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ALICE ROCHA DA SILVA
A CLÁUSULA DA NAÇÃO MAIS FAVORECIDA DA OMC E A
PROLIFERAÇÃO DOS ACORDOS COMERCIAIS
BILATERAIS
Dissertação apresentada como requisito
parcial para conclusão do Programa de
Mestrado em Direito do Centro
Universitário de Brasília
Orientador: Prof. Dr. Marcelo Dias Varella
BRASÍLIA
2006
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A meus pais, Timóteo e Maria das Graças, que longe ou perto me apoiaram
com seu amor e carinho, sendo grandes referenciais a me guiar.
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AGRADECIMENTOS
Agradeço primeiramente a Deus, fonte de inspiração e maior certeza de que
tudo é possível.
Aos meus pais e à minha família, pela admiração e apoio incondicional nos
momentos de escolhas e decisões.
Ao meu orientador Dr. Marcelo Dias Varella, pelo voto de confiança e
dedicação na concretização deste projeto.
Aos meus amigos Júlia, Benjamin, Malu, Mourad, Ahmed e Elie, sempre
prontos a ajudar e compartilhar os momentos bons e ruins, tornando meus
dias mais alegres e mostrando que obstáculos podem virar degraus.
Aos meus professores, Dr. Paulo Roberto de Almeida, Dra. Dirce Mendes,
Dr. Rossini Correia, Dr. Vamireh Chacon, Dr. Jorge Fontoura, Dra. Maria
Elizabeth Rocha e Dra. Julie Schmied pela experiência e conhecimento
transmitido.
Aos meus colegas de mestrado, com os quais tantas vezes dividi dúvidas e
conquistas, e a querida Marley, sempre pronta a me ajudar.
Agradeço ainda a CAPES e Rede Alfa, por terem me agraciado com bolsas
de estudo que me permitiram concluir o mestrado, além de usufruir da
experiência de pesquisar em bibliotecas e centros reconhecidos
mundialmente durante o período em que estive em Paris - França..
Por fim, agradeço ao meu querido pai, que com amor e dedicação me
auxiliou na revisão e organização deste trabalho.
RESUMO
A Cláusula da Nação mais Favorecida (CNMF) estabelecida no âmbito da Organização
Mundial do Comércio (OMC) é preceito legal válido e vigente no mesmo contexto de
desenvolvimento e proliferação de acordos comerciais bilaterais, qual seja, o sistema
multilateral de comércio. A CNMF representa a concretização do princípio da não-
discriminação, uma das bases da OMC. No exercício desta importante função, a CNMF
dispõe que todas as vantagens e privilégios acordados a um Membro da OMC devem ser
estendidos a todos os demais Membros da organização, imediatamente e sem imposição de
condições. Entretanto, tendo sido criada dentro de um contexto que agrega parceiros com
características econômicas, sociais e políticas bastante díspares e temas nem sempre passíveis
de um tratamento multilateral, como os investimentos estrangeiros e os temas não-comerciais,
a aplicação absoluta da CNMF e o estabelecimento de um tratamento igualitário nem sempre
é possível, tendo que admitir exceções, refletindo um viés ora de flexibilidade, ora de rigidez.
Todavia, não se pode afirmar que a importância e o papel da CNMF dentro do sistema OMC
diminuiu. O que deve ser considerado é que diante do inevitável fenômeno de proliferação do
uso de acordos bilaterais no estabelecimento de trocas comerciais internacionais, restou a esta
organização o importante desafio de ajuste de seus dispositivos. Enfim, o que se verifica é um
sistema mundial de trocas antagônico e ao mesmo tempo harmonioso, agregando
instrumentos que, apesar de possuírem lógicas contrárias, não necessariamente se excluem.
Palavras-chave: Cláusula da nação mais favorecida (CNMF), Acordo Geral sobre Tarifas
Aduaneiras e Comércio (GATT), Organização Mundial do Comércio (OMC), acordos
bilaterais, princípio da não-discriminação.
ABSTRACT
The Most Favored Nation Clause (MFN) established by the World Trade Organization
(WTO) is a valid and effective legal rule in the development and bilateral commercial
agreement context. The MNF represents the non-discrimination principle which is one of the
bases of the WTO. Taking into account this important role, MNF states that all disadvantages
and privileges given to a WTO member should also reach every other member of the
organization. This should happen immediately and without the imposition of any condition.
However, considering that the MNF was created by the WTO and that this organization
aggregates many parties with different economic, social and political characteristics and that
not every subject can be solved with the implementation of a multilateral agreement, such as
international investments and non-commercial subjects, then the MNF application and the
establishment of equal treatment is not always possible. Thus, some exceptions are admitted
and this is reflected in a flexible and sometimes in a rigid way. However, it is not possible to
affirm that the importance and role of the MNF inside the WTO decreased because of this.
What should be considered is that because of inevitable phenomenon of proliferation of the
use of bilateral agreements WTO had no option but the important challenge of adjustment of
its devices. At last, what is verified is an antagonistic and at the same time harmonious world-
wide trade system that aggregates instruments that, besides having contrary logics, do not
necessarily exclude themselves.
Keywords: Most Favored Nation Clause (MFN), General Agreement on Tariffs and Trade
(GATT), World Trade Organization (WTO), bilateral agreement, non-discrimination
principle
LISTAS DE ACRÔNIMOS
ALCA - Área de Livre Comércio das Américas
AMMA - Acordos Multilaterais de Meio Ambiente
ARO - Agreement on Rules of Origin - Acordo sobre Regras de Origem
BIRD - Banco Internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento
CECA - Comunidade Européia do Carvão e do Aço
CEPAL - Comissão Econômica para a América Latina e Caribe
CIJ - Corte Internacional de Justiça
CNMF – Cláusula da Nação mais Favorecida
DSU - Understanding on Rules and Procedures Governing the Settlement of Disputes -
Memorando de entendimentos sobre as regras e os procedimentos que regem a resolução de
controvérsias da Organização Mundial do Comércio
EUA - Estados Unidos da América
FDI - Foreign direct investment - Investimento externo direto
FMI - Fundo Monetário Internacional
GATS - General agreement on trade in services - Acordo geral sobre comércio de serviços
GATT - General Agreement on Tariffs and Trade - Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras e
Comércio
ICSID - Centro Internacional de Solução de Disputas de Investimentos
OIC - Organização Internacional do Comércio
OIT - Organização Internacional do Trabalho
OMC – Organização Mundial do Comércio (WTO – World Trade Organization)
ONU - Organização das Nações Unidas
PNUD - Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
PTAs - Preferencial Trade Agreements – Acordos preferenciais de comércio
SCM - Agreement on Subsidies and Countervailing Measures - Acordo sobre Subsídios e
Medidas Compensatórias
SDN - Sociedade das Nações
SGP - Sistema Geral de Preferências (GSP - Generalized System of Preferences)
SPS - Agreement on the application of sanitary and phytosanitary measures - Acordo sobre a
Aplicação de Medidas Sanitárias ou Fitossanitárias
TBT - Technical Barriers to Trade - Acordo sobre barreiras técnicas ao comércio
TRIMs - Agreement on Trade Related Aspects of Investment Measures - Acordo sobre as
medidas de investimento relacionadas ao comércio
TRIPS - Agreement on Trade Related Aspects of Intellectual Property Rights - Acordo
relativo a Aspectos de Direito de Propriedade Intelectual
UNCITRAL - Comissão Internacional de Direito Comercial das Nações Unidas
UNCTAD - United Nations Conference on Trade and Development - Conferência das Nações
Unidas para o Comércio e Desenvolvimento
UNESCO - United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization - Organização
das Nações Unidas para a educação, a ciência e a cultura
URSS - União das Repúblicas Socialistas Soviéticas
USTR - United States Trade Representative - Representante de Comércio dos Estados Unidos
WT/DS/AB/R World Trade, Dispute Settlement, Appelation Board Report Identificação
das decisões do Órgão de Solução de Controvérsias da OMC.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
..................................................................................................11
CAPÍTULO 1 – O PRINCÍPIO DA NÃO-DISCRIMINAÇÃO COMO FONTE DO
DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO E BASE DO SISTEMA MULTILATERAL
DE COMÉRCIO
.................................................................................................17
1 Fontes do direito............................................................................................................19
1.1 Princípios gerais de direito como fonte do direito....................................................22
1.2 Fontes do direito internacional público ...................................................................25
1.3 Princípios gerais de direito como fonte do direito internacional público..................29
2 O princípio no contexto do GATT 1947 e da OMC .......................................................33
2.1 Princípios basilares e princípios auxiliares na OMC................................................36
2.2 O contexto de adoção do princípio da não-discriminação no GATT 1947 ...............39
3 O princípio da não-discriminação: base do sistema multilateral do comércio .................42
3.1 Tratamento nacional: artigo III do GATT................................................................43
3.2 Tratamento da nação mais favorecida: artigo I, §1º, do GATT ................................46
3.2.1 Análise das vantagens conferidas .....................................................................48
3.2.2 Análise da similaridade entre produtos.............................................................49
3.2.3 Análise da extensão imediata e incondicional...................................................52
CAPÍTULO 2 – A CLÁUSULA DA NAÇÃO MAIS FAVORECIDA
........................55
1 A CNMF no direito internacional ..................................................................................56
1.1 Funções da CNMF..................................................................................................60
1.2 Histórico do desenvolvimento e utilização da CNMF no direito internacional.........61
1.3 Modos de redação da CNMF ..................................................................................68
1.4 Modos de aplicação e efeitos da CNMF..................................................................69
1.5 Natureza jurídica da CNMF ....................................................................................70
1.6 Interpretação da CNMF ..........................................................................................71
1.7 Vantagens e desvantagens da adoção da CNMF......................................................73
2 A CNMF no GATT/OMC .............................................................................................75
2.1 Contexto histórico de adoção da CNMF pelo GATT/OMC .....................................76
2.2 Imprecisões relativas à aplicação da CNMF............................................................80
CAPÍTULO 3 – A PROLIFERAÇÃO DOS ACORDOS COMERCIAIS BILATERAIS
DENTRO DO SISTEMA MULTILATERAL DE COMÉRCIO
................................83
1 Natureza jurídica, evolução e importância dos tratados bilaterais...................................85
1.1 A trajetória do fenômeno convencional...................................................................86
1.1.1 Da Convenção de Viena de 1815 à Primeira Guerra Mundial...........................88
1.1.2 Período entre guerras .......................................................................................89
1.1.3 Período pós 1945 .............................................................................................91
1.2 Proliferação dos acordos bilaterais..........................................................................92
1.3 Impacto da proliferação dos acordos bilaterais sobre o multilateralismo..................97
2 Conflito e hierarquia entre fontes no direito internacional público ...............................101
2.1 Hierarquia de fontes no direito internacional público ............................................102
2.2 A categorização dos princípios gerais de direito....................................................103
2.3 Papel dos princípios no direito internacional público.............................................105
CAPÍTULO 4 – FLEXIBILIZAÇÃO E ADAPTAÇÃO DA CNMF AO FENÔNENO DA
PROLIFERAÇÃO DOS ACORDOS COMERCIAIS BILATERAIS
.......................109
1 Exceções admitidas pelo sistema jurídico da OMC......................................................110
1.1 Exceções gerais: Artigo XX do GATT..................................................................113
1.1.1 Medidas específicas nas alíneas do artigo XX ................................................116
1.1.1.1 (b) (medidas) necessárias para proteger a vida ou saúde humana, animal ou
vegetal. ...............................................................................................................117
1.1.1.2 (d) (medidas) necessárias para assegurar o cumprimento de leis ou
regulações que não sejam incompatíveis com as disposições deste Acordo,
incluindo aquelas relacionadas à aplicação de alfândega, aplicação de monopólios
regulados pelo parágrafo do artigo II e artigo XVII, a proteção de patentes, marcas e
direitos autorais, e a prevenção de práticas enganosas .........................................120
1.1.1.3 (g) (medidas) relacionadas à conservação de recursos naturais esgotáveis se
tais medidas forem efetuadas conjuntamente com restrições à produção e ao
consumo doméstico.............................................................................................122
1.1.2 Limitações condicionais impostas no caput do Artigo XX..............................124
1.1.2.1 Discriminação Arbitrária ou Injustificada ................................................125
1.1.2.2 Restrição Disfarçada ao Comércio Internacional......................................126
1.2 Exceções para Acordos Regionais: Artigo XXIV do GATT..................................127
1.3 Tratamento especial e diferenciado .......................................................................134
1.3.1 Tratamento especial e diferenciado para países em desenvolvimento..............139
a) aumento de oportunidades de comércio...........................................................140
b) medidas de apoio ao desenvolvimento econômico ..........................................142
c) períodos mais longos para a implementação....................................................144
d) limitações a ações contra produtos originários dos países em desenvolvimento
...........................................................................................................................145
e) assistência técnica...........................................................................................145
1.3.2 Tratamento especial e diferenciado para países menos avançados...................147
1.4 Demais exceções à CNMF....................................................................................149
1.4.1 Exceção histórica ...........................................................................................149
1.4.2 Tráfico entre fronteiras...................................................................................149
1.4.3 Alocação preferencial de contingentes............................................................150
1.4.4 Protocolo de acessão ......................................................................................150
1.4.5 Defesa contra práticas desleais .......................................................................151
2 Situações de harmonização dos acordos bilaterais com a CNMF..................................153
2.1 Acordos discriminatórios enquadrados nas exceções do sistema OMC por razões de
adaptação às disparidades dos membros ou por objetivarem acordos regionais ...........153
2.1.1 Procedimento de derrogação para os acordos comerciais regionais.................155
2.1.2 O Acordo de estabelecimento da União Européia...........................................159
2. 2 Acordos discriminatórios enquadrados nas exceções do sistema OMC por se tratar
de temas ou áreas não-comerciais ...............................................................................160
2.2.1 A proteção do meio ambiente.........................................................................161
2.2.2 A proteção de pessoas ....................................................................................165
2.2.3 Defesa da cultura e dos conhecimentos tradicionais........................................167
2.2.4 Harmonia dos temas comerciais e não-comerciais na busca do desenvolvimento
sustentável..............................................................................................................169
2.3 Acordos discriminatórios aceitos como resultantes de pressões ao sistema ou
peculiaridades dos Estados .........................................................................................171
2.3.1 Acordo sobre medidas de investimento relacionadas ao comércio (TRIMs)....174
2.3.2 Os acordos bilaterais relativos a investimentos...............................................176
CONCLUSÃO
..................................................................................................181
REFERÊNCIAS
...............................................................................................185
11
INTRODUÇÃO
A Cláusula da Nação mais Favorecida (CNMF) estabelecida no âmbito da
Organização Mundial do Comércio (OMC) é preceito legal válido e vigente no mesmo
contexto de desenvolvimento e proliferação de acordos comerciais bilaterais, qual seja, o
sistema multilateral de comércio. A CNMF compõe um dos pilares deste sistema, visto que é
a concretização de um de seus princípios basilares, o princípio da não-discriminação,
possuindo um viés ora de flexibilidade, ora de rigidez no exercício da importante função de
estabelecimento, através de acordos multilaterais, de relações comerciais não-
discriminatórias, muitas vezes confrontadas com acordos bilaterais contrários a esta lógica.
A CNMF está estabelecida de modo claro logo no primeiro parágrafo do
artigo I do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT), demonstrando, portanto, a
relevância que possui para todo o sistema multilateral de comércio regulado pela OMC. Na
busca pelo estabelecimento de uma base não-discriminatória para as relações desenvolvidas
no comércio internacional, a CNMF dispõe que todas as vantagens e privilégios acordados a
um Membro da OMC devem imediatamente, e, sem imposição de condições, ser estendidos a
todos os demais membros da organização. A imposição de tal cláusula impede que os
Membros da OMC ofereçam um tratamento mais vantajoso para alguns em detrimento dos
demais, conferindo a todos uma igualdade de oportunidades que proporcione um comércio
internacional justo e com maiores possibilidades de crescimento e liberalização.
Todavia, este sistema multilateral de comércio não regula as relações
comerciais internacionais de modo absoluto, tendo que conviver com outros instrumentos
legais, que muitas vezes o contrários a sua lógica de não-discriminação, como os acordos
bilaterais.
12
A quantidade de acordos bilaterais relacionados às trocas comerciais está
crescendo. A quase totalidade de países no mundo possui algum acordo bilateral e/ou regional
ao mesmo tempo em que seguem a agenda estatuída pelo sistema multilateral de comércio.
Alguns destes novos acordos são estabelecidos como derrogação de tratados anteriores, mas
muitos outros são estabelecidos para a inclusão de novos parceiros, o que revela o
crescimento do interesse pela conclusão destes e a conseqüente expansão das trocas
comerciais com bases no bilateralismo.
Em relação aos países-membro da OMC, a maioria integra um ou mais
arranjos regionais, além de concluírem tratados bilaterais em diversos setores e com vários
Membros ou não da organização.
1
Diante da factível inevitabilidade de proliferação destes acordos,
principalmente os bilaterais, que constituem a forma mais discriminatória possível, uma vez
que reduz ao máximo o número de parceiros, formou-se o debate em torno dos efeitos destes
para o sistema multilateral de comércio. Isto porque sendo um sistema baseado no princípio
da não-discriminação, a partir do momento em que admite acordos restritivos, arrisca a
efetividade e até mesmo legitimidade de tal princípio diante dos membros da organização.
Além disso, o tema da discriminação ganha relevância a partir do momento em que se
constata que cerca de 25% do comércio internacional ocorre com base em alguma forma de
discriminação.
2
Argumenta-se que os acordos bilaterais o complementares aos acordos
multilaterais estabelecidos no âmbito da OMC, mas esta visão não é única, uma vez que para
vários analistas, estes tratados discriminatórios são considerados como um risco de distorção
do multilateralismo. O fato é que independente da posição que se adote, a quantidade de
acordos desta natureza tem aumentado, sendo que os atores mais atuantes no comércio
1
WORLD TRADE ORGANIZATION. Disponível em: <www.wto.org>. Acesso em: 20 mai. 06.
2
JACKSON, John H. The World Trading System: Law and Policy of International Economic Relations. 2. ed.
Cambridge: MIT, 1999, p. 163.
13
internacional como os Estados Unidos e a União Européia o parte em diversos deles,
estando ainda envolvidos na negociação de outros.
Um dos argumentos mais utilizados para a justificação de preferência pelos
acordos ditos discriminatórios em detrimento dos multilaterais é o fracasso das rodadas de
negociações da OMC. As áreas abrangidas por tais acordos acompanharam a expansão da
incidência do GATT, sendo que a maioria envolve o comércio de bens, mas vários outros
temas passaram a ser tratados bilateralmente como serviços, investimentos, propriedade
intelectual dentre outros.
A maioria dos novos acordos tem sido estabelecida entre países
desenvolvidos e países em desenvolvimento, sob a justificativa de servirem como meio para
estabelecimento de assistência a essas nações menos desenvolvidas. Percebe-se, portanto, que,
além do problema de caráter técnico-jurídico de violação da CNMF, tais acordos podem ser
ainda questionados por serem imbuídos de relações assimétricas, visto que nem todas as
partes oferecem as mesmas concessões, além de que os critérios de flexibilidade e períodos de
transição não são únicos.
Baseados neste quadro de estabelecimento de acordos bilaterais
discriminatórios em paralelo com um sistema multilateral de comércio que busca a
liberalização comercial associada a um tratamento igualitário, a conclusão mais imediata é a
de que, por serem ilegítimos, tanto juridicamente, tendo em vista que violam a CNMF, como
ideologicamente, por violarem os objetivos de liberalização da OMC, tais acordos devem ser
abolidos. Todavia, esta é uma conclusão prematura e simplista, tendo em vista que diante da
diversidade de parceiros que a OMC comporta, um tratamento absoluto como este pode
comprometer até mesmo a manutenção da própria organização.
A OMC possui cerca de 150 Membros sendo que aproximadamente dois
terços destes são países em desenvolvimento ou menos avançados. Diante desta assimetria
14
que ultrapassa os critérios econômicos, alcançando considerações políticas e sociais, e por ser
inserida em um contexto internacional em constante transformação, a OMC não poderia ser
instituída com base em um conjunto rígido de regras. De acordo com esta lógica é que o
próprio sistema oferece a possibilidade de desrespeito ou violação de alguns de seus
dispositivos ou a mesmo de seus princípios para defesa de valores considerados maiores
como o desenvolvimento e a elevação do nível de vida das populações. Tais exceções são
válvulas de escape que servem como legitimação para o estabelecimento e manutenção dos
acordos bilaterais relativos ao comércio, sendo que muitas vezes os países, principalmente os
mais ricos, fazem uso abusivo de tais exceções na defesa de seus interesses.
A problemática de adaptação do preceito não-discriminatório
consubstanciado na CNMF, utilizado como instrumento de gestão do sistema multilateral de
comércio, diante do fenômeno da proliferação dos acordos bilaterais relativos ao comércio
será o objeto de estudo do presente trabalho. Vale ressaltar que os acordos regionais serão
também considerados, sendo em vários pontos abordados em conjunto com os bilaterais, por
estarem inseridos na mesma categorização de acordos discriminatórios, que parte de uma
consideração de exclusão em relação aos acordos multilaterais. Além disso, muitos destes
acordos regionais possuem origem em tratados bilaterais.
A forma de abordagem adotada será de retorno às fontes de origem de tais
objetos jurídicos como forma de compreensão do seu papel e relevância nas relações
comerciais internacionais. Desta forma, o primeiro capítulo será dedicado à análise das fontes
do direito internacional, com ênfase para os princípios gerais de direito e especificamente para
o princípio da não-discriminação, por ser a base da CNMF. O retorno às fontes de direito
mostra-se fundamental para a demonstração do contexto em que o princípio da o-
discriminação e, em última análise a CNMF, devem ser compreendidos, isto é, de que estes
15
não são instrumentos legais isolados, mas convivem com outras fontes, entre as quais os
tratados.
No segundo capítulo se feita uma análise mais aprofundada da CNMF,
desde suas características relacionadas ao direito internacional público, como funções, modos
de redação e aplicação, natureza jurídica e interpretação. Tais pontos serão fundamentais para
a análise do tratamento da mesma no âmbito da OMC. Considerações históricas serão também
utilizadas como forma de demonstrar a evolução de tal dispositivo e assim ser estabelecida a
compreensão do mesmo no momento atual. Quando do tratamento da CNMF no âmbito da
OMC, serão analisadas algumas imprecisões relacionadas com sua aplicação, o que será
complementado no último capítulo pela apresentação das exceções de que o próprio sistema
dispõe, demonstrando que ambos os instrumentos são necessários para a flexibilização da
CNMF.
Tendo sido analisada a CNMF ao longo do segundo capítulo, o terceiro
capítulo apresentará o segundo elemento de análise, qual seja os acordos bilaterais. Neste
capítulo será feita a abordagem dos acordos bilaterais em si, partindo da análise da utilização
dos mesmos ao longo dos anos, a fim de que se possa avaliar o efeito da proliferação destes
no momento atual, além de considerações relacionadas a uma suposta hierarquia entre fontes
do direito, diretamente relacionada com o primeiro capítulo. Esta abordagem está posicionada
neste ponto pela necessidade de que, de modo preliminar, sejam analisados os dois elementos
em foco – CNMF e acordos bilaterais – para em seguida se proceder à verificação do
tratamento de um conflito entre ambos e ao exame da possibilidade de solução deste pelo
estabelecimento de critérios que coloquem tais instrumentos em níveis hierárquicos
diferentes.
Por fim, o quarto e último capítulo tem por finalidade a apresentação de três
situações que justificam o estabelecimento e manutenção dos acordos considerados
16
discriminatórios. A partir da apresentação das exceções à CNMF, admitidas pelo próprio
sistema OMC, será demonstrado que os acordos discriminatórios podem e devem ser
admitidos em paralelo com o sistema multilateral que os condenaria pelo fato de estarem
inseridos em uma destas exceções que se dão por causas funcionais, como os acordos
regionais, ou por classes de Estados, como o tratamento especial e diferenciado aos países em
desenvolvimento ou ainda por se tratar de temas não diretamente relacionados ao comércio
como meio-ambiente, pessoas e cultura. Além disso, será demonstrada a situação em que o
próprio tema não permite um tratamento multilateral pelo seu caráter de especificidade em
relação às variáveis a serem consideradas como os acordos de investimento, que devem ser
formulados em conformidade com as particularidades de cada Estado.
Vale ressaltar, que este é um tema que ultrapassa a análise técnico-jurídica,
visto que envolve fatores marcados por subjetividade e imprecisão, exigindo também uma
abordagem de política internacional. Todavia, o foco almejado é o jurídico e por esta razão é
que se adotou a contraposição técnica entre a CNMF e os acordos bilaterais. Sendo assim,
inevitável é que em alguns momentos se leve em consideração variáveis sociais, econômicas e
até políticas, mas o objetivo final do trabalho é uma análise técnico-legal de dispositivos
contrários em um sistema antagônico e ao mesmo tempo harmonioso, qual seja o sistema
multilateral de comércio.
17
CAPÍTULO 1 O PRINCÍPIO DA NÃO-DISCRIMINAÇÃO COMO
FONTE DO DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO E BASE DO
SISTEMA MULTILATERAL DE COMÉRCIO
O princípio da não-discriminação é a pedra angular do direito internacional
econômico contemporâneo. Como fonte básica do direito internacional, serve de guia às
normas do sistema, sendo que com a criação da OMC e a ampliação do uso das regras
comerciais internacionais, sua importância se tornou ainda mais marcante.
Todo sistema jurídico que pretende se tornar universal deve ser erigido
sobre bases fortes e coerentes, em que se edificam normas que podem mudar ao longo do
tempo, mas que serão guiadas pela lógica das fontes do sistema. No caso do sistema
internacional de comércio, foram escolhidos alguns pilares de sustentação, entre eles o
princípio da não-discriminação. Tal posicionamento é compreendido pela análise do contexto
em que se deu a formação desse sistema, no qual, mais do que uma opção, o tratamento o-
discriminatório e a adoção de um caráter multilateral para as trocas comerciais era uma
necessidade inarredável para o importante desafio de reconstrução da economia mundial
arrasada pela guerra.
Mesmo antes de oficialmente terminada a Segunda Guerra Mundial, as
grandes potências da época já estavam preocupadas com o restabelecimento do sistema
econômico internacional, bastante afetado pelos anos de enfrentamento. Em 1944, a vitória
dos aliados era vista como clara e certa, motivando as grandes nações, principalmente os
Estados Unidos e a Grã-Bretanha, a se unirem na formação de estratégias de reconstrução da
economia mundial. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, surgem novas instituições
18
internacionais voltadas para a formação de um sistema econômico mundial harmonioso,
baseado na idéia de cooperação internacional.
3
Diante desse cenário, surgiu o Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras e
Comércio (GATT do inglês General Agreement on Tariffs and Trade), que mesmo o sendo
uma instituição internacional, visto que sua natureza jurídica era de acordo provisório
4
, foi um
primeiro passo rumo à reorganização da economia mundial com base no multilateralismo,
cooperação e não-discriminação. O princípio da não-discriminação era tão fundamental como
base do sistema que foi inserido logo nas primeiras linhas desse Acordo Geral, sendo
caracterizado pela Cláusula da Nação Mais Favorecida e pelo Tratamento Nacional,
mencionados já em seus primeiros artigos.
Além de fonte de inspiração para o estabelecimento da CNMF, o princípio
da não-discriminação é ainda fonte do direito internacional público, relacionando-se com
todas as demais fontes e com estas dividindo o importante trabalho de regulação de todo o
contexto internacional. Uma das fontes com as quais este princípio convive, estando diversas
vezes em conflito e até mesmo contradição são os tratados, categoria na qual se inserem os
acordos bilaterais.
A análise de tal convivência é justamente o objetivo deste estudo, que
tratará da contraposição de uma cláusula de base principiológica com acordos que
aparentemente a contradizem. Sendo assim, verifica-se que no fundo a análise comportará a
contraposição de fontes do direito internacional público, sendo a verificação do tratamento
conferido aos princípios gerais do direito, categoria na qual o princípio da o-discriminação
se insere, fundamental para a compreensão do sentido e respeito que se deve dar a tais
3
TREBILCOCK, M. J.; HOWSE, Robert. The regulation of international trade. 2 ed. Routledge: London,
2001, p. 20-21.
4
O GATT foi adotado como acordo provisório por satisfazer algumas das expectativas das partes contratantes e
pelas dificuldades na aprovação de uma instituição propriamente dita. Para maiores informações ver
HOEKMAN, Bernard M.; KOSTECKI, Michel M. The political economy of the world trading system: the
WTO and beyond. 2 ed. Oxford University Press, 2001, p. 37.
19
preceitos diante das demais fontes do direito internacional público, e de modo mais específico
dos acordos bilaterais.
Partindo deste pressuposto de verificação do papel dos princípios no
contexto do direito internacional, a fim de conferir sua relevância e relação com as demais
fontes do direito internacional blico, principalmente com os acordos bilaterais, é que se
propõe este primeiro capítulo a apresentar o princípio da não-discriminação, a partir de suas
origens, quais sejam as fontes do direito, demonstrando seu papel desde a teoria geral do
direito, passando pelo direito internacional público e indo até a posição do mesmo dentro do
GATT e da OMC que o sucedeu. Este capítulo será a base de consideração e entendimento de
toda a dimensão da CNMF, sendo ainda fundamental no momento posterior à apresentação
dos elementos de análise CNMF e acordos comerciais bilaterais onde serão contrapostos
em perspectivas de conflito e hierarquização originárias justamente da teoria e papel
oferecidos a cada uma das fontes do direito internacional público.
1 Fontes do direito
Como regra natural, todas as coisas surgem a partir de fontes que lhes
inspiram e das quais ganham vida. Com o direito isto não poderia ser diferente. A expressão
“fontes do direito” é bastante discutida e ao mesmo tempo utilizada pela doutrina, na busca do
estudo da gênese do direito. Todavia, esta expressão figurativa apresenta um viés de
complexidade, visto que pode designar vários aspectos da ciência jurídica. Primeiramente,
pode ser utilizada para designar os fundamentos de validade de uma norma, ou seja, a norma
fundamental de todo um sistema. Todavia, se utilizada no plural, a expressão pode se referir
às circunstâncias externas, condições sociais ou até mesmo motivos psicológicos que
20
influenciaram a edição de um dispositivo. Ainda se utilizada no plural, a expressão pode se
referir aos métodos de formulação do ordenamento.
5
Este pressuposto da infinidade de acepções dadas à expressão “fontes do
direito” se o ponto de partida da análise proposta, em que serão consideradas diversas
classificações, sendo cada qual voltada para um entendimento do que sejam tais fontes. Vale
ressaltar que, pela complexidade do trato da expressão, a opção será demonstrar como a
doutrina clássica ou majoritária trata o tema, mas sem menosprezar autores que pensam de
modo diferente, o que é relevante para a análise aqui proposta.
Diversas fontes do direito coexistem de forma harmônica dentro do sistema
jurídico. A doutrina tradicional distingue as fontes de direito em fontes formais e fontes
materiais. Tal distinção encontra sua gênese nos fatos sociais e contexto em que estas foram
criadas e no caráter em que se apresentam diante do regime jurídico do qual fazem parte.
As fontes formais são constituídas pelos procedimentos e métodos de
formação da norma jurídica, ou seja, os caminhos pelos quais as normas ascendem à
existência como normas legais, inserindo-se no direito positivo
6
e adquirindo validade. Ao
passo que as fontes materiais são formadas pelos fenômenos empíricos tanto de caráter social
como econômico e científico ou ideológico que conduzem à criação ou modificação das
normas de um quadro jurídico dado.
7
Existem ainda outras classificações para estas fontes do direito, como
espontâneas ou oficiais, ou ainda de formação direta ou indireta. Da superposição dessas duas
classificações surgem as quatro fontes consideradas principais no estudo do direito, quais
sejam: a lei, como oficial e direta; o costume, como fonte espontânea e direta; a
5
LEBEN, Charles. Hans Kelsen. Écrits français de droit international. Paris: Presses Universitaires de France,
2001, p. 61.
6
Direito positivo é o texto legal e físico também conhecido como direito objetivo, que por definição é o corpo de
regras gerais e impessoais. Este corpo está em contraposição ao direito subjetivo, que segundo a doutrina
clássica corresponde a prerrogativa individual que o sujeito de direito retira deste direito objetivo, sendo a
afirmação de um poder pessoal exclusivo. AUBERT, Jean-Luc. Introduction au Droit. 9 ed. Paris: Presses
Universitaires de France, 2002, p. 5 e 89.
7
SALMON, Jean. Dictionnaire de droit international public. Bruxelas: Bruylant/AUF, 2001, p. 1041.
21
jurisprudência, também oficial, mas indireta e a doutrina, considerada o-oficial e
indireta.
8
A lei é considerada a fonte primeira do direito devido à tradição religiosa,
que adota a Bíblia como primeiro modo de codificação da vontade divina. No sentido formal,
leis são textos adotados pelo parlamento tendo seguido um procedimento legislativo
previamente acordado, ao passo que no sentido material leis são regras de direito que emanam
do Estado.
9
o costume, é uma fonte não escrita, mas proveniente de um uso coletivo
que lhe confere obrigatoriedade, sendo considerado secundário em relação à lei. Em suma
pode se dizer que costume é o direito que durante um período considerável é tido como
obrigatório pela vontade de todos sem intervenção da lei. Sendo assim, o costume nasce de
práticas espontâneas da sociedade em geral, adquirindo força obrigatória pelo uso constante e
respeito de forma durável pela grande maioria.
10
A jurisprudência é o que se entende como interpretação da lei pelos
tribunais ou soluções jurídicas que de forma explícita ou implícita são utilizadas como
fundamento para as decisões de justiça. Esta fonte é considerada complementar à lei, visto
que realiza um trabalho de interpretação da mesma.
11
Por fim existe a doutrina, que etimologicamente significa o que é ensinado e
pode ser definida como o arcabouço de opiniões de teóricos e práticos reconhecidos e com
certo prestígio no ramo do direito. Esta fonte possui como função o estabelecimento de
coerência ao sistema jurídico, esclarecendo pontos e lacunas e sendo ainda referência para o
legislador.
8
BEAUDET, Christian. Introduction générale et historique à l’étude du Droit. Barcelona: Paradigme, 2002,
p.109.
9
Ibidem, p. 110-126.
10
CARBONNIER, Jean. Droit Civil. Introduction. 27 ed. Paris: Presses Universitaires de France, 2002, p. 29.
11
AUBERT, Jean-Luc. Introduction au Droit. 9 ed. Paris: Presses Universitaires de France, 2002, p.57.
22
Além destas fontes consideradas principais, existem outras também
utilizadas pelo direito e diretamente relacionadas à análise proposta, como os princípios gerais
de direito. Em última análise, os princípios gerais do direito são vistos como secundários pelo
entendimento de que não sendo textuais e ao mesmo tempo possuindo um caráter genérico,
perdem o caráter de obrigatoriedade e especificidade sendo utilizados somente se não houver
outra forma de solucionar a questão.
Todavia, diante da importância que os princípios e, mais especificamente, o
princípio da não-discriminação, representam para a análise aqui proposta, não podem ser
considerados como fontes de segundo plano, até porque, conforme será demonstrado, alguns
princípios são fundamentais e basilares para vários textos legais, que por sua vez serão objetos
de decisões jurisprudenciais, que serão discutidas pela doutrina, tendo a possibilidade de
mudar os costumes.
Logo, percebe-se que a importância desses princípios é algo real e
verificável na prática e que de forma alguma deve ser menosprezada. Por estas razões e pelo
objetivo da análise estar diretamente ligado ao confronto entre uma cláusula proveniente de
um princípio e outros instrumentos do direito internacional contemporâneo, a partir deste
ponto, as demais fontes do direito serão desconsideradas, restando como foco de análise os
princípios gerais de direito.
1.1 Princípios gerais de direito como fonte do direito
A origem histórica dos princípios gerais de direito remonta à Antiguidade e
às máximas do Digesto. Todavia, apesar de possuir este caráter histórico, os princípios gerais
de direito vieram a dispor de maior relevância após o fim da Segunda Guerra Mundial,
devido ao fato de que foi neste período que a Corte Internacional de Justiça (CIJ) os
23
reconheceu como fontes do direito mencionando “os princípios gerais de direito reconhecidos
pelas nações civilizadas” em seu artigo 38.
12
Os princípios gerais de direito estão mais presentes no direito internacional
e no direito público, não sendo, contudo, estranhos ao direito privado, como na célebre
decisão Boudier de 15 de junho de 1892, que trouxe à luz o princípio da equidade que proíbe
o enriquecimento em detrimento de outro, ou ainda na decisão datada de 31 de maio de 1991,
relacionada à barriga de aluguel, onde a Corte invocou o princípio da indisponibilidade do
estado de pessoa.
13
Princípios são considerados textos de valor diverso, em geral revelados por
um trabalho jurisprudencial e colocados em evidência pela doutrina. Existem autores que
relacionam a gênese dos princípios às demais fontes do direito, mas conforme verificado,
nota-se que isto é uma via de mão-dupla, uma vez que todas as fontes se relacionam, uma
influenciando a outra. Vale ressaltar que a referência feita a diversos princípios se dá por meio
de expressões em latim como o célebre pacta sunt servanda (o contrato faz lei entre as
partes), mas isso não é obrigatório.
Conforme mencionado, esta é uma fonte nem sempre considerada relevante,
diante das demais, o que leva grande parte da doutrina tradicional a tratá-la em pontos
apartados de suas obras e em geral classificando-a como “outras fontes de direito”, sob o
argumento de que estas são fontes secundárias não sendo escritas e com autoridade ou
obrigatoriedade variável. Esta fonte é ainda analisada juntamente com a doutrina, que para
alguns também possui um valor ou autoridade incerta.
14
12
BEAUDET, Christian. Introduction générale et historique à l’étude du Droit. Barcelona: Paradigme, 2002,
p. 147-148.
13
Do texto original: « principe d’équité qui défend de s’enrichir au détriment d’autrui e principe de
l’indisponibilité de l’état de la personne » In: BEIGNIER, Bernard; BLÉRY, Corinne. Manuel d’introduction
au droit. Paris: Presses Universitaires de France, 2004, p. 180.
14
BEAUDET, Christian. Introduction générale et historique à l’étude du Droit. Barcelona: Paradigme, 2002,
p. 147. Este autor trata os princípios gerais de direito em sessão apartada das demais fontes consideradas mais
importantes, colocando os princípios como fontes duvidáveis juntamente com a doutrina. Todavia, ele afirma
que os princípios são mais confiáveis pelo seu valor constitucional.
24
Ao tratarem dos princípios, vários doutrinadores o fazem em associação ao
direito natural. Entretanto, deve ser esclarecido que os princípios gerais de direito aqui
considerados como importantes e até mesmo imprescindíveis para a prática jurídica se
distinguem dos princípios de direito natural, visto que podem ser vistos como verdadeiras
regras de direito positivo ao serem pronunciados nas diversas cortes de justiça. Inclusive,
considera-se que uma das funções fundamentais desses princípios é justamente fornecer uma
expressão da chamada mesa de valores relacionada a determinado tema, tratado pelo direito
positivo.
15
Mesmo com esta parcela dos autores que tratam os princípios como fontes
de menor importância, existem outros que consideram o papel destes como fundamental
dentro do direito, inclusive caracterizando alguns deles como supranacionais ou
constitucionais, o que lhes confere um valor supralegislativo, ou seja, podem se impor ao
legislador.
16
Esses princípios gerais, também conhecidos como supra legem, diferenciam-se
dos costumes pelo fato de não serem produtos espontâneos das opiniões coletivas, como estes
últimos o são. Eles surgiram de uma prática jurídica de caráter científico e não como uma
prática massiva que posteriormente se torna um princípio. Estes princípios podem sim ser o
reflexo do espírito da coletividade, mas não se confundem com a positivação de práticas
coletivas reiteradas. Por exemplo, o princípio do contraditório nasce da estrutura mental do
cidadão que não aceita ser julgado sem ter sido ouvido de modo prévio, refletindo o social,
mas ao mesmo tempo ganhou status de princípio pela construção jurídica realizada na prática
dos tribunais.
15
Os princípios gerais do direito não podem ser menosprezados pelo fato de o estarem positivados, uma vez
que quando citados nas decisões judiciais ou quando disposto como base de sistema ou ordenamentos
adquirem a positividade. Decisões que mencionam tais princípios gerais de direito podem ser verificadas em:
BEAUDET, Christian. Introduction générale et historique à l’étude du Droit. Barcelona: Paradigme, 2002,
p. 148.
16
BEIGNIER, Bernard; BLÉRY, Corinne. Manuel d’introduction au droit. Paris: Presses Universitaires de
France, 2004, p. 179-181.
25
Por fim, vale ainda esclarecer a diferença entre princípios e máximas que
muitas vezes são confundidos, mas na verdade, o coisas distintas. Os princípios são
expressos em palavras ou expressões ordinárias, ao passo que as ximas estão relacionadas
a imagens. Como por exemplo, o princípio da liberdade comercial e a máxima de que “aquele
que pode e não impede, peca”.
17
Uma vez compreendidos os princípios gerais do direito como fonte na teoria
geral do direito, dar-se-á prosseguimento à análise desta fonte no direito internacional
público. A diferenciação feita entre os princípios como fonte do direito geral e fonte do direito
internacional público está sendo realizada por uma questão didática e para uma maior
especificação dos mesmos, que possuem objetos e fatos de incidência diferentes, mas em
ambos se consideram os princípios gerais de direito.
1.2 Fontes do direito internacional público
O direito internacional público é um ramo independente do direito.
Diferencia-se do direito internacional privado em razão do objeto, uma vez que o público
regula as relações entre Estados soberanos, e o privado se ocupa das relações entre
particulares ou pessoas morais privadas. Além disso, não se confunde com o direito das
gentes (jus gentium), sendo o direito internacional mais próximo da noção de direito entre
nações, ao passo que o direito das gentes possui uma perspectiva mais ampla de um direito
comum às gentes.
18
Sendo assim, partindo da compreensão de que o direito internacional
público é um ramo do direito distinto dos demais, será demonstrado de modo preliminar, o
conjunto das fontes de direito utilizadas neste campo, visto que possuem certa especificidade
17
Do original em francês "qui peut et n’empesche pèche”. In: ROLAND, Henri; BOYER, Laurent. Introduction
au droit. Paris: Litec, 2002, p. 357.
18
DAILLIER, Patrick; PELLET, Alain. Droit international public. 7. ed. Paris: L.G.D.J, 2002, p. 36 e 37.
26
em relação à teoria das fontes do direito em geral verificada na primeira seção, para em
seguida ser feita a análise dos princípios de modo específico.
Em se tratando do campo particular do direito internacional público, as
fontes podem ser consideradas tanto do ponto de vista jurídico como político. Em outras
palavras, pode se afirmar que estas funcionam tanto para finalidades de formação e trato do
corpo jurídico adotado, como para fins de defesa de interesses políticos. Esta defesa de
interesses políticos pelo uso das fontes de direito não é tão fácil, tendo em vista o pressuposto
de que em direito internacional o fundamento principal é o do consentimento, devendo ser da
vontade de todos que determinado dispositivo efetivamente entre em vigor.
19
Todavia, este
caráter de manipulação política não pode ser meramente afastado, apesar de que para a análise
deste tópico, o entendimento estará voltado para o referencial jurídico das fontes.
A doutrina varia bastante em relação à determinação do conteúdo e da
classificação das fontes
20
aplicadas no direito internacional, existindo autores que defendem o
ponto de vista de que somente os fatos sociais puros o fontes de direito internacional.
Entretanto, verifica-se que parte considerável da doutrina clássica distingue as fontes do
direito internacional público em três categorias: fundamento do caráter obrigatório deste ramo
do direito, fontes materiais e fontes formais.
Esta classificação adota o significado da palavra fonte como parâmetro para
sua categorização sendo a primeira relativa ao fundamento que confere o caráter de validade e
obrigatoriedade ao direito internacional. Já as fontes materiais são fenômenos de ordem
empírica ou ideológica, seja moral, religioso ou político que levam à criação ou modificação
de um ordenamento jurídico, explicitados pela doutrina ou pelos sujeitos de direito. Tais
fontes determinam o conteúdo dos regramentos, visto que são baseadas nos desejos práticos
dos Estados ou nas exigências momentâneas provenientes da consciência coletiva. Neste
19
ALEDO, Louis-Antoine. Le droit international public. Paris: Dalloz, 2005, p. 66.
20
A adoção do termo fonte pode ser um pouco enganosa, visto que possui certa carência de rigor. Todavia, esta é
a terminologia utilizada com freqüência por toda a doutrina.
27
sentido, são fontes materiais do direito internacional público contemporâneo: a evolução da
ciência e da tecnologia que tem transformado o direito do mar e a descolonização que fez
nascer a comunidade internacional de Estados soberanos, entre outros fenômenos e práticas.
21
Em paralelo, existem as fontes formais, que são procedimentos adotados
pelo regime jurídico que cria ou modifica as normas deste.
22
Em suma, as fontes materiais
fornecem o conteúdo do direito ao passo que as fontes formais tratam da incorporação deste,
cada qual com seu papel específico e importante ao mesmo tempo.
Vale ressaltar que norma e fonte formal não se confundem em direito
internacional, visto que uma norma é criada de acordo com procedimentos estabelecidos por
fontes formais. Além disso, uma mesma fonte pode originar rias normas ou uma norma
pode ser resultado da utilização de diversas fontes. Importante esclarecer esta distinção neste
momento, visto que isso será retomado mais adiante na abordagem da existência de uma
hierarquia de fontes e normas no direito internacional.
Em relação ao direito internacional público, particularmente, a enumeração
de suas fontes formais encontra-se positivada, de modo indireto no § do art. 38 do Estatuto
da CIJ:
“A Corte, cuja função é decidir de acordo com o direito internacional as
controvérsias que lhe forem submetidas, aplicará:
a) as convenções internacionais, quer gerais, quer especiais, que
estabeleçam regras expressamente reconhecidas pelos Estados litigantes;
b)o costume internacional, como prova de uma prática geral aceita como
sendo o direito;
c)os princípios gerais de direito, reconhecidos pelas nações civilizadas
23
;
21
SORENSEN, Max. Les sources du droit international: étude sur la jurisprudence de la Cour permanente de
justice internationale. Copenhage: E. Munksgaad, 1946, p. 13-14.
22
As fontes materiais expressam as idéias dominantes em um determinado período, sendo mais variáveis do que
as fontes formais. A importância dada a uma ou outra varia de acordo com o período histórico, visto que as
fontes formais podem servir para legitimar as fontes materiais, que por sua vez transformam os atos
internacionais, influenciando o nascimento do direito positivo. SALMON, Jean. Dictionnaire de droit
international public. Bruxelas: Bruylant/AUF, 2001, p. 1042.
23
A expressão nações civilizadas é considerada ultrapassada devendo ser entendida como todos os Estados.
Além disso, este é considerado um conceito o-jurídico e ofensivo a outros tipos de povos que não o
28
d)sob ressalva da disposição do Artigo 59, as decisões judiciárias e a
doutrina dos juristas mais qualificados das diferentes nações, como meio
auxiliar para a determinação das regras de direito.” (grifo nosso)
A análise deste artigo demonstra que o mesmo não menciona o termo
“fontes do direito internacional” de forma clara, enunciando apenas a natureza das regras que
a Corte está autorizada a aplicar, quais sejam regras de natureza convencional, costumeira ou
baseadas nos princípios gerais de direito. Por esta razão e pela prática corrente do direito
internacional, são admitidas outras fontes não mencionadas pelo Estatuto, mas que nem por
isso têm sua aplicação proibida. Exemplo de tais fontes são os atos unilaterais dos Estados ou
das Organizações Internacionais, visto que tais sujeitos possuem um poder normativo e
decisório próprios e que podem criar dispositivos aplicáveis a toda a comunidade
internacional, como as decisões do Conselho de Segurança das Nações Unidas.
