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FERNANDA HILZENDEGER MARCON
A CONSTRUÇÃO DISCURSIVA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS:
Uma análise a partir da teria da ação comunicativa de Jürgen Habermas
CURITIBA
2006
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FERNANDA HILZENDEGER MARCON
A CONSTRUÇÃO DISCURSIVA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS:
Uma análise a partir da teria da ação comunicativa de Jürgen Habermas
Dissertação apresentada como requisito
parcial à obtenção do grau de mestre, no
Curso de Pós-graduação em Direito, do
Setor de Ciências Jurídicas da
Universidade Federal do Paraná.
Orientadora: Dra. Katya Kozicki
CURITIBA
2006
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TERMO DE APROVAÇÃO
FERNANDA HILZENDEGER MARCON
A CONSTRUÇÃO DISCURSIVA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS:
Uma análise a partir da teria da ação comunicativa de Jürgen Habermas
Dissertação aprovada como requisito parcial para a obtenção do grau de mestre, no
Curso de Pós-Graduação em Direito, do Setor de Ciências Jurídicas da Universidade
Federal do Paraná, pela Comissão formada pelos professores:
Presidente:
Dra. Katya Kozicki
Universidade Federal do Paraná
Membro:
Dr. Leonel Severo Rocha
Universidade do Vale do Rio dos Sinos
Membro:
Dra. Vera Karam de Chueiri
Universidade Federal do Paraná
Curitiba (PR), maio de 2006.
3
A meus pais, amores de minha vida, cuja
capacidade de renúncia a razão jamais
explicará.
A meus irmãos, em cujas diferenças
reconheço os limites de minha
individualidade.
4
Agradecimentos
Bem o sabem, meus familiares e amigos, que a realização desta pesquisa representou a
concretização de um sonho e o desfecho de mais uma etapa de aprendizado, que não se
resumiu às lições dos bancos acadêmicos. Por isso, não poderia deixar de agradecê-los,
sinceramente, por toda ajuda prestada, especialmente:
A meus pais e irmãos, que estiveram sempre presentes e que, com palavras doces ou
amargas, contribuíram para o alcance de meus objetivos.
À minha orientadora, Katya Kozicki — exemplo de capacidade e dedicação —, na
qual encontrei o principal motivo pelo qual segui-la: a paixão incondicional pelo
direito e pela democracia.
A meus tios Márcia e Celso, pela acolhida em minhas estadas em Curitiba, e a “meus”
pequenos e amados Vítor e Laura, cuja energia jamais se negaram a compartilhar.
Às amigas Myriam e Tatiana, incansáveis companheiras desta longa caminhada.
Aos amigos Ana Paula, Marina, Mauri e Salete, também companheiros de magistério,
pelas preciosas colaborações quanto à pesquisa e revisão deste trabalho.
Aos amigos que fiz durante o curso de mestrado, em especial a Ana Carolina,
Guilherme, Márcia, Ana Letícia e João Marcelo, pelas muitas horas de estudo,
preocupações e lazer compartilhadas.
Aos amigos Eliana, Virgínia e Frederico, pelo apoio.
A meus familiares, pelas orações e torcida.
Aos professores do Curso de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do
Paraná, em especial Celso Luiz Ludwig e Katie Silene Cárceres Argüello, por se
disporem a compartilhar seus conhecimentos.
Aos funcionários do Curso de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do
Paraná, que sempre estiveram dispostos a ajudar.
A todas as pessoas indicadas e àqueles eventualmente esquecidos, mas que estiveram,
de algum modo, presentes em minha caminhada, com sincera gratidão.
5
RESUMO
O presente trabalho tem por objeto a investigação das contribuições oferecidas pela
teoria da ação comunicativa, de Jürgen Habermas, à discussão dos direitos
fundamentais. Assentado sobre o paradigma da intersubjetividade, ele propõe uma
fundamentação procedimental da sociedade moderna, a qual divide entre sistema e
mundo da vida. Nessa perspectiva, o direito é concebido como o elo de ligação entre
tais esferas, ou seja, entre a facticidade do sistema e a validade do mundo da vida —
instituída pela obediência a certos requisitos discursivos. Por isso, sua vinculação à
questão democrática e importância para o estudo da proteção conferida à integridade
da vida humana. No segundo capítulo, procede-se à identificação dos paradigmas da
modernidade, até o advento da ão comunicativa, de modo a situar a proposta
habermasiana no contexto filosófico que lhe é peculiar e, assim, permitir o melhor
entendimento de seus elementos teóricos. A isso segue a exposição dos aspectos que
interessam à compreensão do Direito e do ideal democrático que lhe é inerente,
representado na concepção procedimental de direitos fundamentais. Destacam-se,
nessa linha, o processo de formação da autonomia pública e privada e os diferentes
contextos de comunicação, presentes em cada esfera de poder estatal. O terceiro
capítulo direciona sua abordagem aos direitos fundamentais, em sentido amplo.
Iniciando pelo delineamento dos direitos humanos e sua esfera de proteção, percorre
os caminhos de sua incorporação à ordem jurídico-positiva, constitucionalização e
aspectos normativos, para, então, apresentar a limitação axiológica da teoria
habermasiana. Todo o estudo conduz, no quarto capítulo, à apresentação da
democracia deliberativa, tal qual concebida por Habermas, e das críticas dirigidas às
suas digressões. O descompasso entre a situação ideal da comunidade de fala e a
situação real de sociedades complexas e desiguais não pode deixar de ser reconhecido.
Nesse sentido, sugere-se a pontuação dos problemas apontados a partir das lições de
Hannah Arendt. Principalmente, no que diz respeito às noções de vita activa e
responsabilidade para com o outro. As últimas considerações ficam, então, a cargo das
propostas de complementação da fundamentação meramente formal por critérios
materiais e morais, de assunção da responsabilidade para com os Outros.
Palavras-chaves: ação comunicativa; Jürgen Habermas; fundamentação; processo;
discurso; direito; autonomia; direitos humanos; direitos fundamentais; Constituição;
democracia deliberativa; consenso; diferença; responsabilidade.
6
ABSTRACT
This present work has as object the investigation of contributions offered by the theory
of the comunicative action, by Jürgen Habermas, to the fundamentals human rights
discussion. Settled on the paradigm of the intersubjectivity, it proposes a procedural
fundamentation of the modern society, which one divides between system and world of
the life. In this perspective, the human rights is concepted as the joining link among
such spheres, in other words, it goes among the factibility of the system and the
validity of the world of the life given by the following to the certain discursives
requirements. Therefore, its linking to the democratic matter and value to the
protection studies conferred to the integrity of the human being life. In the second
chapter, it proceeds to the identification of the modernity paradigms, until the
comunicative action advent, in order to point out the habermasian proposal in the
philosofic context that is peculiar to this, thus, to permit the best understanding by its
theorics elements. To this it follows the aspects presentation that interest to the
comprehention of the human rights and of the democratic ideal that is inherent to
itself, represented in the procedural conception of the fundamentals human rights. It
points out, in this line, the process of private and public authonomy formation and the
differents comunication contexts, present in each sphere of state power. The third
chapter directs its boarding to the fundamentals human rights, in vast signification.
Initiating for the delineation of the human rights and its protection sphere, it takes the
ways of its incorporating to the positive law directive, constitutionalise and normative
aspects, for, then, to present the axiological limits of the habermasian theory. All the
studies leads, in the fourth chapter, to the presentation of the deliberative democracy,
such which conceived by Habermas, and of the criticism directed to his digressions.
The difference between the ideal situation of the speaking comunity and the real
situation of complex societies and unequal cannot let to be recognized. In this sense, it
is suggested to point out the problems noted by the Hannah Arendt´s lessons. Mostly,
in what is stated about the notions of vita activa and responsability for with the other.
The last considerations stand, then, for the complementary proposals of the based
merely formal by the materials and moral judgments, of assumption of the
responsibility for with the Others.
Key-words: comunicative action; Jürgen Habermas; fundamentation; process; speech;
law; autonomy; human rights; basic rights; Constitution; deliberative democracy;
consensus; diference; responsability.
7
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO....................................................................................................... 9
2 FUNDAMENTAÇÃO E PROCEDIMENTO EM J. HABERMAS................. 14
2.1 Paradigmas filosóficos da modernidade..................................................... 14
2.2 Habermas, a sociedade e o agir comunicativo ........................................... 19
2.2.1 A validade discursiva .......................................................................... 24
2.2.2 Configuração procedimental do direito.............................................. 28
2.2.3 Autonomia em diferentes contextos de comunicação.......................... 32
2.3 Direitos fundamentais e ação comunicativa............................................... 36
2.3.1 A ação instituidora do legislativo........................................................ 39
2.3.2 A ação hermenêutica do judiciário ..................................................... 41
2.3.3 A ação teleológica do executivo.......................................................... 43
3 AÇÃO COMUNICATIVA E DIREITOS FUNDAMENTAIS......................... 45
3.1 Direitos humanos e seus contornos............................................................. 46
3.2 Incorporação à ordem jurídico-positiva..................................................... 52
3.3 O fenômeno da constitucionalização........................................................... 55
3.4 Dimensões de direitos fundamentais........................................................... 61
3.5 Aspectos jurídico-normativos...................................................................... 64
3.5.1 Coação ou respeito voluntário às normas?........................................... 66
3.5.2 Configuração de regras e princípios ..................................................... 69
3.5.3 A aplicação da norma de direito fundamental...................................... 73
3.6 Abordagem axiológica: limites da teoria habermasiana........................... 78
4 PARTICIPAÇÃO DOS SUJEITOS E SUA PROTEÇÃO ............................... 82
4.1 Democracia no contexto da ação comunicativa......................................... 84
8
4.2 O argumento moral da responsabilidade................................................... 92
4.3 À guisa de complementações ....................................................................... 98
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................. 108
6 REFERÊNCIAS.................................................................................................. 112
9
1 INTRODUÇÃO
A modernidade
1
tem revelado ao mundo as atrocidades da miséria e da
exclusão social, levando ao questionamento da possibilidade de estabelecer critérios
universais de fundamentação da moral e do direito. O quadro desenhado aponta para a
falência dos sistemas econômicos, a flagrante desigualdade social, o falseamento das
antigas noções de tempo e espaço — determinado pelo uso crescente e o
aperfeiçoamento das redes de comunicação —, a massificação cultural, a precariedade
do sistema educacional, o aumento dos índices de criminalidade, intermináveis
conflitos étnicos e religiosos, entre outros. A humanidade e suas instituições parecem
estar em crise, ensejando assim a busca de meios destinados a assegurar a geração, a
conservação e o desenvolvimento da vida humana em sua integridade.
Diante desse quadro, pairam no ar algumas perguntas: é possível
proteger todos os seres humanos, de maneira indistinta, contra as vicissitudes da
sociedade moderna
2
? Qual a importância do plano discursivo na determinação dos
tipos e níveis de proteção? Qual o papel das normas jurídicas nesta empreitada? Esses
questionamentos vêm chamando a atenção não apenas da teoria do direito como de
diversas outras áreas do conhecimento, cujos conteúdos mantêm com ela estreita
relação, tal qual a filosofia e a sociologia. Uma de suas mais instigantes abordagens
abre-se à pesquisa dos direitos fundamentais e seu papel na tarefa de proteger o ser
humano contra as circunstâncias que afrontam sua vida e dignidade.
Embora a civilização ocidental tenha se estruturado, a partir do século
XVIII, sob a égide do denominado Estado democrático de direito, a realidade, não
1
Cumpre esclarecer que o termo moderno e seus derivados serão utilizados aqui e no decorrer do texto como
sinônimo do tempo atual, iniciado após o movimento revolucionário francês do século XVIII, e não no sentido
que normalmente lhe é atribuído pela História. De acordo com Jürgen Habermas, “o conceito de modernização
refere-se a um conjunto de processos cumulativos e de reforço mútuo: à formação de capital e mobilização de
recursos; ao desenvolvimento das forças produtivas e ao aumento da produtividade do trabalho; ao
estabelecimento do poder político centralizado e à formação de identidades nacionais, à expansão dos direitos de
participação política, das formas urbanas de vida e da formação escolar formal; à secularização de valores e
normas etc.” (HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade. Traduzido por Luiz Sérgio Repa
e Rodnei Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2002c, p. 5). Hegel foi o primeiro filósofo a empregar o termo
modernidade, atribuindo-lhe um caráter predominantemente histórico.
2
A expressão sociedade moderna corresponderá às sociedades marcadas pelo processo civilizatório euro-
americano.
10
raras vezes, faz perceber a quebra dos procedimentos democráticos legitimadores do
sistema estatal, já que a esfera pública parece cada vez mais inacessível à maior parte
da população mundial. Isso ocorre por múltiplos fatores, desde o simples impedimento
de participação — determinado, por exemplo, pela pobreza ou violência — até a
participação desinteressada ou incapaz — decorrente da ignorância do participante.
As desigualdades às quais se fez menção dão ensejo à incorporação de
um núcleo de direitos, chamados fundamentais, à ordem constitucional, com o objetivo
específico de dar efetividade à proteção da dignidade humana. Isso exige, por óbvio, a
atuação integrada de todos os poderes do Estado e a permeabilidade de suas esferas de
decisão, por determinações emanadas do exercício da soberania popular.
A teoria habermasiana assume papel importante na investigação de
alguns dos aspectos levantados. Filósofo da segunda geração da Escola de Frankfurt
3
,
Jürgen Habermas teoriza em torno de uma fundamentação sociológica da
modernidade. Propõe uma fundamentação formal do Direito e da Moral, com
pretensão de universalidade e apoiada sobre o paradigma da comunicação, cuja base
transcende a consciência do sujeito para estabelecer-se intersubjetivamente. A
linguagem é por ele estudada sob o ponto de vista pragmático (relação entre sujeito e
objeto, sendo a linguagem encarada não mais como mera descrição e sim como
determinante da própria estrutura da realidade) e também de acordo com seu caráter
performativo.
Habermas tem absoluta consciência da complexidade social, sendo
possível extrair de suas digressões uma teoria da democracia focada na diferenciação
entre Estado e sociedade. “Tal teoria baseia-se na percepção de que a democracia está
ligada a um processo discursivo que tem suas origens nas redes públicas de
comunicação, com as quais os processos de institucionalização legal e utilização
3
O movimento filosófico denominado Escola de Frankfurt surge em 1923, como reação à razão instrumental de
origem iluminista (ciência; positivismo jurídico), propondo o resgate das investigações pertinentes à
fundamentação moral. Todavia, enquanto os primeiros filósofos daquele movimento (Adorno, Horkheimer)
buscavam a fundamentação da moral fora do campo da razão, Apel e Habermas apresentaram propostas que a
identificaram no próprio exercício da razão e promoveram a substituição do paradigma da consciência pelo
paradigma da comunicação. Vide a respeito: MATOS, Olgária C. F. A escola de Frankfurt: luzes e sombras do
iluminismo. São Paulo: Moderna, 1993. (Coleção Logos).
11
administrativa do poder estão indissoluvelmente ligados.”
4
Sua opção procedimental é justificada a partir da distinção entre o bom e
o justo, o ético e o moral. A compreensão daquilo que é bom (conteúdo da ética)
depende de relações concretas entre os sujeitos, estando assim à mercê das vicissitudes
de uma sociedade complexa; ao passo que o justo (forma da moral e do direito) é
definido pelo respeito a procedimentos essencialmente democráticos. Por isso,
somente uma proposta de caráter formal, estabelecida a partir da suposição da
existência de uma comunidade ideal de comunicação, poderia alçar à pretensão de
universalidade.
5
Em Direito e Democracia: entre facticidade e validade
6
, ao proceder à
explicação da estruturação e do funcionamento da sociedade, ele refere-se aos direitos
fundamentais a partir de uma perspectiva procedimental, equiparando-os assim a
princípios reguladores da ação dos poderes legislativo, judiciário e executivo no
Estado democrático de direito. Sua tese é a de que cada qual corresponde a um
contexto diferenciado de comunicação, em que se percebem diferentes momentos e
formas de participação dos sujeitos.
A partir da proposta habermasiana, então, procurar-se-á verificar em que
medida os direitos fundamentais estão aptos a cumprir o objetivo a que se propõem
idealmente, qual seja o de conferir proteção universal à vida e à dignidade humanas.
Isso porque, num mundo marcado pela diferença, conhecer o papel de cada indivíduo
da constituição, interpretação e aplicação dos direitos fundamentais, bem como as
regras que conduzem esses procedimentos e se há necessidade de identificação de um
4
AVRITZER, Leonardo. A moralidade da democracia: ensaios em teoria habermasiana e teoria democrática.
São Paulo: Perspectiva; Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1996, p. 15.
5
Segundo Habermas, “o fato de a distinção entre questões morais e éticas ‘fazer diferença’ no campo da justiça
política, e não estar simplesmente ‘correndo em ponto morto’ , fica claro quando se consideram as discussões
ocorridas hoje no âmbito do ‘multiculturalismo’, bem como os esforços de paz ante os conflitos étnicos na
Europa Oriental e Meridional — ou ainda o exemplo da Conferência de Direitos Humanos de Viena, em que
representantes asiáticos e africanos discutiram com representantes das sociedades ocidentais a interpretação dos
direitos fundamentais (ou ao menos tidos como fundamentais).” (HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro:
estudos de teoria política. Traduzido por George Sperber e Paulo Astor Soethe. São Paulo: Loyola, 2002, p.
306)
6
Esta constitui a obra central de análise deste trabalho, já que demarcou a concepção de direito dentro da
estrutura social binária já proposta pelo autor, segundo a qual a sociedade divide-se entre sistema e mundo da
vida, como se verá mais adiante. Além disso, a partir de Direito e Democracia, o direito passa a ser encarado
como co-originário em relação à moral, e não como simples consectário desta (HABERMAS, Jürgen. Direito e
democracia: entre facticidade e validade. Traduzido por por Flávio Beno Seibeneichler. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1997, 2 v.).
12
fundamento material capaz de conferir proteção independente da vontade da maioria,
constitui ponto certo de discussão.
A primeira medida adotada, neste estudo, será contextualizar a teoria da
ação comunicativa diante dos paradigmas filosóficos da modernidade e explicitar
algumas de suas linhas de argumentação. Nesse norte, com vistas ao esclarecimento da
questão democrática, assumem destaque a concepção dual da sociedade, o papel das
comunidades de fala na constituição da esfera pública, os requisitos de validade
discursiva, a concepção de direito, a descrição das esferas de autonomia pública e
privada e, finalmente, os diferentes contextos de comunicação presentes na estrutura
do Estado.
O delineamento da teoria da ação comunicativa permitirá, numa segunda
etapa, a análise de aspectos dos direitos fundamentais especificamente relacionados a
sua constituição e à efetividade da proteção que visam conferir à dignidade da pessoa
humana. Para isso, será importante dar conta das propostas de fundamentação que
giram em torno da criação de um núcleo de direitos considerados fundamentais, assim
como da força normativa que adquirem ao serem incorporados à Constituição e de sua
abertura de sentido.
Em vista do marco teórico escolhido para esta pesquisa, a análise
efetuada no segundo momento será orientada pela compreensão de que, em Habermas,
toda abordagem dos direito fundamentais está limitada à esfera procedimental. Em
suma, trata-se dos princípios democráticos relacionados à validação do processo de
formação do direito.
A contextualização dos primeiros capítulos dará suporte, num último
momento, ao estudo de questões relacionadas à participação de minorias nos processos
de criação do direito e à efetividade da proteção especificamente conferida pelos
direitos fundamentais. Terão espaço, nesta discussão, as críticas dirigidas à teoria
habermasiana e eventuais propostas de complementação.
Esta introdução não poderia deixar de lado a irregularidade com que
filósofos, sociólogos e juristas utilizam os termos direitos humanos (a) e fundamentais
(b). Para fins de clareza do texto, adotar-se-á a compreensão segundo a qual (a) os
direitos humanos dizem respeito a um estatuto universalmente válido e vinculado à
13
noção moral de geração, preservação e desenvolvimento da dignidade humana,
integrando o núcleo das teorias da justiça; porquanto (b) os direitos fundamentais
trazem consigo a idéia de positivação, isto é, de sua incorporação por processos
democráticos a sistemas jurídicos nacionais e internacionais
7
.
Em que pesem as opiniões divergentes, optou-se por incluir na ordem
dos direitos fundamentais os preceitos inerentes ao sistema internacional. Afinal, a
transposição de uma ordem normativa não escrita para a forma escrita requer a adoção
de processos formais de discussão, dos quais participam sujeitos determinados. Mesmo
sem estar resguardada por sanções equivalentes às existentes na ordem interna, é de se
considerar que tais processos instauram entre os Estados participantes e os organismos
internacionais um certo vínculo obrigacional, que os equipara à ordem jurídico-
positivas interna.
Mesmo adotadas como marco teórico as digressões de Jürgen Habermas,
especialmente no que dizem respeito à teoria da ação comunicativa, este trabalho não
tem o objetivo de analisar exaustivamente a obra do referido autor. Os elementos da
ação comunicativa serão apresentados, portanto, como ponto de partida para a
investigação dos processos democráticos inerentes à constituição de direitos humanos
e fundamentais, com ênfase nos princípios de liberdade e igualdade e seu papel no
respeito e na proteção dos interesses divergentes presentes em sociedades modernas, as
quais são inquestionavelmente marcadas pela complexidade de sua estrutura e
instituições.
7
Vide a respeito: BOROWSKI, Martin. La estructura de los derechos fundamentales. Traduzido por Carlos
Bernal Pulido. Bogotá: Editora da Universidad Externado de Colombia, 2003, p 30-33. (Serie de Teoría
Jurídica y Filosofía del Derecho n. 25)
14
2 FUNDAMENTAÇÃO E PROCEDIMENTO EM J. HABERMAS
No estudo dos elementos que informam a constituição e a aplicação de
direitos fundamentais, destaca-se investigação de questões relacionadas à consideração
das concepções de mundo e condições materiais de vida de cada sujeito, bem como à
necessidade do estabelecimento de consensos como condição sine qua non para a
existência perpetuada daquele conjunto normativo. Sob este aspecto é que se apresenta
a contribuição de Jürgen Habermas e sua teoria da ação comunicativa.
Amparado em matriz filosófica intersubjetiva, o referido autor procede à
análise do direito sob uma perspectiva eminentemente formal. Em outras palavras: a
partir de um modelo dual, que divide a sociedade em espaços institucionalizados e de
participação democrática, o direito é concebido como um elo de ligação estas duas
esferas e sua validade condicionada ao respeito de determinados requisitos discursivos.
A compreensão da teoria habermasiana exige, todavia, a explicitação
preliminar dos paradigmas da filosofia moderna, de modo a situar a proposta estudada
num contexto teórico-filosófico mais amplo, identificando seus pressupostos e linhas
de argumentação.
2.1 Paradigmas filosóficos da modernidade
A possibilidade do estabelecimento de um fundamento último constitui
tema recorrente da Filosofia, diante do exercício da razão. Existe alguma chance de
obter-se certeza quanto à justificação da origem de ações e pensamentos? Ou, ao
contrário, toda tentativa de fundamentação acaba por cair no vazio e no infinito das
respostas oferecidas pelo denominado Trilema de Münchhausen
8
? Essas preocupações
8
O trilema de Münchhausen correspondente à “crítica racionalista segundo a qual todo processo de
argumentação desemboca inevitavelmente num trilema: a via que conduz num regresso infinito (a), pois o
‘último’ fundamento requer seu próprio fundamento — é sempre penúltimo — pelo que irrealizável a pretensão
fundante; o procedimento do círculo lógico (b) é insatisfatório, pois o fundamento de uma proposição, mostra-se
por seu turno, carente de fundamentação; e, por fim, na atitude de ‘interrupção do processo’ (c) em dado
15
justificam-se pela necessidade de identificar, ao longo da história, os paradigmas
característicos das especulações filosóficas constitutivas da base do pensamento
jurídico da atualidade.
O primeiro deles, inerente à filosofia clássica e medieval¸ está atrelado a
uma concepção ontológica
9
do mundo. Firmando-se no denominado paradigma do
ser¸ esta vertente acredita que os objetos possuem significado em si mesmos, de modo
que tudo o que se possa dizer a seu respeito constitui mera revelação de uma realidade
preexistente. Neste sentido, o conhecimento não dispõe de qualquer força criadora; é
metafísico em sentido estrito
10
, estando condicionado pela essência daquilo que se
observa.
Na esfera do direito, tais prerrogativas vêm ao encontro das justificações
apresentadas para ordens naturais ou divinas, cuja legitimidade assenta-se em forças
estranhas à consciência humana, aceitas por imposição de uma moral transcendental.
Não há espaço para a criação de direitos, mas apenas para a revelação de um conteúdo
preexistente.
A modernidade é marcada pela mudança paradigmática que transfere o
centro das investigações filosóficas do ser para o sujeito. Nesta linha, já não se admite
que o conhecimento verdadeiro esteja impregnado numa realidade ontológica, ideal,
distanciada de fatores empíricos. Ao contrário, ele resulta da observação racional de
cada sujeito. Isto é fruto do processo de racionalização do mundo, da noção de que o
homem é um ser pensante e de que toda a realidade só pode ser esboçada a partir da
atividade humana cognitiva.
A subjetividade passa a constituir a marca dos tempos modernos a partir
momento, tido este como ‘dogma’ seguro de onde se parte na dedução de tudo mais, configura atitude dogmática
negadora do fundamento enquanto último.” (LUDWIG, Celso Luiz. Formas da razão: racionalidade jurídica e
fundamentação do Direito. Tese de doutorado. UFPR. Curitiba, 1997, p. 11)
9
“Platão é [...] o primeiro a insistir sobre o caráter a priori (em sentido mais geral, como visto, o termo significa
independência da experiência sensível), indispensável a todo conhecimento, principalmente se este se pretende
epistêmico, isto é, com objeto e metodologia delimitados, sistematizável e transmissível, em suma: apodítico.
[...] Para Platão, as idéias constituem a verdadeira realidade, válida não em si mesma mas sim enquanto participa
do ser essencial (ideal), imperceptível pelos órgãos dos sentido. [...] Pela expressão ontológico sugerida percebe-
se que as idéias platônicas são consideradas existentes por si mesmas, independentemente de qualquer
pensamento, de qualquer sujeito ou forma de conhecimento; ao contrário, é a existência prévia das idéias que
condiciona o ser e o conhecer no mundo empírico.” (ADEODATO, João Maurício. Filosofia do direito: uma
crítica à verdade na ética e na ciência. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 48-49)
10
Quanto à controvérsia existente sobre o uso do termo metafísica, cujo sentido estrito refere-se à idéia de
realidade objetiva revelada e o sentido amplo também à teoria da consciência, vide: HABERMAS, Jürgen.
Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990, p. 21-27.
16
da obra de Hegel, assumindo quatro conotações: o individualismo que guia as ações
humanas, as quais revelam sempre a intenção de satisfação de pretensões particulares;
o direito de crítica, que é representado pela necessidade de legitimação; a autonomia
da ação, à qual está atrelada a noção de responsabilidade; e a opção por uma filosofia
idealista, caracterizada pela idéia de autocompreensão
11
.
Nenhuma verdade existe a priori¸ sendo ela constituída pela infinita
capacidade de especulação e criação da qual dispõe o ser humano. Por este motivo, a
ciência passa a ocupar o lugar que antes pertencia à religião e às determinações de
origem natural, inquestionáveis sob o prisma da experimentação e da crítica.
O advento da perspectiva racional coloca em evidência o meio pelo qual
a realidade é apresentada, passando este a constituir um dos principais elementos de
investigação filosófica a partir do século XIX: a linguagem.
Uma vez negada a origem ontológica do conhecimento e admitido que a
realidade não é simplesmente revelada, mas conscientemente construída, torna-se
necessário analisar signos, significantes e significados através dos quais ela é
representada. Isto proporciona a superação das propostas de fundamentação subjetiva,
uma vez que toda especulação filosófica passa a estar assentada sobre a base estrutural
da linguagem. Substitui-se o ponto central do debate, com a saída de foco das relações
sujeito-objeto para a entrada daquelas estabelecidas entre a linguagem e o mundo ou
entre as proposições e o estado de coisas
12
.
Nessa linha, somente a compreensão dos elementos que compõem a
linguagem permitirá determinar qual seja o conhecimento verdadeiro, sendo duas as
etapas desta investigação: a primeira, predominante até meados do século XX,
caracteriza-se pela adoção da perspectiva analítica, de estudo semântico e sintático; já
a segunda preocupa-se com o uso ordinário que lhe é conferido.
Na perspectiva da denominada filosofia da linguagem analítica, signos,
significantes e significados são estudados isoladamente, sem qualquer conexão com o
uso que lhes é conferido ordinariamente. A análise é, assim, tomada no sentido de
decomposição de um complexo de proposições, com o intuito de evidenciar seus
11
HABERMAS, 2002c, p. 25-26.
12
HABERMAS, 1990, p. 15.
17
elementos constituintes e sua forma lógica, mitigando os problemas referentes à
relação entre o real e sua representação lingüística
13
.
A idéia é possibilitar a construção de uma espécie de metalinguagem, de
base lógico-matemática, capaz de conferir objetividade à descrição da realidade,
eliminando todo grau de subjetivismo ou imperfeições próprias da representação
decorrente do uso da linguagem ordinária.
A obra de Ludwig Wittgenstein assume papel importante na passagem da
perspectiva analítica para a filosofia da linguagem ordinária. Embora numa primeira
etapa — representada pela publicação de seu Tractatus Logico-Philosophicus (1921)
— suas lições estivessem limitadas ao estudo sintático e semântico, num segundo
momento Wittgenstein empenhou-se com a análise contextual da linguagem e o uso
ordinário que lhe é conferido.
Essa nova abordagem é por ele exposta em Philosophisce Intersichugen
(Investigações Filosóficas), publicada em 1953. De acordo com Katya Kozicki
14
,
Podemos notar duas mudanças significativas entre um e outro período. A primeira é
que, no Tractatus
, WITTGENSTEIN acreditava que a estrutura interna da realidade
determinava a estrutura da linguagem. Esta concepção foi depois abandonada,
passando ele a acreditar que ocorre justamente o contrário: é a linguagem que
determina a estrutura da realidade, uma vez que é através da linguagem que as coisas
são vistas. A segunda alteração se refere à teoria da linguagem. De início,
WITTGENSTEIN acreditava que as línguas partilham de uma estrutura lógica
uniforme, apresentam uma essência comum. Posteriormente, passou a acreditar que
isto não se verificava; a linguagem não possui uma estrutura comum e, se a possuir,
ela será tão ínfima que não permitirá explicar as relações entre as suas várias formas.
