo pesadamente na construção de subjetividades
elas mesmas radicalmente (etimologicamente) intersubjetivas, ele um passo gigantesco na
direção daquilo que Dostoiévski parecia querer indicar por meio de seu realismo pleno, não-
psicologizante.
No que de descrição do especificamente romanesco em suas discussões, Joyce se
transforma em um advogado da causa bakhtiniana que essa mesma causa mal teria podido
saber instruir.
E muito de ele ter de dizer aos estudiosos do romance que partem do viés
bakhtiniano para fundamentar suas análises. De fato, até aqui, ele exemplifica tão bem as
categorias bakhtinanas que pode chegar a prescindir delas para sua análise. O que no entanto
fica aqui (meramente) insinuado, é que talvez não seja tão simples assim aceitarmos que a
problematização em torno das categorias e do instrumental bakhtiniano de análise do
409
romance possam prescindir do contributo do Ulysses, sem que isso implique uma perda, ou
ao menos uma limitação de suas possibilidades.
O Joyce do Ulysses seria um amplificador do alcance das formulações mais centrais de
Bakhtin a esse respeito.
Quando no entanto a investigação se detém sobre os mistérios da mais singular
dessas categorias, os resultados acabam sendo também eles singulares.
Vamos primeiro à segunda dessas singularidades, a que em alguma medida
glosamos.
O fato de que a polifonia não serve para a leitura do Ulysses.
A polifonia bakhtiniana, conforme compreendida por este leitor, é um intercâmbio
específico entre personagens compostos de uma maneira específica e um autor que se coloca
no texto, e em relação a eles, de uma maneira espefícica. E, novamente de trás para frente,
posso dizer com bastante segurança, se o autor no Ulysses se coloca de forma completamente
diferente daquela e se os personagens do Ulysses o compostos de maneira quase inversa
àquela, que aquele intercâmbio é simplesmente impossível.
Se nos outros quesitos pude e devi enfatizar o fato de não se tratar (o convívio
Ulysses-Bakhtin) de uma negação, mas sim de uma enfatização, que gera uma distinção de
grau em uma mesma categoria, no caso da polifonia devo, pelo contrário dizer que seriam
impossíveis quaisquer relativizações baseadas em questões de grau, quaisquer elastificações
de categoria ou de corpus analisado para possibilitar que os textos dialogassem em uma
mesma língua. Trata-se de uma incompatibilidade.
Se não chego a afirmar que o Ulysses é antipolifônico é apenas por insegurança.
Mas, à primeira delas.
Pois que a singularidade fundadora do problema da polifonia é o fato de ela ser, de
saída, proposta como categoria ex authore, gerada pela análise da obra de um romancista
específico que, mais ainda, o teórico declara estar fundando um novo gênero. Ela é desde o
parto uma categoria de nível e de alcance diferentes daqueles que podem vir a ter a idéia da
carnavalização ou a do dialogismo.
Por outro lado, o me parece irrelevante o argumento que pouco a pouco (para
minha própria surpresa) vi surgir da discussão que encenei.
410
Tezza, como visto, levantou a idéia que, para mim, acaba se revestindo de
importância muito maior, ao se apresentar como base de uma conceptualização que pode
explicar o fracasso seja da categoria polifônica, seja da profecia bakhtiniana que mencionava o
surgimento, a partir dela, de todo um novo gênero romanesco.
Não devemos subestimar (na verdade está precisamente em não subestimá-lo o
qualquer diferencial que possa ter nossa conclusão) o peso da empolgação do filósofo
Mikhail Mikháilovitch Bakhtin no momento da descoberta da obra de Dostoiévski como,
mais do que exemplificação, realização e desenvolvimento de um credo sociológico-filosófico
que ele esboçava para a filosofia
215
. Mesmo que eu não queria verificar aqui em que sentidos
o conjunto das idéias de Bakhtin encontra ou não encontra ressonância e resposta nas
páginas de Dostoiévski, continuo encontrando base para meus argumentos no fato de que
essa identificação (qualquer que tenha sido ela, entre quaisquer idéias e quaisquer respostas)
tenha sido sentida, tenha sido detectada pelo mesmo Bakhtin.
É menos a veracidade ou a questionabilidade do fato o que me interessa, mais a
evidência menos contestável de que o autor parece ter sentido tal fato. Parece ter acusado o
golpe. Ou, mais singelamente, podemos acusá-lo nós, hoje, daqui.
Pois que o ímpeto do filósofo que se vê justificado pode estar no centro do processo
que leva Bakhtin a valorizar em Dostoiévski uma característica que (e muito cuidado aqui)
pode não ser necessária ou centralmente romanesca. Pode ser mais ligada à natureza da investigação
ideológico-filosófica que, sim, parece interessava de fato a Dostoiévski em seus romances
mais maduros.
Mas, sejamos justos, se é de fato isso o que ocorre para justificar a teorização em
torno do conceito de polifonia, Bakhtin na verdade não diz mais a respeito de Dostoiévski
que o que de fato dizem seus textos. Ele estaria, assim, realmente fundando um novo gênero
romanesco (de inquestionável viés filosófico) que, mais ainda, não pareceria particularmente
fadado a gerar prole das mais numerosas. E, acima de tudo (o que reconfirma aquele viés), ele
estaria fundando um novo modo de pensar. De elevar a ficção a uma estatura filosófica absoluta
215
Não quero aqui sugerir a necessidade de qualquer encadeamento cronologicamente estabelecido, de
qualquer relação de causa-conseqüência unívoca e unidirecional. Bakhtin obviamente não descobre Dostoiévski
aos quarenta anos de idade.
Por outro lado, é curioso aventarmos a possibilidade de que o estudo da obra de Dostoiévski (que,
corroborando o que venho de dizer, partiu da constatação de uma necessidade de investigação por parte do
teórico) tenha efetivamente ampliado o raciocínio de Bakhtin. Que é exatamente o que tentamos fazer aqui
com o trabalho de outro escritor, agora em um momento posterior ao estabelecimento de suas categorias.
411
sem, contudo, negligenciar na ficção o que de mais específico (e eventualmente mais
poderoso) ela tenha de epistemologicamente relevante.
A idéia de que este gênero estivesse predestinado a representar o ápice da prosa
ocidental poderia provir de uma leitura posterior (desviada por julgamentos de valor
baseados em parte na metáfora de que parte Bakhtin), ou em uma crença absoluta na
correção do ideário filosófico e ético do mesmo Mikhail Bakhtin que, como vimos, era mais
perfeitamente representado (dentre todos os ideários filosóficos e éticos) por esta forma
específica de romance-filosófico.
E na mesma noção e na avaliação que costumamos ter da filosofia resta incrustada
mais uma poderosa ferramente valorativa, se pudéssemos reduzir a leitura de Bakhtin à
constatação de que ele atribui a Dostoiévski a criação de um novo gênero de romance
sentimental, policial, ou de viagem, muito dificilmente nos veríamos diante de imposições
tão vigorosas. E o mesmo Bakhtin, en philosophe, tem o direito (que não poucas vezes exerce)
de se comportar com a atitude do poeta, descrita por ele mesmo, o que carrega de novas
tintas de incontornabilidade a idéia da polifonia como summum bonum.
Mas não.
A cada um o que lhe apeteça.
Cada leitor pode preferir este ou aquele tipo de romance. Cada teórico (quem disse
que podemos ser isentos?) há de preferir este ou aquele tipo de romance.
Bakhtin certamente preferiria Dostoiévski, e talvez naquela mesma possibilidade de
termos encontrado no Ulysses não apenas um exemplo que não se enquadra na descrição do
romance polifônico (o que o transformaria em um entre vários) mas também uma
exemplificação da eventualidade concreta de um romance antipolifônico (ou ao menos da
possibilidade de um romance desenhado, construído e executado segundo as mais estritas
regras da mais exigente arte romanesca, para o qual a polifonia simplesmente o fosse uma
questão relevante e, no limite, não fosse uma escolha desejável) resida a melhor explicação
para o silêncio de Bakhtin (silêncio portanto nada impassível) diante de um livro tão
fundamental.
O Ulysses era, no grau mais elevado, tudo aquilo que um romance deveria ser,
segundo as definições de Bakhtin.
412
Mais ainda, o Ulysses parecia ser consciente do papel que representava cada uma
dessas definições, bem como do papel que representava ele em cada um dos contínuos que
levaram ao estabelecimento, na história e na crítica literárias, de cada uma dessa noções.
Se Bakhtin pôde estabelecer um contínuo de formas que levaram ao surgimento do
romance moderno, Joyce lhe ofereceu, no Ulysses, o inquestionável ponto máximo daquela
linha naquele momento. Um ponto em que mesmo as bases da linha estavam presentes,
mencionadas, problematizadas e, finalmente, incluídas.
Ele não apenas culminava a linha, ele a enrolava e metia no bolso.
Se, acronicamente agora, Bakhtin pôde encontrar em uma determinada postura em
relação à linguagem própria linguagem do artista, bem como, e principalmente, à
linguagem do outro), e conseqüentemente em uma determinada técnica de representação do
convívio de vozes no romance, que representa primordialmente a centralidade desse
convívio para a mesma definição desta forma de prosa, o que mais central, complexo e
importante pode haver no romance plenamente desenvolvido, Joyce lhe oferece, no Ulysses,
mais uma vez a demonstração decisiva não das possibildades por ele comentadas, mas,
mais ainda, de possibilidades presentes em germe no cerne dos conceitos que ele gerou e
que, naquele momento, ele sequer havia podido conceber.
Complexificando no limite do limite do possível
216
a riqueza das relações entre vozes
eqüipolentes, retirando dessa equação a manifestação ativa do autor (e eis novamente a
semente da cizânia) de uma forma quase inconcebível ex prioribus, Joyce demonstra não o que
Bakhtin dissera sobre o romance, mas sim a onde poderia ir aquilo que ele apresentara
como possibilidade para o romance.
Novamente, é como resumo, e agora como extensão, que ele se coloca em relação à
teoria de Mikhail Mikhailovitch.
No entanto, naquele que seria seu contributo mais singular (não havia como ele não
saber disso) à teorização do romance e, mais ainda, naquele que representaria seu triunfo
pessoal no campo do romance, abrindo para todo um mundo que ele, mais que descrever,
desejava ver efetivado, uma possibilidade nova e, reconheçamos, poderosíssima de
expressão; naquele que seria seu bichinho de colo entre os conceitos estritamente ligados ao
romance, Joyce lhe oferece, no Ulysses, não um exemplo, não uma extensão, e nem mesmo
uma contestação. Mas simplesmente um grande virar de costas.
216
E a sinfonia do Finnegans Wake surge como conseqüência inevitável para o homem que chegou até aqui.
413
Uma arrebatadora prova (da qual nem mesmo a fria letra bakhtiniana pode sonhar
em discordar) de que tudo aquilo pode prescindir disto para ser romance.