24
Apesar de ser bastante criticado em razão de seu caráter obsoleto, visto que
muita importância a doutrina e utiliza formulações inusitadas, além de ser considerado
incompleto, por deixar de citar ainda o jus cogens e os atos internos que afetam o direito
internacional, este artigo é invocado em diversos tratados e textos utilizados pela sociedade
internacional, o que amplia ainda mais seu campo de incidência e evidencia sua
aceitabilidade. Desta forma, percebemos que possui uma aceitação praticamente universal, o
que demonstra sua relevância para o direito internacional, sendo um texto considerado como
referência para o estudo das fontes do direito internacional.
25
Alguns doutrinadores, ainda classificam as fontes do direito internacional
como escritas ou não-escritas enquanto outros em convencionais ou não convencionais,
argumentando que esta distinção é relevante pelo fato de esclarecer que o direito internacional
inferiores aos europeus considerados como civilizados quando da edição do dispositivo. CAVAGLIERI,
Règles générales du droit de la paix, RCADI, vol. 26, 1929-I, P. 327-328. In: KOLB, Robert. Les cours
généraux de droit international public de l’Académie de La Haye. Bruxelas: Bruylant, 2003, p.23.
24
SALMON, Jean. Dictionnaire de droit international public. Bruxelas: Bruylant/AUF, 2001, p. 1043.
25
BLACHÈR, Philippe. Droit des relations internationales. Paris: Litec, 2004, p. 9.
29
não se constitui como um todo consensual.
26
De acordo com esta classificação, somente os
tratados são fontes convencionais, sendo todas as demais fontes não-convencionais, incluindo
os atos voluntários e unilaterais dos Estados e organismos internacionais outrora
mencionados. Percebe-se que esta classificação coloca em evidência a doutrina do direito dos
tratados
27
e ao mesmo tempo inclui fontes não citadas pelo Estatuto da CIJ.
Tendo em vista o objetivo principal deste trabalho e o caráter limitado da
análise, assim como ocorreu no caso da teoria das fontes do direito em geral, não é possível a
elaboração de uma análise exaustiva de todas as fontes do direito internacional, razão pela
qual serão deixadas de lado questões doutrinárias de classificação de fontes para o
direcionamento do foco ao trato dos princípios gerais de direito no direito internacional
público.
1.3 Princípios gerais de direito como fonte do direito internacional público
Os princípios gerais de direito utilizados como fonte no direito internacional
público são aqueles considerados comuns aos ordenamentos jurídicos internos e que a
jurisdição internacional transpõe à ordem jurídica internacional.
28
A doutrina não é unânime em relação à aplicação direta e autônoma destes
princípios, existindo inclusive autores reconhecidos que chegam a considerar que os
princípios gerais do direito não são fontes do direito internacional, pelo fato do direito
internacional não aceitar generalizações, sendo um direito de essência particular, uma vez que
26
DAILLIER, Patrick; PELLET, Alain. Droit international public. 7 ed. Paris: L.G.D.J, 2002, p. 116.
27
O direito dos tratados faz parte de uma extensa doutrina responsável por formar a base de entendimento das
normas convencionais que regem o direito internacional, definindo seu processo de elaboração e condições de
aplicação. Os mecanismos utilizados na confecção dos tratados, assim como a determinação de seu
significado, a forma como o oponíveis aos demais sujeitos, os efeitos decorrentes e os eventos relacionados
a sua existência constituem os objetos de estudo deste ramo do direito. COMBACAU, Jean; SUR, Serge.
Droit international public. 5 ed. Paris: Montchrestien, 2001, p. 10.
28
BLACHÉR, Philippe. Droit des relations internationales. Paris: Litec, 2004, p.14.
30
formado pela vontade pontual dos Estados participantes da comunidade internacional.
29
Todavia, tal opinião possui um caráter isolado, uma vez que conforme verificado os princípios
são positivamente reconhecidos como fonte e utilizados na prática como tal.
Vale ressaltar que também no direito internacional público, os princípios
gerais de direito não se confundem com o costume, mesmo tendo ambos origem estatal. Isto
porque os princípios aqui mencionados são os princípios gerais do direito e não os princípios
gerais do direito internacional que realmente poderiam nascer dos costumes. Neste ponto pode
ser citado o caso “Comunidades Européias Hormôniosem que o princípio da precaução
30
foi utilizado pelas Comunidades Européias para interpretação do disposto no artigo 5º, §7º do
Acordo sobre a aplicação de medidas sanitárias ou fitossanitárias (Acordo SPS do inglês
Agreement on the application of sanitary and phytosanitary measures)
31
, restando dúvida, por
parte do Órgão de Apelação, se este princípio de fato possuía status de princípio geral do
direito tendo extrapolado o campo do direito ambiental internacional ou se deveria ser
considerado como um costume.
32
29
Cavaglieri defende o posicionamento de desconsideração dos princípios gerais de direito como fonte, mas
atenua seu ponto de vista admitindo que sendo o direito internacional coordenado por uma diversidade de
Estados, a base jurídica não pode ser separada de princípios fundamentais conseqüentes destas relações.
Sendo assim, tais regras de acepção universal formam a base para a construção do direito particular inerente
ao direito internacional. CAVAGLIERI, Règles générales du droit de la paix, RCADI, vol. 26, 1929-I, P. 322-
326. In: KOLB, Robert. Les cours néraux de droit international public de l’Académie de La Haye.
Bruxelas: Bruylant, 2003, p.23.
30
Agir em conformidade com o princípio da precaução ou ter uma abordagem cautelar seria proceder de forma
precavida visando proteger contra riscos sem esperar resultados conclusivos de análises científicas. Sendo
assim, os governos podem tomar medidas para prevenir riscos à saúde de sua população mesmo sem provas
científicas suficientes em relação a este risco. Para maiores informações sobre o princípio da precaução ver:
NOGUEIRA, Ana Carolina Casagrande. O conteúdo jurídico do principio da precaução no direito
ambiental brasileiro. BENJAMÍN, Antonio Hernán (Dir-Editor), 2002. NOIVILLE, Cristine. Ciência,
decisão, ação: três observações em torno do princípio da precaução. Governo dos riscos, Brasília, 2005.
31
Artigo 5, § do SPS. “Quando as provas científicas pertinentes sejam insuficientes, um membro poderá
adotar provisoriamente medidas sanitárias ou fitossanitárias com base na informação pertinente disponível,
incluindo as provenientes de organizações internacionais competentes e as medidas sanitárias ou
fitossanitárias aplicadas por outros Membros. Nestas circunstâncias, os Membros trataram de obter as
informações adicionais necessárias para uma avaliação mais objetiva do risco e revisarão em conseqüência a
medida sanitária ou fitossanitária em um prazo razoável.”
32
“Finalmente, contudo, o princípio da precaução, por ele mesmo e sem uma direção clara do texto nesse
sentido, o isenta o painel da obrigação de aplicar os princípios normais (ou seja, direito consuetudinário
internacional) de interpretação de tratados no exame de dispositivos do Acordo SPS.” ORGANIZAÇÃO
MUNDIAL DO COMÉRCIO. Relatório do Órgão de Apelação. “Comunidades Européias – Hormônios”
WT/DS26/AB/R e WT/DS48/AB/R, 16 Jan. 1998, § 124.
31
Autores que seguem a doutrina voluntarista consideram que estes princípios
possuem valor jurídico se expressamente autorizados por alguma base convencional.
Segundo estes, a utilização direta dos princípios deve ocorrer somente em relação a CIJ. Para
os demais atores como Estados e para os demais aplicadores como tribunais e cortes
arbitrárias, estes princípios devem ser vistos como fontes primárias de regras positivadas,
sendo estas últimas as que realmente devem ser consideradas. Portanto, tais princípios não se
impõem por força própria e sim por intermédio da autorização convencional.
33
Deixando de lado as contradições doutrinárias em relação ao lugar que o
princípio deve ocupar no direito internacional, como fonte supletiva ou não, será adotado o
entendimento de que os princípios gerais do direito como fonte formal do direito internacional
público têm uma aplicação direta e isto é assim desde 1794, quando os tribunais e cortes
arbitrais decidiam com base estritamente principiológica. Sendo assim, o que a CIJ fez ao
enunciar os princípios como fonte formal do direito foi positivar uma prática recorrente,
sendo que o fez de forma clara, enunciando a aplicação desta fonte independente de
autorização convencional. Além disso, este artigo possui a função de conferir aos aplicadores
do direito a missão de receber os princípios consagrados nos ordenamentos nacionais,
evitando a criação de outros.
34
Quando se adota o posicionamento de que os princípios gerais do direito são
fontes importantes e de aplicação direta, não se desconsidera a função destes de suprir lacunas
dos ordenamentos internacionais, tendo em vista que podem auxiliar na aplicação das demais
fontes. Ao delimitar as fontes aplicáveis, o artigo 38 limita a ação jurisdicional internacional e
ao mesmo tempo positiva a ação do juiz de suprir eventuais falhas do sistema com a utilização
33
ROCHE, Catherine. L’essentiel du droit international public et du droit des relations internationales. 2
ed. Paris: Gualino, 2003, p. 33.
34
quem entenda que estes princípios nascem das próprias decisões e práticas internacionais, mas esta
interpretação leva a confusão corrente de considerar princípios como convenção de um costume e isso não é
correto. Vale esclarecer ainda, que estes princípios consagrados como gerais são os presentes na grande
maioria dos sistemas jurídicos considerados, devendo ainda ter um caráter de transponibilidade, ou seja,
compatíveis com os demais fundamentos do ordenamento internacional. ALEDO, Louis-Antoine. Le droit
international public. Paris: Dalloz, 2005, p. 88.
32
dos princípios gerais de direito, uma vez que se busca evitar a situação em que um juiz se
declare incapaz de julgar alegando a não existência de regras de direito internacional
aplicáveis ao caso específico (non liquet).
35
quem considere que as fontes descritas neste artigo possuem uma ordem
relativa a sua utilização, no sentido de que primeiramente se preferência à aplicação das
convenções e costumes por serem mais palpáveis e menos aleatórias. Mas, o entendimento
majoritário é de que não hierarquia entre estas fontes.
36
Sendo assim, apesar de opiniões
contrárias que consideram os princípios como fontes secundárias, conforme mencionado, eles
não podem ser vistos como fontes de segundo plano, uma vez que a prática demonstra que são
evocados mesmo sem previsão convencional. Autores que consideram os princípios como
fontes secundárias argumentam que pela evolução do sistema de fontes no direito
internacional, aos princípios ficou reservado um espaço menos relevante do que ao corpo
normativo convencional ou costumeiro.
37
Todavia, será demonstrado ao longo da análise que
os princípios o fontes bastante relevantes, sendo utilizados para a criação de regras como a
CNMF em análise e são freqüentemente invocados pelos juízes internacionais.
A importância dos princípios ainda é verificada na prática, quando da
interpretação de diversos textos legais como o Acordo SPS da OMC. A interpretação dada a
tal acordo procura equilibrar o aumento das trocas baseadas em um livre comércio, com a
utilização de medidas sanitárias ou fitossanitárias, juntamente com padrões de proteção
definidos pelos próprios Membros, não podendo representar barreiras ao comércio. Esta
intenção foi confirmada pelo Órgão de Apelação no caso “Comunidades Européias
Hormônios”.
38
35
ROCHE, Catherine. op. cit., p. 34.
36
BLACHÉR, Philippe. Droit des relations internationales. Paris: Litec, 2004, p. 8.
37
ALEDO, Louis-Antoine. Le droit international public. Paris: Dalloz, 2005, p. 87.
38
“Em termos gerais, o objeto e o propósito do Artigo III é promover a harmonização de medidas sanitárias e
fitossanitárias dos Membros da forma mais abrangente possível, ao mesmo tempo em que se reconhece e se
salvaguarda o direito e o dever do Membro de proteger a vida e a saúde de sua população. O fim último da
33
Verificado o tratamento dos princípios tanto na teoria do direito quanto no
direito internacional público, resta ainda proceder à análise do papel destes no contexto do
GATT 1947 e da OMC.
2 O princípio no contexto do GATT 1947 e da OMC
A OMC é responsável pela coordenação das relações comerciais
internacionais, guiadas por uma economia mundial que considera políticas nacionais, mas que
ao mesmo tempo as uniformiza.
39
Esta é exatamente a distinção entre uma economia
internacional, que convive com as diversas políticas dos diferentes Estados e a economia
mundial, onde estas distinções tendem a desaparecer. O direito internacional público está
relacionado à segunda ao passo que o privado regula a primeira.
Com a criação da OMC, completou-se o desenho original do sistema
econômico projetado após o fim da Segunda Guerra.
40
Todavia, esta instituição se diferencia
daquelas constituídas em Bretton Woods (Fundo Monetário Internacional - FMI e Banco
Internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento - BIRD), pelo fato de não ter um
caráter de instituição financeira com recursos a serem destinados aos membros de acordo com
harmonização das medidas sanitárias e fitossanitárias é impedir o uso de tais medidas para discriminação
arbitrária e injustificada entre os Membros ou como uma restrição disfarçada ao comércio internacional, sem
impedir que os Membros adotem ou façam cumprir medidas que o ao mesmo tempo necessárias para
proteger’ a saúde e a vida e ‘baseadas em princípios científicos’, e também sem requerer que eles alterem seus
próprios níveis adequados de proteção.” ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMÉRCIO. Relatório do Órgão
de Apelação. “Comunidades Européias Hormônios” WT/DS26/AB/R e WT/DS48/AB/R, 16 Jan. 1998, §
177.
39
Paranaguá afirma que: « [...]1’ensemble des relations économiques ne sera que le reflet de la coexistence des
économies nationales tant qu’il existera des différences politiques entre les divers Etats ». Verifica-se
portanto, que segundo este autor uma economia mundial surgirá a partir do momento que exista uma
organização política e jurídica uniforme e que coordene os aspectos desta, o que foi alcançado com a criação
da OMC. PARANAGUÁ, O. Politique commerciale internationale. Genebra: Kundig , 1930, p.12.
40
O desenho original do sistema econômico projetado em Bretton Woods foi modificado ao longo dos anos,
visto que mesmo o FMI e o BIRD desviaram-se de suas funções originárias. Todavia, uma organização que
tratasse do comércio internacional já era prevista neste desenho e é neste sentido que é mencionado a
completude do mesmo pela constituição da OMC.
34
sua contribuição e necessidade. Ela é sim uma organização internacional
41
, mas constituída
com uma finalidade diferente, qual seja, regular as relações comerciais, almejando
credibilidade, aceitabilidade e observância de suas regras.
42
Tendo esta incumbência no cenário internacional, a OMC conta com um
conjunto de anexos, que associados ao seu Acordo Constitutivo conferem maior juridicidade
ao sistema. Este aparato normativo foi formulado com base em uma alta técnica jurídica e
como primeira instituição econômica multilateral criada pós-guerra fria, a OMC representou a
passagem de um modelo de relações internacionais do tipo bipolar, para um outro do tipo
multipolar. O termo GATT
43
deixou de existir como órgão internacional, mas continuou
vigorando enquanto sistema de regras do comércio internacional.
44
O GATT original (1947) está inserido no atual sistema da OMC. Além de
ter cedido à nova organização seus princípios basilares, outrora aplicados apenas ao comércio
de bens, também trouxe os primeiros elementos constituintes do atual Sistema de Solução de
Controvérsias da OMC.
Com a criação da nova organização, o GATT 1947 se transformou no
GATT 1994, passando a integrar o Acordo Constitutivo da OMC em seu Anexo I. Para isso, o
41
De acordo com o entendimento de Ângelo Piero Sereni, “organização internacional é uma associação
voluntária de sujeitos de direito internacional, constituída por ato internacional e disciplinada nas relações
entre as partes por normas de direito internacional, que se realiza em um ente de aspecto estável, que possuí
um ordenamento jurídico interno próprio e é dotado de órgãos e institutos próprios, por meio dos quais realiza
as finalidades comuns de seus membros mediante funções particulares e o exercício de poderes que lhe foram
conferidos”. MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de direito internacional público. 12. ed. Rio de
Janeiro: Renovar, 2000, p. 21.
42
SACERDOTI, Giorgio. A transformação do GATT na Organização Mundial do Comércio. In: CASELLA,
Paulo Borba; MERCADANTE, Araminta de Azevedo (Coord). Guerra comercial ou integração mundial
pelo comércio?: a OMC e o Brasil. São Paulo: LTr, 1998, p. 52.
43
O acrônimo “GATT” significa “Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio”. Tendo sido criado entre Estados,
busca eliminar a discriminação e reduzir tarifas e outras barreiras ao comércio de bens. Sua utilização pode
variar bastante podendo estar relacionado tanto ao Acordo de bens presente no Anexo I, como ao sistema
multilateral anterior, assim como ao Secretariado deste. Nesta análise específica, o termo será utilizado para
designar as obrigações presentes no GATT de 1994, ao passo que em relação ao GATT 1947, será citado o
ano.
44
O GATT original foi celebrado em 1947 tendo sido alterado pela última vez em 1965. Após esta data, seu
texto continuou o mesmo, apesar de conviver com disciplinas adicionais provenientes de acordos bilaterais,
como os da Rodada Tóquio, que vinculavam apenas as partes contratantes destes. O GATT 1947 foi
formalmente encerrado em 1996, apesar de seus dispositivos e instrumentos legais terem sido herdados pelo
GATT 1994, que também possui em seu corpo esclarecimentos via Entendimentos que buscam adaptar os
sistemas.
35
GATT de 1947 sofreu algumas alterações relativas a artigos que se mostraram ultrapassados
ou ambíguos e em relação a questões como balança de pagamento e uniões aduaneiras.
Todavia, esta remodelagem não modificou os princípios basilares do mesmo, os quais
continuam a ser adotados pela nova organização.
45
Em suma, o GATT continua, de certa
forma, a regular o comércio internacional, contudo, passa a vigorar no âmbito da OMC e sob
uma nova roupagem, havendo quem entenda que a OMC significou uma aceitação
praticamente erga omnes de uma visão gattiana ampliada GATT plus de organização da
economia mundial.”
46
A estrutura do Acordo Constitutivo da OMC ficou sendo a seguinte:
ANEXO 1
ANEXO 1A: Acordos Multilaterais sobre o Comércio de Bens
Acordo Geral de Tarifas e Comércio 1994
Acordo sobre Agricultura
Acordo sobre Aplicação de Medidas Sanitárias e Fitossanitárias
Acordo sobre Têxteis e Vestuário
Acordo sobre Barreiras Técnicas ao Comércio
Acordo sobre Medidas de Investimento Relacionadas ao Comércio
Acordo sobre a Implementação do Artigo VI do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio 1994
Acordo sobre a Implementação do Artigo VII do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio 1994
Acordo sobre Inspeção Pré-embarque
Acordo sobre Regras da Origem
Acordo sobre Procedimentos para Licença de Importação
Acordo sobre Subsídios e Medidas Compensatórias
Acordo de Salvaguardas
ANEXO 1B: Acordo Geral sobre o Comércio de Serviços e Anexos
ANEXO 1C: Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados ao
Comércio
ANEXO 2: Entendimento sobre as regras e procedimentos para Solução de Controvérsias
ANEXO 3: Mecanismo de Revisão de Política Comercial
ANEXO 4: Acordos Plurilaterais de Comércio
Acordo sobre o Comércio de Aeronaves Civis
Acordo sobre Compras Governamentais
A partir da constituição da nova organização, o GATT passou a ser apenas
um dos acordos sobre bens da OMC. Todavia, sua importância é considerável, visto que
apesar de estar relacionado ao comércio de bens, seus princípios fundamentais aplicam-se
45
RAINELLI, Michel. A Organização Mundial do Comércio. Lisboa: Terramar, 1998, p. 123.
46
LAFER, Celso. O sistema de solução de controvérsias da Organização Mundial do Comércio. In: CASELLA,
Paulo Borba; MERCADANTE, Araminta de Azevedo (Coord). ). Guerra comercial ou integração mundial
pelo comércio?: a OMC e o Brasil. São Paulo: LTr, 1998, p. 734.
36
atualmente também ao comércio de serviços e aos direitos de propriedade intelectual (Acordo
geral sobre comércio de serviços GATS do inglês General agreement on trade in services e
Acordo sobre os aspectos de direitos de propriedade intelectual relacionados ao comércio -
TRIPS do inglês Agreement on Trade Related Aspects of Intellectual Property Rights,
respectivamente). Além disso, verifica-se que seus dispositivos se aplicam em todos os casos
analisados mesmo quando outros acordos da OMC forem aplicáveis, desde que o haja
conflito. Em caso de conflito, o GATT não prevalece, visto que os outros acordos do Anexo
1A o mais específicos.
47
Além disso, o Acordo constitutivo da OMC sempre prevalece
sobre todos os demais acordos até porque os mesmos são anexos deste.
48
Esta constatação é
regulada pelo artigo 16º, § 3º, do Acordo Constitutivo da OMC.
2.1 Princípios basilares e princípios auxiliares na OMC
Conforme mencionado, determinados princípios formavam a base de
sustentação do GATT 1947 e continuam orientando as relações comerciais na OMC.
49
Juntamente com estes existem os chamados princípios auxiliares, deixando claro que esta
denominação o retira a importância dos mesmos, mas os coloca em uma escala inferior aos
basilares. Os princípios basilares estão estruturados em dois pilares: não-discriminação e
47
Nota interpretativa genérica ao Anexo 1 A: No caso de um conflito entre um dispositivo do [GATT 1994] e
um dispositivo de outro acordo do Anexo 1 A do [Acordo da OMC], o dispositivo do outro acordo deverá
prevalecer na medida do conflito.” Este conflito de normas entre o GATT e outros Acordos da OMC foi
suscitado em diversas disputas como: ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMÉRCIO. Relatório do Órgão de
Apelação. “Comunidade Européia Bananas III”, WT/DS27/AB/R, 09 Set. 1997, § 155; Relatório do Órgão
de Apelação. Argentina Medidas de Salvaguarda na Importação de Calçados”, WT/DS121/AB/R, 12 Jan.
2000, §§ 81 e 83; e Relatório do Órgão de Apelação. “Brasil Medidas Afetando Coco Ralado”,
WT/DS22/AB/R, 20 Mar. 1997, § 16.
48
CONFERÊNCIA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA COMÉRCIO E DESENVOLVIMENTO. Curso sobre
Solução de Controvérsias na Organização Mundial do Comércio. Módulo 3.5. - GATT 1994. Nova York:
Nações Unidas, 2003, p.12. Disponível em:
<http://www.mre.gov.br/portugues/ministerio/sitios_secretaria/cgc/curso_unctad.asp
> Acesso em: 14 fev. 06.
49
O preâmbulo do Acordo constitutivo da OMC dispõe a respeito da continuidade de observância destes
princípios basilares: “Determined to preserve the basic principles and to further the objectives underlying this
multilateral trading system [...]”
37
reciprocidade. O princípio da não-discriminação é o que será tratado neste trabalho por se
subdividir em tratamento nacional e nação mais favorecida, sendo a última fonte da CNMF.
em relação aos princípios auxiliares, são classificados pela doutrina de
diversas formas, que os divide ou subdivide de acordo com os interesses de cada autor. Em
relação aos basilares o existe este problema, visto que são apresentados de modo idêntico
por todos os estudiosos do tema. Logo, para o estudo proposto a diversidade de modos de
classificação dos princípios auxiliares não se constitui como um problema, tendo em vista que
a CNMF surge de um princípio basilar unânime. Todavia, serão apresentados alguns
princípios auxiliares, por complementarem a aplicação do princípio da o-discriminação e
conseqüentemente da CNMF.
O primeiro deles é o da Proteção Transparente
50
, segundo o qual a proteção
aos setores econômicos nacionais deve ser feita por meio de tarifa, por ser considerada a
forma mais transparente de divulgação do grau de proteção, além de ser tido como menor
provocador de distorções ao comércio internacional. Vale ressaltar, portanto, que os Estados
não estão impedidos de proteger seus setores nacionais, desde que o façam através de tarifas.
Associados a este princípio estão os da Base Estável para o Comércio, Concorrência Leal e
Proibições de Restrições Quantitativas a Importações
51
. Estes princípios buscam adequar o
comércio de forma leal e justa, tentando equiparar os parceiros comerciais dentro de um livre
comércio sem práticas desleais como dumping e subsídios. Sendo assim, nota-se que tais
princípios, ao buscarem um chamado comércio justo no sentido de igualdade de condições e
oportunidades de concorrência e participação, auxiliam o princípio da não-discriminação e a
aplicação da CNMF, visto que estes partem do pressuposto da existência de um comércio
desta natureza.
50
Este princípio é encontrado no Entendimento sobre Dispositivos de Balanço de Pagamentos do Acordo Geral
sobre Tarifas e Comércio 1994. Tal entendimento constitui parte do GATT e busca esclarecer obrigações
existentes nos dispositivos do mesmo, além de também fazer menção a medidas de transparência e obrigações
de consulta.
51
Princípios mencionados na considerada Parte II do GATT que engloba os artigos IV a XIX.
38
Todavia, ao mesmo tempo em que estes princípios buscam equiparar
parceiros, existem outros que são considerados como o contrapeso a esta base fixa de
liberalismo e igualdade. Alguns destes são: Adoção de Medidas de Urgência, previstas no art.
XIX, a respeito da permissão de salvaguardas e no art. XXV, a respeito de Wainer (país pode
pedir isenção de algum compromisso assumido); Reconhecimento de Acordos Regionais
(artigo XXIV do GATT) e Condições Especiais para Países em Desenvolvimento (artigos
XXIX e XXX do GATT). Estes princípios são vistos como portas de exceções ou verdadeiras
válvulas de escape, como dizem os críticos, ao princípio maior de não discriminar.
De acordo com o princípio do reconhecimento de acordos regionais, é
permitida certa isenção ao cumprimento da CNMF em caso de integração de economias
regionais, desde que respeitem certas condições: não impor barreiras aos outros contratantes
utilizando como pretexto o acordo, eliminação dos obstáculos relativos à parcela
representativa do comércio da região e utilizar tarifas e regras o mais restritivas do que as
existentes antes do processo de integração. as condições especiais aos países em
desenvolvimento, implicam em reconhecer a condição distinta destes, havendo a previsão de
que os países desenvolvidos devem prestar assistência aos menos desenvolvidos e que os
últimos devem ter condições mais favoráveis de acesso a mercados.
Sendo assim, percebe-se que o próprio sistema se mostra em uma primeira
análise contraditório ao admitir princípios de certa forma antagônicos, mas que existem em
virtude do respeito de certas condições que serão mais bem analisadas ao longo do trabalho.
Eles foram mencionados neste primeiro momento, como forma de registrar sua presença e de
demonstrar que uma visão superficial pode confundir um analista desavisado.
Por fim, vale ressaltar que estes princípios faziam parte do lado nebuloso do
GATT 1947 e eram bastante utilizados como justificativa para práticas protecionistas muitas
vezes estabelecidas de forma transitória, mas que na prática perduravam por longa data. Além
39
disso, o princípio que estabelece condições mais vantajosas para os países em
desenvolvimento não se concretizava na prática, visto que os acordos davam pouca atenção à
condição de exportadores de matéria-prima dos países em desenvolvimento, falha corrigida,
ou pelo menos amenizada, com a criação em 1964 da UNCTAD (United Nations Conference
on Trade and Development ou Conferência das Nações Unidas para o Comércio e
Desenvolvimento).
52
2.2 O contexto de adoção do princípio da não-discriminação no GATT 1947
Conforme verificado, o sistema OMC está amparado por dois princípios
basilares: reciprocidade e não-discriminação. Focalizando a análise no princípio da não-
discriminação, será feito o estudo do contexto de adoção do mesmo, assim como da razão que
o torna tão importante para todo o aparato jurídico que guia as relações econômicas da
organização.
O GATT 1947 surgiu dentro de um contexto de reconstrução da ordem
econômico-financeira mundial pós Segunda Guerra. Seu propósito, mesmo que provisório, era
configurar uma nova ordem para o comércio internacional. Isto porque os países estavam
arrasados com o fim da guerra, principalmente os europeus; e ao mesmo tempo assegurar uma
expansão comercial constituía uma forma de manter a paz entre os parceiros.
Diante de tal raciocínio, os Estados percebiam que a liberalização e
expansão do comércio eram mais benéficas do que o protecionismo e a proteção do mercado
nacional outrora defendido. Isto, teoricamente, excluía do cenário comercial internacional os
tratados preferenciais, favoráveis a apenas um ou poucos parceiros, sendo a igualdade de
tratamento a peça fundamental e o valor perseguido pelas partes-contratantes do GATT. Desta
52
AZÚA, Daniel E. Real. O neoprotecionismo e o comércio exterior. São Paulo: Aduaneiras, 1986, p. 219.
40
forma, surge o grande princípio conformador desta nova ordem econômica, qual seja o da
não-discriminação.
53
Todavia, no texto do GATT 1947 encontramos o artigo XVIII dispondo a
respeito de uma série de previsões específicas destinadas aos considerados países mais pobres,
definidos como aqueles “cuja economia pode assegurar à população um baixo nível de vida e
está nos primeiros estágios do seu desenvolvimento”
54
. Tais países poderiam burlar certos
dispositivos do texto gattiano desde que necessários à implementação de seus programas e
políticas de desenvolvimento. Até mesmo barreiras restritivas poderiam ser impostas por estes
desde que possuíssem a finalidade de proteção de sua indústria nascente ou equilíbrio de sua
balança de pagamentos. Todavia, a necessidade de violar algum dispositivo do GATT tinha
que ser demonstrada, uma vez que tal violação devia ser aprovada pelo próprio sistema, desde
que possuísse como finalidade a promoção do desenvolvimento.
55
Nota-se, portanto, que paralelamente à instauração do princípio da não-
discriminação como base do sistema, havia a previsão de cláusulas especiais contrárias a este.
Isto pode ser compreendido pela análise da lógica do contexto da época, visto que os
programas de desenvolvimento eram vistos como peças fundamentais à promoção do
crescimento econômico tanto dos países do Sul quanto dos países do Norte, arrasados pela
guerra. Deve-se considerar que nesta época a maior parte destes países que necessitavam de
regras especiais para se erguerem eram os países europeus, ou países do Norte, que estavam
passando por uma fase de reconstrução. Os chamados países do Sul, colônias ou nações
recém-independentes neste período, só aparecem como utilizadores destas regras específicas a
53
LAWSON, Michael Nunes. Do princípio da não-discriminação no comércio internacional: a cláusula de nação
mais favorecida e a obrigação de tratamento nacional. Jus Vigilantibus, Vitória, 13 jul. 2005. Disponível em:
<http://jusvi.com/doutrinas_e_pecas/ver/16394>
. Acesso em: 14 mar. 2006.
54
Artigo XVIII, § 1º do GATT.
55
VARELLA, Marcelo Dias. Direito internacional econômico ambiental. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p.
140.
41
partir dos processos de descolonização, quando então começam a figurar como bloco político
considerável nas negociações.
56
Desta forma, as vantagens oferecidas a partir de 1947, permitiam aos países
mais pobres certa paridade em relação aos mais ricos e somente a partir de 1950, os princípios
da o-discriminação e da reciprocidade começaram a ser plenamente aplicados.
57
Todavia,
percebeu-se que esta lógica estava equivocada, ou pelo menos não poderia ser aplicada de
modo absoluto, razão pela qual nos anos de 1950 e 1960, novas regras envolvendo os
princípios da não-reciprocidade e da desigualdade compensadora foram negociadas pelos
então emergentes países do Sul, surgindo a Parte IV do GATT e o Sistema Geral de
Preferências (SGP), já na Rodada de Tóquio de 1979.
Em suma, percebe-se que o princípio da não-discriminação foi criado como
base do sistema no GATT 1947, segundo a crença de que alguns anos de tratamento favorável
eram suficientes para que os países recém saídos da guerra se erguessem e então o princípio
da não-discriminação seria plenamente aplicado. Mas o posicionamento dos chamados países
do Sul, a partir dos anos 50 e 60, fez toda a diferença em relação ao estabelecimento de
exceções a este princípio, tendo destaque o trabalho da UNCTAD, que, percebendo a
insuficiência do artigo XVIII tratou de elaborar a Parte IV do GATT, criando a categoria
“países em vias de desenvolvimento”, que concedia privilégios especiais a tais países com o
fim de diminuir as desigualdades dos participantes do sistema, sendo estas oferecidas por
período indeterminado.
58
Demonstra-se, portanto, que exceções ao princípio da não-discriminação
foram estabelecidas mesmo durante o contexto de estabelecimento dos princípios basilares e
56
A partir da Conferência de Bandoeng, no fim dos anos 1950, que os países em desenvolvimento começaram a
apresentar um comportamento de bloco político. In: VARELLA, Marcelo Dias. op. cit., p. 141.
57
VINCENT, P. L’impact des gociations de l’Uruguay Round sur les pays em développement. Revue Belge
de Droit International, 1995, XXVIII (2), p. 489.
58
FLORY, M. Mondialisation et droit international du développement. Revue Générale de Droit International
Public, 1997, 101 (3), p. 618.
42
mesmo sendo tidas por alguns como um risco ao respeito e observância de tais princípios não
retira destes sua posição de primazia e importância dentro do sistema do GATT/OMC e em
última análise do sistema multilateral de comércio como um todo, conforme será verificado
no próximo tópico.
3 O princípio da não-discriminação: base do sistema multilateral do comércio
O princípio da não-discriminação, também considerado como requisito
essencial e pedra angular do sistema multilateral de comércio da OMC, implica na obrigação
de não tratar de modo menos favorável quaisquer membro em relação ao tratamento oferecido
aos demais, ou seja, não fazer distinção entre parceiros membros da organização. A
importância do respeito a tal princípio reside no fato de que dentro de um sistema de relações
multilaterais, discriminar seria o mesmo que ausentar este do seu caráter de multiplicidade de
parceiros e oportunidades. Além disso, contribui para assegurar a justiça e previsibilidade nas
relações comerciais internacionais.
59
Tal princípio está presente no GATT, sendo que
conforme dito, é aplicável não só ao comércio de bens, mas também aos demais acordos de
serviço e propriedade intelectual.
Tendo ganhado feição jurídica ao ser mencionado logo no artigo I do
GATT, é aplicado com base em quatro instrumentos:
60
- a obrigação incondicional da nação mais favorecida, consubstanciada
na CNMF, a qual proíbe os membros da OMC de praticarem condutas
discriminatórias ou de dar preferências a outro país;
59
CONFERÊNCIA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA COMÉRCIO E DESENVOLVIMENTO. Curso sobre
Solução de Controvérsias na Organização Mundial do Comércio. Módulo 3.5. - GATT 1994. Nova York:
Nações Unidas, 2003, p.12. Disponível em:
<http://www.mre.gov.br/portugues/ministerio/sitios_secretaria/cgc/curso_unctad.asp
> Acesso em: 20 mar. 06.
60
CHOI, Won-Mog. ‘Like products’ in Internacional Trade Law. Towards a consistent GATT/WTO
jurisprudence. Oxford: Oxford University Press, 2003, p. 93.
43
- a obrigação do tratamento nacional, que requer que produtos
importados não sejam tratados de forma menos favorável do que os
nacionais, o que inclui taxas e procedimentos de regulação interna;
- a formação de comitês para a redução das tarifas de produtos
importados;
- a eliminação das cotas tarifárias.
Com base nestes quatro pilares, a OMC resguarda o princípio da não-
discriminação, sendo que o foco de análise estará voltado para os dois primeiros e mais
especificamente ainda para o primeiro que é a base da CNMF.
3.1 Tratamento nacional: artigo III do GATT
A obrigação do Tratamento Nacional
61
está disposta no artigo III do GATT,
sendo decorrente do princípio da o-discriminação, já mencionado acima. Esta obrigação
estipula que a discriminação não deve ocorrer entre produtos, ou seja, uma vez no mercado do
país importador, este produto o pode ser submetido a condições que o coloquem em uma
posição de desvantagem competitiva, devendo ser dispensado ao produto importado o mesmo
tratamento dado ao produto nacional.
A razão de ser deste princípio pode ser verificada em sua origem, uma vez
que nas negociações originais do GATT 1947, uma das maiores preocupações era a redução
das tarifas alfandegárias, reconhecidas como o maior obstáculo para o comércio internacional
naquele período. Entretanto, a redução destas tarifas devia ser acompanhada de dispositivos
que garantissem que esta liberalização comercial obtida nas fronteiras dos Estados o fosse
frustrada por medidas e atos internos que favorecessem os produtos nacionais em detrimento
dos estrangeiros. O grande problema em relação a esta obrigação es relacionado a sua
61
A obrigação do Tratamento Nacional pode ser considerada como um princípio de tratamento nacional, sendo
assim, em alguns pontos faremos referência como obrigação e em outros como princípio.
44
aplicação, uma vez que a medida interna questionada pode não ser explicitamente
discriminatória, mas acabar por favorecer o produto nacional em relação ao importado.
62
No caso “Coréia – Bebidas Alcoólicas”
63
, o Órgão de Apelação deixou claro
o objetivo do artigo III do GATT, qual seja o de “[...] evitar o protecionismo, requerendo
igualdade de condições de concorrência e protegendo expectativas de relações concorrenciais
equilibradas.”
64
Além disso, no caso “Japão Bebidas Alcoólicas II”
65
, este mesmo Órgão
enfatizou a obrigação do oferecimento da igualdade de condições para os produtos nacionais e
importados.
66
Os beneficiários de tal princípio são justamente os produtos importados dos
países-membro da OMC em relação às medidas governamentais discriminatórias. Conforme o
disposto no artigo III, § 1º, 2º e 4º do GATT:
“1. [Os Membros] reconhecem que tributos internos e outros encargos
internos, e leis, regulamentos e requisitos que afetem a venda interna, oferta
para venda, compra, transporte, distribuição ou uso de produtos, e
regulamentações quantitativas internas que requeiram a mistura,
processamento ou uso de produtos em quantidades ou proporções
especificadas, não devem ser aplicados a produtos importados ou domésticos
de modo a conferir proteção à produção doméstica
2. Os produtos do território de qualquer [Membro] importados para o
território de qualquer outro [Membro] não serão sujeitos, direta ou
indiretamente, a tributos internos ou outros encargos internos de qualquer
62
VERHOOSEL, Gaëtan. National treatment and WTO dispute settlement. Adjudicating the boundaries of
regulatory autonomy. Oregon: Hart publishing, 2002, p. 20 e 21.
63
Em 4 de abril de 1997, as Comunidades Econômicas Européias solicitaram consultas com a Coréia a respeito
da imposição de impostos internos aplicados por este país a certas bebidas alcoólicas em virtude da Lei do
Imposto sobre Bebidas Alcoólicas e da Lei do Imposto de Educação. As CE argumentavam que tais leis eram
incompatíveis com as obrigações de Tratamento Nacional previstas no Artigo III, § 2 do GATT. Em maio de
1997, os Estados Unidos também solicitaram consultas com a Coréia com base nos mesmos argumentos. Para
maiores informações sobre o caso ver: http://www.wto.org/english/tratop_e/dispu_e/cases_e/ds75_e.htm
Acesso em: 17 abr. 06.
64
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMÉRCIO. Relatório do Órgão de Apelação. “Coréia Bebidas
Alcoólicas”, WT/DS75/AB/R e WT/DS84/AB/R, 18 Jan. 1999, § 120.
65
A obrigação do Tratamento Nacional foi invocada neste caso pelas partes reclamantes, Estados Unidos,
Comunidades Econômicas Européias e Canadá, que reclamavam que a aguardente exportada para o Japão era
objeto de discriminação derivada do sistema japonês aplicado às bebidas alcoólicas que, segundo seu
entendimento, impunha ao “shochu” um imposto substancialmente inferior ao aplicado ao whisky, conhaque e
aguardente brancos. Informações sobre o caso disponíveis em:
http://www.wto.org/spanish/tratop_s/dispu_s/cases_s/ds10_s.htm
Acesso em: 17 abr. 06.
66
“[...]o Artigo III obriga os Membros da OMC a fornecer igualdade de condições competitivas para produtos
importados em relação a produtos domésticos.” ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMÉRCIO. Relatório
do Órgão de Apelação. “Japão – Bebidas Alcoólicas II”, WT/DS8/AB/R, WT/DS10/AB/R, WT/DS11/AB/R,
4 Out. 1996, p. 16.
45
tipo superiores àqueles aplicados, direta ou indiretamente, a produtos
domésticos similares. Além disso, nenhum [Membro] aplicará tributos
internos ou outros encargos internos a produtos importados ou domésticos de
forma contrária aos princípios estabelecidos no parágrafo 1.
[...]
4. Aos produtos do território de qualquer [Membro] importados para o
território de qualquer outro [Membro] será dado um tratamento não menos
favorável do que o acordado a produtos similares de origem nacional em
relação a todas as leis, regulamentos e requisitos que afetem sua venda
interna, oferta para venda, compra, transporte, distribuição ou uso. O
disposto neste parágrafo não impedirá a aplicação de taxas internas
diferenciadas de transporte baseadas exclusivamente na operação econômica
dos modos de transporte e não na nacionalidade do produto.”
67
Entretanto, conforme mencionado, o crescimento de formas implícitas de
discriminação tem colocado a aplicação deste princípio em perigo. Argumenta-se que mesmo
se uma taxa ou regulação parecer não-discriminatória, se seus efeitos forem de protecionismo
ou não estiverem previstos no entendimento das exceções do sistema esta taxa é tida como
inconsistente com as obrigações do GATT.
68
Exemplo disso são as chamadas barreiras técnicas ao comércio. Tais
barreiras são estabelecidas por meio de exigências técnicas que os países importadores
impõem em relação aos produtos importados, a fim de favorecerem a produção nacional, uma
vez que para os produtores externos será muitas vezes dispendioso ou mesmo impossível
atender a todas as exigências. Vale ressaltar que muitas dessas exigências chegam a ter um
caráter absurdo uma vez que contrariam até mesmo a prática corrente no comércio
internacional, como a situação de se exigir que nas embalagens estejam presentes
disposições na língua do país importador, quando o comum são disposições em duas línguas,
do país importador e do país exportador. Tais práticas se tornaram tão correntes que na
67
No antigo GATT, os Estados participantes eram denominados como partes-contratantes pelo fato de se tratar
de um acordo provisório. Entretanto, na atual OMC, os Estados são considerados como membros, por se tratar
de uma organização internacional. Logo, leia-se membros onde estiver previsto partes-contratantes nos
acordos do GATT.
68
“[…] under the GATT it can be strongly argued that even though a tax (or regulation) appears on its face to be
nondiscriminatory, if it has an effect of affording protection, and if this effect is not essential to the valid
regulatory purpose (as suggested in Article XX), then such tax or regulation is inconsistent with GATT
obligations”. JACKSON, John H. The World Trading System: Law and Policy of International Economic
Relations. 2. ed. Cambridge: MIT, 1999, p. 217.
46
Rodada Tóquio da OMC, 1979, começou-se a discutir o tema, culminando com um Acordo
sobre barreiras cnicas ao comércio (Acordo TBT do inglês Technical Barriers to Trade)
estabelecido na Rodada Uruguai. A incidência deste acordo se restringe a produtos
manufaturados, enquanto que para bens agrícolas existe o Acordo SPS.
Mesmo sendo derivado de um princípio basilar, o tratamento nacional
admite exceções e entre elas pode ser citado o acordo plurilateral relativo a compras
governamentais, que se revelou importante na medida em que representa relevante fonte de
negócios, tendo em vista o volume e a representatividade deste parceiro para o comércio.
Todavia, por falta de consenso, as compras governamentais acabaram excluídas das regras do
GATT, podendo os Estados, de forma opcional, participarem do acordo plurilateral que regula
esta matéria. Os acordos plurilaterais fazem parte do anexo IV do Acordo da OMC, que
originalmente era formado por quatro acordos plurilaterais relativos ao setor de cteos, carne
bovina, aeronaves civis e compras governamentais (ou mercados públicos). Todavia, os
acordos relativos aos setores de lácteos e de carne bovina expiraram em 1997 e o acordo sobre
aeronaves civis negociado na Rodada Uruguai o entrou em vigor, continuando a ser
aplicado o Acordo negociado na Rodada Tóquio de 1979, restando, portanto, somente dois
acordos plurilaterais.
69
3.2 Tratamento da nação mais favorecida: artigo I, §1º, do GATT
Assim como o princípio do tratamento nacional, o tratamento da nação mais
favorecida também é uma ramificação do princípio da não-discriminação, orientador das
relações comerciais da OMC. Enquanto o tratamento nacional estipula a proibição de
discriminação entre produtos nacionais e importados, o tratamento da nação mais favorecida
estabelece que não deve haver discriminação entre países, ou seja, que as concessões feitas a
69
LUFF, David. Le droit de l’organisation mondiale du commerce. Analyse critique. Bruxelas: Bruylant,
2004, p. 21.
47
um país-membro sejam automaticamente estendidas aos demais.
70
O objetivo almejado é o de
conferir certa igualdade de oportunidades para “importar de” ou “exportar paraos demais
Membros da OMC. Logo, percebemos que tais princípios são complementares, fechando o
ciclo objetivo da OMC de promover um comércio livre e em condições equivalentes para
todos os parceiros comerciais.
71
Conforme o artigo I § 1º do GATT:
“1. Com relação às tarifas alfandegárias e taxas de qualquer tipo aplicadas
sobre ou em conexão com a importação ou exportação ou impostas na
transferência internacional de pagamentos por importações ou exportações, e
em relação ao método de incidência de tais tarifas e taxas, e em relação a
todas as regras e formalidades relacionadas à importação e exportação, e em
relação a todas as questões referidas nos parágrafos 2 e 4 do Artigo III,
qualquer vantagem, benefício, privilégio ou imunidade concedida por
qualquer [Membro] a qualquer produto originado em ou destinado a
qualquer outro país será conferido imediatamente e automaticamente
aos produtos equivalentes originados em ou destinados aos territórios de
todos os outros [Membros].”(grifo nosso)
Na parte final deste artigo está presente de modo claro a CNMF, que se
configura como o fundamento de todo o sistema multilateral de comércio.
72
As medidas que
esta cláusula busca ter controle podem ser classificadas como diretas ou indiretas, de acordo
com a influência das mesmas sobre o comércio. De modo direto, existem os direitos
aduaneiros e imposições de mesma natureza, o que inclui tanto seu modo de percepção quanto
70
"The national treatment, like the MFN obligation, is a rule of 'nondiscrimination'. In the case of MFN,
however, the obligation prohibits discrimination between goods from different exporting countries. The
national treatment clause, on the other hand, attempts to impose the principle of nondiscrimination as between
goods which are domestically produced, and goods which are imported. It is, needless to say, a central feature
of international trade rules and policy." JACKSON, John H. The World Trading System: Law and Policy of
International Economic Relations. 2. ed. Cambridge: MIT, 1999, p. 483.
71
De acordo com o estabelecido no Acordo Constitutivo da OMC, o objetivo desta Organização Internacional é,
entre outros, o de elevar os veis de vida e pleno emprego, expandindo a produção e comércio de bens e
serviços, realizando esforços para a participação efetiva dos países em desenvolvimento, e para isso, deve
assegurar que parceiros não sejam discriminados em razão de sua posição no comércio ou das vantagens que
apresentem em relação aos demais. Isto será mais adiante questionado em razão do tratamento igualitário no
sentido formal, uma vez que igualdade pode ser vislumbrada em virtude do tratamento desigual dado a
desiguais e não de um tratamento igual para parceiros tão diferentes.