Estas duas alterações marcam a mudança de método entre uma fase e outra.
Na última etapa de sua obra, Wittgenstein
15
elimina a hegemonia dos
métodos de análise sintática e semântica da linguagem, focando sua atenção no uso
que lhe é conferido em contextos de comunicação, ou seja, na perspectiva pragmática.
A linguagem passa, portanto, a ser estudada não apenas como o meio através do qual a
consciência da realidade se expressa, mas também como um objeto que é, ele próprio,
construído pela comunidade de falantes.
13
MARCONDES, Danilo. Duas concepções de análise no desenvolvimento da filosofia analítica. In: Maria
Cecília M. de (org.). Paradigmas filosóficos da atualidade. Campinas: Papirus, 1989, p. 35.
14
KOZICKI, Katya. H. L. A. Hart: a hermenêutica como via de acesso para uma significação interdisciplinar
do direito. Florianópolis: UFSC, Dissertação de mestrado, 1993, p. 10.
15
KOZICKI, 1993, p. 7-26.
18
Esse novo modo de conceber a linguagem impossibilita a determinação
de um código lógico e universal de análise lingüística, na medida em que impõe a
consideração de circunstâncias empíricas como tempo, espaço e sujeitos, as quais são
absolutamente variáveis. Neste sentido, para que possa se adaptar aos contextos de
fala, é preciso que o significado das expressões seja sempre aberto — vago e ambíguo
—, revelando os processos de escolha contidos nos atos de fala. A isto corresponde a
noção de jogos de linguagem, os quais evidenciam a confluência entre a vontade
individual e os apelos exteriores, próprios da vida em comunidade.
A compreensão de que o uso da linguagem e sua própria estrutura são
determinados pelo contexto em que ocorrem impõe, por conseqüência, a superação das
concepções de mundo individualistas — próprias da primeira fase do pensamento
filosófico da modernidade — e o advento do paradigma filosófico intersubjetivo.
Não é a fala pura e simples de cada indivíduo que constitui a realidade,
mas a fala considerada em determinado contexto comunitário, fruto da interação entre
o sujeito e o outro com quem se fala. Privilegia-se o processo argumentativo em
detrimento da mera contemplação. Portanto, a filosofia deve preocupar-se com o
aspecto interativo da circunstância da vida em comunidade e não simplesmente com o
ato isolado de pensar. Afinal, o verdadeiro conhecimento já não reside no objeto ou no
sujeito, mas no consenso obtido validamente no seio de uma determinada comunidade.
Karl-Otto Apel pode ser apontado como um de seus precursores. “Assim
como Peirce, também Apel ressalta o fato de que o falante sempre pertence a uma
comunidade lingüística e, sendo sujeito de um sistema de regras lingüísticas, o que
deve valer, em última análise, não é o indivíduo e sim uma comunidade, ou seja, um
sujeito coletivo”
16
. Suas lições sugerem uma fundamentação transcendental-
pragmática do princípio do discurso, ou seja, com recurso às condições éticas do
mundo da vida
17
.
16
RÖD, Wolfgang. O problema da fundamentação última na filosofia contemporânea: o debate entre
racionalismo crítico e pragmática transcendental. In: Maria Cecília M. de Carvalho (org.). Paradigmas
filosóficos da atualidade. Campinas: Papirus, 1989, p. 130.
17
MOREIRA, Luiz (org.); APEL, Karl-Otto; OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Com Habermas, contra
Habermas: direito, discurso e democracia. Tradução dos textos de Karl-Otto Apel por Cláudio Molz. São
Paulo: Landy, 2004, p.. 38.
19
Em linha paralela, embora distinta, segue Habermas. Sua obra —
principalmente a partir da publicação de Direito e Democracia: entre facticidade e
validade (1992) — põe em destaque a idéia de que as relações de interação entre os
sujeitos sociais são constitutivas da realidade que os circunda, de forma complementar
à consciência individual. Isto impõe o abandono do solipsismo em prol da
compreensão de que as ações humanas são determinadas pelo resultado da interação
entre a vontade individual, cujas motivações não podem ser identificadas por critérios
científicos de observação, e fatores exteriores, presentes no espaço público de
comunicação.
Cumprindo o fim a que se propõe esta pesquisa, a teoria habermasiana
passará a ser apresentada como constitutiva de um quarto paradigma filosófico: o
paradigma da ação comunicativa.
2.2 Habermas, a sociedade e o agir comunicativo
Habermas
18
não se contenta com a perspectiva pragmática. Vai além
dela, descrevendo a sociedade sob o pano de fundo da razão comunicativa, a qual é
considerada fonte das normas do agir somente na medida em que exige que o sujeito
que age comunicativamente esteja amparado em pressupostos contrafactuais de
validade. Ao aspecto factual da ação humana somam-se assim elementos idealizados,
que permitem apreender a realidade contextualizada a partir de fatores comuns de
análise, conferindo-lhe ou não validade intersubjetiva.
Na tensão entre o ideal e o real
19
está a possibilidade de obtenção dos
consensos constitutivos da esfera de comunicação social. Afinal, a ação somente deixa
de ser guiada por interesses para estar voltada ao entendimento quando existe algo a
determinar a unificação das vontades particulares, que consiste, de acordo com a
18
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Traduzido por Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, v. 1, p. 20-21.
19
Sobre a diferença entre o real e o verdadeiro, Habermas esclarece que “real’ é o que pode ser representado em
proposições verdadeiras, ao passo que ‘verdadeiro’ pode ser explicado a partir da pretensão que é levantada por
um em relação ao outro no momento em que assevera uma proposição.” (HABERMAS, 1997, v. 1, p. 32)
20
proposta habermasiana, nos pressupostos formais de validade discursiva, já que é
difícil estabelecer os motivos subjetivos que levam os indivíduos a agirem desta ou
daquela maneira. Destacando o aspecto interativo da ação comunicativa, o próprio
autor afirma que
se pudermos pressupor por um momento o modelo da ação orientada ao entendimento,
[...] deixa de ser privilegiada aquela atitude objetivante em que o sujeito cognoscente
se dirige a si mesmo como a entidades no mundo. Ao contrário, no paradigma do
entendimento recíproco é fundamental a atitude performativa dos participantes da
interação que coordenam seus planos de ação ao se entenderem entre si sobre algo no
mundo. O ego ao realizar um ato de fala, e o álter ao tomar posição sobre este,
contraem uma relação interpessoal. Esta é estruturada pelo sistema de perspectivas
reciprocamente cruzadas de falantes, ouvintes e presentes não participantes no
momento. A isto corresponde, no plano da gramática, o sistema de pronomes pessoais.
Quem se instruiu nesse sistema aprendeu como se assumem, em atitude performativa,
as perspectivas da primeira, segunda e terceira pessoas, e como elas se transformam
entre si.
20
A compreensão de que, em algum momento, a ação estará voltada ao
entendimento faz com que Habermas descreva a sociedade em dois diferentes níveis:
sistema e mundo da vida. O primeiro corresponde ao espaço de predomínio da técnica,
regido por mecanismos diretores auto-regulados, onde não há o desenvolvimento de
ações marcadas pela interação entre os sujeitos. Nele estão compreendidas a economia
e as relações estatais de poder. Já o mundo da vida coincide com os espaços guiados
pela perspectiva da comunicação, cujos procedimentos são mediados lingüisticamente.
Ele “constitui um horizonte e, ao mesmo tempo, oferece um acervo de evidências
culturais do qual os participantes da comunicação tiram, em seus esforços de
interpretação, padrões exegéticos consentidos”
21
.
No mundo da vida aflora a intersubjetividade, sempre pautada na
tentativa de obtenção do consenso. José Marcelino de Rezende Pinto
22
esclarece que
seus componentes estruturais são a cultura, a sociedade e a pessoa. A primeira
corresponde ao arcabouço de conhecimento através do qual os atores sociais procuram
compreender as coisas mundanas; a segunda, às ordens legítimas das quais eles se
20
HABERMAS, 2002c, p. 414.
21
HABERMAS, 2002c, p. 416-417.
22
PINTO, José Marcelino de Rezende. Administração e liberdade: um estudo do conselho de escola à luz da
teoria da ação comunicativa de Jürgen Habermas. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1996, p. 15-76. Vide
também: HABERMAS, 2002c, p. 417-418.
21
valem para regular suas relações sociais; e a última, às competências que conferem ao
sujeito a capacidade de constituir sua própria personalidade, ao falar e agir na esfera
social.
A distinção proposta contempla duas espécies de racionalidade: (a) a
instrumental, caracterizada pela previsibilidade e calculabilidade de seus resultados,
relaciona-se ao funcionamento auto-regulado do sistema, sobre o qual não há
ingerência direta da vontade política dos sujeitos; e (b) a comunicativa, que se refere
ao universo dos atos de fala, da ação política propriamente dita, em relação à qual se
faz necessário observar os procedimentos democráticos, sendo esta a característica
predominante do mundo da vida e de sua relação com o sistema.
No campo da racionalidade comunicativa, a linguagem abandona
contornos meramente descritivos, para assumir sua capacidade performativa. O
indivíduo (inter)age no mundo da vida: isto significa dizer que sua fala é absorvida
pelos demais integrantes da sociedade tanto quanto sofre influência destes e das
circunstâncias concretas da vida, numa espécie de “via de mão-dupla”, cujo resultado é
a constituição de uma verdade democrática
23
.
A tensão entre facticidade e validade — isto é, entre sistemas de coação
externos e a força legitimadora das ações racionalmente motivadas — é o que tipifica
as sociedades modernas, na visão de Habermas. Ela passa a existir no momento em
que a razão confere autonomia às ações humanas, desvinculando-as das determinações
exteriores que lhe exigiam simples obediência.
A consciência da liberdade coloca o sujeito diante de diferentes
possibilidades de escolha, impondo-lhe a necessidade de motivar suas opções todas as
vezes que seu comportamento estiver voltado à tentativa de obtenção de acordos. Isto
traduz a idéia de legitimação, especificamente presente no ambiente discursivo
característico do mundo da vida. Sua presença é capaz de garantir a integração não
violenta da sociedade.
23
Aqui reside a idéia de reconhecimento — representado pela possibilidade de fazer-se reconhecer na diferença
perante o outro —, cuja existência é condição sine qua non para o alcance do consenso. Esta questão introduz a
discussão acerca da possibilidade do reconhecimento das diferenças e suas limitações diante da necessidade de
obtenção de consensos sociais.
22
É possível, ainda, afirmar que a oposição entre sistema e mundo da vida
gera diferentes possibilidades de integração
24
. A primeira seria a integração social,
caracterizando-se pelo consenso obtido normativa ou comunicativamente a partir do
mundo da vida. Em sentido contrário viria a integração sistêmica, como resultado da
determinação não-normativa de decisões individuais, imposta por mecanismos auto-
regulados como o mercado e a burocracia.
A prevalência dessa última forma de integração constitui o mal da
modernidade, que Habermas denomina colonização do mundo da vida, ensejando
assim a tentativa de resgate das condições de moralidade e conseqüente legitimidade
social. Proposta que “será formulada por Habermas através do conceito de agir
comunicativo, uma vez que, de através dele, todo entendimento, toda integração social
dar-se-á por meio de uma linguagem intersubjetivamente compartilhada que acopla
critérios públicos de racionalidade”
25
.
O desequilíbrio na tensão entre sistema e mundo, designado como um
processo colonizador, assume feições concretas no confronto entre as perspectivas
marxista e habermasiana. A construção teórica de Karl Marx funda-se na noção de
dialética materialista, a qual tem por pressuposto a análise das relações materiais da
vida, que caracterizam a sociedade civil
26
e seu movimento histórico. Tais relações são
aquelas firmadas com o intuito de satisfazer necessidades humanas involuntárias,
compondo a estrutura do sistema; ao passo que a sociedade civil é tomada como a
esfera em que os possuidores de mercadorias interagem ou onde se dão as relações
materiais da vida, formando a superestrutura. As consciências política e jurídica são,
portanto, sempre decorrentes de fatos econômicos, não interessando inicialmente à
construção de uma teoria calcada na idéia de determinismo econômico.
24
PINTO, 1996, p. 80.
25
MOREIRA, Luiz. Fundamentação do direito em habermas. 2. ed.. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002,
p. 117.
26
“A ‘sociedade civil’ corresponde ao nível onde se dá ‘o relacionamento dos possuidores de mercadorias’, ‘as
relações materiais da vida’ ou o ‘metabolismo social’. Ela constitui a antomia ou a base da estrutura social. Mas
a sociedade burguesa (o termo alemão é, também, como se viu, bürgerliche Gesellschaft) reúne, para Marx, não
somente o modo burguês de produção como também as relações jurídicas, o Estado burguês, etc., que implica.
Em sua realidade histórica, a bürgerliche Gesellschaft é a sociedade capitalista, com todas as formações sociais
que lhe são próprias.” (MARX, Karl. Para a crítica da economia política. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural,
1987, p. 27-32, p. 29, nota 15).
23
Habermas
27
critica a tese marxista, aduzindo que embora nas primeiras
etapas do capitalismo tenha se verificado a total ingerência do sistema econômico
sobre as demais esferas sociais, tal constatação não se aplica à fase avançada de seu
funcionamento, denominada capitalismo tardio
28
. Segundo ele, a evolução histórica
demonstrou a falsidade da suposição marxista, de que o capitalismo seria capaz de se
auto-regular eternamente, e, em função das crises verificadas em seu próprio seio, o
Estado viu-se obrigado a intervir na sociedade, provocando o desfazimento das
fronteiras próprias da lutas de classe. Com isso, algumas questões antes relacionadas à
economia, a exemplo da determinação dos salários, acabam flutuando para campos
como a política, a qual “passa a constituir, no interior do paradigma habermasiano da
comunicação, uma dimensão prático-moral capaz de estabelecer os fundamentos da
emancipação humana”
29
.
Uma das principais diferenças entre as concepções apontadas reside na
aceitação da formação da vontade coletiva. Como ressalta Leonardo Avritzer
30
, a
imposição econômica em que se ampara a teoria marxista impede a visualização da
constituição de uma vontade que supere a esfera individual. Isto ocorre, porque o
comportamento dos sujeitos estaria sempre e apenas guiado pela necessidade da
consecução de meios para a satisfação de suas necessidades pessoais, de forma que
qualquer manifestação coletiva significaria nada mais do que a soma de vontades
particulares eventualmente coincidentes.
As noções marxistas contrariam frontalmente a proposta habermasiana,
segundo a qual é possível que o indivíduo fundamente sua ação em outros requisitos,
que não os de caráter meramente econômico. Pautado na idéia de ação comunicativa,
Habermas admite que o homem seja capaz de justificar seu comportamento não só por
interesses particulares, mas também direcionado ao entendimento. Circunstância
correspondente à pretensão de atingir resultados justos e corretos a partir de discussões
27
HABERMAS, Jürgen. A crise de legitimação no capitalismo tardio. 2. ed. Traduzido por Vamireh
Chacon. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002a, p. 39-56.
28
A noção de capitalismo tardio opõe-se à posição liberal. Enquanto esta pressupõe um sistema econômico auto-
organizado e auto-regulado, aquela outra perspectiva assenta-se na existência de um Estado apto a intervir no
mercado para corrigir as distorções provenientes do livre desenvolvimento das relações entre capital e trabalho.
29
AVRITZER, Leonardo. A moralidade da democracia: ensaios em teoria habermasiana e teoria democrática.
São Paulo: Perspectiva; Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1996, p. 27.
30
AVRITZER, 1996, p. 28-33.
24
estabelecidas em ambientes democráticos, em que se faça possível o reconhecimento
da alteridade e, a partir daí, a obtenção de consensos moralmente válidos,
representativos de uma vontade coletiva.
2.2.1 A validade discursiva
A ação comunicativa impôs ao pensamento filosófico da modernidade
importante alteração de seu eixo de investigação, o qual deixa de estar apoiado sobre a
consciência individual para adotar uma perspectiva intersubjetiva.
No que diz respeito à linguagem, a Habermas interessa mais a
investigação das condições discursivas em que se encontram os sujeitos e o contexto
de sua fala, do que o estudo se sua estrutura. Por esse motivo, decompõe os atos de
fala nos seguintes elementos: (1) o proposicional denota a relação entre a realidade e o
conteúdo da fala, sua capacidade de expor estados de coisas; (2) o ilocucionário
representa a capacidade de instituir relações interpessoais; e (3) o lingüístico revela a
intenção dos falantes
31
. O segundo deles assume lugar de destaque na teoria da ação
comunicativa, pois revela o papel essencial da linguagem na constituição da
coletividade.
32
É por inserir-se no mundo da vida que a fala assume feição ilocucionária.
Isto ocorre, porque o ser humano não costuma direcionar naturalmente sua ação para o
entendimento e sim para a satisfação de interesses pessoais, de modo que somente a
circunstância de pertencer ao mundo da vida obriga-o a agir com vista à obtenção de
acordos.
31
HABERMAS, 2002c, p. 434. A identificação dos elementos que compõem a estrutura dos atos de fala, nesta
passagem do texto de Habermas, não coincide com a tipologia apresentada por Austin, segundo o qual os atos de
fala classificam-se entre: (a) atos locucionários, que correspondem a orações enunciativas, com as quais se diz
algo; (b) atos ilocucionários, que correspondem a ações de seu emissor, normalmente representadas pelo uso de
verbos realizativos como te prometo, te ordeno, etc.; e (c) atos perlocucionários¸ que possuem também aspectos
obrigacionais, tal qual ocorre nas decisões judiciais (ROCHA, Leonel Severo. Epistemologia jurídica e
democracia. São Leopoldo: Editora Unisinos, 1998, p. 24)
32
HABERMAS, 1997, v. 1, p. 36.
25
A explicação para isso reside no fato de que toda motivação racional para
o acordo assenta-se na possibilidade de “dizer não” à proposta que é apresentada
coletivamente; possibilidade que, em sociedades marcadas pela complexidade e pela
diferença, pode gerar profundo dissenso e a inviabilidade da integração por meio não
violento. Apenas num espaço em que toda pretensão de validade está atrelada à noção
de consenso e condicionada ao respeito de requisitos democráticos a coesão social não
violenta estaria garantida. O que se dá no mundo da vida.
33
Aproximando-se da idéia weberiana de tipo ideal
34
, Habermas analisa as
condições de validade discursiva a partir da descrição de uma comunidade ideal de
fala. Trata-se de um ambiente ilusório, onde se pressupõe estarem presentes todos os
elementos essenciais à formação de consensos válidos, e seu fundamento último é a
plena realização do ideal democrático.
Tanto a moral quanto o direito são tomados como sistemas normativos
advindos de atos de comunicação operados no mundo da vida, acerca dos quais é
preciso estabelecer bases de validação que permitam atribuir-lhes caráter universal.
“Estão inscritos em todo discurso pressupostos transcendentais. Estes resultam do fato
de que as expectativas pressupostas na ação lingüística orientada para o entendimento
são exigidas em toda situação ideal de fala”
35
.
Os pressupostos do discurso consistem na inteligibilidade, veracidade,
verdade e respeito à participação de todos os sujeitos que integram a comunidade de
fala, os quais traduzem o ideal democrático e foram sintetizados no princípio
universalizante (“U”):
Que uma norma só é válida quando as conseqüências presumíveis e os efeitos
secundários para os interesses específicos e para as orientações valorativas de cada
33
HABERMAS, 1997, v. 1, p. 40-41.
34
Trata-se de modelos científicos de comparação frente à realidade, constituídos pela otimização das
características essenciais e ideais do objeto observado. Quanto a sua utilização, é evidente a improbabilidade de
que a realidade venha a se equiparar a um tipo ideal puro, mas não há como negar a contribuição desta proposta
para o alcance de um método (até certo ponto) universal de investigação da realidade social. Juan Carlos Agulla
destaca que “los tipos ideales son conceptos construidos racionalmente a partir de la experiencia, que contienen
los caracteres más generales y típicos de la acción. Es decir, son elementos obtenidos dela realidad empírica pero
en su conjunto son extraños a ella. Son como una caricatura: muestran los rasgos más importantes,
exagerándolos.” (AGULLA, Juan Carlos. Teoría sociológica. Buenos Aires: Depalma, 1987, p. 207-208)
35
LUDWIG, Celso Luiz. Razão comunicativa e direito em Habermas. Curitiba: UFPR, 1997. Retomada da
exposição feita por ocasião do Seminário “A Escola de Frankfurt e o Direito”, realizado em julho/97 (trabalho
não publicado).
26
um, decorrentes do cumprimento geral dessa mesma norma, podem ser aceitos sem
coação por todos os atingidos em conjunto.
36
De acordo com o princípio da inteligibilidade, o discurso deve ser
compreendido pela totalidade dos membros da sociedade em que está sendo
implementado. Trata-se, portanto, de análise lingüística, inafastável diante da
necessidade do consenso, pois este só surgirá validamente quando cada indivíduo
participante daquele processo puder se fazer compreender pelos demais, bem como
internalizar o conteúdo das manifestações do outro e aquelas resultantes da vontade da
maioria. Conteúdo ao qual sabe estar submetido desde o momento em que aceitou
viver socialmente.
A veracidade traduz-se na sinceridade que deve estar presente durante a
formação do discurso. De nada adiantaria a compreensão de seu conteúdo se as
intenções manifestadas na discussão que o precedeu forem mentirosas. Primeiro,
porque ninguém age contra sua própria vontade ou contra a vontade da maioria, o que
fatalmente ocorreria se fosse conferida validade a uma fala obtida a partir de
elementos destituídos de sinceridade. Depois, porque a mentira macula a própria idéia
de consenso, na medida em que vicia as manifestações de vontade.
Quanto a este segundo princípio, deve-se considerar que cada indivíduo
tem seus motivos para aceitar ou negar o discurso defendido pelos demais e, ainda, que
tomará esta atitude baseado em argumentos apresentados no ambiente de discussão.
Isso justifica a insistência habermasiana com relação à sinceridade das manifestações
proferidas na esfera pública, pois os resultados de um consenso podem ser
prejudicados diante de um discurso não sincero.
Na teoria do discurso, a verdade é interpretada em sentido formal, como
um resultado a ser obtido consensualmente. Todavia, é necessária uma conformação
mínima com o mundo fático-objetivo, para que a comunidade não caia em contradição
lógico-performativa. Nesse ponto, Habermas destaca a imbricação existente entre o
objeto e o sujeito que o descreve, chamando a atenção para o caráter instituidor e
transformador da linguagem. Em suas palavras:
36
HABERMAS, 2002c, p. 56.
27
[...] na compreensão de enunciados elementares relativos a estados ou acontecimentos
no mundo, a linguagem e a realidade se interpenetram de uma forma que, para nós, é
indissolúvel. Não existe nenhuma [sic] possibilidade natural de isolar as limitações
impostas pela realidade que fazem verdadeiro um enunciado, das regras semânticas
que estabelecem as condições de verdade dele mesmo. Só podemos explicar o que é
um fato com ajuda da verdade de um enunciado sobre fatos; e o que é real só podemos
explicá-lo em termos do que é verdadeiro. Ser é, como disse Tugendhat, ser
verdadeiro. [...] Dado que não podemos confrontar nossas orações com nada que não
é, ele mesmo, impregnado lingüisticamente, não podem distinguir-se enunciados
básicos que tiveram o privilégio de legitimar-se por si mesmos e puderam servir como
base de uma cadeia linear de fundamentação.
37
Por fim, a validade do discurso repousa sobre o princípio democrático,
que será alcançado quando observados os critérios de ampla e irrestrita participação
dos indivíduos nas esferas públicas de discussão. Para tanto, não basta que os sujeitos
estejam presentes no momento do debate ou que seja garantida sua não exclusão
arbitrária do grupo, fazendo-se necessária a proteção ao direito de livre manifestação
de sua vontade. Essa perspectiva fundamenta a concepção de democracia deliberativa,
cujas dimensões centrais correspondem à pretensão de conciliação entre a soberania
popular e o Estado de direito, tanto quanto ao enfoque no momento dialógico de
justificação das decisões políticas
38
.
Habermas sugere a procedimentalização da democracia em nível
societário, constituindo-a como o substrato normativo da política na medida em que a
obediência a seus processos, tal qual anteriormente explicitados, confere à comunidade
a capacidade de autolegislação
39
. Nessa esteira, pressupondo que a ação comunicativa
traz, em si, competências morais de determinação da vontade coletiva, é de se concluir
que a democracia será tanto mais aprofundada quanto mais enfronhada no contexto do
mundo da vida.
37
Tradução livre da versão espanhola: “Incluso en la comprensión de enunciados elementales relativos a estados
o sucesos en el mundo, el lenguaje y la realidad se interpenetran de una forma que, para nosotros, es indisoluble.
No existe ninguna posibilidad natural de aislar las limitaciones impuestas por la realidad que hacen verdadero un
enunciado, de las reglas semánticas que establecen las condiciones de verdad del mismo. Sólo podemos explicar
lo que es un hecho con ayuda de la verdad de un enunciado sobre hechos; e lo que es real sólo podemos
explicarlo en términos de lo que es verdadero. Ser es, como dice Tugendhat, ser veritativo. [...] Dado que non
podemos confrontar nuestras oraciones con nada que no esté, ello mismo, impregnado lingüisticamente, non
pueden distinguirse enunciados básicos que tuvieran el privilegio de legitimarse por sí mismos y pudieran servir
como base de una cadena lineal de fundamentación” (HABERMAS, Jürgen. Verdad y justificación: ensayos
filosóficos. Traduzido por Pere Fabra e Luis Díez. Madrid: Trotta, 2002, p. 237).
38
SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Teoria constitucional e democracia deliberativa: Um estudo sobre o
papel o direito na garantia das condições para a cooperação na deliberação democrática. Tese de doutorado.
UERJ. Rio de Janeiro: 2004, p. 48.
39
AVRITZER, 1996, p. 46-47.
28
A violação de qualquer dos requisitos mencionados macula a validade
discursiva, seja pela constatação de sua inverdade, ilegitimidade ou ausência de
veracidade de seu conteúdo.
O ouvinte pode negar in toto a manifestação de um falante, ao contestar quer a
verdade do enunciado nela firmado (ou das pressuposições de existência do conteúdo
de seu enunciado), quer a justeza do ato de fala em relação ao contexto normativo da
manifestação (ou a legitimidade do próprio contexto pressuposto), quer a veracidade
da intenção manifesta do falante (isto é, a adequação entre o que deseja dizer e o que
diz)
40
.
Compreendida a fundamentação discursiva da proposta habermasiana, é
possível concluir que “na razão prática corporalizada em procedimentos e processos
41
está inscrita a referência a uma justiça (entendida tanto em sentido moral quanto
jurídico) que aponta para além do ethos concreto de determinada comunidade ou da
interpretação de mundo articulada em determinada tradição ou forma de vida”
42
. Com
isso, evidencia-se a tensão entre facticidade e validade, que determinará o conteúdo
direito e de seu papel na realização da justiça.
2.2.2 Configuração procedimental do direito
Toda análise de fundamentação, estrutura e funcionamento do direito
deve levar em conta que, na concepção habermasiana, ele constitui o elemento de
ligação entre o sistema e o mundo da vida.
Procurando acrescer à compreensão pragmática da sociedade uma
dimensão de validade, Habermas impõe a observação de procedimentos normativos
cuja linguagem é própria do direito. Não se trata de superar ou simplesmente
abandonar a factibilidade inerente ao sistema, mas de somá-la aos aspectos discursivos
40
HABERMAS, 2002c, p. 435.
41
Parece possível associar a noção de “razão prática corporalizada em procedimentos e processos” à de “razão
comunicativa”, na qual se baseia a teoria habermasiana. “A razão comunicativa, ao contrário da figura clássica
da razão prática, não é uma fonte de normas do agir. Ela possui um conteúdo normativo, porém somente na
medida em que o que age comunicativamente é obrigado a apoiar-se em pressupostos pragmáticos de tipo
contrafactual” (HABERMAS, 1997, v. 1, p. 20).
42
HABERMAS, 2002b.
29
próprios do mundo da vida. Por esse motivo, seu estudo acerca do direito restringe-se à
esfera jurídico-positiva. Somente nela é possível apreender concretamente a
possibilidade de integração entre as instituições e a organização próprias do sistema e
as determinações decorrentes da participação subjetiva em esferas públicas de
discussão. A normatividade transita entre estes dois ambientes, de modo a tornar
possível a legitimação pelo procedimento.
O ideal de justiça, que acompanha o direito desde seu surgimento, é
encarado pela teoria habermasiana sob a perspectiva exclusivamente procedimental.
Ele não se confunde com qualquer escolha referente aos valores guias da vida humana,
mas tão-somente com o respeito ao princípio democrático, que assegura a todo ser
humano a possibilidade de ingressar, participar e se retirar da esfera pública.
Disso resulta a conclusão de que direito e moral são coisas distintas, pois
esta se restringe ao âmbito subjetivo enquanto o primeiro diz respeito a determinações
de caráter intersubjetivo — isto é, obtidas por meio ações e negociações reguladas pelo
procedimento. Não que o direito deixe de contemplar ações subjetivas, mas o aspecto
não-cognoscitivo dos motivos que ditam tais escolhas impede a sistematização
necessária do conhecimento acerca da integração entre sistema e mundo da vida. Neste
horizonte, é preciso apenas não perder de vista a noção da co-originalidade entre
direito e moral, representada pela compreensão de que ambos surgem da livre
manifestação da vontade humana, que somente atinge diferenciação diante da
pretensão de validade da qual se imbuem as ações praticadas naquela primeira esfera.
Ao falar da transcendência da realidade pelo procedimento, Habermas
identifica no direito o meio apto a promover a integração legítima entre a facticidade e
a validade. Neste sentido, “o medium do direito apresenta-se como um candidato para
tal explicação, especialmente na figura moderna do direito positivo. As normas desse
direito possibilitam comunidades extremamente artificiais, mais precisamente,
associações de membros livres e iguais, cuja coesão resulta simultaneamente da
ameaça de sanções externas e da suposição de um acordo racionalmente motivado”
43
.