Joyce e Bakhtin saem daqui como, especialmente, dois apaixonados pelo romance e
por suas possibilidades. Que não poderiam deixar de conversar.
No entanto, em alguns sentidos, e em referência a um gênero, Bakhtin pode ter visto
o romance como possibilidade máxima da filosofia. Pode ter tingido sua avaliação da
potencialidade romanesca de um ligeiro índigo ancilar.
Joyce.
Joyce pode apenas ter visto o romance como possibilidade máxima.
Fecha aspas.
São Paulo – Dublin – Curitiba
2002-2006
414
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418
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LINGÜÍSTICA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGÜÍSTICA
Caetano Waldrigues Galindo
Abre aspas: a representação da palavra do outro no Ulysses de
James Joyce e seu possível convívio com a palavra de Bakhtin
volume dois
Tese apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em
Lingüística como requisito
necessário à obtenção do título
de doutor em Lingüística.
Orientador: José Luiz Fiorin.
SÃO PAULO
2006
419
BLOOM
(
a mãe de todos os anexos
)
420
JEG
PRØVDE
ou
Prefácio desinteressantíssimo a uma tradução por si repreensibilíssima (com
ênfase no
porsissoja
)
421
Quando comecei a desenvolver o germe (aliás a metáfora vem quase perfeitamente a
calhar: verme, verruma, seria melhor) da idéia deste doutoramento, confesso que o moto
principal, como que o argumento sofístico que algo subversivamente me levou a contornar
todos os outros (invariável e previsivelmente contrários), foi a idéia de poder traduzir
integralmente o Ulysses.
Naquele momento (e acertadamente, continuo a ver) traduzir o livro se me afigurava
como a única possibilidade de efetivamente compreender um livro que me assombrava havia
anos, cujo peso não deixava de me oprimir, ao mesmo tempo em que me sorria de forma
insistente e curiosa, dizendo que sabia mais, que ainda tinha o que oferecer.
Por tudo o que tenha podido perceber ao longo dos anos em que, diletante e depois
profissionalmente, me dediquei à tarefa da tradução literária, esta é afinal uma noção
bastante comum entre os privilegiados que trabalham nesta área. A etimologia do verbo
compreender. Abarcar. Apropriar-se de. Fagocitose.
textos que cobiçamos, textos de que desejamos nos apossar de uma forma ainda
mais poderosa do que todas aquelas com que nos acenam quaisquer teorias da recepção ou
qualquer manifesto que assassine o autor e nos entregue a literatura universal.
É como se todas as filosofias que nos dessem o poder de acreditar conhecer o outro,
ou relativizar essa possibilidade, ou negar essa eventualidade, pudessem de algum modo
anular o conhecimento bíblico que certos parceiros nos fazem desejar. Desejar.
Há mulheres lindas
217
. Há mulheres cuja beleza inspira uma imensa felicidade. Mas há
aquela, dentre todas, que um homem deseja possuir, em todos os sentidos do verbo que cada
homem, e cada mulher, possa considerar possíveis. E essa relatividade, essa dificuldade em
conseguir que todas as pessoas instruídas cheguem a algum acordo sobre os sentidos efetivos
do verbo naquela sentença e sobre a possibilidade da efetivação de cada um deles no mundo
conforme o concebem não é, afinal, muito distinta daquilo que as mais profundas teorias da
tradução (ou da literatura, ou da linguagem) podem esclarecer ou discutir.
Da possibilidade de me apropriar de um texto.
Da desejabilidade de.
De corporificar, a cada momento, em cada oportunidade, a figura do Pierre Ménard,
autor do Quixote, de Jorge Luis Borges. O homem que decide copiar palavra por palavra (na
medida do impossível e do impossível desta tarefa) um livro escrito por outro homem, em
217
à chacun son goût...
422
outro tempo, gerando algo que é exatamente aquele mesmo livro, mas que é seu, e não de
outro. Apropriar-se de um texto sem que qualquer outra pessoa, que não os iniciados,
perceba o que se passou.
Ninguém, afinal, tem interesse em comprar um romance escrito por mim, mas
quando em alguma resenha elogia-se o estilo, a prosa, de determinado prosador, apenas eu
sei que sou eu o romancista elogiado.
Quando sentei para, durante dois anos, diariamente, traduzir o Ulysses, confesso que
tinha pouco, quase nenhum amadurecimento teórico das questões da tradução.
Conhecia as leituras fundamentais, os paradoxos de Schleiermacher, os manuais,
Steiner, mas em momento algum, até este, tivera a oportunidade de me debruçar exclusiva e
dedicadamente sobre os problemas específicos da tradução.
Mesmo nas ocasiões em que pude trabalhar contratado por editoras (e
principalmente nessas ocasiões, pois nesse modelo de prazos e expectativas completamente
irreais qualquer possibilidade de reflexão se sufocada pela urgência), não me detive sobre
os fundamentos epistemológicos, filosóficos específicos da tradutibilidade, que não com o
interesse quase diletante que qualquer profissional da lingüística, tanto mais se atacado ele
mesmo pela bactéria literária, não pode deixar de sentir.
Mas este convívio longo e denso com um texto denso e longo, que não deixa de
problematizar qualquer aspecto de qualquer possibilidade literária, teórica ou prática, não
pôde, obviamente, me deixar imune a essas dúvidas, a esses problemas. E assim como
acredito ter podido derivar de Joyce os esboços de uma teoria da representação da voz no
romance, acredito que comecei a desenvolver, junto com o meu Ulisses, as bases de uma
poética da tradução especificamente joyceana. De uma poética da tradução, como todo o
resto deste trabalho, derivada ex libro, e que não tem a pretensão de servir automaticamente a
qualquer outra discussão.
Pois o paradoxal é que precisamente por discutir tantas, por problematizar ao menos
tantas questões importantes da teoria do romance (precisamente o fator que possibilita que
tantas discussões surjam dele e saiam dele trazendo algo de novo), muito do que gerem as
leituras do Ulysses virá matizado por esta sutil negação. Pois que as condições prévias que
encontramos neste livro não são, afinal, as mais freqüentes no corpus literário. Romances
tendem a ter seus interesses teóricos mais diretamente focados, tendem a ser menos
423
enciclopedicamente interessantes, de onde a possibilidade de derivar muito mais do Ulysses e
a impossibilidade simultânea de aplicar acrítica e imediadamente a outros romances o que
dele se derive.
Há perda no processo.
E poucas vezes, na verdade, um tradutor (ou um crítico) deparará com uma situação
de mais nítida e incontornável perda. Por seu tamanho, por seu escopo, por sua pletora, o
Ulysses será sempre parcialmente abordado, mas acredito que mesmo essa abordagem parcial
tenha, afinal, não pouco que gerar.
Em conversa com um tradutor de longa experiência, que teve o privilégio de traduzir
no Brasil o primeiro livro de ficção de Joyce, Dubliners, ficamos os dois bastante empolgados
com o fato de que uma mesma sensação (não necessariamente das mais agradáveis) tinha nos
acompanhado em nosso trabalho, em nosso convívio com Joyce. A sensação de que, não
importa o que você faça, você o vai conseguir melhorar o texto joyceano, de que o
máximo que você pode conseguir é perder pouco a cada momento. Mantenha-se próximo
dele. Não solte da mão do texto. Não se perca. A metáfora de Pierre Ménard talvez seja mais
óbvia para o tradutor de Joyce do que para a maioria dos tradutores literários .
Aliás, o mesmo Joyce, no Ulysses não deixa de iconizar essa desconfiança em relação
aos tradutores, no momento em que nas alucinações que regem o episódio de Circe, Bloom,
agora estadista e reformador urbano e moral, profere um pronunciamento que pretende
evocar a autoridade mais sacra e que se resume a uma lista das poucas palavras que ele (judeu
ma no troppo) consegue recordar do hebraico e um seu acólito lê daquilo aquilo que as rubricas
chamam de uma tradução oficial, que nada tem que ver com o texto inicialmente registrado
(15.1621-32).
Ou, em momento de maiores implicações teóricas, trechos em que, nos pastiches
que regem o Gado do Sol, ele se baseia em excertos latinos e célticos, todos eles portanto
existentes como templates da literatura inglesa apenas como traduções de originais ausentes.
E só isso já não é só isso. Como poderia parecer.
Pois o mero gesto de Joyce, de incluir, no que ele trabalhava como um resumo da
história da literatura e da língua inglesa, esses textos é ainda bastante singular se visto daqui,
de onde estamos. Nós, no Brasil, até hoje continuamos incapazes de incluir em nossa
história literária e na formação de nossa literatura monumentos de tradução em tudo e por
tudo tão ou mais interessantes que os textos originais que lhes foram contemporâneos.
424
A tradução do Ulysses por Antonio Houaiss, por exemplo, é obviamente um dos
textos mais importantes produzidos nos anos sessenta brasileiros. Quanto não ganharia o
estudioso dos momentos mais excêntricos do romantismo brasileiro se junto do Guesa ele
lesse os elefantes brancos do genial Odorico Mendes?
Mas há mais. Pois que o tradutorês empregado neste momento como fonte de
paródia por Joyce é exatamente isso, uma língua artificiosa mas artificial, amarrada pela
servidão ao original (especialmente em sua imitação do padrão textual dos que primeiro
verteram os textos latinos para o inglês, que surge logo na abertura do episódio), uma língua
que por sua mesma inépcia revela e iconiza os processos de que Joyce queria falar naquela
situação: a fecundação de uma língua por outra, de uma cultura por outra.
É realmente como se a incompetência dos tradutores a que ele se reporta tivesse
sido, ou gerado, sua maior contribuição à literatura e à língua que a princípio serviram,
desservindo brutalmente no entanto os autores que deveriam re-presentar.
(Aparentemente a empresa tradutória tem um potencial maior que a eventual
capacidade de seus praticantes. Mesmo por vias tortas ela costuma dar em enriquecimento de
uma cultura.)
Mas tal acusação não pode deixar de destacar, via negativa, uma outra postura,
desejável, recomendável ao tradutor que efetivamente desejasse se incluir na linha da tradição
a que serve e a que pertence. A impossível absoluta vernacularidade. Maior serviço prestado
ao autor que se traduz.
O que nos leva de volta (sempre de volta) ao familiaríssimo paradoxo da
conspicuidade.
Pois que, nesses termos, de sempre parecer mais autêntico, vernáculo, aquele
texto a que o tradutor e a língua invasora emprestaram mais vigorosamente suas marcas
idiossincráticas, em muitos (e nada desprezíveis) sentidos, o texto mais solidamente assinado
pelo tradutor, enquanto que o carimbo de estrangeiro de sempre ser aplicado aos mais
radicais dentre os experimentos de transparência, de pretensa não-interferência na relação
entre o leitor e o original.
