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CRISTIANE CURI ABUD
Dores e Odores
Distúrbios e destinos do olfato
Dissertação de Mestrado em Psicologia Clínica
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Psicologia Clínica
Núcleo de Psicanálise
São Paulo, 2006
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CRISTIANE CURI ABUD
Dores e Odores
Vicissitudes do olfato
Dissertação apresentada à banca examinadora
da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, como exigência parcial para obtenção do
título de Mestre em Psicologia Clínica, sob
orientação do Prof. Dr. Renato Mezan
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BANCA EXAMINADORA
____________________________________________
(Nome e Assinatura)
____________________________________________
(Nome e Assinatura)
____________________________________________
(Nome e Assinatura)
Tese defendida e aprovada em _____/_____/_____
Para o querido Lucas
cujo cheirinho,
inspiração desse trabalho,
jamais esquecerei.
“E eu tive de partir sem viático; tive de subir cada degrau
“contra o coração”, como se diz, subindo contra o meu coração,
que desejava voltar para junto de minha mãe
porque ela não lhe havia dado,
com um beijo, licença de me acompanhar.
Essa escadaria detestada, que eu sempre subia tão tristemente,
exalava um cheiro de verniz que havia de certo modo absorvido
e fixado aquela espécie particular de mágoa
que eu sentia cada noite e tornava-a talvez ainda mais cruel
para minha sensibilidade, porque, sob essa forma olfativa,
minha inteligência não mais podia tomar parte nela.
Quando estamos dormindo e uma dor de dentes
só se apresenta de início, a nossa percepção
, como uma rapariga que nos esforçamos duzentas vezes seguidas
por tirar da água ou como um verso de Molière
que repetimos sem cessar, é um grande alívio despertarmos,
para que nossa inteligência possa enfim
desembaraçar a idéia de dor de dentes
de qualquer disfarce heróico ou ritmado.
Era o inverso desse alívio o que eu sentia quando
minha dor de subir para o quarto penetrava em mim
de modo infinitamente mais rápido, quase instantâneo,
ao mesmo tempo insidioso e brusco,
pela inalação – muito mais tóxica que a penetração moral –
do cheiro de verniz peculiar àquela escada.
Já em meu quarto, tive de fechar todas as saídas,
cerrar os postigos, cavar meu próprio túmulo
enquanto virava as cobertas,
vestir o sudário de minha camisa de dormir.”
Marcel Proust – No caminho de Swann
AGRADECIMENTOS
Agradeço ao meu orientador, mestre e amigo, Prof. Dr. Renato Mezan, pela
dedicação com que conduziu nosso trabalho, pelo brilhante exemplo de
profissional e pesquisador, e principalmente, pelo exemplo de pessoa, no qual me
inspirei para escrever esse trabalho.
Ao Prof. Dr. José Atílio Bombana pela integridade e apoio que há anos
dedica ao meu trabalho na equipe dos Somatizadores, da UNIFESP.
Ao Prof. Dr. Flávio Carvalho Ferraz pela generosidade com que me ajudou
a trilhar o árduo caminho da teoria psicanalítica, e pela paciente minúcia de suas
leituras.
Aos amigos, pais e irmãos de coração, Vera Zimermann, Getúlio Ponce
Dias, Ana e Henrique Zimermann, pelo amor e atenção que me têm dedicado.
À Maria Laurinda Ribeiro de Souza, madrinha de profissão, pelo exemplo,
apoio e carinho, fundamentais em minha carreira.
Às minhas colegas e amigas de pós, Tatiana Inglêz Mazzarella, Liz Andréa
Mirim e Gina Tamburrino, pelas intermináveis discussões e pelas boas risadas.
À Amanda Perez Pinos, por ter me ensinado que, na vida, sempre há
cheiros novos e bons chegando.
À equipe do Programa de Atendimento e Estudos de Somatização da
UNIFESP, pelas profícuas e criativas discussões. Ao amigo e irmão, Ricardo de
Almeida Prado, pela tranqüilizadora parceria em atendimentos tão difíceis.
À amiga e parceira Ana Cecília Lucchese, pelo constante apoio e carinho.
À minha família: minha mãe, Neusa, que me ensinou a amar-cheirar; ao
meu pai, Romeu, que me ensinou a pesquisar e classificar os cheiros; à minha avó
Fádua, que faz a comida mais cheirosa do mundo; à minha madrinha Wilma,
cheiro sempre presente em minha vida; ao meu irmão Fernando e sua esposa
Colette, que perfumaram a minha vida com meu sobrinho João Francisco, que
adora passar perfume.
Finalmente, ao CNPq, pela bolsa concedida, que me permitiu realizar parte
desta pesquisa.
RESUMO
Esta dissertação de mestrado resulta de atendimentos realizados com duas
pacientes cuja queixa inicial era a de uma alergia a cheiros de determinados
produtos ou objetos. No decorrer destes atendimentos, fez-se clara a conexão
entre a alergia e eventos emocionais traumáticos das vidas das pacientes em
questão.
Como a literatura psicanalítica oferece poucos estudos sobre o assunto,
apelo para outras áreas do conhecimento humano que podem ampliar e fornecer
outras abordagens para o assunto estudado. Num primeiro momento realizo uma
pesquisa sobre a história cultural dos aromas, visando descobrir os diversos
significados que a civilização pôde ir atribuindo aos aromas através dos tempos.
Em seguida, pesquiso sobre as bases biológicas do olfato, com o objetivo de
conhecer suas funções, no que concerne à preservação da espécie.
A partir desta prévia pesquisa cultural e biológica, realizo uma análise dos
dois casos, baseando-me na literatura psicanalítica que se dedica a estudar as
relações entre mente e corpo. Assim, consulto desde Freud até Pierre Marty,
Joyce McDougall e Dejours, na tentativa de construir uma compreensão da
dinâmica psíquica das pacientes apresentadas, focalizando a questão do olfato,
suas alergias e sua relação com o mundo psíquico.
Apresento ainda uma compreensão do livro O perfume, de Patrick Süskind,
com o intuito de realizar uma compreensão psicopatológica de seu protagonista,
cuja vida era regida pelo sentido do olfato. Trata-se de uma ficção, mas a
finalidade metodológica e didática de analisar um personagem é apenas estimular
o pensamento analógico, sugerir esquemas de inteligibilidade que possam, talvez,
permitir uma ação clínica mais eficaz.
Finalmente, a pesquisa culmina com uma apresentação do escasso
material psicanalítico sobre o assunto, e a discussão da seguinte questão:
podemos, afinal, usar o termo pulsão olfativa?
ABSTRACT
This dissertation results from psychotherapy processes of two patients who
were allergic to certain smells of some kinds of products or objects. The connection
between their allergy and their emotional traumas , seemed to be clear, during
these psychotherapies.
As psychoanalitic literature doesn’t offer many studies about olfaction, other
areas of human knowledge were used to approach this subject. Firstly, I
researched on scents’ cultural history , in order to look for the meanings that
civilization gave to scents throughout times. Then, I researched on biological bases
of olfaction, to know its biological functions.
After this cultural and biological researches, I did psychoanalytical analysis
of this two patients. This research is based on psychoanalytical authors who tried
to study the relationship between body and mind. Since Freud to Pierre Marty,
Joyce McDougall and Dejours, I built an psychological comprehension of this
patients, focusing on olfaction, their allergies and relationship with their psyche.
Still, I present a comprehension of the book “The perfume” from Patrick
Süskind, aiming to comprehend character’s psychopathology, whose life was lead
by his olfaction. Although it’s a fiction, the metodological purpose of analysing a
character is just to estimulate the analogical thought.
Finally, this study culminates with presentation of rare psychoanalytical
material on this subject and discuss the following question: Can we use the term
“ olfactory drive”?
SUMÁRIO
CAPÍTULO I – DO FARO AO OLOR 1
1.1. O faro 1
1.2. O recalque 5
1.3. O olor: sublimes aromas 10
1.3.1. A Antiguidade 10
1.3.2. A Idade Média e o Renascimento 17
1.3.3. Século XVIII 20
1.3.4. Do Século XIX até os dias de hoje 21
CAPÍTULO II – CASOS CLÍNICOS 24
2.1. Bernarda 25
2.1.1. Destinos da pulsão 29
2.1.2. Narcisismo e relação de objeto 34
2.1.3. Contratransferência 43
2.1.4. Algumas considerações 47
2.2. Leila 49
2.2.1. Destinos da pulsão 54
2.2.2 Narcisismo, relação de objeto e contratransferência 61
CAPÍTULO III – A PERVERSÃO DOS FEDORES 63
3.1. “Inter faeces et urinas nascimur” 64
3.2. A revelação 68
3.3. O calvário 72
3.4. A assunção 85
3.5. A morte e ressurreição 87
CAPÍTULO IV – PODEMOS FALAR EM PULSÃO OLFATIVA? 89
4.1. A primeira teoria das pulsões 90
4.1.1. Fliess e o nariz 90
4.1.2. Freud: da anatomia ao sentido 91
4.1.3. A pulsão através das fases do desenvolvimento da libido 100
4.1.3.1. Abraham e a fase anal 100
4.1.3.2. Um salto no tempo 104
a) Anzieu e a fase oral 104
b) McDougall e a fase oral 109
c) Shengold e a fase fálica 111
4.2. A segunda teoria das pulsões 114
4.2.1. René Roussilon e as representações 114
4.2.2. Sechaud: olfato, da apresentação à representação 115
4.2.3. Jacoby: o status psíquico olfato 118
4.2.4. Stanley: olfato e mundo pulsional 120
4.3.Discussão 123
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 130
Capítulo I
Do faro ao olor
“A ciência comprovou recentemente aquilo que,
sem tanto estudo, toda mulher sabe há milênios:
que o desejo amoroso começa pelo nariz.”
Isabel Allende
1
1.1. O faro
“Mulher fareja genes do pai em camisetas de desconhecidos” diz a
manchete de um artigo publicado pela Folha de São Paulo em 21 de Janeiro de
2002, que descreve uma pesquisa feita pela Universidade de Chicago. O
experimento envolveu seis homens escolhidos pelo tipo de gene que tinham,
apresentando alguns genes em comum com as 49 mulheres que provariam seus
cheiros. As mulheres cheiraram as camisetas suadas destes homens e apontaram
qual odor escolheriam se tivessem que senti-lo o tempo todo. Os odores
escolhidos são de homens com genes não muito diferentes e nem muito
semelhantes aos genes delas; comparados com os genes dos pais e das mães,
constatou-se uma relação com os genes paternos. As mesmas pesquisadoras
2
anunciaram recentemente a descoberta de dois hormônios humanos ligados à
atração sexual pelo odor, os “feromônios”.
Segundo Ackerman
3
, a palavra feromônio vem do grego, pherein – carregar
e horman – excitar. O feromônio é exalado pela pele de uma pessoa e recebido
por um sensor situado na entrada da narina das outras pessoas, o que pode
explicar isto que chamamos de a “química” entre as pessoas. Outros experimentos
descritos em seu livro mostram que moças com amizade íntima freqüentemente
menstruam ao mesmo tempo; a barba de um homem, amorosamente envolvido
1
ALLENDE,I. (1997) Afrodite – Contos, receitas e outros afrodisíacos, Rio de Janeiro, Editora Bertrand
Brasil, 1998, p.50.
2
Martha K. McClintock e Kathleen Stern
3
ACKERMAN, D.(1990) Uma história natural dos sentidos, Rio de Janeiro, Editora Bertrand Brasil, 1996.
com uma mulher por um período de tempo, cresce mais rápido do que antes;
mulheres afastadas de homens num colégio interno tendem a entrar na puberdade
mais tardiamente; mães reconhecem seus filhos recém nascidos através do odor e
vice-versa.
Dolto
4
descreve a observação de um bebê recém-nascido, que foi
alimentado no seio nos primeiros dias de vida, e separado por três dias de sua
mãe; neste período recusava-se a mamar na mamadeira oferecida por uma
enfermeira, apesar de faminto. Envolveram a mamadeira com uma peça íntima da
mãe, usada recentemente, e o bebê saciou sua ‘fome’.
Do ponto de vista biológico, segundo Smith e Sheperd
5
, os sentidos químicos
do paladar e olfato possuem vários elementos comuns, mas diferem em alguns
aspectos significativos. Os sistemas do paladar e olfato consistem em extrair
informação de estímulos químicos do meio ambiente. Ambos respondem a uma
extensa gama de estímulos químicos; entretanto, os receptores do paladar são
células epiteliais modificadas, e os receptores do olfato são neuronais.
Conhece-se mais sobre a decodificação gustativa do que da olfativa, em
parte porque o paladar decodifica apenas quatro sensações elementares: amargo,
doce, salgado e azedo. Segundo Guyton
6
, tentou-se classificar as sensações
olfativas e chegou-se a sete tipos de estímulo
7
: canforado, almiscarado, floral,
mentolado, etéreo, picante e pútrido, mas o autor questiona esta lista dizendo que
pelas pesquisa há pelo menos 50 tipos primários de sensação olfativa, em
contraste com as três cores primárias e quatro gostos primários.
Para Smith e Sheperd estímulos olfativos despertam muitas sensações e
há menos concordância no que se refere àquilo que constitui qualidades básicas
4
DOLTO,F. (1982) No jogo do desejo, Rio de Janeiro, Zahar Editores S.A., 1984.
5
SMITH, D.V. & SHEPERD, G. M. , Taste and Olfaction.
6
GUYTON, A.C. Tratado de fisiologia médica, Rio de Janeiro, Editora Interamericana, 1977.
7
Conforme vimos, na p.3, em 330 a.C, Theopharastus já tentava fazer tal classificação.
do odor. Ambos sistemas apresentam forte adaptação frente à estimulação
contínua: após um minuto de estimulação os receptores olfativos se adaptam ao
odor fazendo cessar a sensação olfativa; ambos são importantes para a
sobrevivência da espécie, pois ajudam a selecionar alimentos e evitar a ingestão
toxinas. Estímulos olfativos propiciam sinais úteis às relações sociais,
especialmente àquelas ligadas à reprodução e relação mãe-bebê.
O sistema olfativo deve cumprir com sua função de proteger a
sobrevivência: deve detectar e discriminar considerável número de sinais-
moléculas que mediam comportamentos instintivos envolvidos na interação presa-
predador, na seleção de alimentos, na reprodução e na organização social. Deve
ainda ser capaz de detectar e discriminar novos odores que entram no ambiente
de modo imprevisível como um sensor à distância que protege o organismo de
conteúdos tóxicos ou venenosos do ambiente. Para tanto os animais
desenvolveram sistemas olfativos que começam com mecanismos de tradução e
decodificação da informação carregada nos agentes de estímulos químicos
olfativos. A informação decodificada é projetada em genes receptores olfativos
que através de sinapses vão constituir uma imagem neuronal do estímulo olfativo.
Os mecanismos neuronais da discriminação olfativa envolvem circuitos sinápticos
que extraem e comparam a informação em diferentes espaços do bulbo olfativo.
Daí a informação é projetada para o córtex olfativo vinculado ao sistema límbico.
Este último controla emoções básicas como ansiedade, medo, agressividade, de
maneira a regular os processos corporais de fome, da sexualidade, sono e vigília.
Os odores são compostos de ácidos, álcools, “esters”, componentes aromáticos,
assim como de moléculas mais complexas como “musks” e esteróides, alguns dos
quais compõe os feromônios. Os seres humanos discriminam facilmente estímulos
visuais, e animais discriminam mais facilmente estímulos olfativos. O sistema
olfativo tem que discriminar, geralmente, uma gama de diversos e complexos
odores.
As células receptoras dos estímulos olfativos nos animais verterbrados, são
chamadas generalistas, ou seja, respondem a uma vasta gama de diferentes tipos
de moléculas. Em contraste há as células especialistas capazes de detectar
apenas um tipo de molécula do ambiente, como por exemplo, o feromônio.
O reino animal também é afetado pelos odores. Os animais demarcam
território por meio do cheiro: os ratos molham suas patas na própria urina
marcando o solo que pisam, os antílopes marcam árvores com glândulas
odoríferas localizadas em suas caras; o texugo arrasta seu ânus pelo chão
demarcando-o com seu cheiro. Os gambás usam o próprio odor como defesa;
para os insetos é o único meio de comunicação. No que se refere à sexualidade
os exemplos são inúmeros: a borboleta macho da família Danaidae viaja de flor
em flor, colhendo seus cheiros até formar um buquê ideal para atrair sua fêmea;
as ratas discriminam pelo cheiro as diferenças genéticas existentes entre os
machos em potencial, conseguindo ler detalhes dos sistemas de imunidades dos
outros animais, realizando assim sua escolha de acasalamento. As ratas não se
basearam no próprio cheiro para fazer a escolha, mas na lembrança olfativa de
seus progenitores. As mamães-foca e as mamães-morcego saem de seus
territórios em busca de alimento e ao retornarem, distinguem seus filhotes entre
milhões, através do cheiro. Ackerman
8
conta que num rancho em Novo México viu
o fazendeiro tirar a pele de um bezerro natimorto e amarrá-la às costas de um
bezerro órfão que foi imediatamente adotado pela mamãe-vaca.
Estes exemplos ilustram a intensa presença do olfato em nossas vidas.
Cada vez que respiramos, e o fazemos aproximadamente 23.040 vezes ao dia,
sorvemos aromas, muitas vezes sem nos darmos conta deles. Sempre presentes,
os odores são percebidos, muitas vezes, de forma subliminar. Somos capazes de
distinguir mais de 10.000 tipos de aromas diferentes
9
, mas não nos detemos para
observá-los e discriminá-los, a não ser em ocasiões específicas, como quando
provamos um perfume ou nos concentramos no perfume de outrem ou sentimos
8
ACKERMAN, D.(1990) Uma história natural dos sentidos, op.cit.
9
ALLENDE,I. (1997) Afrodite – Contos,receitas e outros afrodisíacos, op.cit.
um cheiro estranho e nos detemos para decifrá-lo. A título de curiosidade, o
mercado internacional de perfumaria e cosmética gira por ano cerca de U$150
bilhões
10
. Robert Parker, o maior avaliador de vinhos do mundo, tem um olfato
sobrenatural: experimenta 10.000 vinhos por ano e garante lembrar-se
detalhadamente de cada um deles. Ao saber que um crítico inglês perdeu
completamente o olfato após os 50 anos, Robert Parker fez um seguro de seu
olfato no valor de 1 milhão de dólares.
11
1.2. O recalque
Freud destaca a importância do sentido do olfato no psiquismo humano,
em cinco textos ao longo de sua obra
12
, atribuindo-lhe um papel considerável na
origem da repressão sexual e conseqüentemente nas manifestações psíquicas.
Basicamente a idéia desenvolvida por Freud ao longo destes textos é de que o
sentido do olfato era preponderante no homem antes que este assumisse a
postura ereta. A partir de então, este sentido perdeu sua posição para a visão e a
sexualidade sofreu uma ‘repressão orgânica’. Freud apresenta esta idéia pela
primeira vez em 1897 e a mantém até o final de sua obra.
Em O mal-estar na civilização
13
(1930), encontramos a idéia em seu
desenvolvimento mais completo
14
. Freud pergunta-se a que influências o
desenvolvimento da civilização deve sua origem, como ela surgiu e o que
determinou seu curso. E conclui que o homem descobriu que sua sobrevivência
na terra dependia de seu trabalho e para isto associar-se a outro homem facilitaria
10
Dado extraído do jornal A Folha de São Paulo, do dia 3 de Julho de 2002.
11
Revista Veja – edição 1746 – ano 35 – no. 14 – 10 de abril de 2002).
12
Normalmente, estas considerações aparecem em notas de rodapé.
13
FREUD,S., O mal-estar na civilização (1930), In: Ed. Standard Brasileira das Obras Psicológicas
Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1974, Vol. II.
14
No último capítulo dessa dissertação apresentaremos o desenvolvimento completo dessas idéias de Freud,
começando por sua correspondência com Fliess até o texto O mal estar na civilização.
sua tarefa. Antes disto, o homem adotara o hábito de formar famílias e seus
membros foram seus primeiros companheiros de trabalho. Freud supõe que a
formação de famílias se deu quando a satisfação da necessidade genital não era
mais restrita aos períodos férteis, mas sua periodicidade modificou-se, tornando-
se permanente. Quando isso aconteceu o macho teve um motivo para manter a
fêmea perto de si o que interessou à fêmea na medida em que o macho protegia a
ela e seus rebentos. Freud atribui esta mudança na periodicidade sexual à
diminuição dos estímulos olfativos através do qual o processo menstrual produzia
efeito sobre a psique masculina. Seu papel foi assumido pelas excitações visuais
que produzem um efeito permanente em contraste com os estímulos intermitentes
do olfato. “O tabu da menstruação deriva desta ‘repressão orgânica’, como defesa
contra uma fase do desenvolvimento que foi superada”
15
.
A diminuição dos estímulos olfativos se deve à adoção da postura ereta o
que tornou os órgãos genitais, antes ocultos, visíveis e necessitados de proteção,
o que provocou um sentimento de vergonha. Diz Freud:
“O processo fatídico da civilização ter-se-ia assim estabelecido com a
adoção pelo homem de uma postura ereta. A partir desse ponto, a cadeia de
acontecimentos teria prosseguido, passando pela desvalorização dos estímulos
olfativos e o isolamento do período menstrual até a época em que os estímulos
visuais se tornaram predominantes e os órgãos genitais ficaram visíveis e, daí,
para a continuidade da excitação sexual, a fundação da família e, assim, para o
limiar da civilização humana. Isso não passa de especulação teórica, mas é
suficientemente importante para merecer uma averiguação cuidadosa a respeito
das condições de vida que predominam entre os animais estreitamente
relacionados ao homem.”
16
A tendência cultural do homem para a limpeza origina-se no impulso de
livrar-se das excreções desagradáveis aos sentidos. As crianças não têm esta
tendência, não sentem repugnância pelos excrementos que ao contrário lhes são
valiosos, parte do próprio corpo que se separou. A educação trata de ensinar-lhes
a repugnância.
15
FREUD,S., O mal-estar na civilização (1930), op.cit. 119.
16
Ibid.,p.120.
“Essa inversão de valores dificilmente seria possível, se as substâncias
expelidas do corpo não fossem condenadas por seus intensos odores a partilhar
do destino acometido aos estímulos olfativos depois que o homem adotou a
postura ereta. O erotismo anal, portanto, sucumbe em primeiro lugar à ‘repressão
orgânica’ que preparou o caminho para a civilização.”
17
Freud parte daquilo que é animal no homem, o olfato e sua relação inicial
com a sexualidade, e propõe a seguir, um corte, a adoção da postura ereta cuja
conseqüência seria o recalque de alguns instintos componentes e a instalação da
sexualidade humana, sujeita a desvios e manifestações que extrapolam a
finalidade de reprodução e preservação da espécie, tal como postulou nos Três
ensaios sobre a teoria da sexualidade
18
. Deste modo a sexualidade humana
diferencia-se nitidamente da sexualidade animal governada basicamente pelas leis
da reprodução. Nota-se que esta hipótese é levantada em 1897 e se mantém ao
longo da obra, mesmo depois de desenvolvidos conceitos como narcisismo,
complexo de Édipo, complexo de castração, fundamentais para a compreensão da
origem do recalque.
Recalcada e insatisfeita, a pulsão parcial olfativa pode manifestar-se
através de sintomas. Para citar alguns exemplos, encontramos na obra freudiana
dois exemplos clínicos de sintomas neuróticos relatados no caso Lucy
19
(1893),
paciente cujo sintoma conversivo é a perda do sentido do olfato para tudo exceto
um aflitivo cheiro de pudim queimado e cheiro de charuto; e em Notas sobre um
caso de neurose obsessiva
20
(1909) no qual o paciente relata que quando criança
reconhecia as pessoas pelo cheiro, tendo desenvolvido uma sensibilidade às
sensações olfativas. Nos quadros perversos Freud ressalta a importância do
prazer coprofílico de cheirar como determinante da escolha de fetiches. Pés e
cabelos são os fetiches mais freqüentemente encontrados, pois são objetos de
17
FREUD,S., O mal-estar na civilização (1930), op.cit.,120.
18
FREUD,S. (1905) Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, In: Ed. Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1974, Vol.VII.
19
FREUD,S. (1893) Estudos sobre histeria, In: Ed. Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas.
Rio de Janeiro: Imago, 1974, Vol. II.
20
FREUD,S. (1909) Notas sobre um caso de neurose obsessiva, In: Ed. Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1974, Vol. X.
forte odor
21
. Sintomas somáticos relacionados à região olfativa são muito
freqüentes: Miss Lucy sofria de rinite supurativa crônica e atendo uma paciente
cuja queixa principal é alergia a cheiros. Finalmente, um destino possível para a
pulsão olfativa, impossibilitada de “produzir satisfação completa quando submetida
às exigências da civilização” é tornar-se “fonte de nobres realizações culturais
determinadas pela sublimação”
22
.
Freud não usa a expressão “pulsão olfativa” assim como não encontrei
autores que a usassem. Encontrei apenas em Abraham “instinto osfresiofílico”
23
ao
relatar o caso de um fetiche por sapatos e corpetes
24
. Podemos falar em pulsão
olfativa? Quais seriam seus destinos?
Na tentativa de responder essa questão, convido o leitor a me acompanhar
na discussão de dois casos clínicos, nos quais, a questão dos odores é
fundamental. Trata-se de duas pacientes que atendi na triagem do Programa de
Atendimento e Estudos de Somatização do Departamento de Psiquiatria da
UNIFESP/HSP. As duas pacientes apresentavam queixas relacionadas a cheiros
que não suportavam e, assim, despertaram minha atenção e curiosidade para o
sentido do olfato e suas conexões com o mundo psíquico. Apresento, no Capítulo
II, este material clínico com a finalidade de ilustrar a questão, de mostrar como o
olfato e os sintomas dele decorrentes se manifestam em diferentes estruturas
clínicas.
As pacientes apresentadas reagem de maneira muito intensa e somática a
alguns cheiros, sendo a base orgânica desta reação bastante discutível, o que
nos leva a uma discussão com a psicossomática. Para tanto, seguirei dois
caminhos por conceitos, que considero fundamentais, quando a questão é a
relação mente e corpo.
21
FREUD,S. (1905) Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, In: Ed. Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1974, Vol.VII.
22
FREUD,S. (1912) Contribuições à psicologia do amor, In: Ed. Standard Brasileira das Obras Psicológicas
Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1974, Vol.XI.
23
O termo osfresia vem do grego ósphresi,s significando sensibilidade olfativa intensa, faculdade de sentir
facilmente os cheiros.
24
ABRAHAM,K. Psicoanálisis Clínico, Buenos Aires, Hornié, 1994.
O primeiro caminho refere-se aos caminhos e desvios pulsionais, o que pode
indicar com que tipo de sintoma estamos lidando (somatização, conversão,
hipocondria), assim como a capacidade psíquica de metabolizar experiências
afetivas, dependendo do grau de simbolização e da disponibilidade de
representações. Além disto, como a pulsão observada é a suposta “pulsão
olfativa”, esta discussão pode ilustrar a questão.
O segundo caminho refere-se ao narcisismo e seu contra-ponto, as relações de
objeto estabelecidas por estas pacientes, através do estudo da transferência e
contra-transferência. Novamente, o conceito “narcisismo” é fundamental para a
compreensão entre as relações mente e corpo, afinal, o ego é antes de mais
nada um ego corporal. O conceito de transferência, que remete às relações de
objeto, é fundamental para a discussão diagnóstica dos casos, uma vez que a
contra-transferência é um dado precioso dos pacientes, pois reflete seu padrão
de comportamento e vínculo. Mais ainda, o narcisismo das pacientes e o modo
como se relacionam com seus objetos fornecem pistas importantes dos seus
movimentos pulsionais, ou seja, como investem suas pulsões, como as
distribuem entre o próprio ego e os objetos.
Que outras vicissitudes ou destinos poderia sofrer esta pulsão? A clínica
apresenta inúmeras alusões ao olfato. Os pacientes, com freqüência, falam de
cheiros, perfumes ou fedores. Há pouco tempo, por exemplo, ganhei de uma
paciente uma essência para aromatizar ambientes, com a instrução de que
deveria usá-la em meu consultório! No decorrer desse texto cito algumas vinhetas
clínicas que colaboram para nossa discussão. Entretanto, não conheci outro
paciente cuja queixa central fosse relacionada ao olfato. E pensei, a partir de
textos do Freud e de Abraham, que a suposta pulsão poderia aparecer em
estruturas perversas.
Assim, decidi abordar o livro O Perfume de Patrick Suskind
25
,
apresentando, no Capítulo III, um personagem no qual o olfato prepondera sobre
25
SÜSKIND, P., O Perfume, história de um assassino, Rio de Janeiro, Editora Record, 1985.
os demais sentidos tornando-se o eixo da sua organização sexual. Trata-se de um
caso de perversão de um personagem fictício. A finalidade metodológica e
didática de analisar um personagem irreal é apenas estimular o pensamento
analógico, sugerir esquemas de inteligibilidade que possam, talvez, permitir uma
ação clínica mais eficaz. Apresentarei um resumo da história relatada no livro de
Patrick Süskind, e submetê-lo-ei à análise interpretativa psicanalítica, sustentada
pela revisão e estudo da bibliografia pertinente ao tema.
Finalmente, no Capítulo IV, discutirei a questão do ponto de vista teórico
utilizando o escasso material teórico-clínico que pude encontrar de colegas
psicanalistas preocupados com o olfato e sua articulação com o mundo pulsional.
Apresento um levantamento teórico realizado desde Fliess e suas pesquisas com
o nariz, passando por Freud, Abraham e autores atuais da psicanálise.
Dividirei este material teórico em dois tempos, sendo o primeiro discutido
sob o prisma da primeira teoria das pulsões e o segundo sob a ótica da segunda
teoria das pulsões.
Quanto às “nobres realizações culturais determinadas pela sublimação” da
pulsão olfativa, ofereço a seguir uma amostra do uso histórico e cultural dos
aromas.
1.3. O olor: sublimes aromas
26
1.3.1. A Antiguidade
Os perfumes existem há mais de quatro mil anos. A palavra perfume
significa per (através) fumum (da fumaça) e segundo a crença, os incensos
aromáticos produziam densas nuvens de fumaça através das quais orações e
26
Dados extraídos dos livro: THE METROLPOLITAN MUSEUM OF ART, Scents of time, Perfume from
the Ancient Egypt to the 21
st
Century, New York, 1999; e ASHCAR, R. Brasil essência, a cultura do
perfume, São Paulo, Nova cultural, 2001.
pedidos viajariam mais rápido até os deuses, assim como evocariam a alma dos
mortos. Assim, os incensos atraíam boas influências, conectando os humanos às
divindades, encaminhando suas preces, e agradando aos deuses.
No Egito encontraram-se registros escritos e pictóricos que revelam
informações sobre os costumes da época incluindo dados sobre a arte da
perfumaria. Os egípcios produziam aromas extraídos de pétalas e folhas
misturados com óleo, leite ou mel, compondo pomadas e loções que, como
hoje, prometiam evitar rugas, garantir a eterna juventude ou simplesmente
deixar a pele macia e hidratada, protegida do escaldante sol do Egito. Os
egípcios usavam um cone de sebo aromatizado nas cabeças para manter a
pele hidratada. Durante o dia, com o calor o aroma exalava e o cone derretia
cobrindo o corpo e os cabelos com perfume e óleo. Provavelmente estes cones
eram usados em cerimônias especiais, festivas por homens e mulheres.
Usavam o processo de maceração para produzir os cones e outros produtos.
Os cuidados de higiene do corpo eram muito valorizados, os sacerdotes, por
exemplo, tomavam três banhos ao dia, e os banhos eram verdadeiros rituais.
Usavam maquiagem colorida, pós feitos com henna e outros pigmentos naturais
que, misturados com água, serviam de rouge ou sombra para os olhos
27
.
Beduínos do deserto usam até hoje uma carregada maquiagem nos olhos para
reduzir o clarão do sol.
As estátuas de deuses eram lavadas com fragrâncias nos templos, pois
assim preparavam os deuses para receber pedidos de seus devotos. Os incensos
mais utilizados no Egito eram a frankincense e a mirra, da família dos balsâmicos,
provenientes da Somália e Etiópia. Estes incensos são parecidos com os
recebidos por Jesus por um dos reis Magos. Eram queimados em várias
cerimônias, como coroação de faraós e funerais nos quais, acreditava-se, a
fumaça guiaria a alma do morto até o céu e o protegeria de influências maléficas.
Colares de flores eram feitos e utilizados nestas cerimônias sendo que a preferida
era a flor de lótus azul.
27
conhecida como Kohl
Cleópatra (69-30 a.C.), última rainha do Egito, usava e abusava dos
cosméticos, era mestra na alquimia da beleza. Utilizava o “kyphi” em pontos
estratégicos do corpo, henna nos cabelos, resina em pó colorida nas faces e nas
nádegas. Assim ela seduziu o general romano Marco Antônio, a quem recebia em
uma cama coberta de pétalas de rosas. Ao atravessar o Mediterrâneo para ir a
seu encontro, Cleópatra impregnou as velas de seu barco com odor de rosas
liberando uma fragrância sensual, e untou o próprio corpo com óleo de
selecionadas rosas. Deslizou o mar como uma Deusa exalando força e
sensualidade. Chegando em Roma deixava um rastro de rosas por onde passava,
e o perfume da flor entrou na moda.
A Bíblia tem um grande valor como registro histórico de aromas, da forma
como eram utilizados na Antiguidade. A canção de Salomão contém lindos versos
aromáticos. Cânfora, açafrão, canela, mirra eram muito utilizados. As virgens eram
preparadas e purificadas para integrar o harém passando por um banho de mirra
durante seis meses. Os hebreus usavam estas fragrâncias mencionadas e
desenvolveram sua própria, chamada mirta.
Na ilha de Creta foram encontradas pinturas que revelam uma sociedade
bastante elegante, as mulheres usavam jóias finas, vestidos finos, penteados
bem elaborados e os homens apareciam igualmente sofisticados, orgulhosos de
seus corpos atléticos. Esta sociedade é conhecida por suas elaboradas
toaletes compostas por banhos, depilação e unção com perfumes e óleos. Esta
cultura, que aconteceu entre os anos 3000 a 1100 a.C., teve contatos com os
egípcios e gregos e no fim do período de Creta barcos traziam produtos de luxo
do Egito. Os navios traziam perfumes sendo que os de lírios e rosas eram os
favoritos dos habitantes de Creta. Os afrescos encontrados incluem desenhos
de rosas e uma inscrição “The lily carved here is scented symbol of Seka, who
in life emanated only perfume”.
28
28
THE METROLPOLITAN MUSEUM OF ART, Scents of time, Perfume from the Ancient Egypt to the 21
st
Century, op.cit., 28.
