Download PDF
ads:
MÁRCIA YURI FUNABASHI
ALOPECIA AREATA NO CASO FLORA:
UMA INVESTIGAÇÃO PSICOPATOLÓGICA
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
P
ROGRAMA DE ESTUDOS PÓS GRADUADOS EM PSICOLOGIA CLÍNICA
N
ÚCLEO DE PSICANÁLISE
L
ABORATÓRIO DE PSICOPATOLOGIA FUNDAMENTAL
O
RIENTADOR: PROF. DR. MANOEL TOSTA BERLINCK
P
ONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
S
ÃO PAULO
2006
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
1
MÁRCIA YURI FUNABASHI
ALOPECIA AREATA NO CASO FLORA:
UMA INVESTIGAÇÃO PSICOPATOLÓGICA
PUC-SP
2006
ads:
2
MÁRCIA YURI FUNABASHI
ALOPECIA AREATA NO CASO FLORA:
UMA INVESTIGAÇÃO PSICOPATOLÓGICA
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Estudos Pós-Graduados
em Psicologia Clínica, Núcleo de
Psicanálise, Laboratório de Psicopatologia
Fundamental, como parte dos requisitos
para obtenção do título de Mestre em
Psicologia Clínica, sob a orientação do
Prof. Dr. Manoel Tosta Berlinck.
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
2006
3
Banca Examinadora
_____________________________________
_____________________________________
_____________________________________
4
Autorizo, exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial
desta dissertação por processos fotocopiadores ou eletrônicos.
Assinatura: _____________________________________________
São Paulo,
5
RESUMO
A investigação psicanalítica das manifestações somáticas levanta o enigma acerca
da sua causalidade psíquica ao apostar na associação entre as vicissitudes destas doenças e
questões da subjetividade.
O tema desta dissertação retoma este impasse a partir da construção psicopatológica
no caso Flora.
Flora procura análise com a demanda de um saber sobre a alopecia areata
universal, manifestação somática que rompeu com a sua lógica, deixando-a num completo
desamparo. Ao tecer uma construção simlica em torno da doença, Flora vai nos
revelando a especificidade deste fenômeno.
O conteúdo desta dissertação é uma mostra possível de um trabalho de elaboração
em busca da palavra representativa do vivido na clínica. A construção metapsicológica
resultante desta trajetória segue o pensamento da psicopatologia fundamental, sendo um
produto de inúmeras reformulações promovidas pela escuta clínica e pelo constante diálogo
com a teoria freudiana, de seus contemporâneos e com o discurso médico.
Ao longo deste percurso de pesquisa, o estudo sobre a topologia lacaniana produziu
um sentido na vivência clínica, ao sustentar que o corpo se estrutura a partir da articulação
dos registros real, simbólico e imaginário, estabelecendo uma lógica precisa. Sendo assim,
encontramos neste pensamento um eixo teórico para a compreensão da alopecia areata no
caso Flora, através da investigação da estrutura presente nesta manifestação somática.
A fim de alcançarmos uma maior compreensão acerca desta topologia de Lacan,
realizamos uma releitura da metapsicologia freudiana, buscando resgatar idéias que deram
subsídios para a proposta lacaniana. Com isso, juntamente com o retorno a Freud,
avançamos com a posição de Lacan.
Palavras-chave: alopecia areata universal, psicopatologia fundamental,
psicanálise, real, simbólico e imaginário.
6
ABSTRACT
Psychoanalytic investigations into somatic manifestations always present an enigma as
to the psychic causes of these phenomena, since one supposes an association between them
and questions of subjectivity.
The present dissertation deals with this impasse, based on a psychopathological
construction in the case of Flora. This patient came to analysis with the demand to know
about her universal alopecia areata, a somatic manifestation that had no logic for her and
left her in total helplessness. During the symbolic construction of her disorder, she
gradually unveiled its deeper meanings.
This dissertation is intended as a possible demonstration of a process of working
through in search of the representative word of what was being experienced in the clinic. The
metapsychological construction resulting from this process is based on the thinking of
fundamental psychopathology, and is the product of countless reformulations brought on by
clinical listening and by constant reference to the theoretical work of Freud and his
contemporaries, as well as to medical discourse.
During the research process the study of Lacan's topology produced meaning in the
clinical experience by sustaining that the body is structured on the basis of the articulation of
the registers of the real, the symbolic and the imaginary, establishing a precise logic. We
therefore consider these registers as constituting a central theoretical axis for understanding
alopecia areata in the case of Flora through investigation into the structure of this somatic
manifestation.
To better understand this Lacanian topology, we give a new reading to Freud's
metapsychology and seek to recapture in it the ideas that provided the basis for Lacan's
proposals. We thus we advance with Lacan's position, closely related to his return to Freud.
Key words: universal alopecia areata, fundamental psychopathology, psychoanalysis,
real, symbolic and imaginary.
7
AGRADECIMENTOS
Agradeço ao Prof. Dr. Manoel Tosta Berlinck, por ter exercido de forma brilhante a
função de orientador, ensinando-me a sustentar o difícil percurso em busca da palavra
representativa da vivência clínica.
Aos colegas pesquisadores do Laboratório de Psicopatologia Fundamental da PUC-
SP, por criarem um ambiente onde as minhas questões puderam ser acolhidas e discutidas,
trazendo uma abertura para a reflexão crítica.
Ao Domingos Paulo Infante pela supervisão do caso Flora, pelas valiosas
contribuições à minha elaboração teórica, pela ética com que desempenha o seu trabalho,
por realizar um importante papel na minha formação em psicanálise.
À analista Maria Cecília Ferretti pela sua escuta analítica que foi capaz de sustentar
minhas angústias, produzindo efeitos na minha subjetividade e possibilitando as inúmeras
ressignificações desta pesquisa.
A Flora, por esta grande oportunidade que se inscreve como um momento
significativo no meu percurso na psicanálise.
À Dra. Enilde Borges Costa pela sua dedicação aos pacientes com alopecia areata,
pela pesquisa séria que realiza no campo médico e por ter me ensinado que o conhecimento
é produzido na interface.
À psicóloga Simone Godinho por ter me resgatado da angústia solitária,
possibilitando uma troca de conhecimentos no atendimento aos pacientes com alopecia
areata.
À Profa. Dra. Fani Hisgail pelo incentivo e pelas preciosas contribuições realizadas,
que possibilitaram a construção do eixo teórico desta dissertação.
Ao Prof. Dr. Sérgio de Gouvêa Franco pelo carinho, pelas críticas tão fundamentais
e construtivas que contribuíram para o meu comprometimento com este trabalho.
A Araide Sanches pelo competente trabalho de revisão do texto.
Às minhas parceiras de trabalho Maria José Tavares Bassoli e Mônica Cabral pelo
incentivo diário à minha investigação.
8
A Magali Zanini, minha grande amiga, pela ética com que exerce sua profissão,
agregando valores importantes em minha formação.
A Vanessa Carolina Fernandes Ferrari pela sua lealdade à nossa amizade, pela
generosidade das suas palavras, pela persistência com que busca seus ideais, que sempre
serviu como um importante incentivo para a sustentação desta pesquisa.
A Janaína Lopes Diogo pela sincera amizade, pelo companheirismo neste difícil e
gratificante percurso na psicanálise.
Ao Leonel Bustia pela dignidade com que exerce seus valores, despertando a
sensibilidade tão imprescindível para compor a ética do meu trabalho clínico.
Aos amigos de uma vida inteira, Larissa, Heloisa, Tânia, Leandra, Daniela,
Fernando, entre outros, pelos ensinamentos, pela compreensão, pelas experiências vividas
que contribuíram para o meu amadurecimento.
Aos meus irmãos Mauro, Cíntia, Marcio e Daniel pela sua simples existência.
Ao meu pai, Fumio Funabashi (in memoriam), pela ternura tão presente em minhas
recordações, pela retaguarda de uma vida, pelas suas faltas que me fizeram perseverante.
A minha mãe, Hiroko Funabashi, por seu amor, por sua generosidade, por apostar
nas minhas convicções e por ser a figura forte que sustenta as minhas conquistas.
9
Àqueles que se comprometem com a psicanálise.
Ao meu pai (in memoriam) e a minha mãe.
10
ÍNDICE
Introdução 12
Da situação problemática ao problema de investigação 13
Metodologia e desenvolvimento 23
Capítulo 1 Psicopatologia Fundamental
1.1 Introdução 25
1.2 A Psicopatologia Fundamental e o caso Flora 27
1.3 – A intercientifidade: o diagnóstico alopecia areata e a investigação
da psicopatologia somática 28
1.4 – O pathos somático e o aparelho psíquico como um prolongamento
do sistema imunológico 32
Capítulo 2 O Caso Flora: uma construção psicopatológica
2.1 – A pintura na tela vazia: os primeiros contornos 36
2.2 – Em busca de um lugar para a palavra 40
2.3 O efeito da escuta no olhar 42
2.4 Sonhos: o desejo de desejar 46
Capítulo 3 A estrutura corporal: a articulação entre o corpo
simbólico, o real do corpo e o corpo imaginário
3.1 O corpo simbólico 49
3.1.1 – Do sistema nervoso primitivo à construção da arquitetura do
aparelho psíquico 52
11
3.1.2 – A ação específica com o agente simbólico 54
3.1.3 Pulsão 66
3.1.4 – A pulsão no limite do simbólico e do Real 69
3.2 O real do corpo 71
3.3 O corpo imaginário 76
Capítulo 4 A investigação da articulação dos três registros na
manifestação somática de Flora: uma interpretação possível 94
Conclusão 111
Referências 121
12
INTRODUÇÃO
Dia, noite, seco, molhado, figura, fundo...Presença e ausência.
Alopecia
1
traz flora para a análise. Flora traz alopecia para a análise.
Alopecia é muda... Seu silêncio ensurdecedor lança Flora em uma busca por palavras que possam
contornar o seu caráter pático.
Alienada no discurso médico, mimetiza: auto-imunidade. No entanto, o aspecto enigmático do
fenômeno a faz cavar uma indagação: Reação à utilização de produtos químicos ou a presença de uma
causalidade psíquica?
Intimada a responder à vivência de separação, Flora responde com a mortificação capilar.
Cria uma ficção como quem projeta uma cena na tela vazia, com a ambição desenfreada de decifrar
a queda dos cabelos, numa verdadeira caça ao tesouro, para livrar-se de seu mal-estar.
As interpretações giram em falso, como a correia solta da bicicleta que ignora a roda dentada...
Sem deslocamentos, sem cabelos.
A palidez insolúvel da alopecia sidera o olhar do Outro, não permitindo um espaço entre os olhos do
Outro e a careca enfarada coberta pela peruca, fazendo borbulhar o imaginário... Um fascínio que não
dialetiza.
Diante do Outro, Flora mantém a alternância. Ora alienada, identificada com o vazio deixado pela
perda dos cabelos...,ora revelando que o enigma e o desejo de saber permanecem invencíveis...
As interrogações acerca do soma deram origem à psicanálise.
Em outubro de 1885, Freud inicia seus estudos no Hospice de la Salpêtrière. Ao
lado de Jean-Martin Charcot (1825-1893), abandona o estudo em anatomia e se dedica ao
estudo das neuroses, principalmente a histeria. Naquela época, a histeria era pouco estudada
em função do grande preconceito que ainda se mantinha sobre ela.
2
Embora a sua
descoberta tenha permanecido no campo da medicina, Charcot a resgatou dos preconceitos,
estabelecendo uma sintomatologia com uma lei e ordem próprias, diferenciando-a de outras
neuroses.
Influenciado pela clínica de Charcot, Freud adquiriu uma nova compreensão sobre
as manifestações somáticas da histeria, aproximando-se de uma visão psicopatológica. Ao
escutar essas pacientes, Freud descobriu que os sintomas apresentados não se submetiam às
leis da anatomia, mas tomavam os órgãos pelo sentido comum, seguindo a lógica das
representações inconscientes.
Ao longo das investigações, Freud percebeu que os sintomas tinham um valor de
metáfora dado pelo recalque, pois ao mesmo tempo em que atualizavam um conflito
1
Alopecia areata (A.A.) é uma afecção caracterizada pela perda de cabelos ou pêlos em áreas redondas ou
ovais. Flora apresenta alopecia areata universal que compromete todos os pêlos do corpo.
2
Na Idade Média, uma mulher histérica era condenada como feiticeira ou possuída pelo demônio devido a
grande importância que era dada a simulação no seu quadro clínico.
13
psíquico, também o substituíam. O recalque foi definido como o produto da intervenção da
linguagem que dividia o sujeito em suas representações, barrando os impulsos vitais pela
via das inscrições simbólicas. Assim, Freud descobriu que o acesso à dimensão simbólica
condenava o sujeito ao conflito psíquico inconsciente, que se mantinha pela constante
tensão das forças vitais pulsionais, tentando obter satisfação e chegando ao consciente
como representações do recalcado sob a forma de sonhos, sintomas, chistes, atos falhos.
Freud concluiu, portanto, que o sintoma somático presente na histeria portava um
sentido simbólico referente ao retorno do recalcado, considerado uma saída subjetiva
encontrada frente ao conflito psíquico na regulação da angústia e da vazão das tensões
pulsionais compreendendo, assim, que a psicopatologia é somática.
Essa descoberta fez com que o fundador da psicanálise percebesse que desvendando
um sintoma, numa escuta analítica, era possível chegar à condição desejante de cada um,
desfazendo o nó no qual o sujeito se alienava, na manutenção de seu mal-estar.
No decorrer de sua construção metapsicológica, Freud foi se afastando da noção de
corpo do campo anatomopatológico, redefinindo seus conceitos e procedimentos técnicos à
luz do conceito de inconsciente, pulsão e sexualidade. Através de suas indagações,
subverteu o espaço epistemológico do qual partiu, propondo que o corpo fosse decifrado
nas suas representações, a partir da anatomia imaginária e não mais como um corpo
biológico pertencente ao campo médico.
A origem da psicanálise coincidiu com a descoberta da histeria, com a busca de uma
resposta à qual a anatomia não podia mais responder. Neste sentido, a histeria, ao convocar
a medicina à subversão, produziu o discurso psicanalítico.
Freud não se restringiu teoricamente pela racionalidade da medicina somática,
buscando compreender as diferentes partes do corpo como superfícies dotadas de
significação.
Da situação problemática ao problema de investigação
Flora foi surpreendida pela alopecia areata universal após uma briga familiar
ocorrida na mesma época em que era deixada pelo namorado, como num susto de quem
sofre um assalto. A manifestação somática rompeu com sua lógica, deixando-a
completamente paralisada.
14
Tomada pelo excesso, Flora é resgatada pelo enigma do fenômeno e ao endereçá-lo
à analista, se lança na busca por significados para nomear seu sofrimento, iniciando a sua
construção psicopatológica.
Diante da situação problemática transferida pela natureza pática da analisanda e do
desvanecimento do saber, a analista deparou-se com a contingência de ter de caminhar em
direção à palavra representativa da sua vivência clínica, em busca de uma autoria.
O encontro com o Laboratório de Psicopatologia Fundamental da PUC-SP permitiu
que a situação problemática fosse transformada num problema de investigação ao acolher
esse mal-estar, oferecendo-nos recursos para suportar a instabilidade da palavra habitada
pelo pathos psíquico vivido na clínica.
O pensamento provocativo da psicopatologia fundamental nos instigou a trabalhar
em direção à palavra cada vez mais específica e representativa da discrepância, do vivido.
Assim, além de ter correspondido à nossa demanda de pesquisa foi produzindo efeitos de
sentido no decorrer deste trabalho, sobretudo na compreensão de que “o caminho em
direção à própria palavra é um processo de miscigenação de logos constituindo mais um
logos”
3
. Dedicaremos o capítulo 1 ao tratamento desta questão.
O discurso de Flora nos levou à indagação sobre a presença de uma causalidade
psíquica, por meio da associação entre as vicissitudes desta manifestação auto-imune e
questões da subjetividade. A psicanálise nos propõe dois modelos para a compreensão da
sintomatologia somática: o do sintoma analítico e o da manifestação somática sem
representação.
Na busca por significados que pudessem dar sentido à queda dos cabelos, Flora
construiu uma ficção em torno do fenômeno, interpretando-o como um sintoma analítico.
No entanto, mesmo com as inúmeras articulações significantes realizadas por ela, a
alopecia areata se manteve inalterada o que nos fez perceber que o sujeito, diante do
inominável, faz construções simbólicas a partir de sua posição subjetiva para dar conta da
angústia do não-saber, o que não garante que o fenômeno seja passível de deciframento
numa análise de linguagem.
3
BERLINCK, Manoel Tosta. Logos. V Congresso Brasileiro de Psicopatologia Fundamental, Campinas,
set.2000.
15
Diante desta constatação, passamos a investigar a alopecia areata no caso Flora,
seguindo a hipótese de uma manifestação pática na vertente somática e, portanto, com
ausência de representação.
Iniciamos nossa pesquisa com o estudo das neuroses atuais da teoria freudiana.
Vimos que na mesma época em que Freud escreveu o “Projeto para uma psicologia
científica” (1950[1895])
4
, investigou a sexualidade nos seus casos clínicos. Em “Estudos
sobre a histeria” (1893-95)
5
, quando discutiu o método catártico de Breuer a respeito dos
avanços e impasses da técnica, no tópico “A psicoterapia da histeria” (1985)
6
, ao concluir
que nem todas as pessoas apresentavam sintomas histéricos indiscutíveis, passou a
investigar a respeito da etiologia e o mecanismo das neuroses em geral. Nessa investigação,
descobriu que as causas que levavam à aquisição de neuroses estavam intimamente ligadas
a fatores sexuais, porém advertiu que o papel desempenhado pela sexualidade poderia
diferenciar uma neurose de outra.
Através do estudo clínico, Freud verificou que na sua grande maioria as neuroses
eram classificadas como mistas, ou seja, a neurose obsessiva ou a histeria acompanhada da
neurastenia ou neurose de angústia. Justificou essa mistura aos fatores etiológicos que
poderiam estar “entremeados”.
As cartas e rascunhos (até J) enviados a Fliess, que antecederam o “Projeto...”
(escrito em setembro e outubro de 1895), tratavam principalmente da neurose de angústia e
da neurastenia, tema que culminou no artigo “Sobre os critérios para destacar da
neurastenia uma síndrome particular intitulada neurose de angústia” (1895[1894])
7
e “Uma
réplica às críticas do meu artigo sobre neurose de angústia” (1895)
8
. Esses textos
4
FREUD, Sigmund (1950[1895]). Projeto para uma psicologia científica. In: Edição Standard Brasileira das
Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. 3. ed. Tradução por Jayme Salomão. Rio de Janeiro:
Imago, 1990. v. I.
5
FREUD, Sigmund (1893-95). Estudos sobre a histeria. In: Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud. 3. ed. Tradução por Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago,
1990. v. II.
6
FREUD, Sigmund (1895). A psicoterapia da histeria. In: Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud. 3. ed. Tradução por Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago,
1990. v. III.
7
FREUD, Sigmund (1895[1894]). Sobre os critérios para destacar da neurastenia uma síndrome particular
intitulada neurose de angústia. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund
Freud. 3. ed. Tradução por Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1990. v. III.
8
FREUD, Sigmund (1895). Uma réplica às críticas do meu artigo sobre neurose de angústia. In: Edição
Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. 3. ed. Tradução por Jayme
Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1990. v. III.
16
contribuíram para a distinção da etiologia das neuroses, já que apontavam para uma
etiologia sexual diferente das neuropsicoses de defesa, investigada no mesmo período.
As neuroses atuais receberam esse nome, pois Freud acreditava que a sua etiologia,
relacionada a questões sexuais, era encontrada no momento presente e não nos complexos
infantis como nas psiconeuroses de defesa, que, por sua vez, receberam esse nome devido à
dimensão psíquica do conflito presente na sua sintomatologia, além do papel essencial de
defesa na gênese da neurose.
As neuroses atuais e a neurose de angústia diferenciavam-se, uma vez que, na
primeira, as “desordens da vida sexual atual” ocorriam devido ao apaziguamento
inadequado da excitação sexual (por exemplo, pela masturbação) e, na segunda, devido à
ausência de sua descarga (por exemplo, pela prática do coito interrompido).
A relação entre causa e efeito nas neuroses atuais era facilmente identificada,
diferentemente dos casos de psiconeuroses de defesa, em que a etiologia era encontrada na
sexualidade infantil e, devido ao efeito do recalque, essa conexão só poderia ser feita
parcialmente.
Outro aspecto marcante na diferenciação entre as psiconeuroses de defesa e as
neuroses atuais, era que nestas a formação dos sintomas era somática, portanto, não se
tratava de uma expressão simbólica, em contraposição àquelas, que teriam esta mediação.
O estudo mais aprofundado da neurose de angústia contribuiu para a compreensão
da dinâmica das manifestações somáticas sem mediação simbólica. Ao observar as diversas
modalidades de angústia e notar a ausência da satisfação sexual, Freud concluiu que a
etiologia da neurose de angústia estaria no acúmulo de excitação sexual gerado pela falta de
descarga no campo psíquico. Com isso, observou que a neurose de angústia poderia ser
manifestada de forma rudimentar ou mais desenvolvida. Assim, o ataque de angústia ligado
à atividade cardíaca, por exemplo, era de difícil diferenciação da afecção cardíaca orgânica,
levando-nos a compreender que nem sempre a angústia pode ser reconhecida.
Encontramos na dissertação de mestrado de Persicano
9
a defesa da idéia de que a
forma mais primitiva de angústia é a angústia somática, resultado do acúmulo de tensão
sexual que, por uma deflexão psíquica não é reconhecida como afeto de angústia, não
9
PERSICANO, Maria Luiza Scrosoppi. A angústia na trilha da pulsão: entre psique e soma. A
metapsicologia da angústia e de suas manifestações somáticas. 2004, 255p. Dissertação (mestrado em
psicologia clínica). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. PUC/SP.
17
havendo representação psíquica da angústia. Um aspecto importante defendido pela autora,
é que a angústia teria duas vertentes: a somática e a psíquica, seguindo a trilha da dialética
da pulsão. Neste sentido, a angústia, não deixando de ser manifestada psiquicamente,
também poderia ser manifestada somaticamente pelas lesões de órgão, hipertensão arterial,
sudorese etc.
Nesta pesquisa, compreendemos, portanto, que Freud acreditava na ocorrência da
neurose mista com uma mistura de várias etiologias específicas, ressaltando a diferença
entre a neurose de angústia e a histeria dizendo que, apesar de ambas serem consideradas
neuroses de represamento, a origem da segunda estaria na esfera psíquica, enquanto a da
primeira estaria na esfera somática. Ambas neuroses apresentavam uma insuficiência
psíquica em conseqüência da qual surgiam processos somáticos anormais, ou seja, em vez
da elaboração psíquica da excitação, havia um desvio para o campo somático. Mas a
diferença era que na neurose de angústia o deslocamento era puramente somático enquanto
na histeria havia um deslocamento psíquico provocado pelo conflito.
Neste sentido, aprendemos que a conversão histérica, por trazer em sua etiologia
uma relação com os conflitos infantis, constituindo-se como uma formação de
compromisso simbólico envolvendo a ação do recalque, seus substitutos e suas metáforas,
torna-se suscetível à terapêutica psicanalítica, uma vez que o sintoma é passível de
deslocamento por meio da interpretação que não é oferecida pelo analista, sendo efeito do
próprio discurso do sujeito. Por outro lado, na neurose de angústia, em virtude dos sintomas
somáticos não apresentarem um sentido simbólico nem uma relação com os conflitos
infantis, correspondendo a uma reação à impossibilidade de descarga das excitações do
momento atual acumuladas devido ao bloqueio das satisfações pulsionais, e por isso sendo
vazio de significado, não são equacionáveis pela análise, mantendo-se refratário ao
tratamento analítico.
O estudo sobre as neuroses atuais não foi aprofundado por Freud devido às
investigações psicanalíticas terem sido dirigidas para o papel do recalque e da sexualidade
infantil. No entanto, ele não deixou de mencionar as perspectivas de alguns psicanalistas,
tais como S.E. Jelliffe, Georg Groddeck e Félix Deutsch, que se debruçaram na
investigação das doenças manifestamente orgânicas com a suspeita de que a possibilidade
18
de um “tratamento analítico de vulgares doenças orgânicas”
10
não seria “inauspicioso”,
apostando na influência de fatores psíquicos na origem e manutenção desses quadros.
Sendo assim, vimos que Groddeck, um dos primeiros pensadores sobre o fenômeno
psicossomático no movimento psicanalítico, pensava que todo sintoma orgânico era
expressão de um conflito inconsciente, interpretando-o da mesma forma que os sintomas
psíquicos. Igualmente, outros autores sustentaram a existência de uma dinâmica psíquica
subjacente às doenças orgânicas.
Ferenczi, em 1926, introduziu o termo “neurose de órgão” para descrever algumas
manifestações funcionais específicas, tais como úlceras, enxaquecas, distinguindo-as da
estrutura das neuroses clássicas. Deixou como discípulo Michael Balint, que desenvolveu
trabalhos importantes na medicina psicossomática.
O encontro de Félix Deutsch com o húngaro Franz Alexander impulsionou uma
forma de pensamento que associou pesquisa médica e psicanálise. Com a participação de
outros integrantes - como O. English e Flanders Dunbar -, fundaram a Escola de Chicago.
Essa corrente de pensamento, numa perspectiva psicogenética, estabelecia relações entre
conflitos emocionais específicos e estruturas de personalidade, entre reações emocionais e
resposta do sistema vegetativo e do sistema nervoso central.
A Escola de Chicago concordava com o pensamento de Groddeck, no aspecto
psíquico das doenças orgânicas. Franz Alexander não considerava as patologias somáticas
uma simbolização propriamente dita, mas acreditava que as emoções teriam um papel
preponderante na causação das doenças, mas não de forma direta, acreditando que na
medida em que as emoções traziam à tona conflitos inconscientes e não encontravam vias
de expressão, tornavam-se patogênicas. Assim, as descargas diretas dos afetos no sistema
neurovegetativo constituíam as “neuroses vegetativas”.
Notamos que esses pensadores buscaram a compreender as manifestações páticas na
vertente somática a partir do recalque, relacionado ao conflito das neuroses de
transferência, diferente do pensamento freudiano que buscou um entendimento para esta
questão ao lado das neuroses atuais.
10
FREUD, Sigmund (1923[1922]). Dois verbetes de enciclopédia. In: Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud. 3. ed. Tradução por Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago,
1990. v. XVIII.
19
Uma vez que na vivência clínica do caso Flora, a alopecia areata se mostrava uma
manifestação somática sem representação simbólica, submetemos esta linha de pensamento
freudiana a uma nova releitura, no sentido de avançarmos em algumas questões acerca
deste fenômeno.
Assim, realizamos um estudo da teoria de Pierre Marty que desde os nos 1950,
juntamente com Fain, David, M’Uzan, Kreisler, entre outros, desenvolveram pesquisas para
a compreensão das patologias somáticas que não pertencem ao modelo dos sintomas
conversivos da histeria, tendo fundado o Instituto de Psicossomática de Paris (IPSO).
Vimos que o corpo teórico do IPSO originou-se da metapsicologia freudiana,
sobretudo do seu ponto de vista econômico, definindo um “funcionamento psicossomático”
a partir das funções utilizadas pelo aparelho psíquico na regulação das excitações no
organismo.
Marty
11
partiu da idéia de que o organismo, por se confrontar permanentemente com
a emergência do afluxo de excitações que exige descarga, fez com que o indivíduo
determinasse, por uma questão adaptativa, três vias de escoamento: a orgânica, a ação e o
pensamento, onde cada uma apresentaria um grau hierárquico que representaria o nível de
evolução da resposta do indivíduo, estabelecendo um sentido progressivo do orgânico para
o pensamento. Assim, supõe que quando o organismo é solicitado, responde primeiramente
com seus recursos mais evoluídos. Seguindo a lógica do raciocínio de Marty, o aparelho
somático responderia quando a disponibilidade conjugada do aparelho mental e do
comportamento estivesse prejudicada, ou seja, o distúrbio somático ocorreria em função de
um déficit no aparelho psíquico que, segundo Marty, variava de um indivíduo para outro e
num mesmo indivíduo conforme o momento vivido.
No estudo da teoria de Marty deparamo-nos com o seu conceito de mentalização
que parte da concepção de que a evolução do pensamento protegeria o indivíduo das
somatizações. A mentalização consiste na capacidade de assimilação mental de um
indivíduo dada pela quantidade
12
e qualidade
13
das representações psíquicas do sistema Pcs.
11
MARTY, Pierre (1996). Mentalização e psicossomática. Tradução por Anna Elisa de Villemor Amaral
Günter. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1998.
12
A quantidade está relacionada com a acumulação dos sedimentos de representações durante os diferentes
momentos do desenvolvimento individual, desde a primeira infância.
13
A qualidade reside na disponibilidade de sua evocação, na capacidade de se ligar a outras representações
resultando nas associações, e na permanência destas funções.
20
Para Marty, a mentalização é o processo de constituição das associações de idéias que
dependem da formação das representações psíquicas dada pela evolução da representação-
coisa para a representação-palavra.
Considerando o aspecto progressivo em que as representações de coisas associam-se
às representações de palavras e modificam sua natureza, Marty postulou que o fenômeno
psicossomático seria um produto da desmentalização, afirmando que através do movimento
contrário as representações de palavras perderiam seus componentes afetivos e simbólicos,
ou seja, a sua quantidade e qualidade, mantendo apenas um valor sensório-perceptivo
inerente à representação de coisas, com uma realidade pouco mobilizável.
Segundo Marty, na clínica dos pacientes somáticos as representações psíquicas por
vezes parecem ausentes ou mostram-se reduzidas em sua quantidade. Com isso, o autor
partiu da noção de insuficiência fundamental ou passageira do funcionamento mental para
compreender a gênese do fenômeno psicossomático. Marty estabeleceu uma relação entre a
gravidade da afecção somática, a magnitude das excitações pulsionais, e o nível de
mentalização. Assim, os indivíduos bem mentalizados, que sofressem uma excitação
moderada, estariam propensos a afecções somáticas, na maioria das vezes reversíveis
espontaneamente, enquanto aqueles que sofressem um grande impacto das excitações
pulsionais somado a uma baixa mentalização estariam mais vulneráveis às afecções
somáticas evolutivas e graves.
O percurso através do pensamento de Marty nos fez considerar que o autor sugere
um funcionamento deficitário do aparelho psíquico dos pacientes somáticos, propondo a
diferenciação de sua constituição e dinâmica da do neurótico ou psicótico.
Com esta linha de raciocínio, interpretamos que Marty apresenta uma posição
determinista onde quanto mais o pré-consciente de um sujeito se mostrasse rico em
representações permanentemente ligadas entre si e disponíveis, mais estaria protegido
contra as patologias somáticas, predominando os distúrbios na esfera psíquica, e quanto
mais estivesse limitado e empobrecido, maior predisposição para o fenômeno
psicossomático teria.
Compreendemos que, nesta perspectiva, restaria às psicoterapias o restabelecimento
do melhor funcionamento mental possível para o sujeito.
21
Acreditamos que considerando o fenômeno psicossomático pela via do deficitário,
Marty exclui a possibilidade de um sujeito neurótico desenvolver afecções somáticas que
colocariam em risco o seu prognóstico vital.
A construção psicopatológica no caso Flora nos mostrou que a analisanda apresenta
um discurso rico em representações. Neste sentido, não poderíamos explicar a manifestação
da alopecia areata universal por meio desta teoria. Marty parece desvincular a sua
investigação da psicopatologia, tornando irrelevante o aspecto do aparelho psíquico como
um prolongamento do sistema imunológico constituído como um modo de subjetivação. O
autor destaca o aspecto da normalidade psíquica em detrimento da psicopatologia que
remete à verdade inconsciente do sujeito, à sua possibilidade de resposta frente à catástrofe.
Embora optássemos por não seguir nossa investigação a respeito da alopecia areata
no caso Flora pela trilha construída por Marty, a articulação que ele faz entre os conceitos
de representação-coisa e representação-palavra com o fenômeno psicossomático contribuiu
para que avançássemos em nossa pesquisa.
Outro autor que fez parte do nosso percurso foi Dejours
14
, que durante muitos anos
foi partidário das teorias de Marty e que, por suas discordâncias com as teorias do IPSO,
nos indicou alguns pontos relevantes para a investigação da manifestação somática de
Flora.
Além de recusar a questão da previsibilidade de Marty, Dejours ressalta a
importância do primado da intersubjetividade sobre a intrasubjetividade ausente na teoria
anterior. Defende sua posição afirmando que o “encontro com o outro é que é perigoso” e
que, neste sentido, os fenômenos não deveriam ser estudados isoladamente, mas na relação
com o outro.
Segundo o autor, a moção pulsional apresenta no seu endereçamento ao outro uma
dimensão psicodinâmica e expressiva, que a serviço da significação mobiliza o corpo
erógeno. Com isso, esclarece que no órgão em que houve a forclusão da inscrição pulsional
a expressividade do drama intrapsíquico ficou impossibilitada, justificando o caráter não-
dialetizável do fenômeno psicossomático.
14
DEJOURS, Christophe (1997). Biologia e psicanálise. In: Rubens Marcelo Volich, Flávio Carvalho Ferraz,
Maria Auxiliadora de A.C. Arantes (orgs.). Psicossoma II: psicossomática psicanalítica. São Paulo: Casa do
Psicólogo, 1998.
22
A contribuição de Dejour para a nossa pesquisa deu-se, portanto, pela introdução da
questão do campo da alteridade no estudo das manifestações páticas na vertente somática.
Flora parece validar este pensamento ao construir uma teoria na tentativa de
responder ao enigma da sua alopecia areata enfatizando o campo da intersubjetividade
(separação com o namorado, briga com a mãe e com o irmão). Embora encaminhamos as
nossas pesquisas de acordo com esta construção realizada por Flora, esta questão se
manteve enigmática mesmo ao final desta dissertação, pois, como já apontamos, o sujeito
busca incessantemente, diante do inominável, encontrar palavras para contorná-lo. Uma vez
que na alopecia areata de Flora não teve reversão e nem alternância, não temos como
eliminar com segurança a hipótese de um fenômeno que não apresenta uma causalidade
psíquica.
Por outro lado, a persistência nesta aposta de Flora que estabelece uma associação
entre as vicissitudes da alopecia areata e sua subjetividade, fez com que nos
aprofundássemos no estudo acerca do campo da alteridade, encontrando o pensamento de
Lacan.
Segundo Roudinesco:
Como todos os freudianos, Lacan situou a questão da alteridade, isto é, da
relação do homem com seu meio, com seu desejo, na perspectiva de uma determinação
inconsciente. Mais do que os outros, entretanto, procurou mostrar o que distingue
radicalmente o inconsciente freudiano - como outra cena ou como lugar terceiro que escapa
à consciência - de todas as concepções do inconsciente oriundas da psicologia. Por isso é
que cunhou uma terminologia específica (Outro/outro) para distinguir o que é da alçada do
lugar terceiro, isto é, da determinação pelo inconsciente freudiano (Outro), do que é do
campo da pura dualidade (outro) no sentido da psicologia.
15
Lacan enfatiza a articulação necessária destas alteridades para a compreensão da
constituição subjetiva, em que o Outro é o fundador da ordem simbólica, o lugar do
desdobramento da fala onde o sujeito se constitui, enquanto o outro é a alteridade centrada
na imagem especular, no imaginário.
