79
movimento faz a unidade do mundo organizado, unidade fecunda de uma riqueza infinita,
superior àquilo que qualquer inteligência poderia sonhar, uma vez que a inteligência é
apenas um de seus aspectos ou produtos (BERGSON: 2005, p.114).
Dessa maneira, se a vida se define pela sua perpetuidade criadora, então tudo
aquilo que nos parece previsível, todas as coisas que supostamente se encerram na
inexpressividade, ou mesmo aquelas que nos causam desprezo ou repugnância,
podem irromper em epifania ou, melhor dizendo, dependendo de que olhos vejam, tudo
pode propiciar a visão epifânica, pois a epifania consiste, justamente, na revelação
espontânea — portanto isenta de motivações de natureza mística ou de impulsões
alucinatórias — da originalidade de cada instante presente contido na eternidade. Neste
sentido, se a epifania não é o milagre, como Olga de Sá adverte, ao menos concede ao
indivíduo, de certa maneira, dar um passo dentro dele.
No terreno da literatura, a epifania, nos termos de Olga de Sá, “extrapolando de
sua origem bíblica, será transformada, por Joyce, em técnica literária, contribuindo,
dessa forma, para matizar os acontecimentos cotidianos e transfigurá-los em efetiva
descoberta do real” (SÁ: 2000, p.166). Na obra de Lispector, por sua vez, a insinuação,
por meio da epifania, da derrocada das formas convencionais de enfrentamento da
realidade, além da própria possibilidade de subvertê-la, destaca-se “como um de seus
mais eficazes procedimentos” (Ibid, p.206). Em A paixão segundo G.H., obra em que
mais se acirra, em nossa opinião, essa potencialidade transgressora do fenômeno
epifânico, tal experiência ocorre, sobremaneira, no momento de manducação da barata,
por cujo asco a personagem desce ao fundo de suas contradições, pois “Muitas vezes,
como marca sensível da epifania crítica, surge o enjôo, a náusea. A transfiguração não
é radiosa, mas se faz no sentido do mole, do engordurado, do demoníaco” (Ibid, p.199).
Diferentemente, no entanto, de outras narrativas de Lispector em que o mesmo
procedimento pode ser verificado, em A paixão segundo G.H. a personagem decide
narrar a sua epifania, fazendo-a, assim, ter efetivamente existido, pois, “Segundo a
lição de Joyce, é na página escrita, na alta montagem dos recursos de estilo, que se
configura o momento epifânico. Fora da página, ele não existe” (Ibid, p.206).
Mais ainda do que permitir a existência da epifania, o discurso confere
consistência histórica ao tempo de maturação do fenômeno epifânico, até seu momento