Os gregos também eram apreciadores de incensos e aromas, acreditando
atrair, com estes, a atenção dos deuses. A mitologia grega ilustra a importância
atribuída ao perfume. Encontra-se em Ilíada de Homero diversas passagens nas
quais as mulheres recorriam a perfumes para fascinar homens e deuses. Por
exemplo, ao banhar-se, Hera, esposa de Zeus, untava seu corpo com óleos
aromatizados, e na presença de Zeus seu perfume expandia-se por toda a terra e
céu. A história de Afrodite é também perfumada, ela emergiu nua das espumas do
mar, dentro de uma concha, levitando sobre ervas fragrantes.
Alexandre, o Grande, ao conquistar a Pérsia, colecionou sementes e mudas
e entregou-as a Theopharastus que criou um jardim botânico e escreveu o
primeiro tratado sobre cheiros (330 a.C.) com receitas e usos terapêuticos. O texto
consiste num inventário de todas as plantas gregas e importadas conhecidas na
época, além de como suas essências podem ser combinadas e misturadas pelo
perfumista. Theopharastus também indica que perfumes são mais adequados
para determinadas pessoas; por exemplo, para mulheres ele recomenda perfumes
que não se evaporam facilmente, que tenham longa duração! No cotidiano
temperos e condimentos eram utilizados na culinária; antes e depois das refeições
eles se perfumavam, usavam pétalas de rosas moídas na comida, e aromatizavam
o vinho com mirra, essências de flores e mel perfumado. Diz a lenda que o buquê
favorito de Dionísio, deus do vinho, era composto de violetas, rosas e jacintos.
Os romanos não costumavam usar muito cosméticos, mas ao entrar em
contato com as culturas etruscas, fenícias, e gregas passaram a apreciar seu uso.
Na era do Império Romano o uso de perfumes excedeu todos os limites: o
consumo de mirra e incenso durante este período causou problemas na balança
comercial. No século I a.C. importavam da Arábia quinhentas toneladas de mirra e
incenso, que eram utilizados em todos cerimoniais importantes. Nero queimou a
produção de um ano de incenso no funeral da imperatriz Poppaea. Os famosos
banhos romanos usavam muito os perfumes, sendo que no século 4 d.C. contava
com onze banhos públicos e oitocentos e cinqüenta casas de banho privadas. Os
romanos banhavam-se e usavam em abundância cremes, rouges, cosméticos
para os cabelos; alguns usavam diferentes ungüentos para diferentes partes do
corpo, inclusive para as solas do pé. Os perfumistas usavam essências naturais
da própria Itália e, com a extensão do Império, tiveram acesso a produtos
provenientes de outras regiões. A flor preferida dos romanos era a rosa, chegaram
a criar a festa de Rosália em sua honra; adornavam-se com rosas nos banquetes,
decoravam as vilas e em ocasiões de vitória cobriam as ruas com pétalas de
rosas. Nero usava muito as rosas em seus banquetes e chegou a asfixiar um
convidado alérgico. Para tanto era preciso manter enormes plantações de rosas
não só na Itália, mas no Egito também. Assim Roma contribui para a indústria do
perfume, estimulando a criação de rotas de tráfego comercial com a Arábia, Índia
e China, além de contribuir para o incremento da indústria de fabricação de vidros.
No século II d.C., a perfumaria cresceu muito graças às pesquisas feitas por
alquimistas na cidade de Alexandria. Em busca de conhecimento, os primeiros
alquimistas – místicos judeus, técnicos egípcios e filósofos gregos – examinaram
todo tipo de material natural na esperança de entender como a natureza funciona
e descobrir uma faísca ou espírito divinos que pudessem ser extraídos.
Realizavam experimentos para tentar extrair e destilar o “espírito” das plantas e
minerais, submetendo-os a banhos de água quente. Um alquimista de Alexandria
conhecido como Maria de Prophetess, é conhecido por ter inventado o primeiro
alambique que os alquimistas usavam para destilar óleos das plantas. Folhas e
pétalas eram colocadas no alambique com água fervente e o óleo das plantas
soltava-se na água. Como óleo e água não se misturam era possível separá-los e
obter o óleo puro. Esta invenção sofreu algumas mudanças, mas é a base do que
ainda hoje se conhece como a arte da perfumaria.
O mundo árabe preservou a cultura e estudos da química. A ciência
islâmica desenvolveu-se nos ramos da farmácia, química, destilação e medicina.
Figuras como Jabir ibn Hayyan e Ar-Razi desenvolveram a destilação deixando
enciclopédias com registros de suas técnicas e descobertas. Com seu famoso tino
para negócios, os árabes desenvolveram rotas comerciais que permitiram a
distribuição de suas especiarias para outras culturas do Mediterrâneo e dá Ásia. O
profeta Maomé disse que havia três coisas que ele mais gostava no mundo
“mulheres, crianças e perfumes”.
Os aromas faziam parte do dia a dia da cultura islâmica. Incensos eram
queimados nas casas, palácios e nas tendas do deserto. Era utilizado em
cerimônias de casamentos e aniversários. O aroma preferido era o das rosas e
seu óleo, muito consumido em Bagdá, era utilizado na pele e cabelos, assim como
na culinária. Ao adentrar um lar o convidado era gotejado com água de rosas para
dar boa sorte.
A cultura islâmica atribui às flores um significado religioso ou simbólico;
dizem que a rosa foi criada de uma doce gota de Maomé que caiu quando ele
subia aos céus no al-Buraq, sua metade humana e sua metade cavalo. Para os
muçulmanos as rosas transpiram o choro de Alá, o narciso com seu “olho branco”
ensina a lucidez, e a violeta lembra a virtude da adoração. A coloração preta
dentro da tulipa demonstra que a flor adorou tanto deus que queimou
internamente, e o jacinto era usado na comemoração do Ano Novo persa. Os
jardins persas contavam com todas estas espécies de flores e eram uma tentativa
de reproduzir o paraíso na terra.
Na Índia, o clima era muito adequado para plantação de flores e ervas, e
sua cultura encorajava o uso de perfumes. As religiões budista, bramanista e de
Java usavam fragrâncias, óleos e pastas nos rituais e banhos religiosos, com o
significado de purificação. No dia a dia os banhos também eram freqüentes,
recomendava-se aos atletas massagens com óleos, os cabelos eram lavados com
a polpa de uma fruta chamada amalaka, e até as aliás eram perfumadas com
afrodisíacos para inflamar a paixão dos elefantes machos na época do
acasalamento. O Kama Sutra, escrito por volta do ano 400 fala da utilidade do
aroma nas práticas sensuais que seria a de espelhar a união da divindade e do
espírito. Os perfumistas hindus eram chamados de gandhika e desenvolveram
uma técnica especial na qual colocavam jasmim em sementes de gergelim até que
as sementes absorvessem a essência do jasmim, e então estas sementes eram
espremidas para soltar o óleo aromatizado.
O aroma mais famoso da Índia é o sândalo, extraído, através da destilação,
da madeira retirada do coração de uma árvore que leva trinta anos para crescer. A
tika, gota que as hindus colocam entre os olhos e que simbolizam o olhar, são
feitos de pasta de sândalo. O patchouli e vetiver são outros aromas da região
muito apreciados e utilizados para dissipar o calor e a umidade dos ambientes. O
Vale de Kashmir é famoso por seus jasmins e produz quarenta e três espécies
diferentes desta flor. É atualmente muito utilizado pela perfumaria moderna, pois
combina com muitos outros aromas; o Chanel no. 5 e o Arpège, por exemplo, são
perfumes ricos em jasmim.
Na busca comercial das especiarias revelou-se a rota da Seda, que liga a
China ao Mar Negro, incluindo a China (séc. I a.C.) nas transações
transcontinentais. A cultura chinesa também valorizava os aromas tanto por seus
efeitos prazerosos como terapêuticos. Por exemplo, a cânfora era apreciada como
estimulante gástrico, como chá calmante, como tempero culinário ou como saches
para perfumar roupas. Os perfumes também tinham utilidade nos rituais religiosos
e nos espetáculos de dança. Além de uma utilidade sensual: os chineses
aromatizavam a comida das cortesãs com almíscar, para que quando sua pele
fosse tocada durante o ato de amor, seus corpos quentes exalassem seu perfume.
Com o desenvolvimento da porcelana, os chineses permitiram ao mundo
aquecer aromas a altas temperaturas. Além de terem conseguido extrair álcool
etílico do vinho, fundamental para o processo de destilação e da produção regular
de álcool.
A cultura chinesa chegou ao Japão nos anos de 600 a 1300. Os japoneses
realizavam o ritual do chá e criaram a partir do contato com incensos chineses o
ritual Koh-do
29
que eleva os odores à categoria da arte. Esta cerimônia associa
29
caminho do cheiro
uma seqüência de incensos a poemas: “Ou seja, são criados versos perfumados
por cada um dos participantes, a partir das memórias olfativas a que cada um
deles é remetido ao cheirar cada incenso”.
30
Os japoneses criaram 54 ideogramas
que representam cheiros, uma linguagem escrita para os aromas.
No cotidiano os quimonos eram aromatizados numa caixa especial, as
mulheres dormiam com uma touca cheirosa para os cabelos. Os incensos eram
utilizados como relógios, pois devido a sua qualidade era possível calcular quanto
tempo levavam para queimar. As gueixas cobravam seus clientes pela quantidade
de incensos queimados.
1.3.2. A Idade Média e o Renascimento
Com a queda do império romano no século V, o que restou da arte não foi a
perfumaria diretamente, mas vestígios de farmacologia e medicina retidas pelos
monges em jardins de mosteiros até o século XI. As ervas eram utilizadas com fins
medicinais e não de perfumaria. A primeira faculdade de medicina da Europa foi
fundada em 1220 em Montpellier na Provence francesa cujo solo e clima eram
perfeitos para o cultivo de ervas aromáticas.
O processo de destilação de álcool foi descoberto em Alexandria no século
II, mas em 1320 os italianos, em Modena, aprimoraram o processo a ponto de
isolar o álcool a 95%. Deram o nome a este líquido de aqua mirabilis. Os primeiros
verdadeiros perfumes, essências diluídas em álcool e não mais em leite, mel ou
óleo, surgiram nesta época.
Após cinqüenta anos da descoberta do álcool a rainha Elizabeth da Hungria
inspirou o nome do primeiro perfume, Hungary Water, feito com extrato de rosa e
30
ASHCAR, R. Brasil essência, a cultura do perfume, op.cit.,31.
lavanda diluídos em álcool. Segundo a lenda, o eremita que fez o perfume
garantiu à rainha que este preservaria sua beleza até a morte. Parece que
funcionou, pois aos setenta e dois anos a rainha casou-se com o rei da Polônia.
Por um longo período os perfumes à base de álcool eram bebidos para refrescar o
hálito. Atualmente uma lei requer que uma substância amarga seja adicionada à
fórmula do perfume para torná-lo inadequado para beber. Os métodos de
destilação continuaram se desenvolvendo e possibilitando a extração das mais
variadas essências.
O comércio com o oriente se expandiu e muitos produtos exóticos
apareceram nos mercados europeus inspirando artesãos, tecelãos, ceramistas.
Informações a respeito da ciência e da saúde também chegaram do Oriente
renovando o interesse pela higiene. Membros de classes italianas mais abastadas
adquiriram o hábito de tomar banho e lavar seus cabelos uma vez por semana!
Veneza foi o berço destas renovações graças a seu privilegiado lugar geográfico,
que centralizava as rotas comerciais. Ali se encontravam as novidades
aromáticas que se espalharam pela Itália e tornaram-se moda nas classes mais
abastadas. As mulheres carregavam consigo bolas de prata, conhecidas como
pomanders, contendo essências. Leonardo da Vinci realizou experimentos com
infusões de flores e ervas em álcool, botões de flor de laranjeira e óleo de
amêndoa. A rosa voltou a tornar-se popular, e nos jantares italianos usavam água
de rosas como lavanda para as mãos até que garfo e faca fossem utilizados no
final do século XVII. As águas de rosas e outros perfumes eram feitos em
monastérios.
Em 1533 o filho de Henrique II, Francis I casou-se com a florentina Catarina
de Médici, que trouxe para a França as artes e sofisticações da renascença
italiana. Seu perfumista particular, Renato Bianco veio com ela para Paris onde
estabeleceu uma loja e ensinou à França a arte da perfumaria. Neste século a
França, principalmente a cidade de Grasse na Provence, especializou-se na arte
dos perfumes, mais do que qualquer outro lugar do mundo. O interesse pela
higiene e cuidados com o corpo foram crescendo entre os franceses que até então
negligenciavam estes cuidados. Luis XIII (1601-1643) introduziu o hábito de usar
perucas perfumadas com talco e luvas aromatizadas. A peste, só seria vencida no
final do século o que mantinha cuidados higiênicos em voga, além da adoção de
profiláticas simpatias populares do tipo usar uma laranja recheada de alho para
evitar a doença, ou sair às ruas com um buquê de flores aromáticas ou um lenço
embebido em perfume. Os jardins franceses eram elaborados visando “repelir os
sórdidos odores pestilentos”
31
. Luis XIV (1638-1715) era muito sensível a odores e
seu perfumista particular foi incumbido de criar um perfume para cada dia da
semana. Assim a indústria de perfumaria crescia na França.
Durante a Idade Média os ingleses apreciavam os aromas trazidos pelos
mercadores de Veneza e no século XVI, sob o reinado da rainha Elizabeth I o país
viveu um grande interesse pelos odores e outras artes renascentistas. As damas
elizabetanas usavam pomanders de prata e saches, além de colares de rosas
secas. No palácio de Elizabeth havia quartos destinados à produção de
fragrâncias e muitos empregados incumbidos desta tarefa. A rainha banhava-se
com freqüência: uma vez por mês! Vale distinguir o que eles entendiam por banho,
e Francis Bacon fornece uma descrição num livro escrito em 1625: antes de
banhar-se, a pessoa deve esfregar-se com óleos e pomadas, depois sentar-se
duas horas no banho e enxugar-se com uma toalha impregnada de aroeira, mirra,
açafrão, provocando a respiração dos poros. Após 24 horas enrolada nesta toalha
a pessoa deve passar pelo corpo ungüento de óleo, sal e açafrão. Os textos de
Shakespeare mencionam com freqüência as lavandas, violetas, menta e outros
aromas, mas principalmente as rosas. Ao fundar a Companhia das Ìndias
Orientais a Inglaterra diversificou enormemente seu comércio de fragrâncias.
31
ASHCAR, R. Brasil essência, a cultura do perfume, op.cit., 44.
1.3.3.Século XVIII
Este século foi marcado pelo estilo rococó, cuja moda eram saias armadas,
espartilhos, e cabelos empoados. Na França este estilo associado a Luís XV
(1710-1774) e sua amante Madame de Pompadour. Esta como ninguém ditou um
padrão de moda, beleza e artes. Os perfumes produzidos em Grasse devem muito
a seu interesse por fragrâncias; ela incentivava sua produção e uso a ponto de
sua corte ser apelidada de “a corte perfumada”.
Assim os franceses desta era perfumavam-se das cabeças aos pés,
perucas e luvas eram aromatizadas, banhos incentivados, pomadas para os
cabelos eram utilizados. Madame de Pompadour incentivou a produção de frascos
para conter estes produtos que eram verdadeiras obras de arte. O palácio de
Versalhes tinha muitos vasos de jacintos e suportes de incensos nos seus
cômodos.
A água de colônia foi o mais celebrado aroma do século e tem sua origem
na Itália e Alemanha, mas sua reputação foi criada na França. Um barbeiro italiano
nascido perto de Milão mudou-se para Colônia na Alemanha para melhorar de
vida e começou a fazer, em 1709, a Aqua Admirabilis, a partir de flores e ervas
típicas da Itália. O produto foi bem aceito pelos moradores de Colônia
32
e o
negócio começou a crescer. Isto incentivou que outros negociantes abrissem lojas
de perfumes na cidade. As tropas francesas que paravam na Colônia durante a
Guerra dos Sete Anos levaram a água de colônia para a França, irresistível para
Madame Du Barry, sucessora de Madame de Pompadour.
32
daí o nome água de colônia
Neste século houve um grande desenvolvimento das técnicas de
“enfleurage” e a literatura francesa publicou muitos livros e manuais divulgando-
as.
Vidro e porcelana eram os melhores armazenadores para perfumes uma
vez que diferentemente da terra-cota não reagiam e modificavam as essências.
Mas, apenas em 1709 um alemão conseguiu produzir a porcelana como os
chineses a produziam eliminando a necessidade de sua importação. A técnica,
apesar das tentativas de mantê-la em segredo, logo difundiu-se pela Europa.
Paralelamente, na França a arte de fabricar vidros desenvolveu-se muito, haja
visto os vidros artísticos criados pela Cristallerie de Baccarat, durante o reinado de
Luis XV.
1.3.4. Do Século XIX até os dias de hoje
Após a revolução francesa a indústria do perfume e de outros produtos
consumidos pela aristocracia sucumbiu, mas foram salvas “just in time”
33
quando
Napoleão Bonaparte (1769-1821) nomeia-se imperador da França e faz de sua
mulher Josefina a imperatriz. Começa uma nova era de elegância e extravagância.
As perucas empoadas e as sobrecasacas do antigo regime foram aposentadas;
mas Napoleão convidou os nobres, que haviam se ausentado do país durante a
guerra, para retornarem à França e, junto deles, muitos costumes corteses
voltaram. Napoleão incentivou a produção de seda em Lyon, de vidros em
Picardy e Normandia, marcenaria em Paris, e perfumes em Grasse. As artes
decorativas assumiram um visual clássico adequado aos ideais republicanos do
novo governo. Os negócios prosperavam, pela primeira vez os perfumistas e
outros negociantes vendiam seus produtos para a classe média, além da
33
THE METROLPOLITAN MUSEUM OF ART, Scents of time, Perfume from the Ancient Egypt to the 21
st
Century, op.cit., 84.
aristocracia. Novamente, a França liderava o mundo na produção de produtos
luxuosos de consumo. Napoleão incentivou também as pesquisas científicas e
tecnológicas que incluíam o estudo de essências e etanol, o que incrementou o
progresso das indústrias de perfume.
Josefine que ditava as tendências de moda a serem seguidas no país
gostava do aroma do patchouli, adorava o perfume das rosas e apreciava o
almíscar, mas este último, Napoleão não tolerava. Quando, em 1810 Napoleão
anulou seu casamento com Josefine, para unir-se a Marie-Luise, Josefine vingou-
se saturando todos os aposentos do palácio com almíscar, que ela sabia, é um
dos perfumes menos voláteis e mais duradouros. Napoleão era neurótico por
limpeza, banho, higiene e bons cheiros, o que serviu de exemplo na França e na
Europa e acabou por desenvolver um maior senso de limpeza e higiene nos
hábitos cotidianos.
Na Exposição Internacional de Paris, em 1867, perfumes e sabonetes
ganharam pela primeira vez uma sessão própria. Em exposições anteriores eram
expostos marginalmente, como um prolongamento de produtos farmacêuticos e
químicos. As descobertas científicas e tecnológicas do século dezenove, levaram
ao aperfeiçoamento do processo de extração de solventes, o que permitiu aos
perfumistas o uso de flores que antes não podiam ser utilizadas pois estas não
toleravam a destilação em temperaturas muito quentes, como é o caso do jasmim,
por exemplo. Assim, o uso de solventes químicos marca o início da perfumaria
moderna.
Com a desastrosa guerra franco-prussiana termina o império de Napoleão
III, em 1871. Entretanto, Paris se recupera e inaugura a fascinante Belle Époque.
De 1870 até a Primeira Guerra Mundial a arte de viver podia ser desfrutada por
mais pessoas do que em épocas anteriores. Esta era testemunhou o nascimento
da aviação, a invenção dos automóveis, do telefone, da energia elétrica e do
cinema. O Cristal Palace e Torre Eiffel foram erguidos em Londres e Paris.
Luxuosos transatlâticos transportavam viajantes para Paris, a capital artística do
mundo, que exibia esculturas de Rodin, quadros de Monet e música de Debussy.
A descoberta de solventes químicos, em 1830, tornou possível aos perfumistas
compor aromas a partir de essências florais nunca antes utilizadas, o que
incrementou a Belle Époque com uma variedade maior de aromas.
Com o desenvolvimento da química orgânica os perfumistas puderam criar
essências sintéticas. Em 1868, o inglês William Perkin criou a “coumarin” um
aroma sintético precursor de muitos outros que se seguiriam depois, como
baunilha, almíscar, cânfora, violeta... e de aromas que não podiam ser extraídos
de flores naturais a partir de nenhum método conhecido de extração como lírios do
vale, gardênia e lilás.
O século XX foi marcado por dois grandes estilistas: François Coty, famoso
pela sua grande capacidade de discriminar elementos que compunham um
perfume, e Paul Poiret (1879-1943) que foi um dos maiores estilistas de Paris e
realizou a união entre moda e perfumaria. Esta união introduzida por Poiret, antes
da Primeira Guerra, expandiu-se durante os anos vinte e os grandes estilistas
incluíam em suas coleções uma fragrância exclusiva, por exemplo, o Chanel no.5;
esta tendência mantém-se até os dias de hoje.
Atualmente, no que diz respeito à tecnologia, os computadores ajudam a
analisar as moléculas responsáveis pelo aroma das plantas o que permite ao
perfumista recriar um aroma o mais perto possível da sua natureza.
Capítulo II
Casos Clínicos
Apresento a seguir dois casos clínicos atendidos no Programa de
Atendimento e Estudos de Somatização do Departamento de Psiquiatria da
UNIFESP/ HSP, que recebe pacientes das diversas enfermarias do hospital geral
com queixas somáticas sem substrato orgânico ou casos cuja patologia orgânica é
insuficiente para justificar as queixas. De acordo com a Classificação de
Transtornos Mentais e de Comportamento da CID-10 estamos lidando com
Transtornos Somatoformes, cuja definição é: “[...] apresentação repetida de
sintomas físicos juntamente com solicitações persistentes de investigações
médicas, apesar de repetidos achados negativos e de reasseguramentos pelos
médicos de que os sintomas não têm base física. Se quaisquer transtornos físicos
estão presentes, eles não explicam a natureza e a extensão dos sintomas ou a
angústia e a preocupação do paciente”
34
. É difícil para os pacientes aceitarem o
fato de que suas ‘dores’ são psicogênicas, acreditam em sua natureza física e que
os médicos é não conseguem detectá-la, o que acaba por dificultar a relação com
o médico ou profissional de saúde mental. Segundo o CID-10, essa dificuldade se
expressa por meio de um “comportamento de chamar a atenção (histriônico)
[...]”
35
.
De fato, temos observado no Programa de Atendimento e Estudos de
Somatização pacientes que apresentam esse comportamento, o que nos tem
34
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE - Classificação de Transtornos Mentais e de Comportamento
da CID-10, Trad. Dorgival Caetano - Porto Alegre: Artes Médicas,1993, P.158.
35
Ibid, p.158.
levado a questionar se seu diagnóstico não se enquadraria mais nos Transtornos
Dissociativos e se os sintomas que vínhamos compreendendo e tratando como
somatizações não deveriam ser antes classificados como conversivos. Por
somatização entendemos “uma tendência de experimentar e comunicar distúrbios
e sintomas somáticos não explicados pelos achados patológicos, atribuí-los a
doenças físicas e procurar ajuda médica para eles”
36
. Já a conversão define-se
por um mecanismo através do qual “[...] um afeto desprazeroso produzido pelos
problemas e conflitos que o paciente não pode resolver é de alguma forma
transformado em sintomas”
37
.
Os dois casos clínicos apresentam essa dificuldade diagnóstica, assim
como apresentam sintomas somáticos diretamente relacionados ao olfato. Assim,
interessa-nos averiguar não apenas a estrutura diagnóstica das duas pacientes,
mas principalmente sua relação com o olfato. Pretendo ilustrar e analisar como o
olfato, ou aquilo que venho chamando de “pulsão olfativa”, se expressa em
diferentes estruturas clínicas.
2.1. Bernarda
Em Dezembro de 2000, Da. Bernarda foi encaminhada à triagem com uma
queixa muito curiosa de alergia a cheiros: “Cada coisa que eu entro em contato, a
reação no físico é diferente”. Para citar algumas: tinta causa dor de cabeça,
“parece que vou ficar cega”; cheiro de cola gera moleza nas pernas, falta de ar,
“fecha o meu esôfago”; cândida ou produtos de limpeza ocasionam uma certa
“queimação” na cabeça, no rosto, e na sola dos pés, além de tontura.
Nas entrevistas realizadas na triagem, Bernarda conta sua história: nascida
em Sergipe, é a filha mais velha de uma prole de quatro mulheres. Sempre foi a
“filha doente”; os pais preocupavam-se muito com sua saúde. Desde cedo
36
BOMBANA, J.A. - Somatização e conceitos limítrofes: delimitação de campos. – Psiquiatria na Prática
Médica, Departamento de Psiquiatria – UNIFESP/EPM. Vol33 número 1, jan. mar 2000.
37
Ibid., p.150.
desmaiava sem causas ou motivos aparentes, e os médicos nada detectavam nos
exames. Por ser mais “fraca”, Bernarda era poupada de trabalhar na roça junto ao
pai e às irmãs, e foi mandada para o colégio. Males que vêm para bem, Bernarda
estudou até o segundo ano primário, diferentemente das irmãs. Lembra que
sempre carregava um paninho com o cheiro da mãe e não conseguia dormir sem
ele. Aos quatorze anos casou-se e mudou-se, com seu marido, para São Paulo,
onde passou um ano e tendo voltado para sua cidade em Sergipe sozinha, pois o
marido lhe batia. Com idas e vindas, devido às dificuldades da relação, acabou
tendo duas filhas com este marido e separou-se dele. Quando a segunda filha
tinha um mês, casou-se novamente com um “senhor” que tinha quatro filhos, bebia
muito e batia em Bernarda. Perdeu a mãe aos dezenove anos, e mais adiante na
sua história, perdeu a filha mais velha, num acidente de carro... “Eu que já tinha
perdido minha mãe, perdi minha filha”. Após vinte anos de casamento, Bernarda
separa-se deste “senhor”, sua filha mais nova se casa, e Bernarda muda de casa,
passando a morar sozinha. Nesta mudança, ocorrida há dez anos, aparecem “os
cheiros”. Um dia em casa, com uma moça que trabalhava para ela, Bernarda,
sentindo-se sozinha, começa a sentir dor de cabeça e tontura. Saiu de casa para ir
a um hospital, e chegando ao ponto de ônibus, melhorou. Voltou para casa e
passou mal novamente. Como perto desta casa tinha uma fábrica de tintas, achou
que era isto que estava lhe fazendo mal. Assim, começou a associar seu mal estar
aos cheiros que apareciam. Nesta época casou-se com um “rapaz” vinte anos
mais novo, com o qual mora até hoje. De lá para cá, os problemas com “os
cheiros” vem crescendo progressivamente, restringindo cada vez mais sua vida.
Bernarda sempre trabalhou vendendo lingerie como sacoleira e deste modo
comprou sua casa e, quando acabou de pagá-la, comprou outra “à prestação”,
que, uma vez alugada passou a gerar uma renda que pagaria a prestação de uma
terceira casa. Atualmente, Bernarda recebe uma pensão e vive da renda destes
imóveis. Sua filha, seu marido e sua neta não trabalham e dependem de Bernarda
para viver. Por um lado, Bernarda reclama do fato de todos estarem “encostados”
nela, por outro espera em troca, gratidão, espera que não a deixem só e que
cuidem dela quando passa mal. Trata-se de uma família-fusão onde ninguém tem
autonomia ou vida própria e todos sentem-se presos, atados uns aos outros.
Durante estas entrevistas preliminares, considerei, como já disse, o sintoma
bastante curioso e sugeri que iniciássemos um processo de psicoterapia
individual, realizado uma vez por semana, para tentarmos investigar sua origem e
elucidar suas determinações, compreender seu sentido e, quem sabe, propiciar
uma elaboração psíquica do sintoma. Expectativas e esperanças de um começo
de análise...
Freud descreve, em 1893, o caso de Miss Lucy R.
38
, uma jovem de trinta
anos, governanta da casa de um viúvo, que perdeu o sentido do olfato, com
exceção de duas sensações olfativas que lhe eram muito aflitivas: cheiro de pudim
queimado e cheiro de charuto. Freud interpreta suas sensações olfativas como
sintomas histéricos crônicos, e segundo a teoria do trauma vigente na época, era
preciso encontrar a experiência na qual estes odores, hoje subjetivos, foram
objetivos: “Essa experiência devia ter sido o trauma que as sensações recorrentes
do olfato simbolizavam na memória”.
39
Assim iniciam a investigação da cena
traumática que teria relação com o cheiro de pudim queimado, e Lucy lembra da
primeira vez em que sentiu o cheiro: brincava de cozinhar com as duas filhas do
patrão quando recebe uma carta de sua mãe, e as meninas a impedem de ler a
carta deduzindo que esta chegara em virtude de seu aniversário que só seria
daqui a dois dias, e neste meio tempo, queima o pudim que estava assando no
forno. Lucy andava considerando parar de trabalhar nesta casa e voltar para a
mãe o que gerava um conflito, pois a falecida mãe das meninas era uma parenta
distante, a quem prometera cuidar das filhas após a sua morte. Assim, “... a
sensação de cheiro que estava associada a este trauma persistiu como seu
símbolo”
40
.
38
FREUD,S. (1893) Estudos sobre histeria, In: Ed. Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas.
Rio de Janeiro: Imago, 1974, Vol. II.
39
Ibid., p.154.
40
Ibid., p.163.
Freud não se contenta com este achado intuindo haver alguma idéia que foi
“intencionalmente reprimida da consciência”
41
, excluída da cadeia associativa e
convertida à inervação somática. Arrisca dizer a Lucy que ela estava apaixonada
por seu patrão, ao que ela concordou, e por este caminho se seguiram outras
associações, até que a sensação do cheiro foi ficando menos freqüente e
desapareceu. Entretanto seu desaparecimento deu lugar ao cheiro de charutos.
Determinado, Freud escreve: “eu eliminara um sintoma somente para seu lugar
ser ocupado por outro. Não obstante, não hesitei estabelecer a tarefa de eliminar
esse novo símbolo mnêmico através da análise”
42
. Lucy cumpre sua tarefa,
trazendo à lembrança duas cenas relacionadas com o cheiro do charuto, cenas
nas quais estão presentes seus sentimentos amorosos dirigidos ao patrão, assim
como sua desilusão por notar que não era correspondida. Após nove semanas de
tratamento, Lucy recobra os sentidos do nariz.
Adotei, inicialmente, este modelo, um tanto “cirúrgico”, nas investigações
com Da. Bernarda. Em uma sessão ela reclama de uma tosse, que tem a ver com
o ventilador que liga para dormir, e que dorme na sala, e “por que na sala?”;
“porque perto da meia noite eu acordava suando, a cabeça quente, pesada,
parecia que eu ia morrer. Aí fui dormir no sofá da sala, e melhorei, lá eu conseguia
dormir. Antes de dormir fecho a casa toda, as portas, as janelas, e se tem alguma
fresta fico tampando, porque senão quando chega perto da meia noite começa a
entrar um cheiro de óleo, de borracha quente, bem fraquinho, ninguém percebe,
mas eu sinto, acordo e não durmo mais”. Ao estilo freudiano ilustrado acima,
pergunto: “Quando a Sra. começou a dormir na sala?”, e Bernarda responde: “Há
muitos anos, não lembro mais. Eu acho que dormia lá, por causa da minha filha
que morreu. Ela foi velada naquela sala, e a cabeça dela ficou bem perto da onde
minha cabeça fica no sofá. Acho que ela olha por mim, me protege e me ajuda a
dormir”.
Neste momento da sessão, lembro-me, em silêncio, do relato que Bernarda
já havia feito a respeito da morte da filha: numa noite, as filhas
43
pediram para sair
41
Ibid., p.164.
42
FREUD,S. (1893) Estudos sobre histeria, op.cit.,166.
43
a mais velha tinha dezessete anos
com amigos, iriam a um baile. O pai não quis deixar, mas Bernarda encobriu e a
meninas foram ao baile. Já dormindo, Bernarda ouve um barulho, sai de casa
correndo e vê um acidente de Kombi na esquina. Lembra do cheiro da borracha
queimada do pneu. Em meio ao desespero, alguém diz que sua filha mais velha
estava morta, dentro da Kombi. E digo que o cheiro de borracha quente que sente
à meia noite me fez lembrar o cheiro do pneu da Kombi que ela sentiu no dia do
acidente em que sua filha morreu. Bernarda responde que uma coisa não tem
nada a ver com a outra, e que seu problema com cheiros é uma alergia mesmo.
Mais adiante na sessão lembra que o acidente da filha ocorreu à meia noite,
e eu apenas repito “meia-noite”, e Bernarda se dá conta de que é justamente a
hora em que começa a sentir os cheiros em casa
44
. Mas, novamente, descarta a
possibilidade de relacionar os fatos e integrar as associações.
A esta altura do processo analítico, já era notório o caráter refratário de
Bernarda ao trabalho de análise. Descarta suas próprias percepções e tentativas
de elaboração. Sem propiciar um alívio de suas aflições, as sessões pareciam
muito traumáticas e exaustivas. Como funciona o psiquismo desta paciente e
como conduzir sua análise?
2.1.1. Destinos da pulsão
Recorrerei a alguns autores que desenvolveram a psicossomática
psicanalítica para tentar compreender o funcionamento psíquico de Da. Bernarda
no que se refere ao trajeto pulsional de sua lembrança, que desemboca no
sintoma descrito.
Segundo Marty
45
, uma percepção atual remete a uma representação, que
se liga, através de associações de idéias e reflexões, à vida da pessoa como um
todo. Existe uma percepção atual, o cheiro de borracha queimada, que remete ao
trágico acidente da filha, fato que tem um intenso sentido afetivo. Assim, a
44
Notamos aqui que Bernarda preserva inconscientemente a crença dos povos antigos descrita na página 1,
segundo a qual os perfumes estabelecem um pido contato com os mortos e Deuses.
45
P. Marty, Mentalização e Psicossomática, São Paulo, Casa do Psicólogo, 1998.
lembrança do acidente e tudo o que isto envolve é uma representação. Entretanto
a paciente não conecta esta lembrança com outras representações, seu fluxo
psíquico está estagnado, congelado. Quem faz a associação entre a percepção
atual, a lembrança e outras associações que a paciente traz é a analista. Neste
sentido, encontramos uma falha em seu funcionamento mental.