Como no brilhante exemplo de Paulo Rónai
218
a respeito da verdureira francesa,
onde o por vezes difícil apego ao vernáculo (e, no fundo, ao texto de partida) obriga o
218
Uma das poucas maneiras que me ocorrem de minorar meu constrangimento diante da tarefa de escrever
um texto de (mil aspas) teoria da tradução (área a que neste momento não posso dar mais que o contributo
425
tradutor de bom-senso a fazer efetivamente verdureira a belíssima mercadora das quatro estações
do original francês.
É nessa particular tensão que se deve desenhar o estilo, a postura, angua do
tradutor de Joyce. Simultaneamente manter-se próximo de seu original para minorar as
perdas qualitativas e, inclusive, pragmáticas, e manter-se próximo das constrições e
especificidades de sua própria língua, para e com quem de fato se trabalha.
(E apenas para evitar que essa discussão, por mais que breve, peque pelo mesmo
motivo de tantas outras em outras tantas áreas da teoria literária, entregando à esfera da
generalização e da afirmação não-contextualizada os fatos específicos de língua e de
linguagem de que deveria tratar. Lembro que essas dificuldades, esse fio de navalha algo mais
agudo aqui que na maioria dos outros lugares, passa pela, e eventualmente culmina é claro
na, estilística; avança sobre inúmeros problemas de choques culturais e diacrônicos; mas
começa do mais mínimo sintático. Dois exemplos simples e diretos: a ordem dos elementos
do período joyceano é muito mais livre do que rege a sintaxe inglesa tradicional: ele adora
terminar períodos longos por um modificador algo violentamente deslocado à direta (paixão
de que comunga Guirmarães Rosa), ele adora revirar períodos a seu bel prazer com
finalidades apenas (?) sonoras, como no caso de Bloom diante da vitrine, citado neste
trabalho: ergo sua sintaxe é sua, obedece a seus mandos e, ainda com mais freqüência, às
ordens dos personagens que evocam, o que faz que o narrador de Dedalus se veja mais
pleno de repetições, por exemplo. Corrigir tais procedimentos, como parece ter sido o caso
com a primeira tradução brasileira de Um retrato.., é negar Joyce e negar seu aporte à língua
que tanto o força em seu molde. Por outro lado, explicitar analiticamente as reviravoltas
sintáticas do Ulysses por meio de nossa conhecida pontuação à francesa, é novamente ir contra
o homem que sabida e verificavelmente odiava vírgulas. O texto, afinal, não há de ser
pontuado vernaculamente nem estrangeiramente. Há de ser pontuado joyceanamente.)
No contínuo de possibilidades que se estabelece a partir daí, o histórico das
traduções brasileiras do Ulysses nos oferece uma amostragem significativa. Se Antônio
do diletante) é precisamente manter este prefácio na esfera do ensaio. Por isso mantenho escassas as
referências a outros autores (conquanto elenque na Bibliografia constante do outro volume todos os textos
de que pude me servir) e, quando elas ocorrem, prefiro mantê-las com a informalidade do texto casual, o
que de resto se coaduna melhor com o fato de eu estar, invariavelmente, citando de memória textos e
fragmentos de texto que, de um jeito ou de outro, passaram a me habitar.
426
Houaiss quis optar por instilar na língua portuguesa a loucura do método de Joyce,
fornecendo à tradição literária do país (por mais que o êxito de seu procedimento possa e
deva ser tremendamente questionado) mais espaço, mais precedentes, preferindo (como
levantava na época Augusto de Campos) violentar a língua brasileira a violentar o Ulysses,
Bernardina da Silveira Pinheiro opta por trazer o livro radicalmente para mais perto do leitor
não apenas brasileiro mas, mais ainda, contemporâneo.
É claro que nenhum dos dois poderia sequer pensar em seguir estritamente essa
única (ou qualquer outra única) linha de direcionamento quando da execução de um trabalho
tão acachapantemente grande e grandioso, mas o diferencial da posturas estrangeirizadora e
vernacularizadora dos dois autores se mantém algo inquestionável e, na verdade, reflete
bastante bem as trajetórias e as inclinações de cada um deles
219
.
O mesmo Augusto de Campos teria dito, quando do lançamento da obra de Houaiss,
que ela ostentava todos os méritos do filólogo e todos os defeitos do não-romancista. Todos
os ritos de alguém que não hesita em traduzir shrill por estrídulo porque sabe da conexão
etimológica das duas palavras, mas que se cega diante da gritante disparidade de freqüência
de uso de cada uma das palavras em cada um dos vernáculos, o que leva, como um todo, seu
livro a ser marcadamente mais difícil, em um sentido muito específico, que o livro de Joyce.
Ele se debruça sobre o Ulysses com lente de aumento do lingüista, mas sem o ouvido do
prosador, processo que sempre gera grande risco de dureza no texto final.
Fora isso, uma leitura em voz alta da tradução de Houaiss no Bloomsday de 2006 me
fez ver o quanto, curiosamente, é lusitana sua Molly, que não tem pruridos em dizer eu gostava
de saber o que ele estava fazendo, e coisas do gênero.
219
Outra tarefa de que gostaria muitíssimo de poder me eximir é a resenha dos tradutores que me prederam.
Quanto a João Palma-Ferreira, abro mão de sequer citá-lo simplesmente por considerar, no grão de filtro
que me interessa, irremediavalmente estrangeiro seu resultado. Mas, por mais que essa seja uma questão
incontornável, não me sinto perfeitamente à vontade comentando Houaiss e Pinheiro.
A própria professora Bernardina, quando da publicação de seu trabalho, causou alguma espécie entre os
profissionais da área ao declarar que não havia lido a tradução de Houaiss. Traduzir de-costas para o
passado não é, de fato, a melhor forma que podemos reconhecer de fazer evoluir a tradução de algum
determinado livro ou mesmo a arte da tradução como um todo.
Eu no entanto confesso que não li sua tradução ainda inteira. E confesso que, de Houaiss, li 12 episódios,
estacando no Gado do Sol, depois de já ter lido o original.
Em minha defesa, argumento que a tradução aqui proposta não é o cerne deste trabalho, ela é assessório, de
luxo, concedo, e não me vi lindado por obrigações ao desenvolver este trabalho. Tratava-se de uma
veleidade, de uma necessidade basicamente pessoal, entre mim e Joyce, que eu deveria resolver sozinho (e
estava nessa solidão a razão principal do processo de convívio) se quisesse me dotar de qualquer firmeza
para encetar a análise dos procedimentos que me interessavam aqui.
427
A professora Bernardina Pinheiro
220
, por sua vez, vinha de uma longa trajetória de
estudos literários especialmente de viés psicanalítico, o que fez com que a forma
(especialmente a microforma, que tanto atraía Houaiss) passasse a ser matéria de menos
interesse para seu livro, em geral mais cursivo, mais fluido que o texto de Houaiss, pecando
talvez (o outro lado desta moeda) por uma certa desatenção pelo belo da letra joyceana.
E, acima de tudo, a singularidade (algo recorrente na história das traduções do
Ulysses pelo mundo) de que eles não eram, e não vieram a ser (ainda não sabemos da
professora Bernardina, mas, por enquanto, ela conta com apenas três traduções publicadas,
se não me falha a memória) tradutores profissionais, assim como não tiveram particular
envolvimento com a teoria da tradução em suas carreiras
221
.
Um do sérios candidatos ao título de melhor-dos-romances-possíveis, o Ulysses não
teve a sorte de ter, no Brasil, a melhor das situações possíveis de tradução
222
.
E eu com isso?
E eu nisso?
O que tenho eu a dizer sobre a tradução do Ulysses. Ou, o que é muito mais
interessante, o que tem o Ulysses a dizer sobre a tradução.
Ah, e Bakhtin?
*
Para que possa dizer qualquer coisa aqui, articulo tudo o que este trabalho pôde
chegar a pensar e tento fazer desta, nascente, reflexão, não um apenso, não um penduricalho
afastado do trabalho, mas uma efetiva retomada (se não condensação) de todo o caminho
teórico que ambos os autores lidos aqui nos fizeram percorrer. Se a idéia era derivar de Joyce
um instrumental e compará-lo àquele desenvolvido por Bakhtin, posso agora aplicar essas
conclusões a uma outra esfera, ou à mesma.
Pois o que me interessa pensar aqui é precisamente a tradução como discurso citado.
220
A quem, diga-se, devo um grande agradecimento por ter me tolerado mesmo tendo me conhecido
(apenas por telefone, até hoje..) no momento em que eu acabava de descobrir que perdia a corrida para uma
eventual publicação de um segundo Ulysses brasileiro, e a quem a literatura brasileira deve um
agradecimento de igual intensidade.
221
Mais uma vez, eu sei de me fabula...
222
O que, no meu português, significa o senhor Paulo Henriques Britto e pelo menos cinco anos de prazo.
428
Afinal, nos esquemas convencionais que pretendem resumir a situação de comunicação
representada pelo ato tradutório (esquemas em que há duas situações de comunição, e em
que o enunciador da segunda é o destinatário da primeira, sendo a mensagem, nos dois
casos, essencialmente
223
a mesma), o que vemos não é em nada diferente da prototípica
situação geral da re-enunciação que caracteriza toda a esfera da apropriação do discurso alheio,
de que a tradução, assim, seria um subtipo.
O que gera uma linha nada desinteressante de aproximações.
Especialmente se, retomando o que foi dito na abertura deste texto, focamos essa
discussão na problemática relação entre vozes que se estabelece sempre que a situação
envolve um enunciador que precisa apresentar (com que grau de independência, respeito ou
fidelidade?) a palavra de um outro enunciador, tipicamente ausente. Todas as questões de
estrangeirização ou de vernacularização podem ser assim (tangencialmente? não creio..) abordadas
como questões de autonomia, concessão de espaço, apagamento.
(Peço que durante boa parte da discussão que segue você mantenha em mente que a
inconstância no pareamento entre as três instâncias mais centralmente relevantes em um dos
lados de nossa equação –tradutor/narrador-autor– é, se não intencional, tolerada: isso se
resolve de forma triunfal páginas adiante!)
Todo o amplo campo da tradução pode assim ser visto com olhos um pouco
diferentes, por lentes tintas em outras fábricas.
Se começamos, como no corpo do trabalho, singelamente pela formalização
proposta por Volochínov, já encontramos campo suficiente para termos o que pensar, e que
pensar que haja o em que pensar a partir deste ponto de vista. Pois de saída podemos
perceber uma reversão copernicana de posturas, se consideramos a história da tradução e a
história da citação do discurso alheio no texto literário conforme esboçada e orientada por
Volochínov.
Se saímos daquilo que ele agudamente chama de estilo monumental de citação da voz
do outro, em que ainda nenhuma integração se insinua, em que na verdade é a imaturidade
do discurso literário o que acima de tudo se faz manifesto nessa inabilidade de fazer conviver
múltiplas vozes no mesmo texto (e lembremos a nada gratuita distinção de base que
223
E nas miríades de intepretações desse advérbio assentam-se quase todas as querelas teóricas a respeito
da tradutibilidade.