72
Outros artigos do GATT que também fazem referência a este princípio do tratamento da nação mais
favorecida o: artigo III, § , IV(b), V, § 2º, e 6º; IX, § 1º; XIII, § 1º; XVII, § 1º; XVIII, § 20 e XX (j).
JACKSON, John H. The World Trading System: Law and Policy of International Economic Relations. 2.
ed. Cambridge: MIT, 1999, p. 444.
48
os regulamentos de exportação ou importação de determinado Membro. Todavia, ainda
existem as medidas indiretas que incluem as condições de circulação destas mercadorias no
país exportador, o que es diretamente relacionado ao Tratamento Nacional outrora
mencionado. Vale assinalar, que medidas discriminatórias que sejam concernentes a pessoas,
ou seja, não estejam relacionadas exclusivamente a bens, também podem ser objeto de
regulação deste princípio, desde que afetem, mesmo que de modo indireto, a importação ou
exportação de determinado produto, ou represente uma discriminação em relação a outros no
momento de sua circulação.
73
Este artigo está estruturado em três tópicos basilares que definem se a
obrigação da nação mais favorecida está sendo respeitada ou o. De modo didático, tais
tópicos podem ser apresentados na forma de perguntas: a medida em questão confere uma
vantagem aos produtos originados em ou destinados aos territórios de todos os outros
Membros?; os produtos em questão são similares?; a vantagem em questão foi concedida
imediata e incondicionalmente a todos os produtos similares?
74
3.2.1 Análise das vantagens conferidas
73
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMÉRCIO. Relatório do Órgão de Apelação, “Canadá Medidas Que
Afetam a Indústria Automotiva”, WT/DS139/AB/R e WT/DS142/AB/R, 19 jun. 2000, § 79. Nesta disputa o
que se questionava era a isenção tarifária de importações de veículos automotores que o Canadá concedia em
benefício de produtores que cumprissem certos requisitos relacionadas à sua produção no território canadense.
Vide relatório: “O Artigo I, § 1º requer que ‘qualquer vantagem, benefício, privilégio ou imunidade concedida
por qualquer Membro a qualquer produto originado em ou destinado a qualquer outro país será conferido
imediatamente e automaticamente aos produtos similares originados em ou destinado aos territórios de todos
os outros Membros’. As palavras do Artigo I, § 1º não se referem a algumas vantagens garantidas ‘em relação
aos’ temas que estão abrangidos pelo âmbito delimitado pelo Artigo, mas sim a ‘qualquer vantagem’; não a
alguns produtos, mas a todo produto’; e não a produtos similares de alguns outros Membros, mas a produtos
similares originados em ou destinados a ‘todos os outros’ Membros.” Isto demonstra que de modo específico
o que se questionava o eram as concessões tarifárias dadas aos veículos e sim aos fabricantes dos mesmos,
demonstrando a extensão da aplicabilidade de CNMF.
74
Esta análise em pontos foi adaptada de: CONFERÊNCIA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA COMÉRCIO E
DESENVOLVIMENTO. Curso sobre Solução de Controvérsias na Organização Mundial do Comércio.
Módulo 3.5. - GATT 1994. Nova York: Nações Unidas, 2003, p.12. Disponível em:
<http://www.mre.gov.br/portugues/ministerio/sitios_secretaria/cgc/curso_unctad.asp
> Acesso em: 14 fev. 06.
49
A menção às vantagens conferidas é bastante ampla e deixa margem a uma
interpretação extensiva por parte dos grupos especiais da OMC, visto que conforme
mencionado, “[...] qualquer vantagem, benefício, privilégio ou imunidade concedida [...]”,
pode se relacionar a qualquer tratamento mais favorável em relação à facilitação de
importação ou exportação do produto, não sendo considerada a natureza do mesmo. Desta
forma até mesmo reduções tarifárias referentes a vantagens competitivas não-tarifárias podem
ser objeto de contestação.
75
O artigo I, § 1º, do GATT enumera algumas medidas que podem
ser consideradas como vantagens: tarifas e taxas de qualquer tipo impostas em conexão com
importação e exportação; o método de imposição dessas tarifas e taxas; regras e formalidades
relacionadas a importação e exportação; tributos internos e taxas incidentes sobre bens
importados; leis internas, regulamentos e requisitos que afetem as vendas. Vale ressaltar que
mesmo produtos não sujeitos a consolidações tarifárias podem sofrer incidência do artigo I, §
1º, do GATT.
76
Além disso, é importante sublinhar que, quando mencionada a expressão
“qualquer país”, isto inclui Estados não-membros da OMC. Ou seja, se um membro concede
uma vantagem a um produto originado em ou em destino a um outro país não-membro da
OMC, deve fazer o mesmo em relação a todos os demais membros da organização.
3.2.2 Análise da similaridade entre produtos
Um segundo ponto interessante é o da menção a produtos similares ou
equivalentes que é bastante ampla e deixa dúvidas em relação a sua determinação. A noção de
produto similar está presente em diversos outros dispositivos que tratam da interdição da
adoção de medidas discriminatórias, como no já mencionado artigo III do GATT, referente ao
75
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMÉRCIO. Relatório do Órgão de Apelação. “Comunidades Européias -
Bananas”, WT/DS27/AB/R, 9 set. 1997., §§ 206 e 207.
76
GATT. Relatório do Painel. Espanha Tratamento Tarifário do Café Não-torrado”, BISD 28S/102, 19 jun.
1981, § 4.3.
50
Tratamento Nacional.
77
Como uma faca de dois gumes, o impacto de tal disposição, implica
em dizer que, se produtos similares devem ter um tratamento igual, diferentes categorias
podem ser discriminadas e isto não é o objetivo do legislador da norma, mas que
correntemente tem sido utilizado como válvula de escape protecionista.
78
Apesar de mencionado em vários dispositivos do GATT, o conceito de
produto similar não é definido em nenhum deles. Portanto, sendo um conceito aberto, a
similitude dos produtos deve ser vista caso a caso, de acordo com o contexto e circunstâncias
dadas. Isto possibilita ao Grupo Especial uma apreciação discricionária, podendo utilizar
critérios diferentes a cada análise.
No caso “Japão Bebidas Alcoólicas II” (WT/DS8/AB/R), a similitude foi
interpretada de modo restrito, sendo que o termo foi comparado a um acordeão, no sentido de
que se estica ou encolhe de acordo com cada caso. Neste caso específico, o Órgão de
Apelação definiu que, em relação ao Artigo III, § 2º, este acordeão está retraído, o que leva á
conclusão de que o termo é estendido quando presente em outros dispositivos do acordo.
79
No caso “Comunidades Européias - Medidas que afetam o amianto e
produtos relacionados” a similitude foi apreciada de modo extenso, visto que estava
relacionado à noção de produto similar explicitada no Acordo Antidumping (artigo II, § 6º) e
no Acordo de Subsídios e Medidas Compensatórias (artigo XV, § 1º), dispositivos não
diretamente mencionados pelo Artigo III, § 2º. Além disso, estando o termo presente tanto no
Acordo Antidumping quanto no de subsídios e medidas compensatórias, o intérprete da lei ou,
77
Outros artigos que mencionam o termo produtos similares” são: Artigos II, § (a); III, § 2º; III, § 4º; VI, §
1º(a); IX, § 1º; XI, §2º (c); XIII, § 1º; XV, § 4º e XIX, § 1º.
78
LUFF, David. Le droit de l’organisation mondiale du commerce. Analyse critique. Bruxelas: Bruylant,
2004, p. 45.
79
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMÉRCIO. Relatório do Órgão de Apelação. “Japão - Bebidas
alcoólicas”, WT/DS8/AB/R, 4 out. 1996, seção H.1. (a), p. 25 e 26 “[...] o conceito de equivalência tem um
caráter relativo que evoca a imagem de um acordeão. O acordeão da “equivalência” estica e encolhe em
diferentes ocasiões, na medida em que diferentes dispositivos do Acordo da OMC são aplicados. A largura do
acordeão em cada uma dessas ocasiões deve ser determinada pelo dispositivo específico em que o termo
“equivalente” é encontrado, assim como pelo contexto e pelas circunstâncias que prevalecem em cada caso ao
qual o dispositivo pode se aplicar. Consideramos que na primeira frase do artigo III, § do GATT 1994, o
acordeão da “equivalência” deve ser estritamente apertado.”
51
neste caso, o Órgão de Apelação, deve tentar conciliar o sentido que o legislador procurou dar
em ambos.
80
Diante desta problemática de definição e avaliação em relação à similitude
de um produto, alguns critérios o determinados. Mas, até mesmo para a definição destes
critérios é encontrada uma margem de discricionariedade que pode e em regra é utilizada
pelos órgãos decisórios da OMC. Isto restou claro no caso “Espanha – Regime tarifário
aplicado ao café não torrado”, em que o Painel avaliou se diferentes tipos de café não-torrado
eram similares no sentido do artigo I, § 1º, do GATT, utilizando-se para isso de critérios
relacionados às características dos produtos, seu uso final e os regimes tarifários de outras
partes contratantes. Isto porque os vários tipos e grupos de café não-torrado eram taxados de
modo diferente sob o argumento de que eram diferentes em razão de características
específicas resultantes de fatores geográficos, todos de cultivo, processamento da semente
e até mesmo por fatores genéticos. Todavia, tais argumentos não foram avaliados como
suficientes pelo painel, que considerou que no caso de produtos agrícolas é comum o gosto ou
aroma final mudarem em razão destes fatores. Além disso, mesmo se diferentes, estes tipos de
café não-torrado eram em geral vendidos na forma de misturas, sendo que no uso final era
compreendido como um produto único e com finalidade bem definida, ou seja, feito para ser
bebido. Por fim, o painel considerou que as demais partes contratantes não aplicavam regimes
tarifários diferentes em se tratando de vários tipos de café. Com base nesta análise, o painel
definiu que: “[...] os grãos de café não-torrado e não-descafeinado listados na tarifa
80
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMÉRCIO. Relatório do Órgão de Apelação. Comunidades Européias-
Medidas que afetam o amianto e produtos relacionados”, WT/DS135/AB/R, 12 mar. 2001, §§ 88,89, 93-99.
“[...] a expressão produto similar (like product) se refere a um produto idêntico, isto é parecido em todos os
aspectos ao produto considerado, ou, na ausência de tal produto, de um outro produto que, apesar de o ser
parecido em todos os aspectos, apresente características estritamente parecidas àquelas do produto
considerado.”
52
alfandegária espanhola ([...]) deveriam ser considerados como ‘similares’, no sentido
constante do artigo I, § 1º.”
81
Buscando evitar essa margem de discricionariedade conferida na definição e
utilização dos critérios para definição de produtos similares, alguns critérios comuns têm sido
propostos e efetivamente utilizados nas apreciações do grupo especial, sendo que estes devem
ser conjugados a outras considerações de acordo com cada caso. Alguns deles são:
82
- apreciação das propriedades, natureza e qualidade dos produtos. Isto
inclui os parâmetros dimensionais, propriedades químicas, eficácia, solidez,
enfim, elementos que possam demonstrar que o produto é único em seu
gênero.
- apreciação da utilização final dos produtos. Isto implica em avaliar se
diferenças físicas podem ser desconsideradas, visto que não afetam a
similitude de produtos que podem ser substituídos. Desta forma, notamos
que substitutividade não é suficiente para a consideração do que seja um
produto similar.
- apreciação dos gostos e hábitos dos consumidores dos produtos em
questão. Este critério deve ser analisado com cautela, mas o mercado pode
mudar a concepção de produtos, mesmo que estes tecnicamente não sejam
similares, mas isto varia de país para país. Caso produtos considerados
similares de acordo com suas características técnicas, podem ser
considerados não-similares se comercializados em mercados diferentes,
como, por exemplo, bebidas com teor alcoólico diferente.
83
3.2.3 Análise da extensão imediata e incondicional
Por fim, deve ser feita a análise da extensão da vantagem de modo imediato
e incondicional, ou seja, independente de contrapartidas por parte dos terceiros beneficiados,
81
GATT. Relatório do Painel. Espanha Tratamento Tarifário do Café Não-torrado”, BISD 28S/102, 19 jun.
1981, § 4.11.
82
LUFF, David. Le droit de l’organisation mondiale du commerce. Analyse critique. Bruxelas: Bruylant,
2004, p. 47 e 48.
83
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMÉRCIO. Relatório do Grupo Especial.. Estados Unidos - Medidas
que afetam bebidas alcoólicas e bebidas a base de malte”, DS23/R IBDD S39/233, 19 jun. 1992, §§ 5.73 a
5.75.
53
ou de qualquer condicionante em relação aos mesmos.
84
Ressaltando, que a CNMF aplicada
no sistema multilateral de comércio é do tipo incondicional.
No caso “Estados Unidos Calçados não-emborrachados”, o relatório do
Painel deixou claro esta impossibilidade de exigência de contrapartidas ou condicionantes
para a extensão da vantagem, considerando que o artigo I, § 1º, não possibilita
contrabalancear o tratamento mais favorável em algum procedimento e o tratamento menos
favorável em outro. Caso isto fosse admitido, um Membro poderia se eximir de uma
obrigação de nação mais favorecida em relação a outro Membro, argumentando que
ofereceria tratamento mais favorável em algum outro caso, mesmo que relacionado a um
terceiro Membro, ou seja, a um membro fora da relação inicial. O painel considerou que:
“[...]tal interpretação da obrigação de nação mais favorecida do artigo I, § 1º, minaria o
próprio objetivo subjacente à incondicionalidade da obrigação.”
85
no caso Canadá - Medidas que afetam a indústria automobilística”, o
Órgão de Apelação concluiu que o Canadá estava aplicando medida incompatível com o
artigo I, § 1º, do GATT 1994, visto que conferia isenção tarifária a veículos automotores
provenientes de alguns países, que eram importados por um número limitado de produtores ou
distribuidores, obrigados a alcançarem requisitos de performance, excluindo veículos
automotores vindos dos demais membros. Ou seja, ao não conferir a mesma isenção tarifária,
de modo imediato e incondicional, aos demais membros, o Canadá estava desrespeitando a
obrigação de nação mais favorecida presente no artigo I, § 1º, do GATT.
86
Interessante ainda
neste caso é a consideração do Órgão de Apelação de que as condicionantes impostas pelo
84
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMÉRCIO. Relatório do grupo especial Canadá - Medidas que afetam
a indústria automobilística” WT/DS139/R, WT/DS142/R, 11 fev. 2000, § 10.23. Relatório do grupo especial
“Indonésia - Certas medidas afetando a industria automobilística” WT/DS54/R, WT/DS55/R, 2 jul. 1998, §
14.143 a 14.147.
85
GATT. Relatório do Painel, “Estados Unidos – Calçados não-emborrachados”, BISD 39S/128, 19 jun. 1992, §
6.11.
86
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMÉRCIO. Relatório do painel. “Canadá - Medidas que afetam a
indústria automobilística” WT/DS139/R, WT/DS142/R, 11 fev. 2000, § 10.23. Relatório do grupo especial
“Indonésia - Certas medidas afetando a industria automobilística” WT/DS54/R, WT/DS55/R, 2 jul. 1998, §
Relatório do Painel, “Canadá - Medidas que afetam a indústria automobilística”, § 85.
54
governo canadense não eram por si contrárias a obrigação de nação mais favorecida. Isto
porque o que implicava em um efeito discriminatório não eram essas condicionantes, apesar
de proibidas, e sim a não extensão imediata aos demais membros das isenções tarifárias a
produtos similares.
87
Após a análise destes três pilares que compõem a obrigação da nação mais
favorecida, será dado prosseguimento ao estudo da CNMF, conseqüente desta obrigação. Vale
ressaltar que todos estes princípios e a própria CNMF servem de base ao sistema da OMC,
estando presente em todo o conjunto normativo e prático. A partir do próximo capítulo a
CNMF será abordada de modo mais específico, mas sem ser menosprezada sua base
originária, qual seja de princípio de direito. Esta base confere-lhe legitimidade e força diante
dos demais dispositivos legais que com ela convivem, inclusive em relação aos acordos
bilaterais de caráter discriminatório.
87
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMÉRCIO. Relatório do painel. “Canadá - Medidas que afetam a
indústria automobilística” WT/DS139/R, WT/DS142/R, 11 fev. 2000, § 10.18 a 10.30 (não confirmado pelo
Órgão de Apelação WT/DS139/AB/R, WT/DS142/AB/R de 31 de maio de 2000, § 75 a 86).
55
CAPÍTULO 2 – A CLÁUSULA DA NAÇÃO MAIS FAVORECIDA
A Cláusula da Nação Mais Favorecida (CNMF) é a principal forma de
positivação do princípio da não-discriminação. Trata-se de um dispositivo jurídico utilizado
desde o início da formação de um direito multilateral econômico. Ao longo dos anos, este
dispositivo foi utilizado em diversos acordos, envolvendo áreas que iam muito além dos
temas comerciais. Todavia, a relevância de tal cláusula para o sistema de trocas internacional
foi positivada e reconhecida pela fixação desta logo no primeiro artigo do GATT, sendo
erigida como peça fundamental para o estabelecimento do novo regime de trocas de caráter
multilateral e liberalizante.
O GATT é um acordo que visa facilitar o comércio de mercadorias,
constituindo a base de referência para outros acordos relativos às trocas comerciais
internacionais. Aplicando-se às transações envolvendo todos os tipos de mercadorias,
apresenta como essencial em seus dispositivos assegurar a eficácia dos princípios de base que
figuram em seus artigos I, II, III e XI. O GATT é monolítico e não admite modulações de seus
dispositivos em função dos interesses dos Membros da OMC, buscando conferir aos mesmos
a redução dos obstáculos tarifários e restrições quantitativas, mas ao mesmo tempo, protege o
equilíbrio das negociações.
Em seu artigo I, § 1º, o GATT apresenta a CNMF, segundo a qual todas as
vantagens e privilégios acordados a um produto originário de um Membro da OMC devem
imediatamente e sem condições ser estendidos a todos os produtos similares originários dos
outros membros da organização. Tal cláusula mostra-se fundamental para todo o sistema
comercial multilateral, por impedir que produtos importados sejam discriminados entre eles,
em função de sua origem.
88
Além disso, a adoção da CNMF como referência ao sistema de
88
LUFF, David. Le droit de l’organisation mondiale du commerce. Analyse critique. Bruxelas: Bruylant,
2004, p. 42.
56
trocas, garante a fixação do modelo multilateral, onde todos se relacionam ou por vontade
própria ou por imposição da cláusula.
Sendo instrumento de concretização do princípio da não-discriminação, a
CNMF será o objeto de análise neste segundo capítulo. Serão avaliados alguns elementos
diretamente relacionados com a sua formação e considerados mais relevantes para a análise
como função, aplicação, natureza jurídica e interpretação. Inicialmente, a CNMF será
analisada dentro do contexto do direito internacional público, sendo considerados seu
histórico e desenvolvimento dentro do mesmo. Ainda nesse contexto serão avaliadas algumas
vantagens e desvantagens da adoção da CNMF, sendo esta análise de fundamental
importância para a compreensão da motivação para a inserção da mesma no GATT, assunto
tratado na segunda metade do capítulo.
O tratamento da CNMF no GATT/OMC será feito com base nesta análise
preliminar, sendo que mais uma vez o contexto histórico de adoção da cláusula dentro da
OMC será considerado para a compreensão do papel da CNMF dentro desta organização. Por
fim, será feita uma breve análise a respeito de algumas falhas e imprecisões verificadas no
momento de aplicação da CNMF dentro da OMC. Esta análise final ficará em aberto, sendo
complementada no último capítulo deste estudo, em que serão apresentadas algumas exceções
que o próprio sistema criou para a CNMF e que são também consideradas por alguns como
falhas ou brechas deste sistema.
1 A CNMF no direito internacional
A CNMF pode ser definida de várias formas, dependendo do viés que se
busca para a mesma.
89
Analisando-se a visão de um economista
90
e em seguida a de um
89
Existem doutrinadores que entendem que a denominação Cláusula da Nação Mais Favorecida seria inexata e
insuficiente, uma vez que nação seria um sujeito histórico e não de direito, além do que ela se aplica a
sujeitos o definidos como nação (o Vaticano, por exemplo). Os defensores deste ponto de vista sugerem a
57
internacionalista
91
, percebe-se que são apresentadas de modo diverso, mas com o mesmo
fundamento, qual seja de o-discriminar. Para a presente análise, a definição adotada é a de
que a CNMF é [...] uma estipulação pela qual dois ou mais Estados organizam sua
participação recíproca (em princípio) a todos os sistemas jurídicos mais vantajosos que eles
tenham elaborado ou que virão como conseqüência de acordos concluídos com outros
governos.”
92
A partir desta denominação, verifica-se que a constituição de uma CNMF e
sua utilização envolvem três categorias de partes: duas que se obrigam pelo tratado que
contém a cláusula e uma terceira a quem é conferida a vantagem em um primeiro momento.
Quem concede a vantagem é chamado de concedente, o terceiro que recebe em primeiro lugar
é o favorecido e a quem a vantagem se estende é o beneficiário. Juridicamente, podem figurar
como sujeitos das três categorias, todos os organismos que tenham capacidade de concluir
convenções comerciais, ou seja, que tenham independência absoluta em assuntos econômicos,
tanto internamente como para assuntos internacionais.
93
Isto se explica pelo fato de que nas relações comerciais internacionais e
principalmente no direito internacional público que as regula, o princípio norteador é o da
soberania econômica dos parceiros comerciais, ou em última análise, dos Estados. Logo, para
que sejam partes desta cláusula, tais organismos devem ter plena capacidade. Neste sentido, o
princípio ou regra da não-discriminação é o fio condutor das relações somente a partir do
denominação de “Cláusula da Unidade Econômica Internacional mais favorecida”, tendo em vista que assim
abrangeriam todos os sujeitos de direito capazes de se valer da mesma. EBNER, Josef. La clause de la nation
la plus favorisée en droit international public. Paris: R. Pichon et R. Durand-Auzias , 1931, p. 98.
90
Por exemplo, existe a definição de PERREAU segundo a qual “[...]cada um dos dois Estados contratantes têm
o compromisso de acordar ao outro, do ponto de vista de seu comércio, as condições mais vantajosas, que ele
tenha acordado ou que venha a acordar com uma terceira potência.”. PERREAU, Camille. Cours d’économie
politique. vol. II, 3. ed. Paris: F. Pichon et Durand-Auzias, 1925-1927, p. 117.
91
Para um internacionalista como M. FAUCHILLE a cláusula “[...]assegura que cada Estado contratantes
oferecerá as vantagens que foram já acordadas aos outros Estados por outros tratados de comércio.” In:
FAUCHILLE, Paulo. Traité de droit international public. Tome I. Paris: A. Rousseau, 1921-1925, p. 3.
92
SCELLE, Georges. Précis de droit de gens: principes et systématique. Parte 2. Les libertés individuelles et
collectives. L'élaboration du droit des gens positif, T. II. Paris: Sirey, 1934, p. 384.
93
SAUVIGNON, Edouard. La clause de la nation la plus favorisée. Grenoble: Presses Universitaires de
Grenoble, 1972. p. 2.
58
momento em que fosse explicitamente mencionado, reservando suas condições e termos
também a esta menção. Neste sentido tem sido o entendimento da doutrina chamada
voluntarista, já mencionada no primeiro capítulo.
De acordo com esta corrente doutrinária, na ausência de tratados ou
obrigações bilaterais ou multilaterais que disponham de modo diverso, a gica da legislação
internacional não é a da eqüidade econômica entre Estados ou atores no plano internacional.
A soberania econômica é plena, cabendo a cada ator neste cenário internacional decidir por si
mesmo, se quer dar tratamento igualitário a outros Estados estendendo privilégios a uns e
discriminando outros.
94
Desta forma, verifica-se que em se tratando de comércio
internacional, as regras de não-discriminação devem ser positivadas, não podendo existir um
caráter de presunção em relação à mesma. Se parceiros comerciais desejam estabelecer suas
relações com base no princípio da não-discriminação, devem estabelecer isto em seus tratados
de forma clara e explícita. Todavia, conforme mencionado no último capítulo, existem outras
correntes doutrinárias que pensam de modo diverso argumentando que tendo status de
princípio, deve se impor mesmo sem dispositivos que o mencionem de modo claro.
Neste estudo, parte-se do pressuposto e da prévia disposão de que o
princípio da o-discriminação e a conseqüente CNMF que o concretiza estão claramente
previsto no artigo I do GATT conforme verificado ao longo do primeiro capítulo.
Independente da corrente adotada, a cláusula está positivada e não é preciso tratar da hipótese
irreal de uma presunção da mesma. Desde o primeiro artigo do GATT, o legislador buscou
deixar claro que as relações comerciais estabelecidas no âmbito da OMC estão baseadas neste
princípio que estabelece que os países devem dispensar aos demais um tratamento não menos
favorável ao dispensado aos produtos de quaisquer outro Membro.
95
O fator que importa aos
94 SCHWARZENBERGER, George. Equality and Discrimination in International Economic Law, 25
Yearbook of International Affairs, 163 (1971).
95
Neste sentido, JACKSON, JOHN H. The World Trading System: Law and Policy of International Economic
Relations. 2. ed. Cambridge: MIT, 1999, p. 157. […] in the GATT the MFN obligation calls for each
59
países não é um tratamento favorável em si e sim a certeza de que este tratamento não será
menos favorável do que o dispensado a um terceiro Estado.
96
Mas o que é esta igualdade de tratamento? A chamada igualdade formal
consiste no direito de reclamação que um Estado tem de exigir um tratamento igualitário na
ausência de qualquer aspecto discriminatório. Mas a igualdade defendida pela CNMF o é
somente esta, existe também o aspecto material, visto que busca impedir a discriminação de
fato e não só a discriminação de forma, Devendo ser conferidas as duas facetas.
97
Importante ressaltar este aspecto, porque muito se confunde entre o caráter
formal do direito de reclamação e o objeto mesmo desta. Fala-se que caso não se constate
discriminação, não haveria o direito a reclamação, tendo em vista que a cláusula não teria sido
violada. Todavia, percebe-se que o fundamento principal da CNMF é ultrapassar a defesa de
um tratamento igualitário, uma vez que visa assegurar também a igualdade de condições e
oportunidades. Este é o aspecto de igualdade material defendido pela CNMF.
98
Verifica-se, portanto, que durante as negociações do tratado, onde a CNMF
está inserida, deve ser levado em consideração não só o aspecto formal de métodos de
estruturação das regras quando se busca estabelecer os efeitos destas, mas também a
igualdade material, sem a qual a visão dos dispositivos pode restar irreal, por ser
minimamente refletora do valor que se buscava atribuir aos mesmos.
99
Por fim, deve ser
ressaltado que aos beneficiários do tratamento da nação mais favorecida não é conferida uma
posição de exclusividade sobre os demais, como erroneamente se pode inferir a partir da
contracting party to grant to every other contracting party the most favorable treatment that it grants to any
country with respect to imports and exports of products”
96
TRUCHY, Henri. Cours d’économie politique. Vol. II. Paris : Librairie du Recueil Sirey (société anonyme),
1927-1929, p. 25.
97
ITO, N. La clause de la nation la plus favorisée. Paris: Les éd. Intern., 1930, p. 37-38.
98
La clause “procure l’égalité dans les conditions de concurrence sur les marchés extérieurs. » TRUCHY, Henri.
op. cit., p. 25.
99
Na concepção dos uniformistas, cuja interpretação dos tratados é feita de forma literal, a redação da CNMF
deveria ser feita de modo a deixar claro a abrangência da mesma, o que evitaria dúvidas a respeito da
igualdade material pretendida. EBNER, Josef. La clause de la nation la plus favorisée en droit
international public. Paris: R. Pichon et R. Durand-Auzias , 1931, p. 86.
60
denominação do termo. O que ocorre é o estabelecimento de tais beneficiários em de
igualdade com as nações mais favorecidas.
1.1 Funções da CNMF
Pela leitura do artigo I do GATT, a CNMF aplica-se a todas as medidas que
afetem o comércio de mercadorias, sendo que tais medidas podem ser sistematizadas em duas
categorias:
100
- medidas que afetam diretamente ou indiretamente a importação ou
exportação de mercadorias, o que inclui direitos de aduana, imposição de
medidas que bloqueiem a transferência de produtos, o modo de percepção
de tais barreiras e a regulamentação imposta para a aplicação de tais
barreiras;
- medidas que afetam as condições de circulação das mercadorias no
território do país importador. Seriam as taxas internas e as prescrições que
afetam a venda, transporte, distribuição e utilização dos produtos no país
importador.
Buscando impedir a ocorrência de tais situações discriminatórias
relacionadas à origem e destinação dos produtos, podem ser vislumbradas diversas funções
para a CNMF, o que o retira desta seu caráter de objetividade, mas ao contrário, demonstra
a versatilidade da mesma. Neste sentido, a CNMF pode ser vista como:
101
a) um processo de difusão de uma ordem jurídica: de acordo com este
conceito, esta cláusula unifica o direito positivo convencionado e alarga
progressivamente seu território de incidência. Isto se constitui em uma
manifestação jurídica do princípio da igualdade entre Estados.
100
LUFF, David. Le droit de l’organisation mondiale du commerce. Analyse critique. Bruxelles: Bruylant,
2004, p. 42. Vale ressaltar neste ponto, que apesar da cláusula está presente no GATT que é um acordo
específico de bens, esta também se aplica ao comércio de serviços e propriedade intelectual, conforme
mencionado no primeiro capítulo, quando foi tratada a abrangência da mesma.
101
SAUVIGNON, , Edouard. La clause de la nation la plus favorisée. Grenoble: Presses Universitaires de
Grenoble, 1972. p. 2 a 8.
61
b) uma técnica de adaptação dos tratamentos às mudanças de
circunstâncias: ela serve para corrigir e adaptar os dispositivos contratuais
aos novos contextos e situações. Não significa ter a função de revisar
tratados, assim como a extensão de um dispositivo a um beneficiário não
implica a criação de uma obrigação nova ao país concedente, visto que esta
já existia em relação ao terceiro.
c) uma norma do direito internacional econômico: é a concretização da
técnica de adaptação com uma dupla função, econômica e jurídica, que se
complementam na medida em que o aplicador do direito o faz verificando o
real sentido e finalidade econômica do dispositivo.
d) uma técnica particular de não-discriminação: existem várias formas
de se aplicar cnicas de não-discriminação, sendo que da CNMF deriva o
tratamento nacional e o tratamento não-discriminatório.
e) uma norma de direito convencional: não é um costume, mas deriva
dele, estando positivada nos acordos.
1.2 Histórico do desenvolvimento e utilização da CNMF no direito internacional
O comércio internacional possui uma história de evolução muito rica, o que
a torna interessante e útil para a análise ora proposta, uma vez que confere uma visão dos
elementos que antecederam a CNMF atualmente aplicada. Isso poderá demonstrar que a
aplicação da mesma pode ter um aspecto muito mais amplo do que o imaginado, o que servirá
para a verificação de sua real ou aparente inobservância pelos participantes dos acordos
bilaterais, foco central da análise.
Historicamente, o comércio internacional nasceu no dia em que o
estrangeiro deixou de ser tratado como inimigo, passando a ter um acolhimento mais
hospitaleiro e geográfico, considerando os países do oriente como os primeiros comerciantes
62
além-fronteira. Apesar de restritos e imperfeitos, remonta-se à antiguidade e primeira metade
da idade-média, o período de formação dos primeiros tratados.
102
Nos tratados
103
existem duas classes de partes ou países-signatários: os
ativos ou sujeitos do comércio (comerciantes) e os passivos ou objetos do comércio
(consumidores). O embrião da CNMF encontra-se na atitude dos primeiros comerciantes que,
estabelecendo concorrência entre si, demandavam aos países consumidores, que não possuíam
muita prática exportadora, que lhes estendesse os mesmos privilégios acordados com
comerciantes considerados “rivais”. Exemplo disto foi o acordo concluído em 8 de novembro
de 1226, entre o imperador Frederico II e o governante da cidade de Marseille, pelo qual o
último lhe concedia os mesmos privilégios anteriormente acordados com Pisa e Gênes.
104
Todavia, fator interessante deste primeiro momento é que em todos estes acordos de extensão
de privilégios se verificava um elemento de subordinação entre a nação consumidora em
relação à comerciante, o que mudou a partir do século XV, devido às novas descobertas
geográficas e técnicas e à conseqüente mudança de mentalidade entre os parceiros comerciais.
A partir do século XV nascem os grandes Estados que começam a
compreender a importância do comércio e a concorrência efetivamente é instalada entre eles.
Com o tratado concluído em 1417, entre Inglaterra e Borgonha, o tratamento da CNMF entra
em uma nova fase, não mais de subordinação e sim de coordenação. A reciprocidade formal é
alterada para uma reciprocidade material e se aproxima da idéia de equivalência. Entretanto, a
102
Vários acordos o citados como concluídos neste período entre Roma e Carthage em 509, 347 e 306, mas
nesta época o comércio exterior se fazia por meio de licenças, como concessões unilaterais revogáveis a
qualquer momento, segundo a vontade de quem concedeu. Somente mais tarde, nos séculos XIII e XIV,
encontramos os acordos bilaterais que acompanharam o apogeu das cidades marítimas italianas. No tempo das
cruzadas, Veneza haveria emprestado a Luís IX uma frota para transporte da tropa recebendo em compensação
direitos relacionados às conquistas das cruzadas na Palestina e Síria. VEILCOVITCH, V. Traités de
commerce, thèse , paris 1892, pp. 104 e ss. Apud EBNER, Josef. La clause de la nation la plus favorisée en
droit international public. Paris: R. Pichon et R. Durand-Auzias , 1931, p. 22.
103
A menção ao adjetivo “internacional” é desnecessária e a mesmo redundante, visto que o termo em si
implicaria no entendimento de seu caráter além-fronteira. Ou seja, todo tratado é internacional sendo incorreto
utilizar a expressão “tratado internacional”.
104
CAVARETTA. La clausola de la nazione la piu favorita. Apud SALMASLIAN, Armenag. La Clause de la
nation la plus favorisée, thèse pour le doctorat ès sciences économiques et politiques. Paris: E. Larose, 1921, p.
21.
63
extensão de benefícios e tratamento recíproco ainda é limitada por listas nominativas de
Estados parceiros. Foi somente a partir do culo XVII, quando a maioria dos Estados
participava das trocas, tornando-se impraticável oferecer benefícios a uns sem estendê-los aos
demais, tendo em vista a possibilidade de represálias por parte dos que se sentissem
prejudicados, que o sistema de monopólio foi substituído pelo de concessões comuns a todas
as grandes nações, sendo mais um fenômeno histórico de origem do moderno tratamento da
nação mais favorecida.
105
Entretanto, somente no século XVIII é que efetivamente surgiu a CNMF na
concepção moderna. Idéias mercantilistas e coloniais, baseadas em um protecionismo
exacerbado predominavam nesse período, enfraquecendo as relações de reciprocidade.
Todavia, a Inglaterra continuava adotando a CNMF em vários de seus tratados e outras nações
a acompanharam, como Dinamarca e Marrocos em tratados de 1776. Em 1778 surge uma
nova fase do desenvolvimento da CNMF com a declaração de independência dos EUA e sua
entrada no comércio internacional. A atuação dos EUA influenciou toda a política econômica
que guiava as relações comerciais entre os países, pois inseriu a concepção realista do
bussinessman presente desde o primeiro acordo com a França em 6 de fevereiro de 1778.
Esta concepção americana estava fundada na idéia da most perfect reciprocity and equality”,
ou seja, não bastaria prometer reciprocidade, as contrapartidas deveriam ser reais.
106
De 1830 a 1860, verificou-se a aplicação da cláusula, mas no formato
condicional
107
, isto porque acompanhando a independência dos EUA, ocorreu a Revolução
Francesa que modificou ainda mais o ambiente internacional propiciando a formação de
muitos conflitos. Neste período houve a predominância do protecionismo e a conseqüente
105
O tratamento da nação mais favorecida estaria também presente em vários tratados feitos entre as grandes
potencias e países do oriente. Todavia em vários deles a extensão dos benefícios se referem somente a relações
futuras e citam o tratamento de modo genérico sem mencionar a forma atual que temos da CNMF. EBNER,
Josef. La clause de la nation la plus favorisée en droit international public. Paris: R. Pichon et R. Durand-
Auzias , 1931, p. 30 e 31.
106
GLIER, V. Die Meistbegunstigungsklausel, 1905, p.25. Apud EBNER, Josef. Op. cit., p. 38.
107
A classificação entre cláusula condicional ou incondicional será vista mais a frente na seção 1.3. deste mesmo
capítulo, quando serão abordados os modos de aplicação da cláusula.
64
diminuição de acordos visando à liberalização comercial. Todavia, com a chegada da década
de 1860 e das idéias inglesas que apoiavam o liberalismo, a política comercial internacional
começou a mudar e a utilização da CNMF de forma incondicional começou a surgir nos
tratados dentro da Europa. Este foi um período importante para a CNMF, visto que a
Inglaterra aboliu as corn lawe o Ato de navegação, ambos protecionistas, e se engajou na
livre troca, adotando a cláusula incondicional. Esta atitude da Inglaterra é explicada pelo fato
de que quando um país decide apoiar o liberalismo ele acaba retirando ou reduzindo bastante
suas tarifas aduaneiras, o que acaba por restringir seu poder de barganha no caso de aplicação
de um formato condicional. Todavia, apesar de vários acordos concluídos entre 1860-1870
possuírem a cláusula em seu formato incondicional, ações protecionista continuam a
proliferar neste período.
108
Um dos efeitos desta convivência paralela entre a cláusula em seu formato
incondicional e políticas protecionistas é que a partir de 1902, a CNMF passa a ser
caracterizada por uma minúcia especializada, como o ocorrido com a renovação dos tratados
de comércio de 1892, que haviam expirado. Visando à renovação, a Alemanha elaborou uma
nova lei em dezembro de 1902 com uma nova tarifa dividida em 19 classes que continha 946
pontos com inúmeras subseções que chegavam a 1450, em oposição às 400 da tarifa
precedente. Este caráter de especificidade da aplicabilidade da cláusula funcionava como uma
válvula de escape dos efeitos que a mesma poderia produzir estando presente em outros
acordos, principalmente os relacionados à França. Especificando mercados e produtos
abrangidos pela cláusula, a Alemanha, que possuía bastante habilidade para tal, concluiu
vários tratados com Bélgica, Rússia entre outros. Alguns Estados a acompanharam enquanto
outros como os EUA continuaram somente com cláusulas de reciprocidade, conservando seu
protecionismo. A Inglaterra continuou adotando o modelo incondicional, mas em suma
108
EBNER, Josef. La clause de la nation la plus favorisée en droit international public. Paris: R. Pichon et R.
Durand-Auzias , 1931, p. 43-44 e 53.
65
podemos dizer que no fim do século XIX o protecionismo vigorava e as taxas subiram
bastante.
109
O período que engloba os anos de 1914 a 1919 foi marcado pelas
perturbações da guerra e a formação de barreiras dos Estados Aliados em relação aos impérios
centrais. Diante das várias lacunas nas economias nacionais, os Estados se dividiram em duas
correntes: os que acreditavam na autonomia econômica de cada país e outros que acreditavam
que as trocas e uma economia interligada seriam melhores alternativas, tendo em vista que
reforçariam a chamada “divisão do trabalho”. Nos tratados de paz estes vácuos foram
preenchidos por entendimentos unilaterais provenientes das potências aliadas e em regra
estavam associados ao tratamento da nação mais favorecida. Mas este tratamento era
concedido de modo unilateral e por um período não superior a cinco anos aos Estados aliados.
Com o fim da guerra, o sentimento nacionalista reforçou o protecionismo, falando-se até
mesmo em um renascimento do mercantilismo. A preocupação naquele momento era de
reerguer a indústria nacional e excluir as estrangeiras do mercado interno. Como resultado,
verdadeiras muralhas aduaneiras foram formadas, inclusive com participação da Inglaterra,
que, mesmo levantando a bandeira do livre comércio, aumentou suas taxas. Com vontade de
manter sua autonomia os Estados começaram a denunciar os tratados.
110
Em 1927, ocorreu a Conferência Econômica Internacional que influenciou
de modo considerável o Comitê Econômico da Sociedade das Nações (SDN – também
conhecida como Liga das Nações) e auxiliou na definição dos principais pontos e diretivas da
política comercial internacional, capazes de levar os Estados a uma ação concertada. Estas
recomendações ou diretivas preconizavam o retorno à clausula em seu formato ilimitada e
incondicional e previam uma cláusula de arbitragem auxiliar. Todavia, tais recomendações
109
EBNER, Josef. La clause de la nation la plus favorisée en droit international public. Paris: R. Pichon et R.
Durand-Auzias , 1931, p. 57 a 62.
110
SAUVIGNON, Edouard. . La clause de la nation la plus favorisée. Grenoble: Presses Universitaires de
Grenoble, 1972. p. 9-14.
66
não foram seguidas, em razão de vários entraves e falta de boa-vontade dos Estados para
prosseguirem com o projeto, apesar da proposição de três métodos de redução tarifária:
unilateral, bilateral e plurilateral.
111
Neste período existia a preocupação entre a convivência da CNMF e os
acordos bilaterais. A solução encontrada foi de estipular dispositivos que impedissem a
aplicação das vantagens presentes em acordos bilaterais aos plurilaterais. Verifica-se um
caráter protecionista neste entendimento, mas que é justificado pelo espírito da época.
Todavia, a partir de 1930, várias conferências começaram a se desenrolar buscando o
desarmamento econômico dos Estados que perceberam a necessidade de um acerto entre eles
a fim de melhorar o regime de produção e trocas comerciais, estreitando a cooperação,
expandindo os mercados e garantindo a paz entre as nações. Mesmo convenções sobre
agricultura foram realizadas para discutir a destinação dos excedentes, provenientes da crise
agrícola na Europa Central. Várias derrogações a CNMF foram propostas em favor dos países
europeus que produziam os produtos agrícolas no continente europeu.
112
O arcabouço histórico analisado não prossegue para o período pós Segunda
Guerra Mundial pelo fato de que neste nasceu o GATT 1947 que trouxe a CNMF no formato
utilizado até o momento atual. Todavia, relevante é a menção à utilização desta no período de
tensão entre EUA e URSS, constatando-se a possibilidade de utilizá-la como instrumento de
barganha entre potências mundiais.
O princípio da não-discriminação, configurado na obrigação do tratamento
da nação mais favorecida, é para os países socialistas uma segurança política: qual seja, a de
participarem de forma igualitária das relações econômicas internacionais, apesar das
111
Relatório apresentado em maio de 1928 pelo Comitê Econômico da SDN. In: ALLIX, Edgar. Science
financière: Les droits de douanes. Paris : Cours de droit , 1928/29, p. 258 e ss.
112
Na Conferência de Varsóvia de setembro de 1930, ficou estabelecido que devido a situação particular e grave
da produção agrícola européia uma derrogação da CNMF em favor dos produtores de tais bens representava o
único meio eficaz e prático, criando-se um banco hipotecário que concedia vantagens a estes. EBNER, Josef.
La clause de la nation la plus favorisée en droit international public. Paris: R. Pichon et R. Durand-Auzias,
1931, p. 71.
67
diferenças existentes entre os sistemas econômicos adotados. Além disso, a CNMF pode ser
considerada como uma necessidade para a convivência pacífica entre as nações, visto que
possibilita melhoras nas relações econômicas internacionais que conseqüentemente
influenciam as relações políticas. Todavia, os EUA se recusaram a conferir este tratamento a
URSS por mais de vinte anos por razões técnicas e políticas, apesar de tê-lo dado a outros
Estados socialistas, como Polônia e Iugoslávia. Sua argumentação técnica era de que em uma
economia de Estado a CNMF não se adapta, pois só traz vantagem a uma das partes, visto que
com a cláusula os parceiros controlam suas concorrências e isto é possível em economias
de mercado onde as decisões são tomadas por empresas ou economias privadas que buscam as
melhores condições. Isto é mais incerto em um país socialista e Washington não almejava
realizar trocas que parecessem vazias ou sem perspectivas. O segundo fator era de cunho
político e estava diretamente relacionado às mutações pelas quais os dois Estados passavam
no momento.
113
Ao longo da história, a CNMF foi utilizada em vários contextos e com
várias funções. Interessante esta contextualização para a realização de uma possível
comparação entre o reflexo do espírito de cada época na utilização da CNMF, demonstrando
que nem sempre foi o mesmo, apesar de formalmente parecer que a cláusula possui um
formato único.
Após esta análise de cunho estritamente histórica, o entendimento da CNMF
será aprofundado pelo estudo dos seus principais elementos constitutivos, quais sejam: o
modo de redação, aplicação, natureza jurídica, interpretação e vantagens e desvantagens da
mesma. Isto será basilar e fundamental para a análise da mesma no contexto da OMC.
113
SAUVIGNON, Edouard. La clause de la nation la plus favorisée dans les relations commerciales américano-
soviétiques. In: Revue Générale de Droit Internacional Public, tome 87, 1983 n. 3 Paris. Charles Rousseau
et Michel Virally.
68
1.3 Modos de redação da CNMF
A CNMF pode ser redigida de várias formas uma vez que o existe uma
CNMF única e sim estipulações diversas, de acordo com cada caso concreto, apesar de terem
a mesma finalidade de tratamento igualitário e não-discriminatório.
114
Neste sentido, a CNMF pode ser redigida de forma independente ou
dependente. Independente no sentido de que a cláusula em si é uma convenção, não
fazendo parte de um texto maior através de seus dispositivos como a dependente. Como
exemplo de redação independente existem os antigos acordos de troca de notas como o
concluído entre a Romênia e o Egito em 16 de abril de 1930.
na forma dependente, conforme mencionado, a cláusula faz parte de um
acordo ou convenção, juntamente com outros dispositivos e é a forma mais usual, inclusive
sendo a adotada pelo GATT. Neste caso, a cláusula é geralmente inserida nos artigos ou
dispositivos que compõem esta convenção maior.
115
Em relação à enunciação do princípio, a doutrina ainda apresenta métodos
para o mesmo. Para tanto, existem o método sintético e o analítico. De acordo com o método
sintético, a CNMF enuncia um tratamento da nação mais favorecida geral ou especificando
alguns privilégios já acordados e que serão garantidos aos outros. Entretanto, na forma
analítica, esta especificação é mais precisa e porta em si as conseqüências da utilização da
cláusula. Este todo analítico pode ainda ser subdividido em outros dois de acordo com a
demonstração das conseqüências de modo apartado
116
ou não
117
do artigo que enuncia a
cláusula. Pode existir ainda o caso em que são enunciadas somente as conseqüências sem
menção ao princípio da mesma.
114
ANZILOTTI, Dionisio. Cours de droit international. Paris: LGDJ, 1999, p. 430.
115
ITO, N. La clause de la nation la plus favorisée. Paris: Les éd. Intern., 1930, p. 106.
116
Como no tratado concluído entre o México e a Nicarágua em 1910. EBENER, Josef. La clause de la nation la
plus favorisée en droit international public. Paris: R. Pichon et R. Durand-Auzias , 1931, p 111.