Do ponto de vista da qualidade da representação, proposto por Marty, trata-
se de uma representação-coisa, que evoca vivências sensório-perceptivas
originando associações também sensório-perceptivas. Apesar de ligada a um
afeto, o que preserva seu significado, a percepção sensorial do cheiro não se
associa a idéias, apresenta um caráter de imobilidade. É uma representação
destituída do simbolismo da palavra, é concreta, próxima da realidade. A
associação que pode ser feita entre o cheiro percebido atualmente e a lembrança
do acidente é muito direta e imediata, dispensa metáforas. Diferente de um
sintoma neurótico que aparece muito mais disfarçado e mascarado, dando muito
mais trabalho ao analista para ser decifrado, desvendado.
Na falta de recursos psíquicos para a elaboração de tamanha excitação,
Da. Bernarda recorre à ação. Levanta de madrugada e tampa as frestas das
janelas, das portas, vai até a sala, liga o ventilador... Em outras ocasiões, quando
fica nervosa por algum motivo, sua pressão sobe e Bernarda não pára para
pensar no seu “nervoso”: toma seu remédio de pressão e corre para o Pronto-
Socorro na esperança de que os médicos a livrem de seu mal-estar. Seu
cardiologista alertou-a de que nem sempre o que sente tem a ver com o coração
ou com a circulação; muitas vezes o mal estar é gerado por angústia. Diferenciar
uma coisa da outra se tornou uma tarefa em análise. Tarefa difícil, pois Bernarda
vive em estado permanente de angústia, que não pode ser experimentada
enquanto tal, gerando idéias, pensamentos e elaboração. Gera, ao contrário,
ações e sintomas somáticos.
A má circulação sanguínea, expressa no sintoma de pressão alta e num
inchaço da perna direita, traduz corporalmente a má circulação psíquica. Diante do
“nervoso” gerador de uma angústia impedida de circular no psiquismo, e através
dele se dissipar, a paciente fica como que estrangulada, transformando-se numa
“panela de pressão”. A descarga através de ações e sintomas somáticos torna-se
urgente.
Podemos classificar esta falta de circulação psíquica como aquilo que
McDougall
46
chamou de desafetação
47
? Penso que não, pois apesar de na
lembrança de Da. Bernarda predominar a sensação do cheiro, que seria um
representação-coisa, ela não está totalmente privada de representação-palavra.
Não podemos dizer que a lembrança e tudo o que ela representa afetivamente foi
ejetada do psiquismo. Podemos dizer sim que o afeto foi congelado, pois ele se
mostra intacto. Quando ela descreve o acidente, a impressão afetiva que transmite
é a de que ele aconteceu ontem. Entretanto a representação verbal que conota
este afeto não foi pulverizada; ao contrário, Bernarda descreve a lembrança com
tal riqueza de detalhes que posso vê-la, na sessão, como um filme passando
diante de meus olhos.
A descrição da histeria arcaica
48
parece aproximar-se mais de nosso caso,
uma vez que o sintoma guarda um sentido psicológico, ainda que este sentido
pertença a uma ordem pré-simbólica.
46
McDougall, J. Teatros do Corpo, São Paulo, Martins Fontes, 1996,
47
Determinados indivíduos pulverizam qualquer vestígio de sentimento profundo, aniquilam grande parte de
sua experiência emocional, impossibilitando assim uma elaboração psíquica. É comum a queixa de que “não
acontece nada” na análise. Tais pessoas descrevem seus relacionamentos com os outros de modo pragmático,
despido de emoções, recusam a importância e sua dependência dos outros. Contratransferencialmente o
sentimento é de cansaço, impotência e culpa, diante de uma ausência de progresso analítico.
A autora chama esta defesa de desafetação, significando que a pessoa retira sua afeição de alguém
ou de alguma coisa. A própria pessoa é desafetada, afastada de sua realidade psíquica, suas palavras são
desafetadas. “... esses indivíduos tinham vivenciado precocemente emoções intensas que ameaçavam seu
sentimento de integridade e identidade e que lhes foi necessário, a fim de sobreviver psiquicamente, erigir um
sistema muito sólido para evitar o retorno de suas experiências traumáticas portadoras de ameaça de
aniquilamento.”(p.105). São pacientes incapazes de recalcar as idéias ligadas à dor emocional e de projetar
esses sentimentos de maneira delirante. Eles ejetam do campo da consciência qualquer representação
carregada de afeto, pulverizam-na por não poderem conter a experiência afetiva e nem pensar sobre ela.
Incapazes de conter a excitação afetiva e elaborá-la psiquicamente, os pacientes tendem a dispersá-la
através de uma ação. O afeto é um conceito-limite entre corpo e psique: é psicossomático. Ao ser-lhe negada
sua parte psíquica, sua parte fisiológica exprimir-se-á como na primeira infância, o que leva a ressomatização
do afeto. Esta ação pode ser comer, beber, fumar, ter relação sexual, ou usar medicamentos.
48
No que se refere à histeria arcaica a autora nota alguns pacientes que não são histéricos clássicos, nem
operatórios desafetados, e que habitualmente utilizam a somatização como meio de defesa predominante. A
histeria clássica “depende das ligações verbais e tenta compensar as ansiedades relativas ao direito que o
adulto tem às gratificações sexuais e narcísicas. Os sintomas que o psiquismo cria nessas circunstâncias são
destinados a tomar lugar dos anseios libidinais e narcísicos percebidos como proibidos” (p.67). A histeria
arcaica seria “ o conflito acerca do direito de existir, mais do que acerca do direito às satisfações libidinais
Se considerarmos a distinção estabelecida por Dejours
49
, de que a angústia
do neurótico é representada e simbolizada e a do caracteropata não é
representada e nem simbolizada, nos colocamos diante de um impasse, pois até
aqui estou defendendo a hipótese de que a angústia de Bernarda encontra uma
representação psíquica e um sentido afetivo, mas não encontra simbolização.
Tentar “encaixar” isto na estrutura neurótica por ele proposta, que ocasionalmente
sofre a invasão da angústia somática por invasão e atualização de padrões
arcaicos, soa como a cama de Procusto, pois o conteúdo representativo da
angústia em questão não evoca uma alusão ao Édipo, castração ou neurose
infantil. Evoca conteúdos ligados à angústia de separação, de morte, de
aniquilamento. Para Dejours a angústia que é representada mas não simbolizada
é psicótica.
Devo mencionar que, no decorrer da análise de Bernarda, outros conteúdos
foram aparecendo em seu discurso. Por exemplo, numa viagem de férias que fez
a sua terra natal, viu seu pai comendo jaca, e descreveu o cheiro da jaca como
algo intenso, impregnante e nojento. Ela saiu correndo para se defender do cheiro
e seu pai riu dela. Quando seu pai terminou a refeição, Bernarda colocou os restos
num saco de lixo bem amarrado para extirpar o cheiro, e lavou bem a mesa.
Podemos dizer que se trata de uma alusão ao Édipo, com um conteúdo
claramente sexual que foi imediatamente “limpo” pela paciente? Retornarei a esta
questão adiante, na discussão do narcisismo.
Figueiredo
50
nos auxilia, no que se refere ao funcionamento psíquico
da paciente, ao descrever num artigo pacientes que preservam áreas importantes
normais da vida adulta. As ansiedades estão ligadas ao temor de perder sua identidade subjetiva ou até a vida”
(p.67).
Quando o psiquismo se sente ameaçado por acontecimentos dolorosos, culpabilizantes ou
ameaçadores, tende a expulsar para fora da consciência suas representações. Um órgão ou uma função
corporal sem distúrbios “de natureza orgânica pode agir como se tivesse sido chamado a reagir psiquicamente
a uma situação conflituosa” (p.68). Por um lado o estado psicossomático ameaça a vida, por outro protege o
psiquismo de angústias que seriam, talvez, psicóticas, caso chegassem à consciência. Nos quadros de histeria
arcaica, “esses fenômenos, ainda que dotados de um sentido psicológico, pertencem a uma ordem pré-
simbólica...” (p.68). Como nas crianças pequenas, nestes quadros o corpo é representado como uma coisa
pertencente ao mundo externo. As representações de palavra são forcluídas e o afeto a elas associado abafado.
49
DEJOURS,C. (1988) O corpo entre biologia e psicanálise, Porto Alegre, Artes Médicas.
50
FIGUEIREDO, L.C. A desautorização do processo perceptivo, Psicanálise e Universidade 71-82, 2000.
de contato com a realidade, captando-a e armazenando-a. Estes registros ficam à
disposição da consciência, sendo que os pacientes lembram facilmente, inclusive,
de situações de vida extremamente dolorosas. Portanto, não há uma recusa da
percepção da realidade. Entretanto, são lembranças que não se conectam com
outras representações; vêm à consciência, mas não são integradas ao psiquismo,
permanecendo como cistos, desvinculadas e encapsuladas. Parece uma
tentativa, por parte do paciente, de manter a realidade como realidade material,
evitando a passagem pelo filtro da subjetividade e sua decorrente transformação
em realidade psíquica. Para tanto, o paciente desautoriza a percepção da
realidade que não perde significado, uma vez que não é nem recusada, nem
desmentida, mas perde significância. “Nessa medida, não há uma obstrução total
do processo de simbolização, pois se isso ocorresse, a percepção não se
completaria na forma de uma figura fechada e dotada de algum significado”
51
.
Deste modo, o paciente transforma a percepção numa “quase-coisa”, numa
lembrança muito vívida, mas inútil, desintegrada do fluxo psíquico. Tenta evitar o
contato com o sofrimento inerente a estas situações traumáticas, abortando,
talvez, sua única forma de processamento, de metabolização possível, uma vez
que estas “quase-coisas” inevitavelmente retornam sob a forma de uma “névoa”
em situações mais tranqüilas ou como um bombardeio, com “características
demoníacas e persecutórias”, em ocasiões de maior desestabilização.
Esta descrição está mais para Da. Bernarda do que para Miss Lucy, uma
vez que esta última conserva a significância de suas sensações olfativas,
facilitando seu processo de simbolização e integração psíquica. Constatamos
assim estarmos diante de um psiquismo bastante comprometido na sua
capacidade de metabolizar e elaborar experiências afetivas, o que me levou a
mudar o foco desta análise. Diante da fragilidade egóica da paciente, penso que,
antes de um trabalho de análise propriamente dito, há que se fazer um trabalho de
síntese egóica. Exploremos a constituição psíquica da paciente através do estudo
do narcisismo e seu contraponto, as relações objetais, inferidas através do exame
51
FIGUEIREDO, L.C. A desautorização do processo perceptivo,op.cit., 74.
da relação transferencial e contratransferencial estabelecida entre a paciente e
analista, segundo a teoria dos autores citados.
2.1.2. Narcisismo e relação de objeto
Não é qualquer lembrança que Bernarda mantém desligada de seu fluxo
psíquico. Trata-se de um luto que permaneceu congelado, claramente patológico.
Numa destas “sessões-trauma”, Bernarda descreve o dia em que teve que exumar
o corpo da filha para liberar a cova no cemitério e, surpreendentemente, ao
abrirem o caixão, encontraram-na “igualzinha, nem parecia que estava morta”.
52
Não puderam tirar seu corpo da sepultura, e o processo foi repetido três vezes até
que o corpo estivesse decomposto o suficiente para ser exumado. “Um verdadeiro
milagre, Dra.”, milagre de que só um psiquismo inconformado é capaz! Bernarda
impede a decomposição psíquica da filha, com toda putrefação, dor e fedor
inerentes a este processo.
Num trabalho de luto normal, descrito por Freud em Luto e melancolia
53
, o
teste de realidade revela o fato de que o objeto não existe mais e o sujeito, não de
bom grado, deve retirar do objeto, a libido investida nas ligações com o mesmo.
Normalmente a pessoa vai retirando a libido, pouco a pouco, o que dispende muita
energia e tempo, daí o nome trabalho de luto. Nesse meio tempo prolonga-se a
existência do objeto perdido. A pessoa evoca lembranças que são
hipercatexizadas e então desligadas, gastas. Concluído o trabalho de luto, o ego
fica outra vez livre e desinibido.
Infelizmente as coisas não se passaram assim para Bernarda. Após a morte
da filha, ela relata que, tudo aquilo que vivia com esta filha, passou a viver com a
52
Tomei emprestado o nome Bernarda do romance de Gabriel Garcia Márquez, Do amor e outros demônios.
García Márquez, repórter de um jornal da Colômbia, foi chamado para fazer uma cobertura em um convento
que estava sendo demolido para a construção de um hotel. Estavam esvaziando as criptas funerárias do
convento, e García Márquez presenciou a abertura de uma lápide na qual uma moça fora enterrada, e ao
abrirem a lápide encontraram uma cabeleira de vinte e dois metros de comprimento. Garcia Márquez foi
informado de que o cabelo humano continuava crescendo um centímetro por mês depois da morte. Deste
evento nasceu este romance, e a mãe da moça enterrada chama-se Bernarda Cabrera.
53
FREUD,S. (1915) Luto e Melancolia, , In: Ed. Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas. Rio
de Janeiro: Imago, 1974, Vol. XIV.
outra filha: “Transferi tudo para a outra filha, Dra.” Inferimos, a partir desta fala,
que parte da libido ligada à filha mais velha, diante da separação, desligou-se e
investiu esta filha que sobreviveu. O marido de Bernarda tem a mesma idade da
filha que morreu, e às vezes Bernarda desconfia que esta relação pareça uma
relação entre mãe e filho. Desde que a filha morreu, Bernarda começou a atrair e
sentir atração por homens mais jovens; antes disto, pelo contrário, preferia
homens mais velhos. Assim, não é difícil imaginar que parte da libido que “sobrou”
deve estar investindo este marido. Novas pessoas encarnando antigos objetos.
Através das ansiedades hipocondríacas que Bernarda apresenta,
deduzimos ainda que parte da libido desligada da filha falecida retornou ao próprio
eu de Bernarda. Esta admite ter sido sempre hipocondríaca, mas após o
falecimento da filha sente que piorou. Bernarda apresenta várias queixas
somáticas, mas a mais insistente é a alergia a cheiros, o que nos permite pensar
que a libido está mais concentrada na região nasal. Provavelmente, Bernarda tem
uma maior sensibilidade para odores. Há, nos Estados Unidos, um Instituto
chamado Monell Chemical Senses Center que estuda distúrbios de olfato e,
segundo informa seu site
54
, as regiões olfativas localizadas na parte superior das
narinas são de cor amarela, sendo que quanto mais profundo for o tom de
amarelo, mais sensível e agudo será o olfato. Esta maior sensibilidade faz da
região nasal de Bernarda uma região complacente ao investimento libidinal.
Estes dados descrevem um luto no qual a libido continua presa ao objeto,
impedida de fazer novas ligações. Uma verdadeira prisão.
Devemos abrir um parêntesis para considerar o peso que um trauma como
este carrega e as conseqüentes dificuldades de superá-lo. Perder um filho não é a
mesma coisa que perder uma avó, ou mesmo perder pai ou mãe. Dependendo
das circunstâncias, da idade, do motivo da morte, o evento pode ser mais ou
menos traumático. Entretanto, como afirma Mezan
55
, “Uma definição adequada do
trauma... não enfatizaria tanto a violência de um dado acontecimento, mas o efeito
54
www.monell.org
55
MEZAN, R. “O estranho caso de José Matias”, Tempo de Muda, São Paulo, Companhia das Letras, 1998,
p.47.
que ele pode ter sobre uma pessoa. Esse efeito é bem menos função da
intensidade intrínseca do evento e muito mais função da maneira como o indivíduo
o acolhe em si, num contexto plurideterminado em cujas malhas o evento vai
adquirir uma série de significações”. Que contexto é este? O que aconteceu na
constituição psíquica de Bernarda de modo a impedi-la de elaborar normalmente
este luto?
Voltando a seguir Freud, as pré-condições para que um luto patológico
ocorra são uma forte fixação no objeto amado e, contraditoriamente, uma catexia
objetal com pouco poder de resistência; a escolha objetal deve ter sido feita numa
base narcisista. Bernarda amava profundamente a filha que faleceu, mas
rapidamente a substituiu. A catexia erótica com o objeto é substituída pela
identificação narcisista com o objeto. Desta maneira, o sujeito evita renunciar à
relação amorosa, protegendo-se do sofrimento envolvido numa separação. Ocorre
uma regressão da libido, da escolha objetal para o narcisismo original. A
identificação é uma forma preliminar da escolha objetal; é a primeira forma pela
qual o ego escolhe um objeto.
Desejando incorporar a si esse objeto, o ego o devora, numa atitude oral,
canibal. O ego pode, ainda, sorver o objeto, aspirando seu cheiro. Um dado
interessante fornecido pelo Instituto Monell é que “sentimos somente quatro
sabores: doce, amargo, salgado e azedo. Isso significa que tudo o que podemos
chamar de sabor é, na realidade, odor”
56
. Nota-se uma confusão entre as pulsões
oral e nasal.
Como aponta Hornstein
57
, esta identificação descrita por Freud em Luto e
melancolia, conceitualizada como forma patológica de resolver o luto, passa a ser
considerada como processo constitutivo do ego. Em 1923, Freud nota que a
substituição da catexia objetal pela identificação “tem grande parte na
determinação da forma tomada pelo ego, e efetua uma contribuição essencial no
sentido da construção do que é chamado de seu caráter”
58
. Na fase oral primitiva,
56
www.monell.org.
57
HORNSTEIN, L, Cura psicanalítica e sublimação, Porto Alegre, Artes Médicas, 1990.
58
FREUD,S. (1923) O Ego e o Id, In: Ed. Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas. Rio de
Janeiro: Imago, 1974, Vol.XIX, p.43.
catexia do objeto e identificação são indistinguíveis uma da outra. Quando uma
pessoa tem de abandonar um objeto, acontece uma espécie de regressão a esta
fase, onde o ego confunde-se com o objeto, e o processo de abandono se torna
mais fácil. Este processo ocorre o tempo todo, e podemos supor que o ego seja
“um precipitado de catexias objetais abandonadas e que ele contém a história
dessas escolhas de objeto”
59
.
A libido investida no objeto-filha, não completou o trabalho da identificação,
que para Hornstein consiste na “vicissitude que converte o objeto em parte
constitutiva do ego”
60
. Neste caso, a libido regrediu à fase oral, na qual objeto e
ego se confundem, o que nos permite falar numa identificação narcísica,
melancólica. A não-aceitação da perda do objeto explica porque a libido tomou o
destino de ansiedade hipocondríaca relativa ao sintoma de alergia a cheiros, e não
pôde, por exemplo, destinar-se à sublimação. Outras condições egóicas,
narcísicas, propiciariam a Bernarda a possibilidade de usar sua sensibilidade
nasal para trabalhar, quem sabe, com perfumes ou degustação de vinhos.
Portanto, um luto mal resolvido encontra a origem de suas dificuldades na
fase oral primitiva, início da infância no qual se constitui o ego, e no qual ocorre
aquilo que McDougall chamou
61
de “trauma universal inevitável da humanidade: a
exposição à alteridade”
62
.
Que efeitos um trauma como este causa nas afecções psicossomáticas?
Retornando à teoria de Marty, o paciente dito neurótico de comportamento não é
capaz de realizar o trabalho de luto que permanece como uma “perda seca até
que uma nova relação...venha substituir aquela”
63
. Desprovido de representações
acessíveis, as excitações se acumulam e instala-se a depressão essencial. As
excitações seguem então um caminho destrutivo levando a uma desorganização
libidinal que pode culminar numa somatização.
Cabe aqui um comentário. A perda de um ente querido rompe bruscamente,
sem pedir licença, todo o investimento afetivo dirigido à pessoa que morreu. De
59
Ibid., p.43-44.
60
Ibid., p.39.
61
citando Christopher Bollas
62
McDougall, J. As Múltiplas Faces de Eros, São Paulo, Martins Fontes, 2001, p.129.
63
MARTY, P. – Mentalização e Psicossomática, op.cit., 39.
modo que tanto a libido quanto a agressividade ficam sem conexão psíquica. Isto
por si só já é a desorganização pulsional, independente do psiquismo em questão.
Num primeiro momento, logo após a perda, instala-se o caos. O excesso de
excitação diz respeito a essa energia pulsional dramaticamente desligada do
objeto. Num segundo momento, podemos sim, considerar o psiquismo em questão
e o modo como ele vai ou não poder representar, ou seja, ligar novamente o afeto
desligado a traços mnêmicos, e simbolizar a perda, o que significa atribuir um
sentido ao ocorrido. Por isso vemos num velório, por exemplo, parentes muito bem
mentalizados apresentarem um comportamento absolutamente operatório, de
preparar o caixão, a papelada na prefeitura, enfim, comportamentos e ações que
visam proteger o psiquismo deste terrível e primeiro impacto da morte. É comum
nestas ocasiões as pessoas comentarem que ainda não “caiu a ficha” do parente,
ou que ele ainda não realizou o que aconteceu.
Quando se trata da perda de um filho, o impacto é ainda mais brutal e
devastador. Como afirma Zagouris
64
, não há na cultura uma palavra que defina o
estado dos pais que perdem um filho, como há a palavra órfão para filhos que
perdem os pais ou viúvo para os cônjuges. Trata-se de uma perda que a própria
cultura não é capaz de traduzir em palavras e, conseqüentemente, simbolizar.
Assim, mesmo um neurótico bem mentalizado encontrará seu psiquismo num
estado pulsional caótico, devastado, podendo, também num primeiro momento,
apresentar formas mais arcaicas de defesa, incluindo a somatização. A carga
libidinal investida num filho é grande, tanto em quantidade quanto em qualidade, e
seu corte significa o desligamento de uma considerável parcela da libido do
sujeito. Como um bebê recém-nascido diante da caótica excitação pulsional, os
pais se vêem diante da árdua tarefa de religar, investir esta libido em novos
projetos. É como nascer de novo, o que propicia o aparecimento de somatizações
em neuróticos bem mentalizados. Por outro lado propicia uma chance que, se bem
aproveitada, pode gerar grandes e benéficas transformações.
64
ZAGOURIS, R, Ah! As belas lições! , São Paulo, Editora Escuta, 1995.
Para Joyce McDougall
65
, as eclosões psicossomáticas são predispostas por
um modo de funcionamento mental adquirido nos primeiros meses de vida.
Bernarda, desde bebê, “adoecia” muito, e assim responde na vida adulta às
situações traumáticas. Como se, diante de uma ameaça, precisasse certificar-se,
através das sensações corporais, de que está viva, de que não morreu junto de
sua mãe e sua filha. Essa identificação revela o que McDougall chamou de
fantasia de um só corpo e um só psiquismo para duas pessoas. Sua mãe sofria de
hipertensão, ela sofre e acredita que sua filha sofrerá também. Sua filha, como
ela, sente-se mal quando em contato com alguns aromas, como água sanitária e
perfumes fortes. Do ponto de vista psíquico, sempre que ela e a filha discordam,
ela tem alguma crise, chora muito dizendo que está perdendo sua filha.
Aliás, qualquer discordância a ameaça: certa vez foi a um churrasco na
casa de uma irmã e sentia-se bem. De repente a fumaça da churrasqueira a
incomodou a ponto de ter de ir embora. Mais tarde na sessão conta que teve uma
discussão com a irmã, mas não guardava rancor. A raiva, tão necessária para
diferenciar as pessoas, no sentido de criar uma oposição, é negada. De maneira
análoga, o que é somático não se diferencia muito do que é psíquico. Tomando o
mesmo exemplo, o mal estar provocado pela discussão com a irmã é deslocado
para a fumaça que a persegue e ameaça, transformando o mal estar psíquico em
somático.
Através da relação que mantém com a filha falecida podemos inferir que
Bernarda, no seu desenvolvimento, não pôde diferenciar-se da mãe a ponto de
poder substituir o contato corporal e concreto pela linguagem e pela comunicação
simbólica. Pois, em vez de evocar a memória da filha, falar de suas lembranças e
seus sentimentos dolorosos, ela apela para o concreto da sensação do cheiro, que
vem todo dia à meia noite visitá-la. Encontramos aqui uma crença, compartilhada
com os antigos gregos, de que a fumaça estabelece uma conexão com os mortos.
Essas considerações confirmam a hipótese de histeria arcaica que formulei
a propósito do funcionamento psíquico de Bernarda, pois, do ponto de vista das
relações objetais, McDougall descreve pacientes com uma dependência adictiva
65
McDOUGALL, J. , Teatros do corpo,op.cit.
das pessoas narcisicamente investidas e consideradas parte deles mesmos. A dor
de qualquer ameaça de separação ou separação de fato, com seu terror, afeto e
fúria, é vivida no corpo.
Dejours
66
descreve a prevalência do percebido sobre o representado nos
pacientes somatizadores. Trata-se de um discurso que descreve compulsivamente
a realidade percebida sem duplos sentidos e associações. As percepções são
selecionadas no sentido de fugir das traumáticas e ficar com as que tranqüilizam.
Assim, diante de um cheiro que pode ser traumático, a paciente literalmente sai
correndo e se esforça por eliminá-lo quando lhe é dada a chance. A satisfação
pela percepção provavelmente se instalou na primeira infância, pois como
descreve a paciente, ela era considerada pelos pais como uma criança doente que
sempre era levada ao hospital. A hipótese que levanto aqui é que muitas situações
de frustração ou sofrimento eram tratadas por sua mãe como uma privação,
tranqüilizadas com um excesso de cuidados médicos. Desta maneira, sua
capacidade de sofrer do ponto de vista emocional foi reduzida e transformada em
sofrimento físico. Por isto sua tolerância psíquica à dor é tão baixa. E por isto
também seu cardiologista precisa ajudá-la a diferenciar o que é físico daquilo que
ele considera uma angústia. Seu sofrimento foi, portanto alvo visado pela
destrutividade dos pais. E sua sexualidade? Não conto com dados de história para
afirmar que sim, mas percebo contratransferencialmente que Bernarda estabelece
relações bastante fusionais, nas quais a entrada de um terceiro é impedida. Certa
vez, ao entrar na minha sala, sentiu um perfume e o atribuiu a uma outra paciente.
Passou a sessão com a mão cobrindo o nariz para evitar a sensação e, no final da
mesma sessão, perguntou-me se eu não tinha medo de ficar sempre sozinha ali
naquela sala de um edifício tão alto e vertiginoso. O terceiro é percebido e
imediatamente negado. Bernarda prefere me ver sozinha, correndo risco de vida,
a imaginar que eu possa estar com outro alguém.
Outra passagem: Bernarda reclamava de seu marido, que não a procurava
mais, e atribuía isto ao fato de estar velha e gorda. Falei que, como todo mundo,
66
DEJOURS,C (1989) Repressão e subversão em Psicossomática, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor Ltda.
ela devia ainda guardar os seus encantos. Constrangida, ela lembrou que, vindo
no ônibus para a sessão, um senhor levantou-se de seu lugar para sentar-se ao
lado dela e ficou puxando conversa. Perguntei se o cheiro dele era bom, e ela,
ruborizada, respondeu que não prestara atenção! Seu nariz hipersensível fareja a
morte e se nega a farejar a vida. E retomando a questão levantada com relação ao
conflito edipiano, Bernarda não consegue desfrutar, junto de seu pai, de uma
refeição sensual. Transforma o tentador odor da jaca - versão nordestina do fruto
proibido - numa ameaça a sua integridade física.
As principais funções biológicas do olfato são alteradas. Basicamente o
olfato exerce uma função sexual: escolha do parceiro, período reprodutivo; e
defende o organismo de substâncias nocivas: por exemplo, o cheiro de um
alimento pode revelar que seu “prazo de validade” se esgotou. Bernarda reprime a
sensação olfativa relacionada à sexualidade e torna nocivos odores normalmente
inofensivos à espécie humana. A fumaça do churrasco de sua irmã é um exemplo
de um cheiro inofensivo, mas que, ao remeter à sua própria agressividade
projetada, torna-se ameaçador. Trata-se de uma interpretação quase delirante da
realidade olfativa, que compromete a função biológica do olfato. Segundo Dejours,
a destruição da erotização não propicia a construção de um corpo erótico: o apoio
da pulsão torna-se precário e então, “resta um corpo animal colocado sob a
primazia do fisiológico”
67
.
Adentramos então a segunda teoria das pulsões, pois os cheiros “bons”,
que podem propiciar prazer, ou não são percebidos ou são reprimidos, e os
“maus”, traumáticos e causadores de intenso desprazer são intensamente
sentidos. Trata-se da desfusão das pulsões de vida e de morte. Neste sentido,
como afirma Dejours, o paciente hiper-percebe a realidade tentando selecionar as
percepções que possam tranqüilizá-lo. Entretanto, ao hiperinvestir a percepção, o
paciente se depara com o traumático, talvez com maior freqüência e intensidade
do que seria desejável. Compulsivamente, ele procura o traumático, repetindo a
experiência originária do trauma, tal como o menino brincando de controlar a mãe
67
DEJOURS,C (1989) Repressão e subversão em Psicossomática,op.cit., 77.
com seu carretel o paciente “brinca” de controlar a realidade para que esta não o
aniquile.
É como se Bernarda vivesse à espreita do perigo para poder controlá-lo.
Evitar o cheiro de borracha queimada significa evitar a morte. E para isto ela
sempre procura este cheiro como se desta vez fosse possível evitar o acidente
que matou sua filha.
Bem, se é possível evitar o acidente, seria possível causá-lo? Se
retornarmos à história, sua filha foi a um baile sem o consentimento do pai e
acobertada por Bernarda. Uma moça de dezessete anos, no auge hormonal da
puberdade, saindo para se divertir, flertar, quem sabe até namorar. E se ela não
tivesse deixado a filha sair? Teria evitado o acidente? A paciente não faz estas
perguntas explicitamente mas lembra que quando engravidou desta filha tentou
abortá-la...
Diante do desamparo da morte ergue-se a onipotência de poder controlar o
incontrolável. Seu fracasso gera um sentimento inconsciente de culpa que move o
sujeito na direção de repetir a cena traumática para conseguir o “inconseguível”. A
dor causada em cada repetição alivia, de forma masoquista, a culpa.
Poder desfrutar do cheiro da jaca, do xampu de camomila, do perfume do
senhor do ônibus, requer uma fusão pulsional. Requer que Bernarda suporte
sentimentos ambivalentes em relação a esta filha e a outros objetos. Sentimentos
que McDougall chamou de “arcaicos”
68
, porque relacionados à sexualidade
primitiva. Trata-se de fantasmas libidinais primitivos, pulsões parciais que, por não
se fundirem com a pulsão genital, ficaram enquistadas e não puderam ser
recalcadas. A pulsão parcial olfativa mantém-se autônoma e carrega muitos
sentimentos hostis e agressivos que não podem ser ligados à pulsão genital. A
vida há que se ligar à morte transformando-a em mais vida, nesta luta incessante.
68
McDOUGALL, J. ,Teatros do eu , Livraria Francisco Alves Editora S.A. São Paulo, 1982.
2.1.3. Contratransferência
Ao descrever pacientes de “difícil acesso”, Betty Joseph
69
trata de questões
técnicas da análise de pacientes que dificilmente são atingidos com
interpretações. A autora constata uma cisão da personalidade, de tal forma que
parte do ego é mantida distante do analista e do trabalho analítico. O paciente
pode mostrar-se cooperativo com o processo analítico, mas a parte do ego que
colabora está a serviço de manter “escindida” outra parte mais necessitada.
“Algumas vezes a cisão toma a seguinte forma: uma parte do ego mantém-se à
parte, como que observando tudo que se passa entre o analista e a outra parte do
paciente, e destrutivamente impedindo que se faça um contato verdadeiro,
utilizando-se de vários métodos de evitação e evasão”.
70
A autora propõe, como objetivo destas análises, propiciar uma maior
integração do ego destes pacientes, sendo mais importante focalizar nossa
atenção em seu método de comunicação, em seu modo de falar e reagir às
interpretações, do que preocuparmo-nos com o conteúdo da sessão. São
pacientes que atuam, intensamente, na própria fala.
Seguindo esta direção técnica, proponho agora, focalizarmos algumas falas
e situações transferenciais, que podem ilustrar o tipo de relação que Bernarda
estabelece com seus objetos.
No começo, “tudo eram flores”, com todo perfume a que têm direito.
Vivemos uma fase que chamo de lua de mel, onde frases do tipo “gostei muito de
você”, ou “minha mãe tinha o cabelo castanho como o seu” ou ainda “minha filha é
branquinha, assim como você”, eram muito freqüentes. Nesta fase, entretanto,
alguma coisa não “cheirava bem”. Eu vivia um sentimento de paralisação, minha
capacidade de pensar, refletir e, portanto interpretar, ficavam bastante intimidadas.
De tal forma que, até que eu me apercebesse disto, as sessões transcorriam,
69
JOSEPH,B, “O paciente de difícil acesso”, in Melanie Klein Hoje, Vol.II, Rio de Janeiro, Imago Editora,
1990.
70
Ibid., p. 62.
cheias de elogios, mas sem cumprir com sua função analítica. Se por um lado
havia um certo conforto narcísico, por outro me sentia dispensável, pois, afinal, de
que vale uma analista que “não cheira, nem fede?!”
Nestas falas de Bernarda nota-se o que McDougall
71
chama de desejo de
fusão com o outro. Marty
72
também aponta para esta questão, num artigo sobre
relações de objeto de pacientes alérgicos, no qual salienta a dificuldade destes
pacientes de distinguirem-se do objeto, estabelecerem limites claros de
separação. Pelo contrário, seu movimento é sempre de fusão com o objeto, de
tomá-lo como algo já conhecido e familiar, um prolongamento narcísico. Este
movimento em direção ao objeto é brusco, ativo e maciço, sendo a sensação
contratransferencial, de paralisia. Como a relação estabelecida não considera
características individuais, ao contrário, tenta transformar tudo numa só coisa,
homogênea e indiferenciada, as propriedades do objeto são praticamente
desprezadas e este pode ser, portanto facilmente trocado.
Comecei, a partir da supervisão e destas reflexões, a pensar mais e a
interpretar mais, e, portanto, a existir mais. Desta maneira, o infalível teste da
realidade pôs fim à nossa lua de mel, e frases do tipo “que cheiro de tinta, você
andou pintando esta sala?”, “estou com a boca seca, tem lustra-móveis nesta
mesa?”, “aquele dia que vim aqui, e tinha aquele cheiro de verniz no corredor
passei tão mal”, começaram a aparecer. Com a mesma facilidade com que os
pacientes alérgicos “grudam” no objeto, na medida em que o objeto começa a
“cheirar mal”, quer dizer, a existir como alteridade, “desgrudam” e encontram
rapidamente um substituto que preencha suas exigências narcísicas. Falando do
marido, em determinada sessão, Bernarda afirma: “Quando ele desfaz de mim eu
falo que ele pode ir embora, cuidar da vida dele. Falo mesmo, porque tem uma
coisa: eu me apego demais às pessoas, gosto muito dos outros, mas se tiver que
me separar e ficar sozinha eu fico muito bem”.
71
McDOUGALL, J. Teatros do corpo, op.cit.
