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DANIELE JOHN
A RESSIGNIFICAÇÃO DA HISTÓRIA DE VIDA:
TEMPORALIDADE E NARRATIVA NO PERCURSO DA
ANÁLISE
São Paulo
2006
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DANIELE JOHN
A RESSIGNIFICAÇÃO DA HISTÓRIA DE VIDA:
TEMPORALIDADE E NARRATIVA NO PERCURSO DA
ANÁLISE
Tese apresentada à banca examinadora
da Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo, como exigência parcial para a
obtenção do título de Doutor em
Psicologia Clínica sob a orientação do
Prof. Doutor Luis Cláudio Mendonça
Figueiredo.
São Paulo
2006
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John, Daniele.
A ressignificação da história de vida: temporalidade e narrativa
no percurso da análise. 2006.
Orientador: Dr. Luis Cláudio Mendonça Figueiredo.
Tese (Doutorado) Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo
Bibliografia: f.
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
DANIELE JOHN
A RESSIGNIFICAÇÃO DA HISTÓRIA DE VIDA:
TEMPORALIDADE E NARRATIVA NO PERCURSO DA
ANÁLISE
Tese apresentada à banca examinadora
da Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo, como exigência parcial para a
obtenção do título de Doutor em
Psicologia Clínica sob a orientação do
Prof. Doutor Luis Cláudio Mendonça
Figueiredo.
COMISSÃO EXAMINADORA
______________________________________
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São Paulo, ____ de___________ de 2006
Para Eduardo Salgado, pelo amor que só cresce, pelo incentivo incondicional e por poder
compartilhar, entre tantas, mais essa aventura.
Para Miguel e Nina (ela, ainda na barriga), que foram gestados junto com esta tese e que
não param de me ensinar sobre a arte de ressignificar a vida.
AGRADECIMENTOS
Agradeço ao Prof. Luis Cláudio Figueiredo pelas aulas instigantes, pela orientação
precisa e inteligente, pela leitura sempre atenta e pelo rigor e respeito que fazem
dele um grande mestre e um excelente orientador.
Ao grupo de orientação composto por Alessandra Ribeiro, Ana Luiza Vessoni, Karin
de Paula, Nora Miguelez, Regina Amaral, Sônia Parente, Soraya Martins, Suzana
Pastori e Suzete Capobianco, pela incansável leitura e pelas boas críticas que
levaram à produção.
Aos membros do grupo de orientação/colegas da PUC que se tornaram parceiros de
outras empreitadas de trabalho e, mais que isso, bons amigos, parceiros para a vida:
Karin de Paula, Suzy Capobianco, Tiago Corbisier Matheus, Cíntia Jank, Luciana
Pires e Eliana Ribas. A Karin agradeço especialmente pela acolhida, pela
disponibilidade, pelas colocações inteligentes, pelas dicas de leitura e pela boa
vizinhança.
Aos membros da banca de qualificação, Adela Stoppel de Guelller e Mauro Meiches,
pela leitura atenta e respeitosa e pelas colocações que permitiram ir adiante.
Às amigas e colegas de trabalho Tatiana Inglez Mazzarella e Grace Lagnado, com
quem eu achava que ia dividir um consultório convenientemente situado perto de
casa, mas com quem acabei dividindo tantas outras coisas. Obrigada pelas valiosas
trocas de experiência clínica e por criarem um clima tão agradável no consultório, o
que foi fundamental para encontrar a paz necessária para traçar essas linhas. Para
Tatiana, um agradecimento especial pela leitura sempre interessada do texto, pelas
contribuições fundamentais, pela bem-vinda ajuda prática no processo final e por
estar sempre por perto.
Aos meus alunos, pelas perguntas que possibilitam sempre ainda questionar o que
já ia se colocando como óbvio e estabelecido.
Aos meus pacientes, por não deixarem morrer nunca o desafio que impõe a
reinvenção diária da psicanálise.
À cidade de São Paulo, que foi “um difícil começo”, mas que aprendi a amar e para a
qual, depois de cada saída, volto sempre como quem volta para casa.
À Clínica de Atendimento Psicológico da UFRGS, seus pacientes, seus professores
e supervisores, onde tive o privilégio de experienciar os primeiros anos de escuta
clínica, momento fértil que continua ecoando em mim e se faz presente neste
trabalho. Agradeço em especial a Simone Moschen Rickes, com quem aprendi tanto
naquela época e com quem continuo aprendendo. Obrigada pela sabedoria e
serenidade e pelas dicas preciosas de leitura, que foram fundamentais para tecer
este texto.
Aos professores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) - onde
tudo começou - em especial a Edson Luiz André de Sousa e Liliane Seide
Froemming, que marcaram minha trajetória para sempre.
À Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) e seus membros, pelas boas
heranças.
A Robson de Freitas Pereira, pela escuta que possibilitou inúmeras ressignificações.
A Diana Lichtenstein Corso, com quem aprendi que criatividade e bom-humor são
essenciais à escuta.
Aos amigos de Porto Alegre, que o tempo e a distância não conseguiram afastar.
Aos professores, supervisores e colegas da clínica Tavistock de Londres, onde
surgiu a primeira idéia, que deu origem a uma dissertação e que, por sua vez, deu
origem a esta tese.
Ao meu orientador de mestrado, Bernard Burgoyne, que soube conduzir-me pelo
difícil balanço entre os mares ingleses e franceses sem que eu me perdesse, mas,
ao contrário, de forma que eu pudesse tirar proveito das diferenças.
Aos meus irmãos, Richard John e Rodrigo John, que me ensinam sempre sobre o
valor de poder juntar trabalho e criação, por compartilhar a magia das lembranças de
infância e pelos surpreendentes reencontros da vida adulta. Obrigada também pela
ajuda com o lay-out.
Aos meus pais, que tiveram a sabedoria de sempre privilegiar a boa educação, não
poupando esforços para investir na formação dos filhos e, mais importante ainda,
que puderam nos dar o que não tem preço: amor incondicional e respeito por nossas
escolhas. Em especial a minha mãe, por estar sempre disponível para o que der e
vier e pela tão bem-vinda ajuda prática no final.
“Existe uma deriva própria da narrativa. Pessoalmente duvido que
qualquer romance (...) possa ser programadode A a B pelo seu autor. Duvido que
escrever uma ‘histórianão seja também uma história para aquele que escreve, não
constitua de certo modo uma aventura. (…) Só depois é que saberei o que eu
queria dizer (…). Descubro, escrevendo, aquilo que eu já sabia”.
Bernard Pingaud
RESUMO
Esta tese busca demonstrar, através de um estudo teórico-clínico, a importância dos
processos de ressignificação da história de vida como parte dos efeitos gerados por
uma análise. Ela parte da hipótese de que embora tais processos de ressignificação
se dêem cotidianamente mesmo fora da análise, o percurso desta cria condições
privilegiadas para estes movimentos. A temporalidade psicanalítica e a narrativa são
os eixos principais de abordagem do tema, que é debatido apenas no âmbito da
neurose. Casos clínicos em forma de vinhetas são trazidos ao longo do trabalho,
recortados em função do tema aqui tratado.
A temporalidade envolvida nos processos de ressignificação é compreendida como
algo que não se enquadra no modelo científico clássico de um “puro presente”, nem
tampouco se resume a um resgate do passado. A noção freudiana de
Nachträglichkeit é destacada como a dinâmica que permite pensar a história de vida
como um processo sempre em construção, que se dá dentro de um tempo
heterogêneo e irreversível. As conseqüências desta temporalidade para a posição
do analista, que não pode prever os efeitos de seu ato, são aqui também
consideradas.
Quanto à narrativa sobre si mesmo que é construída/desconstruída durante a
análise, ela não se enquadra nos moldes tradicionais de uma narrativa com início,
meio e fim, mas traz a marca da heterogeneidade do tempo ali implicado, bem como
de tudo o que não pode ser dito, porque não foi trazido para o campo da
representação. Faz-se uma crítica ao assim chamado “approach narrativo”, que vê a
análise como a construção de uma versão mais coerente e homogênea para a
própria vida.
Por fim, conclui-se que os processos de ressignificação têm um papel importante
dentro do percurso da análise, como um dos movimentos que promovem mudanças
estruturais no sujeito, desde que a análise possa ser registrada como experiência
pelo analisando. A ressignificação é definida como uma constante busca de novos
sentidos para a vida ou aspectos dela, efeito de uma demanda da modernidade que
exige do sujeito a contínua construção de uma narrativa original e criativa da própria
vida. Estes processos de ressignificação envolvem um trabalho psíquico que é
intensificado no espaço analítico, lugar onde um sujeito pode testemunhar sobre sua
condição, promovendo mudança na posição subjetiva ocupada por ele.
Palavras-chave: psicanálise, ressignificação, história de vida, temporalidade,
narrativa.
ABSTRACT
This is a clinical-theoretical study, which aims to demonstrate the importance of life
history ressignification processes as part of the effects generated by analysis. It parts
from the hypothesis that, although such processes happen in everyday life even for
the ones who are not in analysis, the experience of analysis creates privileged
conditions for such movements. The theme is addressed through two main topics:
psychoanalytical temporality and narrative. We restrict the debate to the field of
neuroses. Short clinical passages are brought out throughout the paper and are
edited according to the main theme.
The temporality involved in ressignification processes is understood as not fitting into
the classic scientific model of “pure present”, neither can it be described as a rescue
of the past. The Freudian notion of Nachträglichkeit is highlighted as the dynamic
which allows one to think of life history as a process always in construction, which
happens within a heterogeneous and irreversible time. The consequences of such
temporality to the analyst position, who can not foresee the effects of his act, are also
addressed.
As for the self narrative which is constructed/deconstructed along analysis, it does
not fit in the traditional models of a narrative with beginning, middle and end, but it
brings the marks of the heterogeneous time implied there, as well as of everything
that can not be said because it has not been brought to the field of representation. A
criticism of the so- called “narrative approach”, which sees the process of analysis as
the construction of a more coherent and homogeneous version of life, also takes
place here.
As a conclusion we confirm that the ressignification processes do have an important
role in the analysis process as one of the movements which promote structural
changes in the subject, as long as the analysis is registered as an experience by the
analysand. The ressignification of life history is defined as a constant reach for new
meanings for life or aspects of life, as a result of modernity´s demand imposing onto
the subject a constant construction of an original and creative narrative of one´s own
life. Those processes of ressignification involve a psychic work, which is intensified in
the analytical space, a place where a subject can testify about his condition,
promoting change in the subjective place he/she occupies.
Key-words: psychoanalysis, ressignification, life history, temporality, narrative
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...........................................................................................................1
1 TEMPORALIDADE PSICANALÍTICA...................................................................10
1.1 O tempo.............................................................................................................10
1.2 O tempo em Freud.............................................................................................15
1.3 Atemporalidade e arqueologia...........................................................................16
1.4 A noção de Nachträglichkeit..............................................................................23
1.5 A teoria da sedução e o tempo do trauma.........................................................25
1.6 Tempo não linear...............................................................................................34
1.7 Martha e suas heranças ....................................................................................37
1.8 Apropriar-se de um legado, encarregar-se de uma herança .............................42
1.9 Ressignificar, nomear, elaborar.........................................................................47
2 UM SABER QUE SE ATRASA.............................................................................53
2.1 Saber não saber................................................................................................53
2.2 Sou onde não penso e ali está a minha verdade...............................................60
2.3 Enunciado e enunciação ...................................................................................64
2.4 O ato analítico....................................................................................................69
2.5 Posição do analista............................................................................................71
3 O AUTOBIOGRÁFICO, A NARRATIVA E A ANÁLISE ........................................81
3.1 Quem conta um conto aumenta um ponto.........................................................81
3.2 A modernidade e a construção autobiográfica...................................................85
3.3 O “approach narrativo”.......................................................................................89
3.4 A questão da coerência.....................................................................................92
3.5 Quem escuta o enredo se enreda ....................................................................99
4 O PERCURSO DA ANÁLISE E SEUS EFEITOS...............................................110
4.1 De que narrativa se trata, afinal?.....................................................................110
4.2 Do romance ao conto ......................................................................................112
4.3 O enigma sobre a origem e a ficção................................................................116
4.4 A constituição do sujeito e o fantasma fundamental........................................120
4.5 A função materna e os pais suficientemente narrativos ..................................125
4.6 Clarissa, para quem faltavam as palavras.......................................................129
4.7 O soldado calado, o velho e o viajante: transmissão da experiência em Walter
Benjamin..............................................................................................134
4.8 Morte, transmissão e castração.......................................................................137
4.9 Outra narrativa, outra posição subjetiva ..........................................................141
4.10 A análise como experiência...........................................................................145
CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................................155
REFERÊNCIAS ....................................................................................................167
1
INTRODUÇÃO
Perseguir as questões que nos perseguem e fazer da inquietação
produção. Entre outras coisas, é disso que se trata quando nos colocamos diante
da empreitada de um ato de criação, seja ele qual for. A escrita de uma tese não é
exceção. Na busca por dar testemunho de uma experiência, a palavra é sempre
falha e insuficiente. Há entre a experiência mesma e o que se relata dela um
espaço vazio, impossível de ser preenchido. O que dizemos nunca é exatamente o
que gostaríamos de ter dito. Resta-nos a tentativa, o trabalho pelas bordas.
A escrita nos coloca diante da castração de modo exemplar.
Escrevemos para que as idéias não nos escapem, escrevemos para tentar guardar,
para deixar algum tipo de marca na passagem impiedosa do tempo que nos arrasta
a cada dia para mais perto do fim. Na presença impressa da palavra, a evidência de
uma ausência. A palavra representando o que já não está. Em última instância, a
escrita está invariavelmente remetida à morte. Como diz o poeta Waly Salomão,
“escrever é vingar-se da perda”
1
Escrevemos sobre o que não sabemos, sobre o que nos ultrapassa,
em uma tentativa teimosa de apreensão daquilo que se recusa a ser pego.
Escrevemos para tentar dar voz àquilo que nos interroga, nos incomoda, nos
inquieta, para descobrir escrevendo o que queremos dizer e que não nos é
2
dado saber de antemão. Na deriva que a escrita impõe, é preciso deixar-se ir, sem
saber bem para onde. Partimos de idéias soltas, de restos, de fragmentos, de
questões que ficaram em aberto em outros trabalhos, fazemos do antigo novo,
reciclamos. E assim nossos planos iniciais vão mudando, tomando outros rumos e
direções antes inesperadas.
E não é assim também o trabalho analítico, onde o encontro de
analista e analisando não fornece roteiros fixos nem garantias? Também ali é
necessário sustentar a angústia de não saber exatamente o que está por vir, a
impossibilidade de prever o caminho a ser seguido. Também ali se trata de lidar
com os restos, os fragmentos, as questões que ficaram para trás no meio do
caminho. Uma análise é uma tentativa de dizer o que não pode ser dito, de dizer o
que não se sabe, como já dizia Freud.
Na tarefa de descobrir escrevendo aquilo sobre o que quero
escrever, deparo-me com o próprio tema que me proponho abordar e se, como
dissemos, não há outra alternativa a não ser trabalhar pelas bordas, este verbo é
mesmo o mais apropriado. Só depois, ao vislumbrar o caminho já traçado, é que
saberei o que queria dizer. No ir e vir que tece um texto a palavra não é mais
que provisória, é preciso sempre reescrever, mas sem cair na armadilha de não
poder dar à tese UM fim possível, já que, tanto quanto a análise, ela facilmente se
apresenta como infinita. Que o começo fique para o final, ou seja, que a introdução
seja sempre a última coisa a ser escrita, é em si ilustrativo da dimensão temporal aí
implicada: algo que a psicanálise chama de a posteriori.
1
“Poema Jet-lagged”, in: Salomão, W. (1996) Algaravias. Rio de Janeiro: Editora 34.
3
Um forte e antigo interesse pela interlocução entre literatura e
psicanálise levou-me a propor como dissertação de mestrado um trabalho que
buscou traçar paralelos e contrapontos entre o processo de análise pessoal e o
processo de escrita autobiográfica
2
. Julgava haver entre eles algo que os
aproximava: a construção de uma narrativa sobre si mesmo, as ficções implicadas
neste narrar biográfico, a especificidade de uma temporalidade que se impunha a
este contar-se e recontar-se e o efeito de tais processos para os sujeitos em
questão. Com Freud (1907[1906]) aprendemos que o escritor criativo sempre
antecipa o homem comum e o cientista no que concerne ao conhecimento sobre a
mente, por isso fui buscar na autobiografia de Vladimir Nabokov (1967), Speak
Memory: an autobiography revisited, elementos que pudessem contribuir para o
fazer e o pensar clínicos.
Como não poderia deixar de ser, deste trabalho restaram inúmeras
questões em aberto e a vontade de prosseguir. Se tanto a análise quanto a escrita
autobiográfica levam os sujeitos ali implicados a um recontar da própria história que
favorece às ressignificações, qual seria o papel de tais processos nos efeitos de
uma análise? Em que medida as mudanças geradas a partir de um percurso de
análise se devem à possibilidade de construir novos sentidos para a vida? O que
exatamente estaria implicado em tais mudanças? Quais seriam seus limites? Que
diferença faria a experiência analítica em relação ao modo como um sujeito se
_____________
2
JOHN, D. (2000) When our fictions are our truth: construction and reconstruction of life history in
analysis and autobiography. Tavistock Clinic, Londres. Dissertação de mestrado.(inédito).
4
conta? Trataria-se de criar uma nova versão para a própria vida? A proposta desta
tese é a de aprofundar o debate iniciado com a dissertação, desta vez tendo como
foco principal a clínica psicanalítica. De uma forma mais geral, o presente
trabalho pretende contribuir para se pensar por quais vias se dão os efeitos
de uma análise. De forma mais particular, indaga, a partir da noção de
Nachträglichkeit, sobre os processos de ressignificação da história de vida
instaurados pela escuta analítica, seu papel durante este percurso e sua
importância como parte dos movimentos deflagrados durante uma análise.
Este trabalho propõe a discussão desta problemática através de um
estudo teórico-clínico que se restringe a pensar tais questões no campo da
neurose. Vários fragmentos de casos clínicos são trazidos ao longo do texto,
sem o intuito de dar conta das especificidades de cada um deles, mas tendo
sempre como ponto norteador a temática em questão. Assim, a opção feita foi
por apresentá-los através de pequenas vinhetas que foram recortadas em função
do assunto tratado. Tal recurso, diga-se de passagem, certamente não resolve a
dificuldade, sempre encontrada no campo da psicanálise, de poder transpor para a
escrita o que se passa na experiência clínica. Assim, não é pretensão desta tese
que as vinhetas clínicas aqui apresentadas possam “demonstrar” a questão da
ressignificação, mas que possam servir como um material precioso para enriquecer
este debate que, como já foi afirmado, só pode ser feito pelas bordas.
Sabemos que diferentes processos de ressignificação da história de
vida ocorrem com todas as pessoas cotidianamente, independentemente de
estarem ou não em análise. A própria passagem do tempo, a simples experiência
5
de estar no mundo, convocam o sujeito a constantemente ressituar-se diante
de sua própria história. Porque tal história não se resume aos fatos, porque a
memória não é fidedigna, porque as experiências vividas ao longo do tempo
modificam o lugar subjetivo que um sujeito ocupa no mundo, sua história é sempre
em construção. Nem o sujeito nem o rio são os mesmos cada vez que ele se
banha.
Se a análise não é o único lugar possível para que processos
de ressignificação da história de vida se dêem, ela é, acredito, um espaço
privilegiado para tanto. Apesar de toda a falta de garantias, há uma aposta de que
algum tipo de mudança possa se dar em uma análise (ou já teríamos desistido de
nosso laborioso ofício diário há muito tempo). Que tipo de mudança é essa que nos
empenhamos em operar? Uma primeira resposta possível é que ela se insere em
uma ética própria que não necessariamente coincide com os ideais sociais vigentes.
Assim, não há promessa de felicidade, enriquecimento rápido, alívio imediato, nem
tampouco a garantia de que o processo em si não será doloroso. Desde esse ponto
de vista, pensar sobre como opera a análise é sempre também pensar sobre
sua ética.
O sujeito que busca uma análise em geral vem motivado por algum
tipo de padecimento psíquico. Uma das tarefas iniciais do trabalho analítico, a
transformação de uma queixa em uma demanda de análise, inclui a possibilidade
de que o sujeito em questão possa vir a perguntar-se sobre sua própria implicação
neste sofrimento. A quem oferece seu sofrimento? Que gozo está colocado nele?
Como responde ao Outro? O que move o desejo do analista é a esperança de
6
que, ao poder de alguma maneira encaminhar tais perguntas, o sujeito possa
livrar-se minimamente das amarras de uma repetição compulsiva e encontrar,
quem sabe, uma outra maneira de se posicionar frente ao Outro.
Porque é a partir de uma demanda do Outro que um sujeito se
constitui, ao longo de uma análise há que se lidar também com uma pergunta sobre
as origens. O que é meu e o que é do Outro? De que maneira me aproprio de
tudo o que me é oferecido, daquilo que herdo? Como me situo diante de
minhas origens? São perguntas com as quais o analisando precisa deparar-se
para dar conta de um processo de historicização que é invariavelmente deflagrado
em uma análise.
Como coloca Lacan (1953/1954) no Seminário 1, a restituição da
história do sujeito deve ser considerada como o principal objetivo de uma análise.
Mas ele salienta que isso não significa colocar acento no passado. “A história não é
o passado. A história é o passado na medida em que é historiado no presente
historiado no presente porque foi vivido no passado.” (1953/1954, p.21).
Sabemos que no senso comum a psicanálise é tida como uma
prática que trabalha com o passado. Não é raro encontrarmos pessoas que alegam
não estarem interessadas em fazer análise porque estão mais preocupadas com
seu presente ou seu futuro. Inútil remoer o passado, parece ser seu mote. Até
7
mesmo certas práticas terapêuticas inserem-se aí nesta mesma alegação
3
,
diferenciando-se da psicanálise justamente por este ponto: sua proposta é de
trabalhar com o que é atual na vida do sujeito, nada de ter que levantar antigos
fantasmas. O passado já passou. Curiosa formulação esta de que seria possível
pensar um sujeito feito só de presente!
Mas se também não cabe dizer que a psicanálise trabalha com o
passado, que temporalidade encontramos no trabalho analítico? Como veremos, a
questão do tempo para a psicanálise não se coloca assim de forma tão simples. Se
a ressignificação só é possível no tempo, este não é o tempo reversível dos
relógios, tampouco o tempo cronológico do desenvolvimento. Pensar a análise
enquanto espaço de ressignificação a partir da noção de Nachträglichkeit
implica pensar em um tempo que caminha em múltiplas direções.
Assim, a história de vida referida aqui não se coloca como aquela
das anamneses, não se trata de uma história dada, de um relatar de fatos, mas de
uma construção (que sempre implica também em uma desconstrução, se levamos
em conta que parte dessa história já foi escrita antes do sujeito nascer) a ser feita e
refeita dentro do espaço transferencial. Isso também não quer dizer que ela seja
totalmente inventada, criada ao longo da análise. Se concebemos o sujeito como
assujeitado à linguagem, há que se considerar que ele parte de alguns
determinantes, e que ele “é falado” pela matriz simbólica que o antecede,
_____________
3
Em artigo recentemente publicado no New York Times (“More and more favored psychotherapy lets
bygones be bygones”, By Alix Spiegel. 14 de fevereiro de 2006), alega-se que as terapias
cognitivistas provaram cientificamente que rever o passado não é apenas desnecessário para a
8
tanto quanto também fala em nome próprio.
Ao abarcar a questão da ressignificação da história de vida na
análise, o tema da narrativa se impõe, já que o processo de contar-se em análise
não deixa de ser também uma forma de narra-se. Mas que narrativa seria essa?
Veremos como, ao longo do processo analítico a narrativa que se tece é de uma
história feita de restos, de imagens, de buracos, de ficções. Ao psicanalista
interessam os detalhes aparentemente irrelevantes, as frases soltas, as lembranças
aos pedaços, os “enganos”, as palavras esquecidas, qualquer coisa sobre o que se
fala, bem como aquilo sobre o que se cala. Assim, se de um lado temos uma
temporalidade multidirecional, de outro temos uma narrativa que não se reduz
aos moldes tradicionais de uma história homogênea com início, meio e fim.
A análise não visa à montagem de uma história mais coerente e
mais bem acabada para um sujeito. Pelo contrário, seus efeitos de ruptura buscam
a desconstrução do romance que o neurótico tende a construir para tentar dar conta
do que seria, como nomeia Ana Costa (1998), a ficção do si mesmo. Pensar no que
está envolvido nos processos de ressignificação da história de vida em uma análise
é pensar em como um sujeito pode narrar-se, contar-se/recontar-se e em como ele
pode dar conta de colocar em palavras o que é da ordem de uma experiência a
experiência de estar no mundo. Se a análise pode ser pensada como um meio que
permite ao sujeito a legitimação de uma experiência, algo cada vez mais difícil no
contexto moderno, esta tese propõe pensá-la também como uma experiência, que
cura, mas pode ser contraproducente.
9
marca o sujeito em seu corpo, gerando, entre outras coisas, a possibilidade de
ressignificar a própria história.
Se tanto a escrita quanto a análise colocam o sujeito diante de sua
castração, talvez o mais difícil em relação à construção de uma tese seja
justamente lidar com o que ficou de fora. O caminho traçado aqui é apenas um
entre inúmeros outros que poderiam ter sido feitos. Resta lamentar as perdas das
quais, apesar da tentativa, não foi possível vingar-se pela escrita. Mas há também
que poder celebrar o que foi possível fazer, bem como a inevitável existência dos
restos, que são a garantia de que o desejo continua e, quem sabe, também as
produções!
10
1 TEMPORALIDADE PSICANALÍTICA
1.1 O tempo
“O tempo é um ponto de vista dos relógios”
Mário Quintana
Apesar da existência de todos os relógios do mundo, insistindo em
demarcar com precisão a passagem do tempo, apontando para sua concretude, é
de forma radicalmente subjetiva que o homem o sente. Aperfeiçoou-se na arte de
esticá-lo, matá-lo, fazê-lo render, torná-lo eficiente, perdê-lo, ganhá-lo, desperdiçá-
lo, otimizá-lo. O tempo lhe escapa, passa sempre rápido demais ou devagar
demais, dificilmente condizendo com o que dizem os relógios. Tempo e desejo
articulam-se em uma equação que faz do primeiro algo sempre variável de acordo
com o segundo, mesmo que os relógios e os calendários demarquem a passagem
de um tempo igual.
As reflexões sobre o tempo sempre foram um tema caro à filosofia,
à ciência e ao homem comum, bem como fonte inesgotável de inspiração para
escritores e poetas. Decifrar seus enigmas tem sido uma tarefa instigante e infinita
para o ser humano há milhares de anos. A simples separação do tempo em
passado, presente e futuro, por exemplo, parece tão óbvia e fácil de aceitar a
princípio, mas assume complicações diversas quando a submetemos ao menor dos
11
questionamentos. Se o passado é o que já passou, o futuro é o que está por vir,
então o presente é o que está acontecendo agora. Mas como apreender este
“agora” se o tempo não pára de passar? Já não é o “agora” do qual falo também
passado no momento em que acabo de falar? Já não me encontro no futuro em
relação à primeira frase escrita neste texto? Estas perguntas são bastante antigas e
já podem ser encontradas nas reflexões de Santo Agostinho (397-8) sobre o tempo:
De que modo existem estes dois tempos passado e futuro, uma
vez que o passado não mais existe e o futuro ainda não existe? E
quanto ao presente, se permanecesse sempre presente e não se
tornasse passado, não seria mais tempo, mas eternidade. Portanto
se o presente, para ser tempo, deve tornar-se passado, como
poderemos dizer que existe, uma vez que a sua razão de ser é a
mesma pela qual deixará de existir? Daí não podermos falar
verdadeiramente da existência do tempo, senão enquanto tende a
não existir (p.318).
Tomar o tempo como objeto de estudo imediatamente implica em
uma série de dificuldades que já começam por sua definição. O que é o tempo? A
célebre colocação de Santo Agostinho (397-8) é de que embora o tema lhe seja tão
familiar, tão conhecido, ele só o sabe se ninguém lhe perguntar. Se tem que
responder a alguém, já não o sabe. Como explica Gondar (1996), qualquer
definição do tempo seria um contra-senso, uma vez que definir é justamente dizer o
que algo é a despeito de qualquer mudança, ou seja, afirmar o que permanece o
mesmo, apesar da passagem do tempo. Passadas várias páginas nas quais
discorre sobre o tempo, Santo Agostinho (397-8) demonstra que o impasse
continua:
12
Confesso-te, Senhor, que não sei ainda o que é o tempo, e, no
entanto, sei que pronuncio estas palavras no tempo. Sei também que
muito estou falando do tempo, e que este “muito” não é outra
coisa senão uma duração de tempo. Como posso saber isso, se
ignoro o que seja o tempo? Será que não sei exprimir o que sei? Ai
de mim, que nem ao menos sei o que ignoro! (p.328).
Uma das conseqüências imediatas desta situação paradoxal em
relação a conceitualização do tempo é que terminamos utilizando um modelo
espacial para tentar dar conta de representá-lo. O próprio Santo Agostinho (397-8)
já apontava para isso: “Todavia, o que medimos nós, senão o tempo tomado no
espaço?” (p.324). Apesar de não ser o único meio através do qual fazemos esta
espacialização do tempo, o relógio é talvez o exemplo mais claro disso. Ao
reduzirmos o tempo a uma distância percorrida entre dois pontos, estamos também
tornando-o reversível (a distância entre um ponto A e um ponto B é a mesma que
entre o ponto B e o ponto A). “O relógio não nos oferece qualquer possibilidade de
diferenciar qualitativamente o antes e o depois. É possível atrasá-lo ou adiantá-lo,
sem que isso faça qualquer diferença com relação ao tempo” (Gondar, 1994, p.2).
Ou seja, a dimensão qualitativa do tempo se perde com sua espacialização.
No entanto, sabemos que a característica mais essencial do tempo é justamente
sua passagem, sua irreversibilidade, o que significa que entre um antes e um
depois “algo se produz e ou algo se perde, instaurando uma diferença qualitativa
que impede a reversão da operação” (Gondar, 1996, p.68).
Quanto à filosofia clássica, ela tem como modelo a eternidade. Sua
preocupação sempre foi a de poder falar do que permanece imutável, já que a
verdade reside naquilo que continua igual ao longo do tempo. O mesmo se dá com
13
a ciência clássica. Em sua busca do conhecimento absoluto, o tempo não é mais
que uma ilusão, um obstáculo, pois ele irremediavelmente traz o novo. A ciência
clássica busca o absoluto, ou seja, leis que possam ser estabelecidas como
eternas, que continuem verdadeiras apesar da passagem do tempo. (Gondar,
1994).
Este destaque dado ao presente como único tempo possível já
aparece em Santo Agostinho (397-8). Se o passado não existe mais e o futuro
ainda não chegou, ele conclui que, então, só o presente existe. No entanto, ao
pensar sobre a duração do presente, este também se coloca como de difícil
apreensão. Deduz que 100 anos poderiam ser considerados um presente longo,
mas desses 100 anos, os que já transcorreram são passado, os que estão por vir
são futuro, restando apenas o ano que vivemos agora como presente. Mas se o ano
é feito de meses, os meses de dias, os dias de horas, as horas de momentos, então
resta concluir que o presente mesmo não tem extensão, já que não há como
conceber “um espaço de tempo que não seja suscetível de ser dividido em
minúsculas partes de momentos” (p.320). Mesmo depois de concluído isto, Santo
Agostinho (397-8) insiste na idéia de que é do presente que se trata quando
falamos de passado ou futuro, porque é no presente que o fazemos. De onde
conclui que há, sim, três tempos, mas ele os chama de: presente dos fatos
passados, presente dos fatos presentes e presente dos fatos futuros. “O presente
do passado é a memória. O presente do presente é a visão. O presente do futuro é
a espera” (p.323).
Depois de percorrido este longo caminho, Santo Agostinho (397-8),
14
ao constatar que a maioria das vezes falamos impropriamente do tempo, ou seja,
sem nenhuma exatidão, decide “repousar das perguntas dos homens” e estabilizar-
se em Deus, que é seu molde. Ao comparar-se com Deus, dirá que o Criador não
conhece do mesmo “modo grosseiro o passado e o futuro” (p.335), já que Ele é
verdadeiramente eterno, enfim, está acima destas questões tão humanas. Como
coloca Gueller (2001) há uma hierarquia que situa a eternidade como superior,
visão plena e absoluta, clarividência, enquanto a divisão entre passado, presente e
futuro é defeituosa e deficitária, isto é, demasiadamente humana.
Faz parte da nossa milenária herança intelectual atribuir ao que
verdadeiramente é, ao que nos aparece como indiscutivelmente
sendo, uma presença plena. (…) Ser implicaria em manter-se na
plenitude de uma presença estável e constante, manter-se numa
identidade e numa pura coincidência consigo mesmo. (Figueiredo,
2002, p. 18).
Figueiredo (2002) aponta que há diversos autores trabalhando,
cada um a sua maneira, no sentido de fazer uma crítica, bem como propor a
“superação”, daquilo que Heidegger chamou de “metafísica da presença”. A crença
de que “houve ou haverá um perfeito agora como residência privilegiada do ser”
(p.20) encontra expressão tanto nas buscas nostálgicas de uma origem perdida,
como na “utopia messiânica de uma totalização ou completude prometida” (p. 20).
Uma das conseqüências da “metafísica da presença” seria “a concepção do tempo
como linear, contínuo, unidirecional, recuperável e previsível” (p. 20). Em contraste
com esta noção de uma presença plena e sem brechas, a crítica da “metafísica da
presença”, proposta por Heidegger, Lévinas e Derrida, articula e reconhece a
heterogeneidade da presença, ou seja, o fato de que ela é feita de traços, vestígios,
15
antecipações, fraturas, ausências.