117
Como no tratado concluído entre a ‘Zollverein’ e a Suíça em 13 de maio de 1869. Ibidem
69
Diante desta diversidade de modos de redação e aplicação da CNMF, um
projeto de redação uniforme foi depositado em 15 de fevereiro de 1929 durante os trabalhos
da 27ª sessão do Comitê Econômico da SDN e mencionava uma fórmula segundo a qual a
CNMF seria apresentada em termos gerais, podendo ser modificada de acordo com as
circunstâncias em cada período.
118
1.4 Modos de aplicação e efeitos da CNMF
Os modos de aplicação da CNMF são classificados como condicionais ou
incondicional, também denominado gratuito. O modo condicional prevê que para o tratamento
mais favorável alcançar um determinado parceiro, este deverá oferecer, em contrapartida,
alguma concessão comercial, que deve ser prévia, sendo uma combinação da cláusula de
reciprocidade com a da nação mais favorecida. Esta modalidade não se aplica a OMC, visto
que nem sempre os Estados têm necessidade de oferecer contrapartidas, o que acabaria
restringindo o comércio entre parceiros em condições equivalentes.
119
Relacionadas aos modos de aplicação da CNMF estão seus efeitos,
considerados sob um viés positivo e outro negativo. Considera-se que o efeito será positivo
quando a cláusula for aplicada de modo a obrigar cada parte contratante a acordar com as
demais os mesmos favores que ela tenha acordado ou acordará com qualquer outro Estado.
o efeito negativo, define a aplicação da cláusula de modo a obrigar os Estados-parte a
118
Para maiores informações ver SOCIEDADE DAS NAÇÕES. Relatório do Conselho sobre os “Trabalhos da
vigésima sétima Sessão do Comitê Econômico”, 23 de janeiro de 1929.
119
Existiria ainda a categorização desta Cláusula em unilateral ou bilateral, sendo que ordinariamente se aplica a
bilateral. A unilateral significa que só uma das partes se beneficia da Cláusula. Esta modalidade é mais rara,
tendo sido utilizada segundo registros históricos em Acordos onde o havia conhecimento de benefícios
equivalentes, como no caso do comércio entre as nações industrializadas e o Oriente no período em que o
comércio de exportações era praticamente desconhecido para os últimos. A prática da OMC e de toda a
utilização da CNMF demonstra que o modo bilateral é o que vigora em absoluto. Vale ressaltar que casos
em que mesmo sendo bilateral somente uma parte se beneficia, sendo o chamado bilateralismo de direito
traduzido por um unilateralismo de fato, como no caso de um dos contratantes ter seu movimento exportador
muito mais desenvolvido do que a outra parte. Conforme demonstrado no histórico de formação da CNMF, as
especificações podem funcionar como válvula de escape para este bilateralismo de tratamento. EBNER, Josef.
La clause de la nation la plus favorisée en droit international public. Paris: R. Pichon et R. Durand-Auzias,
1931, p. 104-107.
70
estenderem da mesma forma os chamados “desfavores” que oferece aos co-contratantes aos
terceiros que buscam se beneficiar da CNMF. A partir da compreensão deste efeito, nota-se
que cada parte deve “prejudicar” o terceiro na mesma medida que o faz com o co-contratante
e ao mesmo tempo existe um tratamento mínimo estabelecido. Estes dois efeitos estão
compreendidos na modalidade incondicional eo utilizados na redação da mesma.
120
O campo de aplicação da CNMF varia bastante, podendo estar relacionado a
matérias comerciais, aduaneiras, consulares ou de direito privado. Os campos que mais se
relacionam com o trabalho proposto são os dois primeiros que englobam as trocas comerciais
e suas taxas e modos de cobrança dos direitos aduaneiros, todavia não devemos desconsiderar
a extensão de aplicação desta cláusula, que pode inclusive ser utilizada na proteção de
propriedades artísticas e culturais ou em conflitos de normas e competências.
121
1.5 Natureza jurídica da CNMF
A natureza jurídica da CNMF é de dispositivo convencional que representa
a expressão legal de um entendimento feito, em geral, bilateralmente entre dois atores
internacionais. Isto é mais bem compreendido pela análise de que na conclusão do tratado as
partes manifestando suas vontades concedem elementos de modo recíproco. Desta troca
resultam obrigações de fazer e o-fazer, sendo que as de fazer englobam o tratamento da
nação mais favorecida, ao passo que as de não-fazer estão diretamente relacionadas ao
entendimento estabelecido.
122
Deste modo entende-se que o objeto da obrigação assegurada pela CNMF
são os privilégios acordados com terceiros e que devem ser estendidos aos co-contratantes.
Tais privilégios podem estar previamente definidos na enunciação da CNMF, assim como a
120
SAUVIGNON, Edouard. La clause de la nation la plus favorisée. Grenoble: Presses Universitaires de
Grenoble, 1972. p. 28.
121
Ibidem, p. 31-74.
122
ITO, N. La clause de la nation la plus favorisée. Paris: Les éd. Intern., 1930, p. 413.
71
definição de quem são estes terceiros e a partir de quando são oferecidos, ou ignorados no
momento do estabelecimento da mesma. Caso sejam pré-estabelecidos forma-se uma espécie
de contrato comutativo, mas caso sejam ignorados, constitui-se uma espécie de contrato
aleatório.
123
Em geral, a CNMF não especifica os privilégios e nem os terceiros,
utilizando uma base ampla de aplicação. No caso específico da OMC, a CNMF está
estabelecida dentro de um universo de obrigações de meio e de resultado, sendo que seu
resultado final, qual seja o da extensão de privilégios, é encarado como uma obrigação de
resultado.
124
Enfim, o que deve ser especificado ainda em relação a CNMF é que esta não
cria uma regra de direito, apesar da opinião contrária de alguns autores
125
, mas pelo contrário,
faz parte de um arcabouço jurídico, sendo reservado a ele um papel de sujeição a este.
1.6 Interpretação da CNMF
De acordo com o tratado em que é estabelecida, a CNMF pode ser
interpretada de várias formas. A SDN se preocupava com a interpretação da mesma deste
1928, quando seu Comitê Econômico já mencionava a necessidade de uma doutrina precisa
relacionada à interpretação da CNMF nos diversos acordos internacionais. Sendo assim, um
conjunto de regras gerais foi estabelecido comportando três grandes enunciados:
123
Esta subdivisão entre contratos comutativos ou aleatórios se daria de acordo com a determinação das
prestações, sendo que se as obrigações de cada parte forem certas e determinadas desde a formação do
contrato, teríamos um contrato comutativo, ao passo que se tais obrigações não forem conhecidas no momento
da formação do contrato, dependendo de elementos futuros, teríamos um contrato aleatório. BIHR, Philippe.
Droit civil general. 15. ed. Série droit prive. Paris: Dalloz, 2004, p. 170 e 171.
124
Obrigação de meio se contrapõe a obrigação de resultado, uma vez que em relação a última ocorre violação se
o resultado não é alcançado, independente do meio, ao passo que na obrigação de meio, a necessidade de
observância do emprego de meios especificamente determinados, não cabendo ao obrigado a escolha.
SALMON, Jean. Dictionnaire de droit international public. Bruxelas: Bruylant/AUF, 2001, p. 766 e 769.
125
Schweinfurth considera que a CNMF pode se tornar uma norma ou como considerado por ele um ‘tratado-lei’
caso os Estados acordem de forma única uma interpretação para a mesma e a apliquem de modo irrestrito.
SCHWEINFURTH, Die Meislbegunstigungs Klausel, 1911. Apud EBNER, Josef. La clause de la nation la
plus favorisée en droit international public. Paris: R. Pichon et R. Durand-Auzias , 1931, p. 132.
72
a) a cláusula deve ser considerada no sentido da época em que foi
estipulada;
b) a cláusula deve ser interpretada segundo a natureza do tratado;
c) a cláusula deve ser interpretada em relação a seus efeitos e segundo o
teor de sua redação.
126
O primeiro enunciado compromete a interpretação da cláusula ao período
em que foi estabelecida oferecendo um aspecto de segurança jurídica para as partes
beneficiárias da mesma, uma vez que busca evitar que a aplicação da cláusula seja maculada
pela mudança de contexto. No caso da OMC, por exemplo, a CNMF foi estabelecida de modo
incondicional e de acordo com uma ideologia
127
liberal. Caso haja um retorno a um período
de protecionismo exacerbado nos dias atuais, o espírito liberal é o que deve prevalecer e ser
considerado.
Já o segundo enunciado restringe a utilização da cláusula à matéria do
acordo no qual a mesma se insere, não podendo uma cláusula utilizada para assuntos
econômicos, ser estendida para questões diplomáticas, por exemplo.
O terceiro e último enunciado, coloca em evidência a importância da
redação e dos efeitos pretendidos quando de sua elaboração, estando relacionado à verificação
da compatibilidade entre a matéria reivindicada e as categorias de interesse pelos quais o
tratamento foi estipulado.
126
EBNER, Josef. La clause de la nation la plus favorisée en droit international public. Paris: R. Pichon et R.
Durand-Auzias , 1931, p. 135-138.
127
A definição de ideologia não é única. Entre os diversos significados para o termo temos um considerado
“fraco” e outro “forte” apresentados por Norberto Bobbio. O significado fraco seria de que a ideologia
representa “um conjunto de idéias e de valores respeitantes à ordem pública e tendo como função orientar os
comportamentos políticos coletivos”. Em contrapartida, o forte partiria do conceito de ideologia de Marx, e
seria entendida como “[...] falsa consciência das relações de domínio entre as classes”. Esta segunda acepção
seria claramente diferente da primeira pelo fato de centrar a definição na noção de falsidade, que é modificada,
corrigida e alterada pelos autores que se valem deste significado. Sendo assim, no significado fraco seria um
conceito neutro ao passo que no significado forte possuiria uma carga negativa. No caso específico, em que
tratamos da ideologia no momento de definição da CNMF nos acordos da OMC, ambos os significados podem
ser aplicados. BOBBIO, Norberto et al. Dicionário de Política. v. 1. 4. ed. Brasília: EdUNB, 1992, p. 585.
73
A interpretação feita à CNMF influirá sob os efeitos determinados para a
mesma, uma vez que estes efeitos podem se pronunciar no espaço e no tempo. No espaço ela
se aplica a todas as partes contratantes ou Membros do tratado que a enuncia. no fator
tempo, deve se considerado que, apesar da maioria da doutrina dispor que esta cláusula se
aplica a privilégios acordados tanto anteriormente como posteriormente ao seu
estabelecimento, existem autores que defendem a teoria de que a mesma o engloba as
vantagens concedidas ulteriormente. Neste ponto, vale ressaltar que uma exceção de modo
praticamente uniforme na doutrina de que as vantagens posteriores a título oneroso não são
alcançadas pela cláusula.
128
Logo, pode-se dizer desde então que caso se conceda em um
acordo bilateral uma vantagem a título oneroso, os demais membros da OMC não podem
reinvidicá-la para si.
Por fim, uma última consideração a respeito dos efeitos da CNMF deve ser
apresentada, que é a da situação do contrato original perder seus efeitos. Neste caso, o
beneficiário da cláusula também perde a vantagem adquirida uma vez que cessante causa,
cessat effectus. Logo, se o privilégio foi concedido simplesmente e inteiramente em função da
cláusula, está diretamente subordinado à sua existência. Para evitar isso, o Estado deve
estabelecer um tratado a parte que se origina do benefício conseqüente da cláusula, mas não
está vinculado a esta, sendo independente da continuação das vantagens em relação ao
terceiro.
129
1.7 Vantagens e desvantagens da adoção da CNMF
Quando as partes de um tratado decidem inserir a CNMF em seus
dispositivos, o fazem tendo em vista a vantagem que esta acarreta. A questão que se coloca é
128
EBNER, Josef. La clause de la nation la plus favorisée en droit international public. Paris: R. Pichon et R.
Durand-Auzias , 1931, p. 149.
129
Ibidem, p. 150.
74
se esta cláusula possui uma eficácia tal para assumir o papel de um verdadeiro instrumento de
garantia de igualdade entre os parceiros. Para os liberalistas a adoção da CNMF é totalmente
defendida, mas não são categóricos em admitir que esta será suficiente para garantir a política
aduaneira entre os parceiros no sentido da liberdade de mercado, uma vez que práticas
protecionistas podem ser, e em verdade o, desenvolvidas mesmo pelos parceiros que
figuram em acordos com a cláusula claramente estipulada.
A CNMF tem um papel de facilitador do mercado no sentido que auxilia no
desenvolvimento deste. Isto porque ela estabelece aos países signatários do acordo condições
de concorrência praticamente igualitárias; fixa uma tarifa convencional uniforme para as
importações de todos os demais titulares da cláusula; evita uma mudança brusca das
condições de concorrência, provendo maior estabilidade às relações comerciais; facilita os
procedimentos aduaneiros a partir do momento que evita a adoção de várias tarifas para
diversos países; os direitos aduaneiros e as tarifas em geral tendem a diminuir.
130
Todavia, apesar de todas estas vantagens para as relações comerciais
internacionais, existem algumas desvantagens na adoção da cláusula, como o fato de a
CNMF, na forma incondicional, poder ser utilizada como um obstáculo para medidas
liberalizantes, por generalizar um privilégio, adquirido por um país, via fornecimento de
concessões, sendo que para alguns beneficiários, esta extensão se dará mesmo sem sua
vontade. Os principais defensores desta linha contrária à adoção da CNMF acreditam que a
reciprocidade é o elemento mais importante no estabelecimento das relações comerciais,
sendo que a cláusula aplicada de modo incondicional não proporciona um tratamento
recíproco. Por outro lado, a corrente defensora do uso da cláusula menciona que esta evita a
130
SAUVIGNON, Edouard. La clause de la nation la plus favorisée. Grenoble: Presses Universitaires de
Grenoble, 1972, p. 10-14.
75
generalização injustificada das tarifas convencionais, podendo inclusive conduzir todo o
sistema a um colapso em virtude da confusão de aplicação das mesmas.
131
Diante destes argumentos, percebe-se que ambos os lados possuem sua base
de justificativa aceitável, uma vez que realmente o mais justo é a cláusula condicional, onde o
país efetivamente “paga pelo benefício recebido, além de forçar os protecionistas a
concluírem os tratados em condições de maior paridade. Todavia, a reciprocidade pura
também pode ser taxada como desigual, uma vez que desigualdades naturais vão continuar
existindo e de fato se fortalecendo em virtude da ausência de poder de barganha e de troca de
alguns parceiros em detrimento de outros.
Logo, verifica-se que mais vantagens existem do que desvantagens para a
aplicação da cláusula de forma incondicional, tendo em vista a disparidade de nível de
desenvolvimento dos parceiros e o espírito buscado pela mesma de oferecer a todos um
tratamento ao menos próximo do equânime.
2 A CNMF no GATT/OMC
Tendo por objetivo assegurar aos seus beneficiários uma igualdade perante
terceiros, a CNMF inserida no contexto da OMC tem por função última promover a
liberalização do comércio de forma generalizada e com bases igualitárias. Estes são
justamente os pontos nodais de todo o sistema, pois garantem a natureza multilateral e
conferem a todos uma liberalização na mesma medida.
Ao estabelecer a CNMF como cláusula incondicional a orientar o sistema de
trocas internacionais, os Estados deixaram de confiar somente no requisito da reciprocidade,
passando a contar com um novo instrumento garantidor de relações equânimes. Vale ressaltar
que os países não-membros não podem invocar o benefício da CNMF, visto que a essência
131
VEILCOVITCH. Les traités de commerce, Thèse, Paris 1982, p. 424. Apud EBNER, Josef. La clause de la
nation la plus favorisée en droit international public. Paris: R. Pichon et R. Durand-Auzias , 1931, p. 190.
76
das uniões internacionais como a OMC reside na reciprocidade, além do que os dispositivos
de um tratado só incidem sobre aqueles que efetivamente são parte destes.
Partindo do pressuposto de que a OMC é constituída sob uma base de
acordos multilaterais
132
, segundo os quais as partes contratantes ou no caso específico os
Membros são em número superior a dois, sendo todos juridicamente iguais, a CNMF se
analisada no trânsito” destes acordos, considerando ainda que esta não é exclusividade de
acordos multilaterais, podendo existir e efetivamente existindo também em acordos
bilaterais.
133
Em um primeiro momento será visto o contexto de adoção desta cláusula pelo
sistema GATT/OMC, para em seguida proceder-se à análise da cláusula em si e das diversas
falhas e imprecisões relacionadas à mesma e que podem servir como porta de aceitação dos
tão temidos acordos bilaterais.
2.1 Contexto histórico de adoção da CNMF pelo GATT/OMC
O Acordo Geral de Tarifas e Comércio, GATT, no qual a CNMF está
inserida foi constituído a partir de uma série de negociações, sendo que em paralelo foram
realizadas negociações a respeito da conclusão de um acordo mais largo, no contexto da Carta
de Havana ainda em 1947. A Carta de Havana para a formação de uma Organização
Internacional do Comércio (OIC) foi negociada durante os anos de 1946-1948, mas nunca
132
A doutrina enuncia uma classificação entre tratados essencialmente multilaterais, que seria o caso da OMC e
tratados mini-multilaterais que seriam os concluídos por vários Estados, mas na realidade ele se relaciona a um
tratado bilateral como no caso do Tratado de Versailles, que teria sido concluído entre dois grandes grupos de
Estados. ITO, N. La clause de la nation la plus favorisée. Paris: Les éd. Intern., 1930, p. 393 e ss.
133
Conforme verificado pela análise histórica de utilização da cláusula pelos Estados no cenário internacional, a
prática de inseri-la nos acordos bilaterais de comércio existe desde o século XVI, sendo que o GATT ao adotá-
la em 1947, a multilateralizou, ou seja, tornou obrigatória para todos as suas partes contratantes. COLARD-
FABREGOULE, Catherine. L’essentiel de l’Organisation Mondial du Commerce (OMC). Paris: Gualino,
2002, p. 19.
77
entrou em vigor. o GATT, foi negociado durante os anos de 1946-1947, sendo
provisoriamente aplicado a partir de 1º de janeiro de 1948.
134
Ao longo deste período de negociações, os principais Estados apresentaram
projetos nos quais se encontravam proposições a respeito de medidas a serem tomadas para o
fim último de liberalização e reconstrução do comércio internacional. Entre as mais
conhecidas estão o US Draft
135
, o London and New York Drafts
136
e o Geneva Draft
137
. Todos
estes trabalhos foram desenvolvidos e apresentados durante as Sessões do Comitê
Preparatório das Nações Unidas, formadas na ocasião de realização da Conferência para o
Comércio e Emprego desta mesma organização. A análise dos trabalhos preparatórios de
inserção da CNMF demonstra que nestes projetos, os diversos Estados faziam menção a
esta cláusula, como o artigo 16 da Carta de Havana, o artigo do US Draft, o artigo 14 da
London and New York Drafts e o artigo 16 da Geneva Draft.
O parágrafo do artigo I do GATT, onde a CNMF está claramente
mencionada, foi formulado com base no modelo da cláusula da nação mais favorecida da Liga
das Nações, sendo que as referências a pagamentos de transferência internacional e taxas
internas foram introduzidas pelo modelo proposto pelos Estados Unidos no US Draft. Além
disso, neste mesmo documento, havia a proposta de exceções em relação a preferências
oferecidas para algumas taxas de importação. De acordo com o artigo 8º, a margem de
preferência não poderia crescer acima do nível existente em de julho de 1946 e poderia ser
objeto de negociação para sua eliminação.
o London Draft Chater mencionava exceções como as preferências em
relação a territórios que em de julho de 1939 mantinham relações de soberania
134
Mesmo tendo sido negociado como um acordo provisório, o GATT vigorou a o ano de 1995, quando foi
substituído pela OMC.
135
Durante os trabalhos preparatórios do Comitê, as Nações Unidas utilizavam o símbolo “E/PC/T” ao mencionar
tais documentos, todavia a partir da instituição do GATT e nos anexos do mesmo, estes são mencionados
como “EPCT”. O US Draft Charter pode ser encontrada sob a referência EPCT/C.II/25.
136
EPCT/33 e EPCT/34.
137
EPCT/186
78
compartilhada, ou ainda em relação a preferências imperiais ou a preferências estabelecidas
no acordo entre Estados Unidos e Cuba.
O artigo I do GATT sofreu um processo de emenda somente uma vez, em
1948, por meio do Protocolo de Emenda da Parte I e do artigo XXIX, na qual foi inserido o §
3º. Outras emendas foram discutidas nas Sessões de Revisão de 1954-1955, sendo grande
parte relacionada a margens de preferência e perdas aceitáveis.
138
A cláusula vigente no contexto da OMC vale-se do modo de aplicação
incondicional justamente por não demandar contrapartidas aos parceiros que se beneficiarão
da mesma. Todavia, durante a vigência do GATT 1947, esta cláusula variou um pouco, sendo
denominada de code conditional
139
. Isto porque com o fim da Rodada Tóquio (1973-1979)
foram concluídos acordos que se distinguiam entre codes ou side agreements, que abrangiam
barreiras não-tarifárias ao comércio. Buscando evitar que os parceiros não-signatários destes
últimos se beneficiassem dos mesmos, o que poderia ocorrer caso mencionassem a CNMF,
ficou estabelecido que a mesma se aplicaria aos codes. Com a OMC, isso foi superado,
uma vez que, de acordo com a sistemática do pacote único adotado por esta organização
140
,
todos os acordos passaram a ser obrigatórios com exceção do Anexo IV, que trata dos acordos
plurilaterais: Acordo sobre Comércio de Aeronaves Civis e Acordo sobre Compras
Governamentais.
138
GATT, Analytical Index: Guide to GATT Law and Practice. 6. Ed. 1994, p. 59.
139
JACKSON, JOHN H. The World Trading System: Law and Policy of International Economic Relations. 2.
ed. Cambridge: MIT, 1999, p. 162.
140
A OMC inovou em relação ao GATT, adotando o chamado pacote único’, segundo o qual todos os membros
da organização são, obrigatoriamente, parte de todos os acordos estabelecidos no âmbito desta, ou seja, todos
os Estados-membro o parte de seu acordo constitutivo e anexos, com exceção ao anexo IV, em que cada
membro possui a prerrogativa de participar ou não, sendo classificados como acordos plurilaterais. Tal
obrigatoriedade estaria estabelecida no artigo II:2 do Acordo Constitutivo da OMC. O sistema no antigo
GATT era o chamado GATT à la carte, expressão utilizada por Virgile Pace, segundo a qual o Estado poderia
escolher o acordo que desejasse participar, além de poder optar em relação às exceções e à possibilidade de
invocação de direitos pré-existentes ao GATT (direito de avô), muito utilizada como válvula de escape quanto
ao cumprimento de obrigações assumidas. PACE, Virgile. L’Organisation Mondiale du Commerce et le
renforcement de la réglementation juridique des échanges commerciaux internationaux. Paris:
L’Harmattan, 2000, p. 90.
79
A CNMF prevista no artigo I do GATT convive com diversas outras
cláusulas de nação mais favorecida ou não-discriminação estabelecidas em outros dispositivos
do acordo como regulamentos restritivos internos (artigo III, § 7º), filmes cinematográficos
(artigo IV, (b)), trânsito de bens (artigo V, §§ e ), marcas de origem (artigo IX, § ),
restrições quantitativas (artigo XIII, § ), comércio estatal (artigo XVII, § 1º), assistência
governamental para estabelecimento de uma indústria particular (artigo XVIII, § 20) e
medidas essenciais de aquisição e distribuição de produtos em pequenas provisões (artigo XX
(j)).
Por fim, vale a análise do artigo I do GATT com outros acordos
internacionais ao longo deste período histórico de negociações, visto que demonstra a
preocupação com a legitimidade da CNMF desde este momento. Em 1949, durante a Rodada
de Annecy, discutiu-se que a redução de tarifas estabelecidas em acordos bilaterais, em razão
da aplicação da CNMF poderia ser inconsistente com os compromissos assumidos nos
primeiros, sendo que poderiam ser mantidas em razão das margens de preferência oferecidas
pelo próprio GATT. Nesta ocasião, as partes contratantes procederam a uma votação em
relação a estas margens de preferência”, segundo a qual ficou estabelecido inter alia que
[...]a determinação dos direitos e obrigações entre os governos estabelecidas em acordos
bilaterais não eram matéria de competência das Partes Contratantes”. Entretanto, deixou-se
estabelecido que esta decisão fazia referência somente à determinação de direitos e obrigações
entre as partes do acordo bilateral e surgidas em função deste. Sendo da competência das
Partes Contratantes a determinação de quando um ato estabelecido em um acordo bilateral
estaria ou não em conflito com o Acordo Geral.
141
Interessante notar o tratamento oferecido à CNMF neste contexto, sendo que
apesar de não ter passado por muitas modificações, foi um dispositivo adaptável às diversas
141
GATT, Analytical Index: Guide to GATT Law and Practice. 6. Ed. 1994, p. 45.
80
situações. Atualmente, a CNMF continua em vigor na OMC, todavia é bastante criticada em
razão de suas imprecisões que na maioria das vezes são solucionadas pelas decisões de seu
Órgão de Solução de Controvérsias, constituindo importante fonte de aplicação da CNMF.
2.2 Imprecisões relativas à aplicação da CNMF
A aplicação da CNMF no contexto do GATT/OMC é cercada por uma série
de imprecisões. Mesmo tendo a OMC estendido a aplicabilidade da mesma a todos seus
Membros e acordos, ainda existem alguns problemas na aplicação desta cláusula, estabelecida
da seguinte forma no artigo I do GATT:
“[...] qualquer vantagem, benefício, privilégio ou imunidade concedida por
qualquer [Membro] a qualquer produto originado em ou destinado a
qualquer outro país será conferido imediatamente e automaticamente aos
produtos equivalentes originados em ou destinados aos territórios de todos
os outros [Membros]”.
O caráter amplo e impreciso da cláusula começa pelo fato de se utilizar o
termo “qualquer”. Isto implica dizer que mesmo taxas consulares estariam incluídas, sendo
que em 1948, este argumento foi defendido pelo Chairman das partes contratantes do GATT
que considerou que “a aplicação por Cuba de uma taxa consular de cinco por cento a certos
países e dois por cento a outros, era inconsistente com o artigo I”.
142
Outra imprecisão ainda relacionada com o texto legal está relacionada à
definição da origem do produto, ou seja, sua nacionalidade. Este é um ponto o dúbio que na
Rodada Uruguai se concluiu um Acordo sobre Regras de Origem (ARO do inglês Agreement
on Rules of Origin), mas que não conseguiu esclarecer os critérios utilizados para a definição
da origem do produto deixando esta incumbência para os países importadores.
Os critérios tradicionalmente utilizados têm sido o da “transformação
substancial” e o do valor adicionado”. O primeiro define como origem o país exportador
142
GATT, Analytical Index: Guide to GATT Law and Practice. 6. Ed. 1994, p. 28.
81
onde uma transformação substancial tenha ocorrido com o bem. Ou ainda, que tenha ocorrido
neste país exportador uma transformação tal que a classificação tarifária do bem reste
alterada. Já o segundo critério baseia-se no valor adicionado ao produto ou bem exportado, ou
seja, a definição do país exportador originário do produto levará em conta se este foi objeto de
alguma adição de valor.
143
Esta não é uma questão de cunho estritamente jurídico, existindo
regras técnicas que o orientam.
Ainda em relação à aplicabilidade e mesmo efetividade de tal dispositivo,
encontra-se o fato de que, conforme explicado no primeiro capítulo desta análise, quando o
legislador estabeleceu este dispositivo, não levou em consideração a subjetividade do termo
produto equivalente
144
ou like product (original inglês), que na linguagem técnica é conhecido
como produto similar.
Classificar um produto como similar a outro é uma tarefa que parte de um
trabalho interpretativo, que em geral varia muito. Isto pode servir de oportunidade para se
promover discriminação de produtos, mesmo que tenham de ser verificados de acordo com
suas características próprias e que estas devam ter uma carga de objetividade. Os painéis da
OMC demonstram a tendência de interpretação restritiva, mas esta não é a regra.
145
Vale
ressaltar que a melhor interpretação para o termo é entender produto similar como bens de
mesma natureza e não bens idênticos, uma vez que esta expressão pode trazer muitos
problemas de aplicação e interpretação da CNMF
Apesar destas diversas imprecisões que rondam a positivação da CNMF no
âmbito da OMC, ela tem plena vigência e orienta o sistema de modo a evitar práticas
discriminatórias. Todavia, deve ser esclarecido que sendo uma cláusula a orientar um sistema
143
LAWSON, Michael Nunes. Do princípio da não-discriminação no comércio internacional: a cláusula de nação
mais favorecida e a obrigação de tratamento nacional. Jus Vigilantibus, Vitória, 13 jul. 2005. Disponível em:
<http://jusvi.com/doutrinas_e_pecas/ver/16394>. Acesso em: 14 mar. 2006.
144
A tradução de like product como produto similar é considerada mais técnica, sendo que neste trabalho ora
falaremos em produto equivalente, ora em produto similar, sendo ambos considerados sinônimos.
145
WTO. Working Group on the Interaction between Trade and Competition Policy. The Fundamental WTO
Principles of National Treatment, Most-Favoured-Nation Treatment and Transparency. 14 April 1998.
WT/WGTCP/W/114, § 48.
82
tão diversificado e por envolver membros com características econômicas, políticas e
jurídicas, muitas vezes díspares, esta cláusula busca diminuir o fosso existente entre estes
Estados, sendo que para isto necessita ser flexibilizada e mesmo desrespeitada em alguns
casos, assunto este tratado no último capítulo em que se verificará a real ou ilusória
incompatibilidade dos acordos bilaterais com esta.
83
CAPÍTULO 3 A PROLIFERAÇÃO DOS ACORDOS COMERCIAIS
BILATERAIS DENTRO DO SISTEMA MULTILATERAL DE
COMÉRCIO
Os Estados têm firmado um número crescente de acordos comerciais
bilaterais, nos quais dispõem de normas bilaterais distintas das normas multilaterais para cada
tema de comércio internacional, criando, portanto, exceções ao princípio da não-
discriminação. A importância destes acordos suscita dúvida sobre se o sistema comercial
multilateral estaria sendo erodido pela violação a uma de suas estruturas basilares.
O fenômeno da proliferação dos acordos comerciais bilaterais dentro do
sistema multilateral de comércio vem sendo analisado por diversos estudiosos como um fator
de enfraquecimento da CNMF, visto que, o regime de característica não-discriminatória
estaria sendo cada vez mais regulado por instrumentos restritivos e contrários à lógica de não
discriminar.
146
Todavia, considera-se o pressuposto de que o direito internacional, ao
contrário do sistema doméstico, não deve ser entendido como um conjunto sistemático de
regras compondo um todo harmônico. Pelo contrário, este ramo do direito, muitas vezes é
considerado anárquico e guiado mais pela lógica do poder e dominação do que estritamente
pelo entendimento restritivo e legal. Apesar da Convenção de Viena de 1969 dispor em seu
art. 31, § alínea “c” que, como regra geral de interpretação devem ser consideradas, além
do contexto, quaisquer outras regras de direito internacional aplicáveis ao caso particular,
transmitindo o entendimento de que as regras funcionam em uma rede interligada, o que se
verifica na prática é a existência de vários conjuntos fechados, herméticos, que em pouco ou
nada se comunicam.
146
Esta lógica foi a base de orientação para a implantação da CNMF no sistema multilateral de comércio, segundo
a qual, não se permitiria mais que os Estados fizessem favores uns aos outros, no sentido de concessões ou
vantagens, devendo estender a todos os demais.
84
Sendo assim, o direito internacional é definido como o resultado da junção
de vários conjuntos de normas jurídicas, sendo cada um possuidor de uma lógica própria, que
ao longo do tempo se acumula, aumentando os antagonismos entre eles e proporcionando a
criação e coexistência de entidades não-articuladas, acompanhadas por tribunais e órgãos de
solução de controvérsias não-hierarquizados, refletindo o processo de mundialização tanto
político, como econômico e jurídico.
147
. O problema, neste ponto, é que o direito internacional
econômico tem demonstrado mais força em relação aos outros subsistemas do direito
internacional, justamente por demonstrar coerência entre suas normas integradoras e, a partir
desta coerência, dar legitimidade aos seus instrumentos garantidores de efetividade.
Para esta dissertação, considerar-se-á que os subsistemas jurídicos fechados
convivem de modo interdependente. Os conjuntos de tratados bilaterais comerciais se
relacionam diretamente com o direito da OMC, ou seja, são partes de um todo. No entanto,
estas partes não são diretamente dependentes, porque podem ser construídas de acordo com
lógicas distintas e com regras jurídicas diferentes. A consideração desta forma de estruturação
do sistema é um primeiro passo rumo à compreensão do modo de coexistência entre os
acordos bilaterais comerciais (locais) com o princípio da não-discriminação (global). O que dá
validade a esta interpretação é o princípio do pacta sunt servanda, utilizado como base de
formação de todos os acordos tanto no plano bilateral como global, em que cada instrumento
existe por si, mas sem desconsiderar a lógica e os compromissos estabelecidos no mesmo
ambiente.
148
Da mesma forma como feito com o princípio da o-discriminação, é
necessário explicar a formação dos tratados bilaterais, além de sua importância no direito
internacional. Sendo assim, serão apresentados os acordos bilaterais em si, juntamente com a
análise da sua proliferação e os efeitos deste fenômeno no cenário internacional que conforme
147
VARELLA, Marcelo Dias. Direito internacional econômico ambiental. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p.
04.
148
REUTER, Paul. Introduction au droit des traites. 3 ed. Paris: Presses Universitaires de France, 1995, p. 30.
85
verificado se baseia em relações multilaterais. Por fim, será feita uma análise em relação à
possibilidade de consideração de níveis hierárquicos entre os acordos bilaterais e os princípios
gerais de direito, que conforme será verificado, não se consubstancia em plenitude,
confirmando-se somente no caso de princípios considerados jus cogens, ou seja, princípios
que se tornam obrigatórios pela prática internacional, valendo mais do que os acordos
bilaterais.
1 Natureza jurídica, evolução e importância dos tratados bilaterais
Os acordos bilaterais sob análise são espécies de tratados que criam
obrigações jurídicas entre Estados ou entre estes e os demais sujeitos de direito
internacional.
149
Tratados são instrumentos antigos e por excelência utilizados como processo
de criação de obrigações jurídicas entre Estados.
150
Tais instrumentos vêm sendo utilizados
como pontos de contatos entre diversos Estados e Nações desde a antiguidade, que, na busca
pelo estabelecimento de relações não comerciais, mas também políticas e até mesmo de
estabelecimento de períodos de paz, se valiam de tais dispositivos legais, entendendo serem
estes seguros e propiciadores da defesa de seus interesses. A importância dos tratados esna
sua função maior de salvaguardar as liberdades de formação de compromissos estatais, sendo
o instrumento jurídico mais utilizado nas relações internacionais.
A partir do início da década de 1990, observa-se um aumento expressivo do
número de acordos bilaterais, principalmente relacionados ao comércio. Com base nos dados
da OMC, mais de 265 acordos foram notificados até maio de 2003, sendo considerados como
um emaranhado de dispositivos que formariam um spaghetti bowl. Para a avaliação dos
149
Tratado é um acordo concluído entre dois ou mais sujeitos de direito internacional, expressando a vontade
destes, visando a produção de efeitos no campo jurídico, sendo regido pelas regras de direito internacional.
DUPUY, Pierre-Marie. Droit international public. 7. ed. Paris: Dalloz, 2004, p.258.
150
A menção ao adjetivo internacional é desnecessária e até mesmo redundante, visto que o termo em si
implicaria no entendimento de seu caráter além-fronteira. Ou seja, todo tratado é internacional sendo incorreto
utilizar a expressão tratado internacional.
86
efeitos desses acordos sobre o sistema multilateral de comércio deve-se levar em consideração
o conteúdo dos mesmos, além dos países envolvidos. Para alguns analistas tais acordos
fortaleceriam o multilateralismo, ao promoverem uma liberalização comercial mais profunda
entre as partes, enquanto para outros estes acordos seriam barreiras restritivas em relação aos
não participantes.
Esta é uma questão que se coloca e que será abordada sob diversos aspectos,
visto que, pelo fato de a análise estar nas relações comerciais entre atores diversificados, não
se deve ter uma visão restritiva, uma vez que, como uma faca de dois gumes, tais acordos
podem funcionar nos dois sentidos acima mencionados.
Buscando a explicitação desta inter-relação dos acordos bilaterais com o
multilateralismo e em última análise com a CNMF, o ponto de partida será mais uma vez de
caráter histórico onde se buscará entender a trajetória do fenômeno convencional, para
compreensão, em um segundo momento, das motivações que levam os Estados a optar pelos
acordos bilaterais, mesmo possuindo a via multilateral como meio de negociação e
liberalização do comércio. Vale ressaltar que, pelo fato do trabalho ter um viés jurídico,
fatores econômicos e políticos serão considerados, mas em caráter de “segundo plano”, uma
vez que o principal em nossa análise é o confronto dos dispositivos legais e a verificação da
situação jurídica deste fenômeno.
1.1 A trajetória do fenômeno convencional
O surgimento dos tratados, assim como o fenômeno costumeiro, remonta ao
período histórico de aparição das entidades estatais, que faziam uso desses instrumentos mais
com finalidades bélicas, porém, ao longo dos anos, foram adaptados às novas necessidades de
87
efetividade e rapidez, além de ampliação de campos de aplicação em um mundo construído a
partir de constantes intercomunicações entre seus atores.
151
Os acordos bilaterais foram os primeiros instrumentos jurídicos utilizados
na prática internacional, sendo inclusive considerados como a base para a formação de todo o
direito dos tratados. A história demonstra que grande parte destes acordos foi estabelecida de
modo solene, mas nem sempre refletia um equilíbrio de direitos e obrigações entre as duas
partes que o compunham. Tais acordos estariam em contraposição às convenções multilaterais
que, nos últimos anos, têm conquistado espaço no cenário internacional, em virtude da
institucionalização crescente da sociedade internacional, feita através da criação de novas
organizações internacionais que servem de quadro para as negociações de tais convenções
como a Organização das Nações Unidas (ONU).
152
Pela via histórica, verifica-se que a maior ou menor utilização de acordos
bilaterais varia em função dos interesses dos atores internacionais. Como ciclos, existem
períodos em que a solidariedade prevalece em função dos interesses particulares e durante
estes os Estados se concentram mais nas convenções multilaterais. Com base neste
pressuposto, será analisada a evolução do trato bilateral a partir da Convenção de Viena de
1815, visto ser esta considerada como um divisor de águas ao trazer as transformações mais
expressivas do fenômeno convencional, com o surgimento dos primeiros acordos coletivos.
153
A trajetória do fenômeno convencional pode ser dividida em três fases,
separadas por dois momentos importantes e transformadores de todo o cenário internacional,
as duas grandes guerras mundiais.
151
DUPUY, Pierre-Marie. Droit international public. 7. ed. Paris: Dalloz, 2004, p. 356.
152
Ibidem, p. 267.
153
PELLET, Alain; DAILLIER, Patrick; DINH, Nguyen Quoc (in memoriam). Droit international public. 5. ed.
Paris: LGDJ, 1994, p. 163.
88
1.1.1 Da Convenção de Viena de 1815 à Primeira Guerra Mundial
Herdando um aspecto monárquico e centralizado na figura do chefe de
Estado como representante deste na cena internacional, cabendo aos embaixadores ou
ministro o papel de delegados de tal poder representativo, várias inovações foram surgindo na
prática do estabelecimento de relações entre os Estados. A idéia de um acordo único, mesmo
que ligando diversos atos bilaterais, surge a partir do Congresso de Viena de 1815. Até este
momento, o que havia eram sempre acordos bilaterais, sendo que mesmo quando existiam
vários Estados envolvidos, estes buscavam se agrupar em dois blocos para negociarem, como
ocorreu na negociação dos Tratados de Vestifália.
154
No começo do século XIX, novas questões e interesses surgiram,
modificando a visão dos Estados que passaram a vislumbrar na solidariedade o melhor
caminho a seguir na busca por compromissos que regulassem de modo coletivo os problemas
de interesse comum. O ato final do Congresso de Viena, de 9 de junho de 1815, é considerado
o primeiro tratado coletivo, mas este não foi mais do que um instrumento geral que reuniu
todos os tratados feitos durante o Congresso. Assim foi o Tratado de Paris, de 30 de março de
1856, findando a guerra de Crimée, que foi tecnicamente o primeiro tratado coletivo
perfeito.
155
Desta forma, a partir da metade do século XIX, pelo nascimento de
interesses comuns entre os Estados, como matérias relacionadas a correio, serviço público,
comunicação fluvial e ferroviária, firmaram-se os tratados multilaterais como reguladores do
comércio internacional. Vale ressaltar que interesses comuns não nascem de modo rápido,
partindo de um lento processo e mesmo após o estabelecimento destes ainda persistem
interesses particulares, que muitas vezes atrapalham as negociações. Neste sentido, existem as
convenções multilaterais restritas que se aproximam bastante dos acordos bilaterais e são
154
PELLET, Alain; DAILLIER, Patrick; DINH, Nguyen Quoc (in memoriam). Droit international public. 5. ed.
Paris: LGDJ, 1994, p. 164.
155
Ibidem
89
muito criticadas, em oposição às convenções multilaterais gerais. Interessante notar ainda, que
estes tratados possuem algumas particularidades em relação aos bilaterais no que concerne à
sua conclusão, que variam em função de sua natureza e função: institucionalização do
processo de elaboração; recurso a procedimentos especiais destinados a estender a
comunidade de Estados e instituição de um órgão depositário dos acordos e responsável por
administrá-los em nome das partes.
156
Durante esse período em que se instituíram os primeiros tratados
multilaterais, o havia muitos participantes e as grandes potências possuíam um papel
determinante, o que propiciava a conclusão dos mesmos por unanimidade. O desejo destas de
encontrar acomodação aos seus interesses e a dominação política exercida sob os demais
pequenos Estados foram fatores determinantes para a abundância de acordos multilaterais
nesse período. Além disso, tais acordos passaram a ocupar um lugar importante como fonte
do direito internacional, não só entre as partes contratantes, mas como fonte geral de direito,
positivando os costumes das chamadas nações civilizadas”.
157
Este período ainda foi
marcado pelas duas Conferências de Paz de Haia, consideradas como embrião para a solução
pacífica de controvérsias internacionais e muito importantes para o ramo do direito
humanitário e da guerra.
158
1.1.2 Período entre guerras
O período de paz que se seguiu ao fim da primeira guerra mundial exerceu
uma forte influência sobre o direito dos tratados. A União Pan-americana e as inúmeras
conferências ocorridas antes de 1914 tiveram um importante papel neste período, todavia, a
156
Reuter, Paul. Introduction au droit des traites. 3 ed. Paris: Presses Universitaires de France, 1995, p. 6.
157
Formalmente, tais acordos estavam diretamente relacionados a suas partes, mas possuíam a importante vocação
de criar regras costumeiras com conteúdo idêntico, mas de caráter universal. Em outras palavras, o tratado
concluído a partir da prática costumeira de dois parceiros, indicaria a forma que os demais deveriam agir em
situações parecidas, generalizando o particular. Isto propiciou um grande progresso para o direito
internacional.
158
Reuter, Paul. op. cit., p. 8.
90
SDN foi sem dúvida, a instituição essencial para a construção da noção de organização
internacional com base na qual o direito dos tratados se funda.
Com as instituições monárquicas em queda e o fortalecimento do
sentimento de solidariedade entre os Estados, vários tratados surgiram de modo rápido, sendo
a intervenção da SDN uma constante nos mais diversos domínios. Uma das atuações da SDN,
considerada de grande importância, mas sem resultados, foi a tentativa de sistematizar uma
codificação para o direito dos tratados. O Comidesta Sociedade enviou a vários Estados
uma espécie de lista de temas importantes para tal codificação como o procedimento a ser
seguido nas conferências internacionais e na conclusão e redação dos tratados. Alguns
Estados se mostraram de acordo, mas outros como Estados Unidos, Japão, Alemanha e Reino
Unido foram hostis a tal projeto. Entretanto, não podemos considerar que tal projeto tenha
sido completamente frustrado, visto que foi criada a Coletânea de tratados da SDN a partir da
obrigação instituída em seu Pacto de registro de todos os tratados em sua Secretária, que os
publicava em seguida.
159
As organizações internacionais possuem um papel importante no
crescimento da adoção dos acordos multilaterais. Isto porque são responsáveis por depositar o
texto do acordo, além de preparar as convenções internacionais. Esta organização pode ser
formada ad hoc ou funcionar de modo permanente, possuindo delegações que representam os
diversos Estados. Esse período foi marcante por tais organizações, uma vez que aí se deu o
fenômeno de reconhecimento ou desenvolvimento da personalidade internacional de tais
atores, passando a poder concluir certos acordos internacionais. Todavia, nesse primeiro
momento, isto se dá de modo excepcional, sendo que os problemas e conseqüências técnicas e
políticas disto aparecem alguns anos mais tarde.
160
159
Reuter, Paul. Introduction au droit des traites. 3. ed. Paris: Presses Universitaires de France, 1995, p. 10.
160
Acordos concluídos por organizações internacionais antes de 1945 eram raros, sendo que para parte da
doutrina, a personalidade jurídica conferida a SDN era considerada duvidosa. Para maiores detalhes ver: B.
91
1.1.3 Período pós 1945
Esse foi efetivamente o momento de fortalecimento das organizações
internacionais. No sentido técnico, nesse período consagra-se a tais instituições um caráter
explosivo e orientador de todo o direito dos tratados a partir de então. Todavia, deve-se
ressaltar que durante os primeiros anos desse período, tais organizações possuíam várias
limitações, visto que nesse momento apenas os Estados representados quase que
exclusivamente por seus governos, constituíam tais organizações, sendo ainda possuidores
dos meios para mantê-las e assumindo as responsabilidades finais de tais sociedades.
Responsáveis pela preparação de vários tratados, depositária de diversos
atos multilaterais, possuidora da prerrogativa de registro e publicação de todos os tratados,
parte em diversos acordos, a ONU dispunha de uma vasta experiência, realizando estudos e
publicando diversos materiais, os quais exerceram uma forte influência no desenvolvimento e
evolução do direito dos tratados. Isto foi comprovado pelo sucesso da segunda tentativa de
codificação desse ramo do direito, realizada por tal organização, envolvendo questões
relevantes como genocídio, direitos humanos e direito dos espaços. Além disso, sua Comissão
de Direito Internacional estabeleceu trabalhos preparatórios que serviram de base para o
nascimento de diversas convenções como a de Genebra sobre Direito do Mar, a Convenção
Diplomática e consular entre outras. Tais esforços, conforme verificado culminaram com a
Convenção de Viena sobre o objeto específico do Direito dos Tratados. Com o surgimento da
Convenção de Viena, o direito dos tratados ganhou forma e vigor, desenvolvendo-se ou
readaptando-se com o passar dos anos e em virtude das constantes transformações pelas quais
o cenário internacional passa.
161
Esta análise histórica tem o cunho de demonstrar que todos os tipos de
tratados, tanto bilaterais como multilaterais, possuem vantagens e desvantagens, sendo o
KASME. La capacite de l’ONU de conclure des traités. Paris: LGDJ, 1960, p. 8 e SPENDER e
FITZMAURICE. Affaires du sud-ouest africain, CIJ, Recueil, 1962, p. 475.
161
Reuter, Paul. Introduction au droit des traites. 3 ed. Paris: Presses Universitaires de France, 1995, p.12 e 13.