72
MARTY, P. “La relación de objeto alérgica”, in Pierre Marty y la psicossomática, Buenos Aires,
Amorrortu editores, 1998.
Uma questão técnica: em que medida intervir nas sessões de tal modo a
não se deixar devorar pela paciente, mas ao mesmo tempo, não “existir demais”, o
que poderia criar algo muito frustrante e disruptivo? Esta medida é muito difícil de
ser encontrada. Ao descrever antianalisandos, McDougall
73
afirma tratar-se de
pacientes que não reconhecem a realidade subjetiva do analista, que se insistir
em colocar-se como Outro na relação, levará o paciente a achar que o analista é
que é doente, ou poderá se sentir perseguido por este. A recusa da alteridade cria
um abismo entre o sujeito e seus objetos, causando profunda perturbação das
primeiras identificações do sujeito e conseqüentemente nas suas relações
objetais. A recusa nestes casos não se refere apenas áquela descrita por Freud
em relação à angústia de castração e a denegação da diferença entre os sexos;
trata-se de uma recusa mais global e recobre o que Freud denominou repúdio
para fora do ego (Verwerfung). A angústia de castração aqui aparece na sua
forma prototípica, angústia de separação, de despedaçamento, de morte; muito
aquém da questão da identidade sexual, trata-se mais da questão da identidade
subjetiva do ser. Num período de férias, Bernarda viajou para sua terra, Sergipe, e
ao despedir-se de mim, falou chorando que, ao voltar, retornaria para a terapia,
que só queria separar-se de mim através da morte. Fica clara nesta fala a
equivalência estabelecida entre morte e separação. Além da culpa que sente
quando se afasta; para viajar, Bernarda precisou afirmar e reafirmar, inúmeras
vezes, que só estava viajando porque achava que se sentiria melhor, da sua
alergia, em outro lugar, longe de São Paulo e das fábricas de tinta.
Voltando às falas referentes ao meu “mau cheiro”, deslocado para minha
sala ou minha mesa ou meu corredor, nota-se o jogo de culpa que a paciente faz
com a analista, que é responsabilizada pelo seu mal estar. No seu dia a dia,
controla a vida das pessoas através deste jogo: sua filha não pode usar xampu de
camomila, suas roupas não podem ser lavadas com sabão em pó, há um inquilino
na sua casa que só pode usar perfume fora de casa. Bernarda guarda uma cópia
73
McDOUGALL, J. Em defesa de uma certa anormalidade, Porto Alegre, Artes Médicas, 1983.
da chave do quarto deste inquilino para averiguar se ele cumpre com o combinado
no contrato, ou guarda produtos de limpeza e perfumes que a incomodem.
Bernarda tenta preencher seu narcisismo poroso, esburacado, cheio de
frestas, representado pela casa com frestas por onde entram os cheiros ruins, com
cheiros bons, exigindo das pessoas, principalmente da filha, que a gratifiquem
sempre e que nunca causem frustração. Na presença da filha, as crises de
Bernarda são menos freqüentes, o que corrobora esta função de “tampão” que a
filha tem para ela.
Cria-se, desta maneira, um clima de culpa e persecutoriedade, que é
deslocado das pessoas para os odores. O aroma assume, para Bernarda, este
caráter persecutório. Invisível, volátil, etéreo e fugaz, caminha pelo ar, invade
ambientes através das frestas em direção à sua vítima, que, sem o saber, o
aguarda, atenta e ao mais ínfimo sinal de sua aparição. Envolvente, o perfume
enevoa a presa que, inebriada, sucumbe. Demoniacamente a possui, penetrando
através dos poros, preenchendo seus orifícios até que não se possa mais
distinguir um do outro. Inferniza e, ao mesmo tempo, seduz.
Recentemente Bernarda viajou para a Bahia com o marido, a filha e o
genro, e, como não sentia mais cheiros que a perturbassem, decidiu ficar por lá.
Passado algum tempo a filha voltou para São Paulo e Bernarda começou a passar
mal, sua pressão subia e ela visitava o Pronto-Socorro diariamente. Até que o
médico perguntou se ela estava com algum problema emocional, e ela pensou
que tinha saudade da filha e que por isso passava mal. Voltou para São Paulo e
retomou sua terapia. Um dia antes da primeira sessão sua filha contou que sua
irmã mais velha falecera enquanto estava na Bahia, o que estava lhe causando
grande tristeza.
O sintoma dos cheiros continua desaparecido. Talvez a morte da irmã
cause uma dor vinda de fora o que diminui sua culpabilidade e a livre do sintoma.
O tempo dirá... Mas ter pensado que os problemas de pressão poderiam ter a ver
com a separação da filha, esta, posso afirmar, é uma conquista de Bernarda que
lentamente começa, como diria McDougall, a “dessomatizar”
74
seu corpo. A
74
McDOUGALL, J. As múltiplas faces de Eros, Livraria Martins Fontes Editora Ltda. São Paulo, 2001.
pressão alta e o mal estar físico ganham um estatuto afetivo psíquico, a saudade,
ou, se preferirem, “o revés de um parto”...
2.1.4. Algumas considerações
Que estatuto poderíamos atribuir a esta manifestação psicossomática, a
alergia a cheiros de Bernarda? Trata-se de uma paciente psicossomática ou de
uma neurótica com uma problemática, defesa ou sintoma psicossomático?
Considerando o pensamento dos autores acima apresentados que inclui as
noções de estrutura, defesa, angústia, sintoma, encontramos um ponto comum a
todos eles que seria a noção de trauma. Todos consideram a experiência
traumática como um fator etiológico para o aparecimento de manifestações
psicossomáticas.
Por trauma entendemos, como define Uchitel
75
, “episódios, acontecimentos,
histórias que provocando um excesso de excitação incontrolável e uma fixação a
esse excesso, atentam contra a constituição e coesão do eu, contra o sentimento
de identidade, de si próprio, colocando em risco a vida psíquica ou física do
sujeito, despertando nele angústias de fragmentação, de abandono, de separação,
de perda ou invasão. O trauma anula o funcionamento do princípio do prazer, se
subtrai ao processo de simbolização provocando, em vez de conflito, uma
clivagem no eu, um curto circuito na elaboração psíquica, que conduz à descarga
e ao agir de conteúdos que deveriam ter sido processados, por obra do recalque,
dentro das fronteiras internas do aparelho psíquico.”
76
A noção de estrutura orienta o olhar clínico desde que possamos entendê-la
como um predomínio, e não exclusividade, de angústias, defesas, conflitos e
relações de objeto em relação à castração, à falta. Como tentamos demonstrar na
discussão do caso, Bernarda não apresenta uma estrutura caracteropata apesar
de manifestar uma angústia atual e uma tendência a descompensar pela eclosão
de manifestações somáticas. Vejam, trata-se de manifestações somáticas e não
75
UCHITEL,M. Psicossomática – texto utilizado em aula no Instituto Sedes Sapientiae.
76
UCHITEL,M. Psicossomática, op.cit.,3.
doenças somáticas propriamente: sua alergia, amplamente investigada no hospital
por alergistas e neurologistas não apresenta uma base orgânica. Além disto, sua
angústia não é simbolizada, mas é, de alguma forma, representada.
Tampouco podemos falar em neurose mal mentalizada, pois Bernarda
apresenta dados de história e de vida representativos, do ponto de vista do
significado de suas vivências.
Desafetação também não esclarece seu sintoma, pois o que encontramos
no discurso e comportamento de Bernarda é um transbordamento afetivo.
Encontramos um psiquismo ferido por um trauma intraduzível, trauma que
nem a cultura é capaz de traduzir em palavras. Diante desta dor, que não pode ser
incluída numa cadeia associativa significativa, seu psiquismo se desorganiza para
se defender.
Entretanto, como também tentamos demonstrar, este trauma atualiza
dificuldades arcaicas de seu psiquismo que se mostra ineficiente para lidar com a
separação, inveja, raiva. A angústia despertada por estas vivências é a de morte,
e não a angústia de castração comum às neuroses ditas clássicas. Por isto, a
noção de histeria arcaica, descrita por McDougall, é a mais adequada ao caso.
A noção de trauma explica o fato de, mesmo estruturas consideradas
neuróticas, apresentarem manifestações psicossomáticas, uma vez que toda e
qualquer organização mental, por mais evoluída e analisada que seja, guarda
núcleos traumáticos, prontos a serem atualizados e detonados por experiências
atuais, que fogem à ordem da simbolização.
2.2. Leila
Leila, uma moça de trinta e três anos, em agosto de 2001, durante a faxina
que fazia na casa de seu patrão, passou mal com o cheiro de um produto de
limpeza. Ela limpava o banheiro, com “um tal de Form não sei o quê, que serve
para matar bactérias” e o cheiro gerou falta de ar, tremedeira, moleza nas pernas,
“gastura” e choro: “dali para cá fiquei assim”. Passou a ter medos; medo de usar
cera vermelha, medo da cor do sangue da menstruação. Cheiro de cândida e cloro
fazem mal, “ficam parados no nariz”. Às vezes está bem e algum cheiro a faz
sentir-se mal, como se tivesse “alguma coisa ruim passando dentro de mim”, sente
uma dor na perna e no braço, um formigamento, acha que é o “nervo”.
Leila nasceu em Minas Gerais, é a filha caçula de uma prole de quatro
mulheres. Sua mãe não queria engravidar, e uma amiga a incentivou a manter a
gravidez, pois poderia vir um menino. Numa espécie de brincadeira, as duas
combinaram que, se fosse menino, a mãe biológica criaria e se fosse menina, ela
daria o bebê para a amiga criar. Dito e feito: Leila foi dada aos nove meses de
idade. Quando Leila completava sete anos de idade, esta mãe que a criou
suicidou-se, tomou formicida ao descobrir que o marido tinha outra mulher; “mas
acho que essas coisas não têm nada a ver com meu problema, doutora, eu queria
uma receita daquele remédio”, diz Leila. Aos doze anos Leila veio trabalhar em
São Paulo, e, aos dezesseis, seu pai de criação faleceu de derrame, após passar
cinco anos na cama. Leila cuidou dele boa parte destes anos. Casou-se grávida
aos dezenove anos, com um homem vinte e dois anos mais velho do que ela que
bebia todos os dias e tinha problema de pressão. Deu à luz um filho que tem hoje
quatorze anos de idade e rinite alérgica. Sete anos depois teve um segundo filho,
que mamou até os três anos de idade, e sempre deu muito trabalho: come
demais, vai mal na escola, aos nove meses teve que ser operado das “tripas do
intestino”. Quando passa mal, Leila pensa que vai morrer sem despedir-se dos
filhos.
Estes dados da história de Leila foram contados por ela em duas
entrevistas na triagem do ambulatório, realizadas por mim e por um psiquiatra.
Consideramos indicados para a paciente psicoterapia individual e atendimentos
clínicos. Assim, comecei a atendê-la uma vez por semana no hospital, sendo que
o psiquiatra fazia seu acompanhamento clínico.
As primeiras sessões eram muito frustrantes, pois Leila reclamava muito de
dores no corpo, na cabeça, do cheiro parado no nariz, do formigamento, da
insônia, e dizia que conversa não iria ajudá-la, ela precisava fazer exames, “tirar
chapa”, para descobrir que doença era essa que nenhum médico descobre.
Procurei acolher suas queixas sem me opor a elas; cheguei a encaminhá-la a
reumatologia e para a acupuntura, o psiquiatra pediu uma avaliação da cardiologia
para verificar suas palpitações, mas nada acusava nada e nenhum remédio
curava suas dores. Aos poucos, fui dizendo que algumas dores não aparecem na
“chapa”, que são emocionais, que não curam com remédio, e ela só me olhava
desconfiada. Mas vinha às sessões, sempre dizendo que era a última vez que
viria.
Muito vagarosamente as queixas foram sendo substituídas por problemas
do cotidiano. Leila mora numa casa, e no mesmo terreno moram dois irmãos de
seu marido com as respectivas esposas. Queixava-se muito das cunhadas que
davam muito trabalho para ela, não faziam nada sem ela, e ela sempre ajudou,
como um “leão”. Mas agora não tinha mais saúde para isto. Preocupava-se com a
saúde do marido, que bebia muito, tinha diabetes e não se cuidava. Falava das
preocupações com o filho mais novo que não estuda. Além das desavenças com o
patrão, que às vezes reclamava de seu serviço.
Nestas primeiras sessões sentia-me muito mal fisicamente. Eu sentia enjôo,
dores nas costas, um mal estar um tanto difuso. Certo dia, Leila lembra de quando
sua mãe se matou: ela saiu de casa, sumiu por um tempo e voltou vomitando. O
cheiro do vômito revelou que ela ingerira formicida, e algumas horas depois ela
morreu. Neste dia, ao chegar em minha casa, vomitei, e pensei em não mais
atender esta paciente. Cheguei a pensar em encaminhá-la para outra terapeuta.
Imediatamente me dei conta de que a estaria dando para outra mãe cuidar, e,
como o pensamento substitui a ação, continuei a postos.
Ela continuava muito queixosa, muito descontente com o tratamento,
dizendo que ia interrompê-lo. Até que um dia me telefonou para dizer que não
estava bem e que precisava do psiquiatra. Eu disse que ele estava de férias
naquelas duas semanas, e ela foi ficando nervosa e falando cada vez mais alto;
eu tentava dizer algo, mas ela me interrompia, até que eu falei mais alto do que
ela, e para isto precisei berrar. Disse que ela se queixava de que ninguém a
ajudava, mas não podia nem ouvir a ajuda que eu tentava oferecer-lhe. Ela se
acalmou, ouviu-me, e, de lá para cá, nossa relação melhorou muito, pelo menos
para mim.
Em dezembro ela já apresentava alguma melhora de seu quadro
sintomático; um dia chegou a dizer até que se sentia bem, como antes. O cheiro
sumiu de seu nariz, e só se referiu a cheiro outra vez para falar de seu patrão: ela
descobrira que ele era homossexual, e seu apartamento era muito perfumado,
cheio de sachês, “parece casa de mulher”, dizia. Quando ela saía de lá para ir
para casa, saía com o perfume dele no corpo, e, chegando em casa, tomava
banho para livrar-se do cheiro.
Sua melhora não durou muito, pois pouco antes do Natal ela acorda um dia
e seu marido a beija na cama, diz que a ama muito, cai para o lado e morre.
Diante desta tragédia, Leila fica muito abalada, e outros sintomas aparecem. Esta
época coincide com as férias do ambulatório, que fecha; eu me disponho a
conversar com Leila pelo telefone e a atendê-la em meu consultório. Ela me ligava
para conversar e, quando não me encontrava logo, como por exemplo, no Ano
Novo, ela recorria a prontos-socorros. Por sorte, nestas consultas com médicos,
todos a alertaram para o caráter emocional de seus sintomas; afinal, ela acabara
de perder o marido. Assim, Leila, ainda desconfiada, foi se aproximando da
terapia.
Tomemos um exemplo clínico para ilustrar e pensar seu funcionamento
psíquico. Trata-se de um sessão ocorrida após a morte de seu marido, e após um
período de férias do ambulatório:
L. - A Sra. andou passeando, né?
C.A.- Você recebeu meu recado?
L. -Recebi, minha cunhada me falou. Eu pensei, ih, a Dra. Cristiane sumiu.
C.A. - Você sumiu, né Leila?
L. - É que eu tive uns problemas para resolver. Um dia é uma coisa, outro
dia é outra. Escola dos meninos, greve de ônibus, médico. O que está me
incomodando agora é o cheiro de alguns produtos.
C.A. - Que produtos?
L. - De limpeza, de cândida.
C.A. - Esse problema tinha sumido, não?
L. - É, mas de lá para cá vivo cismada. Não tem cheiro passando pelo
nariz mais, mas fico achando que o cheiro de cândida pode me fazer mal.
C.A. - Quando que o cheiro voltou a incomodar?
L. - Todo problema tem uma história, né Dra? Ele começou aquele dia
que eu estava limpando a casa do meu patrão com “form não sei o quê”.
Passei mal, liguei para ele e ele falou para eu me deitar na cama dele que
passava. Eu que não ia deitar naquela cama, aí que eu ia piorar mesmo. É
muito perfumado lá. A casa dele tem um perfume muito forte.
C.A. - Você não gosta de perfume?
L. - É que lá é demais, saio de lá com aquele cheiro no corpo, chego em
casa tenho que tomar banho para ele sair. Não gosto muito de perfume. No
ônibus então, tem aqueles perfumes mata-barata...
C.A. - Mata-formiga.
L. - (sorri)
C.A. - Você pensou em alguma coisa?
L. - Não!
C.A. - Você disse que todo problema tem uma história, talvez este problema
do cheiro tenha uma história mais antiga do que o ocorrido na casa do
patrão.
L. - Tem sim, mas são coisas que a gente deve esquecer. É melhor deixar
isto pra tras, deixar quieto.
C.A. - Seria bom se ficasse quieto, mas o problema insiste e te incomoda.
L. -Eu lembrei da minha mãe quando a Sra. falou mata-formiga. (pausa)
Sabe de uma coisa, eu vou perguntar para o Dr. Ricardo se eu preciso
mesmo de uma psicóloga. E esses remédios que ele me passou também
não estão me ajudando. Melhoro de uma coisa, mas sinto outras.
C.A. - O remédio que eu ofereço a você também melhora algumas coisas,
mas faz você entrar em contato com coisas dolorosas.
L. - Eu vou perguntar para ele porque eu sou obrigada a fazer terapia.
C.A. - Você não é obrigada, vem se quiser.
L. -Minha cunhada falou que eu não preciso de terapia. Eu tenho um
barulho no ouvido que também não sai. Fui no otorrino e o exame não deu
nada. Eu não agüento quando tem criança chorando, muita gente falando.
Um dia, meu marido era vivo ainda, e eu me senti mal. Ele saiu com as
crianças, foi para a casa de meu cunhado, e eu não quis ir junto. Resolvi
ficar sozinha. Pensei que eu devia dormir. Mas eu senti medo, não queria
dormir sozinha, pensei que eu devia dormir sempre agarrada com alguém,
que eu não queria me afastar das pessoas.
C.A. - Você deve ter sentido muito medo quando sua mãe se afastou.
L. - Senti muita falta dela. Mas isso passou.
C.A. - Eu e o Dr. Ricardo nos afastamos agora nas férias também e você
sentiu raiva e medo que eu sumisse.
L. - É, não vou negar. Tanto sinto falta que ligo e venho até aqui. Minha
cunhada queria que eu fosse no ginecologista dela, mas eu falei que já
conheço o HSP e que estou muito bem com você e o Dr. Ricardo.
Após esta sessão a paciente não voltou a se queixar dos cheiros. A queixa
mais freqüente deslocou-se para o zumbido no ouvido, que, segundo ela,
começara no dia do velório de seu marido. Havia muitas pessoas, falando muito, e
quando todos foram embora ela ficou com o zumbido, no lugar do silêncio.
2.2.1. Destinos da pulsão
No que diz respeito a representações, neste caso temos uma
representação palavra, form, que liga o produto de limpeza lysoform, ao formicida
ingerido pela mãe de Leila. Trata-se de uma cadeia associativa que inclui
palavras, fatos e lembranças como cheiro de limpeza, cheiro de cândida, lysoform,
perfume, banho, mata-barata, mata-formiga, formicida, suicídio da mãe, traição do
pai, saudade, criança chorando, medo de ficar sozinha... Enfim, uma riqueza
psíquica através da qual podemos formular muitas hipóteses interpretativas.
Como ensina Marty
77
, podemos afirmar tratar-se de uma representação-
palavra, pois trata-se de uma percepção atual, o cheiro do lysoform, que se liga,
através de associações de idéias e reflexões repletas de afetividade, à vida da
pessoa como um todo. Sentir o cheiro do produto de limpeza é uma vivência
sensório-perceptiva que origina uma associação sensório-perceptiva, o cheiro do
vômito da mãe. Mas esta associação também se dá através da percepção de
linguagem, através da palavra form. A representação cheiro conquista o status de
representação-palavra, o que permite à representação uma mobilidade dentro do
aparelho psíquico. No caso anterior vimos que a representação “cheiro de
borracha queimada” não conquistou plenamente este status, ficando a meio
caminho da representação-coisa e da representação-palavra, o que torna a
vivência enquistada, sem mobilidade associativa dentro do aparato psíquico.
Leila é capaz de relatar o sintoma, suas conexões associativas, e a partir de
uma palavra da analista – “mata-formiga” – produzir um insight. Um insight amargo
que ela repudia e até ameaça abandonar a terapia. Mas através dele ela
consegue falar de seus medos, raivas e abandonos.
77
MARTY, P. Mentalização e Psicossomática, op.cit.
Algo aconteceu naquele dia de limpeza do banheiro de seu patrão,
causando um desequilíbrio psíquico em Leila e destituindo a representação do
simbolismo da palavra, isto é, reduzindo-a a coisa novamente. O trabalho de
análise realizado não conseguiu investigar o motivo de naquele exato dia isto
acontecer. A simples menção do nome form associado ao cheiro forte do produto
pode ter desencadeado o processo. Arrisco a hipótese de neste ano Leila ter a
mesma idade de sua mãe quando esta última se suicidou, mas isto é apenas uma
hipótese.
No que concerne à qualidade da representação, tomemos o exemplo
proposto por Marty
78
da boneca que é para o bebê algo palpável e visível, e, com
o tempo, torna-se uma criança e, mais tarde, uma mulher sexuada. Para Leila, o
cheiro concreto e palpável faz uma alusão à morte da mãe, mas também aos
perfumes baratos para baratas e ao caro perfume do patrão.
Em outra sessão Leila fala da homossexualidade do patrão e de sua
relação com ele. Trata-se de um homem rico, bem sucedido e muito ocupado que
deixa nas mãos de Leila a organização da casa. Ela se gaba ao dizer que seu
trabalho é de muita responsabilidade e sente-se como que a dona da casa. Assim,
podemos inferir fantasias amorosas com relação ao patrão, ao status social que
poderia conferir a Leila, em oposição aos perfumes baratos. E sua decepção
quando percebe que este homem não é disponível para ela, pelo menos não como
ela gostaria.
Durante muito tempo Leila evitou ou reprimiu pensamentos e idéias
relacionados ao suicídio da mãe, vivência afetiva que podemos classificar de
violenta. Na sessão descrita ela é explícita ao dizer que há “coisas que a gente
deve esquecer...deixar para trás.” Esta vivência bem representada carece de
simbolização. Apesar da sessão promover associações e uma parcial
simbolização seguida do desaparecimento do sintoma, Leila imediatamente o
desloca para o barulho no ouvido, concreto, digno da avaliação de um
otorrinolaringologista. Sintomas equivalentes do ponto de vista simbólico, pois
78
MARTY, P. Mentalização e Psicossomática, op.cit.,18.
ambos remetem ao trauma da perda e da separação de entes queridos suscitando
afetos de raiva, medo e abandono.
Por estas considerações, concluo, segundo a classificação de Marty, tratar-
se de um caso de mentalização incerta, pois por efeito da repressão ou evitação
as representações ligadas ao evento traumático foram privadas do acesso mental
consciente. Se compreendermos que a classificação de Marty considera uma
graduação entre neuróticos mal mentalizados e bem mentalizados, eu diria que
Leila está mais perto dos bem mentalizados.
Pensando no efeito traumático do cheiro e do nome do lysoform para Leila,
nos remetemos à morte de sua mãe adotiva. Mas regredindo mais em sua história,
aos oito meses de idade Leila perde sua mãe biológica, o que configura um
trauma mais antigo e homólogo. Aos oito meses, idade em que as percepções
sensoriais predominam num psiquismo ainda inapto a desenvolver
representações-palavra, Leila troca de mãe, de casa, o que para um bebê significa
mudar de cheiro, barulho, tom de voz, calor, tato, enfim, tudo o que compõe um
ambiente materno. Podemos supor encontrar-se aí uma fixação somática no
sistema perceptivo de Leila, predispondo estas funções somáticas aliadas a um
“programa inconsciente enriquecido”
79
a conversões histéricas.
É possível afirmar que seu sintoma é enriquecido por este programa
inconsciente, uma vez que aparece intimamente ligado à sexualidade infantil. Se
pensarmos na relação de Leila com seu patrão homossexual, podemos aludir ao
79
MARTY, P. El orden psicosomático, Valencia, Promolibro, 1995.
Segundo a hipótese de Marty , nas conversões histéricas a sintomatologia característica de uma
mobilização funcional representaria simbolicamente o estado de uma programação inconsciente e de abertura
evolutiva da função psicossomática em questão, assinalando, ao mesmo tempo, a aptidão histérica desta
função. O processo de conversão se dirige essencialmente a funções em estado de programação, tanto no nível
da primeira representação reprimida, como no nível dos segundos sintomas. Assim, a primeira representação,
a do conflito, é enriquecida por um programa inconsciente, o mesmo que, ao não ser elaborado
psiquicamente, forçou a repressão. Neste momento surge uma expressão regressiva. Esta regressão apóia-se
em um sintoma funcional somático fixado anteriormente, e também em um programa inconsciente
enriquecido. Na regressão encontraremos uma qualidade simbólica homóloga com relação a seu valor
pulsional, à representação reprimida, ainda que a qualidade simbólica da regressão conversiva seja menos
evoluída e complexa que a da representação reprimida. Da mesma forma há um paralelismo entre o trauma
que desencadeou a repressão e o que inicialmente determinou a fixação funcional somática. A sintomatologia
de uma conversão corresponderia ao bloqueio e à paralisação dramática do programa evolutivo de uma
organização somática anterior fixada neste estádio. As fixações, lugar de atração da conversão, concernem a
organizações funcionais erotizadas. Assim, a programação está intimamente ligada à sexualidade infantil,
tanto nas primeiras fixações, quanto nas regressões.
motivo pelo qual sua mãe a doou para adoção pela amiga: Leila não nasceu
homem. Esta questão aparece ainda quando Leila se queixa das cunhadas,
dizendo que as ajuda como um “leão”. A leoa transforma-se no seu equivalente
macho, compensando-se narcisicamente de seu defeito de fabricação.
Estes conteúdos ligados à sexualidade foram recalcados do sistema pré-
consciente para o inconsciente; e não reprimidos ou evitados, como é o caso do
suicídio de sua mãe. Pensando o processo de análise segundo o “modelo da
cebola” proposto por Freud, na primeira camada encontramos a representação
reprimida, esta na qual Leila evita pensar. Nas camadas mais profundas e
inconscientes encontramos representações recalcadas, ligadas à sexualidade oral,
anal e fálica, que enriquecem e vitalizam o trauma. Notamos em Leila o caráter
sensual dos cheiros que ela é capaz de perceber e até repudiar. No caso de
Bernarda esta conexão entre a vida e a morte, o prazer do cheiro bom, o
desprazer do fedor, a conexão entre o fedor da morte da filha e a sensualidade
dos perfumes aparece muito mais fissurada.
Ainda do ponto de vista do destino da pulsão olfativa de Leila, não creio
tratar-se do que McDougall
80
sugere como quarto destino possível no qual o afeto
é congelado e a representação verbal que o conota, pulverizada. As experiências
traumáticas de Leila não foram excluídas da consciência, tampouco da cadeia de
representações. Houve sim repressão e recalque da representação que
encontram sua via de expressão no sintoma conversivo.
Segundo McDougall, poderíamos nos perguntar se Leila se enquadraria no
quadro descrito sob o nome de histeria arcaica. Apesar de apresentar sintomas
somáticos, Leila clama muito mais pelo direito às gratificações sexuais e
narcísicas do que pelo direito de existir. Sua mãe adotiva lhe assegurou o direito
de existir. Leila clama pela satisfação de ser mulher e poder gozar de sua
condição sexual, sem precisar se transformar num leão-homem. Não poder olhar
para a cor vermelha que lembra a cor do sangue da menstruação significa não
poder olhar para aquilo que denuncia sua condição de mulher adulta.
80
McDOUGALL, J., Teatros do corpo, op.cit.
Finalmente, para Dejours
81
, a angústia neurótica seria um afeto que evoca
uma cadeia de associações e representações ligadas ao passado do sujeito. Ela
tem um conteúdo representativo que assegura sua simbolização e evoca uma
alusão ao Édipo, à castração e à neurose infantil. De forma que não podemos
atribuir a Leila o diagnóstico de caracteropata cuja angústia não é nem
representada e nem simbolizada.
A angústia de Leila, despertada pelo cheiro do lysoform, faz alusão à
castração pelas vias lysoform – formicida – suicídio da mãe – mãe biológica – filho
homem; lysoform – perfume do patrão – homossexualidade; lysoform – perfume
mata-barata ( neste caso a castração aparece sob a forma de impotência diante
da sua condição social); lysoform – cera vermelha – sangue da menstruação; ou
ainda lysoform – abalo de sua saúde física – abalo na saúde física do leão – um
macho entre cunhadas impotentes.
A alusão ao Édipo se faz no motivo do suicídio de sua mãe: seu pai tinha
outra mulher, pai de quem cuidou sozinha, sem contar com a ajuda dos outros
irmãos, que por sinal, mal aparecem em seu relato. Além disto, ao casar-se
escolhe um homem vinte anos mais velho e após a perda do marido envolve-se
com outros homens, sempre escolhidos a dedo, sempre muito mais velhos. Tive a
oportunidade de conhecer um destes namorados, que foi até meu consultório com
Leila pois queria saber que “doença” é esta que ela tinha. Muito invasivo, ele foi
entrando em minha sala e eu o barrei parando firme na porta e pedindo que
aguardasse o final da sessão na sala de espera. Leila entrou na sessão e disse
que ele a tratava como filha e que ela não conseguia impedi-lo de entrar na sua
intimidade e controlar sua vida. Chamou minha atenção o fato de que, neste dia,
ambos vestiam uma blusa vermelha...
Podemos então descartar a hipótese oferecida por Dejours
82
de que a
angústia de Leila seja angústia-descarga provocada por um traumatismo que gera
um excedente de excitação frente à capacidade de ligação do aparelho psíquico?
81
DEJOURS,C. (1988) O corpo entre biologia e psicanálise,op.cit.
82
DEJOURS,C. (1988) O corpo entre biologia e psicanálise, op.cit.
Para Dejours o que propicia a emergência da angústia-descarga é o
traumatismo, um excesso de excitação que ocasiona o desligamento pulsional e,
conseqüentemente, uma brecha no ego e um alagamento do processo secundário
pelo primário. Como já mencionado anteriormente, o trauma vivido por Leila
encontra representações psíquicas, mas não pôde ser simbolizado. Eis uma
brecha em seu psiquismo que dá vazão à angústia-descarga. O episódio relatado
de nossa conversa ao telefone demonstra como Leila, até então, vomitava
palavras, numa descarga incontrolável. Minha conduta serviu de pára-excitação, e
a partir deste episódio parei de sentir náuseas e enjôos ao atendê-la, assim como
Leila parou de vomitar suas queixas. Ou seja, mesmo numa estrutura que
podemos classificar de neurótica é possível encontrar brechas na capacidade de
ligação e simbolização de pulsões que ficam desligadas do funcionamento
psíquico, por efeito do trauma.
Porém, a tarefa de análise, de re-ligação destas pulsões que não
encontram outra via de expressão além da descarga, é muito mais facilitada
quando se trata de um psiquismo mais preservado. Isto porque, numa estrutura
neurótica, que já conhece o caminho das pedras, a percepção e os pensamentos
são colocados em latência por efeito do recalque, o que configura um trabalho de
soldagem entre representação e afeto que já estiveram unidos. Em contraposição
ao trabalho de construção psíquica, no caso, dá-se a nomeação de afetos que
nunca chegaram a ter um estatuto psíquico, por efeito da repressão.
Segundo o critério de Dejours
83
, para quem a estrutura do paciente é
determinada pelo mecanismo de defesa fundamentalmente utilizado frente à
realidade, podemos afirmar que se trata de uma neurose histérica. E o ato de
descarga de Leila pode ser compreendido como uma “convulsão falada” dentro de
um quadro conversivo.
Interessa ainda notar que, esta via associativa lysoform – formicida – mãe
adotiva – mãe biológica – adoção aos nove meses de idade, que por não poder
ser simbolizada só pode ser descarregada, foi herdada por seu filho mais novo,
que aos nove meses de idade sofre uma cirurgia nas “tripas do intestino”. O
83
DEJOURS,C. (1988) O corpo entre biologia e psicanálise, op.cit.,127.
trauma visceral de Leila que não pôde ser completamente digerido pelo psiquismo
entala nas vísceras do filho exatamente na mesma idade em que sua mãe (Leila)
foi dada para adoção.
Leila reclamou deste filho em algumas sessões, pois ele dava muito
trabalho para estudar. Já havia repetido o ano e não conseguia aprender a ler, “ele
parece um bebezão”. Queixava-se que ele insistia em dormir em sua cama, ao
que ela não se opunha, e pedia muitas coisas que ela não podia comprar, mas
também não conseguia dizer não ao filho. Fiz algumas intervenções no sentido de
mostrar a Leila que ela precisava deixá-lo crescer, ainda que esta separação fosse
dolorosa para ambos. Assim como insisti para que ela o levasse para uma
avaliação psicológica. Recentemente, Leila, já afastada da análise, telefonou-me
para dizer, com muita satisfação, que conseguira uma vaga para seu filho num
serviço público de psicologia, e seu rendimento escolar já melhorara bastante.
Quanto ao primeiro filho, há que se suspeitar de sua rinite alérgica, pois se
trata de uma afecção localizada na região oral e nasal, “prediletas” de Leila.
Entretanto, seu desenvolvimento, pelo menos até onde pudemos investigar, não
foi tão comprometido quanto o de seu irmão.
Seria muito curioso investigar o funcionamento psíquico destas crianças para
pensarmos como se dá esta passagem transgeracional, e conferir a veracidade
de minhas hipóteses a respeito dos sintomas dos meninos.
2.2.2. Narcisismo, relação de objeto e contratransferência
Dejours
84
propõe um segundo critério diagnóstico para diferenciar neuroses
de somatizações, que seria a maneira como o paciente manipula o pensamento
do analista. No caso de Leila, não poderia dizer que ela tentasse neutralizar meu
pensamento, pois não me sentia petrificada ou paralisada em minha capacidade
de pensar. A sensação de morte psíquica, de incapacidade para associar
livremente, promovida por Bernarda, não se dava quando atendia Leila. As
sessões transcorriam mais fluidas e ricas de elaboração.
Entretanto eu sentia uma pressa danada de dizer tudo o que me ocorria,
como se aquela sessão fosse sempre a última. Através da sessão aqui transcrita
não fica muito difícil imaginar porquê, uma vez que Leila estava sempre
questionando a eficácia da terapia e ameaçando abandoná-la. Que jogo era este
proposto por Leila?