No direito encontram-se as determinações irracionais próprias do sistema
e a exigência de internalização normativa a partir do consenso validamente obtido. A
43
HABERMAS, 1997, v. 1, p. 25.
30
aceitação deste argumento implica o abandono de concepções que insistem em sua
subordinação a motivações exclusivamente econômicas ou burocráticas, uma vez que
sua origem também passa a estar vinculada à solidariedade própria dos ambientes de
comunicação.
Na dimensão de validade do direito, a facticidade interliga-se, mais uma vez, com a
validade, porém não chega a formar um amálgama indissolúvel — como nas certezas
do mundo da vida ou na autoridade dominadora de instituições fortes, subtraídas a
qualquer discussão. No modo de validade do direito, a facticidade da imposição do
direito pelo Estado interliga-se com a força de um processo de normatização do
direito, que tem a pretensão de ser racional, por garantir a liberdade e fundar a
legitimidade. A tensão entre esses momentos, que permanecem distintos, é
intensificada e, ao mesmo tempo, operacionalizada, em proveito do comportamento.
44
O direito promove a ligação entre o sistema e o mundo da vida, pois sua
validade e eficácia dependem da presença de duas circunstâncias essenciais: a sanção e
a legitimação.
A primeira é imposta pelo Estado e suas relações de poder, estando
vinculada à noção de sistema. Garante o respeito ao direito pela coação (força física).
Mas é certo que a sanção não satisfaz em todas as medidas sua explicação, exigindo,
portanto, a investigação das razões pelas quais, em determinados casos, os indivíduos
se submetem voluntariamente ao direito.
Daí porque falar na necessidade de legitimação, ou seja, na discussão
pública e na constituição de consensos representativos da aceitação da ordem jurídica
vigente. Este é o ambiente próprio do mundo da vida, onde prevalecem as relações
dialógicas e as ações conscientes dos sujeitos, sejam elas voltadas ao entendimento ou
meramente guiadas pelo interesse.
De acordo com Luiz Moreira
45
:
A característica básica do Direito moderno, na opinião de Habermas, é a exigência, a
um só tempo, de positivação e de fundamentação, o que, para ele, vai possibilitar o
aumento das vias de fundamentação, como também de um apelo não apenas à esfera
jurídica quando da pergunta pela fundamentação, mas à pergunta pela instância moral
que dá sustentação e validade ao ordenamento jurídico. E para ele fica muito claro o
porquê da desconexão entre sistema e mundo da vida. Ao ser entendido simplesmente
como um medium regulativo, logo, como um instrumento que, através da ameaça de
44
HABERMAS, 1997, v. 1, p. 48.
45
MOREIRA, Luiz. Fundamentação do direito em Habermas. 2. ed.. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002,
p. 61.
31
sanção, garante a convivência entre as pessoas, não se levanta a pergunta pela
fundamentação, mas apenas pela gênese de sua formação em termos processuais.
Assim sendo, a desconexão entre sistema e mundo da vida harmoniza-se com a
estrutura do Direito.
A facticidade e a validade relacionam-se dinamicamente no interior do
direito. Diante da exigência de legitimação, que questiona sua imposição arbitrária e
vincula a efetividade do ordenamento à internalização subjetiva das normas vigentes,
tais elementos ocupam pólos opostos na discussão.
A sanção — característica da facticidade — não é suficiente para a
justificação da validade do sistema, sendo necessária a adoção de procedimentos
democráticos capazes de convencer os sujeitos a se submeterem à determinada ordem
normativa, garantindo assim uma integração social não violenta. Por outro lado, deve-
se considerar que a facticidade, representada pela existência de meios de coação
próprios do direito, em certa medida, induz à participação em espaços públicos de
discussão para fins de estabelecimento de consensos que permitam uma convivência
social pacífica.
Quando age, o sujeito pode mover-se por interesses particulares ou com
vista ao entendimento, circunstância em que influenciará e se deixará influir pelas
manifestações de outros sujeitos. Acontece que, somente o contexto do mundo da vida,
cujo pano de fundo estampa a idéia de consenso, é capaz de levar o ser humano a
renunciar a seus interesses em prol da coletividade. E isto pode ser observado na forma
pela qual a norma jurídica é interpretada.
Um indivíduo que deseje pautar seu comportamento em interesses
particulares procederá a uma interpretação objetiva, encarando a norma como um
limite fático de sua ação. Neste primeiro modo, a liberdade parece ser contemplada
acima de qualquer outro valor. Outra seria a forma de interpretação caso seu
comportamento estivesse direcionado ao entendimento; nesta hipótese, a norma
assume caráter performativo, não apenas limitando, mas também determinando o
modo de agir dos sujeitos.
46
Na concepção habermasiana, a noção de liberdade é encarada como a
possibilidade de igual participação dos sujeitos nas esferas de discussão em que o
46
HABERMAS, 1997, v. 1, p. 51-52.
32
conteúdo da norma será determinado. Trata-se de pressuposto formal de constituição
da ordem jurídica, cujo respeito determinará a extensão da noção de reconhecimento e
a possibilidade de emancipação social.
Quanto maior a garantia de participação em espaços de discussão,
maiores serão as possibilidades de fazer com que os sujeitos reconheçam
reciprocamente as particularidades de cada um e construam, a partir daí, uma realidade
representativa de interesses coletivos, já desvinculados da vontade subjetiva dos seres
que integram a comunidade. “Nesta medida, o direito moderno nutre-se de uma
solidariedade concentrada no papel do cidadão que surge, em última instância, do agir
comunicativo.”
47
Parece possível considerar, a partir da teoria da ação comunicativa e da
observação de que vivemos numa sociedade complexa e dinâmica, que o direito torna
evidente a mútua influência entre o sistema e o mundo da vida, a técnica e a ação, de
modo que (a) a sanção só poderá ser efetivamente imposta se amparada em processos
de legitimação e (b) a manutenção de uma ordem jurídica legítima (confluência de
interesses e ações individuais), numa sociedade marcada pela complexidade, verificar-
se-á também pelo fato dos indivíduos estarem premidos pela coação estatal. A
variação dos níveis de influência entre os dois componentes sociais — sistema e
mundo da vida — dependerá da espécie de direito em questão e da exigência de ações
negativas ou positivas por parte do Estado.
2.2.3 Autonomia em diferentes contextos de comunicação
A complexidade social exige o estabelecimento das fronteiras de
contemplação de interesses particulares e coletivos, sempre marcado pela necessidade
de integração entre a liberdade de ação atribuída a cada indivíduo e a igualdade
correspondente à realização da justiça.
47
HABERMAS, 1997, v. 1, p. 54.
33
Não se trata de tarefa fácil e tampouco já cumprida pela doutrina; ao
contrário, as dificuldades inerentes ao tema se revelam na própria fragilidade do
balanceamento entre direitos subjetivos e públicos ou mesmo na relação controvertida
entre direitos humanos — abordados em sua origem histórica, a partir da perspectiva
liberal — e soberania popular.
Na visão habermasiana, algumas concepções tendem, equivocadamente,
a direcionar o direito à satisfação prevalecente de uma única categoria de interesses;
isto é, ou se posicionam a partir dos chamados direitos subjetivos e humanos,
defendendo a idéia particularista de uma autodeterminação moral, ou a partir dos
direitos públicos e da soberania popular, destacando a necessidade da subordinação de
interesses privados ao coletivo. Contudo, sua teoria pretende superar a dicotomia
apresentada, promovendo, a partir da ação comunicativa, a integração entre as esferas
de ação privada e pública.
Habermas esclarece que a ação comunicativa revela a existência de
esferas de autonomia privada e pública, representadas a partir das noções de direitos
fundamentais e soberania popular, respectivamente. Os primeiros apresentam-se como
um núcleo de direitos subjetivos — também denominados liberdades públicas —, que
garante a cada sujeito o livre exercício de sua ação, protegendo-o contra os desmandos
de seus semelhantes e do próprio Estado. Em sentido contrário deve ser compreendida
a soberania do povo, cujas resoluções resultam de ações subjetivas coordenadas,
sempre voltadas para o entendimento.
Enquanto a autonomia privada parece percorrer os caminhos da moral,
que é inerente à compreensão individual do mundo, a autonomia pública assenta suas
bases sobre princípios ético-discursivos, próprios de procedimentos democráticos.
À luz da teoria do discurso, o princípio moral ultrapassa os limites históricos casuais,
diferenciados socialmente, traçados entre domínios vitais públicos e privados; nela se
leva a sério o sentido universalista da validade das regras morais, pois se exige que a
aceitação ideal de papéis — que, de acordo com Kant, todo indivíduo singular realiza
privatim — seja transportada para uma prática pública, realizada em comum por
todos.
48
48
HABERMAS, 1997, v. 1, p. 144-146.
34
Existem três diferentes níveis de ação a serem compreendidos nesta
seara: o moral, o ético e o político. O primeiro corresponde às ações que, embora
revelem um comportamento conscientemente voltado à realização do bem comum,
originam-se de visões subjetivas e universalizantes do mundo. Para a delimitação de
seu conteúdo pode-se recorrer ao imperativo categórico kantiano, segundo o qual um
comportamento será considerado moralmente correto na medida em que o sujeito que
age o faz considerando ser isto o esperado pelos demais membros da sociedade.
Apesar de buscar o que é bom para todos, a definição do que seja
moralmente correto está invariavelmente atrelada a escolhas individuais. Sua diferença
em relação à ética reside no fato de que esta não traduz o que seja bom para todos, mas
o que seja bom para nós. Este nível de ação corresponde à soma de ações individuais
para fins de satisfação de interesses também individuais.
Somente no nível político — ou ético-político — seria possível falar na
existência de uma vontade coletiva autônoma, formada a partir da interação decorrente
dos diversos contextos de comunicação. Trata-se aqui de uma perspectiva não mais
subjetiva, mas que, pela obediência a requisitos democráticos de participação
discursiva, permite a visualização de uma esfera comportamental autônoma,
estabelecida intersubjetivamente e que, a partir de sua criação, deixa de estar sujeita à
interferência de escolhas individuais.
A assunção da perspectiva intersubjetiva faz com que a legitimidade
normativa passe a estar vinculada ao cumprimento do princípio democrático, pelo qual
se justificam racionalmente as escolhas procedidas sobre questões práticas, em
contraposição ao princípio moral, que serve à justificação de questões morais.
Enquanto o princípio moral opera no nível da constituição interna de um determinado
jogo de argumentação, o princípio da democracia refere-se ao nível da
institucionalização externa e eficaz da participação simétrica numa formação
discursiva da opinião e da vontade, a qual se realiza em formas de comunicação
garantidas pelo direito.
49
Aqui reside a exata distinção entre moral e direito e, conseqüentemente,
entre as decisões que devem ser atribuídas à autonomia privada e à autonomia pública.
49
HABERMAS, 1997, v. 1, p. 146.
35
Enquanto as questões morais sobrecarregam o indivíduo, em virtude de sua
indeterminação cognitiva, excessiva vinculação à vontade do sujeito e dificuldade de
imposição em caráter universal; o direito caracteriza-se pela sistematização de suas
motivações — fruto do trabalho parlamentar, jurisprudencial e doutrinário — e pela
organização que permite a imposição de suas determinações ainda que contra a
vontade individual.
50
A distinção apresentada não significa, todavia, que a autonomia privada
esteja à margem do direito. Ela estará contemplada sempre que se permitir ao sujeito
agir guiado pelo interesse no sucesso e não pelo interesse no consenso. É fácil
visualizá-la em enunciados que asseguram o status libertatis, anunciados como
direitos negativos.
De acordo com suas determinações, todo sujeito poderá agir livremente,
se necessário, invocando a proteção do Estado — até mesmo contra o próprio Estado
— sempre que sentir invadida sua esfera privada de ação. Sua ação não possui
conteúdo pré-definido ou consentâneo com uma determinação coletiva da vontade,
mas apenas uma fronteira: a lei. Trata-se de situação oposta àquela gerada pelo direito
característico da autonomia pública. Neste caso, a ação não apenas encontra limite na
lei, mas tem seu próprio conteúdo determinado por ela.
A decisão de passar de um plano de ação privada para universos públicos
de comunicação é marcada pela disposição individual de “ligar a coordenação de seus
planos de ação a um consentimento apoiado nas tomadas de posição recíprocas em
relação a pretensões de validade e no reconhecimento dessas pretensões, somente
contam os argumentos que podem ser aceitos em comum pelos partidos
participantes”
51
. Com isso, Habermas destaca a força perlocucionária
52
dos discursos
inerentes à esfera pública e da dimensão da autonomia, seja ela pública ou privada.
O sujeito pode escolher não participar de ambientes de discussão,
colocando-se na posição de mero observador. Contudo, caso deseje participar, deve ter
sua liberdade garantida na mesma medida dos demais, de maneira que possa integrar
50
HABERMAS, 1997, v. 1, p. 150-154.
51
HABERMAS, 1997, v. 1, p. 156.
52
Habermas utiliza a expressão obrigações ilocucionárias, aqui substituída pelo termo perlucionárias, para
indicar as conseqüências da escolha subjetiva referente à participação em ambientes públicos de discussão.
(HABERMAS, 1997, v. 1, p. 156)
36
os espaços discursivos e expressar sua vontade de forma livre e sincera. Nesse norte, é
de se concluir qua a pretensão de validade dos atos de fala está submetida à garantia de
participação subjetiva na esfera pública, traduzida em princípios democráticos.
A opção pela participação — que é decorrente da autonomia privada
53
cria para o sujeito a obrigação de obedecer às decisões provenientes da esfera pública,
pois todo aquele que age publicamente o faz com pretensão de validade e esta somente
pode ser concebida a partir da estabilidade e do respeito a seus procedimentos. No
momento em que o consenso é validamente obtido, seu conteúdo deixa de estar ao
alcance de escolhas individuais, assumindo feições obrigacionais que amarram a
autonomia privada às determinações de uma esfera pública, também autônoma.
2.3 Direitos fundamentais e ação comunicativa
Habermas atribuiu ao direito uma nova condição de legitimação,
caracterizada pelo respeito às condições de participação subjetiva em ambientes de
discussão. Sob esse aspecto, o uso da linguagem e as regras do discurso tornam-se
elementos essenciais no estudo do direito. São estes os fatores que determinarão a
capacidade e o grau de proteção conferido por determinado estatuto histórico,
independente das diferenças verificadas quanto às condições concretas de vida de cada
ser humano.
A partir da compreensão de que direitos fundamentais são normas
incorporadas à Constituição e de que sua configuração resulta de comunicações
condicionadas pelo processo democrático, é possível apontar a existência de condições
de legitimidade diferentes da mera verificação de sua legalidade. Assim, ao invés de
observar apenas elementos de ordem técnica, sua verificação passa a exigir a
consideração de elementos discursivos, ou seja, de uma dimensão política que permeia
a criação, a interpretação e a aplicação do direito.
53
Segundo Habermas, “a autonomia privada de um sujeito do direito pode ser entendida essencialmente como a
liberdade negativa de retirar-se do espaço público das obrigações ilocucionárias recíprocas para uma posição de
observação e de influenciação recíproca.” (HABERMAS, 1997, v. 1, p. 156)
37
A questão da legitimação constitui uma das preocupações centrais das
anotações fragmentárias de Max Weber, a partir das quais Habermas analisará o
processo de racionalização do direito e seu funcionamento diante dos diferentes
contextos discursivos da sociedade e do Estado. A originalidade do método weberiano
está justamente na consciência de que os fatos analisados não possuem uma
significação própria e antecedente, mas apenas aquela que lhe é atribuída pelo cientista
e pelo contexto da realidade em que ambos — objeto e observador — encontram-se
imersos
54
.
Weber sustenta que a sociedade atual é marcada pelo processo de
desencantamento do mundo. Fenômeno caracterizado pela perda do sentido ontológico
da ação social, decorrente do uso crescente da racionalidade lógico-instrumental. “Em
cada uma dessas esferas institucionais, a racionalização produziu a despersonalização
das relações sociais, o refinamento da técnica de cálculo, o aumento da importância
social do conhecimento especializado e a extensão do controle tecnicamente racional,
tanto de processos naturais quanto de processos sociais”
55
. Não há um sentido único de
progresso em sua implementação. Ao contrário, existem diferentes perspectivas sob as
quais os processos de racionalização podem ser analisados, o que determina que ele
seja, em alguns casos e de acordo com a espécie com a qual se está lidando,
considerado um retrocesso social.
Três tipos de ação social são por ele identificados: tradicional, afetiva e
racional. As duas primeiras não estão sujeitas à verificação por padrões racionais
lógicos, uma vez que determinadas pelo costume e pela emoção, respectivamente. A
ação racional, por sua vez, orienta-se em razão dos valores ou dos fins a serem
alcançados.
56
Esta última corresponde ao tipo ideal da ação social, porque representa o
grau máximo de consciência da relação entre a adequação dos meios utilizados e os
objetivos a serem alcançados pelo sujeito.
Ao instituir padrões de calculabilidade dissociados dos valores
particularmente adotados pelo sujeito que age, a ação racional permite a objetivação da
54
COLLIOT-THÉLÈNE, Catherine. Max Weber e a história. Traduzido por Eduardo Biavati Pedro. São
Paulo: Brasiliense, 1995, p. 71.
55
ARGÜELLO, Katie Silene Cárceres. O ícaro da modernidade: direito e política em Max Weber. São Paulo:
Acadêmica, 1997, p. 15.
56
AGULLA, 1987, p. 208.
38
conduta social, mas sem deixar de resgatar o sentido perdido com o advento da razão
lógico-instrumental. Suas principais características são o monopólio da violência
legítima, a crescente burocratização e o conflito sempre presente entre a política e a
burocracia
57
.
A crítica habermasiana à referida proposta tem como principal
fundamento a preocupação estritamente formal com que Weber descreve a
legitimação, o que acaba por confundi-la com a legalidade e a afasta da esfera
política
58
. De acordo com Jessé Souza
59
:
O lugar central do direito na teoria habermasiana da modernidade, assim como na sua
crítica a Weber, decorre precisamente do fato de que a ele cabe efetuar, no mundo
moderno, a comunicação entre esses dois momentos. Para Habermas, Weber percebe
unicamente a problemática da institucionalização do aspecto racional-instrumental,
deixando de contemplar a institucionalização do momento prático-normativo no
mundo contemporâneo. A causa principal dessa desatenção é a desvinculação entre
direito e moralidade ou, o que é o mesmo em outras palavras, entre legalidade e
legitimidade. [...] Para Habermas, legalidade pode produzir legitimidade apenas na
medida em que a ordem jurídica institucionaliza procedimentos abertos a um discurso
moral. O argumento habermasiano contra o positivismo jurídico, seja de um Weber,
seja de um Luhmann, fundamenta-se numa análise histórica do direito como uma
esfera que se define por meio de uma unidade tensa entre imparcialidade e
instrumentalidade ou, em outras palavras, entre moral e direito.
Quando a questão diz respeito a direitos incorporados ao ordenamento
jurídico interno — tal qual os direitos fundamentais —, a investigação referente à ação
comunicativa e seu papel na constituição, interpretação e aplicação normativas supera
a análise dos ambientes particulares de discussão, atingindo as próprias esferas de
poder do Estado. Isso ocorre, porque a positivação faz com que toda determinação
incorporada à ordem jurídico-positiva tramite em cada um dos poderes estatais, a fim
de receber parcelas de contribuição para sua formação.
Em virtude de sua necessária utilidade e coerência, os processos
legislativos, judiciários e executivos prevêem formas diferenciadas de participação
57
ARGÜELLO, 1997, p. 70.
58
Weber sustenta que a política constitui atribuição específica daqueles que ocupam posições no parlamento, ou
seja, da classe de políticos por vocação (WEBER, Max. Parlamento e governo na Alemanha reordenada:
crítica política da burocracia e da natureza dos partidos. Traduzido por Karin Bakke de Araújo. Petrópolis:
Vozes, 1993).
59
SOUZA, Jessé. O direito e a democracia moderna: a crítica de Habermas a Weber. In: Edmundo Lima de
Arruda Junior (org.). Max Weber: direito e modernidade. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 1996, p. 203-
204.
39
subjetiva, que privilegiam ações (a) voltadas ao entendimento, (b) de justificação e
controle e (c) ações teleológicas.
Referindo-se aos princípios do Estado de direito e à lógica da separação
de poderes, Habermas esclarece:
No princípio da soberania popular, segundo o qual todo poder do Estado vem do povo,
o direito subjetivo à participação, com igualdade de chances, na formação democrática
da vontade, vem ao encontro da possibilidade jurídico-objetiva de uma prática
institucionalizada de autodeterminação dos cidadãos. [...] Interpretado pela teoria do
discurso (a), o princípio da soberania popular implica: (b) o princípio da ampla
garantia legal do indivíduo, proporcionada através de uma justiça independente; (c) os
princípios da legalidade da administração e do controle judicial e parlamentar da
administração; (d) o princípio da separação entre Estado e sociedade, que visa impedir
que o poder social se transforme em poder administrativo, sem passar antes pelo filtro
da formação comunicativa do poder.
60
A separação de poderes constitui uma das principais características do
Estado moderno. Garantia contra o autoritarismo e o despotismo, a divisão de
competências tem por principal objetivo a consecução do ideal democrático. Isso se dá
por dois fatores: a distinção das tarefas atribuídas a cada um dos poderes possibilita, ao
mesmo tempo, a autonomia de suas ações frente aos demais e o controle de legalidade
dos procedimentos adotados em cada uma destas esferas; além disso, deve-se ter em
conta que a especialização dos poderes engendra diferentes níveis e formas de
participação nos espaços de discussão onde ocorrem suas ações.
2.3.1 A ação instituidora do legislativo
Para Habermas
61
, a esfera legislativa constitui um espaço de ampla
participação política, na qual se verifica o embate entre diferentes e até mesmo opostas
concepções partidárias acerca dos rumos e do conteúdo a ser atribuído ao sistema que
regula a convivência social. No entanto, para isso é preciso que se garanta a
60
HABERMAS, 1997, v. 1, p. 213.
61
HABERMAS, 1997, v. 1, p. 190-191.
40
participação geral nos espaços de discussão legislativa, de modo que todos possam
colaborar para a formação pública da opinião e da vontade.
O respeito ao princípio do discurso assumirá, no desenvolvimento da
atividade legislativa, o sentido cognitivo de filtragem dos argumentos que assegurem a
aceitabilidade das leis e políticas adotadas e, numa segunda etapa, o sentido prático
pertinente à produção de ações que visam ao entendimento.
62
Por serem impostas, as normas jurídicas serão válidas somente na
medida em que se verificar sua validade e aceitação social
63
, ou seja, quando o
processo legislativo que lhe disser respeito obedecer às regras de participação
discursiva abordadas pela teoria da ação comunicativa. Isto confere um aspecto
histórico e contextualizado às normas jurídicas. Afinal, diferente dos argumentos que
justificam ordens morais, o processo legislativo compreende a negociação acerca das
obrigações que devem ser assumidas por seus participantes e não um mero acordo
sobre obrigações já existentes
64
.
Seu desenvolvimento pressupõe a mútua influência entre a razão e a
vontade. Em outras palavras: o ato de negociação dispõe da capacidade de modificar
concepções individuais autênticas, gerando manifestações autônomas da vontade
coletiva
65
. Segundo Luiz Moreira
66
:
Por exercer uma função de integração social é que supomos que, com o processo
legislativo, as pessoas abandonam a figura de um sujeito de direito solipsista para se
constituírem como membros de uma comunidade jurídico-política livremente
associada. Nessa comunidade jurídica, há dois modos de se chegar a um consenso
sobre quais são os princípios normativos que regularão a convivência: o primeiro é
através do acesso aos costumes; o segundo é através de um entendimento sobre que
princípios devem ser reconhecidos como tais. Ora, com a coerção fática e a validade
da legitimidade temos, agora, a possibilidade de superação dos direitos subjetivos por
um pertinente processo legislativo em que se adota, no caso dos sujeitos de direito,
uma participação que tem no entendimento seu lado mais forte.
As relações de poder constitutivas do direito precisam ser neutralizadas
pelo jogo democrático, a ponto de proporcionarem tratamento equânime a seus
62
HABERMAS, 1997, v. 1, p. 190-191.
63
HABERMAS, 1997, v. 1, p. 195.
64
HABERMAS, 1997, v. 1, p. 197.
65
HABERMAS, 1997, v. 1, p. 205.
66
MOREIRA, Luiz. Fundamentação do direito em Habermas. 2. ed. rev. e atual. Belo Horizonte:
Mandamentos, 2002, p. 124.
41
sujeitos. Nessa missão, entra em cena uma concepção formal de direito fundamental,
vinculada à proposta de regulamentação discursiva para a coordenação de ações
guiadas por interesses plurais, na disputa por espaço no processo legislativo. O que
requer a institucionalização do uso público das liberdades comunicativas.
O conceito de institucionalização refere-se a um comportamento esperado do ponto de
vista normativo, de tal modo que os membros de uma coletividade social sabem qual
comportamento eles podem estimular, em que circunstâncias e quando. No entanto,
podem ser institucionalizados também procedimentos que determinam as regras
segundo as quais uma cooperação deve transcorrer, a fim de dominar certas tarefas.”
67
A institucionalização diminui a possibilidade de alteração circunstancial
das regras de participação, as quais são colocadas como pressuposto de legitimidade
de todas as normas positivadas do ordenamento jurídico. Com ela, garante-se a não
exclusão de minorias dos ambientes de discussão e, conseqüentemente, o controle das
decisões tomadas por maioria. Esta determina o modo como se dará, em determinado
tempo e espaço, a distribuição do poder, mas sua ação é limitada pela impossibilidade
de vetar a participação das minorias e, com isso, a oportunidade de fazerem valer seus
argumentos e pretensões. Tal forma de proceder é garantida pelos direitos
fundamentais.
2.3.2 A ação hermenêutica do judiciário
O poder judiciário tem por função essencial a aplicação do direito. Para
isso, sua ação está vinculada às determinações advindas do poder legislativo, embora
suas decisões não correspondam, necessária e diretamente, aos indicativos resultantes
do processo democrático.
A exigência de justificação impõe a toda decisão judicial a manutenção
de sua coerência com a ordem legal em vigor, porquanto o conteúdo desta resulta de
discussões travadas na esfera legislativa, das quais participam — ou ao menos
67
HABERMAS, 1997, v. 1, p. 221.
42
deveriam participar — todos os sujeitos sociais, independente de sua adesão à posição
da maioria.
Ao exercer seu poder jurisdicional, o juiz aplica ao caso concreto as
normas abstratas ditadas pelo poder legislativo. Atribui conteúdo concreto e contextual
aos dispositivos legais, concebidos como textos sempre abertos à interpretação e que,
portanto, podem apresentar variados sentidos, de acordo com as premissas adotadas
pelo intérprete e as circunstâncias do caso em exame. Daí a necessidade da justificação
da decisão judicial e sua inserção no rol de garantias constitucionais
68
.
A justificação tem três funções essenciais: convencer as partes
envolvidas num processo judicial quanto às razões da decisão, proporcionar-lhes o
exercício de seu direito de defesa e demonstrar a coerência da prestação jurisdicional
frente ao ordenamento jurídico.
Quando se fala que o poder judiciário não tem suas ações determinadas
por práticas democráticas, quer-se apenas dizer que suas decisões não resultam
diretamente dos embates políticos inerentes às esferas públicas de discussão, tal qual
ocorre na esfera legislativa. Ao decidir, o juiz precisa amparar sua posição em
argumentos suficientemente convincentes e, para isso, busca amparo na doutrina, que
representa o conhecimento sistematizado acerca do direito e sua interpretação.
A institucionalização também está presente na esfera judiciária, através
da sistematização doutrinária de modelos de interpretação e da adoção de formas
obrigatórias para a exteriorização de decisões judiciais. Trata-se de elementos
facilitadores da instituição de controles internos e externos da atividade jurisdicional,
porquanto permitem sua fiscalização por meio da comparação com um comportamento
esperado e, assim, a possibilidade de participação dos sujeitos nessa via. Nela está
assentada a idéia de segurança jurídica, que representa a dimensão factual do direito e,
especificamente, da jurisdição.
Segundo Habermas, “a tensão entre facticidade e validade, imanente ao
direito, manifesta-se na jurisdição como tensão entre o princípio da segurança jurídica
68
Conforme disposto no art. 93 da Constituição brasileira: “IX – todos os julgamentos os órgãos do Poder
Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a
presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a
preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação”.
43
e a pretensão de tomar decisões corretas”
69
. Isto significa dizer, que não basta à
atividade jurisdicional assegurar a estabilidade de suas decisões, através da adoção de
expectativas comportamentais estabilizadas. É preciso legitimá-las, demonstrando aos
jurisdicionados sua correspondência com as normas resultantes do processo
legislativo, de modo a fazer com que sejam respeitadas e não apenas impostas.
2.3.3 A ação teleológica do executivo
Enquanto ao judiciário e ao legislativo competem, respectivamente, as
tarefas de fundamentação e aplicação da norma, o poder executivo — ou melhor seria
dizer a administração pública — assume o desígnio de fazê-las cumprir. Sua tarefa é
de ordem pragmática e teleológica, já que as decisões administrativas não são
marcadas pela observação direta das regras de participação discursiva, embora estejam
sempre pautadas na legalidade das ações escolhidas
70
. Circunstância que acaba por
vinculá-las ao jogo democrático, mesmo por via indireta.
Do ponto de vista da lógica da argumentação, a separação entre as competências de
instâncias que fazem as leis, que as aplicam e que as executam, resulta da distribuição
das possibilidades de lançar mão de diferentes tipos de argumentos e da subordinação
de formas de comunicação correspondentes, que estabelecem o modo de tratar esses
argumentos. [...] A administração não constrói nem reconstrói argumentos normativos,
ao contrário do que ocorre com o legislativo e a jurisdição. As normas sugeridas
amarram a persecução de fins coletivos a premissas estabelecidas e limitam a
atividade administrativa no horizonte da racionalidade pragmática. Elas autorizam as
autoridades a escolher tecnologias e estratégias de ação, com a ressalva de que não
sigam interesses ou preferências próprias — como é o caso dos sujeitos do direito
privado.