92
momento histórico determinante da preferência por um ou outro. Em relação aos multilaterais,
considera-se que, ao englobar vários Estados, tais acordos têm por vantagem ampliar o campo
de aplicação dos mesmos, sendo teoricamente ilimitado, favorecendo a unificação e
generalização do direito. Todavia, nos últimos anos, percebe-se que os conflitos em defesa de
interesses particulares têm sido uma constante nas negociações bilaterais, razão pela qual,
alguns Estados, mesmo participando de organizações internacionais como a OMC, acabam
optando por concluir tratados bilaterais em paralelo. Este será o objeto de análise da próxima
seção, deixando claro desde já o posicionamento seguido nesta análise de que a utilização
maior ou menor de tal tipo de acordo funciona em razão de ciclos históricos e retomando a
visão de direito internacional como formado a partir de vários conjuntos fechados que se
tocariam, mas cada qual com sua lógica própria. Sendo assim, se os acordos multilaterais
estão perdendo “clientela”, não se deve atribuir isto aos acordos bilaterais e sim ao próprio
sistema multilateral que se mostra complexo e insuficiente, formando de certa forma uma
barreira para a conclusão de acordos liberalizantes e propiciadores de desenvolvimento.
1.2 Proliferação dos acordos bilaterais
A grande maioria dos membros da OMC é parte de um ou mais acordos
discriminatórios, seja regional, seja bilateral. Em julho de 2005, apenas um membro desta
organização, a Mongólia, não era parte em nenhum acordo comercial regional. Conforme
mencionado, o número de acordos deste tipo concluídos cresceu bastante a partir da década de
1990, sendo que em até 30 de setembro de 2005, o Comitê de Acordos Comerciais Regionais
da OMC havia sido notificado de 334 acordos deste tipo.
162
Destes, 273 foram notificados
com base no artigo XXIV do GATT, 22 com base na Cláusula de Habilitação e 39 com fulcro
162
Os membros da OMC devem notificar os acordos de comércio regional (ACR) dos quais participam. Alguns
membros fazem parte em mais de 20 acordos. Notificações ainda podem se referir a adesão de novas partes em
acordos pré-existentes. Para maiores informações sobre o processo de notificação ver:
<http://www.wto.org/spanish/tratop_s/region_s/region_s.htm
>
93
no artigo V do Acordo de Serviços (GATS) da OMC. Dos acordos notificados, 183 estão
atualmente em vigor, sendo 130 referentes ao artigo XXIV do GATT, 22 a Cláusula de
Habilitação e 31 ao artigo V do GATS. No período de vigência do GATT 1947, que vai de
1948 a 1994, o GATT havia recebido 124 notificações de acordos de comércio regional
relacionados ao comércio de bens, sendo que desde a criação da OMC, em 1995, mais 130
novos arranjos cobrindo tanto o comércio de bens como de serviços já foram notificados.
163
A seguir são apresentados um gráfico, que demonstra a evolução de tais
acordos no mundo e um quadro, que demonstra os acordos regionais notificados à OMC:
164
Gráfico: Evolução dos acordos regionais no mundo
Fonte: http://www.wto.org/spanish/tratop_s/region_s/regfac_s.htm
Tabela: Notificações de Acordos Comerciais Regionais em vigor para a GATT/OMC
(até março de 2006)
Adesão Novos ACRs Total
GATT Art. XXIV (Acordo de
livre comércio)
4 120
124
GATT Art. XXIV (União
Aduaneira)
5 6
11
Cláusula de Habilitação 1 21
22
GATS Art. V 2 34
36
Total 12 181 193
Fonte: http://www.wto.org/english/tratop_e/region_e/summary_e.xls
163
WORLD TRADE ORGANIZATION. <www.wto.org>
164
O anexo I apresenta uma lista completa de todos os acordos notificados à organização até março de 2006.
94
Estes dados confirmam a proliferação dos acordos discriminatórios, entre os
quais os acordos bilaterais. Percebe-se que a maioria dos acordos bilaterais é estabelecida
entre nações desenvolvidas e países em desenvolvimento, sendo que a proliferação da
utilização de tais instrumentos foi acompanhada por uma evolução no estilo do próprio
acordo. Em outras palavras, a proliferação dos acordos bilaterais se deu no mesmo contexto
de algumas modificações em sua roupagem. Isto porque tendo por essência a criação de
condições que levem à expansão do comércio entre seus Estados signatários, os acordos
comerciais são instrumentos flexíveis em relação a sua utilização, que deve estar relacionada
com os propósitos perseguidos pelo mesmo assim como pelas partes que o compõem.
Esta flexibilização no estilo dos acordos pode ser verificada até mesmo em
relação ao GATT. Tendo sido estabelecido em 1948 como um acordo multilateral aberto
constituído por 23 Estados-parte
165
, o GATT funcionava a partir de etapas de negociação
amplas e longas, envolvendo suas partes em arranjos bilaterais relacionando produtos e
tratamentos tarifários recíprocos, inicialmente restrito aos países ou grupos de países que os
negociavam, mas a seguir estendido às demais partes pela CNMF. De acordo com este
sistema, ao fim de cada rodada de negociação, o modelo multilateral estaria estabelecido. Isto
mudou com a Rodada Tóquio, onde o multilateralismo foi imposto inclusive no momento das
negociações.
Desde o GATT, o legislador já havia previsto as exceções à CNMF, sendo
que tais exceções eram tantas que praticamente todos os Estados conseguiam enquadrar sua
restrição comercial em uma delas. Com o surgimento da OMC em 1995, uma maior
regulamentação das trocas comerciais foi operada, mas os acordos bilaterais continuaram a ser
assinados, até mesmo de forma mais corrente do que antes.
165
O GATT 1947 possuía natureza jurídica de acordo internacional, não se constituindo em uma organização
internacional em si. Por esta razão não se fala em membro ou Estado-membro e sim em parte ou Estado-parte.
95
Conforme demonstrado, historicamente os acordos bilaterais de comércio
possuíam como objetivo básico o aumento do intercâmbio entre países que enfrentavam
problemas em suas balanças de pagamento, buscando equilíbrio nas suas transações por meio
de tais acordos, ou entre países que mediante a troca inseriam produtos em sua pauta de
exportação ou ainda para dialogar com empresas estatais.
Os acordos bilaterais estabelecidos durante o período de vigência do GATT,
praticamente não confrontavam as regras deste acordo, pois se davam em momentos de
dificuldade na economia mundial, como a Guerra da Coréia, no início dos anos 50 e a Crise
do Petróleo na década de 1970, em que a maioria dos Estados-parte do GATT recorriam aos
arranjos bilaterais como exceções previstas pelo próprio sistema.
Os acordos bilaterais podem ser de dois tipos: de troca e de lista. Os acordos
bilaterais de troca têm como função o simples intercâmbio entre mercadorias escolhidas no
estabelecimento do acordo, ao passo que os de lista estabelecem um valor para as trocas
realizadas entre dois Estados durante um certo período, sendo cada um responsável por listar
os produtos que pretende importar. Tais acordos de lista podem ainda ser considerados como
acordos de créditos recíprocos, visto que as importações são registradas no acordo, mas não
são pagas em moeda conversível, sendo compensadas pelo fluxo de mercadorias que exporta
ao parceiro.
166
Ao longo dos anos alguns dos modelos de acordos bilaterais foram perdendo
a relevância, uma vez que o fluxo de matérias-primas e componentes industriais foi
diminuindo, paralelamente ao crescimento das especificidades dos produtos e da aquisição de
tecnologia em nível variado, o antigo sistema de trocas tornou-se ultrapassado.
Atualmente, o Estado mais atuante no estabelecimento de acordos bilaterais
tem sido os Estados Unidos, principalmente em relações a países menos desenvolvidos. No
166
MUNHOZ, Dércio Garcia. A nova roupagem do bilateralismo comercial. Disponível em:
<http://www.corecondf.org.br/publicacoes.asp?tip_publicacao=R> Acesso em: 26 mai. 06.
96
âmbito dos países da América Latina, esse país fez reviver o uso de práticas bilaterais através
da possibilidade de estabelecimento da ALCA (Área de Livre Comércio das Américas).
Todavia, os acordos bilaterais utilizados no contexto atual são distintos dos modelos de
acordo de troca ou lista antes utilizados. Isto porque enquanto os antigos acordos bilaterais
buscavam ampliar as trocas comerciais entre os Estados em relação a produtos específicos, os
novos acordos bilaterais, que muitas vezes são concluídos como acordos multilaterais restritos
(processos de integração), buscam a defesa de interesses, principalmente dos Estados mais
fortes, nem sempre relacionados com a pura expansão comercial.
No caso dos Estados Unidos com o projeto ALCA, percebe-se o intuito
deste Estado de valer-se da bilateralização, negociando em separado com os diversos países
que formam a América Latina
167
. Tal atitude configura-se como uma tentativa de fragmentar a
frente latino-americana contrária à integração das Américas por entender que esta seria uma
integração sem salvaguardas adequadas à realidade de países com estruturas produtivas e
níveis de desenvolvimento o diferentes. Uma das soluções apontadas pelos anti-ALCA é o
fortalecimento dos blocos de integração existentes no Cone Sul como o Mercosul, criando-
se frentes de investimento que induzam as economias dos Estados que o constituem.
168
Esta postura pragmática” dos Estados Unidos parece um contra-senso
diante do pressuposto de que esta é uma das nação que mais apóia o liberalismo. Todavia, ela
vem confirmar o argumento de que a roupagem dos acordos bilaterais mudou bastante ao
longo dos últimos anos não sendo mais aceitável como suficiente o argumento de que tais
acordos teriam como fulcro justificador a expansão pura e simples do comércio entre os
Estados que os assinam.
167
Tais acordos estariam relacionados com temas como livre comércio, acesso ao mercado de compras
governamentais, desregulamentação de investimentos estrangeiros entre outros.
168
JAKOBSEN, Kjeld. Ao Menos Seis Boas Razões para Rejeitar a Alca. In: Indicadores Econômicos FEE.
Porto Alegre/Fundação de Economia e Estatística, Vol. 29, no. 3, novembro de 2001, p. 147-68.
97
Verificada a proliferação dos acordos bilaterais, assim como a evolução da
intenção do uso deles, vale ser analisado o impacto de tal fenômeno para o sistema econômico
internacional, principalmente no que se relaciona ao caráter multilateral do mesmo.
1.3 Impacto da proliferação dos acordos bilaterais sobre o multilateralismo
Os acordos bilaterais têm ganhado espaço no cenário internacional. Muitas
especulações e justificativas têm sido dadas diante deste novo contexto. No caso específico da
OMC, uma das razões que se tem apresentado para o estabelecimento de novos acordos
bilaterais em paralelo tem sido o conflito de interesse entre seus Membros e a dificuldade que
causam durante o momento de negociação dos acordos multilaterais. Argumenta-se que isto
levaria os Estados a optarem pela defesa de seus interesses com base em acordos bilaterais
mais rápidos e proveitosos do que as eternas rodadas de negociação da OMC.
Para alguns analistas, este processo de retorno ao modelo bilateral
169
é
considerado grave no sentido do risco de quebra da coalizão e solidariedade entre os
Membros da OMC, que poderiam passar a utilizar os acordos comerciais bilaterais como
instrumento de benefício a grupos de pressão, prejudicando os Estados menos desenvolvidos.
Além disso, a proliferação de tais acordos poderia chegar a uma situação caótica, visto que a
diferenciação tarifária nos diversos textos legais a produtos similares, pode levar o sistema a
uma confusão geral.
170
Para a ONU, a proliferação dos acordos bilaterais, principalmente os que
envolvem nações ricas e pobres não é um fator positivo no cenário internacional, pelo fato de
enfraquecerem a posição dos países em desenvolvimento no momento de negociação dos
169
Também chamado de spill-back.
170
Informações disponíveis em: <www.ccibc.com.br/pg_dinamica/ bin/pg_dinamica.php?id_pag=517> Acesso
em: 14 mai. 06.
98
acordos multilaterais, visto que as nações desenvolvidas passam a dispor do poder de
barganha que lhes possibilita impor uma agenda de comércio de seu interesse.
Além disso, existe a discussão a respeito do favorecimento de tais acordos
bilaterais pra a formação de blocos regionais. Segundo o entendimento do secretário-geral da
CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina e Caribe), José Luis Machinea, “os
acordos bilaterais podem ajudar alguns países no acesso aos mercados dos EUA, mas para a
região, em seu conjunto, a multiplicação de acordos bilaterais não é o melhor a acontecer".
Para Machinea, o acordo bilateral pode favorecer o comércio a curto prazo, mas a longo prazo
pode apresentar conseqüências prejudiciais aos países em desenvolvimento, permitindo que o
chamado mundo desenvolvido” imponha suas condições, ou seja, a regra do jogo. para o
secretário-geral da UNCTAD, Rubens Ricupero, tais acordos bilaterais poderiam criar
barreiras aos países em desenvolvimento. Isto porque segundo a análise deste, alguns acordos
podem abrir precedentes que forçariam outros países a concluir acordos semelhantes.
171
Ainda segundo a opinião destes representantes das nações em
desenvolvimento, os acordos bilaterais podem aumentar o comércio e o acesso a mercados
considerando-se os países individualmente, todavia, na concepção de bloco como o Mercosul,
o melhor seria um acordo hemisférico, como por exemplo, entre o Mercosul e a Comunidade
Andina. Isto poderia significar ganhos para toda a região conferindo maior força de barganha
nas negociações multilaterais e com outros blocos como a União Européia e Nafta (EUA,
México e Canadá).
Percebemos que a contrariedade destes analistas em relação à utilização dos
acordos bilaterais não está relacionada somente a um prejuízo nas negociações multilaterais e
sim ao enfraquecimento que estes poderiam causar às relações comerciais, sobretudo, entre os
países vizinhos da região. Desta forma, mais uma vez o que prevalece é um jogo de interesses
171
Tais considerações foram apresentadas durante a 11ª Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e
Desenvolvimento (UNCTAD) realizada em junho de 2004 em o Paulo. Maiores informações:
<http://www.unctad.org/Templates/meeting.asp?intItemID=1942&lang=1&m=4289
>
99
em que cada qual busca a defesa de seu próprio conjunto. Favorecer as relações multilaterais é
importante para estas organizações representadas pelos países em desenvolvimento, mas
percebe-se de modo implícito que em primeiro lugar eso fortalecimento da região para em
seguida poderem partir para negociações mais amplas. Esta seria uma alternativa aos países
em desenvolvimento diante do baixo poder de influência que apresentam e não o
estabelecimento de acordos bilaterais que podem significar oportunidades no presente e
limitações no futuro.
A utilização de acordos bilaterais tem crescido ainda como forma de
proteção de direitos como os relacionados à propriedade intelectual. A Convenção de Paris de
1883, para a proteção da propriedade industrial, e a Convenção de Berna de 1886, para a
proteção dos trabalhos literários e artísticos, oferecem aos criadores a oportunidade de
protegerem seus trabalhos em países diferentes de onde foram criados ou protegidos. Todavia,
subsistem diversos regimes bilaterais fundamentados na reciprocidade, sob os quais o trabalho
deve ser protegido em A, onde o inventor reside, e em B que é parceiro de A, mas não em C
que não participa do acordo.
172
no caso do setor de investimento, argumenta-se que os
acordos bilaterais poderiam preparar o caminho para as negociações multilaterais.
173
Independente do setor ou da justificativa apresentada pelos parceiros de
acordos bilaterais, a grande questão que se coloca é a de que estes efetivamente estão sendo
cada vez mais utilizados em paralelo com as negociações multilaterais da OMC. Isto foi
motivo de debate e preocupação, sendo abordado em relatório apresentado por esta instituição
em 2004.
174
172
LOWENFELD. A International Economic Law, Oxford: Oxford University Press, 2002. p. 98.
173
CHOUDRY, Aziz. Investiment: bilaterals paving the way for multilateral agreement. In: South Bulletin 61,
15 July 2003, p. 12-14.
174
SUTHERLAND, Peter (Chairman) et al. The future of the WTO. Addressing institutional challenges in the
new millennium. Report by the Consultative Board to the Director-General Supachai Panitchpakdi. World
Trade Organization, 2004.
100
A problemática da proliferação dos acordos bilaterais foi discutida neste
relatório como sendo um risco ao princípio da não-discriminação, falando-se em erosão do
mesmo. Isto porque, na visão destes analistas
175
, transcorridas cinco décadas desde a fundação
do GATT, a CNMF não é mais regra e sim quase exceção. Muitas trocas comerciais ainda
têm por base a CNMF, no entanto, o fenômeno conhecido como spaghetti bowl de uniões
aduaneiras, mercados comuns, áreas regionais ou bilaterais de comércio, preferências e todo
emaranhado de tratos comerciais está quase conferindo a CNMF um status de tratamento
excepcional. Isto é entendido como um problema para o futuro da organização, mas se
tornou uma rede tão difusa e complexa que já se admite certa dificuldade em desfazê-la.
Com base nesta problemática é que foi elaborado o relatório diante dos
membros da OMC, visando suportar o multilateralismo como padrão para a economia
internacional, transmitindo aos Membros a necessidade de estabelecerem relações de
cooperação entre eles, capazes de possibilitar aos seus governantes um engajamento
construtivo e propiciador de negociações eficientes em Genebra.
Diante da situação real de crescimento da rede paralela de acordos e uniões
mais restritas do que a prática multilateral defendida no seio da OMC, será feita, enfim, a
análise da convivência entre tais acordos bilaterais e o princípio da o-discriminação
consubstanciado na CNMF. Começando pela abordagem de uma suposta hierarquia no
sistema jurídico internacional, buscaremos apresentar uma realidade que foge do absolutismo
de uma primeira visão, por demonstrar que tais instrumentos podem conviver, e efetivamente
convivem, não de forma constantemente contrária, visto que segundo a lógica do
desenvolvimento como ampliação de oportunidades, podemos inclusive dizer que, unidos, os
acordos bilaterais e a CNMF representam o melhor caminho para o alcance das metas
econômicas e sociais globais.
175
Participaram da elaboração do relatório: Peter SUTHERLAND, Jagdish BHAGWATI, Kwesi BOTCHWEY,
Niall FITZGERALD, Koichi HAMADA, John H. JACKSON, Celso LAFER, Thierry de MONTBRIAL.
101
2 Conflito e hierarquia entre fontes no direito internacional público
A sistemática jurídica internacional em muito se afasta da lógica hierárquica
seguida pelos Estados em seus ordenamentos internos. Este é um assunto abordado em vários
pontos do trabalho, mas que merece ser retomado, uma vez que servirá para a verificação da
existência de uma hierarquia entre os acordos bilaterais e a CNMF.
Em caso afirmativo, ou seja, se efetivamente existisse esta hierarquia, a
solução para o conflito outrora apresentado seria simples: sendo a obrigação da nação mais
favorecida derivada de um princípio maior que o acordo bilateral, dar-se-ia fim aos tratados
bilaterais discriminatórios. Todavia, o que se verifica na prática é que tal hierarquia não existe
em relação ao princípio da não-discriminação e os acordos bilaterais. Além disso, o critério de
maior número de participantes e interesses em jogo desembocando na primazia aos acordos
multilaterais também não é suficiente para se chegar à conclusão de que o Acordo da OMC e
a CNMF valeriam mais do que os acordos bilaterais. Resta aos aplicadores do direito uma
combinação nem sempre perfeita entre os princípios gerais de direito do especial revogando o
geral (specialia generalibus derogant) e do posterior revogando o anterior (lex posterior
priori derogat).
176
O conflito de instrumentos e dispositivos legais é inevitável quando se trata
da coexistência de regras gerais como os princípios e as cláusulas estabelecidas a partir destes,
com normas especiais como os acordos bilaterais. O Órgão de Apelação da OMC definiu o
termo “conflito” no caso “Guatemala – Investigação Anti-Dumping relativa ao Cimento
Portland do México”.
177
Segundo este, existe um conflito quando a observância de um
176
A aplicação de tais princípios o se opera de modo automático e perfeito, uma vez que à uma norma geral
pode ser reconhecida primariedade em relação a uma regra particular e vice-versa. Cette distinction entre
règles nérales (ou universelles) d’une part et régles bilatérales ou gionales d’autre part n’entraîne pas, par
elle-même, de conséquence particulière en ce qui concerne la hiérarchie des unes et des autres: il peut se faire
qu’une norme générale se voie reconnaître une primauté par rapport à une gle particulière, mais l’inverse
peut également se produire. » PELLET, Alain; DAILLIER, Patrick; DINH, Nguyen Quoc (in memorium).
Droit international public. 5. ed. Paris: LGDJ, 1994, p. 40.
177
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMÉRCIO. Relatório do Órgão de Apelação. “Guatemala Investigação
Anti-Dumping relativa ao Cimento Portland do México I”, WT/DS60/AB/R, 25 nov. 1998, § 65.
102
dispositivo conduz à violação de outro. Desta forma, reserva ao intérprete a função de
identificar tal incompatibilidade ou diferença entre os dispositivos examinados e então
determinar com base nos dados fáticos e jurídicos relacionados qual dos dispositivos
prevalecerá, ultrapassando uma consideração simplista de hierarquização.
Sendo assim, uma vez que dentro do sistema OMC, diante de um conflito de
preceitos, reserva-se ao aplicador a função de estabelecimento de qual dispositivo deve
prevalecer de acordo com cada caso, demonstrando não haver um tratamento hierárquico e
sim uma flexibilidade prática, resta saber como os princípios gerais do direito são vistos na
ótica do direito internacional e relacioná-los principalmente aos tratados. Esta análise está
diretamente relacionada com a função do aplicador das normas dentro da OMC, visto que a
lógica do direito internacional geral deve ser observada também por este, que apesar de
possuir competência para julgar qual dispositivo deve prevalecer, ao mesmo tempo tem que
justificar seu posicionamento e para isso fará uso da teoria do direito internacional público.
2.1 Hierarquia de fontes no direito internacional público
O princípio adotado em direito internacional público é o de que não existe
hierarquia entre fontes, mesmo tendo o artigo 38 da CIJ deixado claro que a jurisprudência e a
doutrina são secundárias, aporque se submetem a uma avaliação restritiva prévia do artigo
56. Da mesma forma, fontes interestatais o são superiores às provenientes de organismos
internacionais por possuírem a mesma natureza de costume ou convenção. Todas as fontes
são necessárias, visto que a sociedade internacional é descentralizada.
178
Em relação às fontes em razão das quais as normas ganham existência,
parte-se do pressuposto de que também não são hierarquizadas, com ressalva ao jus cogens
em relação a normas convencionais ou costumeiras. A Convenção de Viena atribui a algumas
178
PELLET, Alain; DAILLIER, Patrick; DINH, Nguyen Quoc (in memoriam). Droit international public. 5. ed.
Paris: LGDJ, 1994, p. 114.
103
normas um caráter imperativo e hierarquicamente superior. Mas em relação a normas gerais,
uma suposta hierarquia pode se dar em virtude de outros critérios, conforme considerado,
como tempo e especificidade, mas não em razão de suas fontes formadoras.
179
A hierarquização de fontes e instrumentos está diretamente ligada à questão
do conflito entre estas. Sendo assim, importante considerarmos duas possibilidades de
conflito que nos auxiliarão em nossa análise: tratado em relação a tratado; e tratado em
relação a princípio geral de direito.
Em relação a uma situação indicando um conflito entre dois tratados, as
normas estabelecidas na Convenção de Viena de 1969 são relativamente claras, tendo o
legislador tratado da grande parte das situações envolvendo o tema.
180
O mais relevante neste
momento é a verificação da situação em que um tratado está em conflito com um princípio
geral de direito, sendo o ponto nevrálgico de todo nosso trabalho. Deve-se ressaltar que o
conflito dos acordos bilaterais em relação a CNMF, está diretamente ligado ao conflito dos
primeiros com os acordos multilaterais da OMC que colocam a CNMF em plena aplicação.
Todavia, o objetivo da análise não é o trato desta oposição entre o bi com o multilateralismo,
reservando-se isto à disciplina do direito dos tratados.
2.2 A categorização dos princípios gerais de direito
Sendo assim, analisando o conflito entre um tratado e um princípio geral do
direito, deve ser fixado de modo preliminar o status dos princípios gerais de direito como
fonte de direito internacional distinta das demais, apesar de parte da doutrina, principalmente
179
Ibidem, p. 116.
180
Resultado de anos de trabalho de codificação dos direitos dos tratados, a Convenção de Viena de 1969 é
considerada como “o tratado dos tratados” pelo fato de ser o principal guia das práticas estatais em relação a
conclusão de tratados e uma real codificação do direito costumeiro existente quando da sua formação. Tal
Convenção é bastante elogiada por conseguir harmonizar o formalismo de uma codificação pura e simples de
costumes preexistentes e ao mesmo tempo abranger o desenvolvimento progressivo destes. A Convenção de
Viena é a principal fonte no estudo do direito dos tratados e em seu corpo encontram-se a quase totalidade de
elementos a serem considerados no momento de estabelecimento de tratados no plano internacional. Ibidem, p.
243.
104
e soviética, não aceitar este posicionamento. Entretanto, existe um ponto que é consensual e
constitui peça fundamental para a análise ora proposta, qual seja o de que os princípios gerais
de direito são fontes genuínas do direito internacional e como tal, podem estar em conflito
com outras normas.
181
Os princípios gerais do direito foram abordados no primeiro capítulo, onde
se apresentaram desde seu histórico de formação a a aplicação dos mesmos no contexto
atual. Todavia, para a análise da hierarquia entre o princípio da não-discriminação, base da
CNMF, e os acordos bilaterais, é proposta a divisão dos princípios gerais de direito em quatro
categorias, sendo uma forma didática de compreensão dos mesmos, além de útil em nosso
estudo.
Sendo assim, quatro tipos de princípios gerais de direito podem ser
detectados da análise das decisões judiciais que fazem uso dos mesmos e da doutrina.
Entretanto, deve ser esclarecido que tal classificação o tem o intuito de ser absoluta, no
sentido de posicionar os princípios em caixas fechadas.
A primeira categoria é a dos ‘meta-princípios’ ou ‘princípios necessários’,
sendo composta pelas regras de direito que têm validade inerente e necessária, sem a qual o
sistema de regras como um todo não poderia se manter e nem mesmo vir a existir. Um dos
mais citados exemplos seria do pacta sunt servanda.
A segunda categoria de princípios é a dos princípios legais derivados do
direito interno, chamado de princípios in foro domestico, os quais são transpostos para o
direito internacional. Em geral estão relacionados a regras de conduta processual, como
jurisdição, estabelecimento de provas.
181
A consideração dos princípios gerais de direito como fonte genuína do direito internacional é fundamental,
visto que se assim o fosse não teria como se analisar o conflito entre normas. PAUWELYN, Joost. Conflict
of norms in public international law: how WTO law relates to other rules of international law. Cambridge :
Cambridge University Press , 2003, p. 125.
105
A terceira categoria é a que abrange os princípios de direito internacional,
produzidos de modo indutivo a partir de outras normas positivas do direito internacional.
Exemplo desta categoria é o direito dos Estados de existência e preservação, de independência
e soberania e o princípio da igualdade entre Estados.
Por fim, existe a quarta categoria que apresenta os princípios de lógica legal,
constituindo-se como instrumentos que imputam conseqüências lógicas a partir da utilização
da lógica legal. Formam o esqueleto técnico das normas. Exemplos de princípios desta última
categoria são: lex specialis derogat legi generali, lex posteriori derogat legi priori e expressio
unius est exclusio alterius. Os chamados princípios de equidade invocados pela CIJ nas
práticas de delimitação marítima são colocados nesta última categoria, sendo que no caso
Continental Shelf (Tunísia/Libyan Arab Jamahiriya), esta corte confirmou que o conceito
legal de equidade é um princípio geral diretamente aplicado ao direito.
182
Ainda como
elementos desta última categoria podem ser incluídos os princípios utilizados para
interpretação das demais fontes, conferindo conselhos lógicos que são considerados
juntamente com o aspecto absoluto da norma legal.
183
Compreendidas estas quatro categorias de princípios gerais de direito,
podem ser estabelecidas considerações a respeito do papel de cada uma delas no sistema legal
internacional.
2.3 Papel dos princípios no direito internacional público
Começando pelos chamados princípios necessários, pode ser auferido de um
ponto de vista institucional que eles possuem um valor maior que todas as demais normas de
182
CIJ Reports 1982, 60, § 71.
183
Esta classificação dos princípios é apresentada por PAUWELYN, Joost. Conflict of norms in public
international law: how WTO law relates to other rules of international law. Cambridge: Cambridge
University Press, 2003, p. 124 a 126.
106
direito internacional, uma vez que na sua ausência outras normas nem sequer existem.
184
Assim, considera-se que muitos destes princípios podem ser vistos como normas partícipes do
jus cogens. As normas do jus cogens são colocadas acima de qualquer outra, sendo tal
posicionamento confirmado e positivado pela Convenção de Viena.
Todavia, de acordo com um ponto de vista operacional, a hierarquia que
pode existir entre os princípios e as demais normas de direito internacional é ao reverso. Isto
quer dizer que, a menos que o princípio seja considerado parte do jus cogens, diante de um
conflito entre um tratado ou costume e um princípio geral do direito, o tratado ou costume
irão prevalecer. Neste sentido operacional, os princípios ocupam um lugar secundário,
aplicado para todas as classes de princípio, inclusive os necessários, a menos que seja
considerado como parte do jus cogens.
Ainda de acordo com esta perspectiva de princípios entendidos como regras
secundárias, existe o argumento que, pelo fato de não ser criado em virtude de uma situação
concreta, o princípio é mais amplo do que os tratados e costumes, sendo considerado lex
generalis, ao passo que os tratados e costumes lex specialis. Partindo deste pressuposto, o
conflito pode ser resolvido pelo recurso ao direito dos tratados, considerando-se que a regra
especial deve ser aplicada em detrimento da geral, a menos que se trate de um princípio de jus
cogens. Entretanto, vale ressaltar que, do ponto de vista prático, é bastante complicado
imaginar um grupo de Estados que decidissem estabelecer um tratado que, por exemplo, não
aplicasse o princípio da boa-fé.
Apesar deste entendimento de que os princípios ficam em um segundo plano
em relação aos tratados e costumes mais específicos, deve ser considerado que conforme
mencionado no capítulo primeiro, mesmo tendo reservado para si um papel de suprir falhar
184
“From the juridical point of view, the superior value of general principles of law over customs and treaties
cannot be denied; for these principles furnish the juridical basis of treaties and customs and govern their
interpretation and application.CHENG, B. General principles of law as applied by international courts
and tribunals. London: Stevens, 1953, p. 393.
107
deixadas pelas demais fontes, o que demonstra que são fontes distintas das demais, os
princípios cada vez mais têm ganhado importância, principalmente no âmbito das
organizações internacionais. Os princípios podem significar uma possibilidade muito bem-
vinda de crescimento das normas internacionais, uma vez que estende o conceito das fontes de
direito internacional, além do limite do positivamente acordado.
185
Desde o período da Guerra Fria, os princípios perderam um pouco da
importância que representam para o direito internacional, em razão das diversas ideologias
surgidas desde então e em função do crescimento da importância do consentimento individual
dos Estados no direito internacional. Todavia, a prática demonstra que o período pós-guerra
representou um momento de bastante fortalecimento para os princípios gerais de direito,
principalmente no âmbito internacional. Isto porque tais princípios se fortaleceram juntamente
com as organizações internacionais, moldando-as, como ocorreu com a OMC. Neste sentido,
os princípios internacionais têm um duplo papel de unir as normas das organizações
internacionais e o direito internacional blico em si, além de instrumento de caráter judicial
com o qual a organização constrói suas normas em uma dinâmica que considera os problemas
atuais.
186
Em suma, verifica-se que não existe uma hierarquia entre princípios gerais
de direitos e demais normas, a menos que se trate de princípios parte do jus cogens.
Entretanto, a doutrina não é unânime em relação a isto, tendo em vista, que ainda
estudiosos que consideram os princípios secundários e como tal, estão abaixo das demais
normas de direito internacional.
185
BOS, Maarten. The recognized manifestations of international law, 1977, 20 GYIL 9, p. 42.
186
Em relação aos princípios gerais de direito mencionados no artigo 38 do Estatuto da CIJ: “an authoritative
recognition of a dynamic element in international law, and of the creative function of the courts which may
administer it.” BRIERLY, J. L. The law of nations. Oxford: Clarendon, 1998, p. 63.; PAUWELYN, Joost.
Conflict of norms in public international law: how WTO law relates to other rules of international law.
Cambridge : Cambridge University Press, 2003, p. 130 e 131.
108
O posicionamento adotado neste estudo é o de que não existe tal hierarquia,
até porque o regime jurídico internacional não é sistematizado a ponto de permitir tal
modulação. Em sendo assim, importa a análise de até que ponto os acordos bilaterais estão em
desacordo com o princípio da não-discriminação e a própria CNMF, uma vez que, caso se
considere um real conflito entre ambos, o tratamento sedesenvolvido a partir do direito dos
tratados, que solve a questão, não pela consideração de princípios como inferiores, mas pelo
próprio procedimento a ser adotado no caso de normas de mesmo valor.
Partindo do entendimento de que princípios e tratados estão em um mesmo
patamar, ambos convivendo em um contexto dinâmico de interesses e fatores que vão além da
legalidade, será proposta a análise de três situações que demonstram que os acordos bilaterais
não estão em desacordo com a CNMF, sendo justificados pelas derrogações que o próprio
sistema admite, ou estando fora dos temas abrangidos ou ainda sendo compostos por pressões
que acabam por encontrar brechas por onde se encaixam.
109
CAPÍTULO 4 FLEXIBILIZAÇÃO E ADAPTAÇÃO DA CNMF AO
FENÔNENO DA PROLIFERAÇÃO DOS ACORDOS COMERCIAIS
BILATERAIS
Os tratados bilaterais de comércio têm, portanto, a mesma função da
CNMF, qual seja, contribuir para o desenvolvimento do comércio global. Diante do inevitável
fenômeno de proliferação dos acordos comerciais bilaterais e reconhecimento de que tais
instrumentos podem e efetivamente contribuem para o desenvolvimento do comércio entre as
nações, para dar lógica ao sistema internacional econômico como um todo, torna-se
obrigatório encontrar elementos de coerência para a coexistência entre a CNMF e os tratados
bilaterais, o que é feito a partir de flexibilizações de sua aplicação.
A análise do papel dos princípios no plano internacional, juntamente com a
compreensão do histórico e elementos de incentivo a proliferação dos acordos bilaterais
abordados nos capítulos anteriores serão fundamentais para o estudo que se implementará
neste último capítulo, uma vez que tratará da análise do conflito entre a CNMF e tais acordos
discriminatórios. Vale ressaltar que a hipótese defendida neste capítulo será a de que os
acordos bilaterais discriminatórios possuem validade, vigência e eficácia, de acordo com a
própria lógica da OMC por se encaixarem em uma das exceções previstas pelo sistema em
razão do tema ou das partes, ou por resultarem de pressões e defesa de posicionamentos em
temas específicos, como, por exemplo, no caso dos investimentos internacionais.
Sendo assim, este capítulo buscará demonstrar que existe um conflito
aparente de normas do ponto de vista técnico-jurídico. Paralelo a isto, elementos de barganha
e poder de influência serão pouco considerados por ultrapassarem a esfera jurídica, mas não
podem ser ignorados tendo em vista que parte da análise tratará de acordos baseados em
pressões de ordem econômica e política que apesar de juridicamente ilegítimos, acabam sendo
aceitos por outras razões.
110
Antes de dar prosseguimento à análise de três situações em que os acordos
bilaterais estão em harmonia com o sistema multilateral de comércio, ou seja, enquadrados em
alguma das exceções ou impostos por fatores que ultrapassam o aspecto jurídico-legal, mas
que nem por isso perdem sua legitimidade, serão abordadas as exceções admitidas pelo
sistema da OMC. Tais exceções constituem a base de formação, manutenção e legitimação
dos acordos bilaterais, sendo que a cada dia ganham mais espaço na condução das trocas
comerciais internacionais.
1 Exceções admitidas pelo sistema jurídico da OMC
Exceções à CNMF não se constituem em fenômeno recente. Durante a crise
econômica do pós Primeira Guerra, nos anos de 1930, já existia demanda por isso, uma vez
que os Estados agrícolas afetados demandavam um tratamento preferencial condicional,
limitado e temporário. Condicional porque devia ser verificada a necessidade do mesmo;
limitado aos membros em dificuldade; e que durasse até o fim da crise econômica. Esta
derrogação feita à cláusula era analisada pelos parceiros comerciais e com seu consentimento
ela passava a ser juridicamente aceitável.
187
Vale ressaltar que, se por um lado, esta
derrogação se apresentava como vantagem ao comércio internacional da época, uma vez que
auxiliava a estabilidade de preços com a recuperação dos países agrícolas destruídos pela
guerra, por outro era vista como uma forma de conservar o mercado, refletindo a tendência
protecionista do período.
Em Conferência da SDN de novembro de 1930, o sistema preferencial foi
admitido, mas subordinado a algumas condições como: limitação ao expressamente acordado;
consentimento dos titulares da cláusula; e não ser objeto de políticas protecionistas. O
187
Interessante notar a importância do consentimento dos titulares da CNMF para que uma exceção a esta fosse
feita. Caso este consentimento não fosse alcançado, os países prejudicados pela guerra teriam que se erguer
com base nas práticas correntes do mercantilista do período, o que seria muito mais difícil.
111
entendimento de que a cura da crise econômica européia implicava o retorno da estabilidade
aos demais parceiros fez com que os 24 Estados concordassem com o tratamento preferencial
em janeiro de 1931 em Assembléia da SDN.
188
No caso da OMC, a adoção da CNMF pelos Membros representa vantagens
no plano teórico de que todos passariam a usufruir uma liberalização comercial com bases
igualitárias. Entretanto, sabemos que na prática, a realidade do comércio internacional é de
que cada Estado possui suas próprias características que influem diretamente em seu
desenvolvimento e atuação no comércio internacional. As trocas realizadas nem sempre são
paritárias, visto que enquanto um Estado possui vantagem na produção agrícola, o outro
detém a tecnologia para fabricação de bens manufaturados. Estas diferenças são inerentes ao
próprio sistema e caso não fossem consideradas, os países menos desenvolvidos acabariam à
margem, tendo em vista que sua produção e seu mercado consumidor não são tão
representativos em relação às grandes potências.
189
Sendo assim, percebemos que a igualdade formal buscada pela adoção da
CNMF não atende aos anseios dos Estados menos desenvolvidos, que, ao longo dos vários
anos de negociação, seja no antigo GATT, seja na OMC, têm lutado pela inserção de normas
compensadoras de sua situação de desvantagem em relação às nações mais desenvolvidas,
buscando concretizar uma igualdade real. No contexto do GATT, estas nações foram bem
sucedidas, por exemplo, na consubstanciação do documento “Tratamento diferenciado e mais
favorecido, reciprocidade e maior participação dos Estados em desenvolvidos” (Differential
and More Favorable Treatment, Reciprocity and Fuller Participation of Developing
Countries),
190
também conhecido como Enabling Clause ou Cláusula Habilitadora, através da
qual o sistema comercial preferencial tarifário foi positivamente autorizado, sendo uma
188
EBNER, Josef. La clause de la nation la plus favorisée en droit international public. Paris: R. Pichon et R.
Durand-Auzias , 1931, p. 197 a 202.
189
LAFER, Celso. Comércio e Relações Internacionais. São Paulo: Perspectiva, 1997, p. 15 e 16.
190
GATT. Decision of 28 November 1979 on Differential and More Favorable Treatment, Reciprocity and
Fuller Participation of Developing Countries, BISD 26S/203.
112
exceção à CNMF e, conseqüentemente, uma forma de fugir da obrigatoriedade do tratamento
da nação mais favorecida. Vimos ainda, que a UNCTAD surgiu, em 1964, como resultado
desta militância das nações menos desenvolvidas, visto que tinha por finalidade contestar e
reivindicar alternativas ao sistema comercial internacional, outrora regulado pelo GATT. A
luta dos chamados países do Sul foi ainda responsável inclusive pela elaboração do próprio
conceito de desenvolvimento no período do pós Segunda Guerra, sendo em um primeiro
momento entendido como relacionado ao critério de crescimento econômico e em seguida
como expansão de liberdades.
191
Ambas as acepções são utilizadas por diversas organizações
dependendo de sua visão sobre desenvolvimento.
192
Diversos dispositivos do GATT mencionam exceções em relação à prática
liberalista orientadora do sistema como nos artigos XII e XVIII, ambos relacionados à
permissão de práticas restritivas em função de problemas na balança de pagamento dos
Membros, no artigo XIX relativo a medidas de salvaguarda, que é auxiliado em sua aplicação
pelo Acordo de Salvaguardas e no artigo XXI em relação a medidas de segurança.
Em relação ao tratamento da nação mais favorecida, as exceções mais
importantes estão previstas no artigo XX, sendo as consideradas gerais e no artigo XXIV, que
dispõem a respeito dos acordos regionais. Todavia, outros dispositivos também mencionam
circunstâncias em que a CNMF pode ser excepcionada como na facilitação do tráfico
transfronteiriço e nos protocolos de acessão à organização.
Diante da variedade de dispositivos e circunstâncias em que uma derrogação
a CNMF é admitida e do objetivo do estudo ora proposto, a análise das exceções mais
relevantes, ou seja, dos artigos XX e XXIV, será feita com maior profundidade, juntamente
191
Amartya Sem vê o desenvolvimento de um Estado como uma conseqüência direta da expansão da liberdade de
seus indivíduos. Este autor entende que a liberdade é tanto o meio quanto o fim do processo de
desenvolvimento. Liberdade neste sentido é entendida como libertação de privações como pobreza,
analfabetismo e subnutrição, as quais são responsáveis pela formação de barreiras aos indivíduos na busca de
uma vida digna. SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000,
p. 18.
192
VARELLA, Marcelo Dias. Direito internacional econômico ambiental. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p.7.
113
com outros dispositivos que não são necessariamente mencionados como exceções no sentido
técnico, como o tratamento especial e diferenciado e o fator de observância dos países em
desenvolvimento por serem elementos fundamentais na análise. Isto porque são utilizados
freqüentemente como justificativa para contrariedade de dispositivos dos acordos da OMC
inclusive para a formulação de acordos regionais e bilaterais nas situações analisadas mais
adiante. Entretanto, as demais exceções não serão desconsideradas sendo abordadas
sucintamente, tendo o papel de agregar elementos de reflexão e consideração em relação à
adaptação da CNMF aos destinatários da mesma e contextos em que é utilizada.
Estas exceções podem ser justificadas de várias formas conforme será
verificado nos próximos parágrafos, mas elas não podem ser utilizadas de modo irrestrito,
comportando limites de aplicação, consubstanciados por condições específicas, não podendo
servir de arbitrariedade ou medida de proteção injustificada.
193
Além disso, a permissão dada
pelo GATT para que os membros da OMC se eximam de algumas obrigações existe
enquanto forma de proteção de valores sociais dos mesmos.
1.1 Exceções gerais: Artigo XX do GATT
Várias exceções gerais permitem derrogação aos dispositivos do GATT,
incluindo a CNMF, sendo consideradas gerais pelo fato de se comunicarem a todos os
dispositivos do GATT. Elas podem ser agrupadas em dois grupos: proteção de interesses não-
comerciais e derrogações especiais. Dispositivos relativos à proteção de interesses não-
comerciais estão presentes nos artigos XX e XXI do GATT, segundo os quais as medidas que
derrogam alguns dos princípios podem ser aceitas desde que visem à proteção de interesses
193 “[…] a member State may treat imported products less favorably, and even ban such products, if it is pursuing
one of the legitimate goals set forth in the Article XX exceptions, and such unfavorable treatment does not
amount to an "unjustifiable" or "arbitrary" discrimination, or a "disguised restriction on trade.” AFILADO,
Ari; FOSTER, Sheila. The World Trade Organization's Anti-Discrimination Jurisprudence: Free Trade,
National Sovereignty, and Environmental Health In: The Balance, 15 Geo. Int'l Envtl. L. Rev. 633, Summer,
2003.
114
não-comerciais. Tais interesses estão ligados à moralidade pública, saúde e vida de pessoas e
animais, preservação de vegetais, conservação de recursos naturais (artigo XX) e a segurança
nacional (artigo XXI).
as derrogações especiais são aceitas em circunstâncias excepcionais,
estando previstas no artigo XXV, § 5º, do GATT, substituído pelos artigos IX, § 3º, e IX, § 4º,
do Acordo de Marrakech, permitindo aos membros oferecerem demanda de derrogação de
certos dispositivos perante a Conferência Ministerial. Um procedimento especial é
estabelecido para análise da necessidade da derrogação, devendo ela ser temporária e
submetida a condicionantes impostas pela Conferência. Exemplo disso foi a derrogação para a
criação da Comunidade Européia do Carvão e do o (CECA) que não se encaixava como
zona de livre comércio ou união aduaneira do artigo XXIV.
194
Tais demandas são ainda
utilizadas na validação de acordos comerciais preferenciais em favor de países em via de
desenvolvimento conforme a Cláusula de Habilitação
195
Enfim, a abrangência de tais
dispositivos é tamanha que pode ser utilizada para obtenção de uma infinidade de outras
derrogações sob circunstâncias excepcionais e justificadas.
196
Dentre os dispositivos que mencionam as exceções gerais, o artigo XX é o
mais utilizado e relevante para a análise ora proposta. Por esta razão, ele será examinado com
maior minúcia e profundidade, demonstrando com a citação de casos concretos como se a
utilização do mesmo na prática.
A utilização do artigo XX como justificativa para a imposição de
determinada medida só é possível se considerados quatro aspectos:
a) real violação de algum dispositivo do GATT;
194
Relatório do grupo de trabalho sobre A Comunidade Européia de Carvão e do Aço G/35 IBDD S1/91, 10
novembro de 1952, p. 92, § 3 e 4.
195
Acordo entre a CE e os países ACP; derrogação em favor da lei dos EUA relativa a recuperação econômica da
Bacia das Caraíbas, 24 novembro 1995, WT/L/104.
196
Uma lista de derrogações acordadas em virtude do artigo XXV, § 5º pode ser verificada em GATT, Analytical
Index: Guide to GATT Law and Practice. 6. Ed. 1994, p. 967 e ss.
115
b) relação direta da medida com as exceções mencionadas nas alíneas do
artigo;
c) necessidade da medida;
d) observância das condicionantes expressas no caput.
Assim, verifica-se que a primeira consideração deve estar relacionada à
violação a algum dos demais dispositivos do acordo, sem a qual não motivo para a busca
de uma justificativa para uma medida que pode ser aplicada diretamente. Em relação aos
demais aspectos, a leitura do artigo XX se mostra necessária.
Artigo XX
Sujeito aos requisitos de que tais medidas não sejam aplicadas de maneira
que possam constituir arbitrária ou injustificada discriminação entre países
onde as mesmas condições prevaleçam, ou disfarçada restrição ao comércio
internacional, nada neste Acordo poderá ser interpretado de forma a evitar a
adoção ou aplicação por qualquer parte contratante de medidas:
(a) necessárias para proteger a moral pública;
(b) necessárias para proteger a vida ou saúde humana, animal ou vegetal;
[...]
(d) necessárias para assegurar o cumprimento de leis ou regulações que não
sejam incompatíveis com as disposições deste Acordo, incluindo aquelas
relacionadas à aplicação de alfândega, aplicação de monopólios regulados
pelo parágrafo do artigo II e artigo XVII, a proteção de patentes, marcas e
direitos autorais, e a prevenção de práticas enganosas;
(e) relacionadas aos produtos do trabalho em prisões;
(f) impostas para proteção de tesouros nacionais de valor artístico, histórico
ou arqueológico;
(g) relacionadas à conservação de recursos naturais esgotáveis se tais
medidas forem efetuadas conjuntamente com restrições à produção e ao
consumo domésticos;[...]”