“A Sra. andou passeando...ih, a Dra. Cristiane sumiu..”. Falas subseqüentes
a diversas faltas de Leila. Leila some, passeia, brinca como uma criança que se
esconde atrás da cortina, se assusta ao se perceber sozinha e reaparece,
resgatando assim a imagem e presença dos pais que haviam subitamente
“sumido”. Quando Leila decide não sair com o marido e os filhos para ficar sozinha
em casa, logo se sente sozinha e com medo, desejando ter alguém agarrada a
ela.
Estabelece assim um jogo entre atividade e passividade: ela ativamente
desaparece para reaparecer numa condição passiva, de quem foi abandonada.
Trata-se de um processo análogo ao jogo do fort-da descrito por Freud
85
, no qual
a criança sai da passividade, ser abandonada, e passa a controlar de modo ativo a
situação. Passivamente ativa, Leila não abre mão de parecer ser a abandonada. E
eu caio “como um patinho”. Identificada à condição de passivamente abandonada
84
DEJOURS,C. (1989) Repressão e subversão em Psicossomática,op.cit.
85
FREUD,S. (19230)Além do princípio do prazer, In: Ed. Standard Brasileira das Obras Psicológicas
Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1974, Vol. XVIII.
da paciente, eu ajo nas sessões como se ela fosse me abandonar, e encaro a
sessão como se fosse a última.
Desta forma, sessões que transcorriam fluidas e ricas em associações,
interpretações e insights, tinham como pano de fundo este jogo de controle. Jogo
absolutamente intrínseco ao trauma vivenciado por Leila, de mães sempre prontas
a abandonar, seja através do aborto, da adoção ou do suicídio.
Na transferência, Leila me coloca no lugar daquela que a abandona após
um vômito e inverte os papéis ameaçando me abandonar o tempo todo.
Em outra sessão Leila contava de um rapaz que conheceu, mas com quem
não queria sair, pois não queria passar por outra perda em sua vida; para em
seguida dizer que seu filho mais novo é “como uma planta que eu tenho em casa”.
Eu respondi dizendo que uma planta não pode ir embora, ao que ela conclui que é
melhor namorar mesmo, pois um dia seu filho também vai encontrar uma
namorada e sair de casa. E assim Leila foi processando o jogo do fort-da no
sentido de tornar “o que em si mesmo é desagradável num tema a ser
rememorado e elaborado na mente”
86
.
86
FREUD,S. (19230)Além do princípio do prazer, op.cit.,29.
Capítulo III
A Perversão dos Fedores
“A mulher é como uma fruta que só exala sua fragrância quando a esfregam com as mãos.(...)
Se não a animar com seus beijos e carícias, com mordidas nas coxas e abraços apertados(...)
Você não obterá o que deseja; não experimentará prazer quando ela compartilhar seu divã,
e ela não sentirá afeto por você.
(Shaykh Nefzawi)
87
.
Neste capítulo proponho uma compreensão psicopatológica do protagonista
do livro O Perfume, de Patrick Süskind
88
, para quem a pulsão olfativa tornou-se o
eixo da organização sexual, preponderando sobre as demais pulsões. A história
se passa em Paris, numa época em que as cidades exalavam um fedor
inconcebível; o lugar de Paris no qual o mau cheiro era mais intenso e infernal era
o Cimetière dês Innocents. Neste lugar, nasceu Jean-Baptiste Grenouille, a 17 de
Julho de 1738.
87
NEFZAWI, S. O jardim perfumado, Mira-Sintra, Publicações Europa América, 1976.
88
SÜSKIND, P., O Perfume, história de um assassino, Rio de Janeiro, Editora Record, 1985.
3.1.“Inter faeces et urinas nascimur”
A mãe de Grenouille escamava peixes numa peixaria e não notava o fedor,
pois seu nariz era “praticamente insensível a odores”
89
. O autor descreve a mãe
como uma mulher jovem, em torno de vinte anos, bonita, saudável e que esperava
casar-se um dia e ter de verdade filhos, como uma mulher honrada. Assim nasceu
Grenouille: sua mãe acocorou-se embaixo da mesa de escamar peixes, cortou o
cordão umbilical com a faca que usava para limpar os peixes e desmaiou. Ao
recobrar os sentidos levantou-se e foi lavar-se, e “contrariando as expectativas, a
coisa recém-nascida começa a chorar embaixo da mesa de limpar peixe. Procura-
se, encontra-se o bebê num enxame de moscas e entre vísceras e cabeças de
peixe....
90
A polícia, chamada por pessoas que presenciaram o desmaio da mãe,
entregou a criança a uma ama, e prendeu a mãe que foi decapitada, algumas
semanas depois.
Assim, Grenouille nasce em condições absolutamente traumáticas; o cheiro
de peixe que, podemos supor, representa o sexo materno é excessivo, assim
como é excessivo o fedor do local no qual nasceu. Na condição de estímulo
externo os odores despertam sensações e excitações internas que o bebê não é
capaz de conter e processar sozinho. Para tanto ele precisa do contorno e do
amparo da mãe. Evidentemente este não é o caso do nosso herói, que nasce
numa condição de quase absoluto desamparo e abandono. Entretanto ele
sobrevive a este excesso de estímulos, o que já anuncia a imensurável
capacidade do protagonista de sobrevivência diante das adversidades.
Nenhuma ama suportava ficar com o bebê por mais que uns poucos dias, pois
ele mamava demais, comprometendo seu ganha pão. A rejeição inicial da mãe
89
SÜSKIND, P., O Perfume, história de um assassino, op.cit., 9.
90
Ibid., p.9.
biológica se repete com as amas e Grenouille passa de mão em mão, de seio
em seio. Seu desamparo é comovente e aqui o autor consegue criar uma
empatia no leitor que pode pensar: e se este menino fosse adotado por alguém,
qual seria seu destino? Talvez não se tornasse um monstro. O autor consegue
aquilo que Freud
91
chama de “identificação com o herói”, mais especificamente
com seu desamparo que justifica, de alguma forma, o monstro no qual ele se
transformará.
Uma das amas encarregadas dos cuidados de Grenouille, ao devolvê-lo ao
convento, reclama ter sido sugada, esvaziada até os ossos e cinco quilos mais
magra. Segundo ela o bebê estava possuído pelo demônio pois não tinha
cheiro nenhum.
Novamente a história se repete. A mãe biológica de Grenouille foi descrita
acima como alguém insensível a cheiros, o que provavelmente a impossibilitou
de doar ao filho esta característica. Mas aqui devemos ponderar que significado
isto tem. Assim como não encontramos duas impressões digitais iguais, não
encontramos cheiros iguais em pessoas diferentes, cada um tem um cheiro
próprio o que confere ao indivíduo uma identidade, uma marca pessoal. Uma
pessoa que “não cheira nem fede” é alguém que não marca presença, não
delimita seu território, alguém cuja existência não faz a menor diferença. Não
ter cheiro equivale a não despertar nos outros, uma impressão afetiva, não
despertar amor, sedução, paixões. Grenouille era, para sua progenitora,
apenas mais uma “carne ensangüentada”, amorfo, sem cheiro e sem
identidade. Insensível a cheiros ela era insensível aos afetos, ao amor. Ela não
foi capaz de investir, narcisicamente, seu filho, com cheiro-afeto-amor, de criar
um sonho rico de significados para esta criança, de criar para ela um mundo,
ainda que imaginário e ilusório, mas que conferisse um sentido para sua
existência. Não havia espaço afetivo na vida miserável desta mãe para Jean-
91
FREUD,S. (1906) Tipos psicopáticos no palco, In: Ed. Standard Brasileira das Obras Psicológicas
Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1974, Vol. VII.
Baptiste. Mas ela sonhava em ter filhos quando tivesse uma “vida de verdade”,
casada e honrada. Este sonho, talvez, tenha sido suficiente para manter
Grenouille psiquicamente vivo, ainda que com esta imensa falha narcísica.
Voltando à história, o padre Terrier recebeu a ama e ficou com o menino.
Colocou-o no colo e fantasiou ter se casado e tido um filho. Renasce a esperança
no leitor: quem sabe o padre adote este menino e mude seu destino! Quem sabe
ele lhe atribua um cheiro, uma identidade e a capacidade de amar!
Mas, infelizmente o padre repete o ato da progenitora de Grenouille: rejeita
o pequeno, que desde o nascimento carrega uma marca, uma falha narcísica que
vai sendo reafirmada pelas pessoas com as quais se relaciona. O que incomoda o
padre talvez não seja apenas a voracidade do bebê ou sua falta de cheiro, mas as
fantasias que lhe ocorreram, de ter uma vida sexuada com mulher e filhos. Não se
trata apenas de um bebê que não tem cheiro, mas de não ter alguém que lhe
atribua um.
Assim, o padre decidiu livrar-se da criança e a deixou com uma outra ama.
Encontramos na literatura psicanalítica autores que se referem às conseqüências
que, esta constante troca de mães, assim como o repúdio dos pais, podem
acarretar no psiquismo de uma criança. Citando Walter Bromberg
92
, Shine
93
comenta a gênese da psicopatia relacionando-a com a problemática narcisista, na
qual o bebê teve de valer-se de seus próprios recursos frente a uma situação de
falta, pois seus pais foram rechaçantes. Assim, o bebê não abandona a
onipotência e não a atribui a um outro externo.
Ainda segundo Shine, Spitz
94
observou e estudou bebês hospitalizados e
alertou para fatores emocionais específicos presentes na psicopatia; para Spitz
92
BROMBERG, W. (1948) Dinamic Aspects of psychopathic personality, In : SHINE, K.S. Psicopatia, São
Paulo, Casa do Psicólogo, 2000.
93
SHINE, K.S. Psicopatia, São Paulo, Casa do Psicólogo, 2000.
94
Ibid.
mãe inconstantes, lábeis, contraditórias e inconsistentes predispõe seus bebês a
esta patologia. Esta variação pode ocorrer na mesma mãe ou ser decorrente da
constante troca da pessoa que cuida do bebê. Assim o estabelecimento de
relações objetais confiáveis fica impossível. A libido objetal fica concentrada no
narcisismo.
Na nova casa o garoto sobreviveu a condições de vida absolutamente
adversas. O autor descreve sua personalidade prenunciando o monstro no qual
se transformaria: “duro como uma bactéria resistente e auto-suficiente como um
carrapato colado numa árvore, que vive de uma gotinha de sangue sugada ano
passado... Para a alma não precisava de nada. Calor humano, dedicação,
delicadeza, amor... Ao mundo não dava nada senão suas fezes; nenhum sorriso,
nenhum grito, nenhum brilho dos olhos, nem sequer um cheiro próprio.”
95
Shine, em seu livro sobre Psicopatia, cita um trabalho de Kernberg
96
no
qual descreve um subtipo de Transtorno de personalidade anti-social que não é
agressivo, mas “cronicamente parasítico e/ou espoliativo”
97
. Esta imagem do
carrapato traduz muito bem esta idéia do parasita, que vive à custa do sangue e
da seiva alheios. Além de figurar o retraimento narcísico e aparentemente auto-
suficiente e onipotente descritas por Bromberg acima. Entretanto, como veremos
adiante, nosso protagonista apresenta comportamentos bastante agressivos o que
exclui a possibilidade de classificá-lo segundo este subtipo proposto por Kernberg.
Neste momento, a análise que eu vinha realizando de maneira mais ou
menos fluida, estanca por conta de um sentimento contratransferencial. O
sentimento de compaixão despertado inicialmente pelo protagonista torna-se
repulsa. Arrependo-me de ter inventado esta tarefa de análise e sinto vontade de
me livrar deste carrapato e deletar este arquivo no qual escrevo. Lembro-me da
95
SÜSKIND, P., O Perfume, história de um assassino, op.cit.,25.
96
KERNBERG, O.F. (1992) Agressão nos transtornos de personalidade e nas perversões, In: SHINE, K.S.
Psicopatia, São Paulo, Casa do Psicólogo, 2000.
97
Ibid., p.19.
reação do padre Terrier, das amas de leite e da mãe de Jean-Baptiste, e então, o
pensamento substitui a ação e retomo minha tarefa.
Jean-Baptiste começou andar só aos três anos, e a falar aos quatro. A
primeira palavra foi, não surpreendentemente, “peixe”. O autor relata uma
dificuldade com a fala referente a conceitos abstratos, valores éticos e morais e
conseqüentemente com a simbolização, muito comuns em casos de perversão e
psicopatias, sobre as quais desenvolverei algumas idéias mais adiante, quando
Grenouille apresentar um sonho.
Por outro lado, Grenouille desenvolveu uma enorme capacidade de
discriminar odores, de modo que, a linguagem mostrou-se pobre para a riqueza de
aromas percebidos por ele.
Mais uma vez, a ama decidiu livrar-se do menino que contava agora oito
anos. Levou-o a um curtume chamado Grimal, onde se contratava mão de obra
infantil barata e não especializada. Percebendo a violência do Monsieur Grimal,
Grenouille submeteu-se ao trabalho insalubre no curtume sem a menor rebeldia;
voltou a encapsular-se como um carrapato, para sobreviver.
3.2. A revelação
No dia 1
o
. de Setembro de 1753, Grenouille assistiu a uma festividade
comemorativa do aniversário da coroação do rei
98
na qual queimaram muitos
fogos de artifício. Grenouille, nesta data, contava quinze anos, auge da
puberdade, da efervescência hormonal, bem representada pelos fogos de artifício.
Voltando para casa, Jean-Baptiste sentiu um aroma e perseguiu-o com
sofreguidão, pois teve a sensação de que este aroma seria a chave para ordenar
98
trata-se aqui do rei Luís XV
todos os outros aromas. Numa busca ávida, como um predador atrás da presa,
percorreu ruas atrás do rastro deixado pelo sublime e desconhecido aroma. Até
que encontrou uma jovem, de treze anos, que sentada num pátio limpava
nectarinas. Extasiado, cheirou a moça, “o suor de suas axilas, ...o cheiro de peixe
do seu sexo... O suor dela odorava tão fresco quanto a brisa do mar, o sebo de
seus cabelos, tão doce quanto óleo de amêndoas, o seu sexo como um buquê de
lírios-d’água, a pele como flores de pessegueiro...”
99
. Sua vida não teria mais
sentido sem este aroma o que o levou a tentar conhecê-lo e decifrá-lo. Para tanto,
aproximou-se da moça e sem olhá-la ele a estrangulou até a morte, com a única
preocupação de não perder nada de sua fragrância. Deitou-a no chão, tirou sua
roupa e deleitou-se, farejando-a da cabeça aos pés, sugando todo o seu cheiro,
num ato impelido por uma inveja feroz. Este é um momento dramático do texto
onde aquilo que parecia uma cena de amor romântico transforma-se numa
atrocidade. Assim Grenouille teve sua primeira “relação sexual”, sem tocar,
acariciar, olhar ou penetrar sua parceira/vítima. Seu nariz cumpriu a função de um
órgão sexual e seu gozo dependeu exclusivamente do ato de cheirá-la.
Desta maneira desenvolve-se o fetiche de Grenouille. Como descreve
Freud, nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade
100
, há uma substituição do
objeto sexual por outro objeto que conserva uma relação com o primeiro mas é
totalmente inapropriado para o objetivo sexual normal. Geralmente este outro
objeto é alguma parte do corpo, sendo as mais freqüentes os pés e os cabelos,
justamente pelo forte odor que exalam. Esta substituição pode ser determinada
por uma conexão simbólica do pensamento, geralmente inconsciente. Podemos
notar nesta cena uma conexão com a cena do nascimento do protagonista: nesta
última há “vísceras e cabeças de peixes” limpos por sua mãe, envoltos num
“enxame de moscas”, enquanto que aqui a moça limpa nectarinas e o cheiro de
peixe aparece relacionado com seu sexo. Uma cena é fedida, mórbida e mortífera,
99
SÜSKIND, P., O Perfume, história de um assassino, op.cit., 46.
100
FREUD,S. (1905) Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, In: Ed. Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1974, Vol. VII.
desprovida de amor e afeto; a outra cheirosa, viva e carregada de libido. A
segunda encobre e maquia a primeira. Atinge Grenouille exatamente na sua
ferida, despertando a inveja e atualizando o ódio produzido na primeira cena - em
ambas as cenas a mulher acaba sendo morta; ao mesmo tempo em que aponta
para uma promessa de cura, de compensação, de indenização por aquilo que a
vida o privou. É assim que Jean-Bapstiste elege seu fetiche, baseado naquilo que
lhe falta e trata daqui para frente de materializá-lo.
Como se nascesse pela primeira vez, “...com o dia de hoje parecia-lhe que
finalmente sabia quem era realmente: ou seja, nada menos que um gênio.. .tinha
de ser um criador de perfumes...o maior perfumista de todos os tempos.”
101
. Ele
recria seu nascimento traumático e vislumbra uma saída mais feliz e satisfatória
para si, na qual todo o fedor será transformado em agradáveis aromas e olores. O
fato de toda esta revelação se dever ao assassinato da mocinha lhe era
consciente, porém totalmente indiferente. Era como se, diante das privações pelas
quais passou, fosse direito seu, apropriar-se daquilo que lhe falta.
Nesta época havia em Paris uma boa dúzia de perfumistas localizados na
Pont au Change, com lojas elegantes de perfumaria dentre as quais encontrava-se
a do perfumista Giuseppe Baldini. A loja oferecia produtos como essências, óleos,
bálsamos, pomadas, sabonetes, saches, águas de colônia, sais aromáticos, etc...
A loja era um excesso de aromas que tonteava as pessoas que lá entravam, “a
mistura de aromas atingia-o como uma bofetada no rosto”
102
. Algo que pode ser
agradável e prazeroso, em excesso torna-se agressivo e até traumático.
Talvez, por isto Grenouille desenvolvia tanto seu dom para discriminar e
classificar odores, seria uma tentativa de representar psiquicamente este excesso
de estimulação olfativa vivido como traumático na ocorrência de seu nascimento e
no decorrer de sua vida. Ao discriminar e classificar odores ele metaboliza e
destina psiquicamente a excitação excessiva proveniente de tamanha estimulação
101
SÜSKIND, P., O Perfume, história de um assassino, op.cit.,48-49.
102
SÜSKIND, P., O Perfume, história de um assassino, op.cit.,52.
olfativa. Nota-se ainda neste trecho da história, novamente, uma mudança
qualitativa de odores entre o ambiente no qual nasceu descrito no começo da
história, onde predominam cheiros de bosta de rato, merda, mijo, enxofre, e outros
aromas desagradáveis e o ambiente perfumado descrito acima, que como
veremos a seguir, Grenouille buscará dele fazer parte.
Grimal era fornecedor de camurça para Baldini, que as perfumava, e um dia
Grenouille foi entregar peças de camurça a ele, e pela primeira vez entrou numa
perfumaria. Grenouille, usando de suas habilidades de sedução, mostra seu dom
com perfumes e Baldini o contrata. Grimal morre nesta noite.
Grenouille aprendeu a linguagem dos aromas e os instrumentos do laboratório,
apesar de dispensáveis para ele o ajudavam a traduzir suas idéias
perfumísticas em gramas e gotas. Aprendeu os processos de extração das
essências, de destilação em alambiques, o processo de arrancar das coisas
sua “a alma aromática.”
103
. Nota-se aqui uma afinidade de Jean-Baptiste com
os alquimistas que tentavam extrair de todo tipo de material natural o seu
“espírito”, o néctar da vida. Ferraz
104
cita um caso de perversão no qual o rapaz
seduzia inúmeros homens com os quais praticava felação e engolia o esperma
que jorrava, como um “néctar nutritivo”. Depois da extração do néctar perdia o
interesse por estes homens que eram para ele como “palitos de fósforo”
105
, que
equivale ao “peso morto” de Jean-Baptiste. Em ambos os casos, guardadas as
diferenças (nestes casos é sempre terapêutico ‘guardar as diferenças’), nota-se
uma regressão oral, funcionam como o bebê que extrai o leite-cheiro-esperma-
espírito do seio materno.
Em 1756 Baldini liberou Grenouille para seguir seu caminho para o Sul, em
direção a Grasse, cidade onde os métodos de enfleurage e maceração eram
desenvolvidos. Nesta noite Baldini dormiu e nunca mais acordou.
103
SÜSKIND, P., O Perfume, história de um assassino, op.cit., 102.
104
FERRAZ, F.C. Perversão, São Paulo, Casa do Psicólogo, 2000.
105
Ibid., p.42.
3.3. O calvário
Grenouille rumou ao Sul do país, até chegar ao maciço central de
Auvergne, uma região extremamente inóspita. Enclausura-se em uma gruta
numa atitude de absoluto recolhimento narcísico. O contato com o humano é
descrito como algo que o sufoca que ameaça sua segurança e integridade
física. Esta fantasia de aniquilamento o mantém neste comportamento autista,
se é que podemos chamar de fantasia uma vez que desde o nascimento sua
vida foi intensamente negligenciada pelo ambiente; sua vida quase foi, de fato,
aniquilada. Mesmo quando entre os humanos, Grenouille mantém com as
pessoas um contato superficial e utilitário, as suporta e se submete
simplesmente para sobreviver. O trecho a seguir ilustra o modo de relação que
Grenouille mantém com seus objetos internos:
“Palco desse delírio era o seu império interior, no qual desde o nascimento
tinha enterrado os contornos de todos os cheiros com que alguma vez houvesse
deparado. Para ficar no estado de ânimo certo, invocava primeiro os mais antigos,
os mais remotos: o vapor hostil...o odor de couro... ; a respiração de vinagre azedo
do Padre Terrier; ...o fedor de cadáveres do Cimetière Des Innocents; o cheiro de
assassina de sua mãe. E ele se regalava em ódio e nojo, e os seus cabelos
ficavam de pé com prazerosa indignação.
106
. Tais recordações olfativas o
excitavam, e “aflorava – era este o sentido do exercício- com força orgiástica o seu
ódio reprimido. Como uma tempestade, ele perpassava por sobre esses cheiros
que haviam ousado ofender o seu augusto nariz... Tão justa era sua ira. Tão
grande era a sua vingança...Era, de fato, gostoso demais esse eruptivo ato de
extinção de todos os cheiros detestáveis,... Esse número quase que era o seu
106
SÜSKIND, P., O Perfume, história de um assassino, op.cit.,130.
predileto em toda a seqüência de cenas de seu teatro interior, pois transmitia a
maravilhosa sensação de justo cansaço que só acompanha os feitos realmente
grandes, heróicos.”
107
. Após essa exorcização do mal, Grenouille sentia-se forte,
poderoso, o Grande Grenouille, impermeável contra qualquer invasor.
Seu mundo interno comporta uma agressividade evidenciada nas fantasias
de destruição através dos ataques sádicos dirigidos a objetos parciais, ou
melhor, a uma característica destes objetos – seu odor. Esta passagem
corrobora a hipótese de Shimideberg
108
que localiza a gênese da psicopatia
num ponto de fixação da fase oral-sádica ou na fase anal-sádica. A propósito,
todo o texto contem inúmeras referencias a cheiros de coco, xixi, comida podre,
azeda, e suas respectivas formações reativas que seriam os sentimentos de
nojo e náusea.
Uma vez dissipados os fedores do passado, Grenouille começa a busca
imaginária por perfumes nos campos e flores, numa atividade criativa dos mais
sublimes aromas. Constrói seu castelo imaginário, repleto de aromas
engarrafados e armazenados em adegas, ordenados segundo ano e origem, como
vinhos, que serviçais, também imaginários, trazem a seu pedido para que ele os
beba. Desta forma, expulsava os maus cheiros e sorvia os bons, embebedava-se
de aromas, numa orgia que terminaria com “a última garrafa, a mais maravilhosa:
o cheiro da jovem da Rue de Marais...”
109
. Dormiu de exaustão e acordou, mas
não em seu castelo púrpura, mas na gruta escura, de ressaca. Saía para beber
água e alimentar-se e voltava para seu “castelo”, reativando seu teatro interior. E
assim se passaram sete anos inteiros.
Grenouille, a esta altura, já teria vinte e cinco anos de idade, quando uma
catástrofe ocorreu no seu mundo interno, em sua fantasia. Após mais uma noite
de orgia com a derradeira garrafa da jovem de cabelos ruivos, dormiu e sonhou
107
Ibid., p.130-131.
108
SCHMIDEBERG, M. (1935) The psycho-analysis of asocial children and adolescents. Iternational Journal
of Psycho-analysis, In: SHINE, K.S. Psicopatia, São Paulo, Casa do Psicólogo, 2000.
109
SÜSKIND, P., O Perfume, história de um assassino, op.cit.137.
com fragmentos de um cheiro, que logo tornou-se uma névoa, “E a névoa era,
como já foi dito, um cheiro. E Grenouille sabia que cheiro. A névoa era seu próprio
cheiro. O próprio cheiro de Grenouille era a névoa. E o terrível era que Grenouille,
embora soubesse que esse era o seu cheiro, não conseguia cheirá-lo. Era capaz
de se afogar em si mesmo, mas não conseguia cheirar a si próprio.”
110
Grenouille gritou e acordou com seu grito, angustiado por ter quase se
afogado em si mesmo e decidiu que teria que mudar sua vida para não morrer.
Saiu da gruta e o choque passou, a angústia amenizou. Grenouille começou a
cheirar-se e não sentia nada. Nesta noite abandonou a montanha e dirigiu-se para
o sul.
Até este momento, Jean-Baptiste havia recusado o fato de não possuir um
cheiro próprio. Segundo descreve o autor, para Jean-Baptiste os cheiros possuem
um grande valor, ele superestima os odores considerando-os “a alma aromática”
das coisas, todo o resto, “deveria ser eliminado”. Como dissemos anteriormente o
perfume ganha um estatuto de fetiche, através do deslocamento assume o
simbolismo fálico atribuído ao pênis. Notamos aqui que Grenouille acreditava, até
este momento, que todos possuem cheiro, assim como Freud
111
descreve em
Dissolução do complexo de Édipo que as crianças acreditam até um certo ponto
de seu desenvolvimento que todos possuem um pênis, inclusive as mulheres. Ao
depararem-se com a ameaça de castração as crianças hesitam diante do fato,
duvidando dele. Diante da angústia de castração que a percepção promove,
desautorizam, não a percepção, mas esforçam-se para depreciar sua significação,
isto é, a decorrência psíquica desta percepção, que seria a própria castração. Da
mesma maneira Jean-Baptiste sente medo, que podemos entender como angústia
de castração e hesita a respeito de si mesmo, se tem ou não cheiro. Neste sentido
constatamos um deslocamento do simbolismo fálico, mas questionamos a sua
110
Ibid., p.140.
111
FREUD,S. (1924) Dissolução do complexo de Édipo, In: Ed. Standard Brasileira das Obras Psicológicas
Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1974, Vol. XIX.
consistência enquanto símbolo. Não há uma simbolização plena. Retornaremos a
este ponto adiante no texto.
Figueiredo
112
retoma esta colocação de Freud e explica o fetichismo como
uma solução de compromisso entre admitir a percepção da castração e recusar as
novas percepções que ela acarreta. A evidência recusada, a própria castração, é a
que vem em seguida à percepção da ausência de pênis na mulher, mas o fetiche
previne esta visão. O processo se interrompe, e dois passos dele são abolidos: a
visão da vagina no lugar do pênis e a antecipação da própria castração. Assim, o
fetiche tem que valer por três, cobrir três faltas, três ausências: a percepção da
vagina, a ausência do pênis na mulher e a própria castração. Daí o excesso na
percepção do fetiche, trata-se de uma percepção alucinada destinada a obturar
faltas, oferecendo uma experiência de completude e auto-suficiência. Trata-se de
uma “super-percepção” que encobre a percepção de algo essencial e interrompe a
marcha do psiquismo. Grenouille possui uma “super-percepção” para odores e
considerando a experiência que ele viveu com a donzela da Rue de Marais
podemos pensar na idealização que ele faz da mulher como alguém que possui
algo que lhe falta. Ele super-valoriza o perfume da moça, ele é maior e melhor
que o de qualquer outra pessoa. Como veremos adiante esta é a primeira mulher
de uma série eleita por Grenouille.
Figueiredo desenvolve ainda que conseqüências a desautorização, não da
percepção, mas de sua significância pode acarretar ao psiquismo. São idéias que
podem nos ajudar a entender a dificuldade de Grenouille para fantasiar, sonhar,
simbolizar e apreender conceitos abstratos, que acontecem desde sua infância.
Citando Freud, Figueiredo afirma que na recusa a percepção configurada,
significada e simbolizada permanece e a defesa consiste em reduzir ou anular a
autoridade desta percepção: ela é isolada do processo perceptivo e de suas
conexões naturais com processos mnêmicos e de simbolização. Sua eficácia, que
seria propiciar e exigir outros passos na cadeia associativa é desautorizada,
perdendo assim sua significância. Quando o que tem significado é destituído de
112
FIGUEIREDO, L.C. A desautorização do processo perceptivo, Psicanálise e Universidade 71-82, 2000.
significância, observa-se que foi retirado de uma cadeia de associações
simbólicas para ser preservado como quase-coisa. “nessa condição reificada de
quase-coisa, os itens se prestam a formar coleções de lembranças ao mesmo
tempo muito vívidas e totalmente inúteis, lembranças que não se integram ao fluxo
psíquico.”
113
Desta maneira a desautorização dificulta a possibilidade de fantasiar
e sonhar. Uma percepção implica num momento de síntese que gera formas,
delimita a figurabilidade, contrariando a dispersão sensorial em uma multidão de
estímulos desconexos. Este processo deve ser desfeito para não interromper o
processo de percepção. Num segundo momento então as figuras fechadas devem
ser abertas, permitindo sua articulação ao longo do tempo com outras figuras, sua
transitividade e fluência que caracterizam, em termos fenomenológicos o que se
mostra como realidade. A recusa da realidade é a recusa desta dimensão
transitiva do processo perceptivo. É o que Bion chama de ódio à realidade, ódio à
integração e ataque ao caráter contínuo e fluente dos processos psíquicos na sua
capacidade de fazer ligações, criando e sustentando redes associativas. Quando a
percepção se abre para outros campos, o da memória e das expectativas os
processos de representação estão operando e a significância de cada percepção
se enriquece. Esta inclusão em redes e capacidade de acionar trilhas associativas
que dão à percepção sua autoridade e sua eficácia. A percepção desautorizada
retém um potencial traumático imenso. A razão de ser da desautorização é a
evitação de uma percepção de uma lembrança ou de uma conclusão traumáticas.
Contudo a desautorização acaba repondo infinitamente os antecedentes da
experiência traumática sem permitir uma elaboração. As quase-coisas retornam o
que é mais perturbador que o retorno do recalcado, pois retornam indigestas,
geram uma nebulosa de informações que desligadas umas das outras produzem
um ruído, uma névoa, um estado crônico de confusão. Em casos mais graves
podem gerar um bombardeio que assume características demoníacas e
persecutórias. Este era o estado no qual se encontrava Grenouille antes de sonhar
com o próprio perfume: num recolhimento narcísico, rompeu com a realidade,
113
FIGUEIREDO, L.C. A desautorização do processo perceptivo, op.cit.75.
odiando-a e atacando-a, e concentrou-se na “tarefa onipotente de criar um mundo
à sua medida”.
Porém seu castelo idílico é interrompido por um sonho que só se torna
possível no momento em que se dá conta daquilo que lhe falta. Quando a recusa
falha e admite por um instante a possibilidade de não ter cheiro, ele sonha, sonho
que justamente restaura sua falha narcísica e aponta para o desejo de
restauração. Podemos afirmar então, que o fetiche-perfume que Grenouille vem
buscando extrair das coisas, e a partir de agora tentará extrair das mulheres que
idealiza e superestima, adquire a função de defesa contra este estado de delírio e
alucinação no qual se encontrava antes de vislumbrar uma realidade que não
pôde ser suficientemente recusada.
Estas últimas considerações vêm corroborar outra hipótese para a gênese
da psicopatia proposta por Fritz Wittels
114
, para quem o ponto de fixação se dá na
fase protofálica, que seria uma subdivisão da fase fálica na qual a criança alcança
a primazia definitiva dos genitais mas não leva em conta a diferença entre os
sexos, a ameaça de castração e o complexo de Édipo ainda não se instalou.
Fixado nesta fase o indivíduo posterga até a vida adulta os conflitos oriundos da
percepção da diferença sexual com todas as suas decorrências que seriam o
medo da castração, percepção da castração e complexo de Édipo.
Shine
115
chama a atenção para o fato de que a psicopatia oscila de acordo
com cada autor, entre a psicose e a neurose, entre a angústia de morte e a de
castração, não se confundindo com elas, mas compartilhando algumas
características de uma e de outra.
Encontramo-nos aqui diante de um sério problema teórico. Em seu artigo
Fetichismo, Freud
116
fala da neurose como estando em função da realidade e
114
WITTELS,F. (1932) , In: SHINE, K.S. Psicopatia, São Paulo, Casa do Psicólogo, 2000.
115
SHINE, K.S. Psicopatia, op.cit.
116
FREUD,S. (1927) Fetichismo, In: Ed. Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas. Rio de
Janeiro: Imago, 1974, Vol. XXI.
reprimindo uma parte do id, e a psicose em função do id desligando-se de um
fragmento da realidade. Lembra de dois pacientes que perderam o pai na infância
sendo que por um lado - o do desejo - não reconhecem o fato, e por outro - o da
realidade - se davam conta do fato. Os fetichistas vivem uma divisão quanto ao
tema da castração feminina, recusam e reconhecem ao mesmo tempo a realidade.
O que faz com que alguns, diante do horror à castração, que é universal,
enveredam para a homossexualidade, outros para o fetichismo e outros a
superam, Freud se diz incapaz de explicar.
Chasseguet-Smirgel
117
sugere que a mãe que oferece um excesso de
gratificações narcísicas e objetais para seu filho pode fazê-lo crer, numa relação
sedutora e incestuosa, que ele já é “grande”, anulando seu desejo de “tornar-se
grande” como o pai. Assim, a sedução da mãe consistiria num “fator etiológico
determinante nas perversões”
118
Nosso problema é como conciliar estas
afirmações com a dinâmica de nosso protagonista, que muito pelo contrário, foi
vítima de uma insuficiência de gratificações narcísicas e objetais. Talvez
Bromberg
119
, nos auxilie com a idéia de que, a criança abandonada aos próprios
recursos não consegue abandonar a onipotência, compensadora da falta de
recursos externos, e atribuí-la a um outro externo. Deste modo ela se sente
“grande” e auto-suficiente.
Dirigindo-se ao sul, Jean-Baptiste sempre sedutor e capaz de criar uma
falsa intimidade com as pessoas, conhece um Marquês que o apresenta a outro
perfumista e assim consegue criar uma imitação do odor humano. Criou um cheiro
exclusivo para si mesmo, feito a partir de “merda de gato, queijo e vinagre.”