Este conceito nos permitiu alcançar uma maior compreensão sobre a distinção dos
três sistemas de referência (Real, Simbólico e Imaginário) estabelecida por Lacan ao longo
15
ROUDINESCO, Elisabeth; Plon, Michel. Dicionário de psicanálise. Tradução por Vera Ribeiro, Lucy
Magalhães; supervisão da edição brasileira por Marco Antonio Coutinho Jorge. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1998.p. 558.
23
de sua obra. No capítulo “A tópica do imaginário”
16
, Lacan refere que sem essas três
dimensões não é possível compreender a técnica e a experiência freudianas, uma vez que
muitas dificuldades se justificam e se esclarecem por meio dessa distinção.
Essa teoria produziu um efeito na escuta clínica, permitindo-nos perceber que o
corpo é resultado da articulação destas três perspectivas que se estruturam numa lógica
precisa, levando-nos a uma maior compreensão acerca da alopecia areata no caso Flora.
No intuito de nos aprofundarmos nesta questão, optamos por realizar uma releitura
da obra freudiana, resgatando em sua metapsicologia idéias que acreditamos terem feito
parte da construção teórica de Lacan juntamente com os seus avanços.
Encontramos na proposta de Lacan um eixo de pesquisa que nos produziu um
sentido clínico e teórico. Ao definir que a constituição da subjetividade ocorre com a
concorrência dos três registros que se articulam numa certa lógica em qualquer
manifestação da subjetividade, e que a exclusão de qualquer um destes registros implica a
exclusão do sujeito, Lacan nos mostrou que é imprescindível a investigação no campo da
subjetividade de Flora.
Metodologia e desenvolvimento
O método utilizado nesta pesquisa é o da investigação a partir da clínica
psicanalítica, sendo realizada primeiramente a construção do caso clínico e, a partir daí, o
método da construção metapsicológica tomando como referência teórica as obras de Freud
e Lacan.
O desenvolvimento deste trabalho transcorrerá ao longo de quatro capítulos.
Capítulo 1. Fundamentaremos a pesquisa na psicopatologia fundamental. Como o
enigma da manifestação somática convoca a analista à intercientificidade, dedicaremos o
item 1.3 para tratar desta questão, propondo um diálogo com o campo médico, no intuito de
compreender como a medicina constrói o seu diagnóstico (resposta ao fenômeno), qual o
funcionamento de seu modelo teórico e os impasses de sua operatividade.
Capítulo 2. Apresentaremos a construção do caso Flora.
16
LACAN, Jacques (1953-1954). O seminário. Livro I. Os escritos técnicos de Freud. Texto estabelecido por
Jacques-Alain Miller; versão brasileira por Betty Milan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1986.
24
Capítulo 3. Investigaremos sobre a estrutura corporal compreendida como uma
articulação entre o corpo simbólico, corpo real e o corpo imaginário. Nesta proposta,
realizaremos uma releitura da metapsicologia freudiana a partir da teoria lacaniana e
seguiremos com os avanços feitos por esse autor.
Capítulo 4. Promoveremos a investigação da articulação dos três registros como
uma interpretação possível para a manifestação somática de Flora.
Conclusão. Efetuaremos conclusões metapsicológicas relativas às questões advindas
da clínica e resultantes destas.
25
CAPÍTULO 1
Psicopatologia Fundamental
1.1- Introdução
A palavra Psicopatologia é derivada do grego, formada pela conjunção de três
palavras: psychê, que significa psique, psiquismo, psíquico; pathos, que significa paixão,
excesso, catástrofe, passagem, passividade, sofrimento, assujeitamento, e logos, que
significa lógica, discurso, narrativa. Assim, psicopatologia representa o discurso sobre o
pathos que se manifesta no psiquismo, ou melhor, um discurso sobre o sofrimento psíquico.
A psicopatologia
17
como disciplina organizada, surgiu a partir da publicação de
Psicopatologia Geral, de Karl Jaspers, no início do século XX. Esse trabalho inaugurou
uma tradição médica, que ainda vigora nos dias atuais, interessada na descrição sistemática
e na classificação das doenças mentais.
A Psicopatologia Fundamental
18
, termo proposto há mais de trinta anos pelo
Professor Doutor Pierre Fédida no âmbito da Universidade de Paris VII, e que teve origem
no Laboratoire de Psychopathologie Fondamentale et Psychanalyse, surgiu na pluralidade
das psicopatologias. As pesquisas realizadas em Psicopatologia Fundamental partem do
princípio de que nenhuma posição epistemológica é capaz de esgotar a compreensão do
sofrimento psíquico.
Ceccarelli
19
afirma:
A preocupação central da Psicopatologia Fundamental é de contribuir para a
redefinição do campo do psicopatológico, propondo uma reflexão crítica dos modelos
existentes e uma discussão dos paradigmas que afetam nossos objetivos de pesquisa, nossas
teorias e práticas. Isso significa que a psicopatologia fundamental reconhece e dialoga com
as outras leituras presentes na pólis psicopatológica (... ) A psicopatologia fundamental é um
projeto de natureza intercientífica onde a comparação epistemológica dos modelos teóricos-
clínicos e de seus funcionamentos propiciaria a ampliação do limite e da operacionalidade
de cada um destes modelos e, conseqüentemente, uma transformação destes últimos. Tal
projeto levaria à construção de um espaço teórico-clínico, com fundamentos próprios, que
17
BERLINCK, Manoel Tosta. O “fundamental” da Psicopatologia Fundamental. Revista Latinoamericana de
Psicopatologia Fundamental, São Paulo, v. VII, n. 3, p. 7-11. set.2004.
18
Ibidem.
19
CECCARELLI, Paulo Roberto. A contribuição da Psicopatologia Fundamental para a Saúde Mental.
Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, São Paulo, v. VI, n. 1, p. 13-25, mar.2003, p. 18-
19.
26
permitiria a coexistência, o diálogo e o intercâmbio dos diferentes modelos conceituais -
neurociências, imunologia, farmacologia, oncologia e outros tantos que lidam com o pathos.
No entanto, apesar de não dispensar os saberes adquiridos pela psicopatologia geral,
nem os de outras áreas de saberes que buscam compreender o sofrimento psíquico, a
psicopatologia fundamental não segue a tradição centrada na nosografia, pois pressupõe
que o pathos manifesta uma subjetividade e que por meio do discurso é capaz de
transformar o assujeitamento numa experiência para a própria existência do sujeito.
Berlinck
20
afirma que a espécie humana é psicopatológica, pois o que é tipicamente
humano se organiza enquanto discurso em torno do pathos. Com isso, as pesquisas
realizadas em psicopatologia fundamental se configuram como um discurso representativo
a respeito do pathos a partir do manifestado na clínica psicopatológica. Contudo, é definida
como psicopatologia fundamental apenas quando o discurso a respeito do pathos for
construído a partir da vivência clínica. Esta posição coincide com a metapsicologia
freudiana.
Afirma, ainda, que até o momento a psicanálise é, para a psicopatologia
fundamental, a casa mais confortável existente na contemporaneidade, uma vez que foi
descoberta e desenvolveu-se como um discurso do pathos vivido na clínica.
21
Entretanto, a
psicopatologia fundamental não se restringe à psicanálise, pois o seu âmbito circunscreve-
se numa experiência que ao mesmo tempo é terapêutica e metapsicológica, independente da
compreensão teórica e abordagem clínica.
A partir desta concepção, o campo transferencial destaca-se na sua importância,
uma vez que o psicopatólogo possibilita ao sujeito a aquisição de uma experiência inerente
ao pathos, além de um efeito terapêutico que possa provocar uma mudança na sua posição
frente ao seu próprio psiquismo e, conseqüentemente, frente ao mundo. Isto só é possível
porque o psicopatólogo escuta a singularidade que é manifestada na vivência clínica,
conferindo a ambos, psicopatólogo e sujeito, uma experiência única.
20
BERLINCK, Manoel Tosta. O que é Psicopatologia Fundamental. Revista Latinoamericana de
Psicopatologia Fundamental, São Paulo, v. I, n. 1, p. 46-59, mar.1998.
21
Ibidem.
27
1.2- A Psicopatologia Fundamental e o Caso Flora
Berlinck interpreta que pathos, em português coloquial, tem o significado de
assujeitamento, como aquele que cai estando completamente despreparado para isso,
revelado pela expressão “fulano caiu como um pato”:
O pato é ingênuo e indefeso exatamente porque vive num ambiente que, não sendo
mau, também não é bom. Suas patas, servindo para caminhar e até correr, são mais
adequadas para um outro ambiente, um meio aquoso onde o pato cai e bem se adapta
nadando com elegância e majestade.
O pato, em terra, é passível de tropeço e queda, interrompendo, imediatamente, sua
postura elegante e transformando-se, momentaneamente, numa figura grotesca retomando,
em seguida, de forma impávida, seu caminhar.
O humano é um “pato lógico”, ou melhor, “psico-pato-lógico”. Tropeça em seu
caminhar naquilo que manipula com mais elegância e majestade: a palavra. Ao contrário do
pato, entretanto, nunca é o mesmo depois do tropeço, pois este acontecimento, produzido
pelo sofrimento e, quando ocorre, fazendo sofrer, é o âmbito do significante que solicita
logos, palavra representativa.
22
A manifestação da alopecia areata na vida de Flora ocorreu como um tropeço,
interrompendo e detonando a sua lógica, deixando-lhe em completo desamparo.
Movida pelo desejo de encontrar palavras que nomeassem o seu pathos, Flora
formula um enigma sobre o fenômeno e o endereça à analista. Esta, por sua vez, defronta-se
com sua condição de “porta-marcas”, produzida pelo tropeço de Flora. Tal impacto
provocou uma angústia na analista, ao reconhecer a ausência de um saber pronto que
pudesse responder a este enigma.
Diante desta sensação de vazio significante, em que toda a sua formação parecia
desvanecer, a analista se propôs a escutar Flora.
Berlinck afirma que o clínico quando escuta, não ouve:
Sua atenção “flutuante” se mantém em superfície movimentando-se como se fora
uma embarcação ancorada pela fala do paciente. A linguagem que surge e resulta dessa
situação não é criação exclusiva do clínico nem do paciente. Ela é manifestação da vivência
clínica envolvendo clínico e paciente no ambiente-consultório, hospital, CAPS, NAPS,
etc.onde esse encontro ocorre.
23
A partir da escuta de Flora, notou-se que o seu discurso tentava buscar um sentido
para a própria ausência de palavras produzida pelo efeito da alopecia, verificando que a
22
BERLINCK, Manoel Tosta. Logos. V Congresso Brasileiro de Psicopatologia Fundamental.
23
BERLINCK, Manoel Tosta. O “fundamental” da Psicopatologia Fundamental. Op. cit., p. 8-9.
28
construção de um saber psicanalítico ocorre na transferência analítica, a partir deste vazio
que retorna insistentemente, solicitando novas representações, produzindo avanços
simbólicos.
Ceccarelli
24
afirma que no epicentro da psicopatologia fundamental encontra-se o
pathei mathos esquileano, ou seja, aquilo que o sofrimento ensina. Trata-se da escuta do
sujeito a respeito de seu pathos transformando o sofrimento em experiência, em
aprendizado que modifica o pensamento.
Assim, o encontro com o limite não implicou que a analista rejeitasse toda a sua
formação até então construída. Ao contrário, possibilitou-lhe uma ressignificação teórica e
técnica, comprovando que o conhecimento só pode avançar onde fracassa.
25
1.3- A intercientificidade: o diagnóstico alopecia areata e a investigação da
psicopatologia somática
Flora inicia a análise alienada no discurso médico, no diagnóstico de alopecia
areata. Engajados na importância intercientífica recorremos ao campo da medicina para
investigar como esta área de conhecimento compreende esse fenômeno tentando uma
interlocução com a psicanálise, e buscando apreender o funcionamento do seu modelo
teórico e os limites de sua operatividade.
Alopecia areata (A.A.) é derivada do grego alopekia, originada da palavra alópec
que significa raposa. O termo Alopekia primeiramente era utilizado para designar a queda
de pêlos observada numa determinada raça de raposas que sempre ocorria na época do
verão. Houve a conjugação com a palavra areata, uma vez que esta manifestação se inicia
em áreas, podendo progredir.
Existem pelos menos três tipos de alopecia areata: total, parcial e universal. As
duas primeiras se referem à região do couro cabeludo e, a terceira, a todos os pêlos do
corpo.
Sampaio, Castro e Rivitti
26
descrevem a Alopecia Areata (A.A.), pelada, como uma
afecção comum, caracterizada pela perda de cabelos ou pêlos em áreas redondas ou ovais,
24
CECCARELLI, Paulo Roberto. A contribuição da Psicopatologia Fundamental para a Saúde Mental. Op.
Cit.
25
BERLINCK, Manoel Tosta. Logos. V Congresso Brasileiro de Psicopatologia Fundamental.
29
sem sinais inflamatórios ou de atrofia de pele. Segundo esses autores, a etiopatogenia da
A.A. é desconhecida, não havendo nenhum estudo demonstrando a participação endócrina,
genética, de focos infecciosos, imunológicos ou outras doenças sistêmicas e cutâneas. No
entanto, fatores emocionais foram considerados na gênese da A.A. pelada.
Flora tem o diagnóstico de A.A. Universal, com comprometimento de todos os pêlos
do corpo. Como a evolução relaciona-se com a forma clínica, a A.A. Universal, sendo
extremamente resistente, apresenta um prognóstico grave.
Trabalhos mais recentes, como o de Pérez-Catapos et al.
27
, e o de Spiner
28
afirmam
que, embora a etiologia não esteja esclarecida, as últimas investigações apontam para uma
causa auto-imune.
Ochoa, Saul e Arellano Mendoza
29
realizaram um estudo sobre os aspectos clínicos,
em forma perspectiva, de 53 pacientes com alopecia areata e as associações mais
freqüentes foram o estresse emocional agudo, os antecedentes familiares e os antecedentes
pessoais da doença.
A Dra. Enilde Borges Costa
30
apresenta uma posição que parece complementar os
trabalhos anteriores, associando a causa auto-imune (a formação de um auto anticorpo, que
ainda não foi definido e nem o local onde ele agride na estrutura capilar) a um fator
estressante emocional ou físico no início do processo. Segundo ela, há vários estudos
confirmando a possibilidade de haver um marcador genético que determinaria o tipo de
alopecia areata. Observa, nos casos atendidos, que há uma grande incidência de outras
patologias auto-imunes nos pacientes. Ressalta o aspecto enigmático da repilação
espontânea.
26
SAMPAIO, Sebastião, A.P; CASTRO, Raymundo, M.; e RIVITTI, Evandro A. (1970). Dermatologia
básica. 3. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1983.
27
PÉREZ-CATAPOS S., Maria Luisa; ECHEVERRIA P. Ximena; VIDAL G.H. Pedro; LIM S. Jongsung.
Revisión de los conocimientos actuales sobre alopecia areata. Revista chilena de dermatología, v. 17, n. 1, p.
35-41, 2001.
28
SPINER, R.E. Alopecia areata: aspectos epidemiológicos e inmulogicos. Revista argentina de
dermatología, v. 77, n. 4, p. 198-205, oct. dic. 1996.
29
OCHOA, Juan; SAÚL, Amado; ARELLANO MENDOZA, Ivonne. Aspectos clínicos de la alopecia areata:
tratamiento tópico comparativo entre antralina y betametasona. Revista mexicana de dermatología, v. 37, n. 6,
p. 478-81, nov. dic. 1993.
30
COSTA, Enilde B. Associada da Sociedade Brasileira de Dermatologia - Regional São Paulo. Realiza
grupos de apoio a pacientes com alopecia areata.
30
Cita, ainda, os tratamentos mais freqüentes: uso de corticóides (sistêmico por via
oral ou tópico), imunossupressores, difenciprone (difenil ciclo propenona, que provoca um
tipo de alergia “desviando” o foco dos anticorpos).
A partir de dados clínicos, a Dra. Enilde afirma não existir diferença entre as
diversas alopecias, e que, definitivamente, a diferença encontra-se em cada paciente.
Por essas classificações nosográficas, percebemos uma tentativa de estabelecer uma
relação entre estados emocionais e doença orgânica. A tradição pautada num modelo
dicotômico de pensamento teve sua origem com Descartes (1596-1650)
31
, que concebeu o
indivíduo formado por duas partes: mente e corpo, em que a partir do estudo das partes,
alcança-se o conhecimento do todo. Este pensamento influenciou as ciências, dentre elas, a
medicina ocidental.
É inegável a eficiência deste recurso quanto às inúmeras descobertas e teorias
construídas, mas, por outro lado, esse sistema trouxe como conseqüência, ao contrário do
que se esperava, a perda da visão do indivíduo como um todo. Na busca tecnicista do
diagnóstico, passou-se a perscrutar mais os órgãos e menos a subjetividade do paciente.
Assim, os sintomas não justificados por evidências orgânicas ou exames laboratoriais,
portanto “os incompreendidos” pela medicina, exigiram a formação da psicossomática
médica.
O limite do modelo médico produziu um equívoco persistente nos dias atuais, por
não permitir a distinção entre causa e mecanismo. No campo médico, a alopecia areata é
causada pela auto-imunidade. Não deveríamos interpretá-la como um mecanismo?
A medicina utiliza medicações no tratamento da alopecia com o objetivo de
interferir nos mecanismos bioquímicos, tomando-os como causa. Neste sentido, as ciências
da natureza desvendam o “como?”, mas encontra um limite para saber o “por quê?”.
A operatividade da medicina está na reversibilidade dos distúrbios, criando novos
recursos para restabelecer a homeostase do organismo.
O impasse confrontado pela área médica, é que quanto mais o corpo biológico é
desvendado, acompanhado do aumento da eficiência da ciência, mais o sofrimento psíquico
31
CARVALHO, Vicente Augusto de. A questão do câncer. In: Flávio Carvalho Ferraz, Rubens Marcelo
Volich (orgs.). Psicossoma: psicossomática psicanalítica. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1997.
31
fica excluído das possibilidades terapêuticas. Este fato ocorre porque a subjetividade do
paciente apresenta uma lógica diferente da biologia.
O nascimento da psicanálise pode ser interpretado como uma modalidade de
resposta frente ao limite da estrutura do saber da medicina moderna. Ao investigar os
sintomas conversivos da histeria, Freud se deparou com a impossibilidade de avançar em
seus conhecimentos no campo anatomopatológico e utilizou a psicopatologia para alcançar
a compreensão da verdade subjetiva. O pai da psicanálise constatou que, confrontado com
uma manifestação somática, restava ao sujeito a busca de significados por meio do
discurso.
Neste sentido, diante de uma afecção somática, não compete ao analista a
investigação fisiológica do fenômeno, mas a escuta sobre a ficção do paciente sobre ela,
sobre a sua psicopatologia somática. Esta escuta singular das representações pelas quais e
nas quais o sujeito se manifesta é o que faz a especificidade do sintoma, tornando-o
inacessível à generalização. É por meio da linguagem que a estrutura causal do sintoma
poderá ser desvendada.
Sendo assim, a investigação psicopatológica sobre o fenômeno alopecia areata, no
caso Flora, tema desta dissertação, foi realizada por meio da escuta analítica na vivência
clínica.
A construção de um discurso ocorre pelas sucessivas reelaborações, que só
alcançam a nova significação num a posteriori, como efeito da interpretação. Portanto, este
discurso não encerrou com o final desta tese, pois novas questões foram relançadas.
Esta dissertação porta a tentativa de teorização de uma prática de interlocução em
que a paciente pôde, por meio de sua história, redescobrir a construção de sua
subjetividade.
Trata-se de um convite para uma investigação psicopatológica, em que a escuta “à
deriva” possibilitou o encontro com a surpresa, acarretando a produção de conhecimento.
A partir desta experiência única, podemos concordar com as palavras de Dejours:
... eu não acredito na previsibilidade em psicanálise e, geralmente, no mundo humano.
Mesmo que existam regularidades, por um lado eu recuso a previsibilidade e, por outro,
reconheço que o que domina a clínica é a surpresa. Mas mesmo a surpresa só é possível se
ainda existe um mínimo de predição que faz com que esperemos uma outra coisa que não
aquilo que surpreende. Acredito então que é necessário, em psicossomática e em
psicanálise, formular uma predição, mas visando se preparar para uma surpresa e estando
32
pronto a acolhê-la. Nós não partimos às cegas num trabalho psicanalítico, mas devemos
esperar que as coisas não se passem como prevíamos.
32
1.4- O pathos somático e o aparelho psíquico como um prolongamento do sistema
imunológico
A obra de Freud apresenta, desde o início, uma reflexão sobre as relações entre o
psíquico e o somático. Os modelos etiológicos das neuroses atuais e da histeria foram as
primeiras referências da psicanálise que revelaram a influência dos fatores psíquicos nas
doenças orgânicas.
Embora Freud buscasse superar o dualismo entre mente-corpo durante todo o seu
percurso teórico, apenas em 1915
33
, quando postulou a pulsão como um conceito-limite
entre o psíquico e o somático, esta tendência foi modificada.
A psicopatologia fundamental visa a superação deste dualismo, considerando que o
humano é pático por se constituir como um ser pulsional.
Para Berlinck
34
, pathos é sempre somático, considerando o aparelho psíquico um
prolongamento do sistema imunológico que pode dar ao psiquismo um caráter somático.
Não se trata de uma visão reducionista, em que o psiquismo se reduz ao somático, mas uma
interpretação do pathos como se originando no corpo, prolongando na psique e tendo como
possibilidade de manifestação pática, a vertente somática e a psíquica.
Apesar do método terapêutico da psicanálise ser realizado através da palavra, isto
não quer dizer que pathos se restrinja ao psíquico. Pathos é, sobretudo, somático.
A concepção de Berlinck
35
a respeito do aparelho psíquico como um prolongamento
do sistema imunológico, uma defesa ante pathos, foi formulada a partir do manuscrito
recém-descoberto, enviado por Freud a Ferenczi, publicado com o título Neuroses de
transferência: uma síntese
36
, onde o mesmo apresentou a sua concepção do psiquismo
humano como sendo psicopatológico, a partir da catástrofe glacial.
32
DEJOURS, Christophe (1997). Biologia, psicanálise e somatização. Op. Cit., p. 41.
33
FREUD, Sigmund (1915). Artigos sobre metapsicologia. In: Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud. 3. ed. Tradução por Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago,
1990. v. XIV.
34
BERLINCK, Manoel Tosta. O que é Psicopatologia Fundamental. Op. Cit.
35
BERLINCK, Manoel Tosta. Catástrofe e representação (1998). Notas para uma teoria geral da
Psicopatologia Fundamental. In: Psicopatologia Fundamental. São Paulo: Escuta, 2000. p. 30.
36
FREUD, Sigmund (1915). Neuroses de transferência: uma síntese (manuscrito recém-descoberto).
Tradução e Posfácio à Edição Brasileira por Abram Eksterman. Rio de Janeiro: Imago, 1987.
33
Freud afirmou nesse manuscrito, que o Dr. Fritz Wittels (1912) enunciou pela
primeira vez a idéia de que o primata teria vivido num ambiente em que todas as
necessidades eram satisfeitas, como no paraíso original. Ferenczi, em Thalassa - Ensaio
sobre a teoria da genitalidade (1914/1990) considerava que o desenvolvimento do homem
primitivo ocorrera em função da catástrofe glacial, ou seja, que o desenvolvimento cultural
teria sido provocado pela influência dos destinos geológicos da Terra.
Seguindo esta linha de pensamento, Freud desenvolveu a sua teoria psicopatológica
da humanidade.
Estabeleceu que a histeria de angústia, a histeria de conversão e a neurose obsessiva
eram regressões às fases em que a espécie humana havia passado durante a era glacial.
Nesse sentido, a filogênese seria repetida em cada ser humano (ontogênese).
Berlinck afirma que:
O homem é, assim, um ser da catástrofe e é a partir dela, e de uma capacidade
criativa que se transforma em repetição, que o ser humano é uma espécie psicopatológica.
Assim como naquela época todos os homens passavam por essa experiência, hoje isso
ocorre apenas com uma parcela, em virtude da predisposição herdada ocasionada por novas
experiências. Os quadros não podem naturalmente ser superponíveis, diz ainda Freud,
porque a neurose contém mais do que a regressão traz consigo. Ela é também a expressão da
resistência contra essa regressão, um compromisso entre as coisas antigas dos tempos
primitivos e a exigência do culturalmente novo.
37
A perspectiva da psicopatologia fundamental tem a sua filiação neste mito
freudiano, considerando o aparelho psíquico um prolongamento do sistema imunológico
desenvolvido para proteger a espécie humana desses perigos externos, caracterizados pela
mudança do meio ambiente e dos perigos internos, provocados pelas satisfações pulsionais.
Persicano concluiu que:
A pulsão é, portanto, a primeira criação da espécie no próprio momento em que a
espécie se constitui, a primeira nova solução encontrada para dar conta do descompasso
biológico. (... ) A pulsão, sendo a primeira criação que inaugura a espécie, tirando-a do
desamparo biológico, é o que coloca a espécie agora no desamparo pulsional. Uma pressão
que impulsiona e instiga, exigindo uma ação que a descarregue, que a elimine por algum
tempo, mas sem nenhum objeto nem fim programados pelo biológico, exigindo a presença
do outro para inscrevê-los em uma fonte, a partir daí, que deixa ela também de ser biológica
e passa a provir do outro para colocar o humano em ação.
38
37
BERLINCK, Manoel Tosta. Catástrofe e representação. Op. Cit., p. 30-31.
38
PERSICANO, Maria Luiza Scrosoppi Persicano. A angústia na trilha da pulsão: entre psique e soma. A
metapsicologia da angústia e de suas manifestações somáticas. Op. Cit., p. 42.
34
Assim, o pathos passa a fazer parte da essência do humano e, com isto, o termo
normalidade perde o seu sentido, pois só poderia ser considerado “normal” a ausência de
tensão ocasionada pelo estado nirvânico, o que significaria a morte. Segundo esta teoria, as
neuroses representam uma construção humana que garantem a sobrevivência da espécie,
como uma modalidade de construção psíquica.
Ceccarelli aponta que:
... o que a falta do Outro traz não é a morte biológica mas, antes, a morte ontológica que tem
sua expressão máxima em algumas formas de psicose. A função essencial do Outro
primordial, encarnada inicialmente pela mãe, é a de introduzir a criança no mundo da
metáfora onde os objetos secundários substituem os primários. O narcisismo secundário, o
do eu, só é alcançável pelo sacrifício do narcisismo primário. O bebê humano que recusa
este imperativo seria impensável como humano, excluindo-se da cultura.
39
Assim, a psicopatologia fundamental tem por objetivo definir fundamentos sobre a
constituição do humano enquanto ser pático nas suas manifestações somáticas e psíquicas,
numa perspectiva em que a constituição do aparelho psíquico advém como uma
organização defensiva para dar conta do pathos.
Esta teoria apresenta uma grande relevância na investigação da alopecia areata de
Flora, pois ao destacar o conceito de pathos somático, nos possibilita interpretá-la como
uma manifestação pática numa vertente somática que não apresenta um estatuto psíquico,
além de reafirmar a importância da escuta do excesso, da passividade e do assujeitamento
manifestados por Flora.
Pierre Fédida
40
utiliza o termo “psicopatologia somática” por acreditar que o termo
“psicossomático” reintroduz a questão da influência da psique no soma, ou vice-versa, não
dando relevância à questão psicopatológica.
Utilizaremos o termo manifestação somática, dando ênfase à ausência de
simbolização, portanto, a ausência de um sentido. Esta investigação foi realizada junto à
construção psicopatológica de Flora na vivência clínica, o que nos levou à interpretação do
39
CECCARELLI, Paulo Roberto. A contribuição da Psicopatologia Fundamental para a Saúde Mental. Op.
Cit., p. 21.
40
FÉDIDA, Pierre. Amor e morte na transferência. In: Clínica psicanalítica: estudos. São Paulo: Escuta,
1988.
35
fenômeno como uma saída possível do sujeito frente à sua catástrofe, e não como um
“problema” ou como algo que foge ao “padrão de normalidade”.
36
CAPÍTULO 2
O caso Flora: uma construção psicopatológica
2.1- A pintura na tela vazia: os primeiros contornos
A Alopecia trouxe Flora para análise...
Deparei-me com a imagem de uma natureza morta. Os bonitos traços do seu rosto
estavam apagados, desconsertados, vitimizados pela violenta queda dos cabelos.
No fundo do seu olhar, Flora trazia um suspiro de vida. Com a dor de quem havia
perdido, sem saber o quê, tentava através da peruca e da maquiagem mortas, fazer uma
imagem de vida.
Oscilava entre vida e morte, entre Flora e Alopecia. Juntamente com os cabelos,
Flora também caíra. Encontrava-se assujeitada, estatelada no chão, mas algo resistia.
Insistia o incômodo da peruca morta, esta que parecia não acomodar na curvatura do
seu crânio, ameaçando cair a qualquer momento, trazendo novamente o imprevisto.
O rosto ruborizado de Flora denunciava o receio de ser notada. Parecia querer fugir
do alcance dos meus olhos. Assim, a angústia fazia parte do cenário, da eterna tentativa de
escapar da sua imagem “desmontada”.
No meu ouvido ecoava um choro desesperador: “Quero os meus cabelos de volta”.
Este era o seu apelo de vida!
Um sonho tido anteriormente parecia prever o acontecido: Flora andava pela rua
com a cabeça raspada. Angustiada, indagava-se por que havia feito aquilo... Acordava
suada e passando as mãos entre os cabelos, confirmando sua presença, sentia-se aliviada...
Era apenas um pesadelo.
Apesar da suposta antevisão, Flora transmitia a sensação de alguém que havia sido
assaltada, apanhada de surpresa, como uma vítima ingênua e indefesa. Talvez quisesse
dizer que a privação de seu atributo fálico era tão impensável, que quando ocorreu foi da
ordem do inesperado. Desta vez, diferente do sonho, foi um fato irremediável.
Num primeiro momento, Flora se mantinha alienada, identificada com a Alopecia;
ela era a própria careca. Suspeitava que a queda dos cabelos tivesse ocorrido pelo uso de
produtos químicos...
37
Aos poucos foi instituindo um enigma acerca do fenômeno. Na tentativa de
interpretar a alopecia como um sintoma decifrável, começou a realizar sua construção
simbólica, relacionando a perda dos cabelos à dor da separação do namorado, somada à
briga com o par (irmão e mãe). Sentia-se como não tendo um lugar na vida de alguém...
Estava excluída e perdida... Ao mesmo tempo, parecia não desistir de encontrá-lo.
Na transferência sempre certificava a minha presença na sessão seguinte,
confirmando o dia e a hora, mesmo tendo um horário fixo preestabelecido. Comparecia a
todas as sessões e era pontual.
A incerteza do reconhecimento pairava nas palavras de Flora. Contou que desde a
infância esteve sem lugar. Quando nasceu, a mãe mantinha-se ocupada com o filho que nos
primeiros anos de vida tivera paralisia infantil. Uma mãe morta, paralisada com o filho,
paralisada com a vida. Referia-se a esta como uma natureza morta, uma mulher sem
pintura, descuidada, sem vaidade, desdentada, nada carinhosa. Flora ressaltava esse aspecto
ao justificar a sua dificuldade no contato físico com as pessoas.
Com isso, a mãe era uma figura que lhe despertava um misto de pena e ódio,
agregados ao fato de ela ser submissa e cúmplice do marido alcoólatra, agressivo e
mulherengo. Era assim que inicialmente Flora descrevia o pai. No entanto, na
impossibilidade de obter um lugar junto à mãe, aquele lhe sinalizava uma saída. Sentia que
o pai se frustrara por não ter um filho homem que o acompanhasse nas atividades
masculinas, que pudesse jogar futebol e compartilhar o gosto de ser caminhoneiro. O sonho
foi dissolvido pela doença do filho, pois o mesmo não tinha pernas para acompanhar os
passos do pai, e o pé era pequeno - calçava número 35.
Flora tentava se adaptar ao desejo paterno; em troca recebia carinho. Ele
transformava metade do seu salário em doces para ela. Na infância, vestia-se como um
moleque, de camiseta, shorts, vivia com os pés descalços. Era carinhosamente chamada
pelo pai de “machinho”. Pelos vizinhos era o “menino de brincos”. A indefinição sexual
estava presente no seu corpo, em seus cabelos. O pai, que também era barbeiro e, como
uma autoridade, cortava os cabelos dos filhos. Dele, Flora ganhava um estilo “Joãozinho”.
Lembrava que odiava esse tipo de cabelo, e sentia-se envergonhada na escola, sendo
motivo de riso dos coleguinhas. Mas algo se introduzia. Iniciava o seu fascínio por cabelos.
Vivia atrás do pai, curiosa para aprender tal atividade. Anos mais tarde, através da busca
38
por um cabeleireiro, Flora encontrou a vaidade feminina. Não mais aceitou que seu pai lhe
cortasse o cabelo. Só não tinha se dado conta que, há muito, o domínio dele já havia se
estabelecido. Ele impunha sua autoridade pela agressão física. Desde pequena, Flora
tentava se defender, colocando o caminhãozinho de brinquedo na frente, tentando um
limite, provocando um corte na mão daquele que parecia querer eliminá-la quando
contrariado. Mesmo assim, esse pai persistia...
Durante a infância e adolescência, o olhar dele deslizava pelo seu corpo. Escondido
atrás dos móveis esperava a pequena mulher sair do banho, enrolada na toalha, e a
surpreendia deixando-a nua, beliscando seus peitos que começavam a despontar, dando
tapas no seu pequeno bundão gordo. Flora acusava a mãe por tê-la deixado tão
desprotegida, à mercê desse homem voraz. Mais uma vez reclamava da ausência dela.
O sentimento de intensa ambivalência, amor e ódio, se confundiam. Parecia não
haver lugar para Flora, nem ao lado dos irmãos gêmeos, limítrofes, de quem ela pouco se
reportava. Assim, se submetia às migalhas do pai. A mesma mão que acariciava seus
cabelos, lhe batia. Duas agressões, dois carinhos. Um eterno conflito entre o prazer e a
proibição.
O interesse pelos homens, iniciado na adolescência, extremou os sentimentos
contraditórios pelos/dos pais.
A mãe morta revivia nos relacionamentos amorosos de Flora, insistindo em dizer
que a mulher deveria ser submissa ao homem, condenando a filha a ficar só, por ser
desafiadora.
O pai, ao mesmo tempo em que a ridicularizava perante os outros, expondo suas
características grosseiras (ombros largos, pés e mãos grandes), masculinizando-a, a
impedia/protegia de expôr suas curvas femininas e a beleza do seu rosto.
Flora aprendeu uma dinâmica sensual com o pai: oferecia-se ao olhar desejante
desse homem vestindo roupas decotadas e calças justas, e apanhava por ameaçar dar-se a
ver para outros homens.
O pai dizia protegê-la dos gaviões, acusando-a de vagabunda. Ele encarnava o
gavião que desejava as mulheres vagabundas. Certa vez contraiu uma doença venérea -
talvez da mesma mulher que esqueceu a calcinha vermelha debaixo do banco do seu
caminhão, encontrada por Flora.