Admitir que a administração pública tem sua ação limitada pelo respeito
à legalidade significa dizer que seus processos de decisão também atendem a um certo
nível de institucionalização e, por isso, estão sujeitos ao controle interno e externo.
Determinações legislativas, portanto decorrentes de jogos democráticos, são seu marco
inicial obrigatório. Ainda que comportem certo grau de discricionariedade, não
69
HABERMAS, 1997, v. 1, p. 245.
70
HABERMAS, 1997, v. 1, p. 216, 238-239.
44
admitem que as escolhas realizadas pelo administrador público contrariem o direito
posto (ou pressuposto), mas apenas façam cumpri-lo.
Diferente dos poderes legislativo e judiciário, o executivo não dispõe de
competência normativa. Sua ação é apenas teleológica, o que a restringe ao
cumprimento das determinações emanadas de outras esferas do poder, nas quais
preponderam os processos democráticos. Nesse norte, é possível afirmar que a teoria
do discurso prevê uma insuperável assimetria entre os poderes do Estado, ao subjugar
o executivo aos controles parlamentar e judiciário
71
.
71
HABERMAS, 1997, v. 1, p. 300.
45
3 AÇÃO COMUNICATIVA E DIREITOS FUNDAMENTAIS
Exposta a linha de argumentação habermasiana, especialmente no que
tange ao papel integrador do direito no seio de sociedades complexas, é possível passar
a uma segunda etapa da pesquisa. Trata-se da investigação referente aos direitos
humanos e sua incorporação à ordem constitucional de cada Estado, onde adquirem o
status de direitos fundamentais e, assim, passam a irradiar determinações para todo o
ordenamento jurídico.
A abordagem do tema exige, em primeiro lugar, a compreensão do que
sejam os direitos humanos e quais suas principais propostas de fundamentação. Isso
permitirá explicitar o modo pelo qual eles passam a integrar a ordem jurídico-positiva,
bem como a influência dos procedimentos democráticos sobre a determinação de seu
conteúdo. Nesse contexto, destaca-se o entendimento de que a função dos direitos
fundamentais supera a mera limitação do poder, para assumir a tarefa de legitimação
do poder estatal e da própria ordem constitucional.
72
Em vista do marco teórico escolhido, as digressões contidas no presente
capítulo serão norteadas pela tentativa de identificar os diferentes contextos
lingüísticos referentes à construção dos direitos fundamentais, assim como a
possibilidade de universalização da proteção dirigida à pessoa humana. Isso justifica a
abordagem das diferentes explicações quanto à origem e à participação de cada
indivíduo na instituição, interpretação e aplicação desses direitos.
Habermas concebe os direitos fundamentais por um prisma
eminentemente procedimental: como princípios-guia do funcionamento da esfera
pública. Sua função precípua é a de assegurar a participação de todos nos ambientes
discursivos. Todavia, este não será o único enfoque conferido à expressão na
seqüência do texto, pois, somente ao dar conta da complexidade de seus aspectos
concretos, é que será possível debater a utilidade da teoria habermasiana para a
elucidação de questões referentes à relação entre democracia e direitos fundamentais.
72
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 2. ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2001, p. 62-63.
46
Para que não reste dúvida, cumpre esclarecer que, embora amparada na
leitura de outros tantos autores, a análise realizada neste capítulo não abandonará a
perspectiva procedimental de Jürgen Habermas. Toda afirmação recorrente,
unicamente,
à fundamentação material dos direitos humanos — isto é, à admissão de
sua origem pré-comunitária — deve, portanto, ser considerada apenas a título
introdutório ou complementar, e não como indicação de sua consonância para com a
teoria habermasiana.
A incorporação desses direitos à ordem jurídico-positiva revela
diferentes facetas da esfera pública
73
, reacendendo a discussão sobre a possibilidade e
os graus de participação individual na busca por sua efetividade. Debate diretamente
influenciado pela admissão do caráter aberto das normas de direitos fundamentais, o
que permite a adaptação das regras democráticas às dificuldades apresentadas pelo
caso concreto.
3.1 Direitos humanos e seus contornos
Pensar em direitos humanos significa admitir a possibilidade de instituir
um conjunto normativo capaz de proteger a vida e a dignidade de todo ser humano. Ou
seja, em direitos cujo sentido nuclear está assentado sobre (a) a diferenciação do
gênero humano frente a outras classes animais e (b) a qualificação de sua existência,
refletida na noção de dignidade.
74
A racionalidade costuma ser apontada como o principal elemento que
distingue o homem dos demais seres vivos e de seus próprios semelhantes. A uma,
73
Como exposto no item 2.3 — Direitos fundamentais e ação comunicativa —, os procedimentos discursivos
variam em função do poder estatal a que dizem respeito. Assim, enquanto a atividade legislativa constitui o
espaço genuíno de participação democrática, o judiciário ocupa-se da aplicação das normas instituída por aquele
poder e o executivo (administração pública) por sua execução. Estes últimos, sempre limitados pelas
determinações do poder legislativo e pelo ideal de participação, consignado na teoria da ação comunicativa.
74
“O valor da pessoa humana enquanto ‘valor-fonte da ordem da vida em sociedade encontra a sua expressão
jurídica nos direitos fundamentais do homem.” (LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um
diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 20). No mesmo
sentido: LAFER, 1988, p. 117-145; COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos
humanos. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 1-67; BARCELLOS, Ana Paula. A eficácia jurídica
dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
47
porque permite o desenvolvimento cultural e a criação de instituições para a
organização da vida em comunidade; o que não é identificado em outras classes de
viventes. A duas, porque impõe a compreensão de que cada ser humano é único em
sua existência e forma de pensar suas relações com o meio circundante, seja por
condições naturais ou pela influência do contexto histórico em que está inserido.
O que vem a ser dignidade humana? De acordo com Fábio Konder
Comparato
75
, a resposta a essa pergunta aparece em diferentes momentos históricos,
nos campos da religião, da filosofia e da ciência, tendo como ponto de partida o
reconhecimento da personalidade, ou seja, da individualidade de cada ser humano.
A religião é apresentada como o primeiro momento de reconhecimento
da dignidade humana, ao pregar que cada ser humano é criado à imagem e semelhança
de Deus, sendo único em sua composição — corpo e alma. O segundo é atribuído à
filosofia: com a compreensão de que o homem é um ser essencialmente racional e de
que isto o diferencia dos demais seres vivos, ele passa a ocupar a posição central do
universo, sendo exatamente sua capacidade de auto-reflexão o que caracteriza sua
dignidade. O reconhecimento final deste elemento dá-se com o advento da ciência,
cujos métodos de investigação permitem analisar a evolução da espécie humana, num
processo crescente de desenvolvimento cultural.
Na seqüência desses fatos históricos, Celso Lafer
76
põe em destaque a
assunção do individualismo, ou seja, de concepções que maximizam a importância do
indivíduo — considerado em sua subjetividade —, para a construção dos direitos
humanos. Por esta perspectiva, a dimensão da realidade passa a ser compreendida
como fruto do discurso forjado pelos homens.
Isto culminará na elaboração do conceito de direito subjetivo — especificamente, nos
poderes de agir atribuídos ao indivíduo visto como um prius em relação ao direito
objetivo e, por isso, convertido em palavra-chave do Direito moderno. [...] O direito
subjetivo é uma figura jurídica afim com a dos direitos do homem e da personalidade,
todos representativos, no seu desenvolvimento teórico, do individualismo.
77
75
COMPARATO, 2001, p. 1-8.
76
LAFER, 1988, p. 120.
77
LAFER, 1988, p. 120-121.
48
A tentativa de identificar o que seja a dignidade humana revela um
paradoxo: ao mesmo tempo em que se trata de algo real, inerente a aspectos concretos
da vida, a definição de seu conteúdo axiológico constitui uma categoria aberta,
ambígua e vaga. Por isso, na opinião de Ingo Wolfgang Sarlet, seria “inadequado
conceituá-lo de maneira fixista, ainda mais quando se verifica que uma definição desta
natureza não se harmoniza com o pluralismo e a diversidade de valores que se
manifestam nas sociedades democráticas contemporâneas.”
78
Diante da imprecisão ocasionada pelo uso da linguagem, resta apenas a
identificação de algumas das características marcantes da dignidade humana. Nesse
sentido: (a) sendo um dado real, deve-se ter presente que o desrespeito a seus preceitos
prejudica um ser concreto e não abstrato; (b) não é possível renunciar ou alienar à
própria dignidade, já que ela vem sendo considerada o fundamento de todo o sistema
de direitos fundamentais; (c) seu conteúdo é determinado pela interação entre aspectos
naturais e culturais; (d) ela possui uma dimensão comunitária, revelada pela
convivência em grupo, e não meramente individual.
79
O modo pelo qual a noção de dignidade é incorporada, ou mesmo
definida, pelo sistema de direitos humanos constitui questão de amplo debate na
doutrina. Antonio Enrique Perez Luño
80
sugere sua classificação em três principais
linhas: (a) objetiva, (b) subjetiva e (c) intersubjetiva.
A posição objetivista compreende as propostas de fundamentação que
atribuem a origem dos direitos humanos a uma ordem preexistente de valores, regras e
princípios cujo conteúdo independe da formação cultural de cada povo, o que lhe
confere validade objetiva, absoluta e universal. Entre as críticas que lhes são dirigidas,
destacam-se: a vagueza e a abstração de seu conteúdo, pois até mesmo os elementos de
fundamentação material dependem de interpretação; a dificuldade de determinação de
quais sejam os valores tidos como essenciais e absolutos, ou do que sejam o bem e o
mal; a imutabilidade da ordem estabelecida, que impede sua adaptação às necessidades
advindas da evolução histórica da humanidade.
78
SARLET, 2001, p. 105-106.
79
SARLET, 1988, p. 106-115.
80
LUÑO, Antonio Enrique Pérez. Derechos humanos, estado de derecho y constitución. 5. ed. Madrid:
Tecnos, 1995, p. 137-176.
49
Entendimento oposto assumem aqueles que assentam a fundamentação
dos direitos humanos em escolhas subjetivas, ou seja, na determinação autônoma de
cada sujeito. As teorias referentes a esta perspectiva traçam seu percurso sobre o
embate entre os princípios da liberdade e da igualdade, na medida em que admitem
que todo homem é livre para proceder a suas escolhas valorativas, não havendo motivo
para questionar a desigualdade de condições em que se colocam no seio na sociedade e
nos ambientes de discussão. Todavia, não se preocupando com o controle dos
procedimentos que determinam a participação discursiva, esta proposta acaba por
atribuir demasiada importância a concepções individualistas e isoladas,
proporcionando a proteção de interesses elitistas em detrimento de pobres,
discriminados e excluídos.
A última proposta representa a tentativa de superação da abstração
inerente às teses objetivistas e ao individualismo das teses subjetivistas. Ela procura
atrelar a origem dos direitos humanos à instituição de “valores intrinsecamente
comunicáveis, isto é, como categorias que, por expressarem necessidades social e
historicamente compartilhadas, permitem suscitar um consenso generalizado sobre sua
justificação”
81
. Duas são suas linhas de argumentação: a primeira ocupa-se da
identificação de elementos procedimentais que garantam a validade dos consensos
obtidos na esfera pública, a partir da prática discursiva; a segunda revela a
preocupação de acrescentar aos aspectos procedimentais alguns elementos materiais,
capazes de garantir maior concretude à fundamentação dos direitos humanos.
Com o delineamento da noção de dignidade humana, remanesce a dúvida
quanto à viabilidade de dotar-lhes de um sistema de direito que vise a protegê-la.
Afinal, a condição biológica seria suficiente para delimitar a proteção conferida?
Quais bens ou valores mereceriam atenção? É possível fixá-los numa esfera pré-
cultural? Essas são algumas das perguntas que embalam a discussão entre propostas de
fundamentação universalistas e relativistas.
81
Tradução livre do original: “[...] valores intrínsecamente comunicables, es decir, como categorías que, por
expresar necesidades social e históricamente compartidas, permiten suscitar un consenso generalizado sobre su
justificación.” (LUÑO, 1995, p. 162)
50
Adepto ao primeiro modelo, Plínio Melgaré
82
sustenta que a
universalidade diz respeito (a) à titularidade atribuída a todo ser humano, (b) à
validade temporal universal de concepções que tiveram origem histórica determinada e
(c) à noção de que os valores inerentes à dignidade da pessoa humana são válidos em
qualquer lugar. Ademais, ela pode ser tomada tanto num sentido material — como o
núcleo mínimo de direitos aptos a garantir uma vida humana digna —, quanto num
sentido formal — como o conjunto de normas capazes de impor ao poder público dado
comportamento frente ao direito individual de desfrutar de uma vida digna.
Nessa linha, segue Wolfgang Kersting
83
. Sua exposição evidencia a
preocupação com o panorama social moderno, em que se percebe a aproximação cada
vez maior de realidades absolutamente distintas e, até então, desconhecidas umas das
outras. Em suas palavras:
O mundo está se contraindo; nunca houve tanta proximidade entre as pessoas. Aí
surge a necessidade de um paradigma normativo irrestritamente compatível, que seja
universalmente comensurável, pois essa nova proximidade e essa nova unidade
precisam ser organizadas. Faz-se necessária uma linguagem normativa comum, a qual
possa servir de base para uma prática de justificação, aceitável para todos, que consiga
ligar uma cadeia de legitimação igualmente vinculante para todos. [...] Um conceito de
direitos humanos válido, em termos de fundamentação teórica, é, como afirmei acima,
um conceito de direitos humanos resistente ao particularismo e ao relativismo. E o
conceito de direitos humanos é resistente ao particularismo e ao relativismo, quando,
numa situação multiculturalista, possui chances de ser reconhecido além-fronteiras.
Precisamos, portanto, desenvolver uma argumentação que atribua ao conceito de
direitos humanos um significado independente de toda coloração cultural e não-
carente de hermenêutica cultural.
84
Contra a proposta antes apresentada levantam-se os relativistas, para
quem os juízos morais são particularizados — inerentes à comunidade e ao contexto
histórico em que são construídos — e não encontram validade para além dessas
fronteiras. Nesse sentido, a possibilidade de integração entre diferentes sistemas
morais só existiria em virtude da prudência, mas jamais como resultado de uma
“heurística de elementos morais comuns.”
85
82
MELGARÉ, Plínio. Direitos humanos: uma perspectiva contemporânea – para além dos reducionismos
tradicionais. In: Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 39, n. 154, abr./jun.2002, p. 71-92.
83
KERSTING, Wolfgang. Universalismo e direitos humanos. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003, p. 84-91.
84
KERSTING, 2003, p. 86-91.
85
KERSTING, 2003, p. 84.
51
Noberto Bobbio
86
rechaça o fundamento universalista, ao sustentar que o
homem não é movido por necessidades inerentes a sua condição biológica, mas por
desejos. Isso justifica a variação de seu interesse sobre determinados bens e valores —
considerados essenciais num dado tempo e espaço e supérfluos noutro. Sua crítica
contra toda fundamentação universal e imutável é bastante contundente:
Do ponto de vista teórico, sempre defendi — e continuo a defender, fortalecido por
novos argumentos — que os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam,
são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por
lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo
gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas. [...] Falar de direitos
naturais ou fundamentais, inalienáveis ou invioláveis, é usar fórmulas de uma
linguagem persuasiva, que podem ter uma função prática num documento político, a
de dar maior força à exigência, mas não têm nenhum valor teórico, sendo portanto
completamente irrelevantes numa discussão de teoria do direito.
87
Há ainda posições intermediárias, como aquela expressada por Gérman J.
Bidart Campos
88
. Embora admita a coerência do recurso ao argumento universalista,
Campos insiste na influência de fatores culturais e históricos sobre a delimitação do
conteúdo material dos direitos humanos. Em sua opinião, é correto afirmar que eles se
originam na própria natureza humana e que, a priori, esta determinação (natural)
qualifica-se como um dever ser atemporal, eterno, imutável e livre de limite espacial.
Todavia, seu conteúdo acaba, impreterivelmente, influenciado pela realidade
circundante.
86
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Traduzido por Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro:
Elsevier,1992, p. 15-24.
87
BOBBIO, 1992, p. 5-7.
88
CAMPOS, Germán J. Bidart. Teoria general de los derechos humanos. Buenos Aires: Astrea, 1991, p. 29-
37. “Que son universales quiere significar que le son debidos al hombre — a cada uno y a todos — en todas
partes — o sea, en todos los Estados —, pero conforme a la situación histórica, temporal, y espacial que rodea a
la convivencia de esos hombres en ese Estado. La exigencia del valor non traza límites sectoriales, ni en cuanto
a espacios territoriales, ni en cuanto a ámbitos humanos; pero se acomoda a los ambientes históricos que se
circunscriben geográfica y poblacionalmente. [...] La supratemporalidad o atemporalidad, la eternidad, la
inmutabilidad y todo otro predicado análogo acerca de los derechos humanos merece la misma puntualización.
Todos esos adjetivos admiten mantenerse si los vinculamos a la persistencia o incolumidad del valor justicia en
su deber ser ideal objetivo y trascendente, más allá de la realización histórica con signo positivo o de la
disvaliosidad de las conductas humanas que acusan signo negativo en aquella realización. Pero hemos que
relegarlos si con ellos se incurre en la fantasía de proponer que la ya reiterada realidad histórica, con sus
ingredientes de tiempo y espacio, está ausente en la forma y manera de plasmar la encarnadura de los derechos
en cada situación cultural.” (CAMPOS, 1991, p. 34)
52
Hannah Arendt
89
parece colocar-se nessa posição, quando vincula a
condição humana ao cumprimento das prerrogativas inerentes à vita activa, quais
sejam o labor, o trabalho e a ação. Afinal, enquanto estes últimos referem-se ao
aspecto cultural e social da vida humana, aquele primeiro corresponde ao suprimento
das necessidades básicas — pré-culturais — de cada ser. Sem isto, não há participação
possível na esfera pública, que, por sua vez, constitui condição sine qua non da
formação da pessoa humana. Daí a conclusão: a fundamentação dos direitos humanos
somente pode ser pensada a partir da integração entre as necessidades básicas
universais e as necessidades decorrentes do contexto social em que cada sujeito está
inserido.
3.2 Incorporação à ordem jurídico-positiva
Na proposta de instituição de um núcleo universal de direitos, capazes de
conferir proteção indiscriminada a todos, insere-se um paradoxo: sua eficácia ainda
parece depender da proteção que lhe seja conferida pelo Estado moderno. Isso ocorre,
em virtude da necessidade de se recorrer ao caráter coercitivo da norma jurídica, cuja
força está indissociavelmente atrelada ao poder exercido pelo Estado sobre os
indivíduos. Segundo Wolfgang Kersting,
a proteção dos direitos humanos baseia-se na simples evidência da vulnerabilidade
humana e na preferencialidade, não menos evidente, de um estado de ausência de
assassinato e homicídio, dor e violência, tortura, miséria e fome, opressão e
exploração. E essa proteção só pode ser concedida num Estado. Os direitos humanos
são, por conseguinte, essencialmente um direito ao Estado; a ligação entre os direitos
humanos e a pertença a um Estado nacional é bem mais estreita do que pensam os
cosmopolitas.
90
Embora esta afirmação não deixe de ser problemática, pelo fato de
vincular a proteção da dignidade humana à pertença do indivíduo a um Estado, o que
89
ARENDT, Hannah. A condição humana. 10. ed. Traduzida por Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2003, p. 15-37; 59-78; 83-88; 188-211; 232-259. Sua teoria será melhor abordada no título 4.2 —
O argumento moral da responsabilidade — desta dissertação.
90
KERSTING, 2003, p. 94.
53
acaba por negar a condição de sujeito de direito àqueles que se encontram na condição
de apátridas, é preciso ter em mente que as considerações de Kersting trazem à tona
um ponto essencial de discussão, qual seja, a necessidade — ou ao menos a
conveniência — da incorporação de normas que visem à proteção do ser humano na
ordem jurídica estatal.
Diante da atual conformação política mundial, que nega reconhecimento
a toda forma de organização diferente do Estado moderno, não há como afastar a
exigência da estatização dos direitos humanos, de maneira que lhes sejam conferidas
validade, vigência e eficácia. Eles deveo, portanto e em primeiro lugar, ser
submetidos ao processo de constitucionalização através do qual assumirão o status de
normas de direitos fundamentais e, assim, passarão a gozar de uma dimensão
permanente e segura no seio de ordenamento jurídico.
A proteção conferida para além das fronteiras do Estado, por designações
normativas não incorporadas ao ordenamento jurídico-positivo, costuma assumir as
vestes de um conjunto normativo eminentemente moral
91
. São determinações de
caráter universal, que, embora influenciem a criação de normas jurídicas e a atividade
hermenêutica, não poderão ser impostas coercitivamente, do mesmo modo que o são
as normas jurídicas.
Isso justifica a afirmação de que sua positivação confere-lhe maior
efetividade no seio de sociedades pós-tradicionais, onde já não predomina a crença na
revelação divina ou natural das razões pelas quais as ações humanas devam estar
voltadas à preservação da espécie em sua dignidade. Afinal, considerando que as
sociedades modernas se estruturam a partir da idéia de soberania popular e de sua
relação com o Estado, a incorporação dos direitos humanos a ordenamentos jurídicos
internos parece ser o procedimento que melhor cumpre a função proposta.
92
Obedecendo a procedimentos legislativos predeterminados, referidos
direitos adquirem, então, status constitucional e infraconstitucional, passando a ocupar
91
Em respeito ao marco teórico escolhido, os termos moral e ética serão utilizados no decorrer do texto no
mesmo sentido com que são apresentados por Jürgen Habermas. Vide: HABERMAS, Jürgen. Direito e
democracia: entre facticidade e validade. Traduzido por Flávio Beno Seibeneichler. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1997.
92
Não se quer com isso, por óbvio, afirmar que o direito se restrinja à esfera positivada, mas apenas ressaltar a
importância de que sejam garantidas sistematização, segurança e oponibilidade àquele primeiro conjunto
normativo.
54
lugar certo na cadeia normativa do Estado. Isso possibilita uma aplicação
sistematizada a partir de critérios de interpretação já organizados pela doutrina, a
estabilidade decorrente da imposição de requisitos formais de alteração legislativa e a
oponibilidade própria das regras cujo cumprimento pode ser exigido por meio da
coerção legítima.
O caráter da atividade legislativo-constitucional frente aos direitos de
proteção da dignidade humana, todavia, não é entendido de maneira uníssona. Em sua
obra, Luño
93
identifica três posições marcadas sobre o tema. A primeira corresponde à
concepção jusnaturalista, para a qual os direitos humanos são incorporados à ordem
jurídica estatal mediante simples reconhecimento, por serem inerentes e indissociáveis
da natureza humana. A segunda à vertente positivista, que diz competir ao legislador a
criação e não o mero reconhecimento de direitos preexistentes. Por fim, apresenta-se a
perspectiva realista, cuja preocupação essencial corresponde à verificação da
efetividade dos direitos fundamentais, de modo que sua positivação constitui apenas
uma das etapas do processo de implementação e não seu fim último, como desejam as
demais teses.
94
Ainda quanto à origem dos direitos fundamentais, deve-se ressaltar a
tendência ao deslocamento das propostas de fundamentação transcendental ou
individual — concebidas como não racionalizáveis — para ambientes onde o resultado
da interação entre os sujeitos é considerado o ponto de partida da compreensão das
determinações provenientes da esfera pública. Neste novo modelo, somente a partir do
momento em que cada indivíduo tem a oportunidade de expor aos demais os motivos
determinantes de suas ações, intentando convencê-los de sua correção, e, ao mesmo
tempo, deixa-se influenciar por outros argumentos, é que se torna possível avaliar
racionalmente as escolhas feitas por uma comunidade.
Essa avaliação dá-se pela verificação da correlação entre a manifestação
volitiva resultante da interação social e a obediência aos modelos procedimentais
93
LUÑO, 1995, p. 52-62.
94
Quando confrontadas com aspectos concretos da vida humana, tais correntes revelam mais a
complementariedade do que, propriamente, a oposição entre suas idéias. Isso porque, cada módulo de explicação
preocupa-se com uma faceta do processo de justificação dos direitos fundamentais: a escolha dos bens a serem
protegidos; a eficácia, ou seja, a oponibilidade de suas determinações; e a efetividade dessa espécie normativa, a
qual corresponde à disponibilidade dos bens e meios destinados a atingi-los.
55
capazes de assegurar a participação livre e igual de todos os sujeitos nas esferas de
discussão. Nesse contexto, toda possibilidade de fundamentação estaria
irremediavelmente vinculada à implementação de modelos democráticos, sem os quais
não haveria como afastar práticas arbitrárias e todo tipo de autoritarismo ou desmando
praticado contra a dignidade da pessoa humana
95
.
3.3 O fenômeno da constitucionalização
Delimitada a importância da incorporação dos direitos que visam à
proteção humana à ordem jurídico-positiva, cumpre investigar o aspecto específico de
sua inclusão na Constituição e as implicações desta medida sobre as determinações de
todo o sistema jurídico estatal, à luz do movimento de constitucionalização, do qual
vem se ocupando a doutrina.
Designa-se por constitucionalização a incorporação de direitos subjectivos do homem
em normas formalmente básicas, subtraindo-se o seu reconhecimento e garantia à
disponibilidade do legislador ordinário (Stourzh). A constitucionalização tem como
conseqüência mais notória a proteção dos direitos fundamentais mediante o controlo
jurisdicional da constitucionalidade dos actos normativos reguladores destes direitos.
Por isso e para isso, os direitos fundamentais devem ser compreendidos , interpretados
e aplicados como normas jurídicas vinculativas e não como trechos ostentatórios ao
jeito das grandes “declarações de direitos”.
96
Sendo assim, a Constituição, antes vista apenas sob o aspecto formal,
confundindo-se com a própria figura da atuação do Estado, adquire feições
normativas. Isso se dá, a uma, em virtude da mudança ocorrida na concepção de
mundo e de subjetividade, já que o homem passa a constituir o centro de explicação do
mundo, conscientizando-se que é capaz de criar seus próprios direitos no plano
jurídico-político e, desta forma, libertar-se do jugo divido e da natureza
97
. A duas, pela
95
A sugestão de complementação dessa tese ampara-se na compreensão de que a efetiva participação em
ambientes discursivos far-se-á possível somente na medida em que se resguardar ao indivíduo a satisfação de
suas necessidades vitais. De tal concepção ocupar-se-á o último capítulo desta dissertação.
96
CANOTILHO, 1998, p. 348.
97
PARDO, David Wilson de Abreu. Caminhos do constitucionalismo no ocidente: modernidade, pós-
modernidade e atualidade do direito constitucional. In: Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política,
56
superação do modelo lógico-formal, que relegava toda a discussão referente ao
conteúdo constitucional à esfera política.
Sob esta nova perspectiva, a Constituição deixa de ser concebida como o
ápice da pirâmide normativa estatal, para ocupar a posição de centro irradiador
normativo de todo o sistema jurídico interno. Em outras palavras, além de condicionar
a validade das normas infraconstitucionais, ela passa a ser tomada como a fonte
orientadora da proteção da vida e da dignidade humana, não apenas num sentido
político, mas, sobretudo, jurídico, pois seu conteúdo agora é dotado de força
normativa.
Nesse contexto, desponta a preocupação quanto à manutenção da
coerência interna do sistema jurídico. Ela é requisito essencial à perpetuação de todo
ordenamento jurídico-positivo, o que exige a instituição de critérios formais e
materiais para sua interpretação e aplicação. Daí a organização das normas que o
compõem em diferentes hierarquias, estando a validade das inferiores sempre
condicionada às determinações das normas localizadas em patamares superiores da
pirâmide normativa estatal
98
, embora este não deva ser o único critério observado.
A evolução teórica tem demonstrado a falência de modelos lógico-
positivos, que assentam a validade de todo o ordenamento jurídico na exclusiva
obediência ao critério formal pelo qual se busca, na norma imediatamente superior,
apenas a autorização para o exercício da atividade legislativa infraconstitucional. Fato
essencial ao estudo dos direitos fundamentais, já que sua efetividade está diretamente
vinculada à complementação do aspecto formal pelo critério material, de acordo com o
qual se exige a adequação do conteúdo da norma inferior ao conteúdo daquela que
ocupa posição superior na escala hierárquica.
Considerando que eles representam a incorporação à ordem
constitucional de preceitos morais que visam à proteção da dignidade humana, outra
não poderia ser a conclusão. Afinal, a noção de fundamentalidade parece impor algo
n. 28, p. 108-109. De acordo com Pardo, três são as matrizes teóricas consideradas fundamentais para a nova
concepção de constitucionalismo: Hegel (razão humana livre e universal), Habermas (intersubjetividade vigente
no mundo da vida) e Weber (processos de racionalização instituidores da previsibilidade de fatos sociais).
98
Sem embargo à limitação da noção gerada pelo uso figurativo da referida expressão, deve-se reconhecer que
ela permite compreender que a Constituição representa a máxima hierarquia na cadeia normativa estatal. Pelo
que, resta apenas saber se esse critério de validade restringe-se ao aspecto formal ou se avança sobre aspectos
materiais, vinculando também o conteúdo das normas infraconstitucionais.
57
mais do que a simples obediência estrutural, isto é, parece exigir o comprometimento
para com a instituição de regras e princípios consentâneos com a predisposição de
assegurar a todos o surgimento e o desenvolvimento de uma vida digna.
Há dois modos de identificar quais sejam os direitos fundamentais: (a)
pelo critério formal, que delega ao poder legislativo a escolha dos bens e interesses a
serem protegidos; e (b) pelo critério social, que atribui referida tarefa à própria
sociedade, reconhecendo sua capacidade de identificar as necessidades a serem
satisfeitas em casos de conflito.
99
Na lição de Canotilho, a fundamentalidade de uma norma e, por
conseqüência, sua força normativa podem ser atribuídas por fatores formais ou
materiais. No primeiro caso, o fenômeno em questão geralmente está vinculado à idéia
de sua inclusão na ordem constitucional, através da qual passa a ocupar posição de
máxima hierarquia no ordenamento jurídico interno e a limitar a ação dos poderes
públicos. Já a fundamentalidade material escapa ao sentido estrito da Constituição
escrita. Seu conteúdo corresponde mais à composição da estrutura básica do Estado e
da sociedade do que ao respeito às formas inerentes à criação legislativa. Isso justifica
sua maior abertura à inclusão de novos direitos fundamentais.
100
Ressalte-se, contudo, que o critério eminentemente formal parece não se
adequar à proposta habermasiana, já que descura da ampla participação subjetiva nos
ambientes discursivos, donde advém a definição do conteúdo dos direitos
fundamentais. Isso, sem falar no risco da esterilidade procedimental, decorrente da
eliminação de todo conteúdo político ou material do seio constitucional.
A segunda guerra mundial constituiu um marco para a teoria do direito e
também para a teoria constitucional. A má utilização dos esquemas de fundamentação
formal até então vigentes — notadamente pelos programas nazistas de extermínio —
fez ressurgir a discussão acerca da possibilidade de instituição de parâmetros materiais
de fundamentação, ou seja, da exigência de um compromisso moral para com o ser
humano, preferencialmente estabelecido em caráter universal.
99
BARCELLOS, Ana Paula. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da
pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 83-89.
100
CANOTILHO, 1998, p. 348-350.
58
É nesse contexto que surge a denominada teoria neoconstitucionalista
101
,
marcada pela concepção de que a Constituição é uma norma jurídica dotada de força
normativa, da qual irradiam determinações para todas as demais esferas do direito; ou
seja, pelo abandono da perspectiva tradicional, que a compreendia unicamente como
fonte de validade formal do ordenamento jurídico, para concebê-la também como
fonte determinante da validade material, eficácia e da eficiência das normas que o
compõem.
Como sintetiza Ruy Samuel Espíndola
102
, o conceito de Constituição
passa a abarcar não apenas aspectos formais e estruturais, como também um
significado teórico que a concebe como norma jurídica, com a força que lhe é própria.
Nessa linha, ela é compreendida como a lei maior de um ordenamento jurídico, de cuja
concepção decorrem as noções de força normativa e teleologia constitucional.
Com o advento dos direitos fundamentais, a Constituição abandona a
feição de uma carta meramente política para assumir contorno normativo antes
inexistente — ou ao menos desconsiderado pela teoria constitucional —, que a vincula
não apenas à emanação de determinações de validade formal de normas
infraconstitucionais, mas também de validade material. Deixa de ser compreendida
apenas como o ápice da pirâmide kelseniana
103
, para ocupar posição central no
ordenamento jurídico, donde irradiam determinações para todas as demais esferas do
direito.
Essa alteração enseja o questionamento não só do processo de formação
de seu conteúdo da Constituição, para o qual é imprescindível o respeito ao princípio
democrático, como também da força vinculante de suas determinações
104
. Segundo
Espíndola:
101
Vide CARBONELL, Miguel (org.). Neoconstitucionalismo(s). Madrid: Trotta, 2003.
102
ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de princípios constitucionais. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 88-100.
103
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Traduzido por João Baptista Machado. São Paulo: Martins
Fontes, 2000.
104
Luiz Roberto Barroso discorre sobre o movimento constitucionalista brasileiro, destacando sua vitória como
projeto político do último milênio; o caráter emancipatório da teoria crítica; o papel do pós-positivismo na
construção desta nova realidade; os novos paradigmas do Direito Constitucional brasileiro, entre os quais se
destaca a normatividade dos princípios e o caráter aberto da interpretação constitucional; e a necessidade do
resgate de valores éticos através de processos democráticos (BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos teóricos e
filosóficos do nodo direito constitucional brasileiro- / pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo. In
Revista Academia Brasileira de Direito Constitucional, n. 1. 2001, p. 17-59).
59
A Constituição há muito deixou de ser entendida como mero documento de belas
intenções políticas; carta de exortações morais aos poderes públicos; apostila de
recomendações aos gestores da coisa pública; epístola de aspirações realizáveis ao
sabor das contingências do momento político, e do fígado dos ocupantes temporais do
poder. Há muito morreu a idéia de carta política sem força de direito. [...] Hoje a
Constituição é vista como um todo normativo, como um todo leal, como bloco de
normas que constituem leis, valem como leis, como lei de todas as leis,
heterodeterminando a produção, a interpretação e aplicação de todas as partes da
ordem jurídica.
105
Disso resulta a compreensão de que os direitos fundamentais podem ser
objetivamente impostos, ou seja, de que sua concepção supera a esfera meramente
subjetiva, na medida em que toda norma é composta por ao menos uma modalidade
deôntica (mandato, obrigação ou proibição). Condição que exige não apenas o
compromisso com sua eficácia e efetividade, mas também a adoção de interpretação
vinculada a esta nova perspectiva constitucional.
Nesse campo, o primeiro questionamento diz respeito à posição ocupada
pela Constituição no universo de possibilidades que se abre diante do intérprete. Na
tentativa de indicar o grau de oponibilidade dos direitos fundamentais frente às demais
normas do ordenamento jurídico interno, Alexy
106
afirma que eles são determinados
por quatro elementos imprescindíveis, que funcionarão como ponto de tensão frente à
determinação política da hermenêutica constitucional. São eles: máxima hierarquia,
máxima força jurídica, máxima importância de seu objeto e máximo grau de
indeterminação.
O primeiro significa que, por estarem previstos na Constituição, os
direitos fundamentais possuem máximo status hierárquico-normativo no sistema
jurídico, o que torna possível o reconhecimento de inconstitucionalidade de atos que
os violem. O segundo, o abandono de uma feição meramente programática e a
assunção da prerrogativa de vinculação dos poderes do Estado, inclusive com o
estabelecimento do controle recíproco entre eles. O terceiro elemento impõe a
compreensão de que tais direitos regularão matérias que determinarão a estrutura
básica da sociedade. E o quarto evidencia o caráter aberto dos textos que tratam dessa
105
ESPÍNDOLA, 2005.
106
ALEXY, Robert. Os direitos fundamentais no estado constitucional democrático, traduzido do alemão por
Alfonso García Figueroa. CARBONELL, Miguel (org.). Neoconstitucionalismo(s). Madrid: Trotta, 2003, p.
32-47.
60
dos direitos fundamentais, o que enseja a complementação hermenêutica de seus
significados.
Os adjetivos conferidos por Alexy à norma de direito fundamental
remetem, ainda, à discussão de sua eficácia no seio do ordenamento jurídico. Embora a
doutrina brasileira já tenha produzido uma série de classificações a respeito desse
tema, é de ser ressaltar que a tendência de atribuição de força normativa aos
dispositivos constitucionais segue na contramão das propostas que lhe negam eficácia
plena.
107
Luís Roberto Barroso
108
sustenta que os dispositivos constitucionais
podem conter normas (a) de organização política do Estado, (b) definidoras de direitos
e (c) programáticas. As primeiras dizem respeito à instituição de órgãos da soberania,
à definição de competências e aos processos inerentes ao exercício do poder político,
sendo imediatamente aplicáveis. As segundas referem-se aos direitos fundamentais e
sua aplicabilidade depende da espécie de conduta determinada pela norma, ou seja, se
de mera abstenção, prestação positiva ou questão que dependa de regulamentação
posterior. Por fim, apresentam-se as normas programáticas, que apenas traçam as
linhas diretoras dos poderes públicos. Neste caso, não há que se falar na existência de
um direito subjetivo, o que inviabiliza a exigibilidade de seu cumprimento.
Todavia, na opinião do mesmo autor, embora a eficácia da norma de
direito fundamental esteja condicionada pela natureza da conduta exigida, ela sempre
traz a representação de um direito subjetivo
109
. Pelo que, resta analisar as dimensões
em que eles se apresentam e, conseqüentemente, a exigibilidade de suas
determinações.
107
Exemplo desta vertente doutrinária encontra-se na lição de José Afonso da Silva, para quem as normas
constitucionais podem ser classificadas como de eficácia (a) plena, que entram em vigor no momento da
promulgação da Constituição por possuírem conteúdo completo e acabado; (b) contida, que embora plenas em
conteúdo podem sofrer limitação posterior, determinada pelo sentido que se atribua a conceitos e meios nela
previstos, e (c) limitada ou reduzida, cuja vigência depende de complementação por norma infraconstitucional
(SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p.
82-83).
108
BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e
possibilidades da constituição brasileira. 4. ed. ampl. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 91-121.
109
“Singularizam o direito subjetivo, distinguindo-o de outras posições jurídicas, a presença, cumulada, das
seguintes características: a) a ele corresponde sempre um dever jurídico; b) ele é inviolável, ou seja, existe a
possibilidade de que a parte contrária deixe de cumprir o seu dever; c) a ordem jurídica coloca à disposição de
seu titular um meio jurídico — que é a ação judicial — para exigir-lhe o cumprimento, deflagrando os
mecanismos coercitivos e sancionatórios do Estado.” (BARROSO, 2000, p. 104)
61
3.4 Dimensões de direitos fundamentais
Os direitos fundamentais não devem ser concebidos como um conjunto
de determinações que permanece estanque ao longo da história. Pelo contrário,
constituem normas cuja instituição vem sempre se somar aos níveis anteriores de
proteção de conferidos ao indivíduo. Por isso, no lugar do termo gerações — que
parece anunciar etapas substitutivas de uma evolução —, entende-se mais apropriado
utilizar o vocábulo dimensões para designá-los.
110
A classificação dos direitos fundamentais em diferentes dimensões
procura transparecer a noção de que não há, entre suas diferentes espécies, uma
superação das formas de proteção conferidas aos indivíduos ou à coletividade, mas
apenas um acréscimo, a cada etapa da evolução da humanidade, dos modos pelos quais
o Estado é capaz de assegurar a vida e a dignidade do ser humano
111
. Por isso, a
preferência pelo uso do termo dimensão ao invés de geração, já que a intenção é evitar
qualquer confusão referente à supressão de instâncias assecuratórias.
A noção de superposição entre as dimensões de direitos fundamentais é
reforçada pelos princípios da irrevogabilidade e da complementariedade, apontados
por Comparato
112
como guias da aplicação dessa espécie normativa. O primeiro diz
respeito à impossibilidade de exclusão de qualquer direito do rol considerado essencial
à preservação da dignidade humana. Nada impede que lhe sejam acrescentados novos
direitos, como resultado de determinações histórico-culturais; entretanto, sua
diminuição representaria um retrocesso diante da idéia evolucionista. O segundo é
dado como requisito de sistematização dos direitos humanos, garantia de sua não-
contradição. Isso exige especial esforço no momento de interpretação e aplicação,
110
Deve-se ressaltar que, alguns autores, utilizam o vocábulo geração também para designar a idéia de
coordenação — e não superação — entre as diferentes etapas de desenvolvimento dos chamados direitos
fundamentais, a exemplo de Paulo Bonavides. (BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 13. ed.
São Paulo: Malheiros, 2002, p. 563).
111
PARDO, p. 114.
112
COMPARATO, 2001, p. 63-65.
62
quando será necessário tornar compatíveis normas aparentemente contraditórias, de
acordo com as peculiaridades do caso concreto.
Tais princípios evidenciam o caráter evolutivo dos direitos de proteção à
integridade humana, cujo conteúdo vem sendo apenas acrescentado ao longo da
história. Afinal, cada uma das dimensões dos direitos fundamentais corresponde a uma
faceta das dificuldades decorrentes da vida em sociedade.
Nesse sentido, embora tenham surgido como um apelo à preservação da
liberdade individual, assegurada perante particulares e o próprio Estado, na passagem
para o século XX, os direitos fundamentais sofrem flagrante transformação,
determinada por aspectos filosóficos, políticos e jurídicos. Na filosofia, observa-se o
abandono de propostas de fundamentação assentadas de forma absoluta numa
liberdade abstrata, com a assunção de concepções históricas de diferentes liberdades
concretas. A política deixa de lado posições solipsistas e incorpora a necessidade de
atendimento das demandas sociais, se necessário, mediante a intervenção direta dos
poderes públicos. E, no âmbito jurídico, são conferidos aos sujeitos de direito novo
status perante o Estado, que lhe asseguram não apenas a posição de defesa frente às
arbitrariedades deste último, como também a garantia de participação nas esferas
públicas de decisão e a possibilidade de exigir ações estatais positivas.
113
Historicamente, as discussões pertinentes aos direitos fundamentais
surgem com a mudança radical do modo como é encarada a relação entre o Estado e os
particulares, na proporção em que a pura e simples submissão dos súditos à vontade do
soberano — vista sob a perspectiva orgânica do Estado — passa a ser substituída pela
conquista de espaços cada vez maiores de ação individual
114
. Por isso, a primeira
categoria de direitos a ser instituída correspondeu à proteção das liberdades individuais
e a conseqüente limitação dos poderes de ingerência estatal sobre a esfera privada.
Trata-se de direitos de cunho negativo, com base nos quais é possível
resistir ou opor-se ao Estado. Direitos civis ou políticos, assim especificados:
[...] os direitos à vida, à liberdade, à propriedade e à igualdade perante a lei. São,
posteriormente, complementados por um leque de liberdades, incluindo as assim
113
LUÑO, Antonio Enrique Pérez. Derechos humanos, estado de derecho y constitución. 5. ed. Madrid:
Tecnos, 1995, p. 13.
114
BOBBIO, 1992, p. 4.
63
denominadas liberdades de expressão coletiva (liberdades de expressão, imprensa,
manifestação, reunião, associações, etc.) e pelos direitos de participação política, tais
como o direito de voto e a capacidade eleitoral passiva, revelando, de tal sorte, a
íntima correlação entre os direitos fundamentais e a democracia. Também o direito de
igualdade, entendido como igualdade formal (perante a lei) e algumas garantias
processuais (devido processo leal, habeas corpus, direito de petição) se enquadram
nesta categoria.
115
Os ideais liberais estão presentes nos primórdios das declarações dos
direitos humanos, cuja principal expressão se encontra nas declarações americanas e
francesas do século XVIII. Adotando como ponto de partida as concepções de
liberdade e cidadania, referidos documentos conferiram a cada sujeito social a
possibilidade de exercer e ser respeitado em sua vontade perante os demais membros
da sociedade, o que exige a presunção de que todos nascem iguais em direitos e
obrigações, sendo justamente esta “igualdade” o que legitima a ampla liberdade
conferida ao indivíduo. Esse regime confere direitos subjetivos, capazes de assegurar a
proteção daquele que age socialmente frente à reação arbitrária de outros indivíduos ou
mesmo do Estado.
No entanto, o contexto mundial muda após o término da segunda guerra
mundial, quando a destruição econômica dos países europeus e a necessidade de
redefinição da esfera civil exigem a alteração — ou ao menos a complementação — da
antiga concepção liberal e o implemento de medidas que garantam a intervenção
estatal nas esferas econômica e social. A universalidade antes imposta ao critério de
liberdade, agora, abre lugar para a especificação de interesses e necessidades, com
vista ao estabelecimento real da igualdade entre sujeitos e povos
116
.
Motivados por ideais social-democratas, surgem, então, os chamados
direitos fundamentais de segunda dimensão, que correspondem aos direitos sociais, os
quais, muito mais do que a proteção da esfera privada de ação, exigem do Estado
ações positivas destinadas à mitigação de desigualdades, mediante a redistribuição dos
bens disponíveis na sociedade.
Sua existência pressupõe o aumento da participação dos sujeitos nas
esferas públicas de discussão, protegida pelo exercício do sufrágio universal. O
115
SARLET, 2001, p. 50-51.
116
BOBBIO, 1992, p. 71.
64
Estado, aqui, não se limita a atividades repressivas, adotando ainda medidas
preventivas de conflitos, na medida em que assume posição central na redistribuição
de bens disponíveis na sociedade. “Enquanto os direitos individuais funcionam como
um escudo protetor em face do Estado, os direitos sociais operam como ‘barreiras
defensivas do indivíduo perante a dominação econômica de outros indivíduos.”
117
De acordo com David Wilson de Abreu Pardo
118
, o advento do Estado
social marcou a passagem do constitucionalismo jurídico para o político, na medida
em que incorporou à noção de Constituição as conquistas sociais alcançadas através do
exercício da cidadania. Todavia, é preciso resgatar o caráter jurídico dessa nova
realidade social, sem, contudo, perder de vista os valores sociais oriundos do processo
histórico de conquista da cidadania e de igualdade. Eis o motivo pelo qual não será
possível, nesse processo de re-juridicização, apenas retornar aos antigos conceitos
jurídicos do Estado liberal. A incorporação de valores à ordem constitucional exige
que sua juridicização tome em consideração as conquistas históricas da humanidade.
Finalmente, vislumbra-se o surgimento dos direitos de terceira e quarta
gerações, os quais, amparados no princípio da solidariedade, impõem ao Estado a
realização de ações positivas destinadas à proteção das coletividades. Neste último
momento, já não basta a ação destinada à proteção da liberdade e da igualdade,
exigindo-se ainda a adoção de medidas voltadas à consecução de ideais de
solidariedade. Neste campo, as fronteiras da individualidade parecem desvanecer
diante da perspectiva trans-individual. O que se quer proteger, agora, é não mais o
sujeito ou um conjunto determinado de seres humanos, mas contextos universais como
o direito à paz e a um meio ambiente saudável.
3.5 Aspectos jurídico-normativos
A compreensão de que os direitos fundamentais correspondem a
117
BARROSO, 2000, p. 101.
118
PARDO, p. 115-117.
65
determinações constitucionais de proteção à integridade humana e de que a
Constituição já não pode ser concebida como mera carta política ou comando
estritamente formal destituída de força jurídica vinculante — embora faça uso de todos
esses elementos —, impõe a análise de alguns dos aspectos de sua estrutura normativa.
Deve-se ter presente que a matriz política da Constituição acaba por
impor peculiaridades a seu texto normativo, dentre as quais se destacam a
superioridade hierárquica, a natureza ambígua e vaga da linguagem nela empregada, o
conteúdo específico da norma constitucional e seu o caráter político. Contudo, isso não
afasta a consideração de que ela materializa a tentativa de substituição do poder
político pelo poder jurídico
119
. Segundo David Schnaid
120
,
a interpretação da Constituição deve levar em alta consideração certas características e
particularidades, que fazem com que, de um lado, como normas jurídicas, se lhe
apliquem todos os processos de hermenêutica admitidos pelo Direito Positivo e
princípios aí consagrados; e, de outro lado, mereça um tratamento distintivo e
paralelo.
Dentre tais características e peculiaridades, destacam-se: (a) a
potencialidade de grande repercussão política do conteúdo da norma; (b) a
generalidade da norma, cuja linguagem adota posição suficientemente aberta à
adaptação do contexto temporal em que se dará sua aplicação; (c) o caráter pouco
técnico da linguagem, por se tratar de norma emanada do e para o povo; (d) a
Constituição, ao contrário das demais normas, cristaliza um conjunto de valores que
representam os fins do Estado; (e) sua vulnerabilidade, determinada por pressões
políticas sabidamente exercidas sobre o Poder Judiciário.
121
Em linha semelhante segue Konrad Hesse, para quem “a norma
constitucional não tem existência autônoma em face da realidade”
122
. Influencia e
deixa-se constantemente influenciar pelo contexto histórico que a circunda, o que
implica num mútuo condicionamento entre o dever-ser, próprio da esfera
constitucional jurídica, e o ser, da esfera constitucional real. Nesse sentido:
119
BARROSO, 2003, p. 110-111.
120
SCHNAID, David. Filosofia do direito e interpretação. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2004, p. 303-312.
121
SCHNAID, 2004, p. 308.
122
HESSE, Konrad. A força normativa da constituição (Die normative Kraft der verfassung). Traduzido por.
Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1991, p. 14.
66
Se o direito e, sobretudo, a Constituição, têm a sua eficácia condicionada pelos fatos
concretos da vida, não se afigura possível que a interpretação faça deles tábua rasa.
Ela há de contemplar essas condicionantes, correlacionando-as com as proposições
normativas da Constituição. A interpretação adequada é aquela que consegue
concretizar, de forma excelente, o sentido (Sinn) da proposição normativa dentro das
condições reais dominantes numa determinada situação.
123
A partir dessas considerações e da compreensão dos diferentes níveis
discursivos aos quais diz respeito a teoria da ação comunicativa, proceder-se-á ao estudo de
alguns dos aspecto da norma de direito fundamental.
3.5.1 Coação ou respeito voluntário às normas?
O que faz com que os sujeitos se comportem de acordo com as normas
jurídicas vigentes? Aparentemente, há dois modos de explicar este fenômeno: o medo
da sanção ou a aceitação e internalização do conteúdo da norma. Na primeira hipótese,
os indivíduos são coagidos a agir de certa maneira, ou seja, têm sua esfera de liberdade
limitada por determinações externas. Ainda que a contragosto, comporta-se de acordo
com os padrões estabelecidos para que não venham a ser penalizados. Ao contrário do
que ocorre no segundo esquema, no qual se verifica o respeito às normas decorrente da
incorporação de seu conteúdo ao padrão comportamental pessoal. A limitação da ação,
neste caso, provém de determinações internas e não mais externas.
Habermas conjuga as duas propostas ao embasar a legitimidade do
direito em duas diferentes perspectivas: a factualidade, determinada pela existência da
sanção, que coage os indivíduos a observá-lo; e a validade decorrente do respeito a
procedimentos discursivos, cujo resultado seria a aceitação das normas coletivamente
impostas. Esta última distingue-se “da validade social dos standards exercitados
factualmente, das expectativas estabilizadas através da ameaça de sanções ou do
simples costume.”
124
Sua exposição acrescenta ao direito uma nova dimensão, ao admitir que
123
HESSE, 1991, p. 22-23.
124
HABERMAS, 1997, v. 1, p. 39.
67
os sujeitos podem obedecer a suas ordens não porque temam a sanção, mas por
acreditarem que aquela seja a “melhor forma de agir”. Nesse norte, ao mesmo tempo
em que permite compreender a dimensão do uso da força legítima, capaz de impor aos
sujeitos o cumprimento de normas, faz recair sobre a idéia de internalização a
oponibilidade do direito.
Como visto no capítulo antecedente, a validade discursiva assume
destaque na proposta de Habermas, pois, embora não negue a importância da dimensão
factual representada pela sanção, ele apóia a pretensão de validade do sistema jurídico
na possibilidade de estabelecimento de consensos sociais. Estes consensos somente se
fazem possíveis nos contextos do mundo da vida, ou seja, em ambientes onde
predominam os comportamentos voltados para o entendimento e não para a simples
satisfação de interesses pessoais.
De acordo com a teoria habermasiana, a vontade coletiva não coincide
com a soma de vontades individuais ou com qualquer noção transcendental
(explicações mágicas do mundo). Ao contrário, ela é formada a partir da interação
promovida em comunidades de fala, onde cada indivíduo é capaz de expressar
livremente sua vontade, apresentar suas razões de agir, convencer os demais presentes
e deixar-se convencer por outros argumentos. Desse contexto, resulta a constituição de
discursos coletivos autônomos, que já não se confundem com interesses individuais e
tampouco com a contrafactualidade de concepções que explicam a existência de uma
vontade coletiva, por hipóteses precedentes às próprias formações social e
comunicativa.
O reconhecimento da norma reforça a idéia de construção de um núcleo
de direitos fundamentais, decorrentes não apenas da imperatividade de satisfação de
necessidades biológicas do ser humano — o que coincide com a noção de direito
natural —, mas também de necessidades inerentes a sua convivência social. Por isso,
sua legitimidade está condicionada à observação de processos que asseguram a
participação de todos no momento de sua instituição.
Essa nova perspectiva permite superar a bipolaridade norma-sanção,
ressaltando o aspecto consensual do direito. Não um consenso qualquer, pressuposto
por modelos contratualistas, mas o resultado da implementação de procedimentos
68
democráticos, capazes de assegurar a participação de todos na comunidade de fala.
Um exemplo claro da importância da dimensão discursiva para a
construção dos direitos fundamentais está no estabelecimento de normas internacionais
voltadas à proteção da dignidade humana. Afinal, nesse caso, a obediência às normas
decorre mais de uma sujeição voluntária do que da coação exercida pela ameaça de
sanção, já que a idéia de soberania nacional e a preponderância de sistemas jurídicos
monistas ainda impõem limites à efetividade da ordem jurídica internacional.
Bobbio
125
apresenta o reconhecimento internacional dos direitos
humanos e a conseqüente formação de documentos escritos que os declarem numa
ordem evolutiva frente a sua incorporação aos ordenamentos jurídicos internos de cada
Estado. Para ele, a discussão acerca da necessidade de instituição desses direitos surge
inicialmente no âmbito filosófico, como algo que deve-ser envolvido por uma estrutura
jurídico-normativa e que serve apenas de inspiração para o legislador interno.
Com o tempo, eles acabam sendo incorporados às ordens jurídicas
internas, mediante processos de positivação. Desse modo, tornam-se parte integrante
do conteúdo de normas constitucionais ou infraconstitucionais, assumindo eficácia da
qual não dispunham, uma vez que passam a estar resguardados por instrumentos de
coação contra tentativas de violação.
Todavia, a exigência de proteção da dignidade humana suplantou a órbita
interna, exigindo a instituição de parâmetros universais, que acabaram ensejando a
internacionalização dos direitos fundamentais. Nesta última fase, que culmina na
Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948), vislumbra-se a afirmação
positiva e universal destes direitos. O movimento de internacionalização dos direitos
fundamentais foi marcado por acontecimentos históricos, que reacenderam discussões
acerca da necessidade de proteção do ser humano para além das fronteiras do Estado.
Universal no sentido de que os destinatários dos princípios nela contidos não são mais
apenas os cidadãos deste ou daquele Estado, mas todos os homens; positiva no sentido
de que põe em movimento um processo em cujo final os direitos do homem deverão
ser não mais apenas proclamados ou apenas idealmente reconhecidos, porém
efetivamente protegidos até mesmo contra o próprio Estado que os tenha violado.
126
125
BOBBIO, 1992, p. 28-30.
126
BOBBIO, 1992, p. 30.
69
Desde a segunda guerra mundial, os projetos de fundamentação desta
esfera de direitos têm se voltado para a reivindicação de seu caráter universal e supra-
estatal. Nessa esteira, verifica-se uma ampliação do rol de seus sujeitos ativos, que
passam a ser todos os seres humanos e não mais apenas súditos de determinado
Estado. Além disso, quanto à natureza jurídica dos direitos fundamentais elevados à
ordem internacional, é de se anotar a evolução de seus instrumentos de positivação e
efetiva tutela jurídica, prestada por organizações internacionais a cujas determinações
estarão sujeitos os Estados e os particulares que a elas recorrerem.
127
3.5.1 Configuração de regras e princípios
Outro aspecto sujeito à investigação, no contexto da ação comunicativa,
diz respeito à abertura de sentido da norma de direitos fundamentais. Nesse contexto,
entram em cena as diferentes perspectivas de participação discursiva e seu papel na
tarefa de configuração do direito.
Segundo Katya Kozicki:
O direito, na sua expressão lingüística, é composto por uma série de signos os quais,
em sua grande maioria, assumem significados absolutos. De certa forma, negar a
possibilidade de significados plurais a um mesmo signo jurídico constitui um fetiche
dos juristas, para os quais a lei ganha contornos de verdade absoluta, mascarando o
seu conteúdo ideológico. Ressaltar a insuficiência da linguagem jurídica, revelando o
seu caráter simbólico é, ao mesmo tempo, desmistificar o direito enquanto sistema
fechado e revelar a possibilidade de sua compreensão enquanto práxis institucional e
instrumento regulador de conflitos e interesses.
128
A norma jurídica é o resultado da elaboração exegética de um ou mais
enunciados normativos, a (re)construção jurídica decorrente da interpretação de um
texto de norma. Portanto, seu significado só pode ser alcançado através de uma
atividade interpretativa que não se limite a descrevê-lo, mas se preocupe em construí-
127
LUÑO, 1995, p. 129-130.
128
KOZICKI, Katya. H. L. A. Hart: a hermenêutica como via de acesso para uma significação interdisciplinar
do direito. Florianópolis: UFSC, Dissertação de mestrado, 1993, p. 97.
70
lo, ou melhor, a reconstruí-lo, na medida em que se consideram os limites impostos
pela linguagem do texto e núcleos de sentido apriorísticos veiculados pela tradição
129
.
Como adverte Peter Häberle, a interpretação dos direitos fundamentais
compete não apenas aos órgãos judiciários, mas a todos os membros da sociedade.
Nesta medida, ela “traduz a pluralidade da esfera pública e da realidade (die
pluralistische Öffentlichkeit und Wirklichkeit), as necessidades e as possibilidades da
comunidade, que constam do texto, que antecedem os textos constitucionais ou
subjazem a eles”
130
. Com isso, evita toda tendência de superestimação do texto
normativo, em prol do significado que a norma assume em contextos da realidade.
A adoção de um sistema aberto de regras e princípios permite o diálogo
entre a normatividade universalizante e a realidade social. Abertura que se dá pela
percepção da necessidade de integração entre o conjunto normativo e os valores
presentes na sociedade. Além disso, por facilitar a coordenação entre interesses
eventualmente conflitantes, a abertura do sistema constitucional proporciona a
manutenção do princípio da unidade da Constituição, o que facilita a reconquista da
sua força normativa.”
131
Robert Alexy
132
evidencia a essencialidade da atividade hermenêutica
quanto à determinação do conteúdo de direitos fundamentais, quando os concebe como
normas adscritas ao texto da Constituição, ou seja, como normas cujo conteúdo
decorre da atribuição de sentido, direta ou indireta, relativa aos enunciados
constitucionais fundamentais.
A atividade de adscrição pode resultar na construção de regras ou
princípios. Ambos são espécies de normas, que se diferenciam pelo modo como se
referem às situações concretas a que são aplicados, pelo conteúdo das soluções
oferecidas a priori, pelos critérios de interpretação normativa de que se valem e pela
fórmula adotada diante da verificação do conflito ou da colisão.
129
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 2. ed. São
Paulo: Malheiros, 2003, p. 22-25.
130
HÄRBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da constituição –
contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da constituição. Traduzido por Gilmar Ferreira
Mendes. Porto Alegra: Sergio Antonio Fabris Editor, 1997. p. 43.
131
PARDO, P. 122-123.
132
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Traduzido por por Ernesto Gárzon Valdés.
Madrid: Centro de Estúdios Constitucionales, 1997, p. 66-73.
71
Embora não exista consenso quanto aos critérios de diferenciação
apontados, em linhas gerais: (a) regras se dirigem às ações de forma específica,
ditando o comportamento a ser adotado por quem estiver submetido a ela, enquanto
princípios correspondem a determinações inespecíficas, direcionadas a situações gerais
hipotéticas e à atividade interpretativa; (b) regras contêm soluções definitivas,
enquanto princípios sempre apresentam soluções prima facie; (c) regras são
interpretadas de acordo com critérios lógicos, enquanto a interpretação de princípios
guia-se por critérios teleológicos, servindo estes, também, como fonte inspiradora,
complementar e de própria determinação de sentido daquelas; e finalmente (d)
enquanto o conflito de regras resolve-se pelo questionamento de sua validade — tudo-
ou-nada
133
—, a colisão de princípios resolve-se pela ponderação — otimiza-se a
aplicação de cada um dos princípios até o ponto máximo onde se verifica sua colisão e
a necessidade de escolha diante do caso concreto
134
.
Há, ainda, outros critérios comuns de diferenciação entre regras e
princípios: (a) os princípios encerram valores, as regras não necessariamente; (b) a
validade dos princípios decorre de seu próprio conteúdo, enquanto a das regras deriva
de outras regras e princípios; (c) muitos princípios têm o compromisso histórico de
serem universais, absolutos, objetivos e permanentes, o que não ocorre com as regras;
(d) os princípios explicam e justificam as regras; (e) a aplicação dos princípios exige
maior carga argumentativa, ao passo que as regras têm uma aplicação mais burocrática
e técnica.
135
Além daqueles já enumerados, Ana Paula de Barcellos propõe a
instituição de um critério auxiliar: o dos efeitos pretendidos pelas normas. Em sua
opinião, se comparados às regras, os princípios têm um maior grau de indeterminação
quanto aos efeitos pretendidos e uma mutiplicidade de meios para realizá-los. Todavia,
a indeterminação de seus efeitos se dá somente a partir de um certo ponto, qual seja o
núcleo duro em relação ao qual não é possível a ponderação.
136
133
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Traduzido por Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins
Fontes, 2001.
134
Segundo Alexy, o conflito de regras resolve-se pelo critério de validade, que é absoluto, ao passo que a
colisão de princípios não resulta na conclusão de que um deles é inválido para toda e qualquer situação, mas
apenas que não pode ser aplicado naquele caso concreto, ou ao não em sua plenitude (ALEXY, 1997, p. 86-90)
135
BARCELLOS, 2002 p. 47-50.
136
BARCELLOS, 2002, p. 51-57.
72
Canotilho acresce aos demais elementos diferenciadores outros dois
fatores: (a) os princípios assumem papel fundamental no interior do ordenamento
jurídico, devido a sua posição hierárquica ou importância estruturante interna; e (b) os
princípio são standards juridicamente vinculantes assentados sobre a noção de justiça,
ao passo que as regras podem ter conteúdo meramente funcional.
137
A distinção apresentada não está isenta de críticas, a começar das
dificuldades advindas do caráter ambíguo da linguagem. Segundo Humberto Ávila
138
,
as regras são aplicadas na forma se-então, ao passo que os princípios apenas fornecem
o meio para que a regra incidente sobre a realidade seja localizada. Em sua opinião,
apesar de permitir apontar o caráter descritivo das primeiras e direcional desses
últimos, este critério torna-se ambíguo na medida em que, diante da imprecisão da
linguagem, somente a atuação do intérprete vai estabelecer a diferença entre ambos.
Em síntese, na opinião do mencionado autor:
As regras são normas imediatamente descritivas, primariamente retrospectivas e com
pretensão de decidibilidade e abrangência, para cuja aplicação se exige a avaliação da
correspondência, sempre centrada na finalidade que lhes dá suporte ou nos princípios
que lhes são axiologicamente sobrejacentes, entre a construção conceitual da descrição
normativa e a construção conceitual dos fatos. (...) Os princípios são normas
imediatamente finalísticas, primariamente prospectivas e com pretensão de
complementaridade e de parcialidade, para cuja aplicação se demanda uma avaliação
da correlação entre o estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da
conduta havida como necessária à sua promoção.
139
Ambas as espécies normativas são essenciais à configuração do sistema
jurídico aberto. A uma, porque um modelo constituído exclusivamente por regras
conduziria “a um sistema jurídico de limitada racionalidade prática”
140
, sem abertura
para sua complementação ou desenvolvimento. A duas, porque um modelo constituído
exclusivamente por princípios seria marcado por extrema indeterminação. Nesse norte,
o ideal consiste na coordenação entre tais modalidades.
141
Não há dúvida de que, no caso concreto, as regras podem opor-se umas
às outras, assim como os princípios podem colidir entre si. Em se verificando tais
137
CANOTILHO, 1998, p. 1034.
138
ÁVILA, 2003, p. 31-51.
139
ÁVILA, 2003, p. 70.
140
CANOTILHO, 1998, p. 1036.
141
CANOTILHO, 1998, p. 1036.
73
oposições, o conflito de regras deverá ser solucionado por critérios de validade, ao
passo que a colisão de princípios exige a incidência da proporcionalidade. Máxima
que corresponde a técnica de ponderação dos interesses em jogos, sempre voltada à
maximização de seus resultados. Característica que põe em destaque a abertura de
sentido da norma de direito fundamental e os diferentes elementos que podem vir a ser
considerados para a definição de seu conteúdo.
142
Nos chamados casos difíceis, por exemplo, revela-se a necessidade de
integração de valores como critério de solução do conflito surgido em sede
constitucional. Nessa hipótese, estar-se-á diante da necessidade de realização de uma
escolha política quanto à solução a ser dada para a hipótese concreta, e não diante de
mera atividade de interpretação jurídico-constitucional. Escolha que se impõe em duas
hipóteses: quando aplicável a ponderação ou diante da escassez do bem jurídico
constitucionalmente protegido (casos em que a discussão dirá respeito ao interesse
público ou à própria viabilidade da medida perseguida).
Segundo Karl Larenz
143
, a interpretação constitucional deve se dar,
inicialmente, de acordo com os critérios tradicionais de interpretação, quais sejam o
gramatical, o histórico, o teleológico e o sistemático. Isto, em virtude da juridicidade
do texto constitucional e da necessidade de estabilização deste sistema. Entretanto,
casos haverá em que a mera atividade de interpretação não se mostrará suficiente,
exigindo uma decisão que vá além da esfera jurídica, invadindo por conseqüência a
esfera política. Tarefa para a qual se exige o comprometimento do intérprete frente aos
ideais presentes na sociedade em que se insere a decisão a ser tomada.
3.5.3 A aplicação da norma de direito fundamental
A participação discursiva, já contextualizada diante das atividades de
criação (item 3.5.1) e interpretação (item 3.5.2) dos direitos fundamentais, encontra
142
ALEXY, 1997.
143
LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 3. ed. Traduzido por por José Lamego. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, 510-519.
74
ainda uma última dificuldade: a aplicação de tais normas. A uma, porque a admissão
de que os direitos fundamentais constituem um sistema aberto de regras e princípios
oferece ao intérprete um universo de possibilidades, que precisam ser disciplinadas
diante do ideal democrático. A duas, porque, em casos de escassez dos bens
almejados, a efetivação de tais direitos jamais poderá acontecer sem que se esteja, com
isso, no mínimo, violando o princípio da igualdade — caro à teoria da ação
comunicativa.
Quanto ao primeiro aspecto, deve-se questionar, inicialmente, qual a
natureza da atividade de interpretação pretoriana, de modo a determinar seu grau de
vinculação às determinações genuinamente democráticas. Segundo Canotilho
144
, as
posições doutrinárias interpretativistas — a qual se filia Habermas — limitam a
atividade jurisdicional à mera interpretação das normas ditadas pelo poder legislativo,
já que esta é a esfera genuinamente democrática de constituição do direito. Em sentido
contrário, são apresentadas as posições não-interpretativistas, que conferem aos juízes
o poder de criação da norma jurídica, inclusive com a possibilidade de “invocarem e
aplicarem ‘valores e princípios substantivos’ — princípios da liberdade e da justiça —
contra actos da responsabilidade do legislativo em desconformidade com o ‘projecto’
da constituição.”
145
De toda forma, não há como afastar a percepção de que, tanto maior será
a possibilidade de atuação jurisdicional e de preenchimento do conteúdo dos direitos
fundamentais, quanto menor for a densidade dos dispositivos que lhe disserem
respeito. Essa circunstância acentua a abertura de sentido proporcionada pela
ambigüidade e vagueza próprias da linguagem, trazendo à tona a discussão referente à
possibilidade de identificação de parâmetros, capazes de justificar, por critérios
racionais, as escolhas referentes à construção hermenêutica da norma de direito
fundamental.
A teoria da ação comunicativa
146
constitui uma das tentativas de
racionalização da decisão que dita o conteúdo dessa norma. Trata-se de proposta
formal, cujos elementos essenciais estão colocados sobre a base democrática de
144
CANOTILHO, 1998, p. 1069-1070.
145
CANOTILHO, 1998, p. 1070.
146
HABERMAS, 1997.
75
participação dos sujeitos na esfera pública. Nesta perspectiva, são justamente a
regulamentação desta participação — através do estabelecimento de garantias mínimas
como as de não exclusão, sinceridade e efetiva possibilidade de ação em comunidades
de fala — e a necessidade de justificação que asseguram a não-arbitrariedade das
decisões adotadas pelo Poder Judiciário.
A outra vertente, de feição material, sustenta que a racionalidade das
decisões pertinentes aos direitos fundamentais é alcançada por sua não contrariedade
ao núcleo mínimo e (idealmente) universal de direitos que visam à proteção da
dignidade humana. Isso porque, referidas normas jamais poderão deixar de assegurar a
qualquer indivíduo os direitos integrantes do denominado núcleo mínimo
existencial
147
. Trata-se de direitos inerentes à própria condição de humanidade, os
quais dizem respeito tanto ao aspecto biológico de surgimento, desenvolvimento e
manutenção da vida, quanto à questão sócio-cultural.
Embora assim possa parecer, não existe necessária contradição entre as
posições apresentadas. Pelo contrário, sua complementação provavelmente apresente
resultado positivo diante de situações de flagrante desigualdade, em virtude do
controle mútuo decorrente da ação coordenada do legislativo e do judiciário. Daquele
em relação a este, por conta da necessidade de justificação das decisões judiciais, que
necessariamente estarão vinculadas às determinações advindas da esfera legislativa. E,
na contramão, pelo fundamento material pressuposto, cuja aplicação é capaz de
corrigir — ou ao menos minimizar — eventuais disparidades verificadas no processo
de participação discursiva inerente ao processo legislativo.
Tais conclusões permitem passar ao segundo panorama de dificuldades
apresentado pelos direitos fundamentais: sua aplicação diante da escassez dos bens
almejados. E, para isso, com amparo na perspectiva constitucional até aqui exposta,
parte-se do pressuposto de que, independente de sua dimensão, todos os direitos
147
Segundo Barcellos, “a idéia do mínimo existencial ou de núcleo da dignidade humana [...] vem sendo
proposta por parte da doutrina como uma solução para boa parte dessas dificuldades, na medida em que procura
representar um subconjunto, dentro dos direitos sociais, econômicos e culturais, menor — minimizando o
problema dos custos — mais preciso — procurando superar a imprecisão dos princípios — e, mais importante,
que seja efetivamente exigível do Estado, sob a forma da eficácia jurídica positiva ou simétrica.” (BARCELLOS,
2002, p. 118). Essa noção compreende os direitos à educação, saúde básica, assistência aos desamparados e o
acesso à justiça (BARCELLOS, 2002, p. 247-301).
76
fundamentais são espécies de direitos subjetivos
148
.
A questão da aplicabilidade não oferece maiores problemas quando se
está lidando com direitos de liberdade, uma vez que, nesta hipótese, seu cumprimento
se resume à abstenção do poder público. Contudo, não é esta a situação dos chamados
direitos de natureza prestacional, os quais podem ser divididos em três modalidades:
direitos à proteção; direitos à organização e procedimento; e direitos às prestações em
sentido estrito.
Alexy
149
sustenta que a primeira modalidade confere a seu titular o poder
de exigir do Estado a proteção de sua esfera subjetiva de direitos contra a intervenção
de terceiros, não se confundindo com os direitos de defesa, já que estes simplesmente
impedem a intervenção estatal. Sua realização não estará aberta à ampla
discricionariedade, uma vez que sujeita à consulta de viabilidade e à ponderação, de
modo a minimizar os efeitos da invasão da esfera jurídica de terceiros.
Já os direitos a organização e procedimento possuem caráter
instrumental, objetivando o exercício eficaz de direitos fundamentais. Seu caráter
subjetivo identifica-se com o direito de exigir dos tribunais a interpretação conforme a
Constituição e os direitos fundamentais, bem como no direito de exigir do legislador a
sanção de normas relativas a procedimento e organização.
Os direitos a prestações em sentido estrito, por sua vez, são “direitos do
indivíduo frente ao Estado a algo quese o indivíduo tivesse meios financeiros
suficientes e se encontrasse no mercado uma oferta suficiente — poderia obter também
dos particulares”
150
. Eles correspondem à categoria direitos fundamentais sociais — de
segunda, terceira e quarta dimensões —, em relação à qual surge o problema da
148
Neste sentido, manifesta-se João dos Passos Martins Neto, para quem “o direito subjetivo pode ser definido
como a prerrogativa ou possibilidade, reconhecida a alguém e correlativa de um dever alheio suscetível de
imposição coativa, de dispor como dono, dentro de certos limites, de um bem atribuído segundo uma norma
jurídica positiva.” (MARTINS NETO, João dos Passos. Direitos fundamentais: conceito, função e tipos. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 77). Cumpre esclarecer, que a perspectiva aqui adotada não ignora
as posições contrárias ao entendimento esposado, cujos apontamentos podem ser traduzidos na preocupação
expressada por Canotilho, quanto aos problemas apresentados pela atividade prestacional vinculada aos direitos
fundamentais. Eles consistem em saber: (a) se os indivíduos podem derivar diretamente das normas
constitucionais pretensões a prestações, em sentido positivo; (b) se é possível exigir do poder legislativo o
cumprimento de sua função regulamentadora e a garantia de igual participação nas prestações instituídas pelo
poder público; e (c) se tais direitos vinculam objetivamente os poderes públicos (CANOTILHO, 1998, p. 374). A
opção realizada, portanto, consiste apenas no posicionamento teórico que objetiva manter sua coerência frente ao
que ficou dito, em linhas anteriores, sobre a recente perspectiva da teoria constitucional.
149
ALEXY, 1997, p. 419-501.
150
ALEXY, 1997, p. 482.
77
escassez dos bens protegidos pela norma, que é de ordem real e não abstrata.
Gustavo Amaral
151
ressalta que, por imporem uma prestação positiva do
Estado, os direitos sociais dependem da intermediação da esfera legislativa e
orçamentária para gozar de eficácia. Isso acontece em virtude da necessidade de ação
— e não mera omissão — e da escassez dos bens em disputa. Quanto a sua eficácia,
diverge a doutrina: uns negam-na, sob o argumento de que sua carga positiva depende
de intervenção legislativa e da disponibilidade do bem perseguido; outros admitem-na,
por equiparação aos direitos de liberdade; havendo, ainda, quem sustente a aplicação
do princípio da reserva do possível.
Segundo Barcellos:
A expressão reserva do possível procura identificar o fenômeno econômico da
limitação dos recursos disponíveis diante das necessidades quase sempre infinitas a
serem por ele supridas. [...] a reserva do possível significa que, para além das
discussões jurídicas sobre o que se pode exigir judicialmente do Estado — e em última
análise da sociedade, já que é esta que o sustenta —, é importante lembrar que há um
limite de possibilidades materiais para esses direitos. Em suma: pouco adiantará, do
ponto de vista prático, a previsão normativa ou a refinada técnica hermenêutica se
absolutamente não houver dinheiro para custear a despesa gerada por determinado
direito subjetivo.
152
Em que pese toda tentativa de fundamentação anteriormente perpetrada,
seja ela formal ou material, há que se reconhecer as barreiras impostas pelas
circunstâncias concretas de uma dada sociedade. Ressalvada a hipótese de má
distribuição de recursos, contra elas não há como insurgir-se. Talvez por isso, como
adverte Alexy
153
, normalmente, as Constituições sejam bastante cautelosas no que
tange aos direitos fundamentais, incluindo expressamente em seus textos apenas
direitos de defesa. Nesse sentido, grande parte dos direitos de caráter prestacional
advém de normas adscritas, revelando posições jurídicas prima facie, portanto, sujeitas
a restrições.
151
AMARAL, Gustavo. Direito, escassez & escolha: em busca de critérios jurídicos para lidar com a escassez
de recursos e as decisões trágicas. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 61.
152
BARCELLOS, 2002, p. 236-237.
153
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Traduzido por por Ernesto Gárzon Valdés.
Madrid: Centro de Estúdios Constitucionales, 1997.
78
3.6 Abordagem axiológica: limites da teoria habermasiana
Demonstrou-se que os direitos fundamentais constituem um conjunto
normativo incorporado à Constituição, cujo núcleo de sentido coloca os sujeitos em
posições que avançam a mera proteção contra a invasão de suas esferas jurídicas
privadas. Eles comportam também ações positivas do Estado, as quais trazem
dificuldades quanto a sua implementação, tanto no que diz respeito à escassez dos bens
aos quais se referem, quanto ao conflito verificado diante da aplicação possível de
norma em sentido contrário.
O confronto entre normas fundamentais, estabelecidas por procedimentos
legislativos semelhantes e igualmente respeitantes a escolhas democráticas, exige o
estabelecimento de critérios de escolha, que costumam estar atrelados aos valores
aceitos por uma determinada sociedade. Apresentam, assim, conteúdo material.
A dificuldade está, no entanto, em determinar objetivamente quais sejam
esses valores, diante da complexidade da sociedade moderna. A exemplo disso,
imagine-se um investigador que, educado sob a égide da cultura ocidental, tente
avaliar a prejudicialidade de costumes orientais como a circuncisão ou a submissão de
mulheres a todo tipo de degradação praticada por seus maridos. Em que pese seu
desconforto no momento em que toma conhecimento dos fatos, é preciso considerar
que toda leitura que se pretenda séria não pode ignorar as diferenças culturais
existentes entre o sujeito que procede a análise e aquele que está inserido no contexto
que constitui objeto da investigação. Afinal, não parece válido julgar uma realidade
com padrões que lhe são absolutamente estranhos.
Pelo fato de a questão axiológica não estar sujeita à verificação racional
de seus motivos determinantes, Habermas defende a completa desvinculação entre as
idéias de direitos fundamentais e valores, ao adotar uma perspectiva procedimental. Os
direitos fundamentais dizem respeito à forma, ao respeito de procedimentos que
asseguram a todos os sujeitos a participação nas esferas públicas de discussão e o
direito de não serem dela excluídos. Não há opção quanto aos valores ou bens
especificamente protegidos, os quais serão eleitos em cada contexto histórico.
79
Essa separação pode ser explicada a partir da distinção entre moral e
direito. De acordo com a teoria habermasiana, o único momento de interseção entre
essas esferas — se acaso existente — é o da motivação subjetiva que guia a ação de
cada indivíduo em espaços públicos de discussão. Afinal, “o conteúdo moral de
direitos fundamentais e de princípios do Estado de direito se explica [apenas] pelo
fato de que os conteúdos das normas fundamentais do direito e da moral, às quais
subjaz o mesmo princípio do discurso, se cruzam.”
154
Sua proposta sugere uma reinterpretação procedimental da teoria dos
princípios de Ronald Dworkin
155
, para quem o direito é um fato social inerente à
prática argumentativa, cuja definição relaciona-se mais com a prática judicial do que
com elocubrações teóricas que possam ser feitas a seu respeito. “Os processos judiciais
sempre suscitam, pelo menos em princípio, três diferentes tipos de questões: questões
de fato, questões de direito e as questões de moralidade política e fidelidade”
156
.
Portanto, toda decisão judicial estaria, invariavelmente, associada à dimensão moral da
ação humana.
A diferença está no enfoque quanto ao momento, por essência, de criação
do direito. Enquanto Habermas ressalta o aspecto dialógico do contexto legislativo,
limitando a atuação dos demais poderes estatais ao mero cumprimento das
determinações advindas do processo democrático, Dworkin enfatiza a atividade de
interpretação judiciária. Ele opõe-se à adoção de políticas conciliatórias, sob a
justificativa de que eles podem ser fonte de grande injustiça, quando a prática põe em
confronto sujeitos detentores de distintas capacidades de argumentação e ação. Por
isso, em sua opinião, a legitimidade das normas que regulam a vida de uma
comunidade deve estar pautada em princípios. Este modelo:
Insiste em que as pessoas são membros de uma comunidade política genuína apenas
quando aceitam que seus destinos estão fortemente ligados da seguinte maneira:
aceitam que são governadas por princípios comuns, e não apenas por regras criadas
por um acordo político. [...] Os membros de uma sociedade de princípios admitem que
seus direitos e deveres políticos não se esgotam nas decisões particulares tomadas por
154
HABERMAS, 1997, v. 1, p. 256.
155
HABERMAS, 1997, v. 1, p. 297.
156
DWORKIN, Ronald. O império do direito. Traduzido por Jeferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins
Fontes, 1999, p. 5-6.
80
suas instituições políticas, mas dependem, em termos mais gerais, do sistema de
princípios que essas decisões pressupõem e endossam.
157
A vinculação do sistema ao modelo apresentado pode se mostrar
problemática diante da colisão de princípios, sendo este um dos pontos de divergências
entre as teorias em exame. Enquanto Dworkin vislumbra nesta circunstância um
problema de fundamentação, solucionável por meio da argumentação, Habermas
afirma tratar-se apenas de uma questão de justificação. Para este autor, discursos de
fundamentação dizem respeito à validade da norma, não sendo razoável falar em
invalidez diante da colisão, pois ambas as normas continuam a ser consideradas
legítimas perante o sistema. Isto não ocorre em discursos de aplicação. Neste caso, a
contradição verificada exige a adequação da norma às particularidades do caso
concreto, por vezes, com o completo afastamento da incidência de uma delas.
158
O aspecto procedimental da teoria habermasiana denota a tentativa de
afastar da esfera de fundamentação do direito, em máximo grau, as soluções de caráter
subjetivo. Daí a separação entre direito e moral e, conseqüentemente, entre normas e
valores aceitos por uma determinada comunidade. Para encerrar a questão aqui tratada,
Habermas afirma que
normas e valores distinguem-se, em primeiro lugar, através de suas respectivas
referências ao agir obrigatório ou teleológico; em segundo lugar, através da
codificação binária ou gradual de sua pretensão de validade; em terceiro lugar, através
de sua obrigatoriedade absoluta ou relativa e, em quarto lugar, através dos critérios aos
quais o conjunto de sistemas e normas ou de valores deve satisfazer.
159
Portanto, não há como aplicá-los da mesma maneira.
Parece, de fato, haver uma certa limitação na proposta habermasiana. A
contrafactualidade de sua proposta não dá respostas aos problemas verificados em
sociedades concretas, cuja realidade revela o desrespeito às regras de participação
democrática, seja pela vedação do acesso às esferas de discussão ou mesmo pela
incapacidade de interação, decorrente de deficiências econômicas, sociais,
157
DWORKIN, 1999, p. 254-255.
158
HABERMAS, 1997, v. 1, p. 271.
159
HABERMAS, 1997, v. 1, p. 317.
81
educacionais, etc. Tal questão será melhor abordada no último capítulo desta
dissertação.
82
4 A PARTICIPAÇÃO DOS SUJEITOS E SUA PROTEÇÃO
A investigação acerca dos pressupostos democráticos dos direitos
fundamentais culmina, diante da multiplicidade de interesses presentes na sociedade
moderna, no questionamento acerca da possibilidade de conferir proteção jurídica
indiscriminada a indivíduos e grupos, independentemente de sua situação econômica,
social, cultural, religiosa, etc. Algo capaz de resguardar a individualidade do ser
humano, sem, no entanto, criar injustiças pelo tratamento diferenciado que lhe estará
sendo deferido. Enfim, que represente o ponto de equilíbrio para a solução do
permanente confronto entre liberdade e igualdade.
No capítulo antecedente, apresentou-se um breve escorço sobre as teorias
referentes aos direitos fundamentais. Especificamente no que tange às suas propostas
de fundamentação, são três as principais linhas de argumentação: (a) a primeira recorre
a elementos que transcendem a racionalidade, ao atribuir à natureza ou a conceitos que
precedem à própria constituição da sociedade a origem da ordem jurídica estabelecida;
(b) a segunda preocupa-se com o processo de constituição dessa ordem, cuja validade
está submetida ao preenchimento de requisitos democráticos; e (c) a terceira conduz à
coordenação entre as propostas precedentes. A disputa entre elas reside, justamente, na
possibilidade do estabelecimento de consensos quanto à legitimação dos direitos
fundamentais e à natureza dos fatores que a determinam, se materiais ou formais.
Habermas usa a expressão direitos fundamentais para se referir aos
princípios que conduzem à formação democrática do direito, o que implica seu
enquadramento na vertente teórica de feição eminentemente processual. Dois pontos
são essenciais para a compreensão de sua proposta:
(a) Existe absoluta separação entre o direito e a moral. Mesmo
admitindo a co-originalidade dessas esferas, Habermas insiste na inocorrência de uma
conexão inquebrantável entre elas, pois enquanto preceitos morais são determinados
por fatores não-cognoscíveis, o direito é integralmente conduzido pela razão. A moral
enseja ações teleológicas, ou seja, guiadas por valores historicamente aceitos em uma
dada comunidade. Diferente do direito, que se caracteriza pela previsão de um dever-
83
ser resultante de consensos democraticamente estabelecidos, dando margem a ações
deontológicas. Portanto, a ninguém é dado justificar normas jurídicas amparado em
valores materiais, de caráter universal e imutável.
Isso não significa dizer que os valores estejam ausentes no espaço real de
aplicação do direito, mas apenas que sua investigação não diz respeito ao momento da
fundamentação. Afinal, de acordo com a teoria habermasiana, as normas jurídicas são
válidas ou inválidas em virtude da obediência às regras de participação na esfera
pública e não por corresponderem a circunstâncias materiais predeterminadas. Esta é
uma questão inerente à solução dos conflitos surgidos no caso concreto, incumbindo
ao poder judiciário promover a ponderação dos bens e valores que constituem objeto
do litígio, sempre calçado nas diretrizes ditadas pelo poder legislativo (constitucional).
(b) A validade do direito está atrelada ao cumprimento de requisitos
formais. Ao afastar o direito da moral, Habermas depara-se com a necessidade de
apontar quais elementos estariam aptos a legitimá-lo sem recorrer a expectativas de
fundamentação transcendentes à racionalidade. Para isso, sugere o condicionamento da
validade do direito à obediência de requisitos discursivos, pontualmente representados
pela garantia de participação e não-exclusão dos ambientes públicos de debate, de
tratar e ser tratado com sinceridade no que tange às justificativas das posições
adotadas, bem como do respeito aos consensos atingidos, cujo conteúdo passa a ser
considerado verdadeiro. Tais elementos seriam suficientes para resguardar o ideal
democrático e, por conseqüência, proteger valores e bens especificamente escolhidos
pela comunidade de falantes.
A imposição desses requisitos formais, somada à concepção de ação
comunicativa, permite falar em dois momentos axiológicos absolutamente distintos. O
primeiro atine à subjetividade de cada ser humano, donde advém escolhas que, na
opinião de Habermas, jamais poderão ser analisadas por parâmetros racionais
objetivos. Ele está presente na esfera privada de ação.
O segundo forma-se a partir da comunicação, na esfera intersubjetiva. A
participação em ambientes de discussão resulta na formação de uma vontade coletiva
autônoma, que também responde por escolhas referentes a bens e valores. Entretanto,
ao contrário das decisões subjetivas, é possível fiscalizar a validade de seu conteúdo,
84
na medida em que deve corresponder aos indicativos provenientes do processo
democrático.
Habermas tem exata noção da complexidade social, ao contrário do que
poderia afirmar uma crítica afoita, que desqualificasse sua teoria em virtude do aspecto
contrafactual da denominada comunidade ideal de fala. Tanto que uma de suas
preocupações centrais consiste em definir os requisitos de funcionamento da esfera
pública, a qual é eminentemente marcada por processos discursivos.
É evidente que a investigação quanto à efetividade dos direitos
fundamentais exige não só a avaliação de propostas de fundamentação, como também
das condições de sua interpretação e aplicação. Nesse momento, ingressam no palco de
discussão dificuldades trazidas pelo aspecto factual. O primeiro deles refere-se à
utilidade do modelo democrático-deliberativo, apresentado pela teoria habermasiana
(4.1). O segundo, à necessidade da identificação de critérios materiais capazes de
delimitar a ação hermenêutica (4.2). Finalmente, há que se abordar alguns aspectos de
propostas integrativas — materiais e procedimentais — recentemente formuladas
(4.3).
4.1 Democracia no contexto da ação comunicativa
Em sociedades pós-tradicionais — caracterizadas pelo abandono das
explicações mágicas a respeito dos acontecimentos ordinários da vida —, a construção
dos direitos fundamentais costuma legitimar-se na garantida de participação discursiva
na esfera pública. Afinal, somente mediante a adoção de procedimentos democráticos
parece possível conceber um núcleo de direitos capaz de proteger o ser humano contra
toda afronta a sua vida e dignidade, de forma indistinta e desvinculada de justificativas
pré-concebidas inquestionáveis.
Vários foram os modelos práticos e teóricos apresentados ao longo da
história, na mesma medida em que inúmeros são os obstáculos enfrentados por cada
um deles para a final consecução do ideal democrático, qual seja a busca incessante de
85
resultados que representem a justa medida da consideração da liberdade de ação e da
igualdade atribuída a todos os membros de uma comunidade.
J. J. Gomes Canotilho
160
apresenta um breve panorama das teorias da
democracia afeitas à modernidade, a começar por aquelas que pretendem explicar o
funcionamento do jogo de interesses travado entre o povo, o Estado e o capital. São
elas: (a) teoria democrático-pluralista, para a qual as determinações democráticas não
provêm do povo indiferenciado e tampouco do indivíduo abstrato da teoria liberal, mas
de “grupos definidos através da seqüência de interações sociais”
161
; (b) teoria elitista
da democracia, formulada em resposta à falibilidade do modelo anterior, para
reconhecer no processo democrático uma forma de domínio, a ser exercido pela elite
política; e (c) teoria da democracia do “ordo-liberalismo”, inerente à perspectiva
(neo)liberal, a qual corresponde à proposta de retomada das hipóteses de influência
econômica sobre o processo deliberativo-democrático.
Tais modelos, contudo, não se mostraram suficientes à explicação do
funcionamento da democracia, estando sujeitos às seguintes críticas
162
:
(a) os processos democráticos atualmente conhecidos falham diante da
perspectiva da representatividade dos interesses dos cidadãos, seja pelo insucesso na
obtenção de manifestação da vontade coletiva, determinada pela coação, despreparo ou
simples descomprometimento dos eleitores, ou pelo desvirtuamento de tal vontade,
perpetrado pela classe política, que no exercício de lideranças privilegia interesses
particulares em detrimento de interesses coletivos;
(b) mesmo no capitalismo organizado, o Estado — comandado por
determinada elite política — não logrou obter completa autonomia em relação às
demais esferas sociais, em virtude de barreiras econômicas, decorrentes da pressão
exercida pelos interesses inerentes à propriedade privada, e de barreiras institucionais,
determinadas pela crescente burocratização de suas atividades; e
160
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 2. ed. Coimbra: Almedina,
1998, p. 1255-1265.
161
CANOTILHO, 1998, p. 1255.
162
PRZEWORSKY, Adam. Estado e economia no capitalismo. Traduzido por por Argelina Cheibub
Figueiredo, Pedro Paulo Zahluth Bastos. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1995, p. 133.
86
(c) a instituição do capitalismo organizado denotou a deficiência da
teoria (neo)liberal no que diz respeito à capacidade auto-organizacional do mercado e,
conseqüentemente, a seu determinismo em relação ao Estado.
Da oposição a referidas propostas, emerge a compreensão de que a
organização da sociedade e a convivência pacífica entre seus integrantes devam estar
garantidas por uma ordem normativa capaz de assegurar o respeito concomitante à
liberdade e à igualdade, o que impõe a compatibilização entre ações aparentemente
opostas: de um lado, o resguardo de interesses individuais; de outro, a proteção a
interesses sociais, característicos de um espaço onde já não é possível identificar as
vozes individuais que os integram.
Sua análise parte da compreensão de que a contraposição e a necessidade
de integração entre as prerrogativas de liberdade e igualdade estão bem representadas
na expressão Estado democrático de direito, cujo conteúdo pressupõe não apenas o
respeito à liberdade contemplada pelo Estado de direito, como também à igualdade
prometida pelo Estado democrático.
163
A primeira posição coincide com a perspectiva liberal; nela o Estado
identifica-se com a idéia de um aparato administrativo voltado à satisfação dos
interesses dos indivíduos que compõem a sociedade; seu status de cidadão é medido
pelos direitos de que dispõem perante o Estado, a quem podem pedir proteção contra
qualquer tentativa de violação de sua esfera privada.
A posição oposta corresponde ao republicanismo, no qual se verifica a
assunção do social, numa espécie de superação das esferas individuais de ação. Neste
sentido, o status do cidadão perante o Estado já não é medido por prerrogativas
negativas, mas pelos direitos positivos que lhe garantem, além da proteção contra todo
tipo de intervenção externa, a participação nas esferas internas de discussão.
O próprio direito é tomado de maneira diferenciada por estas duas
vertentes. Enquanto os liberais encaram-no como um dado subjetivo, somente
reconhecido diante da avaliação das peculiaridades do caso concreto, os republicanos
163
As considerações dos parágrafos subseqüentes, referente às concepções democráticas liberal e republicana,
ampara-se na análise habermasiana, realizada em: HABERMAS, 2002b, p. 269-284.
87
preferem concebê-lo como algo dado objetivamente, cujo primado destina-se à
garantia da equidade, autonomia e respeito mútuo.
Ademais, liberais vêem na política apenas um jogo de interesses que
revela a luta por posições que assegurem o controle do poder administrativo, ao passo
que os republicanos enaltecem os campos de comunicação em que ocorre a formação
da opinião e da vontade políticas.
Com enfoque no aspecto dialógico das propostas analisadas, Habermas
propõe, então, a construção de um terceiro modelo democrático, baseado “nas
condições de comunicação sob as quais o processo político supõe-se capaz de alcançar
resultados racionais, justamente por cumprir-se, em todo seu alcance, de modo
deliberativo.”
164
Na avaliação de Edoardo Greblo:
Trata-se de uma interpretação que trata de conciliar o princípio de racionalidade
discursiva com a realidade das grandes organizações burocráticas e com o desinteresse
dos indivíduos pela política. A proposta de uma democracia deliberativa vem assumir
o perfil de uma “terceira via”, alternativa tanto à concepção republicana de Estado
como comunidade ética quanto à concepção liberal de Estado como garante de uma
sociedade de mercado.
165
Para Habermas, o ponto chave de toda discussão não está na disputa
entre a preponderância de posições individuais ou coletivas, o mero arranjo de
interesses ou o auto-entendimento ético, mas na medida de sua integração, que se torna
possível a partir da adoção de procedimentos atinentes à participação dos sujeitos em
esferas de discussão, sejam elas institucionalizadas ou não. A sociedade passaria assim
a ser direcionada por um terceiro fator além do dinheiro e da administração pública,
qual seja, a solidariedade.
Contudo, deve-se ressaltar que a solidariedade à qual se refere o modelo
habermasiano decorre de aspectos puramente procedimentais. Sob este prisma, o
princípio democrático estará atendido sempre e na medida em que o discurso for
164
HABERMAS, 2002b, p. 277.
165
Tradução livre do original: “Se trata de una interpretación que trata de conciliar el principio de racionalidad
discursiva con la realidad de las grandes organizaciones burocráticas y con la desafección de los ciudadanos a la
política. La propuesta de una democracia deliberativa viene a asumir el papel de una ‘tercera vía’, alternativa
tanto a la concepción republicana del Estado como comunidad ética como a la concepción liberal del Estado
como garante de una sociedad de mercado.” (GREBLO, 1998, p. 165)
88
estabelecido validamente, permitindo que todos tenham acesso à comunidade de
falantes, bem como à oportunidade de se manifestar e opinar acerca dos assuntos de
interesse público.
De acordo com Cláudio Pereira de Souza Neto
166
, a teoria democrática
emergente do século XX superou a noção de democracia enquanto processo pelo qual
é possível evidenciar a vontade soberana absoluta de um povo ou sua capacidade de
autodeterminação moral. Assentando seu marco teórico na obra de Rousseau, a
primeira concepção propunha que a adoção do processo democrático se prestava a
revelar uma compreensão moral coletiva preexistente, ao passo que a segunda
corrente, vinculada ao liberalismo, advogava que o resultado do emprego do processo
democrático corresponderia à mera coordenação (ou soma) de interesses individuais.
Entre as críticas que lhes são dirigidas, destacam-se: (a) o fato de se
tratarem de suposições teóricas dissociadas da realidade, uma vez que a idéia de uma
moral coletiva preexistente a toda forma de interação social constitui-se em hipótese
inaceitável; (b) a constatação da variedade de motivações que podem levar o indivíduo
a agir, inclusive abdicando de interesses particulares em prol de interesses coletivos; e
(c) dissociações verificadas entre a vontade manifestada pelo povo, individual ou
coletivamente, e os atos praticados pelo Estado, como fruto da crescente complexidade
das sociedades contemporâneas.
Partindo dessas considerações, procurou-se dar resposta ao surgimento
de modelos de sociabilidade não-democráticos, propondo a concepção de democracia
deliberativa. Os pontos centrais desta proposta consistem na tentativa de conciliação
entre a soberania popular e o Estado de direito, assim como na ênfase atribuída ao
processo dialógico de justificação que precede as decisões políticas; contexto em que
os procedimentos democráticos não se restringem à configuração do momento da
decisão, atingindo também todas as etapas anteriores de discussão.
O enaltecimento do momento de justificação das decisões tomadas na
esfera pública incorpora à teoria democrática um elemento de fundamentação moral,
166
SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Teoria constitucional e democracia deliberativa: Um estudo sobre o
papel o direito na garantia das condições para a cooperação na deliberação democrática. Tese de doutorado.
UERJ. Rio de Janeiro: 2004, p. 48.
89
que gira em torno do que é aceito por todos como razoável e passível de realização
167
,
ultrapassando os limites formais até então conhecidos. De acordo com Carlos Santiago
Nino:
A teoria que defendo é uma concepção dialógica. Embora algumas visões deste tipo
conservem a separação entre política e moral, minha concepção toma estas duas
esferas como interconectadas e une o valor à democracia na moralização das
preferências das pessoas. No meu ponto de vista, o valor de democracia reside em sua
natureza epistemológica com respeito à moralidade social. Sustento que, uma vez
feitos certos reparos, se poderia dizer que a democracia é o procedimento mais
confiável para poder ascender ao conhecimento dos princípios morais.
168
Na democracia deliberativa, o momento dialógico de estabelecimento do
consenso assume um lugar privilegiado, sendo possível identificar duas matrizes sobre
as quais se assenta sua construção teórica: a primeira, de feições substanciais, tem seu
marco na obra de John Rawls
169
; enquanto a segunda, de caráter procedimental, pode
ser representada pela obra de Jürgen Habermas.
Apesar da grande controvérsia existente acerca da consistência material
dos princípios morais anunciados por John Rawls, deve-se ter em conta que a posição
original do sujeito, a qual é marcada pelo chamado véu da ignorância, revela um agir
consciente, que se analisado sob o auspício da imparcialidade certamente seria aceito
por todos como norma de procedimento. Portanto, a correção de uma determinação
coletiva não estaria, em hipótese alguma, indissociavelmente atrelada à regra da
maioria. “Quando Rawls se refere à justificação da democracia entendida como regra
167
ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Democracia, Constituição e Princípios Constitucionais: notas de reflexão
crítica no âmbito do Direito Constitucional brasileiro. Disponível em www.mundojurídico.adv.br, em 05 de
março de 2005.
168
Tradução livre da versão espanhola: “La teoría que defiendo és una concepción dialógica. Mientras algunas
visiones de este tipo conservan la separación entre política y moral, mi concepción visualiza estas dos esferas
como interconectadas y ubica el valor a la democracia en la moralización de las preferencias de las personas.
Desde mi punto de vista, el valor de la democracia reside en su naturaleza epistémica con respecto a la moralidad
social. Sostengo que, una vez hechos ciertos reparos, se podría decir que la democracia es el procedimiento más
confiable para poder acceder al conocimiento de los principios morales.” (NINO, Carlos Santiago. La
constitución de la democracia deliberativa. Traduzido por por Roberto P. Saba. Barcelona: Gedisa, 1997, p.
154)
169
A posição de Rawls identifica-se com a de Kant no que diz respeito a sua colocação na esfera da modernidade
e do paradigma da consciência. Sua proposta incorpora a noção de justiça como eqüidade, que generaliza a idéia
de contrato social e pressupõe um estado inicial de ignorância do sujeito (destituição das determinações próprias
de sua condição social), amparando-se em dois princípios: “primeiro – cada pessoa deve ter a mais ampla
liberdade, sendo que esta última deve ser igual à dos outros e a mais extensa possível, na medida em que seja
compatível com uma liberdade similar de outros indivíduos. Segundo – as desigualdades econômicas e sociais
devem ser combinadas de forma a que ambas (a) correspondam à expectativa de que trarão vantagens para todos,
e (b) que sejam ligadas a posições e a órgãos abertos a todos” (RAWLS, John. Uma teoria da justiça.
Traduzido por por Vamireh Chacon. Brasília: Editora Universidade de Brasilia, 1981, p. 67)
90
da maioria, exibe mais claramente seu individualismo epistemológico. Sustenta que
‘não há nada que demonstre que a vontade da maioria é correta”
170
.
Por sua vez, sob a égide da fundamentação intersubjetiva, Habermas
171
vincula a concepção de democracia aos processos discursivos originários da esfera
pública, com a pretensão de apresentar uma proposta pragmático-normativa
172
alternativo às propostas democráticas liberal e republicana. Sob este prisma, o
princípio democrático estará atendido sempre e na medida em que o discurso for
estabelecido validamente, permitindo que todos tenham acesso à comunidade de
falantes, bem como a oportunidade de se manifestar e opinar acerca dos assuntos de
interesse público.
Ao contrário da proposta liberal, a democracia deliberativa está edificada
sobre o ideal de participação dos sujeitos sociais em todas as esferas de formação do
discurso constitutivo da ordem jurídica. Em outras palavras: a democracia deliberativa
existirá na medida em que a cada indivíduo for oportunizado falar e se fazer entender
pelos demais membros da sociedade, ter acesso às informações e compreender aquilo
que está sendo decidido comunitariamente.
173
Uma vez que, em regra, as sociedades modernas baseiam-se em modelos
jurídico-normativos cuja legitimidade vincula-se ao atendimento de requisitos
democráticos, não há como admitir a existência de um Estado que, pretendendo-se
legítimo, paute sua ação em escolhas arbitrárias.
170
Tradução livre da versão espanhola: “Cuando Rawls se refiere a la justificación de la democracia entendida
como regla de la mayoría, exhibe más claramente su individualismo epistémico. Sostiene que ‘no hay nada que
demuestre que la voluntad de la mayoría es correcta.” (NINO, 1997, p. 157)
171
HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política. Traduzido por por George Sperber e
Paulo Astor Soethe. São Paulo: Loyola, 2002b, p. 269-284,
172
Segundo Edoardo Greblo, “el método de Habermas se diferencia de los modelos puramente normativos, como
la teoría de la justicia de Rawls, ya que intenta demostrar, a través de un análisis reconstructivo, aquellos que los
individuos siguen tácitamente presuponiendo en la participación de las prácticas democráticas establecidas por
las democracias desarrolladas.” (GREBLO, Edoardo. Democracia: léxico de política. Buenos Aires: Nueva
Visión, 2002, p. 165)
173
É interessante destacar a ressalva feita por Canotilho à designação da proposta habermasiana. Amparado na
teoria constitucional, este autor promove uma classificação do que denomina teorias normativas da democracia.
Nela, o modelo apresentado por Habermas é qualificado como normativo discursivo, em oposição ao modelo
normatativo deliberativo. A diferença estaria no compromisso cívico — na idéia de responsabilidade para com o
outro — ao qual recorre esta última perspectiva, ao contrário da primeira, que encontra limite no aspecto
democrático procedimental. (CANOTILHO, 1998, p. 1262-1263)
91
De acordo com Leonel Severo Rocha
174
, “o direito não é sinônimo do
Estado, como afirma Kelsen, mas é sinônimo de poder, já que o poder do Estado
materializa-se somente através da lei. Assim, a discussão sobre a legitimidade do
Estado e do direito no fundo é a mesma — a origem do poder do Estado, o que
significa, em outras palavras, a discussão sobre a legitimidade da Constituição
vigente”. Daí o recurso à investigação da soberania, porque, embora inicialmente
concebida para representar a submissão do povo à vontade de um único homem (o
monarca), atualmente traz consigo a noção de um poder exercido pelo povo e para o
povo
175
.
Ela não é inerente ao Estado em si, mas à sociedade que lhe confere
legitimidade.
O poder, a partir do momento em que não é mais visto como imbricado à pessoa do rei
ou a outros pressupostos transcendentes, difunde-se pelo social, obrigando os
governantes dos Estados a justificarem suas decisões, sob pena de tornarem-se
ilegítimos. Isto porque o topo do poder tornou-s vazio, o poder pertence a todos e a
ninguém. O poder extrapola o poder político do Estado, o que não quer dizer que o
Estado não continue como pólo fundamental das decisões, mas implica num
deslocamento da noção de soberania, que de monopólio de um passa ao social. A
democracia gera uma indeterminação do social, pelo fato de romper com os
pressupostos do ancien regime. Não existe mais a legitimidade em si, transcendente e
indiscutível, justa e imaculada. A legitimidade passa a ser um direito a ser conquistado
todos os dias. Ela produz uma nova forma social onde as identificações dos
indivíduos, suas concepções de justiça e injustiça, mal ou bem, verdade e falsidade,
baseiam-se no princípio da legitimação do conflito, e, conseqüentemente, da invenção
de suas próprias regras. A democracia é a forma política eminentemente histórica,
devido ao questionamento que implica a necessidade do consenso social para a sua
legitimidade.
176
Entre as diferentes acepções atribuídas à expressão soberania popular,
assume especial importância a que se ocupa da determinação da titularidade e do
exercício do poder. Afinal, sendo viável o modelo ateniense de democracia direta
177
e
tampouco crível a eficiência dos modelos representativos conhecidos, acaba-se
presenciando a dissociação daquelas duas esferas e a necessidade de construção de
174
ROCHA, Leonel Severo. Epistemologia jurídica e democracia.o Leopoldo: Editora Unisinos, 1998, p.
72.
175
LUÑO, 1995, p. 187-190.
176
ROCHA, 1998, p. 102-103.
177
Também problemático no que diz respeito à limitação do acesso às esferas de discussão.
92
modelos democráticos capazes de lidar com a complexidade social, assegurando a
todos a participação na esfera pública, tal qual o faz o modelo deliberativo.
4.2 O argumento moral da responsabilidade
Definidos os contornos da teoria democrático-deliberativa e sua
contribuição para a consolidação participativa dos direitos fundamentais, cumpre
questionar a possibilidade ou mesmo a necessidade de adoção de critérios materiais de
fundamentação. Circunstância que vem, por hipótese, em complementação ao aspecto
procedimental antes evidenciado.
Em virtude de sua crescente importância na discussão filosófica
pertinente à constituição dos direitos humanos, propõe-se, aqui, a pontuação das
lacunas apresentadas pela teoria de Jürgen Habermas, a partir das lições de Hannah
Arendt e sua anunciada preocupação com a garantia da condição humana.
Assim como na teoria habermasiana, suas lições elegem como ponto
central de investigação a participação discursiva na esfera pública, o que viabiliza a
comparação entre tais propostas. Além disso, percorre caminhos não trilhados por este
autor, consistentes na investigação das causas que instigam a ação humana e da
responsabilidade gerada por sua ocorrência na esfera pública, a partir das quais é
viável repensar a relação entre o direito e a moral.
Em que pese seu posicionamento republicano — a priori antecedente à
proposta democrático-deliberativa —, não há incoerência no uso pontual de suas
considerações, até mesmo como forma de complementação entre uma e outra teoria.
Sua obra é marcada pelas condições de sua história e assume crescente projeção sobre
o estudo dos direitos humanos, na medida em que demonstra a preocupação para com
o estabelecimento de um núcleo de direitos capaz de conferir proteção a todo ser
humano, independente de sua condição como membro de um Estado.
Arendt parece ir aonde Habermas não chegou, por conta da limitação
procedimental de sua proposta. Ao preocupar-se com as razões determinantes do
93
comportamento humano e, principalmente, com os motivos pelos quais o homem
interessa-se pelo ingresso em esferas públicas de discussão, ela traz à baila o debate
sobre as determinações morais que informam a constituição dos chamados direitos
humanos e, por conseqüência, sobre a necessidade de constituição de um núcleo
mínimo de direitos que, independente do respeito a qualquer procedimento ou da
pertença a um Estado, assegurem a todo ser humano vida e dignidade.
De acordo com sua teoria, o ser somente adquire a condição de
humanidade a partir do momento em que ingressa na esfera pública. Isto porque,
enquanto estiver isolado de tudo o que o cerca e lhe confere significado, o homem não
se diferenciará dos demais animais. Nesse sentido, Arendt afirma que somente a
participação em espaços públicos constitui a personalidade do indivíduo. Em tal
ambiente, ele terá oportunidade de expor aos demais os elementos que relevam
características individuais e, assim, fazer-se reconhecer na alteridade.
Para definir a condição humana, Arendt
178
parte da concepção de vita
activa, a qual designa três atividades fundamentais: labor, trabalho
179
e ação. O
primeiro constitui a atividade destinada a suprir as necessidades biológicas do homem,
e sua condição humana é a própria vida. O trabalho consiste na atividade criativa que
ultrapassa o reino das necessidades, e sua condição humana é a mundanidade.
Finalmente, a ação é a atividade que se exerce diretamente entre os homens, sem a
intermediação da matéria, revelando a pluralidade que constitui a condição de toda
vida política. Esta última categoria representa o nascimento do homem, sua capacidade
de gerar algo novo e de definir a si mesmo. Revela a condição humana dissociada da
natureza humana.
De toda forma, deve-se destacar que tais considerações revelam a
compreensão de que a vida humana está condicionada tanto à satisfação de
necessidades biológicas — vinculadas à noção de labor —, quanto de necessidades
inerentes à convivência comunitária. Não há participação possível sem que sejam
assegurados ao sujeito meios de sobrevivência, como alimentação, saúde moradia; mas
178
ARENDT, 2003, p. 15-20.
179
Tradução usual do termo inglês faber.
94
de nada adiantam tais direitos se não lhe é facultado participar da esfera pública,
fazendo-se reconhecer pelos demais.
Contrapondo-se à compreensão tradicional da vita activa, Arendt
180
propõe que ela seja tomada para além de um universo meramente contemplativo, pois
o pensar depende dos outros, ainda que seja tomado como uma atividade solitária,
requerendo a comunicabilidade e a publicidade como condição de sua possibilidade.
Daí a diferença entre o ser social e o ser político: o que distingue o homem de outros
animais não é sua necessidade de viver em comunidade, mas sua responsabilidade pela
ação e pelo discurso. São estes os elementos que lhe atribuem a condição de
humanidade, pois só o homem é capaz de agir numa esfera pública.
A diferença da abordagem arendtiana frente à concepção de Habermas
— já que ambos se preocupam com o momento discursivo da constituição da esfera
pública — está na direção conferida à análise perpetrada. Enquanto este autor parte do
prisma coletivo, por entender que as motivações internas de cada sujeito social são
não-cognoscíveis, Arendt analisa a questão sob o ponto de vista individual. Preocupa-
se com os fatores de determinam a passagem da ação privada para a esfera pública, o
que justifica a aproximação promovida entre o direito e a moral.
Na opinião dessa autora, o público precisa ser entendido em dois
diferentes e correlatos sentidos. Inicialmente, como algo que merece ser visto e ouvido
por todos. Além disso, “significa o próprio mundo, na medida em que é comum a
todos nós e diferente do lugar que nos cabe dentro dele. [...] A esfera pública, enquanto
mundo comum, reúne-nos na companhia uns dos outros e contudo evita que colidamos
uns com os outros, por assim dizer”
181
. Mas a atuação nesta esfera só ocorre a partir do
momento em que o homem se desvincula de suas necessidades vitais, ou seja, quando
sua propriedade é capaz de assegurar-lhe a subsistência e, assim, um lugar no mundo,
permitindo-lhe avançar para a discussão de questões coletivas.
Portanto, o espaço público constitui-se num ambiente de diferenciação
genuína e não de redução das diferenças. Por isso, é imprescindível que seja
180
ARENDT, 2003, p. 20-26 e 31-37.
181
ARENDT, 2003, p. 62.
95
outorgada ao ser humano a oportunidade de participar da esfera pública e, nela, ser
tratado pelos Outros como semelhante, revelando-lhes os elementos que permitirão
definir sua própria identidade. “Na ação e no discurso, os homens mostram quem são,
revelam ativamente suas identidades pessoais e singulares, e assim apresentam-se ao
mundo humano, enquanto entidades físicas são reveladas, sem qualquer atividade
própria, na conformação singular do corpo e no som singular da voz”
182
.
Segundo Arendt, a ação humana caracteriza-se pela imprevisibilidade,
irreversibilidade e inexistência de autoria. Não há como determinar, por critérios
lógicos, qual será a reação de cada ser humano diante das situações concretas que lhe
são apresentadas. Não há como tornar inexistentes fatos passados. E, finalmente, não
há como determinar a autoria dos acontecimentos, pois o homem, na medida em que
constitui sua personalidade e suas ações num contexto histórico em que acaba inserido,
não é dono de sua história.
Tamanha indeterminação precisa, contudo, ser limitada a ponto de evitar
o caos e a desordem social. Daí surgem as noções do perdão e da promessa. O perdão
— cuja origem é reconhecidamente religiosa — tem o claro objetivo de evitar a inação
diante de resultados indesejados, provocada pela assunção da culpa. Afinal, não fosse
a possibilidade de ser perdoado por eventual erro, o homem não ousaria agir diante da
dúvida ou do risco iminente. Já a promessa estabelece um vínculo obrigacional entre
os participantes de uma dada comunidade de fala. O compromisso que prende cada
indivíduo ao cumprimento das determinações emanadas da esfera pública.
As capacidades de perdoar e prometer pressupõem a relação do homem
com os outros e não consigo próprio, o que faz emergir a idéia de responsabilidade
para com o outro. Isso ocorre, porque a simples pertença a uma comunidade torna seus
integrantes responsáveis pelos atos coletivamente praticados. A responsabilidade, no
entanto, não se confunde com a culpa, que é individual. Ninguém pode sentir-se
culpado por ato do qual sequer participou, embora deva assumir as conseqüências
decorrentes de erros ou violações coletivas, pelo simples fato de integrar a comunidade
que praticou o ato.
182
ARENDT, 2003, p. 192.
96
É justamente na possibilidade de conflito entre as esferas de ação privada
e pública que reside o resgate moral proposto pela teoria arendtiana. Neste sentido,
deve-se compreender que, quando ingressa na esfera pública, o homem não se despoja
de suas convicções pessoais, mas ampara-se nelas para assumir compromissos com os
outros. Portanto, uma vez violadas suas crenças, a conduta esperada será a resistência
ou, no mínimo, a retirada da esfera pública, a fim de evitar qualquer tipo de
responsabilização decorrente das ações das quais discorda.
Nisso, Arendt se distancia de Habermas, já que a proposta deste autor
não contempla a possibilidade de desrespeito às determinações emanadas da esfera
pública por sua desconformidade frente à orientação moral individual, mas apenas nas
hipóteses em que se verificar a violação aos procedimentos democráticos estabelecidos
como requisito sine qua non da construção do discurso. A moral, na concepção
arendtiana, anda lado-a-lado com o direito, impondo-lhe limites de ordem material.
Com uma história pessoal marcada pela perseguição nazista aos judeus e
a completa privação da proteção conferida pela posse do estado de nacionalidade,
Arendt constrói sua teoria acerca da condição humana e do compromisso moral que
lhe confere sustentáculo. A partir de um fato histórico — o holocausto —, ela defende
a imprescindibilidade da instituição de direitos capazes de proteger todo ser humano
contra as mazelas da modernidade, independente de sua pertença a um Estado.
De acordo com sua avaliação, com a proclamação da Declaração dos
Direitos Humanos, o homem — e não mais Deus ou os costumes — passou a ser a
fonte única da lei, a qual era dada por ele e para ele. Todavia, ele era sempre e apenas
concebido enquanto membro de um povo emancipado nacionalmente, pois “como a
humanidade, desde a Revolução Francesa, era concebida à margem de uma família de
nações, tornou-se gradualmente evidente que o povo, e não o indivíduo, representava a
imagem do homem”
183
.
Tal concepção revelou o problema de um imenso número de pessoas que
haviam perdido sua nacionalidade. Pessoas que já não desfrutavam de seus lares e
tampouco da proteção de um governo, às quais se negava a proteção dos Direitos do
183
ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. Traduzido por Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das
Letras, 1989, p. 325.
97
Homem pelo fato de não pertencerem a um povo nacionalmente emancipado. Arendt
exorta a privação de legalidade a qual foram submetidos os apátridas, não criminosos,
perseguidos por regimes políticos totalitários. “Sua situação angustiante não resulta do
fato de não serem iguais perante a lei, mas sim de não existirem mais leis para eles;
não de serem oprimidos, mas de não haver ninguém mais que se interesse por eles,
nem que seja para oprimi-los”
184
. Nesta circunstância, a pessoa torna-se supérflua e,
enquanto ser supérfluo e absolutamente desprotegido, sua vida corre perigo.
Dizer isso significa admitir que nem todo ser humano está protegido, ou
seja, que o fato de não pertencer a um Estado retira-lhe a qualidade de sujeito dessa
espécie de direito e, conseqüentemente, a própria condição de humanidade.
Infelizmente, a história já deu mostra das conseqüências desastrosas da adoção de
medidas que excluíram os apátridas da esfera de proteção dos direitos humanos. Como
narrado por Arendt
185
, a expatriação, a expropriação e a subseqüente exclusão daqueles
que haviam perdido sua nacionalidade de todo âmbito de proteção jurídica
constituíram as principais estratégias implementadas pelo regime nazista alemão, para
a aniquilação do povo judeu. Destituído de nacionalidade e de toda propriedade, o
indivíduo não tem um “lugar no mundo” e tampouco a quem recorrer quando vê
violados seus direitos.
Ela enfatiza, ainda, o aspecto eminentemente formal conferido à norma
pelo regime nazista. Circunstância que foi capaz de macular o comportamento da
maior parte do povo alemão, contra toda convicção moral anterior, sob o auspício da
legalidade. E o absurdo desta realidade estava desenhado num personagem que se
sentava diante da Corte de Jerusalém. Eichmann foi acusado pelo povo judeu de ser
um dos maiores criminosos da história da humanidade, mas o que se revelava diante
do tribunal era um homem incapaz de pensar por si próprio, que se limitava a repetir
frases feitas pelo regime ao qual pertencera. Não havia ação naquele ser humano,
assim como não a havia nos judeus perseguidos e mortos em campos de concentração,
ainda que por motivos distintos. Em Eichmann, porque escolhera a formalidade
184
ARENDT, 1989, p. 329.
185
Vide ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. Traduzido por por
José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
98
“cega”, que conferia a seus atos o falso aspecto da legalidade. No povo judeu, porque
lhe fora retirado o direito de agir e discursar.
A maior violação aos direitos humanos consiste, então, na privação de
um lugar no mundo. É justamente a perda da capacidade de fala e de inter-
relacionamento que retira do homem sua condição humana. Isto porque, se de um lado
o homem emancipou-se da história e da natureza, de outro sua existência passou a ter
sentido apenas quando compreendida dentro de uma determinada ordem social. Os
excluídos em nada se diferenciam dos demais animais e sua vida fica relegada a uma
esfera privada (da diferenciação), contraposta à vida política altamente desenvolvida
em que consiste a esfera pública (da equalização).
186
Como afirma Celso Lafer:
O que Hannah Arendt estabelece é que o processo de asserção dos direitos humanos,
enquanto invenção para convivência coletiva, exige um espaço público. Este é
kantianamente uma dimensão transcendental, que fixa as bases e traça os limites da
interação política. A este espaço só se tem acesso pleno por meio da cidadania. É por
essa razão que, para ela, o primeiro direito humano, do qual derivam todos os demais,
é o direito a ter direitos, direitos que a experiência totalitária mostrou que só podem
ser exigidos através do acesso pleno à ordem jurídica que apenas a cidadania
oferece.
187
O núcleo essencial e irrevogável dos direitos humanos é constituído,
portanto, do direito a ter direitos, que, em si, revela o compromisso moral para com a
não supressão das prerrogativas de participação de qualquer membro da comunidade,
ainda que esta determinação emane da vontade coletiva, cuja manifestação tenha sido
obtida com obediência aos procedimentos democráticos abordados, por exemplo, pela
teoria habermasiana.
4.3 À guisa de complementações
186
ARENDT, 1989, p. 330-334.
187
LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt.
São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 166.
99
No contexto delineado, resta apenas questionar a possibilidade de adoção
de um duplo sistema de fundamentação, ou seja, de um modelo de legitimação
baseado tanto em aspectos procedimentais de construção dos direitos fundamentais,
quanto em aspectos materiais. Integração tomada como tentativa de complementação
das deficiências apontadas pelas críticas referentes às propostas até então apresentadas.
Em que pese toda oposão que possa ser feita ao aspecto eminentemente
procedimental da teoria habermasiana, não se deve olvidar da contribuição apresentada
por sua base democrática, principalmente no que diz respeito à caracterização da
esfera pública. Afinal, o procedimento definirá o modo e a medida de participação de
cada sujeito em ambientes discursivos, assegurando, pela forma, o respeito às
determinações volitivas plurais, presentes na sociedade moderna.
A adoção do paradigma intersubjetivo tem influência direta sobre essa
questão, na medida em que vincula a atribuição da condição de humanidade ao
reconhecimento dos Outros. É através dessa atividade que o ser humano integraliza
sua personalidade. Por isso, a imprescindibilidade de recorrer aos ambientes de
discussão, característicos da esfera pública.
Ciente da complexidade social, Habermas procura, com razão,
estabelecer padrões de comportamento comunitário capazes de assegurar não a mera
conjunção momentânea de interesses individuais — tal qual acontece na chamada
democracia participativa —, mas a própria formação de uma vontade coletiva
autônoma. Nisso consiste, como visto, a proposta democrático-deliberativa, de acordo
com a qual a cada sujeito deve ser garantido o direito de participar consciente e
eficazmente dos ambientes de decisão, na esfera pública.
Por detrás de seu ideal há um compromisso ético, inserido na condição
de participação subjetiva na esfera pública, bem como nas prerrogativas que
asseguram seu livre exercício
188
. Sem isso, não há como pensar em legitimidade. Daí
sua designação como direitos fundamentais e a argumentação de que, sob pretexto
188
Segundo Leonardo Avritzer: “A moralidade é resgatada por Habermas enquanto forma de autodeterminação
da comunidade. Desse modo, ela se expressa nas estruturas democráticas entendidas enquanto regras práticas
para a organização desse processo. A democracia enquanto forma de autodeterminação moral está, portanto, em
continuidade com a preocupação marxiana da autodeterminação dos indivíduos nas comunidades em que vivem,
na medida em que torna esses mesmos indivíduos co-autores das regras da própria sociabilidade.” (AVRITZER,
Leonardo. A moralidade da democracia: ensaios em teoria habermasiana e teoria democrática. São Paulo:
Perspectiva; Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1996, p. 155)
100
algum, sociedades consideradas democráticas poderão afastá-los dos espaços de
discussão, principalmente quando dizem respeito à organização dos poderes estatais.
A noção de direitos fundamentais, tal qual defendida por Habermas, traz
consigo a compreensão de que a ação comunicativa e o funcionamento do sistema são
intermediados pela força reguladora do direito, cujas determinações resultam de uma
vontade coletiva autônoma, construída a partir de regras discursivas específicas. Não
há um condicionamento moral dos rumos a serem tomados, mas um número infinito de
combinações de vontade, resultante da pluralidade de interesses existente num mesmo
contexto da realidade.
A combinação eficaz entre os interesses em jogo dependerá das
condições de participação e discurso, presentes na esfera pública. Isso justifica a
concepção da chamada comunidade ideal de fala. Nela, as circunstâncias discursivas
são perfeitas: seus membros desfrutam de ampla participação em todas as etapas de
decisão coletiva, em virtude de sua capacidade compreensiva e da garantia de não
exclusão. Nessa medida, torna-se plausível a afirmação de que o conteúdo das
orientações advindas da esfera pública atenda, sempre e de certa forma, aos interesses
de seus participantes.
Acontece que, o ponto de partida da teoria habermasiana já o coloca
frente a um paradoxo: o discurso constitutivo da esfera pública assenta sua base em
requisitos não-discursivos. Com isso, a política — que é a essência da ordem social —
acaba exilada da origem desta mesma ordem. Flávio Beno Siebeneichler
189
refere-se à
contradição apontada da seguinte maneira:
A atmosfera exigida pelo discurso teórico ou prático tem de ser produzida
artificialmente, fora da ação comunicativa, e assegurada contra intromissões a partir de
fora. A pergunta que se coloca então é a seguinte: de que modo um espaço artificial,
criado a partir de argumentos e em círculos esotéricos de especialistas esclarecedores
pode servir como modelo para uma práxis crítica transformadora da sociedade?
Estamos diante de uma situação paradoxal: uma situação não política deve possibilitar
uma práxis política.
189
SIEBENEICHLER, Flávio Beno. Jürgen Habermas: razão comunicativa e emancipação. 4. ed. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 157.
101
Ademais, quando comparado à realidade
190
, o ideal democrático-
deliberativo pode criar um enorme vácuo entre suas previsões e os efetivos resultados
do funcionamento da esfera pública. Não é difícil imaginar que, em sociedades pouco
desenvolvidas ou que enfrentem sérios problemas de distribuição de renda e educação,
boa parte da população esteja excluída dos ambientes de discussão. A uma, pela
dificuldade de compreensão e expressão ocasionada pelo baixo nível cultural, que
normalmente conduz à manipulação volitiva da classe dominada. A duas, pelo
sintomático desinteresse individual diante dos assuntos inerentes à ordem pública, ou
seja, à política.
O descompasso entre o funcionamento real da esfera pública e a teoria
habermasiana evidencia a parcialidade desta proposta, na medida em que, nela, é
impossível encontrar explicação para momentos em que as condições concretas da
vida provocam a inoperância dos procedimentos preestabelecidos. Aqui reside uma
das principais críticas dirigidas a Habermas: a ausência de um fundamento material,
que seja capaz de evitar a utilização do processo contra a integridade da vida
humana.
Ao apresentar a proposta de construção da ética da libertação, Enrique
Dussel
191
aduz que, por se preocupar unicamente com o momento formal de
fundamentação, Habermas deixou sem resposta as questões relativas à aplicação do
direito e, com isso, todos os problemas de inacessibilidade à esfera pública. Daí seu
distanciamento da realidade, ou seja, o isolamento que dificulta a utilização da teoria
da ação comunicativa para pensar contextos de flagrante desigualdade. Obstáculo que
poderia ser superado pela junção entre modelos de fundamentação material e formal,
190
A comparação realizada não escapa ao objetivo da teoria em exame, já que a atividade discursiva “é encarada
por Habermas, primeiramente como um trabalho teórico de mediação entre a teoria e a praxis, entre pragmática
formal universal e a pragmática empírica, mas também como uma atividade que visa possibilitar impulsos
transformadores da sociedade, seguindo quatro estratégias principais: a) Liberar o potencial de racionalidade
enquistado nas culturas de experts em política, ciência, arte, filosofia. b) Sensibilizar o esclarecimento e a
reflexão crítica para [...] a substância ética da tradição, a idéia de vida boa, bem vivida. [...] c) Esclarecer e
fortalecer instituições aptas a orientar a modernização social numa direção não capitalista e não opressiva. [...] d)
Referir exemplarmente o esclarecimento a movimentos sociais concretos que atualmente se opõem à
colonização do mundo da vida.” (SIEBENEICHLER, 2003, p. 156-157)
191
DUSSEL, Enrique. Ética da libertação: na idade da globalização e da exclusão. 2. ed. Traduzido por por
Ephraim Ferreira Alves, Jaime A. Clasen e Lúcia M. E. Orth. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 199. É importante
destacar que a referência à obra de Dussel não implica na aceitação acrítica de sua proposta teórica. Desta feita,
seu texto foi utilizado com o objetivo específico de pontuar as críticas formuladas contra teoria habermasiana,
que interessam ao desenvolvimento desta pesquisa.
102
já que “o desejável materialmente (como mediação para a vida) e o válido
subjetivamente devem dar-se ao mesmo tempo.”
192
Na perspectiva dusseliana, a negativa absoluta de uma definição do que
seja bom conduz a um relativismo prejudicial e inadmissível diante de condições
empíricas de aviltamento da vida humana. A restrição à forma confere à
fundamentação uma abertura de conteúdo incompatível com a idéia de garantia
mínima da dignidade humana e de proteção à comunidade de vítimas, que está
excluída de toda e qualquer esfera discursiva. Isso justifica a necessidade de vinculá-la
a um conteúdo material mínimo, impondo-lhe o respeito a uma verdade que ultrapassa
os limites do consenso, para fincar raízes nos elementos da vida concreta de cada
comunidade de fala.
193
A reivindicação de uma fundamentação material decorre, ainda, da
crítica levantada contra a pressuposição de que “a esfera da comunicação e da vida
pública pode escapar aos imperativos funcionais da vida econômica e do Estado”
194
,
pois seria impróprio considerar que, em sociedades marcadas pela presença de farta
parcela de pobres e miseráveis — tal qual a brasileira —, a esfera pública esteja isenta
desse tipo de influência. Afinal, os diferentes níveis de acesso à alimentação, saúde e
educação normalmente sujeitam os desvalidos à dominação do poderio econômico e
administrativo.
A circunstância descrita põe em cheque a isonomia pressuposta pela
teoria habermasiana. Nesse sentido, incumbe à atividade crítica “elucidar sobre até que
ponto, em face do irracionalismo impossível de ser subestimado na política, é possível
preservar o ‘núcleo normativo’, ou impedir que toda essa ‘discussão racional de
192
DUSSEL, 2002, p. 201. Numa tentativa de complementação, a proposta dusseliana reúne três momentos
distintos de fundamentação: (a) material, (b) formal e (c) de factibilidade. O primeiro diz respeito à possibilidade
de estabelecimento de um conteúdo moral mínimo, representado pelas condições concretas que garantem a
produção, o desenvolvimento e a reprodução da vida humana; o segundo, aos procedimentos democráticos de
validação formal da moral; e o terceiro, às condições de possibilidade de um conteúdo ético normativo.
(DUSSEL, 2002, p. 565)
193
DUSSEL, 2002, p. 558-574.
194
ARGÜELLO, Katie Silene Cárceres. As aporias da democracia: uma (re)leitura possível a partir de Max
Weber e Jürgen Habermas. In: Ricardo Marcelo Fonseca (org.). Repensando a teoria do estado. Belo
Horizonte: Fórum, 2004, p. 103-104.
103
interesses’ permaneça impermeável à racionalidade estratégica ou à interferência da
dominação.”
195
Outro ponto de divergência consiste na investigação dos fatores
subjetivos que influenciam negativamente a ação comunitária, desvirtuando os
resultados obtidos no jogo democrático. Entre eles, destacam-se a simulação, a mentira
e a adoção de posições deliberadamente hostis à obtenção do consenso
196
.
Circunstâncias em que se percebe a sobreposição de interesses privados em relação a
interesses coletivos.
Ao discorrer sobre a validade discursiva, Habermas assenta seus
pressupostos na sinceridade das manifestações de vontade e no compromisso para com
a verdade. Todavia, em situações concretas, é difícil estabelecer o controle rígido
desses elementos. Em muitos casos, o que se verifica é o emprego de fórmulas
fraudulentas para a obtenção de consensos. Artifícios consistentes na dissimulação da
verdade e manipulação volitiva, que aniquilam a idéia de neutralidade discursiva.
De acordo com Siebeneichler, o problema está no fato de que
Habermas acredita ser possível reduzir a estrutura humana de carências e necessidades
àquilo que é articulável, em princípio, na linguagem, apoiado na idéia de que o
homem define-se através da linguagem, que constitui uma ordem simbólica. Isso leva-
o a relegar a um segundo plano a ordem imaginária, pré-lingüística, enquanto não
apreensível em estruturas do mundo da vida. Deriva deste fato uma ausência, em sua
obra, do reino estético, no qual se dá um entrelaçamento entre ordem simbólica e
imaginária e onde se anuncia o eros, bem como o “não-idêntico”. Para ser mais
preciso: Habermas interessa-se pelo estético, mas não pelo estético em si mesmo, e
sim, pelo estético transformado em juízo estético, em conceito, em discurso, em
instituição.
Em estudo sobre a política, Zigmund Bauman
197
preocupou-se em
apontar algumas das razões pelas quais o homem moderno afasta-se da esfera pública
ou, quando dela participa, o faz guiado apenas por interesses particulares. Em sua
opinião, o medo, a suspeita e o ódio determinam esse confinamento. O ato de recolher-
se “em casa” constitui uma espécie de autoproteção contra as mazelas do mundo
exterior. E esse comportamento acaba, também, por desvirtuar a esfera pública, a qual
195
ARGÜELLO, 2004, p.
196
ARGÜELLO, 2004, p. 103-104.
197
BAUMAN, Zygmunt. Em busca da política. Tradução de Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Editora Jorge
Zahar, 2000, p. 18-23.
104
deixa de estar baseada em laços de amizade e solidariedade para resumir-se à mera
união de forças com o objetivo de preservar interesses privados. Nesse sentido, embora
plural, a ação correspondente a este espaço continua sendo individual e não coletiva.
O diagnóstico de Bauman indica, também, como causa determinante do
esfacelamento da esfera pública a banalização da ação política. Esse fenômeno resulta,
em primeiro lugar, do despreparo dos políticos, que transformam o espaço público em
mera reprodução de seus escritórios privados e, assim, tomam como inimigo todo
aquele que não compartilha do mesmo comportamento, tratando-o como intruso a ser
banido da esfera pública. Em segundo lugar, da manipulação do medo, da suspeita e
do ódio individuais, em prol de interesses eleitoreiros.
O quadro delineado evidencia duas questões de suma importância: (1) a
imprescindibilidade da fundamentação formal, como meio de assegurar o
funcionamento democrático da esfera pública; e (2) a necessidade de acrescer àquela
proposta elementos materiais, referentes a aspectos concretos da vida humana, como
meio de assegurar a efetiva participação subjetiva em espaços de discussão. Nesse
sentido, é preciso considerar a possibilidade de instituição de uma proposta eclética de
fundamentação dos direitos humanos, ou seja, de uma teoria que combine elementos
do processo democrático com requisitos materiais aptos a resguardar, indistintamente,
a integridade da vida humana.
Em que pese não se confundirem com o direito natural, por incorporarem
também direitos originários de processos sócio-culturais, denominados civis, os
direitos humanos guardam estreita relação com aquele primeiro, a começar pela
identificação de seus sujeitos
198
. Afinal, apesar do caráter tautológico dessa afirmação,
não há dúvida de que o ser humano é o beneficiário da proteção que se pretende
conferir com sua instituição. Sua origem biológica é o que determina a identificação
primeira da incidência desta espécie normativa, assim como a instituição de direitos
voltados à garantia da existência humana no mundo, a exemplo dos direitos à vida, à
integridade física e à alimentação.
A implicação do reconhecimento de elementos pré-culturais consiste na
exclusão dos direitos humanos de todo ambiente de deliberação. Neste caso, sua
198
LUÑO, 1995, p. 38-44.
105
proteção seria imposta em qualquer circunstância, como requisito de constituição
válida da comunidade de fala, sendo vedada a discussão de seu cabimento, ainda que
pela vontade da maioria. Com isso, a esfera pública estaria supostamente assegurada
contra os malefícios da desigualdade econômica, social e cultural. Afinal, a garantia
das condições biológicas de sobrevivência constitui o primeiro plano de acesso à
ordem pública.
Para ressaltar sua importância no contexto dos direitos humanos, é válido
traçar um paralelo entre este primeiro momento de fundamentação e a idéia de labor,
que compõe o conceito arendtiano de vita activa. Embora Arendt sustente que a
condição humana somente esteja completa com a ocorrência do trabalho e da ação,
não se pode olvidar da consideração de que somente a partir da satisfação de suas
necessidades básicas, através do labor, o ser humano sente-se impelido a ultrapassar as
fronteiras da esfera privada, para interagir com os Outros sujeitos, em espaços públicos
de discussão.
Eis o primeiro ponto onde se quer chegar: o pressuposto de validade
(procedimental) habermasiano somente pode ser pensado a partir do momento em que
todos os indivíduos desfrutarem da satisfação de suas necessidades básicas. Trata-se
de circunstância material a ser observada como requisito sine qua non para a
constituição da esfera pública. Afinal, quem tem fome ou convalesce jamais estará em
condições de interagir com os Outros, de modo satisfatório e neutro, pois não há
negociação possível quando o assunto é a sobrevivência.
O segundo diz respeito à imprescindibilidade do momento formal de
fundamentação. Nessa esteira, uma vez satisfeitas as necessidades básicas individuais,
deve-se partir para a construção de uma proposta de fundamentação procedimental,
destinada à regulamentação do funcionamento democrático da esfera pública. É
chegada, então, a hora de contemplar o aspecto intersubjetivo e estabelecer os
requisitos de validade da ação comunicativa. Contexto em que se insere a contribuição
habermasiana, com aplicabilidade plena dos elementos inerentes à proposta
democrático-deliberativa.
O terceiro e último ponto de observação consiste no resgate da idéia de
responsabilidade para com os Outros. Esse parece ser um dos modos de superação das
106
críticas dirigidas aos problemas de determinação irracional e subjetiva da ação
comunicativa. De pouco adiantará a garantia das condições de sobrevivência ou de
respeito aos procedimentos preestabelecidos, se não for exigido o comprometimento
dos falantes para com os objetivos apresentados pela coletividade, seja no momento
antecedente à obtenção do consenso ou na etapa de execução das orientações adotadas.
A noção de responsabilidade situa o ser humano num determinado tempo
e espaço, clareando os laços que o vinculam à comunidade na qual está inserido. Nessa
linha, deve-se considerar que os direitos humanos não se restringem às determinações
do direito natural, abrangendo também elementos culturais, ou seja, decorrentes da
convivência humana em sociedade. Isso significa reconhecer o contexto dialético
desse conjunto normativo, concebendo-o tanto a partir de elementos naturais, quanto
históricos.
Fábio Konder Comparato
199
ressalta a importância do reconhecimento da
personalidade — também fruto da integração do homem à sociedade e da consideração
de elementos contextuais — como requisito essencial à afirmação do ser humano no
mundo. Tal necessidade de reconhecimento justifica-se pelo fato de a história já ter
dado mostras suficientes das barbáries que podem advir da destruição da
personalidade, do aniquilamento de toda condição de afirmação existencial. Assim se
deu no regime nazista:
Ao dar entrada num campo de concentração nazista, o prisioneiro não perdia apenas a
liberdade e a comunicação com o mundo exterior. Não era, tão-só, despojado de todos
os seus haveres: as roupas, os objetos pessoais, os cabelos, as próteses dentárias. Ele
era, sobretudo, esvaziado do seu próprio ser, da sua personalidade, com a substituição
altamente simbólica do nome por um número, freqüentemente gravado no corpo,
como se fora a marca de propriedade de um gado. O ser humano já não se reconhecia
como ser humano, dotado de razão e sentimentos: todas as suas energias
concentravam-se na luta contra a fome, a dor e a exaustão. E nesse esforço puramente
animal, tudo era permitido: o furto da comida dos outros prisioneiros, a delação, a
prostituição, a bajulação sórdida, o pisoteamento dos mais fracos.
200
A partir de exemplos passados de violação e da constatação de que a vida
do homem moderno precisa ser considerada num contexto histórico-cultural, conclui-
se que a integridade protegida pelos direitos humanos vai além da simples garantia de
199
COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 2. ed. rev. e ampl. São
Paulo: Saraiva, 2001, p. 11-36.
200
COMPARATO, 2001, p. 23.
107
satisfação de necessidades básicas individuais. A vida em comunidade exige a
interação responsável, com a geração de novas realidades culturais, que influenciam a
formação da personalidade de cada sujeito e a determinação de novas necessidades.
As críticas levantadas induzem à ponderação de que a complexidade
inerente à sociedade moderna não pode ser pensada somente a partir da proposta de
fundamentação procedimental, já que ela não dá conta da explicação dos problemas de
funcionamento da esfera pública em sociedades marcadas pela desigualdade. Nestas, a
participação somente se efetivará na medida em que a todos forem asseguradas
condições concretas de vida. Fica, então, aberta a questão referente à necessidade de
complementação, assim como a sugestão para que sejam consideradas as propostas de
eleição de um “núcleo essencial de direitos”, pré-discursivo e voltado à garantia de
satisfação de necessidades básicas de sobrevivência, e do resgate moral,
correspondente à noção de responsabilidade para com os Outros.
108
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo do trabalho, procurou-se expor as contribuições oferecidas pela
teoria da ação comunicativa, de Jürgen Habermas, para a elucidação de questões
relacionadas à efetividade dos direitos fundamentais.
O ponto de partida de toda a análise consistiu no pressuposto fático de
que as sociedades modernas são marcadas pela complexidade e pela desigualdade. A
primeira, inerente ao multiculturalismo e ao próprio reconhecimento de que cada ser
humano é único em sua existência e forma de compreender o mundo. A segunda, aos
problemas inerentes à má distribuição de renda e, por conseqüência, à dificuldade de
acesso à saúde, à educação e à justiça.
Na linha dos paradigmas filosóficos da modernidade, a teoria
habermasiana fixa sua base sobre a noção de ação comunicativa. Nela, estão
combinados os referentes de intersubjetividade, uso ordinário da linguagem e caráter
normativo do funcionamento de ambientes discursivos. Por isso, a afirmação de que a
referida proposta vai além da perspectiva puramente pragmática, atingindo uma
dimensão de regulamentação do funcionamento social.
Habermas biparte a sociedade entre sistema e mundo da vida,
procurando, com isso, identificar a tensão existente entre a facticidade própria de
setores autoregulados (como a economia) e a validade inerente aos processos
discursivos. Entre eles encontra-se o direito, como um elo constituído pela força e pela
legitimidade; de um lado, proveniente das determinações de poder do Estado e, de
outro, do consenso obtido por meio de práticas democráticas. Disso resulta, na
perspectiva do autor, sua possibilidade de responder às perplexidades da sociedade
moderna.
Para explicitar o potencial legitimador das relações ocorridas no mundo
da vida, Habermas descreve o que denomina comunidade ideal de fala. Trata-se de um
ambiente discursivo imaginário, no qual todos têm igual direito de participação, sem
risco de exclusão ou de serem enganados quanto às pretensões reveladas pelos demais
membros da comunidade. Por esse motivo, a participação deve ser guiada pela
109
capacidade de fala — que compreende a possibilidade de compreender e fazer-se
compreender — e pela sinceridade. Sem isso, não há legitimidade viável.
A participação discursiva, por sua vez, enseja a abordagem da autonomia
privada e pública. Embora disponha de liberdade para decidir sobre questões de ordem
particular (autonomia privada), é preciso considerar que o ingresso na esfera pública
sujeita o indivíduo às determinações consensuais dela decorrentes (autonomia
pública). Isso acontece, porque o resultado da ação comunicativa não se confunde com
a mera soma de vontades individuais, que, a qualquer momento, podem “sair de cena”
sem prejudicar o todo. Na dinâmica das comunidades de fala, toda ação é coordenada
em função da troca de experiências entre seus participantes. Dessa relação de permuta,
advém a constituição de uma nova vontade, agora coletiva, que, uma vez instaurada,
fica excluída do campo de decisão individual.
Quanto à configuração dos espaços públicos de discussão, deve-se ter
presente eles assumem características específicas em cada uma das esferas de poder o
Estado. Assim: (a) a ação legislativa constitui, na perspectiva habermasiana, o
ambiente genuíno de participação democrática — suas decisões vinculam todas as
demais esferas —; (b) a ação judiciária preocupa-se com a aplicação do direito,
estando vinculada ao cumprimento das determinações legislativas em virtude da
necessidade de justificação de suas decisões; e (c) a ação administrativa corresponde à
tarefa de execução das normas postas.
Relacionada aos direitos fundamentais, a teoria habermasiana permite
pensar questões referentes à influência democrática sobre sua construção.
Há muito, o ideal de proteção à integridade da pessoa humana se faz
presente nas normas — morais ou jurídicas — que guiam a convivência em sociedade.
Contudo, considerando a organização política mundial, cuja estrutura está assentada na
figura do Estado, tais normas ganham força apenas quando incorporadas a sistemas
jurídico-positivos.
Segundo a novel teoria constitucional, uma vez introduzidas no corpo da
Constituição, elas adquirem o status de direito fundamental, passando a irradiar
determinações para todo o sistema jurídico interno. Isto é, vinculam a atuação do
legislador infraconstitucional, assim como das demais esferas de poder estatal, à
110
obediência a seu conteúdo. Daí a preocupação, apresentada nesta pesquisa, em
delimitar as circunstâncias de sua instituição democrática, abertura interpretativa e
aplicabilidade.
No que diz respeito ao processo de criação, é importante destacar, com
fulcro na teoria habermasiana, a importância da participação discursiva — assegurada
principalmente na esfera legislativa —, através da qual se dará a legitimação das
decisões adotadas pela esfera pública. Não há, por óbvio, que se descurar da sanção —
necessária à manutenção da coesão do sistema —, mas o enfoque conferido à questão
democrática deve ser observado.
A questão da interpretação recorre à idéia de um sistema aberto de
regras e princípios. Nessa esteira, o estudo dos direitos fundamentais torna-se
permeável às questões lingüísticas, que dão conta do sentido sempre vago e ambíguo
da norma submetida à interpretação e, por conseqüência, da necessidade de integração
de seu conteúdo por questões, a princípio, alheias ao processo democrático. Disso
resultam as propostas de limitação formal ou mesmo material da atividade
interpretativa.
Na seara da aplicabilidade normativa, fazem-se presentes as discussões
pertinentes à definição da fundamentalidade da norma de direito fundamental e sua
caracterização como direito subjetivo. Uma vez admitida esta hipótese, não há modo
de negar sua oponibilidade frente ao Estado e a terceiros, ressalvada apenas a
circunstância em que se verifica a existência de barreira material para sua
concretização, representada pela noção de escassez.
Por fim, a atividade de construção da norma de direito fundamental
reporta a um derradeiro problema: a necessidade de integração valorativa de seu
conteúdo. Essa proposta, contudo, ultrapassa os limites da teoria habermasiana. Afinal,
para Habermas, o direito e a moral constituem esferas co-originárias, mas não
coincidentes.
O estudo realizado nos primeiros capítulos permitiu, enfim, traçar
algumas linhas contributivas à discussão dos direitos fundamentais. Nesse sentido:
(a) Deve-se ter presente a contribuição da teoria habermasiana para a
construção de um ideal democrático capaz de contemplar a ampla participação
111
individual na esfera pública de discussão. Trata-se da denominada democracia
deliberativa, cujos pressupostos estão assentados no respeito aos requisitos discursivos
inerentes ao funcionamento da comunidade ideal de fala.
(b) Todavia, a proposta de Habermas apresenta lacunas, principalmente
decorrentes da contrafactualidade da comunidade ideal de fala. Ou seja, seus
elementos democráticos não resistem ao embate com a desigualdade da realidade
social. Por isso, a proposta de sua complementação.
Nesse ponto, optou-se por cotejar a teoria habermasiana com as lições de
Hannah Arendt, não apenas em virtude da projeção adquirida por esta autora no campo
da filosofia e do estudo dos direitos humanos, como também pelo conteúdo
complementar de sua proposta em relação ao marco teórico adotado nesta pesquisa.
Tanto quanto Habermas, Arendt preocupa-se em delimitar a esfera
pública e ressaltar sua imprescindibilidade para a atribuição da condição humana. Em
sua perspectiva, o homem somente terá sua personalidade integralizada quando obtiver
o reconhecimento de seus pares. Esse fato, por outro lado, exige uma participação
responsável na esfera pública. Uma participação que revele um compromisso moral
para com o Outro.
(c) Frente às propostas apresentadas cumpre, então, questionar a
possibilidade de integração de seu conteúdo, isto é, de coordenação entre exigências de
fundamentação procedimental e material.
A necessidade de satisfação das condições concreta da vida remete à
conclusão de que, em contextos de flagrante desigualdade, propostas de
fundamentação exclusivamente procedimentais precisam ser complementadas por
elementos materiais, capazes de assegurar ampla proteção ao ser humano. Nessa
esteira — sem qualquer intenção de estancar o debate —, é que segue a sugestão de
admissão de um sentido complementar entre as propostas de Habermas e Arendt:
Não se deve olvidar do ideal da democracia deliberativa, mas apenas
estudar a possibilidade de complementá-lo com as noções de um núcleo essencial de
direitos, destinado à satisfação das necessidades básicas de cada ser humano, bem
como de um vínculo obrigacional de origem moral, que estabeleça como requisito de
legitimação a responsabilidade para com o Outro.
112
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