120
Mais uma vez aparece a noção de que o homem fede a merda, leite podre e
vinagre, e os perfumes e sabonetes e loções encobrem esse fedor anal. Andou
117
CHASSEGUET-SMIRGEL, J. Ética e estética da perversão. Porto Alegre, Artes Médicas, 1991.
118
Ibid., p113.
119
BROMBERG, W. (1948) Dinamic Aspects of psychopathic personality, In : SHINE, K.S. Psicopatia, op.
120
SÜSKIND, P., O Perfume, história de um assassino, op.cit.161.
pelas ruas, e até então ninguém notava a sua existência, mas agora que tinha um
cheiro próprio percebeu que provocava alguma reação nas pessoas.
Artificialmente, Grenouille cria aquilo que lhe falta e engana as pessoas, faz
parecer a elas que possui algo que na verdade não tem. Triunfante, pensou que
poderia ir mais longe e criar um odor não humano, mas angélico, que enfeitiçaria
as pessoas, fazendo com que elas o amassem até a loucura, e não apenas o
aceitassem como um igual. Grenouille deixou Montpellier. Um tempo depois o
Marquês morreu.
Enfim, chegou a Grasse, a pátria dos perfumes, atrás das técnicas de extração
de aromas que sabia existirem ali. Caminhando pela cidade, sentiu um aroma
extraordinário, o mesmo da jovem de cabelos ruivos que ele havia matado.
Decidiu que queria essa fragrância, mas esperaria dois anos, o tempo de
maturação da moça e enquanto isto aperfeiçoaria seus conhecimentos técnicos de
extração, pois extrair a fragrância da mocinha “no fundo, não devia ser mais difícil
do que roubar o perfume de uma flor exótica
121
. Bom, cada um extrai o perfume
de uma mulher como pode! E convenhamos, os métodos planejados e
futuramente utilizados por Jean-Baptiste não serão lá muito ortodoxos. Uma
verdadeira falta de imaginação. Voltando à questão do símbolo levantada
anteriormente aqui fica claro que a mulher não é tomada por Grenouille
metaforicamente como uma flor, ele a considera concretamente uma flor a ponto
de querer roubar seu perfume usando métodos de extração semelhantes ao que
usaria com flores propriamente ditas. Se compararmos seus métodos com aquele
sugerido pelo poeta Shaykh Nefzawi
122
, fica clara a deficiência da capacidade de
simbolização de Grenouille. Assim como nos permite pensar no tipo de relação de
objeto que ele estabelece. Ele focaliza um atributo do objeto, o odor, indicando
uma relação desumana e parcial de objeto, sem considerá-lo em sua totalidade,
sem considerá-lo como alteridade, como alguém existente e desejante a quem
121
Ibid.,p.180.
122
NEFZAWI, S. O jardim perfumado, op.cit.
deve considerar, respeitar e agradar para dele extrair afeto. Numa fúria invejosa
ele destrói o objeto para dele roubar isto que lhe foi negado a vida toda: afeto.
Mais ainda, pretende a partir do roubo e da incorporação deste atributo do objeto
conquistar o amor das pessoas, despertas as paixões que, ele imagina, o objeto é
capaz.
Conseguiu um emprego onde aprendeu o processo de maceração
123
,
voltando a tentar extrair o aroma de pedra, metal, vidro, e teve êxito. Experimentou
então com moscas, larvas, ratos, vacas, cabras. Foi “um dia de triunfo, em que
pela primeira vez lhe fora possível arrebatar de um ser vivo a sua alma
aromática,
124
. Daí partiu para os seres humanos. Agora “dominava a técnica de
roubar o odor de alguém
125
.
Como anunciei anteriormente a técnica utilizada por Grenouille para extrair
“o odor de alguém” não leva em conta símbolos ou metáforas, mesmo porque não
se trata de extrair simplesmente, mas como diz o texto roubar o odor, mesmo que
para tanto ele precise matar a vítima. E o que torna este ato ainda mais brutal é
constatarmos a ausência de culpa do assassino. Ele precisa matar o que confere
ao ato um caráter compulsivo, irrefreável, e o faz como se fosse um direito seu
fazê-lo. Não há nem um valor moral interno que o impeça. E aqui entramos na
problemática do superego nas psicopatias. Shyne
126
faz um levantamento de
diversos autores que discutem esta questão. Citarei alguns deles a seguir, que
acredito, contribuirão para a compreensão da questão superegóica na dinâmica
psíquica de Jean-Baptiste.
Para Reich
127
o superego nestes casos é isolado não integrado ao ego e
falho na sua função. O padrão familiar que se observa é de uma permissividade
para a satisfação das pulsões e proibição traumática, numa educação incoerente.
123
este processo consiste em derreter flores em gordura animal.
124
SÜSKIND, P., O Perfume, história de um assassino, op.cit., 195.
125
Ibid., p.197.
126
SHINE, K.S. Psicopatia, op.cit.
127
REICH,W. (1925) “The impulsive character: pychoanalytical study of ego pathology”, In: SHINE, K.S.
Psicopatia, São Paulo, Casa do Psicólogo, 2000.
O que leva ao ódio e medo das figuras parentais, uma intensa ambivalência que
torna falho o processo das identificações. A intensidade do prazer auto-erótico
dificulta o seu abandono para que ocorra a identificação. O superego isolado daí
decorrente é mal estruturado e sem integração, falha no recalcamento de certas
pulsões, levando à falta de formações reativas e processos de sublimação.
Kate Friedlander
128
também aponta a falha superegóica destes pacientes,
dizendo que seu código moral é falho, o que é certo ou errado depende de sua
satisfação instintual. Esta falha superegóica estaria relacionada a uma falha do
ego uma vez que este não funciona segundo o princípio da realidade.
Para Schmideberg
129
as ações associais não estão relacionadas a uma
hipotrofia do superego e então a ausência do sentimento de culpa não está
associada à falta de um superego. O superego expressa-se nestes pacientes de
outra forma que não o sentimento de culpa: manifesta por meio da ansiedade dos
seus objetos introjetados, embora esta ansiedade estivesse em parte projetada
nos objetos externos. São pacientes infelizes e muito inibidos em atividades
sociais e sublimatórias. A autora diferencia ideal do ego - imagos narcisicamente
amadas, próximas, menos dessexualizadas, bons objetos internalizados - do
superego - imagos dessexualizadas, sentidas como cruéis e evocadoras de medo
- e nota uma falha no ideal do ego mas não do superego. A análise teria como
função modificar relações de objeto e ampliar a capacidade de identificação.
Podemos supor uma falha no processo de identificação de Jean-Baptiste que não
propriamente introjeta objetos, mas incorpora-os através das narinas. O episódio
da montanha sugere que seu mundo interno é povoado de figuras sentidas como
cruéis e ameaçadoras. Sua busca por um cheiro próprio e poderoso nada mais é
que a busca do amor dos outros, a procura de objetos bons que o amem.
128
FRIEDLANDER, K. (1947) The psycho-analytical approach to juvenile delinquency – theory: case-
studies: treatment. In: SHINE, K.S. Psicopatia, São Paulo, Casa do Psicólogo, 2000.
129
SCHMIDEBERG, M. (1935) The psycho-analysis of asocial children and adolescents. Iternational Journal
of Psycho-analysis, In: SHINE, K.S. Psicopatia, São Paulo, Casa do Psicólogo, 2000.
Neville Syminton
130
fala em sentimento de culpa existente nestes casos; o
sujeito psicopata seria intensamente moral e não amoral, e o sentimento de culpa
apareceria deslocado da situação que o motivou. O psicopata quando bebê, ao
separar-se da mãe, perde parte de si e busca reencontrar incessantemente esta
parte. Grenouille não perdeu seu cheiro pois sua mãe nunca doou este atributo a
ele, mas é isto que ele busca incessantemente nestes atos homicidas. Quanto ao
sentimento de culpa, este aparecerá, deslocado, no final da história...
Adelaide Johnson e S. A. Szurek
131
trabalhavam numa instituição em
Chicago e atendiam crianças e pais com transtorno anti-social. Introduziram a
idéia de lacunas no superego segundo a qual os pais realizam seus próprios
impulsos mal integrados e proibidos através da atuação do filho, que é criado com
uma permissividade inconsciente. Assim os superegos dos pais conteriam
lacunas, defeitos. Lembremos que a mãe de Grenouille deixava seus filhos recém-
nascidos morrerem entre os peixes decapitados demonstrando uma falha
superegóica. Seu sentimento de culpa aparece quando, interrogada pela polícia,
confessa seus crimes, sendo, por isto, punida.
Otto Kernberg
132
salienta a importância da avaliação do grau de
comprometimento do superego e da qualidade das relações objetais como critério
diagnóstico. Ele alerta para a diferença entre o comportamento anti-social que
deriva de um sentimento de culpa inconsciente que busca punição e a
autodestrutividade e punição provocada enquanto conseqüências do
comportamento anti-social, mas que não advêm de uma motivação inconsciente.
Ele considera o que chamou de superego sádico, formado a partir da identificação
do paciente com um poder primitivo, impiedoso e imoral, que não considera o
outro como humano.
130
SYMINGTON, N. (1980) “The response aroused by the psychopath”, In: SHINE, K.S. Psicopatia, São
Paulo, Casa do Psicólogo, 2000.
131
JOHNSON, A. & SZUREK, S.A. (1952) “The genesis of antisocial acting out in children and adults”, In:
SHINE, K.S. Psicopatia, São Paulo, Casa do Psicólogo, 2000.
132
KERNBERG, O.F. (1992) Agressão nos transtornos de personalidade e nas perversões, In: SHINE, K.S.
Psicopatia, São Paulo, Casa do Psicólogo, 2000.
Retomemos nossa história. Um ano após sua chegada em Grasse voltou ao
jardim para verificar como estava sua “flor” e um pensamento o assustou: “e se
essa fragrância que devo possuir...desaparecer?... A fragrância real evanesce no
mundo. É volátil...”
133
. Aquilo que ele poderia possuir, era volátil e se perderia no
ar. Aparece aqui uma fantasia masculina, de cunho obsessivo, talvez, de possuir
as mulheres, capturar sua essência e colecioná-las aos frascos. Esta fantasia
releva aquilo que os italianos descobriram há tempos: “la donna è mobile”. O
feminino é volúvel, volátil e etéreo, na sua criativa plasticidade transfigura-se e
transforma-se, mas não se deixa capturar,materializar e cristalizar; simplesmente
porque deseja
Jean-Baptiste mata esta jovem e mais vinte e quatro virgens Nesta ocasião
Jean-Baptiste contava vinte e cinco anos e como veremos adiante haverá uma
vigésima quinta vítima, uma para cada ano de sua existência.
O derradeiro e maior alvo de Grenouille é a filha do mais rico burguês
comerciante de perfumes da França, chamado, não por acaso, Richis. Isto há
de ter algum significado. Permitam-me uma pausa para a História da França.
Até o século XI, a Europa organizava-se sob o regime feudal no qual o bem
valorizado era a terra, um bem imóvel o que determinava uma divisão social
entre senhores feudais e servos. O estado feudal era praticamente completo em
si, fabricava tudo o que necessitava. A partir do século XI, com o início das
Cruzadas
134
devido às viagens e necessidade de provisões das tropas o
comércio ganha um ímpeto, um enorme incremento. Assim crescem, em toda a
Europa, as cidades e nasce uma nova classe social, a burguesia. Esta
transformação social se dá, sobretudo no fim da Idade Média a partir das
grandes navegações. Os bens móveis passam a ter valor econômico,
concentrando o poder econômico nas mãos da burguesia, o que representou
um tremendo golpe para os senhores feudais. Grenouille vive às vésperas da
Revolução Francesa e a situação social da França era bastante crítica: a
133
SÜSKIND, P., O Perfume, história de um assassino, op.cit.,199.
134
HUBERMAN,L. (1959) a História Da riqueza do homem, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1983, pág. 27.
nobreza falida passa a depender do rei, a burguesia domina a propriedade, os
camponeses eram extremamente miseráveis - 90% de sua renda era destinada
a pagar impostos - e artífices e operários viviam esmagados por um sistema
corporativo deformado
135
. O monarca vigente era Luís XV e sua amante
Madame Pompadour fez de sua corte a “corte perfumada”, o que incentivava a
produção de perfumes em Grasse. Consta que Pompadour que, pela descrição
de Corrêa, não devia ser ‘flor que se cheire’, gastava só em sua toilette pessoal
um milhão e trezentos mil francos. Eu não saberia avaliar o significado deste
dado dentro do orçamento do reino, mas o autor que o fornece o ressalta
descrevendo Pompadour como a “formosa parasita devoradora”
136
. E aqui
podemos opor a “formosa parasita devoradora” ao nosso “sujo, pobre e
assassino parasita devorador”, ambos de perfumes. A oposição, obviamente
denuncia a semelhança, que não há de ser mera coincidência, visto que
Süskind é um historiador. O livro contém uma crítica social e mostra como uma
sociedade é capaz de produzir psicopatas a partir dos valores sociais que
difunde ideologicamente e, concomitantemente, da impossibilidade que cria
para que todos possam desfrutar destes bens. No início do livro o autor
descreve como as crianças órfãs são levadas a orfanatos longe das vistas da
sociedade que assim, as recusa, sabe que existem, mas não se comprometem
com suas conseqüências. Mas as conseqüências impõem-se em forma de ato,
de violência psicopática. Assim, o alvo de Jean-Baptiste é roubar daquele que
detém o poder econômico um bem altamente valorizado na sociedade francesa,
e que lhe foi negado.
Após capturar e matar sua última vítima Grenouille foi preso, ou melhor,
deixou-se prender, comportamento tipicamente perverso de expor-se a riscos,
uma vez que a possibilidade da morte e sua decorrente angústia é recusada.
135
CORRÊA, M. P. Primórdios da Revolução Francesa, Rio de Janeiro, Expressão e Cultura, 2002, pág.34,
40.
136
Ibid., p.40.
3.4. A assunção
No dia da execução, Grenouille foi levado ao local onde dez mil pessoas o
aguardavam, e ao descer da carruagem um milagre aconteceu: as pessoas foram
tomadas pela inabalável crença de que aquele não poderia ser jamais um
assassino. Ele era “a própria inocência em pessoa”
137
. As pessoas sentiam
simpatia, delicadeza, e amorosidade infantil por aquele anjo, sentimentos contra
os quais não podiam defender-se. “Todos o amavam”
138
e houve uma comoção
geral, suspiros, tentativas de tocá-lo, sensações de prazer e êxtase.
Conseqüência: a execução terminou num bacanal infernal, segundo o autor, a
maior suruba de todos os tempos. Grenouille, parado, sorria: nascido inodoro no
lugar mais fedorento do mundo tornara-se amado pelo mundo. A própria Afrodite
sobre sua espuma fragrante. Tinha criado a aura mais brilhante do mundo e não a
devia a ninguém, a nenhum pai ou mãe, apenas a si mesmo. Ele era o grande
Grenouille, mas não mais apenas em suas fantasias narcisistas, o era na
realidade agora. Obviamente, tratava-se de uma realidade criada artificialmente,
fictícia.
Magicamente, através da fumaça
139
, Grenouille acende ao Olimpo. Torna-
se “o Grande Grenouille” sem precisar galgar os degraus do desenvolvimento,
sem construir de fato, verdadeiras e profundas relações afetivas. Sua aparente
conquista é mágica e fugaz, não tem chão, tampouco consistência.
Jean-Baptiste consegue, através desta cena, repetir aquilo que por sua
intensidade e repetição constituiu-se num trauma – ser inodoro e não amado, mas
transformando a sua sina, num final feliz.
137
SÜSKIND, P., O Perfume, história de um assassino, op.cit.,244.
138
Ibid., 245.
139
Origem da palavra perfume, citado na página 1 desta dissertação.
Porém, ao sair da carruagem e causar este efeito nas pessoas retornou em
Grenouille todo o seu nojo ante o ser humano o que conspurcou seu triunfo e ele
não sentiu nenhuma alegria. “O que ele havia sempre desejado, ou seja, que as
outras pessoas o amassem, tornava-se, no instante de seu êxito, insuportável,
pois ele mesmo não as amava, mas as odiava. E de repente soube que jamais
encontraria satisfação no amor, mas tão-somente no ódio, no odiar e ser
odiado.”
140
Na falta de bons objetos internalizados, Grenouille não sentia amor
pelas pessoas, apenas ódio e medo. Mas ele conseguira se mascarar, mascarar
seu ódio com o melhor perfume do mundo, Como na caverna quando sonhou,
aterrorizou-se achando que ia sufocar-se na névoa, só que agora era de verdade.
Richis aproximou-se e Grenouille pensou que ele sim iria matá-lo, mas
Richis o abraçou pedindo perdão a “seu amado filho”. A condenação foi anulada e
Richis oferece a Grenouille adotá-lo como filho, pois ele era tão belo quanto sua
perdida Laure.
Chasseguet-Smirgel
141
aponta para a indiferenciação generalizada na vida
psíquica do perverso, decorrente de recusa da diferença sexual. A negação da
diferença sexual resulta numa negação da existência de papéis e posições
distintas na triangulação edípica, trata-se da negação da diferença de gerações.
Portanto, perverso nega as diferenças sociais e transforma os objetos num bolo
fecal indiferenciado. Grenouille nega estas diferenças e, na orgia da praça,
transforma as pessoas num bolo só tornando-as iguais. Durante a orgia as
diferenças de sexo e de classes sociais são abolidas. Mesmo na sua relação com
o Marquês em Montpellier e agora com Richis nota-se como Jean-Baptiste
engana, ludibria estas pessoas tornando-se um deles, aparentemente mesclando-
se a eles. O controle sádico presente na relação com estes objetos é evidente.
Vale notar que até este ponto da história Grenouille relacionou-se com uma
longa série de homens e todos acabaram destruídos, mortos. A recusa da
140
SÜSKIND, P., O Perfume, história de um assassino, op.cit.,249.
141
CHASSEGUET-SMIRGEL, J. Ética e estética da perversão. Porto Alegre, Artes Médicas, 1991.
castração, segundo Pereda
142
, perturba a trama edípica de forma que papéis e
lugares perdem suas delimitações e contornos. Neste contexto a função paterna
torna-se enfraquecida. Richis, não morre, mas, através de seu fetiche, Grenouille
o enfeitiça e engana, desautorizando-o. Triunfa sobre o pai afastando a ameaça
de castração. Segundo a autora, a recusa da castração obstrui o trabalho do
recalque deixando livres as pulsões hostis e amorosas homossexuais. Jean-
Baptiste rouba, de forma hostil, o perfume das mulheres e os incorpora, mostrando
uma tentativa de identificação com o feminino e conseqüente sedução do pai-
Richis. Ele se torna para Richis, a adorada e desejada filha.
3.5. A morte e ressurreição
Grenouille fugiu e caminhou até Paris carregando no bolso o perfume que
criara em Grasse. Dirigiu-se ao Cimetière des Innocents, freqüentado por ladrões,
prostitutas e assassinos após a meia-noite. Destampou a garrafa de perfume e
borrifou toda ela em seu corpo. As pessoas atraídas por este anjo que emanava
um “furioso fluxo” formaram um círculo em torno dele e lançaram-se sobre ele
arrancando-lhe as roupas, a pele, os cabelos, estraçalhando-o cortando-o a
machadadas e devorando-o. Assim, nosso herói sumiu da face da Terra. Quanto
aos canibais, apesar de perplexos com seu ato sentiam-se leves, eufóricos e com
um “brilho de donzela” nos rostos. Sentiam-se orgulhosos, pois pela primeira vez
haviam feito algo por amor.
Enfim, nosso monstro-herói entrega-se à morte, num ato suicida. Ao constatar,
na cena da praça, a sua incapacidade de amar e ser amado, Grenouille desiste
de sua onipotência e sucumbe ao vazio de sua existência. Se tomarmos a
142
PEREDA, M. C. Recusa, seu efeito estrutural e sua dimensão patogênica, Revista Brasileira de
psicanálise, Vol. XXX (3), 539-545, 1996.
distinção de Schmideberg
143
, na falta de um ideal de ego protetor e amoroso, o
superego inclemente prevalece e o condena. Como sugere Neville Syminton
144
,
o sentimento de culpa proveniente do superego aparece neste ato de entrega à
morte, deslocado da situação que o motivou.
Um último comentário: a palavra grenouille em francês significa rã, e a
expressão manger la grenouille que quer dizer “apropriar-se do dinheiro de uma
sociedade”
145
. Oferecendo um banquete aos innocents de Paris, Grenouille realiza
em ato sua vingança pessoal e social. Uma revolução particular.
143
SCHMIDEBERG, M. (1935) The psycho-analysis of asocial children and adolescents. Iternational Journal
of Psycho-analysis, In: SHINE, K.S. Psicopatia, op.cit.
144
SYMINGTON, N. (1980) “The response aroused by the psychopath”, In: SHINE, K.S. Psicopatia,op.cit.
145
BURTIN-VINHOLES, S. Dicionário Francês-Português, São Paulo, Editora Globo, 1951.
Capítulo IV
Podemos falar em “pulsão olfativa”?
Venho utilizando ao longo dessa dissertação o termo “pulsão olfativa” sem
que o tenha encontrado na obra de Freud ou de outros autores. Retomando a
questão proposta no Capítulo I, podemos falar em “pulsão olfativa”?
Para iniciar desta discussão apresentarei todo o material que pude
encontrar na literatura psicanalítica, desde Fliess, passando por Freud, até autores
mais contemporâneos, nos quais está presente a preocupação com o olfato.
Vejamos, em primeiro lugar, alguns autores sob a ótica da primeira teoria das
pulsões, na qual Freud contrapunha pulsões de auto-conservação e pulsões
sexuais. Observemos como os autores articulam o olfato à sexualidade humana,
às suas organizações libidinais, oral, anal, fálica e genital.
Em seguida apresentarei outros autores, desta vez orientando a discussão
pela segunda teoria das pulsões. Aqui, a discussão central, na minha opinião, diz
respeito à classificação do olfato: trata-se de uma sensação, de um afeto, ou de
uma representação? Seria um traço de memória, uma percepção? Sempre
partindo de casos clínicos, próprios ou retomando Miss Lucy, os autores que
apresento a seguir discutem a função e o lugar psíquico do olfato.
O leitor notará a escassez de material encontrado. Mesmo admitindo
não ter encontrado absolutamente tudo o que foi escrito sobre o assunto, devo
concordar com alguns autores que provavelmente a própria psicanálise vem,
senão recalcando, no mínimo reprimindo este assunto.
4.1. A primeira teoria das pulsões
4.1.1. Fliess e o nariz
Comecemos por Fliess, que, apesar de não ter sido psicanalista, influenciou
o pensamento de Freud e muito estudou sobre o nariz. Segundo Jean Guir
146
, em
1897 Fliess publica a obra “As relações entre o nariz e os órgãos genitais
femininos” na qual sustenta que existe uma ligação entre o nariz e os órgãos
genitais femininos, apoiando-se nas alterações do nariz durante a menstruação,
tais como tumefação, sensibilidade aumentada e tendência ao sangramento.
Pode-se contestar a validade anatômica de tal afirmação, mas encontramos aí o
esboço da noção freudiana de zona erógena, de pulsão parcial e de
deslocamento. Fliess estuda as dores ocorridas no período menstrual para
diferenciar as dores de origem histérica das de origem puramente somáticas. E
sugere três origens para as dores menstruais: origem mecânica de distúrbios
anatômicos; origem nasal tratada com aplicação de cocaína nas zonas genitais do
nariz; e origem histérica.
Fliess estuda ainda as alterações do nariz durante a gravidez, na qual a
menstruação se acumula por dez períodos e seu fluxo é liberado no parto, que
possui todas as características de uma menstruação, inclusive as alterações
nasais. Para ele, a dor do parto é igual à dismenorréia nasal, localizada nas costas
e irradiada para os hipogástrios e coxa, e curada pela cocainização das
“localizações genitais” do nariz. Além da menstruação e parto, distúrbios de
lactação e menopausa alteram igualmente o nariz, mostrando a sua íntima
conexão com estes períodos particulares da vida feminina. Assim, há no nariz, tal
como no córtex cerebral, uma localização específica para cada um dos sintomas
146
GUIR, J., A psicossomática na clínica lacaniana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora Ltda., 1988.
distantes em outros órgãos, e aqui encontramos a semente da noção de
deslocamento.
Entretanto, Fliess não estudará o papel do olfato em sua obra; “nada é dito
sobre as funções olfativas do nariz. Há um recalcamento maciço a este
respeito”
147
. Freud irá retomar esta questão, avaliando a importância do olfato nos
neuróticos.
4.1.2. Freud: da anatomia ao sentido
Na correspondência de Freud a Fliess encontramos inúmeras cartas que
contêm alguma passagem sobre a questão do nariz e do olfato, nas quais Freud
demonstra concordar com Fliess a respeito da relação entre nariz e vida sexual
dos pacientes. Por exemplo, na carta de 14 de Maio de 1893 Freud descreve um
paciente e inclui na descrição “um formato suspeito do nariz”
148
. Este formato
refere-se à inchação que Fliess acreditava decorrer da masturbação. Ou então,
em 30 de Maio de 1893
149
, quando, ao falar de neurastenia juvenil, supõe sua
origem num excesso de poluções causado por alterações orgânicas do nariz.
Na carta de 11 de janeiro de 1897, Freud transcende o “nariz” para falar de
olfato propriamente:
“As perversões conduzem regularmente à zoofilia e têm uma característica
animalesca. Não são explicadas pelo funcionamento de zonas erógenas
posteriormente abandonadas, e sim pelo efeito de sensações erógenas que, mais
tarde, perdem sua força. A esse respeito, cabe lembrar que o sentido principal dos
animais (também no tocante à sexualidade) é o olfato, que se reduziu nos seres
humanos. Enquanto predomina o olfato ( ou o paladar), a urina, as fezes e toda a
superfície do corpo, inclusive o sangue, têm um efeito sexualmente excitante.
Presumivelmente o sentido aguçado do olfato na histeria está ligado a isso. Pode-
se supor que o fato de os grupos de sensações terem muita relação com a
estratificação psicológica decorra da distribuição nos sonhos e tenha,
147
GUIR, J., A psicossomática na clínica lacaniana, op.cit., p. 53.
148
MASSON, J.M., A Correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess 1887-1904, Rio de
Janeiro, Imago Editora Ltda., 1986, p.47.
149
MASSON, J.M., A Correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess 1887-1904, op.cit.
presumivelmente, uma ligação direta com o mecanismo das anestesias
histéricas”
150
.
Nota-se claramente nesta passagem que Freud supera a anatomia do nariz
e passa a falar no sentido do olfato, sua relação com a perversão e portanto sua
possibilidade de deslocamento.
Ao falar sobre a histeria em 1888
151
, Freud a define como uma “anomalia do
sistema nervoso que se fundamenta numa distribuição diferente das excitações
provavelmente acompanhada de um excesso de estímulos no órgão da mente”
152
.
Neste mesmo trabalho ele descreve as alterações que ocorrem na atividade
sensorial de pacientes histéricos, notando “uma extraordinária exacerbação da
atividade sensória especialmente do olfato e da audição”
153
. O distúrbio sensorial
já não se deve mais ao nariz anatômico, mas ao “nariz-órgão da mente”. Esta
passagem esclarece a afirmação de Jean Guir a respeito do salto teórico de Freud
em relação a Fliess no que concerne à função do olfato nas neuroses.
Em “Estudos sobre a histeria”, Freud (1893)
154
, com sua teoria sobre as
neuroses já mais avançada, descreve o caso de Miss Lucy, quando confere ao
olfato um sentido psíquico e ao nariz, definitivamente, um equivalente mental.
Lucy foi encaminhada por um colega de Freud que tratava de sua rinite supurativa
cronicamente recorrente. Lucy perdeu inteiramente o sentido do olfato, com
exceção de duas sensações muito aflitivas. Ela tinha trinta anos, era de origem
inglesa e trabalhava como governanta na casa do diretor de uma fábrica em
Viena. Sofria de depressão e fadiga e era atormentada por sensações subjetivas
do olfato. O interior de seu nariz era completamente analgésico e sem reflexos.
Freud se dispõe então a “interpretar as sensações olfativas subjetivas, visto que
150
Ibid., p.224.
151
FREUD,S. (1888) Histeria, In: Ed. Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas. Rio de
Janeiro: Imago, 1974, Vol. I.
152
Ibid., p.99.
153
Ibid., p.85.
154
FREUD,S. (1893) Estudos sobre histeria, In: Ed. Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas.
Rio de Janeiro: Imago, 1974, Vol.II.
eram alucinações recorrentes, como sintomas histéricos crônicos. Sua depressão
talvez fosse devida à emoção ligada ao trauma, e devia ser possível encontrar
uma experiência na qual esses odores, que agora se haviam tornado subjetivos,
tivessem sido objetivos. Essa experiência devia ter sido o trauma que as
sensações recorrentes do olfato simbolizavam na memória”
155
. O odor que mais a
atormentava era “um cheiro de pudim queimado”
156
. Freud afirma ser muito raro
que sensações olfativas sejam escolhidas como símbolos mnêmicos de traumas e
que, neste caso, isto se deu em parte pela rinite da paciente, que tornava seu
nariz alvo de sua atenção. Lucy relata a Freud que a primeira vez em que sentira
este cheiro fora dois dias antes de seu aniversário, havia dois meses. Estava com
as duas filhas de seu patrão, viúvo, brincando de cozinhar, quando chegou uma
carta de sua mãe, a qual as meninas não a deixaram ler. Neste meio tempo, o
pudim que assavam queimou e, desde então, ela sentia este cheiro. Lucy conta
que desejava voltar para a casa de sua mãe, pois não suportava mais ficar na
casa de seu patrão, por causa de intrigas com outras empregadas, mas era muito
afeiçoada às crianças e não queria deixá-las, pois prometera à mãe delas, em seu
leito de morte, que se responsabilizaria por seus cuidados. Segundo Freud, o
conflito entre estas emoções antagônicas erigiu o momento da chegada da carta
em trauma, e a sensação do cheiro associada ao trauma persistiu como seu
símbolo. Freud faz uma pergunta muito interessante: “Por que ela nem sempre se
recordava da própria cena, ao invés da sensação associada que ela isolava como
símbolo da lembrança?”
157
.
Como a conversão tem a condição essencial de que uma idéia deve ser
intencionalmente reprimida da consciência, Freud deduz que Lucy deixou alguma
idéia associada ao trauma de lado, idéia que pensa ser um enamoramento por seu
patrão. Lucy assumiu seus sentimentos pelo patrão e o cheiro de pudim tornou-se
menos freqüente. Continuaram o trabalho de investigação dos traumas
155
Ibid., p.154.
156
Ibid., p.154.
157
FREUD,S. (1893) Estudos sobre histeria, Vol.II, op.cit., p.163.
secundários associados àquela cena, como, por exemplo, a relação com as outras
empregadas, e o sintoma desapareceu. Entretanto, o sintoma foi substituído por
outro, cheiro da fumaça do charuto, relacionado à outra lembrança: um convidado
do patrão vem almoçar com eles e, quando as crianças se levantam da mesa, ele
tenta beijá-las, ao que o patrão impede proibitivamente. Como eles fumavam
charuto, Lucy sentiu uma punhalada no peito e ficou com o cheiro na lembrança.
Esta cena remeteu ainda a outra, na qual uma convidada beijou as crianças ao se
despedir e o patrão gritou com Lucy, responsabilizando-a. Isto numa época em
que Lucy ainda guardava esperanças de ser correspondida pelo patrão. Esta cena
demoliu suas expectativas. Conformada com sua desilusão, Lucy recuperou o
sentido do olfato.
Na discussão, Freud afirma não haver neste caso uma predisposição
hereditária nítida, o que o leva a pensar em sua origem psicogênica. Existe uma
incompatibilidade entre o ego e uma idéia apresentada a ele, idéia que o ego
reprime, e a excitação é convertida em inervação somática. “Em troca, essa
consciência guarda agora a reminiscência física que surgiu através da conversão
(em nosso caso, as sensações subjetivas do olfato da paciente) e sofre por causa
da emoção que se acha mais ou menos claramente ligada precisamente àquela
reminiscência”
158
. O momento traumático real é aquele em que a incompatibilidade
tenta se impor ao ego, que é obrigado a se defender reprimindo a idéia
insuportável, isto é, tornando-a inconsciente. Este repúdio é um ato voluntário do
paciente, que deseja eliminar a idéia; mas seu resultado difere da intenção do
paciente, pois ela é apenas isolada no psiquismo.
Nos “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”
159
, Freud inclui o cheiro
como uma parte do objeto almejado, ao descrever o fetichismo no qual o objeto
sexual normal é substituído por outro, que conserva alguma relação com ele mas
é totalmente inapropriado para servir ao objetivo sexual normal. Este outro objeto
158
FREUD,S. (1893) Estudos sobre histeria, Vol.II, op.cit., p.170.
159
FREUD,S. (1905) Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Vol. VII.
normalmente é alguma parte do corpo, como pés ou cabelos, algum defeito físico,
inapropriados para finalidades sexuais, ou objetos inanimados como peças íntimas
ou sapatos. Há uma supervalorização do objeto sexual, que acontece nos casos
de normalidade. No fetichismo patológico, porém, o fetiche não é meramente uma
condição ligada ao objeto sexual; ele toma o lugar do objetivo normal e se
transforma no único objeto sexual. Binet sustentou que a escolha do fetiche é um
efeito secundário de alguma impressão sexual recebida na primeira infância.
Em outros casos a substituição do objeto por um fetiche é determinada por
uma conexão simbólica do pensamento, geralmente inconsciente. O prazer
coprofílico de cheirar é extremamente importante na escolha do fetiche e
desaparece devido à repressão. Os pés e os cabelos são objetos de forte odor e
foram exaltados como fetiches após a sensação olfativa ter-se tornado
desagradável. No fetichismo do pé, os pés sujos e mal cheirosos é que se tornam
objetos sexuais. O pé representa o pênis da mulher cuja ausência é
profundamente sentida. Além de ressaltar o cheiro como qualidade do objeto
Freud fala em “prazer de cheirar” já do ponto de vista do sujeito, ligado à fase anal
(prazer em cheirar fezes) e fálica (prazer em cheirar pé-pênis).
Além de incluir o cheiro e o prazer em cheirar como um componente parcial
da libido, que mais tarde na fase genital pode integrar-se a ela, Freud escreve
alguns textos nos quais questiona a participação do olfato na origem da repressão
sexual - para além da moralidade e da vergonha e, mais tarde em sua obra, da
angústia de castração.