39
No constante embate com os pais, Flora passou a esconder seu corpo. As roupas
justas foram dando espaço às camisetas largas que cobriam a calça jeans. A aquarela do seu
rosto foi perdendo o seu tom. Os cabelos eram o atributo feminino que lhe restara. Eram
investidos, tratados, escovados, longos, brilhantes. Era por meio da sua profissão de
cabeleireira que Flora indagava sobre a beleza feminina. E pelos valores preconceituosos
dos pais, dava vazão à sua agressividade com as mulheres que eram livres para exercer a
sensualidade.
Aos 20 anos, Flora viveu a morte do pai - atropelado por um carro que não
conseguiu desviar de um homem impregnado pelo álcool - numa confusão entre a dor da
perda de alguém que lhe ofereceu afeto e o alívio da abolição da escravidão. Não apanharia
mais.
Começou a se relacionar com os homens. Foi quando passou a reviver a submissão.
Parecia ver o pai em cada relacionamento. Talvez ele não estivesse morto, talvez
continuasse apanhando.
A atividade de cabeleireira foi interrompida pela alopecia. Foi interrompido o
contato com o mundo. Parecia ser insuportável estar sob os olhares das pessoas portadoras
de cabelos como se, mais uma vez estivesse excluída. Sem lugar na vida de alguém,
identificou-se com o vazio.
Flora não conseguia me olhar nos olhos; queria fugir de ser vista. A minha
impressão era de alguém que continha uma raiva intensa, ao mesmo tempo em que tentava
demonstrar controle. Esta era sua maneira de se defender dos seus impulsos e do mundo, o
que lhe causava intensa angústia. Parecia nunca ter recebido um olhar que a legitimasse
enquanto ser autônomo. Só conhecia a invasão do olhar que impunha seu desejo, que
alienava, que soterrava. Foi pela insuportabilidade desse olhar que Flora abandonou a
análise.
Juntamente com a fala sobre o sofrimento de estar sendo alvo da curiosidade das
pessoas, do olhar siderado do outro, me demandava uma forma de recuperar seus cabelos.
Frustrada, também me mantive alienada na alopecia, alienada no desejo de poder fazer o
milagre que Flora tanto me pedia. Assim, repeti o olhar de morte. E este foi seu primeiro
momento de construção. Um momento inicial, onde pude sustentá-la na montagem da sua
ficção e onde sua obra começou a tomar corpo...
40
2.2- Em busca de um lugar para a palavra
Minha ausência teve seu efeito. O período em que Flora se manteve afastada da
análise foi um tempo de reação. Voltou a trabalhar, buscou contato com pessoas com
alopecia e começou a “exorcizar”, colocando para fora tudo o que sempre teve vontade e
nunca havia conseguido. Na ausência, as minhas falas se mantiveram presentes.
Flora me procurou para retomarmos o trabalho. Pediu desculpas por ter me
abandonado e justificou-se dizendo que precisava de um tempo. Não agüentava mais se ver
reclamando; era momento de reagir e, para isso, necessitava ficar só.
Constrangida, tinha medo que eu, abandonada, não a aceitasse de volta. Era o jogo
dual entre o senhor e o escravo. Nesse caso, o escravo era eu. Aceitei seu retorno. Flora
parecia disposta a se comprometer com uma análise. Desta vez, diferente do momento
inicial, eu pude estar ausente o suficiente para uma escuta.
A imagem com que me deparei nesse retorno foi a de um travesti. O excesso de
maquiagem tentava esconder a falta, o vazio. Como uma tela impregnada pelas cores, que
não deixa restar um espaço em branco. Sentia como se a visse do avesso, o dentro para fora
e o fora para dentro. Transmitia uma artificialidade através da pintura grosseira das
sobrancelhas, que impedia a visão dos belos traços femininos. Os pés e as mãos grandes
ficavam mais evidentes, além da sua altura. Era a figura concreta do seu turbilhão sexual.
A falta de expressão, a natureza morta, a imagem assexuada do primeiro momento
parecia ter dado lugar a uma expressão radical. Eram os dois sexos em jogo. Dizia que
passava horas na frente do espelho experimentando as maquiagens, brincando ser uma Drag
Queen. Era uma forma de tentar des(en)cobrir a respeito de seu sexo, seu desejo.
Investiguei sobre a Drag Queen. Flora ignorava o fato de se tratar de um homem
travestido de mulher, ressaltando apenas o aspecto de ser alguém que chamava a atenção,
que se exibia. Questionei sobre seu desejo de ser olhada. Flora disse que se as pessoas não
reparassem nela, ela estranhava. Contou que usava perucas de vários modelos, loura, ruiva,
morena, de acordo com seu humor. Ousava e criava várias maneiras de se maquiar.
Flora revelava uma estratégia para ser vista, mas quando isto ocorria se angustiava
por novamente se deparar com o olhar invasivo, preconceituoso, sádico, que apontava suas
41
falhas, que a expunha ao ridículo. Qualquer tentativa de se relacionar com o outro era
derrotada por esse olhar. O olhar que a nocauteava.
A alopecia areata parecia intensificar esse cenário, pois dava-lhe a certeza sobre o
pensamento das pessoas: “Estão me olhando porque sabem que sou careca”. Qualquer
intervenção que pudesse promover a dialetização desse discurso era fracassada.
A cena era de uma agulha sob um disco riscado, que no ímpeto de fazer fluir a
música, recaía no repetitivo ruído insuportável.
Flora dizia não conseguir se livrar do olhar do pai. Retomava as lembranças da
adolescência, da sensação ruim de ser olhada como uma vagabunda, do olhar que a
colocava no lugar da mulher com corpo de homem, da idéia de que o pai estava fazendo
algo errado quando puxava sua calcinha na infância. E como reação só lhe restava chorar.
Um choro que não era escutado.
O registro era de uma violência exercida pelo pai e um intenso desamparo materno.
Não havia quem pudesse interditá-lo. Flora interpretava o olhar da mãe como cúmplice do
olhar do pai. As palavras que rondavam o ambiente familiar diziam que “tudo era pecado”.
De qual pecado eles se referiam?
Os fios de cabelos teciam uma construção simbólica. No início, eram eles que
disfarçavam seus traços masculinos.
Eu questionava sobre o que era escondido e o que era uma oferta ao olhar do outro,
pois quanto mais Flora se empenhava em se esconder, mais despertava o desejo de olhar
das pessoas.
Um sentido foi produzido quando Flora percebeu que os cabelos compridos eram
um limite que ela havia colocado ao desejo do pai de transformá-la num “moleque”. Os
cabelos representando o seu desejo de ser mulher.
Algo operou ali e uma possibilidade foi criada. Flora demonstrou mais segurança
em se expor; quis me revelar um segredo. Mais do que uma revelação, Flora nomeou seu
desejo. Contou haver omitido que, antes do atual namorado, tinha se envolvido com um
homem casado, que dizia amá-la, mas que nunca se separou da esposa para ficar com ela.
Recriminava-se por estar no lugar da amante, da vagabunda. Humilhava-se, implorava por
um lugar ao lado dele. Em vão. Perdeu a virgindade, entregando seu corpo numa tentativa
de conquistá-lo. Procurou um ginecologista em busca de uma receita que lhe dissesse o que
42
é ser uma mulher. Nem assim conseguiu garantias. O namorado disse que ela não servia
para satisfazer homem algum e a abandonou. Com isso, foi dominada pela culpa. A
profecia de seus pais havia se realizado: era uma vagabunda desvalorizada; nunca homem
algum iria se comprometer com ela. Além disso, ainda era submissa como a mãe. Ser como
a mãe era-lhe insuportável.
Acreditava que a alopecia teria sido uma autopunição, um autoflagelo. Estaria
punindo-se por ter roubado dinheiro da mãe para ir ao motel com o atual namorado, o
segundo relacionamento “profano”. Casado, mulherengo, gastava o pouco que tinha com
bebidas na roda de amigos. Não gostava de trabalhar. Era cabeleireiro, havia montado um
salão com Flora, mas era ela quem o mantinha. “Ele só queria ir ao Japão ganhar dinheiro
fácil”, dizia ela.
Dois meses antes da queda dos cabelos, o suposto namorado a abandonou, sem
previsão de retorno. Na mesma época Flora discutiu com o irmão por descobrir que ele
havia gastado todo o dinheiro da mãe com mulheres e bebidas. Alguma semelhança? Mas
com o filho, a mãe consentia, o protegia. Flora tinha raiva desse pacto.
Com o furto, Flora parecia diminuir a insuportável potência materna, descontando
sua raiva, deixando a mãe em falta, assim como ela mesma se sentia.
Indaguei sobre o ato. Flora dizia que não podia revelar à mãe o seu desejo por um
homem, o desejo que a tornava submissa, que revelava a sua identificação com ela. Não
assumir sua falta de dinheiro a mantinha presa a uma ilusão; ilusão que, enfim, ela
conseguira um lugar ao lado de alguém.
Relembrava a cena traumática da briga. Era um emaranhado de afetos. Culpa,
exclusão, desamparo, indignação, raiva, vergonha, ódio, ódio, ódio. Um excesso, pathos.
A somatória de separações: do namorado, da mãe, foi insuportável. Parecia não
haver simbolização possível para Flora.
Amparada nesse doloroso relato, parecia enfim encontrar um lugar; um lugar em
que seu desejo pudesse ser reconhecido; um lugar de vida, um lugar de expressão.
2.3- O efeito da escuta no olhar
43
Apresentei o divã a Flora. Apostei que naquele momento ela poderia seguir suas
construções fora do alcance do nosso olhar. Era momento de se escutar. Ela escutava suas
repetições, aquilo que não cessa, que foge ao controle do corpo.
Percebia as suas contradições, as atitudes que demonstravam o oposto do que era
pretendido, reconhecendo sua defesa. A defesa que a impedia de se deparar com a falta.
Flora falava sobre a impossibilidade de controlar seu corpo, como um corpo
transgressor.
Um dia me perguntou sobre minha maquiagem definitiva das sobrancelhas. Eu lhe
disse que também me faltavam pêlos e que, com tal recurso, havia encontrado uma nova
expressão no meu rosto. A minha “falta” teve um efeito de alívio. A imagem fálica
projetada em mim parecia paralisá-la. O outro potente, as mulheres potentes paralisavam-
na.
O mistério da feminilidade, a impossibilidade de significá-la, fazia com que Flora
apelasse para uma imagem idealizada que pudesse lhe responder o que é uma mulher, saída
esta que mais uma vez a excluía, a mortificava. Como uma mulher careca podia ser um
ideal de beleza?
Por outro lado, na tentativa de encontrar um “contorno” feminino, foi aprimorando-
se na técnica de maquiagem. O excesso aos poucos foi se dissolvendo e um estilo próprio
começou a nascer.
A identificação, a raiva, o desejo, o ódio, a inveja das mulheres gritavam durante as
sessões. Era uma briga constante com o espelho, uma alternância infinita entre a impotência
e a ostentação.
Endereçava-me seu enigma implorando por uma resposta, como se eu a possuísse.
Respondia-lhe com meu silêncio, o único capaz de fazer advir seu desejo.
Depois de dois anos e meio do início da alopecia, Flora inaugurou um traço
definitivo no seu rosto, começando a se apropriar do seu corpo. Abandonou a desgastante
atividade de, diariamente, fazer e retirar os contornos das sobrancelhas para torná-los seus.
A delimitação do seu corpo se transformou no início de um limite entre corpos.
Começou a impedir a invasão das clientes, da sua mãe e do ex-namorado que havia
retornado do Japão.
44
Após um longo tempo sem um relacionamento amoroso, Flora se arriscou numa
ligação com Flávio. Conheceu-o numa festa de Halloween. Num primeiro momento, a
visão de um homem superior paralisou-a.
Enfrentou o medo e buscou um contato. Ele deixou claro a respeito da insegurança
em assumir um compromisso com ela, pois estava traumatizado com a relação anterior.
Este parecia ser um terreno propício para Flora. O terreno que a fazia vislumbrar um lugar
de potência, onde resgatava o homem de sua insatisfação amorosa, tornando-se a única
capaz de satisfazê-lo.
No início ele correspondeu à sua estratégia de sedução, o que a fez ousar atuar suas
fantasias sexuais, oferecendo-se como um objeto. Era um prazer a dois. Escolhia os
vestidos decotados para sair com ele, sentia-se sensual e feminina. O olhar de reprovação
da mãe não surtia o mesmo efeito. Viveu o auge da sua sexualidade. Encarnou a loura,
morena, ruiva, puta. Um cenário sustentado pelo desejo de Flávio.
Com ele, esteve mais segura para dizer sobre a alopecia e, ao contrário do que
esperava, foi aceita apesar da doença. Sentiu-se como alguém que escapava de um
naufrágio. Finalmente um homem a havia enxergado; era sua tábua de salvação. Mas algo
persistiu. Como ele havia lhe dito desde o início, não estava disposto a um compromisso.
Os telefonemas foram tornando-se escassos. A angústia de Flora sinalizava e, por fim, a
ausência se presentificou.
Flora implorou por uma resposta e encontrou o que já previa... Ele lhe disse que
agora era a vez de outra, e ela estava descartada.
Apontei o que parecia não fazer sentido: “Se diz que sempre sonhou em casar-se e
ter filhos, por que só se envolvia com homens indisponíveis?”.
Na busca de um sentido sobre seu mal-estar, Flora percebeu que detinha um saber.
Falou sobre os homens que quiseram assumi-la e a falta de interesse que tinha por eles,
passando a questionar sobre seu desejo. O que queria afinal?
Nomeou seu prazer em ser caçadora, assim como os homens que escolhia. Um
prazer de tê-los a seus pés, mas que depois que os submetia, perdiam a graça. Considerava
as prostitutas admiráveis por desempenharem esta função brilhantemente, o brilhantismo
em se manter no controle. Para que submetê-los? Flora reconhecia que se sentia poderosa
quando os submetia.
45
Eu dizia que esse poder parecia não lhe oferecer garantias, pois “eles perdiam a
graça”. Percebeu, então, “a graça” daquele que não se submetia. Falava que este mantinha a
imagem do homem forte, daquele que era difícil de ser conquistado. Imaginava que seria o
homem desejado por todas as mulheres. Concluiu que tinha o desejo de possuí-lo para
tornar-se a mulher mais poderosa, o ideal de mulher.
Esta era a sua estratégia para manter-se sempre insatisfeita: buscava alcançar o
ideal. Uma tarefa impossível.
Retomou o incômodo provocado pelas mulheres e afirmou que desejava calá-las,
tornando-as impotentes através da sua potência. Questionou se escolhia o homem pelo
homem ou para dizer à mulher que tinha um homem. O ressentimento das mulheres a fazia
voltar ao cenário infantil.
Na tentativa de se separar da imagem natureza morta da mãe, buscando um ideal de
mulher, repetia a cena. Quando o novo parecia levá-la para um lugar distante da mãe,
despertava desse sonho ao lado dela, no lugar sombrio, onde a mulher não era reconhecida.
E, com isso, mantinha o gozo da posição de vítima, submetida.
Construiu uma metáfora: “Antes, apanhava do meu pai, ele me batia e me fazia
sofrer. Nos tempos modernos de hoje, apanho dos homens, eles não me batem, mas sofro
como se estivesse apanhando”.
Perguntei: - Por que era imprescindível apanhar?
Flora silenciou com a pergunta.
Após algumas sessões, trouxe uma hipótese: “Era a única maneira de receber as
migalhas do meu pai. Talvez tivesse aprendido que era preciso apanhar para ter carinho,
como se fosse a única forma possível”.
Questionei o que fazia com que ela, “nos tempos modernos”, continuasse agindo
assim. Apostei que a presença de uma fala que rompesse com a sua lógica - “Eu era assim
com meu pai, então sou assim com todos os homens” - pudesse provocar uma ruptura em
seu discurso. Apostei numa possibilidade de deslocamento da posição passiva e repetitiva
para um lugar criativo diante da dor... o efeito, que só poderia ser verificado a posteriori.
Flora resolveu voltar a estudar. Disse que era a hora de deixar de sentir-se
inferiorizada por não ter terminado o segundo grau. Falou do medo de enfrentar as pessoas,
46
mas percebeu que havia atribuído culpa demais à alopecia. Parecia esboçar uma mudança
no olhar...
2.4- Sonhos - O desejo de desejar
Diante das sessões que contornavam a alopecia, Flora produziu três sonhos:
“Andava pela rua, estava com cabelos e completamente pelada... Ficava
envergonhada diante das pessoas [estavam vestidas] que pareciam agir com naturalidade.
Angustiada, sem controle do meu corpo, não encontrando nada para me cobrir, me sentia
impotente. ”
“Estava num banheiro, fazendo xixi, sentada no vaso sanitário com as calças
arreadas. Havia homens numa firma me olhando, esperando eu me levantar para me verem
sem calcinha. Tentava fazê-los olharem para outro lado para poder me vestir... Também
nesse sonho eu estava com cabelos.”
“Eu entrava num ônibus pelada, com cabelos. Sentia-me como uma prostituta e
ficava pensando no que as pessoas estavam pensando a meu respeito”.
Pedi que ela interpretasse o sonho. Flora disse que a sensação que tinha quando
pensava no outro vendo sua careca era de vergonha, como se estivesse nua, sem
possibilidade de controlar seu corpo.
O que é incontrolável no corpo? Flora associava com a imagem do pai na infância
arrancando-lhe a calcinha. Associava com a vergonha que tinha de expor seu corpo ao
homem mesmo antes de ter tido a doença, um corpo que considerava imperfeito, com
faltas. Assim, insistia que os cabelos lhe cobriam as falhas.
Com a imagem do corpo castrado da mulher, indaguei sobre as imperfeições do
corpo. Flora falava do quanto era insuportável ser vista incompleta, como se o outro só a
aceitasse “montada”, com cílios, maquiagem, peruca, com o kit completo. Recordava que
antes da alopecia areata a exigência era com os cabelos, com as roupas.
Por que nos sonhos insistia em estar pelada?
Flora falou sobre o desejo de transgredir, de não ser convencional, de ser desejada
pelos homens como realmente é. Desejo de livrar-se dos seus preconceitos. Retomou sobre
o significado dado à alopecia, como uma punição que a impedia de manifestar seu desejo.
47
Ao mesmo tempo, ressaltava que a alopecia era a própria transgressão, pois a tirava do
convencional, e que se não tivesse perdido os cabelos não teria repensado seus valores,
mantendo-se “tapada”. Contou que ao rever as fotos do passado viu uma mulher insossa,
preconceituosa; com cabelos, mas sem expressão. Disse que se sentia mais livre, mais
“desbloqueada” e que se um dia voltasse a ter cabelos que o usaria de outra forma.
Alguns pêlos ensaiaram crescer; uns logo caíram, outros, chamados por Flora de
“heróis da resistência”, persistiram. Ela buscava compreender esse enigma. Falava que os
médicos lhe disseram que, por ser uma doença auto-imune, ela destruía as células que
faziam os cabelos crescerem, seus anticorpos identificando-as como um antígeno. Associou
o nascimento dos pêlos nas sobrancelhas com o momento em que estava feliz ao lado de
Flávio e, a queda deles, com a separação. Flora insistia na dificuldade da separação.
Num outro momento disse que alguns pêlos só cresciam na barba, barbicha, bigode
e que ela se sentia mal por ter que arrancá-los, uma vez que desejava que os cabelos
crescessem. Questionei sobre essas características masculinas e Flora, angustiada ao
associar minha pergunta a uma possível identidade masculina, reafirmou o seu desejo por
homens, negando uma posição homossexual.
Este tema retornou na sessão seguinte e Flora suspeitou que a sensação de ser uma
mulher com corpo de homem tenha sido um efeito das palavras do pai. Ao sentir-se
desvalorizada por ter uma estrutura óssea grande, criou um padrão de beleza feminina como
sendo a mulher pequena e delicada, em que estava radicalmente excluída. Interpretou os
traços masculinos como um defeito que deveria ser extirpado. Falava que a sua
identificação com o travesti dava-se pela difícil tarefa em transformar um corpo de homem
numa mulher...
Flora vive numa luta constante com o corpo, um corpo que a envergonha, mas que
fascina e sidera o olhar das pessoas. Por meio da alopecia areata, Flora realiza a certeza
sobre o desejo daqueles que a olham e não há palavras que possam separa-la desta fantasia
imaginária. Assim nos revela a sua dificuldade em separar-se do Outro. Alienada nesta
48
posição, identificada com a careca, Flora se mantém sem lugar, sem falta, não respondendo
como sujeito desejante.
Com relação à manifestação pática na vertente somática, Flora nos mostra que
apesar dos avanços simbólicos, a alopecia se mantém resistente à dialetização.
49
CAPÍTULO 3
A estrutura corporal: a articulação entre o corpo simbólico, o real do corpo e o corpo
imaginário
A questão do corpo, por estar em estreita relação com os fundamentos da
psicanálise, mantém-se presente ao longo do trabalho de Freud provocando enigmas e
relançamentos para as suas investigações.
A travessia pela obra freudiana nos faz rapidamente notar a mesma dialética
inacabável do sujeito, repleta de idas, vindas, reelaborações, repetições, sensações-limite
provocadas pela construção e o não-saber, o que gera efeitos na escuta do analista.
Na psicanálise, a técnica configura a teoria, que por sua vez fundamenta novamente
a técnica num movimento de infinitas reformulações. Como abordamos na introdução, foi
neste constante movimento que a nossa investigação originada a partir da vivência clínica
nos permitiu, junto aos ensinamentos de Lacan, estabelecer três dimensões para definir o
corpo no interior do campo psicanalítico: corpo simbólico, corpo imaginário e o real do
corpo.
A experiência clínica nos levou à constatação de que o corpo é resultado da
articulação destas três perspectivas que se estruturam numa lógica precisa, permitindo
definir alguns pontos de intervenção possíveis. Ou melhor, a posição que o sujeito ocupa na
linguagem possibilita a dimensão simbólica propriamente dita, ao mesmo tempo em que
permite a inserção da imagem que, em torno do inominável, constitui um determinado
corpo.
Nas páginas seguintes realizaremos uma investigação acerca destas dimensões
propostas por Lacan, a fim de explorarmos a especificidade de cada uma. Para isso,
faremos uma releitura da metapsicologia freudiana a partir deste foco e seguiremos com os
avanços do ensino lacaniano.
3.1- O corpo simbólico
50
Quando fico frustrada não páro de comer,
parece que o meu corpo pede para eu preenchê-lo....
Quando nasci, a minha mãe pouco me deu atenção porque precisava cuidar do meu
irmão com paralisia infantil. O meu pai estava frustrado, porque o filho que ele queria ensinar
futebol era deficiente. Eu parecia como um bichinho carente que ficava contente com qualquer
pessoa que passasse a mão fazendo carinho, talvez por isso eu aceitasse os excessos do meu pai...
Flora
O estado de tensão interna produz no desamparado, no infante, uma eliminação
motora: o grito. Seus efeitos no mundo externo chamam a atenção do agente prestativo. A
partir daí, por ter sido atribuído um sentido a esta descarga, ela passa a ter o papel de
portadora de sentido e serve à comunicação. Se o indivíduo prestativo realizou o trabalho da
ação específica no mundo externo para o desamparado, este foi capaz, através de
organizações reflexas, de executar sem demora o desempenho necessário no interior do
corpo para cancelar o estímulo endógeno. Então, a totalidade apresenta uma vivência de
satisfação, que tem as conseqüências mais decisivas para o desenvolvimento das funções do
indivíduo (...) Ocorrem três coisas no sistema ψ: realizou-se uma eliminação duradoura, e,
dessa forma, dá-se fim à incitação que produzira em ω desprazer, origina-se no manto a
ocupação de um neurônio (ou de vários) que corresponde(m) à percepção de um objeto
(pessoa prestativa); e chegam em outros lugares do manto as notícias de eliminação devida
ao movimento reflexo desencadeado que se segue à ação específica. Entre essas ocupações e
os neurônios nucleares forma-se então uma facilitação.
41
No início de sua obra, Freud recebeu uma valiosa contribuição do amigo
otorrinolaringologista Wilhelm Fliess, ao trocarem correspondências íntimas, que portavam
uma série de rascunhos revelando a evolução de suas idéias. Dentre essas correspondências
que ocorreram no período entre 1887 e 1904, encontrava-se o “Projeto para uma psicologia
científica” (1950[1895])
42
.
Escolhemos este texto para iniciar a nossa construção, uma vez que a partir da
leitura do germe das futuras noções metapsicológicas de Freud presentes neste trabalho, é
possível apreender a origem do seu pensamento que ressalta a fundação do inconsciente
correlato à ordem simbólica. Na montagem de sua teoria explicitada no “Projeto...”, Freud
nos mostra que a linguagem subverte o padrão instintivo, ascendendo o corpo a um estatuto
simbólico.
No “Projeto...”, Freud utiliza o modelo neurológico para hipotetizar o
funcionamento do aparelho psíquico, embora construa uma metapsicologia destacada das
41
FREUD, Sigmund (1950[1895]). Projeto para uma psicologia científica. Op.Cit., p. 32.
42
Ibidem.
51
bases anatômicas. Este modelo nos auxilia na visualização do pensamento inovador de
Freud que propõe uma submissão da dinâmica do inconsciente à estrutura da linguagem.
Na evolução dos trabalhos “Histeria” (1888)
43
, “Prefácio e notas de rodapé à
tradução de conferências das terças-feiras, de Charcot” (1892-1894)
44
, “Comunicação
preliminar” (1893)
45
, “Algumas considerações para um estudo comparativo das paralisias
motoras orgânicas e histéricas” (1893[1888-1893])
46
, “Estudos sobre a histeria” (1893-
1895)
47
, “Neuropsicoses de defesa” (1894)
48
, Freud atribuiu às funções psíquicas uma
quantidade que, embora não fosse possível a sua medição, apresentava aumento,
diminuição, deslocamento, eliminação e se propagava pelas representações. No
“Projeto...”
49
, esta questão é retomada a partir do aspecto econômico, e elaborado um
modelo de aparelho psíquico que se funda a partir de um agente simbólico que, ao realizar
uma ação específica, permite uma saída para o acúmulo de excitação, ao mesmo tempo em
que produz uma alienação no campo da linguagem.
Esta correlação entre a ordem simbólica e a estruturação do aparelho psíquico já
havia sido também esboçada na monografia “La afasia”
50
, quando Freud buscou
compreender o funcionamento do aparelho de linguagem. Apesar da sua relevância, este
trabalho não teve o reconhecimento merecido.
A fim de aprendermos sobre o estatuto simbólico do corpo, realizaremos nas linhas
seguintes uma releitura do “Projeto...”, uma vez que a investigação sobre a estrutura do
43
FREUD, Sigmund (1888). Histeria. In: Edição Standard Brasileira das Obras psicológicas completas de
Sigmund Freud. 3. ed. Tradução por Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1990. v. I.
44
FREUD, Sigmund (1892-94). Prefácio e notas de rodapé à tradução de Conferências das terças-feiras de
Charcot. In: Edição Standard Brasileira das Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. 3. ed.
Tradução por Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1990. v. I.
45
FREUD, Sigmund (1940-41 [1892]). Esboços para a Comunicação Preliminar de 1893. In: Edição Standard
Brasileira das Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. 3. ed. Tradução por Jayme Salomão. Rio de
Janeiro: Imago, 1990. v. I.
46
FREUD, Sigmund (1893[1888-1893]). Algumas considerações para o estudo comparativo das paralisias
motoras orgânicas e histéricas. In: Edição Standard Brasileira das Obras psicológicas completas de Sigmund
Freud. 3. ed. Tradução por Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1990. v. I.
47
FREUD, Sigmund (1893-95). Estudos sobre a histeria. Op. Cit.
48
FREUD, Sigmund (1894). As neuropsicoses de defesa. In: Edição Standard Brasileira das Obras
psicológicas completas de Sigmund Freud. 3. ed. Tradução por Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1990.
v. III
49
FREUD, Sigmund (1950[1895]). Projeto para uma psicologia científica. Op. Cit.
50
FREUD, Sigmund (1891). La afasia. Título del original en alemán: “Ueber Aphasie”. In: Obras completas.
[Ediciones Nueva Visión SAIC]. Colección Lenguaje y Comunicación dirigida por Oscar Masotta. Traducción
de Ramón Alcalde. Revisión técnica del Dr. Janme Mejlszenkier. Tucumán 3748, Buenos Aires, República
Argentina, 1973.
52
inconsciente fundada pelo atravessamento da linguagem apresentada por Freud neste
rascunho, e desenvolvida ao longo de sua obra, torna-se imprescindível para a elaboração
desta questão. No intuito de avançarmos nesta direção, faremos uma articulação com o
pensamento de Lacan sobre a constituição subjetiva sustentado pelo conceito de
inconsciente estruturado como linguagem.
3.1.1- Do sistema nervoso primitivo à construção da arquitetura do aparelho psíquico
Freud inicia o “Projeto...” a partir da hipótese de um sistema nervoso primitivo
anterior à existência de um aparelho psíquico propriamente dito. Segundo o autor, o sistema
nervoso primitivo era atingido apenas por estímulos externos que provocavam alterações no
seu estado de repouso. Regido unicamente pelo princípio de inércia, ou seja, pela tendência
a conservar a ausência de alteração no seu estado, o sistema nervoso contava com a
estrutura bipartida dos nervos em sensoriais e motores, organizados para livrarem-se da
quantidade (Q
51
), mediante um movimento reflexo. Assim, os nervos sensoriais recebiam Q
e a emitia através dos nervos motores como uma descarga, atendendo ao princípio de
inércia. Freud deu o nome de primária a essa função do sistema nervoso. Por meio desse
esquema, o autor nos aponta que a descarga somática do sistema nervoso, que é regida pelo
princípio de inércia, é a forma mais primitiva de anulação dos estímulos encontrada pelo
organismo, que ocorre através do retorno ao estado de repouso inicial. Como mostraremos
posteriormente, este aspecto será importante na elaboração do conceito de pulsão de morte.
O estado nirvânico como a ausência de tensão descrito no capítulo 1 representa,
neste contexto, a permanência no princípio de inércia. Neste estado, como apontamos, não
há a existência do aparelho psíquico, que só passou a se constituir com o rompimento da
inércia, em decorrência da catástrofe glacial.
Foi com a perda do paraíso original que o sistema nervoso passou a receber também
estímulos endógenos (Qn) que se originavam de células corporais exigindo satisfação, tais
como a fome, a sexualidade, a respiração. No entanto, com relação a estes estímulos, o
organismo não tinha como anulá-los, como ocorria com os estímulos externos, e tampouco
utilizar Q para fugir. A cessação só era possível por meio de uma ação específica, ou seja,
51
O autor utiliza Q e Qn quando se refere a energia. Embora não haja uma uniformidade na utilização destas
abreviaturas, Freud identifica com mais freqüência Q designando a energia da fonte exógena e Qn a energia
da fonte endógena.
53
por uma série de movimentos realizados no mundo externo com o objetivo de interromper
temporariamente o aumento de excitação. A ação específica, por sua vez, solicitava energia
para ser viabilizada. Desta forma, o organismo da nova espécie foi obrigado a uma maior
complexidade, pois se funcionasse apenas sob o princípio de inércia neurônica,
descarregaria toda a energia não podendo armazenar energia para a ação específica. A nova
tendência, ao se opor a redução de Q a zero, pôs em funcionamento o princípio de
constância que procurava manter Q no mais baixo nível possível.
Sendo assim, a exigência de transformação do sistema nervoso resultou na
constituição de duas classes de neurônios: os neurônios permeáveis que serviam à
percepção (neurônios φ), promovendo a função primária; e neurônios impermeáveis,
portadores de memória que possibilitavam a função secundária (neurônios ψ).
Nesse sistema construído por Freud, o armazenamento de energia ocorria graças às
barreiras de contato presentes nos neurônios ψ
52
que, através de sua impermeabilidade,
provocavam diferenciações quanto à faculdade condutiva, no protoplasma, formando
resistências que se opunham à eliminação. As barreiras de contato, como veremos a seguir,
são as responsáveis pela memória, justamente pela sua capacidade de produzir alterações
no tecido nervoso. Freud ressaltou que esta função não poderia ser exercida pelos neurônios
φ, pois estes eram permeáveis, próprios para executarem a função da percepção que é de
fluidez, com uma estrutura que se mantém inalterada.
Assim, o espaço do aparelho psíquico foi configurado da seguinte forma: os
neurônios φ expostos a uma magnitude tal de Qn não retinham nada, e uma vez que passava
o estímulo retornavam ao repouso, conforme o princípio de inércia; os neurônios ψ eram
atravessados por uma Qn de magnitude próxima à de sua barreira de contato, conservando
uma quantidade de movimento, obedecendo ao princípio de constância.
Podemos notar que nesta construção realizada por Freud no “Projeto...” o
funcionamento psíquico é regido pelo princípio do prazer, considerando que o aumento de
tensão provoca desprazer, enquanto a sua diminuição, prazer. Sabemos que este conceito
será reformulado no decorrer de sua obra a partir da investigação sobre a compulsão a
repetição.
52
FREUD, Sigmund (1950[1895]). Projeto para uma psicologia científica. Op. Cit.
54
3.1.2- A ação específica: o encontro com o agente simbólico
Como descrevemos anteriormente, Freud já havia iniciado na sua monografia “La
afasia” a investigação sobre o caráter imprescindível da relação do bebê com um outro
aparelho de linguagem na fundação do aparelho psíquico. No “Projeto...”, retoma esta
questão de forma mais aprofundada a partir do aspecto da importância do agente simbólico
na constituição subjetiva.
Freud descreve que o bebê ao ser tomado pelo acúmulo de excitação (Qn) de origem
somática emite o grito como forma de descarga motora, assim como também movimenta os
braços e as pernas. No entanto, como abordamos há pouco, esta forma de descarga não é
suficiente para eliminar a tensão. O bebê, por nascer extremamente prematuro, depende de
um outro que lhe preste os primeiros cuidados, que efetue uma ação específica, pois só por
meio desta o estímulo é interrompido, temporariamente, na fonte.
Neste processo, o agente, que geralmente é encarnado pela mãe, promove uma
função simbólica, pois ao supor um sujeito no bebê, atribui a significação de um apelo,
transformando a necessidade que se expressa no grito em um pedido, ou seja, numa
demanda. Assim, nesta experiência, o grito do bebê é interpretado pelo agente simbólico
como uma demanda de satisfação, como um pedido pelo objeto de satisfação capaz de
restituir o estado anterior de completude que supõe ter existido. Lacan denomina esta
alteridade simbólica primordial como Outro, o tesouro dos significantes, que será explorado
com mais profundidade ao longo deste capítulo.
Freud ressalta a importância deste outro que efetiva a ação específica. Este encontro
com o agente prestativo permite ao bebê o acabamento de suas funções corporais num
universo simbólico. A ação específica, ocorrida a tempo, liberta o bebê do excesso de
excitação somática, possibilitando a vivência de satisfação. Assim, além de cessar o
estímulo que causou desprazer e a notícia de sua eliminação, ocorre a facilitação dos
neurônios que antecederam a experiência de satisfação, incluindo a percepção do objeto,
promovendo a função secundária fundamental para a constituição do aparelho psíquico.
Nesta passagem, Freud nos mostra o atravessamento da linguagem na esfera somática que
possibilita a constituição de um circuito que passa pelo agente simbólico e retorna
produzindo um efeito na esfera somática.