429
apresenta a poesia como surgida em meio oral e a prosa literária como conseqüência
inequívoca da representação gráfica, o que acarreta complexificações, como bem o sabe
qualquer estudioso das especificidades de textos orais e escritos), e que encontra sua mais
perfeita manifestação no discurso direto como que higienicamente disposto, percebemos (se
saímos daí..) que o processo na estória da tradução do mesmo texto literário se deu em mão
diversa.
As apropriações que os romanos, por exemplo, fizeram dos textos gregos
praticamente não mereceriam o nome de traduções no sentido estrito (e algo estreito) que o
senso-comum e certa crítica de imprensa emprestam ao termo nos dias de hoje. E o mesmo
se pode dizer, em grau nada desprezível, da postura de regra dos autores renascentistas em
relação a esses mesmos textos romanos. Não seria de estranhar a afirmação de que a
tradução literária como a concebemos hoje esteja ligada ao mesmo processo de
estabelecimento de autoridade e da figura do autor que apenas o romantismo veio criar
definitivamente. Ressalvando-se que tal postura tenha também existido previamente.
Se por isso mesmo abandonamos por infrutífera e distante do escopo e da
capacidade deste escriba, neste trabalho, qualquer projeto de concepção de algum
paralelismo diacrônico entre as descrições de Volochínov e estas parcas reflexões sobre o ato
tradutório, encontramos ainda utilidade para a idéia do estilo monumental de reprodução do
texto, agora, original sem necessidade de irmos muito longe. A academia, e sua praxe de
citação de fontes, nos oferece, em plenos dias de hoje, um exemplo de tradução via respeito
hierático. E o forneci eu mesmo ao citar verbatim os excertos do Ulysses.
No estilo monumental de Volochínov, o que essencialmente acontece é que o autor
(em qualquer de suas projeções, vide supra) basicamente não se considera à altura do texto
citado
224
, o que o põe em posição de submissamente buscar reproduzir a palavra alheia sem
impor-lhe sua mácula, inevitável.
Quando cito Joyce letra a letra, quando copio Joyce e simultaneamente me aproprio
de seu texto ao extirpá-lo de seu entorno e colocá-lo a meu serviço, realizo efetivamente um
processo de tradução, de deslocamento e transporte. Em grande medida, realizo uma
primeira versão possível (versão apenas, porque apenas recorte) do sonho de Pierre Ménard.
224
E que se abra esta nota para que não escape a menção a toda uma extensa linha de literatura (e de
tradução) que se constitui basicamente na lida com textos sagrados, problema que, ao menos por enquanto,
cabe neste trabalho apenas nesta nota.
430
Traduzo no paradoxo do processo que me permite reproduzir inalteradamente e
desaspear inexoravelmente. Pois que hoje conhecemos a inexeqüibilidade do projeto
monumental. Conhecemos a impossibilidade da repetição que não seja criação.
Se repito e recorto, mastigo e digiro. Se repito integralmente, desloco e reenuncio. Se
repito, crio. Se repito, não repito.
Muitas das idéias acerca da impossibilidade da tradução, ou da indesejabilidade da
tradução como virtual repetição do texto original se baseiam afinal no gesto essencialmente
moderno (senão modernista) que é o de se debruçar sobre a repetição, negando-a no mesmo
processo. Reiteração criativa. A anti-ingenuidade que pode ter-nos levado a um excesso de
ironia desconstrutiva mas que, ao menos por enquanto, demonstra acima de qualquer dúvida
a impossibilidade daquele enfoque virginal cujo canto de sereia chegou a me tocar, do
apagamento do eixo de orientação de quem cita na repercussão do texto citado.
O próximo passo de Volochínov
225
em sua linha que, agora, consideramos apenas
como um contínuo de complexificação, vai ao discurso indireto.
É óbvia a diferença entre o processo esquemático e sintático que permite reconhecer
quaisquer variantes do discurso indireto e o processo de tradução. Não imaginamos
encontrar em uma livraria um livro traduzido que comece por o autor escreveu que.
No entanto, é plenamente legítimo e bastante poderoso considerarmos a mesma
declaração da existência do momento e do ato tradutório como o equivalente do verbum
dicendi para a sintaxe. Ao estampar em algum canto do livro a afirmação de que aquele texto é
a versão em uma língua de um outro texto independentemente publicado em uma outra
língua, o editor acrescenta às páginas uma informação que, funcionalmente, representa as
mesmas funções que aquele verbo exerce na estrutura da frase.
Pensemos.
O que faz a declaração do verbum dicendi na estrutura do enunciado final é
simultaneamente isentar o enunciador da responsabilidade pelo conteúdo semântico global
da enunciação e chamar a ele a responsabilidade (a não ser que expressamente manifesto o
contrário
226
) sobre a expressão final daquele enunciado agora apropriado. Ou seja, a não ser
225
E ressalte-se que não pretendo estabelecer uma resenha exaustiva de seu texto. Mais uma vez me sirvo
dele para chegar a meus fins. O pobre.
226
Em breve algumas palavras sobre as variedades do discurso indireto.
431
que o narrador anuncie ele disse (precisamente com essas palavras) que... o que na verdade constitui
óbvio contra-senso, embora não impeça sua ocorrência efetiva no dia-dia, ele assume a
forma do enunciado, abrindo mão, mais ou menos explicitamente (o que determina toda
uma série de possíveis vieses polemizantes ou neutralizantes), de endossar o eventual conteúdo
do enunciado.
Essa distinção, sozinha, já serve para diferenciarmos (mostrando o quanto esta nossa
leitura serve apenas a um deles e, portanto, o quanto tem de potencial de discriminação) os
repetidores que são precisamente o editor e o tradutor. Mesmo juridicamente, me parece mais
improvável que se possa considerar imputável o tradutor de um texto ofensivo que seu
editor.
Editar um texto, publicá-lo, é basicamente o equivalente no mundo oral de contratar
um palestrante e bancar sua fala. Traduzir é apenas citar e o tradutor, como bem sabemos, no
mais das vezes nem mesmo escolhe o que cita.
Mas é ele no entanto quem tem de conviver com a ambigüidade manifesta no
parágrafo anterior. Pois se não pode ser culpado pelo conteúdo veiculado em seu texto (sua
enunciação), é apenas ele quem pode responder (ausente o autor por definição) pelo aspecto
formal desta enunciação, o que obviamente se reveste de um significado muito especial no
momento em que começamos a falar do discurso propriamente literário.
O que dizem verbum dicendi e a informação traduzido por é que aquele texto que
imediatamente depois se apresenta ao destinatário é basicamente o mesmo que efetivamente
(na enunciação número um) foi recebido pelo, agora, transmissor, e, ao mesmo tempo, que
aquele texto não precisa ter sido exatamente assim no momento da enunciação original. Ele
simultaneamente é e não é o mesmo texto. Ele depende, para que se possa estabelecer a
comunicação, da anuência tácita do receptor em concordar, ao menos em um nível
fundamental, em conceder ao transmissor um grau suficiente de confiança. Confiança esta que
se cristaliza na possibilidade de uma nova transmissão do mesmo texto.
O ouvinte que recebe a narração de uma enunciação em discurso indireto confirma,
no ato de citar (não necessariamente o discurso que ouviu mas) o discurso original, o pacto
que permite a mesma citação original. O leitor que comenta, registra, discute ou formalmente
cita um texto traduzido corrobora o mesmo pacto. Cimenta a mesma polêmica autoridade
diáfana, que se projeta através do tradutor sobre o texto final.
432
Ou seja, em que grau nos vemos, quando citamos um teórico que escreveu em uma
língua que não conhecemos (o que este trabalho, mais uma vez, fez às catadupas), na mesma
situação daquele leitor algo mal-informado que atribui a Shakespeare a fala e as opiniões de
Iago?
Para ficar apenas em um exemplo que diz respeito mais diretamente a nosso
trabalho, como posso ousar citar o que quer que Volochínov tenha dito a respeito da citação
da palavra ou do discurso alheios (uma distinção que pode ser bastante relevante) se a língua
em que ele escreveu não diferencia os dois termos?
Na narração de uma estória em torno de xícaras de café, no processo que permite
aos autores plasmar e incorporar vozes de pessoas alheias a eles; no ato de se reescrever
novamente, em uma outra língua, um texto de outra pessoa; em todos eles temos os mesmos
princípios em operação, o que nos permite em alguma medida estender as problematizações
de cada uma dessas áreas às outras delas.
Continuamos vivendo entre as palavras dos outros.
Como comentário marginal, fique a mera possibilidade de estendermos essas
comparações se estivéssemos dispostos a nos deter sobre as distinções mais finas que faz
Volochínov dentro do grande universo do discurso indireto. Uma variante analisadora do
conteúdo, por exemplo, ou mesmo uma avaliadora da expressão, poderiam muito bem ter
seu equivalente, ainda no mundo da tradução normalmente não-literária, nas notas de rodapé
de que nos servimos para justificar esta ou aquela escolha, para explicar esta ou aquela
impossibilidade. Pois a distância entre o emissor do texto original e seu destinatário final, via
ato tradutório, é via de regra muito maior que aquela que mais prototipicamente
encontramos nas situações de discurso indireto na oralidade, e inclusive maior, novamente
como regra, do que aquela que pode mediar o personagem e o leitor do texto em sua língua
original.
E fique óbvio que me refiro a distâncias muito mais que geográficas.
Hoje mesmo, em uma livraria, encontrei uma tradução de um romance norte-
americano recente. (Todo tradutor é um revisor doentio da tradução alheia.) Fora o fato de
que, em o original se chamando The king is dead, o tradutor optou pelo singelo O rei morreu, na
contramão da tradição historicamente ligada ao anúncio da morte dos soberanos (o que
433
parece ser em tudo e por tudo aquilo a que se dirigia o original), que costuma optar pelo
literal de o rei está morto, deparo com uma primeira frase vertida, competentemente, por Havia
uma mulher chamada Kelly Flinn.
Nada há ali de reprovável.
O original (apenas presumido) não deveria estar muito distante. O discurso foi citado
de forma eficiente e honesta. Mas o que fazer do fato de que esta frase não traz referências
imediatas a um leitor hipotético (e certamente muito encontradiço) que não tenha contato
mais intenso com a tradição de que parte o original? Pois qualquer leitor devidamente
literarizado de inglês sabe (o que se confirmado pela sonoridade inequivocamente
hibérnica do nome do personagem) que essa primeira frase cita, polemiza, ou se baseia em
um primeiro verso de um limerick.