1.2 O tempo em Freud
E como situar a psicanálise diante da questão do tempo? Embora
Freud nunca tenha falado sobre o tema de forma sistemática, a psicanálise é
atravessada pela temática do tempo em inúmeros aspectos. Ele se faz presente
quando a etiologia da neurose é situada na infância, quando Freud postula a
atemporalidade do inconsciente, quando lança mão do conceito de recalque,
quando formula o conceito de compulsão à repetição ou propõe a noção de
Nachträglichkeit (a posteriori) e do trauma para citar apenas alguns destes pontos.
Mesmo que Freud tenha estado sempre imbuído de forte espírito
científico e tenha se empenhado para dar a sua invenção este tipo de status, em
coerência com seus próprios postulados, o produto de seu trabalho foi muito além
do que era sua intenção consciente. Se, na busca da verdade absoluta, a ciência
clássica toma o tempo como um obstáculo, uma ilusão, para Freud o que é ilusório
não é o tempo, mas a própria eternidade. Seu pensamento reafirma de forma
contundente a finitude, tanto do homem como do saber. Neste sentido, ele não
apenas não se enquadra no modelo de eternidade oferecido pela racionalidade
clássica, como vai na direção oposta.
Além disso, a problemática do tempo em Freud
não pode obedecer aos mesmos princípios da física e da metafísica, já que para ele o que
interessa não é a natureza do tempo em si, mas sua relação com o sujeito (Gondar, 1994).
16
De modo geral, a psicanálise desafia o entendimento do tempo
como linear e cronológico, tal como expresso pela “metafísica da presença”, e
vários autores estão de comum acordo ao afirmarem que a temporalidade
encontrada em Freud é heterogênea e complexa, expressando um tempo
multidirecional
4
. É claro que isso nem sempre é tão óbvio em Freud, a
complexidade de seu pensamento deixa inúmeras questões em aberto e espaço
para leituras diversas. A seguir, faremos um recorte de algumas passagens
freudianas, importantes para se pensar sua concepção temporal, para que, então,
possamos falar das implicações disso para a prática clínica e para a questão da
ressignificação.
1.3 Atemporalidade e arqueologia
Uma das características especiais que Freud atribui ao sistema
inconsciente é justamente sua falta de referência ao tempo.
Os processos do sistema Ics. são intemporais; isto é, não são
ordenados temporalmente, não se alteram com a passagem do
tempo; não têm absolutamente qualquer referência ao tempo. A
referência ao tempo vincula-se, mais uma vez, ao trabalho do
sistema Cs. (Freud, 1915, p.214).
_____________
4
André Green (2002) fala de um tempo “éclaté”, em inglês traduzido por “shattered”, isto é, um tempo
espalhado, espedaçado, que vai em diversas direções.
17
Mas o que afinal isso significa? Que tipo de registro é esse que
ignora a passagem do tempo? Estaria aí embutida uma idéia de tempo reversível,
no sentido de que, se o recalcado permanece imutável, intacto, inalterado pelo
tempo, poderia ser resgatado tal qual lá se apresenta? Ao postular a
atemporalidade do inconsciente, estaria Freud aproximando-se do modelo de
eternidade da filosofia clássica e, por conseqüência, inserindo-se na referida
“metafísica da presença”? Antes de tentar encaminhar tais questões, prossigamos
em nosso pequeno recorte. Destaquemos uma nota de rodapé que Freud (1901)
acrescenta a Psicopatologia da Vida Cotidiana em 1907, que ficou conhecida por
ser sua primeira menção explícita à atemporalidade do inconsciente:
No caso dos traços mnêmicos recalcados, pode-se constatar que
eles não sofrem nenhuma alteração, nem mesmo nos mais extensos
períodos de tempo. O inconsciente é totalmente atemporal. O caráter
mais importante e também mais estranho da fixação psíquica é que
todas as impressões são preservadas, não só da mesma forma como
foram originalmente recebidas, mas também em todas as formas que
adotaram nos desenvolvimentos posteriores, o que constitui uma
situação que não se pode ilustrar por nenhuma comparação retirada
de outra esfera. Teoricamente, cada estado anterior do conteúdo da
memória pode ser restituído à lembrança, mesmo que seus
elementos tenham trocado há muito tempo todas as suas relações
originárias por novas relações (Freud, 1901, p.236).
Aqui há algo diferente, não se trata apenas de um registro que
possibilita a permanência inalterada de seus processos apesar da passagem do
tempo. Nesta passagem Freud fala da possibilidade de registrar impressões não
apenas na forma como foram originalmente recebidas, mas também nas formas que
adquirem posteriormente. Mas como pensar em desenvolvimentos posteriores,
18
ou em novas relações se não no tempo ou ao longo do tempo?
Em tese intitulada “Sobre a (a)temporalidade: os paradoxos do
tempo no pensamento freudiano e sua incidência nos processos de constituição
psíquica”, Adela Stoppel de Gueller (2001) trabalha as dificuldades encontradas por
Freud em descrever a lógica do inconsciente e os limites que suas metáforas
arqueológicas, escriturais e espaciais ou tópicas encontram para dar conta de seu
postulado sobre a atemporalidade dos processos inconscientes. Segundo a autora,
as metáforas freudianas revelam-se insuficientes justamente porque tentam
espacializar um modelo que é basicamente temporal.
Embora Freud tenha afirmado que o tipo de preservação feita no
inconsciente não se presta a ilustrações por “nenhuma comparação retirada de
outra esfera” (Freud, 1901, p. 236), ele mesmo, em ocasiões diversas, utilizou-se de
metáforas arqueológicas para pensar os processos psíquicos, em especial o
mecanismo do recalque. Tais quais as peças que colecionava em seu consultório
haviam sido resgatadas depois de anos de preservação embaixo do solo, o mesmo
aconteceria com os conteúdos recalcados que, embora inacessíveis ao consciente,
encontrariam-se preservados no inconsciente. Que concepções de temporalidade
estariam colocadas por tais metáforas?
19
Em Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen (1907[1909]) Freud dirá
que “não existe melhor analogia para o recalque
5
que preserva e torna algo
inacessível na mente do que um sepultamento como o que vitimou Pompéia, e do
qual a cidade só pôde ressurgir pelo trabalho das pás” (p. 47). Em O Mal-estar na
civilização (1930[1029]) proporá o exercício de imaginar Roma como uma entidade
psíquica, onde todas as fases anteriores de desenvolvimento continuam a existir,
paralelamente à atual. Isto permitiria presentificar toda a sua história de uma só vez,
isto é, veríamos ali construções arquitetônicas de diferentes épocas históricas,
sobrepostas umas às outras. Mas, lembrando a lei da física de que dois corpos não
podem ocupar o mesmo lugar ao mesmo tempo, Freud apontará para a dificuldade
de representar em termos pictóricos as características da vida mental. Apesar de
não ser fisicamente possível, a capacidade de preservar os inúmeros períodos
históricos de um sujeito seria um fenômeno típico do mundo psíquico. Já mais para
o final de sua obra, em Construções em análise (1937), Freud fará uma longa
comparação entre o trabalho do analista e do arqueólogo, apontando semelhanças
e diferenças entre os mesmos:
Os dois processos são de fato idênticos, exceto pelo fato de que o
analista trabalha em melhores condições e tem mais material à sua
disposição para ajudá-lo, já que aquilo com que está tratando não é
algo destruído, mas algo que ainda está vivo. (…) Mas assim como o
arqueólogo ergue as paredes do prédio a partir dos alicerces que
permaneceram de pé, determina o número e a posição das colunas
pelas depressões no chão e reconstrói as decorações e as pinturas
murais a partir dos restos encontrados nos escombros, assim
também o analista procede quando extrai suas inferências a partir
dos fragmentos de lembranças, das associações e do
comportamento do sujeito da análise. Ambos possuem direito
indiscutido a reconstruir por meio da suplementação e da
combinação dos restos que sobreviveram (Freud, 1937, p.293).
_____________
5
O termo utilizado na Standard Edition é “repressão”, mas utilizaremos a palavra recalque.
20
Além da vantagem de encontrar seu material preservado em
oposição ao material quebrado pelo processo de escavação que o arqueólogo
normalmente encontra o analista teria ainda a vantagem de contar com as
repetições de reações infantis que o sujeito da análise está fadado a fazer, bem
como com todo o material transferencial, para os quais não há equivalentes na
arqueologia.
No mesmo texto de 1937, Freud falará novamente de Pompéia,
colocando a cidade em um lugar de exceção em relação a comum destruição dos
objetos arqueológicos. A instantaneidade do sepultamento teria garantido sua
preservação. No entanto, em mais uma referência ao exemplo da cidade petrificada,
Freud dirá ao Homem dos Ratos (1909) que “a destruição de Pompéia só estava
começando agora que ela fora desenterrada” (p.180). Ou seja, se em alguns
momentos Freud utiliza-se das analogias arqueológicas justamente para salientar a
conservação integral dos conteúdos recalcados, em outros momentos ele também
admite que o próprio processo de escavação, de exumação, implica sempre em
algum grau de destruição
6
. Como coloca Gueller (2002), “o enxadão não penetra na
lava sem causar estragos.
Ele destrói a completude e a integridade de Pompéia” (p. 74).
O que estaria em jogo, então, no retorno do recalcado? Se a
exumação implica em destruição já não é mais possível pensar em um resgate de
_____________
6
Porge, E. (1993) aponta que a afirmação freudiana de que os processos inconscientes são
intemporais foi fonte de muitos mal-entendidos. Ele diz que o desmentido mais explícito de tal
21
processos inconscientes inalterados. Trata-se aqui da impossibilidade de tornar a
lembrança inconsciente consciente, uma vez que ao chegar ao consciente, ela já é
outra coisa. Assim, o exemplo de Pompéia, destruída no momento de sua
descoberta, equivaleria ao que acontece com o traço mnêmico ao ser tocado pela
palavra:
Em ambos os casos trata-se de restos não completáveis, não re-
integráveis, salvo por construção. Construção e destruição não são
então simples opostos mas um par indissociável. Não há construção
sem que algo fique destruído, assim como é na destruição que se faz
a construção. A lógica totalizante da presença deve ser substituída
por uma outra, na qual o que se produz, o excedente, tem como
correlato que algo fique a menos. (Gueller, 2002, p.74).
Assim, se no próprio ato de passagem a lembrança recalcada deixa
de ser lembrança, temos aí um processo que é transformador, que implica em
uma mudança de estatuto, o que aponta também para a irreversibilidade do tempo.
Trata-se então de um presente nunca coincidente consigo mesmo,
nem na forma do passado, entendido como aquilo que um dia foi,
nem na forma de um presente pleno. Neste sentido, Freud se
encontra nos antípodas do pensamento agostiniano e, por extensão,
de toda a linha do que Derrida denominou de metafísica da
presença. Não há, sequer por um instante, um presente plenamente
presente, ou seja, recuperação da lembrança inconsciente (Guelller,
2001, p.22).
Por um lado, as metáforas arqueológicas muitas vezes acabaram
enunciado é fornecido pelo próprio Freud com sua noção de só-depois (Nachträglichkeit).
22
servindo para pensar uma psicanálise preocupada em resgatar lembranças intactas,
uma clínica do levantamento do recalque, que vê a neurose como uma doença da
memória (Laplanche, 1999a) na qual o simples ato de lembrar poderia trazer a cura
e que se insere em um modelo de tempo reversível; ou ainda, como coloca Gueller
(2001), o mito de uma psicanálise das profundezas, do oculto, do enterrado que
precisa ser trazido à luz, da busca de um passado que precisa ser resgatado. Por
outro lado, o fato de que tais metáforas não dão conta do fenômeno psíquico que
Freud pretende descrever, os paradoxos que estas tentativas revelam, indicam já
um caminho para se pensar uma psicanálise de temporalidades heterogêneas.
Para Gueller (2002) os exemplos de Pompéia e Roma seriam
complementares na tentativa de ilustrar o funcionamento psíquico:
Roma nos apresenta um tempo de acúmulo, de continuidade, de
duração, de sobrecarga. Pompéia, o tempo da captura, do corte, do
instante, da unicidade, mais totalizante. O sonho de Freud é
encontrar um modelo que dê conta de Roma e Pompéia juntas, pois
o aparelho psíquico é as duas em uma. Os traços mnêmicos estão
todos sempre ali, porém sua ascensão à superfície é seletiva. Todas
as virtualidades são registradas, mas as atualizações na consciência
são feitas pontualmente. O inconsciente, o recalcado, fica
representado ou bem pela ficção fantástica de Roma ou bem por
Pompéia sob as lavas do vulcão, e, num caso como no outro, como
aquilo que nunca se dá como presença plena. (p. 76).
Como vemos, as metáforas arqueológicas das quais Freud faz uso
para tentar descrever os fenômenos psíquicos são paradoxais. Elas confirmam a
complexidade da temporalidade psicanalítica, que não se enquadra em uma
concepção de tempo reversível, como também não pode ser definida como “puro
23
presente”. A partir da constatação freudiana de que a “recuperação” do que foi
“guardado” como recalcado implica em alguma perda, alguma transformação,
podemos pensar que a construção/reconstrução que um sujeito faz de sua
própria história envolve também sempre, ao mesmo tempo, destruição. Neste
sentido, os processos de construção/reconstrução da própria história que
incluem o que estamos chamando de processos de ressignificação
colocam-se, ao mesmo tempo, como processos desconstrutivos
7
.
1.4 A noção de Nachträglichkeit
Outro ponto importante a ser destacado na obra freudiana quando
nos dedicamos ao tema da temporalidade psicanalítica é o que Freud chamou de
Nachträglichkeit. Esta idéia é de interesse especial para esta tese, uma vez que
ela está no cerne da dinâmica envolvida nos processos de ressignificação da
história de vida. A proposta aqui é acompanhar como esta noção aparece em
Freud, bem como seus desdobramentos pós-freudianos.
Embora Freud nunca tenha formulado uma definição precisa, ou
uma teoria geral para a noção de Nachträglichkeit, ela foi adquirindo, aos poucos,
um status mais conceitual dentro da psicanálise, principalmente depois de ter sua
_____________
7
Como veremos mais adiante ainda neste capítulo, isso se deve também ao fato de que a história do
sujeito é em parte construída antes mesmo dele nascer, ou seja, o processo de construção de sua
própria história sempre implica, também, em alguma desconstrução do que lhe determina.
24
importância ressaltada por Lacan e a escola francesa.
Seja em sua forma adjetiva (nachträglich) ou substantiva
(Nachträglichkeit), o termo - que em português é geralmente traduzido por a
posteriori - tem hoje um largo uso dentro da psicanálise, o que muitas vezes
contribui para uma certa perda de sua especificidade conceitual. Parte da confusão
existente em torno do termo deve-se à questão da tradução
8
. Enquanto Freud fazia
o uso de um termo apenas (mesmo que desdobrado nas formas adjetiva e
substantiva), em inglês, por exemplo, temos o emprego de diversas palavras,
dependendo do contexto em que se encontrava o termo original. Outra parte do
problema se deve a nuances relativas às diferenças entre as várias escolas da
psicanálise e a interpretação e o lugar que cada uma delas dá a esta noção.
Em um primeiro momento, tal como aparece na teoria da sedução,
o sentido do termo em Freud é bastante pontual. Está referido a um acontecimento
orgânico, qual seja, um amadurecimento sexual que permite o acesso a sensações
corporais antes negadas ao sujeito em função de sua imaturidade biológica. No
entanto, o uso do termo hoje, principalmente dentro da linha francesa da
psicanálise, foi adquirindo um caráter bem mais amplo. Este inclui uma idéia de
processo e elaboração que garantem ao sujeito novos níveis de compreensão
de certos acontecimentos de sua vida. Se analisarmos a definição oferecida por
Roudinesco e Plon (1998) em seu dicionário, vemos como ela se distancia do uso
_____________
8
Ver nota de rodapé número 9. Algo relativo a estas diferenças será abordado mais adiante. Para
mais sobre este tema ver Laplanche, J. (1999b). “Notes on afterwardness”. In: Laplanche, J. Essays
on otherness.
25
do termo dentro da teoria da sedução em Freud:
Palavra introduzida por Freud em 1896, para designar um processo
de reorganização ou reinscrição pelo qual os acontecimentos traumáticos adquirem
significação para o sujeito apenas num a posteriori, isto é, num contexto histórico e
subjetivo posterior, que lhes confere uma nova significação.
Esse termo resume o
conjunto da concepção freudiana da temporalidade, segundo a qual o sujeito constitui
seu passado, reconstruindo-o em função de um futuro ou de um projeto. (p.32)
Para que fique mais claro o caminho traçado até que se chegasse a
uma definição como essa que certamente relaciona-se mais de perto com o que
se pretende nesta tese vamos primeiro retomar a origem do termo em Freud.
1.5 A teoria da sedução e o tempo do trauma
A primeira hipótese sobre a etiologia da histeria, a assim chamada
teoria da sedução, dá ao trauma um papel central. Caracterizado por sua
intensidade, o trauma é uma experiência excessiva e intolerável, frente a qual o
sujeito é incapaz de reagir adequadamente. Impossibilitado de integrar tal
experiência a sua personalidade consciente, resta-lhe o recurso do recalque. Nos
primeiros tempos da psicanálise, o trauma está geralmente referido a uma
experiência sexual passiva e precoce daí o uso da palavra sedução ou seja,
26
uma situação na qual uma criança é submetida a algum tipo de coerção sexual por
um adulto ou por alguém mais velho que ela.
Com a teoria da sedução surge um aspecto importante no que diz
respeito à temporalidade, qual seja, a necessidade da existência de dois tempos
distintos para que o trauma se efetive. Ao postular que o trauma não acontece no
momento da sedução propriamente, mas é desencadeado por um evento posterior
relacionado ao primeiro por um vínculo associativo Freud estabelece a
necessidade de uma segunda cena para que a situação experienciada adquira seu
efeito traumático. Ou seja, o trauma só ganharia tal status em um segundo
momento.
Esta idéia aparece muito cedo em Freud (1950[1895]) e já
encontramos importante parte de sua formulação no Projeto para uma psicologia
científica. Ali Freud (1950[1895]) trará o caso de Emma, uma moça que sofre de
uma estranha impossibilidade: não consegue entrar em lojas sozinha. Em
associação com seu sintoma ela traz uma lembrança de seus 12 anos, quando
entrou em uma loja e saiu correndo ao perceber que os dois vendedores riam de
sua roupa. Não satisfeito com esta explicação, que julga insuficiente para justificar o
sintoma de Emma, Freud (1950[1895]) continua sua investigação. Emma termina
lembrando de uma outra cena, esta ocorrida quando ela contava apenas 8 anos de
idade: ela entra em uma confeitaria para comprar doces quando tem suas partes
genitais agarradas, por cima da roupa, pelo homem que a atende.
27
A cena traumática, a primeira a acontecer do ponto de vista
cronológico, não teria surtido nenhum efeito no momento mesmo em que ocorreu. É
apenas anos mais tarde, ao vivenciar uma outra cena, que a primeira adquire o
caráter de traumática. Isto se daria essencialmente porque, na época da primeira
cena, Emma, ainda criança, não era sexualmente desenvolvida. É só quando
vivencia uma experiência que traz vínculos associativos com a primeira cena (loja,
roupas) e já de porte de uma maturidade sexual, é que o primeiro episódio torna-se
traumático.
Freud (1950[1895]) afirma que são as mudanças trazidas pela
puberdade que permitem que Emma tenha acesso ao conteúdo sexual da primeira
cena, que na época não lhe causou nenhuma impressão. “Ora, esse caso é típico
do recalcamento na histeria. Constatamos invariavelmente que se recalcam
lembranças que só se tornaram traumáticas por ação retardada
9
. A causa desse
estado de coisas é o retardamento da puberdade em comparação com o resto do
desenvolvimento do indivíduo” (p.478). Freud (1893-1895) dará um exemplo similar
no caso de Katharina, em Estudos sobre Histeria. Ele volta ao tema no artigo
Observações adicionais sobre as neuropsicoses de defesa, onde dirá que as
investidas sexuais contra crianças pequenas tendem a não causar nenhum efeito
por acontecerem com “pessoas não desenvolvidas sexualmente”. (Freud, 1896,
p.155). Dirá ainda: “…não são as experiências em si que agem de modo traumático,
mas antes sua revivescência como lembrança depois que o sujeito ingressa na
maturidade sexual” (Freud, 1896, p.156). Enfim, o trauma se dá como um efeito a
_____________
9
Na língua inglesa os termos alemães Nachträglichkeit e nachträglich tiveram traduções variadas,
28
posteriori. É como se do desenrolar da primeira cena algo ficasse depositado no
sujeito, à espera de uma segunda cena que venha a desencadear o potencial
traumático da primeira. Aqui já temos os indícios de uma temporalidade que não
caminha apenas em uma única direção.
Como vemos, até este momento da obra freudiana, o mecanismo
em jogo nos dois tempos do trauma está estritamente vinculado à maturidade
orgânica adquirida na puberdade, quando o acesso do sujeito à sexualidade torna
possível a ele assimilar um evento sexual que antes não tinha lhe gerado nenhum
efeito. Isso significa que estamos falando de um Freud pré descoberta da
sexualidade infantil. Nesta época, qualquer manifestação sexual por parte de uma
criança só poderia ser explicada pela interferência inadequada de um adulto, que
tornaria o inocente prematuramente excitável. Ou seja, qualquer expressão da
sexualidade infantil era entendida como patológica.
Mas, então, como ficaria a fundamentação da lógica temporal que
acabara de apresentar sobre o trauma, depois da importante constatação de que as
crianças normais não eram “inocentes” de desejos sexuais? Como é que Freud lida
com a noção de Nachträglichkeit depois da descoberta da existência da sexualidade
infantil?
Pode-se dizer que a noção de Nachträglichkeit não perde sua força
com a descoberta da sexualidade infantil, Freud continuará fazendo uso desta
entre elas a expressão “deferred action”, que equivaleria à expressão aqui utilizada em português.
29
expressão ao longo de sua obra. O caso do Homem dos Lobos é talvez o melhor
exemplo disso. Ali vemos o mecanismo de Nachträglichkeit ocorrendo ainda na
tenra infância, quando Freud (1918[1914]) cogita que seu paciente estaria
ressignificando, aos 4 anos, uma cena que teria ocorrido quando ele tinha apenas 1
ano e meio. Em uma nota de rodapé, Freud (1918[1014]) fala da compreensão da
cena primária que é feita em um momento a posteriori:
Quero dizer que ele o compreendeu na época do sonho, quando
tinha quatro anos, e não na época da observação. Recebeu as
impressões quando tinha um ano e meio; sua compreensão dessas
impressões foi protelada, mas tornou-se possível na época do sonho
devido ao seu desenvolvimento, às suas excitações e pesquisas
sexuais (p.55).
Freud (1918[1914]) também nos lembra que o homem que ali lhe
fala tem mais de 25 anos e a forma como conta sua história infantil inclui palavras
que ele jamais poderia ter usado na época em que ela realmente ocorreu. Aí temos
a brecha para pensar o fenômeno de Nachträglichkeit de uma forma mais
abrangente, ou seja, ele não precisa estar necessariamente vinculado a
episódios pontuais, traumáticos, mas pode ser compreendido como um
mecanismo que envolve novos entendimentos da história de vida do sujeito
como um todo. Como ele coloca no início do caso, ao apontar as diferenças entre
tratar diretamente uma criança, ou acessar sua infância através do discurso do
adulto:
(…) mas é preciso que levemos em conta a distorção e a
reelaboração às quais o passado de uma pessoa está sujeito,
30
quando visto na perspectiva de um período posterior. (Freud,
1918[1914], p.21).
Esta forma mais abrangente de entender a noção de
Nachträglichkeit aproxima-se mais da forma como autores contemporâneos têm
feito uso do termo. O fenômeno de Nachträglichkeit é associado à obtenção de
novos níveis de entendimento, de compreensão, de revisão de sentido, de
elaboração, enquanto sua formulação inicial estava ligada simplesmente a uma
maturidade orgânica que dava acesso a sensações corporais antes impossíveis de
serem sentidas.
É justamente este uso mais geral do termo que possibilita pensar
que ao construir/reconstruir/desconstruir sua história de vida em análise um sujeito
invariavelmente também a ressignifica. A própria passagem do tempo permite ao
sujeito ocupar diferentes posições subjetivas em relação a sua história, que vão
dando a ele outros recursos para poder contar-se. Ao pensarmos um sujeito sempre
em movimento, marcado pela passagem do tempo, referido a todas as outras cenas
que constituem sua vivência, temos também uma história que está em constante
processo de construção/reconstrução/desconstrução/ressignificação.
Cabe ainda ressaltar que a teoria do trauma sofreu importantes
alterações ao longo da obra freudiana. A famosa carta a Fliess, de 1897, na qual
Freud confessa “não acreditar mais na sua neurótica”, é o testemunho de uma
virada em suas primeiras hipóteses sobre as causas da histeria. O que ficou
31
conhecido como o abandono da teoria da sedução inaugura uma maior
consideração dada ao papel da fantasia no mundo psíquico e, conseqüentemente,
abre o questionamento em relação às dificuldades de acesso à história de vida do
paciente “tal como ela realmente aconteceu”.
O conceito de realidade psíquica surge como solução para o
impasse criado em torno da disputa entre verdade versus fantasia. Na mesma carta
referida acima, Freud esclarece o que está no cerne desta formulação: “Não há
indicações de realidade no inconsciente, de modo que não se pode distinguir entre
a verdade e a ficção que foram catexizadas pelo afeto” (Masson, 1986, p.266). Ou
seja, Freud desloca o infrutífero debate sobre a busca de uma diferenciação entre
fantasia e realidade questão impossível de resolver para um ponto bem mais
interessante. O que é dito em análise deve sempre ser escutado como a verdade
daquele sujeito, como realidade psíquica. Se o efeito de uma fantasia no mundo
psíquico é o mesmo daquele causado por um fato real, não caberia ao analista
confrontar o paciente, conferir na vida real se aquilo aconteceu mesmo assim, mas
escutar sua fala dando a ela um estatuto de verdade e trabalhar com ela enquanto
tal. Além disso, a memória está sujeita aos mesmos mecanismos de distorção
(condensação e deslocamento) encontrados no trabalho do sonho. Até mesmo
aquilo que se apresenta como uma lembrança vívida e detalhada, pode não ser
mais que uma lembrança encobridora (Freud, 1899). Portanto, não se trata, em uma
análise, de uma reconstrução factual da própria história, é preciso considerar que
há sempre algo de ficcional na narrativa que o sujeito constrói sobre si mesmo e
32
que é de ficção que se faz sua verdade
10
.
É dentro deste contexto que esta tese propõe pensar a análise
como um espaço que permite ao sujeito, a partir de uma relação transferencial, um
contar/recontar de sua própria história que favorece os processos de
ressignificação. É importante ressaltar, no entanto, que falar em ressignificação da
história de vida não é o mesmo que falar na montagem de uma versão mais
“adequada” da própria vida, mas em um contar-se/recontar-se que leve em
consideração a impossibilidade de narrar uma história linear, a heterogeneidade do
tempo ali implicado, as ficções ali envolvidas, as rachaduras, as incongruências e
tudo o que ficou sem registro.
Neste sentido, podemos pensar o trauma como o que ficou fora do
tempo, não na condição de eterno, de puro presente, mas na condição do que não
pode a-presentar-se, justamente porque sequer está. O trauma como o
irrepresentável remete ao que não pode ser dito, mesmo que seus efeitos se façam
sentir pelo analisando e pelo analista a todo o momento.
A não-representação corresponderia a um estado psíquico que,
pela ausência nele da qualidade ´representação´ assim como da qualidade
`sensorial`, por sua incapacidade de excitar pela via progressiva o pólo Cs, só pode
ser descrita mediante uma terminologia negativa. Mas é preciso compreender que
_____________
10
Este tema será retomado em vários momentos ao longo da tese.
33
este `negativo` não a define em absoluto, assim como a noção de atemporalidade
não define o Ics. A não representação é vivida pelo eu como um excesso de
excitação; e se o psiquismo não consegue uma vivência de inteligibilidade acessível
ao sistema de representações por meio de uma transformação, o eu a viverá como
traumática (Botella, 2003, p.160).
11
Se uma análise trabalha na direção de poder trazer para o campo
do simbólico algo do real, ela também precisa lidar com o fato de que sempre
haverá restos que não são simbolizáveis, mesmo na posterioridade. Por mais que
se fale, nem tudo pode ser trazido para o campo do sentido. Daí a importância de
reconhecermos também os limites dos processos de ressignificação. Se esta tese
propõe pensar a ressignificação como um aspecto importante dos efeitos de uma
análise, o que se coloca como resto, como impossível de ser dito, como o real que
insiste em não se inscrever, se faz presente na história do sujeito tanto quanto as
ressignificações que ele pode fazer ao longo do percurso de análise.
Ora, tudo é passível de representação, mas não há objeto ou
fragmento do real que se deixe representar todo. Toda representação evoca não só
a ausência da coisa, mas também a distância que a separa da coisa; toda
representação contém seu traço de saudade e seu resto de silêncio de algo que já
não está, de algo que nunca se entregou inteiro à simbolização (Kehl, 2000, p.140).
_____________
11
Tradução livre da autora.
34
1.6 Tempo não linear
É normalmente em torno de referências à noção de Nachträglichkeit
que giram os comentários sobre uma temporalidade psicanalítica não linear. No
entanto, nem todos os autores parecem concordar que esta especificidade temporal
já se encontre na época da teoria da sedução. Em artigo sobre o tema, Laplanche
(1999b) distingue pelo menos três sentidos diferentes para o termo em Freud. O
primeiro equivaleria simplesmente a um “mais tarde”, ou “depois”, que Strachey
normalmente traduziu por subseqüentemente”. O segundo seria o encontrado na
teoria da sedução e seguiria a direção do tempo do passado para o futuro. Somente
um terceiro uso que Laplanche (1999b) alega ser raro em Freud é que inverteria
o sentido do tempo do futuro para o passado, trazendo à tona a idéia de
retroatividade. Ou seja, Laplanche (1999b) alega que o uso do termo no contexto da
teoria da sedução, não traria nenhum aspecto especial em relação ao tempo, mas
seguiria o caminho do tempo cronológico e seria essencialmente determinista, no
sentido de que o que ocorreu no passado determinaria o que virá depois.
Por sua vez, Gondar (1994) sugere que o Freud da teoria da
sedução já traria elementos para se pensar um tempo não linear. A autora alerta
que a idéia da existência de dois tempos no trauma aparece ainda em Charcot. O
mestre francês havia postulado que entre a situação traumática e o aparecimento
do sintoma havia sempre um lapso de tempo, algo que ele chamou sem dar
muitas explicações a respeito de “período de elaboração”. Segundo Gondar
(1994), Freud partirá desta idéia inicial, mas fazendo algumas mudanças
35
importantes. Além de introduzir a dimensão sexual ao trauma, trará uma lógica
temporal mais complexa que a de seu mestre esta última ainda muito presa a um
tempo cronológico, no qual o hiato temporal diz respeito a um simples atraso no
aparecimento do sintoma. Em Charcot, “o lapso temporal é de espera, mas não de
produção” (Gondar, 1994, p.51); caberá a Freud pensar o que se passava durante
tal lapso. Gondar (1994) atribui já ao Freud da teoria da sedução uma
temporalidade mais complexa, que não ficaria restrita ao tempo cronológico.
Como foi afirmado antes, o fato de que Freud nunca tenha feito uma
sistematização da idéia de Nachträglichkeit que lhe desse um caráter de conceito,
gerou diferentes usos e interpretações do termo entre os pós-freudianos. Para
Gondar (1994) as próprias traduções distintas seriam um indicativo de
interpretações que vão em sentidos diversos. A tradução inglesa por deferred action
indicaria uma idéia mais linear de tempo, uma linha que viria do passado para o
presente, sendo que o sentido do presente já teria sido dado no passado. Enquanto
a escola inglesa advogaria um tempo progressivo
12
, a tradução francesa por aprés-
coup (mais próxima do termo usado em português, a posteriori) desprezaria
qualquer idéia de linearidade em relação à temporalidade psíquica:
(…) o passado perde a condição de fixidez para ganhar um caráter
mais plástico, mais fluido: a história de um sujeito deixa de constituir
uma linha reta, através da qual um instante já dado determina o que
lhe segue, e torna-se uma história toda cheia de volteios, podendo
ser reescrita a cada momento. Mais do que manobrar ou
simplesmente manipular o passado, seria possível criá-lo: é essa a
concepção de tempo que se expressa na tradução francesa do
Nachträglich. (Gondar, 1994, p.47).
_____________
12
André Green (2002) salienta que a psicanálise anglo-saxã optou por um único ponto de vista para
pensar o tempo, isto é, aquele do desenvolvimento.
36
Embora os argumentos levantados por esta tese a coloquem do
lado dos que pensam a noção freudiana de Nachtäglichkeit como possibilitando
pensar a história de um sujeito dentro de uma temporalidade não linear, embora
concordemos com Gondar quanto a fluidez e plasticidade que o passado adquire
quando da construção da história de um sujeito, temos uma importante ressalva a
fazer em relação à citação acima. Será que se trata mesmo de criação? Gondar
não estaria fazendo tudo parecer um pouco fácil demais?
A autora fala como se fosse possível reinventar a própria história,
reescrevê-la a cada instante e de uma maneira absolutamente nova
13
. Se por um
lado nenhum analista poderia continuar trabalhando se não acreditasse que seus
analisandos pudessem realizar mudanças em suas vidas, se só faz sentido pensar
em uma análise que de um jeito ou de outro seja capaz de gerar rupturas, a prática
clínica nos mostra que elas não acontecem assim tão facilmente. A maioria dos
sujeitos que embarca em uma análise se vê confrontada com questões que não
consegue mudar, tendo que lidar com os paradoxos entre a vontade de poder viver
de uma outra maneira e a constatação de que está fadada a repetir, entre o
sofrimento trazido pelo sintoma que o impulsiona a querer mudar e o gozo
trazido por este mesmo sintoma que o impede de fazê-lo. Não nos afastaríamos
demais dos pressupostos da psicanálise ao pensar este sujeito tão capaz de
reinventar-se? Não somos sempre referidos a um lugar de partida com o qual
temos que nos haver antes de poder criar uma vida totalmente nova?