55
Com a chegada de um novo estímulo, a tendência é a repetição deste circuito. O
conjunto de neurônios que dele participava, resulta num caminho preferencial de
eliminação que Freud define como desejo. No entanto, o encontro com o objeto primordial
nunca será possível, uma vez que se trata de um objeto mítico. Assim, a pulsão só poderá
ser satisfeita parcialmente através de objetos substitutos que produzirão outros percursos,
tornando a rede mais complexa. Podemos notar, portanto, a inevitável relação que o sujeito
deve estabelecer com o agente simbólico para o advento do seu desejo e para a constituição
dos objetos.
Quinet nos apresenta o binômio proposto por Lacan entre a demanda e o desejo
neste exemplo paradigmático da experiência de satisfação:
A demanda está nesse apelo (grito interpretado como dirigido ao Outro da
assistência) que o sujeito faz em busca de um complemento que é o objeto que pode
satisfazê-lo. E nessa demanda se desenrola o desejo. Na demanda há sempre pedido de
restituição de um status quo ante, de um estado anterior de complementação que o sujeito
supõe existir ou ter existido. E o desejo? O desejo é justamente a busca, a procura daquele
objeto suposto da primeira experiência fictícia de satisfação, que nunca existiu mas é um
postulado necessário a Freud para constituir o objeto faltante e sua conseqüente busca da
parte do sujeito. O desejo é a busca do objeto perdido, a demanda é o pedido de satisfação
do status quo ante
53
.
A partir desta experiência de satisfação, há a primeira clivagem no aparelho
psíquico, pois de um lado origina o impensável, o somático traduzido em excitações e, de
outro, os primeiros representantes psíquicos da pulsão.
Os representantes psíquicos da pulsão estão intimamente relacionados com o
conceito de memória de Freud. Como abordamos anteriormente, Freud considera as
facilitações existentes entre os neurônios que ocorrem em função da impermeabilidade dos
neurônios ψ, responsáveis pela origem da memória. Assim, a memória é caracterizada pela
alteração do tecido nervoso, promovida pela diminuição da resistência das barreiras de
contato em determinadas direções, instituindo uma diferença que facilitará a repetição
nesses caminhos. No entanto, não se trata de um processo meramente mecânico, pois as
facilitações criam percursos que se entrecruzam formando um sistema complexo
53
QUINET, Antonio. A descoberta do inconsciente: do desejo ao sintoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.
p. 88.
56
extremamente dinâmico, tornando impossível a ocorrência da repetição sempre pelos
mesmos caminhos.
Neste sentido, Freud aborda a questão da memória como uma rede em constante
reordenamento que é formada pelos representantes psíquicos da pulsão como apresentado
na “Carta 52” (6 de dezembro de 1896):
Como você sabe, estou trabalhando com a hipótese de que nosso mecanismo
psíquico tenha se formado por um processo de estratificação: o material presente em forma
de traços da memória estaria sujeito, de tempos em tempos, a um rearranjo segundo novas
circunstâncias - a uma retranscrição. Assim, o que há de essencialmente novo a respeito de
minha teoria é a tese de que a memória não se faz presente de uma só vez, mas se desdobra
em vários tempos; que ela é registrada em diferentes espécies de indicações. Postulei a
existência de um tipo parecido de rearranjo (Afasia), há algum tempo, para as vias que vão
da periferia [do corpo para o córtex].
54
Esta idéia já vinha sendo concebida no texto “La afasia”
55
quando Freud considerou
que as afasias se originavam pela interrupção da cadeia associativa. Nessa monografia, o
autor faz uma importante consideração sobre a palavra considerando-a um intricado
processo de associações no qual intervém elementos de origem visual, acústico e
cinestésico. Postulou que a palavra adquire um significado mediante a sua associação com a
representação-objeto que, por sua vez, também é um complexo de associações formado
pelas mais diversas impressões visuais, auditivas, táteis, cinestésicas entre outras.
Estabelece uma diferença entre representação-objeto e representação-palavra considerando
esta um complexo fechado, enquanto a primeira, um complexo aberto. Para Freud, a
representação-objeto não contém outra coisa, deixando aberta a possibilidade de ocorrer
uma nova série de impressões na cadeia de associações, ou seja, tendo uma vasta
possibilidade de sensações que forma a série associativa do complexo do objeto, diferente
da representação-palavra que se apresenta como um complexo fechado de imagens. A
produção do significado ocorre pela articulação da representação-palavra com a
representação-objeto através da imagem acústica da primeira com a imagem visual da
segunda, produzindo um efeito de sentido.
56
54
FREUD, Sigmund (1896). Carta 52. In: Edição Standard Brasileira das Obras psicológicas completas de
Sigmund Freud. 3. ed. Tradução por Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1990. v. I. p.324.
55
FREUD, Sigmund (1891). La afasia. Op. Cit.
56
No artigo “O inconsciente” (1915), Freud retoma os conceitos representação-palavra e representação-
objeto, segundo o aspecto tópico, modificando a sua terminologia. O que ele nomeava de representação-
57
Nesta perspectiva, Freud conclui que as representações se constituem a partir das
associações, estabelecendo uma estreita relação entre associação, representação e
significação.
Garcia-Roza
57
ressalta que ao mesmo tempo em que a palavra adquire significação
pela articulação com a representação-objeto, o objeto ganha identidade através da sua
articulação com a representação-palavra. Ao pensar que não há conceito sem significação e
não há significação sem palavra, conclui que uma vez que não há pensamento anterior às
palavras, a linguagem está presente desde o início.
A ousadia de Freud modificou a teoria da percepção, demonstrando que a percepção
por si só não oferece objetos, pois todo o processo de significação ocorre no registro da
representação e da associação entre representações, descartando uma relação signica, em
prol de uma relação significante.
Como podemos observar, no texto sobre as afasias Freud já se deparava com o não
esgotamento dos arranjos e rearranjos da cadeia simbólica, que implica o sujeito numa
objeto no texto “La afasia” (1891) é nomeado de representação-coisa, e a representação-objeto em 1915 passa
a denotar um complexo formado pela combinação da representação-coisa e representação-palavra:
... a apresentação consciente abrange a apresentação da coisa mais a apresentação da palavra
que pertence a ela, ao passo que a apresentação inconsciente é a apresentação da coisa
apenas. O sistema Ics contém as catexias da coisa dos objetos, as primeiras e verdadeiras
catexias objetais; o sistema Pcs ocorre quando essa apresentação da coisa é hipercatexizada
através da ligação com as apresentações da palavra que lhe correspondem. São essas
hipercatexias, podemos supor, que provocam uma organização psíquica mais elevada,
possibilitando que o processo primário seja sucedido pelo processo secundário, dominante
no Pcs (...) Nas últimas páginas de A Interpretação dos Sonhos, publicada em 1900, foi
desenvolvido o conceito de que os processos do pensamento, isto é, os atos de catexia que
se acham relativamente distantes da percepção, são em si mesmos destituídos de qualidade e
inconscientes, e só atingem sua capacidade para tornarem conscientes através de ligação
com os resíduos de percepções de palavras. Mas as apresentações da palavra, também, por
seu lado, se originam das percepções sensoriais, da mesma forma que as apresentações da
coisa; poder-se-ia, portanto, perguntar por que as apresentações de objetos não podem
tornar-se conscientes por intermédio de seus próprios resíduos perceptivos. Provavelmente,
contudo, o pensamento prossegue em sistemas tão distantes dos resíduos perceptivos
originais, que já não retém coisa alguma das qualidades desses resíduos, e, para se tornarem
conscientes, precisam ser reforçados por novas qualidades. Além disso, estando ligadas a
palavras, as catexias podem ser dotadas de qualidade mesmo quando representem apenas
relações entre apresentações de objetos, sendo assim incapazes de extrair qualquer
qualidade das percepções. Tais relações, que só se tornam compreensíveis através de
palavras, constituem uma das principais partes dos nossos processos do pensamento. Como
podemos ver, estar ligado às apresentações da palavra ainda não é a mesma coisa que tornar-
se consciente, mas limita-se a possibilitar que isso aconteça; é, portanto, algo característico
do sistema Pcs., e somente desse sistema. (p. 230-231)
57
GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Introdução à metapsicologia freudiana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1991.v. I.
58
infindável reconstrução. Este fato ocorre, pois a significação está sempre suspensa, não
havendo significação única possível ao sujeito pela própria estrutura da linguagem que não
permite dizer tudo. Como falamos na introdução, foi através da clínica da histeria, da escuta
do que tropeça, do que escapa, do que rompe a lógica do pensamento, que Freud descobriu
o inconsciente:
... é no movimento mesmo de falar que a histérica constitui seu desejo. De modo que não é
de espantar que tenha sido por esta porta que Freud entrou no que eram na realidade, as
relações do desejo com a linguagem, e que ele tenha descoberto os mecanismos do
inconsciente.
58
Assim, Freud desenvolve ao longo de sua obra que o inconsciente é regido pelas
mesmas leis da linguagem, uma vez que se constitui por meio desta. O sujeito desejante
busca a significação indefinidamente, como ensina Freud, busca o objeto supostamente
perdido, mítico, encontrando satisfações parciais por meio dos objetos substitutivos sem
nunca esgotar o sentido, sem encontrar um significado último, pois é o que a linguagem
permite. Flora, ao falar sobre a necessidade de preencher o corpo quando fica frustrada, nos
revela através do seu movimento pulsional a busca pelo objeto mítico por meio da
satisfação alimentar.
Lacan trouxe a questão da linguagem para o primeiro plano na sua teorização sobre
o inconsciente elevando-o à categoria de uma linguagem, através do pensamento do
inconsciente estruturado como linguagem. Ao longo de sua obra, as referências que utiliza
apontam sempre para a conjunção do simbólico e do inconsciente.
Ao inverter o algoritmo saussureano
59
afirmando a supremacia do significante sobre
o significado, Lacan estabelece que o sujeito é representado por uma cadeia de significantes
que, articulados entre si, obedecem ao movimento de ligação (metonímia) herdeiro do
conceito de deslocamento de Freud e ao movimento de substituição (metáfora) relacionado
58
LACAN, Jacques (1964). O seminário. Livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. 2. ed.
Texto estabelecido por Jacques-Allain Miller. Tradução de MD Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
p.19.
59
Ferdinand de Saussure (1857-1913) utiliza o termo significante no quadro de sua teoria estrutural da língua
para designar a parte do signo lingüístico considerada a representação psíquica do som, em oposição ao
significado que remete ao conceito a que ele corresponde. In: KAUFMANN, Pierre. Dicionário enciclopédico
de psicanálise: o legado de Freud e Lacan. Tradução por Vera Ribeiro, Maria Luiza X. de Borges;
consultoria de Marco Antonio Coutinho Jorge. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996. p. 708.
59
ao conceito de condensação freudiano. Assim, resulta a fórmula proferida por Lacan: o
significante é o que representa o sujeito para um outro significante.
Como elucidamos, a prevalência do significante sobre o significado já estava
presente na obra freudiana. A associação livre permitiu a confirmação desta dinâmica ao
demonstrar que o discurso do sujeito apresenta uma lógica significante. Por meio do duplo
movimento dos significantes, a estrutura se atualiza ininterruptamente, onde toda
significação remete a uma outra significação. O inconsciente é considerado, portanto, como
uma cadeia significante em ato. Nas palavras de Lacan:
No sonho, no ato falho, no chiste - o que é que chama atenção primeiro? É o modo de
tropeço pelo qual eles aparecem. Tropeço, desfalecimento, rachadura. Numa frase
pronunciada, escrita, alguma coisa se estatela. Freud fica siderado por esses fenômenos, e é
neles que vai procurar o inconsciente. Ali, alguma outra coisa quer se realizar - algo que
aparece como intencional, certamente, mas de uma estranha temporalidade. O que se produz
nessa hiância, no sentido pleno do termo produzir-se, se apresenta como um achado. É
assim, de começo, que a exploração freudiana encontra o que se passa no inconsciente. (...)
é um reachado, e mais ainda, sempre está prestes a escapar de novo, instaurando a dimensão
da perda. (...) A descontinuidade, esta então a forma essencial com que nos aparece de saída
o inconsciente como fenômeno – a descontinuidade, na qual alguma coisa se manifesta
como vacilação. (...) O inconsciente se manifesta sempre como o que vacila num corte do
sujeito – donde ressurge um achado que Freud assimila ao desejo.
60
Esse conceito de corte que mantém uma relação profunda com o conceito de
inconsciente, Lacan vincula à função do sujeito em sua relação constituinte ao próprio
significante, ou seja, é a intervenção do corte que faz nascer a ordem significante.
Interrompemos por um instante o nosso pensamento para esclarecer sobre o
conceito de significante. Quinet nos auxilia nesta tarefa a partir de sua interpretação:
O significante é apenas o som da palavra esvaziado de sentido, como uma palavra
estrangeira desconhecida ou o nome próprio que, embora designe, nada significa. Se não se
conhece ninguém que responda por aquele nome próprio ou se não se conhece a cidade a
que ele se refere, esse nome próprio não é mais do que o som de uma palavra.
61
Descreveremos algumas propriedades que Quinet imputa ao significante:
60
LACAN, Jacques (1964). O Seminário. Livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Op.
Cit., p. 29-30.
61
QUINET, Antonio. A descoberta do inconsciente: do desejo ao sintoma. Op. Cit., p. 37.
60
um significante não se define pelo significado e sim por outro significante
com o qual estabelece uma oposição, ou seja, o significante só se define pela
diferença;
o significante apresenta um funcionamento segundo uma ordem fechada que
constitui a repetição própria ao inconsciente, mostrando que as cadeias
significantes sempre retornam aos mesmos lugares. Sendo assim, um
significante que pertence a uma cadeia também faz parte de uma outra que,
por sua vez, se conecta com outros significantes, reportando-nos para a
sobreterminação de toda formação do inconsciente. Esta dinâmica possibilita
a equivocidade do significante, em que uma palavra pode revelar vários
sentidos.
o significante possui uma tendência a antecipação de um sentido.
Como podemos notar, a divisão do sujeito, a equivocidade do inconsciente conjuga
com a própria impossibilidade da definição do sujeito por um único significante que o
designe como tal. Lacan aponta, assim, a dependência do sujeito ao significante. Nesta
perspectiva, estabelece este paradigma da oposição significante como sendo o da
simbolização primordial, concluindo que para que haja o advento do sujeito na linguagem é
necessário um par de oposição significante. Investigaremos como Lacan desenvolve esta
concepção.
Como abordamos anteriormente, Lacan ao realizar uma leitura sobre a obra
freudiana, institui uma alteridade simbólica denominando-a Outro. O Outro é definido
como o tesouro dos significantes, uma vez que o sujeito é dependente do significante e este
se encontra, primeiro, no campo do Outro:
O Outro é o lugar em que se situa a cadeia do significante que comanda tudo que
vai poder presentificar-se do sujeito, é o campo desse vivo onde o sujeito tem que
aparecer.
62
62
LACAN, Jacques (1964). O Seminário. Livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Op.
Cit., p. 194.
61
Lacan estabelece, portanto, dois campos: o do sujeito e o do Outro, afirmando
existir um processo circular, dissimétrico entre eles:
... do sujeito chamado ao Outro, ao sujeito pelo que ele viu a si mesmo aparecer no campo
do Outro, do Outro que lá retorna. (...) O significante produzindo-se no campo do Outro faz
surgir o sujeito de sua significação. Mas ele só funciona como significante reduzindo o
sujeito em instância a não ser mais do que um significante, petrificando-o pelo mesmo
movimento com que o chama a funcionar, a falar, como sujeito.
63
Lacan destaca duas operações que se articulam na relação do sujeito com o Outro,
deduzindo as operações constituintes da cadeia significante, do sujeito e do objeto. São
elas: alienação e separação.
A alienação consiste no vel da primeira operação essencial em que se funda o
sujeito. Lacan define o vel como uma condenação, no sentido que o sujeito alienado no
campo do Outro está condenado a aparecer na divisão que o constitui, de um lado como
sentido produzido pelo significante, de outro manifestando-se como afânise, fading,
desaparecimento radical:
O vel da alienação se define por uma escolha cujas propriedades dependem do
seguinte: que há, na reunião, um elemento que comporta que, qualquer que seja a escolha
que se opere, há por conseqüência um nem um, nem outro. A escolha aí é apenas a de saber
se a gente pretende guardar uma das partes, a outra desaparecendo em cada caso. (...)
Escolhemos o ser, o sujeito desaparece, ele nos escapa, cai no não-senso – escolhemos o
sentido, e o sentido só subsiste decepado dessa parte de não-senso que é, falando
propriamente, o que constitui na realização do sujeito, o inconsciente. Em outros termos, é
da natureza desse sentido, tal como ele vem a emergir no campo do Outro, ser, numa grande
parte do seu campo, eclipsado pelo desaparecimento do ser induzido pela função mesma do
significante.
64
Lacan enfatiza que só na medida em que há a afânise do sujeito, poderá ser
produzido, na operação da separação, o retorno do sujeito de sua afânise e o surgimento do
sujeito dividido necessários para que haja o intervalo entre os significantes.
63
Ibidem, p. 196-197.
64
Ibidem, p. 200.
62
O autor nos aponta que a introdução do sujeito na linguagem consiste numa
condenação radical, correlacionando esta operação com a vivência da escolha entre a
liberdade ou a vida.
65
Seguindo este raciocínio, Lacan afirma que o sujeito sai de sua afânise pela
operação da separação, que rompe a circularidade do sujeito ao Outro:
Uma falta é, pelo sujeito, encontrada no Outro, na intimação mesma que lhe faz o
Outro por seu discurso. Nos intervalos do discurso do Outro, surge na experiência da
criança, o seguinte, que é radicalmente destacável – ele me diz isso, mas o que é que ele
quer? (...) O desejo do Outro é apreendido pelo sujeito naquilo que não cola, nas faltas do
discurso do Outro, e todos os por-quês?da criança testemunham menos uma avidez da razão
das coisas do que constituem uma colocação em prova do adulto, um por que será que você
me diz isso? Sempre re-suscitando de seu fundo, que é o enigma do desejo do adulto.
Ora, para responder a essa pega, tal como Gribouille, o sujeito traz a resposta da
falta antecedente de seu próprio desaparecimento, que ele vem aqui situar no ponto da falta
percebida no Outro. O primeiro objeto que ele propõe a esse desejo parental cujo objeto é
desconhecido, é sua própria perda – Pode ele me perder? A fantasia de sua morte, de seu
desaparecimento, é o primeiro objeto que o sujeito tem a pôr, com efeito. (...) Uma falta
recobre a outra. Daí, a dialética dos objetos do desejo, no que ela faz junção do desejo do
sujeito com o desejo do Outro (...) uma falta engendrada pelo tempo precedente que serve
para responder à falta suscitada pelo tempo seguinte.
66
Nesta operação, há a superposição de duas faltas: a falta do desejo do Outro e a falta
equivalente ao sujeito como sujeito do significante. Podemos compreender, assim, a
dialética dos objetos do desejo no que faz a junção do desejo do sujeito com o desejo do
Outro.
Como nos mostra Lacan, o sujeito aparece primeiramente no campo do Outro no
que o primeiro significante surge no Outro, e no que o representa para outro significante
que tem como efeito a afânise do sujeito. E no intervalo entre esses dois significantes
advém o desejo. Assim, não há sujeito em algum lugar sem que ocorra a sua afânise no
outro, e é nessa divisão fundamental que se institui a dialética do desejo.
Kaufmann estabelece três tempos da relação do sujeito ao Outro:
Se num primeiro tempo o Outro é o lugar do tesouro dos significantes, num
segundo tempo vai se instituir a subjetivação em que a falta vai implicar o desejo. De fato, o
65
Lacan encontra em Hegel a justificativa da apelação vel alienante através da dialética do senhor e o escravo.
A escolha pela liberdade significa perder as duas, enquanto a escolha pela vida significa ter a vida amputada
da liberdade.
66
LACAN, Jacques (1964). O Seminário. Livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Op.
Cit., p. 203.
63
grande Outro é a própria referência do simbólico. Na verdade, para que a fala se desenrole,
três tempos são necessários: o primeiro tempo se dá como uma relação com o Outro em que
este é desejável; o segundo é o da descoberta de que o Outro também deseja, portanto carece
por sua vez. O terceiro tempo põe o sujeito e o Outro em equação, na medida em que um e
outro desejam. (...) Quando o sujeito deseja segundo a articulação significante, ele é
castrado. Apesar disso, deseja, e é desse ponto de vista que Lacan dirá que o desejo do
homem é desejo do Outro. (...) O próprio movimento do desejo procede da articulação do
sujeito com o Outro e do Outro com o sujeito, razão porque o lugar do Outro se encontra
como lugar único possível da verdade. Nessa medida, a própria linguagem vai ser um efeito
do lugar do Outro e todo usuário da linguagem vai se deslocar imediatamente na metáfora.
67
Como deixamos em aberto anteriormente para retomarmos neste momento, Lacan
vincula o corte à função do sujeito em sua relação constituinte ao próprio significante.
Kaufmann nos mostra neste trecho que o desejo do sujeito segundo a articulação
significante só é possível com a castração, que realiza a função de corte. Segundo Lacan,
para que haja a eleição do sentido, com a sua falta de sentido, é necessário que haja uma
identificação com o significante denominado de Nome-do-Pai
68
, pois só assim o sujeito
poderá ascender à estrutura significante, com o que implica de falta, de distanciamento do
objeto. Assim, a castração é uma operação simbólica, metafórica, em que o significante
Nome-do-Pai substitui o desejo da mãe, ou melhor, vimos que no desenrolar dos três
tempos, o sujeito é capturado pelo enigma sobre o desejo do Outro ao notar que não é capaz
de completá-lo; portanto, o significante Nome-do-Pai tem a função de manter vivo o desejo
da mãe, intervindo junto ao filho como privador dela, dando a possibilidade de que o desejo
da mãe seja significado.
Para Lacan, a metáfora do Nome-do-Pai é o processo inaugural que constitui a
matriz metafórica. Dor
69
descreve que o jogo do carretel da criança denominado como jogo
do fort-da descrito por Freud, ilustra bem a realização da metáfora paterna no processo de
acesso ao simbólico na criança:
Não se pode encontrar uma ilustração mais precisa da expressão lacaniana
substituição significante do que o fort-da.Trata-se mesmo de um duplo processo metafórico.
O carretel, como tal, já é uma metáfora da mãe: o jogo “presença/ausência” é outra, já que
67
KAUFMANN, Pierre. Dicionário enciclopédico de psicanálise: o legado de Freud e Lacan. Op. Cit., p.
386-387.
68
Termo criado por Jacques Lacan em 1953 e conceituado em 1956, para designar o significante da função
paterna. In: Elisabeth Roudinesco, Michel Plon. Dicionário de psicanálise. Op. Cit. Ao longo deste capítulo
este conceito será melhor desenvolvido.
69
DOR, Joël. Introdução à leitura de Lacan: o inconsciente estruturado como linguagem. Tradução de Carlos
Eduardo Reis; supervisão e revisão técnica da tradutora Claudia Corbisier. Porto Alegre: Artes Médicas,
1989.
64
simboliza os retornos e as partidas. Por outro lado, a atividade lúdica da criança – e aí reside
o mais instrutivo da observação de Freud – prova que ela inverteu completamente a situação
em seu proveito (...) De fato, a criança transformou a situação, posto que de agora em diante
é ela que abandona sua mãe simbolicamente (...) o fort-da nos indica que ela consegue
doravante controlar fundamentalmente o fato de não ser mais o único e exclusivo objeto do
desejo da mãe, isto é, o objeto que preenche a falta do Outro, ou seja, o falo. A criança
pode então mobilizar seu desejo, como desejo de sujeito, para objetos substitutivos ao objeto
perdido. Mas, antes de mais nada, é o advento da linguagem (o acesso ao simbólico) que irá
tornar-se signo incontestável do controle simbólico do objeto perdido, através da realização
da metáfora do Nome-do-Pai,sustentada pelo recalque originário.
O recalque originário aparece como processo fundamentalmente estruturante e que
consiste numa metaforização. Esta metaforização não é outra senão o ato mesmo da
simbolização primordial da Lei, que se efetua na substituição do significante fálico pelo
significante Nome-do-Pai.
70
Esta simbolização supõe que haja uma substituição, onde a criança substitui a
vivência de ser o objeto do desejo da mãe para aceder à dimensão do ter, colocando-se
como sujeito:
O recalque originário aparece então como a intervenção intrapsíquica que irá
assegurar a passagem do real imediatamente vivido à sua simbolização na linguagem. (...) O
processo metafórico consiste em introduzir um significante novo (S2) que faz o significante
antigo (S1) passar sob a barra de significação, com esta conseqüência de mantê-lo
provisoriamente inconsciente (...) O desejo de ser, recalcado em prol do desejo de ter,
impõe à criança que engaje a partir de então seu desejo no terreno dos objetos substitutivos
do objeto perdido. Para tanto, o desejo não tem outra saída a não ser fazer-se palavra,
desdobrando-se numa demanda. Mas ao se fazer demanda, o desejo se perde cada vez mais
na cadeia dos significantes do discurso. Com efeito, pode-se dizer que, de um objeto a outro,
o desejo remete sempre a uma seqüência indefinida de substitutos e, ao mesmo tempo, a
uma seqüência indefinida de significantes que simbolizam esses objetos substitutivos,
persistindo assim em designar, à revelia do sujeito, seu desejo original (...) O desejo
permanece portanto insatisfeito, pela necessidade em que se encontrou de se fazer
linguagem.
71
Assim, a metáfora paterna inaugura o acesso da criança à dimensão simbólica
conferindo-lhe uma condição de sujeito desejante. Em outras palavras, para que o universo
simbólico se constitua é fundamental, como dissemos anteriormente, a oposição
significante, uma vez que o significante só ganha um sentido a posteriori, na medida em
que o significante posterior desvela o sentido por retroação.
Seguindo este pensamento, Lacan definiu o sintoma como uma autêntica metáfora,
onde um significante recalcado é substituído por outro significante com quem mantém uma
ligação de similaridade:
70
Ibidem. p.90.
71
Ibidem. p.91-94.
65
... o sintoma se resolve por inteiro numa análise linguajeira, por ser ele mesmo estruturado
como uma linguagem, por ser linguagem cuja fala deve ser libertada.
72
Freud nos ensinou que o inconsciente segue regras lógicas a serem detectadas pelo
analista a partir da decifração da articulação significante. Assim, o sintoma é um retorno da
verdade que se interpreta na ordem do significante, que só tem sentido na oposição com
outro significante, ou seja, ao decifrar o sintoma, no deslizar e desdobrar dos significantes
recalcados, encontra-se uma articulação de cadeias significantes atreladas a ele.
No discurso de Flora que introduz este capítulo, podemos notar que ela fala de seu
corpo como se ele não lhe pertencesse, como se estivesse separada do seu sintoma: “o
corpo pede para eu preenchê-lo”. Esta relação de Flora com seu próprio discurso, mostra a
estrutura de divisão do sujeito, onde o sujeito só está ali presentificado ao preço de mostrar-
se ausente em seu ser. Sujeitado a lei do desejo do Outro, o sujeito fala sem saber
exatamente o que diz.
Segundo Dor:
Além desta relação acusar mais uma vez a estrutura da divisão do sujeito, ela
evidencia que o sujeito, tão logo acede à linguagem, perde-se nesta mesma linguagem que o
causou. Não somente o sujeito não é causa da linguagem, mas é causado por ela. O que
quer dizer que o sujeito que advém pela linguagem se insere nela como um efeito: um
efeito de linguagem que o faz existir para logo depois eclipsá-lo na autenticidade de seu
ser.
73
Lacan nos mostra, a partir de um exemplo, que antes de qualquer formação do
sujeito que se situa, ele é antes contado e no contado já está o contador, e só num momento
depois é que o sujeito se reconhece como o contador:
Lembremos a topada ingênua em que o medidor de nível mental se esbalda com
sacar o homenzinho que enuncia – Tenho três irmãos, Paulo, Ernesto e eu. Mas é muito
natural – primeiro são contados os três irmãos, Paulo, Ernesto e eu, e depois há o eu no nível
em que se diz que eu tenho que refletir o primeiro eu, quer dizer, o eu que conta.
74
72
LACAN, Jacques. Escritos. Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise.Tradução Vera
Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 270.
73
DOR, Joël. Introdução à leitura de Lacan: o inconsciente estruturado como linguagem. Op. Cit., p. 107.
74
LACAN, Jacques (1964). O Seminário.Livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Op. Cit.
p. 26.
66
Este dado é de extrema relevância, pois nos ajudou a situar o momento lógico em
que origina o substrato da causalidade psíquica da manifestação somática no caso Flora.
Este tema será desenvolvido no capítulo 4.
Seguindo esta mesma perspectiva, Vorcaro complementa a nossa compreensão ao
dizer que a criança num primeiro momento está imersa na linguagem onde há um querer a
ela dirigido e que só depois ela localiza este querer na sua escalada subjetiva:
O ser vivo é forçado a se fazer com o que há de desejante na linguagem, já que,
sem ela, sua única alternativa é a morte.
75
Assim, o sujeito se estrutura a partir do efeito do Outro, emergindo um corpo, com
leis de funcionamento que supera a ordem fisiológica. A linguagem é introduzida para
livrar o humano do desamparo biológico, transformando o organismo num corpo pulsional.
Assim, por meio da ação simbólica há a subversão do padrão instintivo e o advento do ser
pulsional.
3.1.3- Pulsão
Como abordamos há pouco, Freud nos aponta no “Projeto...”, a existência de
estímulos endógenos que excitam de forma constante só sendo interrompidos,
temporariamente, por uma ação específica realizada pelo agente simbólico. Esta noção
prenuncia o conceito de pulsão que é desenvolvido ao longo de sua obra, culminando em
1915 no texto “As pulsões e suas vicissitudes”
76
em que Freud define as suas quatro
características: Pressão (Drang), sendo a própria essência da pulsão, o motor da atividade
psíquica; Finalidade (Ziel), sendo sempre a satisfação alcançada com a cessação da
estimulação da sua fonte; Objeto (Objekt), sendo aquele relacionado à finalidade e, por isto,
variável de acordo com as vicissitudes da pulsão e a Fonte (Quelle) somática, representada
na vida mental.
Como podemos observar, as idéias fundamentais que constituíram este conceito já
estavam presentes antes de 1915. Nas entrelinhas do “Projeto...”, Freud demonstrou que a
75
VORCARO, Ângela M. R.. Crianças na psicanálise: clínica, instituição, laço social. Rio de Janeiro:
Companhia de Freud. 1999, p. 23.
76
FREUD, Sigmund (1915). As pulsões e suas vicissitudes. In: Edição Standard Brasileira das Obras
Completas de Sigmund Freud. 3.ed.. Tradução por Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1990. v. XIV.
67
pulsão sexual se mantinha inicialmente indiferenciada da pulsão de autoconservação (que
dá expressão às necessidades como fome, respiração, sexualidade submetida ao
funcionamento orgânico), e que só a partir da ação do agente simbólico se tornava
independente desta. A própria diferença das atividades pulsionais apresentadas por Freud já
denunciava a diferença de suas naturezas. Enquanto as pulsões de autoconservação estavam
submetidas ao funcionamento orgânico, às necessidades de sobrevivência da espécie com
metas e objetos pré-fixados, as pulsões sexuais, apesar de num primeiro momento estarem
indiferenciadas das pulsões de autoconservação, tornavam-se independentes destas,
passando a ser regidas por outro processo, que não faz cessar definitivamente sua satisfação
com o encontro com o objeto, tendo uma busca que varia infinitamente.
77
Esta idéia deu origem à teoria de apoio
78
desenvolvida nos “Três ensaios sobre a
teoria da sexualidade” (1905)
79
. Com isso, Freud ressalta a base somática sobre a qual se
constitui a base da sexualidade do sujeito. A pulsão definida por Freud é, portanto,
essencialmente sexual.
Freud aponta, a partir dessa dialética, que a pulsão é um conceito que faz
demarcação entre o psíquico e o somático e que como vimos, só ocorre pelo
atravessamento da linguagem.
A pulsão comporta múltiplos aspectos, uma vez que é um grande conceito da
doutrina psicanalítica. Para a nossa investigação ressaltaremos neste momento, em função
do pensamento que estamos desenvolvendo, a importância da função simbólica na
subversão do biológico, ou melhor, a linguagem como condição da pulsão.
Como abordamos, nos artigos sobre metapsicologia Freud
80
descreveu as quatro
características da pulsão que se relacionam com esta descrição feita por ele no “Projeto...”:
Pressão (Drang), Finalidade (Ziel), Objeto (Objekt) e a Fonte (Quelle). Tentaremos realizar
77
Este dualismo entre pulsão sexual e de autoconservação será reformulado com o conceito de narcisismo e
posteriormente, em 1920, com a descoberta da pulsão de morte como abordaremos adiante.
78
Esta posição dualista fundamentou a primeira teoria das pulsões em Freud, que propõe dois grupos de
pulsões: as pulsões sexuais e as de autoconservação. Apesar de em 1910, no texto “Sobre a tendência
universal à depreciação na esfera do amor” Freud ter ressaltado que a escolha dos primeiros objetos das
pulsões sexuais estariam associados às pulsões do ego no momento das primeiras satisfações sexuais, portanto
ligadas às funções necessárias à preservação da vida, só no texto “A concepção psicanalítica da perturbação
psicogênica da visão (1910) aparece o termo pulsões do ego em oposição às pulsões sexuais.
79
FREUD, Sigmund (1905). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: Edição Standard Brasileira das
Obras Completas de Sigmund Freud. 3.ed.. Tradução por Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1990.
v.VII.
80
FREUD, Sigmund (1915). Artigos sobre metapsicologia. Op. Cit.
68
uma articulação entre estes aspectos do engajamento pulsional e a própria estrutura da
linguagem. Para isso, contaremos com o auxílio de Vorcaro:
No gozo de seu fluxo vital, o ser registra os estados de tensão e de apaziguamento.
Esses estados se alternam, devido ao suporte do agente da função materna, que lê e responde
aos estados do ser tomando-os como significantes que apelam a seus cuidados. Na medida
da resposta maternante, estabelece-se a temporalidade que esboça uma matriz simbolizante,
já que um estado de tensão ou de apaziguamento remete-se ao estado de apaziguamento ou
de tensão. Um termo remete a outro, num ciclo, permitindo o advento da antecipação de um
termo por aquele outro termo que será substituído. Sobre tal funcionamento rítmico e em
reciprocidade circular, incide o esgarçamento em que a antecipação já esperada não se
constata. Essa quebra da substituição alternante é vivida pelo ser como incidência do real
nessa matriz simbolizante: o que deveria estar ali não está mais, um pouco mais e teria
estado, foi perdido. Assim, após ter sido perdida, a experiência de satisfação é situada.
O engajamento, em sua recuperação, mobiliza a atividade pulsional em que a
manifestação do ser torna-se apelo ao retorno do seu cerne perdido. Nos significantes com
que a resposta oferecida pelo Outro, a partir de então, se articula ao apelo, o sujeito é
remetido ao que aparece no campo do Outro como resposta que lhe concerne. Seu apelo
retorna em significantes, forçando, na resposta, equivalências substitutivas ao apelo de
retorno à satisfação.