Em uma edição comercial-padrão como a que vi, tal informação foi, algo
compreensivelmente, simplesmente sonegada, presumida (se é que percebida). Trata-se da
perda do canal, da difusão que morde pelas bordas o discurso transmitido
transatlanticamente. E é nessas condições, muito mais complexas, que tem de operar a citação
executada pelo tradutor de língua inglesa, que dirá de mandarim..
Pois um diferencial fundamental no paralelismo que traçamos. O tradutor é um
re-enunciador que se distingue do destinatário final pelo fato de que este, na maioria dos
casos, não se encontraria aparelhado para receber diretamente a mensagem original. Ora,
nestas circunstâncias, o pacto de confiança que qualquer situação de citação de discurso
parece acarretar se vê simultaneamente mais inquestionável e mais complexo.
Como a e da criança de um ano que diz ele disse que, apesar de todos os presentes
terem ouvido uma rie grunhidos úmidos, o tradutor recebe do leitor final o voto de
confiança cega sobre aquela inquestionada (em situações normais) primeira etapa do
processo de retransmissão: a compreensão da mensagem e do código originais. E é
precisamente por ser esta parte a mais delicada deste pacto de confiança que é aqui que os
leitores mais devidamente instrumentalizados tendem a buscar evidências de desrespeito a
ele.
Mesmo nos momentos em que lhes é dado apenas presumir a enunciação original.
Mas sabemos que a investigação de Volochínov não se detém nestas duas formas de
citação. Na verdade ela se dirige (naquela marcha do mais direto ao mais complexo), como
434
que teleologicamente orientada, para as formas do discurso indireto livre, que inauguram
aquilo que chamaríamos (depois de Bakhtin) de fenômenos de interferência de vozes.
Então que se aproveite o momento para um exame algo mais detido daquilo que
candidamente chamamos (hic et ubique) de discurso indireto livre. Meramente para que
possamos continuar nossa leitura paralela com algum embasamento. Pois sabemos muito
bem que para a maioria de nossos alunos por exemplo o mais difícil em torno do
proverbialmente difícil DIL é precisamente dar dele uma definição simples e funcional.
Trabalho aqui com a singela idéia (que cobre quase que a totalidade das efetivas
ocorrências do termo, senão a plena totalidade) de que o discurso indireto livre é mera e
simplesmente isso mesmo: um discurso indireto, livre, nomeadamente, do aparato do verbum
dicendi.
Ao invés de dizer ele esteve aqui, disse que não era fácil fazer esse tipo de coisa e foi embora sem
mais explicações, digo ele esteve aqui, não era fácil fazer esse tipo de coisa, e foi embora sem mais
explicações. Com o perdão da falta de talento literário.
Para a discussão que vínhamos esboçando, essa definição não pode deixar de
mostrar seus dentes. Pois se o discurso direto se apresentava representado pela citação
verbatim e o indireto, pela tradução de facto, onde a mera declaração (expressa ou não,
acrescente-se) de se tratar de um texto traduzido substituía funcionalmente o aparato de verba
dicendi, o que podemos fazer dessa situação? O que podemos gerar de uma citação que não se
diz citação, mas se acusa como tal em cada oportunidade de dêixis? Trata-se da citação
incorporada ao enunciado do citador, que precisa contar com a argúcia do destinatário
(usualmente pré-alimentada, no discurso literário, por informação relevante que lhe permita
reconhecer a procedência de determinado discurso e, ou, a inverossimilhança, apenas, de que
ele se veja atribuído ao enunciador atual, o que é corroborado, passo a passo, pela dêixis.)
Pois é.
Uma tradução que não se anuncie como tal, mas que simultânea e intencionalmente
se delate como tal..
Curiosamente, essa tradução mais refinada (na mesma e única medida em que é mais
refinado o uso do DIL como forma de incorporação do discurso alheio) parece se ver
melhor exemplificada pelo mesmo Joyce. Afinal, ela dá a tônica de todo o procedimento que
embasa a concepção do Ulysses, tradução direta da Odisséia do laércio, de que se apropria,
deslocando-a inteiramente para o universo de sua palavra, e no entanto tentando a cada
435
momento dar ao leitor as dicas para que esse processo subterrâneo seja percebido, sem o que
ele perde seu valor mais próprio.
Essa possibilidade, nos dias de hoje, continua mantendo seu vigor, como o prova a
recente publicação de On beauty da diva da nova geração, a jamaicano-inglesa Zadie Smith,
que busca (ela e ele, o livro) em E.M. Forster o mesmo que Joyce encontrou em Homero.
Mais interessante ainda, como possibilidade de interferência de discursos, como mostra do
que pode acontecer na zona cinza em que o discurso do tradutor se torna algo indistinguível
do pretenso original
227
é o que o tradutor Mauricio Cardozo recentemente realizou com a
novela Der Schimmelreiter, de Theodor Stromm, ao publicar de uma só vez duas traduções do
texto, sem em momento algum questionar a adequação de chamar uma e outra de traduções.
Uma delas era aquilo que definiríamos aqui como uma transmissão em discurso indireto
padrão. O que um leitor poderia esperar. Alguém lhe transmitindo o que um autor emitira
em um código que ele não domina. A segunda, no entanto, vai mais longe, e abre espaço
para muito mais perguntas, ao reescrever toda a novela (trama basicamente intocada)
transportando-a radicalmente no tempo e no espaço, reencenando-a no sertão brasileiro, no
século vinte.
O procedimento de Cardozo
228
, por sua mesma violência, institui na letra do texto a
pessoa-vocal do tradutor de uma forma que simplesmente impossibilita que ele se conforme
pacificamente com o lugar de repetidor. Alguém capaz de tomar decisão tão idiossincrática
não pode deixar de afirmar seu ego em medida maior neste processo.
No entanto, ele vai ainda mais longe, e ainda mais profundamente exemplifica o que
tento aqui demonstrar (melhor que a encomenda ele, para mim, assim como Joyce o foi para
Bakhtin), ao reencenar a novela oitocentista alemã através de uma linguagem que é
basicamente (e belissimamente) uma competente reescrita da voz de Guimarães Rosa
229
. E
talvez ele tenha descoberto, ao fazer isso, a chave que efetivamente permita o convívio de
tradução e adaptação. Livre da acusação de pastiche (por estar-se servindo da linguagem de
Rosa para fins outros que não a criação de uma obra original), ele se torna livre para
227
Mesmo mais interessante, acredito, do que a algo difusa idéia da transcriação proposta pela poesia
concreta, que me parece se definir melhor como uma mudança de atitude, não necessariamente de método.
228
Eu mesmo já tive a vontade, e já a deixei registrada, de fazer coisa semelhante com o Ulysses. Escrever
um Ulisses curitibano, passando-se em 2004. Mas, sendo minha vontade ainda só vontade, fique ela aqui
em nota de rodapé, e louve o texto o belo concreto projeto de Cardozo.
229
Digo isso sabendo ir algo a contra-pêlo das intenções manifestas do autor, que declara ter-se centrado
em mais de um autor regionalista. Mas a presença de Rosa é conspicuamente mais determinante em seu
texto.
436
vernacularizar aquela primeira enunciação germânica através de uma voz coerentemente pré-
estabelecida.
Trata-se de um análogo perfeito à situação do autor que, através da linguagem de um
personagem-narrador, cita as vozes de outros personagens.
Cardozo, com esta publicação
230
, levanta lebres suficientes para todo um festim de
pesquisas tradutológicas, e longe fique de mim querer esgotar aqui a problematização de seu
texto. Apenas me sirvo dele para exemplificar um processo que, longe de sequer se anunciar
singelo, é definitivamente mais complexo do que o que vimos até aqui.
Tudo isso nos leva, como que inexoravelmente, mais uma vez ao mais requintado
instrumento de análise que é o dialogismo bakhtiniano
E de saída vemos que (marginalmente à espécie de metáfora que pretendemos
colocar aí) o estudo das relações dialógicas presentes dentro de cada romance, e presentes
como parte constituinte daquilo que de um romance faz um romance, apresenta ao tradutor
de ficção uma possibilidade de formalização e de exposição de toda uma série de problemas
(como vimos) simplesmente centrais à mera sobrevivência do romance quando transposto
de seu ambiente original para o cativeiro da tradução.
Saber identificar a riqueza e a necessidade dessas relações é o primeiro passo (e um
primeiro passo negligenciado vezes senfim) para o reconhecimento da necessidade e,
eventualmente, dos meios de preservação dessas mesmas relações no texto traduzido. É mal
nada infreqüentemente reconhecido na leitura de literatura romanesca em tradução um certo
achatamento, de que o Ulysses de Houaiss, portanto, está muito longe de ser único exemplo.
Preso a uma imagem algo romântica (no sentido histórico-teórico evocado logo acima) da
figura autorial (e não necessariamente –na verdade esse mesmo fato renega essa precisa
possibilidade– da figura do tradutor, em algum culto egótico-artístico), o tradutor se
também preso a uma curiosa noção de fidelidade, que o leva a respeitar acima de tudo
(noção compartilhada em enorme medida por seu público final) a autoridade do autor, a
autenticidade da voz do romancista, as especificidades de seu estilo, tudo, em suma, basicamente
contrário ao que de romanesco pode haver no romance segundo a definição propiciada pela
concepção dialógica de linguagem e literatura.
230
Enquanto escrevo o livro está ainda em provas finais, mas deve vir a público antes mesmo da defesa
desta tese.
437
O dialogismo, assim, apresenta não um primeiro problema, mas uma grande
possibilidade de exposição de um problema que, sem ele, não teríamos instrumentos para
abordar, talvez sequer para reconhecer: o problema que é o fato de que a calejada discussão
sobre a fidelidade no ato tradutório merece uma amplificação e uma intensificação no que se
refere à esfera especificamente romanesca.
Se Stephen Dedalus pôde se declarar, na abertura do romance de que tratamos,
simultaneamente um terrível exemplo de livre-pensamento e o servo de dois mestres (o
império britânico e a igreja católica apostólica romana), o tradutor, do Ulysses ou de qualquer
romance bem realizado, começa por aqui a ver o quanto a percepção da realidade dialógica
da prosa de ficção torna mais cerrada sua posição; ele precisa ser livre-autor e,
simultaneamente, servir a bem mais de um mestre, dever suas mostras de fidelidade não a
uma voz autorial, um projeto estético-histórico coerente, uma tradição nacional, lingüística ou
egótica, mas sim a uma orquestração muito complexa de vozes na qual, na verdade, aquela
voz primeira é em certa medida a menos relevante.
A possibilidade de que, no romance, traduzir buscando fidelidade à voz do autor seja
a maior infidelidade para com o autor. Sem nem contar a infidelidade, muito maior, para
com seu público final.