Após a verificação de que a medida visada viola algum dispositivo do
GATT, deve ser feita a análise se a medida se encaixa em alguma das exceções especificadas
no texto do artigo, enumeradas em suas alíneas, materializando-se em uma das exceções
116
expressamente admitidas. A seguir, deve ser comprovada a necessidade da medida e por fim o
atendimento das condicionantes estabelecidas no caput do artigo. Desta forma, percebemos
que a aplicabilidade do artigo XX segue uma lógica inversa, sendo analisadas primeiramente
as alíneas para depois se concentrar no caput. Isto parece um contra-senso, mas a lógica de
formulação do artigo segue este entendimento. Esta ordem de interpretação foi confirmada e
considerada como fundamental pelo Órgão de Apelação no caso “Estados Unidos
Camarão”.
197
Desta forma, para a elucidação da aplicabilidade do artigo XX, em um
primeiro momento serão analisadas as alíneas, buscando explicar os tipos de medidas
enumeradas, para em seguida serem verificadas as condicionantes presentes no caput do
mesmo e que também precisam ser satisfeitas para que a aplicação da medida seja justificada.
1.1.1 Medidas específicas nas alíneas do artigo XX
As exceções justificáveis e claramente dispostas nas alíneas (a) a (j) do
Artigo XX, são as únicas medidas, em princípio, incompatíveis com outros dispositivos do
GATT, mas que são toleradas em virtude do seu caráter especial, desde que respeitem limites
impostos pelas condicionantes. Mas porque são admitidas exceções dentro do próprio texto
que enuncia que elas são proibidas? Isso não seria um modo de enfraquecer todo o arcabouço
jurídico que forma a base das obrigações de liberalização?
A resposta a esta pergunta não é nada jurídica ou objetiva, uma vez que tais
exceções existem para proporcionar aos membros da organização o direito de adotarem e
implementarem medidas que podem e em geral se consubstanciam em políticas públicas que
197
“A seqüência dos passos indicados acima para análise dos pedidos de justificação nos termos do Artigo XX
reflete não uma escolha inadvertida ou aleatória, mas sim, pelo contrário, a estrutura fundamental e lógica do
Artigo XX[...] A tarefa de interpretar o caput a fim de evitar o abuso ou o emprego incorreto das exceções
específicas previstas no Artigo XX torna-se muito difícil, se é que continua possível, onde o intérprete (como o
Painel neste caso), de início não identificou e examinou a exceção específica ameaçada de abuso[...]”
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMÉRCIO. Relatório do Órgão de Apelação. “Estados Unidos
Camarão”, WT/DS58/AB/R, 6 nov. 1998, §§ 119 e 120.
117
se legitimam pela proteção de valores sociais e interesses coletivos como vida, saúde, recursos
naturais esgotáveis, preservação de tesouros nacionais arqueológicos, históricos ou artísticos e
até mesmo para resguardar valores morais. Logo, percebe-se que os objetivos perseguidos são
totalmente envolvidos em aspectos subjetivos e que devem ser mensurados caso a caso. Por
essa razão considera-se que a explicação para a aceitação das derrogações relacionadas a estes
temas não possui uma lógica legal ou objetiva, uma vez que segundo estas o próprio sistema
não pode negar a si mesmo. Todavia, os temas abrangidos por este artigo estão diretamente
relacionados às assimetrias entre os Membros e, tendo em vista o objetivo final da OMC, de
conferir aos mesmos uma igualdade material, são tratados de modo especial, objetivando o tão
almejado equilíbrio entre as partes.
Algumas das exceções dispostas nas alíneas do Artigo XX o consideradas
como exceções específicas e o as previstas nas alíneas (b), (d), e (g). O caráter que as
distingue das demais é seu tratamento aprofundado em diversos relatórios dos órgãos do
antigo GATT e da OMC. Pela limitação da análise e objetivos propostos, a abordagem fica
restrita a estas alíneas.
1.1.1.1 (b) (medidas) necessárias para proteger a vida ou saúde humana, animal ou vegetal.
O encaixe de uma medida ou política governamental nesta alínea deve
ocorrer levando em consideração dois aspectos mencionados na mesma. Primeiramente, deve
ser verificado se tal medida está diretamente relacionada à proteção da vida ou saúde humana,
animal ou vegetal e somente depois partir para a consideração se ela é realmente necessária
para este objetivo, momento em que se levará em conta a possibilidade de implementação de
uma outra ação que não viole os dispositivos do GATT e que proporcione o mesmo efeito.
198
198
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMÉRCIO. Relatório do Painel. “Estados Unidos Gasolina”,
WT/DS4/R, 20 mai. 1996, § 6.20.
118
O encaixe da medida como diretamente relacionada à proteção da vida ou
saúde humana, animal ou vegetal não tem apresentado muita complexidade ou dificuldade de
consideração nos painéis da OMC. Vale ressaltar que as medidas justificáveis podem envolver
tanto a saúde pública como o meio ambiente.
Interessante a verificação que argumentos antiliberalizantes são aceitos
pelos relatórios da OMC como justificativas para adoção de medidas totalmente contrárias ao
objetivo final de não se discriminar parceiros. Exemplo disso foi no caso “Tailândia -
Cigarros”, em que a Tailândia trouxe como argumento de justificação para suas políticas
restritivas à importação de cigarros, a proteção da saúde pública em relação aos elementos
danosos presentes nos cigarros importados, assim como a busca pela redução do consumo de
cigarros de modo geral na Tailândia. Tais argumentos poderiam ser facilmente derrubados e,
no entanto, foram aceitos. Verificada tal situação, surge a vida de quão longe vai a
subjetividade na análise dos elementos que formam um determinado dispositivo, afinal, será
que os cigarros nacionais não possuem ingredientes que provocam tantos danos quanto os
importados? E será que restrição na comercialização desse cigarro tailandês a fim de
diminuir o consumo? Bem, fica a premissa de análise estabelecida pelo painel, que chegou a
conclusão de que fumar é uma prática que se constitui como um sério risco à saúde humana e
que, por essa razão, medidas visando reduzir o consumo deste produto podem ser incluídas no
âmbito das políticas consideradas no Artigo XX(b).
199
O segundo elemento de análise é a necessidade da medida, importante por
sua excepcionalidade. Ou seja, esta só seria aceita caso não houvesse alternativas. Logo, o que
se deve verificar é se outras medidas não foram tomadas antes da adoção da que pretende
justificar, visto que exceções surgem quando todos os meios foram buscados sem resultados
satisfatórios. Esse é o entendimento do painel no mesmo caso citado acima, “Tailândia -
199
GATT. Relatório do Painel. “Tailândia – Cigarros”, BISD 37S/200, § 73.
119
Cigarros”, em que definiu como necessária uma medida quando não alternativas
compatíveis com os demais dispositivos do GATT ou menos incompatíveis e que poderiam
ser esperadas de modo razoável. Com base nesta definição ou padrão de consideração, o
painel concluiu que as medidas adotadas pelo governo da Tailândia não eram necessárias,
inclusive demonstrando alternativas a estas, como uma proibição da propaganda de cigarros
tanto de origem doméstica como estrangeira.
200
Em alguns casos, as medidas adotadas chegam a possuir um caráter de
ingenuidade, no sentido de que demonstram ser totalmente fora do senso de necessária,
funcionando como um teste da capacidade de compreensão dos órgãos da OMC.
201
Isto se deu
no caso “Estados Unidos Atum/Golfinho”, em que os Estados Unidos justificavam sua
atitude de proibição à importação do atum do México (de albacora) a fim de proteger a vida
dos golfinhos incidentalmente capturados em virtude das técnicas utilizadas pelos pescadores
do atum. O entendimento do painel foi de que tais medidas não alcançavam o requisito da
necessidade e nem haviam esgotado todas as medidas possíveis para salvar os golfinhos,
como negociações de arranjos de cooperação internacional. Tais negociações seriam
desejáveis tendo em vista que os golfinhos vagam pelas águas de vários Estados e pelo
automar.
202
200
“Em suma, o Painel considerou que havia várias medidas compatíveis com o Acordo Geral que estavam
razoavelmente à disposição da Tailândia para controlar a qualidade e quantidade de cigarros fumados e que,
colocadas juntamente, poderiam alcançar os objetivos da política de saúde que o governo tailandês busca ao
restringir a importação de cigarros de modo incompatível com o Artigo XI:1. O Painel entendeu, portanto, que
a prática da Tailândia de permitir a venda de cigarros domésticos enquanto não permitia a importação de
cigarros estrangeiros era uma incompatibilidade com o Acordo Geral não ‘necessária’ nos termos do Artigo
XX(b).” GATT. Relatório do Painel. “Tailândia – Cigarros”, BISD 37S/200, § 73 a 81.
201
Esta consideração possui um cunho pessoal da autora, que diante da análise deste caso particular percebeu que
a medida era totalmente contrária a todo o senso de necessidade admitido em outros relatórios, mas que
mesmo assim foram dispostas pela parte como única forma de proteção da vida animal, neste caso.
202
Ademais, ainda que se assumisse que uma proibição à importação fosse o único recurso razoavelmente
disponível aos Estados Unidos, a medida particular escolhida pelos Estados Unidos poderia, na opinião do
Painel, o ser considerada como necessária nos termos do Artigo XX(b). Os Estados Unidos ligaram a taxa
máxima de captura incidental de golfinhos que o México tinha de alcançar durante um período particular a fim
de poder exportar atum aos Estados Unidos, com a taxa de captura realmente registrada para os pescadores dos
Estados Unidos durante o mesmo período. Conseqüentemente, as autoridades mexicanas não poderiam saber
se, em um dado momento, suas políticas conformavam-se aos padrões de proteção a golfinhos dos Estados
Unidos. O Painel considerou que uma limitação ao comércio baseada em tais condições imprevisíveis não
120
Vale ressaltar um ponto importante elucidado pelo painel no caso “Estados
Unidos Gasolina”, no que concerne à avaliação da necessidade da medida para alcance do
objetivo da política específica eo da necessidade desta política em si.
203
E, no caso “Coréia
Carnes”, o Órgão de Apelação declarou que “[...] quanto mais vitais ou importantes os
interesses comuns ou valores perseguidos, mais fácil é estabelecer que as medidas em disputa
são necessárias para alcançar esses fins”.
204
Por fim, devem ser considerados os elementos de prova admitidos pelo
painel que podem ser desde boa-fé afontes científicas, que o necessariamente devem ser
majoritárias, desde que qualificada e respeitada.
205
1.1.1.2 (d) (medidas) necessárias para assegurar o cumprimento de leis ou regulações que
não sejam incompatíveis com as disposições deste Acordo, incluindo aquelas
relacionadas à aplicação de alfândega, aplicação de monopólios regulados pelo
parágrafo do artigo II e artigo XVII, a proteção de patentes, marcas e direitos
autorais, e a prevenção de práticas enganosas
Para a justificação da medida com base nesta alínea, mais uma vez se
utilizado o método binário de avaliação da compatibilidade da mesma com o expressamente
disposto nesta alínea. Isto porque primeiramente deve ser analisado se a medida possui como
objetivo “assegurar o cumprimento” das leis ou regulamentos que em si não são
incompatíveis com os dispositivos do GATT. Ou seja, uma medida incompatível garante o
respeito a normas não incompatíveis. Após isso, deve ser verificado, assim como feito na
poderia ser considerada como necessária para proteger a saúde ou a vida de golfinhos.GATT. Relatório do
Painel. “Estados Unidos – Atum/Golfinho”, BISD 29S/91, §§ 5.25-5.28. Este painel não foi adotado.
203
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMÉRCIO. Relatório do Painel. “Estados Unidos Gasolina”,
WT/DS4/R, 20 mai. 1996, § 6.22.
204
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMÉRCIO. Relatório do Órgão de Apelação. “Coréia Carnes”,
WT/DS161/AB/R, WT/DS169/AB/R, 11 Dez. 2000, § 162.
205
“Um Membro não está automaticamente obrigado, ao determinar a política de saúde, a seguir o que, em um
dado momento, pode constituir uma opinião científica majoritária. Portanto, um painel não precisa,
necessariamente, alcançar uma decisão sob o Artigo XX(b) do GATT 1994 com base no peso ‘preponderante’
da evidência. ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMÉRCIO. Relatório do Órgão de Apelação.
“Comunidades Européias – Asbestos”, WT/DS135/AB/R, 12 mar. 2001, § 178.
121
seção anterior, o caráter de necessidade da mesma para o alcance deste objetivo de
cumprimento de normas específicas.
Em relação ao primeiro elemento, pode ser citado o caso “Estados Unidos
Gasolina”, em que o painel determinou que a discriminação utilizada para determinação das
bases individuais em relação a gasolina importada e nacional, não possuíam como fim
assegurar a observância desta base e sim a determinação da mesma. Sendo assim, não
poderiam estar incluídos nesta alínea (d).
206
em relação ao segundo momento, qual seja, o da avaliação da
necessidade da medida para a obediência de um regulamento ou norma, pode ser utilizado
como ilustração o caso “Coréia Carnes”
207
em que o Órgão de Apelação declarou alguns
fatores como definidores desta necessidade tais como: “[...] contribuição feita pela medida de
obediência para a implementação da lei ou regulamento em questão, a importância dos
interesses ou valores comuns protegidos por aquela lei ou regulamento, e o impacto da lei ou
regulamento associado às importações ou exportações”. Interessante ainda neste relatório é a
admissão de que mesmo não sendo indispensável, uma medida pode ser caracterizada como
necessária, devendo para tal se “mensurar e balancear” fatores relacionados a cada caso.
Na comprovação destes dois elementos citados, quais sejam, o objetivo da
medida de assegurar o cumprimento de um regulamento ou norma específica e ser necessária
para tal, o ônus reside sobre o Membro que invocou o dispositivo como justificativa para sua
medida, ou seja, o aplicador da medida ou réu no sentido processual, é que deve demonstrar
que possui os elementos para justificar seus atos. Isto funciona praticamente como regra geral
do direito, mesmo no direito nacional ou interno.
206
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMÉRCIO. Relatório do Painel. “Estados Unidos Gasolina”,
WT/DS4/R, 20 mai. 1996, § 6.33.
207
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMÉRCIO. Relatório do Órgão de Apelação. “Coréia Carnes”,
WT/DS161/AB/R, WT/DS169/AB/R, 11 Dez. 2000, § 164.
122
1.1.1.3 (g) (medidas) relacionadas à conservação de recursos naturais esgotáveis se tais
medidas forem efetuadas conjuntamente com restrições à produção e ao consumo
doméstico
A análise desta alínea pode ser feita em três fases diferentes: se a medida a
ser justificada realmente visa à conservação de recursos naturais esgotáveis, se está
relacionada de modo direto à conservação destes recursos e por fim se é aplicada em conjunto
com restrições à produção e ao consumo doméstico.
Em relação ao primeiro elemento, os recursos a serem preservados incluem
tanto espécies vivas como o-vivas. Interessante notar que em relação a isto o relatório
adotado pelo Órgão de Apelação no caso Estados Unidos Camarão”, em que foi
considerado como primordial o caráter evolucionista dos fenômenos em defesa da
consideração de todos as espécies por esta alínea. O painel considerou que recursos naturais
esgotáveis e renováveis não são mutuamente excludentes, tendo em vista que espécies com
capacidade de reprodução podem ser extintas em certas circunstâncias envolvendo a atividade
humana, demonstrando que recursos vivos são tão finitos quanto petróleo, minério de ferro e
outros considerados como não-vivos. Além disso, o painel destaca que a alínea (g) do artigo
XX foi criada a mais de 50 anos, devendo ser interpretada à luz das preocupações
contemporâneas da comunidade de Estados preocupados com a proteção e conservação do
meio-ambiente. Desta forma o termo “recursos naturais” presente nesta alínea deve ser visto
não sob um ponto de vista estático e sim evolucionário.
208
208
“Apesar do Artigo XX não ter sido modificado na Rodada Uruguai, o preâmbulo anexado ao Acordo da OMC
mostra que os signatários daquele Acordo estavam, em 1994, totalmente cientes da importância e legitimidade
da proteção ambiental como objetivo da política nacional e internacional. O preâmbulo do Acordo da OMC
que informa não apenas o GATT 1994, mas também os outros acordos abrangidos reconhece explicitamente
‘o objetivo do desenvolvimento sustentável[...]’; [...] Da perspectiva incorporada no preâmbulo do Acordo da
OMC, notamos que o termo genérico ‘recursos naturais’ no Artigo XX(g) não é ‘estático’ no seu conteúdo ou
referência, mas ‘por definição, evolucionário’. É pertinente, portanto, notar que as convenções e declarações
internacionais modernas fazem freqüentes referências aos recursos naturais como abrangendo tanto recursos
vivos como não-vivos. [...] Ademais, dois relatórios do painel do GATT 1947 adotados julgaram
anteriormente que peixes são um ‘recurso natural esgotável’ nos termos do Artigo XX(g).” ORGANIZAÇÃO
MUNDIAL DO COMÉRCIO. Relatório do Órgão de Apelação. “Estados Unidos Camarão”,
WT/DS58/AB/R, 6 nov. 1998, §§ 128 a 131.
123
A segunda fase consiste na verificação se esta medida está realmente
relacionada à conservação destes recursos esgotáveis. Esta relação deve se dar de modo
primário, ou seja, antes de qualquer outro objetivo. Este foi o entendimento do painel no caso
“Canadá Arenque e Salmão”.
209
Além deste fator de primariedade, a medida deve ainda
estar relacionada à política ambiental específica de modo real e visivelmente próximo como
declarado no relatório do Órgão de Apelação no caso “Estados Unidos Camarão” em que a
relação entre meios e fins entre a Seção 609 adotada pelos Estados Unidos e a política
legítima de conservação das tartarugas marinhas, espécie esgotável e de fato em perigo de
extinção, foi considerada visivelmente próxima e real.
210
Em relação ao terceiro e último critério, a medida deve ser aplicada
juntamente com restrições produtivas e consumeiristas domésticas, o que é considerado como
um fator de imparcialidade na imposição das restrições a produtos internos ou externos,
visando a conservação.
211
Após a análise destas três alíneas e seus elementos constitutivos, será feita a
abordagem do caput do artigo XX que se apresenta como fundamental na consideração de
uma medida como justificável. Vale ressaltar que, mesmo que a medida se encaixe em uma
das hipóteses das alíneas, se ela não preencher os requisitos do caput, sua implementação não
é justificada. Isto foi o que ocorreu no caso “Estados Unidos Gasolina”, em que os Estados
Unidos procuraram garantir os níveis de poluição da combustão da gasolina de 1990, assim
como a redução nos grandes centros populacionais. O Órgão de Apelação concluiu que a
medida possuía um objetivo e poderia ser incluída na exceção da alínea (g), mas o seria
209
GATT. Relatório do Painel. “Canadá – Arenque e Salmão”, BISD 35S/98, 22 mar. 1988, §§ 4.4 a 4.6.
210
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMÉRCIO. Relatório do Órgão de Apelação. “Estados Unidos
Camarão”, WT/DS58/AB/R, 6 nov. 1998, § 141.
211
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMÉRCIO. Relatório do Órgão de Apelação. “Estados Unidos
Gasolina”, WT/DS4/AB/R, 20 mai. 1996, §§ 20 a 22.
124
justificada, tendo em vista que não satisfazia as condicionantes do caput do Artigo XX. Logo,
a medida não foi justificada e, conseqüentemente, não foi implementada.
212
1.1.2 Limitações condicionais impostas no caput do Artigo XX
O caput do Artigo XX estabelece as condições necessárias para que a
medida aplicada seja aceita como derrogação a algum dispositivo do acordo. Pela leitura do
dispositivo, pode ser compreendido que seu objetivo é mais voltado para a forma de aplicação
da medida do que para a forma desta em si, isto fica reservado às alíneas. Além disso, ele
deixa claro que as medidas devem ser consideradas em seu aspecto de excepcionalidade, o
admitindo formas arbitrárias ou injustificadas de discriminação:
Artigo XX
“Sujeito aos requisitos de que tais medidas não sejam aplicadas de maneira
que possam constituir arbitrária ou injustificada discriminação entre países
onde as mesmas condições prevaleçam, ou disfarçada restrição ao comércio
internacional, nada neste Acordo poderá ser interpretado de forma a evitar a
adoção ou aplicação por qualquer parte contratante de medida:[...]”
Caso estas medidas sejam utilizadas de modo irrestrito, o arcabouço jurídico
do GATT pode entrar em colapso devido à crise de legitimidade que pode surgir. No caso
“Estados Unidos – Camarões”, o Órgão de Apelação concluiu que este artigo pode ser
considerado como um braço do princípio da boa-fé presente no direito internacional.
213
Esta é
uma situação que demonstra a justificação e interpretação de dispositivos legais através de
princípios como uma prática recorrente e que corrobora o entendimento de que os mesmos
possuem papel fundamental para o direito internacional.
A análise deste caput pode seguir a mesma metodologia utilizada para as
alíneas. A diferença, no entanto, é que tais pontos não se acumulam como fase de uma mesma
212
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMÉRCIO. Relatório do Órgão de Apelação. “Estados Unidos
Gasolina”, WT/DS4/AB/R, 20 mai. 1996.
213
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMÉRCIO. Relatório do Órgão de Apelação. “Estados Unidos
Camarão”, WT/DS58/AB/R, 6 nov. 1998, §§ 156 a 159.
125
verificação, visto que se constituem a partir de obrigações negativas quais sejam de não serem
compreendidas como discriminações arbitrárias ou injustificadas e nem como restrição
disfarçada ao comércio internacional.
1.1.2.1 Discriminação Arbitrária ou Injustificada
O caput do Artigo XX é claro quando menciona que as medidas a serem
aplicadas não podem ter um caráter discriminatório arbitrário ou injustificado, deixando uma
margem bastante perigosa, pois tudo o que se consiga provar o ser arbitrário ou
injustificado, pode ser aceito. Este é um critério bastante subjetivo, como vários outros
apresentados no GATT, mas a partir destes três elementos deve-se analisar: se a medida se
constitui em discriminação, se esta ocorre de modo arbitrário ou injustificado e se envolve
países onde as mesmas condições prevalecem.
Em relação aos dois primeiros fatores, sua ocorrência deve partir da análise
do caso concreto, tendo em vista que as condições de cada membro, assim como os efeitos
das medidas, devem ser verificados na prática. em relação ao terceiro, o caput menciona
outros países, não se restringindo somente aos membros exportadores, o que significa que
podem ser avaliadas também as condições relativas a membro importador participante da
relação.
214
Interessante a menção ao caso “Estados Unidos Camarões”, em que o Órgão de
Apelação avaliou os elementos aqui propostos demonstrando a importância da mensuração e
análise das condições do país ao qual se destina a medida a fim de verificar seu aspecto
discriminatório ou não.
215
214
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMÉRCIO. Relatório do Órgão de Apelação. “Estados Unidos
Gasolina”, WT/DS4/AB/R, 20 mai. 1996, §§ 23 e 24.
215
“Deve ser bastante aceitável que um governo, ao adotar e implementar uma política doméstica, adote um
padrão único aplicável a todos os cidadãos daquele país. No entanto, não é aceitável, nas relações do comércio
internacional, que um Membro da OMC utilize um embargo econômico para exigir que outros Membros
adotem essencialmente o mesmo programa regulador abrangente, alcancem um certo objetivo político, como
aquele em vigor dentro do território daquele Membro, sem levar em consideração as diferentes condições que
podem ocorrer nos territórios daqueles outros Membros.’ [...] Nós acreditamos que a discriminação resulta não
126
Mais uma vez vale ressaltar que não basta a justificação pelas alíneas do
Artigo XX, devendo também ser respeitado o caput do mesmo. No caso “Estados Unidos
Gasolina”, o Órgão de Apelação concluiu que apesar do Artigo XX (g) poder ser utilizado
neste caso para justificar o estabelecimento de bases na Regra da Gasolina, não poderia ser
aplicada por constituírem discriminação injustificada, além de restrição disfarçada ao
comércio internacional, item que verificaremos a seguir.
216
1.1.2.2 Restrição Disfarçada ao Comércio Internacional
A análise do caráter restritivo de uma medida em relação ao comércio
internacional, mesmo que de modo disfarçado, deve ser feita em conjunto com os elementos
acima verificados. Isto porque os termos e verificações têm um caráter de
complementariedade, conforme dito acima. A análise do caráter disfarçado da medida não se
exaure no fato de esta ser oculta ou simplesmente omitida, visto que pode envolver a adoção
de restrições equivalentes à discriminação arbitrária ou injustificada, mas sob a forma ou
roupagem de uma das medidas admitidas nas alíneas do Artigo XX. Enfim, levando em conta
a prevenção destes aspectos negativos para os dispositivos do GATT, qual seja o da
discriminação e restrição, deve ser sempre considerado o fim para o qual este dispositivo foi
criado, qual seja o de evitar abuso na utilização das medidas ou até mesmo um uso ilegítimo
das mesmas.
217
apenas de quando países nos quais as mesmas condições prevalecem são diferentemente tratados, mas também
de quando a aplicação da medida em questão o permite nenhuma investigação sobre se aquele programa é
apropriado às condições prevalecendo naqueles países exportadores.” ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO
COMÉRCIO. Relatório do Órgão de Apelação. “Estados Unidos Camarão”, WT/DS58/AB/R, 6 nov. 1998,
§§ 164 e 165.
216
“[...] nossa conclusão é que as regras de estabelecimento de bases na Regra da Gasolina, em sua aplicação,
constituem ‘discriminação injustificada’ e uma ‘restrição disfarçada ao comércio internacional.’ Mantemos,
em suma, que as regras de estabelecimento de bases, embora nos termos do Artigo XX(g), não servem para
justificar a proteção conferida pelo Artigo XX como um todo.” ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO
COMÉRCIO. Relatório do Órgão de Apelação. “Estados Unidos Gasolina”, WT/DS4/AB/R, 20 mai. 1996,
p. 28-29.
217
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMÉRCIO. Relatório do Órgão de Apelação. “Estados Unidos
Gasolina”, WT/DS4/AB/R, 20 mai. 1996, p. 25.
127
Interessante o caráter absoluto com o qual o legislador encerrou o caput
deste artigo, mencionando o termo nada”: “[...]nada neste Acordo poderá ser interpretado de
forma a evitar a adoção ou aplicação por qualquer parte contratante de medida[...]”. Isto
demonstra que mais uma vez um dispositivo do GATT pode ser aplicado de modo abrangente
e subjetivo, visto que a partir do momento em que se utiliza nada, tudo pode ser argüido como
empecilho para a adoção ou aplicação da medida. Todavia, analisando por outro lado, o
legislador também buscou garantir que a aplicação ou adoção das medidas não fosse frustrada
por outra regra, reservando a essas exceções um caráter de primariedade em relação aos
demais dispositivos do GATT, desde que respeitadas as condições do caput e encaixada em
uma das alíneas do mesmo artigo.
1.2 Exceções para Acordos Regionais: Artigo XXIV do GATT
A maior parte do tempo, fronteiras políticas e econômicas coincidem, mas
isso nem sempre acontece como demonstrado nas zonas de livre comércio e união aduaneiras.
As fronteiras são barreiras ao livre comércio entre Estados e por isso, formam-se áreas onde
elas não são mais do que artificiais.
Tais uniões ocorrem por razões políticas e econômicas, visto que muitos
Estados são pequenos e não conseguem constituir por si só mercados e produção satisfatórios,
razão pela qual se unem a fim de realizarem uma produção de larga escala via intercâmbio de
produtos e prestação de serviços. Além disso, a união destes Estados possibilita aos mesmos
uma maior garantia de convivência pacífica.
218
O objetivo maior do Sistema Multilateral de Comércio está na manutenção
da paz, via o incentivo de uma convivência pacífica entre os Estados. Isto porque se a
finalidade principal da ONU é a garantia da manutenção da paz, como organização subsidiária
218
CARREAU, Dominique; JUILLARD, Patrick. Droit international économique. Paris: Dalloz, 2003, p.227 a
229.
128
desta, a OMC deve auxiliar o desenvolvimento de relações comerciais baseadas na
interdependência econômica e na necessidade de cooperação entre os participantes destas,
estimulando em conseqüência a convivência harmônica destes.
219
Benefícios conseqüentes de integrações regionais são mencionados desde as
primeiras reuniões da Sociedade das Nações Unidas do início do século. Em reunião de 1930,
em que se realizou a segunda Comissão da SDN, o delegado austríaco, Schüller, já declarava
que convenções plurilaterais não eram tão satisfatórias por envolverem um número grande de
Estados, o que acabava por impedir muitos resultados em função da divergência de opiniões e
interesses. Sendo assim, mencionava que melhor seria o estabelecimento de convenções
regionais que levassem em consideração a situação especial de cada membro, uma vez que,
estariam estabelecidos em contextos físicos e econômicos bastante próximos.
220
Todavia, tais
uniões aduaneiras deviam ocorrer em etapas sucessivas, pois isso favorecia o
desenvolvimento de todos os associados.
221
Desde o estabelecimento do GATT 1947, os blocos econômicos regionais
vêm crescendo não só em quantidade, mas também em importância para o comércio
internacional. Hoje eles cobrem grande parte das relações econômicas internacionais e a
tendência é que eles continuem a se expandir. O próprio Entendimento relativo à interpretação
do artigo XXIV reconhece isso em seu preâmbulo.
222
Partindo do pressuposto de que o propósito destes blocos é o de facilitar o
comércio entre os territórios constituídos e não impor barreiras a outros Membros, é que o
GATT 1994 dispõe do artigo XXIV
223
, permitindo a formação destes blocos regionais, sendo,
219
NASSER, Rabih Ali. A OMC e os países em desenvolvimento. o Paulo: Aduaneiras, 2003, p. 60.
220
EBNER, Josef. La clause de la nation la plus favorisée en droit international public. Paris: R. Pichon et R.
Durand-Auzias , 1931, p. 71.
221
. Ibidem, p. 205.
222
“Reconhecendo que as uniões aduaneiras e zonas de livre comércio tenham crecido considerablemente em
número e importancia desde o estabelecimento do GATT de 1947 e que abarcam atualmenteuma proporção
importante do comércio mundial;”
223
“Reafirmando que o objetivo desses acordos deve ser facilitar o comércio entre os territórios constitutivos e
não erguer obstáculos ao comércio de outros Membros com estes territórios, é que as partes nesses acordos
129
portanto, uma exceção a CNMF, ao mesmo tempo em que impõe condições e procedimentos
para a aceitação dos mesmos.
224
Antes de dar prosseguimento à análise do artigo em si, deve-se ter em mente
que a idéia de estipulação de uma exceção a um princípio tão importante para o
multilateralismo comercial surgiu em um contexto em que não existiam muitos blocos
regionais e, portanto, estabelecer uma exceção para estes não parecia uma atitude tão
arriscada.
Isto porque os redatores do artigo XXIV não pensavam que um dia um
bloco como o das Comunidades Européias poderia vir a existir de modo o imponente.
Pensavam apenas em arranjos entre dois ou três países como o BENELUX (Bélgica, Países
Baixos e Luxemburgo). Além disso, também não podiam prever que as Comunidades
Européias poderiam estabelecer outros acordos preferenciais com países novos ou pouco
desenvolvidos. Estes Estados menos desenvolvidos vislumbravam nos processos de
integração uma possibilidade de promover seu desenvolvimento econômico, mesmo nem
sempre possuindo a capacidade econômica exigida pelo artigo XXIV.
225
Sendo assim, diante das poucas referências que se tinha no momento de
estabelecimento do GATT de processos de integração, considerou-se positivo o
estabelecimento de tal exceção. Para isso, a OMC possibilita aos seus Membros uma
integração de economias através de acordos voluntários denominados acordos regionais de
comércio, que desembocam nas uniões aduaneiras ou áreas de livre comércio, cabendo ao
devem evitar, na medida do possível, que seu estabelecimento ou ampliação tenham efeitos desfavoráveis no
comércio de outros Membros[...]” Entendimento relativo a interpretação do Artigo XXIV do GATT 1994.
Disponível em: <http://www.wto.org/spanish/docs_s/legal_s/10-24_s.htm
> Acesso em: 14 de abr. 2006.
224
Os blocos econômicos regionais sugiram no pós Guerra Mundial e representaram um passo rumo a este
processo de cooperação e integração. Estes blocos se proliferaram rapidamente e uma das explicações para tal
fato poderia estar na possibilidade de se burlar a CNMF dentro deles, segundo o entendimento de que estes
blocos não ferem o legalismo da OMC e ao mesmo tempo não vão de encontro ao liberalismo comercial.
225
LONG. La Place du Droit et ses Limites dans Le Système Commercial Multilatéral du GATT. In: Recueil
des Cours, Academia de Direito Internacional da Haia, 1983, IV, vol. 182, p. 35
130
GATT 1994 positivar tais derrogações à CNMF, que são concedidas de modo condicional e
estrito.
O artigo XXIV, § deixa claro o reconhecimento da convivência entre o
aumento da liberdade de comércio e uma maior integração das economias dos países que
participam de tais acordos. Além de estabelecer que as uniões aduaneiras e zonas de livre
comércio devem objetivar a facilitação do comércio entre seus territórios constitutivos e não
obstáculos a outros Estados. Sendo assim, o texto deixa claro a finalidade de tais blocos
regionais, demostrando mais uma vez o estabelecimento de objetivos baseados em enunciados
gerais e passíveis de muitas manobras em virtude de sua flexibilidade.
Um questionamento que surge é o de que se tais blocos servem como
facilitadores do comércio, buscando extender em um segundo momento, mesmo que a longo
prazo, suas vantagens para os demais, por que se constituem a partir de uma exceção ao
princípio da não-discriminação, ou em última análise à CNMF? Além disso, será que tais
blocos não podem ser tratados como uma flexibilização do princípio ao invés de uma
derrogação total do mesmo?
A flexibilização de um princípio é algo bastante arriscado e não
recomendado para toda uma organização que funciona com base neles. Isto pode causar uma
crise de legitimidade e confiança em todo o sistema, uma vez que poder-se-ia questionar a
firmeza do mesmo, caso aceitasse a flexibilidade de elementos basilares. Sendo assim, a
opção mais acertada é o reconhecimento de uma derrogação do mesmo, sendo o entendimento
expresso na doutrina e nos textos legais.
O princípio da não-discriminação e a obrigação de tratamento da nação mais
favorecida dispõem que os Membros da OMC concedam de modo incondicional e automático
qualquer vantagem ou benefício que tenham oferecido a produtos de outros Membros,
envolvendo desde taxas de alfândega, passando por encargos, até as regras e procedimentos
131
de recepção ou envio de bens. Entretanto, a partir do momento que se cria um bloco
econômico regional, o tratamento que as partes deste acordo oferecem aos demais
participantes não precisa ser estendido aos demais Membros da OMC. Neste momento forma-
se o confronto com a regra geral da não-discriminação, mas isto é aceito desde que se
respeitem certos critérios que amenizam os efeitos danosos desta derrogação ao princípio da
não-discriminação.
Um destes critérios e talvez o mais importante por trazer a definição do que
são estes blocos regionais e conseqüentemente o formato que devem ter as futuras uniões para
serem aceitas, está prevista no § 8 do artigo XXIV. O texto menciona dois formatos de blocos
aceitáveis que são a união aduaneira e a zona de livre comércio. Tais blocos se
consubstanciam em duas fases de integração diferente, sendo as zonas de livre comércio
formadas em decorrência da abolição de barreiras aduaneiras, com a livre circulação de bens
produzidos intrazona. as uniões aduaneiras são consideradas um próximo passo no
processo de integração, visto que além da eliminação das tarifas aduaneiras, estabelece para
Estados terceiros uma alíquota única de imposto de comércio exterior, tanto de importação
quanto de exportação.
226
De modo mais técnico, o § 8 do artigo XXIV dispõe:
“8. Para os propósitos deste Acordo:
(a) uma união aduaneira deverá ser entendida como a substituição de um
único território aduaneiro por dois ou mais territórios aduaneiros, de modo
que
(i) taxas e outros regulamentos restritivos de comércio (exceto, onde
necessário, aqueles permitidos sob os Artigos XI, XII, XII, XIV, XV e XX)
são eliminados com respeito substancialmente a todo o comércio entre os
territórios constituintes da união ou ao menos com respeito substancialmente
a todo o comércio de produtos originários de tais territórios, e,
(ii) sujeito às disposições do parágrafo 9, substancialmente as mesmas taxas
e outros regulamentos de comércio são aplicados por cada um dos membros
da união ao comércio dos territórios não incluídos na união;
(b) Uma área livre de comércio deverá ser entendida como um grupo de
dois ou mais territórios aduaneiros nos quais as taxas e outros regulamentos
226
Trata-se da Tarifa Externa Comum, TEC, fator característico da existência de uma união aduaneira.
132
restritivos de comércio (exceto, onde necessário, aqueles permitidos sob os
Artigos XI, XII, XII, XIV, XV e XX) são eliminados para substancialmente
todo o comércio entre os territórios constituintes em produtos originários de
tais territórios.”
Em suma, podemos considerar como zonas de livre-comércio o espaço
territorial em que se eliminam os direitos alfandegários e outras restrições comerciais entre os
Estados partes, sendo que, se existe tarifa ou regulamentação externa comuns, passa a ser
união aduaneira.
As condições estabelecidas para as uniões aduaneiras são mais rígidas,
tendo em vista sua política externa comum. Tais condições são classificadas em obrigações de
ordem interna e de ordem externa.
227
As primeiras são: obrigação de que os blocos cubram o
essencial das trocas comerciais, ou seja, os setores mais representativos para as economias dos
Estados-parte, além da necessidade de existência de planos com previsões de instalação
provisória e definitiva dos blocos. as de ordem externa são o compromisso de funcionar
como facilitador do comércio(trade creating) e não como mecanismo de imposição de
barreiras (trade diverting). Além da obrigação específica para as uniões aduaneiras previstas
no artigo XXIV, § 5 do GATT de que “[...] a tarifa externa comum deve representar a média
das tarifas nacionais, que eram aplicadas pelos Estados membros da união, antes da entrada
em vigor desta [...]”. Isto implica uma redução dos níveis dos direitos nacionais ou sua
eliminação; sendo dado que a elevação de uma tarifa anteriormente consolidada se encontra
sujeita a condicionamentos pelo GATT (em função dos princípios de manter-se o equilíbrio
em função da consolidação das concessões tarifárias e para se evitar eventuais prejuízos a
terceiros Estados e Partes membros do GATT e não partícipes da união). O artigo XXIV, § 6º,
prevê a hipótese de uma renegociação das concessões, com finalidades compensatórias, entre
227
CARREAU, Dominique; FLORY, Thiébaut e JUILLARD, Patrick. Manuel de droit économique. 3 ed. Paris:
L.G.D.J., 1990.
133
os membros da união e terceiros Estados.
228
Tais procedimentos de renegociação tarifária
estão estabelecidos no Artigo XXVIII do GATT 1994 (retirada de concessões), com
esclarecimentos dados pelo Entendimento relativo a interpretação deste artigo, como a
definição da expressão “interesse principal no fornecimento”.
Interessante para a análise proposta é o disposto no artigo XXIV, § 5 º,
alínea “c”, que estabelece que acordos temporários, como, por exemplo, os bilaterais aqui
tratados, devem incluir um plano e um cronograma para constituição de uma união aduaneira
ou área de livre comércio dentro de um “período razoável de tempo”. Este período deve ser de
até 10 anos, salvo circunstâncias excepcionais.
229
Deve ser ressaltado ainda, que sendo o GATT 1994 uma releitura do GATT
1947, seu artigo XXIV deve ser lido em paralelo com o Entendimento sobre a Interpretação
do Artigo XXIV do GATT 1994. Em ambos existem regras complementares em relação ao
tratamento de bens nestes blocos. Além disso, o Entendimento esclarece várias questões e
modifica diversos procedimentos como o de revisão das uniões aduaneiras e zonas de livre
comércio, tendo sido estabelecido desde 1996, um Comitê sobre Acordos Regionais de
Comércio para tratar destas questões.
Outro elemento a ser considerado é a observância do disposto na chamada
“Cláusula Habilitadora” ou Decisão sobre Tratamento Diferenciado e Mais Favorável,
Reciprocidade e Ampla Participação de Países em Desenvolvimento, estabelecida em 1979,
determinando tratamento preferencial para os países em desenvolvimento em relação ao
comércio de bens. Este será exatamente o último ponto a ser abordado nesta seção, tendo em
vista que tem ganhado uma importância cada vez maior dentro dos debates da organização,
mas deixando claro que a função das uniões aduaneiras ou áreas de livre comércio deve ser de
facilitadora do comércio e não de barreira em relação aos países não-participantes das
228
SOARES, Guido F. S. A compatibilização da ALADI E do MERCOSUL com o GATT. Disponível em:
<http://www.mre.gov.br/portugues/politica_externa/mercosul/aladi/gatt
> Acesso em: 05 mar. 06.
229
Entendimento sobre a Interpretação do Artigo XXIV do GATT 1994, § 3.
134
mesmas. Importante sublinhar este ponto final, a fim de prosseguir com a compreensão do
tratamento especial de uma perspectiva favorável às práticas liberalizantes, ou seja, como
medidas que buscam inserir países menos favorecidos no contexto comercial global, sendo
temporárias e restritas aos que realmente necessitam e não uma válvula de escape ou uma
máscara para políticas de interesse particular ou protecionista.
1.3 Tratamento especial e diferenciado
O tratamento especial e diferenciado tão em voga na atual rodada de
negociação da OMC, a Rodada Doha, existe em função da diferença do grau de
desenvolvimento dos Membros desta organização. Na Declaração Ministerial de Doha,
adotada em novembro de 2001, quando teve fim a quarta sessão da Conferência Ministerial,
os países-membro da OMC se manifestaram a respeito do tema, considerando o comércio
internacional como fundamental para o desenvolvimento econômico dos países e conseqüente
redução da pobreza e se comprometendo em observar os interesses destas nações menos
desenvolvidas a fim de aumentar a participação destes nas trocas comerciais. Isto porque foi
reconhecido que a maioria dos Membros da OMC é formada por países em desenvolvimento,
além da vulnerabilidade destes Estados, principalmente dos menos desenvolvidos.
Sendo assim, recordando o preâmbulo do Acordo de Marrakech, os
Membros da OMC, declararam a necessidade de dar continuidade aos “esforços positivos para
assegurar que os países em desenvolvimento, e especialmente os de menor desenvolvimento
relativo, tenham participação no crescimento do comércio mundial proporcional às
necessidades de seu desenvolvimento econômico”. Para isso, um maior acesso a mercados,
regras equilibradas e bem focadas, além de programas sustentáveis de assistência cnica e
aquisição de capacidade devem ser desempenhados.
135
Em relação aos países de menor desenvolvimento relativo, foi considerado
que estes se encontram em uma situação de vulnerabilidade particular, possuindo dificuldades
estruturais diante da economia global. Diante destas, maiores oportunidades de participação
eficaz devem ser oferecidas a estes, a fim de os tirar da marginalização em relação ao sistema
multilateral de comércio. Diante de todos estes objetivos, os Membros da OMC estabeleceram
programas de trabalhos a serem desenvolvidos ao longo desta Rodada, sem desconsiderar os
demais compromissos assumidos nas reuniões em Marrakech, Cingapura e Genebra, além da
Terceira Conferência das Nações Unidas sobre Países de Menos Desenvolvimento Relativo,
realizada em Bruxelas.
230
Nesta mesma ocasião foram estabelecidos outros dispositivos como uma
“Decisão sobre implementação, questões e assuntos relacionados”, buscando fazer uma
análise sobre os efeitos da implementação dos acordos da OMC resultantes da Rodada
Uruguai em relação aos países em desenvolvimento.
231
Além disso, também foi adotada uma
“Declaração sobre o acordo de TRIPS e Saúde Pública”, em virtude da preocupação com os
problemas de saúde pública cada vez mais graves e presentes em muitos destes países em
desenvolvimento e de países menos avançados.
232
Esta declaração é aplicada em conjunto
com o Acordo TRIPS, prevendo a execução e interpretação deste de modo a conferir a todos
os membros da OMC uma maior possibilidade de acesso a medicamentos.
Deve ser ressaltado que a importância dada ao tratamento do tema
“Comércio e Desenvolvimento” pode ser vista como uma demonstração da admissão de que
as distinções feitas dentro dos acordos negociados (exceções, derrogações, prazos
diferenciados) em benefício dos países menos favorecidos o estão sendo suficientes para a
230
Declaração Ministerial de Doha, 14 de novembro de 2001, WT/MIN(01)/DEC/1, §§ 2ºe 3º.
231
Decisão da Conferência Ministerial sobre Implementação - questões e assuntos relacionados, 14 de
novembro de 2001, WT/MIN(01)/DEC/17.
232
Tais Estados eram denominados segundo a nomenclatura de países de menor desenvolvimento relativo na
década de 70, mas atualmente a referência feita aos mesmos é de países menos avançados.
136
promoção de uma maior equalização dos níveis de desenvolvimento ou para possibilitar a
ascensão ou, no mínimo, maiores oportunidades para esses Membros.
233
O sistema da OMC classifica seus Membros em três categorias, quais sejam,
países-membro desenvolvidos, países-membro em desenvolvimento, países-membro menos
avançados. O critério definido pelas Nações Unidas para a definição do que são os países
menos avançados é o mesmo adotado pela OMC, ou seja, o do Produto Nacional Bruto per
capita do país em questão, devendo ser abaixo de mil dólares americanos para serem
considerados menos avançados. O valor do dinheiro o é satisfatório como critério por não
expressar o nível de desenvolvimento de um Estado, demonstrando que a OMC trabalha com
uma visão limitada de desenvolvimento. Outros critérios como o Índice de Desenvolvimento
Humano, utilizado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), é
mais apropriado, sendo atualizado a cada ano.
234
São considerados como países-membro
menos avançados (PMAs): Angola, Bangladesh, Benin, Burquina Faso, Burundi, Cambodia,
República Centro-Africana, Tchad, Congo, Djibuti, Gâmbia, Guiné, Guiné Bissau, Haiti,
Lesoto, Madagascar, Malawi, Maldivas, Mali, Mauritânia, Moçambique, Myanmar, Nepal,
Nigéria, Ruanda, Senegal, Serra Leoa, Ilhas Salomão, Tanzânia, Togo, Uganda e Zâmbia.
235
Todavia, em relação aos demais não critérios definidos, sendo que os países-membro em
desenvolvimento se auto-elegem como tal, não sendo esta auto-eleição aceita de modo
automático em todos os acordos. Os demais são desenvolvidos.
236
Hoje se reconhece que a maioria dos membros desta organização são países
em desenvolvimento ou menos avançados, sendo assim, não se pode mais ignorar a situação
especial destes diante dos grandes Estados, deixando-os à margem do sistema. O comércio
233
TAXIL, Bérangère. L’OMC et les pays em développement. Paris: Montchrestien, 1998, p. 41-42.
234
VARELLA, Marcelo Dias. Direito internacional econômico ambiental. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p.
146 e 147.
235
Outros oito países considerados menos desenvolvidos estão em processo de acessão a OMC: Bhutan, Cabo
Verde, Etiópia, Laos, Samoa, Sudão, Vanuatu e Yemen. Guiné Equatorial e São Tomé e Príncipie são apenas
observadores. Maiores informações ver: <http://www.wto.org/english/thewto_e/whatis_e/tif_e/org7_e.htm
>
236
Informações retiradas do site oficial da OMC: <www.wto.org>
137
internacional está cada vez mais integrado e ignorar a participação destes Estados no sistema
implica perdas para as próprias potências mundiais.