81
Vorcaro utiliza o termo “cartografia” emprestado de Alfredo Jerusalinsky, para
dizer que a mãe mapeia o organismo e os orifícios do bebê, compondo um tecido
significante. Nesta atividade, a linguagem tem o efeito de provocar a subtração do gozo do
fluxo vital do ser vivo ao fazer deste ser um sujeito:
Em sua atividade, a pulsão opera o movimento circular do impulso que, como
apelo, sai através da borda erógena, para a ela retornar, na resposta do Outro. Esse retorno é
feito do contorno do objeto perdido da satisfação, contorno que é substituição do fluxo vital
pelos significantes que o Outro lhe oferece: representantes, figurações do objeto perdido.
Assim, o sujeito começa no lugar do Outro, lá onde surge o primeiro significante: o apelo
que o representa para outro significante.
O circuito - o vai e vem que constitui o alvo da pulsão, sai da zona erógena para ir
buscar algo que, a cada vez, responde no Outro. Portanto, a incidência da linguagem no ser
pode ser localizada como produção de um movimento: que emana no ser em direção ao
alvo, só define o movimento pulsional que representa ao sujeito e não mais ao ser. É o que
define o movimento pulsional que representa, em si mesmo, a parte da morte no ser vivo,
que é chamado, pela linguagem, à subjetivação.
Pela via da circularidade da pulsão, o sujeito irá atingir a dimensão de falta,
também no Outro: os significantes se substituem, mas não se igualam. Entre ida e volta da
pulsão, entre a substituição do apelo pela resposta, a heterogeneidade se destaca. Esse
intervalo mostra uma hiância. E o que se pode chamar de atividade pulsional é propriamente
o fazer-se no lugar dessa hiância. O sujeito reside aí, distingue-se aí, tira-se disso.
82
81
VORCARO, Ângela. Crianças na psicanálise: clínica, instituição, laço social. Op. Cit., p. 56-57.
82
Ibidem, p. 57.
69
Como observamos, Vorcaro aborda por meio da vertente pulsional, as operações de
alienação e separação pela dependência do sujeito ao significante. Neste sentido, a autora
nos mostra que o sujeito é dividido pelo significante e pela pulsão.
Infante
83
enfatiza que o momento da inscrição pulsional tem um caráter pré-
subjetivo, anterior à escolha da posição desejante do sujeito. Neste sentido, podemos pensar
que a inscrição pulsional ocorre no momento em que o sujeito é “contado” e não um
“contador”, como no exemplo de Lacan e, com isso, a função simbólica do Outro é de
extrema relevância. Este aspecto nos auxilia na compreensão da manifestação somática de
Flora que, como localizamos, será desenvolvido no capítulo 4.
Ao introduzir a pulsão, Freud nos ensinou que somos habitados pela linguagem,
permanecemos expostos à sua incidência, pois somos divididos pela sua ação. Retomando
Persicano
84
, a pulsão é a primeira criação que inaugura a espécie, a primeira nova solução
encontrada para dar conta do descompasso biológico, colocando-se no desamparo
pulsional.
E neste reviramento do sujeito pela fala, como nos revelam as histéricas, o corpo
é constantemente afetado.
3.1.4- A pulsão no limite do simbólico e do Real
Freud afirmou que após a vivência de satisfação ocorria, de um lado, a primeira
clivagem no aparelho psíquico, originando o impensável e, de outro, os primeiros
representantes psíquicos da pulsão. Freud nomeou o impensável, inassimilável, constante,
incompreensível, irremediavelmente inacessível ao pensamento como coisa; e os
representantes psíquicos da pulsão que quase sempre variava, compreendido pelo eu através
da atividade mnêmica, denominados de movimentos da coisa.
A coisa foi definida por Freud como a satisfação em si, que não é memorizada uma
vez que interrompe o processo. É o não-representável, aquilo em torno do qual se
organizam as representações. Embora só possa ser percebida pelo seu movimento, a coisa é
a responsável pela exigência constante do aparelho psíquico, mantendo-o produtivo, pois
anima a pressão constante da pulsão.
83
INFANTE, Domingos Paulo. Aula realizada no dia 26 de janeiro de 2006.
84
PERSICANO, Maria Luiza Scrosoppi Persicano. A angústia na trilha da pulsão:entre psique e soma.
Metapsicologia da angústia e de suas manifestações somáticas. Op. Cit.
70
Como abordamos anteriormente, a meta da pulsão regida pelo princípio do prazer
segue na busca da sensação de identidade ocorrida na vivência de satisfação primordial,
pela repetição do movimento da coisa, incluindo tudo o que antecede a experiência de
satisfação (a função do agente simbólico, o estado de tensão interna, o grito). No entanto,
este encontro com o objeto não está garantido, pois, a rigor, é um objeto perdido.
Freud
85
exemplificou esse processo tomando como hipótese que numa primeira
experiência o infans teve um encontro com o seio materno e seu mamilo em visão
completa, e, numa segunda experiência, uma visão lateral desse objeto sem mamilo.
Assim, o sujeito atribui à coisa, o marco mítico que põe em funcionamento o
aparelho psíquico na tendência de reencontrar o objeto primitivo irremediavelmente
perdido. O sujeito dividido, pela impossibilidade de retornar à satisfação da coisa, buscará
satisfação que só será possível de maneira parcial, através dos objetos substitutivos da
pulsão.
No seminário 11
86
, Lacan considera a pulsão um dos quatro conceitos fundamentais
da psicanálise, inscrevendo-a numa abordagem do inconsciente em termos de manifestação
da falta e do não realizado. Com isso, ele insere a pulsão no limite entre o simbólico e o
Real.
Como descrevemos anteriormente, na vertente simbólica a pulsão é representada no
inconsciente pelos significantes, estruturando-o como uma linguagem. Por outro lado,
como nos aponta Freud, a clivagem do aparelho psíquico origina o caráter mítico da coisa
da ordem do inominável, inassimilável. Lacan dirá que a coisa é o Real do qual o
significante padece, manifestando-se como “fora do significado”
87
.
Quinet afirma que:
As pulsões são nossa mitologia, pois ao mitificarem o real produzem a relação do
sujeito com o objeto perdido. Mitificação paradoxal, pois por um lado, lá onde está o sujeito
não se encontra o objeto, ou seja, nas representações representativas da pulsão no
inconsciente que indicam as demandas do sujeito ao Outro, e as demandas do Outro ao
sujeito, modalizadas pela pulsão oral, anal etc. E, por outro lado, lá onde está o objeto da
pulsão não se encontra o sujeito.
88
85
FREUD, Sigmund (1950[1895]). Projeto para uma psicologia cientifica. Op. Cit.
86
LACAN, Jacques (1964). O Seminário. Livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Op.
Cit.
87
LACAN, Jacques (1959-1960). O Seminário. Livro 7. A ética da psicanálise. Texto estabelecido por
Jacques Allain Miller. Tradução de Antonio Quinet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
88
QUINET, Antonio. A descoberta da psicanálise: do desejo ao sintoma. Op. Cit. p. 48.
71
Lacan
89
atribui à coisa, uma “estranheza” que engendra a tendência a reencontrar o
objeto que o sujeito supõe ter perdido. Assim, a coisa funda a orientação do sujeito para o
objeto.
Freud nos revelou que a constituição dos objetos da pulsão só ocorre com a divisão,
ou seja, quando há uma ação simbólica exercida pelo Outro que possibilita a divisão da
coisa e do seu movimento que só pode contornar o objeto, sem nunca atingi-lo.
O conceito de objeto a, objeto causa do desejo, introduzido por Lacan, articula as
idéias do resto e do vazio. Como resto, supõe-se ser o único índice da coisa, como um
resíduo impossível de simbolizar e, por este mesmo aspecto, trata-se de um objeto vazio,
que não se têm idéia, uma vez que o objeto desejado pelo sujeito se furta a ele a ponto de
não ser representável. Como nos ensina Freud, ao mesmo tempo em que é inassimilável, é o
que dinamiza o movimento pulsional.
Concluímos, assim, que o único recurso que o sujeito encontra diante da
impossibilidade do gozo absoluto, é a procura do objeto a. A satisfação encontrada nas
pulsões parciais se dá, portanto, em razão do encontro sempre faltoso com a coisa:
Por se situar nos registros do simbólico e do Real que a pulsão é o conceito-chave
que permite sustentar que a psicanálise opera sobre o gozo por intermédio da linguagem.
(...) O sintoma é uma atividade sexual, sendo o modo pelo qual o neurótico goza. A pulsão
se satisfaz no sintoma: satisfação paradoxal, pois geradora de desprazer. Esse paradoxo só
se esclarece a partir da concepção de que toda pulsão é pulsão de morte (devido ao
intricamento de Eros e Tanatos) situando-se a satisfação do sintoma para além do princípio
do prazer.
90
Como observamos, a pulsão, ao fazer limite entre o simbólico e o Real, nos aponta
para um para além do princípio do prazer. Este será o tema que abordaremos a seguir ao
nos aprofundarmos sobre o real do corpo.
3.2- O real do corpo
desisti de encontrar respostas para a minha alopecia.
Flora
89
LACAN, Jacques (1959-1960). O Seminário. Livro 7. A ética da psicanálise. Op. Cit.
90
QUINET, Antonio. A descoberta da psicanálise: do desejo ao sintoma. Op. Cit. p. 48- 49.
72
O mais enigmático é a repilação espontânea, o paciente pode estar sem
tratamento algum, sem medicação, sem terapia e de repente, depois de quinze anos, os
cabelos voltam a nascer.
Dra Enilde Borges Costa
(...) As pulsões de vida têm muito mais contato com a nossa percepção interna, surgindo como
rompedores da paz e constantemente produzindo tensões cujo alívio é sentido como prazer, ao passo que as
pulsões de morte parecem efetuar seu trabalho discretamente.
91
Como vimos no “Projeto...”, Freud considerava que o sistema nervoso era regulado
por sentimentos pertencentes à série prazer-desprazer: o aumento do estímulo acima do
nível constante seria identificado como desprazer, e, a sua diminuição, como prazer. Assim,
através deste princípio, o aparelho psíquico tornou-se mais complexo ao buscar saídas para
lidar com a sensação de desprazer ocasionada pelo acúmulo de excitação. Com esse
pensamento, Freud acreditava que a compulsão à repetição era mobilizada no sentido de
ignorar o objeto hostil pela ação do recalque, e no de buscar a experiência de satisfação por
meio dos caminhos facilitados. No entanto, essa idéia foi questionada em 1920, no trabalho
“Além do princípio do prazer”
92
.
Em março de 1919 Freud começou a realizar um primeiro rascunho de “Além do
princípio de prazer”, que foi publicado em 1920. Nesse texto, Freud reformulou o
pensamento de que a compulsão à repetição seria regida unicamente pelo princípio do
prazer ao observar, na clínica, que grande parte dos processos mentais não eram submetidos
a ele.
A investigação sobre a compulsão à repetição, fez com que ele percebesse que nesse
mecanismo havia também a rememoração de experiências que não estavam relacionadas
com a obtenção de prazer. Tomou como exemplo os sonhos dos neuróticos traumáticos,
onde existia uma ausência de prazer na sua repetição.
Com isso, Freud levantou a hipótese de que na compulsão à repetição havia algo
mais primitivo, que estaria além da obtenção de prazer e da evitação do desprazer:
As manifestações de uma compulsão à repetição (que descrevemos como
ocorrendo nas primeiras atividades da vida mental infantil, bem como entre os eventos do
91
FREUD, Sigmund (1920). Além do princípio do prazer. In: Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud. 3. ed. Tradução por Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago,
1990. v. XVIII.
73
tratamento analítico) apresentam em alto grau um caráter pulsional e, quando atuam em
oposição ao princípio de prazer, dão a aparência de alguma força demoníaca em ação
93
No “Projeto...”, Freud fez a distinção entre o processo primário e o processo
secundário como vias de escoamento do acúmulo de excitação, em que o primeiro era
regido pelo princípio de inércia e, o segundo, pelo princípio de constância. A função
secundária era possibilitada pela ação específica que promovia caminhos de eliminação
definidos como desejo, enquanto na função primária a descarga ocorria sem mediação
simbólica.
Em “Além do princípio do prazer”, Freud faz uma aproximação desta pulsão, que
não se submete ao princípio de prazer, com o processo primário que, como já abordamos,
era o funcionamento do sistema nervoso primitivo que buscava conservar o estado de
repouso, inorgânico, anterior à catástrofe glacial:
... um instinto é um impulso, inerente à vida orgânica, a restaurar um estado anterior de
coisas, impulso que a entidade viva foi obrigada a abandonar sob a pressão de forças
perturbadoras externas, ou seja, é uma espécie de elasticidade orgânica, ou para dize-lo de
outro modo, a expressão da inércia inerente à vida orgânica.
94
Podemos inferir, portanto, que a pulsão de morte é o componente da pulsão que
resiste a toda e qualquer simbolização, num movimento de retorno ao estado inorgânico,
referente ao nível da coisa, na ordem do inominável, inassimilável, do Real, num para além
do princípio do prazer.
Como abordamos no tópico anterior, a análise das neuroses de transferência levou
Freud a estabelecer a dualidade entre pulsões do ego e pulsões sexuais. Como veremos no
tema a seguir, com o conceito de narcisismo esse dualismo mostrou-se inapropriado, uma
vez que Freud descobriu, a partir do estudo dos parafrênicos, que o ego é o reservatório
original da libido se estendendo para os objetos, sendo elevado à categoria de objeto de
investimento libidinal.
Com a descoberta de que nem toda pulsão busca o prazer, e com a hipótese de que
“as coisas inanimadas existiram antes das vivas”, Freud realiza uma reformulação do seu
dualismo através da oposição entre as pulsões de vida e pulsões de morte. As pulsões de
93
Ibidem. p. 52
94
FREUD, Sigmund (1920). Além do princípio do prazer. Op. Cit. p. 53-54.
74
vida estariam a serviço de Eros, preservando a vida, tentando perpetuamente uma
renovação da vida, enquanto as pulsões de morte procurariam conduzir o que é vivo em
morte, resistindo à simbolização.
A frase que inicia este capítulo reafirma este pensamento, pois Freud diz não haver
representação para as pulsões de morte, uma vez que estas efetuam seu trabalho
discretamente. Berlinck
95
afirma que a morte não tem palavra, é silenciosa.
Lacan nos auxilia na compreensão sobre o para além do princípio do prazer
freudiano encontrado na compulsão à repetição, a partir do seu conceito de gozo, uma vez
que este reside na tentativa permanente de ultrapassar os limites do princípio de prazer:
... o gozo não é o prazer, mas o estado que fica além do prazer; ou, para retomarmos os
termos de Freud, ele é uma tensão, uma tensão excessiva, um máximo de tensão, ao passo
que, inversamente, o prazer é um rebaixamento das tensões. Se o prazer consiste mais em
não perder, não perder nada e despender o mínimo possível, o gozo, ao contrário, alinha-se
do lado da perda e do dispêndio, do esgotamento do corpo levado ao paroxismo de seu
esforço. É aí que o corpo aparece como substrato do gozo. É precisamente nesse estado de
um corpo que se consome que a teoria psicanalítica concebe o gozar do corpo.
96
Como abordamos no capítulo anterior, segundo Vorcaro, o atravessado da
linguagem opera um efeito no gozo do fluxo vital do sujeito.
Nasio, por sua vez, considera que Lacan formaliza o conceito de gozo de modo a
circunscrever o território pulsional a partir de três modalidades: o gozo fálico, o mais-gozar
e o gozo do Outro, que descreveremos a seguir.
Como vimos no “Projeto...”, a satisfação só pode ser alcançada parcialmente através
dos objetos substitutivos. O gozo fálico corresponde à energia dissipada durante a descarga
parcial, tendo como efeito um alívio relativo da tensão inconsciente. É utilizada a palavra
“fálica” porque o limite do acesso à descarga é efetuado pelo falo, correspondendo ao
mecanismo de recalcamento da teoria freudiana.
O mais-gozar é o gozo que foi impedido pelo falo de ser descarregado, um gozo
residual, excedente, que aumenta constantemente a tensão interna. Este gozo permanece
ancorado nas zonas erógenas e orificiais do corpo, mantendo-as num estado permanente de
95
BERLINCK, Manoel Tosta. Discussão ocorrida no dia 27 de outubro de 2005, no Laboratório de
Psicopatologia Fundamental, PUC/SP.
96
NASIO, Juan-David. Cinco lições sobre a teoria de Jacques Lacan. Tradução, Vera Ribeiro. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1993., p.133-134.
75
erotogenia. Associado à coisa freudiana que assegura a repetição, responsável pela
produções psíquicas, o mais-gozar é a energia que faz o inconsciente produzir.
No “Projeto...”, Freud fala do objeto mítico, primordial, irremediavelmente perdido
que o sujeito aspira reencontrar. O gozo do Outro também apresenta este caráter mítico,
ideal, onde o sujeito obteria a satisfação plena sem o limite do recalcamento. Esse gozo o
sujeito supõe ao Outro, que apresenta igualmente um caráter hipotético.
A partir desta compreensão a respeito do gozo, torna-se mais claro o entendimento
da dinâmica do sintoma:
Os sintomas são, de fato, manifestações penosas, atos aparentemente inúteis que
são realizados com profunda aversão. Mas se, para o eu, o sintoma significa,
essencialmente, padecer com o significante, para o inconsciente, em contrapartida, significa
desfrutar de uma satisfação. Sim, gozar uma satisfação, pois o sintoma é tanto dor quanto
alívio, tanto sofrimento para o eu quanto alívio para o inconsciente. Mas, por que alívio?
Como é possível afirmar que um sintoma tranqüiliza e liberta? Ora, é precisamente esse
efeito libertador e apaziguador do sintoma que tomamos como uma das imagens principais
do gozo.
97
Assim, esse apaziguamento que contraditoriamente provoca sofrimento está ligado
ao movimento da busca da coisa perdida que falta no lugar do Outro. Segundo Kaufmann:
O gozo é visado num esforço de reencontro, mas, pela virtude do signo, alguma
outra coisa ocorre em seu lugar, um rasgo, uma marca, e nessa falha resvala o objeto sempre
já perdido.
98
O gozo é, portanto, efeito do atravessamento da linguagem, seja como energia
parcialmente dissipada pelo obstáculo da linguagem, dos significantes, do falo, seja pelo
resíduo promovido por essa limitação, ou pelo caráter absoluto idealizado por sermos seres
falantes. Por outro lado, não há significante que represente o gozo, só sendo possível ao
significante contorná-lo, bordejando zonas por onde o corpo goza, delimitando as zonas
erógenas. Sendo assim, o lugar do gozo é o do furo uma vez que não tem representação
significante exata.
Nesta perspectiva, podemos inferir que o corpo goza porque está submetido pela
linguagem. Paradoxalmente, o gozo faz-se ouvir por atos cegos, fora das palavras. Quando
97
Ibidem, p. 25
98
KAUFMANN, Pierre. Dicionário enciclopédico de psicanálise: o legado de Freud e Lacan. Op. Cit., p.
221.
76
o gozo domina, o sujeito é puro corpo, mantendo-se alienado dos pensamentos. Portanto, o
sujeito está excluído do gozo, este o revira sem que ele perceba onde.
No capítulo 4, ao discutirmos sobre a manifestação somática no caso Flora,
buscaremos alcançar uma compreensão acerca do gozo específico presente neste fenômeno.
Até o momento debruçamo-nos sobre as vertentes simbólica e real do corpo. A
seguir, investigaremos sobre o corpo na sua consistência imaginária, ou seja, abordaremos
o processo de integração do eu sob o aspecto da imagem corporal, que oferece uma unidade
ao sujeito a partir da teoria freudiana sobre a passagem do auto-erotismo ao narcisismo,
realizando uma articulação com a teoria do estádio do espelho de Lacan.
3.3- O corpo imaginário.
Sinto como se as pessoas
fossem uma extensão minha...Se alguém faz algo que eu não gosto, acho que está me
agredindo, pois se ela sabe o que eu penso, não deveria fazer coisas para me machucar.
Odeio o olhar investigativo das pessoas, é um olhar
que me irrita, que me invade, querendo me humilhar.
Se vou á escola e ninguém me olha, acho
estranho. Será que eu gosto do olhar das pessoas por mais que eu reclame?
Flora
Uma comparação entre os sexos masculino e feminino indica que existem
diferenças fundamentais entre eles no tocante a seu tipo de escolha objetal, embora essas
diferenças naturalmente não sejam universais. O amor objetal completo do tipo de ligação é,
propriamente falando, característico do indiduo do sexo masculino. Ele exibe a acentuada
supervalorização sexual da criança, correspondendo assim a uma transferência desse
narcisismo para o objeto sexual. Essa supervalorização sexual é a origem do estado peculiar
de uma pessoa apaixonada, um estado que surge uma compulsão neurótica, cuja origem
pode, portanto, ser encontrada num empobrecimento do ego em relação à libido em favor do
objeto amoroso. Já o tipo feminino mais freqüentemente encontrado, provavelmente o mais
puro e o mais verdadeiro, o mesmo não ocorre. Com o começo da puberdade, o
amadurecimento dos órgãos sexuais femininos, até então em estado de latência, parece
ocasionar a intensificação do narcisismo original, e isso é desfavorável para o
desenvolvimento de uma verdadeira escolha objetal com a concomitante supervalorização
sexual. As mulheres, especialmente se forem belas ao crescerem, desenvolvem certo
autocontentamento que as compensa pelas restrições sociais que lhes são impostas em sua
escolha objetal. Rigorosamente falando, tais mulheres amam apenas a si mesmas, com uma
intensidade comparável à do amor do homem por elas. Sua necessidade não se acha na
direção de amar, mas de serem amadas; e o homem que preencher essa condição cairá em
suas boas graças.(...) Tais mulheres exercem o maior fascínio sobre os homens, não apenas
por motivos estéticos, visto que em geral são as mais belas, mas também por uma
combinação de interessantes fatores psicológicos, pois parece muito evidente que o
77
narcisismo de outra pessoa exerce grande atração sobre aqueles que renunciaram a uma
parte de seu próprio narcisismo e estão em busca do amor objetal.
99
Consideramos um dos grandes legados da obra freudiana, a noção de que o eu não é
conseqüência de um processo de maturação natural. Como abordamos anteriormente, é
necessário que um Outro introduza o sujeito no campo simbólico para que este possa advir.
Neste tópico, falaremos sobre a importância de uma outra dimensão, a dos ideais, para que
o corpo possa se fazer, ou seja, para que o sujeito tenha uma representação unificada de si
mesmo. Tomaremos como ponto de partida o texto de Freud “Sobre o narcisismo: uma
introdução” para aprendermos sobre o caráter imprescindível da imagem para que o corpo
simbólico possa ganhar uma consistência.
Segundo Ernest Jones, em 1909 Freud fez a primeira menção pública a respeito do
narcisismo, considerando-o uma fase intermediária necessária entre o auto-erotismo e o
amor objetal. Esta menção foi declarada numa nota de rodapé da segunda edição dos “Três
ensaios sobre a teoria da sexualidade”
100
. Em 1910, Freud volta a fazer referência ao
narcisismo no texto “Leonardo da Vinci e uma lembrança da sua infância”
101
; um ano
depois se refere ao narcisismo na análise do presidente Schreber e, em 1912-13, em “Totem
e tabu”
102
.
Uma vez que a sua primeira declaração foi realizada nos “Três ensaios...”,
realizaremos um breve retorno a esse trabalho.
Como sabemos, muitas alterações ocorreram desde a primeira edição dos “Três
ensaios...”. Embora o importante acréscimo realizado em 1915 tenha sofrido influência do
trabalho de Freud “Sobre o narcisismo: uma introdução
103
e possua características dos
“Artigos sobre a metapsicologia”
104
, idéias importantes já estavam presentes desde 1905.
99
FREUD, Sigmund (1914). Sobre o narcisismo: uma introdução. In: Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud. 3. ed. Tradução por Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago,
1990. v. XIV. P. 105-106.
100
FREUD, Sigmund (1905). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade.Op. Cit.
101
FREUD, Sigmund (1910). Leonardo da Vinci e uma lembrança da sua infância. In: Edição Standard
Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. 3. ed. Tradução por Jayme Salomão. Rio de
Janeiro: Imago, 1990. v. XI.
102
FREUD, Sigmund (1913[1912-13]). Totem e tabu. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas
Completas de Sigmund Freud. 3. ed. Tradução por Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1990. v. XIII.
103
FREUD, Sigmund (1914). Sobre o narcisismo: uma introdução. Op. Cit.
104
FREUD, Sigmund (1915). Artigos sobre metapsicologia. Op. Cit.
78
Em 1905
105
, por meio da investigação das aberrações sexuais, Freud constatou que a
sexualidade humana não era regida pelo instinto, com objeto e alvo fixo:
Chamou-nos a atenção que imaginávamos como demasiadamente íntima a ligação
entre a pulsão sexual e o objeto sexual. A experiência obtida nos casos considerados
anormais nos ensina que, neles, há entre a pulsão sexual e o objeto sexual apenas uma solda,
que corríamos o risco de não ver em conseqüência da uniformidade do quadro normal, em
que a pulsão parece trazer consigo o objeto. Assim, somos instruídos a afrouxar o vínculo
que existe em nossos pensamentos entre a pulsão e o objeto. É provável que, de início, a
pulsão sexual seja independente de seu objeto, e tampouco deve ela sua origem aos encantos
deste
106
Estas constatações levaram Freud a concluir que a sexualidade humana era
aberrante por si só:
Considera-se como alvo sexual normal a união dos genitais no ato designado como
coito, que leva à descarga da tensão sexual e à extinção temporária da pulsão sexual (uma
satisfação análoga à saciação da fome). Todavia, mesmo no processo sexual mais normal
reconhecem-se os rudimentos daquilo que, se desenvolvido, levaria às aberrações descritas
como perversões
107
... A experiência cotidiana mostrou que a maioria dessas transgressões, no mínimo
as menos graves dentre elas, são um componente que raramente falta na vida sexual das
pessoas sadias e que é por elas julgado como qualquer outra intimidade. Quando as
circunstâncias são favoráveis, também as pessoas normais podem substituir durante um bom
tempo o alvo sexual normal por uma dessas perversões, ou arranjar-lhe um lugar ao lado
dele. Em nenhuma pessoa sadia falta algum acréscimo ao alvo sexual normal que se possa
chamar de perverso, e essa universalidade basta, por si só, para mostrar quão imprópria é a
utilização reprobatória da palavra perversão. Justamente no campo da vida sexual é que se
tropeça com dificuldades peculiares e realmente insolúveis, no momento, quando se quer
traçar uma fronteira nítida entre o que é mera variação dentro da amplitude do fisiológico e
o que constitui sintomas patológicos.
108
Como podemos observar, Freud esboçava nas entrelinhas destes trechos, as
características da pulsão com seus elementos constituintes (pressão: constante; fonte:
somática, meta: satisfação e objeto: variável) como abordados no item 3.1.
Compreendemos que a sexualidade humana possui o caráter aberrante, pois é constituída
pela pulsão que por si só é desviante, uma vez que não há a plena satisfação no encontro
com um único objeto, havendo satisfações parciais numa variedade infinita de objetos.
105
FREUD, Sigmund (1905). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Op. Cit.
106
Ibidem, p. 138-139.
107
Ibidem, p. 140.
108
Ibidem, p. 150.
79
Por meio da investigação dos pacientes que eram considerados “patológicos”, Freud
descobriu que os germes de todas as perversões eram demonstráveis nas crianças,
concluindo que os neuróticos preservavam a sexualidade infantil ou eram retransportados
para ele. Com isso, a sexualidade infantil tornou-se um conceito explicativo da natureza da
sexualidade humana, deixando de ser um termo restrito aos comportamentos sexuais das
crianças.
A partir deste enfoque Freud realizou, nos “Três ensaios...”, um estudo sobre a vida
sexual das crianças no intuito de compreender a sexualidade humana.
Ressaltaremos um conceito importante construído por ele nessa investigação,
fundamental para o entendimento que realizaremos sobre o narcisismo. Trata-se do auto-
erotismo.
Freud constatou que existe uma fase no desenvolvimento da sexualidade humana
em que a pulsão não está dirigida para um objeto externo, mas satisfaz-se no próprio corpo
de maneira auto-erótica. Para exemplificar, utilizou o ato de chuchar. Observou que nesta
prática sexual, o bebê busca rememorar uma satisfação já vivenciada, no ato da
amamentação através da sucção rítmica da mucosa. Assim, a satisfação do chuchar nasce
apoiada numa das funções vitais. A partir desta conclusão, Freud construiu a teoria do
apoio, como já demonstramos no item 3.1.
Freud constatou também que na atividade auto-erótica a criança utiliza uma parte do
próprio corpo para se satisfazer, como forma de tornar-se independente do objeto externo
do qual não tem domínio. Neste sentido, o alvo sexual está sob o domínio de uma zona
erógena.
Inferimos então que, neste caso, apesar de não estar voltado para os objetos
externos, o auto-erotismo é uma fase fundamental para a constituição dos objetos,
caracterizando-se como um estado original da sexualidade humana.
Segundo Freud, neste estado, há uma anarquia da sexualidade, em que as pulsões
parciais se satisfazem com o próprio corpo de forma independente de outras pulsões
parciais, como um prazer de órgão, de forma não unificada, independentes da função
biológica.
Por meio do conceito de auto-erotismo Freud nos mostrou a sua posição dualista -
que deu origem à primeira formulação sobre a teoria das pulsões - que marca a distinção
80
entre a pulsão sexual e pulsão de autoconservação (pulsão do eu). Esta distinção, como já
pontuamos, será modificada com a introdução do conceito de narcisismo.
As idéias de Freud sobre o narcisismo foram tomando forma a partir das
observações dos parafrênicos, da vida mental das crianças e dos povos primitivos.
Através do estudo dos parafrênicos, Freud percebeu que havia nesses pacientes um
processo de retirada da libido dos objetos do mundo externo sem substituí-los por outros na
fantasia (como ocorre na neurose) e, quando isto ocorria, parecia ser um processo
secundário numa tentativa de recuperação buscando conduzir a libido de volta aos objetos.
Esta observação o fez notar que o movimento de investimento do eu a partir do
afastamento da libido do mundo externo era uma repetição de uma atitude previamente
existente denominada narcisismo primário. Considerou, então, a existência de uma catexia
libidinal original do eu, objeto privilegiado de investimento libidinal, em que parte desta
era investida posteriormente nos objetos, retornando ao eu. Com isso, Freud propôs a
existência de um narcisismo primário e um narcisismo secundário, ambos tendo como
característica o investimento no eu, mas diferindo no aspecto que no narcisismo secundário
havia o investimento do eu, posterior ao investimento da libido em objetos externos.
Freud ressaltou a idéia de que “há uma catexia libidinal original do ego, parte da
qual é posteriormente transmitida a objetos, mas que fundamentalmente persiste e está
relacionada com as catexias objetais, assim como o corpo de uma ameba está relacionado
com os pseudópodes que produz”.
109
Assim, o conceito de narcisismo como escolha do próprio corpo como objeto de
satisfação amorosa, que até 1914 era considerado uma perversão, é revisto como um
momento fundante da subjetividade.
Este aspecto fundante da formação do eu marca a diferença entre o auto-erotismo e
o narcisismo:
Uma atitude comparável ao ego não pode existir no indivíduo desde o começo; o
ego tem de ser desenvolvido. Os instintos auto-eróticos, contudo, ali se encontram desde o
início, sendo, portanto, necessário que algo seja adicionado ao auto-erotismo – uma nova
ação psíquica – a fim de provocar o narcisismo.
110
109
FREUD, Sigmund (1914). Sobre o narcisismo: uma introdução. Op. Cit., p. 91-92
110
Ibidem, p. 93.
81
Como abordamos anteriormente, Freud formulou a primeira teoria das pulsões
distinguindo a pulsão sexual da pulsão do eu ao constatar que as primeiras satisfações
sexuais auto-eróticas estão apoiadas nas pulsões de autoconservação, ligadas á satisfação do
eu, e só depois se tornam independentes destas. Mas como manter esta distinção com o
conceito de narcisismo, em que o eu passa a ser objeto de investimento sexual?
Freud questiona este dualismo e alcança uma nova posição em 1920, como já
discutimos no item anterior, em que faz a diferenciação entre a pulsão de vida e pulsão de
morte.
Retomando a distinção entre auto-erotismo e narcisismo, é importante ressaltar que
no primeiro não há o eu, mas um prazer de órgão sem a representação do corpo como uma
unidade, enquanto o narcisismo é uma condição da constituição do eu como uma
representação complexa.
Vimos no item 3.1, que o eu se caracteriza pela totalidade dos investimentos no
sistema ψ. Trata-se, portanto, de uma organização neuronal que possibilita um estado de
integração através das facilitações entre os neurônios, inibindo o livre escoamento das
excitações, ou seja, o eu é pensando a partir do aspecto quantitativo, em que através da sua
organização há uma perda da intensidade. Paradoxalmente, o eu surge em meio a este
estado de pura dispersão das excitações. Compreendemos que este esquema proposto por
Freud no “Projeto...”, aponta para a construção da gramática pulsional.
Através do conceito do narcisismo, Freud nos oferece uma outra operação
fundamental para a integração do eu, a partir da identificação com uma imagem corporal
que confere uma unidade fundante ao sujeito.
Apesar de optarmos por realizar uma distinção das dimensões do corpo e discuti-las
separadamente, podemos observar que as mesmas estão intimamente articuladas,
produzindo e sofrendo efeitos. Esta lógica que se estabelece será imprescindível para a
nossa investigação sobre a manifestação somática de Flora. Por ora, retornemos à questão
sobre a formação da subjetividade a partir da identificação à imagem.
Segundo Freud, por meio da revivescência do narcisismo dos pais é oferecida ao
bebê uma imagem unificada de seu corpo, aspecto este fundamental para a constituição do
eu:
82
Se prestarmos atenção à atitude de pais afetuosos para com os filhos, temos de
reconhecer que ela é uma revivescência e reprodução de seu próprio narcisismo, que de há
muito abandonaram. O indicador digno de confiança constituído pela supervalorização, que
já reconhecemos como um estigma narcisista no caso da escolha objetal, domina, como
todos nós sabemos, sua atitude emocional. Assim, eles se acham sob a compulsão de atribuir
todas as perfeições ao filho – o que uma observação sóbria não permitiria – e de ocultar e
esquecer todas as deficiências dele. (...) sentem-se inclinados a suspender, em favor da
criança, o funcionamento de todas as aquisições culturais que seu próprio narcisismo foi
forçado a respeitar, e a renovar em nome dela as reivindicações aos privilégios de há muito
por eles próprios abandonados. A criança terá mais divertimento que seus pais; ela não
ficará sujeita às necessidades que eles reconheceram como supremas na vida. A doença, a
morte, a renúncia ao prazer, restrições à sua vontade própria não a atingirão; as leis da
natureza e da sociedade serão ab-rogadas em seu favor; ela será mais uma vez realmente o
centro e o âmago da criação – “Sua Majestade o Bebê”, como outrora nós mesmos nos
imaginávamos. A criança concretizará os sonhos dourados que os pais jamais realizaram (...)
O amor dos pais, tão comovedor e no fundo tão infantil, nada mais é senão o narcisismo dos
pais renascido, o qual, transformado em amor objetal, inequivocamente revela sua natureza
anterior.