37
1.7 Martha e suas heranças
“Ora, se não sou eu quem mais
vai decidir o que é bom pra mim?
Dispenso a previsão!
Ah, se o que eu sou é também
o que eu escolhi ser
aceito a condição”.
Rodrigo Amarante (Los Hermanos)
Martha me descreve como foi entrar no apartamento do pai depois
de sua morte, que ocorreu há dois anos. Era preciso decidir o que fazer com todas
aquelas coisas, mas cada visita ao apartamento era um mergulho nas histórias
reveladas por cada objeto, nos fragmentos de sua própria vida. Acabava sempre
revendo fotos, relendo cartas e documentos, folhando livros, e aquele trabalho tão
urgente não seguia adiante. Ficara decidido que ela não moraria ali. Era um
apartamento amplo, muito mais confortável que o que ela vivia com sua família,
mas o condomínio era alto e concluiu que seria mais razoável alugá-lo. Seria um
dinheiro bem-vindo para o orçamento familiar. Mas para alugá-lo logo era
necessário desfazer-se de toda a tralha
14
. Aquela velharia toda não me
interessava… sou uma pessoa prática, o que não me serve jogo fora. O que eu
queria mesmo era mandar chamar um caminhão para levar tudo de uma vez, sem
que eu precisasse olhar.
13
Ver capítulo III. Quando falamos sobre o “approach narrativo”, levantamos a questão da falsa
oposição realismo X construtivismo.
14
Nos fragmentos clínicos apresentados ao longo desta tese, as palavras e frases que aparecem em
itálico referem-se à fala dos próprios pacientes.
38
Mas seu pragmatismo não se revelava assim tão eficiente neste
caso. Foram visitas intermináveis ao apartamento do pai e, ainda hoje, dois anos
depois, há objetos guardados em sua casa com os quais não sabe o que fazer. A
irmã, que mora no exterior, escolheu poucas coisas, o irmão não quis saber de
quase nada e, já que o apartamento ficara para ela, cabia-lhe também esta árdua
tarefa de decidir o destino dos pertences do pai. Ela logo separou o que lhe era
mais caro, essencialmente alguns livros raros que guarda até hoje com muito
cuidado e que lhe dão imenso prazer. Outras coisas estão ainda ocupando um
quartinho de empregada em sua casa, um lugar que remete a uma função de limbo,
entre elas um relógio antigo, que não manda consertar, mas do qual também não
consegue se desfazer. Relógio parado sustentando a ilusão de um tempo que não
passa, que não traz mudanças nem mortes. Mas também um relógio parado de
uma vida que pára no tempo e não consegue sair do lugar, que fica estagnada,
emperrada, suspensão de um luto ainda por fazer. Estes objetos ocupam espaço,
demandam uma decisão que é sempre adiada e sua presença incomoda. Acabam
tomando uma dimensão maior, representando tudo que é deixado para trás, por
fazer, as atitudes que deveria tomar e não toma, as questões em aberto em sua
vida.
Questiona-se sobre o que realmente vale a pena guardar. Ela não é
de guardar coisas, sua casa sempre teve apenas o essencial.
Trata-se de saber separar a tralha da relíquia, eu digo, sugerindo
39
que essas decisões não eram assim tão práticas porque envolviam bem mais do
que os objetos em si, mas as outras heranças deixadas pelo pai, suas marcas, suas
influências. Estava também em questão saber o que ficaria dele nela, e o que seria
desejável poder abrir mão…
Surge uma associação sobre umas jóias de família. Lembra que
quando tinha 15 anos ia a um baile, foi até a casa da avó ? que morava ao lado da
sua ? com seu vestido longo para perguntar se estava bem. A avó então lhe disse
que ela estava linda, mas que faltava um toque final. Foi buscar um colar e brincos.
Colocou-os na neta e disse que aquilo era um empréstimo, que cuidasse muito bem
das jóias e não deixasse de devolvê-las na volta. Martha sentia-se deslumbrante,
importante por estar usando as jóias da avó, valorizada por ela. Pois foram
justamente estas jóias, que desde este episódio tomaram um valor especial para
Martha, que foram deixadas para ela pela avó como herança. Isto sim valia a pena
guardar. Então me conta com tristeza que um dia entraram em seu apartamento e
as levaram. Por isso é que eu digo, que sentido tem guardar as coisas?
O que vale a pena guardar? O que é possível guardar? O que se
perde com a passagem do tempo? Quantos lutos são necessários ao longo da vida
e o que fica deles como resto, como impossibilidade? O que pode ser trabalhado,
elaborado, ressignificado e o que não pode? E qual o papel da análise nestes
processos? Quais seus limites?
Martha nos fala do sofrimento envolvido no tempo que passa e das
40
perdas irreparáveis que ele traz, o que, entre outras coisas, levanta a questão de
como o trabalho de luto ou a noção de elaboração psíquica poderiam ser
articulados com os processos de ressignificação e seus efeitos em uma análise.
Deixaremos este ponto em aberto por enquanto, para podermos dar espaço para
um outro tema trazido por Martha: aquele que diz respeito a uma herança, herança
complexa que transcende a materialidade do apartamento deixado para ela pelo
pai, ou das jóias que a avó lhe oferece.
Poderíamos pensar este fragmento clínico como metáfora de algo
que, mais cedo ou mais tarde, sempre se passa em uma análise. Deparar-se com
um legado, com suas tralhas e relíquias, e ter que situar-se diante delas. Ocupar um
lugar na sucessão intergeracional e fazer-se responsável pelo que tomamos daquilo
que nos é oferecido. Não é este também o trabalho de uma análise? Poder
reposicionar-se diante da própria história, perguntar-se sobre a própria origem,
reconhecer o que herdamos e encontrar um lugar possível para si mesmo?
Enfim, o que fazer com o “pacote” que cabe a cada um de nós?
Esta alusão ao “pacote” tiro do livro de Carlos Heitor Cony (1997),
Quase memória quase romance. O próprio título do livro já merece, de passagem,
um comentário: o uso da palavra quase em frente à palavra memória e o subtítulo
de quase romance indicam que não passa desapercebido ao autor o quanto o
41
gênero memórias não é assim tão facilmente separável do gênero ficção
15
. Tema
este caro à psicanálise, que de um jeito ou de outro sempre defendeu a idéia de
que é a partir de ficções que um sujeito se constitui.
No livro, o protagonista da história (no caso, o próprio autor) recebe
um embrulho com as seguintes palavras em cima: “Para o jornalista Carlos Heitor
Cony. Em mão”. Não é preciso muito tempo para que ele descubra que aquilo vinha
de seu pai.
Era a letra de meu pai, a letra e o modo. Tudo no embrulho o
revelava, inteiro, total. Só ele faria aquelas dobras no papel, só ele
daria aquele nó no barbante ordinário, só ele escreveria meu nome
daquela maneira, acrescentando a função que também fora a sua.
Sobretudo, só ele destacaria o fato de alguém ter se prestado a me
trazer aquele embrulho. Ele detestava o correio normal, mas se
alguém o avisava que ia a algum lugar, logo encontrava um motivo
para mandar alguma coisa a alguém por intermédio do portador. (...)
Até mesmo o cheiro pois o envelope tinha um cheiro era o cheiro
dele, de fumo e água de alfazema. (…) Recente, feito e amarrado há
pouco, tudo no envelope o revelava: ele, o pai inteiro, com suas
manias e cheiros (Cony, 1997, p.11).
Até aqui tudo bem, um pacote do pai, o que haveria demais nisso?
Mas a informação que o leitor recebe a seguir é que vem acrescentar a
perplexidade ao fato. O pai estava morto há exatamente 10 anos! Como explicar a
presença daquele pacote, tão característico dele, que ainda carregava até mesmo o
seu cheiro, ali nas mãos do filho, tanto tempo depois da morte do pai?
_____________
15
Este tema será abordado com maior profundidade no capítulo III.
42
Não é esta a pergunta que Cony (1997) tentará responder ao longo
do livro, este mistério fica em suspenso. De qualquer modo, vale dizer que esta
“presentificação” do pai através de um pacote tão cheio de vestígios recentes dele
nos faz pensar no tempo do inconsciente, que transpõe as barreiras materiais e se
faz presente sem convite, com direito aos aspectos sensoriais mais realistas.
Tampouco o mistério sobre o que há dentro do embrulho é o que
interessa, a não ser como recurso de narrativa, já que o autor leva a curiosidade do
leitor às últimas conseqüências, chegando até o final do livro sem abrir o tal pacote.
Como coloca Pereira (1998), o que ele faz é recontar suas memórias/as de seu pai,
a partir de cada traço, cada detalhe do pacote que vai lhe evocando diferentes
associações, mas sem precisar abri-lo. “As memórias fluem na medida em que o
sujeito nem precisa abrir o pacote. Ele já sabe que é algo vindo do pai. Os objetos
reais que porventura pudessem estar no interior não interessam para a
reconstituição, o reencontro com a história de sua filiação” (Pereira, 1998, p.47).
1.8 Apropriar-se de um legado, encarregar-se de uma herança
É nesta direção, a do reencontro com a história de uma filiação, que
esta tese propõe pensar a ressignificação da história de vida na análise. Se a
noção de Nachträglichkeit permite pensar em um tecer de novos sentidos que
se faz ao longo do tempo, isso não quer dizer que se trate de pura criação,
invenção de uma história totalmente nova, mas do resgate e da apropriação
43
subjetiva de uma história que já havia começado bem antes daquele sujeito
existir. Como coloca Daisy Wajnberg (1994) “O discurso do sujeito em análise seria
aquela narrativa pela qual virá a constituir a sua história que, paradoxalmente, já
está escrita e, ao mesmo tempo, se reescreve somente ao contá-la” (p.158).
Se falamos em termos de uma ordem simbólica, tal qual propôs
Lacan, então não podemos pensar em um sujeito totalmente autônomo, capaz de
inventar a si mesmo do nada. Ele invariavelmente terá que se haver com tudo o que
lhe antecede, com o que herda sem sequer saber, com os ditos e não ditos que já
estavam lá antes dele nascer, isto é, com os significantes primordiais que recebe ao
entrar num mundo de linguagem que já existia antes dele chegar.
16
Se ao nascer herdamos um “pacote”, não é possível ignorá-lo, ele
terá seus efeitos em nós queiramos ou não. É a forma particular, própria, singular,
através da qual cada sujeito se apropria de tal legado que possibilitará a cada um a
“reinvenção” de sua própria história. Este processo infinito, que se dá mesmo para
as pessoas que nunca fizeram análise, é, ao meu ver, incentivado, alimentado e
acelerado em uma análise, que abre um espaço de escuta e de fala que, entre
outras coisas, favorece às ressignificações.
Embora constitua-se como uma tarefa cotidiana, poder habitar um
lugar subjetivo nesta cadeia que nos antecede nem sempre é assim tão simples.
_____________
16
Este tema será retomado no capítulo IV.
44
Por quanto tempo precisamos falar de nosso pai e nossa mãe em uma análise?
Quantos acertos de culpa e dívida em relação a eles precisamos fazer ao longo de
um tratamento analítico (e ao longo da vida?)? Quantas vezes nos vemos
envolvidos na difícil (ou mesmo impossível) tarefa de diferenciar o que é “nosso” do
que é “deles”?
Resultado que é do desejo de um Outro, um sujeito se situa referido
à pergunta “o que quer o Outro de mim?”, enigma que a montagem de um fantasma
tenta responder. A trajetória de uma análise, segundo Lacan, seria a da travessia
deste fantasma, o que implicaria em um remanejamento das defesas e numa
modificação do sujeito em sua relação com o gozo. Na tentativa de responder
ao Outro, muitas vezes o neurótico arma arapucas pra si mesmo e se prende a uma
forma de gozar que também lhe traz sofrimento. Em análise, numa relação
transferencial que faz com que este Outro fique temporariamente encarnado na
função analista, o neurótico tem a oportunidade de se re-situar diante desta
pergunta ou até mesmo de desmascarar o vazio por trás dela.
17
Kafka (1992), em sua famosa Carta ao pai, expõe com maestria
uma boa dose do que está implicado neste processo de situar-se diante de uma
filiação, especialmente no que diz respeito à dívida para com o sobrenome paterno:
Naturalmente não digo que me tornei o que sou só por influência sua.
Seria muito exagerado (e até me inclino a esse exagero). É bem
possível que, mesmo que tivesse crescido totalmente livre da sua
influência, eu não pudesse me tornar um ser na medida do seu
_____________
17
Este tema será aprofundado no capítulo IV, quando trabalharemos em mais detalhe os processos
envolvidos na trajetória de uma análise.
45
coração. (…) Eu teria sido feliz por tê-lo como amigo, chefe, tio, avô,
até mesmo (embora mais hesitante) como sogro. Mas justo como pai
você era forte demais para mim, principalmente porque meus irmãos
morreram pequenos, minhas irmãs só vieram muito depois e eu tive,
portanto, de suportar inteiramente só o primeiro golpe, e para isso eu
era fraco demais. Comparemo-nos um com o outro: eu, para
expressá-lo bem abreviadamente, um Löwy com certo fundo Kafka,
mas que não é acionado pela vontade de viver, fazer negócios e
conquistar dos Kafka, e sim por um aguilhão dos Löwy, que age mais
secreto, mais tímido, numa outra direção, e muitas vezes cessa por
completo. Você, ao contrário, um verdadeiro Kafka na força, saúde,
apetite, sonoridade de voz, dom de falar, auto-satisfação,
superioridade diante do mundo, perseverança, presença de espírito,
conhecimento dos homens, certa generosidade. (…) Seja como for,
éramos tão diferentes e nessa diferença tão perigosos um para o
outro, que se alguém por acaso quisesse calcular antecipadamente
como eu, a criança que se desenvolvia devagar, e você, o homem
feito, se comportariam um com o outro, poderia supor que você
simplesmente me esmagaria sob os pés e que não sobraria nada de
mim. (p. 11).
O que mais se herda junto com um nome?
Em O mito individual do neurótico, Lacan (1953) salientará a
importância do que ele chama de a constelação familiar do sujeito, sua pré-história,
ou seja, tudo aquilo que o antecede. Utilizando-se do exemplo do Homem do Ratos,
ele demonstra a relação existente entre os sintomas atuais do paciente de Freud e
a história de seus pais. Esta já apresentava pelo menos dois elementos de suma
importância no desenrolar da patologia do Homem dos Ratos, tais quais, o dilema
enfrentado por seu pai entre uma moça pobre e uma moça rica para casar (ele
escolheu a rica) e uma dívida que nunca foi paga. Lacan (1953) nos mostra como
seu paciente se enreda nesta história repetindo a seu próprio modo em sua vida as
questões que ficaram ali em aberto, a serem resolvidas na vida do pai. É claro que,
como toda a repetição, ela não se dá de forma absolutamente idêntica, mas carrega
46
novos elementos, que reordenam a situação original:
Tudo se passa como se os impasses próprios da situação original se
deslocassem para um outro ponto da organização mítica, como se o
que num lugar não está resolvido se reproduzisse sempre noutro.
(Lacan, 1953, p.60).
Lacan (1953) salienta ainda que “essa relação não é evidentemente
elucidada pela forma puramente factual como a expus, já que ela só se valoriza
com a apreensão subjetiva que dela teve o sujeito” (Lacan, 1953, p.59). Assim se
constituiria um cenário fantasmático no qual se manifesta o que Lacan chama de
mito individual do neurótico.
Se a construção deste mito implica em uma apropriação do sujeito
em relação àquilo que herda, podemos pensar, com Lacan, que tal herança inclui
sempre algo de “não resolvido”. A diferença que uma análise pode fazer,
acreditamos, coloca-se justamente entre simplesmente carregar este “pacote”, sem
de fato haver-se com ele, repetindo o que não foi elaborado das gerações
anteriores, ou encarregar-se dele, isto é, apropriar-se do que foi herdado, deixar-se
trabalhar por esta herança, elaborá-la, ressignificá-la, transformá-la em algo que é
próprio.
47
1.9 Ressignificar, nomear, elaborar
Aqui talvez seja importante chamar à atenção para as diferenças
entre o que é herdado através do recalque que como sabemos, desde Freud,
sempre retorna e o que passa para as gerações seguintes como irrepresentável,
como um real que nunca teve inscrição no campo do simbólico. Podemos pensar
que o terreno da ressignificação seria aquele do recalque, uma vez que o que está
em jogo é o trabalho com algo que já se encontrava no campo do sentido. Se a
própria raiz do termo ressignificar implica em dar um outro sentido, uma nova
significação, isto quer dizer que quando falamos em ressignificação está implícito
que estamos falando de algo que já estava inscrito no campo do simbólico. Ou seja,
ressignificar não é o mesmo que trazer algo para o campo representacional pela
primeira vez, mas refere-se a um dar novo sentido a algo que já estava lá.
Contudo, talvez possamos pensar em uma articulação possível
entre estes processos, ou seja, talvez coubesse perguntar, em que medida os
processos de ressignificação podem auxiliar este outro movimento, que é o de
nomeação de algo que antes pertencia ao campo do irrepresentável? Se uma
aposta da análise é a de que, ao circundar o real através da palavra, tentar abordá-
lo (como dissemos na introdução, trata-se sempre de um trabalho pelas bordas)
possamos trazê-lo, pelo menos em parte, para o campo representacional, será que
os processos de ressignificação não teriam uma contribuição neste sentido?
48
Poderíamos supor que a abertura para novos sentidos trazidos
pelos processos de ressignificação permitiriam uma ampliação das redes de
significação, que influenciariam também o trabalho de nomeação daquilo que antes
era impossível de dizer. À medida em que tece novas relações de sentido, o sujeito
abre caminho para novas ligações possíveis, permitindo também uma ampliação do
trabalho de “puxar” elementos do real para dentro do campo do simbólico, nomear o
que antes sequer podia ser dito. É claro que tais processos implicam sempre em
que algo fique de fora. Encontramos os limites dos efeitos da ressignificação em
uma análise tanto na idéia de que há sentidos que jamais são refeitos, quanto no
fato de que restará sempre algo do real que nunca terá acesso ao simbólico.
Dito isso, vamos agora pensar um pouco nas articulações possíveis
entre alguns conceitos freudianos que, como levantado a partir do caso de Martha,
apresentam alguma vizinhança com a idéia de ressignificação. Em que medida
podemos aproximar luto e ressignificação? O que têm estes processos em comum
com a noção de elaboração psíquica
18
?
Ao que parece, cada um a sua maneira, tais movimentos
relacionam-se diretamente com os efeitos de ruptura que uma análise pretende
gerar. Em qualquer dos casos, há um processo que se desencadeia, dentro de um
_____________
18
É bastante conhecido o neologismo criado por Laplanche e Pontalis (1982) para traduzir o termo
alemão “durcharbeiten” (em inglês “working through”) que é o de “perlaboração”. Os autores o
diferenciam dos termos Verarbeitung, Ausarbeitung e Aufarbeitung, traduzidos por “elaboração
psíquica”. Enquanto o termo elaboração psíquica refere-se a um trabalho do próprio aparelho
psíquico, o termo perlaboração enfatiza o papel da interpretação feita na análise para o trabalho de
elaboração. Contudo, os próprios autores admitem uma inevitável aproximação entre as duas
noções, pois, “existe uma analogia entre o trabalho do tratamento e o modo de funcionamento
49
lapso temporal, durante o qual algo se modifica no sujeito. Assim, o trabalho
psíquico envolvido tanto no luto quanto na elaboração está também presente nos
processos de ressignificação. Algo da ordem de uma experiência
19
se dá durante
aquele espaço de tempo, modificando a posição subjetiva do sujeito.
Sabemos que Freud utilizou-se do termo trabalho (Arbeit) em várias
de suas expressões, tais como, trabalho do sonho, trabalho de luto, ou trabalho de
elaboração. Trata-se, segundo Laplanche e Pontalis (1982), de um emprego original
do conceito de trabalho, aplicado a operações intrapsíquicas, que remete à noção
freudiana de que o aparelho psíquico transforma e transmite a energia que recebe.
Assim, se há um trabalho intrapsíquico que acontece espontaneamente no
aparelho psíquico, há também um processo análogo que é incentivado pela
experiência de análise
20
.
Poder colocar em palavras, integrar, assimilar, digerir, acomodar,
elaborar. Tais operações são parte essencial do trabalho de análise desde seus
primórdios e, de certa maneira, já estavam esboçadas na noção de ab-reação,
quando a análise ainda era uma terapia da catarse
21
.
Se a psicanálise foi tornando-se
uma teoria e uma prática cada vez mais complexa à medida em que os anos se
passaram, algo relativo ao efeito da palavra já estava lá desde o início, como evidencia a
expressão cunhada por Anna O.: já naqueles tempos a psicanálise era uma “talking cure”.
espontâneo do aparelho psíquico” (Laplanche e Pontalis, 1982, p.144). Por esta razão, no presente
estudo, optamos por adotar o uso de um termo apenas, qual seja, o de elaboração psíquica.
19
O tema da análise como experiência será aprofundado no capítulo IV.
20
Ver nota de rodapé número 18.
21
Como vimos anteriormente (ver item Tempo não linear, neste capítulo), uma certa noção de
elaboração já se esboçava até mesmo em Charcot.
50
E o luto, em que medida se avizinharia com a ressignificação?
Como já foi dito antes, a elaboração psíquica, o luto e a ressignificação são
processos vinculados aos efeitos de ruptura em uma análise, mas que acontecem
também de forma espontânea no aparelho psíquico. Ao diferenciar o luto da
melancolia, Freud (1917[1915]) dirá que a simples passagem do tempo se
encarregaria do primeiro: “Confiamos que seja superado após certo lapso de tempo,
e julgamos inútil ou mesmo prejudicial qualquer interferência em relação a ele” (p.
276). No senso comum se costuma dizer que o tempo cura tudo. No caso do luto,
este lapso de tempo permitiria ao sujeito retirar sua libido do objeto perdido,
liberando-a para novos investimentos algo que não ocorre na melancolia. No luto,
há um trabalho psíquico que só se faz possível com a passagem do tempo e
que se dá de forma “natural”, o que não impede de pensarmos a análise como
um espaço a serviço deste trabalho.
Esta idéia de que o tempo permite uma operação interna que
modifica o sujeito está presente nos três termos vistos aqui. Se no caso da
ressignificação, compreendida a partir da noção de Nachträglichkeit, o lapso de
tempo permite que novos sentidos se teçam, no luto temos uma mudança de
estatuto frente ao objeto perdido. Em ambos os casos, no entanto, o sujeito coloca-
se aberto para fazer novas conexões, novas ligações, sejam elas novas redes
associativas ou novos investimentos libidinais. Neste sentido, talvez pudéssemos
arriscar dizer que há um certo trabalho de luto envolvido nos processos de
ressignificação, bem como há ressignificações envolvidas no trabalho de luto.
O luto remete a um tempo que fica em suspenso, como se a vida
51
parasse, perdesse o sentido, até que o movimento de resgate da libido possa ser
feito. Para Martha há um relógio parado simbolizando um luto ainda por fazer, bem
como os demais objetos do pai que ocupam um espaço que sente precisar liberar.
Será que o tempo agora já pode voltar a correr?
Martha está às voltas com a tarefa de poder acomodar a tralha e a
relíquia que recebeu de herança. Não só do pai, mas da mãe, dos avós, de todas as
gerações que a antecederam e que participam de seu mito individual. Há poucos
dias comentava que no clube que freqüenta no qual seu pai teve presença
atuante um senhor a reconheceu e veio dizer-lhe que era mérito de seu pai tal e
tal empreendimento realizado no clube. Martha diz ter se sentido muito gratificada
por este reconhecimento. Ela sempre sentiu forte apelo de manter a história do pai
e constantemente sente-se em dívida com esta tarefa. Lamenta por ter jogado
coisas importantes fora e pelas que mantém com tão pouca ordem. Gostaria de
organizar tudo em forma de um livro de memórias, como fez uma prima. Comento o
quanto ela toma como tarefa sua esta de preservar a memória do pai, mas que isso
se dá também para além do seu controle, como mostra o comentário de um senhor
desconhecido do clube que dá a seu pai o reconhecimento de um legado. É
verdade, ela diz, mas temo que isso se perca com esta geração de senhores.
Queria mesmo era ver lá uma placa com o nome do pai, em agradecimento aos
seus esforços…
No final desta sessão ela dirá: Pensando bem, talvez eu não
devesse ficar me lamentando por tudo o que não fiz, mas pegar o que restou e ver o
que é possível fazer com isso.
52
As coisas do pai não precisam mais ser vistas apenas como um
empecilho ou algo do qual precisa livrar-se, mas talvez possam ser fonte de uma
produção. Um livro de memórias? Que bom seria ter algumas garantias de que há
coisas que ficam, uma biografia do pai, uma placa atestando ao mundo que ele
passou por ali, existiu e foi alguém que fez diferença. Se a passagem impiedosa de
um tempo irreversível produz perdas inevitáveis, é ela também que permite que
algo se altere, que algo se produza. É no tempo que os processos de
ressignificação se fazem possíveis. Se em um primeiro momento a vontade era de
poder livrar-se de tudo de uma vez, mandando chamar um caminhão, sem precisar
olhar, a análise vai justamente convocá-la a olhar, a fazer o trabalho de luto, a
encontrar um lugar possível para si mesma em meio a toda tralha, podendo
encontrar também nela o que há de relíquia. Ao longo da análise Martha vai
apropriando-se de seu “pacote”, abrindo espaço para fazer com isso o que é
possível fazer.
53
2 UM SABER QUE SE ATRASA
2.1 Saber não saber
Vimos no capítulo anterior que a noção de Nachträglichkeit nos
permite pensar em uma temporalidade que caminha em diversas direções e que a
história de um sujeito se compõe no ir e vir deste tempo heterogêneo. O que
propõe-se pensar agora é como esta temporalidade marca também o trabalho do
analista, trazendo questões importantes para o seu posicionamento ético.
Um analista não tem como antecipar os efeitos de suas
intervenções e seu acesso às conseqüências de seu ato só pode se dar em um
tempo a posteriori. Assim, encontra-se impossibilitado de fazer predições e não
pode sequer responder a simples pergunta daquele que inicia a análise: Quanto
tempo vai levar? Como afirma André Green (2002), o analista não pode respondê-la
“não porque ele quer manter um senso de mistério, mas porque, na verdade, ele
simplesmente não sabe” (p.45). Assim, embora esteja sempre referido a um corpo
teórico que lhe serve de norte, há uma dimensão de não-saber que acompanha o
analista diante de cada novo paciente e um eterno descompasso entre seu saber e
seu ato. Como coloca Pommier (1992), “seu saber se atrasa” (p.9).
Se uma análise não oferece garantias, o que sustenta a prática de
um analista? O que ou quem o autoriza? Se o psicanalista, como dizia Lacan, é
54
aquele a quem um outro supõe um saber, se este saber lhe é apenas suposto, o
que garante sua intervenção? Cotidianamente, na clínica, como objeto que somos
da suposição de saber, é desde o lugar daquele que sabe que somos indagados,
seja pelos próprios pacientes, seja pelos pais ou profissionais que deles se ocupam.
Como intervir junto aquele que busca uma palavra com valor de verdade, verdade
essa que o psicanalista não possui? Em que lugar colocar-se para permitir tal
suposição de saber, tão fundamental à transferência, sem, no entanto, encarná-lo?
Saber não saber é talvez a parte mais difícil de ocupar a função analista, algo que,
como veremos, depende muito mais de ter passado por uma experiência a da
análise do que de algo que se transmita pela via do conhecimento.
Com Lacan aprendemos que o inconsciente é um saber que não se
sabe. Freud dirá algo que se aproxima disso em A questão da análise leiga (1926),
quando defende a idéia de que a análise não é, como querem alguns, uma prática
moderna da confissão. A diferença que as marca, dirá ele, é que se no
confessionário dizemos o que sabemos, na análise dizemos o que não
sabemos.
No sentido lacaniano, um saber diferencia-se do conhecimento. Ele
não é um conteúdo ideativo que está lá em algum lugar esperando para ser
apreendido, não se trata de uma significação, algo a ser compreendido, mas é
corporal, inconsciente e só pode ser apropriado pela experiência
22
. Lacan
(1972/1973) dizia que a presunção da análise seria a de poder constituir um saber
55
sobre a verdade, o que não é o mesmo que construir um conhecimento, uma
conscientização, uma explicação que advém do domínio cognitivo. Se assim fosse,
poderíamos pensar que bastaria que alguém estudasse a teoria psicanalítica para
que, conhecedor profundo do funcionamento dos sintomas, pudesse facilmente
livrar-se dos seus próprios, quem sabe até sendo capaz de tomar medidas
profiláticas.
Freud (1913) mesmo, embora tenha flertado com uma “psicanálise
educativa”, que incluía explicações teóricas a seus pacientes, constatava, por
exemplo, que, apesar de familiarizados com a teoria psicanalítica, os psicanalistas
não estavam imunes a depararem-se com resistências em suas próprias análises:
“Quando isto acontece, somos mais uma vez relembrados da dimensão da
profundidade da mente, e não nos surpreende descobrir que a neurose tem suas
raízes em estratos psíquicos nos quais o conhecimento intelectual da análise não
penetrou” (Freud, 1913, p. 168). Portanto, a análise dos analistas ou dos candidatos
a analistas é uma análise como qualquer outra.
Eu sei o que eu faço errado, mas não consigo mudar. Esta é uma
reclamação constante que encontramos na clínica e que demonstra que não é pela
via de um saber no sentido de conhecimento, ou ainda, pela via da conscientização
do problema que os efeitos de uma análise se dão. Muitas vezes o efeito de uma
intervenção, dirá Pommier (1992), nem ao menos passa pela compreensão
consciente. Ele opera no significante, sem que o analisando sequer se dê conta
22
Voltaremos a este tema no capítulo IV.
56
disso. Como coloca Lacan (1972/1973) “A análise veio nos ensinar que há um
saber que não se sabe, um saber que se baseia no significante como tal”
(p.129). Isso justifica a preferência lacaniana por intervenções não explicativas, que
privilegiam o sublinhamento de certos elementos do discurso do paciente, a
pontuação, que abra para novos sentidos a serem buscados, mas que mantenha o
enigma. Ou seja, o trabalho da análise é o trabalho com o significante. “A cura
psicanalítica registra resultados terapêuticos antes mesmo que o analisando
compreenda o que pôde determinar sua história e sem que o analista tenha
pronunciado uma única palavra” (Pommier, 1992, p.51).
Para Lacan, o mais fundamental aspecto da intervenção do analista
é a produção de um efeito. Assim sendo, o enigma, o corte, o humor, são
considerados mais efetivos do que interpretações explicativas. Ele critica as
tentativas de tradução daquilo que o paciente diz, como se o analista tivesse a
capacidade de enxergar o que “realmente” está “por trás” do que é dito pelo
analisando. Lacan sempre chamou a atenção dos analistas para os riscos de se
compreender demais, para os riscos de uma relação que permanece
essencialmente no registro imaginário. “Recordo aqui que qualquer um que
recrutamos com base em ‘compreender os doentes’ se alista a partir de um mal-
entendido que não é sadio como tal” (Lacan, 1967, p.259). No Seminário 2, ele
aponta para dois perigos que um analista corre no campo clínico, o primeiro deles
seria o de não ser suficientemente curioso, o segundo, compreender.
“Compreendemos sempre demais, especialmente na análise. Na maioria das vezes
nos enganamos” (Lacan, 1953/1954, p.135).
57
É claro que a descoberta de algo sobre a causa de seu desejo,
muitas vezes gera no sujeito uma “jubilação intelectual” (Pommier, 1992, p.59), cujo
prazer tem mais a ver com um certo alívio da angústia do que com uma mudança
estrutural que poderá se opor à formação do sintoma. Não que algum alívio da
angústia não seja muitas vezes bem-vindo ao longo de um processo de análise,
tantas vezes marcado por enorme sofrimento, e não que tal alívio não possa ser
uma conseqüência de um remanejamento estrutural do sujeito. No entanto, a
psicanálise sempre se diferenciou de práticas que visam, em primeiro lugar, o bem-
estar do paciente. Freud falava que seu objetivo primeiro não era a remoção dos
sintomas, mas que isso podia ou não se dar como conseqüência de um trabalho de
reestruturação psíquica. Lacan dizia que a análise não visa o bem do paciente. Tais
colocações, acredito, dizem respeito a um posicionamento ético que revela também
uma estratégia técnica. Isto é, para que “funcione”, uma análise precisa desprender-
se dos imperativos de felicidade e bem-estar impostos pelo senso comum.
Tentar compreender o porquê de certos atos ou sentimentos,
procurar dar conta da origem do sofrimento, é comumente o que move um sujeito a
iniciar uma análise. Se por um lado podemos dizer que esta busca de um saber é
sintomática herança da estruturação edípica na qual o neurótico supõe um saber
ao pai por outro, tal busca é o que garante que haja análise. É a suposição
imaginária de que há um outro/Outro que pode revelar a minha verdade que permite
a instauração de uma relação transferencial, sem a qual não haveria análise. No
entanto, é preciso não esquecer que o neurótico sofre de excesso de sentido,
portanto, uma análise que escolhe a via da injeção de sentido, caminharia
para o reforço do sintoma.
58
Saber não saber implica em sustentar uma posição paradoxal. Um
analista não pode prescindir de um referencial teórico que oriente seu trabalho, ou
cairia nos riscos da pura intuição. Mas também precisa desprender-se
suficientemente de tais referenciais para não ser ensurdecido por eles, sob o risco
de “escutar a teoria” e não o analisando, enquadrando o paciente em um saber
prévio, fazendo uma “aplicação” da psicanálise que em nada lembrará o que
realmente entendemos como psicanálise.
Leclaire (1986) comenta o impossível que está em jogo nesta
posição, que exige do analista uma escuta sem preconceitos: “em se tornando
analista, aceitou nova gama de preconceitos e se apresenta, muitas vezes, como
um homem que já tomou posição” (p.21). A questão estaria, então, em que tipo de
uso um analista faz de seu referencial teórico. Um analista, para exercer tal função,
precisa justamente ocupar este lugar paradoxal, marcado por uma dupla exigência.