Em 1897, na carta 55 a Fliess
160
, Freud fala das perversões que levam à
zoofilia e se explicam não pelo funcionamento das zonas erógenas, que
posteriormente foram abandonadas, mas pela atuação de sensações erógenas
que depois perdem a intensidade. O principal órgão dos sentidos nos animais é o
160
FREUD,S. (1897) Carta 55, 11 de Janeiro de 1897, In: Ed. Standard Brasileira das Obras Psicológicas
Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1974, Vol. I.
olfato, que perdeu essa posição nos seres humanos; na medida em que o olfato é
dominante, o cabelo, o corpo, o sangue e as fezes são sexualmente excitantes.
Sem dúvida, o aumento do sentido do olfato na histeria está em conexão com isto.
Na carta 75 a Fliess
161
, Freud questiona a origem da repressão sexual
normal e tomando-se como paciente em sua auto-análise, ocorreu-lhe que ela
pudesse ser substituída pela coisa essencial que jazia por trás de si. Suspeitou
muitas vezes que alguma coisa orgânica desempenhasse um papel na repressão,
e ligava essa idéia de repressão ao papel desempenhado pela sensação do olfato
depois modificada: a adoção da postura ereta, o nariz levantado do chão, ao
mesmo tempo que uma série de sensações, antes interessantes, tornaram-se
repulsivas - ele “levanta o nariz”, o que equivale a considerar-se especialmente
nobre. As regiões da boca, do ânus e da garganta continuam em vigor nos
animais e, se persistem também no ser humano, configuram uma perversão da
libido. Supõe-se que na infância a sexualidade não é tão localizada e que as
zonas que depois são abandonadas provocam algo análogo à posterior liberação
da sexualidade. Se os genitais da criança foram excitados por alguém, a
lembrança disto anos mais tarde produzirá uma liberação da sexualidade mais
intensa que na época da excitação. Assim, a liberação da sexualidade ocorre
mediante um estímulo sobre os órgãos sexuais, excitações internas que surgem
destes órgãos e a partir de idéias, traços de memória que terão ação postergada.
Esta ação retardada ocorre também em conexão com as lembranças de
excitações das zonas sexuais abandonadas, cujo resultado é a liberação não de
libido, mas de desprazer. “Expressando isso em termos simples, a lembrança
atual cheira assim como um objeto real cheira mal; e assim como afastamos
nosso órgão sensorial (cabeça e nariz) com rejeição, também a nossa pré-
consciência e nosso sentido consciente realmente se afastam da lembrança. Isto é
a repressão”
162
.
161
FREUD,S. (1897) Carta 75, 14 de Novembro de 1897, In: Ed. Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1974, Vol. I.
162
FREUD,S. (1897) Carta 75, 14 de Novembro de 1897, op.cit., p.364.
Assim, a repressão normal nos proporciona algo que, livre, pode produzir
ansiedade, e se psiquicamente ligado, pode produzir rejeição, ou seja, a base
afetiva para processos intelectuais como moralidade e vergonha. Isto surge às
custas da sexualidade extinta. Nas neuroses, quando a lembrança reaviva uma
experiência relacionada com os genitais, a sensação por ação retardada é a libido;
quando é relacionada ao ânus ou à boca, produz aversão e uma carga de libido
não consegue passar à ação ou à tradução em termos psíquicos, sendo obrigada
a deslocar-se numa direção regressiva. A libido encontra um uso psíquico e a
aversão produz apenas sintomas e não idéias úteis.
Em “Notas sobre um caso de neurose obsessiva”, Freud (1909)
163
fala
sobre um paciente obsessivo que relatou que, quando criança, reconhecia as
pessoas pelo seu cheiro, e, mesmo depois de adulto, era bastante sensível às
sensações olfativas. Notando esta característica em outros pacientes obsessivos e
histéricos, Freud reconhece que uma tendência para tirar prazer do cheiro que se
extinguiu desde a infância pode desempenhar algum papel na gênese da neurose.
“Ademais, gostaria aqui de levantar a questão geral de saber se a
atrofia do sentido do olfato (que foi resultado inevitável da postura ereta do
homem como se presume) e a conseqüente repressão orgânica de seu
prazer no cheiro não podem ter constituído uma considerável parcela da
origem de sua susceptibilidade ao distúrbio nervoso. Esse fato fornecer-
nos-ia a explicação da razão por que, com o progresso da civilização, é
exatamente a vida sexual que tem de cair vítima da repressão. Isso porque
há muito conhecemos a íntima conexão, na organização animal, entre o
instinto sexual e a função do órgão olfativo”
164
.
Falando sobre a restrição feita ao amor pela civilização, em “Contribuições
à psicologia do amor”
165
, Freud diz que algo na natureza do próprio instinto parece
163
FREUD,S. (1909) Notas sobre um caso de neurose obsessiva, In: Ed. Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1974, Vol. X.
164
FREUD,S. (1909) Notas sobre um caso de neurose obsessiva, op.cit., p.248-249.
165
FREUD,S. (1912) Contribuições à psicologia do amor, In: Ed. Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1974, Vol.XI .
ser desfavorável à sua realização completa, primeiro porque o objeto final do
instinto sexual nunca será o original, mas apenas um substituto do mesmo e
acrescenta que:
“em segundo lugar, sabemos que o instinto sexual é, originalmente, dividido
em grande número de componentes – ou melhor, desenvolve-se desses
componentes – alguns dos quais não podem integrar o instinto em sua forma final,
mas têm de ser suprimidos ou destinados a outros empregos em uma fase
anterior. São eles principalmente, os componentes instintivos coprófilos, que
demonstraram ser incompatíveis com nossos padrões estéticos de cultura,
provavelmente porque, em conseqüência de havermos adotado a postura ereta,
erguemos do chão nosso órgão do olfato. O mesmo se aplica a uma grande parte
dos impulsos sádicos que constituem parte da vida erótica. Mas todos esses
processos do desenvolvimento só atingem as camadas mais superiores de
estrutura complexa. Os processos fundamentais que produzem excitação erótica
permanecem inalterados. O excrementício está todo, muito íntima e
inseparavelmente, ligado ao sexual; a posição dos órgãos genitais – inter urinas et
faeces – permanece sendo o fator decisivo e imutável. Poder-se-ia dizer neste
ponto, modificando um dito muito conhecido do grande Napoleão: “A anatomia é o
destino”. Os órgãos genitais propriamente ditos não participaram do
desenvolvimento do corpo humano visando à beleza: permaneceram animais e,
assim, também o amor permaneceu, em essência, tão animal como sempre foi.
Os instintos do amor são difíceis de educar; sua educação ora consegue de mais,
ora de menos. O que a civilização pretende fazer deles parece inatingível, a não
ser à custa de uma ponderável perda de prazer; a persistência dos impulsos que
não puderam ser utilizados pode ser percebida na atividade sexual, sob a forma
de não-satisfação”
166
.
A incapacidade do instinto sexual de produzir satisfação completa quando
submetido às exigências da civilização torna-se fonte de nobres realizações
culturais determinadas pela sublimação. Esta passagem é clara: se há prazer em
cheirar, podemos incluir cheirar na série prazer-desprazer: o desejo de cheirar
causa um desprazer que só pode ser satisfeito diante do odor do objeto desejado,
desejo veiculador da pulsão olfativa, parte da pulsão sexual.
E finalmente no texto “O mal-estar na civilização”, Freud
167
(1930),
questiona as influências às quais o desenvolvimento da civilização deve sua
166
FREUD,S. (1912) Contribuições à psicologia do amor, op.cit., p.172.
167
FREUD,S. (1930) O mal estar na civilização, op.cit.
origem, como ela surgiu e o que determinou seu curso. Segundo Freud, o homem
descobriu que sua sobrevivência na terra dependia de seu trabalho e para isto
associar-se a outro homem facilitava sua tarefa. Antes disto, o homem adotara o
hábito de formar famílias, e seus membros foram seus primeiros companheiros de
trabalho. Freud supõe que a formação de famílias se deu quando a satisfação da
necessidade genital não era mais restrita aos períodos férteis, mas sua
periodicidade modificou-se, tornando-se permanente. Quando isso aconteceu o
macho teve um motivo para manter a fêmea perto de si o que interessou a esta na
medida em que o macho protegia a ela e seus rebentos.
Freud atribui esta mudança na periodicidade sexual à diminuição dos
estímulos olfativos através do qual o processo menstrual produzia efeito sobre a
psique masculina. Seu papel foi assumido pelas excitações visuais que produzem
um efeito permanente em contraste com os estímulos intermitentes do olfato. “O
tabu da menstruação deriva desta ‘repressão orgânica’, como defesa contra uma
fase do desenvolvimento que foi superada”
168
. A diminuição dos estímulos
olfativos se deve à adoção da postura ereta, o que tornou os órgãos genitais,
antes ocultos, visíveis e necessitados de proteção, provocando um sentimento de
vergonha.
“O processo fatídico da civilização ter-se-ia assim estabelecido com a
adoção pelo homem de uma postura ereta. A partir desse ponto, a cadeia de
acontecimentos teria prosseguido, passando pela desvalorização dos estímulos
olfativos e o isolamento do período menstrual até a época em que os estímulos
visuais se tornaram predominantes e os órgãos genitais ficaram visíveis e, daí,
para a continuidade da excitação sexual, a fundação da família e, assim, para o
limiar da civilização humana. Isso não passa de especulação teórica, mas é
suficientemente importante para merecer uma averiguação cuidadosa a respeito
das condições de vida que predominam entre os animais estreitamente
relacionados ao homem”
169
.
A tendência cultural do homem para a limpeza origina-se no impulso de
livrar-se das excreções desagradáveis aos sentidos. As crianças não têm esta
168
FREUD,S. (1930) O mal estar na civilização, op.cit., p.119.
169
Ibid., p.120.
tendência; não sentem repugnância pelos excrementos que, ao contrário, lhes são
valiosos, parte do próprio corpo que se separou. A educação trata de ensinar-lhes
a repugnância.
“Essa inversão de valores dificilmente seria possível, se as substâncias
expelidas do corpo não fossem condenadas por seus intensos odores a partilhar
do destino acometido aos estímulos olfativos depois que o homem adotou a
postura ereta. O erotismo anal, portanto, sucumbe em primeiro lugar à ‘repressão
orgânica’ que preparou o caminho para a civilização”
170
.
4.1.3. A pulsão através das fases do desenvolvimento da libido
4.1.3.1. Abraham e a fase anal
Abraham
171
descreve o caráter anal salientando, em alguns trechos, a
relação entre olfato e analidade. Retoma o que Freud postulou sobre os sintomas
da neurose obsessiva, como resultado de uma regressão da libido à fase anal-
sádica de seu desenvolvimento. Segundo Freud, alguns neuróticos apresentam
traços de caráter pronunciados, como amor à ordem (formalismo), parcimônia
(avareza) e obstinação (irada rebeldia). O prazer em defecar é especial para estas
pessoas, e, após uma repressão bem sucedia, sua coprofilia transformava-se em
prazer em pintar, modelar. E apontou ainda a equivalência inconsciente entre
fezes e dinheiro.
Abraham retoma uma proposição de Jones, segundo a qual a criança sente
prazer com o ato da excreção, assim como se orgulha de seu produto. Sente
prazer tátil nas nádegas e nas extremidades inferiores, assim como prazer visual e
olfativo. Mas logo a criança é treinada a excretar com regularidade e a ter hábitos
de higiene. É um primeiro teste para o narcisismo da criança, que deve identificar-
se com a exigência de seus educadores para abdicar de seu prazer narcísico,
170
Ibid., p.120.
171
ABRAHAM, K. Teoria Psicanalítica da Libido, Rio de Janeiro, Imago Editora, 1970.
substituindo-o pelo prazer em agradar aos pais. Por isso há um momento certo em
que a criança consegue educar seus hábitos excretórios: é quando ela consegue
transferir para outras pessoas os sentimentos que originalmente estavam ligados
a seu narcisismo. A criança se torna limpa por amor ao objeto. Se lhe for exigido
isso antes, a ferida narcísica pode comprometer a sua capacidade de amar. As
excreções são um signo de extremo poder, e há um tempo certo para a criança
abrir mão de sua megalomania e entregá-la à mãe. O jogo de controle que pode
se estabelecer aí é um jogo de poder, anal-sádico.
Abraham levanta vários outros traços de caráter, como a parcimônia com o
dinheiro e com o tempo e a relação com a ordem. Por fim, comenta a fisionomia
de tais pessoas que têm uma “expressão taciturna”. E prossegue:
“As pessoas que se acham privadas de uma satisfação genital normal
tendem em regra à irritabilidade. Uma constante tensão da linha da narina,
juntamente com um ligeiro levantamento do lábio superior parecem-me
características faciais significativas de tais pessoas. Em alguns casos, dá a
impressão de que estão constantemente cheirando algo. Provavelmente, este
aspecto pode ter a origem remontada ao seu prazer coprofílico em cheirar. No
caso de um homem que apresentava este tipo de expressão facial, observei certa
vez que ele parecia estar constantemente se cheirando. Alguém que o conhecia
muito bem disse que ele realmente tinha o hábito de cheirar as mãos e todo objeto
que apanhava”
172
.
Não encontrei menção ao olfato ao ler a descrição que Abraham faz das
outras fases do desenvolvimento da libido: oral, fálica e genital. Entretanto, foi o
único autor que testemunhei usar a expressão “instinto osfresiolágnico”
173
ao
descrever um caso clínico de fetichismo de pé e corpete. Osfresia vem do grego
ósphresi e significa olfato, sensibilidade olfativa intensa. Abraham coloca este
“instinto” entre outros parciais da libido como, por exemplo, o escopofílico. Ele
defende a idéia de que nas perversões há uma constituição sexual caracterizada
172
ABRAHAM, K. Teoria Psicanalítica da Libido, op.cit., p.194.
173
ABRAHAM, K. Psicoanálisis Clínico, Buenos Aires, Hornié, 1994, p.98.
pela força anormal de certos instintos componentes. Os fenômenos fetichistas
seriam constituídos então pela repressão parcial e um processo de deslocamento.
O autor apresenta então o caso no qual o paciente excitava-se em olhar
sapatos e corpetes, em vez de excitar-se com corpos. O paciente superestimava o
fetiche-sapato ao mesmo tempo em que o rechaçava (os feios, pelo menos). Esta
exigência estética do fetiche indica uma grande necessidade de idealizá-lo. O
paciente apresenta uma forte inibição da sexualidade global. Os instintos
componentes de olhar e o sádico haviam sido originalmente de uma força anormal
e foram contidos pela repressão. A necessidade que o fetichista tem de atribuir um
valor estético a seu objeto sexual indica que, originalmente, a libido buscou certos
fins que são antiestéticos, que produzem repugnância. Segundo Freud, a
repressão do prazer coprofílico do olfato tinha um papel importante no fetichismo
por pés. No caso apresentado, o prazer causado pelos odores corporais
repugnantes havia sido muito forte. A repressão do prazer coprofílico olfativo, da
escopofilia e da sua atividade sexual havia levado a formações de compromisso
que constituem as características peculiares do fetichismo por pés. Há casos de
fetichismo em que o prazer causado por odores repugnantes não é reprimido;
neste chamado “fetichismo olfativo”, o prazer é produzido por pés sujos e
transpirados que, ao mesmo tempo, atraem os instintos escopofílicos. No caso
presente, o paciente passou por uma fase correspondente ao fetichismo olfativo
que fora reprimido e seu prazer voyerista foi sublimado no prazer de olhar
sapatos.
Por que os instintos escopofílicos e osfresiolágnicos se dirigiram para os
pés no lugar de voltarem-se para os órgãos sexuais e suas secreções? Abraham
suspeita que estes instintos, originalmente, interessavam-se pelas zonas genitais,
mas outras zonas erógenas entraram em competição com elas (boca, ânus...); no
caso presente, a zona anal teria sido mais investida e a excreção tinha o
significado de uma função sexual. Sua escopofilia e sua osfresiolagnia se dirigiam,
antes de deslocar-se para os pés, para os produtos da excreção e de micção. As
recordações do paciente estavam relacionados com impressões olfativas e,
secundariamente, com impressões visuais. O paciente lembra dos cheiros de
iodoformo e ácido piroxílico usados por sua mãe, lembra do cheiro das axilas e do
corpo dela. Aos dez anos, esta ligação com a mãe transformou-se em aversão e
ele adquiriu uma grande intolerância ao odor do corpo feminino. Seu gosto por
cheiros fora reprimido, e seu interesse sexual desviou-se das mulheres para os
homens, no caso seu pai. Nesta transferência, o interesse pelas evacuações
tornou-se prioritária. Acendeu o desejo de ser mulher, o que não significava
cumprir com a função sexual da mulher, mas vestir corpetes e sapatos de mulher.
Seu complexo de castração aparecia em sonhos e fantasias, com o sentido de
uma mutilação genital: acreditava que a mãe tinha pênis e foi mutilado. Conteúdos
sadomasoquistas apareciam nas fantasias de estar atado, de usar o corpete
apertado, causando pressão nos intestinos e na bexiga, o que o excitava.
Predominava o erotismo anal neste paciente; quando criança, sentava-se sobre os
pés de forma que o salto do sapato excitasse seu ânus. Isto era incrementado
pelo seu forte interesse coprofílico por cheiros. Seu autoerotismo encontrava forte
gratificação nos cheiros do próprio corpo e secreções, da pele, do pé e da região
genital. Assim, o pé adquiriu um significado sexual em suas fantasias
inconscientes, substituindo o pênis. O instinto osfresiofílico foi reprimido e o
escopofílico foi acentuado e desviado de sua esfera de interesse original, sofrendo
uma repressão parcial.
O paciente repete, segundo a interpretação de Abraham, o que Freud
chamou de “repressão orgânica” do olfato em prol da visão; ou a interpretação de
Abraham foi muito influenciada pela idéia de Freud, ou ambos. O fato é que
Abraham foi o único autor, dos que eu pude ler até agora, que nomeia a pulsão
olfativa
174
. O paciente a reprimiu assim como a psicanálise o tem feito, mas
Abraham consegue nomeá-la.
174
Ouso aqui traduzir “instinto osfresiofílico” por pulsão olfativa, considerando a distinção feita por
Laplanche e Pontalis entre o uso dos termos instinto e pulsão (Instinkt e Trieb) na obra de Freud. No
português, assim como no francês, o termo instinto se reserva mais a qualificar um comportamento animal
fixado por hereditariedade, característico da espécie.
4.1.3.2. Um salto no tempo
Algumas décadas mais tarde encontramos, na literatura psicanalítica, idéias
totalmente novas, o que mostra como a psicanálise evoluiu desde Freud a 1970.
Os autores a seguir apresentam idéias relacionadas à constituição do psiquismo
numa etapa muito mais precoce do desenvolvimento do que as estudadas pelos
autores mais pioneiros.
a) Anzieu e a fase oral
Anzieu propõe a noção de “envelope olfativo”
175
, sub-conceito da noção de
Eu-pele. Segundo Anzieu, a fase oral descrita por Freud implica a dupla satisfação
do prazer oral e da repleção, a sensação de plenitude dada pela satisfação
alimentar. Além desta dupla satisfação, o bebê é segurado no colo pela mãe,
sente seu calor, seu cheiro, é acariciado e lavado. Tais atividades permitem à
criança diferenciar, progressivamente, uma superfície, distinguindo assim o dentro
do fora, além de proporcionar a erotização da pele que, mais tarde, será integrada
à vida sexual adulta. Assim se instaura na criança o Eu-pele que “responde à
necessidade de um envelope narcísico e assegura ao aparelho psíquico a certeza
e a constância de um bem-estar de base”
176
.
O autor define o Eu-pele como uma “representação de que se serve o Eu
da criança durante fases precoces de seu desenvolvimento para se representar a
si mesma como Eu que contém conteúdos psíquicos, a partir da sua experiência
da superfície do corpo. Isto corresponde ao momento em que o Eu psíquico se
diferencia do Eu corporal no plano operativo e permanece confundido com ele no
plano figurativo”.
177
175
ANZIEU, D. O eu-pele, São Paulo, Casa do psicólogo, 1989.
176
Ibid., p.61.
177
Ibid., p.61.
Segundo a noção de apoio, as atividades psíquicas apoiam-se sobre uma
função biológica, e a pele oferece algumas das quais selecionei as que nos
interessam salientar: envolve toda a superfície do corpo e o Eu-pele envolve todo
o aparelho psíquico, respondendo à função de continente de pulsões que
precisam ser contidas e localizadas em fontes corporais. Assim, o núcleo pulsional
pode ser projetado na “casca” psíquica que representa partes localizáveis do
corpo. Um psiquismo dotado de núcleo, mas desprovido de casca, gerará uma
angústia difusa, não localizável e não contida, levando o indivíduo a procurar uma
casca substitutiva na dor física ou na angústia psíquica, ou seja, no sofrimento. Ou
ainda, o psiquismo tem um envelope que é descontínuo, esburacado, incapaz de
conter a angústia que se esvazia (Eu-pele escorredor correlacionado aos poros da
pele) “particularmente da agressividade necessária a toda afirmação de si”
178
. O
Eu-pele escorredor é um conceito muito útil para pensarmos o caso de D.
Bernarda, que possuía uma pele cheia de poros por onde entram os “cheiros” dos
quais ela tenta fugir, em analogia com sua casa cheia de frestas; a pele protege o
organismo contra agressões físicas e o excesso de estimulação, assim como o
Eu-pele serve de pára-excitação para o psiquismo. Esta função pode ser
deficiente, como nos casos de paranóia em que os pensamentos podem ser
roubados ou enxertados, ou excessiva, como nos casos em que os cuidados
maternos são tão perfeitos que a criança não sente a necessidade de chegar a
uma auto-sustentação, levando, por exemplo, a uma toxicomania. As membranas
das células orgânicas diferenciam, pela cor, textura, granulação, odor, células de
corpos estranhos de células similares triando assim sua admissão. De maneira
análoga o Eu-pele “assegura uma função de individuação do self, que lhe traz o
sentimento de ser um ser único”
179
.
A pele possui bolsos nos quais estão inseridos os órgãos dos sentidos, com
exceção do tato, alojado na epiderme. Desta forma, o Eu-pele liga as diversas
sensações entre si e as faz destacar deste fundo que é o envelope tátil. A
178
ANZIEU, D. O eu-pele, op.cit., p.134.
179
Ibid., p.135.
deficiência desta função de intersensorialidade, que leva à formação de um senso
comum, conduz à angústia de desmantelamento do corpo, de um funcionamento
anárquico, independente dos diversos órgãos dos sentidos.
O Eu-pele exerce a função de sustentação da excitação sexual, captando o
investimento libidinal e envelopando a excitação sexual global. A pele é uma
superfície de permanente estimulação do tônus sensório-motor pelas excitações
externas; correlativamente o Eu-pele exerce a função de recarga libidinal do
aparelho psíquico, de manutenção de tensão energética e sua distribuição entre
os subsistemas psíquicos. A falha desta função pode causar angústia de
“explosão do aparelho psíquico” e a angústia do Nirvana (angústia diante daquilo
que seria a satisfação do desejo por uma redução da tensão a zero); a pele
fornece informações de tato, dor, calor provenientes do ambiente externo assim
como o Eu-pele inscreve os traços sensoriais táteis.
Existiria uma função negativa do Eu-pele que visasse a autodestruição da
pele? Nas doenças auto-imunes o organismo ataca a si próprio, ao invés de atacar
os corpos estranhos. Em termos psíquicos, a distinção entre o fora e dentro, o
familiar e o estranho, o bom e o nocivo também pode ser insuficiente ou
inadequada, o que explicaria o paradoxal fascínio do alérgico pelo que lhe é
nocivo. “Função de emissão (suores, feromônios): em correlação com
mecanismos de defesa, constituído a projeção o mais arcaico deles; e em
correlação a uma configuração tópica particular descrita com Eu-escorredor”
180
.
Uma vez estruturado o Eu-pele, ele deve ser superado para que o Eu passe
a um outro sistema de funcionamento, o do pensamento, próprio a um Eu psíquico
diferenciado do Eu corporal. O interdito do tocar prepara e torna possível o
interdito edipiano, favorecendo a reestruturação do Eu num Eu-pensante, um Eu
que pensa sobre uma tela de fundo dada pelo Eu-pele.
180
ANZIEU, D. O eu-pele, op.cit., p. 141.
Para ilustrar o que chamou de “envelope olfativo”, o autor descreve o
paciente Gethsêmani, que em alguns momentos da análise, cheirava mal, sendo
seu mau cheiro potencializado pela colônia que usava. E seu cheiro tornava-se
pior conforme falava e exteriorizava sua agressividade dirigida a objetos
perseguidores da infância. O autor atribuía seu cheiro à sua constituição biológica
e a seu meio social de origem, resistindo assim a uma compreensão psicanalítica
deste sintoma. Ao interpretar para o paciente que ele o invadia não somente com
emoções agressivas, mas com certas impressões sensoriais, o paciente se lembra
de sua madrinha, mulher que dele cuidava e que raramente se lavava, assim
como raramente lavava suas roupas íntimas, que o paciente clandestinamente
respirava para sentir seu odor forte. Este dado revela uma fantasia fusional com a
pele mal cheirosa e protetora da madrinha. Sua mãe, ao contrário fazia questão de
estar sempre limpa e perfumada com água de colônia. Esta menção à mãe revela
a fantasia de fusão com ela, percebida pelo analista que se incomodava com a
colônia usada pelo paciente. A análise consegue então articular o mau cheiro
causado pela transpiração do paciente a certas emoções como frustração e
agressividade. “Para não sofrer desta agressividade, você a transpira através de
sua pele”
181
, diz o analista.
Citando a psicofisiologia, Anzieu afirma que o suor é inodoro por si só, mas
espalha sobre a pele secreções leitosas e odorantes de glândulas provocadas
pela excitação sexual ou pelos estresses emocionais. São classificados quatro
tipos de sinais olfativos: o desejo amoroso, o medo, a raiva e o odor de morte das
pessoas que se sabem condenadas. Segundo Anzieu, pode ser que a intuição e
empatia do analista repousem principalmente sobre uma base olfativa, difícil de se
estudar.
Voltando ao caso, “geralmente, o Eu-pele se apóia sobre um envelope em
sua origem, sobretudo tátil e sonora. No caso de Gethsêmani, o envelope é
principalmente olfativo: esta pele comum reúne os odores específicos dos orifícios
genitais e anais aos odores das secreções da pele. A função de pára-excitação do
181
ANZIEU, D. O eu-pele, op.cit., p.229.
suor do paciente confunde-se com a sinalização emocional das secreções
odorantes. Tal envelope olfativo-emocional realiza uma totalização indiferenciada
da pele e das zonas erógenas. Ele reúne igualmente características pulsionais
opostas: o contato com a pele da madrinha é, por um lado, narcisicamente
tranqüilizador e libidinalmente atraente e, por outro, dominador, invasor e
irritante”
182
.
O Eu-pele olfativo não é contínuo: é vazado por buracos que correspondem
aos poros da pele, buracos desprovidos de esfíncteres controláveis. A
agressividade interna sai através de uma descarga automática reflexa, desligada
de qualquer representação psíquica. Anzieu chama este Eu-pele de “escorredor”.
“Este envelope de odores é aliás indefinido, vago, poroso; ele não permite as
diferenciações sensoriais, base da atividade do pensamento”
183
. Ocorre assim
uma descarga no Eu corporal e uma indiferenciação do Eu psíquico.
Gethsêmani era consciente de sua raiva, daquilo que agia em
profundidade, mas paradoxalmente inconsciente do que agia na superfície: a
emissão de odores desagradáveis, tão agressivo quanto soltar gases em público,
mas menos culpabilizante por seu caráter incontrolável. A análise do paciente
seguiu no sentido de integrar esta clivagem do Eu corporal e psíquico. Aquilo que
era pura descarga de tensão pulsional agressiva pôde integrar-se ao sistema
percepção-consciência, através da ligação a representantes psíquicos. Ao invés
de livrar-se da agressividade pelo suor o paciente passou a representar e refletir
sobre ela.
Além da raiva, o analista pôde distinguir no odor exalado pelo paciente o
odor da sedução sexual que atribuía às roupas íntimas de sua madrinha.
Nota-se que Anzieu salienta a fase oral do desenvolvimento da libido e
explora a questão do olfato vinculado à oralidade. Já Abraham, a exemplo de
Freud, salientou as relações entre olfato e analidade, e olfato e fase fálica.
Notamos através dos autores que a pulsão olfativa participa de todas as fases do
desenvolvimento da libido.
182
ANZIEU, D. O eu-pele, op.cit., p.230.
183
Ibid.
b) McDougall e a fase oral
McDougall também se detém mais na fase oral quando elabora o conceito
de “self” do olfato. No livro “As múltiplas faces de Eros”
184
, ao falar de sexo e
soma, McDougall relaciona as fantasias sexuais arcaicas e os sintomas
psicossomáticos, e apresenta uma vinheta clínica ilustrativa de um sintoma
alérgico no qual encontra uma impressionante importância dos odores. Os bebês,
segundo a autora, procuram o seio através do sentido do olfato, donde conclui que
todo bebê conhece o cheiro do sexo da mãe e distingue os pais pelos seus
diferentes odores. As reações alérgicas começam a organizar-se psiquicamente
num contexto de relação mãe-bebê perturbado. McDougall constata, em sua
observação clínica, que os alergênicos tóxicos de seus pacientes na infância
tinham sido os odores, os sabores e as experiências táteis que eram desejadas e
positivamente investidas pelas crianças. Uma de suas pacientes sofria com o
cheiro invasivo dos postos de gasolina e, ao investigar, soube, por sua mãe que,
quando criança, ela adorava aquele cheiro. Outros pacientes que, tal como esta,
tinham uma percepção olfativa particularmente aguda, revelavam na infância um
relacionamento conflituoso com a “mãe ambiente”. Assim, a atração por odores
agradáveis num primeiro momento era compreendida como perigosa ou proibida
e, por isto, tinha de ser contra-investida. Como esta compreensão ocorria num
momento em que a comunicação verbal era rudimentar, a resposta protetora era
somática.
McDougall exemplifica com o caso Georgette, paciente que se queixara, no
início da análise, de diversos sintomas psicossomáticos, sintomas que cediam
com o decorrer do processo analítico mas que voltavam à tona nas férias da
analista, revelando a grave angústia de separação da paciente. No sétimo ano de
análise os sintomas haviam desaparecido, e as férias da analista não eram tão
ameaçadoras. Restava apenas uma forte reação alérgica quando comia certas
184
McDOUGALL, J. As múltiplas faces de Eros, Livraria Martins Fontes Editora Ltda. São Paulo, 2001.
frutas, peixes e crustáceos
185
. Diversos odores causavam reações alérgicas à
paciente. Ela era muito atenta aos odores de seu próprio corpo e ensopava-se de
perfume para disfarçá-los, além de “marcar território” na análise, pois confessara
que gostaria de que os outros pacientes notassem seu perfume. Assim, a mãe-
analista seria, ilusoriamente, possessão exclusiva sua.
As associações e sonhos de Georgette revelavam a conexão com odores
sexuais e, particularmente, com o “temor de que o sexo da mulher tivesse um
cheiro perturbador”
186
. Por exemplo, certa vez ela degustou uma ostra, por seu
“cheiro adorável”, e teve um forte reação alérgica, seguida de um sonho com um
corpo de mulher em forma de concha de mexilhão, termo usado na escola pelos
meninos para se referir ao órgão sexual feminino. A analista interpreta seu desejo
de tocar, comer e cheirar o sexo materno, recurso primitivo de incorporação da
mãe para poder tornar-se a própria e possuir o seu sexo, desejo perigoso e
proibido, cujo alerta era dado pela reação alérgica do corpo. As fantasias
incorporativas do início da infância, tão universais, permanecem nos pacientes
psicossomáticos adultos, indicando o colapso dos processos posteriores de
internalização e simbolização. Numa de suas associações, a paciente lembra que
os mexilhões eram a paixão de seu pai e, junto da analista, tem o insight de que
seu pai comia o “mexilhão de sua mãe”, coisa até então impossível de ser
pensada, pois não os imaginava como um “casal”. Assim, o caráter persecutório
dos odores que eram tão atraentes na infância significava uma recusa da
implicação desses odores – “que seus pais existiam como par sexual”
187
.
Com o decorrer da análise, a paciente consegue incluir o pai, o cheiro do
pai na dupla mãe-filha, demonstrando assim o papel do olfato na diferenciação
sexual que se dá na fase fálica do desenvolvimento da libido. À medida que a
paciente se separa e se diferencia da mãe, o cheiro do pai pode ir sendo incluído.
185
em francês “les fruits de mer”, tem o mesmo som de “os frutos da mãe”, frutos proibidos.
186
McDOUGALL, J. As múltiplas faces de Eros, op.cit., p.147.
187
Ibid., p.149.
Uma paciente minha, certa vez, entrou em minha sala elogiando o cheiro
que ali sentia e passou a falar do cheiro de sua mãe. Era até então muito apegada
à mãe e vínhamos trabalhando intensamente esta relação. Mas, na ocasião dessa
sessão, ela reclamou do cheiro da mãe, dizendo ser muito intenso e invasivo,
sufocante. A paciente sofria de rinite e tinha um desvio de septo, sendo que o
perfume da mãe fazia seus sintomas piorarem. Ainda nesta sessão ela diz que
cheiro bom é o de seu pai, suave e delicado. Após esta associação, decide que
deve fazer a cirurgia para corrigir o desvio de septo há muito protelada. Na época
em que o médico sugeriu a operação ela decidiu, no lugar de operar, fazer uma
tatuagem de golfinhos nas costas – pois eles saem da água de vez em quando
para respirar. Concordo com sua decisão de abrir o caminho das vias nasais.
Após a cirurgia, sua rinite melhorou muito, e dois anos depois a paciente tatuou
uma tulipa em seu calcanhar. A permissão da entrada do cheiro masculino em sua
vida tirou-a da condição de “bebê da mãe – golfinho” e a fez desabrochar como
uma tulipa perfumada.
c) Shengold e a fase fálica
A respeito da contribuição do olfato para a diferenciação dos sexos na fase
fálica, há um artigo muito interessante de Leonard Shengold
188
, no qual ele nota
no relato de várias pacientes uma preocupação com o cheiro do sêmen. Há uma
predominante aversão como parte de uma ambivalência com relação ao cheiro do
sêmen que parece ficar parado no nariz das pacientes.