237
No preâmbulo do Acordo da OMC, é prevista a importância de atitudes
positivas no sentido de assegurar a estes países em desenvolvimento, e principalmente para
aos países menos avançados, sua inserção no sistema comercial multilateral, auxiliando o
crescimento deste na proporção do desenvolvimento de suas próprias economias.
238
O
desenvolvimento é peça fundamental para o direito internacional econômico, o qual tem dado
lugar ao surgimento do direito do desenvolvimento, muito em voga a partir do fim da
Segunda Guerra Mundial e aa década de 1980, quando perdeu um pouco do seu brilho em
virtude das teorias neoliberais que surgiram.
239
Todavia, o tratamento dado pela OMC
demonstra que este continua sendo um tema relevante, podendo significar um resgate do
mesmo, uma vez que se verificou ao longo dos últimos anos que o liberalismo irrestrito não é
o meio mais apropriado de promoção de um sistema comercial eficaz e sustentável.
240
A base deste tratamento especial e diferenciado pode ser encontrada neste
direito do desenvolvimento, que pode ser definido como um ramo específico do direito
formado por normas e princípios que asseguram aos países menos desenvolvidos condições
de desenvolvimento mais favoráveis. Este direito do desenvolvimento está apoiado sobre os
princípios da não-reciprocidade, da desigualdade compensadora e da criação de um sistema
geral de preferências, tratados ao longo desta seção e que têm por finalidade possibilitar aos
237
A maioria dos acordos bilaterais é estabelecida entre grandes potências e países menos desenvolvidos. Isto
demonstra o interesse de ambos em estabelecerem relações comerciais que sem dúvida trará benefícios
recíprocos, pois do contrário, o ato voluntário que fundamenta os acordos bilaterais nem se quer existiria.
238
Acordo da OMC, Preâmbulo, §2º.
239
VARELLA, Marcelo Dias. Direito internacional econômico ambiental. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 6.
240
Parte da doutrina entende de modo contrário, considerando que a partir da revisão das regras do GATT em
1991 e com o fim da Rodada Uruguai, este direito do desenvolvimento desapareceu juntamente com as normas
comerciais mais benéficas aos países do Sul. Isto porque os princípios basilares de tal ramo do direito foram
reduzidos a normas acessórias aplicadas de modo ocasional. Além disso, o tratamento oferecido por tais
acordos é conferido até o momento em que os países se desenvolvessem, determinando prazos para tal. Não se
sabe ainda o que acontecerá quando todos os prazos se exaurirem, mas o que se verifica é que este direito do
desenvolvimento tem se enfraquecido em virtude das teorias neoliberais. In: VARELLA, Marcelo Dias.
Direito internacional econômico ambiental. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 20.
138
países do Sul, ou países menos favorecidos economicamente, uma maior competitividade em
relação aos países do Norte ou desenvolvidos. Isto garante aos países do Sul um tratamento
especial que envolve desde a não aceitação das mesmas obrigações que os países do Norte
assumem em acordos de livre comércio como o GATT até a promoção de seu
desenvolvimento via transferência de tecnologia ou ajudas financeiras.
241
Este ramo do direito
se diferencia do direito ao desenvolvimento, que é “o direito, strictu sensu, de cada um ou de
cada país, a se desenvolver.”
242
Sendo assim, percebe-se que os interesses e necessidades destes países
menos favorecidos economicamente são levados em consideração, existindo esforços para sua
integração ao sistema multilateral de comércio, podendo inclusive ser considerado este um
tema central na Agenda da OMC. Mas em que sentido pode ser considerado este tratamento
como uma exceção ao princípio da nação mais favorecida? Além disso, porque é relevante
esta abordagem para a análise ora proposta?
A exceção ao princípio da nação mais favorecida ocorre a partir do
momento em que para assegurar a tais países uma maior integração ao sistema comercial
global, proporcionando o aumento de sua participação neste, as regras da OMC comportam
diversos dispositivos favoráveis a estes, tendo uma atitude clara de discriminação, mesmo que
justificados pela consideração da necessidade e interesse destes membros menos favorecidos.
Geralmente, tais dispositivos envolvem diversas áreas e estabelecem um número menor de
obrigações ou uma maior flexibilização destas para estes membros, assim como extensão de
períodos de execução de medidas e a previsão de assistência técnica para estes.
243
Em relação
241
HERMITTE, Marie-Angèle. Le concept de diversité biologique et la création d’um statut de la nature. In:
EDELMAN, Bernard., HERMITTE, Marie-Angèle, Ed. L’Homme, la nature et le droit. Paris: C. Bourgois,
1988, p. 270 e 271.
242
VARELLA, Marcelo Dias. op. cit., p. 8.
243
Interessante verificarmos esta previsão de assistência cnica aos países em desenvolvimento e de menor
desenvolvimento relativo, visto que se sabe que um dos maiores problemas em relação a efetividade do
sistema da OMC e principalmente de seu órgão de solução de controvérsias é justamente a impossibilidade de
alguns membros arcarem com os custos de um litígio que em geral conta com a participação de recursos
139
à análise proposta de confronto dos acordos bilaterais com a CNMF, importante a verificação
deste ponto de exceção ao sistema a fim de se proceder ao enquadramento da justificativa de
alguns dos acordos com base neste tratamento ou se estariam disfarçando uma realidade de
uso inapropriado do mesmo.
Existe ainda um tratamento especial para os países em desenvolvimento que
é acrescido de considerações adicionais em relação aos países menos avançados.
Primeiramente será tratado o mais geral, que envolve todos os países fora da categoria de
desenvolvidos, para fecharmos com o mais específico e assim estabelecer uma compreensão
de toda a rede de articulação do mesmo.
1.3.1 Tratamento especial e diferenciado para países em desenvolvimento
O tratamento especial e diferenciado para os países-membro em
desenvolvimento foi considerado ao longo de diversas reuniões da Rodada de Doha, sendo
que na Decisão sobre questões de implementação, de 14 de novembro de 2001, ficaram
definidas as funções do chamado Comitê sobre Comércio e Desenvolvimento, dentre as quais
está: a determinação de quais tratamentos são imperativos em face de outros não-vinculatórios
e o estabelecimento das melhores formas de aplicação desse tratamento especial e
diferenciado,
244
além de sua incorporação ao arcabouço jurídico da organização.
Baseados na importância de tal tratamento diante da realidade dos membros
de sua organização, o tratamento diferenciado e especial oferecido pode ser divido em cinco
modalidades: aumento das oportunidades de comércio; medidas de apoio ao desenvolvimento
humanos estrangeiros e caros pela falta de preparo de seus nacionais. Resta saber se esta assistência realmente
se consubstancia em todos os momentos.
244
Interessante notar que dentre estas “melhores formas” está o fluxo de informações melhoradas, o que alguns
países desenvolvidos eram contrários. “ (ii) “[...]examinar as maneiras adicionais em que o tratamento especial
e diferenciado pode ser mais eficaz; a considerar as formas, incluindo fluxos de informação melhorados, em
que países em desenvolvimento, sobretudo os países de menor desenvolvimento relativo, possam ser ajudados
a fazer melhor uso dos dispositivos para tratamento especial e diferenciado[...]” Decisão de Doha, 14 de
novembro de 2001.
140
econômico; períodos mais longos para a implementação; limitações a ações contra produtos
originários dos países em desenvolvimento; assistência técnica.
245
Lembrando que estas valem
tanto para os países em desenvolvimento quanto para os menos avançados, mas que para estes
últimos ainda há disposições adicionais.
a) aumento de oportunidades de comércio
A abordagem dedicada ao tratamento especial e diferenciado em função das
considerações do nível de desenvolvimento dos Membros encontra-se positivada na Parte IV
do GATT intitulada Comércio e Desenvolvimento”. Esta parte é composta por três artigos,
XXXVI, XXXVII e XXXVIII, os quais abordam os princípios e objetivos, os compromissos
dos Membros e a proposta de uma ação coletiva por parte desses, respectivamente. Esta Parte
IV do GATT, criada na Rodada Tóquio de 1979, surgiu como fruto do trabalho da UNCTAD
de consolidação no direito internacional econômico dos princípios do desenvolvimento, do
tratamento especial e diferenciado, da desigualdade compensadora e da não-reciprocidade em
relação às concessões comerciais.
246
Buscando oferecer melhores oportunidades de comércio para os países em
desenvolvimento, o Artigo XXXVI, § 8º, incorporou ao corpo normativo do GATT o
princípio da não-reciprocidade nas relações comerciais envolvendo países-membro em
desenvolvimento e desenvolvidos: “Os Membros desenvolvidos o esperam reciprocidade
para compromissos assumidos por eles nas negociações de comércio para reduzir ou remover
tarifas e outras barreiras ao comércio de Membros em desenvolvimento.”
245
Esta divisão do tratamento especial e diferenciado em cinco modalidades é apresentada em CONFERÊNCIA
DAS NAÇÕES UNIDAS PARA COMÉRCIO E DESENVOLVIMENTO. Curso sobre Solução de
Controvérsias na Organização Mundial do Comércio. Módulo 3.5. - GATT 1994. Nova York: Nações
Unidas, 2003, p.12. Disponível em:
<http://www.mre.gov.br/portugues/ministerio/sitios_secretaria/cgc/curso_unctad.asp
> Acesso em: 14 mai. 06.
246
VARELLA, Marcelo Dias. Direito internacional econômico ambiental. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p.
16.
141
Além disso, no Artigo XXXVII, § 1º, o primeiro compromisso assumido
pelos Membros é o de dar prioridade à redução ou eliminação das barreiras comerciais de
produtos de interesse dos países em desenvolvimento, mesmo que este interesse seja
potencial, o impondo tarifas mais elevadas ou barreiras não-tarifárias ao comércio quando
estabelecido com países em desenvolvimento.
Acompanhando estes artigos existe a “Enabling Clause” (Cláusula
Habilitadora), que conforme mencionado no início da análise das exceções admitidas pelo
sistema, possui um papel importante e constitui uma forma de excepcionar a CNMF, tendo
por objetivo justamente oferecer maiores oportunidades aos países em desenvolvimento em
seu relacionamento comercial com países desenvolvidos. Esta Cláusula, também conhecida
como Differential and More Favorable Treatment, Reciprocity and Fuller Participation of
Developing Countries
247
, trata de modo mais aprofundado os dispositivos mencionados na
Parte IV do GATT dispondo que “Não obstante os dispositivos do artigo I do Acordo Geral,
os Membros podem concordar em conceder tratamento mais favorável e diferenciado aos
países em desenvolvimento sem estender tal tratamento a outros Membros.”
Desta forma, possibilita aos países desenvolvidos a concessão de tratamento
mais favorável a países em desenvolvimento, sendo uma desconsideração clara da CNMF.
Para vários Membros as barreiraso-tarifárias são mais relevantes do que as tarifárias, razão
pela qual este tratamento envolve também medidas não-tarifárias.
Este tratamento favorável e diferenciado foi muito utilizado sob o Sistema
Geral de Preferências (SGP ou GSP do inglês Generalized System of Preferences) desde sua
origem na UNCTAD em 1968.
248
Até os dias atuais, parte do comércio de exportação de
247
Decision of 28 November 1979 on Differential and More Favorable Treatment, Reciprocity and Fuller
Participation of Developing Countries, GATT, BISD 26S/203.
248
A Austrália foi o primeiro país a implemantar este sistema em 1966, acompanhada pelas Comunidades
Européias (01/07/1971), Japão (01/08/1971), Noruega (01/10/1971), Dinamarca, Suécia, Finlândia, Nova
Zelândia, Grã-Bretanha e Irlanda (01/01/1972) e EUA (01/01/1976). BORGSMIDT, Kirsten. The generalized
system of preferences in favour of developing countries against the historical background in the light of
142
vários países em desenvolvimento está inserida neste sistema, beneficiando-se do tratamento
preferencial. Todavia, este não alcançou mais sucesso em virtude de que no momento de sua
criação os países em desenvolvimento davam prioridade às suas ex-colônias ou a países em
que precisassem exercer pressão, tendo em vista seu poder discricionário de escolher para
quem destinar os benefícios, deixando de lado países menos desenvolvidos. Além disso, o
SGP não tem garantido o acesso aos mercados dos países desenvolvidos em relação a
produtos de maior valor agregado provenientes das nações menos desenvolvidas.
249
Por todas
estas razões, o SGP foi perdendo força ao longo das décadas de 1980 e 1990, o sendo mais
considerado como hábil para o objetivo final de diminuir o fosso existente entre países menos
e mais desenvolvidos.
250
Em relação ao comércio de serviços, o aumento da participação dos países
membros em desenvolvimento também é tema corrente, sendo inclusive tratado de modo
específico no artigo IV do GATS. Neste dispositivo é mencionada a importância do
estabelecimento de compromissos em áreas específicas como acesso à tecnologia, canais de
distribuição e rede de informações, tendo em vista a facilitação da participação dos membros
em desenvolvimento.
251
b) medidas de apoio ao desenvolvimento econômico
Visando o fim último de inserção dos países em desenvolvimento no
comércio internacional, o aumento de oportunidades de participação no comércio não é
suficiente, pois não muda a base do problema, qual seja a da desigualdade e
public international trade law and the new international economic order. Nordisk Tidsskrift: For 1 Ret,
1985, p. 55.
249
GRIMWADE, Nigel. International trade policy: a contemporary analysis. London: Routledge, 1996, p. 166.
250
NASSER, Rabih Ali. A OMC e os países em desenvolvimento.o Paulo: Aduaneiras, 2003, p. 254.
251
Acordo GATS, art. IV, § 2º: Developed country Members, and to the extent possible other Members, shall
establish contact points within two years from the date of entry into force of the WTO Agreement to facilitate
the access of developing country Members service suppliers to information, related to their respective markets
[…]”
143
desproporcionalidade entre os Membros da OMC. Desta forma, medidas de apoio ao
desenvolvimento econômico destes países menos favorecidos são necessárias até mesmo para
a sustentabilidade do objetivo do oferecimento de tal tratamento e do sistema em si.
Partindo deste pressuposto é que o artigo XVIII do GATT foi estabelecido
sob o título “Assistência Governamental ao Desenvolvimento Econômico”. Tal dispositivo
trata da necessidade dos países em desenvolvimento de adotarem medidas protetoras a fim de
viabilizarem a implementação de seus programas e políticas de desenvolvimento econômico,
destacando-se os setores industriais e referentes à balança de pagamento.
Além disso, medidas de apoio ao desenvolvimento estão presentes em
outros campos como o de subsídios, salvaguarda, agricultura e serviços. Em relação aos
subsídios, o Acordo sobre Subsídios e Medidas Compensatórias da OMC (SCM do inglês
Agreement on Subsidies and Countervailing Measures) dispõe a respeito da possibilidade dos
subsídios poderem desempenhar um papel fundamental nos programas de desenvolvimento
econômico destes países menos favorecidos. Estabelece de modo claro que a restrição de
concessão de subsídios à exportação não é aplicada aos países membros em desenvolvimento
e com renda per capita abaixo de $ 1000 por ano.
252
Em relação às medidas de salvaguarda, o Acordo de Salvaguardas
(Agreement on Safeguards) permite que o período de aplicação das mesmas seja diferenciado
em relação aos países em desenvolvimento. O período normal é de oito anos, mas para tais
membros é estendido por mais dois anos, além disso, podem repetir a aplicação da medida em
relação ao mesmo produto, o que é defeso aos membros desenvolvidos.
253
252
Artigo 27, § e Anexo VII do Acordo SCM. Esta possibilidade apresenta-se bastante ineficaz na prática,
visto que um país com tal renda per capita dificilmente consegue subsidiar suas exportações. Sendo assim, a
aplicabilidade deste tratamento resta inoperante.
253
Artigo 9, § do Acordo de Salvaguardas.A developing country Member shall have the right to extend the
period of application of a safeguard measure for a period of up to two years beyond the maximum period
provided for in paragraph 3 of Article 7. Notwithstanding the provisions of paragraph 5 of Article 7, a
developing country Member shall have the right to apply a safeguard measure again to the import of a product
which has been subject to such a measure, taken after the date of entry into force of the WTO Agreement, after
144
Por fim, existem as medidas referentes à agricultura (Acordo Agrícola -
Agreement on Agriculture), por constituir um setor de relevância para os membros em
desenvolvimento, e serviços (GATS), que trata da liberalização deste setor de forma mais
branda para os países em desenvolvimento e que mais uma vez trata da balança de
pagamento, mas condicionadas a determinadas circunstâncias conforme menciona o artigo
XVIII do GATT. Em relação à agricultura, os países membros em desenvolvimento tem
requisitos menos rígidos em relação a reduções de subsídios e tarifas de importação de
produtos desta natureza. Para os países desenvolvidos a redução média exigida em relação à
concessão de subsídios a produtos agrícolas é de 36 por cento ao passo que para os membros
em desenvolvimento é de apenas 24.
c) períodos mais longos para a implementação
Estes períodos, também conhecidos como prazos adicionais, estão presentes
em diversos Acordos da OMC, partindo do pressuposto de que os membros em
desenvolvimento têm mais dificuldade na implementação de determinada obrigação e por essa
razão deve ser oferecido um prazo adicional para os mesmos.
Exemplos destes prazos adicionais são encontrados no Acordo relativo a
Aspectos de Direito de Propriedade Intelectual (TRIPS), em que ficou estabelecido que seus
dispositivos seriam aplicados a partir de janeiro de 1996 aos países desenvolvidos, ao passo
que para os países em desenvolvimento isto só seria necessário a partir de janeiro de 2000.
Além disso, mais uma vez observa-se o tratamento diferenciado no setor agrícola, onde o
prazo definido para os países em desenvolvimento cumprirem o compromisso de redução de
preços foi de dez anos ao invés de seis, normalmente aplicados aos demais.
254
Questiona-se
a period of time equal to half that during which such a measure has been previously applied, provided that the
period of non-application is at least two years.”
254
Artigo 15, § 2º do Acordo sobre Agricultura.
145
muito a especificação de tais prazos adicionais, sendo que na Decisão da Conferência
Ministerial de Doha sobre Implementação, datada de 14 de novembro de 2001, foram
incorporados vários pontos voltados para a disposição destes prazos de modo mais específico
nos acordos da OMC.
d) limitações a ações contra produtos originários dos países em desenvolvimento
Ainda como forma de tratamento especial e diferenciado, temos as
restrições impostas em relação a produtos de origem de países em desenvolvimento, dispostas
nos Acordos Anti-Dumping, Acordo de Salvaguardas e Acordo de Subsídios e Medidas
Compensatórias (SMC). Tais acordos possuem em comum o questionamento do chamado
“comércio justo”, buscando limitar ações que possam prejudicar o alcance deste comércio.
Para isso, mencionam que, antes de aplicar as medidas oferecidas por cada um deles, qual
seja, medidas antidumping, medidas de salvaguarda ou medidas compensatórias, deve ser
considerada a situação especial dos países em desenvolvimento, caso estes sejam o alvo de
alguma destas medidas, antes de aplicá-las. São os chamados remédios construtivos. Em
relação a medidas de salvaguarda, esta regra o é aplicada contra produtos originários de
países em desenvolvimento, havendo ressalva para o caso em que este país tenha uma
participação acima de três por cento nas importações do produto.
255
e) assistência técnica
A assistência técnica esprevista em vários acordos da OMC como o SPS,
o TBT, o TRIPS, o Acordo sobre valoração aduaneira e o Entendimento relativo a regras e
procedimentos que regulam a solução de controvérsias (DSU do inglês Understanding on
255
Artigo 9, § 1º do Acordo de Salvaguardas. Todavia, tais medidas podem ser aplicadas se a soma da
participação de todos os países em desenvolvimento exceder nove por cento.
146
Rules and Procedures Governing the Settlement of Disputes). Todos estes acordos têm em
comum a necessidade de conhecimento cnico para sua implementação e conseqüente
eficácia. A ausência de tal assistência prejudica os membros em desenvolvimento amesmo
de usufruírem os resultados de sua participação no sistema da OMC. Tal assistência pode ser
oferecida de modo bilateral, pelo país desenvolvido ou pelo Secretariado da OMC.
Muitos esforços m sido feitos para o oferecimento de um aumento desta
assistência, tendo em vista o também aumento da entrada de membros em desenvolvimento.
Até mesmo o orçamento da OMC foi ampliado em função do lançamento de um programa
direcionado para esta finalidade. Os membros desenvolvidos também ofereceram importantes
somas ao Fundo da Agenda para Desenvolvimento de Doha.
256
Além disso, o aumento da coordenação da OMC com outros organismos
internacionais como o Banco Mundial, FMI e UNCTAD, tem sido fundamental para este
aumento de assistência técnica, formando toda uma rede integrada que inclui até mesmo
doações governamentais bilaterais. O estabelecimento de Centros de Referência em diversos
países em desenvolvimento tem sido mais um instrumento utilizado pela organização a fim de
prover uma maior assistência aos países em desenvolvimento. Em tais Centros são oferecidos
computadores e programas de treinamento para acesso a documentos relacionados à
organização. Em março de 2002, 109 Centros haviam sido estabelecidos em 88 países, sendo
54 na África, 16 no Caribe, 17 na Ásia, 10 no Oriente Médio, 10 no Pacífico, três na América
Latina e dois na Europa Oriental.
257
Buscando ainda oferecer maior assistência técnica aos membros menos
favorecidos, o Secretariado da OMC auxilia os membros da OMC no que diz respeito à
256
Os fundos disponíveis para a assistência técnica teriam aumentado em 340 % de 1998 a 2002.
SECRETARIADO DA OMC, Folha de cooperação técnica, 28 de março de 2002. Disponível em:
<www.wto.org
>
257
SECRETARIADO DA OMC, Folha de cooperação técnica, 28 de março de 2002. Disponível em:
<www.wto.org>
Pela análise do mapa nota-se que os Centros de Referência estão estabelecidos sobretudo nos
países do Sul.
147
solução de controvérsias, desde que seja demandado. Todavia, reconhecendo a limitação deste
Secretariado, o artigo 27, § 2º, do DSU estabelece que sejam designados peritos legais
qualificados e disponíveis para auxiliar os países membros em desenvolvimento. Tais peritos
desenvolvem um trabalho imparcial, que se restringe às fases preliminares. Existem ainda os
Centros de Consultoria em Regras da OMC (Advisory Centre) responsáveis por conferir uma
assistência jurídica eficaz aos Membros em desenvolvimento nos procedimentos para solução
de controvérsias, tendo sido criado em paralelo à terceira Conferência Ministerial da OMC em
Seattle, em de dezembro de 1999, mas tendo sido aberto oficialmente em 5 de outubro de
2001, quando o Sr. Mike Moore, Diretor-Geral da OMC à época, disse: "pela primeira vez um
centro de ajuda jurídica foi estabelecido dentro do sistema legal internacional, com vista a
combater as possibilidades desiguais de acesso à justiça internacional entre os Estados". Tal
Centro é uma organização intergovernamental inteiramente independente da OMC,
funcionando como um escritório de advocacia especializado nas regras da OMC, que fornece
serviços e treinamento legal exclusivamente aos países em desenvolvimento. Oferece
assistência em todas as fases do litígio e seus custos são reduzidos. O primeiro trabalho
realizado por este Centro ocorreu em 2001, quando prestou serviços ao Paquistão nos
procedimentos do Órgão de Apelação relativos ao caso “Estados Unidos - Cotton Yarn”.
258
1.3.2 Tratamento especial e diferenciado para países menos avançados
Após verificarmos o tratamento geral oferecido aos países em situação
menos favorável do que os desenvolvidos, o que engloba tanto os países em desenvolvimento
quanto os menos avançados, se dado prosseguimento à análise do tratamento adicional
oferecido a estes últimos, tendo em vista que compartilham de uma situação mais particular.
258
CONFERÊNCIA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA COMÉRCIO E DESENVOLVIMENTO. Curso sobre
Solução de Controvérsias na Organização Mundial do Comércio. Módulo 3.5. - GATT 1994. Nova York:
Nações Unidas, 2003, p.12. Disponível em:
<http://www.mre.gov.br/portugues/ministerio/sitios_secretaria/cgc/curso_unctad.asp
> Acesso em: 14 mai. 06.
148
As oportunidades de comércio oferecidas a estes são ainda maiores do que
as oferecidas aos países em desenvolvimento. Isto porque para os países menos avançados o
posicionamento dos países desenvolvidos deve ser o de contribuir da melhor forma possível
para melhorar o acesso destes ao comércio como a proposta de abolir completamente as
tarifas para produtos originários destes países ainda menos favorecidos. Além disso, alguns
dos compromissos admitidos pelos demais membros da OMC são menos rígidos em relação a
estes.
Em relação às medidas de apoio ao desenvolvimento econômico, o Acordo
SCM estabelece em seu artigo 27, § 2º, que a proibição de subsídios à exportação não se
aplica aos membros menos avançados e o Acordo de Agricultura os exclui ainda da obrigação
de reduzirem suas tarifas de importações de produtos de tal natureza e os subsídios nacionais
oferecidos neste setor em seu artigo 15, § 2º.
Por fim, existem os períodos ainda mais longos oferecidos a estes membros
para a implementação de alguns dispositivos, tendo em vista suas circunstâncias ainda mais
especiais de limitações de ordem econômica e burocrática, o que implica a forte necessidade
de um tratamento mais flexível. Em relação à Propriedade Intelectual, por exemplo, tais
membros possuem um período de 11 anos para implementá-lo, ou seja, em janeiro de 2006,
conforme o artigo 66, § 1º, do TRIPS.
259
Conforme mencionado, o tratamento especial e diferenciado aos países
menos desenvolvidos não é uma exceção no sentido técnico, mas é importante a abordagem
dele dentre as exceções, visto que o uso do mesmo se aproxima muito do das derrogações
técnicas. Todavia, além dos dispositivos que tratam de derrogações à CNMF outrora
apresentados e deste tratamento diferenciado, existem outras exceções consideradas menos
259
Interessante notarmos que apesar do prazo pra implementação deste Acordo ser estendido, o mesmo não se
aplica à obrigatoriedade do Tratamento da Nação Mais Favorecida e do Tratamento Nacional, princípios a
serem respeitados desde a elaboração do Acordo.
149
relevantes para nosso estudo, mas que serão mencionados, mesmo que sucintamente como
complemento à abordagem lacunosa dos dispositivos do acordo.
1.4 Demais exceções à CNMF
Além das exceções consideradas mais relevantes e utilizadas e do
tratamento especial e diferenciado, tratados nas duas últimas seções, existem outras exceções
à CNMF que merecem ser abordadas e que também são utilizadas como justificativa para a
formação ou manutenção de diversos acordos bilaterais.
1.4.1 Exceção histórica
Os §§ ao do artigo I do GATT apresentam exceções em relação ao
tratamento preferencial conferido por acordos históricos de boa vizinhança ou ligados a
colonização e que devem ser mantidos por razões históricas. Como exemplo de tal tratamento,
em 1972, a União Européia acordou a Convenção de Lomé, a qual apregoava a previsão das
preferências coloniais no sistema preferencial ligado a África, Caribe e países do Pacífico
(ACP grupo).
260
1.4.2 Tráfico entre fronteiras
O artigo XXIV, § 3º, do GATT autoriza aos membros da OMC a acordarem
vantagens com Estados limítrofes a fim de facilitar o tráfico de bens entre ambos. Esta
exceção à CNMF também não apresenta problemas na prática.
260
SUTHERLAND, Peter (Chairman) et al. The future of the WTO. Addressing institutional challenges in the
new millennium. Report by the Consultative Board to the Director-General Supachai Panitchpakdi. World
Trade Organization, 2004, § 71.
150
1.4.3 Alocação preferencial de contingentes
A alocação preferencial de contingentes aos países que tenham um interesse
substancial no comércio desses produtos es prevista no artigo XIII, §2º, alínea “d”. Tal
exceção permite que os Estados imponham quantidades compatíveis com as regras do GATT,
para certos produtos, repartindo o contingente de produtos de modo a atribuir preferências aos
países que tenham um interesse substancial em fornecê-los. A repartição do contingente pode
ser feita em função da contribuição total ao comércio de produtos no curso de um período
anterior representativo.
1.4.4 Protocolo de acessão
Tratamentos preferenciais derrogando o artigo I, § 1º, do GATT podem
decorrer ainda em relação aos protocolos provisórios de acessão de novos membros. Tais
protocolos são negociados entre os Estados candidatos a entrada e os membros da OMC
dentro de um grupo de trabalho ad hoc, sendo baseado em acordos bilaterais preliminares
concluídos com os parceiros comerciais mais importantes.
261
Durante as negociações, os
países candidatos a membros da OMC podem ser levados a aceitar compromissos
complementares em relação aos concluídos pelos membros originais da organização, que em
geral estão relacionados à privatização de empresas estatais ou ainda adesão ao Acordo da
OMC sobre mercados públicos. Entretanto, estes novos membros podem conseguir
derrogações de algumas regras do GATT, tendo em vista sua situação de adaptação ao novo
sistema.
262
261
Para uma explicação mais detalhada do procedimento de entrada de novos membros ver: OMC, Accession à
l’Organisation mondiale du commerce. Procédures à suivre dans les négociations au titre de l’Article XII.
Note du Secrétariat, WT/ACC/1, 24 mars 1995.
262
Um resumo dos dispositivos particulares relativos aos protocolos de acessão podem ser encontrados em:
Secretariado da OMC – WT/ACC/7/Ver 2 – du 1 novembre 2000.
151
1.4.5 Defesa contra práticas desleais
Considerada por parte da doutrina como uma falsa exceção, a defesa contra
práticas desleais pode ser enquadrada como uma derrogação do artigo I, § 1º, do GATT, pelo
fato de que as medidas tomadas pelos membros contra práticas desleais como dumping ou
subvenções podem ser impostas em relação a mercadorias de origem de certo país a exclusão
de outros. Todavia, para os que não consideram tais práticas como exceções, esta
interpretação não é a mais correta, argumentando-se que as medidas antidumping e anti-
subsídios seguem condições de fundo e procedimento para poderem ser adotadas. Em
conseqüência elas não podem ser aplicadas a não ser em casos de importações onde se
constate práticas comerciais desleais, excluindo-se todas as outras importações. De acordo
com este entendimento, o fato de tratar de modo diverso diferentes situações não constitui por
si uma discriminação e por esta razão não viola o princípio da não-discriminação.
263
Todavia, deve ser ainda considerado que os Estados podem exercer atos
discriminatórios, quando da decisão de se defender contra determinada prática tida como
desleal, excluindo outras consideradas equivalentes. Isto porque é observado que os Estados
impõem tais medidas de modo discricionário, uma vez que são suas indústrias domésticas que
o fazem por terem a iniciativa de queixa. Este é um questionamento que ultrapassa a análise
estritamente jurídica, mas sendo bastante relevante por demonstrar que uma real
discriminação ocorre em relação aos exportadores de países onde os produtores foram
incluídos na reclamação. A solução encontrada para evitar ou ao menos reduzir a
discriminação é a imposição de uma investigação que não excluísse nenhuma das importações
do produto, ou seja, independente da origem deste, e somente a partir desta se poderia
concluir pela imputação de causa ou ameaça de prejuízo grave à prática considerada desleal.
263
LUFF, David. Le droit de l’organisation mondiale du commerce. Analyse critique. Bruxelas: Bruylant,
2004, p. 63.
152
Desta forma, o caráter seletivo da medida concerne à aplicação, mas não ao campo de
investigação.
264
A análise do sentido da CNMF no universo de relações econômicas
internacionais dinâmicas e ao mesmo tempo previsíveis foi interessante, no sentido que
demonstra ter esta um papel fundamental nas relações comerciais entre os Estados,
principalmente no sistema multilateral de comércio regulado pela OMC, mesmo admitindo
diversas derrogações e exceções. Importante ressaltar que a justificativa oferecida para tais
derrogações e exceções, qual seja, a da busca por uma equalização de veis de
desenvolvimento e oportunidades não é mais vista de forma absoluta. Isto porque os
princípios consolidados na Rodada Tóquio têm sido sensivelmente reduzidos nos Acordos de
Marrakech, devido à nova visão de desenvolvimento internacional que os acompanhou. Esta
visão está fundamentada na crença de que a expansão comercial é necessária para a promoção
do desenvolvimento, não sendo mais preciso a instituição de políticas compensadoras de
desigualdades que impliquem discriminações, mesmo que positivas.
265
Em outras palavras,
admite-se tais exceções e derrogações desde que implicassem expansão comercial,
independente de efeitos suplementares como a compensação de desigualdades.
Entretanto, mesmo sabendo de todas as falhas em relação à observância dos
princípios orientadores do sistema e da própria justificação destas estar perdendo o sentido de
ser, é admitido o pressuposto de que as regras da OMC o imbuídas de lacunas e
possibilidades de estabelecimento de acordos e políticas que em um primeiro momento
podem parecer contrárias a toda lógica do sistema multilateral, mas que conforme se
demonstrado, pela proliferação e exemplo dos acordos bilaterais, podem sim conviver dentro
dos limites oferecidos sem serem necessariamente uma oposição.
264
Para maiores informações ver: ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMÉRCIO. Relatório do Grupo Especial
“Estados Unidos mesure de sauvegarde transitoire appliquée aux fils de coton peignés em provenance du
Pakistan”, WT/DS192/R, 31 mai. 2001, § 7.126 a 7,131.
265
VARELLA, Marcelo Dias. Direito internacional econômico ambiental. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p.
139.
153
2 Situações de harmonização dos acordos bilaterais com a CNMF
A compreensão das exceções a CNMF servirá de base para o
prosseguimento do estudo, visto que estas são meios de justificação de diversos acordos
bilaterais, conforme será verificado a seguir.
A proposta de demonstração de uma harmonização dos acordos bilaterais
com a CNMF é a apresentação de três situações em que estes acordos se enquadrariam em
contexto de exceção por serem membros em desenvolvimento ou por objetivarem um acordo
regional futuro, ou ainda exceções por se tratarem de temas tidos como não-comerciais
abordados em parte pelo artigo XX ou ainda por se relacionarem a situações específicas em
que acordos multilaterais não seriam possíveis em razão da especificidade de cada Estado
como é o caso dos investimentos. Neste último caso, houve a tentativa de estabelecimento de
um acordo multilateral, mas esta restou frustrada por razões que ultrapassam a análise
técnico-jurídica conforme será verificado.
2.1 Acordos discriminatórios enquadrados nas exceções do sistema OMC por razões
de adaptação às disparidades dos membros ou por objetivarem acordos
regionais
Figura I – Situação dos acordos rel ativos a disparidades dos membros e acordos
regionais
154
O princípio da o-discriminação não é absoluto, possuindo algumas
limitações. Sendo assim, conforme verificado, certas discriminações o admitidas e
legitimadas pelo sistema. A justificativa para a possibilidade de tal tratamento discricionário
está na defesa de um interesse geral, além da conciliação de outros princípios também
importantes. Tais discriminações são consideradas positivas, consistindo em aceitar algumas
desigualdades jurídicas a fim de restabelecer a igualdade de oportunidades.
Conforme verificado pela abordagem das exceções, apesar de estar em
desacordo com o importante princípio da não-discriminação, a OMC e mais especificamente o
GATT, possuem, de modo explícito, artigos que admitem práticas discriminatórias e o
abandono da CNMF em circunstâncias particulares. Tais artigos podem ser aplicados em duas
situações: por razões funcionais e por classes ou Membros isentos da observância de certas
obrigações.
Por razões funcionais, o mais importante dos dispositivos é o artigo XXIV,
prevendo a formação de uniões aduaneiras ou zonas de livre comércio, hoje também
conhecidas como PTAs (Preferencial Trade Agreements), de acordo com certas condições.
Além deste artigo, implicando exceção por causas funcionais, existem ainda dispositivos
relacionados a ações discriminatórias contra importações e salvaguardas.
nas ões discriminatórias aceitas em função dos Membros envolvidos,
temos o tratamento especial e diferenciado previsto desde o GATT original, conferindo aos
países em desenvolvimento, regras especiais, como o artigo XVIII, estabelecendo menor
onerosidade nas obrigações em razão de balança de pagamento e desenvolvimento de
indústria nascente.
266
As exceções previstas no sistema devem ser administradas com cautela,
tendo em vista a preservação dos princípios sicos. Sendo assim, verifica-se que os acordos
266
LUFF, David. Le droit de l’organisation mondiale du commerce. Analyse critique. Bruxelles: Bruylant,
2004, p. 52.
155
bilaterais juntamente com a formação de blocos econômicos podem sim contribuir para o
objetivo final da organização, qual seja da liberalização, sem ferir seus princípios basilares.
A iniciativa destes agrupamentos tem ganhado força e isto tem sido bastante
positivo para os países em desenvolvimento. Exemplo disto foi o Acordo estabelecido entre o
Mercosul e a China, que trouxe maior consolidação ao bloco assim como atendeu às
estratégias de ambos os parceiros de manter relações comerciais entre as duas economias.
Todavia, ficou estabelecido de forma clara pelas autoridades de ambos, que tais iniciativas
não substituiriam as negociações multilaterais no âmbito da OMC. O vice-presidente chinês,
Zeng Qinghong chegou a indicar que os dois países estariam estabelecendo os acordos com
vista a fomentar a cooperação em benefício mútuo sobre a base de "um país, dois sistemas"
assim como na OMC.
267
Sendo objetivo deste capítulo a verificação da convivência dos acordos
bilaterais com a CNMF, propõe-se o estudo de um acordo deste tipo e que estaria enquadrado
como exceção positivada pelo sistema. Sendo assim, por ser um fenômeno comum e relevante
e por em geral envolver diversos acordos bilaterais, trataremos da situação de formação de
acordos regionais, sendo que a priori será feita uma sucinta, mas necessária explanação a
respeito do procedimento pelo qual tais acordos devem passar.
2.1.1 Procedimento de derrogação para os acordos comerciais regionais
O artigo XXIV do GATT e o artigo V do GATS autorizam derrogações de
alguns dispositivos da OMC, entre eles o artigo I, § 1º, do GATT, de acordo com certas
condições. Tais derrogações permitem aos membros a adoção de medidas preferenciais entre
eles violando a CNMF. Conforme mencionado, a justificativa para tal autorização é a idéia
267
Informações disponíveis em : <www.ccibc.com.br/pg_dinamica/ bin/pg_dinamica.php?id_pag=517> Acesso
em: 30 abr. 06.
156
subjacente de reforçar os processos de integração regional, contribuindo para a expansão do
comércio internacional e favorecendo o comércio entre os Estados envolvidos.
Existem dois tipos de acordos dentro destes processos de integração:
acordos de alcance regional e acordos de alcance parcial. Nos acordos de alcance regional
todos os membros participam, ao passo que nos de alcance parcial, somente alguns membros
participam, sendo utilizados como forma de aprofundamento do processo de integração
regional, tendo em vista que buscam uma progressiva multilateralização.
Quando dois ou mais Estados decidem firmar um acordo tendo por base o
uso de uma derrogação deste tipo, um procedimento específico é aplicado no âmbito do
Comitê de acordos comerciais regionais da OMC.
268
Tal Comitê foi criado em substituição
aos antigos grupos de trabalho ad hoc estabelecidos no quadro do GATT 1947 e possui como
função o exame de acordos sob o controle do Conselho do comércio de mercadorias no
referente ao artigo XXIV do GATT e do Conselho do comércio de serviços no referente ao
artigo V do GATS.
269
O procedimento para o comércio de bens é diferente do utilizado para o de
serviços, sendo ainda diverso do utilizado em relação a consideração dos países em via de
desenvolvimento. Como o foco de análise se encontra no artigo XXIV do GATT, restringe-se
a análise procedimental a este.
A primeira condição a ser considerada é a de que tais acordos devem possuir
como objetivo a constituição de uma união aduaneira ou de zona de livre comércio
270
, sendo
utilizados para a liberalização das trocas entre os Estados que comporão tais processos de
integração. Sendo assim, deve ser demonstrado que tal acordo é necessário para o
268
Para maiores informações a respeito da criação e papel deste Comiver: ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO
COMÉRCIO. Relatório do Grupo Especial. Turquia- Restrição a importação de produtos têxteis e roupas”,
WT/DS34/R, 31 mai. 1999, §§ 2.2 a 2.9.
269
LUFF, David. Le droit de l’organisation mondiale du commerce. Analyse critique. Bruxelles: Bruylant,
2004, p. 1004.
270
Artigo XXIV, § 5º do GATT.
157
estabelecimento do processo de integração e o será utilizado como obstáculo aos demais
Estados. Vale ressaltar que, uma vez formado o processo de integração, novas derrogações
não são admitidas por não serem necessárias ao estabelecimento do processo, já existente.
271
Os acordos pretendidos, mesmo que provisórios, devem ser notificados ao
Conselho do comércio de mercadorias antes de sua entrada em vigor, conforme o artigo
XXIV, § (a), do GATT. Nos casos dos acordos provisórios, tais notificações devem ainda
ser compostas pelos planos elaborados para a formação da união aduaneira ou zona de livre
comércio, inclusive com os prazos para tal. Algumas linhas diretivas são estabelecidas para
facilitação do processo de exame do acordo.
272
Tendo sido notificado um acordo, o Conselho do comércio de mercadorias
encaminha ao Comitê de acordos comerciais regionais o exame dos fatos em conformidade
com os seguintes pontos:
a) verificar se o acordo não aumenta as tarifas aplicadas
273
aos Estados
terceiros ou se não torna os regulamentos comerciais dos Estados parte
ainda mais rigorosos;
b) nos casos dos acordos provisórios, verificar se na notificação estão
incluídos os planos de formação da futura união aduaneira ou zona de livre
comércio e se os prazos são razoáveis. Caso não existam tais elementos ou
se forem considerados insuficientes, o comitê pode pedir sua elaboração ou
revisão.
274
As tarifas podem ser ainda negociadas caso estejam acima das consolidadas
nas Listas de Concessões. Tais negociações permitem que os Membros que possuam
interesses como principais fornecedores ou que tenham um interesse substancial, negociem
271
Ver Relatório do Órgão de Apelação do caso Turquia- Restrição a importação de produtos têxteis e roupas”
WT/DS34/AB/R, 22 outubro de 1999, § 52 e 58.
272
Ver OMC, Comitê dos acordos comerciais regionais, Lignes directrices concernant les procédures destinées
à améliorer et à faciliter le processus d’examen. WT/REG/W/15, 6 maio de 1997.
273
Tarifas aplicadas se distinguem das consolidadas, podendo aumentar quando da constituição da união
aduaneira ou zona de livre comércio, não podendo ultrapassar as consolidadas nas listas de concessões.
Entendimento sobre a interpretação do artigo XXIV do GATT 1994, § 2º.
274
Artigo XXIV, § 7º (b) do GATT.
158
compensações tarifárias visando um equilíbrio recíproco e mutuamente vantajoso das
concessões tarifárias.
Cumprida as etapas de exame e negociação, o Comitê de acordos comerciais
regionais deve encaminhar um relatório ao Conselho do comércio de mercadorias expondo
suas constatações. Pode ainda formular uma recomendação no caso dos acordos que não
estejam em conformidade com todas as condições, ou ainda para os acordos provisórios pode
recomendar medidas necessárias para a formação das futuras zonas de livre comércio ou
união aduaneira, inclusive com um calendário. O Conselho encaminha tais recomendações
aos Membros da OMC que comporão o acordo e caso se verifique que não é possível o
cumprimento de tais recomendações, as partes do acordo devem se abster de colocá-lo em
vigor até o cumprimento do recomendado.
275
Na prática, em relação à compatibilidade dos
acordos com as regras da OMC, o existem muitas conclusões definitivas derivadas deste
procedimento. Analisando-se os relatórios anuais do Comitê de acordos comerciais regionais
correspondente ao período de 1996 a 2002, a única constatação conclusiva foi no caso da
união aduaneira estabelecida em 1994 entre a República Tcheca e a República Eslováquia.
276
Vale ressaltar que os membros da OMC podem ainda aceitar a constituição
de uma zona de livre comércio ou união aduaneira que não respeitem inteiramente as
condições estabelecidas pelo artigo XXIV do GATT por maioria de dois terços conforme o §
10º, deste mesmo artigo.
A supervisão das uniões aduaneiras e zonas de livre comércio estabelecidas
e dos planos de estabelecimento destas é feita, na prática, pelo Comitê de acordos comerciais
regionais, mas cabe ao Conselho de comércio de mercadorias, juntamente com os Estados
integrantes de tais acordos, que deverão encaminhar a este Conselho a cada dois anos
relatórios que exponham eventuais modificações ou novidades em relação a estas, a
275
Artigo XXIV, § 7º (a) e (b) do GATT.
276
WT/REG/2 à 11
159
verificação se as recomendações e as condições do artigo XXIV estão sendo seguidas. No
caso dos acordos provisórios, qualquer mudança em relação ao plano também deve ser
notificada a este Conselho de modo imediato.
277
2.1.2 O Acordo de estabelecimento da União Européia
O exemplo mais clássico de aplicação do artigo XXIV do GATT refere-se
ao regime preferencial estabelecido entre os Estados membros das Comunidades Européias.
Quando da conclusão do Tratado de Roma, ainda em vigor o GATT 1947, os Estados
notificaram os demais Estados-parte do GATT.
278
Quando entrou em vigor a tarifa aduaneira
comum e a cada nova adesão, as Comunidades procederam a consultas e procedimentos
regulares com os demais membros da OMC. No referente à adesão de novos membros às
Comunidades Européias, a prática comunitária é de alinhar as tarifas aduaneiras dos novos
membros com a tarifa comum. Este método tem o efeito de reduzir os direitos aduaneiros
desses países, todavia, em alguns casos, como Áustria e Suécia, o efeito foi inverso,
aumentando algumas posições tarifárias. rias negociações ocorreram em função disto, mas
com poucas conclusões, tendo o procedimento de notificação e exame do Conselho e do
Comitê sido bastante criticado e considerado insuficiente.
279
277
Artigo XXIV, § 7º (c) do GATT.
278
Relatório do sub-grupo B (restrições quantitativas) da Comissão do GATT responsável por examinar o Tratado
instituindo a Comunidade Econômica Européia, adotado em 29 de novembro de 1957, IBDD S6/74, P. 84 e
85.
279
Relatório das reuniões do Comitê dos acordos regionais da OMC relativos ao alargamento da CE.
WT/REG3/M/ 1 à 8.
160
2. 2 Acordos discriminatórios enquadrados nas exceções do sistema OMC por se
tratar de temas ou áreas não-comerciais
Figura II – Situação dos acordos relativos a temas ou áreas não - comerciais
A liberalização do comércio busca a manutenção da paz e o favorecimento
de um desenvolvimento sustentável. Esta é a finalidade da OMC, explicitamente declarada no
preâmbulo do Acordo de Marrakech.
280
O direito do comércio internacional o tem
possibilidade de alcançar um caráter global, no sentido de abrangência de temas e atores.
Sendo assim, diante da dificuldade de análise e tratamento de temas que o tocam
diretamente o comércio, a OMC reserva a cada um de seus membros, a regulamentação
destes, assim como a busca do equilíbrio em relação às demais regras.
Estes temas ou áreas que não tocam diretamente o comércio são
denominados pela doutrina como “temas não-comerciais”, que apesar de serem objeto de
preocupação da população mundial, não são abordados diretamente pela OMC, a porque
envolvem considerações de cunho social e político que ultrapassam a esfera de competência
desta organização.