111
Nesse artigo de Freud é apresentada pela primeira vez a distinção entre o eu ideal e
o ideal do eu.
No trecho citado acima, Freud nos revelou o que considerou o eu ideal, a imagem de
perfeição e completude fruto do narcisismo dos pais, ou seja, o eu ideal como efeito do
discurso dos pais. O ideal do eu, por sua vez, apresenta um outro estatuto de ideal,
atravessado pelos valores culturais, morais e críticos, onde o sujeito busca resgatar a
perfeição narcísica de outrora:
Esse ego ideal é agora o alvo do amor de si mesmo (self love) desfrutado na
infância pelo ego real. O narcisismo do indivíduo surge deslocado em direção a esse novo
ego ideal, o qual, como o ego infantil, se acha possuído de toda perfeição de valor. Como
acontece sempre que a libido está envolvida, mais uma vez aqui o homem se mostra incapaz
de abrir mão de uma satisfação de que outrora desfrutou. Ele não está disposto a renunciar à
perfeição narcisista de sua infância; e quando, ao crescer, se vê perturbado pelas
admoestações de terceiros e pelo despertar de seu próprio julgamento crítico, de modo a não
mais poder reter aquela perfeição, procura recuperá-la sob a nova forma de um ego ideal.
112
O que ele projeta diante de si como sendo seu ideal é o substituto do narcisismo perdido de
sua infância na qual ele era o seu próprio ideal.
113
111
Ibidem, p. 108.
112
Grifo nosso.
113
Ibidem, p. 111.
83
Garcia-Roza
114
faz uma crítica à tradução realizada pela Edição Standard Brasileira
que traduz erroneamente ideal do eu (Ich ideal) por eu ideal (Ideal Ich) onde grifamos.
Com esta alteração parece ficar clara a distinção entre eu ideal e ideal do eu.
Freud considerou que para que haja o desenvolvimento do eu é necessário um
afastamento do narcisismo primário através do deslocamento da libido para o ideal do eu
“imposto de fora”, onde a satisfação é provocada pela realização desse ideal. Sendo assim,
o ideal do eu é resultado da introjeção simbólica.
Lacan discute, de forma bastante particular, o artigo de Freud sobre o narcisismo no
Seminário 1
115
propondo uma releitura através dos três registros: Real, Simbólico e
Imaginário
116
. Esta topologia, como falamos na introdução, nos serviu de base para
estabelecermos as distinções entre o corpo simbólico, corpo imaginário e o real do corpo.
Através do texto “A tópica do imaginário”
117
, aprendemos que Lacan refere que sem estes
três sistemas de referência não é possível compreender a técnica e a experiência freudianas,
uma vez que muitas dificuldades se justificam e se esclarecem por meio desta distinção.
Ao retomar a distinção que Freud realiza no texto “Sobre o narcisismo...”
118
entre a
parafrenia e a neurose, Lacan aponta que existe uma distinção essencial quanto ao
“funcionamento do imaginário” entre estas estruturas, pois na neurose o sujeito não rompe
as suas relações eróticas com as pessoas e as coisas, conservando-as na fantasia, enquanto
na psicose não há esta substituição, ocorrendo um brusco rompimento.
Antes do Seminário 1, Lacan já havia desenvolvido a função do imaginário no
artigo “O estádio do espelho como formador da função do eu”
119
, utilizando os trabalhos
114
GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Artigos de metapsicologia, 1914-1917. Introdução à metapsicologia
freudiana. vol. 3. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.
115
LACAN, Jacques (1953-1954). O Seminário. Livro 1. Os escritos técnicos de Freud. Op. Cit.
116
Essa articulação dos três registros (RSI) acompanhou Lacan do início até o fim de seu ensino. Segundo
Élisabeth Roudinesco e Michel Plon, Real é empregado por Lacan como substantivo designando uma
realidade fenomênica que é imanente à representação, um resto impossível de simbolizar, uma realidade
desejante inacessível a qualquer pensamento subjetivo. Simbólico é empregado como substantivo masculino
designando a ordem (ou função simbólica), um sistema de representação baseado na linguagem que preexiste
e determina o sujeito à sua revelia. Imaginário é inaugurado pela definição do estádio do espelho, definido
como o lugar do eu por excelência com seus fenômenos de ilusão, captação, alienação, fusão com o corpo da
mãe e engodo. Cf: Elisabeth Roudinesco, Michel Plon. Dicionário de psicanálise. Tradução Vera Ribeiro,
Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
117
LACAN, Jacques (1953-1954). O Seminário. Livro 1. Os escritos técnicos de Freud. Op. Cit.
118
FREUD, Sigmund (1914). Sobre o narcisismo: uma introdução. Op. Cit, p. 93.
119
LACAN, Jacques (1949). O estádio do espelho como formador da função do eu. In: Escritos. Tradução
Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
84
realizados por Köhler sobre o ato da inteligência dos chimpanzés comparado à inteligência
da criança:
...o filhote do homem, numa idade em que, por curto espaço de tempo, mas ainda assim por
algum tempo, é superado em inteligência instrumental pelo chimpanzé, já reconhece, não
obstante, como tal sua imagem no espelho. Reconhecimento que é assinalado pela
inspiradora mímica do Aha-Erlebnis, onde se exprime, para Köhler, a apercepção
situacional, tempo essencial do ato de inteligência.
120
Este acontecimento ocorre a partir dos seis meses de idade (sendo conservado até os
18 meses), e uma vez adquirido produz na criança uma série de gestos em que experimenta
ludicamente a relação entre os movimentos assumidos pela imagem e o seu meio refletido
(percebidos redobrados na imagem especular). Lacan, porém, chama a atenção para a
euforia em que a criança é tomada diante desta situação:
... sua repetição muitas vezes deteve nossa meditação ante o espetáculo cativante de um
bebê que, diante do espelho, ainda sem ter o controle da marcha ou sequer da postura ereta,
mas totalmente estreitado por algum suporte humano ou artificial (o que chamamos, na
França, um trotte-bébé [um andador]), supera, numa azáfama jubilatória, os entraves desse
apoio para sustentar sua postura numa posição mais ou menos inclinada e resgatar, para
fixá-lo, um aspecto instantâneo da imagem.
121
Como abordamos no item 3.1, o bebê humano é extremamente prematuro, sendo a
sua incoordenação e imaturidade, características evidentes. Essa prematuração específica
do nascimento do homem é denominada pelos embriologistas de fetalização. A impotência
motora e a precipitação de uma forma primordial, apontada por Lacan no trecho acima,
revelam a estrutura ontológica do mundo humano marcada por uma evolução não linear,
num percurso que vai da impotência à antecipação.
Assim, em função da prematuridade humana, as funções corporais do bebê se
desenvolverão num ambiente que, como tratamos anteriormente, já atuam os três registros
(RSI). Embora Lacan insista na articulação dos três registros, nesse trabalho o autor dá
ênfase à função do imaginário na formação do eu, utilizando a experiência do espelho para
120
Ibidem, p. 96.
121
Ibidem, p. 97.
85
falar da identificação, como metáfora da transformação produzida no sujeito quando ele
assume uma imagem.
O estádio do espelho se refere à experiência onde a criança encontra uma Gestalt,
uma imagem unificada de seu corpo, cuja função primeira é ser estruturante do eu, embora
num nível imaginário.
Freud faz uma distinção entre auto-erotismo e narcisismo, ressaltando que no
primeiro não há o eu, mas um prazer de órgão sem a representação do corpo como uma
unidade, enquanto o narcisismo é uma condição da constituição do eu como uma
representação complexa. Neste sentido, o estádio do espelho marca a passagem da vivência
do corpo fragmentado para uma primeira demarcação de si por um processo de
identificação ao outro, operando uma normalização libidinal:
... a forma total do corpo pela qual o sujeito antecipa numa miragem a maturação de sua
potência só lhe é dada como Gestalt, isto é, numa exterioridade em que decerto essa forma é
mais constituinte do que constituída, mas em que, acima de tudo, ela lhe aparece num relevo
de estatura que a congela e numa simetria que a inverte, em oposição à turbulência de
movimentos com que ele experimenta animá-la. Assim, essa Gestalt, cuja pregnância deve
ser considerada como ligada à espécie, embora seu estilo motor seja ainda irreconhecível,
simboliza, por esses dois aspectos de seu surgimento, a permanência mental do [eu], ao
mesmo tempo que prefigura sua destinação mental do [eu], ao prenhe das correspondências
que unem o [eu] à estátua em que o homem se projeta e aos fantasmas que o dominam, ao
autômato, enfim, no qual tende a se consumar, numa relação ambígua, o mundo de sua
fabricação.
122
Esse processo é vivido numa dialética temporal que inaugura a formação do eu:
... o estádio do espelho é um drama cujo impulso interno precipita-se da insuficiência para a
antecipação - e que fabrica para o sujeito, apanhado no engodo da identificação espacial, as
fantasias que se sucedem desde uma imagem despedaçada do corpo até uma forma de sua
totalidade que chamaremos de ortopédica - e para a armadura enfim assumida de uma
identidade alienante, que marcará com sua estrutura rígida todo o seu desenvolvimento
mental. Assim, o rompimento do círculo do Innenwelt para o Umwelt gera a quadratura
inesgotável dos arrolamentos do eu.
123
Lacan nos mostra que o efeito da Gestalt para a formação do organismo é
comprovado por experimentos biológicos. Segundo o autor, os etologistas demonstram
através dos mecanismos de emparelhamento que a imagem tem um papel fundamental, pois
122
Ibidem, p. 98.
123
Ibidem, p. 100.
86
servem de sinal construído (Gestalt) para o desencadeamento dos comportamentos da
reprodução:
... o sujeito animal macho ou fêmea é como que captado por uma Gestalt. O sujeito
identifica-se literalmente ao estímulo desencadeador. O macho é preso na dança em zigue-
zague, a partir da relação que se estabelece entre ele mesmo e a imagem que comanda o
desencadeamento do ciclo do seu comportamento sexual. A fêmea é presa igualmente nessa
dança recíproca. (...) Nesse momento, o sujeito encontra-se inteiramente idêntico à imagem
que comanda o desencadeamento total de certo comportamento motor, o qual produz e
reenvia, num certo estilo, ao parceiro, o comando que faz continuar a outra parte da
dança.
124
Percebe-se que no animal há a suposição de um encaixe perfeito entre o Innenwelt e
o Umwelt, havendo certas correspondências preestabelecidas entre a estrutura imaginária e
o que é importante para a perpetuação da espécie por meio do Umwelt uniforme.
Este funcionamento difere no homem, pois, como já sabemos, a função sexual se
caracteriza por uma desordem eminente caracterizada pela pulsão, portanto, não adaptativa,
em decorrência do atravessamento da linguagem, marcada pela busca infinita de objetos
que só fornecerão satisfações parciais. No entanto, a pulsão está centrada também na
função do imaginário, uma vez que a libido investe a imagem dos objetos.
No mundo humano, a imagem no espelho inaugura a relação com o outro
semelhante. Este outro cativa porque antecipa uma imagem unitária, ao mesmo tempo em
que faz com que o sujeito veja o seu ser numa reflexão em relação ao outro. É um processo
de alienação fundamental que constitui a imagem refletida de si mesmo, a forma original do
ideal do eu, e a relação com o outro. Embora a Urbild provoque um efeito de alienação,
corresponde a uma satisfação, uma vez que oferece a integração de um organismo
fragmentado.
O estádio do espelho inaugura o processo da dialética das identificações que se
estabelece entre a imagem e o sujeito, dividindo-o. Este fenômeno pode ser observado nas
crianças por meio do comportamento delas na presença do seu semelhante:
Durante todo esse período, registram-se as reações emocionais e os testemunhos
articulados de um transitivismo normal. Do mesmo modo, é numa identificação com o outro
que ela vive toda a gama das reações de impotência e ostentação, cuja ambivalência
124
LACAN, Jacques (1953-1954). O Seminário. Livro 1: Os escritos técnicos de Freud. Op. cit. p. 161.
87
estrutural suas condutas revelam com evidência, escravo identificado com o déspota, ator
com o espectador, seduzido com o sedutor.
Há nisso uma espécie de encruzilhada estrutural onde devemos acomodar nosso
pensamento para compreender a natureza da agressividade no homem e sua relação com o
formalismo de seu eu e de seus objetos. Essa relação erótica, em que o indivíduo humano se
fixa numa imagem que o aliena em si mesmo, eis aí a energia e a forma donde se origina a
organização passional que ele irá chamar de eu.
Essa forma se cristalizará, com efeito, na tensão conflitiva interna ao sujeito, que
determina o despertar de seu desejo pelo objeto do desejo do outro: aqui, o concurso
primordial se precipita numa concorrência agressiva, e é dela que nasce a tríade do outro, do
eu e do objeto, que fendendo o espaço da comunhão especular, inscreve-se nela segundo um
formalismo que lhe é próprio...
125
Como demonstra o trecho acima, a agressividade é uma tendência correlativa ao
narcisismo, havendo uma articulação entre imagem e agressividade. E como se dá a
neutralização deste conflito? Qual a saída desta relação dual imaginária?
Lacan aponta que o complexo de Édipo produz uma reformulação identificatória do
sujeito através da introjeção da imago do genitor do mesmo sexo. Assim como Freud
discutiu no seu artigo “Sobre o narcisismo...”, Lacan retoma que o ideal do eu tem uma
função “apaziguadora”, pois realiza uma normatividade libidinal através da normatividade
cultural. Resgata o texto freudiano “Totem e tabu”
126
, considerando que a rivalidade entre
os irmãos se deu por meio da identificação com o totem paterno, transcendendo a
agressividade constitutiva desta primeira identificação com o outro.
Assim, segundo Lacan, para que a dialética se imponha é necessário um para além
da relação imaginária, ou seja, uma intervenção do Outro simbólico na relação com o outro.
Como abordamos anteriormente, Freud considerou que era necessário um
afastamento do narcisismo primário para o desenvolvimento do eu. Este afastamento, no
entanto, ocorre pelo deslocamento da libido para o ideal do eu “imposto de fora”, sendo a
satisfação provocada pela realização desse ideal. Assim, podemos considerar esta ação
“externa” a intervenção do grande Outro de Lacan.
É importante ressaltar a necessária relação entre o eu ideal e o ideal do eu, pois para
que possa haver o afastamento do narcisismo primário por meio de uma subordinação
cultural, é imprescindível que tenha ocorrido uma identificação primária que estrutura o
sujeito como rival de si mesmo.
125
LACAN, Jacques (1948). A agressividade em psicanálise. In: Escritos. Tradução Vera Ribeiro. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 116.
126
FREUD, Sigmund (1913[1912-13]). Totem e tabu. Op. Cit.
88
Neste sentido, Freud já apontava a existência de duas alteridades. Lacan, por sua
vez, retoma este ponto desdobrando a noção de alteridade e seu lugar na constituição do
sujeito: o outro como semelhante da relação especular, portanto numa relação imaginária, e
o Outro, lugar da determinação simbólica, tesouro dos significantes a partir do qual o
sujeito se constitui através da relação inaugural entre sujeito e significante, fazendo-se
representar por um significante do Outro, como abordamos no item 3.1.
Podemos considerar que a alteridade está intimamente relacionada com a noção de
ideal, onde o eu ideal corresponderia à fonte da projeção imaginária com o outro
semelhante, enquanto o ideal do eu, a uma introjeção simbólica na relação com o Outro.
A necessária relação entre essas duas alteridades - eu ideal e ideal do eu - para a
constituição da unidade corporal fica mais evidente no Seminário 1
127
, quando Lacan
realiza uma releitura de Freud dando ênfase ao desdobramento dos eixos imaginário e
simbólico.
Nesse seminário, Lacan utiliza um esquema óptico para explicar de forma mais
complexa o que ocorre na experiência da criança em frente ao espelho, compreendendo que
não há como negar que o estádio do espelho tem uma apresentação óptica.
Lacan inicia com o esquema óptico que tomou emprestado do experimento clássico
no campo da Física, de Bouasse, do buquê invertido, e posteriormente realiza algumas
alterações nesse esquema. Interpretamos que essa mudança se refere a dois momentos
lógicos da fase do espelho.
Iniciamos com a experiência do buquê invertido. Coloca-se uma caixa oca de um
lado, sobre um pé no centro da semi-esfera de um espelho côncavo. Sobre a caixa, um vaso
real e embaixo, dentro da cavidade oca da caixa, um buquê de flores virado para baixo:
O buquê reflete-se sobre a superfície esférica, para vir ao ponto luminoso simétrico.
Entendam que todos os raios fazem o mesmo, em virtude da propriedade da superfície
esférica - todos os raios emanados de um ponto dado vêm ao mesmo ponto simétrico. A
partir de então, forma-se uma imagem real (...) Nesse momento, enquanto vocês não vêem o
buquê real, que está escondido, verão aparecer, se estiverem no bom campo, um buquê
imaginário muito curioso, que se forma bem no gargalo do vaso. Como os seus olhos devem
se deslocar linearmente no mesmo plano, vocês terão uma impressão de realidade, sem
deixarem de sentir que alguma coisa é estranha, borrada, porque os raios não se cruzam
muito bem. Quanto mais longe vocês estiverem, mais a paralaxe agirá, e mais a ilusão será
completa.
128
127
LACAN, Jacques (1953-1954). O Seminário. Livro 1. Os escritos técnicos de Freud. Op. Cit.
128
Ibidem, p. 95.
89
Como apresentado no trecho acima, Lacan dá ênfase à posição do olho para que a
ilusão seja produzida, devendo estar situado no interior do cone, ou seja, ressalta que não é
possível visualizar a imagem real estando fora desse campo. Podemos pensar que a imagem
do vaso com as flores representa a Gestalt do corpo unificado, enquanto o vaso real
separado das flores representa o corpo despedaçado, fragmentado. Cotejando com a teoria
freudiana, podemos considerar esta imagem completa o eu ideal, uma projeção imaginária
fruto da revivescência do narcisismo dos pais.
Lacan introduz a alteridade por meio deste esquema. Interpretamos que a ilusão é
produzida em função do lugar simbólico ocupado pelo bebê, uma vez que a imagem de
perfeição do bebê decorre de suas marcas simbólicas. Assim, a posição do olho, enfatizada
por Lacan, refere-se ao lugar no mundo simbólico, no mundo da palavra.
Infante
129
nos auxilia nesta compreensão explicitando através de um exemplo
bastante ilustrativo, o que Lacan ressaltou durante toda a sua obra: que a constituição da
subjetividade se dá pela concorrência dos três registros que se articulam numa certa lógica
em qualquer manifestação da subjetividade, e que a exclusão de qualquer uma implica a
exclusão do sujeito.
Ao demonstrar a consistência própria que cada registro possui, Infante nos oferece o
seguinte exemplo:
Suponhamos que nosso sujeito vá assistir um jogo de futebol. Seu ingresso
corresponde a um certo lugar na arquibancada, que consideraremos como um lugar
simbólico. A partir desse lugar, nosso espectador terá suas imagens do jogo condicionadas
pelo lugar que ele ocupa. Ele terá acesso à imagem real do que acontece, mas ângulos
especiais possíveis para a sua localização. Por outro lado, o fato de ser um torcedor deste ou
daquele time (o que constitui outra marca simbólica), fará com que ele privilegie este ou
aquele ângulo que ele tenha acesso, movido naturalmente pelo seu desejo de torcedor. Pois
bem, toda essa produção de imagens constitui uma dimensão que tem seu funcionamento
próprio que chamamos de imaginário. Pelo exemplo, podemos notar que por mais que o
imaginário prolifere, ele se mantém condicionado pelos lugares simbólicos que marcam o
sujeito. Nelson Rodrigues, que além de ser um dos nossos maiores dramaturgos, foi
comentarista de futebol, costumava dizer que o video tape nas controvérsias do futebol é
burro. O vídeo, por mais que possa registrar o real (que aliás, ele não esgota), nada tem a ver
com o acontecimento do futebol que envolve sujeitos em posições diferentes, isso incluindo
juiz, torcedor e jogador. Basear-se no real do vídeo seria um ato típico do que ele chamava
dos idiotas da objetividade.
129
INFANTE, Domingos Paulo. A formação da subjetividade da criança. In: MARCONDES, E. (org.).
Pediatria Básica. São Paulo: Sarvier, 2002.
90
Assim, de acordo com o esquema óptico de Lacan, entendemos que as diferentes
posições do olho, resultaria na distinção entre diferentes posições do sujeito em relação à
realidade.
Infante
130
considera que nesta fase lógica do esquema de Bouasse, o que está em
jogo é uma imagem real e não virtual:
Não há nesse momento nenhuma assunção por parte do sujeito de uma imagem
virtual, mas algo que, embora projetado, se confunde ou se superpõe ao campo real.
131
Ainda no item 3.1, ressaltamos a importância do desenrolar dos três tempos do
Outro na constituição da posição subjetiva, que atribui ao sujeito uma filiação na ordem
simbólica, numa certa ordem que determina uma sucessão regular de gerações. É num
mundo humano organizado por essa marca que o sujeito advém e que terá que enfrentar. O
lugar simbólico estabelece as interdições e as possibilidades para o sujeito a partir da
posição que este ocupa na ordem genealógica. Neste sentido, podemos inferir que é a partir
do Outro que a imagem é delimitada.
Consideramos este momento da fase do espelho como sendo a metáfora do
narcisismo primário, instauração primeira do aparelho psíquico que vai permitir que se
constitua a imagem do corpo, Urbild da imagem especular.
Lacan propõe a existência de dois narcisismos: um primário, relacionado à
identificação com a imagem unificada do próprio corpo, e um secundário, que implica a
identificação com o outro.
Assim, consideramos a fase do espelho da experiência do buquê invertido uma fase
lógica anterior ao estádio do espelho propriamente dito, que se refere ao segundo
narcisismo, embora estes dois momentos estejam sincronicamente colocados no espelho.
Infante
132
afirma que:
O narcisismo secundário corresponde à segunda metade do esquema e,
evidentemente, está na dependência da instalação do primeiro. Aqui sim, entra em jogo a
130
INFANTE, Domingos Paulo. As contribuições do esquema ótico proposto por Lacan. Psicanálise e clínica
de bebês. Associação Psicanalítica de Curitiba, Ano IV, dezembro de 2000. Publicação interna.
131
Ibidem, p. 63.
132
Ibidem, p. 64-65.
91
dimensão imaginária propriamente dita, com a imagem virtual simétrica e invertida. O
primeiro momento põe em jogo sobretudo, a relação entre real e simbólico, enquanto no
segundo, a ênfase recai na relação entre o imaginário e o simbólico.
Como afirmamos, o bebê já nasce num ambiente onde funcionam os três registros
(RSI), embora o reconhecimento de sua imagem pelo Outro ocorra posteriormente.
Para desenvolver sobre o narcisismo secundário, Lacan realiza algumas alterações,
reposicionando o olho, que antes ficava de frente para o espelho côncavo (a imagem real se
formando entre eles), para uma posição de costas entre este espelho e o objeto. Lacan
acrescenta um espelho plano para que a imagem do sujeito seja refletida.
Estas mudanças sugerem que o bebê nesta fase pode se ver, ele próprio, se
reconhecendo jubilatoriamente na imagem que lhe é proposta. O espelho plano exerce neste
momento a função do Outro.
Lacan insiste na importância deste momento de reconhecimento pelo Outro da
imagem especular, em que a criança se vira para o adulto que o carrega nos braços
buscando uma confirmação daquilo que ela percebe no espelho, ou seja, da assunção de
uma imagem que antecipa o domínio ainda não adquirido:
...A criança que está nos braços do adulto é confrontada expressamente com sua imagem. O
adulto, quer o compreenda ou não, se diverte com isso. É preciso dar, então, toda a sua
importância a este gesto da cabeça da criança que, mesmo depois de ter sido cativada pelos
primeiros esboços do jogo que faz diante de sua própria imagem, volta-se para o adulto que
a carrega, sem que se possa dizer sem dúvida, o que espera disso, se é da ordem de um
acordo ou de um testemunho, mas a referência ao Outro vem desempenhar aí uma função
essencial. Não é forçar essa função articulá-la dessa maneira, e situar, assim, aquilo que se
ligará, respectivamente, ao eu ideal e ao ideal do eu na continuação ao desenvolvimento do
sujeito.
133
A partir deste esquema de Lacan, Laznik-Penot
134
conclui que para que haja a
constituição subjetiva são necessários dois reconhecimentos: o não-demandado da Urbild
da imagem especular, que se formaria somente no olhar do Outro (experiência do buquê
invertido), que assim constituída abriria a possibilidade da instauração da imagem especular
propriamente dita onde o bebê buscaria a referência ao Outro.
133
LACAN, Jacques (1960-1961). O Seminário. Livro 8. A transferência. Texto estabelecido por Jacques
Alain-Miller. Versão brasileira de Dulce Duque Estrada. Revisão do texto Romildo do Rego Barros. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1992, p. 342.
134
LAZNIK-PENOT, Marie-Christine. Do fracasso da instauração da imagem do corpo ao fracasso da
instauração do circuito pulsional - Quando a alienação faz falta. In: O que a clínica do autismo pode ensinar
aos psicanalistas. Salvador: Ágalma, 1991. (Psicanálise da criança).
92
Esta diferenciação dos momentos lógicos tem grande importância para a nossa
investigação e por isso será retomada no capítulo seguinte quando discutiremos acerca da
manifestação somática no caso Flora.
Uma vez que o sujeito só alcança a miragem de si mesmo fora de si, Lacan
considera que a regulação do imaginário depende de algo que está situado de modo
transcendente, ou seja, na ligação simbólica entre os seres humanos. Nota-se, então, que
Lacan supõe uma subordinação do Imaginário ao Simbólico:
É a relação simbólica que define a posição do sujeito como aquele que vê. É a
palavra, a função simbólica que define o maior ou menor grau de perfeição, de completude,
de aproximação, do imaginário. (...) A distinção é feita nessa representação entre o Ideal-Ich
e o Ich-Ideal, entre o eu-ideal e o ideal do eu. O ideal do eu comanda o jogo de relações de
que depende toda a relação a outrem. E dessa relação a outrem depende o caráter mais ou
menos satisfatório da estruturação imaginária.
135
Podemos considerar que esta vivência do estádio do espelho oferece a dimensão
essencial do humano para a estruturação da sua vida de fantasia, através da experiência
primeira de que se vê, se reflete e se concebe como outro que não ele mesmo.
Lacan aponta que é justamente em função desta lógica que se faz presente o tema
hegeliano: o desejo do homem é o desejo do outro.
A dinâmica do desejo entre a mãe e a criança só encontra sua coerência face à falta,
uma vez que a mãe pressentida como faltante pode imaginariamente ser preenchida pelo
objeto do desejo que lhe falta. É por isso que imaginariamente a criança se identificará com
este objeto da falta no Outro. Esta indistinção fusional só se fundamenta porque há a
preexistência do terceiro elemento: o falo. Identificando-se imaginariamente com o falo, o
desejo da criança já se realiza como desejo de desejo. Assim, a estruturação dinâmica do
desejo do sujeito como desejo de desejo do Outro ocorre com o processo de identificação
com o falo imaginário que virá sob a forma de uma falta.
Com isso haverá sempre um resto não representável, um vazio que permitirá a
dialética do desejo propriamente dita, como já abordamos anteriormente.
Lacan aponta que o estádio do espelho marca o “descolamento do homem em
relação à sua própria libido”, pois aponta para um atraso, instituindo uma hiância que
135
LACAN, Jacques (1953-1954). O Seminário. Livro 1. Os escritos técnicos de Freud. Op. Cit. p. 165
93
marcará uma diferença radical entre a satisfação de um desejo e a busca do seu
acabamento:
...o desejo é essencialmente uma negatividade, introduzida num momento que não é
especialmente original, mas que é crucial, de virada. O desejo é apreendido inicialmente no
outro, e da maneira mais confusa. (...) O sujeito localiza e reconhece originalmente o desejo
por intermédio não só da sua própria imagem, mas também do corpo do seu semelhante. É
exatamente aí, nesse momento, que se isola, no ser humano, a consciência enquanto
consciência de si. É na medida em que é no corpo do outro que ele reconhece o seu desejo
que a troca se faz. É na medida em que o seu desejo passou para o outro lado, que ele
assimila o corpo do outro e se reconhece como corpo.
136
Assim, o desejo não está constituído, sendo reconhecido e fixado de forma
despedaçada pela imagem do outro, enquanto este lhe oferece um aparente domínio ideal
através da imagem ortopédica:
O corpo como desejo despedaçado se procurando, e o corpo como ideal de si, se
reprojetam do lado do sujeito como corpo despedaçado, enquanto ele vê o outro como corpo
perfeito.
137
Há, portanto, uma dialética inacabável, em que um se reprojeta sobre o outro, ora se
vendo como uma totalidade que se desmembra, que por sua vez projeta seu
desmembramento sobre a imagem ortopédica, que novamente se desmembra...
Há um constante jogo de esconde-esconde, num perpétuo engodo entre a imagem
buscada e o objeto encontrado. Esta dialética aponta para a ordem do Real, do impossível
de ser simbolizado, do inominável que descrevemos no item 3.2.
Como vimos, no item 3.1, esta questão do Real já estava presente quando tratamos a
respeito da montagem da pulsão, pela busca constante de um objeto “supostamente”
perdido e jamais reencontrado. Assim, os três registros (RSI) formam uma estrutura
fundamental para a constituição subjetiva. A seguir investigaremos como se estabelece a
articulação destes sistemas na manifestação somática de Flora para podermos alcançar
alguma compreensão sobre este fenômeno.
136
Ibidem, p. 172.
137
Ibidem, p.174.
94
CAPÍTULO 4
A investigação da articulação dos três registros na manifestação somática de Flora:
uma interpretação possível
Flora chega ao consultório assujeitada pelo pathos, num excesso de padecimento
deflagrado pela alopecia areata universal. Transmitia uma sensação de vazio, de
empobrecimento, como se a queda dos cabelos tivesse provocado nela, a sua queda total,
não restando absolutamente nada. Por outro lado, os traços que Flora tentava inscrever no
espaço que antes era ocupado pelas sobrancelhas pareciam denunciar uma reação contra o
seu mal-estar.
Assim, havia uma constante alternância entre ser alguém e ser ninguém. No início
havia a predominância deste último, como se ela fosse apenas alopecia areata. Ao longo da
análise esta predominância tornou-se menos significativa.
Flora descrevia que a ausência dos pêlos lhe deixava completamente sem defesas:
os cabelos a cobriam, os cílios evitavam a entrada da poeira, os pêlos nas narinas impediam
o escorregar das secreções, assim como os pêlos pubianos escondiam o genital. No entanto,
apesar da alopecia areata universal tomar a totalidade do corpo, Flora trazia como aspecto
central o sofrimento pela queda dos cabelos.
Era esta a forma como Flora se relacionava com o mundo: sem defesas. Quando as
pessoas lhe diziam algo que não gostava, “engolia os sapos”. Acreditava que falar sobre o
seu desejo para o outro poderia provocar estragos “animais”, pois só conseguia fazê-lo
“soltando os bichos”. Assim, permanecia como um bichinho indefeso. Revelava, portanto,
os contrastes e os excessos: era tudo ou nada, era animal ou totalmente assujeitada.
Do padecimento inicial, Flora foi resgatada pelo enigma provocado pela alopecia,
buscando uma teoria para compreendê-la. Nesta tentativa de formulação, endereçou a sua
questão à analista e se pôs a falar.
Como abordamos anteriormente, o inconsciente é uma cadeia significante em ato
que só adquire existência na presença de um outro sujeito que reconheça a sua produção.
Assim, por meio da escuta, o analista reconhece o ato do inconsciente do analisando,
estabelecendo uma transferência que por meio da linguagem possibilita a análise.
95
Nesta implicação de uma escuta engajada, o analista produz um efeito na escuta do
analisando tornando-o capaz de reconhecer o valor significante do seu sintoma.
Flora buscou inúmeras teorias para tentar compreender a origem da alopecia areata.
A procura por um sentido mobilizou a articulação das cadeias significantes.
Como descrevemos no capítulo 2, Flora interpretou a manifestação deste fenômeno
como uma autopunição por ter deixado de ser desejada pelo namorado e por ter roubado
dinheiro da mãe. Assim, o seu castigo seria a privação dos cabelos que considerava o seu
único instrumento de sedução.
Associou a alopecia como conseqüência da briga que teve com a mãe e o irmão,
onde se sentiu paralisada por um emaranhado de afetos: culpa, exclusão, desamparo,
indignação, raiva, vergonha, ódio, excesso.
Cogitou a hipótese da alopecia ter sido provocada pelo uso de produtos químicos
para alisar os cabelos, sendo a mesma “descartada” após ter falado com o fornecedor.
Mantendo a fluidez da cadeia significante, e portanto sustentando e assegurando a
mobilidade da repetição, a analista pôde reconhecer que Flora vive o medo de ser
“descartada”, o que a impede de sustentar um lugar. A paciente diz preferir não ser olhada
pelos homens para não correr o risco de deixar de ser desejada. Ao final de cada sessão
sempre confirma sobre o horário da próxima sessão, como se não tivesse um horário
acordado. A falta de uma definição e o medo da separação estão constantemente presentes
no discurso de Flora.
Na vivência clínica, notou-se que embora Flora tomasse a alopecia como um
sintoma decifrável, buscando a emergência de um sentido através da articulação da cadeia
significante, as interpretações não pareciam provocar nenhum deslocamento na
manifestação somática apresentada.
Conforme abordamos no capítulo sobre o corpo simbólico, o sintoma analítico é
uma metáfora significante, ou seja, uma substituição de um significante recalcado por um
outro significante, portanto, regido pelas leis da linguagem.
A constatação obtida pela analista nos levou a pensar na hipótese de não se tratar de
um sintoma metafórico, embora Flora buscasse de inúmeras formas interpretá-lo, pois
parecia não haver uma consistência da cadeia que permitisse uma significação decifrável.
96
Parecia não existir uma substituição significante que pudesse ser decifrada numa análise de
linguagem, já que a alopecia insistia em se mostrar não estruturada como uma linguagem.
Esta constatação nos obrigou a buscar respostas para o avanço desta questão. A
brecha encontrada pela analista surgiu a partir da transferência, quando deparou-se com
uma sensação de fusão, como se houvesse uma fixação do olhar da analista na alopecia de
Flora. Parecia que naquele local, na careca de Flora, não havia a expressão de um
significante inserido numa seqüência de linguagem, mas uma manifestação do Real do
organismo, pois a alopecia mostrava-se como uma imagem fascinante que siderava,
aprisionando o olhar.
O discurso de Flora também se mostrava refém do efeito provocado pela alopecia,
pois tudo parecia convergir para a queda dos cabelos, como se houvesse uma cristalização
que estagnava o sistema significante.
Lacan
138
denomina holófrase a ausência da dimensão metafórica, a solidificação do
casal de significantes que impede que um significante possa vir no lugar de outro, já que
ocupam o mesmo lugar. Deter-nos-emos por um momento sobre este conceito.