No entanto, seguindo o raciocínio paralelístico que vem sendo nosso interesse mais
direto, a idéia do dialogismo como marca central do romance nos leva a buscar um novo
tipo de tradução, que responda mais genericamente (sem as especificidades da resposta que
buscamos encontrar para as questões referentes ao discurso indireto livre em um tipo muito
singularmente caracterizado de operação tradutória) às questões propostas por ela. Visto que,
descontadas vãs veleidades paranóicas (como no limite o é a questão da citação acadêmica),
o dialogismo perpassa todas as possibilidades de representação de discurso e,
conseqüentemente, aqui, todas as praxes tradutórias, precisamos encontrar o que, nelas,
responda a elas.
(E, pensando bem, mesmo nas formas paranóicas...)
E não nos vemos em solo infértil. A sugestão da possibilidade de um convívio de
vozes autônomas, em um processo em que a voz autorial o busca manifestar precedência
ética sobre qualquer delas, além de levantar precisamente a necessidade de relativizar o peso
maior eventualmente concedido a esta voz no momento de contemplar a tradução do texto
para outra língua, deve, inescapavelmente, relativizar também o peso maior desta voz em
438
relação àquela que se propõe a tradução. Extra-livro, a idéia do convívio dialógico de vozes
nos leva a ver o citador como par.
Não como, nos exemplos romanos e renascentistas evocados, superior à voz autorial,
o que lhe permite englobá-la e, em última instância, prescindir da indicação de filiação. Não
como, na postura em grande medida tipificada pela atitude para com o texto sagrado,
inferior a ela, obrigado a reproduzi-la sem permitir que sua mesma voz macule a pureza e a
verdade do texto original. Mas sim como um enunciador que leva em plena consideração o
princípio da impossibilidade da reiteração da enunciação. Tanto mais se ocorre ela em uma
voz diversa da primeira. Tanto mais se ocorre ela em um código diverso. Pois é a essa
avaliação que nos conduz à contemplação do discurso traduzido como discurso citado: ele
tem de ser o mesmo discurso que cita, apesar de conceber como impossível essa identidade pela
mesma natureza singular de qualquer enunciação.
E nos vemos de volta ao mundo de Pierre Ménard. Seu texto, por mais fiel, jamais
será o mesmo. Eis sua riqueza. Logo, sua fidelidade deve ser buscada em outras praias.
E deve ser buscada, especialmente, vemos agora, em uma relação bilateralmente fiel e
plena. Uma relação em que devemos tomar como ponto básico (o que infelizmente ainda
está, apesar de sua rematada obviedade, distante do olhar-padrão, do senso-comum, no que
se refere à tradução, ainda mais a literária) o fato de que a voz que efetivamente se manifesta
na enunciação que efetivamente ouvimos é a voz que cita, a voz do tradutor, mas em que essa
voz se coloca em uma relação dialógica complexa com a voz que ali cita, uma relação em que
toda palavra que emite é ao mesmo tempo sua e não-sua, ao mesmo tempo não provém de
sua visão-de-mundo e é expressa coerentemente por ela, recebendo, no entanto, uma rie
de acentuações, vieses e nuances que a essência do processo lhe atribui irremediavelmente e
que seria leviano não levar em consideração.
Todos os elementos contextuais, como o lapso cronológico entre produção e
tradução (que pode variar de meses a milênios), a distância (geográfica e cultural) entre autor
e destinatário final, conquanto possam responder de formas múltiplas, complexas e centrais
por todo esse deslocamento que aclara a acentuação irrevogável da reiteração tradutória, não
podem, no entanto, responder plenamente por ela. Mesmo que em um exercício mental
considerássemos a possibilidade (nada selvagem) de um texto traduzido na medida em que é
escrito (página a página, com um lapso temporal da ordem de horas), entre culturas em tudo
439
e por tudo próximas
231
, não poderíamos descartar a presença da re-enunciação, da
enunciação segunda, como elemento colorante e (sem nenhuma avaliação negativa) desviante
da mensagem, da enunciação primeira.
Ou seja, precisamente aquelas noções que os estudos bakhtinanos sintetizaram muito
adequadamente na noção de refração. O discurso traduzido será sempre e precisamente uma
réplica do (ou ao?) discurso original, que em diversos sentidos atravessa um meio (uma lente)
que se busca transparente o quanto possa, mas que estará sempre condenado (eis sua
benção) a um desvio de trajetória e, mais precisamente, a um desvio que faz supor, aos olhos
do leitor final, um posicionamento diferente do discurso original, que altera essencialmente a
imagem da enunciação primeira.
E é apenas a assunção dessa verdade quase singela que pode fazer com que a voz
criadora que se instaura na impossível reiteração tradutória encontre finalmente seu eixo, ao
se afirmar original e ao corroborar sua interação bilateral e definitiva com a voz original. É
apenas se o discurso do tradutor se coloca (se assume) como radical e inquestionavelmente
próprio e original, sem contudo pretender por meio de tal ato apagar ou subestimar a
presença também ela incontornável e definitiva da voz anterior em cada palavra de sua
enunciação, que ele consegue encontrar algum equilíbrio na paradoxal noção de trabalhar
entre o eu e o outro.
Na verdade, o que uma contemplação profunda da noção bakhtiniana de dialogismo
pode fazer pela tradução é como que sublimar algumas de suas questões mais
tradicionalmente cabeludas, levar a outro nível alguns de seus problemas e guiar em direções
diversas a atenção do pesquisador.
Dia desses, na televisão, em referência aos 150 anos de Freud, ouvi um psicanalista
(cujo nome infelizmente me escapou) descrever a atuação fundamental do Freud entre os
médicos vienenenses seus contemporâneos de uma forma que me deixou incrivelmente feliz,
e que cabe como uma luva precisamente neste problema que tento algo ineptamente detectar
aqui. Pois ele dizia que, naquele momento, o que Freud enfrentava de mais complicado em
sua relação com seus colegas (seus pretensos colegas, que acabaram por levá-lo a um
recolhimento quase absoluto) era o fato de que aquelas situações que ele estava determinado
231
Por mais que tenhamos de descontar aqui a evidência empírica, que nos mostra à exaustão que com
freqüência é precisamente nas culturas mais geográfica, histórica e culturalmente próximas que surgem os
distanciamentos mais incontornáveis.
440
a estudar, nevroses e histerias, eram consideradas pela maioria dos outros profissionais da área
(e o fato de que não poucos de seus primeiros pacientes eram mulheres certamente facilitava
esse tipo preguiçoso de visão preconceituosa) como falsas-doenças, literalmente como
fingimento por parte do (da) paciente. Cabia a Freud reverter esse quadro, para que se pudesse
levar a sério o resultado de qualquer pesquisa realizada precisamente sobre este corpus. Mas (e
aí residiu o potencial epifânico da entrevista, ao menos para mim) o que ele fez não foi provar
que aquelas pessoas não estavam fingindo; e sim provar que todos estávamos, o tempo todo,
fingindo, o que dava àqueles casos necessariamente o mesmo estatuto de seriedade que
atribuiríamos a qualquer outro.
O que se modificava era o conceito de seriedade. E seu escopo.
Bakhtin pode demonstrar que ao discutirmos incessantemente a fidelidade, a autoria
da tradução, o percentual de responsabilidade ética ou estética de cada texto literário traduzido,
estamos simplesmente nos esquecendo de fatos básicos. Ao tomarmos como original a
enunciação de partida, começamos por esquecer (e tanto mais em se tratando de um
romance, construído sobre as bases deste princípio feito método) o quanto de dialógica ela já
tem em si própria. Ao discutirmos o quando pertence ao tradutor ou ao autor o texto
traduzido final, o que fazemos é simplesmente subestimar o quanto essa discussão se aplica a
quase todo texto.
É óbvio que, por tematizar este procedimento, pelas características que mesmo aqui
pudemos mencionar (dentre as quais surge destacada a incompreensibilidade da
enunciação original pelo destinatário final), e inclusive pela criação de uma tradição de
estudos e de produção que cria para a tradução um estatuto diferenciado dentre todas as
formas de reprodução do discurso prévio (fórmula talvez mais adequada que discurso alheio e
certamente melhor que o discurso do cacofônico outrem), a tradutologia criou mais sobre este
mesmo problema, debruçou-se mais sobre ele e deparou mais vezes e mais intensamente
com os paradoxos vivos gerados por esta situação. Mas isso não impede que relativizemos
em algum grau a especificidade da tradução como problema de apropriação do discurso
enunciado. Ou ao menos o impede que essa possibilidade, se efetivada, tenha algo a dizer
sobre ela.
*
441
Bakhtin, e as idéias gerais do círculo bakhtiniano, obviamente teriam o que nos dizer
na questão da tradução. Suas idéias versam, afinal, especialmente sobre a linguagem e não
deixam de tecer contributos a quase qualquer área de estudo (com algum viés filosófico-
sociológico) que se entregue a pensar algum fenômeno relativo a este campo imenso.
No entanto, ainda me cabe (unicamente porque me parece interessante) investigar
algo atentamente o que o Ulysses, especificamente, teria a oferecer para esta discussão.
Pude, em outros momentos deste trabalho, presumir algo tacitamente que o Ulysses
encampa muitos aspectos (senão sua completude) de uma teoria geral da literatura, e tenho
com bastante clareza para mim (e espero que este trabalho tenha podido fazer algo para
aclarar esta possibilidade) que ele certamente contempla e engloba uma determinada teoria
do romance.
Em que medida, porém, posso pensar que (como no caso de Bakhtin, em que a
preocupação com o oneirônimo acarreta a relevância para as subclasses) a reflexão
metaliterária do Ulysses (o que gosto de pensar seja ao menos ligeiramente diferente do que
costumamos chamar de ficção metaliterária, ou no mínimo não precise ser a mesma coisa)
acarreta a possibilidade de dele desencavarmos quaisquer ilações úteis a uma discussão sobre
a teoria da tradução?
Ora, de saída vejo que tudo nele que pude aqui analisar como refinamento e mesmo
radicalização da idéia de literatura baseada no dialogismo conforme a vimos expressa em
Bakhtin pode, igualmente, reproblematizar tudo o que acabo de dizer, destilando e
concentrando o poder de revelação daquilo que descrevemos nos quadros da teoria original.
Especialmente, vejo que aquela velha conhecida, a introdução de uma categoria a mais no
organograma da estrutura romanesca, haverá de ter o que dizer em nossa busca por paralelos.
Mas (ainda) não.
Daqui a pouco.
Antes amplio um pouco o que anteriormente levantei como eventuais atitudes do
Ulysses diante da tradução.
Pois se aponto que (especialmente no episódio do Gado do Sol, em que mais
claramente é tematizada a presença da tradução na formação de uma língua e o efeito da
prosa do prosador sobre a estória de uma literatura) o que o livro faz é basicamente rir-se da
inépcia desses tradutores, e muito especialmente rir-se da inépcia desses tradutores em criar
o texto efetivamente vernáculo, contribuindo algo desajeitadamente para o enriquecimento das
442
possibilidades expressivas da língua por sua precisa e mesma falta de jeito, revelando no
resultado final
232
(que haveria de ser estruturalmente familiar) a dinâmica do processo que
encampam, me parece bastante claro que só restam duas possibilidades de avaliação marcada
que poderemos atribuir ao livro. De um lado, podemos pensar que ele endosse essa
possibilidade e festeje seus frutos. De outro, mais verossímil, ao menos para mim, podemos
imaginar que via negativa seja o contrário deste procedimento que o livro preconize, ou
valorize..
É claro que desde muito verificamos que das duas possibilidades clássicas (a
tradução estrangeirizadora e a tradução vernacularizadora: ou seja, levar o leitor ao texto ou trazer
ao leitor o texto) se pôde fazer arte, artifício. Se o citado Paulo Henriques Britto pode
camaleonicamente desaparecer ao mesmo tempo em que pode fazer desaparecer a
estrangeiridade da língua de base, gerando textos não apenas escritos univocamente em
português (num português que não carrega as marcas indesejadas da língua de partida), como
ainda singularmente bem escritos em português (e entramos na esfera da competência
artística), não precisamos recorrer exclusivamente aos projetos aparentemente mais radicais
dos poetas concretos para vermos (sem sequer deixarmos a tradição tradutorial brasileira)
que a possibilidade reversa atingiu muito tempo estatuto elevadíssimo: basta olhar para as
excêntricas selvajarias do mesmo Odorico Mendes.
O que incomoda, aqui, são as possibilidades de meio de caminho, em que a oscilação
entre os dois extremos (pontual que possa ser) revela menos um projeto estético que um
escorregão do tradutor.
Bem executadas, as duas atitudes extremas descritas acima revelam, em graus e de
modos opostos e complementares, a mesma realidade dialógica do ato tradutório, pendendo
para um lado ou outro, ao gosto do freguês, mas traindo inequivocamente a consciência do
embate e o convívio produtivo das vozes. Traduzir vernacularizadoramente do inglês antigo
pode equivaler a assassinar uma distância cultural que pode precisar ser marcada para
garantir o enriquecimento da leitura final; traduzir estrangeirizadoramente um best-seller lançado
um ano atrás deve não ser mais que deslize. Os instrumentos continuam podendo servir a
fins diversos, mas nenhum deles nega a especificidade dialógica do ato tradutório
competentemente levado a termo.
232
Embora ao menos no caso de Tito Lívio devamos levar em consideração a proverbial esquisitice do
texto original, sem imputar todo o peso ao tradutor..
443
Antes de voltarmos (pela última vez) a nosso amigo arranjador, eu gostaria de me
deter brevemente sobre um momento curioso do Ulysses que, me parece, tem não pouco a
dizer sobre dialogismo, citação do discurso alheio e, por extensão, tradução. Trata-se, mais
uma vez, da palavra met him pike hoses, universalmente associada a Molly Bloom que, ao
interrogar seu marido sobre o significado de metempsychosis pronuncia estropiadamente a
palavra. Ou não, pois, como vimos, o romance não a mostra em lugar algum pronunciando,
deste ou de outro jeito, a dita palavra. O que temos é meramente a lembrança de Bloom, que
evoca mais de uma vez a mesma forma.
Trata-se de um belo símbolo de toda a presença de Molly Bloom no Ulysses
233
. Ela,
que ouviremos diretamente no último episódio (descontadas as réplicas
convencionalmente esvaziadas de seu diálogo com Bloom), mas a quem seremos
apresentados, lentamente, página a página, unicamente como voz citada, como presença
reportada
234
.
E muito do que conhecemos, do que temos como imagem convencionalmente
recebida de Molly (seu comportamenteo de adúltera recidivista, por exemplo) virá,
curiosamente, não de seu truncado e longo texto original, mas sim desses retalhos pirateados
por outras pessoas, outras vozes, sendo por vezes mesmo contrariado (o mesmo exemplo)
pela evidência direta (direta?) que o monólogo propicia. Entre o contato estreito com o
original aforme e complexo e a apropriação convencional (é esta a natureza da linguagem) da
palavra através da palavra do outro, a apropriação do texto traduzido, Joyce, e eu, e você,
ficamos quase que invariavelmente com o segundo.
Nessa busca por paralelos, assim como em tudo o mais que pudemos ver e dizer
neste trabalho, não pode ficar ausente a poderosa ferramenta que é o arranjador. Se no
romance ele é precisamente o distanciamento que permite, via-testa-de-ferro, o progressivo
apagamento do autor e aquele inquietante controle sobre materiais cada vez mais difíceis, na esfera
233
E Joyce iria repetir (with a vengeance) o mesmo processo no tratamento de Anna Livia no Finnegans
Wake.
234
E a aproximação com o Wake se torna aqui ainda mais relevante para nós, visto que Anna Lívia escreve
(ou não.. talvez tenha sido Shem..) uma carta que precisa ser efetivamente traduzida (ou não.. apenas
compreendida), serviço que o livro todo tentará fazer (ou não..).
444
da tradução, dada a discussão que até aqui pudemos encetar, a relevância dessas mesmas
formulações é óbvia.
Se não, vejamos.
Acabo de deixar escrito que, caso a caso, pode ser necessário, ou ao menos
conveniente que um mesmo tradutor, em contato com textos de mundos e tempos
diferentes, tenha de adotar recursos e caminhos diversos, praticamente antipodais, para gerar
resultados que o satisfaçam, e a seu público prospectivo. Ora, tudo o mais que vínhamos
descrevendo (a que agora se acrescenta mais essa) já fazia supor uma complexidade muito
grande no relacionamento de vozes entre tradutor e original que, ainda por cima, traz
consigo toda a orquestração de vozes de personagens, narrador(es) e autor.. Com isso agora,
explicita-se o mesmo quadro que, na estrutura interna do romance, justificou, se não gerou
por si só, o surgimento do arranjador.
Aqui também temos um enunciador final (lá autor, aqui tradutor) que se deseja fora
do resultado final, na medida em que seja possível esse apagamento, que precisa se haver
continuamente com a impossibilidade de retirada de seu plano acentual de cena, por mais
que amorteça sua voz, que precisa encontrar meios de representar autonomamente uma voz e
suas vozes, todas elas diferentes da sua, sem sufocá-las, sem ceder sob elas, e, mais
esquizofrênico de tudo, sem negar o que de embate possa haver nesse convívio. Aqui
também, na medida em que nos aprofundamos nessa investigação, topamos com meios de
crescente complexidade. Aqui também encontramos a necessidade de mais controle e de mais
ausência.
Mas a que poderia corresponder no mundo da tradução literária a presença dessa
ambígua figura que é o arranjador de Joyce-Hayman? Quem seria no mundo da tradução
essa voz senvoz, surgida de entre as esferas do livro e que responde, em lugar do
tradicionalmente imputável enunciador final, pelas escolhas mais polêmicas e mais, em diversos
sentidos, idiossincráticas? Quem poderia ser este alter ego constituído da matéria do outro?
Ao menos em minha, parca, experiência profissional, me parece claro o paralelo
possível. E imagino que não esteja só ao concebê-lo.
Pois que cada tradutor precisa, igualmente, haver-se com suas idiossicrasias e a
oposição que, muitas vezes, pode haver entre elas e o que o texto pede de seu tradutor. É
nesse processo de entrega às especificidades do texto (em tudo e por tudo semelhante ao
processo em que o autor se permite ceder-se às vozes da narrativa) que o tradutor precisa
445
encontrar uma persona que lhe permita incorporar o tradutor certo para aquele texto. Aqui,
essa entidade de meio-de-caminho se encontra efetivamente entre texto e tradutor, cuidando
para que aquele gere neste o ele possa de melhor lhe dar. Orquestrando essa vozes, por vezes
tão díspares, de modo a gerar um acorde final de sonoridade agradável. Cuidando para que o
tradutor sirva ao texto simultaneamente mantendo-se no controle dos recursos por vezes
mais ousados.
No sempre singular caso da bela experiência de Cardozo, este arranjador foi
Guimarães Rosa (e eis mais uma vez um caso extremo exemplificando melhor uma
teorização generalizável).
Na experiência deste tradutor, e acredito que na de muitos e muitos colegas que
trabalham com a curiosa obra de escrever os romances dos outros, ele se chama Pierre
Ménard.
446
ikke desto mindre
...
447
Quando da banca de qualificação para este trabalho, o professor Francis Henrik
Aubert (e a ele se dedicam os títulos em norueguês improvisado) muito adequadamente
apontou a necessidade de que ele contemplasse, também, uma discussão sobre teoria da
tradução. Estamos na academia, e por mais que eu possa enviesar de vicariedade a tradução
que ora vos apresento fica defatamente difícil querer supor que um trabalho de tais
dimensões queira escamotear precisamente a dimensão teórica que nos dá nosso pão.
O fato, contudo, como espero tenha ficado manifesto na primeira parte deste texto,
é que de fato realizei essa tradução com olhos mais para a práxis que para a episteme. O que
novamente espero tenha ficado algo clarificado é o estranho processo que permite que um
professor universitário, diante de uma banca de doutoramento, declare coisa tão eivada de
senso-comum, tão próxima do que, sabemos, ouvimos com freqüência de profissionais da
área, de todo avessos a teorizações (mais e mais raros, estes, me parece), coisa, afinal, tão
próxima do contra-senso, do ponto de vista dessa mesma academia.
É precisamente por essa razão que acredito ser necessária, depois da exposição dessa
teorização praticamente elaborada ex post facto, a enfatização de duas coisas.
A primeira delas é o fato de que, se presumimos com boa visada acadêmica que
práxis alguma se pode instituir sobre solo virgem de teoria (o que pareceria de saída revelar
aquele contra-senso a que me referia acima), não é difícil aceitar que a mesma qualificação
dessa nossa reflexão como posterior, a mera constatação (não o escondo) de que ela foi na
verdade discursivamente elaborada apenas depois de realizado, de concluído o trabalho
pragmático de versão do texto original não é capaz de retirar dessas ilações qualquer
potencial epifânico ou heurístico. Tratava-se apenas de formalizar o que de fato embasara
aquele mesmo trabalho, ainda que, durante, não tenha sido considerado neste papel, ou no
papel.
Vista dessa forma, a teorização realizada a posteriori vem se encaixar precisamente em
todo um imaginário (toda uma imagística) que perpassou todo este trabalho: toda uma idéia
centrada na possibilidade de desentranharmos, de extrairmos teoria de fatos dados no
mundo ético-estético. Maiêutica. Parturição. A crença de que o que queremos encontrar está
nos mesmos produtos estéticos, e que pode dali ser extraído.
Assim se evoco precisamente Joyce e Bakhtin como teóricos desta tradução, não o
faço em um momento negativamente posterior, fitting fiction to fact, mas sim, e apenas, fechando
em uma mesmo espírito o rumo deste trabalho todo.