Como forma de ilustração de tais temas, optou-se pela seleção de três das
políticas não-comerciais mais polêmicas e que certamente têm sido objeto de discussão e
reflexão na OMC, principalmente na Rodada Doha, quais sejam: proteção do meio-
280
Preâmbulo do Acordo de Marrakech, primeira e terceira considerações.
161
ambiente, proteção de pessoas, envolvendo proteção do consumidor e direitos sociais e a
defesa da cultura e dos conhecimentos tradicionais.
281
Dizer que o direito da OMC é indiferente a estes temas considerados não-
comerciais não está correto. Até porque tais temas são regidos por políticas nacionais ou
acordos bilaterais que muitas vezes estão em conflito com alguns dos princípios da
organização e a mesmo com seu objetivo final de liberalização comercial. Buscando um
equilíbrio entre estes pontos é que a jurisprudência dos grupos especiais e do Órgão de
Apelação é utilizada, de forma a conferir eficácia a tais políticas ou acordos sem macular os
objetivos do comércio internacional. Enfim, vale ressaltar que ao mesmo tempo em que são
tratados com flexibilidade, visando à adaptação destes aos demais dispositivos da OMC, os
acordos bilaterais e políticas nacionais versando sobre tais áreas serão aceitos se
estabelecidos dentro de limites.
2.2.1 A proteção do meio ambiente
Partindo do reconhecimento de que o comércio internacional pode
contribuir para a proteção do meio ambiente, uma vez que pela Teoria das Vantagens
Comparativas pode se alcançar uma gestão ótima dos recursos naturais, além da diminuição
de fatores de degradação do meio-ambiente como a pobreza e o subdesenvolvimento.
282
Por
outro lado, a evolução do comércio internacional pode ser prejudicial ao meio ambiente, tendo
em vista a possibilidade de contribuição para o crescimento da produção industrial e
consumo, que podem destruir recursos naturais, excedendo a capacidade humana de os
281
A análise da doutrina que aborda a OMC demonstrou que vários autores simplesmente ignoram estes temas por
considerarem os mesmos fora da esfera da OMC. Todavia, os autores que os mencionam, defendem o ponto de
vista de que tais políticas podem não ter um efeito direto, mas não podem ser totalmente desconsideradas da
análise do sistema multilateral de comércio.
282
Fatores de pobreza e subdesenvolvimento são considerados como prejudiciais ao meio ambiente pela
conseqüente urbanização o planificada, desertificação e práticas agrícolas e industriais pouco ecológicas.
LUFF, David. Le droit de l’organisation mondiale du commerce. Analyse critique. Bruxelles: Bruylant,
2004, p. 1050.
162
controlar. Neste sentido, percebe-se que políticas e acordos versando sobre a proteção do
meio ambiente são necessários e até mesmo indispensáveis para a continuidade deste
comércio internacional.
Desta forma, a conjugação de objetivos comerciais aos de desenvolvimento
econômico e gestão racional e durável do meio ambiente deve ser a base destes acordos e
políticas, sendo o desenvolvimento sustentável uma noção defendida pela comunidade
internacional
283
e presente no preâmbulo do Acordo de Marrakech.
Na apreciação das exceções ao princípio da não-discriminação realizada no
capítulo II, percebe-se que o tema do meio ambiente está incluído no artigo XX do GATT,
mais especificamente as alíneas (b) e (g), que autorizam medidas restritivas ao comércio
relacionadas à defesa ou preservação do meio ambiente. Os dois casos mais relevantes da
utilização de tais exceções são os relacionados à gasolina
284
e aos camarões
285
, sendo
interessantes pela demonstração de uma evolução do tratamento de tais exceções com a
finalidade de consideração do objetivo de um desenvolvimento sustentável.
286
Vale ainda considerar que a jurisprudência da OMC incentiva a conclusão
de acordos e políticas relacionadas à proteção do meio ambiente, visto que, na definição do
critério de boa-fé presente no caput do Artigo XX, estabeleceu-se que este é determinado pelo
ponto de equilíbrio entre a liberalização do comércio e a proteção do objetivo o comercial
visado pela medida contestada. Sendo que se tal medida foi adotada em razão de algum
acordo entre as partes ou convenção internacional existente, a boa-fé é presumida. Tal
283
Tal noção pode ser verificada no Princípio 12 da Declaração do Rio sobre meio ambiente e desenvolvimento de
1992: Os Estados devem cooperar para promover um sistema econômico internacional aberto e favorável,
próprio a alcançar um crescimento econômico e um desenvolvimento durável em todos os países, que
permitirá o aperfeiçoamento da luta contra os problemas de degradação do meio ambiente. As medidas de
política comercial motivadas por considerações relativas ao meio ambiente o devem constituir um meio de
discriminação arbitrária ou injustificável, nem uma restrição disfarçada de trocas internacionais. [...]”
284
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMÉRCIO Relatório do Órgão de Apelação. “Estados-Unidos
Gasolina”, WT/DS2/AB/R, 29 abr. 1996.
285
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMÉRCIO. “Estados-Unidos Camarões”, WT/DS58/AB/R, 12 out.
1998.
286
Para maiores informações a respeito desta evolução ver: LUFF, David. Op. cit., p. 1051 e 1052.
163
exceção prevista no artigo XX demonstra a intenção do legislador de conciliar os objetivos de
liberalização comercial com a proteção do meio ambiente, sendo que a análise da
jurisprudência demonstra o tratamento cada vez mais flexível conferido à mesma.
287
A questão da compatibilidade das normas da OMC com as medidas
comerciais relacionadas aos Acordos Multilaterais de Meio Ambiente (AMMA) tem sido
considerada incerta. Atualmente existem cerca de 24 AMMAs autorizando os Estados a
adotarem medidas restritivas ao comércio visando à proteção dos recursos naturais.
288
O Protocolo de Montreal sobre substâncias que empobrecem a camada de
ozônio, de 16 de setembro de 1987, é um exemplo de um AMMA que impede a importação
de substâncias prejudiciais à camada de ozônio ou produtos contendo tais substâncias de
origem de Estados que não são parte do Protocolo.
289
Além deste existe também a Convenção
de Bali sobre o movimento transfronteiriço e eliminação de dejetos perigosos, de 22 de março
de 1989, impedindo que as partes exportem dejetos para outros Estados, caso não se saiba se
estes serão gerenciados de acordo com métodos ecologicamente racionais.
290
A problemática
de tais acordos que exigem a adoção de métodos de gestão ecologicamente racionais é a de
que forçam tais Estados a adotarem políticas e todos que não tiveram como base uma
adesão anterior dos Estados que não são parte da Convenção.
A OMC não tem por objetivo o estabelecimento de um quadro fechado que
sirva de restrição ao estabelecimento de políticas de meio ambiente, até porque se mostra
impossível ao sistema comercial internacional a manutenção de um arsenal de normas
destinadas a regular os temas de meio ambiente como um todo. A organização não impede
287
LUFF, David. Le droit de l’organisation mondiale du commerce. Analyse critique. Bruxelles: Bruylant,
2004, p. 1053.
288
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMÉRCIO. Comitê de comércio e meio ambiente. Acordos comerciais
de meio ambiente. Evolução recente. Nota do Secretariado, WT/CTE/W/151, 29 jun. 2000. Interessante
notar que acordos de caráter discriminatório o o apenas os bilaterais ou regionais, visto que neste caso,
mesmo o acordo sendo multilateral é considerado discriminatório por não envolver todos os Estados afetados
pelas medidas restritivas.
289
Artigos 4.1 e 4.3 do Protocolo de Montreal.
290
Artigo 4.2. da Convenção de Bali.
164
seus membros de manterem um alto nível de proteção ambiental, reconhecendo a necessidade
de medidas restritivas ao comércio em alguns casos. O que busca, entretanto, é que todas as
medidas relativas ao meio ambiente e que influenciem o comércio sejam objeto de discussão
com os demais membros da organização, tolerando os resultados desta consertação.
291
Percebe-se, portanto, que acordos discriminatórios por estabelecerem
medidas restritivas que configuram violações ao princípio da não-discriminação são admitidos
pelo sistema dentro de suas exceções, sendo justificados pela busca do desenvolvimento
sustentável e adquirindo uma importância cada vez maior como as normas do Codex
alimentarius, que apesar de não obrigatórias, são úteis na determinação da licitude de uma
medida sanitária, que também deverá estar de acordo com o Acordo SPS da OMC.
292
Uma Comissão de Comércio e Meio Ambiente foi criada pelo Conselho
Geral da OMC, tendo por objetivo a identificação de todas as relações envolvendo comércio e
meio ambiente, fazendo recomendações de modificação de dispositivos na busca por uma
interação harmoniosa entre as medidas. Enfim, deve ser ressaltado que a OMC encoraja
medidas de proteção ao meio ambiente, desde que sejam notificadas e compiladas em banco
de dados do Secretariado da organização. Todavia, esta é uma área bastante complexa devido
às implicações políticas e econômicas envolvidas. Este tema tem sido tratado na Rodada
Doha, sendo que, na Conferência Ministerial de novembro de 2001, foi reforçada a
importância das negociações relacionadas à melhora da cooperação entre a organizações e
demais organismos internacionais e mais interação entre os acordos multilaterais de meio
ambiente e as normas da OMC.
293
291
LUFF, David. Le droit de l’organisation mondiale du commerce. Analyse critique. Bruxelles: Bruylant,
2004, p. 1079 e 1080.
292
Artigo 3, § 2º do Acordo SPS.
293
OMC, Conferência ministerial, Doha, Declaração ministerial, adotada em 14 de novembro de 2001,
WT/MIN(01)/DEC/1, 20 de novembro de 2001, pontos 31 a 33 e 51.
165
2.2.2 A proteção de pessoas
A proteção de pessoas está diretamente relacionada ao desenvolvimento
sustentável defendido pela OMC, tendo sido considerada como objeto principal na busca pelo
desenvolvimento e diminuição da pobreza.
294
Os governos têm legitimidade para implementar
políticas e estabelecer acordos que objetivem preservar a saúde, segurança e o bem-estar de
seus cidadãos. A OMC confere a seus membros certa flexibilidade na determinação destas
políticas e no estabelecimento destes acordos que possuem uma interface com outros três sub-
temas quais sejam: a proteção da saúde das pessoas, envolvendo desde a segurança dos
produtos comercializados até o acesso à saúde; a proteção do consumidor no sentido stricto,
ou seja, em relação ao direito de informação e normas de qualidade; proteção dos direitos
sociais, que sem dúvida é o tema mais polêmico e que envolve direito do trabalho.
Começando pela proteção da saúde das pessoas, deve ser considerado que
esta proteção dependerá dos produtos e serviços oferecidos aos cidadãos, sendo o benefício
dos serviços de saúde e o acesso a medicamentos, elementos indispensáveis. O direito da
OMC parte deste princípio e busca flexibilizar-se a fim de acomodar as diversas políticas e
acordos, com algumas dificuldades práticas, principalmente de interpretação.
Medidas relacionadas à proteção da vida e da saúde das pessoas são objeto
de exceções previstas no artigo XX, alínea (b) do GATT, sendo que conforme verificado no
capítulo II deste estudo, elas devem estar de acordo com o caput deste mesmo artigo, ou seja,
devem possuir o caráter de boa-fé.
Em relação à proteção dos consumidores, deve ser considerado de modo
preliminar que a proteção pretendida é em relação ao consumidor como agente econômico
frágil frente aos comerciantes, considerados pólo forte da relação comercial. Além disso, o
294
Tal posicionamento foi claramente defendido na Declaração do Rio de 1992: [...] os seres humanos são o
centro das preocupações relativas ao desenvolvimento sustentável. Eles têm direito a uma vida sadia e
produtiva em harmonia com a natureza.” Princípio 1º da Declaração do Rio sobre o meio ambiente e
desenvolvimento.
166
jogo de forças presente neste mercado não é equilibrado sendo necessária a intervenção do
legislador para evitar excessos. A proteção do consumidor está relacionada com a imposição
de normas de qualidade aos produtos e serviços oferecidos a estes, exigência de fornecimento
de informações claras e precisas em relação aos produtos e serviços, desenvolvimento de
regras prudentes para setores de serviços como financiamento e seguridade e estabelecimento
de regras gerais relativas à atuação honesta no aspecto concorrencial.
295
Em relação às políticas de proteção de consumidores, as regras da OMC se
caracterizam por um aspecto de tolerância e até mesmo encorajamento desde que não sejam
restrições disfarçadas ao comércio. Um dos problemas práticos relacionados a esta área diz
respeito à dificuldade encontrada na distinção entre normas de qualidade e normas de
segurança dos produtos alimentícios e a interpretação do termo necessário em relação aos
serviços, sendo que mais uma vez os princípios da boa-fé e da proporcionalidade são
essenciais para a aplicação das normas relacionadas. Enfim, constata-se a partir da análise das
normas da OMC concernentes ao direito do consumidor que estas buscam defender um
mercado transparente e eficaz, aliando proteção do consumidor e liberalização comercial,
admitindo exceções ao princípio da não-discriminação.
Por fim existem os direitos sociais, que diferentemente da proteção da saúde
e meio ambiente não possuem nenhum dispositivo que os mencione de modo específico
dentro do sistema da OMC. A única disposição relacionada ao tema é a prevista no artigo XX,
alínea (e) do GATT, que reconhece a legitimidade das medidas restritivas em relação a
produtos fabricados nas prisões. Uma grande problemática que acompanha o tratamento dos
direitos sociais dentro das relações comerciais é a da utilização destes como base de defesa de
práticas protecionistas por parte dos países desenvolvidos frente aos países em
desenvolvimento. Isto coloca em choque a proteção dos direitos humanos e sociais e a
295
LUFF, , David. Le droit de l’organisation mondiale du commerce. Analyse critique. Bruxelles: Bruylant,
2004, p. 1105.
167
vantagem comparativa dos países em desenvolvimento no que concerne à mão-de-obra mais
barata. A menção a estes direitos sociais é vista, portanto, como uma violação à liberdade
comercial, visto que pode ser utilizada como uma forma ilegítima de correção de vantagens
comparativas.
296
Temas relacionados à proteção das pessoas são objetos de muitas discussões
entre os membros da OMC. Diferentemente do estabelecido em relação ao meio ambiente,
não foi estabelecida uma Comissão para tratar diretamente dos direitos sociais, sob o
argumento de que isto poderia ser considerado uma invasão à competência estabelecida para a
Organização Internacional do Trabalho (OIT), em relação ao direito do trabalho. A questão
mais controvertida é a que se refere à inclusão de uma “Cláusula Social” no sistema da OMC,
que permitiria a utilização do mecanismo de solução de controvérsias desta organização para
a solução de litígios comerciais relativos a direitos sociais. Mas a instituição desta cláusula
parece improvável.
297
2.2.3 Defesa da cultura e dos conhecimentos tradicionais
A análise da interface existente entre política cultural, conservação de
tradições e o direito da OMC é bastante complexa. Isto porque temas relacionados à defesa
das culturas e conhecimentos tradicionais podem ser utilizados como exceções aos
dispositivos da OMC, visto que os governos possuem um interesse legítimo na promoção de
políticas ligadas à educação, reforço da identidade cultural, assim como apoio aos produtos
culturais e artísticos produzidos em seu território.
As políticas defendidas com esta finalidade estão relacionadas ao apoio da
produção literária, artística e audiovisual nacional, manutenção e desenvolvimento da
296
Para maiores informações sobre o desenvolvimento e tratamento dos direitos sociais no âmbito da OMC ver:
LUFF, David. Le droit de l’organisation mondiale du commerce. Analyse critique. Bruxelles: Bruylant,
2004, p. 1115 a 1127.
297
Ibidem, p. 1127 a 1129.
168
educação ou remuneração de conhecimentos tradicionais. Tais políticas e acordos,
comportando exceções ao princípio da não-discriminação, são legitimadas no plano
internacional pelo fato de que contribuem para a diversidade cultural, estando em
conformidade com a Declaração universal sobre a diversidade cultural adotada em 20 de
novembro de 2001 pela Conferência geral da Organização das Nações Unidas para a
educação, a ciência e a cultura (UNESCO do inglês United Nations Educational, Scientific
and Cultural Organization ).
298
As exceções referentes aos bens culturais estão estabelecidas também no
artigo XX, alíneas (a), (d) e (f) do GATT, concernentes à proteção da moral, leis e regras que
não são incompatíveis com o GATT e proteção de tesouros nacionais com valor artístico,
histórico ou arqueológico, respectivamente.
O sistema legal da OMC não visa impedir o desenvolvimento de políticas de
incentivo a cultura e proteção de conhecimentos tradicionais, sendo que, estando em
conformidade com a Convenção da UNESCO, busca apoiar a diversidade cultural.
O setor de serviços audiovisuais é o mais problemático dentre as políticas e
acordos culturais, sendo tratado pelo Acordo de Serviços da OMC. Uma das grandes
problemáticas apresentadas é em relação à impropriedade das classificações setoriais
propostas pela Secretaria da OMC e pelas Nações Unidas, que não levam em conta as redes
de telecomunicação, sendo fonte de discriminação.
A proteção dos bens culturais possui um aspecto de subjetividade e
abrangência que ultrapassa os demais temas ditos não-comerciais, sendo bastante utilizada
pelos países desenvolvidos em relação aos países em desenvolvimento, visto que somente os
Estados mais ricos possuem recursos suficientes para desenvolvimento da indústria cultural,
protegendo seus produtos e serviços.
298
LUFF, David. Le droit de l’organisation mondiale du commerce. Analyse critique. Bruxelles: Bruylant,
2004, p. 1129.
169
2.2.4 Harmonia dos temas comerciais e não-comerciais na busca do desenvolvimento
sustentável
A observância dos princípios da transparência, não-discriminação, coerência
e boa-fé na conclusão de acordos bilaterais que abordam os chamados temas não-comerciais é
fundamental para a adequação destes aos diversos regulamentos da OMC. Paralelamente a
isto, deve se considerar que a OMC possui dispositivos que precisam ser reformulados de
modo mais exato, como no concernente à proteção do meio ambiente, campo em que talvez o
mais plausível fosse um reexame de seu estatuto de subsídios ao meio-ambiente, assim como
do estabelecimento de procedimentos para a aplicação de regras unilaterais de urgência,
mesmo não existindo um concerto internacional pacífico a respeito.
299
Quanto à proteção de pessoas, o maior problema são as políticas e os
acordos que dizem respeito à segurança alimentar, tendo em vista mais uma vez os obstáculos
representados pela imprecisão de alguns termos assim como pela ambigüidade de certas
políticas e acordos que maquiam seus reais objetivos protecionistas e discriminatórios em
justificativas de caráter sanitário ou de defesa do consumidor.
300
Por fim, em relação ao setor da proteção cultural, o qual abrange políticas
culturais e a conservação de tradições e folclore, percebe-se que não existem maiores
dificuldades quanto ao comércio de bens culturais, mas sim no que se refere ao setor de
serviços, principalmente de serviços audiovisuais, no que concerne a adaptação das
classificações existentes ao desenvolvimento tecnológico atual.
301
299
Para maiores informações a respeito das políticas e acordos baseados em problemáticas ambientais ver: LUFF,
David. Le droit de l’organisation mondiale du commerce. Analyse critique. Bruxelles: Bruylant, 2004, p.
1049 a 1087.
300
Para maiores informações a respeito do tema não-comercial relativo a defesa de pessoas ver: LUFF, David.
Ibidem, p. 1087 a 1129.
301
LUFF, David. Le droit de l’organisation mondiale du commerce. Analyse critique. Bruxelles: Bruylant,
2004, p. 1151.
170
De modo geral, a proteção do meio ambiente, pessoas e cultura pode sim ser
combinada com o direito aplicado na OMC. Todavia, um problema que se coloca é em
relação a institucionalização e operacionalização de tal combinação. Neste sentido, propõe-se
a criação de uma organização internacional única que cubra todos os temas, não só os
comerciais, tendo como eixo central a defesa do desenvolvimento sustentável. Esta, sendo
uma solução com viés utópico, dada a diversidade de interesses em jogo, resta a sugestão do
fortalecimento das organizações específicas de cada setor. D a recomendação de se
estabelecer regimentos de solução de controvérsias em cada uma delas com base em
arbitragens independentes e que possam conferir maior equilíbrio e respeito a suas decisões,
visto que árbitros imparciais dariam maior confiabilidade às decisões que envolvam estes
temas de caráter fortemente subjetivo.
302
Estas são problemáticas que exigem uma maior
reflexão, que será melhor desenvolvida pelo diálogo entre a OMC e as demais organizações
existentes, buscando-se a harmonização entre seus ordenamentos e interesses.
Interessante considerar que o direito da OMC não é totalmente hostil aos
temas não-comerciais, possuindo legitimidade para tratar dos mesmos, mas ao mesmo tempo
limitado em sua atuação. Diante da multiplicação das relações entre os diversos Estados e do
possível surgimento de uma sociedade dita transnacional, novas regras e mecanismos serão
criados nos próximos anos como forma de regular o seu funcionamento.
Sendo os temas comerciais inseridos no sistema OMC, mesmo que de
forma imprecisa em alguns pontos, necessária se faz a inclusão dos temas ditos o-
comerciais, mas que afetam o comércio de modo direto. O direito da OMC encoraja esta
postura, visto que mesmo não tratando diretamente temas não-comerciais, confere ao governo
dos Estados a responsabilidade individual de regulamentar tais setores em seus territórios
nacionais, devendo observar o equilíbrio preconizado pelo desenvolvimento sustentável e ao
302
V.D. ESTY, Greening the GATT. Trade, environment, and the future. Washington DC, Institute for
International Economics, July 1994, p. 78 e ss. e 977-983.
171
mesmo tempo considerar seus níveis de desenvolvimento econômico, social e ecológico para
isto. Tais políticas devem ser menos unilaterais e mais adaptadas ao processo de globalização,
ultrapassando os critérios econômicos que guiam as atuais negociações no âmbito da OMC.
303
2.3 Acordos discriminatórios aceitos como resultantes de pressões ao sistema ou
peculiaridades dos Estados
Figura III – Situação dos acordos resultantes de pressões ou peculiaridades dos Estados
O sistema multilateral da OMC possibilita a seus membros a utilização de
exceções em circunstâncias e de acordo com condições particulares como forma de equilíbrio
de um conjunto normativo que agrega parceiros em níveis de desenvolvimento os mais
díspares possíveis. Conforme verificado, as possibilidades de conformação de situações com
tais previsões de exceção ao sistema são muito amplas e na prática verifica-se que os acordos
notificados à OMC se justificam ou com base nos artigos XX e XXIV ou com base na
Cláusula de Habilitação referente aos membros em desenvolvimento.
Além destes acordos encaixados em uma das exceções, foi verificado no
último tópico que existem algumas áreas ou campos ditos não-comerciais e que não estão
diretamente inseridos dentro da competência da OMC, sendo passíveis de acordos bilaterais,
mas que não necessariamente prejudicam a organização a menos que estejam mascarando
trocas comerciais em forma de interesses alheios.
303
LUFF, David. Le droit de l’organisation mondiale du commerce. Analyse critique. Bruxelles: Bruylant,
2004, p. 1151 a 1153.
172
Por fim, resta ser analisada uma terceira situação em que os acordos
bilaterais forçam os dispositivos do sistema e juntamente com a defesa de situações e
interesses acabam se justificando e se mantendo. Muitos destes acordos funcionam como
máscaras para situações imbuídas de variáveis políticas e econômicas que tocam diretamente
a OMC, prejudicando seu aparato de legitimidade, mas que por outras razões, que fogem ao
entendimento do estritamente legal, continuam em curso e sem perspectiva de que tenham
fim. Exemplo disto são acordos que, em geral, envolvem nações desenvolvidas,
principalmente os Estados Unidos, com países em desenvolvimento. Alguns destes acordos
fazem uso das flexibilidades do Acordo sobre propriedade intelectual da OMC (TRIPS) em
relação à saúde pública, que deveriam servir para promoção de inovações a respeito de
doenças que desproporcionalmente afetam a população dos países em desenvolvimento, para
defesa de seus próprios interesses.
304
As flexibilidades do Acordo TRIPS devem servir de auxílio aos países em
desenvolvimento, no sentido em que se configuram como exceções, sendo uma forma de
auxiliar o desenvolvimento da tecnologia e temas relacionados à propriedade intelectual.
Todavia, estes países em desenvolvimento sofrem com a falta de expertise necessária para a
implementação destas flexibilidades. Em razão disso, pressões internas ou externas,
principalmente de empresas farmacêuticas multinacionais, funcionam como obstáculos à
utilização destas flexibilidades como as massivas campanhas publicitárias de tais companhias
mencionando que “estudos independentes mostram que reclamações a respeito do uso de
patentes como barreiras ao acesso de medicamentos é infundado”.
305
304
Um acordo que ilustra bem esta situação seria o estabelecido entre EUA e Chile. Para maiores informações ver:
COMMISSION ON INTELLECTUAL PROPERTY RIGHTS, INNOVATION AND PUBLIC HEALTH
(CIPIH) Study 4C The use of flexibilities in TRIPS by developing countries: can they promote access to
medicines? Sisule F. Musungu, South Centre e Cecilia Oh, World Health Organization. August 2005.
305
Maiores informações a respeito da atuação destas empresas nos diversos países ver o website da Associação
das Indústrias Farmacêuticas (Pharmaceutical Industry Association), disponível em:
<http://www.ifpma.org/Issues/issues_intell.aspx
>
173
Além disso, pressões externas são estabelecidas pelos diversos governos,
sob forma de acordos bilaterais ou atos unilaterais. Como forma de ilustrar um acordo
bilateral contendo componentes de propriedade intelectual e que foi utilizado de modo
arbitrário pelos Estados Unidos pode ser mencionado o acordo com o Vietnã e Camboja em
que foram incluídas diversas restrições relacionadas ao acordo TRIPS, mesmo não sendo estes
países membros da OMC. Unilateralmente, pode ser citada a seção 301 utilizada pelos
Estados Unidos.
A resistência dos governos dos países em desenvolvimento a tais pressões
exige destes um vel político e econômico de que a maioria não dispõe. Uma das soluções
apresentadas para a correção desta falha e aprimoramento da utilização das flexibilidades do
Acordo TRIPS em relação aos países em desenvolvimento é a formação de mecanismos
regionais capazes de suprir as falhas da falta de especialistas nacionais. Com base na
cooperação e compartilhamento de interesses em comum, a ação coletiva através de arranjos
regionais é uma saída lógica e benéfica para estes Estados em desenvolvimento.
306
O setor de propriedade intelectual tem sido um foco dos acordos bilaterais
enquadrados nesta terceira situação. Todavia, este não é o único setor em que isto se visto
que vários o os campos de atuação do comércio internacional em que acordos bilaterais
considerados arbitrários são concluídos, mas que ao mesmo tempo vigoram em paralelo ao
sistema OMC.
Um dos campos mais abordados atualmente, tendo sido inclusive objeto de
diversas polêmicas nas negociações da OMC, é o de investimentos internacionais. Este é um
setor bastante delicado e ao mesmo tempo interessante para a análise proposta, pelo fato de
contar com um acordo multilateral no seio da OMC, mesmo que ineficaz ou contendo
306
Para maiores informações a respeito do uso das flexibilidades do TRIPS e melhora em relação a atuação dos
países em desenvolvimento ver: MUSUNGU, Sisule F. Utilizing TRIPS flexibilities for public health
protection through south-south regional frameworks. South Centre, abril de 2004.
174
somente recomendações, e ao mesmo tempo ser quase que exclusivamente regulado por
acordos bilaterais.
2.3.1 Acordo sobre medidas de investimento relacionadas ao comércio (TRIMs)
O setor de investimentos internacionais é considerado uma novidade para o
sistema multilateral de comércio em relação ao antigo sistema do GATT, mesmo tendo sido
previsto desde a redação deste acordo que as regras sobre as políticas relacionadas a
investimentos seriam estabelecidas em paralelo com as relativas ao comércio de bens. Além
disso, em 1955, as partes contratantes do GATT adotaram uma resolução relativa ao tema, na
qual ficou estabelecido que os Estados deveriam concluir acordos bilaterais como forma de
garantir e proteger a segurança dos investimentos estrangeiros.
307
Durante o ciclo de negociações da Rodada Uruguai, foram realizadas
negociações relacionadas aos investimentos internacionais, sendo estas restritas aos
investimentos referentes ao comércio. Ou seja, discutiu-se a admissão de investimentos desde
que benéficos aos objetivos de liberalização comercial. Como conseqüência, a OMC dispõe
de um acordo sobre as medidas de investimento relacionadas ao comércio (TRIMs do inglês
Agreement on Trade Related Aspects of Investment Measures) que em relação aos demais
acordos desta organização é considerado curto e bastante geral. Tal acordo objetiva limitar os
efeitos de restrição e distorção das trocas comerciais causados por medidas relacionadas a
investimentos.
308
Isto porque as políticas de investimentos adotadas pelos governos podem ter
um impacto direto sobre o comércio internacional. Vale ressaltar que este acordo não tem por
objetivo facilitar ou proteger os investimentos. Seu papel é o de expor, mesmo que de modo
sucinto, que os princípios gerais do GATT, principalmente o do tratamento nacional e o da
307
COLARD-FABREGOULE, Catherine. L’essentiel de l’Organisation Mondiale du Commerce (OMC).
Paris: Gualino, 2002, p. 93 e 94.
308
Primeira consideração do preâmbulo do TRIMs.
175
interdição das restrições quantitativas, se aplicam às medidas relativas a investimentos ligados
ao comércio de bens. Estabelece inclusive um mecanismo de notificação e controle destas
medidas em seus artigos 6º, 7º e 9º.
O acordo em si não possui uma definição clara das medidas que são
incompatíveis com o comércio internacional, mas em seu anexo existe uma lista
exemplificativa de algumas medidas apontadas como incompatíveis com a obrigação do
tratamento nacional e eliminação de restrições quantitativas (artigo III, § e XI, § do
GATT). Sendo que o III prevê que todas as exceções presentes no GATT o aplicadas no
acordo TRIMs caso necessário.
Em relação ao mecanismo de garantia do sistema, este está baseado na
transparência, consubstanciado na obrigação de notificação de acordos estabelecidos sobre o
tema. Tal obrigação está disposta no artigo V do Acordo sendo meio e fim de aplicação do
princípio da transparência conforme mencionado no artigo VI. Três meses após a entrada em
vigor do TRIMs, todos os Estados deveriam notificar as medidas relacionadas a investimentos
internacionais aplicadas em seus territórios e incompatíveis com os dispositivos do Acordo,
devendo eliminá-los no prazo de dois anos a contar da data de entrada em vigor do Acordo.
Para os países em desenvolvimento e em particular os menos avançados, este prazo foi
estendido para 5 e 7 anos, podendo ser prolongado caso se comprovasse a necessidade para
tal. Ou seja, estava proibida a inserção de novas medidas incompatíveis a partir da entrada em
vigor do TRIMs.
Associado a esta obrigação de notificação existe o Comitê de medidas
relacionadas aos investimentos ligados ao comércio, tendo sido constituído com a finalidade
de acompanhar o funcionamento e aplicação do Acordo. Este Comitê está ligado ao Conselho
do comércio de bens da OMC, e reúne-se uma vez ao ano.
176
O TRIMs é bastante criticado pela falta de precisão, justificada pela política
habitual da OMC de favorecimento de análises mais globais em relação a temas controversos.
Por esta razão, tal acordo é visto como um complemento útil, mas limitado, aos inúmeros
acordos bilaterais relacionados a investimentos. Tais acordos bilaterais são em geral
submetidos aos procedimentos arbitrais de solução de litígios estabelecidos pela Convenção
de Washington de 18 de março de 1965 para o regramento das controvérsias relativas aos
investimentos que escapam ao sistema geral da OMC.
309
2.3.2 Os acordos bilaterais relativos a investimentos
A Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento
(UNCTAD) descreve os acordos bilaterais de investimento como meios mais importantes de
proteção de investimentos estrangeiros internacionais. Tais acordos conferem muitos direitos
e poderes aos investidores estrangeiros, principalmente corporações transnacionais
dominantes da economia global.
A liberalização dos investimentos é um tema envolto em bastante
controvérsia, sendo que vários governos, principalmente dos países menos desenvolvidos, têm
se mostrado contrários à constituição de um acordo global, por receio de que estes os
obriguem a abrir suas economias devido à remoção de todos os regulamentos existentes a
respeito dos investimentos estrangeiros.
Esta oposição é considerada uma das maiores razões para a proliferação de
acordos de investimento bilaterais em todo o mundo. Vários Estados têm buscado impor
regulamentações ou estabelecer políticas nacionais direcionadas aos investidores de forma a
priorizar o desenvolvimento nacional. Em tais políticas podem ser determinadas porcentagens
ou condições de apropriação dos investidores a setores estratégicos como o de
309
Tal convenção foi concluída sob a égide do Banco Mundial, possuindo 153 países signatários. LUFF, David.
Le droit de l’organisation mondiale du commerce. Analyse critique. Bruxelles: Bruylant, 2004, p. 316.
177
telecomunicações, por exemplo. Além disso, podem ser requeridas metas a serem alcançadas
ou imposição de contratação de proporções de trabalhadores locais. Temas como meio
ambiente, saúde e segurança jurídica também são mencionados como forma de assegurar que
os investimentos não afetaram estes setores.
Entretanto, ao mesmo tempo em que os governos buscam proteger seus
interesses nacionais contra riscos provenientes da adoção de investimentos estrangeiros, os
investidores buscam Estados em que o governo ofereça um tratamento não menos favorável
do que o oferecido aos seus investidores domésticos. Argumenta-se que algumas das medidas
adotadas pelos governos podem interferir nas leis de mercado e criar incertezas para os
investidores.
Diante deste quadro é que surgem os acordos bilaterais de investimento
como forma de reforçar direitos dos investidores, fragilizando as regulamentações
governamentais que versem sobre o tema. Tais acordos reforçam a proteção dos investidores
estrangeiros, incluindo direitos contratuais, de estabelecimento e dispondo até mesmo a
respeito das operações de entrada e saída de capital. Várias formas de proteção são oferecidas
como compensações em caso de expropriações, guerras ou outros danos, assim como garantia
de livre transferência de fundos e recuperação de ganhos. Em vários destes acordos a
cobertura dos setores econômicos é total, salvo nos casos em que reservas são estabelecidas
de modo explícito nos anexos dos mesmos.
Em geral, os litígios relacionados a tais acordos são submetidos a cortes
arbitrárias internacionais, o que serve de reforço ao poderio dos investidores que são capazes
de mudar legislações e políticas governamentais, caso sejam comprovados efeitos adversos
aos investimentos. Várias destas disputas são realizadas com corporações multinacionais que
ambicionam privatizar serviços como os relativos à água.
178
Percebe-se, portanto, que os acordos bilaterais de investimento têm sido
utilizados pelas grandes corporações transnacionais como uma potencial arma contra os países
em desenvolvimento. A proliferação de tais acordos tem sido acompanhada o só em
quantidade, mas também em cobertura e proteção oferecida aos investidores estrangeiros.
Atualmente, a Índia já possui mais de 50 acordos bilaterais de investimento assinados.
O primeiro acordo bilateral de investimento concluído foi em 1959 entre a
Alemanha e o Paquistão, sendo que ganhou relevância na década de 1990. Cerca de 400
acordos haviam sido assinados até 1995, sendo que até 2004, foram registrados mais de dois
mil acordos em operação, concluídos por mais de 170 países e cobrindo cerca de um quarto de
todo o montante de investimentos estrangeiros diretos (FDI do inglês Foreign direct
investment) nos países em desenvolvimento.
310
Diversos países em desenvolvimento, concluem acordos bilaterais de
investimento como forma de atração de FDI, mas estudos empíricos demonstram que não
existe uma relação estrita entre a conclusão de tais acordos e o crescimento do volume de
investimentos. Pelo contrário, países sem tantos acordos bilaterais de investimentos como a
China, têm sido mais bem sucedidos na atração de FDIs.
311
Os acordos bilaterais de investimentos podem constituir elementos
negativos para os Estados, principalmente os menos desenvolvidos, no sentido de que em
virtude das proteções oferecidas aos investidores estrangeiros, várias normas sociais e de
meio-ambiente podem perder efetividade, implicando custos consideráveis. Um exemplo
recente disto foi o da Argentina após a crise de 2002. A privatização de rios serviços
públicos na década de 1990, combinada com os mais de 54 acordos bilaterais de investimento
concluídos pelo governo argentino, produziram conseqüências adversas após a crise
310
GHOSH, Jayati. Treaties to protect foreign investors. Frontline (Índia). Vol. 23 Iss: 08, 22 abril 05 maio de
2006. Disponível em: <www.bilateral.org> Acesso em: 10 jun. 06.
311
Informações obtidas a partir do relatório anual a respeito do desenvolvimento mundial apresentado pelo Banco
Mundial em 2005.
179
financeira que desvalorizou a moeda do país (peso). Vários litígios foram estabelecidos, sendo
que uma das primeiras decisões condenou a Argentina no pagamento de mais de 133 milhões
de dólares como compensação à empresa norte-americana Content Management System pela
violação do acordo bilateral entre a Argentina e os Estados Unidos. Sendo que o argumento
argentino de que tal violação teria ocorrido como uma medida de emergência devido à crise
financeira, econômica e social que assolou o país, foi rejeitado pelo tribunal arbitral.
312
Interessante considerar que, se os acordos bilaterais de investimentos
serviram como agravantes da crise na Argentina, nas negociações para um tratado bilateral de
investimento entre Estados Unidos e Uruguai no início de 2004, estabelecidas entre o
representante de Comércio dos EUA (USTR do inglês United States Trade Representative),
Robert Zoellick, e o ministro das Relações Exteriores do Uruguai, Didier Opertti, tal acordo
foi visto como um importante sinalizador para os investidores estrangeiros de que o Uruguai
estava saindo da crise financeira que afetava o país na época.
313
A arbitragem estabelecida no caso argentino demonstra que os efeitos destes
acordos para os países em desenvolvimento é ainda mais agudo em virtude da solução dos
litígios nem sempre se basear em standards judiciais plausíveis, visto que o especificados
tribunais ou formações arbitrárias nos acordos. Esta problemática é acompanhada pelo fato de
que a justiça nestes casos tem sofrido um processo de privatização que pode acarretar
formações arbitrárias nem sempre justas e democráticas. Os dois procedimentos de arbitragem
mais conhecidos no mundo são o Centro Internacional de Solução de Disputas de
Investimentos (ICSID), considerado o corpo arbitrário privado do Banco Mundial e a
Comissão Internacional de Direito Comercial das Nações Unidas (UNCITRAL), mais
utilizada como fonte de regramento em tribunais arbitrais ad hoc. Cortes e sistemas nacionais
312
GHOSH, Jayati. Treaties to protect foreign investors. Frontline (Índia). Vol. 23 Iss: 08, 22 abril 05 maio de
2006. Disponível em: <www.bilateral.org> Acesso em: 10 jun. 06.
313
Informações obtidas a partir do site da Embaixada Americana:
<http://livrecomercio.embaixadaamericana.org.br/?action=artigo&idartigo=520> Acesso em: 12 abr. 06.
180
não possuem funções na solução destes litígios. Tais cortes arbitrárias são bastante criticadas
pela falta de transparência e estruturas democráticas.
314
Os acordos bilaterais de investimento são exemplos claros de mecanismos
de pressão e barganha de países mais ricos em detrimento de países mais pobres. Verifica-se
que o tratamento deste tema em acordos multilaterais pode ser inviabilizado pelas
peculiaridades de cada país, assim como os interesses em jogo. O TRIMs funciona como uma
espécie de baliza para o estabelecimento destes acordos, que além de possuir um caráter
restrito em relação ao número de parceiros, o são estendidos aos demais parceiros da OMC
por estarem relacionados a peculiaridades de cada país.
Sendo assim, a justificativa apresentada para a não aplicação da CNMF
neste tipo de acordo, apesar do tema ter sido tratado pela OMC, é a de que são formulados
como vestimentas específicas para cada país e, portanto, não se adequam a outros contextos.
Importa sublinhar que o mais relevante nestes acordos é a utilização de
posição de privilégio de países mais ricos na imposição de restrições a políticas
governamentais, implicando prejuízos em diversos casos. Sendo assim, a violação maior aqui
está diretamente ligada ao princípio da não-discriminação, no sentido de que os países mais
ricos e, portanto, com capital para investir, possuem o poder discricionário de estabelecer
regras relacionadas a investimentos, privilegiando alguns parceiros em detrimento de outros.
314
GHOSH, Jayati. Treaties to protect foreign investors. Frontline (Índia). Vol. 23 Iss: 08, 22 abril 05 maio de
2006. Disponível em: <www.bilateral.org> Acesso em: 10 jun. 06.
181
CONCLUSÃO
Como a corrente de um rio caudaloso, o direito internacional
contemporâneo evoluiu e com ele carregou os diversos instrumentos jurídicos que o
compõem, forçando a adaptação e flexibilização destes. No caso da CNMF estabelecida no
seio da OMC, isto restou claro pela análise do formato que possuía quando criada, ainda no
antigo GATT, em paralelo com as diversas flexibilizações que sofreu pelo estabelecimento de
exceções à mesma. Esta cláusula tem o fulcro de oferecer aos parceiros comerciais relações
não-discriminatórias, mas que com o passar dos anos restaram inoperantes pela desigualdade
entre os mesmos.
Isto demonstra que no momento em que a OMC foi criada, o princípio da
não-discriminação herdado do GATT foi mal moldado à nova realidade que regia as trocas
comerciais daquele momento, visto que o estabelecido como exceção acabou virando regra e
o número de acordos bilaterais e regionais excedeu todas as expectativas.
Tal realidade vem corroborar a tese de que a OMC atualmente gerencia um
sistema mundial de trocas que não se aproxima do desejado pelos arquitetos do antigo GATT.
Exemplo disso é a União Européia, que hoje aplica tarifas não-discriminatórias a nove
parceiros, entre eles os Estados Unidos e o Japão, e para todos os demais oferece acesso
diferenciado com base em alguma das exceções do sistema como o artigo XXIV ou o sistema
geral de preferência.
O estudo buscou demonstrar a evolução da CNMF e conseqüentemente do
princípio da não-discriminação dentro do sistema de trocas internacionais em constante
mudança. O primeiro capítulo foi dedicado à abordagem do princípio da não-discriminação no
contexto geral e principalmente no direito internacional. Este capítulo teve o objetivo de
demonstrar o tratamento dado a este princípio diante de desafios do cotidiano internacional de
tantos Estados com realidades diferentes, mas com o mesmo desejo de tratamento igualitário.
182
O segundo capítulo apresentou a CNMF no contexto internacional e o
afunilamento desta na OMC. Este capítulo foi também fundamental para a análise por centrar
a atenção do leitor na primeira das bases de comparação aqui utilizadas, qual seja a CNMF,
demonstrando já neste momento algumas imprecisões relacionadas à aplicação da mesma.
O terceiro capítulo teve o objetivo de trazer à luz o segundo elemento de
análise, qual seja, os acordos bilaterais. Interessante deste capítulo foi a apresentação do
histórico de utilização destes acordos, assim como os efeitos da proliferação dos mesmos no
contexto atual. Além disso, demonstrou-se a ausência de hierarquia entre os objetos
analisados, o que elimina qualquer possibilidade de desconsideração dos acordos bilaterais
diante da superioridade da CNMF, do acordo multilateral em que está inserida ou do princípio
da não-discriminação da qual se origina.
O capítulo final foi dedicado à análise factível da convivência entre a
CNMF e os acordos bilaterais. A partir da explanação das exceções à CNMF que o próprio
sistema admite, foram apresentadas três situações em que tais acordos são criados e
legitimados ou por se enquadrarem em tais exceções ou por tratarem de campos em que a
especificidade não permite um tratamento multilateral como os investimentos.
A análise da evolução da CNMF tanto no direito internacional
contemporâneo como de modo mais específico nas trocas comerciais reguladas pela OMC
demonstrou que as exceções estabelecidas em relação à mesma foram necessárias para a
manutenção e adaptação do sistema comercial internacional aos interesses dos diversos
parceiros que o compõem. Um dos argumentos mais fortes dos defensores de tais exceções é
o de que estas possibilitam a grupos de nações pequenas ou pouco representativas em relação
aos demais Membros da organização, desenvolverem relações comerciais mais fortes e
profundas mais facilmente atingidas entre elas do que em escala global. Este é um argumento
que se adapta à exceção em relação ao artigo XXIV, mas que não oferece uma lógica
183
argumentativa às demais, visto que choca com o objetivo final da organização de
desenvolvimento das trocas e liberalização comercial.
Um fator que extrapola a análise técnica-legal objetivada, mas que nem por
isso deve ser desconsiderado é o de que as implicações políticas que levam à formação de
alguns destes acordos podem não ser positivas do ponto de vista dos objetivos da organização,
como as situações em que os países em desenvolvimento utilizam suas vantagens de barganha
e prestígio para o estabelecimento de acordos arbitrários e desleais. Todavia, esta conotação
negativa o é uma constante destes acordos e isto não pode ser desconsiderado quando se
pensa na legitimidade ideológica dos mesmos. Afinal, comprar aliados talvez o seja uma
justificativa para a utilização de uma exceção ao sistema multilateral e estabelecimento de um
acordo bilateral, mas oferecer reformas de base, estabilidade e alívio de situações de pobreza
e luta contra a corrupção pode ser, certamente, uma justificativa válida. Isto foi comprovado
pelo estabelecimento de diversos acordos bilaterais entre a União Européia e os Estados
restantes da cortina de ferro, nos quais foi possibilitado aos mesmos restabelecer suas trocas
comerciais internacionais, fazendo parte de uniões aduaneiras e provendo paz e segurança
para uma região bastante atingida por enormes conflitos.
315
Enfim, have sempre argumentos tanto para os que defendem o
estabelecimento dos acordos bilaterais e regionais em detrimento da CNMF quanto para os
que são contrários. Todavia, não importa de que lado da corrente seja posto o entendimento,
contra ou a favor dos acordos discriminatórios, o fato é que juridicamente demonstrou-se que
grande parte deles é legítima e válida ou por estarem adaptados às exceções do sistema, ou
por pressões que flexibilizam a aplicação de alguns dispositivos, sob a justificativa que
utilizam critérios de especificidade não aplicáveis a relações multilaterais.
315
SUTHERLAND, Peter (Chairman) et al. The future of the WTO. Addressing institutional challenges in the
new millennium. Report by the Consultative Board to the Director-General Supachai Panitchpakdi. World
Trade Organization, 2004, § 63.
184
Além disso, a proliferação dos acordos bilaterais pode ser entendida como
inevitável se tomado como exemplo o Brasil que está amarrado ao Mercosul, sendo que este
acordo não avança. Enquanto as exportações mexicanas representam atualmente 2,5% do
comércio mundial, o Mercosul representa apenas 1%.
316
Em suma, pode ser concluído que a CNMF passou ao longo dos últimos
anos por um processo de adaptação e flexibilização que não necessariamente indica que esta
tenha se enfraquecido ou diminuído seu papel dentro do sistema multilateral de trocas
comerciais regulado pela OMC. Diante do inevitável fenômeno de proliferação do uso de
acordos bilaterais no estabelecimento de trocas comerciais internacionais, restou a esta
organização o importante desafio de ajuste de seus dispositivos, o que conforme verificado,
cumpriu com relativo sucesso, tendo em vista a ausência de controle absoluto sob a utilização
destes ajustes em função do poder e artimanha de seus destinatários.
316
Jornal O Globo, Rio de Janeiro 22 out. 2004. Disponível em:
<http://oglobo.globo.com/jornal/especiais/exterior/146426490.asp>
185
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