Segundo o autor, os odores estão envolvidos com experiências sexuais e
somáticas, cruciais para o desenvolvimento psíquico – experiências corporais
íntimas, que participam da formação do ego e do senso de self. O cheiro da mãe
para a criança começaria com uma mistura de odores corporais, predominando o
cheiro do seio e o do leite. Passada a fase de “nursing”, na qual a diferenciação
188
SHENGOLD, L., The smell of sêmen, In: Shengold, L., Soul murder revisited: thoughts about therapy,
hate, love and memory, London, Yale University Press, p.47-64.
em relação á mãe é parcial, o cheiro sexual da mãe envolverá os cheiros do corpo
– doce, sujo, cheiro de urina, de fezes, menstruação, vagina – e cheiros periféricos
– sabão, comida, casa... Estes odores podem também emanar do pai. Na fase
anal-sádica os vários odores provavelmente adquirem uma significância anal. Os
odores deste estágio envolveriam uma confusão entre odores vaginais e anais. A
curiosidade sexual se centraria parcialmente na diferenciação de odores. Portanto
deve haver uma história traumática para pessoas que dão particular importância
aos cheiros. Os odores podem derivar, por exemplo, de uma exposição à cena
primária; ou de um adulto senil, psicótico ou perverso, que expõe a criança a
cheiros derivados de exibicionismo ou da falta de higiene. O sentido do olfato pode
ser importante no assassinato psíquico: um adulto abusador pode violentar a
criança com odores, diretamente ou como acessório para outras cenas. Isto
marcaria o caráter traumático dos cheiros. O cheiro da experiência pode ser um
deslocamento de algo mais traumático da experiência para a criança, como por
exemplo, a sensação de dor da penetração. E a sensação olfativa é capaz de
trazer à tona toda a experiência.
É muito freqüente nas análises o medo e a aversão ao cheiro da vagina,
que normalmente representam a angústia de castração. Para homens
heterossexuais e mulheres homossexuais o cheiro da vagina pode ser estimulante
e idealizado. Mas para algumas pessoas é um cheiro degradante, sujo, que se
mistura com as funções excretórias. O odor da vagina reina na fantasia como o
odor da castração para ambos os sexos. Em outras palavras, o cheiro da vagina
em pessoas “bem resolvidas” pode ser excitante como mais um dos diversos
componentes do contato sexual. Nas neuroses e nas perversões seu significado é
aumentado e distorcido.
E o cheiro do esperma? Shengold descreve três casos clínicos que ilustram
esta preocupação com tal cheiro. Conclui que, na clínica, isto se revela como uma
excitação e um perigo, muitas vezes encobrindo outras percepções como gosto,
visão e sons envolvidos na cena primária, nas cenas de abuso sexual e outras
experiências e fantasias que evocam especialmente a angústia de castração. As
três pacientes descritas sentem-se ameaçadas pela ereção e pela ejaculação,
revelando intensa inveja do pênis. A diferença sexual é especialmente importante
para crianças que sofreram abuso, assim como a diferença hierárquica entre
adultos e crianças. As crianças não conseguem ter orgasmo como um adulto, e a
imagem do pênis ejaculando marca bem esta diferença. A criança excitada não
consegue descarga suficiente e fica com esta dolorosa excitação sem destino. Os
desejos ativos e destrutivos das pacientes, assim como as pulsões orais e
coprofágicas, expressam-se deslocadas nos cheiros genitais, na atitude passiva
de cheirá-los. A preocupação com os cheiros pode mascarar as diferenças
sexuais e hierárquicas. Por exemplo, pacientes que acham que o cheiro do
esperma é igual ao da vagina negam as diferenças sexuais. As três pacientes
descritas demonstraram uma regressão libidinal ao estágio anal-sádico -
excitavam-se com odores - o que revela o prazer em cheirar fezes e, por formação
reativa, repeliam os odores. O que elas negavam, antes da diferença homem-
mulher, era a divisão mais prematura entre os que possuem um órgão penetrante
e castrador e os que possuem um órgão receptivo e castrado. Na fantasia, a
relação sexual era uma briga hostil em que um dos parceiros era submetido a um
estupro oral ou anal. O vitorioso castra e a vítima é castrada (aqui vemos a
linguagem colocando o vitorioso no masculino e a vítima no feminino). Mas os
papéis são intercambiáveis, de modo que a vítima pode se transformar no algoz,
reavendo o poder fálico de castração.
Nas pacientes descritas por Shengold ocorre uma clivagem do ego, à
semelhança do fetichismo, expressa através dos odores. Por um lado, elas
equacionam o cheiro do sêmen e da vagina, tornando-os iguais; por outro, mas ao
mesmo tempo, admitem a diferença dos cheiros, sentindo intensa inveja do pênis
e apresentando um sentimento de inferioridade.
O autor questiona a razão pela qual, nestas pacientes, a inveja do pênis se
expressa através de odores. Ele presume que elas são mais sensíveis a cheiros
do que outras, e as cenas traumáticas da infância foram determinadas por um
elemento aromático específico. Abraham diria que o “instinto osfresiofílico” nestes
casos não fora suficientemente reprimido, causando o que ele chamou de
“fetichismo olfativo”. A descrição que ambos os autores fazem dos casos, e
mesmo sua compreensão, é baseada em conceitos teóricos muito próximos;
entretanto, Shengold não usa o conceito de “pulsão olfativa”: ele fala apenas em
“sensação olfativa”.
4.2. A segunda teoria das pulsões
4.2.1. René Roussilon e as representações
René Roussilon
189
descreve uma sessão na qual um paciente fala de um
cheiro indefinível. Mais tarde o associa com a casa onde morou quando pequeno,
um cheiro que vinha de cima, de café com leite, que despertava raiva e
desespero. Associa-o ainda com uma hospitalização, aos onze anos, para operar
o apêndice. Ele esperava a visita da mãe e ela não vinha. E ele se empanturrava
de café com leite. Ao sair do hospital, achou sua mãe estranha, sua cabeça (de
Liccio,o paciente) girava e aí “tudo começou”. Disseram ao analista que ele estava
esquizofrênico. Mas após esta sessão ele mudou: estava mais presente, evocava
sua questão central: como seria o mundo se Deus não tivesse criado os homens?
Como seria o mundo sem ele? Paradoxo existencial psicótico, de um sujeito
presente que diz não existir, que não existe para o psiquismo da mãe, para o
espelho do olhar do outro. O odor não seria uma representação, mas um traço
mnésico perceptivo, utilizado como representante, como índice. O objeto de cima,
o cheiro, não é uma representação, é um representante não-representação
associado, por contigüidade temporal, à ausência.
No hospital, Liccio dispõe de uma representação da mãe ausente. O objeto
substituto – café com leite – era uma alucinação negativa, um traço do objeto
desaparecido. A hospitalização causou um trauma desorganizador, e fez o “vaso
189
ROUSSILON, R. Une odeur d’au-dessus, Rev. Franç. Psychanal, n.1, 1992.
quebrar” em seus pontos fracos. Ele nunca havia se separado da mãe. Quando a
representação da mãe, em sua ausência, não pôde se estabilizar, a representação
de si não pôde mais se estruturar, pois a representação do outro e a
representação de si são solidárias. Poder estar só na presença do outro, significa
a possibilidade de explorar a representação ou o modo de presença do outro em
si, modo de presença carregada de mistério, desconhecido. O reinvestimento dos
traços mnésicos perceptivos cria uma alucinação perceptiva que não se transfere
ao campo representativo se a primeira inscrição representativa (representação de
coisa ou do objeto) não for suficientemente estruturada e constituída. No “Esboço”,
Freud (1940) levanta uma condição econômica: a ação de um contra-investimento
que permite domar a lembrança e, assim, convertê-la em representação. Esta
condição é necessária, pois sem ela o traço mnésico investido se apresenta ao
sujeito como uma percepção atual.
4.2.2. Sechaud: olfato, da apresentação à representação
Évelyne Sechaud
190
cita Laurence Kahn e elogia sua insistência em traduzir
Darstellung por “apresentação”, em vez de “figuração”, pois permite a liberação do
visual em prol de outros modos de figuração. Ela trata da sensorialidade como
modo de representação de desejos recalcados, mas não menciona o olfato. Este é
um assunto abandonado pelos psicanalistas. Freud, sob a influência de Fliess,
não o negligenciou.
Segundo Sechaud, o sensorial olfativo é muito próximo do afeto. O visual
fornece uma “mise-em-scène” à representação, enquanto o olfato cria a
ambientação, a atmosfera. Se a percepção visual não é possível sem a presença
do objeto, o odor, como o afeto, subsiste a esta ausência, tornando-se um indício,
um signo do objeto. A possibilidade de guardar a sensação na ausência do objeto
abre caminho para o deslocamento simbólico, conferindo ao odor o poder de
evocação que ultrapassa a lembrança precisa do objeto. Em outros termos, o
190
SECHAUD, E., Figurabilité olfactive, Rev. Franç. Psychanal, V. 65, n.4, p. 1141-1145, 2001.
odor se presta a deslocamentos e condensações. Sem dúvida, esta é uma razão
pela qual ele tem um importante papel quando se trata de reminiscências, esta tão
abordada pelos escritores do século XIX. Uma vez sentido o odor, dele não se
esquece mesmo depois de muito tempo. Ele faz parte de um contexto emocional e
constitui a chave para se recriar este contexto.
Retomando a afirmação de Freud segundo a qual as histéricas sofrem de
reminiscências, Sechaud afirma que estas últimas não são lembranças, mas
impressões vagas do passado que flutuam na bruma impalpável de uma memória
sensorial e afetiva. A reminiscência patogênica revela a existência de um desejo
afastado da consciência. É uma das figuras da apresentação. Na literatura
romântica do séc. XIX a reminiscência não se choca com o recalcamento: as
lembranças esquecidas ficam à disposição no pré-consciente. Neste contexto, a
nostalgia, que é o afeto da reminiscência, mostra bem que a temporalidade é
perfeitamente distinguida; a nostalgia repousa sobre a distinção do passado e do
presente. Na neurose ou no delírio, a representação inconsciente adquire seu
poder a posteriori, na reatualização inadaptada que nega o tempo e a realidade
em benefício da realidade psíquica. O passado é transportado para o presente ou
para a espera ansiosa do futuro e do reconhecimento.
Para Sechaud, os odores se prestam bem às reminiscências; são uma
ligação metonímica e também metafórica com o objeto, que permite um
deslocamento por contigüidade, mas também simboliza o objeto. Serve de
cobertura ao recalcamento.
Os odores são sempre ligados à sexualidade ou à morte. Freud, citando
Santo Agostinho, disse que nascemos entre fezes, urina e sangue, primeiros
odores com que nos confrontamos. Os odores participam de toda a vida sexual,
estando presentes em todas as formas de prazer oral, anal, ou genital. Os odores
efetuam o caminho da sensorialidade à sensualidade e à sexualidade; são os
vetores da sexualidade. Investidos de libido, os odores veiculam diversos modos
de afetos, prazer, cólera, ira, medo. Os afetos podem usar os odores como um
meio de se apresentar à superfície da consciência.
Se a apresentação é o produto desfigurado pelo processo primário, sob o
qual aparece uma representação de desejo, o sintoma, particularmente o histérico,
obedece ao mesmo trabalho de figurabilidade. A figuração do desejo pelo olfato
aparece em Miss Lucy. Sechaud resume este caso e conclui que, quando Lucy diz
querer esquecer o patrão, trata-se de um interdito no pensamento que recalca a
representação e neutraliza o afeto (objetivo essencial do recalque) despertado
pelo olfato, deixando em seu lugar a sensação de morosidade. O odor permite o
deslocamento metáforo-metonímico do desejo de se unir ao patrão sobre a
representação de seu charuto. Há, além do deslocamento intrapsíquico, um
deslocamento para a figura de Freud, que também fumava charuto. Assim, o odor
do charuto permite a “encarnação” da transferência; o odor é um meio de
comunicação intersubjetivo inconsciente entre paciente e analista, mensageiro
enigmático, carregado de sexualidade inconsciente.
Sechaud levanta então a questão de como compreender, no plano
metapsicológico, a alucinação olfativa de Lucy. Freud fala primeiro em uma
“impressão subjetiva” e, depois, em alucinação. Lucy se queixa de anosmia e de
sentir sempre o cheiro de pudim queimado. Esta alucinação é resultado da
elaboração primária, que requer uma regressão do pensamento formal. A
alucinação de Lucy é uma figuração olfativa e simbólica do desejo amoroso,
“brûler d’amour”
191
. Esta alucinação vem acompanhada de anosmia, uma
alucinação negativa que permite a emergência da alucinação positiva. A positiva
aparece sobre um fundo de alucinação negativa que fornece uma tela, como a tela
do sonho. Pode-se pensar com base nos trabalhos de Green, que a anosmia
fornece uma estrutura enquadrante que permite à alucinação positiva se destacar,
como única figura do desejo! Mas esta alucinação, que Freud descreve como
“sensação olfativa subjetiva”, não é uma verdadeira alucinação: é a expressão de
191
SECHAUD, E., Figurabilité olfactive, op.cit., p.1144.
uma representação de desejo recalcada, enquanto a verdadeira alucinação
psicótica é o retorno, a partir do real, de uma representação negada ou forcluída.
A pulsão impõe ao psiquismo um trabalho no qual a representação de palavra
simbólica é a forma mais elaborada, embora ela tenda também a se satisfazer
através de alucinações, como desenvolveram César & Sara Botella
192
.
4.2.3. Jacoby: o status psíquico do olfato
Jacoby
193
discorda de Sechaud no que concerne à capacidade do odor de
sofrer deslocamento e condensação. Para ela, apesar de fonte dos sonhos, o odor
não é transformado pelo trabalho onírico, como acontece com a imagem que sofre
deslocamento e condensação. Emerge freqüentemente como sensação que se
presentifica ante um estímulo olfativo externo que produz o despertar. São as
alucinações que emergem nas condições psicóticas mais regressivas. Há uma
prontidão olfatória para o desejo amoroso, o medo, a cólera. Descreve-se o odor
dos condenados, sendo também muito notável o dos esquizofrênicos.
A autora salienta ainda que a dificuldade de apreensão na olfação facilita
associações inconscientes. É freqüente a presença de cheiros em sensações
paramnésicas como o dejá-vu, quer dizer, ilusões de memória, e o
reconhecimento de algo vivido na realidade que remete à primeira infância. Nos
circuitos da memória o odor pareceria expandir-se relacionando constelações
vividas, principalmente em associações de simultaneidade pelas quais sua
inscrição corresponderia à primeira transcrição ao signo de percepção no pré-
consciente, como Freud descreve na carta 52, “por completo insuscetível de
consciência”. Freud especifica ainda mais, afirmando que as associações
simultâneas são incapazes de se fazerem conscientes. A continuidade e a
contigüidade poderiam configurar-se para o olfato, mas Jacoby considera que a
192
citados por Sechaud.
193
JACOBY, Z.L., Olfato: percepción y representación-represión orgánica, Rev. Picoanálisis, v.57, n.3/4,
p.635-650, 2000.
condição da simultaneidade no registro desta sensação se corresponde com a
observação da presença do olfato como o fundo de variadas experiências
sensoriais. A condição de não ser suscetível à consciência aparece na experiência
de chegar à percepção com um particular caráter evanescente.
O registro da simultaneidade não pode ser enquadrado em referências
espaciais e temporais, pois estes parâmetros são ordenados pela lógica do pré-
consciente e da linguagem. Esta característica torna a percepção olfatória difícil de
ser elucidada pelo pensamento secundário.
O olfato tem uma qualidade de reminiscência. Remete a impressões muito
arcaicas e possui um poder de evocação imenso. Apesar disto, é muito difícil
evocar voluntariamente e com precisão uma sensação olfativa do passado, sendo
curioso que o odor tenha certa condição sensorial de algo sempre no presente.
A autora prossegue dizendo que o olfato e o paladar são os únicos sentidos
quimioreceptores. Colocam os neurônios em contato direto com o meio ambiente,
e seu registro perceptual é simultâneo à modificação somática. Importante notar
que a percepção é um funcionamento situado na fronteira da teoria psicanalítica,
entre psique e soma, entre interior e exterior. Isto soma-se ao fato de estas
percepções estarem intensamente vinculadas ao corpo, o que torna difícil sua
apreensão metapsicológica. Não se pode conceber a percepção como uma
simples reprodução do mundo exterior. Segundo Freud, todo conteúdo perceptivo
é submetido à elaboração secundária; é um processo ativo e dirigido
pulsionalmente, sendo a realidade considerada como quarta instância, cujas
exigências devem ser consideradas pelo ego. O funcionamento perceptual não é
imune aos conflitos pulsionais, mas movido pela angústia e pelo desejo (por
exemplo a alucinação psicótica).
Para Jacoby, a percepção olfativa começa ao nascer “inter urinas et faeces
e, portanto, “os odores veiculados pelo ar são as primeiras introjeções da vida que
marcam o nascimento”
194
; sua lembrança é inacessível, sofre uma drástica
repressão. Freud utilizou a filogênese e a hereditariedade de traços evolutivos
para avaliar, na ontogenia, a origem do imaginário, a presença repetida de
fantasias típicas, a emergência da sexualidade em dois tempos e o notável
menosprezo do território sensorial do olfato. Como seriam estas percepções
primitivas? Pareceria que o corpo tem uma memória delas, embora elas não
sejam passíveis de simbolização. Os odores contribuem para a formação das
fantasias tanto quanto o visto e o ouvido. A invasão do odor sexual dos pais na
cena primária é inevitável; e a dificuldade de sua repressão por parte do psiquismo
lhe concederia privilegiadamente a condição específica de representante da
pulsão.
4.2.4. Stanley: olfato e mundo pulsional
Finalmente, Stanley
195
se propõe a vincular o olfato e o mundo pulsional,
assinalando que a referência a odores ocorre em pacientes de diferentes
estruturas clínicas.
Para tanto descreve o caso de Elena, 38 anos, casada e mãe de uma filha
adolescente. Após algumas vinhetas clínicas, a autora diz ter escolhido este caso
por apresentar fragmentos histéricos e tóxicos, pretendendo, com ele, entender
como o olfato adota diferentes formas de expressão.
Stanley retoma a teoria das pulsões: Freud explica como surgem, no corpo,
exigências - tensões - que devem ser eliminadas. Num primeiro momento, pré-
psíquico, a energia circulante é descarregada numa ação reflexa. Com o
amadurecimento, começa uma distinção entre estímulos internos e externos, e
surge uma primeira instância rudimentar capaz de inibir a descarga de tensão.
194
JACOBY, Z.L., Olfato: percepción y representación-represión orgánica, op.cit., p.642.
195
STANLEY, T. C., Pulsión y olfato, Rev. Psicoanálisis, v. 58, n.2, 2001, p.341-357.
Trata-se do “eu real primitivo”
196
, regido pelo princípio da constância e auxiliado
pelo agente maternante que reduz a tensão do aparelho mediante uma ação
específica. Trata-se das pulsões de auto-conservação, que vão apoiar a
sexualidade e terão como fonte não mais os órgãos internos, mas as zonas
erógenas. As pulsões de auto-conservação buscam alívio, e as sexuais, prazer.
As zonas erógenas isoladas entre si se unificam, dando origem ao narcisismo
primário, no qual o eu coincide com o prazer e o desprazer é projetado para fora
(“eu prazer purificado”). Até que o eu passa a considerar o princípio da realidade
para obtenção de satisfação, criando o “eu real definitivo”, que utiliza o processo
de pensamento.
Assim, há quatro modos de resolução das tensões: uma alteração interna, a
ação específica, a resolução da tensão na zona erógena correspondente e o
pensamento. Até aqui, a dualidade pulsional é entre pulsão de auto-conservação e
pulsão sexual.
Retomando Freud, Stanley afirma que em “Além do princípio do prazer”,
Freud introduz a pulsão de morte, opondo-a à de vida. Afirma, na Conferência
XXXII, que as pulsões são forças que representam os requerimentos que o corpo
faz à vida anímica, e, ainda, que causam toda a atividade e que são de natureza
conservadora, buscando sempre manter ou conservar um estado anterior. Assim,
se a pulsão de morte busca manter um estado de inércia inorgânica, a pulsão de
auto-conservação busca um estado de homeostase e as pulsões sexuais buscam
recuperar vivências de satisfação. As combinações entre elas podem variar
bastante, sendo que o estado de intoxicação revela uma magnitude pulsional que
não encontra escoamento através dos processos de pensamento.
Na Conferência XXXII, Freud fala da pulsão de respirar, além da de dormir
e sonhar. No nascimento, ocorre uma perturbação na economia da libido narcísica
que atinge os órgãos cardiocirculatórios e respiratórios, que são os que primeiro
196
Ibid., p.346.
recebem um investimento narcísico. A esta modalidade pós-natal de
processamento da tensão endógena Freud chamou de “alteração interna”, que
será o critério dominante na respiração.
Stanley pergunta: quais são os recursos que possui a pulsão de respirar
para tramitar a pulsão de morte?
Elena faz várias referências a uma sensação de sufocamento, revelando o
conflito entre a pulsão de autoconservação e a sexual. Respirar pressupõe
consumir oxigênio, sua incorporação, mas não há, necessariamente, introjeção.
Na oralidade, a incorporação é a primeira modalidade de vínculo com o peito
materno.
O sadismo ligado à respiração - consumir o objeto amado - liga a pulsão de
morte mediante o critério de alteração interna, já que o objeto-oxigênio está
sempre presente. Assim, a libido toma como objeto o próprio corpo, coincidindo
com este momento sadomasoquista, anterior ao momento em que sadismo e
masoquismo se separam mais claramente.
Respiração e olfato andam juntas, mas será que, sempre que respiramos,
estamos sentindo cheiros? Pode haver uma captação química do odor sem que
haja inscrição psíquica do mesmo? Freud e estudos recentes do olfato acreditam
haver outras vias de olfação, nas quais a captação do estímulo olfativo não é
qualificável e, portanto, não configurariam impressões sensoriais propriamente
ditas. Nas alergias respiratórias detecta-se uma alteração interna - resposta
química - sem a participação de uma impressão sensorial olfativa.
Para Elena, os cheiros de gás e de cigarro são reprimidos, isto é, são
impressões sensoriais qualificáveis e passíveis de serem captadas pela
consciência. Já o episódio de alergia ao próprio perfume parecia seguir outra via
de expressão, ligada a desestimação do afeto, sem que este constitua uma
impressão sensorial.
4.3. Discussão
Segundo ensinam Laplanche e Pontalis
197
, o termo pulsão designa
“processo dinâmico que consiste numa pressão ou força - carga energética, fator
de motricidade - que faz o organismo tender para um objetivo. Segundo Freud,
uma pulsão tem a sua fonte numa excitação corporal; seu objetivo ou meta é
suprimir o estado de tensão que reina na fonte pulsional; é no objeto ou graças a
ele que a pulsão pode atingir sua meta”
198
. A noção freudiana de pulsão é
esboçada na descrição da sexualidade humana, principalmente no estudo das
perversões, no qual demonstra que o objeto da pulsão é contingente, variando de
acordo com a história de vida do sujeito. As metas da pulsão são múltiplas e
parcelares e dependem das fontes somáticas que, por sua vez, também são
múltiplas, multiplicando assim as zonas erógenas que só irão se subordinar à zona
erógena genital e se integrar à realização da relação sexual quando a maturidade
biológica e psíquica permitirem.
O elemento de pressão da pulsão seria o fator quantitativo, econômico, uma
exigência de trabalho imposta ao aparelho psíquico. Para Laplanche e Pontalis, a
pressão da pulsão seria o “fator quantitativo variável de que cada pulsão se
reveste e que explica, em última análise, a ação desencadeada para obter a
satisfação; mesmo quando a satisfação é passiva, como por exemplo, ser visto,
ser espancado, a pulsão é ativa na medida em que exerce uma pressão”
199
.
Assim, a pulsão é uma excitação proveniente do organismo, diferente das
provenientes do ambiente externo às quais muitas vezes pode-se escapar. Trata-
se de excitações endógenas provenientes do organismo, de fontes somáticas.
Por fonte somática da pulsão entendemos ser o lugar onde aparece a
excitação, seja uma zona erógena, um órgão ou um aparelho, ou ainda um
197
LAPLANCHE,J. et al., Vocabulário da psicanálise. São Paulo: Livraria Martins Fontes Ed.,1967.
198
Ibid., p.394.
199
LAPLANCHE,J. et al., Vocabulário de Psicanálise, op.cit., p. 354.
processo somático que se produz nessa parte do corpo que pode ser percebido
como excitação. A fonte, portanto, tem mais a ver com o somático, cuja excitação
pode ser representada psiquicamente pela pulsão.
Ainda seguindo Laplanche e Pontalis, as pulsões sexuais “vêem a sua
especificidade levada em última análise à especificidade de um processo
orgânico”
200
. Cada pulsão de autoconservação teria então uma fonte distinta, em
cuja função somática a pulsão sexual se apoiaria. São as fontes indiretas da
pulsão, cujo funcionamento é igual ao das zonas erógenas em que a pulsão
sexual se apóia em um funcionamento ligado à autoconservação.
Como podemos articular pulsão e olfato até aqui? Nota-se que a discussão
se dá sob o prisma da primeira teoria das pulsões. O olfato está, do ponto de vista
biológico, estreitamente ligado à respiração. No ato de respirar, quer queiramos,
quer não, sentimos o cheiro do lugar onde estamos, das pessoas a nossa volta, de
nós mesmos, etc... Podemos classificar a pulsão de respirar, descrita por Freud na
Conferência XXXII
201
, dentro das pulsões de autoconservação, dado que se trata
de uma necessidade ligada a uma função corporal essencial à conservação da
vida. O olfato se apóia nesta fonte somática que é a respiração. Podemos afirmar
que o olfato está para a necessidade de respirar assim como o paladar está para a
fome. A pulsão olfativa seria então classificada como sexual, pois se apóia numa
função somática.
Mais ainda, ela seria uma pulsão parcial da libido, pois se especifica por
duas fontes somáticas, aparelho respiratório e olfativo, e por uma meta, pulsão de
cheirar.
202
Esta meta também cumpre uma função biológica importantíssima, para
200
Ibid., p.194.
201
FREUD,S. (1933), Novas Conferências introdutórias sobre psicanálise, In: Ed. Standard Brasileira das
Obras Psicológicas Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1974, Vol. XXII.
202
No registro da necessidade encontramos então duas funções: a de respirar e a de cheirar, ligadas à pulsão
de auto-conservação. No registro do prazer encontra-se o desfrutar o cheiro ligado à pulsão parcial olfativa da
libido.
além da respiração, pois através do cheiro das coisas, alimentos e ambiente
podemos nos prevenir de diversos tipos de acidentes.
203
Seu objeto seria tudo
aquilo que exalasse o cheiro desejado para a satisfação da pulsão e diminuição da
tensão. A pulsão olfativa teria um funcionamento independente e tenderia a unir-
se nas diversas organizações libidinais.
Apresentamos várias referências que Freud faz ao olfato, deixando implícita
a noção de uma pulsão parcial da libido. Para salientar algumas delas,
comecemos pelo prazer, descrito na página 93, em cheirar fezes na fase anal e
cheirar pés-pênis na fase fálica. Freud inclui o cheiro e o prazer em cheirar como
um componente parcial da libido, assim como incluía componentes como a pulsão
de ver, a pulsão de dominar, etc...
Mais adiante no texto, na página 95, Freud vai além e fala de uma
“repressão orgânica de seu prazer no cheiro”, conferindo ao prazer no cheiro a
vicissitude de ser , como qualquer outro prazer parcial, recalcado. Além de
recalcada, a pulsão contribui para o “progresso da civilização”, podendo assim, ser
sublimada. Na página 97, apresentamos outra passagem na qual Freud liga o
impulso humano de livrar-se das excreções desagradáveis aos sentidos, com a
origem da tendência cultural para a limpeza, sugerindo o recalque do prazer em
cheirar, mesmo os excrementos, tão precioso na infância, e sua transformação no
oposto, na tendência para a limpeza. Esta passagem de Freud faz lembrar a Dona
Bernarda tentando livrar-se dos restos da jaca comida por seu pai.
204
Discutir esta questão com Abraham é bem mais fácil, pois ele é o único
autor que nomeia a pulsão, e sendo assim, não precisamos busca-la nas
entrelinhas de sua teoria.
Da teoria de Anzieu gostaria de destacar a abordagem que ele apresenta
da fase oral do desenvolvimento da libido. A noção de Eu-pele se instaura na
criança na fase de amamentação, portanto, oral. Como a noção de “envelope
203
A função biológica do olfato está descrita na página 16 dessa dissertação.
204
Página 31 e 32
olfativo” é um sub-conceito do Eu-pele, deduzimos que sua instauração se dê na
mesma fase.
Apesar do salto no tempo e de uma considerável evolução teórica, Anzieu
mantém o conceito freudiano de pulsão, segundo suas características básicas
descritas acima, como a noção de apoio, meta e objeto da pulsão, etc...
Ao ilustrar o que chamou de envelope olfativo, Anzieu deixa clara a
conexão entre a respiração das roupas íntimas da madrinha para sentir seu odor
forte, o prazer que sentia neste cheiro e a ilusão de fusão com a madrinha que
este odor propiciava. Deste modo, concluímos que o prazer parcial de cheirar
também se encontra presente na fase oral do desenvolvimento da libido.
McDougall também fornece um exemplo, o caso Georgette, da conexão
entre odores e fase oral. A autora estabelece esta conexão ao interpetrar o desejo
da paciente de tocar, comer e cheirar o sexo materno, recurso primitivo de
incorporação da mãe.
E finalmente, Shengold, nos fornece um exemplo de como o prazer em
cheirar se presentifica na fase fálica. Aliás, o autor descreve como os odores estão
envolvidos com experiências sexuais, passando desde as primeiras experiências
com a mãe, na fase oral, e depois pela fase anal-sádica e fálica. O autor concentra
sua discussão na fase fálica, mostrando como o cheiro da vagina e do semem
podem contribuir para a diferenciação sexual e hierárquica.
E se pensarmos sob o prisma da segunda teoria das pulsões? O que
pensariam os outros autores citados?
Roussilon descreve o caso Liccio que sentia um cheiro de café com leite
que desperta raiva e desespero. Associa este cheiro a uma hospitalização
ocorrida aos onze anos de idade na qual esperava a visita da mãe que não vinha.
E ele se empanturrava de café com leite. Segundo Roussilon o odor, neste caso,
não seria uma representação, mas um traço mnêmico usado como índice, pois a
primeira inscrição representativa da mãe e de si não foram bem estruturadas. O
autor não deixa claro se o odor pode vir a ser uma representação caso a primeira
inscrição tenha sido suficientmente bem estruturada.
Para Sechaud o odor está muito próximo do afeto, subsistindo à ausência
do objeto tornando-se um índice, um signo do mesmo. Esta possibilidade de
guardar a sensação na ausência do objeto abre caminho para o deslocamento
simbólico. Assim, o odor se presta a deslocamentos e condensações. Para a
autora os odores participam de toda vida sexual, estando presentes nas várias
fases do desenvolvimento da libido. Eles são os vetores da sexualidade,
investidos de libido, veiculam modos de afetos, prazer, cólera, ira, medo. Os
afetos podem usar os odores como um modo de se apresentar à consciência. Por
exemplo, o sintoma neurótico faz um trabalho de figurabilidade, ou seja,
apresenta-se à consciência como produto desfigurado pelo processo primário, sob
o qual aparece uma representação de desejo. A figuração do desejo pelo olfato
pode ser ilustrado pelo caso da Miss Lucy. Não estaria Sechaud falando de
pulsão?
Para Jacoby o odor não sofre deslocamentos e condensações. Trata-se de
uma sensação que até pode aparecer nos sonhos como estímulo externo sem
sofrer o trabalho de transformação onírico.
Stanley considera que o cheiro pode ser uma impressão sensorial
qualificável e passível de ser captada pela consciência, ou pode seguir outra via
de expressão, ligada a desestimação do afeto, sem que este constitua uma
impressão sensorial.
Se pensarmos os casos clínicos apresentados, Da. Bernarda apresenta
quase uma alucinação do cheiro de borracha queimada. Seguindo o pensamento
de Roussilon tratar-se-ia de uma alucinação negativa, um traço do objeto
desaparecido, a filha. Podemos supor que a representação de si e do outro não
foram suficientemente estruturadas e constituídas e por isto, o reinvestimento dos
traços mnêmicos perceptivos cria uma alucinação que não se transfere ao campo
representativo.
E Leila? Leila encontra uma representação de palavra form que dá forma e
sentido ao odor. O formicida e o lysoform possuem não apenas o mesmo cheiro,
mas o mesmo nome, sendo que, a associação se deu através do nome.
Culturalmente pensando, é muito difícil atribuir nomes aos cheiros. As
cores, por exemplo, têm um nome independente dos objetos: azul, vermelho,
amarela. Encontramos também cor de laranja, cor de rosa, etc... Mas quando se
trata de cheiros só encontramos cheiro de alguma coisa. Numa das descrições
mais impressionantes que já li de cheiros, notamos que os cheiros são sempre
cheiros de algum objeto; trata-se da descrição que Süskind faz de Paris, no livro
“O Perfume”:
“as ruas fediam a merda, os pátios fediam a mijo, as escadarias fediam a madeira
podre e bosta de rato; as cozinhas, a couve estragada e gordura de ovelha; sem
ventilação, salas fediam a poeira, mofo; os quartos, a lençóis sebosos, a úmidos
colchões de pena, impregnados do odor azedo dos penicos. Das chaminés fedia o
enxofre; dos curtumes, as lixívias corrosivas; dos matadouros fedia o sangue
coagulado. Os homens fediam a suor e a roupas não lavadas; da boca eles fediam
os dentes estragados, dos estômagos fediam a cebola e, nos corpos, quando já
na eram bem novos, a queijo velho, a leite azedo e a doenças infecciosas. Fediam
os rios, fediam as praças, fediam as igrejas, fedia sob as pontes e dentro dos
palácios. Fediam o camponês e o padre, o aprendiz e a mulher do mestre, fedia a
nobreza toda, até o rei fedia como um animal de rapina, e a rainha como uma
cabra velha, tanto no verão quanto no inverno. Pois à ação desagregadora das
bactérias, no século XVIII, não havia atividade humana, construtiva ou destrutiva,
manifestação alguma de vida, a vicejar ou a fenecer, que não fosse acompanhada
de fedor.”
205
.
Trata-se de uma condição do olfato, não ser passível de uma representação
psíquica através da palavra, ou de um forte recalque, talvez o orgânico
mencionado por Freud?
Concluindo, encontramos conceitos como “representante da pulsão”,
“sensação”, “percepção”, “traço de memória”, “índice de presença”, “pulsão
respiratória”, etc... Por que não pensar num estímulo olfativo que desperta uma
sensação olfativa no soma que, uma vez percebida pelo psiquismo, é inscrita na
memória, traduzindo-se num traço mnêmico que, por sua vez, será investido de
um afeto que o transformará num representante psíquico? Por que não nomear
Isso que se encontra latente no discurso dos autores citados, Isso que uma vez foi
205
SÜSKIND, P., O Perfume, história de um assassino, Rio de Janeiro, Editora Record, 1985, p.7-8.
nomeado por Abraham por “instinto osfresiolágnico” e, novamente caiu no
esquecimento? Por que não chamar Isso de “pulsão olfativa”?
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