“O rigor do desejo inconsciente, a lógica do desejo”, conclui Leclaire (1986), “só se
revelam a quem simultaneamente respeita essas duas exigências da ordem e da
singularidade, aparentemente contraditórias” (Leclaire, 1986, p.24).
Assim, ao mesmo tempo em que não pode trabalhar sem uma
teoria que lhe sirva de referência, precisa “esquecer-se” dela diante de cada novo
paciente. Freud (1912), em Recomendações aos Médicos que Exercem a
Psicanálise, já advertia contra os perigos de tentar reunir a estrutura do caso, ou
predizer seu progresso futuro, como acontece quando pesquisa e tratamento
59
coincidem. Ele coloca que “os casos mais bem sucedidos são aqueles em que
se avança, por assim dizer, sem qualquer intuito em vista, em que se permite
ser tomado de surpresa por qualquer nova reviravolta neles, e sempre se os
enfrenta com liberdade, sem quaisquer pressuposições” (Freud, 1912, p. 153).
Como vemos, há uma dimensão de não-saber que se coloca
durante um processo analítico, tanto para o analista quanto para o analisando.
Como coloca Pommier (1992), a psicanálise “não propõe ao paciente nenhum
significante mestre da cura, senão os que o analisando descobrirá por si mesmo. O
psicanalista os ignora e os percebe no mesmo instante que seu analisando”
(Pommier, 1992, p.51). Se um sujeito está sempre em trânsito, habitando um
tempo que não pára de passar e de imprimir mudanças nele, também para o
analista nunca haverá um perfeito agora
23
no qual a “essência” de seu
paciente seria capturável ou compreensível. Também o analista em seu
trabalho está submetido à temporalidade do Nachträglichkeit, ao ir e vir de um
tempo heterogêneo que coloca para ele a possibilidade de poder sempre
ressignificar o que escuta à medida que o analisando continua falando. Deixar-
se tomar por esta temporalidade, sem compreender rápido demais
24
, sem tamponar
a própria angústia de não saber com construções teóricas que se “colam” ao que o
paciente diz, é essencial para que possa manter-se na posição de analista.
_____________
23
Esta questão foi trabalhada no capítulo I.
24
Lacan, em suas formulações sobre o tempo lógico, postula a existência de três tempos distintos da
intervenção analítica: o instante de ver, o tempo de compreender e o momento de concluir. Não é
neste sentido que empregamos aqui o termo “compreender”, mas em seu sentido corriqueiro. Para
este tema em Lacan ver LACAN, J. “O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada”. In:
60
2.2 Sou onde não penso e ali está a minha verdade.
“Dois judeus se encontravam no trem; interrogado
sobre o seu destino, o primeiro diz que vai a Cracóvia. Ao
que o outro responde indignado: por que me mentes se
dizes que vais a Cracóvia, exatamente para que eu creia
que vais a Lemberg, quando na verdade vais a
Cracóvia?”
Se por um lado temos um saber que não se sabe, por outro temos
uma verdade que é não-toda. Quando Lacan (1972/1973) diz que a presunção da
análise seria a de poder constituir um saber sobre a verdade, podemos entender
que o uso da palavra presunção se deve justo ao fato de que não é possível dizer
toda a verdade. “(...) toda a verdade, é o que não se pode dizer. É o que só se pode
dizer com a condição de não levá-la até o fim, de só se fazer semi-dizê-la” (Lacan,
1972/1973, p.124).
Os meios pelos quais o homem pode aceder à verdade têm sido tema de
debates nas ciências e na filosofia desde seus primórdios. Não é uma questão a qual a
psicanálise se furta. Desde a invenção do inconsciente freudiano sabemos que há algo em
nós que desconhecemos e que, ao mesmo tempo, nos determina. Mas como ter acesso a
esta verdade que nos escapa? Como ultrapassar os limites dos subterfúgios que muitas
vezes nós mesmos criamos justamente para continuarmos alienados dela?
25
LACAN, J. (1998). Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. Ver também PORGE, E. (1998)
Psicanálise e tempo: o tempo lógico de Lacan. Rio de Janeiro: Companhia de Freud.
25
No capítulo IV falaremos mais sobre isso, quando abordaremos a questão da paixão do homem
61
Para os pensadores do empirismo crítico interessava investigar
como é possível ao ser humano obter conhecimento sobre o mundo, aceder à
verdade, sem, contudo, recorrer às autoridades da Igreja ou a Aristóteles, como na
Idade Média. Com a ascensão da lógica, passa-se a aceitar a idéia de que cada um
pode tentar descobrir as coisas por si. Descartes (1596-1650) foi figura fundamental
desta época. Para responder sua pergunta a respeito de qual seria a primeira
verdade, postulou que, em primeiro lugar, era necessário eliminar tudo aquilo que
pudesse enganá-lo. Levando a dúvida até as últimas conseqüências, ele termina
por concluir que sua única certeza era a de que duvidava, tudo o mais poderia ser
ilusão auto-enganadora. Através dessa única certeza, chega ao famoso cogito
cartesiano: penso, logo, existo (“Cogito, ergo sum”).
Descartes, esclarece Ribeiro (1995), representa muito bem as
premissas que fundam a modernidade, visto que, a partir de seu pensamento, o
sujeito adquire um grau inédito de soberania
26
, tornando o eu o único responsável
pelo pensamento e ação dos indivíduos. Partindo de uma concepção de autonomia
da consciência, sua busca do fundamento último da verdade não prescinde, no
entanto, de uma metafísica: apesar da liberdade atribuída ao homem para a busca
da verdade através da razão, é Deus quem permite que ele não se engane.
Contudo, embora ainda precise desta garantia divina, Descartes faz
uma inversão de perspectiva considerada revolucionária. Antes dele, a verdade se
manifestava fora do âmbito do sujeito, que poderia acercar-se dela através do
pela ignorância.
62
filosofar ou da fé. A partir de Descartes, é o sujeito quem descobre as verdades, o
que o joga numa independência radical. (Ribeiro, 1995).
As contradições encontradas no pensamento cartesiano deram
margem a várias leituras diferentes, entre elas predominando a que reduz o sujeito
cartesiano ao sujeito da ciência. Assim, apesar de que se justificaria denominá-lo
como o “pai” da modernidade, uma vez que os principais traços desta época
encontram-se no seu pensamento a crença na liberdade do sujeito e no progresso
cumulativo da ciência tais leituras ignoram o que há de mais inovador em
Descartes: o fato de que seu pensamento encontra-se centrado na idéia de “sujeito”
(Ribeiro, 1995).
O mérito da filosofia cartesiana é o de não furtar-se de considerar a
dificuldade de estabelecer uma teoria definitiva acerca da relação entre sujeito e
verdade. Mesmo sem ser esta sua intenção, a filosofia de Descartes termina por
revelar que o pensamento não pode aceder a uma verdade absoluta, a não ser pela
via da fé. Enfim, “é o fato do pensamento cartesiano constituir a origem dos
impasses que marcam a subjetividade contemporânea, que o torna importante para
a psicanálise” (Ribeiro, 1995, p.78).
É bastante conhecido o trocadilho que Lacan faz a partir do cogito
cartesiano: Penso onde não sou, portanto sou onde não me penso. O que ele vem
apontar com isso é justamente a grande virada que faz Freud ao introduzir o
26
Voltaremos a esta questão do homem moderno nos capítulos III e IV.
63
inconsciente. Depois de Freud, o eu é deslocado do lugar central que ocupava na
filosofia clássica. Condenado à alienação de si mesmo no Outro, o sujeito ignora
aquilo que é da ordem do seu desejo, sua verdade inconsciente. O sujeito é onde
não pensa, porque é exatamente ali onde a razão lhe escapa, na rachadura, na
falha, no inesperado, no que foge de seu controle, que o inconsciente emerge,
revelando sua verdade. Por isso, aquilo que vem do inconsciente, suas
manifestações, geralmente têm efeito de surpresa ou estranhamento para o sujeito,
pois nestes momentos ele se depara com algo de si que ele mesmo desconhece.
Assim, o sujeito do desejo, por estar apenas representado em seu
próprio discurso na linguagem, não pode falar por si mesmo sua verdade. Ele
apenas pode fazê-la falar:
O sujeito, na verdade de seu desejo, está, portanto, oculto de si
mesmo pela dimensão da linguagem. Inversamente, quanto ao
desejo do sujeito, isso fala dele em seu discurso, sem que ele saiba
(Dor, 1990, p.114).
Freud adverte que a equivalência entre eu e consciente não é
possível. É nesta perspectiva que Lacan (1954/1955), ao longo do Seminário 2,
dedica-se à noção de eu
27
. Ele compara a descoberta freudiana do inconsciente a
_____________
27
Faz-se necessário explicar que, tal como consta nas “Notas do Tradutor” deste Seminário, Lacan
utilizou-se da distinção existente na língua francesa entre os pronomes pessoais da primeira
pessoa, o Je e o Moi, para diferenciar o sujeito do inconsciente (Je), de sua função imaginária
(Moi). Na língua francesa, o Je funciona unicamente como sujeito, enquanto que o Moi pode ocupar
todas as funções, inclusive a de sujeito. A solução encontrada pelo tradutor foi de utilizar o [eu],
entre colchetes, toda a vez que se tratar do je, e simplesmente eu, quando se tratar do moi.
64
uma outra revolução coperniciana, na medida em que ela traz um novo
descentramento do sujeito. Assim, o eu não seria esta entidade coerente,
consciente, detentora de uma unidade, que garantiria uma identidade. Esta
aparente consistência egóica seria da ordem do imaginário: “O inconsciente escapa
totalmente a este círculo de certezas no qual o homem se reconhece como um eu”
(Lacan, 1954/1955, p.15).
Assim, Lacan (1954/1955) discorda da leitura que muitas vezes é
feita de Descartes de que a ordem do mundo estaria segura através da razão. O
que ele vai apontar é justamente a insuficiência desta categoria de eu e o quanto o
seu lugar não está assim tão claro. Afinal, que eu é esse do eu penso cartesiano?
Para dar conta desta pergunta, Lacan (1954/1955) trabalhará a diferença existente
entre sujeito do enunciado e sujeito da enunciação.
2.3 Enunciado e enunciação
Em uma análise interessaria mais saber de onde fala o analisando,
de que lugar, do que propriamente o que ele fala. Quando nos perguntamos sobre
a posição daquele que enuncia, destacamos as condições de enunciação sobre o
enunciado. Para Lacan, o sujeito do inconsciente (Je), ou seja, a verdade de um
sujeito, estaria na enunciação e não no enunciado.
65
A enunciação seria, em termos lingüísticos, o ato de enunciar, e o
enunciado, o resultado deste ato de enunciação, uma criação do sujeito falante. O
sujeito do enunciado é o sujeito gramatical, ele normalmente atualiza-se através do
uso do pronome eu. Contudo, há também enunciados que neutralizam esta
presença subjetiva, sobretudo os científicos que, com o intuito de buscar maior
neutralidade, impõem uma distância entre o sujeito do enunciado e a enunciação
(como, por exemplo, os enunciados nos quais o sujeito está oculto: “diz-se que...”).
Tal distanciamento, apesar de tender a diminuir quando o sujeito diz eu, ainda
assim não desaparece, uma vez que este eu não passa de um representante do
sujeito no discurso.
Dor (1990) coloca que esta oposição entre o sujeito do enunciado e
o sujeito da enunciação, termina por duplicar a oposição existente na divisão do
sujeito, o Je e o Moi dos quais falamos anteriormente. Assim, tanto o sujeito quanto
sua verdade advém pela linguagem, no próprio ato da articulação significante, ou
seja, através da enunciação. A oposição enunciado/enunciação, ou dito/dizer, ao
atualizar a divisão do sujeito, impõe a ele a dimensão do não-saber:
O inconsciente emerge, pois, no dizer, ao passo que no dito a
verdade do sujeito se perde, por somente aparecer sob a máscara do
sujeito do enunciado, onde ela não tem outra saída, para se fazer
ouvir, senão se meio dizer (Dor, 1990, p.118).
Uma vez que a enunciação está invariavelmente “presa” a um
enunciado, mascarada por ele, a verdade nunca pode ser dita em sua totalidade,
66
ela é sempre parcial. No Seminário 20, Lacan (1972/1973) lembra que o termo
verdade tem origem jurídica. As testemunhas, ainda nos dias de hoje, são
convocadas a dizer “toda” a verdade, como se isso fosse possível. A verdade seria,
então, um ideal do qual a palavra se faz suporte, mas que não se atinge em sua
totalidade.
Lacan (1964), no Seminário 11, abordará esta questão da
importância do sujeito da enunciação para a psicanálise, trazendo um enunciado de
difícil resolução para a filosofia: quando alguém diz eu minto, está mentindo ou
dizendo a verdade? Se assumo estar mentindo, então isso não é uma verdade?
Lacan (1964) coloca como “absurdo” de um “pensamento logicista demasiado
formal” (p. 132) o fato de os filósofos considerarem tal enunciado como uma
“antinomia da razão”, visto que “o eu que enuncia, o eu da enunciação, não é o eu
do enunciado” (Lacan, 1964, p. 133).
Nesse caminho de tapeação em que o sujeito se aventura, o analista
está em posição de formular esse você diz a verdade, e nossa
interpretação jamais tem sentido senão nessa dimensão (Lacan,
1964, p.133).
Enfim, a verdade do sujeito independe do que diz o sujeito do
enunciado. Este pode estar mentindo, e esta mentira será sua verdade do ponto de
vista da enunciação. A verdade do sujeito, ela emerge na sua fala, sem que ele se
dê conta disso, diga ele o que disser. Por isso, para a psicanálise não se trata de
conferir com a realidade se o sujeito mente ou diz a verdade, importa, sim, a quem
67
se endereça tal enunciado e de que lugar de enunciação o sujeito implicado fala.
Como exemplo disso, podemos trazer o caso de uma menina de 5 anos que, ao me
perceber grávida, afirma que sua mãe também está esperando um bebê. Embora
essa não fosse uma verdade factual, sua afirmação dizia algo sobre sua verdade
inconsciente que seria desperdiçado pela analista se ela tomasse aquilo como uma
simples “mentira”.
É por isso também que Lacan (1964), neste mesmo Seminário,
critica as práticas analíticas que ficam presas ao eixo imaginário, levando em conta
apenas a relação de eu a eu que ali se estabelece. Tais práticas terminam por
preocupar-se com a possibilidade de o analisando “enganar” o analista, sem se dar
conta de que não é a relação com a realidade que está em jogo. É importante ainda
salientar que não se trata de tomar o inconsciente como um código paralelo
28
, ao
qual acessamos toda vez que, por engano, cometemos um ato falho. O sujeito
inconsciente da enunciação está na fala, ele é a condição para que se fale.
(...) Este sujeito está falando em mim, está mesmo, diria,sustentando
a minha fala, e na minha fala a significação que eu estou produzindo
é justamente o que oculta o lugar do qual eu falo, de onde eu estou
falando (Calligaris, 1991, p.178).
Deste modo, o lugar do qual o sujeito fala não é evidente, e toda a
significação do que diz tende a camuflar ainda mais este lugar. Assim como no caso
do enunciado eu minto, Lacan (1964) propõe que coloquemos o cogito cartesiano
68
sobre este mesmo esquema, considerando a diferença de lugares do sujeito do
enunciado e o sujeito da enunciação. Feito isso, a certeza do eu penso, enquanto
enunciado, tal como o eu minto, já não quer dizer nada.
A crítica que Lacan faz a Descartes é de que o sujeito não nasce no
cogito, pelo contrário, é um sujeito que o enuncia. E, se aí existe
alguma verdade em jogo, ela não pode ser encontrada no enunciado,
mas, sim, nas condições de enunciação, marcadas pela dúvida e
pelo desejo. (Ribeiro, 1995, p.57).
Quando pensamos no sujeito que se narra, uma das questões
interessantes que a narração proporciona é justamente a oportunidade de ocupar
diferentes posições em relação à história que é narrada. Como coloca Rudelic-
Fernandez (1993), enquanto um diálogo coloca-se como uma troca de palavras
entre interlocutores enunciativamente estáveis,
(...) uma fala ou um texto narrativos distinguem-se, precisamente,
pela complexidade do lugar enunciativo que o sujeito neles ocupa em
relação a seu próprio discurso: sujeito da enunciação ou do
enunciado, autor, narrador ou personagem, o sujeito aparece ali,
simultaneamente, em diversos níveis enunciativos, e a narratividade
do texto deriva, não de um lugar enunciativamente estável e definível
que o sujeito ocupe em relação a seu discurso, mas da série de
deslocamentos enunciativos que se operam nele continuamente e
que o relato é o único capaz de gerar. (p.724)
28
Ou como algo que surge das profundezas, como vimos no capítulo I.
69
2.4 O ato analítico
Como vimos, para Freud, na análise falamos sobre o que não
sabemos. Para Lacan, o inconsciente é um saber que não se sabe e a verdade do
sujeito do inconsciente se coloca ali onde ele não pensa. Assim, se de um lado
temos um analisando que não sabe o que diz uma vez que o sentido de seu
enunciado recobre seu lugar de enunciação do outro, temos um analista que
não sabe o que faz, uma vez que não pode antecipar os efeitos de seu ato. Por
ato analítico Lacan toma a intervenção do analista na análise, na medida em que
ela provoque rompimento da repetição, ou seja, permitindo um remanejamento da
estrutura psíquica.
Tais efeitos são tão desejáveis quanto impossíveis de prever. Como
vimos anteriormente, só é possível ter acesso às conseqüências que a intervenção
do analista tem para o analisando ao longo das sessões que sucedem ao ato, à
medida que este continua falando. Em outras palavras, a intervenção do analista
não pode ser calculada de antemão e só temos acesso aos seus efeitos em
um tempo a posteriori.
Quinet (1991) resume as três principais características do ato
analítico, tais como expostas por Lacan no Seminário 15
29
: ele situa-se no campo
_____________
29
Lacan, J. (1967/1968). O Seminário. Livro 15. O Ato Analítico. (inédito).
70
da linguagem, é promotor de ultrapassamento (ou seja, provoca mudança radical no
sujeito) e é acéfalo. Na medida em que desvincula-se do pensamento, o ato é um
agir sem pensar que se aproxima ao aspecto acéfalo da pulsão. Ele é, nas palavras
de Quinet (1991), incalculável e incontrolável. “O sujeito que pensa não age”
(p.120), afirma o autor, lembrando da hesitação característica do neurótico frente ao
ato, ilustrada por Hamlet.
O ato está do lado do ser e é correlato a um ‘não-penso’ que
completamos com o cogito lacaniano por um ‘não penso, logo sou’.
o existe, portanto, subjetivação do ato a não ser a posteriori: só
depois do ato o analista poderá interrogar-se sobre o que o fez agir e
dar a razão desse ato em uma construção (Quinet, 1991, p.120).
Assim, a mesma surpresa que encontramos diante de um ato falho,
está posta para o ato analítico. “Quer o faça rir ou ter vergonha dele, aquele de
quem um lapso escapa se pergunta de onde lhe vem este não-sabido que aflora: a
causalidade permanece neste momento suspensa num vazio” (Pommier, 1992,
p.59). Tal como o ato falho demonstra que o desejo inconsciente vai sempre mais
longe do que as intenções conscientes, o ato do analista também não é intencional,
não se sustenta a partir de um saber prévio. O analista, no momento mesmo do ato,
“não sabe” o que está fazendo, não o pensa, não o planeja. Isto é, por mais que
tenha escutado um paciente, trabalha sem garantias.
Se analista e analisando encontram-se, ambos, alienados da
verdade inconsciente daquele que procura a análise, isso não quer dizer que os
esforços por parte do analista em adquirir conhecimento sejam desnecessários ou
71
sem efeitos para sua clínica. Seria um equívoco confundirmos o não-saber que
envolve todo o processo da análise com a ignorância. Como vimos antes, não se
trata de abrir mão de um referencial teórico, nem tampouco de colar-se a ele. Freud
já atentava que a teoria psicanalítica é sempre falha e incompleta diante da clínica,
o que coloca para o analista o desafio diário de “reinventar” a psicanálise diante de
cada novo paciente. O analista conhece algo sobre a lógica do inconsciente, sobre
as regras técnicas e éticas do jogo analítico, mas desconhece como esta lógica se
apresenta e se apresentará na singularidade de cada sujeito. Portanto, não basta
que seja um grande conhecedor da psicanálise, precisa também saber não saber.
2.5 Posição do analista
E como é que se “aprende” a saber não saber? As questões que
envolvem a formação do analista e a transmissão da psicanálise constituem um
enorme debate dentro do movimento psicanalítico, do qual não pretendemos dar
conta no espaço desta tese. Faremos, no entanto, um pequeno recorte de tal
questão para que, levando em consideração tudo o que dissemos até aqui,
possamos dizer algo mais sobre a posição do analista.
Que é na análise que se faz um analista, parece ser um
consenso entre analistas de diferentes escolas, mesmo que eles divirjam
sobre muitos outros aspectos concernentes à formação. No seminário sobre O
Ato Analítico, Lacan (1967-68) dirá que o ato analítico por excelência é o do final da
72
análise, aquele que produz um analista.
Para que haja análise é necessário que se instaure a transferência.
Um analisando só levará adiante um trabalho de análise se puder supor
minimamente que seu analista sabe algo sobre o que lhe faz sofrer e pode,
portanto, ajudá-lo. Não é incomum escutarmos de nossos pacientes o quanto é
esquisito falar de coisas tão íntimas para um desconhecido. A relação que se
inaugura em uma análise não encontra parâmetros em nenhuma outra relação do
cotidiano. O analista não é um amigo, não é um parente, não dá conselhos. Ele não
prescreve remédios, não traça um plano de trabalho, não delimita sequer o tempo
que a análise terá.
Assim, todo o início de análise é uma aposta arriscada de ambos os
lados de que alguma coisa vai se passar ali. Do lado do analisando, esta aposta só
se sustenta a partir da suposição de um saber ao analista. A posição do analista
é, então, no mínimo paradoxal. Precisa sustentar a ilusão de que tem o que o
analisando acha que ele tem, sem, no entanto, encarnar este saber que lhe é
suposto, sem sentar-se no lugar que lhe é atribuído. O lugar ocupado pelo
analista, dirá Lacan, é o lugar do semblante.
Mas o que isso quer dizer?
Battaile (1994) relata um episódio de sua clínica que é interessante
para pensar tais questões. Trata-se de um paciente que, ao entrar pela primeira vez
em seu consultório, lhe pede fogo. Ela hesita quanto ao que fazer e seu texto é uma
73
reflexão sobre esta hesitação:
(...) sentia-me visada, atribuía-lhe intenções como se tivesse estado
dentro de sua cabeça. Estava num discurso de eu para eu,
agressivo. De repente, quando esse homem me pediu fogo, só pude
me referenciar ao preconceito de que um analista não deveria dar
fogo a um eventual paciente. Aí está: eu fingia ser analista. E o mais
engraçado é que, no próprio momento em que era dominada pela
preocupação de estar numa posição de analista, esquecia que o era
(...) (Bataille, 1994, p.14).
Ao tentar representar aquilo que seria um analista, ela coloca na
posição de semblante, em vez de “semblante de nada”, a imagem de uma analista.
O que se confundia ali, segundo a autora, é que o desejo que se colocava em
questão não era o desejo do analista, mas o desejo de ser analista:
Cada vez que atribuo ao paciente uma intenção, um pensamento que
ele não diz, estou fora da posição de analista. Cada vez que me sinto
visada como sujeito pelo paciente, estou fora da posição de analista.
Cada vez que tenho vontade de representar alguma coisa para o
paciente, ainda que seja representar um analista, estou fora da
posição de analista. E, a cada vez, isso deve me advertir de que não
é o meu desejo de analista que está em jogo (Bataille, 1994, p.14).
Freud (1915) já alertava para o fato de que não é a pessoa do
analista que está em questão na análise. Assim, de nada adiantaria interromper o
tratamento porque a paciente apaixonou-se pelo médico, pois isso ocorreria
novamente com o outro médico a ser procurado. Freud (1915) compreende que “o
enamoramento da paciente é induzido pela situação analítica e não deve ser
atribuído aos encantos de sua própria pessoa” (Freud, 1915, p.210). O amor
74
transferencial não é um amor novo, “compõe-se inteiramente de repetições e cópias
de reações anteriores, inclusive infantis” (Freud, 1915, p.217)
A importância que Freud sempre deu a abstinência ou a dita
neutralidade tantas vezes, ao meu ver, mal interpretada como a necessidade de
manter os móveis do consultório no mesmo lugar, caricaturada por uma expressão
facial imutável ou um silêncio mortífero que o analista teria que se empenhar em
sustentar dizem algo sobre a posição do analista, sobre a importância de não
estar na transferência como pessoa ou responder ao analisando como se
partilhassem de um laço social qualquer. “O médico deve ser opaco aos seus
pacientes, como um espelho, não mostrar-lhes nada, exceto o que lhe é mostrado”
(Freud, 1912, p.157).
Não se trata de ter vários ternos da mesma cor. Ocupar o lugar de
semblante é poder ser nada, é poder estar na relação transferencial não como um
sujeito. O que permite ao analista abrir mão de sua condição de sujeito na
condução de uma análise é justamente o processo de destituição subjetiva
que sofreu em sua própria análise. A queda do sujeito-suposto-saber que está
em jogo no final da análise é o fim da ilusão que a sustentava e um encontro do
analisando com a castração do Outro, bem como com a sua própria. Ao mesmo
tempo que o analista é colocado no lugar de objeto a, de resto, de dejeto, de um
significante qualquer, as amarras que ligavam o sujeito ao Outro, dizendo a ele
quem ele era, são desfeitas
30
.
75
Quando, ao final de uma análise, temos um novo analista, o sujeito-
suposto-saber, recém destituído, é recolocado em uma outra análise. Assim, o
sujeito que passou pela experiência de deixar cair o sujeito-suposto-saber,
relegando seu analista a dejeto, coloca-se agora ele próprio em posição de
sustentar que um saber lhe seja suposto, ainda que o fim disso seja justamente que
ele próprio chegue ao mesmo lugar de dejeto ao qual relegou seu analista.
Lacan é um grande crítico da maneira como as instituições
psicanalíticas pensam a questão da formação. Questiona a hierarquia e as formas
de exercer poder que estão implicadas, por exemplo, na prática da análise didática.
Propõe novas formas de organização institucionais, como o estudo através de
cartéis e a instauração do dispositivo do passe. Alega que chamar uma análise de
didática seria uma redundância, já que qualquer análise é didática no sentido de
que tem como produto final um analista. Com tudo isso denuncia que o desejo do
analista perde-se em meio a uma burocratização do percurso de formação.
Dentre todas estas críticas e propostas inovadoras, destacaremos o
famoso e polêmico aforismo que diz “um analista só se autoriza de si mesmo”. Esta
máxima produziu e produz inúmeros equívocos, um deles apontado por Octavio de
Souza
31
, em artigo intitulado Sobre o ‘autorizar-se’ e seu reconhecimento. Souza
afirma que uma das interpretações equivocadas desta sentença seria a de que o
analista se autorizaria através de seus analisandos, por meio do reconhecimento
que estes lhe dariam. Esta busca de reconhecimento do lugar de analista no
30
Este tema será retomado no capítulo IV.
76
analisando, traz à tona a confusão, já comentada a partir do episódio trazido por
Bataille (1994), entre o desejo do analista e o desejo de ser analista:
O grande problema é que numa relação estabelecida deste modo, o
desejo que se diz em busca de reconhecimento é justamente o
desejo do analista de ser analista. Se ele quer ser analista o
problema é dele, e o analisando não tem nada a ver com isso. O
desejo de ser analista remete o analista a sua própria análise e não
ao seu lugar de analista (Souza, p. 221).
Procurar reconhecimento na relação analítica impede o aspirante à
analista de ocupar a posição que almeja, uma vez que é como sujeito que ele
termina ali se colocando. E colocar-se como sujeito na relação transferencial é levar
a análise para o campo das relações intersubjetivas, ou seja, manter-se no campo
da transferência imaginária, da relação eu a eu.
Dito tudo isso, fica uma pergunta: se o ato analítico por excelência é
aquele que produz um analista no final de uma análise, seria necessário chegar ao
fim dela para poder autorizar-se como analista? Para respondê-la continuaremos
acompanhando o debate levantado por Souza. O autor aponta que um dos enganos
que envolvem a questão da autorização está em conceber a autorização como algo
que precede o analista, ou seja, não se pode falar de uma autorização ao ato, o que
há é autorização pelo ato. “Não se trata de que o analista se autorize a partir do seu
ato, mas sim de que possa autorizá-lo enquanto ato” (Souza, p.223 o grifo é meu).
A autorização é, poderíamos dizer, simultânea ao ato, e este é sempre um
31
Não consta a data desta publicação.
77
momento solitário e impossível de ser programado, cujas conseqüências só
se dão a ver a posteriori. Por isso é que Lacan diz o analista só se autoriza de si
mesmo”, e não alguém só se autoriza de si mesmo”. Dito de outro modo, se há
autorização, é porque já havia ali um analista.
Assim, de nada adiantaria que o analista esperasse o fim de sua
análise para começar a clinicar. Ele, de qualquer maneira, estaria exposto aos
riscos implicados em um ato, às surpresas colocadas por cada análise. Nesse
sentido, não há um momento no qual se daria uma autorização de uma vez por
todas, mas um trabalho constante e eterno de autorização.
É por ocupar o lugar de analista em uma cura que desenrola diante
de si os efeitos do seu ato de recolocar o sujeito-suposto-saber, que
o analista, por se deparar com a impossibilidade de autorizar-se quer
seja pela nomeação conferida por um outro, quer seja por uma teoria
já estabelecida, se encontrará na urgência de uma autoria teórica
que regre a relação dos seus ditos com a sua prática (Souza, p.223).
A vinheta clínica abaixo refere-se a um dos primeiros pacientes que
atendi em meu consultório particular e que trouxe questões que foram fundamentais
para muitas das indagações trazidas até aqui. Ela é também um exemplo de que as
construções que podemos fazer sobre os nossos atos chagam sempre um pouco
depois.
Há algum tempo eu pensava em passar este paciente ao divã. Ele
vinha dando indícios de que poderia sustentar esta passagem, era evidente a
78
mudança em seu discurso. Mas eu estava cheia de dúvidas. Nunca havia feito isso
antes, e era algo que tinha um peso para mim, porque sentia que dizia respeito
também a uma mudança no meu lugar, no meu processo de formação e de
autorização. Era necessário um “autorizar-se” e, de alguma forma, achava que só
através da supervisão isto era possível. Traduzindo nos termos que acabamos de
trabalhar, era como se eu esperasse uma autorização prévia a meu ato.
Remoía a idéia, pensando que deveria fazer logo a tal supervisão,
na qual conversaria sobre o assunto. Até que um dia, antes de haver marcado um
horário com minha supervisora, este paciente traz um sonho muito interessante, no
qual estava deitado em um sofá. O sonho, suas associações, de repente me levam
a um impulso: convido-o a deitar-se no divã, tão surpresa quanto ele com meu ato.
Sentia uma certa urgência, um “tem que ser agora”. Aquele momento me pareceu
tão propício, era como um cavalo encilhado, não podia deixar passar. Lembro
também que o sentimento seguinte era de uma imensa responsabilidade: como se
naquele momento tivesse ficado claro para mim, a solidão que estava implicada ali.
Eu não podia sair correndo da sessão para perguntar a alguém o que fazer (Ah! Em
quantas outras situações já sentira vontade de fazê-lo). Eu sentia que, por mais
importante que fosse a supervisão, os meus estudos teóricos, ou mesmo minha
própria análise, nada disso me dava garantia alguma sobre aquele instante, no qual
eu estava só diante de meu paciente, achando que era a hora.
Marco uma supervisão e chego lá com uma certa culpa, que
carregava desde o dia de meu ousado ato. Como se me desculpasse diante de
minha supervisora, digo que já pensava, havia algum tempo, em conversar com ela
79
sobre a passagem deste paciente ao divã... Falava isso quando ela prontamente me
interrompe, dizendo: “Mas, como assim? A passagem para o divã é um ato. Não
poderíamos tê-lo programado”.
Podemos dizer que há aqui pelo menos dois momentos de
ressignificação importantes, que se colocam do lado da analista. O primeiro deles
se deu no momento mesmo da supervisão, a partir da fala de minha supervisora,
que teve para mim o efeito de uma intervenção. Ela ao mesmo tempo aliviava
minha culpa por ter feito algo não consentido anteriormente, como também me
apontava o caminho de meu processo de autorização.
O outro momento seria agora, afastada temporalmente deste
episódio do início de minha prática clínica, no aprés-coup de meu ato e de minha
experiência como supervisionanda, poder dedicar-me ao pensar teórico sobre o que
se passou ali, poder pensar a diferença entre o desejo do analista e o desejo de ser
analista, ou a impossibilidade de haver autorização ao ato. Ao longo desses anos,
foram muitas as ressignificações, colocadas também a partir de outros casos, ou de
minha própria experiência de análise, que foram dissolvendo uma idéia imaginária
do que seria um analista e me aproximando cada vez mais de poder ocupar esta
função.
Se esta experiência traz a marca do início da prática clínica,
momento naturalmente cheio de incertezas, o percurso teórico que pudemos fazer a
partir dela sugere que o não-saber que acompanha o ato analítico não se restringe
80
ao analista iniciante, mas o acompanha ao longo de toda a sua prática, por mais
experiente que ele se torne. Parece inevitável que todo o analista continue sempre,
diante de cada novo sujeito a que se propõe escutar, num esforço contínuo de dar
conta de seus atos, cujos efeitos não pode prever. Neste sentido, não há nunca
um analista, ele não está nunca “formado”, mas está, sim, em constante
trabalho de autorização.