448
Isso, contudo, ainda não explica a eventual necessidade e talvez sequer a mesma
possibilidade de ter sido desejável, em algum grau recomendável, aquela primeira tentativa de
enfoque virginal (cuja factibilidade realmente chegou a me iludir em mais de um momento,
como bem o percebeu o professor Fiorin, bem me apontou, e bem o registrei lá atrás..). Que
ela tenha se dado, e que dela, apenas ex illa se tenha retirado uma teorização pode parecer
ponto pacífico. Mas por quê, no entanto, teve de ser assim?
Acredito que não caiba mais duvidar de minha aposta no fato de ser o Ulysses um
livro pleno de singularidades. Um livro todo ele singularidade. Não digo não caiba duvidar
do resultado desta aposta, mas apenas creio incontestável a verdade de ter sido ela feita.
O Ulysses fugiu das mãos de milhares de leitores ao longo dos últimos oitenta e
quatro anos. Soube maltratar impiedosamente os leitores que não puderam compreender
aquilo que deixei que a voz de Burgess pronunciasse antes mesmo de abrir este trabalho.
Que os verdadeiros tesouros do dia 16 de junho de 1904 se abrem apenas aos leitores
diligentes. É preciso trabalho. E aqueles que não perceberam que estavam diante (ou dentro)
de um livro que clamava por ser gradualmente aprendido, bem como (e talvez especialmente)
aqueles que, percebendo tal fato, se negaram a oferecer ao livro a quantidade de esforço que
ele demandava para lhes entregar toda a maravilha que escondia foram rudemente expulsos
de seu meio ou, mais freqüente, atravessaram o bosque desta ficção tão preocupados com
enxergar o fim da mata e ver onde havia terreno limpo onde r os pés que sequer viram
que estavam sendo seguidos por Bloom, um sujeito bem maior que eles, maior pelo simples
fato de não existir.
Eu mesmo levei a cabo apenas minha terceira tentativa de leitura do Ulysses, a que se
seguiu uma quarta (abortada) da tradução brasileira, e depois uma quinta, quando
efetivamente pude ler, o que invevitavelmente me levou à sexta. Foi aliás essa mesma
constatação que me levou a querer ler o romance pelo que seria uma sétima vez (quarta
decabarrabo), de uma maneira que não me permitisse deixar de ver muita coisa, que me
obrigasse a olhar à volta o tempo todo, para poder emergir dali com alguma ilusão de conhecer
aquelas matas com alguma propriedade, para enfim poder escrever sobre elas. Precisei traduzir
o Ulysses. Precisei fazer o censo de árvores e criaturas escondidas.
Digo tudo isso apenas porque fique claro que a postura que me levou a abordar o
primeiro parágrafo da tradução (em um ônibus, rumo a o Paulo), que me levou à última
449
frase do livro (em Curitiba, no dia 16 de junho de 2004) e que me fez inclusive passar por
Dublin e pela porta da casa dos Bloom não se baseou, efetivamente, em qualquer
pressuposto teórico prévio que se pudesse erguer com vigor suficiente para se instituir em
lente e régua. Não abordei o Ulysses com o fito de confirmar ou exemplificar essa ou aquela
idéia sobre a teoria e as possibilidades da tradução. Mas o fato é que realmente julgo ter saído
dele (saí?) com várias e interessantes possibilidades a verificar.
Como evocado naquela conversa citada com José Roberto O’Shea, me pus, desde
antes de tentar verter a primeira frase, na postura humílima do transcritor, do taquígrafo que
busca minimizar as perdas inevitáveis
235
.
Sei muito bem que tal postura acarreta uma postura teórica. Um viés
236
. Mas
reforço o fato de que ela busca apenas evitar impor ao texto um instrumental previamente
organizado. Tentei deixar que a teorização sobre a tradução do Ulysses me fosse esclarecida
pelo mesmo processo de tradução do Ulysses.
Portanto, quando naquele momento o professor Aubert apontou a necessidade da
existência desse prefácio (vejo hoje) ele estava muito mais apontando que para mim mesmo
seria inescapável em algum momento tentar sistematizar o que quer que tivesse eu mesmo
aprendido com o processo todo que declarando que este trabalho precisava deste elemento.
Se pude tentar me apagar como voz, para isso precisando de mim projetar uma consciência
quase que de personagem que me permitisse gerenciar minhas máscaras no
acompanhamento das máscaras do autor, em algum momento eu haveria de ter de pensar
sobre isso. Mas o fato continua existindo, de que eu não seria capaz de falar sobre isso antes
de ler o livro pela lupa do tradutor e de, conseqüentemente, entender o que raios Hayman
queria com a idéia do arranjador. Ou, muito mais precisamente, o que queria eu com o
arranjador de Hayman.
Se, como o mesmo professor Aubert teve oportunidade de afirmar, a tradução é
afinal uma leitura posterior, uma quase-revisão, não posso deixar de ver que o tradutor,
portanto, é ele mesmo uma entidade que comparte do mesmo nível teórico a que assignamos
a presença do arranjador. Ele deve se colocar acima dos narradores (que precisa controlar),
deve se colocar abaixo do autor (se não por outra razão, ao menos pela posterioridade
cronológica), que aqui (como no cotidiano de quase toda tradução), na verdade não está nem
235
E quem foi mesmo que disse que a tradução (poética?) é uma série de perdas controladas?
236
Assim como hoje sei, porque meu orientador me disse, que viés se escreve com S. Dã..
450
aí, mas deve se haver com o fato de que, pela mesma natureza de seu trabalho, propiciado e
criado pelo trabalho do autor, ele tem por obrigação considerar-se acima daquele mesmo
autor, que não tem direitos sobre ele, a não ser delimitar seu espaço.
Lugar-tenente, ele manda absolutamente, pois o chefe está ausente que lhe pode
dizer até onde ir, e continua, no entanto, a fazê-lo.
E quem será o sujeito do período anterior?
Vistos dessa forma, tradutor (o último revisor) e arranjador (o primeiro leitor) não
podem escapar de olhar para o lado e se descobrir acompanhados nesse ambíguo estamento
que inauguram.
E, repito, posso agora chegar a essa conclusão, que me parece em tudo e por tudo
mais interessante que qualquer coisa que pudesse querer aplicar ao Ulysses porque deixei que
ele me mostrasse seu caminho.
*
Em resumo. (Resumo! Oba!)
Em algum momento, há quatro anos ou a quatrocentas páginas, me pareceu ver uma
determinada simetria.
Antes de afirmar desitalicizadamente que a tradução que segue nas próximas páginas
fosse definitiva e unicamente trabalho ancilar, de importância ancilar; antes de presumir que
seu peso no resultado global do trabalho fosse apenas o de instrumento que se prestasse a
um segundo momento efetivamente relevante (se algum o for, ou o foi); antes inclusive de
negar que esses elementos estivessem em alguma medida no resultado (e para o resultado)
final, em algum momento, quatro anos ou a quatrocentas páginas, me pareceu ver uma
determinada simetria.
E quando pude afirmar que acreditava que este trabalho terminava por oferecer duas
espe(ta?!)culares traduções de um mesmo texto foi precisamente por acreditar na unicidade de
procedimentos que embasava os dois momentos distintos (mesmo cronologicamente
distintos).
Se Steiner, em Depois de Babel, lembra que a tradução interlingual é apenas uma dentre
a miríade de possibilidades de conversões de registros, de apropriações para outras linguagens
que claramente poderíamos chamar de traduções, se compreendemos a essência do processo
451
envolvido na mesma tradução interlingual, se posso então considerar que o balé, a música, o
cinema, a literatura, as artes plásticas (ficando apenas no campo das artes) podem sempre e
diretamente conversar entre si, apropriando-se dos textos uns dos outros e gerando em seus
campos de especificidades leituras e comentários que são em qualquer grau de avaliação
fundamental basicamente similares aos procedimentos que regem a apropriação de um texto
stricto sensu de uma cultura/língua por outra cultura/língua, não está muito distante aquela
possibilidade cassireriana de considerarmos todos os processos por meio dos quais nos
apropriamos daquilo que viremos a chamar realidade procedimentos equivalentes naquilo em
que respondem a uma mesma função central. Converter em signos. Possibilitar a assimilação.
Agostinho definia brilhante e singelamente o signo como aquilo que está onde o que
representa não pode estar. Poucas definições mais competentes para o texto traduzido.
Se todas essas conversas são conversões em signos ou conversões entre signos, mesmo
a ciência se ocupa das mesmas coisas.
E posso então me apropriar neste trabalho duas vezes do Ulysses de Joyce. Uma
como acadêmico e outra como tradutor.
E se aqui pude fazer um olhar para o outro, acredito que arremato com alguma
coerência o ciclo que naquele momento pude tentar iniciar.
Muito obrigado pela pacncia.
452
PEQUENA
(
MESMO
...
JURO
...)
NOTA À TRADUÇÃO
Como re- e re- e novamente reafirmado ao longo deste trabalho, esta tradução foi
feita (sumo pecado) algo ancilarmente. Serviu para que eu perdesse a virgindade diante do
texto joyceano e o canibalizasse adequadamente para poder assimilá-lo.
Não se trata de um produto inacabado.
Não se trata, igualmente, de um produto condenado a ser convencionalmente
publicado. Aquela situação em que o tradutor se vê obrigado a fingir acreditar que terminou de
revisar. A desistir.
Se este texto vier a ser publicado como livro, certamente aparecerá em forma
consideravelmente diferente da que ostenta aqui.
Tenho certeza de que está eivado de erros, inadequações, cinturas-duras e burrices.
Quanto diferente ele pode chegar a ser?
Vai depender de quanto tempo me derem.
Muito obrigado por querer ler.
(e, ah, os negritos marcam os textos analisados no corpo da tese)
cwg
ADENDO À VERSÃO DIGITAL
Como o trabalho que complementa essa tese tem a complexa natureza semi-ancilar
descrita acima e, mais ainda, como ele apresenta um considerável complicador na medida em
que gera possíveis problemas de direitos autorais não apenas com relação ao espólio de
James Joyce como também à editora que hoje detém os direitos de tradução do Ulysses no
Brasil, vimos (efetivamente vimos, eu e meu orientador) por bem não disponibilizar a
integralidade da tradução em meio digital, decisão que apenas corrobora uma postura que, ao
longo dos últimos anos, me impediu de aceitar as inúmeras ofertas de espaço no ciberespaço
para veiculação de qualquer trecho significativamente extenso deste trabalho.
Acreditamos que tal decisão não compromete o acesso dos pesquisadores à
integralidade da pesquisa aqui apresentada, representando a oferta da tradução na versão
impressa da tese como que um segundo momento do trabalho, em que o que se propiciava
era um (em nada desprezível) acesso aos mecanismos que geraram essa análise.
Mil desculpas.
cwg
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