A partir da interpretação da argumentação de Alexandre Stevens
139
sobre o trabalho
conceitual de Lacan sobre a holófrase, Vorcaro
140
apresenta que no século XVIII as
especulações a respeito da origem da linguagem estavam voltadas para o aspecto de que as
fontes da linguagem seriam os gestos imitativos e os gritos naturais. No século seguinte, os
evolucionistas como Lamarck e Darwin comparavam estruturas e elementos na tentativa de
explicar a evolução do animal ao homem, considerando o desenvolvimento de gritos
animais sob forma de interjeições humanas, imitações de barulhos da natureza sob forma de
onomatopéias, como se houvesse uma continuidade entre a natureza e a cultura. Neste
sentido, a holófrase era uma denominação que:
...apontaria o estágio intermediário entre o grito expressivo do animal e a linguagem
humana, destacada pela percepção de uma situação global à qual um signo seria associado, e
cujo sentido seria dado por essa situação tomada no seu conjunto. Tal signo seria, ao mesmo
tempo, natural e cultural. Muitos lingüistas reconheceram esse estágio holofrásico na
138
LACAN, Jacques (1964). O Seminário. Livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Op.
Cit.
139
STEVENS, Alexandre. L’holophrase, entre psychose et psychosomatique. Ornicar?, Paris, Champ
freudien, n. 42, p. 45-79. 1987.
140
VORCARO, Ângela. Crianças na psicanálise: clínica, instituição, laço social. Op. Cit.
97
linguagem da criança, na qual onomatopéia, interjeições, esforços musculares e o canto
adquiririam sua significação devido à situação de conjunto.
141
Stevens aponta, segundo Vorcaro, que Lacan se opõe a esta teoria, uma vez que
considera que o imaginário do animal não faz significante, como abordamos no capítulo
anterior. Para Lacan, o domínio simbólico não está numa relação de sucessão imediata com
o domínio imaginário. No sujeito de linguagem, a inadequação imaginária destaca-se
justamente pela submissão do imaginário ao simbólico. Sendo assim, a holófrase não seria
a passagem entre o grito animal e o significante da linguagem.
...se o grito animal toma uma função particular em relação à imagem, longe de se misturar
ao mundo do símbolo, é cativado pela situação real. A palavra não substitui a coisa. Ela a
funda, torna-a presente sob o fundo da ausência, ela a transforma. O símbolo só vale
organizado num mundo de símbolos, como parte da significação determinada pela relação
de oposição entre significantes. Assim, Lacan inverte a problemática da origem. Ele dirá
que, na origem, há a regra do jogo, a ordem simbólica, de onde as outras ordens imaginária
e real tomam seu lugar e se ordenam.
Portanto, só se pode dar valor à holófrase num tecido simbólico existente. As
holófrases são frases ou expressões independentemente de terem ou não estrutura sintática,
já que são tomadas numa estrutura de linguagem. O que importa nelas é seu caráter o
decomponível
142
.
143
Assim, Lacan afirma que por mais solidificado que seja o significante, este não se
reduz ao instintual.
Vorcaro refere que no seminário 11, Lacan estabelece que no fenômeno
psicossomático há a solidificação do casal de significantes que designa a holófrase,
implicando a suspensão da função do significante como tal, não sendo decomponível, pois
não se inscreve na cadeia significante.
Como abordamos no item 3.1, Lacan propõe dois processos fundamentais para a
constituição do sujeito na linguagem: alienação e separação. Vorcaro afirma que na
holófrase, estas operações podem ser disjuntas, já que a separação pode não ter incidido:
A solidificação holofrásica concerne o processo de alienação: o sujeito só pode
aparecer no campo do Outro representado por um significante, que faz surgir sua
significação, reduzindo-o a não ser senão um significante representado para outro
significante, ou seja, afanisado. Se o casal de significantes é holofraseado, então a relação da
significação do sujeito à sua afânise se encontra modificada: o sujeito não aparece como
141
Ibidem, p. 30-31.
142
Grifo nosso.
143
Ibidem, p. 31.
98
falta, mas como monolito cuja significação se iguala à mensagem enunciada, o sujeito já é
dado na mensagem.
Enquanto a solidificação do casal primitivo de significantes concerne à alienação, a
ausência de intervalo entre S1 e S2 concerne à separação. Nesse intervalo, o desejo do Outro
seria interrogável, condição para a constituição de seu desejo, situado nessa articulação
como falha, intervalo, falta no Outro. O desejo se articula do recobrimento de duas faltas: do
Outro, que introduz ao sujeito a questão do desejo e aquela pela qual o sujeito responde a
essa falta no Outro com sua própria falta, engendrada na alienação. Na ausência de intervalo
entre S1 e S2, o desejo do Outro não aparece ao sujeito na falha em que ele seria
interrogável, mas como um gozo do Outro cujo objeto é o sujeito.
144
Assim, se como resultado das operações lógicas e simultâneas da alienação e
separação não há o surgimento do sujeito desejante, faltará também o elemento necessário
para que se dê o intervalo entre S1 e S2, ocorrendo a holófrase. Ao dizer que o sujeito fica
como objeto do gozo do Outro, Vorcaro nos fornece a compreensão de Lacan sobre a
psicose. Nesta perspectiva, poderíamos pensar que nas manifestações páticas na vertente
somática, num paralelo com a psicose, haveria a inscrição do órgão como objeto do gozo
do Outro? A alopecia areata seria o objeto que não se separou do campo do Outro?
Desenvolveremos esta questão ao longo deste capítulo.
Lacan aponta no Seminário 11 que:
A psicossomática é algo que não é um significante, mas que, mesmo assim, só é
concebível na medida em que a indução significante, no nível do sujeito, se passou de
maneira que não põe em jogo a afânise do sujeito.
145
Como vimos, a afânise do sujeito é uma condição para que se produza o intervalo
entre o primeiro par de significantes. Neste sentido, não havendo a afânise, os significantes
ficariam holofraseados.
Vorcaro explica que na psicose, uma vez que o sujeito encarna a falta no Outro
preenchendo o intervalo entre significantes e impedindo a abertura dialética, não advém
sujeito desejante.
Embora realizemos um paralelo com a psicose, sabemos que as manifestações
páticas na vertente somática independem da estrutura subjetiva. Sendo assim, uma outra
questão nos é trazida: Como é possível manter conservada a articulação com o desejo
apesar de não ter ocorrido a afânise do sujeito?
144
Ibidem, p. 33-34.
145
LACAN, Jacques (1964). O Seminário. Livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Op.
Cit. p. 215.
99
Infante
146
responde a esta questão sugerindo que a diferença entre a psicose e o
fenômeno psicossomático se dá pelo momento lógico em que ocorre a holófrase. Considera
que no fenômeno psicossomático a holófrase incide no momento lógico anterior à
estruturação da posição subjetiva não comprometendo a sua condição desejante, não
impedindo que num momento posterior haja uma inscrição que possibilite a constituição de
um sujeito neurótico, psicótico ou perverso, enquanto na psicose a incidência da holófrase
se dá na metáfora paterna no momento lógico em que ocorre a escolha da posição de desejo
do sujeito. Neste sentido, sustenta ainda que o fenômeno psicossomático é mais primitivo,
anterior lógica e cronologicamente à constituição do sujeito do desejo.
Infante localiza a origem do substrato da causalidade psíquica para o fenômeno
psicossomático no momento de incorporação simbólica, momento de inscrição pulsional
que, como abordamos no item 3.1, é considerado pelo autor uma fase pré-subjetiva. Neste
momento, a função eminentemente simbólica exercida pela mãe é de extrema importância
para a organização da gramática pulsional, que é promovida por intermédio de ações como:
supor um sujeito no bebê, tomar o grito deste como apelo à sua presença ou ausência e
interpretar. No capítulo 3, vimos que Vorcaro considera que a matriz simbolizante é
estabelecida de acordo com a temporalidade da resposta maternante (ausência e presença
simbólicas), uma vez que o estado de tensão ou de apaziguamento remete-se ao estado de
apaziguamento ou de tensão, permitindo o advento da antecipação de um termo por aquele
outro termo que será substituído. Quando a antecipação já esperada não se constata, a
quebra da substituição alternante é vivida pelo ser como incidência do real nessa matriz
simbolizante e a experiência de satisfação é situada. Com isso, o “engajamento, em sua
recuperação, mobiliza a atividade pulsional em que a manifestação do ser torna-se apelo ao
retorno do seu cerne perdido”
147
.
Infante considera que no fenômeno psicossomático há uma ausência da inscrição
pulsional em função da ausência da alternância materna (uma mãe simbólica só presença ou
só ausência), não possibilitando a extração do objeto. Nesta perspectiva, supõe que no
fenômeno psicossomático o próprio corpo se inscreveria com sua carne para fazer
equivalência com o objeto a.
146
INFANTE, Domingos. Seminário sobre psicossomática realizado no dia 29 de abril de 1996.
147
VORCARO, Ângela. Crianças na psicanálise: clínica, instituição, laço social. Op. Cit., p. 56-57.
100
Nasio contribui para esta questão, através do conceito de realidade, considerando
que o fenômeno psicossomático é uma criação de uma realidade nova e estritamente local.
O autor constrói a formulação de que a realidade é a montagem das dimensões imaginárias
e simbólicas, ou seja, um complexo de imagens e de significantes que adquirem
consistência em torno do umbigo do Real. Partindo da noção de que não há uma realidade
global, mas uma multiplicidade de realidades, afirma que esta noção oferece uma saída para
a compreensão dos fenômenos locais como o fenômeno psicossomático.
Aponta, ainda, que no fenômeno psicossomático há a criação de uma nova
realidade, uma realidade que muda de consistência, uma vez que o Real se apossa da
realidade toda. Distingue o Real da realidade ao dizer que o Real é aquilo que não muda,
enquanto a realidade é mutável, pulsátil, que se abre com uma palavra, com um ato, e se
fecha com algo que se perde e, por isso, diferentemente do Real, é local.
Baseado na teoria lacaniana, Nasio sustenta que esta mudança da consistência da
realidade no fenômeno psicossomático ocorre devido ao mecanismo da foraclusão
148
local:
...o sintoma, como, por exemplo, o estreitamento histérico do campo visual, é o substituto
(S1), no corpo, de uma representação recalcada no inconsciente (S2). Diremos que, na
formação de um sintoma neurótico, a articulação significante S1/S2 é mantida.
Inversamente, a lesão orgânica, como, aliás, todas as outras formações do objeto a, com
exceção da fantasia, resulta de um mecanismo de foraclusão. Ou seja, nesse caso, nenhum
substituto (S1) da representação recalcada (S2) advém onde era esperado. E, por,
conseguinte, não há nem metáfora nem cadeia simbólica. A relação de um significante (S1)
com outro (S2), nesse caso é rompida. É como se, na foraclusão, o significante não mais
fosse destinado a outros significantes, como se os significantes já não se articulassem entre
si. A partícula “para”, da fórmula lacaniana “Um significante representa o sujeito para
outros significantes”, é abolida na foraclusão, e o vínculo significante se desfaz.
149
A foraclusão é o mecanismo presente na holófrase, ou seja, o congelamento dos
significantes ocorre em função da foraclusão de um significante do simbólico que não se
inscreve na cadeia e retorna no Real. A contribuição de Nasio é a ênfase dada ao aspecto
local da foraclusão para explicar o fenômeno psicossomático. Seguindo este pensamento,
148
Segundo Roudinesco, foraclusão é “conceito forjado por Jacques Lacan para designar um mecanismo
específico da psicose, através do qual se produz a rejeição de um significante fundamental para fora do
universo simbólico. Quando essa rejeição se produz, o significante é foracluído. Não é integrado no
inconsciente, como no recalque, e retorna sob forma alucinatória no real do sujeito.” Cf.
ROUDINESCO,
Elisabeth; PLON, Michel. Dicionário de psicanálise. Op. Cit.
149
NASIO, Juan-David. Cinco lições sobre a teoria de Jacques Lacan.Tradução por Vera Ribeiro. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1993. p.164-165.
101
inferimos que no caso Flora a alopecia areata seria uma irrupção no Real fruto do
mecanismo da forclusão local, que ocorreu nesta determinada realidade, neste órgão
afetado. Com a foraclusão, há a aglutinação do S1-S2, não permitindo a escanção
necessária para que o sujeito possa se representar.
Quando digo que a foraclusão do Nome-do-Pai é o mecanismo de uma lesão de
órgão, não significa que a realidade seja caótica e que o sujeito seja psicótico. Vocês bem o
percebem, eu localizo a foraclusão (...) Destaco assim, como Freud o fazia, um mecanismo
que não exclui os outros: pode haver uma foraclusão do Nome-do-Pai que provoque uma
lesão de órgão, o que não exclui que haja recalcamento, denegação etc..Em outros termos,
falar da foraclusão como mecanismo local é uma maneira de dizer, ainda, que a realidade
que nós abordamos, a da lesão de órgão, é uma realidade local.
150
Este pensamento de Nasio pode ser articulado à idéia de Infante no sentido de
foraclusão local poder ser pensada como estando associada a um dado momento lógico e,
dentro desse momento lógico, de forma pontual. Assim, poderíamos inferir que a
foraclusão na manifestação pática na vertente somática ocorreria no momento lógico
referente à organização pulsional, numa fase pré-subjetiva (onde o sujeito é “contado” e
não contador), de forma local, comprometendo algumas funções corporais onde a inscrição
pulsional não ocorreu.
A sideração do olhar na transferência provocada pela imagem da ausência total de
pêlos no corpo e a impossibilidade de Flora de separar-se desse olhar por intermédio da fala
confirmam estas formulações, como se na ausência do simbólico o Real do corpo invadisse
o setting analítico com suas imagens, sem que houvesse uma determinação simbólica que
permitisse uma separação. Esta consistência da realidade observada na vivência clínica nos
remeteu à lógica do pensar de Lacan descrito no capítulo “A tópica do imaginário”
151
, onde
o mesmo refere que sem os três sistemas de referência (Real, Simbólico e Imaginário), não
é possível compreender a técnica e a experiência freudianas, uma vez que muitas
dificuldades se justificam e se esclarecem por meio desta distinção.
Como abordamos na Introdução, foi assim que a nossa investigação ganhou um
outro sentido, fazendo-nos retomar a leitura de Freud, resgatando em sua obra estas três
150
Ibidem, p. 60.
151
LACAN, Jacques (1953-1954). O Seminário.Livro 1. Os escritos técnicos de Freud. Op. Cit.
102
dimensões, como uma forma de construirmos uma referência para articulá-la à nossa
vivência clínica num processo de ressignificação.
Demonstraremos, a seguir, como foi desenrolando o pensamento desta articulação
no caso Flora.
Flora traz, em seu discurso, que nunca teve um olhar que lhe oferecesse uma
posição definida. Quando nasceu, o olhar da mãe estava voltado para a paralisia do filho,
enquanto o pai se recuperava da frustração de ter tido um filho deficiente. O irmão de Flora
parecia ocupar o lugar de objeto do desejo da mãe onde o pai pouco intervinha. Flora
buscou se adaptar ao desejo paterno na busca de um lugar, encontrando um olhar paterno
sem limites.
Como desenvolvemos ao longo desta dissertação, o sujeito se constitui a partir de
duas alteridades: simbólica e imaginária, havendo a subordinação do imaginário ao
simbólico. Partindo desta alteridade, abordamos que o Outro, no desenrolar dos três
tempos, situa o sujeito numa certa ordem que determina uma sucessão regular de gerações,
dando-lhe uma filiação. Nesta lógica, o significante Nome-do-Pai
152
tem a função de
manter vivo o desejo da mãe, intervindo junto ao filho como privador dela, dando a
possibilidade de que o desejo da mãe seja significado. O significante Nome-do-Pai, ao lhe
dar um nome, encarna a lei que dará origem ao ideal do eu no filho, permitindo a este uma
identidade.
Como pudemos observar no discurso de Flora, as posições ocupadas de cada sujeito
não deixam claras as interdições e possibilidades implicadas. Embora Flora nos mostre que
a metáfora paterna produziu um corte que lhe possibilitou um posicionamento neurótico,
notamos que não há uma definição de lugares, uma vez que a mãe mantém uma satisfação
com a paralisia do filho, enquanto ela fica à mercê do excesso paterno. Uma vez que o
Outro tem um caráter importante na organização da gramática pulsional do sujeito, este
contexto vivido por Flora nos provocou a indagação: Como se deu a alternância do Outro
no momento de inscrição pulsional de Flora?
Como enfatizamos, a consistência imaginária se dá por subordinação à ordem
simbólica, pois o reconhecimento não-demandado da Urbild da imagem especular que abre
152
Termo criado por Jacques Lacan em 1953 e conceituado em 1956, para designar o significante da função
paterna. Cf. Roudinesco, Élisabeth, Plon, Michel. Dicionário de psicanálise. Op. Cit.
103
a possibilidade da instauração da imagem especular propriamente dita se forma no olhar do
Outro. Assim, pensando na articulação dos três registros, é esperado que diante deste
cenário o imaginário também ganhe uma consistência específica.
Flora manifestava a certeza de que as pessoas sabiam o que ela pensava,
demonstrando a mesma certeza acerca do pensamento das pessoas. Utilizava frases como:
“fulana não deveria dizer tal coisa, porque sabe que isto me machuca”; “fulana fez isto para
me cutucar, porque sabe que eu não gosto de tal coisa”; “eu não olhei para ciclano, porque
ele sabia o que eu estava pensando”; “tal pessoa fez um determinado comentário porque
sabe que eu não tenho cabelos”; “fulana pensa desta maneira”; “ciclano me olhou de tal
forma tentando saber se eu uso peruca”; “odeio o olhar investigativo das pessoas, querendo
descobrir porque eu pinto minhas sobrancelhas, porque eu uso maquiagem”. Qualquer
intervenção nestas falas parecia não surtir nenhum efeito, como se não houvesse
possibilidade de dialetização. Tratava-se de um discurso mergulhado num transitivismo,
onde não há diferenciação entre eu-outro.
Como demonstramos anteriormente, o imaginário é correlato da expressão estádio
do espelho, que designa uma relação dual com a imagem do semelhante. Nessa fase, a
criança apresenta reações emocionais diante do seu semelhante, tais como a impotência e
ostentação, relacionadas à identificação com o outro, por meio da fixação de uma imagem
que o aliena em si mesmo, que precipita uma rivalidade agressiva, imaginária, infinita, só
encontrando uma saída frente a este impasse por intervenção do Outro simbólico.
Flora parecia estar presa nesta dinâmica, aprisionada no espelho. Na relação com o
outro, identificava-se com a imagem que o olhar deste refletia, com a certeza de que o olhar
revelava o horror e, assim, buscava eliminar o outro para livrar-se da sua própria imagem.
Um ataque à própria imagem refletida no olhar do outro, numa batalha infinita.
Durante um longo tempo, o transitivismo imperou na transferência, materializando-
se no discurso de Flora, mas numa determinada sessão ela traz uma brecha através de um
episódio vivido: contou que na escola sempre se sentia incomodada pelo fato de uma garota
olhar-la de modo “investigativo”, com a certeza de que essa sabia sobre a sua doença e por
isso a olhava com uma insuportável curiosidade. No dia anterior à sessão, Flora ficou
surpresa ao constatar que a garota não sabia sobre a sua doença e a olhava por admirar a sua
vaidade, uma vez que Flora sempre estava maquiada.
104
Esta constatação foi o início de uma possibilidade de dialetização, uma abertura
para o desejo do Outro, pois Flora percebeu que poderia se equivocar.
Este tema insistiu nas sessões seguintes na busca por palavras que pudessem
contornar o seu pathos. Nessa procura incessante, o encontro com o significante
“extensão”, produziu-lhe um efeito de sentido:
“Parece que existe uma extensão entre mim e a outra pessoa, como se a outra pessoa
sempre soubesse o que eu estou pensando... Assim, se ela faz algo que não me agrada, acho
que é um ataque, porque já que ela sabe como eu penso, estaria fazendo propositalmente...”
O significante “extensão” foi retomado durante várias sessões, alcançando outros
sentidos:
“Será que a tal da extensão de novo está presente aqui, quando eu me sinto invadida
pelo olhar dos homens, como se eu não pudesse esconder os meus pensamentos deles?”
“Eu me afasto dos homens porque parece que eu tenho uma certeza de que eles
sabem que eu tenho alopecia e por isto me rejeitarão, como se um fosse a extensão do
outro.”
O encontro com este significante possibilitou uma abertura para a separação, como
se Flora pudesse olhar para a cena a partir de um outro lugar, “de fora”, saindo do estado de
alienação em que se encontrava. No entanto, notamos que o avanço simbólico neste caso é
constituído por retrocessos e estagnações longas, revelando-nos uma dificuldade no
processo de separação simbólica. Constatamos que a alopecia termina por mantê-la refém
deste cenário, já que o olhar fixado do Outro reafirma suas convicções: o Outro goza com o
seu órgão. Assim, o órgão fica impossibilitado de se separar do campo do Outro.
Neste sentido, como havíamos abordado anteriormente, parece haver uma
foraclusão local de um significante do simbólico, mantendo o órgão como objeto do gozo
do Outro.
Mas por que Flora se mantém refém do olhar do Outro?
No capítulo sobre o real do corpo falamos sobre o conceito de pulsão de morte, de
Freud, que não é representado, mantendo-se no nível da coisa, na ordem do Real, inefável,
além do princípio do prazer. Apontamos o conceito de gozo de Lacan como pertencendo a
um estado que fica além do prazer. Aprendemos que o corpo goza porque está submetido
pela linguagem, mas faz-se ouvir por atos cegos, fora das palavras. Assim, quando o gozo
105
domina, o sujeito é puro corpo, mantendo alienado-se dos pensamentos, mostrando que o
sujeito está excluído do gozo. Com isso inferimos que o gozo, embora não seja
representado, apresenta-se, manifesta-se, revira o sujeito sem que ele perceba onde.
Ao longo da análise, pudemos reconhecer que além do cenário de vitimização
apresentado por Flora, onde a mesma goza por meio da vivência de estar sendo maltratada,
“descartada” pelo Outro, havia um gozo no fascínio que ela exercia sob o olhar do Outro a
partir da alopecia, levando-nos à conclusão de que este fenômeno apresenta um caráter de
dar-se a ver para o Outro.
O reconhecimento deste efeito abriu-nos a possibilidade de investigar acerca do
gozo específico implicado na alopecia areata de Flora.
Benoît,
153
na sua investigação sobre a lesão de órgão, afirma que esta é um objeto.
Flora nos revela que a alopecia trata-se de um objeto para ser visto, um objeto de
mostração.
Resta-nos desenvolver qual o estatuto deste objeto que resulta do rompimento da
articulação do Real, Simbólico e Imaginário no órgão afetado.
Como abordamos no capítulo 3, os objetos da pulsão constituem-se com a divisão
produzida pela ação simbólica. O corte produzido pelo significante Nome-do-Pai possibilita
a perda do objeto mítico, marcando a falta fundamental para o advento do sujeito desejante,
que se lançará numa busca incessante para reencontrar o objeto supostamente perdido por
meio de objetos substitutos. Sabemos, no entanto, que resta ao sujeito as satisfações
parciais, uma vez que o gozo absoluto é impossível para o sujeito de linguagem.
Aprendemos em nossa pesquisa que Lacan utiliza o conceito de objeto a, objeto
causa do desejo, para conceituar o objeto da pulsão, considerando o objeto a uma amostra
de gozo, um gozo residual que regula a relação que o sujeito mantém com o gozo infinito,
promovendo uma distância entre eles.
Como apontamos, é pelo efeito da fala que o objeto se separa do campo do Outro,
transformando-se num objeto mítico. A cada objeto extraído, reatualiza-se que o sujeito é
habitado pela linguagem. No entanto, este objeto não pertence nem ao sujeito, nem ao
outro, permanecendo na intersecção dos dois campos. Assim, o sujeito passa a possuir
153
NASIO, Juan-David. Psicossomática. As formações do objeto a. J-D Nasio, com intervenções de Pierre
Benoît e Jean Guir.Tradução por Felipe Leclerq em colaboração com Miguel Kertzman. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1993.
106
imaginariamente uma parte do corpo do Outro, da mesma forma que se identifica com o
objeto na estruturação da fantasia.
Podemos inferir, portanto, que a perda do objeto possibilita a consistência da cadeia
significante, uma vez que dando origem a um furo na estrutura permite a sua
movimentação. A força residual que mantém o furo já foi trabalhada no item 3.3, pelo
conceito de mais-gozar.
Na alopecia de Flora, como já descrevemos, não há a articulação da cadeia
significante devido à foraclusão do Nome-do-Pai no órgão afetado. Assim, o efeito de fusão
vivenciado na clínica, denuncia a ausência de uma distância possível entre o gozo local
relativo ao objeto e o gozo absoluto.
Nasio considera as lesões orgânicas como sendo formações de objeto a, afirmando
que nessas lesões, a filiação do Nome-do-Pai que ocorre através dos encadeamentos
significantes é substituída pela filiação do objeto que circula no nível do órgão lesado.
É um deslocamento, uma transmissão fantasística de um corpo a outro dentro de uma
mesma linhagem. Isto é, que o objeto extraído do corpo de um sujeito, desloca-se e enxerta-
se no corpo de um outro. (...) Digamos melhor que a lesão de órgão é o objeto único que
fecha a realidade de um entre-dois pulsional.
154
Nasio sustenta que o órgão atingido pela lesão funciona como um órgão roubado do
campo do Outro, gozando como se pertencesse a este, como um enxerto imaginário.
O discurso de Flora nos faz reconhecer que por meio da alopecia, que interpretamos
como uma manifestação do Real do organismo em função da foraclusão do simbólico no
órgão afetado, ela mantém o Outro aprisionado pelo olhar, dando uma consistência
imaginária ao desejo do Outro oferecendo o órgão como objeto tamponador de sua falta,
como um equivalente do objeto a. Sabemos que com relação ao desejo do Outro, nada
sabemos, pois é impossível apreendê-lo, não havendo um objeto capaz de satisfazê-lo por
completo. No entanto, por meio da alopecia, Flora imagina poder controlar este desejo.
Através da alopecia, Flora diz ter certeza do que o Outro quer dela. Assim, a alopecia se
mantém como objeto que não se separa do campo do Outro, um objeto “extensão” que a faz
não se deparar com a sua divisão.
154
Ibidem, p.66.
107
Freud inclinava-se em apresentar como típico da natureza humana o fato de que o Eu
sempre está além das suas escolhas de objeto, ou melhor, que suas escolhas de objeto estão
sempre em contratempo com o Eu - sempre há uma distância. E Lacan não propunha nada
mais do que isso - a distância da qual acabo de falar entre o Eu e a imagem é exatamente da
mesma ordem: em lugar de uma distância traumática, é uma distância que fundamenta toda
a estrutura psíquica, e não somente no nível imaginário onde a distância é a condição
necessária para se pensar os fenômenos da paranóia ou a lesão de órgão, por exemplo. Com
efeito, esta distância explica, fundamenta, dá lugar à castração: que é a castração senão o
fato de que a criança não está capacitada a tolerar o desejo do Outro? Isso quer dizer que
para nós, não é possível tolerar o desejo do Outro: a criança não tem um órgão ou uma
cabeça suficiente para responder ao desejo da mãe. Ela não pode, é impotente e simboliza,
põe significantes no lugar. Isto é a castração: colocar palavras no lugar de um órgão incapaz
de responder ao desejo do Outro. Não trepa com a mãe, mas diz: “eu te amo”. Amar é uma
maneira já extrema de simbolizar, inventar uma solução, uma saída para a impotência, para
o impasse. Este esquema, o significante nascido do impasse, é constante, permanente, em
toda a teoria lacaniana, e eu diria freudiana também. Em outros termos, a castração é o fato
de simbolizar cada vez que o corpo não responde. O exemplo maior desta simbolização é o
falo: no lugar do órgão peniano, há o significante fálico. O processo de simbolização do falo
aplica-se como um molde a todos os objetos que têm a ver com o corpo - a castração é dizer
e se enganar, aí onde não se pode fazer.
155
Neste sentido, compreendemos a manifestação de Flora não como um déficit, mas
como uma produção em que o órgão responde como objeto do Outro, em vez de colocar
palavras no lugar. Como pudemos observar no discurso de Flora, há uma resistência ao
equívoco, como se não houvesse intermediação do desejo do Outro que possibilitaria a
divisão do sujeito.
Pensando na lesão como uma produção e não como um déficit, Nasio propõe o
pensamento de que a lesão de órgão é uma forma de gozo local, onde o sujeito encontra
uma saída frente ao gozo absoluto, mítico, considerando que o melhor obstáculo contra o
gozo é gozar parcialmente.
Guir
156
descreve as alopecias como fenômenos psicossomáticos imediatamente
acessíveis à observação. Interpreta que eles ocorrem pela perda de identidade simbólica do
sujeito que é preenchida por uma marca que o leva a se submeter corporalmente,
nomeando-se para os outros por sua lesão. Guir acredita, portanto, que há a implicação do
nome patronímico do sujeito como abordado por Nasio através do conceito de foraclusão
do significante Nome-do-Pai de Lacan.
Guir aponta a origem deste fenômeno na relação entre a mãe e a criança nos
primeiros meses de vida:
155
Ibidem, p. 108.
156
GUIR, Jean (1983). A psicossomática na clínica lacaniana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.
108
Sabe-se que, antes dos seis meses, a criança ainda tem de seu corpo uma imagem
despedaçada. Suas relações objetais, ou seja, com um outro diferenciado dela mesma, não
estão ainda estabelecidas. A partir dos seis meses e até os 18 meses a imagem do corpo se
determina e o estádio do espelho esboça a evolução do recém-nascido em direção à
autonomia e à sua posição de sujeito, que ele afirmará mais tarde dizendo “eu” (...) uma
evocação deste período de maturação deficiente da infância deve acarretar as lesões. Este
desdobramento “orgânico” terá por efeito atrair e fixar a atenção do meio, permitindo ao
sujeito observar os outros olhando-o. Função de logro e ponto de focalização, mais
radicalmente, de “mancha cega” para os outros, a marca na face permite evitar o cruzamento
dos olhares e assegura, ao portador da afecção, um domínio sobre a imagem do outro.
Precisemos, depois de pesquisa junto a dermatologistas, que os cegos de nascimento são
praticamente imunes a este gênero de afecções, o que permite afirmar que a imagem do
outro está implicada neste processo.
157
Este domínio sobre a imagem do outro é também confirmada pela importância dada
ao olhar. Flora fica paralisada diante do olhar do Outro, não o escutando, não fazendo uso
da palavra que poderia promover uma ação simbólica que a resgatasse da sua fantasia
imaginária.
Guir propõe uma dinâmica nos fenômenos psicossomáticos, desdobrada em três
tempos: 1) uma separação de um ente querido; 2) um conjunto de significantes particulares
que relembram a separação ao sujeito; e 3) o aparecimento da lesão após o segundo tempo.
A separação referida na infância, com freqüência, se situa, justamente, no momento
da amamentação, quando, à demanda do Outro, o sujeito não responde com um desejo, mas
com uma necessidade. Assim, como no cão de Pavlov, esta necessidade é desencadeada e
“alimentada” pelos significantes impostos pelo Outro. Dentro deste contexto, o ponto
particular é que o primeiro traumatismo parece não ter sido dialetizado; o ato da separação
deixa uma impressão como indução significante, que não é notada pelo sujeito. Assim que
um real exterior lhe recorda esta impressão não integrada, ele fica doente.
158
Como desenvolvemos anteriormente, a holófrase é efeito da ausência da operação
da separação simbólica produzido pela significante Nome-do-Pai que dá ao sujeito uma
filiação. Guir reafirma este raciocínio dizendo que no fenômeno psicossomático há “a
ausência de ancoramento simbólico do sujeito dentro de sua linhagem”.
Flora transmite a sensação de ser estrangeira no seu próprio corpo desde as
primeiras percepções da infância. Assim, parece que por não ter tido um lugar próprio, não
encontrou também um olhar que lhe oferecesse uma imagem de si. Vive constantemente
157
Ibidem, p. 81-82.
158
Ibidem, p. 34.
109
com a dúvida entre o belo e o feio, entre o certo e o errado, como se as interdições e
possibilidades não tivessem contornos definidos. Flora traz o intenso conflito entre o prazer
e a proibição, entre ser sujeito e objeto, repetindo compulsivamente não saber sobre a lei.
Sem um norte, Flora fica aprisionada no campo dos ideais, no engodo imaginário.
Como abordamos anteriormente por meio do conceito de narcisismo, a integração
do eu se faz pela identificação a uma imagem corporal que confere uma unidade fundante
ao sujeito, imagem esta fruto da revivescência do narcisismo dos pais. No entanto, para que
haja o desenvolvimento do eu é necessário um afastamento deste narcisismo primário, pelo
deslocamento da libido para um ideal do eu “imposto de fora”, ou seja, por meio de uma
operação simbólica. Paradoxalmente, esta ação simbólica ocorrerá de acordo com as
marcas simbólicas preexistentes ao sujeito, ou melhor, a filiação simbólica.
Como já tratamos anteriormente, Lacan aponta que para se ter visão da imagem real
é necessário que a posição do olho esteja situada dentro de um campo, ou seja, dá ênfase à
subordinação do imaginário ao simbólico. Sugerimos que a transitividade tão presente nas
sessões de Flora seja resultado dessa impossibilidade de separação simbólica, fruto da
“ausência do ancoramento simbólico dentro de sua linhagem apontada por Guir.
A partir da escuta de Flora, interpretamos que a irrupção de sua alopecia ocorreu
quando foi intimada a responder a uma vivência de separação. Inferimos que em função da
ausência de um significante que pudesse responder, uma vez que se encontrava foracluído,
a saída encontrada por Flora foi submeter-se corporalmente, nomeando-se para os outros
por sua lesão. Na impossibilidade de responder simbolicamente, Flora respondeu no Real
do organismo. Este fator desencadeante parece reafirmar que a tentativa de ocupar um lugar
não parece estar fundada sobre a identificação de um traço, mas sobre a identidade da
aparência
159
.
Reafirmamos a nossa hipótese de que por meio da alopecia Flora parece ganhar o
olhar da mãe ausente e paralisada.
Frente à psicopatologia de Flora, a direção do tratamento foi pensada numa aposta
em que, por meio da transferência, pudesse haver a ressignificação deste Outro na
159
Esta diferença entre identificação a um traço e identidade da aparência foi abordada por Valentin
Nusinovici no artigo Sobre o desencadeamento e a evolução da retocolite hemorrágica e da doença de Crohn.
Cf. Nusinovici, Valentin. Sobre o desencadeamento e a evolução da retocolite hemorrágica e da doença de
Crohn. In: Coisa de Criança. Salvador: Álgama, 1991. (Psicanálise da Criança)
110
implicação com seu desejo, através do efeito da escuta, operando com isto um caráter
simbólico.
111
CONCLUSÃO
No início de praticamente todo tratamento psicoterapêutico, há, então, um não
saber no paciente transferido para o psicoterapeuta, confrontando-se com a condição de
porta-marcas, gerando um mal-estar em relação ao sabido.
Este mal-estar possui matriz biológica, pois o porta-marcas é o próprio corpo do
psicoterapeuta no qual se manifestam afetos do não saber transferido pelo paciente. Nesta
circunstância, o psicoterapeuta sente dor, depressão, angústia e uma ausência de
representação de coisas e de palavras que, se tudo correr bem, irá desaparecer
posteriormente, dependendo de sua capacidade clínica de escutar, além do vazio, aquilo que
o paciente tem para lhe transmitir e for capaz de colocar, de alguma forma, essa memória
inconsciente em palavras sistematicamente elaboradas.