81
3 O AUTOBIOGRÁFICO, A NARRATIVA E A ANÁLISE.
3.1 Quem conta um conto aumenta um ponto
Diz o ditado que quem conta um conto aumenta um ponto. Entre
outras coisas este dito popular fala de como, ao contar uma história, nossa
subjetividade fica de tal maneira enredada nela que já não é mais possível narrá-la
exatamente da mesma forma como nos foi contada. E o que dizer da maneira como
contamos nossa própria história? Em nosso cotidiano constatamos que uma
situação familiar qualquer jamais é relatada da mesma maneira pelos membros que
a vivenciaram, como se cada um tivesse sua própria versão do que aconteceu.
Nosso exercício diário de construção da própria vida, nossa autobiografia, não se
faz de fatos históricos separáveis da ficção. Dito de outro modo, não há outra
maneira possível de contar-se, a não ser através de ficções, o que também não
quer dizer que se tratem de mentiras. Nossas ficções são a nossa verdade.
O filme Peixe Grande
32
conta a história de um pai que tinha a mania
de romancear os acontecimentos cotidianos de sua família. Diante do leito de morte
deste pai, o filho parece querer tirar algumas histórias a limpo. Confuso com a idéia
de levar como herança um apanhado de lendas sem pé nem cabeça, que o pai
contava como acontecimentos reais de sua vida, ele clama que o pai lhe diga a
82
verdade. Mas o pai não faz mais que repetir os mesmos enredos mirabolantes que
o filho já sabe de cor, o que irrita este último profundamente, ao mesmo tempo que
faz sua esposa ficar fascinada pelo sogro.
No início do filme, o filho-narrador nos adverte que, ao contar esta
história, “é difícil separar fatos de ficção, o homem do mito”. Decide pelo único
caminho que acha possível, contá-la como o pai lhe contou. “Ela nem sempre faz
sentido e a maior parte nunca aconteceu. Mas esse é o tipo de história que essa é”,
introduz o filho. Ao longo do filme, vamos sendo capturados pela incrível habilidade
do pai de falar da vida de forma tão fantástica. Somos também cúmplices de uma
transformação em relação às preocupações iniciais do filho. Saber se as histórias
são verdadeiras ou não, vai perdendo a relevância, pois, como coloca Calligaris
33
, o
filho descobre algo bem mais importante, ou seja, que a herança que o pai lhe
propõe é uma paixão pela vida. O filme faz Calligaris lembrar do próprio pai:
Durante 50 anos, meu pai manteve um diário. Sob pretexto de que
sua caligrafia era ilegível, ele ditava o texto para minha mãe.Às
vezes, eu ficava escutando atrás da porta. Odiava (e me fascinava) a
transformação que as palavras do diário impunham a acontecimentos
que eu tinha presenciado e que foram, a meu ver, insignificantes. Na
descrição do meu pai, a banalidade do cotidiano se tornava uma
vasta produção teatral cujo tema maior era sempre, aliás, o seu amor
pela minha mãe. (…) Quando meu pai morreu, fiquei com seus
diários. Leio de vez em quando. Não procuro informações sobre sua
vida, apenas o segredo de sua paixão de viver e de amar.
32
Big Fish, de Tim Burton, 2003.
33
Calligaris,C. (2004). Peixe Grande e a paixão pela vida. Artigo publicado em sua coluna no jornal
Folha de São Paulo, no dia 26 de fevereiro de 2004.
83
Junto com o tema da transmissão da paixão pela vida, este filme e
este recorte do artigo de Calligaris trazem à tona a questão de que o que nos chega
como nossa história se faz quase como um romance, um romance escrito a muitas
mãos. Parafraseando Freud (1909 [1908]), trata-se de um Romance familiar, que
inclui nele, as fantasias e os ideais perdidos de vários personagens, versões mais
ou menos apaixonadas de cada um sobre a vida. Nesse jogo de telefone sem fio
no qual nos inserimos, as histórias correm em um desdobramento infinito,
sem que seja possível separar fato e ficção. Cada um que participa deste jogo
contribui com sua própria subjetividade, podendo aumentar um ponto,
diminuir um, dar um colorido a mais aqui, omitir algo acolá.
Na última cena do filme, temos o filho do filho, contando aos amigos
as histórias do avô que não chegou a conhecer, mas que se faz presente em sua
vida justamente em seu legado de dar às histórias familiares um colorido especial.
Enquanto reconta animadamente as peripécias do avô aos amigos, pede a
confirmação do pai sobre um detalhe ou outro que lhe escapou. Seu pai responde
prontamente, deixando evidente que passou também ao próprio filho as tais
histórias que antes tanto o incomodavam. É neste momento que o narrador (antes
no lugar de filho, agora no lugar de pai) diz: “Um homem conta suas histórias tantas
vezes que ele se torna essas histórias. Elas vivem para além dele e dessa forma ele
se torna imortal”.
A transmissão implicada aí nos faz pensar na função que tais
narrativas têm para um sujeito, na forma como ele as escuta, as absorve, as
incorpora no tecer de sua própria história. Se não há uma vida feita de fatos,
84
separada da forma como a contamos, isso nos leva a ter que considerar sempre a
dimensão do ficcional presente em nossas histórias reais. Já vimos antes que o
falar de si mesmo envolve questões complexas que vão desde uma impossibilidade
de acessar o que “realmente aconteceu”, até as dificuldades impostas pela posição
de alienação que o sujeito se encontra diante de si mesmo, o que envolve sempre
uma dimensão de não-saber. Quando um analista convoca o sujeito em análise a
falar de si, o que estaria aí implicado? Em que medida podemos dizer que a análise
produz uma construção narrativa? E, neste sentido, como ela se relaciona com o
autobiográfico? Que tipo de construção narrativa seria essa?
Seja através do teatro, do cinema, da literatura, da televisão ou
mesmo pela transmissão oral, o homem sempre teve um laço muito estreito com as
histórias
34
que conta e que lhe são contadas. Desde muito pequenos embarcamos
nas delícias do mundo de ficção e não tardamos em passar a inventar nossos
próprios enredos, tenham eles a intenção de serem “meras ficções” ou carreguem a
pretensão de ter um caráter autobiográfico. Já dizia Freud que o eu é um
precipitado de identificações. Dos contos de fada aos grandes romances, das
lendas familiares às meias verdades sobre nossos antepassados, tudo nos chega
como possibilidades identificatórias das quais bebemos para poder fazer nosso
trabalho cotidiano de “inventar”
35
a própria vida.
_____________
34
A gramática da língua portuguesa recomenda o uso da grafia “história” mesmo quando nos
referimos à ficção, caso em que a língua inglesa, por exemplo, usa a palavra “estória”. Faremos
uso do termo história por motivos que vão além do uso gramatical correto de nossa língua (ver
nota de rodapé número 44).
35
As aspas aqui remetem ao fato de que não se trata de pura invenção. Como vimos no capítulo I, há
85
3.2 A Modernidade e a construção autobiográfica
Enquanto nas sociedades tradicionais havia pouco espaço
para a construção de um estilo de vida próprio e individualizado, tal
construção é um verdadeiro imperativo da modernidade. Nossa biografia é
retirada da determinação imposta pelas sociedades tradicionais e colocada em
nossas próprias mãos. (Beck, 1992). Como coloca Giddens (1991), na
modernidade, o self
36
se torna um projeto reflexivo. A pluralidade de escolhas
característica da modernidade se aplica também ao self, que precisa ser
constantemente construído a partir de uma enorme e confusa gama de opções. Se
por um lado somos influenciados por estilos de vida “prontos”, oferecidos pela
mídia, pela literatura, etc. cabe a nós, mais do que nunca, a montagem de todas
estas influências em uma vida que deve ser, antes de mais nada, “original” (Rustin,
2000). Como coloca Maria Rita Kehl (2001b) no prefácio ao livro de Ana Costa ,
Corpo e Escrita, “desgarrado da tradição e de uma verdade transcendental que
ofereça suporte ao seu lugar”, o neurótico está “condenado a sofrer porque supõe
que pode e deve escrever, sozinho, a história de sua vida, dotando-a de algum
sentido”. (p.17). O que ele ignora “é justamente a dimensão daquilo que o
ultrapassa, a narrativa da qual ele não é, nem pode ser, o único autor. A
modernidade exige que cada um seja o autor, autônomo, da própria vida” (p.17).
uma apropriação de um legado em jogo. Como veremos a seguir, a “invenção” da própria vida é
uma demanda imposta pela modernidade.
36
Embora ao longo do trabalho não façamos uso do termo “self”, a referência a ele será
mantida sempre que o autor em questão se utilize dele, como é o caso aqui.
86
Na modernidade, afirma Giddens (1991), nossa tarefa passa a ser a
de manter uma narrativa pessoal em andamento:
Autobiografia particularmente no sentido amplo de uma história
interpretativa pessoal produzida pelo indivíduo em questão, seja ela
escrita ou não está, na verdade, no centro da identidade (self-
identity) na vida social moderna. Como toda a narrativa formal, é algo
que precisa ser trabalhado e que não deixa de ser um processo
criativo. (Giddens, 1991, p.76).
37
Não por acaso, tanto a psicanálise quanto a escrita autobiográfica
são fenômenos típicos da modernidade. Em ambos os casos, o indivíduo e sua
história pessoal são trazidos a primeiro plano e adquirem uma importância que não
faria o menor sentido em uma sociedade tradicional. A palavra autobiografia
aparece no final do século XVIII, quando três elementos gregos significando self
38
,
vida e escrita são combinados para descrever uma prática que já era conhecida
como memoirs e confissões (Olney, 1980). Embora Confissões, de Santo Agostinho
(397), seja uma obra freqüentemente vinculada às origens da autobiografia (Olney,
1980, Gusdorf, 1956, Freeman, 1993), o tipo de auto-reflexão encontrada ali está
ainda estreitamente ligada à questão religiosa. É na modernidade que o que está
esboçado em Santo Agostinho (397) adquirirá uma consistência maior: a
concepção de que o indivíduo é importante o suficiente para que se escreva
sobre ele (Gusdorf, 1956) e que isso seja feito de forma auto-reflexiva.
_____________
37
Tradução livre da autora.
38
Ver nota de rodapé número 36.
87
Mas, será que terminariam aí as coincidências entre a psicanálise e
o autobiográfico? Em minha dissertação de mestrado
39
encontrei alguns pontos de
convergência entre o debate da crítica literária sobre autobiografias e antigas
questões da psicanálise, principalmente no que diz respeito à memória, à
temporalidade, à realidade, etc. A simples dificuldade encontrada pela crítica
literária em definir o que seria o autobiográfico, levanta questões muito próximas às
debatidas no meio psicanalítico: como distinguir um texto de ficção de um texto
autobiográfico se, invariavelmente, encontramos material ficcional na
construção de uma autobiografia e material autobiográfico em trabalhos de
ficção?
Olney (1980) coloca que é muito freqüente que trabalhos de arte se
apresentem como autobiografias e que autobiografias se apresentem como
trabalhos de arte. Georges Gusdorf (1956), pioneiro da crítica literária sobre
autobiografias, afirma que a verdade da vida não difere da verdade do trabalho. “O
grande artista, o grande escritor”, diz, “vive, de certa maneira, para sua
autobiografia” (p.46.). Pablo Picasso parece estar de acordo quando sugere que “a
obra de um artista é uma espécie de diário. Quando o pintor, por ocasião de uma
mostra, vê algumas telas antigas novamente, é como se ele estivesse
reencontrando filhos pródigos que vestidos com túnicas de ouro”. É também do
grande pintor a afirmativa de que “a arte não é a verdade. A arte é uma mentira que
nos ensina a compreender a verdade”
40
.
_____________
39
John, D. (2000) When our fictions are our truth: construction and reconstruction of life history in
analysis and autobiography. Tavistock Clinic, Londres. Dissertação de mestrado.(inédito).
40
Trechos retirados da exposição Picasso na Oca: uma retrospectiva, São Paulo, 2004
88
Como vimos, a tarefa de construção da própria história é uma
demanda da modernidade, a qual tentamos responder cotidianamente. Mas qual
seria, então, o papel da análise neste processo? O de ajudar a responder esta
demanda? De que maneira?
Se consideramos que há um imperativo de autonomia nesta tarefa
imposta pela modernidade, um primeiro ponto a se levar em conta é, como vimos
no capítulo I, que a análise convida o sujeito a haver-se com aquilo que o antecede
para que, então, possa ocupar, de forma singular, a cadeia geracional da qual faz
parte. A trajetória de uma análise leva o sujeito ali implicado a se deparar com o que
lhe determina, com o fato de que ele não é o único autor de sua história, mas que
parte dela foi escrita antes de sua chegada. Neste sentido, o que acontece na
análise em relação à história do sujeito não é da ordem da pura criação, mas
diz respeito a uma apropriação do que lhe foi ofertado e a um
reposicionamento frente a este legado. Saber-se fruto de certos determinantes
não implica, contudo, eximir-se de toda a responsabilidade. Assim, ao mesmo
tempo em que desmonta uma ilusão de autonomia, a análise convoca o sujeito a
tomar posição frente a seu legado, a responsabilizar-se pelo que faz com o que
recebe. Como coloca Maria Rita Kehl (2001a):
O trabalho de uma análise pode ser comparado a uma espécie de
‘desconstrução’ dos sujeitos modernos, personagens dos romances
de suas próprias vidas das quais se crêem os únicos autores,
inconformados com a finitude de suas trajetórias individuais,
obcecados por deter no tempo e na memória todos os detalhes de
uma vida que não faz sentido (p. 89).
89
Assim, a análise levaria a uma desmontagem, a uma desconstrução
do romance tão bem tecido pelo neurótico ao longo de sua vida. Quando esta tese
propõe pensar a análise como um espaço de ressignificação, é neste sentido que
ela o faz. Como veremos a seguir, isso se diferencia de pensar a análise como a
construção narrativa de uma versão “mais apropriada” para a própria vida.
3.3 O “approach narrativo”
A impossibilidade de separar ficção e realidade quando nos
referimos a nossa história está colocada tanto para a psicanálise quanto para a
autobiografia e parece ser uma idéia relativamente bem aceita para ambas. Mas, se
é possível encontrar pontos em comum entre estes dois campos, é necessário que
nos perguntemos também sobre os limites de tais aproximações. Quando se fala da
psicanálise como um processo análogo a um reescrever da própria vida, trazendo
elementos da narrativa para pensá-la, no que exatamente isso implica? Que
narrativa seria essa?
Desde os tempos de Anna O. a psicanálise pode ser descrita como
uma “cura pela fala”, o que evidencia sua estreita relação com a linguagem. Para
alguns psicanalistas e críticos literários envolvidos com a psicanálise, o estudo de
tal relação culminou no entendimento do processo analítico como um processo
narrativo, no qual o material trazido pelo paciente é visto como um “texto” a ser
90
“lido” e o trabalho da análise é comparado a uma criação literária. Tal movimento
costuma ser chamado de “approach narrativo” e tem gerado intenso debate no meio
psicanalítico e literário, principalmente dos anos 80 para cá.
Em parte este movimento é uma resposta às acusações que a
psicanálise sempre sofreu quanto a não ser uma ciência. “Resolve-se” o “problema”
da metapsicologia tentando substituí-la por um sistema narrativo (Leary, 1989). Dois
importantes representantes desta tendência, cada um a sua maneira, são Roy
Shafer e Donald Spence.
Com seu “narrational project”, Shafer (1976) busca retirar a
psicanálise do campo das ciências naturais para relocá-la no campo das
humanidades (filosofia, hermenêutica, literatura), uma vez que considera que ela
está preocupada com significados, sentidos (meaning) e não com explicações de
causa e efeito. Donald Spence (1982), com o livro Narrative truth and historical
truth, fala das duas vozes presentes em Freud, aquela representada pelas
metáforas arqueológicas, ou seja, o Freud que busca uma verdade histórica, e a
voz retórica, que abriria espaço para pensar a análise como construção narrativa.
Estes dois autores são sempre o ponto de partida para o intenso debate gerado em
torno de suas idéias e que criou uma série de “artigos-resposta” e leituras críticas às
questões levantadas por eles em importantes periódicos da psicanálise e da crítica
literária psicanalítica.
A antiga oposição “realismo” X “construtivismo” dá, em grande parte
91
do tempo, o tom do debate. Grosso modo, temos de um lado os que defendem que
o trabalho da análise consistiria em reconstruir a história do sujeito, acessando o
material distorcido e recalcado; e do outro, os que, criticando o realismo ingênuo
dos primeiros, alegam que, uma vez que a história do sujeito é inacessível, não se
trata de reconstrução, mas de construção
41
termo que ressaltaria o processo
“criativo” ali envolvido. O que fundamenta o “approach narrativo” é justamente esta
posição construtivista que permite pensar a análise como a co-construção de uma
“estória”
42
, feita em comum acordo entre analista e analisando (Hanly, 1996).
As coisas e o mundo se mostram para nós de forma fixa por sua
natureza, ou nada existe por si mesmo a não ser o que é representado? Este
dilema antigo, condensado na oposição “realismo” X “construtivismo” se desdobra
em muitas outras questões que são colocadas, de forma mais ou menos direta, pelo
debate gerado a partir do “approach narrativo”. A psicanálise é uma ciência da
interpretação ou da observação? Em uma análise trata-se de descoberta ou pura
invenção criativa? O que escutamos é o que o analisando nos diz, ou somos nós,
com nossos “preconceitos” teóricos que encontramos em seu discurso a
confirmação para nossos pressupostos? Não é o analista que sugestiona o
analisando para um caminho ou para outro?
Não é meu interesse aqui argumentar em favor de um lado ou de
outro, até porque, concordo com o que afirmam vários autores (Figueiredo, 1998;
_____________
41
Sabemos que Freud utilizou-se dos dois termos de forma indiscriminada no texto de 1937,
Construções em Análise. Laplanche (1999a) faz uso dos dois termos para diferenciar a concepção
realista (reconstrução) da criativa-hermenêutica (construção).
92
Hanly, 1996, Morris, 1993), de que se trata de uma falsa oposição. Como coloca
Hanly (1996), a partir de Spence (1982), a verdade histórica e a verdade narrativa
são colocadas como excludentes, como se não fosse possível pensar em uma
narrativa histórica (Hanly, 1996; White, 1981). Meu maior interesse é discutir em
que medida o debate trazido pelo “approach narrativo” se aproxima ou não da
proposta principal desta tese. Em outras palavras, ao pensar os processos de
ressignificação como tendo um papel fundamental nos efeitos de uma análise,
estaria me incluindo no grupo de psicanalistas que pensam o percurso de uma
análise como um reescrever da própria história? Em parte esta questão já foi
respondida quando se afirma que não se trata de criar uma história nova, mas de
reposicionar-se diante de um legado. Isto é, esta tese está em desacordo com uma
posição estritamente construtivista que vê a análise como pura criação. Mas há
ainda outros pontos que merecem consideração.
3.4 A questão da coerência
O primeiro deles refere-se ao próprio uso do termo narrativa.
Margaret Fitzpatrick Hanly (1996) chama a atenção para o fato de que seu uso tem
sido feito sem muito critério, de formas variadas e imprecisas e que falar em
“narrativa do paciente”, nem sempre é a melhor metáfora para “associações do
paciente”. Se tomarmos as definições mais clássicas da palavra, estas
invariavelmente incluem uma noção temporal, uma estrutura de início, meio e fim.
42
Ver notas de rodapé números 34 e 44.
93
Segundo Scholes (1981), só é possível narrar algo no tempo, ou seja, o que
narramos são eventos estes, por sua vez, definidos como o que aconteceu. Narrar
significa colocar tais eventos em uma certa seqüência para alguém, colocar em
palavras, simbolizar um evento real (Scholes, 1981).
Se não há dúvidas de que o discurso do analisando está
endereçado a alguém
43
, os assim chamados “eventos” são uma questão complexa
para a psicanálise, como já discutimos nos capítulos anteriores. Mas, mais que
tudo, a linearidade de uma estrutura com início, meio e fim distancia-se em
muito do que se passa no divã, onde o discurso tende a ser fragmentado,
alusivo, desordenado, cheio dos volteios característicos de uma
temporalidade heterogênea. O tipo de narrativa que se tece em uma análise não
se encaixa no que tradicionalmente se define como narrativa e, como salienta
Figueiredo (1998), solicita usos da fala que são essencialmente anti-narrativos.
Assim, mesmo o analista mais convencido dos poderes da narração, precisa abrir
um espaço para o que não se conforma, o que se rebela, o que produz efeitos
disruptivos, para o que, podendo passar desapercebido nas escutas e nas
narrações elaboradas a partir de matrizes teóricas, conserva uma efetividade
estranha às narrativas e que, quando emerge, conserva o poder de desmontá-las”
(Figueiredo, 1998, p.274).
É claro que podemos pensar também em diferentes tipos de
_____________
43
Vale dizer que este é um mérito dos adeptos do “approach narrativo”, o de ter sempre enfatizado a
importância da transferência na construção da história de vida na análise.
94
narrativas. Não há dúvidas de que há escritores que parecem conseguir incluir, na
forma como escrevem, algo disso que Figueiredo (1998) descreve como o que não
se conforma. Vemos também escritos que conseguem brincar com a temporalidade,
invertendo a ordem do tempo, deixando o texto revelar uma complexidade temporal
que não lembra em nada as histórias com início, meio e fim, definidas acima como o
protótipo das narrativas tradicionais. Vai do estilo e do talento do narrador,
encontrar uma maneira de deixar sua produção marcar-se pelo que não pode
ser dito, pelos silêncios, pelo irredutível, pela impossibilidade de dizer toda a
verdade.
No entanto, talvez um dos maiores problemas que encontramos nas
analogias feitas pelo “approach narrativo” entre psicanálise e narração seja
justamente o fato de que a coerência aparece como protagonista nesta
perspectiva. (Hanly, 1996). Para estes autores, a construção de uma história ou
estória
44
mais coerente, mais adequada ou mesmo mais útil para o sujeito em
questão seria responsável pelas mudanças conquistadas através da análise, como
explica Figueiredo (1998):
As transformações subjetivas, as subjetivações, decorreriam deste
processo de tecimento de novas versões de si mesmo, mais coerentes,
mais convincentes, mais contínuas, mais socializadas e last but not least,
mais libertadoras e benéficas para o analisando. (p.273).
_____________
44
O uso do termo estória já é em si uma crítica ao realismo ingênuo que acredita em um resgate da
história real do paciente. Como a posição construtivista é de que tal resgate não é possível, o termo
estória é uma forma de enfatizar a idéia de que o que se diz em análise é uma construção ficcional,
feita em conjunto por analista e analisando. Neste trabalho preferimos o uso do termo história, uma
vez que acreditamos que reconhecer que há ficção na construção de um discurso sobre si mesmo
não implica em negá-lo como histórico, como verdade (a questão da verdade foi debatida no
capítulo II).
95
Será que é mesmo disso que se trata em uma análise? Tomemos
esta definição de Peter Brooks
45
(1994), conhecido autor da crítica literária
psicanalítica e representante do “approach narrativo”, sobre o que estaria em jogo
no trabalho analítico:
Antes de mais nada, o psicanalista está sempre às voltas com as
estórias contadas por seus pacientes, que são pacientes
precisamente pela fraqueza dos discursos narrativos que
apresentam: a incoerência, inconsistência, e a falta de força
explanatória na maneira como contam sua vida. A narrativa oferecida
pelo paciente está cheia de buracos, de lapsos de memória, de
inexplicáveis contradições cronológicas, de lembranças encobridoras
escondendo material reprimido. Sua sintaxe narrativa é falha e sua
retórica não é convincente. Conseqüentemente, o trabalho do
psicanalista precisa ser, em larga medida, o de recomposição do
discurso narrativo para dar uma melhor representação da estória do
paciente, de reordenação de seus eventos, de ressaltar seus temas
dominantes, e do entendimento da força do desejo que fala nela e
por ela (p.47).
Isto quer dizer que ao final da análise não haveria incoerências,
inconsistências, lapsos de memória, lembranças encobridoras? O que quer dizer um discurso
narrativo fraco? Trataria-se, então, de desenvolver habilidades retóricas na análise? E
aqueles que dominam tais habilidades nunca seriam pacientes?
_____________
45
Apesar da crítica levantada aqui, é preciso reconhecer que Brooks, Professor da Universidade de
Yale , tem tido um papel fundamental para pensar a crítica literária psicanalítica de forma menos
reducionista. Práticas como as que tentam aplicar a teoria psicanalítica a um suposto inconsciente do
autor por trás do texto são condenadas por ele, que defende uma crítica textual, na qual a noção de
transferência também precisa ser levada em conta. Para mais sobre este tema ver BROOKS, P.
(1987) The idea of a psychoanalytic literary criticism. In: RIMMON-KENAN, S. et al. Discourses in
psychoanalysis and literature. London: Methuen. Ver também FELMAN, S. (1982) To open up the
question. In: FELMAN, S. (editor) Literature and psychoanalysis: the question of reading: otherwise.
Baltimore: John Hopkins.
96
Brooks (1994) fala como se o ideal analítico fosse o de tornar o
discurso do paciente mais bem acabado, como se no final das contas o mais
importante fosse poder contar uma estória melhor, mais convincente sobre si
próprio. Tudo soa quase como se precisássemos transformar pacientes em
escritores (mesmo que não se trate de, literalmente, escrever) que dominam a
arte de contar uma história sem furos
46
, autobiógrafos que, senhores de suas
próprias técnicas narrativas
47
, sejam capazes de fazer a vida caber com
perfeição em sua impecável descrição. Entre outras coisas, a citação feita acima
demonstra que, embora as aproximações feitas entre psicanálise e literatura
coloquem-se como bastante frutíferas para ambas, as analogias literárias têm
também seus limites. A descrição de Brooks (1994) parece ir justo na contramão do
que seria uma análise.
Não só não nos parece que se trate de tornar o discurso do
paciente mais coerente em uma análise, como poderíamos afirmar que seu
caminho é o inverso disso. Ao iniciar uma análise muitos analisandos chegam com
um script pronto sobre o que os faz sofrer e sobre quem é culpado por seu
padecimento. Boa parte do tempo o trabalho consiste em implicar o sujeito, em
responsabilizá-lo pela sua parte no desenrolar de sua própria vida, enfim, em fazer
buracos em um discurso aparentemente bastante homogêneo. O que antes
46
Como afirmamos acima, há escritores que conseguem em sua escrita, deixar-se permear pelo o
que não pode ser dito. Aqui parece tratar-se do contrário, de um uso da narrativa/análise como uma
técnica que torna a história mais homogênea.
47
Nesta mesma direção ver também FREEMAN, M. (1993) Rewriting the self: history, memory,
narrative. London: Routledge.
97
parecia coerente, convincente, bem acabado, é posto em questão:
Esta é, no entanto, a tarefa radical da psicanálise desde os seus
primórdios: indagar sobre o que nos parece óbvio, desnaturalizar o
que parece natural, expor a complexidade e a contradição do que
apresenta estar solidamente assentado sobre uma verdade
inquestionável. O psicanalista, na vertente da melhor tradição da
modernidade, é um incômodo questionador de verdades
estabelecidas (Kehl, 2001b, p.11).
A busca de um discurso mais coerente, bem como a associação da
neurose a uma fraqueza do discurso narrativo lembra muito mais uma psicanálise
empenhada em fortalecer o ego do que uma psicanálise que busca trabalhar com o
inconsciente. Se tomamos o modelo dos sonhos como uma direção para o trabalho
analítico, uma narrativa coerente equivaleria a nada mais que um efeito da
elaboração secundária, ou seja, um jeito de formatar, acomodar o que é da ordem
do inconsciente de uma maneira que se aproxime mais da lógica consciente, sem
brechas, sem incongruências.
Este esforço de buscar uma lógica mais racional para o que vem do
inconsciente não fica restrito ao trabalho de elaboração secundária feito a partir do
sonho. O neurótico é um verdadeiro especialista em construções narrativas,
tentando, o tempo todo, dar um formato mais lógico à maneira caótica como a
vida a ele se apresenta. Ao ser convocado, durante a análise, a falar de si, há
sempre um movimento, marcado pela relação transferencial, de tentar organizar seu
discurso, de editá-lo, fazê-lo parecer razoável, coerente ou até mesmo, agradável,
dependendo do que está em jogo em termos transferenciais nos diferentes
98
momentos de sua análise. De modo geral, a demanda de amor que existe em toda
a análise invariavelmente influencia o que o analisando diz ou deixa de dizer. Sua
fala é endereçada ao Outro que, durante a análise, é sustentado pela função
analista.
Um adulto jovem chega para sua primeira sessão de análise. Ele
discorre sobre os motivos que o trouxeram, salientando que a principal razão de seu
sofrimento era uma tendência a viver a vida como se fosse ficção. Costuma
romantizar tudo o que acontece com ele e, muitas vezes já não sabe mais o que é
verdade e o que é sua imaginação. Vários amigos já o alertaram quanto a isso e
comentam que ele parece viver no mundo da lua. Acha que chegou a hora de cair
na real, afinal, já não é mais nenhum menino. Antes de buscar a análise, estava tão
ansioso que tentou escrever como uma forma de se aliviar. Combinou consigo
mesmo que jogaria no lixo tudo o que escrevesse, para que sua escrita fosse o
mais livre possível e assim atingisse o objetivo de desabafar completamente. Mas
algo estranho acontecia. Surpreendeu-lhe a constatação de que, embora não
escrevesse para ninguém, e mesmo estando ele em um estado de sofrimento muito
intenso, ainda assim pegava-se preocupado com o estilo. Também percebe agora
enquanto fala, que o mesmo se passava ali, na sessão. Se procurou uma analista
para poder falar sobre tudo, por que estaria tão preocupado em soar bem?
Se o analisando fala referido ao Outro, tentando decifrar seu
enigma, para o analista é importante considerar o lugar que o analisando o coloca
na transferência, de onde ele fala como vimos no capítulo II privilegiando a
enunciação sobre o enunciado. Sua escuta está afinada para captar as falhas, as
99
hesitações, os silêncios, os não-ditos, para captar o que está além e aquém do que
foi intenção dizer, para o que está além e aquém do que faz sentido. Isso, como já
afirmamos, não é o mesmo que escutar o que está “por trás” da fala do analisando.
O que o analista busca está na própria fala, ele não é um tradutor de significados
que escapam ao analisando, mas alguém que aponta para outros sentidos
possíveis, para a polifonia do que foi dito. Assim, por mais que um analisando se
esforce em ter um discurso coerente, por mais que tente ordenar a vida em
uma narrativa que lhe ponha sentido, a linguagem o trai. Ele se “esquece”, se
“engana”, se “equivoca”, diz o que não quer (“não foi isso que eu quis
dizer…”), revelando, na própria linguagem, o que lhe é estrangeiro, aquilo
sobre o que nada sabe.
3.5 Quem escuta o enredo se enreda
“Quem escuta o enredo se enreda”, dizia uma professora da
graduação. Esta frase, que soava bastante enigmática para mim na época, parece
muito pertinente agora. Ela remete ao alerta colocado por Lacan quanto aos riscos
de compreender demais, a sua escuta do significante, bem como à importância da
regra técnica fundamental freudiana, a associação livre, e da sua equivalente do
lado do analista, a atenção flutuante. Em outros termos talvez pudéssemos dizer
que, quem muito se preocupa em compreender a seqüência do que é falado, em
dar conta dos detalhes factuais das histórias que o analisando relata, acaba por se
perder do que realmente importa, que não se coloca no conteúdo dos eventos, pois
100
situa-se para além do enredo.
Quando Lacan propõe a primazia do significante sobre o significado
ele sugere um caminho possível de acesso ao inconsciente. Teríamos aí uma
estratégia técnica que aponta uma direção possível para a escuta, direção essa que
ameniza os riscos de que a intervenção do analista parta de seu imaginário, os
riscos de compreender demais. Ao propor a intervenção como pontuação do
discurso do analisando, Lacan foge das interpretações explicativas e totalizantes,
aproximando-se do funcionamento do inconsciente. Como coloca Dor (1990):
A intervenção analítica tem, assim, o status de uma operação de
linguagem que se produz sob a forma de um corte significante na
ordem do dito, para liberar a ‘linguagem primeira’ do desejo
inconsciente que se articula no dizer. (p. 120)
Seria uma forma eficaz de não ficar enredado no enredo? Nos
termos do que foi debatido no capítulo anterior, evitar enredar-se no enredo
equivaleria a poder priorizar o dizer e não o dito, a enunciação e não o enunciado.
Isto não quer dizer que as histórias cotidianas que o paciente
traz não sejam importantes. A meu ver, é necessário que o analista as
acompanhe até mesmo para que a escuta do significante seja possível.
Pessoalmente não acredito em uma clínica que trabalhe com o “significante puro” e
atribuo a esta posição radical muito da aridez encontrada em algumas práticas
lacanianas nas quais o analista se restringe a pontuar o discurso ou a separar
101
palavras. Além de uma escuta afinada para a polifonia do significante, há muitas
outras coisas a serem levadas em conta em uma análise. As histórias relacionadas
ao mito individual do analisando, as lendas familiares, as ficções consumidas ao
longo da vida (livros, filmes, etc), entre outras coisas, fazem parte dos processos
constitutivos e identificatórios de um sujeito e, como tais, são de grande valia para o
trabalho analítico, não podendo ser ignorados.
Lembro, por exemplo, de um paciente de 30 anos que quando se
sentia um pouco triste ou introspectivo, costumava assistir de novo um mesmo
desenho animado, do qual tinha em casa uma cópia em DVD. Peço que me conte
sobre o desenho e fico impressionada com a quantidade de coincidências
simbólicas entre a trama da animação e sua própria vida. Quando aponto algumas
destas coincidências para ele, sua reação é de surpresa, nunca havia pensado em
nada disso! É interessante como uma narrativa ficcional pode dizer algo para um
sujeito, ter uma função para ele, mesmo sem que isso passe necessariamente por
uma compreensão consciente. Neste caso especificamente, o enredo do filme de
animação entrou como um elemento importante para o processo analítico e
voltamos a ele em diversos momentos ao longo deste percurso, o que, diga-se de
passagem, não impediu (pelo contrário) que se trabalhasse com a escuta do
significante. Isso não invalida o alerta quanto a “enredar-se no enredo”, este risco,
acredito, existe de fato, mas ele não justifica que as histórias, as narrativas trazidas
para a análise, devam ser desconsideradas em nome de uma pureza técnica que
implicaria em escutar “apenas” o significante.
Talvez valha ainda dizer que, ao longo desta tese, a referência à
102
expressão história de vida não é feita tendo em mente aquelas histórias que são
“colhidas” em uma anamnese. Embora se interesse por tudo o que o analisando
venha a dizer-lhe, o analista que recebe um novo paciente não tem um roteiro de
perguntas a serem feitas, não pretende completar uma ficha com dados pessoais e
momentos significativos da vida de seu paciente. Isto o faria perder o que se coloca
como o mais rico do momento inicial: por onde vai começar o analisando? De que
coisas escolherá falar? O que ficará de fora? O que ficará para depois? O que
supõe que o analista quer ouvir? Como dará continuidade ao processo nas sessões
seguintes? Que coisas ditas na sessão serão uma surpresa para ele mesmo? Ter
um roteiro pronto significaria perder tudo isso. Mais do que obter informações
sobre o analisando, interessa para uma análise a forma como se estabelece e se
desenrola a relação transferencial. A história é do sujeito, mas é
contada/construída/recosntruída/descontruída/narrada/resgatada/ressignificada na
transferência.
Paula sempre quis fazer análise, mas este foi um projeto sempre
adiado. A gota d’água, o que tornou a busca agora mais urgente, foi um
relacionamento amoroso recente que descreve como destrutivo. Foi preciso
vivenciá-lo para que caísse a ficha em relação ao fato de que seus relacionamentos
nunca foram legais. Outra queixa refere-se a dificuldades em administrar seu
dinheiro. Gasta demais. Sempre mais do que tem.
Agora que se aproxima dos 30 anos, fica pensando que não tem
nada, que sempre gastou todo o seu dinheiro. Seus irmãos já compraram carro,
fazem planos de sair de casa em breve. Ela continua lá, sem perspectiva. Perdeu a
103
credibilidade com a família de tanto pedir dinheiro emprestado para saldar suas
dívidas. Mas não é a única a lidar mal com dinheiro. Depois que os pais se
separaram, dividiram o que tinham. O pai comprou um apartamento e foi morar
sozinho. A mãe alugou um e acabou perdendo o dinheiro, Paula não sabe dizer
exatamente como. A mãe e os três filhos foram morar “de favor” na casa de uma tia,
num bairro do qual Paula se envergonha.
Ricardo, o último namorado, estava envolvido com drogas. Ele
ficava diferente, estúpido, quando sob o efeito delas. Tinha um temperamento
explosivo. Paula não entende como pôde estar tão atraída por ele. Fazia tudo por
ele e sempre lhe comprava bons presentes. Aliás, comprar bons presentes para
seus namorados é algo que sempre fez, invariavelmente gastando muito mais do
que poderia. Associa isso com o medo de perder.
Como se quanto mais caro fosse o presente, maiores as
garantias…, digo.
É, mas não há garantias, por que, então, preciso sempre agradar?
Quando romperam, Ricardo ficou lhe devendo dinheiro. Eles
queriam ir à praia, mas os pneus do carro dele estavam carecas. Ela ofereceu o
dinheiro para fazer a troca. Demorou a entender que ele se aproveitava de sua
generosidade, embora isso parecesse óbvio para todos os que estavam ao seu
redor.
Fala sobre estar sempre cercada de amigos, amigos que beijam.
104
Embora nenhum deles a interesse de verdade, também não os descarta, ficam de
stand-by, como steps.
Paga-se um preço por estes pneus extras, digo, e corre-se o
risco de pagar por pneus furados.
Relata um sonho: Ricardo entrava no elevador da empresa, todo
estourado (me ocorre de novo a referência ao pneu furado, mas me calo) e diz que
só quer dar-lhe um abraço. Uma amiga que presencia a cena comenta: “Puxa, você
realmente vê espíritos!” Paula responde à amiga dizendo que o que ela dizia era
uma bobagem, pois todos estavam vendo que ele estava vivo. Mas a amiga insiste
em afirmar que ele está morto, que só apareceu como espírito para se despedir.
Em suas associações sobre o sonho, fala do medo de que espíritos
venham atormentá-la em sua casa.
Não deixa de ser como um espírito, digo, que invade sua casa,
seus sonhos, seus pensamentos, sem o seu controle. Vivo ou morto, Ricardo
continua rondando.
Mais ou menos na mesma época em que iniciou a análise começou
a freqüentar um centro espírita, em ambos os espaços diz estar buscando
respostas. Costuma ir ao centro com seu pai, que foi quem a introduziu ao
espiritismo. Quando da separação dos pais, a família toda se afastou do pai. Paula
105
é a única filha que ainda se relaciona com ele. Os irmãos dizem que ela se ilude,
espera sempre coisas que ele promete e não cumpre. Na época do vestibular, por
exemplo, a ajuda que esperava e que não veio significou ter que escolher a
faculdade de acordo com suas possibilidades financeiras, o que até hoje atrapalha
sua busca de um emprego melhor. Queria fazer uma pós-graduação numa
universidade de primeira linha e o pai vive prometendo ajudá-la. Toda vez que
preciso dele, ele fura comigo.
Mais um pneu furado? Indago.
Um breve silêncio se faz até que, por fim, ela diz: Talvez não
devesse mais esperar pela ajuda dele. Eu acabo sempre no papel de vítima.
Encerro a sessão.
Há aí um enredo que se conta, uma narrativa que se tece, um
enunciado que se faz ouvir. E também alguns significantes que chamam a atenção
justamente por sua repetição (explosivo, pneus, steps, furado, estourado, fura). Um
destes significantes - furado - é introduzido pela própria analista em sua
intervenção e é interessante notar como ele aparece mais tarde no discurso da
paciente. Por isso diz-se que a narrativa que é construída na análise acontece na
transferência, o que indica que ela já não pode ser situada como algo exclusivo do
paciente ou do analista. Como coloca Leguil (1993), uma vez instaurada a
transferência, tudo o que o paciente diz não apenas é endereçado ao analista,
como este torna-se parte da história do paciente (daí a freqüência, por exemplo,
com que os pacientes sonham com seus analistas). Isso explicaria, segundo Leguil
(1993), a afirmação lacaniana de que o analista faz parte do conceito de
inconsciente.
106
Vale ressaltar que conceber a história do sujeito como algo que é
construído/desconstruído na transferência não é o mesmo que dizer que é o
analista o responsável por construir/reconstruir as “partes que faltam” na história de
um sujeito. Esta é, acredito, uma leitura do texto freudiano de 1937, Construções
em Análise, que leva a uma prática equivocada da psicanálise
48
, uma vez que ela
pressupõe que o analista tem de fato um saber sobre o inconsciente de seu
analisando, que lhe permitiria fazer um jogo no estilo “fill in the gaps”
49
. Entre outras
coisas, tal concepção pressupõe a idéia de que a história do sujeito está lá pronta
para ser descoberta, remontada, a partir do habilidoso trabalho de “detetive”
encarnado pelo analista.
Poder demarcar a repetição que se mostra por esses significantes é
uma possibilidade de intervenção (certamente não a única possível ao longo de
uma análise) que pretende privilegiar a enunciação sobre o enunciado, o
significante sobre o significado. Produzir sentido não é, pelo menos não
diretamente, o objetivo primeiro deste tipo de intervenção, o que não quer dizer que
algum tipo de sentido não venha a ser construído a partir dali.
Quando fala-se em ressignificação, fala-se certamente na produção
de novos sentidos. No entanto, a insistência, ao longo desta tese, em demarcar a
_____________
48
Não que o texto freudiano não permita mesmo esta leitura, como indica a definição de construção
proposta por Freud (1937): “Trata-se de ‘construção’, quando se põe perante o sujeito da análise
um fragmento de sua história primitiva, que ele esqueceu (...). (p. 295).
49
Preencha as lacunas.
107
importância do não-sentido, dos riscos de compreender demais, da
heterogeneidade do tempo implicado na construção narrativa sobre o si mesmo
decorre de uma preocupação em situar os processos de ressignificação como algo
em constante movimento e os sentidos ali produzidos como tendo um caráter
provisório e jamais totalizante.
Quando um paciente reclama que sabe o que faz “errado”, mas não
consegue agir de outra forma, ele aponta para o fato de que conscientizar-se de sua
problemática não implica em conseguir revertê-la. A compreensão não é
necessariamente seguida por uma mudança. Quando compreendemos algo,
apenas acomodamos aquilo às categorias de sentido que já conhecíamos.
De acordo com Lacan, algo faz sentido quando se encaixa na cadeia
preexistente. Este algo pode ser acrescentado à cadeia sem alterá-la
fundamentalmente ou pôr em risco a boa ordem ou harmonia.
Por outro lado, a metáfora induz a uma nova configuração de
pensamentos, estabelecendo uma nova combinação ou permuta,
uma nova ordem na cadeia significante, um teste da ordem antiga.
As conexões entre os significantes são mudadas em definitivo. Esse
tipo de modificação não pode ocorrer sem comprometer o sujeito.
(Fink, 1998, p.95).
Nesta perspectiva, não basta que novos sentidos se produzam, mas
é preciso que haja uma reestruturação da ordem significante, isto é, que algo do
real tenha acesso ao simbólico. Entendo que os processos de ressignificação são
efetivos justamente por não ficarem restritos a um exercício meramente intelectual
de encontrar novos sentidos, mas por mobilizarem um sujeito em sua estrutura,
108
modificando seu lugar subjetivo.
Se a análise tem como proposta tentar nomear o que não pôde
ser nomeado, simbolizar o que não foi simbolizado, trazer para a via da
palavra o que está lá de outra forma, ela precisa também reconhecer os
restos, aquilo que insiste em não se inscrever e que, por isso mesmo, se faz
presente o tempo todo. Como coloca Figueiredo
50
, a psicanálise trabalha na
vizinhança do irredutível, no limite do analisável. Citando Pontalis, Figueiredo falará
da importância de não transformar o desconhecido em conhecido, mas de procurar
o desconhecido por si mesmo e viver em sua vizinhança.
Isso implica em que, por maior que seja seu esforço, por mais
importante que seja para um sujeito poder compartilhar algo de sua experiência
tentando emprestar a ela palavras, algo sempre lhe escapa. Uma parte de sua
vivência não cabe em sua tentativa de contá-la como uma história. Por isso, seu
discurso na análise coloca-se como frágil e multiforme. “O relato”, dirá Rudelic-
Fernandez (1993), “sustenta-se na análise, ao longo de um limite de ‘dito-não-dito’
que desenha, às vezes em meio a uma profusão de palavras, os contornos de um
abismo de silêncio” (p. 722).
Assim, não é na direção de construir uma narrativa mais coerente
sobre si mesmo que esta tese propõe pensar os efeitos da ressignificação da
_____________
50
Aula do curso de pós-graduação em psicologia clínica.
109
história de vida no percurso de uma análise, o que a situa em um caminho
marcadamente distinto daquele indicado pelo “approach narrativo”. Tal movimento,
ao propor que a análise possibilitaria o alcance de uma história de vida mais
homogênea, parece colocar-se diante do mesmo tipo de problemática que
definimos no capítulo I como metafísica da presença. A ilusão posta em jogo,
salienta Figueiredo (1998), é a de tomar a experiência como presentidade:
(…) a narração, amarrando memória e expectativa à visão, tecendo
tramas que se estendem sem se romper, estaria dando ao presente
fugaz uma nova força, um novo alento, uma continuidade, uma
durabilidade e uma extensão que só ficam a dever ao presente
eterno de Deus” (Figueiredo, 1998, p.277).
Se o tempo da psicanálise não é linear, como fazer caber nele uma
história com início, meio e fim? A narrativa que se tece em uma análise é muito
particular e em nada lembra a coerência de histórias bem acabadas, sem furos ou
incongruências. Muito pelo contrário, a história que se tece em uma análise
resulta do ir e vir de um tempo heterogêneo que transforma o sujeito,
tornando sua apreensão em um “puro presente” uma tarefa impossível. Trata-
se de uma história sempre em construção/desconstrução, sempre passível de
ser ressignificada a posteriori e que, como tal, está também sempre
inacabada, incompleta, imperfeita.
110
4 O PERCURSO DA ANÁLISE E SEUS EFEITOS
Uma escadinha em espiral, um patamar, dois
capachos, duas portas negras. Tocava a
campainha da direita: era ali. Lacan. Ali
também, durante dez anos eu jogara minha
vida. Ali onde fizera a mais longa de minhas
viagens. Ali onde jurara a mim mesmo, cedo
ou tarde, testemunhar. O tempo passara, eu
não cumprira a promessa. (…) Não me
faltaram pretextos para adiar. O principal era
uma pergunta que eu fingia achar insolúvel:
como escrever? A resposta era, contudo,
evidente: como estou escrevendo”. (Pierre
Rey, em “Uma temporada com Lacan”, p.21)
4.1 De que narrativa se trata, afinal?
No decorrer desta tese trabalhou-se com a idéia de que a noção
freudiana de Nachträglichkeit permite pensar em uma dinâmica temporal que
favorece às ressignificações e que tais processos têm um papel fundamental no
percurso de uma análise. Vimos como, ao longo da vida e, de forma ainda mais
intensa, ao longo de uma análise, uma reordenação constante das narrativas que
um sujeito constrói a respeito de si mesmo vão se dando. No capítulo anterior
destacou-se que isso não quer dizer que a análise sirva para se chegar a uma
versão mais adequada de si mesmo e fez-se uma crítica àqueles que pensam seu
percurso como a construção de uma narrativa mais coerente para a própria vida. Na
outra ponta, também criticou-se uma clínica do puro significante, que veria toda a
111
construção narrativa a respeito de si mesmo como um efeito ilusório do campo do
imaginário.
Será que seria possível pensar em um caminho do meio, isto é,
uma clínica que habite algum lugar entre estes dois extremos, ou seja, que trabalhe
com a escuta do significante sem perder de vista a importância das narrativas para
a constituição do sujeito, mas também sem cair em uma prática que alimente a
tendência neurótica de tentar fazer a vida caber na estrutura fechada e arredondada
de um romance, no qual tudo parece fazer sentido?
É claro que a narrativa, mesmo a narrativa de um romance, não
precisa ser reduzida a uma narrativa da coerência. Como já foi dito no capítulo
anterior, a própria literatura não vive só de narrativas lineares e, de fato, o valor
literário de uma obra muitas vezes está justamente na habilidade que o narrador
tem de incluir no texto o que não pode ser dito diretamente, as temporalidades
dissonantes, as meias palavras, os efeitos do impossível de dizer. Se não é uma
narrativa da coerência que se produz em uma análise, que tipo de narrativa se
constrói ali? Talvez tenhamos que pensar a clínica psicanalítica, o percurso de uma
análise e seus efeitos como um processo em que, tal como nas boas produções
literárias, há uma construção narrativa do si mesmo que leva em conta os furos e
tudo que não se dá totalmente a contar. Afinal, em que e de que modo o
percurso de uma análise faz diferença na maneira como um sujeito se coloca
diante da vida e na forma como se conta nela?
112
4.2 Do Romance ao conto
Eric Laurent (1992), ao descrever o que lembra da época em que foi
pedir análise a Lacan, afirma que este teria lhe dito algo mais ou menos assim:
Todos acabam sempre se tornando um personagem do romance que
é a sua própria vida, para isso não é necessário fazer uma
psicanálise. O que esta realiza é comparável à relação entre o conto
e o romance. A contração do tempo, que o conto possibilita, produz
efeitos de estilo. A psicanálise lhe possibilitará perceber efeitos de
estilo que poderão ser úteis a você. (Laurent, 1992, p. 36).
Eric Laurent (1992) evoca esta fala de Lacan principalmente para
referir-se a sua prática das sessões curtas, que na época em que iniciou sua
análise, 1967, ainda não eram, segundo ele, tão curtas quanto se tornariam dez
anos depois. De qualquer modo, este autor justifica a conhecida e polêmica técnica
lacaniana como uma exigência científica da psicanálise, uma prática compatível à
evolução da teoria psicanalítica. Nesta linha, ele relaciona a estrutura do romance à
prática freudiana, e a estrutura do conto, às inovações propostas por Lacan. Se o
inconsciente freudiano caminharia pari passu com o romance goethiano, a prática
de Lacan seria “contemporânea de uma estrutura narrativa transformada pela
escrita moderna, na qual o romance é subvertido pelas contrações do tempo, do
espaço, dos personagens, do dentro e do fora”. (Laurent, 1992, p.37). As sessões
contraídas ou compactas são associadas ao efeito de estilo do conto, no qual vários
anos podem ser atravessados em uma única frase.
113
Em artigo intitulado “Minha vida daria um romance”, Maria Rita Kehl
(2001a) toma como ponto de partida este mesmo relato de Eric Laurent e, entre
inúmeros outros pontos, desenvolve a relação proposta por Lacan entre a neurose e
o romance e a vinculação que ele faz entre o percurso da análise e a estrutura do
conto. Para Kehl (2001a) a associação entre neurose e romance não se restringiria
apenas à insistência com que o neurótico recria sua “novela familiar”:
A frase de Lacan me faz pensar em alguma coisa mais parecida com
a urgência com que respondemos quase diariamente ao imperativo
que Michel Foucault chamou de “discursificação da vida cotidiana”,
imperativo de tudo dizer ao Outro, a algum Outro suposto capaz de
colocar ordem na fragmentação e na dispersão das identificações
que compõem o frágil revestimento imaginário do “eu” na
modernidade. (Kehl, 2001a, p. 61).
Assim, o romance representaria um estilo literário mais
comprometido com uma estrutura temporal organizadora, dotada de início,
meio e fim. Tal estrutura é articulada por uma lógica que de alguma forma mantém
a ilusão de que a existência é a construção de um destino e de que há um sentido a
ser revelado no capítulo final. Na passagem do romance ao conto, sugerida por
Lacan como o percurso de uma análise, uma operação estética se daria, que
permitiria ao sujeito desprender-se da necessidade neurótica de tudo explicar, de
tudo saber, de tudo dizer sobre si. O sujeito, a partir da simbolização da
castração que se daria na análise, poderia, enfim, “criar uma ficção mais
imprecisa, cheia de elipses, que suporte os enigmas em vez de tentar
esclarecê-los todos”. (Kehl, 2001a, p. 89).
114
Kehl (2001a) falará da inserção da estrutura do romance na cultura
ocidental moderna que, de tão importante, acaba por se tornar a principal
formatação através da qual representamos nossas histórias de vida. Ao situarmo-
nos como protagonistas de nosso próprio romance, tecemos uma trama que tem o
papel, entre outras coisas, de colocar alguma ordem na maneira caótica como a
vida se apresenta a nós.
Se a tendência do neurótico é a de contar sua história como se
fosse um romance, Lacan vê na análise a possibilidade de desconstruir o excesso
de sentido do qual aquele padece, advertindo o analista sobre os perigos de
compreender demais, ou seja, sobre o risco de que a análise possa funcionar como
mais um artifício de injeção de sentido em vez de provocar ruptura. A escuta do
significante colocaria-se como estratégia técnica alternativa às interpretações
totalizantes, explicativas, evitando que a psicanálise sirva ao neurótico como
mais um saber a ser utilizado e apreendido na fabulação que constrói sobre si
mesmo
51
.
Como vimos no capítulo anterior, o que muitas vezes ocorre é que
_____________
51
Lembro, por exemplo, do relato de um amigo que com grande entusiasmo me contou sobre a
“descoberta” que seu analista fez a respeito da origem de sua obesidade. É que sua mãe, por
preguiça de pegá-lo no colo durante a madrugada, dava-lhe a mamadeira sem tirá-lo do berço. Este
“erro” da mãe, segundo o analista, teria gerado uma dissociação entre o alimento e o afeto. Tal
dissociação teria levado à obesidade de meu amigo, que buscaria nos exageros à mesa, o afeto
que não teve da mãe. Por mais absurda que seja esta história, não é incomum escutarmos
exemplos parecidos com este, que revelam uma prática de injeção de sentido a qual o neurótico,
sedento de explicações, facilmente adere. Esta questão foi trabalhada no capítulo II, onde
afirmamos que a injeção de sentido termina por reforçar o sintoma neurótico.
115
esta estratégia técnica desemboca em práticas caricaturais, que chamamos de
“escuta do significante puro”, como se o trabalho do analista se resumisse a
um trabalho lingüístico, de pontuação do discurso, de separação de palavras,
no qual o imaginário é visto como um câncer a ser extirpado. O que se perde
de vista é justamente a importância deste imaginário, sem o qual um eu não pode
sequer enunciar-se. Como coloca Kehl (2001a), “o homem cava seu túnel narrativo
por entre o caos dos significantes que remetem somente uns aos outros, tentando
deter-se no tempo, o que é o mesmo que dizer: tentando ‘ser’” ( p. 64).
Se é de extrema relevância para a psicanálise a marcação feita por
Lacan no sentido de apontar para os perigos das análises que se mantém no eixo
imaginário da transferência algo que não faz mais que alimentar uma relação
especular, de eu a eu é necessário que tenhamos em mente as formulações
deste mesmo Lacan com respeito à indissociabilidade dos três registros, simbólico,
real e imaginário. Por mais que atingir o simbólico seja uma meta da análise, o
imaginário não é algo que possa ser dispensado por um sujeito, ele é um elo
inseparável dos demais registros e um lugar primordial de sustentação para
um sujeito, lugar onde um encontro com o outro se faz possível, mesmo que
de forma ilusória.
É preciso ter cuidado para não jogar o bebê fora junto com a
água do banho. Se a análise muitas vezes tem o papel de desfazer sentidos
prontos que vinham sendo carregados há anos pelo sujeito, isto é, se ela tem
o papel, pelo menos na neurose, de desconstruir tal script, isso não quer dizer
que as redes narrativas que o sujeito tece sobre si mesmo não sejam de
116
primordial importância para ele, não significa que uma boa dose de romance
não seja necessária para sustentar-se no mundo e para poder minimamente
compartilhar algo com o outro. Isso se torna especialmente importante para o
sujeito moderno que, desgarrado dos sentidos prêt-à-porter oferecidos pelas
crenças divinas ou pelos papéis sociais previamente estabelecidos pelas
sociedades tradicionais, precisa inventar sozinho o enredo de sua própria
vida.
A fabulação dá consistência imaginária ao ‘eu’, este ‘eu’ que é tudo
de que o sujeito dispõe para estar com o outro e para existir no
tempo, uma vez que, desde o inconsciente, não é com o outro que se
está: o sujeito do inconsciente existe no Outro e na atemporalidade
(Kehl, 2001a, p.63).
4.3 O enigma sobre a origem e a ficção
Para Freud (1909[1908]), o neurótico possui “uma atividade
imaginativa estranhamente acentuada” (p.244) que o leva a ser o incansável autor
de seu próprio romance familiar, no qual fantasias como a de ser filho adotivo, ou a
de substituir os pais reais por pessoas de melhor linhagem, são freqüentemente
encontradas. O neurótico tem na fantasia a saída para “corrigir” sua “realidade
insatisfatória”, tornando-a mais adequada a seu próprio desejo. Já adulto, substitui o
brincar pelo devaneio, sem deixar nunca de ser um “sonhador em plena luz do dia”.
(Freud, 1908[1907]). Como coloca Costa (1998) em relação ao pensamento
117
freudiano, “fantasia e desejo vão produzir uma nova versão da realidade. Os atos
não precisam ser realizados para que se cumpra o desejo e desejar passa a ser a
verdade que substitui a realidade” (p.61). O que acontece é que há uma
“interpenetração entre ficção e realidade, de tal forma que o que for real somente se
registra como ficcional e a ficção constitui uma verdade”
52
(p.61).
Para tentar dar conta da questão sobre sua origem, o sujeito
freudiano torna-se o autor criativo de suas próprias teorias. Diante do enigma
expresso pela pergunta “de onde vêm os bebês?”, a criança se coloca como
investigadora incansável desta problemática que colocará em curso “todo o seu
trabalho intelectual posterior” (Freud, 1908, p.222) determinando sua pulsão de
saber (Freud, 1905)
53
. A partir do enigma sobre a origem e em um esforço para
tentar simbolizar a diferença entre os sexos, a criança cria o que Freud (1908)
chamou de teorias sexuais infantis, que embora possam ser compiladas em teorias
típicas, guardam também a marca da singularidade, expressando-se das mais
diversas formas, de acordo com a história de cada criança
54
. O conhecimento de
tais teorias, dirá Freud (1908), é de grande interesse para a elucidação de mitos e
contos de fada, bem como para a compreensão da própria neurose, já que nela as
teorias sexuais infantis continuariam atuando, exercendo uma influência decisiva na
forma que assumem os sintomas.
Se Freud (1908) atribui parte deste movimento típico da infância ao
_____________
52
Lacan dizia que a verdade tem uma estrutura de ficção, frase que aparece em vários textos dos
Escritos. Ver também WAJNBERG, D. (1994) “A verdade tem estrutura de ficção”. In:
CESAROTTO, O. (org.) (1995) Idéias de Lacan. São Paulo: Iluminuras.
53
Uma nota do editor esclarece que esta parte foi acrescentada ao texto em 1915.
54
Lembro, por exemplo, de uma criança adotada que, depois da explicação de sua mãe adotiva de que ela
não havia saído da barriga dela, construiu a teoria de que havia nascido da barriga da cachorra.
118
fato de que as crianças não se satisfazem com as histórias enganosas que lhes
contam os adultos como, por exemplo, o mito da cegonha - podemos dizer que
toda a informação científica a qual as crianças hoje têm acesso cada vez mais
cedo, não impede que elas continuem construindo teorias. Como coloca Maria Rita
Kehl (2006), “nossas crianças continuam interessadas em seu próprio universo de
mistérios, que sobrevive a aparente transparência da era das comunicações, com
seu imperativo de tudo mostrar, tudo dizer, tudo exibir” (p.17). Prova de que o
inconsciente não foi reduzido ao discurso científico, que propõe “trazer toda a
riqueza subjetiva para uma zona de plena visibilidade”(p.17).
Mas se Freud fala da criança curiosa e investigadora da pulsão do
saber, também aborda a tendência neurótica de não querer saber:
O modo pelo qual as crianças reagem à informação recebida
também é significativo. Em algumas a repressão sexual está tão
adiantada que elas não dão ouvidos a nada; essas crianças
conseguem permanecer ignorantes mesmo na vida adulta
aparentemente ignorantes, pelo menos. (Freud, 1908, p.228).
A criança interrompe sua investigação, por exemplo, diante da
evidência da castração materna, da qual nada quer saber. Outro exemplo trazido
por Freud (1908) é o das crianças que até admitem que outras pessoas possam
manter relações sexuais, mas os seus pais não.
A relação sexual dos pais da qual a
criança é fruto, fica para ela no campo do irrepresentável e, portanto, sua origem não
pode ser outra coisa que uma construção mítica. Aí situa-se, aliás, todo o debate
freudiano sobre a cena primária reconstruída na análise do Homem dos Lobos.
119
Para Lacan (1972/73), três grandes paixões acometem o homem: o
amor, o ódio e a paixão pela ignorância. O neurótico é aquele que nada quer saber.
A própria noção de recalque em Freud fundamental para se pensar a neurose -
anuncia esta paixão pela ignorância que influencia a maneira como o sujeito da
psicanálise tenta dar conta da questão da origem, ou seja, criando mitos,
fabulações, romances, enfim, ficções, que são a matéria prima para a construção de
sua própria história.
Na clínica, dirá Costa (1998), são as ficções que dão vestimenta ao
Outro, que se apresenta ali não apenas em sua face de linguagem, mas adquirindo
a consistência de uma presença, de um corpo. Assim, as teorias sexuais infantis
nada mais seriam que uma tentativa de criar “um corpo de ficção no lugar da
relação mãe-criança” (p.62). É desta maneira que a criança tentará interpretar o
real. A autora ressalta que este movimento não é exclusivo da criança, ou seja, não
acontece apenas como resultado de seu “desconhecimento” da relação sexual, mas
é compartilhado pela mãe, pois esta precisa tomar o corpo do filho como se fosse
seu.
O corpo ficcional enunciado do lado da criança é produto da relação
de engano mútuo mãe-criança. Orienta-se na única forma de tornar
uma relação possível: tomando o imaginário uma ficção pelo real”
(Costa, 1998, p.63).
120
4.4 A constituição do sujeito e o fantasma fundamental
É a partir do desejo de um Outro e determinado pelos significantes
primordiais que lhe são ofertados, bem como pela montagem de um fantasma
55
fundamental, que um sujeito pode vir a se constituir. É justamente o fato de que
um indivíduo está alienado no desejo do Outro e assujeitado pela linguagem,
o que possibilita a ele advir enquanto sujeito. É a partir daí que ele pode vir a
construir um lugar singular para si próprio na cadeia de significantes que o
antecede e no desejo que o antecipa, tornando-se ele próprio desejante.
Um sujeito é, em parte, o resultado da castração da mãe, ele é a
evidência de que sua mãe deseja e, portanto, de que algo lhe falta. Ou seja, um
sujeito só existe porque o Outro é castrado. Mas, como vimos antes, é justamente
deste real que ele se esquiva, por lhe ser insuportável. Supor um Outro sem furos é
uma ilusão que o neurótico tenta sustentar a qualquer custo e é, aliás, o que o fará
supor um saber ao analista na relação transferencial, como vimos no capítulo II. O
fantasma, composto por elementos simbólicos e imaginários, serve justamente para
recobrir o real, por isso dizemos que ele tem uma função defensiva, protege o
sujeito da angústia frente ao que não pode representar, angústia frente À Mãe
_____________
55
Há alguma confusão em torno do termo fantasma, a começar pelo fato de que ele é
empregado como sinônimo de fantasia. Preferimos adotar o termo fantasma à fantasia, justamente
para marcar a diferença de que não estamos nos referindo a qualquer fantasia, mas ao que Lacan
chamou de fantasma fundamental, sempre usado no singular, aquele cuja travessia coloca-se como
principal percurso de uma análise. Contudo, sabemos que mesmo dentro da literatura psicanalítica
francesa, os dois termos são usados como sinônimos, dependendo da escolha do tradutor, assim que
é também bastante comum encontrarmos este conceito referido como fantasia fundamental.
121
devoradora cujo desejo permanece para ele como enigma que tenta
incansavelmente decifrar. Que quer o Outro de mim (Che vuoi?)?
O fantasma é construído justamente para tentar responder ao
desejo do Outro. Como coloca Leguil (1993):
O fantasma inconsciente, construído na história do sujeito, responde
a tudo que para ele é enigmático. É o modo inconsciente pelo qual
respondeu a tudo o que o angustiava, na sua história, a tudo o que o
angustiava como vindo do Outro. É um gozo que é fantasmado para
preencher o Outro: a idéia que ele faz do que conviria ao Outro, tal
como suas teorias sexuais infantis o sujeito nada sabe do desejo
dos seus pais e lhe é, portanto, necessário, construir teorias. (p. 48).
Lembro de um caso em que um adolescente extremamente dotado
musicalmente, cujo talento revelou-se muito cedo e foi bastante incentivado pelos
pais, no momento do vestibular, para a surpresa de todos, inscreveu-se para o
curso de administração de empresas. Os pais, ambos empresários, perplexos
diante da escolha do filho, resolvem sentar para conversar com ele sobre o assunto,
questionando sua escolha. Este, por sua vez, demonstra também sua surpresa
diante da revelação dos pais de que sempre lhes parecera óbvio que o filho optaria
pelo curso de música. O filho então fala de sua certeza de que o desejo dos pais
era de que ele desse continuidade aos negócios da família.
Há nuances neste episódio que não pretendemos explorar aqui,
mas este pequeno fragmento já é suficiente para pensarmos um pouco mais sobre
122
o delicado terreno onde se articula o desejo. Seu fantasma, bem como os
significantes primordiais que lhe são ofertados - a amarração ao desejo do Outro
da qual parte - constituem as balizas a partir das quais um sujeito precisa trabalhar
para encontrar um lugar possível para si próprio. Porque não é autônomo, porque
carrega sempre o enigma do desejo do Outro que tenta decifrar, a questão
sobre qual é o seu desejo mobiliza o sujeito ao longo da vida e mais ainda
durante uma análise, lugar onde esta pergunta é constantemente reposta.
Ao longo do caminho, dependendo da posição que ocupa diante do
Outro, um sujeito expõem-se a equívocos, engodos, oferece seu corpo em
sacrifício, sofre, goza, faz sintomas, arma arapucas para si mesmo. É através da
transferência que uma análise poderá acessar e intervir nesta relação do sujeito
com o Outro, abrindo caminho para que ele possa vir a ocupar novas posições
subjetivas. Se por um lado são justamente as amarras que o determinam que
permitem as condições necessárias para que ele advenha enquanto sujeito, um dos
efeitos da análise será justamente o de um certo afrouxamento de tais amarras, o
que traz ao analisando um tipo de liberdade muito diferente de qualquer outra coisa
já experimentada. Como coloca Leguil (1993):
É necessário fazer cair, um por um, os significantes-mestres, de
modo que os sujeitos creiam cada vez menos no Outro; que, no final
das contas, ele não hesite demais em ver-se livre do Outro, servir-se
dele, ou seja, perceber que este Outro também era um fantasma. A
tarefa do analista é fazer com que o sujeito possa ir neste caminho,
lentamente, por si próprio. Que ele vá, lentamente, com seus
próprios passos, para este autotraumatismo (p. 14).
123
As mudanças no lugar ocupado pelo sujeito em relação ao
Outro, trazem como conseqüências diferenças concretas na maneira como
este sujeito conduz a própria vida. “Mudar o sujeito é mudar sua relação com o
gozo”, coloca Leguil (1993, p. 45). Na análise, diz este mesmo autor, um sujeito
será implicado em seu gozo justamente quando é questionado sobre o desejo do
Outro. A associação livre convoca o sujeito a “fazer um inventário de toda a
combinatória significante da qual ele é efeito” (p.49), pede que ele suspenda todo o
julgamento, dito de outro modo, que “tome distância de seus ideais” (p. 51). Quando
pedimos ao analisando que respeite a regra fundamental, ele é colocado sob
transferência. O analisando passa a se perguntar qual é o julgamento que o analista
fará do que ele diz, coloca o analista no lugar de Ideal - ele tem o saber
maravilhoso que tudo explica. Ao calar-se, o analista reenvia o sujeito à relação
enigmática com o desejo do Outro. A pergunta do analisando passa a ser, o que
quer o analista (o Outro) de mim? O silêncio do analista, ou seja, o fato de que ele
não responde à demanda de amor que lhe é endereçada, faz com que, aos poucos,
passe do lugar de Ideal para o lugar de objeto a, isto é, o analista transforma-se na
causa de tudo o que o analisando diz.
Mas como identificar o fantasma no cotidiano da clínica? Nasio
(1992) faz uma descrição bastante objetiva da maneira como o fantasma se
apresenta durante uma análise. Ele costuma aparecer como uma cena, um roteiro
com personagens próprios, que o analisando consegue relatar, embora permaneça
para ele como algo enigmático. Ele vive esta cena como um elemento enxertado
que se impõe a ele e se repete independentemente de sua vontade. O fantasma
pode aparecer não só como relato desta cena em análise, mas também em sonhos,
124
devaneios e ações. Esta trama em geral se desenvolve como um roteiro perverso,
que muitas vezes é o estímulo desencadeante para um orgasmo, colocando-se
para o analisando como uma prática vergonhosa que, por esta razão, muitas vezes
só poderá ser relatada em análise muito tardiamente (Nasio, 1992).
Contudo, como coloca Leguil (1993), ao falar de seu sintoma, o
analisando termina por confessar seu fantasma. Isso de maneira alguma significa
que o sujeito passe a conscientizar-se do seu fantasma. O fantasma permanece
inconsciente, impossível de dizer.
A travessia do fantasma não é uma significação nova entregue ao
sujeito, é um vivido da pulsão. Mas a pulsão é justamente o silêncio,
o que mostra muito bem que, quando se vive a travessia do
fantasma, estamos no silêncio (Leguil, 1993).
Ponto de sustentação de seu ser no início da análise, o fantasma,
após sua travessia, não desaparece, mas, como coloca Leguil (1993), “o sujeito não
pendura mais ali o seu destino” (p. 26).
125
4.5 A função materna e os pais suficientemente narrativos
Quando viemos ao mundo, ele nos espera cheio de palavras, de
significantes e também de narrativas, de mitos familiares, de ficções, de histórias
que nos contam (e também que não nos contam) sobre a vida, sobre nossa família,
sobre os outros, sobre nós mesmos. Porque nascemos em um mundo de
linguagem e porque existimos no desejo e no discurso de um Outro antes
mesmo de nosso nascimento, estas palavras, estes significantes primordiais,
estes enredos, nos são ofertados como matéria prima fundamental para a
montagem de nossa própria história, para a difícil e contínua tarefa de
tentarmos dizer quem somos. Ou seja, parte importante de nossa história coloca-
se para nós como algo que já foi escrito, como um material que herdamos muitas
vezes sem dele nada saber, a partir do qual se fará a montagem de um fantasma.
Tais palavras e narrativas vão tecendo uma rede de significações
que nos acolhem no mundo, nos oferecendo um lugar. “Seu nascimento nos trouxe
muita alegria, era o primeiro filho, primeiro neto, primeiro sobrinho. Esperamos
muito por você”. “Quando a enfermeira trouxe você para mamar ela me disse: esse
não te dará trabalho, ele nem chora, só resmunga”. “Quando eu nasci foi uma
grande decepção… depois de três meninas, meus pais queriam muito um filho
homem”. “Desde bem pequeno já gostava de música, era só ouvir um ritmo
qualquer que se punha a dançar”. “Meus pais me deram o mesmo nome de um
irmão, que morrera ao nascer um ano antes…”.
126
No longo processo de constituição de um sujeito, uma das
tarefas primordiais dos pais e cuidadores é justamente a de significar o
mundo para a criança, dar-lhe sustentação com palavras e sentido. O que
costumamos chamar de função materna aqui o termo função é importante, pois
enfatiza que esta pode ser exercida por outra pessoa que não necessariamente a
mãe - envolve os cuidados primordiais com o bebê, o que inclui mapear seu
pequeno corpo, contorná-lo, dar voz às suas angústias e desconfortos, contê-las
através de um invólucro de palavras, nomear, interpretar e significar para ele as
primeiras sensações de estar no mundo. Como coloca Golse (2003) o encontro
entre um adulto e um bebê pode ser concebido como um espaço de narração.
Nesta perspectiva, faria parte da mãe suficientemente boa winnicottiana, ser
também uma mãe suficientemente narrativa (Corso & Corso, 2006).
Na condição de desamparo em que viemos ao mundo, os pais ou
cuidadores são nossa principal referência e é a partir do que vem deles que
podemos vir a fazer nossas próprias leituras e construir (ou co-construir) nossa
própria história. É assim que o bebê pequeno, ao cair, interpretará a expressão
facial da mãe para então decidir se deve chorar ou simplesmente levantar-se para o
próximo tombo. É assim também que de balbucios sem sentido os pais escutarão
uma primeira palavra, antecipando o vir a ser de um sujeito que só emergirá porque
dele se espera algo. Nos entremeios desta dança de oferecimento e
apropriação do que é ofertado, surge um sujeito.
127
Ao tratar da função dos contos de fada para as crianças, Diana e
Mário Corso (2006), no belíssimo livro Fadas no Divã, falarão dos contos de fada
como um repertório que os pais e a cultura oferecem a seus filhos e que pode
servir-lhes como recurso diante das dificuldades e conflitos enfrentados na vida.
Chamam a atenção para o fato de que as crianças não costumam ter o mesmo
apego pelas versões mais amenas, politicamente corretas, ou intencionalmente
didáticas que se criaram mais recentemente, preferindo escutar as histórias em toda
a sua complexidade, colorido terrorífico, cruel e assustador.
As crianças não se esquivam de assuntos cabeludos, inclusive às
vezes os enfrentam de forma bem ousada. É bem por isso que tantas
dessas narrativas permaneceram conosco pelo resto da vida, graças
à riqueza que emprestaram e seguem oferecendo como auxílio
diante de encruzilhadas e dificuldades que continuam se interpondo
no caminho (Corso & Corso, 2006, p. 304).
Os autores trarão a baila a idéia de pais suficientemente
narrativos
56
, uma versão própria da mãe suficientemente boa winnicottiana,
que aponta para a importância do narrar para a sustentação e o amparo
psíquico das crianças. Os pais suficientemente narrativos não são
necessariamente dotados de talentos literários especiais, mas conseguem transmitir
para a criança um acervo de histórias que lhe servem como recurso para viabilizar a
própria vida.
_____________
56
Os autores dão preferência ao termo pais suficientemente narrativos para enfatizar que o ato de
narrar contos de fada para os filhos não se situa nos momentos primeiros da função materna, mas
é posterior, podendo ser feito por ambos os pais. Outro argumento que favorece esta nomenclatura
é que, na atualidade, cada vez mais, a função materna e paterna são exercidas de forma mais
igualitária por ambos os pais.
128
No caso dos contos de fada, não se estaria mais no território das
primeiras marcas, da construção dos primórdios do eu, mas no momento não
menos importante e ainda fundador da infância. Como coloca o casal Corso (2006),
“é uma sorte que na mesma época em que estamos em formação, arrumando as
malas que conterão os fundamentos que vamos levar na viagem pela vida afora,
sejamos consumidores vorazes de ficção” (p.304). Contudo, poderíamos dizer que
ser suficientemente narrativo é necessário desde estes primórdios da constituição
do eu, como vimos em relação à função materna, ou mesmo antes disso, quando
consideramos que uma criança já existe no desejo e no discurso de seus pais antes
mesmo de seu nascimento.
Assim, dos ditos que antecedem o nascimento às constelações
dos mitos familiares, dos significantes primordiais à montagem de um
fantasma fundamental, passando pelos cuidados primeiros com o bebê e
chegando nas importantes vivências da infância, estes momentos fundadores
de um sujeito estão marcados pela presença destas vozes que imprimem
significantes, que entoam melodias e palavras, que contam histórias, que
narram a vida.
E o que acontece quando a narração é insuficiente? Não é
incomum observar, dirão os Corso (2006), que pais demasiadamente silenciosos ou
deprimidos, resultem em filhos com pobreza subjetiva. Era algo desta ordem o que
se passava com Clarissa, 8 anos quando do início de sua análise, trazida pelos pais
129
por apresentar graves problemas de aprendizagem.
4.6 Clarissa, para quem faltavam as palavras
Este foi um daqueles casos desafiadores. Desafiava em primeiro
lugar a idéia de que um analista deve esperar pelo que vem de seu paciente.
Clarissa entrava na sessão, baixava a cabeça entre os braços na mesa, sem me
dirigir palavra ou olhar. Não se interessava pelos brinquedos, não respondia a
nenhuma pergunta que eu fizesse. Eu estava tão habituada às crianças que já
chegavam propondo brincadeiras, jogos, desenhos, mas Clarissa permanecia
ensimesmada, como se nada no mundo lhe despertasse qualquer interesse. O que
eu deveria fazer? Esperar que algo viesse dela? Por quanto tempo? O desconforto
daquela situação não terminaria levando a uma interrupção do tratamento antes
mesmo que ele tivesse começado? Colocar-me em uma posição mais ativa? Mas
como fazê-lo sem desrespeitar Clarissa, sem ser invasiva, impondo a ela minha
própria subjetividade?
Passaram-se algumas sessões assim, sem que nada acontecesse,
até que eu mesma me pus a desenhar e a lhe contar histórias sobre os meus
desenhos. De alguma maneira aquilo me era muito estranho. O que afinal eu estava
fazendo? O que havia de analítico naquilo? Por mais que tentasse lhe contar
histórias que lhe dissessem respeito de alguma forma, era o meu inconsciente que
se colocava ali, meu próprio repertório, meus significantes. E o pior, Clarissa
130
continuava impassível, ignorando meus esforços de tentar uma aproximação com
ela.
Até que um dia seu silêncio se rompeu. Eu havia feito o desenho de
uma família e narrava a ela uma história inventada, quando atribuí ao cão da família
um nome qualquer. Para minha surpresa, ela levantou a cabeça da mesa, dizendo
que não era aquele o nome do cão.
É mesmo?, digo sorrindo por dentro, e qual seria o nome dele?
Começava ali um novo momento da análise, durante o qual pude ir
me retirando aos poucos, à medida em que Clarissa podia aparecer.
Clarissa era a filha “temporona” de uma família extremamente
silenciosa. Calada pela timidez e também pelo radicalismo de uma religião que tudo
proibia. Nada de rádio, televisão, diversão. Música, apenas a religiosa. Tinha pouco
acesso a brinquedos e me relatava que muitos deles estavam “guardados para não
estragar”. Recebia muito amor, é verdade, mas poucas palavras. A impressão que
eu tinha é que o longo percurso que fazia de ônibus até a clínica, geralmente
acompanhada da mãe, mas às vezes também do pai ou de um dos irmãos mais
velhos, era percorrido sempre em silêncio.
Nas conversas com os pais, estes eram lacônicos. Ficava evidente
sua dificuldade em contar qualquer coisa sobre a menina. Boa parte de sua história
caíra no esquecimento. Por outro lado, lembro que em certa ocasião, quando
perguntado sobre sua religião, o pai se transformou imediatamente. Ao tocar neste
131
tema tornava-se extremamente falante, seu tom de voz mudava, embebia-se de um
entusiasmo artificial. Não parecia ser ele quem falava. Punha-se a repetir um jargão
religioso muito bem decorado e sumia de seu discurso qualquer hesitação. Queria
catequizar-me, trazer até mim a palavra de Deus. Com isso ficava impossível
escutar as suas próprias palavras. Parecia ser uma dificuldade desta família poder
falar de si em nome próprio, que não fosse através dos ditames prontos que vinham
de sua religião.
Uma coisa me chamava muita atenção durante as sessões com
Clarissa. Quando perguntada sobre como foi tal ou tal passeio descrito pela mãe
como algo que aconteceu no final de semana, ela respondia com freqüência, eu não
fui. Custei a entender que ela não ia mesmo aos passeios. Não porque não
estivesse estado lá fisicamente, mas porque para ela a experiência simplesmente
não se inscrevia. Não era de se admirar que também não pudesse aprender. Como
beneficiar-se dos efeitos da aprendizagem se não fazia registro de suas
experiências?
Aos poucos foi ficando mais claro para mim que faltava para
Clarissa alguém que lhe falasse sobre aquilo que experienciava, que lhe narrasse o
que lhe acontecia, que lhe ajudasse a fazer uma intermediação entre os
acontecimentos e o que se pode contar deles, para que algo disso pudesse fazer
nela alguma marca. É bem possível que esta insuficiência narrativa já estivesse lá
em um momento bem precoce, nos termos do que descrevemos acima como
função materna. Ninguém havia apresentado o mundo para Clarissa, o nomeado, o
dotado de algum sentido. Ninguém havia alimentado seu imaginário de forma a
132
que ele viesse a ser minimamente compartilhável. Ela ia aos lugares, mas não
estava lá, nada tinha a dizer sobre algo que não se dava para ela como uma
experiência.
O trabalho com Clarissa foi para além das quatro paredes do
consultório. “Mostre-lhe o mundo!”, dizia-me minha supervisora. E foi assim que
ganhamos a rua, fizemos coleção de folhas, de gravetos, de tampinhas,
observamos as pessoas que passavam na calçada, comparamos os diversos tipos
de carros - atividades sempre bem acompanhadas de palavras e seguidas de
convocações a tentar evocá-las, nar-las em um tempo a posteriori. Nestes jogos,
pude ir deixando o lugar de quem conduzia a brincadeira para ocupar o lugar de
testemunha. A testemunha que tanto lhe fizera falta para que suas experiências
pudessem marcar seu próprio corpo e lhe servissem como experiências de fato
57
.
Clarissa foi aos poucos ganhando vida, graça e uma desenvoltura
para o brincar criativo que lhe eram totalmente estrangeiras quando começamos.
Embora esta tese não pretenda tratar do tema das especificidades
relativas à análise de crianças com relação ao lugar dos processos de
_____________
57
Simone Rickes (2005) fala do constante pedido que as crianças fazem ao analista durante as
sessões de que ele escreva algo ditado por elas, dando ao analista o lugar de “escriba” (aquele que
exercia a profissão de copiar manuscritos, muitas vezes ditados; copista). Com tal pedido garantem
que algo fique registrado, que tenha a permanência necessária para que uma história não se
esvaneça. “O analista, na generosidade da transferência, empresta o papel/registro para que o
pequeno possa escrever os contornos singulares de sua estruturação frente ao Outro” (p. 43).
Embora neste caso especificamente não se tratasse de literalmente escrever, acredito que minha
presença na transferência foi fundamental para que Clarissa pudesse fazer registro de suas
experiências.
133
ressignificação no trabalho analítico, é importante demarcar que há diferenças neste
sentido quando lidamos com pacientes ainda em processo de estruturação. Com as
crianças, em especial com aquelas com sérios comprometimentos do
desenvolvimento, muitas vezes o trabalho vai mais no sentido de poder construir
uma história, um romance, um lugar a partir do qual ela possa enunciar-se, do que
lançar-se em um trabalho desconstrutivo.
Contudo, ao meu ver, isso não quer dizer que boa parte do
trabalho analítico ainda na infância não envolva processos de ressignificação
e desconstrução
58
, sobretudo quando nos encontramos no âmbito das
neuroses. Por outro lado, algumas análises de adultos exigem predominantemente
um trabalho de construção, bem como as análises mais desconstrutivas sempre
apresentam, também, um trabalho construtivo simultâneo. Assim, mais do que
fazer uma referência direta entre análise de crianças construção e análise de
adultos desconstrução, é preciso, como sempre o é quando se trata de
psicanálise considerar o que cada caso, em sua particularidade, exige de um
trabalho analítico.
Entre outras coisas, Clarissa nos faz pensar sobre o que é uma
experiência, bem como em como ela se articula com a narrativa e em como tal
articulação se faz presente no processo analítico.
_____________
58
Como vimos no capítulo I, construção e desconstrução são tomados como movimentos
simultâneos.
134
4.7 O soldado calado, o velho e o viajante: transmissão da experiência em
Walter Benjamin
No artigo intitulado “Experiência e Pobreza”, Walter Benjamin (1933)
irá denunciar o declínio da experiência na vida moderna. O texto vai deixando claro
que a experiência e a pobreza referidas no título, na verdade se entrelaçam no que
ele chamará de pobreza de experiência. Vivemos em um mundo em que “a
existência se basta a si mesma, em cada episódio” (p.119), em que é cada vez mais
difícil deixar rastros, em que os soldados voltam do campo de batalha “mais pobres
em experiências comunicáveis”, pois estas não são “transmissíveis de boca em
boca” (p. 115). A transmissão do vivido através das gerações, a partir da autoridade
do velho e da tradição oral, se perdeu:
Quem encontra ainda pessoas que saibam contar histórias como
elas devem ser contadas? Que moribundos dizem hoje palavras tão
duráveis que possam ser transmitidas como um anel, de geração em
geração? Quem é ajudado, hoje, por um provérbio oportuno? Quem
tentará, sequer, lidar com a juventude invocando sua experiência?
(Benjamin, 1933, p.114).
No texto de 1933 encontramos já esboçadas várias das questões
que serão retomadas em 1936, no artigo intitulado “O Narrador. Considerações
sobre a obra de Nikolai Leskov”. Aqui o autor anuncia o fim da narrativa, uma
vez que nos encontramos privados de nossa faculdade, antes inalienável, de
intercambiar experiências. Se Benjamin (1936) inevitavelmente soa saudosista,
isso de maneira alguma tira a riqueza e a relevância de seus argumentos para
135
alegar a extinção da narrativa tradicional.
Para ele, o que se perde na modernidade é justamente a dimensão
compartilhável que as narrativas antes apresentavam e que se esvanece nas novas
condições da vida moderna, na qual a figura do narrador oral, dotado de sabedoria
e experiência, que sabe dar um bom conselho, simplesmente desaparece. Aqui é
interessante ressaltar a definição de conselho dada por Benjamin (1936), uma vez
que a psicanálise sempre se preocupou em demarcar sua diferença em relação a
práticas que envolvem o aconselhamento. Como aponta Gagnebin (2004), na
definição benjaminiana não prevalecem as características psicológicas e
pragmáticas, o conselho não se coloca como algo definitivo, mas envolve as
hesitações e as angústias de uma história que permite vários desenvolvimentos
possíveis, várias conclusões desconhecidas, até mesmo lembrando, segundo a
autora, o processo analítico:
Aconselhar é menos responder a uma pergunta que fazer uma
sugestão sobre a continuação de uma história que está sendo
narrada. Para obter essa sugestão, é necessário primeiro saber
narrar a história (sem contar que um homem só é receptivo a um
conselho na medida em que verbaliza a sua situação). O conselho
tecido na substância viva da existência tem um nome: sabedoria. A
arte de narrar está definhando porque a sabedoria o lado épico da
verdade está em extinção (Benjamin, 1936, p. 200)
Esta figura sábia que domina a arte de aconselhar, que senta para
contar histórias de forma artesanal, “imprimindo na narrativa a marca do narrador,
como a mão do oleiro na argila do vaso” (Benjamin, 1936, p. 205), é condensada na
136
imagem do viajante que vem de longe e tem muito a contar, ou na do camponês
sedentário “que ganhou sua vida honestamente sem sair de seu país e que
conhece suas histórias e tradições” (p.198). Em ambos os casos há um saber
que adquire sua autoridade justamente porque vem de um outro lugar,
marcado pela distância do que é estrangeiro ou do que vem de outras
gerações, como coloca Lúcia Serrano Pereira (2005):
Essa autoridade que se decanta da experiência do narrador é de um
lado de gerações que se perdem de vista na articulação temporal e,
de outro, de terras distantes que também têm seus limites
espacialmente difusos. Ou seja, há um insondável em jogo que nos
permite pensar nas formas pelas quais o campo do Outro se
apresenta na relação com a narrativa e com o saber (p.11)
Nas palavras do próprio Benjamin (1936):
No sistema corporativo, associava-se o saber das terras distantes,
trazidos para casa pelos migrantes, com o saber do passado,
recolhido pelo trabalhador sedentário (p. 199).
Ao desaparecimento destes narradores orais, somam-se outros
fatores que Benjamin (1936) associa ao declínio da narrativa. Entre eles o autor
trará desde o nascimento do romance, no início do período moderno, até o
surgimento de uma relação diferenciada com a morte; passando também pela
questão do predomínio da informação. Assim, o romance, que tem sua difusão
vinculada ao livro, distancia-se da tradição oral e tem sua origem no indivíduo
137
isolado. “Quem escuta uma história está em companhia do narrador”, enquanto que
“o leitor de um romance é solitário” (p.213).
Também a informação não está a serviço da narrativa, pois “os
fatos já chegam acompanhados de explicações” (p.203), perdendo a amplitude da
narração, que deixa o sujeito livre para fazer a própria interpretação do que escuta.
Enquanto a informação só tem valor por ser nova, com a narrativa é
justamente o contrário, ela conserva suas forças depois de muito tempo,
“contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo”(p.205). A narração
“não está interessada em transmitir o ‘puro em si’ da coisa” (p.205), não se trata de
fazer um relatório.
4.8 Morte, transmissão e castração
Quanto às mudanças na maneira de se colocar diante da morte, talvez
esteja aqui a parte mais interessante da argumentação de Benjamin (1936). De episódio
público, compartilhado, a morte passa a ser, a partir das instituições higiênicas e sociais
produzidas pela burguesia do século XIX, cada vez mais afastada do mundo dos vivos.
Com o fim da morte espetáculo, da morte exemplar, perde-se também um fecundo
momento de transmissão da experiência, já que mesmo um pobre-diabo possui, ao
morrer, uma autoridade diante dos vivos. Tal autoridade, dirá Benjamin (1936), está na
origem da narrativa. “A morte é a sanção de tudo o que o narrador pode contar. É da
morte que ele deriva sua autoridade” (Benjamin, 1936, p. 208).
138
Ora, é no momento da morte que o saber e a sabedoria do homem e
sobretudo sua existência vivida e é dessa substância que são feitas
as histórias assumem pela primeira vez uma forma transmissível
(Benjamin, 1936, p.207).
Se, como vimos ao longo desta tese, há um legado que é
transmitido a um sujeito mesmo ainda em vida, é interessante pensar neste
momento da morte como um momento solene, que traz a tona a questão da
transmissão e da herança, marcando de forma pontual o instante em que se
passa o bastão para a geração seguinte, o ponto final de uma vida que
permanecerá nos que ficam através das marcas, dos rastros, dos traços do que foi
possível transmitir. Benjamin (1936) fala de um poder de evocação que a morte
tinha e foi se perdendo. O que seria isso? O que se evocaria no leito de morte de
alguém?
Uma resposta possível talvez seja a de que o que se evoca é a
própria vida. Como viveu este sujeito? O que sua vida tem a nos ensinar sobre a
maneira como conduzimos nossa própria existência (daí a denominação de morte
exemplar, sugerida pelo autor)? O que este limite máximo e intransponível evoca
sobre nossos próprios limites e a maneira como nos colocamos diante deles? O que
fazer com a nossa vida quando somos lembrados de que ela é finita? Que sentido,
afinal, tem tudo isso? Se, como coloca Benjamin (1936), a modernidade nos afasta
cada vez mais do contato direto com este momento, isso não significa que ele não
siga sendo de grande impacto para nós.
139
Se para o sujeito moderno a construção da história de sua vida é
uma tarefa cotidiana a qual se lança sozinho
59
, a morte coloca-se como o ponto final
do romance que tece/ no qual é tecido e que tem a si próprio como personagem
principal. Neste sentido, é a morte que organiza a vida e, apesar de normalmente
não nos ser dado saber exatamente qual será este momento, a certeza de que a
morte um dia virá está colocada para todos os seres viventes. Não é justamente
isso que nos permite viver com o mínimo de urgência necessária para que façamos
alguma coisa com a própria vida? Por que nos incomodaríamos em realizar
qualquer coisa se tivéssemos a eternidade diante de nós? Qual a urgência de fazer
algo hoje quando a existência de um amanhã se coloca como possibilidade infinita?
Se a perspectiva da morte, da finitude, nos é tão dolorida e complexa a ponto de
sequer podermos representá-la, a hipótese de uma vida eterna lança o sujeito na
dimensão do intolerável.
Mas que narrativa, então, seria possível neste mundo tão
apartado da capacidade de compartilhar a experiência? Segundo Gagnebin
(2004), o pensamento de Walter Benjamin traz mais do que o tema aparente de
uma harmonia perdida. Para além do fim da tradição e da experiência
compartilhada, o que se opõe à tarefa de retomada do passado é a realidade de um
sofrimento tão grande que não pode ser comunicado, “que não pode dobrar-se à
junção, à sintaxe de nossas proposições” (Gagnebin, 2004, p.63). Como bem
lembra Lúcia Serrano Pereira (2005) o soldado do início do séc. XX, retratado por
_____________
59
Este tema foi abordado com mais detalhes no capítulo III.
140
Benjamin (1933), que volta da guerra emudecido, mais pobre em experiências
comunicáveis, é o mesmo que fará Freud retomar sua teoria do trauma, a
compulsão à repetição e a pulsão de morte em Além do princípio do prazer (1920).
Ou seja, a denúncia benjaminiana do trágico fim da experiência
compartilhável, remete a um caro tema para a psicanálise e que não
necessariamente se deve ao fim da tradição oral, como argumenta o autor, mas ao
fato de que há sempre uma parte da experiência que não é transmissível e que não
cabe nas palavras (sejam elas contadas oralmente, escritas ou pronunciadas desde
o divã). Assim, se é verdade que o homem moderno é deixado no desamparo
do individualismo e do desaparecimento das narrativas coletivas que o
sustentavam, tendo que criar sua própria rede de sustentação, tal dificuldade
só vem a somar-se com esta outra dificuldade, que diz respeito não às
características da modernidade, mas à relação do homem com a linguagem.
Ou seja, seu emudecimento diante de certas experiências diz de um real
intransponível e de sua submissão às leis da linguagem, que lhe impõem um
limite quanto ao que pode ser dito.
Vale ainda marcar que há sim um solo comum para o homem
individualista moderno, como lembra Maria Rita Kehl (2001a), qual seja, a própria
vivência de solidão e exclusão. “A perda do sentido da vida, nas sociedades em que
cada um deve inventar a própria vida, é justamente a experiência compartilhada por
todos os sujeitos modernos”(p. 87). Já que não há caminho de volta, já que não
acredita-se em soluções saudosistas que preguem o resgate de uma vida
comunitária pré-moderna, voltemos, então, para a mesma pergunta: que narrativa é
141
possível neste contexto?
4.9 Outra narrativa, outra posição subjetiva
Para Gagnebin (2004), apesar de não resolver a questão que
encaminha, Benjamin mesmo assim trará a baila o desafio de pensar uma outra
forma de narrativa:
Como descrever esta atividade narradora que salvaria o passado,
mas saberia resistir à tentação de preencher suas faltas e de sufocar
seus silêncios? Qual seria esta narração salvadora que preservaria,
não obstante, a irredutibilidade do passado, que saberia deixá-lo
inacabado, assim como, igualmente, saberia respeitar a
imprevisibilidade do presente? (Gagnebin, 2004, p.63).
Não seria justamente neste sentido que poderíamos ler a passagem
do romance ao conto sugerida por Lacan como o percurso de uma análise?
Antes de retomarmos esta idéia seria prudente fazer algumas
ressalvas. Caberia perguntar, por exemplo, de que romance
60
e de que conto se
fala, já que tais gêneros literários sofrem variações ao longo de diferentes épocas
_____________
60
Maria Rita Kehl (2001a) refere-se ao romance oitocentista, relacionando-o com a tendência
neurótica de tudo dizer. “A possibilidade do sujeito narrar-se sob a forma moderna do conto, ou
talvez do poema, representa a conquista de uma elegância que o pesado romance oitocentista está
longe de alcançar” (p.89). Hoje, no entanto, sob a classificação de romance, encontramos obras
142
históricas. Como já foi afirmado antes, se a narrativa é tradicionalmente
compreendida como o contar de uma história com início, meio e fim, como uma
estrutura que organiza os fatos em uma linha de tempo, a literatura (ou o cinema)
também nos brinda com inúmeros casos nos quais esta estrutura é colocada em
questão, onde o que se anuncia não é a linearidade do tempo, mas justamente a
impossibilidade de fazer a vida caber dentro destes moldes e os limites de tal
empreitada.
Assim, talvez a maior ou menor sensibilidade de determinada
produção literária para tal questão dependa mais da habilidade e estilo de cada
escritor, ou ainda melhor, do quanto o autor se deixa permear pelo seu próprio
inconsciente, do que propriamente do gênero literário através do qual ele escolhe
se expressar. Dito de outro modo, um conto pode apresentar-se de forma bastante
linear, bem como um romance pode ser marcado por tempos descontínuos,
deixando em evidência a impossibilidade de tudo dizer, de tudo abarcar. Neste
sentido, se for mesmo para optar por algum gênero literário capaz de dizer algo
sobre o processo analítico, talvez o mais apropriado seria comparar a análise à
poesia, como também fez Lacan, mais especificamente, à poesia moderna. Neste
gênero encontramos um desprendimento radical em relação a um
comprometimento com a linearidade do tempo, com seqüências narrativas, com o
contar de uma história estruturada e sem furos ou com a necessidade de “fazer
sentido”. Enfim, a linguagem poética, ao distanciar-se dos modelos impostos
pela racionalidade, remete de forma mais aproximada ao funcionamento do
inconsciente, enfatizando a importância de tudo que permanece como não
que não se limitam a uma estrutura tão fechada.
143
dito, das pausas como parte intrínseca da música, das alusões como tão
importantes quanto o que é afirmado.
Dito tudo isso, a metáfora proposta por Lacan, bem como os
desdobramentos que Laurent (1992) e Kehl (2001a) fazem a partir dela, podem ser
úteis para nos ajudar a pensar o que está em jogo no percurso de uma análise, os
efeitos trazidos pela ressignificação e o tipo específico de temporalidade e narrativa
encontrados ali. Ao falar da passagem do romance ao conto, estes autores buscam
apontar quais mudanças subjetivas são possíveis em uma análise e como elas se
refletem em uma determinada construção narrativa sobre si mesmo, uma questão
que esta tese levanta e busca mapear a partir da idéia da ressignificação.
Como já foi dito antes, segundo Laurent (1992), a fala de Lacan
referiria-se a uma contração do tempo que o conto permitiria, que produziria um
efeito de estilo. Por sua vez, Kehl (2001a) dirá que tal passagem diz respeito a um
certo desprendimento que o neurótico alcançaria em relação ao imperativo de tudo
dizer, abrindo para ele a possibilidade de criar uma ficção mais imprecisa sobre si
mesmo, mais capaz de sustentar os enigmas em vez de rapidamente decifrá-los.
Parece que é justamente disso que Gagnebin (2004) está falando quando propõe
que o pensamento de Benjamin encaminha questões que não resolve, como é o
caso da busca de uma narrativa que possa dar conta do passado sem ter que
preencher suas faltas e sufocar seus silêncios, podendo deixá-lo inacabado. É
também neste sentido que esta tese busca falar do papel da ressignificação
da história de vida nos efeitos de uma análise, compreendendo-a a partir de
uma concepção de tempo heterogênea, e como um processo contínuo de
144
desconstrução/construção que jamais se coloca de forma totalizante.
Para Gagnebin (2004), este novo tipo de narrativa que o
pensamento de Benjamin evoca, passaria pelo estabelecimento de uma outra
relação com a morte e com o morrer. Não é disso que estamos falando quando
afirmamos que um dos efeitos da análise é justamente um reposicionamento diante
da castração? Isso de modo algum significa que a morte venha a ter alguma
representação para o sujeito. Sabemos, desde Freud, o quanto isso fica no campo
do impossível. Mas, se há um contorno possível para este real que se impõe,
talvez ele se coloque justamente pela possibilidade de saber-se finito,
imperfeito, faltante, sem que isso paralise o sujeito diante daquilo que ele
pode ser. Afinal, é justamente sua condição de faltante, de sujeito barrado ensina
a psicanálise o que o permite desejar. Como bem diz Martha, no caso que
apresentamos no capítulo I, não adianta lamentar-se por tudo o que não se fez, é
preciso pegar o que restou e ver o que é possível fazer com isso.
145
4.10 A análise como experiência
Segundo Costa (2001), a impossibilidade de representar a morte
remete justamente ao fato de que uma experiência, para ter este caráter, precisa
necessariamente passar pelo corpo. Por mais que vivencie a morte de um outro e
sinta a dor de sua perda, ela permanece para o sujeito no lugar de enigma, já que
não lhe é dado passar pela morte enquanto experiência corporal. Assim, é somente
a natureza extensa da experiência - isto é, sua passagem pelo corpo na sua
relação com o outro e com o real - que produz um registro.
Um registro, afirma esta mesma autora, é o que a teoria lacaniana
costuma chamar de saber, que, como vimos no capítulo II, diferencia-se do
conhecimento ou da informação, já que o saber é corporal e, portanto,
inconsciente. Este saber inconsciente, Lacan o chamou de um saber que não se
sabe. Assim, o que se imprime ou transmite está do lado do saber e não do
conhecimento, uma vez que este último pode permanecer como uma representação
exterior à experiência. Como coloca Costa (2001), “o saber é uma apropriação da
representação pela experiência (apropriação que sempre traz uma medida de
criação).”(p.48). Esta apropriação não diz respeito ao entendimento ou
significação da representação, uma vez que o saber não é entendido como
conteúdo ideativo, mas como produção, exercício, atividade, enfim,
experiência.
146
Como vimos a partir do caso de Clarissa, “estar lá” não garante ao
sujeito que sua vivência adquira um caráter de experiência, que ela assuma um
registro corporal. Algo pode se passar sem que nada fique para o sujeito. Para
Clarissa vimos como isso se relacionava de alguma maneira a uma falta de
intermediação pela palavra, algo que remetia à função materna. E o que
aconteceria com os soldados emudecidos de Walter Benjamin? Padeceriam, como
alega o autor, de um empobrecimento da experiência?
Como já foi dito antes, pode-se pensar que o que acontece com
eles não se relaciona com não ter propriamente experimentado a guerra
61
, mas com
uma incapacidade de transmitir tal experiência justamente por seu caráter
excessivo, o excesso que caracteriza o que é da ordem do traumático, ou seja, uma
experiência que vai para além das possibilidades que um sujeito tem de representá-
la. De qualquer modo, nestes dois casos, cada um a sua maneira, encontra-se a
evidência da articulação que se impõem entre experiência e narrativa, ou ainda, a
indissociabilidade existente entre experiência e transmissão. A partir da
modernidade, é justamente a legitimação da experiência que se torna mais difícil,
com a perda da autoridade que a garantia. Como aponta Costa (2001), o
deslocamento da função da autoridade que esta traz, cria um paradoxo: “como é
possível transmitir algo único, que se produz de uma única vez, que para repeti-lo é
necessário revivê-lo?” (p.68) A psicanálise surge justamente nesta abertura,
nesta brecha que se faz com o esvanecimento dos laços sociais tradicionais
_____________
61
Como ressalta Maria Rita Kehl (2001b), ao afirmar que o soldado que não pode dizer nada de sua
vivência, de fato não a experienciou, Benjamin está propondo que a experiência não se constitui no
momento vivido, mas no momento em que se transmite. Assim, para este autor, o vivido que
permanece incomunicável, não poderia ser chamado de experiência.
147
que facilitavam o compartilhamento da experiência
62
.
Se a psicanálise tem algum papel neste resgate da transmissão da
experiência, se a partir de seu dispositivo a experiência do sujeito pode de alguma
maneira ser legitimada, em que medida podemos dizer que isso se dá por uma via
que se aproxima do testemunho?
Há conotações diversas para a palavra testemunho. Temos desde
um uso jurídico, no qual a figura da testemunha aparece como o representante vivo
de que algo realmente aconteceu, foi “visto com os próprios olhos”, o que permite
àquela pessoa comprovar, atestar uma verdade; até o testemunho dos membros
dos grupos de auto-ajuda, inspirados no modelo dos Alcoólicos Anônimos (AA),
mas hoje espalhados pelo mundo reunidos em torno de problemáticas cada vez
mais específicas, onde cada membro é convocado a dar um depoimento, selado
pela frase que condensa o propósito destes encontros: “thanks for sharing”. Em
qualquer sentido, testemunhar remete a uma tentativa de compartilhamento de uma
experiência, ou, como coloca Kehl (2001b), a um “modo de inclusão da experiência
particular em uma representação compartilhada” (p. 19).
Testemunhar é para o ser humano uma grande necessidade.
_____________
62
Já debatemos no capítulo III como a psicanálise pode ser compreendida como produto da
modernidade e o quanto ela não faria sentido algum em uma sociedade pré-moderna. Contudo,
isso não quer dizer que sua prática vise reestabelecer o contexto cultural das sociedades
tradicionais, o que seria tão pretensioso quanto impossível de realizar, bem como, provavelmente,
muito pouco efetivo. Mesmo assim, é verdade que parte do debate no próprio meio psicanalítico em
torno da questão do declínio da função paterna muitas vezes soa bastante saudosista, como se a
148
Mesmo com toda a dificuldade que encontra para fazê-lo, deparando-se sempre
com o impossível que é fazer caber a dimensão da experiência nas palavras, ainda
assim ele insiste. E é assim que temos os relatos de viagem, as autobiografias, os
relatos de experiências de análise, as escritas sobre a clínica, os estudos de caso.
Isto aponta para o fato de que apesar de haver algo da
experiência que é sempre intransponível, o homem não se furta ao trabalho de
tentar contar. Kehl (2001b), trazendo para o debate a questão do holocausto,
ressalta o quanto às vezes o traumático não necessariamente produz o mutismo
dos soldados benjaminianos, mas justamente o contrário, traz à tona uma
necessidade muito grande de falar. Ela cita a definição que Shoshana Felman
(2000) propõe para o testemunhar, a partir dos relatos de vítimas dos campos de
concentração, “testemunhar é tentar produzir significação para uma catástrofe”. A
catástrofe da qual fala a autora, no entanto, não estaria circunscrita apenas a
casos extremos como o do extermínio dos judeus, mas marcaria a vivência
cotidiana do homem moderno em geral, traumatizado pela falta de discursos
estáveis que lhe sirvam de referência. “Para Felman, testemunhar é a resposta
possível à crise da verdade que se instalou nas sociedades modernas, uma espécie
de tentativa de cura, de saída da posição passiva na qual o sujeito é atirado no
encontro com uma realidade que ele não dispõe de discurso para decifrar” (Kehl,
2001b, p.20). Kehl (2001b) se pergunta se não seria justamente sobre esta
condição que o sujeito que busca uma análise vem testemunhar.
solução para todos os problemas modernos fosse um retorno à autoridade perdida dos laços
149
Assim, quando esta tese fala de uma história de vida que é
contada/recontada/ ressignificada em uma análise, ela fala da história da
relação do sujeito com este Outro, da história de sua filiação e do percurso
que um sujeito pode fazer para encontrar o que lhe é próprio, singular, para
encontrar algo relativo a seu desejo e fazer alguma coisa disso. O que não
significa chegar a um lugar de total autonomia, visto que das amarras da
linguagem ele não pode se desprender e seguirá sempre, portanto,
assujeitado. Dizer o que não pode ser dito, dizer o que não sabe, é o desafio
cotidiano ao qual um analisando se lança.
Difícil destacar exatamente o que gera qual efeito em uma análise,
dado que, como vimos, seus movimentos são múltiplos. E, neste sentido, não há
um único verbo que resuma o que acontece ali em relação à história do sujeito e
termina-se sempre tendo que recorrer a vários: ali o sujeito conta, é contado, se
conta, reconta, ressignifica sua história, mas também a constrói, reconstrói,
desconstrói, funda, tece, é tecido por ela; bem como a retoma, resgata, revisa. Mas,
se não é possível delimitar com exatidão que passos geram que efeitos ao longo de
uma análise, sabe-se que a tentativa de bordear este impossível que é transformar
o real em algo que pode ser dito, dar testemunho do vivido, traz em si seus efeitos,
os efeitos de tomar a palavra, como coloca Rickes (2002):
(…) um testemunho não diz respeito somente ao que se constitui
como produto de uma narração, seja ela oral ou escrita, mas também
aos efeitos produzidos sobre o sujeito que toma a palavra. Esses
efeitos se conjugam, no sentido de produzir um lugar psíquico
sociais tradicionais.
150
distinto, diferente daquele constituído antes do testemunho. É esse
lugar o sítio que sustenta as possibilidades de significação de uma
experiência, assim como de acolhimento para aquilo que o paciente
endereça a seu analista. (p.178).
Mas é fato que também a experiência da própria análise precisa
passar pelo corpo do sujeito que a ela se aventura, sob o risco de ele ir a todas as
sessões, falar e nada acontecer, o que não é raro no cotidiano da clínica. A análise
pode ser um meio efetivo de legitimar a experiência sob a condição de se dar
ela mesma como uma experiência, uma vez que o fato de o par analítico fazer-se
religiosamente presente aos encontros, que se fale, que se escute, que se
interprete, que se faça uso de um divã, nada disso é garantia de que algo irá se
passar ali, como apontam as análises que duram anos sem que nada aconteça.
Pensar a análise como experiência é pensá-la como um percurso que marca o
analisando, que o modifica, que o ressignifica, que faz diferença.
Como aponta Gagnebin (2004), a palavra alemã Erfahrung
(experiência) vem do prefixo fahr, que quer dizer percorrer, atravessar uma região
durante uma viagem
63
. É o viajante que vem de longe que tem para Benjamin uma
experiência para transmitir. Os moribundos também teriam essa autoridade do
viajante, pois, no limiar da morte, se aproximam deste desconhecido, deste outro
mundo, e são aureolados “por uma suprema autoridade que a última viagem lhes
confere” (Gagnebin, 2004, p. 58).
_____________
63
Impossível não pensar no termo escolhido por Lacan para designar o que acontece no percurso da
análise, quando fala em travessia do fantasma.
151
O verbo Fahren em alemão equivale no português a “viajar”. Ainda
no espírito das metáforas que nos ajudam a pensar o que se passa no percurso de
uma análise, talvez seja frutífero pensarmos o que ela tem em comum com uma
viagem. Para fazê-lo, tomemos emprestadas as palavras de nosso bravo viajante
brasileiro, Amyr Klink (1992), já no caminho de volta de sua jornada solitária à
Antártica:
Um bem-estar profundo e sereno tomou conta da vida a bordo. O
que antes me assustava ou preocupava agora fazia pensar. Pelas
janelas de onde via apenas neblina e as velas cheias, fiz passar
todas as imagens que desejei ver. E as toquei. Não há mais
verdadeira e pura forma de sentir lugares do que tocá-los com a
quilha de um barco. Ou com os dedos. A mais simples e universal
maneira de expressar carinho. O toque.
Trazia o Paratii na ponta dos dedos e o sentia de maneira diferente
também. No início, barulhos, choques, rangidos, o zunido do vento
ou uma vela batendo causavam preocupação, nervosismo. Errando e
aprendendo, batendo em gelo, ondas e pedras, fui descobrindo a
origem dos sons e os limites da minha máquina vermelha. Se uma
onda me pegasse de surpresa no convés, mesmo nos trópicos, antes
eu gritaria e protestaria contra os elementos. Agora, com frio ou
neve, se fosse surpreendido e ensopado, apenas tirava o cabelo
pingando dos olhos com as costas das mãos e continuava
assobiando. Talvez um certo embrutecimento, uma indiferença à dor
e ao desconforto que o mar incute, como dizem pescadores do mar
do Norte.
Não sei, talvez seja mais do que isso. Uma sensibilidade maior ao
que de fato importa. (Klink, 1992, p. 211)
Se, depois de atravessar o oceano Atlântico de ponta à ponta,
percebe-se diferente, é o encontro com o mesmo, a chegada ao lugar de partida -
trazendo na bagagem pedrinhas recolhidas do Norte e do Sul, provas cabais da
152
concretude de seu ato que dá para ele a dimensão do vivido, da experiência que
faz marca em seu corpo, que aponta para ele que se não tivesse saído dali não
haveria o retorno e que não se retorna igual ao ponto de partida.
De volta, exatamente ao mesmo pedaço de areia que deixei vinte e
dois meses e vinte e sete mil milhas atrás, como se tivesse apenas
ido buscar gelo na cidade. Como se o tempo não tivesse passado e,
entre o gelo dos pólos e Jurumirim, não houvesse distância.
(…) Vinte e dois meses para alcançar a mesma areia da partida.
Poderia nesse tempo ter vivido aqui entre as montanhas e o mar de
Paraty, como já vivi antes. Feito, quem sabe, uma grande viagem à
sombra dos coqueiros, sem ter de percorrer vinte e sete mil milhas
ou tocar os gelos do sul e do norte.
De nada serviria. Não teria chegado a lugar nenhum. Não teria
voltado. E não teria nunca descoberto que o mais alto dos sonhos é
feito de um punhado de pedrinhas numa sacola azul (Klink, 1992, p.
220).
Para que a viagem se no final das contas o que nos espera é a
mesma areia branca que deixamos no dia da partida? É o deslocamento do ponto
onde se encontrava que permite ver o mesmo com outros olhos. E não é essa a
essência do que chamamos ressignificar?
Da viagem da análise não voltamos os mesmos, ela nos marca
enquanto experiência, transformando-nos. Uma viagem convoca o viajante
que volta ao lugar de origem a olhar o que antes era familiar com
estranhamento. Aquele que conheceu outros lugares já não pode mais ver o
153
mesmo do mesmo jeito, coloca-se como estrangeiro diante da própria pátria.
O analisando, por sua vez, é levado pela experiência da análise a um encontro
com o estrangeiro que o habita, por vezes tão familiar, por vezes tão estranho,
por vezes tão repetitivo e por vezes tão cheio de novas possibilidades.
Embora nenhuma análise possa assegurar ou prometer nada para
um sujeito, embora seus efeitos não possam ser antecipados ou garantidos, a
aposta é sempre de que algum movimento se dê, de que desta viagem tão peculiar,
um sujeito possa trazer na bagagem uma experiência, algo que lhe faça marca. O
percurso feito, a travessia de seu fantasma, o deixar cair de certas idealizações, dos
significantes mestres que o determinam, seu reposicionamento diante do Outro, seu
encontro com sua castração e com a castração do Outro, conferem ao sujeito a
possibilidade de ocupar novas posições subjetivas, de reposicionar-se diante de
suas heranças, de lidar de outra maneira com seus limites.
Nesse caminho que traça ao longo da análise, o sujeito precisa
deparar-se com vazios, com silêncios, com pontos que a palavra não pode
alcançar, com elementos que não cabem em nenhuma narrativa, que resistem à
apreensão. E sua narrativa sobre si mesmo trará justamente a marca dessa
impossibilidade, de que sua história não pode ser contada toda, que haverá
sempre algo que lhe escapa. Um sujeito não termina uma análise - seja lá até
que ponto ele tenha ido
64
- mais conhecedor de si mesmo, mais independente
_____________
64
Sejamos realistas, são poucas as análises que chegam a este fim descrito nos livros, no qual o
sujeito passa pela assunção subjetiva, faz cair o sujeito-suposto-saber, pode ocupar o lugar do
analista. Em geral nossos pacientes vão embora bem antes disso, o que não quer dizer, ao meu
154
de suas determinações. Pelo contrário, o final da análise é o momento em que
o sujeito pode assumir que nada mais é do que uma falta, um buraco. Como
coloca Leguil (1993), não se trata, em uma análise, de formar gente que
pretende conhecer-se, mas “gente que saiba que jamais se conhecerá” (p.34).
Para terminar, fiquemos com as sábias palavras do poeta, que
resume como ninguém o percurso que, por hora, encerramos aqui:
Viajar? Para viajar basta existir. Vou de dia para dia, como de
estação para estação, no comboio do meu corpo, ou do meu destino,
debruçado sobre as ruas e as praças, sobre os gestos e os rostos,
sempre iguais e sempre diferentes como afinal as paisagens são.
(...)
´Qualquer estrada, esta mesma estrada de Entepfuhl, te levará até o
fim do mundo´. Mas o fim do mundo, desde que o mundo se
consumou dando-lhe a volta, é o mesmo Entepfuhl de onde se partiu.
Na realidade, o fim do mundo, como o princípio, é o nosso conceito
de mundo. É em nós que as paisagens têm paisagem. Por isso, se
as imagino, as crio, se as crio, são; se são vejo-as como às outras.
(...)
A vida é o que fazemos dela. As viagens são os viajantes. O que
vemos, não é o que vemos, senão o que somos. (Fernando Pessoa
Livro do desassossego)
ver, que não tenha havido ali uma análise, que um percurso não tenha sido traçado.
155
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Outro dia uma paciente me relatava sobre certas mudanças que
observava em sua relação com sua mãe. Esta sempre se colocara como uma
amiga e a filha achava-se privilegiada por ter uma relação tão legal com a mãe.
Sempre se sentira muito identificada com ela. Gostavam das mesmas coisas, ela
era uma parceira com a qual podia dividir tudo. Eis que, ultimamente, justamente
esta postura da mãe, que antes justificava que essa relação fosse percebida por
minha paciente como ótima, vinha lhe produzindo desconforto. Ela agora percebia,
contava-me, que ter uma mãe-amiga não lhe servia nas circunstâncias que a vida
neste momento lhe apresentava, que mais do que nunca precisava de uma mãe-
mãe. Ao mesmo tempo, relata que sua percepção em relação ao pai também
estava sofrendo mudanças. Sempre achara que ele era um pai ausente, não era
bom pai porque não era um pai-amigo. Mas agora percebia que este era um
discurso da sua mãe! Aos poucos vai se dando conta de que seu pai fez-se
presente em sua vida de uma forma muito mais efetiva que a mãe, que ele tinha lhe
transmitido valores, que ele estava sempre lá para ela, não como amigo, mas como
pai e que isso era muito mais importante do que ser amigo.
Esta é apenas uma vinheta clínica que remete aos processos de
ressignificação que se instauram ao longo de uma análise. O cotidiano da clínica é
cheio destes exemplos, momentos relatados pelos próprios pacientes de que algo
está diferente, de que novos sentidos puderam se apresentar a eles, de que as
coisas já não estão no mesmo lugar. Quando decidi escrever sobre os
156
processos de ressignificação da história de vida na análise, eram estes
momentos do cotidiano da clínica que se colocavam como questão. Ecoavam
em mim, as vozes de vários pacientes em momentos distintos de suas análises, que
me falavam sobre a demarcação de um antes e um depois em relação ao modo
como viam e vivenciavam questões de seu cotidiano, visões que tinham sobre si
mesmos e sobre os outros, maneiras de reagir diante de certas situações. Queria
entender melhor o que estava em jogo ali, o que possibilitava estas mudanças e
como elas se entrelaçavam com os efeitos curativos de uma análise. Não seriam
justamente estes movimentos observados a cada sessão os responsáveis
pelas mudanças fundamentais que uma análise pode proporcionar? Em que
medida boa parte dos efeitos de uma análise não se deviam a possibilidade de
ressignificar a própria história?
Na tentativa de mapear o que está envolvido nos processos de
ressignificação, inúmeros temas se impuseram. Obviamente foi preciso fazer
escolhas e o caminho traçado aqui é apenas um dos caminhos possíveis para
abordar este assunto.
O primeiro eixo do debate tratou da questão do tempo, com ênfase
especial para a temporalidade psicanalítica. Vimos como a psicanálise propõe
pensar um tempo heterogêneo, que caminha em múltiplas direções, contradizendo
uma concepção de tempo linear, cronológica ou unidirecional. Assim, ela põe em
questão o entendimento do tempo proposto pela racionalidade clássica, que busca
uma presença plena, um perfeito agora, onde as coisas pudessem ser apreendidas
em sua verdade mais estável, em sua essência, como “realmente são”,
157
independentemente da passagem do tempo. Se o que mais interessa para a
psicanálise é situar o sujeito em relação ao tempo, então ela coloca-se justamente
na direção oposta, dado que um sujeito está sempre em movimento, em
construção, transformando-se com a passagem de um tempo que também não é
apreensível em si, pois não pára jamais de passar, nem tampouco volta, ou seja, é
irreversível. O sujeito em questão, o sujeito moderno, é afetado de modo muito
particular pela passagem do tempo, transformado por ela, e disso tenta dar
conta produzindo narrativas sobre si mesmo que jamais podem apreendê-lo
em sua totalidade.
Dentre os vários pontos levantados em relação ao tempo, um deles
é situado como de primordial importância para o encaminhamento desta tese, a
noção freudiana de Nachträglichkeit. Vimos como ao longo da obra de Freud o uso
do termo passa de algo mais pontual, vinculado às duas cenas envolvidas no
trauma, para algo mais abrangente, que envolve uma reordenação da história de
vida como um todo. Esta noção permite pensar a temporalidade envolvida no
ato de narrar-se, ato este que coloca o sujeito sempre deslocado
temporalmente em relação àquilo que conta sobre si mesmo. É a partir da
noção de Nachträglichkeit que pode-se pensar a história de vida do sujeito
não como uma história dada, resumida em fatos, mas como algo que está em
constante construção/desconstrução e é sempre passível de ser
ressignificada. Contudo, isso não é o mesmo que falar em pura criação, invenção
de uma nova vida, uma vez que um sujeito está sempre remetido a certas
determinações que lhe antecedem e precisa, ao longo da vida, posicionar-se diante
deste legado, deste “pacote” que recebe ao nascer.
158
O capítulo II é dedicado a pensar sobre os efeitos da
temporalidade do Nachträglichkeit do lado do analista, cujo trabalho de escuta
está sempre acompanhado por uma dimensão de não-saber, uma vez que não
pode antecipar os efeitos de seu ato, aos quais só tem acesso em um
momento a posteriori. Isso tem implicações para a posição que ocupa na
transferência, na qual um saber lhe é suposto, isto é, ele precisa sustentar esta
suposição de saber para que a análise seja possível, mas sem de fato ocupar o
lugar daquele que sabe. Tendo ele próprio passado por uma experiência de análise,
esta lhe permite ocupar o lugar de semblante, o lugar de nada, para que possa
surgir ali o sujeito da análise, o sujeito do desejo. No entanto, seu lugar de analista
não está garantido de uma vez por todas pela sua própria análise ou pelo fato de
que ele tem pacientes que lhe endereçam um pedido de análise, mas precisa ser
refundado a cada novo ato, em um constante movimento de autorização. Neste
sentido, podemos dizer que não há autorização ao ato, mas que a autorização
é simultânea ao ato, o que, em outras palavras, é o mesmo que dizer que não há
nunca um analista “formado”, pronto, autorizado.
Assim, temos de um lado um analista cujo saber é apenas suposto,
ou seja, um analista que não tem um conhecimento prévio sobre o inconsciente
daquele que lhe pede uma análise. De outro lado, temos um analisando que não
sabe o que diz, que é justamente convocado a falar sobre o que não sabe. Ou
seja, tanto o analista quanto o analisando estão alienados em relação ao desejo
daquele que se apresenta à análise e descobrem juntos, ao longo do processo, algo
sobre as determinações inconscientes que estão em jogo para aquele sujeito
159
singular, algo sobre sua posição frente ao Outro, sobre sua maneira de gozar e
sofrer.
Que um sujeito esteja alienado em relação ao seu desejo, que ele
não seja se não representado em seu próprio discurso, tem implicações no modo
como narra sua história de vida, na maneira como se conta. A crítica levantada em
torno do “approach narrativo”, movimento que busca uma aproximação entre o
processo analítico e a construção de uma narrativa, gira justamente em torno da
idéia, defendida por estes autores, de que uma análise possibilitaria a construção
de uma história mais apropriada e mais coerente sobre si mesmo. Em diferentes
momentos desta tese, levanta-se a questão de que o neurótico tende a criar um
enredo coerente a respeito da própria vida, um romance que tece para dar
conta dos enigmas que lhe fundam e que o papel da análise seria muito mais
o de desconstrução deste script do que propriamente da criação de uma
história mais bem acabada para o sujeito, sem furos e incongruências.
Privilegiar a enunciação em relação ao enunciado, o significante
em relação ao significado, a pontuação em relação às interpretações explicativas,
aponta para uma postura ética e uma técnica que visam evitar os riscos de
compreender demais, perigo em relação ao qual Lacan não cansou de fazer
advertências em seu ensino. Desta maneira, ele denunciava uma clínica que
enfatiza o eixo imaginário, cujas intervenções não fazem mais que injetar sentido,
alimentando a tendência neurótica ao excesso de sentido, ao invés de
proporcionar ruptura. Embora o termo ressignificação remeta à possibilidade de
aceder a novos sentidos, ao longo desta tese é marcada a importância de tomar a
160
análise como um lugar onde se aponte para a polifonia do significante, o que não
é o mesmo que fazer intervenções que tendam ao fechamento em sentidos
imaginários, ou que se coloquem como a verdade sobre aquele sujeito. Como
vimos, este tipo de intervenção muitas vezes faz uso do próprio corpo teórico da
psicanálise para “colar” um saber à fala do analisando, tendo a pretensão de
decifrar o que está “verdadeiramente” “por trás” do que é dito. Contudo, ressalta-se
que o trabalho com o significante não precisa implicar uma desconsideração
da importância dos enredos, dos mitos e das histórias que dão consistência
imaginária a um sujeito e concluí-se que mesmo para poder fazer a escuta do
significante, tais histórias precisam ser levadas em conta pelo analista, como parte
indispensável da estruturação de um sujeito. Ou seja, uma escuta não pode
prescindir de escutar também o imaginário.
Salienta-se ainda que, submetido que está às leis da linguagem,
sempre um resto que um sujeito não pode dizer, que não cabe em palavras
porque não chega na ordem simbólica, permanecendo como real. Desta maneira,
embora afirme-se que o próprio movimento de ressignificação - que lida com um
material que já estava no campo da representação - possa contribuir para que
novos elementos do real venham a ser representados, há sempre algo que jamais
entrará para o campo do sentido. Assim sendo, apesar da importância atribuída aos
processos de ressignificação para os efeitos gerados por uma análise, há também
que se reconhecer os limites em relação a tais processos. Tais limites dos efeitos
da ressignificação em uma análise são encontrados tanto na idéia de que há
sentidos que jamais são refeitos, quanto no fato de que restará sempre algo do real
que nunca terá acesso ao simbólico. Isto significa que ao falar sobre a
161
construção/desconstrução da história de vida em análise há que se
considerar que o que se coloca como resto, como impossível de ser dito,
como o real que insiste em não se inscrever se faz presente na história do
sujeito tanto quanto as ressignificações que ele pode fazer ao longo do
percurso de análise.
Ao levar tudo isso em conta quando pergunta-se sobre que tipo de
narrativa se constrói em uma análise, há um afastamento cada vez maior da idéia
de que a análise traria mais coerência para o discurso do analisando sobre si
mesmo. A narrativa que se tece na análise não cabe nos moldes de uma
narrativa tradicional com início, meio e fim. Como visto no capítulo IV, o
percurso traçado ao longo da análise se reflete em uma narrativa que se desprende
da pretensão neurótica de tudo dizer, de tudo explicar. A simbolização da
castração que ali ocorre permitiria ao sujeito, como coloca Kehl (2001a) “criar
uma ficção mais imprecisa, cheia de elipses, que suporte os enigmas em vez
de tentar esclarecê-los todos” (p.89). Ou ainda, com Leguil (1993) podemos dizer
que a análise não produz um sujeito que se conhece melhor, mas um sujeito que
sabe que jamais se conhecerá por completo. Dito de outro modo, se a análise
propicia uma experiência do inconsciente e se, segundo Lacan, o
inconsciente se define como um saber que não se sabe, podemos dizer que,
ao passar por essa experiência, um sujeito pode vir a contar-se, a narrar-se,
levando em consideração a dimensão de não-saber na qual está imerso.
Para além dos processos de ressignificação, muitas outras coisas
acontecem ao longo da experiência analítica. Um reposicionamento do sujeito frente
162
às suas determinações, a travessia do fantasma, o deixar cair de certas
idealizações, um reposicionamento diante do Outro, um encontro com sua
castração e com a castração do Outro, tudo isso circunscrito pela relação
tranferencial. Estes inúmeros movimentos deflagrados pela análise tornam
impossível a tarefa de dizer exatamente o que gera qual efeito. Neste sentido,
não há como delimitar com precisão o que é resultado dos processos de
ressignificação e o que é resultado de outros movimentos. Mesmo que, para fins
didáticos, uma reflexão sobre as diferenças entre, por exemplo, o trabalho de luto,
a elaboração psíquica e a ressignificação tenha sido feita, concluí-se que tais
processos não são de todo separáveis, assim como também não se pode
separar a ressignificação de todo o resto do dispositivo analítico.
Como já foi afirmado, os processos de ressignificação não são
privilégio da análise, mas acontecem cotidianamente com pessoas que nunca se
submeteram a ela. Em parte isso também é verdade para outros movimentos
deflagrados pela análise, que podem se dar com pessoas que jamais a
experienciaram. Não é incomum que a fala de um amigo, uma experiência de perda
ou mudanças em geral vivenciadas ao longo da vida - tais como o casamento, a
chegada de um filho, uma separação ou uma doença grave - gerem momentos de
crise que obrigam o sujeito envolvido a algum tipo de deslocamento do lugar
subjetivo antes ocupado por ele. Ou seja, também não é possível saber
exatamente o que é efeito da análise e o que é desencadeado pela passagem
do tempo, pelos acontecimentos da própria vida, com suas injunções,
surpresas e impasses que exigem do sujeito um trabalho de
reposicionamento subjetivo. O que lança alguma luz sobre tal constatação é um
163
ponto levantado pelo próprio Freud, como vimos no capítulo I, que se refere a idéia
de trabalho psíquico. Freud coloca que o trabalho psíquico realizado em uma
análise é, na verdade, análogo, ao trabalho espontâneo feito cotidianamente
pelo aparelho psíquico.
Tal constatação não almeja de maneira alguma dizer que tanto faz
fazer ou não fazer análise. Esta tese procurou demonstrar justamente o contrário,
ou seja, que o processo de análise marca um sujeito, faz diferença, uma vez
que suas condições intensificam este trabalho espontâneo do aparelho
psíquico. Assim, o percurso teórico-clínico aqui traçado permite afirmar que a
análise cria um espaço privilegiado para que processos de ressignificação se
dêem. Ao ser convidado a falar sobre si dentro de uma relação transferencial e
submetido à regra da associação livre, o analisando terá que se haver com sua
própria história, encontrar-se com o que lhe determina, posicionar-se diante de um
legado, abrir o “pacote” que lhe cabe e fazer algo com ele. Ao contar-se/recontar-
se no ir e vir de uma temporalidade multidirecional, ao construir/desconstruir
sua história, ele invariavelmente a ressignifica. As ressignificações, juntamente
com os outros movimentos deflagrados pela análise, permitem ao sujeito ocupar
outras posições subjetivas, ou seja, promovem mudanças estruturais que vão bem
além da simples remoção dos sintomas.
Mas para que tais mudanças sejam possíveis é necessário que a
própria análise se coloque como uma experiência para o sujeito que a ela se
aventura, sob o risco de que tenhamos ali a instalação de um “setting”, que o par
analítico compareça às sessões, sem que nada se passe. No capítulo IV, a análise
164
é colocada como um espaço no qual a experiência de um sujeito pode ser
legitimada. Desprovido que está das redes sociais que o sustentavam nas
sociedades tradicionais e que lhe indicavam um caminho referente a como deveria
levar sua vida, o sujeito moderno defronta-se com o imperativo de construir
sozinho um sentido para a própria vida, ficando para ele cada vez mais difícil
poder compartilhar sua experiência, que se apresenta sempre como única e
individual. Se por um lado a análise constitui-se em um espaço no qual o
analisando pode dar testemunho desta experiência radical de isolamento que a
condição de homem moderno lhe impõe, se ela se coloca justamente como uma
escuta respeitosa do que ali se apresenta como singular, dando voz e lugar
para tudo o que naquele sujeito poderia ficar como experiência marginal e não
reconhecida, ao mesmo tempo, ela também convoca o analisando a desprender-se
de suas ilusões de autonomia. Isto é, ela remete o sujeito a sua condição de
efeito da linguagem, da cultura, da matriz simbólica que o antecede, ou ainda,
ao fato de que ele não é o único autor de sua história, que parte dela já foi
escrita antes dele nascer. Que um sujeito possa reconhecer uma dívida em
relação a sua filiação traz efeitos para a história que tece sobre si mesmo,
uma vez que pode incluir aí o reconhecimento de que ele é, ao mesmo tempo,
tecido por ela. É por esta razão que, ao longo desta tese, o uso do termo
construção aparece sempre acompanhado do termo desconstrução, uma vez
que para construir sua história, um sujeito precisa invariavelmente engajar-se
em um processo simultâneo de desconstrução.
Assim, a análise é uma aposta de que algo do real possa ser trazido
para o simbólico, ou, que algo que é da ordem de uma experiência, possa ser
165
transposto para a palavra. Mas, esta legitimação da experiência só poderá ocorrer
sob a condição de que a própria análise possa se dar como uma experiência,
ou seja, que ela possa passar pelo corpo do sujeito. É preciso que haja um
movimento, um exercício, uma atividade, um certo percorrer. A palavra alemã
Erfahrung (experiência) vem do prefixo fahr que quer dizer atravessar uma região
durante uma viagem (Gagnebin, 2004). A análise é, então, tomada como uma
viagem, na qual um caminho é percorrido e da qual um sujeito não sai igual.
Depois dessa experiência, ele está fadado a ver o mesmo com outros olhos, o
que estaria no cerne do que podemos entender por ressignificação.
A ressignificação da história de vida, de acordo com o percurso
traçado ao longo desta tese, poderia ser resumidamente compreendida como um
movimento constante de busca de novos sentidos para a vida ou aspectos dela,
movimento esse que aconteceria como conseqüência de uma temporalidade
multidirecional e como efeito de uma demanda da modernidade que exige do
sujeito a ininterrupta construção de uma narrativa original e criativa da própria vida.
Estes processos de ressignificação envolvem um constante trabalho psíquico, que
pode acontecer espontaneamente, mas que é intensificado no espaço analítico,
e que promove mudança no lugar subjetivo ocupado por um sujeito. Tais
processos são parte importante dos efeitos gerados por uma análise, desde que
possam ser registrados como experiência pelo sujeito que a ela se submete.
Quanto ao percurso realizado aqui e que agora chega ao seu fim,
ele também coloca-se como uma experiência da qual não saímos os mesmos, ou
como um testemunho, uma tentativa de compartilhar algo da experiência
166
intransponível e solitária que é a clínica psicanalítica. Tal como o sujeito da
análise, um psicanalista está na constante busca de encontrar o que é seu, seu
próprio estilo de trabalhar, sua própria concepção do que seria uma psicanálise e
faz isso referido a uma herança que recebeu e recebe em seu infinito percurso de
formação. Escrever uma tese é dar lugar para se pensar a própria clínica, que
autores nos influenciam, com que tipo de prática nos identificamos e, mais ainda,
como nos colocamos singularmente diante deste legado prático e teórico, como
somos atravessados pelas leituras, pelos debates dos quais participamos, pelas
experiências que temos como analistas, como analisandos, como supervisores,
como supervisionandos, ou simplesmente como viventes. A escrita sobre a clínica
se coloca como um momento a posteriori no qual um analista pode pensar
sobre seus atos, refletir sobre sua prática cotidiana e, é claro,
constantemente, também, ressignificá-la.
167
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