O mal-estar possui, dessa maneira, outra matriz, propriamente cultural, pois o
psicoterapeuta não encontra imediatamente um logos capaz de representar apropriadamente
o tropeço patológico do paciente, manifestando-se, agora, nele, apesar de sua longa e
dispendiosa formação. Vivência e logos são redes independentes podendo se conectar
eventualmente.
O psicoterapeuta está, nessa oportunidade, ocupado por situação problemática
colocando-o em nova posição: deixou de ser portador de um saber e passou a ser alguém em
busca de palavra capaz de tratar desse íntimo e avassalador mal-estar, sabendo que não mais
a encontrará só nos autores precedentes ou em seu mestre. Sabe ter chegado a temida e
ansiada hora de procurar nele mesmo a palavra representativa do vivido na clínica. Sabe ser
esta difícil tarefa onde se encontra engajado. Muitas vezes reconhece não ter prática com a
escrita e percebe rapidamente a atividade de escritor como laborioso exercício solitário tão
ou mais solitário quanto o vivido na clínica, responsável por essa nova exigência,
atormentando-o como um bicho interior, desassossegado, impertinente, exigente. Sabe,
enfim, ter havido mudança subjetiva devendo enfrentar, daqui por diante, o longo e tortuoso
caminho em direção à autoria.
160
Como nos ensina a Psicopatologia fundamental, a atividade do analista não termina
ao final de cada sessão. As sensações persistem, e aquilo que escapa às palavras, retorna
como um mal-estar que se transforma num enigma.
O nosso problema de investigação surgiu da vivência clínica com a paciente Flora, a
partir do rompimento da regularidade entre aquilo que era minimamente previsto e a
surpresa do acontecido
161
. Acometida pela alopecia areata, Flora busca por meio da análise
um sentido associado ao fenômeno que pudesse eliminá-lo. Surpreendentemente, a alopecia
se mantém inalterada, revelando não se tratar de um sintoma metafórico, a despeito de
todas as tentativas de interpretação de Flora. A manifestação somática, portanto, mostrou-se
não estruturada como uma linguagem, uma vez que parecia não existir uma substituição
160
BERLINCK, Manoel Tosta (2000). Logos. V Congresso Brasileiro de Psicopatologia Fundamental,
Campinas, set. 2000.
161
Tomando emprestada as palavras de Dejóurs.
112
significante que pudesse reduzi-la por deslocamento retroativo e modifica-la por efeitos de
verdade do sujeito.
Diante deste enigma, a busca por uma compreensão possível acerca da alopecia
areata universal, no caso Flora, transformou-se na razão desta dissertação. Como nos
afirma Berlinck:
Escrever não é só um ato singular, pois ocorre numa comunidade de pensamento,
de pesquisa e de palavra. Sem a existência dessa comunidade, pode ser que os recursos
perceptivos do psicoterapeuta fiquem cada vez mais elaborados, mas, na intensa solidão
dessa ilha onde a palavra escrita não se faz necessária por ausência de outro, o mundo
percebido não encontra, muitas vezes, a representação de palavra necessária para
testemunhar a mudança da posição subjetiva e da especificidade do vivido
162
.
Além da importância de leitores com que possamos dialogar sobre o nosso escrito e
da leitura de outros autores, a supervisão clínica e a análise pessoal oferecem um contorno
possível para o enfrentamento do não-saber. O efeito permanente produzido pela
articulação destas vertentes nos revelou a sua imprescindibilidade para a construção do
conhecimento.
Ao longo desta dissertação vivenciamos o movimento dialético da produção de um
saber que torna indiferenciável o ponto de partida do ponto de chegada, ao mesmo tempo
em que nos mostra a indissociação entre teoria e clínica.
Embora haja uma seqüência descrita neste trabalho, o nosso percurso não foi linear.
A apresentação presente nesta dissertação é uma mostra possível de um trabalho de
elaboração acerca de um problema de investigação que, em função das novas inquietações
produzidas nesta pesquisa, se manterá em curso mesmo ao final deste estudo.
A advertência de Lacan no texto “A tópica do imaginário”
163
, a respeito da
impossibilidade de compreender a experiência freudiana sem a análise da articulação dos
sistemas de referência (Real, Simbólico e Imaginário) que formam uma estrutura, produziu
um sentido na escuta clínica, possibilitando a construção do eixo de sustentação teórica de
nossa pesquisa.
A vivência analítica chamava nossa atenção para alguns pontos como: o efeito de
sideração provocado pela alopecia areata que dava a sensação de fusão do olhar com o
162
BERLINCK, Manoel Tosta. Logos. V Congresso Brasileiro de Psicopatologia Fundamental .p.4
163
LACAN, Jacques (1953-1954). O seminário. Livro I. Os escritos técnicos de Freud. Op. Cit.
113
órgão, o transitivismo manifestado pelo aprisionamento de Flora na relação especular, a
intensa dificuldade na realização da separação simbólica, o assujeitamento de Flora ao
Outro que a impede de sustentar a posição de sujeito desejante.
O ensino de Lacan também nos fez notar que o percebido na clínica nos apontava
para as distintas dimensões do corpo e que só seria possível uma compreensão acerca da
manifestação somática de Flora levando em conta a articulação dos três registros. Ademais,
possibilitou um avanço na leitura da obra freudiana ao provocar uma mudança de posição
pela ressignificação da teoria psicanalítica.
A partir desta ótica, compreendemos que o inconsciente freudiano é estruturado
como linguagem e que por esta razão, embora o sujeito busque incessantemente uma
significação única, encontra apenas sentidos diversos por meio da articulação significante
que é inesgotável. Estudamos a respeito da constituição subjetiva e vimos que este processo
não é de uma maturação natural, pois a espécie humana é prematura ao nascer, necessitando
de um Outro que o introduza no campo simbólico. Esta relação circular, dissimétrica é
imprescindível para que advenha o sujeito, uma vez que este depende do significante que,
por sua vez, encontra-se primeiramente no campo do Outro.
Kaufmann nos ofereceu uma melhor compreensão desta questão ao estabelecer os
três tempos fundamentais da relação do sujeito com o Outro na formação da subjetividade:
quando o Outro é desejável, quando o Outro é percebido como desejante e quando há a
equação entre o desejo de ambos. Este processo é correlato às operações de alienação e
separação constituintes da cadeia significante.
Ao investigarmos estes conceitos de Lacan aprendemos que o sujeito, ao se alienar
no campo do Outro, está condenado a aparecer na divisão que o constitui: de um lado,
como sentido produzido pelo significante e, de outro, manifestando-se como afânise. A
divisão do sujeito está conjugada com a impossibilidade da definição do sujeito por um
único significante que o designe como tal. Lacan adverte que só há a possibilidade do
retorno da afânise no processo de separação e o conseqüente surgimento do sujeito dividido
que possibilita o intervalo entre os significantes, se tiver ocorrido a afânise do sujeito no
processo de alienação.
114
Compreendemos que o processo de separação, por sua vez, só ocorrerá se o sujeito
encontrar a falta no Outro, uma vez que o desejo do Outro é apreendido pelo sujeito nas
faltas do discurso do Outro.
O desejo do Outro provoca um enigma no sujeito, que tenta responder com a falta
antecedente ao seu próprio desaparecimento, havendo assim o recobrimento de uma falta
pela outra instituindo a dialética dos objetos do desejo no que faz junção do desejo do
sujeito com o desejo do Outro.
Aprendemos que frente ao enigma do sujeito, o significante Nome-do-Pai tem a
função de manter vivo o desejo da mãe, oferecendo ao sujeito uma significação possível ao
desejo do Outro. A castração, portanto, ocorre por um processo metafórico onde o
significante Nome-do-Pai substitui o desejo da mãe. Sendo assim, a metáfora paterna
inaugura o acesso da criança à dimensão simbólica conferindo-lhe uma condição de sujeito
desejante. Ao privar a criança do desejo da mãe, a função paterna atribui ao sujeito uma
filiação na ordem simbólica que determina uma sucessão regular de gerações,
estabelecendo uma lei que determina as interdições e as possibilidades do sujeito.
A função paterna produz um paradoxo, pois ao “interditar” o gozo absoluto faz com
que o sujeito suponha ter gozado anteriormente, quando na realidade, o gozo é mítico. Com
isso, o sujeito buscará tal satisfação nos objetos substitutos que só lhe oferecerá satisfações
parciais que insistem em se apresentar como resto e vazio. Concluímos, portanto, que a
relação com o Outro é fundamental na constituição do desejo e dos objetos da pulsão.
Seguindo esta mesma linha de raciocínio, ao inserir a pulsão no limite entre o
Simbólico e o Real, Lacan nos ensinou que a operação simbólica, ao ser responsável pela
clivagem do aparelho psíquico originando o caráter mítico da coisa, possibilita a dimensão
do gozo, da ordem do Real, onde não há significante que o represente, fazendo-se ouvir por
atos cegos, fora das palavras.
Ressaltando a articulação das três dimensões, Lacan nos mostrou a subordinação da
dimensão imaginária ao simbólico, ao postular que a alteridade imaginária manifestada na
relação com o outro semelhante da relação especular, constitui-se a partir do lugar
determinado simbolicamente, através da relação inaugural entre sujeito e significante. Uma
vez que o sujeito necessita de um reconhecimento que primeiramente não é demandado,
mas que se encontra presente no olhar do Outro, para que haja a instalação da imagem
115
especular propriamente dita com todo o processo dialético das identificações de impotência
e ostentação, a relação simbólica define a posição do sujeito como aquele que vê.
Paradoxalmente, o simbólico cumpre uma função apaziguadora da agressividade ao
produzir um corte no aprisionamento do sujeito com o espelho, possibilitando a
normatividade libidinal.
A partir deste estudo, aprendemos com Lacan que os três registros formam uma
estrutura fundamental para a constituição subjetiva. Este entendimento possibilitou que
conquistássemos uma posição possível para a compreensão da manifestação somática no
caso Flora.
Com isso, compreendemos que a dimensão Real do corpo de Flora, manifestada
pela resistência à simbolização da alopecia areata que nos denuncia o seu caráter não-
decifrável numa análise de linguagem, somada à exclusão do sujeito neste fenômeno
demonstrada pelo assujeitamento do órgão ao gozo do Outro, provocando um fascínio que
não dialetiza no Outro, estabelece uma articulação com as dimensões imaginária e
simbólica.
Notamos que o medo da separação e a ausência de um olhar que a reconheça como
um sujeito presente no discurso de Flora faz referência à sua questão simbólica. Lacan nos
ensinou que a separação do Outro só pode ocorrer se tiver havido antes o processo de
alienação no campo do Outro. Este dado nos levou a pensar que a dificuldade da realização
da separação simbólica de Flora está correlacionada à maneira como se efetuou o processo
de alienação. Flora traz na sua fala que sempre esteve sem um lugar definido, pois ao
nascer a mãe se ocupava do filho paralítico enquanto o pai se mantinha frustrado com a
doença do mesmo. Diante destas contingências, Flora buscou corresponder às expectativas
frustradas do pai para conquistar um reconhecimento, tendo como resposta uma relação
com um pai que extrapolava limites. Este cenário ao nos revelar, por um lado, um Outro
excessivamente ausente, e excessivamente presente, por outro, nos possibilitou indagar
sobre a função simbólica do Outro nesta organização pulsional que teria impossibilitado a
afânise do sujeito no processo de alienação.
Ao longo da vivência clínica pudemos notar que embora a alopecia areata não seja
regida pelas leis da linguagem, uma vez que o significante não cumpre a sua função como
tal no órgão afetado, Flora apresenta um discurso que obedece à estrutura da linguagem,
116
mesmo sofrendo efeito da manifestação somática, ou seja, embora a alopecia areata revele
a ausência de separação simbólica no órgão afetado, este fenômeno não engloba a posição
subjetiva de Flora. Este dado nos exigiu um maior aprofundamento a respeito da
constituição da subjetividade a fim de podermos esclarecer esta questão.
Pela contribuição de Infante foi possível compreender que a formação da
subjetividade ocorre através de momentos lógicos que obedecem a uma cronologia e, neste
sentido, a foraclusão que oferece o substrato da causalidade psíquica no fenômeno
psicossomático ocorre no momento da inscrição simbólica, anterior ao momento da
estruturação da posição desejante. Este pensamento possibilitou um maior esclarecimento
acerca do conceito de Nasio sobre a foraclusão local.
Seguindo na articulação dos três registros, notamos que a construção imaginária de
Flora revela a submissão ao processo simbólico, pela dificuldade em sustentar uma
diferenciação entre eu-outro. Flora permanece aprisionada no espelho sem uma ação
simbólica que possa libertá-la. A paciente nomeia este fenômeno dizendo que há uma
“extensão” entre ela e o outro.
A investigação sobre a subjetividade de Flora nos fez compreender um grande
legado da psicanálise. Freud nos ensinou que o sujeito é psicopatológico e esta construção
ocorre por uma escolha inconsciente, compreendendo esta escolha como uma saída possível
do sujeito frente às contingências presentes na vivência de cada momento, em que é
possível identificar uma articulação específica das três dimensões.
A contribuição de Lacan tem grande importância, pois nos permite reconhecer e
diferenciar, em cada caso, manifestações de uma inscrição subjetiva, situando-nos o lugar
desde o qual devemos incidir na clínica. Ademais, através da hipótese de trabalho clínico
somos intimados a assumir uma posição de intervenção, incluindo-nos na análise do
analisando.
Neste caso clínico, a direção do tratamento foi pensada numa aposta em que, por
meio da transferência, Flora pudesse reconhecer e se implicar com o próprio desejo,
promovendo a separação do campo do Outro.
A proposta de Lacan ao definir que a constituição da subjetividade ocorre com a
concorrência dos três registros que se articulam numa certa lógica em qualquer
manifestação da subjetividade, e que a exclusão de qualquer um destes registros implica a
117
exclusão do sujeito, torna imprescindível a investigação no campo da subjetividade de
Flora.
Como inferimos no final do capítulo anterior, interpretamos que a irrupção da
alopecia ocorreu quando Flora foi intimada a responder a uma vivência de separação. Em
função da ausência de um significante que pudesse responder, uma vez que se encontrava
foracluído, a saída encontrada por ela foi a de se submeter corporalmente, nomeando-se
para os outros por sua lesão. Na impossibilidade de responder simbolicamente à separação,
Flora respondeu no Real do organismo.
Por meio da compreensão do gozo manifestado por Flora, pudemos constatar que
através da alopecia, Flora ganha o olhar do Outro de uma forma a impedir a abertura para o
desejo do Outro e, por conseqüência, do seu próprio. Por meio da alopecia, Flora estabelece
imaginariamente uma certeza sobre o desejo do Outro, que é impossível, uma vez que o
desejo não tem um objeto específico, e, nesta dinâmica, Flora se mantém ignorante com
relação ao seu desejo e, portanto, não se implica com própria falta.
Compreendemos que não se trata de uma deficiência, mas de uma modalidade de
resposta subjetiva de um ser que é psicopatológico por ser de linguagem.
A psicopatologia fundamental, através da proposta de uma reflexão crítica dos
modelos existentes e do diálogo com outras áreas presentes na polis psicopatológica,
auxiliou-nos no trânsito por um grupo de pacientes com alopecia areata coordenado por
uma médica e por uma psicóloga, que se reúnem mensalmente para discutir questões a
respeito da doença.
O encontro com esse grupo possibilitou que a angústia gerada pelo enigma da
alopecia areata fosse compartilhada com o saber médico que também traz a baixa eficácia
da terapêutica medicamentosa. As indagações mais freqüentes oriundas desta área são:
Como explicar a repilação espontânea? O que faz com que um paciente desenvolva a auto-
imunidade, uma vez que a presença de um marcador genético não é um determinante?
Como entender a resposta de alguns pacientes ao tratamento e a resistência de outros?
Embora a investigação do fenômeno deva ser realizada caso a caso, pudemos notar
alguns fatores que se repetem no discurso dos pacientes acometidos pela doença que,
juntamente com o conhecimento adquirido nesta dissertação, nos auxiliaram nesta
conclusão.
118
Apesar da alopecia areata não provocar nenhuma impossibilidade física que impeça
que sejam exercidas atividades profissionais, acadêmicas, sociais, a sensação vivida pelos
pacientes é de intensa incapacidade. Tal incapacidade é justificada por eles pela perda dos
cabelos que conferem uma identidade. Com a perda da identidade é produzido um total
assujeitamento ao olhar do Outro que impede o advento do desejo. Assim, repete-se a
dinâmica apresentada por Flora onde por meio da certeza sobre o desejo do Outro, o sujeito
não se a vê com a própria falta, mantendo-se assujeitado.
Os pacientes insistem que a alopecia areata marcou um recomeço ou, por vezes, um
começo. Flora relata que a perda dos cabelos a trouxe para análise, reconhecendo que ao
mesmo tempo em que a alopecia a faz sucumbir, oferece-lhe a possibilidade de questionar
sobre o seu desejo. Numa das sessões, Flora disse que preferia a imagem que construiu
após a alopecia areata, com o uso de maquiagens, perucas, do que a que tinha
anteriormente. Acrescentou que a doença, ao romper com a lógica em que vivia, fez com
que percebesse que sempre esteve submetida ao outro, e não havia se dado conta disso.
A participação no grupo intensificou o aspecto que se mantém enigmático mesmo
ao final desta dissertação, a respeito do intricamento entre linguagem e organismo. Embora
a maior parte dos pacientes relate ter ocorrido um fator desencadeante associado à
separação - briga, perda, início de um emprego novo etc. - reafirmando a hipótese de que
há uma relação da alopecia areata com o campo do Outro, esta questão ainda se mantém
em aberto, pois não é possível dizer com segurança se o fator desencadeante é legítimo, ou
se, por se tratar de sujeitos neuróticos, o fator desencadeante faz parte de uma construção a
posteriori do sujeito, para dar conta da irrupção do Real do organismo.
Optando por manter a nossa hipótese sobre o intricamento da linguagem com o
organismo na alopecia areata no caso Flora, uma outra interrogação se abre neste campo
de pesquisa: de qual ordem da linguagem se trata? Lacan enfatiza que as holófrases são
tomadas numa estrutura de linguagem que independem de haver ou não estrutura sintática,
importando-nos o seu caráter não decomponível. Assim, a questão que se impõe é sobre a
ordem que se trata na holófrase incidida no fenômeno psicossomático.
O enigma a respeito da relação entre o campo simbólico e certas funções biológicas
do organismo torna-se ainda mais difícil de ser solucionado na investigação da alopecia
areata, uma vez que não é possível acompanhar o seu curso já que a repilação espontânea
119
pode ocorrer inexplicavelmente (por exemplo, depois de 15 anos sem nenhuma espécie de
tratamento), diferente de um caso de eczema que durante a análise reincide e desaparece,
possibilitando-nos o acompanhamento desta alternância.
A questão acerca da relação entre esta manifestação somática e o campo do Outro,
levou-nos a uma outra indagação que embora tenha sido pouco explicitada nesta
dissertação, nos causou provocações neste percurso: Na alopecia areata no caso Flora
houve a eleição de um órgão?
Dejóurs afirma que:
Nessas zonas do corpo, que são excluídas dos jogos com a mãe ou com o pai, a
subversão não pode acontecer. Cristaliza-se neste lugar partes do corpo ou partes da função,
que permanecem, de uma certa forma, na ordem animal. Do ponto de vista do futuro adulto,
estas zonas são excluídas da relação com o outro. Não se pode vir a incomodar o sujeito ou
solicitá-lo mentalmente, pela imaginação ou pelo desejo, sobre estas zonas do corpo,
porque, neste caso, corre-se o risco de um acidente somático. Em outras palavras, a doença
somática não se localizaria em qualquer lugar do corpo, mas preferencialmente nessa zona
forcluída da subversão libidinal, que se constitui numa zona de fragilidade.
164
No trecho acima, Dejours sugere que não há aleatoriedade na doença somática.
Desenvolvemos nesta pesquisa que na alopecia areata não há sujeito desejante, uma
vez que a mesma se estruturaria anteriormente à escolha da posição subjetiva, o que nos
impossibilitaria afirmar sobre a ocorrência da eleição de órgão pelo sujeito desejante,
levando-nos à hipótese de uma manifestação indiscriminada.
Por outro lado, como vimos no capítulo 3, os processos de alienação e separação são
operações constitutivas da subjetividade, que envolvem o sujeito e o campo do Outro.
Sustentamos a hipótese de que na manifestação somática no caso Flora houve o processo de
alienação, mas não o de separação. Portanto, uma vez que a alienação ocorre no campo do
Outro não podemos excluí-lo desta nossa compreensão.
Embora esta questão mereça ser aprofundada em pesquisas posteriores, levantamos
a hipótese de que a subjetividade do Outro entre como um fator importante para pensarmos
a questão da eleição de órgão, levando em conta que a mãe pode conseguir se alternar em
164
DEJOURS, Christophe (1997). Biologia e Psicanálise. In: Volich, Rubens Marcelo, Ferraz, Flávio
Carvalho, Arantes, Maria Auxiliadora de A. C. (orgs.). Psicossoma II: psicossomática psicanalítica. São
Paulo: Casa do psicólogo, 1998. p. 45-46.
120
presença e ausência em algumas funções corporais do bebê e em outras não. Mas por ora,
deixaremos mais esta questão em aberto. É momento de finalizar esta dissertação.
Os inúmeros relançamentos provenientes das indagações neste percurso de pesquisa
nos revelaram que o conhecimento só avança onde fracassa. É em torno do Real, do
umbigo impossível de simbolizar que as diversas áreas do conhecimento se lançam nesta
interminável busca por um sentido e produzem conhecimento.
E nesta procura por uma verdade, descobrimos que foi no temido encontro com a
adversidade que ocorreu na interface com outras leituras, que encontramos a possibilidade
de compartilhar a angústia tão solitária e avançar de maneira criativa levando em conta os
limites do saber.
121
REFERÊNCIAS
BERLINCK, Manoel Tosta (1995). Função e campo da transferência na psicanálise. In:
Psicopatologia Fundamental. São Paulo: Escuta, 2000.
_____. O que é Psicopatologia Fundamental. Revista Latinoamericana de Psicopatologia
Fundamental, São Paulo, v. I, n. 1, p.46-59, mar.1998.
_____. (1998) Catástrofe e representação. Notas para uma teoria geral da Psicopatologia
Fundamental. In: Psicopatologia Fundamental. São Paulo: Escuta, 2000.
_____. Logos (2000). V Congresso Brasileiro de Psicopatologia Fundamental, Campinas,
set.2000.
_____. O “fundamental” da Psicopatologia Fundamental. Revista Latinoamericana de
Psicopatologia Fundamental, São Paulo, v. VII, n. 3, p. 7-11. set.2004.
CARVALHO, Vicente Augusto de. A questão do câncer. In: Ferraz, Flávio Carvalho,
Volich, Rubens Marcelo (orgs.). Psicossoma: psicossomática psicanalítica. São Paulo:
Casa do Psicólogo, 1997.
CECCARELLI, Paulo Roberto. A contribuição da Psicopatologia Fundamental para a
Saúde Mental. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, São Paulo, v. VI,
n.1, p. 18-19, mar.2003.
DEJOURS, Christophe. Biologia, psicanálise e somatização. In: Volich, Rubens M.; Ferraz,
Flávio Carvalho; Arantes, Maria Auxiliadora de A. C. (orgs.). Psicossoma II:
psicossomática psicanalítica. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1998.
122
DOR, Joël. Introdução à leitura de Lacan: o inconsciente estruturado como linguagem.
Tradução de Carlos Eduardo Reis; supervisão e revisão técnica da tradutora Claudia
Corbisier. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989.
FÉDIDA, Pierre. Amor e morte na transferência. In: Clínica psicanalítica: estudos. São
Paulo: Escuta, 1988.
FREUD, Sigmund (1886-1899). Publicações pré-psicanalíticas e esboços inéditos. In:
Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. 3 ed.
Tradução por Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1990. v. I.
_____ (1888). Histeria. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas
de Sigmund Freud. 3. ed. Tradução por Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1990. v. I.
_____(1891). La afasia. Título del original en alemán: “Ueber Aphasie”. In: Obras
Completas. Ediciones Nueva Visión SAIC. Colección Lenguaje y Comunicación dirigida
por Oscar Masotta. Traducción de Ramón Alcalde. Revisión técnica del Dr. Janme
Mejlszenkier. Tucumán 3748, Buenos Aires, República Argentina, 1973
_____ (sem data, mas possivelmente escrito no final de 1892). Rascunho A. In: Edição
Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. 3. ed. Tradução
por Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1990. v. I
_____ (1892-93). Um caso de cura pelo hipnotismo. In: Edição Standard Brasileira das
Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. 3. ed. Tradução por Jayme Salomão.
Rio de Janeiro: Imago, 1990. v. I.
_____ (1892-94). Prefácio e notas de rodapé à tradução de Conferências das Terças-feiras,
de Charcot. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund
Freud. 3. ed. Tradução por Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1990. v. I.
123
_____ (1893[1888-1893]). Algumas considerações para o estudo comparativo das paralisias
motoras orgânicas e histéricas. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas
Completas de Sigmund Freud. 3. ed. Tradução por Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago,
1990. v. I.
_____ (1893-95). Estudos sobre a histeria. In: Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud. 3. ed. Tradução por Jayme Salomão. Rio de
Janeiro: Imago, 1990. v. II.
_____ (1895[1894]). Sobre os critérios para destacar da neurastenia uma síndrome
particular intitulada neurose de angústia. In: Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud. 3. ed. Tradução por Jayme Salomão. Rio de
Janeiro: Imago, 1990. v. III.
_____ (1894). As neuropsicoses de defesa. In: Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud. 3. ed. Tradução por Jayme Salomão. Rio de
Janeiro: Imago, 1990. v. III
_____ (sem data, suspeita-se que tenha sido escrito em junho de 1894 antes do primeiro
artigo sobre neurose de angústia de 15 de janeiro de 1895). Rascunho E. In: Edição
Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. 3. ed. Tradução
por Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1990. v .I
_____ (1895). Uma réplica às críticas do meu artigo sobre neurose de angústia. In: Edição
Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. 3. ed. Tradução
por Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1990. v. III.
_____ (1895). A psicoterapia da histeria. In: Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud. 3. ed. Tradução por Jayme Salomão. Rio de
Janeiro: Imago, 1990. v. III.
124
_____ (1896). Carta 52. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas
de Sigmund Freud. 3. ed. Tradução por Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1990. v. I.
_____ (1896). Rascunho K. As neuroses de defesa (Um conto de fadas natalino). In: Edição
Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. 3. ed. Tradução
por Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1990. v. I.
_____ (1897) Carta 69. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas
de Sigmund Freud. 3. ed. Tradução por Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1990. v.I.
_____ (1900). A interpretação dos sonhos. In: Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud. 3. ed. Tradução por Jayme Salomão. Rio de
janeiro: Imago, 1990. v. IV e V.
_____ (1905). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: Edição Standard Brasileira
das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. 3. ed. Tradução por Jayme Salomão.
Rio de Janeiro: Imago, 1990. v. VII.
____ (1910). Sobre a tendência universal à depreciação na esfera do amor (contribuições à
psicologia do amor II). In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas
de Sigmund Freud. 3. ed. Tradução por Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1990.v. XI.
____ (1910). A concepção psicanalítica da perturbação psicogênica da visão. In: Edição
Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. 3. ed. Tradução
por Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1990. v. XI.
____ (1910). Leonardo da Vinci e uma lembrança da sua infância. In: Edição Standard
Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. 3. ed. Tradução por
Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1990. v. XI.
125
____ (1913[1912-13]). Totem e tabu. In: Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud. 3. ed. Tradução por Jayme Salomão. Rio de
Janeiro: Imago, 1990.v.XIII.
____ (1914). Recordar, repetir e elaborar (novas recomendações sobre a técnica da
psicanálise II). In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de
Sigmund Freud. 3. ed. Tradução por Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1990.v. XII.
____ (1914). Sobre o narcisismo: uma introdução. In: Edição Standard Brasileira das
Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. 3. ed. Tradução por Jayme Salomão.
Rio de Janeiro: Imago, 1990. v. XIV.
____ (1915). Artigos sobre metapsicologia. In: Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud. 3. ed. Tradução por Jayme Salomão. Rio de
Janeiro: Imago, 1990. v XIV.
____ (1915). As pulsões e suas vicissitudes. In: Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud. 3. ed. Tradução por Jayme Salomão. Rio de
Janeiro: Imago, 1990. v. XIV.
____ (1915). O inconsciente. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas
Completas de Sigmund Freud. 3. ed. Tradução por Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago,
1990. v. XIV.
____ (1915). Recalque. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas
de Sigmund Freud. 3. ed. Tradução por Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1990. v .
XIV.
____ (1917[1916-1917]). Conferência XXV. A Ansiedade. In: Edição Standard Brasileira
das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. 3. ed. Tradução por Jayme Salomão.
Rio de Janeiro: Imago, 1990. v. XVI.
126
____ (1920). Além do princípio do prazer. In: Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud. 3. ed. Tradução por Jayme Salomão. Rio de
Janeiro: Imago, 1990. v. XVIII.
____ (1923[1922]). Dois verbetes de enciclopédia. In: Edição Standard Brasileira das
Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. 3. ed. Tradução por Jayme Salomão.
Rio de Janeiro: Imago, 1990. v. XVIII.
____ (1940-41 [1892]). Esboços para a Comunicação Preliminar de 1893. In: Edição
Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. 3. ed. Tradução
por Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1990. v. I.
____ (1950[1895]). Projeto para uma psicologia científica. In: Edição Standard Brasileira
das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. 3. ed. Tradução por Jayme Salomão.
Rio de Janeiro: Imago, 1990. v.I.
____ . Neuroses de transferência: uma síntese (manuscrito recém-descoberto). Tradução e
Posfácio à Edição Brasileira por Abram Eksterman. Rio de Janeiro: Imago, 1987.
FERRAZ, Flávio Carvalho (1996). Das neuroses atuais à psicossomática. In: Volich,
Rubens Marcelo, Ferraz, Flávio Carvalho (orgs.). Psicossoma: psicossomática
psicanalítica. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1997.
GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Introdução à metapsicologia freudiana vol.1. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1991.
GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Introdução à metapsicologia freudiana vol. 3. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1995.
127
GUIR, Jean (1983). A psicossomática na clínica lacaniana. Rio de janeiro: Jorge Zahar,
1988.
INFANTE, Domingos Paulo. As contribuições do esquema ótico proposto por Lacan.
Psicanálise e clínica de bebês, ano IV, n. 4, dezembro de 2000. Publicação interna.
_____. A formação da subjetividade da criança. In: MARCONDES, E. (org). Pediatria
básica. São Paulo: Sarvier, 2002.
KAUFMANN, Pierre. Dicionário enciclopédico de psicanálise: o legado de Freud e Lacan.
Tradução por Vera Ribeiro, Maria Luiza X. de A. Borges; consultoria de Marco Antonio
Coutinho Jorge. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.
LACAN, Jacques (1948). A agressividade em psicanálise. Relatório teórico apresentado no
XI Congresso dos psicanalistas de língua francesa reunido em Bruxelas em meados de maio
de 1948. In: Escritos. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
_____ (1949). O estádio do espelho como formador da função do eu. In: Escritos. Tradução
por Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
_____ . Para-além do “Princípio de realidade”. In: Escritos. Tradução por Vera Ribeiro.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
_____. Função e campo da palavra e da linguagem em psicanálise. In: Escritos. Tradução
por Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
_____ (1953-1954). O seminário. Livro 1. Os escritos técnicos de Freud. Texto
estabelecido por Jacques-Alain Miller; versão brasileira de Betty Milan. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1986 .
128
_____ (1959-1960). O seminário. Livro 7. A ética da psicanálise. Texto estabelecido por
Jacques Allain Miller. Tradução de Antonio Quinet. Rio de janeiro: Jorge Zahar, 1997.
_____ (1960-61). O seminário. Livro 8. A transferência. Texto estabelecido por Jacques
Allain Miller. Versão brasileira de Dulce Duque Estrada. Revisão do texto Romildo Rego
Barros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.
_____ (1964). O seminário. Livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. 2.
ed. Texto estabelecido por Jacques Allain Miller. Tradução de MDMagno. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1998.
LAPLANCHE, Jean e Pontalis, Jean-Bertrand (1924). Vocabulário da psicanálise.
Tradução por Pedro Tamen. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
LAZNIK-PENOT, Marie Christine. Do fracasso da instauração da imagem do corpo ao
fracasso da instauração do circuito pulsional. Quando a alienação faz falta. In: O que a
clínica do autismo pode ensinar aos psicanalistas. Salvador: Álgama, 1991 (Psicanálise da
criança).
MARTY, Pierre (1990). A psicossomática do adulto.Tradução por Patrícia Chittoni Ramos.
Porto Alegre: Artes Médicas, 1993.
_____ (1996). Mentalização e psicossomática. Tradução por Anna Elisa deVillemor
Amaral Güntet. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1998.
NASIO, Juan-David. Cinco lições sobre a teoria de Jacques Lacan. Tradução por Vera
Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.
_____ Psicossomática. As formações do objeto a. Com intervenções de Pierre Benoît e
Jean Guir. Tradução por Felipe Leclerq em colaboração com Miguel Kartzman. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1993.
129
OCHOA, Juan; SAÚL, Amado; ARELLANO MENDOZA, Ivonne. Aspectos clínicos de la
alopecia areata: tratamiento tópico comparativo entre antralina y betametasona. Revista
mexicana de dermatologia, v. 37, n. 6, p. 478-81, nov. dic. 1993.
PÉREZ-CATAPOS S. Maria Luisa; ECHEVERRIA P. Ximena; VIDAL G.H. Pedro; LIM
S. Jongsung. Revisión de los conocimientos actualis sobre alopecia areata. Revista chilena
de dermatologia, v. 17, n. 1, p. 35-41, 2001.
PERSICANO, Maria Luiza Scrosoppi. A angústia na trilha da pulsão :entre psique e soma.
Metapsicologia da angústia e de suas manifestações somáticas. 2004. Dissertação (mestrado
em Psicologia Clínica). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.
QUINET, Antonio. A descoberta do inconsciente: do desejo ao sintoma. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2000.
RANÑA, Wagner. A criança e o adolescente: seu corpo, sua história e os eixos da
constituição subjetiva.In: Volich, Rubens Marcelo, Ferraz, Flávio Carvalho, Ranña,
Wagner. Psicossoma III: interfaces da psicossomática. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003.
ROCHA, Zeferino. Os destinos da angústia na psicanálise freudiana. São Paulo: Escuta,
2000.
ROUDINESCO, Elisabeth; Plon, Michel. Dicionário de psicanálise. Tradução por Vera
Ribeiro, Lucy Magalhães; supervisão da edição brasileira Marco Antonio Coutinho Jorge.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
SAMPAIO, Sebastião A.P; CASTRO, Raymundo M.; RIVITTI, Evandro A. (1970).
Dermatologia Básica. 3. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1983.
130
SPINER, R. E.Alopecia areata: aspectos epidemiológicos e inmulogicos. Revista argentina
de dermatología; v. 77, n. 4, p. 198-205, oct. dic. 1996.
STEVENS, Alexandre. L’holophrase, entre phychose et psychosomatique. Ornicar? Paris,
Champ freudien, n 42, 1987.
VORCARO, Ângela M. R. Crianças na psicanálise: clínica, instituição, laço social. Rio de
Janeiro: Companhia de Freud, 1999.
131
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo